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A INCLUSÃO
Eliana Lucia Ferreira
Eni P. Orlandi
(organizadoras)
DISCURSOS SOBRE
A INCLUSÃO
Niterói
Intertexto
2014
© 2014 by Eliana Lucia Ferreira, Eni P. Orlani
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-7964-046-9
CDD 371.9
APRESENTAÇÃO....................................................9
O DISCURSO DA INCLUSÃO
PELA DIFERENÇA NA RELAÇÃO
MÍDIA E SOCIEDADE
Caciane Souza de Medeiros...........................................51
1 INTRODUÇÃO........................................................... 53
2 UMA INCLUSÃO PARTIDA...................................... 54
3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
DA INCLUSÃO ........................................................... 62
4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO
NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO
DO SUJEITO ENGAJADO.........................................77
5 POR UMA RETOMADA DA DISCUSSÃO
SOBRE O CONCEITO DE INCLUSÃO................... 82
REFERÊNCIAS............................................................ 87
DISCURSIVIDADES DE
INCLUSÃO E A MANUTENÇÃO
DA EXCLUSÃO
Greciely CRistina da Costa......................................... 89
1 INTRODUÇÃO............................................................91
2 DISCURSO: SENTIDOS E SUJEITOS..................... 94
3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO.......................... 96
4 SENTIDOS PARA A DIFERENÇA............................101
5 CONCLUSÕES..........................................................133
REFERÊNCIAS...........................................................135
FORMAÇÃO OU CAPACITAÇÃO?:
DUAS FORMAS DE LIGAR
SOCIEDADE E CONHECIMENTO
Eni Puccinelli Orlandi................................................141
1 INTRODUÇÃO......................................................... 143
2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO E/OU
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO?......................... 148
3 EDUCAR É FORMAR: A LÍNGUA
ENTRA EM CENA......................................................153
4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO:
A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA
LINGUAGEM COM A SOCIEDADE........................161
5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE........................... 170
6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS.......................178
REFERÊNCIAS.......................................................... 183
ACESSIBILIDADE: SENTIDOS
EM MOVIMENTO
Débora Massmann.......................................................191
1 INTRODUÇÃO......................................................... 193
2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE........................197
3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO
FLUIDO......................................................................202
4 SOBRE O(S) SENTIDO(S) DE
ACESSIBILIDADE.....................................................208
REFERÊNCIAS...........................................................221
TRAÇO, CORPO, SENTIDO: SOBRE A
ESCOLA, A CRIANÇA E A ESCRITA
Renata Chrystina Bianchi de Barros......................... 225
1 INTRODUÇÃO......................................................... 227
2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
CONTEMPORÂNEA: A PEDAGOGIZAÇÃO
DO CORPO............................................................... 234
3 DO CORPO BIOLÓGICO AO
CORPO-SENTIDO...................................................246
4 O SUJEITO DA ESCOLA
CONTEMPORÂNEA................................................ 255
5 DO APRISIONAMENTO À SUBVERSÃO:
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................260
REFERÊNCIAS.......................................................... 265
EDUCAÇÃO FÍSICA:
EM BUSCA DE UMA NOVA
A RE-SIGNIFICAÇÃO
Eliana Lucia Ferreira..................................................269
1 INTRODUÇÃO..........................................................271
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................... 281
REFERÊNCIAS.......................................................... 285
APRESENTAÇÃO
9
Portanto, as questões, aqui, não somente con-
tribuem para a inclusão social, mas também encon-
tram ressonância em práticas inclusivas voltadas
para a educação de um modo geral.
10
EQUÍVOCOS QUE
CONSTITUEM O
MACRODISCURSO
POLÍTICO-
EDUCACIONAL
DA INCLUSÃO*
Juliana Santana Cavallari**
* Uma versão primeira deste trabalho foi publicada na Revista Brasileira de Linguística
Aplicada (RBLA).
** Doutora e pós-doutora pela UNICAMP. Professora do Programa de Mestrado em
Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO
13
no, além de ser frequentemente empregado como
promessa primordial de campanha de futuros go-
vernantes, de modo geral. Não é por acaso que, ao
longo deste texto, adotamos o termo “macrodiscur-
so político-educacional da inclusão” para nos re-
ferirmos ao objeto de análise deste texto, graças a
aparente fusão, ou melhor, (con)fusão que parece
afetar o discurso político e o discurso da educação
formal acerca da inclusão, já que passam a funcionar
quase que indistintamente, na tentativa de viabilizar
a educação inclusiva e suas diretrizes já anunciadas
2
De acordo com a
e prescritas em documentos oficiais. Tomamos essa
Análise de Discurso
de linha francesa, (con)fusão de discursividades que, por sua vez, nos
que fundamenta
remete a uma mesma formação discursiva acerca da
este estudo, o
intradiscurso se inclusão, como um macrodiscurso que se apresen-
refere à aparente
ta como verdadeiro e já legitimado e que, portanto,
linearidade do
dizer, ao passo que incide direta e indiretamente nos diversos âmbitos
o interdiscurso,
sociais e, sobretudo, no contexto educacional.
que atravessa o
fio discursivo à
revelia do sujeito
O objetivo específico deste estudo é desve-
de linguagem, nos
remete ao “conjunto lar o modo como intra e interdiscursivamente2 o
de formulações
discurso da inclusão – que se materializa em prá-
feitas e já esquecidas
(já-ditos) que ticas inclusivas tidas como politica e moralmente
determinam o que
corretas – produz efeitos de sentido e de verda-
dizemos” (ORLANDI,
1999, p. 33). de em nosso meio sócio-histórico. Para tanto, nos
14
pautamos nos seguintes questionamentos: como
as noções de inclusão e diferença (con)formam e
engendram o dizer-fazer de agentes educacionais?
Como educação e inclusão se relacionam e afetam
as práticas discursivo-pedagógicas? Partindo do
pressuposto de que a prática e política inclusivas
evocam noções e representações que significam
em oposição e por meio de pares dicotômicos (in-
clusão x exclusão; igualdade x diferença) já natura-
lizados no contexto escolar, levantamos a hipótese
de que a educação inclusiva (EI) silencia e apaga
a(s) diferença(s) e o diferente, já que “incluir” pro-
duz o efeito de sentido de “normalizar” ou de “tor-
nar o outro meu semelhante”.
15
Do ponto de vista teórico, os pressupostos da
Análise de Discurso de linha francesa (ADF), que
postula a determinação inconsciente e ideológica
do sujeito e da linguagem, fundamentam a análise
dos registros e as considerações aqui propostas.
16
2 SOBRE O EQUÍVOCO NA
PRODUÇÃO DE SENTIDOS
OUTROS
17
Convém ressaltar que o sujeito constituído na/
pela linguagem, tal como postula Pêcheux, não
é causa nem origem dos sentidos que produz ao
enunciar, pois surge como efeito do assujeitamento
à linguagem que, por sua vez, não pode ser tomada
como mero instrumento de comunicação, dada sua
opacidade e não transparência. Estabelecendo um
possível diálogo entre as perspectivas que embasam
este estudo, tanto para a AD como na Psicanálise, o
dizer não é transparente ao enunciador, pois o sen-
tido lhe escapa, irrepresentável, em sua determina-
ção pelo inconsciente e pelo interdiscurso.
18
aquilo que ultrapassa a vontade do sujeito enun-
ciador, também se faz presente na psicanálise. Em
ambas as perspectivas teóricas, a verdade não se
apresenta na aparente unidade discursiva, mas se dá
a escutar através de formações do inconsciente ou
da equivocidade que é própria da linguagem. Nas
palavras de Lacan (1986, p. 302), “nossas palavras
que tropeçam são as palavras que confessam. Elas
revelam uma verdade de detrás”.
19
análise dos acontecimentos discursivos, de modo a
melhor compreender como a prática inclusiva signi-
fica no contexto escolar.
3 PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
20
engendrado pela articulação entre a ideologia e as
condições de produção do discurso, isto é, o con-
texto sócio-histórico de sua enunciação e o lugar
discursivo ocupado pelo falante. Na teoria psica-
nalítica, por sua vez, a determinação dos sujeitos e
dos sentidos é inconsciente e atemporal e só se faz
acessível por meio da linguagem que comporta fa-
lhas ou buracos. Feitas essas colocações, postula-
-se uma relação da ideologia com o inconsciente,
por meio da linguagem, ou seja, a ideologia, assim
como o inconsciente, embora oculta ao sujeito
enunciador, se mostra no funcionamento do discur-
so: da estrutura ao acontecimento. Pêcheux (1997)
reflete sobre a materialidade da linguagem como
região de equívoco em que se ligam materialmente
o inconsciente e a ideologia. Dito de outro modo,
o sujeito da estrutura é afetado pela determinação
inconsciente que faz com que as redes de memória
e as formações ideológicas, às quais o discurso e o
sujeito se filiam para produzir sentidos, escapem ao
saber consciente do eu. Observa-se, portanto, que o
funcionamento da ideologia não constitui um saber
consciente, embora seja condição de existência do
sujeito e do discurso, uma vez que governa e atribui
sentidos ao fazer-dizer.
21
Nas análises que se seguem, foram destacadas
algumas regularidades que constituem equívocos
de ordem ideológica e que, em função dos senti-
dos que produzem, para além do saber consciente
do enunciador, apontam para a posição discursiva
e ideológica do sujeito de linguagem em relação à
proposta de educação inclusiva.
22
cados em suas formulações, mas sim de compre-
ender como essas formulações produzem sentidos,
ao evocarem outros domínios discursivos. Dito de
outro modo, não se trata de individualizar ou res-
ponsabilizar o sujeito de pesquisa por suas supostas
falhas ou equívocos de ordem inconsciente, mas de
compreendermos como as práticas discursivas fun-
cionam e provocam efeitos de legitimidade.
23
[RD 1]3 Incluir na pauta um congresso de in-
clusão e diversidade visa a resolver melhor
esta situação no Brasil. De mãos dadas pre-
tendemos caminhar neste tema com a par-
ticipação efetiva da universidade. A inclusão
é abrangente e parece imposta. Podemos
dar uma contribuição social, ao propor o
desmonte de mecanismos de exclusão.
24
que são representados e marcados como anormais
e excluídos. Nesse sentido, o processo de constru-
ção do saber sobre o excluído acaba por exclui-lo
dessa construção, pois este é tomado como objeto
do olhar e do saber do outro, cujo lugar enunciativo
tem certo valor e reconhecimento social.
25
acadêmico, científico e técnico que alude
à diferença e à diversidade na educação: a
identidade normal e a identidade anormal; é
a esta segunda a que se passou a chamar de
diferente, especial ou diversa.
26
Ao formular “incluir na pauta”, o enunciador atri-
bui um efeito de formalidade e de certa superficia-
lidade ao tema abordado no congresso: inclusão e
diversidade, tendo em vista que o vocábulo “pauta”
costuma ser empregado para se referir aos assuntos
a serem tratados em uma reunião de trabalho e que
podem ser sanados ou pelo menos endereçados até
o seu término. Além disso, a inclusão ou educação
inclusiva é um assunto que está em pauta ou na or-
dem do dia, em especial, no contexto escolar, em
função das últimas diretrizes da política nacional da
educação.
27
Embora o enunciador proponha “o desmon-
te de mecanismos de exclusão”, deixando entrever
certa noção dos mecanismos de poder engendra-
dos pela ideologia vigente, o enunciador parece não
se dar conta de que a viabilização da inclusão no
contexto escolar não depende única e exclusiva-
mente da “boa” vontade dos agentes educacionais
ou de seu poder transformador, uma vez que os tais
mecanismos de exclusão, bem como o modelo de
escola excludente que ainda é predominante em
nosso meio, foram legitimados ao longo de uma
longa trajetória político-econômica que, por meio
de práticas discursivas e de jogos de poder-saber,
segundo uma visão foucaultiana, foram construindo
verdades sobre os excluídos e sobre a necessida-
4
Segundo Foucault de de incluí-los. Nos últimos anos, a insignificância
(1992, p. 90), os
e a (in)fâmia4 daqueles que foram discursivamente
(in)fames não
são apenas os marcados como excluídos parece ganhar relevân-
personagens de
cia político-social, se tornando alvo das instituições
nossa história
que cometem “normalizadoras” que atuam como aparelho ideoló-
algum ato vil, mas,
gico do estado, segundo Althusser (1992), uma vez
sobretudo, aqueles
“cuja existência que a exclusão e os excluídos passaram a represen-
foi ao mesmo
tar certa ameaça à acomodação social e ao exercí-
tempo obscura e
desafortunada”. cio da cidadania.
28
Ainda em relação ao excerto anterior [RD1], ape-
sar de tentar modalizar o seu dizer sobre a proposta
da inclusão, ao formular “a inclusão é abrangente e
parece imposta”, o equívoco que produz sentidos
“indesejados” marca a posição ideológica do sujeito
em relação ao tema abordado. O caráter impositivo
da educação inclusiva se materializa nessa formula-
ção, apontado para o fato de que a inclusão é bas-
tante complexa e não é um procedimento natural,
pois, se assim o fosse, não precisaria ser apresen-
tada na forma de lei ou de proposta pedagógica a
ser seguida e nem seria tomada, pelos educadores,
como uma imposição. Nesse prisma, é significativo
ressaltar que a natureza humana é mais seletiva do
que inclusiva, uma vez que, segundo Skliar (2006),
a diferença tende a ser vista negativamente, pois
aponta para o intolerável ou para fora da normali-
dade. Em outras palavras, é mais fácil e “natural” ex-
cluir do que tentar incluir. Ao encontro dessas ideias,
Ferre (2001, p. 197) enfatiza que o mundo dos ditos
“normais” é um mundo onde “a presença de seres
diferentes aos demais, diferentes a esses demais ca-
racterizados pelo espelhismo da normalidade, é vi-
vida como uma grande perturbação”.
29
A menção ao caráter impositivo da educação
que prega a inclusão de todos, preferencialmente
em turmas de escolas regulares, a despeito da dife-
rença e, por vezes, da deficiência física marcada no
corpo, também foi observada no excerto a seguir,
formulado por uma diretora de uma escola pública
de ensino fundamental:
30
das vezes, vira sinônimo de deficiente, a necessida-
de de tudo saber e de fornecer respostas acertadas
para situações inesperadas constitui a identidade do
sujeito educador, além de governar seu fazer peda-
gógico, tal como sugere a formulação: “a gente ‘tem
que’ saber o que fazer”.
31
de aula, ainda que isso implique na má qualidade da
educação oferecida. Como já sugerido por Coraci-
ni (2007, p. 107), o fato de partilhar do mesmo es-
paço físico não significa “por si só e por força da
lei, ausência de discriminação, in-clusão, in-serção
social”. A autora (CORACINI, 2007, p. 109) conclui
que “a vontade de igualar, de homogeneizar na me-
lhor das intenções [...] é que cava um abismo ainda
maior entre uns e outros”, ou seja, entre os alunos
“ditos” normais e os representados como excluídos
ou especiais. Assim sendo, a própria escola que se
diz inclusiva acaba construindo muros que marcam
e segregam a diferença, excluindo ainda mais.
32
gogo etc.) que, por sua vez, deve sempre saber o
que fazer diante do inesperado. Essa noção de que
todos são iguais ou de que “devem” ser iguais ganha
sentidos a partir da ideologia religiosa e jurídica, se-
gundo as quais os homens são iguais perante Deus
e perante a Lei. Nesse prisma, a aplicabilidade da lei,
neste caso, das premissas da educação inclusiva, as-
segura os direitos de todos, ganhando estatuto de
compromisso moral e social.
33
tada neste estudo, é possível afirmar que aos agentes
educacionais, em especial ao professor, é dada a di-
fícil tarefa de hospedar e ser hospitaleiro, isto é, não
hostil, com esse estranho que foi inserido – mas não
totalmente incluído – no espaço de sala de aula da
escola regular, na ilusão de ser possível se atingir e
viabilizar uma hospitalidade universal: “sem reservas,
sem limites, sem fronteiras” (CORACINI, 2007, p. 110).
34
tal aceitação está prevista em lei, além de tornar os
agentes educacionais mais tolerantes e generosos,
em conformidade com a ideologia em funciona-
mento no discurso religioso e que também atribui
efeitos de sentido para as práticas inclusivas. Em um
estudo anterior (CAVALLARI, 2011) enfatizei, com
base no princípio responsabilidade proposto por
Forbes (2010), que a criação de saídas singulares e
criativas para cada situação de inclusão – que não
passe pela compaixão, mas que parta do universal
para o particular de cada caso, tratando diferente-
mente as diferenças, ao invés de tentar igualá-las –
é que poderá propiciar uma inclusão menos “nor-
malizante” e mais significativa.
35
pessoas. Temos que deixar de fixar a ima-
gem nos estereótipos.
5
O esquecimento
número dois,
Nos depoimentos dos agentes educacionais,
segundo Orlandi de modo geral, as noções de “diferente” e de “de-
(1999, p. 35) faz
o enunciador
ficiente” se confundem, justificando a necessidade
acreditar que “há da aplicação de práticas pedagógicas igualitárias e
uma relação direta
entre pensamento,
simplificadoras das diferenças. Lembrando que a in-
a linguagem e o clusão se faz necessária para além das deficiências,
mundo, de modo
que pensamos que
podemos afirmar que um equívoco de ordem ide-
o que dizemos só ológica está em funcionamento nos depoimentos
pode ser dito com
aquelas palavras e
abordados, bem como na proposta de EI, conforme
não outras”. ratifica Vizim (2003, p. 52), na citação a seguir:
36
O tema educação inclusiva, apontado na
década de 1990, ficou restrito, por vezes,
à educação de pessoas com deficiências.
Cabe ressaltar que esta é uma situação la-
mentável diante da complexidade de se
criar uma política pública de educação para
todos. Não se trata única e exclusivamente
do segmento das pessoas com deficiência,
no sentido de incluí-los nas escolas regu-
lares, deve-se incluir também toda criança,
jovem e adulto que vive a condição de anal-
fabeto ou de analfabeto funcional, de dife-
rença étnica, cultural, religiosa, de condição
social, enfim, de marginalização diante da
hegemonia social.
37
Nas palavras da autora (CORACINI, 2007, p. 101-
102), “o que se percebe é uma repetição redundante
de termos que parecem esvaziados de sentidos ou
tão plenos de sentido – naturalizados pela ideologia
dominante – que não precisam de explicitação [...]”.
Nesse prisma, podemos afirmar que a naturalização
é desastrosa e infértil, já que não promove transfor-
mações e/ou deslocamentos, pois acaba por sim-
plificar e igualar as diferenças. Em larga medida, o
equívoco de ordem ideológica que irrompe nos de-
poimentos acerca da EI, nos permite entrever que
o foco das práticas inclusivas está no apagamento
da diferença e na deficiência e não no acolhimento
da diversidade como algo que pode ser produtivo
no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que
requereria a (trans)formação não só do aluno dito
“especial”, mas de todos os envolvidos no processo
em questão.
38
pessoas”. Na formulação destacada, engendra-se a
individualização e responsabilização do sujeito por
seus atos e escolhas. Dito de outro modo, o enun-
ciador não se vê afetado por outros discursos que
circulam em nosso meio e que produzem “verda-
des” ou efeito(s) de evidência discursiva, mas como
o único agente capaz de fazer escolhas acertadas
que possibilitem a inclusão. Segundo Kehl (2001,
p. 59), dentro da modalidade subjetiva contempo-
rânea, “o sujeito não se dá conta de suas filiações
simbólicas e passa a se considerar como um indiví-
duo isolado”. Daí advém sentimentos diversos como
culpa e angústia diante do insucesso da EI e da apa-
rente inviabilidade de suas propostas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
39
Em outras palavras, o modo como a diversidade é
significada no macrodiscurso político-educacional
da inclusão acaba por promover a diluição, apaga-
mento e até mesmo o silenciamento da diferença
e daquilo que o sujeito dito excluído apresenta de
mais singular e distintivo.
40
Como já destacado anteriormente, as práticas
e política inclusivas significam ao evocarem pares
dicotômicos e imaginariamente excludentes como:
diferença x igualdade; exclusão x inclusão. São essas
noções extremamente simplificadoras e homoge-
neizantes, geralmente pensadas em oposição, que
incidem na constituição identitária do sujeito mar-
cado e representado como excluído, uma vez que
passam a constituir as imagens nas quais esse sujeito
se reconhece e se identifica. Segundo Souza (1995),
as práticas discursivo-pedagógicas, de modo geral,
e os conceitos que as fundamentam são tratados de
forma unívoca: sem equívocos, falhas ou enganos.
As práticas discursivo-pedagógicas, desencadeadas
pelo macrodiscurso político-educacional da inclu-
são e também concebidas de forma unívoca, se pau-
tam na busca de igualdade e tendem a criar identida-
des narcísicas, isto é, idênticas às daqueles que são
tidos como normais e que têm o poder de construir
um saber sobre o outro dito excluído ou especial.
41
diferença e a singularidade que são constitutivas da
identidade de todo e qualquer sujeito de linguagem
e não apenas daqueles que têm a diferença marca-
da no corpo. Skliar (2006, p. 29) reforça que “aca-
bamos reduzindo toda alteridade a uma alteridade
próxima, a alguma coisa que tem de ser obrigato-
riamente parecida a nós – ou ao menos previsível,
pensável, assimilável”. Em consonância com as afir-
mações anteriores salientei (CAVALLARI, 2008, p. 5)
que a resistência em acolher as diferenças se atrela
ao fato de que tudo o que nos parece estranho ou
não familiar expõe o não saber ou o não contro-
le, desestabilizando o lugar de suposto-saber que é
constitutivo da identidade de agentes educacionais,
sobretudo de professores. Essa redução do estra-
nho em familiar, do diferente em normal, entretanto,
inviabiliza uma prática inclusiva que, de fato, con-
temple a singularidade do sujeito-aluno e a diversi-
dade inevitavelmente presente em todo e qualquer
contexto escolar.
42
belecida entre educação regular e educação espe-
cial, de acordo com a política de educação especial.
No entanto, é significativo problematizarmos de
que modo “educação” e “inclusão” de fato se rela-
cionam e afetam as práticas discursivo-pedagógicas
na contemporaneidade. A análise dos depoimentos
nos sugere que educação e inclusão só se implicam
mutuamente no macrodiscurso político-educacio-
nal da inclusão, mas não nas práticas discursivo-
-pedagógicas em que parece haver uma hiância ou
uma lacuna imaginariamente intransponível entre
a educação tradicionalmente concebida e ainda
praticada e as premissas da EI. Resta-nos questio-
nar, portanto, como tocar ou afetar esse sujeito que
ocupa a posição de agente educacional para além
do imaginário ou do politicamente correto acerca
da inclusão? Um primeiro passo seria promover uma
reflexão sobre como as políticas públicas de inclu-
são são construídas e significadas.
43
vidas, por que não ir escutá-las lá onde falam por si
próprias?” Trazendo essas indagações para as prá-
ticas inclusivas, conclui-se que os mecanismos de
poder-saber, muitas vezes engendrados e sustenta-
dos pelo discurso universitário que, segundo Lacan
(1992), formaliza e legitima o modo de se organi-
zar as relações interpessoias, devem ser descons-
truídos ou, pelo menos, desnaturalizados, a fim de
promover uma inclusão que acolha as diferenças e
as especificidades de todo e qualquer sujeito de lin-
guagem e não apenas daqueles ditos ou represen-
tados como “anormais”. Ao encontro de tais consi-
derações, Skliar (2003) propõe uma “pedagogia do
acontecimento” que acolha o estranho, o diferente
e o inesperado sem temê-los ou silenciá-lo.
44
Desse modo, para que as práticas inclusivas sejam
tomadas de forma menos romantizada ou menos
afetada pelo imaginário de compaixão e igualdade,
precisamos nos lembrar de que o semelhante e o
dessemelhante, a ordem e o conflitual se implicam
mutuamente na desarmonia natural da EI e da Edu-
cação que se pretende para Todos e que, graças a
sua natureza universalizante, não é de ninguém, pois
não leva em conta a singularidade que diferencia os
sujeitos de linguagem.
45
REFERÊNCIAS
47
CORACINI, M. J. Identidade e cidadania: a questão
da inclusão. In: ______. A celebração do outro: ar-
quivo, memória e identidade: línguas (materna e es-
trangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2007. p. 97-113.
48
LACAN, J. O seminário 17: o avesso da psicanálise.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992.
49
SKLIAR, C. A inclusão que é “nossa” e a diferença que
é do “outro”. In: RODRIGUES, D. (Org.). Inclusão e
educação: doze olhares sobre a educação inclusiva.
São Paulo: Summus, 2006. p. 15-34.
50
O DISCURSO DA
INCLUSÃO PELA
DIFERENÇA NA
RELAÇÃO MÍDIA E
SOCIEDADE
Caciane Souza de Medeiros*
*
Jornalista/professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da
Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS). Doutora em Letras – Estudos Linguísticos na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
1 INTRODUÇÃO
53
uma formação ideológica neoliberal de ver, de fazer,
de significar o mundo e os sujeitos.
54
entorno de significação os sujeitos marcados pela
diferença passam a figurar em posição “destaca-
da” no projeto social que apregoa uma inclusão de
superfície discursiva horizontalizada, sem deslizes,
sem conflitos e arranjada em um imaginário de “boa
vontade” coletiva que ressoa um modo de discur-
sivizar a inclusão de sujeitos identificados pela di-
ferença determinado por uma formação ideológica
neoliberal1 que retoma sentidos individualizantes
que já estão naturalizados.
55
Minha proposta de reflexão está, assim, com-
prometida com uma leitura da sociedade atual em
seus modos, discursos e práticas, que só se justifi-
cam e se legitimam no bojo teórico que entende o
discurso como “efeito de sentidos entre interlocu-
tores” (PÊCHEUX, 1993, p. 170). Esta noção de dis-
curso representa, em sua materialidade simbólica, o
encontro entre linguagem, história e ideologia. Em
um mesmo movimento, o discurso materializa-se
em mecanismo constitutivo de sujeito e de sentido,
ilusões e esquecimentos (ORLANDI, 1999), e este
processo ganha corpo em diferentes formas, ou
seja, na materialidade discursiva que se (re)produz
na mídia. De acordo com o que Pêcheux (1998, p.
58) assevera, ao localizar a Análise de Discurso (AD)
como dispositivo de leitura, há um caminho de es-
tudo determinado
56
Nesta perspectiva, a linguagem é entendida
como ação, transformação, como um trabalho sim-
bólico em que tomar a palavra é um ato social com
todas as suas implicações, conflitos, reconhecimen-
tos, relações de poder, constituição de identidade
etc. (ORLANDI, 1993, p. 17).
57
com este conceito, os sujeitos estão filiados a um
saber discursivo que não se aprende, mas que pro-
duz seus efeitos através da ideologia e do incons-
ciente. O interdiscurso está articulado ao complexo
de formações ideológicas: algo já foi dito antes, em
outro lugar, independentemente. Essa relação se dá
em continuidade histórica de produção discursiva.
O interdiscurso é, pois,
58
aparência simbólica da obviedade. Essas questões
apontam para o fato de que, na constituição do su-
jeito do discurso, intervêm dois aspectos que não
podem ser deixados de lado: primeiro, o sujeito é
social, interpelado pela ideologia, mas se acredita
livre, individual; e, segundo, o sujeito é dotado de
inconsciente, contudo acredita estar o tempo todo
consciente ou, pelo menos, dotado de uma cons-
ciência social comum entre seus pares e dotada de
intenção. Afetado por esses aspectos e assim cons-
tituído, o sujeito (re)produz o seu discurso.
59
[...] saber como os discursos funcionam é
colocar-se na encruzilhada de um duplo
jogo da memória: o da memória institucional
que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo,
o da memória constituída pelo esquecimen-
to, que é o que torna possível a diferença, a
ruptura, o outro (ORLANDI, 1999, p. 10).
60
religião... inclusão/exclusão, ganham materialidade
a partir da heterogeneidade própria às formações
discursivas e das posições-sujeito no acontecimen-
to discursivo. Sem a intermediação do discurso, visto
em sua heterogeneidade, não é possível compreen-
der a constituição do ser-sujeito em sua pluralidade,
como materialização na/pela história.
61
3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
DA INCLUSÃO
62
valores ideológicos constitui o imaginário que de-
signa o lugar que os sujeitos do discurso se atribuem
mutuamente. Nas palavras de Pêcheux (1990, p. 77),
“um discurso é sempre pronunciado a partir de con-
dições de produção dadas”, portanto, importa não
somente o que se diz, mas também o que não se diz
sobre inclusão. Neste ponto, é importante salientar
que não interessa aqui analisar especificamente o
papel das mídias ao constituir um palco para viabili-
zar uma pretensa conscientização sobre a inclusão.
O objetivo é trazer à problematização um aspecto
que vejo como sendo emblemático no tempo pre-
sente: a relação de sentidos da inclusão à prática
de engajamento social que vem sendo mobilizada
como modelo de vida em sociedade; as idas e vindas
do cenário midiático montado para criar estas for-
mas de engajamento enfatizando a diferença como
caminho regular de uma possibilidade já instituída
de promover uma espécie de “consciência prática
de inclusão”; as textualidades mobilizadas para tais
práticas e seus efeitos na produção de modelos de
conduta frente a sujeitos ditos especiais.
63
clusão que mobilizo. Por inclusão, entendo mais do
que um paradigma educacional ou social; tomo in-
clusão como um princípio de organização da socie-
dade, propulsionado pela lógica de uma formação
ideológica neoliberal tomada por sentidos pré-cons-
truídos que se atualizam em “novas” formas de dizer/
mostrar e simbolizar os sujeitos. Neste sentido, trago
para o centro do debate as condições que ancoram
o movimento discursivo da inclusão, com o propó-
sito de compreender seu funcionamento e discutir
seus efeitos de legitimidade, entendendo que:
64
tituída por relações de poder. Poder que se movi-
menta no que eu prefiro chamar de sociedade da
imagem por dispositivos de visibilidade elencados e
agenciados ideologicamente.
65
só como uma força que diz não, mas que
de fato ele permeia, produz coisas, induz ao
prazer, forma saber, produz discurso.
66
cialmente no que tange os aportes tecnológicos – e,
portanto ideológicos –, na manutenção e legitima-
ção de seu lugar social. Essa legitimidade não é uma
invenção da mídia, como se ela configurasse uma
entidade independente e manipuladora, tampouco
será abordada neste texto em uma relação simplista
de influência, já que o discurso da mídia é parte do
complexo sociopolítico do Estado democrático que
é legitimado como sistema organizador em nossa
sociedade; ou seja, é o social que determina a pro-
dução de práticas e ideias mobilizadas nas esferas
institucionais (entre as quais temos a mídia na sua
posição informativa), e não o contrário. No mesmo
sentido e com maior especificidade, minha posi-
ção teórica justifica-se pela própria concepção de
linguagem que adotamos, a saber, a da linguagem
constituída por um aspecto material, a língua (o que
pode ser visto “a olho nu”) atravessada pela história
e pela ideologia, as quais caracterizam relações es-
senciais para compreendermos a manifestação do
sentido e de seus efeitos na leitura e nas práticas so-
ciais do sujeito.
67
na posição discursiva que me atenho, a mídia é ob-
servada em seu lugar singular de poder, não o poder
que vigia ou ameaça, mas o poder que regulariza a
versão possível – já condicionada em uma prática
(técnica e ideológica) instituída, que tem lugar so-
cial definido. Com esse pensamento, dispomo-nos
a observar o leque que relaciona o discurso da mí-
dia e suas relações sociais, entendendo que o poder
não é da mídia – como detentora manifesta das ver-
sões escolhidas ou dotada de um lugar de intenção
lógico e claro, mas é exercido e regulado por forças
ideológicas que são, antes, políticas, econômicas e
sociais que otimizam a (re)produção de alguns sen-
tidos em detrimento de outros.
68
que essa lógica seja eficiente, algumas táticas e téc-
nicas precisam ser inventadas/acionadas.
69
Os recortes trazidos para discussão referem-se
a campanhas3 divulgadas nos últimos cinco anos
em diferentes formas midiáticas de (re)produção e
foram sequenciadas (em recortes) para dar visibili-
dade a aspectos analíticos em torno do conceito de
inclusão e sua relação significante com uma orde-
nação social de divulgação. Observemos a sequên-
cia discursivo-parafrástica de recortes:
3
Peças publicitárias
(impressas e
audiovisuais) “Ser diferente é normal”
amplamente
divulgadas. Fonte – Disponível em: <http://www.inclusive.org.br/?p=21677>
70
Recorte 2 (R2)4 – Campanha publicitária
“Ser diferente
é normal”
4
A imagem do recorte refere-se à sexta campanha desenvolvida para a
ONG MetaSocial fundada por Helena Werneck. No filme publicitário,
de 2011, com versões de 60 e 30 segundos, Paula Werneck, uma atriz
que já protagonizou outras campanhas do MetaSocial, está em casa e
declara, em uma narrativa, ser uma menina diferente. A suposição leva
a crer que essa “diferença” seria por outros motivos até que ela de-
clara que é por gostar de tocar bateria. A cena seguinte mostra Paula
tocando bateria num parque gramado (as filmagens ocorreram no
Parque da Marinha do Brasil, em Porto Alegre) ao som de “Kids of the
Future”, da banda inglesa Jonas Brothers. Aos poucos, outros jovens
se aproximam e cantam com ela. Ao final, todos abraçam a baterista e
o enunciado “Ser diferente é normal” entra em cena. Como recursos
de acessibilidade, o filme conta com legendas e audiodescrição para
versar sobre questão da diferença. O vídeo pode ser visto no endere-
ço eletrônico: <http://www.youtube.com/watch?v=mjLpJboOQy4>.
71
Recorte 3 (R3) – Campanha publicitária
72
Recorte 5 (R5) – Campanha publicitária
73
Se observarmos a sequência de materialidades
(os recortes) enunciativas nas campanhas supra-
mostradas podemos explicitar o deslize de senti-
dos constitutivo do parafraseamento5 dos enuncia-
dos instaurados em um antagonismo histórico que
constitui a subjetividade dos que são e dos que não
são considerados diferentes e sua possibilidade de
inclusão social pela diferença. O reforço enunciativo
que deflagra que “ser diferente é normal” só pode
ser dito e fazer sentido na relação com uma me-
mória interdiscursiva num espaço que nos lembra
(traz à atualidade) da segregação historicamente
construída e discursivizada dos sujeitos (os deficien-
tes, os especiais, os diferentes...) que ainda estão
imersos na esteriotipia social da deficiência, da falta,
5
Tomo o conceito
da estagnação como sujeitos (desen)formados dos
de paráfrase
na perspectiva moldes sociais vigentes.
discursiva que
entende que
os processos Desta forma, a tentativa discursiva que a mídia
parafrásticos são
(re)produz nas campanhas é a de um (re)posiciona-
aqueles pelos quais
em todo dizer há mento direto, horizontal dos sentidos da diferença,
sempre algo que se
inclusive pelo não-uso da designação “deficiência”
mantém, isto é, o
dizível, a memória. que carrega, em sua história e memória, sentidos
A paráfrase está do
ainda atuantes do esquecimento, da desvalia e do
lado da estabilização
(ORLANDI, 1999). não-pertencimento social. Os enunciados parafrás-
74
ticos recortados das campanhas (R1, R2, R3, R4 e R5)
marcam esta memória discursiva histórica em que
as diferentes práticas relacionadas ao cuidado com
pessoas com deficiência permitem problematizar o
modo como cada período histórico, especialmente
o de agora, atualiza a questão da diferença. Dife-
rentes atores sociais em suas posições-sujeito estão
envolvidos nessas práticas que vão da caridade e as-
sistência6 até às práticas ditas integrativas e inclusi-
vas que marcam a questão da deficiência na con-
temporaneidade, mas que vem produzindo sentidos
há muito tempo.
6
A prática assistencial está diretamente relacionada ao surgimento
das instituições de confinamento. Nesse modelo e intervenção
o atendimento aos carentes constitui objeto de práticas
especializadas. Assim surgem diferentes equipamentos sociais –
tais como hospitais, asilos, orfanatos, hospícios – que oferecerão
atendimento especializado a certas categorias da população que
outrora eram assumidos, sem mediação, pelas comunidades.
Vão surgindo estruturas cada vez mais complexas e sofisticadas
de atendimento assistencial, esboço de uma profissionalização
futura desse tipo de prática. Foucault (2002) produz um trabalho
denso sobre a sociedade suas formas de regulação e pontua
historicamente a mudança das práticas sociais de cuidado (para
ele formas de ordenação) social.
75
partir de suas deficiências: elas deveriam ser medi-
das e classificadas e seus corpos tornados objetos
de controle, já que se opunham à ordem social. Essa
dominação exercida pelas disciplinas, a partir dos
séculos XVII e XVIII, se institui através deformas sutis
por técnicas minuciosas e íntimas. Através de uma
política do detalhe, de atenção às minúcias, esse
corpo doente passa a ser estudado, analisado, co-
nhecido, para ser recuperado e tratado... Este cená-
rio discursivo movimentou-se e tem agregado no-
vos sentidos para significar o sujeito diferente (e não
só deficiente). Considerando o fracasso das institui-
ções em integrar o sujeito com deficiência à socie-
dade e ao mercado de trabalho produtivo a partir de
um modelo social de normalidade, iniciou-se, em
vários setores sociais, e a mídia ocupa uma posição
importante neste processo, um questionamento e
pressão para a desinstitucionalização das pessoas
com deficiência.
76
mento de sentidos que identifica e conclama à inte-
gração a sociedade e as pessoas com necessidades
especiais, isso como forma de minimizar os proble-
mas encontrados por ambas no convívio social his-
toricamente estruturado. São práticas distintas que
ora colocam todo o peso sobre a pessoa com de-
ficiência, ora procuram distribuir a responsabilidade
pela inclusão para todo o conjunto social propondo
o engajamento como única (melhor) opção.
4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO
NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO DO
SUJEITO ENGAJADO
77
Por neoliberalismo, a partir de Foucault (2008),
compreendo a lógica que vem se empreendendo
desde meados da década de 1970, em que o mer-
cado assume posição centralizadora na formulação
de significados. Com isso, o papel do Estado na di-
nâmica social se reconfigura e há um incentivo à
autocondução. Assim, se no liberalismo clássico o
Estado gerenciava o mercado, no neoliberalismo,
a relação inverte-se. O mercado cria e monitora o
funcionamento do Estado e das suas relações com
os sujeitos e destes com eles próprios (os sujeitos
consigo mesmos e entre si), pois isso torna o pro-
cesso mais produtivo e economicamente viável.
78
menos duas grandes regras que operam nesse jogo
do neoliberal. A primeira regra é manter-se sempre
em atividade. Não é permitido que ninguém pare ou
fique de fora, que ninguém deixe de estar integrado
nas malhas que dão sustentação aos jogos de mer-
cado e que garantem que “todos”, ou a maior quan-
tidade de sujeitos, sejam beneficiados pelas ações de
Estado e de mercado. Por sua vez, Estado e o mer-
cado estão cada vez mais articulados e dependentes
um do outro, na tarefa de educar a população para
que ela viva em condições de sustentabilidade, de
empresariamento, de autocontrole etc.
79
entre o econômico e o social é a regra da não-ex-
clusão, possibilita a compreensão da inclusão como
um imperativo neoliberal para a manutenção de
todos (os sujeitos e suas instituições) nas redes do
mercado. Mesmo considerando que se trata de um
processo construído sob regras estritas e historica-
mente produzidas, entendo que as práticas sociais
significadas na/pela mídia através de campanhas ou
pesquisas, ou mesmo na militância em diferentes
esferas políticas estão sendo afetadas pelas redes
(entre as quais destaco a ideológica) que engen-
dram historicamente tal processo. Na maior parte
das situações em que vejo aplicado hoje o conceito
de exclusão (corriqueiramente ligado ao da inclu-
são, sob um efeito de autodependência significan-
te), está-se falando de outra coisa, ou seja, são atri-
buídos sentidos de vulnerabilidade, de expurgação,
de expulsão, de precarização e de marginalização,
mas não propriamente de exclusão.
80
jetivo de prevenção do risco por meio da inclusão.
Não há uma garantia de que, além de empreender
o esforço de buscar sua própria inclusão, cada su-
jeito, numa perspectiva (tentativa) coletiva, perma-
neça como que num estado permanente de busca
por se manter incluído e “ajudar” o outro a estar lá:
no lugar da inclusão. Dito de outra forma, a neces-
sidade de controle social de “todos e de cada um”
vai criando as condições de possibilidades para a
implementação de políticas de inclusão como um
imperativo neoliberal que, desde o final do século
XX, atende a uma demanda específica de sentidos:
a de aproximar para governar melhor. Desse lugar,
governar melhor não significa governar mais, se-
não utilizar a economia (no sentido de frugal) do
poder a serviço da máxima eficácia da orientação
imperativa das condutas na sutileza do discurso da
consciência inclusiva que aceita, recebe, conside-
ra a diferença, mas não necessariamente conhece,
tem ou imagina como produzir instrumentos para
lidar com ela. Nesse registro, é possível pontuar
algumas permanências e deslocamentos do pro-
cesso discursivo que dão subsídios na compreen-
são do funcionamento do discurso neoliberal da
inclusão.
81
5 POR UMA RETOMADA DA
DISCUSSÃO SOBRE O CONCEITO
DE INCLUSÃO
82
em nossa existência social. Para isso, para que todos
convivam harmonicamente em todos os espaços, e
na diferença que os constitui, é preciso o consenti-
mento, a aceitação, o respeito, a tolerância.
83
e seus modos de convivência, ordenação, institu-
cionalização de sentidos e práticas.
84
tornando-se um “parceiro/sócio” na vigilância8 pela
inclusão de todos. Essas são algumas considerações
que não dão conta, ainda, da complexidade da ques-
tão da inclusão e suas práticas sociais, mas é preciso
assumir o risco: “é preciso suportar o que venha a ser
pensado, isto é, é preciso ‘ousar pensar por si mes-
mo’” (PÊCHEUX, 2009, p. 304).
85
atributo de normalidade reforça o jogo de posições-
-sujeito de uma formação ideológica que discursi-
viza uma inclusão, é preciso apontar: segmentada,
partida, num complexo enunciativo de completude,
de obviedade. Há um deslize que marca o antago-
nismo ideológico dos sentidos que constituem nos-
sa sociedade e que nos aponta desafios para além
da ordem prática de como promover a inclusão
num espaço histórico-discursivo afetado pela divi-
são e mantido pela segregação. Essas mesmas prá-
ticas apresentam uma relação de tensões e forças
nos dias atuais. Convivemos com uma somatória de
práticas bem intencionadas de educação especial
nas escolas e também movimentos comprometi-
dos com a defesa das pessoas com deficiência que
esbarram em conflitos políticos, éticos e mercado-
lógicos. Os sentidos que chamam à inclusão como
forma de engajamento social, produzem efeitos que
não podemos medir, mas que ressoam um modo
de significar a inclusão. Processo de (re)afirmação
ou refutação de práticas ditas inclusivas ainda em
processo, em compasso de debate e em inevitável
movimento de sentidos.
86
REFERÊNCIAS
87
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In:
GADET, F.; HAK. T. (Org.). Por uma análise automá-
tica do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1993. p.
61-162.
88
DISCURSIVIDADES
DE INCLUSÃO E A
MANUTENÇÃO DA
EXCLUSÃO
Greciely Cristina da Costa*
Ninguém=Ninguém
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há tanta gente pelas ruas
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
Ninguém é igual a ninguém
Me espanta que tanta gente sinta
(se é que sente) a mesma indiferença [...]
Humberto Gessinger – Engenheiros do Hawaii
91
Estado e suas instituições (ORLANDI, 2001) mui-
to menos. E mais complexo ainda, a inclusão toma
contornos significativos na direção de manter na
sociedade a ideia de exclusão em suas práticas.
92
sujeito e sentido se constituem ao mesmo
tempo não só os sujeitos são divididos entre
si, como o sujeito é dividido em si (ORLAN-
DI, 2010, p. 12, grifo nosso).
93
E, por fim, exponho minhas considerações acerca
dessa compreensão, ressaltando, embora pareça
óbvio, que “um sujeito não é igual a outro”.
94
• apesar de as palavras parecem transparen-
tes, elas não tem um sentido fixado a priori.
O sentido é sempre produzido em determi-
nadas condições de produção e engendra
diferentes efeitos;
• o lugar de observação da relação entre lin-
guagem e ideologia é o discurso. O que
significa dizer também que sujeito e lingua-
gem são pensados na relação com o in-
consciente além da ideologia na sociedade;
• a relação entre o mundo e a linguagem é
atravessada pelo imaginário;
• a produção de efeitos de sentido e de su-
jeitos é pensada também a partir da relação
com o Estado, uma vez que é ele o articu-
lador simbólico-político que individua os
sujeitos. Orlandi (2012) explica que o indiví-
duo é interpelado em sujeito pela ideologia
no simbólico. Com efeito, a forma-sujeito-
-histórica é constituída sob a égide do capi-
talismo, ou seja, a forma-sujeito é capitalista
e, por sua vez, se sustenta no jurídico. Por
consequência, a forma-sujeito-histórica ca-
pitalista caracteriza-se pela ideia de que o
sujeito tem direitos e deveres, é livre e ao
95
mesmo tempo responsável. Essa mesma
forma é individuada pelo Estado e suas ins-
tituições. Resulta do processo de individua-
ção do sujeito, o sujeito individuado
3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO
96
o indivíduo que está fora não tem mais,
como no caso de uma sociedade de inte-
gração piramidal, a possibilidade de imagi-
nar que possa subir os degraus da escala,
que possa progredir e se sair bem. O fosso
aparece como algo quase instransponível e
o medo difuso é o de cair do lado errado
(SCHARLLER, 2002, p. 151).
97
supracitados mostram que uma vez segregado, é
impossível ao sujeito entrar nas relações sociais. En-
tretanto, há discursos que trabalham a ilusão da re-
lação incluir/excluir como se a sociedade capitalista
fosse a da oportunidade, como se “bastasse” o sujei-
to estudar, trabalhar, ser competente, disciplinado,
ter boa vontade para conquistar seu lugar (ao sol).
São discursos que colocam o sujeito como “respon-
sável” por alcançar seu lugar. Um exemplo é o dis-
curso do Estado sobre a inclusão digital. Segundo
Dias (2011, p. 301, grifo do autor), esse discurso
98
Na leitura de Orlandi (2012 p. 213, grifo nosso), faz
99
distinguia, designava, nomeava e instaurava o limite
entre o doente e o são, a loucura e a sanidade, en-
tre o espiritual e o corpo, o místico e o patológico
(FOUCAULT, 2009). Assim, a sociedade disciplinar e
suas instituições instalam a sanção normalizadora,
que segundo Foucault (2009, p. 215), estabelece
100
Pelo viés discursivo, de acordo com Orlandi
(2004, p. 85), “há em nossa realidade social uma com-
plexidade de jogo de forças” que excede a simples
relação inclusão/exclusão. Penso que essa comple-
xidade das relações de força reside no fato de que a
inclusão só se dê em virtude da exclusão. Mas não é
tão óbvio assim. Há sujeitos que já são excluídos ten-
do em vista determinadas condições históricas, em
razão da formação social que vivemos, que é capita-
lista, e, por um demanda política e econômica “pre-
cisam ser incluídos”. Nesta direção, Sawaia (1999, p.
8) afirma que a “sociedade exclui para incluir e esta
transmutação é condição da ordem social desigual,
o que implica no caráter ilusório da inclusão”. Nesta
ordem social, no caso das pessoas com deficiências,
como é discursivizada a inclusão?
101
cumentos e declarações foram firmados pautados
no princípio de que todas as pessoas têm os mes-
mos direitos. A Resolução nº 45/91 (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991), formulada no âmbito
da assembleia geral da ONU, em 1990, é um des-
ses documentos que dispõe sobre a estruturação da
sociedade da inclusão, também chamada de “So-
ciedade para todos”. Werneck (1997, p. 21) assinala
que “a sociedade para todos, consciente da diversi-
dade da raça humana, estaria estruturada para aten-
der às necessidades de cada cidadão, das maiorias
às minorias, dos privilegiados aos marginalizados”.
Para isso, a resolução mencionada aponta uma sé-
rie de medidas e metas que deveriam ser adotadas e
cumpridas pelos países membros da Organização, o
chamado Programa de Ação Mundial para as Pessoas
Deficientes e da Década das Pessoas com Deficiên-
cias das Nações Unidas.
102
pessoas com deficiência. Por outro lado, destaca-se
o fato de não serem mencionadas quais são essas
necessidades, o que significa equiparar as oportuni-
dades e ao mesmo tempo a referência a uma cres-
cente demanda por assistência. Vejam abaixo um
trecho do documento:
103
transparência. Enquanto isso, o discurso da inclusão
vai sendo significado pelo discurso do assistencialis-
mo, em certas instâncias. As lacunas vão sendo pre-
enchidas por formas e sentidos sempre sujeitos ao
equívoco da linguagem. É o caso da campanha da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos pela In-
clusão de Pessoas com deficiência que trago para
a análise com o objetivo de compreender como o
discurso da inclusão é significado e produz sentidos
para diferença.
104
corte abaixo, que trata de uma campanha da Secre-
taria Especial dos Direitos Humanos pela inclusão de
pessoas com deficiência. Observem, para começar,
o enunciado Iguais na Diferença.
105
de de se lidar com diferentes formulações que dele
derivam. Isso permite que observemos, a partir do
contraste de formulações remetidas à sua exteriori-
dade constitutiva, que efeitos são provocados pelo
enunciado acima considerando os sentidos que se
mantêm na base do dizível e os que se deslocam, ou
seja, produzem outros sentidos, a polissemia.
106
Dessa forma, penso, primeiramente, na formu-
lação de uma paráfrase que explicita a quem se re-
feriria talvez a palavra “iguais”. Quem são “iguais”?
A partir dessa questão é possível parafrasearmos o
enunciado trazendo para a formulação Todos, que
no enunciado da campanha, a partir da elipse, fica
apagado.
Iguais na Diferença
(P1) Todos Iguais na Diferença
107
o acréscimo, ou a visibilidade de Todos direciona os
sentidos para outro domínio de significação. Antes,
o enunciado não se referia diretamente à totalidade,
o que permitia que nem todos se identificassem com
o discurso da campanha, não fossem todos indivi-
duados pelo discurso do governo federal. E ainda,
essa paráfrase explicita a filiação a um dizer que re-
mete aos fundamentos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, à Constituição Federal de 1988,
entre outros, que tomam Todos como sujeitos de
direito e igualdade. Mas, quem são esses “Todos”?
108
noção de pré-construído, que consiste, de acordo
com Pêcheux (1988, p. 99, grifo do autor), em uma
“construção anterior, exterior, mas nem sempre in-
dependente, em oposição ao que é ‘construído’
pelo enunciado”. Com base nessa noção, pode-se
dizer que irrompe no enunciado “Todos iguais na
diferença”, um discurso oposto, ou seja, o de que
“Não somos todos iguais na diferença ou Ninguém
é igual na diferença”.
Iguais na Diferença
(P1) Todos Iguais na Diferença
(P2) Todos Iguais na Deficiência
(P3) Todos Iguais na Sociedade
109
campanha do governo, como deficiência. Essa pa-
ráfrase não foi construída aleatoriamente, ela deriva
das condições específicas de produção menciona-
das acima, sobretudo, no que se refere à campanha
governamental voltada para inclusão de pessoas
com deficiência. No entanto, por que enunciar di-
ferença e não deficiência? Porque não somos todos
deficientes e, portanto, também não somos todos
iguais. Observem que parece haver uma impossibi-
lidade de se pensar a igualdade frente à deficiên-
cia, neste caso, o que coloca em suspenso a ideia
de universalismo, além de provocar um desacordo
na própria ideia de igualdade. Diferença aparece aí
significando a sutura, a possibilidade de enquadrar
deficientes e não deficientes no TODO. Como se a
inclusão fosse conter as deficiências, as diferenças.
Neste caso, deficiência e diferença não estabelecem
uma relação de sinonímia, diferença não é sinônimo
de deficiência.
110
cordo também com a leitura de Dias (2011, p. 47),
ao afirmar que o discurso da inclusão/exclusão vem
funcionando para validar “aquilo que o homem não
consegue justificar, ou seja, suas atitudes de repul-
são ao outro, ao diferente, ao que não está dentro
das normas estabelecidas por certo tipo de poder
que o Estado precisa capturar”.
111
inclusão, pois a própria restrição ou prerrogativa de
direitos e deveres delimita aqueles que serão sem-
pre tomados de seu lugar de fora.
112
deficiência são explicitados na relação que estabe-
lecem. Explicitados à medida que se chama a aten-
ção para sentidos que foram historicamente cons-
truídos e ressoam em palavras como impedimento,
incapacidade, etc. É possível barrar esses sentidos?
113
dades especiais”, em um estacionamento comercial
(ver fotos abaixo).
114
vo. Trata-se para Pêcheux (1988, p. 263) de relações
de metáfora, pois o sentido é sempre “uma palavra,
uma expressão ou uma proposição por uma outra
[...] o sentido existe nas relações de metáfora (rea-
lizadas em efeitos de substituição, paráfrases, for-
mações de sinônimos)”. Em um dos contos de Ly-
gia Fagundes Telles encontrei um exemplo. A autora
enumera: “asilos, sanatórios, clínicas de repouso,
institutos – dezenas de nomes, rótulos que variam
com a condição econômica” do sujeito. Depois ex-
plica: “Se é louco pobre, nada cerimônia, é hospício
mesmo” (TELLES, 1980, p. 25). Esse exemplo mostra
que a denominação dirige os sentidos entre hospí-
cio e louco pobre, mostra, portanto, que denomi-
nar não é um gesto aleatório, é uma interpretação
no nível do simbólico (ORLANDI, 1996; PÊCHEUX,
1997). E ainda, entendo que a denominação inter-
vém na individuação dos sujeitos, pois à medida
que um sujeito, uma instituição denomina o outro,
determina-se a posição esse outro ocupa na socie-
dade. Ao passo que, o sujeito ao se identificar com
um nome, já se inscreve em uma posição discursiva.
115
portador de deficiências, portador de necessidades
especiais, pessoa com necessidade especial, para
pessoas com deficiências” (físicas, visuais, motoras,
auditivas, intelectuais). A instituição dessa última de-
nominação aparece enfatizada na cartilha Politica-
mente Correto e Direitos Humanos2, de 2004. Essa
cartilha apresenta um glossário de termos que são
considerados preconceituosos e discriminatórios
e indica qual seria o termo “correto” a ser utilizado.
Vejamos a definição dos termos deficiente e aleijado:
116
especiais”, eufemismo que não ajuda a pre-
servar sua dignidade. Em geral, as pesso-
as nessas condições preferem ser tratadas
como “portadoras de deficiência” ou sim-
plesmente “pessoas com deficiência”.
117
jeitos. Assim, as reais condições de existência dessas
pessoas vão sendo reduzidas em cartilhas e manu-
ais. De um lado, a reverberação das incorreções das
denominações que ao serem negadas, pela remis-
são à memória discursiva, instauram a exclusão; por
outro, há o recobrimento das práticas discrimina-
tórias que reside nas denominações “diferença” e
“diferente” por serem anunciadas como “politica-
mente corretas”. Sublinho que nesse movimento de
um nome para outro, o sentido que é silenciado em
uma denominação é transferido para a outra. Nesta
transferência, o sentido silenciado pode derivar para
outro, resignificar-se. Todavia, em silêncio, ele não
deixa de significar. E quanto às práticas das institui-
ções em relação a esses sentidos?
118
como a produção de significação seria outra se o
enunciado em questão fosse “Diferentes na Diferen-
ça ou Diferentes na Sociedade”.
119
Fotografia 5 – Recorte Comercial Inclusão para pessoas com
deficiência
120
“Quase todo mundo faz assim” é o enuncia-
do que aparece na parede de estabelecimento em
frente à parada de ônibus (Fotografia 6). Em cenas
intercaladas, uma jovem corre e sinaliza para o ôni-
bus parar e a câmera captura outro dizer. Desta vez,
aparece no painel do ônibus o enunciado “Eu me
viro bem melhor” (Fotografia 7). Acima, o símbolo
de cadeirante é mostrado, o que identifica o ônibus
adaptado para transportar pessoas com deficiência
física. Enquanto isso a câmera capta o motorista
cantando e porta de trás é aberta para um cadeiran-
te descer. Ele carrega no colo uma espécie de placa,
nela a inscrição: “Quando tá mais pra bom que pra
ruim” (Fotografia 8).
121
Fotografia 8 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência
122
Fotografia 9 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência
123
Fotografia 12 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência
124
A tela da televisão torna-se a tela de um com-
putador. A câmera nos leva do ambiente da loja de
discos passando pela tela do televisor para a sala
de um escritório (Fotografia 14), no qual um jovem
mostra dois cartazes. Em um, a palavra “Triste”, no
outro, “Sozinho” (Fotografias 15 e 16).
125
Fotografia 16 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência
126
Fotografia 18 – Recorte Comercial Inclusão de
pessoas com deficiência
127
Essa narrativa tem como regularidade o fato de
mostrar o percurso de pessoas com deficiência pela
cidade, na qual elas dividem os espaços com outras
pessoas. A deficiente visual divide a calçada com ou-
tros pedestres, a jovem que sinaliza para o ônibus,
que é adaptado, e o motorista convivem com o defi-
ciente físico. O deficiente auditivo se comunica com
os amigos no bar, o rapaz com síndrome de down
aparentemente trabalha na loja de discos. A música
também é cantada e tocada por uma banda em um
estúdio. No escritório, pessoas com e sem defici-
ência ocupam seu lugar no mercado de trabalho. O
efeito produzido é o de que “Todos têm lugar”.
128
é mostrada pelo/no corpo. Se, por um lado, “não ser
diferente de ninguém” parece se significar pelo “aces-
so a”: acesso à rua, à cidade, ao trabalho, ao lazer etc.
“Acesso a um lugar”. Por outro, o paralelo que o co-
mercial estabelece entre o sujeito com deficiência e
sem deficiência, pelo corpo, mostra a diferença en-
tre eles. Diferença que significa de alguma maneira,
porque é historicamente construída. São duas ordens
distintas, a do acesso e o da diferença. E o que parece
é que o sujeito é individuado pelo discurso do acesso
que, por sua vez, é a síntese do discurso da inclusão.
129
A música de Lulu Santos é estruturada em pri-
meira pessoa do singular. O que permite que o dis-
curso da campanha governamental projete, nessa
letra, o discurso da pessoa com deficiência, pois
a narrativa em imagens mostra os sujeitos cantan-
do, como se fosse a música fosse o próprio dizer
desses sujeitos. É a voz do sujeito com deficiência
sendo interpretada, construída pelo discurso ins-
titucional. Uma voz imaginária, na qual o interdis-
curso – o já-dito que fala antes, em outro lugar,
independentemente, ecoa – repousa e recorta
certas regiões da memória discursiva. Regiões que
significam a condição do sujeito com deficiência
como aquela que é igual, como um sujeito que se
vira bem, que não quer causar impacto, nem tam-
pouco sensação, que não sabe viver triste nem so-
zinho. O que significa causar impacto e sensação?
No discurso do Estado, movido, explicitado neste
comercial, trata-se de um modo de dizer o que a
deficiência provoca na sociedade. Impacto e Sen-
sação, neste domínio de significação, podem ser
substituídos e deslizam pelos sentidos de espanto,
aversão, recusa, exclusão. A colagem da letra da
música à voz do sujeito, dessa forma, coloca esse
sujeito como responsável pelo o que é dito, pelo o
130
que faz e pode provocar na sociedade, pelo modo
que circula e se significa na relação com o outro,
ao mesmo tempo, que o coloca como responsável
pela “sua condição”.
131
ginário social constrói a imagem da pessoa com
deficiência como aquele que precisa ser integra-
do, aceito, tolerado, incluído. Em cena, entram, via
esse imaginário, os discursos do assistencialismo,
da solidariedade, que não discutem as reais con-
dições de existência das pessoas com deficiência
e formas de transformá-las, de significá-las fora
da relação contraditória inclusão/exclusão. Com
efeito, a inclusão escolar, por exemplo, em muitos
casos, fracassa, porque a ideia do discurso que in-
clui é aquela do acesso. Incluir no sentido de dar
acesso, acesso à escola, não é suficiente para lidar
com os sentidos, que historicamente construídos,
continuam ecoando na atualidade, constituindo os
sujeitos, dividindo aqueles que têm e não têm lu-
gar nas relações sociais. Uma possibilidade de se
romper com essa relação, de instalar uma outra
rede de sentidos seria derivar de “Iguais na Dife-
rença para Diferentes na Diferença ou Diferentes
na Sociedade”. Uma possibilidade de fazer atuar o
discurso de que “um sujeito não é igual a outro”,
uma maneira de intervir no real, de se compreen-
der a deficiência sem submetê-la ao discurso de
exclusão. E assim lidar com as reais necessidades
dos sujeitos com deficiência.
132
5 CONCLUSÕES
133
de que maneira a contradição afeta os sujeitos na
sociedade à medida que produz enquanto efeito a
ideia de que “Todos têm lugar”. A contradição é a de
que se todos têm lugar, por que alguns precisam ser
incluídos?
134
REFERÊNCIAS
135
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução
no 45/91, de 14 de dezembro de 1990. Brasília, DF,
1991. Disponível em: <http://www.mp.pe.gov.br/
uploads/.../ Resoluo_ONU_045-91_n.doc>. Acesso
em: maio 2013.
136
ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento:
as formas do discurso. Campinas, SP: Pontes, 1996.
137
RODRIGUES. D. Dez ideias (mal) feitas sobre a edu-
cação inclusiva. In: RODRIGUES, D. (Org.). Inclusão
e educação: doze olhares sobre a educação inclusi-
va. São Paulo: Summus Editorial, 2006.
138
TOURAINE, A. Um novo paradigma: para compre-
ender o mundo de hoje. Tradução de Gentil Avelino
Titton. Petrópolis: Vozes, 2007.
139
FORMAÇÃO OU
CAPACITAÇÃO?:
DUAS FORMAS DE
LIGAR SOCIEDADE
E CONHECIMENTO
Eni Puccinelli Orlandi*
*
Pesquisadora 1A do CNPQ. Professora colaboradora do IEL/UNICAMP e pesquisadora
do Laboratório de Estudos Urbanos do Nudecrin/UNICAMP. Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO
143
(educação no sentido mais forte e definidor de outra
estrutura política, de outra formação social).
144
volvimento e da divisão, a existência da Escola não
só significa no seu interior, mas a formação social
em sua natureza e estrutura, ou seja, afeta também
quem está fora dela, da Escola. Isto é, o sujeito de
uma sociedade que tem a escola mesmo não es-
tando nela é por ela significado, no caso, pela au-
sência, pela falta: você é escolarizado ou não es-
colarizado e isso define as relações sociais em que
você se enreda. O que fica aí silenciada é a questão:
como dar condições para educar, para ir à escola,
para quem no tem os meios necessários?1 Mais do
1
Novamente se
que isso: sem a posse de bens sociais mínimos, já apresentam as
se está fora dos que contam nesta sociedade. Sabe- soluções reformistas:
cotas pra x, pra y,
mos que o orçamento para educação é dos meno- sem que se saiba
res. Embora a educação seja o argumento dos mais muito bem qual é
a prioridade: ser
presentes em campanhas políticas e em discursos negro ou ser pobre?
do governo quando quer mostrar que trabalha em Ser negro é uma
categoria social?
política social, pública. Educação, saúde, seguran- Tem o mesmo peso
ça, eis o trio campeão de audiência e de abuso. Mas de ser índio, no
Brasil? Redução do
não há projetos sólidos e estruturados para a “Edu- social a categorias
cação Social”. psicossociais, ou
antropológicas, e não
políticas e sociais
Não podemos deixar de observar que, nos dis- em sua estrutura e
funcionamento e que
cursos que falam da educação, temos outra forma se prestam ao jogo e
de nomear o que aí está significado: alfabetização. ao equívoco.
145
Mas estas formas de dizer se sucedem em con-
junturas históricas diversas: “alfabetização e desen-
volvimento”, atualmente se declinam em “educação
e mercado”, em que o mercado exige “a qualifica-
ção do trabalho”, “a qualificação do trabalhador”:
um país educado. Um país rico em que os cidadãos,
educados, são “capacitados” para o trabalho e cir-
culam como consumidores de um mercado de tra-
balho qualificado. Consumo e cidadania se conju-
gam. O denominador comum é o trabalho e não o
conhecimento. Este funciona como uma premissa
indefinida para, claro, se falar em “sustentabilidade”.
Esta, a palavrinha mágica que traz em seu efeito de
memória a de desenvolvimento (sustentável). Todas
estas formulações se ligam em algum ponto do pro-
cesso discursivo.
146
ção”. A gente não se forma, a gente termina. E ter-
mina o que?
147
educação, fala de cursos no exterior para pessoas
de formação mais avançada (é preciso, pois, chegar
lá). Para os mais pobres, ficam os treinamentos e a
capacitação. No discurso dos especialistas também
esta questão se faz presente. Cursos de capacitação,
como disse um economista em entrevista, não re-
solve, porque não garante permanência, sustenta-
ção. De minha parte, retomo o que venho afirman-
do: é preciso educação básica, penso, “formação”
mesmo, para que esses sujeitos ingressem no tra-
balho e saibam objetivar-se nas relações sociais em
que estão concernidos. Porque o que não está dito
é que se somos uma sociedade do conhecimento e
da informação estas são as formas de atender a uma
sociedade do trabalho (e do mercado).
2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
E/OU SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO?
148
des especialistas no desenvolvimento deste tema
é sem dúvida M. Foucault (2011) em suas muitas
produções: saber e poder andam juntos. Não há
relação de poder sem constituição correlativa de
um campo de saber, nem de saber que não supo-
nha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder, segundo Foucault, como retoma Viana do
Castelo. A filosofia da diferença faz sua emergência
crítica na tradição racionalista: “Penso logo sou”.
Que não fica parada e se produz no deslizamento
de sentidos, efeito metafórico que deriva para: “Sei
logo tenho poder”. Para Nietzsche (2008), a von-
tade do poder central é o impulso primordial, en-
quanto para Foucault (1971), a vontade da verdade
é uma versão deturpada da vontade do poder cen-
tral, segundo P. Strathern (2003, p. 52). A diferença
entre Foucault e Nietzsche, para Strathern (2003),
é que, para Nietzsche, a vontade de poder reside
no indivíduo (super-homem) e, para Foucault, nas
relações sociais. Em seu livro Vigiar e punir (1975),
Foucault fala da microfísica do poder, abordando
instituições como Escola, Prisão, Hospital e Fábri-
ca. E para não falar em identidade, que é por defi-
nição, uma noção estática, ele fala em “processos
de subjetivação”. E aí começamos a nos apartar da
149
maneira como diz Foucault e o modo como traba-
lhamos discursivamente.
150
ideologicamente interpelados. Sujeitos e sentidos se
constituem ao mesmo tempo. E os sentidos, como
sabemos, não existem em si, mas pela inscrição de
palavras, frases e expressões em formações discur-
sivas que são, no discurso, o reflexo das formações
ideológicas. O que significa que tampouco há sen-
tidos sem ideologia. Por outro lado, em nossa for-
mação social, o que temos são relações de poder
simbolizadas, logo, como dissemos acima, consti-
tuídas pela sua inscrição em formações discursivas,
em outras palavras, pela ideologia. Isto significa que
o poder é relativo ao funcionamento da ideologia.
Mais diretamente: só há poder porque há ideolo-
gia em funcionamento e é daí que o poder tira seu
sentido e sua força. Como pensar relações de for-
ça, relações de poder sem a ideologia e a consti-
tuição dos sujeitos e dos sentidos pela ideologia?
Tampouco podemos pensar a sociedade apartada
da linguagem, na perspectiva discursiva. As práticas
sociais são práticas significativas, sendo o homem
um ser histórico e simbólico. As formas das relações
sociais, os movimentos na sociedade, os movimen-
tos sociais, as organizações sociais, significam. É a
linguagem a mediação necessária entre os sujeitos
e a realidade natural e social.
151
Pois bem, uma afirmação usual é a de que somos
uma sociedade da informação, em que informação
equivale a conhecimento. O que, se pensamos dis-
cursivamente, não é nem necessário nem verdadei-
ro. Informação e conhecimento não significam a
mesma coisa. E podem até significar o contrário se
pensarmos em formações discursivas diferentes. Te-
nho tematizado, em meus trabalhos, como a forma
de circulação da informação, sua relação com a me-
mória discursiva – que distingo da memória metálica
que é a das TI, serializada, binômica e funcionando
pela quantidade – apresenta-se como um a-mais
que satura a relação linguagem/pensamento/mun-
do de tal modo que imobiliza os processos de cons-
tituição e formulação dos sentidos, estacionando os
sujeitos na variedade e repetição técnica2. Em suma,
na maior parte do tempo, temos mais informação
do que necessitamos para movimentar a relação
2
A repetição
técnica (diferente linguagem/pensamento/ mundo, na produção do
da empírica e da
conhecimento. O conhecimento precisa da incom-
histórica) não se
historiciza e não pletude, do inacabamento, da errância dos sujeitos e
produz autoria. É a
dos sentidos, de sua inexatidão. A circulação da in-
produção do mesmo,
sob suas várias formação em uma sociedade, dita da informação, ao
formas, versões que
contrário, funciona pelo imaginário do completo, do
retornam ao mesmo
espaço do dizível. fixo, do preciso, melhor ainda, do exato. Saturação
152
e imobilidade, na maior parte das vezes, andam jun-
tas3. A imobilidade pelo excesso e não pela falta.
153
e do especialista que trabalha sobre a própria língua,
ou seja, que a tem como seu objeto de conheci-
mento, de pesquisa e ensino. E o ensino pensado
em seus vários níveis: fundamental, médio e supe-
rior. O que não é simples, porque poderíamos dizer
que a língua é tal que não é o mesmo objeto língua
que se apresenta na pesquisa e no ensino, pensando
esses diferentes níveis.
154
começa o processo de constituição do sujeito: o
indivíduo é afetado pela língua, e interpelado pela
ideologia, constituindo a forma sujeito histórica. E a
isto chamamos assujeitamento: para ser sujeito “de”,
o indivíduo é sujeito “a” (língua e ideologia). Dessa
forma, pelo simbólico, e determinada historicamen-
te, se constitui a forma sujeito histórica, a do capi-
talismo, sustentada no jurídico. Uma vez constitu-
ído em sua forma histórica, a do capitalismo, com
seus direitos e deveres, e sua livre circulação social,
como dissemos, temos a individuação do sujeito
pelo Estado. Os modos de individuação do sujeito,
pelo Estado, estabelecidos pelas instituições e dis-
cursos, resultam em um indivíduo ao mesmo tempo
responsável e dono de sua vontade, com direitos e
deveres, e direito de ir e vir. É importante considerar
a individuação do sujeito, pois ela é, por assim di-
zer, um pré-requisito no processo de identificação
do sujeito. É o sujeito individuado que se inscreve
em uma ou outra formação discursiva, identifican-
do-se com este ou aquele sentido, constituindo-se
em uma ou outra posição sujeito na formação so-
cial (patrão, empregado, traficante, aluno etc). Esta
posição sujeito social deriva, assim, de seus modos
de individuação pelo Estado – pensada aí também
155
a falha do Estado – através das instituições e discur-
sos. Em uma paráfrase à Simone de Beauvoir, que diz
que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, tam-
bém não se nasce traficante, torna-se traficante, ou
não se nasce aluno, torna-se aluno. Isto tem a ver
com a formação social em que vivemos e o que o
Estado significa na constituição e funcionamento
desta formação. Incide, nesse processo, fortemente,
as formações imaginárias: a imagem do que seja um
professor, a imagem do que seja um aluno, a ima-
gem do que seja um sujeito diferente em alguma de
suas características etc. No processo de constituição
do sujeito do capitalismo, a individuação pela articu-
lação sombólico-política pelo Estado é fundamental.
O que mostra que a sociedade não é algo já pronto e
não é inerte. É dinâmica. Daí insistirmos na noção de
formação social (e não sociedade), que nos é mais
significativa, já que estas posições-sujeito se cons-
tituem em um movimento contínuo de processos
de identificação, com uma ou outra formação dis-
cursiva, com um ou outro sentido, a partir do modo
como o sujeito é individuado e identifica-se. Assim é
que funciona o imaginário do mundo capitalista. Isto
quer dizer que não há uma identidade em si, já pronta
(o que é ser aluno?), mas um processo de constitui-
156
ção da identidade. Há um imaginário político-social
ideologicamente constituído que funciona na esta-
bilização de imagens. Mas o bom ou mau aluno é
constituído como tal. Não o é por natureza. E isto,
para mim, é que implica a formação, em uma pers-
pectiva discursiva que é, por definição, não essencia-
lista, nem determinista5, mas materialista. E o bom ou
mau aluno é constituído por este ou aquele profes-
sor. Ou seja, não há homogeneidade, ou unicidade
de sentidos nem para o aluno nem para o professor.
E a questão posta de formação ou capacitação qua-
lifica, a meu ver, esta questão, constituindo este ou
aquele professor portanto com consequências para
a capacitação ou formação deste ou aquele aluno.
157
ção do indivíduo em sujeito pela ideologia e da indi-
viduação da forma sujeito histórica pelo Estado.
Fonte – A autora (2013)
158
de capitalista, é o da língua institucionalizada, a que
tem correção, regularidade e unidade. Esta unidade
é a unidade da língua nacional. Desse modo, identi-
fica-se o aluno bem formado com aquele que fala a
língua institucionalizada, reconhecida na sociedade
como a língua legítima. A que, no “imaginário so-
cial”, se aprende na escola, instituição do Estado que
individua o sujeito como sujeito alfabetizado, esco- Múltiplas (e
6
159
da compreensão que possibilite sua prática; conhe-
cer a língua e saber praticá-la com “fluência”. No-
ção esta que, ao contrário do que se tem pensado,
é política, pois, a fluência implica a posição-sujeito
social e a formação discursiva em que se inscreve.
A língua aqui não é tomada “como um sistema (o
software de um órgão mental) mas como um real
específico formando o espaço contraditório do des-
dobramento das discursividades” (PÊCHEUX, 2011).
A língua, pois, como condição das discursividades
(sejam quais forem).
160
4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO:
A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA
LINGUAGEM COM A SOCIEDADE
161
gua, o saber da língua na língua, daria ao sujeito um
passo na direção de sua não alienação, na direção
de ser capaz não só de formular como reformular e
resignificar sua relação com a língua e com a socie-
dade. Elemento importante em sua possibilidade de
resistência. Com a capacitação, o treinamento, ele
é um eterno repetidor. Um autômato de uma em-
presa, na melhor das hipóteses, se for considerado
“capacitado” após um “treinamento”. Ou, pior que
isso: habilitado9, e a habilitação não implica relação
com conhecimento mas com o treinamento: sujeito
treinado=sujeito habilitado, segundo o que penso. É
esta a nova economia da escola, em geral, a da não
reprovação.
162
objetivismo abstrato (formalista) ou do subjetivismo
idealista (voluntarista). Para a análise de discurso, o
sujeito se submete à língua mergulhado em sua ex-
periência de mundo e determinado pela injunção a
dar sentido, a significar-se. E o faz em um gesto, um
movimento sócio-historicamente situado, em que
se reflete sua interpelação pela ideologia.
163
o funcionamento do sistema. Os sujeitos, como os
que analisei nos meus textos sobre delinquência (pi-
chador, Falcão, menino do tráfico etc) se individuam
pela falta, na falha do Estado11. O que contribui para
que sejam postos em um processo de segregação12.
11
Portanto, embora sejam intimamente ligadas, a falha e a falta sig-
nificam de maneiras diferentes, no modo como colocamos: vejo a
falha como estruturante do Estado, e vejo a falta do Estado como
uma forma de presença em condições de produção em que deve-
ria estar lá mas não está, falta. Exemplo: a falta de aparatos/institui-
ções do Estado como escola, segurança etc.
12
O que fica claro, quando se trata das relações de violência: os po-
liciais matam legitimamente – alegando legítima defesa – dando
como explicação indiscutível: houve resistência à prisão. Foi elimi-
nado. Não precisa de julgamento. Como segregado, está fora da
formação social. Não existe, não “conta” juridicamente.
164
Pensando a inscrição do sujeito na formação
discursiva para que se identifique, assim como a
produção do sentido, e o reflexo das formações
ideológicas nas formações discursivas, podemos
ver como é nesse passo, em que o sujeito indivi-
duado se identifica, que pode haver ruptura. Essa
ruptura é possível porque, se, de um lado, como
vimos acima, na forma do capitalismo atual, con-
sideramos que a falha do Estado é estruturante do
sistema capitalista, de outro, a ideologia é um ritual
com falhas (PÊCHEUX, 1982). E a falha, como tenho
insistido, é o lugar do possível. Daí a contradição:
o que produz a repetição é o que torna possível a
ruptura do processo de individuação, de identifica-
ção, na confluência da falha do Estado no processo
de individuação e da falha da ideologia no processo
de interpelação, ressoando no processo de identi-
ficação do sujeito à formação discursiva. Atingindo
o reflexo, no sujeito, do modo como a ideologia o
interpela, na sua inscrição em uma formação dis-
cursiva e não outra.
165
ecoar na história, fazendo sentido do sem sentido.
Condição para que os sujeitos e os sentidos pos-
sam ser outros. É a isto que chamo “resistência”. E
não ao voluntarismo inscrito em teorias que se sus-
tentam na onipotência dos sujeitos e dos sentidos
que mudam á vontade. Somos sujeitos interpelados
pela ideologia, afetados pelo inconsciente, e é só
pelo trabalho e pela necessidade histórica da resis-
tência que a ruptura se dá quando a língua se abre
em falha, na falha da ideologia, enquanto o Estado
falha, estruturalmente, em sua articulação do sim-
bólico com o político. Não é, pois pela magia, nem
pela vontade, mas pela práxis, em nosso caso, pela
“formação”, que a resistência pode tomar seu lugar.
Temos o sujeito que produz(-se) “de fora”. E não o
sujeito “fora”, o segregado, que é diametralmente
oposto ao “incluído”. Não é nessa equação que tra-
balhamos, mas na dissimetria das posições: na aber-
tura produzida pela resistência.
166
Esquema 2 – A forma da resistência
Fonte – A autora (2013)
167
politicamente significado em uma formação social
que não é inerte mas dinâmica e capaz de movi-
mento. Esse espaço é a condição para que o sujeito
educador saiba relacionar-se com o educando não
colocando-se ele mesmo no lugar do educando,
sabendo, ao mesmo tempo, compreender esta dis-
tância, dar-lhe sentido. E, sobretudo, que saiba, isso
sim, criar condições para que este educando pense
e administre suas práticas nesta diferença, “como
diferente”. Caso contrário, ao insistir na diferença,
mas suturando o lugar do outro, preenchendo-o, o
sujeito educador, formador, desliza para o que cha-
mei capacitação e separa o sujeito educando dele
mesmo: preenche seu espaço significativo da dife-
rença, o que, nos meus termos, significa apagá-la
como tal. Porque não deixa o espaço da diferença,
ou do diferente, para a diferença, ou para o diferente
significá-la.
168
e ruptura devem vir juntas. Não se trata, tampou-
co, de inserir o não inserido, ou integrar o não inte-
grado (os apocalípticos?), ou seja, não visamos falar
do lugar em que a gestão pública se coloca como
lugar do assistencialismo, do multiculturalismo, do
comunitarismo, do integracionismo. Não supomos
também que temos, de um lado, o sistema capita-
lista e, de outro, agentes/sujeitos/posições-sujeito
inertes. Para nós, tanto uns como outros estão em
movimento, se deslocam e podem-se transformar,
irromper em novas formas sociais e significativas.
Embora o sistema seja estabilizador e suas rela-
ções de força trabalham na repetição do mesmo.
Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação
e a resistência tomam nesta relação tensa, já que,
tanto a estruturação como a desestruturação de-
las levam ao movimento da sociedade na história.
É a fabricação do consenso que tem produzido, na
realidade, a segregação. Já que o consenso, sobre
o qual se apoiam as políticas públicas, é um con-
senso imaginário – constituído no jogo do jurídico
e do administrativo, sustentado em práticas mate-
riais assistencialistas, multiculturais e comunitárias
– é preciso compreender os sentidos que toma o
consensual e como ele se significa nos sujeitos so-
169
ciais, pelas formações imaginárias. E, então, o que
estamos falando do espaço social, dos lugares (po-
sições-sujeito) e da formação, leva-nos, nos termos
em que estamos pensando estas questões, face à
educação, a dizer que encontrar uma situação, um
(outro) espaço, politicamente significado, para o su-
jeito é encontrar um (outro) sentido e tornar possí-
vel o movimento de sua individuação: poder estar/
ser, instalar (-se em) uma situação. Passar do não-
-sentido ao sentido possível, de modo “que o irreali-
zado advenha formando sentido do interior do não-
-sentido” (PÊCHEUX, 1975). E isto é o contrário da
“adaptação”, da chamada “inclusão”.
5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE
170
no século XX e entrando no século XXI com suas
condições de funcionamento pautadas pelo desen-
volvimento científico e tecnológico.
171
Para, como penso, “constituir outras posições que
vão materializar novos (ou outros) lugares na forma-
ção social” (ORLANDI, 2005); ou para que “territórios
de existência possam ganhar corpo” (ROLNIK, 1998).
172
os encarne, recriando-se, tornando-se outra. E te-
mos, ainda, o que S. Rolnik chama de “rosto quente e
cambiante de uma subjetividade mestiça nascida da
exuberante variedade de universos que compõem as
condições locais” (nomadismo, errância?). Ou, en-
tão, o que ela chama de “singularidade impessoal”:
um todo aberto disperso nas múltiplas conexões do
desejo no campo social e que emerge entre os mun-
dos agenciados, enquanto a subjetividade regida por
um princípio identitário figurativo consiste na pes-
soalidade de um eu, individualidade murada, presa
a suas vivências psíquicas e comandada pelo medo
de se perder de si. Aponta ainda para o modo como
emerge o tipo de subjetividade antropofágica: se faz
por alianças e contágios, segundo a autora, um rizo-
ma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor
das mestiçagens que se operam na grande usina de
nossa antropofagia cultural. Não se faz por filiação
como a identidade identitário-figurativa, promoven-
do uma fantasia de evolução linear e o compromis-
so aprisionador com um sistema de valores assumi-
do como essência a ser perpetuada e reverenciada
(ROLNIK, 1996). Esta é a posição de S. Rolnik falando
da subjetividade e da alteridade, em um país como o
Brasil, em sua conjuntura histórico-social e política.
173
Para meus objetivos, guardo destas reflexões a
não-linearidade, o movimento, a dispersão e errân-
cia. Movimento. Incompletude. Não exatidão, que é
o que tenho procurado (ORLANDI, 2012) explicitar
nos processos de constituição de sentidos e dos su-
jeitos. E penso que muito do que S. Rolnik coloca na
subjetividade, eu colocaria nos modos de individu-
ação e que resultam nos processos de identificação
dos sujeitos. Não seriam assim características de
subjetividades mas distintas experiências dos modos
de individuação no processo de constituição dos
sujeitos, individuados pelo Estado em sua articula-
ção simbólico-política. Teriam, pois, a ver precipua-
mente com a ideologia e as condições de produção
de um país que, como disse, tem, em sua historici-
dade, a colonização, a escravidão, a organização da
sociedade republicana no século XIX , seu desenvol-
vimento no século XX, e a entrada na mundialização
do século XXI, com sua tecnologia e cientismo, sem
esquecer o autoritarismo, as experiências ditatoriais,
acompanhadas do positivismo, do higienismo, do
autoritarismo, na maior das vezes presentes nas re-
lações sociais vigentes. E não deixa de ser apreciá-
vel, neste sentido, o que diz Rolnik (1998, p. 10):
174
Podemos inclusive supor que tanto faz se a
representação a ser investida como identi-
dade é imposta por um deus da caravela (lei
das potências católicas que colonizaram o
país), ou se ele foi substituído por um deus
moderno, padroeiro da nação brasileira, ou
por um deus mais moderno ainda, talvez até
pós-moderno, deus do “capitalismo mun-
dial integrado”, como o chamava Guattari,
com suas imagens globalizadas, flexíveis e
efêmeras.
175
Em suma, o inconsciente maquínico-antro-
pofágico se encontraria especialmente ativo
neste país (ROLNIK, 1996, p. 10).
176
universos. Tensão, eu diria. Que não são prerroga-
tivas brasileiras, mas o próprio da espécie humana,
podendo, no entanto, estar mais ou menos ativo nas
subjetividades e isso em muito depende, diz S. Rol-
nik (1996), dos contextos sócio-culturais, do quan-
to tendem a favorecer ou inibir sua atividade. Força
determinante das condições de produção, eu diria.
Presos na tensão entre paráfrase e polissemia, entre
a repetição e a diferença, no que nos determina e na
resistência, no que é estabilizado e o que é sujeito a
equívoco.
177
toma sentidos pré-existentes. São estes que temos
de tomar em conta na relação que estabelecemos,
considerando o processo de “formação”. Formação
do professor que, por sua vez, vai formar o seu alu-
no etc. Formação que pode dar condições ao es-
tabelecimento do espaço políticamente significado
da diversidade que se diz, que se significa, e do su-
jeito que se re-significa. E que pode, também, esta-
cionar na repetição, maquiada, da estagnação bem
sucedida (o capacitado). Isto porque a diferença, a
diversidade, apresenta-se como um acaso, que as-
sim parece nas circunstâncias em que se dá, mas é
estruturante, parte da divisão social. Em uma forma-
ção social como a nossa, capitalista, ela organiza o
funcionamento da divisão na sociedade.
6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
178
dividido, o assujeitamento nas formas históricas do
capitalismo, a ideologia como um ritual com falhas,
o Estado estruturado pela falha, o equívoco se cons-
tituindo pela inscrição dos efeitos da falha da língua
na história, e a formação social como algo que, apa-
rentemente já pronta, se constitui e se mantém con-
tinuamente. Trazemos para a reflexão a importância
do modo como a língua significa as relações sociais
e está presente na própria constituição e funciona-
mento da sociedade. A sociedade não é, como dis-
semos, inerte, e o indivíduo é individuado pelo Esta-
do, ou seja, pelas instituições e pelos discursos, em
um processo de identificação de que resultará sua
posição sujeito na formação social.
179
mados”15. E é por isto que, em uma sociedade que
se quer imexível e já feita, se evita a formação16 e,
com ela, a compreensão de como a língua/lingua-
gem funciona, tanto para o processo de simboliza-
ção, mas, sobretudo, para a individuação do sujeito
que se identifique com “uma posição sujeito capaz
de resistência e que ‘ouse pensar por si mesmo’”.
Este é o sujeito que objetivamos com a formação
17
, o sujeito não alienado (MARX, 1844), aquele que
15
É importante aqui ressaltar que dizer bem formados não significa
sempre conscientes de sua formação. Como apontamos mais aci-
ma, a falha e o equívoco trabalham em permanência esses proces-
sos de interpelação ideológica e de individuação pelo Estado, por
onde vazam sentidos e posições sujeito irrompem. Por isto a forma-
ção, tal como a caracterizamos, como forma de não alienação, é um
modo de constituição de sujeitos que torna possível a resistência.
16
E se a substitui pela “capacitação”.
17
Enquanto isso, o Estado propõe a capacitação para todos, socieda-
de de mercado e de trabalho, e, em programas para o Brasil – ou
como “Brasil, país de todos” ou ”País rico é paios sem pobreza” –
temos sempre projetos amplos que, ou não chegam nem mesmo
a serem implementados ou, se implementados, nunca alcançam
sua amplitude, ou a se completar. E se dão datas longínquas ou
que se postergam. No caso da deficiência e a acessibilidade, temos:
“Plano “Viver sem Limite” “promete promover a inclusão social e
autonomia para as pessoas com deficiência” (17/11/2011).O Brasil
tem a partir de agora um dos planos mais avançados em defesa dos
direitos da pessoa com deficiência. A declaração foi feita pela Presi-
dente Dilma Roussef, ao lançar o “Plano Viver sem Limites”, durante
cerimônia realizada em Brasília. O programa “pretende” investir R$
7,6 bilhões “até 2014” na inclusão de pessoas com deficiência.O Vi-
180
sabe discernir e reconhecer o conteúdo e o efeito
de sua ação interventiva nas formas sociais. Capaz
de pensar por si mesmo, tocando o real, no tenso
confronto com o imaginário que o determina.
ver Sem Limites vai aplicar R$ 1,8 bilhão em educação, com trans-
porte escolar acessível, adaptação de acesso a escolas públicas e
universidade, construção de salas com recursos multifuncionais,
além da oferta de até 150 mil vagas para pessoas com deficiência
em cursos federais de formação “profissional e tecnológica”. Já na
saúde, há previsão de R$ 1,4 bilhão para ações de prevenção às de-
ficiências[...]. Na área social, serão disponibilizados R$ 72,2 milhões
para implantação de Centros de Referência, [...]. Junto com esta-
dos e municípios, o governo quer ainda prevê aplicar R$ 4,1 bilhões
em acessibilidade. Uma das ações nesse sentido é a possibilidade
de “todas” as 1,2 milhão de residências do programa “Minha Casa,
Minha Vida 2” serem “adaptadas” para pessoas com necessidades
especiais. O plano prevê também a criação de cinco centros de
ensino técnico para formação de treinadores de cães-guia. “Obras
de mobilidade urbana para a Copa também deverão obedecer a
critérios de acessibilidade”. A palavra “Plano” já nos indica que seus
sentidos não se fazem para serem cumpridos mas para responde-
rem a reivindicações, no imediato. Dificilmente se cumpre em seu
futuro. Além disso, no próprio enunciado “Viver sem limites” há uma
impropriedade significativa porque é próprio, da pessoa que vive
em sociedade, aprender a lidar com limites. Não os impostos, mas
os que se fazem necessários pela sociabilidade.
181
REFERÊNCIAS
183
FOUCAULT, M. Vigiar ou punir. Petrópolis: Vozes,
1975.
184
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra: um livro para
todos e para ninguém. Tradução e notas Mário Fer-
reira dos Santos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
185
ROLNIK, S. Subjetividade antropofágica. In: HERKE-
NHOFF, P.; PEDROSA, A. Arte contemporânea brasi-
leira: em e/entre Outro/s. São Paulo: Fundação Bie-
nal de São Paulo, 1998.
186
ACESSIBILIDADE:
SENTIDOS EM
MOVIMENTO
Débora Massmann*
*
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria e Doutora em Letras pela
Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO
189
à baila. Este é o caso, por exemplo, de termos como
inclusão, no que concerne às práticas sociais e edu-
cativas, e mobilidade, no que diz respeito à ques-
tão do espaço urbano e digital. Há também aquelas
designações empregadas, como se assinalou acima,
na tentativa de nomear o sujeito da diferença, a sa-
ber, portador de deficiência, portador de necessi-
dade especial, deficiente, pessoa com necessidade
especial, pessoa com deficiência, entre outras.
190
la e o governo, por exemplo, tentam estabelecer o
“normal” como coerção social (FOUCAULT, 1987).
191
texto inscreve-os como parte integrante e indivisí-
vel da plataforma universal dos Direitos Humanos.
Desse modo, a Declaração de Viena pode ser con-
siderada um divisor de águas para a questão da di-
versidade, pois trouxe consigo a questão da Ética da
Diversidade na implantação de políticas inclusivas. É
fundamentada neste documento de Viena, que sur-
ge, em 1994, a Declaração de Salamanca (1994) em
que se discorre, de modo mais específico, “Sobre
Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessi-
dades Educativas Especiais”.
192
diminuir as barreiras espaciais, sociais e ideológicas
e movimentam-se na direção da diversidade. Na es-
teira deste movimento, promove-se a luta contra o
preconceito e valorização de sujeitos da diferença, a
saber, sujeitos com deficiência, de diferentes etnias,
religiões, culturas e outros. Desse modo, o sentido
de diversidade apresenta-se relacionado à ideia de
acessibilidade, pluralidade, globalização e multipli-
cidade trazendo consigo a questão da tolerância e
da convivência com a diferença.
2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE
193
lidade” foi adquirindo no decorrer dos últimos anos,
considera-se importante compreender os sentidos
que são postos em funcionamento nos dizeres so-
bre a acessibilidade que circulam na sociedade.
194
foram sendo reformuladas em função da deman-
da da sociedade a novas formas de serviço. Destas,
deve-se destacar a versão de 1994 que se amparou
no conceito de Desenho Universal2 para promover a
regulamentação de normas voltadas ao benefício de 2
De acordo com a NBR
9050:2004, o Desenho
todos. Nesta versão da NBR 90503, nomeada como Universal é definido
“Acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência como “aquele que visa
atender à maior gama
às edificações e espaço, mobiliário e equipamen- de variações possíveis
tos urbanos”, além de definir critérios de acessibi- das características
antropométricas
lidade e desenho universal, também foram descri- e sensoriais da
tos alguns tipos de deficiência (física, visual, auditiva população”. Disponível
em: <http://www.
etc.) que deveriam ser levados em consideração no pessoacomdeficiencia.
processo de planejamento urbano no que tange às gov.br/app/sites/
default/files/
edificações destinadas à educação, saúde, cultura, arquivos/%5Bfield_
culto, esporte, lazer, serviços, comércio, indústria, generico_
imagens-filefield-
hospedagem e trabalho, entre outros. description%5D_24.
pdf>. Acesso em: 1 jun.
2013.
Como se pode observar, as duas versões da 3
Para mais informações,
norma NBR 9050, descritas acima, trazem formas confira <http://www.
pessoacomdeficiencia.
distintas de significar a questão do acesso: “ade- gov.br/app/sites/
quação” (NBR 9050:1985) e “acessibilidade” (NBR default/files/
arquivos/%5Bfield_
9050:1994); e modos diferentes de designar os pró- generico_
prios sujeitos a quem esta normatização se desti- imagens-filefield-
description%5D_24.
na, a saber, “Pessoa Deficiente” (NBR 9050:1985) e pdf>. Acesso em: 1 jun.
“Pessoas Portadoras de Deficiência”. 2013.
195
Essa observação nos leva a perceber ai não só
a questão da querela terminológica de que se fa-
lou anteriormente no que tange aos modos de dizer
os sujeitos da diferença, mas principalmente, a ob-
servar um movimento de sentidos. Sentidos que se
deslocam, neste caso, da “adequação” em direção
à “acessibilidade”. Desse modo, considera-se que
refletir sobre acessibilidade implica analisar sentidos
múltiplos, ora cristalizados, ora fluídos, sentidos em
movimento, pois, como destaca Orlandi (1988), os
sentidos podem sempre ser outros uma vez que se
constituem no funcionamento histórico da e pela
linguagem, ou seja, na história de enunciações que
tem um passado e projeta um futuro.
196
que é posta em funcionamento nos modos de dizer
a acessibilidade no discurso da normatização, bem
como as condições histórico-ideológicas em que
o acontecimento enunciativo4 (GUIMARÃES, 2007)
se produz. Em outras palavras, trata-se pois de ob-
servar o processo de produção de sentidos que se
caracteriza pelo funcionamento da língua num dizer
específico sobre “acessibilidade”.
197
3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO
FLUIDO
198
que a palavra significa. E as palavras têm a sua histó-
ria de enunciação. Elas não estão em nenhum texto
como um princípio sem qualquer passado” (GUIMA-
RÃES, 2007, p. 81).
199
A determinação semântica ocupa, portanto,
uma posição de destaque já que é descrita como
uma relação enunciativa fundamental no processo
de produção de sentidos das expressões linguísticas
(GUIMARÃES, 2007). Ou seja, é nas e pelas relações
de determinação semântica, constituídas no acon-
tecimento enunciativo, que as palavras significam.
200
em um enunciado exige que se considere
em que texto está essa unidade. São as re-
lações de linguagem que constituem senti-
do. E mais especificamente, são as relações
enunciativas do acontecimento que consti-
tuem sentido. O sentido não se reduz a uma
mera relação interna em uma estrutura en-
tre os elementos da estrutura, independen-
temente de qualquer exterioridade.
201
4 além disso, o DSD normalmente apresenta-
-se emoldurado, isto é, ele é descrito no in-
terior de uma moldura.
202
ção do sentido de um texto. Vou chamá-la
de predicação [...]. Trata-se de uma opera-
ção pela qual, no fio do dizer, uma expres-
são se reporta a outra, pelos mais variados
procedimentos. Ou por negar a outra, ou
por retomá-la, ou por redizê-la com outras
palavras, ou por expandi-la ou condensá-la,
etc. (GUIMARÃES, 2007, p. 84)
203
articulação remete à análise das relações de conti-
guidade no interior do próprio enunciado. O estudo
da articulação permite dizer “como o funcionamen-
to de certas formas afeta outras que elas redizem”
(GUIMARÃES, 2007, p. 88). Dentre as relações de
articulação, pode-se citar a pressuposição, a predi-
cação e a referência no âmbito do enunciado e as
relações argumentativas, entre outras. É, portanto,
tomando como bases estes pressupostos teórico-
-metodológicos que se estabelecerá a análise do
corpus desta pesquisa.
204
-analítico da Semântica do Acontecimento descrita
como “uma semântica que considera que a análise
do sentido da linguagem deve localizar-se no es-
tudo da enunciação, do acontecimento do dizer”
(GUIMARÃES, 2002, p. 7).
205
ai uma relação predicativa marcada pelo sinal de
pontuação:
Recorte 1 – Acessibilidade
206
Nestas manobras iniciais, nota-se que a pala-
vra “acessibilidade” é predicada por “condição para
uso de equipamentos da pessoa portadora de defi-
ciência” e por “para uso de equipamentos da pessoa
com mobilidade reduzida”. Essa relação predicativa
permite já de início perceber a relação de sentidos
que está sendo produzida entre acessibilidade e mo-
bilidade. De um lado, acessibilidade determina uma
condição, um estado de um grupo de sujeitos cuja
mobilidade não existe ou está reduzida. Ou seja, su-
jeitos que, de certa forma, foram excluídos da socie-
dade pela sua diferença física. Promover a “acessi-
bilidade” neste sentido significa criar condições de
mobilidade e é este o funcionamento de sentido que
é tornado visível pela paráfrase e pelo DSD abaixo.
DSD1
ACESSIBILIDADE ├ mobilidade
207
e “autonomia” da pessoa com deficiência ou com
mobilidade reduzida, tem posição central. Nota-se
assim que o sentido vai deslizando de “condição”,
um estado do sujeito, para a questão da “segurança”
e “autonomia” de sujeitos com deficiência.
DSD2
├ autonomia
ACESSIBILIDADE
├ segurança
208
cação e informação”. “Acessibilidade” é diretamente
reescriturada por definição por “condição para utili-
zação, com segurança e autonomia, total ou assis-
tida, dos espaços, mobiliários e equipamentos ur-
banos, das edificações, dos serviços de transporte e
dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação
e informação, por pessoa portadora de deficiência
ou com mobilidade reduzida”. Esta definição colo-
ca diretamente a predicação de “acessibilidade” por
utilização dos espaços mobiliários, equipamentos
urbanos, edificações, transporte e dispositivos e sis-
tema e meios de comunicação e informação.
209
DSD3
utilização de utilização de
espaço urbano mobiliário ┤ ├ equipamentos ┤espaço digital/
├ edificações ┤ ACESSIBILIDADE ├ comunicação informacional
transporte ┤ ├ informação
DSD4
Mobilidade utilização
┴ ├ equipamentos
├ comunicação ┤ espaço digital/
├ informação informacional
pessoa
portadora de ACESSIBILIDADE utilização
deficiência ┤
pessoa ├ mobiliário
com mobilidade ├edificações ┤espaço urbano
reduzida ┤
┬ ┬ ├transporte
autonomia segurança
210
Nota-se, neste DSD4, que o sentido de “aces-
sibilidade” é determinado por “pessoa portadora de
deficiência”, “pessoa com mobilidade reduzida”, por
“mobilidade”, “autonomia”, “segurança”, “utilização
de equipamentos, de comunicação, de informação”
e “utilização de mobiliário, edificações, transporte”;
por outro lado, é possível observar também que o
sentido de “acessibilidade” determina “espaço ur-
bano” e “ espaço digital/informacional pelo desliza-
mento de dois conjuntos de determinação que rece-
be o que está à direita no esquema do DSD proposto.
211
lidade (KWAN, 2007). Para Lemos (2009), enquanto
a primeira diz respeito à capacidade de se mover, a
segunda se refere às condições e possibilidades de
deslocamento e de alcance de determinados pon-
tos sejam eles físicos, informacionais e/ou cogniti-
vos. As palavras do autor, além de confirmar as re-
lações de sentido entre acessibilidade e mobilidade
observadas na análise, apontam para o fenômeno
semântico que nos faz perceber a rede de significa-
ções que a palavra “acessibilidade” coloca em fun-
cionamento no enunciado em questão.
212
a produtos e serviços do espaço urbano físico, mas
também à medida que possibilita o acesso ao uso
de aplicativos, redes e sistemas de comunicação
e informação da era digital a todas as parcelas da
população. Este deslocamento de sentido nos leva
pois a pensar na acessibilidade tecnológica em con-
formidade com os pressupostos da sociedade da in-
formação em rede.
213
Nota-se assim que a acessibilidade tem seu sen-
tido afetado, deslocado e ampliado à medida que
faz refletir também sobre a comunicação e o acesso
à informação a partir de outro lugar, o lugar alterna-
tivo e de direito dos sujeitos da diferença, pessoas
com deficiência.
214
oficiais, a convenção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU e a Lei da Acessibilidade do Bra-
sil dão a conhecer assim outras formas de acessi-
bilidade e, consequentemente, outros sentidos para
a palavra. Novas formas de dizer e de (re)significar
a acessibilidade contribuem (e apontam) para um
avanço do pensamento político e social em torno
da questão da diversidade. Avanço que certamen-
te, por um lado, ressignifica as políticas públicas da
diversidade, mas, por outro lado, traz à sociedade
a tarefa de romper com paradigmas tradicionais e
propor ações mais amplas que estejam de acordo
com as necessidades histórico-culturais dos sujeitos
implicados nestas práticas.
215
REFERÊNCIAS
217
GIL, J. Todos significa todos. Revista Escola: Gestão
Escolar, São Paulo, n. 16, out./nov. 2011. Disponí-
vel em: <http://revistaescola.abril.com.br/politicas-
-publi cas/50-anos-lei-diretrizes-bases-educacao-
-brasil-ldb-647284.shtml>. Acesso em: 2 jul. 2012.
218
NAÇÕES UNIDAS. Educational, Scientific and Cul-
tural Organization. Declaração e Programa de Ação
de Viena. Viena, 1993. Disponível em: <http://pfdc.
pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/
legislacao/direitos-humanos/Declarac255eo%20
e%20Plano%20de%20Ac255eo%20-%20Viena.pdf>.
Acesso em: 10 jul. 2012.
219
ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e pro-
cedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.
220
TRAÇO, CORPO,
SENTIDO: SOBRE
A ESCOLA, A
CRIANÇA E A
ESCRITA
Renata Chrystina Bianchi de Barros*
No poema
e nas nuvens
cada qual descobre
o que deseja ver.
Helena Kolody
*
Fonoaudióloga e Pedagoga. Doutora em Linguística pela UNICAMP. Docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do
Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO
223
A opção por analisar um recorte de cada um
desses documentos se deu por ter observado que
a prática pedagógica orientada nesses documentos
está inicialmente voltada à preparação do corpo,
com atenção e cuidados com a evolução e o desen-
volvimento do movimento do corpo infantil como
realizado desde a Idade Média.
224
mem, entre homem e mulher, entre a cidade
e o campo, entre o alto e o baixo, entre a ri-
queza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre
a violência e a paz. Mas uma das principais
tensões é aquela entre o corpo e a alma [...].
225
crever, mas de entender como a prática do corpo
é representativa da história da sociedade. Como
exemplo, aponta para as proibições e para as auto-
rizações do comportamento à mesa, do compor-
tamento sexual e das vestimentas em ambientes
comuns, numa formalização de regras de conduta,
modelando inclusive a sensibilidade corporal.
226
que foram rotuladas como incapazes de se ade-
quarem ao modelo educacional vigente (BARROS,
2012a) sob práticas que envolvem a “docilização do
corpo” (FOCAULT, 2009) por meio de técnicas his-
tórica e ideologicamente estabilizadas.
227
ou coisa parecida. Na idade pré-escolar,
estas crianças mostram-se agitadas, mo-
vendo-se sem parar pelo ambiente, me-
xendo em vários objetos como se estives-
sem “ligadas” por um motor. Mexem pés e
mãos, não param quietas na cadeira, falam
muito e constantemente pedem para sair
de sala ou da mesa de jantar.
Elas têm dificuldades para manter atenção
em atividades muito longas, repetitivas ou
que não lhes sejam interessantes. Elas são
facilmente distraídas por estímulos do am-
biente externo, mas também se distraem
com pensamentos “internos”, isto é, vivem
“voando”. Nas provas, são visíveis os erros
por distração (erram sinais, vírgulas, acen-
tos, etc.). Como a atenção é imprescindível
para o bom funcionamento da memória,
elas em geral são tidas como “esquecidas”:
esquecem recados ou material escolar,
aquilo que estudaram na véspera da prova,
etc. (o “esquecimento” é uma das principais
queixas dos pais). Quando elas se dedicam
a fazer algo estimulante ou do seu interes-
228
se, conseguem permanecer mais tranquilas
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO DÉFICT DE
ATENÇÃO, 2013, grifo nosso).
229
Estamos convencidos de que o ato de expri-
mir, em sua forma normal ou fundamental,
consiste, dada uma significação, em cons-
truir um sistema de signos tal que a cada ele-
mento do significado corresponda um ele-
mento do significante, isto é, em representar.
2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO
INFANTIL CONTEMPORÂNEA: A
PEDAGOGIZAÇÃO DO CORPO
230
manizatórios do corpo partindo do desenvolvimen-
to organofuncional do ser-humano para que possa-
mos, mais à frente, remeter à relação do corpo com
a aprendizagem da escrita no processo inicial de al-
fabetização, conforme elaboro apoiada nos dispo-
sitivos teóricos e analíticos da Análise de Discurso.
231
de Raff e Levitzkky (2011) e de Dangelo e Fattini
(2007), temos que no desenvolvimento do corpo o
homem nasce, cresce, envelhece e morre. Nessa li-
nha natural e social da vida, de modo específico, a
espécie humana precisa de mais tempo, comparado
a outras espécies animais, para que suas estruturas
físicas se desenvolvam numa relação de aprendiza-
gem de movimentos globais e específicos. Como
exemplo, no desenvolvimento evolutivo, o homem,
ao nascer, mantem-se deitado, sem controle volun-
tário dos movimentos corporais. Num estágio pos-
terior, é próprio desta espécie animal que o corpo
aprenda a rolar, arrastar e sentar para, somente após
estas etapas, iniciar o processo de locomover-se
abaixado na posição de quatro membros, levante-se
e passe para a marcha bípede ereta, posição deseja-
da para o corpo humanizado, social.
232
Quero apontar com este material que esta des-
crição permeia, ainda nos dias de hoje, a construção
do currículo da educação infantil no Brasil. Histori-
camente, a educação infantil origina-se voltada às
necessidades do cuidado a criança órfã e, nas pro-
ximidades dos anos 1930, ao cuidado da criança de
pais que precisaram inserir-se no mercado de tra-
balho em período integral (KUHLMANN JR., 2000;
OLIVEIRA, 1988). Desde então, até os dias atuais,
a educação infantil brasileira vem buscando supe-
rar a concepção educacional assistencialista que há
muito vem realizando. Porém, compreendo que os
esforços realizados vem provocando novos e peri-
gosos sentidos da prática daquilo que, anteriormen-
te, era realizado no período do “jardim da infância”.
233
do aspecto comportamental humano que possa
conturbar a linha imaginária do discurso pedagó-
gico, ou que imaginariamente enfraqueça as pos-
sibilidades do ensino e da aprendizagem no espa-
ço escolar, de modo que mais do que o ensino do
conhecimento de um campo do saber, professores
vêm questionando e transportando5 instrumentos
de disciplinas de áreas longínquas, como a neurop-
sicologia, sobre práticas humanizatórias do corpo,
solicitando a intervenção por meio de práticas que
visam organizar e disciplinar o sujeito para os ritu-
ais sociais e de trabalho.
234
sos analíticos discursivos, que a educação galgada
numa política perversa que negligencia os proces-
sos de constituição do sujeito, aloca-o num campo
de significação do fazer, mas não do saber.
235
O Estado, seguro sobre as proposições acerca
dos objetivos da Educação no Brasil, elabora a Lei
no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabe-
lece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a
partir da qual diversas outras resoluções foram es-
critas, como a Resolução nº 5, de 17 de dezembro
de 2009 (BRASIL, 2010), que institui diretrizes cur-
riculares nacionais para a educação infantil. Neste
documento, a educação brasileira funda a escola
como espaço de possibilidade de desenvolvimento
integral da criança, voltando as atividades escolares
na educação infantil para o desenvolvimento de es-
truturas cognitivas, preparando o corpo para o uso
da língua.
236
A feitura de resoluções, regimentos e manuais
que privilegiam as práticas corporais na escola apon-
tam para uma proposição: as práticas pedagógicas
com o corpo têm sido elaboradas para fins dos pro-
cessos educacionais, considerando o corpo um ins-
trumento das práticas didáticas, tendo-o como fim,
como apresentado nos documentos sobre os quais
me debruço. Seus autores elaboram atividades que
visam o desenvolvimento corporal para o movimento
adequado com o que, evolutivamente, é comum à
espécie humana, com apontamento de diretrizes que
se voltam para o desenvolvimento integral evolutivo
(Recorte 1), assim como, incluem especificações de
atividades que podem e devem ser realizadas com
crianças de determinadas faixas-etárias (Recorte 2).
237
Reconhecendo que a filiação teórica estabele-
cida para a elaboração dos documentos citados está
no interior do sócio-interacionismo, por uma questão
de base teórica, necessariamente, as atividades foram
pensadas para serem realizadas na articulação dos as-
pectos biológicos (fisiologia do corpo humano), psico-
lógicos (cognição, emoção e afeto) e antropológicos
(histórico, social, cultural e político) da espécie-huma-
na. Nesse sentido, apontam para uma suposição de
“integralidade” a ser assumida nos processos didáticos,
de modo sequencial e circular (Recorte 1) para que
todos os aspectos adjacentes ao ser-humano fossem
alçados visando o pleno desenvol-
vimento do indivíduo por meio da
aprendizagem (BARROS, 2004).
238
À esta articulação didática integralizadora dos
processos que envolvem o indivíduo para a sua hu-
manização, chamarei de “pedagogização do cor-
po” (ARAÚJO, 2002), por ser esta uma prática nor-
malizadora que visa a instrução e a reprodução do
conhecimento, e que vem ocorrendo por meio do
aproveitamento das possibilidades de articulação de
campos teóricos e práticos em nome da integrali-
dade no seio da teoria sócio-interacionista, com
a inclusão de conhecimentos recortados da neu-
ropsicologia, sob a máscara de auxiliar e facilitar o
desenvolvimento “e o funcionamento de recursos
cognitivos e às múltiplas conexões que o cérebro
tece através de uma rede complexa de neurônios
[...]” (VALLE; CAPOVILLA, 2011, p. 35).
239
Os autores dos documentos governamentais
aqui em evidência relacionam as possibilidades de ati-
vidades corporais com o estudo do desenvolvimento
humano, que consiste em detectar os motivos que
favorecem o crescimento humano e como ele muda
durante a vida (FIGUEIRAS; SOUZA; RIOS; BENGUI-
GUI, 2005), incluindo, nos processos didáticos, técni-
cas que moldam e humanizam o corpo, preparando-
-o por meio do que chamam de atividades complexas
para o aprendizado da leitura e da escrita.
240
concentração e memorização) e motoras, tais como
a análise perceptiva, a precessão de representação
mental, determinação de pontos de referência.
241
já apontamos com Merleau-Ponty (2012) e a objeti-
vidade do traço. É a pedagogização do corpo leva-
da ao extremo, num sufocamento do que permite a
linguagem ao homem – empenhar-se nos sentidos
circulantes do mundo.
3 DO CORPO BIOLÓGICO AO
CORPO-SENTIDO
242
sam autores sócio-interacionistas e construtivistas,
a escola silencia o que permite a irredutibilidade do
humano à animalidade – a linguagem (HENRY, 1992).
243
talista, constrói instrumentos e elabora a práxis pe-
dagógica voltada a uma ideia de que se tem sobre o
sujeito da escola. Nesse espaço6 estão em funciona-
mento os mecanismos de imaginário e de antecipa-
ção sobre a constituição dos sujeitos e dos proces-
sos discursivos.
244
Sobre a ideação do corpo, estrutura privilegiada
nesse modelo pedagógico de atuação na educação
infantil, passa despercebida a ideia de que ele é par-
te integrante de processos que demandam sentidos,
e que as temidas atividades de escrita, que têm no
corpo o movimento do traço, exigem tão ou mais
esforços simbólicos que as práticas de adequação
de movimento para a produção da letra.
245
Recorte 3 – Diretrizes curriculares nacionais para educação
infantil
246
Nesses documentos encontramos uma aproxi-
mação entre “processos de apropriação” e órgãos da
percepção humana, numa relação de causa e efeito.
O corpo, ainda biológico, é um organismo posto em
relação com os objetos do mundo. Objetos de co-
nhecimento. Com o desenvolvimento organo-fun-
cional, o homem passa a realizar movimentos/gestos
para se relacionar com o mundo de modo que esses
movimentos serão significados por seus pares (fa-
miliares, professores, cuidadores) e, assim, tanto no-
vas estruturas cerebrais e mentais serão construídas
para a fixação da atenção e a construção da memória
(funções cognitivas), como os processos de signifi-
cação passarão a acontecer. Nesse lugar de interpre-
tação, processo de significação é processo cognitivo,
estabelecendo relação entre signo e significante num
movimento de representação direta do mundo.
247
e o desenvolvimento de funções superioras como
o pensamento e a linguagem, compreendendo que
“o desenvolvimento psicológico dos homens é par-
te do desenvolvimento histórico geral da espécie”
(VIGOTSKY, 1996, p. 80).
7
Em leitura dos textos
Compreendendo o sujeito no interior da Análise
de Pêcheux (1997b) e
Orlandi (2001). de Discurso (AD), não é possível assumir fragmen-
248
tos do corpo para a elaboração de análise ou para
a construção de práticas voltadas ao desenvolvi-
mento corporal puramente. Considerar o corpo do
sujeito na AD é pensar o corpo constituinte do ho-
mem, um Ser da linguagem (BARROS, 2012; HENRY,
1992), do simbólico e das relações; isto é, um corpo
que significa, qual denomino corpo-sentido (BAR-
ROS, 2012b).
249
Meu percurso de análise e interpretação vem
mostrando a escola com suas práticas e entornos
teóricos balizada por fundamentos integralizado-
res do sujeito, o que instaura uma condição de
produção para o ensino da escrita voltado para a
pedagogização do corpo em torno da adequação
de movimentos preparatórios das vias perceptivo-
-cognitivas, esvaziados de sentidos, para um fazer
sem saber. Sob a feitura do ensino esvaziado pelo
movimento do corpo biológico, alarga-se uma po-
lítica educacional tecnicista, atrelando a pedagogia
à um modelo de ensino de adaptação do sujeito às
condições de um mercado de trabalho (PFEIFFER,
2010).
250
políticos entre os sujeitos e os acontecimentos. E
marca com singularidade o corpo-sentido, instau-
rando possibilidades.
4 O SUJEITO DA ESCOLA
CONTEMPORÂNEA
251
nea não é o mesmo de há 10 anos. Para além do
sujeito disciplinado, pedagogizado, a escola con-
temporânea recebe e fabrica o sujeito medicaliza-
do, que sofre implicações médicas e terapêuticas
objetivando a constatação de alterações anátomo-
-biológicas e fisiológicas às dificuldades de apren-
dizagem apresentadas no processo de ensinagem e
de aprendizagem.
252
Quadro 1 – Quadro comparativo entre as características do
TDAH e as críticas ao transtorno fictício
253
o processo de escolarização e o de urba-
nização funcionam, ambos, como instru-
mentos, do Estado, de normatização, esta-
bilização, regulamentação dos sentidos do
sujeito e dos sentidos para o sujeito ocupar
a cidade.
254
O referido projeto garante diagnóstico e trata-
mento à criança na escola, assim como, a formação
do professor para a realização da identificação de tais
transtornos. Conforme delibera, os sistemas de ensi-
no devem assegurar que as crianças assim diagnosti-
cadas tenham acesso aos recursos didáticos adequa-
dos ao desenvolvimento de sua aprendizagem.
255
mentada a educação básica no Brasil, como já apontei
anteriormente, apregoa que de modo cíclico o saber,
a aprendizagem e o desenvolvimento acontecem e se
elaboram de maneiras diferentes pelos sujeitos.
5 DO APRISIONAMENTO À
SUBVERSÃO: CONSIDERAÇÕES
FINAIS
256
Porém, a escola atual, que tem no corpo a marca
da uma práxis pedagogizante do controle, da ade-
quação, da preparação de processos cognitivos para
o desenvolvimento da aprendizagem, pouco permi-
te ao sujeito se expressar. Como efeito, o corpo se
rebela, escapa, encontra brechas que apontam para
aquilo que está ali preso, contido. Para mim, esses
são gestos que quebram com a ordem totalizadora
da pedagogização do corpo, da ordenação, deixando
aparecer o que há muito vem sendo desconsiderado.
257
movem, pedagogicamente, o retorno do sujeito à
animalidade, tendo o corpo como princípio e fim da
aprendizagem.
258
O traço marca o sujeito da contemporaneida-
de, de ser-homem-no-mundo-hoje em sociedades
que têm a letra como estatuto de civilidade. Toman-
do a singularidade das condições de produção do
espaço urbano, temos que na materialidade da lín-
gua escrita estão inscritos os processos sociais (OR-
LANDI, 2001a; SILVA, 1999). Ao apropriar-se dessa
materialidade, a cidade passa a estabelecer outras
relações com o sujeito, permitindo-lhe ocupar lu-
gares enunciativos enquanto posição-sujeito.
259
No traço, penso, ao sujeito está ofertada, no in-
terior da escola, a significação. Ao traçar inicialmen-
te de modo livre, na descoberta dos significados
latentes, o sujeito pode subverter àquilo que está
posto para ele no interior de uma instituição mar-
cada por uma língua, na prática de uma pedagogia
fadada à repetição, responsabilizada pela produção
da consciência de unidade nacional.
260
REFERÊNCIAS
261
BARROS, R. C. B. de. A singularidade da clínica fo-
noaudiológica. Campinas, SP: RG, 2012b.
262
BRIGHENTE, M. F.; MESQUIDA, P. Michel Foucault:
corpos dóceis e disciplinados nas instituições esco-
lares. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
10., 2011, Curitiba. Anais... Curitiba: PUCPR, 2011. Dis-
ponível em: <http://educere.bruc.com.br/CD2011/
PDF/4342_2638.PDF>. Acesso em: 5 jun. 2013.
263
GABRILLI, Mara. Projeto de Lei no 7.081, de 2010.
Brasília, DF, 2010. Disponível em: <http://www.ca-
mara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra:
jesessionind=7C67CF224494FBD24CF9B54CE859A
5B0.node2?codteor=752565&filename=PL+7081/2
010>. Acesso em: 9 jun. 2013.
264
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Pau-
lo: Cosac & Naify, 2003.
265
ORLANDI, E. P. Relações de sentidos e relações so-
ciais: escola e cidade. In: _____. Cidade dos senti-
dos. Campinas, SP: Pontes, 2004. p. 149-156.
266
PFEIFFER, C. C. Políticas públicas de ensino. In: OR-
LANDI, E. (Org.). Discurso e políticas públicas urba-
nas: a fabricação do consenso. Campinas, SP: RG,
2010. p. 85-99.
267
EDUCAÇÃO FÍSICA:
EM BUSCA DE
UMA NOVA A
RE-SIGNIFICAÇÃO
Eliana Lucia Ferreira*
*
Doutora em Educação Física. Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
1 INTRODUÇÃO
271
Nesta perspectiva ao buscarmos o entendi-
mento da palavra inclusão escolar, percebe-se no
implícito que as pessoas com deficiência, que eram
consideradas incompatíveis socialmente, trazem
consigo o sentido da diferenciação. No entanto, é
explícito que é na diferença que o contexto social
tem apontado avanços indistintamente, resguar-
dando assim, o direito à diferença na igualdade de
direitos. O que está posto aqui, é que é necessário
Diferenciar, excluir para instituir, Incluir.
272
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Por-
taria nº 555/2007), assim como pelas Leis no 10.048
e 10.098 de 2000, estabeleceu normas gerais e cri-
térios básicos para a promoção da acessibilidade e
da inclusão das pessoas com deficiência no âmbito
social, cultural e educacional.
273
cia, fazendo-o sentir-se impotente perante os me-
canismos sociais.
274
nifestações que perpetuam a expressão de identi-
dades, contribuindo para a promoção, valorização
e salvaguarda da cultura e do direito do cidadão se
manifestar corporalmente.
275
Através dos esportes adaptados, as pessoas com
deficiência estão construindo uma nova identidade,
atrelada a uma história personificada dentro de uma
proposta coletiva, onde o preconceito, se não su-
perado é confrontado.
276
já construído, proposto no projeto pedagógico tra-
dicional, faz-se necessário também, repensar a for-
ma de praticar estas atividades, buscando possibili-
dades de aprendizagem e participação empírica por
parte do aluno com deficiência, mobilizando assim,
outras formas de gestos corporais, contraponto di-
ferentes relações entre todos os alunos e com suas
memórias.
277
e expandir as vivências corporais necessárias, tanto
no meio escolar quanto no meio social. Para tal, é
necessário reunir recursos humanos, elaborar ma-
teriais que envolvam novos conhecimentos, utilizar
equipamentos tecnológicos e acessíveis e atuar em
parcerias com a comunidade escolar e familiar. Por-
tanto, é importante viabilizar o que se propõem.
278
mesmo tempo, mostrando o modo que cada “um
significa corporalmente e como se significa”.
279
que estão cada vez mais difundidas e são essenciais,
além de serem o lugar de entrada para a compreen-
são de gestos corporais diferenciados, possíveis de
serem executados pelas pessoas com deficiência.
280
ficidades necessárias e as aulas ganham uma outra
dimensão que se define com mais autonomia num
sistema que permite que os alunos a “reconheçam e
se reconheçam”.
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS
281
autonomia dos estudantes com deficiência, em am-
bientes que maximizem seu desenvolvimento aca-
dêmico e social.
282
Nesta linha de raciocínio, a Educação Física está
buscando um espaço concreto para celebrar as di-
ferenças corporais, propondo a oportunidade de
resgatar, fortalecer e divulgar valores e manifesta-
ções que perpetuem a expressão da identidade indi-
vidual, contribuindo para a promoção, valorização e
preservação da cultura e do direito do cidadão com
e sem deficiência.
283
E a partir da consideração do impossível\possí-
vel, do individual\social, do exequível\criatividade e
dos interlocutores, novos conhecimentos podem se
tornarem (comuns) a todos, porém não (iguais).
284
REFERÊNCIAS
285
FERREIRA, E. L. As formas dos discursos da/na dan-
ça em cadeira de rodas e seus processos de signi-
ficação. 2003. Tese (Doutorado)–Faculdade de Edu-
cação Física, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 2003.
286