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Made

centro de
pesquisa em
macroeconomia
das desigualdades Nota de Política 30.05.23 nº 040
Econômica

Sistemas
agroflorestais na
Amazônia

Ricardo Folhes, Danilo


Araújo Fernandes,
Francisco de Assis Costa,
Harley Silva & Raul
Ventura Neto
Resumo executivo 30.05.23 nº 040

A maior parte das emissões de gases de efeito estufa advindas dos


países com florestas tropicais está relacionada à conversão de
florestas de elevada biodiversidade em monoculturas
agropecuárias, como soja, milho, pasto e florestas plantadas. Tal
fenômeno ocorre impulsionado por um ambiente institucional
Folhes, Ricardo [1]; Fernandes,
nacional e internacional que fornece pesquisa e crédito fartos para Danilo Araújo [2]; Costa,
a difusão de pacotes tecnológicos homogeneizadores orientados Francisco de Assis [3]; Silva,
pelo paradigma mecânico-químico-genético (PMQG). As medidas Harley [4]; Neto, Raul Ventura
de mitigação das mudanças climáticas implantadas no campo da [5]. Sistemas agroflorestais na
Amazônia (Nota nº 040).
agropecuária mantêm atualmente os fundamentos tecnológicos
MADE/USP.
do PMQG. No entanto, a partir da década de 1970, os efeitos
perversos da expansão agropecuária sobre a sociobiodiversidade made.feausp@gmail.com
nos trópicos úmidos levariam, dialeticamente, ao reforço de uma
agenda político-científica alternativa interessada em potenciar [1] Doutor em Ciências
trajetórias tecnológicas capazes de reconciliar as interações Ambientais e professor do
ecológicas e econômicas entre agricultura e floresta, NAEA/UFPA; [2] Doutor em
Desenvolvimento
institucionalizando um campo de interesses em torno do que se
Socioambiental de professor
convencionou chamar de sistemas agroflorestais (SAF), no âmbito do NAEA/UFPA; [3] Doutor em
do que denominamos paradigma agroflorestal. Nesta Nota de Economia e professor do
Política Econômica (NPE), tentamos chamar atenção para o fato de NAEA/UFPA; [4] Doutor em
que a necessária mudança nas formas predatórias das relações Economia e Professor do
PPGE/UFPA; [5] Doutor em
entre sociedades e natureza na Amazônia, e sua relação atual com o
Economia e Professor do
debate sobre bioeconomia, passa pela busca de uma reconciliação PPGE/UFPA.
urgente das formas de produção de conhecimento sobre as
interações socioecológicas entre sociedades, agriculturas e Os autores agradecem às
florestas nos trópicos úmidos. Não obstante essa reconciliação Open Society Foundations e
deva operar nas mais diversas estruturas de produção existentes no pelo apoio. Ainda, agradecem
pela leitura atenta e preciosos
agrário, destacamos que um projeto de desenvolvimento regional
comentários, correções e
em bases sustentáveis, que seja eficaz no combate à predação sugestões dos colegas do
ecológica e às desigualdades sociais, deve impulsionar trajetórias Made/USP, Gilberto Tadeu Lima
tecnológicas orientadas pelo paradigma agroflorestal. e Pedro Romero Marques.
Agradecem, finalmente, à
edição de Maria Fernanda
Sikorski.
1. Introdução (2022a) e Costa (2022b), demonstrou-se,
vigorosamente, o erro dessas interpretações.
Na década de 1970, o monitoramento sistemático da
superfície terrestre por satélites óticos permitiu maior Em meio e em paralelo a tudo isso, um novo campo de
acurácia e regularidade da detecção e interpretação pesquisa começa a ser estimulado, buscando
das mudanças no uso e cobertura da terra em escala investigar alternativas de padrões tecnológicos que
global, mostrando de forma irrefutável a gravidade do pudessem alcançar uma maior aderência em relação à
avanço das taxas anuais de desmatamento de capacidade de conservação e melhor aproveitamento
florestas tropicais, devido à expansão da agropecuária, dos recursos florestais disponíveis em diversas regiões
silvicultura e da exploração madeireira predatória tropicais do planeta. No entanto, a dominância da
(KAIMOWITZ; ANGELSEN, 1998). Paralelamente, a visão dicotômica entre agricultura e floresta ao
quantificação das contribuições do desmatamento considerar esta última um obstáculo para a expansão
para as mudanças climáticas consolidou o do setor agrícola, manteve-se ainda hegemônica,
reconhecimento de que a maior parte das emissões de alimentando e reforçando uma perspectiva em que o
gases de efeito estufa advindas dos países com desenvolvimento econômico de base rural
florestas tropicais estava relacionada à conversão de necessariamente iria encontrar no desmatamento sua
florestas de elevada biodiversidade em monoculturas condição final quase inevitável (ARAÚJO e LÈNA, 2010).
agropecuárias, como soja, milho, pasto e florestas Os efeitos perversos da expansão agropecuária sobre
plantadas. a sociobiodiversidade nos trópicos úmidos levariam,
Na Amazônia, a combinação, em diversos níveis, de dialeticamente, ao reforço, portanto, de uma nova
constatações científicas de grande impacto sobre a agenda político-científica interessada em potenciar
avaliação de políticas de desenvolvimento até então trajetórias tecnológicas capazes de reconciliar as
implementadas na região e o contexto de interações ecológicas e econômicas entre agricultura
consolidação do conceito de desenvolvimento e floresta.
sustentável no âmbito das Nações Unidas, criou um Desta forma, institucionalizou-se um campo novo de
ambiente intelectual de forte reflexão crítica em interesses que, desde a década de 1970, vinha se
relação aos rumos das políticas de desenvolvimento consolidando em torno do que se convencionou
rural que haviam sido desenvolvidos na região desde a chamar de sistemas agroflorestais (SAF). Podemos
implementação da chamada Operação Amazônia compreender esse novo campo como uma aposta no
(1966)1. Tal fenômeno ocorreu impulsionado por um desenvolvimento de um novo paradigma
ambiente institucional nacional e internacional que tecnocientífico, em que trajetórias alternativas de
provia pesquisa e crédito fartos para a difusão de busca de soluções tecnológicas para a agricultura e o
pacotes tecnológicos na agropecuária sob forte manejo florestal nos trópicos úmidos transcorrem no
mediação do chamado paradigma mecânico-químico- âmbito do que denominamos paradigma
genético (PMQG)2. Esses pacotes foram fortemente agroflorestal (COSTA, 2022; FERNADES, 2022). Nesses
difundidos no Brasil a partir de políticas públicas que termos, o paradigma agroflorestal é aquele que orienta
viriam consolidar o que se chamaria “Revolução a busca de soluções tecnológicas para a criação de
Verde”. capacidades de interação entre agricultura e floresta
A importância desta trajetória de inovação foi tão tendo como referências principais o funcionamento
expressiva que mesmo quando no início da década de de ecossistemas e biomas e o conhecimento
2000 a crise climática já estava consolidada, as tradicional associado à agricultura, florestas e
medidas de mitigação das mudanças climáticas biodiversidade.
implantadas no campo da agropecuária mantiveram Marca-se, desta forma, uma diferença importante.
os fundamentos tecnológicos do PMQG. A crença de Enquanto o PMQG tem como referência maior o
que a intensificação química, mecânica e genética conhecimento produzido pela ciência ocidental
resultaria em aumento de produção e produtividade orientada pelo contexto da expansão urbano-
agrícolas passou a ser operada como uma panaceia industrial europeia, o paradigma agroflorestal, por sua
para o controle das taxas anuais de desmatamento e vez, tem como fonte de referência maior o
emissões de CO2, pois, supostamente, evitaria o conhecimento sobre o funcionamento dos
avanço da fronteira agropecuária para novas áreas ecossistemas e os usos da biodiversidade produzido
florestais (FOLHES & FERNANDES, 2022). Em Costa por grupos étnicos ancestralmente localizados nos
trópicos, povos e comunidades tradicionais e por
campesinatos de regiões tropicais úmidas como a

1
Esse movimento crítico vinha se aprofundando desde o processo de aviões, drones, sistemas de irrigação, bombas hidráulicas etc.,
redemocratização do país ao longo dos anos de 1980, chegando no potencializados pela eletrônica e informática) e implementos (grades,
início dos anos de 1990 em um momento importante em que essa arados, sulcadores, etc.); (b) da química, ou seja, agrotóxicos
discussão se afunila no debate internacional sobre estratégias de destinados ao controle de insetos, roedores, nematoides, fungos, vírus,
desenvolvimento sustentável. bactérias e de plantas consideradas “daninhas” ou invasoras”, além de
2
Por PMQG compreendemos a dinâmica de evolução e solução de fertilizantes aplicados em solos ou diretamente em plantas;
problemas tecnológicos de base rural baseados em saber procedimentos de pós-colheita para prolongar a vida-média de
especializado em princípios da mecanização, da química e da genética; alimentos na pós-colheita, etc.; (c) do manejo biológico e genético de
em que se pressupõe o controle, homogeneização e simplificação das plantas e animais (melhoramento da capacidade produtiva de plantas,
características biológicas e ecológicas de diferentes biomas e animais e sementes; produção de organismos geneticamente
ecossistemas. Desta forma, esse paradigma procura afirmar-se por modificados; substituição da perda de diversidade in situ pela
busca de soluções tecnológicas baseadas no uso intensivo: (a) da instalação de bancos de germoplasma ex situ, etc.).
mecânica, ou seja, de máquinas (tratores, semeadoras, colheitadeiras,
1
Amazônia. A pesquisa e a experimentação científica agricultura ou o extrativismo, seria o principal vetor de
orientada pelo paradigma agroflorestal parte desse progresso civilizatório para a Amazônia. A agricultura
conhecimento (COSTA, 2019) e com ele busca tecer era entendida por uma fração das elites como
interações, constituindo um campo acadêmico sinônimo de modernidade e racionalidade científica,
marginal, mas ativo (PORRO, 2009). enquanto o extrativismo era visto como sinônimo de
Em trabalhos anteriores (COSTA et al, 2022; atraso. O texto de Oliveira evidencia um ideário de
FERNANDES et al, 2022; COSTA, 2022), apresentamos progresso defendido pela fração intelectualizada das
a dimensão econômica do que se convencionou elites regionais embasado pelo modelo de agricultura
chamar de trajetória tecnológica orientada pelo praticado em países de clima temperado. Tal modelo,
paradigma agroflorestal, a trajetória tecnológica T2 na virada dos séculos XIX e XX, residia na
(trajetória camponesa agroextrativista), em suas homogeneização dos sistemas agrícolas e na sua
duas variantes, SAF Floresta (SAF F) e SAF Agricultura submissão a um pacote de tecnologias mecânicas,
(SAF A). Seus sujeitos são os camponeses que químicas e genéticas.
desenvolveram formas sofisticadas de manejos A biodiversidade não tinha valor moral, econômico,
múltiplos da floresta ou que se encontram em vias de ético e nem ecológico nesse modelo civilizatório, ao
transição para cultivos agroflorestais. Aqui, iremos de contrário, apresentava-se como um problema a ser
maneira complementar às notas anteriores, enfrentado pelas tecnologias agrícolas modernas. A
aprofundar o debate sobre esses conceitos, resolução do problema passava pela aniquilação da
apresentando seus fundamentos e processos de floresta, indígenas e camponeses que no manejo
construção mais imediatos, desenvolvidos a partir da “agrícola” das florestas encontravam a base para a sua
consolidação de instituições científicas no âmbito reprodução social.
nacional e internacional. O que viria a fortalecer uma
nova agenda no campo do debate sobre bioeconomia Ao longo do século XX, houve considerável reforço
em regiões tropicais. institucional desse ideário agrícola e civilizatório e o
paradigma tecnológico mecânico-químico-genético
Nesta Nota de Política Econômica (NPE), tentamos foi gradativamente se tornando dominante no campo
chamar atenção para o fato de que a necessária
político e científico no Brasil e na Amazônia. A
mudança nas formas predatórias das relações entre
premissa básica orientada pelo PMQG era desenvolver
sociedades e natureza na Amazônia passa pela busca
de uma reconciliação urgente das formas de produção tecnologias que substituíssem o papel da natureza e
de conhecimento sobre as interações socioecológicas minimizassem a demanda por trabalho nos sistemas
entre sociedades, agriculturas e florestas nos trópicos agrícolas, para tanto, estes deveriam ser homogêneos
úmidos. Não obstante essa reconciliação deva operar e submetidos a padrões de procedimentos rotinizados
nas mais diversas estruturas de produção existentes na forma de um imenso desprezo à ecologia e a
no agrário, destacamos que um projeto de biodiversidade (FOLHES & FERNANDES, 2022).
desenvolvimento regional em bases sustentáveis, que
seja eficaz no combate à predação ecológica e às COSTA (1991) mostra como esse ideário esteve
desigualdades sociais, deve impulsionar trajetórias impregnado no projeto Ford na região do Baixo
tecnológicas orientadas pelo paradigma agroflorestal. Amazonas, Pará, nas primeiras décadas do século XX,
Sendo assim, o objetivo desta NPE é apresentar os quando buscou-se implementar plantations de
fundamentos e a evolução de um campo de interesses seringueira para a produção de borracha; projeto
científicos dirigidos à trajetória agroextrativista e aos fracassado pela dificuldade de controle tanto da
sujeitos e grupos sociais que a movimentam. natureza como do trabalho humano nas condições
Buscamos ressaltar sua importância ecológica, amazônicas de então. Apesar do monumental fracasso
econômica e ambiental na Amazônia do século XXI.
do empreendimento implementado por Henry Ford, o
Depois dessa introdução, resgatamos na seção 1 as ideário de uma agricultura industrial e de grande
visões dicotômicas sobre agricultura e floresta que escala obteria ainda maior apoio institucional com os
permeiam o imaginário nacional e amazônico até os militares, após o golpe de 1964. Folhes & Camargo
dias de hoje. Na seção 2, apresentamos as principais (2011) resgatam esse contexto na implantação do
nuances e categorias do debate científico que orientou projeto Jari, nos limites dos estados do Pará e Amapá,
uma agenda política dirigida aos SAF e PFNM, a partir onde mais de 300.000 hectares de florestas nativas
da década de 1970. Na seção 3, discutimos a foram ao chão para a implantação de florestas
importância da retomada do interesse pelos SAFs e homogêneas (primeiro guimelina e pinus, depois
PFNM e argumentamos sobre as possibilidades de eucalipto).
acreditarmos em ambos como instrumentos para o
desenvolvimento regional sustentável. Na sequência, Em todo o mundo, é vultoso o registro científico das
tecemos algumas recomendações de políticas e relações diretas entre a expansão territorial da
fazemos nossas considerações finais. agricultura industrial baseada em sistemas agrícolas
homogêneos e o aumento das taxas de
desmatamento nos trópicos úmidos (ROSS, 2011),
2. Agricultura e floresta: uma difícil conciliação? contribuindo para que as alterações no metabolismo
ecológico global fossem percebidas e registradas
Em O Caboclo e o Brabo (1979), João Pacheco de desde então no sentido de “uma entropia crescente”
Oliveira resgata com maestria um debate corrente (DELÉAGE, p. 211, 1991).
entre as elites paraenses ao final do século XIX: os
desacordos sobre qual atividade econômica, a
2
Um elemento fundamental a essa expansão foi a inicial das monoculturas de árvores, como destaca
difusão das tecnologias agrícolas a partir da criação de Nair (1993) sobre a proliferação do sistema de Taungya,
instituições de ensino, pesquisa e extensão, cujos desenvolvido para a produção de teca (Tectona
modelos foram transplantados dos países grandis), que se espalhou pelo sudeste asiático, sul da
industrializados para os países tropicais (FOLHES & África e algumas regiões da América Latina (KING,
FERNANDES, 2022). 1998). Para esse autor, desde então, por onde o
Taungya se espalhou (ou outros sistemas
Nesse escopo geral de pesquisa agrícola e extensão
assemelhados), os cultivos comerciais passaram a ser
rural, as técnicas biológicas, em convergência com a
agrícolas ou florestais, estes últimos baseados na
mecânica e a química, foram dirigidas à agricultura
exploração do trabalho de camponeses sem terra ou
tropical e subtropical no âmbito da operacionalização
tentando removê-los da terra o mais rapidamente
de pacotes tecnológicos associados à Revolução
possível. Admitiu-se muitas vezes que seria vantajoso
Verde (EHLERS, 1999) com o apoio de uma rede
economicamente substituir florestas nativas
internacional de centros de pesquisa agrícola que anos
supostamente “abandonadas” ou de “baixo
depois teria guarida no Grupo Consultivo para a
rendimento” por plantações florestais homogêneas,
Pesquisa Agrícola Internacional, apoiado por governos,
como foi o caso do Projeto Jari na Amazônia. Era
agências multilaterais e fundações do mundo
sintomático o profundo desconhecimento e
ocidental (GOODMAN et al, 1988). O empenho
desinteresse pela complexidade das técnicas e
tecnológico para transformar florestas, várzeas,
tecnologias praticadas nos trópicos.
savanas e desertos em espaços produtivos
homogêneos geraram deslocamentos humanos Nesse sentido, a implantação da rodovia
compulsórios, desmatamento, poluição e destruição transamazônica no estado do Pará e às suas margens
de ecossistemas e biomas de países tropicais (ROSS, de projetos de colonização (PIC) a partir do início da
2017). década de 1970, trazem uma passagem emblemática.
A instalação dos PIC Altamira e Itaituba (TORRES,
Mas teriam sido sempre imaginados e manejados de
2012) em plena floresta tropical úmida ocorreu em
forma dicotômica assim, a agricultura e a floresta?
território considerado vazio pelos militares, uma
Podemos com convicção afirmar que não.
“selva” que nos PIC deveria ser substituída por cana-
Mesmo em países de clima temperado, a presença de de-açúcar, arroz e pastagens, mas que na prática era
árvores e florestas em sistemas de produção agrícola território de grupos étnicos indígenas. O principal
foi decisiva para a manutenção da fertilidade dos solos deles, os Arara foram violentamente expulsos dali e
por longos períodos. O uso do pousio de áreas agrícolas confinados mais ao sul, entre a rodovia e o rio Iriri.
para a regeneração de matas secundárias foi prática Smith (1975) fez um brilhante registro das roças e
corrente até pelo menos o século XIX. Depois, esse capoeiras abandonadas pelos Arara em fuga diante do
sistema de manejo seria profundamente alterado pela avanço da colonização. Para o autor, as roças e
diminuição do tempo de pousio como consequência capoeiras abandonadas eram uma fonte valiosa de
direta da expansão e intensificação da produção informações sobre a elevada integração entre
agrícola em decorrência do aumento da demanda por espécies agrícolas e florestais bem adaptados às
víveres e matérias-primas nas sociedades urbano- condições ecológicas da região e deveriam ser levados
industriais (BOSERUP, 1987 apud EHLERS, 1999). em consideração pelos migrantes que ali chegavam,
pois simulavam a estrutura da floresta, propiciavam
Por outro lado, a experiência colonial europeia boa proteção ao solo, farta e variada produção de
permitiu o registro nos trópicos úmidos de alimentos e controle de pragas e doenças. Cenário
conhecimentos e práticas agrícolas que eram muito diferente das áreas agrícolas implantadas na
estranhas aos europeus, pois combinavam agricultura transamazônica pelos colonos.
e floresta numa mesma parcela de manejo. O objetivo
dessas práticas era conjugar a diversidade de espécies O registro feito por Nigel Smith na transamazônica
no tempo e no espaço, entre plantas anuais, semi- ocorreu no início da década de 1970, momento em que
perenes e perenes, mantendo o foco na produção se constituía um campo de estudos sobre os SAF,
conforme visto em mais detalhes na próxima seção.
diversificada de espécies alimentares e naquelas
utilizadas para a confecção de ferramentas,
3. A evolução de uma agenda de pesquisa em
construções, remédios etc. A floresta era
sistemas agroflorestais
indispensável para as condições ecológicas de
produção pois por meio da ciclagem de nutrientes
As expressões Sistema Agroflorestal ou
(galhos, folhas, raízes, árvores...) obtinha-se os Agroflorestas passam a ser utilizadas na literatura
elementos fundamentais para a nutrição de solos e acadêmica, relatórios da cooperação internacional e
plantas (KING, 1987; NAIR, 1995). em mobilizações de movimentos sociais na década de
1970, mas ganham popularidade, sobretudo, na
A partir do final do século XIX, a produção de árvores década de 1990, principalmente como parte da crítica
para suprir a demanda mundial por madeira na forma aos estragos ecológicos e sociais que o PMQG gerava
de monoculturas de espécies florestais diminui a nos trópicos úmidos por meio das monoculturas
importância da produção de alimentos nos consórcios agrícolas e silviculturais.
de espécies agrícolas e florestais. As espécies agrícolas
cultivadas para suprir alimentos passam, no máximo, Como já comentado, ao final da década de 1970, os
a serem incorporadas apenas na implementação SAFs passam a ser vistos, ainda que de forma marginal,
3
como uma alternativa para o desenvolvimento interesse reforçado com o advento da crise climática e
agrícola dos trópicos úmidos (CATTERSON, 1984). De o conhecimento de suas causas. A menção a
um lado, para recuperar o passivo ambiental diversidade, dessa forma, refere-se à diversidade
(contaminação de águas e corpos, degradação de biológica, genética, social e de ecossistemas em
solos, perda de biodiversidade) causado pelo legado do paisagens transformadas pelo homem para o cultivo
PMQG, por outro, para explorar novas alternativas para de plantas (SANTILLI, 2009).
a composição da renda de campesinatos (PORRO,
2009).
3.1. A Institucionalização dos SAFs na agenda da
Desde então, uma grande diversidade de conceitos e
cooperação internacional
modelos de SAF vem sendo debatidos ao passo que
cresce igualmente o interesse sobre as possibilidades Na segunda metade da década de 1970, a cooperação
destes sistemas ocuparem lugar de destaque no internacional passou a organizar uma série de
desenvolvimento de uma agricultura integrada seminários e workshops sobre SAF. Em 1978, foi criado
ecologicamente aos fluxos de matéria e energia nos em Nairobi, Quênia, o Conselho Internacional para
trópicos úmidos. Pesquisa em Agroflorestas (ICRAF) que apoiaria,
planejaria e coordenaria, em escala global, a pesquisa
Um conceito preliminar de SAF3 o relaciona a um
em SAF. Uma dificuldade inicial encontrada pelo
sistema de produção que associa agricultura, floresta
ICRAF foi a inexperiência do seu quadro técnico para
e, em alguns casos, animais, dando origem a uma
lidar com os SAF, dada sua formação técnico-científica
tipologia generalista que divide os SAF em três tipos:
ser baseada nos sistemas agrícolas convencionais.
silviagrícolas (agricultura e floresta), silvipastoris
(floresta e pecuária) e agrossilvipastoris (agricultura, Em 2002, o ICRAF mudou de nome, passando a se
floresta e pecuária). chamar World Agroforestry Centre, desenvolvendo
Outro conceito clássico define agrofloresta como cooperações com várias outras instituições com
sendo “uma abordagem integrada de uso da terra que atuação em pesquisa e ensino dedicados à
engloba a conservação de árvores, ou a mistura de agrofloresta como, na América Latina e Caribe, o
árvores e outras plantas lenhosas perenes, em terras Centro de Ensino e Pesquisa Agropecuária Tropical
agrícolas ou pecuárias, para obter benefícios de (CATIE), sediado na Costa Rica, que abriga a Rede
interações econômicas e resultados ecológicos” Científica Agroforestal Latinoamericana: Agroforesta.
(NAIR, 1985).
Ainda na década de 1970, mesmo que marginalmente,
Não restrito às formas de produção camponesa, os SAF passam a ser integrados na formulação de
aparece intrínseco ao conceito a noção de que os SAF linhas de financiamento do Banco Mundial para
visavam melhorar o uso da terra e dos recursos projetos de desenvolvimento nos trópicos úmidos que
arbóreos, substituindo sistemas de produção chegaram a influenciar políticas de colonização
homogêneos que inibem em vez de promoverem a agrícola em florestas tropicais (NAIR, 1993). É
conservação do solo e das águas, gerando perda importante notar que tais projetos se replicaram em
progressiva de renda. Por outro lado, como muitos muitas regiões do mundo, lamentavelmente, muitas
analistas discutiam, as florestas mantinham-se vezes, derrubando florestas e subtraindo territórios de
algumas vezes de forma pouco precisa nos conceitos, grupos étnicos para a implantação de culturas perenes
ora como referência a florestas plantadas, ora a “arborizadas”.
florestas nativas (SOMARRIBA, 2012).
Foi o caso, por exemplo, da lavoura cacaueira nos
Dadas as múltiplas possibilidades e contradições que projetos integrados de colonização implementados na
um conceito amplo assim oferece, foram se afirmando Rodovia Transamazônica, aberta no coração da
definições que exploravam a experiência acumulada floresta amazônica, em território do povo indígena
pela observação da implantação dos SAF em Arara, na década de 1970. Depois de um período inicial
diferentes países e contextos, em suas formas de em que a ação governamental centrava no apoio ao
produção camponesa e patronal, mas que, grosso desmatamento para que fossem implantados além do
modo, possuíam algumas premissas elementares: os cacau, pastos, arroz, milho e cana-de-açúcar, passou a
arranjos espaciais e temporais do sistema de produção ocorrer a partir de 1976 a recomendação para a
se baseiam em certa diversidade de espécies implantação de lavouras perenes (principalmente
(lenhosas e não lenhosas) que interagem cacau e café) sombreadas por espécies nativas ou
biologicamente, permitindo também interações exóticas. O acesso a crédito e a sementes e mudas de
econômicas. O SAF mais simples é mais ecológico e cacau só ocorreria se durante a derrubada da floresta
economicamente complexo do que uma monocultura fossem deixadas algumas espécies arbóreas ou, no
ou um consórcio simples de espécies de interesse caso de implantação de lavouras em áreas já abertas,
agrícola (SOMARRIBA, 2012). se fossem plantadas mudas de espécies lenhosas nas
A valorização da importância da ecologia e da linhas ou entre as linhas dos pés de cacau. Nesse
diversidade para a agricultura tropical reforçou o arranjo que envolveu tanto recomendações técnicas
interesse científico sobre as interações tanto entre como articulações políticas, reforçou-se na Amazônia
espécies perenes e anuais, agricultura e floresta, como a importante trajetória institucional da Comissão de
também pelas práticas e conhecimentos tradicionais Planejamento da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) que no
associados aos sistemas agrícolas tradicionais; estado do Pará se mantém fiel ainda hoje às

3
No Brasil, o primeiro conceito oficial consta na Instrução Normativa em associação com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas, culturas
do Ministério do Meio Ambiente n° 5 de 08/09/2009 que definiu agrícolas, forrageiras em uma mesma unidade de manejo, de acordo
Agroflorestas ou Sistemas Agroflorestais como: sistemas de uso e com arranjo espacial e temporal, com alta diversidade de espécies e
ocupação do solo em que plantas lenhosas perenes são manejadas interações entre estes componentes. (BRASIL, 2009, Art. 2: § VI).
4
recomendações técnicas para o cultivo de cacau em grande diversidade de produtos, a partir de um manejo
SAF, num momento em que se amplia a trajetória que procura se integrar ao funcionamento do
tecnológica de produção de cacau em monoculturas à ecossistema florestal, gerando, por isso, uma grande
pleno sol. oferta de serviços ambientais; e os SAFs
“Agronômicos”, constituídos por poucas espécies
Na Amazônia, à prática e à experimentação
articuladas por baixos níveis de interação ecológica
agroflorestal organizada pela CEPLAC na que geram, finalmente, pouca diversidade de
Transamazônica e Rondônia, somou-se as produtos. O autor chega a uma importante conclusão:
experiências dos agricultores japoneses em Tomé-
Açu, Pará (YAMADA, 2009) e do Projeto Numa primeira análise, poderíamos dizer que estas
Reflorestamento Consorciado e Adensado (RECA), em influências simplesmente refletem diferenças
Rondônia (ALFAIA et al., 2009), entre outras entre a formação técnica dos engenheiros
experiências importantes. Ambos, durante a década agrônomos e dos engenheiros florestais, as duas
de 1980, contribuíram para que a pesquisa categorias profissionais mais presentes na área de
agroflorestal na Amazônia começasse a ser SAFs. Contudo, acreditamos que a questão é muito
sistematizada por instituições como a CEPLAC, a mais profunda do que a diferença entre as grades
curriculares. Lembramos que os Centros
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Agroflorestais da Embrapa na Amazônia foram
(Embrapa), o Instituto Nacional de Pesquisa da
criados (...) a partir de centros de “commodities”,
Amazônia (Inpa) por meio da Coordenação de Pesquisa
portanto, houve a migração (virtual) de técnicos
em Ciência Agronômicas (CPCA) e pela Rede Brasileira para a área agroflorestal, levando à sedimentação
Agroflorestal (Rebraf), que trabalhou na capacitação de conceitos e práticas no nível institucional, a
de técnicos e agricultores em meados da década de 90 partir de pensamentos pré-existentes. A disciplina
(BRIENZA et al, 2009; DUBOIS et al., 1996). agroflorestal, que era para ser inovadora, acabara
reproduzindo modelos agronômicos anteriores.
Outra institucionalidade importante foi a criação do
Porém, para não creditar somente aos agrônomos
Consórcio Iniciativa Amazônica para a Conservação e uma visão limitada de SAFs, é importante frisar que
Uso Sustentável dos Recursos Naturais (IA), criado em existem também proponentes de SAFs “florestais”
outubro de 2004 com o objetivo de elaborar e nos quais as espécies agrícolas são meros adendos
implementar programas colaborativos para identificar a um sistema basicamente silvicultural (MILLER, p.
e promover sistemas sustentáveis de uso da terra nos 541, 2009).
países amazônicos
Monge (1987) relata que um primeiro esforço de No trecho acima, Miller (2009) refere-se à
compilação bibliográfica da produção acadêmica permanência dos princípios do PMQG nos processos
sobre agroflorestas, realizado em 1981, contou com cognitivos que organizam a busca de soluções
680 referências bibliográficas, organizado pelo Centro tecnológicos para os SAFs, uma espécie de
de Documentação Agroflorestal do Serviço de dependência de trajetória semelhante ao que Nair
Informação e Documentação Florestal da América (1985) havia encontrado quase 25 anos antes no ato da
Tropical (INFORAT) e pelo Programa de Sistemas criação do ICRAF, no Quênia. Mas, a participação no
Agroflorestais (PSAF), ambos do CATIE. O mesmo CBSAF seguinte, realizado em 2002, na cidade de
esforço, realizado seis anos depois, já apresentava Ilhéus-BA, levou Miller a identificar o fortalecimento de
1.158 referências. um paradigma alternativo que o fez recategorizar os
Brienza et al (2009) catalogaram na Amazônia entre SAFs florestais em um novo paradigma, denominado
1980 e 2005, tendo como base o acervo documental por ele de paradigma agroecológico. Para o autor,
da Embrapa Amazônia Oriental e a Base de Dados da enquanto os SAF agronômicos teriam aumentado sua
Pesquisa Agropecuária (BDPAWeb), 460 referências vinculação ao PMQG, dever-se-ia admitir que as fontes
bibliográficas sobre SAFs na Amazônia brasileira, de conhecimento tecnológico dos SAF
admitindo que devido as limitações metodológicas da agroecológicos4 não adivinham do conhecimento
pesquisa, não conseguiram contemplar toda a científico formal, provinham, sobretudo, do
produção científica até a data limite da pesquisa conhecimento tradicional produzido por indígenas,
(2005). No estudo, os autores mostram que a produção povos e comunidades tradicionais e camponeses e
científica amazônica sobre SAF obteve um aumento pela interação destes conhecimentos ao
de cerca de 300% entre as décadas de 1980 e 1990, conhecimento técnico de agentes extensionistas de
alcançando a média 52 publicações/ano a partir do ano organizações públicas e privadas.
2000. Os autores atribuem esse crescimento ao
advento dos Congressos Brasileiros de Sistemas MULLER (2009) destaca que no plano do manejo de
Agroflorestais (CBSAFs) realizados a partir de 1994. espécies, o SAF agroecológico apresenta elevada
complexidade em termos de interações ecológicas
Analisando os três primeiros CBSAFs realizados em entre espécies vegetais, solos, microbiota, vegetação e
Porto Velho (RO), Belém (PA), e Manaus (AM), em 1994, atmosfera. A referência à sintropia justifica-se pelo
1998 e 2000, respectivamente, MILLER (2009) fato do manejo desses SAF mirarem o aproveitamento
classificou os SAF em dois paradigmas agroflorestais: da energia gerada pela luminosidade solar, água e
os SAFs “Florestais”, baseados no uso de um grande biomassa em favor do próprio crescimento do sistema
número de espécies que geram a obtenção de uma durante os processos de sucessão primária e

4
Reconhecemos que a agroecologia enquanto movimento político, ou reconhecimento de direitos territoriais, étnicos e identitários, o
mesmo ciência, engloba conceitos mais amplos do que o plano combate às desigualdades sociais, inclusive, as desigualdades
meramente técnico orientado por preocupação ecológica, como por expressas na estrutura fundiária concentrada na Amazônia.
exemplo, o debate das soberanias (alimentar, energética etc.), do
5
secundária, minimizando, ou reduzindo a entropia a SAF e das possibilidades de complexificação da
níveis muito baixos. variante SAF A em direção a variante SAF F.

Não se trata apenas, nesse caso, de se realizar rotações 4. SAF e o desenvolvimento regional:
ou consórcios entre culturas, mas sim compreender e recomendações de políticas para o fortalecimento
se aproximar de um modelo produtivo mais próximo de uma economia de base florestal na Amazônia
possível ao funcionamento do ecossistema,
manejando a produtividade primária, a sucessão Nas seções anteriores, chamamos atenção para o fato
natural e a luminosidade como as bases fundamentais de que paradigma agroflorestal. orienta
de fornecimento de energia e nutrientes (Muller, cognitivamente a busca de soluções tecnológicas
2009). numa perspectiva de gestão da diversidade e de
alcance de autonomia de fontes exógenas de energia e
Noção importante a esses sistemas é a de mosaico de nutrientes. É nessa perspectiva que nos interessam os
paisagens, que sugere uma interconexão espacial de debates recentes sobre a bioeconomia popularizados
SAFs em diferentes arranjos de espécies, florestas, nos últimos cinco anos na Amazônia e em outras
pastagens etc. Em cada unidade da paisagem, a regiões dos trópicos úmidos. Em outros lugares
depender das condições de solo, diversidade de (COSTA et al, 2022; FERNANDES et al 2022a; 2022b),
espécies, idade das plantas, condições de drenagem e argumentamos que os significados e as agendas
luminosidade e do conhecimento do agricultor, o políticas atribuídas à bioeconomia evoluem por
manejo e as práticas culturais podem ser alterados. caminhos distintos e que os caminhos que julgamos
Vale notar que no geral estamos diante de dois ser aderentes aos SAF são os trajetos compatíveis com
movimentos possíveis e complementares. Um, no qual aquilo que podemos chamar de bioeconomia
o ganho de diversidade passa a ocorrer a partir da bioecológica, pois valorizam processos ecológicos que
integração de árvores nos sistemas agrícolas. Outro, otimizam o uso de energia e nutrientes com base na
em que cultivos agrícolas são realizados nas áreas biodiversidade, em oposição à monocultura e
onde predominam florestas (PORRO, 2009). degradação do solo e da biodiversidade dos outros
trajetos.
Podemos abstrair a divisão paradigmática proposta A via bioecológica refere-se a um paradigma
por Miller (2009) e os dois movimentos ressaltados por agroflorestal, porque orienta soluções produtivas que
Porro (2009) de maneira muito próxima às duas ampliam o papel da natureza no processo produtivo,
variantes da trajetória tecnológica T2, conforme valorizando a diversidade. Nesse sentido, nos
discutido em COSTA (2022), para quem: referimos a essas economias como economias
baseadas no Bioma Amazônico. São economias que
A T2 é uma expressão da evolução adaptativa do apresentam caminhos tecno-produtivos baseados em
modo camponês de produção em contextos diversos sistemas de interação entre sociedade e
amazônicos que permitiram o estabelecimento de natureza, profundamente correlacionados com a
padrões reprodutivos duradouros. A depender das conservação e recuperação da floresta amazônica em
condições vigentes nos territórios, viabilizaram-se sua sociobiodiversidade. Essas rotas estão, em grande
estratégias produtivas das famílias que medida, também organicamente ligadas às
terminaram por afirmar, por diferentes caminhos, comunidades rurais e às bases urbanas, associadas à
SAFs: ou a partir do manejo dos recursos originários diversidade de usos e manejos dos recursos da
do bioma, numa espécie de “extrativismo biodiversidade da floresta amazônica. Estes
dinâmico” com base no próprio bioma amazônico – elementos constituem a base de uma economia real
que podemos associar ao conceito de bioeconomia
nesse caso, trata-se de SAFs-F; ou por soluções
bioecológica.
agrícolas, em sucessões ou combinações que
procuram imitar as qualidades do bioma, numa
espécie de “agricultura holística”, diversa e Para impulsionar esse trajeto é preciso mudar o
paradigma que domina as instituições de ciência,
complexa – a que podemos tratar como SAFs-A
tecnologia, educação e crédito em favor do paradigma
(COSTA, 2022).
agroflorestal. Para tanto, é indispensável considerar e
valorizar a diversidade de ecossistemas em suas
Podemos observar que tanto em Miller (2009) quanto múltiplas interações com a diversidade social que os
em Costa (2022), há uma tensão (ou possibilidades de constituem. As bases fundamentais para a ampliação
transição) na variante tecnológica SAF A: de estruturas das capacidades científicas do tratamento dos SAF
de produção baseadas na homogeneização para demandam de uma aproximação entre o
estruturas que possam aumentar a diversidade de conhecimento de pesquisadores, técnicos e
espécies, diminuindo assim a necessidade de insumos agricultores (em sua multiplicidade étnica e
externos (agrotóxicos e insumos químicos), ou a identitária) em arranjos que respondam aos interesses
passibilidade do sistema seguir o caminho contrário. de ambos. A pesquisa, desse modo, deve ter caráter
Assim, o SAF A seria compatível a uma categoria que interdisciplinar e transdisciplinar, envolvendo
tanto abriga o movimento de transição de trajetórias cientistas naturais, sociais e das ciências agrárias em
camponesas vinculadas ao PMQG para o paradigma processos de produção de conhecimento construídos
agroflorestal, como tem potencial de perder adesões com técnicos de agências governamentais, não
em casos de agroflorestas mal delineadas. governamentais e privadas e, sobretudo, com
agricultores.
Há um campo fértil e urgente para políticas que
estimulem essas transições: de trajetórias Em Alternativa Agroflorestal na Amazônia em
tecnológicas camponesas baseadas no PMQG para Transformação, publicado em 2009 - um livro
6
fundamental para se compreender as trajetórias de processamento de produtos florestais e
desenvolvimentos científico e tecnológico dos SAF e a agroindústrias; entre outros) para o alcance de maior
constituição das redes técnicas e sociais que lhe autonomia local para o desenvolvimento de soluções
davam guarida - Roberto Porro faz a síntese de um tecnológicas para os problemas produtivos locais e
longo debate que envolveu pesquisadores, regionais (SILVA et al 2022).
agricultores e técnicos para juntos traçar os caminhos
Deve-se fortalecer os processos de reforma agrária e
de políticas que poderiam reforçar a expansão dos
de reconhecimento de direitos territoriais e fundiários
SAFs na Amazônia. Recuperamos aqui alguns fatores
para estratégias de uso comum dos recursos naturais.
considerados relevantes pelos autores para se fazer
Os SAFs são modelos de uso sustentável que
recomendações de políticas.
demandam estabilidade de longo prazo aos
Para os autores, seria fundamental o estímulo a assentamentos de agricultores. Por fim, políticas de
pesquisas participativas e ao desenvolvimento de compras públicas e de apoio a construção de novos
metodologias adequadas para extensão rural e difusão mercados com foco em segurança alimentar e
de conhecimento sobre os SAFs. Nesse sentido, a nutricional (como PAA e a PNAE) são fundamentais
criação de um Rede Agroflorestal Amazônica, de para o fortalecimento e ampliação de mercados locais
caráter transdisciplinar, deveria ser parte importante e regionais para os produtos da sociobiodiversidade
do ambiente institucional capaz de gerar manejados em SAFs A e SAF F.
conhecimentos, experimentações, tecnologias,
políticas públicas, marco legal, formação técnica e
5. Considerações finais
instrumentos de apoio a produtores organizados, por
meio do adensamento das redes de pesquisa,
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)
experimentação, produção, formação e extensão.
Evidentemente, deve-se reforçar as importantes redes estimou que o desmatamento no período de 01 agosto
de capacidades já existentes, tanto formadas por de 2020 a 31 julho de 2021 foi de 13.235 km2, um
instituições de pesquisa e ensino (institutos nacionais aumento de 21,97% em relação a taxa de
de pesquisa, universidades etc.) como por desmatamento apurada no mesmo período em 2020
organizações e movimentos sociais da sociedade civil para os nove estados da Amazônia Legal Brasileira
já existentes, como o Movimento dos Sem-Terra (MST), (PRODES, 2021). De acordo com o MapBiomas, entre os
a Associação Nacional de Agroecologia e a Associação anos de 1985 e 2020, a perda líquida de vegetação no
Brasileira de Agroecologia, entre muitas outras. bioma Amazônico (balanço entre perda por
desmatamento e ganho com regeneração) foi de 44,5
Com igual importância, deve-se reforçar à implantação milhões de hectares: 38 milhões de hectares se
e gestão das agroflorestas com autonomia para os transformaram em pasto, enquanto 6 milhões de
regimes de manejo e a busca por soberanias hectares de florestas deram lugar a áreas agrícolas.
(alimentares, energéticas etc.) de indígenas, povos e Trajetórias tecnológicas orientadas pelo paradigma
comunidades tradicionais e camponeses. A mecânico-químico-genético são dominantes nessas
organização da (s) rede (s) e das suas principais áreas, evidenciando uma profunda ruptura no modelo
estratégias devem passar por consultas municipais, de avanço da agropecuária em relação a um possível
estaduais e regionais com ampla participação da padrão alternativo de agricultura com floresta.
sociedade civil organizada. Nesse sentido, o apoio
técnico-financeiro para os SAFs deve focar em As trajetórias tecnológicas patronais que impulsionam
convênios com cooperativas, associações, federações a expansão da pecuária, soja, milho e de florestas
ONGs, assentamentos de reforma agrária e unidades plantadas em sistemas homogêneos (monoculturas)
de conservação de usos sustentáveis, entre outras avançam em ritmo acelerado na Amazônia, e
categorias territoriais. representam vetores de perda de biodiversidade e
aprofundamento das desigualdades econômicas e
Vale retomar recomendações tecidas em Fernandes
sociais regionais. Trajetórias tecnológicas
et al (2022) que aludem para o fato de que o
camponesas orientadas para especialização e
fortalecimento de estratégias de desenvolvimento
intensificação mecânico-química da produção
tecnológico para a produção de SAFs envolve o
agrícola e agropecuária também se fazem presentes e
aprimoramento dos processos de constituição de
são estimuladas pelo ambiente institucional que lhes
saberes sobre manejo de ecossistemas complexos.
são favoráveis (COSTA et al, 2022)5.
Nesse sentido, ciência e tecnologia na Amazônia
devem ser orientados para o desenvolvimento de Por outro lado, de forma marginal, desenvolvem-se na
tecnologias ancoradas em princípios de diversidade e Amazônia trajetórias orientadas pelo paradigma
complexificação e não de homogeneização e agroflorestal, impulsionada, por sua vez, por
simplificação de paisagens. Deve-se igualmente formações camponesas e seu conhecimento sobre a
estimular estratégias de apoio a atividades técnicas, diversidade biológica, genética, social e de
financeiras e de serviços complementares ao que se ecossistemas. Nessa NPE mostramos que os SAFs, se
produz nos SAFs, tais como, a produção de bens, constituem historicamente como um campo de
tecnologias e serviços que muitas vezes se organizam pesquisa acadêmico que se consolida como agenda
em setores complementares (transversais), e que entre as décadas de 1970 e 1990, a partir de interações
devem ser considerados estratégicos para uma tecidas com o conhecimento tradicional sobre os usos
economia baseada em complexidade e diversidade e manejos da biodiversidade. E que, a partir das últimas
(construção de máquinas e equipamentos de apoio ao décadas, se forma um novo campo de reflexão e

5
Como pano de fundo institucional dos avanços das últimas décadas continuam ganhando espaço e se desenvolvendo de forma bastante
das trajetórias tecnológicas de orientação patronal e camponesa rápida e profunda nas instituições de pesquisa da região.
baseada em padrões mecânico-químico-genético, existe um grande
aparato de pesquisa e desenvolvimento de processos e produtos que
7
pesquisa acadêmica em diversas instituições e COSTA, F. A. Da estrutura fundiária à dinâmica do
ambientes de pesquisa que, apesar de minoritários, se desmatamento: a formação de um mercado de terras
mantém bastante atuantes na região. na Amazônia (1970–2017). (Nota de Política Econômica
no. 019). Centro de pesquisa em macroeconomia das
Olhando o cenário de evolução recente das diversas
desigualdades, MADE-FEA/USP. 2022a.
trajetórias tecnoprodutivas do agrário da Amazônia, a
constatação dos efeitos perversos da expansão
agropecuária sobre a sociobiodiversidade nos trópicos COSTA, F. A. Racionalidade do Mercado de Terras na
úmidos demanda o reforço emergencial dessa agenda Amazônia: impactos e perspectivas no caso do Pará.
político-científica alternativa. Para isso, se faz Centro de pesquisa em macroeconomia das
necessário investimentos massivos na contramão dos desigualdades. (Working Paper) MADE-FEA/USP.
projetos hegemônicos de pesquisa agropecuária 2022b.
ancorados no avanço de monoculturas, assim como na
consolidação de fortes redes de pesquisa e extensão COSTA, F. A. A economia dos sistemas agroflorestais
com o objetivo de potencializar o desenvolvimento de na Amazônia: uma trajetória crítica para o
trajetórias tecnológicas alternativas, capazes de desenvolvimento sustentável. (Working Paper nº 012).
reconciliar as interações ecológicas e econômicas Made/ USP.
entre agricultura e floresta. O desenvolvimento dos
SAFs, nas suas duas variantes, SAFs-F e SAFs-A COSTA, F. A.; FERNANDES, D.; FOLHES, R.; SILVA, H;
(Fernandes et alii, 2022), são exemplos concretos VENTURA NETO, R. Desenvolvimento Sustentável e
dessa possibilidade. Bioeconomias na Amazônia: delineamento para a ação
Neste sentido, devemos investir em um modelo e programática. (Working Paper) MADE-FEA/USP. 2022.
agenda de pesquisa científica, tecnológica e de difusão COSTA, F. A.; CIASCA, B. S.; FOLHES, R. T.; SOLYNO
de conhecimentos sobre a agricultura nos trópicos SOBRINHO, S. A.; BERGAMINI, L.L.; CRUZ, A.; CASTRO, E.
úmidos, que venha a ser orientada hegemonicamente C. C.; COSTA, J. A.; BARREIROS, R. M. M. Bioeconomia
para o desenvolvimento de tecnologias ancoradas em da Sociobiodiversidade no Estado do Pará. 1. ed.
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