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Angústia (1938), Graciliano Ramos

Sobre o autor:

Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Fez


apenas os estudos secundários em Maceió. Após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, fixou
se em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas; fez jornalismo e política, chegando a exercer a
prefeitura da cidade. Estreou em livro em 1933, com o romance Caetés. Nessa época,
trabalhou em Maceió, dirigindo a Imprensa Oficial e a Instrução Pública, e travou conhecimento
com José Lins do Rego, Raquel de Queirós e Jorge Amado. Em março de 1936, foi preso por
atividades consideradas subversivas, sem, contudo, ter sido acusado formalmente. Após
sofrer humilhações e percorrer vários presídios, foi libertado em janeiro do ano seguinte. Essas
experiências pessoais são retratadas no livro Memórias do cárcere.

Em 1945, com a queda da ditadura de Getúlio Vargas e a volta do país à normalidade


democrática, Graciliano filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, o qual integrou até 1947,
quando o partido foi novamente considerado ilegal. Em 1952, viajou para os países socialistas
do Leste Europeu, experiência descrita em Viagem. Faleceu no Rio de Janeiro, em 20 de março
de 1953. Graciliano Ramos foi o principal escritor do chamado romance regionalista da 2ª fase
do Modernismo. Sua obra focaliza não só o drama do Nordeste (a seca, 13 Angústia AOL-11 o
coronelismo, as desigualdades sociais), como também o mundo psicológico das personagens.

Seus livros podem ser didaticamente divididos em três tipos de romance: psicológico,
sociopolítico e autobiográfico. Inscrevem-se na linha do romance psicológico – análise e
descrição do interior da personagem – as narrativas Caetés, São Bernardo, Angústia e o livro
de contos Insônia. No campo da narrativa sociopolítica, destaca-se Vidas secas e, como livros
autobiográficos, ele escreveu Infância e Memórias do cárcere. O estilo de Graciliano Ramos
caracterizou-se por uma linguagem objetiva, sem artifício de requintes literários,
caprichando, no entanto, no registro da fala regional. Suas frases e períodos são curtos e,
quanto ao conteúdo, está sempre disposto a abordar a problemática social, ficando o individual
como representante do coletivo, posicionando-se clara e corajosamente contra a
opressão e as injustiças sociais. Uma constante na obra de Graciliano Ramos é a tensão:
entre o indivíduo e o meio social, entre o indivíduo e o meio físico, entre o indivíduo e o
sistema e do indivíduo consigo mesmo. Essa oposição nos remete ao fatalismo pessimista
que lembra Machado de Assis. Obras Romance 1933 – Caetés 1934 – São Bernardo 1936 –
Angústia 1938 – Vidas secas Conto 1947 – Insônia Memórias 1945 – Infância 1953 – Memórias
do cárcere 1962 – Linhas tortas 1962 – Viventes das Alagoas As duas últimas obras foram
publicadas postumamente. Literatura infantil 1944 – Histórias de Alexandre 1946 – Histórias
incompletas.

Projeto Literário: Angústia

O texto de Angústia funciona como se fosse o diário mental do personagem narrador


Luís da Silva, no qual ele vai registrando suas reflexões dia a dia e, claro, vai se desnudando
diante do leitor, gradativamente. Apesar de o texto transmitir toda a angústia vivida pelo
personagem Luís, a leitura gera no leitor um paradoxo, já que dessa angústia sobrevém
sensação de opressão, de mal-estar, que incomoda, ao mesmo tempo em que estabelece
sensação envolvente, que prende o leitor a uma leitura sufocante, mas da qual emana estranho
prazer em acompanhar a reflexão amarga e pessimista de Luís da Silva. Vamos inteirando-nos
de seu relacionamento sempre tenso com todas as pessoas do seu meio social, a ponto de
irmos lendo e sofrendo, porque, durante a leitura, descobrimo-nos esperando constantemente
que aconteça uma situação ou consequência desagradável nesse relacionamento.

A maestria e a essência da obra consistem exatamente nisso, ou seja, fazer o leitor


“navegar” pelo labirinto do pensamento de um personagem narrador, que traz, desde
recordações tristes, passa por ideias mesquinhas, mas irrelevantes e inconsequentes, até
chegar ao assassinato perpetrado por esse narrador, premeditadamente. Assim é que podemos
ter alguns resumos temáticos, como os que se seguem. – A tragédia de uma vida condicionada
a um complexo de inferioridade nem sempre justificado – O poder do poder econômico – A
influência da palavra escrita e seu poder de dominação – A fragilidade e a dependência da
mulher em relação ao homem – Os valores provincianos como forma de condicionamento dos
mais pobres.

Fragmento 1:

Ainda não disse que moro na rua do Macena, perto da usina elétrica. Ocupado em várias
coisas, frequentemente esqueço o essencial. Que, para mim, a casa onde moramos não tem
importância grande demais. Tenho vivido em numerosos chiqueiros. Provavelmente esses
imóveis influíram no meu caráter, mas sou incapaz de recordar-me das divisões de qualquer
deles. Não esperem a descrição destas paredes velhas que Dr. Gouveia me aluga, sem
remorso, por cento e vinte mil-réis mensais, fora a pena de água.
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ESPAÇO

A ação se passa em Maceió, capital de Alagoas, estado natal de Graciliano Ramos.


Pela narrativa não se percebe a cidade como um todo, porque o narrador não se preocupa em
registrá-la de forma precisa, mas aparecem, fragmentadamente, ruas, cafés, prostíbulo, igrejas
e bairros. O sentimento que a personagem tem em relação à cidade é de falta de identificação
com ela e até de desagrado.

TEMPO

O tempo cronológico é o dos anos trinta, século XX, logo após o início do primeiro
governo de Getúlio Vargas, mas prevalece o tempo psicológico, a ação interior através do fluxo
das ideias e dos pensamentos de Luís da Silva. A ação se desenvolve nas frinchas do labirinto
composto pelo incessante ir e vir do pensar do personagem narrador.

FOCO NARRATIVO

A narração é feita em primeira pessoa pelo protagonista Luís da Silva, portanto não é
narração onisciente, o que implica limitações naturais quanto às informações que o narrador
tem sobre fatos a que ele não assistiu. No entanto, há algumas ações que, apesar de não
terem sido presenciadas pelo personagem, são imaginadas por ele e devem, então, ser
aceitas, pelo leitor,
como reais. Como as ações se desenvolvem dependentes do fluxo do raciocínio do narrador,
não se trata de narração linear, cronológica. A narração avança ou recua no tempo, em relação
ao presente, sendo natural a quantidade de flashbacks de que se compõe o texto, tanto assim
que o primeiro capítulo, cronologicamente, corresponde a um tempo posterior ao assassinato
de Julião por Luís, quando este está se recuperando dessa terrível ação.

ENREDO

Luís da Silva é funcionário público, escreve para jornais locais, lê muito e ganha pouco, mas, a
rigor, profissionalmente também produz pouco, já que lhe é comum a perda de razoável parte
do seu tempo com reflexões sobre sua vida e sobre a de outras pessoas, com idas e vindas
pela casa ou pela cidade sem objetivo concreto ou útil. É razoavelmente culto, até considerado
intelectual, tendo em vista a limitação cultural do meio em que atua, mas extremamente
frustrado e revoltado com sua situação. Vive numa moradia simples e suja em um bairro de
classe média, convivendo com uma vizinhança constituída de pessoas simples, que o tratam
com respeito e com alguma solenidade, por entenderem que ele lhes é superior,
considerando-se seu trabalho e o fato de que é um homem que lê.

Fragmento 2:

À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o


pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Vitória resmunga na cozinha,
ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua. Em
duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo
coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar
combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de
mulher e outros disparates.
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Apesar de tímido, inicia um relacionamento com Marina, vizinha, jovem, sensual e volúvel. No
início da relação, Luís sente algum desprezo por ela por causa da frivolidade, da ignorância e
dos valores fúteis da moça, mas, depois de algum tempo, ela passa a ter muita importância
para ele não só por representar 18 Graciliano Ramos uma conquista rara no parco cenário de
sua trajetória amorosa, em razão da sua timidez e do seu “desajeito” com mulheres, mas
principalmente pela atração física que ela exerce sobre “o solitário Luís”; afinal, trata-se de uma
mulher bonita, aparentemente fácil e, provavelmente, sexualmente acessível.

Fragmento 3

Afinal, para a minha história, o quintal vale mais que a casa. Era ali, debaixo da mangueira, que,
de volta da repartição, me sentava todas as tardes, com um livro. Foi lá que vi Marina pela
primeira vez, em janeiro do ano passado. E lá nos tornamos amigos.
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Fragmento 4

Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir. Naturalmente gastei meses construindo esta
Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu
conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa grande quantidade de
pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam bem, davam-me a impressão
de que a vizinha estava desconjuntada. Agora mesmo temo deixar aqui uma sucessão de
peças e de qualidades: nádegas, coxas, olhos, braços, inquietação, vivacidade, amor ao luxo,
quentura, admiração a D. Mercedes. Foi difícil reunir essas coisas e muitas outras, formar com
elas a
máquina que ia encontrar-me à noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, ingrata, leviana. Os
defeitos, porém, só me pareceram censuráveis no começo das nossas relações. Logo que se
juntaram para formar com o resto uma criatura completa, achei-os naturais, e não poderia
imaginar Marina sem eles, como não a poderia imaginar sem corpo. Além disso ela era meiga,
muito limpa. Asseio, cuidado excessivo com as mãos. Passava uma hora no banheiro, e a roupa
branca que vestia cheirava. Nos nossos momentos de intimidade eu sentia às vezes uma
tentação maluca; baixava-me, agarrava-lhe a orla da camisa, beijava-a, mordia-a. Isto me dava
um prazer muito vivo.

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Num dado momento de sua vida, Luís conhece Julião Tavares, advogado e de família rica. Esse
contato, já no início, não agrada Luís, que de hábito é arredio a contatos sociais, e ele não
entende por que não afasta Julião do seu convívio, como já fizera com outras pessoas.

Fragmento 5

Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa. Lembram se dele.
Os jornais andaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Tavares não tinha nenhuma das
qualidades que lhe atribuíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e
escrevedor. No relógio oficial, nos cafés e noutros lugares frequentados cumprimentava-me de
longe, fingindo superioridade(...)

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Gradativamente, o narrador vai sentindo aversão pelo novo “amigo”, pois Julião
concentra todas as características e conceitos detestados pelo narrador, ou seja, Julião é
exatamente o oposto daquilo que Luís sente e pensa sobre sociedade, religião, política,
literatura e demais assuntos. Além disso, Julião Tavares é rico, capitalista, o que contraria a
ideologia social de Luís da Silva.

Como se não bastassem essas diferenças, Julião, pelo fascínio que o seu poder
econômico exerce, acaba por conquistar Marina, com quem Luís já se preparava para casar,
tendo, inclusive, gastado suas poucas economias para que ela comprasse o enxoval. Luís
amarga mais essa humilhação, entre tantas já vividas, e seu ódio por Julião toma cores, forma e
intensidade definitivas. Meses depois, Julião abandona Marina e ela, logo depois, percebe que
está grávida dele. Desesperada, vai a uma parteira e provoca o aborto, fato que Luís descobre
ao vê-la entrar na casa da parteira e sair de lá.

Fragmento 6

Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já
experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares
pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não
percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e
fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas. O
homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.
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Fragmento 7

Ao dobrar a Rua Augusta, avistava Julião Tavares na prosa com ela, vermelho, soprando,
derretendo-se, a roupa debrim com manchas de suor nos sovacos. Vendo-me, o canalha
voltava as costas, porque estava intrigado comigo. Abri-me com d. Adélia, comentei aquele
escândalo: – A senhora aprova o comportamento de sua filha? D. Adélia torceu as mãos,
engoliu em seco
e respondeu numa atrapalhação: – É a mocidade. Perdi os estribos: – Que mocidade! É sem
vergonheza.

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Fragmento 8

Pouco a pouco nos fomos distanciando, um mês depois éramos inimigos. A princípio houve
brigas, reconciliações desajeitadas, conversas azedas com d. Adélia. Tempo perdido. Marina
estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. Comecei a passar trombudo pela
calçada, remoendo a decepção, que procurei recalcar. – Mulheres não faltam.
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Fragmento 9

E Julião Tavares continuou a frequentar a casa, levando presentes às mulheres. As vezes


jantava lá. Nesses dias um carregador trazia do armazém de Tavares & Cia. um caixão de
embrulhos, latas e garrafas. Da minha sala de jantar, eu ouvia as conversas, as risadas, o
barulho dos vidros e dos talheres. No fim a coisa descambava em discurso.
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Fragmento 10

As visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria ruidosa de Marina pouco a pouco
desapareceu. Havia grande silêncio na casa vizinha. Seu Ramalho estava contente. – Parece
que a tonta criou juízo. – Acha? perguntei incrédulo. – É cá uma ideia. Essa gente moça
desembesta e faz tolice. É o sangue. Mas um dia acerta a pisada. D. Adélia andava com a cara
comprida e o nariz vermelho, assoando-se e soltando longos suspiros. Uma tarde encontrei
Marina engulhando junto ao mamoeiro. Eram arrancos que a sacudiam toda, a faziam torcer-se
agarrada ao tronco, o rosto contraído, muito descorado. Não me viu e entrou em casa cuspindo.
– Que terá ela? disse comigo sem atinar com o motivo dos engulhos, da palidez e das
cusparadas. – An! Estava feia. Bem. Estava feia demais, amarela, torcendo-se, enxugando na
manga a cara molhada de suor, tentando vomitar, cuspindo à toa na roupa. – Ótimo! Onde
andavam os vestidos caros, as tintas, os tremeliques e os modos insolentes que
escandalizavam d. Rosália? Estava ali com os músculos da cara repuxados, fechando os olhos,
agitando a cabeça como uma lagartixa. – Que diabo tem ela? Desgovernada, cuspindo-se. –
Ótimo! Está muito bem assim. Que se lixe.

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A soma desses últimos fatos acarreta certo desequilíbrio no narrador Luís, que, aliás, já
não apresenta comportamento sereno, racional, constante. Resolve, então, matar Julião. A
partir daí, o personagem Luís talvez não tem consciência de que a eliminação de Julião poderia
fazê lo readquirir seu próprio equilíbrio anterior a esses últimos acontecimentos, ainda que esse
equilíbrio precário o faria voltar ao eixo da rotina entediante e mesquinha na qual vivera até ali.
Tanto isso é verdadeiro que, durante o assassinato, Luís sente-se forte e importante,
desmentindo a própria autoavaliação que sempre se fazia, no sentido de que ele era pessoa
insignificante. Luís assassina Julião por enforcamento, de madrugada, numa rua deserta,
esperando-o na escuridão e enlaçando-o pelo pescoço com uma corda. Com enorme esforço,
por culpa do peso do morto, consegue levantá-lo por um galho de uma árvore, deixando-o
pendurado pela corda, com o intuito de simular suicídio. Ferido nas mãos, cansado, sujo e
rasgado, lentamente volta para casa. Pede que a empregada Vitória ligue para a “Repartição”
avisando que ele não está bem e que não vai trabalhar.
Fragmento 11

Contraí as mãos frias e molhadas de suor, meti-as nos bolsos para aquecê-las. Para aquecê-las
ou levado pelo hábito. A aspereza da corda aumentou-me a frieza das mãos e fez-me parar na
estrada, mas a necessidade de fumar deu-me raiva e atirou-me para a frente. Entrei a caminhar
depressa, receando que Julião Tavares escapasse. Novamente os passos leves no chão
coberto de folhas secas. Distinguia-se agora muito bem a sombra escura na garoa peganhenta.
A garoa me entrava no bolso e gelava os dedos, que esfregavam a corda.
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Fragmento 12

Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía,
estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente.
A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma
luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo
de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás
e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O
homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de
perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas
insignificantes, todos os moradores da cidade eram figurinhas insignificantes. Tinham-me
enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela
vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai me dava no poço da Pedra, a palmatória de
mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da revisão, a impertinência
macia do diretor, tudo virou fumaça. Julião Tavares estrebuchava. Tanta empáfia, tanta lorota,
tanto adjetivo besta em discurso – e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso,
esmorecendo, escorregando para o chão coberto de folhas secas, amortalhado na neblina. Ao
ser alcançado pela corda, tivera um arranco de bicho brabo. Aquietava-se, inclinava-se para a
frente, os joelhos dobravam-se, o corpo amolecia. Eu tinha os braços doídos e as mãos
cortadas. Enquanto Julião Tavares estivesse com a cabeça erguida, a minha responsabilidade
não seria tão grande como depois da queda.
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Fragmento 13

Passos na calçada. Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora?
Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arredava da
sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A
placa azul de d. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche. Todo aquele pessoal
entendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia
uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro vaqueiro,
as figuras do reisado, um vagabundo que dormia nos bancos dos jardins, outro vagabundo que
dormia debaixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um
burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor. José Baía acenava-me de
longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos. - "José Bafa,
meu irmão, estás também aí?" José Baía, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois... A
multidão que fervilhava na parede acompanhava José Baía e vinha deitar se na minha cama.
Quitéria, sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os
vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, marrado,
marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha
cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar se na minha
cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades. - "José Baia, meu irmão, há que
tempo!" As crianças corriam em torno da barca. - "José Baía, meu irmão, estamos tão velhos! "
Acomodavam-se todos. 16.384. Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu
era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado gara não molestar as outras. 16.384.
Fomos descansar. Um colchão de paina.

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