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DISCURSOS SOBRE

A INCLUSÃO
Eliana Lucia Ferreira
Eni P. Orlandi
(organizadoras)

DISCURSOS SOBRE
A INCLUSÃO

Niterói
Intertexto
2014
© 2014 by Eliana Lucia Ferreira, Eni P. Orlani

Direitos desta edição reservados à Editora Intertexto.

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sem autorização expressa da editora.

Capa: André Luiz da Fonseca Junior


Projeto gráfico, diagramação e editoração: Camilla Pinheiro

Os textos são de responsabilidade total de seus autores.

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

D611 Discursos sobre a inclusão / Eliana Lucia Ferreira,


Eni P. Orlandi (organizadoras) – Niterói :
Intertexto, 2014.
286 p. : il. ; 21 cm.

Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-7964-046-9

1. Educação especial. 2. Educação inclusiva.


I. Ferreira, Eliana Lucia. II. Orlandi, Eni P.

CDD 371.9

Intertexto Editora e Consultoria Ltda


Telefax: (21) 2613-3732
e-mail: intertextoeditora@terra.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................9

EQUÍVOCOS QUE CONSTITUEM


O MACRODISCURSO POLÍTICO-
EDUCACIONAL DA INCLUSÃO
Juliana Santana Cavallari............................................. 11
1 INTRODUÇÃO............................................................13
2 SOBRE O EQUÍVOCO NA PRODUÇÃO DE
SENTIDOS OUTROS.................................................. 17
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS............... 20
4 ANÁLISE DOS REGISTROS...................................... 23
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................... 39
REFERÊNCIAS............................................................ 47

O DISCURSO DA INCLUSÃO
PELA DIFERENÇA NA RELAÇÃO
MÍDIA E SOCIEDADE
Caciane Souza de Medeiros...........................................51
1 INTRODUÇÃO........................................................... 53
2 UMA INCLUSÃO PARTIDA...................................... 54
3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
DA INCLUSÃO ........................................................... 62
4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO
NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO
DO SUJEITO ENGAJADO.........................................77
5 POR UMA RETOMADA DA DISCUSSÃO
SOBRE O CONCEITO DE INCLUSÃO................... 82
REFERÊNCIAS............................................................ 87

DISCURSIVIDADES DE
INCLUSÃO E A MANUTENÇÃO
DA EXCLUSÃO
Greciely CRistina da Costa......................................... 89
1 INTRODUÇÃO............................................................91
2 DISCURSO: SENTIDOS E SUJEITOS..................... 94
3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO.......................... 96
4 SENTIDOS PARA A DIFERENÇA............................101
5 CONCLUSÕES..........................................................133
REFERÊNCIAS...........................................................135

FORMAÇÃO OU CAPACITAÇÃO?:
DUAS FORMAS DE LIGAR
SOCIEDADE E CONHECIMENTO
Eni Puccinelli Orlandi................................................141
1 INTRODUÇÃO......................................................... 143
2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO E/OU
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO?......................... 148
3 EDUCAR É FORMAR: A LÍNGUA
ENTRA EM CENA......................................................153
4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO:
A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA
LINGUAGEM COM A SOCIEDADE........................161
5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE........................... 170
6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS.......................178
REFERÊNCIAS.......................................................... 183

ACESSIBILIDADE: SENTIDOS
EM MOVIMENTO
Débora Massmann.......................................................191
1 INTRODUÇÃO......................................................... 193
2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE........................197
3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO
FLUIDO......................................................................202
4 SOBRE O(S) SENTIDO(S) DE
ACESSIBILIDADE.....................................................208
REFERÊNCIAS...........................................................221
TRAÇO, CORPO, SENTIDO: SOBRE A
ESCOLA, A CRIANÇA E A ESCRITA
Renata Chrystina Bianchi de Barros......................... 225
1 INTRODUÇÃO......................................................... 227
2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
CONTEMPORÂNEA: A PEDAGOGIZAÇÃO
DO CORPO............................................................... 234
3 DO CORPO BIOLÓGICO AO
CORPO-SENTIDO...................................................246
4 O SUJEITO DA ESCOLA
CONTEMPORÂNEA................................................ 255
5 DO APRISIONAMENTO À SUBVERSÃO:
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................260
REFERÊNCIAS.......................................................... 265

EDUCAÇÃO FÍSICA:
EM BUSCA DE UMA NOVA
A RE-SIGNIFICAÇÃO
Eliana Lucia Ferreira..................................................269
1 INTRODUÇÃO..........................................................271
2 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................... 281
REFERÊNCIAS.......................................................... 285
APRESENTAÇÃO

Atualmente, o processo de inclusão escolar e


social é um “movimento em movimento”, com ra-
mificações em compromissos individuais em prol de
compromissos coletivos, com a pretensão de resol-
ver as insuficiências de um sistema social, se posi-
cionando como um desejo de completude político/
educacional.

Portanto, os discursos sobre a inclusão aqui


apresentados inserem-se em um contexto de de-
bates e posicionamentos trazidos pela legislação,
pela educação e pela política na sua dimensão so-
cial mais ampla.

O que se percebe é que há um jogo de diver-


gências e convergências entre os movimentos so-
ciais legitimados para se instaurarem na diversidade,
mas há também uma resistência silenciada. E é nes-
te contexto que o movimento da inclusão recobre-
-se de sentidos, agregando valoração simbólica.

9
Portanto, as questões, aqui, não somente con-
tribuem para a inclusão social, mas também encon-
tram ressonância em práticas inclusivas voltadas
para a educação de um modo geral.

Sendo assim, esta obra é marcada pela plura-


lidade de discursos que recolocam a questão da
inclusão em um universo mais amplo de possibili-
dades de compreensão das marcas históricas e dos
sentidos das relações sociais.

10
EQUÍVOCOS QUE
CONSTITUEM O
MACRODISCURSO
POLÍTICO-
EDUCACIONAL
DA INCLUSÃO*
Juliana Santana Cavallari**

Não há verdade que, ao passar


pela atenção, não minta.
Lacan

* Uma versão primeira deste trabalho foi publicada na Revista Brasileira de Linguística
Aplicada (RBLA).
** Doutora e pós-doutora pela UNICAMP. Professora do Programa de Mestrado em
Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO

Na tentativa de promover a democratização da


escola e do ensino, uma série de ações políticas foi
adotada pelo governo, sobretudo a partir da déca-
da de 1990 (VIZIM, 2003). Através da Declaração da
Educação para Todos (1990), da Política Nacional de
Educação Especial (1994), dentre outras propostas,
buscou-se, por meio da adoção de práticas inclusi-
vas, atender às necessidades dos excluídos, isto é,
daqueles que sofrem algum tipo de privação social,
física ou cognitiva. Assim sendo, o macrodiscurso
político-educacional, difundido não só por gover-
nantes ou representantes legais, mas, em especial,
por agentes educacionais1 tende a reforçar e a asse-
1
Neste estudo,
gurar a aplicação de políticas inclusivas, o que, ima- adotamos o termo
ginariamente, possibilitaria um processo de ensino e “agente educacional”
não no sentido
aprendizagem mais justo e igualitário. de agenciar ou de
agenciadores, mas
sim para designar os
Recentemente, o Governo Federal anunciou sujeitos que exercem
um grande investimento na Educação Especial, com funções que incidem
diretamente no
vistas à efetivação de práticas inclusivas e à oferta ato educativo,
de educação de qualidade para todos. Vale desta- como professores,
diretores,
car que o enunciado “educação para todos” exerce coordenadores,
o efeito de slogan ou propaganda do atual gover- supervisores etc.

13
no, além de ser frequentemente empregado como
promessa primordial de campanha de futuros go-
vernantes, de modo geral. Não é por acaso que, ao
longo deste texto, adotamos o termo “macrodiscur-
so político-educacional da inclusão” para nos re-
ferirmos ao objeto de análise deste texto, graças a
aparente fusão, ou melhor, (con)fusão que parece
afetar o discurso político e o discurso da educação
formal acerca da inclusão, já que passam a funcionar
quase que indistintamente, na tentativa de viabilizar
a educação inclusiva e suas diretrizes já anunciadas
2
De acordo com a
e prescritas em documentos oficiais. Tomamos essa
Análise de Discurso
de linha francesa, (con)fusão de discursividades que, por sua vez, nos
que fundamenta
remete a uma mesma formação discursiva acerca da
este estudo, o
intradiscurso se inclusão, como um macrodiscurso que se apresen-
refere à aparente
ta como verdadeiro e já legitimado e que, portanto,
linearidade do
dizer, ao passo que incide direta e indiretamente nos diversos âmbitos
o interdiscurso,
sociais e, sobretudo, no contexto educacional.
que atravessa o
fio discursivo à
revelia do sujeito
O objetivo específico deste estudo é desve-
de linguagem, nos
remete ao “conjunto lar o modo como intra e interdiscursivamente2 o
de formulações
discurso da inclusão – que se materializa em prá-
feitas e já esquecidas
(já-ditos) que ticas inclusivas tidas como politica e moralmente
determinam o que
corretas – produz efeitos de sentido e de verda-
dizemos” (ORLANDI,
1999, p. 33). de em nosso meio sócio-histórico. Para tanto, nos

14
pautamos nos seguintes questionamentos: como
as noções de inclusão e diferença (con)formam e
engendram o dizer-fazer de agentes educacionais?
Como educação e inclusão se relacionam e afetam
as práticas discursivo-pedagógicas? Partindo do
pressuposto de que a prática e política inclusivas
evocam noções e representações que significam
em oposição e por meio de pares dicotômicos (in-
clusão x exclusão; igualdade x diferença) já natura-
lizados no contexto escolar, levantamos a hipótese
de que a educação inclusiva (EI) silencia e apaga
a(s) diferença(s) e o diferente, já que “incluir” pro-
duz o efeito de sentido de “normalizar” ou de “tor-
nar o outro meu semelhante”.

Como material de pesquisa foram utilizados


alguns depoimentos proferidos por agentes edu-
cacionais (professores, assistentes, coordenadores
de cursos, diretores, pedagogos e psicólogos), por
ocasião de algumas palestras e seminários realiza-
dos em um congresso nacional cujo tema era “in-
clusão e diversidade”. Trata-se de um amplo even-
to realizado anualmente, no estado de São Paulo,
e que reúne profissionais da educação de diversos
campos do saber e de diversas áreas de atuação.

15
Do ponto de vista teórico, os pressupostos da
Análise de Discurso de linha francesa (ADF), que
postula a determinação inconsciente e ideológica
do sujeito e da linguagem, fundamentam a análise
dos registros e as considerações aqui propostas.

Em última instância, o presente estudo sugere o


acolhimento das diferenças e da ingovernabilidade
que, vez por outra, irrompem no contexto escolar,
de modo que possamos atuar como agentes edu-
cacionais, no sentido de não temermos ou ficarmos
passivos diante do inesperado, mas de concebermos
a diferença e o diferente como fatores produtivos
que provocam transformações em todos os partici-
pantes do contexto escolar, independentemente da
função exercida, deslocando saberes pré-construí-
dos ou já normalizados sócio-historicamente.

A seguir, abordamos o conceito de equívoco


que se mostrou bastante produtivo para o desenvol-
vimento da parte analítica deste estudo.

16
2 SOBRE O EQUÍVOCO NA
PRODUÇÃO DE SENTIDOS
OUTROS

Tendo em vista a problemática levantada neste


estudo “o equívoco no discurso da inclusão”, faz-
-se necessário adentrarmos o conceito de equívoco
que viabilizou o recorte discursivo efetuado no ma-
terial de análise.

De acordo com a perspectiva discursiva, o


equívoco produz uma falha materializada na/pela
língua, à revelia do sujeito enunciador. Essa falha não
pode ser recoberta, levando à produção de sentidos
outros, por vezes indesejáveis, e que denunciam a
posição discursiva, portanto ideológica, ocupada
pelo sujeito de linguagem, bem como as formações
discursivas em que seu dizer se inscreve para pro-
duzir efeitos de verdade e de evidência enunciativa.
Nesse prisma, não é o sujeito que fala a língua, mas
sim a língua que fala e (d)enuncia o posicionamento
do sujeito enunciador, uma vez que aponta para as
suas formações ideológicas e para os vários discur-
sos que legitimam seu dizer.

17
Convém ressaltar que o sujeito constituído na/
pela linguagem, tal como postula Pêcheux, não
é causa nem origem dos sentidos que produz ao
enunciar, pois surge como efeito do assujeitamento
à linguagem que, por sua vez, não pode ser tomada
como mero instrumento de comunicação, dada sua
opacidade e não transparência. Estabelecendo um
possível diálogo entre as perspectivas que embasam
este estudo, tanto para a AD como na Psicanálise, o
dizer não é transparente ao enunciador, pois o sen-
tido lhe escapa, irrepresentável, em sua determina-
ção pelo inconsciente e pelo interdiscurso.

Essa duplicidade, que faz referir um discur-


so a um discurso outro para que ele faça
sentido, na psicanálise, envolve a questão
do inconsciente. Na análise de discurso,
essa duplicidade, esse equívoco, é trabalha-
do como a questão ideológica fundamen-
tal, pensando a relação material do discurso
à língua e a da ideologia ao inconsciente
(ORLANDI, 1996, p. 81-82).

A noção de equívoco ou de equivocidade que


suporta o duplo, o heterogêneo ou, ainda, tudo

18
aquilo que ultrapassa a vontade do sujeito enun-
ciador, também se faz presente na psicanálise. Em
ambas as perspectivas teóricas, a verdade não se
apresenta na aparente unidade discursiva, mas se dá
a escutar através de formações do inconsciente ou
da equivocidade que é própria da linguagem. Nas
palavras de Lacan (1986, p. 302), “nossas palavras
que tropeçam são as palavras que confessam. Elas
revelam uma verdade de detrás”.

Com base nas considerações arroladas é pos-


sível afirmar que, estruturalmente, todo e qualquer
dizer é tomado pelo equívoco ou pela possibilida-
de de deriva de sentidos, uma vez que o sujeito de
linguagem é duplamente marcado: pela ideologia e
pelo inconsciente. Ao encontro de tais afirmações,
Mariani (2006, p. 8) postula que o equívoco se ins-
taura nos sentidos produzidos por um determinado
acontecimento discursivo, à revelia do sujeito enun-
ciador, e “faz falhar a vontade de unidade e trans-
parência da comunicação, pois incorpora o real em
suas análises do simbólico e do imaginário”. São
justamente esses pontos de equívoco ou de deslize
de sentidos que se dão a escutar na materialidade
posta, que buscamos resgatar e problematizar na

19
análise dos acontecimentos discursivos, de modo a
melhor compreender como a prática inclusiva signi-
fica no contexto escolar.

3 PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS

Como já mencionado anteriormente, lança-


mos um olhar discursivo ao corpus, para entendê-
-lo não como conteúdo ou testemunho de verda-
de, mas para desvelar, nos enunciados analisados,
a formação discursiva em que o sujeito de lingua-
gem se inscreve, para que suas palavras tenham
sentido (ORLANDI, 1996). Em suma, a abordagem
discursiva ancora a análise dos registros na ma-
terialidade linguística, “desnudando” os aspectos
sócio-histórico-ideológicos que atuam na consti-
tuição dos sentidos e que são “esquecidos” pelo
sujeito que enuncia.

Vale salientar, ainda, de que forma os pressu-


postos da ADF e da psicanálise dialogam entre si,
fornecendo as balizas teórico-metodológicas des-
te estudo. Para a AD, o funcionamento discursivo é

20
engendrado pela articulação entre a ideologia e as
condições de produção do discurso, isto é, o con-
texto sócio-histórico de sua enunciação e o lugar
discursivo ocupado pelo falante. Na teoria psica-
nalítica, por sua vez, a determinação dos sujeitos e
dos sentidos é inconsciente e atemporal e só se faz
acessível por meio da linguagem que comporta fa-
lhas ou buracos. Feitas essas colocações, postula-
-se uma relação da ideologia com o inconsciente,
por meio da linguagem, ou seja, a ideologia, assim
como o inconsciente, embora oculta ao sujeito
enunciador, se mostra no funcionamento do discur-
so: da estrutura ao acontecimento. Pêcheux (1997)
reflete sobre a materialidade da linguagem como
região de equívoco em que se ligam materialmente
o inconsciente e a ideologia. Dito de outro modo,
o sujeito da estrutura é afetado pela determinação
inconsciente que faz com que as redes de memória
e as formações ideológicas, às quais o discurso e o
sujeito se filiam para produzir sentidos, escapem ao
saber consciente do eu. Observa-se, portanto, que o
funcionamento da ideologia não constitui um saber
consciente, embora seja condição de existência do
sujeito e do discurso, uma vez que governa e atribui
sentidos ao fazer-dizer.

21
Nas análises que se seguem, foram destacadas
algumas regularidades que constituem equívocos
de ordem ideológica e que, em função dos senti-
dos que produzem, para além do saber consciente
do enunciador, apontam para a posição discursiva
e ideológica do sujeito de linguagem em relação à
proposta de educação inclusiva.

Convém retomar que os excertos analisados


foram coletados durante um congresso nacional,
sediado em uma instituição particular de ensino su-
perior do Estado de São Paulo, cuja proposta era dis-
cutir questões acerca da inclusão e da diversidade.
Durante a realização de algumas palestras e semi-
nários, agentes educacionais que exercem funções
distintas no contexto escolar como: professores, re-
presentantes do MEC, diretores, pedagogos, entre
outros, formularam algumas considerações sobre o
referido tema. Algumas dessas formulações foram
transcritas e, posteriormente, selecionadas para este
estudo, a fim de elucidarmos alguns questionamen-
tos aqui propostos. A análise empreendida não tem
a pretensão de concordar ou discordar com o teor
do que está sendo dito, tampouco de acusar ou cul-
par os sujeitos de pesquisa pelos equívocos desta-

22
cados em suas formulações, mas sim de compre-
ender como essas formulações produzem sentidos,
ao evocarem outros domínios discursivos. Dito de
outro modo, não se trata de individualizar ou res-
ponsabilizar o sujeito de pesquisa por suas supostas
falhas ou equívocos de ordem inconsciente, mas de
compreendermos como as práticas discursivas fun-
cionam e provocam efeitos de legitimidade.

4 ANÁLISE DOS REGISTROS

De modo a elucidar as perguntas de pesquisa que


direcionam a análise dos registros discursivos – como
os conceitos de inclusão e diferença (con)formam e
engendram o dizer-fazer de agentes educacionais?
Como “educação” e “inclusão” se relacionam e afetam
práticas discursivo-pedagógicas? – faz-se necessário
rastrearmos a presença do interdiscurso que interpela
e legitima os depoimentos proferidos pelos sujeitos
pesquisados. Passemos à análise do corpus.

Por ocasião da palestra de abertura do referido


congresso, o reitor da universidade onde o evento
foi sediado proferiu:

23
[RD 1]3 Incluir na pauta um congresso de in-
clusão e diversidade visa a resolver melhor
esta situação no Brasil. De mãos dadas pre-
tendemos caminhar neste tema com a par-
ticipação efetiva da universidade. A inclusão
é abrangente e parece imposta. Podemos
dar uma contribuição social, ao propor o
desmonte de mecanismos de exclusão.

Com base no excerto acima, observa-se que


o sujeito de linguagem, ocupando o lugar de reitor
de uma instituição de ensino superior, inicia sua fala
reiterando a necessidade de promover a inclusão
“com a participação efetiva da universidade”. A ma-
terialidade posta põe em evidência a função política
e social que a escola e seus agentes devem exercer
e que parece se sobrepor, ou até mesmo se impor,
à função de ensinar e de transmitir saberes. Mais
especificamente, a universidade e seus represen-
tantes passaram a exercer a função de hospedar o
diferente sem, de fato, incluí-lo de modo significa-
tivo, tendo em vista que é para os normais e para os
3
RD 1, 2, 3… é o
símbolo adotado profissionais que têm seu saber cientifica e social-
para representar os
mente legitimado que é dado o direito e o poder de
recortes discursivos
analisados. construir saberes, julgamentos e verdades sobre os

24
que são representados e marcados como anormais
e excluídos. Nesse sentido, o processo de constru-
ção do saber sobre o excluído acaba por exclui-lo
dessa construção, pois este é tomado como objeto
do olhar e do saber do outro, cujo lugar enunciativo
tem certo valor e reconhecimento social.

Ferre (2001) salienta a contradição inerente ao


saber produzido na/pela universidade, via práticas
discursivo-pedagógicas. Nas palavras da autora
(FERRE, 2001, p. 199),

O que na Universidade se produz pode ser


tudo ao contrário: nenhuma reflexão sobre
um sujeito próprio, nenhum saber ou sabor
acerca de nossa intimidade e um acúmulo
de conteúdos sobre o outro que o define,
o identifica e o encerra em um opaco en-
voltório tecnicista que faz dos demais os
especiais, os descapacitados, os diferentes,
os estranhos, os diversos e de nós os ob-
viamente normais, os capacitados, os nati-
vos, os iguais; e, por isso, dois são os tipos
de identidade que a Universidade segue
produzindo ao transmitir o conhecimento

25
acadêmico, científico e técnico que alude
à diferença e à diversidade na educação: a
identidade normal e a identidade anormal; é
a esta segunda a que se passou a chamar de
diferente, especial ou diversa.

A repetição redundante do termo “incluir”, que no


recorte acima é pronunciado três vezes, sem que haja
qualquer questionamento do tipo: incluir o que, quem
e como? sugere a naturalização de verdades discur-
sivamente construídas e que se materializam no/pelo
macrodiscurso político-educacional, ao representar a
proposta de educação inclusiva como um compromis-
so de todos ou, segundo o enunciador, como um meio
de “dar uma contribuição social e de resolver melhor
esta situação no Brasil”. Na formulação em questão,
o sujeito de linguagem deixa escapar que a inclusão é
uma situação problemática que ainda não se resolveu
no Brasil, tendo em vista que o que já está resolvido
não requer melhoras, nem necessita de compreensão.
O vocábulo “resolver”, empregado na formulação “in-
cluir na pauta um congresso de inclusão e diversida-
de visa a resolver melhor esta situação no Brasil”, nos
remete a um problema a ser endereçado, no caso: a
inclusão que “parece imposta”, segundo o enunciador.

26
Ao formular “incluir na pauta”, o enunciador atri-
bui um efeito de formalidade e de certa superficia-
lidade ao tema abordado no congresso: inclusão e
diversidade, tendo em vista que o vocábulo “pauta”
costuma ser empregado para se referir aos assuntos
a serem tratados em uma reunião de trabalho e que
podem ser sanados ou pelo menos endereçados até
o seu término. Além disso, a inclusão ou educação
inclusiva é um assunto que está em pauta ou na or-
dem do dia, em especial, no contexto escolar, em
função das últimas diretrizes da política nacional da
educação.

O uso da primeira pessoa do plural, no trecho:


“de mãos dadas pretendemos caminhar neste tema;
podemos dar uma contribuição social”, provoca um
efeito de convocação e de participação de todos
os agentes educacionais, de modo a viabilizar a in-
clusão que ainda parece não ter sido alcançada, já
que se trata, ainda, de um “tema” a ser discutido em
um congresso da área. Esse efeito de convocação é
produzido pelo discurso progressista e da união so-
cial que versa sobre a união de todos (unidos ven-
ceremos!) como forma de se atingir o progresso e
a ordem.

27
Embora o enunciador proponha “o desmon-
te de mecanismos de exclusão”, deixando entrever
certa noção dos mecanismos de poder engendra-
dos pela ideologia vigente, o enunciador parece não
se dar conta de que a viabilização da inclusão no
contexto escolar não depende única e exclusiva-
mente da “boa” vontade dos agentes educacionais
ou de seu poder transformador, uma vez que os tais
mecanismos de exclusão, bem como o modelo de
escola excludente que ainda é predominante em
nosso meio, foram legitimados ao longo de uma
longa trajetória político-econômica que, por meio
de práticas discursivas e de jogos de poder-saber,
segundo uma visão foucaultiana, foram construindo
verdades sobre os excluídos e sobre a necessida-
4
Segundo Foucault de de incluí-los. Nos últimos anos, a insignificância
(1992, p. 90), os
e a (in)fâmia4 daqueles que foram discursivamente
(in)fames não
são apenas os marcados como excluídos parece ganhar relevân-
personagens de
cia político-social, se tornando alvo das instituições
nossa história
que cometem “normalizadoras” que atuam como aparelho ideoló-
algum ato vil, mas,
gico do estado, segundo Althusser (1992), uma vez
sobretudo, aqueles
“cuja existência que a exclusão e os excluídos passaram a represen-
foi ao mesmo
tar certa ameaça à acomodação social e ao exercí-
tempo obscura e
desafortunada”. cio da cidadania.

28
Ainda em relação ao excerto anterior [RD1], ape-
sar de tentar modalizar o seu dizer sobre a proposta
da inclusão, ao formular “a inclusão é abrangente e
parece imposta”, o equívoco que produz sentidos
“indesejados” marca a posição ideológica do sujeito
em relação ao tema abordado. O caráter impositivo
da educação inclusiva se materializa nessa formula-
ção, apontado para o fato de que a inclusão é bas-
tante complexa e não é um procedimento natural,
pois, se assim o fosse, não precisaria ser apresen-
tada na forma de lei ou de proposta pedagógica a
ser seguida e nem seria tomada, pelos educadores,
como uma imposição. Nesse prisma, é significativo
ressaltar que a natureza humana é mais seletiva do
que inclusiva, uma vez que, segundo Skliar (2006),
a diferença tende a ser vista negativamente, pois
aponta para o intolerável ou para fora da normali-
dade. Em outras palavras, é mais fácil e “natural” ex-
cluir do que tentar incluir. Ao encontro dessas ideias,
Ferre (2001, p. 197) enfatiza que o mundo dos ditos
“normais” é um mundo onde “a presença de seres
diferentes aos demais, diferentes a esses demais ca-
racterizados pelo espelhismo da normalidade, é vi-
vida como uma grande perturbação”.

29
A menção ao caráter impositivo da educação
que prega a inclusão de todos, preferencialmente
em turmas de escolas regulares, a despeito da dife-
rença e, por vezes, da deficiência física marcada no
corpo, também foi observada no excerto a seguir,
formulado por uma diretora de uma escola pública
de ensino fundamental:

[RD 2] A inclusão é um susto, um espanto.


Ela chegou de repente e a gente tem que
saber o que fazer. Na verdade, ela está entre
nós desde 71, com a lei 5.692/71.

No recorte em questão, o enunciador deixa es-


capar seu espanto diante da proposta da inclusão,
apesar de enunciar a partir do lugar de dirigente de
uma instituição escolar que, em conformidade com
as leis vigentes, deveria garantir a política de educa-
ção inclusiva. Ao se dar conta do equívoco de ordem
ideológica que seu dizer produziu, o enunciador faz
alusão à lei que garante a aplicação de práticas in-
clusivas, por mais espantosas ou assustadoras que
possam parecer. Assim sendo, apesar de toda in-
segurança vivenciada pelos agentes educacionais
diante do estranho e do diferente que, na maioria

30
das vezes, vira sinônimo de deficiente, a necessida-
de de tudo saber e de fornecer respostas acertadas
para situações inesperadas constitui a identidade do
sujeito educador, além de governar seu fazer peda-
gógico, tal como sugere a formulação: “a gente ‘tem
que’ saber o que fazer”.

A formulação posta acima parece dialogar com


o próximo excerto, formulado por uma pedagoga
que, no evento em questão, representava o MEC e
suas propostas:

[RD 3] A dona inclusão não está só batendo


na porta, ela está dentro da sala de aula. A
postura do MEC é essa: todos na sala de aula
e aí a gente vai caprichando na qualidade.

A formulação “a postura do MEC é essa: todos


na sala de aula e aí a gente vai caprichando na qua-
lidade” reflete as políticas públicas brasileiras que
se caracterizam pelo improviso e despreparo dos
profissionais envolvidos em sua implementação, no
caso: dos agentes educacionais que, mesmo sem a
formação necessária para trabalhar com os alunos
ditos especiais, devem acolhê-los no espaço de sala

31
de aula, ainda que isso implique na má qualidade da
educação oferecida. Como já sugerido por Coraci-
ni (2007, p. 107), o fato de partilhar do mesmo es-
paço físico não significa “por si só e por força da
lei, ausência de discriminação, in-clusão, in-serção
social”. A autora (CORACINI, 2007, p. 109) conclui
que “a vontade de igualar, de homogeneizar na me-
lhor das intenções [...] é que cava um abismo ainda
maior entre uns e outros”, ou seja, entre os alunos
“ditos” normais e os representados como excluídos
ou especiais. Assim sendo, a própria escola que se
diz inclusiva acaba construindo muros que marcam
e segregam a diferença, excluindo ainda mais.

Partindo da premissa de que todos são iguais


ou, ainda, de que a igualdade é um ideal a ser al-
cançado, a educação inclusiva silencia as diferen-
ças que poderiam provocar transformações produ-
tivas e significativas no contexto escolar. Em nome
de uma prática pedagógica mais justa e igualitária,
igualam-se, também, os sujeitos, suas demandas e
desejos, confinando-os a um mesmo espaço e prá-
tica discursivo-pedagógica, em que o aluno só pa-
rece ser considerado ou endereçado como objeto
do saber do outro (professor, coordenador, peda-

32
gogo etc.) que, por sua vez, deve sempre saber o
que fazer diante do inesperado. Essa noção de que
todos são iguais ou de que “devem” ser iguais ganha
sentidos a partir da ideologia religiosa e jurídica, se-
gundo as quais os homens são iguais perante Deus
e perante a Lei. Nesse prisma, a aplicabilidade da lei,
neste caso, das premissas da educação inclusiva, as-
segura os direitos de todos, ganhando estatuto de
compromisso moral e social.

No recorte anterior (RD 3), diversos efeitos de


sentidos são produzidos, a partir da personificação
da “inclusão”, na seguinte formulação: “a dona in-
clusão não está só batendo na porta, ela está dentro
da sala de aula”. O sujeito de linguagem sugere que
a inclusão já está sendo contemplada pelo simples
fato de permitir que o aluno diferente permaneça no
mesmo espaço dos alunos tidos como “normais”.
Em outras palavras, a inclusão se personifica na fi-
gura do aluno “diferente”, muitas vezes confundido
e entendido como “deficiente”, e parece perder o
seu caráter de proposta transformadora que deve-
ria incidir, de forma significativa, na prática pedagó-
gica. Evocando a questão da hospitalidade, tratada
por Derrida (2003), para adentrar a temática levan-

33
tada neste estudo, é possível afirmar que aos agentes
educacionais, em especial ao professor, é dada a di-
fícil tarefa de hospedar e ser hospitaleiro, isto é, não
hostil, com esse estranho que foi inserido – mas não
totalmente incluído – no espaço de sala de aula da
escola regular, na ilusão de ser possível se atingir e
viabilizar uma hospitalidade universal: “sem reservas,
sem limites, sem fronteiras” (CORACINI, 2007, p. 110).

Propondo um alinhavo entre a leitura de Lacan


(1992), a temática aqui abordada e a materialidade
destacada anteriormente, observa-se que “a inclu-
são do diferente” é metaforizada como uma visita
inesperada ou como um hóspede desconhecido que
“bate à porta” em momento inoportuno, adentrando
e ameaçando a estabilidade de um mundo já norma-
lizado, com fronteiras bem demarcadas. Nas palavras
de Lacan (1992, p. 87), “esse hóspede é o que já pas-
sou para o hostil [hostile] [...]. No sentido corriqueiro,
esse hóspede não é heimlich, não é o habitante da
casa, é o hostil lisonjeado, apaziguado, aceito”.

É justamente essa posição de “hostil aceito e li-


sonjeado” que é assumida pelo aluno diferente e/
ou deficiente, na escola regular, tendo em vista que

34
tal aceitação está prevista em lei, além de tornar os
agentes educacionais mais tolerantes e generosos,
em conformidade com a ideologia em funciona-
mento no discurso religioso e que também atribui
efeitos de sentido para as práticas inclusivas. Em um
estudo anterior (CAVALLARI, 2011) enfatizei, com
base no princípio responsabilidade proposto por
Forbes (2010), que a criação de saídas singulares e
criativas para cada situação de inclusão – que não
passe pela compaixão, mas que parta do universal
para o particular de cada caso, tratando diferente-
mente as diferenças, ao invés de tentar igualá-las –
é que poderá propiciar uma inclusão menos “nor-
malizante” e mais significativa.

O último excerto abordado foi formulado por


uma professora de ensino fundamental e médio da
rede pública, que trabalha com alunos especiais em
turmas regulares. O equívoco que possibilita a deri-
va de sentidos indesejados também se fez presente
na materialidade posta. Vejamos:

[RD 4] Temos que resgatar um erro. Trata-


mos as pessoas diferente porque elas são
diferente de nós. Nós é que excluímos as

35
pessoas. Temos que deixar de fixar a ima-
gem nos estereótipos.

O esquecimento número dois5, da ordem da


enunciação, segundo Pêcheux (1988), provoca di-
ferentes efeitos de sentido na referida formulação.
Em outras palavras, ao empregar o verbo “resgatar”,
ao invés de “corrigir”, o sujeito de linguagem nos
permite entrever sua posição discursiva, portanto,
ideológica, segundo a qual o aluno diferente ou de-
ficiente é visto como um erro que deve ser resgata-
do ou corrigido por nós, “os normais”, que temos o
poder de construir um saber sobre o outro.

5
O esquecimento
número dois,
Nos depoimentos dos agentes educacionais,
segundo Orlandi de modo geral, as noções de “diferente” e de “de-
(1999, p. 35) faz
o enunciador
ficiente” se confundem, justificando a necessidade
acreditar que “há da aplicação de práticas pedagógicas igualitárias e
uma relação direta
entre pensamento,
simplificadoras das diferenças. Lembrando que a in-
a linguagem e o clusão se faz necessária para além das deficiências,
mundo, de modo
que pensamos que
podemos afirmar que um equívoco de ordem ide-
o que dizemos só ológica está em funcionamento nos depoimentos
pode ser dito com
aquelas palavras e
abordados, bem como na proposta de EI, conforme
não outras”. ratifica Vizim (2003, p. 52), na citação a seguir:

36
O tema educação inclusiva, apontado na
década de 1990, ficou restrito, por vezes,
à educação de pessoas com deficiências.
Cabe ressaltar que esta é uma situação la-
mentável diante da complexidade de se
criar uma política pública de educação para
todos. Não se trata única e exclusivamente
do segmento das pessoas com deficiência,
no sentido de incluí-los nas escolas regu-
lares, deve-se incluir também toda criança,
jovem e adulto que vive a condição de anal-
fabeto ou de analfabeto funcional, de dife-
rença étnica, cultural, religiosa, de condição
social, enfim, de marginalização diante da
hegemonia social.

Em um trecho do recorte anterior: “tratamos as


pessoas diferente porque elas são diferente de nós”
[sic.], nota-se uma fala pouco significativa, circular
e esvaziada de sentidos, uma vez que apenas evoca
representações e discursos já naturalizados em nos-
so contexto sócio-histórico. Esse esvaziamento de
sentidos também foi abordado por Coracini (2007),
partindo da análise de depoimentos de professores.

37
Nas palavras da autora (CORACINI, 2007, p. 101-
102), “o que se percebe é uma repetição redundante
de termos que parecem esvaziados de sentidos ou
tão plenos de sentido – naturalizados pela ideologia
dominante – que não precisam de explicitação [...]”.
Nesse prisma, podemos afirmar que a naturalização
é desastrosa e infértil, já que não promove transfor-
mações e/ou deslocamentos, pois acaba por sim-
plificar e igualar as diferenças. Em larga medida, o
equívoco de ordem ideológica que irrompe nos de-
poimentos acerca da EI, nos permite entrever que
o foco das práticas inclusivas está no apagamento
da diferença e na deficiência e não no acolhimento
da diversidade como algo que pode ser produtivo
no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que
requereria a (trans)formação não só do aluno dito
“especial”, mas de todos os envolvidos no processo
em questão.

Ainda em relação ao excerto anterior, nota-se


que o sujeito de linguagem convoca os agentes
educacionais para o seu dizer, quando emprega a
primeira pessoa do plural (nós, temos que), atribuin-
do a eles e a si mesmo a culpa pela exclusão prati-
cada no contexto escolar “nós é que excluímos as

38
pessoas”. Na formulação destacada, engendra-se a
individualização e responsabilização do sujeito por
seus atos e escolhas. Dito de outro modo, o enun-
ciador não se vê afetado por outros discursos que
circulam em nosso meio e que produzem “verda-
des” ou efeito(s) de evidência discursiva, mas como
o único agente capaz de fazer escolhas acertadas
que possibilitem a inclusão. Segundo Kehl (2001,
p. 59), dentro da modalidade subjetiva contempo-
rânea, “o sujeito não se dá conta de suas filiações
simbólicas e passa a se considerar como um indiví-
duo isolado”. Daí advém sentimentos diversos como
culpa e angústia diante do insucesso da EI e da apa-
rente inviabilidade de suas propostas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora, à primeira vista, tudo se baseie na di-


versidade, no que tange à Educação Inclusiva (EI) e/
ou Especial e suas propostas, os recortes analisados
reforçam a hipótese inicialmente levantada neste
estudo de que a EI silencia a(s) diferença(s) e o dife-
rente, já que “incluir” produz o efeito de sentido de
“normalizar” ou de “tornar o outro meu semelhante”.

39
Em outras palavras, o modo como a diversidade é
significada no macrodiscurso político-educacional
da inclusão acaba por promover a diluição, apaga-
mento e até mesmo o silenciamento da diferença
e daquilo que o sujeito dito excluído apresenta de
mais singular e distintivo.

Em todas as formulações analisadas o enfoque


está na inclusão enquanto proposta e não no su-
jeito a ser incluído ou nas especificidades de sua(s)
diferença(s). Em suma, o sujeito dito especial parece
ficar fora ou excluído da discussão sobre como in-
cluí-lo e, portanto, se objetifica, ao ocupar, ainda que
à revelia, a posição de objeto do olhar, das ações, do
fazer e do suposto poder-saber do outro. Tal como
sugere Balocco (2006, p. 83), só há referência ao su-
jeito, “enquanto objeto de representações discursi-
vas, ou construções identitárias”, lembrando que os
discursos produzem sujeitos que não são nem estão
na origem de sua enunciação. Trazendo as conside-
rações arroladas para este estudo, podemos con-
cluir que o sujeito da EI aparece como assujeitado
ou como efeito do assujeitamento ao macrodiscurso
político-educacional da inclusão e às verdades que
esse discurso parece evocar e disseminar.

40
Como já destacado anteriormente, as práticas
e política inclusivas significam ao evocarem pares
dicotômicos e imaginariamente excludentes como:
diferença x igualdade; exclusão x inclusão. São essas
noções extremamente simplificadoras e homoge-
neizantes, geralmente pensadas em oposição, que
incidem na constituição identitária do sujeito mar-
cado e representado como excluído, uma vez que
passam a constituir as imagens nas quais esse sujeito
se reconhece e se identifica. Segundo Souza (1995),
as práticas discursivo-pedagógicas, de modo geral,
e os conceitos que as fundamentam são tratados de
forma unívoca: sem equívocos, falhas ou enganos.
As práticas discursivo-pedagógicas, desencadeadas
pelo macrodiscurso político-educacional da inclu-
são e também concebidas de forma unívoca, se pau-
tam na busca de igualdade e tendem a criar identida-
des narcísicas, isto é, idênticas às daqueles que são
tidos como normais e que têm o poder de construir
um saber sobre o outro dito excluído ou especial.

A materialidade posta nos recortes analisados


também possibilitou a problematização do modo
como o macrodiscurso político-educacional da in-
clusão e as práticas “ditas” inclusivas concebem a

41
diferença e a singularidade que são constitutivas da
identidade de todo e qualquer sujeito de linguagem
e não apenas daqueles que têm a diferença marca-
da no corpo. Skliar (2006, p. 29) reforça que “aca-
bamos reduzindo toda alteridade a uma alteridade
próxima, a alguma coisa que tem de ser obrigato-
riamente parecida a nós – ou ao menos previsível,
pensável, assimilável”. Em consonância com as afir-
mações anteriores salientei (CAVALLARI, 2008, p. 5)
que a resistência em acolher as diferenças se atrela
ao fato de que tudo o que nos parece estranho ou
não familiar expõe o não saber ou o não contro-
le, desestabilizando o lugar de suposto-saber que é
constitutivo da identidade de agentes educacionais,
sobretudo de professores. Essa redução do estra-
nho em familiar, do diferente em normal, entretanto,
inviabiliza uma prática inclusiva que, de fato, con-
temple a singularidade do sujeito-aluno e a diversi-
dade inevitavelmente presente em todo e qualquer
contexto escolar.

Outro equívoco de ordem ideológica, bastante


recorrente nos excertos abordados, deriva da con-
fluência de sentidos entre “diferente” e “deficiente”,
que parece resultar da igualação ou da fusão esta-

42
belecida entre educação regular e educação espe-
cial, de acordo com a política de educação especial.
No entanto, é significativo problematizarmos de
que modo “educação” e “inclusão” de fato se rela-
cionam e afetam as práticas discursivo-pedagógicas
na contemporaneidade. A análise dos depoimentos
nos sugere que educação e inclusão só se implicam
mutuamente no macrodiscurso político-educacio-
nal da inclusão, mas não nas práticas discursivo-
-pedagógicas em que parece haver uma hiância ou
uma lacuna imaginariamente intransponível entre
a educação tradicionalmente concebida e ainda
praticada e as premissas da EI. Resta-nos questio-
nar, portanto, como tocar ou afetar esse sujeito que
ocupa a posição de agente educacional para além
do imaginário ou do politicamente correto acerca
da inclusão? Um primeiro passo seria promover uma
reflexão sobre como as políticas públicas de inclu-
são são construídas e significadas.

Recorrendo aos personagens (in)fames da his-


tória e salientando a importância de resistir e con-
frontar o poder hegemônico, Foucault (1992, p.
98) enfatiza a necessidade de “transpor os limites,
de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a
linguagem que vem de fora ou de baixo [...]. Estas

43
vidas, por que não ir escutá-las lá onde falam por si
próprias?” Trazendo essas indagações para as prá-
ticas inclusivas, conclui-se que os mecanismos de
poder-saber, muitas vezes engendrados e sustenta-
dos pelo discurso universitário que, segundo Lacan
(1992), formaliza e legitima o modo de se organi-
zar as relações interpessoias, devem ser descons-
truídos ou, pelo menos, desnaturalizados, a fim de
promover uma inclusão que acolha as diferenças e
as especificidades de todo e qualquer sujeito de lin-
guagem e não apenas daqueles ditos ou represen-
tados como “anormais”. Ao encontro de tais consi-
derações, Skliar (2003) propõe uma “pedagogia do
acontecimento” que acolha o estranho, o diferente
e o inesperado sem temê-los ou silenciá-lo.

Em última instância, sugerimos que as noções


de inclusão e diferença, já sedimentadas no macro-
discurso político-educacional da inclusão, sejam
(re)pensadas e (re)significadas no interior de nos-
sas experiências educacionais, para que provoquem
transformações e desloquem o saber instituciona-
lizado e historicamente determinado sobre o outro
dito e marcado como “especial”. Vale destacar que
se há algo de “natural” na inclusão é sua desarmonia.

44
Desse modo, para que as práticas inclusivas sejam
tomadas de forma menos romantizada ou menos
afetada pelo imaginário de compaixão e igualdade,
precisamos nos lembrar de que o semelhante e o
dessemelhante, a ordem e o conflitual se implicam
mutuamente na desarmonia natural da EI e da Edu-
cação que se pretende para Todos e que, graças a
sua natureza universalizante, não é de ninguém, pois
não leva em conta a singularidade que diferencia os
sujeitos de linguagem.

45
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50
O DISCURSO DA
INCLUSÃO PELA
DIFERENÇA NA
RELAÇÃO MÍDIA E
SOCIEDADE
Caciane Souza de Medeiros*

Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos,


poderemos nos encontrar em um
mundo em que Bill Gates é o principal humanista,
lutando contra a pobreza e as
doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista,
mobilizando milhões de pessoas
por meio de seu império da mídia.
Slavoj Zizek

*
Jornalista/professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da
Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS). Doutora em Letras – Estudos Linguísticos na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
1 INTRODUÇÃO

A sociedade e seus modos de organização, fun-


cionamento, movimento de sentidos, sujeitos e suas
práticas é um lugar de interesse em meu percurso
de estudo da relação mídia e sociedade. Dentro do
espaço social constituído por seus antagonismos,
regularidades, falhas e práticas sociais de (re)produ-
ção de sentidos destaco a mídia em uma posição
instituída (legitimada) onde questões sociais, que
mobilizam sentidos na história, são retomados para
significar de outro jeito o que já está lá, o que já faz
sentido (ORLANDI, 1999).

O objetivo deste trabalho é discutir e dar visibi-


lidade aos sentidos que constituem o conceito de
inclusão postos em circulação na/pela mídia, a partir
de uma leitura discursiva de campanhas produzidas
no Brasil sobre a questão da inclusão social. Para isto
me detenho em observar as condições de produção
onde habitam os sentidos em torno do conceito de
inclusão que são (re)produzidos na mídia para pro-
blematizar a ancoragem ideológica que marca este
discurso em nossa sociedade e que está edificado
em um modo de estruturar o social sustentado em

53
uma formação ideológica neoliberal de ver, de fazer,
de significar o mundo e os sujeitos.

Parto do princípio de leitura de que a questão da


inclusão em seu espaço de significação social tem,
inevitavelmente, uma história, um movimento de
sentidos que vêm sendo mobilizados e que busco
problematizar neste capítulo como possibilidade de
compreender, à guisa dos preceitos teóricos de Fou-
cault (2002, 2007, 2008), no tocante aos conceitos
de sociedade, poder e de neoliberalismo; e da teoria
discursiva de Pêcheux (1990, 1993, 1998, 2009, ) e
Orlandi (1993, 1999, 2001) a que me filio, a costura
ideológica e as condições de produção que consti-
tuem o conceito de inclusão e seus modos de signi-
ficar deflagrados na/pela mídia. Tracei um caminho
de leitura discursiva que propõe, a partir da análise
teórica que mobilizo, uma retomada do conceito de
inclusão e suas formas de significação na sociedade.

2 UMA INCLUSÃO PARTIDA

Um dos temas mais publicizados na mídia da


atualidade é, de fato, o da inclusão social e neste

54
entorno de significação os sujeitos marcados pela
diferença passam a figurar em posição “destaca-
da” no projeto social que apregoa uma inclusão de
superfície discursiva horizontalizada, sem deslizes,
sem conflitos e arranjada em um imaginário de “boa
vontade” coletiva que ressoa um modo de discur-
sivizar a inclusão de sujeitos identificados pela di-
ferença determinado por uma formação ideológica
neoliberal1 que retoma sentidos individualizantes
que já estão naturalizados.

A posição teórica que me orienta nesta leitura e


análise é determinante para que se compreenda que
o discurso existe no social e na relação dos sujei-
tos com a linguagem que os subjetiva. Parto da pre-
missa teórica elaborada por Michel Pêcheux (2009),
que define o discurso como sendo constituído e
constitutivo do social e dado à materialização na lin-
guagem. Esse conceito tem sido largamente citado
e retomado no âmbito dos estudos discursivos é o 1
A questão do
amparo vital para um estudo que entende a neces- neoliberalismo e sua
relação discursiva
sidade de compreensão da linguagem para além de com a questão
sua materialidade pragmática ou mesmo conteudís- da inclusão na
sociedade será
tica de leitura e interpretação. explicitada na
sequência da seção.

55
Minha proposta de reflexão está, assim, com-
prometida com uma leitura da sociedade atual em
seus modos, discursos e práticas, que só se justifi-
cam e se legitimam no bojo teórico que entende o
discurso como “efeito de sentidos entre interlocu-
tores” (PÊCHEUX, 1993, p. 170). Esta noção de dis-
curso representa, em sua materialidade simbólica, o
encontro entre linguagem, história e ideologia. Em
um mesmo movimento, o discurso materializa-se
em mecanismo constitutivo de sujeito e de sentido,
ilusões e esquecimentos (ORLANDI, 1999), e este
processo ganha corpo em diferentes formas, ou
seja, na materialidade discursiva que se (re)produz
na mídia. De acordo com o que Pêcheux (1998, p.
58) assevera, ao localizar a Análise de Discurso (AD)
como dispositivo de leitura, há um caminho de es-
tudo determinado

[...] pelo campo dos espaços discursivos


não estabilizados logicamente, dependen-
do dos domínios filosófico, sócio-histórico,
político ou estético, e também, portanto,
dos múltiplos registros do cotidiano não es-
tabilizado (cf. a problemática dos -universos
de crença, a dos - mundos possíveis, etc.).

56
Nesta perspectiva, a linguagem é entendida
como ação, transformação, como um trabalho sim-
bólico em que tomar a palavra é um ato social com
todas as suas implicações, conflitos, reconhecimen-
tos, relações de poder, constituição de identidade
etc. (ORLANDI, 1993, p. 17).

Seguindo no percurso discursivo de produção


de sentido proposto por Pêcheux, saliento que o su-
jeito é atravessado tanto pela ideologia quanto pelo
inconsciente, o que produz não mais um sujeito
uno, mas um sujeito cindido, clivado, descentrado,
(re)partido, não se constituindo na fonte e origem
dos processos discursivos que enuncia, uma vez
que estes são determinados pela formação discur-
siva na qual o sujeito está inscrito e que determina
o que pode e o que não pode ser dito (PÊCHEUX,
2009). Mais que isso, a formação discursiva na qual
o sujeito está identificado é regida por uma rede de
memória já instituída e “acionada” (posta em funcio-
namento) no momento da formulação do dizer. O
conceito de memória postulado por Pêcheux (2009)
é, doravante, uma memória do discurso, ou seja,
uma memória interdiscursiva, onde habita um con-
junto de já-ditos que sustenta todo dizer. De acordo

57
com este conceito, os sujeitos estão filiados a um
saber discursivo que não se aprende, mas que pro-
duz seus efeitos através da ideologia e do incons-
ciente. O interdiscurso está articulado ao complexo
de formações ideológicas: algo já foi dito antes, em
outro lugar, independentemente. Essa relação se dá
em continuidade histórica de produção discursiva.
O interdiscurso é, pois,

[...] definido como aquilo que fala antes, em


outro lugar, independentemente. Ou seja, é o
que chamamos de memória discursiva: o sa-
ber discursivo que torna possível todo dizer e
que retoma, sob a forma do pré-construído,
o já-dito que está na base do dizível, susten-
tando cada tomada de palavra. O interdiscur-
so disponibiliza dizeres que afetam o modo
como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada (ORLANDI, 1999, p. 31).

A determinação discursiva do sujeito em socie-


dade é um importante alce para minha observação
acerca dos objetos de mídia e os sentidos da inclu-
são que funcionam nesta discursividade, pois sina-
liza traços da implicação ideológica do discurso na

58
aparência simbólica da obviedade. Essas questões
apontam para o fato de que, na constituição do su-
jeito do discurso, intervêm dois aspectos que não
podem ser deixados de lado: primeiro, o sujeito é
social, interpelado pela ideologia, mas se acredita
livre, individual; e, segundo, o sujeito é dotado de
inconsciente, contudo acredita estar o tempo todo
consciente ou, pelo menos, dotado de uma cons-
ciência social comum entre seus pares e dotada de
intenção. Afetado por esses aspectos e assim cons-
tituído, o sujeito (re)produz o seu discurso.

Na mídia, o processo de formulação e circula-


ção discursivo está localizado em um lugar de (re)
produção permanente. Em sua prática de produ-
ção, a mídia tem, portanto, um lugar de seleção e de
permanência desse acervo de saberes sobre, bem
como um lugar de circulação de sentidos, a partir
das escolhas do que é dito (e mostrado) e do que
é silenciado ou deixado de lado; de quem partici-
pa efetivamente na definição desses saberes e de
quem não está presente. De acordo com o que Or-
landi (1999) teoriza, há um duplo jogo de memória
quando a observamos em uma relação discursiva.
Nas palavras da autora,

59
[...] saber como os discursos funcionam é
colocar-se na encruzilhada de um duplo
jogo da memória: o da memória institucional
que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo,
o da memória constituída pelo esquecimen-
to, que é o que torna possível a diferença, a
ruptura, o outro (ORLANDI, 1999, p. 10).

A compreensão de como os lugares sociais e a


ideologia são estabelecidas nas relações simbólicas
entre os sujeitos é uma contribuição ímpar, espe-
cialmente no tocante à questão em uma análise dis-
cursiva: a ideologia se materializa em discurso, que,
por sua vez, dá-se na materialidade textual. Sujeito e
sentido constituem-se simultânea e historicamente
nas relações de força e conflitos ideológicos.

Retomar o caráter histórico do discurso e do


sujeito, percebendo aquele como lugar de consti-
tuição deste, é permitir a compreensão das lutas so-
ciais, visto que as composições biopsicológicas são
politicamente conformistas. É permitir, por exem-
plo, o entendimento do fato de que as assimetrias
sociais e de poder são delineadoras das identidades
subjetivas: questões de lugar, raça, nacionalidade,

60
religião... inclusão/exclusão, ganham materialidade
a partir da heterogeneidade própria às formações
discursivas e das posições-sujeito no acontecimen-
to discursivo. Sem a intermediação do discurso, visto
em sua heterogeneidade, não é possível compreen-
der a constituição do ser-sujeito em sua pluralidade,
como materialização na/pela história.

As ideologias só fazem sentido para o sujeito na


sua relação de constituição com a sociedade, ca-
bendo a este compreendê-las e observar as pos-
síveis posições que se coadunam em determinado
contexto histórico. Assim sendo, entendo que a
mídia atua no social a partir de uma formação ide-
ológica e histórica determinada que delineia a (re)
produção de sentidos mobilizada em suas práticas.
O discurso é, desse modo, efeito de sentido tam-
bém do lugar da mídia no social e das relações de
poder aí imbricadas que repercutem nas instituições
sociais (como na escola, por exemplo) que regulam
a prática dos sujeitos em seu meio. Observar em que
sociedade (com)vivemos é ponto de partida e che-
gada na compreensão discursiva dos sentidos. E é
sobre a sociedade e as condições de produção que
encaminho a discussão sobre a inclusão.

61
3 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
DA INCLUSÃO

A promoção e divulgação de sentidos materiali-


zados como campanhas, propagandas e outras ma-
terialidades dadas à discursividade midiatizada tem
ocupado um espaço amplo em nossa sociedade
marcada pela profusão de imagens. No caso especí-
fico das materialidades discursivas deflagradas pela
mídia a respeito da questão da inclusão, o universo
de possibilidades versadas para o consumo é de-
terminado por uma conjuntura sócio-histórica que
precisa ser considerada em sua base constitutiva:
as condições de produção que situam os sentidos
que significarão de um modo e não de outro. Con-
sideradas num sentido mais amplo, as condições de
produção incluem o contexto sócio-histórico e o
aspecto ideológico de produção discursiva. A pro-
posta de (re)definição de condições de produção
entende que exista um alinhamento à análise histó-
rica das contradições ideológicas na materialidade
dos discursos e uma articulação teórica ao concei-
to de formação discursiva que é próprio da teoria
discursiva que trago para sustentar um questiona-
mento sobre a questão da inclusão. A somatória dos

62
valores ideológicos constitui o imaginário que de-
signa o lugar que os sujeitos do discurso se atribuem
mutuamente. Nas palavras de Pêcheux (1990, p. 77),
“um discurso é sempre pronunciado a partir de con-
dições de produção dadas”, portanto, importa não
somente o que se diz, mas também o que não se diz
sobre inclusão. Neste ponto, é importante salientar
que não interessa aqui analisar especificamente o
papel das mídias ao constituir um palco para viabili-
zar uma pretensa conscientização sobre a inclusão.
O objetivo é trazer à problematização um aspecto
que vejo como sendo emblemático no tempo pre-
sente: a relação de sentidos da inclusão à prática
de engajamento social que vem sendo mobilizada
como modelo de vida em sociedade; as idas e vindas
do cenário midiático montado para criar estas for-
mas de engajamento enfatizando a diferença como
caminho regular de uma possibilidade já instituída
de promover uma espécie de “consciência prática
de inclusão”; as textualidades mobilizadas para tais
práticas e seus efeitos na produção de modelos de
conduta frente a sujeitos ditos especiais.

Para adentrar nesta leitura das condições de


produção, faz-se necessário retomar a noção de in-

63
clusão que mobilizo. Por inclusão, entendo mais do
que um paradigma educacional ou social; tomo in-
clusão como um princípio de organização da socie-
dade, propulsionado pela lógica de uma formação
ideológica neoliberal tomada por sentidos pré-cons-
truídos que se atualizam em “novas” formas de dizer/
mostrar e simbolizar os sujeitos. Neste sentido, trago
para o centro do debate as condições que ancoram
o movimento discursivo da inclusão, com o propó-
sito de compreender seu funcionamento e discutir
seus efeitos de legitimidade, entendendo que:

[...] as palavras têm um sentido porque têm


um sentido, e os sujeitos são sujeitos por-
que são sujeitos: mas, sob essa evidência, há
o absurdo de um círculo pelo qual a gente
parece subir aos ares se puxando pelos pró-
prios cabelos (PÊCHEUX, 2009, p. 32).

Para tanto, estou embasada na posição teórico-


-discursiva de Pêcheux que entende que a ideologia
é constitutiva do sujeito, “não há sujeito sem ideo-
logia” (PÊCHEUX, 2009), ou seja, não é ocultação é,
isso sim, “produção de evidências” (ORLANDI, 2001,
p. 104) e que a sociedade é essencialmente cons-

64
tituída por relações de poder. Poder que se movi-
menta no que eu prefiro chamar de sociedade da
imagem por dispositivos de visibilidade elencados e
agenciados ideologicamente.

Considerar o caráter da visibilidade em seu me-


canismo histórico de organização vem ao encontro
da relação mídia e poder que é constitutiva da nossa
sociedade. A mídia tem papel determinante no pro-
cesso de difusão de saberes e valores na sociedade
contemporânea. No caso da mídia, como lugar de
circulação de sentidos, se o controle não ocorre pela
via da vigilância repressora da presença e da orde-
nação do olhar de sujeitos em presença, se dá na
emergência de modelos de realidade; no agencia-
mento da consciência, como promotora de gestos
de interpretação, (re)produtora de fatos de lingua-
gem, de posições-sujeito atuantes na esfera de or-
ganização social. Retomando Foucault (2007, p. 8),

[...] se o poder fosse somente repressivo, se


não fizesse outra coisa a não ser dizer não,
você acredita que seria obedecido? O que
faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente que ele não pesa

65
só como uma força que diz não, mas que
de fato ele permeia, produz coisas, induz ao
prazer, forma saber, produz discurso.

A instituição midiática (recortada em nosso tra-


balho como mídia dada à divulgação de saberes e
ideias em curso na sociedade brasileira se autoriza a
mobilizar – sob a égide de seu papel instituído como
serviço social, lugar instituído como instrumento
democrático, reconhecido na esfera da liberdade de
expressão e de direito dos cidadãos – seu lugar (po-
lítico, econômico e comercial) através do discurso.
Este é um mote essencial para a compreensão des-
te lugar midiático, pois entre os direitos declarados
pela Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu
art. 5º (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coleti-
vos), temos o direito à comunicação, à informação.
O dado constitucional de direito em si mostra que
esse lugar institucional coloca a comunicação em
uma relação gregária e social que, ao incluir as ne-
cessidades de autoexpressão e de troca de informa-
ções, sustenta um lugar de poder para esta mídia.

A mídia, nesta posição de comunicação, no es-


paço social de produção discursiva, investe espe-

66
cialmente no que tange os aportes tecnológicos – e,
portanto ideológicos –, na manutenção e legitima-
ção de seu lugar social. Essa legitimidade não é uma
invenção da mídia, como se ela configurasse uma
entidade independente e manipuladora, tampouco
será abordada neste texto em uma relação simplista
de influência, já que o discurso da mídia é parte do
complexo sociopolítico do Estado democrático que
é legitimado como sistema organizador em nossa
sociedade; ou seja, é o social que determina a pro-
dução de práticas e ideias mobilizadas nas esferas
institucionais (entre as quais temos a mídia na sua
posição informativa), e não o contrário. No mesmo
sentido e com maior especificidade, minha posi-
ção teórica justifica-se pela própria concepção de
linguagem que adotamos, a saber, a da linguagem
constituída por um aspecto material, a língua (o que
pode ser visto “a olho nu”) atravessada pela história
e pela ideologia, as quais caracterizam relações es-
senciais para compreendermos a manifestação do
sentido e de seus efeitos na leitura e nas práticas so-
ciais do sujeito.

Compreender o que se diz sobre inclusão, por


exemplo, precede uma observação da mídia, ou seja,

67
na posição discursiva que me atenho, a mídia é ob-
servada em seu lugar singular de poder, não o poder
que vigia ou ameaça, mas o poder que regulariza a
versão possível – já condicionada em uma prática
(técnica e ideológica) instituída, que tem lugar so-
cial definido. Com esse pensamento, dispomo-nos
a observar o leque que relaciona o discurso da mí-
dia e suas relações sociais, entendendo que o poder
não é da mídia – como detentora manifesta das ver-
sões escolhidas ou dotada de um lugar de intenção
lógico e claro, mas é exercido e regulado por forças
ideológicas que são, antes, políticas, econômicas e
sociais que otimizam a (re)produção de alguns sen-
tidos em detrimento de outros.

Para Foucault (2007), o processo de otimização


do poder, pela economia política, que implica em
estratégias que tem como efeito o máximo controle
pelo mínimo investimento de poder, seria uma ten-
dência. Nesta lógica, produzir condutas que relacio-
nam o sujeito com os demais – por meio de proce-
dimentos que visam gerir a população – aliadas a
práticas que o sujeito empreende com ele mesmo
– pela ética, por exemplo – além da amenização do
risco, permite a autogestão da sociedade. Mas, para

68
que essa lógica seja eficiente, algumas táticas e téc-
nicas precisam ser inventadas/acionadas.

Trazendo a teorização disciplinar dos séculos


XVIII e XIX para a atualidade, entendemos que é nes-
se regime que a inclusão, como elemento de parti-
cipação e acesso de todos, toma corpo. Não basta
ser parte da sociedade, é preciso participar. Mais do
que isso, é preciso querer participar de certos espa-
ços e ações e incentivar que todos participem. As
formas de publicizar este ideal relacionam modos
de subjetivação já instituídos e as ressonâncias in-
terdiscursivas dessa relação numa sociedade que se
pretende inclusiva dentro de um projeto ideológico
legitimado em práticas de engajamento regulares.

Para dar visibilidade ao entorno teórico que venho


propondo até aqui, recortei materialidades midiáticas2
que me chamaram a atenção para o modo como tex-
tualizam a questão da inclusão e, a partir delas, enfa- 2
As campanhas
tizo a observação de sentidos filiados a uma determi- que versam sobre
a inclusão pela
nada formação ideológica e à (re)tomada de sentidos diferença serão
(o parafraseamento discursivo) que propagandeiam a tomadas como
objeto de leitura e
prática de engajamento como solução anunciada e análise na sequência
simbolizada como garantia de avanço social. da seção.

69
Os recortes trazidos para discussão referem-se
a campanhas3 divulgadas nos últimos cinco anos
em diferentes formas midiáticas de (re)produção e
foram sequenciadas (em recortes) para dar visibili-
dade a aspectos analíticos em torno do conceito de
inclusão e sua relação significante com uma orde-
nação social de divulgação. Observemos a sequên-
cia discursivo-parafrástica de recortes:

Recorte 1(R1) – Campanha publicitária

Fotografia 1 – Imagem divulgada pelo Instituto MetaSocial


cujo slogan de campanha é “Ser diferente é
normal”

3
Peças publicitárias
(impressas e
audiovisuais) “Ser diferente é normal”
amplamente
divulgadas. Fonte – Disponível em: <http://www.inclusive.org.br/?p=21677>

70
Recorte 2 (R2)4 – Campanha publicitária

Fotografia 2 – Imagem referente ao filme da campanha


do Instituto MetaSocial cujo slogan é “Ser
diferente é normal”

“Ser diferente
é normal”

Fonte – Disponível em: <www.facebook.com/


sindromededown8?hc_location=timeline>

4
A imagem do recorte refere-se à sexta campanha desenvolvida para a
ONG MetaSocial fundada por Helena Werneck. No filme publicitário,
de 2011, com versões de 60 e 30 segundos, Paula Werneck, uma atriz
que já protagonizou outras campanhas do MetaSocial, está em casa e
declara, em uma narrativa, ser uma menina diferente. A suposição leva
a crer que essa “diferença” seria por outros motivos até que ela de-
clara que é por gostar de tocar bateria. A cena seguinte mostra Paula
tocando bateria num parque gramado (as filmagens ocorreram no
Parque da Marinha do Brasil, em Porto Alegre) ao som de “Kids of the
Future”, da banda inglesa Jonas Brothers. Aos poucos, outros jovens
se aproximam e cantam com ela. Ao final, todos abraçam a baterista e
o enunciado “Ser diferente é normal” entra em cena. Como recursos
de acessibilidade, o filme conta com legendas e audiodescrição para
versar sobre questão da diferença. O vídeo pode ser visto no endere-
ço eletrônico: <http://www.youtube.com/watch?v=mjLpJboOQy4>.

71
Recorte 3 (R3) – Campanha publicitária

Fotografia 3 – Imagem da campanha “Ser diferente é normal”

“E daí que diferença faz?!


Ser diferente é normal”

Fonte – Disponível em: <www.facebook.com SerDiferenteENormal2012>

Recorte 4 (R4) – Campanha publicitária

Fotografia 4 – Imagem de campanha divulgada em comemora-


ção ao dia internacional da Síndrome de down.

“Não sou diferente,


eu faço a diferença.”

Fonte: Disponível em: <www.deficienteciente.com.br>

72
Recorte 5 (R5) – Campanha publicitária

Fotografia 5 – Imagem de campanha da Federação das Ações


do Estado do Rio de Janeiro

“O que nos faz especial


são exatamente as
nossas diferenças”

Fonte – Disponível em: <www.blogclientesa.clientesa.com.br>

Ao ler, ver e/ou ouvir, em diferentes mídias, em


diferentes materialidades discursivas, o enunciado:
“Ser diferente é normal”, deparei-me tocada a pro-
blematizar os sentidos no tempo presente: os sen-
tidos de engajamento na causa inclusiva, a partir da
espetacularização da diferença/diversidade – sua
produção e seu consumo simbólico na e pela lin-
guagem midiática. Nesse registro, retomo questões
pertinentes à minha reflexão: Como os sentidos da
chamada inclusão social vem sendo movimentados
na mídia?

73
Se observarmos a sequência de materialidades
(os recortes) enunciativas nas campanhas supra-
mostradas podemos explicitar o deslize de senti-
dos constitutivo do parafraseamento5 dos enuncia-
dos instaurados em um antagonismo histórico que
constitui a subjetividade dos que são e dos que não
são considerados diferentes e sua possibilidade de
inclusão social pela diferença. O reforço enunciativo
que deflagra que “ser diferente é normal” só pode
ser dito e fazer sentido na relação com uma me-
mória interdiscursiva num espaço que nos lembra
(traz à atualidade) da segregação historicamente
construída e discursivizada dos sujeitos (os deficien-
tes, os especiais, os diferentes...) que ainda estão
imersos na esteriotipia social da deficiência, da falta,
5
Tomo o conceito
da estagnação como sujeitos (desen)formados dos
de paráfrase
na perspectiva moldes sociais vigentes.
discursiva que
entende que
os processos Desta forma, a tentativa discursiva que a mídia
parafrásticos são
(re)produz nas campanhas é a de um (re)posiciona-
aqueles pelos quais
em todo dizer há mento direto, horizontal dos sentidos da diferença,
sempre algo que se
inclusive pelo não-uso da designação “deficiência”
mantém, isto é, o
dizível, a memória. que carrega, em sua história e memória, sentidos
A paráfrase está do
ainda atuantes do esquecimento, da desvalia e do
lado da estabilização
(ORLANDI, 1999). não-pertencimento social. Os enunciados parafrás-

74
ticos recortados das campanhas (R1, R2, R3, R4 e R5)
marcam esta memória discursiva histórica em que
as diferentes práticas relacionadas ao cuidado com
pessoas com deficiência permitem problematizar o
modo como cada período histórico, especialmente
o de agora, atualiza a questão da diferença. Dife-
rentes atores sociais em suas posições-sujeito estão
envolvidos nessas práticas que vão da caridade e as-
sistência6 até às práticas ditas integrativas e inclusi-
vas que marcam a questão da deficiência na con-
temporaneidade, mas que vem produzindo sentidos
há muito tempo.

Segundo Foucault (2002), desde o início do sé-


culo XIX, os sujeitos com deficiência eram vistos a

6
A prática assistencial está diretamente relacionada ao surgimento
das instituições de confinamento. Nesse modelo e intervenção
o atendimento aos carentes constitui objeto de práticas
especializadas. Assim surgem diferentes equipamentos sociais –
tais como hospitais, asilos, orfanatos, hospícios – que oferecerão
atendimento especializado a certas categorias da população que
outrora eram assumidos, sem mediação, pelas comunidades.
Vão surgindo estruturas cada vez mais complexas e sofisticadas
de atendimento assistencial, esboço de uma profissionalização
futura desse tipo de prática. Foucault (2002) produz um trabalho
denso sobre a sociedade suas formas de regulação e pontua
historicamente a mudança das práticas sociais de cuidado (para
ele formas de ordenação) social.

75
partir de suas deficiências: elas deveriam ser medi-
das e classificadas e seus corpos tornados objetos
de controle, já que se opunham à ordem social. Essa
dominação exercida pelas disciplinas, a partir dos
séculos XVII e XVIII, se institui através deformas sutis
por técnicas minuciosas e íntimas. Através de uma
política do detalhe, de atenção às minúcias, esse
corpo doente passa a ser estudado, analisado, co-
nhecido, para ser recuperado e tratado... Este cená-
rio discursivo movimentou-se e tem agregado no-
vos sentidos para significar o sujeito diferente (e não
só deficiente). Considerando o fracasso das institui-
ções em integrar o sujeito com deficiência à socie-
dade e ao mercado de trabalho produtivo a partir de
um modelo social de normalidade, iniciou-se, em
vários setores sociais, e a mídia ocupa uma posição
importante neste processo, um questionamento e
pressão para a desinstitucionalização das pessoas
com deficiência.

No modelo da inclusão discursivizado na atua-


lidade, onde a diversidade é proclamada como má-
xima do ser/estar na orientação certa (àquela jus-
tificada e assentada nas formas de dizer e fazer do
“politicamente correto”), materializa-se um movi-

76
mento de sentidos que identifica e conclama à inte-
gração a sociedade e as pessoas com necessidades
especiais, isso como forma de minimizar os proble-
mas encontrados por ambas no convívio social his-
toricamente estruturado. São práticas distintas que
ora colocam todo o peso sobre a pessoa com de-
ficiência, ora procuram distribuir a responsabilidade
pela inclusão para todo o conjunto social propondo
o engajamento como única (melhor) opção.

4 OS SENTIDOS DA INCLUSÃO
NEOLIBERAL: A CONSTRUÇÃO DO
SUJEITO ENGAJADO

Como parte da proposta de debate sobre a ma-


terialidade discursiva e suas implicações, considero
importante apontar algumas condições históricas de
produção dos discursos da inclusão. Compreendo
que há na sociedade um movimento que deflagra a
inclusão enquanto incentivo à participação e aces-
so de todos a determinados espaços sociais, como
uma grande rede que se tece em torno de políticas e
práticas conectadas aos interesses e conveniências
do modo de vida neoliberal.

77
Por neoliberalismo, a partir de Foucault (2008),
compreendo a lógica que vem se empreendendo
desde meados da década de 1970, em que o mer-
cado assume posição centralizadora na formulação
de significados. Com isso, o papel do Estado na di-
nâmica social se reconfigura e há um incentivo à
autocondução. Assim, se no liberalismo clássico o
Estado gerenciava o mercado, no neoliberalismo,
a relação inverte-se. O mercado cria e monitora o
funcionamento do Estado e das suas relações com
os sujeitos e destes com eles próprios (os sujeitos
consigo mesmos e entre si), pois isso torna o pro-
cesso mais produtivo e economicamente viável.

Dentro do neoliberalismo como forma de vida


do tempo presente e na conjuntura em que vivemos
certas normas são instituídas não só com a finalidade
de posicionar os sujeitos dentro de uma rede de sa-
beres, como também de criar e conservar o interes-
se em cada um em particular, para que se mantenha
presente em redes sociais e de mercado. Estamos
todos, de uma maneira ou de outra, sendo condu-
zidos por determinadas práticas e regras implícitas
que nos levam a entrar e permanecer no jogo eco-
nômico do neoliberalismo. É possível apontar pelo

78
menos duas grandes regras que operam nesse jogo
do neoliberal. A primeira regra é manter-se sempre
em atividade. Não é permitido que ninguém pare ou
fique de fora, que ninguém deixe de estar integrado
nas malhas que dão sustentação aos jogos de mer-
cado e que garantem que “todos”, ou a maior quan-
tidade de sujeitos, sejam beneficiados pelas ações de
Estado e de mercado. Por sua vez, Estado e o mer-
cado estão cada vez mais articulados e dependentes
um do outro, na tarefa de educar a população para
que ela viva em condições de sustentabilidade, de
empresariamento, de autocontrole etc.

A segunda regra é que todos devem estar incluí-


dos, mas em diferentes níveis de participação, nas re-
lações que se estabelecem entre o que é da ordem Es-
tado/população, público/comunitário e mercado. Não
se admite que alguém perca tudo ou fique sem jogar.
Para tanto, as condições principais de participação
são três: primeiro, “ser educado em direção a entrar
no jogo”; segundo, “permanecer no jogo (permanecer
incluído)”; terceiro, “desejar permanecer no jogo”.

Foucault (2008), ao escrever sobre o neolibe-


ralismo e ao colocar que o ponto comum existente

79
entre o econômico e o social é a regra da não-ex-
clusão, possibilita a compreensão da inclusão como
um imperativo neoliberal para a manutenção de
todos (os sujeitos e suas instituições) nas redes do
mercado. Mesmo considerando que se trata de um
processo construído sob regras estritas e historica-
mente produzidas, entendo que as práticas sociais
significadas na/pela mídia através de campanhas ou
pesquisas, ou mesmo na militância em diferentes
esferas políticas estão sendo afetadas pelas redes
(entre as quais destaco a ideológica) que engen-
dram historicamente tal processo. Na maior parte
das situações em que vejo aplicado hoje o conceito
de exclusão (corriqueiramente ligado ao da inclu-
são, sob um efeito de autodependência significan-
te), está-se falando de outra coisa, ou seja, são atri-
buídos sentidos de vulnerabilidade, de expurgação,
de expulsão, de precarização e de marginalização,
mas não propriamente de exclusão.

Se pensarmos na proposta discursiva que de-


flagra como direta a relação da diferença com um
padrão de normalidade do cotidiano social, o fato
de “pertencer”, de o sujeito atravessar uma suposta
fronteira da exclusão, não garante atingir esse ob-

80
jetivo de prevenção do risco por meio da inclusão.
Não há uma garantia de que, além de empreender
o esforço de buscar sua própria inclusão, cada su-
jeito, numa perspectiva (tentativa) coletiva, perma-
neça como que num estado permanente de busca
por se manter incluído e “ajudar” o outro a estar lá:
no lugar da inclusão. Dito de outra forma, a neces-
sidade de controle social de “todos e de cada um”
vai criando as condições de possibilidades para a
implementação de políticas de inclusão como um
imperativo neoliberal que, desde o final do século
XX, atende a uma demanda específica de sentidos:
a de aproximar para governar melhor. Desse lugar,
governar melhor não significa governar mais, se-
não utilizar a economia (no sentido de frugal) do
poder a serviço da máxima eficácia da orientação
imperativa das condutas na sutileza do discurso da
consciência inclusiva que aceita, recebe, conside-
ra a diferença, mas não necessariamente conhece,
tem ou imagina como produzir instrumentos para
lidar com ela. Nesse registro, é possível pontuar
algumas permanências e deslocamentos do pro-
cesso discursivo que dão subsídios na compreen-
são do funcionamento do discurso neoliberal da
inclusão.

81
5 POR UMA RETOMADA DA
DISCUSSÃO SOBRE O CONCEITO
DE INCLUSÃO

A criação de modelos de engajamento a partir


do enunciado “Ser diferente é normal” é significa-
da no projeto da militância imperativa da promo-
ção da inclusão. Em outras palavras, a propaganda
(materializada nos recortes das campanhas que tra-
go à observação) busca convencer a todos a reali-
zar um “retorno a um estado natural inclusivo” que
não se identifica com a história social, um retorno
a um suposto “verdadeiro eu”, em que cada sujeito
constitui-se na relação consigo mesmo, na busca
pelo “aperfeiçoamento” pessoal e social de cunho
fraterno e engajado. A fraternidade, nesta rede de
sentidos, significa-se na justificativa natural para a
igualdade, e esta seria condição imprescindível para
aquela. Dessa forma, parece fazer mais sentido dei-
xar a diferença viver, mais que isso, (com)viver. Dito
de outra forma, aproximar a diferença, torná-la pro-
dutiva para o bem de todos e de cada um, dos “com”
e dos “sem” deficiência, no afã de promover uma
conduta de simpatia explícita a toda a diversidade e
abrandar o mote de segregação que acumulamos

82
em nossa existência social. Para isso, para que todos
convivam harmonicamente em todos os espaços, e
na diferença que os constitui, é preciso o consenti-
mento, a aceitação, o respeito, a tolerância.

Em meio a este processo de trabalho discursivo,


instaura-se um exaustivo (no sentido de repetitivo
mesmo) incentivo ao aperfeiçoamento constante:
tornar-se um agente atuante da inclusão como uma
forma de melhorar o mundo e, principalmente, a si
mesmo. Um parafraseamento ideológico massivo
(pois circula em muitas instâncias midiáticas) que
superlativa a necessidade de inclusão da diferença,
como se a diferença, a segregação, e outros senti-
dos filiados interdiscursivamente a ela não fossem
passíveis de conflito, como se tal separação fosse
também parte da nossa condição como sujeitos;
como se a formação ideológica desenvolvimentista
social/estrutural não fosse imperativa e não dificul-
tasse o arrojo das práticas inclusivas em instituições
formadoras como a escola, por exemplo. Mais que
isso, como se a exclusão, ou se desnaturalizarmos
este conceito e retomarmos o sentido da exclusão
como sendo a inclusão em outro lugar, não fosse
marca constitutiva da historicidade no espaço social

83
e seus modos de convivência, ordenação, institu-
cionalização de sentidos e práticas.

É neste sentido que problematizo os sentidos


do “aprender a ser inclusivo” (re)produzido na mídia,
que textualiza-se como uma espécie de pedagogia
da consciência ou, nos termos de Foucault (2002) ,
como prática de si. Afinal, se não podemos escapar
do campo de gravitação da formação discursiva to-
mada no ideal de inclusão, não basta que o sujeito se
inclua, é preciso que haja um convencimento dos be-
nefícios de manter os demais sujeitos também inclu-
ídos. Uma das molas propulsoras desse processo, no
sentido de divulgação, circulação e consumo dessas
práticas, é a publicidade, em suas diferentes formas
de aparescência e circulação (televisão, internet, rá-
dio, outdoors...) como trouxemos em recortes, mas
ela não está só. Nesta conjuntura, consumir as van-
tagens da inclusão, no discurso e nas práticas coti-
dianas, faz com que ela seja objetificada7, ou melhor,
que torne o sujeito em estado de inclusão, alguém
cujo capital humano é mais valorizado, mas não ne-
cessariamente inclusos e atuantes nesse processo de
fato. Um dos aspectos que parecem valorizar ainda
7
No sentido de
tornar-se objeto. mais a performance inclusiva é assumir essa causa,

84
tornando-se um “parceiro/sócio” na vigilância8 pela
inclusão de todos. Essas são algumas considerações
que não dão conta, ainda, da complexidade da ques-
tão da inclusão e suas práticas sociais, mas é preciso
assumir o risco: “é preciso suportar o que venha a ser
pensado, isto é, é preciso ‘ousar pensar por si mes-
mo’” (PÊCHEUX, 2009, p. 304).

A inscrição deste ensaio analítico se corporifica


numa perspectiva de análise que não busca o ocul-
to, mas sim o que se constitui na superfície discur-
siva. O empreendimento analítico que se aproxima
dessa forma de olhar desapegada da “verdade”, ob-
serva seus objetos e sujeitos como constituídos e
constituintes de discursos. Em outras palavras, não
importa se algo é ou não verdadeiro, se existem uma
ou muitas verdades, mas entender as correlações de
forças implicadas na produção histórica da verdade
que define, por exemplo, o que é ou não ser dife-
rente; o que é estar ou não estar incluso; o que é ou
não é ser respeitado, ser coitadinho, ter ou não ter 8
Nos termos teóricos
de Foucault (2002,
preconceito, ser melhor ou pior etc. 2008) sobre a
questão da vigilância
e do cuidado de
A implicação ideológica da sequência de recor- si presentes na
tes que nos chama a atenção para a diferença como ordenação social.

85
atributo de normalidade reforça o jogo de posições-
-sujeito de uma formação ideológica que discursi-
viza uma inclusão, é preciso apontar: segmentada,
partida, num complexo enunciativo de completude,
de obviedade. Há um deslize que marca o antago-
nismo ideológico dos sentidos que constituem nos-
sa sociedade e que nos aponta desafios para além
da ordem prática de como promover a inclusão
num espaço histórico-discursivo afetado pela divi-
são e mantido pela segregação. Essas mesmas prá-
ticas apresentam uma relação de tensões e forças
nos dias atuais. Convivemos com uma somatória de
práticas bem intencionadas de educação especial
nas escolas e também movimentos comprometi-
dos com a defesa das pessoas com deficiência que
esbarram em conflitos políticos, éticos e mercado-
lógicos. Os sentidos que chamam à inclusão como
forma de engajamento social, produzem efeitos que
não podemos medir, mas que ressoam um modo
de significar a inclusão. Processo de (re)afirmação
ou refutação de práticas ditas inclusivas ainda em
processo, em compasso de debate e em inevitável
movimento de sentidos.

86
REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 23. ed. Tradu-


ção Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

______. Nascimento da biopolítica: curso dado no


Collège de France (1978-1979). Tradução Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25. ed.


Traduzido por Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
2002.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e pro-


cedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

______. Discurso e leitura. 2. ed. Campinas, SP: Cor-


tez: Ed. da Unicamp, 1993.

______. Discurso e texto: formulações e circulação


dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

87
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In:
GADET, F.; HAK. T. (Org.). Por uma análise automá-
tica do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1993. p.
61-162.

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirma-


ção do óbvio. 2. ed. Traduzido por Eni P. Orlandi et
al. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2009.

______. Sobre os contextos epistemológicos da


análise de discurso. Cadernos de Tradução, Porto
Alegre, n. 1, p. 47-55, nov. 1998.

______; FUCHS, C. A propósito da análise automáti-


ca do discurso: atualização e perspectivas. Traduzi-
do por Péricles Cunha. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.).
Por uma análise automática do discurso. Campinas,
SP: Ed. da Unicamp, 1990. p. 163-252.

88
DISCURSIVIDADES
DE INCLUSÃO E A
MANUTENÇÃO DA
EXCLUSÃO
Greciely Cristina da Costa*

Ninguém=Ninguém
Há tantos quadros na parede
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro
Há tanta gente pelas ruas
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
Ninguém é igual a ninguém
Me espanta que tanta gente sinta
(se é que sente) a mesma indiferença [...]
Humberto Gessinger – Engenheiros do Hawaii

* Doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade


Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). Professora pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do
Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO

A convivência entre iguais e diferentes talvez


seja a principal temática discutida na sociedade atu-
almente. Inclusão, integração, aceitação, tolerância
são alguns dos termos que funcionam como espé-
cies de palavras de ordem, sempre trabalhados, si-
lenciosamente ou não, no interior da expressão “é
preciso. É preciso incluir, é preciso integrar, aceitar,
tolerar [...]” Ou sempre sustentando discursos que
apontam para elas mesmas, isto é, para a inclusão, a
integração, a aceitação e a tolerância, entre outras,
como se fossem elas necessidades. Necessidades
que se apresentam como transparentes, como evi-
dentes. O que significa dizer que nem sempre quem
é preciso incluir é objeto de discussão. Que sujeito é
esse? Que necessidade é essa? Como a evidência de
necessidade é construída? Necessidade de quem?

Nessa instância, os sentidos de iguais e dife-


rentes tornam-se tão naturalizados ao passo que
o processo de significação, suas especificidades e
opacidade são apagados. Com efeito, a significação
dos sujeitos ditos iguais ou diferentes não é posta
em questão. O modo como são individuados pelo

91
Estado e suas instituições (ORLANDI, 2001) mui-
to menos. E mais complexo ainda, a inclusão toma
contornos significativos na direção de manter na
sociedade a ideia de exclusão em suas práticas.

Meu intuito, neste trabalho, a partir da Análi-


se de Discurso, é buscar compreender e explicitar
discursos que se apresentam como sendo discur-
sos de inclusão, mas que funcionam para, em cer-
ta medida, ratificar a exclusão. E, ainda, como esses
discursos atuam no processo de individuação dos
sujeitos. Com esse objetivo, parto do pressuposto
de que as relações sociais são relações de sentido,
atravessadas pela ideologia e divididas pelo políti-
co. Nesta perspectiva, a ideologia é entendida como
mecanismo de produzir evidências via imaginário e
o político é definido por Orlandi (2010) como a divi-
são dos sentidos. A autora explica que:

os sentidos são divididos, não são os mes-


mos para todo mundo, embora “pareçam”
os mesmos. Esta divisão tem a ver com o
fato de que vivemos em uma sociedade que
é estruturada pela divisão e por relações de
poder que significam essas divisões. Como

92
sujeito e sentido se constituem ao mesmo
tempo não só os sujeitos são divididos entre
si, como o sujeito é dividido em si (ORLAN-
DI, 2010, p. 12, grifo nosso).

Daí decorre minha proposta de então analisar


como o político divide os processos discursivos de
significação de igualdade e de diferença de modo a
produzir efeitos de sentidos para os sujeitos toman-
do como lugar de observação trechos da Resolução
nº 45/91 da ONU, o funcionamento de denomina-
ções para pessoas com deficiências e o discurso de
uma campanha do governo federal.

Para tanto, este estudo organiza-se da seguinte


maneira. Primeiro, situo teoricamente como discur-
so, sentido e sujeitos são compreendidos em Análise
de Discurso. Em seguida, teço considerações acerca
da sociedade e, mais especificamente, da configu-
ração da sociedade atual, na qual as relações sociais
são marcadas por práticas de segregação, cujo par
inclusão/exclusão tem em sua constituição a con-
tradição. Dando continuidade, apresento a maneira
pela qual diferença é significada ao ser relaciona-
da com iguais, ao se dar nomes e ao substituí-los.

93
E, por fim, exponho minhas considerações acerca
dessa compreensão, ressaltando, embora pareça
óbvio, que “um sujeito não é igual a outro”.

2 DISCURSO: SENTIDOS E SUJEITOS

Para essa investigação, teoricamente é impor-


tante situar que:

• o homem é considerado sujeito sócio-his-


tórico e simbólico;
• discurso é definido como efeito de sentido
entre locutores, no qual o funcionamento
da linguagem em condições específicas nos
leva a observar a constituição dos sujeitos e
a produção de sentidos.

Isto quer dizer que o discurso supõe um sis-


tema significante, mas supõe também a re-
lação deste sistema com sua exterioridade
já que sem história não há sentido, ou seja,
é a inscrição da história na língua que faz
com que ela signifique. Daí os efeitos entre
locutores (ORLANDI, 1994, p. 53);

94
• apesar de as palavras parecem transparen-
tes, elas não tem um sentido fixado a priori.
O sentido é sempre produzido em determi-
nadas condições de produção e engendra
diferentes efeitos;
• o lugar de observação da relação entre lin-
guagem e ideologia é o discurso. O que
significa dizer também que sujeito e lingua-
gem são pensados na relação com o in-
consciente além da ideologia na sociedade;
• a relação entre o mundo e a linguagem é
atravessada pelo imaginário;
• a produção de efeitos de sentido e de su-
jeitos é pensada também a partir da relação
com o Estado, uma vez que é ele o articu-
lador simbólico-político que individua os
sujeitos. Orlandi (2012) explica que o indiví-
duo é interpelado em sujeito pela ideologia
no simbólico. Com efeito, a forma-sujeito-
-histórica é constituída sob a égide do capi-
talismo, ou seja, a forma-sujeito é capitalista
e, por sua vez, se sustenta no jurídico. Por
consequência, a forma-sujeito-histórica ca-
pitalista caracteriza-se pela ideia de que o
sujeito tem direitos e deveres, é livre e ao

95
mesmo tempo responsável. Essa mesma
forma é individuada pelo Estado e suas ins-
tituições. Resulta do processo de individua-
ção do sujeito, o sujeito individuado

que vai estabelecer uma relação de identifica-


ção com esta ou aquela formação discursiva.
E assim se constitui em uma posição-sujeito
na sociedade (ORLANDI, 2012, p. 228).

3 A SOCIEDADE DA SEGREGAÇÃO

Refletindo sobre a sociedade face à exclusão,


Touraine (1991, p. 166) afirma que nós assistimos
hoje a passagem de uma sociedade vertical, a cha-
mada sociedade de classes, para uma sociedade
horizontal. Com esta mudança, o autor ressalta que
se torna importante saber se estamos no centro ou
na periferia. Fora ou dentro.

Essa tensão entre centro e periferia, fora e dentro,


entre verticalidade e horizontalidade se projeta, para
Schaller (2002), na contemporaneidade, na luta de luga-
res: ou se está dentro ou se está fora. Segundo o autor,

96
o indivíduo que está fora não tem mais,
como no caso de uma sociedade de inte-
gração piramidal, a possibilidade de imagi-
nar que possa subir os degraus da escala,
que possa progredir e se sair bem. O fosso
aparece como algo quase instransponível e
o medo difuso é o de cair do lado errado
(SCHARLLER, 2002, p. 151).

Pensando a oposição inclusão/exclusão, que


tem sido amplamente mobilizada para intermediar
os conflitos decorrentes das desigualdades sociais
seja pelas políticas públicas do governo brasileiro,
seja pelas instituições de ensino, organizações não
governamentais ou pela mídia em geral, a partir das
considerações de Touraine e Schaller, o foco torna-
-se não a oposição, mas a segregação, pois é a se-
gregação que parece reger a sociedade contempo-
rânea. Trata-se do próprio da sociedade neoliberal,
mundializada. Não estamos mais diante da discrimi-
nação, nos tornamos uma sociedade de segrega-
ção, é o que enfatiza Touraine (1991, p. 171).

Como é possível incluir aquele que está segre-


gado? Essa pergunta é fundamental, pois os autores

97
supracitados mostram que uma vez segregado, é
impossível ao sujeito entrar nas relações sociais. En-
tretanto, há discursos que trabalham a ilusão da re-
lação incluir/excluir como se a sociedade capitalista
fosse a da oportunidade, como se “bastasse” o sujei-
to estudar, trabalhar, ser competente, disciplinado,
ter boa vontade para conquistar seu lugar (ao sol).
São discursos que colocam o sujeito como “respon-
sável” por alcançar seu lugar. Um exemplo é o dis-
curso do Estado sobre a inclusão digital. Segundo
Dias (2011, p. 301, grifo do autor), esse discurso

do acesso digital ou inclusão digital corro-


bora o sistema que responsabiliza o próprio
sujeito pelo seu fracasso. Uma vez que o
governo dá o acesso (mesmo que sem con-
dições mais complexas de aprendizagem e
igualdade de oportunidades), ele se desres-
ponsabiliza alegando: “o Estado fez a sua
parte, mas eles não souberam aproveitar”.

Através da “oportunidade” dada pelo o governo


seria possível ao sujeito o “acesso” a um lugar na socie-
dade. Ele poderia mudar de lugar, de fora para dentro.
Mas, a responsabilidade de se incluir seria do sujeito.

98
Na leitura de Orlandi (2012 p. 213, grifo nosso), faz

parte da ideologia, no capitalismo, a exis-


tência de formas de onipotência no cha-
mado domínio pessoal em que a posição é
“se eu quiser, eu posso tudo” e essa posição
aparece como se sustentando na vontade e
na consciência.

Enquanto no domínio social, a forma é “juntos


podemos tudo”. No entanto, o político, ou seja, os
sentidos que dividem ou segregam a sociedade fi-
cam silenciados e produzindo efeitos, cujas conse-
quências deixam marcas na história.

A configuração da sociedade disciplinar de que


fala Foucault (1987), nos séculos XVII e XVIII, é exem-
plar do modo como a disciplinarização do corpo,
o controle, a vigilância e o ordenamento promove-
ram a separação dos sujeitos e a classificação entre
aqueles considerados normais e aqueles ditos anor-
mais. A medicina, competência reconhecida pela
opinião pública, juntamente com a instância jurídica
e administrativa e, também, com a autoridade reli-
giosa tornou-se instituição reguladora que decidia,

99
distinguia, designava, nomeava e instaurava o limite
entre o doente e o são, a loucura e a sanidade, en-
tre o espiritual e o corpo, o místico e o patológico
(FOUCAULT, 2009). Assim, a sociedade disciplinar e
suas instituições instalam a sanção normalizadora,
que segundo Foucault (2009, p. 215), estabelece

um conjunto de graus de normalidade, que


são sinais de filiação a um corpo social ho-
mogêneo, mas que têm em si mesmos um
papel de classificação, de hierarquização e
de distribuição de lugares. Em certo sen-
tido, o poder de regulamentação obriga à
homogeneidade; mas individualiza, permi-
tindo medir os desvios, determinar os níveis,
fixar as especialidades e tornar úteis as dife-
renças, ajustando-as umas às outras.

O autor acentua que, através desse conjunto,


que em síntese normaliza os sujeitos, as instituições
comparam, diferenciam, hierarquizam, homogeni-
zam, excluem. No quadro traçado por Foucault, a
“necessidade” de diferenciação é útil para manter o
jogo de iguais e desiguais, aqueles que trabalham e
que os que não trabalham, por exemplo.

100
Pelo viés discursivo, de acordo com Orlandi
(2004, p. 85), “há em nossa realidade social uma com-
plexidade de jogo de forças” que excede a simples
relação inclusão/exclusão. Penso que essa comple-
xidade das relações de força reside no fato de que a
inclusão só se dê em virtude da exclusão. Mas não é
tão óbvio assim. Há sujeitos que já são excluídos ten-
do em vista determinadas condições históricas, em
razão da formação social que vivemos, que é capita-
lista, e, por um demanda política e econômica “pre-
cisam ser incluídos”. Nesta direção, Sawaia (1999, p.
8) afirma que a “sociedade exclui para incluir e esta
transmutação é condição da ordem social desigual,
o que implica no caráter ilusório da inclusão”. Nesta
ordem social, no caso das pessoas com deficiências,
como é discursivizada a inclusão?

4 SENTIDOS PARA A DIFERENÇA

A partir da década de 1980, quando a Orga-


nização das Nações Unidas (ONU) realizou o Ano
Internacional das Pessoas Deficientes, as políticas
públicas de inclusão social tiveram início. Resulta-
do de reuniões, debates e conferências, vários do-

101
cumentos e declarações foram firmados pautados
no princípio de que todas as pessoas têm os mes-
mos direitos. A Resolução nº 45/91 (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS, 1991), formulada no âmbito
da assembleia geral da ONU, em 1990, é um des-
ses documentos que dispõe sobre a estruturação da
sociedade da inclusão, também chamada de “So-
ciedade para todos”. Werneck (1997, p. 21) assinala
que “a sociedade para todos, consciente da diversi-
dade da raça humana, estaria estruturada para aten-
der às necessidades de cada cidadão, das maiorias
às minorias, dos privilegiados aos marginalizados”.
Para isso, a resolução mencionada aponta uma sé-
rie de medidas e metas que deveriam ser adotadas e
cumpridas pelos países membros da Organização, o
chamado Programa de Ação Mundial para as Pessoas
Deficientes e da Década das Pessoas com Deficiên-
cias das Nações Unidas.

Na resolução, por um lado, chamam a atenção


o objetivo de se elaborar normas que equiparem as
oportunidades para crianças, jovens e adultos com
deficiência e a menção à década de 80 como sen-
do um período satisfatório de sensibilização e cons-
cientização sobre os direitos e necessidades das

102
pessoas com deficiência. Por outro lado, destaca-se
o fato de não serem mencionadas quais são essas
necessidades, o que significa equiparar as oportuni-
dades e ao mesmo tempo a referência a uma cres-
cente demanda por assistência. Vejam abaixo um
trecho do documento:

11. Convida Governos e organizações não-


-governamentais a continuarem dando suas
contribuições ao Fundo Voluntário e pede
aos Governos e organizações não-gover-
namentais que ainda não fizeram isso para
que considerem contribuir para o Fundo
Voluntário, permitindo assim que este res-
ponda eficazmente à crescente demanda
por assistência (ORGANIZAÇÃO DAS NA-
ÇÕES UNIDAS, 1991, p. 5, grifo nosso).

Neste ponto, é fundamental perguntar: o que


significa enunciar “equiparar oportunidades, cons-
cientizar sobre direitos e necessidades” face à ideia
de assistencialismo? Com isso, o que pretendo res-
saltar é que as necessidades, os direitos a partir de
uma escrita lacunar continuam não nomeados,
continuam apagados como se fossem da ordem da

103
transparência. Enquanto isso, o discurso da inclusão
vai sendo significado pelo discurso do assistencialis-
mo, em certas instâncias. As lacunas vão sendo pre-
enchidas por formas e sentidos sempre sujeitos ao
equívoco da linguagem. É o caso da campanha da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos pela In-
clusão de Pessoas com deficiência que trago para
a análise com o objetivo de compreender como o
discurso da inclusão é significado e produz sentidos
para diferença.

Começo então pela afirmação de que não há


espaço para as diferenças, para o sujeito dito dife-
rente em uma sociedade da segregação. Essas di-
ferenças e sujeitos ficam fora, mas o discurso da
inclusão produz como efeito a ilusão de inclui-los.
Essas diferenças e sujeitos são então controlados,
administrados e emergem na sociedade através do
discurso da igualdade, do processo de individuação
do Estado e suas instituições que ao individuar o
sujeito faz com ele ocupe uma posição-sujeito na
“sociedade para todos”, faz com ele se projete den-
tro, como parte dessa sociedade. Ou ainda, como
fora, mas que pode vir a ser incluído nas relações
sociais. Essa conclusão é resultado da análise do re-

104
corte abaixo, que trata de uma campanha da Secre-
taria Especial dos Direitos Humanos pela inclusão de
pessoas com deficiência. Observem, para começar,
o enunciado Iguais na Diferença.

Fotografia 1 – Campanha pela inclusão de pessoas com


deficiência

Fonte – Arquivo pessoal

O que significa dizer iguais na diferença? Que


efeitos de sentido produz esse enunciado?

Em Análise de Discurso, um procedimento ana-


lítico bastante produtivo consiste na construção de
paráfrases, pois à medida que se constrói uma pa-
ráfrase do enunciado em questão há a possibilida-

105
de de se lidar com diferentes formulações que dele
derivam. Isso permite que observemos, a partir do
contraste de formulações remetidas à sua exteriori-
dade constitutiva, que efeitos são provocados pelo
enunciado acima considerando os sentidos que se
mantêm na base do dizível e os que se deslocam, ou
seja, produzem outros sentidos, a polissemia.

A produção da linguagem, de acordo com Or-


landi (1996, p. 27, grifo nosso), se dá na articulação
desses dois processos: o parafrástico e o polissêmi-
co. Trata-se da

manifestação da relação homem e mundo


(natureza, a sociedade, o outro), manifesta-
ção da prática e do referente da linguagem.
Há um conflito entre o que é garantido e o
que tem que garantir. A polissemia é essa
força na linguagem que desloca o mesmo,
o garantindo, o sedimentado. Essa tensão
básica do discurso, tensão entre o texto e
o contexto histórico-social: o conflito entre
o “mesmo” e o “diferente”, entre a paráfrase
e a polissemia (ORLANDI, 1996, p. 27, grifo
do autor).

106
Dessa forma, penso, primeiramente, na formu-
lação de uma paráfrase que explicita a quem se re-
feriria talvez a palavra “iguais”. Quem são “iguais”?
A partir dessa questão é possível parafrasearmos o
enunciado trazendo para a formulação Todos, que
no enunciado da campanha, a partir da elipse, fica
apagado.

Iguais na Diferença
(P1) Todos Iguais na Diferença

Como isso é possível? Essa paráfrase é perti-


nente tendo em vista as condições específicas de
produção da campanha. O governo atual tem como
princípio a inclusão de todos na sociedade através
da elaboração de diversas políticas públicas. A ideia
de universalismo é a principal premissa que rege es-
sas políticas. Por isso, o Todos já está por um efeito
de pré-construído, ou seja, “como se esse elemento
já se encontrasse aí” (PÊCHEUX, 1988, p. 99), fun-
cionando no enunciado sob a forma de uma verda-
de universal. Por outro lado, ao trazer Todos para a
formulação, o enunciado passa por um processo de
tensão entre o mesmo e o diferente uma vez que
não se trata mais do mesmo enunciado, ou melhor,

107
o acréscimo, ou a visibilidade de Todos direciona os
sentidos para outro domínio de significação. Antes,
o enunciado não se referia diretamente à totalidade,
o que permitia que nem todos se identificassem com
o discurso da campanha, não fossem todos indivi-
duados pelo discurso do governo federal. E ainda,
essa paráfrase explicita a filiação a um dizer que re-
mete aos fundamentos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, à Constituição Federal de 1988,
entre outros, que tomam Todos como sujeitos de
direito e igualdade. Mas, quem são esses “Todos”?

Em uma análise do enunciado do governo Lula,


“Brasil, um país de todos”, Orlandi (2012) toma o “to-
dos” como lugar de ambiguidade. A autora questiona:
“Somos todos nós brasileiros, que estamos aí evoca-
dos, ou todos em aberto?”. E continua, o “equívoco
está em que pensamos sermos nós, povo brasileiro,
em nossa igualdade social (impossível) e na verdade
somos apenas um todo indeterminado, parte do dis-
curso da globalização [...] Onde todos é cada um e
ninguém” (ORLANDI, 2012, p. 126-127, grifo nosso).

A análise de Orlandi me leva a uma terceira via


de interpretação, na qual recorro mais uma vez à

108
noção de pré-construído, que consiste, de acordo
com Pêcheux (1988, p. 99, grifo do autor), em uma
“construção anterior, exterior, mas nem sempre in-
dependente, em oposição ao que é ‘construído’
pelo enunciado”. Com base nessa noção, pode-se
dizer que irrompe no enunciado “Todos iguais na
diferença”, um discurso oposto, ou seja, o de que
“Não somos todos iguais na diferença ou Ninguém
é igual na diferença”.

Continuando a formulação de paráfrases, po-


der-se-ia construir as que seguem:

Iguais na Diferença
(P1) Todos Iguais na Diferença
(P2) Todos Iguais na Deficiência
(P3) Todos Iguais na Sociedade

O que se mantém no enunciado e nas paráfrases


derivadas dele é a sequência “iguais na”. “Diferença”
é substituída em (P2) por Deficiência e em (P3) por
Sociedade. Ao passo que diferença é substituída por
deficiência, observa-se que recai sobre a formula-
ção um primeiro sentido para diferença. Diferença
pode ser significada, em nossa sociedade, a partir da

109
campanha do governo, como deficiência. Essa pa-
ráfrase não foi construída aleatoriamente, ela deriva
das condições específicas de produção menciona-
das acima, sobretudo, no que se refere à campanha
governamental voltada para inclusão de pessoas
com deficiência. No entanto, por que enunciar di-
ferença e não deficiência? Porque não somos todos
deficientes e, portanto, também não somos todos
iguais. Observem que parece haver uma impossibi-
lidade de se pensar a igualdade frente à deficiên-
cia, neste caso, o que coloca em suspenso a ideia
de universalismo, além de provocar um desacordo
na própria ideia de igualdade. Diferença aparece aí
significando a sutura, a possibilidade de enquadrar
deficientes e não deficientes no TODO. Como se a
inclusão fosse conter as deficiências, as diferenças.
Neste caso, deficiência e diferença não estabelecem
uma relação de sinonímia, diferença não é sinônimo
de deficiência.

Por outro lado, segundo Rodrigues (2006, p. 5,


grifo do autor), “classificar alguém como ‘diferen-
te’ parte do principio que o classificador considera
existir outra categoria que é a de ‘normal’ na que ele
naturalmente se insere”. É por este sentido que con-

110
cordo também com a leitura de Dias (2011, p. 47),
ao afirmar que o discurso da inclusão/exclusão vem
funcionando para validar “aquilo que o homem não
consegue justificar, ou seja, suas atitudes de repul-
são ao outro, ao diferente, ao que não está dentro
das normas estabelecidas por certo tipo de poder
que o Estado precisa capturar”.

Em outra via, tomando a (P3), na qual Diferen-


ça é substituída por Sociedade, percebam que o
enunciado se abre à polissemia mais uma vez. Essa
substituição possibilita que o discurso da campa-
nha governamental explicite a divisão, ou melhor,
a segregação social uma vez que somente como
iguais é possível estar na Sociedade. Através dessa
discursividade, o sujeito deficiente é individuado por
um discurso que o tira de fora e o coloca dentro da
Sociedade, imaginariamente. No entanto, para estar
dentro “é preciso ser igual”. Esse é um dos efeitos de
sentido produzidos. Mas, o que significa ser igual?
Ter os mesmos direitos? Ter os mesmos deveres?
Estudar, trabalhar, consumir? Ou se enquadrar a um
padrão? Ser também regulado pelas instituições?
Continuar de fora com a sensação de estar dentro.
Esse é o efeito de ilusão marcado no discurso da

111
inclusão, pois a própria restrição ou prerrogativa de
direitos e deveres delimita aqueles que serão sem-
pre tomados de seu lugar de fora.

No caso das pessoas com deficiência é interes-


sante notar que um dos primeiros gestos da Reso-
lução nº 45/91 instituída pela Assembléia Geral da
ONU, apresentada anteriormente, é solicitar que a
tradução de termos tais como “incapacidade”, “defi-
ciência”, “pessoas deficientes” seja revista. Vejamos:

7. Solicita também ao Secretário-Geral que


reveja a tradução, para os idiomas oficiais
das Nações Unidas, dos termos “impe-
dimento”, “deficiência”, “incapacidade” e
“pessoas deficientes” utilizados no Progra-
ma Mundial de Ação (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1991, p. 5);

Pode-se dizer que é um dos primeiros passos


para tentar resignificar deficiência até então signifi-
cada como incapacidade, impedimento, anormali-
dade. Mas, essa é, sobretudo, a maneira pela qual a
deficiência e o sujeito são inseridos no documento
de fato. É o momento em que, no texto, sujeito e

112
deficiência são explicitados na relação que estabe-
lecem. Explicitados à medida que se chama a aten-
ção para sentidos que foram historicamente cons-
truídos e ressoam em palavras como impedimento,
incapacidade, etc. É possível barrar esses sentidos?

Nos últimos anos, aos poucos a deficiência vai


se afastando dos sentidos destes termos e se apro-
ximando da palavra diferença. Mas como vimos a 1
São várias as
denominações
relação de sinonímia entre deficiência e diferença que ao longo da
falha. Isso se dá pelo processo de denominar e re- história passaram
pelo processo de
denominar que está investido na política da palavra redenominação. Isto
(ORLANDI, 1989). Há algum tempo venho inves- não significa que
elas não sejam mais
tigando o funcionamento da denominação na re- usadas. Ao contrário,
lação com a construção discursiva do referente, o elas aparecerem
nos mais diversos
que implica pensar a relação do nome com o que discursos. No
ele nomeia, o modo como o gesto de denominar relatório do IBGE de
2010, por exemplo,
e redenominar pode ser tomado enquanto meca- a denominação
nismo ideológico na produção de sentidos (COSTA, utilizada é
deficientes.
2011, 2012), pois ao redenominar as pessoas com Disponível
deficiências, a denominação anterior embora subs- em: <http://
saladeimprensa.ibge.
tituída não desaparece1, como no relatório do IBGE gov.br/noticias?view
de 2010, cuja denominação utilizada é “deficientes”. =noticia&id=1&busca
=1&idnoticia= 2170>.
Também encontramos espalhadas pela cidade ou- Acesso em: maio
tras denominações como “portadores de necessi- 2013.

113
dades especiais”, em um estacionamento comercial
(ver fotos abaixo).

Fotografias 2 e 3 – Placa de um estacionamento comercial na


cidade de Campinas

Fonte – Arquivo pessoal

As mais diferentes denominações continuam


sendo enunciadas, engendrando determinados sen-
tidos, espacializadas na cidade (ORLANDI, 2004). O
próprio fato de terem sido substituídas é significati-

114
vo. Trata-se para Pêcheux (1988, p. 263) de relações
de metáfora, pois o sentido é sempre “uma palavra,
uma expressão ou uma proposição por uma outra
[...] o sentido existe nas relações de metáfora (rea-
lizadas em efeitos de substituição, paráfrases, for-
mações de sinônimos)”. Em um dos contos de Ly-
gia Fagundes Telles encontrei um exemplo. A autora
enumera: “asilos, sanatórios, clínicas de repouso,
institutos – dezenas de nomes, rótulos que variam
com a condição econômica” do sujeito. Depois ex-
plica: “Se é louco pobre, nada cerimônia, é hospício
mesmo” (TELLES, 1980, p. 25). Esse exemplo mostra
que a denominação dirige os sentidos entre hospí-
cio e louco pobre, mostra, portanto, que denomi-
nar não é um gesto aleatório, é uma interpretação
no nível do simbólico (ORLANDI, 1996; PÊCHEUX,
1997). E ainda, entendo que a denominação inter-
vém na individuação dos sujeitos, pois à medida
que um sujeito, uma instituição denomina o outro,
determina-se a posição esse outro ocupa na socie-
dade. Ao passo que, o sujeito ao se identificar com
um nome, já se inscreve em uma posição discursiva.

De “anormal, deficiente, incapaz, aleijado, cego,


limitado, especial, excepcional, pessoa deficiente,

115
portador de deficiências, portador de necessidades
especiais, pessoa com necessidade especial, para
pessoas com deficiências” (físicas, visuais, motoras,
auditivas, intelectuais). A instituição dessa última de-
nominação aparece enfatizada na cartilha Politica-
mente Correto e Direitos Humanos2, de 2004. Essa
cartilha apresenta um glossário de termos que são
considerados preconceituosos e discriminatórios
e indica qual seria o termo “correto” a ser utilizado.
Vejamos a definição dos termos deficiente e aleijado:

Deficiente – Tratamento generalizador, ina-


dequado para chamar o portador de defi-
ciência física, auditiva, visual ou mental. As
expressões respeitosas podem ser “pessoa
portadora de deficiência” ou “pessoa com
deficiência”. O fato de ter alguma deficiência
não torna uma pessoa inválida ou incapaz.

Aleijado – Termo ofensivo, que estigmatiza


2
Disponível em: as pessoas com deficiência física ou mental.
<http://www.
Não é correto chamá-las de “pessoas defi-
awmueller.
com/deposito/ cientes” ou “excepcionais”, atribuindo-lhes
politicamente_
incapacidade absoluta. Nem é pertinente
correto.pdf>. Acesso
em: maio 2013. chamá-las de “portadoras de habilidades

116
especiais”, eufemismo que não ajuda a pre-
servar sua dignidade. Em geral, as pesso-
as nessas condições preferem ser tratadas
como “portadoras de deficiência” ou sim-
plesmente “pessoas com deficiência”.

São muitas as discursividades que poderíamos


analisar, neste recorte, no entanto, chamo a atenção
para o que sustenta a mudança de uma denomina-
ção para a outra. O que está na base das duas é a
negação de discursos sobre a deficiência. Em Defi-
ciente, a negação é da incapacidade e da invalidez.
Em Aleijado, também incapacidade, desta vez abso-
luta, é negada. Inadequação, respeito, pertinência,
preservação da dignidade são evocados para justifi-
car a redenominação. Trata-se de um discurso efi-
caz. Esse processo se instala no interior do discurso
do politicamente correto funcionando pela interdi-
ção: “é proibido dizer aleijado”. Há indícios de que se
trata do funcionamento de um discurso normaliza-
dor tendo em vista o modo de se tentar padronizar
as denominações. Enquanto, a incidência do políti-
co na divisão do social pela divisão dos sentidos vai
sendo institucionalizada, administrada à medida que
se determina como devem ser denominados os su-

117
jeitos. Assim, as reais condições de existência dessas
pessoas vão sendo reduzidas em cartilhas e manu-
ais. De um lado, a reverberação das incorreções das
denominações que ao serem negadas, pela remis-
são à memória discursiva, instauram a exclusão; por
outro, há o recobrimento das práticas discrimina-
tórias que reside nas denominações “diferença” e
“diferente” por serem anunciadas como “politica-
mente corretas”. Sublinho que nesse movimento de
um nome para outro, o sentido que é silenciado em
uma denominação é transferido para a outra. Nesta
transferência, o sentido silenciado pode derivar para
outro, resignificar-se. Todavia, em silêncio, ele não
deixa de significar. E quanto às práticas das institui-
ções em relação a esses sentidos?

Retomo o enunciado analisado “Iguais na Dife-


rença”, agora para observar o comercial, de aproxi-
madamente 30 segundos, no qual o referido enun-
ciado aparece3. É interessante trazê-lo para a análise
para mostrar como o efeito de ilusão de inclusão vai
3
Disponível em:
sendo discursivizado por uma narrativa que apre-
<http://www.
youtube.com/ senta diversas pessoas com as mais variadas defici-
watch?v=ANFu9g
ências na relação com pessoas sem deficiência, em
cIQho>. Acesso em:
maio 2013. situações distintas, na cidade. Com isso, explicito

118
como a produção de significação seria outra se o
enunciado em questão fosse “Diferentes na Diferen-
ça ou Diferentes na Sociedade”.

O comercial em forma de narrativa é estrutura-


do por uma música. Trata-se de parte de Condição,
de Lulu Santos (1986), cantada pelos participantes
da propaganda, cuja letra é recortada e apresentada
trecho por trecho de distintas maneiras. Primeiro, a
câmera foca o dizer “Eu não sou” estampado na par-
te frontal da camiseta de uma deficiente visual, que é
conduzida por seu cão-guia, na calçada (Fotografia
4). Esse é o primeiro verso da música. Na sequência,
focaliza o dizer “diferente de ninguém” na parte das
costas da camiseta da mulher (Fotografia 5).

Fotografia 4 – Recorte Comercial


Inclusão para pessoas
com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://


youtube.com/
watch?v=ANFu9gcIQho>.
Acesso em: maio 2013

119
Fotografia 5 – Recorte Comercial Inclusão para pessoas com
deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Fotografia 6 – Recorte Comercial Inclusão para pessoas com


deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

120
“Quase todo mundo faz assim” é o enuncia-
do que aparece na parede de estabelecimento em
frente à parada de ônibus (Fotografia 6). Em cenas
intercaladas, uma jovem corre e sinaliza para o ôni-
bus parar e a câmera captura outro dizer. Desta vez,
aparece no painel do ônibus o enunciado “Eu me
viro bem melhor” (Fotografia 7). Acima, o símbolo
de cadeirante é mostrado, o que identifica o ônibus
adaptado para transportar pessoas com deficiência
física. Enquanto isso a câmera capta o motorista
cantando e porta de trás é aberta para um cadeiran-
te descer. Ele carrega no colo uma espécie de placa,
nela a inscrição: “Quando tá mais pra bom que pra
ruim” (Fotografia 8).

Fotografia 7 – Recorte Comercial


Inclusão de pessoas
com deficiência

Fonte – Disponível em:


<http://youtube.com/
watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

121
Fotografia 8 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Rapidamente uma outra cena é sobreposta, na


qual aparece uma jovem andando de bicicleta, ao
fundo, noutra parede, os dizeres “Não quero cau-
sar impacto” (Fotografia 9) toma o lugar no enqua-
dramento. Para em seguida a câmera abrir e focar
a imagem de amigos que, sentados numa mesa de
bar, se divertem e conversam através da língua bra-
sileira de sinais (Fotografia 10). A câmera mais uma
vez deixa essa cena para agora capturar a imagem
do cardápio do bar, que ao invés de fazer algum
anúncio, registra outro trecho da música: “Nem
tampouco sensação” (Fotografia 11).

122
Fotografia 9 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Fotografia 10 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com


deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

123
Fotografia 12 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

Ao lado, já aparece um jovem com síndrome de


down em uma loja de discos. Ele exibe na capa de um
dos discos a frase “O que eu digo é muito exato” (Fo-
tografia 12). Acima, um televisor mostra uma banda
tocando e cantando a continuação da músi-
ca: “É o que cabe na canção” (Fotografia 13).

Fotografia 13 – Recorte Comercial Inclusão de


pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com watch?


v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

124
A tela da televisão torna-se a tela de um com-
putador. A câmera nos leva do ambiente da loja de
discos passando pela tela do televisor para a sala
de um escritório (Fotografia 14), no qual um jovem
mostra dois cartazes. Em um, a palavra “Triste”, no
outro, “Sozinho” (Fotografias 15 e 16).

Fotografia 14 – Recorte Comercial


Inclusão de pessoas
com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://


youtube.com/
watch?v=ANFu9gcIQho>.
Acesso em: maio 2013

Fotografia 15 – Recorte Comercial


Inclusão de pessoas
com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://


youtube.com/
watch?v=ANFu9gcIQho>.
Acesso em: maio 2013

125
Fotografia 16 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com
deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

E, por fim, no enquadramento, o último cartaz é


substituído por outro que aparece empunhado por
uma mulher. Nele a inscrição “É a minha condição”
(Fotografia 17). A câmera amplia seu campo de visão
e filma a reunião de todos os sujeitos que
fizeram parte do comercial (Fotografia 18).

Fotografia 17 – Recorte Comercial Inclusão de


pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com watch?


v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

126
Fotografia 18 – Recorte Comercial Inclusão de
pessoas com deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em:
maio 2013

Fechando o comercial, “Iguais na Diferença” é enun-


ciado além de aparecer estampado em imenso banner
que é desenrolado face à parede de um prédio que tem
ao lado as pessoas do comercial (Fotografia 19).

Fotografia 19 – Recorte Comercial Inclusão de pessoas com


deficiência

Fonte – Disponível em: <http://youtube.com/


watch?v=ANFu9gcIQho>. Acesso em: maio 2013

127
Essa narrativa tem como regularidade o fato de
mostrar o percurso de pessoas com deficiência pela
cidade, na qual elas dividem os espaços com outras
pessoas. A deficiente visual divide a calçada com ou-
tros pedestres, a jovem que sinaliza para o ônibus,
que é adaptado, e o motorista convivem com o defi-
ciente físico. O deficiente auditivo se comunica com
os amigos no bar, o rapaz com síndrome de down
aparentemente trabalha na loja de discos. A música
também é cantada e tocada por uma banda em um
estúdio. No escritório, pessoas com e sem defici-
ência ocupam seu lugar no mercado de trabalho. O
efeito produzido é o de que “Todos têm lugar”.

O dizer “Eu não sou diferente de ninguém” vai


sendo alicerçado nessas imagens de convivência, de
circulação pelos distintos espaços. As pessoas apa-
recem felizes, em harmonia, no comercial. Não há
conflitos, não há dificuldades, não há preconceito
nem segregação. No entanto, o mesmo dizer toma
“o ser diferente” noutra instância, a do corpo, pois a
deficiência aparece no corpo seja nas marcas que
caracterizam a síndrome de down, seja pela lingua-
gem específica utilizada. Ou ainda, pela condução do
cão-guia, o uso da cadeira de rodas etc. A deficiência

128
é mostrada pelo/no corpo. Se, por um lado, “não ser
diferente de ninguém” parece se significar pelo “aces-
so a”: acesso à rua, à cidade, ao trabalho, ao lazer etc.
“Acesso a um lugar”. Por outro, o paralelo que o co-
mercial estabelece entre o sujeito com deficiência e
sem deficiência, pelo corpo, mostra a diferença en-
tre eles. Diferença que significa de alguma maneira,
porque é historicamente construída. São duas ordens
distintas, a do acesso e o da diferença. E o que parece
é que o sujeito é individuado pelo discurso do acesso
que, por sua vez, é a síntese do discurso da inclusão.

Vejamos a letra da música tomada na constitui-


ção desse discurso:

Eu não sou diferente de ninguém


Quase todo mundo faz assim
Eu me viro bem melhor
Quando tá mais pra bom que pra ruim
Não quero causar impacto
Nem tampouco sensação
O que eu digo é muito exato
É o que cabe na canção
Eu não sei viver triste e sozinho
É a minha condição

129
A música de Lulu Santos é estruturada em pri-
meira pessoa do singular. O que permite que o dis-
curso da campanha governamental projete, nessa
letra, o discurso da pessoa com deficiência, pois
a narrativa em imagens mostra os sujeitos cantan-
do, como se fosse a música fosse o próprio dizer
desses sujeitos. É a voz do sujeito com deficiência
sendo interpretada, construída pelo discurso ins-
titucional. Uma voz imaginária, na qual o interdis-
curso – o já-dito que fala antes, em outro lugar,
independentemente, ecoa – repousa e recorta
certas regiões da memória discursiva. Regiões que
significam a condição do sujeito com deficiência
como aquela que é igual, como um sujeito que se
vira bem, que não quer causar impacto, nem tam-
pouco sensação, que não sabe viver triste nem so-
zinho. O que significa causar impacto e sensação?
No discurso do Estado, movido, explicitado neste
comercial, trata-se de um modo de dizer o que a
deficiência provoca na sociedade. Impacto e Sen-
sação, neste domínio de significação, podem ser
substituídos e deslizam pelos sentidos de espanto,
aversão, recusa, exclusão. A colagem da letra da
música à voz do sujeito, dessa forma, coloca esse
sujeito como responsável pelo o que é dito, pelo o

130
que faz e pode provocar na sociedade, pelo modo
que circula e se significa na relação com o outro,
ao mesmo tempo, que o coloca como responsável
pela “sua condição”.

“É a minha condição” é a parte da música que


todos cantam juntos, em coro, finalizando-a. Que
condição é essa, diz respeito à deficiência, ou à
condição de se incluir, condição para se incluir?
Neste discurso, o que se explicita é a “condição de
excluído que (pode) alcançar a inclusão”, susten-
tando então os dizeres de inclusão e assim man-
tendo o discurso da exclusão, pois para ser inclu-
ído é preciso que o sujeito seja significado como
excluído.

Em funcionamento, articulado a esse discurso


de responsabilização do sujeito pela sua condição,
pela sua inclusão, observem o processo de indivi-
duação incidindo em “Eu não sei viver triste e sozi-
nho”. O discurso da condição individua o sujeito e
o leva se inscrever em um formação discursiva da
posição sujeito excluído, na qual se reconhece e
com a qual se identifica como aquele que não sabe
“viver triste e sozinho”. Face a essa posição, o ima-

131
ginário social constrói a imagem da pessoa com
deficiência como aquele que precisa ser integra-
do, aceito, tolerado, incluído. Em cena, entram, via
esse imaginário, os discursos do assistencialismo,
da solidariedade, que não discutem as reais con-
dições de existência das pessoas com deficiência
e formas de transformá-las, de significá-las fora
da relação contraditória inclusão/exclusão. Com
efeito, a inclusão escolar, por exemplo, em muitos
casos, fracassa, porque a ideia do discurso que in-
clui é aquela do acesso. Incluir no sentido de dar
acesso, acesso à escola, não é suficiente para lidar
com os sentidos, que historicamente construídos,
continuam ecoando na atualidade, constituindo os
sujeitos, dividindo aqueles que têm e não têm lu-
gar nas relações sociais. Uma possibilidade de se
romper com essa relação, de instalar uma outra
rede de sentidos seria derivar de “Iguais na Dife-
rença para Diferentes na Diferença ou Diferentes
na Sociedade”. Uma possibilidade de fazer atuar o
discurso de que “um sujeito não é igual a outro”,
uma maneira de intervir no real, de se compreen-
der a deficiência sem submetê-la ao discurso de
exclusão. E assim lidar com as reais necessidades
dos sujeitos com deficiência.

132
5 CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, retomo algumas consi-


derações ainda acerca do enunciado “Iguais na Di-
ferença”, que como vimos, aponta para a existência
de um Todos indeterminado, para a negação de que
“ninguém é igual na diferença”. Explicita que ao se
significar a diferença enquanto deficiência, a relação
de sinonímia falha, pois a palavra diferença funcio-
na, no enunciado, na rede de significações que es-
tabelece com ele, como uma espécie de sutura que
possibilita ao Estado a administração, o controle e o
enquadramento de pessoas com ou sem deficiência
no TODO indeterminado.

Em geral, as discursividades analisadas se apre-


sentam como sendo de inclusão. Todavia, pela com-
preensão empreendida, foi possível explicitar como,
em funcionamento, o discurso da inclusão ratifica a
exclusão. Esse funcionamento se inscreve em uma
sociedade marcada por práticas de segregação,
cujos sujeitos têm ou não lugar, cujos sentidos se
constituem politicamente, ou seja, são divididos pe-
las relações de poder instauradas nas relações so-
ciais. Com efeito, o discurso da inclusão explicita

133
de que maneira a contradição afeta os sujeitos na
sociedade à medida que produz enquanto efeito a
ideia de que “Todos têm lugar”. A contradição é a de
que se todos têm lugar, por que alguns precisam ser
incluídos?

É uma maneira de se trabalhar a inclusão no


embate com a cidadania. A cidadania “como um
objeto, um fim desejado, ainda sempre não alcan-
çado” (ORLANDI, 2001, p. 159), enquanto a inclusão
se estabelece por uma relação condicional que faz
com que o sujeito, afetado pela ilusão da inclusão,
no processo de individuação, se identifique como
excluído e que busque, almeje, se responsabilize
pela sua própria inclusão.

134
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FORMAÇÃO OU
CAPACITAÇÃO?:
DUAS FORMAS DE
LIGAR SOCIEDADE
E CONHECIMENTO
Eni Puccinelli Orlandi*

Édipo não se cegou por culpa,


mas por excesso de informação.
M. Foucault

*
Pesquisadora 1A do CNPQ. Professora colaboradora do IEL/UNICAMP e pesquisadora
do Laboratório de Estudos Urbanos do Nudecrin/UNICAMP. Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO

Em análise feita do bordão “País rico é país sem


pobreza” do logotipo do governo de Dilma Rous-
sef (ORLANDI, 2011), mostramos como, este bor-
dão, em uma de suas apresentações, tendo como
pano de fundo a educação como tema, poderia ser
substituído por “País rico é país educado” com uma
deriva para “País rico é país sem analfabetos”. Esta
formulação se inscreve no que M. Pêcheux chama
de “posição sociologista”, ou seja, a posição do “hu-
manismo reformista”, ou, em termos atuais, a do
neoliberalismo. Esta posição reduz o social a cate-
gorias empiristas ou psicologistas, trabalhando com
categorias psico-sociais – idade, educação, sexo
etc. – e que, ao mesmo tempo em que fala do po-
lítico, o apaga. Nesta formação discursiva da prática
do sociologismo, a questão da educação, do analfa-
betismo, é só um déficit a ser corrigido: humanismo
reformista. Uma questão de desenvolvimento, este
sendo pensado como o acesso a trabalho e ao mer-
cado. E não se coloca como uma questão de estru-
tura, que teria, não que ser reformada, mas trans-
formada, rompida. Aparece como uma questão de
“capacitação”, de “treinamento” e não de “formação”

143
(educação no sentido mais forte e definidor de outra
estrutura política, de outra formação social).

O que fica por significar, por ser definido, na


apresentação da situação da educação, – uma jo-
vem subindo uma escadinha que, projetada na pare-
de, reproduz uma escala estatística que mostra que
o Brasil está galgando degraus na sua classificação
mundial, quanto à educação –, junto ao “logo” do
governo federal, é a própria educação: o que é um
país educado? O governo não sabe ou não procura
saber, pois dá como consensual. Todo mundo “sabe”
o que é um país educado. O efeito de sentido que aí
se produz, por ilação, é que “país sem pobreza é país
educado”. O que nos leva a concluir que a educação
erradica a pobreza. Ou, o que se dá, na ideologia
consensual, a de a que nossa riqueza é a educação.
Posta em um enunciado repetido à exaustão em
países em que a educação é um bem de consumo
caro: “A melhor herança é um diploma”. Quem não
o tem é segregado do “desenvolvimento social”, ou
seja, fica fora da formação social.

Em uma sociedade do conhecimento, do sa-


ber, sociedade da escrita como ícone do desen-

144
volvimento e da divisão, a existência da Escola não
só significa no seu interior, mas a formação social
em sua natureza e estrutura, ou seja, afeta também
quem está fora dela, da Escola. Isto é, o sujeito de
uma sociedade que tem a escola mesmo não es-
tando nela é por ela significado, no caso, pela au-
sência, pela falta: você é escolarizado ou não es-
colarizado e isso define as relações sociais em que
você se enreda. O que fica aí silenciada é a questão:
como dar condições para educar, para ir à escola,
para quem no tem os meios necessários?1 Mais do
1
Novamente se
que isso: sem a posse de bens sociais mínimos, já apresentam as
se está fora dos que contam nesta sociedade. Sabe- soluções reformistas:
cotas pra x, pra y,
mos que o orçamento para educação é dos meno- sem que se saiba
res. Embora a educação seja o argumento dos mais muito bem qual é
a prioridade: ser
presentes em campanhas políticas e em discursos negro ou ser pobre?
do governo quando quer mostrar que trabalha em Ser negro é uma
categoria social?
política social, pública. Educação, saúde, seguran- Tem o mesmo peso
ça, eis o trio campeão de audiência e de abuso. Mas de ser índio, no
Brasil? Redução do
não há projetos sólidos e estruturados para a “Edu- social a categorias
cação Social”. psicossociais, ou
antropológicas, e não
políticas e sociais
Não podemos deixar de observar que, nos dis- em sua estrutura e
funcionamento e que
cursos que falam da educação, temos outra forma se prestam ao jogo e
de nomear o que aí está significado: alfabetização. ao equívoco.

145
Mas estas formas de dizer se sucedem em con-
junturas históricas diversas: “alfabetização e desen-
volvimento”, atualmente se declinam em “educação
e mercado”, em que o mercado exige “a qualifica-
ção do trabalho”, “a qualificação do trabalhador”:
um país educado. Um país rico em que os cidadãos,
educados, são “capacitados” para o trabalho e cir-
culam como consumidores de um mercado de tra-
balho qualificado. Consumo e cidadania se conju-
gam. O denominador comum é o trabalho e não o
conhecimento. Este funciona como uma premissa
indefinida para, claro, se falar em “sustentabilidade”.
Esta, a palavrinha mágica que traz em seu efeito de
memória a de desenvolvimento (sustentável). Todas
estas formulações se ligam em algum ponto do pro-
cesso discursivo.

Acentuo a importância da questão, enunciada


no título, na palavra “formação”. Como dizia em ou-
tro trabalho, houve um momento, em nossa histó-
ria, em que se dizia: “quando você se ‘forma?’”. Mas,
atualmente, a pergunta é: “Quando você ‘termina?’”.
Questão de tempo, de oportunidade, de emprego,
de mercado de trabalho qualificado. Questão de
“capacitação” Para ser empresário. Não de “forma-

146
ção”. A gente não se forma, a gente termina. E ter-
mina o que?

Esta equação não é fácil. Ela passa pela relação


educação, trabalho, conhecimento. E nossa per-
gunta desliza para o que significa aí “conhecimento”.

Antes de iniciar a busca destes sentidos para co-


nhecimento, lembremos como a questão de “capa-
citação” tem tido presença constante na mídia, na
fala de empresários e governantes. É um coringa
que se tira do bolso para silenciar a força da reivin-
dicação social.

Tomemos o exemplo do tão propalado “plano


antimiséria”. Este plano é seguido da proposta de um
cartão que vai promover o acesso social de milhões
de pessoas, e o governo garante que, desta vez, o as-
sistencialismo é só uma parte do programa pois ha-
verá “cursos de capacitação” para os que vivem em
condições de extrema pobreza. O que evitaria práti-
cas de populismo e coronelismo. O que o logo país
rico é país sem pobreza não garante. Apesar de falar
em pobres, no programa de antimiséria, a presidente
continua a falar em capacitação e, quando fala em

147
educação, fala de cursos no exterior para pessoas
de formação mais avançada (é preciso, pois, chegar
lá). Para os mais pobres, ficam os treinamentos e a
capacitação. No discurso dos especialistas também
esta questão se faz presente. Cursos de capacitação,
como disse um economista em entrevista, não re-
solve, porque não garante permanência, sustenta-
ção. De minha parte, retomo o que venho afirman-
do: é preciso educação básica, penso, “formação”
mesmo, para que esses sujeitos ingressem no tra-
balho e saibam objetivar-se nas relações sociais em
que estão concernidos. Porque o que não está dito
é que se somos uma sociedade do conhecimento e
da informação estas são as formas de atender a uma
sociedade do trabalho (e do mercado).

2 SOCIEDADE DO CONHECIMENTO
E/OU SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO?

Sabemos que nossa conjuntura, histórico-so-


cial, é a que resulta das condições de produção do
conhecimento como forma de poder. E são muitas
as obras que falam desta relação. Um dos gran-

148
des especialistas no desenvolvimento deste tema
é sem dúvida M. Foucault (2011) em suas muitas
produções: saber e poder andam juntos. Não há
relação de poder sem constituição correlativa de
um campo de saber, nem de saber que não supo-
nha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder, segundo Foucault, como retoma Viana do
Castelo. A filosofia da diferença faz sua emergência
crítica na tradição racionalista: “Penso logo sou”.
Que não fica parada e se produz no deslizamento
de sentidos, efeito metafórico que deriva para: “Sei
logo tenho poder”. Para Nietzsche (2008), a von-
tade do poder central é o impulso primordial, en-
quanto para Foucault (1971), a vontade da verdade
é uma versão deturpada da vontade do poder cen-
tral, segundo P. Strathern (2003, p. 52). A diferença
entre Foucault e Nietzsche, para Strathern (2003),
é que, para Nietzsche, a vontade de poder reside
no indivíduo (super-homem) e, para Foucault, nas
relações sociais. Em seu livro Vigiar e punir (1975),
Foucault fala da microfísica do poder, abordando
instituições como Escola, Prisão, Hospital e Fábri-
ca. E para não falar em identidade, que é por defi-
nição, uma noção estática, ele fala em “processos
de subjetivação”. E aí começamos a nos apartar da

149
maneira como diz Foucault e o modo como traba-
lhamos discursivamente.

Na análise de discurso, consideramos que a


identidade resulta de “processos de identificação”.
E não de subjetivação, como em Foucault, pois o
processo de constituição do sujeito passa pela no-
ção de ideologia (que não é parte do corpo teórico
de Foucault). Ou seja, para o analista de discurso, o
processo de constituição do sujeito se dá pela “in-
terpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia”.
Não há sujeito sem ideologia. Já para Foucault não
se coloca a questão da ideologia. Através da noção
de poder, ele fala em processo de subjetivação e
coloca a necessidade de novos processos de subje-
tivação. Para nós, não há sujeito sem ideologia. E o
que pode haver (PÊCHEUX, 2011) são novas formas
de assujeitamento produzidas pelo sistema capita-
lista, em diferentes processos de interpelação ide-
ológica do indivíduo em sujeito, mantida sua forma
sujeito histórica, a do capitalismo. O capitalismo,
por sua vez, não é inerte, se movimenta. Ao invés
de colocarmos o poder como nuclear, colocamos
a ideologia. E, neste caso, o poder depende da ma-
neira como a ideologia funciona em nós, indivíduos

150
ideologicamente interpelados. Sujeitos e sentidos se
constituem ao mesmo tempo. E os sentidos, como
sabemos, não existem em si, mas pela inscrição de
palavras, frases e expressões em formações discur-
sivas que são, no discurso, o reflexo das formações
ideológicas. O que significa que tampouco há sen-
tidos sem ideologia. Por outro lado, em nossa for-
mação social, o que temos são relações de poder
simbolizadas, logo, como dissemos acima, consti-
tuídas pela sua inscrição em formações discursivas,
em outras palavras, pela ideologia. Isto significa que
o poder é relativo ao funcionamento da ideologia.
Mais diretamente: só há poder porque há ideolo-
gia em funcionamento e é daí que o poder tira seu
sentido e sua força. Como pensar relações de for-
ça, relações de poder sem a ideologia e a consti-
tuição dos sujeitos e dos sentidos pela ideologia?
Tampouco podemos pensar a sociedade apartada
da linguagem, na perspectiva discursiva. As práticas
sociais são práticas significativas, sendo o homem
um ser histórico e simbólico. As formas das relações
sociais, os movimentos na sociedade, os movimen-
tos sociais, as organizações sociais, significam. É a
linguagem a mediação necessária entre os sujeitos
e a realidade natural e social.

151
Pois bem, uma afirmação usual é a de que somos
uma sociedade da informação, em que informação
equivale a conhecimento. O que, se pensamos dis-
cursivamente, não é nem necessário nem verdadei-
ro. Informação e conhecimento não significam a
mesma coisa. E podem até significar o contrário se
pensarmos em formações discursivas diferentes. Te-
nho tematizado, em meus trabalhos, como a forma
de circulação da informação, sua relação com a me-
mória discursiva – que distingo da memória metálica
que é a das TI, serializada, binômica e funcionando
pela quantidade – apresenta-se como um a-mais
que satura a relação linguagem/pensamento/mun-
do de tal modo que imobiliza os processos de cons-
tituição e formulação dos sentidos, estacionando os
sujeitos na variedade e repetição técnica2. Em suma,
na maior parte do tempo, temos mais informação
do que necessitamos para movimentar a relação
2
A repetição
técnica (diferente linguagem/pensamento/ mundo, na produção do
da empírica e da
conhecimento. O conhecimento precisa da incom-
histórica) não se
historiciza e não pletude, do inacabamento, da errância dos sujeitos e
produz autoria. É a
dos sentidos, de sua inexatidão. A circulação da in-
produção do mesmo,
sob suas várias formação em uma sociedade, dita da informação, ao
formas, versões que
contrário, funciona pelo imaginário do completo, do
retornam ao mesmo
espaço do dizível. fixo, do preciso, melhor ainda, do exato. Saturação

152
e imobilidade, na maior parte das vezes, andam jun-
tas3. A imobilidade pelo excesso e não pela falta.

Partindo, pois, desta relação linguagem/pensa- 3


Professores,
mento/mundo, que não se dá termo a termo, não sabemos no que
isto tem dado,
é exata e nem transparente4, e tendo falado rapida- pensando a
mente da informação, chegamos à parte básica de qualidade e o efeito
dos textos, baseados
nosso estudo: o da relação da linguagem com o co- na informação, e
nhecimento. que se distanciam
enormemente
de um projeto de
conhecimento,

3 EDUCAR É FORMAR: A LÍNGUA que resta na


verdade, sempre
ENTRA EM CENA projeto, enquanto
as informações
excedem. E temos
Formar, em educação, traz necessariamente a uma bela afirmação
de Foucault para
questão da língua. Porque é a língua que está in- este excesso: “Édipo
vestida na produção do conhecimento. Não é ape- não se cegou
por culpa, mas
nas um instrumento no sentido pragmático, mas é por excesso de
parte do próprio processo de constituição do saber, informação”(FOU-
CAULT, 2011).
da construção do objeto de conhecimento, da sua 4
O que significa
compreensão, e interpretação do que significa no dizer que nesta
relação funciona a
conjunto da produção científica de que participa. interpretação, na
passagem de um
dos elementos que
Aí podemos distinguir a língua como instrumen- a constituem para
to de constituição do objeto de cientistas em geral, outro.

153
e do especialista que trabalha sobre a própria língua,
ou seja, que a tem como seu objeto de conheci-
mento, de pesquisa e ensino. E o ensino pensado
em seus vários níveis: fundamental, médio e supe-
rior. O que não é simples, porque poderíamos dizer
que a língua é tal que não é o mesmo objeto língua
que se apresenta na pesquisa e no ensino, pensando
esses diferentes níveis.

Para tratar destas dificuldades, penso, é que te-


mos diferentes teorias e métodos de estudo e pes-
quisa da linguagem em geral e da língua em particu-
lar. Entre eles, os da análise de discurso. Perspectiva
em que trabalho.

Nessa perspectiva, se fazem necessárias algu-


mas reflexões que juntam língua, sujeito, educação
com formação, e sociedade.

Vou retomar aqui, inicialmente, o que tenho


afirmado a propósito da constituição do sujeito e do
seu modo de individuação.

Há, como diz M. Pêcheux (1975), interpelação


do indivíduo em sujeito pela ideologia. Aí, diríamos,

154
começa o processo de constituição do sujeito: o
indivíduo é afetado pela língua, e interpelado pela
ideologia, constituindo a forma sujeito histórica. E a
isto chamamos assujeitamento: para ser sujeito “de”,
o indivíduo é sujeito “a” (língua e ideologia). Dessa
forma, pelo simbólico, e determinada historicamen-
te, se constitui a forma sujeito histórica, a do capi-
talismo, sustentada no jurídico. Uma vez constitu-
ído em sua forma histórica, a do capitalismo, com
seus direitos e deveres, e sua livre circulação social,
como dissemos, temos a individuação do sujeito
pelo Estado. Os modos de individuação do sujeito,
pelo Estado, estabelecidos pelas instituições e dis-
cursos, resultam em um indivíduo ao mesmo tempo
responsável e dono de sua vontade, com direitos e
deveres, e direito de ir e vir. É importante considerar
a individuação do sujeito, pois ela é, por assim di-
zer, um pré-requisito no processo de identificação
do sujeito. É o sujeito individuado que se inscreve
em uma ou outra formação discursiva, identifican-
do-se com este ou aquele sentido, constituindo-se
em uma ou outra posição sujeito na formação so-
cial (patrão, empregado, traficante, aluno etc). Esta
posição sujeito social deriva, assim, de seus modos
de individuação pelo Estado – pensada aí também

155
a falha do Estado – através das instituições e discur-
sos. Em uma paráfrase à Simone de Beauvoir, que diz
que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, tam-
bém não se nasce traficante, torna-se traficante, ou
não se nasce aluno, torna-se aluno. Isto tem a ver
com a formação social em que vivemos e o que o
Estado significa na constituição e funcionamento
desta formação. Incide, nesse processo, fortemente,
as formações imaginárias: a imagem do que seja um
professor, a imagem do que seja um aluno, a ima-
gem do que seja um sujeito diferente em alguma de
suas características etc. No processo de constituição
do sujeito do capitalismo, a individuação pela articu-
lação sombólico-política pelo Estado é fundamental.
O que mostra que a sociedade não é algo já pronto e
não é inerte. É dinâmica. Daí insistirmos na noção de
formação social (e não sociedade), que nos é mais
significativa, já que estas posições-sujeito se cons-
tituem em um movimento contínuo de processos
de identificação, com uma ou outra formação dis-
cursiva, com um ou outro sentido, a partir do modo
como o sujeito é individuado e identifica-se. Assim é
que funciona o imaginário do mundo capitalista. Isto
quer dizer que não há uma identidade em si, já pronta
(o que é ser aluno?), mas um processo de constitui-

156
ção da identidade. Há um imaginário político-social
ideologicamente constituído que funciona na esta-
bilização de imagens. Mas o bom ou mau aluno é
constituído como tal. Não o é por natureza. E isto,
para mim, é que implica a formação, em uma pers-
pectiva discursiva que é, por definição, não essencia-
lista, nem determinista5, mas materialista. E o bom ou
mau aluno é constituído por este ou aquele profes-
sor. Ou seja, não há homogeneidade, ou unicidade
de sentidos nem para o aluno nem para o professor.
E a questão posta de formação ou capacitação qua-
lifica, a meu ver, esta questão, constituindo este ou
aquele professor portanto com consequências para
a capacitação ou formação deste ou aquele aluno.

Temos, abaixo, o Esquema 1 que mostra estes


momentos, distintos mas inseparáveis, da interpela-

Muitas vezes, tem-se confundido a determinação das condições


5

históricas de constituição dos sujeitos e dos sentidos, ou seja, o


fato de que as condições de produção funcionam na constituição
dos sujeitos e dos sentidos, com determinismo. É preciso, pois,
não confundir a noção de determinação (que é histórica e faz
com que haja justamente a possibilidade da repetição como do
deslocamento)tal como ela funciona na análise de discurso com
o determinismo (biológico, antropológico etc), que se produz
como inexorável (sistema de causa e efeitos sem falhas).

157
ção do indivíduo em sujeito pela ideologia e da indi-
viduação da forma sujeito histórica pelo Estado.

Esquema 1 – Processo de constituição do sujeito

 
Fonte – A autora (2013)

Quando falo em individuação do sujeito pelo


Estado, também a “língua” faz parte do que é indivi-
duado. Nesse caso, o da língua, podemos dizer que
há o que denomino “língua institucionalizada”, ou
seja, a que se apresenta com a caução do Estado
e que aparece assim em sua legitimidade. Esta lín-
gua institucionalizada é a que se pretende que seja
ensinada na Escola. A língua correta. Normatizada.
O discurso dominante sobre a língua, na socieda-

158
de capitalista, é o da língua institucionalizada, a que
tem correção, regularidade e unidade. Esta unidade
é a unidade da língua nacional. Desse modo, identi-
fica-se o aluno bem formado com aquele que fala a
língua institucionalizada, reconhecida na sociedade
como a língua legítima. A que, no “imaginário so-
cial”, se aprende na escola, instituição do Estado que
individua o sujeito como sujeito alfabetizado, esco- Múltiplas (e
6

larizado, o que sabe a língua que fala. Ou fala de cansativas)


discussões sobre a
acordo com a norma6. língua que se fala,
que se ensina, sobre
norma, etc mantidas
Por isto interrogo o que é interpretado como por linguistas, em
educação. Porque, para que se tenha um aluno que geral funcionalistas,
esquece
fale a língua institucionalizada, ele precisa ser indivi- completamente
duado pelo Estado tendo condições de tê-la. Isto se esta parte toda da
questão do estado,
consegue em um processo de formação, na educa- da constituição
ção. A capacitação não dá as condições para que se das relações do
estado com a nação,
tenha a língua institucionalizada. E é esta língua que com o jurídico,
é base do processo educativo, no imaginário capita- com a forma
sujeito histórica
lista. Como disse, a língua faz parte do modo como do capitalismo,
os sujeitos do conhecimento compreendem seus etc. Porque parte
do já constituído e
objetos de ciência. E quando este objeto de conhe- não do processo
cimento é a língua, ela entra duplamente neste pro- de constituição,
inclusive da própria
cesso: do próprio processo de constituição do saber língua em sua
e da construção do seu objeto de conhecimento, legitimidade.

159
da compreensão que possibilite sua prática; conhe-
cer a língua e saber praticá-la com “fluência”. No-
ção esta que, ao contrário do que se tem pensado,
é política, pois, a fluência implica a posição-sujeito
social e a formação discursiva em que se inscreve.
A língua aqui não é tomada “como um sistema (o
software de um órgão mental) mas como um real
específico formando o espaço contraditório do des-
dobramento das discursividades” (PÊCHEUX, 2011).
A língua, pois, como condição das discursividades
(sejam quais forem).

Para isso é necessário que este sujeito não só


saiba a língua, mas saiba que a sabe. Por isto a escola
deve-lhe sua formação: para que ele tenha domínio
da constituição da gramática como objeto histórico
que representa uma extensão do sujeito falante em
sua representação social, e do processo da leitura e
da escrita como processos não só de repetição, mas
de retomada, de construção de sua própria identi-
dade como sujeito escolarizado, sujeito do conhe-
cimento e da língua que fala. E como entrada nos
processos discursivos em que desenvolve suas prá-
ticas e experiências. Um sujeito que se constitui, se
movimenta nestas práticas e experiências.

160
4 O SUJEITO E O SENTIDO OUTRO:
A FORMAÇÃO NA RELAÇÃO DA
LINGUAGEM COM A SOCIEDADE

A formação, e não a capacitação, é capaz de


produzir um aluno “não alienado”. E retomo aqui
o conceito de alienação em Marx (1844). Segundo
este autor, “a alienação desenvolve-se quando o in-
divíduo não consegue discernir e reconhecer o con-
teúdo e o efeito de sua ação interventiva nas formas
sociais”. Consideramos que a educação, o ensino de
7
Não esqueçamos
língua, poderia, se bem praticado como processo que a leitura e a
formador do indivíduo na sua relação com o social e escrita significam
diferentes relações
o trabalho, dar condições para que este sujeito “sou- do sujeito com a
besse” que sabe a língua, soubesse ler e escrever7 história, com efeitos
sobre a realidade
com fluência, com todas as consequências sociais em que ele vive.
e históricas que isto implica e fosse, assim, capaz Assim como sobre o
imaginário social que
de dimensionar o efeito de sua intervenção nas for- o significa: como
mas sociais. O que a capacitação ou o treinamento analfabeto ou como
sujeito capaz de se
não fazem. Ele continua então um objeto na rela- colocar, pela escrita,
ção de trabalho. Agora bem treinado e, logo, mais na posição sujeito
autor no domínio
produtivo. Mas não muda a qualidade da sociedade das relações sociais.
e nem arrisca deixar de ser apenas um instrumento 8
Na publicidade:
“mais um
na feitura de um “país rico”. Que deu mais um passo consumidor, mais
no mercado, um maior consumidor8. O saber a lín- cidadania”.

161
gua, o saber da língua na língua, daria ao sujeito um
passo na direção de sua não alienação, na direção
de ser capaz não só de formular como reformular e
resignificar sua relação com a língua e com a socie-
dade. Elemento importante em sua possibilidade de
resistência. Com a capacitação, o treinamento, ele
é um eterno repetidor. Um autômato de uma em-
presa, na melhor das hipóteses, se for considerado
“capacitado” após um “treinamento”. Ou, pior que
isso: habilitado9, e a habilitação não implica relação
com conhecimento mas com o treinamento: sujeito
treinado=sujeito habilitado, segundo o que penso. É
esta a nova economia da escola, em geral, a da não
reprovação.

Pois bem, se pensamos que a resistência pode


se dar no movimento que se faz na individuação da
forma-sujeito-histórica pelo Estado, podemos di-
zer mais sobre a formação e a relação com a língua.
Tomando a interpelação do indivíduo em sujeito,
podemos dizer que, na figura da interpelação, es-
tão criticadas duas formas de evidência: a da cons-
tituição do sujeito e a do sentido. Crítica feita pela
9
Observação de
teoria materialista do discurso à filosofia idealista da
Juliana Cavallari em
seminário. linguagem que se apresenta quer sob o modo do

162
objetivismo abstrato (formalista) ou do subjetivismo
idealista (voluntarista). Para a análise de discurso, o
sujeito se submete à língua mergulhado em sua ex-
periência de mundo e determinado pela injunção a
dar sentido, a significar-se. E o faz em um gesto, um
movimento sócio-historicamente situado, em que
se reflete sua interpelação pela ideologia.

Nessa perspectiva, a questão é como concebe-


mos o fato de que a materialidade dos lugares (proje-
tados em posições, as posições-sujeito) dispõe a vida
dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a resistência desses
sujeitos constitui outras posições que vão materiali-
zar novos (ou outros) lugares na formação social (a
sociedade, como disse, não é inerte, é dinâmica).

O Estado, em uma sociedade de mercado pre-


Chamo a atenção
10
dominantemente, falha em sua função de articula- aqui para o fato, já
dor simbólico e político. E funciona pela falha. Isto mencionado, de que
temos as diferentes
é, a “falha do Estado” – que tem sido tematizada conjunturas do
por vários autores, como por exemplo Lewckowitz capitalismo assim
como temos
(2003) – é, a meu ver, “estruturante do sistema ca- diferentes formas
pitalista contemporâneo”10. Não é uma falta de inte- de assujeitamento
desenvolvidas
resse, um descaso, nem, a meu ver, ele é substituído no capitalismo
pelo Mercado. Essa falha é uma falha necessária para (PÊCHEUX, 2011).

163
o funcionamento do sistema. Os sujeitos, como os
que analisei nos meus textos sobre delinquência (pi-
chador, Falcão, menino do tráfico etc) se individuam
pela falta, na falha do Estado11. O que contribui para
que sejam postos em um processo de segregação12.

Segundo Pêcheux (2011), elementos que fun-


cionam em uma formação discursiva, dado o fun-
cionamento do interdiscurso (memória), podem ser
metaforizados e se deslocar historicamente. Por-
tanto, podemos considerar que a questão da resis-
tência está, de um lado, vinculada à relação entre
forma-sujeito-histórica e a individuação pelo Esta-
do; de outro, pelo processo de identificação do su-
jeito individuado com a formação discursiva em sua
vinculação ao interdiscurso (memória).

11
Portanto, embora sejam intimamente ligadas, a falha e a falta sig-
nificam de maneiras diferentes, no modo como colocamos: vejo a
falha como estruturante do Estado, e vejo a falta do Estado como
uma forma de presença em condições de produção em que deve-
ria estar lá mas não está, falta. Exemplo: a falta de aparatos/institui-
ções do Estado como escola, segurança etc.
12
O que fica claro, quando se trata das relações de violência: os po-
liciais matam legitimamente – alegando legítima defesa – dando
como explicação indiscutível: houve resistência à prisão. Foi elimi-
nado. Não precisa de julgamento. Como segregado, está fora da
formação social. Não existe, não “conta” juridicamente.

164
Pensando a inscrição do sujeito na formação
discursiva para que se identifique, assim como a
produção do sentido, e o reflexo das formações
ideológicas nas formações discursivas, podemos
ver como é nesse passo, em que o sujeito indivi-
duado se identifica, que pode haver ruptura. Essa
ruptura é possível porque, se, de um lado, como
vimos acima, na forma do capitalismo atual, con-
sideramos que a falha do Estado é estruturante do
sistema capitalista, de outro, a ideologia é um ritual
com falhas (PÊCHEUX, 1982). E a falha, como tenho
insistido, é o lugar do possível. Daí a contradição:
o que produz a repetição é o que torna possível a
ruptura do processo de individuação, de identifica-
ção, na confluência da falha do Estado no processo
de individuação e da falha da ideologia no processo
de interpelação, ressoando no processo de identi-
ficação do sujeito à formação discursiva. Atingindo
o reflexo, no sujeito, do modo como a ideologia o
interpela, na sua inscrição em uma formação dis-
cursiva e não outra.

A ideologia, como dissemos, é um ritual com fa-


lhas. Na falha, ela se abre em ruptura, onde o sujeito
pode irromper com seus outros sentidos e com eles

165
ecoar na história, fazendo sentido do sem sentido.
Condição para que os sujeitos e os sentidos pos-
sam ser outros. É a isto que chamo “resistência”. E
não ao voluntarismo inscrito em teorias que se sus-
tentam na onipotência dos sujeitos e dos sentidos
que mudam á vontade. Somos sujeitos interpelados
pela ideologia, afetados pelo inconsciente, e é só
pelo trabalho e pela necessidade histórica da resis-
tência que a ruptura se dá quando a língua se abre
em falha, na falha da ideologia, enquanto o Estado
falha, estruturalmente, em sua articulação do sim-
bólico com o político. Não é, pois pela magia, nem
pela vontade, mas pela práxis, em nosso caso, pela
“formação”, que a resistência pode tomar seu lugar.
Temos o sujeito que produz(-se) “de fora”. E não o
sujeito “fora”, o segregado, que é diametralmente
oposto ao “incluído”. Não é nessa equação que tra-
balhamos, mas na dissimetria das posições: na aber-
tura produzida pela resistência.

Podemos representar então esta forma de con-


siderar a resistência, na reformulação do esboço
apresentado acima, no Esquema 2, abaixo:

166
Esquema 2 – A forma da resistência

 
Fonte – A autora (2013)

É assim que pensamos a resistência fora de uma


perspectiva humanista, reformista ou pragmática,
trazendo para a reflexão o “simbólico”, o “ideológi-
co” e o “histórico”. E é dessa forma que podemos
afirmar que “educar não é capacitar, nem treinar,
nem informar, mas dar condições para que, em seu
modo de individuação, pelo Estado, o sujeito tenha
a ‘formação’ (conhecimento/saber) necessária para
poder constituir-se em uma posição sujeito que
possa discernir, e reconhecer, os efeitos de sua prá-
tica na formação social de que faz parte”. Em outras
palavras, se construa, nesse processo, um espaço

167
politicamente significado em uma formação social
que não é inerte mas dinâmica e capaz de movi-
mento. Esse espaço é a condição para que o sujeito
educador saiba relacionar-se com o educando não
colocando-se ele mesmo no lugar do educando,
sabendo, ao mesmo tempo, compreender esta dis-
tância, dar-lhe sentido. E, sobretudo, que saiba, isso
sim, criar condições para que este educando pense
e administre suas práticas nesta diferença, “como
diferente”. Caso contrário, ao insistir na diferença,
mas suturando o lugar do outro, preenchendo-o, o
sujeito educador, formador, desliza para o que cha-
mei capacitação e separa o sujeito educando dele
mesmo: preenche seu espaço significativo da dife-
rença, o que, nos meus termos, significa apagá-la
como tal. Porque não deixa o espaço da diferença,
ou do diferente, para a diferença, ou para o diferente
significá-la.

Face a essas reflexões e à educação, nossa po-


sição, ao propor a formação dos sujeitos, visa não
reproduzir o “discurso da inclusão”, que objetiva
transformar o dominado, o excluído, para adequá-
-lo às formas dominantes seja da cultura, seja do
conhecimento, seja da classe social. Transformação

168
e ruptura devem vir juntas. Não se trata, tampou-
co, de inserir o não inserido, ou integrar o não inte-
grado (os apocalípticos?), ou seja, não visamos falar
do lugar em que a gestão pública se coloca como
lugar do assistencialismo, do multiculturalismo, do
comunitarismo, do integracionismo. Não supomos
também que temos, de um lado, o sistema capita-
lista e, de outro, agentes/sujeitos/posições-sujeito
inertes. Para nós, tanto uns como outros estão em
movimento, se deslocam e podem-se transformar,
irromper em novas formas sociais e significativas.
Embora o sistema seja estabilizador e suas rela-
ções de força trabalham na repetição do mesmo.
Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação
e a resistência tomam nesta relação tensa, já que,
tanto a estruturação como a desestruturação de-
las levam ao movimento da sociedade na história.
É a fabricação do consenso que tem produzido, na
realidade, a segregação. Já que o consenso, sobre
o qual se apoiam as políticas públicas, é um con-
senso imaginário – constituído no jogo do jurídico
e do administrativo, sustentado em práticas mate-
riais assistencialistas, multiculturais e comunitárias
– é preciso compreender os sentidos que toma o
consensual e como ele se significa nos sujeitos so-

169
ciais, pelas formações imaginárias. E, então, o que
estamos falando do espaço social, dos lugares (po-
sições-sujeito) e da formação, leva-nos, nos termos
em que estamos pensando estas questões, face à
educação, a dizer que encontrar uma situação, um
(outro) espaço, politicamente significado, para o su-
jeito é encontrar um (outro) sentido e tornar possí-
vel o movimento de sua individuação: poder estar/
ser, instalar (-se em) uma situação. Passar do não-
-sentido ao sentido possível, de modo “que o irreali-
zado advenha formando sentido do interior do não-
-sentido” (PÊCHEUX, 1975). E isto é o contrário da
“adaptação”, da chamada “inclusão”.

5 HISTORICIDADE, ALTERIDADE

Tomando, agora, esta questão em termos da


conjuntura mais ampla, refletimos sobre a educa-
ção em suas condições de produção reais, no nosso
caso as do Brasil, em sua historicidade, sua memó-
ria, em que contam processos de significação que
passam pela colonização, pela independência, pela
organização social do século XIX em que as institui-
ções ganham corpo e sentidos, desenvolvendo-se

170
no século XX e entrando no século XXI com suas
condições de funcionamento pautadas pelo desen-
volvimento científico e tecnológico.

Desse modo, gostaríamos, aqui, para pensar


esta relação com o outro, pensando a diferença, de
lembrar o que diz S. Rolnik em seu Subjetividade an-
tropofágica (1998, p. 5, grifo nosso), ao fazer consi-
derações sobre o sujeito, pensando o Brasil:
Mas, como
13

todo dizer, este


Esta liberdade de investir apenas o que in- também é sujeito a
equívoco, em suas
teressa num sistema de pensamento, foi
contradições: a
provavelmente gerada no contexto mestiço improvisação pode
ser um lugar de
que marca o país desde a fundação, o qual
estabelecimento
exige este tipo de liberdade para que terri- de condições
de ruptura, mas
tórios de existência possam ganhar corpo.
pode ser também
o lugar em que a
capacitação, o “jeito
Ganhar corpo e sentido, eu diria. Falar em “ter- brasileiro”, se aninha,
ritórios de existência que possam ganhar corpo e suturando sentidos
e produzindo
sentido” me leva a pensar neste espaço do outro, da obstáculos à
diferença e em sua invenção. A cada prática. Rede- historicização, ao
deslizamento de
finição permanente de estrutura. Ou, pensando os sentidos outros, à
sujeitos, considerando os processos de identifica- deriva, ao diferente/
outro significando
ção e, como tenho concebido, a identidade como como diferente/
movimento na história. Ou mesmo improvisação13. outro.

171
Para, como penso, “constituir outras posições que
vão materializar novos (ou outros) lugares na forma-
ção social” (ORLANDI, 2005); ou para que “territórios
de existência possam ganhar corpo” (ROLNIK, 1998).

Falando da “subjetividade antropofágica”, S.


Rolnik (1998) diz que a cultura produzida no Brasil
“torna-se uma linha de fuga da cultura europeia e
não mais reposição submissa e estéril, nem simples
oposição”. E a subjetividade antropofágica, segun-
do ela, define-se por jamais aderir absolutamente a
qualquer sistema de referência, por uma plasticidade
para misturar à vontade toda espécie de repertório e
por uma liberdade de improvisação de linguagem a
partir de tais misturas. Esta é o tipo de relação com
a alteridade. Mas a antropofagia atualiza-se segundo
diferentes estratégias do desejo, movidas por dife-
rentes vetores de força, desde uma posição de afir-
mação da vida até a sua negação. Rastreia o mundo
pela busca de sentido. E, então, e de acordo com a
autora, são diferentes tipos de relação com a alteri-
dade que podemos observar. Um deles é enxergar e
querer a singularidade do outro; outro, é a tolerância
à pressão que os afetos inusitados – certo estado de
corpo – exercem sobre a subjetividade para que esta

172
os encarne, recriando-se, tornando-se outra. E te-
mos, ainda, o que S. Rolnik chama de “rosto quente e
cambiante de uma subjetividade mestiça nascida da
exuberante variedade de universos que compõem as
condições locais” (nomadismo, errância?). Ou, en-
tão, o que ela chama de “singularidade impessoal”:
um todo aberto disperso nas múltiplas conexões do
desejo no campo social e que emerge entre os mun-
dos agenciados, enquanto a subjetividade regida por
um princípio identitário figurativo consiste na pes-
soalidade de um eu, individualidade murada, presa
a suas vivências psíquicas e comandada pelo medo
de se perder de si. Aponta ainda para o modo como
emerge o tipo de subjetividade antropofágica: se faz
por alianças e contágios, segundo a autora, um rizo-
ma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor
das mestiçagens que se operam na grande usina de
nossa antropofagia cultural. Não se faz por filiação
como a identidade identitário-figurativa, promoven-
do uma fantasia de evolução linear e o compromis-
so aprisionador com um sistema de valores assumi-
do como essência a ser perpetuada e reverenciada
(ROLNIK, 1996). Esta é a posição de S. Rolnik falando
da subjetividade e da alteridade, em um país como o
Brasil, em sua conjuntura histórico-social e política.

173
Para meus objetivos, guardo destas reflexões a
não-linearidade, o movimento, a dispersão e errân-
cia. Movimento. Incompletude. Não exatidão, que é
o que tenho procurado (ORLANDI, 2012) explicitar
nos processos de constituição de sentidos e dos su-
jeitos. E penso que muito do que S. Rolnik coloca na
subjetividade, eu colocaria nos modos de individu-
ação e que resultam nos processos de identificação
dos sujeitos. Não seriam assim características de
subjetividades mas distintas experiências dos modos
de individuação no processo de constituição dos
sujeitos, individuados pelo Estado em sua articula-
ção simbólico-política. Teriam, pois, a ver precipua-
mente com a ideologia e as condições de produção
de um país que, como disse, tem, em sua historici-
dade, a colonização, a escravidão, a organização da
sociedade republicana no século XIX , seu desenvol-
vimento no século XX, e a entrada na mundialização
do século XXI, com sua tecnologia e cientismo, sem
esquecer o autoritarismo, as experiências ditatoriais,
acompanhadas do positivismo, do higienismo, do
autoritarismo, na maior das vezes presentes nas re-
lações sociais vigentes. E não deixa de ser apreciá-
vel, neste sentido, o que diz Rolnik (1998, p. 10):

174
Podemos inclusive supor que tanto faz se a
representação a ser investida como identi-
dade é imposta por um deus da caravela (lei
das potências católicas que colonizaram o
país), ou se ele foi substituído por um deus
moderno, padroeiro da nação brasileira, ou
por um deus mais moderno ainda, talvez até
pós-moderno, deus do “capitalismo mun-
dial integrado”, como o chamava Guattari,
com suas imagens globalizadas, flexíveis e
efêmeras.

É que sob qualquer uma dessas máscaras com


pretensão transcendente, tenderia a afirmar-se outra
– a qual, aliás, não é uma, mas várias e imprevisíveis,
pois ela se metamorfoseia acompanhando o noma-
dismo do desejo.

As subjetividades no Brasil teriam, assim,


certa maleabilidade para deixar-se habitar
por uma constante variação de universos,
bem como, uma certa liberdade de criação
de novas máscaras, territórios de existência
marcados pela hibridação de tais universos.

175
Em suma, o inconsciente maquínico-antro-
pofágico se encontraria especialmente ativo
neste país (ROLNIK, 1996, p. 10).

Eu relativizaria esta afirmação, pensando as


condições de produção de sentidos (e de existên-
cia) desses sujeitos, e a força das relações de po-
der simbolizadas que funcionam no imaginário em
que os sujeitos estão mergulhados, significados.
A própria autora fala da desestabilização e do fato
de que aquilo que para o sujeito é falta revela-se
como excesso de singularidades que transbordam
e desmancham sua figura. No lugar do par prazer/
desprazer, diz Rolnik (1996) que o que se terá neste
caso é a alegria da atividade do desejo e a tristeza de
suas desativações. E ela refere a Oswald de Andra-
de, dizendo se não seria a esta alegria que se referia
Oswald em seu Manifesto antropófago (1990) quan-
do disse que “A alegria é a prova dos nove”. A autora
lembra, então, que não é nova esta imagem de uma
subjetividade brasileira marcada pelo prazer. Mas
prefere pensar em um movimento entre dois veto-
res: o da desestabilização exacerbada de um lado,
e, de outro, a persistência do regime de figuras-pa-
drão. Maleabilidade, novas máscaras, hibridação dos

176
universos. Tensão, eu diria. Que não são prerroga-
tivas brasileiras, mas o próprio da espécie humana,
podendo, no entanto, estar mais ou menos ativo nas
subjetividades e isso em muito depende, diz S. Rol-
nik (1996), dos contextos sócio-culturais, do quan-
to tendem a favorecer ou inibir sua atividade. Força
determinante das condições de produção, eu diria.
Presos na tensão entre paráfrase e polissemia, entre
a repetição e a diferença, no que nos determina e na
resistência, no que é estabilizado e o que é sujeito a
equívoco.

E, não esqueçamos, não há sujeito sem a inter-


pelação do indivíduo pela ideologia, afetado pelo
simbólico. E a ideologia não se aprende, nem se ad-
ministra pela racionalidade. No entanto, ela produz
seus efeitos continuamente. E é assim que penso a
estrutura e funcionamento do que diz S. Rolnik so-
bre a “subjetividade antropofágica” que seria a nos-
sa. Portanto, nesta relação com este outro, que é
o diferente, ou seja, no que ela diz sobre a relação
com a alteridade, nada pode ser pensado sem le-
var em conta o imaginário, o funcionamento ideo-
lógico: o efeito de transparência da linguagem e a
ilusão do sujeito de ser a origem de si, quando re-

177
toma sentidos pré-existentes. São estes que temos
de tomar em conta na relação que estabelecemos,
considerando o processo de “formação”. Formação
do professor que, por sua vez, vai formar o seu alu-
no etc. Formação que pode dar condições ao es-
tabelecimento do espaço políticamente significado
da diversidade que se diz, que se significa, e do su-
jeito que se re-significa. E que pode, também, esta-
cionar na repetição, maquiada, da estagnação bem
sucedida (o capacitado). Isto porque a diferença, a
diversidade, apresenta-se como um acaso, que as-
sim parece nas circunstâncias em que se dá, mas é
estruturante, parte da divisão social. Em uma forma-
ção social como a nossa, capitalista, ela organiza o
funcionamento da divisão na sociedade.

6 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Na realidade, após essas reflexões, o que fica,


como objetivo que procuramos atingir, é obser-
var discursivamente a resistência, o deslocamento
possível na relação sujeito e ideologia, deslizamen-
to dos sujeitos e dos sentidos, incluindo aí a falha
e o equívoco. E isso implica em pensar um sujeito

178
dividido, o assujeitamento nas formas históricas do
capitalismo, a ideologia como um ritual com falhas,
o Estado estruturado pela falha, o equívoco se cons-
tituindo pela inscrição dos efeitos da falha da língua
na história, e a formação social como algo que, apa-
rentemente já pronta, se constitui e se mantém con-
tinuamente. Trazemos para a reflexão a importância
do modo como a língua significa as relações sociais
e está presente na própria constituição e funciona-
mento da sociedade. A sociedade não é, como dis-
semos, inerte, e o indivíduo é individuado pelo Esta-
do, ou seja, pelas instituições e pelos discursos, em
um processo de identificação de que resultará sua
posição sujeito na formação social.

Podemos, enfim, afirmar que, nas formas atuais


de assujeitamento, no capitalismo, há um resto, nas
relações dissimétricas, que produz a resistência14,
não na forma heroica a que estamos habituados a
pensar, mas na divergência desarrazoada, de sujei-
tos que teimam em (r)existir. São estes os “bem for-

Sempre fica a questão: essas formas de resistência que atingem as


14

posições-sujeitos são capazes de abalar a forma-sujeito-histórica


capitalista? Maleabilidade, novas máscaras, heterogeneidade ?

179
mados”15. E é por isto que, em uma sociedade que
se quer imexível e já feita, se evita a formação16 e,
com ela, a compreensão de como a língua/lingua-
gem funciona, tanto para o processo de simboliza-
ção, mas, sobretudo, para a individuação do sujeito
que se identifique com “uma posição sujeito capaz
de resistência e que ‘ouse pensar por si mesmo’”.
Este é o sujeito que objetivamos com a formação
17
, o sujeito não alienado (MARX, 1844), aquele que

15
É importante aqui ressaltar que dizer bem formados não significa
sempre conscientes de sua formação. Como apontamos mais aci-
ma, a falha e o equívoco trabalham em permanência esses proces-
sos de interpelação ideológica e de individuação pelo Estado, por
onde vazam sentidos e posições sujeito irrompem. Por isto a forma-
ção, tal como a caracterizamos, como forma de não alienação, é um
modo de constituição de sujeitos que torna possível a resistência.
16
E se a substitui pela “capacitação”.
17
Enquanto isso, o Estado propõe a capacitação para todos, socieda-
de de mercado e de trabalho, e, em programas para o Brasil – ou
como “Brasil, país de todos” ou ”País rico é paios sem pobreza” –
temos sempre projetos amplos que, ou não chegam nem mesmo
a serem implementados ou, se implementados, nunca alcançam
sua amplitude, ou a se completar. E se dão datas longínquas ou
que se postergam. No caso da deficiência e a acessibilidade, temos:
“Plano “Viver sem Limite” “promete promover a inclusão social e
autonomia para as pessoas com deficiência” (17/11/2011).O Brasil
tem a partir de agora um dos planos mais avançados em defesa dos
direitos da pessoa com deficiência. A declaração foi feita pela Presi-
dente Dilma Roussef, ao lançar o “Plano Viver sem Limites”, durante
cerimônia realizada em Brasília. O programa “pretende” investir R$
7,6 bilhões “até 2014” na inclusão de pessoas com deficiência.O Vi-

180
sabe discernir e reconhecer o conteúdo e o efeito
de sua ação interventiva nas formas sociais. Capaz
de pensar por si mesmo, tocando o real, no tenso
confronto com o imaginário que o determina.

ver Sem Limites vai aplicar R$ 1,8 bilhão em educação, com trans-
porte escolar acessível, adaptação de acesso a escolas públicas e
universidade, construção de salas com recursos multifuncionais,
além da oferta de até 150 mil vagas para pessoas com deficiência
em cursos federais de formação “profissional e tecnológica”. Já na
saúde, há previsão de R$ 1,4 bilhão para ações de prevenção às de-
ficiências[...]. Na área social, serão disponibilizados R$ 72,2 milhões
para implantação de Centros de Referência, [...]. Junto com esta-
dos e municípios, o governo quer ainda prevê aplicar R$ 4,1 bilhões
em acessibilidade. Uma das ações nesse sentido é a possibilidade
de “todas” as 1,2 milhão de residências do programa “Minha Casa,
Minha Vida 2” serem “adaptadas” para pessoas com necessidades
especiais. O plano prevê também a criação de cinco centros de
ensino técnico para formação de treinadores de cães-guia. “Obras
de mobilidade urbana para a Copa também deverão obedecer a
critérios de acessibilidade”. A palavra “Plano” já nos indica que seus
sentidos não se fazem para serem cumpridos mas para responde-
rem a reivindicações, no imediato. Dificilmente se cumpre em seu
futuro. Além disso, no próprio enunciado “Viver sem limites” há uma
impropriedade significativa porque é próprio, da pessoa que vive
em sociedade, aprender a lidar com limites. Não os impostos, mas
os que se fazem necessários pela sociabilidade.

181
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186
ACESSIBILIDADE:
SENTIDOS EM
MOVIMENTO
Débora Massmann*

Não é a deficiência que me impede de


exercer minha cidadania, mas sim a dificuldade
que a sociedade tem de eliminar barreiras,
respeitar a diferença e aceitar a diversidade.
Gabriel, 14 anos, deficiente visual

*
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria e Doutora em Letras pela
Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO

Em um momento em que se observa um mo-


vimento político e social que propõe o respeito à
diferença nas suas mais distintas acepções, tem se
assistido ao emprego dos termos diversidade e aces-
sibilidade em diferentes textos sejam eles técnicos,
midiáticos, publicitários e jurídicos, entre outros. A
efervescência dos debates sobre diversidade permi-
tiu avanços importantes em relação ao modo de de-
signar os sujeitos que potencialmente inscrevem-se
como público alvo de políticas inclusivas. De acordo
com Gil (2011), a busca por outras formas de no-
mear sujeitos marcados pelos aspectos da diferen-
ça, “o ser diferente”, “expressa uma disputa profunda
e fundamental acerca das concepções que devem
vigorar no atendimento a essas pessoas”. No caso,
as diversas formas de nomear a diferença podem
fornecer pistas sobre quem são esses sujeitos, quais
tratamentos políticos, jurídicos, sociais e educacio-
nais merecem ter, e principalmente, como eles são
significados na e pela sociedade.

Juntamente com terminologias como diversi-


dade e acessibilidade, outras expressões são trazidas

189
à baila. Este é o caso, por exemplo, de termos como
inclusão, no que concerne às práticas sociais e edu-
cativas, e mobilidade, no que diz respeito à ques-
tão do espaço urbano e digital. Há também aquelas
designações empregadas, como se assinalou acima,
na tentativa de nomear o sujeito da diferença, a sa-
ber, portador de deficiência, portador de necessi-
dade especial, deficiente, pessoa com necessidade
especial, pessoa com deficiência, entre outras.

As querelas terminológicas em torno das formas


de designar a parcela da população que necessita
de atendimento diferenciado começam a se diluir a
partir de 2008, quando o Brasil lança a Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, texto
no qual se ratificam as deliberações adotadas pela
ONU1 em 2006. O documento brasileiro apresenta-
-se como emenda constitucional e pretende assim
assegurar os direitos e a cidadania dos sujeitos da
diferença. É a partir deste texto que o termo oficial
1
Disponível em: passa a ser “pessoa com deficiência” (PCD). Nota-
<http://www.
-se assim que, paralelamente ao advento de novas
acessobrasil.
org.br/index. formas de dizer a diferença na sociedade do século
php?itemid=900>.
XXI, busca-se deslocar esse “poder da Norma” atra-
Acesso em: 22 dez.
2012. vés do qual as instituições de poder, como a esco-

190
la e o governo, por exemplo, tentam estabelecer o
“normal” como coerção social (FOUCAULT, 1987).

Os projetos que têm sido colocados em práti-


cas para deslocar e ressignificar os modos de dizer a
diferença não resultam apenas de um esforço brasi-
leiro, mas sim de um movimento político maior que
se sustenta em acordos internacionais, tais como a
Declaração dos Direitos Humanos de Viena (UNES-
CO, 1993) que constitui um texto fundamental para
essa questão à medida que discute o princípio da
diversidade, colocando o direito à igualdade em pa-
tamar semelhante ao direito à diferença:

22. Haverá que prestar atenção especial


para garantir a não discriminação e o gozo,
em termos de igualdade, de todos os Di-
reitos Humanos e liberdades fundamentais
por parte de pessoas com deficiência, in-
cluindo a sua participação ativa em todos
os aspectos da vida em sociedade (UNES-
CO, 1993, p. 6).

Ao reconhecer a pluralidade de sujeitos porta-


dores de direitos e de seus direitos específicos, o

191
texto inscreve-os como parte integrante e indivisí-
vel da plataforma universal dos Direitos Humanos.
Desse modo, a Declaração de Viena pode ser con-
siderada um divisor de águas para a questão da di-
versidade, pois trouxe consigo a questão da Ética da
Diversidade na implantação de políticas inclusivas. É
fundamentada neste documento de Viena, que sur-
ge, em 1994, a Declaração de Salamanca (1994) em
que se discorre, de modo mais específico, “Sobre
Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessi-
dades Educativas Especiais”.

Estes dois documentos constituem uma amos-


tra das discussões internacionais sobre o assunto
e da rede de sentidos que foi se constituindo em
torno do tema diversidade. O movimento interna-
cional e a rede de sentido que ele suscitou produzi-
ram ecos e afetaram significativamente as políticas
públicas brasileiras no que concerne às questões de
cidadania de sujeitos com deficiência. Compreen-
de-se assim que para pensar a diversidade é mister
considerar a questão da cidadania.

A sociedade e suas instituições (Estado, escola,


organizações etc.) empenham-se assim em tentar

192
diminuir as barreiras espaciais, sociais e ideológicas
e movimentam-se na direção da diversidade. Na es-
teira deste movimento, promove-se a luta contra o
preconceito e valorização de sujeitos da diferença, a
saber, sujeitos com deficiência, de diferentes etnias,
religiões, culturas e outros. Desse modo, o sentido
de diversidade apresenta-se relacionado à ideia de
acessibilidade, pluralidade, globalização e multipli-
cidade trazendo consigo a questão da tolerância e
da convivência com a diferença.

2 DIVERSIDADE E ACESSIBILIDADE

Com advento de políticas públicas que se em-


basam na premissa do respeito à diversidade, as cha-
madas políticas inclusivas, observa-se, como já se
apontou anteriormente, a emergência de diferentes
expressões linguísticas e também de formas distin-
tas de designar o sujeito da diferença. Neste estudo,
proponho-me a refletir sobre a palavra “acessibi-
lidade” que, além das áreas técnicas, passou a ser
empregada também em outros domínios como, por
exemplo, educação, comunicação, esportes etc.
Diante das ressignificações que a palavra “acessibi-

193
lidade” foi adquirindo no decorrer dos últimos anos,
considera-se importante compreender os sentidos
que são postos em funcionamento nos dizeres so-
bre a acessibilidade que circulam na sociedade.

A palavra “acessibilidade” ganha visibilidade, ini-


cialmente, associada às áreas técnicas sobretudo em
Engenharia e Arquitetura em que espaços e artefatos
devem ser projetados de modo a estar ao alcance de
todos os sujeitos. No Brasil, a primeira norma técnica
que se pronuncia em relação à acessibilidade data
de 1985. À época, profissionais de diferentes áreas e
sujeitos com deficiência foram convidados a formar
um grupo de trabalho com o propósito de elabo-
rar o documento que pretendia fixar diretrizes (pa-
drões, medidas, modelos) que objetivavam facilitar o
acesso e a mobilidade de pessoas com algum tipo de
deficiência a diferentes espaços urbanos, tais como
edificações, transportes e vias públicas. A Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) lança assim a
NBR 9050, intitulada a “Adequação das Edificações e
do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente”.

Atualmente, a ABNT conta em seu acervo com


mais de 12 versões de normas de acessibilidade que

194
foram sendo reformuladas em função da deman-
da da sociedade a novas formas de serviço. Destas,
deve-se destacar a versão de 1994 que se amparou
no conceito de Desenho Universal2 para promover a
regulamentação de normas voltadas ao benefício de 2
De acordo com a NBR
9050:2004, o Desenho
todos. Nesta versão da NBR 90503, nomeada como Universal é definido
“Acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência como “aquele que visa
atender à maior gama
às edificações e espaço, mobiliário e equipamen- de variações possíveis
tos urbanos”, além de definir critérios de acessibi- das características
antropométricas
lidade e desenho universal, também foram descri- e sensoriais da
tos alguns tipos de deficiência (física, visual, auditiva população”. Disponível
em: <http://www.
etc.) que deveriam ser levados em consideração no pessoacomdeficiencia.
processo de planejamento urbano no que tange às gov.br/app/sites/
default/files/
edificações destinadas à educação, saúde, cultura, arquivos/%5Bfield_
culto, esporte, lazer, serviços, comércio, indústria, generico_
imagens-filefield-
hospedagem e trabalho, entre outros. description%5D_24.
pdf>. Acesso em: 1 jun.
2013.
Como se pode observar, as duas versões da 3
Para mais informações,
norma NBR 9050, descritas acima, trazem formas confira <http://www.
pessoacomdeficiencia.
distintas de significar a questão do acesso: “ade- gov.br/app/sites/
quação” (NBR 9050:1985) e “acessibilidade” (NBR default/files/
arquivos/%5Bfield_
9050:1994); e modos diferentes de designar os pró- generico_
prios sujeitos a quem esta normatização se desti- imagens-filefield-
description%5D_24.
na, a saber, “Pessoa Deficiente” (NBR 9050:1985) e pdf>. Acesso em: 1 jun.
“Pessoas Portadoras de Deficiência”. 2013.

195
Essa observação nos leva a perceber ai não só
a questão da querela terminológica de que se fa-
lou anteriormente no que tange aos modos de dizer
os sujeitos da diferença, mas principalmente, a ob-
servar um movimento de sentidos. Sentidos que se
deslocam, neste caso, da “adequação” em direção
à “acessibilidade”. Desse modo, considera-se que
refletir sobre acessibilidade implica analisar sentidos
múltiplos, ora cristalizados, ora fluídos, sentidos em
movimento, pois, como destaca Orlandi (1988), os
sentidos podem sempre ser outros uma vez que se
constituem no funcionamento histórico da e pela
linguagem, ou seja, na história de enunciações que
tem um passado e projeta um futuro.

Entende-se assim que o sentido de uma palavra


não existe em si mesmo, isto é, não se constitui de
modo individual, isolado e prévio. Compreende-se
também que o sentido não pode ser considerado
como uma simples relação entre palavras, frases e
texto. O sentido é, pois, produzido pelo aconteci-
mento da enunciação. Assim, para descrever o senti-
do de “acessibilidade”, investiga-se a rede semântica

196
que é posta em funcionamento nos modos de dizer
a acessibilidade no discurso da normatização, bem
como as condições histórico-ideológicas em que
o acontecimento enunciativo4 (GUIMARÃES, 2007)
se produz. Em outras palavras, trata-se pois de ob-
servar o processo de produção de sentidos que se
caracteriza pelo funcionamento da língua num dizer
específico sobre “acessibilidade”.

Tal processo de produção de sentidos mobili-


za procedimentos enunciativos que afetam, rees-
crevem, retomam e ressignificam o que já foi dito.
Assim, ao longo de um texto – ou entre textos dis-
tintos – expressões linguísticas retomam e repor-
tam-se umas às outras através de operações enun-
ciativas que reescrevem o já dito de outra maneira.
Elas reescrevem e ressignifcam o que já foi dito de
outro modo e assim constroem sentidos para aces-
sibilidade. Ao analisar a rede semântica que se tece
em torno desta palavra, busca-se compreender o
modo como seus sentidos circulam e como vão se 4
A cada acontecimento
enunciativo as
alterando à medida que ela vai sendo reescriturada palavras podem
e ressignificada ao longo dos textos. assumir sentidos
diversos e significar
coisas diferentes
(GUIMARÃES, 2007).

197
3 DO SENTIDO POSTO AO SENTIDO
FLUIDO

Inseridos em uma perspectiva materialista, nes-


te estudo, toma-se a linguagem como não trans-
parente e considera-se que sua relação com o real
é histórica (GUIMARÃES, 2002). Assim, a presente
reflexão inscreve-se no domínio teórico da Semân-
tica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002), a qual
compreende o sentido das palavras como sendo
constituído pelas relações de determinação semân-
tica que elas estabelecem entre si tanto no nível do
enunciado quanto no nível do texto e também en-
tre textos distintos, conforme assinalou-se anterior-
mente. O estudo do sentido de uma palavra não se
limita, portanto, à análise do seu funcionamento no
plano do enunciado: “este é parte da questão e não
o seu lugar” (GUIMARÃES, 2002, p. 28). Isso quer di-
zer que as posições ideológicas que estão em jogo
no processo sócio-histórico no qual as palavras são
produzidas, enunciadas e retomadas também de-
vem ser consideradas. Há aí um histórico de senti-
dos, embora não se considere de antemão nenhu-
ma realidade a que as palavras reportam, “há um real

198
que a palavra significa. E as palavras têm a sua histó-
ria de enunciação. Elas não estão em nenhum texto
como um princípio sem qualquer passado” (GUIMA-
RÃES, 2007, p. 81).

A fim de mostrar os sentidos que estão em fun-


cionamento, representa-se a rede semântica a par-
tir do Domínio Semântico da Determinação (DSD)
(GUIMARÃES, 2007) que pode ser definido como
um mecanismo de descrição e de interpretação no
qual se mostra como o “funcionamento das pala-
vras na enunciação constitui sentidos [...]” (Guima-
rães, 2007, p. 96). Para Guimarães (2007, p. 96), no
acontecimento da enunciação, a língua em funcio-
namento movimenta-se, transforma-se e significa
de diferentes formas:

podemos dizer que no acontecimento se


refaz insistentemente uma língua, pensada
não como uma estrutura, um sistema fe-
chado, mas como um sistema de regulari-
dades determinado historicamente e que é
exposto ao real e aos falantes nos espaços
de enunciação.

199
A determinação semântica ocupa, portanto,
uma posição de destaque já que é descrita como
uma relação enunciativa fundamental no processo
de produção de sentidos das expressões linguísticas
(GUIMARÃES, 2007). Ou seja, é nas e pelas relações
de determinação semântica, constituídas no acon-
tecimento enunciativo, que as palavras significam.

Assim sendo, nesta reflexão, o estudo do(s)


funcionamento(s) e do(s) deslizamento(s) de sentido(s)
da palavra “acessibilidade” ampara-se, necessaria-
mente, no conceito de DSD. Dito de outra forma, di-
zer qual é (ou quais são) o(s) sentido(s) de “acessibili-
dade” implica poder estabelecer o seu DSD. Para
isso, toma-se o enunciado como unidade de análise
e, dentro do enunciado, as relações de determina-
ção que as palavras estabelecem umas com as ou-
tras no funcionamento do texto. Não se pode perder
de vista que o enunciado apresenta-se integrado a
um texto. Para Guimarães (2009, p. 50), uma sequ-
ência linguística só é enunciado enquanto

unidade de sentido que integra um texto.


Assim falar do sentido de uma expressão

200
em um enunciado exige que se considere
em que texto está essa unidade. São as re-
lações de linguagem que constituem senti-
do. E mais especificamente, são as relações
enunciativas do acontecimento que consti-
tuem sentido. O sentido não se reduz a uma
mera relação interna em uma estrutura en-
tre os elementos da estrutura, independen-
temente de qualquer exterioridade.

No processo de análise, o DSD é descrito, re-


presentado e identificado por sinais muito específi-
cos que constituem o próprio DSD. Tem-se assim a
seguinte representação:

1 os sinais ┬ ou ┴ ou├ ou ├, indicam “deter-


mina” (em qualquer direção);

2 o traço ─ indica uma relação de “sinoní-


mia”;

3 o traço maior ___________, dividindo o DSD,


significa “antonímia”;

201
4 além disso, o DSD normalmente apresenta-
-se emoldurado, isto é, ele é descrito no in-
terior de uma moldura.

Através destes sinais, o DSD apresenta e re-


presenta uma análise da palavra. É a partir desta
análise que se pode descrever e compreender o(s)
funcionamento(s) de sentido de uma palavra nos
enunciados que constituem o corpus.

Para complementar o processo de análise, cujo nú-


cleo é o DSD, Guimarães (2002, 2007) estabelece dois
tipos de procedimentos analíticos fundamentais à cons-
tituição de sentidos: a articulação e a reescrituração.

A reescrituração pode ser definida como um


procedimento, através do qual a enunciação, reto-
ma, rediz e reescreve o que já foi dito atribuindo-lhe
novos sentidos, fazendo-o significar de outra ma-
neira diferente de si. Tem-se assim a reescrituração
como um procedimento que

atribui (predica) algo ao reescriturado. [...]


[ela] coloca em funcionamento uma opera-
ção enunciativa fundamental na constitui-

202
ção do sentido de um texto. Vou chamá-la
de predicação [...]. Trata-se de uma opera-
ção pela qual, no fio do dizer, uma expres-
são se reporta a outra, pelos mais variados
procedimentos. Ou por negar a outra, ou
por retomá-la, ou por redizê-la com outras
palavras, ou por expandi-la ou condensá-la,
etc. (GUIMARÃES, 2007, p. 84)

Nesse sentido, compreende-se que a reescritu-


ração pode ocorrer sob diferentes formas. De fato,
ela pode se manifestar através de repetição, substi-
tuição, elipse, expansão, condensação ou definição.
Estes diferentes modos de reescrituração criam uma
trama (teia) de sentidos na superfície textual, pois
conectam pontos do texto entre si e com outros
textos. Através destes procedimentos de reescritu-
ração, pode-se observar como o sentido de uma
palavra é construído, deslizado e alterado. Dito de
outra forma, como o sentido da palavra se histori-
ciza e como, ao ser retomada, ela faz significar algo
que não estava significado (GUIMARÃES, 2007).

Enquanto a reescrituração engloba relações


que podem se estabelecer na unidade do texto, a

203
articulação remete à análise das relações de conti-
guidade no interior do próprio enunciado. O estudo
da articulação permite dizer “como o funcionamen-
to de certas formas afeta outras que elas redizem”
(GUIMARÃES, 2007, p. 88). Dentre as relações de
articulação, pode-se citar a pressuposição, a predi-
cação e a referência no âmbito do enunciado e as
relações argumentativas, entre outras. É, portanto,
tomando como bases estes pressupostos teórico-
-metodológicos que se estabelecerá a análise do
corpus desta pesquisa.

4 SOBRE O(S) SENTIDO(S) DE


ACESSIBILIDADE
5
A noção de recorte
é tomada aqui
como “uma unidade Considerando que o corpus resulta “de uma
discursiva. Por
construção do próprio analista” (ORLANDI, 2002,
unidade discursiva,
entendemos p. 63), sua seleção e sua organização constituem,
fragmentos
de certa forma, a primeira etapa da análise. Nessa
correlacionados
de linguagem-e- perspectiva, a etapa subsequente do trabalho com
situação. Assim
o corpus diz respeito ao recorte5 dos enunciados
um recorte é um
fragmento da que constituirão as unidades de análise. Cada re-
situação discursiva”
corte constituirá um conjunto de enunciados que
(ORLANDI, 1984,
p. 14). serão analisados conforme o dispositivo teórico-

204
-analítico da Semântica do Acontecimento descrita
como “uma semântica que considera que a análise
do sentido da linguagem deve localizar-se no es-
tudo da enunciação, do acontecimento do dizer”
(GUIMARÃES, 2002, p. 7).

Assim, para este estudo, toma-se, como objeto


de reflexão, um enunciado retirado do texto, Lei da
Acessibilidade (BRASIL, 2004), publicado e homolo-
gado em 2004, pelo então Presidente da República.
Esta Lei, que consolida parte do que já estava pos-
to nas normas da ABNT, estabelece diretrizes gerais
para a promoção da acessibilidade das pessoas com
deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante
a supressão de barreiras e de obstáculos não só no
espaço urbano, mas também no que diz respeito a
diferentes serviços de utilidade pública, como, por
exemplo, informação e comunicação.

No recorte, apresentado abaixo, observa-se que


a palavra “acessibilidade” tem seus sentidos especi-
ficados aparecendo reescrita no Artigo 8, por um
procedimento de repetição que é seguido do sinal
de pontuação dois pontos cuja função é justamente
detalhar o sentido de acessibilidade estabelecendo

205
ai uma relação predicativa marcada pelo sinal de
pontuação:

Recorte 1 – Acessibilidade

Art. 8 Para os fins de acessibilidade, considera-se:


I - acessibilidade: condição para utilização, com se-
gurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços,
mobiliários e equipamentos urbanos, das edifica-
ções, dos serviços de transporte e dos dispositivos,
sistemas e meios de comunicação e informação, por
pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade
reduzida;

Com o objetivo de afinar as análises, recorre-se


aqui às paráfrases que dão mais visibilidade ao que
está posto neste enunciado:

1’ acessibilidade é uma condição para uso de equi-


pamentos para a pessoa portadora de deficiência;

1” acessibilidade é uma condição para uso de equi-


pamentos para a pessoa com mobilidade reduzida;

1”’ acessibilidade é mobilidade .

206
Nestas manobras iniciais, nota-se que a pala-
vra “acessibilidade” é predicada por “condição para
uso de equipamentos da pessoa portadora de defi-
ciência” e por “para uso de equipamentos da pessoa
com mobilidade reduzida”. Essa relação predicativa
permite já de início perceber a relação de sentidos
que está sendo produzida entre acessibilidade e mo-
bilidade. De um lado, acessibilidade determina uma
condição, um estado de um grupo de sujeitos cuja
mobilidade não existe ou está reduzida. Ou seja, su-
jeitos que, de certa forma, foram excluídos da socie-
dade pela sua diferença física. Promover a “acessi-
bilidade” neste sentido significa criar condições de
mobilidade e é este o funcionamento de sentido que
é tornado visível pela paráfrase e pelo DSD abaixo.

DSD1

pessoa portadora de deficiência ┤

ACESSIBILIDADE ├ mobilidade

pessoa com mobilidade reduzida ┤

Nas paráfrases seguintes, “acessibilidade”, ao


estabelecer relações predicativas com “segurança”

207
e “autonomia” da pessoa com deficiência ou com
mobilidade reduzida, tem posição central. Nota-se
assim que o sentido vai deslizando de “condição”,
um estado do sujeito, para a questão da “segurança”
e “autonomia” de sujeitos com deficiência.

1”’acessibilidade é autonomia para a pessoa porta-


dora de deficiência ou com mobilidade reduzida;

1”” acessibilidade é segurança para a pessoa por-


tadora de deficiência ou com mobilidade reduzida.

DSD2

├ autonomia

ACESSIBILIDADE

├ segurança

Avançando um pouco na análise deste enun-


ciado, as paráfrases permitem visualizar a questão
do acesso ao espaço urbano, através de “mobiliá-
rios”, “edificações”, “equipamentos e transportes”, e
do acesso ao espaço digital/informacional através
de “equipamentos”, “sistemas e meios de comuni-

208
cação e informação”. “Acessibilidade” é diretamente
reescriturada por definição por “condição para utili-
zação, com segurança e autonomia, total ou assis-
tida, dos espaços, mobiliários e equipamentos ur-
banos, das edificações, dos serviços de transporte e
dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação
e informação, por pessoa portadora de deficiência
ou com mobilidade reduzida”. Esta definição colo-
ca diretamente a predicação de “acessibilidade” por
utilização dos espaços mobiliários, equipamentos
urbanos, edificações, transporte e dispositivos e sis-
tema e meios de comunicação e informação.

1”” acessibilidade é a condição de utilização mobili-


ária, de equipamentos urbanos e de edificações por
pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade
reduzida;

1”””” acessibilidade é a condição de utilização de


serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas
e meios de comunicação e informação por pes-
soa portadora de deficiência ou com mobilidade
reduzida.

As paráfrases nos conduzem ao seguinte DSD.

209
DSD3

utilização de utilização de
espaço urbano mobiliário ┤ ├ equipamentos ┤espaço digital/
├ edificações ┤ ACESSIBILIDADE ├ comunicação informacional
transporte ┤ ├ informação

A partir dessas análises, é possível representar


as relações de sentido da palavra “acessibilidade” no
âmbito deste enunciado através de um único DSD.

DSD4

Mobilidade utilização
┴ ├ equipamentos
├ comunicação ┤ espaço digital/
├ informação informacional
pessoa
portadora de ACESSIBILIDADE utilização
deficiência ┤
pessoa ├ mobiliário
com mobilidade ├edificações ┤espaço urbano
reduzida ┤
┬ ┬ ├transporte
autonomia segurança

210
Nota-se, neste DSD4, que o sentido de “aces-
sibilidade” é determinado por “pessoa portadora de
deficiência”, “pessoa com mobilidade reduzida”, por
“mobilidade”, “autonomia”, “segurança”, “utilização
de equipamentos, de comunicação, de informação”
e “utilização de mobiliário, edificações, transporte”;
por outro lado, é possível observar também que o
sentido de “acessibilidade” determina “espaço ur-
bano” e “ espaço digital/informacional pelo desliza-
mento de dois conjuntos de determinação que rece-
be o que está à direita no esquema do DSD proposto.

Nesse tear semântico, a relação que se estabe-


lece entre acessibilidade e mobilidade, neste enun-
ciado, é constitutiva à medida que o sentido de uma
complementa o sentido da outra. As análises permi-
tem perceber ainda que o sentido de acessibilidade
começa a se movimentar do espaço urbano físico-
-concreto (“mobiliário”, “edificações” e “transporte”)
para o espaço digital-informacional (“equipamen-
tos”, “comunicação”, “informação”). Isso nos leva
a retomar Lemos (2009), autor que considera que
o sentido de mobilidade articula-se a duas noções
complementares que estão diretamente relaciona-
das ao espaço urbano: extensionalidade e acessibi-

211
lidade (KWAN, 2007). Para Lemos (2009), enquanto
a primeira diz respeito à capacidade de se mover, a
segunda se refere às condições e possibilidades de
deslocamento e de alcance de determinados pon-
tos sejam eles físicos, informacionais e/ou cogniti-
vos. As palavras do autor, além de confirmar as re-
lações de sentido entre acessibilidade e mobilidade
observadas na análise, apontam para o fenômeno
semântico que nos faz perceber a rede de significa-
ções que a palavra “acessibilidade” coloca em fun-
cionamento no enunciado em questão.

Assim, a partir da análise apresentada, pode-se


perceber que, se por um lado, o sentido de “aces-
6
Confira, por exemplo:
acessibilidade: a.ces. sibilidade” apresentado pelos dicionários de língua
si.bi.li.da.de; sf (lat.
portuguesa6 apresenta uma descrição semântica
accessibilitate) 1
Facilidade de acesso, fechada e muito restrita, um sentido posto e en-
de obtenção. 2
clausurado em si mesmo, sentido, por vezes, re-
Facilidade no trato.
Disponível em: produzido nas normas técnicas e textos oficiais que
<http://michaelis.uol.
regulamentam a questão da acessibilidade no país;
com.br/moderno/
portugues/index. por outro lado, o modo como o sentido de “acessi-
php?lingua=portu
bilidade” vem sendo construído na sociedade con-
gues-portu
gues&palavra= temporânea aponta para um deslocamento semân-
acessibilidade>.
tico à medida que coloca em funcionamento não
Acesso em: 20 jun.
2013. só a questão do acesso de pessoas com deficiência

212
a produtos e serviços do espaço urbano físico, mas
também à medida que possibilita o acesso ao uso
de aplicativos, redes e sistemas de comunicação
e informação da era digital a todas as parcelas da
população. Este deslocamento de sentido nos leva
pois a pensar na acessibilidade tecnológica em con-
formidade com os pressupostos da sociedade da in-
formação em rede.

De fato, como mostra a edição 199 da revista


Tema, a acessibilidade tecnológica, termo propos-
to pela ONU (2009), na Convenção da ONU sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência, ao mesmo
tempo que dá visibilidade a esta noção colocando-a
como uma questão de direitos humanos, representa
para o usuário

não só o direito de acessar a rede de infor-


mações, mas também o direito de elimina-
ção de barreiras arquitetônicas, de disponi-
bilidade de comunicação, de acesso físico,
de equipamentos e programas adequados,
de conteúdo e apresentação das informa-
ções em formatos alternativos (ACESSIBILI-
DADE..., 2009).

213
Nota-se assim que a acessibilidade tem seu sen-
tido afetado, deslocado e ampliado à medida que
faz refletir também sobre a comunicação e o acesso
à informação a partir de outro lugar, o lugar alterna-
tivo e de direito dos sujeitos da diferença, pessoas
com deficiência.

Como vimos, ao longo desta reflexão, diver-


sidade e acessibilidade têm ocupado um lugar de
destaque nas discussões políticas, sociais e jurídicas
nas últimas décadas. No que concerne especifica-
mente à acessibilidade, nota-se que o sentido des-
ta palavra encontra-se em movimento, seu sentido
flui, desloca-se na direção dos direitos humanos, da
cidadania, da tecnologia. A convenção da ONU sem
dúvida contribuiu significativamente para que este
movimento acontecesse à medida que, além de tra-
tar de questões gerais de acessibilidade no espaço
urbano, este texto (em especial, o artigo 9) deu vi-
sibilidade à questão da acessibilidade tecnológica
que pretende assegurar a estes sujeitos a possibili-
dade de transpor as barreiras postas pelos artefatos
tecnológicos e inserir-se também no espaço digital,
na sociedade da informação do século XXI. Ao am-
pliar a discussão sobre “acessibilidade” nos discursos

214
oficiais, a convenção dos Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU e a Lei da Acessibilidade do Bra-
sil dão a conhecer assim outras formas de acessi-
bilidade e, consequentemente, outros sentidos para
a palavra. Novas formas de dizer e de (re)significar
a acessibilidade contribuem (e apontam) para um
avanço do pensamento político e social em torno
da questão da diversidade. Avanço que certamen-
te, por um lado, ressignifica as políticas públicas da
diversidade, mas, por outro lado, traz à sociedade
a tarefa de romper com paradigmas tradicionais e
propor ações mais amplas que estejam de acordo
com as necessidades histórico-culturais dos sujeitos
implicados nestas práticas.

Enfim, a produção de outros (novos) sentidos


para a acessibilidade nos textos oficiais aponta para
uma nova configuração da sociedade que, pouco a
pouco, vai aprendendo a conviver com a diferença
e se movimentando para dar acesso a todos os su-
jeitos que a compõem.

215
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comdeficiencia.pdf>. Acesso em: 25 maio 2013.

______. Declaração de Salamanca: sobre princípios,


políticas e práticas na área das necessidades educati-
vas especiais. Brasília, DF, 1994. Disponível em <http://
portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.
pdf>. Acesso em: 15 jul. 2012.

219
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cedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.

______. Análise do discurso: princípios e procedi-


mentos. 8. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002.

______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Cam-


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______ (Org.). História das idéias lingüísticas. Cam-


pinas, SP: Pontes; Caceres: UNEMAT Ed., 2001.

220
TRAÇO, CORPO,
SENTIDO: SOBRE
A ESCOLA, A
CRIANÇA E A
ESCRITA
Renata Chrystina Bianchi de Barros*

No poema
e nas nuvens
cada qual descobre
o que deseja ver.
Helena Kolody

*
Fonoaudióloga e Pedagoga. Doutora em Linguística pela UNICAMP. Docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do
Sapucaí (UNIVÁS).
1 INTRODUÇÃO

Para o estudo aqui pretendido objetivo realizar,


num recorte da linha da vida humana, o desloca-
mento do homem estabelecido por meio do corpo
humano biológico que escreve traçando linhas para
a representação do mundo; para esse corpo que
hoje chamo de corpo-sentido, que se inscreve por
meio do traço e do rabisco para os processos de
significação.

Para isso, opto focar esta investigação no perí-


odo da infância, recorte geralmente escolhido por
pesquisadores que se voltam para o estudo do pro-
cesso inicial de alfabetização, considerando que
para a criança os aspectos da estrutura da língua
serão ensinados formalmente no interior da escola.

Como corpus de análise, elegi dois documentos


governamentais que apresentam diretrizes e práticas
para o interior da educação infantil: a Resolução nº5,
de 17 de dezembro de 2009 (BRASIL, 2010), que ins-
titui diretrizes curriculares nacionais para a educação
infantil; e o Manual de orientação pedagógica “brin-
quedos e brincadeiras de creches” (BRASIL, 2012).

223
A opção por analisar um recorte de cada um
desses documentos se deu por ter observado que
a prática pedagógica orientada nesses documentos
está inicialmente voltada à preparação do corpo,
com atenção e cuidados com a evolução e o desen-
volvimento do movimento do corpo infantil como
realizado desde a Idade Média.

O percurso de estudo realizado por Le Goff e


Truong (2012), pode auxiliar na compreensão da
indicação da proximidade entre as práticas com o
corpo da criança na educação infantil contempo-
rânea e as práticas com o corpo na Idade Média ao
longo do processo civilizatório humano.

Bloch (2012), na elaboração do prefácio do livro


de Le Goff e Truong (2012), parte da premissa de que
o corpo tem uma história. Para ele, os autores ela-
boram um estudo que reserva ao corpo um espaço
para sua historicização, ora numa dinâmica de com-
paração dicotômica, ora na elaboração de díades.
Para Bloch (2012, p. 11),

a dinâmica da sociedade e da civilização me-


dievais resulta de tensões: entre Deus e o ho-

224
mem, entre homem e mulher, entre a cidade
e o campo, entre o alto e o baixo, entre a ri-
queza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre
a violência e a paz. Mas uma das principais
tensões é aquela entre o corpo e a alma [...].

No modo como tais relações são estabelecidas,


convencemo-nos ao longo da leitura preliminar do
livro de Le Goff e Truong (2012) e, posteriormen-
te na própria produção dos autores que na história
da humanidade o corpo vem sendo chicoteado em
nome de uma estabilidade social sem pecados, e da
demanda social, domado em prol do desenvolvi-
mento social.

Para isso, cada sociedade elaborou “técnicas


do corpo”1 de modo que o homem pudesse seguir 1
Le Goff e Truong
(2012) rememoram
servindo sob a adequação de determinadas regras estudos da história,
e convenções. Portanto, há o indicativo de que o filosofia e sociologia
na realização do seu
modo como o homem anda, nada, senta-se e deita- estudo. A expressão
-se tem haver com os processos pelos quais passou “técnicas do corpo”
é utilizada pelos
uma determinada sociedade. autores a partir
da construção de
Marcel Mauss (2003),
No mesmo sentido, em “a civilização dos cos- traduzida e publicada
tumes”, Elias (1994) ocupou-se não apenas de des- em 2003 no Brasil.

225
crever, mas de entender como a prática do corpo
é representativa da história da sociedade. Como
exemplo, aponta para as proibições e para as auto-
rizações do comportamento à mesa, do compor-
tamento sexual e das vestimentas em ambientes
comuns, numa formalização de regras de conduta,
modelando inclusive a sensibilidade corporal.

Em tempo e lugar longínquos daqueles remeti-


dos por Le Goff e Truong (2012) a respeito do cor-
po na Idade Média, no ano de 2011, a sociedade da
América Latina, por meio de representantes do FO-
RUMADD/Argentina (grupo interdisciplinar contra a
patologização e medicalização da infância), e do Fó-
rum sobre Medicalização da Educação e da Socie-
dade/Brasil, organizou-se de modo a dar visibilidade
à sua preocupação quanto aos cuidados exacerba-
dos com o comportamento de crianças em idade
escolar, elaborando a “Carta Sobre a Medicalização
da Vida”2 no sentido de marcar o compromisso de
2
Disponível articulação profissional dos campos da educação e
em: <http://
da saúde.
medicalizacao.com.
br/carta-sobre-
medicalizacao-da-
Tal movimentação surgiu, dentre outras razões,
vida/>. Acesso em: 8
jun. 2013. em reação às práticas medicalizantes de crianças

226
que foram rotuladas como incapazes de se ade-
quarem ao modelo educacional vigente (BARROS,
2012a) sob práticas que envolvem a “docilização do
corpo” (FOCAULT, 2009) por meio de técnicas his-
tórica e ideologicamente estabilizadas.

Como sintoma, na escola atual todo e qualquer


comportamento desviante sofre intervenções de di-
ferentes naturezas para que o corpo esteja adequa-
damente adaptado aos espaços. Exemplo disso é o
grande número de crianças atualmente diagnosti-
cadas indiscriminadamente3 com TDAH (Transtor-
no do Déficit de Atenção e Hiperatividade), e que
atualmente fazem uso de metilfenidato, conhecida
como a “droga da obediência”.

Para nós, o TDAH é um transtorno fictício atri- 3


Para saber mais
acesse: <http://
buído a crianças que expressam no seu comporta- agenciabrasil.
mento a fórmula da infância, e tratar clínica ou te- ebc.com.br/
noticia/2012-07-14/
rapeuticamente tal comportamento é manipular os conferencia-
próprios sentidos da infância. Vejamos: adverte-sobre-uso-
indiscriminado-
de-estimulantes-
As crianças com TDAH, em especial os me- por-criancas-e-
adolescentes>.
ninos, são agitadas ou inquietas. Frequen-
Acesso em: 8 jun.
temente têm apelido de “bicho carpinteiro” 2013.

227
ou coisa parecida. Na idade pré-escolar,
estas crianças mostram-se agitadas, mo-
vendo-se sem parar pelo ambiente, me-
xendo em vários objetos como se estives-
sem “ligadas” por um motor. Mexem pés e
mãos, não param quietas na cadeira, falam
muito e constantemente pedem para sair
de sala ou da mesa de jantar.
Elas têm dificuldades para manter atenção
em atividades muito longas, repetitivas ou
que não lhes sejam interessantes. Elas são
facilmente distraídas por estímulos do am-
biente externo, mas também se distraem
com pensamentos “internos”, isto é, vivem
“voando”. Nas provas, são visíveis os erros
por distração (erram sinais, vírgulas, acen-
tos, etc.). Como a atenção é imprescindível
para o bom funcionamento da memória,
elas em geral são tidas como “esquecidas”:
esquecem recados ou material escolar,
aquilo que estudaram na véspera da prova,
etc. (o “esquecimento” é uma das principais
queixas dos pais). Quando elas se dedicam
a fazer algo estimulante ou do seu interes-

228
se, conseguem permanecer mais tranquilas
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO DÉFICT DE
ATENÇÃO, 2013, grifo nosso).

A respeito disso, ocupa-se com o estudo da sen-


sibilidade do corpo na relação direta com os obje-
tos do mundo também Merleau-Ponty4 (2012), que
estabelece como campo teórico a fenomenologia,
compreendendo o uso físico do corpo como ma-
nifestação e produto da linguagem. Aproximando-
-se já dos estudos que referenciam o corpo à alma,
Merleau-Ponty (2012) organiza-se em torno de uma
“ideia nova de expressão e da análise dos gestos ou
do uso mímico do corpo” (LEFORT, 2012, p. 11).

Apesar de antemão haver o afastamento do


campo teórico que ocupo deste ocupado por Mer-
4
Vale destacar que o
leau-Ponty (2012), interessa-me o que o autor es- autor, durante a década
creveu em “a expressão e o desenho infantil”, capí- de 1950, colocou-se
a subverter a própria
tulo integrante do livro “a prosa do mundo”. Numa fenomenologia,
narrativa encadeada num fôlego, Merleau-Ponty produzindo seus
manuscritos
debate criticamente a visão objetivista instalada no singularizando
homem adulto que compreende que a expressão sua produção de
modo a não mais
deve ser representativa do mundo. Diz Merleau- constar do campo
-Ponty (2012, p. 240): fenomenológico.

229
Estamos convencidos de que o ato de expri-
mir, em sua forma normal ou fundamental,
consiste, dada uma significação, em cons-
truir um sistema de signos tal que a cada ele-
mento do significado corresponda um ele-
mento do significante, isto é, em representar.

Tomo de empréstimo o posicionamento de


Merleau-Ponty sobre esta visão objetivista. Para
mim, a exigência de objetividade no comportamen-
to do sujeito, excepcionalmente da criança, apaga
da sua vivência os contornos que não estão linear-
mente, ou “planimétricamente” (como escreveu o
autor) definidos.

É sobre esse contorno, engendrado no corpo,


que pretendo debater ao longo das próximas páginas.

2 A ESCOLA DE EDUCAÇÃO
INFANTIL CONTEMPORÂNEA: A
PEDAGOGIZAÇÃO DO CORPO

Inicio esta sessão convidando o leitor a me


acompanhar na descrição de acontecimentos hu-

230
manizatórios do corpo partindo do desenvolvimen-
to organofuncional do ser-humano para que possa-
mos, mais à frente, remeter à relação do corpo com
a aprendizagem da escrita no processo inicial de al-
fabetização, conforme elaboro apoiada nos dispo-
sitivos teóricos e analíticos da Análise de Discurso.

Como profissional da ciência da saúde em íntima


relação com a ciência da linguagem, não nego a im-
portante existência do aparelho orgânico e funcional
do homem. Porém, investindo no estudo da lingua-
gem envolta por um aparato científico da Análise
de Discurso, como posto por Orlandi (1996, 2000,
2004) e Pêcheux (1997a, 1997b), não é possível não
considerar que o aparelho orgânico, que permite ao
homem especificidades quando comparado a outros
animais, está investido de sentidos no funcionamen-
to social. Assim, conhecer o corpo humano como
se apresenta é importante para a compreensão dos
mecanismos e dos modos como o homem se rela-
ciona no mundo e com seus pares, mas não se deve
perder de vista que este corpo significa.

No percurso do desenvolvimento humano, as-


sim como podemos apreender da leitura dos livros

231
de Raff e Levitzkky (2011) e de Dangelo e Fattini
(2007), temos que no desenvolvimento do corpo o
homem nasce, cresce, envelhece e morre. Nessa li-
nha natural e social da vida, de modo específico, a
espécie humana precisa de mais tempo, comparado
a outras espécies animais, para que suas estruturas
físicas se desenvolvam numa relação de aprendiza-
gem de movimentos globais e específicos. Como
exemplo, no desenvolvimento evolutivo, o homem,
ao nascer, mantem-se deitado, sem controle volun-
tário dos movimentos corporais. Num estágio pos-
terior, é próprio desta espécie animal que o corpo
aprenda a rolar, arrastar e sentar para, somente após
estas etapas, iniciar o processo de locomover-se
abaixado na posição de quatro membros, levante-se
e passe para a marcha bípede ereta, posição deseja-
da para o corpo humanizado, social.

A capacidade de execução de atividades moto-


ras sociais, como andar e correr, alimentar-se com
o uso de talheres e utilizar-se de tecnologias como
o lápis e o computador é resultante da aprendiza-
gem junto a práticas do grupo social e cultural do
qual dois ou mais indivíduos da espécie são com-
ponentes.

232
Quero apontar com este material que esta des-
crição permeia, ainda nos dias de hoje, a construção
do currículo da educação infantil no Brasil. Histori-
camente, a educação infantil origina-se voltada às
necessidades do cuidado a criança órfã e, nas pro-
ximidades dos anos 1930, ao cuidado da criança de
pais que precisaram inserir-se no mercado de tra-
balho em período integral (KUHLMANN JR., 2000;
OLIVEIRA, 1988). Desde então, até os dias atuais,
a educação infantil brasileira vem buscando supe-
rar a concepção educacional assistencialista que há
muito vem realizando. Porém, compreendo que os
esforços realizados vem provocando novos e peri-
gosos sentidos da prática daquilo que, anteriormen-
te, era realizado no período do “jardim da infância”.

A produção científico-acadêmica sobre a es-


cola contemporânea (ARAÚJO, 2002; BRIGHENTE;
MESQUIDA, 2011) revela que, de modo diferen-
te das práticas preparatórias para o aprendizado
da língua realizadas até os anos finais da década
de 1980 e início da década de 1990, em meio às
práticas da pedagogização do corpo, atualmente
a escola de educação infantil realiza práticas pre-
paratórias a fim da inibição de qualquer alteração

233
do aspecto comportamental humano que possa
conturbar a linha imaginária do discurso pedagó-
gico, ou que imaginariamente enfraqueça as pos-
sibilidades do ensino e da aprendizagem no espa-
ço escolar, de modo que mais do que o ensino do
conhecimento de um campo do saber, professores
vêm questionando e transportando5 instrumentos
de disciplinas de áreas longínquas, como a neurop-
sicologia, sobre práticas humanizatórias do corpo,
solicitando a intervenção por meio de práticas que
visam organizar e disciplinar o sujeito para os ritu-
ais sociais e de trabalho.

Desse modo, crianças que apresentam com-


portamento diferente do que é autorizado institu-
cionalmente, são submetidas a práticas higienizató-
rias e humanizatórias para que haja padronização do
comportamento corporal.

Pude, em trabalho anterior (BARROS, 2012a),


5
Para compreender as debater sobre esta escola que, voltada para a pre-
noções de transporte
paração de sujeitos capacitados para a nova ordem
e transferência de
sentidos de um mundial, constrói currículos que objetivam a forma-
discurso para o
ção para o mercado de trabalho em prol do desen-
outro, ver Orlandi
(2001, p. 153). volvimento nacional e aponto, apoiada por proces-

234
sos analíticos discursivos, que a educação galgada
numa política perversa que negligencia os proces-
sos de constituição do sujeito, aloca-o num campo
de significação do fazer, mas não do saber.

Penso assim porque concordo com Orlandi


(2004, p. 149) sobre os motivos de a escola assim
significar e elaborar sua práxis: “a Escola significa
como significa porque está onde está, ou seja, faz
parte da cidade”, e por assim ser, “as relações de
sentido materializadas pela Escola dão indicações
de como, em sua textualização, ela significa o urba-
no” (ORLANDI, 2004, p. 152).

Considerando, no interior do campo teórico da


Análise de Discurso, que os processos de subjetiva-
ção são afetados pelas condições de produção (OR-
LANDI, 2000), tomo a linguagem funcionando na
relação ampla com a sociedade, estando a memória
discursiva (o interdiscurso) atravessando a forma-
-material (ORLANDI, 1996). Desse modo, a materia-
lidade do sujeito é marcada pelos acontecimentos
da escola contemporânea sob uma moldura dura de
um corpo humanizado em demasia, fadado ao apa-
gamento dele mesmo.

235
O Estado, seguro sobre as proposições acerca
dos objetivos da Educação no Brasil, elabora a Lei
no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabe-
lece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a
partir da qual diversas outras resoluções foram es-
critas, como a Resolução nº 5, de 17 de dezembro
de 2009 (BRASIL, 2010), que institui diretrizes cur-
riculares nacionais para a educação infantil. Neste
documento, a educação brasileira funda a escola
como espaço de possibilidade de desenvolvimento
integral da criança, voltando as atividades escolares
na educação infantil para o desenvolvimento de es-
truturas cognitivas, preparando o corpo para o uso
da língua.

Como forma de aprofundamento, o Ministé-


rio da Educação e a Secretaria de Educação Bási-
ca formulam um manual de orientação pedagógica
voltado a orientar educadores para a prática junto
a crianças de 0 a 5 anos de idade. Chamado “brin-
quedos e brincadeiras de creches” (BRASIL, 2012), o
manual é construído de modo a fornecer estratégias
que viabilizem a experiência corporal da criança na
relação com objetos de conhecimento, conforme
privilegia a teoria sócio-interacionista.

236
A feitura de resoluções, regimentos e manuais
que privilegiam as práticas corporais na escola apon-
tam para uma proposição: as práticas pedagógicas
com o corpo têm sido elaboradas para fins dos pro-
cessos educacionais, considerando o corpo um ins-
trumento das práticas didáticas, tendo-o como fim,
como apresentado nos documentos sobre os quais
me debruço. Seus autores elaboram atividades que
visam o desenvolvimento corporal para o movimento
adequado com o que, evolutivamente, é comum à
espécie humana, com apontamento de diretrizes que
se voltam para o desenvolvimento integral evolutivo
(Recorte 1), assim como, incluem especificações de
atividades que podem e devem ser realizadas com
crianças de determinadas faixas-etárias (Recorte 2).

Recorte 1 – Resolução no 5 – diretrizes curriculares nacionais


para a educação infantil

Fonte – Brasil (2010)

237
Reconhecendo que a filiação teórica estabele-
cida para a elaboração dos documentos citados está
no interior do sócio-interacionismo, por uma questão
de base teórica, necessariamente, as atividades foram
pensadas para serem realizadas na articulação dos as-
pectos biológicos (fisiologia do corpo humano), psico-
lógicos (cognição, emoção e afeto) e antropológicos
(histórico, social, cultural e político) da espécie-huma-
na. Nesse sentido, apontam para uma suposição de
“integralidade” a ser assumida nos processos didáticos,
de modo sequencial e circular (Recorte 1) para que
todos os aspectos adjacentes ao ser-humano fossem
alçados visando o pleno desenvol-
vimento do indivíduo por meio da
aprendizagem (BARROS, 2004).

Recorte 2 – Manual de orientação


pedagógica – brinquedos e
brincadeiras de creche

Fonte – Brasil (2012)

238
À esta articulação didática integralizadora dos
processos que envolvem o indivíduo para a sua hu-
manização, chamarei de “pedagogização do cor-
po” (ARAÚJO, 2002), por ser esta uma prática nor-
malizadora que visa a instrução e a reprodução do
conhecimento, e que vem ocorrendo por meio do
aproveitamento das possibilidades de articulação de
campos teóricos e práticos em nome da integrali-
dade no seio da teoria sócio-interacionista, com
a inclusão de conhecimentos recortados da neu-
ropsicologia, sob a máscara de auxiliar e facilitar o
desenvolvimento “e o funcionamento de recursos
cognitivos e às múltiplas conexões que o cérebro
tece através de uma rede complexa de neurônios
[...]” (VALLE; CAPOVILLA, 2011, p. 35).

Esquema 1 – Figura esquemática da articulação dos aspectos


humanos na teoria sócio-interacionista

Fonte – A autora 2013


 

239
Os autores dos documentos governamentais
aqui em evidência relacionam as possibilidades de ati-
vidades corporais com o estudo do desenvolvimento
humano, que consiste em detectar os motivos que
favorecem o crescimento humano e como ele muda
durante a vida (FIGUEIRAS; SOUZA; RIOS; BENGUI-
GUI, 2005), incluindo, nos processos didáticos, técni-
cas que moldam e humanizam o corpo, preparando-
-o por meio do que chamam de atividades complexas
para o aprendizado da leitura e da escrita.

Conforme mostrado no Recorte 1, as atividades


complexas devem ser realizadas considerando “a
indivisibilidade das dimensões expressivo-motora,
afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e so-
ciocultural da criança”, assim como apontado por
Meur e Staes (1989) sobre os princípios da psico-
motricidade: Estrutura: desenvolvimento do seu
“eu” corporal; localização e orientação no espaço;
orientação temporal. Fundamentos: atividades mo-
toras: são as atividades globais, de todo o corpo;
atividades sensório-motoras: são as sensações/sen-
timentos relacionados a manipulação dos objetos;
atividades percepto-motoras: análise profunda das
funções mentais intelectivas (atenção, percepção,

240
concentração e memorização) e motoras, tais como
a análise perceptiva, a precessão de representação
mental, determinação de pontos de referência.

É nesse lugar de possível intersecção entre os


campos teóricos e de atuação que a neuropsicolo-
gia adentra-se à escola, com a promessa da facili-
tação da pedagogização do corpo, com aparatos e
instrumentos que prometem a redução do fracasso
escolar com o avanço e a valorização de aspectos
neuropsicomotores. Tais aparatos teóricos e práticos
geralmente são lançados por meio do estudo da psi-
comotricidade, que se volta para o entendimento e
para a prática sobre a relação existente entre a mo-
tricidade, a mente e a afetividade visando facilitar a
globalidade do corpo humano (MEUR; STAES, 1989).

Para mim, tais promessas acabam por 1) negli-


genciar o que é próprio do homem – a linguagem;
2) e o que é próprio da educação escolar – dispor de
instrumentos para a aprendizagem do mundo pelo
homem.

A atividade de treino cognitivo disposta à edu-


cação num modelo biológico é o exemplo do que

241
já apontamos com Merleau-Ponty (2012) e a objeti-
vidade do traço. É a pedagogização do corpo leva-
da ao extremo, num sufocamento do que permite a
linguagem ao homem – empenhar-se nos sentidos
circulantes do mundo.

É a pedagogia ditando negligentemente as per-


missões de comportamento do humano, uma vez
que negativa os próprios objetivos da educação.
Nesse sentido, no interior da escola, o uso de tec-
nologias como o lápis, o papel e a borracha; o com-
putador e as tecnologias digitais; a dança, a música
e o canto, limita-se a representar o mundo pelo de-
senho de linhas pré-definidas; pela objetividade me-
tálica e matemática dos computadores; da partitura
de um movimento, planimétricamente.

3 DO CORPO BIOLÓGICO AO
CORPO-SENTIDO

No esforço de adequar o corpo da criança aos


processos didáticos escolares com a finalidade de
deixá-lo pronto para a execução de atividades que
demandarão maior potencial cognitivo, como pen-

242
sam autores sócio-interacionistas e construtivistas,
a escola silencia o que permite a irredutibilidade do
humano à animalidade – a linguagem (HENRY, 1992).

Tomando a linguagem como o principal ele-


mento da especificidade do humano, devo consi-
derar os processos discursivos que o subjetivam e,
conforme elabora Orlandi (2012), a interpelação do
sujeito bio-psico pela língua e pela ideologia em uma
forma-sujeito histórica capitalista que, afetado pelo
Estado, identifica-se com uma formação discursiva
para individua(liza)r-se. A linguagem, que é o funcio-
namento dos sentidos na relação entre o dito e o não
dito, envolve o sujeito, a forma-material e o aconte-
cimento, transformando as condições de produção
de um espaço específico (BARROS, 2012a; ORLANDI,
2000; PÊCHEUX, 1997b). E é em espaços simbólicos
que se dão os processos de individua(liza)ção do su-
jeito para a forma sociopolítica. Sendo assim, tomo a
Escola como espaço simbólico para a consideração
de determinadas condições de produção.

A Instituição Escolar, construída sobre alicerces


políticos e ideológicos determinantes, marcada por
sentidos circulantes numa sociedade urbana capi-

243
talista, constrói instrumentos e elabora a práxis pe-
dagógica voltada a uma ideia de que se tem sobre o
sujeito da escola. Nesse espaço6 estão em funciona-
mento os mecanismos de imaginário e de antecipa-
ção sobre a constituição dos sujeitos e dos proces-
sos discursivos.

Sendo o imaginário um mecanismo partícipe


de uma conjuntura social na relação com o modo
como as relações sociais se inscrevem na história
e são regidas por relações de poder, materializada
no mecanismo de antecipação, estabelece condi-
ções para que o sujeito aproxime-se de formações
discursivas sem que necessariamente identifique-se
com elas num movimento circular tal que, na cons-
trução pedagógica na escola de educação infantil
passa-se a estabelecer uma relação de organização
do comportamento, por força do Estado, afetan-
do tanto os sujeitos que elaboram (os professores)
quanto os sujeitos que são submetidos aos proces-
sos pedagógicos (os alunos) aos sentidos da capaci-
dade e da produção numa instância escola-sujeito-
-sociedade.
6
Como em todos os
espaços

244
Sobre a ideação do corpo, estrutura privilegiada
nesse modelo pedagógico de atuação na educação
infantil, passa despercebida a ideia de que ele é par-
te integrante de processos que demandam sentidos,
e que as temidas atividades de escrita, que têm no
corpo o movimento do traço, exigem tão ou mais
esforços simbólicos que as práticas de adequação
de movimento para a produção da letra.

O corpo em movimento, para mim, é elemen-


to constitutivo enquanto forma-material significan-
te, e que merece aprofundamento na elaboração
no modo de compreender o aprendizado da escri-
ta, enquanto possibilidade de se incluir a noção de
gesto discursivo elaborado no corpo, afetado pela
instituição educacional de ensino infantil.

Para a compreensão desse mecanismo simbó-


lico, incluo no debate um recorte (Recorte 3) que
aponta para uma regularidade nos documentos go-
vernamentais analisados, e que não somente em-
penha no corpo as práticas didáticas-pedagógicas,
mas especifíca os “processos de apropriação” dos
objetos de conhecimento pela percepção.

245
Recorte 3 – Diretrizes curriculares nacionais para educação
infantil

Fonte – Brasil (2010, p. 18)

A educação infantil institucionalizada no Brasil,


tomando o corpo como lugar privilegiado para os
processos de ensino e de aprendizagem, apresen-
ta uma constância na elaboração de práticas para
o desenvolvimento das estruturas cognitivas através
do movimento corporal.

A escrita desses documentos leva em conside-


ração a história do desenvolvimento corporal hu-
mano, do nascimento à sua morte. Considera que
o homem percebe o mundo por meio da visão, da
audição, do tato e do paladar, e são esses os primei-
ros movimentos do sujeito para a “apropriação do
mundo e do conhecimento”.

246
Nesses documentos encontramos uma aproxi-
mação entre “processos de apropriação” e órgãos da
percepção humana, numa relação de causa e efeito.
O corpo, ainda biológico, é um organismo posto em
relação com os objetos do mundo. Objetos de co-
nhecimento. Com o desenvolvimento organo-fun-
cional, o homem passa a realizar movimentos/gestos
para se relacionar com o mundo de modo que esses
movimentos serão significados por seus pares (fa-
miliares, professores, cuidadores) e, assim, tanto no-
vas estruturas cerebrais e mentais serão construídas
para a fixação da atenção e a construção da memória
(funções cognitivas), como os processos de signifi-
cação passarão a acontecer. Nesse lugar de interpre-
tação, processo de significação é processo cognitivo,
estabelecendo relação entre signo e significante num
movimento de representação direta do mundo.

Este modo de compreender o corpo, como já


disse anteriormente, está relacionado ao campo
teórico do sócio-interacionismo (BARROS, 2004)
no qual a história biológica do indivíduo está ligada
ao desenvolvimento de funções cognitivas como a
atenção, a capacidade de percepção e a memória,

247
e o desenvolvimento de funções superioras como
o pensamento e a linguagem, compreendendo que
“o desenvolvimento psicológico dos homens é par-
te do desenvolvimento histórico geral da espécie”
(VIGOTSKY, 1996, p. 80).

Meu afastamento desse modo de pensar o ho-


mem no mundo não está em negar o aparato anáto-
mo-biológico do ser humano, mas de compreender
que a história do sujeito não tem origem localizada
no nascimento do corpo biológico e nem está pos-
ta em paralelo a processos psicológicos subjetivos.
Para mim, o homem conhece o mundo ao passo
que é parte do funcionamento da linguagem, en-
volto por processos de significação e do gesto do
corpo sobre as coisas.

Considero que o sujeito “é sempre já sujeito


porque é afetado pela língua, pela história e pela
ideologia. Este é o sujeito assujeitado, descentrado
do seu poder sobre os sentidos. É o sujeito do dis-
curso” (BARROS, 2012b, p. 88)7.

7
Em leitura dos textos
Compreendendo o sujeito no interior da Análise
de Pêcheux (1997b) e
Orlandi (2001). de Discurso (AD), não é possível assumir fragmen-

248
tos do corpo para a elaboração de análise ou para
a construção de práticas voltadas ao desenvolvi-
mento corporal puramente. Considerar o corpo do
sujeito na AD é pensar o corpo constituinte do ho-
mem, um Ser da linguagem (BARROS, 2012; HENRY,
1992), do simbólico e das relações; isto é, um corpo
que significa, qual denomino corpo-sentido (BAR-
ROS, 2012b).

Tomando o conceito de corpo-sentido como


um corpo que é investido de sentidos pelas con-
dições de produção mobilizando-se para significar
num gesto discursivo (BARROS, 2012b), penso que
o aprendizado da escrita perpassa pela significa-
ção do movimento do corpo enquanto conceito já
deslocado para o campo teórico do discurso como
objeto.

Considero que o gesto da escrita é material-


mente atravessado pela história e ideologicamen-
te interpelado pela língua e pela ideologia. E como
materialidade heterogênea da linguagem não pode
ser pensada fora da materialidade das condições de
produção e da conjuntura em que aparece (ORLAN-
DI, 2004).

249
Meu percurso de análise e interpretação vem
mostrando a escola com suas práticas e entornos
teóricos balizada por fundamentos integralizado-
res do sujeito, o que instaura uma condição de
produção para o ensino da escrita voltado para a
pedagogização do corpo em torno da adequação
de movimentos preparatórios das vias perceptivo-
-cognitivas, esvaziados de sentidos, para um fazer
sem saber. Sob a feitura do ensino esvaziado pelo
movimento do corpo biológico, alarga-se uma po-
lítica educacional tecnicista, atrelando a pedagogia
à um modelo de ensino de adaptação do sujeito às
condições de um mercado de trabalho (PFEIFFER,
2010).

No lugar da prática pedagogizante do corpo


não há como considerar, conforme Orlandi (2001)
escreve, na sociedade contemporânea, que “a le-
tra é o traço da entrada [do sujeito]8 no simbólico.
Traço que marca o sujeito enquanto sujeito, em sua
possibilidade de autoria, frente a escrita” (ORLANDI,
2001, p. 204). O gesto do traço, da feitura do dese-
nho ou da linha da letra marca o espaço simbólico
da posição discursiva ocupada socialmente pelo su-
8
Inserção minha. jeito, instaurando uma relação de valores sociais e

250
políticos entre os sujeitos e os acontecimentos. E
marca com singularidade o corpo-sentido, instau-
rando possibilidades.

Nesse lugar, o gesto do traço pelo sujeito ins-


taura possibilidades de significação, e desloca o fa-
zer pedagógico para uma práxis que permite ao su-
jeito movimentar-se significar, passear por cadeias
de significação (interdiscurso).

4 O SUJEITO DA ESCOLA
CONTEMPORÂNEA

Venho trabalhando há algum tempo com os


acontecimentos da escola contemporânea. A res-
peito disso, o que vem se avolumando de modo a
se sobrepor à estrutura e até mesmo aos processos
didáticos e pedagógicos, para mim, é o sujeito que
ocupa o interior da escola, essencialmente o sujei-
to-aluno.

Penso que isso acontece não apenas pela razão


de que a escola não existiria sem o aluno, mas prin-
cipalmente porque o aluno da escola contemporâ-

251
nea não é o mesmo de há 10 anos. Para além do
sujeito disciplinado, pedagogizado, a escola con-
temporânea recebe e fabrica o sujeito medicaliza-
do, que sofre implicações médicas e terapêuticas
objetivando a constatação de alterações anátomo-
-biológicas e fisiológicas às dificuldades de apren-
dizagem apresentadas no processo de ensinagem e
de aprendizagem.

O sujeito medicalizado sofre a transformação


das suas condições de Ser-Humano em “coisas a
serem tratadas e terapeutizadas” como resultado da
busca de familiares voltados à adequação do com-
portamento dos filhos em razão de não se adapta-
rem às regras socialmente instauradas.

Geralmente, as queixas familiares e escolares


são circulares em torno do que apresentei, na intro-
dução desse texto, como características da TDAH:

252
Quadro 1 – Quadro comparativo entre as características do
TDAH e as críticas ao transtorno fictício

Características do TDAH Crítica ao transtorno fictício


(Cf. ABDA, 2013)
São agitadas, inquietas. Característica comum à infância

Dificuldade para manter O que geralmente não interessa


atenção em atividades muito não é capaz de manter a
longas, repetitivas ou que não atenção.
lhes sejam interessantes.

Quando elas se dedicam a É mais fácil manter atenção


fazer algo estimulante ou do àquilo que é aprazível.
seu interesse, conseguem
permanecer mais tranquilas.

Fonte – Associação Brasileira do Défict de Atenção (2013)

Como se vê, é a instauração do estatuto clínico


na escola, deslocando os processos pelos quais de-
veriam funcionar a escola, com a subserviência da
prática clínica sobre o corpo.

Nesse sentido, elaboram-se manuais didáticos


de modo a adequar o corpo aos regimentos sociais.
Àquele que não se adequa está reservada a exclusão.

Ao afirmar isto, faço um atravessamento daquilo


que Pfeiffer (2001, p. 29) elabora a respeito do “su-
jeito urbano escolarizado” e sobre como

253
o processo de escolarização e o de urba-
nização funcionam, ambos, como instru-
mentos, do Estado, de normatização, esta-
bilização, regulamentação dos sentidos do
sujeito e dos sentidos para o sujeito ocupar
a cidade.

Ao circularem os sentidos da normatização, da


estabilização e da regulamentação dos sentidos,
está posto em funcionamento pelas condições de
produção uma prática homogeneizante que implica
no apagamento dos sujeitos que não se adequam,
ou que não estão aptos por uma situação de defici-
ência (PFEIFFER, 2001).

Como solução, de modo falho e ainda mais


excludente, o Estado elabora novos projetos de lei
(PL) que visam à diminuição do número de alunos
que não conseguem se adaptar ao sistema ideo-
logicamente estabilizado. Exemplo disso é o PL no
7.081/2010 (GABRILI, 2010), que dispõe sobre o
diagnóstico e o tratamento do transtorno do défi-
cit de atenção e hiperatividade na educação básica,
aprovado recentemente (BRASIL, 2013) pela Câmara
dos Deputados.

254
O referido projeto garante diagnóstico e trata-
mento à criança na escola, assim como, a formação
do professor para a realização da identificação de tais
transtornos. Conforme delibera, os sistemas de ensi-
no devem assegurar que as crianças assim diagnosti-
cadas tenham acesso aos recursos didáticos adequa-
dos ao desenvolvimento de sua aprendizagem.

Ora, o que há mais a ser feito se o que mais se


têm elaborado são manuais que visam à pedagogi-
zação do corpo em prol da adequação cognitiva para
o desenvolvimento da aprendizagem, em especial,
visando a totalidade de um sujeito bio-psico-social?

Patto (1990), há 23 anos já apontava para as


condições de produção escolares mal elaboradas,
que produziam (e produzem) a indisciplina, ou o
mau comportamento de crianças num sistema de
ensino que tinha (e tem) como foco a padronização
do ensino.

Meu estranhamento, mais do que saber que dife-


rentes estudos já apontavam para a situação que con-
temporaneamente vivenciamos na escola, está em
saber que o campo teórico sobre o qual está funda-

255
mentada a educação básica no Brasil, como já apontei
anteriormente, apregoa que de modo cíclico o saber,
a aprendizagem e o desenvolvimento acontecem e se
elaboram de maneiras diferentes pelos sujeitos.

5 DO APRISIONAMENTO À
SUBVERSÃO: CONSIDERAÇÕES
FINAIS

O traço é um gesto de significação do corpo no


mundo. É a entrada do sujeito nos processos de sig-
nificação numa relação com o Estado.

Venho dissertando, ao longo desse texto, que


a escola é um espaço de significação onde estão
instauradas determinadas formas materiais e condi-
ções de produção, no qual circulam sujeitos que são
interpelados pela língua e pela ideologia.

Enquanto espaço simbólico singular para deter-


minados gestos do corpo sobre o próprio espaço,
sobre o próprio corpo e sobre os objetos de conhe-
cimento, a escola é espaço material, real, onde o
corpo encontra lugar para uma expressão possível.

256
Porém, a escola atual, que tem no corpo a marca
da uma práxis pedagogizante do controle, da ade-
quação, da preparação de processos cognitivos para
o desenvolvimento da aprendizagem, pouco permi-
te ao sujeito se expressar. Como efeito, o corpo se
rebela, escapa, encontra brechas que apontam para
aquilo que está ali preso, contido. Para mim, esses
são gestos que quebram com a ordem totalizadora
da pedagogização do corpo, da ordenação, deixando
aparecer o que há muito vem sendo desconsiderado.

Se enquanto Seres Vivo o homem é classifica-


do como animal, e a respeito dele é desconsiderado
o que o retira da instância da animalidade – a lin-
guagem, é como “bicho” que ele se faz expressar.
Ou, como se tivesse bicho em seu corpo, como as
crianças que, “frequentemente têm apelido de “bi-
cho carpinteiro” ou coisa parecida” (ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DO DÉFICT DE ATENÇÃO, 2013).

Assim como na descrição daquilo que, de modo


desavisado e descomprometido com o sujeito in-
sistem dizer da existência de um transtorno fictício,
como é o TDAH, a desconsideração da linguagem
e dos processos discursivos internos à língua pro-

257
movem, pedagogicamente, o retorno do sujeito à
animalidade, tendo o corpo como princípio e fim da
aprendizagem.

É a linguagem que permite ao homem significar.


E penso que é no real da língua que se estabelecem
estas possibilidades. Como aponta Pêcheux (1997a),
a língua é relativamente autônoma, com leis inter-
nas próprias.

É, pois, sobre a base dessas leis internas que


se desenvolvem os processos discursivos, e
não enquanto expressão de um puro pen-
samento, de uma pura atividade cognitiva,
etc., que utilizaria “acidentalmente” os sis-
temas linguísticos (PÊCHEUX, 1997a, p. 91,
grifo do autor).

Nesse sentido, penso que tomar o corpo en-


quanto corpo-sentido é primordial para os proces-
sos de ensino e aprendizagem na esfera da educa-
ção infantil, elaborando-se uma práxis pedagógica
sobre um corpo que significa enquanto parte de
uma instância maior chamada sujeito, que se elabo-
ra em meio a processos discursivos.

258
O traço marca o sujeito da contemporaneida-
de, de ser-homem-no-mundo-hoje em sociedades
que têm a letra como estatuto de civilidade. Toman-
do a singularidade das condições de produção do
espaço urbano, temos que na materialidade da lín-
gua escrita estão inscritos os processos sociais (OR-
LANDI, 2001a; SILVA, 1999). Ao apropriar-se dessa
materialidade, a cidade passa a estabelecer outras
relações com o sujeito, permitindo-lhe ocupar lu-
gares enunciativos enquanto posição-sujeito.

Isso porque, na perspectiva discursiva, a es-


crita especifica a natureza da memória, ou
seja, ela define o estatuto do interdiscurso
(o saber discursivo determina a produção
dos sentidos e a posição dos sujeitos), defi-
nindo assim, pelo menos em parte, os pro-
cessos de individualização do sujeito (OR-
LANDI, 1999, p. 8).

Isto posto, o traço passa a ser significado en-


quanto gesto, como parte da corporalidade da lin-
guagem (ORLANDI, 2001a), e não como efeito de
um movimento corporal. Enquanto gesto, dele e
sobre ele emanam sentidos, e marca uma posição.

259
No traço, penso, ao sujeito está ofertada, no in-
terior da escola, a significação. Ao traçar inicialmen-
te de modo livre, na descoberta dos significados
latentes, o sujeito pode subverter àquilo que está
posto para ele no interior de uma instituição mar-
cada por uma língua, na prática de uma pedagogia
fadada à repetição, responsabilizada pela produção
da consciência de unidade nacional.

Certa vez, ainda no período da minha gradua-


ção em fonoaudiologia, enquanto eu desenhava e
pintava durante meu descanso na clínica-escola,
recebi uma provocação de uma querida e impor-
tante professora9, que me disse: – O que importa é
o relevo!

Encerro esse texto na ânsia de que os relevos


revelados por tantos alunos da educação infantil no
território nacional sejam adequadamente conside-
rados e interpretados para que, num gesto do cor-
9
A Professora a quem po-sentido, possam expressá-los por meio do traço.
me refiro é a Fga.
Dra. Ivone Panhoca,
pela qual já há tantos
anos venho nutrindo
sentimentos de
respeito e gratidão.

260
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267
EDUCAÇÃO FÍSICA:
EM BUSCA DE
UMA NOVA A
RE-SIGNIFICAÇÃO
Eliana Lucia Ferreira*

Eu sou muitos, tem-se a impressão


de que se trata da mesma
pessoa porque o corpo é o mesmo.
De fato, o corpo é um, mas os “eus”
que moram nele são muitos.
Rubem Alves

*
Doutora em Educação Física. Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
1 INTRODUÇÃO

Introduziremos nossa reflexão sobre a questão


da inclusão nas aulas de Educação Física, formulan-
do algumas observações a respeito do espaço es-
colar e da relação corporal entre os sujeitos que a
praticam. Interessa-nos, sobretudo, pensar como
corpos materialmente diferenciados podem fazer
parte deste espaço marcado pela pluralidade cor-
poral que potencializa e valoriza sujeitos diferencia-
dos pelas (grandes) habilidades corporais.

A palavra inclusão traz o sentido de admitir, per-


mitir a quem chegou atrasado estar junto, passando
a ser compreendido/incorporado por um determi-
nado grupo já existente. Ao contrário da palavra in-
clusão tem-se presente a exclusão, que traz o senti-
do a priori de incompatível.

A primeira vista, ambos termos implicam ambi-


guidades de significações, mas por outro lado, eles
designam características em comum, pois inclusão
e exclusão, embora possuem usos diversos, ambos
invocam pertencimento social.

271
Nesta perspectiva ao buscarmos o entendi-
mento da palavra inclusão escolar, percebe-se no
implícito que as pessoas com deficiência, que eram
consideradas incompatíveis socialmente, trazem
consigo o sentido da diferenciação. No entanto, é
explícito que é na diferença que o contexto social
tem apontado avanços indistintamente, resguar-
dando assim, o direito à diferença na igualdade de
direitos. O que está posto aqui, é que é necessário
Diferenciar, excluir para instituir, Incluir.

O processo de inclusão escolar está sendo defi-


nido num espaço/lugar resultante das articulações
e das desarticulações entre as multiplicidades cul-
turais e sociais. numa tensão/distensão emaranhada
de diferenças e semelhanças, disputas e alianças.

Ao longo da história, muitos dos espaços so-


ciais foram negados à pessoa com deficiência e,
entre eles, “o espaço escolar”. Entendendo a real
necessidade de mudança nesse quadro, a legis-
lação de atendimento educacional especializado
nos estabelecimentos de ensino norteada pela Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB
no 9.394/96) e pela Política Nacional da Educação

272
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Por-
taria nº 555/2007), assim como pelas Leis no 10.048
e 10.098 de 2000, estabeleceu normas gerais e cri-
térios básicos para a promoção da acessibilidade e
da inclusão das pessoas com deficiência no âmbito
social, cultural e educacional.

Sendo assim, a presença de pessoas com defi-


ciência na rede de ensino é assegurada pelos direi-
tos à igualdade de oportunidades e à participação
social (AMARAL, et al, 1998, p.3). No entanto, não
se trata, incluir não é apenas, garantir estar junto, o
direito ao acesso escolar, nem tão pouco garantir
ou reconhecer o direito à igualdade de oportunida-
des, mas sim, assegurar e dar condições para que a
permanência dos alunos com deficiência na escola
aconteça com sucesso, num processo constitutivo
de respeito, equiparação e conhecimento.

No entanto, os conceitos e as concepções


equivocados sobre deficiência ainda fazem parte do
imaginário social, o que acarreta sérias atitudes de
exclusão (BISSOTO, 2013). Reside, aqui, uma segre-
gação social. Esta segregação muitas vezes passa a
fazer parte da identidade da pessoa com deficiên-

273
cia, fazendo-o sentir-se impotente perante os me-
canismos sociais.

É fato que a proposta da inclusão escolar, em


muitos lugares, ainda, apresenta-se num espaço
abstrato, onde a ordem do conhecer encontra –se
em um momento de crise, rupturas, dissonâncias e
contradições em relação a ordem do fazer.

Fazer a inclusão escolar não é um aconteci-


mento singular e contingente, é pulverizar uma pro-
posta de mudança social em busca da legitimação
das mudanças culturais que se faz presente nesta
sociedade contemporânea que se sustenta e privile-
gia o diferente, o inédito, o espetacular.

Atualmente a quebra do unívoco social e a bus-


ca pelos corpos múltiplos abrem espaço para re-
pensar o espaço escolar, que esta tendo que se rein-
ventar, se reorganizar e se redefinir.

Nesta nova perspectiva, o espaço escolar das


aulas de Educação Física, estão se tornando um foro
para celebrar as diferenças corporais, oferecendo a
oportunidade de fortalecer e divulgar valores e ma-

274
nifestações que perpetuam a expressão de identi-
dades, contribuindo para a promoção, valorização
e salvaguarda da cultura e do direito do cidadão se
manifestar corporalmente.

Se por um lado, tradicionalmente, as aulas de


educação física são organizadas e planejadas su-
pondo alunos homogêneos, o que deixa os alunos
com deficiência limitados no que tange aos seus di-
reitos de participação efetiva nas atividades propos-
tas (ECHEITA, 2009), onde as ações propostas ainda
estão muito determinadas pela concepção de mo-
vimento corporal padronizado.

Por outro lado a presença de corpos diferen-


ciados neste espaço antes reservado a perfeição
está suscitando implicações para uma nova propos-
ta do que seja efetivamente as atividades nas aulas
de Educação Física.

Vale ressaltar que os esportes paraolímpicos


tem se revelado como uma modalidade específi-
ca que aos poucos está se estabelecendo de forma
peculiar, como uma atividade que valoriza as desi-
gualdades corporais.

275
Através dos esportes adaptados, as pessoas com
deficiência estão construindo uma nova identidade,
atrelada a uma história personificada dentro de uma
proposta coletiva, onde o preconceito, se não su-
perado é confrontado.

Sendo assim, estamos vivendo um momento em


que a sensibilidade individual, ou seja, o maior com-
prometimento dos professores de Educação Física
está estabelecendo um outro convívio coletivo, co-
laborando assim para a efetivação e participação dos
alunos com deficiência nas atividades curriculares.

Portanto, a inclusão de alunos com deficiência


nas aulas de Educação Física é uma realidade cada
vez mais marcante, mas estar junto somente no es-
porte não garante a efetivação da inclusão social.
Para que a Educação Física seja inclusiva é necessá-
rio que os professores preconizem que as atividades
corporais, são pertinentes a todos. É fundamental
que as atividades didáticas sejam dimensionadas e
para tal é essencial estabelecer objetivos coletivos.

Mas se, nesse primeiro momento social, ainda


se faz necessário desenvolver a inclusão a partir do

276
já construído, proposto no projeto pedagógico tra-
dicional, faz-se necessário também, repensar a for-
ma de praticar estas atividades, buscando possibili-
dades de aprendizagem e participação empírica por
parte do aluno com deficiência, mobilizando assim,
outras formas de gestos corporais, contraponto di-
ferentes relações entre todos os alunos e com suas
memórias.

O certo é que as aulas de Educação Física não


podem ser improvisadas, necessitando desenvolver
uma prática refletida, buscando deslocar o sentido
de inocuidade e romper com o conceito de homo-
geneização das turmas escolares, almejando uma
escola que não apague a especificidade cultural dos
seus alunos, considerando os trabalhos de campo
avaliados e bem sucedidos.

Neste sentido, é importante estabelecer ativida-


des corporais que permitam e respeitem as diferen-
ças e os limites corporais individuais, incentivando
o desenvolvimento de ações motoras que levem
à participação efetiva dos alunos com deficiência,
reforçando as práticas sócio-culturais corporais,
buscando um programa exequível para fortalecer

277
e expandir as vivências corporais necessárias, tanto
no meio escolar quanto no meio social. Para tal, é
necessário reunir recursos humanos, elaborar ma-
teriais que envolvam novos conhecimentos, utilizar
equipamentos tecnológicos e acessíveis e atuar em
parcerias com a comunidade escolar e familiar. Por-
tanto, é importante viabilizar o que se propõem.

É preciso ainda estabelecer, uma outra pro-


posta didática/metodológica, um eixo de direito
respeitando a diversidade como dupla estratégia de
apropriação de novos conceitos para detenção do
conhecimento, visando atender o que se determina
e projeta para o novo paradigma escolar. É preciso
então re-significar a própria educação física.

Mas, trabalhar com os conteúdos específicos da


Educação Física torna-se essencial nesta proposta
inclusiva, pois é necessário que todos os alunos te-
nham o conhecimento da base do movimento cor-
poral, da possibilidade individual de se movimentar e
das limitações de cada um. Conhecer as dimensões
corporais é conhecer o funcionamento do sujeito
(deficiente e não deficiente), deixando visível os pro-
cessos de constituição corporal de cada um e ao

278
mesmo tempo, mostrando o modo que cada “um
significa corporalmente e como se significa”.

Por outro lado, o professor de Educação física


também precisa mobilizar diferentes formas de co-
nhecimento corporal a ser trabalhada, experimen-
tada e vivenciada, não só nas aulas escolares, mas
também na rotina do dia a dia do sujeito. Assim,
esse profissional não pode se ater, exclusivamen-
te, no conhecimento estabelecido e específico da
Educação Física. É preciso alargar sua compreensão
de movimento e de possibilidades corporais, pois os
problemas e soluções para uma aula inclusiva de-
pende da relação corporal que se constitui na “re-
lação” do sujeito com o seu corpo e com o corpo
dos demais.

Inegavelmente, nas aulas de Educação Física


pensadas para as pessoas com deficiência, há uma
dominância do saber sobre os esportes adaptados
em relação às demais atividades corporais. Isto de-
riva do fato de que, na década de 80 e 90, foram
constituídos muitos estudos e pesquisas sobre essa
temática. No entanto, atualmente há mais acesso à
informação e formação de novas práticas corporais,

279
que estão cada vez mais difundidas e são essenciais,
além de serem o lugar de entrada para a compreen-
são de gestos corporais diferenciados, possíveis de
serem executados pelas pessoas com deficiência.

A proposta de uma escola inclusiva é absoluta-


mente necessária e precisa ser planejada em todas
as suas circunstâncias. Sabemos que não é possível
pensar em mudanças sem propor transformações e
isto se faz por re-significação, o que implica em di-
zer que, não basta propor uma escola inclusiva, mas
é necessário que os alunos “saibam e se sintam in-
cluídos”.

Por isso, as metas, objetivos e procedimentos


metodológicos nas aulas de Educação Física Inclu-
siva são fundamentais e decisivos para a busca de
uma sociedade pautada na diversidade.

Vale ressaltar que o conhecimento não é só um


conteúdo, mas um elemento estruturante do ser em
uma sociedade. Assim, a Educação Física quando
atende à manifestação e ao interesse de diferentes
alunos em terem acesso e participação efetiva nas
atividades práticas corporais, estabelece as especi-

280
ficidades necessárias e as aulas ganham uma outra
dimensão que se define com mais autonomia num
sistema que permite que os alunos a “reconheçam e
se reconheçam”.

Portanto, faz-se necessário instituir uma Educa-


ção Física que reinvindica especificidades, mas rein-
vindica também, a possibilidade de ir além do que já
está padronizado. É fundamental investir, sistemati-
camente, em novas vivências corporais, buscando
historicizar uma outra cultura corporal, uma outra
discursividade.

Dessa maneira, a Educação Física se instituirá no


cenário escolar, como um dos pilares efetivos para a
Educação Inclusiva, participando e projetando sen-
tidos e ao mesmo tempo, projetando-se.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acesso a um sistema educacional inclusivo


em todos os níveis pressupõe a adoção de medi-
das de apoio específicas para garantir as condições
de acessibilidade, necessárias à plena participação e

281
autonomia dos estudantes com deficiência, em am-
bientes que maximizem seu desenvolvimento aca-
dêmico e social.

Com a constituição das escolas inclusivas, es-


tabeleceu-se um confronto social, educacional e
político que apresenta de um lado uma certa resis-
tência à diversidade social e por outro, uma estru-
tura de novas possibilidades de conhecimento. Essa
dualidade contraditória se faz presente no interior
das relações sociais, políticas e educacionais.

Sendo assim, o movimento da inclusão pode


ser compreendido como uma espécie de luta entre
duas vias, nos seus aspectos educacionais, individu-
ais, sociais, históricas e pragmáticas, estabelecendo
uma contradição constitutiva.

Entretanto, a inclusão escolar está longe de


cumprir o seu destino, pois ela é um “movimento
em movimento”, de ramificações em compromis-
sos individuais em prol de compromissos coletivos,
com a pretensão de resolver as insuficiências de um
sistema social, se posicionando como um desejo de
completude teórica\metodológica.

282
Nesta linha de raciocínio, a Educação Física está
buscando um espaço concreto para celebrar as di-
ferenças corporais, propondo a oportunidade de
resgatar, fortalecer e divulgar valores e manifesta-
ções que perpetuem a expressão da identidade indi-
vidual, contribuindo para a promoção, valorização e
preservação da cultura e do direito do cidadão com
e sem deficiência.

Para tal, a Educação Física tem preconizado ou-


tro significado de corpo, incidindo, determinando,
prevalecendo em suas atividades, a busca de uma
Educação Física mais coletiva.

Por isso, a Educação Física (inclusiva) não pode ser


vista mais de forma unilateral, pois ela está buscando
ser desenvolvida na dinâmica do seu funcionamento.
E isto está sendo possível porque de um lado temos
o movimento corporal dizível, exequível, conhecido,
enquanto do outro temos a possibilidade da criativi-
dade do movimento que rompe com o estabelecido,
com o dominante, com o plausível. E nesta junção de
possibilidades se estabelece, se instaura, se instiga e se
promove a interlocução de “sujeitos e sentidos”, pon-
do em evidência o diferente, o impossível/possível.

283
E a partir da consideração do impossível\possí-
vel, do individual\social, do exequível\criatividade e
dos interlocutores, novos conhecimentos podem se
tornarem (comuns) a todos, porém não (iguais).

E é nessa dicotomia, nas diferentes posições


do sujeito, na multiplicidade de objetivos, sentidos
e ilusões, que será possível instaurar o verdadeiro
significado da Educação Física Inclusiva, tornando-a
em conhecimento factual e tradicional, mensurável
para essa nova ordem social.

284
REFERÊNCIAS

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