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ROMANTISMO

1. INTRODUÇÃO
O Pré- Romantismo no Brasil :1808-1836
2. CONTEXTO
. ideias e ideais burgueses;
. Revolução Francesa(1789);l
. Revolução Industrial(1750);
. ascensão da burguesia;
. superação do Absolutismo;
. liberalismo econômico;
. derrocada das regras e dos preceitos clássicos.
3. ORIGENS
. Alemanha – o romance Werther, de
Goethe(1774);
. Inglaterra – poesia melancólica e subjetiva, de
Young; romance histórico Ivanhoe, de Walter
Scott; o negativismo, o tédio e o satanismo
presentes na obra de Byron;
. França – poesia social, rebelde e declamatória,
de Victor Hugo;Le Miserables, romance de
denúncia da opressão do proletariado, de Hugo;
Os 3 mosqueteiros, O conde de Monte Cristo,
romances aventuras, de Alexandre Dumas.
4. CARACTERÍSTICAS
. predomínio da emoção, do sentimento: o
subjetivismo;
. evasão , escapismo: fuga à realidade;
. temas e interesses: nacionalismo, religiosidade,
idealização da mulher;
. aspectos estilísticos: liberdade de criação e
despreocupação com a forma
5-ROMANTISMO NO BRASIL
1836- Suspiros poéticos e saudades, de
Gonçalves de Magalhães (início)
1881- Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis(Realismo) e O mulato, de
Aluísio Azevedo(Naturalismo).(término)
6. AS GERAÇÕES DA POESIA ROMÂNTICA
BRASILEIRA
1ª – INDIANISTA E NACIONALISTA: índio,
natureza(nativismo/ufanismo), passado histórico,
religiosidade, antilusitanismo, xenofobia.
AUTORES
Gonçalves de Magalhães (1811-1882)
Suspiros poéticos e saudades – poesias líricas
A confederação dos Tamoios – poesia épica,
indianista
Olgiato e Antônio José ou O poeta e a
Inquisição – teatro, drama
Ainda conserva resíduos clássicos.
Gonçalves Dias (1823-1864)
Primeiros cantos
Segundos cantos
Últimos cantos
Cantos
Sextilhas de frei Antão...
Leonor de Mendonça – teatro, drama.
Escreveu também dicionário de tupi, estudos
etnográficos, geográficos, literários e cartas, além
de traduções.
Características:
. riqueza temática: poesia indianista, egótica,
religiosa, amorosa, da natureza e erudita;
. equilíbrio;
. senso de medida;
.virtuosismo;
.expressividade do ritmo;
. erudição.
Canção do exílio

 
Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn. *
Goethe

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
 
Coimbra - julho 1843.

* - "Conheces a região onde florescem os limoeiros ?


laranjas de ouro ardem no verde escuro da folhagem;
conheces bem ? Nesse lugar,
eu desejava estar"
(Mignon, de Goethe)

Olhos verdes

 
Eles verdes são:
E têm por usança, 
na cor esperança, 
E nas obras não.
Cam. Rim.

São uns olhos verdes, verdes, 


Uns olhos de verde-mar, 
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança, 
Uns olhos por que morri;
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como duas esmeraldas, 


Iguais na forma e na cor, 
Têm luz mais branda e mais forte, 
Diz uma — vida, outra — morte;
Uma — loucura, outra — amor.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

São verdes da cor do prado, 


Exprimem qualquer paixão, 
Tão facilmente se inflamam, 
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
depois que os vi!

São uns olhos verdes, verdes, 


Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado, 
Mas verdes da cor do prado, 
Mas verdes da cor do mar.
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Como se lê num espelho, 


Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós, ó meus amigos, 


Se vos perguntam por mim, 
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança, 
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mim!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

Dizei vós: Triste do bardo!


Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes, 
uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!
Dizei-o vós, meus amigos, 
Que ai de mim!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!

Ainda Uma Vez Adeus


                      I
Enfim te vejo! - enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
                      II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
                      III
Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esperança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
                      IV
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
                      V
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!
                      VI
Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias - bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
                      VII
Oh! se lutei!... mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?
                      VIII
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t'esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T'esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu, quinhão de dor!
                      IX
Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!
                      X
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei;
"Ela é feliz (me dizia)
"Seu descanso é obra minha."
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!
                      XI
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
                      XII
Enganei-me!... - Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra.
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu'era...
E um louco fui, nada mais!
                      XIII
Louco, julguei adornar-me
Com palmas d'alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
C'o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.
                      XIV
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera...
E eu! eu fui que a não quis!
                      XV
És doutro agora, e pr'a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
                      XVI

Dói-te de mim, que t'imploro


Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
                      XVII
Adeus qu'eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
                      XVIII
Lerás porém algum dia
Meus versos d'alma arrancados,
D'amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; - e então
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiade
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, - de compaixão.
O Canto do Piaga
I
Ó GUERREIROS da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite - era a lua já morta -


Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,


Manitôs! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,


Um fantasma d’imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,


Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.
Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!
II
Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume


Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma


Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!


E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,


Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hirtos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente


- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é so!

Negro monstro os sustenta por baixo,


Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,


O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?


Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade -


Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,


Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser?

Fugireis procurando um asilo,


Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,


Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

2ª – MAL DO SÉCULO, BYRONIANA, EGÓTICA,


ULTRARROMÂNTICA, PESSIMISTA: morte, tédio,
dúvida, escapismo, boêmia, satanismo,
saudosismo, solidão, depressão, sensualismo
reprimido, poesia maldita, novos temas roceiros e
bucólicos.
AUTORES
Álvares de Azevedo (1831-1852)
Lira dos vinte anos – reúne o melhor de sua
produção poética: Ideias íntimas, Spleen e
charutos, Lembrança de morrer, Se eu morresse
amanhã É ela! É ela! É ela! são alguns dos mais
expressivos poemas do romantismo egótico.
O poema de um frade e Conde Lopo: poemas
narrativos cuja tônica é o satanismo.
Macário oscila entre o teatro, o diário íntimo e a
narrativa, que se estabelece através do diálogo
entre Satã e Penseroso, tendo como tema os
vícios e desatinos da cidade de São Paulo.
A noite na taverna – narrativa composta de
contos fantásticos, macabros: numa taverna, em
noite escura de tormenta, entre prostitutas
bêbadas e adormecidas, jovens boêmios (Solfieri,
Johann, Gennaro, Bertran, Hermann e Arnold)
resolvem, por desfastio, contar casos verdadeiros
e escabrosos que tivessem vivido.
Características:
. morbidez;
. satanismo;
. poesia cerebral;
. tédio;
. erotismo irrealizado;
. dúvida;
. poesia humorística;
. literatura fantástica.

Pálida à luz
 
 
Pálida à luz da lâmpada sombria, 
Sobre o leito de flores reclinada, 
Como a lua por noite embalsamada, 
Entre as nuvens do amor ela dormia! 
 

Era a virgem do mar, na escuma fria 


Pela maré das águas embalada! 
Era um anjo entre nuvens d'alvorada 
Que em sonhos se banhava e se esquecia! 
 

Era mais bela! o seio palpitando 


Negros olhos as pálpebras abrindo 
Formas nuas no leito resvalando 
 

Não te rias de mim, meu anjo lindo! 


Por ti - as noites eu velei chorando, 
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Último soneto
 

Já da noite o palor me cobre o rosto,


Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!
 

Do leito, embalde num macio encosto,


Tento o sono reter!... Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!
 

O adeus, o teu adeus, minha saudade,


Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.
 

Dá-me a esperança com que o ser mantive!


Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!
 

 Lembrança de Morrer
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
... Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade... é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade... é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai... de meus únicos amigos,
Pouco - bem poucos... e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixai a lua pratear-me a lousa!

Se Eu Morresse Amanhã!

Se eu morresse amanhã, viria ao menos


Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!


Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que dove n'alva


Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora


A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Capítulo II Solfieri

Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da


perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a
amásia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo lívido.
É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio
a convulsão do amor, o beijo lascivo a embriaguez da
crença!

Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no


verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se
exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela.
Eu passeava a sós pela ponte de As luzes se apagaram
uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a
lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma
sombra de mulher apareceu numa janela solitária e
escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher
era como a de uma estátua pálida a lua. Pelas faces dela,
como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão


desapareceu no escuro da janela e daí um canto se
derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele
cantar um como choro de frenesi, um como gemer de
insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite
nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da
morte.

Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta.


Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu a
ninguém — saiu. Eu segui-a.

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu,


e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu sentia nas
faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre
um túmulo prantos de órfão..

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim


ela parou: estávamos num campo.

Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o


ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela
passavam as aves da noite.

Não sei se adormeci: sei apenas que quando


amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a
criatura pálida não fora uma ilusão — as urzes, as cicutas
do campo santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido a chuva,


causaram-me uma febre. No meu delírio passava e
repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles
soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto
suavíssimo...

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das


mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me
vinha aquela visão.

Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no


leito dela a condessa Barbara. Dei um último olhar àquela
forma nua e adormecida com a febre nas faces e a
lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos
como na agonia voluptuosa do amor. — Saí.. — Não sei
se a noite era límpida ou negra — sei apenas que a
cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham
ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu
bebera ate a última gota o vinho do deleite.

Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro:


as estrelas passavam seus raios brancos entre as
vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam
num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça.
Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na
fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos
olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles
traços todos me lembraram uma idéia perdida... — Era o
anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro
por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus
braços para fora do caixão. Pesava como chumbo.

Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz,


"do cadáver sem cabeça e o homem sem coração" como
a conta Brantôme? Foi uma idéia singular a que eu tive.
Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era
bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a
capela como o noivo as despe a noiva. Era uma forma
puríssima.. Meus sonhos nunca me tinham evocado uma
estatua tão perfeita. Era mesmo uma estátua: tão branca
era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de
âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi
fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A
madrugada passava já froixa nas janelas. Àquele calor de
meu peito, a febre de meus lábios, a convulsão de meu
amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu
os olhos empanados. — Luz sombria alumiou-os como a
de uma estrela entre névoa — , apertou-me em seus
braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados. Não
era já a um desmaio. No aperto daquele abraço havia
contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu
passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a
custo soltar-me daquele aperto do peito dela. Nesse
instante ela acordou...

Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo


horrível aquele que gira ao acordado que emparedam
num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os
membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas
alheias sem poder revelar a vida!

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar


desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços
coberta com seu sudário como uma criança. Ao
aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me —
olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí
dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta .

Saí. — Ao passar a praça encontrei uma patrulha —


Que levas aí?

A noite era muito alta — talvez me cressem um


ladrão.

— É minha mulher que vai desmaiada.

— Uma mulher! Mas essa roupa branca e longa?


Serás acaso roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte — era


fria.

— É uma defunta.
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo
morno. — Era a vida ainda.

— Vede, disse eu.

O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos


roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um
beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias

— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.

Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o


meu fardo: e eu sentia que a moça ia despertar.
Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri
com mais esforço...

Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro


som que lhe saiu da boca foi um grito de medo.

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando


de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia.
Reclamaram que abrisse.

Fechei a moça no meu quarto — e abri.

Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo


ainda.

A turvação da embriaguez fez que não notassem


minha. ausência.

Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de


um rir convulso como a insânia, e frio como a folha de
uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la.

Dois dias e duas noites levou ela de febre assim Não


houve como sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi.
Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

A noite sai — fui ter com um estatuário que trabalhava


perfeitamente em cera — e paguei-lhe uma estátua dessa
virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore


do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. —
Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a
meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do
sono eterno com o lençol de seu leito. — Fechei-a no seu
túmulo e estendi meu leito sobre ele.

Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a


cobriam Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. —
Paguei-lha e paguei o segredo

Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de


mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te
lembras que eu te respondi que era uma virgem que
dormia?

— E quem era essa mulher, Solfieri?

— Quem era? seu nome?

— Quem se importa com uma palavra quando


sente que o vinho lhe queima assaz os lábios? quem
pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que
sentiu morrer a seus beijos, quando nem ha dele mister
por escrever-lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça — Bebeu-a. — Ia erguer-se


da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

— Solfieri, não é um conto isso tudo?

— Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e
bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das
ruas — pela perdição que não! Desde que eu próprio
calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra
— eu vô-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de
defunta. — Ei-la!

Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda


de flores mirradas.

— Vede-a murcha e seca como o crânio dela!


Fagundes Varela (1841-1875)
Vozes d’América
Cantos do ermo e da cidade
Cantos e fantasias
Anchieta ou O evangelho nas selvas
Características:
. indianismo;
. condoreirismo;
. religiosidade;
. satanismo;
. patriotismo;
. naturismo.
Cântico do Calvário

À Memória de Meu Filho 


Morto a l l de Dezembro 
de 1863.

Eras na vida a pomba predileta 


Que sobre um mar de angústias conduzia 
O ramo da esperança. — Eras a estrela 
Que entre as névoas do inverno cintilava 
Apontando o caminho ao pegureiro. 
Eras a messe de um dourado estio. 
Eras o idílio de um amor sublime. 
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, 
O porvir de teu pai! — Ah! no entanto, 
Pomba, — varou-te a flecha do destino! 
Astro, — engoliu-te o temporal do norte! 
Teto, caíste! — Crença, já não vives! 

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, 


Legado acerbo da ventura extinta, 
Dúbios archotes que a tremer clareiam 
A lousa fria de um sonhar que é morto! 
Correi! Um dia vos verei mais belas 
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda 
Fulgurar na coroa de martírios 
Que me circunda a fronte cismadora! 
São mortos para mim da noite os fachos, 
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas, 
E à vossa luz caminharei nos ermos! 
Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa, 
Brando orvalho do céu! — Sede benditas! 
Oh! filho de minh'alma! Última rosa 
Que neste solo ingrato vicejava! 
Minha esperança amargamente doce! 
Quando as garças vierem do ocidente 
Buscando um novo clima onde pousarem, 
Não mais te embalarei sobre os joelhos, 
Nem de teus olhos no cerúleo brilho 
Acharei um consolo a meus tormentos! 
Não mais invocarei a musa errante 
Nesses retiros onde cada folha 
Era um polido espelho de esmeralda 
Que refletia os fugitivos quadros 
Dos suspirados tempos que se foram! 
Não mais perdido em vaporosas cismas 
Escutarei ao pôr do sol, nas serras, 
Vibrar a trompa sonorosa e leda 
Do caçador que aos lares se recolhe! 

Não mais! A areia tem corrido, e o livro 


De minha infanda história está completo! 
Pouco tenho de anciar! Um passo ainda 
E o fruto de meus dias, negro, podre, 
Do galho eivado rolará por terra! 
Ainda um treno, e o vendaval sem freio 
Ao soprar quebrará a última fibra 
Da lira infausta que nas mãos sustento! 
Tornei-me o eco das tristezas todas 
Que entre os homens achei! O lago escuro 
Onde ao clarão dos fogos da tormenta 
Miram-se as larvas fúnebres do estrago! 
Por toda a parte em que arrastei meu manto 
Deixei um traço fundo de agonias! ... 

Oh! quantas horas não gastei, sentado 


Sobre as costas bravias do Oceano, 
Esperando que a vida se esvaísse 
Como um floco de espuma, ou como o friso 
Que deixa n'água o lenho do barqueiro! 
Quantos momentos de loucura e febre 
Não consumi perdido nos desertos, 
Escutando os rumores das florestas, 
E procurando nessas vozes torvas 
Distinguir o meu cântico de morte! 
Quantas noites de angústias e delírios 
Não velei, entre as sombras espreitando 
A passagem veloz do gênio horrendo 
Que o mundo abate ao galopar infrene 
Do selvagem corcel? ... E tudo embalde! 
A vida parecia ardente e douda 
Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem, 
Tão puro ainda, ainda n'alvorada, 
Ave banhada em mares de esperança, 

Rosa em botão, crisálida entre luzes, 


Foste o escolhido na tremenda ceifa! 
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos 
Senti bater teu hálito suave; 
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo 
Pulsar-te o coração divino ainda; 
Quando fitei teus olhos sossegados, 
Abismos de inocência e de candura, 
E baixo e a medo murmurei: meu filho! 
Meu filho! frase imensa, inexplicável, 
Grata como o chorar de Madalena 
Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras 
Senti rugir o vento incendiado 
Desse amor infinito que eterniza 
O consórcio dos orbes que se enredam 
Dos mistérios do ser na teia augusta! 
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos! 
Que se expande em torrentes inefáveis 
Do seio imaculado de Maria! 
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! 
E de meu erro a punição cruenta 
Na mesma glória que elevou-me aos astros, 
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes, 


A voz mentida de rafeiros bardos, 
Torpe alegria que circunda os berços 
Quando a opulência doura-lhes as bordas, 
Não te saudaram ao sorrir primeiro, 
Clícía mimosa rebentada à sombra! 
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te, 
Tiveste mais que os príncipes da terra! 
Templos, altares de afeição sem termos! 
Mundos de sentimento e de magia! 
Cantos ditados pelo próprio Deus! 
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam, 
E o gênio esmagam dos soberbos tronos, 
Trocariam a púrpura romana 
Por um verso, uma nota, um som apenas 
Dos fecundos poemas que inspiraste! 

Que belos sonhos! Que ilusões benditas! 


Do cantor infeliz lançaste à vida, 
Arco-íris de amor! Luz da aliança, 
Calma e fulgente em meio da tormenta! 
Do exílio escuro a cítara chorosa 
Surgiu de novo e às virações errantes 
Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo 
Ao pranto sucedeu. As férreas horas 
Em desejos alados se mudaram. 
Noites fugiam, madrugadas vinham, 
Mas sepultado num prazer profundo 
Não te deixava o berço descuidoso, 
Nem de teu rosto meu olhar tirava, 
Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

Como eras lindo! Nas rosadas faces 


Tinhas ainda o tépido vestígio 
Dos beijos divinais, — nos olhos langues 
Brilhava o brando raio que acendera 
A bênção do Senhor quando o deixaste! 
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, 
Filhos do éter e da luz, voavam, 
Riam-se alegres, das caçoilas níveas 
Celeste aroma te vertendo ao corpo! 
E eu dizia comigo: — teu destino 
Será mais belo que o cantar das fadas 
Que dançam no arrebol, — mais triunfante 
Que o sol nascente derribando ao nada 
Muralhas de negrume! ... Irás tão alto 
Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se, 


E tantas glórias, tão risonhos planos 
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro 
Abrasou com seu facho ensangüentado 
Meus soberbos castelos. A desgraça 
Sentou-se em meu solar, e a soberana 
Dos sinistros impérios de além-mundo 
Com seu dedo real selou-te a fronte! 
Inda te vejo pelas noites minhas, 
Em meus dias sem luz vejo-te ainda, 
Creio-te vivo, e morto te pranteio! ... 
Ouço o tanger monótono dos sinos, 
E cada vibração contar parece 
As ilusões que murcham-se contigo! 
Escuto em meio de confusas vozes, 
Cheias de frases pueris, estultas, 
O linho mortuário que retalham 
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas 
Saudades e perpétuas, — sinto o aroma 
Do incenso das igrejas, — ouço os cantos 
Dos ministros de Deus que me repetem 
Que não és mais da terra!... E choro embalde. 

Q não te arrojes, lágrima da noite, 


Nas ondas nebulosas do ocidente! 
Brilha e fulgura! Quando a morte fria 
Sobre mim sacudir o pó das asas, 
Escada de Jacó serão teus raios 
Por onde asinha subirá minh'alma.
Juvenília VII

Ah! quando face a face te contemplo, 


E me queimo na luz de teu olhar, 
E no mar de tua alma afogo a minha, 
E escuto-te falar; 

Quando bebo no teu hálito mais puro 


Que o bafejo inefável das esferas, 
E miro os róseos lábios que aviventam 
Imortais primaveras, 

Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo 


Porque pressinto as garras da loucura, 
E me arrefeço aos gelos do ateísmo, 
Soberba criatura! 

Oh! eu te adoro como a noite 


Por alto mar, sem luz, sem claridade, 
Entre as refegas do tufão bravio 
Vingando a imensidade! 

Como adoro as florestas primitivas, 


Que aos céus levantam perenais folhagens, 
Onde se embalam nos coqueiros presas 

Como adoro os desertos e as tormentas, 


O mistério do abismo e a paz dos ermos, 
E a poeira de mundos que prateia 
A abóbada sem termos! ... 

Como tudo o que é vasto, eterno e belo; 


Tudo o que traz de Deus o nome escrito! 
Como a vida sem fim que além me espera 
No seio do infinito.

Junqueira Freire (1832-1855)


Inspirações do claustro
Contradições poéticas
Características:
. religiosidade;
. indagações sobre o valor da vida, o pecado, a
loucura, a morte;
. temor da morte;
. solidão revoltada;
. notas de dor e desespero.

Soneto
 
 
Arda de raiva contra mim a intriga,  
Morra de dor a inveja insaciável; 
Destile seu veneno detestável  
A vil calúnia, pérfida inimiga.
        Una-se todo, em traiçoeira liga, 
        Contra mim só, o mundo miserável. 
        Alimente por mim ódio entranhável 
        O coração da terra que me abriga.
Sei rir-me da vaidade dos humanos;  
Sei desprezar um nome não preciso;  
Sei insultar uns cálculos insanos.
        Durmo feliz sobre o suave riso 
        De uns lábios de mulher gentis, ufanos; 
        E o mais que os homens são, desprezo e
piso. 
 

Temor

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas


A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
Não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.


Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta


Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, - nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.
Fala-me só com o revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de
encanto.
Somente pra os meus beijos.

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas


A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.

Casimiro de Abreu (1839-1860)


As primaveras
Características:
. saudade da infância, da família, da pátria;
. musicalidade;
. pulsões eróticas;
. amor adolescente, simples, espontâneo,
comunicativo.
Canção do exílio

Se eu tenho de morrer na flor dos anos


         Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
         Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro


         Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
         Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas


         Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
         Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava


         Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
         O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos


         Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
         Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra


         Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
         Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,


         As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
         Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho


         Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
         Os sonhos do porvir!
Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
         Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
         A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes


         Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
         Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,


         Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranquilo
         À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas


         Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
         Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,


         Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
         Cantar o sabiá!
Meus oito anos

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,


Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!


Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,


Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos


Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

................................

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Amor e medo

Quando eu te vejo e me desvio cauto


Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! meu amor, é chama


Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...
 

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,


Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores


A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,


Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! se abrasado crepitasse o cedro,


Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco


Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!

Ai! se te visse no calor da sesta,


A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
 

Ai! se eu te visse, Madalena pura,


Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...

Ai! se eu te visse em languidez sublime,


Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: — que seria da pureza de anjo,


Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!


Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos


Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,


— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
 

Oh! não me chames coração de gelo!


Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...

3ª – CONDOREIRA, SOCIAL, HUGOANA


Castro Alves (1847-1871)
Espumas flutuantes
Os escravos
A cachoeira de Paulo Afonso
Gonzaga ou A revolução de Minas – teatro
Características:
. a poesia lírica: experiência amorosa em sua
plenitude sentimental e carnal;
. momentos introspectivos de dúvida e fatalismo
em face da existência;
. exaltação perante os espetáculos da natureza
(composição de belos quadros paisagísticos) que
antecipam certa linha formal do Parnasianismo;
. o drama do escravo é o do próprio destino
humano preso aos desajustamentos da História;
. poesia que se aproxima do discurso,
incorporando a ênfase oratória à sua magia;
. entusiasmo com a locomotiva, a instrução, o
livro.
Mocidade e morte

E perto avisto o porto


Imenso, nebuloso e sempre noite
Chamado — Eternidade— 
(Laurindo)
 
Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate.
(Dante)
 
Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde
A sombra fresca da palmeira erguida.
 
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.

Morrer... quando este mundo é um paraíso,


E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher — camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas,
Minh'alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas ...
E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: — impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio,


Vejo além um futuro radiante:
Avante! — brada-me o talento n'alma
E o eco ao longe me repete — avante! —
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após — um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária:


Teu Panteon — a pedra mortuária!

Morrer — é ver extinto dentre as névoas


O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado — escutar dobres de sino,
— Voz da morte, que a morte lhe lamenta —
Ai! morrer — é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larva errante no sepulcro fundo,

Ver tudo findo... só na lousa um nome,


Que o viandante a perpassar consome.

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito


Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem Por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo florido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte,
Morto — entre os vivos a vagar na terra.

Do sepulcro escutando triste grito


Sempre, sempre bradando-me: maldito!

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,


Quando a sede e o desejo em nós palpita..
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida — novo Tântalo
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O estilete de Deus quebra-me a taça.
 
É que até minha sombra é inexorável,
Morrer! morrer! soluça-me implacável.

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!


Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro — a terra,
Por glória - nada, por amor — a campa.

Adeus... arrasta-me uma voz sombria, 


Já me foge a razão na noite fria! ...

Boa noite

 
Veux-tu donc partir? Le jour est encore éloigné:
C'était le rossignol et non pas l'alouette,
Dont le chant a frappé ton oreílle inquiète;
Il chante Ia nuit sur les branches de ce granadier
Crois-moi, cher ami, c'était le rossignol.

Shakespeare

Boa noite, Maria! Eu vou,me embora.


A lua nas janelas bate em cheio.
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde. .
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite! ... E tu dizes - Boa noite.


Mas não digas assim por entre beijos... 
Mas não mo digas descobrindo o peito,
— Mar de amor onde vagam meus desejos!

Julieta do céu! Ouve... a calhandra 


já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti? ... pois foi mentira... 
Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se a estrela-d'alva os derradeiros raios


Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."

É noite ainda! Brilha na cambraia


— Desmanchado o roupão, a espádua nua
O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua. . .

É noite, pois! Durmamos, Julieta!


Recende a alcova ao trescalar das flores. 
Fechemos sobre nós estas cortinas...
— São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada


Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos


Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio, 


Ri, suspira, soluça, anseia e chora. . .
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...

Como um negro e sombrio firmamento,


Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
— Boa noite! — formosa Consuelo.

Adormecida
Ses longs cheveux épars Ia couvrent tout entière.
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témoigner qu'elle a fait sa prière,
Et qu'elle va Ia faire en s'éveillant demain.
(A. de Musset)
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos
- beijá-la. Era um quadro celeste!...
A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."
Vozes d'África

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?


Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé...
O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.
Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.
Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
- Pagodes colossais...
A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetisa - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...
Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela - doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada


Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...
E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."
Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz. . . "
Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!


É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
- Serei tua Eloá. . . "
Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.
Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa - arrebatada -
Amestrado falcão! ...
Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal...
Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

Um poeta diferente: Joaquim de Sousa Andrade,


o Sousândrade (1832-1902)
Maranhense, estudou em Paris, morou nos EUA,
viajou pela América Central e pela América do
Sul. Era defensor ardente da república e sonhou
com a criação de uma universidade popular.
Foi uma nota destoante no panorama da poesia
brasileira com seu texto mais importante, O
Guesa ou Guesa Errante, poema épico-lírico, que
contém algumas das maiores audácias estéticas
da história de nossa poesia; é uma penetrante
visão crítica do capitalismo norte-americano e da
situação dos povos sul e centro-americanos.
Publicou Harpas selvagens, em 1857.

O Guesa / Canto terceiro


As balseiras na luz resplandeciam —
oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, — na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
"Acordem, olhos meus, dizia, acordem!"
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia p'ra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no sol, que já s'inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
— Está ele assombrado?... Porém, certo 
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto, 
Sobre as lagoas ao clarão da lua.

Imagens do ar, suaves, flutuantes, 


Ou deliradas, do alcantil sonoro, 
Cria nossa alma; imagens arrogantes, 
Ou qual aquela, que há de riso e choro: 
Uma imagem fatal (para o ocidente, 
Para os campos formosos d'áureas gemas, 
O sol, cingida a fronte de diademas, 
índio e belo atravessa lentamente): 
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, — negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado.
 
 
 
7. A PROSA ROMÂNTICA BRASILEIRA
Considera-se a publicação em 1844 da obra A
Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo o
marco inicial da prosa romântica no Brasil,
embora, um ano antes, Teixeira e Sousa tenha
trazido à luz O filho do pescador.
José de Alencar (1829-1877) com sua vasta e
diversificada obra é considerado o principal nome
da época.
A PRODUÇÃO ALENCARINA
. narrativas indianistas: O Guarani(1857),
Iracema(1865) e Ubirajara(1874).
. narrativas urbanas ou de costumes: Senhora
(1875); Diva(1864); Lucíola (1862); A Viuvinha
(1857); Cinco minutos (1856); A pata da gazela
(1870); Sonhos d’ouro (1872); Encarnação (1893).
. narrativas regionalistas: O gaúcho (1870); O
sertanejo (1875); Til (1871); O tronco do ipê
(1871).
. narrativas históricas: As minas de prata, 2
volumes (1865 e 1866); A Guerra dos Mascates
(1871).
Outros autores do romance sertanejo ou
regionalista
Bernardo Guimarães (1825-1884)
O Seminarista (1872) e A escrava Isaura (1875)
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899)
Inocência (1872)

Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) e a obra


Memórias de um sargento de milícias
Obra única de seu autor, foi publicada entre o
mês de junho de 1852 e o mês de julho de 1853,
em um estilo despretensioso e com uma
linguagem coloquial. Sem descrições pomposas,
aborda a vida das camadas populares
(trabalhadores braçais, malandros, vadios) de
modo imparcial, sem apelar para heróis ou vilões.
Publicado durante o reinado de Pedro II, situa as
ações na fase de transição entre a condição de
colônia e de nação independente. Retrata festas
populares num cenário onde transita a arraia-
miúda (barbeiros, saloias, meirinhos,
parteiras,desocupados...) e suas mazelas.
Desmascara os mecanismos de uma sociedade
minada pela hipocrisia, pelo falso moralismo, pelo
jeitinho, pelo empreguismo.
8. O TEATRO ROMÂNTICO DE MARTINS PENA

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