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Sebenta português 12 ano

Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente

• Farsa - A farsa é um género de teatro com o


objetivo de fazer uma caricatura e crítica à
sociedade, geralmente num só ato. Retratam
cenas da vida quotidiana, tendo um enredo
cómico e profano.
• A Farsa de Inês Pereira é uma peça de teatro
escrita por Gil Vicente, onde se retrata a ambição
de uma jovem da classe média portuguesa do
século XVI. Trata-se de uma sátira de costumes da vida doméstica, que joga com o tema
medieval da mulher como personificação da ignorância e da malícia.
• Autor: Gil Vicente, considerado o primeiro grande dramaturgo português (1465?-1536?),
frequentou as cortes régias de D. Manuel I e de D. João III. Aqui, usufruiu da proteção de D.
Leonor de Lencastre, para além de desempenhar a profissão de ourives (possível autor da
Custódia de Belém).
É considerado o pai do teatro português e do ibérico, pois também escreveu em castelhano.
• A sua obra é considerada um reflexo da mudança dos tempos e da passagem da Idade Média
para o Renascimento, tendo sido o principal representante da literatura renascentista
portuguesa, anterior a Camões, incorporando elementos populares na sua escrita.
A par das farsas, Gil Vicente continuou a escrever autos religiosos e também as comédias e
tragicomédias. Todas as suas obras apresentam tipos sociais reais, visto que os segundos
planos são formados pelo povo, o verdadeiro herói dos autos de Gil Vicente.
• Resumo – a farsa tem como provérbio que a resume: «mais quero asno que me leve, que
cavalo que me derrube».
o Inês Pereira, moça simples, ambiciosa e casadoira deseja encontrar um marido
astuto e sedutor. A sua mãe, por sua vez, com a ajuda da alcoviteira, Lianor Vaz,
incita-a a casar com Pero Marques, pois está preocupada com a educação da sua
filha. O lavrador, Pero Marques, não agrada a Inês, pois é ignorante e inculto. Ela
pretende alguém que demonstre cortesia, que saiba combater, fazer versos, dançar
e cantar. O segundo pretendente, Brás da Mata, trazido pelos pouco bem-
intencionados judeus, corresponde a todos estes parâmetros.
o Brás da Mata, por sua vez, dissimulado, apenas se pretende aproveitar do dote dela.

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o Inês e Brás da Mata casam, o que se revela pouco vantajoso para Inês, pois ela perde
a sua liberdade; antes de sair em missão para África, Brás da Mata, dá ordens ao seu
moço para vigiar e trancar Inês em casa. Três meses após a sua partida, Inês recebe
a notícia de que o seu marido foi morto por um mouro.
o Livre, ela deseja casar novamente, e Lianor Vaz traz novamente a notícia que Pero
Marques continua solteiro e casadoiro, como lhe tinha prometido que esperaria por
ela.
o Inês casa com Pero Marques.
o No final da história surge um ermitão e Pero Marques carrega Inês às costas para o
ver, o qual se tornou amante dela. O ditado «mais quero asno que me carregue que
cavalo que me derrube» assume aqui toda a sua importância, pois para além de a
carregar às costas, levando-a ao encontro do seu amante, eles ainda cantam “assim
são as coisas”.

• Estrutura externa e estrutura interna – esta é a obra mais extensa de Gil Vicente, sendo
considerada a sua obra-prima.
o Estrutura externa: embora não tenha divisões em atos e cenas, é possível
estabelecer três cenas, com a entrada e a saída das personagens, como é típico no
teatro vicentino.
o Estrutura interna: a farsa estrutura-se a partir de episódios que podem ser
organizados da seguinte forma:
▪ vida de Inês, ainda solteira, com a mãe;
▪ conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento;
▪ apresentação e entrada de Pero Marques;
▪ recusa da proposta de casamento por Inês;
▪ anúncio e entrada de um novo pretendente;
▪ casamento de Inês com o Escudeiro;
▪ desencanto com o casamento;
▪ viuvez de Inês Pereira;
▪ nova vida de casada com Pero Marques;
▪ Concretização do desejo de Inês.

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Assim:

Exposição Conflito Desenlace

Desejo de Inês Proposta e Novo Casamento com Concretização


se libertar, pelo recusa de pretendente e Pero Marques do desejo de
casamento casamento com casamento Inês
Pero Marques falhado com o
Escudeiro

• Caracterização das personagens1


o Inês Pereira:
em solteira
▪ ambiciosa e sonhadora – pequena burguesia;
▪ ociosa, despreza a vida rústica do campo;
▪ o seu quotidiano é entediante: costura, borda e fia;
▪ é alegre, quer sair de casa e divertir-se, mas é contrariada pela mãe;
▪ é ambiciosa, idealista, quer casar-se com um homem que, ainda que
pobre, seja «avisado» (discreto), meigo e saiba cantar e tocar viola,
para fugir à vida que tem, quer viver alegre e ascender socialmente;
▪ a carta que Pero Marques lhe envia não lhe agrada e considera-o
disparatado e simplório;
▪ troça de Pero Marques quando este a visita, e rejeita-o;

em casada e em viúva

▪ casa com Brás da Mata, o Escudeiro, sem saber que ele é pobre e
interesseiro;
▪ fica a viver em casa da mãe, que se retira para viver num casebre;
▪ é infeliz, pois o seu marido não a deixa cantar r prende-a em casa;
▪ fica sozinha quando o marido vai para Marrocos lutar contra os mouros;
▪ é vigiada pelo Moço;
▪ reconhece que errou ao rejeitar Pero Marques e ao casar com o
Escudeiro;

1
Célia Cameira et alii, Mensagens – Português 10º ano, Texto Editores, Lisboa, 2015, pp. 147-149.

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▪ deseja a morte do marido e jura que se casará uma segunda vez com um
marido que seja submisso, para gozar a vida e vingar-se das provações
sofridas enquanto casada com o Escudeiro;
▪ não se comove com a morte do marido, pelo contrário, sente-se livre;
▪ é hipócrita ao chorar pelo marido morto e ao dizer que está triste;
▪ reconhece que a experiência de vida ensina mais do que os mestres;

casada em segundas núpcias

▪ materialista, pragmática e calculista, decide casar-se com Pero Marques;


▪ canta e, livre, sai de casa com o consentimento do marido;
▪ tem o hábito de dar esmola ao Ermitão de Cupido;
▪ inicialmente, não reconhece o Ermitão como um apaixonado do passado,
mas tenciona cometer adultério com ele;
▪ abusa da ingenuidade do marido e pede-lhe para a acompanhar à
ermida, para ter um encontro amoroso com o Ermitão.
o Escudeiro Brás da Mata:
▪ baixa nobreza – fidalgo
▪ duvida do retrato perfeito que os judeus casamenteiros fazem de Inês;
▪ é pobre, mas finge ser rico e desinteressado;
▪ é galanteador, elegante, bem-falante, sabe ler e escrever, sabe cantar e
tocar viola – é «discreto»; é o homem ideal que Inês procura;
▪ casa-se com Inês e revela-se autoritário e agressivo;
▪ parte para a guerra em Marrocos para ser armado cavaleiro, deixando
Inês e o Moço sem dinheiro;
▪ é cobarde, pois é morto em Arzila por um mouro pastor, ao fugir do
campo da batalha;
▪ representa o papel de «cavalo», elegante e valente (supostamente).
o Pero Marques
▪ lavrador abastado – povo ;
▪ pretendente rejeitado por Inês;
▪ é rico e trabalhador, tendo herdado a maior parte do gado do pai e uma
fazenda de mil cruzados;
▪ apresenta-se como um homem de bem, honesto e de boas intenções;

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▪ é um homem rústico, desconhecedor das regras de convivência social,


ignorante e ingénuo; cai no ridículo pela maneira como se veste e pela
maneira de falar e de agir;
▪ sofre com a rejeição e promete não se casar até que Inês o aceite;
▪ após a morte do Escudeiro, casa-se com Inês Pereira;
▪ concede liberdade total a Inês e é traído por ela;
▪ representa o papel de «asno» que leva literalmente a mulher às costas
para «visitar» o Ermitão.
o Lianor Vaz
▪ alcoviteira casamenteira – povo;
▪ conhecida da mãe de Inês, quer que Inês se case com Pero Marques;
▪ aparentemente honesta e desinteressada pelo dinheiro que poderá
ganhar com o casamento de Inês;
▪ sensata e boa conselheira, avisa Inês de que ela não deverá esperar o
marido, mas aceita o pretendente que lhe aparecer;
▪ amiga, mostra-se preocupada com o futuro de Inês;
▪ depois da morte do Escudeiro, persuade Inês a casar-se com Pero
Marques.
o Mãe
▪ mulher simples – pequena burguesia;
▪ é religiosa;
▪ é autoritária, não permitindo que Inês saia de casa e obrigando-a a
trabalhar;
▪ defende o casamento de Inês com Pero Marques;
▪ conselheira e preocupada com o futuro de Inês;
▪ não aprova a relação da filha com o Escudeiro, fruto do idealismo e da
leviandade de Inês;
▪ resignada, acaba por aceitar a opção de Inês se casar com Brás da Mata,
abençoando-os e dando-lhes a sua casa.
o Ermitão
▪ antigo apaixonado de Inês de Castro – clero;
▪ é castelhano;
▪ apresenta um discurso mais amoroso do que religioso, aproximando-se
da blasfémia;
▪ é solitário e triste;

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▪ pede esmola pelas ruas;


▪ a paixão frustrada por Inês fê-lo tornar-se ermita;
▪ envolve-se amorosamente com Inês.
o os Judeus casamenteiros
▪ Latão e Vidal – alcoviteiros casamenteiros;
▪ têm a missão de encontrar um marido para Inês;
▪ operam como uma única personagem, visível no seu discurso que
confere comicidade à obra: «Tu e eu não somos eu?»;
▪ procuram o marido ideal para Inês Pereira;
▪ sem escrúpulos e oportunistas, visando apenas uma recompensa
material, exageram as qualidades do Escudeiro e de Inês para atingirem
o seu objetivo;
▪ são desonestos, falsos, materialistas e astutos.
o Moço
▪ Fernando – criado do Escudeiro – povo;
▪ contribui para a sátira presente na obra pela denúncia do verdadeiro
caráter do seu amo: a pelintrice, as manias das grandezas, as privações e
o sonho de atingir uma situação económica confortável através do
casamento com Inês;
▪ queixa-se da pobreza e da fome a que o Escudeiro o sujeita;
▪ é responsável por vigiar Inês, quando o seu amo parte para África,
trancando-a em casa e deixando-a sozinha enquanto ele se vai
«desenfadar» com as moças;
▪ fica triste ao receber a notícia da morte do seu amo em Arzila;
▪ é despedido por Inês, depois da morte do Escudeiro.
o Moças e Mancebos
▪ Luzia e Fernando – amigos – povo;
▪ convidados para a festa do primeiro casamento de Inês, animam a festa,
cantam e bailam.

• A representação do quotidiano

O quotidiano representado refere-se à época de Gil Vicente, ao primeiro quartel do século XVI,
pois esta farsa foi levada a cena em 1523. Não faltam exemplos, ao longo da farsa, de hábitos
de vida e de costumes do dia a dia da época e Mestre Gil soube dar-lhes uma segunda dimensão,

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ao associá-los a personagens-tipo (estas sintetizam em si funções sociais, estilos de vida,


trejeitos… típicos de um grupo social, profissional ou outro), concretizando assim também a
intenção satírica da obra.

Assim:

• modo de vida popular (Pêro Marques) vs. Modo de vida cortês (Escudeiro);
• cerimónia do casamento e o hábito de recorrer a casamenteiros;
• conceções de vida e de casamento (Mãe e Lianor Vaz vs. Inês Pereira);
• episódio relatado por Lianor Vaz (devassidão do clero);
• prática religiosa – ida à missa;
• falta de liberdade da rapariga solteira, confinada à casa da mãe;
• a ocupação da mulher solteira em tarefas domésticas (coser, bordar, …);
• adultério; …

Em suma, verificamos:

• Luta entre forças opostas;

• Relacionamento humano, familiar e amoroso;

• Oposição dos valores tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais.

• A dimensão satírica e os cómicos

Gil Vicente pretende criticar através das personagens-tipo:

▪ a mentalidade das jovens raparigas; jovens da pequena burguesia,


ambiciosas e levianas, que usam o casamento para ascender – Inês;
▪ os escudeiros fanfarrões, galantes e pelintras; a baixa nobreza decadente
e faminta que vê no casamento a solução para a sua ruína económica –
Escudeiro;
▪ a ignorância e a ingenuidade de Pero Marques; maridos ingénuos que se
deixam enganar pelas mulheres e que aceitam a sua traição (o marido
enganado é um tipo muito recorrente em Vicente) – Pero Marques;
▪ as alcoviteiras e os judeus casamenteiros; casamenteiros típicos da
sociedade renascentista;

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▪ os casamentos por conveniência; mães materialistas, confidentes e


conselheiras, que, embora amigas, querem casar as filhas para terem
sustentabilidade económica;
▪ os clérigos e os Ermitões; clero que desrespeita os preceitos da Igreja e a
moral, dado o comportamento leviano dos membros que se envolvem
amorosamente com mulheres;
▪ serviçais explorados e enganados que passam fome e frio, não sendo
pagos pelos seus patrões – Pajem Fernando;
o Gil Vicente recorreu aos vários tipos de cómico para divertir os espetadores e para
cumprir a máxima latina ridendo castigat mores – a rir se criticam os costumes.
Na farsa o riso está ao serviço da crítica, criticando-se os costumes, mas também
para demarcar as personagens e as suas situações vividas.
Encontramos nesta farsa os cómicos de linguagem (na carta, na linguagem de Pero
Marques e na fala dos judeus casamenteiros), de caráter (em Inês, Pero Marques e
no Escudeiro) e de situação (na cena do namoro entre Inês e Pero Marques).

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