Você está na página 1de 698

ANAIS do Seminário de Estudos do Texto e do Discurso

Leitura e Escrita em qualquer língua, suporte ou perspectiva

Realização

Apoio
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Seminário de Estudos do Texto e do Discurso, (4. : 2020 : Natal, Rio Grande do Norte).
Anais do IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso (SETED): leitura e escrita em
qualquer língua, suporte ou perspectiva / organizado por Sulemi Fabiano Campos ... [et al.]. –
Natal: UFRN, 2021.
698 p.: il. color.

Inclui bibliografia.

Evento realizado no dia 03 e 04 de dezembro de 2020.


ISBN 978-65-5869-432-8 [Digital]

1. Letras – Brasil – Evento. 2. Linguística– Brasil – Evento. 3. Leitura – Brasil – Evento.


4. Escrita – Evento – Brasil – Evento. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. II.
Campos, Sulemi Fabiano... [et al.]. III. Título.

RN/BS-CCHLA CDU 81’1


CDD 410

Ficha catalográfica elaborada por Heverton Thiago Luiz da Silva – Bibliotecário-Documentalista / CRB 15/710

Organizadores
SULEMI FABIANO CAMPOS
JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA
RENATA INGRID DE SOUZA PAIVA
REBECCA CRUZ PINHEIRO
BRUNA FRANCINETT BARROSO FAUSTINO DE SOUZA
MAIARA DO NASCIMENTO ARAÚJO

Formatação e trabalhos técnicos no anais


Adenilton da Silva Rocha
Adriana Santos Batista
Antônia de Jesus Alves dos Santos
Cleyse Guimarães Siebra
José Railson da Silva Costa
Lucilene Soares da Costa
Maria Claudiane Silva de Souza
Sheila Perina de Souza

Diagramação
Vinicius Rodrigues da Silva

Projeto Gráfico
Melina Nascimento Gomes
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 5
CULTURA, DIVERSIDADE E AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS......................................................... 18
A LÍNGUA PORTUGUESA E O INSUCESSO DO SISTEMA DE ENSINO NA GUINÉ-BISSAU:
CASO DAS CRIANÇAS DA ETNIA BALANTA-NHACRA DE TOMBALI ............................... 28
ENSINO DAS LÍNGUAS MOÇAMBICANAS: AVANÇOS E DESAFIOS PARA O SISTEMA
NACIONAL DE EDUCAÇÃO ......................................................................................................... 41
FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM MOÇAMBIQUE: AVANÇOS E RECUOS PARA
INTRODUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA DAS LÍNGUAS BANTU NO ENSINO BÁSICO ... 47
DO PASSADO AO PRESENTE: A CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE LÍNGUA ............. 60
A LÍNGUA COMO BASE DA IDENTIDADE CULTURAL DOS POVOS .................................. 73
LETRAMENTOS NA PERSPECTIVA DECOLONIAL: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE
EXTENSÃO BRINQUEDOTECA DE HISTÓRIAS ....................................................................... 86
ESCRITA SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO E APROPRIAÇÕES DAS TEORIAS
LINGUÍSTICAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO ......................................................................................................................... 96
EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O USO DO GÊNERO MEME NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA ............................................................................................................... 109
MULTILETRAMENTOS: CONTRIBUIÇÕES PARA O TRABALHO COM AS TECNOLOGIAS
NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................................. 123
O ENSINO DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO: UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE
LEITURA......................................................................................................................................... 133
RELATO DE EXPERIÊNCIA: O GÊNERO COMENTÁRIO ONLINE NA EDUCAÇÃO BÁSICA
.......................................................................................................................................................... 147
ESPECIFICIDADES ESTILÍSTICAS DO GÊNERO ARTIGO CIENTÍFICO DE LINGUÍSTICA
EM DUAS LÍNGUAS/CULTURAS ............................................................................................... 161
A SEQUÊNCIA INJUNTIVA: ANÁLISE NO GÊNERO DISCURSIVO TEXTUAL CARTILHA
EDUCATIVA EM TEMPOS DE PANDEMIA .............................................................................. 173
TECENDO CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ESCRITA NA EDUCAÇÃO BÁSICA DA
REGIÃO DO MATO GRANDE: ASPECTOS TEXTUAIS E ENUNCIATIVOS DO GÊNERO
ARTIGO DE OPINIÃO PRODUZIDO NO PROCESSO SELETIVO ENSINO MÉDIO
INTEGRADO .................................................................................................................................. 188
PROJETOS DE LEI E SUAS NORMAS NA PERSPECTIVA DA ANÁLISE TEXTUAL DOS
DISCURSOS.................................................................................................................................... 204
EXCESSO DE LINGUAGEM – O PAPEL DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA
ANULAÇÃO DE DECISÕES DE PRONÚNCIA .......................................................................... 217
VISADA ARGUMENTATIVA E RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA “SUSTENTAÇÃO
ORAL” DE ADVOGADOS DE DEFESA EM CRIMES DE HOMICÍDIOS ................................ 232
A FUNÇÃO ARGUMENTATIVA DO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA NA SENTENÇA
PENAL CONDENATÓRIA ............................................................................................................ 245
PLANO DE TEXTO E VISADA ARGUMENTATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO DECRETO
NO CENÁRIO DE PANDEMIA DA COVID-19 ........................................................................... 255
PLANO DE TEXTO, RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E VISADA ARGUMENTATIVA
NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA JORNALÍSTICA ......................................................... 264
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO/TEXTUAL SENTENÇA
JUDICIAL ........................................................................................................................................ 279
A (NÃO) ASSUNÇÃO DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NOS GÊNEROS
DISCURSIVOS DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA E SENTENÇA CONDENATÓRIA ........ 291
LEITURAS E ESCRITAS NO ENSINO REMOTO E AS FERRAMENTAS DIGITAIS COMO
ESTRATÉGIA DE APRENDIZAGEM EM TEMPOS DE PANDEMIA ...................................... 305
AÇÕES INTERATIVAS NO ESTUDO DA LEITURA/ESCRITA DE MANEIRA REMOTA ... 317
ABORDAGEM DIALÓGICA NO ENSINO REMOTO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA
ESTADUAL PROFESSOR ANTÔNIO PINTO DE MEDEIROS ................................................. 324
A MEDIAÇÃO DOCENTE NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE LEITURA
E DE ESCRITA EM TEMPOS DE ENSINO REMOTO................................................................ 332
PARA LER, ESCREVER E COMPARTILHAR: A LEITURA LITERÁRIA HOJE. ................... 343
O ALUNO-LEITOR COMO SUJEITO SOCIAL E POLÍTICO: EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM
O GÊNERO CONTO NO ESTÁGIO CURRICULAR DA UFPE.................................................. 356
A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TEMPOS DE PANDEMIA
NO ENSINO REMOTO .................................................................................................................. 370
MULTIMODALIDADE E LETRAMENTO CRÍTICO: CAPACIDADES DE LEITURA
EXIGIDAS PELAS REDES SOCIAIS ........................................................................................... 384
A PROBLEMÁTICA DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) EM TEMPOS DE COVID-19 E OS
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................................ 399
MAPEAMENTO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA
LITERÁRIA..................................................................................................................................... 409
A VOZ NARRANTE NO TEXTO LITERÁRIO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE LEITURA
COM PROFESSORES EM FORMAÇÃO ...................................................................................... 417
AS MICRONARRATIVAS LITERÁRIAS: UM CAMINHO PARA A LEITURA LITERÁRIA NO
ENSINO BÁSICO?.......................................................................................................................... 429
“O SOL NA CABEÇA”, DE GEOVANI MARTINS: ENSINANDO A TRANSGREDIR A PARTIR
DE UMA PROPOSTA DESCENTRALIZADORA DE LEITURA E ESCRITA LITERÁRIA .... 436
“ERA UMA VEZ” ... AS PRÁTICAS SOCIAIS E VIRTUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM
TEMPOS DE PANDEMIA ............................................................................................................. 450
LEITURA DE CHARGES: UMA ANÁLISE À LUZ DA PERSPECTIVA DIALÓGICA DA
LINGUAGEM ................................................................................................................................. 459
PROPOSTAS DE PRODUÇÃO DE SEMINÁRIOS EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO
MÉDIO............................................................................................................................................. 469
O PROCESSO DA ESCRITA NA PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ............................................................... 485
IMAGENS DO LUGAR DO ESPANHOL NO ENSINO FUNDAMENTAL EM RELATÓRIOS DE
ESTÁGIO DA UFRN ...................................................................................................................... 500
MARCAS DE REMISSÃO A DISCURSOS OUTROS NA ESCRITA DE ALUNOS DO ENSINO
FUNDAMENTAL ........................................................................................................................... 508
DA PROPOSTA À REDAÇÃO NOTA MIL DO ENEM 2019: ANÁLISE DA ESTRUTURA DE
UM TEXTO ..................................................................................................................................... 519
HETEROGENEIDADE E(M) DISCURSO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O OUTRO E O
DIFERENTE .................................................................................................................................... 529
UM ESTUDO SOBRE A GÊNESE DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS BRASILEIROS .......... 543
DISCURSO RELIGIOSO E SILENCIAMENTO NA ESCRITA: UM ESTUDO DE CASO ....... 557
LEITURA DE SI E ESCRITA DO MUNDO: SOBRE TRADUZIR E FAVORECER
DESLOCAMENTOS ....................................................................................................................... 569
A RECATEGORIZAÇÃO DO OBJETO DE DISCURSO ISOLAMENTO NA PÁGINA RECIFE
ORDINÁRIO NO TWITTER ........................................................................................................... 583
AFINAL, O QUE É “ESQUERDA”?: UM ESTUDO SOCIOCOGNITIVO ACERCA DA
REFERENCIAÇÃO DA CATEGORIA “ESQUERDA” EM TWEETS DE SUJEITOS DE
POSICIONAMENTO POLÍTICO DE EXTREMA DIREITA ....................................................... 594
O DISCURSO JURÍDICO E AS PROVAS RETÓRICAS EM UM PROCESSO JUDICIAL:
ANÁLISE DE UMA PETIÇÃO INICIAL ...................................................................................... 608
A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA APRESENTADA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA
ESPANHOLA: UMA ANÁLISE DOS LIVROS ENTRE LÍNEAS 7 E CAMBIO 8 .................... 617
MOBILIZANDO NOÇÕES SOBRE AUTORIA E AUTORIALIDADE NOS DISCURSOS ...... 633
A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO DO LEITOR NO CONTO TIGRELA, DE LYGIA FAGUNDES
TELLES ........................................................................................................................................... 646
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DO GÊNERO EPOPEIA NA ESCOLA ................................ 656
DISCURSO POLÍTICO, IDENTIDADE E IDEOLOGIA NAS POSTAGENS DO FACEBOOK 668
IDEOLOGIA E TOMADAS DE POSIÇÃO: A IMPORTÂNCIA DA(S) FORMAÇÃO(ÕES)
DISCURSIVA(S) NA/PARA MOBILIZAÇÃO DE SENTIDO(S) ................................................ 685
5

APRESENTAÇÃO DO ANAIS IV SETED

Resistência. Essa é a palavra que nos move e nos moveu neste período de pandemia
para a realização do nosso evento de forma remota e para a publicação deste Anais. Em anos em que
a ciência é ameaçada e as instituições de ensino perdem recursos e precisam sustentar suas atividades
remotamente, precisamos resistir e nos reinventar para dar continuidade aos nossos projetos e esta
publicação é fruto dessa resistência.
Em nome dessa resistência, no ano de 2020, nos dias 3 e 4 do mês de dezembro,
realizamos o IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso (IV SETED), no formato remoto, por
meio das plataformas Youtube e Google Meet, unindo professores e alunos de diversos países sem
saírem de suas casas. Esse seminário é o evento anual de socialização de pesquisas criado pelo Grupo
de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED), parceiro da Associação Nacional de
Pesquisa na Graduação em Letras (ANPGL).
O GETED, fundado em 2010 e registrado junto ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), é liderado pela Profa. Dra. Sulemi Fabiano
Campos e hoje conta com aproximadamente 32 membros, dentre os quais estão alunos da graduação,
Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu, bem como professores do ensino básico e superior. Durante
o IV SETED, comemoramos 10 anos de criação do grupo e suas contribuições para produção de
conhecimento, que contava com 18 dissertações, 20 artigos científicos, 22 livros, organização de
livros e capítulos e 6 teses até o ano de 2020.
Tendo em vista a expansão do evento no seu formato remoto, que possibilitou amplas
inscrições para pesquisadores do Brasil e do mundo, o evento teve como tema "Leitura e Escrita em
qualquer língua, suporte ou perspectiva" e tornou-se espaço para o compartilhamento de resultados
de pesquisas diversas, em especial as desenvolvidas pelo GETED, que têm como foco a análise
discursiva de produções textuais da educação básica e superior.
Nesta edição do evento, tivemos 6 mesas redondas, divididas nos dois dias do
seminário. A mesa de abertura, “Políticas para pesquisa e ensino de leitura e a escrita em defesa da
vida”, tratou do momento de pandemia em que estamos vivendo e da importância da ciência para
defesa da vida, como forma de romper com o negacionismo instaurado no Brasil. A segunda mesa,
“Reflexos das perspectivas teóricas e do multilinguismo na escrita e leitura na escola básica”, foi
marcada pela discussão sobre a escrita na escola básica em diferentes realidades, do Brasil ao
Marrocos. A terceira mesa redonda, “O fazer científico presente na universidade e a produção de
conhecimento”, debateu a produção de conhecimento nas universidades, suas dificuldades e o
caminho para superá-las.
No segundo dia, tivemos a quarta mesa redonda do evento, intitulada “A escrita na
formação de professores e a produção científica” cujos participantes discorreram sobre a importância
6

da produção científica para a formação de professores que sejam também pesquisadores. A quinta
mesa teve como tema “Escrita e produção de conhecimento: línguas que definem as perspectivas
teóricas”, em que a produção no ensino superior foi foco de discussão, especialmente o modo como
os pesquisadores definem suas fundamentações teóricas. Por fim, a mesa de encerramento, intitulada
“Relatórios de estágios como suporte para circulação ou produção de conhecimento: texto e discurso”
foi marcada por debates sobre a escrita de graduandos e as imagens que eles constroem de si, dos
professores da escola básica e do próprio fazer do professor por meio de seus relatórios de estágio.
Todas essas mesas podem ser (re)assistidas por meio do canal do GETED no Youtube.
Além das mesas redondas, o IV SETED contou com 18 simpósios: “Ler e escrever na
América Latina”; “Ler e escrever nas línguas da África”; “Leitura, escrita e formação na universidade
contemporânea: (re)produção de conhecimento”; “Gêneros do discurso e multiletramentos nas
práticas de Leitura e de Escrita no ensino de línguas”; “Os gêneros do discurso: perspectivas
bakhtinianas”; “Diferentes gêneros discursivos em análise”; “Leitura e Escrita em suporte eletrônico:
o ensino remoto e a educação a distância”; “Do planejamento pedagógico ao ensino de leitura e
escrita: discursos, abordagens teóricas e práticas de ensino”; “Educação, formação de professores e
tecnologias digitais da informação e comunicação: interações, linguagens e experiências de
pesquisa”; “Caminhos para a leitura e a escrita do texto literário”; “Práticas e experiências de ensino
de Língua Portuguesa na Educação Básica”; “Discurso, Leitura e Escrita”; “Escrita, leitura e
heterogeneidade enunciativa: da escola à universidade”; “Lacan com Freire: escrever para além da
cultura do silêncio”; “Argumentação, discurso e texto: possibilidades de diálogos”; “Linguagem,
interculturalidade e decolonialidade: potenciais para o estudo de discursos e práticas comunicativas”;
“Discurso e Enunciação”; e “Estudos do discurso: perspectivas crítica e transdisciplinar”. Esses
simpósios acolheram diversas comunicações orais e foram realizados por meio do Google Meet,
possibilitando o acesso de pesquisadores de diferentes estados e países.
Dentro desses simpósios, contamos com 216 comunicações inscritas e com 473
participantes de instituições diversas, cerca de 71, que tornaram esse evento de grande alcance, com
participação de muitas instituições brasileiras, mas também internacionais, como universidades
argentinas, moçambicanas, angolanas, marroquinas, entre outras. Além disso, também destacamos os
grupos de pesquisa da rede que estão envolvidos no evento, sendo eles: Grupo de Pesquisa em Estudos
do Texto e do Discurso (GETED); Grupo de Estudos Escrita e Produção de Saberes (GEEPS); Grupo
de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso; Leitura e Escrita (GEPADLE); Grupo de Estudos
sobre Texto e Enunciação (GETEn); Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise
(GEPPEP); Grupo de Pesquisa de Pesquisa em Discurso, Sujeito e Ensino (DISSE); Grupo de
Pesquisa “Análise Textual dos Discursos” (ATD); Grupo de Pesquisa Ensino, Leitura e Escrita
(GPELE); Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Formatação e Prática Docente de Línguas; Práticas de
7

Linguagem e Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPGMEM); Grupo de Estudos e


Pesquisa em Políticas de Formação e Trabalho Docente (GEPPFORTRAD); Grupo de Estudos e
Pesquisa em Leitura, Escrita, Livros e Linguagens (GEPLELL); Grupo de Pesquisa Literatura,
Enunciação e Cultura (LECult); Grupo de Pesquisa em Produção e Ensino do Texto (GPET); Grupo
de pesquisa Língua, Imigração e Identidade; e Grupo de Pesquisa Discurso, Escrita e Formação.
A seguir, apresentamos os simpósios e seus respectivos trabalhos publicados nestes anais.
O Simpósio “Ler e escrever na América Latina” foi coordenado pelos Prof. Dr. André
Campos Mesquita (USP), Prof. Me. Marcelo Roberto Dias (USP) e pela Profa. Me. Tatiane Silva
Santos (UNEMAT/USP), e foi constituído para ser um espaço de apresentação de experiências de
leitura e de escrita nas línguas que são faladas na América Latina.
O trabalho “Cultura, diversidade e aquisição de línguas”, que compõe o Simpósio,
apresenta alguns conceitos referentes ao tema cultura, educação e diversidade e seu foco central se
volta para a abordagem da “língua” como patrimônio cultural de um povo e em específico a língua
espanhola.
O Simpósio “Ler e escrever nas línguas da África” foi conduzido pelos professores Dr.
Alexandre Antônio Timbane (UNILAB), Dra. Lucilene Soares da Costa (UEMS), Dr. Márcio Undolo
(Universidade Lueji A’Nkonde), Dra. Adriana Santos Batista (UFBA) e Ma. Sheila Perina de Souza
(USP) e teve como mote debater questões referentes ao ensino de leitura e escrita em línguas
africanas, respeitando-se variedades e dialetos.
O trabalho “A língua portuguesa e o insucesso do sistema de ensino na Guiné-Bissau:
caso das crianças da etnia Balanta-Nhacra de Tombali” se propõe a analisar o impacto do ensino de
língua portuguesa como língua oficial para alunos da 1ª à 4ª classe da etnia Balanta-Nhacra, na região
sul de Guiné-Bissau, os quais têm uma cultura de tradição oral em outras línguas não oficiais.
Representando a realidade de ensino em Moçambique, o trabalho “Ensino das línguas
moçambicanas: avanços e desafios para o sistema nacional de educação” aborda o sistema
transicional de ensino e os seus desafios, destacando o processo de desvalorização das línguas
moçambicanas à medida que as crianças progridem em escolarização.
Dialogando com o trabalho anterior, a comunicação “Formação de professores em
Moçambique: avanços e recuos para introdução da leitura e escrita das línguas bantu no ensino
básico” discute a necessidade de formação dos professores em línguas bantu a fim de mitigar os
insucessos dos estudantes que ingressam nas séries iniciais com as línguas moçambicanas e, aos
poucos, a formação passa a ser realizada em língua portuguesa.
O texto “Do passado ao presente: a construção de uma imagem de língua” aborda a
questão do multilinguismo em Angola, discutindo a hipervalorização da língua portuguesa no ensino
básico em detrimento das culturas locais. As autoras discutem a manutenção de um discurso oficial
8

sustentado por uma língua dominante. A abordagem dialoga com a proposta do texto que segue, “A
língua como base da identidade cultural dos povos”, o qual defende que as aulas de História
constituem um espaço de desenvolvimento da identidade cultural dos estudantes com vistas à
compreensão e à valorização das diversidades linguísticas em Angola.
Fechando os trabalhos do simpósio, em “Letramentos na perspectiva decolonial: a
experiência do projeto de extensão brinquedoteca de histórias”, encontramos o relato de uma
experiência vivenciada no âmbito do Projeto de Extensão “Brinquedoteca de histórias: ludicidade,
contação de histórias e vivências de letramento na infância”, da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. O destaque do relato está em oportunizar vivências
lúdicas que contemplem, entre as diversas possibilidades do brincar, a fruição da literatura infantil e
a contação de histórias a partir de ferramentas digitais em virtude da pandemia de covid-19.
O Simpósio “Leitura, escrita e formação na universidade contemporânea: (re)produção
de conhecimento”, mediado pela Profa. Dra. Marinalva Vieira Barbosa (UFTM) e pelo Prof. Dr.
Thomas Massao Fairchild (UFPA), discutiu trabalhos que tivessem como foco a leitura e escrita
acadêmica, a fim de problematizar as produções universitárias – tanto no âmbito da graduação quanto
da pós-graduação, em diferentes áreas – e refletir sobre que elementos tornam possível que um texto
seja considerado bom e fruto de um trabalho em que o sujeito está implicado e produz algo de próprio
na sua área.
No âmbito desse simpósio, temos como representante o trabalho “Escrita sobre as práticas
de ensino e apropriações das teorias linguísticas: uma análise discursiva dos relatórios de estágio
supervisionado”, que reflete sobre a constituição de conhecimento e do próprio sujeito produtor em
relatórios de estágio supervisionado, a partir da análise de 20 relatórios de estágio no curso de Letras
na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Para isso, a pesquisa teve como base os
pressupostos teóricos de Barzotto (2007); Geraldi (2003); Bianchi (2002) e Vásquez (1977).
O Simpósio “Gêneros do discurso e multiletramentos nas práticas de leitura e escrita no
ensino de línguas”, por sua vez, foi coordenado pelas professoras Dra. Eliane Pereira dos Santos
(UFMA) e Dra. Maria Francisca da Silva (UFMA) com a motivação de abraçar trabalhos que
discutem as práticas de leitura e escrita a partir da perspectiva de multiletramentos.
Nele, o trabalho “Educação em tempos de pandemia: o uso do gênero meme no ensino de
língua portuguesa” discute estratégias de leitura e produção textual a partir do gênero meme,
destacando a funcionalidade do gênero digital e o seu papel na interação social em tempos de
pandemia. O trabalho “Multiletramentos: contribuições para o trabalho com as tecnologias no ensino
de língua portuguesa” também se volta para o ensino de língua, e traz uma revisão bibliográfica sobre
as contribuições dos estudos em multiletramentos para o fortalecimento do ensino a partir de
tecnologias educacionais.
9

O texto “O ensino do gênero artigo de opinião: uma concepção dialógica de leitura”


propõe o artigo de opinião como objeto de ensino a partir da análise de estratégias argumentativas e
dialógicas no artigo “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de Deus”. O estudo demonstra que
o discurso citado se configura como uma estratégia argumentativa que serve às intenções.
No trabalho “Relato de experiência: o gênero comentário online na educação básica”, a
oficina desenvolvida com alunos de 8º e 9º anos do Ensino Fundamental destaca a relevância da
abordagem do comentário online como objeto de ensino nas aulas de Língua Portuguesa,
proporcionando posicionamento e interação entre os estudantes sobre notícias.
Sob a coordenação da Profa. Dra. Lucélia de Sousa Almeida (UFMA), o Simpósio “Os
gêneros do discurso: perspectivas bakhtinianas” visou acolher trabalhos com base teórica na obra de
Bakhtin, dotados de análises e reflexões dos discursos das diversas esferas da atividade humana
(religiosa, literária, jornalística, etc.).
O trabalho componente desse simpósio, “Especificidades Estilísticas do Gênero Artigo
Científico de Linguística em duas línguas/culturas”, se propôs a compreender as especificidades do
gênero artigo científico em duas línguas/culturas, a brasileira e a chilena, e o português e o espanhol.
O Simpósio “Diferentes gêneros discursivos em análise” foi coordenado por Profa. Dra.
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN), Profa. Cláudia Cynara Costa de Souza (UFRN) e Profa.
Ma. Isabel Romena Calixta Ferreira (UFRN) e teve como mote discutir trabalhos no âmbito da
Análise Textual dos Discursos (ATD), com foco nos novos fatos linguísticos na semiotização dos
dispositivos enunciativos, discursivos e textuais advindas do intenso uso das plataformas digitais
como forma de interação no período de pandemia.
Dentro desse âmbito, o trabalho “A sequência injuntiva: análise no gênero discursivo
textual cartilha educativa em tempos de pandemia” tem como objetivo analisar a sequência injuntiva
no gênero cartilha educativa, com foco em cartilhas que apresentam informações sobre a pandemia
da covid-19 por meio dos postulados da ATD de Adam (2011).
O artigo “Tecendo considerações iniciais sobre a escrita na Educação Básica da região do
Mato Grande: aspectos textuais e enunciativos do gênero artigo de opinião produzido no processo
seletivo Ensino Médio Integrado”, também ancorado nos postulados da ATD de Adam (2011), analisa
a construção do plano de texto do gênero artigo de opinião em textos produzidos no processo seletivo
para o Ensino Médio Integrado no Instituto Federal do Rio Grande do Norte, Campus João Câmara.
Em “Projetos de lei e suas normas na perspectiva da análise textual dos discursos”,
investiga-se a enunciação e a orientação argumentativa constituídas na estrutura composicional de
Projetos de Lei e de suas normas, por meio da união entre os pressupostos da Linguística Textual
(LT), da Análise Textual dos Discursos (ATD), da Linguística da Enunciação (LE) e nos estudos da
Argumentação.
10

O trabalho “Excesso de linguagem – o papel da responsabilidade enunciativa na anulação


de decisões de pronúncia” analisa o gênero decisão de pronúncia anulada por excesso de linguagem
(e suas versões refeitas) com foco em interpretar as marcas linguísticas que indicam Pontos de Vista
(PDV) e Responsabilidade Enunciativa (RE) por meio dos pressupostos de Alain de Rabatel (2013,
2016) e J-M Adam (2011).
Em “Visada argumentativa e responsabilidade enunciativa na “sustentação oral” de
advogados de defesa em crimes de homicídios”, temos a análise do valor da argumentação presente
na sustentação oral do advogado de defesa em um crime de homicídio no estado do Rio Grande do
Norte e como essa sustentação relaciona-se com o convencimento dos jurados do Tribunal do Júri,
por meio da fundamentação no âmbito da Análise Textual dos Discursos (ATD), com Adam (2011),
Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2016) e Rodrigues (2017), juntamente com teorias linguísticas
enunciativas, como Rabatel (2016a, 2016b e 2013) e Guentchéva (2011).
O artigo “A função argumentativa do depoimento de testemunha na sentença penal
condenatória” tem como foco a investigação da (não) assunção da responsabilidade enunciativa, por
meio da análise do valor argumentativo em dois depoimentos de testemunhas na decisão final do juiz
em crime de roubo. A pesquisa embasa-se na Análise Textual dos Discursos (Adam, 2011, 2017) e
na linguística enunciativa (Guentchéva, 1994, 2011; Rabatel, 2016).
O texto “Plano de texto e visada argumentativa no gênero discursivo decreto no cenário
de pandemia da covid-19” tem como objetivo identificar, descrever, analisar e interpretar três
decretos, do âmbito estadual, com foco na responsabilidade enunciativa e na visada argumentativa do
gênero decreto. O artigo fundamenta-se em Adam (2011, 2019), Rabatel (2016), Vanderveken (1997,
2013) e Vanderveken e Melo (2019).
O trabalho “Plano de texto, responsabilidade enunciativa e visada argumentativa no
gênero discursivo crônica jornalística”, analisa de quatro crônicas jornalísticas, advindas dos jornais
El País, Estadão e Folha de S. Paulo, buscando interpretar a responsabilidade enunciativa e a visada
argumentativa nos textos do gênero, a partir dos pressupostos teóricos de Rabatel (2016) e Adam
(2011), Guentchéva (2011), bem como Campos (2011), Melo (2004), Menezes (2002) e Silva e
Lüersen (2016).
Em “Responsabilidade enunciativa no gênero discursivo/textual sentença judicial”, temos
uma análise de como a responsabilidade enunciativa e a mediatividade se estabelecem em uma
sentença judicial, por meio dos pressupostos teóricos da Análise Textual do Discurso proposta por
Adam (2011).
Por fim, o artigo “A (não) assunção da responsabilidade enunciativa nos gêneros
discursivos depoimento de testemunha e sentença condenatória” busca descrever, analisar e
interpretar as instâncias enunciativas (locutor e enunciador), as posturas enunciativas, os pontos de
11

vista e o quadro de mediatividade em depoimento de testemunha e na sentença condenatória judicial,


a fim de compreender a resposabilidade enunciativa nesses gêneros, por meio da fundamentação em
Adam (2011), Guentchéva (1994, 2011), Rabatel (2009, 2016) e Rodrigues e Passeggi (2016).
O Simpósio “Leitura e Escrita em suporte eletrônico: o ensino remoto e a educação a
distância” foi conduzido pelo Prof. Me. Geová Bezerra Guimarães (IFAM/GETED/PPgEL/UFRN),
pelo Prof. Dr. João Batista da Costa Júnior (UFRN) e pela Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos
(UFRN/GETED/PPgEL). Movidos pelo contexto da pandemia de covid-19, o simpósio objetivou
abrir um espaço para discutir pesquisas e relatos de experiência que tematizassem e problematizassem
o ensino da leitura e da escrita em suporte eletrônico, relativo ao ensino remoto e à educação a
distância.
O trabalho “Leituras e escritas no ensino remoto e as ferramentas digitais como estratégia
de aprendizagem em tempos de pandemia” buscou identificar o potencial das ferramentas digitais e
promover uma discussão sobre a imersão da leitura e da escrita na prática docente. Em diálogo com
esse trabalho, o seguinte: “Ações interativas no estudo da leitura/escrita de maneira remota” teve
como objetivo evidenciar as ações alternativas para o estudo da leitura/escrita, em nível superior, em
situação remota.
O trabalho “Abordagem dialógica no ensino remoto de língua portuguesa na Escola
Estadual Professor Antônio Pinto de Medeiros” possibilitou uma experiência prática de saberes e
conhecimentos, a partir da vivência pelo estágio supervisionado, de uma forma diferente da habitual
em face ao novo formato de aulas em ambientes virtuais. Também nessa modalidade, o trabalho “A
mediação docente nos processos de ensino e aprendizagem de leitura e de escrita em tempos de ensino
remoto” objetivou relatar a experiência da mediação docente nos processos de ensino e aprendizagem
de leitura e de escrita durante o ensino remoto.
Por fim, o trabalho “Para ler, escrever e compartilhar: a leitura literária hoje” teve como
motivação pensar a mediação da leitura literária como prática coletiva dos professores e alunos.
Coordenado pela Profa. Ma. Josinéa Amparo Rocha Cristal (UNEB/Campus X) e pelo
Prof. Me. Adenilton da Silva Rocha (UFRN/GETED), o Simpósio “Do planejamento pedagógico ao
ensino de leitura e escrita: discursos, abordagens teóricas e práticas de ensino” teve como objeto de
discussão a formação do leitor e escritor no contexto educacional do Brasil, sobretudo, na Educação
Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio).
O trabalho intitulado “O aluno-leitor como sujeito social e político: experiência didática
com o gênero conto no estágio curricular da UFPE” intencionou compartilhar o processo de
elaboração e de aplicação de um projeto didático produzido no âmbito do estágio curricular
supervisionado do curso de Licenciatura em Letras-Português da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).
12

O Simpósio “Educação, formação de professores e tecnologias digitais da informação e


comunicação: interações, linguagens e experiências de pesquisa, conduzido pela Profa. Dra. Maria
José dos Santos (UFMA), pela Profa. Dra. Ceália Cristine dos Santos (UFMA) e pelo Prof. Dr.
Wheriston Silva Neris (UFMA) teve como objetivo ser um espaço de debates e reflexões para acolher
trabalhos e pesquisas sobre os seguintes temas: a) Experiências, propostas e limites quanto ao
emprego de tecnologias digitais em contextos educacionais; b) As implicações técnicas e
epistemológicas derivadas do uso de recursos computacionais e softwares sobre a análise de textos e
linguagens, fontes manuscritas, imagens e edições eletrônicas; c) Novos espaços do ensinar e
aprender on line, a formação de professores em questão; d) Pratica pedagógica e mediação
tecnológica: ensino remoto e suas implicações na aprendizagem.
O trabalho “A mediação do professor de língua portuguesa em tempos de pandemia no
ensino remoto” objetivou investigar a mediação do professor através do uso do livro didático de
Língua Portuguesa para o ensino fundamental em tempos de pandemia e ensino remoto.
Seguindo, o trabalho “Multimodalidade e letramento crítico: capacidades de leitura
exigidas pelas redes sociais” apontou a necessidade de elucidar um pouco melhor os mecanismos
discursivos e os jogos de força presentes nessa rede que condicionam as experiências de leitura dos
usuários, identificando os principais arranjos multimodais de seus textos e esclarecendo como seus
leitores são instados a interagir com esses textos.
Em diálogo com os dois últimos trabalhos citados, “A problemática da educação a
distância (ead) em tempos de Covid-19 e os desafios e possibilidades do Ensino Fundamental” teve
como objetivo apresentar e discutir como as estratégias pedagógicas em EaD podem contribuir no
processo de aprendizagem, e como os professores, alunos e a família estão dando conta da tarefa de
mediação dos conteúdos pedagógicos em tempo de pandemia no ensino remoto.
O Simpósio “Caminhos para a leitura e a escrita do texto literário” foi mediado pelas
professoras Dra. Ana Crélia Penha Dias (UFRJ) e Ma. Bruna F. B. Faustino de Souza (UFRN), com
a proposta de interlocução entre diferentes perspectivas sobre leitura literária. O trabalho
“Mapeamento da experiência estética: uma estratégia de leitura literária” aborda a leitura literária sob
a perspectiva da Teoria do Efeito Estético, através da qual os autores buscam explicar o papel da
cognição durante a leitura.
Em “A voz narrante no texto literário: a experiência estética de leitura com professores
em formação”, as autoras abordam o contexto de formação de professores durante a pandemia quanto
ao papel fundamental da tradição oral no ensino de leitura literária. O destaque à performance oral
com vistas ao protagonismo do leitor iniciante tem centralidade na proposta.
No ensaio “As micronarrativas literárias: um caminho para a leitura literária no ensino
básico?”, a perspectiva é de problematizar a viabilidade de uma prática de ensino de leitura literária
13

que explore a concisão da micronarrativa literária a partir dos pressupostos da Análise do Discurso.
Já o artigo “O sol na cabeça, de Geovani Martins: ensinando a transgredir a partir de uma
proposta descentralizadora de leitura e escrita literária”, rompe com a definição dominante de
literatura e discute a descentralização do lugar de fala, dando voz à favela, de modo a abordar o ensino
de literatura sob a perspectiva da diversidade social e cultural.
O Simpósio “Práticas e experiências de ensino de Língua Portuguesa na Educação
Básica” foi coordenado pelas Profa. Dra. Valnecy Oliveira Corrêa Santos (UFMA/GETED), Profa.
Ma. Maria de Jesus Melo Lima (SEEC/RN e PPgEL/UFRN/GETED), Profa. Dra. Ana Maria de
Oliveira Paz (PPgEL/UFRN) e pelo Prof. Dr. Joil Antonio da Silva (UNEMAT/GETED. Este
simpósio objetivou reunir trabalhos de pesquisa sobre práticas de ensino de Língua Portuguesa na
Educação Básica, com o intuito de estabelecer um diálogo sobre o que se tem constituído como
práticas de ensino de Língua Portuguesa e de que forma a constituição da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) interpela as práticas docentes.
O trabalho “Leitura de charges: uma análise à luz da perspectiva dialógica da linguagem”
se propôs a fazer uma análise discursiva de charges, bem como apresentar uma proposta de leitura à
luz de uma perspectiva dialógica da linguagem. Enquanto o trabalho “Propostas de produção de
seminários em livros didáticos do Ensino Médio” se propôs a analisar propostas de produções de
seminários em três livros didáticos do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª série), com ênfase nas etapas de
planejamento e execução do gênero.
Sob a condução do Prof Dr. José Antônio Vieira (CESPE/UEMA) e da Profa. Dra.
Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro (PPGLB/UFMA), o Simpósio “Discurso, Leitura e Escrita”
teve como ideia central a criação de um espaço para os trabalhos que compreendem toda a produção
discursiva como uma construção social, refletindo sobre uma visão de mundo vinculada aos
pesquisadores filiados às diferentes abordagens dos estudos discursivos que problematizam os
sujeitos e a sociedade em que vivem a partir do contexto histórico-social e de suas condições de
produção.
O trabalho “O processo da escrita na produção textual de alunos do Ensino Fundamental:
uma análise comparativa” se propôs a fazer uma análise do processo de escrita dos alunos do ensino
fundamental, observados em contextos multiculturais (Brasil e Peru). Já o trabalho “Imagens do lugar
do espanhol no Ensino Fundamental em relatórios de estágio da UFRN” a partir de operações
linguístico-discursivas, se propôs analisar as imagens presentes nos relatórios sobre o lugar do
espanhol no ensino fundamental.
Coordenado pelas Profa. Dra. Maria Aparecida da Silva Miranda (SEEC/RN-
GETEDUFRN), Profa. Dra. Katia Cilene Ferreira França (GEEPS-UFMA/GETED) e Profa. Ma.
Maria Claudiane Silva de Souza (SEEC/RN-GETEDUFRN), o Simpósio “Escrita, leitura e
14

heterogeneidade enunciativa: da escola à universidade” intencionou agregar trabalhos que partam da


concepção de que a linguagem é heterogênea em sua constituição, das práticas de leitura e a escrita
como atividade dialógicas e responsivas.
O trabalho “Marcas de remissão a discursos outros na escrita de alunos do Ensino
Fundamental” teve por objetivo conduzir os alunos a interpretar, sob a forma de interrogação, os
discursos suscitados na materialidade dos textos lidos, considerando, sobretudo, as atribuições de
sentidos que dão às leituras que realizam. Já o trabalho “Da proposta à redação nota mil do ENEM
2019: análise da estrutura de um texto” teve como foco o estudo das marcas estruturais que compõem
uma redação nota mil do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com base, principalmente, na
sua significativa relação com a proposta de redação a que os candidatos têm acesso no dia da prova.
Em diálogo com os trabalhos citados, a pesquisa “Heterogeneidade e(m) Discurso:
algumas reflexões sobre o outro e o diferente” a partir do excerto de tese, objetiva analisar as formas
explícitas da heterogeneidade, partindo do pressuposto que: i) o locutor não se apresenta como
simples “porta-voz” no discurso direto; e, ii) há a possibilidade de estruturar uma heterogeneidade
constitutiva marcada.
O Simpósio “Lacan com Freire: escrever para além da cultura do silêncio” foi mediado
pela Profa. Dra. Claudia Rosa Riolfi (FEUSP), em comemoração adiantada aos 100 de Paulo de Freire
(celebrados em 2021), teve a proposta de discutir trabalhos que se baseiam na teorias freireanas, junto
à perspectiva da psicanálise de Lacan, com temas associados ao ato de ler e escrever, como leitura do
mundo; o medo; a identidade cultural; as virtudes do educador democrático; a escolha profissional da
carreira docente.
Dentro desse simpósio, o texto “Discurso religioso e silenciamento na escrita: um
estudo de caso” analisa o percurso de formação de uma pesquisadora – que viveu guiada pelo discurso
religioso por 20 anos –, a fim de perceber nesse percurso o discurso religioso enquanto uma
possibilidade de alienação ao Outro (LACAN, 1964) e agente da “cultura do silêncio” (FREIRE,
2013).
O trabalho “Leitura de si e escrita do mundo: sobre traduzir e favorecer
deslocamentos” interpreta os percursos subjetivos percorridos por alunas leitoras e tradutoras de
textos literários bolivianos. A partir da análise de encontros e entrevistas com as alunas sobre os textos
junto à fundamentação na psicanálise lacaniana, a pesquisadora encontrou quebras e deslocamentos
nesses processos subjetivos.
Os professores Me. Max Silva da Rocha (UNEAL) e Me. Marcos Suel dos Santos
(UFAL) trouxeram no Simpósio “Argumentação, discurso e texto: possibilidades de diálogos” a
possibilidade de discussão de aspectos teórico-metodológicos relacionados à leitura, à escrita e à
oralidade nos campos da Retórica e da Linguística Textual. Sob a defesa de que todo texto e discurso
15

podem ser analisados a partir da tríade ethos, pathos e logos, os proponentes objetivavam discussões
entre estudos sobre argumentação.
O artigo “A recategorização do objeto de discurso isolamento na página Recife Ordinário
no Twitter” aborda os processos referenciais para o termo isolamento em uma página do Twitter. As
autoras se apoiam em pressupostos da Linguística Textual para demonstrar que os usuários
recategorizam o termo com base tomando como base suas perspectivas linguísticas, sociocognitivas
e interacionais.
O trabalho seguinte, intitulado “Afinal, o que é ‘esquerda’?: um estudo sociocognitivo
acerca da referenciação da categoria ‘esquerda’ em tweets de sujeitos de posicionamento político de
extrema direita”, trata da referenciação da categoria “esquerda” em textos de tendência para a extrema
direita. As autoras analisam publicações entre 2016 e 2019, as quais demonstram maior representação
para referenciações relacionadas a autoritarismo e manipulação.
No texto “O discurso jurídico e as provas retóricas em um processo judicial: análise de
uma petição inicial” temos uma proposta de pesquisa qualitativa e interpretativa que une Linguística
e Direito. O objetivo é analisar a construção de imagens por meio da argumentação em um processo
judicial, dando ênfase a aspectos retóricos e discursivos, a partir da noção de ethos.
O Simpósio “Linguagem, interculturalidade e decolonialidade: potenciais para o estudo
de discursos e práticas comunicativas”, coordenado pelo Prof. Dr. André Marques do Nascimento
(UFG), discutiu pesquisas que versassem sobre leitura, escrita e oralidade nos campos da Retórica e
da Linguística Textual em textos e discursos de diversas naturezas, com foco nos estudos sobre
Argumentação, Discurso e Texto, bem como as estratégias retóricas e textuais mobilizadas nos mais
diversos gêneros textuais e/ou discursivos orais e/ou escritos em diferentes espaços sociais.
Como trabalho representativo desse simpósio, temos “A diversidade linguística
trabalhada em livros didáticos de Língua Espanhola: uma análise dos livros Entre Líneas 7 e Cambio
8”, que teve como objetivo analisar como a diversidade linguística é apresentada por meio dos livros
didáticos “Entre Líneas 7” e “Cambio 8”, uma vez que esse é um tema orientado pelas Orientações
Curriculares Nacionais (OCN) do Brasil.
O Simpósio “Discurso e Enunciação”, foi mediado pela Profa. Dra. Adriana Santos
Batista (UFBA), Profa. Ma. Aline Maria dos Santos Pereira (UNEB) e Prof. Dr. Luiz Felipe Andrade
Silva (UFBA) e teve como proposta dialogar sobre trabalhos em em “diferentes perspectivas teóricas
dos estudos discursivos e enunciativos, em que se promovam: 1) reflexões teórico-epistemológicas
em torno dos conceitos de discurso e/ou enunciação; 2) análises de diferentes materialidades que
tenham como foco descrição e problematização de estratégias discursivas e/ou enunciativas; ou 3)
discussões sobre a produção acadêmica brasileira contemporânea acerca desses conceitos”.
O artigo “Mobilizando noções sobre autoria e autorialidade nos discursos”, parte desse
16

simpósio, propõe-se a analisar a autoria como fenômeno discursivo do campo literário, por meio da
discussão dos conceitos “discurso autorial”, “autor”, “nome de autor” e “enunciado complexo”, com
base na teorização de Maingueneau (2006; 2009; 2010), Costa (2016), Foucault (2009), Bakhtin
(1997), e Barthes (2004).
Por sua vez, o Simpósio “Estudos do discurso: perspectivas crítica e transdisciplinar”,
coordenado pelo Prof. Dr. João Batista da Costa Júnior (UFRN), Prof. Dr. Paulo Sérgio da Silva
Santos (UFS), Profa. Dra. Taysa Mércia dos Santos Souza (UFS) se propôs a discutir a relação entre
linguagem e sociedade na modernidade recente por meio de pesquisas afins aos campos da Dialógica
do Discurso, Análise do Discurso de Linha Francesa e Análise Crítica do Discurso.
Nesse âmbito, o texto “A importância da função do leitor no conto Tigrela, de Lygia
Fagundes Telles” analisa o papel da função leitor no conto “Tigrela”, de Lygia Fagundes Telles, sob
a ótica do fantástico, as pesquisadoras se pautam teoricamente em Tzvetan Todorov, Wolfgang Iser,
e Umberto Eco.
O artigo “A importância da leitura do gênero epopeia na escola” busca – pautado nos
estudos da apropriação do saber por meio da literatura – estudar o uso do gênero epopeia na escola e
se propõe a mostrar sugestões de atividades e de leitura comparativa que levem os alunos a ler o
gênero, por meio das Histórias em Quadrinhos, por exemplo.
Em “Discurso político, identidade e ideologia nas postagens do Facebook”, inserido nos
Estudos Críticos do Discurso em relação multidisciplinar com Filosofia, Comunicação e Ciência
Política, analisa os elementos verbais e visuais que marcam os posicionamentos ideológicos em
relação a questões políticas e as estratégias de “autoapresentação positiva em detrimento da ênfase
negativa do opositor” em páginas do Facebook.
Por fim, o trabalho “Ideologia e tomadas de posição: a importância da(s) formação(ões)
discursiva(s) na/para mobilização de sentido(s)” interpretou três textos propagandísticos da empresa
de cozinhas planejadas Todeschini, colocando o sujeito do discurso como foco e as interpelações
ideológicas e tomadas de posição envolvidas na constituição do sujeito como sujeito do discurso,
perpassado pelas formações discursivas, a partir das concepções de Foucault (1969), Pêcheux (1988)
e Indursky (2020).
A diversidade dos trabalhos publicados neste Anais aponta o quão amplo foi o IV SETED,
prova da nossa resistência em continuar produzindo e divulgando conhecimento científico.
Esperamos que o evento realizado em 2020 tenha sido proveitoso para você, assim como esperamos
que você possa encontrar o que procura nesta publicação.
Agradecemos a todos aqueles que se dispuseram a participar do evento, seja como
organizador ou auxiliar na execução de partes do evento, seja como preletor/mediador de mesas, seja
como comunicador ou ouvinte. A sua participação foi e é valiosa para nós!
17

Aguardamos sua presença e parceria na realização do V SETED! Por ora, boa leitura!

Com apreço,
Os organizadores.
18

CULTURA, DIVERSIDADE E AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS

Rosangela Kuspiosz Calliari1


Cibele Krause-Lemke2

RESUMO

Este trabalho apresenta alguns conceitos referentes ao tema Cultura, Educação e Diversidade, tendo
como foco central a abordagem da “língua” como patrimônio cultural de um povo e em específico a
língua espanhola. No artigo faz-se, ainda, uma análise de algumas políticas linguísticas brasileiras,
com relação ao ensino de língua espanhola em nossas escolas. Compreender uma língua seja no
âmbito oral e/ou textual são importantes e os estudantes carecem desta apropriação, porém, o ensino
da língua espanhola busca não somente a apropriação por parte do aluno das habilidades linguísticas,
mas também que este possua uma compreensão cultural e social dos falantes deste idioma.
Atualmente o conceito de cultura não está centrado apenas a eventos culturais, mas sim com uma
relação entre cidadania, sustentabilidade, patrimônio cultural e outros campos. É através da educação
que conseguimos compreender a importância dos conhecimentos culturais. Considerando que a
cultura permeia o processo de escolarização, que é construída a partir das diferenças e se manifesta
na diversidade, estes conceitos devem ser melhores compreendidos, principalmente por nós
professores, que somos os principais agentes do ensino aprendizagem. Sendo a cultura patrimônio de
um povo, devemos como educadores cuidar para que este seja repassado de maneira íntegra para
nossos alunos, para que estes possam conhecer, valorizar, difundir e respeitar a sua própria cultura e
principalmente a cultura do outro, e sendo a língua um patrimônio indispensável para a preservação
da identidade cultural de um povo, o ensino de uma Língua Estrangeira não deve trazer somente a
parte gramatical para dentro da sala de aula, mas também toda a sua cultura, seus costumes, suas
crenças. Com relação ao ensino da Língua Espanhola em específico, foi criado em 2005 a Lei
11.161/2005 conhecida como a Lei do Espanhol que tratava da oferta obrigatória da disciplina de
Língua Espanhola no Ensino Médio e opcional para o Ensino Fundamental. Esta lei foi um ganho
importante no que tange as políticas linguísticas brasileira, pois pela primeira vez em nosso país foi
aprovada uma lei que trata exclusivamente da inserção da língua espanhola dentro de nossas escolas.
Infelizmente em 2017, a Lei 13.415 revoga a chamada Lei do Espanhol e, entre outras finalidades,
altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Com a Lei 13.415 o espanhol perde seu espaço dentro das instituições de ensino, esta lei
traz a oferta obrigatória da língua inglesa na educação fundamental, a partir do sexto ano,
desconsiderando e revogando a possibilidade da escolha da língua estrangeira nesse seguimento de
acordo com a comunidade escolar e, a obrigatoriedade do ensino de língua inglesa também no ensino
médio. Com essa perda significativa para o ensino da língua espanhola, também se perde a
oportunidade de conhecer sobre muitas culturas presentes dentro da América Latina, culturas estas
que possuem o espanhol como língua materna para mais da metade dos latinos americanos.

Palavras-chave: Cultura; Educação; Língua Espanhola.

INTRODUÇÃO

1
rosangela.kuspiosz@hotmail.com UNICENTRO (mestranda).
2
cibelekl@gmail.com UNICENTRO (Prof.ª Drª.).
19

Os Estudos Culturais tiveram início na Inglaterra, porém sua forma contemporânea


tornou-se internacionalmente conhecida. Um de seus maiores estudiosos foi o teórico Stuart Hall.
Segundo Hall (2003, p. 43):
A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”.
Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um
conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos
capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de
sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer
forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.

Com relação aos estudos culturais Costa, Silveira e Sommer (2003, p.40), destacam que,
eles não constituem um conjunto articulado de ideias e de pensamentos, eles são e sempre foram um
conjunto de formações instáveis e descentradas, devido as suas diferentes posições teóricas e os seus
vários caminhos de pesquisa podendo ser descritos como um tumulto teórico. Os autores também
salientam que:

Os Estudos Culturais não pretendem ser uma disciplina acadêmica no sentido tradicional,
com contornos nitidamente delineados, um campo de produção de discursos com fronteiras
balizadas. Ao contrário, o que os tem caracterizado é serem um conjunto de abordagens,
problematizações e reflexões situadas na confluência de vários campos já estabelecidos, é
buscarem inspiração em diferentes teorias, é romperem certas lógicas cristalizadas e
hibridizarem concepções consagradas.

Com relação ao termo cultura:

A cultura não pode ser mais concebida como acumulação de saberes ou processo estético,
intelectual ou espiritual. A cultura precisa ser estudada e compreendida tendo-se em conta a
enorme expansão de tudo que está associado a ela, e o papel constitutivo que assumiu em
todos os aspectos da vida social (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 38).

Para o educador Paulo Freire (1984), cultura é todo resultado da atividade humana. A
cultura não está fora do homem ela é parte dele. Tendo, portanto, uma importância significativa para
o desenvolvimento do indivíduo o conhecimento acerca de sua cultura e também a do outro, percebe-
se a relevância de ensinar no ambiente escolar a valorização da mesma.
A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura),
importante colaboradora para a difusão da cultura no âmbito mundial, criou a Declaração Universal
da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, o documento foi aprovado em 2001 por 185 Estados-
Membros sendo pioneiro na definição, preservação e promoção da diversidade e do diálogo cultural
mundial. O documento destaca que:
20

a cultura deve ser considerada o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange,
além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de
valores, as tradições e as crenças[...]

Na declaração pontos importantes ganham destaque como, por exemplo, a diversidade


cultural como patrimônio comum da humanidade, como fator de desenvolvimento, os direitos
culturais como parte integrante dos direitos humanos, e que toda criação tem suas origens nas
tradições culturais, porém, se desenvolve plenamente em contato com outra.

Educação e Cultura

Segundo Freire (1982), o processo educativo é organizado com a relação entre currículo,
cultura e conhecimento. A tarefa de envolver temáticas culturais no processo de ensino e
aprendizagem não pode vir dissociada de um planejamento, por isso é de sua importância que estas
constem no Projeto Político Pedagógico de cada instituição escolar. Hall (2003), afirma que os
estudos culturais abrangem e interagem dentro de inúmeras disciplinas, tendendo o estudo aos
aspectos culturais da sociedade. O que se propõe, entretanto, não é a constituição de uma disciplina
nova, mas a reflexão das limitações que elas possuem. Segundo Candau (2008, p.15):

Uma outra contribuição que consideramos muito interessante para uma nova compreensão
das relações entre educação e cultura (s) diz respeito a uma concepção da escola como um
espaço de cruzamento de culturas, fluido e complexo, atravessado por tensões e conflitos.

O trabalho com a cultura e a diversidade em sala de aula, muitas vezes é árduo para o
professor, pois é a partir da escola que os docentes sistematizam e objetivam o conhecimento de
mundo dos alunos, as questões sociais, culturais, entre outras. Sendo assim, surge a dicotomia de
como ensinar e do que ensinar. A dificuldade está, em primeiro lugar, no que os alunos trazem
internalizado, ideias e conceitos predeterminados, tornando ainda mais difícil essa questão de como
e o que ensinar. Sendo a sala de aula um ambiente multicultural, é necessária a realização de trabalhos
para a valorização e o respeito das diferenças presentes em cada aluno. Cabe aqui ressaltar o que
Moreira (2001, p.66) descreve a respeito da educação multicultural:

Pode-se promover a educação multicultural para desenvolver sensibilidade para a pluralidade


de valores e universos culturais, decorrente do maior intercâmbio cultural no interior de cada
sociedade e entre diferentes sociedades. Pode-se também empregá-la para resgatar valores
culturais ameaçados, visando-se garantir a pluralidade cultural. Pode-se, ainda, buscar
reduzir os preconceitos e as discriminações (Canen, 1998). Pode-se, com o auxílio da
educação multicultural, destacar a responsabilidade de todos no esforço por tornar o mundo
menos opressivo e injusto. Como acentuou Beck (2001, p.4), não sem certo tom de cinismo,
“ajudar os que foram excluídos não é mais uma tarefa humanitária. É do próprio interesse do
Ocidente: a chave de sua segurança”. Com o apoio da educação multicultural pode-se, por
fim, propiciar a contextualização e a compreensão do processo de construção das diferenças
21

e das desigualdades, enfatizando-se que elas não são naturais e que, portanto, resistências são
possíveis.
A educação multicultural pode também ser usada, em outro enfoque, para integrar grupos
que contestem valores e práticas dominantes, celebrar manifestações culturais dominantes,
garantir a homogeneidade e tentar apagar (ou esmaecer) as diferenças, bem como evitar que
a compreensão da constituição das diferenças questione hierarquias estabelecidas.

É fundamental que conheçamos as culturas, as raças, as etnias, as necessidades especiais


de nossos alunos, para que seja possível reconhecer-se e reconhecer ao outro, mas principalmente, o
professor deve perceber e respeitar as diversidades presentes em suas salas de aula, para que num
segundo momento consiga repassar essas ideias para os alunos.

Diversidade Cultural

No cenário contemporâneo, em que o grande desafio é a formação de pessoas que articulem


diferentes saberes, de modo que assumam posturas comprometidas social, ética e
politicamente, um dos grandes desafios da educação passa a ser propiciar situações de
aprendizagem que interconectem diferentes áreas do saber e coloquem as pessoas em contato
com manifestações e produções culturais diversas.
A experiência de aproximar-se e conhecer outras formas de se relacionar com o mundo, de
se relacionar consigo mesmo e com o outro e outras maneiras de expressar e criar ideias e
sensações de modos antes desconhecidos favorece a valorização da diversidade cultural
existente no mundo, no Brasil e em cada um de nós (CARVALHO; CARRARA; LIMA,
2010, p.9).

Com a reflexão acerca da diversidade cultural, o Ministério da Educação criou os


Parâmetros Curriculares Nacionais, um documento que aborda temas transversais, sendo a
pluralidade cultural um deles. Com esse documento temos suporte para um ensino voltado para a
diversidade, levando em consideração o reconhecimento e a valorização dessa temática, bem como
auxilia no processo de direcionar o ensino para a democracia e para a cidadania.
Um outro ganho importante acerca do tema cultura dentro da educação, foi a criação da
Lei nº. 10.639/2003, que rege a inserção dos conteúdos de História e cultura afro-brasileira e africana
nos currículos escolares. Esses documentos são passos para a mudança, mas sabemos que ainda é
preciso muito mais, principalmente quanto às formas que serão trabalhadas estas questões em sala de
aula.
Com relação ao modo como estes temas podem ser trabalhadas, hoje temos aparatos
significativos que nos auxiliam no trabalho dessas questões, um exemplo são os recursos midiáticos,
com os quais conseguimos contextualizar conteúdos e temáticas, quando aliados à educação. Esses
recursos ajudam na forma de apresentar a cultura do outro e a sua diversidade, por serem materiais
autênticos e que trazem claramente esses aspectos, aproximando ainda mais o aluno dessa realidade.
A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural atesta que devemos “Fomentar a ‘alfabetização
digital’ e promover as competências nas novas tecnologias da informação e da comunicação, que
22

devem ser consideradas simultaneamente disciplinas de ensino e instrumentos pedagógicos capazes


de fortalecer a eficácia dos serviços educativos”.
O trabalho com a diversidade cultural, social, étnica ou racial deve vir, portanto,
acompanhada de planejamentos responsáveis por parte do professor, porque, além de apresentar aos
alunos a variedade de elementos que os constituem como sociedade, deve ser reconhecida a real
importância e a valorização destes aspectos da identidade de todos os indivíduos, como bem salienta
Carvalho (2012) “O direito à diferença específica, aprofunda e amplia o direito à igualdade”.

Diversidade Linguística

Segundo Laraia (2006, p. 52), a comunicação é um processo cultural. “Mais


explicitamente, a linguagem humana é um produto da cultura, mas não existiria cultura se o homem
não tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral.” A Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural, também destaca a importância da língua como bem cultural
a ser preservado ressaltando que os Estados-membros devem “Salvaguardar o patrimônio linguístico
da humanidade e apoiar a expressão, a criação e a difusão no maior número possível de línguas.” e
“Fomentar a diversidade linguística - respeitando a língua materna - em todos os níveis da educação,
de todas as formas possíveis, e estimular a aprendizagem do multilinguismo desde a mais tenra
idade.”

Estima-se que mais de 250 línguas sejam faladas no Brasil entre indígenas, de imigração, de
sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades. Esse patrimônio
cultural é desconhecido por grande parte da população brasileira, que se acostumou a ver o
Brasil como um país monolíngue. Como resultado da mobilização da sociedade civil e de
setores governamentais interessados em mudar esse cenário, em dezembro de 2010 foi
publicado o Decreto Nº 7.387, que instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística
(INDL) como instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização
das línguas faladas pelos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (IPHAN,
2019).

Considerando o plurilinguismo presente em nosso país, explorar ou debater as línguas de


imigração dentro da sala de aula, enriqueceria não somente o lado cultural dos alunos, mas também
poderia despertar o interesse pelo aprendizado de uma nova língua. Cavalcanti (2015, p. 302) salienta
que: “É hora de parar com o jogo de faz de conta de que o país é monolíngue. Assumir a pluralidade
linguística, é escancarar a riqueza existente, é um ganho social, cultural e político.”. Acrescentando
ainda que: “O professor no mundo contemporâneo precisa ajudar a desfazer/desconstruir o que foi
construído durante séculos – as barreiras linguísticas dentro do próprio país” (2015, p. 301).
A língua de um povo constitui-se como um dos seus bens mais preciosos e a perda desta
marca identitária de nosso povo já vem ocorrendo há muitos anos atrás, conforme relata Oliveira
(2008, p.5):
23

Não só os índios foram vítimas da política lingüística dos estados lusitano e brasileiro:
também os imigrantes - chegados principalmente depois de 1850 - e seus descendentes
passaram por violenta repressão lingüística e cultural. O Estado Novo (1937-1945), regime
ditatorial instaurado por Getúlio Vargas, marca o ponto alto da repressão às línguas alóctones,
através do processo que ficou conhecido como “nacionalização do ensino” e que pretendeu
selar o destino das línguas de imigração no Brasil.

Segundo Hall (2003) a cultura deve ser trabalhada de maneira interdisciplinar. Esta
interdisciplinaridade pode ser explorada de maneiras distintas dentro de sala de aula, como por
exemplo, na aquisição de uma língua estrangeira. As cidades que fazem fronteira com outros países
têm, diariamente, contato com outros idiomas e suas variações, seja nas relações interpessoais,
econômicas, educacionais ou outras, e, portanto, acabam por apresentar uma maior diversidade
linguística e necessidade de se conhecer mais sobre o idioma “do outro”.
Em regiões de fronteira com países hispano-americanos a área de contato que os
indivíduos brasileiros possuem com uma segunda língua, o espanhol, é muito maior do que aquele
que quase não tem contato com estrangeiros, o que poderia resultar em percepções distintas sobre a
aquisição de uma segunda língua. A “Fronteira” não é somente a delimitação de territórios, ela é um
lugar diferenciado, onde línguas distintas se encontram e se misturam.

[...] a Fronteira não significa apenas pela sua relação espacial, como o lugar que marca o
limite entre territórios. Os limites cartográficos são referências simbólicas que significam a
fronteira através de um marco físico, embora a vida da fronteira, o habitar a fronteira
signifique, para quem nela vive muito mais, porque ela já se define em si mesma como um
espaço de contato, um espaço em que se tocam culturas, etnias, línguas, nações (STURZA,
2006, p. 26).

Compreender uma língua seja no âmbito oral, textual é importante e os estudantes


carecem desta apropriação, porém, o ensino da Língua Espanhola busca não somente a apropriação
por parte do aluno das habilidades linguísticas, mas também que este possua uma compreensão
cultural e social principalmente em contextos fronteiriços onde a língua do “outro” se faz presente e
se mistura a “nossa”.

Políticas Linguísticas no Brasil


Segundo Varela (2008, p.4):

Definimos entonces la política lingüística como el conjunto de decisiones y acciones


promovidas por el poder público, que tienen por objeto principal una (o más) lengua(s) de su
órbita, y están racionalmente orientadas hacia objetivos que son tanto lingüísticos (esto es,
determinado efecto sobre el corpus de la lengua, su estatuto y/o su adquisición) como no
lingüísticos.
24

A língua portuguesa, idioma oficial da República Federativa do Brasil, segundo a


Constituição Federal de 1988, advém de Portugal, principal colonizador do país, entretanto, é
consenso afirmar que os brasileiros possuem um idioma com características ainda diferentes em
relação aos portugueses. A língua sofreu modificações ao longo dos anos e continua recebendo
influências de outros idiomas e culturas que são os principais responsáveis por suas mutações,
fazendo com que, diante da dimensão do território nacional, haja cada vez mais variedades
linguísticas.
Várias são as leis e normativas que tratam dos aspectos linguísticos dos brasileiros,
entretanto, percebe-se a falta de reconhecimento de uma diversidade linguística que está presente em
todos os contextos. No ambiente escolar é que esta variedade linguística sofre seu maior impacto,
pois os indivíduos começam uma aprendizagem formal na qual prevalece o ensino da língua materna
em sua norma padrão, confrontando com as variações adquiridas das experiências informais que têm
fora do contexto escolar.
Sabe-se que pela Constituição Federal (CF) de 1988, em seu Art. 13, o idioma oficial do
Brasil é a língua portuguesa, sendo, todavia, assegurado aos indígenas o uso de suas línguas maternas
nos processos de ensino e aprendizagem (BRASIL, 1988). A Lei nº 9.394/1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), corrobora com esta normativa dada pela CF, e em
seu Art. 32, § 3º, menciona que “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.”, além disso, alterado pela Lei nº 13.415 de 2017, em seu Art. 35-A, § 3º, afirma que
“o ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio,
assegurada às comunidades indígenas, também, a utilização das respectivas línguas maternas.”
(BRASIL, 1996).
Com relação a ambas normativas, percebe-se uma sutil flexibilidade em relação a
aceitação de outro idioma, embora a ênfase seja para as línguas indígenas e seus métodos próprios de
ensino e aprendizagem, enquanto que as línguas estrangeiras são mencionadas como disciplinas
independentes de matrícula obrigatória ou optativa. Com os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) é que as línguas estrangeiras ganham maior espaço e relevância, pois afirma-se que o aluno
“ao entender o outro e sua alteridade, pela aprendizagem de uma língua estrangeira, ele aprende mais
sobre si mesmo e sobre um mundo plural, marcado por valores culturais diferentes e maneiras
diversas de organização política e social.” (PCN, 1998, p. 19). Segundo Preuss e Álvares (2014, p.
410), os PCNs do 3º e 4º ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira (1998), “ressaltam o papel
importante do aprendizado de uma língua estrangeira para a formação integral do aluno. Além disso,
apontam que a escolha das línguas a serem ensinadas deve levar em conta o aspecto histórico, a
tradição e o contexto em que está inserida a comunidade”.
25

Estes diversos contextos fazem com que cada aluno construa uma relação diferente com
a língua estrangeira, principalmente pela frequência com que tem experiências comunicativas ou de
escrita em uma segunda língua. Em regiões de fronteira com países hispano-americanos a área de
contato que os indivíduos brasileiros possuem com uma segunda língua, o espanhol, é muito maior
do que aquele que quase não tem contato com estrangeiros, o que poderia resultar em percepções
distintas sobre a aquisição de uma segunda língua.

METODOLOGIA

Para o desenvolvimento teórico deste trabalho foram apresentados conceitos de Cultura,


Educação, Diversidade e Políticas Linguísticas, sendo estas analisadas as que vigoram dentro do
território brasileiro, além de tratar sobre os processos de ensino e aprendizagem de língua estrangeira
e bilinguismo, realizando-se, portando, uma pesquisa bibliográfica, que, segundo Fonseca (2002),
permite ao pesquisador conhecer o que já foi estudado sobre o assunto a partir do levantamento de
publicações sobre o tema.

CONSIDERAÇÕES

O presente artigo teve por objetivo, apresentar conceitos sobre cultura, educação e
diversidade com foco em especial na diversidade linguística e a importância do ensino da língua
espanhola não somente como instrumento de comunicação, mas também de imersão dentro da cultura
e da sociedade dos falantes de língua.

No ensino de Língua Estrangeira, a língua, objeto de estudo dessa disciplina, contempla as


relações com a cultura, o sujeito e a identidade. Torna-se fundamental que os professores
compreendam o que se pretende com o ensino da Língua Estrangeira na Educação Básica,
ou seja: ensinar e aprender línguas é também ensinar e aprender percepções de mundo e
maneiras de atribuir sentidos, é formar subjetividades, é permitir que se reconheça no uso da
língua os diferentes propósitos comunicativos, independentemente do grau de proficiência
atingido (BRASIL, 2008, p.55).

Sabe-se que um dos pontos fortes que levou à criação da lei n°. 11.161 de 05 de agosto
de 2005 foi o MERCOSUL, uma vez que o governo acreditava na importância do ensino do espanhol
que é a “língua mãe” de vários idiomas latinos. A projeção do governo na época em que a lei foi
sancionada era de que 10 anos após a implantação obrigatória do espanhol nas escolas de ensino
médio, 30 milhões de brasileiros seriam fluentes no idioma. Mas algo se perdeu pelo caminho e hoje,
14 anos após a lei ter sido sancionada, apenas estima-se que 18,5 milhões de brasileiros são fluentes
em espanhol como segunda língua.
26

Vários fatores podem ter contribuído para a falta de êxito, dentre eles a falta de
infraestrutura, falta de formação inicial e continuada de qualidade, falta de interesse por parte dos
alunos ou até mesmo a supervalorização da língua inglesa. É difícil apontar um fator principal,
acredita-se que tenha sido uma soma de vários desses fatores, porém, não justificaria o fato de acabar
com essa lei, afinal, qualquer redução na educação caracteriza uma grande perda para o aluno.
Acreditamos que a saída correta seria tentar encontrar outros caminhos para melhorar os índices de
ensino da língua espanhola e não simplesmente desistir dela.
Outra grande brecha dessa lei foi ter dado liberdade para as escolas decidirem se
implantariam o espanhol na grade curricular ou o ofertariam através do Centro de Língua Estrangeira
Moderna (CELEM). Isso pode ter sido um agravante na, já não tão boa, situação do ensino da língua
espanhola, uma vez que, quando ofertado o ensino do idioma através do CELEM, o mesmo seria feito
em horário distinto do qual o aluno estaria matriculado. Se a lei obrigasse a intercalação anual das
matérias de língua estrangeira moderna, talvez o ensino do espanhol ganhasse espaço no cenário
educacional do Brasil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado, 1988.

BRASIL. Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Língua Estrangeira Moderna. Paraná:


2008.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Brasília, DF, 1996.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996
(estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira, e dá outras providências).

BRASIL. Lei n°. 11.161, de 05 de agosto de 2005. Dispõe sobre o ensino da língua espanhola. Diário
Oficial da União, n. 151, s. 1, p. 1, 8 ago. 2005.

BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nº 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que
regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei
no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no
11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de
Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, DF, 2017.

BRASIL/SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: Pluralidade Cultural. Brasília: MEC/SEF,


1998.
27

CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA,


A. F. & CANDAU, V. M. Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas.
Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.

CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. CARRARA, Ana Regina. LIMA, Thais. Cultura e
Educação na Sociedade Contemporânea. Cadernos Cenpec, 2010, n. 7.

CARVALHO, Mauro. A construção das identidades no espaço escolar. Revista Reflexão e Ação,
Santa Cruz do Sul, v.20, n1, p.209-227, jan./jun.2012.

CAVALCANTI, M. Línguas Ilegítimas em uma visão ampliada da educação linguística. IN: ZILLES,
A. M. & FARACO, C. A. A pedagogia da variação linguística. Parábola, São Paulo, 2015. pg. 287-
302

COSTA, M. V. SILVEIRA, R.H. SOMMER, L.H. Estudos culturais, educação e pedagogia.


Revista Brasileira de Educação, n. especial – Cultura, culturas e educação. n. 23, p. 36-61, maio/ago.
2003.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL. Disponível em: <


http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_
diversity_pt.pdf>. Acesso em: 13 out. 2019.

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.

FREIRE, Paulo. Sobre Educação: diálogos (Paulo Freire e Sérgio Guimarães) – Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1982.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Inventario Nacional da Diversidade


Linguística. Disponível em:<
https://iphan.gov.br/montarDetalheConteudo.do;jsessionid=F94A946EF19ED8A511A39F89195D9
6AB?id=18765&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional>. Acesso em: 14 out. 2019.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006.

MOREIRA, Antônio Flavio Barbosa. A recente produção científica sobre currículo e


multiculturalismo no Brasil (1995-2000): avanços, desafios e tensões. Revista Brasileira de
Educação, Rio de Janeiro, n. 18, 2001. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n18/n18a07>. Acesso em: 13 out. 2019.

OLIVEIRA, G. Plurilinguismo no Brasil. Brasília, IPOL, 2008.

PREUSS, E. O.; ALVARES, M. R. Bilinguismo e políticas linguísticas no Brasil: da ilusão


monolíngue à realidade plurilíngue. Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá, PR,v. 6,
n. 4, p. 403-414, out./dez. 2014.

STURZA, Eliana Rosa. In: Letras e Instrumentos Linguísticos, nº. 18, jul./dez.2006. Campinas,
SP: Universidade Estadual de Campinas: Pontes Editores, 2006. p.101-121.

VARELA, L. Una mirada a la política lingüística panhispánica. (mimeografado). 2008.


28

A LÍNGUA PORTUGUESA E O INSUCESSO DO SISTEMA DE ENSINO NA GUINÉ-


BISSAU: CASO DAS CRIANÇAS DA ETNIA BALANTA-NHACRA DE TOMBALI

Dabana Namone3

RESUMO

Na Guiné-Bissau falam-se várias línguas étnicas e a língua crioula, a mais falada. Contudo, a língua
portuguesa é a oficial e a única de ensino, embora seja falada apenas por 11% da população, cuja
maioria reside na capital Bissau. A transmissão dos conhecimentos entre diferentes grupos étnicos do
país é dominada pela tradição oral, transmitida pela na língua materna. A presente pesquisa analisou
o impacto da língua portuguesa (LP) no sistema de ensino da Guiné-Bissau, especialmente dos alunos
da 1ª a 4ª classe (série) da etnia Balanta-Nhacra, na região de Tombali, sul do país. Descreveram-se
a política educativa e linguística adotada pelo regime colonialista portuguesa e seu impacto após a
independência do país. Constatou-se que a LP é o principal fator de insucesso do sistema de ensino
guineense, na medida em que ela é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a
desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali,
protagonistas dessa pesquisa, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo - o idioma
mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas
sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à
realidade sociocultural desta nação. A metodologia utilizada consiste, na pesquisa
bibliográfica/documental e a pesquisa de campo: entrevista e observação direta, nas escolas e nas
tabancas/aldeias pesquisadas. A pesquisa foi realizada na região de Tombali, concretamente nas
quatro (4) escolas, a saber: Ensino Básico Unificado de Mato-Farroba (EBU de Mato-Farroba),
Ensino Básico Unificado de Cufar (EBU de Cufar), Escola de Autogestão de Mato-Farroba,
conhecida como Escola Tona Namone (EAG Tona Namone) e Escola de Autogestão de Areia,
chamada Escola Abêne (EAG Abêne). Foram entrevistados 16 estudantes, 8 professores e 3
especialistas, sendo 2 em educação e 1 em língua portuguesa.

Palavras-chave: Guiné-Bissau. Educação. Língua portuguesa. Balantas-Nhacra.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Guiné-Bissau é um país pequeno de 36.125 km², localizado na costa ocidental africana.


Faz fronteira ao norte com a República do Senegal, ao leste e ao sul com a República da Guiné
Conacri, ao oeste é banhado pelo Oceano Atlântico.
O país foi um dos cinco da África invadidos por Portugal4, tendo sido dominado por este
último desde 1446 até 1973, ano que conquistou a sua independência unilateral, depois de quase 11
anos de luta armada contra colonialistas portugueses, que iniciou em 23 de janeiro de 1963 e terminou
em 24 de setembro de 1973. Essa independência foi reconhecida pelo governo luso em 10 de setembro
de 1974, após a queda do regime salazarista (NAMONE, 2014).

3
UNESP/ Araraquara – SP, Doutorado, dabana.namone@gmail.com
4
Os demais países que foram invadidos por Portugal são Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
29

No país falam-se varias línguas étnicas oriundas de diferentes grupos étnicos que o
compõem, tais como: Fulas, Balantas, Mandingas, Pepeis (ou papeis), Manjacos, Mancanhas (ou
Brames), Beafadas, Bijagos, Nalus, Felupes, Mansoancas, Sossos, Saracules, Tandas, Djacancas
entre outros menores. Além dessas línguas, temos também a língua crioula que é a mais falada,
sobretudo nas cidades. A língua portuguesa que, muito embora não seja língua materna da maioria
esmagadora da população sendo falada apenas por 11% dos guineenses (INEC, 1991), ou 11,08%
(SCANTANBURLO, 2013, p. 28), cuja maioria reside na capital Bissau, figura-se como única língua
oficial de ensino, sendo inglês e francês tidos como línguas complementares.
A presente pesquisa analisou o impacto da língua portuguesa (LP) no sistema de ensino
da Guiné-Bissau, especialmente dos alunos da 1ª a 4ª classe (série) da etnia Balanta-Nhacra, na região
de Tombali, sul do país. Constatou-se que a LP é o principal fator de insucesso do sistema de ensino
guineense, na medida em que ela é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a
desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali,
protagonistas dessa pesquisa, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo - o idioma
mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas
sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à
realidade sociocultural desta nação.
O trabalho está dividido em quatro seções: a primeira descreveu a política de assimilação
adotada pelo regime colonialista portuguesa e seu impacto após a independência do país; a segunda
apresentou caminhos metodológicos percorridos que permitiram a realização dessa pesquisa, cuja
metodologia consiste, na pesquisa bibliográfica/documental e a pesquisa de campo: entrevista e
observação direta, nas escolas e nas tabancas/aldeias pesquisadas; a terceira trouxe relatos dos
informantes que apontam que a metodologia utilizada para ensinar a LP como a língua materna,
contribuiu decisivamente no insucesso do sistema de ensino guineense e a quarta seção destacou
vários relatos dos nossos informantes, que são unanimes de que a LP é o principal fator de insucesso
escolar na Guiné-Bissau, na medida em que é ensinada como a LM/L1 num país cuja maioria dos
alunos a tem como língua estrangeira (LE). Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos
alunos. Estes apenas sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma
língua estranha à realidade sociocultural do país.

A política de assimilação colonialista e seu impacto após a independência

Segundo Namone (2020), desde a chegada dos conquistadores portugueses ao território


que chamavam de Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), em 1466, até a sua saída forçada, em 1974,
usava-se a política educacional como principal ferramenta para promover a dominação dos nativos,
por meio da política de assimilação, de acordo com a qual,
30

a língua portuguesa serviu como o principal meio de difusão, de dominação e de transmissão


da cultura lusitana – dita civilizada – aos nativos africanos. Ao mesmo tempo, essa língua
serviu como ferramenta de divisão dos guineenses entre classes – “assimilados = civilizados”
e “indígenas = selvagens”. Esses últimos foram segregados, marginalizados e mantidos à
margem da sociedade lusa, ao mesmo tempo suas culturas e suas línguas foram
desvalorizadas, sendo tratadas como dialetos (NAMONE, 2020, p.100).

Nesse sistema colonialista, o Estatuto do Indígena5 era o principal instrumento jurídico


no qual se baseava a educação lusa, pois eram definidas em seu texto as condições que o africano
deveria preencher para ser considerado “assimilado”. Ou seja, para adquirir o “estatuto de
assimilado”, isto é, ser considerado “civilizado” e cidadão português, seria necessário ao africano
preencher os seguintes requisitos:

1-) Ter 18 anos completos; 2-) Saber ler, escrever e falar corretamente em português; 3-) Ter
profissão ou renda que lhe assegurasse o suficiente para prover as suas necessidades e do
número de familiares; 4-) Ter bom comportamento, uma vida correta e possuir a instrução e
os costumes indispensáveis à aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos
portugueses; 5-) Não estar inscrito como refratário ao serviço militar e não ter desertado
(ALMEIDA, 1981, p. 37).

Era também fundamental, quando os agentes do governo luso visitassem a residência do


requerente ao “estatuto de assimilado”, para avaliar as suas qualificações, que existisse uma mesa de
jantar, cadeiras, pratos, colheres, facas, garfos e demais objetos da vida “civilizada”, bem como a
fotografia do Presidente da República portuguesa exposta em lugar de destaque (MENDY, 1994).
Sendo assim,

o africano “indígena”, que quisesse adquirir estatuto de assimilado, teria que renunciar a sua
cultura e a sua língua em proveito da cultura europeia “civilizada”, devendo falar
corretamente a língua portuguesa (NAMONE, 2020, p.100-101).

Namone (2020, p. 100) considera ainda que o sistema colonialista separou também esse
território em dois mundos: “o da cultura escrita – portanto, civilizado e avançado – e o da cultural
oral, selvagem e atrasado, sendo esse último relegado ao abandono”. Apesar das injustiças desse
regime, no período da luta pela independência (1963-1973), o PAIGC6 manteve a língua portuguesa

5
O Estatuto do Indígena era uma lei que visava à “assimilação” dos nativos na cultura lusa. Essa lei estabelecia três
grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos, estes últimos os portugueses natos. Os primeiros eram
considerados como aqueles que não têm direitos civis ou jurídicos e nem cidadania (NAMONE, 2020). Segundo este
estatuto, “são considerados indígenas os indivíduos da raça negra e os seus descendentes que nasceram ou vivem
habitualmente na província, sem possuir ainda a instrução e os costumes pessoais e sociais indispensáveis à aplicação
integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (ALMEIDA, 1981, p. 36).
6
PAIGC (Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo-Verde) foi o partido liderado por Amílcar Cabral, que
lutou e conquistou a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde da dominação colonialista portuguesa.
31

como a única de ensino nas zonas libertadas (doravante Z.L.), pois, segundo Amílcar Cabral (1979),
a língua crioula não reunia condições para desenvolver o processo educativo. Vale lembrar que:

quando o partido iniciou a educação nas Z.L, decidiu adotar o kriol como língua de ensino.
Pouco tempo depois, essa língua foi abandonada, através da decisão de Amilcar Cabral –
líder do PAIGC – ao chegar à conclusão de que o kriol dificultava esse processo de ensino
que se pretendia dinâmico, visto que a língua crioula não dispunha de escrita normalizada a
ser adotada, e que o país carecia de quadros especializados capazes de normalizar e fixar a
sua escrita (NAMONE, 2020, p. 110-111).

Diante desses desafios, não restava dúvidas para o líder do PAIGC de que a língua
portuguesa deveria ser a única de ensino na Guiné-Bissau até o país reunir as condições viáveis para
ensinar as línguas maternas, especialmente o crioulo – o que deveria ocorrer após a independência
(CABRAL, 1979). Segundo o ponto de vista de Cabral, em Guiné-Bissau, a língua portuguesa era a
única com um sistema de escrita desenvolvido, o qual faltava à língua crioula e às línguas étnicas.
Além disso, ela poderia ser usada para comunicar-se com o mundo, para avançar a ciência e a
tecnologia:

Nós, Partido, se queremos levar para frente o nosso povo durante muito tempo, [...] para
escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português. [...] Até
um dia em que de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrando todas as regras
de fonéticas boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo (CABRAL, 1979,
p.105-106).

Sendo assim, a língua portuguesa foi adotada no ensino das Z.L. No entanto, após a
independência, a elite política que assumiu o poder decidiu mantê-la como a única de ensino no país,
enquanto esperava criar condições que permitissem o uso do crioulo nas escolas, contudo, essas
condições não foram criadas até hoje. Enquanto isso, o português continua como único idioma de
ensino guineense. Ou seja, da independência até o presente momento, o país não estabeleceu nenhum
planejamento linguístico que levasse em consideração as línguas autóctones. Sendo a língua
portuguesa mantida como a única do ensino.
Mas, apesar de Cabral e os governantes que tomaram o destino da nação depois da
independência optarem pela adoção do português como a única língua de ensino, as consequências
de seu uso logo se fizeram sentir: de modo geral, os alunos guineenses não dominam esse idioma.
Essa situação é pior nas zonas rurais, fato que interferem negativamente dos seus rendimentos
escolares, resultando em reprovações de grande parte deles. Pois, a metodologia usada para ensinar
esse idioma no sistema de ensino guineense contribui para seu insucesso, como veremos na próxima
seção.

Os caminhos metodológicos
32

Os caminhos metodológicos percorridos que permitiram a realização desse trabalho


basearam-se tanto nas pesquisas bibliográfica e documental como na de campo (pesquisa
etnográfica). A pesquisa bibliográfica e documental foi realizada mediante análise de fontes
documentais nacionais (da Guiné-Bissau) e internacionais, tais como: livros, teses, dissertações,
artigos, relatórios, trabalhos publicados nos jornais, nos sites, nos blogs, em Organizações Não
Governamentais (ONG) nacionais e internacionais que atuam na Guiné-Bissau e outros documentos
impressos e digitais.
Já a pesquisa de campo foi realizada na região de Tombali, setor de Catió, nas quatro (4)
escolas, que se seguem: Ensino Básico Unificado de Mato-Farroba (EBU DE MATO-FARROBA),
Ensino Básico Unificado de Cufar (EBU DE CUFAR), Escola de Autogestão de Mato-Farroba,
conhecida como Escola Tona Namone (EAG TONA NAMONE) e Escola de Autogestão de Areia,
chamada Escola Abêne (obrigado na língua balanta) (EAG ABÊNE). As duas primeiras são do Estado
e duas últimas funcionam em regime de autogestão, ou seja, são fundadas e mantidas pela associação
dos pais e encarregados da educação, com o apoio das missões católicas.
Nessa pesquisa entrevistamos 16 estudantes de 1ª à 4ª classe [série], nas 4 escolas, sendo
4 crianças por escola, dos quais 13 são da etnia Balanta-Nhacra e outros 3 são das etnias: Bafada,
Fula e Nalu respectivamente. Desse total, oito (8) são do sexo masculino e oito (8) do sexo feminino.
As entrevistas feitas com os alunos/as têm como objetivo analisar as consequências da LP na sua
trajetória escolar. Também, entrevistamos 8 professores desses níveis de ensino, sendo dois por
escola, sendo que 5 são do sexo masculino e 3 do sexo feminino. Não conseguimos estabelecer
equidade de sexo, pois, nessas escolas a maioria dos docentes são homens. Desse total, 4 são da etnia
Balanta, 3 da etnia Bijagó e 1 da etnia Beafada. Por ultimo, entrevistamos 3 especialistas, sendo 2 em
educação e 1 em língua portuguesa.
Os nomes de todos os informantes são mantidos em sigilo, com vista a preservar suas
identidades. No entanto, criamos códigos que nos permitem identificar o membro de cada grupo,
como se segue no quadro abaixo.

Quadro 1: Código dos alunos, professores e especialistas entrevistados

Código dos alunos Código dos professores Código dos especialistas


33

Aluno EBU1-1; Aluna EBU1-2; Prof. EBU1-1; Prof. EBU1-2; DRE/C1; DRE/C2;
Aluno EBU1-3; Aluna EBU1-4; Profa. EAG1-1; Prof. EAG1-2; ESP/FEC1.
Aluno EAG1-1; Aluna EAG1-2; Prof. EBU2-1; Prof. EBU2-2;
Aluno EAG1-3; Aluna EAG1-4; Profa. EAG2-1; Profa. EAG2-
Aluno EBU2-1; Aluna EBU2-2; 2.
Aluno EBU2-3; Aluna EBU2-4;
Aluno EAG2-1; Aluna EAG2-2;
Aluno EAG2-3; Aluna EAG2-4.

Fonte: NAMONE, 2019

A língua portuguesa é ensinada como língua materna na Guiné-Bissau

No sistema do ensino guineense, a LP é ensinada como língua materna – L1/LM das


crianças. Mas o fato é que ela não é a língua materna (LM/L1) nem a língua segunda (L2) da maioria
dos alunos. De acordo com Couto e Embaló (2010, p.47):

O português até hoje não é praticamente falado como língua vernácula na Guiné-Bissau. Ele
só é adquirido como língua materna, por uma insignificante franja de filhos de guineenses
que, tendo estudado em Portugal ou no Brasil, adotaram-na como língua de comunicação
familiar.

Os relatos dos nossos informantes, (professores das escolas pesquisadas e especialistas


em educação e em linguística) que seguem abaixo, revelam que a metodologia utilizada para ensinar
a LP não é adequada à realidade sociolinguística dos alunos guineenses, principalmente nas zonas
rurais, como é o caso dos alunos balantas pesquisados na região de Tombali, fato que contribuiu
decisivamente no insucesso do sistema de ensino guineense. Segundo ESP/FEC1 - que é especialista
em educação - “nos programas curriculares da Guiné-Bissau, a LP é encarada como a língua materna
dos alunos. Ou seja, como se todos os alunos que entram na 1ª classe já soubessem falar LP”.
(ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone). Para ele:

O aluno logo desde a 1ª classe o que vai aprender é igual ao aluno de 1ª classe, por exemplo,
em Portugal ou no Brasil. O fato é que os alunos de Portugal e do Brasil já sabem a língua
portuguesa quando vão para escola. E os alunos da Guiné-Bissau, a maioria, quase todos –
então nas regiões de Quinara e Tombali eu imaginaria que 99% – não sabem a LP. Não sabem
falar, nem ouvir, nem ler e nem escrever e quando entram para escola, o programa curricular
da Guiné-Bissau não está adaptado e vai começar a falar da gramática, dos verbos, dos
advérbios, das preposições para o aluno como se ele já soubesse falar a LP. Mas o aluno não
sabe falar a LP e nem tem minimamente a noção de como se comunicar nessa língua.
(ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).

Nesse sentido, o referido especialista em educação sugere que o Ministério da Educação


guineense deve ensinar a LP como língua estrangeira (LE) do aluno, visto que, “em primeiro lugar o
34

aluno tem que aprender a expressar oralmente da LP; tem que aprender primeiros os vocabulários
dessa língua e não dar mais atenção à parte formal, por exemplo, os verbos, os pronomes, os advérbios
etc”. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone). O
mencionado informante explica que:

Quando aprendemos uma língua estrangeira, por exemplo, a língua inglesa, no primeiro ano
os verbos são dois ou três. A maioria das coisas que você aprende são os vocabulários,
pequenas frases, como cumprimentar as pessoas, como falar vou à feira fazer compras, como
pedir as coisas, perguntar quanto custa. Ou seja, aprender coisas do cotidiano do dia a dia,
aprender os sons daquela língua, aprender as semelhanças daquela língua com a sua língua
materna. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone).

Mas, para ele, não é isso que está sendo feito com as crianças guineenses. O que ocorre
hoje na Guiné-Bissau é como se a LP fosse língua materna delas, partindo do princípio de que elas já
sabem falar a LP. Nesse contexto, o aluno estuda LP até a nona classe, mas, mesmo assim, não sabe
usá-la para se comunicar. Ou seja, o aluno faz um percurso de 9 anos ouvindo a LP sem conseguir
falar o idioma.

Mas, se você perguntar as coisas formais da LP, por exemplo, o tempo verbal ou o que é um
nome, o que é um verbo, o que é um adjetivo, eles sabem. Aquelas coisas formais de uma
língua, os bons alunos sabem. Por quê? Porque o programa curricular da Guiné-Bissau, ou
seja, o currículo que os professores têm que cumprir, é um currículo formal e tradicional da
LP, que ensina os verbos, as classes das palavras, como dividir os parágrafos, tipos de textos.
Mas há pouco espaço para treinar a oralidade e acho que a oralidade que é o segredo de
qualquer língua. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone).

O DRE/C2, por seu lado, critica também a metodologia utilizada no ensino da LP na


Guiné-Bissau, o que para ele contribui, em grande medida, para o fracasso escolar de muitos
estudantes das zonas rurais guineenses. Para ele também, a LP deveria ser ensinada como a L2 ou até
como LE e justifica por quê:

Porque imagine um nativo que nasceu numa determinada zona, por exemplo, aqui
na região de Tombali – predominada pela etnia Balanta – para um aluno balanta falar a LP
tem que fazer a ligação entre três línguas: primeiro da língua balanta (LBal) para LC e desta
para LP. Isso cria muitas dificuldades para ele. (O DRE/C2. Catió /Guiné-Bissau, jun.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).

Ainda o DRE/C2 critica que, em vez de ensinar o aluno a ter contato e aprender os
vocabulários da LP através da oralidade, fazendo-os dialogar entre si, eles são ensinados logo de
início apenas a gramática:
35

Se você ensinar o aluno baseando-se apenas na gramática, tais como: o que é verbo, o que
são os pronomes, os adjetivos, entre outros, será que esse aluno um dia vai conseguir
comunicar na LP? Achamos que não. Por que não ensinamos a LP como a L2? Por que não
fazemos os alunos de 1º e 2º anos ter contato com a língua portuguesa criando-os diálogo,
estimulando-os a falar? (DRE/C2. Catió/Guiné-Bissau, jun.: 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).

Chico (2012) já vinha chamando atenção sobre a metodologia usada para ensinar a LP
nas escolas guineenses, ao considerar que essa metodologia,

tem revelado grandes deficiências, porque as estratégias utilizadas pelos professores


guineenses são as do ensino tradicional de línguas, em que se dá mais atenção ao estudo da
gramática (baseado essencialmente na memorização das regras gramaticais), sem uma
preocupação com a reflexão que possa permitir uma avaliação de ensino e aprendizagem da
língua em questão (CHICO, 2012, p. 70).

Diallo (2007) foi mais radical no assunto, considerando que nenhum país do mundo
conseguiu desenvolver-se na base de um sistema educativo em que o ensino é exclusivamente
ministrado numa língua em que a maioria da população ignora. Para ele “o desenvolvimento durável
é possível só quando acompanhado por um sistema educativo em que as comunidades beneficiárias
se apropriam dele” (DIALLO, 2007, p. 8). E ainda afirma que

a utilização da língua materna garante a continuidade do desenvolvimento psico-motor,


afectivo e cognitivo da criança: tirar-lhe esta oportunidade, significa colocá-la
deliberadamente numa situação de desequilíbrio permanente. Ora, na criança, um simples
conflito linguístico pode degenerar conflitos extra-linguísticos que podem afectar a sua
personalidade (DIALLO, 2007, p. 11).

Contudo, este problema continua sendo ignorado, até hoje, pelos sucessivos governantes
guineenses, que em vez de adotar uma metodologia de ensino da LP adequada à realidade
sociolinguística do país, continuam ensinando-a como a língua materna para os alunos, cuja maioria
não tem o mínimo conhecimento dela, o que prejudica a sua aprendizagem, resultando em
reprovações e abandono escolar.

A língua portuguesa como principal fator de insucesso escolar na Guiné-Bissau

Segundo nossos informantes, a LP é o principal fator de insucesso escolar na Guiné-


Bissau, na medida em que é ensinada como a LM/L1 num país cuja maioria dos alunos a tem como
língua estrangeira (LE). O Prof. EBU2-2 fez uma observação crítica nesse sentido, enfatizando
aspectos negativos da LP no ensino guineense atualmente. Como exemplo disso, o professor lembra
um fato que aconteceu entre ele e um aluno da etnia Balanta dentro da sala de aula, na escola de
ensino básico unificado de Cufar na qual trabalha:
36

Imagine, por exemplo, nessas regiões, caso concreto aqui no sul, a maioria dos alunos falam
a língua da sua etnia. Aliás, aconteceu comigo aqui na escola mesmo a menos de dois meses
o seguinte: expliquei as matérias em português, no final, um aluno virou e falou com o seu
colega na língua balanta: “tudo que o professor falou até agora não entendi nada”. Logo, o
colega dele virou para mim e disse em crioulo: purssor, nha colega fala kuma i ka ntindi nada
ki bu fala. [professor, meu colega diz que não entendeu nada que você disse até agora]. Aí,
perguntei: por quê? Ahah...kima i ka sibi papia purtuguis. [Ahah... ele diz que não sabe falar
o português] – respondeu o colega. Olha só... Isso me marcou muito, pois acontece que o
mesmo aluno não domina também a língua crioula e eu não domino a língua balanta. Ou seja,
isso cria um pouco de limitação ao aluno. O aluno fica limitado e mesmo que tem dúvidas
fica com dificuldade de apresentá-las, porque tem medo de que se falar errado os colegas vão
rir dele na sala. Por isso, se verifica na sociedade, às vezes você que tem dificuldade de falar
uma língua fica com medo de falar porque acha que se falar errado as pessoas vão rir. (Prof.
EBU2-2. Cufar /Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).

O caso relatado por esse professor sobre seu aluno não é um caso isolado. É, sim, o retrato
de um problema que a maioria dos alunos enfrenta na escola, principalmente nas zonas rurais do país,
como é o caso dos alunos balantas pesquisados. A LP é praticamente inexistente no seu vocabulário,
fato que gera muitas dificuldades ao longo da sua trajetória escolar.
Percebe-se que esse aluno, além de ter dificuldades na LP e na LC, apresenta também
outros problemas decorrentes do anterior, isto é, timidez, medo ou vergonha de apresentar suas
dúvidas e expressar suas opiniões na sala de aula. Nesse caso, apesar de estar com dúvidas, ele mesmo
não conseguiu apresentá-las ao professor. Isso acontece porque o aluno/a fica com medo ou vergonha
de falar a LP, pensando que se errar será alvo de ridicularização por parte dos seus colegas. Ou seja,
é uma realidade que acontece com muitos estudantes guineenses, que ficam praticamente passivos na
sala de aula devido ao fato de ter dificuldades na LP, ficam com medo ou vergonha de falar para não
sofrer bullying por parte dos colegas, fato que obriga muitos/as a ficarem o tempo todo calado/a na
sala de aula.
O Prof. EBU2-2 aponta ainda as consequências negativas da LP no ensino básico,
explicando que muitas das vezes o professor explica a matéria, passa um exercício no quadro e explica
e alunos compreendem bem, agora, para eles te responder aquele exercício na LP é onde eles
enfrentam dificuldades, sobretudo, na escrita. Mas, se fossem nas suas próprias línguas eles não
teriam dificuldade em responder. (Prof. EBU2-2. Cufar /Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).
Ademais, a Profa. EAG1-1 considera também que a língua portuguesa é o maior causador
das dificuldades nos alunos, uma vez que eles não têm habilidade nela, por falta de hábito de falar e
escrever. “Por exemplo, esses aqui da nossa escola falam sempre a língua balanta, porque quase
todos são Balantas, o que interfere na aprendizagem tanto da língua crioula como da língua
portuguesa”. (A Profa. EAG1-1. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).
Por seu turno, o Prof. EAG1-2 segue apontando o mesmo problema:
37

A primeira dificuldade dos alunos é da língua portuguesa. Por quê? Porque o aluno sai da
tabanca, na família falando a sua língua materna ao chegar à escola tudo muda, ou seja, o
aluno começa a lutar para se enquadrar na língua da escola [a LP]. Isso dificulta a sua
aprendizagem. Na escola, o professor tem que ter a concentração, porque se ele explicar as
matérias apenas em português, a maioria dos alunos não compreende, só um ou dois vão
compreender. (Prof. EAG1-2. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).

Também, a Profa. EAG2-2 acha que o primeiro fator de dificuldade dos alunos está na
falta de domínio da LP:

Para mim, o primeiro fator é o não domínio da língua portuguesa, porque em casa alunos
falam as línguas maternas e quando chegam na escola para estudar deparam com a língua
portuguesa que nunca aprenderam a falar, fato que prejudica sua aprendizagem, gerando
muitas dificuldades e reprovações. (Profa. EAG2-2. Areia/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).

O Prof. EBU1-1também lamenta que: O problema da língua portuguesa na Guiné-Bissau,


hoje em dia, é muito grave. Na verdade, a língua portuguesa é nossa língua oficial, mas temos
diferentes línguas étnicas.

Numa tabanca como essa [Mato-Farroba], principalmente no ensino elementar, o professor


tem que utilizar português pouco, crioulo pouco e língua étnica pouco para que o aluno
consiga acompanhar a matéria. Porque se o professor falar apenas a língua portuguesa, os
alunos ficam totalmente perdidos. Na verdade, caso o professor saiba falar a língua étnica
dominante na tacanca onde ele dá aula, obrigatoriamente tem que tocar nela para facilitar a
compreensão dos alunos, caso contrário, os alunos ficam totalmente perdidos. (Prof. EBU1-
1 Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).

A seguir, a Profa. EAG2-1considera a LP como principal causa de dificuldades dos


alunos na escola. Pois, para ela, muitos alunos têm dificuldade na escrita da LC e pior ainda na LP, o
que gera muitas dificuldades inclusive a reprovação. Para ela:

A criança aprende com mais facilidade e mais rápido na primeira língua, ou seja, a sua língua
materna. Por exemplo, essas que ainda não sabem falar a LC se você ensiná-las nas suas
línguas étnicas, vão apreender mais rápido. Agora, se forem ensinadas na língua que não
dominam, vão apreender com dificuldade. (Profa. EAG2-1. Areia/Guiné-Bissau, jun./jul.:
2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).

O DRE/C1 traz mais detalhes sobre o assunto, apontando a incompreensão da LP como


principal causa de dificuldades e de reprovações dos alunos. Mas, para ele, a culpa não é do professor
nem do aluno, o problema está na aplicação de metodologia errada para ensinar a LP:

O maior causador das dificuldades e reprovações dos alunos está na incompreensão da língua
do ensino (a LP). Por que reprovar significa o quê? Significa que o aluno estudou até o final
do ano, foi avaliado e em consequência dessa avaliação foi reprovado. E se o aluno não
38

conseguir resultado que o permite passar, significa que sua aprendizagem é insuficiente e
quando é assim, temos que procurar fatores que provocaram tal insuficiência e se você
pesquisar vai descobrir que o primeiro fator é a língua. Ou seja, aprendizagem dos nossos
alunos está fraca, mas a culpa não é do professor nem dos alunos e, sim, da incompreensão
da língua de ensino - LP. Porque aplicação do método depende mais do domínio de língua.
(DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau, jun.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).

Este especialista em educação considera ainda que a falta de compreensão da LP é que


obriga muitos alunos a decorar o texto, pois, para ele, a aprendizagem parte da compreensão da língua.
Ora, se o aluno não entende a língua da escola, obviamente, terá dificuldade no processo de ensino e
de aprendizagem, porque o aluno consegue ler o texto, mas não sabe o significado do que ele está
lendo, por isso que, segundo ele, o aluno memoriza as matérias para conseguir fazer as provas. Mas,
depois de dois anos, se você fizer uma pergunta a esse aluno sobre as mesmas matérias, ele não vai
saber responder, porque já esqueceu. Mas se você perguntar ao aluno que domina a LP, ele vai dar a
resposta certa, porque entendeu o assunto de que se trata. Por isso, ele defende que a LC e as línguas
étnicas deveriam ser as línguas de ensino no país. Ou, pelo menos, o nosso ensino deveria ser bilíngue
– com a LP apoiada pela LC. Nesse caso, a LC, por mais que possa parecer difícil, tem os termos que
vem das nossas línguas étnicas. Sendo assim, não podemos fazer ao contrário, porque no nosso meio
social, a criança nasce e vive durante seis anos sem ter contato com a LP, já que não a temos como a
língua de base.
Como podemos constatar através dos relatos desses informantes, a LP é o principal fator
que causa dificuldades na aprendizagem dos alunos na Guiné-Bissau, principalmente no interior do
país. Porque a maioria esmagadora dos guineenses desconhece o referido idioma, sobretudo nas zonas
rurais, pois, as pessoas residentes nessas regiões usam habitualmente as suas línguas maternas.
A nossa hipótese inicial era de que a LP contribui para o fracasso ou insucesso escolar
dos alunos no país, especificamente, as crianças Balantas-Nhacra do ensino básico da região de
Tombali, porém essa hipótese não foi confirmada no campo. O que foi confirmado é o insucesso do
próprio sistema de ensino, na medida em que a LP é ensinada como a língua materna das crianças,
cuja maioria a desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de
Tombali, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo - o idioma mais falado no país.
Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas sofrem as consequências
do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à realidade sociocultural do país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Guiné-Bissau é um dos países africanos com altas taxas de analfabetismo 7,


especialmente nas zonas suburbanas e rurais. O grande problema é o ensino em língua portuguesa,

7
Se entendermos o analfabetismo como um conceito que define a pessoa desprovida de conhecimento da escrita.
39

porque a “grande maioria dos alunos, principalmente das zonas rurais nascem e crescem sem ter
contato nenhum com o português. O contato com o português inicia-se na 1ª série de ensino quando
a aluno já está com 7, 8 ou 9 anos, atitude que dificulta a aprendizagem” (NAMONE; TIMBANE,
2018, p. 15).
O insucesso do sistema do ensino guineense deve-se à metodologia utilizada no ensino
da LP, uma vez que ela é ensinada segundo a metodologia da língua materna - LM, para crianças que
a desconhecem, independentemente se a escola se encontra na cidade ou nas zonas rurais. Ao
contrário, a língua crioula que é a mais falada e as línguas étnicas são ignoradas.
O ensino de língua portuguesa é desenvolvido por processos didáticos que se assentam
na repetição e na memorização, isto é, o aluno não é levado a perceber o conteúdo até ao ponto de
poder relacioná-lo com a sua realidade, num contexto comunicativo (CANDÉ, 2008). “Os alunos
decoram frases mecanicamente, sem nenhum senso crítico, porque o ensino da gramática ou o
funcionamento da língua é exclusivamente baseado na memorização” (COUTO; EMBALÓ, 2010,
p.41). Essa atitude reflete negativamente no resultado do aluno, pois, em momentos de avaliação,
esses alunos não conseguem desenvolver seu próprio raciocínio.
A metodologia da memorização inibe a criatividade do aluno e faz com que ele fique
preso em frases pré-elaboradas e ditas pelo professor, o que acarreta graves consequências para o
próprio aluno, em particular, e para o sistema de ensino em geral. Uma das principais consequências
desse método é o maior índice de reprovações e abandono escolar, fato que também não contribui
para a melhoria de qualidade da educação.
Portanto, quando se fala de insucesso escolar na Guiné-Bissau, deve-se ter na mente que
tal insucesso não se deve ao fato dos alunos terem dificuldades na aprendizagem escolar ou de
apresentarem maior índice de reprovações. O insucesso é do próprio sistema de ensino, na medida
em que a LP é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a desconhece, sobretudo
no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali, que só falam a língua materna, pois
poucas falam o crioulo - o idioma mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar
não é dos alunos. Estes apenas sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado
em uma língua estranha à realidade sociocultural desta nação.
A realidade sociolinguística da Guiné-Bissau demostra que é urgente adotar a língua
crioula (ou guineense) no ensino, umas que é a mais falada pela maioria da população. Também, as
línguas étnicas devem ser valorizadas nas escolas, pois elas são as línguas maternas de muitas
crianças. A valorização das línguas maternas dos alunos na escola é um desafio que os governantes
guineenses e a sociedade em geral devem encarar como benéfica para o país. Pois, como dizem os
especialistas no assunto, o ensino na língua materna, além de facilitar a aprendizagem do aluno e
elevar a sua autoestima, facilita a sua aprendizagem nas outras línguas.
40

REFERENCIAS

ALMEIDA, H. M. F. Educação e transformação social: formas alternativas de educação em país


descolonizado, 1981. 239, f. Dissertação (Mestrado em educação) – Instituto de Estudos Avançados
em Educação, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1981.

CABRAL, A. Análise de alguns tipos de resistências. Bolama: Imprensa Nacional, 1979.

CANDÉ, F. A língua portuguesa na formação de professores do ensino básico da região de


Bafatá, na Guiné-Bissau. 2008.112 f. Dissertação (Mestrado em línguuística) – Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008.

CHICO, P. O Ensino do Português como Língua Segunda na Guiné-Bissau: que metodologia?


Revista Guineense de Educação e Cultura, Lisboa, n. 2, p. 70-74, 2012.

COUTO, H. H. do; EMBALÓ, F. Literatura, Língua e Cultura na Guiné-Bissau: um país da CPLP.


Papia, Brasília, n. 20. p. 1-256, 2010.

DIALLO, I. GUINÉ-BISSAU: que papel e que lugar nas políticas nacionais de desenvolvimento e
estratégias de integração Subregional? INEP (mimeografado), Bissau, 2007.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA E CENSO - INEC. Recenseamento geral da


população e habitação v. IV. Bissau: INEC, 1991.

MENDY, P. K. Colonialismo português em África: a tradição de resistência na Guiné-Bissau


(1879-1959). Bissau: INEP, 1994.

NAMONE, D.& TIMBANE, A. A. Consequências do ensino da língua portuguesa no ensino


fundamental na Guiné-Bissau 43 anos após a independência. Mandinga: Revista de Estudos
Linguísticos, Redenção-CE, v. 01, n. 01, p. 39-57, jan./jun. 2017. Disponível em:
http://revistas.unilab.edu.br/index.php/mandinga/article/view/34. Acesso em: 04 de mar. de 2021.

NAMONE, D. A luta pela independência na Guiné-Bissau e os caminhos do projeto educativo


do PAIGC: etnicidade como problema na construção de uma identidade nacional. 2014. 120f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista, Araraquara, 2014. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/115896.
Acesso em: 04 de mar. de 2021.

_________. Educação tradicional e moderna na Guiné-Bissau e o impacto da língua portuguesa


no ensino: caso das crianças da etnia Balanta-Nhacra de Tombali. 2020. 346p. Tese (doutorado em
Ciências Sociais - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2020.
Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/194202. Acesso em: 05 de mar. de 2021.

SCANTAMBURLO, L.O Léxico do Crioulo Guineense e as suas Relações com o Português: o


Ensino Bilingue Português-Crioulo Guineense. Orientadora: Maria Teresa Rijo da Fonseca Lino.
Tese (doutorado em Linguística) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de
Lisboa, 2013. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/10960. Acesso em: 04 de mar. de 2021.
41

ENSINO DAS LÍNGUAS MOÇAMBICANAS: AVANÇOS E DESAFIOS PARA O


SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

Andalito Romão Giltina João8


Universidade Rovuma – Moçambique
RESUMO
O presente trabalho intitulado “Ensino das Línguas Moçambicanas: Avanços e Desafios para o
Sistema Nacional de Educação” tem o objectivo de analisar o ensino das línguas moçambicanas tendo
em conta os avanços e os desafios das políticas educacionais do Sistema Nacional de Educação (SNE)
em Moçambique. Neste contexto, a questão fundamental centra-se na análise do modelo transicional
da Educação Bilíngue que consiste em usar as línguas moçambicanas como línguas de suporte para
o ensino de e em língua portuguesa, uma Educação Bilíngue subtrativa e um modelo fraco cujo
procedimento é o abandono das línguas moçambicanas, dando espaço apenas à língua portuguesa
como língua de ensino. Consequentemente, este modelo adotado pelo SNE não incentiva o
desenvolvimento das habilidades linguísticas moçambicanas por causa do seu abandono precoce
como disciplinas curriculares e como línguas de ensino. Portanto, propõem-se alguns desafios ao SNE
como: a adopção de um modelo forte ou de enriquecimento linguístico que se baseia numa Educação
Bilíngue aditiva; a introdução de línguas moçambicanas como disciplinas curriculares, mesmo nas
escolas monolíngues; a formação e qualificação de professores e demais profissionais para a
Educação Bilíngue para cada uma das línguas moçambicanas e de acordo com a necessidade de cada
escola bilíngue; aceleração da produção de material didáctico e manuais de literatura infanto-juvenil;
alfabetização de adultos em línguas moçambicanas; massificação da introdução de cursos de línguas
moçambicanas nos Institutos de Línguas.

Palavras-chave: Línguas Moçambicanas, Políticas Educacionais, Avanços e desafios.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho intitulado “Ensino das Línguas Moçambicanas: Avanços e Desafios


para o Sistema Nacional de Educação” tem o objectivo de analisar as políticas educacionais face ao
ensino das línguas moçambicanas tendo em conta os avanços e os desafios que o SNE tem que
enfrentar para a concretização efectiva da valorização e promoção dessas línguas para o acesso ao
conhecimento científico e técnico, à informação bem como para participação nos processos de
desenvolvimento do País (cf. Lei 18/2018 de Dezembro). Constitui, também, o objectivo desse
trabalho, a avaliação do modelo transicional do Ensino Bilingue adoptado pelo SNE tendo em conta
o alcance dos resultados do ensino das línguas nacionais.
Moçambique é caracterizado por uma diversidade linguística acentuada com mais de 16
línguas autóctones do grupo Bantu, convivendo com a Língua Oficial, a Língua Portuguesa, e línguas
estrangeiras como o inglês, Urdu ou Gujrati. (FIRMINO, 2009) Segundo os dados do último CENSO
de 2017 (INE, 2019), as línguas moçambicanas continuam sendo as mais faladas no território

8
Mestrando em Educação/Ensino de Português na Universidade Pedagógica de Maputo. Docente do Departamento de
Letras e Ciências Sociais da Universidade Rovuma – Extensão de Cabo Delgado. andalitojoao@unirovuma.ac.mz
42

moçambicano e constituem a L1 da maioria dos seus falantes, entretanto, o português é a língua mais
falada nas zonas urbanas comparativamente com as zonas rurais. O mapeamento linguístico
moçambicano e sua diversidade constituem uns dos problemas fundamentais para a implementação
de políticas públicas cujas minorias linguísticas vêem-se ameaçadas.
A primeira lei do SNE de Moçambique, lei 4/83 de 23 de Março, no Artigo 5, refere-se
ao estudo e à valorização das línguas moçambicanas, do mesmo modo, a primeira Constituição da
República de Moçambique de 1990, como um Estado de Direito Democrático, no Artigo 9, refere
que “o Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional [...].” Como se
pode observar, desde a criação do novo Estado, após a independência, o governo moçambicano, a
partir da sua política linguística, mostra a preocupação e importância da valorização das línguas
moçambicanas como um património cultural e incentiva o seu uso na educação. Apesar da questão
de ensino de línguas moçambicanas ser legislada em 1983, os primeiros passos foram marcados 5
anos depois, com a realização do I Seminário para a Padronização da Ortografia de Línguas
Moçambicanas.
Após longos anos de discussão sobre a sua introdução nas escolas, implementou-se o
Projecto de Educação Bilíngue em Moçambique, no período de 1993-1997, mais tarde em 2003 com
a reforma curricular do Ensino Básico, ainda que na fase experimental. Como resultado verificaram-
se muitos obstáculos como a falta de professores capacitados, falta de material didáctico, entre outros,
embora se tenha verificado um bom desempenho nos alunos das escolas bilíngues comparativamente
com os das escolas monolíngues. (BENSON, 1997)

Ensino das línguas moçambicanas e Ensino Bilíngue

O ensino das línguas moçambicanas foi introduzido através do Ensino Bilíngue a partir
do modelo transicional conforme ilustra a figura abaixo:

Figura 1: Gráfico do Modelo de Educação Bilingue em Moçambique9

9
Adahttp://ead.mined.gov.mz/manuais/Didactica%20de%20Lingua%20Primeira/aula1.3.html
43

Fonte: Adaptado de INDE, (2003: 113)

Seguindo-se esse modelo de Ensino Bilingue, as 1.a e 2.a classes são leccionadas na L1
do aluno, isto é, as línguas moçambicanas são o meio de ensino. Já a partir da 3.a classe em diante, as
línguas nacionais, como meio de ensino, são abandonadas gradualmente, cedendo o espaço para a
língua portuguesa que passa a ser a língua de ensino.
Para LOPES (2004), o modelo transicional de ensino das línguas moçambicanas é ideal
e é, no entanto, problemático porque por um lado, o autor defende o uso das línguas moçambicanas
como meio de ensino para as crianças moçambicanas que as têm como L1’s e, por outro lado, defende
o uso da língua portuguesa como meio de ensino para as crianças moçambicanas que a têm como L1.
Neste contexto, como a língua portuguesa constitui a língua de ensino das classes mais avançadas, as
crianças que têm as línguas moçambicanas como L1’s têm maior probabilidade de gerar competência
empobrecida nessa língua e criar dificuldades às crianças que não têm a língua portuguesa como
língua materna quando forem confrontadas com outras para quem a língua portuguesa é língua
materna.
Com efeito, o aluno não é capaz de aprender o funcionamento das línguas moçambicanas,
principalmente nas competências de leitura e escrita, e, do mesmo modo, aceder ao conhecimento
científico e técnico por meio dessas línguas, após os primeiros 3 anos de escolarização (período
transicional).

Avanços para o Sistema Nacional de Educação

O ensino das línguas moçambicanas em Moçambique tem os seguintes avanços:

1. Proposta para a Padronização da Ortografia das línguas nacionais (ainda não aprovada);
2. Projecto de Educação Bilíngue em Moçambique;
3. Estratégia de Expansão de Ensino Bilingue (2020-2029);
4. Cursos de Licenciatura em Ensino de Línguas Bantu;
44

5. Formação de Professores para a Educação Bilingue;


6. Introdução de algumas línguas moçambicanas no Instituto de Línguas;
7. Uso oral de algumas línguas nacionais nos meios de comunicação de massa.

Importa realçar que já se realizaram projectos pilotos sobre a utilização de línguas


nacionais como meio de alfabetização de adultos a partir do modelo transicional. LOPES (2004)
Estes avanços deram mais visibilidade a preocupação de ver as línguas moçambicanas no
ensino e nos meios de comunicação de massa através de políticas públicas e educacionais que visam
a sua promoção e valorização.

Desafios para o Sistema Nacional de Educação

Durante a luta contra o tribalismo a favor da unidade nacional, as línguas moçambicanas


foram relegadas para dar espaço à língua portuguesa, considerada como língua de unidade nacional
sob ponto de vista político e ideológico. (VELASCO e TIMBANE, 2017)
Nas comunidades moçambicanas, a língua portuguesa (língua oficial) constitui o veículo
de ascensão social (FIRMINO 2009; CHIMBUTANE, 2011), por este facto, nas zonas urbanas,
alguns pais e encarregados de educação reagiram negativamente a introdução de línguas
moçambicanas como língua de ensino. Neste contexto, há uma necessidade de se traçarem políticas
públicas que visam garantir que as línguas moçambicanas possam constituir meio de aquisição do
conhecimento técnico-científico universal e de ascensão social ou vantagem social apesar de
constituírem línguas de identidade etnolinguística para os moçambicanos. Há um desafio sobre a
questão de línguas moçambicanas e línguas maternas, isto é, as línguas moçambicanas são línguas
maternas para as crianças das zonas rurais, este facto cria barreira para a introdução de línguas
moçambicanas nas escolas dos centros urbanos cujas crianças (maioritariamente) têm a língua
portuguesa como língua materna e já se preparam para a língua inglesa com língua segunda, entendida
pelos seus pais e encarregados de educação como língua de prestígio para o acesso ao conhecimento
universal.
A diversidade etnolinguística levanta problemas no âmbito da planificação curricular
LOPES (2004: 40), isto é, o currículo a ser implementado deve espelhar a realidade linguística e
cultural de cada aluno ou das turmas, tomando em consideração a heterogeneidade.
Patel e Cavalcante (2013), afirmam que:

O currículo do ensino secundário prevê, desde 2004, o ensino de línguas Bantu, escolhidas
pela própria escola ou pela comunidade local, como uma disciplina opcional; no entanto, o
Ministério da Educação nunca fez esforços para que esta decisão fosse efetivada alegando
falta de recursos financeiros para a elaboração de materiais, bem como a falta de professores
formados. ( PATEL E CAVALCANTE, 2013,p.7)
45

Considerando que o objectivo do SNE é a valorização das línguas nacionais, a sua


introdução como disciplinas curriculares deve ser obrigatória e a sua escolha deve obedecer, dentre
outros critérios, ao grau de veicularidade dessas línguas na zona onde a escola se localiza, embora,
neste caso, as línguas moçambicanas maioritariamente minoritárias fiquem sempre excluídas.

Na área didáctico-pedagógica, constatam-se os seguintes desafios:


• Deve-se avançar na pesquisa científica nas questões linguísticas e didáctico-pedagógicas no
ensino de línguas nacionais, com maior enfoque no estudo das capacidades interlinguísticas
susceptíveis de transferência da L1 para a L2; (PFLEPSEN et al. 2015)
• Deve-se adoptar um modelo forte ou de enriquecimento linguístico que se baseia numa
Educação Bilíngue aditiva;
• Devem-se introduzir as línguas moçambicanas como disciplinas curriculares, mesmo nas
escolas monolíngues, desde o Ensino Básico até o Secundário;

• Devem-se ensinar as línguas moçambicanas em línguas moçambicanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho pretendeu analisar as políticas educacionais face ao ensino das
línguas moçambicanas tendo em conta os seus avanços e os desafios que o SNE tem que enfrentar
para a concretização efectiva da valorização e promoção dessas línguas para o acesso ao
conhecimento científico e técnico, à informação bem como de participação nos processos de
desenvolvimento do País (cf. Lei 18/2018 de Dezembro), do mesmo modo, pretendeu avaliar o
modelo transicional do Ensino Bilingue adoptado pelo SNE tendo em conta os resultados do ensino
das línguas nacionais, tendo constado que o aluno não é capaz de aprender o funcionamento das
línguas moçambicanas, principalmente nas competências de leitura e escrita e, do mesmo modo,
aceder ao conhecimento científico e técnico por meio dessas línguas, após os primeiros 03 anos de
escolarização que se cumprem com o modelo transicional de Educação Bilingue.
Na mesma ordem de ideias, durante a luta contra o tribalismo a favor da unidade nacional,
as línguas moçambicanas foram relegadas para dar espaço à língua portuguesa, considerada como
língua de unidade nacional sob ponto de vista político e ideológico. Neste contexto, nasce um desafio
de resgatá-las, também, através de uma estratégia político-ideológica que não se funde apenas na
educação, mas sob um olhar de ascensão social e de manifestação da moçambicanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
46

BENSON, C. Relatório Final Sobre o Ensino Bilingue: Resultados da Avaliação Externa da


Experiência de Escolarização Bilingue em Moçambique (PEBIMO). Maputo: INDE – Instituto
Nacional de Desenvolvimento da Educação/Ministério da Educação de Moçambique. 1997.

CHIMBUTANE, F. Rethinking bilingual education in postcolonial contexts. Clevedon, Avon:


Multilingual Matters. 2011.

FIRMINO, G. A. situação do português no contexto multilingue de Moçambique. Comunicação


apresentada ao SIMELP Évora. 2009. Disponível em:
http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/mes/06.pdf, Acesso em: 3 de fevereiro de 2020.

MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, Imprensa Nacional, Maputo, 2000.

MOÇAMBIQUE, Lei 18/2018 de dezembro do Sistema Nacional de Moçambique.

MOÇAMBIQUE, Lei 4/83 de 23 de março do Sistema Nacional de Moçambique.

INDE. Plano Curricular do Ensino Básico: Objetivos, Políticas, Estrutura, Plano de Estudos e
Estratégias de Implementação. Maputo: INDE/MINED. 2003.

INE. IV Recenciamento geral de população e habitação 2017: Maputo: INE, 2019.

LOPES, A. J. Batalhas das línguas: perspetivas sobre linguística aplicada em Moçambique.


Maputo: Imprensa Universitária. 2004.

NGUNGA, A. & FAQUIR, O. G. Relatório do III Seminário de Padronização da Ortografa de


Línguas Moçambicanas. Centro de Estudos Africanos. UEM. 2012.

PATEL, S. A. & CAVALCANTI M. O caso do português em Moçambique: unidade nacional


com base em educação bilingue e intercompreensão. [s/l]. 2013.

PFlEPSEN, A.; BENSON, C.; CHABBOTT, C.; van GINKEL, A. (Prepared by). Planning for
Language Use in Education: Best practices and practical steps to improve learning outcomes.
Research Triangle Park, N.C. (Prepared for) USAID Bureau for Africa. 2015.

VELASCO, M. e TIMBANE, A. A. O processo de ensino-aprendizagem do português no


contexto multicultural moçambicano. RILP – Revista Internacional em Língua Portuguesa, IV
Série (32): 2017. 99-122. Disponível em:
file:///C:/Users/ANDALI~1.JOA/AppData/Local/Temp/45-Article%20Text-174-1-10-
20181212.pdf. Acesso em: 12 de outubro de 2020.
47

FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM MOÇAMBIQUE: AVANÇOS E RECUOS PARA


INTRODUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA DAS LÍNGUAS BANTU NO ENSINO BÁSICO

Rogério Filipe Mário10

RESUMO

A formação de professores para o ensino das línguas, especificamente para as línguas bantu é um
campo de estudo com maior interesse na sociedade tipicamente como a moçambicana caracterizada
por multiculturalismo e com uma paisagem linguística extraordinariamente ampla e diversificada. O
objetivo central deste trabalho é refletir sobre os avanços e recuos do processo de formação de
professores para o ensino de leitura e escrita das línguas bantu no contexto moçambicano. O trabalho
foi baseado por uma pesquisa bibliográfica e que considerou a experiência do próprio autor como
falante de línguas bantu e formador de professores para o ensino secundário. Em Moçambique o
estudo da língua bantu e sua incorporação no ensino foi um desafio iniciado desde finais da década
70, na faculdade de letras da Universidade Eduardo Mondlane e seguidamente descontinuado por
motivos adversos, tendo, no entanto, prevalecido a língua portuguesa como o único meio de
multiletramento e formação de professores. O processo de ensino de leitura e escrita das línguas bantu
em Moçambique após a independência foi deixada em segundo plano (como foi também no período
colonial) e mais tarde as políticas educativas deliberaram a incorporação da disciplina língua bantu e
metodologia de Educação bilíngue no sistema de formação de professores para o ensino primário e,
a especialização no ensino de línguas bantu no curso superior de formação de professores para ensino
secundário. Esse esforço foi desencadeado em 2004 na decorrência da introdução do novo currículo
do ensino básico e na tentativa de retrair os gritantes insucessos escolares registrados nas classes
iniciais do ensino primário, onde a maioria dos alunos que ingressam neste nível apresentam o bantu
como sua língua materna. Adicionalmente, foi estabelecida nova estrutura na grade curricular do
ensino básico constituída por três ciclos de aprendizagem e o desenvolvimento do modelo bilingue.
Apesar dos esforços no sistema educativo moçambicano ainda carece vários desafios para introduzir
de forma efetiva o processo de leitura e escrita das línguas bantu no sistema nacional de ensino, pois
que, o modelo de recrutamento e seleção de professores ainda desconsidera o domínio das línguas
locais como elemento essencial no recrutamento de professores.

Palavras-chave: Formação de Professores, língua bantu, Multiletramento.

INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea tem passado por momentos atípicos e controversos em
diversos domínios que caracterizam a vida humana. A formação de professores tem sido área de muito
interesse de se investigar, visto que nela existem muitos dilemas e desafios por se enfrentar. Em
Moçambique, país que se tornou independente do regime colonial português em 1975, localizada na
zona do continente africano, com cerca de 28,65 milhões de habitantes, segundo os dados do Censo
Geral da População realizado em 2017, a formação de professores para o ensino bilíngue nesse país
tem tido diversos embates e questionamentos nos espaços acadêmicos devido a sua complexidade.

10
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Docente da Faculdade de Educação da Universidade Púnguè -
Moçambique. E Mail: rogeriofilipemario@gmail.com
48

Moçambique é um país multilíngue, com uma única língua oficial de origem europeia –
o português, dominada ainda por poucos. A imposição dessa língua na sociedade moçambicana
deveu-se ao legado colonial e a satisfação da opção das elites políticas nos primórdios da instalação
da primeira República, baseado no princípio de que o português é a única língua suficientemente
desenvolvida para servir a administração do estado e outros domínios públicos (Dias, 2009;
Gonçalves, 1996; Lopes, 1997, 1999, 2004).
Portanto, a oficialização da língua portuguesa no espaço moçambicano é acautelada no
parágrafo nº 1 do artigo 5º da Constituição da República de Moçambique, publicada em 2004 e
estabelece que “na República de Moçambique, a Língua Portuguesa (LP) é a língua oficial”.
Adicionalmente, o parágrafo nº 2 do mesmo articulado, ainda enfatiza que “o Estado valoriza as
línguas nacionais e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares e
na educação dos cidadãos” numa abordagem que reconhece a existência das numerosas Línguas
Bantu (LB) faladas na República de Moçambique.
Paradoxalmente, apesar do reconhecimento das línguas bantu no tecido moçambicano, a
importância das mesmas na promoção da cultura, na identidade de um povo, na comunicação eficiente
e eficaz nas comunidades ainda tem sido um tabu e atribuído muitos estereótipos e preconceitos, tal
como avança Wilson, Manuel e Bahule (2019) “as funções que as línguas bantu (faladas pela maioria
da população moçambicana) desempenham nas sociedades não têm merecido a devida atenção,
agindo quase que na clandestinidade.” Nota-se algum desprezo sobre as línguas bantu, uma
marginalização que evidencia a assunção de que a língua do ex-colonizador é superior, pensamento
reflexo da colonização mental, (MUTASA, 2006; NGUJI, 1977).
A educação como um processo de transmissão de conhecimentos, cultura, tecnologia
acumulada de velha geração para a nova geração é metodicamente transmitida através da linguagem
podendo ser oral, escrita, gestual, entre outras.

Os conhecimentos e a educação são transmitidos através da língua. A partir dela tem-se


acesso à arte (o que se produz, as ferramentas), à religião, à dança, à alimentação, à medicina,
etc. Uma efectiva participação do indivíduo no meio social depende do domínio do
instrumento de comunicação, a língua, para persuadir, regular e interagir. (WILSON,
MANUEL E BAHULE, 2019, p.1056)

No campo educativo, o processo de ensino e aprendizagem é mediado exclusivamente


em português e esse fato fez com que as taxas de desperdício escolar fossem mais acentuadas,
principalmente para as zonas rurais onde o português é usado esporadicamente (Mário et al., 2002).
Na opinião de Chimbutane (2011) essa situação deve-se, de um lado, ao facto de o português (usado
como meio de ensino) ser língua segunda (L2), em termos de proficiência, quer por parte dos alunos,
quer mesmo por parte dos professores e, de outro lado, ser mesmo uma língua totalmente
49

desconhecida (LE) pelos alunos das zonas rurais. Ainda sobre o mesmo debate, Gonçalves e Diniz
(2004) reforçam dizendo que,

Quase na totalidade das nossas crianças, quando entram para a escola, não falam português
e, naturalmente, não lê e não escreve. Esta é a situação típica do meio rural, onde prevalece
o uso das línguas locais, as línguas bantu, e onde o português é praticamente uma língua
“estrangeira”: é apreendido e usado na sala de aula, sobretudo através do contacto com o
professor e com os livros escolares, sendo pouco frequentes as situações de comunicação em
que é falado em ambiente natural. No seu dia a dia, em casa com a família e nas brincadeiras
com os amigos, as crianças comunicam na sua língua materna (GONÇALVES & DINIZ,
2004, p. 1).

Diante desse quadro a maioria da população moçambicana continua analfabeta,


marginalizada no panorama socioeconômico, devido ao modelo político educativo estabelecido no
currículo escolar. Por meio de tantos debates e pressão de intelectuais sobre a importância das línguas
na ecologia educacional, o estado decidiu incorporar as línguas bantu no sistema educativo com
intuito de inverter o cenário que impactam negativamente o rendimento escolar dos alunos.
Em função disso, o Instituto de Desenvolvimento de Educação (INDE), inaugurou na
década de 90, em fase piloto nas províncias de Tete e Gaza a primeira experiência de escolarização
bilíngue feita por intermédio do Programa de Educação Bilingue em Moçambique (PEBIMO). Os
resultados da implementação do PEBIMO demonstraram que o processo de ensino e aprendizagem
iniciado em língua materna do aluno traz inúmeras vantagens no seu rendimento escolar. Em função
dos resultados positivos obtidos do programa e de outros fatores paralelos à problemática do
insucesso escolar, a Assembleia da República aprovou a lei que autoriza o uso das línguas
moçambicanas no Sistema Nacional da Educação. E a partir de 2003 inicia-se com o processo de
implementação gradual da educação bilíngue, no ensino básico.
Contudo, sabe-se que qualquer reforma na educação passa necessariamente por preparar
os professores que são os principais atores para operar mudanças necessárias, e nesse artigo pretende-
se refletir sobre os avanços e recuos do processo de formação de professores para o ensino de leitura
e escrita das línguas bantu no contexto moçambicano, trazendo um panorama dos esforços que estão
sendo desenvolvidos para esse processo.

A Geolinguística moçambicana

A luz do referido anteriormente, Moçambique é um país multilíngue que abarca pouco


mais de 20 línguas autóctones e tantas outras de origem estrangeira (Firmino, 2010; Gonçalves, 2010;
Moisés, Cande, & Jesus, 2012; Ngunga & Bavo, 2011). Faz parte das línguas de origem estrangeira
faladas em Moçambique: o português – língua oficializado e cunhada como de unidade nacional, o
50

inglês – língua de contato com outros povos da região e do mundo, e as línguas asiáticas- que
compreende o hindi e o urdo ou gujarate.
Firmino (2010) prefere chamar as línguas autóctones de Moçambique por línguas bantu,
ou simplesmente de línguas moçambicanas (Guthrie, 1967; Moisés et al., 2012; Ngunga, 2012, 2014;
Ngunga & Bavo, 2011; Ngunga & Faquir, 2012; Petter, 2015). Para Guthrie (1967, p. 71) em
Moçambique “as línguas bantu estão distribuídas por quatro zonas linguísticas” e a sua escrita está
em processo de padronização. As línguas com a ortografia já padronizada são kimwani, shimakonde,
ciyaawo, emakhuwa, echuwabo, cinyanja, cinyungwe, cisena, cibalke, cimanyika, cindau, ciwute,
gitonga, cicopi, citshwa, xichangana e xirhonga, 17 ao todo (Moisés et al., 2012; Ngunga & Faquir,
2012).
Segundo Ngunga e Bavo (2011, p. 14-15) citando INE (2010), as línguas moçambicanas
são maioritariamente faladas no país com a estimativa de 90% de falantes. E o português tem 10,8%
de falantes de cinco ou mais anos de idade sedeados nos grandes centros urbanos (cidades, vilas e
sede dos distritos).
Portanto, a luz dos dados descritos, a política de promoção e valorização das línguas
moçambicanas, desde a era colonial, continuado copiosamente após a instauração da primeira
república, subjugou as línguas moçambicanas a um papel terciário, com precariedade da sua função
e a sua fala circunscrita a meios informais. Só a partir da década de 90 as línguas bantu começaram
de forma leviana a coabitar o mesmo espaço com o português nas escolas.

Concepções Históricas de modelos de formação de professores, avanços e recuos do ensino das


Línguas Bantu

A preocupação e iniciativas de formar professores vem desde a antiguidade quando o


homem decidiu que outros educassem seus filhos e alguém foi atribuído ao desafio de fazê-lo. Mas,
os questionamentos por saber como, de que modo, com quais pressupostos, com que modelos, quais
modalidades formativas podem gerar maior inovação e, sobretudo o que pretendemos saber deve ser
revisto e atualizado em função de desafios contemporâneos.
Garcia (1999), avança com algumas definições, onde afirmam que Formação pode ser
entendida como,

Uma função social de transmissão de saberes, de saber-fazer ou de saber-ser que se exerce


em benefício do sistema socioeconômico, ou da cultura dominante. Pode também ser
entendida como um processo de desenvolvimento e de estruturação da pessoa que se realiza
com o duplo efeito de uma maturação interna e de possibilidades de aprendizagem, de
experiências dos sujeitos. E por último, é possível falar da formação como uma instituição,
quando nos referimos à estrutura organizacional que planifica e desenvolve as atividades de
formação. (GARCIA, 1999, p.19)
51

Entende-se por Formação de professores toda a estratégia que se desenvolve por certa
entidade visando moldar ou preparar os futuros profissionais da educação com os fundamentos mais
essenciais que caracterizam a educação e orientação do processo de ensino e aprendizagem dos
alunos.
Para Donaciano (2006), define a Formação de Professores como,

processo de aquisição, assimilação, reconstrução e construção de conhecimentos científicos,


desenvolvimento de habilidades, hábitos, convicções, atitudes, comportamentos, em suma a
competência que dá ao futuro professor o domínio de “bem fazer” o seu trabalho.
(DONACIANO, 2006, p.21)

O desafio então colocado para a formação de professores é encontrar uma articulação


entre o modelo de formação e os mecanismos de ensino bilíngue no sentido de enfrentamento do
mosaico linguístico bastante amplo e diversificado de Moçambique.
A instalação da primeira República em Moçambique colocou na agenda diversos desafios
para a estruturação social, política e econômica que se enquadram no âmbito da reparação dos danos
causados durante o trágico período colonial, simbolizando o lançamento do vetor para o
desenvolvimento do país. De entre tantos planos na agenda do país, a educação foi colocada na linha
de frente, isto é, foi dada como prioridade para as vanguardas do desenvolvimento.
A criação do sistema nacional de educação estabeleceu os fundamentos, princípios e
objetivos do processo educativo, isto é, avançou com as bases e diretrizes da educação escolar. De
acordo com artigo 4 da lei 4/83, o Sistema Nacional da Educação tem o objetivo central “a formação
do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e
colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista.” (Lei 4/83, 1983, p.14) E obedece
a seguinte estrutura: subsistema de educação geral; educação de Adultos, Educação Técnico-
profissional; Formação de Professores e subsistema de Educação Superior.
Porém, ressentindo da falta de quadros para atender às ações de promoção ao acesso à
educação, no prolongamento de 1975, o governo por intermédio do Ministério da Educação e Cultura
(MEC) criou o primeiro Centro de Formação de Professores Primários.

[…] em 1975, o MEC criou Centros de Formação de Professores Primários, cujo requisito
de ingresso mínimo era a 4ª classe do ensino primário. Os conteúdos eram didático-
pedagógicos, embora houvesse o apelo à formação político-ideológica aos professores em
vivência do momento histórico, revolucionário do Partido Único. Entretanto, os formadores
possuíam o curso de Magistério Primário, equivalente ao nível médio e professores de Posto
Escolar (prolongamento dos grupos dinamizadores). (DOMINGOS, 2015, p.233)
52

A primeira estratégia de formação de professores até ao aparecimento da lei seminal 4/83


que cria o sistema nacional da Educação foi baseada em improvisação normativa e de ensaio e erro,
facto atestado pela ausência de um instrumento regulador.
A lei 4/83 impôs os principais marcos orientadores do subsistema moçambicano de
formação de professores que se caracteriza através dos seguintes aspetos,

O subsistema de Formação de Professores assegura uma qualificação pedagógica,


metodológica, científica e técnica do corpo docente para os vários subsistemas e tem um
carácter profundamente ideológico que confere ao professor a consciência de classe que o
torna capaz de educar o aluno nos princípios do Marxismo-Leninismo. (2) O subsistema de
Formação de Professores compreende dois níveis: médio e superior. (3) Este subsistema é
frequentado por jovens formados pelos subsistemas de Educação Geral e Técnico-
Profissional e por adultos provenientes do Subsistema de Educação de Adultos e
trabalhadores vindos da produção e serviços, que tenham habilidades necessárias para o
ingresso nos níveis deste subsistema. (MOÇAMBIQUE, 1983, p. 7)

Deste modo, para acelerar o processo de formação de professores para atender às


demandas de escolaridade obrigatória, Moçambique ensaiou diversos modelos de formação de
professores. O primeiro curso de formação de professores após a independência de Moçambique
ocorreu em 1975 e durou entre 1 a 3 meses. Em 1976 a 1981 os cursos de formação de professores
para o ensino básico duravam 6 à 10 meses e por vezes chegavam até 1 ano. Os programas de
formação nesse período contemplavam a componente teórica e posterior a sua prática feita através de
estágio. Os conteúdos de aprendizagem nesse primeiro modelo eram diversificados e não
contemplava a componente do ensino bantu para atender a educação básica.
Segundo o estudo holístico da situação do professor em Moçambique realizado em 2017,
aponta que no período de 1975 a 1976 foram criados no país 10 Centros de Formação de Professores
Primários (CFPP) com a missão de formar 3000 professores por ano para atender a 1ª a 4ª classe e
igualmente foram criados 4 centros regionais de Reciclagem de Professores para o Ciclo preparatório
e ensino secundário.
Em 1982 foi criado o curso de Formação de Professores Primário do modelo 6ª + 1 ano
de formação e 1983 esse curso foi refrescado para formar professores no modelo de 6ª + 3 anos. Para
Witinesse (2009) pontua que,

Neste tipo de curso, a componente ideológica está acima de tudo. Fazia parte dos objetivos
desta formação a conduta como educador, a aquisição de conhecimentos que permitissem
melhorar o ensino, a formação na área didática e pedagógica e a capacidade reflexiva. O
plano de estudos contemplava as áreas sócio-políticas, psico-pedagógicas e metodológicas.
(WITINESSE, 2009, p.164)

Já em 1991 o curso de formação de professores para ensino primário passou para outro
modelo de 7ª + 3 anos. Neste período foi marcado por uma profunda transformação dos objetivos e
53

conteúdo de ensino, porque o país transitava do sistema monopartidária em que se preocupava com a
criação do homem novo repleto de espírito nacionalista, arquiteto da sociedade socialista para o
multipartidarismo.
Ao analisar currículo de formação de professores primário em Moçambique, Niquice
(2005) considera-o assente em dois enfoques principais:

(1) de transmissão dos conhecimentos, dos preceitos, das regras que asseguram a eficiência
e a eficácia na altura de realização da prática pedagógica. (2) de treinamento das
habilidades, através das práticas pedagógicas e do estágio posterior à fase de
transmissão. (NIQUICE, 2005, p. 52)

De acordo com o relatório do estudo holístico da situação do professor em Moçambique


realizado em 2017, apresenta os vários modelos de formação de professores decorridos no país e
alguns deles ainda continuam até aos dias atuais.

Curso de Formação de Professores do Magistério Primário (5º ano do Liceu + 2 anos); Curso
de Formação de Professores de Posto Escolar (4ª classe+ 4 anos); Curso de Formação de
Professores de 6ª + 6 meses; Curso de Formação de Professores de 6ª + 1 ano; Curso de
Formação de Professores de 6ª + 2 anos (EFEP); Curso de Formação de Professores de 8ª +
2 anos (EFEP); Curso de Formação de Professores de 9ª + 1 ano (Faculdade de Educação-
FE. UEM); Curso de Formação de Professores de 9ª + 2 anos (EFEP); Curso de Formação
de Professores de 9ª/10ª + 3 anos (IMP); Curso de Formação de Professores de 6ª/7ª + 3 anos
(CFPP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 2 anos (IMAP); Curso de Formação de
Professores de 10 + 1 + 1 (IMAP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 2,5 anos
(ADPP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 1 ano (IFP); Curso de Formação de
Professores de 12ª + 1 ano (IFP); Curso de Formação de Professores de 12ª ou Equivalente
+ 4 anos - Bacharelado (UP); Curso de Formação de Professores de 12ª ou Equivalente + 5
anos - Licenciatura (UP); Cursos de Reciclagem de Professores de curta duração como, por
exemplo, de duas semanas, um, dois, três, quatro meses, etc. (MINEDH, 2017, p. 50-51)

A existência de vários modelos de cursos de formação de professores demonstra que o


país esteve preocupado na adequação dos mesmos para responder às situações sociopolíticas que o
país atravessa. A introdução de cada modelo pretendia assegurar as demandas dos professores com
formação psicopedagógica e bem como para garantir a sua qualidade.
Atualmente, a maior parte dos formadores de professores da educação básica são
formados na Universidade Pedagógica, uma instituição exclusiva para a formação de professores e
outros profissionais das áreas afins. A maior parte dos formadores possui o nível de licenciatura em
uma determinada área de conhecimento. Mas, denota-se algumas incoerências porque os cursos
frequentados pelos formadores na Universidade Pedagógica, por exemplo, são destinados à
professores para atuarem no ensino secundário geral e os graduados desses cursos são recrutados para
formar professores para o ensino primário. Contudo, os formadores de professores para ensino
primário são forçados a se reinventar durante o exercício da sua atividade.
54

Portanto diante desses avanços e recuos na implementação dos modelos de formação de


professores também se debatia sem solução questões relacionadas com a introdução do ensino das
línguas bantu, o bilinguismo na educação básica e nos cursos de formação de professores.

É importante destacar que a esses desafios colocados nesse período, também se somavam
discussões sobre as línguas de ensino, sobretudo na alfabetização e nas primeiras classes do
ensino primário para atender à diversidade que se colocava, constituindo-se temas polêmicos
sobre os quais não houve, na altura, desfecho. (ARENA & COVANE, 2019, p.1037)

Em 2004 em meio a reforma da educação e introdução do novo currículo do ensino


primário impôs novas dinâmicas aos modelos de formação de professores para o ensino primário. O
modelo de formação de professores para lidar com a implementação do novo currículo do ensino
primário abria espaço da formação de professores dotados de conhecimentos e habilidades para
lecionar no novo formato de ensino bilíngue. O ensino bilíngue foi introduzido com intuito de
alfabetizar os alunos das classes iniciais partindo da sua língua local (Bantu).

A aprendizagem da língua materna adquire um lugar importante no atual currículo do ensino


básico, entendida como uma das inovações de maior relevo, principalmente, a nível psico-
pedagógico e cognitivo. Entende-se que o ensino da L1 facilita a interação na sala de aula,
visto que o aluno, por conhecer a língua, tem maior facilidade de comunicação (MINED,
2003, p. 130).

Para Ngunga e Faquir (2012, p. 3), afirmam que,

O estudo científico das línguas moçambicanas começa nos finais da década de setenta, na
Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane com a introdução de algumas
disciplinas de linguística bantu nos cursos ali oferecidos e nos de Formação de Professores
da Faculdade Preparatória. (NGUNGA & FAQUIR, 2012, p.3)

Diante desse cenário descrito, urge a necessidade de se desenvolver na sociedade


moçambicana a educação bilíngue como forma de valorização das línguas nacionais e mais faladas
nas comunidades.
Timbane (2015) argumenta as razões da incorporação das línguas bantu no sistema de
educação moçambicana, porque

A educação bilíngue em Moçambique se justifica por: (a) razões linguístico-pedagógicas,


pelo fato de existir uma diversidade linguística no país e não existir uma única fórmula para
resolver os problemas de ensino-aprendizagem, principalmente no ensino primário; (b)
razões culturais e de identidade: a língua é a riqueza cultural e de identidade de uma
comunidade ou grupo étnico, o que significa que precisa ser preservado e divulgado de
gerações em gerações; (c) razões de direitos humanos: significa que todo indivíduo tem o
direito de aprender língua do seu povo, do seu grupo étnico ou da sua comunidade.
(TIMBANE, 2015, p.96)
55

O uso da Língua Portuguesa como língua de ensino limita seriamente a comunicação


entre professores, alunos e outros membros da comunidade. Para crianças e jovens, implica maior
dificuldade de compreensão do processo de ensino e aprendizagem.
Na ótica do Saguate (2012, p. 42), Moçambique introduziu, em regime experimental, um
sistema de ensino/ educação bilíngue (português/línguas bantu) no nível básico [...] o português
continua a ser, na verdade, a língua de ensino/ educação em todos os níveis, não obstante o fato de a
maioria dos moçambicanos não usá-lo como sua língua à época da entrada na escola.
A Declaração Universal de Direitos Linguísticos (Unesco, 1996), no seu 2º artigo, nº 2
estabelece: o direito ao ensino da própria língua e da própria cultura; o direito a dispor de serviços
culturais; o direito a uma presença equitativa da língua e da cultura do grupo nos meios de
comunicação; o direito a serem atendidos na sua língua nos organismos oficiais e nas relações
socioeconômicas.

O processo de afetação não olha para a região de origem nem a(s) língua(s) falada(s) pelo
novo professor. O que acontece muitas das vezes é que os professores são colocados em
regiões onde a língua da comunidade não coincide com a língua do professor, todavia, ele
tem que dar aulas porque é lá onde foi afeto e é o lugar da garantia do seu sustento (ABDULA,
2013, p. 230)

As dificuldades de aprendizagem do português associado aos problemas de alfabetização


em rebanho nas classes iniciais têm tido seu impacto no ensino secundário e consequente registro de
insucesso escolar nesse nível de ensino. A formação de professores com uma base sólida para ensinar
os alunos nas suas próprias línguas maternas, especialmente nas línguas bantus pode ser uma das vias
para atenuar os problemas que impactam negativamente o ensino básico em Moçambique.
O Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação (INDE) também elaborou várias
pesquisas que comprovaram mais vantagens do ensino bilíngue em Moçambique. O que falta
provavelmente é incentivo governamental na liberação de verbas que irão custear a produção de
manuais, dicionários e gramáticas. Os exemplos mais próximos de Moçambique que ilustram essa
atitude positiva são a África do Sul, a Tanzânia, o Madagascar e o Zimbábue.
Sendo assim, a incorporação das línguas bantu no ensino básico representa um desafio
enorme, exigindo o esforço conjunto entre o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano
com as Universidades, Institutos de Formação de Professores, escolas, professores, alunos, os pais
e/ou encarregados de educação e sociedade, no seu todo, pois que, tratando de uma modalidade nova,
requer conjugação de sinergias, com vista a garantir o seu funcionamento e sustentabilidade (Wilson,
Manuel e Bahule, 2019)
Conforme Ngunga (2014), como forma de dar resposta ao desafio evidenciado
anteriormente, uma primeira solução encontrada foi a introdução dos estudos de linguística bantu nos
56

cursos de Formação de Professores da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em 1978, prática


que se estendeu ao curso de ensino de Língua Portuguesa da Universidade Pedagógica (UP).
Em 1989 esses conteúdos são introduzidos nos cursos de licenciatura em Linguística,
Ensino de Línguas, Tradução, Interpretação, na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM e
mais tarde também repassadas para os cursos de formação de professores para ensino primário.
O plano curricular de ensino básico é bastante ambicioso e a realidade dos resultados tem
sido diferente, pois que, os professores que concluíram a formação apresentam problemas de domínio
das línguas bantu numa perspectiva didática-pedagógica. Os manuais de ensino, livros e todo
processo de ensino e aprendizagem ou de instrução ocorre em língua portuguesa.
Em 2015, a Universidade Pedagógica através da Faculdade de Ciências de Comunicação,
Linguagem e Arte, introduziu o minor (uma especialização ou habilitação) em ensino de línguas
bantu, isto é, passou-se a formar professores para o ensino de línguas moçambicanas. O referido
minor é constituído por onze disciplinas distribuídas pela componente de formação geral, de formação
educacional e de formação específica, evidenciado nas tabelas a seguir:
A Estratégia de expansão do ensino Bilíngue 2020 - 2029 em Moçambique prevê até 2029
garantir que todos os professores do ensino primário estejam habilitados para lecionar turmas do
ensino bilíngue. Para tal, Ngunga, Guibunda e Nhezê (2019) avançam com alguns desafios para os
cursos de formação inicial e em exercício de professores, a destacar:
I. Rever o quadro atual de formação inicial de professores;

II. Identificar e definir as línguas moçambicanas a serem lecionadas em cada Instituto de


Formação de Professores em função do mapeamento linguístico e;

III. Rever a política de seleção de candidatos à formação de professores.

IV. E para a formação em exercícios deixa-se algumas estratégias:

V. Potenciar os distritos com formadores locais para todas as áreas de ensino;

VI. Prover os Institutos de Formação de Professores de recursos humanos, materiais e


financeiros;

VII. Capacitar todos os formadores dos Institutos de Formação de Professores em matéria de


educação bilíngue;

VIII. Formar professores para o ensino bilíngue através da modalidade de educação a distância e;

IX. Assegurar a formação contínua dos professores através da Zona de Influência Pedagógica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
57

Em Moçambique o processo de formação de professores para a introdução da leitura e


escrita das línguas bantu teve sempre muitos desafios para estabelecimento de um modelo de
formação de professores que visa assegurar a introdução do ensino bilíngue no sistema nacional de
educação.
A independência nacional abriu espaço para a reformulação das políticas de valorização
das línguas bantu e sua necessidade de introdução no currículo de formação de professores de vários
subsistemas do ensino.
Em decorrência da aceitação do ensino bilingue em Moçambique cresceu a pressão das
comunidades para a introdução dessa modalidade de ensino nas suas escolas. Essa pressão levou ao
ministério da educação efetuar a expansão rápida do ensino bilíngue sem observar, regra geral, os
pressupostos estabelecidos para o efeito, particularmente a disponibilidade de professores capacitados
e de livros escolares.
Apesar desses avanços e recuos que ameaçam o ensino bilíngue, urge necessidades de
encontrar alguns desafios para superar as dificuldades de implementação desse modelo de ensino
como, (I) formação e capacitação regular de todos os profissionais, tendo em conta a filosofia e
metodologias do ensino bilingue; (II) provisão de material escolar, particularmente do livro escolar;
(III) melhoria do desempenho dos alunos do ensino bilíngue, sobretudo a partir da fase de transição
da L1 para L2; (IV) regulamentação e sustentabilidade da expansão horizontal; (V) Disseminação das
filosofias, objetivos e resultados do ensino bilíngue; (VI) desenho de uma estratégia de expansão do
ensino bilíngue e; (VII) realização periódica de avaliações externas/internas da fase de transição de
L1 para L2.

REFERÊNCIAS

ABDULA, R.A.M. O ensino das línguas nacionais como solução para o processo de alfabetização
em Moçambique. Revista de Letras Dom Alberto, 2013, p. 219-232.

BAHULE, O. Didáctica de língua materna. Maputo: Alcance Editores, 2018.

CHIMBUTANE, F. Rethinking bilingual education in postcolonial contexts. Bristol: Multilingual


Matters, 2011

DIAS, H. Saberes docentes e formação de professores na diversidade cultural. Maputo: Imprensa


Universitária, 2009.

DOMINGOS, Alberto Bive. A educação e as organizações democráticas em Moçambique:


experiências da revolução popular. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 10, n. 1, p. 227-251, jan./jun.
2015.

FIRMINO, G. A situação do Português no contexto multilingue de Moçambique. São Paulo:


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010.
58

GARCIA, Carlos Marcelo. Formação de professores: para uma mudança educativa. Portugal:
Porto Editora, 1999.

GONÇALVES, P. Português de Moçambique: uma variedade em formação. Maputo: Livraria


Universitária e Faculdade de Letras da UEM, 1996.

GONÇALVES, P. A génese do Português de Moçambique. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da


Moeda, 2010.

GUTHRIE, M. Comparative Bantu: An introduction to the comparative linguistics and


prehistory of the Bantu languages. Letchworth UK & Brookfield VT: Gregg International, 1967.

Lei nº 4/83 de 23 de Março, que aprova a Lei do Sistema Nacional de Educação e define os princípios
fundamentais na sua aplicação. Publicada no Boletim da República, II SÉRIE- Número 12,

LOPES, A. J. Language policy: Principles and problems. Maputo: Livraria Universitária, 1997.

LOPES, A. J. A batalha das línguas: Perspectivas sobre linguística aplicada em Moçambique.


Maputo: Imprensa Universitária, UEM, 2004.

LOPES, J. Cultura acústica e letramento em Moçambique: Em busca de fundamentos para uma


educação intercultural. Educação e Pesquisa, 1999, p. 1-20.

MÁRIO, M. et al. Review of education sector analysis in Mozambique, 1990-1998. Paris: Working
Group on Education Sector Analysis, 2002.

MARTINS, Z. Proceedings of The 1991 Seminar on Educational Research in Mozambique.


Maputo: INDE, 1994.

MINED. Plano estratégico da educação 2012-2016. Maputo: MINED. MINED 2015.

MOISÉS, L., Cande, E., & JESUS, J. Geografia linguística de Moçambique. In A. Ngunga & G.
FAQUIR (Eds.), Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas: Relatório do III
Seminário (pp. 279293). Maputo: Centro de Estudos Africanos/UEM, 2012.

MUTASA, D. E. (Ed.). African languages. in the 21st century: The main challenges. Simba Guru
Publishers, 2006.

NGUGI, W. T. O. Petals of blood. East African Publishers. 1977.

Ngunga, A. Interferências de Línguas Moçambicanas em Português falado em Moçambique.


Revista Científica da UEM, Letras e Ciências Sociais, 2012, p. 7–20.

NGUNGA, A. Introdução à linguística Bantu. 2.ª Edição. Maputo: Imprensa Universitária/UEM,


2014.

NGUNGA, A., & Bavo, N. N. Práticas linguísticas em Moçambique: Avaliação da vitalidade


linguística em seis distritos. Maputo: Centro de Estudos Africanos/UEM, 2011.

NGUNGA, A., & Faquir, O. G. Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas: Relatório


do III Seminário. Maputo: Centro de Estudos Africanos/UEM, 2012.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Constituição da República. Maputo, 19 de novembro de 2004.


Disponível em: http://www. mozambique.mz/pdf/constituicao.pdf. Acesso em: 17/11/2020.
59

SAGUATE, A.W. Variação lexical e sintática na produção escrita formal do português em


Moçambique. São José do Rio Preto, SP. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista,
131 p. SEKI, L. 2012. Discutindo dicionários bilíngues: o caso Kamaiurá. In: C.M. FARGETTI
(org.), Abordagens sobre o léxico em línguas indígenas. Campinas, Curt Nimuendajú. p. 13-36.

TIMBANE, A.A. A problemática do ensino da língua portuguesa na 1ª classe num contexto


sociolinguístico urbano: o caso da cidade de Maputo. Maputo, Moçambique. Dissertação de
Mestrado. Universidade Eduardo Mondlane, 2009.

TIMBANE, A.A. A variação e a mudança lexical da Língua Portuguesa em Moçambique.


Araraquara, SP. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista, 2013.

WITINESSE, A. J. Emergência na Formação de Professores como Agente Transformadores da


Sociedade Moçambicana. In DUARTE, S.M, DIAS, H. N & CHIRINDA, M. Formação de
Professores em Moçambique: resgatar o passado, realizar o presente e perspetivar o futuro. Educar-
UP, Maputo, 2009.

WILSON, Francelino; MANUEL, Juma & BAHULE, Orlando. Integração das línguas nacionais
na formação de professores moçambicanos: práticas, experiências, desafios. IV Encontro
Internacional de Formação na Docência, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2019.
60

DO PASSADO AO PRESENTE: A CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE LÍNGUA

Eugénia Kossi11

Natalia Penitente12

RESUMO

A questão do multilinguismo em Angola é tratada com uma leveza que se denota no ensino somente
em língua portuguesa e por meio dele a disseminação de uma cultura dominante e de uma imagem de
língua versada na noção centrípeta da língua. Apesar disso, os discursos oficiais apresentam a tese de
que é preciso respeitar as línguas e as culturas locais. Observamos, desta forma, que este desvalor e
a hipervalorização da língua portuguesa acarretam um desencontro entre cultura escolar/culturais
locais, comunidades locais/filhos escolarizados. Esta última se dá por estes passarem a serem
portadores de outros desígnios culturais. Portanto, carregam os ensinamentos da escola, assim como
a língua da mesma, e afastam-se das suas culturas e das suas línguas passando a ser representantes
das línguas e culturas “alheias” dentro das suas comunidades. Com isso, este trabalho pretende
analisar as relações de sentido que se estabelecem entre o discurso colonial sobre línguas e indígenas
e o discurso atual sobre a importância das línguas nacionais no ensino em Angola. Portanto, o nosso
intuito é compreender a manutenção de um discurso oficial atual que se assenta na ideia da língua
dominante e com estatuto para a sua integração ao ensino e à administração pública. Com este intuito,
olharemos as motivações oficiais que impõem estratégias para a manutenção de uma ideologia para
o controle do aparelho do estado remetendo à construção de imagens de língua que se mantêm desde
o tempo colonial. Para orientarmos este estudo recorremos à abordagem de Pêcheux (2017) sobre as
formações imaginárias na produção do discurso. Recorremos também aos trabalhos de Koch (2000)
de modo a descrevermos as marcas linguísticas ideológicas que permeiam os textos oficiais. O
trabalho tem como corpus dois documentos oficiais: um do tempo colonial “O Estatuto dos Indígenas
Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique” publicado, em 1954, pelo governo
colonial português, e o “Ante-projecto sobre o Projecto de Lei do Estatuto das Línguas Nacionais”
proposto, em 2011, pelo Instituto de Língua Nacionais ligado ao Ministério da Cultura de Angola.
Com isso, percebemos que há uma retomada dos discursos anteriores com a projeção de imagens
negativas sobre cultura e línguas locais.
Palavras-chave: Discurso colonial. Língua portuguesa. Línguas nacionais.

INTRODUÇÃO

Angola é um país multicultural que passou por um processo de colonização que impôs a
uma parte do seu território a língua portuguesa13 e secundarizou as línguas dos povos originários,

11
Mestranda em Educação, na área de concentração Educação, Linguagem e Psicologia, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP), sob orientação do professor Dr. Valdir Heitor Barzotto da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (FEUSP). E-mail: eugeniakossi@usp.br
12
Mestranda pelo Programa de Filologia e Língua Portuguesa (FLP) da Universidade de São Paulo (USP). Sob a
orientação do professor Dr. Valdir Heitor Barzotto da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
E-mail: nataliapenitente@usp.br
13
Segundo Mingas (2000, p. 30) no início do período colonial a presença portuguesa era sentida no litoral do país e
somente em 1926, os portugueses adentraram o país todo, quase 50 anos antes da independência, em 1975.
61

chamados indígenas pelos colonizadores. Do mesmo modo, as culturas desses povos foram
consideradas inferiores e discriminadas. Consequentemente, foram discriminadas as populações que
só passaram a usufruir de alguns direitos quando se instaurou o Estatuto do Indígena das Províncias
da Guiné, Angola e Moçambique.
Este estatuto foi publicado em 1954 no governo de Salazar cedendo às pressões externas
da comunidade internacional e dos movimentos de libertação nacional criados por toda África para
reivindicar a liberdade dos povos africanos e a independência dos seus países. Essas movimentações
pelo reconhecimento da soberania das nações africanas, incentivou o uso de estratégias de
condicionamento de atribuição da cidadania aos habitantes das então províncias ultramarinas de
Portugal, nomeadamente, a Guiné, Moçambique e Angola.
Foram impostos, para este fim, no documento supracitado, critérios para obtenção da
cidadania. Um deles era que o indígena, que concorresse ao grau de cidadão, falasse “correctamente”
o Português14 e se comportassem tal como os portugueses. Com isto estabeleceu-se a continuação de
uma relação de dominação que obrigava os assimilados a manterem uma cultura alheia ao do seu
povo. Uma relação retomada com a independência pela orientação de toda a vida administrativa e
escolar com base na língua portuguesa.
Isto propiciou a manutenção da língua portuguesa como hegemônica, enquanto se
mantinha uma discussão sobre o papel das línguas nacionais na sociedade angolana. O que culminaria
com a elaboração, em 2011, do Ante-projecto de Lei do Estatuto das Línguas Nacionais, ainda não
aprovado. Esse documento discute a inserção dessas línguas nas diferentes esferas sociais,
nomeadamente no ensino e na administração pública, em defesa do “pluralismo cultural e linguístico”
(ANGOLA, 2011, p. 2).
Apesar desta defesa, observamos que a manutenção de um estatuto de línguas próprias
das línguas ocidentais é defendida por meio de um discurso que cria imagens de língua que continuam
a atribuir um lugar outro às línguas locais. Observamos, por isso, que os dois documentos
supracitados fundamentam uma negação de línguas e culturas dos povos de Angola, mantendo-se um
já-dito (passado colonial) no presente. Compreendemos aqui que dada a conjuntura que impõe um
papel central do ocidente diante de outros países movidos pela atual formação social capitalista, há
uma interpelação do sujeito (PÊCHEUX, 2017) que incide sobre a reprodução no discurso de
formações ideológicas.
Nisso, concordamos com Pêcheux (2017), que defende que o discurso é um aspecto da
materialidade ideológica, portanto nele se desvelam formações imaginárias que antecipam posições
dos sujeitos. Não cessa a atribuição de lugares aos sujeitos na formação dos Estados na pós-

14
Artigo 56 do Estatuto do Indígena Português da Guiné, Angola e Moçambique.
62

independência, em África, pois assumem uma orientação política de base ocidental, que impõe uma
língua oficial considerada de motor para a manutenção de uma unidade nacional. Do mesmo modo,
a escolha dessa língua segue uma orientação ocidental, uma vez que pressupõe um estatuto, ou seja,
não pode ser escolhida qualquer língua, mas aquela que tem determinado prestígio tanto cultural,
quanto científico.
Compreendemos com isso, que se desenvolvem formas de se olhar a língua que
transparece no discurso, uma aproximação às imagens da língua enunciadas por Calvet (2002, p. 72)
sobre “os sentimentos, atitudes, comportamentos diferenciados” que se expressam por haver já a
aceitação de uma norma estabelecida que faz com que as pessoas não aceitem o que a contradiga. O
que chamamos de imagens de língua a partir do projeto “Imagens de língua: sujeito, deslocamento,
conhecimento e tempo15” coordenado pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto.

ASPECTOS METODOLÓGICOS E DESCRIÇÃO DO CORPUS

O estatuto do indígena

Tendo perdido o Brasil como colônia no século XIX, Portugal vira todas as suas fichas
de jogo para as suas outras possessões territoriais ultramarinas. O que levou, em 1931, António
Salazar, então ministro das finanças, a organizar a colônia nos domínios político e econômico.
Reforçando, consequentemente, o controle dos indígenas que eram a mão de obra fundamental para
a manutenção da economia imperial.
Um ano antes, foi publicado o Acto Colonial que tinha como objetivo manter a integração
das colónias com a metrópole, retirando-lhes a autonomia, e garantir os direitos dos indígenas.
Direitos reforçados, segundo os documentos oficiais da metrópole, pelo estatuto do indígena que
surge em 1954. Este documento foi elaborado para regular os deveres e os direitos dos indígenas.
Portanto, o regulamento estipulava, leia-se no capítulo III (1954), normas que permitiriam
ao indígena ascender ao patamar de civilizado se falasse corretamente o português, se tivesse 18 anos,
uma profissão bem remunerada, um comportamento exemplar e nunca tivesse sido refratário e tivesse
cumprido o serviço militar.
No entanto, conseguir tal documento ou alvará como era designado, não era tarefa fácil,
uma vez que eram poucos os que tinham as condições de assimilado enumeradas acima. Sobretudo,
eram poucos os que falavam português ou que se expressavam como impunha o documento.

15
Este projeto se propõe a investigar os mecanismos que concorrem na formação das imagens de língua em contextos
multilíngues, analisando os discursos produzidos em quatro instâncias argumentadoras – o Estado, a Igreja, a
Universidade e a Comunidade – como partes integrantes de um continuum que gera tais imagens.
63

O estatuto das línguas nacionais

O estatuto das línguas nacionais está ainda vinculado ao anteprojeto de Lei sobre o
estatuto das línguas nacionais que visa reconhecer o papel das línguas angolanas de origem africana
bantu e khoisan. O estatuto surge em 2011, chamando a atenção do Estado para a implementação de
um estatuto e uso das línguas africanas tanto na administração do estado quanto no ensino.
O seu objetivo primordial é permitir a inclusão social e linguística da população angolana
por meio da valorização das suas línguas. Para isso, adverte que é preciso a delimitação das línguas,
enumerando as que poderão ser usadas pelo Estado, sem se deixar de investigar cientificamente as
demais.
O mesmo documento apresentando os princípios da valorização das línguas baseia-se na
lei do patrimônio cultural que reconhece as línguas como bens de interesse cultural relevante 16. Do
mesmo modo, apoia-se na Constituição da República que define como uma das tarefas fundamentais
do estado “proteger, valorizar e dignificar as línguas angolanas de origem africana”.

Dois estatutos, duas épocas: a análise discursiva

Analisar o discurso de uma época implica considerar as condições de produção e na língua


(PÊCHEUX, p. 87, 1969) que o produziram, olha-se para as particularidades de cada período histórico
emanados dos sentidos dos discursos.
Nesta perspectiva, foram feitos recortes de sequências dos dois textos para se proceder à
análise dos documentos:
a. Estatuto do indígena

Sequência 1 – R1

Sequência 2 – R2

16
Lei sobre o Património cultural de 2005.
64

R3

R4

Sequência 3 – R5

R6

b. Anteprojeto sobre o Estatuto das línguas nacionais

Sequência 4 – R1
65

Sequência 5 – R2

Sequência 5 – R3

O Estatuto do indígena: um jogo duplo

Martinez (2010, p. 49) apresenta duas finalidades específicas das leis implementadas para
as províncias do ultramar, a explícita e a implícita, afirmando que:

A especialidade das leis para o ultramar tinha a finalidade, em princípio, respeitar os


costumes indígenas, nativos. Mas existia, também, o que está implícito nas medidas tomadas
com base neste princípio, o desejo de negar aos indígenas os direitos decorrentes da
cidadania, legalmente lhes ratificando a inferioridade.

Neste contexto, olhando para a situação histórica em que Portugal estava submerso por
ser um dos últimos países colonizadores a negociar as independências das suas colónias, a publicação
do estatuto foi uma forma de mostrar que havia desejo de mudança. António Salazar, para proteger o
Estado português, reiterou com ímpeto nacionalista que as colônias eram parte da metrópole:

a nossa obra não é a do caminheiro que olha e passa, do explorador que busca à pressa as
riquezas fáceis e levantou a tenda e seguiu, mas a do que, levando em seu coração a imagem
da Pátria, se ocupa amorosamente em gravá-la fundo onde adrega de levar a vida, ao mesmo
tempo que lhe desabrocha espontâneo da alma o sentido da missão civilizadora. Não é a terra
que se explora: é Portugal que revive, (SALAZAR, 1959, p. 178-179).
66

Para Hanna Arendt (1989, p.184), embora, essa relação estabelecida tenha sido
camuflada, em muitos impérios, pela separação entre as políticas coloniais e as políticas domésticas,
ela reconhece que “A expansão deu nova vida ao nacionalismo e, portanto, foi aceito como
instrumento de política nacional”. Uma nacionalização que vai ser reforçada pelo desejo de uma
hegemonia linguística apresentada no recorte 4 da sequência 2, em que a língua portuguesa tem de
ser falada no ensino. Há a aceitação do uso da língua nacional, mas somente usada para reforçar a
aprendizagem da primeira.
No recorte 1 da primeira sequência, retiramos três trechos: 1. Deseja-se acentuar ter
havido agora a preocupação de considerar situações especiais em que é apresentado o verbo modal
desejar como auxiliar, indicando uma modalidade epistêmica que denota vontade acompanhado de
outro verbo modal ter que caracteriza uma probabilidade; 2. em que ele pode encontrar-se no caminho
da civilização nesta oração, o verbo poder também caracteriza uma modalização epistêmica de
possibilidade; e 3. Para que o estado tem o dever de impeli-lo.
As três acepções, a priori, denotam uma necessidade de enfatizar um desejo do Estado
português em reconhecer o estatuto do indígena cujas normas “claras” não foram observadas em
outros documentos jurídicos do estado. Uma crítica que se impõe como um argumento a favor da
ascensão do indígena. Porém, a construção do enunciado iniciada com o verbo desejar parece retirar
a certeza do locutor na mensagem que transmite. Em todo o caso, na última oração, o uso do
imperativo com o verbo modal “tem de”, embora dependa da consideração das situações especiais
que permitam que se torne civilizado, é estabelecida.
Neste enunciado também transparece o uso da marca de impessoalidade com o pronome
pessoal “se” em relação enclítica com o primeiro verbo modal introduzindo uma frase passiva
pronominal ligada a uma oração substantiva. Nesse trecho, o governo parece não querer posicionar-
se de forma imperativa, tal como ocorre noutras partes do documento em que o locutor é marcado
pelos substantivos “Governo”, “Estado”, o pronome “Eu” e verbos no imperativo como “decreta”
e “promulgo”. Estes últimos atribuem a responsabilidade ao locutor, que determina a sua posição
assumindo a veracidade do que é dito introduzindo um modalizador epistêmico assertivo.
No capítulo I do estatuto, onde encontramos o recorte 2 da sequência 2, no artigo terceiro,
impõem-se aos indígenas a sua definição e o seu lugar no documento. No enunciado, temos, do
mesmo modo, uma construção passiva marcada pelo verbo modal “ser”, “é”, modalizador deôntico
de obrigatoriedade, aparece como condição sine qua non sobre a tolerância da cultura indígena, isto
caso fique dentro dos parâmetros portugueses, bem como se forem considerados princípios de
humanidade.
Acreditamos, neste trabalho, que o uso do sintagma preposicional “da humanidade”
revela o interesse do Estado português em mostrar ao mundo que não estava aquém dos princípios
67

adotados pela comunidade internacional. E o estatuto elaborado nos moldes em que foi apresentado
respeitava tais condições de aceitação dos direitos do outro, camuflando os seus verdadeiros
interesses.
Porém, no quadro de convencer das boas intenções do seu governo, Portugal esclarece,
no recorte 3, que a sua intenção era de transformar os usos e costumes primitivos dos indígenas
valorizando-os ao permitir o seu acesso à cidadania.
Aqui notamos a não aceitação da cultura de um povo moldando-o para ser aceito. A
ascensão à cidadania dependia da mudança cultural, o que denota a precariedade da sua condição no
colonialismo. O argumento, portanto, era que havia uma predisposição para que se melhorasse a sua
vida material e a moralidade.
Porém, Washington Santos (2014) alega, nesse contexto, que era extremamente
burocrático conseguir o documento, para a transição de indígena para cidadão. O que demonstrava
uma contradição relativamente ao objetivo do documento como se evidencia em primo Jerônimo de
Conceição Neto17.
Não havia uma vontade de promoção da igualdade. Além de ser necessário conseguir um
emprego num contexto ocidental, era preciso falar corretamente o Português, como aparece no recorte
5. Ambos eram um privilégio para poucos. E mesmo que um indígena conseguisse a cidadania,
poderia perdê-la como aparece no recorte 6.
Conseguir a cidadania, portanto, não conferia toda a estabilidade que o indivíduo poderia
usufruir. A sua manutenção estava ligada à capacidade do cidadão de apartar-se da sua condição de
indígena, caso não conseguisse provar a qualidade de não indígenas (capítulo III, artigo 62º, parágrafo
único, p.224), ele perdia alvará de assimilado. No recorte mencionado anteriormente, a decisão
categórica é feita com a demonstração de um valor afetivo do advérbio modalizador
“definitivamente” reforçado pelo verbo ser deôntico de obrigatoriedade em “será apreendido o
bilhete de identidade18”.

O Estatuto das línguas nacionais

O estatuto das línguas nacionais é mais recente, de 2011, e está vinculado a um contexto
contemporâneo de igualdade de direitos na ótica democrática e da inclusão social. Entretanto, é o

17
Maria da Conceição Neto (1997) escreve no seu artigo “Maria do Huambo: Uma de “indígena”; Colonização e estatuto
jurídico e discriminação racial em Angola (1926-1961)” mostra a forma como o estatuto influenciou a vida dos nativos
em Angola e as dificuldades que advieram da sua implementação.
18
O mesmo que RG
68

dilema que remonta a década de 70, após a independência, em que se olhava para a necessidade de
afirmação de uma identidade angolana.
O recorte 1 da sequência 4 apresenta o verbo “ir”, um verbo pleno, que aqui aparece como
auxiliar do verbo retirar denotando uma ação futura movida pela reforma e pela reposição das línguas
nacionais. Este último termo é definido pelo dicionário Michaelis online (2019) como restituição a
situação ou estado antigo ou anterior.
Parece haver um desejo de retorno às origens em que as línguas nacionais eram utilizadas
pelos governos tradicionais na resolução dos seus problemas comunitários. Com a colonização e a
instituição de documentos oficiais, elas foram excluídas tanto da vida escolar quanto da
administrativa, ficando ligadas apenas ao poder tradicional e ao direito costumeiro. O estatuto
pretende neste enunciado mostrar que é preciso ultrapassar a noção colonial de língua e adotar o
plurilinguismo.
Esse esquecimento, ostracismo e autoexclusão que, segundo o documento, se constata em
Angola até ao momento em que surge a proposta, 2011, 36 anos depois da independência, determina
que elas continuaram até àquela data a ser esquecidas, ostracizadas não mais pela exclusão imposta
pela colonização, mas pela autoexclusão.
O verbo “ir”, auxiliar, nesse trecho designa uma ação futura que denota que as línguas
ainda estão na condição apontada acima por não terem ainda sido reformadas e repostas pelo estado
angolano. Do mesmo modo, elas têm de ser inseridas no ensino, pois este é meio que permitirá que
elas sejam, como vemos na segunda frase deste recorte, “línguas de pensar, querer e agir, em suma,
línguas de trabalho e de cultura”. O fato que se observa aqui é que somente por meio do ensino,
essas línguas passam a denotar o pensar, o querer e o agir.
Embora se entenda que a intenção não foi de minorizar as línguas, a enumeração
apresentada pressupõe que as línguas em destaque se tornarão importantes, primeiro porque serão
reconhecidas pelo poder do Estado e segundo, inseridas no ensino, elas serão preenchidas de valor.
A identidade, portanto, deverá ser preservada, remetendo o valor social à instância de poder, único
capaz de promover tal valor. Portanto no recorte 2, vemos que a escola permite a possibilidade real
de assimilação de conhecimentos. O adjetivo real tem o sentido de concreto ou autêntico, denotando
que o conhecimento concreto e autêntico é aquele proporcionado pelo ato de escolarização.
Esse conceito unilateral de conhecimento necessária para o reconhecimento da ascensão
de uma língua nacional a oficial é apresentado pela marca de modalidade deôntica de obrigatoriedade
do verbo modal dever. Portanto é imperativo que a língua obedeça aos critérios de cientificidade
como, por exemplo, a criação de um alfabeto e a sua subsequente gramaticalização, em comparação
com a língua portuguesa que tem esse valor agregado em si.
69

O ENCONTRO INEVITÁVEL: UMA IMAGEM DE LÍNGUA QUE SE CRIA

A relação entre o passado e o presente é muito complexa. Tem-se a impressão de que se


efetua um corte que separa os dois momentos pelo distanciamento temporal. Porém, ele está aí,
mesmo que se suponha que esteja perdido, ele revela-se na produção de sentidos. Na concepção de
Edward Said (2017, p. 34), recorrer ao passado para se interpretar o presente pode ser incitado pelo
fato de não se saber se o passado é de fato passado ou se persiste, no presente, sob outras formas.
De outro modo, creio que a África não teria tão viva na sua memória os efeitos de uma
colonização secular que orientou formas de pensar e de dizer. A política angolana tomou nos anos
70, embora adotando um modelo comunista-marxista, um discurso pautado na instância que detinha
o poder como tinha acontecido, antes, no tempo colonial.
Um dos exemplos mais marcantes é a língua escolhida para a unificação do país que
adotou a cultura “do bem falar” e para o seu ensino a gramática normativa tradicional portuguesa.
Professores e alunos foram obrigados a decorá-la ou assimilá-la fora do contexto
real, tendo na sua base uma necessidade, de certa forma, inconsciente de continuidade que persiste
até hoje dando a sensação de que a Língua Portuguesa de Portugal joga um papel fundamental para a
manutenção de uma língua que, desde que foi implementada em Angola, recebeu as particularidades
das línguas locais.
Tanto o estatuto quanto o anteprojeto reiteram o papel da língua portuguesa como a língua
modelo. Se em um, era pertinente relacionar a obtenção da cidadania por meio de um conhecimento
correto da língua, para o outro, ela permite que o indivíduo ascenda a uma posição social pautado na
sua correção. Por conseguinte, o mesmo se impõe: uma língua que se quer apresentar como
hegemônica.
Em tal grau, mesmo que se denote no anteprojeto que as línguas nacionais não são
valorizadas e nem reconhecidas, transparece uma análise que se fundamenta na noção da divisão de
classes. Em uma área em que a instância e a população estão em uma relação antagônica que se exige
estática, de um lado, e dinâmica, do outro.
O discurso sobre a língua portuguesa em Angola assenta na noção de herança que é uma
marca ideológica evidente de continuidade. A consciência por este termo pode ser de certa forma
tendenciosa, uma vez que quando se fala em herança, fala-se em aquisição por sucessão. O dicionário
Michaelis apresenta como definição “conjunto de bens espirituais, obras ou ideias que se recebem
dos pais, das gerações anteriores, legado etc.”.
A busca pela palavra legado também leva ao mesmo: aquilo que se transmite de uma
geração à outra à posteridade (MICHAELIS ONLINE, 2019). Assim sendo, assumir a língua como
70

traço herdado impõe em certa medida assumir resquício de uma cultura de uma geração que a deixou,
embora se perceba que na sua dinamicidade a língua não se alimenta infindavelmente do passado.
Porém, como foi dito anteriormente, a questão ficou para o professor, não só de língua
portuguesa, mas por usarem a língua como instrumento de trabalho e de transmissão de
conhecimentos. Em que língua se deve ensinar? É a questão que fica sobreposta, uma vez que a
gramática se assenta sobre um contexto do passado.
É patente que as línguas ocidentais, nomeadamente o português, representam ainda a
possibilidade de integração numa esfera internacional como defende Zau (2007). E assim foi
defendido no período pós-independente mesmo por Amilcar Cabral que afirmou ser a língua
portuguesa “uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (CABRALJALÓ, 2019 apud
JALÓ, 1974, p. 211).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a questão que se põe em cheque seja a falta do real reconhecimento do valor que
estas línguas devem ter numa época em que se discute e se exalta o resgate das línguas e culturas
nacionais, é preciso que se faça a pergunta: se a base desse reconhecimento deve ser posta à mesa
apenas pelas preocupações da classe dominante ou também é preciso reconhecer que as próprias
populações, não olhando somente para Luanda, regem-se pelas práticas culturais permitidas pela
construção de sentidos emanadas do uso das suas próprias línguas?
Quando se diz que as línguas em Angola estão relegadas ao esquecimento, retira-se a
importância das populações no uso das suas línguas e responde-se ao questionamento da linguística
sobre a supervalorização das línguas da elite. As classes dominantes põem as cartas à mesa e as
populações submetem-se transportando para si os preconceitos que advêm desta relação de poder.
O estatuto do indígena exigia o português para todos, do mesmo modo o Estado angolano
o exige em sinal de unidade nacional. O anteprojeto não contrapõe, mas aparece para equilibrar a
situação, adotando uma postura de aceitação da hegemonia do português, apesar de já assumir a
necessidade de se pôr rédeas à problemática. Portanto, o discurso que ainda predomina o cenário é de
que haja ainda línguas que exerçam maior influência do que outras como no caso da Língua
Portuguesa frente às línguas de Angola.

REFERÊNCIAS

ANGOLA. Projecto de Lei sobre o Estatuto das Línguas Nacionais. Luanda: Ministério da Cultura
de Angola, 2011.

AUGUSTO, M. A. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas causas


na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. 2016. Tese (Doutorado em
71

Língua Portuguesa) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/19178/2/Mois%C3%A9s%20Alves%20Augusto.pdf.
Acesso em 16 maio 2021.

BÂ, M. H. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (ed.). História Geral da África. Brasília: Unesco,
2010. v. I, cap. 8, p. 167-212. Disponível em:
http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/hga_I_metodologia_e_prehistoria_da_africa.pdf. Acesso
em 15 maio 2021.

CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. Tradução: Marcos Marciolino. São Paulo:
Parábola, 2002. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4648550/mod_resource/content/1/Calvet%2C%20L.%20c
ap%201_%20A%20luta%20por%20uma%20concep%C3%A7%C3%A3o%20social%20da%20l%
C3%ADngua%20in%20Sociolinguistica%20%282002%29.pdf. Acesso em 15 maio 2021.

CHAMUHONGO, A.; CARVALHO, F. V. Língua Portuguesa – 1ª. classe. Luanda: Moderna, 2018.
Actualização curricular.

CONCEIÇÃO NETO, M. Ideologias, contradições e mistificações da colonização de Angola no


século XX. Lusotopie, v. 4, n. 1, p. 327-357, 1997. Disponível em:
https://www.persee.fr/doc/luso_1257-0273_1997_num_4_1_1105. Acesso em 15 maio 2021.

CONCEIÇÃO NETO, M. Maria do Huambo: Uma vida de “indígena”. Colonização, estatuto jurídico
e discriminação racial em Angola (1926-1961). África, v. 35, p. 119-127, 2015. DOI
https://doi.org/10.11606/issn.2526-303X.v0i35p119-127. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/africa/article/view/126696/123691. Acesso em 15 maio 2021.

LÍNGUAS nacionais não têm estatuto próprio. Jornal de Angola, Angola, 21 fev. 2018. Disponível
em: https://jornaldeangola.ao/ao/noticias/detalhes.php?id=399022. Acesso em: 21 maio 2020.

MARIANI, B. Língua, colonização e revolução: discurso político sobre as línguas em


Moçambique. Abril – NEPA/UFF, v. 4, n. 7, p. 105-124, 2011. DOI
https://doi.org/10.22409/abriluff.v4i7.29744. Disponível em:
https://periodicos.uff.br/revistaabril/article/view/29744/17285. Acesso em 15 maio 2021.

MINGAS, A. A. Interferência do kimbundu no português falado em Lwanda. Porto: Campos das


Letras, 2000.

NASCIMENTO, W. S. Gentes do mato: os novos assimilados em Luanda (1926-1961). 2013. Tese


(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-15012014-
104601/publico/2013_WashingtonSantosNascimento_VCorr.pdf. Acesso em 15 maio 2021.

QUINTA, J.; BRÁS, J. V.; GONÇALVES, M. N. O Umbundo no poliedro linguístico angolano: a


Língua Portuguesa no entrelaçamento do colonialismo e pós-colonialismo. Revista Lusófona de
Educação, v. 35, n. 35, p. 137-154, 2017. Disponível em:
https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/5919/3667. Acesso em 15 maio 2021.

RAMPINELLI, W. J. Salazar: uma longa ditadura derrotada pelo colonialismo. Lutas Sociais, v. 18,
n. 32, p. 119-132, 2014. Disponível em:
http://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.32/waldir_jose_rampinelli.pdf. Acesso em 15 maio 2021.
72

SALAZAR, A. A. Europa em Guerra. Repercussão nos problemas nacionais. In: SALAZAR, A. A.


Discursos. Coimbra: Coimbra Editora, 1959. v. III, p. 178-179. Disponível em:
https://www.oliveirasalazar.org/textos.asp?id=258. Acesso em 15 maio 2021.

SILVA, S. F. O ensino das línguas nacionais em Angola. Jornal de Angola. Disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/o_ensino_das_linguas_nacionais_em_angola. Acesso em: 9
maio 2020.
73

A LÍNGUA COMO BASE DA IDENTIDADE CULTURAL DOS POVOS

EL IDIOMA COMO UN ELEMENTO ESENCIAL DE IDENTIDAD CULTURAL DE LAS


PERSONAS

Autor:
Carlos Guerra Caquarta.
Mestre em Ciências da Educação, Especialidade Ensino da História. Instituto Superior
de Ciências da Educação do Cuanza Sul19.
Coautores:
Ph.D. Rosell Ramón Hidalgo Herrera. Professor do Departamento de Ciências Sociais
no Instituto Superior de Ciências da Educação do Cuanza Sul 20.

Ladislau Newton Flôr Diango Sacambonde. Mestrando em Ciências da Educação,


Especialidade Ensino da História no Instituto Superior de Ciências da Educação do Cuanza Sul 21.

RESUMO
A contribuição das línguas ao desenvolvimento identitário e cultural é de vital importância, já que
elas são reconhecidas na formação da nacionalidade dos povos. Nesse sentido, o presente estudo
evidencia a aula de História como espaço de desenvolvimento da Identidade Cultural, numa
perspectiva que se sustenta na evolução e desenvolvimento das línguas em relação com as tendências
atuais sobre a relevância do processo de ensino-aprendizagem da História. O objetivo principal do
trabalho consiste em oferecer ações metodológicas que facilitem o processo de ensino-aprendizagem
que integre procedimentos, ações e operações que permitirão desenvolver a Identidade Cultural e seus
elementos básicos estruturais, desde a perspectiva das línguas e a interculturalidade. Aprender a viver
em sociedade e compreender as individualidades culturais apoia-se na relação história-aluno-
sociedade, na qual o aluno é um agente ativo do vínculo entre passado e presente, o que permite
projetar de forma positiva o futuro e constitui uma amostra do desenvolvimento da Identidade
Cultural. Os métodos investigativos empregados, tanto do nível teórico como empírico, permitiram
obter informações a respeito das concepções de diferentes autores sobre a Identidade Cultural, com
ênfase no avanço da língua como mosaico cultural. O estudo do tema foi analisado como parte da
política educativa inserida na Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino de Angola (Lei nº17/16,
de 7 de outubro). A pesquisa ficou contextualizada segundo as potencialidades do contexto educativo,
que na sociedade angolana tem características especiais, havendo diversidade de cultura em cada
região. O que carrega consigo traços linguísticos diferentes para desenvolver um único processo
educativo que exige a criatividade do professor que leciona a aula na qual, para o caso da História, é
muito significativo. O tema abordado transversaliza o processo de ensino-aprendizagem e favorece
modos de atuação que potencializam a formação dos elementos identitários nos alunos,
contextualizados na concepção desenvolvedora do ensino-aprendizagem mediante o uso das línguas,
ou seja, da diversidade linguística.

Palavras-chave: Línguas. Identidade Cultural. Processo de ensino-aprendizagem. Ensino da


História.

19
guerraoevangelizado@gmail.com
20
rosellhgo@gmail.com
21
ladislausacambonde301081@gmail.com
74

EL RESUMEN
La contribución de los idiomas al de desarrollo identitary y cultural es de importancia vital desde que
se reconocen la formación de la nacionalidad de las personas. En este sentido, las evidencias del
estudio presentes la clase de Historia como el espacio de desarrollo de la Identidad Cultural en una
perspectiva que se sostiene en la evolución y desarrollo de los idiomas en la relación con las
tendencias sobre la relevancia del proceso de enseñanza-aprender de la Historia. El gaol principal del
trabajo consiste en ofrenda acciones metodológicas que facilitan el proceso de enseñanza-aprendizaje
que integra los procedimientos, acciones y funcionamientos que permitirán desarrollar la Identidad
Cultural y sus elementos básicos estructurales de la perspectiva de los idiomas y los intercultural. Los
métodos de la investigación usaron tanto del nivel teórico como empírico que ellos permitieron
obtener la información con respecto a las concepciones de los autores diferentes sobre la Identidad
Cultural, con el énfasis en el progreso del idioma como el mosaico cultural. El estudio del tema se
analizó como una parte de la política educativa insertada en la Ley de Base del Sistema de Educación
y Enseñando de Angola (el nº17/16 de la Ley, del 7 de octubre). La investigación era el contextualized
según las potencialidades del contexto educativo, que la sociedad del angolan tiene características
especiales que tienen la diversidad de la cultura en cada área. Qué lleva con sí mismo las líneas
lingüísticas diferentes para desarrollar uno solo proceso educativo, que exige la creatividad del
maestro que el teachs la clase en que, para el caso de la Historia ys muy significante. El uno esa parte
de atrás yo consigo las líneas lingüísticas diferentes para desarrollar un solo proceso educativo que
ellos exigen la creatividad del maestro que enseña la clase en que es muy importante para el caso de
la Historia. El tema se acercó el globala el proceso de enseñanza-aprendizaje y favorece los modaleses
de acciones que el potentiate la formación de la identidad de los elementos en los alunos.

Palabra-importante: Los idiomas. La Identidad cultural. El Proceso enseñanza-aprendiendo.


Enseñaza de la Historia.

INTRODUÇÃO

O trabalho dos autores em diferentes níveis de educação permitiu problematizar a prática


educativa no que diz respeito ao ensino da História, encontrando-se algumas dificuldades que
precisam ser ultrapassadas ao longo do processo educativo. A disciplina de História está
comprometida com a educação histórica dos estudantes, o que implica assimilar os conhecimentos
do contexto, o desenvolvimento do pensamento e cultura, a formação de normas, atitudes e valores
em correspondência com o tempo em que vivem. Nesse sentido, o presente artigo estrutura-se tendo
como bases a aula de História como espaço de desenvolvimento da Identidade Cultural, numa
perspectiva que se sustenta no desenvolvimento dos elementos identitários; a evolução e
desenvolvimento das línguas em relação com as tendências atuais sobre a relevância do processo de
ensino-aprendizagem da História em Angola; e a língua como base da Identidade Cultural, na
concepção do ensino da História.
Aprofundar nessa temática permite, aos autores, realizarem um estudo sobre a
necessidade da abordagem do tema “a língua como base da Identidade Cultural dos povos” e a
proposta de ações metodológicas para seu tratamento no ensino da História, de acordo com a Lei de
Bases do Sistema de Educação e Ensino de Angola (Lei nº17/16, de 7 de outubro), e os objetivos
75

gerais do processo de ensino-aprendizagem da História no nível secundário de maneira geral. De


acordo o exposto e segundo Guerra e Hidalgo (2020), Angola é um território do continente africano
habitado antes por povos ágrafos, ou seja, povos que se desenvolveram ao longo dos tempos longe
da escrita. Observa-se ainda que partes das comunidades angolanas viram o seu alvorecer através da
tradição transmitida pela via oral. Vários apelos têm sido feitos sobre a cultura e em particular a
tradição das línguas por forma, a se manter viva a cultura e a história e que ambas não sejam
desconhecidas pelas gerações novas.
A partir dessa perspectiva, o tratamento de aspectos que compreende a Identidade
Cultural (língua, usos e costumes, alimentação, arte e patrimônio cultural, religião, rituais, entre
outros) tem merecido pouca atenção, pois os programas de ensino e currículos nem sempre
contemplam estas abordagens de forma direta. O que não permite sempre aos docentes tratarem desse
assunto em salas de aulas. Da análise feita, considera-se a Identidade Cultural como a atuação de uma
pessoa ou de um grupo social em produção e transmissão de respostas que, ao interagir em seu meio
social, manifestam sua identificação com outros grupos ou pessoas culturalmente definidas. A
Identidade Cultural constitui parte da educação e cultura de um determinado grupo social pertencente
à uma nação, uma região e um lugar, onde a compreensão e tratamento das línguas é uma prioridade.
Com base nisso, a comunidade internacional considera que é um dever velar pela
manutenção, preservação e defesa da Identidade Cultural de cada povo. Ela enfatiza que tudo isso
busca políticas culturais que protejam, estimulem e enriqueçam a identidade e o patrimônio cultural,
além de estabelecerem o mais absoluto respeito e apreço pelas minorias culturais e pelas outras
culturas do mundo. Contudo, a humanidade empobrece quando se ignora ou se destrói a cultura de
um grupo determinado. (CAMPELLO; SANTIAGO; ANDRADE, 2018).
A língua abre ou fecha a possibilidade para o desenvolvimento social dos indivíduos, ela
funciona como instrumento cognoscitivo básico no desenvolvimento das aprendizagens. Uma
realidade que revolucionou o ensino das línguas nas diferentes partes do mundo, porque permite ao
homem viver na altura do seu tempo. Desta feita, o ensino da língua tem que mudar o método de
ensino tradicional, o que no ensino da História como disciplina e dos conteúdos históricos constitui
uma prioridade hoje. É de destacar a importância da necessária integração do sistema nacional de
educação com todos os agentes educativos de socialização, na elaboração de estratégias e ações
comuns tendentes a obter a preparação do indivíduo. Isso torna a vida mais útil e plena, em total
harmonia com a sociedade.
Reconhecer e assumir a língua como um meio de comunicação que permite a interação,
a socialização da cultura e a construção de novos saberes a partir das experiências imediatas dos
alunos é o sustento das posições do enfoque cognitivo, comunicativo e sociocultural, de uma
concepção dialético-materialista, ao reconhecê-la como meio essencial de cognição e comunicação
76

social. Consequentemente a isto, o II Ciclo do Ensino Secundário, como parte do Subsistema de


Ensino Geral em Angola, distingue-se pelo desenvolvimento cultural do homem, onde tem lugar a
aquisição da experiência histórico-social a partir da comunicação, o que lhe permite transitar na sua
formação e desenvolvimento de todas as dimensões do processo formativo. Assim, o tratamento e o
desenvolvimento da língua como base da Identidade Cultural e parte da cultura dos povos e sua
identidade.

DESENVOLVIMENTO

De acordo com Rodrigues (2011) o homem é resultado do meio cultural em que foi
socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a
experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. Prevalece, então, uma
personalidade espiritual distintiva de determinado povo. A cultura depende de uma acumulação e
uma transmissão no tempo, com modificações e acréscimos de valores, formas de pensamento,
técnicas, normas religiosas, morais e jurídicas, entre unidades históricas que mantêm contatos ou que
se relacionam por um nexo de filiação.
Para Cipriano (2014) a identidade de um povo, ou de uma nação, abrange entre outros
aspectos um conjunto de critérios distintos e comuns, tais como a língua, a religião, costumes, o
território, a história, os critérios morfológicos de esculturas e os antepassados. Também a identidade
no sentido lato traduz um conjunto de dados objetivos que caracterizam o estado do desenvolvimento
das estruturas econômicas, políticas e ideológicas em que cada povo está inserido.
Segundo Cipriano, a Identidade Cultural é um conjunto híbrido e flexível de elementos
que formam a cultura identitária de um povo, ou seja, que fazem com que um povo se reconheça
enquanto agrupamento cultural que se distingue dos outros. O desenvolvimento social está
relacionado com o desenvolvimento da Identidade Cultural de cada povo na medida em que o homem
é inserido no mundo social da sua cultura.
Por outro lado, segundo Peres (2014), a nação angolana é rica em valores, saberes,
técnicas, religiões, tradições, artes e iniciativas diversas nos domínios políticos, econômicos e sociais
que constituem os pilares para a sua identidade cultural.
Consequentemente, com a abordagem realizada até aqui, e de acordo com Ladica, Claudia
e Batista (2019) o rasgo essencial que distingue a Identidade Cultural está dado em sua natureza e se
desenvolve dentro da atuação de cada pessoa, dentro do seu próprio contexto, o que constitui um
referente básico para o seu desenvolvimento. Compreende-se que é a construção de um processo
contínuo de socialização, onde a forma como o indivíduo se percebe no futuro, está intimamente
relacionado com a forma como este é visto nas interações do seu cotidiano, seja no contexto pessoal,
seja no laboral.
77

A Identidade Cultural depende da concepção que se tenha de um ensino que a favoreça e


de estilos de aprendizagens que permitam seu desenvolvimento num processo de internalização para
seu desempenho na vida. Sua concretização e viabilidade na prática educativa se concebem através
da sua estruturação. Além disso, é necessário conhecer como concretizar todos os elementos ou
aspectos identitários num processo sistêmico e sistemático que o transforme.
A parte sistêmica de reconhecer a indissolúvel unidade entre os elementos identitários e
sua integração no processo de ensino-aprendizagem e a interação que se obtém entre suas partes e o
sistemático está no nível de frequência com que se materializa seu desenvolvimento. Por isso, a
educação como fenômeno social, historicamente desenvolvido como núcleo do processo socializador,
inicia-se no seio familiar, onde se assimilam os componentes essenciais da cultura, tradições e
história, ou seja, os elementos que caracterizam a Identidade Cultural, a partir do próprio treinamento
da linguagem. Esse processo continua na escola, a partir de um processo organizado na instituição
social, como centro de influências educativas, necessário no desenvolvimento desse processo.
É importante destacar a necessária integração do sistema nacional de educação com todos
os agentes educativos de socialização, na elaboração de estratégias e ações comuns tendentes a obter
a preparação do indivíduo. Isto torna a vida mais útil e plena, em total harmonia com a sociedade.
Da análise feita, considera-se a Identidade Cultural como a atuação de uma pessoa ou de
um grupo social em produção e transmissão de respostas que ao interagir no seu meio social, sua
família e a escola, demonstram sua identificação com outros grupos ou pessoas culturalmente
definidas. Constitui parte da educação e da cultura de um determinado grupo social pertencente a uma
nação, uma região e um lugar. Torna-se necessário fazermos uma incursão teórica sobre a língua
como um dos elementos que tipificam a Identidade Cultural.
Segundo Posner (1989), as culturas podem ser definidas de acordo com a articulação de
seus signos, ou seja, elementos culturais que representam sua afiliação por meio de comunicação.
Kummer (1990), citado por Groh (2019), entende que a linguagem cria uma identidade cultural, sendo
usada intencionalmente para afirmar a identidade.
Para Antunes (2009), a língua é, assim, um grande ponto de encontro, de cada um de nós,
com os nossos antepassados, com aqueles que, de qualquer forma, fizeram e fazem a nossa história.
Segundo Soltes e Raupp (2013), a língua existe desde os primórdios, nascemos com ela
já imposta, já feita e muito bem definida por seus usuários, ela é comum a todos os seres humanos e
é através da língua que podemos nos comunicar com diversas pessoas, de diversos países,
continentes e hemisférios. Em resumo, a língua é um “sistema de signos”, um conjunto de unidades,
ocorrendo uma relação entre significante (imagem acústica) e o significado (conceito). Nossa língua
está embutida na trajetória de nossa memória coletiva. Decorre disso o apego que sentimos à nossa
78

língua, ao jeito de falar em nosso grupo. Esse apego é uma forma de selarmos nossa adesão a esse
grupo.
Para Soltes e Raupp (2013), a língua é produto de uma comunidade, ela é
parte do domínio dessa comunidade. A língua que falamos nos identifica aos outros, permitindo
sabermos a que grupos pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades. A linguagem
é realmente o nosso meio de interação social.
Assim, a língua seria um produto histórico e, ao mesmo tempo, uma unidade idealizada,
devido a impossibilidade de se alcançar, na realidade, uma língua que se quer idêntica e unitária. A
língua nunca é um sistema único, mas um conjunto de sistemas que encerra em si várias tradições.
Uma mesma língua apresenta diferenças internas: no espaço geográfico, no nível sociocultural e no
estilo ou aspecto expressivo.
De acordo com Santos (2017), a cultura angolana é, em grande parte, de origem Bantu,
em que misturam-se tradições e línguas nativas ou dialetos. Nesse caso se incluem os Ovimbundos,
os Ambundos, os Bakongos, os Côkwe e outros.
Por meio da linguagem ritualista os seres humanos rememoram e atualizam mistérios e
acontecimentos importantes de um passado distante, geralmente explicados por meio da linguagem
mítica. Os rituais normalmente são realizados com distintas finalidades como em cerimônias de
casamentos, processos de iniciação ou passagem litúrgicas, comemorativas ou festivas, rituais
mortuários, divinatórios, de cura, entre outros (SANTOS, 2017).
Segundo o linguista Guthrie (2010), a origem da grande massa dos povos de língua Bantu
se situaria em Shaba e na região adjacente do nordeste da atual Zâmbia. Angola, inicialmente, foi a
região habitada majoritariamente pelo povo bantu. Práticas religiosas, conhecimentos técnicos
agrícolas e de mineração, valores sociais, costumes e hábitos de alimentação e tantos outros elementos
fizeram parte da bagagem cultural que formou a atual República Democrática de Angola e essas
contribuições estão presentes no cotidiano até os dias atuais (SANTOS, 2017).
A partir da análise feita, não se pode ensinar a língua fora dos interesses, elementos
culturais e linguísticos. É necessário provocar situações comunicativas que permitam aos indivíduos
interagir com uma finalidade comunicativa e cultural, como é o caso do desenvolvimento das línguas
em Angola.
A língua nacional é a língua falada num determinado território que, por refletir uma
determinada herança étnico-cultural, representa um elemento que indica uma consciência nacional e,
nos casos mais evoluídos, é também suporte de uma expressão literária independente. Uma língua
considerada oficial em um país é expressa no texto constitucional. Língua materna (língua nativa) é
a primeira língua que uma criança aprende e que geralmente corresponde ao grupo étnico-linguístico
com que o indivíduo se identifica culturalmente.
79

A expressão língua materna provém do costume em que as mães eram as únicas a educar
os seus filhos na primeira infância, fazendo com que a língua da mãe seja a primeira a ser assimilada
pela criança, condicionando seu aparelho fonador àquele sistema linguístico.
O português é a língua oficial de Angola, mas a maioria da população angolana fala, como
primeira língua, alguma das línguas africanas de Angola. As principais línguas africanas faladas em
Angola são o Umbundo (Umbundu), o Quimbundo (Kimbundu), o Quicongo (Kikongo), o Tshócue
(Côkwe), o Ganguela (Nganguela) e o Cuanhama (Kwanyama). Além destas, são faladas dezenas de
outras línguas africanas.
Segundo Silva (2007) e Carvalho (2014), o Umbundu é a língua do grupo etnolinguístico
dos Ovimbundu. Eles englobam quinze povos de características étnicas muito similares, tais como:
os Bienos, Bailundos, Seles, Sumbes, Mbuis, Quissanjes, Lumbos, Dombes, Hanhas, Gandas,
Huambos, Sombos, Cacondas Xicumas, e Quiacas.
Para os mesmos autores, o Kimbundu é a língua do grupo etnolinguístico dos Ambundu
(Bundos). O Kimbundu é falado na região centro-norte nas províncias de Luanda, Malanje, Bengo,
Kwanza-Sul, Kwanza-Norte e uma pequena parte do Uíge. Englobam os Kimbundos uma média de
vinte povos, sendo, os Ambundos, os Lundas, os Hungos, Luangos, os Ntemos, os Punas, os Dembos,
os Ngolas, os Bondos, os Bangalas, os Holos, os Caris, os Xinjes, os Munungos, os Songos, os
Bambeiros, os Quissamas, os Libolos, os Quibalas, os Hacos, e os Sendes. Falam todos a mesma
língua apenas com alguma diferença fonética (SILVA, 2007; CARVALHO, 2014).
Para eles, o Kikongo é a língua do grupo etnolinguístico Bakongo. Os Bakongos
encontram-se no norte de Angola, nas províncias do Uíge, do Zaire e uma parte do Kwanza-Norte.
Entre os Bakongos se distingue dezoito povos, cuja maioria são os Kikongos (Muxicongos), os
Mussorongos, os Sossos, os Pombos, os Solongos, os Zombos (Maquelas), os Iacas e os Sucos. No
grupo Kikongo se encontram os Oios (Cabinda), Cacongos (Lândanas) e Iombes (Maiombes). Os
Kikongos de Angola são tidos como os “guardiões” das tradições culturais do grupo bantu, por estar
no território angolano, a antiga capital do grande reino do Congo (SILVA, 2007; CARVALHO,
2014).
O Tchokwe é a língua falada pelo grupo etnolinguístico Tchokwe. Neste grupo destacam-
se: os Bangalas, os Xinjes, os Mussucos, os Libolos, os Quibalas, os Bundos, os Sumbes, os
Huambos, os Bailundos, os Sambos, os Dembos, os Quissanjes, os Hanhas, os Gandas, os Bieno, os
Buenas, os Luchazes, os Bundas, os Uhanecas (Muílas, Quipungos, Gambos, Humbes), os Hereros,
os Dimbas, os Cuanhocas, os Cuvales, os Vátuas, os Cuissis, os Cuepes, os Bochimanes, os
Ambuelas, os Nhembas, os Camaxes, os Cuangares, os Ambó, os Xilongas, os Diricos, os
Cuanhamas, os Cuamatos, os Evales e os Nhanecas-Humbes.
80

Fazem também parte deste grupo os representantes das etnias Lunda-Tchinde, Lunda-
Ndemba, Matamba, Badinga, Maia, que possuem características comuns, indivíduos de pequena
estatura física que varia conforme a região. Assim como as várias tribos de Angola, os Lunadas
possuem ricas tradições orais. (Ibidem). Estes grupos estão presentes numa boa parte do leste de
Angola, desde a Lunda Norte e Lunda Sul ao Moxico e mesmo ao Bié.
De acordo com Silva (2007), Nganguela é língua do grupo etnolinguístico Tchingangela.
Pertencem a este grupo as etnias Luimbe, Luena, Lovale, Luchadi, Bunda, Camachi. Os Nganguelas
encontram-se no leste e sul de Menongue. Os Ovambus pertencem ao grupo etnolinguístico Ambo.
Este grupo engloba as etnias Evale, Cafima, Cuanhama, Cuamato, Dombondola e Cuangare. Os
Ambos encontram-se na província do Kunene, no sul de Angola.
Ainda para o autor, os Nhyanecas – Humbi pertencem ao grupo etnolinguístico
Lunhaneca. Fazem parte desse grupo as etnias Muílas, Gambos, Humbes, Dongenas, Inglos,
Cuanacuás, Andas, Quipungos, Quilenjes-Humbes e Quilenjes-Mussos. Os Lunhaneca encontram-se
no planalto da Huíla. Os Hereros pertencem ao grupo etnolinguístico Tcherero. Neste grupo
distinguem-se os agrupamentos étnicos: Dimba, Chimba, Chavícua, Cuanhoca, Cuvale e
Nguendelengo. Esse grupo é formado por etnias nômades. Encontram-se no sudeste de Angola na
faixa que separa o deserto de Moçâmedes e o Planalto da Huíla.
A reflexão apresentada mostra o processo da evolução das línguas no povo de Angola.
Aspecto que tem relação direta com o desenvolvimento da Identidade Cultural bem como uma
necessidade na educação nos dias de hoje.
Durante o período colonial, o uso das línguas indígenas estava praticamente circunscrito
ao ensino do catolicismo. Contudo, a língua portuguesa não conseguiu fixar-se em todo o território
devido à limitada utilização que as populações africanas dela faziam, principalmente nas zonas rurais,
permanecendo as línguas indígenas, relativamente intactas.
Com a independência do país, algumas dessas línguas adquirem o estatuto de línguas
nacionais, coexistindo com a língua portuguesa como veículos de comunicação e expressão,
teoricamente em pé de igualdade. A adoção da língua do antigo colonizador como língua oficial foi
um processo comum à grande maioria dos países africanos. No entanto, em Angola, deu-se o fato
pouco comum de uma intensa disseminação do português entre a população angolana, a ponto de
haver uma expressiva parcela da população que tem como sua única língua, aquela herdada do
colonizador.
Nesse sentido, segundo Quintiliano (2013), existem alguns traços sociolinguísticos que
definem como uma língua se estabelece em uma determinada comunidade linguística. Elia (2001)
destaca alguns: o primeiro traço é a língua berço, pois essa característica é dada quando a língua nasce
em um determinado país. O segundo traço é a língua materna, esta é a primeira língua aprendida pelo
81

falante, geralmente na infância, dos lábios de sua mãe ou de parentes próximos. Outro traço
sociolinguístico é a língua oficial – é a língua que o Estado reconhece como válida em sua vida
política e administrativa. O quarto chama-se língua nacional, tem-se por essa a língua falada sem
contrastes em toda a extensão do país.
Um traço interessante (e o mais recente) é o da língua de cultura. Ela permite o acesso à
cultura e sendo ela mesma um patrimônio cultural. O sexto traço é gerado pela língua de cultura,
sendo ele por sua vez a língua padrão, como o próprio nome estabelece, é a língua reconhecida pela
comunidade nacional e que se ensina nas escolas. Podemos classificar o outro traço como língua
transplantada, que é a língua levada de um país para o outro e estabelecida. E como exemplo, temos
a Língua Portuguesa, que após se estabelecer como língua oficial de Portugal, foi levada por meio
dos movimentos expansionistas a vários países, se estendeu por vários lugares e é hoje uma das
línguas mais faladas do mundo.
Observando-se esta análise, se pode compreender que a língua como parte da cultura
transmite e desenvolve a Identidade Cultural, considerada também como a base desse
desenvolvimento. Através da ação educativa, o meio social exerce influências sobre os indivíduos e
eles, ao assimilarem e ao recriarem essas influências, tornam-se capazes de estabelecer uma relação
ativa e transformadora em relação ao meio social. Tais influências se manifestam através de
conhecimentos, experiências, valores, crenças, modos de agir, técnicas e costumes acumulados por
muitas gerações de indivíduos e grupos, transmitidos, assimilados e recriados pelas novas gerações
(LIBÂNEO, 2006).
De acordo com o exposto, a educação foi sempre um processo que visou a preparação do
homem para as exigências da vida em todos os domínios: político, econômico, social e cultural.
Depois do período colonial e dos conflitos armados que o país conheceu, ainda assim, vários povos
de Angola continuam a preservar suas culturas e as línguas angolanas continuam a ser faladas, em
algumas regiões mais que outras por razões históricas.
Desde essa perspectiva, a língua, como parte da comunicação das pessoas, é base do
desenvolvimento identitário, que no ensino da História é muito importante. De acordo com Mattoso
(2008) citado por Joaquim (2015): “[…] a História constitui para a sociedade atual um dos
fundamentos mais importantes da memória coletiva e, por conseguinte, da consciência de identidade”.
Para Maria (2007), tudo o que rodeia a educação institucionalizada é fruto de nossa
própria história de sociedade em suas mais variadas ramificações. As concepções sobre a educação
também fazem parte dos caminhos tomados pela humanidade numa incansável procura de cultura e
conhecimento.
Enquanto segundo Carvalho (2012), as identidades estão intimamente vinculadas à classe
social, gênero, idade, etnia, raça, língua, costumes, educação, religião, que são tradições presentes
82

nas relações sociais. Uma reflexão acerca da pluralidade cultural, presente no cotidiano escolar,
ratifica a diversidade cultural como traço fundamental na construção das identidades, onde a língua
desenvolve um importante papel.
A reflexão sobre a identidade aponta para o processo de interação dos indivíduos nos
diversos espaços sociais, nos quais buscam construir uma gama de sentidos de si mesmos e,
simultaneamente, do outro. Esse processo de conhecimento não se reduz, contudo, apenas a um
conjunto de crenças e representações sobre os indivíduos, mas também, pelo ambiente social no qual
estão inseridos, e que se convergem na produção da identidade (CARVALHO, 2012).
No mundo contemporâneo, as identidades são necessárias para que reconheçamos nossa
pertença: o que somos, o que temos em comum, o que nos diferencia dos outros e o que gostaríamos
de ser. No caso de Angola, o ensino da História ocupa um lugar de extrema importância na formação
da consciência histórica no estudo do seu povo na dimensão da sua identidade cultural, política,
econômica, social e espiritual na busca de soluções dos problemas de cada etnia.
O processo de ensino-aprendizagem da História abre caminho para a formação de atitudes
de tolerância face às formas de pensar e de agir diferentes da nossa cultura. A aprendizagem da
História pode ajudar a compreender melhor a época em que vivemos, de maneira individual e coletiva,
do ponto de vista cultural e identitário.
É imprescindível que a História seja trabalhada nas aulas incorporando toda a sua
coerência interna e oferecendo as chaves para o acesso a sua estrutura como conhecimento científico
do passado. É mais interessante que os alunos compreendam como podemos conseguir saber o que
passou e como o explicamos, do que a própria explicação de um fato ou período concreto do passado.
Ximenes (2018) aponta que o processo de ensino-aprendizagem da História, em constante
diálogo com as diversas áreas e com as experiências próximas e locais do aluno, se solidifica e permite
que ele, enquanto cidadão, se perceba como um sujeito histórico no espaço, no tempo e da sua
comunidade.
No que tange ao ensino da História, seu pilar é sustentado pela tese de que a “educação é
vida”, ou seja, o aluno aprende e apreende não somente para utilizar o conhecimento objetivando
chegar a algum lugar, mas sim, possibilita relacioná-la com o espaço de vivência e experiência do
aluno. Assim, para Ximenes “deve haver relação íntima e necessária entre os processos de nossa
experiência real e a educação”, construindo assim, novas visões sobre o processo de aprendizagem
dos acontecimentos históricos (XIMENES, 2018).
Assim, acreditamos que a abordagem da Identidade Cultural no processo de ensino-
aprendizagem da História, tendo como bases o desenvolvimento da língua, caracteriza-se como um
importante instrumento metodológico no processo de ensino-aprendizagem.
83

A identidade e tudo que a forma (signos, significados, linguagem, cultura) é constituída


historicamente e, por isso, em cada identidade isolada está contida toda a história da humanidade
(como afirmação e negação de quem sou), assim como toda a história da família a que cada ser esteve
ou está pessoal e coletivamente, culturalmente ligado. Por esse motivo afirma-se que para se pensar
a identidade é obrigatório considerar sempre a estrutura social e o momento histórico no qual a pessoa,
seja ela criança ou adulto, e os grupos sociais estejam envolvidos.
Considerando a língua como o elemento base do desenvolvimento da Identidade Cultural,
no espaço do processo de ensino-aprendizagem de História se propõem as seguintes acções:

1. Realizar um estudo dos programas das disciplinas e estabelecer a correspondência


entre os objetivos, o conteúdo de ensino e as particularidades dos alunos a partir
do diagnóstico.
2. Selecionar, ordenar e estabelecer uma sequência lógica dos conteúdos para lhe dar
tratamento adequado aos aspectos identitários, e a língua desde a relação
interdisciplinar e intercultural.
3. Diagnosticar os níveis de desempenho cognitivo dos alunos, com ênfase na
Identidade Cultural e na integração dos saberes no desenvolvimento de sua
cultura.
4. Determinar as alternativas a implementar nas diferentes aulas como desenvolver
a Identidade Cultural.
5. Aplicar as ações, a partir das operações para avaliar o desenvolvimento da
Identidade Cultural, não só como conteúdo no processo de ensino-aprendizagem,
mas como processo.
6. Fornecer aos alunos os conhecimentos necessários para desenvolver a Identidade
Cultural como parte da transmissão da cultura, do desenvolvimento das línguas e
da identidade dos povos.
Nesse sentido os alunos podem ter mudanças nos seus comportamentos, determinadas
pelas condições sociais em que vivem; (normas de conduta, o conteúdo do bem e do mal, as tradições,
os hábitos, as aspirações, os fins vitais, os valores espirituais que intervêm como estímulos espirituais
e morais). Se desenvolvem aspectos identitários enfatizando o tratamento e desenvolvimento das
línguas como verdadeira riqueza espiritual das pessoas no meio de suas relações sociais e as
potencialidades do meio.

CONCLUSÕES
84

Os fundamentos teóricos contextualizados na concepção desenvolvedora do ensino-


aprendizagem permitem integrar o ensino da História ao desenvolvimento da Identidade Cultural em
dito processo, em função de favorecê-lo, com ênfases nas línguas.
A articulação dos fundamentos da identidade e a cultura para desenvolver a Identidade
Cultural no processo de ensino-aprendizagem da História, sobre a base do desenvolvimento das
línguas requer de aprofundamento teórico, para que possa enriquecer os fundamentos da Didática de
História nos alunos do II Ciclo do Ensino Secundário em Angola.
A análise feita demonstra a necessidade do tratamento e desenvolvimento da Identidade
Cultural nos alunos do ensino médio pelo limitado domínio dos aspectos sociolinguísticos que a
conformam e sua integração de maneira geral ao trabalho da escola e, de forma particular, no ensino
da História, visando a formação do pensamento, a melhoria nos modos de atuação dos alunos no seu
meio social e prepará-los para a vida.

REFERÊNCIAS

ANGOLA. Decreto Lei nº. 17/16, de 7 de outubro de 2016. Nova Lei de Bases do Sistema de
Educação e Ensino. Diário da República, I Série-Nº170, 2016b, p.3994-4012.

ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

CAMPELLO, L. G.; SANTIAGO, M. R.; ANDRADE, S. L. A valorização da identidade cultural


como desafio à concretização do direito ao desenvolvimento. Revista de Direito Brasileira. São
Paulo, SP, v. 19, n. 8, p. 3- 19, Jan./Abr. 2018.

CARVALHO, M. A Construção das identidades no Espaço Escolar. Belo Horizonte, 2012.

CIPRIANO, S. K. As Identidades Esculturais, Regionais e Nacionais. Colóquio sobre Identidade


Cultural: Identidade Nacional. (Comunicações). Ministério da Cultura. EAL – Edições de Angola,
Lda. 1ª Edição. Luanda, 2014.

SILVA,T. J. da. História da Educação e Cultura de Angola: Grupos nativos, Colonização e a


Independência. 2ª Edição. Editora ZAINA, 2012.

CARVALHO, T. Um só povo, uma só nação: projecto ou realidade? Angola: Povos e Cultura.


Colóquio sobre Identidade Cultural: Identidade Nacional. (Comunicações). Ministério da Cultura.
EAL – Edições de Angola, Lda. 1ª Edição. Luanda, 2014.

SÍLVIO, E. A Língua Portuguesa no Mundo. Editora: Ática, 2001.

GROH, A. Identidade Cultural e o Corpo. Revista Psicologia e Saúde, Universidade Técnica de


Berlim, v. 11, n. 2, maio/ago. 2019, p. 3-22.

GUERRA, C.; HIDALGO, R. Um Olhar ao Desenvolvimento da Identidade Cultural no Ensino-


Aprendizagem da História. RECH- Revista Ensino de Ciências e Humanidades – Cidadania,
Diversidade e Bem Estar. ISSN 2594-8806. Ano 4, vol. IV, número 2, jul.-dez., 2020, p. 642-659.
85

JOAQUIM, P. Identidade profissional, história e enfermagem. Revista Investigação em


Enfermagem, nov. 2015, p. 45-54.

LADICA, A.; CLAUDIA, A.; BATISTA, S. Identidade cultural dos refugiados: um olhar sobre a
realidade do Alto Tietê. Revista Diálogos Interdisciplinares. vol. 8 n. 3 - ISSN 2317-3793, 2019.

LIBÂNEO, J. Didática. São Paulo: Cortez Editora. Brasil, 2006.

MARCONI, M. de A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de Metodologia Científica. 5ª Ed. São


Paulo: Editora Atlas, 2003.

MARIA, D. Paradigmas Contemporâneos da Educação: Escola Tradicional e Escola


Construtivista. FACED-UFC. Brasil, 2007.

PERES, A. E. Angola: Povos e Cultura. Colóquio sobre Identidade Cultural; Identidade


Nacional. (Comunicações). Ministério da Cultura. EAL – Edições de Angola, Lda. 1ª Edição.
Luanda, 2014.

QUINTILIANO, K. Contribuições das línguas africanas para o Português do Brasil. Trabalho de


Conclusão de Curso (Curso de Letras). UCB. Brasília, DF, 2013.

RODRIGUES, A. L. C. A seleção conceitual na organização de domínios de conhecimento nas


ciências humanas e sociais: o caso da cultura. Perspectivas em Ciência da Informação, v.16, n.2,
p.131-152, abr./jun. 2011.

SANTOS, V. B. dos. Representação Simbólica da Cerimônia de Casamento Tradicional Angolano.


Revista África e Africanidades, ano IX, n. 23, abr., 2017, ISSN 1983-2354.

SOLTES, V.; RAUPP, E. S. A Intencionalidade na Propaganda Publicitária. Ponta Grossa, 2013.

XIMENES, L. Diálogos entre História Local e o Ensino Fundamental – 2º segmento: Propostas


de inserção Curricular em Casimiro de Abreu. Dissertação de mestrado. PROFHISTORIA.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. São Gonçalo, 2018.
86

LETRAMENTOS NA PERSPECTIVA DECOLONIAL: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO


DE EXTENSÃO BRINQUEDOTECA DE HISTÓRIAS

Ana Rita de Cássia Santos Barbosa22 (UNILAB)

Gabriele de Jesus Batista23 (UNILAB)

Belisa Andrade do Amaral24 (UNILAB)

Valdimiro Dias Esteves25 (UNILAB)

RESUMO

As brincadeiras na infância constituem-se elemento favorecedor do neurodesenvolvimento infantil,


das interações sociais e do processo de construção das aprendizagens. Nesse sentido, o Projeto de
Extensão “Brinquedoteca de histórias: ludicidade, contação de histórias e vivências de letramento na
infância”, desenvolvido na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira,
desde janeiro de 2020, tem como principal objetivo oportunizar às crianças vivências lúdicas que
contemplem, entre as diversas possibilidades do brincar, a fruição da literatura infantil e a contação
de histórias. Especificamente, objetivamos explorar as possibilidades lúdicas para promover o
letramento das crianças e contribuir na construção positiva de suas identidades. Para tanto, estamos
utilizando como recursos pedagógicos livros literários, brincadeiras, assim como textos orais e, em
razão da pandemia da Covid-19, adotamos algumas plataformas digitais. O projeto é direcionado ao
público infantil, principalmente às crianças do município de São Francisco do Conde – BA.
Inicialmente, as ações eram periódicas, no intuito de ofertar às crianças vivências lúdicas de
letramento e de interação com elementos da cultura oral e escrita, visando a expressão criativa de suas
potencialidades, a construção da autoestima e a afirmação de suas identidades histórico-culturais.
Ademais, o uso das diversas ferramentas e plataformas digitais ampliou as possibilidades de
divulgação das ações do projeto e de público no acesso às histórias africanas, afro-brasileiras e
indígenas, disponibilizadas por meio de áudios registrados. As reflexões e desdobramentos dessa
experiência nos remetem a um processo contínuo e inacabado de formação e autoformação, além de
impulsionar novos caminhos para a promoção de letramentos em uma perspectiva decolonial e
antirracista, criando redes e fortalecendo identidades e potencialidades criativas.

Palavras-chave: Contação de histórias. Identidade. Infância. Letramentos.

22
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Doutora em Educação. Instituto de
Humanidades e Letras. E-mail: anarita.barbosa@unilab.edu.br
23
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Graduanda em Pedagogia. Instituto
de Humanidades e Letras E-mail: gabibpts@gmail.com
24
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Instituto de Humanidades e Letras
Graduanda em Letras. E-mail: belisa.amaral@gmail.com
25
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Instituto de Humanidades e Letras.
Graduando em Letras. E-mail: habildollar@gmail.com
87

O brincar é uma ação inerente à infância, sendo substancial sua importância para o
desenvolvimento social, cognitivo e emocional das crianças. Diversos estudos, no âmbito do
Letramento Emergente (Emergent Literacy), também apontam que as experiências lúdicas que
envolvem práticas sociais de leitura e escrita na primeira infância propiciam um bom
desenvolvimento dos processos de alfabetização e letramento. Contudo, em contextos de históricas
desigualdades de oportunidades educacionais (e literárias), muitas crianças acabam ficando à margem
desses processos, sendo ainda mais necessário o fortalecimento das redes de apoio (escola, família,
comunidade), a fim de proporcionar experiências lúdicas de letramentos (KISHIMOTO, 2013;
SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2013; BARBOSA, 2018).
A prática de ouvir e contar histórias, presente em diversos povos, culturas e gerações, é
uma possibilidade lúdica que aproxima as crianças dos contos de tradição oral, bem como das
histórias escritas, propiciando assim o desenvolvimento de seus processos de letramento e também
de alfabetização. Além disso, favorece o desenvolvimento de competências linguísticas e
metalinguísticas (PINTO; BIGOZZI, 2002; De BENI, CISOTTO, CARRETTI, 2002; BELLONE,
OGLETREE, 2004; PROPP, 1997; RAVID, TOLCHINSKY, 2002; WHITEHURST e LONIGAN,
1998; TEALE e SULBZBY, 1986).
Para além dos aspectos relacionados à cognição e à aprendizagem, o ouvir e contar
histórias também envolvem questões de natureza histórica, social, cultural, psicológica e identitária.
Conforme Bruner (1996), todo o processo de escolha dos contos, histórias e práticas lúdicas deve ter
o propósito de contribuir, de forma responsável, para a construção positiva das identidades das
crianças. Isso porque o conto propicia o desenvolvimento psíquico e emocional, a partir da construção
de processos de identificação com os modelos encontrados, representados pelas personagens e
histórias com as quais se tem contato, o que é ainda mais urgente em sociedades marcadas
historicamente por desigualdades, diversas formas de opressão, assim como pelo racismo epistêmico
(SANTOS, 1999).
Partindo deste propósito e em diálogo com a Lei 11.645/08 para o ensino da história e da
cultura afro-brasileira, africana e indígena, o projeto de extensão “Brinquedoteca de histórias:
ludicidade, contação de histórias e vivências de letramento na infância”, desenvolvido há um ano na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), está ancorado em
três principais pressupostos: 1) a valorização da ludicidade nas práticas educacionais propostas para
a infância; 2) a valorização de práticas de leitura e de contação de histórias escritas e de tradição oral;
3) a boa escolha do repertório de contos orais e escritos, considerando as peculiaridades históricas e
socioculturais do contexto envolvido, bem como a implementação da Lei 11.645/08 – concernente à
construção positiva de identidades e à promoção de práticas educacionais decoloniais e antirracistas.
O projeto foi pensado, portanto, enquanto possibilidade de criar e experimentar “caminhos” para o
88

que Walsh (2005) denomina posicionamento crítico de fronteira, no sentido de questionar e


transformar a histórica lógica de colonialidade do saber, do poder e ser.
O projeto deu início as suas atividades em janeiro de 2020, no município de São Francisco
do Conde – BA, onde está localizada a sede do Campus dos Malês. A princípio, os estudantes
envolvidos no projeto planejaram e mobilizaram uma série de ações, incluindo leitura, contação de
histórias indígenas, africanas e afro-brasileiras, jogos e brincadeiras, com crianças que frequentavam
um espaço lúdico no próprio campus (O projeto Facul das Crias26) Concomitante a essa tarefa, os
pais das crianças estavam envolvidos em suas atividades acadêmicas.
A partir do mês de março, deu-se início as ações de leitura e contação de histórias em
uma escola pública do referido município, em parceria com atividades de pesquisa27 já em curso.
Contudo, tais atividades foram interrompidas e remanejadas para outros formatos em decorrência do
cenário da pandemia da Covid-19. Seguem alguns registros dos primeiros encontros.

Figura 1 – Registro de atividade presencial realizada no mês de março/2020 pelo estudante da UNILAB,
Valdimiro, em uma escola pública do município de São Francisco do Conde – BA.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 2 – Registro de atividade presencial realizada no mês de março/2020 pela estudante da UNILAB,
Gabriele, em uma escola pública do município de São Francisco do Conde – BA. Leitura do conto: “Tanto,
tanto!”, de Trish Cooke.

26
O Projeto Facul das Crias é uma ação de Extensão da Universidade, voltada para acolher, com atividades educativas e
lúdicas, as crianças filhas de discentes, docentes e técnicos do Campus do Malês.
27
As atividades da extensão ocorreram em parceria com o projeto de pesquisa “Oficinas Brincantes de alfabetização e
Letramento: espaços e possibilidades para o desenvolvimento sociocultural de sujeitos”.
89

Fonte: Elaborado pelos autores.

A princípio, tivemos dificuldades em adaptar as ações do projeto após o cenário de


distanciamento social. Assim, uma parte do mês de março foi dedicada ao estudo teórico, à reflexão
e ao planejamento de possibilidades para retomar as atividades. Pensamos em uma proposta de
criação de uma plataforma digital, considerando que não poderíamos contar as histórias
presencialmente para as crianças. Nesse processo foram fundamentais a articulação e a familiaridade
dos estudantes com as redes sociais, suas plataformas e possibilidades.
As ideias e sugestões, trazidas por eles, foram amplamente debatidas em grupo, o que nos
fortaleceu e nos fez construir algo coletivamente, motivando-nos ainda mais para as ações. Fizemos
várias experimentações para a gravação das narrativas, o que gerou muita troca e aprendizagem. Além
das narrativas autorizadas para postagem nas redes, pensamos também em fortalecer a divulgação das
histórias de tradição oral, valorizando, assim, a literatura oral presente no território do recôncavo
baiano. Buscamos também obras disponibilizadas gratuitamente e de livre acesso nos meios digitais.
Após estudos e reflexões, começamos, a partir do mês de abril, a divulgar registros em
áudio de poemas e histórias orais, como também obras escritas (devidamente autorizadas pelos
autores e/ou editoras) no site https://soundcloud.com/brinquedotecadehistorias. O registro permanece
na plataforma e compõe uma coletânea de áudios que ficam à disposição do público de ouvintes
gratuitamente. Os estudantes se ocupam da pesquisa, do planejamento e da divulgação das histórias
por meio das redes sociais do projeto, sendo os responsáveis em gerenciar e acompanhá-las:
@brinquedotecadehistorias (Instagram); Histórias infantis da Unilab (facebook) e
brinquedotecadehistorias@gmail.com.
Em abril de 2020, foi ao ar a nossa primeira história, obtendo 281 acessos de leitores/ouvintes.
90

Figura 3 – Organização dos áudios na plataforma digital do projeto, realizada por Belisa, voluntária do projeto.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 4 – Registro da primeira história que foi divulgada no mês de abril, na plataforma SoundCloud.

Fonte: soundcloud.com/brinquedotecadehistorias

No segundo semestre de 2020, foram criadas mais duas plataformas. Uma delas seria para
dar continuidade às publicações após termos atingido o limite de material que poderia ser publicado28
, e a outra para ampliar a divulgação, tratando-se do mesmo material já existente na plataforma
SoundCloud.29

Figura 5 – Página inicial da Plataforma Spotify, com a coletânea de todos os áudios (podcasts) publicados.

28
https://soundcloud.com/brinquedotecadehistorias2.
29
https://open.spotify.com/show/1aY7caC0VfhhLE7e6zLjuw.
91

Fonte: open.spotify.com/show/1aY7caC0VfhhLE7e6zLjuw

A participação de um público diversificado, oriundo de diferentes localidades, foi um


ponto interessante do projeto. A partir das plataformas digitais, tivemos o conhecimento de ouvintes
de diferentes municípios do Brasil, sobretudo em Salvador, Candeias e São Paulo, mas também em
São Francisco do Conde, Rio de Janeiro e até em outros países, como Angola e França. Conforme as
estatísticas contabilizadas pela plataforma soundcloud, foram realizadas, até dezembro de 2020, 2.829
reproduções dos áudios postados, a partir da divulgação de 56 histórias. Pela plataforma Spotify, que
passou a ser utilizada também a partir do segundo semestre, os áudios foram reproduzidos 762 vezes,
totalizando, assim, 3.591 acessos às histórias em ambas as plataformas.

Figura 6 – Estatísticas de acesso aos áudios, em 2020.

Fonte: soundcloud.com/brinquedotecadehistorias/
92

Apesar de não termos realizado o contato direto com o público infantil, percebemos que
o redimensionamento das ações gerou outras possibilidades não imaginadas anteriormente, uma vez
que, ao longo de um ano de trabalho, construímos uma audioteca de histórias de acesso livre para um
público muito mais extenso. Tais ações terão continuidade mesmo em cenários de pós-pandemia, pois
buscam dar visibilidade, escuta e voz a atores sociais historicamente excluídos pelo racismo e pelas
desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que apontam e experimentam estratégias educativas
lúdicas e criativas.
Em relação à interação com o público, tivemos dificuldades em ter retornos específicos
relacionados à interação das crianças com as histórias e como estavam sendo utilizadas por pais e/ou
educadores. Imaginamos que o próprio cenário de incertezas, inseguranças e dificuldades, em
decorrência da pandemia, pode ter sido um fator que de certa forma atrapalhou essa interação e
obtenção de maior retorno ao longo do tempo. Contudo, obtivemos alguns feedbacks interessantes,
conforme ilustram as imagens abaixo:

Figura 7 – Desenho da história30 preferida: O canto dos pássaros. Ouvinte: Levi Santana, seis anos,
residente em Salvador – BA.

Fonte: Desenho elaborado por Levi Santana.

Figura 8 – Desenho da história preferida: Quando o sol e a lua foram morar no céu. Ouvinte: Letícia, nove
anos, residente em Salvador – BA.

30
“A história que eu mais gostei de ouvir na brinquedoteca foi a do Canto dos pássaros. Eu gostei dessa história porque
gosto de pássaros e também gostei da parte que o mago jogou o pó mágico nos pássaros. Eu gosto de história de animais”.
93

Fonte: Desenho elaborado por Letícia.

Figura 9 – Desenho da primeira história ouvida por Enzo, 1 ano, residente na França: “Quando o sol e a
lua foram morar no céu”.

Fonte: Desenho elaborado por Enzo.

De uma forma geral, tomamos conhecimento de que algumas crianças se identificaram e


interessaram por uma determinada ou parte de história da diáspora africana; e de que adultos, formado
em grande maioria por um público de mulheres, algumas das quais mães e/ou educadoras, e/ou
estudantes, que utilizam as plataformas para pesquisa e/ou planejamento de suas aulas ou atividades
94

online, ou que apenas acompanham e apreciam cada publicação pelo simples prazer de ouvir histórias
e aprender coisas novas.
Além da contínua pesquisa, planejamento e divulgação de histórias, realizamos, no
segundo semestre de 2020, algumas atividades formativas no formato de lives, com a participação de
especialistas para tratar de temas vinculados às ações do projeto, por exemplo, a discussão sobre as
relações étnico-raciais a partir das histórias, que contou com a participação da Professora Claudilene
Silva. Os encontros foram mediados pelos estudantes colaboradores e divulgados por meio do canal
do Grupo de pesquisa GEPILIS/UNILAB31.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do sobredito projeto tem sido uma oportunidade única de trocas e


aprendizagens para todos os envolvidos, possibilitando também a criação de vínculos de
solidariedade, respeito, união e afeto. As ações realizadas foram altamente formativas e, até de certa
forma, terapêuticas, pensando no cenário do distanciamento social no qual nos encontramos.
Os estudantes que participam do projeto têm demonstrado muito compromisso,
responsabilidade, entusiasmo, alegria e criatividade na organização e execução das atividades do
projeto, exercitando suas potencialidades e desejando dar sempre o melhor de si. Temos buscado
superar as dificuldades, compartilhar saberes e experiências e construir algo novo e desafiador. Algo
que nem sequer imaginávamos no início do projeto, o que nos fez refletir sobre a necessidade e
importância de continuidade dessas ações nas redes sociais e plataformas digitais, mesmo em um
momento pós-pandemia.
Acreditamos que estimular o gosto pela leitura e proporcionar mais acesso às histórias e
culturas africana, afro-brasileira e indígena, por meio da literatura (e da oratura), constitui-se como
uma possível “rede de apoio” no sentido de contribuir para a promoção de resiliências na infância.
Trata-se de uma possibilidade educacional antirracista, de (re)construção epistemológica decolonial
e de possibilidade de acalanto para todos os seus leitores/ouvintes, sejam eles crianças ou adultos que
retomam e/ou recuperam suas infâncias.
Portanto, desejamos que a tradição oral e as diferentes possibilidades de expressão
literária possam ser caminhos estéticos e éticos de estar no mundo, nos fortalecendo e nos ajudando
a sonhar e a concretizar oportunidades melhores, para que todas as crianças possam ser, cultivar e
aprender sobre valores humanos, bem como sua ancestralidade, história, cultura, autoestima, suas
emoções, potencialidades e suas essências.

31
https://www.youtube.com/watch?v=LYNLVQcHRAY&t=1860s.
95

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Ana. Rita. De C. S. Auto(nomia) do educador no processo de alfabetização e letramento


das crianças da escola pública: quais desafios e compromissos políticos? In: AVELAR, J. P de;
COSTA, G. E. B. da. (AUTO)NOMIA: atuação do educador em diferentes espaços. Curitiba: CRV,
2018, p.107-118.

BELLONE, M.; OGLETREE, B.T. Usare i libri di fiabe e racconti per l’avviamento alla letto-
scrittura. Difficoltà di apprendimento, v. 9, n. 4, p. 521-530, 2004.

BRUNER, J. The culture of education. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1996.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modicada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ lei/l11645.htm.Acesso em 25 jul.2018.

CISOTTO, Lerida e ROSSI, Franca. L’alfabetizzazione: temi emergenti, prospettive di studio e


ricerca. Lo stato dell’arte. In: CASTOLDI, Mario e CHICCO, Michela (orgs.). IMPARARE A
LEGGERE E A SCRIVERE. Efficacia delle pratiche di insegnamento. Editore Provincia autonoma
di Trento – IPRASE, 2019.

DE BENI, Rossana; CISOTTO, Lerida; CARETTI, Barbara. Psicologia della lettura e della
scrittura. Trento: Erickson, 2002.

KISHIMOTO, T. M. Brincar, Letramento e Infância. In: KISHIMOTO, T. M; OLIVEIRA-


FORMOSINHO, J. (orgs). Em busca da pedagogia da infância: pertencer e participar. Porto Alegre:
Penso, 2013, p.21-53.

PINTO, Giuliana; BIGOZZI, Lucia (org.). Laboratorio di lettura e scrittura. Trento: Erikson, 2002.

PROPP, Vladimir. Morfologia della fiaba. Trad. it. S. Arcella, Roma,Newton Compton, 1997.

RAVID, D.; TOLCHINSKY, L. Developing linguistic literacy: a comprehensive model. Journal of


Child Language, London, v. 29, n. 2, p. 419-448, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Oficina do


CES, nº 135, Coimbra, 1999. Disponível em:
http://www.do.ufgd.edu.br/mariojunior/arquivos/construcao_multicultural_igualdade_diferenca.pdf.
Acesso em: 8 set. 2020.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, I. Questões de letramento emergente e do processo de alfabetização em


classes do primeiro ano do ensino fundamental para crianças de 6 anos. In: KISHIMOTO, T. M;
OLIVEIRA-FORMOSINHO, J. (orgs). Em busca da pedagogia da infância: pertencer e participar.
Porto Alegre: Penso, 2013, p. 85-109.

TEALE W. H.; SULZBY, E. Emergent literacy: writing and reading. Norwood: Ablex, 1986.

WALSH, Catherine. Pensamiento crítico y matriz (de) colonial. Reflexiones latinoamericanas.


Quito: Ediciones Abya-yala, 2005. p 13-35.
96

ESCRITA SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO E APROPRIAÇÕES DAS TEORIAS


LINGUÍSTICAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO

Agda Negrão Moreira 32

RESUMO

Este trabalho origina-se de um trabalho de conclusão de curso que buscou apresentar uma reflexão
sobre as dificuldades que o aluno contemporâneo apresenta para mobilizar o conhecimento adquirido
para ler textos teóricos e transformá-los em embasamento de suas reflexões no decorrer da formação
inicial. Na área de Letras, considerando que o estágio supervisionado é um momento em que o aluno
deve aprender a mobilizar as teorias para construir reflexões e compreensões sobre o ensino da língua
portuguesa, a escrita destituída da base teórica ou como mera reprodução, constitui-se em um sério
problema, uma vez que essa apropriação é fundamental para que se possa produzir conhecimento
sobre e para a escola. Diante disso, a pergunta central que conduziu o artigo foi se a escrita produzida
no e por meio dos relatórios de estágio supervisionado se configura como um recurso constitutivo de
conhecimento e, consequentemente, do sujeito que a produz? Para a efetivação da análise, foram
selecionados 20 relatórios para a composição do corpus, produzidos por alunos do Curso de Letras
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2015, nas disciplinas estágio
supervisionado em Língua Portuguesa I e II. Dentre essas 20 produções, foram analisadas aquelas
que, por sua forma de construção, foram representativas dos modos como organizam a escrita do
gênero relatório e se apropriam das teorias linguísticas para produzir reflexões sobre o ensino-
aprendizagem da escrita. A escrita do relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir
do dado concreto e chegar a uma reflexão de cunho teórico sobre a escrita como produção de
conhecimentos na universidade, a partir de uma concepção não dicotômica entre teoria e prática.
Como aporte teórico, foram utilizadas as teorias desenvolvidas por Barzotto (2007); Geraldi (2003);
Bianchi (2002) e Vásquez (1977). Os resultados da pesquisa mostraram que os professores em
formação tendem a relacionar a teoria em suas produções acadêmicas de modo bastante superficial,
ou seja, apropriação como forma de manter a formalidade que o gênero relatório de estágio
supervisionado demanda e não como embasamento de suas reflexões.

Palavras-chave: Estágio supervisionado. Formação docente. Teoria. Prática.

INTRODUÇÃO

A dificuldade que o aluno de cursos de licenciaturas em Letras apresenta para mobilizar


os conhecimentos adquiridos durante a leitura de textos teóricos e transformá-los em base para suas
reflexões sobre as práticas relacionadas ao ensino e aprendizagem tem sido um problema presente no
decorrer da formação inicial e que ganha evidência quando esse licenciando assume a posição
professor. É muito comum os professores em início de carreira afirmarem que a teoria não tem relação
com a prática ou que a teoria na prática é outra.

32
Licenciada em Letras (Português e Espanhol). Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM). E-mail: agda.nmoreira@gmail.com
97

O estágio supervisionado é um momento em que, no decorrer da formação inicial, o futuro


professor deve aprender a mobilizar as teorias para construir reflexões e compreensões sobre o ensino
da língua portuguesa. Ou seja, o estágio configura-se como uma ponte entre teoria e prática. Na
prática efetiva de sala de aula, o estagiário tem a possibilidade de entender os conceitos que lhe foram
ensinados ao longo do curso e aplicá-los nas atividades práticas que desenvolve.
O estágio supervisionado pode ser compreendido, portanto, como um encontro que deve
valorizar a parte da licenciatura realizada na universidade e possibilitar que o futuro profissional
vivencie uma experiência preparadora e coincidente com a realidade que será vivida após a formação
inicial. Dito de outro modo, o estágio é o campo prático que, para ser efetivamente formativo, precisa
integrar o percurso teórico formativo de modo a ampliar os saberes sobre as práticas docentes. É,
portanto, formador e difusor de conhecimentos teórico-práticos.
Entretanto, ao afirmar a dissociação entre a teoria e prática no momento em que inicia a
docência, o professor aponta para existência de uma dissociação que pode ter raízes que começaram
a crescer já no momento da formação inicial. Nesse sentido, a hipótese que norteou esta pesquisa foi
de que vigora nas produções dos relatórios de estágio supervisionado em Letras uma escrita colada
aos textos teóricos ou ocorre uma não mobilização dessas teorias para desenvolvimento das análises
e das situações de ensino e aprendizagem que o estagiário vivencia na escola básica.
Ao mesmo tempo, a maneira como a escrita tem sido produzida na universidade, a relação
frouxa que alunos de diferentes áreas do conhecimento estabelecem com a linguagem, a relação
parafrástica com a palavra alheia e a dificuldade para construir argumentos ainda tem sido pouco
discutida como um conjunto de indícios que aponta para um modo de o sujeito contemporâneo se
inserir nos universos de linguagens. E, principalmente, tem sido pouco estudado se essa escrita, sendo
o produto final de processos formativos, chega a configurar-se em um dizer que tenha pertinência a
outro que não aquele que vivenciou a própria experiência de produzi-la.
Essa não mobilização se constitui um problema porque o pressuposto assumido neste
artigo é o de que o professor formado por uma universidade qualifica-se para participar dos processos
produtivos da área profissional em que se formou, incluindo-se a produção de propostas de ensino e
a pesquisa sobre os processos de ensino e aprendizagem. Portanto, sua formação deve ser suficiente
para que seu trabalho docente ganhe uma relação produtiva com a teoria. Estabelecer relação entre a
teoria e a prática é uma forma de o professor não depender exclusivamente dos produtos didáticos e
de pesquisas realizadas em instâncias das quais não participa diretamente (como governos, mercado
editorial e mesmo alguns setores da universidade).
Por essa perspectiva, a escrita do relatório de estágio é um momento fundamental para a
construção dessa relação entre teoria e prática. Estar diante da necessidade de escrever implica estar
diante de medos e incertezas inerentes à escrita de um texto. Em função disso, atualiza-se para o
98

sujeito o traçado da entrada na linguagem feito por qualquer falante. A depender do encaminhamento
dado aos medos, ao refazer esse traçado, alguns passam a procurar um modelo que acomode o texto
e as posições nele constituídas para se livrar do embate com os próprios temores.
Para que se efetive como esse momento de constituição de conhecimento sobre a prática,
sobre o papel da teoria na prática, é necessário que o estagiário tome a teoria como um aporte
fundamental para a prática e, principalmente, se aproprie da teoria vista em sala de aula para organizar
o seu agir no campo prático. O aprendizado se dá pela compreensão da teoria e seu papel na
constituição de compreensões sobre a prática. A escrita do relatório, nesse sentido, é o momento de
expor a esse conhecimento e, principalmente, de articular esses conhecimentos de forma a produzir
outros novos conhecimentos sobre a prática de ensino e aprendizagem da língua portuguesa.
Diante disso, a pergunta central que conduziu a elaboração deste artigo foi se a escrita
produzida no e por meio dos relatórios de estágio supervisionado em Letras se configura como um
recurso constitutivo de conhecimento e, consequentemente, do sujeito que a produz? A escrita do
relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir do dado concreto e chegar a uma
reflexão de cunho teórico sobre a escrita como produção de conhecimentos na universidade, a partir
de uma concepção não dicotômica da relação entre teoria e prática.

DIÁLOGOS E ANCORAGENS TEÓRICAS

Uma vez que o estágio supervisionado, como recurso de formação do profissional em


Letras, tem sido problematizado no campo da educação e dos estudos da linguagem, prevalecem
muitas discussões sobre os alcances e resultados desse tempo e espaço de formação. Porém, tem sido
pouco problematizada a escrita dos relatórios e a apropriação das teorias nesse processo como um
ponto fundamental da formação. Assim, para melhor desenvolvimento deste artigo e alcance dos
objetivos propostos, têm-se como base as teorias desenvolvidas por Barzotto (2007); Brait (2000);
Geraldi (2003); Bianchi (2002) e Vásquez (1977).
De acordo com Geraldi (2003), a questão da linguagem é fundamental no
desenvolvimento de todo e qualquer homem; ela é o elemento constitutivo e organizador do processo
de apreensão de conceitos que permitem aos sujeitos compreenderem o mundo e nele agir. Assim,
para o autor, a prática de produção textual tornou-se algo indispensável para o ensino e aprendizagem
da língua, uma vez que é no texto que a língua “se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto
de forma, quer enquanto discurso” (GERALDI, 1993, p. 135). A partir dessa concepção, observa-se
que a escrita dos relatórios configura-se como processo de constituição do futuro professor como
sujeito de conhecimento.
Diante dessa concepção, tornam-se necessárias reflexões sobre a elaboração da escrita
durante o processo de formação do estagiário em Letras, pois a escrita não deve se efetivar como
99

mera relação parafrástica com vistas a cumprir a organização do gênero relatório. Embora a paráfrase
seja um recurso utilizado para a escrita do texto, isso não pode justificar uma acomodação como o de
sempre retomar a escrita do outro como forma de produção de conhecimento. O estagiário precisa
apropriar-se do conhecimento teórico e fazer emergir sua criticidade, assim como confirmar ou
descartar um ponto de vista e mobilizar o embasamento teórico suficiente em suas práticas.
Bianchi (2002) afirma que estagiar é tarefa do aluno do curso de licenciatura e é preciso
que ele demonstre sua capacidade de reflexão e produção de conhecimento sobre os objetos e
problemas relacionados ao ensino da disciplina para qual está se formando; é também necessário que
exerça funções condizentes com o seu conhecimento teórico-prático e tenha consciência do papel
profissional que desenvolverá ao assumir a posição de educador. Para o autor, no estágio, a
observação prática dos espaços de atuação profissional sem articulação com a teoria não é suficiente
para se construir um saber sobre a realidade escolar que a cada dia se mostra mais caótica. A partir
disso, buscamos analisar se o aluno de Letras, ao cursar o estágio supervisionado, também mobiliza
as teorias para explicar os problemas de aprendizagem; ou seja, se mobiliza a teoria na prática,
sabendo atuar em salas com contextos diferentes, de modo a não ficar refém dos materiais didáticos,
por exemplo.
Barzotto (2007) parte do pressuposto que estudantes do Curso de Letras apenas seguem
o legado deixado por teóricos e não conseguem escrever partindo da teoria como base. Ou seja,
somente reproduzem o que leem e utilizam as teorias em contextos diferentes, além de possuírem
dificuldades de escrita. A partir da discussão proposta pelo autor, analisa-se como essa dificuldade se
materializa nos relatórios e as dificuldades de escrita. Fazer essa análise é importante porque
diferentes pesquisadores destacam ser preocupante o alto índice de estudantes que chegam aos cursos
universitários com dificuldades de escrita, em relação à norma culta, às variantes, ao conhecimento
da língua. No caso do profissional da área de Letras, esse problema ganha maior relevância porque é
o professor de língua portuguesa que ensinará a escrita na educação básica.
Segundo Brait (2000, p. 53), “o profissional de Letras terá que conhecer muito bem a
língua, as suas variantes, a sua norma culta. Terá ainda de estar atento às teorias da linguagem em
geral para ser capaz de enfrentar textos e fazer deles seu instrumento de ver e mostrar o mundo”. Ou
seja, saber escrever mobilizando as teorias de base dessa área é fundamental para que o professor de
língua portuguesa, no momento de exercício da docência, tenha condições de compreender e construir
estratégias visando à aprendizagem da escrita na escola.
Para Vásquez (1977), mesmo que a teoria seja vista de forma autônoma em relação à
prática, a prática não existe sem orientação teórica, ou seja, ambas caminham juntas. Entre essas
orientações o autor destaca o conhecimento da realidade que deverá ser transformada; da técnica que
100

deverá ser utilizada na transformação e da prática acumulada que deverá avançar em relação a
determinado nível teórico. Para esse autor,

A dependência da teoria em relação à prática, e a existência desta como últimos fundamentos


e finalidades da teoria, evidenciam que a prática - concebida como uma práxis humana total
- tem primazia sobre a teoria; mas esse seu primado, longe de implicar uma contraposição
absoluta à teoria, pressupõe uma íntima vinculação com ela (VÁSQUEZ, 1977, p. 234).

Nota-se que não basta uma boa teoria para que a prática se realize com êxito, mas tão
pouco se entende que a prática se basta por si mesma. Em síntese, as teorias usadas para a análise dos
dados contribuirão para o alcance dos objetivos propostos, uma vez que, em relação ao uso da
linguagem, temos as assertivas de Geraldi e Brait, que mostram a importância da linguagem para a
construção do sujeito. Bianchi, que discute o papel do estagiário, oferece o suporte para as análises
sobre o modo como o aluno coloca em prática as teorias linguísticas, a aplicabilidade da teoria na
prática. Por fim, Vásquez contribui para a análise da relação entre teoria e prática nos relatórios.
Sendo assim, o estágio possibilita ao futuro professor realizar intervenções a partir da observação
sistemática da sala de aula, além de possibilitar que invista na possibilidade de atuação docente
reforçada por critérios teóricos.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

Esta pesquisa é de caráter qualitativo, uma vez que, com base em Esteban (2010),
pesquisa qualitativa é um conjunto sistemático de atividades interpretativas que tem como principal
foco a construção e compreensão de fenômenos educativos e sociais. Para tanto, inicialmente foram
selecionados 20 relatórios de estágios supervisionados, produzidos por alunos do Curso de Letras da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro no ano de 2015, nas disciplinas de estágio supervisionado
em Língua Portuguesa I e II. Dentre essas 20 produções, foram selecionadas 14 produções que, por
sua forma de construção, são representativas dos modos como os alunos, de forma geral, organizam
a escrita do gênero relatório. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, não será o dado repetido que
terá relevância, mas o dado que, na relação com outros, embora aparentemente isolado, permita a
construção de uma compreensão acerca de como o aluno se vê e mobiliza os recursos linguísticos e
discursivos na produção da escrita.
Os textos que compõem o corpus são identificados pela letra R de “relatório” e números
que indicarão se estagiário 01 ou 02 e assim sucessivamente. Ou seja, nesse sentido, a preocupação
maior é com a não identificação dos autores dos relatórios. Os autores dos relatórios foram
informados da realização da pesquisa e, no momento em que foram convidados a participar,
receberam o Termo de Consentimento Livre Esclarecido para assinatura (TCLE). Além disso, foram
101

informados de que poderiam desistir da participação na pesquisa – e não autorizar o uso do relatório
– a qualquer momento.
No que diz respeito à análise, como se trata de uma pesquisa ancorada na concepção
discursiva da linguagem, não serão priorizadas, embora consideradas, nas análises, características
“textuais” ou “formais” que perfaçam um “bom relatório de estágio” por si só, mas discutiremos
traços que apontem para uma relação produtiva do sujeito com as instâncias às quais ele se dirige em
seu texto e com aquilo que é tomado como objeto de seu discurso: as práticas de ensino na escola
básica. Nesse sentido, será também analisado como um enunciado se constitui enquanto portador de
um conhecimento do sujeito que o produziu.

ANÁLISE DOS DADOS

Para a efetivação da análise das produções textuais discursivas, foram utilizados quatro
critérios que serão apresentados em subtópicos. Sendo assim, na seção 3.1, são analisados os aspectos
da descrição da prática de ensino e aprendizagem; em 3.2, são analisadas as operações discursivas
realizadas sobre os dados registrados nas práticas de observação e regências descritos e analisados
nos relatórios, ou seja, se os estagiários mobilizam e problematizam os dados observados e como
efetivam esses dados. Na sequência, em 3.3, apresenta-se o desenvolvimento da escrita partindo dos
conceitos teóricos apresentados no embasamento do relatório e o uso das afirmações teóricas nas
práticas de ensino registradas. Por fim, na seção 3.4, são analisadas as reflexões produzidas nos
relatórios sobre as aprendizagens a partir das práticas de ensino realizadas pelos estagiários e pelos
professores observados na escola básica.

Aspectos das descrições da prática de ensino e aprendizagem

Nos aspectos da descrição de prática de ensino e aprendizagem, conforme orientado no


âmbito da disciplina estágio supervisionado, é proposto ao estagiário que mobilize seus
conhecimentos aprendidos/apreendidos ao longo do curso para problematizar, compreender e
construir ações didáticas no e para o campo de estágio. Ou seja, espera-se que, antes da realização do
estágio, escolha um objeto de trabalho, como por exemplo, a escrita e reescrita, leitura ou literatura.
No entanto, verifica-se que o objeto de trabalho descrito na introdução do relatório nem sempre é
abordado efetivamente, como se observa no excerto do relatório do estagiário 01:

Este projeto vai apresentar propostas de atividades relacionadas a um tema específico, a


Ditadura Militar no Brasil [...]. Entretanto os alunos não participam das discussões por
timidez, essa será a intervenção, a atividade final será transpor as opiniões no papel por meio
de um parágrafo introdutório para uma dissertação crítica. [R1, p. 1].
102

O estagiário propõe o tema “Ditadura Militar no Brasil nos anos de 1964 e 1985” para
promover um debate e desenvolver o caráter crítico nos alunos com a justificativa de que isso não é
explorado pelo professor; porém, não apresenta ao leitor uma explicação sobre a escolha do tema,
também não diz muito sobre quais aspectos desse período/conteúdo será abordado em sala de aula.
Como intervenção, propõe a escrita de um parágrafo introdutório que, consequentemente, resultará
na produção de uma dissertação crítica e novamente não explica o que é esse crítico. Ao observar que
a turma não é participativa devido à timidez, o estagiário aplica uma atividade de escrita crítica, de
modo a suprir o debate. Diante da primeira problemática a ser enfrentada, a falta de participação da
turma, não descreve como chegou a essa conclusão, o que se torna superficial a escrita apresentada
no relatório. Posteriormente, verifica-se outro aspecto de descrição da prática de ensino referente ao
relatório 01:

A ideia de introdução de tais conceitos não foi tarefa fácil, mas houve extrema colaboração
por parte dos alunos [...]. Após a apresentação superficial dos conceitos de língua e linguagem
[...] o texto não foi reescrito, pois os alunos não devolveram no prazo [...] para concluir a aula
de regência foi um sucesso. [R 1, p. 5].

No trecho acima, há menção aos conceitos abordados durante o período de regência,


porém, ao ler e analisar o relatório na íntegra, não há apresentação de como os conceitos utilizados
foram ensinados, se fora mediante a leitura, a escrita dos significados ou debatidos. Ademais, o
estagiário menciona de forma genérica sobre a apresentação dos conceitos, afirmando que “não foi
tarefa fácil”, mas sem mostrar para o leitor o motivo da dificuldade. A “apresentação superficial”,
também é relatada e, novamente, apresentada de forma genérica, não mostrando o “porquê” a
apresentação dos conceitos fora artificial. Verifica-se também que faltam relatos precisos para que o
leitor possa construir uma imagem própria sobre o momento de intervenção realizado. Além disso, o
relato “o texto não foi reescrito” é contraditório, pois na quarta etapa da seção de atividade de
intervenção, encontra-se o seguinte enunciado: “as produções reescritas foram entregues junto à
primeira versão”. O relatório torna-se contraditório, pois tendo como aporte um conceito superficial,
seguido da não reescrita, não tem como afirmarmos que a regência fora um sucesso.
O estagiário 02, por sua vez, também trabalha com o processo de escrita e reescrita e
justifica sua escolha: “o objeto de análise deste projeto para o relatório final foi a escrita, devido ao
fato de a professora trabalhar as produções textuais, e ter pouco tempo para se dedicar a ela,
principalmente pouco tempo para corrigi-las”. Posteriormente, afirma que “o principal objetivo deste
estágio é colocar em prática as teorias que são vistas em sala de aula”, porém, em nenhum momento
do relatório identifica tais teorias na prática, ou seja, na descrição da atividade de intervenção. Além
disso, no trecho a seguir faz a descrição de uma prática de escrita de forma breve e dando a ideia de
uma prática mecânica: “a atividade a ser desenvolvida será de produção textual [...] em um primeiro
103

momento, explicaremos como se constrói uma produção textual, depois aplicaremos o tema,
corrigiremos e assim os alunos vão reescrever”.
Nos relatórios, ao professor é atribuído um papel de capataz de fábrica, como aponta
Geraldi (2003), cuja função é controlar o tempo de contato do aprendiz com o material previamente
selecionado. Além disso, conforme menciona o autor, os livros didáticos tendem a fundamentar-se
em dois tipos: livros textos para os alunos e livros-roteiros para os professores, ou seja, basta oferecer
um livro que ensine aos alunos o que for preciso e, consequentemente, solucione o despreparo do
professor. Porém, dessa forma, professor e aluno são automatizados e reduzidos a máquinas de
repetição material.

Operações discursivas realizadas sobre os dados registrados nas práticas de observação e


regências descritas

Em relação às operações discursivas sobre os dados registrados nas práticas de


observação e regência, descritos e analisados nos relatórios, verificou-se que a maioria dos estagiários
tende a relatar nas práticas de observação a relação entre professor - aluno, conversas paralelas e o
uso do aparelho celular. No entanto, nota-se um aspecto recorrente nos relatórios, tal como a crítica
ao uso contínuo do livro didático como único suporte do professor para ministrar as aulas: “o
professor se apoia no livro didático para ministrar suas aulas”, “o professor segue o conteúdo presente
no livro didático”, “no segundo horário o professor pediu que resolvessem alguns exercícios do livro”.
O uso do livro didático como único suporte de ensino é visto de modo negativo pelos
estagiários. Entretanto, não se encontra nos relatórios a fundamentação da crítica. Afirmar em tom
crítico, ou mesmo recriminatório, que o professor se apoia no livro didático parece bastar. Nessa
mesma direção, não são mencionadas o que seria, na visão do estagiário, a melhor forma de ministrar
a aula tendo como base o contexto específico, o qual está observando.
Nos relatórios analisados encontramos também afirmações de que não fora registrado o
uso contínuo esperado que os professores fazem do livro didático: “a minha primeira impressão, de
que a professora ficava presa ao livro didático, não se confirmou”, “o interessante é que ela não se
apega ao livro didático, mas o utiliza apenas como guia de acordo com seu plano de ensino”, “no
primeiro horário apenas observei, de forma que pude confirmar que a professora utiliza pouco o livro
didático, ela prefere preparar o próprio material”. Diante desses enunciados, observa-se que a figura
do professor é de certa forma estereotipada como sendo a do profissional ancorado no livro didático
e, quando o estagiário se depara com o professor que não faz uso do mesmo, surpreende-se. Porém,
falta nesses enunciados uma análise, com base nas teorias linguísticas, sobre os aspectos positivos
desse não uso. As afirmações se restringem ao campo da constatação.
104

Outro aspecto relevante sobre as práticas de observação do estagiário é a manifestação


crítica sobre o fazer do professor observado, exemplificada nos excertos abaixo:

O professor trabalhou os conceitos de “conotação” e “denotação” e de “linguagem


conotativa” e “linguagem denotativa” [...] o professor então explicou utilizando exemplos
simples que foram escritos no quadro [...] no meu ponto de vista não levaram os alunos a
realmente refletirem sobre o uso e muito menos a se apropriarem daqueles recursos para
posteriormente poderem utilizá-los em seus próprios textos. [R12, p.4].

Nas últimas aulas observadas o professor fez uma revisão para a prova [...]. O professor pediu
que formulasse 5 questões para a prova que foi, com exceção de duas questões, toda de
múltipla escolha. Este tipo de avaliação não permitiu que os alunos demonstrassem
efetivamente os conhecimentos adquiridos e o domínio sobre eles para elaboração de um
texto, por exemplo. [R14, p.6].

Embora não tenham mobilizado teorias para embasar a crítica sobre a prática do
professor, observa-se que há uma discordância diante do que estava sendo analisado, algo pouco
manifestado pelos estagiários no decorrer da análise. Nota-se no excerto R12, a forma no qual o
professor explica os conteúdos, de modo simples, superficial, não mobilizando teorias em suas
práticas para melhor expor os conceitos. No excerto R14, o estagiário discorda do tipo de avaliação
aplicado pelo professor, alegando que não são condizentes. As críticas são registradas, porém a teoria
não comparece como recurso necessário para explicar onde está o problema com relação à prática do
professor. Fica para o leitor a impressão de que afirmou uma verdade que não carece fundamentação
e explicitação, mesmo tendo sido solicitada pela coordenação do estágio.

Desenvolvimento da escrita a partir dos conceitos teóricos usados no embasamento do relatório


e o uso das afirmações teóricas na prática de ensino

Em relação ao desenvolvimento da escrita, tendo como base os conceitos teóricos usados


no embasamento do relatório, observa-se que os estagiários, de modo geral, possuem dificuldade para
dissertar sobre os conceitos mencionados em seus relatórios, ou seja, não conseguem escrever
tomando a teoria como base; tendem a construir um manancial de recolhas de citações teóricas, como
podemos observar mediante a fundamentação teórica do relatório do estagiário 07:

Tínhamos a todo o momento a ajuda da professora da escola que dava bastante dicas e nos
ajudava a como corrigir melhor as produções.
De acordo com Mendonça e Bunzen (2006, p. 202): “o ensino de língua portuguesa no EM
apresenta características especificas que se relacionam à organização dessa etapa de
escolarização [...]”
Segundo o texto “No espaço do trabalho discursivo, alternativas”, de João Wanderley Geraldi
(1997, p. 135) [...], temos a seguinte citação: “considero a produção de textos (orais e
escritos) como ponto de partida. [R7, p. 2].
105

A escrita do trecho acima não parte da teoria como base e é estruturada em parágrafos
com muitas citações, como se, diante do embate da escrita, recorresse à voz do outro para compor o
próprio texto. Esse pode ser o modo mais fácil que o estagiário encontra para resolver o problema da
escrita. Porém, torna-se preocupante quando consideramos que a escrita é constitutiva do sujeito e do
conhecimento. No trabalho que faz com e sobre a linguagem é que constituem a possibilidades de o
futuro professor construir para si um saber próprio sobre o ensino da língua portuguesa. Não há
dissertação sobre a citação utilizada em seu aporte teórico e, em seguida, inicia o parágrafo para
abordar sobre o modo como a gramática deve ser trabalhada. O estagiário, ou melhor dizendo, o
futuro professor de língua portuguesa e, consequentemente, mediador da escrita, faz uso das citações
como fonte para preencher o espaço frente a dificuldade para escrever sobre a aula. Tal ocorrência
mostra a dificuldade da escrita materializada nos relatórios, dificuldade em apropriar-se da teoria e
dissertar sobre como os conceitos auxiliarão no processo de estágio, qual a finalidade, em qual aspecto
a teoria irá auxiliá-lo na prática.
As citações, nos fragmentos acima, se tornam ponto de partida para dissertar sobre a
variante linguística, sobre o modo como é abordado no âmbito escolar, além da importância do texto.
A discussão que o estagiário traz, a partir das citações, é a de que, na maioria das vezes, estudar a
língua na escola resume-se em estudar a gramática e suas estruturas, porém, verifica-se que, no
trabalho com a voz do autor, os estagiários constroem sua visão em relação ao ensino da língua, uma
vez que manifestam suas opiniões frente a prática de ensino observada: “a escola abole qualquer
variante linguística de nossa língua, execrando toda diferença no modo de falar dos alunos que estão
inseridos naquele meio” ; “não basta que um professor mande o aluno ficar calado, decorando regras
previstas pela gramática tradicional”. A partir das citações, verifica-se também a concepção que o
estagiário assume em relação ao conhecimento prático dos princípios da linguagem e a gramática
interiorizada que cada aluno possui: “que o garoto ou garota não sabe falar português, ignorando todo
processo de aquisição da linguagem e causando desconforto na sala”; observa-se que os estagiários
viabilizam a língua como sendo dinâmica e, portanto, mediante ao tempo, sofre influências do
contexto sócio-histórico-cultural. Ademais, nota- se que a língua é entendida sob duas perspectivas:
um instrumento comunicativo ou um sistema cujos mecanismos estruturais visa identificar e
descrever.

Reflexões produzidas sobre as aprendizagens das práticas de ensino

Em relação às reflexões produzidas nos relatórios sobre as aprendizagens a partir das


práticas de ensino realizadas durante os estágios e pelos professores observados na escola básica, há
similaridade nas conclusões dos relatórios, uma vez que se encontra unanimidade sobre as
aprendizagens das práticas de ensino realizadas pelos estágios; no modo como ressaltam a experiência
106

adquirida, a responsabilidade de ser professor, a revisão de pensamentos errôneos sobre a profissão e


até mesmo o uso do estágio como aspecto fulcral para afirmação ou desistência da escolha do curso
e, consequentemente, da profissão, como podemos observar:

A grande turbulência que o semestre estágio percorreu me fez refletir na responsabilidade de


ser professor e rever pensamentos e atitudes imaturas que tinha sobre a profissão [...] tendo
agora terminado o estágio em Língua Portuguesa, vejo a necessidade dessa experiência. [R9,
p. 10].
A gente ganha experiência quando estamos dando aula e aprendemos ali como melhorar, o
que fazer para chamar a atenção dos alunos, a parte de elaboração também foi importante ao
se preparar um plano de aula, é um trabalho que leva tempo e pesquisa. [R8, p. 12].
A experiência de estar dentro da sala de aula enquanto professor em formação me permitiu
ampliar meu conhecimento, compreender um pouco mais sobre a atividade docente e
despertar mais interesse pelo ensino da língua portuguesa. [R10, p 12].

Esses fragmentos demonstram a relevância que a disciplina estágio supervisionado tem


no processo de formação do discente, uma vez que muitos se afirmam enquanto futuros professores
somente no período de estágio e isso se deve a prática, ao momento de expor o conhecimento na
prática, de transformar a realidade, ou seja, na escolha da melhor metodologia que deverá ser
utilizada; na transformação da prática que deverá avançar em relação a determinado nível teórico.
Nota-se, mediante ao excerto do relatório 09, que o mesmo explicita o pensamento e atitudes imaturas
que tinha sobre a profissão e, no período de estágio, abjura-se, tal como o estagiário R10, pois
menciona sobre o despertar em relação ao ensino da língua portuguesa, em que o mesmo pode ter
ingressado na graduação visando apenas o ensino da língua estrangeira.
Por fim, em relação ao papel falho do professor observado como incentivador e mediador
do conhecimento, têm-se alguns excertos, sendo:
Considero que os momentos de intervenção foram produtivos, mas que devido a concepção
pouco clara que o professor tem sobre a língua e a importância da escrita, os conhecimentos
que os alunos puderam adquirir se perderão com o tempo. [R7, p. 9].

Um professor de língua portuguesa precisa ter claro em sua mente a importância do que está
ensinando para seus alunos e deve manter o compromisso de não só ensinar, mas mediar o
processo de aprendizagem e isso não foi o que puder perceber. [R11, p. 12].

De acordo com esses excertos, verifica-se que os estagiários, mesmo quando buscam não
apresentar seu posicionamento crítico ao longo do relatório, optam por usá-lo no momento da
conclusão. Sabe-se que a própria seção permite tal criticidade, porém, nas seções de observações
diárias e regência também permitem essa análise. O estagiário tende a não expor a conduta do
professor, a didática e o âmbito escolar como um todo. Sendo assim, dificulta-se a visualização do
âmbito escolar no qual estão inseridos, de modo a prevalecer apenas à concepção que o professor tem
sobre a língua e o falho trabalho em relação à escrita. Os dados apresentados, de fato, são relatos
107

encapsulados na sua perspectiva. A voz do outro professor é encapsulada na sua que apresenta a
crítica sem dar ao leitor condições para construir uma leitura próprio do que foi visto pelo estagiário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento da presente pesquisa possibilitou uma análise sobre a dificuldade que


o estagiário da área de Letras apresenta para mobilizar o conhecimento teórico adquirido ao longo do
curso e transformá-los em recursos de embasamento de suas reflexões no decorrer da formação
inicial. O pressuposto assumido ao longo deste estudo foi o de que o estágio curricular obrigatório,
além de ajudar no desenvolvimento do futuro professor, funciona como uma espécie de ponte que
aproxima a universidade da escola, permitindo a inserção do discente no âmbito escolar como um
todo; de modo a fazer com que tenha a possibilidade de expor na prática a teoria adquirida no contexto
acadêmico. Ou seja, é o de aliar conhecimentos aprendidos na universidade à prática que se busca
construir no ensino de língua portuguesa na educação básica.
Porém, conforme apontamos já na introdução do artigo, a associação entre a teoria e a
prática é vista como algo difícil de ser alcançado no momento da docência. Comumente, ao adentrar
a escola, o professor recém formado sente-se desamparado, uma vez que a teoria estudada parece
divergir do cenário escolar, o que gera dificuldade das mobilizações. Nesse sentido, partimos do
pressuposto de que essa dificuldade para estabelecer relação tem raízes na formação inicial.
Buscamos nos relatórios os indícios da existência dessa dificuldade. Principalmente, na escrita, no
modo de analisar as atividades de ensino desenvolvidas durante o estágio supervisionado.
Após as análises, podemos concluir que as produções escritas dos relatórios de estágio
supervisionado, como produto final pertinente de processos formativos, são frágeis como lócus de
produções de conhecimentos sobre a escola, sobre a docência, sobre o ensino da língua portuguesa.
Mediante a não percepção da relevância indissociável entre teoria e prática, o estagiário tende a
produzir relatórios artificiais, com discursos genéricos, vagos, sem mobilização teórica e criticidade
frente às práticas observadas e regidas, além de mobilizar a teoria em suas produções acadêmicas
como forma de manter a formalidade e não como embasamento de suas reflexões para com a prática
ensino-aprendizagem.
Apesar das adversidades no período da disciplina, ressalta-se que o estágio
supervisionado é de suma importância para a formação do futuro professor. É no âmbito do estágio
que o futuro professor entra em contato com a prática e precisa descobrir qual o papel da teoria na
observação, compreensão e construção da prática de ensino e aprendizagem. Ou seja, é o momento
de colocar em prática tudo o que foi debatido durante o processo de formação, levando seus
conhecimentos, sua autonomia e autoconfiança à sala de aula. O estágio é apenas o ponto de partida
para que vejamos a realidade da educação em nosso país, para que vejamos que há muita coisa que
108

precisa ser feita, mas que a busca pelo melhor deve ser uma constante ação de produção de novos
conhecimentos. Essa produção exige relação entre teoria e prática.
Os aspectos apontados a partir da escrita dos relatórios são relevantes porque, caso essa
dificuldade da não mobilização teórica perpetue, ou se não for manejada pelos professores
acadêmicos para que evidenciem aos seus estagiários sobre sua importância para a futura prática
efetiva, refletirá no ofício do futuro professor da educação básica. Nesse sentido, é necessário, na
universidade, trabalhar para que o futuro professor, já no momento do estágio, compreenda que o
papel da teoria é possibilitar diferentes leituras da prática e que ambas não ocorrem de forma
distanciada; o estágio é uma ação social e educacional, uma forma de intervir na realidade, não
bastando somente observar e/ou denunciar, é necessário enfrentar situações e buscar construir
alternativas de ação.

REFERÊNCIAS

BARZOTTO, V. H. Leitura, escrita e relação com o conhecimento. Campinas, SP:Mercado de


Letras, 2016

BARZOTTO, V. H. Leitura e produção de textos: limites e relações intersubjetivas. In: CALIL, E.


Trilhas da Escrita - autoria, leitura e ensino. São Paulo: Cortez Editora, 2007, p. 159-170.

BIANCHI, A. C. M. Manual de orientação: estágio supervisionado. São Paulo: Pioneira Thomson


Learning, 2002.

ESTEBAN, M. P. S. Pesquisa qualitativa em educação. Porto Alegre: Artmed, 2010.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

GERALDI, J. W. Linguagem e Trabalho Linguístico. In: GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 4.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 1-72.

KULCSAR, R. O Estágio Supervisionado como atividade integradora. In: PICONEZ, Stela C.


Bertholo. (Org.). A Prática de ensino e o Estágio Supervisionado.10. ed. Campinas-SP: Papirus,
2004, p. 63-74.

PIMENTA, S. G. O. Estágio na Formação de Professores: unidade teoria e prática? 4.ed. São Paulo:
Cortez, 2001.

PIMENTA, S. G; LIMA, M. S. L. Estágio e Docência. São Paulo: Cortez, 2004. VÁSQUEZ, A. S.


Filosofia da práxis. Trad.: Luiz Fernando Cardoso. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
109

EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O USO DO GÊNERO MEME NO ENSINO


DE LÍNGUA PORTUGUESA

Elayne Cristina da Silva33


(Graduanda em Linguagens e códigos - Língua Portuguesa/ UFMA)
Orientadora: Eliane Pereira dos Santos34
(Doutora em Letras/Linguística pela UFPE (2018)/UFMA)

RESUMO
Os memes referem-se a qualquer assunto da sociedade que viralize na internet. Geralmente, são
compostos por imagens legendadas, vídeos ou gif’s com conteúdo humorístico a respeito de
determinado assunto. Em tempos de pandemia da covid-19, os memes se tornaram aliados na
divulgação de informações sobre a prevenção do vírus, e também uma espécie de “alívio” cômico em
meio às dificuldades que estão sendo enfrentadas. Dentre as características do gênero meme,
destacamos a multissemiose e a dialogicidade que esse gênero mantém com acontecimentos sociais,
com outros discursos já ditos e que são necessários para a atualização dos efeitos de sentido. Diante
disso, o presente trabalho objetiva discutir possíveis estratégias de leitura e produção textual e sugerir
uma proposta para o ensino do gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa, tendo em vista a
funcionalidade e as características desse gênero digital no processo de interação social. O corpus é
composto por memes relacionados à pandemia da covid-19, bem como ao isolamento social, ao uso
do álcool em gel, à alta dos preços de alguns alimentos e às dificuldades relacionadas ao ensino e ao
trabalho de maneira remota. A análise do corpus se constitui como possibilidades de estratégias de
leitura para formação de um leitor crítico na educação básica, tendo como público alvo alunos do 9º
ano do Ensino Fundamental. Como referencial teórico, recorremos a Alves Filho (2011), à BNCC
(2018), a Rojo e Barbosa (2015), entre outros. Como resultados alcançados, entendemos que em sala
de aula, ao interpretar e criar memes, o aluno pode revelar seu ponto de vista sobre determinado
assunto, sua criatividade em organizar imagens e enunciados para tratar sobre um determinado tema
e também sua visão crítica do que está acontecendo na sociedade, entre outras habilidades.
Destacamos que foi perceptível a necessidade de selecionar um número significativo de textos
pertencentes ao gênero meme enquanto objeto de ensino. Além disso, ressaltamos que o trabalho com
o gênero meme poderá garantir a aproximação entre o ensino de Língua Portuguesa na escola com o
seu uso na vida real.

Palavras-chave: Memes. Pandemia. Ensino.

INTRODUÇÃO

33
Graduanda em Linguagens e Códigos/Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo. Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de
Linguagem e Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM). Pesquisadora do projeto PIBIC na linha de
pesquisa intitulada “Práticas de Linguagem em Diferentes Contextos”. E-mail: elaynesilva2701@gmail.com
34
Doutora em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (2018). Professora adjunta do Curso de
Licenciatura em Linguagens e Códigos/Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem e
Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM). E-mail: eliani-phb@hotmail.com
110

Devido à pandemia ocasionada pela propagação do novo coronavírus, os memes se


tornaram aliados na divulgação de informações sobre a prevenção do vírus e também uma espécie de
“alívio” cômico em meio às dificuldades que estão sendo enfrentadas. Além disso, muitos usuários
das redes sociais utilizaram os memes para manifestar suas insatisfações com relação às medidas
tomadas pelo Governo Federal e para expressar suas angústias durante o período de isolamento social.
Desse modo, o presente artigo objetiva discutir possíveis estratégias de leitura e produção
textual e sugerir uma proposta para o ensino do gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa, tendo
em vista a funcionalidade e as características desse gênero digital no processo de interação social. O
corpus é composto por memes relacionados à pandemia da covid-19, bem como ao isolamento social,
ao uso do álcool em gel, à alta dos preços de alguns alimentos e às dificuldades relacionadas ao ensino
e ao trabalho de maneira remota.
A proposta de ensino tem como público alvo alunos do 9º ano do Ensino Fundamental,
tendo em vista o ensino do gênero meme como ferramenta para formação de um leitor crítico na
educação básica. Como aporte teórico, recorremos às sugestões metodológicas para o ensino de
gêneros discursivos discutidas por Alves Filho (2011), às orientações educacionais da BNCC (2018),
às reflexões de Rojo e Barbosa (2015) a respeito de atividades pedagógicas com foco no
multiletramento, entre outros. É importante ressaltar que este artigo é resultado de pesquisa de
iniciação científica voluntária (PIBIC), sendo bolsista pelo Programa Foco Acadêmico da
Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo.
No sentido de organizar a apresentação deste artigo, sua estrutura está organizada da
seguinte maneira: na primeira parte, expomos algumas considerações sobre gêneros digitais e ensino;
na segunda, apresentamos aspectos relacionados ao gênero meme, bem como as suas características
e funcionalidades; na terceira, discutimos possibilidades para o ensino do gênero meme nas aulas de
Língua Portuguesa; e por fim enfatizamos os principais pontos abordados durante o trabalho.

GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Sobre gêneros

Segundo Bakhtin (2016, p. 12), “a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são
infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discurso [...]”,
isto é, na medida em que cada campo se desenvolve, novas formas de se comunicar surgem e outras
vão se modificando com as necessidades de interação ou com as novas tecnologias.
Marcuschi (2011) afirma que os gêneros circulam na sociedade das mais variadas
maneiras e nos mais variados suportes, são flexíveis e permitem lidar de maneira mais estável com
111

as relações humanas em que utilizamos a linguagem. Com o advento das novas tecnologias digitais,
os seres humanos passaram a se comunicar de maneira mais rápida e flexível, conforme Marcuschi
(2005, p. 16) afirma:

Pode-se dizer que parte do sucesso da nova tecnologia deve-se ao fato de reunir em um só
meio várias formas de expressão, tais como texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade
para a incorporação simultânea de múltiplas semioses, interferindo na natureza dos recursos
linguísticos utilizados. A par disso, a rapidez da veiculação e sua flexibilidade linguística
aceleram a penetração entre as demais práticas sociais.

Com isso, novos gêneros foram surgindo e outros foram se adaptando ao longo do tempo.
Se antes enviávamos cartas impressas, hoje enviamos e-mails e podemos nos comunicar por meio das
redes sociais com pessoas que estão em diferentes partes do mundo. Além disso, temos facilidade em
acessar informações e compartilhar conteúdos sobre determinados assuntos que são do nosso
interesse.
Para Marcuschi (2005, p. 15), os gêneros digitais são “[...] gêneros textuais que estão
emergindo no contexto da tecnologia digital em ambientes virtuais”. O autor aponta que os gêneros
presentes no meio digital possuem características similares aos gêneros textuais já consolidados no
meio impresso e que eles apresentam um caráter inovador no contexto das relações entre fala e escrita.
No que diz respeito ao uso de tecnologias digitais no ensino, de acordo com a BNCC
(2018, p. 487), é preciso considerar “[...] propostas de trabalho que potencializem aos estudantes o
acesso a saberes sobre o mundo digital e as práticas da cultura digital devem também ser priorizadas,
já que, direta ou indiretamente, impactam seu dia a dia nos vários campos de atuação social [...]”. Por
outro lado, é importante ressaltar que muitas escolas ainda não possuem acesso à internet para todos
os alunos e também não têm equipamentos (computadores, tablets, smartphones, etc) suficientes para
auxiliar os estudantes durante as aulas.
Por isso, é necessário conhecer a realidade das escolas e dos alunos no momento de
escolher os gêneros que serão trabalhados em sala de aula. Mesmo com todas as dificuldades, de
forma direta ou indireta, os alunos estão inseridos em espaços virtuais e, diariamente, têm contato
com gêneros digitais, tais como: memes, vlogs, videoaulas, fanfics, notícias online, entre outros.
Desse modo, “[...] para além da cultura do impresso (ou da palavra escrita), que deve continuar tendo
centralidade na educação escolar, é preciso considerar a cultura digital, os multiletramentos e os
novos letramentos [...]”, conforme cita a BNCC (2018, p. 487).

O gênero meme
Segundo Martino (2014, p. 177), “[...] a palavra ‘meme’ foi usada pela primeira vez, no
sentido atual, pelo cientista britânico Richard Dawkins em seu livro O gene egoísta, de 1976”.
112

Conforme o autor, Dawkins buscou a palavra no grego antigo “mimeme” 35, para explicar a
propagação e transformação de ideias entre seres humanos por meio de replicadores culturais. A partir
de estudos feitos por Blackmore (1999), Shifman (2014), entre outros, os memes passaram a
representar elementos da cultura popular em ambientes virtuais.
Diante disso, atualmente os memes caracterizam-se como uma ideia ou conceito, que se
difunde rapidamente na internet, sobretudo nas redes sociais. Por se tratar de um gênero que está
presente predominantemente na mídia digital, os memes apresentam uma linguagem multimodal ou
multissemiótica. Segundo Rojo e Barbosa (2015), a linguagem multimodal ou multissemiótica refere-
se a textos que recorrem a mais de uma modalidade de linguagem, signos ou símbolos.
Na maioria das vezes, os memes são veiculados nas redes sociais (Facebook, Instagram,
Telegram, Twitter, WhatsApp etc.) e, dependendo do seu sucesso, podem ser compartilhados por
outras pessoas em diferentes ambientes virtuais. Por se tratar de um gênero relativamente fácil de ser
criado, os memes geralmente são feitos pelos próprios internautas, tendo em vista que podem ser
produzidos com qualquer programa editor de texto para computador ou aplicativo do celular. Diante
disso, Martino (2014, p. 178) destaca que “qualquer pessoa com conhecimentos rudimentares de
edição digital de imagens pode, potencialmente, se apropriar de uma ideia, modificá-la e compartilhá-
la”.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, o gênero meme pode ser um bom
aliado às práticas de leitura e escrita, visto que sua forma composicional é relativamente simples e
que podem ser abordados aspectos relacionados aos elementos verbais e não verbais, os efeitos de
sentido e as condições de produção pelas quais os memes são criados.

POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DO GÊNERO MEME NAS AULAS DE LÍNGUA


PORTUGUESA

Por se tratar de um gênero que tem como caraterística principal replicar acontecimentos
da sociedade de uma maneira humorística e/ou crítica, o gênero meme pode abordar diversos assuntos,
tais como: críticas sociais, fatos do dia a dia, notícias sobre o mundo dos famosos, entre outros.
Martino (2014, p. 179) destaca que os memes “[...] têm a capacidade justamente de atrair o interesse
de indivíduos e comunidades para determinados assuntos ou situações [...]”; a exemplo disso,
podemos citar o fato de que atualmente existem diversas páginas nas redes sociais que divulgam
memes para um público específico, a fim de propiciar laços comunicativos entre os indivíduos que
compartilham os mesmos interesses.

35
Martino (2014) explica que a palavra grega “mimeme” significa aquilo que pode ser imitado.
113

Devido à proliferação da covid-19, muitos internautas utilizaram suas redes sociais para
compartilhar memes sobre a pandemia. Dentre os principais temas, destacamos memes referentes ao
isolamento social, ao uso do álcool em gel, à alta dos preços de alguns alimentos e às dificuldades
relacionadas ao ensino e ao trabalho de maneira remota, com o intuito de apresentar possíveis
estratégias de leitura e produção textual para o ensino do gênero meme nas aulas de Língua
Portuguesa, tendo como público alvo alunos do 9º ano do ensino fundamental.
Alves Filho (2011, p. 51) destaca que “para se compreender satisfatoriamente um gênero
é necessário também compreender os contextos nos quais os seus textos são produzidos e postos em
circulação”. Isto é, ao levar um determinado gênero para a sala de aula, o professor precisa conhecer
previamente os textos que irá trabalhar, assim como o contexto no qual eles foram produzidos e o que
especificamente será analisado.
Tratando-se do contexto de pandemia, o professor pode recolher diversos memes de
diferentes veículos de divulgação, a fim de expor aos alunos como se dá a construção de sentidos
presentes em cada um deles, se eles dialogam ou não uns com os outros, se utilizam as mesmas
imagens, quais são as personagens que aparecem, em quais mídias são veiculados, entre outros
elementos. Diante disso, apresentaremos a seguir alguns memes sobre a pandemia que podem ser
utilizados nas aulas de Língua Portuguesa:
Figura 1 – Meme do caixão

Fonte: Internet, 202036.


Na figura 1, temos um outdoor com a imagem de quatro homens vestidos de terno preto,
acompanhados da frase “Fique em casa. Ou venha dançar com a gente”. Segundo uma reportagem
feita por Simone Machado, no dia 16 de abril de 2020, para o portal UOL, um empresário chamado
Ricardo França Paz, de 44 anos, residente do interior de São Paulo, utilizou a imagem do “meme do

36
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/16/sp-empresario-usa-meme-do-
caixao-em-outdoor-para-pedir-isolamento-social.htm>. Acesso em: 25 nov. 2020.
114

caixão” para alertar os moradores da cidade de Sorocaba sobre os riscos do novo coronavírus e sobre
a importância do isolamento social.
A propaganda feita pelo empresário refere-se aos vídeos compartilhados na internet, em
que carregadores de caixões dançam ao som da música “Astronomia”, de Tony Igy. A montagem dos
vídeos que deu origem ao meme é composta por uma sequência de imagens de alguém que está ao
ponto de se meter em problemas. Mas, antes da tragédia ser concluída, a sequência é interrompida e
surgem homens de terno preto dançando de maneira animada carregando um caixão, dando a entender
que a pessoa do vídeo morreu. De acordo com a reportagem, o vídeo original foi gravado em Gana,
pela emissora BBC37, para demonstrar que é uma tradição do país celebrar velórios com danças e
carregadores de caixões dançando.
Nesse sentido, em sala de aula é necessário que o professor aborde o contexto de situação
ao qual o meme está se referindo, para que os alunos possam entender as relações de sentido
constituídas a partir da leitura do texto e da imagem. Segundo Alves Filho (2011, p. 52-53), “o
contexto de situação corresponde à situação imediata na qual um texto é produzido e posto em
circulação, o qual pode incluir o tempo, o espaço físico e o suporte onde o texto é produzido e posto
em circulação, os interlocutores presentes ou presumidos [...]”. Além disso, o professor pode
perguntar aos alunos sobre o que as pessoas estão comentando com relação às medidas adotadas para
a prevenção do vírus, qual a opinião deles a respeito do que está sendo dito, quais são as relações
intertextuais presentes, se eles conhecem ou não as personagens demonstradas etc.
Além do isolamento social, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o uso
do álcool em gel como forma de prevenção contra o novo coronavírus. Diante disso, o uso do produto
tornou-se obrigatório em muitos estabelecimentos públicos e privados, e as pessoas começaram a usá-
lo diariamente para não contrair a doença. Com isso, surgiram diversos memes com relação ao uso
excessivo de álcool em gel, como mostra a figura a seguir:

37
A British Broadcasting Corporation (Corporação Britânica de Radiodifusão, mais conhecida pela sigla BBC) é uma
corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido.
115

Figura 2 – Meme do álcool em gel

Fonte: Twitter, 202038.


O meme da figura 2 retrata a imagem de um homem olhando a própria mão que está
parcialmente deformada e tem como legenda a seguinte frase: “Eu depois de lavar minhas mãos com
álcool em gel pela 72ª vez no dia”. A imagem do meme refere-se ao personagem Terminator
(Exterminador), interpretado pelo ator Arnold Schwarzenegger, no filme “O Exterminador do
Futuro”, lançado no ano de 1984. No que diz respeito ao sentido do meme, podemos inferir que o
autor utilizou a imagem para demonstrar de maneira cômica uma das consequências do uso excessivo
de álcool gel no dia a dia.
Rojo e Barbosa (2015, p. 111) ressaltam que “[...] para análise dos textos da
contemporaneidade, seja em termos de forma de composição ou de estilo, a multimodalidade ou
muitissemiose tem de ser levada em conta”, assim como a hipermídia dos textos digitais e o contexto
de situação em que o texto foi produzido. Ao levar um meme, como o exposto acima, para a sala de
aula, o professor pode propiciar aos alunos um momento para que eles contem como foram suas
experiências diante o uso do álcool em gel, quais outras medidas eles tomaram para se proteger do
vírus, entre outras questões. Isto é, além do estudo da forma composicional do gênero, é necessário
fazer com que os alunos interajam a respeito do que está sendo lido e que eles exponham as suas
opiniões de maneira crítica.
Como vimos no meme anterior, um dos produtos de higiene mais utilizados durante a
pandemia foi o álcool em gel. Devido à grande demanda de vendas, muitos comerciantes resolveram
aumentar o preço do produto, o que ocasionou de certo modo a indignação de muitos consumidores.

38
Disponível em: <https://twitter.com/GatoConfuso/status/1239739344677715968/photo/1>. Acesso em: 25 nov. 2020.
116

Figura 3 – Meme 1 do preço do álcool em gel Figura 4 – Meme 2 do preço do álcool em gel

Fonte: Instagram, 202039. Fonte: Internet, 202040.

As figuras acima demonstram alguns memes que tratam sobre o preço elevado do álcool
em gel. Na figura 3, temos a imagem de um carro que está sem o assento traseiro e dentro do veículo
estão as personagens da família Simpson41: Homer (dirigindo o carro), Marge (sentada ao lado de
Homer), Lisa e Bart (em pé). Ao ser questionado sobre a ausência do assento, Homer responde da
seguinte maneira: “Tive que vender para comprar álcool em gel”. A partir da leitura da imagem e das
falas atribuídas aos personagens, podemos inferir que o criador do meme de maneira cômica associou
a venda dos bancos de um carro para expressar como um pai de família conseguiu comprar um
produto de higiene para manter sua família prevenida do vírus.
Por outro lado, na figura 4, podemos observar que o meme possivelmente diz respeito ao
lucro obtido pelos fabricantes de álcool em gel no ano de 2020. Na imagem, temos a presença da
personagem Denver, da série espanhola “La Casa de Papel”, deitado em cima de uma enorme pilha
de dinheiro, esbanjando um belo sorriso de felicidade. Apesar de os memes abordarem um mesmo
tema, podemos perceber que demonstram realidades diferentes. Se por um lado, temos uma família
que precisou vender o assento traseiro do carro para comprar álcool em gel; do outro, temos a
“imitação” do lucro obtido pelos fabricantes com a venda do produto.

39
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/B99mVCTjIEc/>. Acesso em: 25 nov. 2020.
40
Disponível em: <https://i.redd.it/k7ud7z54v8m41.png>. Acesso em: 25 nov. 2020.
41
The Simpsons (Brasil: Os Simpsons) é uma série de animação norte-americana criada por Matt Groening. A série é
uma paródia satírica do estilo de vida da classe média dos Estados Unidos, simbolizada pela família protagonista, que
consiste de Homer Jay Simpson, Marjorie (Marge) Bouvier Simpson, Bartholomew (Bart) Simpson, Elisabeth (Lisa)
Marie Simpson e Margareth (Maggie) Simpson. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Simpsons>. Acesso
em:
117

Em sala de aula, o professor pode levar notícias (online ou impressas) que tratam sobre o
impacto da pandemia no preço de produtos e alimentos, para que os alunos possam compreender a
relação que os memes mantêm com acontecimentos sociais e com outros discursos já ditos que são
necessários para a atualização dos efeitos de sentido. Sobre isso, Alves Filho (2011, p. 56) destaca
que “quando observamos os usos efetivos dos textos em situações reais logo nos damos conta de que
os gêneros não existem isoladamente, nem possuem uma realidade inteiramente própria e apartada
dos outros”.
Assim como o álcool em gel, devido à grande demanda de vendas o preço do arroz
disparou em todo o país42. Com isso, diversos memes surgiram nas redes sociais e, consequentemente,
críticas ao atual Governo Federal, conforme mostra o meme a seguir:
Figura 5 – Meme do arroz

Fonte: Twitter, 202043.

O meme da figura 5 apresenta a imagem da personagem Nazaré Tedesco (Renata Sorrah),


correndo com um pacote de arroz da marca “Tio João”. A montagem foi feita a partir de uma cena
do último capítulo da novela “Senhora do Destino”, em que Nazaré sequestra o bebe de Isabel, e foge
para uma ponte na tentativa de cometer suicídio. Além da imagem de Nazaré com o pacote de arroz,
o meme é composto pela seguinte pergunta “Será que o #DesgovernoFomeECaos vai criar o programa
meu arroz minha vida???”, seguida da hashtag44 “#MSTContraFome”. Damasceno (2020) diz que

42
Ver mais em: <https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/por-que-o-arroz-esta-mais-
caro,cfb67eae19417928db0b72315fb46729jbzhdxqb.html>. Acesso em: 30 dez. 2020.
43
Disponível em: <https://twitter.com/CarlaCostaBrz/status/1304423160876597248/photo/1>. Acesso em: 25 nov. 2020.
44
Tags são palavras-chave ou termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma
explícita no aplicativo Twitter, e também adicionado ao Facebook, Google+, Youtube e Instagram. Hashtags são
118

alguns memes podem apresentar um teor político, a fim de reclamar direitos, apontar e/ou ridicularizar
ações, criticar posturas e de reconstruir sentimentos dos usuários das redes sociais.
Nesse sentido, a partir da leitura do meme podemos deduzir que a internauta demonstra
ser contra o Governo comandado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, visto que ela utiliza o
prefixo –des para demonstrar que ela sequer considera o atual Governo como tal. Em tom de ironia,
a internauta faz referência ao “Programa Minha Casa Minha Vida”45 ao perguntar se o Governo atual
criará o programa “meu arroz minha vida” para ajudar as famílias de baixa renda a comprarem o
alimento. Por fim, ao utilizar a hashtag “#MSTContraFome” a internauta demonstra apoio ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que doou cerca de mais de 1.200 toneladas de
alimentos durante a pandemia46.
Sobre o trabalho com gêneros discursivos em sala de aula, Alves Filho (2011) afirma que:

[...] o professor necessita compreender minimamente as funções, os valores e o papel social


dos gêneros com os quais irá trabalhar em sala de aula. Precisa também compreender aspectos
ideológicos associados aos gêneros. Mas é claro que nenhum professor tem condições de
possuir total consciência de todos os valores ideológicos de um gênero, até mesmo porque
ele próprio está “embrulhado” nestas ideologias. Mas, dentro de suas limitações, o professor
precisa ajudar o aluno a adquirir certo grau de consciência em relação às facetas ideológicas
de um gênero. (p. 70)

Desse modo, ao levar memes de cunho político, seja de aprovação ou crítica a


determinado partido ou figura política, o professor necessita ter cautela ao abordar os valores
atribuídos ao que está sendo dito, visto que dentro da sala de aula cada aluno possui suas
particularidades ideológicas. Conforme a BNCC (2018, p. 488), “[...] a abundância de informações e
produções requer, ainda, que os estudantes desenvolvam habilidades e critérios de curadoria e de
apreciação ética e estética [...]”, para evitar a profusão de notícias falsas, do cyberbullying e de
discursos de ódio na internet.
O contexto da pandemia do novo coronavírus no Brasil também fez emergir memes sobre
a realidade do trabalho e do ensino na modalidade remota. Nas redes sociais, muitos internautas
compartilharam seus sentimentos diante da nova realidade que nos foi imposta, que exigiu de cada
um de nós paciência e muito trabalho. Ao levar o ofício e os estudos para dentro de casa, permitimos

compostas pela palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Hashtag>. Acesso em 30 nov. 2020.
45
O “Minha Casa Minha Vida” é um Programa do Federal, criado no ano de 2009 pelo Governo Lula, que tem como
objetivo promover a produção de unidades habitacionais para famílias de baixa renda. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Minha_Casa,_Minha_Vida>. Acesso em: 30 nov. 2020.
46
Ver mais em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/06/03/campanha-nacional-do-mst-ja-doou-1-200-toneladas-de-
alimentos-durante-pandemia>.
119

que outras pudessem conhecer um pouco mais sobre as particularidades da nossa rotina e do nosso
lar. Diante disso, os memes a seguir tratam, respectivamente: sobre o trabalho e o ensino remoto.

Figura 6 – Meme sobre o trabalho remoto Figura 7 – Meme sobre o ensino remoto

Fonte: Facebook, 202047. Fonte: Twitter, 202048.

Na figura 6, o meme apresenta a imagem de um cachorro vestido com uma gravata em


frente a um computador, e no plano de fundo há uma cidade com um cenário de destruição. O meme
tem a seguinte legenda: “Mandando currículo em meio a uma pandemia”; dando a entender que
mesmo em meio ao caos gerado pelo novo coronavírus, há indivíduos que possivelmente necessitam
de um trabalho e que por essa razão estão enviando o seu currículo.
Outro ponto que pode ser abordado a partir da leitura do meme é o fato da pandemia ter
aumentado a taxa de desemprego no Brasil. De acordo com a reportagem 49 feita por Daniel Silveira,
no dia 23 de outubro de 2020, ao portal G1, “o Brasil encerrou o nono mês do ano com um contingente
de 13,5 milhões de desempregados, cerca de 3,4 milhões a mais que o registrado em maio”, conforme
dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE).
Em sala de aula, ao levar dados divulgados por portais de notícias online para que os
alunos possam discutir a respeito da relação social em que um meme pode estar se referindo, o
professor “[...] permite construir uma consciência crítica e seletiva em relação à produção e circulação
de informações, posicionamento e induções ao consumo” (BRASIL, 2018, p. 489).

47
Disponível em: <https://www.facebook.com/pocoyomemes1/posts/d41d8cd9/179501196875270/>. Acesso em: 30
nov. 2020.
48
Disponível em: <https://twitter.com/hfernandesbio/status/1329804870522691585/photo/1>. Acesso em: 30 nov. 2020.
49
Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/23/no-de-desempregados-diante-da-pandemia-
aumentou-em-34-milhoes-em-cinco-meses-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em: 30 nov. 2020.
120

A figura 7 demonstra outra realidade de trabalho remoto, dessa vez referindo-se ao ensino.
O meme é composto por uma imagem de uma conversa que possivelmente aconteceu durante uma
aula virtual, seguida da legenda: “A vida online de quem dá aula num campus do interior”. Na
imagem, a frase “Professor, vou ter que da uma saidinha. Meu porco saiu do chiqueiro” está circulada
de vermelho para dar destaque ao que foi dito. Logo abaixo da frase, há a presença de uma sequência
de letras “K", que acabam produzindo uma onomatopeia de risada: kkkkkk. Vale destacar que o nome
das pessoas que escreveram as frases está coberto de vermelho, demonstrando que o criador do meme
teve a preocupação de não expor os indivíduos em questão.
Assim como o aluno que teve que sair da aula por causa da fuga de seu porco, diversos
outros alunos praticam atividades parecidas em seu cotidiano. Devido à pandemia, o ensino passou a
ser realizado de maneira remota e os estudantes tiveram que ficar em casa durante um período maior.
Com isso, a sala de aula teve que ser adaptada à realidade do dia a dia, e muitas pessoas tiveram que
lidar com dificuldades para poder conciliar os estudos com as tarefas de casa.
No momento da produção dos memes em sala de aula, o professor pode pedir para que os
alunos retratem como eles lidaram com as aulas remotas, revelando as suas dificuldades, impressões
e momentos engraçados no manuseio de aplicativos em ambientes virtuais. Alves Filho (2011, p. 51)
destaca que “[...] inseridos numa situação social e agindo de acordo com os papeis que desempenham
na sociedade, os sujeitos constroem uma interpretação da situação na qual se encontram e respondem
a ela com base nesta interpretação”. Desse modo, ao trabalhar com o gênero meme o professor
possibilitará que os alunos tenham a oportunidade de serem produtores de conteúdos que podem ser
usados como ferramenta de ensino nas aulas de Língua Portuguesa e das demais disciplinas.
Atualmente, existem vários aplicativos que possibilitam a criação de memes, tais como:
o Meme Generator Free, o Memedroid, o Criador de Memes, o Meme Creator, entre outros. Também
é possível criar memes através de ferramentas para edição de fotos, que estão disponíveis na maioria
dos celulares. Vale lembrar que o professor precisa considerar a realidade dos alunos e da escola ao
trabalhar com o gênero meme, para que dessa forma ele possa adaptar as atividades conforme as
necessidades de ensino/aprendizagem da turma. Diante disso, Rojo e Barbosa (2015) afirmam que:

As demandas sociais devem ser refletidas e refratadas criticamente nos/pelos currículos


escolares. Respondendo às questões anteriores, para que a escola possa qualificar a
participação dos alunos nas práticas da web, na perspectiva da responsabilização, deve
propiciar experiências significativas com produções de diferentes culturas e com práticas,
procedimentos e gêneros que circulam em ambientes digitais: refletir sobre participações,
avaliar a sustentação das opiniões, a pertinência e adequação de comentários, a imagem que
se passa, a confiabilidade das fontes, apurar critérios de curadoria e de seleção de
textos/produções, refinar os processos de produção e recepção de textos multissemióticos. (p.
135)
121

Desse modo, além de propiciar um momento interativo entre os alunos, o ensino do


gênero meme pode proporcionar a aproximação entre o ensino de Língua Portuguesa na escola com
o seu uso na vida real. Além do aperfeiçoamento das habilidades de leitura, interpretação e produção
textual dos alunos. Pois, ao interpretar e criar memes, o aluno pode revelar seu ponto de vista sobre
determinado assunto, sua criatividade em organizar imagens e enunciados para tratar sobre um
determinado tema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que as práticas pedagógicas para o ensino de Língua Portuguesa ainda estão
muito ligadas à cultura dos textos impressos, porém precisamos levar em consideração que podemos
trabalhar com diferentes gêneros da esfera digital em sala de aula. Para realizar tal trabalho, a
realidade dos alunos e das escolas deve ser levada em consideração no momento de preparação das
aulas, tendo em vista o processo de ensino/aprendizagem dos estudantes.
Com o avanço das tecnologias digitais, a Base Nacional Comum Curricular e outros
documentos orientadores do trabalho pedagógico permitiram a incorporação de gêneros digitais no
ensino, com o intuito de promover a ampliação de competências e habilidades dos alunos nas práticas
de interação social, sobretudo em ambientes virtuais.
Ao longo deste artigo, vimos que o gênero meme vai muito além do humor, ele se constitui
como um artefato cultural da internet que propicia o engajamento social entre os usuários das mídias
digitais. Desse modo, ao trabalhar com o gênero meme em sala de aula, podemos propiciar aos alunos
o conhecimento e o aperfeiçoamento das múltiplas linguagens que compõem os processos de
interação do nosso cotidiano.
Portanto, é fundamental estimular a participação dos alunos no momento de análise e
criação dos memes, destacando a multissemiose e a dialogicidade que esse gênero mantém com
acontecimentos sociais e com outros discursos já ditos. Dessa maneira, esperamos que as sugestões
apresentadas possam contribuir para formação de leitores críticos na educação básica, visto que o uso
do gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa pode auxiliar o trabalho com o imagético, com o
verbal e com o conhecimento prévio dos alunos a respeito dos acontecimentos da sociedade.

REFERÊNCIAS

ALVES FILHO, F. Gêneros jornalísticos: notícias e cartas de leitor no ensino fundamental. São
Paulo: Cortez, 2011.

ARAÚJO, E. V. F. de; Vilaça, M. L. C. Gêneros digitais no contexto educacional: desafios do


professor do Ensino Médio. Anais do 6º Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação e do 2º
122

o Colóquio de Educação com Tecnologias, Universidade Federal de Pernambuco, 2015. Disponível


em: <http://nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto->. Acesso em: 30 dez. 2020

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas);


Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.

BLACKMORE, S. The meme machine. Oxford: Oxford University Press, 1999.

BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2020.

DAMASCENO, H. L. C. Memes e Narrativas em tempos de pandemia da Covid-19: um estudo


analítico. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 6, n. 2, p. 119-135,
maio/ago. 2020. Disponível em:
<https://periodicos.ufca.edu.br/ojs/index.php/folhaderosto/article/view/527>. Acesso em: 30 dez.
2020.

DAWKINS, R. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKI,


A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Org.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4. ed. São
Paulo: Parábola Editorial, 2011.

__________. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, Luiz
Antônio; XAVIER, Antônio Carlos. (Org.). Hipertextos e gêneros digitais: novas formas de
construção de sentidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

MARTINO, L. M. S. Teoria das Mídias Digitais. Petrópolis: Vozes, 2014.

ROJO, R. H. R.; MOURA, E. de. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.

ROJO, R. H. R.; BARBOSA, J. P. Hipermodernidade, Multiletramentos e Gêneros Discursivos.


1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

SHIFMAN, L. Memes in digital culture. Massachusetts: MIT Press, 2014.


123

MULTILETRAMENTOS: CONTRIBUIÇÕES PARA O TRABALHO COM AS


TECNOLOGIAS NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Teciene Cássia de Souza50

Taísa Rita Ragi51

RESUMO

O trabalho com os gêneros multimodais está cada vez mais presente no processo de ensino e como
vivemos em um mundo tomado pelas tecnologias digitais, no qual nossos alunos estão cada vez mais
conectados, a tecnologia já se torna uma necessidade a ser estar inserida no ambiente escolar, em
especial dentro da sala de aula, para uso do professor e dos alunos e não apenas para uso dos trabalhos
em secretarias. E, devido ao grande advento das novas tecnologias de informação e comunicação
proporcionadas pela atual globalização tecnológica da sociedade moderna, notam-se novos desafios
para com os ambientes escolares, uma vez que eles se veem sujeitos a adotarem novas pedagogias
que façam uso de elementos tecnológicos, a fim de transformar as suas aulas em lugares multiletrados
que façam uso de elementos do cotidiano. Sendo assim, o presente trabalho pretende discutir o uso
das tecnologias na sala de aula e como se dá a interação de tecnologia e o ensino de Língua
Portuguesa, tal interação será comprovada por meio do uso dos multiletramentos na sala de aula. Para
tanto, a presente pesquisa será fundamentada em autores como Rojo (2012); Moran (2004); Lion
(1997) entre outros. Buscou-se realizar uma pesquisa bibliográfica sobre o uso das tecnologias no
ensino e as contribuições dos multiletramentos para esse processo, com o trabalho com os gêneros
multissemióticos que circulam em nossa sociedade, principalmente nas atividades diárias de
adolescentes e jovens, sujeitos que estão inseridos no processo de ensino de Educação Básica. Desse
modo, espera-se que esse trabalho possa contribuir para discussões acerca das tecnologias aliadas ao
ensino com base nas considerações dos multiletramentos, bem como para pesquisas futuras sobre o
tema, uma vez que ao se considerar o trabalho com as práticas de linguagem contemporâneas, é
imprescindível que se considere também as tecnologias, que se tornam aliadas do professor, além de
estar preparando o aluno para situações de seu cotidiano.

Palavras-chave: Tecnologias. Multiletramentos. Ensino.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É notório que a sociedade vem avançando em várias áreas. Diante disso, o sistema de
ensino não poderia deixar de se atentar para esses avanços e considerá-los em atividades dentro de
sala de aula e isso já vem acontecendo há muitos anos, de acordo com cada mudança e cada
ferramenta que surge.
Hoje em dia, vivemos em um mundo tomado pelo tecnológico digital, de modo que
muitos alunos estão cada vez mais conectados e a tecnologia cada dia avança mais e já se torna uma
necessidade estar inserida no ambiente escolar, em especial dentro da sala de aula, para uso do
professor e dos alunos.

50
Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: teciene.souza1@estudante.ufla.br.
51
Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: taisaragi@gmail.com.
124

Pensando nisso, buscamos discutir o uso das tecnologias no ensino de Língua


Portuguesa, com vista a apresentar considerações acerca dos multiletramentos, que contribuem
significativamente para o trabalho com as tecnologias na educação.
Para tal, buscamos apresentar uma pesquisa teórica sobre o uso das tecnologias no
ensino e possíveis contribuições da Pedagogia dos Multiletramentos nesse processo.

O USO DA TECNOLOGIA EM SALA DE AULA

Ao longo das últimas décadas, notamos que a revolução técnica e científica provocou
inúmeras mudanças com relação à forma como a sociedade se relaciona e interage entre si. Tais
mudanças são perceptíveis na interação escola e aluno, uma vez que devido a tal revolução
tecnológica na sociedade notamos a inserção das ferramentas midiáticas no meio educacional.
É perceptível que há uma grande circulação de novas tecnologias na atual sociedade
que contribui para a comunicação “instantânea”, no entanto, apenas o fato da existência de tais
ferramentas não contribui com um ensino multiletrado para com os alunos, ou seja, o uso de
tecnologias na sala de aula não irá contribuir para a desenvoltura do conhecimento, mas podem
facilitar o aprendizado dos alunos desde que seja utilizada de maneira adequada, afinal o contato com
tais ferramentas é inevitável e constante, dentro e fora da sala de aula,

Através da internet, tanto professores quanto alunos ampliaram seus horizontes do saber, e
passaram a conhecer e aprender coisas que até então eram de difícil acesso. Logo, a internet
trouxe para o ensino/aprendizagem a inovação das informações, aproximando as pessoas de
novos conhecimentos e até mesmo do mundo (SOARES, 2012, p. 2)

Nesse viés, temos que devido a novas tecnologias de comunicação e informação, os


docentes enfrentam novos desafios em seu cotidiano, afinal para que a sala de aula seja um lugar de
formação para os alunos é necessário que se busque a inserção das tecnologias de informação e
comunicação (TICs) para complementar as práticas que já são comuns no cotidiano dos alunos e
professores.
E nessa busca por práticas relacionadas com as TICs, percebe-se que é necessária a
adoção de novas práticas pedagógicas que usufruam de ferramentas tecnológicas a fim de transformar
a sala de aula em um lugar de aprendizagem contemporânea, pois “é possível educar integrando mídia
e educação [...] fazer educação usando todos os meios tecnológicos disponíveis: computador, internet,
celular, fotografia, cinema vídeo, livro, CD, DVD” (FANTIN, 2007, p.04).
125

A título de explicação, trazermos o trabalho com o gênero videoanimação na sala de


aula52, que pode ser desenvolvido por meio da Internet, celular, TV, ou outro recurso que a escola
ofereça. O trabalho com o gênero supracitado contribui para o estímulo da linguagem oral e escrita,
uma vez que explora a capacidade visual e auditiva dos estudantes, porque são recursos que motivam
a interação do aluno com a aula e com o professor. Além disso, a utilização de diferentes materiais,
que são proporcionados pelas TICs, podem contribuir para que os alunos se interessem mais pelos
estudos, principalmente por serem atividades que envolvem recursos tecnológicos que fazem parte
do cotidiano da sociedade em geral e que podem agregar, em várias instâncias, no ensino e
aprendizagem dos estudantes.
Ressaltamos ainda que o trabalho com os gêneros multimodais pode apresentar
significativas contribuições para esse processo de ensino envolvendo as TICs. Desse modo,
ressaltamos que o gênero aqui exemplificado, videoanimações

[...] à primeira vista, podem parecer simples desenhos, mas trazem não somente uma
oportunidade de trabalho com gêneros discursivos que fazem parte do cotidiano desses
alunos e do contexto de mundo do qual participam, como constituem um desafio teórico para
que esse trabalho pedagógico possa ser empreendido. (VILLARTA-NEDER; RAGI;
CASTRO, 2019, p. 179)

Nesse sentido, o uso de novas metodologias na sala de aula contribui para o


desenvolvimento do estudante como um cidadão ativo e crítico na sociedade em que vive. Nesse
sentido, o professor possui papel fundamental para com o uso da tecnologia na sala de aula, sendo
assim temos que:

O professor, em qualquer curso presencial, precisa hoje aprender a gerenciar vários espaços
e a integrá-los de forma aberta, equilibrada e inovadora. O primeiro espaço é o de uma nova
sala de aula equipada e com atividades diferentes, que se integra com a ida ao laboratório
para desenvolver atividades de pesquisa e de domínio técnico-pedagógico. Estas atividades
se ampliam e complementam a distância, nos ambientes virtuais de aprendizagem e se
complementam com espaços e tempos de experimentação, de conhecimento da realidade, de
inserção em ambientes profissionais e informais. (MORAN, 2004, p. 2-3)

As novas tecnologias da comunicação e informação (TICs) no ambiente escolar


contribuem para a revolução de tal ambiente a fim de aproximá-lo da vida rotineira dos estudantes,

52
Para saber mais sobre o trabalho com o gênero videoanimação em sala de aula, indicamos a seguinte obra: FERREIRA,
Helena Maria; DIAS, Jaciluz; VILLARTA-NEDER, Marco Antonio. O trabalho com a videoanimação em sala de
aula: múltiplos olhares. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. Cap. 1. p. 179-194. Disponível em:
https://pedroejoaoeditores.com/2019/11/27/o-trabalho-com-videoanimacao-em-sala-de-aula-multiplos-olhares/ .
126

visando um ensino e aprendizagem que se relacione com a sociedade. Nesse viés é importante
ressaltar que os educadores compreendam que as TICs tratam-se de recursos digitais que envolvem
as novas ferramentas tecnológicas, como computadores, celulares, internet etc., a fim de que possam
utilizá-las na sala de aula como instrumento de ensino e aprendizagem dos alunos.
No entanto, mesmo com a importância e com as contribuições que as TICs podem trazer
para o ensino, é necessário considerar que a falta de infraestrutura midiática, encontrada em várias
escolas, principalmente no ensino público, dificulta a inserção de estudantes e professores na
sociedade da informação, todavia as novas tecnologias já estão contempladas na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), sendo assim cabe aos gestores públicos buscarem e se empenharem para
inserir e proporcionar equipamentos para as escolas a fim de cumprir seu papel com a educação
pública e aproximá-la do que é resguardado nos documentos norteadores da educação no país.
De acordo com a BNCC (2018), é de suma importância a utilização das novas
tecnologias de comunicação e informação no ensino, principalmente no que diz respeito às aulas de
línguas. Assim, é essencial “utilizar novas tecnologias, com novas linguagens e modos de interação,
para pesquisar, selecionar, compartilhar, posicionar-se e produzir sentidos em práticas de letramento
[...].” (BRASIL, 2018, p. 244). Isso, porque a linguagem utilizada para a interação, atualmente, se dá
por meio de redes sociais, nas quais produtor e leitor se comunicam por diferentes modos e
linguagens, ou seja, trocam mensagens de texto, áudio, vídeo, gifs, memes, emojis, entre outros, e que
também precisam ser consideradas em sala de aula.
Desse modo, os dispositivos móveis podem ser grandes aliadas nas práticas em sala de
aula, uma vez que, muitos dos alunos têm acesso a esses materiais e a maioria possui aparelhos
celulares que podem ser utilizados de maneira consciente e didática. Assim, o professor não precisa
necessariamente depender do computador, Datashow ou outro aparelho que a escola oferece e que
muitas vezes não conseguem atender a todos os professores. Com as diferentes opções disponíveis e
com as adaptações necessárias para cada turma e cada contexto, o profissional da educação poderá
buscar a inserção dos recursos tecnológicos em suas aulas e torná-las mais atrativas, além de ser uma
ótima maneira de relacionar o ensino da Língua Portuguesa com o cotidiano dos alunos.
Consequentemente, durante as aulas os alunos terão acesso a conteúdo e textos multimodais, que
compõem o cotidiano dos estudantes, desse modo temos que os alunos irão ter uma formação
continuada e maior participação das aulas, visto que eles poderão relacionar o material utilizado na
sala de aula com o que eles estão acostumados fora da sala.

A nova tecnologia está aqui. Não desaparecerá. Nossa tarefa como educadores é assegurar
que quando entre em aula faça-o por boas razões políticas, econômicas e educativas, não
porque os grupos poderosos querem redefinir nossos principais objetivos educacionais à sua
imagem e semelhança. (APLLE,1989 apud LION,1997, p.35)
127

O uso de tecnologias na sala de aula, além de se perceber que poderia ser uma
ferramenta de auxílio para o professor, se deu também pelo fato de que grande parcela dos alunos não
atentava ao conteúdo ministrado nas aulas, dessa forma, era notado que essa parcela ficava a aula
toda conectada em seus smartphones, ou seja, conectados a um mundo exterior à sala de aula, estando
na aula. Nesse ínterim, surge a ideia de utilizar esses recursos já frequentes na lista de presença da
classe de Língua Portuguesa por meio de um viés que contribua para o desenvolvimento dos alunos
perante as aulas.
Em algumas realidades, o professor vem perdendo o seu espaço na sala de aula devido
ao grande uso da tecnologia nas aulas, nesse viés temos que a proibição de tais equipamentos na sala
de aula não resolve em nada, diante disso há a necessidade da autorização do uso de tecnologias na
sala de aula, como mencionado anteriormente, mas de forma consciente e que contribua para o
desenvolvimento acadêmico dos alunos, a fim de tornar as aulas menos maçantes. Assim, segundo
Silva (2001, p. 30)

O método de ensino não acompanha a velocidade das mudanças e novidades que surgem a
cada momento. O aluno, por sua vez, perde o encantamento com o estudo formal e com a
sala de aula. Não é por nada que a opinião corrente entre os alunos é de que as aulas deveriam
ser alegres, descontraídas e criativas.

Devemos nos lembrar que os avanços tecnológicos a cada dia que passa influenciam
mais a maneira como as pessoas vivem e interagem, sendo assim a educação não pode ficar para trás,
ela deve utilizar tais mecanismos a seu favor a fim de realizar aulas interativas e atuais. De acordo
com Lion (1997, p. 30) “não educamos na homogeneidade, mas na diversidade. Sabemos que as
crianças estão informadas, não desconhecemos o poder dos meios de comunicação, mas relativizamos
sua influência.”. Vale ressaltar que o contato com os mecanismos tecnológicos é algo mundial e não
é isolado, desse modo se faz importante mostrar que a UNESCO lançou um guia “Diretrizes de
políticas para a aprendizagem móvel”, que estimula e recomenda o uso das TICs nas salas de aulas a
fim de que as disciplinas sejam ministradas.
No guia supracitado é possível encontrar treze motivos para o uso do smartphones na
sala de aula como ferramenta de ensino e aprendizagem, além de conter dez recomendações para os
governos adotarem as TICs em seus sistemas de ensino de disciplinas voltadas para a área de
linguagem. Alguns dos motivos presentes no guia e que gostaríamos de ressaltar no presente trabalho
são: “Permitir a aprendizagem a qualquer hora, em qualquer lugar; criar novas comunidades de
128

estudantes; apoiar a aprendizagem fora da sala; criar uma ponte entre a aprendizagem formal e não
formal; Auxiliar estudantes com deficiências” (UNESCO, 2014, p.16), entre outros.
Além do mais, o guia recomenda que alguns itens sejam seguidos com o intuito de
conciliar a sala de aula com o uso do celular como: “treinar professores sobre como fazer avançar a
aprendizagem por meio de tecnologias móveis” (UNESCO, 2014, p.33), afinal não adianta querer
inserir novas tecnologias na sala de aula se os professores não estiverem instruídos a como usar tais
recursos de maneira consciente, “os professores devem receber formação sobre como incorporá-las
com sucesso na prática pedagógica” (UNESCO, 2014, p.33). O professor é o mediador entre o
conhecimento científico e os alunos, sendo assim ele deve estar preparado para lidar com as novas
mudanças perpassadas dos novos tempos globalizados.
Tais pressupostos são elencados uma vez que os equipamentos tecnológicos fazem
parte do nosso cotidiano. Sendo assim, não há a opção de proibir o seu uso, em outras palavras, o uso
de mecanismo tecnológico na atual sociedade é inevitável e cabe ao ambiente escolar fazer uso deles
de maneira a contribuir para com o ensino e aprendizagem dos seus alunos.

A PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS

Considerando, pois, a relevância da inserção das tecnologias no ensino, podemos destacar


a Pedagogia dos Multiletramentos, que tem muito a contribuir para que esse trabalho seja pautado
teoricamente, em busca de um ensino contextualizado e significativo.
Sabemos que existe uma busca constante de um sistema de ensino que envolva os
alunos e que esteja mais próximo da realidade em que eles vivem, considerando a diversidade cultural
e semiótica da sociedade em que eles – e também os professores – estão inseridos. Pensando nisso,
temos, hoje, a Pedagogia dos Multiletramentos que visa apresentar possibilidades de trabalhos com
os textos que circulam na sociedade, assim, a pedagogia dos multiletramentos vai considerar a
linguagem e também outros modos de representação que compõem esses textos.
Aprofundando no conceito de multiletramentos, Rojo (2012, p. 13) destaca que

O conceito de multiletramentos – é bom enfatizar – aponta para dois tipos específicos e


importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades, principalmente urbanas, na
contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de
constituição dos textos por meio dos quais ele se informa e se comunica.

E considerando o trabalho com o ensino de Língua Portuguesa, podemos destacar que


o professor pode explorar muitas questões da língua fazendo uso de ferramentas tecnológicas.
129

Sustentando essa proposição, apoiamo-nos nas orientações de documentos que regem o sistema de
ensino, como a Base Nacional Comum Curricular – BNCC, que propõe que

Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos estudantes experiências


que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação
significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela
escrita e por outras linguagens. As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem
novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também
novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. [...] Eis,
então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas novas
práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas demandas
sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC – necessário para o mundo
do trabalho, para estudar, para a vida cotidiana etc. –, mas de também fomentar o debate e
outras demandas sociais que cercam essas práticas e usos. (BRASIL, 2018, p. 68-69)

Diante dessa orientação, percebemos, ao considerar o trabalho com as práticas de


linguagem contemporâneas, que é imprescindível que se considere também as tecnologias, que se
tornam aliadas do professor, além de estar preparando o aluno para situações de seu cotidiano.
Por isso, o trabalho com a inserção das tecnologias pode acontecer de maneira distinta.
Nas aulas de Língua Portuguesa, o professor pode trabalhar com questões da linguagem através de
aplicativos, vídeos, textos, sites, blogs, música, jogos, hipertextos entre outros. Essas são ferramentas
que podem ser trabalhadas dentro de sala de aula ou fora, de acordo com o contexto social e a
realidade de cada instituição. Além disso, é relevante considerar que “a busca por uma ferramenta
tecnológica deve ser vista como uma forma de se revitalizar antigas ferramentas, uma nova aparência
para melhorar ou estimular as metas de aprendizagem” (RIBEIRO, 2017, p. 90), por isso, é importante
que o professor considere que elas estão disponíveis para auxiliá-lo no processo de ensino, como uma
facilitadora, assim como o livro didático foi e ainda é um grande aliado do professor.
Os multiletramentos aliados ao trabalho com as tecnologias podem contribuir,
portanto, para que o professor possa buscar e optar por caminhos que explorem essas ferramentas,
que podem apresentar significativas contribuições para as aulas de Língua Portuguesa e também
outras disciplinas.
As novas tecnologias permitem o acesso a diferentes textos, conteúdos e culturas com
grande facilidade e velocidade, sendo assim a escola precisa, então, reconfigurar sua abordagem de
ensino e aprendizagem, a fim de que eles não ignorem “as diferenças subjetividades que os alunos
trazem para a sala de aula” (GARCIA; SILVA; CASTRO; VIEIRA, 2016, p. 127). Por isso, “o papel
da pedagogia é desenvolver uma epistemologia do pluralismo, fornecendo acesso sem que as pessoas
tenham de apagar ou deixar para trás diferentes subjetividades” (TNLG, p.72, tradução nossa).
130

Em relação ao ensino de Língua Portuguesa na atualidade, é notável que as tecnologias


possuem grande influência na produção de leitura e escrita dos textos, para tanto é necessário o uso
de novas ferramentas e novas práticas dentro do ambiente escolar, as quais levem em consideração a
multiplicidade de linguagens dos textos que estão em circulação. Para tanto, o professor não deve se
ater apenas aos antigos métodos de ensino e aprendizagem e de disseminação de textos, eles devem
fazer uso de novas metodologias que utilizam como recursos textuais elementos semióticos, como:
vídeos, áudios, imagens, edição e diagramação em suas aulas (ROJO, 2012).
Devemos compreender que na atualidade uma pessoa necessita de conhecimentos
letrados, para que ela possa viver em sociedade de maneira crítica e ao mesmo tempo possa assimilar
o que está ocorrendo, sendo assim, Dionísio (2005, p.131) afirma que “na atualidade, uma pessoa
letrada deve ser [...] capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de
linguagem, bem como ser capaz de produzir mensagens incorporando múltiplas fontes de
linguagem”.
Rojo (2013) alega que as escolas devem aderir em suas aulas ao conhecimento de
mundo do aluno, ou seja, realizar aulas voltadas para a cultura local, na qual o estudante está inserido
e leva para a sala de aula, o que é apresentado nas mídias de massa, o que é visto na internet, deve
ser colocado em diálogo, a fim de aumentar os conhecimentos adquiridos na sala de aula, como Rojo
(2013, p.2) pondera “[...] pensando na questão da formação para o trabalho, para a cidadania, para a
vida pessoal, enfim. Portanto, funcionar, primeiro colaborativamente, segundo “protagonistamente”
implicaria em uma pedagogia de projeto e não em uma pedagogia de conteúdo”.
Os textos multimodais circulam em nosso cotidiano em grande volume e contribuem
para a interação entre os sujeitos, através de um contexto de inovações e ressignificação das relações
sociais. Os textos multimodais possuem em sua estrutura a multimodalidade linguística a qual atua
ao lado da imagem e, dessa forma, passam a compor textos, por meio de argumentos discursivos com
forte carga semântica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da pesquisa realizada, notamos que a relação de tecnologia com a sala de aula
é inevitável devido à grande globalização que estamos vivendo nas últimas décadas. Desse modo, o
docente deve procurar um meio de anexar esses elementos externos à sala de aula com o intuito de
realizar aulas interativas e que preparem os alunos para a atual realidade que é vivida pela sociedade.
Sendo assim, nota-se que a comunidade escolar deve caminhar em conjunto com os avanços
perpassados na sociedade, a fim de realizar um ensino crítico e que contribua para o desenvolvimento
dos estudantes como futuros cidadãos críticos e ativos.
131

Para tanto, constatamos que o uso dos multiletramentos nas aulas, principalmente nas
aulas de Língua Portuguesa contribui de maneira progressiva para a inserção das tecnologias na sala
de aula de uma forma consistente e orientada pelo professor, ou seja, a partir do momento em que são
utilizados os multiletramentos nas aulas, celulares, internet, games, vídeos, músicas e diversos outros
textos multimodais advindos da era tecnológica não serão mais “distração” para os alunos, mas
material de aprendizado.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum


curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: <http://basena-cionalcomum.
mec.gov.br/#/site/inicio>. Acesso em: 24 ago. de 2020.

DIONÍSIO, Ângela P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: KARWOSKI, A. M.;


GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. [orgs.]. Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2005.

FANTIN, Monica. Alfabetização Midiática na Escola. VII Seminário Mídia, educação e Leitura.
10 a13 de julho. Campinas, SP, 2007.

GARCIA, Clarisse de Paiva; SILVA, Marli Regina da; CASTRO, Silvana de Paula; VIEIRA,
Vanessa Ferreira. Multiletramentos no ensino público: desafios e possibilidades. Revista Práticas de
Linguagem, Juiz de Fora, v. 6, n. especial, p. 123-134, nov. 2016. Disponível em:
https://www.ufjf.br/praticasdelinguagem/files/2017/01/11-multiletramentos.pdf. Acesso em: 10 dez.
2020.

MORAN, José Manuel. Os novos espaços de atuação do professor com as tecnologias. Revista
Diálogo Educacional (PUCPR), Curitiba, PR, v. 4, n.12, p. 13-21, 2004.

RIBEIRO, Otacílio José. Educação e novas tecnologias: um olhar para além da técnica. In:
COSCARELLI, Carla Viana.; RIBEIRO, Ana Elisa. Letramento digital: aspectos sociais e
possibilidades pedagógicas. 3. ed. Belo Horizonte: Ceale; Autentica Editora, 2017, p.85-97.

ROCHA, Sinara Socorro Duarte. O uso do Computador na Educação: a Informática Educativa.


2008. Revista Espaço Acadêmico, nº 5, jun. 2008.

ROJO, Roxane. Entrevista: Multiletramentos, multilinguagens, novas aprendizagens.


Universidade Federal do Ceará/Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Adolescência e Mídia; 2013.
Disponível em: <
http://www.grim.ufc.br/index.php?option=com_content&view=article&id=80:entre-vista-com-
roxane-rojo-multiletramentos-multilinguagens-e-aprendizagens&catid=8:pu-
blicacoes&Itemid=19>, acesso em 10 dez de 2020.

ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial,
2012.

SILVA, Mozart Linhares da (Org.). Novas tecnologias: educação e sociedade na era da informação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
132

SOARES, Taisa Luiz. O uso da internet no ensino de língua portuguesa na perspectiva do


professor de ensino fundamental e médio. Disponível em:< https://www.webartigos.com/artigos/o-
uso-da-internet-no-ensino-de-lingua-portuguesa-na-perspectiva-do-professor-de-ensino-
fundamental-e-medio/89263/> Acesso em: 11 dez. 2020.

THE NEW LONDON GROUP. A pedagogy of multiliteracies: designing social futures. The
Harvard educational review, v. 1, 1996.

UNESCO. Diretrizes de políticas para a aprendizagem móvel. Disponível em:


http://www.bibl.ita.br/UNESCO-Diretrizes.pdf. Acesso em: 24 ago. 2020.

VILLARTA-NEDER, Marco Antonio; RAGI, Taísa Rita; CASTRO, Kleissiely de. Videoanimação
Reflexion: a construção da identidade feminina a partir da problemática do padrão de beleza. In:
FERREIRA, Helena Maria; DIAS, Jaciluz; VILLARTA-NEDER, Marco Antonio. O trabalho com
a videoanimação em sala de aula: múltiplos olhares. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. Cap.
1. p. 179-194. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com/2019/11/27/o-trabalho-com-
videoanimacao-em-sala-de-aula-multiplos-olhares/. Acesso em: 11 dez. 2020.
133

O ENSINO DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO: UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE


LEITURA

Marcia Brandão de Almeida (UFMA)53


Eliane Pereira dos Santos (UFMA)54

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar estratégias argumentativas e dialógicas presentes no gênero
artigo de opinião enquanto objeto de ensino. A partir disso, questionamos: como as relações
dialógicas colaboram na construção dos sentidos do gênero artigo de opinião? Como desenvolver
habilidades para formação de um leitor crítico tendo o artigo de opinião como objeto de ensino? A
metodologia utilizada para a realização da pesquisa é bibliográfica e tem como corpus de análise o
artigo de opinião retirado do jornal GGN, intitulado: “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de
Deus”, de autoria de Albertino Ribeiro. Para fundamentar a pesquisa, recorremos aos estudos de
Bakhtin (2016[1979]), Antunes (2003), Rodrigues (2001), Boff, Köche e Marinello (2009), Authier-
Revuz (2004), entre outros. Como resultados parciais, destacamos que é preciso ir além do linguístico
para construir os sentidos do texto. Mas não o desconsiderando, uma vez que, este norteia o leitor
para as inserções da fala do outro presentes no texto, dando pistas sobre possíveis sentidos. O artigo
de opinião analisado mostra que muitos dos discursos citados das relações dialógicas funcionam como
estratégias argumentativas, as quais proporcionam que, durante o ato da leitura do texto, o leitor possa
construir sentidos. Buscando ainda compreender quais as intenções pretendidas pelo autor ao utilizar
discursos outros em seu processo argumentativo. Assim, é possível desenvolver práticas de leitura as
quais vão além da materialidade linguística, além da superfície do texto. Sendo possível analisar
discursos outros que estão no texto de forma marcada ou não. Desse modo, para que os alunos possam
aprender as características temáticas, estilísticas e composicionais do gênero artigo de opinião, é
necessário que eles leiam diferentes artigos de opinião, produzidos em espaços jornalísticos diversos.
O planejamento de atividades precisa considerar a dialogicidade existente entre o artigo de opinião e
outros acontecimentos discursivos.

Palavras-chave: Artigo de opinião. Gêneros do discurso. Relações dialógicas. Leitura.

INTRODUÇÃO
Muitas transformações têm ocorrido no que se refere a novas práticas de leitura e escrita
na contemporaneidade digital. As formas de comunicação, informação e interação exigem dos
falantes, novas habilidades. Portanto, cabe à escola ser sensível a essa nova realidade de uso da
linguagem, utilizando metodologias de ensino favoráveis ao desenvolvimento de habilidades que
garantam a formação de leitores e escritores competentes nesse novo contexto. Essa pesquisa visa
apresentar uma análise ilustrativa do gênero artigo de opinião, possibilitando a visualização de como

53
Graduada em Licenciatura em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Maranhão,
Campus São Bernardo. E-mail: marcialinguagens@hotmail.com.
54
Docente do Curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa, da Universidade Federal do
Maranhão, Campus São Bernardo. Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: eliani-
phb@hotmail.com.
134

ensinar na sala de aula, a leitura do gênero artigo de opinião em seus aspectos temáticos, estilísticos
e composicionais, a partir de uma abordagem dialógica, contemplando aspectos linguísticos e
extralinguísticos.
Frente ao objetivo de apresentar uma análise ilustrativa, utilizamos como corpus um
artigo de opinião retirado do jornal GGN, intitulado: “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de
Deus”, de autoria de Albertino Ribeiro. Contudo, reconhecemos a importância de ensinar um gênero
a partir de vários textos, ou seja, de vários exemplares desse gênero. Portanto, a escolha por um único
texto justifica-se por uma questão metodológica de espaço.
O gênero artigo de opinião é importante para ser trabalhado no processo de ensino, mais
especificamente, no processo de leitura. Pois ele permite ao aluno, desenvolver uma leitura crítica,
na qual ele busca informações, busca estabelecer relações de sentidos com outros discursos, os quais
foram utilizados pelo articulista, tendo em mente a construção dos sentidos do texto que ele está
lendo.
Os alunos precisam conhecer a estrutura e a função social dos gêneros. E a partir disso,
conhecer suas características, as estratégias argumentativas utilizadas na sua produção, as intenções
enunciativas de quem escreve.

RELAÇÕES DIALÓGICAS E AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS

De acordo com a teoria dialógica de Bakhtin, a todo momento em que o sujeito enuncia,
produz um discurso, em meio ao seu processo argumentativo. Ele está sempre a retomar discursos
anteriores ao seu. Ou seja, ele estabelece relações de sentidos com outros discursos, caracterizando o
que Bakhtin (2016[1979]) define como Relações dialógicas.

As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de enunciados na
comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano do
sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica
[...] (BAKHTIN, 2016[1979], p. 92)

Como destacado por Bakhtin (2016[1979]), quando um discurso é analisado apenas numa
perspectiva de análise linguística, como objeto de análise, não há a presença das relações dialógicas.
Para haver relações dialógicas, é necessário analisar um discurso além de sua materialidade
linguística, é necessário relacioná-lo com discursos anteriores a ele, analisar o contexto extraverbal,
as ideologias presentes em tal discurso. Pois, como destaca Bakhtin/Volochínov (2014, p. 34) “[...]
A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e,
consequentemente, somente no processo de interação social”. Todo discurso está repleto de
ideologias, de posicionamentos, valorações.
135

Sendo assim, as relações dialógicas estão presentes em todos os discursos. Bakhtin


(1997[1929], p. 183) afirma que: “[...] Toda a vida da linguagem, seja qual for seu campo de emprego
(a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas
[...]” (BAKHTIN, 1997[1929], p. 183). É possível perceber o caráter de vida à linguagem,
proporcionada por meio das relações dialógicas que são estabelecidas com discursos atuais, assim
como, com discursos proferidos em algum momento histórico.
Essa retomada a discursos outros, pode ser realizada de forma marcada ou não. Isto é, há
as estratégias argumentativas. Rodrigues (2001), ao tratar de forma específica sobre o gênero artigo
de opinião, destaca sobre a inserção do discurso do outro, pelo autor, no discurso atual, consistindo
no movimento dialógico de assimilação e movimento dialógico de distanciamento. Rodrigues (2001)
ao tratar sobre ambos os movimentos, destaca que:

[...] incorporação de outras vozes ao discurso do autor, avaliadas positivamente, que são
"chamadas" para a construção do seu ponto de vista, que se denominou como movimento
dialógico de assimilação (ou acentuação, confluência); e o apagamento, distanciamento,
isolamento, desqualificação das vozes às quais o autor se opõe, que se denominou como
movimento dialógico de distanciamento (ou desqualificação, reacentuação). (RODRIGUES,
2001, p. 164)

O movimento dialógico de assimilação é utilizado de forma alinhada ao posicionamento


defendido pelo articulista (quem escreve o artigo). Sendo assim, ao utilizar o discurso do outro, o
articulista atribui a ele um valor positivo, de convergência com aquilo que ele defende, argumenta.
Já no movimento dialógico de distanciamento, o articulista utiliza o discurso do outro refutando-o,
isto é, atribuindo a ele uma nova valoração, neste caso, uma valoração negativa.
Quando o sujeito se posiciona sobre algo, ele sempre assume uma posição de valor a
respeito, e para isso, ele faz uso das estratégias argumentativas, para utilizar o discurso do outro. No
caso do movimento dialógico de assimilação, como destaca Rodrigues (2001, p. 174), a presença do
outro torna-se perceptível, pois o locutor/autor, faz o uso de verbos dicendi, para inserir o discurso
do outro no seu. Por exemplo, os verbos, disse, alertou, etc. assim, como, por meio de preposições:
para, com, etc. Em relação ao movimento dialógico de distanciamento e as estratégias de uso do
discurso do outro, Rodrigues (2001) destaca que há “[...] o uso de palavras e expressões avaliativas,
a negação, as aspas, os operadores argumentativos, o chamamento do discurso de um outro, a ironia,
os pronomes demonstrativos [...]” (RODRIGUES, 2001, p. 176).
Authier-Revuz (2004) ao tratar sobre o discurso relatado, apresenta a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva. A heterogeneidade constitutiva, alinha-se à ideia da
natureza dialógica da linguagem. Na heterogeneidade mostrada, como o próprio nome já sugere, as
fronteiras entre o discurso citado e o discurso citante, são nítidas. Podendo ser evidenciado por meio
de aspas, glosas, ironias.
136

Segundo Authier-Revuz (2004), a heterogeneidade mostrada é dividida em marcada e não


marcada. Na heterogeneidade mostrada marcada, é possível identificar as fronteiras entre os
enunciados, isto é, as fronteiras linguísticas entre os discursos. Assim, o discurso alheio pode vir,
como destaca Authier-Revuz (2004), marcado com aspas ou itálico. Enquanto que, na
heterogeneidade mostrada não marcada, é a memória discursiva do sujeito, assim como seus
conhecimentos prévios, que marcam as fronteiras entre os enunciados. Ou seja, não há fronteiras
linguísticas que marcam a presença do discurso do outro. Diante disso, na heterogeneidade mostrada
marcada, a presença do discurso do outro torna-se perceptível por meio do uso, por exemplo, de ironia
ou de glosa.
Essas estratégias argumentativas estão muito presentes no gênero artigo de opinião, sobre
o qual é tratado a seguir, evidenciando o processo de ensino tendo-o como um objeto de ensino.

GÊNEROS DO DISCURSO: O GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO E O PROCESSO DE


ENSINO

Diversos são os gêneros discursivos existentes em meio ao processo comunicativo dos


sujeitos. Bakhtin (2016[19719], p. 12) destaca que, “[...] cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. Ou
seja, cada campo de utilização da língua tem seu gênero específico para ser utilizado pelo sujeito, em
meio ao seu processo comunicativo para com o outro. E esses gêneros, como ressalta Bakhtin
(2016[1979]), são relativamente estáveis, pois cada um possui uma estabilidade quanto ao seu tema,
seu estilo, e sua forma composicional. Isso é o que possibilita diferenciar um gênero de outro, pois
eles possuem suas particularidades. Ainda de acordo com Bakhtin (2016[1979], p. 38) “Falamos
apenas através de gêneros do discurso [...]”. Os gêneros estão presentes em todo o processo
comunicativo do sujeito, pois são eles que organizam os discursos, o que o sujeito profere.
Diante dessa infinidade de gêneros discursivos, há o gênero artigo de opinião. Rodrigues
(2001), ao tratar sobre a funcionalidade desse gênero, destaca que ele consiste em um espaço de
construção de argumentos críticos, de posicionamentos críticos, a respeito dos acontecimentos
sociais. Ou seja, dos temas que estão sendo discutidos no meio social, pertencentes seja à esfera
política (como é o caso do artigo que será analisado mais adiante), seja econômica ou religiosa, etc.
Rodrigues (2001, p. 163) destaca que “[...] O artigo é um gênero que se caracteriza discursivamente
como uma réplica dialógica a esses acontecimentos sociais, diante dos quais o autor se posiciona
[...]”.
Ainda segundo Rodrigues (2001), por meio dos argumentos utilizados pelo articulista
(nome dado a quem escreve o artigo), o artigo expressa posições valorativas, assim como possui o
137

caráter de responsividade, pois tais discursos surgem como uma réplica do discurso do outro, uma
resposta.
O articulista, ao produzir um artigo, está expondo, assumindo uma atitude valorativa a
respeito do assunto que está sendo tratado. E para isso, vai retomando outros discursos, discursos
alheios, estabelecendo relações de sentidos para com eles, tendo em vista a construção de sua opinião.
E para isso, o autor faz uso das estratégias argumentativas em meio a construção de seu texto,
estratégias estas, já ressaltadas no tópico anterior.
Assim, quando levado para a sala de aula, como um objeto de ensino, o gênero artigo de
opinião pode ser explorado de forma bastante produtiva. Uma vez que, os alunos terão contato com
um gênero que trata sobre temáticas de forma crítica. Proporcionando a eles, uma leitura que extrapola
os limites do linguístico, ou seja, os alunos serão levados a buscar o já dito por outro (s), para construir
os sentidos do texto, o qual eles terão contato. Isso permite aos alunos estabelecer relações de
sentidos, relações dialógicas com outros discursos, anteriores ao atual. Eles irão precisar retomar
notícias, comentários, etc. E com isso, eles se posicionarão de forma crítica. Além de ativar seus
conhecimentos prévios.
Além disso, em relação ao trabalho com gêneros no processo de ensino, Boff, Koche e
Marinelo (2009) destacam que: “[...] cabe à escola protagonizar ações que permitam ao estudante
conhecer a especificidade e a finalidade de cada gênero, considerando-se as necessidades enfrentadas
no dia-a-dia” (p. 02). Ou seja, é papel da escola, em meio ao processo de ensino, apresentar os gêneros
aos alunos, e levá-los a compreender a finalidade, as especificidades, de cada um desses gêneros.
Rojo e Barbosa (2015) destacam a importância dos multiletramentos no ensino de práticas
de leitura e de escrita de gêneros digitais, no tocante ao desenvolvimento de novas habilidades que
permitam os alunos a lerem e escreverem com mais criticidade e ética no espaço digital, frente ao
surgimento de novas formas de comunicação, informação e interação. Em consonância com esse
pensamento, a BNCC (2018), sugere o desenvolvimento de habilidades dentro do campo jornalístico-
midiático voltadas para a dialogicidade, criticidade e ética.
Nesse sentido, compreende-se a importância e os pontos positivos de desenvolver o
trabalho com o gênero artigo de opinião. E além disso, ter em vista um processo de leitura, no qual
os alunos trabalhem essa retomada a discursos outros. Ou seja, os alunos passaram a desenvolver o
processo de leitura tendo em vista o aspecto dialógico da linguagem, possibilitando a eles,
construírem sentido (s) ao que estão lendo.

O PROCESSO DE ENSINO A PARTIR DE UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE LEITURA

Em meio ao processo de ensino, há muitos desafios, entre eles, elaborar estratégias de


leitura, as quais despertem nos alunos o gosto pelo ato de ler. Desenvolver uma leitura centrada não
138

apenas no linguístico do texto, mas uma leitura que extrapole, que vá além do material linguístico do
texto.
Ao tratar sobre o processo de leitura, Antunes (2003) destaca que ainda há muitos desafios
a serem superados. Entre esses, o fato de que ainda há na atualidade, o desenvolvimento de atividades
de leitura: “[...] centrada nas habilidades mecânicas de decodificação da escrita [...] quase sempre,
nessas circunstâncias, não há leitura, porque não há "encontro" com ninguém do outro lado do texto”
(p. 27). Ou seja, a decodificação da escrita é colocada de forma superior à compreensão do texto, a
construção dos sentidos deste. Sendo importante assim, por meio da leitura, levar os alunos à
construção de uma compreensão de forma crítica, em que eles não apenas leiam o material linguístico,
sem objetivos, mas que busquem nas entrelinhas os sentidos do texto. Sentidos esses que são possíveis
por meio de retomada a outros discursos. Permitindo ainda, perceber a relação com o contexto
extraverbal.
Aqui entra o papel do gênero artigo de opinião enquanto objeto de ensino. Esse gênero
possibilita aos alunos, recorrerem a discursos anteriores ao atual, de modo que ao fazerem isso, estão
estabelecendo relações de sentidos com outros discursos. Compreendendo-os e atribuindo a eles
novas valorações, visto que eles irão posicionar-se de forma crítica. Sendo necessário, assim, que os
alunos ativem seus conhecimentos prévios a respeito da temática abordada no artigo de opinião.
Compreende-se desse modo, como destaca Antunes (2003, p. 78):

[...] as informações prévias com que o leitor chega ao texto, derivadas de seu próprio
conhecimento de mundo e das relações simbólicas que, aí, estabelece, também cumprem um
papel fundamental na atividade de compreensão do texto [...] (ANTUNES, 2003, p. 78)

Muito daquilo que o aluno compreende do texto, parte do que ele já tem em sua bagagem
de conhecimento, isto é, os conhecimentos prévios. Ele retoma esses conhecimentos, discursos
anteriores e, assim, constrói as relações dialógicas que proporcionam construção e compreensão dos
sentidos do texto que o aluno está lendo.
Como destaca Antunes (2003), o sentido de um texto não depende unicamente do próprio
texto, assim como também não depende unicamente do leitor, depende de ambos. Pois, o material
linguístico apresenta os caminhos para a construção dos sentidos, e o leitor, por meio de seus
conhecimentos prévios, e de retomadas a outros discursos, constrói esses sentidos. Conhecimentos
esses que, como destaca Antunes (2003), são anteriores ao que ali está no texto. Assim ocorre quando
um artigo de opinião é analisado, pois o leitor terá que recorrer a notícias produzidas anteriormente
ao artigo, assim como comentários, etc. Ou seja, os argumentos utilizados no artigo surgiram tendo
como base outros discursos que já estão a circular no meio social.
139

Ainda de acordo com Antunes (2003), o sentido de um texto “[...] é de agora e é de antes”
(p. 78). Isto é, o sentido do texto parte do material linguístico, mas o leitor precisa do extraverbal,
precisa retomar acontecimentos, discursos anteriores ao atual, para construir esses sentidos, para
acompanhar a linha de raciocínio do autor, e produzir suas valorações a respeito do que está lendo.
Nota-se a importância de que o aluno não esteja preso apenas ao material linguístico, mas que ele
analise, esteja atento às marcas linguísticas, às estratégias argumentativas, as quais direcionam o leitor
a construir os sentidos do texto.
Nesse sentido, pode-se recorrer a Antunes (2003) quando ela destaca que, “[...] se pode
perceber o quanto a interpretação de um texto depende de outros conhecimentos além do
conhecimento da língua [...]” (p. 68- 69). Isto é, para que os alunos compreendam um texto, depende
não apenas de conhecimentos linguísticos, mas depende muito dos conhecimentos de mundo que eles
trazem em sua bagagem, seus conhecimentos prévios.
No tópico a seguir será realizada a análise do artigo de opinião, tendo em vista as
estratégias argumentativas utilizadas pelo articulista e como essas estratégias permitem ao
leitor/aluno construir os sentidos do texto.

POSSIBILIDADES DE UMA ANÁLISE DO ARTIGO DE OPINIÃO ENQUANTO OBJETO


DE ENSINO

Será discutido aqui sobre as possibilidades de análise do gênero artigo de opinião, tendo
em vista as estratégias argumentativas utilizadas pelo autor. Estratégias essas que são utilizadas tendo
em vista a inserção do discurso outro no gênero artigo de opinião que, neste caso, será o artigo
intitulado “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de Deus”.
Algumas das estratégias argumentativas mais recorrentes no texto são as relações
dialógicas de aproximação, nas quais o autor preserva os sentidos do discurso do outro, o qual está
sendo utilizado. E as relações dialógicas de distanciamento, em que ao discurso utilizado são
atribuídas novas valorações, neste caso, valorações negativas, afastando-se dos sentidos desse
discurso que foi utilizado. Podendo ser perceptível, por exemplo, por meio de ironias. Desse modo,
essas estratégias argumentativas marcam a presença do discurso do outro no atual. E esse uso pode
vir, como destaca Rodrigues (2001, p. 173), por meio do movimento dialógico de assimilação e
movimento dialógico de distanciamento.
Nas análises que serão realizadas adiante, poderá ser observado que, como destaca
Bakhtin (2016[1979]), os discursos formam um elo. Pois eles mantêm relações de sentidos com outros
discursos, ao serem retomados. No artigo de opinião, será possível observar que os argumentos
utilizados surgiram do embate com outros discursos, isto é, eles são réplicas. Discursos esses de
caráter político, religioso, entre outros. Assim, o artigo inicia da seguinte forma:
140

Fonte: Disponível em: https://jornalggn.com.br/opinião/para-bolsonaro-o-brasil-esta-acima-de-deus/amp/.


Acesso em: 05 set. 2019.

Logo de início, o leitor já pode observar que o texto irá discutir sobre questões políticas,
pois há o nome de Bolsonaro e a ideia do nacionalismo logo no título. Isso permite ao leitor ativar
várias relações dialógicas para com outros discursos, os quais circulam na mídia jornalística. Sendo
assim, os argumentos utilizados pelo articulista, surgem a partir de uma atitude responsiva, em relação
a esses discursos que circulam no meio social. E com isso, atribui a eles novas valorações, as quais
ocorrem por meio das retomadas aos discursos alheios, realizadas pelo articulista.
O autor faz o uso do slogan da campanha presidencial, de forma direta, por meio de uma
heterogeneidade mostrada marcada, como destaca Authier-Revuz (2004), por meio do uso das aspas.
Nesse momento, o articulista busca mostrar seu distanciamento em relação ao slogan da campanha
de Bolsonaro. Ao serem usadas as aspas, o articulista realiza o que Rodrigues (2001) chama de
movimento dialógico de distanciamento. Ou seja, o autor busca desprestigiar, distanciar-se do ponto
de vista defendido pelo discurso, isto é, pelo slogan. O articulista busca distanciar-se da ideia de
religiosidade presente no governo e nos discursos de Bolsonaro.
Além disso, é importante observar os sentidos atribuídos às palavras “tudo” e “todos” no
discurso. Observando os sentidos em que elas estão sendo utilizadas, compreende-se que o “tudo”
está relacionado ao todo, todos os seres, tudo que existe. Enquanto o “todos” corresponde apenas a
141

uma parte específica que forma esse “tudo”, todos nós, todas as coisas. Nesse sentido, o governo de
Bolsonaro está acima de “tudo”. Enquanto Deus é colocado em uma posição inferior “acima de
todos”. Diante disso, observa-se que o nacionalismo está acima de tudo, até mesmo acima do próprio
Deus.
Uma das estratégias argumentativas do articulista consiste em que ele dialoga com seu
leitor, prevendo a réplica antecipada. Momento no qual ele tenta convencer o seu leitor a adesão do
seu ponto de vista. Assim, ele utiliza a expressão “Quem não lembra da frase da ministra Damares no
dia da posse”. Aqui o leitor é instigado a ativar o já dito, ou seja, a retomar ao discurso da ministra.
Citamos Antunes (2003, p. 68- 69), quando destaca que, para que haja uma interpretação e
compreensão do texto, são necessários conhecimentos que vão além dos conhecimentos linguísticos,
isto é, da língua. Os alunos/leitores precisam ter conhecimento desses discursos já ditos, ativando
assim, seus conhecimentos prévios, para construírem os sentidos do texto.
O articulista fala ainda sobre a ministra Damares (a então ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos), apresentando de forma direta, o discurso proferido por ela no dia de sua posse,
“Somos um estado laico, mas essa ministra aqui é terrivelmente cristã”. Em que o articulista
argumenta em uma relação de oposição ao dito.

A ministra Damares não percebeu que sua frase foi um ato falho, onde a expressão
“terrivelmente cristã” desnuda a personalidade de um grupo de pessoas contraditórias que
coloca um grande abismo entre o discurso e a prática cristã.

Há logo no início, uma glosa, um comentário, o qual possui um valor negativo em relação
ao discurso da ministra “sua frase foi um ato falho”. O articulista busca mostrar que a fala da ministra
foi falha contra ela mesma, pois há pessoas que proferem um discurso, todavia, seus discursos não
condizem com sua prática. Nesse momento, o articulista busca convencer seu leitor, buscando
redefinir a contra palavra do outro (BAKHTIN, 2016[1979]).
Além disso, o adjetivo utilizado “terrivelmente” entra em uma relação de oposição com
“cristã”. Pois ele argumenta contra o sentido de religiosidade do dito, isto é, do discurso da ministra,
havendo, assim, uma relação de distanciamento (Rodrigues, 2001).
Percebe-se aqui que o aluno/leitor precisa retomar os seus conhecimentos prévios, precisa
ativar esses conhecimentos, como destaca Antunes (2003). Mas, também precisa estar atento às
estratégias argumentativas presentes no texto, as quais proporcionam ao leitor construir os sentidos.
O autor continua sua argumentação da seguinte forma:
142

Entre as duas palavras – terrivelmente e cristã – a que tem servido de exemplo para as ações
do governo é a palavra terrivelmente. Se o leitor acompanhar meu raciocínio irá concordar com
este humilde colaborador. A última decisão tomada pelo governo de Bolsonaro foi
“terrivelmente anticristã”, pois revogou a adesão ao pacto global de imigração, acompanhando
os EUA e Hungria cujas lideranças também são terríveis. Uma atitude completamente contrária
aos ensinamentos do cristianismo, inclusive, é algo criminalizado no velho testamento onde
prevalecia a lei de Talião (“Dente por dente olho por olho”).

Percebe-se que o autor se preocupa com seu leitor, pois ele o chama novamente para a
sua construção argumentativa, ao dizer “se o leitor acompanhar meu raciocínio irá concordar com
este humilde colaborador”. Aqui há o encontro entre leitor e autor, o que Antunes (2003, p. 27) sugere
que aconteça no momento da leitura. Assim, o articulista busca convencer o seu leitor, do seu ponto
de vista defendido. O aluno precisa ser orientado a observar essas estratégias argumentativas como
constitutivas de sentidos.
O articulista, ao utilizar e ao dar ênfase às palavras terrivelmente e cristã, busca de forma
clara, mostrar que a palavra terrivelmente dialoga com o governo de Bolsonaro, pois a não adesão ao
pacto global de imigração não condiz com uma atitude cristã. Ao utilizar o discurso da ministra, o
articulista atribui a ele uma nova valoração, por meio da relação dialógica de distanciamento, quando
usa a expressão “terrivelmente anticristã”. Os sentidos empregados nessa expressão, pelo articulista,
são diferentes dos atribuídos pela ministra. Assim, o articulista busca mostrar esse não sentido de
religiosidade presente nos discursos e no governo de Bolsonaro.
Retomamos Antunes (2003, p. 67), quando ela destaca que o leitor deve atuar de forma
participativa, buscando construir os sentidos do texto, buscando interpretá-lo, e buscando ainda
entender as informações sobre o que o autor busca dizer, quais as suas intenções.
Diante disso, o aluno precisa estar atento às informações, às estratégias argumentativas,
buscando compreender, por exemplo, porque o autor utilizou o discurso da ministra substituindo a
expressão dita por ela, por “terrivelmente anticristã”. Ou seja, quais os efeitos de sentidos pretendidos
pelo autor, quais as intenções dele ao fazer isso. Pois como visto, há uma intenção, há uma nova
valoração sendo atribuída à expressão. E o aluno, enquanto leitor participativo da construção dos
sentidos, precisa ser levado a compreender isso.

Não obstante aos ensinamentos bíblicos, o mesmo governo que levanta a bandeira da
cristandade, dizendo colocar Deus acima de todos, peca colocando o nacionalismo acima de
Deus. Recentemente o papa Francisco, em um encontro com diplomatas, alertou sobre o
ressurgimento do nacionalismo e fez um apelo para que os países cumpram o acordo de
imigração para ajudar os refugiados que hoje são, segundo a ONU, 21,3 milhões de pessoas.
É mais de três vezes a população da cidade do Rio de Janeiro, onde Bolsonaro morava a até
pouco tempo.
143

Nessa parte do texto há uma oposição de discursos, entre o que pregam os ensinamentos
bíblicos e o discurso nacionalista de Bolsonaro, no qual coloca Deus acima de todos. Há também a
presença de uma heterogeneidade mostrada marcada, por meio do discurso indireto. Evidenciado por
meio dos verbos dicendi “dizendo” e “alertou”.
Além disso, o autor retoma o discurso do Papa Francisco, o qual foi proferido em um
encontro com diplomatas, momento no qual ele chamou a atenção para o ressurgimento do
nacionalismo55. O articulista, por meio de seus argumentos, busca evidenciar que há o nacionalismo,
a exaltação da pátria, como algo superior até mesmo a Deus, no governo de Bolsonaro.
O articulista mostra por meio de seus argumentos que a não adesão ao pacto global de
imigração deixa claro que o governo de Bolsonaro que se diz cristão, é contrário aos ensinamentos e
às práticas religiosas. Com isso, o articulista busca mostrar que o governo é anticristão, ao tomar uma
decisão que irá atingir inúmeras pessoas, inúmeros refugiados que vêm para o Brasil em busca de
melhores condições de vida. E o governo mostra-se desinteressado em recebê-los.
Diante disso, em relação ao processo de leitura e construção dos sentidos, Antunes (2003)
destaca que:

Evidentemente, tais instruções "sobre a folha do papel" não representam tudo o que a gente
precisa saber para entender o texto. Muito, mas muito mesmo, do que se consegue apreender
do texto faz parte de nosso "conhecimento prévio", ou seja, é anterior ao que lá está [...]
(Antunes, 2003, p. 67)

Muito do que o aluno precisa compreender para construir os sentidos do texto, como
destaca Antunes (2003) é anterior ao texto. O aluno/leitor precisa como, visto anteriormente, conhecer
todo um contexto extraverbal. Ele precisa ter informações, conhecimentos sobre o que foi esse
encontro que o Papa teve com diplomatas. Ele precisa ainda saber o que é o nacionalismo. Essas são
informações que os alunos para retomarem, precisam inicialmente conhecer, elas precisam estar
arquivadas na memória do leitor para que eles as retomem. E se tais informações ainda não fizerem
parte dos conhecimentos prévios dos alunos, o professor precisa trabalhar essas informações.
Percebe-se aqui a importância do professor ao trabalhar com o gênero artigo de opinião,
levar notícias, comentários online, etc. para só então levar o artigo de opinião para os alunos. Ou seja,
eles precisam conhecer os argumentos, os discursos, os quais deram origem ao artigo.

Aturdido com a decisão desse governo “terrivelmente cristão”, resolvi pesquisar alguns textos
bíblicos que tratam do assunto e verifiquei a inequívoca e unânime visão favorável ao
acolhimento dos estrangeiros.

55
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/100-anos-apos-1-guerra-nacionalismo-mostra-nova-
roupagem,362d50927f812b9b814a374779e8d4e2q1mxzhls.html. Acesso em: 16 de nov. de 2019.
144

O autor, logo no início cita o discurso da ministra Damares “terrivelmente cristão”,


atribuindo a ele uma ironia, evidenciando a presença de uma relação dialógica de distanciamento
(Rodrigues, 2001), pois é atribuído ao discurso um novo sentido. Assim, o articulista busca
desprestigiar o discurso utilizado pela ministra, atribuindo a ele uma nova valoração. A ironia é
utilizada com o intuito de mostrar que o discurso da ministra não é condizente com a ação realizada
pelo governo, de não aderir ao pacto global de imigração. Além disso, o articulista busca mostrar que
o governo de Bolsonaro e as ações realizadas por ele não são cristãs.
Em seguida, com o objetivo de mostrar a concepção defendida de que o governo não é
cristão, o articulista realiza uma pesquisa, a qual mantém uma relação dialógica de aproximação com
o discurso bíblico (mais adiante serão apresentadas essas passagens bíblicas), onde ele mostra o que
realmente é uma atitude cristã. Pois os ensinamentos bíblicos pregam o amor ao próximo.
Boff, Koche e Marinello (2009, p. 03) ressaltam que, em muitos momentos, o autor
retoma outras vozes, outros discursos, para auxiliar na construção do ponto de vista o qual ele
pretende defender. Neste caso, o articulista retoma discursos bíblicos, com o intuito de mostrar esse
não sentido de religiosidade, presente no governo de Bolsonaro.

“E quando o estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural
entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo, pois
estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus.” – Lv 19.33-34

“Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis
o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” – Deuteronômio 10.18-19

Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui
estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo,
e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram’. Mt 25.35-36

Reforça-se a ideia de que a escolha dos textos bíblicos não se deu por acaso, sem intenção,
visto que, como destaca Bakhtin (1997[1929]), o sujeito é sempre um ideólogo. Tais textos bíblicos
foram utilizados com o intuito de defender os argumentos apresentados pelo articulista a respeito do
governo de Bolsonaro. Desse modo, o aluno/leitor precisa estar atento a essas retomadas a discursos
outros, seja de forma direta, marcada, ou não, pois elas não acontecem sem objetivo. O autor sempre
busca dizer algo por meio dessas estratégias argumentativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
145

Como visto no decorrer de toda a discussão e da análise, é necessário que o aluno, em


meio à realização do seu processo de leitura, possa ir além do linguístico. Ou seja, além daquilo que
está exposto no texto. Mas não o desconsiderando, pois como pode ser observado, o linguístico deixa
muitas pistas, as quais orientam o leitor para a construção dos sentidos do texto. Sendo assim, o aluno
precisa estar atento às estratégias argumentativas utilizadas pelo autor.
Além disso, percebe-se a importância dos conhecimentos prévios em meio a construção
dos sentidos do texto. O aluno/leitor, ao ativar seus conhecimentos, começa a construir os sentidos, a
interpretar o texto e, a partir disso, posiciona-se de forma crítica. Tornando-se, assim, um leitor
crítico, o qual é capaz de opinar, atribuir uma valoração sobre aquilo que lê.
Assim, o aluno precisa ser levado a conhecer diferentes gêneros, sejam eles os mais
complexos até os mais, aparentemente, simples, utilizados no cotidiano pelos sujeitos em seus
processos comunicativos. Isso demanda tempo, da parte dos alunos, para conhecerem, assim como
também, dos professores, para planejarem como será esse processo de apresentação dos gêneros aos
alunos.
Destacamos aqui o importante papel do professor no ensino dos gêneros digitais, na
formação de leitores críticos, tendo especialmente, o gênero artigo de opinião como objeto de estudo.
É preciso usar metodologias que viabilizem um olhar crítico, levando o aluno a perceber que no artigo
de opinião, temos diferentes vozes que se intercruzam para construção dos sentidos, dentre elas, a do
jornal onde o texto do articulista é publicado, a voz dos muitos discursos citados, do próprio leitor
presumido, ou seja, imaginado pelo articulista. Perceber diferentes pontos de vista e estratégias
argumentativas. Conseguir dialogar não apenas com o artigo, mas com os diferentes textos, discursos,
acontecimentos retomados por ele. Nem sempre o aluno consegue perceber essas estratégias de leitura
sem o apoio do professor, por isso o papel de destaque da escola na formação de leitores competentes.

REFERÊNCIAS
AUTHIER- REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do
sentido. Apresentação: Marlene Teixeira; revisão técnica da tradução: Leci Borges Barbisan e Valdir
do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

ANTUNES, Irandé. Aula de português- encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad.: Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
2016[1979].

_____. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad.: Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997[1929].

BOFF, Odete M. B.; KÖCHE, Vanilda S.; MARINELLO, Adiane F. O gênero textual artigo de
opinião: um meio de interação. ReVEL, vol. 7, n. 13, 2009.
146

BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2020.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. A constituição e o fundamento do gênero jornalístico artigo:


cronotopo e dialogismo. 2001. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem)
– Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

ROJO, Roxane Helena R; BARBOSA, Jacqueline. Hipermodernidade, multiletramentos e


gêneros discursivos. 1ª. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
147

RELATO DE EXPERIÊNCIA: O GÊNERO COMENTÁRIO ONLINE NA EDUCAÇÃO


BÁSICA

Maiara Amorim Pereira56 - UFMA


Eliane Pereira dos Santos57 - UFMA

RESUMO
Com o avanço dos meios tecnológicos e do uso em massa da internet, os gêneros digitais têm ganhado
cada vez mais destaque, modificando, assim, as formas de comunicação e de interação. O comentário
online oportuniza a interação entre os usuários em plataformas digitais, tais como sites de notícias e
redes sociais. Tendo o gênero comentário online sobre notícia enquanto objeto de ensino, este
trabalho tem como objetivo relatar uma experiência vivenciada durante a realização de uma oficina
sobre o gênero comentário online, com alunos de 8° e 9° anos do Ensino Fundamental de uma escola
municipal da rede pública de ensino, no município de São Bernardo – MA. A oficina foi realizada na
Universidade Federal do Maranhão, campus São Bernardo, fazia parte de um projeto sobre ensino de
gêneros digitais: memes, vlog, notícia online, fanfic e comentário online. Para cada gênero foi
organizada uma oficina. A oficina em questão teve como principais objetivos: 1) apresentar aos
alunos o gênero comentário online e suas características funcionais; 2) produzir comentários online
sobre a notícia lida, promovendo uma interação virtual; 3) refletir sobre questões éticas na escrita
desse gênero. A atividade de leitura e produção do gênero comentário online foi realizada a partir de
uma notícia retirada do portal G1, cuja manchete é: “Manchas de óleo no litoral atingem mais de 500
locais no Nordeste e Sudeste”, publicada no dia 13/11/2019. Como aporte teórico, recorremos às
concepções de Bakhtin (2016), Cunha (2014), Rojo e Barbosa (2015), BNCC (2018), dentre outros.
Dentre os resultados alcançados, destacamos o envolvimento dos alunos na atividade de leitura da
notícia que gerou os comentários e, principalmente, na leitura dos próprios comentários. Destacamos
ainda o engajamento dos alunos no momento de produção de seus comentários, respondendo à notícia
e a outros comentários. Foi possível perceber a importância de inserir os alunos em práticas de ensino
envolvendo os gêneros do espaço digital, em situação real de uso.
Palavras Chaves: Comentário online. Interação. Ensino.

INTRODUÇÃO
Com o passar do tempo, os debates em torno dos gêneros digitais têm se intensificado
cada vez mais. O desenvolvimento de novas formas de comunicação, bem como o uso em massa da
internet tem feito com que esses gêneros ganhem cada vez mais destaque, ocasionando, assim, a
inserção dos sujeitos em novas formas de comunicação social, atreladas ao uso de ferramentas
tecnológicas. No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, os gêneros digitais se constituem
como importantes ferramentas interativas quando levadas para o contexto da sala de aula, uma vez
que proporcionam o contato com práticas comunicativas reais, permitindo também a construção de

56
Graduação em Linguagens e Códigos – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo; integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem
e Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM); maiaramorimp@gmail.com
57
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora adjunta no curso de Linguagens
e Códigos - Língua Portuguesa / UFMA - São Bernardo; elianiphb@hotmail.com
148

uma visão crítica. Além de direcionar os sujeitos sobre como se portar de forma ética diante das
práticas de interação possibilitadas pelo meio digital.
Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo relatar uma experiência vivenciada
durante a realização de uma oficina sobre o gênero comentário online, realizada na Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), campus São Bernardo. A oficina teve como público alvo os alunos
do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, da Escola Nilza Coelho Lima. A oficina teve como objetivos:
apresentar aos alunos o gênero comentário online e suas características funcionais; produzir
comentários online, promovendo a interação no espaço virtual; além de refletir sobre questões éticas
na escrita desse gênero. As atividades de leitura e produção dos comentários na oficina foram
realizadas a partir de uma notícia retirada do portal G1, cuja manchete era: “Manchas de óleo no
litoral atingem mais de 500 locais no Nordeste e Sudeste”.
A oficina em questão foi realizada por meio do Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre
Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem e Memórias do Ensino de Espanhol
no Maranhão (GEPFEMEM), na linha de pesquisa intitulada “Práticas de Linguagem em Diferentes
Contextos”, em parceria com o Grupo Residência Pedagógica, fazendo parte do projeto “GÊNEROS
DIGITAIS: incentivo à leitura e a produção textual. Essa oficina foi apenas uma dentre outras que
aconteceram nas dependências da instituição (UFMA); na ocasião, tivemos também oficinas
envolvendo os gêneros digitais: memes, vlog, notícia online e fanfic. Na próxima seção teceremos
uma discussão em torno dos gêneros discursivos relacionados ao ensino.

GÊNEROS DISCURSIVOS E ENSINO: NOVAS CONCEPÇÕES DE LEITURA E DE


ESCRITA
As metodologias de ensino empregadas nas aulas de Língua Portuguesa dizem muito
sobre a concepção de linguagem do professor e, ainda mais, revelam a compreensão do professor
sobre texto, gramática, relação oralidade e escrita, leitura, produção textual, isto é, sua concepção
sobre ensino e aprendizagem de língua materna. A linguagem tem sido objeto de estudo ao longo da
história da humanidade. Nesse processo histórico, muitas já foram as formas de concebê-la, seja em
um contínuo mais estrutural ou mais interacional.
Doretto e Beloti (2011) fazem um percurso histórico do ensino de Língua Portuguesa no
Brasil a partir das diferentes concepções de linguagem que têm direcionado as práticas metodológicas
do ensino de língua materna. Os autores destacam as concepções de linguagem como expressão do
pensamento, com foco no subjetivismo idealista que defendia ser a mente o nascedouro da linguagem.
Contudo, durante essa concepção de linguagem, o ensino de língua materna era fortemente marcado
pelo objetivismo abstrato, com foco no sistema abstrato da língua, portanto, valorizando a gramática
prescritiva.
149

Ainda segundo os mesmos autores, na década de 70, novas necessidades no que diz
respeito à preparação para o trabalho, o tecnicismo, provocaram mudanças no ensino de língua
materna, havendo uma valorização da linguagem enquanto instrumento de comunicação. A
concepção de linguagem como instrumento de comunicação teve um viés altamente estruturalista e
utilitário, a fim de atender ao contexto social da época, que era possibilitar a comunicação pelo
material escrito. Contudo, essa concepção de linguagem, pautada em teorias da comunicação, era de
caráter monológico, considerando uma relação unilateral entre locutor e receptor.
Em paralelo a esse ensino estruturalista, desde a década de 60, começaram a surgir novas
tendências linguísticas, dentre elas a Sociolinguística, a Análise do Discurso e outras tendências
discursivas que deslocam o foco estruturalista para uma concepção de linguagem interacional,
considerando como centro norteador da linguagem o contexto extraverbal, os aspectos sócio-
históricos e não mais o código linguístico em sua imanência. Esse novo olhar sobre a linguagem
ganha força no Brasil com a publicação dos textos do círculo de Bakhtin, principalmente, com os
conceitos de gêneros discursivos e dialogismo.
Na década de 90, outro grande avanço foi a publicação dos PCN, que ancorados no texto
de Bakhtin – Gêneros do discurso –, usam de sua força enquanto documento oficial para orientar o
ensino de língua materna, tendo como centro das atividades de leitura, oralidade, análise linguística
e produção textual, os gêneros do discurso. Segundo Bakhtin (2016, p. 12), o estudo da linguagem
deve acontecer a partir dos gêneros discursivos, considerados por ele como “Tipos relativamente
estáveis de enunciados”. Contudo, vale ressaltar que, de início, muitas vezes, os gêneros foram
ensinados com foco em sua estrutura composicional, sendo, portanto, um ensino ainda de viés
estruturalista.
A BNCC (2018) orienta o ensino de língua materna pautado numa concepção de
linguagem interacional e dialógica, considerando que a linguagem precisa ser ensinada na sua relação
com o social, com o contexto extraverbal, ou seja, levando os alunos a perceberem as relações de
sentidos enquanto relações dialógicas entre diferentes discursos que se intercruzam no espaço social
da comunicação da vida real, e não numa interpretação de elementos linguísticos isolados do contexto
de uso.

Na linguagem como objeto da linguística, não há e nem pode haver quaisquer relações
dialógicas: estas são impossíveis entre os elementos no sistema da língua (por exemplo, entre
as palavras no dicionário, entre os morfemas, etc.) ou entre elementos do ‘texto’ num enfoque
rigorosamente linguístico deste. (BAKHTIN, 2018, p. 208).

A linguagem acontece em um grande contínuo, no qual tudo está ligado a um início, mas
sem um fim absoluto, haja vista que aquilo que consideramos o fim é o ponto para um novo recomeço.
Para Bakhtin (2016), a linguagem é marcada pelo dialogismo. Nada é dito sem se correlacionar com
150

dizeres anteriores e sem se lançar para réplicas futuras. Nisso consiste a alternância dos sujeitos,
terminando seu enunciado para passar a palavra ao outro.
Os alunos precisam entender os textos enquanto espaço de diálogo, de responsividade, ou
seja, o olhar de cada leitor é um ponto a mais no traçado de um tecido formado pelas muitas vozes já
ditas e por aquelas ainda não ditas, mas antecipadas pelo leitor. Essas relações de diálogo com o já
dito e de antecipação da resposta do outro frente à compreensão responsiva do texto é o que
fundamenta as relações de sentido.
Podemos perceber, que assim como nos PCN (1999), na BNCC (2018), o foco do ensino
de língua portuguesa continua sendo os gêneros discursivos. Segundo Bakhtin (2016), os gêneros são
constituídos de três elementos: tema, estilo e forma composicional. Cada um desses elementos,
embora relativamente estável – o que garante a comunicação entre os falantes –, também pode sofrer
alterações ao longo das transformações sócio-históricas, ou mesmo em um recorte sincrônico, ou seja,
em uma mesma época, textos pertencentes a um mesmo gênero podem apresentar configurações
temáticas, estilísticas e composicionais diferentes. Por exemplo, se pensarmos no gênero comentário
online sobre notícias, a depender do espaço jornalístico, podemos ter comentários muito agressivos
ou não. Essas mudanças não são ocasionadas por regras gramaticais, mas sim pelo uso social de
determinado gênero, pela comunidade de falantes em determinadas situações de interação.
O advento das novas tecnologias – a internet – provocou grandes mudanças nas formas
de leitura e de escrita, no uso da linguagem, apontando para a necessidade de repensar o ensino de
língua materna, buscando novas metodologias, inserindo novos gêneros discursivos – gêneros digitais
– como objeto de ensino na escola. O ensino distanciado das novas tecnologias passou a ser uma
barreira entre as práticas de linguagem, das quais os alunos participam efetivamente nas atividades
de leitura e de escrita na vida real, e as atividades de leitura e de escrita ensinadas na escola, centradas
unicamente numa cultura impressa. Marcuschi e Xavier (2010) destacam a importância de a escola
desenvolver habilidades de leitura e de produção textual voltadas para a cultura digital.
Considerando essas novas mudanças nas formas de comunicação e interação, a BNCC
(BRASIL, 2018) traz orientações com ênfase para a inserção dos gêneros digitais no ensino de língua
materna, visando ao desenvolvimento de habilidade de leitura e de escrita que potencializem a
capacidade dos educandos usarem os meios tecnológicos, de forma crítica e ética nas mais diferentes
formas de comunicação e interação. (BRASIL, 2018, P. 512); além disso, explicita como habilidade
a ser desenvolvida no ensino médio: “Atuar de forma fundamentada, ética e crítica na produção e no
compartilhamento de comentários, textos noticiosos e de opinião, memes, gifs, remixes variados etc.
em redes sociais ou outros ambientes digitais”. Aqui ressaltamos também a importância do gênero
comentário online como espaço de debate, de autoexpressão, de ampliação de informação, portanto,
151

objeto de ensino necessário para o desenvolvimento de habilidades de leitura e de produção textual,


favorecendo a autonomia, o protagonismo do aluno frente aos assuntos de relevância social.
Destacamos a importância da escola na preparação do aluno para uma atuação crítica e
ética no espaço digital, conhecendo e refletindo sobre as diferentes formas de agir, sobre esses novos
espaços de comunicação e de interação oportunizados pela cultura digital. São muitas as reflexões
que podem ser feitas em sala de aula, por exemplo, qual a fronteira entre o público e o privado no
espaço digital? Até que ponto posso ou não publicar determinados conteúdos sem faltar com respeito
com o outro? Rojo e Barbosa (2015), ao tratarem dos conceitos de hipermodernidade, descrevem o
que é viver na contemporaneidade digital:

Nos tempos de hiper, não basta viver, é preciso contar o que se vive (reordenamento das
fronteiras entre o público e o privado) ou mais do que isso, é preciso mostrá-lo (em selfies,
em fotos, em vídeos). Somos impelidos a buscar a novidade o tempo todo. (ROJO;
BARBOSA, 2015, p. 121).

A BNCC (BRASIL, 2018) ao tratar dos campos de atuação da linguagem, destaca o


campo midiático jornalístico como objeto de ensino, de construção de saberes para uma atuação ativa
do jovem no contexto dos acontecimentos de relevância social. Na esfera jornalística temos diversos
gêneros discursivos que permitem a busca pela informação, a divulgação de opiniões, a defesa de
pontos de vista. Assim, destacamos a relevância do gênero comentário online sobre notícia, como
possibilidade para reflexão sobre acontecimentos sociais, espaço de divulgação da opinião, de
reflexão sobre novas possibilidades de uso da língua, de interação com o espaço jornalístico e com
outros leitores. Destacamos ainda, a importância desse gênero para a reflexão sobre a violência, o
discurso de ódio nas redes sociais, buscando a construção de uma educação linguística pautada na
ética, no respeito ao outro. Na próxima seção temos uma discussão mais específica sobre o
funcionamento social do gênero comentário online.

O GÊNERO COMENTÁRIO ONLINE

Com o desenvolvimento das formas de comunicação, novos gêneros foram surgindo e


outros foram evoluindo. A internet trouxe uma série de possibilidades comunicativas, dando lugar a
uma diversidade de gêneros digitais, pelos quais a comunicação no espaço virtual acontece. Nesse
ambiente de interação e construção de relações entre diferentes usuários, destacamos o gênero
comentário online, um gênero que se encontra presente no espaço digital. De acordo com Cunha
(2014), o gênero comentário online se encontra em expansão, tendo em vista o uso das redes sociais
e das tecnologias, estando presente em diversos sites, podendo ser produzido e compartilhado em
diversos aparelhos tecnológicos, como celulares, tablets, dentre outros. Nesse sentido, podemos
152

perceber que o comentário online se constitui como um gênero de fácil acesso e utilização, muito
comum no meio digital, podendo ser utilizado nos mais variados suportes, podendo qualquer pessoa
fazer uso dele.
O comentário online é um gênero que, de acordo com Cunha (2014), é construído a partir
de um texto fonte, de modo que o leitor passa a construir novos discursos. Desse modo, o texto fonte
é um convite para que o internauta passe a expor sua opinião, ou seja, a partir desse texto fonte,
diferentes posicionamentos vão sendo expostos. Ao fazer uso do gênero comentário online, o
internauta pode discutir, opinar tanto sobre o assunto apresentado pelo texto fonte, como pode trazer
novos assuntos para o espaço interacional em que o comentário online se materializa, essas atitudes
vão ajudando a construir esse gênero.
De acordo com Santos (2018, p. 29): “O gênero comentário online58 organiza-se numa
cadeia de enunciados. Cada um deles surge como réplica ou reação-resposta a diferentes destinatários
(reais ou presumidos)”. Cada comentário faz parte de uma corrente que o liga a outros comentários,
uma vez que cada um deles surge seja respondendo ao texto fonte ou respondendo a outros
comentários anteriores, nessa atitude responsiva, cada comentário se direciona seja aos outros
indivíduos que dialogam naquele espaço, seja aos possíveis leitores.
Quando se fala do comentário online sobre notícia, Cunha (2014, p. 17) pontua: “[...] os
comentários funcionam como um diálogo cotidiano, em que o propósito principal é interagir, a notícia
servindo apenas como motivo a partir do qual os internautas ‘conversam’”59. Nesse sentido, podemos
perceber que os comentários se assemelham a uma conversa do cotidiano, sem a exigência de uma
organização formal em torno do assunto discutido pelos internautas, são os internautas os próprios
responsáveis por nortear as discussões nesse gênero. Quando voltamos nosso olhar para os
comentários online sobre notícia, nos deparamos como um espaço de debate em torno do conteúdo
noticiado.
Sobre o aspecto linguístico dos comentários, Santos (2018) pontua:

O próprio gênero dá abertura para a liberdade de escolha do material, conforme o que julga
pertinente o sujeito falante. Essa liberdade não é resultado apenas da vontade do falante, mas
orientada pelo gênero. O comentador usa uma linguagem, que muitas vezes, distancia-se da
norma padrão, configurando-se como uma forma de linguagem específica do espaço digital
(SANTOS, 2018, p. 117).

O gênero comentário online é marcado pela liberdade de escolha linguística, com regras
definidas socialmente pelos internautas e sem a subordinação da norma padrão. Cada internauta

58
Grifos da autora.
59
Grifos da autora.
153

escolhe neste espaço, comentar da maneira que julga pertinente para alcançar seu propósito
comunicativo. Nesse sentido, a liberdade se constitui como uma das características do gênero, no qual
a interação é marcada pela espontaneidade. Além disso, Santos (2018) ressalta outro aspecto desse
gênero, o imediatismo. Esse imediatismo permite que os comentários sejam expostos de maneira
imediata, em tempo real, facilitando que o público tenha acesso a ele de maneira rápida e que responda
de forma mais emotiva.
Temos na próxima seção o relato da experiência constituída a partir da aplicação da
oficina com o gênero comentário online.

RELATO DA EXPERIÊNCIA SOBRE A APLICAÇÃO DA OFICINA COM O GÊNERO


COMENTÁRIO ONLINE

A oficina sobre o gênero comentário online integrou, juntamente com outras oficinas, o
projeto intitulado: GÊNEROS DIGITAIS: incentivo a leitura e a produção. O projeto foi realizado
em uma manhã, tendo como público alvo os alunos de 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, da Escola
Municipal Nilza Coelho Lima, localizada no município de São Bernardo - MA. As oficinas foram
realizadas nas dependências da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo. Esse
deslocamento até a universidade fez-se necessário devido à falta de suporte tecnológico na própria
escola.
Escolhemos trabalhar com comentários online sobre notícia; desse modo, as atividades
de leitura e produção do gênero comentário online foram realizadas a partir de uma notícia retirada
do portal G1, tendo como manchete: “Manchas de óleo no litoral atingem mais de 500 locais no
Nordeste e Sudeste”. A notícia tratava sobre as manchas de óleo que atingiram o litoral brasileiro no
ano de 2019, causando a morte de vários animais e deixando outros feridos, provocando, assim, sérios
danos ao meio ambiente. A escolha da notícia se deu devido ao seu conteúdo bastante relevante e por
ter sido um assunto muito debatido pela sociedade à época.

Figura 1- Manchete da notícia


154

Fonte: https://g1.globo.com/natureza/desastre-ambiental-petroleo-praias/noticia/2019/11/13/manchas-de-
oleo-no-litoral-atingem-mais-de-500-locais-no-nordeste-e-sudeste.ghtml. Acesso em 10 de dez de 2019.

A oficina em questão foi realizada a partir de uma sequência de aplicação, que foi
elaborada tendo em vista o aspecto metodológico. A sequência de aplicação foi dividida em três
momentos: o momento de apresentação, o momento de contato com o gênero e, por fim, o momento
de produção.

1ª momento: a apresentação
Este primeiro momento se constituiu como o contato inicial com os alunos, no qual foi
possível dialogar com eles, buscando saber um pouco sobre os conhecimentos prévios dos alunos a
respeito do gênero. Fizemos alguns questionamentos do tipo: Vocês conhecem o gênero comentário
online? Vocês têm costume de comentar coisas na internet? Vocês costumam ler os comentários das
publicações na internet? A maioria das respostas foram negativas, muitos dos alunos não tinham
costume de fazer a utilização desse gênero. A partir da sondagem dos conhecimentos dos alunos,
falamos de que se tratava a oficina e os seus objetivos e explicamos um pouco sobre o gênero
comentário online. Esse momento foi bastante significativo, uma vez que foi possível ficar a par dos
conhecimentos prévios dos alunos, bem como explicar um pouco sobre a oficina em geral.

2ª momento: contato com o gênero

A segunda etapa da oficina se constituiu como um momento de contato com a notícia


escolhida e com o gênero comentário online. Nesse momento, fizemos a leitura da notícia juntamente
com os alunos, buscando colocá-los diante do assunto que logo após seria discutido nos comentários
pelos internautas. Posteriormente, passamos a visualizar o gênero comentário online, pedimos que os
alunos fizessem a leitura de alguns comentários, buscando percebê-los como um espaço de discussão
entre internautas, observando a ética dos comentadores. Explicamos a importância de manter a ética
nesse espaço de diálogo e exposição de opiniões que é o gênero comentário online, ressaltando a
necessidade de utilizar a liberdade de expressão de maneira respeitosa no espaço virtual. É importante
destacar a relevância desse momento, uma vez que colocamos os alunos em contato com o próprio
gênero.

3ª momento: a produção

Esse momento foi destinado à orientação dos alunos para a produção de seus próprios
comentários. Pedimos que os alunos produzissem, diretamente no portal G1, comentários a partir da
155

notícia lida, de forma a interagir respondendo diretamente a notícia e também respondendo


diretamente a outros internautas. Esse momento possibilitou aos alunos fazerem a utilização do
gênero, se manifestando nesse espaço de interação, que é o comentário online. Essa etapa da oficina
permitiu que os alunos fizessem a exposição de seus pontos de vista sobre a temática da notícia,
discutindo juntamente com outros internautas, e assim, podendo participar criticamente da interação.
É importante destacar que para a realização da oficina tivemos que criar algumas contas para que os
alunos pudessem comentar no portal, dessa forma, em alguns momentos o mesmo nome de usuário
se repetirá. Ao todo, foram 15 comentários produzidos pelos alunos, faremos a exposição de alguns
desses comentários logo a seguir.

Figura 2 - Sequências de comentários

Iniciando a sequência de comentários, temos o primeiro comentário do aluno (A) da


escola Nilza, que se insere no diálogo respondendo à notícia, dizendo: Isso é uma falta de respeito
com a natureza ,esses políticos bem que podia fazer alguma coisa para limpar o mar até quem não
tem nada haver com isso se importa mais. Percebemos que o aluno expõe seu ponto de vista,
revelando uma indignação com relação ao fato noticiado, exigindo dos políticos uma solução para a
limpeza das praias que foram contaminadas com o óleo, isso se torna explícito a partir da utilização
das expressões: [...] esses políticos bem que podia fazer alguma coisa para limpar o mar.
Ao comentar: isso é uma falta de respeito, o comentador deixa clara sua apreciação crítica
em relação ao fato noticiado, assumindo uma posição de ser social, posicionando-se contra o fato,
contra a falta de atitude do poder público para resolver o problema. O comentário expressa uma
atitude responsiva por parte do aluno (A), que lê o acontecimento e responde expressando sua opinião.
Essa atitude responsiva, de acordo com Bakhtin (2016), acompanha toda compreensão viva. Nesse
sentido, podemos perceber que ela é inerente à comunicação, fazendo-se presente em todos os
enunciados. Essa atitude do aluno de se posicionar em um espaço público nos revela a importância
da aplicação desse gênero no contexto educacional, uma vez que ele oferece essa possibilidade ao
aluno de construir uma argumentação sobre um acontecimento e expor sua opinião, permitindo a
construção de uma autonomia.
156

Dando continuidade à sequência, temos a inserção de outro comentário por parte de outro
aluno, o comentador (B), que diz: Verdade, o governo deveria se importar mais com isso..
Percebemos que esse aluno expõe uma relação dialógica de apoio logo no início quando utiliza a
expressão: verdade, já deixando explícita sua atitude de concordância com o exposto no comentário
anterior. Essa interação entre comentadores é propiciada pela alternância enunciativa que o gênero
comentário online oferece, no qual os internautas se respondem, e não só dialogam com a notícia,
mas também entre si, revelando a presença do dialogismo interlocutivo, defendido por Cunha (2011)
como um direcionamento específico ao outro. Desse modo, os internautas (alunos) constroem entre
si uma relação de concordância, ou seja, relações dialógicas. Bakhtin (2016) esclarece que as relações
dialógicas são relações de sentidos entre enunciados. O comentário online é um gênero bastante
interessante devido a essa troca que ele propicia, essa possibilidade de construção de diálogos com
outros internautas, seja de concordância ou discordância.
Marcuschi e Xavier (2010) destacam a importância de a escola levar para seu contexto
esse ensino de gêneros digitais, uma vez que essa forma de interação veio para ficar. Ou seja, oferecer
aos alunos essa possibilidade de interação no meio virtual através dos gêneros digitais é permitir que
eles aprimorem ainda mais seus processos comunicativos e se familiarizem com essas novas formas
de linguagem.
Fazendo parte ainda dessa sequência de comentários, temos o comentário do aluno (C)60,
que apresenta uma reação de oposição, de confronto em relação ao que foi dito pelos comentários
anteriores, ao dizer: Isso não tem nada haver com a política, é culpa dos seres humanos que não tem
coração ou amor pela natureza. No comentário nós podemos perceber que o aluno (C) expressa uma
reação ao que é dito pelo primeiro internauta. Temos aí uma apreciação crítica diferente, uma relação
dialógica de confronto com outro comentador, retirando a suposta culpa que foi atribuída aos políticos
pelo primeiro internauta (A), colocando-a nos próprios seres humanos, isso pode ser percebido a partir
da expressão: [...] é culpa dos seres humanos. Apesar de ser um posicionamento oposto, podemos
notar que esse comentador (C) se expressa de forma respeitosa, respondendo de forma ética, sem
agressões aos outros internautas.
Rojo e Barbosa (2015) apontam para a necessidade de se manter princípios éticos, diante
da sociedade, da manifestação de práticas sociais, do outro, mantendo-se o respeito. Nesse sentido, é
importante conscientizar os alunos sobre a utilização de gêneros como esse, de maneira ética, uma
vez que o gênero comentário online se materializa em um espaço público, o meio virtual, sendo um
gênero destinado à exposição de opiniões diversas.

60
O nome de usuário Ana Silva se trata de uma conta extra, que recebeu um nome fictício diferente das demais
combinações de nomes dados às outras contas.
157

Figura 3 - Sequências de comentários

Na segunda sequência de comentários, temos uma outra situação em que os alunos


respondem a outros internautas externos. O internauta Carlos Pinto (comentador externo) diz: Se
derramar tonelada de detergente no mar não ajudaria a remover o óleo? Parece que só eu tenho
boas ideias aqui no canal? A partir dos questionamentos expostos pelo internauta em seu comentário,
ele promove uma interlocução entre os outros internautas. Entra no diálogo o internauta José Neto
(comentador externo) que diz: Lave seu cérebro... Percebemos que ele responde de modo irônico ao
comentador anterior, expressando uma relação dialógica de confronto, deixando subentendido que
ele não concorda com a ideia proposta pelo internauta anterior, de derramar detergente no mar para
limpar as manchas de óleo.
A partir da leitura desses comentários exteriores, os alunos se inserem no diálogo
respondendo-os. Desse modo, temos o aluno (D) da escola Nilza Coelho Lima, que diz: lave com
detergente kkk. Temos aqui uma resposta de oposição ao primeiro comentário, revelando uma atitude
irônica por parte do internauta, o comentário finaliza com uso do kkkk, que aponta para uma simulação
do riso. Podemos ver que o comentador utiliza uma linguagem da internet, própria do comentário
online. Santos (2018) nos diz que o gênero comentário online dá abertura para a escolha do material
linguístico por parte do internauta. Deste modo, percebemos que os aspectos linguísticos utilizados
nesse gênero ficam a cargo do próprio internauta, sendo utilizados por ele da maneira que julgar
necessário.
Dando continuidade à sequência, temos a exposição do comentário por parte de outro
aluno (E), que diz: Detergente só tira óleo de cozinha, não tira o óleo do mar. Ou seja, o aluno se
coloca em uma relação de oposição, de discordância em relação aos comentários anteriores. Temos
ainda o comentário do aluno (F), que responde ao comentário anterior: acredita que eu pensei que
tirava também óleo da praia kkkk. Mais uma vez temos a presença da simulação do riso, com essa
escrita mais espontânea, a partir da expressão: kkkk, no final, expressando uma certa ironia por parte
do internauta.
158

Percebemos que os alunos nessa segunda sequência estavam mais familiarizados com o
gênero, interagindo com internautas externos e mais à vontade em relação à exposição de seus
comentários, podemos verificar isso através das escolhas linguísticas utilizadas pelos alunos,
revelando uma espontaneidade.

Figura 4 - Sequências de comentários

Nessa terceira sequência, temos mais um comentário externo que inicia a discussão: NÃO
QUERO SER CHATO, MAS....O NORDESTE SÓ PRODUZ O QUE NÃO
PRESTA.........PRIMEIRO CRIARAM O INFELIZ DO.....L. U L A......AGORA TENTAM
DESTRUIR O PAÍS COM ESSE ÓLEO. Nesse caso, podemos perceber que ele expressa um
posicionamento de desqualificação, de preconceito em relação ao nordeste, como se a região fosse a
principal causadora do desastre ambiental que contaminou as praias. Assim, podemos ver que o
internauta expressa uma valoração depreciativa em relação ao nordeste.
O comentador (G) da escola Nilza Coelho Lima se insere no diálogo com uma atitude de
discordância em relação ao que foi dito pelo internauta que iniciou a sequência. O Aluno (G) diz:
Você esta se achando de mais, e você onde mora para está falando do nordeste ? E mais uma coisa
isso só esta acontecendo por causa desses barco que esta jogando óleo no mar ok. O comentário se
constitui como uma resposta ao comentário de desqualificação do internauta anterior, o comentador
coloca-se como um sujeito crítico, revelando um posicionamento frente ao preconceito manifestado
no comentário lido. Ou seja, o aluno se coloca em defesa do povo do nordeste, ganhando voz diante
de um tema social.
Pensando nessa atitude crítica adotada pelo aluno (G), apresentamos a BNCC (2018), no
que tange às habilidades voltadas para o desenvolvimento do senso crítico. Habilidades de diferenciar
o discurso de ódio da liberdade de expressão e, assim, se posicionar de modo contrário. Destacamos
a importância de trabalhar em sala de aula o gênero comentário online, no que diz respeito a
159

habilidades voltadas ao aprimoramento do senso crítico dos alunos, uma vez que o gênero é um
espaço voltado à exposição de posicionamentos por parte dos leitores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho com o gênero digital comentário online em sala de aula representa inúmeras
possibilidades para o processo de ensino de leitura e produção textual. Esse gênero, quando levado
para o contexto educacional, não se constitui apenas como uma maneira de inserir os alunos diante
de uma nova forma comunicativa, mas também a possibilidade de despertar nesses alunos
comportamentos mais éticos e críticos diante de situações que exigem um posicionamento por parte
deles. Além disso, é uma possibilidade de desenvolver habilidades de escrita em situações reais
propiciadas pelo gênero comentário online.
A aplicação dessa oficina possibilitou um primeiro contato de alguns alunos com o gênero
comentário online, reforçando a importância de inserir os alunos em práticas de leitura e produção no
espaço digital. Para a sua realização, destacamos alguns desafios, como a necessidade de adaptação
em relação ao número de computadores, uma vez que não tínhamos computadores suficientes para
todos. Todo o deslocamento e a quantidade de tempo disponibilizado fizeram com que a oficina
ocorresse em apenas uma manhã, o que acreditamos que tenha sido mais um desafio, uma vez que
tivemos que programar toda a aplicação para um espaço de tempo limitado.
Em relação aos resultados positivos, destacamos o envolvimento dos alunos durante a
aplicação da oficina, a curiosidade em conhecer e fazer uso do gênero comentário online. Destacamos,
ainda, a interação constante nos momentos de leitura da notícia e também dos comentários. No
momento de produção, os alunos demonstraram interesse e empenho ao produzir seus próprios
comentários, interagindo com a notícia e com outros internautas, mantendo sempre comportamentos
éticos. Através da oficina, percebemos o quanto o trabalho com os gêneros digitais se faz necessário
diante dessa evolução constante dos meios comunicativos. Colocar os alunos diante de práticas
voltadas para o ensino dos gêneros digitais em situações reais de uso é dar a eles possibilidades de
conhecer esses gêneros e aprimorar seus processos comunicativos no espaço virtual.
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad.: Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
2016[1979].

_________. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad.: Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2018.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros
curriculares nacionais. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998.
160

______ Base Nacional Comum Curricular. Brasília. Disponível em


<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_sit e.pdf> .
Acesso em: 22 nov. 2020.

CUNHA, D. A. C. Formas de presença do outro na circulação dos discursos. Bakhtiniana, São Paulo,
v. 1, n. 5, p. 116-132, 2011.

_______. Reflexões sobre o ponto de vista e a construção discursiva de comentários de leitores na


web. In: Comentários na internet. 1 ed. Imperatriz: UDUFMA, 2014, p. 11- 22.

DORETTO, S. A; BELOTI, A. Concepções de linguagem e conceitos correlatos: a influência no


trato da língua e da linguagem. Revista Encontros de Vista, 8ª edição. p. 89 – 103, 2011.

MARCUSCHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio Carlos. (Org.). Hipertextos e gêneros digitais:
novas formas de construção de sentidos. (orgs.). – 3. ed. – São Paulo: Cortez, 2010.

ROJO, Roxane Helena R.; BARBOSA, Jacqueline P. Hipermodernidade, Multiletramentos e


Gêneros Discursivos. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

SANTOS, Eliane Pereira dos. Gênero comentário online: um enfoque axiológico-dialógico do


estilo. 2018. Tese (Doutorado em Letras/Linguística) – Programa de Pós Graduação em Letras,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
161

ESPECIFICIDADES ESTILÍSTICAS DO GÊNERO ARTIGO CIENTÍFICO DE


LINGUÍSTICA EM DUAS LÍNGUAS/CULTURAS

Andressa Leticia Villagra Silva61

RESUMO
O gênero artigo científico é um dos mais prestigiados na esfera científica, são produzidos
normalmente por universidades e centros de pesquisa, onde circulam textos elaborados por cientistas
para seus pares. Por isso, esse gênero discursivo foi escolhido para compor o corpus de pesquisa dessa
análise. O objetivo desta pesquisa é compreender as especificidades do gênero artigo científico em
duas línguas/culturas, a brasileira e a chilena, e o português e o espanhol. Tal objetivo foi alcançado
por meio de uma análise que possibilitou a interpretação da parte verbal (linguística) em parceria com
a parte extraverbal (destinatário presumido). O corpus de análise e interpretação deste artigo são
artigos publicados na revista brasileira “Filologia e Linguística Portuguesa”, da Universidade de São
Paulo (USP), e na revista “Boletín de Filología”, da Universidad de Chile. A abordagem teórica
empregada está na teoria do Círculo de Bakhtin, focando especificando em um dos elementos
constitutivos do gênero, o estilo. O estilo é um dos elementos do enunciado e o gênero do discurso
uma forma relativamente estável do enunciado, ambos estão indissoluvelmente atrelados. A marca
deixada na obra pelo estilo individual cria princípios específicos que a diferenciam de outras da
mesma esfera da comunicação discursiva. O gênero artigo científico possibilita a expressividade do
autor materializada no estilo individual por meio dos seguintes recursos: pessoa gramatical,
transferência de agente da ação para o objeto de pesquisa e desinência modo-temporal. Neste artigo,
primeiramente será conceituado o elemento constitutivo do gênero do discurso na teoria do Círculo
de Bakhtin. Em seguida, o foco do estudo será a dimensão extraverbal dos artigos, focando no
destinatário presumido. Na sequência, analisaremos o estilo por meio dos aspectos linguísticos.
Finalmente, será sintetizado os resultados da análise comparativa do gênero artigo científico nas duas
línguas/culturas. Diante da análise feita nos 6 artigos, podemos observar que há grande normatização
estilística no gênero artigo científico, compartilhadas por autores do Brasil e Chile.

Palavras-chave: Gênero do discurso. Estilo. Círculo de Bakhtin. Artigo científico.

INTRODUÇÃO

Os periódicos científicos são produzidos normalmente por universidades e centros de


pesquisa, onde circulam textos elaborados por cientistas para seus pares, isto é, pesquisadores da
mesma área, a fim de avançar, mudar, refutar, reformular ou transformar o estado de conhecimento
de uma dada área do saber.
O objetivo principal deste artigo é compreender as especificidades do gênero artigo
científico em duas línguas/culturas, por meio de uma análise que possibilite a interpretação da parte

61
Graduanda de Letras em Linguística e Português pela Universidade de São Paulo, USP, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, FFLCH. Teve sua pesquisa financiada com bolsa FAPESP de Iniciação Científica. Endereço
eletrônico: andressavillagra@usp.br.
162

linguístico-estilística em parceria com a parte extraverbal (esfera científica e destinatário presumido).


Com esse propósito, mobilizamos a teoria bakhtiniana por meio do exame de enunciados do mesmo
gênero discursivo. Análise comparativa semelhante já foi realizada, no entanto, sobre artigos da
Scientific American dos Estados Unidos traduzidos para o português e o russo à luz da teoria
bakhtiniana, realizado pelas pesquisadoras Grillo e Glushkova (2016)62. As autoras mostram como
Bakhtin construiu sua teoria por meio de análises comparativas do gênero romance em diferentes
línguas e culturas (inglesa, alemã, francesa, italiana e americana, sobretudo), o que revelou a
pertinência do arcabouço teórico-metodológico bakhtiniano para análises comparativas de gêneros
em duas línguas/culturas.
O gênero artigo científico é um dos mais prestigiados na esfera científica, por isso foi
escolhido para compor esse estudo. Além disso, a opção em analisar artigos de autores brasileiros e
chilenos deu-se pela escassez de trabalhos em análise comparativa dessas duas línguas/culturas, muito
embora alguns pesquisadores já tenham analisado artigos científicos, e outros tenham feito estudos
comparados de duas línguas, como a pesquisadora Coracini (1991), que analisou artigos científicos
do Brasil e da França.
O corpus de análise deste trabalho são artigos publicados na revista brasileira “Filologia
e Linguística Portuguesa”, da Universidade de São Paulo (USP), e na revista “Boletín de Filología”,
da Universidad de Chile. A escolha desses países se deu pela proximidade histórico-geográfico-
científica, ou seja, por ambos terem um passado colonial, situarem-se na América Latina e ocuparem
uma posição semelhante na esfera científica, pois, por um lado, têm menor tradição de pesquisa em
relação aos grandes centros como Europa e Estados Unidos e, por outro, possuem, dentro de um
contexto latino-americano, duas universidades com grande prestígio e renome internacionais, que
estão entre as 10 melhores universidades da América Latina, segundo a QS World University
Rankings (2018).
O material desta pesquisa será composto por seis artigos científicos, três da revista
brasileira e três da revista chilena, publicados entre 2013 e 2018, sobre a mesma área da Linguística:
a Sociolinguística. Eles foram coletados na base de dados das revistas com uma busca refinada por
ano e palavras-chave em comum com a área de Sociolinguística. São eles:

Filologia e Linguística Portuguesa Boletín de Filología


A posição e a colocação de clíticos em predicados La función discursiva y la distribución social de
complexos: o português brasileiro visto a partir de los marcadores "por ser" y "onda" en el corpus del

62
As pesquisadoras publicaram um artigo científico na Revista Bahtiniana em 2016 intitulado “A divulgação científica
no Brasil e na Rússia: um ensaio de análise comparativa de discursos” que funda-se na metalinguística bakhtiniana, na
qual o objeto de estudo são as relações dialógicas no interior e entre os enunciados, compostos por elementos linguísticos
e extralinguísticos.
163

duas vertentes (ANDRADE; CARNEIRO, p. 125- PRESEEA de Santiago de Chile (NÚÑEZ;


161, 2014). INOSTROZA; GONZÁLEZ, p. 235-254, 2016).
Escrita e comportamento social: Dom Obá II nas Los reformuladores de distanciamiento en el
páginas dos jornais cariocas do século XIX corpus PRESEEA de Santiago de Chile (NÚÑEZ,
(BORBA, p. 447-472, 2015). p. 171-199, 2013).
O português como língua glocal: aspectos sócio- Representación sociolingüística de lo rural
históricos e linguísticos de sua conformação mediante recursos de oralidad simulada en dos
(MACHADO; OLIVEIRA, p. 257-270, 2018). obras teatrales de Roberto Navarrete (PEREIRA;
PUENTES; AMAYA; MASQUIARÁN, p. 195-
216, 2018).

A pesquisa apresentada neste artigo faz parte da Iniciação Científica realizada pela autora,
na qual a análise comparativa foi feita a partir dos três elementos constitutivos do gênero do discurso
(estilo, conteúdo temático e construção composicional) em parceria com a parte extraverbal (esfera,
destinatário presumido, relações de autoria). Para compor este o presente texto, foram recortados
alguns aspectos linguísticos analisados dentro do estilo: pessoa gramatical, transferência de agente da
ação para o objeto de pesquisa e desinência modo-temporal, os aspectos que mais demonstram
semelhanças nas duas línguas/ culturas. No entanto, na pesquisa original outros aspectos foram
estudados, os que mais demonstraram diferenças: modalizadores, discurso do outro e travessões.
Nas seções a seguir, serão conceituados, primeiramente, o estilo como elemento
constitutivo do gênero do discurso na teoria do Círculo de Bakhtin. Em seguida, o foco do estudo será
a dimensão extraverbal dos artigos. Na sequência, analisaremos o estilo e os aspectos linguísticos,
para, ao final, sintetizarmos os resultados da análise comparativa do gênero artigo científico nas duas
línguas/culturas.

O ESTILO COMO MARCA INDISSOLÚVEL DO GÊNERO

O gênero do discurso está indissoluvelmente atrelado ao estilo, uma vez que, para
Bakhtin, “Onde há estilo há gênero” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 21). Sendo o estilo um dos
elementos do enunciado e o gênero do discurso uma forma relativamente estável do enunciado, não
teria como ser diferente. “Todo enunciado - oral e escrito, primário e secundário e em qualquer campo
da comunicação discursiva - é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de
quem escreve), isto é, pode ter estilo individual.” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 17). O autor ressalta
que, apesar do caráter individual ser inerente ao estilo, alguns gêneros estão mais propensos a ele do
que outros, um exemplo desse tipo são os gêneros da literatura nos quais a individualidade é parte
integrante do enunciado.
Na via contrária desses gêneros, estão aqueles em que o reflexo do estilo individual quase
não atinge o enunciado. Nesses “só podem refletir-se os aspectos mais superficiais, quase biológicos
da individualidade (e ainda assim predominantemente na realização oral dos enunciados desses tipos
164

padronizados)” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 17). Para Bakhtin, isso se justifica pela forma muito
padronizada de tais gêneros como por exemplo: documentos oficiais ou ordens militares.
Os enunciados das esferas científica e literária, como o artigo científico e o romance, por
exemplo, têm sua construção complexa e, apesar de serem diferentes entre si, guardam um ponto em
comum: pertencem a esferas secundárias, complexas e marcadas pela escrita. Para Bakhtin, enquanto
unidades da comunicação discursiva, os gêneros científicos e ficcionais, apesar de não se construíram
muitas vezes pela presença física de seus interlocutores, não são menos dialógicos:

estão nitidamente delimitadas pela alternância dos sujeitos do discurso, cabendo observar que
essas fronteiras, ao conservarem a sua precisão externa, adquirem um caráter interno graças
ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aí revela a sua
individualidade no estilo, na visão de mundo, em todos os elementos da ideia de sua obra.
(BAKHTIN, 2016 [1979], p. 34)

A marca deixada na obra pelo estilo individual cria princípios específicos que a
diferenciam de outras da mesma esfera da comunicação discursiva, isto é, das obras que vieram antes
dela e com as quais o autor estabelece relações dialógicas explícitas ou não, de outras obras da mesma
área ou das obras de correntes contrárias refutadas pelo autor.
O que determina o estilo (e a composição) é o elemento expressivo do enunciado, ou seja,
“a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do
seu enunciado” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 47). Esse elemento pode ter significado variado dentro
dos diferentes campos da comunicação discursiva, além de ter um grau distinto de força em cada
enunciado, porém o que é certo é a inexistência da neutralidade nos enunciados, não existe enunciado
neutro. A escolha dos recursos composicionais, gramaticais e lexicais também é determinada pela
relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso.
O falante adquire as formas do enunciado, os gêneros do discurso, assim como as formas
da língua nacional (com a composição vocabular e a estrutura gramatical), ambas obrigatórias para a
compreensão entre os interlocutores da comunicação discursiva. Desse modo, o estilo individual se
inter-relaciona de maneira recíproca com a língua nacional.
Volóchinov (2019) teoriza que o enunciado é composto por uma parte verbal e outra
extraverbal. Esse estudo visa analisar o discurso como “a língua em sua integridade concreta e viva”
(BAKHTIN, 2010 [1961], p. 207), ou seja, não se restringindo à língua como objeto abstrato e
linguístico. A metalinguística proposta por Bakhtin objetiva analisar aspectos do discurso que
ultrapassam os limites linguísticos, pois o enunciado compreende elementos extralinguísticos. Em
consonância com esse projeto, iniciaremos a análise com uma comparação dos aspectos extraverbais
do gênero artigo científico nas duas línguas/culturas.
165

ASPECTO EXTRAVERBAL NOS ARTIGOS CIENTÍFICOS: O DESTINATÁRIO


PRESUMIDO

Os dois aspectos extraverbais dos artigos científicos das revistas brasileira e chilena
selecionados para análise serão: a esfera da atividade humana do qual o gênero artigo científico faz
parte e o destinatário presumido de tais artigos. Eles foram escolhidos, pois observamos que
apresentaram maior influência no estilo dos enunciados do corpus.63
Passemos agora para outro aspecto extraverbal importante focalizado na análise: o
destinatário presumido dos artigos. Ele é um respondente ativo, segundo Bakhtin (2016 [1952-1953]),
que assume diferentes matizes e posições sociais no intercâmbio da comunicação e está sempre se
orientando axiologicamente, expressando valores, presente fisicamente ou não. Assim, o interlocutor
cumpre um papel essencial nas escolhas estilísticas da pessoa que fala ou escreve e participa
ativamente da construção do enunciado.
O interlocutor presumido se apresenta como um destinatário já determinado pelo gênero
no qual se constrói o dizer com motivações, julgamentos, apreciações específicas. Assim, para os
propósitos desta análise, consideramos como destinatário presumidos pares, colegas pesquisadores
da comunidade acadêmico-científica e linguistas em geral.
Uma das dimensões da natureza dialógica do enunciado é a consideração do fundo
aperceptível da percepção do destinatário, ou seja, “[...] até que ponto ele está a par da situação, dispõe
de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação” (BAKHTIN, 2016[1952-
1953], p. 302). Para determinar a compreensão responsiva, o autor pondera as concepções,
convicções, preconceitos, as simpatias e antipatias. Essa consideração determina a escolha do gênero
e dos procedimentos que formam a construção composicional e dos meios linguísticos.
Em suas páginas, os dois periódicos expõem a delimitação de seus públicos-alvo de
maneira semelhante: para pesquisadores e interessados na área da Linguística ou Filologia. A revista
brasileira disponibiliza em seu website um tópico unicamente dedicado a explicitar o público-alvo do
periódico. “A revista busca atender estudantes, professores, pesquisadores dos mais diversos níveis
de formação e interessados em geral nas áreas de Filologia e Linguística, incluindo a área dos estudos
sobre língua portuguesa.64” A política editorial destaca ainda a acessibilidade da revista como um
ponto positivo para esses estudiosos e ressaltam que se trata de uma versão totalmente on-line com
todos os artigos disponíveis para downloads com livre acesso. Apesar da política editorial da revista

63
Esfera e destinatário presumido foram aspectos escolhidos para compor esse artigo por conta da limitação no número
de páginas, no entanto, a pesquisa na íntegra analisou ainda outros aspectos: relações de autoria e coautoria, público-alvo,
momento sócio-histórico.
64
Trecho retirado do site da Revista Filologia e Linguística Portuguesa. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/flp/index Acesso em 10 fev. 2019.
166

mostrar que valoriza as pesquisas locais, os artigos são recebidos do Brasil e do exterior. Para os
trabalhos produzidos por estrangeiros há o limite de 40% da composição total de cada edição.
No website da revista chilena não há um tópico específico para mostrar qual é o público-
alvo do periódico. No entanto, é possível verificar, no texto que explicita a história da revista, para
quem se destinam as publicações: o conteúdo do Boletín de Filología “está dirigido a estudiosos de
la lengua española así como a público interesado en problemas de lingüística y filología, en
general.65”
Observamos que, em ambas as revistas, há grande generalização com relação ao público-
alvo. Ao invés de se destinar especificamente a um nicho de pesquisadores de dada área, é possível
depreender que os periódicos estão abertos a qualquer pessoa que seja minimamente interessada no
assunto abordado. A nosso ver, essa caracterização é influenciada pela publicização das revistas, ou
seja, pela intenção dos editores de obterem o máximo de acesso possível do periódico e, com isso,
fortalecer a relevância da publicação. É possível perceber aqui o valor de replicação e o valor da
publicação da esfera, nos quais pretende-se com os artigos disseminar a pesquisa científica, já que
em ambas as revistas o acesso aos artigos é livre e destinado ao público em geral. Contudo, pensamos
que esse aspecto não interfere ou interfere pouco na elaboração dos artigos, pois os autores têm em
seus pares – pesquisadores e profissionais da área - o destinatário presumido.
Apesar de as revistas se mostrarem preocupadas com a língua de cada país como objeto
científico, elas não exigem que os artigos submetidos sejam exclusivamente em português ou
espanhol, mas por conta da internacionalização do conhecimento científico, ambas aceitam textos em
espanhol, português, inglês e francês. A temática da revista chilena é mais específica do que a da
brasileira, pois os trabalhos devem ser obrigatoriamente voltados para o estudo do espanhol (valor de
preservação do conteúdo), enquanto na revista brasileira são consideradas investigações sobre
linguagem em geral, mesmo o foco maior sendo a língua portuguesa.
A esfera científica, como aspecto do gênero discursivo, tem primordialmente como leitor
presumido a comunidade científica. Nessa comunidade o reconhecimento acadêmico de um cientista
ocorre principalmente pelos seus pares e é um indicador significativo de seu prestígio e de poder de
influência, pois o cientista aumenta sua credibilidade dentro da esfera ao ter suas pesquisas
divulgadas, lidas, discutidas e refutadas. Por isso, o papel do interlocutor cientista cumpre uma dupla
relação na produção dos artigos. Por um lado, o autor presume que os pares da esfera científica
conheçam uma linguagem característica especializada e conceitos de correntes teóricas, no caso
desses artigos, inseridos no campo da Linguística e da área da Sociolinguística. Nesse afunilamento

65
Trecho retirado do site do Boletín de Filologia. Disponível em: https://boletinfilologia.uchile.cl/
167

de especificidades de uma dada área, a linguagem e as teorias tornam-se ainda mais específicas, sendo
quase impossível um pesquisador de outra área ou um leitor comum compreenderem.
Por outro lado, o interlocutor cientista, o destinatário presumido, explica a
inconclusibilidade dos artigos. O pesquisador, ao expor sua pesquisa aos pares e à academia em geral,
partiu de ideias desenvolvidas por outros autores, e, por nenhuma obra estar acabada, principalmente
na esfera científica, é fato que sua pesquisa não termina ali. Ela continua num diálogo constante com
os leitores dos artigos, que poderão escrever outros para desenvolver a ideia inicial, refutar e
apresentar ideias substitutas, ou ainda utilizá-la para analisar novos dados.

O ESTILO NA CONSTRUÇÃO DA AUTORIA E NA RELAÇÃO COM O DESTINATÁRIO


PRESUMIDO

O estilo dos pesquisadores-autores dos artigos é definido pelos aspectos dialógicos do


enunciado: a influência da esfera e do destinatário presumido sobre o autor, a relação que o enunciado
mantém com outros enunciados precedentes da mesma esfera, o laço entre o autor e o alcance de
efeito de sua obra, seu sentido estilístico. A seleção dos recursos lexicais, gramaticais e fraseológicos
é determinada ainda pelo grau de estandardização e normatização da forma relativamente estável do
enunciado, ou seja, o gênero artigo científico orienta e condiciona o estilo do autor.

O grau de estandardização e normatização da forma relativamente estável do gênero artigo


científico

Um aspecto definidor do estilo é o grau de estandardização e normatização do gênero do


discurso, pois ele restringe ou valoriza a expressividade do autor materializada em seu estilo
individual. Nos artigos, o autor demonstra isso em seu enunciado, entre outros, por meio de marcas
de primeira pessoa do plural como pronomes pessoais, desinências verbais e pronomes possessivos.
Como podemos ver nos excertos a seguir:
(1) Apesar dos trabalhos anteriores, considerando que estamos tratando somente dos
predicados complexos, nossos resultados só podem se restringir à competição entre PB e
PE, sendo este último termo aqui entendido como um conjunto de união do português clássico
com o português europeu moderno. (ANDRADE; CARNEIRO, 2014, p. 143, grifo nosso)

(2) O processo de conformação do português brasileiro (PB) reuniu as condições necessárias


para que a diversidade linguística viesse a caracterizá-lo, fortemente, e a conduzi-lo à
condição de língua que atualmente poderíamos chamar de glocal, em que o mais global,
identificado aqui como urbano, e o mais local, relacionado às diferentes comunidades
rurais, reverberassem entre o mais universal e o mais particular. (MACHADO, 2017, p.
263, grifo nosso)

(3) Galvão nunca foi príncipe, sabemos nós, mas ele está convencido de que o é realmente.
(BORBA, 2015, p. 467, grifo nosso)
168

(4) Finalmente, destacamos la relevancia de llevar a cabo trabajos contrastivos con


muestras de otras comunidades de habla española, que permitan corroborar si los
marcadores por ser y onda son usos diferenciales del español de Chile. (NÚÑEZ;
INOSTROZA; GONZÁLEZ, 2016, p. 252, grifo nosso)

(5) En términos comparativos, por lo que refiere a sus frecuencias de uso, hemos
comprobado que por ser y onda manifiestan comportamientos de sentido inverso. (NÚÑEZ;
INOSTROZA; GONZÁLEZ, 2016, p. 249, grifo nosso)

Os autores escolhem esses recursos gramaticais para ressaltarem para o destinatário


algum aspecto importante do enunciado ao qual eles devem se atentar. Como no excerto (1) em que
o autor faz uma delimitação da abrangência dos resultados, antecipando um possível questionamento
do leitor de porque os resultados não se aplicam a outros tipos de predicados. Em (2) que o autor
explicita a possibilidade da determinação de um conceito que permeia toda a pesquisa. Em (3), no
qual o pesquisador destaca uma ideia compartilhada entre ele e seu destinatário. E em (4) e (5), os
autores enfatizam a importância dos resultados de sua pesquisa. Em todas as ocorrências, os autores
utilizam a primeira pessoa do plural para apontar algum aspecto relevante que eles querem ressaltar
para o leitor.
Em todas as línguas que possuem um verbo, segundo o linguista Benveniste
(1991[1966]), as formas da conjugação classificam-se segundo a referência de pessoa gramatical.
Essas denominações (primeira, segunda e terceira pessoas do singular e do plural) não nos informam
sobre a necessidade da categoria, o conteúdo implícito, nem as relações reunidas nas diferentes
pessoas. Por isso, não basta sabermos que os autores de artigos científicos no Brasil e no Chile
utilizam predominantemente a primeira pessoa do plural. É preciso saber como a pessoa escolhida
para compor o estilo do gênero artigo científico se opõe ao conjunto das outras pessoas e qual função
cumpre sua posição.
Segundo Benveniste, “a primeira pessoa é aquela que fala, a segunda é aquela a quem nos
dirigimos, mas a terceira é aquela que está ausente” (BENVENISTE, 1991[1966], p. 250). Nas duas
primeiras, há sempre implícito uma pessoa que fala e um discurso sobre tal pessoa. Segundo o
linguista, a primeira pessoa do singular é constituída de um caráter subjetivo, ou seja, inerentes ao
‘eu/yo’ e isso contradiz a possibilidade de pluralização, pois não pode haver vários ‘eu/yo’ concebidos
pelo próprio falante. Assim a primeira pessoa do plural, não pode ser “uma multiplicação de objetos
idênticos, mas uma junção entre o ‘eu’ e o não ‘eu’, seja qual for o conteúdo desse não ‘eu’”
(BENVENISTE, 1991[1966], p. 256).
A junção desses vários ‘eu/yo’ constrói nova e particular totalidade, na qual os
constituintes não têm o mesmo valor. Na primeira pessoa do plural é o ‘eu/yo’ que predomina, pois
não há ‘nós/ nosotros’ sem ele, assim esse elemento sujeita os outros elementos não-‘eu/yo’.
Dependendo da língua, existe o plural e o dual, podendo variar o plural inclusivo e exclusivo. No
169

entanto, nos artigos em português e espanhol o plural assume a forma inclusiva, ou seja, a primeira
pessoa do plural, formada pelo elemento ‘eu/yo’ e somada ao elemento ‘vós/vosostros’, efetua “a
junção das pessoas entre as quais existe a ‘correlação de subjetividade’” (BENVENISTE,
1991[1966], p. 257).
Assim, podemos perceber que, ao empregar a primeira pessoa do plural, mesmo quando
se trata de um único autor, a subjetividade fica atenuada e marca-se a relação de cumplicidade entre
o autor e o destinatário presumido. A partir do corpus podemos perceber que essa forma é usada
quando o pesquisador (‘eu/yo’) expressa uma opinião ou ideia compartilhada com seus leitores
(‘vós/vosotros’).
No artigo científico, a escolha de recursos gramaticais, que não a primeira pessoa do
plural, é comum. Sobre essas marcas de pessoa, Coracini (1991) argumenta que os autores preferem
utilizar diversos recursos com o intuito de o enunciador do artigo parecer assumir todo o tempo “a
postura de um observador distante do objeto observado” (CORACINI, 1991, p. 104). Vejamos como
isso se dá nos excertos nos artigos analisados neste trabalho:

(6) Em suma, nota-se que a subida de clíticos varia de acordo com dois grandes princípios
funcionais: a topicalidade e a coesão estrutural. (ANDRADE; CARNEIRO, 2014, p. 140,
grifo nosso)
(7) No início deste trabalho, assumiu-se a ideia de que seria condição essencial para o
estabelecimento do caráter glocal a uma determinada língua o da dialogicidade entre o
particular e o universal. (MACHADO, 2017, p. 261, grifo nosso)
(8) Retoma-se então Labov (2008), para quem a significação social que é atribuída às
variantes linguísticas pode servir como indicador para medir outras formas de
comportamento social, entre elas aspirações à ascensão social, mobilidade e insegurança
social, mudanças na estratificação e segregação social. (BORBA, 2015, p. 470, grifo nosso)

(9) “Como se desprende de estas frecuencias relativas de empleo, no existen diferencias


notables en cuanto al sexo-género de los sujetos que conforman la muestra.” (NÚÑEZ, 2013,
p. 192, grifo nosso)

(10) Nótese en este ejemplo que el personaje utiliza primero el voseo flexivo pronominal (“Y
vos te lo pasás moquiando”) y, a continuación, el voseo flexivo no pronominal, con uso de
pronombre átono segunda singular (“tehacís el mojigato”) y, finalmente, sin pronombre
(“tenís toda la culpa de que mi chiquilla llore”). (PEREIRA; PUENTES; AMAYA;
MASQUIARÁN, 2018, p. 210, grifo nosso)

Como podemos verificar a partir dos excertos acima, um dos recursos muito utilizados
nos artigos é a construção passiva. Nos artigos brasileiros, a escolha da voz passiva sintética se
destaca. Ao escolher essas formas gramaticais, o autor cria um efeito estilístico de distanciamento em
relação ao objeto analisado, com o intuito de dar mais credibilidade ao seu discurso científico. Isso
ocorre por meio do uso da partícula apassivadora ‘se’. Esse deslocamento de foco é um fenômeno
frequente no discurso científico, e no material analisado ele aparece com o objetivo de ser uma forma
170

sintética e com foco nas ações. Todas as vezes que essa partícula apareceu nos artigos foi para
descrever os processos que envolvem a pesquisa, ao deixar de lado quem a fez (pesquisadores).
Podemos perceber mais uma vez a presença do valor da ocultação da subjetividade, exigência do
gênero que se expressa por meio das escolhas estilísticas.
Outro recurso utilizado com o objetivo de ocultar a subjetividade é a transferência da ação
do verbo para o objeto de análise, ou seja, o sujeito gramatical agente é o próprio material analisado.
O emprego do particípio em estrutura passiva possibilita colocar o sujeito da oração em posição
temática. Essa organização da mensagem mantém o tema apresentado na oração anterior. Ao mesmo
tema, novas informações são relacionadas na sequência de cada oração. Se optasse por outra forma
linguística, como o presente do indicativo, por exemplo, o sujeito da oração teria de ser outro, e
posições temáticas alternativas poderiam ser escolhidas. No entanto, a organização temática escolhida
mantém mais claramente a relação dado-novo e contribui para deixar o texto fluente.
A situação imediata da comunicação abarca a articulação entre tempo e espaço em que o
enunciado é produzido. Com relação às escolhas das desinências modo-temporais, a mais frequente
nos artigos é o presente do indicativo, principalmente na primeira pessoa do plural. Vejamos:

(11) “Neste texto revisitamos a hipótese de acordo com a qual o português brasileiro é
formado por duas vertentes – a norma culta e a norma vernacular ou popular –, a partir do
problema da posição e da colocação de clíticos em predicados complexos.” (ANDRADE;
CARNEIRO, 2014, p. 126)
(12) “Entre os anos de 1882 e 1887, localizamos cerca de sessenta artigos publicados no
periódico Carbonario.” (BORBA, 2015, p. 448, grifo nosso)
(13) “En español contamos con excelentes obras de carácter general sobre los marcadores
del discurso, como las de Martín zorraquino y Montolío (coords. 1998), Martín zorraquino
y Portolés (1999), Portolés (2001) y Loureda y Acín (coords. 2010), entre otras.” (NÚÑEZ,
2013, p. 174, grifo nosso)
(14) “Por último, respecto del nivel de instrucción de los sujetos, el empleo de por ser se
concentra en el grupo de instrucción medio y no registramos casos en el alto.” (NÚÑEZ;
INOSTROZA; GONZÁLEZ, 2016, p. 250, grifo nosso)

Do ponto de vista do critério semântico, a desinência modo-temporal do indicativo é


usada para expressar atitude de certeza, sendo a forma utilizada na oração principal. Esse tempo é
usado para apresentação e caracterização do objeto da pesquisa, discussão e comentário dos dados
analisados, referências dentro do enunciado, para apresentar os conceitos teóricos e para comentar o
discurso do outro. Esse tempo aparece para dar credibilidade de certeza ao discurso, por isso é usado
na maioria das vezes.
O gênero artigo científico possibilita a expressividade do autor materializada no estilo
individual por meio de diversos recursos: modalizadores, comentários que interrompem o fluxo do
pensamento (por meio de parênteses, travessões e notas), discurso alheio (em diálogo com outros
171

pesquisadores da esfera), pessoa gramatical, transferência de agente da ação para o objeto de pesquisa
e a desinência modo-temporal.
As possibilidades estilísticas que os autores têm para construir seu discurso são muitas a
partir da gramática, mas as escolhas feitas demonstram o dialogismo entre autor-pesquisador e
destinatário presumido. Diante da análise feita nos 6 artigos, podemos observar que há grande
normatização estilística no gênero artigo científico no Brasil e Chile.

CONCLUSÃO

Esta pesquisa teve como principal objetivo compreender as especificidades do gênero


artigo científico em duas línguas/culturas (português-espanhol/ brasileira- chilena), por meio da
descrição e da análise da parte extraverbal (destinatário presumido) em parceria com a parte verbal
(estilo). Por meio das análises dos dois conjuntos de artigos, identificamos muitas semelhanças nas
duas línguas/culturas.
O primeiro ponto de semelhança foi a escolha da pessoa gramatical: primeira pessoa do
plural. Em ambas as línguas, a construção dessa pessoa se dá por meio do plural inclusivo (‘eu’+‘vós’/
‘yo’+‘vosostros’). Ao empregar essa forma, os autores deixam explícito a relação de subjetividade
entre o autor e o destinatário presumido, pois é usada quando o pesquisador (‘eu/yo’) expressa no
enunciado ideias que são compartilhadas com seus leitores (‘vós/vosotros’).
O segundo aspecto semelhante nas escolhas estilísticas, foram as alternativas escolhidas
para substituir a subjetividade da primeira pessoa do plural: transformar o objeto da pesquisa em
agente da ação. Isso ocorreu por meio do uso, principalmente, da partícula apassivadora ‘se’. Ao
escolher essa forma gramatical, os autores buscaram criar um efeito de distanciamento do objeto
analisado, com o intuito de dar mais credibilidade ao seu discurso científico.
O último elemento de semelhança foi a escolha da desinência modo-temporal. A
ocorrência mais frequente foi o presente do indicativo. O modo-temporal do indicativo é usado para
expressar certeza, sendo a forma utilizada na oração principal. Esse tempo aparece também para dar
credibilidade ao discurso.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, A.; CARNEIRO, Z. A posição e a colocação de clíticos em predicados complexos: o


português brasileiro visto a partir de duas vertentes. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa,
São Paulo, v. 16, n. esp., p. 125-161, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-
9419.v16ispep125-161. Acesso em: 10 fev. 2019.

BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: Questões de


literatura e estética: a teoria do romance. Tradução: A. F. Bernadini et al. 3. ed. São Paulo: Unesp,
2016 [1979].
172

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016
[1952-1953].

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
Forense Universitária, 2010 [1961].

BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução: Sheila Grillo; Ekaterina V.


Américo. São Paulo: Editora 34, 2013[194-].

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. Tradução Maria G. Novak e Maria L. Neri.


Campinas: Pontes Editores, 1991 [1966].

BORBA, L. Escrita e comportamento social: Dom Obá II nas páginas dos jornais cariocas do século
XIX. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, v. 17, p. 447-472, 2015. Disponível
em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v17i2p447-472. Acesso em: 10 fev. 2019.

CASTILHO, A. T. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.

GRILLO, S. V. C. & GLUSHKOVA, M. A divulgação científica no Brasil e na Rússia: um ensaio


de análise comparativa de discursos. Bakhtiniana, vol. 11, n. 2, p. 69-92, 2016. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323556. Acesso em 20 abr. 2019.

LATIN AMERICA. QS University Rankings, 2018. Disponível em


https://www.topuniversities.com/university-rankings/latin-american-universityrankings/2018.
Acesso em 30 mar. 2019.

MACHADO A.; OLIVEIRA, I. O português como língua glocal: aspectos sócio-históricos e


linguísticos de sua conformação. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, v. 19,
p. 257-270, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v19i2p257-270. Acesso
em 10 fev. 2019.

NÚÑEZ, A. M. S.; INOSTROZA, C. R.; & GONZÁLEZ, S. G. La función discursiva y la


distribución social de los marcadores "por ser" y "onda" en el corpus del PRESEEA de Santiago de
Chile. Boletín de Filología, Santiago, v. 51, p. 235-254, 2016. Disponível em:
https://boletinfilologia.uchile.cl/index.php/BDF/article/view/44878/46948. Acesso em 10 fev. 2019.

NÚÑEZ, A. M. S. Los reformuladores de distanciamiento en el corpus PRESEEA de Santiago de


Chile. Boletín de Filología, Santiago, v. 48, p. 171-199, 2013. Disponível em:
https://boletinfilologia.uchile.cl/index.php/BDF/article/view/27141/28772. Acesso em 10 fev. 2019.

PEREIRA, D.; PUENTES, H.; AMAYA, J. & MASQUIARÁN, N. Representación sociolingüística


de lo rural mediante recursos de oralidad simulada en dos obras teatrales de Roberto Navarrete.
Boletín de Filología, Santiago, v. 53, p. 195-216, 2018. Disponível em:
https://boletinfilologia.uchile.cl/index.php/BDF/article/view/50643/53229. Acesso em 10 fev. 2019.

VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método


sociológico na ciência da linguagem. Tradução: Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. São Paulo:
Editora 34, 2017 [1929].

VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e


poemas. Tradução: Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.
173

A SEQUÊNCIA INJUNTIVA: ANÁLISE NO GÊNERO DISCURSIVO TEXTUAL


CARTILHA EDUCATIVA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Isabel Romena Calixta Ferreira; UFRN (Doutoranda/PPGEL)66


Maria das Graças Soares Rodrigues; UFRN (Doutora/PPGEL)67

RESUMO

A pesquisa com os gêneros discursivos textuais tem se tornado constante nas práticas do âmbito dos
estudos linguísticos. Como sabemos, os gêneros discursivos textuais estão nos mais diversos meios
de comunicação, auxiliando-nos em nossa prática social como ponte de interação. Sua variedade
existente na sociedade é enorme e possui fundamental importância ao favorecer o desenvolvimento
de competências textuais e discursivas de quem os utiliza. Diante dessa diversidade, pretendemos
analisar a sequência injuntiva no gênero cartilha educativa que focaliza informações sobre a pandemia
da covid-19. Para orientar nosso estudo acerca das sequências textuais injuntivas elaboramos os
questionamentos: (1) como as sequências injuntivas se apresentam nos gêneros midiáticos? (2) que
recursos são utilizados para garantir que o leitor cumpra o que está dito? Assim, procurando responder
a essas questões, estabelecemos como objetivos: (a) descrever a forma como as sequências injuntivas
se apresentam e (b) analisar os recursos que nelas se encontram. Teoricamente, estamos considerando
que o gênero instrucional (a exemplo da cartilha) é caracterizado por ser predominantemente
composto de sequências imperativas (SANTOS e FABIANI, 2012, p. 66) e que “um gênero realiza
várias sequências de tipos textuais [...]” (MARCUSCHI, 2002, p. 31). As sequências definem-se
como “[...] unidades textuais complexas, compostas de um número limitado de conjuntos de
proposições-enunciados [...]” (ADAM, 2011, p. 204). A pesquisa realizada segue uma abordagem
qualitativa de base interpretativa, segue o método indutivo e baseia-se em postulados da Linguística
Textual e da Análise Textual dos Discursos – ATD (ADAM, 2011), considerando principalmente as
discussões sobre texto, sequência injuntiva e gênero discursivo, sendo esta última noção retomada da
abordagem bakhtiniana de gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003). Diante dessa diversidade,
analisamos a sequência injuntiva no gênero cartilha educativa que focaliza informações sobre a
pandemia de covid-19, momento atual que ficará marcado na história da humanidade como um
divisor de águas, instaurando novos costumes, pensamentos e comportamentos na sociedade global.
Os resultados evidenciaram que a sequência injuntiva no referido gênero instrucional é aplicada de
modo a instruir seus leitores a seguirem o passo a passo com cuidado e atenção para que todas as
normas se segurança e higiene sejam respeitas e colocadas em prática, a fim de garantir o sucesso da
prevenção durante o contexto da pandemia da covid-19.

Palavras-chave: sequência injuntiva. gênero discursivo textual. Pandemia. covid-19.

PALAVRAS INICIAIS
As investigações acerca dos gêneros discursivos textuais 68 têm grande relevância nas
práticas de pesquisa do campo da Linguística. Nessa perspectiva, os gêneros discursivos textuais estão

66
E-mail: romenacalixta@gmail.com
67
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
68
Adotamos a posição de que a expressão pode ser assim utilizada, tendo em vista que há um nível enunciativo para o
discurso e um nível textual que se refere aos elementos linguísticos próprios do texto.
174

presentes nos modos de comunicação mais heterogêneos, ajudando-nos nas mais diversas formas de
interação da nossa prática social. A pluralidade de gêneros que se efetua na sociedade é vasta e possui
importância substancial no desempenho dessas práticas no favorecimento do desenvolvimento de
competências textuais e discursivas de quem os utiliza.
O gênero cartilha está presente há bastante tempo no cotidiano das pessoas, abrangendo
um público diversificado. Outro aspecto que podemos citar sobre a cartilha é o seu discurso
persuasivo ao convocar o leitor a seguir algum caminho. Esse ponto é bem explorado nas cartilhas de
saúde atuais. Nesse sentido, segundo Mendonça (2008, p. 83): “A cartilha educativa foi criada no
âmbito das campanhas governamentais, com o intuito de facilitar o acesso à informação, por parte de
pessoas oriundas de diferentes contextos socioculturais, com diferentes graus de escolaridade”.
Assim, a cartilha é caracterizada como um gênero instrucional que utiliza de uma
linguagem simples, a fim de se fazer com que se compreenda seu conteúdo pelo fato de atingir
diversos públicos, pois os textos instrucionais, “em que se dão regras de como fazer algo” (DISCINI;
TEIXEIRA, 2007, p. 13), são definidos como a concretização do tipo textual injuntivo. Nessa direção,

nos gêneros instrucionais, pressupõem-se a autoridade e legitimidade do enunciador para a


construção do discurso – o comando apenas se justiça caso o interlocutor o aceite como
verdade, justificada e reconhecida socialmente, a ser executada. Os tipos de enunciados
instrucionais tendem a ser fechados em si mesmos, a partir de uma visão autoritária da
construção dos sentidos (FABIANI; SANTOS, 2012, p. 67).

Para orientar nosso estudo acerca das sequências textuais injuntivas, elaboramos os
seguintes questionamentos: (1) como as sequências injuntivas se apresentam nos gêneros midiáticos?
(2) que recursos são utilizados para garantir que o leitor cumpra o que está dito? Assim, procurando
responder a essas questões, estabelecemos como objetivos: (a) descrever como as sequências
injuntivas se apresentam e (b) analisar os recursos que nelas se encontram.
Teoricamente, estamos considerando que o gênero instrucional (a exemplo da cartilha) é
caracterizado por ser predominantemente composto de sequências imperativas (FABIANI; SANTOS,
2012, p. 66) e que “um gênero realiza várias sequências de tipos textuais [...]” (MARCUSCHI, 2002,
p. 31). As sequências definem-se como “[...] unidades textuais complexas, compostas de um número
limitado de conjuntos de proposições-enunciados [...]” (ADAM, 2011, p. 204).
Nas cartilhas educativas, especialmente as que veiculam informações sobre a promoção
da saúde, há uma tentativa de aproximação entre os fatos da realidade da ciência e o público leigo.
Evocamos Mendonça (2008), a fim de evidenciar algumas estratégias que incidem para essa
aproximação:
a) o uso de imagens e de recursos gráficos que permitam, mesmo ao leitor pouco escolarizado
ou com dificuldades de leitura, compreender parte do que é dito no texto; b) a didatização
175

das informações, por meio das frases curtas, do vocabulário de uso comum e das gírias; e c)
a junção justificativa dos dois itens anteriores: o texto verbal e a imagem [...] (MENDONÇA,
2008, p. 86).

Esses fatores fazem com que a linguagem veiculada seja facilmente compreendida pelos
leitores, corroborando para a finalidade do gênero em questão: instruir o leitor a fazer algo.
Na próxima seção, trazemos alguns aspectos teóricos sobre texto, gênero discursivo
textual e sequência injuntiva, os quais nossa pesquisa filia-se para dar-nos o suporte necessário para
os esclarecimentos deste trabalho.

PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS

Embora haja evidência de que os gêneros apresentem uma heterogeneidade tipológica,


percebemos a existência de sequências que se revelam como dominantes no discurso de certos
gêneros. A dupla comando-execução atribui aos gêneros instrucionais características intrínsecas à sua
materialidade linguístico-textual. Consoante Marcuschi (2002), a sequência textual predominante
nesses enunciados tipicamente instrucionais é a injuntiva, cujo objetivo é levar ao enunciador
executar algo. Dessa maneira, a sequência injuntiva nos gêneros instrucionais caracteriza-se como
um fator estilístico que, “ao lado do conteúdo temático e da construção composicional, é um elemento
caracterizador dos gêneros textuais” (FABIANI; SANTOS, 2012, p. 65).
Diante da diversidade de gêneros, investigaremos a sequência injuntiva em cartilhas
educativas que focalizam informações sobre a pandemia da covid-19. A pesquisa realizada segue uma
abordagem qualitativa de base interpretativa e baseia-se em postulados da Linguística Textual e da
Análise Textual dos Discursos – ATD (ADAM, 2011), considerando principalmente as discussões
sobre texto, sequência injuntiva e gênero textual, sendo esta última noção retomada da abordagem
bakhtiniana de gêneros do discurso sob a perspectiva de Bakhtin (2003) e em postulados de Marcuschi
(2008).
As definições de texto e de gênero textual têm sido demasiadamente discutidas nos
últimos anos na área da linguística. Trazemos à tona o que diz a Linguística Textual, em especial, o
pensamento teórico que seguimos na ATD, que faz uma distinção bem sucinta do que sejam as duas
noções acima citadas.
As discussões sobre texto, no contexto linguístico, com as quais Adam (2011) trabalha,
vão desde os primeiros estudos sobre o que consistiam nas restrições de uma disciplina específica
para tratar dos limites da frase, com Jakobson (1963, 1973); bem como Bakhtin (1978) sobre os
fenômenos linguísticos a que pertencem à linguística. Para Adam (2011, p. 63), “A linguística textual
refere-se tanto à descrição e à definição das diferentes unidades quanto às operações, em todos os
176

níveis de complexidade, que são realizadas pelos enunciados”. No que concerne à concepção de texto,
para Adam (2011), pode ser assim definida como

[...] um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia justificar o recurso a
diferentes teorias, mas é de uma teoria desse objeto e de relações com o domínio mais vasto
do discurso em geral que temos necessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos
diferentes ciências da linguagem, um novo quadro e uma indispensável coerência. (ADAM,
2011, p. 25).

Ao tratar de gêneros de discurso, Adam (2011) enfatiza a posição adotada por Todorov
(1977, 1978), cuja definição se circunscreve em uma relação entre língua e gênero, permitindo afirmar
que é caracterizada por qualquer propriedade verbal, de caráter facultativo ao nível da língua, pode
se tornar indispensável/obrigatório em um discurso. Alguns autores da linguística textual dão uma
significativa contribuição aos estudos nesse campo. Entre outros, situa-se Marcuschi (2008), cuja
definição de texto afirma que depende do conceito de língua que se tem. Para o autor, “[...] a língua
é um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas” (MARCUSCHI, 2008, p. 61)
e, consequentemente, o texto é visto como

[...] o resultado de uma ação linguística cujas fronteiras são em geral definidas por seus
veículos com o mundo no qual ele surge e funciona. Esse fenômeno não é apenas uma
extensão da frase, mas uma entidade teoricamente nova. [...] falamos de texto como um
evento que atualiza sentidos e não como uma entidade que porta sentidos na independência
de seus leitores. (MARCUSCHI, 2008, p. 72).

Isto quer dizer que o autor destaca a importância de considerá-lo quanto ao objetivo dos
interlocutores e ao contexto sociocognitivo, por conseguinte o “[...] texto é uma entidade concreta
realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual”. Da mesma maneira que o autor,
partiremos da perspectiva dos gêneros textuais, com base em uma concepção de língua como
atividade social, histórica e cognitiva, na qual os gêneros se estabelecem como ações sociodiscursivas
a fim de agir/dizer sobre o mundo, organizando-o de alguma forma.
Segundo Marcuschi (2008, p. 242), o texto deve ser visto como “um processo” e como
“um evento comunicativo sempre emergente”. Dessa maneira, não podendo ser considerado como
“um produto acabado e objetivo” ou muito menos “um depósito de informações”, e sim visto como
“um evento ou um ato enunciativo” (MARCUSCHI, 2008, p. 242), pois o texto está sempre em
elaboração.
Adam (2011) explica as sequências como unidades que compõem a proposição-
enunciado. Nesse sentido, conforme o autor, “as sequências são unidades textuais complexas,
177

compostas de um número limitado de conjuntos de proposições-enunciados: as macroproposições”.


(ADAM, 2011, p. 205). Estas são caracterizadas como uma espécie de período que tem como
principal propriedade “ser uma unidade ligada a outras macroproposições”. (ADAM, 2011, p. 205).
As sequências textuais possuem uma rede relacional hierárquica que as permitem ser analisáveis em
partes que estão ligadas entre si na sua composição, constituindo o todo. Relativamente ao todo global
do texto do qual fazem parte, as sequências mantêm uma relação de dependência-independência; por
isso é que dizemos que elas constituem entidades relativamente autônomas.
Cabral (2015, p. 127) destaca a importância que devemos dar ao examinarmos que “as
sequências não podem ser consideradas isoladamente do conjunto do gênero em que se inserem”.
Para isso, a autora cita Adam (2011), ao enunciar que o linguista deixa claro o fato de “a sequência
se encontra numa relação de dependência-independência com o conjunto mais amplo do qual faz
parte, (o texto)”. Segundo ela, a sequência “desempenha uma função no conjunto do gênero,
contribuindo para o cumprimento de sua função social” (Ibid., p. 127). Dessa forma, vemos que,
conforme a autora, a compreensão das sequências textuais não deve ser pautada somente no nível da
textualidade, “mas também como elementos de natureza cognitiva, culturalmente organizados, na
memória” (Ibid., p. 127), em conformidade com os conhecimentos do produtor e seu contato com
diversos tipos de gêneros, construídos de sequências diversas.
Na seção seguinte, apresentamos a análise do corpus desta pesquisa sobre o qual é preciso
salientar que sua escolha deu-se através de alguns critérios que elegemos na sequência: (I) cada uma
delas é destinada a um público específico; (II) foram produzidas no cenário da pandemia; (III)
apresentam elementos não verbais (como figuras e imagens) para ilustrar as instruções, fatores que
didatizam as cartilhas; (4) dispõem de elementos gráficos específicos da Internet e redes sociais,
importantes para situar o momento no qual vivemos – da Era Virtual – e aproximar-se de um público
mais voltado ao ambiente virtual, e (5) possuem informações afins acerca da prevenção contra o
Coronavírus. Para tanto, selecionamos algumas de suas páginas para exemplificar os pontos que serão
analisados

ANÁLISE DAS CARTILHAS EM TEMPOS DE COVID-19

A primeira cartilha (C1), “Tempos de Pandemia: Criando e recriando ações de cuidado


às crianças e adolescentes usuári@s de serviços de saúde mental”, produzida pelo Laboratório de
Terapia Ocupacional e Saúde Mental, em parceria com dois Centros de Atenção Psicossocial
Infantojuvenis, possui 19 páginas e apresenta o objetivo de apoio às Equipes de Saúde Mental
Infantojuvenil em tempos de pandemia da covid-19, chamando a atenção para o aspecto psicossocial
desses indivíduos, bem como auxílio às suas famílias, e como esses profissionais podem ajudá-los
por meio da tecnologia disponível, considerando também a saúde mental da própria equipe de saúde.
178

Figura 1

Fonte: Cartilha Tempos de Pandemia.

A capa apresenta o desenho de uma mandala que é a representação geométrica da relação


dinâmica entre o homem e o cosmo, sendo considerada como símbolo de cura e espiritualidade,
componentes demandantes para o enfrentamento da atual situação em que vivemos. Pode-se ainda
atribuir outros significados a ela, como por exemplo o de paciência, pois remete ao contexto de
pandemia que demanda paciência por parte dos profissionais na elaboração de materiais e no
tratamento da psique infantojuvenil.
Figura 2

.
Fonte: Cartilha Tempos de Pandemia.

As cores vibrantes contrastam com o fundo escuro. Com o auxílio de setas, a fonte
chamativa e em caixa alta também chama a atenção quando utilizadas no início de cada tópico
apresentado, como na Figura 3, a seguir.
Figura 3
179

Fonte: Cartilha Tempos de Pandemia.

A utilização do símbolo gráfico @, característico da internet para indicar um endereço


eletrônico, também é importante para dar significado ao cenário atual de produção da cartilha, assim
como o ambiente virtual em que esses profissionais estão inseridos no acompanhamento desse público
infantojuvenil e suas famílias, servindo ainda como recurso discursivo para abranger todos os
gêneros.

Figura 4

Fonte: Cartilha Tempos de Pandemia.

A sequência injuntiva é marcada por verbos no infinitivo que indicam ação futura, e conta
com uma linguagem bastante clarificada, de fácil compreensão, procurando a aproximação para o
público a que se destina.
A segunda cartilha (C2) tem por título “COVID-19 E ARQUIVOS: A proteção de
pessoas e acervos em tempos de pandemia”, e contêm 35 slides. Logo de início, podemos observar
180

que a injunção se faz presente na pergunta direta: “Vamos cuidar da nossa saúde?”, em caixa alta,
com fonte grande e fundo amarelo, dando contraste e chamando o leitor a cuidar da saúde, ao mesmo
tempo em que tenta manter uma relação de proximidade com o público alvo.

Figura 5

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Figura 6

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Na Figura 6 acima, o slide traz a assertiva que introduz o que está por vir, isto é, algumas
dicas de cuidados de higiene preventiva e como se comportar diante do momento pandêmico.
Também, a apresentação de um link de acesso a mais informações sobre como se prevenir do novo
Coronavírus, disponibilizado pela UFJF.
Figura 7
181

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Figura 8

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Essa cartilha se direciona ao público que utiliza os serviços do arquivo da UFJF e aos
seus funcionários, por entender que o acervo é um forte vetor de contaminação vinculado ao fato de
ser manuseado. Dessa forma, essa cartilha objetiva atualizar os dados sobre as diretrizes que propõem
novos procedimentos de rotina no arquivo.
Figura 9

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.


182

Figura 10

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

A respeito do layout dos slides, percebemos que, em sua maioria, há presença de desenhos
ilustrativos que representam o vírus da covid-19, bem como outras imagens que colaboram na
didatização e, junto com as cores utilizadas (turquesa, amarela, branca e azul escuro), auxiliam a
fixação das informações dadas, quanto aos modos de transmissão da doença e o uso de máscaras,
entre outras medidas preventivas.

Figura 11

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Figura 12
183

Fonte: Cartilha Covid-19 e arquivos.

Os verbos no infinitivo (com a função de indicar ações) e imperativo (que levam o


interlocutor a realizar uma ação, expressando uma ordem, pedido, comando etc.) são característicos
desse tipo de gênero discursivo, pois, dessa maneira, pretende-se fazer com que o leitor seja induzido
a tomar as atitudes pretendidas pelo comando de cada enunciado discursivo. O uso da hashtag em
#FICAADICA, por exemplo, é outro fator determinante para se buscar ligar o cenário atual junto ao
público alvo, como forma de conselho.
A terceira cartilha (C3), composta por 14 páginas, destinada a profissionais do sexo,
tem por título “CORONAVÍRUS E PROFISSIONAIS DO SEXO”, foi pensada, a fim de ajudar a
informar esse público, pela UFRGS em parceria com o SUS e o Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva da mesma universidade, sobre dicas de prevenção específicas e formas alternativas
de trabalho durante a pandemia de covid-19.
Figura 13

Fonte: Cartilha Coronavírus e profissionais do sexo.


184

Inicialmente, na capa e contracapa (contendo a ficha técnica), notamos o uso de imagens


ilustrativas de frutos representando o sexo e os órgãos genitais feminino e masculino em cores
quentes. De modo geral, apresenta um layout limpo com fundo branco e fontes de cores diversas e
contrastantes entre si.

Figura 14

Fonte: Cartilha Coronavírus e profissionais do sexo.

Na primeira página, após os elementos pré-textuais, vemos as perguntas diretas mais


frequentes em destaque com fonte grande e em negrito, em seguida, as respostas de forma simples e
clara, quanto às dúvidas acerca da pandemia.

Figura 15

Fonte: Cartilha Coronavírus e profissionais do sexo.


185

As páginas seguintes revelam ilustrações imagens de como usar a máscara de maneira


correta e um meio simples de como fazer em casa sua própria máscara de pano. Notamos o emprego
dos verbos prototípicos da sequência injuntiva existentes nesse gênero, tal como a aplicação de
linguagem clara e descomplicada com intuito de tornar as informações mais acessíveis.

Figura 16

Fonte: Cartilha Coronavírus e profissionais do sexo.

Figura 17

Fonte: Cartilha Coronavírus e profissionais do sexo.

Buscamos analisar a sequência injuntiva no gênero discursivo textual cartilha educativa


que focaliza informações sobre a pandemia de Covid-19, momento atual que ficará marcado na
história da humanidade como um divisor de águas, instaurando novos costumes, pensamentos e
comportamentos na sociedade global.
186

PALAVRAS FINAIS
Como vimos, ao examinarmos as sequências textuais, não podemos somente considerá-
las isoladamente do conjunto do gênero em que estão inseridas. O fato é que a sequência se encontra
em uma relação de dependência-independência com o conjunto mais amplo do qual faz parte – o
texto. As sequências exercem um papel essencial no conjunto do gênero, na colaboração e no
cumprimento de sua função social.
Por conseguinte, observamos que a compreensão das sequências textuais não deve ser
pautada somente no nível da textualidade, como também elas devem servir tal qual elementos
culturalmente organizados na história, em conformidade com os conhecimentos do produtor e seu
contato com diversos tipos de gêneros, construídos de sequências diversas.
A análise realizada evidenciou que a sequência injuntiva no gênero instrucional é aplicada
de modo a instruir seus leitores a seguirem o passo a passo com cuidado e atenção para que todas as
normas de segurança e higiene sejam respeitadas e colocadas em prática, a fim de garantir o sucesso
da prevenção durante o contexto da pandemia de covid-19, evitando a contaminação e a disseminação
da doença.
Além disso, podemos dizer que há a existência de estratégias argumentativas como
escolhas lexicais, modalizações, expressões atitudinais, elementos tipográficos e cores, como já
mencionados, os quais influenciam na orientação argumentativa do texto, com o intuito de que o leitor
possa ser motivado/atraído para aquilo presente no dito.

REFERÊNCIAS
ADAM, J. M. 2011. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. 2 ed. São Paulo:
Cortez, 373 p.

BAKHTIN, M. 2003. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra e Tzvetan Todorov.
São Paulo, Martins Fontes.

FABIANI, S. J. S. N. SANTOS, L. W. dos. 2012. Gêneros instrucionais nos livros didáticos: análise
e perspectivas. Revista de Letras. (n. 31, v. 1/2). UFRJ, jan/dez, p. 63-71.

MARCUSCHI, L. A. 2002. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.;


BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro, Lucerna, p. 19- 36.

_____. 2008. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Parábola, 296 p.

MENDONÇA, M. R. de S. 2008. Ciência em quadrinhos: recurso didático em cartilhas educativas.


Recife, PE. Tese (doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, 223 p.

NEVES, M. 2020. CORONAVÍRUS E PROFISSIONAIS DO SEXO: dicas de prevenção e formas


alternativas de trabalho durante a pandemia de covid-19. Disponível em:
187

https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/cartilha-elaborada-por-pesquisadores-da-ufrgs-orienta-
profissionais-do-sexo-durante-a-pandemia/. Acesso em: 09/09/2020.

SITE: UFRGS. 2020. COVID-19 E ARQUIVOS: A proteção de pessoas e acervos em tempos de


pandemia. Disponível em: https://www2.ufjf.br/noticias/2020/08/13/cartilha-atualiza-
recomendacoes-sobre-manuseio-de-documentos-em-meio-a-pandemia/. Acesso em: 09/09/2020.

2020. TEMPOS DE PANDEMIA: Criando e recriando ações de cuidado às crianças e adolescentes


usuári@s de serviços de saúde mental. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1n8WIqDhc9gYmHs3gAMQILQGcTMos9op4/view?fbclid=IwAR1
o1AxExXnnVLSqK9K7nbSXIQePxpOvqQmNULEOelGfz63yALlVl_uTM6c. Acesso em:
09/09/2020.
188

TECENDO CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ESCRITA NA EDUCAÇÃO BÁSICA


DA REGIÃO DO MATO GRANDE: ASPECTOS TEXTUAIS E ENUNCIATIVOS DO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO PRODUZIDO NO PROCESSO SELETIVO ENSINO
MÉDIO INTEGRADO

Emiliana Souza Soares69


Professora do IFRN/campus João Câmara
Hector Hêndrio Gomes Araújo70
Aluno do curso técnico integrado do campus João Câmara
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte

RESUMO

Neste trabalho, tecemos considerações de um recorte inicial da proposta teórico-metodológica dos


estudos concernentes ao projeto de pesquisa intitulado: Escrita na educação básica: análise dos
aspectos textuais e enunciativos do gênero artigo de opinião produzido pelos participantes do
processo seletivo dos cursos técnicos do integrado, particularmente do IFRN Campus João Câmara,
bem como abordamos sobre o perfil dos participantes do referido exame de seleção, especificamente
do ano 2019. O trabalho é ancorado na Análise Textual dos Discursos (ADAM, 2011), em diálogo
com os estudos textuais e linguístico-enunciativos da argumentação. No que concerne à análise de tal
gênero, em condição específica de concurso, no âmbito institucional, acreditamos que suscita
reflexões dos aspectos do ensino de escrita na educação básica da região do Mato Grande. Ademais,
o gênero artigo de opinião vem sendo bastante solicitado no contexto das práticas cotidianas e
tradicionalmente valorizado no ambiente escolar do ensino de Língua Portuguesa e em situações de
certame, pelo fato de fomentar o debate de demandas sociais que cercam as diversas práticas e usos
da linguagem em prol do exercício da cidadania, tornando-se, assim, um gênero relevante nas práticas
de escrita, pois favorece ao letramento dos sujeitos de ensino e aprendizagem, uma vez que exercita
competências e habilidades argumentativas nos contextos sociais, instrumentalizando o discente para
o importante exercício da cidadania, em prol do posicionamento do estudante leitor e produtor de
texto de forma crítica sobre as questões que movem a vida em sociedade. Os resultados parciais
obtidos a partir da análise revelam que tal gênero apresenta um plano de texto fixo, bem como
suscitam reflexões sobre as questões das práticas de produção escrita no ensino de Língua Portuguesa
na educação básica (Ensino Fundamental), pois se observa a influência com base em questões do
modelo da redação do Enem, assim como nota-se que os participantes são oriundos em sua maioria
do município de João Câmara.

Palavras-chave: Escrita. Certame. Artigo de Opinião. Análise Textual-Enunciativa.

INTRODUÇÃO

O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte -IFRN é


uma instituição reconhecida pela sua excelência na oferta de educação pública articulada ao tripé

69
emilianasousa@yahoo.com.br
70
hendrio.hector@escolar.ifrn.edu.br
189

ensino, pesquisa e extensão de forma indissociável, com a oferta de cursos técnicos de nível médio
integrado, bem como é destaque nos modelos que instituiu para os processos de seleção que utiliza
para o ingresso de seus estudantes, com seriedade. Nessa direção, particularizamos o Campus João
Câmara do IFRN, que, em 2019, fez 10 anos de atuação, o qual teve seu funcionamento autorizado
pela Portaria n. 755, de 27 de julho de 2009, instalado na região do Mato-Grande, que compreende
os municípios da microrregião de Baixa Verde ao Litoral Nordeste, composta pelos municípios de
Bento Fernandes, Caiçara do Norte, Ceará-Mirim, Jandaíra, Jardim de Angicos, João Câmara,
Maxaranguape, Pedra Grande, Poço Branco, Pureza, Rio do Fogo, São Bento do Norte, São Miguel
do Gostoso, Parazinho, Pureza, Taipú e Touros. Dos municípios que compõem a região, cinco estão
situados na região litorânea norte do estado, sendo os demais interioranos. Além disso, três
municípios têm função de polos regionais na oferta de serviços e comércio, a saber: Ceará-Mirim,
João Câmara e Touros (NASCIMENTO et al, 2018).
O certame do Processo Seletivo para os Cursos Técnicos de Nível Médio na Forma
Integrada, ofertados pelo IFRN, é um relevante mecanismo avaliativo da competência textual de
escrita de alunos oriundos da educação básica. Pois abrange a escolarização do ensino fundamental,
em conformidade com as diretrizes do Edital, tendo como uma das etapas a Produção Textual Escrita,
enquanto questão discursiva, visando avaliar o candidato quanto ao domínio de conteúdo e habilidade
de produção escrita.
Nessa direção, diversos trabalhos discutem a temática da avaliação da prática de escrita
de alunos da Educação Básica no contexto educacional, sendo vista como questão relevante no Ensino
de Língua Portuguesa. Nessa direção, neste trabalho, apresentamos considerações sobre a proposta
teórico-metodológica e um recorte inicial dos estudos que se encontram sendo desenvolvidos no
âmbito do projeto de pesquisa intitulado Escrita na educação básica: análise dos aspectos textuais e
enunciativos do gênero artigo de opinião produzido pelos participantes do processo seletivo dos
cursos técnicos do integrado do IFRN, em particular do Campus João Câmara, bem como tecemos
reflexões sobre o perfil dos candidatos, especificamente do ano 2019.
O trabalho é situado no quadro dos postulados da Análise Textual dos Discursos (ADAM,
2011), em diálogo com os aspectos textuais e linguístico-enunciativos da argumentação. Nessa
perspectiva, o corpus é constituído por textos produzidos no Exame de Seleção (2019) para ingressar
no campus do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), assim como
os dados dos participantes sobre as questões sociais, econômicas, escolares e do rendimento no
exame.
Nessa direção, este estudo foca também na análise do plano de texto articulado aos
direcionamentos da banca examinadora e aos dispositivos enunciativos concernentes à orientação
argumentativa e a (não) assunção da responsabilidade enunciativa do referido gênero.
190

Acreditamos também que a análise de tal gênero, em condição específica de concurso no


âmbito institucional, suscita reflexões dos aspectos do ensino de escrita na educação básica da região
do Mato Grande, haja vista o estudo particularizando os textos produzidos pelos que almejam
ingressar nos cursos ofertados pelo supracitado campus.
Consideramos que o gênero artigo de opinião vem sendo bastante solicitado no
contexto das práticas cotidianas e tradicionalmente valorizado no ambiente escolar do ensino de
Língua Portuguesa e em situações de certame. Isso se dá pelo fato de fomentar o debate de demandas
sociais que cercam as diversas práticas e usos da linguagem em prol do exercício da
cidadania, tornando-se, assim, um gênero relevante nas práticas de produção escrita, pois favorece ao
letramento dos sujeitos de ensino e aprendizagem, uma vez que exercita competências e habilidades
argumentativas nos contextos sociais, instrumentalizando o discente para o importante exercício da
cidadania, em prol do posicionamento do estudante leitor e produtor de texto de forma crítica sobre
as questões que movem a vida em sociedade.
Nessa direção, nosso interesse, surge em virtude dos seguintes aspectos:
►Baixo IDEB da região do Mato Grande no RN;
►Contribuição para melhoria do ensino de Leitura e Produção de Textos na Região do Mato
Grande;
►Contribuição para os estudos e ensino das estratégias linguísticas e textuais do artigo de
opinião;
►Missão institucional articulada ao ensino, à pesquisa e à extensão;
►A relevância do processo seletivo do IFRN, inclusive da produção escrita.

QUESTÕES METODOLÓGICAS

No tocante às questões metodológicas, ancoramos o estudo na perspectiva de pesquisa


quali-quantitativa, de cunho bibliográfico e documental, haja vista serem textos que não
acompanhamos o processo de escrita, bem como por estudarmos normativos do edital e os critérios
divulgados no site institucional, enquanto fontes capazes de fornecer informações adequadas para
compreensão do que pretendemos investigar.
O corpus inicial é constituído por textos produzidos no Exame de Seleção (ano de
referência do edital 2019) para ingressar nos cursos técnicos do integrado do Campus João Câmara
do referido instituto, assim como os dados dos participantes sobre as questões sociais, econômicas,
escolares e do rendimento no exame.
No que tange à coleta do corpus entramos, oficialmente, em contato com a
CADIS/PROEN, bem como abrimos processo, no Suap, solicitando acesso aos textos para fins de
pesquisa. A coleta do corpus foi redimensionada, focando nos dados do ano de 2019, pois, em 2020,
191

tivemos acesso apenas aos dados do último edital, em decorrência do contexto pandêmico. A coleta
foi realizada por meio de link no drive, em razão da pandemia que ocasionou a suspensão das
atividades presenciais.
No que concerne ao tratamento do corpus para análise, considerando os princípios da
ética na pesquisa e para garantir o anonimato dos participantes, registramos um termo de sigilo no
âmbito sistêmico, bem como digitamos os textos a serem analisados, como também salientamos que
excluímos qualquer identificação dos candidatos, conforme ilustramos, a seguir:

Exemplo de texto 1: Produção do gênero artigo de opinião de candidato do processo seletivo


2019 sem identificação
Atenção ao cyberbullying
O cyberbullying é um metódo de bullying pelas redes sociais, que con-
siste em menosprezar um indivíduo por xingamentos, insultos e outros
elementos que deixem a vítima ofendida. Esse tipo de ação existe desde o
avanço da tecnologia e a introdução dos jovens ao acesso dela com seus com-
putadores, smartphones, tablets e para evitar a ocorrência desse fato é nece-
ssário a atenção não somente da escola mas também dos responsáveis
das crianças e jovens.
É de conhecimento geral na sociedade brasileira que a palavra bully é
algo ruim, em português ela não possui tradução pois é de origem inglesa,
mas significa valentão ou provocador. Em sua maioria, os casos de cyber-
bullying são praticados por internautas a longa ou perta distância, que po-
de ser até mesmo alguém próximo de você no ambiente que frequenta. Geral-
mente os patricadores já sofreram ou fazem esse ato para amedrontar al-
guém e os casos de cyberbullying só vem aumentando no decorrer dos anos.
De maneira análoga é indubitável falar que o ato não possui con-
sequências ruins, em casos em que as ofensas são muito graves as
vítimas podem ter até depressão. Uma pesquisa feita pelo comitê gestor
da internet no Brasil (CGI.br) revela que a cada um em quatro crianças
e adolescentes foi tratado de forma ofensiva na internet.
Portanto, a participação dos pais ou responsáveis em acompanhar seus
filhos no mundo tecnológico é algo imperativo, sem questionamentos, mesmo
não tendo o conhecimento de tudo, procurem saber como estão os filhos, e com
auxílio das escolas devem criar palestras de ensinamentos sobre o tal,
o governo deve fazer campanhas publicitárias para a conscientização
de todos e talvez assim os casos podem ser menores. “O homem so é
aquilo que a educação faz dele” dizia Immanuel Kent e devemos levar como
exemplo para nossas vidas, ser educado e respeitoso é um dever de
todos.
Ariel da net
Fonte: Dados do projeto (texto sem identificação).

No que se refere à proposta de produção textual do edital selecionado para este trabalho,
apresentamos, a seguir:

Imagem 1 - Prova de redação do processo seletivo: proposta de produção textual


192

Fonte: Portal IFRN - processos seletivos.

De acordo com o que observamos, a temática da produção escrita foca na questão: a


responsabilidade de resolver o problema do cyberbullying é da escola? Constatamos que é um tema
de debate com cunho social relevante, bem como contextualizado a um problema interligado ao
contexto escolar e indica para a assinatura o pseudônimo Ariel da Net.

Considerações sobre a escrita na educação básica e ilustrando os aspectos textuais e


enunciativos do gênero artigo de opinião produzido no processo seletivo ensino médio integrado

O gênero artigo de opinião é um texto que apresenta questões polêmicas, as quais


envolvem confronto entre diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema e de relevância social. Na
escrita de tal gênero, constatamos questões que movem a vida em sociedade e contribuem para o
favorecimento pleno exercício da cidadania. Trata-se de um gênero bastante conhecido, o qual pode
ser publicado em jornais, revistas ou internet e é assinado por um articulista formador de opinião, que
pode ser um jornalista.
Salientamos que aprender a ler e a escrever esse gênero na escola favorece o
desenvolvimento da prática de argumentar, ou seja, anima a buscar razões que sustentem uma opinião
ou tese.
Os estudos de Severiano, Gagliardi, Amaral (2019) assinalam que o artigo de opinião tem
assinatura do articulista escritor. A assinatura revela sua identidade, que se completa com seu
currículo, geralmente inserido no final da matéria. (SEVERIANO, GAGLIARDI, AMARAL, 2019,
p.19).
Tais autores definem a argumentação:

como a ação verbal pela qual se leva uma pessoa e/ou todo um auditório a aceitar uma
determinada tese, valendo-se, para tanto, de recursos que demonstrem a consistência dessa
193

tese. Esses recursos são as verdades aceitas por uma determinada comunidade, assim como
os valores e os procedimentos por ela considerados corretos ou válidos. Dessa forma,
argumentação é um termo que se refere tanto a esse ato de convencimento quanto ao conjunto
de recursos utilizados para realizá-lo. Por isso mesmo, a argumentação sempre parte de um
objetivo a ser atingido (a adesão à tese apresentada) e lança mão de um conjunto de
estratégias próprias para isso, levando em conta aquilo que faz sentido para quem lê ou ouve.
Daí a importância de conhecer-se o leitor ou o ouvinte; afinal, o argumento que funciona
muito bem para um grupo de estudantes adolescentes não terá o mesmo efeito sobre uma
comunidade de senhoras católicas – e vice-versa (SEVERIANO, GAGLIARDI, AMARAL,
2019, p.43)

Ademais, de modo geral, conforme o material das Olímpiadas de Língua Portuguesa


(SEVERIANO, GAGLIARDI, AMARAL, 2019, p. 41), artigos de opinião são textos que:

• costumam circular em veículos tipicamente jornalísticos e de grande penetração popular:


jornais impressos, revistas, sites de notícias etc.;
• geralmente são escritos por especialistas num determinado assunto, pessoas
publicamente reconhecidas por suas posições, por exemplo, autoridades;
• abordam assuntos e/ou acontecimentos polêmicos atuais, recentemente noticiados e de
interesse público;
• dirigem-se a um leitor que o jornal considera como potencialmente envolvido no debate,
na qualidade de cidadão;
• têm como finalidade defender uma opinião ou tese, a qual é apresentada com base em
argumentos coerentes.

No que concerne aos direcionamentos que servem de base para a correção das produções
escritas no certame em estudo, ou seja, para a avaliação do gênero textual artigo de opinião,
delineamos os seguintes aspectos:

Tabela 1 - Orientações para correção da produção escrita do processo seletivo 2019

ESTRUTURA (20): será observado se o candidato produziu o gênero textual solicitado (artigo de opinião), no comando
da questão discursiva e se o texto apresenta: título/assinatura, ponto de vista (tese), argumentos e conclusão.
(Pontuação: 04, 08, 12, 16, 20).

ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICO-TEXTUAL (20): será avaliado se o texto está adequado à situação de comunicação
proposta, incluindo os aspectos relativos às convenções da norma escrita e de adequação vocabular. (Pontuação: 00,
05, 10, 15, 20)

TEXTUALIDADE (60): será observado se o texto apresenta coesão, coerência, progressão, informatividade e se
argumenta em favor do ponto de vista assumido. (Total: 60 pontos) Coesão (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20)
Coerência (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20) Construção da argumentação (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20)

Fonte: Fonte: Portal IFRN - processos seletivos.

Nessa direção dos aspectos estruturais, Adam (2011) assinala os planos e níveis de análise
textual e de discurso, de acordo com a reprodução seguinte:

Figura 1 – Níveis de análise de discurso e de análise de texto


194

Fonte: Adam (2011, p. 61).

Nessa perspectiva, o plano de texto é fator unificador da estrutura composicional. No que


tange aos tipos de plano podem ser: fixo/convencional e ocasional, conforme observamos na figura
2:

Figura 2 – Tipos de plano de texto

Fonte: Elaboração Soares (2016).

Nessa visão, consoante Adam (2011, p. 258), o plano de texto é o principal fator
unificador da estrutura composicional e é fundamental para a organização estrutural interna do texto.
Os planos de texto convencionais são fixados “pelo estado histórico de um gênero ou subgênero de
discurso” (ADAM, 2011, p. 258) e correspondem às constantes composicionais de gêneros
discursivos.
195

Dessa forma, considerando o exposto, nota-se como fixo, convencional o plano de texto
do gênero artigo de opinião do processo seletivo.

Figura 3 - Plano de texto do gênero do processo seletivo

Fonte: Elaborado pelos autores baseada nas orientações para correção da prova escrita
(PROEN/CADIS/IFRN, 2019).

De modo sucinto, refletimos sobre o plano de texto de estrutura fixa que se encontra
articulado aos direcionamentos dos critérios de correção da produção textual, equivalente a 20 pontos,
bem como haja vista os estudos de Adam (2011).
A seguir, tecemos considerações sobre a análise textual de exemplar do corpus, assim
como refletimos sobre a influência do Enem nas práticas de escrita do Ensino Fundamental, conforme
ilustramos no parágrafo do plano de texto em que se apresenta a conclusão do artigo, tendo como
formato a proposta de intervenção nos moldes do texto dissertativo-argumentativo do Enem, em
cumprimento às exigências da competência V, inclusive com repertório sociocultural de autor
(Immanuel Kent) muito comum em redações nota mil divulgadas pela imprensa.

Excerto textual 1

Portanto, a participação dos pais ou responsáveis em acompanhar seus filhos no mundo tecnológico é algo
imperativo, sem questionamentos, mesmo não tendo o conhecimento de tudo, procurem saber como estão os
filhos, e com auxílio das escolas devem criar palestras de ensinamentos sobre o tal, o governo deve fazer
campanhas publicitárias para a conscientização de todos e talvez assim os casos podem ser menores. “O homem
so é aquilo que a educação faz dele” dizia Immanuel Kent e devemos levar como exemplo para nossas vidas,
ser educado e respeitoso é um dever de todos.

Conforme observamos no fragmento textual, no parágrafo conclusivo é percebido o


elemento coesivo “portanto” que estabelece a relação semântica de conclusão, enquanto operador
argumentativo, bem como nota-se a construção no modelo de proposta de intervenção, tendo como
agentes: pais, responsáveis, escolas e o governo; e a ação: acompanhamento dos filhos e criar
palestras de ensinamento, campanhas publicitárias para conscientização.
196

No que tange à análise dos aspectos linguístico-textuais, elucidamos que os resultados


parciais revelam:
▶ Conclusão do plano de texto nos moldes tipo proposta do Enem;
▶Presença de elementos coesivos tipo operador argumentativo interparágrafos e
intraparágrafos em prol da orientação argumentativa;
▶Ausência de elementos coesivos marcadores de responsabilidade enunciativa para
introdução do discurso alheio e gerenciamento das vozes;
▶Dificuldades na estruturação do plano de texto, considerando introdução,
desenvolvimento e conclusão, articulado à orientação argumentativa e às estratégias do projeto de
texto escolhido.

NOTAS PRÉVIAS SOBRE O PERFIL DOS PARTICIPANTES DO PROCESSO SELETIVO


(ANO 2019)

Neste tópico, no direcionamento de um estudo de abordagem quali-quantitativa,


apresentamos aspectos do perfil social, acadêmico e econômico dos participantes do processo seletivo
2019, candidatos às vagas para os cursos do integrado do campus João Câmara.

Gráfico 1 - Candidatos inscritos por município

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

No tocante ao perfil dos candidatos inscritos, considerando a consolidação dos dados no


gráfico 1, salienta-se os seguintes municípios dos inscritos (Jardim de Angicos, Jandaíra, Pedra
Grande, dentre outros), destacando a cidade de João Câmara como o município com mais inscritos e
em segundo o município de Touros. Discussões institucionais revelavam que na maioria das vezes
197

apesar do campus se encontrar localizado na referida cidade, os candidatos na maioria eram de outros
municípios da região do Mato Grande.

Gráfico 2 - Percentual de candidatos com provas corrigidas-seleção para a correção da produção textual

nº de candidatos
31%
não selecionados
nº de candidatos
69% selecionados

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

Conforme observamos no gráfico 2 sobre o quantitativo do percentual de candidatos


selecionados e não selecionados para a correção da redação, a grande maioria (69%) não atinge o
escore necessário, ou seja, não passa pelos critérios de seleção. Constatamos que apenas 31% do
percentual de candidatos alcançam as diretrizes do exame no tocante à escrita.

Gráfico 3 - Percentual de candidatos por do sexo

44% Masculino
56% Feminino

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

No tocante ao sexo, os dados revelam que a maioria dos candidatos é do sexo feminino.
Apesar disso, percebe-se que não há uma grande diferença entre o percentual do sexo feminino (56%)
e o percentual do sexo masculino (44%), como constatamos a partir do gráfico 3. Os dados
evidenciam, portanto, que a maioria dos candidatos são do sexo feminino, tendo o percentual de 56%.

Gráfico 4 - Percentual da cor/candidatos


198

nº de candidatos - questão racial


800
700
600
500
400
300
200
100
0
Branca Preta Parda Amarela Indígena

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

No tocante à cor, os candidatos se declaram na maioria de cor parda. Consoante os dados


coletados, mais de 700 candidatos se declaram como sendo de cor parda na questão racial, firmando-
se como a cor da maioria dos candidatos. Percebe-se a partir do gráfico 4 que a quantidade de
candidatos que se declararam como pretos e indígenas é relativamente pequena, apesar da Região do
Mato Grande ser uma região marcada por questões socioculturais de quilombolas e indígenas. É
importante ressaltar que os pretos e indígenas fazem parte de etnias pouco privilegiadas e com muita
vulnerabilidade social. Com isso, é perceptível um baixo índice de inclusão destas no exame de
seleção.
Gráfico 5 - Instituição que os candidatos estudaram

800

600

400

200

Somente em escola pública Somente em escola particular


Mista: pública e particular

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

Constatamos, no que concerne à instituição de origem escolar dos participantes, que mais
de 700 candidatos estudaram somente em escolar pública. Observa-se que os estudos dos candidatos
que majoritariamente são oriundos de escola pública são de grande diferença quantitativa em
199

comparação aos que estudaram em escolas particulares (quase 200 candidatos) ou em ambas, sendo
mista (mais de 100 candidatos), de acordo com o que consta no gráfico 5.

Gráfico 6 - Porcentagem da origem da instituição escolar dos aprovados

Somente em
5% escola pública

33% Somente em
62% escola particular
Mista: pública e
particular

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

Consoante os dados coletados, a maioria dos aprovados tiveram estudo somente em


escola pública (62%). O segundo maior percentual se refere aos candidatos aprovados que tiveram
estudo somente em escola particular (33%) e este é seguido pelo percentual de aprovados que tiveram
estudo misto, isto é, tanto em escola pública quanto em particular, equivalente a 5%.

Gráfico 7 - Taxa de aprovação considerando origem escolar dos candidatos aprovados

Somente em escola
15% pública
28%
Somente em escola
particular
Mista: pública e
57%
particular

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

Observa-se que apesar do percentual de aprovados que tiveram estudo somente em escola
pública ser o maior dentre os parâmetros analisados, como verificamos no gráfico 6, o mesmo não
acontece em relação à taxa de aprovação dos candidatos. Os dados revelam que a maior taxa de
aprovação refere-se aos candidatos que tiveram estudo somente em escola particular (57%) e para os
candidatos que tiveram estudo somente em escola pública e misto a taxa de aprovação foi
relativamente pequena – respectivamente 28% e 15%.
200

Gráfico 8 - Origem escolar dos aprovados e aprovação por questão racial

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

Gráfico 9 - Percentual de aprovação considerando questão racial

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).

No que tange o estudo dos candidatos pretos, obtivemos os seguintes dados: 74% dos
candidatos pretos estudaram somente em escola pública, 9% somente em escola particular e 17%
tiveram estudo misto, como mostra o gráfico 8.
Em relação aos percentuais de aprovação dos candidatos, no tocante à questão de cor, os
dados coletados mostram que 77% dos candidatos aprovados se declaram pardo – dado este que se
reflete em grande parte ao fato de que mais de 700 candidatos se declararam pardo como foi
observado no gráfico 4. Além disso, percebe-se que as demais cores englobando questões raciais
possuem percentuais pequenos, como ilustra o gráfico 9. Tais dados se relacionam com a aprovação
por cota racial.

Gráfico 10 - Condição econômica dos candidatos declarados pretos


201

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados disponibilizados pela Cadis/PROEN (2019).

A partir dos dados obtidos, evidencia-se que a grande maioria dos candidatos pretos
possuem uma renda familiar bruta menor ou igual a R$800,00, com um percentual de 65%. Apenas
35% dos candidatos pretos possuem uma renda familiar bruta maior que R$800,00, consoante mostra
o gráfico 10.

Gráfico 11 - Escore em intervalos referente às notas dos participantes

0% Entre 0 e 300

19% Entre 300 e 500

11%
Entre 500 e 800
70%
Entre 800 e
1000

Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados disponibilizados pela Cadis/Proen/IFRN/2019.

O gráfico 11 evidencia o percentual de 70% das notas no intervalo de no máximo 300


pontos, o que implica salientar que o rendimento dos candidatos no certame é relativamente baixo.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Os resultados parciais obtidos a partir da análise revelam um plano de texto fixo da


produção escrita, marcas de não assunção da responsabilidade enunciativa, bem como participantes
oriundos em sua maioria do município de João Câmara e de escolas públicas, assim como diversos
desafios no que tange às competências e proficiência de escrita do texto argumentativo e dos aspectos
de textualidade (coesão, coerência e construção da argumentação).
202

No que tange às dificuldades durante a execução do projeto, considerando a pandemia e


a resolução 22/2020 Consup/IFRN, fez-se necessário redimensionar e ajustar metas e objetivos do
projeto, tendo em vista a necessidade de desenvolvimento de trabalho remoto.
É nosso objetivo também que a pesquisa em andamento contribua com os estudos que
buscam colaborar para o ensino da leitura e da produção de textos na educação básica. No tocante aos
desdobramentos e às perspectivas do projeto, almejamos:
• continuação do projeto em 2021;

• levantamento e sistematização do corpus (período 2015-2018);

• realização de oficinas de leitura e escrita para os alunos do 9º ano do Ensino


Fundamental, focando também nos aspectos da coesão polifônica e argumentação
ancoradas nos estudos da Análise Textual dos Discursos, considerando os estudos
de Adam (2011), dentre outros (SOARES, 2016; KOCH E ELIAS, 2016;
PASSEGGI et al, 2010), bem como articular a tríade ensino, pesquisa e extensão.

Ademais, os dados suscitam também reflexões sobre a escrita na educação básica e a


influência exercida pelo Enem nas práticas de produção textual. Em pesquisas futuras, pode-se
discutir sobre tal questão nas práticas de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental que podem ser
oriundas de leitura e escrita distantes das práticas sociais de linguagem (BAKHTIN, 2011), de acordo
com o que preconiza a BNCC (2017).

REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo:
Cortez, 2011.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília:
MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO


NORTE, PRÓ REITORIA DE ENSINO, COORDENAÇÃO DE ACESSO DISCENTE. Orientações
e critérios de correção. Natal, 13 nov.2018. Disponível em:
https://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-seletivos/tecnico-integrado/exame-de-selecao/exame-de-
selecao-2019-edital-29-2018-proen-ifrn-1/documentos-publicados/orientacoes-e-criterios-de-
avaliacao-da-redacao. Acesso em 08 de jan. 2021.

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO RIO GRANDE DO


NORTE, PRÓ REITORIA DE ENSINO, COORDENAÇÃO DE ACESSO DISCENTE. Edital de
seleção. Natal, 04 set.2018. Disponível em: https://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-
seletivos/tecnico-integrado/exame-de-selecao/exame-de-selecao-2019-edital-29-2018-proen-
ifrn/documentos-publicados/edital-29-2018-exame-de-selecao-cursos-tecnicos-integrados-2019-
retificado-1-e-2. Acesso em 08 de jan. 2021.
203

KOCH, Ingedore. Vanda; ELIAS, V. M. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto, 2016.

NASCIMENTO, Francinaide de Lima Silva. et al. O Campus João Câmara do IFRN e a


institucionalidade da Rede Federal (2008-2018). IFRN 10 anos de criação em mais de um século
de história. 1ed. Natal: Editora IFRN, 2019, v. 1, p. 1-10.

PASSEGGI, Luis. et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual
de sentido. In. BENTES, Anna Christina; LEITE, Marli Quadros (org.). Linguística de texto e
análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

SEVERIANO, Ana Paula; OLIVEIRA, Egon de; GAGLIARDI, Eliana; AMARAL, Heloísa. Ponto
de vista: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec. Coleção 6ª
edição Olímpiadas, 2019 Disponível
em:https://www.escrevendoofuturo.org.br/arquivos/8148/caderno-artigo.pdf. Acesso em 10
jan.2020.

SOARES, Emiliana Souza. Dispositivos enunciativos na sentença judicial condenatória de crimes


contra a dignidade sexual infanto-juvenil. 2016. 316f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem)
- Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2016.
204

PROJETOS DE LEI E SUAS NORMAS NA PERSPECTIVA DA ANÁLISE TEXTUAL DOS


DISCURSOS

Cláudia Cynara Costa de Souza / Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Doutoranda71


Maria das Graças Soares Rodrigues / Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Doutora72

RESUMO

Os gêneros discursivos textuais consolidam práticas sociais nas diferentes situações de interação e, a
depender do propósito comunicativo, podem alcançar implicações para a coletividade. Diante disso,
estudos que discorrem sobre a linguagem jurídica e seus operadores do Direito estão se tornando cada
vez mais evidentes, motivados pela grande demanda de dados registrados em diferentes suportes e
manifestados em diversos gêneros, além das amplas possibilidades linguístico-investigativas desses
textos e das finalidades que o discurso jurídico desempenha na sociedade. Nessa direção, nosso
corpus é constituído por Projetos de Lei e suas respectivas normas, formulados de maneira escrita
por representantes do Poder Legislativo para inserção e posterior garantia de direitos no ordenamento
jurídico do país. Diante disso, é notória a importância desses documentos para uma sociedade que é
regida por um conjunto de direitos e deveres e que tem pouco acesso, ou talvez nenhum, a
conhecimentos inerentes ao universo jurídico. Assim, objetivamos investigar a enunciação e a
orientação argumentativa empregadas na estrutura composicional de Projetos de Lei e de suas normas
por meio do estudo dos níveis enunciativo e argumentativo que compõem a materialidade desses
textos concretos. Do ponto de vista teórico, esta pesquisa fundamenta-se nos pressupostos da
Linguística Textual (LT), da Análise Textual dos Discursos (ATD), da Linguística da Enunciação
(LE) e nos estudos da Argumentação. Do ponto de vista metodológico, seguimos a abordagem
qualitativa de natureza interpretativista e o método indutivo de análise, sendo um estudo documental
do tipo exploratório. Nossos resultados sugerem que as análises da responsabilidade enunciativa, da
coesão polifônica e da orientação argumentativa favorecem o desvelamento do conteúdo normativo
dos textos, contribuindo para tornar o Direito mais compreensível e utilizável socialmente.
Palavras-chave: Projetos de Lei. Normas. Análise Textual dos Discursos. Discurso jurídico.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, estudos desenvolvidos na interface Linguagem e Direito estão sendo
cada vez mais produzidos, motivados pela substancialidade de dados gerados na formação
sociodiscursiva jurídica, além de ampla possibilidade de investigação das estratégias linguístico-
discursivas nesses textos concretos. Nesse sentido, pesquisas vêm sendo desenvolvidas tendo por
unidade de análise o texto que circula socialmente, a exemplo da produção acadêmico-científica do
Grupo de Pesquisa em Análise Textual dos Discursos (ATD) da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) – ATD/UFRN.

71
E-mail: claudiacynara.souza@gmail.com
72
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
205

Nessa perspectiva, este estudo encontra-se centrado no universo do Direito e nas relações
entre a linguagem e o discurso jurídico, cujo corpus é constituído por Projetos de Lei e suas
respectivas normas. O Projeto consiste em um tipo de proposta normativa formulada de maneira
escrita por representantes do Poder Legislativo com vistas à propositura de leis, cuja aprovação
contribuirá para a inserção e posterior garantia de direitos no ordenamento jurídico do país, com
implicações sociais variadas a depender do tipo de norma (Emenda à Constituição, Lei Complementar
ou Lei Ordinária).
Diante disso, é notória a importância desses documentos para uma sociedade que é regida
por um conjunto de normas e que tem pouco acesso, ou talvez nenhum, a conhecimentos inerentes ao
universo jurídico. Por isso, investigações que focalizam o estudo dos níveis de linguagem para o
cotidiano contribuem para tornar o Direito compreensível e utilizável.
Nesse contexto, evoca-se Lourenço (2015) para fortalecer a justificativa da importância
de estudar o gênero jurídico:

[...] promover o estudo dos gêneros jurídicos escritos implica descrever e sistematizar
elementos caracterizadores desse tipo de texto/discurso, que por sua vez é detentor de
características próprias, obedece a exigências previstas na legislação e possui um caráter
prático. (LOURENÇO, 2015, p. 71).

Ainda, nessa direção, Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2014) apontam que o
desvelamento da linguagem jurídica, buscando compreender os eixos centrais das normas que a
mobiliza, é uma atividade investigativa valiosa, pois pode colaborar para que sejam compreendidos
direitos e deveres, porém, é inesgotável, uma vez que há muito a ser dito, a ser interpretado. À vista
disso, concordamos com os autores e é, por isso, que empreendemos a analisar e interpretar a
linguagem jurídica na perspectiva do texto e do discurso, considerando a enunciação e a
argumentação como dimensões de análise.
Assim, objetivamos investigar a enunciação e a orientação argumentativa empregadas na
estrutura composicional de Projetos de Lei e de suas respectivas normas, por meio do estudo dos
níveis enunciativo e argumentativo que compõem a materialidade textual dos gêneros examinados, a
partir da identificação das sequências e dos planos de texto, da expressão da responsabilidade
enunciativa e da coesão polifônica e a maneira como estratégias linguísticas contribuem para a
orientação argumentativa dos textos.

ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
206

Do ponto de vista teórico, este estudo fundamenta-se nos pressupostos da Análise Textual
dos Discursos, com Adam (2011); da Linguística da Enunciação, com Flores (2008), Fiorin (2016),
Rabatel (2016), Guentchéva (1996); nos estudos da argumentação e nos trabalhos que versam sobre
a argumentação e a formação sociodiscursiva jurídica, com Pinto (2010, 2016), Cabral (2014, 2017),
Lourenço (2008, 2013), Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, 2014, 2016), Rodrigues e Passeggi
(2016), Rodrigues (2017), Gomes (2014), Medeiros (2016), Fernandes (2016), entre outras pesquisas.
Definida como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido que deve,
necessariamente, ser fundamentada na análise de textos concretos” (ADAM, 2011, p. 13), a ATD
propõe “articular uma linguística textual desvencilhada da gramática de texto e uma análise de
discurso emancipada da análise de discurso francesa (ADF)” (ADAM, 2011, p. 43).
A ATD adota a perspectiva teórico-metodológica que, “com o objetivo de pensar o texto
e o discurso em novas categorias, situa decididamente a Linguística Textual no quadro mais amplo
da análise do discurso” (ADAM, 2011, p. 24), apresenta, de modo particular, categorias concretas
para descrição e análise de fenômenos linguísticos ao desenhar níveis ou planos de análise
representados no clássico esquema que segue ilustrado:

Figura 1 - Esquema 1: Níveis ou patamares de análise do discurso

Fonte: ADAM (2019, p. 35).

O esquema teórico proposto por Adam defende que a ação de linguagem (visada,
objetivo) acontece na interação social (N1), manifestada em uma dada formação sociodiscursiva (N2)
que, por sua vez, produz interdiscursos (N3), materializados por meio de língua(s), intertextos e
207

sistemas de gêneros realizados nas atividades comunicativas. Para o autor, esses níveis de análise
estão no plano do discurso.
Já no plano do texto, Adam postula que os gêneros são passíveis de análise em cinco
níveis distintos, que se imbricam e se complementam para o estabelecimento de sentidos. Dessa
forma, o texto é analisável no plano da textura (proposições enunciadas e períodos), N4; no plano da
estrutura composicional (sequências e planos de texto), N5; no plano da semântica (representação
discursiva), N6; no plano de enunciação (responsabilidade enunciativa e coesão polifônica), N7; e no
plano dos atos do discurso e orientação argumentativa, N8 de análise.
Por esse ângulo, os estudos que envolvem a ATD consideram a língua em sua forma e
uso nas dimensões semântica, enunciativa, argumentativa e pragmática, sendo o enunciado o
resultado da enunciação e essas “áreas abrigadas sob a enunciação partem do pressuposto de que a
linguagem, ou, melhor dizendo, a produção de sentidos pela linguagem, deve ser investigada
nos/pelos usos efetivos que os sujeitos fazem dela” (CAVALCANTE, 2010, p. 57).
Para Fiorin (2016, p. 26), “o primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do
enunciado” que sofre reformulações pelas teorias enunciativas ao incorporar aspectos da
subjetividade, da polifonia, do dialogismo e da heterogeneidade ao seu conceito. Segundo Flores
(2008), estudos desenvolvidos na perspectiva da Linguística Textual recorrem a mecanismos
enunciativos com vistas a discutir questões referentes à problemática do texto, uma vez que o
considera imerso em questões pragmáticas e discursivas. Nessa direção, Adam (2011) considera o
nível da enunciação como uma das dimensões teórico-analíticas no seu projeto linguístico e propõe
o estudo da responsabilidade enunciativa e da coesão polifônica a partir da identificação de marcas
linguísticas materializadas nos enunciados.
Conforme Adam (2011, p. 117), “o grau de responsabilidade enunciativa de uma
proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da língua”, a saber: os
índices de pessoas, os dêiticos espaciais e temporais, os tempos verbais, as modalidades, os diferentes
tipos de representação da fala, as indicações de quadros mediadores, os fenômenos de modalização
autonímica e as indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados.
De acordo com Rodrigues (2017, p. 299-230),

a responsabilidade enunciativa organiza linguisticamente os gêneros discursivos / textuais


disponíveis na memória discursiva dos usuários das diferentes línguas, desde os gêneros mais
simples do cotidiano, como, por exemplo, a conversa em família, entre amigos, em situações
informais no ambiente de trabalho, até os gêneros mais elaborados dos vários domínios:
acadêmico, midiático, político, jurídico, religioso, entre outros. A relevância desse fenômeno
é tamanha que ele permite ao interlocutor compreender se o locutor e/ou enunciador é/são
208

responsável(eis) ou não pelo conteúdo proposicional do enunciado veiculado (RODRIGUES,


2017, p. 299-230).

Segundo Rabatel (2016), a responsabilidade enunciativa pode ser identificada pelo estudo
do Ponto de Vista (PDV) nos atos de enunciação. Para o autor,

analisar um ponto de vista é recuperar, de uma parte, os contornos de seu conteúdo


proposicional e, de outra, sua fonte enunciativa, inclusive quando esta é implícita, a partir do
modo de atribuição dos referentes e dos agenciamentos das frases em um texto (RABATEL,
2016, p. 71).

O estudo enunciativo do texto admite reconhecer a construção da mediatividade proposta


por Guentchéva (1996), que diz respeito aos processos gramaticais que permitem que o enunciador
expresse os diferentes graus de distância que ele toma em relação à situação descrita; além da
identificação de estratégias da coesão polifônica utilizadas no gerenciamento de vozes evocadas para
o discurso em menor ou maior engajamento com o conteúdo proposicional veiculado entre o produtor
e outros textos produzidos, a fim de colaborar para a persuasão e conferir ao texto uma orientação de
argumentos.
Estudos da Teoria da Argumentação investigam a orientação argumentativa contida nos
textos, uma vez que consideram as palavras como elementos carregados de argumentatividade que
orientam a direção argumentativa dos enunciados. Adam (2011, p. 122) também afirma que “todo
enunciado possui um valor argumentativo, mesmo uma simples descrição desprovida de conectores
argumentativos” e propõe investigar a orientação argumentativa (ORarg) no nível 8 de análise
discursiva, que insere o estudo da ORarg em diálogo com a ação de linguagem, sugerindo que esses
níveis colaboram para o alcance dos propósitos comunicativos dos textos.
Do ponto de vista metodológico, seguimos uma abordagem qualitativa de natureza
interpretativista e o método indutivo de análise. Com base nos procedimentos técnicos utilizados, este
estudo é do tipo documental e, baseado nos objetivos, é do tipo exploratório. Assim, nossas análises
seguiram a partir da discussão de evidências particulares dos dados até o estabelecimento de
generalizações a respeito da estrutura composicional (sequências e planos de texto), da enunciação
(responsabilidade enunciativa e coesão polifônica) e da orientação argumentativa dos textos jurídicos
pesquisados.
O corpus da pesquisa foi constituído por meio de investigação ao site da Câmara dos
Deputados (www.camara.leg.br) a fim de obter Projetos de Lei formulados por representantes
políticos do estado do Rio Grande do Norte, além do acesso virtual para a obtenção das respectivas
normas geradas a partir da aprovação dos Projetos.
209

Do universo de possibilidades, estabelecemos critérios para seleção dos dados, sendo


considerados válidos para a pesquisa os Projetos de Lei: produzidos a partir do ano de 1989; de autoria
dos Deputados Federais do estado do Rio Grande do Norte; em situação “Transformado em norma
jurídica”; e que contêm a seção justificativa.
O recorte temporal foi motivado pela publicação da Resolução Nº 17, de 21 de setembro
de 1989, que aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados e traz considerações normativas
a respeito da necessidade de adaptar o seu funcionamento e processo legislativo, além de
determinações que se destinam à produção textual dos projetos. O critério de autoria dos projetos foi
incentivado pela naturalidade das autoras e da pesquisa, além da viabilidade de acesso virtual ao
material investigado. Já a escolha por Projetos de Lei em situação “Transformado em norma jurídica”,
foi determinada pelo interesse em investigar as principais estratégias argumentativas empregadas aos
textos para aprovação do seu conteúdo, além do interesse em analisar as normas resultantes desses
projetos.
Tendo em vista que os projetos necessitam de uma justificativa para abertura do processo
legislativo, entendemos que essa seção é o espaço da manifestação dos autores para o convencimento
dos seus pares pela aprovação da propositura de lei e foi esse o nosso plano de texto analítico para os
Projetos de Lei. Igualmente investigados os níveis no plano do texto e do discurso, as leis decorrentes
dos projetos foram analisadas a fim de estabelecer uma comunicação entre a justificativa dos Projetos
de Lei e o conteúdo proposto nas normas por meio da publicação de Lei Ordinária, ou seja, nossas
discussões versaram sobre se conteúdo antedito no Projeto justifica, corrobora ou ratifica o disposto
no conteúdo normativo.
Desse modo, nosso corpus de análise totaliza 13 Projetos de Lei produzidos entre os anos
de 1989 a 2016, formulados por Deputados Federais do estado do Rio Grande do Norte, membros da
Câmara dos Deputados, todos transformados em norma jurídica e constituídos da seção de
justificativa em sua materialidade textual, além dos seus respectivos textos normativos, que são 13
Leis Ordinárias resultantes desses Projetos de Leis aprovados.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS

Ancorado nos postulados teóricos da Análise Textual dos Discursos, o estudo da estrutura
composicional dos Projetos de Lei possibilitou a identificação de um plano de texto delimitado por
seções recorrentes, conforme segue organizado em um quadro ilustrativo geral:

Quadro 1 - Características gerais do plano de texto dos Projetos de Lei


PLANOS DE TEXTO CARACTERÍSTICAS
Cabeçalho Timbre da Câmara dos Deputados, nome do gabinete e do político
Número do projeto Número do projeto e espaço para ser preenchido futuramente à aprovação da lei
210

Autoria Autoria do projeto


Ementa Conteúdo do projeto
Abertura Enunciado de abertura: “O Congresso Nacional decreta”
Materialidade textual Constituída por:
- Conteúdo jurídico
- Seção justificativa/justificação
- Súplica de aceitação
Endereçamento Local, dia, mês e ano do projeto
Assinatura Cargo e assinatura do(s) autor(es) do projeto.
Codificação Ano e número do processo
Fonte: a autora.

Com base no exposto, nossas análises indicaram uma materialidade linguística que não
varia quanto aos aspectos de forma. Nesse sentido, a estrutura composicional dos Projetos de Lei
investigados apresenta regularidade na disposição dos planos de texto, sendo, portanto, considerados
convencionais ou fixos, conforme Adam (2011). Esse plano de texto fixo é marcado “pelo estado
histórico de um gênero ou subgênero de discurso” (ADAM, 2011, p. 258) e sua organização é
condicionada pelas determinações da Resolução N° 17 de 1989 da Câmara dos Deputados que
preconiza:

Art. 111. Os projetos deverão ser divididos em artigos numerados, redigidos de forma concisa
e clara, precedidos, sempre, da respectiva ementa.
§ 1º O projeto será apresentado em três vias:
I - uma, subscrita pelo Autor e demais signatários, se houver, destinada ao Arquivo da
Câmara;
II - uma, autenticada, em cada página, pelo Autor ou Autores, com as assinaturas, por cópia,
de todos os que o subscreveram, remetida à Comissão ou Comissões a que tenha sido
distribuído;
III - uma, nas mesmas condições da anterior, destinada a publicação no Diário da Câmara
dos Deputados e em avulsos.
§ 2º Cada projeto deverá conter, simplesmente, a enunciação da vontade legislativa, de
conformidade com o § 3º do art. 100, aplicando-se, caso contrário, o disposto no art. 137, §
1º, ou no art. 57, III.
§ 3º Nenhum artigo de projeto poderá conter duas ou mais matérias diversas. (BRASIL,
1989).

Nas Leis Ordinárias, a investigação do plano de texto resultou na identificação de partes


textuais frequentes, as quais foram compiladas e seguem ilustradas no quadro abaixo:

Quadro 2 - Características gerais do plano de texto das Leis Ordinárias


PLANOS DE CARACTERÍSTICAS
TEXTO
Cabeçalho Número, dia, mês e ano da lei
Ementa Conteúdo da lei
Abertura Enunciado de abertura: “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:”
Materialidade Constituída por:
textual - Capítulos
211

- Artigos
- Parágrafos
- Incisos
- Alíneas
- Itens
Endereçamento Local, dia, mês e ano da aprovação da lei
Assinatura Assinaturas
Ratificações Retoma a validade do texto original publicado no Diário Oficial da União
Publicações Sugestões de acesso aos textos
Fonte: a autora.

Com base no exposto, a recorrência das características que compõem a estrutura


composicional das normas analisadas é sugestiva para a indicação de um plano de texto fixo, mesmo
com alterações na substancialidade da materialidade textual, como ausência de capítulos, incisos,
alíneas e itens em alguns dados. Segundo Adam (2011), a organização global de um texto é prescrita
por um gênero e, para as Leis Ordinárias, esse esquema está previsto no Manual de Redação da
Presidência da República (BRASIL, 2018), que indica uma estrutura composta por dois elementos
básicos: a ordem legislativa (parte preliminar – epígrafe, ementa, preâmbulo, parte normativa e parte
final; e o fecho da lei) e a matéria legislada (texto ou ao corpo do ato).
Baseado na teoria psicocognitiva dos esquemas de Adam (2011), reconhecemos nos
textos analisados sequências textuais narrativas, argumentativas, explicativas e descritivas. A título
ilustrativo, seguem excertos para discussões pontuais a respeitos de algumas sequências textuais e
das demais categorias de análise:

Excerto 1 (Projeto de Lei n° 1203/1991 – PL 03)


JUSTIFICAÇÃO
Luis Fausto de Medeiros foi um batalhador incansável pela construção do Porto-Ilha de Areia Branca.
Anteriormente, havia sido prefeito desse municipio, onde realizou uma administração caracterizada pela honestidade e
trabalho em favor do seu povo. Compreendendo a necessidade da concretização dessa obra, iniciou a luta pela
construção desse porto ainda na década de 50, quando outros municipios também a desejavam.
A proposta do nome de Luis Fausto de Medeiros para o Porto-Ilha de Areia Branca significará o reconhecimento
de quem lutou decisivamente por essa causa. Considero ser essa a justa homenagem e receberá a aprovação total da
população areia-branquense, reconhecedora do amor e da dedicação que teve Luis Fausto de Medeiros por essa cidade.
Sala das Sessões, em 05 de junho de 1991.
Deputado LAÍRE ROSADO
(assinatura)

Excerto 2 (Lei n° 8976/1995 correspondente ao Projeto de Lei n° 1203/1991)


LEI N° 8976, DE 06 DE JANEIRO DE 1995

Denomina “Luís Fausto de Medeiros” o Porto-Ilha de Areia Branca, situado no município do mesmo nome,
Estado do Rio Grande do Norte.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:
Art. 1° Fica denominado Porto-Ilha 'Luís Fausto de Medeiros' o atual Porto-Ilha de Areia Branca, situado no
município do mesmo nome, no Estado do Rio Grande do Norte.
Art. 2° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
212

Art. 3° Revogam-se as disposições em contrário.


Brasília, 6 de Janeiro de 1995; 174' da Independência e 107° da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

No excerto 1, o primeiro parágrafo da justificação apresenta elementos linguísticos


comuns às sequências narrativas, como a ilustração de eventos a partir da trama de uma terceira
pessoa (Luis Fausto de Medeiros), constituída pelo uso de tempos verbais no eixo do pretérito (foi,
realizou, iniciou) e advérbios como determinantes espaciais e temporais (Areia Branca, década de
50). Conforme Adam (2011), a sequência narrativa é composta pela exposição de fatos reais ou
imaginários com noção de passagem de tempo, estratégias igualmente empregadas pelo autor do PL
03.
É possível identificar, também no excerto 1, tópicos das sequências descritivas, como a
ancoragem do referente Luis Fausto de Medeiros aspectualizado em diferentes adjetivações
(batalhador incansável, administração caracterizada pela honestidade e trabalho, lutou decisivamente
por essa causa, amor e dedicação por essa cidade). Segundo Adam (2011), a descrição é pouco
prototípica em si mesma e isso sugere uma flexibilização ligada ao plano de texto e,
consequentemente, ao modo como o enunciador orienta sua progressão textual e discursiva.
No excerto 2, identificamos marcas linguísticas sugestivas da manifestação da
responsabilidade enunciativa do autor do texto, por meio do emprego de verbos na primeira pessoa
do singular do presente do indicativo (faço, sanciono), pelo uso de dêiticos espaciais e temporais
(Brasília, 6 de Janeiro de 1995) e a assinatura (Fernando Henrique Cardoso), situação em que o
enunciador revela seu maior grau de engajamento a respeito do conteúdo proposicional veiculado no
texto, modo de encerramento presente em todos os Projetos de Lei e Leis Ordinárias investigados.
Ainda no nível da enunciação, é possível observar a manutenção da matéria do Projeto de
Lei n° 1203/1991 presente na Lei n° 8976/1995 pela repetição de enunciados anteditos evocados para
o novo texto, estabelecendo um comportamento coesivo, polifônico e dialógico entre o Projeto de Lei
e a Lei Ordinária.
Já no nível da argumentação, nossa investigação ocorreu conjuntamente às análises da
estrutura composicional e da enunciação, pois a orientação argumentativa é estabelecida no todo
configuracional do texto construído em função dos propósitos comunicativos do gênero. Nesse
sentido, o plano de texto e as sequências textuais da justificação do PL 03 ilustrados no Excerto 1
formam um arranjo argumentativo e enunciativo que direciona seu conteúdo proposicional para a
aprovação da propositura. No Excerto 2, o autor sinaliza a lei nos enunciados iniciais, apresenta suas
determinações ao longo do plano de texto e imprime uma visada argumentativa aos artigos finais
“Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”, fazendo-se valer a intenção comunicativa de
uma lei, cumprir.
213

O estudo da orientação argumentativa se dá desde a ação de linguagem que apresenta o


enunciado até a conclusão do conteúdo proposicional, por isso é uma investigação complexa que
reúne várias dimensões de análise, como os níveis composicional, semântico e enunciativo, pois a
orientação argumentativa indica a interpretação dos argumentos dos enunciados em uma progressão
textual que atende aos propósitos comunicativos dos enunciadores.
Nossas análises e breves discussões sinalizam a riqueza textual e discursiva dos dados
que não se esgota na brevidade deste artigo, porém permitem, possivelmente, contribuir com
conhecimentos linguísticos que viabilizam a compreensão dos textos normativos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudos desenvolvidos na perspectiva teórica da Análise Textual dos Discursos propõem


analisar os níveis discursivo e textual em novas categorias de modo articulado entre os saberes da
Linguística Textual, da Linguística da Enunciação e da Análise do Discurso a partir da investigação
dos gêneros do discurso em determinada formação sociodiscursiva.
Nessa perspectiva, investigamos a enunciação e a orientação argumentativa empregadas
na estrutura composicional de Projetos de Lei e de suas Leis Ordinárias por meio do estudo dos níveis
enunciativo e argumentativo que compõem a materialidade desses textos concretos, a fim de
depreender sentidos globais que emergem da estrutura composicional, da enunciação e da orientação
argumentativa dos gêneros.
Com isso, o estudo da estrutura composicional possibilitou a identificação de planos de
texto fixos dos gêneros Projeto de Lei e Lei Ordinária, tendo em vista a reprodução de uma
organização textual prevista pela Resolução Nº 17/1989, que aprova o Regimento Interno da Câmara
dos Deputados, e pelo Manual de Redação da Presidência da República (BRASIL, 2018), que indica
os elementos básicos do texto normativo. Nesse mesmo nível de análise, observamos, também,
sequências textuais narrativas, argumentativas, explicativas e descritivas inseridas aos textos em
favor da argumentatividade dos enunciados e da intenção comunicativa dos gêneros.
No nível da enunciação, as marcas linguísticas da manifestação da responsabilidade
enunciativa foram evidenciadas a partir de algumas categorias que Adam (2011) sugere, baseado no
Aparelho Formal da Enunciação de Benveniste (2006), como tempos verbais e dêiticos espaciais e
temporais, além da presença de assinatura nos textos, que releva o maior grau de engajamento do
enunciador a respeito do conteúdo proposicional veiculado no texto e isso corresponde ao
encerramento de todos os Projetos de Lei e Leis Ordinárias investigados.
Ainda no nível da enunciação, percebemos a manutenção da matéria apontada
inicialmente no Projeto de Lei presente na Lei Ordinária resultante da sua aprovação, retomada pela
214

repetição de enunciados anteditos e trazidos para o novo texto, estabelecendo um comportamento


coesivo, polifônico e dialógico entre o Projeto de Lei e a Lei Ordinária.
Já na dimensão argumentativa de análise, a compreensão da materialização da orientação
argumentativa nos Projetos de Lei e nas Leis Ordinárias investigados procedeu da interpretação
conjunta aos demais níveis de análise, visto que a organização das proposições percorre as categorias
do plano de texto, das sequências textuais, da responsabilidade enunciativa e da coesão polifônica
para o alcance de uma visada argumentativa e para a apreensão dos propósitos comunicativos dos
gêneros estudados.
Por fim, nossos resultados contribuem com as pesquisas atuais oriundas dos estudos
linguísticos do texto que consideram os textos concretos socialmente realizados nas formações
sociodiscursivas como objetos de investigação. Outro fator relevante é a notória importância social
do nosso corpus, considerando que o Direito precisa ser acessado por seus usuários para cumprir,
dessa forma, a premissa de servir a coletividade.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo:
Cortez, 2011.

ADAM, Jean-Michel. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. São
Paulo: Contexto, 2019.

BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 17, DE 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
120f.

BRASIL. Manual de Redação da Presidência da República. 3. ed., rev., atual. e ampl. – Brasília:
Presidência da República, 2018. 189f.

CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. Linguística Textual e Teoria da Argumentação na Língua: texto e
língua e diálogo. In: CAPISTRANO JÚNIOR, Rivaldo; LINS, Maria da Penha Pereira; ELIAS,
Vanda Maria. (org.). Linguística textual: diálogos interdisciplinares. 1. ed. São Paulo: Labrador,
2017, p. 239-262.

CABRAL, Ana Lúcia Tinoco; GUARANHA, Manoel Francisco. O conceito de justiça: argumentação
e dialogismo. Bakhtiniana, São Paulo, n. 9 (1): p. 19-34, Jan./Jul. 2014.

CAVALCANTE, M. M.; CUSTÓDIO FILHO, V. Revisitando o estatuto do texto. Revista do


GELNE, Piauí, v.12, n.2, 2010.

FERNANDES, Emiliana Souza Soares. Dispositivos enunciativos na sentença judicial


condenatória de crimes contra a dignidade sexual infanto-juvenil. 2016. 316f. Tese (Doutorado
em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

FLORES, V. N. Introdução à Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2008.


215

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 3. ed. São
Paulo: Contexto, 2016.

GOMES, Alexandro Teixeira. A responsabilidade enunciativa na sentença judicial condenatória.


2014. 153f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.

GUENTCHÉVA, Zlatka. Introducion. In: GUENTCHÉVA, Z. (Org.). L’Énonciation Médiatisée.


Louvain-Paris, Éditions Peeters, 1996, p. 11-18.

LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. A argumentação na petição inicial. 2008. 103 f.
Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada; Literatura Comparada) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2008.

LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. Análise textual dos discursos: responsabilidade
enunciativa no texto jurídico. 2013. 231 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada; Literatura
Comparada) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.

LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. Análise textual dos discursos: responsabilidade
enunciativa no texto jurídico. Curitiba: CRV, 2015.

PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Prática política, jurídica, jornalística. Lisboa:
Quid Juris Sociedade Editora, 2010.

MEDEIROS, Célia Maria de. Responsabilidade enunciativa no gênero jurídico contestação. 2016.
180f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

PINTO, Rosalice. Argumentação em gêneros textuais/discursivos: uma abordagem


teóricoepistemológica. ReVEL, edição especial vol. 14, n. 12, 2016.

RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa.
São Paulo: Cortez, 2016.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes
da.“Voltarei. O povo me absolverá...”: a construção de um discurso polêmico de renúncia. In:
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes da (Org.).
Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010. p. 150-195.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes da. Planos
de texto e representações discursivas: a seção de abertura em processo-crime. In: BASTOS, N. B.
Língua portuguesa e lusofonia. São Paulo: EDUC, 2014. p. 240-255.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes. “SAIO DA
VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA” – pontos de vista, responsabilidade enunciativa coletiva e
polêmica pública na Carta-Testamento de Getúlio Vargas. Conexão Letras, v. 11, n. 15, 2016, p.
100-113.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis. “Tentam colocar medo no povo”: vozes,
emoções e representações num texto jornalístico. In: BASTOS, Neusa Barbosa (Org.). Língua
portuguesa e lusofonia: história, cultura e sociedade. São Paulo: EDUC, 2016. p. 259-272.
216

RODRIGUES, M. G. S. Linguística textual e responsabilidade enunciativa. In: Rivaldo Capistrano


Júnior; Maria da Penha Pereira Lins; Vanda Maria Elias. (Orgs.). Linguística textual: diálogos
interdisciplinares. 1. ed. São Paulo: Labrador, 2017, p. 299-316.
217

EXCESSO DE LINGUAGEM – O PAPEL DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA


ANULAÇÃO DE DECISÕES DE PRONÚNCIA

Ryanny Bezerra Guimarães73,


Mestranda em Estudos da Linguagem (UFRN);
Maria das Graças Soares Rodrigues74,
Doutorado em Linguística (UFPE), professora da UFRN.

RESUMO
Este trabalho está situado no eixo teórico da Análise Textual dos Discursos (ATD), tendo como base
os postulados de J-M. Adam (2011), considerando o texto em sua relação necessária com o co(n)texto
e discurso e, consequentemente, compreendendo-o a partir de sua materialização num gênero
discursivo. Numa abordagem também em consonância com Adam, são utilizados os conceitos e
pressupostos de Alain de Rabatel (2013, 2016), como Ponto de Vista (PDV), Empatia e Emoção. O
gênero escolhido para análise é a decisão de pronúncia anulada por excesso de linguagem, bem como
sua versão refeita, sendo utilizadas decisões de domínio público. A referida peça jurídica é produzida
por um juiz, na primeira fase do Tribunal do Júri (competente para julgar crimes dolosos contra a
vida e conexos), em que são analisados os indícios de materialidade e indícios suficientes de autoria
(art. 413, §1º, Código de Processo Penal); sendo o réu pronunciado, ele será julgado pelo Tribunal do
Júri (jurados). A importância de se estudar mais este gênero jurídico em relação à Responsabilidade
Enunciativa (RE) se dá por ser, primeiramente, uma decisão cujos limites são impostos para evitar
que os jurados, na segunda fase do Tribunal do Júri, venham a ter seu convencimento já formado por
esta decisão, impossibilitando uma defesa efetiva do réu e, segundo, porque a análise prévia do corpus
indica que anulação dessas decisões por “excesso de linguagem” está ligada a questões relacionadas
às categorias relacionadas a RE do Locutor Enunciador Primeiro (L1/E1), juiz, em relação ao seu
dizer. Em razão dessa ligação, privilegia-se o nível de análise em que é possível perceber e estudar a
RE no gênero discursivo jurídico decisão de pronúncia. Depois de identificado e detalhado o plano
de texto do gênero, tendo como base as categorias de análise indicadas por Adam (2011), são
identificadas, descritas, analisadas e interpretadas as marcas linguísticas que caracterizam o “excesso
de linguagem”, bem como marcas que evidenciam o Ponto de Vista (PDV) e a Responsabilidade
Enunciativa (RE) nas decisões de pronúncia anuladas e, em seguida, nas decisões refeitas.

Palavras-chave: Análise Textual dos Discursos. Ponto de Vista. Responsabilidade Enunciativa.


Decisão de pronúncia. Excesso de linguagem.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objeto observacional decisões de pronúncia anuladas por
“excesso de linguagem”, bem como suas respectivas decisões refeitas. Essas decisões tem uma
estrutura que impõem ao magistrado um posicionamento reticente quanto à sua convicção, ancorando
seu ponto de vista, especialmente, a questões objetivas constantes nos autos (laudo necroscópico,

73
E-mail: ryanny.guimaraes@gmail.com
74
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
218

laudo pericial) e à visão de terceiros, fazendo uso de discursos alheios (testemunhas, réu) para se
manter distante. Por tais características, não raro essas decisões são objeto de recurso e findam
anuladas por tribunais superiores, especialmente por algo que a jurisprudência75 chama de “excesso
de linguagem”.
A importância de estudarmos mais este gênero jurídico em relação à Responsabilidade
Enunciativa (RE) se dá por ser, primeiramente, uma decisão cujos limites são impostos para evitar
que os jurados, na segunda fase do Tribunal do Júri, venham a ter seu convencimento já formado por
esta decisão, impossibilitando uma defesa efetiva do réu e, segundo, porque a análise prévia do corpus
indica que anulação dessas decisões por “excesso de linguagem” está ligada a questões conjugadas
às categorias relacionadas a RE do Locutor Enunciador Primeiro (L1/E1), isto é, o juiz, em relação
ao seu dizer. Em razão dessa ligação, privilegiamos o nível de análise em que é possível perceber e
estudar a RE no gênero discursivo jurídico decisão de pronúncia.
Com o propósito de compreender linguisticamente o fenômeno jurídico denominado
“excesso de linguagem”, temos os objetivos de identificar, descrever, analisar e interpretar: (a) o
plano de texto e as características do gênero “decisão de pronúncia”; (b) marcas linguísticas que
caracterizam o “excesso de linguagem” no gênero; (c) marcas linguísticas que evidenciam o PDV e
a RE em decisões de pronúncia anuladas por “excesso de linguagem”; (d) marcas linguísticas que
evidenciam o PDV e a RE em decisões de pronúncia refeitas após a anulação e, por fim, (e) a relação
entre a RE e o “excesso de linguagem” nas decisões de pronúncia.
Para nosso intento, utilizamos os pressupostos teóricos de J-M. Adam (2011), no que diz
respeito à Responsabilidade Enunciativa (RE), bem como Rabatel (2013, 2016) para conceituar e
compreender Ponto de Vista (PDV) e Empatia e Micheli (2010) para melhor conceituar
linguisticamente Emoção.
É importante destacar que a pesquisa aqui explanada ainda está em andamento, sendo
parte da dissertação que estamos desenvolvendo durante o mestrado. Em razão disso, optamos por
explorar apenas duas decisões que compõem nosso corpus, referente a um mesmo processo judicial,
a fim de preservar a originalidade da investigação científica quando da sua publicação nos bancos de
dados das teses e dissertações da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

ASPECTOS TEÓRICOS

Nesta seção são discutidos alguns aspectos teóricos importantes para composição deste
trabalho, que se localiza no eixo teórico da Análise Textual dos Discursos (ATD). Com isso,

75
Jurisprudência é um conjunto das decisões de um tribunal ou tribunais. Representa a visão do tribunal, em determinado
momento, sobre as questões legais levadas a julgamento.
219

compreendemos a produção de sentido em textos concretos, favorecendo o entendimento do texto


enquanto produto de uma prática discursiva.

Análise Textual dos Discursos: uma abordagem voltada para o gênero

A Análise Textual dos Discursos (ATD) proposta por Jean-Michel Adam (2011) nasce a
partir da carência de uma teoria que ligue elementos da Linguística Textual (LT), bem como da
Análise dos Discursos, sendo um intermédio entre ambas, com categorias analíticas que possibilitem
sua interligação e que acompanhem as transformações da compreensão do sentido de texto76.
Notamos que as referidas teorias (LT e AD francesa) assumiram pontos de partida opostos e,
consequentemente, metodologias distintas. Percebendo isso, Adam (2011, p. 43) mostra-nos seu
objetivo:

É sobre novas bases que propomos, hoje, articular uma linguística textual desvencilhada da
gramática de texto e uma análise do discurso emancipada da análise de discurso francesa
(ADF).

A proposta da ATD concebida por Adam (2011, p. 43) define a “linguística textual como
subdomínio do campo mais vasto da análise das práticas discursivas”. O autor ainda reconhece, ao
explicar um de seus esquemas, qual o objeto da (a) LT e qual o objeto da (b) AD: no caso da primeira,
(a) o texto, em suas proposições, constituídas em uma unidade e, no caso da segunda, (b) as regulações
“que as situações de interação nos lugares sociais, nas línguas e nos gêneros dados impõem aos
enunciados” (ADAM, 2011, p. 44).
Assim, a ATD, esclarece-nos Lanzillo (2016, p. 41): “estuda as práticas discursivas por
meio de textos e somente pelos textos é possível estudar o(s) discurso(s)”. Nesse sentido, Karlheinz
Stierle (apud ADAM, 2011, p. 52) diz:

O discurso é, necessariamente, assujeitamento à atividade de pano de fundo do leitor, que


não se contenta em perceber o texto, mas, antes de tudo, organiza-o em discurso.

Uma vez que é a partir do texto que o leitor/analista compreende as condições de sua
enunciação, Adam (2011, p. 52) revela-nos nossas (de)limitações para empreender uma análise:

Não se pode esquecer que não temos acesso ao contexto como dado extralinguístico objetivo,
mas somente a (re)construções pelos sujeitos falantes e/ou por analistas (sociólogos,
historiadores, testemunhas, filólogos ou hermeneutas).

76
A definição de texto, atualmente, incorpora aspectos comunicacionais, interacionais, cognitivos.
220

Conectando nosso aporte teórico com nossas escolhas metodológicas, percebemos a


consonância da ATD com a metodologia deste trabalho, uma vez que nela a linguística abre-se ao
interpretativismo, bem como à compreensão do papel do leitor/analista na construção (nunca
estanque) do sentido do texto. Adam (2011, p. 53), então, reconhece a existência do co(n)texto, isto
é, enunciados que apoiam - objetivamente - o enunciado a ser analisado (cotexto), bem como
operações que contextualizam esse enunciado, recriando a situação de enunciação que o torna
possível (contexto) a partir da construção - subjetiva - do leitor/analista.
A ligação com a análise dos discursos é, então, concebível, e o objeto parece mais bem
definido: práticas discursivas institucionalizadas, quer dizer, para nós, gêneros de discurso, cuja
determinação pela história deve ser considerada pelo viés da interdiscursividade.

Responsabilidade Enunciativa
Passeggi, Rodrigues, Silva Neto, Sousa & Soares (2010) sustentam, fundamentados nos
estudos de Adam (2011), que a responsabilidade enunciativa ocorre através da assunção da
responsabilidade pelo conteúdo dito ou pela atribuição desse conteúdo a outrem. Por meio de tal
conceptualização, percebe-se que na composição textual pode haver marcas que responsabilizam o
enunciador pelo dizer.
Segundo Adam (2011), a responsabilidade enunciativa é entendida como uma das
dimensões elementares da unidade textual mínima, a proposição-enunciado, chamada de “produto de
um ato de enunciação: ela é enunciada por um enunciador inseparável de um coenunciador” (ADAM,
2011, p. 108).
Para Adam (2011), a RE ou PdV pode ser firmado textualmente por diversas marcas que
caracterizam o grau de Responsabilidade Enunciativa de uma proposição. Tais marcas podem ser: (i)
os índices de pessoa; (ii) os dêiticos espaciais e temporais; (iii) os tempos verbais, (iv) as modalidades;
(v) os diferentes tipos de representação da fala; (vi) as indicações de quadros mediadores; (vii) os
fenômenos de modalização autonímica; (viii) as indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos.
Vemos, então, que a RE diz respeito à dimensão enunciativa. Tal categoria (RE) permite
dar conta do “desdobramento polifônico” dos enunciados e torna possível identificar de que forma e
quem se responsabiliza pelos pontos de vista que são mobilizados no texto. Perceber a decisão de
pronúncia sob essa ótica, portanto, mostra-se pertinente em razão da ocorrência de “excesso de
linguagem”, notadamente com vias a entender sua relação com o grau de Responsabilidade
Enunciativa.
221

Ponto de vista: interconectando emoção e empatia


Nas palavras de Rabatel (2016, p. 30), o Ponto de Vista (PDV) consubstancia-se “pelos
meios linguísticos pelos quais um sujeito considera um objeto, em todos os sentidos do termo
considerar, quer o sujeito seja singular ou coletivo”. O objeto pode ser um objeto concreto, uma
situação, um acontecimento, alguém, pois “em todos os casos trata-se de um objeto de discurso”
(RABATEL, 2016, p. 30). Desse modo:

[...] analisar um ponto de vista é recuperar, de uma parte, os contornos de seu conteúdo
proposicional e, de outra, sua fonte enunciativa, inclusive quando esta é implícita, a partir de
atribuição dos referentes e dos agenciamentos das frases em um texto. (RABATEL, 2016,
p.71, grifo nosso)

O sujeito, responsável pela referenciação do objeto, mostra seu PDV, tanto diretamente,
utilizando comentários explícitos, como indiretamente, pela referenciação, isto é, pelas escolhas,
combinações e atualização do material linguístico. (RABATEL, 2016, p. 30). Rabatel (2016, p. 29)
ainda combina o conceito de PDV com o de empatia, dizendo-nos que antes de ser um conceito
linguístico, ele é uma postura psico-cognitiva que movimenta o sujeito a se colocar no lugar do outro
e até de todos os outros.
Já a empatia, sob o prisma linguístico, significa colocar-se no lugar de outrem, de modo
que um locutor empresta sua voz a outro para projetar um acontecimento do ponto de vista do outro,
baseando-se “na distinção entre locutor (na origem material de um ato de dicção ou de escrita) e o
enunciador na origem das posições enunciativas que transmitem os discursos” (RABATEL, 2013, p.
160).
O autor também definiu algumas instâncias para esse conceito. Ele nomeia como
empatizador ou instância empatizante, o locutor/enunciador primeiro, aquele que vai se colocar no
lugar do outro e empatizado, o sujeito que vai se beneficiar do tratamento empático do empatizador.
Para o linguista, um centro de empatia corresponde ao enunciador segundo o qual vai sofrer as
influências do movimento empático.
Para nossa análise, também utilizamos o conceito de enunciado de emoção, de Plantin
(2011, p. 145):

O enunciado de emoção traz uma resposta à questão elementar “quem sente o que sente o
que e por quê?”atribui uma emoção a uma pessoa e, em certos casos, menciona a fonte da
emoção. Esse modelo é linguisticamente fundamental na medida em que a relação de emoção
(fonte - lugar – emoção) corresponde à estrutura semântica de uma família de enunciados
elementares. [...] O enunciado de emoção é definido como uma forma ligando um termo de
emoção (verbo ou substantivo), um lugar psicológico (chamado, por vezes, experienciador)
e uma fonte da emoção. (grifo nosso)
222

DECISÕES DE PRONÚNCIA: UM DIVISOR DE ÁGUAS PARA O TRIBUNAL DO JÚRI

Renato Brasileiro nos ensina que o Tribunal do Júri é um órgão que pertence ao Poder
Judiciário, cuja formação heterogênea é composta por: (i) um juiz togado, que presidirá a sessão, e
(ii) juízes leigos, que comporão o Conselho de Sentença:

O Tribunal do Júri é um órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância, pertencente


à Justiça Comum Estadual ou Federal, colegiado e heterogêneo, formado por um juiz togado,
que é seu presidente, e por 25 (vinte e cinco) jurados, 7 (sete) dos quais compõem o Conselho
de Sentença, que tem competência mínima para o processo e julgamento dos crimes dolosos
contra a vida, temporário, porquanto constituído para sessões periódicas, sendo depois
dissolvido, dotado de soberania quanto às decisões, tomadas de maneira sigilosa e com base
no sistema da íntima convicção, sem fundamentação, de seus integrantes leigos.
(BRASILEIRO, 2020, p. 1439)

Um dos princípios do Tribunal do Júri é a competência para o julgamento de crimes


dolosos contra a vida. Esta é uma competência mínima, que não pode ser afastada nem por emenda
constitucional. De acordo como art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal (CPP), serão de
competência do Tribunal do Júri:

art. 74 A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização
judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.
§ 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º,
122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.
(BRASIL, 1941. DECRETO-LEI N. 3.689)

O rito do Tribunal do Júri é especial, diferenciando-se por apresentar uma estrutura


bifásica. A primeira fase segue, a princípio, como no procedimento comum, em que é (i) oferecida a
denúncia, submetendo-se esta a um (ii) juízo de admissibilidade, sendo, pois, recebida a denúncia,
apresentar-se-á a (iii) defesa do acusado, momento em que será oportunizado, à acusação, a (iv)
réplica e, não sendo caso de absolvição sumária (Código de Processo Penal, art. 397), realizar-se-á
audiência de instrução, ocasião em que serão ouvidas as testemunhas, o acusado e a vítima (se
possível).
A decisão de pronúncia, nas palavras de Brasileiro (2020, p. 1468) “encerra um juízo de
admissibilidade da acusação do crime doloso contra a vida”, direcionando o julgamento ao Tribunal
do Júri somente quando há viabilidade de o réu ser condenado. O art. 413, do CPP diz que quando o
juiz estiver convencido da materialidade do fato bem como da existência de indícios suficientes de
autoria ou de participação, deve pronunciar o réu, fundamentando sua decisão. No entanto, em que
pese a decisão tenha de ser fundamentada, ela não pode conter valoração acerca do mérito, limitando-
se à admissão das acusações que tenham probabilidade de procedência.
223

Concluímos, então, que o referido artigo exige o convencimento do juiz em relação à


materialidade do fato, isto é, que, comprovadamente, tenha havido crime contra a vida. Mas essa
mesma exigência não vale para a autoria, pois no código está a palavra “indício”, indicando um
elemento de prova tênue. Isso significa que não é exigido certeza do juiz, bastando que haja
informações, nos autos, demonstrando a possibilidade da autoria (BRASILEIRO, 2020, p. 1469).
De maneira sucinta, podemos dizer que o “excesso de linguagem” ocorre quando o
magistrado se inclina sobre o mérito, tornando a pronúncia passível de anulação. Isso porque o juiz
não pode resolver a questão proposta na abertura da ação, isto é, a pretensão acusatória desenvolvida
na denúncia. Na verdade, cabe aos jurados, no Plenário, dirimir sobre acusação e decidir se o réu será
condenado ou não. Portanto, quando o juiz tece considerações desfavoráveis ao réu, há uma quebra
de imparcialidade de sua parte (RANGEL, 2018, p. 150); além disso, pode influenciar os jurados e
prejudicar as teses defensivas. No mesmo sentido, como o juiz não é o competente para o julgamento,
ele não pode tecer afirmações sobre o mérito, precisando desenvolver sua fundamentação de maneira
reticente, sem afirmações assertivas quanto à autoria, tampouco desqualificando teses defensivas.

METODOLOGIA E ANÁLISE
Nesta seção, trataremos dos métodos de análise e analisaremos parte do corpus coletado
para presente pesquisa77. Assim, vamos observar os excertos que foram considerados, pelos
respectivos tribunais de cada um dos estados, como exemplos de “excesso de linguagem” nas
decisões.

Metodologia

Neste trabalho, adotamos uma abordagem qualitativa, uma vez que nos concentramos na
análise e compreensão do corpus com a finalidade de demarcar linguisticamente os elementos
constituintes do “excesso de linguagem”, a partir de categorias analíticas exemplificadas 78 por Adam
(2011) no estudo da Responsabilidade Enunciativa, bem como do Ponto de Vista, de Rabatel (2016,
2013), possibilitando a construção do sentido do texto.
Nossa escolha pela abordagem qualitativa, implica-nos a utilização de um método, em
particular: o indutivo, pois, a partir da observação de fatos particulares, podemos apreender
formulações subjacentes, adequando-se ao nosso trabalho em razão da relação dinâmica e
interconectada entre o mundo e o sujeito (PRODANOV; FREITAS, p. 2013, p. 70).

77
Processo n. 079/2.16.0000610-5 (TJRS), publicação da primeira Pronúncia: 8 de janeiro de 2018; publicação da
segunda Pronúncia: 25 de outubro de 2018.
78
No sentido de não ser um rol exaustivo em termos analíticos para o fenômeno da Responsabilidade Enunciativa (RE).
224

Quanto ao objetivo, na busca por identificar as marcas linguísticas do “excesso de


linguagem” que causam a anulação das decisões de pronúncia, a pesquisa é descritiva, pois ocupa-se,
essencialmente, de apresentar as características do fenômeno pesquisado.
Quanto aos métodos (procedimentos) de pesquisa, ou seja, meios para condução da
investigação científica, constituem-se como documental e bibliográfico. O corpus é composto por
decisões de pronúncia de domínio público. Além disso, situamos a pesquisa a partir de um aporte
teórico (PAIVA, 2019, p. 15).
Explicados a abordagem e os métodos, é importante dizer qual foi o direcionamento de
nossa pesquisa. Para Nunan (1992, p. 3), “a pesquisa é um processo de investigação sistemática,
consistindo de três elementos ou componentes: (1) uma pergunta, problema ou hipótese, (2) dados,
(3) análise e interpretação de dados”79. Desse modo, buscamos responder às seguintes perguntas:
a) Como se apresenta o plano de texto do gênero discursivo jurídico “decisão de
pronúncia”?
b) Que marcas linguísticas caracterizam o “excesso de linguagem” nesse gênero?
c) Que marcas linguísticas evidenciam o Ponto de Vista (PDV) e a Responsabilidade
Enunciativa (RE) nas decisões de pronúncia anuladas por “excesso de
linguagem”?
d) Que marcas linguísticas evidenciam o PDV e a RE em decisões de pronúncia
refeitas após a anulação por “excesso de linguagem”?
e) Como a Responsabilidade Enunciativa relaciona-se ao “excesso de linguagem”
nas decisões de pronúncia?
A abordagem qualitativa desempenha na nossa pesquisa um papel interpretativo
vinculado às categorias mencionadas, bem como à categorias gerais relacionadas ao texto, à
enunciação e ao gênero discursivo. Essa perspectiva adotada coaduna-se com o paradigma
construtivista, na medida em que “não temos acesso ao contexto como dado extralinguístico objetivo,
mas somente a (re)construções pelos sujeitos falantes e/ou analistas” (ADAM, 2011, p. 52).
No quadro abaixo, elencamos as motivações para escolha de nosso corpus, bem como sua
relação:
Quadro 1

Critérios Motivação

79
“research is a systematic process of inquiry consisting of three elements or components: (1) a question, problem, or
hypothesis, (2) data, (3) analysis and interpretation of data”.
225

Gênero que ainda não foi objeto de uma


análise linguística, bem como carece de
Decisões de pronúncia
trabalhos no âmbito do Direito.

Importância do Tribunal do Júri, bem como


observar quais os limites dessa decisão e com
Anuladas por excesso de linguagem, bem como as decisões
a finalidade de assegurar uma defesa efetiva.
refeitas

Viabilizar a pesquisa sem necessidade de


autorização específica de órgão ou entidade,
Acesso público às decisões e aos acórdãos anuladores
permitindo consulta aberta ao público,
facilitando esta investigação, bem como de
outros pesquisadores.

Propor uma variabilidade nos dados,


priorizando sua naturalidade (PRODANOV;
Um processo de cada região do país
FREITAS, p. 2013, p. 70)

Buscar decisões que ainda surtam efeito na


sociedade e, especialmente, na vida dos réus
Interstício temporal contemporâneo
dos respectivos processos.

Fonte: elaboração própria.

Plano de texto genérico

De acordo com Sueli Marquesi (2017, p.14): “O plano de texto reflete a maneira como
as informações estão organizadas no texto, indicando também a organização das sequências textuais,
sempre de acordo com as intenções de quem escreve”. Assim, identificar a estrutura do texto nos
auxilia na compreensão do texto.
Abaixo colocamos um plano de texto genérico que nos ajuda a compreender a decisão
de pronúncia e que, no que diz respeito ao conteúdo, podemos observá-lo em todas as decisões
analisadas:
Quadro 2

Estrutura do plano de texto Função


226

● Informa o Tribunal de onde emana a decisão;


● Indica a Vara Judicial da decisão;
Timbre e Cabeçalho ● Indica o número dos autos processuais, sua natureza,
autor da ação, réu, bem como o juiz e a data da
decisão;

● Informa o histórico do processo, desde sua


instauração, com a denúncia, até o momento da
decisão.
Relatório

● Indica os argumentos que fundamentam a decisão do


magistrado.
Fundamentação

● Indica o que decidiu o juiz em relação ao processo;


● Apresenta os provimentos finais (ações futuras
necessárias, tais como comandos para secretaria
judiciária, providências em relação ao réu, como
prisão, por exemplo).
Dispositivo

● Indica o local e a data em que foi proferida a decisão;


● Assinatura do Juiz de Direito que se responsabiliza
pela decisão.
Local/Data e Assinatura

Fonte: elaboração própria.

Análise
Como já dissemos, recortamos para este trabalho apenas um dos autos que compõem
nosso corpus. As decisões foram proferidas por um juiz de direito vinculado ao Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul (TJRS)80 e o contexto do caso é de uma suposta tentativa de homicídio ocorrida
após uma tentativa de assalto, enquanto policiais, em sua viatura, perseguiam os réus que também
estavam em um veículo.
Abaixo, separamos seis excertos dispostos de maneira que a coluna do lado esquerdo
corresponde à decisão anulada por excesso de linguagem, e a coluna do lado direito à decisão refeita
após a anulação.
Quadro 3

80
Processo n. 079/2.16.0000610-5 (TJRS), publicação da primeira Pronúncia: 8 de janeiro de 2018; publicação da
segunda Pronúncia: 25 de outubro de 2018.
227

Excerto 1 (pronúncia anulada) Excerto 2 (pronúncia refeita)

Para efeito de admissibilidade da denúncia e Para efeito de admissibilidade da denúncia e


submissão do feito ao tribunal de competência submissão do feito ao tribunal de
constitucional, tenho que o desferir de disparos competência constitucional, tenho que o
contra os policiais em linha de cabeça e tórax, desferir de disparos contra os policiais,
embora acertando no capô e giroflex, constitui ação embora acertando capô e giroflex, constitui
de quem visa à morte dos agentes do Estado. ação que traz riscos aos agentes do Estado.

Fonte: elaboração própria.

No excerto 1, L1/E1 usa o verbo “tenho” em primeira pessoa, assumindo a


responsabilidade pelo dizer e, ao invocar o grupo nominal “em linha de cabeça e tórax”, indica seu
PDV no sentido de julgar a intenção dos réus de apontarem para pontos corporais vitais das vítimas.
Vemos esse PDV reforçado quando o juiz supõe a intenção dos réus categoricamente: “visa à morte
dos agentes do estado”. E, de forma genérica, diz que essa atitude tomada pelos réus é uma ação cuja
intenção era matar, vez que o verbo “constitui” no pretérito perfeito do indicativo sugere uma
modalização epistêmica de certeza quanto à vontade dos réus. Além disso, o fato de os tiros terem
atingido o giroflex ocupam um lugar menos privilegiado na construção da sequência, pois expressa
pelo conectivo opositivo “embora”. O fato de colocar semelhante frase ao final do trecho, cuja oração
concessiva inicial está numa posição invertida, denota uma focalização na construção predicativa
“constitui ação de quem visa à morte dos agentes do Estado”.
No trecho refeito, o juiz tenta se afastar de imprimir um juízo sobre a suposta atitude dos
réus, tanto utilizando um recurso quantitativo (menos palavras), como também faz uma avaliação dos
fatos sem modalização de certeza (feita no trecho do excerto 1 com o verbo “constitui”), indicando,
agora, não a convicção sobre a vontade dos réus, mas, sim, uma verossimilhança. L1/E1 exerce uma
focalização não mais na pessoa (no trecho anterior, L1/E1 o pronome relativo “quem”), mas sim, na
própria ação: “ação que traz riscos aos agentes do Estado”.

Quadro 4

Excerto 3 (pronúncia anulada) Excerto 4 (pronúncia refeita)


228

Portanto, mesmo que absolutamente impossível Portanto, mesmo que absolutamente


dizer que os disparos foram realizados por este ou impossível dizer que os disparos foram
por aquele acusado, a combinação de vontades e a realizados por este ou por aquele acusado, o
conjugação dos seus esforços levam a crer que fato (disparos) é verossímil e os propósitos
todos assumiram, com igual intensidade, todos os da ação e todas as consequências dos
propósitos da ação e todas as consequências dos respectivos agir, devem ser expostos aos
respectivos agir, que, combinados, tinham um único jurados e por estes analisados e ponderados.
objetivo: tornar impune o roubo aos bancos de Nova
Roma do Sul/RS.

Fonte: elaboração própria.

No excerto 3, mais uma vez o magistrado (L1/E1) faz uma concessão por meio da
expressão conjuntiva “mesmo que”, indicando uma modalização epistêmica de incerteza. Ao fazer
isso, L1/E1 dá menos relevância à informação “absolutamente impossível dizer que os disparos foram
realizados por este ou por aquele réu”. Assim, o período seguinte: “a combinação de vontades e a
conjugação dos seus esforços levam a crer que todos assumiram, com igual intensidade” ganha
mais destaque, fortalecendo a vontade e responsabilidade dos réus, vez que L1/E1 usa o verbo de
opinião “assumiram”, no pretérito perfeito, bem como o grupo preposicional “com igual intensidade”
em contraposição à informação de que não é possível saber quem efetuou os disparos.
Vemos, então, que “todos assumiram, com igual intensidade” é para onde se desloca a
atenção do interlocutor, em vez da incerteza quanto aos disparos. Nesse excerto, as marcas de RE não
se dão de maneira direta, isto é, pela presença do “Eu digo”, podendo ser inferidas pelos verbos de
opinião, modalizações, grupo preposicional, os quais indicam o PDV do juiz no sentido de acreditar
no propósito dos réus do cometimento dos crimes em análise.
No trecho refeito (Excerto 4), notamos que o L1/E1 prefere dizer que há
“verossimilhança” quanto ao fato em comento: os disparos. Desse modo, dá menos indícios de sua
orientação argumentativa quanto à consciência dos réus pelos seus atos.

Quadro 5
229

Excerto 5 (pronúncia anulada) Excerto 6 (pronúncia refeita)

Não é possível afirmar quem efetuou estes disparos. Não é possível afirmar quem efetuou estes
Mas, fato incontestável é que todos estavam disparos. Mas, não pode ser afastado de
perfeitamente ajustados nesta empreitada, com plano um ajuste nesta empreitada, com
missões bem claras e definidas, sobretudo de quem missões bem claras e definidas, cabendo ao
dirigia o Vectra e que deveria dar a necessária órgão acusador expor ao Conselho de
segurança de fuga, cabendo aos outros, na Sentença as ações individuais e/ou em grupo
contribuição desta segurança de fuga, desferir tiros e as respectivas consequências para o fato
que parassem a autoridade policial, a qualquer global.
preço.

Fonte: elaboração própria.

No excerto 5, novamente L1/E1 faz menção à impossibilidade de se afirmar quem efetuou


os disparos, adicionando força ao enunciado seguinte por meio do conectivo argumentativo de
oposição “mas” e, no enunciado, evidencia uma modalização epistêmica de certeza com o advérbio
de opinião “incontestável”, fazendo uma avaliação ao conjugar o referido advérbio com o verbo no
particípio “perfeitamente ajustadas”. Novamente, o juiz faz um julgamento com o advérbio “bem” e
os adjetivos “claras” e “definidas”, indicando sua opinião quanto a intenção dos réus, que pressupõe
a convicção de que de fato seria uma tentativa de homicídio e de que os réus são verdadeiramente os
autores.
Notamos no excerto 5 a expressão adverbial “a qualquer preço”, reforçando o PDV de
L1/E1 no sentido de creditar aos réus a intenção de matar ou de, pelo menos, assumir como possível
a morte dos policiais.
No trecho refeito (Excerto 6), em vez de adotar uma modalização epistêmica de certeza,
o juiz prefere fazer uso de uma modalização objetiva (deôntica) “não pode”, que o afasta ainda mais
do dizer, no entanto, invoca uma doxa compartilhada de que não há outra forma de se perceber a
situação que não a que se aponta: “não pode ser afastado de plano um ajuste nesta empreitada”.
Notamos, também, que o L1/E1 invoca o Ministério Público (MP), “acusação”, e o “Conselho de
Sentença” a fim de retirar de si a responsabilidade pela acusação e julgamento dos réus e, desse modo,
evitando incorrer em “excesso de linguagem”.
230

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos, a partir da compreensão do gênero decisão de pronúncia, a


dificuldade de se traçar as fronteiras para sua consecução sem que esbarrem no chamado “excesso de
linguagem”. No entanto, as marcas linguísticas encontradas nos excertos das decisões analisadas
conseguem apontar de algum modo o papel das escolhas lexicais nesse fenômeno jurídico e, quem
sabe, ajudar a resolver esse problema.
Notamos a partir dos trechos analisados: (a) com relação às marcas linguísticas do
“excesso de linguagem”, modalizações indicando certeza, verbos de opinião, advérbios de opinião,
lexemas avaliativos, de maneira a caracterizar os fatos e, especialmente, indicar a intenção dos réus
com certeza; (b) no que diz respeito ao PDV e RE, marcas ligadas à indicação de um “eu”, em especial
verbos em primeira pessoa do singular, bem como os conectivos argumentativos indicando o PDV
do magistrado – L1/E1 – além de sua responsabilidade pelo dizer. Há também indicação de outra
fonte do saber, retirando de si a responsabilidade do que diz, a saber, uma espécie de doxa
compartilhada por meio de modalização deôntica; (c)quanto à relação da RE com a anulação das
referidas decisões por “excesso de linguagem”, percebemos que quanto mais marcas linguísticas de
RE, especialmente as que indicam juízos e avaliações, mais subjetividade será impressa na decisão e,
consequentemente, mais probabilidade de uma decisão ser anulada por “excesso de linguagem”.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Trad. Maria
das Graças Soares Rodrigues et al. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2011.

BRASIL. DECRETO-LEI N. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 26 fev. 2021.

BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal: volume único. 8 ed. Salvador, JusPODIVM,
2020.

CNJ. CNJ Serviço: o que são as cláusulas pétreas. 30 de outubro de 2018. Disponível em:
<https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-o-que-sao-as-clausulas-petreas/> Acesso em: 06 jan. 2021.

LANZILLO, Anderson Souza da Silva. Ponto de vista e responsabilidade enunciativa em


sentenças de pedido de falência. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem). Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes - UFRN. Natal. 2016.

MARQUESI, Sueli Cristina; ELIAS, Vanda Maria; CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. Planos de texto,
sequências textuais e orientação argumentativa. SC Marquesi, AL Pauliukonis & VM orgs, p. 13-
32, 2017.
231

NUNAN, David. Research methods in language learning. Cambridge: Cambridge University


Press, 1992.

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. Manual de pesquisa em estudos linguísticos. 1 ed. São
Paulo: Parábola, 2019.

PASSEGGI, L., RODRIGUES, M. das G. S., SILVA NETO, J. G. da, SOUSA, M. M. F. de,
SOARES, M. E. (2010). A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual de
sentido. In: LEITE, M. Q. & BENTES, A. C. (Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do trabalho científico:
métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico-2ª Edição. Editora Feevale, 2013.

RABATEL, Alain. Empathie et émotions argumentées en discours. Le discours et la langue, p. 159-


178, 2013.

RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis
Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.

RANGEL, P. Tribunal do júri - visão linguística, histórica, social e jurídica. 6 ed. rev, atual e ampl.
São Paulo: Atlas, 2018. (E-book)
232

VISADA ARGUMENTATIVA E RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA


“SUSTENTAÇÃO ORAL” DE ADVOGADOS DE DEFESA EM CRIMES DE
HOMICÍDIOS

Karla Stéphany de Brito Silva81


Maria das Graças Soares Rodrigues82

RESUMO
O propósito deste trabalho é analisar o valor da argumentação presente na sustentação oral do
advogado de defesa em um crime de homicídio no estado do Rio Grande do Norte e sua relação com
o convencimento dos jurados do Tribunal do Júri. A fim de alcançar esse propósito, este estudo
objetiva identificar, descrever, analisar e interpretar a argumentação na sustentação oral do advogado
criminal no que concerne à assunção da Responsabilidade Enunciativa, ao Ponto de Vista, à Emoção
e à Empatia, a partir da função argumentativa. Dessa maneira, esta pesquisa qualitativa de cunho
interpretativista segue o método indutivo e se fundamenta, teoricamente, nos postulados da Análise
Textual dos Discursos (ATD), com Adam (2011), Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2016) e
Rodrigues (2017), em diálogo com teorias linguísticas enunciativas, como Rabatel (2016a, 2016b e
2013) e Guentchéva (2011). Esta pesquisa segue alguns critérios bem delimitados para a escolha do
corpus, são eles: ser de caso de crime de homicídio; o réu ter sido absolvido; a sustentação oral está
disponível no Youtube e ter acesso ao documento de sentença penal absolutória do caso. Com o
propósito de padronizar a transcrição do corpus, que é um texto oral, a sustentação foi transcrita e
passada para as normas do Projeto da Norma Urbana Oral Culta (NURC). Devido ao corpus
apresentar ocorrências que não estavam marcadas nas normas de transcrição do projeto, foram
acrescentados alguns sinais além dos previstos no NURC. A análise dos dados aponta para os
seguintes resultados prévios: o locutor enunciador primeiro ora assume a responsabilidade pelo
enunciado, ora não; a assunção da responsabilidade enunciativa ocorre, principalmente, nos
cumprimentos iniciais do exórdio, enquanto a não assunção tem mais ocorrência na argumentação da
confirmação, quando o advogado precisa evocar outras vozes para fortalecer o seu argumento; a
construção do PDV de cada locutor enunciador primeiro, organizada por meio de esquemas da
sequência textual argumentativa, revela argumentos que certamente influenciaram diretamente na
decisão final dos jurados.

Palavras-chave: Argumentação. Sustentação oral. Tribunal do júri. Responsabilidade Enunciativa.


Emoção

INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um recorte de nossa dissertação de mestrado, vinculada ao
Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Portanto, segue a mesma temática, aporte teórico, e metodologia do
trabalho completo.

81
UFRN/ Mestranda/ karlastephany7@gmail.com
82
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
233

Dessa maneira, após o dito acima, o artigo analisa o valor da argumentação presente na
Sustentação oral do advogado de defesa em um crime de homicídio e a sua relação com o
convencimento dos jurados do Tribunal do Júri. Para isso, procuramos observar na argumentação do
advogado marcas de responsabilidade enunciativa, pontos de vista, empatia e um discurso emocional.
A Sustentação oral analisada ocorreu no estado do Rio Grande do Norte (RN), tendo a
sua defesa sido realizada em 2019. Essa defesa foi colhida do site do Youtube e liberada pelo
advogado para fins acadêmicos. Por se tratar de um texto oral, toda a Sustentação foi transcrita e
normatizada para as normas do Projeto da Norma Urbana Oral Culta (NURC).
Este trabalho está situado nos postulados de Jean-Michel Adam (2011), considerando o
texto em sua relação necessária com o co(n)texto e discurso. Numa abordagem também em
consonância com Adam, são utilizados os conceitos e pressupostos de Alain Rabatel (2013, 2016a,
2016b), como ponto de vista (PDV), empatia e emoção, sendo o último também analisado sob o viés
dos estudos Aristotélicos (2000) e Plantinianos (2011).
Para analisar o gênero “Sustentação oral”, esta pesquisa volta-se à resposta das seguintes
questões: (1) Como se apresenta o plano de texto e a sequência argumentativa no gênero jurídico
“Sustentação oral”, com foco na estrutura composicional? (2) Como a assunção da responsabilidade
enunciativa auxilia na argumentação do advogado de defesa no tribunal do júri? (3) Quais marcas
linguísticas presentes no gênero em questão induzem a um quadro de assunção da responsabilidade
enunciativa? (4) Como o ponto de vista (PDV) pode auxiliar na construção da orientação
argumentativa do advogado? (5) Como o discurso emotivo e a Empatia orientam a argumentação do
advogado? Para responder a esses questionamentos, neste estudo objetiva-se identificar, descrever,
analisar, interpretar a sustentação oral do advogado de defesa de um crime de homicídio no RN, no
que se refere ao ponto de vista (PDV), emoção, empatia e responsabilidade enunciativa (RE).

ASPECTOS TEÓRICOS

Nesta seção, discutimos alguns aspectos teóricos importantes para composição deste
trabalho, são eles: alguns pressupostos da ATD, como a responsabilidade enunciativa, a sequência
argumentativa e o plano de texto; categoria da teoria enunciativa, como o ponto de vista; e, por fim,
alguns conceitos sobre emoção e empatia.

Algumas categorias da atd: responsabilidade enunciativa, sequência argumentativa e plano de


texto
234

A responsabilidade enunciativa, que pode ser individual ou coletiva, é compreendida


como a assunção da responsabilidade por um determinado conteúdo proposicional enunciado. Para
Passeggi et al. (2010, p. 299), “a responsabilidade enunciativa ou ponto de vista consiste na assunção
por determinadas entidades ou instâncias do conteúdo do que é enunciado, ou na atribuição de alguns
enunciados ou ponto de vista (PdV) a certas instâncias”.
Segundo Rodrigues (2017, p. 299), a RE é responsável por

organizar linguisticamente os gêneros textuais disponíveis na memória discursiva dos


usuários das diferentes línguas, desde os gêneros mais simples do cotidiano, como por
exemplo, a conversa em família, entre amigos, em situações informais no ambiente de
trabalho, até gêneros mais elaborados dos vários domínios: acadêmicos, midiático, político,
jurídico, religioso, entre outros.

Conforme dito por Adam (2011), a RE de uma proposição possui um grau, que pode ser
marcado por um grande número de unidades da língua. A fim de demonstrá-las, o autor enumera as
grandes categorias, a partir dos estudos de Benveniste (1974), são elas: índices de pessoas, dêiticos
espaciais e temporais, tempos verbais, modalidades, diferentes tipos de representação de fala,
indicação de quadros mediadores, fenômenos de modalização autonímica e indicações de um suporte
de percepções e de pensamentos relatados.
Além da RE, Adam (2011, 2019) também desenvolve estudos sobre as sequências
textuais, que para ele seria:

uma estrutural relacional pré-formatada que se sobrepõe às unidades sintáticas estritas


(frases) e às amplas (períodos), é um “esquema de texto” situado entre a estruturação frástica
e periódica microtextual das proposições e macrotextual, dos planos de texto. As sequências
são estruturas pré-formatadas de reagrupamentos tipificados e ordenados em blocos de
proposições. (ADAM, 2019, p. 22)

Voltando o foco na sequência argumentativa, vemos em Adam (2011, p. 233) que esta se
concretiza por meio de dois movimentos: a demonstração e/ou justificativa de uma tese e a refutação
de outras teses ou argumentos. Nessa perspectiva, o autor revela que em ambos os casos partem de
premissas (dados) para chegar em uma conclusão (asserção). Ele explica que, entre essa passagem
das premissas para a conclusão se tem os “procedimentos argumentativos” que “assumem a forma de
encadeamentos de argumentos-provas, correspondendo ora aos suportes de lei de passagem, ora a
microcadeias de argumentos ou a movimentos argumentativos encaixados.” (ADAM, 2011, p. 233)
Para demonstrar isso, o autor apresenta um esquema para argumentação prototípico, com
lugar para contra-argumentação no nível P.arg.4, conforme vemos na Figura 1, a seguir.
235

Figura 1: estrutura da sequência argumentativa

Fonte: Esquema 22 (ADAM, 2011, p. 234).

Dessa maneira, com base na estrutura prototípica ampliada de Adam (2011), cada
proposição argumentativa (P. arg) compreenderá a estrutura do texto como um todo, como descrito a
seguir:
P.arg0 – a tese anterior a ser refutada ou confirmada;
P.arg1 – os dados, os fatos do mundo;
P.arg2 – as justificativas que sustentam um posicionamento;
P.arg3 – a conclusão ou posicionamento assumido pelo produtor do texto;
P.arg4 – contra-argumento a uma possível voz contrária.

Por fim, das categorias usadas da ATD neste trabalho, ainda utilizamos o plano de texto.
De acordo com Cabral (2013), o plano de texto está relacionado com a estrutura composicional, um
dos elementos que permitem a identificação de um gênero textual. Para ela, essa estrutura “se trata
de um esquema pré-estabelecido que orienta tanto a elaboração como a leitura de um texto,
correspondendo à sua organização global prescrita pelo gênero ao qual pertence''. (CABRAL, 2013,
p. 244)
Adam (2011) destaca os planos de textos como “o principal fator unificador da estrutura
composicional”, principalmente, quando “os agrupamentos de proposições não correspondem sempre
a sequências completas''. (ADAM, 2011, p.258).

Ponto de vista

O ponto de vista tem a sua definição ligada às marcas linguísticas que um sujeito faz ao
considerar um certo objeto. Sobre isso, Rabatel (2016a) relata que o PDV se define:
236

pelos meios linguísticos pelos quais um sujeito considera um objeto, em todos os sentidos do
termo considerar, quer o sujeito seja singular ou coletivo. Quanto ao objeto, ele pode
corresponder a um objeto concreto, certamente, mas também a um personagem, uma
situação, uma noção ou um acontecimento, porque, em todos os casos, trata-se de objetos de
discurso. O sujeito responsável pela referenciação do objeto, exprime seu PDV, tanto
diretamente, por comentários explícitos, como indiretamente, pela referenciação, isto é, pelas
escolhas de seleção, de combinação, de atualização do material linguístico. (RABATEL,
2016a, p. 30).

Nos seus estudos, Rabatel divide o ponto de vista em três tipos: o representado, o narrado
e o assertado.
• Representado: é possível notá-lo a partir de um “sujeito perceptivo” em seu
processo de percepção do objeto identificado, ou seja, um agente focalizador
projetando sua percepção ao focalizado (RABATEL, 2016a, p. 122).
• Narrado: é possível notá-lo na ocultação das “falas pessoais, mascarando-as por
trás de uma narração tão objetiva quanto possível” (RABATEL, 2016a, p. 165).
• Assertado: é possível notá-lo na tentativa de “pôr em ação mecanismos para
definir os limites da interpretação ou para dar aos julgamentos pessoais um traço
“objetivo”, “científico” etc. (RABATEL, 2016a, p. 166).

Empatia e emoção

Rabatel (2013), em seus estudos de empatia, diferencia o conceito de empatia com o de


simpatia, resgatando o dizer de Jorland (2004). Para Rabatel, a empatia humana é “uma aptidão de
colocar-se no lugar das outras pessoas, sem fusão nem identificação”, enquanto a simpatia consiste
em “uma identificação com os outros com compartilhamento mais ou menos fusional de suas
emoções” (JORLAND 2004: 20-21 apud RABATEL, 2013, p. 159).
No estudo da empatia linguística, Rabatel (2013) definiu algumas instâncias próprias
desse conceito. Ele nomeia como empatizador ou instância empatizante, o locutor/enunciador
primeiro, aquele que vai se colocar no lugar do outro e empatizado, o sujeito que vai se beneficiar
do tratamento empático do empatizador.
Sobre a emoção, à luz dos trabalhos contemporâneos, neste artigo, aborda-se o tema
segundo Plantin (2011), em seu livro “Les bonnes raisons des émotions”. Para Plantin (2011), as
emoções são explicitadas por enunciados de emoção:

O enunciado de emoção traz uma resposta à questão elementar “quem sente o que e por
quê?”: atribui uma emoção a uma pessoa e, em certos casos, menciona a fonte da emoção.
Esse modelo é linguisticamente fundamental na medida em que a relação de emoção (fonte-
lugar-emoção) corresponde à estrutura semântica de uma família de enunciados elementares.
237

[...] O enunciado de emoção é definido como uma fonte ligando um termo de emoção (verbo
ou substantivo), um lugar psicológico (chamado, por vezes, experienciador) e uma fonte da
emoção. (PLANTIN, 2011 p. 145)83

De acordo com o autor, os seres humanos são lugares psicológicos (experienciadores)


potenciais, assim, um substantivo precisa ser marcado por características humanas ou ser
personificado (PLANTIN, 2011, p. 151). A emoção, então, pode ser conferida diretamente ao
experienciador pelo enunciado de emoção, como, por exemplo, “Léa experimentou uma grande
alegria”, mas, também, de maneira não explícita, sendo possível inferi-la quando a emoção é
reconstruída a partir de uma descrição da situação em que ela está envolvida e o estado da pessoa que
é objeto do discurso (PLANTIN, 2011, p. 155-156).

METODOLOGIA

Para esta investigação, utilizamos a pesquisa qualitativa de cunho interpretativista.


Qualitativa, porque esta pesquisa não tem preocupação com representatividade numérica e sim com
o aprofundamento da compreensão de grupo social. E interpretativista, pois o pesquisador, nesta
pesquisa, inicialmente compreende os fenômenos para, em seguida, apresentar a sua interpretação a
respeito deles. (BOGDAN; BIKLEN, 1994)
A respeito do método, optamos pelo método indutivo, que tem como fundador Francis
Bacon e parte da observação e da análise de fatos particulares, com um certo número de
dados/ocorrências, a fim de identificar regularidades comuns e, assim, apreender determinados
padrões gerais.
Quanto ao procedimento técnico, este estudo é bibliográfico, pois se apoia em livros,
periódicos, materiais impressos disponíveis como fonte de estudo; documental, pois, nesta pesquisa,
tem como fonte um material digital que não foi destinado, inicialmente, para estudo e, sim, para o
âmbito jurídico; e descritiva, que busca explicitar propriedades relevantes a um fenômeno linguístico.
Sobre o corpus deste artigo, trata-se de uma sustentação oral proferida pelo advogado de
defesa Doutor Michell Nascimento, no dia 21 de agosto de 2019, na comarca de Lajes, no estado do
Rio Grande do Norte. O crime foi de homicídio de Edilson Dantas da Cruz, pelo réu absolvido
Francisco Rogério dos Santos. A tese usada pela defesa foi a de legítima defesa. O homicídio ocorreu

83
“L’énoncé d’émotion apporte une réponse à la question élémentaire “qui éprouve quoi, et pourquoi?”: il attribue une
émotion à une personne, et, dans certains cas, mentionne la source de l’émotion. Ce modèle est linguistiquement
fondamental, dans la mesure où la relation d’émotion (source – lieu – émotion) correspond à la structure sémantique
d’une famille d’énoncés élémentaires. Dans ce qui suit, l’énoncé d’émotion est défini comme une forme liant une terme
d’émotion (verbe ou substantif) un lieu psychologique (dit parfois expérienceur), et une source de l’émotion.” (PLANTIN,
2000, p. 145).
238

durante a noite do dia 23 de maio de 2013, quando a vítima, descrita como membro de um grupo de
criminoso denominado “Turma do Gueto” foi à casa do acusado e o ameaçou de morte, a fim de se
defender o réu atirou com uma “soca soca” na vítima e saiu correndo, descobrindo que havia o matado
somente no outro dia.

ANÁLISE

Plano de texto

Todo o plano de texto da sustentação analisada neste artigo será demonstrado no quadro
abaixo:
Quadro 1 - plano de texto da sustentação oral do advogado do RN

Plano de texto Função Exemplos de trechos no corpus84


Advogado de defesa:
Trata-se da introdução, Cumprimento:: ... a
tendo as primeiras palavras excelentíssima juíza
voltadas à saudação ao juiz, presidente deste tribunal do
à acusação e aos jurados. júri doutora GabriElla
Segundo Perelman e pela... sua belíssima atuação
Olbrechts-Tyteca (1996), o na presidência desse
Exórdio
exórdio é muito mais que tribuNAL... a nova
um simples momento representante do ministério
inicial de saudação, é público a doutora Juliana... e
também o momento que se o doutor ↗Enzo: ...
conquista o auditório. Cumprimento [...]

Ele volta pra fechar a porta da


sua casa↘ a vítima chega e diz:
tá prepaRAdo↗ Ele corre com
medo para dentro de casa pega a
Destaca-se os pontos sua espingarda de dentro de casa
fundamentais para a faz um disparo ↗Ele disse
defesa. De acordo com aqui... na presença dos
Reboul (2004, p.56), para senhores... que... não estava
Narração
que seja eficaz, a narração com a intenção de Matar E SE
deve apresentar três QUER de atingir a vítima↘ Ele
qualidades: clareza, fez um disparo de alerta...
brevidade e credibilidade.
para... esPANtar o acusado↘
e... depois fugiu↘...
correu↘... daquela situação…

TIro uma faca uma pedrada uma


Trata-se da exposição dos paulada... não se sabe de que
Confirmação
argumentos do advogado de forma↘ ... existem DIversas
(prova) formas de se tirar a vida de
defesa.
alguém... a ↗vítima... o

84
Todos os exemplos do corpus, seja no plano de texto ou nos excertos, estão na letra Courier New, a fim de melhorar a
visualização dos sinais da transcrição.
239

acusado COrreu... se valeu com


o que tinha na sua disposição
para espantar aquela situação↘
e fugiu com MEdo↘ DE
MORRER↗ Ora o::/a vítima era
uma pessoa... componente de um
grupo... ali da cidade
↗criminoso chamado turma do
Gueto que assombrava todo
mundo↘ ... O::/A própria
↗vítima que foi dito aqui pelas
testemunhas↘ era conhecido
como alguém BRAvo↘... já tinha
batido já tinha matado
ALguém... [...]

o desejo do ministério
público... e a NObre
representante e que no
qual é uma mulher
extremamente... ca↗paz... e nos
traz aqui uma explanação...
coerente... e nós...
respeiTAmos e reconhecemos... o
brilhante trabalho do
ministério público... porque é
o fiscal da ↗lei... e aí ela
faz um pedido aos juízes aqui
Tem-se a função de hoje... “nós queremos a
Confirmação
contrariar, “destruir” os condenação dele... pelo artigo
(refutação) cento e vinte e um do código
argumentos da acusação.
penal com a qualificadora…” MAS
ESSAS CONDIÇÕES... em que...
doutor Lúcio... nós conhecemos
esses fatos aqui ↗hoje... SE
NÓS TIVÉSSEMOS que deslumbrar a
possibilidade algum delito...
não poderia passar de uma
↗lesão corporal... por
resultado morte... e o que
significa essa atitude↗ EU NÃO
TENHO O:: DOLO [...]

EU ↗peço que os senHOres não...


ABSOLUTAMENTE NÃO... OLHEM para
aquele cidadão que está ↗ali...
como um homiCIDA... mas olhem
como um cidadão de BEM...
Peroração Refere-se ao ato que o
trabaLHADOR... peDREiro... pai
(apelo às advogado faz de despertar
de cinco FI::lhos... que só Deus
paixões) piedade ou indignação no
sabe se essa semana esse mês...
auditório
ele dorMIU... SEM SABER qual
seria o destino da sua vida
HOje... neste
tribunal...porque
os senHO::res vão decidir...
240

os senhores irão ouvir essas


perguntas “existe materialidade
do fato↗” ↗sim... existe...
“Tem um corpo↗” TEM... tá no
processo... lá consta um
Refere-se a um resumo da atestado de óbito... “Tem
argumentação, que em autoria ou a participação↗”
muitos tribunais do júri, SIM...eXISte... não na condição
Peroração
têm-se o advogado de alguém que... queria matar
(Recapitulação)
retomando as perguntas que outro... mas... o acuSAdo...
vão fazer aos jurados e utiliZOU daquela arma de matar
ensinando-os como eles passarinho... e
devem responder. ocasionalmente... culmiNOU no
falecimento da vítima... “O
acusado deve ser absolvido↗”
porTANTO vão perguntar aos
senhores...

Fonte: Elaboração própria.

Análise da sustentação oral

• Exórdio
Excerto 1

1 Advogado de defesa: cumprimento:: ... a excelentíssima juíza


2 presidente deste tribunal do júri↘ doutora GabriElla pela... sua
3 belíssima atuação na presidência desse tribuNAL... a nova
4 representante do ministério público a doutora Juliana... e o
5 doutor↗ Enzo: ... (grifos nossos)

Nesse excerto, o L1/E1, advogado de defesa, assume a responsabilidade pelo enunciado


quando usa o verbo em primeira pessoa do singular “cumprimento” e o dêitico espacial “deste
tribunal” (duas vezes).
Quando direcionamos o olhar para as escolhas lexicais presentes no enunciado acima,
encontramos a qualificação “belíssima atuação”, que além de marcar RE, como explica Adam (2011),
com um lexema avaliativo, também é uma marca linguística do PDV do L1/E1. Como o termo
“belíssima” está marcando uma opinião sobre a atuação do trabalho da juíza pelo próprio advogado
de defesa, temos um PDV assertado. Observamos também que em um contexto de tribunal do júri, o
advogado de defesa já está argumentando desde os cumprimentos iniciais do exórdio. Dessa maneira,
quando ele opta por fazer um julgamento positivo sobre o trabalho da juíza Dra. Gabriella, ele está
agradando a responsável por dirigir a sessão naquele momento. Para os representantes do Ministério
Público, os promotores Dra. Juliana e Dr. Enzo, o advogado apenas os anuncia sem elogiá-los,
possivelmente porque eles são da tribuna acusatória, ou seja, contrários a ele.
241

• Narração
Excerto 2

17
EnTÃO↗... naquele↗ momento que a ah::/o acusado aqui↗ que na
18
verdade↗ hoje aqui nós podeRÍamos estaR:: com as pessoas
19
invertidas POSSIVELMENTE↗ hoje Nós poderíamos aqui estar↘ para
20
JULgar:: os senhores juízes↘ julgar a VÍtima↗ neguinho↗ poderia
21
tá ali sentado↗ e nós estaríamos aqui falando↗... que a vítima
22
seria o ACUSAdo↘ ... Ele volta pra fechar a porta da sua casa↘
23
a vítima chega e diz: tá prepaRAdo↗ ele corre com medo para
24
dentro de casa↘ pega a sua espingarda ... de dentro de casa faz
25
um disparo↗ ele disse aqui... na presença dos senhores... que...
26
não estava com a intenção de matar↗ E SEQUER de atingir a vítima↘
27 Ele fez um disparo de alerta... para... espantar: o acusado↘
28 e... depois fugiu↘... correu↘... daquela situação... (grifos
29 nossos)

No excerto 2, o L1/E1 assume a RE quando usa os pronomes na primeira pessoa do plural


“nós” e os dêiticos “hoje” (temporal) e “aqui” e “ali” (espaciais).
Contudo, quando o advogado de defesa vai expor seu PDV sobre o caso, ele usa o termo
“possivelmente” e o verbo no futuro do pretérito “poderíamos”, segundo os estudos de Guentchéva,
está diante de uma não assunção da RE. O L1/E1 precisou se afastar da responsabilidade do
enunciado, provavelmente, porque precisava guardar a sua face. Uma vez que ele estava apresentando
um julgamento sobre a situação ocorrida, para ele, a vítima, Edilson Dantas, era alguém que teria
assassinado o seu cliente, se ele não tivesse se defendido antes. Esse PDV de que os papéis poderiam
estar invertidos aparecerão durante todo o discurso do advogado.
Percebemos também o PDV do L1/E1, que faz um PDV narrado quando ele narra o
ocorrido, descrevendo os detalhes do ponto de vista do acusado, nas linhas 22 a 28. Revela-se ao ler
esse trecho, no excerto 2, que foi a própria vítima que procurou o acusado e a fim de se defender e
espantar a vítima, o acusado realiza um disparo de alerta, depois foge. Portanto, o advogado faz um
PDV narrado, narrando uma cena descrita pelo acusado a ele anteriormente e aceito-a como verdade.

• Confirmação
Excerto 3

30 MAS↗ tentou se enfatizar aqui↗ ... em algum momento “MAS o


31 senhor fugiu↗ por que fugiu↗” ... quem é senhores↗ na sua sã
32 consciência↘... que já foi ameaçado PElo menos QUAtro VEzes↘ e
33 no dia do fato↗ a vítima o poSSÍvel algoz↗ quem possivelMENTE
34 poderia estar no banco dos réus... hoje↘ TENtou↘ ou pelo menos
242

35 disse que IRI::A↗ tirar a vida do acusado↘... chegar na sua


36 casa... e perguntar “está preparado↗” QUEM É↗ que ia FIcar EM
37 PÉ esperando↗... alguma coisa vir de lá pra cá↗ algum TIro↘ uma
38 faca↘ uma pedrada↘ uma paulada... não se sabe de que forma↘ ...
39 existem DIversas formas de se tirar a vida de alguém... (grifos
40 nossos)

Ao analisar a argumentação do advogado tanto no excerto 2 como no 3, percebemos uma


linha de argumentação que pode ser exemplificada no esquema argumentativo abaixo, seguindo os
estudos da sequência argumentativa de Adam (2011).

1. Ele não tinha a intenção de matar e sequer atingir a vítima. (P.arg.1, dado)
2. Ele fez um disparo de alerta para espantar a vítima e fugiu dali. (P.arg.2-
Argumento 1)
3. Mas por que fugiu e não ajudou a vítima? (P.arg 4- Contra-argumentação)
4. Fugiu porque já tinha sido ameaçado quatro vezes pela vítima e ela estava o
ameaçando novamente, agora na porta da casa dele. (P.arg 2- Argumento 2, em
resposta à Contra-argumentação)
5. (Logo), ele não tinha intenção de matar, só queria se proteger daquela ameaça.
(P.arg.3– Conclusão)
O PDV do L1/E1 está marcado nesse excerto em “poSSÍvel algoz quem
possivelMENTE poderia estar no banco dos réus...”, nas linhas 33-34. Esse PDV assertado está
auxiliando na orientação argumentativa do advogado, que faz esse julgamento negativo a vítima, o
chamando de “algoz”, mesmo modalizado pelo termo “possível”. O uso desse termo junto a repetição
da opinião anterior de que os papéis poderiam estar trocados (o réu ser a vítima e a vítima o réu), só
reforçam a argumentação de que o agressor fugiu para se livrar da agressão.
Nesse excerto, ainda se nota a presença de um movimento empático entre o advogado e
o réu. O advogado convida os jurados e todos os presentes para se colocar no lugar do réu naquela
situação em que a vítima vai à casa do réu à noite e pergunta se ele está preparado. Vemos esse
movimento no trecho das linhas 37 ao 40. Ao perguntar “quem é que”, o L1/E1 está pedindo se fazer
uma pergunta reflexiva que induz a empatia dos jurados ao réu. O advogado colocou no centro de
empatização o réu, e sugeriu que qualquer pessoa faria a mesma coisa que o réu fez.

• Peroração
Excerto 4
243

272 nós não temos nenhum profissional de ↗armas... nós não temos
273 nenhum profissional... de tiro... um PEDREIRO... PE-DRE-IRO...
274 PEdreiro... não atira em ninguém ... o pedreiro constrói...
275 pedreiro constrói casa... hospitais... creche::... ele quer o
276 bem da sociedade↘ ENtão↗ NINguém pode ser acusado no Brasil↗ e
277 muito MEnos condeNAdo numa condição que nós contamos aqui
278 senhores... não é poSSÍvel... isso trazia uma fragilidade... se
279 quer trair o equiLÍbrio da sociedade brasiLEIra↘ alguém ser
280 condenado... por defender a sua Vida... a sua Casa... utilizando
281 uma soca soca... pra matar passaRInho... não é possível...
282 (grifos nossos)
283

O L1/E1 assume a RE quando usa o pronome pessoal em primeira pessoa do plural


“nós”. A orientação argumentativa desse excerto está construída junto ao teor emocional dos
argumentos do advogado. Quando o L1/E1 usa do substantivo “pedreiro” para se referir a vítima e
repete a palavra cinco vezes com ênfase, e em uma delas até chega a fazer silabação, entendemos que
a escolha desse substantivo está agregado a toda carga semântica que ele carrega no Brasil, a de que
pedreiro é uma profissão digna, de um homem “trabalhador”, um homem “de família”. O caráter
emotivo do excerto continua com o acréscimo dos termos “casas”, “hospitais” e “creches” que são
lugares bons da sociedade, a “casa”, o lugar onde se vive e deve-se estar protegido; “hospitais”, o
lugar onde se cuida da saúde dos cidadãos; e, “creches”, o lugar onde as crianças da nossa sociedade
fica enquanto seus pais vão trabalhar. Dessa maneira, trazendo esses lugares para o seu discurso e
atribuindo-os ao réu, o L1/E1 está demonstrando o seu PDV de que o réu é uma pessoa trabalhadora,
que é responsável por fazer coisas boas para a sociedade. Essa posição construída, unida a opinião de
que “pedreiro não atira em ninguém”, só comprova a intenção argumentativa do advogado de dizer
que o réu é incapaz de fazer o mal a alguém, ficando implícito que as mesmas mãos que constroem
lugares bons para a sociedade seriam incapazes de matar alguém propositalmente.
Nesse contexto, com base em Plantin (2011), temos:

Quadro 2 - partes do discurso emotivo

Fonte da Emoção Termo de Emoção Experienciador

Réu Pedreiro Tribunal do júri

Fonte: elaboração própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
244

Procuramos, neste trabalho, analisar, identificar, descrever e interpretar marcas


linguísticas que evidenciam os fenômenos da responsabilidade enunciativa, ponto de vista, sua
relação com o esquema da sequência argumentativa, por fim, a ocorrência de argumentos emotivos e
empáticos.
A análise dos dados aponta para os seguintes resultados: o locutor enunciador primeiro
ora assume ora não a responsabilidade enunciativa; a assunção da responsabilidade enunciativa
ocorre, principalmente, nos cumprimentos iniciais do exórdio, enquanto a não assunção tem mais
ocorrência na argumentação da confirmação, quando o advogado precisa evocar outras vozes para
fortalecer o seu argumento; a construção do PDV do locutor enunciador primeiro, organizada por
meio de esquemas da sequência textual argumentativa, revela argumentos que certamente
influenciaram diretamente na decisão final dos jurados; e, ainda; a presença de argumentos empáticos
e emocionais são responsáveis por uma aproximação entre os jurados e o réu, promovendo uma
humanização da figura do réu, como alguém que é um cidadão de bem.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
________. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. 1.ed. São Paulo:
Contexto, 2019.
GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français.
Langue Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em:
http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2018.
PASSEGGI, L. et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual dos
sentidos. In: BENTES, A.C; LEITE, M, Q. (org.). Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p.262- 312.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica.
Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PLANTIN, Cristian. Les bonnes raisons des émotions. Principes et méthode pour l’étude du
discours émotionné. Bern, Peter Lang, 2011.
RABATEL, Alain. Empathie et émotions argumentées en discours. Le discours et la langue, Cortil-
Wodon: Editions modulaires européennes, 2013, Tome 4.1. (2012), p.159-178.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016a. v.1
RABATEL, Alain. Diversité des points de vue et mobilité empathique. L’Énonciation aujourd’hui,
2016b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/303697811. Acesso 29 out. 2020.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Beneditti. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. (Col. Justiça e direito)
245

A FUNÇÃO ARGUMENTATIVA DO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA NA SENTENÇA


PENAL CONDENATÓRIA

Ana Arele Gomes de Freitas85


Maria das Graças Soares Rodrigues86

RESUMO
Com o propósito de analisar o valor da argumentação do depoimento da testemunha na decisão final
do juiz, este trabalho investiga a (não) assunção da responsabilidade enunciativa a partir da sequência
argumentativa em dois depoimentos de testemunhas do crime de roubo majorado pelo concurso de
pessoas e pelo emprego de arma de fogo, dispostos em uma sentença penal condenatória. O roubo
majorado tem sua previsão no artigo 157, § 2º e seus incisos do Código Penal Brasileiro e quando é
praticado em qualquer uma das circunstâncias previstas no mencionado dispositivo, a pena do crime,
prevista no caput, poderá ser aumentada de um terço até a metade. O gênero discursivo textual
depoimento de testemunha é uma peça do inquérito policial, no qual uma testemunha relata o que
sabe e o que é relevante para a investigação de determinado caso e, quando acontece um crime em
que há testemunhas, estas são chamadas para depor e os seus dizeres são anotados pelo escrivão, no
qual, no final do depoimento, lê todo o depoimento transcrito para que a testemunha conheça as
declarações ali escritas. A pesquisa é qualitativa de cunho interpretativista e objetiva identificar,
descrever, analisar e interpretar narrativas de testemunhas no que concerne à (não) assunção da
responsabilidade enunciativa. Nesse sentido, o foco é na sequência argumentativa, vista como
dominante nos depoimentos de testemunhas. Para a análise, seguimos os postulados da Análise
Textual dos Discursos (Adam, 2011, 2017) e da linguística enunciativa (Guentchéva, 1994, 2011;
Rabatel, 2016), além dos estudos de Rodrigues e Passeggi (2015, 2016) e Rodrigues (2016, 2017).
Os resultados apontam que o locutor testemunha (L-T) e o enunciador ora assumem a
responsabilidade enunciativa, ora apresentam um quadro de mediatividade. Também observamos que
os PDV das testemunhas podem ter influenciado diretamente a decisão final do juiz, que decidiu pela
condenação dos acusados.

Palavras-chave: argumentação. depoimento de testemunha. mediatividade. responsabilidade


enunciativa.

INTRODUÇÃO
Na presente investigação, analisamos o depoimento de testemunhas em uma sentença
penal condenatória do crime de roubo majorado pelo concurso de pessoas e pelo emprego de arma de
fogo, encartado nos arts. 157, § 2o, inciso II e art. 157, § 2o-A, inciso I, em concurso formal de crimes
(art. 70).
Para o estudo, seguimos os postulados da Análise Textual dos Discursos (ATD) que,
segundo Adam (2011, p. 13), constitui-se como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que

85
UFRN / Bolsista PIBIC CNPq (IC) / anaarele@hotmail.com
86
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
246

deve, necessariamente ser fundamentada na análise de textos concretos”, da linguística enunciativa


com foco nos estudos do ponto de vista e da responsabilidade enunciativa (RABATEL, 2016), assim
como da mediatividade (GUENTCHÉVA, 1994, 2011), quando não há assunção da responsabilidade
enunciativa. Sobre os estudos desses dispositivos enunciativos, na interface linguagem e direito, no
âmbito do grupo de pesquisa em Análise Textual dos Discursos da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, seguimos Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2014), Rodrigues e Passeggi (2015,
2016) e Rodrigues (2017).
Fundamentados nos postulados da ATD, buscamos responder às seguintes questões: (1)
como a função argumentativa auxilia na construção da (não) assunção da responsabilidade
enunciativa nos depoimentos das testemunhas?; (2) quais marcados linguísticos presentes nos
depoimentos induzem a um quadro de mediatividade? e (3) como um esquema argumentativo pode
auxiliar na construção do ponto de vista (PDV) do locutor-enunciador?
A fim de responder a essas indagações, determinamos como objetivos identificar,
descrever, analisar e interpretar depoimentos de testemunhas na sentença judicial condenatória no
tocante à assunção da responsabilidade enunciativa, à mediatividade e ao ponto de vista a partir da
função argumentativa.

CONCEPÇÕES TEÓRICAS
Há cada vez mais pesquisas sendo realizadas acerca do fenômeno da responsabilidade
enunciativa, enfatizando a importância do trabalho do grupo de pesquisa em Análise Textual dos
Discursos. Tais pesquisas apresentam a descrição, análise e interpretação dos dispositivos
enunciativos concernentes à responsabilidade enunciativa e ao ponto de vista.
A Análise textual dos discursos (ATD) se propõe a estudar a produção co(n)textual de
sentido, com base em textos concretos, oferecendo elementos para que compreendamos o texto como
uma prática discursiva, analisado através de vários planos ou níveis de análise linguistica (ADAM,
2011, 2017).
Para nossas análises, utilizaremos algumas categorias de análise da ATD, mais
precisamente as de nível 5 (sequência e plano de texto), nível 7 (Responsabilidade enunciativa), nível
8 (orientação argumentativa) e outras teorias enunciativas, que serão discutidas nos tópicos a seguir.

Responsabilidade enunciativa e mediatividade

De acordo com Adam (2011), a responsabilidade enunciativa (RE) é a característica que


permite identificar o grau de engajamento do locutor-narrador em uma enunciação. Dessa forma, é
possível reconhecer se o locutor-narrador assume o conteúdo proposicional do seu dizer, ou se atribui
247

o enunciado a outro enunciador (e2). Para Adam (2011, p. 117), “o grau de responsabilidade
enunciativa de uma proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da
língua”. Em outros termos, a RE irá se apresentar no discurso através de conectores, organizadores e
marcadores de responsabilidade enunciativa.
A respeito da mediatividade, Guentchéva (1994, 2011) nos apresenta o quadro mediativo,
que ocorre quando o enunciador não assume a responsabilidade pelo conteúdo proposicional, quando
se distancia e imputa o seu dizer a outro enunciador, trazendo uma outra voz à sua fala, marcando o
distanciamento ou o não engajamento do enunciador em relação ao dito.

Instâncias enunciativas e ponto de vista

Para esta análise, recorremos a Rodrigues (2017) que introduz a categoria Locutor-
Testemunha, sendo usada para se referir a testemunhas. Já a juíza será referida como Enunciador,
visto que essa instância enunciativa atribui, de forma explícita, os dizeres transcritos ao Locutor-
Testemunha, sem, contudo, se engajar com o conteúdo proposicional dos dizeres dele.
Também recorremos a Rabatel (2016, p. 165), que classifica os pontos de vista em três
tipos:
a) ponto de vista representado: expressa pensamentos, reflexões e percepções, ou seja,
dando às percepções pessoais (e aos pensamentos associados) o modo objetivante das descrições
aparentemente objetivas, uma vez que o leitor encontra-se diante das “frases sem fala” [...];
b) ponto de vista narrado: narram os fatos segundo uma perspectiva que pode se
distanciar da perspectiva do autor, ocultando, igualmente, as falas pessoais, que são mascaradas por
uma narração tão objetiva quanto possível;
c) ponto de vista assertado: apoia-se, explicitamente, em atos de fala, em julgamentos
mais ou menos construídos que remetem, explicitamente, a uma origem identificável.

Sequência argumentativa

De acordo com Adam (2011), as sequências textuais são dividas em cinco: a narrativa, a
dialogal, a explicativa, a argumentativa e a descritiva.
Neste trabalho, focaremos apenas na sequência argumentativa, que é a sequência
trabalhada nos depoimentos de testemunhas. A sequência argumentativa acontece através de dois
movimentos: a demonstração e/ou justificativa de uma tese e a refutação de outras teses ou
argumentos; e, a partir do raciocínio feito, chega-se a uma conclusão ou afirmação.
Com base na estrutura prototípica ampliada de Adam (2011), cada proposição
argumentativa (P. arg) compreenderá a estrutura do texto como um todo, como descrito a seguir:
248

P.arg0 – a tese anterior a ser refutada ou confirmada;


P.arg1 – os dados, os fatos do mundo;
P.arg2 – as justificativas que sustentam um posicionamento;
P.arg3 – a conclusão ou posicionamento assumido pelo produtor do texto;
P.arg4 – contra-argumento a uma possível voz contrária.

METODOLOGIA

A nossa pesquisa é documental. A pesquisa também é do tipo bibliográfica. Para esta


investigação, utilizamos a pesquisa qualitativa, descritiva e interpretativista. É qualitativa porque,
conforme Oliveira (2010, p. 60), tem o objetivo de “buscar informações fidedignas para se explicar
em profundidade o significado e as características em cada contexto em que encontra o objeto de
pesquisa”. É de natureza interpretativista, pois o pesquisador deve, inicialmente, compreender os
fenômenos para, em seguida, apresentar sua interpretação a respeito deles (BOGDAN; BIKLEN,
1994).
Em relação ao método, a pesquisa qualitativa é indutiva, ou seja, o pesquisador deve
desenvolver conceitos, ideias e entendimentos encontrados nos próprios dados analisados, em vez de
coleta-los para comprovar teorias, hipóteses e modelos idealizados (CRESWELL, 2010).
A sentença penal condenatória utilizada neste trabalho é constituída por dois depoimentos
de testemunhas do crime de roubo majorado pelo concurso de pessoas e pelo emprego de arma de
fogo, nos quais estão dispostos no art. 157, § 2o, inciso II, e § 2o-A, inciso I, na forma do art. 70 do
Código Penal Brasileiro. O roubo majorado tem sua previsão no artigo 157, § 2º e seus incisos do
Código Penal. Se o roubo é praticado em qualquer uma das circunstâncias previstas em mencionado
dispositivo, a pena do crime, prevista no caput, poderá ser aumentada de um terço até metade.
É imperioso ressaltar que não se deve confundir os termos circunstâncias majorantes com
qualificadoras do crime vez que as agravantes aumentam a pena primitivamente aplicada a infração
penal, já as qualificadoras alteram o preceito secundário do crime e impõe uma sanção diversa daquela
imposta ao mesmo crime, caso não houvesse sido cometido na forma por ela exposta. As
qualificadoras são examinadas de forma imediata, antes a primeira fase da aplicação da pena já as
majorantes somente incidirão e serão analisadas em uma outra oportunidade, como preconiza o artigo
68 do CP.
A sentença judicial é obrigatoriamente um texto escrito, embora possa ser proferido
oralmente em audiência. É do domínio público, sendo um documento indispensável nos autos do
processo como documento da “perene memória da decisão que o contém”, diz a doutrina. Assim, de
acordo com o art. 381, do Código de Processo Penal, a sentença judicial apresenta a seguinte estrutura
textual:
249

Art. 381. A sentença conterá:


I – o nome das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;
II – a exposição sucinta da acusação e da defesa;
III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;
IV – a indicação dos artigos e leis aplicados:
V – o dispositivo;
VI – a data e a assinatura do juiz.

O art. 458, do Código do Processo Civil descreve os elementos ou os requisitos essenciais


da sentença judicial, que se subdividem em:

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:


I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem
como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.

O depoimento de testemunha

Segundo Rangel (2014, p. 467), testemunha é o “indivíduo chamado a depor,


demonstrando sua experiência pessoal sobre a existência, a natureza e as características de uma fato,
pois face estar em frente ao objeto (testis), guarda na mente, sua imagem”.
Quanto à estrutura composicional do gênero, o depoimento de testemunha tem uma
estrutura fixa e segue um modelo padronizado pelo código de processo penal (CPP), no art. 203.
Vejamos abaixo:

A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe
for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua
profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das
partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando
sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua
credibilidade87.

ANÁLISE DOS DADOS

O gênero discursivo textual “Sentença Judicial Condenatória”, analisado nesta pesquisa,


trata de uma sentença referente ao “condenado X” e Y88, que foram acusados de crime de roubo em
concurso de agentes e com emprego de arma de fogo em desfavor das vítimas, presente no art. 157,
§ 2o, inciso II, e § 2o-A, inciso I, na forma do art. 70 (concurso formal), ambos do Código Penal.

Análise do depoimento da testemunha 1

87
BRASIL. Código de processo penal. Lei 3.689/1941. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/Del3689.htm. Acesso em: 15 set. 2018.
88
Os dados pessoais do condenado são preservados.
250

D1 - A testemunha XXXXX – PM disse que estava tomando café no bar de um colega por volta de umas
18:30/19h, quando chegou uma mulher numa moto, informando que um Gol e uma Duster tinham sido os
carros utilizados no assalto a uma lanchonete; que não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento
que essa mesma mulher era um traficante, procurada pela polícia, que estava armada atrás dos assaltantes.
Entraram nas viaturas e seguiram em perseguição, ao encontrarem os veículos, efetuaram um disparo em um
Gol (atiraram no gol errado, mas que seguia logo atrás do Gol dos assaltantes) momento esse em que os dois
veículos pararam; que logo em seguida, efetuaram a prisão dos mesmo e depois as vítimas reconheceram na
delegacia; que foi apreendido na ação vários celulares, além disso, realmente existia um sanduíche dento do
Duster; que na ocasião da apreensão, as vítimas já verificaram os seus celulares (desbloqueando-os para
demonstrar q era seu) e depois foram conduzidas para delegacia; que se lembra que puxaram a ficha do carro
Duster e constataram que o mesmo foi tomado através de roubo; que não era a dona do bar que era traficante
e sim outra mulher completamente diferente.

Exemplo 01
A testemunha XXXXX disse que estava tomando café no bar de um colega por volta
de umas 18:30/19h, quando chegou uma mulher numa moto, informando que um
Gol e uma Duster tinham sido os carros utilizados no assalto a uma lanchonete; que
não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento que essa mesma mulher era
um traficante, procurada pela polícia, que estava armada atrás dos assaltantes.
Entraram nas viaturas e seguiram em perseguição, ao encontrarem os veículos,
efetuaram um disparo em um Gol (atiraram no gol errado, mas que seguia logo atrás
do Gol dos assaltantes) momento […]

Quando analisamos a fala do L-T, percebemos que ele assume a responsabilidade


enunciativa na maior parte de seu depoimento, porém também há distanciamento no discurso,
caracterizando um quadro mediativo. Logo no início de sua fala, a testemunha utiliza um organizador
temporal para contextualizar sobre o que estava fazendo e que horas recebeu a informação sobre o
assalto “umas 18:30/19h”, acompanhado do marcador de subjetividade “por volta de”, se
comprometendo com o dito.
A testemunha, após esse momento, é assertiva ao contar sobre a chegada de uma mulher,
sem se comprometer com a fala dela: “quando chegou uma mulher numa moto, informando que um
Gol e uma Duster tinham sido os carros utilizados no assalto a uma lanchonete”. O L-T se
compromete com o seu dito, sendo assertivo em sua fala, utilizando o verbo dicendi “informando”,
porém não se compromete com o dito pela mulher, atribuindo a fala através de um discurso indireto.
Continua sua fala ao fazer uma negação e um comentário sobre a mulher: “que não sabia
no momento, mas depois tomou conhecimento que essa mesma mulher era um traficante, procurada
pela polícia.” A testemunha utiliza o suporte de focalização cognitiva “não sabia”, se comprometendo
com o dito, porém se distancia ao dizer que: “tomou conhecimento”, atribuindo a fala a outrem, não
se comprometendo com o conteúdo proposicional do seu dizer, caracterizando um quadro mediativo.
Também há a formação do ethos negativo da mulher quando a testemunha comenta sobre ser
traficante e procurada pela polícia.
Percebemos, também, que a testemunha assume o conteúdo proposicional de seu dizer
quando diz que: “atiraram no gol errado, mas que seguia logo atrás do Gol dos assaltantes”, utilizando
251

o operador contra-argumentativo “mas” com a função de argumentar o motivo pelo qual realizaram
disparos no carro errado, utilizando o organizador espacial “logo atrás” como tentativa de atenuar o
erro cometido. Os PDV identificados no discurso do L-T foram: narrado e assertado. Nos termos de
Rabatel (2016).

Análise da visada argumentativa

Sobre o aumento da testemunha “que logo em seguida, efetuaram a prisão dos mesmo e
depois as vítimas reconheceram na delegacia”, vejamos o quadro argumentativo abaixo que nos ajuda
a entender a linha de raciocínio da testemunha ao argumentar que acredita que os acusados são
realmente quem realizaram o delito:
(1) Houve um assalto em uma lanchonete (P. arg. 1, dados)
(2) Os carros em que os acusados se encontravam foram os mesmos descritos pelos
populares e vítimas (P. arg. 2, argumento)
(3) Os acusados foram reconhecidos pelas vítimas na delegacia (P. arg. 2, argumento)
(4) Dentro do carro havia um sanduíche e vários celulares (P. arg. 2, argumento)
(5) Os acusados foram quem realmente realizaram assalto a lanchonete (P. arg. 5,
conclusão)

Análise do depoimento da testemunha 2


D2 - A testemunha Esthefson Lima da Silva (PM) disse que estava na BR 226, quando chegou um casal de
moto e avisou que tinham acabado de fazer um arrastão em uma lanchonete, tendo os criminosos chegado em
uma Duster; que lembra que era a noite, mas não especificamente a hora; que o casal indicou que o carro estava
indo do Guarapes para Felipe Camarão, soube depois que havia também um Gol envolvido na fuga; que
conseguiram contato com os assaltantes no pé no morro, na própria BR 226, entre Guarapes e Felipe Camarão;
que após isso, realizaram a abordagem na Duster, tendo o Gol empreendido em fuga; que poucos minutos
depois, uma das vítimas chegou e confirmou que foram realmente eles que realizaram o crime, tendo
encontrado seu celular dentro do carro e desbloqueado logo em seguida; que havia também dinheiro da loja no
carro, além disso, acredita que eles se livraram da arma de fogo antes de serem pegos; que sobre a munição
encontrada, não sabe informar se foi dentro do carro, pois não foi ele que realizou essa averiguação, mas sabe
que apreenderam; que reconheceu pessoalmente em audiência que os indivíduos que estavam lá, eram os que
estavam dentro do Duster no momento da apreensão; que no que se refere a arma de fogo, disse que o sargento
confirmou que eles haviam arremessado-a, mas essa arma não foi recuperada; que não recorda especificamente
qual vítima chegou lá no local para reconhecer o celular, mas lembra que ela chegou em uma moto e logo em
seguida foi encaminhada para a delegacia, pois o lugar era muito perigoso; que.lembra também que o acusado
gordinho tinha falado que o carro era alugado, mas, na verdade, foi tomado por assalto e sobre os celulares os
indivíduos não comentaram nada (depoimento salvo no DVD de fls. 24-v).

Análise do depoimento

Exemplo 2
A testemunha YYYYY disse que estava na BR 226, quando chegou um casal de
moto e avisou que tinham acabado de fazer um arrastão em uma lanchonete […]
252

Observamos no exemplo 2, referente ao depoimento 2, o L-T se engaja quando utiliza o


verbo dicendi “avisou”, porém não se compromete com o dito pelo casal, atribuindo a fala através
de um discurso indireto.

Exemplo 3
[…] que lembra que era a noite, mas não especificamente a hora […]

Nessa declaração, o L-T utiliza o suporte de focalização cognitiva “lembra”, se engajando


diretamente com o dito, além de utilizar o dêitico temporal “noite”. Além disso, se engaja
completamente ao dizer “mas não especificamente a hora”, utilizando um suporte de focalização
conectiva para dizer que não lembra “especificamente”, modalizando sua fala, se engajando com o
conteúdo proposicional.

Exemplo 4
Que havia também dinheiro da loja no carro, além disso, acredita que eles se livraram
da arma de fogo antes de serem pegos

Nesse exemplo observamos o engajamento do L-T quando utiliza o operadores


argumentativos “também” e “além disso”, afirmando que ainda existiam outros elementos dentro do
carro dos acusados. O engajamento também ocorre quando ele utiliza o suporte de focalização
cognitiva “acredita que”, deixando claro no depoimento sua opinião sobre o que os acusados teriam
feito com a arma antes de serem pegos.
Os PDV identificados no discurso do L-T foram, recorrentemente, narrado. Em nossas
análises também identificamos a presença do PDV assertado. Nos termos de Rabatel (2016).

Análise da visada argumentativa

Sobre o argumento da testemunha “acredita que eles se livraram da arma de fogo antes
de serem pegos”, vejamos o esquema argumentativo abaixo que nos ajuda a entender a linha de
raciocínio da testemunha ao argumentar que acredita que uma arma de fogo tenha sido realmente
usada na hora do crime:

(1) Houve um assalto a uma lanchonete (P. arg. 1, dado)


(2) As vítimas disseram que viram uma arma de fogo sendo utilizada pelos acusados durante
o assalto (P. arg. 2, argumento)
(3) Munições foram encontradas dentro do carro em que dos acusados se encontravam (P. arg.
2, argumento)
253

(4) Os acusados utilizaram uma arma de fogo durante o assalto e se livraram dela antes de
serem pegos (P. arg. 3, conclusão)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, buscamos identificar e descrever as marcas linguísticas que caracterizam


a (não) assunção da responsabilidade enunciativa e a mediatividade. Em nossa pesquisa, também
observamos ora a assunção da responsabilidade enunciativa pelas testemunhas, ora o uso de
indicadores de quadros meditativos.
Por fim, também observamos que os PDV das testemunhas podem ter influenciado
diretamente a decisão final do juiz, que decidiu pela condenação dos acusados.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.

ADAM, Jean-Michel. O que é Linguística Textual?. In: SOUZA, Edson Rosa Francisco de;
PENHAVEL, Eduardo; CINTRA, Marcos Rogério. (org.). Linguística Textual: interfaces e
definições - homenagem a Ingedore Grünfeld Villaça Koch. São Paulo: Cortez, 2017, p. 23-57.

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria
e aos métodos. Tradução de Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista.
Porto: Porto Editora, 1994. (Coleção Ciências da Educação).

BRASIL. Código de processo penal. Lei 3.689/1941. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em: 15 set. 2018.

CRESWELL, John. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Tradução Magda
Lopes. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français.


Langue Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em:
http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2015.

GUENTCHÉVA, Z. L’ opération de prise em charge et la notion de médiativité. In: DENDALE,


Patrick; COLTIER, Danielle (Dirs). La prise en charge énonciative: éthudes théoriques e
empiriques. Bruxelles: De Boeck/ Duculot, 2011, p. 117-142.

OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. 3. ed. rev. ampl. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2010.

RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração- teoria e análise. Tradução de Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
254

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes da. “Saio
da vida para entrar na história”- pontos de vista, responsabilidade enunciativa coletiva e polêmica
pública na carta-testamento de Getúlio Vargas. Conexão Letras, v. 11, n. 15, p. 99-113, 2016.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares. Linguística textual e responsabilidade enunciativa. In:
CAPISTRANO JÚNIOR, Rivaldo; LINS, Maria da Penha Pereira; ELIAS, Vanda Maria. (org.).
Linguística textual: diálogos interdisciplinares. São Paulo: Labrador, 2017, p. 299-316.
255

PLANO DE TEXTO E VISADA ARGUMENTATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO


DECRETO NO CENÁRIO DE PANDEMIA DA COVID-19

Mônica Silva Gameleira 89


Célia Maria de Medeiros 90

RESUMO
O gênero discursivo decreto apresenta atos administrativos de competência exclusiva do chefe do
executivo, tendo como objetivo prover situações gerais ou individuais, previstas de modo expresso
ou implícito na lei. Nesse contexto, os decretos regulamentares possuem valor normativo e são
organizados através de atos subordinados ou secundários, auxiliando no estabelecimento dos
regulamentos, partindo do pressuposto de que apenas as leis inovam o ordenamento jurídico.
Tomando por base essas informações, a descrição do plano de texto do gênero discursivo decreto
fornece-nos informações a respeito da (não) assunção da responsabilidade enunciativa do conteúdo
proposicional por meio da recorrência das marcas linguísticas. Para tanto, neste trabalho, objetivamos
identificar, descrever, analisar e interpretar três decretos, do âmbito estadual, no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero estudado. Sobre a metodologia, é
do tipo qualitativa de natureza interpretativista, sendo o método indutivo. O corpus analisado é
constituído de 1 (um) decreto emitido pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, a saber: o
decreto nº 29.524, de 17 de março de 2020. A escolha do decreto partiu do delineamento temático
acerca da pandemia de Covid-19 e das determinações sobre a suspensão das aulas presenciais no
Estado do RN. Teoricamente, o estudo fundamenta-se em Adam (2011, 2019) com os postulados da
análise textual dos discursos, cujo enfoque é analisar a produção co(n)textual de sentido,
fundamentada na análise de textos concretos, em diálogo com Rabatel (2016), no que concerne às
instâncias enunciativas e ao ponto de vista e Vanderveken (1997, 2013) e Vanderveken e Melo
(2019), acerca dos atos de discurso. Os dados demonstram que no texto analisado o locutor
enunciador primeiro assume a responsabilidade enunciativa pela recorrência do ponto de vista
assertado, uma vez que se apoia em atos de discurso assertivos, pois os enunciados apresentam relação
de comprometimento com a verdade.

Palavras-chave: gênero discursivo decreto. responsabilidade enunciativa. ponto de vista. atos de


discurso.

INTRODUÇÃO

O cenário de pandemia da Covid-19 tem se apresentado como um campo vasto para o


estudo de gêneros discursivos da esfera administrativa. Pensando na circulação desses textos,
propomos, neste artigo, investigar o plano de texto, a responsabilidade enunciativa e a visada

89
Graduanda em Letras – Língua Portuguesa Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN).
E-mail: gameleiramonica@gmail.com
90
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN). E-mail:
celia.ufcaico@gmail.com
256

argumentativa no gênero decreto, tendo como foco: a) descrever o plano de texto e b) analisar e
interpretar os posicionamentos assumidos pelo locutor enunciador primeiro (L1/E1) em relação ao
conteúdo proposicional enunciado.
Para a realização deste trabalho, recorremos a uma pesquisa no Diário Oficial do Estado
do Rio Grande do Norte com o intuito de identificar os decretos que versavam a respeito da temática
“suspensão das aulas presenciais” no Estado. Dos textos encontrados, delimitamos como corpus de
análise o decreto nº 29.524, de 17 de março de 2020, visando atender aos objetivos propostos nesta
exposição.
Posto isso, o artigo estrutura-se, além desta parte introdutória, nas seguintes seções: a)
Pressupostos teórico-metodológicos, seção na qual fazemos uma exposição teórica sobre o tema,
abordando os dispositivos enunciativos plano de texto, responsabilidade enunciativa e visada
argumentativa; b) Análise e discussão dos resultados, seção em que é apresentada a análise do gênero
discursivo decreto, mobilizando os fundamentos teóricos discutidos na seção precedente. Por fim, são
apresentadas as considerações finais e as referências.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Como respaldo teórico para esta pesquisa, recorremos aos estudos da Análise Textual dos
Discursos, proposta por Jean-Michel Adam (2011), uma teoria da produção co(n)textual de sentido
que deve, necessariamente, ser fundamentada na análise de textos concretos, oferecendo elementos
para o entendimento do texto como uma prática discursiva analisado à luz de determinados planos ou
níveis de análise linguística.
Para Adam (2011), o estudo analítico de um texto deve considerar o exame de um plano
textual dado, levando em consideração os elementos de textura, estrutura composicional, semântica,
enunciação e atos de discurso que, por sua vez, completam-se, apenas, se postos em relação a
elementos do plano discursivo ou externo ao texto, os quais se configuram na ação visada, na
interação social, na formação sociodiscursiva e no interdiscurso.
A proposta teórica constituída por Adam (2011) sobre a ATD é relevante porque funda o
entendimento do texto enquanto circunscrito em um discurso – caracterizado por uma formação
sociodiscursiva, pela interação autor/leitor, por objetivos e por um gênero determinado, representando
a possibilidade de articular o texto e o discurso em que pese o intento da eficácia da interpretação
do(s) sentido(s) do texto. Assim, podemos afirmar que a ATD analisa o texto considerando o seu
comportamento discursivo.
Adam (2011) estabelece uma associação entre o texto e o discurso no sentido de pensá-
los a partir de novas categorias que permitam compreender a LT como perspectiva situada no quadro
257

mais amplo da AD. Dessa maneira, a proposta do linguista francês estabelece, “ao mesmo tempo,
uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos objetos da linguística textual e da análise
do discurso”. (Ibid., p. 43).
Diante do exposto, apresentamos, a seguir, a figura 1, que mostra os níveis ou planos da
análise discursiva e textual, esquema proposto por Adam (2011), bem como os dispositivos
enunciativos em que nos situamos neste trabalho.

Figura 1 – Esquema 4 de Adam (2011)

Fonte: Adam (2011, p. 61, adaptações nossa).

Embasados na Responsabilidade enunciativa (RE) e na teoria do ponto de vista (PDV) de


Rabatel (2016), entendemos que “analisar um ponto de vista é recuperar, de uma parte, os contornos
de seu conteúdo proposicional e, de outra, sua fonte enunciativa, inclusive quando esta é implícita, a
partir de atribuição dos referentes e dos agenciamentos das frases em um texto [....]” (RABATEL,
2016, p. 71).
Rabatel (2016, p. 86) evidencia que

todos os enunciadores (enquanto fontes de conteúdos proposicionais) não se equivalem.


Alguns são mais importantes que outros, conforme seu grau de atualização no discurso, a
natureza dos fenômenos de responsabilidade enunciativa e as reações dos interlocutores.

De acordo com Rabatel (2016), o locutor, que é o aparelho físico responsável pela
enunciação de um enunciado, poderá coincidir ou não com aquele que é o enunciador, que é aquele
258

que está na fonte do enunciado, que assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo
proposicional do seu dizer. Nesse sentido, quando há coincidência do locutor com o enunciador, diz-
se que há sincretismo entre o locutor e o enunciador primeiro, grafando-se L1/E1.
Rabatel (2016) explica que, com relação ao enunciador primário, o locutor exprime seu
PDV enquanto locutor, através do seu papel na enunciação (esse seria o locutor defendido por
Ducrot), enquanto ser do mundo e enquanto sujeito que fala, aquele a quem se pede satisfações pelo
que ele diz.
No tocante à estruturação textual, Adam (2011) postula que os planos de texto estão, com
os gêneros discursivos textuais, disponíveis no sistema de conhecimento dos grupos sociais. Eles
fazem, portanto, parte dos conhecimentos prévios do leitor, atuando na construção dos sentidos de
um texto.
O plano de texto - ao explicitar a estrutura global do texto, a forma como os parágrafos
se organizam, a ordem em que as palavras se apresentam no texto - pode fornecer os elementos
necessários à compreensão e à produção, uma vez que, para a percepção/elaboração da estrutura
global do texto, o leitor lança mão de seus conhecimentos linguístico e textual. Com efeito, “o
reconhecimento do texto como um todo passa pela percepção de um plano de texto” (ADAM, 2011,
p. 254).
Utilizamos também como referência os atos de discurso, preconizados por Vanderveken
(1997, 2013), em que atos ilocucionários como asserções, perguntas, declarações, ordens, ofertas e
recusas, e suas tentativas de realização de tais atos de discurso, fazem parte daquilo que eles
significam e daquilo que eles têm a intenção de comunicar aos interlocutores, no contexto de suas
enunciações.
Considerando o contexto linguístico, enunciativo e discursivo do gênero decreto,
destacamos a presença de atos de discursos diretivos, cujo propósito ilocucionário consiste nas
tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer algo. A direção do ajuste dessa categoria é o mundo-
palavra e a condição de sinceridade é a vontade (ou desejo). Vanderveken e Melo (2019, p. 31)
asseveram que “[...] fazer uma injunção é prescrever alguém de agir com ênfase (modo mais forte de
atingir o objetivo), às vezes fazendo uma declaração [...] fazendo apelo a valores (modo de atingir)”.
Para uma maior visualização do gênero discursivo decreto, na próxima seção,
delimitamos o seu plano de texto objetivando descrever e analisar suas partes constituintes, no
gerenciamento da visada argumentativa, no que concerne à responsabilidade enunciativa do conteúdo
proposicional.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


259

Os gêneros discursivos da esfera administrativa apresentam um alto grau de


institucionalidade (PINTO, 2010). Nesse sentido, seguem rituais bem definidos, sendo estabelecidos
pela própria instituição em que estão inseridos, quer através de códigos diversos, quer pela própria
tradição já associada à produção desses textos.
Nesse contexto, o gênero discursivo decreto baseia-se em atos administrativos de
competência exclusiva do chefe do Executivo, destinados a prover as situações gerais ou individuais,
abstratamente previstas, de modo expresso ou implícito, na lei. (MANUAL DE REDAÇÃO DA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2018, p. 145). Assim como o discurso é definido por uma
estabilização pública e normativa, e a possibilidade de um status institucional, conforme Adam
(2011), é nos gêneros de discurso que se localiza essa “‘estabilização pública e normativa’ que opera
no quadro do sistema de gêneros de cada formação discursiva” (Ibid., p. 45).
O plano de texto desse gênero é constituído das seguintes partes: epígrafe, ementa, autoria
e fundamento legal, ordem de execução, cláusula de vigência, fecho e assinatura. Vejamos, a seguir,
a ilustração na figura 2.

Figura 2 – Plano de texto do gênero discursivo decreto


260

Fonte: elaboração própria e adaptada do texto do decreto nº 29.524, de 17 de março de 2020.

No que concerne à análise da visada argumentativa no gênero decreto, selecionamos 8


(oito) excertos para discussão do gerenciamento das vozes. Ressaltamos que os locutores
enunciadores primeiros são a Governadora Fátima Bezerra e o Secretário de Saúde Cipriano Maia de
Vasconcelos.

Excerto 1
Art. 2º Ficam suspensas as atividades escolares presenciais nas unidades da rede pública e privada
de ensino, no âmbito do ensino infantil, fundamental, médio, superior, técnico e profissionalizante,
pelo período inicial de 15 (quinze) dias.

Excerto 2
Art. 3º Ficam suspensas as atividades coletivas, eventos de massa, shows, atividades desportivas e
congêneres, com a presença de público superior a 100 (cem) pessoas, sejam públicos ou privados,
ainda que previamente autorizados.
261

Excerto 3
Art.5º Fica autorizada a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) e a Fundação
de Atendimento Socioeducativo (FUNDASE) dispor sobre visitas, transferências e transportes de
presos e socioeducandos.

Observamos que os excertos (1), (2) e (3) são marcados por atos de discurso diretivos,
destacando-se como núcleo as formas verbais “Ficam” e “Fica as quais indicam a ação que deve ser
realizada, a suspensão das atividades. Notamos também que a orientação argumentativa pretendida
nos enunciados é consolidada pelo engajamento dos locutores enunciadores primeiros (Governadora
Fátima Bezerra e o Secretário de Saúde Cipriano Maia de Vasconcelos. Ainda mais, o L1/E1 está
institucionalmente constituído para deliberar, em razão disso cria as condições que garantam que, ao
declarar realizar num momento uma ação, engaja-se a realizá-la.

Excerto 4
§ 1º: O prazo de duração da medida prevista no caput poderá ser estendido por períodos
indeterminados, a ser avaliado pelo Comitê Governamental de Gestão da Emergência em Saúde
Pública decorrente do Coronavírus (COVID-19), instituído pelo Decreto nº 29.521, de 16 de março
de 2020.

Excerto 5
§ 2º Competirá à Secretaria de Estado da Educação e Cultura (SEEC) a adoção das medidas
indispensáveis à implementação da suspensão na rede pública de ensino e na consecução das
posteriores medidas necessárias à compensação das horas aulas exigidas.

Em (4) e (5), L1/E1 compromete-se com o conteúdo proposicional a partir de enunciados


deônticos “poderá ser estendido” e “competirá”, assinalando engajamento com o dito. Assim,
verificamos que L1/E1 assume a responsabilidade anunciativa pelo conteúdo proposicional.

Excerto 6
Art. 7º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos enquanto durar a
declaração de situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, declarada por meio
da Portaria nº 188/GM/MS, de 2020, no Ministério da Saúde.

No excerto (7), as asserções, marcadas pelas formas verbais no presente do indicativo


“entra em vigor”, “produzindo efeitos” e a forma lexical “declarada”, imprimem ao conteúdo
262

proposicional a força argumentativa do enunciado, o que evoca a assunção da responsabilidade


enunciativa do locutor enunciador primeiro.

CONCLUSÃO

Figura 3 – Dispositivos enunciativos analisados no gênero discursivo “Decreto”

Fonte: elaboração própria.

Conforme ilustração da figura 3, as discussões aqui empreendidas apontam que a


descrição do plano de texto do gênero discursivo decreto fornece-nos informações a respeito da
assunção ou não assunção da responsabilidade enunciativa do conteúdo proposicional por meio da
recorrência das marcas linguísticas.
A investigação aponta que nos textos analisados o locutor enunciador primeiro (L1/E1)
assume a responsabilidade enunciativa pela recorrência do ponto de vista assertado, uma vez que se
apoia em atos de discurso diretivos e assertivos, pois os enunciados apresentam relação de
comprometimento com a verdade.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.

ADAM, Jean-Michel. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. São
Paulo: Contexto, 2019.

DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº 29.524, de 17 de


março de 2020. Disponível em:
http://diariooficial.rn.gov.br/dei/dorn3/docview.aspx?id_jor=00000001&data=20200318&id_doc=6
77489. Acesso em: 13 nov. 2020.
263

RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1

PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Prática política, jurídica, jornalística. Lisboa: Quid
Juris Sociedade Editora, 2010.

VANDERVEKEN, Daniel. La logique illocutoire et l'analyse du discours. In. LUZZATI, Daniel et


al. (Dirs.). Le Dialogique. Bern: Peter Lang, 1997, p. 59-94.

VANDERVEKEN, Daniel. Towards a Formal Pragmatics of Discourse. In: International Review


of Pragmatics, v. 5, n. 1, p. 34-69, 2013.

VANDERVEKEN, Daniel.; MELO, Candida de Sousa. Atos ilocucionários e discursos jurídicos na


língua portuguesa. Aufklärung: revista de filosofia, v. 6, n. 2, p. p.11-46, 22 ago. 2019. Disponível
em: https://doi.org/10.18012/arf.2016.47581. Acesso em: 12 out. 2020.
264

PLANO DE TEXTO, RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E VISADA


ARGUMENTATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA JORNALÍSTICA

Maria Letícia França de Moura91


Célia Maria de Medeiros92

RESUMO

Compreender um gênero discursivo textual perpassa pelo reconhecimento de sua organização global,
e isso significa identificar os planos de texto que o constitui. Neste trabalho, estabelecemos como
objetivos identificar, descrever, analisar e interpretar quatro crônicas jornalísticas no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero discursivo crônica jornalística. A
respeito da metodologia, é do tipo qualitativa de natureza interpretativista. O corpus analisado é
constituído de quatro crônicas jornalísticas extraídas de veículos de comunicação presentes no âmbito
digital, a saber: El País, Estadão e Folha de S. Paulo. A escolha das crônicas jornalísticas,
selecionadas no mesmo espaço temporal, partiu do delineamento temático acerca da pandemia de
Covid-19. Acerca do recorte temporal, priorizou-se os materiais veiculados entre os meses de março
e julho, período em que a pandemia esteve presente, de maneira mais intensa, no Brasil. Quanto à
escolha dos cronistas, optamos por Eliane Brum, no El País; Luis Fernando Verissimo, no Estadão;
Antonio Prata e Gregório Duvivier, ambos na Folha de S. Paulo. Ainda que existam muitos veículos
de comunicação no âmbito online, esses são os que têm maior abrangência nacional e que também
reservam uma parcela do espaço virtual para veiculação de crônicas jornalísticas, especialmente sobre
a temática analisada. Já a escolha dos autores, para além da vinculação ao meio jornalístico,
pretendemos trazer uma heterogeneidade quanto ao estilo de escrita, bem como o perfil de cada autor.
Teoricamente, o estudo fundamenta-se nos postulados da Análise textual dos discursos (ATD), em
diálogo com Rabatel (2016) e Adam (2011), Guentchéva (2011), além de Campos (2011), Melo
(2004), Menezes (2002) e Silva e Lüersen (2016), para a compreensão do gênero crônica. A análise
dos dados aponta que nos quatro textos há a presença de instâncias enunciativas - o locutor enunciador
primeiro (L1/E1) e os enunciadores segundos (e2), que demonstram a (não) assunção da
responsabilidade enunciativa em um jogo de engajamento ou distanciamento pelo dito.

Palavras-chave: gênero jornalístico crônica. responsabilidade enunciativa. mediatividade. pandemia.

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, propomo-nos a identificar o plano de texto e discutir a responsabilidade
enunciativa e a visada argumentativa no gênero discursivo textual crônica jornalística, que é
reconhecido dentro do domínio discursivo jornalístico como um gênero opinativo, uma vez que

91
Bolsista PIBIC UFRN (IC) e discente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-
mail: le_ticiafranca@hotmail.com
92
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN). E-mail:
celia.ufcaico@gmail.com
265

misturam as tipologias textuais narrativa e argumentativa. Isso porque, a partir da narração de fatos
cotidianos, os cronistas de jornal promovem reflexões e desenvolvem teses e argumentos.
Como definem Silva e Lüersen (2016), o formato da crônica jornalística tem origem
ligada às técnicas do jornalismo literário e da própria literatura. O estilo permite a utilização de figuras
de linguagem, de jogar com as palavras, o uso de personagens fictícios, a subjetividade atrelada à
crítica, o uso da primeira pessoa, bem como exige uma pesquisa eficiente, que possibilite o
conhecimento acerca dos fatos narrados.
Esta investigação fundamenta-se no âmbito da Linguística Textual (LT), nos postulados
da Análise textual dos discursos (ATD), em diálogo com teorias linguísticas enunciativas, com
Rabatel (2016), Adam (2011) e Guentchéva (1994, 2011).
Neste estudo, buscamos responder às seguintes questões: (1) Como o locutor enunciador
primeiro (L1/E1) assume a responsabilidade enunciativa? (2) Quais marcas linguísticas apontam a
orientação argumentativa dos enunciadores? (3) Quais marcas linguísticas presentes nas reportagens
induzem a um quadro de mediatividade? Para responder a essas indagações, estabelecemos como
objetivos identificar, descrever, analisar e interpretar quatro crônicas jornalísticas no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero discursivo textual crônica
jornalística.
A responsabilidade enunciativa (RE) é considerada uma das principais noções e
categorias da análise textual dos discursos (ATD) e é, também, um dos níveis propostos por Adam
(2011). Esse dispositivo textual, que pode ser individual ou coletivo, é compreendido como a
assunção por determinadas entidades ou instâncias acerca do que é enunciado, ou na atribuição de
alguns enunciados a certas instâncias. Sobre a mediatividade, Guentchéva (2011) concebe como a
expressão da não responsabilidade do conteúdo proposto a partir de um enunciado por um enunciador.
Dessa maneira, quando o locutor enunciador não assume a responsabilidade enunciativa, estamos
diante de um quadro mediativo.

METODOLOGIA

Esta investigação enquadra-se como uma pesquisa qualitativa de natureza


interpretativista, uma vez que o processo de elaboração do estudo envolveu, inicialmente, a
compreensão dos fenômenos para, em seguida, apresentar a interpretação a respeito deles (Cf.
BOGDAN; BIKLEN, 1994). Em relação ao método, a pesquisa qualitativa é indutiva, porque foram
desenvolvidos conceitos, ideias e entendimentos encontrados nos próprios dados analisados, em vez
de coletar dados para comprovar teorias, hipóteses e modelos idealizados (Cf. CRESWELL, 2010).
266

Quanto ao corpus, esta análise utilizou-se de quatro crônicas jornalísticas extraídas de


veículos de comunicação presentes no âmbito digital, a saber: El País, Estadão e Folha de S. Paulo.
Para a investigação, foram realizados recortes temáticos e temporais. Primeiramente, o tema que
norteou a escolha das crônicas foi a pandemia da Covid-19 que assolou o mundo no ano de 2020.
Diante da relevância que esse fato teve para a sociedade como um todo, bem como dos diversos
efeitos sociais, econômicos e de saúde pública que a doença provocou no planeta, pretendeu-se,
através desta pesquisa, identificar e compreender o posicionamento e engajamento dos principais
cronistas brasileiros da contemporaneidade.
Acerca do recorte temporal, priorizou-se os materiais veiculados entre os meses de março
e julho, período em que a pandemia esteve presente, de maneira mais intensa, no Brasil. Quanto à
escolha dos cronistas, optou-se por Eliane Brum, no El País; Luis Fernando Verissimo, no Estadão;
Antonio Prata e Gregorio Duvivier, ambos na Folha de S. Paulo. Ainda que existam muitos veículos
de comunicação no âmbito online, esses são os que têm maior abrangência nacional e que também
reservam uma parcela do espaço virtual para veiculação de crônicas jornalísticas, especialmente sobre
a temática analisada. Já a escolha dos autores, para além da vinculação ao meio jornalístico,
pretendeu-se trazer uma heterogeneidade quanto ao estilo de escrita, bem como perfil de cada autor.
Essa iniciativa de realizar a pesquisa sobre o fenômeno da responsabilidade enunciativa
em crônicas jornalísticas é uma maneira de contribuir para os estudos do grupo de pesquisa em
Análise Textual dos Discursos e expandir a análise linguística na interface Linguagem e Jornalismo.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Caracterização do gênero discursivo textual crônica jornalística e descrição dos planos de texto
do corpus
A crônica jornalística é reconhecida, no âmbito discursivo jornalístico, como um gênero
que traz à tona, por meio de uma narrativa, a visão do cotidiano. Tomada de senso crítico do cronista,
ela é também marcada pelo caráter opinativo e argumentativo. Segundo Menezes (2002, p. 165), a
crônica “se apropria da realidade do cotidiano, como o jornalismo factual, mas procura ir além e
mostrar o que está por trás das aparências, o que o senso comum não vê (ou não quer ver).”
Esse pensamento é complementado por José Marques de Melo, que define a crônica
jornalística como um “relato poético do real”, significando para os leitores contemporâneos “um
espaço ao mesmo tempo de reflexão e deleite sobre os fatos cotidianos, habilmente captados por
jornalistas capazes de expressá-los de forma amena e crítica” (MELO, 2004).
A crônica, no âmbito jornalístico, é um gênero que conversa com o jornalismo literário e
com a própria literatura. Isso porque o seu estilo permite ao cronista fazer uso de mecanismos
267

linguísticos mais comuns em um contexto literário, como as figuras de linguagem, uso de


personagens, subjetividade atrelada ao senso crítico, bem como a utilização de verbos na primeira
pessoa. Para Silva e Lüersen (2016), o exercício do cronista de abordar assuntos nas mais corriqueiras
situações e colocar-se na história oferece características únicas à crônica. Mesmo quando ela é diária,
carrega o estilo de um relato mais solto, com linguagem coloquial e histórias comuns.
Sobre o plano de texto, para Adam (2011, p. 257), “um texto pode ser constituído de
trechos sucessivos que formam subconjuntos em seu interior”. Dessa forma, o autor demonstra que a
estrutura textual é composta por blocos de texto que proporcionam um encadeamento de ideias e a
consequente organização proposta pelo gênero. Nessa perspectiva, o plano de texto atua como um
unificador das diferentes partes do texto, permitindo a compreensão (de quem lê) e a produção (de
quem escreve).
Conforme já mencionado, o corpus desta pesquisa refere-se às crônicas jornalísticas
veiculadas pelos jornais El País, Estadão e Folha de São Paulo, no mesmo espaço temporal (de março
a julho de 2020). A seguir, realizamos a descrição dos planos de texto das crônicas analisadas.

Plano de texto: Crônica de Eliane Brum para o El País

A primeira crônica escolhida para análise intitula-se “O vírus somos nós (ou uma parte
de nós)” e foi escrita pela jornalista Eliane Brum para o jornal El País. Antes de partir para a análise
do plano de texto, cabe uma breve biografia sobre a autora. Eliane Brum é gaúcha, nasceu em 1966
no município de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Ela é jornalista, escritora e documentarista. Trabalhou
11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 anos como repórter especial da
Revista Época, em São Paulo.
Desde 2010, Brum atua como freelancer e faz projetos de longo prazo com populações
tradicionais da Amazônia e das periferias da Grande São Paulo. De 2009 a 2013 foi colunista do site
da revista Época. Desde 2013 tem uma coluna quinzenal, em português e espanhol, no jornal El País.
Desde 2018, mantém uma coluna quinzenal no jornal El País impresso, de Madri. É também
colaboradora do jornal britânico The Guardian e de outros jornais e revistas europeias. Publicou oito
livros – sete de não ficção e um romance -, além de participar de coletâneas de crônicas, contos e
ensaios.
Dentre os inúmeros textos escritos por Eliane Brum está a crônica jornalística escolhida
para este estudo. Publicado no dia 25 de março de 2020, o texto veiculado pelo jornal El País está
classificado na editoria ‘Opinião. Com relação ao aspecto estético da crônica, nota-se a presença de
um cabeçalho, o qual é composto pelo chapéu (“Pandemia do coronavírus”), cuja função no âmbito
jornalístico é a de definir, através de poucas palavras, o assunto da matéria. Além disso, ainda no
268

cabeçalho, há o título da reportagem: “O vírus somos nós (ou uma parte de nós)”, escrito com uma
fonte maior e destacado em negrito, a fim de atrair a atenção do leitor, bem como sintetizar o conteúdo
textual exposto.
Logo abaixo, há a linha fina, a qual tem o objetivo de complementar a mensagem dada
no título. Nesse caso, utilizou-se: “O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou
apenas mais da mesma brutalidade)”. Em seguida, há a imagem que ilustra a reportagem, seguida
pela legenda e o crédito do fotógrafo. Na sequência, observa-se a presença da assinatura da autora
(Eliane Brum), seguida da data (25 de março de 2020) e horário (14h44) da publicação.
A crônica é dividida em 33 parágrafos, os quais seguem a estrutura padrão do gênero
discursivo textual crônica jornalística. Há a predominância da sequência narrativa, uma vez que os
fatos são narrados a fim de contar uma história. O texto também conta com a sequência descritiva, de
modo que a autora traz detalhes sobre os aspectos citados ao longo da construção textual. Além disso,
com o objetivo de emitir uma opinião sobre o assunto, a sequência argumentativa também se faz
presente em virtude das escolhas lexicais da cronista que demonstram o seu posicionamento quanto
à temática. Essas são características marcantes do próprio gênero analisado.
Ainda sobre a estrutura, ao final do texto, há novamente o nome da cronista, sinalizado
em negrito e itálico e acompanhado de uma breve descrição sobre a autora (“Eliane Brum é escritora,
repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a
Bolsonaro (Arquipélago)”).

Plano de texto: Crônica de Luis Fernando Verissimo para o Estadão

A segunda crônica escolhida para a análise foi escrita pelo renomado cronista brasileiro
Luis Fernando Verissimo e publicada no jornal Estadão. Sobre a biografia do autor, Veríssimo nasceu
em 26 de setembro de 1936 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O trabalho do autor também é
conhecido na TV, que adaptou para minissérie o livro Comédias da Vida Privada. O programa recebeu
o prêmio da crítica como o melhor da TV brasileira. É filho do escritor Érico Veríssimo e Mafalda
Veríssimo.
De 1943 a 1945, Luis Fernando morou com a família nos Estados Unidos, pois seu pai
foi lecionar na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Ao retornar ao Brasil, em 1956, Verissimo
começou a trabalhar na editora Globo de Porto Alegre. Em 1962, transferiu-se para o Rio de Janeiro
onde exerceu as atividades de tradutor e redator de publicações comerciais.
De volta a Porto Alegre em 1967, Luis Fernando trabalhou no jornal Zero Hora. Em pouco
tempo já mantinha uma coluna diária, que o consagrou por seu estilo humorístico e uma série de
269

cartuns e histórias em quadrinhos. O primeiro livro, "O Popular", de crônicas e cartuns, foi publicado
em 1973. Atualmente, o autor é colunista no jornal Estadão.
Luis Fernando Veríssimo acumula muitas crônicas ao longo de sua trajetória e é
reconhecido como uma referência na área. Para esta análise, o texto de sua autoria escolhido foi “Pós-
choque”, publicado no dia 2 de abril de 2020, na editoria Cultura, do jornal Estadão. Em termos
estéticos, nota-se a presença de um cabeçalho, o qual é composto, inicialmente, por uma foto do autor,
acompanhado do termo “Colunista” e do nome do cronista (Luis Fernando Verissimo). Abaixo, há
um fio, isto é, uma linha horizontal usada para separar elementos. Em seguida, posiciona-se o título
da crônica, que também recebe destaque por meio de uma fonte com tamanho maior e em negrito. Há
ainda a linha fina: “O mundo que emergirá do choque que estamos sofrendo será um mundo purgado
pelo horror, e melhor, ou condenado pelo amoralismo para sempre”.
Logo abaixo, há a presença da assinatura do autor (Luis Fernando Verissimo),
acompanhado do nome do jornal (O Estado de S. Paulo, também conhecido como Estadão). Na parte
inferior, observa-se a data (2 de abril de 2020) e horário (3h00) da publicação. Nesse caso, a
publicação não conta com uma imagem/foto para ilustrar a narrativa. Partindo para o corpo do texto,
a crônica é dividida em cinco parágrafos, que também seguem a estrutura padrão do gênero analisado.
Semelhante ao texto de Eliane Brum, Verissimo também faz uso, com maior predominância, da
sequência narrativa e descritiva, uma vez que os fatos são narrados a fim de contar uma história. Além
disso, com o objetivo de emitir uma opinião sobre o assunto, a sequência argumentativa também é
marcada na crônica, pois as escolhas lexicais do cronista revelam o seu posicionamento quanto à
temática com o objetivo de emitir uma opinião e gerar convencimento no leitor.

Plano de texto: Crônica de Antonio Prata para a Folha de S. Paulo

Já com relação ao jornal Folha de S. Paulo, um dos cronistas escolhidos foi Antonio Prata.
Ele nasceu em 24 de agosto de 1977, na cidade de São Paulo. Escritor, cronista e roteirista, escreve
atualmente em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Como roteirista, contribuiu com novelas e
séries da Rede Globo. Também teve suas crônicas publicadas na revista Capricho e no jornal O Estado
de S. Paulo. Publicou seu primeiro livro em 2001, chamado Douglas e Outras Histórias. Alguns de
seus outros trabalhos na literatura são O Inferno Atrás da Pia, de 2004, Adulterado: crônicas, de 2009,
e Felizes Quase Sempre, um infantil de 2013 com ilustrações de Laerte Coutinho. Em 2012, foi
incluído na lista da revista Granta como um dos vinte melhores escritores brasileiros com menos de
40 anos.
Desde o início da pandemia da covid-19, o autor vem produzindo crônicas sobre o assunto
e publicando na sua coluna do jornal Folha de S. Paulo. Para este estudo, a escolhida foi a crônica
270

cujo título é: “Quando a quarentena acabar”, publicada no dia 23 de maio de 2020, na editoria
classificada como Colunas & blogs. Em termos estéticos, semelhante aos demais jornais citados
anteriormente, na página analisada, há a presença de um cabeçalho, o qual conta com uma foto e o
nome do autor (Antonio Prata). Após a separação pelo que, no contexto da diagramação, chama-se
de ‘fio’, há o título da crônica: “Quando a quarentena acabar”, enfatizado com uma fonte maior e o
estilo itálico.
Logo abaixo, observa-se, com uma fonte menor, a linha fina: “Vou compor uma sinfonia,
correr uma maratona e me formar em filosofia”. Um pouco mais abaixo, à esquerda, há as
informações sobre data (23 de maio de 2020) e hora (23h15) de publicação. Na mesma altura, porém
posicionada ao centro, observa-se a foto que foi utilizada para ilustrar o texto, como também o crédito
do fotógrafo. Nesse caso, não há legenda na imagem.
A crônica de Antonio Prata é dividida em oito parágrafos, nos quais há a predominância
pela sequência narrativa, muito comum nesse gênero discursivo textual em análise, já que se nota que
os fatos vão sendo narrados pelo autor a fim de conduzir a construção textual. Há ainda a presença
das sequências descritiva e argumentativa. A primeira é utilizada pelo cronista para caracterizar e
descrever alguns aspectos citados por ele ao longo do texto e a segunda é usada pelo autor, por meio
das escolhas lexicais, como um recurso para emitir sua opinião sobre a temática e gerar
convencimento.
Ao final do texto, o nome do autor aparece novamente, acompanhado de uma breve
caracterização dele (Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”).

Plano de texto: Crônica de Gregório Duvivier para a Folha de S. Paulo

O quarto e último cronista contemporâneo escolhido neste estudo foi Gregório Duvivier,
que escreve semanalmente para o jornal Folha de S. Paulo. Nascido em 11 de abril de 1986, Duvivier
é ator, humorista, escritor, roteirista e poeta brasileiro. Carioca, o filho da cantora Olivia Byington
com o músico Edgar Duvivier, além de sobrinho da atriz Bianca Byington, é formado em Letras na
PUC-Rio desde 2008. Começou a atuar aos 9 anos no curso de teatro Tablado e, aos 17 anos, junto
com os atores Marcelo Adnet, Fernando Caruso e Rafael Queiroga, formou o grupo que faria a peça
“Z. É. Zenas Emprovisadas”, permanecendo em cartaz pelo país por mais de dez anos.
Além de ator, o artista escreveu os livros "Ligue os pontos - Poemas de amor e Big Bang",
"Put Some Farofa", lançado com a atriz Fernanda Torres, e "A partir de amanhã eu juro que a vida
vai ser agora", que foi elogiado por mestres como Millôr Fernandes e Ferreira Gullar. Apesar de ter
começado cedo a carreira e ficar conhecido pelo seu trabalho no cinema e teatro, Gregório ganhou
271

notoriedade por ser um dos criadores e participantes do canal do YouTube Porta dos Fundos.
Atualmente, o artista assina uma coluna semanal no jornal Folha de São Paulo.
Dentre as inúmeras crônicas publicadas na coluna de Duvivier, a escolhida para esta
análise foi “A grande ficha, em algum momento, vai cair”, publicada na editoria Colunas e blogs no
dia 25 de março de 2020. Em termos estéticos, o plano de texto desta crônica se assemelha à produção
de Antonio Prata, já que ambas foram publicadas no mesmo veículo de comunicação. Para começar,
há um cabeçalho, o qual conta com uma foto e o nome do autor (Gregório Duvivier), seguido de um
“fio” que tem a finalidade, na diagramação, de separar elementos da página. Logo abaixo, há o título:
“A grande ficha, em algum momento, vai cair”, destacado com uma fonte maior e o estilo itálico.
Logo abaixo, observa-se, com uma fonte menor, a linha fina: “V pandemia deixa claro
que não estamos todos no mesmo barco”. Um pouco mais abaixo, à esquerda, há as informações sobre
data (25 de março de 2020) e hora (1h00) de publicação. O texto é dividido em dez parágrafos. Ao
longo das crônicas, observa-se alguns recursos gráficos utilizados, como uma tira - logo após o
primeiro parágrafo - de autoria de Laerte e cujo conteúdo norteia o texto de Duvivier. Há ainda, após
o quarto parágrafo, uma galeria de fotos, a qual traz oito imagens sobre o tema: “Coronavírus em
favelas do rio”, que dá título à seleção. Ainda na galeria, nota-se a possibilidade de deslizar para o
lado a fim de conferir todas as fotos. Para cada imagem, nota-se a legenda acompanhada do crédito
do fotógrafo 3. Ao final do texto, o nome do autor aparece novamente, acompanhado de uma breve
caracterização do mesmo (“É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta
dos Fundos.”).

As instâncias enunciativas

Um locutor enunciador primeiro assume a responsabilidade enunciativa quando assume


o conteúdo proposicional de um enunciado (RABATEL, 2008, 2016). No caso das crônicas
jornalísticas, o cronista (L1/E1) é “um historiador, um intérprete que apresenta e recria um
acontecimento, alguém que narra e vive sob primado do cotidiano” (CAMPOS, 2011, p.88). Dessa
forma, além de narrar os fatos e acontecimentos, o cronista é também um crítico. Ele imprime nos
textos sua opinião e visão de mundo, apresentando à sociedade um posicionamento sobre determinada
temática.
Dos veículos de comunicação analisados, todas trazem, em seus textos, as assinaturas dos
cronistas: El País (Eliane Brum), Estadão (Luis Fernando Verissimo) e Folha de S. Paulo (Antonio
Prata e Gregório Duvivier), sendo os cronistas, nos casos analisados, os chamados locutores
enunciadores primeiros (L1/E1). Além disso, nota-se também a manifestação dos enunciadores
segundos (e2) através da não assunção da responsabilidade enunciativa em alguns momentos em que
272

os cronistas se afastam do dito e imputam a outro enunciador (e2) a responsabilidade pelo conteúdo
proposicional.

Marcas de enunciação do L1/E1

[1] Está em curso a maior intervenção do Estado na vida das nações e das pessoas desde a
Segunda Guerra Mundial, mas a velha briga entre dirigismo econômico e mercado persiste,
enquanto contam os mortos. O mundo que emergirá do choque que estamos sofrendo será
um mundo purgado pelo horror, e melhor, ou condenado pelo amoralismo para sempre.
(Crônica jornalística - Luis Fernando Verissimo para o Estadão)

No excerto [1], extraído da crônica jornalística de Luis Fernando Verissimo publicada no


jornal Estadão, constatamos a presença de algumas marcas linguísticas que demonstram o
engajamento do L1/E1 com o conteúdo proposicional, sendo essas destacadas em negrito. A primeira
categoria identificada trata-se dos dêiticos, que podem ser temporais (desde a; para sempre;
enquanto) ou especiais (na vida). Essas marcas utilizadas pelo cronista imprimem na voz dele no
momento em que situa o leitor em um tempo e um espaço de fala. Isto é, por meio desses termos, é
possível reconhecer o contexto em que se aplica o conteúdo proposicional. Outra categoria se refere
aos conectores (mas; e; ou), que trazem à tona, respectivamente, os sentidos de adversidade, adição
e alternância, demonstrando o engajamento do L1/E1 quanto à perspectiva a ser transmitida.
Ainda nesse excerto, notamos a categoria dos modalizadores, de modo que, com o uso de
adjetivos ou advérbios, o cronista demonstra sua percepção sobre um conteúdo citado. Por exemplo,
na expressão “a maior intervenção do Estado na vida das nações”, o uso do adjetivo “maior” aponta
a ideia de que, na opinião do L1/E1, dentre as intervenções do Estado, essa é a que possui mais
intensidade e impacto. O mesmo se aplica às demais marcas presentes nesse trecho, como velha,
purgado e condenado. Por fim, o excerto também conta com o verbo “estar” conjugado na primeira
pessoa do plural (estamos). Essa escolha lexical se classifica como um índice de pessoa e pode ser
compreendida como uma maneira de não só incluir o cronista na situação que ele narra, como também
exprimir sua voz e consequentemente seu engajamento com o conteúdo proposicional.
Nesse excerto retirado da crônica de Luis Fernando Verissimo, percebemos que o autor
apresenta um ponto de vista assertado, uma vez que o locutor é a origem da percepção, ocorrendo
debreagem enunciativa em grau máximo, porque as falas, os pensamentos e os juízos de valor se dão
de forma explícita.

[2] Quando a quarentena acabar eu não vou mais escrever essas crônicas preguiçosas que
repetem uma frase e só mudam o finalzinho, que nem música ruim da MPB. Quando a
quarentena acabar eu vou compor uma sinfonia, escrever um romance, correr uma maratona
273

e me formar em filosofia. Ao mesmo tempo. Durante uma suruba. Envolvendo girafas. Na


churrascaria rodízio. Na beira do caminho de Santiago. Sentido Sesc Belenzinho.
(Crônica jornalística - Antonio Prata para a Folha de S. Paulo)

No exemplo [2], extraído da crônica jornalística de Antonio Prata, também há a presença


de marcas linguísticas que evidenciam o engajamento do L1/E1 no conteúdo proposicional. O
primeiro ponto a ser ressaltado é que todo o texto é construído com situações hipotéticas que, para o
cronista, vão acontecer “quando a quarentena acabar”. Dessa forma, essa expressão se repete
inúmeras vezes ao longo da crônica, fazendo com o dêitico temporal “quando” fique em evidência.
Essa escolha lexical sustenta a intenção do autor, que é de levar o leitor a um contexto - de espaço e
tempo - em que a quarentena não existe mais. Ainda sobre esse aspecto, outros termos também foram
utilizados pelo L1/E1 a fim de transmitir essa ideia, como ao mesmo tempo; durante; na churrascaria
rodízio; na beira do caminho de Santiago; sentido Sesc Belenzinho.
Outra questão observada é que Antonio Prata traz para si a responsabilidade enunciativa
pelo conteúdo proposicional dito, especialmente, no momento em que escolhe utilizar o pronome
pessoal reto na primeira pessoa do singular (eu) e verbos conjugados também na primeira pessoa do
singular. Dessa forma, não restam a assunção da responsabilidade por parte do L1/E1. Ao mesmo
tempo, a inserção de conectores (que nem; e) trazem sentido ao texto. No primeiro caso, embora
utilizado de uma maneira coloquial, a expressão “que nem” transmite uma ideia de comparação,
semelhante ao conector “como”.
Quanto à modalidade, que imprime uma caracterização da situação narrada, constatamos
a presença das seguintes expressões: mais; só; preguiçosas e ruim, sendo as duas primeiras advérbios
de intensidade e as duas últimas adjetivos. Essas escolhas demonstram a percepção do autor, seja para
atribuir uma característica - a uma crônica ou a um estilo musical -, seja para descrever a intensidade
de uma determinada circunstância, como na expressão “só mudam o finalzinho”.
Semelhante ao exemplo anterior, identificamos que, pelo fato do locutor ser a origem da
percepção, com as falas, os pensamentos e os juízos de valor apresentados de forma explícita, também
se trata de um ponto de vista assertado.

[3] Vivemos dentro de um prédio construído por gente que não tem onde morar, e essa
conta não fecha. Não pode fechar. [...]A pandemia deixa claro que não estamos todos no
mesmo barco. Ou estamos, mas tem gente remando e tem gente tomando sol na proa [...].
(Crônica jornalística - Gregório Duvivier para a Folha de S. Paulo)

No caso da crônica jornalística escrita por Gregório Duvivier no jornal Folha de S. Paulo,
o excerto [3] também traz à tona marcas linguísticas que sinalizam a assunção do L1/E1 quanto ao
conteúdo proposicional. O cronista assume a responsabilidade enunciativa pelo dito já na minha
274

primeira quando decide utilizar o verbo “viver” conjugado na primeira pessoa do plural. Ou seja, a
expressão ”vivemos” demonstra que o L1/E1 se inclui na situação tratada, marca a pessoalidade do
texto e, mais que isso, traz para si a incumbência pelo que será dito na sequência. O mesmo fenômeno
é demonstrado pelo verbo “estamos”, que também aparece em outro momento do excerto.
Quanto ao processo de sinalizar, no tempo e no espaço, o contexto sobre o qual está sendo
falado, o cronista promove essa focalização no momento em que escolhe utilizar os dêiticos espaciais:
dentro de um prédio; onde; no mesmo barco e na proa. Esse mecanismo funciona como uma
ferramenta para aproximar o L1/E1 e o leitor da situação citada. A opinião é também marcada pelo
uso de modalizadores, como a expressão “claro”, um adjetivo utilizado pelo cronista para
caracterizar um dos efeitos provocados pela pandemia, que é o de deixar claro, ou melhor, comprovar
que “não estamos todos no mesmo barco”.
Há ainda a presença de conectores argumentativos que, além de conectar as partes do
texto, também promove sentido a partir da perspectiva que o L1/E1 pretende imprimir no conteúdo
proposicional: adição (e), alternância (ou) e adversidade (mas). Diante de todas essas marcas
linguísticas, as quais apresentam, de forma explícita, a percepção do autor, constatamos que o excerto
também traz à tona um ponto de vista assertado.

[4] Na guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos tornarmos
melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos. Esta é a guerra
permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos radicais expõem uma
nudez radical. Isolados, é também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar
não é a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem desfilar barrigas-
tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem
tônus que antes era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo
de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser. (Crônica
jornalística - Eliane Brum para o El País)

Eliane Brum, em sua crônica jornalística publicada no jornal El País e escolhida para esta
análise, também faz escolhas lexicais que demonstram o seu engajamento com o conteúdo
proposicional. No excerto [4], constatamos a presença, primeiramente, de dêiticos - espaciais e
temporais - que transmitem a ideia de, respectivamente, espaço e tempo dentro do contexto narrado.
Expressões como na guerra; atrás da sua porta; onde e hoje; já; antes; este sinalizam para o leitor
onde e quando a situação citada pelo L1/E1 se constrói, permitindo uma aproximação entre quem
enuncia e quem recepciona o dito.
Esse processo de aproximação também ocorre no momento em que L1/E1 apresenta
escolhas lexicais classificadas na categoria de índices de pessoas. Um exemplo são os pronomes
pessoais oblíquos na primeira pessoa do plural (nós), bem como os verbos conjugados também na
275

primeira pessoa do plural (temos; tornamos; somos; viramos; chamam). Esse mecanismo, ao passo
em que permite ao L1/E1 assumir a responsabilidade enunciativa pelo dito, também possibilita à
cronista a inclusão dos receptores no contexto citado.
Outro ponto analisado refere-se aos advérbios (melhores, piores) e adjetivos (radicais,
radical, permanente, isolados, flácida, desmusculada, mascarado) utilizado pela cronista a fim de
demonstrar, por meio dessas escolhas, a sua opinião acerca das mais diversas situações apontadas.
Por exemplo, ao falar que “nos tornamos melhores do que somos ou nos tornamos piores do que
somos”, Eliane Brum consegue expressar uma dicotomia existente no contexto da pandemia. Isto é,
há dois caminhos - um positivo e outro negativo - aos quais os seres humanos estão sendo expostos
para que façam sua escolha ao longo desse processo.
Essas marcas linguísticas demonstram que o excerto analisado exprime um ponto de vista
assertado, já que o posicionamento de L1/E1 aparece de maneira explícita.

Marcas de enunciação do e2

Assim como existem momentos em que o locutor enunciador primeiro se aproxima do


conteúdo proposicional a fim de assumir a responsabilidade pelo dito, existem também os casos em
que este procura se distanciar do conteúdo proposicional, imputando a outro a responsabilidade
enunciativa e assumindo apenas a função de locutor. Nesse sentido, quando L1/E1 não está na fonte
do dizer, os enunciadores segundos (e2) assumem a responsabilidade enunciativa, o que se configura
como um quadro de mediatividade.
Nas crônicas analisadas, esse fenômeno se manifestou algumas vezes, embora com menor
frequência, revelando, em alguns momentos, o distanciamento do L1/E1 quanto ao que estava sendo
enunciado e, portanto, transferindo-se a responsabilidade enunciativa para outras vozes. Isso também
ocorre quando o cronista deseja, por exemplo, trazer um argumento de autoridade aos fatos narrados,
a fim de garantir embasamento à construção argumentativa.
No caso das crônicas jornalísticas analisadas, foram encontrados trechos que revelaram a
voz dos enunciadores segundos. Seguem alguns deles:

[5] Oportunistas já se aproveitam da confusão da pandemia para lucrar e confirmar a pior


expectativa do que o capitalismo amoral é capaz, segundo a Naomi. (Crônica jornalística -
Luis Fernando Verissimo para o Estadão)

[6] Um estudo alemão afirma que a economia global será totalmente repensada até o fim do
ano. Um estudo espanhol afirma que não haverá mais economia global até o fim do ano. Os
imbecis do governo brasileiro não acreditam em estudo. (Crônica jornalística - Antonio
Prata para a Folha de S. Paulo)
276

[7] “A grande ficha”, diz a tira da Laerte, “em algum momento, ela vai cair”. (Crônica
jornalística - Gregório Duvivier para a Folha de S. Paulo)

[8] Desde o segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas
toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro. Eles dizem:
parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de
carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”. Greta
Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou repetidamente: “nossa casa está em chamas”.
Acordem.

O que há em comum nos excertos acima mencionados é a presença dos chamados verbos
“dicendi”. Eles têm a função de remeter ao discurso direto ou indireto de outra pessoa. No caso das
crônicas, esse mecanismo foi utilizado pelos autores para trazer ao texto outras vozes e retirar do
produtor do texto, em dado momento, a responsabilidade enunciativa. Nesses casos, o autor se afasta
do conteúdo proposicional e imputa a outro indivíduo ou instituição a responsabilidade pelo dito.
Conforme exemplificado em negrito nos excertos [5], [6], [7] e [8], os verbos utilizados
pelos jornais que remeteram à fala foram: afirma; (não) acreditam; diz; gritar; dizem; avisou. A
função desses verbos é deixar claro que o conteúdo proposicional exposto se refere a outras pessoas.
Além disso, por meio dos excertos escolhidos para análise, percebemos que os enunciadores
segundos, sinalizados nos exemplos com um sublinhado, que aparecem são: Naomi; um estudo
alemão; um estudo espanhol; os imbecis do governo brasileiro; Laerte; adolescentes; Greta
Thumberg.
Em alguns casos, a referência a enunciadores segundos pode representar a tentativa do
produtor do texto de se amparar em um chamado “argumento de autoridade” como um mecanismo
de sua própria argumentação. Isso pode ser visualizado, por exemplo, através do uso das conjunções
subordinativas adverbiais conformativas. Nas crônicas analisadas, constatamos, no excerto [5],
sinalizada em itálico, a presença da conjunção segundo. Essa é uma estratégia bastante utilizada no
âmbito jornalístico, visto que comprova que as informações foram checadas e torna público as fontes
das quais foram extraídos os dados apresentados. Além disso, o uso das aspas, as quais foram
identificadas nos excertos [7] e [8], também é uma maneira de inserir o discurso de outra pessoa no
corpo do texto, visto ser possível identificar os conteúdos que foram citados por outros enunciadores
e que estão transcritos de maneira direta nas reportagens./ Dessa maneira, quando o locutor
enunciador não assume a responsabilidade enunciativa, ocorre um quadro de mediatiavidade, nos
termos de Guentchéva (2011).

CONCLUSÕES
Neste trabalho, discutimos como a responsabilidade enunciativa e a visada argumentativa,
enquanto dispositivos enunciativos, são marcados no gênero discursivo textual crônica jornalística.
277

Para tanto, descrevemos as instâncias enunciativas presentes nos textos analisados, constituídos por
quatro crônicas de jornais online (El País, Estadão e Folha de S. Paulo), e pudemos analisar o
engajamento do locutor enunciador primeiro (L1/EI), nesse caso o cronista que assina a matéria, bem
como a imputação do dizer aos enunciadores segundos (e2), gerando, dessa maneira, um quadro
mediativo, conforme Guentchéva (1994, 2011).
Com base na Análise Textual dos Discursos (ADAM, 2011), foi possível demonstrar o
plano de texto de cada crônica jornalística analisada, além da identificação das sequências textuais
predominantes, como a narrativa, descritiva e argumentativa, as quais objetivaram a orientação
argumentativa pretendida pelos enunciadores.
Por fim, percebemos que a investigação em texto jornalístico contribui para a
compreensão desse domínio discursivo e que a assunção da responsabilidade enunciativa é
estruturada por meio de argumentos que auxiliam na produção opinativa dos meios de comunicação,
a exemplo dos jornais online.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução: Maria das
Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos
métodos. Tradução: Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto
Editora, 1994. (Coleção Ciências da Educação).

BRUM, Eliane. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-25/o-virus-somos-nos-ou-uma-parte-de-nos.html. Acesso em: 29
set. 2020.

CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional das crônicas da Revista do Brasil. São
Paulo: Olho D'água, 2011, p.88.

CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Tradução Magda
Lopes. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

DUVIVIER, Gregório. A grande ficha, em algum momento, vai cair. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2020/03/a-grande-ficha-em-algum-momento-vai-
cair.shtml. Acesso em: 29 set. 2020.

GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français. Langue
Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-
8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2015.

GUENTCHÉVA, Zlatka. L’ opération de prise em charge et la notion de médiativité. In: DENDALE, Patrick;
COLTIER, Danielle. La prise en charge énonciative: éthudes théoriques e empiriques. Bruxelles: De Boeck/
Duculot, 2011, p. 117-142.

MELO, José Marques de. Prefácio. In: PEREIRA, Wellington. Crônica: a arte do útil e do fútil: ensaio sobre
crônica no jornalismo impresso. Salvador, BA: Calandra, 2004. p. 7-10.
278

MENEZES, Rogério. Relações entre a crônica, o romance e o jornalismo. In: Jornalismo e Literatura: a
sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.

PRATA, Antonio. Quando a quarentena acabar. 2020. Disponível em:


https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2020/05/quando-a-quarentena-acabar.shtml. Acesso em:
29 set. 2020.

RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa – pontos de
vista e lógica da narração- teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi, João
Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.

SILVA, Daniela da; LÜERSEN, Angélica. A construção da identidade nacional das crônicas da Revista
do Brasil. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUL, 27°, 2016, Curitiba.

VERISSIMO, Luis Fernando. Pós-choque. 2020. Disponível em:


https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,pos-choque,70003256960. Acesso em: 29 set. 2020.
279

RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO/TEXTUAL


SENTENÇA JUDICIAL

Madson Bruno Soares Estevam93


Doutorando em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Maria das Graças Soares Rodrigues94
Doutora em Linguística, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

RESUMO
A cada dia, as interfaces entre os estudos da linguagem e os estudos do Direito avançam para
caminhos de convergência, uma vez que vários linguistas procuram analisar como a linguagem é
utilizada pelos operadores do direito para relacionar fatos, julgar ações e propor soluções. Além disso,
como o direito se constitui, sobremodo, por meio da linguagem, os estudos linguísticos também fazem
mais conhecidas as práticas utilizadas pelos locutores dessa esfera de comunicação, bem como
colaboram com o entendimento dos textos pela sociedade, porque podem atuar analisando as
construções complexas, geralmente, contidas nos gêneros jurídicos. Inserido nesse contexto de
produção e análise é que se encontra nosso trabalho. Nele, analisamos como ocorre o fenômeno da
responsabilidade enunciativa em uma sentença judicial, além de verificar como ocorre a
mediatividade nesse gênero discursivo textual. O corpus usado para demonstrar como ocorre esse
fenômeno é composto por uma sentença judicial sobre ameaça a policiais. A sentença encontra-se
disponível de forma pública no portal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP. A
corrente linguística que foi empregada para análise dos dados é a Análise Textual do Discurso. Nela,
proposta por Adam (2011), é considerado como objeto de análise o texto, o que está posto e os fatores
que ali se apresentam. O texto e o discurso são vistos sob um novo paradigma teórico e, assim, a
linguística textual é vista como o ponto mais amplo situado na análise de discurso. A importância
desta pesquisa reside, entre outros, no fato de ser necessário utilizar mecanismos de análise linguística
que levem em consideração o uso real que os falantes fazem, em contextos efetivos de uso da língua,
bem como demonstra como um fenômeno linguístico acontece em um gênero do âmbito jurídico, o
que faz com que as relações entre o direito e a linguagem se desenvolvam. Metodologicamente, o
trabalho possui viés qualitativo, e as análises são realizadas por meio do método interpretativista. O
resultado demonstra que a locutora/enunciadora primeira utiliza as demais vozes para embasar sua
decisão acerca da lide. Desse modo, ela tende a assumir o grau da responsabilidade enunciativa pelo
discurso enunciado.
Palavras-chave: Análise textual dos discursos. Responsabilidade enunciativa. Sentença judicial.

INTRODUÇÃO

Nos estudos linguísticos do texto, um tema que vem sendo debatido é o da


responsabilidade enunciativa, porquanto tal fenômeno recobre as vozes presentes no texto, sendo,
desse modo, possível, ao analista, perceber se há ou não a assunção pelo conteúdo proposicional do
dizer.

93
E-mail: bruno.madson2011@gmail.com;
94
E-mail: gracarodrigues@gmail.com.
280

A partir dessa marcação da (não) assunção, é possível inferir, intermediado pelas


marcas linguísticas textuais, o motivo pelo qual houve ou um maior engajamento pelo locutor
enunciador primeiro, L1/E1, aquele que se configura como a instância física que afirma o conteúdo,
bem como se responsabiliza pelo ponto de vista empreendido, ou um menor engajamento, recorrendo,
assim, aos quadros mediadores, momentos nos quais, na enunciação, vozes alheias a de L1/E1 são
trazidas ao texto, a fim de corroborar com sua a orientação argumentativa, com seus objetivos visados
naquele momento enunciativo.
Inserido nesta temática de análise da responsabilidade enunciativa é que se encontra
nosso trabalho. Nele, analisamos uma sentença judicial, presente no banco de dados do Tribunal de
Justiça de São Paulo, TJSP, a fim de perceber o movimento enunciativo, o jogo de vozes, envolvido
no fenômeno da responsabilidade enunciativa. Assim, estamos evocando o conhecimento da
Linguística para estudar os preceitos do Direito.
Nessa direção, Calmon de Passos afirma que:

[...] o Direito, mais que qualquer outro saber, é servo da linguagem. Como Direito posto é
linguagem, sendo em nossos dias de evidência palmar constituir-se de quanto editado e
comunicado, mediante a linguagem escrita, por quem com poderes para tanto. Também
linguagem é o Direito aplicado ao caso concreto, sob a forma de decisão judicial ou
administrativa. Dissociar o Direito da Linguagem será privá-lo de sua própria existência,
porque, ontologicamente, ele é linguagem e somente linguagem. (CALMON DE PASSOS
2001, p. 63-64).

Com a citação, podemos enxergar que é muito salutar essa união, de forma
interdisciplinar, entre os campos científicos, uma vez que o Direito fez faz a partir do uso da
linguagem e, quando a utilizamos para estudar os ordenamentos jurídicos e realizações do Direito,
enxergamos dados que, em somente uma análise linguística restrita, talvez não fosse possível.
A teoria empregada para análise dos dados é a Análise Textual dos Discursos – ATD –
quadro teórico formulado por Adam (2011), no qual o texto e o discurso são utilizados em uma mesma
teoria, a fim de dar conta da análise de um objeto extremamente multifacetado, o texto. Assim, é
fomentada uma teoria de conjunto para perceber as nuances e os usos do texto, esse produzidos de
forma real, por falantes em determinada situação sociocomunicativa.
A justificativa reside na importância de tecermos comentários acerca do gênero sentença
judicial, uma vez que ele é basilar na estrutura do nosso ordenamento jurídico. Com a sentença, o juiz
pode decidir o desenrolar da vida das pessoas envolvidas na lide. Nesse sentido, esse gênero
discursivo / textual é de grande relevância e, com os estudos da RE na sentença, podemos analisar
como se constrói o jogo argumentativo envolvido na enunciação do locutor enunciador primeiro, a
saber, o juiz.
281

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Análise Textual dos Discursos e a Responsabilidade enunciativa

A Análise Textual dos Discursos é um pressuposto teórico e descritivo proposto por


Adam (2011) que repensa os lugares teóricos ocupados pela Linguística Textual e pela Análise de
Discurso. Desse modo, o autor propõe uma separação e uma complementariedade de tais áreas, a fim
de dar conta de um objeto de análise extremamente multifacetado, o texto. Assim, para examiná-lo,
torna-se necessária uma teoria de conjunto.
Para isso, Adam (2011, p. 61) apresenta o esquema 4. Vejamos.

Figura 01 - Esquema 4, Adam (2011)

Fonte: Adam (2011, p. 61).

Por meio desse esquema, podemos ver que os planos ou níveis do discurso são: 1 – ação
de linguagem (visada, objetivos); 2 – interação social; 3 – interdiscurso (formação sociodiscursiva,
socioletos, intertextos e gêneros). Já nos planos ou níveis do texto, temos: 4 – textura (proposições
enunciadas e períodos); 5– estrutura composicional (sequências e planos de textos; 6 – semântica
(representação discursiva); 7 – enunciação (responsabilidade enunciativa e coesão polifônica) e 8–
atos de discurso (ilocucionários e orientação argumentativa).
Ao averiguarmos o nível 7, enxergamos a presença da coesão polifônica e da
responsabilidade enunciativa, chamada adiante de RE. Ela está ligada ao jogo de vozes presente nos
enunciados, pois, consoante Adam (2011), por meio de algumas marcas textuais, o locutor pode se
engajar pelo dito, assumindo o conteúdo proposicional do dizer ou pode utilizar outros meios para
mostrar menor engajamento, recorrendo a quadros mediativos.
Passeggi et al. (2010), adaptando os estudos de Adam (2011), expandem as categorias
abordadas pelo autor e propõem um quadro adaptado das categorias de marcação da responsabilidade
enunciativa, a saber:
282

Quadro 01 - Marcas linguísticas da responsabilidade enunciativa

Ordem Categorias Marcas linguísticas


1 Índices de pessoas meu, teu/vosso, seu
2 Dêiticos espaciais Advérbios (ontem, amanhã, aqui, hoje)
e temporais Grupos nominais (esta manhã abra esta porta)
Grupos preposicionais (em dez minutos)
Alguns determinantes (minha chegada)
3 Tempos verbais Oposição entre presente e o futuro do pretérito
Oposição entre o presente e o par pretérito imperfeito e pretérito perfeito
4 Modalidades Modalidades sintático-semânticas maiores:
Téticas (asserção e negação)
Hipotéticas (real)
Ficcional e
Hipertéticas (exclamação)
Modalidades objetivas
Modalidades intersubjetivas
Modalidades subjetivas
Verbos e advérbios de opinião
Lexemas afetivos, avaliativos e axiológicos
5 Diferentes tipos de Discurso direto (DD)
representação da Discurso direto livre (DDL)
fala Discurso indireto (DI)
Discurso narrativizado (DN)
Discurso indireto livre (DIL)
6 Indicações de Marcadores como segundo, de acordo com e para
quadros Modalização por tempo verbal como o futuro do pretérito
mediadores Escolha de um verbo de atribuição de fala como afirmam, parece
Reformulações do tipo é, de fato, na verdade, e mesmo em todo caso
Oposição de tipo alguns pensam (ou dizem) que X, nós pensamos
(dizemos) que Y etc.
7 Fenômenos de Não coincidência do discurso consigo mesmo (como se diz, para
modalização empregar um termo filosófico)
autonímica Não coincidência entre as palavras e as coisas (por assim dizer, melhor
dizendo, não encontro a palavra)
Não coincidência das palavras com elas mesmas (no sentido etimológico,
os dois sentidos do termo)
Não coincidência interlocutiva (Como é a expressão? Como você
costuma dizer)
8 Indicações de um Focalização perceptiva (ver, ouvir, sentir, tocar, experimentar)
suporte de Focalização cognitiva (saber ou pensamento representado)
percepções e de
pensamentos
relatados
Fonte: Passeggi et al., 2010, p. 300-301).

Com o quadro, vemos que variadas categorias linguísticas e discursivas podem ser
utilizadas para que os analistas estudem tal fenômeno. Em nossa análise, a partir da leitura da
sentença, analisamos os verbetes, as construções linguísticas e as marcas, a fim de perceber o
posicionamento enunciativo da L1/E1 em relação ao processo de (não) assunção.

Gênero discursivo/textual sentença judicial


283

Os gêneros discursivos/textuais são construções sociais e históricas. Sem eles, não pode
haver comunicação humana. Nessa direção, os interlocutores, em um contexto situacional específico,
datado e com viés histórico, imerso a processos ideológicos, produzem um enunciado. Esse, é dito
sob determinadas condições, tem um valor interacional e se realiza por meio de gêneros.
Nesse contexto, Bakhtin (2016, p. 12) afirma: “evidentemente, cada enunciado particular
é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.”. Com tal definição, podemos enxergar que
os gêneros são tipos de enunciados produzidos em determinados campos de uso da língua. Assim, os
gêneros podem perpassar diversas áreas, como a área jornalística, médica, jurídica entre outras.
Marcuschi (2008) apresenta alguns desses campos, os quais o autor denomina como
domínios discursivos. Vejamos:

Quadro 02 - Gêneros discursivos / textuais por domínios discursivos e modalidades


Modalidades de uso da língua
Domínios
discursivos Escrita Oralidade

Instrucional Organograma; relatórios científicos; Aulas pelo rádio; aconselhamento;


dissertações; resenhas exames orais; seminários temáticos
Jornalístico Agenda de viagem; boletim de tempo; Boletim do tempo; reportagens ao vivo;
resumo de novelas; cartas do leitor comentários; notícias da tv
Religioso Orações; rezas; homilias; cânticos Lamentações; rezas; cantos medicinais;
religiosos; cantorias
Saúde Receitas culinárias; receitas caseiras; Consulta; entrevista médica; conselho
parecer médico; receita médica médico
Comercial Lista de espera; balanço comercial; Publicidade de feira; publicidade de TV;
atestado de qualidade; nota de compra refrão de feira
Industrial Instruções de montagem; descrição de Ordens
obras; código de obras; avisos
Jurídico Advertência; certidão de óbito; leis; Tomada de depoimento; arguição;
regimentos declarações; exortações
Publicitário Propagandas; publicidades; anúncios; Publicidade na TV;
cartazes
Lazer Horóscopo; histórias em quadrinhos; Fofoca; piadas; advinhas; jogos teatrais
palavras cruzadas; jogos
Interpessoal Papel timbrado; autobiografia; endereço Recados; convites; bate-papo virtual;
eletrônico; aviso fúnebre provérbios
Militar Ordem do dia; roteiro de cerimônia Ordem do dia
oficial; lista de tarefas
Ficcional Roteiro de filme; mito; peça de teatro; Encenações; poemas; declamações;
lenda lendas.
Fonte: Marcuschi (2008, p. 194).

Ao vermos o quadro, podemos enxergar que no domínio jurídico encontram-se gêneros


como advertência, certidão de óbito, leis, regimentos, tomada de depoimento, arguição, declarações,
exortações. Além deles, certamente, um gênero muitíssimo importante é a sentença judicial.
284

De Plácido e Silva (1993, p. 201) estudam tal gênero discursivo/textual. Em suas análises,
os autores a definem como: “sentença designa a decisão, a resolução, ou a solução dada por uma
autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição”.
A estrutura desse gênero advém do Código de Processo Penal, artigo 381. O plano de
texto do gênero discursivo / textual deve ser composto, de acordo com o ordenamento jurídico,
(BRASIL, 2018), por:

Art. 381. A sentença conterá:


I - os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-
las;
II - a exposição sucinta da acusação e da defesa;
III - a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;
IV - a indicação dos artigos de lei aplicados;
V - o dispositivo;
VI - a data e a assinatura do juiz.

Assim, vemos que o gênero possui uma estrutura fixa e é de extrema relevância social,
uma vez que, por meio dela, uma lide é resolvida. Com isso, visualizamos que é um gênero que evoca
a argumentação, a fim de satisfazer as partes, tendo uma articulação de dizeres por parte do juiz, o
responsável por proferir a decisão.

METODOLOGIA

Nossa pesquisa segue o paradigma interpretativista, adotando, para isso, um olhar


criterioso do analista acerca do objeto de discurso analisado. Com isso, seguimos com uma análise
qualitativa, uma vez não tínhamos a intenção de quantificar fenômenos, mas sim de percebê-los em
suas nuances.
Assim, para caracterizar tal tipo de pesquisa, recorremos à Michel (2009, p. 36), que
afirma: “A pesquisa qualitativa considera que há uma relação dinâmica, particular, contextual e
temporal entre pesquisador e o objeto de estudo. Por isso, carece de uma interpretação dos fenômenos
à luz do contexto, do tempo e dos fatos”. Desse modo, buscamos analisar tais relações, a fim de
interpretar o fenômeno estudado, de acordo com o subsídio teórico/metodológico advindo da teoria
de base, a ATD.
Concernente ao método de análise utilizamos o dedutivo. Partimos de toda a base teórica
e metodológica da ATD (ADAM, 2011), bem como o modo com o qual o grupo Análise Textual dos
Discursos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, (ATD – UFRN), tem trabalhado em
relação aos estudos sobre a RE. Desse modo, empregamos o olhar criterioso às marcas linguísticas
presentes na sentença para perceber as categorias abordadas por Passeggi et al. (2010, p. 300-301) e
perceber o processo enunciativo da (não) assunção da RE.
285

O corpus é composto por uma sentença judicial do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo – TJSP. A escolha do corpus foi relativa à facilidade de acesso, uma vez que tal sentença
judicial foi publicada eletronicamente no sítio do Tribunal. Trata-se, assim, da sentença resultante do
processo de número 1502929-20.2018.8.26.0577, que tem como classe - Assunto Inquérito Policial
– Ameaça.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ressaltamos, em princípio, que a sentença completa está disponível no anexo deste


trabalho. Inicialmente, no corpo do texto da sentença, já temos a marcação do locutor enunciador
primeiro, trata-se da juíza de Direito, a qual coordenou as ações do caso.
Vejamos o texto da sentença e as marcações da RE:

Processo nº: 1502929-20.2018.8.26.0577


Classe - Assunto Inquérito Policial - Ameaça
Autor: Justiça Pública
Indiciado: XXXXX - XXXXX
Juiz(a) de Direito: Dr(a). XXXXXXXXXXXXX

Trata o presente feito de fatos tipificados no artigo 147, do Código Penal, bem como no
artigo 21, do Decreto-lei 3.688/1941, onde figuram como vítimas XXXXXXX XXXXXXX
XXXXXX e XXXXX XXXXX XX XXX e como investigado XXXXX XXXXXXXXX XX
XXXXX, cuja autoria veio a ser conhecida em 20/03/2018, tendo as ofendidas comparecido
em Juízo e se retratado das representações anteriormente oferecidas (fls.32 e 39).

No tocante ao crime de ameaça, diante das retratações das vítimas, ocorreu a extinção da
punibilidade, que, com fulcro no artigo 107, inciso IV, do Código Penal, combinado com o
artigo 38, do Código de Processo Penal, fica declarada.

Relativamente à contravenção de vias de fato, o I. representante do Ministério Público


aponta a falta de justa causa para deflagrar a ação penal, porque as versões das vítimas
restaram isoladas, uma vez que o investigado não foi ouvido e não há testemunhas do
ocorrido.

Isso posto, quanto ao delito previsto no artigo 147, do Código Penal, declaro extinta a
punibilidade e determino o arquivamento dos presentes autos, com fundamento, ainda, no
artigo 395, inciso II, do Código de Processo Penal.

No tocante à contravenção penal capitulada no artigo 21, do Decreto-lei 3.688/1941, nos


termos do parecer do Ministério Público, titular da ação penal, determino o arquivamento
dos autos, observado, como de praxe, o disposto no artigo 18, do Código de Processo Penal.
Cientifique-se o Ministério Público e, oportunamente, arquivem-se os autos, com as cautelas
de praxe.

P.R.I.C.
São José dos Campos, 25 de setembro de 2018.

No primeiro parágrafo, temos a contextualização do caso. A L1/E1 apresenta o caso, os


ordenamentos jurídicos envolvidos e o nome das vítimas e do investigado, os quais retiramos do texto,
por não enxergar a necessidade da presença. Não um forte engajamento enunciativo, mas apenas uma
descrição.
286

No segundo parágrafo, enxergamos um movimento enunciativo de assunção da RE que


acontece de forma embasada, fazendo emprego de vozes do arcabouço jurídico, a saber: “com fulcro
no artigo 107, inciso IV, do Código Penal, combinado com o artigo 38, do Código de Processo Penal”.
Em “fica declarada”, vemos um alto índice de engajamento na RE.
No terceiro parágrafo, vemos o uso de um quadro mediativo, ou seja, a L1/E1 concede o
engajamento enunciativo a uma outra voz, trazida ao texto por meio do seu dizer. Trata-se de um
representante do Ministério Público: “I. representante do Ministério Público aponta a falta de justa
causa para deflagrar a ação penal, porque as versões das vítimas restaram isoladas, uma vez que o
investigado não foi ouvido e não há testemunhas do ocorrido”. Com isso, vemos que há um apoio da
voz da L1/E1 ao dizer do MP.
No quarto parágrafo, vemos um auto índice no engajamento da RE, no momento em que
a L1/E1 se utiliza do verbo de opinião “declaro”. Nesse dizer, podemos enxergar um ato
ilocucionário, uma vez que a voz da L1/E1 faz com que ocorra uma ação social, uma resolução da
lide: “declaro extinta”; além disso, vemos que a decisão se embasa em outra voz, a do Código de
Processo Penal: “com fundamento, ainda, no artigo 395, inciso II, do Código de Processo Penal”
No quinto parágrafo, enxergamos também o uso de outro verbo de opinião. Trata-se do
“determino”, o qual é empregado para dar a última palavra sobre o caso: “determino o arquivamento
dos autos, observado, como de praxe, o disposto no artigo 18, do Código de Processo Penal”. É
interessante perceber que, mais uma vez, a L1/E1 utiliza-se das vozes do ordenamento jurídico para
embasar sua decisão: “artigo 21, do Decreto-lei 3.688/1941” e “artigo 18, do Código de Processo
Penal”.
Por fim, a L1/E1 emprega o termo PRIC. Por meio da análise da sigla, podemos dizer que
se trata de um termo jurídico conhecido como P- PUBLIQUE-SE! / R- REGISTRE-SE! / I-
INTIMEM-SE! / C- CUMPRA-SE! Assim, enxergamos que o grau da RE é assumido pela instância
enunciativa, porquanto ela usa a sigla para mostrar a sua decisão baseada em leis e normas. Ademais,
existe a presença de dêitico temporal, a data de 25 de setembro de 2018, e de dêitico espacial, a cidade
de expedição, São José dos Campos.
Assim, em relação às marcas linguísticas, podemos visualizá-las de forma classificada de
acordo com Passeggi et al. (2010), por intermédio do quadro a seguir.

Tabela 2 – Marcas linguísticas da responsabilidade enunciativa na sentença


Categorias segundo Passeggi et al. (2010) / Marcas linguísticas
Adam (2011)
Dêiticos “São José dos Campos, 25 de setembro de
2018”
Modalidades – Lexemas avaliativos “oportunamente”
287

Modalidades – Verbos de opinião “declaro”; “determino”; “determino”;


“publique-se”; “registre-se”; “intimem-se” ;
“cumpra-se”
Indicação de quadros mediadores “o I. representante do Ministério Público
aponta”
Fonte: o autor.

CONCLUSÃO
Por meio da marcação da RE, vemos que a L1/E1 tende a assumir o conteúdo
proposicional do dizer, utilizando, para isso, a categoria das modalidades, com o uso de lexemas
avaliativos, verbos de opinião e os quadros mediadores, com o uso da voz do representante do
Ministério Público.
Com isso, vemos que, no gênero discursivo/textual sentença judicial, o qual segue uma
estrutura composicional rígida, evocada pelo ordenamento jurídico vigente e faz parte do domínio
jurídico, o L1/E1 tende a realizar a assunção da RE, porquanto é necessário um engajamento
enunciativo, o qual, com valor argumentativo, faz com que haja a resolução de um problema de
âmbito social.
É interessante perceber ainda que toda a assunção se dá em concordância com alguns
dispositivos jurídicos, como leis e normas. Assim, vemos o caráter de consonância entre a voz da
L1/E1 e dos ordenamentos que segue, fato que pode ser visto em trabalhos futuros. Além dessa
temática, também é possível enxergar temas como o jogo das vozes, por meio da coesão polifônica,
os atos ilocucionários, o plano de texto dos gêneros, as sequências entre outros.

REFERÊNCIAS

ADAM, J-M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. 2.ed. rev. aum. São
Paulo: Cortez, 2011.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-


Lei/Del3689.htm. Acesso em 01 out. 2018.

CALMON DE PASSOS, J. J. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de


processo, v. 102, São Paulo, 2001.

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. v.1. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1993.

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.

MICHEL, Maria Helena. Metodologia e pesquisa científica em ciências sociais. 2. Ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
288

PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual dos
sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q. (Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 262-312.

TJSP. Consulta processual. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/ Acesso em 26 mar. 2020.


289

ANEXO
290
291

A (NÃO) ASSUNÇÃO DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NOS GÊNEROS


DISCURSIVOS DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA E SENTENÇA CONDENATÓRIA

Valério Magnus de Oliveira95


Maria das Graças Soares Rodrigues96

RESUMO

Este trabalho tem por escopo a função de estudar a responsabilidade enunciativa no depoimento de testemunha
e na sentença condenatória judicial, uma vez que nos interessa saber se, quando o locutor enunciador primeiro
assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional do seu dizer no depoimento de testemunha,
essa assunção impacta na decisão do juiz, que é o locutor enunciador primeiro da sentença condenatória. Para
responder a essa indagação, a investigação focaliza a descrição, análise e interpretação das instâncias
enunciativas (locutor e enunciador), das posturas enunciativas, pontos de vista e o quadro de mediatividade.
Por essa razão, se faz mister a correlação entre os dois gêneros supracitados, para que se compreenda a relação
entre eles. A relevância desse fenômeno é tamanha que ele permite ao interlocutor compreender se o locutor
e/ou enunciador é/são responsável(eis) ou não pelo conteúdo proposicional do enunciado veiculado. Para o
estudo, seguimos Adam (2011), Guentchéva (1994, 2011), Rabatel (2009, 2016) e Rodrigues e Passeggi
(2016). No que concerne aos procedimentos metodológicos, tomamos como fundamento uma abordagem
qualitativa, inerpretativista de pesquisa, baseada no método indutivo, haja vista partirmos dos dados
observados no gênero sentença judicial condenatória, enquanto marca de (não) assunção da responsabilidade
enunciativa, bem como em depoimentos de testemunha. A construção do corpus da pesquisa se deu a partir da
investigação virtual ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (http:/www.tjrn.jus.br), visando a
obtenção de sentenças penais condenatórias. Nesse sentido, foram consideradas sentenças disponibilizadas
para consulta pública, por meio do referido site. Esse parâmetro resultou no quantitativo de 02 (duas) sentenças
penais condenatórias e seus respectivos depoimentos testemunhais, prolatadas por diferentes juízes,
protocoladas na Comarca de Natal, no estado do Rio Grande do Norte, ambas relativas ao ano de 2018. Os
documentos consultados versam sobre matéria de Direito Processual Penal. Os resultados apontam que o
locutor enunciador primeiro, nesse caso, o juiz da sentença condenatória judicial, assume o dizer a partir de
pontos de vista assertado, representado e narrado em consonância com o depoimento da testemunha, que
colabora para a culpabilidade do réu.

Palavras-chave: ponto de vista. responsabilidade enunciativa. sentença condenatória judicial.

INTRODUÇÃO

O fenômeno da responsabilidade enunciativa no Brasil vem se tornado cada vez mais


relevante, de modo que, enfatizamos a importância dos estudos realizados pelo nosso grupo de
pesquisa em Análise Textual dos Discursos, bem como outros estudos realizados por universidades
brasileiras, que merecem destaques como artigos em periódicos, capítulos de livros, livros,
dissertações e teses. As pesquisas em comento apresentam a descrição, análise e interpretação dos
dispositivos enunciativos concernentes à responsabilidade enunciativa e ao ponto de vista.

95
UFRN / Bolsista PIBIC CNPq (IC) / vmo.ufrn.letrasesp@gmail.com
96
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
292

A responsabilidade enunciativa (doravante RE) constitui-se como uma das principais


noções e categorias da Análise Textual dos Discursos (ATD). Situa-se na dimensão enunciativa e
refere-se ao enunciado elementar do texto que expressa um ponto de vista (ADAM, 2011).
Rodrigues e Passeggi (2016, p. 260) elucidam que “tratar da responsabilidade
enunciativa, em uma perspectiva mais clássica, implica dois aspectos fundamentais: ou estamos
assumindo a responsabilidade pelo dizer (Rabatel, 2008) ou estamos diante de um quadro mediativo
(GUENTCHÉVA, 2011) [...]”.
Rabatel (2009, p. 71) explicita que “todo enunciado pressupõe uma iminência que se
responsabiliza pelo que é dito, seguindo os quadros de referência, o dictum, o sintagma, o conteúdo
proposicional, a predicação, conforme o esquema minimal da enunciação ‘EU DIGO’ (‘o que é
dito’)”. Aduz ainda que os diferentes modos de marcar um ponto de vista (PDV) são verificados por
meio das relações ocorridas entre locutor e enunciador. Rabatel (2016, p. 165) e que responsabilidade
enunciativa pode ser percebida através de três modalidades de ponto de vista: PDV representado,
PDV narrado e PDV assertado.
No que concerne a mediatividade, Guentchéva (2011) preconiza como a expressão da não
responsabilidade do conteúdo proposto a partir de um enunciado por um enunciador. Destarte, quando
o locutor enunciador não assume a responsabilidade enunciativa, estamos diante de um quadro
mediativo. Essa escolha do locutor enunciador é marcada na língua. Em algumas línguas, como a
búlgara, a turca e algumas línguas indígenas brasileiras, há um morfema na forma verbal que tem a
função de deixar claro para o interlocutor (leitor ou ouvinte) se ele assume ou não o conteúdo
proposicional. De acordo com Guentchéva (1994, 2011), a noção de assunção da responsabilidade
enunciativa se vê aplicada a fenômenos de natureza diversa e em sistemas gramaticais particulares.
Estudos centrados na interface linguagem e direito tem se tornado cada vez mais
evidentes, motivados pelas finalidades que o discurso jurídico desempenha em sociedade, de modo
que investigar a relação entre a assunção da responsabilidade enunciativa no depoimento de
testemunha e a sentença condenatória judicial contribui sobremaneira para a compreensão dessa
interface. Nessa perspectiva, interessa-nos analisar e comparar a decisão do juiz com a assunção da
responsabilidade enunciativa em depoimentos de testemunhas, a partir da identificação das instâncias
enunciativas (locutor e enunciador), das posturas enunciativas e pontos de vistas, bem como o quadro
de mediatividade.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Nossa investigação toma como fundamento uma abordagem qualitativa, inerpretativista


de pesquisa, baseada no método indutivo, haja vista partirmos dos dados observados no gênero
293

sentença judicial condenatória, enquanto marca de (não) assunção da RE, bem como em depoimentos.
Para tanto, delimitamos o tempo e espaço da pesquisa, dos objetos de estudo, a revisão da literatura
e a coleta de dados.
A construção do corpus da pesquisa se deu a partir da investigação virtual ao site do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (http:/www.tjrn.jus.br), visando a obtenção de sentenças
penais condenatórias. Nesse sentido, foram consideradas sentenças disponibilizadas para consulta
pública, por meio do referido site. Esse parâmetro resultou no quantitativo de 02 (duas) sentenças
penais condenatórias e seus respectivos depoimentos testemunhais, prolatadas por diferentes juízes,
protocoladas na Comarca de Natal, no estado do Rio Grande do Norte, ambas relativas ao ano de
2018. Os documentos consultados versam sobre matéria de Direito Processual Penal.
Nesse sentido, o nosso foco de investigação diz respeito à relação entre a sentença
condenatória judicial e o depoimento de testemunha, conforme esquema a seguir:

Esquema 1 – Objeto de estudo da pesquisa

SENTENÇA
CONDENATÓRIA
JUDICIAL

DEPOIMENTO DE
SENTENÇA PENAL
TESTEMUNHA

Fonte: elaboração própria.

As sentenças coletadas dizem respeito à prática do crime de Roubo Majorado, previsto


no art. 157, § 2º do Código Penal. É importante destacarmos que o documento analisado é de domínio
público, mas, levando-se em consideração o disposto no artigo 5º, X, da CF, omitimos os nomes das
partes, os números dos processos, os nomes dos juízes e as localizações. Nesse sentido, o nosso foco
de investigação diz respeito à relação entre a sentença condenatória judicial e o depoimento de
testemunha.
O roubo, crime complexo previsto no art. 157 do Código Penal, não raramente é
enquadrado como majorado, isto é, com a incidência de uma causa de aumento de pena. Na prática,
a imputação da prática de um crime de roubo quase sempre tem as majorantes relativas ao emprego
de arma e/ou ao concurso de agentes. Ainda, o art. 157, § 2º, do Código Penal, dispõe que a pena
será aumentada de um terço até metade nas hipóteses descritas nesse parágrafo.
294

Realizada a coleta dos dados, fez-se necessária a revisão bibliográfica dos pressupostos
teóricos que embasaram o fenômeno da responsabilidade enunciativa, partindo da análise textual dos
discursos e contemplando, na sequência, a linguística enunciativa, a teoria dos pontos de vista e o
quadro mediativo, além da consulta a artigos científicos, capítulos de livros, livros, dissertações e
teses do grupo de pesquisa em Análise Textual dos Discursos.
Sobre os procedimentos de análise dos dados, foram realizadas as seguintes etapas: a)
descrição do plano de texto de cada sentença e de cada depoimento; b) identificação e descrição do(s)
locutor(es) enunciador(es) primeiro(s) (L1/E1) e enunciadores segundos (e2) de cada sentença; c)
identificação e descrição do(s) locutor(es) testemunhas de cada depoimento; d) identificação e
descrição das marcas linguísticas reveladoras de (não) assunção da responsabilidade enunciativa nos
dois gêneros investigados; e e) análise e interpretação dos resultados.

O gênero jurídico sentença condenatória

Lopes (2014, p. 55), em estudo sobre a sentença judicial, assevera que,

em face das definições e dos requisitos essenciais da sentença judicial, e levando-se em conta
o seu funcionamento na esfera jurídica e o seu papel social, podemos entendê-la como um
texto com características normativas que obedece às exigencias prevista na lei e na jurisdição.

Acrescenta, ainda, que o gênero sentença apresenta uma estrutura ritualizada, formal,
padronizada, evidenciando uma linguagem técnica, às vezes incompreensível ao cidadão comum.
A sentença judicial é obrigatoriamente um texto escrito, embora possa ser proferido
oralmente em audiência. É do domínio público, sendo um documento indispensável nos autos do
processo como documento da “perene memória da decisão que o contém”, diz a doutrina.
Assim, de acordo com o art. 489, do Código de Processo Civil, no que tange aos requisitos
essencias da sentença judicial apresenta a seguinte estrutura textual:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do
pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do
processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe
submeterem.
295

Para melhor explicitar o disposto no artigo supramencionado, vejamos o Esquema 2


quadro que ilustra o plano de texto da sentença judicial.

Esquema 2 – Plano de texto do gênero jurídico sentença

PLANO DE TEXTO CARACTERÍSTICAS


NO GÊNERO FUNÇÃO
SENTENÇA DO GÊNERO

* Exigência legal;
* Histórico, resumo, partes
principais do Processo;
* Relatar os fatos * Sequências textuais
atinentes ao processo de narrativas;
PREÂMBULO * Sequências textuais
maneira clara e
descritivas;
objetiva.
* Estrutura composicional
com parágrafos únicos
relacionados a cada ação
distinta do Processo.

* Identificação da Jurisdição,
vara, cidade;
* Identificar * Código numérico de
RELATÓRIO textualmente a peça identificação da Sentença;
processual. * Identificação das partes
litigantes;
* Ementa.

* Ressaltar os aspectos * Exigência legal;


legais motivadores da * Sequências textuais
FUNDAMENTAÇÃO decisão do juiz, de argumerntativas;
maneira clara e * Sequências textuais
objetiva. expositivas.

* Exigência legal;
* Materializar a decisão * Sequências textuais
DECISÃO argumerntativas;
judicial.
* Sequências textuais
expositivas.
296

* Assumir
ASSINATURA institucionalmente o * Assinatura do juiz.
documento.

Fonte: elaboração própria.

Apresentamos, a seguir, as definições dos tipos de sentenças.

Sentença condenatória
A sentença condenatória é aquela que, além de promover o acertamento do direito,
declarando-o, impõe ao vencido uma prestação passível de execução. A condenação consiste numa
obrigação de dar, de fazer, ou de não fazer. Reflete um conflito que é visto na perspectiva da parte
autora, do réu, das testemunhas, dos declarantes, do promotor, do defensor público, do juiz, de um
denso conjunto de normas, das fontes epistemológicas, do Conselho de Sentença, entre outros.
Constitui também fonte basilar para a fundamentação da condenação, o Código Penal – Decreto-Lei
n. 2848, de 07 de dezembro de 1940, cuja redação é atualizada por diversas leis.

Sentença Penal
No processo penal, existem várias classificações de atos jurisdicionais, entre elas temos,
os despachos, as decisões interlocutórias e as definitivas, essas últimas são também
denominadas sentenças. Nas palavras do jurista Nucci (2014, p. 28), “É a decisão terminativa do
processo e definitiva quanto ao mérito, abordando a questão relativa à pretensão punitiva do Estado,
para julgar procedente ou improcedente a imputação”.
Após todo o percurso do processo, esse que discutia o direito de liberdade do indivíduo
e, em contrapartida, o direito-dever de punir do Estado. A sentença vai ser o marco final do conflito
principiológico no primeiro grau de jurisdição.
No aspecto condenatório, a Sentença Penal, gênero jurídico, é a
que julga procedente a denúncia, impõe a pena, devendo apresentar, obrigatoriamente, as
circunstâncias agravantes ou atenuantes. Por outro lado, quando não se reconhece essa pretensão
punitiva, negando sua concretização, a sentença é tida como declaratória ou absolutória.
Assim, de acordo com o art. 381, do Código de Processo Penal, a sentença judicial
apresenta a seguinte estrutura textual:
297

Art. 381. A sentença conterá:

I – o nome das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;

II – a exposição sucinta da acusação e da defesa;

III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

IV – a indicação dos artigos e leis aplicados:

V – o dispositivo;

VI – a data e a assinatura do juiz.

O gênero jurídico depoimento de testemunha

O gênero discursivo textual depoimento de testemunha é uma peça do inquérito policial,


no qual uma testemunha relata o que sabe e o que é relevante para a investigação de determinado
caso.
Tourinho Filho (2013, p. 607-608) ensina que “a prova testemunhal, sobretudo no
Processo Penal, é de valor extraordinário, pois dificilmente, e só em hipóteses excepcionais, provam-
se infrações com outros elementos de prova” e quanto ao valor, “como qualquer outro meio de prova,
a testemunhal é relativa”.
Para Capez (2012, p. 415),

testemunha é pessoa desinteressada que narra fatos pertinentes do processo. São


características das testemunhas: a) somente a pessoa humana pode servir como testemunha,
já que testemunhar é narrar fatos conhecidos através de escritos; b) pode ser testemunha
somente a pessoa estranha ao processo e equidistante as partes, para não se tornar impedida
ou suspeita; c) a pessoa deve ter capacidade jurídica e mental para depor; d) a pessoa deve
ter sido convidada pelo juiz ou partes; e) a testemunha não emite opinião, mas apenas relata
objetivamente fatos apreendidos pelos sentidos; f) a testemunha só fala sobre fatos no
processo, não se manifestando sobre ocorrências inúteis para a solução do litígio.

O escrivão, tem por função ouvir o relato testemunhal, reduzi-lo a termo e lê-lo ao final
para que a testemunha conheça as declarações ali contidas. Feito isso, o delegado de polícia
responsável pelo caso, o escrivão e a testemunha deverão assiná-lo.
A estrutura composicional do gênero é fixa e segue um modelo padronizado pelo código
de processo penal (CPP), no art. 203. Vejamos abaixo:

A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe
for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua
profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes,
ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as
razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
298

Apresentamos, a seguir, o plano de texto do gênero depoimento de testemunha no


Esquema 3.
Esquema 3 – Plano de texto do gênero jurídico depoimento de testemunha

PLANO DE TEXTO
CARACTERÍSTICA
NO GÊNERO FUNÇÃO DO GÊNERO
DEPOIMENTO

* Relata os fatos do * Apresenta a narração


ocorrido do ponto dos fatos.
de vista das
Depoimento testemunhas, das * Sequência narrativa e
vítimas e do descritiva são as
conduzido (réu). predominantes.

Fonte: elaboração própria.

Ao dar início ao depoimento, algumas informações importantes, de caráter pessoal,


relativas à testemunha, devem ser fornecidas. Tais informações serão úteis pois darão subsidio ao juiz
para a prolatação da sentença penal condenatória, a saber: nome, idade, data de nascimento, endereço
e profissão do depoente e grau de parentesco com a vítima (se houver).

ANÁLISE DOS DADOS

Neste tópico, descrevemos, analisamos e interpretamos, nas proposições-enunciados, os


pontos de vistas rabatelianos (representado, narrado e assertado), considerando as marcas linguísticas
que evocam as zonas textuais, como as modalidades, quadros mediadores, enfim, os marcadores do
escopo de uma responsabilidade enunciativa nos gêneros sentença judicial condenatória e depoimento
de testemunha.

Análise do L-T: Depoimento 01 - Sentença 01

Exemplo 01:

Recorda dos fatos. Lembra do acusado XXXXXXX que se acha presente nesta oportunidade nesta
audiência.
299

No exemplo 01, temos PDV assertado, tendo em vista que o L-T se engaja-se ao utilizar
o suporte de focalização cognitiva “recordar” e “lembra", deixando claro em seu depoimento que, de
acordo com suas recordações, o acusado é, de fato, quem cometeu o crime. Além disso, o dêitico
espacial “nesta” (nesta oportunidade, nesta audiência) sinaliza o lugar de fala

Exemplo 02:

Recorda de duas correntes e relógio que não foram reconhecidos pelo homem que se dispôs a ir
para a delegacia.

No exemplo 02, temos PDV assertado, dado o engajamento do L-T com o conteúdo
proposicional do seu dizer através da utilização do suporte de focalização perceptiva “recorda”,
“duas”, e a negativa “não foram”, deixando clara sua presença e suas percepções sobre o relato do
ocorrido, assumindo a responsabilidade pelo conteúdo proposicional. Além disso, o texto está
marcado em negrito e sublinhado, deixando clara a intenção de destaque do fragmento apresentado.

Exemplo 03:

O outro casal não quis nem olhar para eles.

No exemplo 03, temos PDV assertado, visto que o L-T deixa clara a assunção da
responsabilidade enunciativa quando utiliza a modalização “nem”, dizendo que, de acordo com sua
percepção dos fatos, o casal ficou tão impactado com o assalto que não conseguiu nem fazer o
reconhecimento dos réus propriamente.

Exemplo 04:

Quando ia chegando ao hotel para almoçar o vigilante informou que turistas passaram a informação
de que surfistas tinham assaltado e fugido na direção do Pestana.

No exemplo 04, temos PDV representado, visto que está presente a mediatividade quando
o L-T utiliza futuro do pretérito, através da locução verbal “tinham assaltado”, se afastando do
conteúdo proposicional, criando assim, um quadro meditativo. Há também a atribuição da fala ao
vigilante, quando diz: “o vigilante informou que turistas passaram a informação”, nos deixando diante
de um quadro mediativo, ou seja, o L-T não se compromete com conteúdo proposicional do seu dizer.

Exemplo 05:

Depois de dez minutos XXXXXXX voltou. Na fuga um popular avisou que


300

Nesse exemplo 05, temos PDV assertado e representado, visto que o L-T utiliza o dêitico
temporal “depois de 10 minutos” para marcar sua percepção de tempo sobre o ocorrido, mostrando
seu engajamento no discurso. Porém, encontramos características de mediatividade em sua fala,
quando a atribui a um enunciador segundo, “um popular”, distanciando-se do conteúdo proposicional
do seu dizer, construindo assim um

Exemplo 06:

No que tange ao emprego de arma e concurso de pessoas, ratifico a argumentação já alinhada no


contexto de apreciação da materialidade a autoria delitivas e remeto as declarações da vítima, das
testemunhas quanto aos caracteres físicos e de vestuário dos agentes criminosos

No exemplo 06, temos PDV assertado, onde o juiz (L1/E1), assume o conteúdo
proposicional do seu dizer ao utilizar verbos em primeira pessoa “ratifico” e “remeto”, além de utilizar
o modalizador “já”, deixando sua voz explicita na sentença.

Depoimento 01 – sentença 02

Exemplo 07

A testemunha XXXXXXXXXXXXXXX disse que estava tomando café no bar de um colega por volta
de umas 18:30/19h

No exemplo 07, observamos a construção de um PDV assertado em que o L-T faz o uso
de um verbo dissendi “disse”, como também se utiliza do organizador temporal “umas 18:30/19h”,
acompanhado do marcador de subjetividade “por volta de” para contextualizar sobre o que estava
fazendo e a que horas recebeu a informação sobre o assalto, se comprometendo com o dito.

Exemplo 08

quando chegou uma mulher numa moto, informando que um Gol e uma Duster tinham sido os carros
utilizados no assalto a uma lanchonete

No exemplo 08, temos PDV representado, onde o L-T distancia-se do conteúdo


proposicional do seu dizer, imputando-o a um enunciador segundo, a mulher. Presença do verbo
dicendi “informando”.

Exemplo 09

que não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento que essa mesma mulher era um
traficante, procurada pela polícia.”
301

No exemplo 09, temos PDV assertado e PDV narrado, visto que em um primeiro
momento o L-T utiliza um suporte de focalização cognitiva “não sabia”, onde se engaja, porém ao ao
atribuir a fala a outrem “tomou conhecimento”, se distancia do conteúdo proposicional do seu dizer,
valendo-se da mediatividade. Há ainda, a formação do ethos negativo da mulher quando a testemunha
comenta sobre ser traficante e procurada pela polícia.

Depoimento 02 (Sentença 02):

Exemplo 10:

A testemunha YYYYYYYYYYYYYYYYYY disse que estava na BR 226, quando chegou um casal de


moto e avisou que tinham acabado de fazer um arrastão em uma lanchonete

No exemplo 10, temos PDV assertado e PDV narrado pois observamos que há
engajamento do L-T quando este utiliza o verbo dicendi “avisou”, porém não se compromete com o
dito pelo casal, atribuindo a fala através de um discurso indireto.

Exemplo 11

que lembra que era a noite, mas não especificamente a hora

No exemplo 11, temos PDV assertado, pois o L-T utiliza o suporte de focalização
cognitiva “lembra”, se engajando diretamente com o dito, além de utilizar o dêitico temporal “noite”.
Há também um completo engajamento quando menciona “mas não especificamente a hora”,
utilizando um suporte de focalização conectiva para dizer que não lembra “especificamente”,
modalizando sua fala, se engajando com o conteúdo proposicional.

Exemplo 12

que havia também dinheiro da loja no carro, além disso, acredita que eles se livraram da arma de
fogo antes de serem pegos

No exemplo 12, temos PDV assertado, pois observamos o engajamento do L-T quando
utiliza o operador argumentativo “também”, e a modalização “além disso”, afirmando que ainda
existiam outros elementos dentro do carro dos acusados. De igual modo, quando utiliza o suporte de
focalização cognitiva “acredita que”, deixando claro no depoimento sua opinião sobre o que os
acusados teriam feito com a arma antes de serem pegos.

Análise do L1/E1: Sentença 02


302

Exemplo 13

Segundo a testemunha XXXXXXXXXX , embora não tenha realizado o reconhecimento formal na


delegacia, afirmou que os conduzidos que estavam tirando as fotos na delegacia, eram os mesmos
que haviam praticado o assalto, sem esquecer que os celulares subtraídos das vítimas foi encontrado
dentro do veículo, onde réus estavam. […] evidenciando que a versão apresentada por eles não se
mostra nenhum um pouco verossímil.

No exemplo 13, temos PDV representado, visto que o juiz (L1/E1) utiliza da
mediatividade para se referir ao depoimento da testemunha quando imputa sua voz para um
enunciador segundo, utilizando o marcador “segundo”, porém se mostra presente em outro momento
de sua fala, quando utiliza os modalizadores “evidenciando” e “nem um pouco”, assumindo o
conteúdo proposicional.

Exemplo 14:

É que o crime foi praticado com o emprego de arma de fogo, embora não tenha sido apreendida,
circunstância confirmada pela prova oral colhida, além disso foram apreendidas05 (cinco)
munições, calibre .38, mesmo calibre da suposta arma utilizada no assalto como afirmou a
testemunha XXXXXXXXXX.

No exemplo 14, o juiz (L1/E1) constrói PDV assertado e PDV representado, visto que
percebemos seu engajamento quando utiliza o modalizador “embora”, o marcador “além disso” e o
operador argumentativo “mesmo”. Porém se distancia em alguns momentos, por exemplo, quando
utiliza o modalizador “suposta”, se distanciando da afirmação, além de imputar o dito à testemunha,
retirando toda sua responsabilidade sobre o conteúdo proposicional.

Exemplo 15:

Assim, reconheço que o conjunto probatório autoriza o julgamento pela procedência do pedido
acusatório, como se extrai dos depoimentos das vítimas e testemunhas

No exemplo 15, temos PDV assertado, visto que o L1/E1 se mostra presente em seu
discurso quando utiliza o modalizador “assim”, e quando utiliza o verbo “reconheço” conjugado em
primeira pessoa, deixando presente seu posicionamento no tocante a sentença.

CONCLUSÕES
Considerando a análise e síntese das análises dos dados, apresentamos as conclusões da
nossa pesquisa. Para tanto, retomaremos algumas considerações importantes a respeito dos gêneros
textuais estudados.
303

A sentença judicial, peça de extrema importância no processo judicial, apresenta um


plano de texto fixo, tendo em vista que traz em sua estrutura composicional uma padronização e
formalização próprias de textos e documentos pertencentes ao âmbito jurídico, de acordo com a forma
prescrita em lei. Possui também uma função sociocomunicativa, podendo revelar atividades
profissionais específicas. Já o depoimento, declaração da testemunha ou da parte sobre determinado
fato, do qual tem conhecimento ou que se relacione com seus interesses e que figura no processo
como prova testemunhal.
O roubo majorado tem sua previsão no artigo 157, § 2º e seus incisos do Código Penal.
Se o roubo é praticado em qualquer uma das circunstâncias previstas em mencionado dispositivo, a
pena do crime, prevista no caput, poderá ser aumentada de um terço até metade.
A partir do que nos dizem os dados, podemos considerar que o juiz, locutor enunciador
(L1/E1), evoca o ponto de vista de enunciadores segundos (e2), assumindo uma postura de
coenunciador, vezes aproximando e acordando com o dito de outrem, vezes promovendo
distanciamento em relação ao dito. Assume o dizer a partir de pontos de vista assertado e narrado,
utilizando-se do conjunto probatório, bem como recorrendo a várias instâncias enunciativas presentes
nos autos.
Assim, em consonância com os depoimentos das testemunhas, analisados nos excertos
supramencionados, verificamos a presença do Locutor-testemunha (L-T), nos termos de Rodrigues
(2017), que propõe uma análise exclusiva para depoimentos, em que o locutor enunciador é o locutor
testemunha (L-T), que ora assume a responsabilidade pelo conteúdo proposicional de seu dizer, ora
utiliza-se de quadros mediativos, corroborando assim, de maneira efetiva para o convencimento do
juiz, no que concerne à efetiva culpabilidade dos Réus.

REFERÊNCIAS

ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm. Acesso em: 30 jul. 2018.

BRASIL. Código de Processo Penal. Lei 3.689/1941. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em 28 jan. 2016.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20 jan. 2016.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
304

GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français.


Langue Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em:
http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2015.

GUENTCHÉVA, Zlatka. L’ opération de prise em charge et la notion de médiativité. In: DENDALE,


Patrick; COLTIER, Danielle. La prise en charge énonciative: éthudes théoriques e empiriques.
Bruxelles: De Boeck/ Duculot, 2011, p. 117-142.

LOPES, Alba Valéria Saboia Teixeira. A representação discursiva da vítima e do réu no gênero
sentença judicial. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, PPgEL, Natal, 2014. Disponível em: http://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/19592.
Acesso em: 10 abr. 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Forense, 2014.
RABATEL, Alain. Prise en charge et imputation, ou la prise en charge à la responsabilité limitée.
Langue Française, Paris, n. 162, p. 71-87, 2009.

RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração- teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.

RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis. "Tentam colocar medo no povo": vozes,
emoções e representações num texto jornalístico. In: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua
portuguesa e lusofonia: história, cultura e sociedade. São Paulo: EDUC, 2016, p. 259-272.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de processo penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
305

LEITURAS E ESCRITAS NO ENSINO REMOTO E AS FERRAMENTAS DIGITAIS


COMO ESTRATÉGIA DE APRENDIZAGEM EM TEMPOS DE PANDEMIA

Amaro Sebastião de Souza Quintino97


Jackeline Barcelos Corrêa98
Adriana Monteiro Camara99
Joberto Pessanha da Silva Junior100

RESUMO
Com o ensino remoto foi possível perceber a ampliação da necessidade da leitura e da escrita, por
meio das ferramentas digitais, entre professores e alunos nas aulas síncronas e assíncronas. Este
trabalho tem como objetivo identificar o potencial das ferramentas digitais e promover uma discussão
sobre a imersão da leitura e da escrita na prática docente. O momento pandêmico carece da
apropriação e do uso das tecnologias por parte dos docentes/discentes, enquanto isso temos a
impressão que nunca se leu e escreveu tanto, dada a recorrência dos usuários de celulares,
smartphones, tablets e outros, diante da leitura da/na tela. As ferramentas virtuais disponíveis hoje
possuem grande importância na aproximação dos alunos com o mundo digital, de forma que a
tecnologia da informação permite aprimorar cada vez mais os conhecimentos, tendo os sistemas
computacionais voltados para atividades mediadas pelo WhatsApp, Meet, Zoom, Google Classroom,
etc. A pluralidade de discursos sobre a leitura e escrita, se movimentam e afloram os mais diversos
lugares sociais e escolares. No referencial teórico adotado na pesquisa destacaram-se os estudos de:
Soares (2014), Marchuski (2010), Kleiman (2008) e pesquisas em sites do Scielo e a base de dados
da Scopus. Como metodologia dos procedimentos faz-se o uso da pesquisa bibliográfica e
documental, e para completar essa análise técnica de coleta é aplicado um questionário
semiestruturado com base nos estudos de (Gil, 2010). O uso de ambientes virtuais denota resultados
positivos no que se refere ao incentivo da leitura e da escrita, e no que consiste o desenvolvimento de
práticas que demandam o ensino remoto por meio de diversos gêneros textuais, em que os professores
são postos a todo instante em contato com o mundo tecnológico letrado, valendo-se de uma tecnologia
diferenciada e dinâmica a cada aula. Essa discussão é de suma relevância para se refletir sobre a
questão da leitura em tempos de pandemia e dos usos das tenologias digitais. Se fizer necessário uma
organização sistemática para o enfrentamento superando desafios, e do que se propõe para resolvê-
lo. Assim, pode se fortalecer as articulações intersetoriais entre a EaD e o ensino da escrita, para
mediar as aprendizagens dos alunos.

Palavras–chave: Leitura, Escrita, Ensino Remoto, Ferramentas Digitais, Pandemia.

INTRODUÇÃO

97
Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrando em Cognição e Linguagem – E-mail: amarotiao@yahoo.com.br
98
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Doutoranda em Cognição e Linguagem – E mail:
jack.barcelos1@hotmail.com
99
Universidade Estácio de Sá (ESTÁCIO). Licenciada em Pedagogia – E-mail: adrimonteirocamara@hotmail.com
100
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Licenciando em Pedagogia – E-mail: jjjpessanha@gmail.com
306

Em 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) noticiou a situação catastrófica devido


à pandemia da Covid-19, uma doença que é gerada pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2). Diante desse
quadro de ameaça à saúde pública, foram tomadas inúmeras medidas de prevenção no Brasil e no
mundo, que afetaram várias áreas da sociedade, entre elas a Educação mudando o comportamento
das pessoas.
Atualmente o mundo virtual foi incorporado no cotidiano das pessoas e se tornou um
passaporte para o acesso às múltiplas possibilidades e facilidades de que ele dispõe, principalmente
no que diz respeito á educação. A leitura e a escrita desempenham um papel central, uma vez que,
sem elas, o universo virtual não passaria de uma propagação de informações limitada à transmissão
de dados sonoros e visuais, em busca de novos conhecimentos que expressam a importância de fazer
o uso de diferentes linguagens, com múltiplos modos e recursos semióticos.
A presente pesquisa visa identificar as ferramentas digitais que os professores estão
utilizando na intenção de contribuir significativamente no aprimoramento da leitura e escrita dos
alunos em tempos de pandemia, com os usos de diferentes recursos agregam conhecimentos e
ampliam as capacidades da leitura, da escrita e da produção de hipertextos multimodais voltado para
o processo de ensino-aprendizagem.
Diante das transformações trazidas pelo ensino remoto, surgem diversos questionamentos
a respeito da formação do professor para utilizar as tecnologias digitais, realizar o seu papel de
educador, das suas condições de trabalho, do sistema de avaliação da aprendizagem e principalmente
da pressão psicológica sofrida em meio à demanda das aulas remotas, em que o tempo dedicado à
preparação de atividades e aulas on-line é bem maior do que no ensino presencial.
No primeiro tópico busca-se refletir na motivação e a prática da leitura em tempos de
pandemia com foco no uso das mídias virtuais. Já no segundo tópico discute-se a necessidade das
habilidades da escrita no ensino remoto, pois não basta simplesmente ter a tecnologia, mas saber
utilizá-la. O terceiro tópico aborda as aulas remotas contemplando as ferramentas digitais e a
necessidade da formação dos professores em tempo de pandemia.
Dando continuidade no desenvolvimento da pesquisa, propôs-se a metodologia aplicada
e em seguida foi realizada a análise de conteúdos como base nos depoimentos dos professores e
alunos e por fim, as considerações finais e as conclusões da pesquisa.
Portanto, percebe-se o potencial das ferramentas virtuais acima citadas, e que as mesmas
facilitam os diferentes métodos nas práticas educativas, por meio das redes sociais e interfaces digitais
facilitando a conexão entre alunos e professores trazendo resultados positivos e alcançado a
comunicação entre as partes.

A MOTIVAÇÃO E A PRÁTICA DA LEITURA EM TEMPOS DE PANDEMIA


307

Com a inserção das novas tecnologias presentes na sociedade, as pessoas estão lendo e
escrevendo mais, e vem se popularizando mediante à pandemia do Covid-19, que passou de uma
tendência para uma necessidade de adaptação à realidade atual. Assim aumentou-se a pressão para a
implantação da EAD em vários níveis da educação com o ensino remoto (SOUZA, 2009).
O isolamento social contribuiu notoriamente para as práticas de leitura e escrita,
mantendo as relações literárias a partir da inserção da multimodalidade, o que representa uma ligação
essencial, que tem por premissa várias características interligadas concomitantemente.
De acordo com Barbosa, Viegas e Batista (2020), os docentes tiveram que aprender a
manusear diversos equipamentos tecnológicos, utilizar softwares e aplicativos, gravar e editar vídeos,
ter celulares ou computadores mais atualizados, além de reformular todo o seu planejamento, tudo
isso em pouquíssimo espaço de tempo para que o ensino remoto pudesse realmente ser implementado,
dando continuidade ao processo de ensino e contribuindo para a diminuição da disseminação do vírus.
Os autores ainda ressaltam que:

(...) a utilização das tecnologias é imprescindível, o docente pode se sentir desanimado e


decepcionado por sua falta de conhecimento e domínio pleno da ferramenta, ampliando sua
carga-horária de trabalho em busca dessa competência. Cabendo, ainda, mais atenção, pois
tudo isso, passando pelo processo pandêmico, de total isolamento social, requer de equilíbrio
emocional e boas práticas para manter, também, uma saúde física, mental e financeira
(BARBOSA et al., 2020, p. 277).

Diante de tal importância, aderir o uso das mídias virtuais na educação significa para o
professor investir em si próprio, na ampliação de suas capacidades profissionais e possibilita aos seus
alunos o acesso à informação e ao conhecimento, ampliando as estratégias de ensino.
França Filho, Antunes e Couto (2020) elucidam que:

A crise da pandemia de covid-19 se torna uma janela de oportunidades para uso da tecnologia
na educação neste âmbito de parceria público-privada, considerando a maleabilidade do
Sistema Nacional de Educação aos interesses e ações desses novos sujeitos da educação
pública brasileira (FRANÇA FILHO, ANTUNES e COUTO, 2020, p. 23).

Os professores precisaram com urgência se inserir no mundo tecnológico. Observa-se que


existe uma gama de profissionais da educação, principalmente professores, que não aceitam as novas
tecnologias como instrumento transformador da sua prática pedagógica, entretanto não duvidam de
seus benefícios, nem de que representam uma transformação na sociedade, concordando
paradoxalmente com o que afirma Souza (2009):

(...) Ninguém duvida dos benefícios que a tecnologia da informação tem proporcionado.
Acessar, em tempo real informações sobre quase tudo que existe no mundo e poder
308

estabelecer contato com as fontes de informação representa uma drástica mudança de


paradigma da sociedade (SOUZA, 2009, p. 35).

No ensino remoto são incluídas as aulas síncronas e assíncronas na modalidade da


Educação à Distância, pois é uma forma de ensino temporária, emergencial e acessível, que objetiva
dar continuidade às aulas diminuindo os prejuízos na aprendizagem dos alunos por meio de
plataformas de ensino. Segundo Silveira (2020):

Ensino remoto, devido à pandemia da COVID-19, está sendo aplicado como forma
emergencial, para dar conta de uma situação até então inesperada, ou seja, os Projetos
Pedagógicos das Instituições de Ensino e de seus respectivos cursos não foram construídos
para dar conta da modalidade de ead, a fim de estruturar o currículo e os processos de ensino
e de aprendizagem nesta modalidade diferenciada. Desta forma, os professores estão apenas
utilizando as TDICs como meio, mantendo as mesmas metodologias de ensino utilizadas no
ensino presencial, baseadas, quase que em sua totalidade, na transmissão de conhecimentos,
por meio de aulas expositivas e exercícios para fixação do conteúdo (SILVEIRA, 2020, p.
38).

No entanto, o professor lida diretamente com profundas mudanças comportamentais,


deixando de ser um mero transmissor, passando a ser um facilitador, um mediador da aprendizagem
com a inserção da Internet constantemente em sua vida. Com isso destaca-se que a motivação é
crucial e frente a esse cenário, é notório explicitar os principais desafios enfrentados pelos professores
na condução e manutenção do ensino remoto em meio à situação pandêmica.

A NECESSIDADE DAS HABILIDADES DA ESCRITA NO ENSINO REMOTO

Se comunicar é reconhecer o outro (FREIRE, 1976), é nesse movimento que será possível
vislumbrar um fio nesta meada, que puxado, dinamizará a construção de estratégias alternativas à
resistência aos recursos tecnológicos, aos quais se transige especialmente sobre a possibilidade de
filhos e alunos saberem mais que pais e professores neste campo.
A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2020)
afirma que desde o registro do primeiro caso de covid-19 no Brasil, o sistema escolar sofreu
adaptações com o esquema 100% remoto, professores, alunos e pais precisaram experimentar
diferentes ferramentas e formatos de aula para dar continuidade aos estudos. A partir deste contexto
percebeu-se que os professores estão trabalhando juntos para alcançar um nível de aprendizado e
desenvolvimento nessas novas ferramentas digitais.
Muitos professores ainda resistem às Novas Tecnologias da Comunicação e Informação
(NTCI) como citado pelos pesquisadores Carmo e Corrêa (2012), que o medo de escrever associado
à resistência ao uso das novas tecnologias, e correspondente falta de desejo e esforço, observou-se
que se configura um contexto que interfere negativamente na comunicação de muitos docentes.
309

Se comunicar é reconhecer o outro (FREIRE, 1976) e, além disso, torna-se uma prática
essencial à existência humana, causando transformações que a cotidianidade da internet tem
provocado. Tal fato exige que o sujeito seja capaz de ler e escrever lidando com textos de variados
tipos e gêneros, o que se configura como uma habilidade a ser desenvolvida no decorrer de toda sua
trajetória educativa e não apenas nas séries iniciais. Freire (1989) ainda destaca que:

O problema que se coloca não é o da leitura da palavra, mas o de uma leitura mais rigorosa
do mundo, que sempre precede a leitura da palavra. Se antes raramente os grupos populares
eram estimulados a escrever seus textos, agora é fundamental fazê-lo, desde o começo mesmo
da alfabetização para que, na pós-alfabetização, se vá tentando a formação do que poderá vir
a ser uma pequena biblioteca popular, com inclusão de páginas escritas pelos próprios
educandos. (FREIRE, 1989, p. 19).

Com a pandemia do Covid-19, os professores descobriram que é necessário serem


criativos para darem conta na eficiência do ensino, mas de contrapartida encaram uma demanda de
trabalho surreal, causando estresse, cansaço e desgaste emocional. Com esse movimento é
fundamental a construção de estratégias e alternativas à resistência aos usos dos recursos
tecnológicos, aos quais se transige especialmente sobre a possibilidade de filhos e alunos saberem
mais que pais e professores neste campo (UNESCO, 2020).
Nesse contexto, considera-se o desenvolvimento das habilidades da leitura e da escrita
como a base da formação humana. Trata-se da porta de acesso ao conhecimento, à construção e à
criação de ideias, valores, ideologias e mídias virtuais. Todo esse aparato e atributo contribuem
significativamente para o desenvolvimento das aprendizagens dos alunos.
A escrita é capaz de provocar modificações de diferentes tipos, sejam sociais, culturais,
econômicas ou linguísticas, cujo aprimoramento possibilita ao sujeito passar a fazer parte de outros
grupos sociais. Então, apropriar-se da escrita implicaria a inserção do indivíduo na sociedade e
significaria que ele a usa e a domina em seus diferentes níveis, desde um simples bilhete até um texto
científico (MARCUSCHI, 2010).
Sendo assim, ressalta-se que as tecnologias digitais além de instaurarem novas relações
sociais, desperta um potencial de leitura e escrita que é intrínseco nos alunos em tempos de pandemia.
Cabe salientar que as tecnologias possibilitam a articulação de diferentes modos de enunciação
(verbal, visual e sonora), contribuindo para os avanços no processo de ensino-aprendizagem.

AULAS REMOTAS E OS DESAFIOS DO PROFESSOR EM TEMPO DE PANDEMIA

Durante a pandemia surgiram muitos desafios, os quais as escolas estão aprendendo como
lidar com essa nova forma de ensinar. A aprendizagem é um processo ativo, sendo consequência da
310

relação entre professor e o aluno e suas práticas educacionais, nas quais os mesmos possibilitam ações
reflexivas em diversas áreas de ensino.
Bamberger (2002) afirma que:

A leitura suscita a necessidade de familiarizar-se com o mundo, enriquecer as próprias ideias


e compete ao professor, incentivar seus alunos o hábito de leitura, o desenvolvimento do
senso crítico e do raciocínio lógico (BAMBERGER, 2002, p. 32).

Nessa perspectiva é fortalecida a necessidade da presença do professor como mediador


da aprendizagem motivando e proporcionando práticas de leitura e escrita para seus alunos.
Com as aulas remotas nota-se que a aprendizagem é cotidianamente construída pelo
professor, sendo ele responsável por oferecer condições adequadas para que as mesmas sejam
desenvolvidas. Dessa forma, as escolas precisam focar em um currículo claro, objetivo pautado e em
instruções sólidas para dar continuidade ao ensino remoto em outros espaços sociais e não somente
na escola (SANTOS, 2020).
A pandemia do COVID-19 trouxe a necessidade dos docentes replanejarem as suas aulas,
que em outro momento eram oferecidas de maneira presencial na Educação Básica. Diante desse
cenário, existe a necessidade da inserção das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação
(NTIC) que possibilita o ensino remoto na escolarização, que passou a ser vista como uma alternativa
de minimizar os impactos decorrentes da contaminação do vírus, corroborando com o isolamento
social.
Entretanto, se no processo de ensino-aprendizagem está presente o desejo de
comunicação, que se dá por exigência vital, é possível que o esforço seja reconvocado à coragem e à
disposição de ler e escrever, em meio às emergentes novas tecnologias, mesmo que as resistências se
mantenham presentes. Carmo e Corrêa (2012) afirmam que:

É preciso, portanto, rever os modos como se propõe na formação docente o exercitar da


escrita e o tratar a informação como processo de conhecimento, de modo sim a resistir aos
receios e as inseguranças, com o suporte da autoria, atendendo assim às demandas
educacionais em aguda transformação (CARMO; CORRÊA, 2012, p. 10).

Mesmo que o acesso aos dispositivos e a conectividade não sejam problemas para a maioria
dos jovens, as crianças precisam do apoio da família para se envolverem no aprendizado remoto. Os
pais podem auxiliar seus filhos a navegar na Internet e na leitura das propostas pedagógicas
contribuindo para a realização dos conteúdos.
Dentre as TDICs (Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação) mais utilizadas no
ensino remoto estão o WhatsApp, Google ClassRoom, Google Meet, Zoom, Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (AVAs) entre outros (SILVEIRA, 2020). Além de disponibilizar atividades e
311

videoaulas, alguns desses possibilitam a interação entre professor e aluno em tempo real por meio de
conferências e reuniões online.

Os desafios da aplicabilidade no uso das ferramentas digitais são inúmeros: além da própria
demanda elevada de atividades, muitos estudantes não têm acesso à internet, ou dividem aparelhos
celulares com outros familiares. Além disso, algumas plataformas de ensino precisam de
equipamentos mais modernos ou com ampla memória de armazenamento.

Cabe salientar que alguns professores não tiveram contato com tecnologias educacionais em
sua formação pedagógica e, com isso não têm habilidades virtuais para lidar com o ensino remoto,
ou não possuem equipamentos adequados para produzir conteúdos digitais.
Leal (2020) aponta que, diante da nova realidade imposta pela situação de pandemia, as
limitações que existem no processo de ensino e aprendizagem tornaram-se mais evidentes, pois, o
momento acentuou diversas situações negativas de exclusão tecnológica e sociais na aprendizagem
dos alunos que antes passavam despercebidas.

METODOLOGIA

Como metodologia dos procedimentos utilizou-se a pesquisa bibliográfica para completar


essa análise técnica de coleta, aplicou-se um questionário on-line semiestruturado com base nos
estudos de Gil (2010), a fim de compreender a perspectiva do professor e do aluno a respeito do
ensino remoto no contexto da pandemia. O referido questionário foi elaborado com base nos pontos
destacados na revisão de literatura, e foi enviado para 5 alunos e 5 professores que atuam no Ensino
Médio.
A amostra dos professores e alunos foram escolhidos aleatoriamente tendo como base a
facilidade de comunicação dos autores dessa pesquisa com os mesmos.

ANÁLISE DE DADOS

Esta pesquisa teve como amostras docentes e discentes atuantes na modalidade remota
durante a pandemia. Foram coletadas 10 respostas por meio da aplicação de um questionário on-line,
cujo objetivo foi identificar os principais desafios enfrentados por eles no ensino remoto. Essa
estrutura de trabalhar em home-office não está sendo fácil, pois é um desafio para a família, sociedade
e professores, que a cada é preciso se reinventar em suas aulas utilizando novas tecnologias.
Para fundamentar a pesquisa, destacam-se alguns depoimentos de professores e alunos
no ensino remoto para corroborar com a pesquisa:
312

P1 – “Estou atuando em tempo integral, e ainda contribuo ajudando os alunos nos mais
diversos problemas, desde conteúdos com suas dificuldades, à problemas pessoais e uso das
novas plataformas, é tão frenético que me tornei psicóloga... Dou aulas em três escolas.
Mas, me sinto mais cansada agora” (T. P. M., 32 anos, casada).

P2 - “Sinto-me mais cansada com o ensino remoto. O cansaço multiplicou demais. São aulas
para gravar, tarefas que precisam ser postadas nas plataformas, tirar dúvidas o dia inteiro e
as reuniões pedagógicas, agora somos professores multifacetados. Com o relacionamento
virtual é muito difícil criar vínculo afetivo. E isso tem dificultado o avanço deles” (M. A. M.
R., 30 anos, solteira).

P3 - “Eu tenho muita dificuldade com tecnologia, mas persisto na profissão porque sinto que
faço a diferença na vida de alguns alunos. Mesmo com uma demanda muito maior de tarefas,
pois, tenho que adaptar todo o conteúdo das aulas para a forma remota, mas mesmo assim é
gratificante” (A. C. S. Q., 35 anos, casada).

P4 - “É muita novidade em pouco tempo para aprender, sem ninguém para ensinar e, além
disso, aqui em casa só tem um computador e divido com a minha filha. Essa situação me faz
prolongar meu horário de trabalho. Já postei aula de madrugada, para o computador ficar
livre para minha filha no outro dia” (C. C., 34 anos, solteira).

P5 - “O pior para mim é a falta de condições e de entendimento do governo. Não tenho um


bom computador para uso do “Meet” ou outras plataformas digitais, por exemplo. Vários
alunos não conseguem acessar as plataformas devido à falta de acesso à internet. Fico o dia
inteiro no WhatsApp mandando áudios para tirar dúvidas. Amo o que faço e tento
conscientizar meus alunos sobre a importância do conhecimento para o futuro deles. Mas
tenho que ser realista, esta situação está desgastante demais...” (V. P. C. M. G., 36 anos,
casada).

Por meio da análise dos dados coletados, observamos que os docentes afirmaram ter tido
dificuldades para a utilização de equipamentos tecnológicos e mídias digitais na gravação e/ou edição
de videoaulas, ou para as aulas síncronas, e ainda relataram nãose sentir preparados para dar aulas
remotas, tendo em vista as carências da sua formação acadêmica.
Nesta concepção pode-se afirmar que segundo os depoimentos dos professores a
interação professor/aluno fica prejudicada no ensino remoto devido a falta de acesso e/ou
participação dos alunos, apesar das vantagens que a tecnologia proporciona em sua aplicabilidade,
mas em contrapartida é necessário que se gaste mais tempo na preparação das aulas e na elaboração
das atividades remotas.
Santos (2020) elucida que:

Nesse sentido, o uso das ferramentas tecnológicas na educação deve ser vista
sob a ótica de uma nova metodologia de ensino, possibilitando a interação digital dos
educandos com os conteúdos, isto é, o aluno passa a interagir com diversas ferramentas que
o possibilitam a utilizar os seus esquemas mentais a partir do uso racional e mediado da
313

informação pelos docentes (SANTOS, 2020, p. 18).

Desta forma, os professores que não são nativos digitais ou os resistentes aos usos das
NTIC’s começaram a planejar aulas mediadas pelo Meet ou WhatsApp junto a seus coordenadores
pedagógicos, e ao mesmo tempo em que descobrem sobre o funcionamento e praticidade de
ferramentas tecnológicas.
Com aulas on-line, surgiram novos desafios que não eram comuns nos encontros
pedagógicos presenciais, aprendendo a lidar com problemas de conexão e engajamento dos alunos à
distância.
Dentre os depoimentos dos professores, alguns docentes alegam que não estão sendo mais
reconhecidos em seu papel de educador durante a pandemia, pois, nem sempre os alunos retornam as
atividades comprometendo a avaliação da aprendizagem.
Já os alunos por sua vez afirmam que:

A1 – “Não está sendo fácil, para nós alunos, são muitas tarefas online. Tudo para dar conta
num de muitas atividades em curto espaço de tempo. Há um excesso de atividades e um vazio
intelectual, a tela do computador é o nosso quadro branco, mais eficiente, porém menos
interativo no meu caso, sinto falta do contato com o professor” (G. O. M. D., 18 anos, casada).

A2 - “Este momento é muito delicado, porque saímos de uma sala de aula física que
estávamos acostumados com os colegas e professores, para de repente entrar em um universo
tecnológico com aulas remotas, e com o compromisso de cumprimos curtos prazos, poucas
interações e ter um resultado satisfatório, independente da especificidade de cada um” (G. P.,
17 anos, solteira).

A3 - “Me sinto exausta, tensa, preocupadíssima, a tecnologia facilita muito, mas não é mesma
coisa que tirar dúvidas na sala de aula presencial. Me perguntam se estou aprendendo, eu
nem sei, criamos uma rotina de estudos para dar conta, a vida está uma loucura, ainda comecei
a fazer um curso, fico o dia todo no computador, me desgasta bastante” (A. C. S. Q., 16 anos,
solteira).

A4 - “Recebo atividades o dia todo, parece que os professores têm a necessidade de ocupar
todo nosso tempo, estão passando mais tarefas do que tínhamos quando era presencial,
acredito que não precisaria de tanto, já que a avaliação remota é falha, e é impossível
acumular tanto conteúdo num pequeno espaço de tempo, mas vamos caminhando...” (A. M.
F. 19 anos, solteira).

A5 - “Com a pandemia aprendi a fazer tanta coisa que eu não sabia, aprendi a usar as
ferramentas digitais quem nunca interessei em aprender, repensei conteúdos neste contexto
de distância, aprendi a dar valor mais as pessoas, estou me adaptando ainda, mas com menos
dificuldades tecnológicas” (F. T. G., 18 anos, casada).
314

Um ponto que facilita a minimização do impacto da pandemia sobre os alunos, é que essa
geração do Século XXI tem apresentado muita facilidade em aprender e operacionalizar diversas
mídias digitais, o que se configura como uma grande vantagem para aqueles que precisavam aliar o
ensino ao uso de tecnologias. Com os depoimentos, percebemos que mesmo com dificuldades do
acesso á internet, ou excesso de atividades, os alunos estão se equilibrando para manter um
aprendizado dentro das metas.
Desta forma percebe-se que é crucial que professores e alunos utilizem as ferramentas
digitais, onde cotidianamente é preciso se reinventar e reaprender novas maneiras de adquirir e
compartilhar conhecimentos. Não obstante, esse tem sido um caminho que apesar de árduo, é
essencial neste período pandêmico.
Já alguns alunos questionam fatores limitantes que podem influenciar no aprendizado,
tais como: a falta de interação social de maneira presencial, o excesso de conteúdos, e a falta dos
amigos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esta pesquisa constatou-se a importância do papel do professor na construção do


conhecimento, e quais são os desafios para se manter um ensino de qualidade em tempos de pandemia.
Dentre as pesquisas e depoimentos fiou notórios os limites do ensino remoto: o aprendizado não é
uma exposição simples e fria de conteúdos (principalmente nos níveis iniciais da educação escolar) e
é o professor quem transforma essa realidade, mesmo trocando um ambiente adequado com mobílias,
mesas e cadeiras e o convívio com outras crianças e a equipe escolar faz grande diferença.
Partindo deste pressuposto, cabe salientar que é fundamental a capacitação dos
professores para lidar com as tecnologias e as novas demandas impostas pelo contexto pandêmico,
de forma que haja um estímulo para uma aprendizagem autônoma. O professor tem que ser o elemento
que planeja todas as etapas da aprendizagem que tem a percepção de conduzir o saber que modifica
o percurso sempre que percebe necessidade, que estuda, aprende e desenvolve em si a capacidade de
ensinar.
Neste sentido, é importante o entendimento de que a utilização da tecnologia como aliada
contínua, sem a substituição ao protagonismo do ensino presencial, vai além de dar sequência ao uso
de soluções temporárias do ensino remoto, ou de simplesmente “digitalizar a sala de aula”, mas sim
perpassar os desafios impostos pelos limites das tecnologias que consistem, sobretudo as vantagens
de estabelecer a comunicação entre os docentes e discentes, seja por conta do despreparo para lidar
com as tecnologias no ambiente escolar ou pela grande maioria das vezes em que as conexões não
suportam a quantidade de acessos e travam comprometendo significativamente a comunicação.
315

Considera-se que com a pandemia do novo Coronavírus e a necessidade das aulas virtuais,
o ensino ficou comprometido em vários aspectos, principalmente com o uso exagerado das novas
ferramentas virtuais ou com a falta delas, e o excesso de conteúdos propostos, provocando um caos e
uma exclusão escancarada dos alunos mais carentes.
As interações sejam elas presenciais ou virtuais servem como grande estímulo nas
aprendizagens dos alunos. É por isso que é importante visar o desenvolvimento integral dos alunos
em todos os aspectos, o social, o cognitivo, o afetivo, em busca de uma aprendizagem prazerosa em
relação a leitura e escrita em tempos de pandemia e isolamento social.

REFERÊNCIAS

BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito de leitura. 7. Ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.

BARBOSA, A. M.; VIEGAS, M. A. S.; BATISTA, R. L. N. F. F. Aulas presenciais em tempos de


pandemia: relatos de experiênciasde professores do nível superior sobre as aulas remotas. Revista
Augustus, v. 25, n. 51, p.255-280, 2020. Disponível em:
https://revistas.unisuam.edu.br/index.php/revistaaugustus/article/view/565 Acesso em: 23 fev. 2020.

CARMO, G. T.; CORRÊA, J. B. O medo de escrever e a resistência às novas tecnologias entre


docentes: fim ou fio da meada. In: Encontro Brasileiro de Educomunicação - EDUCOM, 4., Anais
USP, 2012. Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/923 Acesso em:
20 fev. 2021.

FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 23.ed. São Paulo.
Autores associados: Cortez, 1989.

FRANÇA FILHO, A. L.; ANTUNES, C. F.; COUTO, M. A. C. Alguns apontamentos para uma
crítica da EAD na educação brasileira em tempos de pandemia. Revista Tamoios, v. 16, n. 1, 2020.
Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/tamoios/article/view/50535 Acesso em:
20 fev. 2021.

GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 5. Ed. Atlas: São Paulo, 2010.

KLEIMAN, A. B., Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social
da escrita. Mercado das Letras, 1995. São Paulo, 2008.

LEAL, P. C. S. A educação diante de um novo paradigma: ensino a distância (ead) veio para ficar!
Gestão & Tecnologia Faculdade Delta, v. 1, n.30, p. 41-43, jan./jun. 2020. Disponível em:
http://faculdadedelta.edu.br/revistas3/index.php/gt/article/view/44/40 Acesso em: 18 fev. 2021.

MARCUSCHI, L. A. Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. 3.


ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2010.

SANTOS, C. S. Educação escolar no contexto de pandemia: algumas reflexões. Gestão &


Tecnologia Faculdade Delta, v. 1, n.30, p. 44-47, jan./jun. 2020.
316

SILVEIRA, S. R. et al. O Papel dos licenciados em computação no apoio ao ensino remoto em tempos
de isolamento social devido à pandemia da COVID-19. Série Educar- Prática Docente, p. 35.
Disponível em: https://poisson.com.br/2018/produto/serie-educar-volume-40-pratica-docente
Acesso em: 17 fev. 2021.

SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. Ática, São Paulo, 2014.

SOUZA, C. H. M. Tecnologias e Novos Modos de Comunicação: (Re)Invenção do Conhecimento


In: Revista Economía Política de las Tecnologias de la Informácion y Comunicacíon.
www.eptic.com.br, vol. XI, n.1, enero- abril /2009.

UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Suspensão das aulas
e resposta à COVID-19. Disponível em: https://pt.unesco.org/news/educacao-escolar-em-tempos-
pandemia-na-visao-professoresas-da-educacao-basica-uma-pesquisa. Acesso em: 22 fev. 2021.
317

AÇÕES INTERATIVAS NO ESTUDO DA LEITURA/ESCRITA DE MANEIRA REMOTA

Maria Francisca Oliveira Santos 101


Gabrielle dos Santos Barbosa 102
José Vândesson dos Santos 103
RESUMO

Pensando em atividades de leitura e escrita, em contexto acadêmico, com a participação de professor


e alunos, em uma perspectiva sociointeracionista da linguagem, durante o período da pandemia
provocada pela Covid-19, este trabalho tem por objetivo evidenciar as ações alternativas para o estudo
da leitura/escrita, em nível superior, em situação remota. Nesse sentido, entende-se por ensino remoto
a transmissão em tempo real (síncrono) de aulas quando professor e alunos de uma turma interagem
nos mesmos horários das aulas da disciplina, se estudada em modelo presencial, diferenciando-se da
educação a distância que prioriza as videoaulas gravadas, cujo acesso pode ser feito a qualquer
momento (assíncrono). Foi estudado e discutido o gênero textual exposição dialogada com
embasamento em texto previamente lido, interpretado e fichado entre alunos e professores em sala de
aula virtual. Fundamentam este trabalho os postulados teóricos de Flick (2009), Koch (2004), Fávero,
Andrade e Aquino (1999), Marcuschi (2008, 2010, 2012), Santos (2008), entre outros. O trabalho
segue uma linha qualitativa, pelo fato de as ações se desenvolverem em processo; o pesquisador não
tem dados fornecidos a priori, tem apenas questionamentos sobre a temática investigada. Desse
modo, para a realização dos encontros virtuais, foram realizadas reuniões por meio da plataforma
google meet, em um total de quinze, das quais foram retirados momentos interativos para exibição de
resultados neste encontro. Os resultados apontaram para a possibilidade de ensino de categorias
especificas da oralidade, como o turno, as repetições, entre outras, além de categorias textuais que
contribuem para a construção do sentido dos gêneros em que estão inseridas. A relevância do trabalho
acontece porque sua elaboração se deu em pleno circuito das atividades remotas, quando ações
alternativas para o ensino da leitura/escrita devem ser reinventadas.

Palavras-chave: Oralidade; Ensino remoto; Leitura/escrita.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho tem por objetivo evidenciar as ações alternativas para o estudo da
leitura/escrita, em nível superior, em situação remota. Isso se deu devido à pandemia causada pela
Covid-19, o que exigiu a adoção de algumas medidas de segurança para a prevenção dessa doença,
entre elas a prática do ensino remoto para a área da educação. Pensando nisso, para a execução deste
trabalho, temos as seguintes perguntas: Em tempo de pandemia, com a aplicação do ensino remoto,
os gêneros textuais podem ser incluídos nas ações inventivas por ocasião do ensino de categorias

101
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-doutora pela Universidade Federal
da Bahia, (UFBA), e-mail: mfosal@gmail.com.
102
Graduanda em Letras Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Alagoas
(UNEAL), e-mail: gabriellee54321@gmail.com.
103
Graduando em Letras Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Alagoas
(UNEAL), e-mail: vandersonsts321@gmail.com.
318

conversacionais e textuais, em contexto acadêmico? O conceito da interação sofreu adaptações


perante a situação da pandemia?
Desse modo, podemos dizer que este trabalho busca formas para que o estudo da
leitura/escrita, em nível superior, venha a ser realizado através de ações alternativas para que possam
atender as condições tidas por professores e alunos nesse período de grande dificuldade vivida pela
sociedade. Assim, o texto tem uma grande importância para as aulas na atualidade, porque é preciso
haver reinvenções para despertar formas de trabalhar a leitura/escrita no contexto acadêmico vivido
nos dias hodiernos.
O trabalho tenta responder às questões feitas com base nos postulados da oralidade e
escrita em Koch (2004), Fávero; Andrade; Aquino (1999) e Marcuschi (2008, 2012), bem como em
aspectos conversacionais e interacionais em Santos (2008), entre outros. Inicialmente, discorremos
sobre os aspectos teóricos; depois sobre a sua aplicação em textos orais transcritos através da
plataforma google meet.
O trabalho teve como resultado a possibilidade de serem estudadas categorias acerca da
oralidade, como, por exemplo o turno conversacional e as repetições. Para tanto, mostraremos, além
dos dados obtidos em aulas, alguns pontos como: o valor das ações conversacionais, a concepção
sociointeracionista da linguagem, gêneros orais, entre outros; e, finalmente, responderemos às
perguntas feitas anteriormente, deixando uma reflexão sobre a possibilidade de serem feitas ações
interativas em pleno circuito de atividades remotas.

PONTUAÇÕES TEÓRICAS

Para o trabalho em foco, buscamos uma concepção de linguagem não centrada no código,
nem no instrumento, mas na interação, considerando que, no período da pandemia, professor e alunos
foram adaptados com mais frequência ao uso da tecnologia, concretizando-se o chamado ensino
remoto, aquele que se dá de maneira síncrona, isto é, as ações e decisões são tomadas em uma mesma
escala temporal entre professor e alunos. Assim, consideramos a língua(gem) como uma atividade
que viabiliza a construção do conhecimento, bem como a convivência entre os seres humanos, pois a
realização dessa língua(gem) se dá na interlocução entre esses seres, e o ato linguístico somente se
concretiza na chamada interação social.
Associada a essa concepção de língua(gem), aparece a de texto, que nos permite viabilizar
o elo interativo entre os participantes (professor e alunos) do processo interativo em sala de aula para
o tratamento dos sentidos veiculados nos materiais didáticos postos para estudo e discussão. Temos
então esse texto como o “lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de
sentidos (concepção de base sociocognitiva-interacional)” (KOCH, 2004, p. XII), que, num
319

continuum tipológico, assegura as especificidades para cada uma das modalidades de língua, a falada
e a escrita. Para a primeira, são reservadas características como pausas, truncamentos, repetições,
entre outras; para a segunda, aparecem rigor gramatical e cumprimento da normal culta.
Nessa linha de estudo, entendemos leitura e escrita como, respectivamente “uma
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com
base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual [...]” (KOCK; ELIAS, 2006, p.11) e
como uma atividade interativa em que “o sentido é um constructo, não podendo, por conseguinte, ser
determinado a priori.” (KOCK; ELIAS, 2006, p.11)
No meio das discussões feitas entre professor e alunos, vimos a importância da
conversação, percorrendo as ideias de Marcuschi (2010), que a considera como uma prática social de
caráter comum na vida diária, bem como um espaço privilegiado para que haja a construção de
identidades com atuação em contextos sociais. Dessa maneira, cada aluno ou cada professor se institui
como sujeito falante em espaços interlocutivos organizados por causa do período de pandemia
causada pela Covid 19.
Aliado à noção da oralidade, apresentamos o conceito de gênero textual, uma vez que
designa as ações concretas realizadas por professor e alunos nas múltiplas atividades diárias. Desse
modo, entendemos os gêneros textuais como “nossa forma de inserção, ação e controle social no dia-
a-dia. Toda e qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero [...]” (MARCUSCHI, 2008,
p.161). Tomamos por base ainda a categoria do expor de Schneuwly e Dolz (2004), a qual se
caracteriza como a apresentação textual de diferentes formas do saber. Nesse sentido, foi o gênero
entrevista escolhido para estudo definido como “conversa/conversação entre pessoas em local
combinado, para obtenção de esclarecimentos, avaliações, opiniões, etc., como numa entrevista de
emprego” (COSTA, 2008, p.93); no caso específico, tratou-se de uma entrevista de caráter avaliativo,
pois, após a leitura crítica de um texto lido previamente, o professor elaborou perguntas para aquisição
de informações e concretude da aprendizagem pelo aluno.
O gênero entrevista assume as categorias de um gênero assimétrico, pois o entrevistador
organiza um conjunto de perguntas, procurando ouvir e registrar as respostas; por outro lado, o
entrevistado tem conhecimento do assunto, além do poder da palavra, com limites a responder apenas
o que lhe fora questionado. Assim, numa relação de assimetria (SANTOS, 2008), de maneira remota,
entrevistador (professor) e entrevistados (alunos) procuram agir interativamente, em uma entrevista
pela plataforma do google meet, com fins avaliativos, ou melhor para averiguação das ideias contidas
no gênero previamente lido.
Neste trabalho, contemplamos a interação, segundo Thompson (2018), não como: a)
interação face a face com contexto de copresença, cenários espaço-temporais comuns, caráter
dialógico e multiplicidade de sinais simbólicos; b) interação mediada com diferentes categorias
320

espaciais e temporais, limitação na dialogia e diminuição de sinais simbólicos; c) quase interação


mediada, que é diferente da segunda, a comunicação de massa por meio de livros, jornais, rádios,
além de outros meios, por apresentar um caráter monológico e “ser orientada a um aspecto indefinido
de potenciais destinatários” (THOMPSOM, 2018, p.20).
O nosso entendimento de interação aponta para o quarto tipo de Thompson (2018), a
interação mediada on-line, uma vez que se adapta plenamente às execuções do ensino remoto pelo
uso da plataforma google meet e, evidentemente, ela corresponde à que melhor se enquadra nas linhas
da revolução digital, bem como no crescimento da internet, com inclusão ainda de outras formas de
educação em rede. Com a evolução e o desenvolvimento dos meios de comunicação, formas de
interação entram em processo de redefinições conceituais, para que melhor contribuam para a eficácia
da comunicação, causando maiores benefícios às relações sociais.

ASPECTOS METODOLÓGICOS DO TRABALHO

O trabalho segue uma linha qualitativa, pelo fato de as ações se desenvolverem em


processo. O pesquisador não tem dados fornecidos a priori, tem apenas questionamentos sobre a
temática investigada. Para a realização dos encontros virtuais, foram realizadas reuniões por meio da
plataforma google meet, em um total de quinze, das quais foram transcritos os dados das entrevistas,
segundo as normas de Marcuschi (2003) e Preti (2000). Os dados de uma entrevista foram utilizados
para apresentação neste trabalho.

MOMENTOS INTERATIVOS 1 E 2

O momento interativo 1 a seguir mostra uma situação de entrevista quando a professora


(F1) questiona acerca das ideias do texto estudado, permitindo que cada aluno faça seus comentários
iniciais, com respostas a duas perguntas e, depois, as considerações finais. Para este trabalho, foi
transcrito o segundo momento, que aparece a seguir:
F1: bom... eu acho que o maior ponto positivo da tecnologia é:::
são os meios de comunicação... porque graças aos meios de
comunicação como o whatsapp é:: ou o celular mesmo
podemos falar com pessoas que estão distantes de nós e que não
seria possível sem essa tecnologia... por exemplo eu consigo
falar com os meus familiares que estão em são paulo... e: em
qualquer lugar do mundo sem precisar ir lá então... eu acho
assim que os meios de comunicação são os mais importantes...
com eles também eu posso estudar... posso... é::: agora na
pandemia ... os meios de comunicação foram cruciais... porque
várias pessoas conseguiram é:: ver seus entes queridos e sentir
321

a presença deles através dos meios de comunicação... então eu


acho que para mim eles são os mais importantes.

O fragmento mostra o turno de F2 (aluno) quando questionado acerca dos pontos


positivos trazidos pela tecnologia; é o momento em que usa o turno, em uma relação assimétrica entre
professor e alunos. A leitura do texto de base foi feita de maneira construída, interativamente,
utilizando os recursos do google meet. Assim, foram pontuados elementos da oralidade, como pausas
em “de comunicação... porque”, alongamentos a exemplo de “tecnologia é:::”, “é::: agora na
pandemia”, sobretudo por repetições, o que vemos pela introdução inicial da unidade semântica
“tecnologia” no início do turno, sendo substituída por meios de comunicação, ao longo do
desenvolvimento das ideias do turno do F2. Assim, os fragmentos a seguir mostram como a coesão
se dá pela repetição, com a intenção de que as unidades repetidas sejam apreendidas pelo ouvinte:
“eu acho assim que os meios de comunicação são os mais importantes”, “... os meios de comunicação
foram cruciais...”. A importância da repetição se dá porque nunca repetimos o mesmo, pois a categoria
temporal não é a mesma, o que é ratificado por Marcuschi (2006, p.220), ao enunciar: “Repetir as
mesmas palavras num evento comunicativo não equivale a dizer a mesma coisa”.

O MOMENTO INTERATIVO 2

O momento interativo 2 foi atribuído ao F3 que usou o turno para também expressar sua
opinião acerca do texto, com um objetivo claro de demonstrar sua apreensão sobre o conteúdo lido,
em período de pandemia, num circuito interativo de comunicação on-line.
F2: bom ... é:: eu acredito que um pontos mais importantes da
tecnologia é a questão dela dentro do meio da saúde né ... a
gente sabe que com o avanço da tecnologia hoje a gente pode
fazer diversos é:: exames é:: entre outras coisas que antes não
era possível ... e com esse avanço da tecnologia hoje é né ...
então facilitou bastante a vida de muitas pessoas ... então eu
coloco o uso da tecnologia no meio da saúde como um dos
pontos ... importantes.

Da mesma forma que o F2 (aluno), o F3 (aluno) se expressa oralmente, utilizando os


mesmos recursos da oralidade, como pausas e alongamentos. Enquanto no outro fragmento a
repetição se concentrou em “meios de comunicação”, neste ela se deu representada pela unidade
322

lexical “tecnologia”, como em: “eu acredito que um pontos mais importantes da tecnologia”, “a gente
sabe que com o avanço da tecnologia”, entre outros fragmentos. O importante da repetição é que ela
está inserida em um evento comunicativo para elaborar e reelaborar a realidade, ser um processo
sociocognitivo e negociar os sentidos desse evento (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO,
2014). Esse momento interativo é importante em si por consolidar a interação on-line defendida por
Thompson (2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelas considerações feitas, com enfoque no aspecto interacional desenvolvido nas aulas
de leitura e escrita, em contexto acadêmico, vimos ser possível responder às questões formuladas
inicialmente: a primeira relacionada à inclusão dos gêneros textuais entre as ações inventivas por
ocasião do ensino de categorias conversacionais e textuais, em contexto acadêmico, em tempo de
pandemia; a segunda diz respeito às alterações sofridas pelo conceito de interação.
As análises e as pontuações apresentadas apontam para a possibilidade de ensino de
categorias conversacionais e textuais, em gêneros textuais (entrevista), em pleno circuito das
atividades remotas, quando ações alternativas para o ensino da leitura/escrita devem ser reinventadas;
tudo foi viável por meio da interação on-line, mediada pela plataforma do Google meet.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVALCANTE, Mônica Magalhães; CUSTÓDIO FILHO, Valdinar; BRITO, Mariza Angélica


Paiva. Coerência, referenciação e ensino. São Paulo: Cortez Editora, 2014.

COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de Gêneros Textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

FÁVERO, L.; ANDRADE, M. L, AQUINO, Z. oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de


língua materna. 5ª, ed. São Paulo: Cortez, 2005.

FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa; tradução Joice Elias Costa. 3. Ed. Porto Alegre:
Artmed; Bookman, 2009.

KOCH, Ingedore. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto,
2016.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 5. ed., 6ª reimpressão. São Paulo: Editora
Ática, 2003.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
323

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo: Parábola
Editorial, 2012.

PRETI, Dino (org.). Fala e escrita em questão. São Paulo: Humanitas, 2000.

SANTOS, Maria Francisca Oliveira. Simetria e assimetria no discurso de sala de aula. In: MOURA,
Denilda (org.). Os desafios da língua: pesquisas em língua falada e escrita. Maceió: Edufal, 2008.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e


organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, (2004)

THOMPSON, Jonh B. A interação mediada na era digital.. V.12 - Nº 3 set./dez. 2018 São Paulo -
Brasil p. 17-44.
324

ABORDAGEM DIALÓGICA NO ENSINO REMOTO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA


ESCOLA ESTADUAL PROFESSOR ANTÔNIO PINTO DE MEDEIROS

Marcos José de Souza Cipriano104

RESUMO
O estágio supervisionado remoto em língua portuguesa possibilitou uma experiência prática de
saberes e conhecimentos, com a realidade e a rotina escolar, de uma forma diferente da habitual e
revela-se ainda como um período oportuno de organização e preparação para que acadêmicos possam
vivenciar a experiência, vislumbrar as dificuldades cotidianas da educação, os desafios e as carências
individuais de cada aluno, frente a este novo formato de aulas em ambientes virtuais. As aulas
propositivas foram planejadas a partir de uma abordagem dialógica pelo viés teórico de BAKHTIN,
como princípio metodológico transdisciplinar, ou seja, na dialógica não se refuta nenhuma lacuna do
conhecimento e do saber, a condução do conhecimento disciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar
e interdisciplinar fazem parte da unicidade na diversidade que compõe a transdiciplinaridade. Logo,
o planejamento do ensino-aprendizagem partiu do príncipio da complexidade e como possibilidade
de perceber o mundo, a realidade particular e individual dos alunos, de modo a proporcionar aulas
interativas, reflexivas, com a prática de ensino voltada para despertar interesses e discussões a partir
das experiências e cotidiano dos alunos. Os percursos metodológicos das atividades laborais foram
orientados a partir da concordância com as habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
Ensino Fundamental Anos Finais, especificamente da turma do 9º ano. Tais procedimentos
consistiram com transmissão em tempo real, sendo essencial a adoção de tecnologias, permitindo-se
a comunicação, interação e a avaliação dos estudantes, adotando-se aulas expositivas, discussões
temáticas e atividades de pesquisa. A atividade do estágio, desenvolvida na Escola Estadual Professor
Antônio Pinto de Medeiros, seguiu o formato de aulas remotas síncronas e assíncronas mediante a
utilização da plataforma do G suíte. O processo de atividade auxiliar e de acompanhamento, foi
iniciado no dia 19 de agosto de 2020 e encerrado em 18 de novembro do mesmo ano, sob a supervisão
da professora de Português, regente da turma do nono ano. Durante o decurso das aulas remotas
síncronas, teve um momento que despertou a sensibilidade e emoção, na aula ‘começando o debate’,
final seqüencial de três planos de aula, na qual foram apresentadas quatro charges com temáticas
diferentes, ‘educação pública e particular’, ‘o sistema único de saúde’, ‘cotas raciais’ e ‘lei da
palmada’, contextualizadas e explicada, abordando temas polêmicos, além do funcionamento e regras
de um debate. Ademais foi sugerida, que a decisão e escolha do tema fossem feita pelos alunos e
assim, foi decidido à temática da educação e logo na aula subsequente, os alunos organizaram e
participaram do debate, com regras definidas, participação do mediador, dos debatedores, além de
perguntas, respostas, réplicas e tréplicas. De modo que os participantes se apropriaram de forma
crítica, utilizando-se a retórica e argumentação na defesa de suas teses, com discursos afirmativos,
coerentes e fundamentadas diante das percepções e realidades individuais. Portanto, infere-se e
avalia-se de forma satisfatória, mediante a competência, boa desenvoltura e expressividades dos
alunos na tarefa desenvolvida, que o ensino remoto supriu as expectativas e necessidades dos
discentes.

Palavras-chave: Ensino remoto. Oralidade. Discurso dialógico.

INTRODUÇÃO

104
Mestre em Letras pela UERN. E-mail: marcoscipriano34@hotmail.com
325

No decurso do período pandêmico, o ensino tradicional presencial sofreu um impacto e


notadamente uma mudança na rotina escolar. Causando-se necessariamente novas adaptações,
reinvenções, mudanças de formatos, alterações nos cronogramas e calendários letivos.
Consequentemente a realidade impôs novos desafios e práticas pedagógicas aos professores (as) que
tiveram que aprender recursos e plataformas midiáticas, áudios-visuais, ou seja, a adoção de
tecnologias para viabilizar e mediar o processo de ensino-aprendizagem.
Neste cenário, foi realizado o estágio supervisionado em língua portuguesa, na
modalidade remota, desenvolvido na Escola Estadual Professor Antônio Pinto de Medeiros, na cidade
de Natal/RN nos anos finais do ensino fundamental II.
Diante da oportunidade cedida, houve a necessidade de buscar ponderações, avaliar a
aplicabilidade do ensino, consultar e se apropriar de teorias, embasamentos filosóficos e literatura
especializada na educação.
Para tanto, as aulas propositivas foram planejadas a partir de uma abordagem dialógica
pelo viés teórico de Bakhtin (2003), visando contribuir para o ensino de língua portuguesa.
Logo, na dialógica não se refuta nenhuma lacuna do conhecimento e do saber, a condução
do conhecimento disciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar e interdisciplinar fazem parte da
unicidade na diversidade que compõe a transdisciplinaridade. Diante da perspectiva, o planejamento
do ensino-aprendizagem partiu do princípio da complexidade e como possibilidade de perceber o
mundo, a realidade particular e individual dos alunos, de modo a proporcionar aulas interativas,
reflexivas, com a prática de ensino voltada para despertar interesses e discussões a partir das
experiências e cotidiano dos alunos.
Para fundamentar os pressupostos e pensamentos de Bakhtin (2003), pela abordagem
dialógica, com foco no ensino de língua portuguesa, apresentei por escolha aleatória, uma aula
intitulada, organizando um debate regrado, cuja finalidade foi realizar o debate em sala de aula virtual
a partir do tema polêmico determinado pela escolha de charges, com a utilização da linguagem oral,
visando aprender seu uso em uma situação comunicativa formal e com regras específicas de
interlocução, bem como posicionar-se criticamente frente ao tema proposto.
Ademais, o objetivo geral do estudo tratou-se de: investigar o processo de relação
dialógica mediada entre o professor e os alunos através das aulas remotas no ensino de língua
portuguesa.
Para tanto, foram delineados os seguintes objetivos específicos:
✓ Investigar a relação dialógica entre professor e alunos, tendo em vista as
diferentes posições subjetivas por eles assumidas em situações de ensino e aprendizagem.
✓ Ponderar que a escola possui mecanismos que podem contribuir para o
desenvolvimento do ser humano;
326

✓ Refletir acerca da importância da participação do dialogismo e escuta ativa nos


rumos do desenvolvimento educacional;

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Abordagem dialógica e responsividade ativa no ensino de língua portuguesa

O conceito bakhtiniano de dialogismo está estritamente ligado ao de compreensão


responsiva ativa. Nesse processo de compreensão, mobiliza-se uma gama de experiências históricas
e socialmente construídas que são ativados para emitir-se uma resposta a determinado discurso,
demarcando uma posição, um juízo de valor do locutor, numa dada esfera da comunicação verbal,
para a qual ele prevê uma resposta ou uma compreensão ativa do interlocutor, de um auditório social.
Bakhtin/Volochinov (2006) alertam para que essa projeção que o locutor faz de seu interlocutor não
ultrapasse as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas. Assim, quando falamos ou
escrevemos, sempre devemos considerar a caracterização do interlocutor, como: posição social,
formação intelectual, graus de intimidade com o locutor, entre outros fatores. Em função desses
fatores, é feita a escolha do gênero do enunciado, dos procedimentos composicionais e dos recursos
linguísticos, visando-se à instauração de espaços de dialogicidade.

Práticas discursivas em sala de aula virtual

A partir da adaptação das reflexões bakhtinianas para uma abordagem das práticas de
ensino e aprendizagem, algumas atividades podem ser planejadas e executadas para desenvolver ou
aprimorar a compreensão responsiva ativa, bem como os espaços de interlocução, de dialogicidade
na sala de aula.
Na atividade realizada, a justificativa foi contrapor-nos a um trabalho com a oralidade.
Na perspectiva adotada neste estudo, a decodificação é apenas parte do processo de compreensão.
Esse conceito de decodificação está associado ao de descodificação, segundo Bakhtin/Volochinov
(2006). O primeiro conceito pode ser associado à ideia de identificação da materialidade linguística
(compreensão passiva) e o segundo, ao de compreensão (ativa). Segundo Fiorin (2008, p. 6), “isso
quer dizer que a compreensão passiva de significação é apenas parte do processo global de
compreensão. O todo é a compreensão responsiva ativa, que se expressa num ato real de resposta.”
Assim, uma prática de ensino fundamentada numa perspectiva dialógica proporciona uma
integração entre aspectos linguísticos e discursivos. Para que haja a instauração de outros discursos,
que acontecem em função da compreensão, é necessário que se vá além da materialidade linguística
327

do texto, como também que o leitor valha-se de conexões com conhecimentos e informações
anteriores associadas a elementos implícitos ou explícitos no texto. A falta dessas informações,
concebidas como conhecimento de mundo, pode comprometer o processo de compreensão.
No processo de observação e intervenção em sala de aula, percebemos que um dos fatores
que interferem na produção de uma atitude responsiva ativa não é apenas a limitação de
conhecimentos anteriormente adquiridos, é também a capacidade de identificação de informações
implícitas, que, em alguns casos, fica a depender de experiências de leitura e do uso corrente da
língua. Nesse sentido, o professor exerce significativo papel na condução da práxis pedagógica.
Esse papel que o professor pode exercer deve estar em consonância com uma concepção
de língua que vai além de um sistema abstrato de formas, alheio à realidade social do indivíduo; uma
concepção que considera o enunciado como discurso (MAINGUENEAU, 2008). Um discurso que
“reencontra o discurso do outro em todos os caminhos que levam a seu objeto, e um não pode não
entrar em relação viva e intensa com o outro” (MAINGUENEAU, 2008, p. 33).

Compreensão da língua/linguagem na análise dialógica do discurso

Para Bakhtin/Volochinov (2006) e seu Círculo, a língua é dialógica. Dialógica não no


sentido restrito da palavra, mas no sentido mais amplo, o que significa dizer que todo discurso
produzido leva em conta outros anteriormente produzidos e busca dialogar com outros a serem
produzidos posteriormente. Nesse sentido, de acordo com a concepção de linguagem bakhtiniana, o
sujeito não se expressa apenas, ele age, atua com seu interlocutor, esperando deste uma resposta.
Essa resposta só é construída quando o ouvinte dialoga com o interlocutor com o qual
tem contato através dos enunciados. Quando ao sujeito ouvinte é emitido um enunciado, ele já é
passível de resposta, já a requer. E é a compreensão quem favorece essa atitude.
Desse modo, Bakhtin/Volochinov (2006) redefinem o papel dos principais componentes
da interação verbal. Para eles, não existe o ouvinte e o entendedor, porém existe o falante e o ouvinte,
e este último, ao perceber o significado do discurso, ocupa uma ativa posição responsiva, uma
(re)ação (BAKHTIN, 2003). Mas a (re)ação do ouvinte só é passível de acontecer se houver
compreensão, que sempre se dá ativamente. Isso ocorre a partir da mobilização de uma atividade
mental com os signos envolvidos na interação verbal que, em diálogos com outros anteriores,
promovem outros discursos.
Emerge dessas postulações de Bakhtin/Volochinov (2006, p. 16) o conceito de
enunciação, definida como “um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala
determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das
condições de vida de uma determinada comunidade linguística”.
328

Assim, a interação pela linguagem se estabelece em inter-relações recíprocas, orientadas,


mas sem excluir uma contra-ação (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006), o que se configura numa
atitude responsiva ativa. Isso porque cada sujeito utiliza o enunciado para imprimir seu ponto de vista.

METODOLOGIA DA PESQUISA

As atividades laborais foram orientadas a partir da concordância com as habilidades da


Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Ensino Fundamental Anos Finais, especificamente da
turma do 9º ano. Consistiram com transmissão em tempo real, sendo essencial a adoção de
tecnologias, permitindo-se a comunicação, interação e a avaliação dos estudantes, adotando-se aulas
expositivas, discussões temáticas e atividades de pesquisa.
A atividade do estágio, desenvolvida na Escola Estadual Professor Antônio Pinto de
Medeiros, seguiu o formato de aulas remotas síncronas e assíncronas mediante a utilização da
plataforma do G suíte. O processo de atividade auxiliar e de acompanhamento, foi iniciado no dia 19
de agosto de 2020 e encerrado em 18 de novembro do mesmo ano, sob a supervisão da professora de
Português, regente da turma do nono ano.
Durante o decurso das aulas remotas síncronas, elaborei um recorte espacial da aula
ministrada com o título ‘começando o debate’, final sequencial de três planos de aula, na qual foram
apresentadas quatro charges com temáticas diferentes, ‘educação pública e particular’, ‘o sistema
único de saúde’, ‘cotas raciais’ e ‘lei da palmada’, contextualizadas e explicada, abordando temas
polêmicos, além do funcionamento e regras de um debate.
Ademais foi sugerida, que a decisão e escolha do tema, seria garantido pelos alunos e
assim, foi decidido à temática da educação e logo na aula subsequente, os alunos organizaram e
participaram do debate, com regras definidas, participação do mediador, dos debatedores, além de
perguntas, respostas, réplicas e tréplicas.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Conforme mencionado a partir da adaptação das reflexões bakhtinianas para uma


abordagem das práticas de ensino e aprendizagem, a atividade ‘começando o debate’ foi planejada e
executada para desenvolver ou aprimorar a compreensão responsiva ativa, bem como os espaços de
interlocução, de dialogicidade na sala de aula virtual.
Na atividade realizada e descrita a seguir, foi pensada em um contexto de trabalho
multimodal, utilizando-se textos, imagens e vídeo, seguindo-se um plano sequencial de três aulas para
culminar no debate realizado pelos próprios alunos (as).
329

A didática da aula a priori foi conduzida em explicações e ensinamentos a respeito do


gênero debate, tais como, o funcionamento, além das regras e atenção nas linguagens verbais e não
verbais dos participantes de um debate. Dada a ênfase também no moderador e nos debatedores contra
e a favor de uma determinada tese.
Foi transmitido também um vídeo do YouTube do programa TVE, no formato de debate,
cujo tema era o uso de cotas raciais no Brasil, com a finalidade de inserir os alunos com o tema
proposto. E em seguida, após a finalização do vídeo, buscou-se provocar, induzir os alunos para
eventuais percepções, opiniões e esclarecimentos e indagá-los, propriamente dito, para identificar os
efeitos polissêmicos de sentido e interpretação individual.
Logo, houve uma sucessão de inquietações e manifestações dos alunos com a atividade
proposta, opiniões estas consensuais e outras surpreendentes. Na aula posterior foram apresentadas
quatro charges e temáticas distintas, dentre elas, a educação pública e particular, o sistema único de
saúde, cotas raciais e lei da palmada para que os alunos pudessem escolher além de definir os grupos
e em seguida elaborarem as estratégias, as defesas e toda a logística para a realização do debate. Após
a decisão de todos os alunos, prevaleceu o tema ‘educação pública e particular.
Para a realização das atividades, os alunos tiveram a ideia de criar um grupo no whatsapp
para planejar e coordenar com a equipe envolvida as diretrizes e regras do debate, a prospecção de
pesquisas e consultas pela internet além de revistas e jornais. E assim foi oportuno também para se
organizarem em relação quem seriam os debatedores a favor e os debatedores contrários, além da
escolha do moderador do debate, tudo pensado dialeticamente pelos próprios alunos.
Logo, a atividade foi executada com dinamismo, competência e acima de tudo, os alunos
conseguiram absorver o conhecimento, aprenderam e dominaram a temática com maestria. Assim, a
prática educacional observada revelou-se uma preocupação humanista, uma didática pensada de
forma reflexiva, coexistindo em um contexto da realidade sociocultural dos alunos, reverberando
conteúdos centrados nos aspectos cognitivos e emocionais, no respeito mútuo e com olhar de
aproximação, afago, empatia, transmitindo-se valores, condutas de cidadania, inserção de
pensamentos críticos construtivos e coexistindo o processo dialógico, perpassado pela mediação da
professora e integração exitosa dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que, o espaço escolar na conjuntura atual se apresenta como um ambiente cercado
de diversos interesses, tanto visíveis e tangíveis, como invisíveis e intangíveis, que são capazes de
afetar tremendamente a vida dos alunos que se encontram inseridos nesse rico espaço.
330

Percebe-se nesse contexto que, a escola desempenha um papel social de extrema


importância, diante da multiplicidade de ações e práticas que são desenvolvidas com a finalidade de
ensinar o indivíduo a socializar os conceitos aprendidos no ambiente escolar e com isso propiciar um
retorno satisfatório ao espaço escolar, onde o mesmo continuará revendo possibilidades de continuar
exercendo bem a sua principal função que é o ensino-aprendizagem.
A escola tem se apresentado como um ambiente, onde as relações sociais são
desenvolvidas de forma dinâmica, pois contribui eficientemente para a formação do indivíduo, visto
que, são indispensáveis para “o desenvolvimento de atitudes e valores pautados na ética,
solidariedade, capacidade de criação e respeito às decisões coletivas e às diversidades culturais”
(NASCIMENTO, 2009, p. 4).
O estágio supervisionado em Português proporciona uma experiência prática de saberes
e conhecimentos, com a realidade escolar. É um período oportuno de organização e preparação para
que acadêmicos e futuros professores possam vivenciar a experiência em sala de aula, vislumbrar as
dificuldades cotidianas da educação e as carências individuais de cada aluno.
Nesta etapa de estágio é que os estímulos e ações se encontram: de um lado as reflexões,
ponderações, análises e correntes teóricas, desafios para uma educação bem sucedida; do outro lado,
há a realidade escolar pragmática e, nesta tessitura, há a consciência do déficit que a educação tem
no Brasil.
Como possíveis estagiários e futuros professores, apropriar desse ciclo de estágio propicia
encontrar as próprias dificuldades e lacunas, limitações e superá-las, aprimorando e aperfeiçoando os
conhecimentos para a realização de uma prática eficaz e profícua.
Logo, o estágio segmenta com sensatez e clareza que a experiência docente só se sucede
quando efetivamente se está diante da turma. É quando as atenções e expectativas dos alunos estão
postas de forma firme, é só assim que o trabalho se inicia, sendo à hora de enfrentar, aceitar os
desafios, ou seja, o momento de dar o melhor. A troca e sinergia que incorre nesta fase das
intervenções superam as expectativas e traz o retorno gratificante que possibilita perceber que o
aperfeiçoamento é sistemático, cotidiano e contínuo.
A força diretriz sempre será o aluno, as necessidades e anseios dele são vistas como
prioridade crucial, o sucesso e êxito dos discentes é o objetivo maior que nos move. Mais do que
aprender a planejar e preparar aulas, o estágio evidencia incontestavelmente a importância da relação
professor/aluno, confirmando que o respeito, dedicação e boa vontade resultam em reconhecimento,
valoração e harmonia na sala de aula.
Mesmo considerando todos os possíveis cerceamentos advindos do espaço cibernético,
ou seja, o acontecimento de aula em um ambiente de sala virtual, sem o contato sinestésico, sem a
percepção nítida das expressões visuais e linguagens não verbais dos alunos, um dado que merece ser
331

considerado é que os alunos assimilaram a atividades proposta, que foi possível compreender o texto
e a aula sob outra perspectiva, permitindo-se outras produções de sentido tanto acerca do texto do
outro, autor, quando na contra-palavra proposta escrita sobre o dizer desse outro, instaurando, assim,
espaços de dialogicidade, reafirmando a importância dos pressupostos bakhtinianos para um
redimensionamento das concepções que embasam as práticas pedagógicas sobre ensino e
aprendizagem da língua portuguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem.12. ed. São


Paulo: Hucitec, 2006.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(Tradução Paulo Bezerra).

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Gêneses dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008.

NASCIMENTO, AD., E HETKOWSKI, TM., orgs. Educação e contemporaneidade: pesquisas


científicas e tecnológicas. Salvador: EDUFBA, 2009.
332

A MEDIAÇÃO DOCENTE NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE


LEITURA E DE ESCRITA EM TEMPOS DE ENSINO REMOTO

Glaucia Peçanha Alves105

RESUMO
O mundo está, desde o final de 2019, atravessando um período difícil e conturbado por causa da
pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19). E a medida adotada pelos governantes para
conter a disseminação da covid-19 foi o isolamento social. Essa medida forçou algumas mudanças
nos diferentes setores da sociedade, inclusive, na educação. As instituições de ensino de diversos
estados brasileiros adotaram plataformas digitais para a manutenção das aulas durante o isolamento
social implementado. Várias secretarias de educação passaram a utilizar o Google Classroom (Google
Sala de Aula) acompanhado de outras ferramentas digitais. Diante desse contexto, objetivamos, com
o presente trabalho, relatar a experiência da mediação docente nos processos de ensino e
aprendizagem de leitura e de escrita durante o ensino remoto. Para tanto, observamos a atuação de
uma professora de Língua Portuguesa e o desempenho de alunos de uma turma do segundo ano do
Ensino Médio de uma escola pública da rede estadual de ensino localizada no município de Duque
de Caxias no estado do Rio de Janeiro. Os alunos realizaram uma série de atividades de leitura e
escrita com a orientação da professora através da plataforma Google Sala de Aula e do Google Meet.
Tomamos, como pressupostos teóricos, os estudos críticos de autores que tratam da temática do
professor como um mediador e, também, de autores que tratam da prática de leitura e de escrita, em
especial, Giroux (1997), Martins (2007), Tébar (2011), Freire (1988), Lakatos e Marconi (2018,
2019), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). A metodologia utilizada para a realização desta
investigação foi de cunho qualitativo, justamente porque queríamos saber as opiniões e os pontos de
vista dos entrevistados. Os resultados da pesquisa revelaram que os alunos não estavam habituados a
trabalhar a leitura e a escrita da forma que foram trabalhadas nestas aulas e que eles têm dificuldade
no autodidatismo. Concluímos que a atuação ativa do professor é imprescindível para uma melhor
performance de seus alunos, até mesmo, quanto ao uso das ferramentas digitais, pois, apesar de o
Google Meet e o Google Classroom serem ferramentas que aproximam e facilitam a interação entre
alunos e entre alunos e professores, é o docente que realiza a seleção dos conteúdos para pôr na
plataforma; é ele que orienta, medeia e ajuda os discentes a construir sua própria capacidade para
enriquecer seus conhecimentos.

Palavras-chave: Mediação docente. Ensino e aprendizagem de leitura e de escrita. Ensino remoto.

INTRODUÇÃO

Desde o final do ano de 2019, o mundo está atravessando um período inabitual e difícil
por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19). E a medida adotada pelos
governantes para conter a disseminação da covid-19 foi o isolamento social. Essa medida forçou

Professora de Língua Portuguesa e Literaturas da Secretaria de Estado e Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC-RJ/
105

Aluna de Pós-Graduação em Linguística Textual e Ensino da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-
mail: glaupecanha@gmail.com
333

algumas mudanças nos diferentes setores da sociedade, inclusive, na educação. As instituições de


ensino de diversos estados brasileiros recorreram ao ensino remoto.
O ensino remoto, diferente do ensino a distância, recomenda aulas em um formato com
interações frequentes entre alunos e professores. De preferência, interações instantâneas, ou seja, que
os participantes estejam conectados em tempo real durante a comunicação. As aulas, em geral, são
ministradas nos mesmos dias da semana e horários que eram ministradas no presencial.
Para efetuar o ensino remoto, as instituições de ensino adotaram plataformas digitais
durante o isolamento social implementado. Várias secretarias de educação passaram a utilizar o
Google Classroom (Google Sala de Aula) acompanhado de outras ferramentas digitais.
Diante desse contexto, o presente trabalho visa relatar a experiência da mediação docente
nos processos de ensino e aprendizagem de leitura e de escrita durante o ensino remoto. Para tanto,
observamos a atuação de uma professora de Língua Portuguesa e o desempenho de alunos de uma
turma do segundo ano do Ensino Médio de uma escola pública da rede estadual de ensino localizada
no município de Duque de Caxias no estado do Rio de Janeiro. Os alunos realizaram uma série de
atividades de leitura e escrita com a orientação da professora através da plataforma Google Sala de
Aula e do Google Meet.
O artigo está dividido em três seções para além da Introdução, das Considerações finais
e das Referências. Na seção Referencial teórico, selecionamos alguns postulados críticos que
orientam as análises efetuadas nesta pesquisa. Na seção Metodologia, discorremos sobre os métodos
definidos na coleta de dados e expomos os procedimentos realizados. E, na seção Resultados,
apresentamos os resultados qualitativos da pesquisa.

REFERENCIAL TEÓRICO
Para a realização desse trabalho, tomamos, como pressupostos teóricos, os estudos
críticos de autores que tratam da temática do professor como um mediador e, também, de autores que
tratam da prática de leitura e de escrita, em especial, Giroux (1997), Martins (2007), Tébar (2011),
Freire (1988), Lakatos e Marconi (2018, 2019), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).

A mediação docente na aplicação da metodologia ativa sala de aula invertida

As metodologias ativas são métodos nos quais os alunos são postos no centro do processo
de aprendizagem, ou seja, diferente do método tradicional, que o enfoque era o ensino e o professor
o protagonista, com essas metodologias o aluno passa a protagonizar e é o principal responsável por
sua aprendizagem. Se antes esse discente era passivo, esperava receber todo o conteúdo do docente,
com as metodologias ativas ele se torna participativo e autônomo.
334

A Sala de aula invertida é a metodologia ativa que, como está posto em seu nome,
apresenta uma metodologia inversa à que ocorre na sala de aula tradicional. No ensino tradicional, os
alunos têm o primeiro contato com os conteúdos na sala de aula, todo o ensino é passado pelo
professor e em casa é que resolvem exercícios e, depois, passam por uma avaliação formal
(prova/teste). Já com a Sala de aula invertida, os alunos têm o contato com os conteúdos fora da sala
de aula física (em casa) e levam, para a sala de aula, suas dúvidas, questões, aprendizados e, assim,
há o compartilhamento e a interação. O papel do professor, nessa metodologia, não é passar, transferir
os conteúdos, mas sim mediar os estudos, provocar seus alunos. Fazer com que esses alunos
participem de forma ativa do processo de aprendizagem.
Para que o docente atue de forma efetiva nessa metodologia, é necessária uma formação
desse profissional. Não necessariamente uma formação formal, mas muitas leituras, participações em
eventos acadêmicos, científicos etc., pois, assim, ele terá contato com teorias mais atuais e também
conhecerá experiências na área.
Valente (1999, p.31) diz que “a educação não pode mais ser baseada no fazer que leve ao
compreender”. Sendo assim, o professor precisa estar capacitado para saber o modo que transmitirá
os conhecimentos para que os alunos protagonizem no processo de aprendizagem. O professor
mediador é aquele que mostra os caminhos e orienta seus alunos no percurso. Ele desperta no aluno
o interesse e a vontade de aprender. Com professores mediadores, os alunos não serão mais aqueles
alunos passivos do ensino tradicional. Eles contribuirão com a aula. Levarão para a turma os
conhecimentos que obtiveram em suas pesquisas, por exemplo. Enriquecerão a aula com
questionamentos pertinentes e apresentando suas percepções. Então, esse professor não trabalha
esperando que os alunos compreendam algo exposto por ele, antes, o seu objetivo é que os alunos
façam parte de todo o processo de aprendizagem. E que esses alunos consigam aplicar o que
aprenderam em problemas reais que possam surgir em seu cotidiano. Além disso, que sejam críticos,
que leiam, reflitam e ajam com perspicácia.
Para Giroux (1997), os educadores devem combinar ação e reflexão para formarem
educandos críticos, que analisam o mundo criticamente e o transforma. Em seu ensaio “Professores
como intelectuais transformadores”, ele trabalha com a tese de que o professor não é um técnico, mas
sim um intelectual e, como tal, deve se assumir e ser assumido como intelectual transformador. Ele
diz ainda que o docente deve ser considerado intelectual transformador, cujo forte está em “tornar o
pedagógico mais político e o político mais pedagógico”(GIROUX, 1997, p. 163). Então, nessa
perspectiva, os professores, como intelectuais transformadores, devem contribuir no engajamento de
seus alunos de forma a orientá-los para transformar as situações de injustiças econômicas, políticas
ou sociais.
Ainda dentro dessa perspectiva, destacamos a fala de Tébar (2011, p. 77), pois para ele:
335

A mediação é um fator humanizador de transmissão cultural. O homem tem como fonte de


mudança a cultura e os meios de informação. O mediador se interpõe entre os estímulos ou a
informação exterior para interpretá-los e avaliá-los. Assim, o estímulo muda de significado,
adquire um valor concreto e cria no indivíduo atitudes e críticas flexíveis. A explicação do
mediador amplia o campo de compreensão de um dado ou de uma experiência, gera
disposições novas no organismo e produz uma constante retroalimentação informativa
(feedback). Trata-se de iluminar a partir de diferentes pontos um mesmo objeto do nosso
olhar.

O professor é a pessoa mais experiente, com formação especializada, que conduzirá os


alunos no processo de aprendizagem. Ele identifica as dificuldades de seus alunos e busca esclarecer,
muitas vezes, com exemplos ou utilizando o mesmo conteúdo, mas expondo em outras palavras. Seu
fazer pedagógico é muito importante, também, nas escolhas e no preparo dos materiais didáticos. O
professor mediador é um orientador e curador dos conteúdos.
Para ratificar o que estamos tratando nesta seção do trabalho, destacamos a importância
do professor mediador, que é um educador, com as palavras de Martins (2007), pois para ele:

O educador é, sem dúvida, o elemento fundamental da comunidade educativa, pois


desempenha a missão de formar a alma do educando. Em função disso, não pode limitar-se
ao mero transmissor de conhecimento. [...] para cumprir bem sua missão o educador deve ser
um estudioso permanente e ter um bom caráter, isto é, seu comportamento em momento
algum deve contradizer seus preceitos [...] por causa do progresso de tecnologia e dos meios
de comunicação, a sociedade está em transformação permanente, o que exige do verdadeiro
educador atualização constante por meio de cursos, congressos, simpósios, muita leitura,
enfim o educador deve ser um estudioso constante (MARTINS, 2007, p. 149).

O professor é o responsável pela gestão dentro da sala de aula. É ele que leva o grupo a
participar das ações de forma coletiva e comprometida com o interesse de todos. Ele ensina os alunos
a aprender. Por isso o professor precisa sempre estar engajado, atuante, informado e preparado, para,
assim, instruir e orientar seus alunos.

Por que trabalhar com leitura para ensinar a escrita?

Sabemos o quanto a leitura é importante, principalmente quando o assunto tratado se


refere à educação. E ler não é só decodificar palavras nem só reconhecer a língua, mas é ler para além
dela. Além disso, lemos, também, textos sem palavras. Paulo Freire, por exemplo, afirma que a
“leitura do mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1989, p.9). Apesar de essa afirmativa ter
sido feita em relação ao método de alfabetização de adultos, ou seja, tais aprendizes já faziam leituras
de mundo (liam a realidade de onde viviam), leituras de textos sem palavras, podemos dizer, também,
que para significar os textos acrescentamos às palavras nossos conhecimentos de mundo.
336

O ato de ler é complexo, com várias relações. O leitor, além de conhecer o código, precisa
prever, antecipar e dialogar com os possíveis sentidos e desfazer ambiguidades. É necessário, ainda,
conferir as informações, articulá-las, relacioná-las com outros saberes, com outros discursos e valores
do contexto social. Ler é construir significados, é buscar e gerar informações.
Confirmando o que está sendo tratado nesta seção do trabalho, Antunes (2003, p. 66) diz
que a leitura é “[...] parte da interação verbal escrita, enquanto implica a participação cooperativa do
leitor na interpretação e na reconstrução do sentido e das intenções pretendidos pelo autor”, isto é,
para ela a leitura não é somente a decodificação do código, a leitura ultrapassa o que está escrito. É a
atribuição de sentido pelo leitor. Além disso, para a autora a atividade de leitura se completa na
atividade de produção textual. Então, as atividades de leitura e produção devem ser trabalhadas
relacionadamente.
Para tanto, os textos precisam circular pela sala de aula. E é muito importante que se
trabalhe a leitura com textos autênticos. É necessário um planejamento de acordo com as necessidades
da turma. Marcuschi (2008, p.51) reforça que:

[…] o ensino de língua deve dar-se através de textos é hoje um consenso tanto entre linguistas
teóricos como aplicados. Sabiamente, essa é, também, uma prática comum na escola e
orientação central dos PCNs. A questão não reside no consenso ou na aceitação deste
postulado, mas no modo como isto é posto em prática, já que muitas são as formas de se
trabalhar texto.

Conforme disse Marcuschi, a questão está na forma que os textos serão trabalhados. O
texto não pode ser utilizado como pretexto para o ensino de gramática. E como os textos são
apresentados, no cotidiano, em gêneros textuais, estes necessitam ser considerados no momento de
ensino-aprendizagem de línguas.
Para Schneuwly e Dolz (2004), “é o gênero que é utilizado como meio de articulação
entre as práticas sociais e os objetos escolares — mais particularmente, no domínio do ensino da
produção de textos orais e escritos”. Então, é imprescindível o uso da sequência didática (SD), que é
“um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97), para o ensino-aprendizagem de
línguas, pois ela (SD) guia tanto o trabalho de leitura quanto o de produção textual. Para que os alunos
produzam textos de determinado gênero, é preciso que leiam textos desse gênero.
Através da sequência didática, o professor pode orientar o aluno no passo a passo. Será
um trabalho de construção. Além de o professor ensinar e o aluno aprender pontos específicos, ficam
mais perceptíveis as dificuldades dos alunos para o professor. Sendo assim, o planejamento feito pelo
337

docente pode ser mais direcionado. O trabalho com as sequências apresenta melhores resultados no
que diz respeito à formação de leitores competentes.
E, como está posto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a escola tem a
responsabilidade de formar leitores competentes.

O trabalho com leitura tem como finalidade a formação de leitores competentes e,


consequentemente, a formação de escritores, pois a possibilidade de produzir textos eficazes
têm sua origem na prática de leitura, espaço de construção da intertextualidade e fonte de
referências modalizadoras. A leitura, por um lado, nos fornece a matéria prima para a escrita:
o que escrever. Por outro, contribui para a constituição de modelos: como escrever.
(BRASIL, 1997, p. 40)

Então, através da leitura, o discente se informa, se capacita com determinados conteúdos


e vai apreendendo a forma, o modelo do texto que está estudando podendo, assim, produzir seu
próprio texto.
Em suma, a leitura é importante para os estudos, nas palavras de Lakatos e Marconi (2018,
p.1), porque “favorece a obtenção de informações já existentes, poupando o trabalho da pesquisa de
campo ou experimental. Ela propicia a ampliação do conhecimento, abre horizontes na mente,
aumenta o vocabulário, permitindo melhor entendimento do conteúdo das obras”. Por isso precisa ser
trabalhada de forma detalhada, pois é uma atividade complexa e sem a qual não haverá a atividade
de produção textual.

METODOLOGIA

Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, essa é uma pesquisa-ação, pois a


pesquisadora desempenhou um papel ativo na realidade dos fatos observados. As dificuldades dos
alunos foram detectadas e, depois, houve um planejamento de intervenção para resolver, solucionar
as questões encontradas.

Local da pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola pertencente à Secretaria de Estado de Educação


do Rio de Janeiro – SEEDUC-RJ. A escola é considerada uma escola padrão. Há uma equipe de
funcionários muito comprometida, ou seja, os alunos têm um suporte, um retorno da escola. E não
foi diferente nesse tempo de ensino remoto. Os diretores, as coordenadoras e os docentes são muito
solícitos e capacitados.
338

Sujeitos da pesquisa

Essa pesquisa foi desenvolvida em uma turma do segundo ano do Ensino Médio. A turma
era composta por trinta e dois (32) alunos, com aproximadamente dezesseis, dezoito anos de idade.
No entanto, somente dez alunas participaram de forma mais assídua. Alguns alunos acessaram,
inicialmente, à plataforma adotada para a ministração das aulas, mas, com o passar do tempo, não
estavam mais acessando. Uma parte dos alunos fez as tarefas e respondeu as questões da entrevista
formuladas para a investigação da pesquisa. Diante disso, a maior parte da investigação foi baseada
nas respostas e produções dessas dez alunas.

Método da pesquisa

A metodologia adotada apresenta uma mescla da pesquisa de campo com a pesquisa de


levantamento. E a abordagem da pesquisa foi de natureza qualitativa, pois não foi nosso propósito
contabilizar dados. Foram realizadas entrevistas através do Google Meet e a pesquisadora organizou
uma espécie de diário para registrar suas observações. Buscamos saber as particularidades dos alunos
entrevistadas, os seus pontos de vista em relação ao tema investigado, ou seja, exploramos, de modo
mais aprofundado, as informações mais subjetivas desses alunos.
A implementação pedagógica foi avaliada pelas informações dadas pelos alunos
entrevistados, pela análise de suas produções textuais, pela observação da performance desses alunos
durante todo o processo (da implementação/da pesquisa) e, também, pelas impressões da docente.

Implementação pedagógica

O trabalho proposto foi a realização de um cordel e de um desenho que representasse uma


xilogravura com o tema do cordel. Os alunos deveriam escrever um cordel sobre o sentimento deles
em relação ao isolamento social e ao fato de estarem afastados fisicamente da escola e dos colegas da
escola. O trabalho deveria ser feito individualmente. Ao término da produção, cada trabalho deveria
ser publicado no Padlet, que é uma ferramenta digital para construção de murais virtuais e
colaborativos.
Adotamos, para esse trabalho com os alunos, a metodologia da Sala de aula invertida,
entretanto no ensino remoto. Então, as aulas foram divididas em momentos síncronos e assíncronos.
Os alunos recebiam a maioria dos conteúdos nas aulas assíncronas e deveriam estudar, anotar suas
dúvidas e, também, realizar suas pesquisas sobre o conteúdo trabalhado. E nas aulas síncronas,
recebiam as devidas orientações, esclarecimentos, tiravam suas dúvidas, resolviam exercícios,
339

compartilhavam com os colegas suas compreensões sobre o assunto trabalhado, suas leituras e,
também, apresentaram sua produção. A professora realizou um trabalho baseado na orientação, na
produção de materiais e na curadoria.
Foi feito um planejamento para que o trabalho pudesse ser realizado. E esse planejamento
foi baseado na sequência didática sugerida por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) associada à
aplicação da metodologia Sala de aula invertida. O procedimento se deu da seguinte forma:
1º Momento: Sondagem para verificar o que os alunos sabiam sobre o gênero cordel. Ocorreu
em uma aula síncrona através do Google Meet.
2º Momento: Os alunos deveriam pesquisar sobre o gênero cordel em um momento assíncrono.
Além disso, a professora postou um vídeo, produzido por ela, com uns três minutos de duração. No
vídeo, ela falou sobre o gênero, leu um cordel para eles, deixou três perguntas para os alunos e pediu
para eles pesquisarem sobre o Patativa do Assaré.
3º Momento: Sondagem para verificar o que os alunos aprenderam sobre o gênero. E, nessa
mesma aula, eles deveriam escrever um primeiro texto, um esboço.
4º Momento: Os alunos deveriam postar a produção inicial na plataforma Google Sala de Aula
para a docente avaliar e corrigir. Alguns alunos enviaram via whatsapp.
5º Momento: postagem de materiais sobre a Literatura de cordel. Então, a professora realizou
também um trabalho de curadoria.
6º Momento: Módulos – trabalhar os problemas de diferentes níveis:

a) Aula síncrona priorizando o que os alunos não sabiam sobre cordel.

b) Leitura de alguns cordéis. Cada aluno lia, no momento síncrono, os cordéis que havia
escolhido no momento assíncrono.

c) Atividades de reconhecimento do gênero.

d) Leitura detalhada dos cordéis selecionados. A professora trabalhou os estágios de


leitura propostos por Lakatos e Marconi (2018, 2019). Primeiramente, ela pedia para os
alunos lerem os títulos e compartilharem sobre o que eles pensavam se tratar o texto, ou
seja, trabalhou a pré-leitura. Em seguida, pedia os alunos para lerem todo o texto. Depois pedia
para eles destacarem as informações principais. Tendo feito isso, pedia para que eles fizessem
uma outra leitura e identificassem o posicionamento do autor. E, por último, uma leitura de
julgamento do conteúdo dizendo se eles concordavam ou não com o posicionamento do autor e
por quê.

e) Atividades de análise textual e de produção textual.

f) Análise mais detalhada do gênero.


340

g) Aula sobre os problemas gramaticais encontrados nas produções.

7º Momento: Refacção da produção textual. Análise, correção e reescrita.

8º Momento: Publicação das produções no Padlet.

RESULTADOS

A maioria dos alunos dessa turma não participou ativamente na plataforma. Muito alunos
participaram de forma offline, através da aquisição da apostila feita pelos docentes e disponibilizada
na escola. Então, como já foi mencionado, a pesquisa foi realizada, em sua maior parte, com dez
alunas que participaram de forma assídua.
Em relação ao estudo do gênero cordel, quando perguntados quem já havia estudado esse
gênero, os alunos responderam que nunca havia estudado. E a maioria afirmou não conhecer o gênero.
Na primeira sondagem feita pela professora sobre o gênero, os alunos não souberam dizer
o que é esse gênero, o que o caracteriza. Depois de uma primeira pesquisa, por parte desses alunos,
pouquíssimos souberam responder o que é um cordel. Os alunos responderam parte das perguntas
feitas pela professora. Alguns responderam somente duas ou uma pergunta. Nenhum aluno conseguiu
responder todas as perguntas.
Na entrevista, os alunos disseram que, em relação ao trabalho com textos, o costume era
realizar uma leitura simples somente para responderem exercícios de interpretação de texto, ou seja,
não havia um trabalho minucioso de leitura nem um trabalho de produção textual como realizaram
neste trabalho com o gênero cordel. Inclusive, relataram que só haviam escrito redação do tipo do
ENEM. E somente alguns alunos. Outros nem esse tipo de produção haviam feito.
Sobre o trabalho com metodologia ativa, Sala de aula invertida, quando perguntados se
eles já fizeram uso dessa metodologia, todos responderam que não. Os alunos não estavam
acostumadas a trabalhar neste formato, ou seja, não estudavam e se preparavam para a aula. Estavam
habituados a estudar ou fazer pesquisas quando se tratava de uma avaliação, de um trabalho valendo
nota (de forma direta). Eles tinham muitas dificuldades com o protagonismo. Sentiam-se muito
dependentes da escola, dos professores. Depois desse trabalho, tornaram-se mais autônomos.
De acordo com as respostas dos alunos, nenhum deles tinha trabalhado com sequências
didáticas para aprender determinado gênero textual. Eles falaram que gostaram dessa estratégia e que
foi bastante proveitosa. E que o trabalho, no todo, foi excelente, pois, além de aprenderem muito e
despertarem a criatividade, desenvolveram um pensamento crítico e uma postura mais autônoma.
Enfim, destacaram o quanto foi importante a mediação da professora. Afirmaram que as orientações,
341

a curadoria, a preparação das aulas foram direcionando-os ao resultado final. Observaram a diferença
tanto em suas produções textuais quanto neles mesmos, pois cresceram enquanto estudantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com a Sala de aula invertida incentivou os alunos a aprender de forma


autônoma, participativa e colaborativa. Com as aulas através dessa metodologia, os discentes foram
postos no centro do processo de aprendizagem e se tornaram mais responsáveis pela construção de
seus conhecimentos. E a docente, por sua vez, deixou de ser uma mera transmissora de conteúdos e
passou a atuar como uma orientadora e curadora dos conteúdos. Isso fez com que o tempo fosse
melhor aproveitado por docentes e discentes. Pudemos perceber a participação ativa desses alunos
com essa experiência. As aulas foram mais produtivas e dinâmicas. Os alunos desenvolveram a
criatividade, o pensamento crítico e a autonomia.
Essa pesquisa mostrou que o trabalho realizado foi bastante proveitoso e inovador para
os discentes. Conforme disseram, fizeram uma atividade diferente das que estavam habituadas a fazer.
Pois estavam acostumados a chegar à escola e receber, passivamente, os conteúdos. Desta vez, além
de lerem de forma diferenciada, também produziram um texto.
Os alunos, sobretudo, as dez alunas, desenvolveram trabalhos de excelentes qualidades e
demonstraram, ao final, conhecimento e domínio do gênero trabalhado, através de suas produções: o
cordel e o desenho representando a xilogravura.
Comprovamos, por meio dos depoimentos, das produções e do desempenho dos alunos,
que esta metodologia contribuiu para a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem, pois os
discentes desenvolveram a autonomia e se tornaram responsáveis no processo de sua aprendizagem.
Passaram a ser ativos, colaboradores e compartilhadores do conhecimento. E a professora demonstrou
a importância de seu fazer docente nas orientações e curadoria que levaram os alunos a alcançar o
objetivo esperado. Além disso, ela obteve mais tempo para aprofundar determinados pontos do
assunto trabalhado.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: primeiro e segundo


ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC,
1997.

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Seqüências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de
um procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim; e col. Gêneros orais e escritos na escola.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p.95-128.
342

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Os gêneros escolares. Das práticas de linguagem aos objetivos
de ensino. Tradução: Glaís Sales Cordeiro. Revista Brasileira de Educação, nº 11, mai./jun./jul./ago. 1999.

FREIRE, Paulo. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores
Associados. Cortez, 1989.

GIROUX, H. Professores como intelectuais transformadores. In: Os professores como intelectuais: rumo a
uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 157-164.

LAKATOS, E. M; MARCONI, M. A.; Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São Paulo: Atlas,
2019.

LAKATOS, E. M; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In:
MARCUSCHI, L. A. e XAVIER, A. C. (Orgos.) Hipertexto e gêneros digitais. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2005, p. 13-67. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MARTINS, J. P. Gestão Educacional: uma abordagem crítica do processo administrativo em educação.


4. ed., Rio de Janeiro: Wak, 2007.

TÉBAR, L. O perfil do professor mediador: pedagogia da mediação. Tradução: Priscila Pereira Mota. São
Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2011.

VALENTE, JOSÉ A. O computador na sociedade do conhecimento. Campinas: Unicamp/Nied, 1999.


343

PARA LER, ESCREVER E COMPARTILHAR: A LEITURA LITERÁRIA HOJE.

Gabriella Pinheiro Lino106

RESUMO

A literatura é uma substância ampla e abundante cuja composição movimenta uma aporia textual e
contextual vasta. A compreensão, a extensão, a expressão e o conteúdo da arte literária, frutificam um
campo de signos de valores discursivos férteis (COMPAGNON,1999). E, como efeito, no âmbito do
ensino de literatura, as práticas de leitura, escrita e compartilhamento de experiências evocam um
ativismo comunicativo. Justamente, por isso, pode-se perceber a importância da literatura no processo
de formação dos indivíduos, como sujeitos leitores, escritores e intérpretes das diversas realidades do
mundo. À vista disso, considerando, principalmente, o contexto político e educacional do país, no
qual a maioria dos indivíduos têm o primeiro contato com a literatura na escola, compreende-se que
as práticas pedagógicas dos mediadores da leitura literária, ou seja, dos professores, devem motivar
os alunos, sobretudo ao ativismo leitor, a escrita expressiva e a interação comunicativa (STEPHANI
e TINOCO, 2019). As ações de aprendizagem, para que sejam significativas, precisam incentivar e
ensinar o gosto e prazer pela leitura. Entretanto, devido aos desafios enfrentados pela educação
brasileira, efetivar essas atividades em sala de aula não é uma tarefa simples. Por esse motivo, esse
texto objetiva pensar a mediação da leitura literária como prática coletiva dos professores e alunos.
Para tal discussão, utilizamos, como aporte teórico, as proposições de Marisa Lajolo (1993) em
relação à leitura literária e os impasses no âmbito do ensino, também as considerações de Adriana
Demite Stephani e Robson Coelho Tinoco (2019), os quais propõem a mediação da leitura literária
como um processo comunicativo. E, por fim, as sugestões de Edgar Roberto Kirchof (2016) para uma
aprendizagem de literatura que contemple as transformações advindas da cultura digital como uma
aliada na distribuição, na circulação e no ensino desses textos.

Palavras-chave: Leitura Literária; Literatura, Professor, Leitura.

INTRODUÇÃO
Antes de falar sobre a leitura literária, atividade que consiste em inferir, a partir de um
processo linguístico, psicológico, representacional e social, os textos definidos como literários, é
necessário articular qual a compreensão que alvitramos sobre o conceito de literatura. Nos estudos
literários, segundo Antoine Compagnon (1999), enquanto definição, em sentido amplo, a literatura
não se remete apenas às escrituras, à erudição e ao conhecimento das letras, mas também a tudo aquilo
que é impresso, “todos os livros que tem na biblioteca”, não se limitando à ficção, mas a produção
histórica, filosófica e científica em geral (COMPAGNON, p.31, 2002).
Em outros termos e em sentido estrito, o que se compreende como produção literária
passa por um limiar de questionamentos sobre os traços de literariedade107 de um texto e, por
consequência, as perguntas insurgidas por essa acepção, amiúde, resgatam questionamentos e

106
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestranda em Estudos de Literatura –lino.gabriella@posgraduacao.uerj.br.
107
A literariedade é o conjunto de atributos estéticos, estilísticos e representacionais do fazer literário. Para Guarany
(1975) ela se apresenta em nível linguístico, contemplando o discurso e a enunciação dos textos literários e em nível
translinguístico, levando em conta a noção de verossimilhança (GUARANY, 1975).
344

caracterizações em relação ao que se dedicam esses escritos (COMPAGNON, 2002). Bem como
elenca Compagnon, quando ele atina as inquisições da Teoria da Literatura que, sistematicamente,
colocam em cheque os possíveis objetivos de um texto literário. Como a perscrutação que nos
interessa para compreender a leitura literária como um processo comunicativo: “o que é e como se
constitui a recepção literária?” (COMPAGNON, p.30, grifos no original, 2002).
Por esse motivo, ao passo que o autor dilucida a literatura como um processo dicotômico
e apórico que, dentro de seu próprio contexto sócio-histórico, reconstitui as composições atribuídas
pelo crivo da literariedade dos textos, tomamos partido da posição de Compagnon. Sobretudo
“porque os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade se apropria sem remetê-los
necessariamente ao seu contexto de origem” (COMPAGNON, p.45, 2002). E é por isso, pelo efeito
do uso singular que a literatura faz da linguagem, que, despojadamente, a leitura do texto literário
acessa um discurso social e destaca a recepção do público, pois os próprios indivíduos os quais
acolhem um texto, determinam os contextos de enunciação dele (COMPAGNON, 2002).
Não é em vão que, para pensar a leitura literária, devemos destacá-la não só como uma
ação de depreensão de textos, mas como um processo comunicativo e formativo. Apesar disso, o que
já não é tarefa fácil no contexto social e político da educação brasileira, torna-se um ofício ainda mais
difícil nos tempos atuais, nos quais uma pandemia assola o mundo e como medida emergencial, há a
necessidade de distanciamento social e, consequentemente, a inviabilização do acesso ao espaço sala
de aula.
Por conta desse contexto, o objetivo deste artigo é pensar o ensino de literatura e a
formação leitora dos alunos como um processo interativo, além de propor, ao final desse texto, uma
ação de aprendizagem multiletrada, com o gênero infopoesia. Sendo assim, em primeiro momento, é
fundamental que ponderemos alguns dos impasses do ensino de literatura e da mediação da leitura
literária no Brasil, antes de propor esta alternativa didática para o trabalho docente. Logo, apoiaremos
as nossas reflexões nas concepções de Lajolo (1993), nas propostas de Stephani e Tinoco (2019) e
Kirchof, (2016), autores os quais refletem a aprendizagem de literatura e as transformações advindas
da cultura digital como uma aliada na distribuição, na circulação e no ensino desses textos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS IMPASSES NO ENSINO DE LITERATURA

Na educação brasileira, não só a leitura literária, mas a própria leitura, configura-se como
um processo desafiador para os alunos e professores, a começar pelo acesso aos livros, que ainda não
é democratizado no país e por muito tempo não teve uma política pedagógica educacional para a
fruição deles em sala de aula.
345

Na história da educação, até o século XVII, o sistema de ensino público brasileiro sequer
tinha adotado um material didático norteador de incentivo à leitura, fato que só ocorre entre os séculos
XIX e XX, depois da publicação dos volumes intitulados Livros de Leitura (1865) do professor
Romão Puiggari e das seções de livros para a educação infantil, O Livro das Crianças (1837), da
professora Zalina Rolim (FAILLA, 2012; VALDEZ, 2005).
Com essa herança histórica de pensar o ensino desassociado do papel elementar da leitura,
acrescida do alto índice de analfabetos no país, 6,6%, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística de 2019, o que representa mais de 11,3 milhões brasileiros que não sabem ler,
nem escrever, atualmente, ser um sujeito leitor, é uma condição de privilégio, poder ter a leitura e a
escrita como entretenimento, como hábito ou atividade laboral, é mais ainda. Embora pareça
contraditório, estamos falando de um país que cultiva uma vasta tradição literária e uma história da
literatura assinada por coleções canonizadas mundialmente. Mas sim, nesse mesmo lugar, a
desigualdade social, a pobreza e a miséria, violentamente, retiram o lugar do livro como item básico
de manutenção da vida.
Por vias desses muitos impasses, não é surpreendente que, muitas vezes, o primeiro
contato dos alunos brasileiros com o livro se dê na escola e nem que ele aconteça nas disciplinas de
linguagens, nas aulas de literatura e de português. Muito menos que uma das maiores dificuldades
dos alunos seja a leitura, a interpretação e a produção de textos (STEPHANI e TINOCO, 2019).
Sobretudo, porque o ensino de leitura e a compreensão de textos, majoritariamente, ficam sobre o
encargo dos professores dessas matérias, conjuntura que desconsidera a figura do professor,
independentemente da disciplina que ministra, como um mediador com repertório de leitura para
contribuir na formação do aluno leitor.
A realidade, distante daquilo que é idealizado, só evidencia os problemas estruturais no
projeto básico de educação para formação do aluno nas competências mais estimadas nos planos,
parâmetros, diretrizes e bases que regem as práticas de ensino no Brasil: o desenvolvimento da
capacidade de ler, compreender e escrever diferentes tipos e gêneros de textos. Na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), documento mais recente dos parâmetros e propostas pedagógicas para
o ensino público e privado no Brasil, apesar dessas competências serem citadas como objetos de
conhecimento e habilidades de todas as disciplinas, é na parte de linguagens, em primeiro momento,
no componente da Língua Portuguesa e depois no de Língua Inglesa, que a BNCC destina eixos à
leitura e à escrita.
Contudo, é na seção dedicada à Língua Portuguesa que as abordagens com relação à
leitura, estão associadas às “práticas de linguagem que decorrem da interação ativa do
leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação”
(BNCC, 2016, p.71). Em continuidade, a BNCC recomenda também que esses norteadores das
346

atividades de leitura, estendam-se à leitura literária e, por consequência, à escrita expressiva, em razão
da base não desassociar as práxis de escrever e ler. Ainda que os operadores de leitura do texto
literário tenham suas especificidades, mesmo que a aporia textual e contextual da leitura e da escrita
expressiva desses textos, fuja a esse “compromisso”, o campo destinado a eles está enredado em um
roteiro similar aos outros gêneros de texto.
No campo artístico-literário, como nomeia a BNCC, “está em jogo a continuidade da
formação do leitor literário e o desenvolvimento da fruição” (BNCC, 2016, p. 503, grifo no original).
Nessa proposta, nota-se um direcionamento procedimental para o trato das práticas das leituras e
escritas literárias: a “análise contextualizada de produções artísticas e dos textos literários”, além de
“formas diversas de produções vinculadas à apreciação das obras”, sejam estas literárias, teatrais,
cinematográficas ou outras produções artísticas as quais incluam “habilidades técnicas e estéticas
mais refinadas” (BNCC, 2016, p.503).
Percebe-se que, para a escrita literária, a qual a base aborda de forma tímida, o “exercício
literário” tem de ser rico “em possibilidades expressivas”, ele também precisa ter “a função de
produzir certos níveis de reconhecimento, empatia e solidariedade e envolve reinventar, questionar e
descobrir-se”, sugere-se que o fazer literário deve explorar as subjetividades “das inter-relações
pessoais” (BNCC, 2016, p.503-504). Eis, nessa proposta, apesar dos direcionamentos instrumentais
sobre o que fazer com o texto literário e como induzir o deleite à escrita expressiva, além da
tendenciosa indicação de “destaque para os clássicos”, isto é, os cânones, um alvitre para a mediação
da leitura e escrita literária como processos interativos e dialógicos (BNCC, 2016, p.503).
E, se, recomenda-se para o cotidiano dos professores de Língua Portuguesa e Literatura
dar suporte nessas atividades, considera-se fundamental que questionemos como essa ação interativa-
expressiva-comunicativa se dá diante do texto literário e de proposições para a sua escrita. Como
essas práticas serão implementadas de forma que a leitura do texto literário e a mediação coletiva dele
se torne um fim e não um meio?

A LEITURA LITERÁRIA COMO RESPOSTA


Conforme Lajolo (2011, p.12), as propostas para o ensino de leitura literária devem fugir
às armadilhas, àquelas que “patrocinam discussões das quais se sai com as técnicas debaixo do braço
e confiante na terapêutica”, das que ensinam métodos para o trabalho com texto literário de forma
sistemática: “O texto, em sala de aula, é geralmente objeto de técnicas de análise remotamente
inspiradas em teorias literárias de extração universitária” (LAJOLO, 2011, p.13).
Lajolo ainda aponta que, se, na Universidade, mantém-se “uma semântica geral do texto”,
a partir da teoria literária, por exemplo, que fornece direcionamentos teóricos e críticos, além de
operadores de leitura diversos, na sala de aula, “anula-se a ambiguidade, o meio-tom, a conotação —
347

sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpretação como se consomem
pipocas e refrigerantes” (LAJOLO, 2011, p.13). Métodos e procedimentos que arrojam possibilidades
preestabelecidas, “técnicas milagrosas para o convívio harmonioso com o texto”, atividades
programadas de “leitura jogralizada, testes de múltipla escolha, perguntas abertas ou semiabertas,
reescrituras de textos, resumos comentados” (LAJOLO, 2011, p.12-14). Evidentemente, na ocasião
em que o texto literário está presente na sala de aula, quando as aulas de literatura não se restringem
ao ensino da história da literatura, das escolas literárias e da biografia dos autores canonizados, outra
realidade problemática nesse enredo.
Além disso, é necessário chamar atenção também para os problemas que circundam a
figura do professor em relação à sua alçada no tratamento do texto literário, pois, na composição dos
materiais didáticos e paradidáticos, os quais, em tese, são suportes das elaborações das aulas, o
docente não está presente. Segundo Lajolo (2011, p.12), esse movimento retira do professor a atuação
na preparação das aulas, remanescendo a ele “um script de autoria alheia, para cuja composição ele
não foi chamado”, transferindo-se a função às editoras e ao mercado dos livros (LAJOLO, 2011,
p.12).
Em vista disso, depois de discorrer sobre algumas realidades do que se estima para o
ensino de literatura e como, muitas vezes, ele acontece na prática, retomemos a disquisição de
Compagnon (2002, p.23) — “o que é e como se constitui a recepção literária?” — para pensar como
conduzir a proposta de uma mediação interativa, comunicativa e expressiva (COMPAGNON, p.30,
2002).
Para Stephani e Tinoco (2019), refletir sobre o ensino de leitura literária demanda uma
crítica autoavaliativa de como os mediadores desse processo concebem a leitura no contexto escolar,
pois é bem provável que muitos preestabeleçam expectativas de respostas. Nesse contexto, espera-se
que o aluno assuma uma passividade, que ele exerça um papel predefinido numa espécie de ficção,
ou seja, presume-se uma concepção de comunicação formada por dois personagens, o professor,
àquele que enuncia e propõe, e o alunado, àqueles que ouvem e respondem (STEPHANI e TINOCO,
2019).
Esse movimento, por consequência, conflita com os questionamentos de Compagnon
sobre a recepção literária, pois, se, diante de um texto literário, só é levada em consideração a relação
entre o leitor e o texto, de um só leitor — o professor —, que espécie de formação leitora está se
propondo? Provavelmente uma formação passiva erigida na compreensão de análises premeditadas
das quais os alunos não participam. Assim, Stephani e Tinoco (2019, p.51) questionam:

Conceber a leitura como pergunta autossuficiente do falante/escritor, contentando-se com a


condição básica para a resposta (ouvir claramente a pergunta e entendê-la) seria diferente de
concebê-la como relação pergunta/resposta que só se concretiza, ou seja, só acontece
realmente no momento e no ato da resposta? Se há diferenças significativas entre essas
348

expectativas, em que situações concretas da prática escolar elas se mostram?

Nesse sentido, a abstração das palavras pessoais antepostas às palavras do outro, cunha
uma fronteira do que, segundo Mikhail Bakhtin (1979), deveria ser um flutuante, isto é, nas
atividades de respostas conduzidas pelas expectativas do mediador, a experiência leitora do aluno
diante do texto é negligenciada. Espera-se uma acomodação e recepção passiva dos alunos, estimativa
que não leva em conta as outras possibilidades de respostas como, por exemplo, o silêncio e o
desprezo (BAKHTIN,1997; STEPHANI e TINOCO, 2019). E desconsidera-se que essas práticas de
respostas guiadas também são formas de utilizar o texto literário como um instrumento e, dessa forma,
evade-se desses escritos a gênese despojada da literatura, o caráter dialógico dela. Além disso, essas
atividades ignoram o “complexo acontecimento do encontro e da interação com a palavra do outro”
(BAKHTIN,1997, p.385).
E é em busca de uma aporia dialógica que sugerimos uma postura interativa no trato do
texto literário. Propomos que na mediação para formação leitora seja levada em conta o incentivo ao
desenvolvimento do gosto pela leitura e a participação ativa do aluno nesse processo. Mesmo que
pareça que está se dizendo o óbvio, a discussão tratada aqui envolve não só um ativismo
comunicativo, mas também ações as quais devam considerar as múltiplas possibilidades de respostas
e interações dos alunos.
É além disso, o que se alvitra é se valer da autenticidade da literatura para fundar um
vínculo de pertencimento, porque na própria relação do leitor com o texto, há um outro escrito sendo
construído, por isso a experiência de leitura desses educandos também deve ser considerada na
mediação da leitura literária em sala de aula. O engajamento desses leitores frente ao texto é o
primeiro limiar dialógico a ser levado em consideração, seguido da construção de sentidos deles, para
que então se inicie a flutuante interação com o mediador, simultânea à escolha de resposta e
expressão.
Assim, é preciso também dar a devida importância à complexidade da interação com o
outro, sobretudo porque a comunicação, ou melhor, “a pergunta, sempre leva consigo mesma e no
interior de sua própria construção, a resposta” (STEPHANI e TINOCO, 2019, p.51). E, “se não
houver resposta, a pergunta perde o seu sentido” (STEPHANI e TINOCO, 2019, p.51). Se não há
uma interação comunicativa e dialógica entre o mediador e os educandos, os quais, por essa troca,
desenvolvem o gosto pela leitura, ao que se dedica então a mediação da leitura literária?
Para os professores Stephani e Tinoco (2019, p. 51) um dos problemas das abordagens
escolares durante a leitura literária, não é somente a resposta em si, pois ela faz parte das práticas
formativas escolares, a questão complicada é conceber este retorno como um momento dissociado da
leitura, “como um momento outro, como uma coisa outra e não como a leitura em si”. O problema é
349

quando a leitura não é o foco da proposta, mas sim, a resposta, a expectativa que os alunos relacionem
pontos, muitas vezes, da história da literatura aos fragmentos do texto literário, predefinidos por
experiências leitoras as quais não são as deles. O impasse dessa dinâmica é quando as construções de
sentidos dos alunos são negligenciadas, quando a apreensão por retornos dentro do esperado pelo
mediador é o foco, ainda que não se saiba de fato o objetivo da resposta e o que se está respondendo:

Como esse professor concebe, de fato, a resposta? Aliás, como ele concebe a pergunta feita
pelo romance? O aluno está respondendo? Como? A quê? A quem? Seria essa a espécie de
resposta que estamos buscando? Será que ela forma leitores de literatura? (STEPHANI e
TINOCO, 2019, p.53).

Em outras palavras, uma perspectiva de formação leitora interacional, já no próprio


sentido da palavra interação, pois “ela é orgânica e interpenetrante”, rejeita práticas de leitura as quais
não envolvam uma resposta. Contudo, defende-se aqui que essas respostas não devem ser guiadas por
escolhas individuais do mediador, que as reações dos alunos sejam ativas, como participantes da
mediação. Justamente, porque a mediação é um processo construtivo, em contínua coparticipação dos
afetados por essa proposta, não acreditamos no duplo mediador/mediado, porém na fusão desses
papéis (STEPHANI e TINOCO, 2019).
Dessa forma, a leitura literária em sala de aula tem de ser enredada de forma que se leve
em conta o contexto da leitura e as relações entre os leitores e os textos, também “o processo de
descobertas/desvelamento” e as experiências literárias dos sujeitos envolvidos nessa prática
(STEPHANI e TINOCO, 2019, p.71). Nessa acepção, o diálogo e o protagonismo flutuam em trocas,
em aprendizagens significativas, as quais retiram do professor o protagonismo e a responsabilidade
solitária pela condução da leitura, de forma a oferecer a todos os indivíduos participantes as
possibilidades férteis do mundo da leitura literária.
É claro que, a figura do professor é fundamental nesse processo, principalmente porque
ele estará não só mediando e selecionando os textos, mas também, intermediando a aprendizagem do
gosto pela leitura, o desenvolvimento do prazer em ler. Mas, é primordial que se contemple no projeto
a recepção do aluno ao texto e, se necessário for, que haja uma reconfiguração de como os textos
literários serão lidos e mediados. Logo, o retorno que queremos, em paráfrase com Stephani e Tinoco,
é que a leitura literária seja uma resposta contextualizada e, em contínua revolução, diante das
diversas realidades dos envolvidos na prática.

MUDAM-SE OS MEIOS, MUDA-SE A FORMA DE MEDIAR: UMA PROPOSTA DE


TRABALHO COM A LEITURA LITERÁRIA HOJE.
350

Nos capítulos anteriores desse texto, foi mencionada a importância da mediação e como
ela pode ser significativa para despertar o gosto pela leitura. Stephani e Tinoco (2019, p. 68) definem
a mediação como “um processo social necessário à vida humana”. Uma vez que essa interação
precede outras “relações interativas, na busca de conduzir o aluno à elaboração de representações
pessoais sobre o objeto de aprendizagem”. A mediação, então, sugere um conhecimento do contexto
e da cultura do lugar onde se media, ela convoca uma atenção à atualidade, aos novos paradigmas, às
novas formas de ensinar e também de aprender.
Por esse motivo, levando em conta os efeitos das transformações digitais e “as facilidades
proporcionadas por esse tipo de tecnologia para produção, distribuição e consumo de informação”
(KIRCHOF, 2016, p. 203). Também o momento atual, no qual, em razão da crise sanitária mundial,
a pandemia de COVID-19, determinou-se como medida preventiva à contaminação, o distanciamento
social e, em tese, o país optou pelo ensino emergencial on-line, o que, inviabilizou o espaço sala de
aula e, assim, tornou-se fundamental que pensemos em ações e práticas docentes para a leitura
literária hoje.
Conforme Edgar Roberto Kirchof (2016), as transformações advindas da cultura digital
trouxeram amplas possibilidades para o mundo da leitura. O livro, antes, somente acessível de forma
impressa, no presente, ganha outras interfaces, “o ciberespaço, onde estão situados virtualmente todos
os textos digitais, propiciou grande liberdade para a produção e divulgação de textos literários”
(KIRCHOF, 2016, p.204). Nesse meio, “alguns escritores hoje iniciam suas atividades literárias no
ciberespaço”, o que não os impede de ter os livros publicados de forma impressa, na verdade, muitos
deles, exploram as múltiplas possibilidades de “recursos transmidiáticos e crossmidiáticos”
(KIRCHOF, 2016, grifos no original, p. 205).
Segundo o autor, esses fenômenos trouxeram ao mundo da leitura “um público cada vez
maior, capaz de consumir livros literários”, bem como “outros produtos culturais” (KIRCHOF, 2016,
p.204). Todavia, o benefício da “facilidade com que uma obra digitalizada pode migrar por diferentes
plataformas de mídia e, inclusive, hibridar-se com outros textos e imagens usando-se ferramentas de
manuseio relativamente simples”, conduz a formas singulares de recepção dos textos, a “novas formas
de experimentação literária” (KIRCHOF, 2016, p.206). O que implica em construções narrativas
antes não possíveis, além da participação do leitor no enredo, ou até mesmo na modificação dele, pois
essas novas possibilidades ressignificam a interação com a leitura, recriam e criam novos gêneros de
textos literários.
O intertexto, o hipertexto e a hipermídia se expandem e se dissipam em outros tipos de
produções literárias diversas, com estéticas e estilos multifacetados, os quais, embora tenhamos o bel-
prazer de explanar, reconhecemos que, assim como Kirchof, em um só artigo não dá para contemplar.
351

Sendo assim, como atividade interativa, sugerimos uma proposta de mediação da leitura literária de
mediação interativa com o gênero infopoesia.
As infopoesias são poesias visuais que se transmutam ao ambiente digital, elas são
caracterizadas pela exploração de diversos recursos da semiótica, senão todos. A “infopoesia expande
quase ao infinito as possibilidades do poeta de lidar com espaço, cor, luz, som, movimento e
fundamentalmente a interatividade” (XAVIER, 2016, p. 187); (KIRCHOF, 2016). Esse gênero da
cultura digital, permite, ainda, a cocriação, formando um campo de intertextos que o leitor pode
acessar, experienciar e recriar. Como por exemplo, a Figura 1 108, o infopoema do autor Bruno
Oliveira:
Figura 1 – Poesia 'AMORXXXXXXXYXYXY '

Fonte: Oliveira, 2021.

Levando-se em conta que o gênero infopoesia é uma prática multiletrada que considera a
diversidade das linguagens visuais, textuais e semióticas, e proporciona uma integração do “contexto
cultural e linguisticamente diverso, [...] suas linguagens, suas materialidades, muito afetadas por
invenções como o computador e a multimídia” (RIBEIRO, 2020, p.11). Também que, a partir do
desenvolvimento de ações de mediação coletiva com infopoesias, desenvolve-se a leitura literária
interativa, significativa e que possibilita múltiplas respostas ativas, provocando a ação dos sujeitos
envolvidos, propomos uma atividade conforme os quatro fatores da pedagogia dos letramentos,
metodologia do New London Group (1996). É importante destacar que as ações dessa proposta são
pensadas tanto para turmas dos anos finais do Ensino Fundamental, como para turmas de todos os
anos do Ensino Médio. As atividades multiletradas são ordenadas em quatro momentos: 1) Prática

108
Figura 1. Disponível em:<http://www.mallarmargens.com/2021/01/ultrapassar-os limites-da-forma-poemas.html>.
Acesso em: 23 de Janeiro de 2021.
352

situada, 2) Enquadramento Crítico, 3) Instrução Explícita; 4) Prática Transformada (CAZDEN et al.,


1996).

Para ler

Na primeira atividade, a prática situada, o objetivo é possibilitar uma experiência de


leitura multissemiótica. É adequado que haja a exposição digital ou impressa do infopoema,
buscando-se considerar as diversas formas de leituras, sejam elas visuais, sonoras, gráficas,
semióticas, entre outras. Além das respostas ativas, as quais podem ser as mais diferentes: silêncio,
angústia, dúvida, rejeição, comentários, etc. Como sugestão de infopoema para o desenvolvimento
dessa ação, a Figura 2109:
Figura 2 – Infopoesia Apenas

Fonte: Antunes, 2006.

Para (inter)agir

No enquadramento crítico, é pertinente que se faça aos alunos questionamentos orais,


cujas respostas também podem ser orais, sobreas multileituras e inferências em relação à imagem
apresentada. Estima-se que os alunos medeiem a leitura e interajam com o infopoema, a partir de
ações responsivas, é adequado que os mediadores, nesse caso, todos os sujeitos envolvidos,
considerem as mais diferentes argumentações. Sugestões de perguntas para a Figura 2: 1) O que você

109
Figura 2. Disponível em:<https://arnaldoantunes.com.br/new/sec_livros_view .php?id=12&texto=189>. Acesso em:
23 de Janeiro de 2021.
353

vê na imagem? 2) Quais objetos podem ser identificados? 3) Os objetos da imagem remete a algo que
você conheça? 4) Quais sentimentos essas cores transmitem a você? 5) Qual a mensagem que essa
imagem transmite a você? 6) Podemos chamar essa imagem de poesia?

Para escrever

Nesse momento, o docente deve fazer uma instrução explícita do gênero de texto
infopoesia e apresentar um texto sobre o assunto. Recomendamos a seleção de fragmentos do artigo
“Um conceito de infopoesia” (2011) do autor Jorge Luiz Antônio. É importante que haja um destaque
para a definição e características dos infopoemas, para o contexto de circulação desses gêneros e a
finalidade dele, também a contextualização histórico-literária, à qual herda composições da poesia
concreta. Essa atividade pode ser oral, mas é ideal que os alunos tomem notas escritas.

Para compartilhar

O último momento da atividade é a prática transformada. Propõe-se uma síntese verbal


das outras fases da atividade e o questionamento aos alunos se eles já notaram o gênero infopoesia
nos sítios da internet ou nas redes sociais. Em seguida, pode-se caracterizar os ambientes onde as
infopoesias são compartilhadas de forma recorrente Facebook, Instagram e Pinterest. Após isso,
sugere-se que se proponha aos educandos, a escolha de uma música, recomenda-se que as letras
dessas músicas não contemplem nenhum tipo de preconceito, sexualização ou palavras de baixo
calão. E, buscando inspiração na letra, eles devem produzir uma infopoesia nos processadores de
textos e editores de imagens, havendo recursos no ensino presencial, na unidade escolar, na sala de
informática da própria escola.
No caso do ensino remoto on-line, existindo recursos pessoais e dispositivos eletrônicos,
a atividade deve ser feita em casa ou, em última hipótese, não existindo possibilidades de uso de
meios digitais, as produções devem ser realizadas em cartolinas, explorando materiais escolares como
canetas esferográficas, canetas e lápis coloridos, tintas e blocos de papéis coloridos, entre outros
recursos. Por fim, os alunos, a depender dos recursos e da forma de produção e criação das
infopoesias, postarão as infopoesias em rede social coletiva. Ou, se elas forem produzidas de forma
manuscrita, poderão expô-las virtualmente a partir vídeos, fotos e outras multimídias, não havendo
possibilidades, como atividade de compartilhamento e propagação do conhecimento, os alunos podem
fazer uma apresentação para os familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
354

O Brasil vive um dos momentos mais críticos da sua história. Além do colapso sanitário
que estamos enfrentando, vivenciamos uma ruína moral e uma crise educacional cujo legado é um
cenário de desigualdade ainda mais acentuado. Por isso, é necessário reconhecer que a proposta
sugerida neste texto, pode não ser possível de ser realizada com uma parte significativa dos que
deveriam ser o foco dessas ações: os alunos e professores do ensino público brasileiro.
Considerando, principalmente, o fato de que a pandemia de COVID-19 evidenciou ainda
mais as desigualdades sociais e digitais no país e, que, até então, nenhuma proposta unificada de
acesso à inclusão digital foi implementada a nível nacional. Assim, muitos alunos ainda estão sem
acesso às aulas na modalidade remota por falta de aparato tecnológico. Muitos professores e
profissionais da educação relatam a crescente evasão escolar nesse período.
Logo, esse texto, produzido a partir de discussões sobre a leitura e a escrita em suporte
eletrônico, no “IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso” da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, faz sugestões um tanto otimistas sobre a possibilidade de se estabelecer um dos
vínculos estimados pelos documentos educacionais do ensino público: a correlação da literatura, da
escrita expressiva e da leitura com o mundo digital. Levando-se em consideração, sobretudo, que os
recursos digitais, hoje, mais do que nunca, fundamentais na vida dos alunos e no cotidiano escolar,
não fazem parte da realidade de muitos estudantes brasileiros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Antônio, Jorge Luiz. Um conceito de infopoesia. São Paulo, 2001 – Grifos e seleção de trechos do
original. Disponível em: <http://www.pucsp.br/~cimid/4lit/antonio/infpoe.htm > Acesso em 23 de
Janeiro de 2021.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão
Gomes Pereira. Bezerra: São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2019) Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios – PNAD 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf.

Acesso em: 22 set. 2020.

BRASIL. Lei 9.394/96. Diretrizes e bases da educação nacional.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica (SEB). Base Nacional Comum
Curricular. Brasília: MEC/ SEB, 2018

CAZDEN, C. et al. A Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures. Harvard


Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92.

COMPAGNON, Antoine. A literatura. In: O demônio da teoria: literatura e senso comum.Belo


355

Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 29-45.

FAILLA, Zoara. Retratos da Leitura no Brasil 3. São Paulo: Instituto Pró-livro, 2012. 348 p. v. 3.
ISBN 9788540100855.

IBGE: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2004. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br>.Acesso em: 2020.

KIRCHOF, Edgar Roberto. Como ler os textos literários na era da cultura digital?. In:Estudos de
literatura brasileira contemporânea, Brasília, n. 47,2016 p. 203-228.

LAJOLO, Marisa. A leitura literária na escola. In: Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 1ª
ed. - São Paulo: Ática, 2011.

LAJOLO, Marisa. Os leitores, esses temíveis desconhecidos. In: Do mundo da leitura para a leitura
do mundo. 1ª ed. - São Paulo: Ática, 2011.

RIBEIRO, Ana Elisa. Que futuros redesenhamos? Uma releitura do manifesto da


Pedagogia dos Multiletramentos e seus ecos no Brasil para o século XXI. Diálogo das
Letras, Pau dos Ferros, v. 9, n. ISSN 2316- 1795, ed. 02011, p. 1-19, 2020.

SANTOS BEZERRA, Emerson Aparecido dos. Habilidades Relacionadas à Leitura e


a Escrita na BNCC. Humanidades e Inovação, Palmas, ano 2020, v.7, n. 3, p. 94-105,
2020.

TINOCO, Robson Coelho. STEPHANI, Adriana Demite. A leitura literária como resposta e o
papel do professor mediador nesse diálogo. In: Ensino de literatura e de leitura literária: Desafios,
reflexões e ações. Porto Alegre: Fi, 2019. p. 49-60.

VALDEZ, Diane. Livros de leitura seriados para a infância: fontes para a história da educação
nacional (1866/1930). Linhas, Santa Catarina, v. 5, n. 2, p. 1-19, 2020.
356

O ALUNO-LEITOR COMO SUJEITO SOCIAL E POLÍTICO: EXPERIÊNCIA DIDÁTICA


COM O GÊNERO CONTO NO ESTÁGIO CURRICULAR DA UFPE

Jéssica Aroucha Coutinho110


Mariana Maris Ramos Lima111
RESUMO
Esta pesquisa objetiva compartilhar o processo de elaboração e de aplicação de um projeto didático
produzido no âmbito do estágio curricular supervisionado do curso de Licenciatura em Letras-
Português da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dessa experiência, vivenciada no
segundo semestre de 2019 numa Escola de Referência em Ensino Médio (EREM) da rede estadual
de Pernambuco, analisaremos, particularmente, o trabalho desenvolvido em torno da leitura literária.
Como referencial teórico que alicerça a constituição do projeto e a análise da experiência vivenciada
no estágio, fundamentamo-nos: na pedagogia de projetos como forma de organizar os conhecimentos
escolares tal como propõem Hernández e Ventura (1998); na perspectiva sociointeracionista de
ensino de língua materna defendida por Geraldi (2011); nas reflexões sobre experiência literária e
ensino de literatura de autores como Riter (2009), Cosson (2011) e Bajour (2012). Intitulado O
conhecimento como instrumento de intervenção na sociedade e ato político: um trabalho com o
gênero conto, o projeto organizava-se no formato de uma sequência didática cujo propósito central
era aprofundar a experiência literária dos alunos a partir das relações subjetivas que, enquanto
leitores, eles estabeleciam com o universo ficcional dos textos literários interpretados e analisados ao
longo das 15 horas-aula previstas para o período de regência do estágio. A literatura foi abordada em
sua natureza simbólica, como um caminho para pensarmos sobre nós e sobre o mundo ao nosso redor.
Nessa perspectiva, as leituras propostas mediaram reflexões acerca do tema do projeto (mais
especificamente os tópicos alienação e fake news), elucidando o fato de que nossas escolhas
individuais causam impacto na sociedade – e que tais escolhas devem decorrer da busca por
informação fundamentada e conhecimento. Para tanto, foram objeto de leitura contos de Marina
Colasanti (1978) e Conceição Evaristo (2016), além do romance Ensaio sobre a Cegueira, do escritor
português José Saramago (1995) – este último na relação com a adaptação cinematográfica
homônima. O trabalho com diferentes gêneros e linguagens possibilitou uma discussão acerca das
particularidades linguístico-discursivas das obras escolhidas, tais como: as razões das escolhas de
determinados recursos na construção da ambientação do enredo e o modo como elas interferem na
experiência literária do leitor; os possíveis significados atribuídos às metáforas que permeiam os
materiais selecionados; o fato de que a arte e diferentes gêneros e tipos textuais podem ser
relacionados ao darem margem, à sua maneira, para a reflexão sobre uma mesma temática. Os
resultados da pesquisa evidenciam a abordagem do texto literário com foco em sua dimensão ficcional
e simbólica como uma escolha teórico-metodológica que privilegia a formação do aluno-leitor
enquanto sujeito que problematiza o particular e o universal, que reflete sobre sua forma de enxergar
a si próprio e ao outro, que intervém no mundo posicionando-se e agindo com criticidade ante o
conhecimento – atitudes que configuram um ato político.

Palavras-chave: Estágio curricular. Projeto didático. Ensino de língua portuguesa. Leitura literária.
Formação do leitor.
INTRODUÇÃO

110
Licenciada em Letras (UFPE), jessicacoutinho02@gmail.com
111
Licenciada em Letras e mestra em Educação (UFPE), marianamaris@gmail.com
357

Considerando-se a relevância da compreensão do ensino de literatura como meio de


reflexão e crítica sobre questões individuais e temas sociais a partir da exploração do texto literário e
de discussões sobre a língua(gem), este artigo relata e analisa uma experiência didática vivenciada no
âmbito da disciplina Estágio Curricular Supervisionado em Português IV da UFPE. O planejamento
das ações a serem desenvolvidas no estágio organizou-se em torno de um projeto didático intitulado
O conhecimento como instrumento de intervenção na sociedade e ato político – um trabalho com o
gênero conto. Deste projeto – que buscava, numa perspectiva sociointeracionista de ensino (cf.
GERALDI, 2011), articular práticas de leitura, produção de texto e análise linguística –, apenas os
dados relativos ao eixo da leitura serão alvo de discussão deste artigo.
Aplicado em uma turma de 2º Ano de uma Escola de Referência em Ensino Médio
(EREM) da rede estadual de Pernambuco no segundo semestre de 2019, o projeto visava discutir os
temas alienação e fake news através da literatura (textos do gênero conto) e da linguagem
cinematográfica (filme – adaptação literária). A temática, escolhida após analisado o perfil do grupo-
classe, focalizava o modo como decisões e omissões aparentemente individuais reverberam na
sociedade como um todo e, assim, propunha-se a discutir a relevância de se buscar informação
fundamentada antes de se tomar determinado posicionamento: as possíveis consequências da
alienação e da disseminação de opiniões infundadas ou de notícias provenientes de fontes não
confiáveis através dos aplicativos de comunicação digital.
Tendo em vista a centralidade da experiência literária na proposta pedagógica norteadora
do projeto, essa discussão teve como ponto de partida e de chegada o caráter simbólico, crítico,
subjetivo e social da literatura – considerada, portanto, um ato político – seja através da produção de
textos literários por grupos que são historicamente invisibilizados, seja por proporcionar a tomada de
consciência acerca de temas sociais, motivando o leitor a (re)pensar suas concepções e a agir a partir
do senso sobre si e sobre a comunidade a que pertence (COSSON, 2011).
Também foram abordados os aspectos linguístico-discursivos e as especificidades das
diferentes linguagens na construção das obras selecionadas: de que modo elas se diferenciam e em
quais aspectos se aproximam (temática, recursos composicionais e estilísticos próprios dos gêneros
discursivos referidos, relações com o universo de referência do leitor na construção ficcional da
narrativa, etc.). Nessa perspectiva, o projeto instituiu-se primordialmente como uma proposta de
educação literária.

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LETRAMENTO LITERÁRIO NA ESCOLA:


ALGUMAS REFLEXÕES
As pesquisas acadêmicas contemporâneas acerca de ensino de literatura na escola básica
indicam, ainda, a predominância de uma educação literária pautada em uma perspectiva
358

fundamentalmente tradicional: além da fragmentação da disciplina Português (LEITE, 2011;


BUNZEN, 2007), há uma dissociação entre língua e literatura (LEITE, 2011).
Outra questão é que no Ensino Médio (EM) há uma forte tendência a um ensino técnico,
com centralidade na classificação e identificação de datas, movimentos literários e suas respectivas
características centrais, “com sistemas de obras e autores” (SUASSUNA; MELO; COELHO, 2006,
p. 228). Já no segundo segmento do ensino fundamental o trabalho com a literatura é realizado por
um caráter avaliativo, restringindo-se à medição do conhecimento (RITER, 2009). Desse modo,
perde-se o viés de fruição presente na educação infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental
(EF) e o texto literário passa a ocupar um papel secundário, inadequado, negligenciado e/ou
inexistente nas aulas de língua materna.
Outro ponto é que há, na escola, uma tendência para um ensino de literatura em que os
materiais de leitura são, predominantemente, compostos por fragmentos textuais – o que não colabora
para a imersão do leitor na obra. Amorim e Leal (2020) apontam a relevância da seleção de textos
integrais na escola, ainda que extensos.
Sendo o docente de LP o principal mediador de textos no ambiente escolar, há de se
pensar sobre algumas dificuldades no que diz respeito à leitura, disponibilidade e seleção de obras
literárias diversificadas e de qualidade na educação básica. Além de haver bibliotecas desamparadas
ou fechadas – evidenciando desajustes nas estratégias da instância da escolarização da literatura (cf.
SOARES, 2011) –, muitos professores não são leitores literários, seja por terem vivido em um espaço
social não letrado (onde não havia a democratização de acesso aos livros), seja devido a um escasso
tempo disponível para se dedicarem às leituras e/ ou, ainda, por sobrecarga de trabalho.
Também há algumas questões no que diz respeito à formação docente inicial:
considerando-se o caráter humano e social da linguagem, Bagno (2016) aponta certa fragilidade do
currículo do curso de Letras, ao não incluir disciplinas de diversas áreas das ciências humanas e
sociais – que, para ele, constituem um pré-requisito para a compreensão de determinados conteúdos
que tratam especificamente sobre a língua –, o que também estabelece um ciclo vicioso de escolhas
de livros didáticos conservadores, decorrente dessa falta.
Desse modo, sendo a literatura um instrumento de reflexão e uma área interdisciplinar
(MARTINS, 2006), pode-se considerar que tal lacuna na formação docente também interfere
diretamente na formação de leitores literários a partir da seleção textual realizada pelo professor, do
processo de atribuição de sentidos do texto, dos procedimentos metodológicos empregados no
tratamento de obras literárias em sala e dos objetivos de ensino e de aprendizagem estabelecidos.
Além das questões levantadas, considerando-se os gêneros textuais e o letramento ligados
à função social (STREET, 2014), também se reflete que a habitual redução da seleção textual ao
clássico/ cânone (BAJOUR, 2012; LAJOLO, 2018; COSSON, 2019), a censura estética (cf.
359

LAJOLO, 2018) e a percepção de letramentos não escolares como tentativas inferiores (STREET,
2014) excluem a possibilidade do trabalho com textos sem prestígio social, que circulam em
ambientes não escolares e que dialogam com distintas realidades – tais como a literatura periférica e
a literatura direcionada para o público juvenil, entre outras expressões artísticas e poéticas. Soares
(2011) explicita a importância de se atentar para a seleção de materiais didáticos, visto que limitar
autores e obras resulta em uma escolarização inadequada a partir do conceito de que literatura diz
respeito a apenas aquelas escolhas.
Ao buscar por pluralidade de textos e ceder espaço para a diversidade, pode-se estabelecer
um diálogo com os discentes a partir de um ensino e aprendizagem numa perspectiva de língua como
aquilo que se vivencia, assim como de gêneros discursivos vinculados ao cotidiano cultural e social
(BUNZEN; FISCHER, 2018). Conforme evidencia Batista (2001), “a língua que se ensina é diferente
do português que se usa no dia a dia”. O distanciamento entre língua e sujeitos (STREET, 2014) e a
concepção de língua como aquilo que não faz parte da vida cotidiana alcançam o trabalho com a
literatura (desde a escolha dos gêneros discursivos à discussão textual) e, de modo consequente, faz
com que a seleção textual seja mais atenta ao currículo prescrito e ao Livro Didático de Português
(LDP), bem como que o professor estabeleça procedimentos metodológicos estritos – ancorados em
determinadas concepções de ensino, conscientes ou não – do que necessariamente preocupada em
desenvolver o letramento literário e ampliar as habilidades de leitura e escrita.
Portanto, com um ensino fundamentado em uma percepção da literatura como objeto
artístico de difícil entendimento, o aluno desenvolve uma “compreensão mitificada e homogênea do
fenômeno literário” (MARTINS, 2006, p. 84), apresentando dificuldade em adentrar no universo
ficcional e simbólico: ser sensibilizado pelo texto, compreender as metáforas, realizar análise
linguística relacionada à leitura de determinada obra, refletir sobre seus impactos e críticas sociais,
correlacioná-los com outros materiais e textos de suportes iguais ou diferentes, etc.

A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO ESTÁGIO DE REGÊNCIA: O TEXTO LITERÁRIO


COMO ELEMENTO CENTRAL

Tendo em vista as tendências voltadas para um ensino fragmentado e tradicional nas aulas
de língua materna na educação básica, pode-se dizer que a disciplina Estágio Supervisionado em
Português IV da UFPE desempenha um movimento contrário a essa tradição. Nela, propõe-se a
elaboração de um projeto didático autoral – com orientação do professor da disciplina – em que os
quatro eixos da língua (leitura, análise linguística, produção textual e oralidade) sejam estruturados a
partir de uma sequência didática interligada, de mesma temática, em que os conteúdos apresentem-
se de modo articulado (SUASSUNA; MELO; COELHO, 2006).
360

Após a elaboração do projeto, realizada a partir da coleta de dados e da observação de


20h/a em uma turma da rede pública de ensino elegida pelo professor em formação, a intervenção
didática é cumprida em 15-20h/a de regência e 25h de atividades complementares. Assim, o discente
de Letras deverá produzir um material didático para um grupo específico de alunos, refletindo sobre
o papel da língua(gem), com aulas que considerem os conhecimentos prévios da classe e os conteúdos
anteriormente trabalhados. Para tanto, pode-se fazer um questionário diagnóstico com a turma,
realizar entrevistas com a professora-supervisora, observar os cadernos dos alunos – suportes de
escritura que trazem registros de aulas anteriores –, conversar com a classe sobre as aulas, a Escola e
sua expectativa de aprendizagem e observar as interações que ocorrem em sala.
Ao optar por um gênero literário no processo de elaboração do projeto e observação da
turma, o licenciando deverá considerar: i) as necessidades dos alunos da classe escolhida e quais
conteúdos a turma já domina – focalizando a ampliação de conhecimentos e o desenvolvimento do
letramento literário dos discentes; ii) quais gêneros discursivos já foram trabalhados em sala e de que
modo isso ocorreu (Superficialmente? A partir de uma perspectiva técnica? Com
leitura/análise/discussão de textos? Considerando as interações e os silenciamentos dos discentes?);
iii) como determinadas ausências na trajetória escolar da turma poderão causar dificuldades no que
diz respeito à aplicação do projeto proposto – e de que modo adaptá-lo a partir dessa consideração;
iv) o conhecimento anterior dos alunos no que diz respeito à compreensão da natureza dos gêneros
literários (ficcionalidade e simbologia); v) quais procedimentos metodológicos a professora-
supervisora do campo de estágio utilizou nas aulas, de que modo foram favoráveis (ou não) e quais
procedimentos poderão ser selecionados pelo estagiário a fim de estabelecer o ensino e aprendizagem.
Com o gênero conto como central, as metas de aprendizagem do eixo Leitura selecionadas
para a intervenção didática foram: compreender as características do gênero discursivo em questão,
compreender as diferenças de linguagem e os recursos linguísticos-discursivos entre textos de mesmo
gênero (conto), bem como a relação entre obras de gêneros/naturezas diferentes (conto As notícias e
o mel, de Marina Colasanti; conto Maria, de Conceição Evaristo; Romance e adaptação
cinematográfica Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago).
Situada no bairro da Torre (Recife – PE), a Escola escolhida dizia respeito a um EREM
de ensino integral. Os aspectos da infraestrutura e a organização da gestão eram favoráveis: a Escola
contava com grande acervo na biblioteca, ar-condicionado nas salas e merenda saudável, bem como
com muitos eventos escolares (literários e artísticos, de modo geral). Neles, havia abertura para as
vozes do alunado e seu protagonismo – o que não ocorria nas aulas de Língua Portuguesa da classe
selecionada.
Durante os eventos citados, havia diversas discussões a partir de textos da esfera literária.
Entretanto, era comum que tais discussões passassem do texto diretamente para um determinado tema
361

sociológico – sem considerar as especificidades textuais e as possíveis atribuições de significados às


escolhas dos recursos discursivos, aos comportamentos e construção dos personagens, etc. Sendo
assim, os textos serviam como mote para falar sobre temas sociais (relação texto-mundo) e a
língua(gem), o gênero discursivo em questão e a própria narrativa não eram discutidos (relação texto-
elementos textuais-mundo).
Na sala de aula, a docente de língua portuguesa (professora-supervisora de estágio) não
fazia análises norteadas pelo texto – sendo ele, na maior parte das vezes, apenas um pretexto para
discussão sobre algum tópico externo ou para resolução de questões objetivas de identificação. Na
observação anterior à regência, notou-se também uma tendência de ensino pautado em aulas
fragmentadas e desconectadas – um novo conteúdo a cada dia, sem finalização de nenhum. Havia,
nas aulas, a predominância da instância do exercício (cf. BATISTA, 2011): a maior parte do tempo
das aulas era dedicada à cópia e resolução de questões de modo individual. A correção coletiva era
realizada apenas para “entregar” as respostas corretas e não para avaliá-las e discuti-las.
Sendo assim, o projeto de estágio foi desenvolvido a partir da proposta de um trabalho
direcionada para a leitura literária, partindo de um tema pertinente para aquela realidade escolar em
que os discentes opinavam sobre temas diversos e complexos – tais como feminicídio e porte de
armas – muitas vezes, com opiniões sem base e sem reflexão aprofundada.
Do gênero discursivo central, escolheu-se para leitura inicial o conto As notícias e o Mel,
de Marina Colasanti. Ele conta a história de um Rei que, um dia, acorda surdo de um lado do ouvido.
Para continuar ouvindo dos dois lados, ele contrata um gnomo, que passa a sussurrar tudo o que escuta
do lado de fora, bem próximo ao ouvido surdo. Após tanta proximidade, o Rei e o gnomo ficam
amigos. Então, para não chatear o Rei, sempre que o gnomo escuta uma notícia ruim, fala no ouvido
do Rei uma notícia boa. O Rei, ao ouvir duas notícias ao mesmo tempo (boas e ruins), opta sempre
pela melhor (dita pelo gnomo) e fica muito feliz com a escolha. Por fim, pede para que o gnomo feche
o outro ouvido saudável com mel e renuncia ao cargo – para, assim, ficar surdo de vez e ouvir apenas
a voz do amigo, que passa a ser seu único porta-voz do mundo.
A classe estava silenciosa durante a leitura do conto – o que foi positivo para o andamento
do projeto, visto que as leituras e as discussões eram interligadas. Desse modo, a proposta e a
aplicação de um projeto integrado seriam desafiadoras. Para tanto, o comportamento dos alunos foi
analisado a partir do que defende Bajour (2012) quando propõe vigilância acerca da palavra que não
é dita, mas que é falada com olhares e gestos.
Após a leitura de As notícias e o mel e aplicação de uma ficha de roteiro de aula com
exercício, dois discentes foram até a banca com dúvidas que apontavam a não compreensão do conto.
A partir de tal ação, a estagiária questionou o restante da classe sobre o entendimento do texto e,
partindo do pressuposto anteriormente citado pela autora Bajour, foi constatado que a maior parte da
362

turma havia demonstrado dificuldade em compreender o conto: os olhares e as expressões indicavam


dúvidas e hesitações.
Identificando a ausência de habilidade da classe em leitura e escrita de textos literários –
constatada a partir da observação dos cadernos, de conversas com os alunos e a professora e das
interações na prática de regência –, a licencianda considerou a possibilidade de tais discentes terem
uma trajetória escolar marcada por um ensino tradicional no que diz respeito ao ensino de literatura.
Ainda que lessem textos da esfera literária em espaços não escolares, havia a carência de determinadas
habilidades facilitadas e ampliadas pela escola.
Além disso, a professora supervisora do estágio não trabalhava com textos simbólicos e
metafóricos e, a partir dos gestos didáticos e do agir didático da docente (cf. MESSIAS; DOLZ,
2015), pode-se identificar uma tendência ao ensino estruturado em correção (cf. BATISTA, 2001) –
apontando, mais uma vez, um direcionamento para uma perspectiva de ensino tradicional. A
estagiária questionou a classe acerca do conhecimento sobre metáfora e apenas duas alunas afirmaram
entender/ compreender – o que levou à reflexão sobre se realmente os alunos não sabiam ou se não
se sentiam à vontade para se expressarem em sala. Entretanto, durante as aulas, relevou-se fato de
que o conteúdo era desconhecido para eles. A docente supervisora já havia informado que a classe
ainda não compreendia o assunto, mas a estagiária preparou-se para as duas possibilidades (de
dominarem ou não).
Desse modo, a lacuna na trajetória escolar no que diz respeito à educação literária foi
considerada no trabalho com aquela turma e, ao perceber a inicial dificuldade de compreensão do
conto de Marina Colasanti, repetiu-se a leitura – dessa vez, explicando a progressão da história em
cada um dos trechos, partindo de uma mediação conduzida por um levantamento de questões sobre a
narrativa. Repensar as escolhas e refazer caminhos quando necessário faz parte da prática docente,
pois “há que considerar os acidentes, os acontecimentos, os acasos, os desenvolvimentos proximais
e até mesmo de que não há um ponto de chegada definitivo, mas sempre um patamar que permite
novos avanços” (GERALDI, 2011, p. 77).
Adotando a concepção do pesquisador citado, os recursos utilizados também foram
alterados ao longo do processo do estágio: a estagiária realizou testes com diversos deles (tais como
quadro e caderno, slides, fichas com linhas, fichas sem linhas e discussão oral) a fim de analisar quais
ofereciam maior retorno em relação à interação da classe, a depender da atividade realizada.
A turma reagiu bem às discussões orais acompanhadas de fichas com linhas para escrita.
Considerando a tradição escolar de apego às aulas conduzidas por escrita no quadro e no caderno, já
se esperava que houvesse maior retorno ao utilizar tais recursos nas estratégias de ensino. Portanto,
elas foram selecionadas/ mantidas em alguns momentos: muito do que seria discutido apenas
oralmente foi transferido para as fichas de roteiro de aula ou questões no quadro (ambas solicitando
363

escrita/ sistematização). Adaptar alguns pontos do projeto foi fundamental para o estabelecimento de
interações favoráveis para o ensino e aprendizagem.
Também há de se considerar que há uma cultura escolar que, naturalmente, demanda
tempo para (de modo gradual) alterar. Assim, a estagiária buscou um equilíbrio entre a cultura
existente e ao que aspirava mudar, bem como as competências que intencionava ampliar no curto
tempo disponível.
Posteriormente à leitura do conto, houve uma discussão. Inicialmente, seria realizada
oralmente. Porém, foi adaptada para questões escritas no quadro a partir da percepção da estagiária
sobre estratégias didáticas e recursos para obter maior participação:
Quadro 1: Questões norteadoras da discussão literária
Q1: O que vocês entenderam do conto? O que chamou a atenção? O que podemos inferir?

Q2: Vocês acham que há, no texto, algum tipo de crítica?

Q3: Por que o título é “As notícias e o mel”?

Q4: Por quais razões o Rei optou por não ter conhecimento sobre o que se passava no reino?

Q5: Quais eram os critérios do Rei acerca das informações que chegavam?

Q6: Vocês acham que o Rei estava em condições de cumprir sua função? Por quê?

Q7: Qual a intencionalidade da autora ao escrever esse texto?

Q8: A partir do texto, pode-se refletir sobre os nossos atos/atos das outras pessoas?

Q9: A partir do que estamos conversando, responda: a literatura pode ser considerada um ato político?
Por quê?

Fonte: autoras
Partindo do texto literário, a licencianda pôde discutir sobre as impressões da classe sobre
a narrativa e iniciar uma discussão sobre o tema do projeto. Para Cosson (2020) há algumas estratégias
de leitura. Entre elas, está a texto-leitor, que explora “a trama, as imagens sensoriais, os efeitos da
obra sobre o leitor [...]. Esse é o modo de ler, por excelência, daquele que busca ser emocionalmente
tocado” (COSSON, 2020, p. 76).
A partir da Q1, para dar base às questões seguintes, a estagiária explanou o significado
de inferência e de leitura não literal, bem como suas relevâncias para a interpretação textual por meio
da atribuição de significado à narrativa. Desse modo, ela realizou uma introdução sobre leitura de
textos literários para, posteriormente, chegar às discussões mais específicas sobre a temática da
narrativa/ sua relação com o tema do projeto. Tal abordagem foi considerada significativa para aquela
classe devido à anterior identificação de ausência de trabalho com textos da esfera literária. Assim,
buscando alcançar a turma em questão e considerando os conhecimentos prévios dos discentes,
estabeleceu-se uma progressão dos conteúdos no processo de ensino e aprendizagem.
364

A seguir, a licencianda propôs iniciar possíveis interpretações e uma análise


comportamental do personagem principal. Tal análise é retomada em momentos posteriores (Q7, Q8
e Q9) para fundamentar a relação entre o comportamento do personagem e a atitude das pessoas na
sociedade (ficção e realidade), bem como a própria leitura literária como ato político (que difere de
partidário), forma de resistência e esclarecimento. Desse modo, partindo das especificidades da
narrativa, o personagem opera como base referencial para uma reflexão sobre a temática do projeto e
acerca da função da literatura: por meio do universo ficcional e simbólico, buscou-se sensibilizar os
discentes sobre seus lugares no mundo como indivíduos e também fazê-los pensar que esses lugares
alcançam o social.
As questões posteriores à Q1 seguiram com inferências sobre o personagem: a) o fato de
que parte da surdez do Rei não é sua responsabilidade, visto que ficou surdo de um lado do ouvido,
de repente – mas que, posteriormente, escolheu não escutar e ficar surdo de vez (Q2); b) optou por
não ter conhecimento sobre o que se passava no reino por ser mais cômodo ouvir apenas o que se
quer – ficando, assim, alienado (Q3); c) era difícil ouvir notícias ruins (Q4) e, por isso, seus critérios
para escutar direcionavam-se exclusivamente às boas notícias (Q5); d) não ouvir o que deveria/ não
estar ciente dos acontecimentos colocou o Rei em inabilidade de cumprimento de sua função (Q6).
Assim, apontou-se as possíveis consequências do comportamento do personagem principal para o
reino: as pessoas devem ter ficado sem assistência – especialmente por ele assumir um cargo de
liderança, muitos precisavam de suas ações e decisões.
Também se discutiu, pelas Q7, Q8 e Q9, o fato de que a ação de escrita de textos literários
também pode ser política, a exemplo do que disse a autora Conceição Evaristo: o próprio ato de uma
mulher negra escrever literatura é um ato de resistência – pois está subvertendo a lógica do imaginário
brasileiro sobre o lugar da mulher negra, visto que ser escritor e produtor de saber é comum aos
homens brancos.
No início das discussões, uma discente respondeu a algumas questões conforme a
expectativa de respostas. O restante da classe ficou quieto – porém, demonstrou estar impactado e
reflexivo. A estagiária já esperava que houvesse uma participação inicial pequena, tanto pelo fato de
os alunos não estarem acostumados a esse tipo de formato de aula (discussões orais de questões, com
espaço para escuta) nas aulas de LP, quanto pela admissão de que habilidade de atribuição de sentidos
ao texto e a compreensão de leitura literária são construídas passo a passo, com a prática.
A fim de estabelecer relações mais concretas entre a obra lida e a realidade, a licencianda
propôs mais uma discussão acerca da relevância da busca pelo conhecimento, reiterando o que já
havia sido discutido no primeiro exercício. Para tanto, ela escolheu uma produção textual realizada
por uma aluna (em uma aula anterior à regência) sobre o tema “empoderamento feminino”. Houve
uma mediação fundamentada na relação entre a atividade citada e o conto lido em sala, considerando
365

o fato de que a tomada de consciência, a pesquisa e a busca por informação (atitude contrária à do
Rei do conto) são fundamentais para obter empoderamento, bem como que a produção de texto
explanada configura um ato político. A relação entre o conto e a produção da aluna foi realizada com
a intencionalidade de promover uma ligação entre as aulas, o indivíduo e o que há fora da escola,
fundamentada na concepção da obra literária “como um enunciado vivo que dialoga com textos
anteriores, mas que aponta também para réplicas na esfera escolar” (BUNZEN; FISCHER, 2015, p.
17).
Em um outro momento, houve uma mediação a partir dos seguintes questionamentos –
finalizando as discussões sobre as relações entre a obra e o mundo:

Quadro 2: Questões relativas à natureza metafórica do texto literário


Questionamento Expectativa de resposta

i) O que o Rei fez na história e que as pessoas Fecham os ouvidos para a realidade.
também fazem na vida real?

ii) De que modo nós agimos como o Rei na vida? Quando naturalizamos questões de desigualdade,
quando vemos uma situação de discriminação e
nos sentimos indiferentes a isso, quando estamos
conformados, quando repassamos informações
sem nos certificar se elas são verídicas.

Fonte: autoras
Por fim, dando continuidade aos questionamentos referidos, a estagiária discutiu sobre a
natureza metafórica do texto lido, relacionando a surdez com todo o restante que estava sendo
discutido. Posteriormente, em um outro momento, a licencianda propôs uma discussão guiada por um
exercício no quadro que solicitava a indicação de personagens e também um resumo do conto – a fim
de observar, nas fichas, se os alunos haviam compreendido a ideia central. As indicações das
características do gênero foram desempenhadas através da retomada dos parágrafos e de uma análise
sobre as escolhas discursivas da autora, bem como algumas noções foram apresentadas a partir de
exemplos cotidianos. Houve uma sistematização no quadro/ caderno e uma ficha. Pela observação
das respostas da ficha, a estagiária em questão confirmou o entendimento da turma, de modo geral,
sobre a história do conto, visto que muitos discentes escreveram um resumo com suas próprias
palavras.
O próximo material selecionado foi a adaptação cinematográfica de Ensaio sobre a
Cegueira (José Saramago). O enredo narra uma cidade acometida por uma cegueira branca e
contagiosa. As pessoas que iam ficando cegas eram colocadas em quarentena. Apenas uma mulher
enxerga – e ela decide fingir-se de cega, para acompanhar o marido no local de isolamento. Aos
poucos, a cegueira acomete toda a cidade. No final, todos voltam a enxergar – com exceção da mulher.
366

Após a exibição do filme (recebida com curiosidade, atenção e interesse pelos discentes),
houve a seguinte discussão a partir de fichas:
Quadro 3 – Ficha de Exercícios
Q1: Qual é o conflito principal de Ensaio sobre a Cegueira?

Q2: Pode-se dizer que, no filme, há um cenário de caos, determinado através de imagens e sons, além
do diálogo estabelecido entre os personagens. Exemplifique tal cenário descrevendo passagens do
filme.

Q3: Leia o trecho abaixo, retirado do livro Ensaio sobre a Cegueira, e responda:
O homem disse. Está a chover, e depois, Quem é você, Não sou daqui, Anda à procura de comida, Sim,
há quatro dias que não comemos, E como sabe que são quatro dias, É um cálculo, Está sozinha, Estou
com o meu marido e uns companheiros, Quantos são, Ato todo, sete (...)
Saramago, J. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
a) No trecho – assim como em todo o livro –, há um desvio da norma padrão. Explique qual é o desvio:
b) De que maneira ler isso faz com que o leitor vivencie o caos que ocorre na narrativa?

Q4: Tanto em As notícias e o mel quanto em Ensaio sobre a Cegueira há a perda de um dos cinco
sentidos do corpo humano. Explique a intencionalidade dos autores:

Q5: “Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te
diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem” (trecho de Ensaio sobre a Cegueira)
a) O que são cegos que, vendo, não veem?
b) Em ensaio sobre a Cegueira, porque a cegueira é branca, não preta?

Q6: Pode-se dizer que o livro Ensaio sobre a Cegueira faz uma crítica social que dialoga com o conto
As notícias e o mel, de Marina Colasanti. A partir do que foi discutido em sala, explique qual é a
crítica.

Q7: Sobre os personagens de Ensaio sobre a Cegueira, responda:


a) Há o nome de algum personagem? Como o autor identifica os personagens?
b) Qual é a intencionalidade do autor sobre o modo como ele nomeia os personagens?

Fonte: autoras
Houve grande participação oral na discussão do exercício: cerca de metade da classe fez
comentários sobre as questões, assim como os discentes demonstraram mais segurança e menor
hesitação, em comparação ao exercício anterior. Algumas questões tratam do confronto com os
recursos imagéticos e visuais da adaptação cinematográfica (Q2) e dos recursos linguísticos utilizados
pelo autor para apontar desordem no enredo no romance, relacionando a forma com o significado da
obra e evidenciando de que modo tais recursos interferem na experiência literária do leitor (Q3).
Desse modo, pôde-se pensar sobre os modos de expressão de manifestações artísticas de naturezas
distintas (romance e filme), refletindo sobre a língua(gem).
A Q4 relaciona duas obras de gêneros discursivos diferentes (conto e filme),
demonstrando a aproximação temática entre ambos ao darem margem para uma reflexão sobre a
alienação social. Já a Q5-a possui a intencionalidade de refletir sobre a crítica social a partir da
metáfora da cegueira: pessoas que enxergam a realidade, mas que não reparam ou não querem reparar.
Durante a discussão da Q5, os discentes demonstraram bastante dúvida. Desse modo, a estagiária
367

escreveu no quadro a frase “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Saramago). Alguns discentes
participaram, explicando as diferenças aos alunos que ainda não haviam compreendido.
A Q5-b coloca em questão o fato de que a cegueira branca pode estar relacionada ao
excesso de informações. A estagiária levou a discussão contextualizando com os dias atuais,
colocando a possibilidade de as telas brancas, dos celulares e notebooks (com seus aplicativos de
comunicação) deixarem-nos “cegos” devido ao excesso de informações (que não são filtradas antes
de serem disseminadas). A partir dessa colocação, a licencianda mediou uma discussão acerca do
comportamento nas redes sociais e em aplicativos como o WhatsApp, explicitando a importância de
não opinar em todas as postagens que surgem – especialmente aquelas com temas polêmicas, em que
todos comentam e muitos revelam posicionamentos dicotômicos simplistas – sem, antes, pesquisar
bem. Também ofereceu exemplos e conversou sobre como verificar se um site é confiável/ como
pesquisar, bem como a relevância em se adotar esse cuidado. Assim, a temática do projeto foi
fundamentada a partir da relação entre o tema central da narrativa e elementos do cotidiano –
buscando romper com a tradicional concepção de língua como objeto distante (cf. BATISTA, 2001).
A Q7 incitou uma discussão sobre nossos locais no mundo: muitas vezes, somos
identificados por números ou características que chamem a atenção por alguma razão (deficientes,
médicos, etc.) e, assim, perdemos a individualidade. De modo geral, a classe esteve atenta e diversos
alunos entraram na discussão. Um deles sugeriu que nós somos determinados pelo que produzimos,
não por quem somos – demonstrando, assim, habilidade no que diz respeito ao levantamento de
inferências e construção de reflexões pessoais críticas sobre o enredo, atreladas ao social.
Em outra aula, a licencianda aplicou uma avaliação com questões que relacionavam As
notícias e o mel e Ensaio sobre a Cegueira – ambos em diálogo com a ideia de literatura como
instrumento de intervenção e ato político –, bem como enunciados que solicitavam indicação dos
recursos linguísticos-discursivos presentes nos materiais didáticos estudados em sala. O trabalho com
linguagens além do texto verbal escrito contribui para a formação do leitor literário ao possibilitar a
abordagem de relação entre enredos de naturezas diversas – no caso, o verbal escrito e o audiovisual:
relacionou-se obras distintas no que diz respeito à temática e aos artifícios linguísticos.
Para a resolução das questões, fez-se necessário retomar ideias de aulas anteriores acerca
da interferência dos recursos próprios do gênero/ escolhas discursivas do autor na composição da
obra, suscitando discussões sobre de que modo tais escolhas impactam na experiência literária do
leitor (pontuação, linguagem, sons, imagens) e atuam como elementos facilitadores na imersão na
história.
O segundo conto trabalhado em sala – Maria, de Conceição Evaristo, constante na obra
Olhos d’água – foi introdutório à produção textual e selecionado com a intencionalidade de
demonstrar outros modos de produzir contos (com mais ou com menos imagens metafóricas). O
368

enredo conta a história de uma mulher negra que é confundida como cúmplice de um assaltante (por
acaso, seu ex-marido). Os integrantes do ônibus, sem buscarem saber de fato sobre a culpa da
personagem/ sem procurarem por um julgamento justo e legal – e punição apropriada, se fosse o caso
–, golpeiam-na com as próprias mãos até à morte. Ao utilizar o texto, a estagiária retomou discussões
sobre as leituras anteriores e, por último, estabeleceu noções/ exemplos acerca de textos literários e
não literários. A escolha do conto referido configura um afastamento da seleção textual de caráter
tradicional (visto que não diz respeito aos clássicos e/ou presentes no LDP).

CONCLUSÃO
A proposta de ampliação do letramento literário a partir da leitura mostrou-se favorável
ao ensino e aprendizagem: pôde-se provocar uma imersão do aluno-leitor acerca do enredo e formar
o discente a partir do despertar da criticidade ante si próprio e o mundo – demonstrando que a
literatura coloca provocações passíveis de serem veiculadas para a realidade em que se vive, bem
como para o próprio modo de estar e agir na sociedade –, incitando, assim, uma autoanálise e possível
intervenção social. No caso do projeto analisado neste trabalho, houve, a partir da abordagem das
características específicas dos materiais didáticos (discussões sobre a linguagem, atribuição de
possíveis significados e apontamento de análises das especificidades e simbologias do enredo e dos
personagens), uma sensibilização acerca da relevância da busca por informação.
Para que haja distanciamento do tradicional tratamento da literatura, há de se pensar em
formar um sujeito crítico a partir de uma seleção textual de qualidade, da admissão de materiais de
diferentes linguagens, da inclusão de literaturas não canônicas e de produções artísticas diversas como
objetos de estudo. Além disso, deve-se definir estrategicamente as metas de ensino, a carga horária,
as metodologias, os recursos e os conteúdos, considerando os conhecimentos prévios da classe e
partindo da concepção de aula como acontecimento (cf. GERALDI, 2010) – adotando a perspectiva
de que o trabalho docente é passível de reajustes.

REFERÊNCIAS

AMORIM, L. B.; LEAL, T. F; Os gêneros discursivos em livros didáticos: os desencontros do


processo de didatização. In: ABREU-TARDELLI, L.; BUNZEN, C. Livro didático: dos contextos
aos usos em sala de aula. Recife: Pipa Comunicação, 2020.

BAJOUR, C. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do
Gato, 2012.

BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.

BATISTA, A. A. G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
369

BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino
médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M (org.). Português no ensino médio e formação do
professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

COSSON, R. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2020.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2019.

COSSON, R.; FISCHER, R. L. Os gêneros na escola e formação do leitor literário: desafios e


possibilidades. In: DUBEUX, M. H. S.; ROSA, E. C. S. (org.). Abriu-se a biblioteca... – mitos,
rimas, imagens, monstros, gente e bichos. Recife: Editora UFPE, 2015.

GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Paulo: Pedro e João Editores, 2010.

GERALDI, J. W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J. W. (org.). O


texto na sala de aula. 5. Ed. São Paulo: Ática, 2011.

LAJOLO, M. Literatura ontem, hoje, amanhã. São Paulo: Editora UNESP, 2018.

MARTINS, I. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In: BUNZEN, C.;
MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.

RITER, C. A formação do leitor literário em casa e na escola. São Paulo: Biruta, 2009.

SOARES, M. A escolarização da leitura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A. A. M;


BRANDÃO, H. M. B. B.; MACHADO; M. Z. V. (org.) A escolarização da leitura literária: o
jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento do desenvolvimento, na


etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

SUASSUNA, L.; MELO, I. F.; COELHO, W. E. O projeto didático: forma de articulação entre
leitura, literatura, produção de texto e análise linguística. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M.
(Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial,
2006.
370

A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TEMPOS DE


PANDEMIA NO ENSINO REMOTO

Ranilza Francisca da Silva (UFRN/CEFLE)112


Silvia Leticia Louzeiro Alves (UFRN/CEFLE)113
Katia Cilene Ferreira França (UFMA/GETED)114

RESUMO
O anúncio da pandemia no Brasil em março de 2020, o isolamento social para conter a contaminação
pelo Covid-19 promoveram a redefinição de espaços e práticas de ensino. As aulas nas escolas
começaram a acontecer virtualmente, o ensino remoto tornou-se uma realidade que transformou as
casas em sala de aula, computadores, celulares, tablets em ambientes de ensino virtual e emergencial.
Com o atual cenário educacional, o espaço-tempo da escola foi ressignificado, exigiu novo olhar e
inquietação sobre como e o que ensinar. Os professores foram pegos de surpresa e tiveram que se
reinventar e ressignificar suas práticas. Essa realidade chama atenção e merece ser interrogada,
especialmente quando levamos em conta o trabalho do professor de língua portuguesa, no contexto
da pandemia. Nesse sentido, essa pesquisa tem o objetivo de investigar a mediação do professor
através do uso do livro didático de Língua Portuguesa para o ensino fundamental em tempos de
pandemia e ensino remoto. Delimitamos como corpus, aulas de português gravadas, disponibilizadas
para esta pesquisa. No processo de análise, levamos em conta os recursos como o livro didático e os
roteiros que a professora utiliza como prática pedagógica dessa mediação. A base teórica deste estudo
perpassaremos principalmente pelos autores Geraldi (1997; 2010;2011), Antunes (2003), Oliveira
(2002). Os documentos oficiais, os PCNs de Língua Portuguesa (1998) também fazem parte de nossas
referências bibliográficas. Como resultados apontamos que na observação de três aulas gravadas pelo
google meet, mesmo fazendo o uso constante do livro didático, uma novidade acontece: em uma das
propostas de atividades a professora se desvia do roteiro proposto pelo material didático e propõe
outras possibilidades para trabalhar a leitura e a escrita de forma dinâmica através do uso híbrido dos
gêneros podcast e lendas e essa proposta desenvolveu respostas significativas para o processo de
ensino-aprendizagem nas aulas remotas, e nos conduziu a refletir estratégias e práticas além do que
estávamos acostumados a ver de forma presencial, diante de uma nova forma de repensar a mediação
do professor de Língua Portuguesa nas aulas remotas.
Palavras-chave: Aula de português. Livro didático. Ensino remoto. Leitura. Escrita.

INTRODUÇÃO
O anúncio da pandemia no Brasil em março de 2020 e o isolamento social para conter a
contaminação pela Covid-19 promoveram a redefinição de espaços e práticas de ensino. As aulas nas
escolas começaram a acontecer virtualmente, o ensino remoto tornou-se uma realidade que

112
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Fundamentos Linguísticos para o ensino da Leitura e
da Escrita. ranilza26@gmail.com
113
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Fundamentos Linguísticos para o ensino da Leitura e
da Escrita. leticialouzeiro@hotmail.com
114
Universidade Federal do Maranhão, Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos Escrita e Produção de Saberes (GEEPS), da UFMA e membro do Grupo de
Pesquisa em Estudo do Texto e do Discurso (GETED), da UFRN. katia.franca@ufma.br
371

transformou casas em sala de aula, computadores, celulares, tablets em ambientes de ensino virtual e
emergencial. Com o atual cenário educacional, o espaço-tempo da escola foi ressignificado, exigiu
novo olhar e inquietação sobre como e o quê ensinar.
Considerando esse contexto, esta pesquisa se propõe a investigar as estratégias de
mediação e a construção das aulas de língua portuguesa no ensino remoto frente ao cenário de
pandemia com a utilização do livro didático e observar como ocorreu a interação dos estudantes na
construção do aprendizado.
Nossos objetivos específicos são: discutir sobre a aula de português como uma
experiência de ensino e pesquisa; observar aulas virtuais de língua portuguesa para alunos do ensino
fundamental considerando as estratégias de mediação pedagógica mobilizados pelo professor; refletir
sobre o espaço ocupado pelo livro didático nas aulas de português, no ensino remoto.
Partindo do que for observado na mediação do professor durante as aulas remotas e
levando em consideração o processo de leitura e escrita diante da ação-interação entre professores e
estudantes, a nossa busca nesse trabalho é abordar os seguintes questionamentos: Como ocorre as
estratégias de uso do livro didático e os roteiros mediados pela professora? Como trabalhar o livro
didático nesse contexto de pandemia? Como ocorre a interação no ensino remoto entre professora e
estudantes?
As estratégias de ensino ressignificaram e os recursos utilizados pelos professores
precisou ser adaptado ao formato remoto, logo a mediação do professor ganhou um novo olhar, pois
“O processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores, distinguindo o homem dos outros animais.” (OLIVEIRA 2002,
p. 33).
É neste sentido que refletimos a questão da mediação do professor de português, pois
segundo Geraldi “o mestre já não se constitui pelo saber que produz, mas por saber um saber
produzido que ele transmite” (GERALDI, 1997, p. 87), no atual cenário de pandemia o professor é
levado a refletir ainda mais suas práticas pedagógicas e precisa saber o que ensinar e como ensinar.
O corpus desta pesquisa foi coletado por meio de três aulas remotas gravadas pelo Google
Meet e a gravação foi autorizada pela professora e pela escola privada que está localizada em São
Gonçalo do Amarante/RN. A coleta dessas aulas foi feita em uma turma do 8º ano do ensino
fundamental II; o nosso objetivo foi observar a mediação do professor de Língua Portuguesa nas
estratégias de perguntas e respostas no espaço de tempo ao se fazer uso do livro didático para as
estratégias de leitura e escrita na modalidade remota.
O estudo dessa temática sobre a mediação do professor diante do ensino remoto foi
embasado com uma formação teórica, iniciando-se por uma pesquisa bibliográfica e análises das aulas
gravadas através da plataforma Google Meet.
372

Faremos exposição das transcrições das aulas oralizadas pela professora e mostraremos
como foram feitas as mediações das produções das atividades através do livro didático.
A análise que faremos desta mediação será uma pesquisa qualitativa, pois o nosso foco é
observar o procedimento de mediação do professor nessas aulas e tentar compreender como ocorre
as estratégias metodológicas para a mediação da leitura e da escrita no processo de ensino-
aprendizagem nas aulas remotas.

Ensinar a escrever obriga o professor a criar condições para que determinados processos se
desenvolvem sem implantá-los diretamente. Desenvolvimento cognitivo nunca se pode
ensinar diretamente. Desenvolvimento psíquico representa uma função autônoma do
aprendiz, mas esta função autônoma do aprendiz, mas esta função precisa do contexto social,
das formas sociais de ensino-aprendizagem, ou seja, dos processos de mediação. (GERALDI,
2010 p.169).

Este estudo apresenta, primeiramente, o contexto histórico do cenário de pandemia e


fundamentação teórica, centrada na mediação pedagógica do professor. Na sequência destaca-se a
metodologia da pesquisa, uma reflexão sobre o uso do livro didático; depois a análise dos dados é
concluída e, por fim, as considerações finais.

PANDEMIA: UMA NOVA REALIDADE PARA A EDUCAÇÃO

Com a chegada da pandemia, no Brasil em março de 2020 vimos a prática remota ser
difundida de forma alargada. Não tínhamos tempo hábil para nos prepararmos para este momento e
os professores foram pegos de surpresa, surgiram muitas dificuldades em lecionar remotamente. Foi
preciso se reinventar diante dessa realidade e aprender a utilizar plataformas digitais, rever tempo, a
preparação das aulas, as condições para dar suas aulas. E a educação, assim como outros setores
sofreram bastante com tais mudanças.
E, conforme essas mudanças, a escola aderiu o ensino remoto, a qual tornou-se uma
realidade que transformou as casas em sala de aula; computadores, celulares, tablets em ambientes
de ensino virtual e emergencial. As casas tornaram-se salas de aulas, escritórios, academias, igrejas e
com isso as pessoas ficaram muito tempo dentro de casa. Com o atual cenário educacional,
estudavam, trabalhavam, exercitavam-se, rezavam, oravam, divertiam-se e precisaram organizar
todas essas tarefas em um único lugar. Não sabemos ao certo, que consequências teremos no futuro
no ensino-aprendizagem dos estudantes.
O ensino remoto veio como uma possível solução para tempos de pandemia. Já tínhamos
o Ensino à Distância (EaD), que é diferente do ensino remoto, pois no ensino à distância as aulas já
373

foram antecipadamente gravadas; já o ensino remoto preconiza a transmissão em tempo real das aulas,
orientadas pelos mesmos princípios das aulas presenciais.
As aulas remotas visam manter a rotina de sala de aula em um ambiente virtual acessado
por diferentes localidades. O que antes poderia ser um problema para o professor e seus estudantes
utilizarem celulares em sala de aula, hoje é essencial para assistirem às aulas, e o meio de
comunicação e a linguagem da internet pautada de gírias e abreviações, que antes se separava do
espaço físico da escola tornou-se importante nesse tempo de pandemia para rever e avaliar a escrita
dos estudantes, porém o que vemos é que a sala de aula está em um ambiente virtual e isto requer
uma escrita bem mais monitorada tanto por parte dos professores quanto dos estudantes.

LIVRO DIDÁTICO NAS AULAS REMOTAS

E agora nos questionamos: como ensinar diante dessa realidade? Na sala de aula
presencial de antes tínhamos recursos, estratégias e preparação para lecionar de forma presencial
como o auxílio do livro didático (LD), a lousa, leitura compartilhada e debates em sala, agora os
professores precisam rever o que fazer para usar ou adaptar esses instrumentos nas aulas remotas, e
um dos recursos de grande importância para a educação é o livro didático, o qual foi elaborado para
ser trabalhado no contexto presencial.
O LD é bastante significativo como apoio para o trabalho dos professores e as escolas
usufruem desse material por ser um acesso prático para todos, pois possibilita desenvolver
competências e habilidades de leitura, escrita e oralidade. Esse recurso didático traz conceitos,
informações sobre linguagem e possibilita ao professor roteiros e estratégias pedagógicas de como
proceder as aulas propostos pelo próprio LD no processo de interação dessas habilidades.
Esse material didático precisa ser usado pelos estudantes, porque houve um custo
financeiro, há uma certa exigência da escola e dos pais, e o professor é cobrado a cumprir metas de
usar o livro em sua totalidade.
O ensino remoto nos remete a ver os desafios de como fazer uso de um livro didático que
foi elaborado para ser trabalhado presencial, mas no momento precisa ser usado no contexto remoto
diante de um tempo de aula reduzido e com a mesma finalidade de cumprir prazos para concluir os
conteúdos.

MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA

Para falarmos de mediação identificamos três diferentes identidades que são construídas
para o ser professor, na concepção proposta por Geraldi (1997): 1. o professor como um sábio; 2. o
professor como alguém que transmite um saber produzido por outro; e 3. o professor como alguém
374

que aplica um conjunto de técnicas de controle em sala de aula. É o sujeito que domina um certo
saber, o produto do trabalho científico.
A partir destas três identidades, vimos uma quarta que é a concepção de professor
mediador. Esta concepção é ratificada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que apontam
o ensino e a aprendizagem como prática pedagógica, resultantes da articulação de três variáveis, que
são o aluno, os conhecimentos, com os quais se operam nas práticas de linguagem e a mediação do
professor (BRASIL, 1998).
A mediação do professor faz parte de um conjunto de variáveis do ensino-aprendizagem
e essa mediação deve estar atrelada a prática educacional do professor favorecendo assim o objeto do
conhecimento e seus sujeitos.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, abordam a mediação do
professor de forma enfática e vê o professor como alguém que cumpre o seu papel em estabelecer o
conhecimento e organizar ações que possibilitem ao aluno um olhar mais crítico e reflexivo.
“Nas situações de ensino de língua, a mediação do professor é fundamental: cabe a ele
mostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução, a consideração real da palavra do
outro assume, concorde-se com ela ou não” (BRASIL, 1998, p. 47). Assim, considerar o dizer do
outro é considerar o outro, levando em conta as múltiplas possibilidades de análises e reflexões que
estão presentes no discurso do outro.
O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento linguístico e discursivo
com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. O professor,
por sua vez, vai planejar e dirigir ações didáticas, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do
aluno, observando as necessidades dos alunos e as possibilidades de aprendizagem.
Na mediação, o docente é visto como um incentivador e motivador da aprendizagem, que
ativamente colabora para que o aprendiz chegue aos seus objetivos e compreenda o que de fato deve
ser entendido.

Os procedimentos de refacção começam de maneira externa, pela mediação do professor que


elabora os instrumentos e organiza as atividades que permitem aos alunos sair do complexo
(o texto), ir ao simples (as questões linguísticas e discursivas que estão sendo estudadas) e
retornar ao complexo (o texto). Graças à mediação do professor, os alunos aprendem não só
um conjunto de instrumentos linguístico-discursivos, como também técnicas de revisão
(rasurar, substituir, desprezar). Por meio dessas práticas mediadas, os alunos se apropriam,
progressivamente, das habilidades necessárias à autocorreção (BRASIL, 1998, p. 78).

O processo de ensino-aprendizagem perpassa pela orientação/mediação do professor e


com a utilização da internet, esta mediação tem se intensificado nos últimos anos. Esta ferramenta
375

muito tem ajudado professores e alunos neste processo, pois facilita devido a dinamicidade durante
os encontros online e durante as pesquisas pedagógicas.
O professor enquanto mediador colabora diretamente para esta interação. São notórias as
dificuldades com a leitura que os estudantes possuem ao longo de suas caminhadas, a respeito disso,
Antunes (2003), nos alerta:

Com enormes dificuldades de leitura, o aluno se vê frustrado no seu esforço de estudar outras
disciplinas e, quase sempre, deixa a escola com a quase inabalável certeza de que é incapaz,
de que é linguisticamente deficiente, inferior, não podendo, portanto, tomar a palavra ou ter
voz para fazer valer seus direitos, para participar ativa e criticamente daquilo que acontece à
sua volta (ANTUNES, 2003, p.20).

O ensino remoto veio como uma alternativa para a educação continuar e com isso muitas
questões vieram à tona no que se refere a como pensar e fazer acontecer a aula em um contexto
marcado por inseguranças em relação à saúde, ao acesso e uso de tecnologias, aos equipamentos para
a realização da aula, ao conhecimento para o uso dos equipamentos, ao tempo de aula comparado as
aulas presenciais, à busca por estratégias para a continuidade do aprendizado dos estudantes e à
mediação do professor.
Mediar o processo ensino/aprendizagem requer criar condições e estratégias que
permitam com que o aluno desenvolva sua cognição naturalmente, pois o desenvolvimento cognitivo
não se pode ensinar diretamente (GERALDI, 2010).
A mediação no ensino remoto nos trouxe uma ampla discussão para esses tempos de
pandemia. Como mediar o ensino/aprendizagem em aulas na modalidade remota? Já que este formato
de aula requer muitas outras habilidades e recursos ainda nem tanto explorados se as aulas
permaneciam com suas atividades até então normais, mas de forma on-line. Assim, pretendemos
apresentar diante das aulas remotas de uma professora de língua portuguesa que nos autorizou
observar suas aulas, assim como a própria instituição de ensino, uma análise de como a professora
desenvolveu suas estratégias de mediação por meio do uso do livro didático.

LIVRO DIDÁTICO E ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO DO PROFESSOR EM AULAS


REMOTAS
Observamos um total de três aulas gravadas com 50 minutos em média de duração cada
aula. Nessas aulas buscamos refletir sobre a mediação do professor de língua portuguesa no cenário
de ensino remoto. Os conteúdos destas aulas eram distintos, porém as duas primeiras aulas têm algo
em comum: ambas possuem o gênero reportagem nas leituras compartilhadas. As aulas foram as
seguintes: Retomada de vivências antecede a presença do Livro Didático; vamos lá leitores!
Atividades de leitura a partir do Livro Didático e Contação de lendas em Podcast: uma estratégia de
mediação.
376

Nessas aulas, a professora utiliza a plataforma digital Google Meet, além disso ela utiliza
também outros recursos para preparar suas aulas, a exemplo o Powerpoint; e segue um roteiro
preparado por ela, organiza o ambiente das aulas, testa a câmera, áudio e confere todo o material
didático necessário para a aula.
Algo a se considerar também é que antes da pandemia, havia 40 alunos matriculados nesta
turma de 8º ano, após o início da pandemia permaneceram 35, o que representa uma queda de 12,5%.
Estavam presentes nas aulas, em média 28 alunos; destes 28 alunos, apenas 11 dialogavam com a
professora, isto se deu devido a aula durar em média 50 minutos, não houve tempo hábil para todos
socializarem; nem todos os 28 alunos fizeram as atividades do livro didático, veremos isto mais
adiante; nem todos os 28 alunos possuem o livro didático em mãos.

RETOMADA DE VIVÊNCIAS ANTECEDE A PRESENÇA DO LIVRO DIDÁTICO


A aula do dia 6 de julho de 2020 começou com a professora conversando com a turma
sobre as experiências que os alunos obtiveram no ano passado sobre um trabalho com o gênero
“reportagem”. Esta foi a estratégia inicial que ela adotou para inserir a temática gênero textual
reportagem, relembrando um trabalho que a turma fez e trazendo à memória experiências que
facilitariam o entendimento do assunto abordado, como consta no exemplo abaixo retirado da
descrição da aula.

Eu vou compartilhar outra tela com vocês, tá bom? Que é a tela do slide. Certo. E
aqui a gente vai começar a nossa aula de hoje, nós vamos ver um gênero textual que
a gente já conhece, inclusive que a gente fez um trabalho no ano passado eu lembro
que algumas que a gente tem a opção de fazer escrito a reportagem escrita ou a
reportagem gravada, lembram desse trabalho? (PROFESSORA)

Ao compartilhar a tela, a professora expõe imagens de diferentes tipos de beleza (imagens


que não estão no livro didático), com isso ela nos mostra que a tela digital com o Powerpoint virou o
antigo quadro. Ao expor os tipos de beleza, ela inicia uma conversa com os alunos sobre estas
questões. Em seguida, ela retoma uma experiência que teve com os alunos em que eles fizeram
perguntas para produzir uma reportagem, pois para elaborar uma reportagem eles necessitariam de
informações e fontes.
Logo após, a professora compartilha novamente a tela, mas com o conteúdo presente no
livro didático na forma de fragmentos do livro veiculados no Powerpoint. Em seguida ela solicita
uma leitura compartilhada da reportagem “Beleza da diversidade: conheça os modelos que quebram
tabus”, publicado no Jornal Gazeta do Povo do livro da unidade 3 págs. 42 e 43.
377

A professora vai chamando pelos nomes dos estudantes para a leitura compartilhada e
boa parte da turma interage na leitura da reportagem. A leitura tem duração de 9 minutos e 30
segundos e no decorrer da leitura compartilhada um dos estudantes está sem livro como mostra no
fragmento abaixo:

Miguel (PROFESSORA)
Peraí, professora, eu não tava com o livro na mão não, peraí (ALUNO)
(risos) só assim a gente descobre (PROFESSORA)

Nesse momento da aula a professora espera o estudante pegar o livro para dar
prosseguimento a leitura entre os alunos, podemos perceber aqui com mais clareza o quanto o livro é
de grande utilidade para conseguir acompanhar as aulas de português e fica claro também o quanto a
mediação segue um roteiro do próprio livro didático. Logo em seguida a professora levanta uns
questionamentos para que os estudantes reflitam sobre a temática ‘Beleza da diversidade”
Levando em consideração as estratégias de mediação da professora, bem como a leitura
compartilhada, isto nos leva a refletir sobre o texto de Geraldi (1997), quando ele aponta alguns
questionamentos relevantes para o processo de leitura “(...) para que se lê? O que se lê?” Essa leitura
precisa fazer sentido para quem ler para que assim haja a compreensão para as propostas de
atividades, pois depois dessa leitura a professora segue o roteiro de atividades do livro, a qual as
respostas das atividades vão sendo apresentadas através de slides.
Nessa dinâmica, a professora faz perguntas e apresenta as respostas. Algo a se observar
também é que nas aulas presenciais geralmente os professores aguardam um tempo para os alunos
responderem, no entanto nesse formato, o tempo é mais curto, o que faz com que a professora
apresente as respostas das atividades de forma mais dinâmica.
Para concluir a aula, a professora se despede fazendo mais uma vez uma reflexão sobre a
temática trabalhada e deixando uma frase de Martha Medeiros e pede para eles assinarem o formulário
de frequência.
E assim se conclui esta aula de português: seguindo um roteiro do próprio livro de
perguntas e respostas prontas. Para Geraldi (1997, p. 179) “As perguntas já não são perguntas
didáticas, mas perguntas efetivas que fazem diálogo da sala de aula uma troca e a construção do texto
oral co-enunciado”, ou seja, o professor deixa de ser um mero avaliador e passa a ser o provocador
da troca de informações.

VAMOS LÁ LEITORES! ATIVIDADES DE LEITURA A PARTIR DO LIVRO DIDÁTICO


378

A aula do dia dez de agosto de 2020 teve como tema leitura e interpretação de infográfico.
Esta temática foi retirada do livro didático que a professora utiliza com seus alunos.
O infográfico em questão trata de uma reportagem com o título “Condomínio: bom senso
é essencial para convivência harmoniosa”. Nele há dez itens que tratam sobre as regras de convivência
dos condôminos. Observamos que esta temática aborda assuntos que envolvem a prática da cidadania,
pois trata da convivência harmoniosa entre condôminos.
A aula inicia com a professora fazendo a chamada dos presentes e logo depois ela diz:
“no final da aula eu compartilho aquele link da segunda chamada confirmando né que você tava e
que atividade foi feita.” (Provavelmente referindo-se a algum aluno que perguntou sobre isso via
chat).
Pessoal, vou começar aqui a compartilhar a tela com vocês (PROFESSORA)

Logo após ela retoma o assunto da aula passada ao qual iniciou com as características de
infográfico e diz que irá fazer a leitura de um infográfico com temática sobre condomínios.
Observamos que essa estratégia em retomar as aulas passadas é um recurso bastante utilizado pela
professora.
A professora chama os alunos para participarem da aula e fazerem a leitura compartilhada
do infográfico diz: “vamos lá, leitores, dez pessoas aí para fazerem a leitura e[...]”. Então o primeiro
aluno se prontifica a fazer a leitura do item 01 referente a piscina.
Observamos que a professora chama os alunos de leitores, aqui ela deixa clara sua
intenção, que é formar leitores, além do que ela utiliza a metodologia da leitura compartilhada, pois
pede a participação dos alunos, exatamente para que haja trocas de conhecimento entre eles, o que
resulta numa atividade interativa.

Uma atividade é interativa quando é realizada, conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas
ações se interdependam na busca dos mesmos fins. Assim, numa inter-ação (“ação entre”), o
que cada um faz depende daquilo que o outro faz também: a iniciativa de um é regulada pelas
condições do outro, e toda decisão leva em conta essas condições [...]. (ANTUNES, 2003, p.
45, grifo da autora).
A turma observada tem um total de 28 alunos presentes, dentre estes, onze interagem bem
com a professora. Destacamos três alunos ao qual obtivemos as respostas das atividades que eles
fizeram.
O aluno 01, participa ativamente das aulas, interage bem com a professora e com os
demais alunos. Suas respostas no livro em sua maioria estão quase completas. A professora pergunta
e ele está apto a responder, incentiva os outros alunos a participarem da aula. Utiliza o livro durante
as aulas e responde as atividades no próprio livro. Destaca partes no texto que ele julga ser importante
e participa ativamente das aulas.
379

O aluno 02 não interage nas aulas, mesmo não estando presente neste dia na aula, não se
dispôs a resolver posteriormente as atividades do livro. Não há respostas dos exercícios, pois ele não
fez as atividades. Ele geralmente não participa ativamente das aulas.
Já o aluno 03 não participa tanto nas aulas, pois fala pouco, porém faz anotações em seu
livro, grifa partes que julga serem importantes, responde as atividades em seu livro e fez quase
completa a sua atividade. É um aluno esforçado e muito dedicado. É proativo também. Por exemplo,
no início da aula, quando a professora aguarda o próximo aluno que deverá ler, esse aluno toma
iniciativa e começa a leitura dos itens do infográfico. Está atento quando algo lhe é questionado,
quando a professora pergunta: “E aí, pessoal, o que é que você entende por infográfico? O que seria?
Ele prontamente reponde: Aluno: É uma imagem que... Professora: É uma imagem que? Aluno: Traz
informações.”
No diálogo abaixo, observamos que a professora chama a atenção da turma para
retomarem a atenção à aula.

Vamos lá, olha aí, ó. Vamos lá, gente: questão 4. Página 85 já. É, o que se pode
inferir sobre o item 5? Qual a provável razão de estar nesse infográfico? Vamos
voltar lá (PROFESSORA).

A aula prossegue até que a professora perguntou se todos anotaram as respostas.

Conseguimos aí copiar, terminar essa página? (PROFESSORA)


Tudo na base dos prints (ALUNO 1)
Pois muito bem (PROFESSORA)
Esse povo, viu! Antigamente quando era na sala de aula tirava foto do quadro, agora
é tudo print (ALUNO 2).
Eu mal batia foto, copiava bem ligeiro aí (ALUNO 1).

Nestes exemplos de diálogos podemos traçar alguns hábitos que ocorrem dentro das salas
de aula presenciais, que é o fato de baterem foto do quadro. Agora, nas aulas remotas, a foto cedeu
espaço para o print, uma prática utilizada pelos alunos observados. São costumes que foram trazidos
para as aulas remotas. Não é algo novo, mas sim algo que foi transformado.
Após as correções das atividades para casa, a professora já orienta a próxima atividade
extra sala virtual que será uma pequena pesquisa sobre o gênero podcast. Ela diz que se o aluno já
sabe o que é um podcast não precisará pesquisar o que é, apenas deverá ouvir um tipo de podcast.
Antes da aula ser finalizada, a professora chama a atenção para uma frase que ela escolheu
e colocou em slide “Colocar-se no lugar do outro...”. Aqui novamente vemos a atenção para a prática
da cidadania, algo que deve ser comum nas aulas de língua portuguesa.
O que a professora propôs é uma atividade que ajudou a todos os envolvidos na produção
de um projeto pedagógico que contemplou a contação de lendas por meios de podcast. Os alunos
380

gravaram seus áudios, em individual e/ou dupla, contendo efeitos sonoplásticos bem distintos e
interessantes. O resultado veremos na próxima aula observada abaixo. Em suma, a professora utiliza
diversas estratégias de mediação neste formato remoto, entre elas: retoma assuntos de aulas passadas,
faz leitura compartilhada, utiliza trechos do livro didático nos slides (até mesmo para ajudar na
dinâmica da aula) e mesmo com a conexão ruim às vezes, ela sempre repete o assunto quando é
necessário e ao final da aula ela retoma o assunto abordado como forma de fixação e sempre finaliza
com frases reflexivas.

CONTAÇÃO DE LENDAS EM PODCAST: UMA ESTRATÉGIA DE MEDIAÇÃO


Na aula do dia 17 de agosto de 2020 inicialmente a professora segue a mesma dinâmica
das aulas anteriores com o uso do livro didático e com apresentação de slides, porém quando chega
no final da aula ela propõe aos estudantes uma atividade diferente, que não corresponde aquele roteiro
de aulas prontas seguindo o livro didático. Vale salientar que o conteúdo de proposta da atividade
estava presente no livro, porém seria assunto do trimestre posterior.
Nessa aula, ao apresentar a proposta de atividade, a professora pergunta sobre a pesquisa
e alguns respondem o que pesquisaram e comentam o que é um podcast. A professora enfatiza mais
uma vez como se estrutura o gênero e logo em seguida apresenta o quadro abaixo com as orientações
da atividade.
Quadro 1- Orientações para o Exercício de Oralidade/ Podcast:
Orientações para o Exercício de Oralidade/ Podcast:

1. Escolher uma lenda folclórica de sua preferência

2. Identificar a origem desta lenda (indígena? De qual tribo? De qual região? Onde você a ouviu? Quem
te contou?)

3. Recontar esta lenda, recriando aspectos que você ache importante;

4. Elaborar uma reflexão sobre esta lenda;

5. Todos os passos acima serão gravados em forma de áudio (pelo celular, via mecanismo de “anotações”
ou WhatsApp) para compor o formato Podcast

6. A sua gravação pode contar com efeitos sonoros.

7. O Podcast (história e reflexão narrada por você) deve ser enviado até o dia 31/08 – Via WhatsApp.

Fonte: autoras
Percebemos nesse momento algo inovador: a professora faz com que os alunos construam
seus próprios conceitos de podcast através de pesquisas. Ela media esse saber de forma prática e
contextualizada, pois a escola trabalha com um projeto folclórico anual, o que permitiu o uso híbrido
381

dos gêneros podcast e lendas folclóricas. O resultado foi uma produção com 16 podcasts contendo
lendas da Iara, Curupira e outras lendas. O que mais predominou foram as lendas indígenas e quase
todos os alunos seguiram as orientações da professora. Dentre eles destacamos dois podcasts que
falam sobre a lenda da Vitória-régia e outra sobre o boto. Dentre os 16 podcasts transcrevemos dois
que foram bem criativos.

Quadro 2 - Aluno 1
Podcast 1
(Música) Olá sábios populares bem-vindos ao Folclorando, então a história que será contada hoje é uma lenda
indígena e amazônica, de origem tupi-guarani e é muito popular no Brasil, principalmente na região norte e eu terei o
maior prazer juntamente com a membra do nosso podcast Camila em contar esta lenda que conheci pela internet. E antes
de começar eu queria perguntar para vocês. Vocês conhecem a Vitória-régia? Se não, dar uma pesquisada light no google
ou no pai dos burrros. Agora chega de blá-blá se joga na cama ou puxa um banquinho porque a gente vai começar. Oi
meu nome é Camila, sou membro do podcast há um tempo eu gostaria de agradecer a Alice, a criadora do Folclorando
por ter me convidado a participar. Venho hoje contar a lenda da Vitória-Régia, então para os indígenas a lua era a Jaci
que costumava a namorar as indígenas mais bonitas... Então pessoal eu acho que Naiá ficou um pouco obcecada demais
nessa história nessa paixão com Jaci, tanto que ela se jogou de cabeça literalmente, mas no final né, deu tudo certo... Mas
pera aí “tá vendo aquela lua que brilha lá no céu”, quando olhar para a lua e as estrelas lembre dessa lenda... Só não
fiquem tão ansiosos com Naiá eu quero todos vivinhos da silva tá. Beijos.
Fonte: autoras

Quadro 3 - Aluno 2
Podcast 2
(Música) O boto, todos sabem foi uma lenda criada para justificar uma gravidez fora do casamento, bom era
isso que todos os povos antigos diziam, um cientista da época queria capturar o boto e saber como ele virava um homem
elegante e bonito e claro tentando justificar tudo isso a partir da ciência. Eu sou Manoel e essa é a minha história. O
cientista fez o seu acampamento perto de onde o boto ficava e com o seu ajudante robô Push Penas capturaram o famoso
boto e para não morrer o boto teve que virar um elegante homem... (barulho de marteladas)
Fonte: autoras

Observa-se no podcast 1, que a atividade desenvolvida pelo aluno seguiu as orientações


à risca, pois a contação da lenda é indígena. É apresentada a origem, a região e de qual lugar foi
retirado e como conheceu a história. A história é recontada por uma outra pessoa diferente de quem
apresentou inicialmente, é feita também uma reflexão sobre a lenda e um trecho de uma música é
usado para fazer seus ouvintes lembrarem da lenda de forma bem criativa quando diz: “Mas pera aí
‘tá vendo aquela lua que brilha lá no céu’, quando olhar para a lua e as estrelas lembre dessa
lenda[...]”.
382

O podcast 2 não segue todos os critérios solicitados pela professora, mas a estrutura do
gênero é perceptível e aceitável, pois é feita a contação da história do boto e o aluno usa sua
criatividade quanto à entonação de voz, aos efeitos sonoros e ao apresentar no enredo os cientistas
para desvendar a história do boto deixando uma mistura entre verdade e fantasia, quando o estudante
diz: “cientista da época queria capturar o boto e saber como ele virava um homem elegante e bonito,
e claro tentando justificar tudo isso a partir da ciência”. Apesar de não seguir totalmente a sequência
apresentada pela professora, ele consegue ser criativo ao recontar a narrativa.
Nessa aula ficamos surpresas com as orientações e com os resultados obtidos, pois a
professora, de forma sutil, pediu para que os estudantes pesquisassem o que era podcast. Depois
avaliou as pesquisas e explicou a estrutura do gênero e em seguida mostrou o passo a passo da
proposta de atividade, o qual foi repensado o conteúdo, pois seria um gênero a se trabalhar no
trimestre seguinte e ela aproveitou o contexto do projeto folclórico que a escola estava vivenciando
no mês de agosto para trabalhar de forma híbrida dois gêneros orais: podcast e lenda. Isso foi
inovador, pois os estudantes foram protagonistas dos seus saberes, pois o gênero lendas já fazia parte
do conhecimento deles, porém a experiência seria em uma outra nova estrutura e assim houve uma
interação maior com todos os envolvidos.
Diante do exposto, percebemos que mesmo com as dificuldades em lecionar no formato
remoto, a professora foi muito criativa e sábia ao escolher um tema tão contemporâneo (elaboração
de podcast). Ela soube resgatar experiências de outras aulas associando ao conhecimento prévio dos
alunos e utilizou além do Google Meet, aplicativos como WhatsApp que muito ajudou na elaboração
da atividade e comunicação entre os envolvidos.

CONCLUSÃO
O atual cenário do ensino remoto tem contribuído e possibilitado a continuidade do
ensino-aprendizado e oportunizando o aprender e o se reinventar na mediação das práticas através da
casa/sala de aula. Nós observamos que, na turma do 8º ano do Ensino Fundamental, alguns estudantes
se adaptaram ao novo formato, o que proporcionou uma boa interação nas aulas remotas.
A professora buscou alternativas para se comunicar com a turma e a estratégia mais
prática foi o uso do livro didático, porque a maioria da turma possuía o livro em mãos.
Percebemos que o tempo foi insuficiente para trabalhar as atividades de maneira eficaz,
porém a professora buscou ressignificar as suas práticas, pois retomou vivências e conhecimento de
outras aulas, incentivou seus estudantes a ler, quando trouxe a leitura compartilhada e trouxe uma
novidade ao propor a contação de lendas em formato de podcast.
Observamos que, mesmo a mediação sendo feita com o uso constante do livro, uma
novidade acontece: a professora se desvia do roteiro proposto pelo material didático e apresenta outras
383

possibilidades para trabalhar a leitura e a escrita de forma dinâmica e criativa e assim desenvolveu
com os seus estudantes respostas significativas para o processo de ensino-aprendizagem nas aulas
remotas.
Portanto, com as aulas remotas diminuiu-se o tempo das aulas e foi preciso a professora
ressignificar suas práticas pedagógicas. Ela buscou se adequar ao cenário atual e deixou claro que é
possível construir novos roteiros e pensar em práticas significativas de aulas no formato remoto e
desse modo dinamizar o processo de ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e


quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João editores, 2010

GERALDI, J. W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J. W.; ALMEIDA,


M. J. et al. (org.). O texto na sala de aula. 1. ed. São Paulo: Ática, 2011, p. 32-37.

OLIVEIRA, M. K. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. 4 ed..


São Paulo: Scipione, 2002.

PACHECO, R. et al. Coleção 8º ano. 3.ed. Curitiba: Opet, 2017.


384

MULTIMODALIDADE E LETRAMENTO CRÍTICO: CAPACIDADES DE LEITURA


EXIGIDAS PELAS REDES SOCIAIS

Alessandra Cristina Valério115

RESUMO
Atualmente, a intensidade das ações comunicativas efetuadas pelas redes sociais tem transformado
essas plataformas em um verdadeiro território minado, atravessado por disputas políticas e
ideológicas e crivado de lutas por poder e pelo controle dos sentidos discursivos circulantes. A cada
dia, novos sujeitos são inseridos nessa esfera de ação e compelidos a realizar por meio dela as mais
diversas práticas sociais e culturais: comprar, vender, entreter-se, informar-se, publicitar, posicionar-
se, relacionar-se afetivamente, gerir a própria imagem, autoafirmar-se nas mais variadas situações.
Esse desafio se desdobra à medida que essas tecnologias digitais permitem integrar diversos tipos de
linguagens, de meios e de modalidades que exigem dos seus usuários capacidades leitoras que
extrapolam o âmbito das práticas escritas mais convencionais. Isso porque o ambiente dinâmico da
cultura digital demonstra ter um fôlego inesgotável, não apenas para promover a circulação frenética
de gêneros textuais, mas também de propor novos rearranjos semióticos, midiáticos e linguísticos,
conferindo aos textos contemporâneos um caráter cada vez mais multimodal. No entanto, não é difícil
identificar o descompasso existente entre esse refinado leque de capacidades leitoras, demandado
pelas práticas de letramentos multimodais, e a reconhecida lacuna na formação de leitores no
cotidiano escolar brasileiro, marcado pelo artificialismo de ações pedagógicas, desvinculadas das
situações comunicativas reais. Assim, de um lado, temos o dinamismo comunicativo dos ambientes
digitais, suas exigências por constantes aprimoramentos das capacidades discursivas, por outro, há
toda uma geração de indivíduos com baixos níveis de compreensão leitora, cuja escolarização não
lhes instrumentou o suficiente para uma atuação cidadã nas diversas esferas de usos da linguagem.
Esse encontro tem se mostrado desastroso em vários aspectos, sobretudo, por viabilizar a alguns
grupos um perigoso movimento de manobra política de todo um segmento social despreparado para
lidar com as sutilezas ideológicas que revestem os sentidos das interações digitais. Considerando a
urgência de operar mudanças no quadro descrito e de viabilizar uma formação crítica de leitores para
protagonizarem as práticas comunicativas digitais de forma ética e responsável, o presente estudo se
propõe a investigar, pela perspectiva dos Multiletramentos e Letramentos Críticos (ROJO, 2012),
(SOUZA, 2011) quais capacidades de leitura são mais solicitadas aos sujeitos em interação nas redes
sociais, em especial no Facebook, procurando explicitar como o desenvolvimento adequado dessas
capacidades pode evitar as armadilhas do típico automatismo responsivo, comum nesses espaços. O
objetivo é elucidar um pouco melhor os mecanismos discursivos e os jogos de força presentes nessa
rede que condicionam as experiências de leitura dos usuários, identificando os principais arranjos
multimodais de seus textos e esclarecendo como seus leitores são instados a interagir com esses
textos.

Palavras-chave: Redes Sociais. Multimodalidade. Capacidades de Leitura. Letramento Crítico.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, assistimos a um aumento exponencial do acesso das populações às


tecnologias informacionais e a multiplicação de práticas sociais mediadas e modificadas por essas
ferramentas. Segundo dados recentes do IBGE, em 2018, 79,9% dos brasileiros dispõem de internet

115
Instituto Federal do Paraná (IFPR), Doutora em Letras - Linguagem e Sociedade, e-
mail:alessandra.valerio@ifpr.edu.br
385

móvel ou fixa em suas residências, por meio de dispositivos celulares, o que equivale a 166 milhões
de pessoas com acesso à rede. Mesmo entre a população que vive abaixo da linha de pobreza, 65,9%
encontra-se conectada à internet.
Dentre esse estrato recém conectado, o acesso aos suportes digitais das redes sociais
constitui-se na prática comunicativa mais popularizada entre os brasileiros. 95% dos usuários da
internet frequentam a plataforma Youtube; 90% mantêm contas ativas no Facebook; e 89% utilizam
o aplicativo WhatsApp, conforme indica a pesquisa “Global Digital 2019”, conduzida pela instituição
We are Social, que investiga tendências comportamentais dos usuários de redes sociais. Essa
tendência observa-se, inclusive, entre os segmentos populacionais considerados menos escolarizados
e alfabetizados em nível elementar, respectivamente 29% e 34% dos brasileiros, conforme o último
relatório do INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), publicado em 2018. Segundo a
pesquisa, entre esses grupos, 86% usam WhatsApp, 72% o Facebook e 31% são usuários do
Instagram. Ana Lúcia Lima (2019), coordenadora do projeto, esclarece que essa proporção é pequena
quando comparada a do segmento proficiente, cuja atividade nas redes é mais frequente e mais
regular, mas o alcance do grupo tem se ampliado consideravelmente.
Contudo, se o amplo processo de democratização do acesso às tecnologias informacionais
permitiu conectar segmentos sociais tão distintos à cultura digital, por sua vez, o processo de
apropriação pelos diferentes sujeitos das estratégias discursivas e das práticas efetivas de letramento,
que permeiam essa esfera comunicativa, permanece refletindo as assimetrias sociais originais e seus
conflitos imanentes. E, a despeito de certo deslumbre otimista que imprimiu o tom das percepções
incipientes dessa aparente onda de inclusão digital, celebrando “uma cultura participativa, onde cada
um conta e todos colaboram” (SHIRKY, 2011 apud SANTAELLA, 2016), a consciência atual, acerca
do alcance e dos impactos sociais do uso das novas ferramentas da informação e da comunicação,
descortina um cenário de desafios, no qual grandes possibilidades e potenciais armadilhas caminham
juntas. Isso porque, nos últimos anos, na mesma medida em que assistimos à festa da acessibilidade
aos domínios do digital, presenciamos à proliferação incontida de práticas sociais e comunicativas
enviesadas e antiéticas, pautadas na disseminação de notícias falsas, em boatos, na manipulação de
fatos, nas difamações e na violência discursiva materializada nas mais diversas formas e modalidades
textuais.
Atualmente, a intensidade das ações comunicativas efetuadas pelas redes sociais tem
transformado essas plataformas em um verdadeiro território minado, atravessado por disputas
políticas e ideológicas e crivado de lutas por poder e pelo controle dos sentidos discursivos
circulantes. A cada dia, novos sujeitos são inseridos nessa esfera de ação e compelidos a realizar por
meio dela as mais diversas práticas sociais e culturais: comprar, vender, entreter-se, informar-se,
publicitar, posicionar-se, relacionar-se afetivamente, gerir a própria imagem, buscar autoafirmação e
386

projeção social nas mais variadas situações. E esse desafio se desdobra, à medida que essas
tecnologias digitais permitem integrar diversos tipos de linguagens, de meios e de modalidades que
exigem dos seus usuários capacidades leitoras que extrapolam o âmbito das práticas escritas mais
convencionais. Isso porque o ambiente dinâmico da cultura digital demonstra ter um fôlego
inesgotável, não apenas para promover a circulação frenética de gêneros textuais, mas também para
propor novos rearranjos semióticos, midiáticos e linguísticos, conferindo aos textos contemporâneos
um caráter cada vez mais multimodal.
Assim, indivíduos oriundos de diferentes grupos, de distintas ordens sociais, com
diferentes percursos de letramento escolar, travam uma batalha cotidiana para se situarem em meio à
saturação informacional contemporânea e se apropriarem dos mecanismos enunciativos complexos
com os quais são confrontados nesses espaços. No entanto, uma atuação efetiva e funcional dos
usuários, nas esferas comunicativas das redes sociais, requer mais que o desenvolvimento de
capacidades convencionais de leitura e escrita, requer apropriação crítica de práticas sociais e
discursivas que se articulam sob as mais sofisticadas combinações de linguagens, em que tudo precisa
ser considerado passível de atribuir sentidos:

Esses “novos escritos”, obviamente, dão lugar a novos gêneros discursivos, quase
diariamente: chats, páginas, tweets, posts, fanzines, funclips etc. E isso se dá porque hoje
dispomos de novas tecnologias e ferramentas de “leitura-escrita”, que, convocando novos
letramentos, configuram os enunciados/textos em sua multissemiose (multiplicidade de
semioses ou linguagens), ou multimodalidade. São modos de significar e configurações que
se valem das possibilidades hipertextuais, multimidiáticas e hipermidiáticas do texto
eletrônico e que trazem novas feições para o ato de leitura: já não basta mais a leitura do texto
verbal escrito – é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de signos de outras
modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, som, fala) que o
cercam, ou intercalam ou impregnam (ROJO, 2017, p.1).

Não é difícil identificar o descompasso existente entre esse refinado leque de capacidades
leitoras, demandado pelas práticas de letramentos multimodais, e a reconhecida lacuna na formação
de leitores no cotidiano escolar brasileiro, marcado pelo artificialismo de ações pedagógicas,
desvinculadas das situações comunicativas reais. Assim, de um lado, temos o dinamismo
comunicativo dos ambientes digitais, suas exigências por constantes aprimoramentos das capacidades
discursivas, por outro, há toda uma geração de indivíduos com baixos níveis de compreensão leitora,
cuja escolarização não lhes instrumentou o suficiente para uma atuação cidadã nas diversas esferas
de usos da linguagem. Esse encontro, como dito anteriormente, tem se mostrado desastroso em vários
aspectos, sobretudo, por viabilizar a alguns grupos um perigoso movimento de manobra política de
todo um segmento social despreparado para lidar com as sutilezas ideológicas que revestem os
sentidos das interações digitais.
387

Considerando a urgência de operar mudanças no quadro descrito e de viabilizar uma


formação crítica de leitores para protagonizarem as práticas comunicativas digitais de forma ética e
responsável, o presente estudo se propõe a investigar quais capacidades de leitura são mais
necessárias aos sujeitos em interação nas redes sociais, em especial no Facebook, e também busca
explicitar como o desenvolvimento dessas capacidades pode evitar as armadilhas do típico
automatismo responsivo, comum nesses espaços. O objetivo é elucidar um pouco melhor os
mecanismos discursivos e os jogos de força presentes nessa rede que condicionam as experiências de
leitura dos usuários, identificando os principais arranjos multimodais de seus textos e esclarecendo
como seus leitores são instados a interagir com esses textos.
Ao tomar como pressuposto inelidível a compreensão das práticas de letramento como
práticas irrestritamente sociais e culturalmente situadas, ou seja, considerando seu caráter passível de
ser ressignificado em diferentes instituições e grupos sociais, e também suscetível ao jogo ideológico
das forças que regulam esses espaços, este estudo se inscreve na perspectiva dos denominados “Novos
Estudos de Letramento” propostos por Barton (1994); Lee (1996); Street (2003); Lea e Street (1998)
e dos “Multiletramentos” e “Letramento Crítico” definidos por Rojo (2012). Por esse viés, ao
considerar que as práticas de leitura e escrita são cultural e historicamente condicionadas, adota-se
como prerrogativa a existência de letramentos múltiplos, multiletramentos, aos quais estão vinculadas
às vivências letradas de diferentes esferas, culturas e grupos sociais: escolar, religioso, familiar, entre
outros espaços de interação social. Essa forma de compreender o fenômeno, segundo Kleiman (1995),
implica em reconhecer não apenas a multiplicidade semiótica que constitui os textos da
contemporaneidade, mas também a variedade possível das práticas de letramento como aspectos da
cultura, confirmando sua capacidade de reproduzir estruturas de poder e de veicular posições políticas
e ideológicas das sociedades as quais se vincula.
O letramento crítico é reivindicado na medida em que se reconhece a dimensão discursiva
e política das práticas de letramento dos meios digitais e a urgência em investir na formação crítica
de leitores com capacidades para identificar e situar os mais diversos discursos e os jogos de poder
que permeiam as experiências comunicativas das redes sociais. Além disso, “os letramentos críticos
e protagonistas são requeridos para o trato ético dos discursos em uma sociedade saturada de textos
e que não pode lidar com eles de maneira instantânea, amorfa e alienada” (MOITA-LOPES; ROJO,
2004, p. 37-38).
De acordo com Menezes de Souza (2011), o letramento crítico enfatiza a necessidade de
voltar o olhar à relação social que se estabelece entre texto e leitor, uma vez que ambos são produtores
de textos e construtores de significação através de linguagens.
388

Ler a partir da perspectiva do letramento crítico implica, portanto, desempenhar pelo menos
dois atos simultâneos e inseparáveis: (1) perceber não apenas como o autor produziu
determinados significados que têm origem em seu contexto e seu pertencimento sócio
histórico, mas ao mesmo tempo , (2) perceber como, enquanto leitores, a nossa percepção
desses significados e de seu contexto sócio histórico está inseparável de nosso próprio
contexto sócio histórico e os significados que dele adquirimos. (SOUZA, 2011, p. 132).

CAPACIDADES DE LEITURA DE TEXTOS MULTIMODAIS


Não é novidade que os textos multimodais frequentam nosso cotidiano há muito tempo.
A mobilização de diferentes recursos semióticos na constituição de um texto já podia ser verificada,
por exemplo, nos jornais impressos e livros didáticos. A multimodalidade, portanto, pressupõe que
os atos comunicativos humanos mobilizam uma multiplicidade de modos, ou seja, um repertório
completo de recursos geradores de sentido tais como palavras, imagens, gestos, sons, expressões
faciais e corporais (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Esses conjuntos de recursos semióticos que
são chamados de modos cumprem tarefas comunicativas de diferentes formas, o que torna a escolha
de modo um aspecto central da interação e do significado. Conforme esses grupos modais são usados
na vida social de uma dada comunidade, mais completa e refinadamente articulados eles se tornarão.
As combinações de recursos semióticos só se tornam um “modo”, quando há a legitimação de um
senso cultural compartilhado por uma determinada comunidade interpretativa.
O atual acesso amplificado às tecnologias digitais e a velocidade com estas se
diversificam têm viabilizado a multiplicação veloz de práticas sociais em novos e distintos espaços
virtuais de escrita e leitura, por conseguinte, ampliado significativamente os arranjos multimodais.
Isso porque os usuários, por sua vez, exploram as possibilidades desses espaços, forjando novas
possibilidades de uso e ressignificando constantemente as experiências comunicativas mediadas pelas
ferramentas tecnológicas. Nesse processo de experimentar as virtualidades das ferramentas digitais,
a mobilização, combinação e recombinação de diferentes modalidades semióticas se consolidou como
uma prática de leitura e produção de textos bastante comum. São muitas as possibilidades de agrupar,
em um todo coerente, diversas mídias como vídeos, imagens, fotos, gifs, emoticons, sons, músicas,
impondo desafios cada vez mais complexos às capacidades de leitura dos usuários. Conforme expõe
Dionisio (2010, p.164-165):
As alterações físicas no processo de construção dos gêneros provocam, consequentemente,
uma mudança também na forma de ler os textos. O dinamismo da imagem do filme passou
para a charge virtual, para o pôster interativo, a disposição do texto na página oscila entre os
moldes ocidentais e orientais de escrita; estes são apenas alguns exemplos que deixam
transparecer a necessidade de revisão do conceito de leitura e de suas estratégias que
utilizamos em nossas aulas. Consequentemente, se os gêneros se materializam em formas de
representação multimodal (linguagem alfabética, disposição gráfica na página ou na tela,
cores, figuras geométricas etc.) que se integram na construção do sentido, o conceito de
letramento também precisa ir além do meramente alfabético. Precisamos falar em
multiletramento!
389

Ou seja, nesse contexto, é requisitado ao leitor mobilizar conhecimentos de letramento


visual e midiático, de semiótica e design, identificando relações de sentido entre formas, cores,
layouts, sons e imagens. Kress & Van Leeuwen (2006, p.77) utiliza uma metáfora interessante ao
designar a tarefa de produzir textos em/para ambientes digitais como “uma orquestração complexa”
que requer altas habilidades de coerência textual e de articulação com os meios que a tecnologia
disponibiliza, para que essa “sinfonia” (produto) seja “tocada” (usada) de maneira harmoniosa. Essas
são habilidades que também não podem faltar aos “músicos” (leitores), pois essas novas práticas os
enquadram como colaboradores, recriadores e transformadores dos conjuntos de recursos
expressivos, e não mais simples usuários de sistemas estáveis.
Isso não significa que, nos letramentos mais convencionais, o papel do leitor era o de um
consumidor passivo de informações, mas sim que as tecnologias digitais viabilizaram uma
responsividade leitora quase que instantânea e, até certo ponto, de uma verbalidade quase obrigatória,
já que silenciar diante de um texto, nas redes sociais, é uma tarefa bastante difícil. No Facebook, por
exemplo, a implementação de ferramentas como o curtir, o registro das reações, o comentar e o
compartilhar potencializaram significativamente a dinâmica de trocas e de réplicas entre os usuários.
Esses dispositivos são constantemente atualizados e novidades interativas são inseridas regularmente,
fazendo com que o leitor seja instado, a todo momento, a registrar a sua recepção aos conteúdos,
demonstrando seu maior ou menor engajamento com as publicações.
Nesse sentido, as práticas leitoras das redes sociais podem ser muito bem ser situadas nos
horizontes teóricos bakthinianos, dos quais é possível depreender que o ato de ler pode ser entendido
como “uma ação de se colocar em relação um discurso e com outros discursos anteriores a ele,
emaranhados nele e posteriores a ele, como possibilidades infinitas de réplica, gerando novos
discursos” (ROJO, 2004, p. 3). Essa compreensão da leitura como uma ação/reação dialógica e
responsiva encontra respaldo na própria concepção bakhtiniana de linguagem/enunciado, cujo
atributo principal é seu caráter dialógico, sempre situado em relação à palavra do outro – sua condição
de elo numa cadeia verbal. (BAKHTIN, 2002). Por essa perspectiva, o papel de leitor é ativo desde o
princípio, pois ao tentar atribuir sentido ao lido, também se posiciona, critica, comenta, concorda,
discorda. A reação do leitor, por esse ponto de vista, nunca é neutra, pois até mesmo seu silenciamento
diante do enunciado posto pode ser lido como uma marcação de posição no campo discursivo.
Portanto, ao procurar pensar os processos de leitura e construção de sentidos que leitor
precisa operacionalizar nesses ambientes digitais, deve se considerar tanto as capacidades leitoras
requeridas para compreender os efeitos discursivos obtidos com a integração de diferentes linguagens
nos textos contemporâneos – os multiletramentos –, quanto as capacidades críticas de selecionar os
conteúdos com os quais interagir; localizar a partir deles os contextos de produção; situar os
produtores em seus horizontes ideológicos; avaliar as posturas ou o grau de engajamento entre
390

enunciador e enunciado; identificar as estratégias discursivas empregadas para obter a adesão do


leitor; e, sobretudo, pensar as próprias atitudes apreciativas e valorativas diante do lido – os
letramentos críticos. Assim, a atividade leitora no ambiente digital requer o que Rojo (2012)
designou como uma “nova ética e novas estéticas”, ou seja, uma proposta que viabilize a formação
de “consumidores críticos” e responsáveis dos artefatos multimodais, capazes de apreciá-los,
articulando diferentes critérios estéticos nessa tarefa.
Partindo dessa perspectiva e buscando sistematizar melhor essa abordagem, Gomes
(2017, p.54-55) propôs uma matriz detalhada de capacidades de leitura exigidas pelos textos
multissemióticos. Como este estudo pretende focar mais nas habilidades de leitura crítica,
selecionamos apenas o grupo de capacidades de Letramento Crítico.

Quadro 1: Matriz com capacidades de leitura de gêneros multissemióticos


PROPOSTA DE MATRIZ (PROTÓTIPO) COM CAPACIDADES DE LEITURA DE GÊNEROS
MULTISSEMIÓTICOS
Grupos de Códigos Detalhamento das Estratégias
Capacidades

Perceber/reconhecer outras linguagens/semioses como constitutivas para


CLD 13 elaboração de sentidos nos gêneros multissemióticos e que contribuem
para compressão dos sentidos e ideologias presentes nos textos.

Reconhecer recursos semióticos/semioses que são usados nos


textos/gêneros, articulando-os com contextos mais amplos para além do
CLD 14
texto (significado desses recursos em contextos institucionais, históricos,
culturais específicos).
Capacidades Observar e selecionar elementos da sintaxe visual, de modo a organizar
CLD 15
de Leitura/ as informações relevantes à construção da significação.
Réplica Ativa/ Recuperar o contexto de produção do texto multissemiótico: quem é seu
autor? que posição social ele ocupa? Que ideologias assume e coloca em
Discursiva circulação? Em que situação escreve? Em que veículo ou instituição?
Com que finalidade? Quem ele julga que o lerá? Que lugar social e que
ideologias ele supõe que este leitor intentado ocupa e assume? Como ele
CLD 16
valora seus temas? Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão
ele intenta? Sem isso, a compreensão de um texto fica num nível de
adesão ao conteúdo literal, pouco desejável a uma leitura crítica e
cidadã. Sem isso, o leitor não dialoga com o texto, mas fica subordinado
a ele.
Letramento
Crítico e Percepção de relações de intertextualidade (no nível temático dos textos
Relações multissemióticos): Ler um texto é colocá-lo em relação com outros
CLD 17
Multissemiótic textos já conhecidos, outros textos que estão tramados a este texto,
as outros textos que poderão dele resultar como réplicas ou respostas.
Percepção de relações de interdiscursividade (no nível discursivo dos
CLD 18 textos multissemióticos): Perceber um discurso é colocá-lo em relação
com outros discursos já conhecidos, que estão tramados a este discurso.

Elaboração de apreciações estéticas e/ou afetivas em relação ao texto de


gêneros multissemióticos: Ao ler, replicamos ou reagimos ao texto
CLD 19 constantemente: sentimos prazer, deixamo-nos enlevar e apreciamos o
belo na forma da linguagem, ou odiamos e achamos feio o resultado da
construção do autor; gostamos ou não gostamos, pelas mais variadas
391

razões. E isso pode, inclusive, interromper a leitura ou levar a muitos


outros textos.

Elaboração de apreciações relativas a valores éticos e/ou políticos a


partir dos textos de gêneros multissemióticos, tendo por base o design do
gênero em sua estrutura composicional, ou seja, discutimos com o texto,
discordamos, concordamos, criticamos suas posições e ideologias,
CLD 20
avaliamos os valores colocados em circulação pelo texto e destes, são
especialmente importantes para a cidadania, os valores éticos e políticos.
Esta capacidade é que leva a uma réplica crítica a posições assumidas
pelo autor no texto.

Reconhecer a partir tanto da semiose verbal quanto visual e da


hibridização dessas, situações sociais de inclusão ou exclusão a partir do
tema (ideológico) proposto no texto, como por exemplo, que leve à ideia
CLD 21
de que determinadas culturas são superiores às demais ou
reconhecimento de questões multiculturais e interculturais, que
reconhecem a pluralidade cultural e suas diferenças inerentes.

Identificar como a disposição dos elementos imagéticos privilegia ou


CLD 22 induz o leitor a alguma interpretação axiológica específica a determinada
posição ideológica.

Compreender de que forma determinados padrões são postos/legitimados


no texto multissemiótico, como por exemplo, uma representação da ideia
CLD 23
de família “modelo” constituída por pessoas heteroafetivas, brancas e
ricas.
Apresentar ou expressar visão pessoal/crítica e estética do projeto de
design visual do texto multissemiótico através de um processo dialógico
CLD 24
(concordando, refutando, completando, negociando, ressignificando) o
que é posto como leitura e sentidos.

Identificar e se posicionar criticamente em relação às ideologias que


estão presentes nos gêneros multissemióticos, questionando o gênero a
partir de indagações como: Porque isto existe ou acontece?; qual é o seu
CLD 25 propósito?; aos interesses de quem serve?; os interesses de quem são
frustrados?; como funciona esse discurso socialmente?; é necessário que
funcione da maneira como está ou poderia ser feito de uma maneira
diferente e melhor?

Fonte: Gomes (2017, p.54-55)

Na sequência, situamos e contextualizamos o Facebook e sua consolidação como uma


das mais frequentadas plataformas de redes sociais do mundo, procuramos explicitar as principais
funcionalidades do suporte e, por fim, demonstrar como algumas dessas capacidades de leitura
precisam ser ativadas para a efetivação do processo de leitura dos artefatos típicos do suporte.

FACEBOOK: DE BRINCADEIRA ENTRE AMIGOS A PALCO DE CONFLITOS


POLÍTICOS
Para uma compreensão mais ampla do fenômeno digital Facebook, segundo Ribeiro e
Correia (2014), faz-se necessário o conhecimento das particularidades de sua expansão meteórica. A
história da interface é, em larga medida, resultado de desdobramentos circunstanciais que marcaram
as primeiras experiências de uso da rede mundial de computadores. Em outubro de 2003, o então
392

estudante universitário de Psicologia de Harvard, Mark Zuckerberg e seus colegas Andrew


McCollum, Chris Hughes e Dustin Moskovitz colocaram em circulação uma primeira e rudimentar
versão do Facebook: o Facemash. O website foi desenhado para os estudantes de Harvard e permitia
aos seus visitantes votar na pessoa mais atraente, com base em duas fotografias, apresentadas lado a
lado, provenientes da base de dados de identificação dos alunos daquela instituição. Em pouco tempo,
o Facemash foi desativado pelo Conselho Universitário, e Zuckerberg, acusado de violação das regras
de segurança da informática e de invasão de privacidade. Esse marcou a gênese do conceito
embrionário do Facebook e também antecipou o que viriam a ser seus piores desdobramentos: a
questão da segurança e da privacidade e a polêmica.
Em janeiro de 2004, Zuckerberg reinvestiu na definição de um código para um novo
website com o nome Thefacebook. A interface era basicamente a mesma do Facemash, em que era
possível criar um perfil com uma foto e interesses pessoais, e se conectar a outras pessoas com gostos
semelhantes. O sucesso exponencial da rede atraiu os primeiros investidores e, ao longo de 2005,
Zuckerberg iniciou uma série de acordos para alavancar financeiramente o projeto que, no mesmo
ano, passou a se denominar apenas Facebook. Em agosto de 2008, a plataforma atingiu 100 milhões
de usuários no mundo todo.
No início de 2009, Zuckerberg lançou um recurso inovador e dinamizador das trocas
comunicativas na plataforma: o botão “curtir”. Por meio dessa estratégia, o Facebook ultrapassou
todos os seus concorrentes e, em dezembro desse mesmo ano, com 350 milhões de usuários
registrados, tornou-se a maior rede social do planeta. A linguagem da “curtida” tornou-se uma
ferramenta poderosa que aprimorou o funcionamento dos algoritmos, orientando de forma eficaz o
tipo de conteúdo que seria exibido a cada usuário.
O recurso “curtir” possibilitou ao Facebook realizar um mapeamento eficiente de gostos,
inclinações políticas, ideológicas, religiosas e sexuais de seus frequentadores. Utilizada de forma
estratégica, a ferramenta inaugurou uma nova era nas práticas publicitárias e, sobretudo, foi uma
aposta importante para a manutenção financeira da rede que gerou receita de US$ 16 bilhões em seu
último trimestre fiscal.
Mas foi nas manifestações de junho de 2013, que o Brasil presenciou a consagração do
Facebook como território de luta e disputa política. Desde então, a rede se tornou uma das principais
fontes de compartilhamento de informações do brasileiro, mas também, um poderoso instrumento de
disseminação de notícias falsas, polêmicas e tentativas de arregimentar adesão as mais diversas linhas
ideológicas. O chamado “efeito bolha”, causado pela retroalimentação de conteúdos simpáticos ao
usuário, aprimorado pelo uso que o algoritmo faz das informações associadas ao perfil do
participante, apresentou-se como um poderoso catalizador de crenças comuns e reafirmação de
convicções pessoais.
393

FACEBOOK ENQUANTO SUPORTE TEXTUAL: AS PRINCIPAIS FUNCIONALIDADES


No aspecto funcional, o Facebook se tornou um dos mais instigantes suportes interativos.
O seu design flexível permite uma quantidade significativa de operações comunicativas e
combinações midiáticas multimodais. Na sua organização geral, a plataforma dispõe de três interfaces
que oferecem um leque diversificado de ferramentas interativas aos usuários. Uma delas é o chat, um
sistema que garante troca de mensagens de modo privado; o “mural” ou “perfil”, parte que dispõe de
informações variadas sobre o participante e registra suas atividades de compartilhamento de
conteúdo, assim como os comentários e reações suscitadas por ele. E, por fim, a homepage ou página
inicial que exibe as informações direcionadas ao utilizador, de forma centralizada e atualizada em
tempo real, por meio de um feed de notícias, em que os contributos mais recentes de seus amigos são
mostrados por ordem cronológica, timeline. Nesta parte, também são exibidos anúncios publicitários
e o marketplace, entre outras tantas ferramentas. Segue a explicação detalhada dos recursos
considerados mais relevantes ao escopo da pesquisa
Figura 1: Template Cover - Perfil Facebook

Fonte: autoria própria


Ao acessar a plataforma, o usuário adentra um universo totalmente multimodal, repleto
de estímulos visuais, sonoros, sensoriais e saturado de informações e apelos de diferentes ordens.
Nessa etapa do acesso, o usuário precisa ativar a capacidade de reconhecer as diferentes linguagens
394

e semioses que se articulam para conferir sentido ao conjunto todo de possibilidades da plataforma.
Essa capacidade é proposta na matriz de leitura, apresentada anteriormente, pelo descritor CLD 13:
“Perceber/reconhecer outras linguagens/semioses como constitutivas para elaboração de sentidos nos
gêneros multissemióticos e que contribuem para compressão dos sentidos e ideologias presentes nos
textos.” É indispensável que, no acesso inicial, o sujeito tenha consciência de como a disposição e
combinação dos diferentes recursos visuais, sonoros e verbais, assim como a organização das partes
móveis e fixas do layout constituem um conjunto pensado estrategicamente para direcionar os olhares
e as escolhas do usuário. Artifícios como o tamanho das imagens, títulos, legendas, número de
curtidas e comentários de um post, publicidade direcionada em layout fixo são recursos potenciais
para capitalizar a atenção dos sujeitos e fazê-los permanecer o maior tempo possível na plataforma.
Em meio a essa multiplicidade de apelos, o usuário precisa dispor também da habilidade
de filtrar e selecionar conteúdos e informações relevantes, que atendam aos seus reais interesses e
necessidades naquele espaço. Assim, se o objetivo de acesso à rede social for a interação com amigos
e familiares, for o entretenimento simples ou for a busca por notícias sobre os cenários nacional e
mundial, a capacidade descrita no CLD 15, do quadro: “Observar e selecionar elementos da sintaxe
visual, de modo a organizar as informações relevantes à construção da significação” deve ser ativada
para que o usuário não se perca na rede de distratores, planejada justamente para dissipar o seu foco.

A MULTIMODALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE ALGUNS TIPOS DE POSTS E AS


CAPACIDADES DE LEITURA
O que se designa por post ou postagem constitui o principal gênero textual do Facebook
e pode ser produzido e colocado em circulação por qualquer usuário da rede. Trata-se de um arranjo
composicional que suporta diversas linguagens e modalidades: imagens, textos, símbolos, vídeos,
música. A seguir, são analisados alguns exemplos bem comuns que abundam na rede:
395

Figura 2: Post da Netflix

Fonte:

Elaborada a partir da página Netflix Brasil no Facebook116.

A página da Netflix é uma divulgadora de conteúdo de entretenimento bastante popular


no Facebook. As suas postagens, nesse ambiente, objetivam a difusão dos produtos culturais (séries,
filmes, documentários) disponíveis para consumo na plataforma própria de streaming. O bom humor,
a informalidade da linguagem na apresentação do catálogo é a marca registrada da Netflix nas redes
sociais. No exemplo acima, destaca-se a combinação de recursos multimodais como legendas com
linguagem verbal que explora a ambivalência dos termos relacionados ao calor, ao fogo, o vídeo com
cenas atraentes, apelando à sensualidade do corpo da personagem principal da série, além do uso de
emojis para reforçar o conteúdo verbal e visual.
Diante de uma postagem como essa, é indispensável que o usuário leitor saiba identificar
todos esses recursos multimodais e como eles funcionam nesse contexto específico. É preciso atentar,
por exemplo, ao papel atribuído à centralidade que as imagens audiovisuais recebem na arquitetura
geral do gênero. O recorte de cenas “mais quentes” para essa composição atua como isca da atenção,
tanto de quem rola a tela do aplicativo, principalmente à procura de entretenimento, como de quem
já assiste à série e tem expectativas sobre a concretização de um encontro amoroso entre as
personagens. Isso, portanto, requer a ativação das capacidades de leitura descritas no item CLD 13,
da matriz proposta anteriormente: “Perceber/reconhecer outras linguagens/semioses como
constitutivas para elaboração de sentidos nos gêneros multissemióticos e que contribuem para
compressão dos sentidos e ideologias presentes nos textos.” (GOMES, 2017, p. 55).

116
Disponível em: https://www.facebook.com/netflixbrasil. Acesso em 22 de jun. 2020.
396

A identificação dos recursos multimodais e a análise de seu funcionamento são


indispensáveis para recuperar, através do texto, os sentidos, os objetivos e finalidades de sua
circulação, contudo, ainda mais relevante é situar seu contexto de produção, os papeis sociais
ocupados pelos seus produtores, ou seja, ativar os conhecimentos contemplados pelo descritor CLD
16 da matriz:

Recuperar o contexto de produção do texto multissemiótico: quem é seu autor? que posição
social ele ocupa? Que ideologias assume e coloca em circulação? Em que situação escreve?
Em que veículo ou instituição? Com que finalidade? Quem ele julga que o lerá? Que lugar
social e que ideologias ele supõe que este leitor intentado ocupa e assume? Como ele valora
seus temas? Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão ele intenta? Sem isso, a
compreensão de um texto fica num nível de adesão ao conteúdo literal, pouco desejável a
uma leitura crítica e cidadã. Sem isso, o leitor não dialoga com o texto, mas fica subordinado
a ele. (GOMES, 2017, p. 55).

Ao dispor dessas capacidades, o usuário facilmente localiza a Netflix no contexto das


empresas de entretenimento e identifica os artifícios e as finalidades de seus anúncios, assim como a
que público se destinam os produtos oferecidos. E, sobretudo, essas habilidades lhe instrumentam a
avaliar, com mais consciência, a necessidade ou a relevância de registrar o seu próprio envolvimento
com esse conteúdo: o tempo que irá dispensar a essa leitura; se irá responder com curtidas,
comentários ou compartilhamentos ou se irá simplesmente ignorar. A não-aplicação ou aplicação
falha das capacidades leitoras, exigidas nesse contexto, pode levar ao automatismo responsivo, que é
justamente a armadilha maior da plataforma, ou seja, reagir mecanicamente a todo conteúdo que lhe
é apresentado, garantindo o disparo do alcance da postagem. Também pode fomentar equívocos
comuns como o de atribuir intenções, objetivos ou alinhamentos ideológicos pouco prováveis aos
produtores da postagem, o que pode ser verificado, por exemplo, nos comentários subsequentes ao
post, nos quais usuários religiosos acusam a empresa de promover ataques aos cristãos, “idolatrando
o demônio”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A plataforma Facebook foi escolhida como objeto da reflexão aqui proposta, justamente
por se constituir como uma rede social complexa e com crescente popularidade. Ao acessar esse
espaço, o usuário é exposto a um design poderoso, multimodal e que articula um variado conjunto de
estímulos interativos que o exortam a consumir cada vez mais conteúdos e a reagir a eles de modo
instantâneo, automático e irreflexivo. A velocidade com novas pautas, debates são postos em
circulação, nessa rede, é diretamente proporcional à rapidez com que esses conteúdos desaparecem
ou são substituídos por outras contendas para que o vício por novidade seja constantemente
alimentado. Em um contexto assim, é urgente pensar em práticas educativas que preparem
397

minimamente os sujeitos para exercerem uma postura crítica e cidadã frente a um cenário em que
abundam a proliferação deliberada da desinformação, da distorção dos fatos, das manipulações
afetivas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

BARTON, D.; LEE, C. Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo: Parábola Editorial.
2015.

CORREIA, P. M. A. R.; MOREIRA, M. F. R. Novas formas de comunicação: história do Facebook


- Uma história necessariamente breve. Revista Alceu, v. 14, n.28, p.168-187, abr. 2014.

DIONISIO, A. P.; VASCONCELOS, L. J. Multimodalidade, gênero textual e leitor. In: BUNZEN,


C.; MENDONÇA, M. (org.). Múltiplas linguagens para o ensino médio. São Paulo: Parábola, 2013.
p. 19-42.

FACEBOOK. Página da Netflix Brasil. Disponível em: https://www.facebook.com/netflixbrasil.


Acesso em 22 de jun. 2020.

GOMES, R. Gêneros multissemióticos e ensino: uma proposta de matriz de leitura. Trem de Letras,
Alfenas, v. 3, n. 1, p. 56-80, 2017b.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Censos 2017. Pesquisa


Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.

INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Relatório do Índice Nacional de Analfabetismo, INAF


2018. Rio de Janeiro: Instituto Paulo Montenegro, 2018. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1ez-6jrlrRRUm9JJ3MkwxEUffltjCTEI6/view>. Acesso em: 25
nov.2020.

KLEIMAN, A. B. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua materna. Linguagem


em (Dis) curso, Florianópolis, v. 8, n. 3, p. 487-518, 2008.

KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2. ed. London:
Routledge, 2006

MENEZES DE SOUZA, L. M. T. Para uma redefinição de Letramento Crítico: conflito e produção


de Significação. In: MACIEL, R. F.; ASSIS ARAUJO, V. (org.), Formação de Professores de
Línguas: Ampliando Perspectivas. Jundiaí: Paco Editorial, 2011.

ROJO, R. H. R. Fazer Linguística Aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza


de pensamento. In: MOITA-LOPES, L. P. (org.). Por uma Linguística Aplicada indisciplinar. São
Paulo: Parábola, 2004a. p. 253-276.

ROJO, R. H. R. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In:


ROJO, R. H. R; MOURA, E. (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial,
2012. p. 11-32.

SANTAELLA, L. Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política. São Paulo: Ed. Paullus, 2016.
398

STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na


etnografia e na educação. Tradução: Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

WE ARE SOCIAL. Global Digital Report 2019. Disponível em: https://wearesocial.com/global-


digital-report-2019. Acesso em: 25 nov. 2020.
399

A PROBLEMÁTICA DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) EM TEMPOS DE COVID-19


E OS DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO FUNDAMENTAL

Jackeline Barcelos Corrêa117


Amaro Sebastião de Souza Quintino118
Luiz Cláudio da Silva Velasco119
Denise Cristina Barreto Silva120

RESUMO

A educação escolar é um direito de todos os seres humanos e, no entanto, nesse momento de


pandemia mundial, devido à medida preventiva e a expansão do Coronavírus COVID-19, os alunos
se encontram em quarentena e a educação toma novos rumos. A modalidade da Educação a Distância
(EaD) foi implementada para esse momento, o trabalho docente deve ser voltado para a formação
do aluno nas plataformas de ensino, a fim de contribuir para um novo olhar para a realidade
educacional em tempos de pandemia. O objetivo do presente estudo foi apresentar e discutir como
as estratégias pedagógicas em EaD podem contribuir no processo de aprendizagem, e como
professores, alunos e a família estão dando conta da tarefa de mediação dos conteúdos pedagógicos
em tempo de pandemia no ensino remoto. No referencial teórico adotado na pesquisa destacaram-
se os estudos de: Tori (2017), Acâmpora (2013) e os documentos legais que versam sobre o Ensino
Fundamental nos anos iniciais. Como metodologia buscou-se uma revisão bibliográfica e uma
análise dos principais documentos que abordam a temática EaD na base de dados da Scopus, foram
realizadas entrevistas por meio de um questionário semiestruturado, com posterior análise de
conteúdos sob a luz das teorias da Laurence Bardin (2012). O grupo selecionado para essa pesquisa
são professores, alunos e responsáveis pertencentes a escola pública municipal, da zona rural, situada
no interior do município de Campos dos Goytacazes-RJ. Considera-se que a partir deste trabalho
surjam mais estudos que possam se repensar a redução da distância e as dificuldades de
comunicação, superando desafios e possibilidades de interação. Os estudos indicaram a valorização
da profissão docente para dar conta da aprendizagem do aluno, e que a educação familiar no Brasil
não foi vivenciada antes pela família, fazendo surgir diferentes problemáticas. Os resultados
apontam que os alunos estão lidando com as tarefas de maneira cansativa por causa dos conteúdos
exaustivos, deixando claro o estresse mental dos estudantes e da família. A maioria dos alunos dos
alunos não tem acesso à internet ficando excluídos, e os professores despreparados para lidar com o
ensino remoto.
Palavras-Chave: EaD. COVID-19. Desafios. Possibilidades. Ensino Fundamental.

INTRODUÇÃO

117
Doutoranda em Cognição e Linguagem, Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Contato:
jack.barcelos1@hotmail.com.
118
Pós-Graduado em Gestão em EAD, Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: amarotiao@yahoo.com.br.
119
Licenciando em Pedagogia, Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert (ISEPAM) Contato:
luizvelasco36800@gmail.com.
120
Licenciando em Pedagogia, Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert (ISEPAM). Contato:
denisebsilva7@gmail.com.
400

Com a disseminação da Pandemia de COVID-19, causada pelo vírus SARS-COV2, que


é um fenômeno mundial de características ímpares, no sentido de sua extensão, velocidade de
crescimento, impacto geral na população, afetando a educação das crianças.
A educação em tempos de pandemia se dá em diferentes espaços sociais, nos lares, por
causa do isolamento social, evitando a contaminação do vírus. Vale ressaltar a compreensão sobre a
educação enquanto um processo que gradualmente instrumentalize aluno para transformar o seu
entorno. Entretanto, este processo não se faz apenas de fora para dentro, pois, etimologicamente o
termo “educar”, vem do latim ex - ducere, conduzir para fora, significando encorajar o
desenvolvimento e a expressão das qualidades únicas de cada pessoa, implicando, dessa forma, uma
parceria, um caminhar junto, diálogos, troca de olhares e de experiências, escutas sensíveis e
manifestações das relações entre humanos e mundos.
Esta concepção de Educação se apoia na questão de um processo complexo e, por isso,
não é passível de definições lineares, ela pode ser mediada em diferentes espaços físicos e sociais,
perpassando as salas de aula e chegando aos alunos que se encontram em isolamento social durante
a pandemia. Sendo assim, a aulas se tornaram prioritariamente remotas e a distância.
A Educação a Distância (EaD) desponta hoje como uma grande modalidade de ensino,
que visa obter resultados positivos na inclusão dos alunos que se encontram em quarentena devido
sua flexibilidade, proporcionando a promoção do conhecimento de maneira emergencial.
O objetivo do presente estudo foi apresentar e discutir como as estratégias pedagógicas
em EaD podem contribuir no processo de aprendizagem, e como professores, alunos e a família estão
dando conta da tarefa de mediação dos conteúdos. A sociedade de modo geral, inclusive a escola,
estão enfrentando novas maneiras de aprender e ensinar, com a participação da família no processo
educativo e com a inserção imediata das novas tecnologias.
O primeiro tópico vai apresentar a modalidade EaD no Ensino Fundamental com a
proposta remota das aulas síncronas e assíncronas e o segundo tópico busca evidenciar os desafios e
possibilidades do Ensino a Distância. Serão apresentadas as análises de dados e a metodologia da
pesquisa amparada nos estudos da Laurence Bardin.
E, por fim, serão apresentadas as devidas considerações e referências da pesquisa em
pauta, realizada durante o isolamento social.

A MODALIDADE EAD NO ENSINO FUNDAMENTAL

O Ensino Fundamental e a plataforma de ensino

Logo após o esclarecimento sobre a Organização Mundial da Saúde da COVID -19,


afirmando ser uma doença contagiosa que apareceu em uma região chinesa e se espalhou rapidamente
401

por outras partes do mundo. A pandemia foi anunciada no mês de março de 2020 no Brasil, e os
governos decidiram fechar as escolas como uma tentativa de inibir a propagação do vírus, e, dessa
forma, todas as aulas presenciais foram suspensas e a solução foi migrar para as salas de aulas virtuais
para impedir que a COVID-19 se proliferasse na sociedade. No Rio de Janeiro, segundo o jornalista
Audrey Furlaneto (2020) do jornal O Globo, são 47 milhões de alunos sem aulas presenciais.
Com mais de 130 mil escolas fechadas, cerca de 47 milhões de alunos estão sem aulas
presenciais desde o fechamento das instituições para conter a propagação do novo Coronavírus no
país, segundo estimativa do coordenador de desenvolvimento humano do Banco Mundial para o
Brasil.
As orientações foram para as aulas sejam realizadas por meio de videoaulas,
videoconferências e atividades em EaD por período indeterminado, devido à pandemia que afeta mais
de 190 países, que adotaram o mesmo método.
Cabe ressaltar que as faculdades e escolas dos Estados Unidos da América, região com a
maior média de mortos pela COVID-19, cerca de 2000/dia, decretou que o ano escolar, que se
encerraria em junho de 2020, foi cancelado. A rápida mudança para plataformas como, por exemplo,
a plataforma Zoom, está dificultando o acesso e o cumprimento dos currículos, principalmente para
professores menos equipados para navegar na Internet e que têm dificuldade para manusear uma sala
de aula mediada por uma tela e um microfone.
No Brasil, muitos professores cancelaram as aulas porque tinham dificuldades técnicas,
problemas com o Wi-Fi ou entravam em pânico com a perspectiva de dar aula para toda a turma por
meio das novas plataformas de ensino.
As instituições de ensino e outras organizações, e, ainda, grupos que fornecem Educação
à Distância tiveram que ter a responsabilidade de incorporar experiências que possibilitam educadores
e alunos a darem conta dos conteúdos escolares. Foram oferecidas diferentes ferramentas de
comunicação em grupo, com propostas de aulas, apresentações e reuniões on-line.
O trabalho pedagógico se tornou árduo, cansativo e desgastante para a maioria dos
professores. Surgiu o zoom que é uma ferramenta que permite comunicação por vídeo,
videoconferência e áudio, bate-papos e seminários on-line, mas a ferramenta mais utilizada tem sido
o Meet. Sendo assim os professores precisam fazer uso dessas ferramentas com urgência, levando-os
ao desespero. Aos poucos os professores foram se adaptando e fazendo os usos das ferramentas com
a ajuda de outras pessoas que já aprenderam a utilizar (TORI, 2017).
O Google Meet é uma ferramenta muito utilizada nesse momento de pandemia e foram
consolidados concomitantemente os grupos de mediação dos professores com os pais no WhatsApp.
Já é fato a inserção do Ensino Híbrido.
402

Em suma, essas experiências com a COVID-19 servirão como forma de preparo para os
desafios futuros que virão com a próxima epidemia e outros desastres e uma coisa é fato: no momento,
as aulas on-line exigem significativamente de mais atenção. Na prática, os professores não avançaram
em EAD e iniciou-se um processo de ensino árduo e despreparado, cansativo e improvisado e na
maioria das vezes sendo capacitados pelos próprios alunos.
Guimarães (2014), acrescenta que em uma educação pela internet, várias pessoas
diferentes participam do processo educacional: o professor que escreve o que faz a mediação, a equipe
pedagógica, e todos os envolvidos no sistema. No ensino a distância requer um plano de aulas muito
bem estruturado, o que ainda falta à maioria dos professores.
Qualificar professores para trabalhar no ensino on-line já foi uma tarefa mais complexa
no Brasil. Durante a pandemia os professores optaram por recursos tecnológicos, que contemplassem
aulas gravadas de maneira intuitiva e vídeos caseiros improvisados, feito em suas residências.
Portanto, o domínio do ensino e aprendizagem on-line é tarefa para tutores, mediadores
pedagógicos imersos nas novas tecnologias e formados em cursos de capacitação contínua, para dar
conta de novos aplicativos e novas ferramentas interativas e não apenas dar conta de seu home office.

A Legislação Brasileira e as mudanças durante a pandemia

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina a realização de 200 dias “de
efetivo trabalho escolar” e carga horária de 800 horas no ciclo básico. Mas, no entendimento dos
integrantes do CNE ouvidos pela nossa reportagem, esta regra é flexível, especialmente em situação
de emergência nacional. O parágrafo 4º do artigo 32 da LDB “§ 4º O Ensino Fundamental será
presencial, sendo o ensino a distância utilizada como complementação da aprendizagem ou em
situações emergenciais”, por exemplo, autoriza expressamente essa possibilidade para o Ensino
Fundamental. Além do mais, a lei já admite a continuidade das atividades em regime domiciliar nos
casos de alunos doentes ou com alguma incapacidade física. O Decreto 9.057/2017, que regulamenta
a LDB, define que Educação a Distância é:

[...] modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino


e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e
comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e
avaliações compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e
profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos (BRASIL, 2017 p. 1).

Com o fechamento provisório de escolas, em que alunos estarão sem aulas presenciais,
há grande preocupação sobre uma possível redução do processo de ensino-aprendizagem. Surgem
assim, várias problemáticas e vários questionamentos que nem a equipe gestora dá conta das respostas
do que acontecerá com a validade dos conteúdos mediados.
403

Para o Ensino Fundamental devem ser pensadas estratégias que incentivem e apoiem
atividades à distância que se tornaram essenciais para reduzir os potenciais efeitos da crise na
educação das crianças.
A importância das mídias e tecnologias na vida dos alunos do ensino fundamental é
inegável, por meio delas estão se modificando ambientes de trabalho, de educação, de diversão e a
própria forma de se comunicar, a multimodalidade está em tudo, no cotidiano das pessoas, fazendo
surgir novas formas de comunicação e, portanto, a comunicação se torna ativa e expressiva, nas aulas
síncronas, nas lives, nas webnars, etc.
Neste período pandêmico uma parte dos alunos está conectada na rede em uma era digital
e tecnológica utilizando aparelhos e recursos como ferramentas de expressão e comunicação, de modo
natural e rotineiro, já os usuários que não são nativos digitais, estão se adaptando as novas
multimodalidades e letramentos, e outros não.
Sendo assim, a problemática que se destacou nessa pesquisa foi a dificuldade de lidar
com as tecnologias dos professores, embora eles estejam se adaptando, foi a despreparo da família
em colaborar com as aprendizagens. Outra problemática mais relevante é a exclusão dos alunos das
camadas populares e a falta de acesso e equipamento de uma quantidade significativa de alunos
brasileiros.

DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO A DISTÂNCIA

Um dos maiores desafios é a avaliação on-line, que não se tem como saber por quem ela
foi realizada de fato, se o aluno fez sozinho ou com o auxílio de terceiros. São diversos os problemas
que assolam o ato avaliativo, no entanto, o que mais desperta preocupações é o seu uso de forma
desvinculada do processo educativo, como meio de classificação e exclusão dos alunos.
Um grande desafio está no comprometimento do aluno e da família com as aprendizagens,
em casa eles se desconcentram facilmente e acabam procrastinando os conteúdos e acumulando
tarefas.
E, considerando o momento atual de suspensão de aulas presenciais e adoção de aulas
remotas on-line, esse desafio tornou-se ainda mais complexo para os (as) docentes, os responsáveis e
os próprios estudantes.
As possibilidades são diversas, mas requer comprometimento de vários sentidos do corpo,
de atenção, e de vários atributos e competências para lidar com a nova modalidade de ensino. Por se
tratar do Ensino Fundamental, os alunos não têm maturidade para lidar com tantas responsabilidades
e habilidades.
Os programas educacionais na modalidade EaD devem atentar-se ao uso de múltiplos
sentidos para que os ambientes virtuais sejam capazes de integrar elementos verbais e imagéticos com
404

foco na construção de sentidos e criação de concepções. A concepção do aspecto do multimodal é


complexa, pois coloca os leitores diante de várias linguagens e seus respectivos códigos e regras
(PEDROSA; SANTANA, 2009).
Esta proposta de multimodalidade motiva a todos que a utilizam devido ao longo de sua
realização, o usuário poder mostrar as suas habilidades e competências e pôr em prática as suas
experiências tecnológicas de forma a criar uma identidade virtual.
Knuppel (2016):

[...] essas novas maneiras de relacionamento com as informações e com a tecnologia podem
transformar a relação pedagógica, pois por essa formação digital, alunos conseguem interagir
com muitas informações ao mesmo tempo, impingindo a necessidade de práticas pedagógicas
que tragam maior relação com as TICs (KNUPPEL, 2016, p. 11).

Sendo assim, diferentes ferramentas estão sendo utilizadas para mediar e avaliar o aluno
em tempos de pandemia, e as escolas do mundo inteiro estão aos poucos adotando o ensino híbrido,
o que possibilita a avaliação presencial, mediada pelos conteúdos em EaD. Não se sabe ainda como
ficará o índice de contaminação do Coronavírus entre as crianças e comunidade escolar, por isso não
se tem uma previsão para o início das aulas presenciais.

METODOLOGIA

Como metodologia buscou-se uma revisão bibliográfica e uma análise dos principais
documentos que abordam a temática EaD na base de dados da Scopus, foram realizadas entrevistas
por meio de um questionário semiestruturado, com posterior análise de conteúdos sob a luz das teorias
da Laurence Bardin (2012).
Foram realizadas entrevistas por meio de um questionário semiestruturado com posterior
análise de conteúdo sob a luz das teorias da Laurence Bardin (2011). O grupo selecionado para essa
pesquisa são os alunos da escola pública da zona rural situada no interior do município de Campos
dos Goytacazes - RJ.

ANÁLISE DE DADOS
As ferramentas utilizadas para essa pesquisa foram os questionários feitos no Google
Forms com perguntas abertas e fechadas semiestruturadas aplicados a 4 professores, 4 alunos e 4
responsáveis, elencando a problemática, desafios e possibilidades do ensino remoto em tempos de
pandemia. O referencial teórico subsidiou com conceitos para dar embasamento para as análises dos
dados.
405

Para a análise dos dados obtidos entre os desafios e possibilidades do professor no ensino
remoto podemos citar os depoimentos abaixo (DP- depoimento do professor):

DP1- “Pra mim o maior desafio é fazer com que os alunos interajam, eu fico falando, falando
e eles na maioria das vezes não interagem comigo, saem da sala toda hora... Desligam a
webcam várias vezes, nem sei de estão ali, me sinto em sala cheia, mas sem ninguém”.

DP2- “O desafio é aprender as mexer nas ferramentas, muita novidade ao mesmo tempo,
mas não sei muita coisa, peço ajuda da minha filha, mas nem sempre está perto para ajudar,
tenho aprender o máximo possível, mas agora estou me adaptando melhor, e a prática vai
levando a perfeição”.

DP3- “Neste momento tudo é desafiador, a internet cai, é difícil sabe... a gente tenta fazer o
melhor, mas nem sempre a gente consegue. Como vou saber se os alunos estão aprendendo
mesmo? São tantos questionamentos sobre esse ensino remoto, será que está dando certo?”.

DP4- “Um grande problema é ficar o dia todo falando e sentado em frente ao computador, é
um desgaste físico, mental e emocional, e celular é o dia todo chegando mensagem com
dúvidas e questionamentos dos alunos, por um lado é bom que mostram o interesse deles,
mas por outro complica, sou esposa, sou mãe, sou filha, e o tempo para tudo isso...”.

Com os depoimentos acima ficou notório que a pandemia proporcionou várias


inquietações e reflexões no trabalho docente, devido ao uso integral da tecnologia, com isso os
professores estão repensando suas práticas pedagógicas e o papel do professor, visando desenvolver
estratégias para mudar a visão simplista nas escolas e torná-la mais eficaz e útil para os alunos
(CUNHA JUNIOR et al., 2020).
Pode-se perceber com os depoimentos que o não uso das ferramentas digitais se deve à
falta de formação docente em seu manuseio, fato que aumenta e influencia nas dificuldades do ensino
remoto, cuja tecnologia é necessariamente fundamental para propagar o processo de ensino-
aprendizagem (MORAN et al, 2006).
Nesta etapa da análise de dados foram abordados como desafios e possibilidades os
aspectos mencionados nos depoimentos dos alunos (DA):

DA1- “São muitas atividades juntas, eu fico cansado de ficar a manhã toda assistindo aula,
é um grande desafio para mim, tenho sentindo muita dor de cabeça, e minhas está afetando
até a visão, mas entendo que é a única opção que temos, devemos nos cuidar e não podemos
nos expor a esse vírus...”.

DA2- “Eu aprendo bem menos do que no presencial, a presença do professor contribui muito
para meu aprendizado, sinto falta deste contato, virtualmente não é mesma coisa, eu tenho
muita dificuldade de aprendizado. Eles poderiam diminuir o volume de atividades, para
facilitar”.

DA3- “Pra mim, tudo é um desafio, estudar a distância, não ter um professor para em orientar,
uso de tecnologia exagerado, ou seja, não estou preparado para esse mundo virtual, apesar
da tecnologia está tomando conta de tudo, mas estou em adaptando aos trancos e barrancos”.
406

DA4- “Estou fazendo o meu melhor para conseguir aprender, domino as tecnologias, mas
não tenho paciência, essas aulas remotas são cansativas, mas entendo que os professores
estão se esforçando o máximo para fazer o melhor para os alunos, mas o problema não são
eles, mas sim o sistema...”.

Ao analisar os conteúdos dos depoimentos dos alunos, percebe-se que eles questionam o
volume de atividades, a falta de domínio das novas tecnologias e do contato físico, além de ressaltar
fortes e constantes dores de cabeça, afetando a visão dos estudantes.
Vale ressaltar também que por outro lado, encontram-se alunos que estão inseridos e
familiarizados nessa globalização digital, que apesar de tantas dificuldades estão tendo acesso a uma
quantidade infinita de informações de todas as partes do mundo (OLIVEIRA; MOURA, 2015).
Na etapa de análise de conteúdos dos dados, com a perspectiva dos desafios e
possibilidades nos depoimentos dos responsáveis (DR) destacam-se:

DR1- “É complicado isso tudo que estamos vivendo, isso me deixa nervosa, ver o meu
neto o dia todo no computar. Custei a entender essa situação, mas tivemos que nos
adaptar... A situação emergencial nos fez repensar muita coisa, abraçar a tecnologia e
entender que seu uso é fundamental”.

DR2- “Eu fico chamando toda hora falando, “vai estudar”, “ já viu sua aula hoje? ” E ele não
sossega sentado, se distrai toda hora, e ainda tem a internet cai...é muito difícil. Não vejo a
hora de tudo voltar ao normal, tenho ter muita paciência”.

DR3- “Tudo foi uma grande surpresa. De repente a escola fechada e tínhamos que
transformar a nossa casa em escola, sem nenhuma estrutura. Meu filho sempre gostou de
estudar, mas tem muita dificuldade. Começamos a correr para descobrir como ensinar a
distância, sem nunca ter aprendido. E estamos até hoje, buscando conhecer mais...”

DR4- “Não está sendo fácil, imagino que para todos os envolvidos: escolas, responsáveis e
estudantes”. Mas poderia se pensar em diminuir a quantidade de tarefa das aulas online. Vejo
minha filha, com tanta atividade que tem dias que ela nem almoça direito, e tem que dar
conta de tudo, é mensagem chegando o dia todo. Ela estava pensando em fazer um curso
técnico, mas até desistiu, pois ela disse que não vai dar conta. Ela reclama muito disso”.

O Ensino Fundamental atende crianças e adolescentes que apresentam níveis de


desenvolvimentos distintos, e que mesmo agregando as tecnologias nas atividades escolares, mais os
espaços presenciais ainda são indispensáveis para o desenvolvimento social dos mesmos.
Com a pandemia, o ensino remoto foi inserido de forma abrupta trazendo à tona diversos
problemas sociais, econômicos, tecnológicos, além de ressaltar o despreparo dos professores para
assumir essa mediação por plataformas digitais; dificuldades dos pais e responsáveis em orientar as
atividades escolares dos filhos; falta de maturidade de alguns alunos. Tudo isso contribui para essa
insatisfação com o ensino remoto (ALVES, 2020).
407

Enfim, indo ao encontro das análises dos conteúdos verificou-se que é possível vivenciar
um processo de aprendizagem escolar em uma perspectiva complexa, em diferentes espaços sociais,
no sentido de possibilitar que os alunos vivam como sujeitos de conhecimentos em suas residências.
A partir desta perspectiva percebe-se que alguns conflitos são enfrentados pela equipe escolar e
familiares, mediante a dificuldade do uso da tecnologia.
Machado (2004) afirma que:

As tecnologias da informação, que vêm se consolidando com os aperfeiçoamentos dos meios


de comunicação, em conjunto com a informática, fornecem amplas perspectivas para
melhoria das práticas educacionais, disponibilizado novos recursos para atuação do professor
e para que o educando possa reelaborar a informação de forma ativa e criativa, expressando
um trabalho de reflexão pessoal (MACHADO, 2004, p. 27).

Sendo assim, os objetivos propostos foram alcançados, pois houve uma discussão sobre
as estratégias pedagógicas dos usos das ferramentas em EaD, elencando as dificuldades dos usos das
ferramentas durante o ensino remoto nas aulas síncronas e assíncronas. Percebeu-se que tais práticas
deverão aproximar ou distanciar os alunos das aprendizagens ou da exclusão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que este é um momento calamitoso, que carece de união entre as partes,
professores, família e escola para atingir o sucesso da aprendizagem, pois o trabalho conjunto nesta
etapa é de suma importância para o aluno. Nesta pesquisa, ficou evidenciada que há uma necessidade
de fortalecer o elo social e colaborativo entre família e escola.
Portanto, considera-se que todos os participantes da pesquisa por mais conhecimento que
possuam, necessitam cada vez mais de informações tecnológicas continuadas, para que possam
realizar esta contribuição no processo de aprendizagem dos alunos do Ensino Fundamental. O
importante é que todos busquem conhecer, estudar para que de alguma forma o aluno consiga
interagir para compreender o lugar onde está inserido, os caminhos alcançados e enfim conhecer o
mundo.
A educação no Brasil não foi vivenciada antes com a parceria e colaboração ativa da
família, fazendo surgir diferentes problemáticas. Os resultados apontam que os alunos estão lidando
com as tarefas de maneira cansativa por causa dos conteúdos exaustivos, deixando claro o estresse
mental deles e dos responsáveis.
A partir das reflexões abordadas nesta pesquisa é possível perceber que é fundamental
buscar alternativas que reforcem os usos das tecnologias no contexto escolar propondo atividades
408

lúdicas, jogos pedagógicos, inserindo a leitura e a escrita de maneira prazerosa com uso de vídeos
que motivem os alunos e envolvam a família.

REFERÊNCIAS

ACÂMPORA, B. Psicopedagogia clínica: o despertar das potencialidades. 2 ed. Rio de Janeiro: Wak
Editora, 2013.

ALVES, L. Educação Remota: Entre a ilusão e a realidade. Interfaces Científicas, v.8, n.3, p. 348-
365, 2020. Disponível em:

https://periodicos.set.edu.br/educacao/article/view/9251 Acesso em 28 fev. 2021.

BARDIN, L. Análise de conteúdo (L. de A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). (Obra original publicada
em 1977). Lisboa: Edições 70, 2006.

BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)/Lei nº 9394/96, de 20 de


dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.
Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 25 fev. 2021.

CUNHA JUNIOR, A. S. et al. Educação de jovens e adultos (EJA) no contexto da pandemia de


COVID-19: cenários e dilemas em municípios baianos. Revista Encantar - Educação, Cultura e
Sociedade, Bom Jesus da Lapa, v. 2, p. 01-22, jan. 2020. Disponível em:
https://www.revistas.uneb.br/index.php/encantar/article/view/9357 Acesso em: 28 fev. 2021.

FURLANETO, A. E-19: Especialistas discutem rumos da educação brasileira após fim do


isolamento social. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-
servico/covid-19-especialistas-discutem-rumos-da-educacao-brasileira-apos-fim-do-isolamento-
social-. Acesso em: 26 fev. 2021.

GUIMARÃES, Â. D. M.; DIAS, R. Ambientes de Aprendizagem: reengenharia da sala de aula. In:


COSCARELLI, C. V. (Org.). Novas tecnologias, novos textos, novas formas de pensar. 3ª ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014. p. 23-42.

KNUPPEL, M. A. C. Material Educacional Digital: multi/hipermodalidade e autoria. In: FRASSON,


A. C. et al. (org.). Formação de professores a distância: fundamentos e práticas. Curitiba: Editora
CRV, 2016.
409

MAPEAMENTO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA


LITERÁRIA

Kayo Henriky Lima da Silva121


(graduado em Letras, UFPB)
Josuel Belarmino de Oliveira122
(graduando em Letras, UFPB)

RESUMO

A estratégia de leitura literária que propomos apresentar advém dos estudos e pesquisas
desenvolvidos no GEAL – Grupo de Estudos em Antropologia Literária (UFPB/CNPq). Para isso,
consideramos a Teoria do Efeito Estético, do teórico alemão Wolfgang Iser (1996). Assim, partindo
da leitura do texto literário, temos a interação texto-leitor, a qual promove um objeto estético, ou seja,
um sentido atribuído ao suporte ficcional (neste caso, o texto literário) diante da
articulação/preenchimentos dos vazios ficcionais. Nesse sentido, para considerar a existência do leitor
real nesse processo interativo, associamos à Teoria do Efeito Estético a tese de Santos (2009), a qual
a partir da Teoria Histórico-Cultural, de Lev Semenovich Vigotski, suplementa-a a partir de uma
perspectiva psicológica, visto que a leitura e todo processo mental perpassa pela cognição. É
exatamente essa uma das questões que motivaram a formulação da Teoria do Efeito Estético: quais
processos ocorrem no indivíduo quando ele lê? Isso posto, propomos a leitura literária a partir da
perspectiva de geração de sentido no leitor, não se preocupando com o imanentismo do porquê o autor
escreveu o texto, mas considerando a experiência desse leitor com o texto, a qual se configura como
pessoal, abstrata e, portanto, virtual. Nesse contexto, o mapeamento da experiência estética consiste
na indicação dos principais conceitos da teoria iseriana a partir da interação com o texto literário, o
que permite o acesso à experiência mencionada, podendo ser feito via fala ou escrita. Diante disso,
temos a hipótese de que a leitura literária via mapeamento da experiência estética, propicia ao leitor
o gerenciamento dos processos mentais ocorridos durante o processo de leitura, possibilitando a
construção de sentido e sua posterior emancipação intelectual e cognitiva, visto que a Teoria
Histórico-Cultural promove o alargamento das Zonas de Desenvolvimento Proximal, gerando novos
Níveis de Desenvolvimento Real e Potencial, que resulta da abordagem educativa vivenciada pela
literatura.

Palavras-chave: Teoria do Efeito Estético. Leitura Literária. Ensino. Teoria Histórico-Cultural.


Experiência Estética.

PARA PENSAR A NECESSIDADE DE FICCIONALIZAR


Por considerarmos a leitura literária algo necessário e fundamental nas aulas de português
e na formação daqueles que cursam Letras, e pelo desejo de tornar essa leitura mais satisfatória e
significativa, temos como principal suporte teórico a Teoria do Efeito Estético, de Wolfgang Iser,
surgida a partir do viés antropológico pelo qual Iser fundamentou-se para pensar uma teoria que

121
Universidade Federal da Paraíba; Licenciado em Letras; kayoriky@hotmail.com.
122
Universidade Federal da Paraíba; Graduando em Letras; josuelbelar@hotmail.com.
410

tentasse responder ou investigar sobre o que acontece na mente do leitor no momento de sua leitura.
Daí, percebemos como a antropologia passa a ser questionada, quando o próprio leitor indaga sobre
os processos mentais ocorridos em sua mente, conforme aponta Santos (2020, p. 97): “Se buscar
sentido é uma atividade antropológica e, quando lemos ficção, fazemos isso de modo notório,
ficcionalizar é, por conseguinte, antropológico.” Processos esses que não são e nem podem ser
visualizados como se tivéssemos uma tela de TV em nosso cérebro, que não estão expostos e
acessíveis como gostaríamos para descrever neste artigo, por exemplo.
Assim, para Iser, em sua Teoria do Efeito Estético, tem-se como principal foco a interação
existente entre o texto e o leitor. Nesse caso, o indivíduo considerado por Iser é o leitor implícito, que
para ele, refere-se à própria estrutura textual, ou seja, ao próprio texto, fazendo dessa interação uma
metáfora, pois implicitamente, o leitor está inscrito no texto (SANTOS, 2020). Como pode, então,
existir interação entre texto-texto? Para se referir a esse equívoco teórico, Costa Lima utilizou a
expressão “calcanhar-de-Aquiles da teoria de Iser” (FARIAS, 2009, p. 242), o que indica um ponto
fraco da teoria.
Considerando isso, Santos (2009) elaborou sua tese de doutorado associando a Teoria do
Efeito Estético de Iser à Teoria Histórico-Cultural de Vigotski, que considera a existência real do
indivíduo no meio social, com o qual ele interage. Além disso, considerou também os conceitos
vigotskianos para pensar sobre os processos de aprendizagem mediados via interação texto-leitor.
Desta feita, podemos pensar no ensino de leitura literária considerando a existência de um leitor real,
“de carne e osso” (SANTOS, 2020) que, através do ato da leitura, é capaz de atribuir sentido ao que
está sendo lido, partindo de seu repertório123 para a construção de novos efeitos estéticos. Na próxima
seção será abordado o mapeamento da experiência estética com o texto literário como sugestão de
estratégia de leitura literária.

MAPEAMENTO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM LEITURA LITERÁRIA: NOVOS


CAMINHOS
O mapeamento da experiência estética surge a partir da criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental (RDM) viabilizado pela execução do projeto intitulado Da Ficcionalização em
Cinema para o Ensino da Leitura Literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental em Antropologia Literária (RM), vinculado ao Programa de Licenciatura
(PROLICEN) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenado pela Professora Doutora
Carmen Sevilla, autora da tese que tornou todas essas reformulações possíveis (COSTA, 2017).

123
O repertório do leitor refere-se a todo conhecimento prévio que o indivíduo possui. Na tese de Santos (2009) é
associado ao conceito vigotskiano de Nível de Desenvolvimento Real (NDR).
411

O Roteiro Didático Metaprocedimental (RDM), conforme Santos (2020, p. 101), “inclui


os conceitos iserianos e a incursão do leitor real suportado pela teoria vigotskiana (SANTOS, 2014,
2015, 2017, 2018, 2019)”. Ainda segundo ela, esse roteiro favorece a elaboração de um mapeamento
da experiência estética, pois é a partir dele que os leitores tornam acessíveis os processos mentais
percebidos em sua própria mente, sendo, portanto, uma estratégia didática a evidenciação e
associação dos conceitos iserianos à experiência estética. A interação promovida entre o texto e o
leitor é pessoal, abstrata e virtual. Cabe ressaltar que cada leitor pode ter diferentes experiências
estéticas com um texto literário comum em uma comunidade, seja em uma sala de aula, em um grupo
de estudos, em leituras deleite, em sessões de contação de histórias etc. O mapeamento da experiência
estética consiste na ancoragem da experiência com a estrutura textual, o que delimita as interpretações
na mente do leitor.
Quando utilizamos a estratégia de mapear a nossa experiência estética com o texto
literário nos tornamos autoconscientes dos processos que já aconteciam em nossa mente (SANTOS,
2020), mas que agora podemos percebê-los sob as lentes dos conceitos iserianos, e mais do que
percebê-los, gerenciá-los, para, a partir da significação124, nos emancipar social, emocional, cognitiva
e esteticamente, além de tornar acessíveis os processos que ocorrem simultânea e intimamente
ligados. Isso nos permite concluir que mapear a experiência estética é uma estratégia não apenas útil
para os nossos leitores, mas também para nós mesmos, autores-leitores, pois podemos facilitar a
associação e implementação da Teoria do Efeito Estético em nosso hábito de leitura,
independentemente do motivo pelo qual estejamos lendo.
Em se tratando do ensino de literatura na sala de aula do Ensino Fundamental, por
exemplo, podemos pensar no processo de letramento do indivíduo. Segundo Albuquerque (2019),
esse é o primeiro Direito de Aprendizagem de Língua Portuguesa garantido pelo documento Direitos
e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento dos estudantes (BRASIL, 2012). Esse processo
consiste em

formar estudantes leitores, produtores de textos orais e escritos, falantes e ouvintes, que
saibam compreender e produzir textos em diferentes gêneros, esferas sociais variadas,
diversos suportes textuais e que atendam a diferentes propósitos comunicativos (BRASIL,
2012 apud ALBUQUERQUE, 2019, p. 16).

Diante disso, o processo de leitura, sobretudo a literária, se configura como essencial tanto
para o trabalho do professor quanto para a formação letrada dos estudantes. Assim, podemos associar
essa perspectiva ao processo de leitura literária mediada pelo mapeamento da experiência estética,
sem necessariamente, os alunos terem que conhecer a teoria iseriana e seus conceitos, sendo este um
trabalho mediado pelo professor em sala de aula, através de questionamentos previamente elaborados

124
“Resposta dada pelo leitor ao sentido formulado” (COSTA, 2017, p. 10).
412

por ele. Dessa forma, o processo de letramento, em virtude de sua natureza processual e contínua,
tem como pretensão ultrapassar os muros da escola, para que isso se torne um estilo de vida. Na seção
seguinte, será utilizado para exemplificar o mapeamento da nossa experiência estética o conto Come,
meu filho (1998), de Clarice Lispector.

DA TEORIA À PRÁTICA: MAPEAMENTO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA COM O


CONTO COME, MEU FILHO (1998)

O conto Come, meu filho, de Clarice Lispector (1998), nos apresenta um diálogo entre
um filho, chamado Paulinho, e sua mãe. Esta tenta convencê-lo a comer, enquanto ele, em sua
aleatoriedade de criança, faz diversos apontamentos e indagações para a mãe. O conto inicia-se com
uma fala de Paulinho, refletindo sobre o formato do mundo, a Terra. As conclusões apresentadas por
Paulinho referem-se às possíveis viagens que ele fez, nas quais ele pôde constatar que o céu do Brasil
é igual ao céu em outros países.
O primeiro fato interessante dessa narrativa é que Paulinho usa o adjetivo “chato” para se
referir a algo raso. Assim, para ele, a distinção entre raso (chato) e fundo vem dos formatos dos pratos
que ele utiliza para comer. Ou seja, o seu conhecimento de mundo sobre o formato da Terra parte de
uma atividade rotineira: a de se alimentar. Em nossa experiência estética isso foi percebido como uma
quebra da good continuation125, pois não esperávamos que uma criança utilizasse a palavra “chato”
para se referir a algo raso, reverberando em sua concepção sobre o formato da Terra, percebido por
sua contemplação ao céu.
Essa quebra da good continuation gerou, em nossa experiência estética, o seguinte vazio:
como essa criança adquiriu esse vocabulário? Assim, tivemos que rearticular a nossa percepção sobre
Paulinho e a forma como ele vê as coisas ao seu redor. Nesse sentido, cabe explicar que o efeito
ocorre em um único processo em nossa mente, e que essa separação para a explicação dos conceitos
é realizada apenas para tornar didático e acessível o mapeamento da experiência estética com o texto
literário.
Outro aspecto interessante na fala do menino é que ele se refere nesse trecho da narrativa
a Ronaldo, a quem não foi dada nenhuma informação sobre sua origem ou presença. Isso gerou em
nossa experiência estética um vazio126, pois nos questionamos sobre quem é esse Ronaldo e por qual
motivo Paulinho se refere a ele utilizando de comparações entre o saber deles dois. Ronaldo será um

125
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Rompimento da continuação natural esperada pelo
leitor/expectador, obrigando-o a reformular novas possibilidades” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
126
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “A possibilidade de um preenchimento, por parte do
leitor/expectador, de um ou mais aspectos do texto/filme que não estão explícitos, dando margem a diversas possibilidades
de sentido” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
413

amigo? Um primo? Vizinho? Uma informação marcante sobre Ronaldo é que ele nunca saiu do
Brasil. Com isso, podemos inferir aspectos de seu contexto social, o que em nossa experiência estética
é chamado de negatividade127, ou seja, a nossa tentativa em preencher um vazio também percebido
em nossa experiência estética com o conto.
A narrativa, caracterizada por ser curta, segue composta apenas de falas representadas por
travessões, com perguntas diversas feitas por Paulinho e respostas curtas dadas pela mãe. Esse diálogo
culmina quando, ao final do conto (e da conversa), ela fala sucintamente para o filho: “não fala tanto,
come” (p. 40). Então, ele a provoca dizendo “mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é
para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?” (p. 40). O diálogo,
em nossa experiência estética com esse texto, foi percebido como um looping128, pois as perguntas
feitas por Paulinho e as breves respostas de sua mãe constituem a estrutura Tema e Horizonte129, sob
a qual pudemos perceber a revisitação ao diálogo composto por diferentes perguntas,
questionamentos e reflexões originados do menino.
Dessa forma, nas últimas falas entre o filho e a mãe, temos como atribuir sentido ao
poema, que é, para nós, a evidenciação de diferentes perspectivas de amor. Em nossa experiência
estética, interpretamos os dois modos de amar que são apresentados no texto: o primeiro, é o ato da
criança de confiar e querer agradar a sua mãe, com suas palavras, pensamentos e falas de menino; o
segundo, é a vontade e o dever natural, abraçado pela mãe, de cuidar de seu filho, demonstrado através
do ato de alimentá-lo, e não apenas isso, mas também supervisionar essa atividade, o que revela que
o amor de mãe refletido na refeição do seu filho, abrange todo o processo, desde preparar o alimento,
servi-lo e constatar que foi, de fato, ingerido.
Por conseguinte, interpretamos o ato amoroso da mãe através de nosso repertório
enquanto filhos, da nossa vivência sendo cuidados e amados por nossas mães com ações que
exprimiam (e ainda exprimem) afeto. Esse laço afetivo é construído como um processo, em uma troca
de expectativas, atribuídas à mãe, que deve cuidar e educar da melhor maneira possível o seu filho, e
a este, o de ser um bom filho, que agrade à mãe, sendo um orgulho para a sua família, um exemplo
do qual toda mãe adora conversar com as amigas. A paciência da mãe, o fato de ela não o mandar se
calar e sempre ouvi-lo, demonstra, no conto, junto com as inimagináveis suposições feitas pelo filho,
além de uma mãe atenciosa, um filho criativo, que tem uma vasta imaginação e capacidade de

127
Definida no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Constituída nas entrelinhas do texto/filme, sendo o aspecto
subjetivo, que não é propriamente dito, mas surge na imaginação do leitor/expectador” (SANTOS et al, 2016 apud
COSTA, 2017).
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Revisitação de algum trecho ou aspecto do texto/filme, porém
128

com novas perspectivas e possibilidades” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
129
Definida no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Estrutura que coordena e regula as perspectivas textuais,
alternando-as e colocando-as ora em foco (Tema), ora em plano de fundo (Horizonte)” (SANTOS et al, 2016 apud
COSTA, 2017).
414

questionamento acerca das pequenas coisas existentes ao seu redor, como é o caso da descrição do
pepino feita por Paulinho.
De maneira semelhante, associamos justamente à fase da infância essas falas, perguntas
e argumentações que fluem no pensamento da criança e que ela expõe para as pessoas que convivem
com ela, nas quais ela confia. Ao confiar na e amar a sua mãe, mesmo numa atividade cotidiana como
uma refeição, o menino percebe uma forma de demonstrar afeto, que é lhe confiando essa conversa,
apesar de aleatória, significativa para o fortalecimento do vínculo afetivo existente entre ele e a sua
mãe.
Assim, depreendemos, desse texto literário, diversas leituras e significados, que vêm
desde o nosso repertório enquanto filhos até a experienciação com a leitura do conto associada às
lentes da Teoria do Efeito Estético, sob a qual os conceitos guiaram a percepção de uma de nossas
possibilidades de ser (SANTOS, 2020): a criança. Embora não sejamos mais crianças, carregamos
conosco algumas características desse Paulinho, que, na verdade, representa cada leitor que o lê: a
curiosidade, o questionamento, a descoberta, a busca pelo porquê das coisas e a razão pela qual
escrevemos este artigo, o afeto à nossa profissão e às teorias que permitem realizar as variadas facetas
enquanto jovens pesquisadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, buscamos evidenciar, neste trabalho, a relevância e o potencial que os
conceitos iserianos e a própria Teoria do Efeito Estético possuem no meio acadêmico e para o ensino
de leitura literária. Isto é, considerando o ato da leitura como precursor da atribuição de sentido a um
texto e a possibilidade de sua estruturação, a partir do mapeamento da experiência estética, temos
uma estratégia de leitura literária que põe em evidência o sentido que se atribui ao texto, dando
protagonismo ao leitor para uma interpretação consciente e própria, configurando deste modo, uma
forma de emancipação.
Além disso, ressaltamos que tanto os processos estéticos quanto a observação dos
conceitos em um objeto artístico são abstratos e, portanto, acessados apenas pelo indivíduo. A junção
entre essa experiência pessoal com o auxílio da estrutura textual, possibilitada pelo Roteiro Didático
Metaprocedimental (RDM), torna acessível para o leitor a administração de sua interpretação para
atribuir os sentidos ao que se lê, tomando consciência desse processo que é por natureza, virtual.
Em síntese, nota-se que a leitura, a partir das noções da Teoria do Efeito Estético, coloca
em destaque o sentido que o aluno/leitor atribui ao texto, dando espaço para sua interpretação a partir
de seu repertório, o que pode ainda proporcionar aulas com discussões mais democráticas e
participativas dos alunos, autores de seus próprios mapeamentos e experiências com os textos
literários.
415

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Maria Eduarda do Nascimento. Práticas de leitura na alfabetização: uma
experiência didática. 2019. 41 f. TCC (Graduação) - Curso de Letras, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.

BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Elementos


Conceituais e Metodológicos para Definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento
do Ciclo de Alfabetização do Ensino Fundamental. Brasília: MEC, SEB, 2012. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=12827-texto-
referencia-consulta-publica-2013-cne-pdf&category_slug=marco-2013-pdf&Itemid=30192>.
Acesso em: 29 dez. 2020.

COSTA, Rafaela Correia. O ensino da literatura sob uma perspectiva emancipadora: aplicação
do Roteiro Didático Metaprocedimental em Antropologia Literária (RM), no Ensino Médio. 2017. 44
f. TCC (Graduação) - Curso de Letras, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. Disponível em:
<https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/2794/1/RCC21072017.pdf>. Acesso em: 29
dez. 2020.

FARIAS, S. R. de. Tendências da crítica literária contemporânea. João Pessoa: Revista Graphos, v.
11, n. 1, 2009, p. 235-244. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/graphos/issue/view/484>. Acesso em: 29 dez. 2020.

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. de Johannes Kretschmer. São Paulo:
Editora 34, 1996. v. 1.

LISPECTOR, Clarice. Come, meu filho. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de
Janeiro: Rocco, 1998, p. 39-40.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos. Teoria do Efeito Estético e Teoria Histórico-Cultural:
o leitor como interface. Coleção Teses. Recife: Bagaço, 2009.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Empoderando licenciandos em Letras:


antropologia literária e habilidades sociais educativas. Relatório técnico científico apresentado ao
PROLICEN-UFPB, 2014.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Empoderando licenciandos em Letras:


antropologia literária e habilidades sociais educativas. Relatório técnico científico de projeto
continuado apresentado ao PROLICEN-UFPB, 2015.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Roteiro Didático Metaprocedimental em


Antropologia Literária (RM). João Pessoa, 2016.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Da ficcionalização em cinema para o ensino-
aprendizagem da leitura literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental. Relatório técnico científico apresentado ao PROLICEN-UFPB, 2017.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Da ficcionalização em cinema para o ensino-
aprendizagem da leitura literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental. Relatório técnico científico de projeto continuado apresentado ao PROLICEN-
UFPB, 2018.
416

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Da ficcionalização em cinema para o ensino-
aprendizagem da leitura literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental. Relatório técnico científico de projeto continuado apresentado ao PROLICEN-
UFPB, 2019.

SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos. Atos de ficcionalizar e emancipação do leitor: para além
do oxigênio. Revista Graphos, João Pessoa, v. 22, n. 2, p. 96-111, 18 ago. 2020. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/52620/31716>. Acesso em: 29 dez. 2020.
417

A VOZ NARRANTE NO TEXTO LITERÁRIO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE


LEITURA COM PROFESSORES EM FORMAÇÃO

Adriana do Carmo Ferreira dos Santos130


(Graduada em Pedagogia, SME/Natal)
Sayonara Fernandes da Silva131
(Doutora em Educação, SME/Natal)

RESUMO
A mediação de leitura literária considerando a tradição oral possibilita ao ouvinte o desejo de ouvir,
ler e descobrir outras histórias. A voz narrante tem sua força, haja vista a relação idiossincrática entre
texto e leitor perpassar pela vibração na leitura e na performance do mediador de leitura e, por
conseguinte, promover o protagonismo do leitor. Assim sendo, levando em consideração o contexto
hodierno de pandemia, os sujeitos a serem considerados neste trabalho são professores e professoras
cursistas da formação continuada Cenas de Leitura, promovida pela Secretaria Municipal de
Educação do Natal/SME e que, apesar da grave situação de emergência que atingiu o mundo,
frequentaram assiduamente, de forma síncrona e assíncrona, os encontros formativos, oferecidos
mensalmente. Para este evento, investigamos a relevância da prosódia na leitura oral e como o
processo de ouvir histórias propicia a formação do leitor de literatura. Consoante, na interface a ser
proposta, a saber: literatura, prosódia e formação do leitor, deve ser considerado que o processo de
ouvir histórias, desde a mais tenra idade, favorece a formação do leitor (ABRAMOVICH, 1989);
assim como, na atividade de contar histórias, a voz narrante seduz (AMARILHA, 2006), de modo
que a leitura literária a partir da oralidade com fruição estética está inserida no processo de recepção
leitora (JAUSS, 1979; ZILBERMAN, 1989), além da relevância da performance do contador de
histórias e da relação cultura escrita e oralidade (MATOS, 2014; SISTO, 2012). Como metodologia,
adotamos a leitura oral dos livros de literatura trabalhados durante a formação de acordo com a
temática dos encontros. Como resultados, apontamos que a criatividade do mediador de leitura seduz
e convoca o leitor para a leitura de narrativas literárias, desperta a imaginação e o prazer da leitura de
literatura por meio da expressividade, do ritmo da voz, da postura corporal, da entonação, da
articulação das palavras, do canto e colabora para formação do professor leitor.
Palavras-chave: Literatura. Prosódia. Formação do leitor.

INTRODUÇÃO
A voz que conduz a narrativa literária é responsável pela sedução no leitor; é ela (a voz)
que convoca o leitor a adentrar o mundo ficcional. Assim sendo, a mediação de leitura literária
considerando a tradição oral possibilita ao ouvinte o desejo de ouvir, ler e descobrir outras histórias.
A voz narrante tem sua força, haja vista a relação idiossincrática entre texto e leitor perpassar pela
vibração na leitura e na performance do mediador de leitura e, por conseguinte, promove o
protagonismo do leitor.

130
E-mail: ferreira.adricarmo@gmail.com
131
E-mail: sayonara7.fernandes@gmail.com
418

Destarte, levando em consideração o contexto hodierno de pandemia, os sujeitos a serem


considerados neste trabalho são professores e professoras cursistas da formação continuada qual seja,
Cenas de Leitura: do professor leitor ao leitor em formação, promovida pela Secretaria Municipal
de Educação do Natal/SME e que, apesar da grave situação de emergência que atingiu o mundo,
frequentaram assiduamente, de forma síncrona e assíncrona, os encontros formativos, oferecidos
mensalmente, com acesso aos subsídios teóricos e práticos no que tange à formação em leitura
literária.
Para tanto, objetivamos analisar a prosódia na leitura oral e o processo de recepção leitora
com professores e professoras da Rede Municipal de Ensino do Natal, averiguar por meio da
articulação das palavras, da entonação, da expressividade e do ritmo da voz, se o imaginário é
estimulado e promover o processo de ouvir histórias para favorecer, nos sujeitos, o desejo de ouvir,
ler e buscar outras narrativas literárias para fomentar a formação do leitor literário.
Para efetivação deste trabalho, apontamos os resultados da prosódia utilizada na leitura
em voz alta das narrativas apreciadas no decurso da formação continuada de acordo com a temática
dos encontros.
Por conseguinte, constata-se que os elementos prosódicos, a saber: expressividade, ritmo
da voz, entonação, postura corporal, articulação das palavras, etc., explorados na modalidade de
leitura oral, proporcionam nos sujeitos ouvintes as mais diversas reações no que concerne à
experiência estética, tendo em vista que “conduzido pela voz do outro, o ouvinte potencializa as
funções cognitivas de acompanhar o fluxo narrativo, de envolver-se na significação da história”
(AMARILHA, 2006, p. 30-31).
Consoante, a organização das seções foi disposta de modo que favoreça ao leitor
pesquisador novos horizontes e perspectivas frente aos estudos que envolvem a prosódia na mediação
de obras literárias na formação continuada de professores e professoras.
Abordamos, na primeira seção, a fundamentação para pesquisarmos a prosódia enquanto
estratégia de mediação, além do conceito de prosódia no qual nos respaldamos.
Acerca da contribuição da prosódia no processo de recepção leitora, dialogaremos na
segunda seção; como os sujeitos ouvintes acolhem a leitura literária a partir da oralidade com fruição
estética, considerando a participação destes no processo de recepção da obra, fundamentada na
Estética da recepção, defendida por Jauss (1979).
Nas seções subsequentes apresentaremos a abordagem metodológica a partir das obras
literárias exploradas na formação continuada Cenas de Leitura, além da performance do mediador de
leitura haja vista ser de extrema preponderância para a experiência estética de leitura e enquanto
fomento à formação do leitor literário.
419

A PROSÓDIA NA LEITURA EM VOZ ALTA: ENALTECENDO A ORALIDADE NA


MEDIAÇÃO DAS OBRAS LITERÁRIAS

Perceber a relevância de preservar a tradição oral e compreender o processo de sua


transmissão aliado à escrita – palavra falada, palavra escrita - faz-se necessário e urgente no “chão da
escola”, tendo em vista ser este o espaço consentâneo para propagação dessa práxis. Acerca da
dimensão formativa da educação na valorização da tradição oral, Matos (2014) afirma:

Reunir as possibilidades que a ampliação de consciência nos proporcionou na cultura escrita


e os conhecimentos que nos foram legados desde a cultura oral para construir novas bases
para a educação formativa é recusar-se à bárbarie, é escolher tecer com fios novos num antigo
tear uma trama que seleciona o melhor de cada cultura (MATOS, 2014, p. 182).

Assim sendo, desconsiderar o destaque da cultura oral em detrimento da palavra escrita é


afirmar que uma é superior à outra, quando, na verdade, as duas complementam-se, igualam-se,
sobretudo no que se refere ao processo de recepção leitora na formação do leitor literário.
Parafraseando Yunes (2002a) a oralidade precede, na linha do tempo e na memória
humana, a escrita. Sincronicamente, Silva (2012) também defende que “a valorização de uma cultura
oral, que não é menor nem inferior à cultura escrita”, está interligada por uma relação idiossincrática
entre texto e leitor, perpassando pela vibração na leitura, na performance da voz narrante.
Desse modo, motivou-nos a pesquisa concernente à mediação da leitura em voz alta, suas
nuanças e como esse processo favorece, nos sujeitos, o desejo de ouvir, ler e buscar outras narrativas
literárias instigando o protagonismo do leitor.
A prosódia surge como aliada estratégica na construção da sonorização do texto literário,
levando em consideração os elementos constitutivos, qual seja: acento, entoação/tom, duração -
alongamentos, reduções e inserções segmentais, velocidades da fala (PEREIRA, 1992). Outrossim,
consideramos o conceito de prosódia, ainda conforme Pereira, como um termo que vem do grego
προσοδια (formado por προσ pros, junto, e oδη odé, canto). Tal etimologia atribui à prosódia a
significação de melodia que acompanha o discurso e, na língua grega, mais precisamente, o acento
melódico que a caracteriza (Pereira, 1992).
Recorremos, ainda, no que diz respeito ao conceito de prosódia e a interação leitor/texto:

Modulação da altura, intensidade, tom, duração, e ritmo da leitura oral de um texto pautada
em sua coesão e coerência. Considera as relações hierárquicas do texto, a aceitabilidade da
interpretação feita pelo/a leitor/a e suas condições de interação leitor-texto-contexto em sua
dimensão voz/audição (CASTELLO-PEREIRA Apud AMARILHA, 2010, p. 98).
420

Ademais, a voz que conduz o texto está permeada pelos elementos prosódicos que são
responsáveis pelo encantamento no sujeito ouvinte: expressividade, ritmo da voz, postura corporal,
entonação, articulação das palavras e o canto, colaborando para a formação do leitor literário.
Consideramos ser o professor um exímio mediador nesse processo de transmissão da
cultura oral paramentado pela prosódia para evocar, por meio da oralidade, o leitor contumaz e ávido
pela leitura de literatura.

A FORÇA DA VOZ NARRANTE NA COMPREENSÃO DA INTENÇÃO COMUNICATIVA:


A VOZ QUE SEDUZ, O OUVIDO CONTEMPLATIVO

Acerca da preponderância da voz narrante, Amarilha (2006) desvela sua importância


referente a dialogicidade entre a voz e o ouvinte. Há um entrelaçar na oralidade envolvendo o texto,
a linguagem simbólica, a voz que o vivifica permeada pelo silêncio, todavia, pensante, do ouvinte
(AMARILHA, 2006).
Considerando o exposto, propomos o estudo acerca da recepção leitora a partir da
prosódia performática do mediador de obras literárias. A estética recepcional que favorece o leitor,
garantindo-lhe sua importância no processo comunicativo com a leitura, na relação texto-leitor,
considerando sua dinamicidade.
A experiência estética e sua função comunicativa, defendida por Hans Robert Jauss, em
1967, à frente do grupo de Konstanz, na Alemanha, promove o protagonismo do leitor por meio do
prazer estético, tendo em vista que o foco está sobre ele – leitor - ou a recepção da arte e não sobre o
autor e a produção de maneira exclusiva, conforme Zilberman (1989). Essa mediação é possível ao
leitor diante das “três categorias básicas da experiência estética, poiesis, aisthesis, katharsis [...]”
(JAUSS, 1979).
A poiesis designa-se pelo sentido aristotélico da arte da poesia, a faculdade poética, é o
prazer de sentir-se co-autor da obra (Zilberman, 1989); a aisthesis é caracterizada pela compreensão
dos sentidos articulando a recepção prazerosa da arte; a katharsis compreende à purificação da alma
por meio de uma descarga emocional provocada por um drama, de acordo com a visão aristotélica,
“o espectador não apenas sente prazer, mas também é motivado à ação”, segundo Zilberman (1989).
Por conseguinte, experienciamos neste trabalho, por meio da palavra-voz, o acolhimento
dos sujeitos mediante à recepção estética, considerando que “A atitude de prazer, que a arte provoca
e possibilita, é a experiência estética primordial. Ela não pode ser suprimida” [...] (JAUSS apud
ZILBERMAN, p. 49).
Dessa forma, a resposta dos sujeitos, o ouvinte pensante (AMARILHA, 2006), foi
produzida pelo que Jauss denomina de modalidades de identificação, qual seja: a associativa, a
admirativa, a simpatética, a catártica, a irônica (ZILBERMAN, 1989).
421

De acordo com Jauss (JAUSS, 1979, p. 69), “A experiência primária de uma obra de arte
realiza-se na sintonia com seu efeito estético na compreensão fruidora e na fruição compreensiva”.
No que concerne à experiência estética, ao leitor há possibilidades de adentramento à obra
de arte, estar dentro dela e não apenas contemplá-la. É o efeito estético que possibilita a interação
comunicativa entre leitor e obra literária. Desse modo, a partir da escuta das narrativas literárias
contempladas no decurso da formação continuada Cenas de Leitura, sentimentos e emoções foram
despertados e instigados no leitor ouvinte.
A voz que seduz e o ouvido contemplativo estão interligados no processo de função
comunicativa da experiência estética.

CENAS DE LEITURA: DO PROFESSOR LEITOR AO LEITOR EM FORMAÇÃO, A


EMANCIPAÇÃO DO LEITOR, MEDIADOR E FORMADOR DE LEITORES

A formação Cenas de Leitura é uma Política de Formação Continuada desenvolvida pelo


Departamento de Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação, SME/Natal-RN, com
os professores do ensino fundamental, séries iniciais, com o objetivo maior de fomentar e
democratizar a leitura de literatura no âmbito das escolas municipais. Está centrada na formação de
repertório de literatura e de Teoria e Prática da leitura literária para os professores que estão em sala
de aula e, portanto, são os principais mediadores de leitura.
Ademais, no que diz respeito ao processo de formação continuada no município do Natal
e à profissionalização docente:

É uma construção social que passa então a ser exercida em suas múltiplas dimensões:
sociocultural, pessoal e institucional, considerando a problemática circundante, a
sistematização de conhecimentos e o desenvolvimento de habilidades necessárias à busca
consciente e coletiva da transformação desejada (SECRETARIA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO, 2010, p. 10).

Assim sendo, objetivando a formação continuada de qualidade com vistas à melhoria do


ensino e da aprendizagem, a SME/Natal-RN propõe uma política de formação que prioriza a práxis
docente articulada à teoria para favorecimento da aprendizagem dos estudantes municipais.
Considerando que para a maioria dos sujeitos a escola é um espaço privilegiado de contato
com a literatura, ressaltamos que o professor, como leitor mais experiente, é o grande responsável por
iniciar a criança no mundo da leitura, cabendo a ele a função de formar novos leitores.
Acreditamos que para transformar os resultados dos sistemas nacionais de avaliação,
precisamos formar leitores críticos e reflexivos e que o professor tenha um repertório de leitura com
qualidade estética que subsidie sua emancipação como leitor, mediador e formador de leitores.
422

Consoante, Zilberman afirma:

Se é a literatura de ficção, na sua globalidade, que deflagra a experiência mais ampla da


leitura, sua presença no âmbito do ensino provoca transformações radicais que, por isto
mesmo, lhe são imprescindíveis. Além disto, ela é a condição de o ensino tornar-se mais
satisfatório para seu principal interessado – a criança ou o jovem, isto é, o aluno de modo
geral (ZILBERMAN, 1993, p. 22).

Por isso, a formação em serviço é garantida ao professor para que ele em seu horário de
planejamento possa garantir melhoria na sua prática docente como mediador de leitura, beneficiando,
em efeito cascata, os atores envolvidos no processo ensino aprendizagem: professores e estudantes.
Sendo assim, anualmente, são ofertados aos pedagogos da Rede Municipal de Ensino do
Natal, por meio de encontros mensais, subsídios teóricos e práticos que possibilitem a melhoria do
ensino e da aprendizagem de leitura de literatura na sala de aula, promoção de leitura em comunidade,
desenvolvimento dos espaços de leitura nas escolas, alargamento de ações leitoras envolvendo toda
comunidade escolar.
Para tanto, para este trabalho adotamos a leitura oral dos livros de literatura trabalhados
durante a formação de acordo com a temática dos encontros, qual seja:

a) elementos da narrativa de ficção;


b) contos de fadas e a experiência estética do leitor;
c) fábulas, apólogos e parábolas;
d) narrativas por imagem no conto de tradição;
e) a prosa poética e o poema narrativo.

Para contemplar o objetivo proposto no trabalho, a abordagem metodológica será


apresentada nas subseções a seguir.

A importância do envolvimento do mediador de leitura para instigar o leitor menos experiente

Para a formação de repertório literário do professor cursista, na formação continuada


Cenas de Leitura, compartilhamos subsídios teóricos e práticos, conforme supracitado, com vistas a
oportunizar a qualificação profissional em serviço, levando-o a refletir acerca da práxis docente no
tocante ao ensino de leitura, caso contrário, a competência leitora dos estudantes não se ampliará,
haja vista que “a escolaridade é um fator essencial para o desempenho social, político, profissional
na vida contemporânea” (AMARILHA, 2006, p. 71), e os livros, se não trabalhados pelo mediador
423

de leitura na escola, continuarão adormecidos em caixas, armários e cantinhos de leituras sem que as
crianças e jovens vivenciem a experiência transitória da leitura de literatura.
Acerca da competência leitora e do envolvimento do indivíduo com a leitura, reportamo-
nos ao relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, que afirma:

Uma pessoa letrada em Leitura não tem apenas as habilidades e os conhecimentos para ler
bem, mas também para valorizar e usar a Leitura com diversas finalidades. Portanto, um dos
objetivos da educação é cultivar não apenas a proficiência, mas também o envolvimento com
a Leitura. Envolvimento, neste contexto, implica a motivação para ler e abrange um conjunto
de características afetivas e comportamentais que incluem o interesse e o prazer na leitura, a
percepção de controle sobre o que é lido, o envolvimento na dimensão social da leitura e as
diversas e frequentes práticas desta (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E
PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2020, p. 53).

Por conseguinte, compreendemos que o mediador de leitura comprometido e envolvido


com a leitura do texto literário e, consequentemente, com o que é proporcionado por esta, certamente
instigará o leitor menos experiente fazendo-o refletir e fazendo-o utilizar a leitura em todas as esferas
comunicativas, por meio dos discursos e práticas (ROJO, 2014).
Acreditamos que as práticas de leitura e a discussão de estratégias que possibilitem
comportamentos leitores de educandos e educadores são um meio de dirimir os números ainda
preocupantes no que diz respeito ao letramento em Leitura e suas práticas.

A prosódia no processo de recepção leitora: o rei sapo ou henrique de ferro e a experiência estética de
leitura com professores em formação

Para este evento, investigamos a relevância da prosódia na leitura oral e como o processo
de ouvir histórias propicia a formação do leitor de literatura. Consoante, na interface a ser proposta,
a saber: literatura, prosódia e formação do leitor, deve ser considerado que o processo de ouvir
histórias, desde a mais tenra idade, favorece a formação do leitor (ABRAMOVICH, 1989), na
atividade de contar histórias, a voz narrante seduz (AMARILHA, 2006), a leitura literária a partir da
oralidade com fruição estética está inserida no processo de recepção leitora (JAUSS, 1979;
ZILBERMAN, 1989), além da relevância da performance do contador de histórias e da relação
cultura escrita e oralidade (MATOS, 2014; SISTO, 2012).
Portanto, ao explicitarmos o estudo na interface oralidade e escrita com o conto O rei sapo
ou Henrique de ferro, dos autores Jacob e Wilhelm Grimm, cuja narrativa versa a história de uma
princesa que foi obrigada a casar com um sapo, antes precisamos partir da definição de leitura,
enquanto prática social e reflexiva, com as contribuições de Amarilha (1997), Jouve (2002), Smith
(2003) e Yunes (2002b).
424

Para Smith (2003), a leitura é uma interação entre texto e leitor, não há compreensão por
parte do leitor se perguntas não obtiverem respostas. Para que o envolvimento com o texto aconteça,
é uma condição sine qua non, a prática das inferências na ampliação da interação, reflexão,
experiência, criação (SMITH, 2003; JOUVE, 2002).
O texto tem seu sentido atribuído pelo leitor, “a noção de leitura como experiência é
favorecida enormemente pela opção de tratar com a literatura, com a ficção. Nela o sujeito se
experimenta e se transforma enquanto transforma o texto” (YUNES, 2002b, p. 14).
A leitura é ímpar, singular e a responsabilidade de dar vida ao texto é do leitor. Assim
afirma Amarilha:

O texto sem leitor é um texto em estado de repouso, é o ato de ler que revitaliza e acorda o
sistema de vida, valores e formas expressos no texto. O texto sendo lido é o texto em
atividade. Assim, ler o texto é a atividade do texto. Se veementemente acreditássemos e
compreendêssemos esse fato, nós, educadores, iríamos valorizar a leitura, mais do que os
exercícios que com que ela fazemos (AMARILHA, 1997, p. 89).

Nesse sentido, trabalhamos dentre outras narrativas compartilhadas no Cenas de Leitura,


o conto O rei sapo ou Henrique de Ferro, no módulo Contos de fadas e a experiência estética do leitor.
A narrativa apresentada aos cursistas pela leitura em voz alta, por meio da plataforma
Google Meet, em virtude do contexto pandêmico, possibilitou a apreciação de elementos expressivos
e melódicos favorecendo a experiência estética.
É evidente a recepção leitora com fruição a partir da musicalidade presente na narrativa
em questão. O leitor é atraído, encantado pela voz que narra, sendo a oralidade de grande significação
nesse processo (AMARILHA, 2006).
Consequentemente, destacamos a metodologia da mediação por andaimagem
enaltecendo a transmissão oral e, para que a construção de sentido ocorra a partir do ouvido
(CAMPOS, 2016), desvelamos a importância da voz do professor mediador de leitura. Essa voz que
precisa ser otimizada na contação de histórias. Segundo Amarilha:

Na atividade de contar histórias, a voz do contador define acústicos e comunitários. A voz


envolve e delimita uma comunidade de ouvintes pela sua extensão. A experiência de
pertencimento, de membro daquele grupo, define-se, então, por aqueles que podem ouvir o
que se narra. Esse momento, transitório e único, tece laços de solidariedade, cumplicidade;
atrai os indivíduos a se tornarem membros daquela comunidade (ao contrário do que se tem
na multidão envolvida por sons indefinidos) e esse limite acústico os une, historicamente,
pela voz narrante (AMARILHA, 2006, p. 28).

Partindo desse pressuposto, compreende-se que a escola é o ambiente propício para


perpetuação dessa atividade e que esse vínculo é estabelecido “pela contação de histórias, entre o
425

ensino de literatura pelo método da andaimagem e a forte tradição oral das culturas africanas”
(CAMPOS, 2016, p. 25), e de todas as obras literárias.
Entende-se a metodologia da andaimagem, enquanto fio condutor no processo de
mediação de leitura literária; segundo Graves e Graves (1995): “A experiência de leitura com
andaimes desenvolveu-se a partir da percepção de uma necessidade educacional que tem suas raízes
no senso comum, na experiência de sala de aula e em pesquisas” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 01).
Reportamo-nos, ainda, aos estudos de Vygotsky (1999) acerca da presença do sujeito
mais experiente para entendermos a mediação por andaimagem, no destaque à Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP), que é caracterizada pela distância entre o que se sabe
(Conhecimento Real) e o que se almeja aprender (Conhecimento Potencial).
Assim sendo, na oralização atrelada ao canto na narrativa trabalhada com o grupo de
professores da Rede Municipal de Ensino do Natal, percebemos que os sujeitos envolveram-se em
um entrelaçar de fantasias, risos, encantamento, emoções, imaginação, permeadas pela voz cantada
exaltando a palavra escrita.

A PERFORMANCE DA VOZ NARRANTE: UM JOGO DE RESSIGNIFICAÇÃO NA


EXPERIÊNCIA ESTÉTICA LITERÁRIA

A performance do professor/professora utilizando a prosódia na mediação de obras


literárias e a possibilidade da formação do leitor literário por meio desta são de extrema relevância e
urgência, tendo em vista a relação cultura escrita e oralidade dialogarem entre si; são indissociáveis.
Enquanto fomento à formação do leitor literário, a performance de quem medeia a
narrativa é preponderante, haja vista os estudos de Matos (2014) e Silva (2012) afirmarem que “a
performance une e unifica” (MATOS, 2014, p. 83), é um jogo onde “entram em ação o narrador, a
história, a circunstância, o público e o objetivo” (SILVA, 2012, p. 84-85).
Nesse jogo performático, o professor mediador de leitura entra em cena fazendo uso da
“voz viva” (MATOS, 2014) para convocar o ouvinte leitor pois “a função maior da voz é oferecer
estímulos para levar o ouvinte a ver (também com a imaginação) e sentir o que está sendo narrado!”
(SISTO, 2012, p. 111).
Destacamos Paul Zumthor, medievalista, crítico literário, historiador da literatura e
linguista suíço, a partir de um estudo sistemático da literatura medieval criada e preservada na
oralidade, demonstra a força dos trovadores, jograis, pregadores que recitavam, cantavam e
gestualizavam os discursos (ZUMTHOR, 1992); defende que o discurso é sempre mediado pela
presença do outro e é fruto da voz (SILVA, 2012); “Ela (a voz) interpela o sujeito, o constitui e nele
imprime a cifra de uma alteridade” (ZUMTHOR apud SILVA, 2012, p. 84).
Matos acrescenta:
426

Paul Zumthor focou como objeto de estudo no campo da teoria e da crítica literária um
elemento até então estudado apenas pela medicina e pela fonoaudiologia: a voz. Ele tratou a
oralidade como uma abstração e em 1987 escreveu: ‘Somente a voz é concreta, apenas sua
escuta nos faz tocar as coisas’ (MATOS, 2014, p. 53).

Desse modo, por meio da prosódia, dessa voz que leva à fruição literária na leitura oral
podemos fazer nascer no ouvinte o desejo da busca por outras narrativas, desde a mais tenra idade,
propiciando a formação do leitor de literatura, conforme afirmação de Abramovich: “É importante
para a formação de qualquer criança ouvir muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem
para ser leitor, é ter um caminho absolutamente infinito de descobertas e de compreensão do mundo”
(ABRAMOVICH, 1989, p. 16).
Nessa perspectiva, podemos afirmar que há poder na palavra falada, na palavra cantada,
na palavra performática do professor mediador de leitura e está em suas mãos a semente para fazer
fecundar e germinar uma geração de leitores autônomos e conscientes da relevância da leitura
literária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado deste trabalho, apontamos que a criatividade do mediador de leitura seduz
e convoca o leitor para a leitura de narrativas literárias, desperta a imaginação e o prazer da leitura de
literatura por meio da expressividade, do ritmo da voz, da postura corporal, da entonação, da
articulação das palavras, do canto e colabora para formação do professor leitor.
Constatamos que a palavra cantada é um dos elementos que leva à fruição estética literária
no que concerne ao fomento da formação de um país de leitores, pois no processo de recepção da
obra, o conto apresentado O rei sapo ou Henrique de Ferro, foi acolhido veementemente pelos sujeitos
leitores, e a atuação do mediador de leitura conduzindo a palavra escrita por meio da palavra cantada
convoca, estimula, atrai, encanta o ouvinte.
Concluímos que a voz do mediador de leitura literária, por meio da prosódia, de maneira
articulada com a palavra escrita favorece o processo leitor de encantamento e fruição estética pelas
narrativas literárias.
O professor de sala de aula, enquanto mediador de leitura munido de planejamento por
meio dos moldes da andaimagem, tem em suas mãos, e em sua voz, o poder de encantar e contagiar,
de maneira sofisticada e harmônica, o leitor literário.

REFERÊNCIAS
427

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989.

AMARILHA, M. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis: Vozes,
1997.

AMARILHA, M. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura crítica na sala de aula.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

AMARILHA, M. Literatura e oralidade: escrita e escuta. In. DAUSTER, Tânia; FERREIRA, Lucena
(Org.). Por que ler? Perspectivas culturais do ensino de leitura. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010, p.
89-110.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Brasil no Pisa
2018 [recurso eletrônico]. – Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira, 2020. 185 p. : il. Disponível em:
https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/avaliacoes_e_exames_da_educacao_basica/
relatorio_brasil_no_pisa_2018.pdf . Acesso em 10/01/2021.

CAMPOS, W. R. Os griôs aportam na escola: por uma abordagem metodológica da literatura


infantil negra nos anos iniciais do ensino fundamental. 2016. 328 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framework for
helping students get the most out of text. In: Reading. UK. April.1995. (Tradução de Marly Amarilha,
para estudo exclusivo do grupo de pesquisa Ensino e Linguagem - GPEL - Programa de Pós-
graduação em Educação - UFRN).

GRIMM, J. e W. O rei sapo ou Henrique de Ferro. In: Contos de Fadas/ edição, introdução e notas
Maria Tatar; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. – 2. Ed. com. e il. – Rio de Janeiro: Zahar,
2013.

JAUSS, H. R. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. ed. Tradução Luiz Costa
Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

JOUVE, V. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

MATOS, G. A. A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na contemporaneidade.


2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

PEREIRA, M. I. P. Panorama das abordagens lingüísticas das questões prosódicas. In: PEREIRA,
Maria Isabel Pires. et al. Estudos em Prosódia. Lisboa: Edições Colibri, 1992, p. 1-32.

ROJO, R. Esfera ou campos de atividade humana. In: Glossário CEALE: Termos de alfabetização,
leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte: CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e
Escrita) ? FAE (Faculdade de Educação) ? UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), 2014.
Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/esferas-ou-
campos-de-atividade
humana#:~:text=O%20que%20s%C3%A3o%20essas%20%E2%80%9Cesferas,comunica%C3%A7
%C3%A3o%20art%C3%ADstica%2C%20cient%C3%ADfica%2C%20sociopol%C3%ADtica.
Acesso em 20/01/2021.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO/SME. Política de Formação Continuada e Projeto


de Assessoramento Pedagógico para a Rede Municipal de Ensino de Natal. Natal, 2010.
428

SILVA, C. S. Bô sukuta! Kada kin su manera: as junbai tradicionais africanas recriadas na


literatura infantojuvenil brasileira, eué!. 2012. 440 f. Tese (Doutorado) - Pontífica Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto
Alegre.

SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. 3. ed. rev. e ampl.- Belo Horizonte:
Aletria, 2012.

SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler.


Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

YUNES, E. (Org.). Pensar a leitura: complexidade. São Paulo: Loyola, 2002a.

YUNES, E.; OSWALD, M. L. (org.). A experiência da leitura. São Paulo: Edições Loyola, 2002b.
ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Série
Fundamentos, n. 41).
ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução por Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, P. Tradução por Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz e Maria Inês de Almeida. Introdução
à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
429

AS MICRONARRATIVAS LITERÁRIAS: UM CAMINHO PARA A LEITURA


LITERÁRIA NO ENSINO BÁSICO?

Ma. Bruna Francinett Barroso Faustino de Souza132


(SEEC-RN/GETED/UFRN)
Orientadora: Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos133
(UFRN/PPgEL/GETED)

RESUMO

Neste ensaio, o nosso objetivo é propor uma reflexão inicial sobre o texto literário na perspectiva
discursiva, mais especificamente no que se refere à possibilidade de micronarrativas literárias na
perspectiva discursiva como um caminho para a leitura literária no ensino básico. Para isso, partimos
da contextualização do nosso projeto de pesquisa, ainda em fase inicial, pensado para o processo de
seleção para o Doutorado em Linguística Teórica e Descritiva. A nossa proposta no projeto que
abordamos aqui é a leitura literária de micronarrativas em uma perspectiva discursiva; assim, nosso
trabalho se insere na Análise do Discurso Francesa, considerando a incompletude dos sentidos, a
linguagem perpassada pela exterioridade e as especificidades do discurso literário. Para isso,
apoiamos a nossa discussão principalmente em Foucault (2005) quanto à visão de linguagem, de
literatura e de discurso. Partimos das micronarrativas literárias pela sua concisão como marca
característica, a fim de problematizar o processo de significação desses textos que exigem
objetividade estrutural e linguística, a qual pode gerar o entendimento de que essa leitura seria menos
complexa para o leitor, de modo que propomos investigar essa relação entre objetividade linguístico-
estrutural e superficialidade/complexidade de leitura, supondo que essa objetividade na materialidade
linguística é, de alguma forma, compensada pelo leitor que se vê diante de um processo de
significação que vai do dito ao não dito no texto, pela mobilização de conhecimentos discursivos
outros. Trabalhamos com a possibilidade de que esses textos podem configurar como um espaço
privilegiado para a subjetividade do leitor, do qual são exigidas estratégias para além da materialidade
do texto no sentido de interpretar. Para refletir sobre essas questões, propomos uma análise preliminar
de um microconto para averiguar a relação entre concisão linguístico-estrutural e
superficialidade/complexidade de leitura.
Palavras-chave: Ensino. Discurso literário. Leitura literária. Escrita literária. Micronarrativas.

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Neste ensaio, temos como objetivo propor uma reflexão inicial sobre o texto literário na
perspectiva discursiva, em especial no que se refere à possibilidade de micronarrativas literárias na
perspectiva discursiva como um caminho para a leitura literária no ensino básico.
Dizemos reflexão inicial porque essa exposição surge como um recorte de um projeto de
pesquisa pensado para o processo de seleção para o Doutorado em Linguística Teórica e Descritiva
na linha do estudo do texto e do discurso, ou seja, é um projeto de pesquisa em fase embrionária

132
E-mail: bbrunafran@yahoo.com.br.
133
E-mail: sulemifabiano@yahoo.com.br.
430

ainda, a qual pressupõe a abertura para os movimentos de redirecionamentos próprios da construção


científica, o que já justifica o título proposto em forma interrogativa; afinal, as perguntas são o que
justificam o fazer científico.
A nossa proposta de leitura de micronarrativas no ensino básico se insere na Análise do
Discurso Francesa por considerar a incompletude dos sentidos e quando nos propomos a pensar na
Análise do Discurso para o texto literário, consideramos as especificidades desse discurso no que se
refere à linguagem perpassada pela exterioridade. Nesse sentido, neste trabalho, apoiamos essa nossa
discussão, que já justificamos como inicial, nos estudos de Foucault, para o qual a visão de discurso
literário está associada à heterogeneidade dos discursos.
Fernandes (2006, p. 54), apropriando-se das ideias de Foucault quanto ao discurso
literário, entende que a literatura é “linguagem ao infinito, um espaço exterior, efeitos de sentido
inapreensíveis”. E essa visão nos inquieta a pensar no trabalho com as micronarrativas literárias como
objeto de ensino na educação básica. A priori, o que queremos discutir é a aplicabilidade dos
pressupostos da AD no processo de significação de micronarrativas literárias cuja marca característica
é a concisão e a objetividade linguístico-estrutural decorrente dela.
Buscamos, portanto, questionar como se dá esse processo de significação nos casos de
textos concisos como as micronarrativas e quais movimentos o leitor precisa fazer para interpretar
um texto cujos discursos nem sempre se manifestam na materialidade linguística. Nessa perspectiva,
associamos essa questão ao contexto de ensino de leitura literária na escola básica, a fim de observar
se o processo de significação de uma micronarrativa é um caminho propositivo para o ensino.
Este ensaio de organiza em uma primeira parte, na qual trazemos a contextualização do
nosso projeto de pesquisa, apresentando o nosso objeto, as nossas questões e os nossos objetivos, bem
como aspectos teórico-metodológicos gerais que possam explicitar a que nos propomos; e uma
segunda parte, na qual apontamos um exemplo de microconto como possibilidade de leitura literária;
e, por fim, algumas considerações finais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS MICRONARRATIVAS: UM CAMINHO PARA O ENSINO


DE LEITURA LITERÁRIA?

Na nossa pesquisa de mestrado, refletimos sobre a influência que a leitura de narrativas


literárias mais densas poderia ter no desenvolvimento das práticas de leitura e escrita dos estudantes
do Ensino Fundamental II de uma escola pública. Quando nos referimos a narrativas mais densas,
falamos de textos com uma estrutura mais complexa, que demanda uma leitura mais criteriosa e que
exige uma série de movimentos do leitor no processo de construção de sentidos, seja quanto ao
vocabulário ou quanto aos recursos linguísticos, por exemplo. Porém, a nossa pesquisa não dava conta
431

de outras questões também muito relevantes, como o processo de interpretação do discurso literário
em uma micronarrativa que, diferentemente das narrativas tradicionais, precisa organizar a
narratividade com objetividade linguística e estrutural.
Se, por um lado, cabe à escola garantir aos estudantes o acesso às práticas de leitura e
escrita com as quais não têm tanto contato em instâncias sociais fora da escola e, pois, dedicar-se aos
textos literários tradicionais; por outro lado, também precisa garantir um acesso mais sistematizado a
práticas com as quais os estudantes já se relacionam em outras esferas de interação. No caso das
micronarrativas literárias, que são textos em circulação em espaços digitais, a escola pode se
beneficiar dessa prática de leitura e escrita?
Diante dessas primeiras inquietações, para o nosso projeto de pesquisa, pensamos nas
questões: 1) Em uma micronarrativa, a leitura é, necessariamente, menos complexa? 2) Quais são os
movimentos empregados por um leitor no processo de produção de sentidos diante de uma narrativa
literária de estrutura mais objetiva? 3) Uma narrativa literária curta representa, necessariamente, um
discurso mais objetivo? 4) Quais contribuições a Análise do Discurso pode proporcionar à leitura de
narrativas literárias curtas?
Inicialmente, formulamos as hipóteses de que a estrutura mais objetiva de uma narrativa
literária não determina que a leitura seja, necessariamente, menos complexa; e de que a perspectiva
da Análise do Discurso pode favorecer a interpretação de narrativas literárias cuja objetividade
linguístico-estrutural comunica muito através de discursos que não foram linguisticamente
manifestos.
Pensando nisso, estabelecemos como objetivo geral no projeto de pesquisa: analisar como
os pressupostos da AD podem explicar o processo de significação de um discurso literário quando a
narrativa apresenta objetividade linguístico-estrutural em decorrência da concisão própria do texto; e
como objetivos específicos, elencamos: i) investigar a superficialidade/complexidade discursiva de
narrativas literárias de estrutura mais objetiva; ii) identificar quais são os movimentos empregados
por um leitor no processo de significação de uma micronarrativa literária; iii) averiguar a relação
entre a objetividade linguístico-estrutural da micronarrativa literária e o modo de envolvimento do
sujeito na sua interpretação; iv) descrever a aplicabilidade da AD como metodologia analítica em
uma micronarrativa literária.
Após essa contextualização das questões e objetivos do projeto de pesquisa, fundamentais
para situar o leitor do nosso trabalho, focamos na nossa proposta para esta exposição, a saber: refletir
sobre a possibilidade da leitura de micronarrativas literárias na perspectiva discursiva como um
caminho para a leitura literária no ensino básico.
Para isso, trazemos alguns aspectos teóricos que conduzem a nossa discussão. Um
primeiro aspecto diz respeito ao conceito de literatura para Foucault (2005, p. 143-144) como um
432

terceiro ponto entre a linguagem e a obra, o espaço da transgressão. Para ele, “nada em uma obra de
linguagem é semelhante àquilo que se diz cotidianamente”; ele afirma ainda que “a linguagem
verdadeira, quando é introduzida em uma linguagem literária, está aí para romper o espaço da
linguagem, para lhe dar como que uma dimensão sagital que não lhe pertence naturalmente”. Isso nos
parece desfavorecer o ensino de literatura comumente adotado nas escolas brasileiras, que ora situa o
texto literário como pretexto para o ensino da gramática, ora foca o trabalho no ensino de história das
escolas literárias, sem, muitas vezes, dar o devido protagonismo ao texto literário.
Foucault fala que toda obra literária além de dizer o que diz, diz também o que é literatura.
Para ele “a literatura é uma linguagem ao infinito, que permite falar de si mesma ao infinito”
(FOUCAULT, 2005, p. 155). Ou seja, o autor estabelece relações entre a linguagem e o espaço
quando fala de literatura; ademais, dá centralidade ao próprio texto literário. Isso nos parece
particularmente interessante por compreendermos a linguagem constituída sócio e historicamente e
por compreendermos que não há ensino de literatura sem a centralidade na leitura do texto literário.
Em Linguagem e literatura, Foucault traz uma proposta de análise do livro Mallarmé,
afastando-se da questão da metalinguagem que, para ele, é um caminho usado pela crítica literária.
Nesse sentido, temos uma noção do tratamento que Foucault propõe ao texto literário sob uma
perspectiva discursiva, embora ele não empregue esses termos claramente em sua escrita. Isso nos
interessa de modo particular porque a nossa proposta é exatamente investigar se a perspectiva
discursiva dá conta de uma análise do texto literário.
Ao discutir as ideias de Foucault quanto à literatura, Machado (2005a, p. 113) afirma que,
para Foucault:

Pensar a literatura como experiência e a experiência literária como experiência anônima e


autônoma da linguagem significa querer ultrapassar a oposição entre interioridade e
exterioridade, entre sujeito e objeto, pela experiência da própria obra, ou pela própria obra
como experiência.

Continuando, o autor define o que, para Foucault, é a linguagem literária: “é linguagem


pura, que só fala de si mesma, que não expressa nenhuma realidade preexistente” (MACHADO,
2005a, p. 113). A definição de literatura assume uma questão central para Foucault. Já em Machado
(2005b, p. 129), o autor aponta para um certo deslocamento nos estudos de Foucault sobre a literatura.
Para isso, ele aborda uma entrevista de Foucault na qual dizia:

Mesmo que o ato de escrever tenha funcionado até então como uma contestação da
sociedade..., hoje a força transgressiva da literatura se perdeu, a literatura tornou-se a
instituição em que a transgressão, impossível fora dela, torna-se possível. Visto que a
literatura foi recuperada pelo sistema, com uma função social normativa, a subversão pela
literatura tornou-se um puro fantasma, ou mesmo um álibi. (MACHADO, 2005b, p. 129),
433

Embora Foucault deixe de focar na literatura nos seus estudos, entendemos que não se
trata da negação da sua importância; mas, na verdade, configura-se, em primeiro lugar, como uma
maneira de se opor à forma normativa com que a literatura passara a ser tratada e, em segundo lugar,
a partir das suas experiências políticas, mostra-se como uma necessidade de tratar também de outros
pontos de interesse que se ampliam.
No nosso projeto de pesquisa, os dados serão gerados tomando como ponto de partida
micronarrativas disponíveis em livros impressos e em suportes digitais como textos-fonte, a partir
dos quais os estudantes registrarão as suas leituras. Esses registros de leitura serão analisados com
base no paradigma indiciário, de Ginzburg, através do qual as pistas na materialidade linguística
podem revelar os caminhos interpretativos empregados pelo leitor no processo de significação no
sentido de compensar as lacunas próprias das micronarrativas.
Apesar de em uma pesquisa em AD as categorias analíticas serem definidas com base nos
dados ofertados durante o processo de análise, adiantamos como prováveis categorias analíticas: a
tensão entre os processos parafrástico e polissêmico, o jogo de remissões a outros discursos pela
memória discursiva, os diferentes efeitos de sentido produzidos pelas subjetividades de um sujeito
interpelado por questões ideológicas.
Neste ensaio, trazemos uma micronarrativa e exemplificamos as possibilidades de
explorarmos o texto no ensino de leitura literária com estudantes da educação básica.
Texto 1134:

NO EMBALO DA REDE
Vou,
mas levo as crianças

Para ser uma micronarrativa, é fundamental que haja narratividade. Um caminho para o
ensino de leitura a partir desse microconto poderia partir da identificação da narratividade em torno
da ação de “ir”, da reconstrução do espaço de diálogo pela remissão à memória discursiva dos
estudantes de um contexto de separação. Outra possibilidade seria a construção do espaço narrativo
a partir do título “No embalo da rede”, que conduz o leitor para a ambientação da história em um

134
No embalo da rede é um texto de Carlos Herculano Lopes, publicado no livro “Os Cem Menores Contos Brasileiros
do Século” (FREIRE, 2004, p. 53). Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-literatura/5687893.
Acesso em 25/08/2020.
434

contexto doméstico. Todas essas primeiras impressões são possíveis pelas pistas linguísticas que são
dadas com sutileza e concisão próprias do gênero.
Podemos depreender que se trata de uma briga de casal que culmina em separação. Na
discussão, a condição para ir embora é levar os filhos. Surgem, então, as possibilidades de
interpretação subjetiva, para os efeitos de sentido. Para alguns, a mulher está saindo com os filhos,
porque culturalmente as mulheres ficam com a guarda dos filhos, por exemplo; mas para outros
leitores, as construções sociais nas quais estão inseridos conduzirá a interpretação de que a fala é do
esposo que, comumente, é quem deixa a casa; outro grupo de leitores, por exemplo, poderá resolver
essa questão com a interpretação de que se trataria de uma relação homoafetiva na qual esses aspectos
culturais não estão tão marcados.
Enfim, serão mobilizados diferentes interdiscursos que revelarão uma rede de memórias
discursivas dos estudantes no processo de construção de sentidos. Essa atividade, aparentemente
simples, poderia gerar inúmeras discussões decorrentes desses interdiscursos. A riqueza do processo
está na heterogeneidade de leituras possíveis e na discussão sobre leituras não possíveis.

CONSIDERAÇÕES, POR ORA, FINAIS

O presente ensaio se propôs a uma reflexão inicial de um recorte do nosso projeto de


pesquisa pensado para o processo de seleção do Doutorado. Por isso, não temos qualquer pretensão
de apresentar conclusões ou esgotar o assunto.
Por ora, as considerações que nos aventuramos formular aqui são: i) a leitura de
micronarrativas pode apontar para um caminho produtivo no ensino de leitura literária; ii) além de
Foucault, as categorias analíticas de Pêcheux e Maingueneau podem favorecer futuras discussões; iii)
a leitura de micronarrativas pressupõe o protagonismo do leitor e isso pode ser particularmente
relevante em se tratando de leitores não legitimados, pois a objetividade da materialidade linguística
é, de alguma forma, compensada pelo leitor que se vê diante de um processo de significação que vai
do dito ao não dito no texto, pela mobilização de conhecimentos discursivos outros; iv) a escola básica
deve abordar a literatura clássica, mas também pode desmistificar os textos emergentes também como
uma opção de leitura em tempos de redes sociais, a fim de legitimar as práticas de leitura e escrita
dos estudantes de maneira mais sistematizada e produtiva.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, C. A. Literatura em Foucault: lugares da Análise do discurso. Revista Signótica


Especial, v. 2, p. 49-62. Universidade federal de Goiás, 2006. Disponível em:
https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/3635/3391. Acesso em: 11/09/2020.
435

FOUCAULT, M. Linguagem e literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. 3.


ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 137-174.

MACHADO, R. O ser da linguagem. In: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. 3. ed.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005a, p. 85-116.

MACHADO, R. O ocaso da literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. 3.


ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005b, p. 117-136.
436

“O SOL NA CABEÇA”, DE GEOVANI MARTINS: ENSINANDO A TRANSGREDIR A


PARTIR DE UMA PROPOSTA DESCENTRALIZADORA DE LEITURA E ESCRITA
LITERÁRIA

Ana Flávia Santiago de Andrade135


(graduanda em Letras Língua Portuguesa, UFRN)
Marcela Costa de Souza136
(graduada em Letras Língua Portuguesa, UFRN)

RESUMO

O campo literário funciona como um “campo de poder” (BOURDIEU, 1996) em que o gosto e o
modo de ler de uma elite intelectual é tomado como padrão de apreciação estética e de leitura
(ABREU, 2006). Essa elite, ao impor uma definição dominante do que seja literatura, exclui todos os
outros que não se enquadrem nesse padrão, fazendo, dessa forma, esses sujeitos marginalizados
acreditarem não serem capazes de produzir literatura (DASCASTAGNÉ, 2007). O ensino de
literatura colabora com essa exclusão ao pregar, sob uma crença na história da literatura como fator
de humanização, a importância da grande literatura como se dela “irradiasse magicamente sua
humanidade” (REZENDE, 2017, p. 117). Nesse sentido, o livro O Sol na Cabeça, de Geovani
Martins, promove o descentralizamento da palavra literária ao retratar a favela a partir do lugar de
fala (RIBEIRO, 2017) de quem mora nesse espaço; e, assim, proporciona àqueles que o leem a
possibilidade de tornarem-se sensíveis à diversidade e à existência de valores distantes uns dos outros
(PERRONE-MOISÉS, 2016). Dessa forma, o livro, em seus contos, não só narra experiências
diversas do cotidiano dos sujeitos que vivem nesse espaço social, como também traz reflexões sobre
essas vivências e as formas de poder nelas envolvidas (BOTTON, 2018; PIMENTEL, 2020), de modo
a possibilitar a promoção da humanização do sujeito leitor. Isso tudo é feito utilizando, em vez da
língua padrão do cânone literário, uma linguagem próxima à oralidade (MARTÍNEZ, 2018),
promovendo, assim, a ruptura do português padrão e possibilitando a rebelião e a resistência (hooks,
2017). Diante disso, neste trabalho, objetiva-se propor uma sequência didática para uma turma da 1º
série do Ensino Médio, em que seja abordado o livro O Sol na Cabeça. A partir da abordagem desse
livro, busca-se apresentar aos alunos uma outra forma de literatura que não seja a canônica; tratar
sobre temas relevantes socialmente levantados ao longo do livro (como as representações da favela,
o racismo, a desigualdade social, a precarização do trabalho, etc) e que devem perpassar o processo
de humanização do sujeito; e, ainda, mostrar que a literatura não é algo produzido apenas por “seres
iluminados” (REZENDE, 2013), mas que os próprios alunos, utilizando sua linguagem própria,
podem também exercitar o fazer literário.
Palavras-chave: O Sol na Cabeça. Ensino de literatura. Campo literário. Leitura literária. Escrita
literária.

135
E-mail: anafsantiago1@gmail.com.
136
E-mail: marceladesouza27@gmail.com.
437

GEOVANI MARTINS: trajetórias e transgressões

O Sol na Cabeça, publicado em 2018, é uma coletânea de treze contos ambientados no


espaço da favela e protagonizados pelos moradores da periferia. A obra, escrita por Geovani Martins,
é considerada o livro de estréia do autor, que nasceu em Bangu, no Rio de Janeiro, e já morou nas
favelas da Rocinha, Barreira do Vasco e Vidigal (MARTINS, 2018; VEJA, 2018). Geovani estudou
até o 9º ano do Ensino Fundamental, e, após ter desistido dos estudos, trabalhou em vários empregos,
como “homem-placa”, atendente de lanchonete e garçom em bufê infantil, até o momento em que sua
escrita literária começou a ser reconhecida por meio das oficinas da Flup, a Festa Literária das
Periferias, em 2013 (MARTINS, 2018).
O fato de Geovani Martins ter tido a sua trajetória acadêmica interrompida mas, mesmo
assim, ter conseguido fazer com que sua escrita literária fosse um grande sucesso, mostra-nos que o
fazer literário não deve ser excludente e ficar restrito apenas aos indivíduos dos grupos dominantes,
pois não só esses grupos, mas também os grupos marginalizados podem — e devem — exercitar a
leitura e o fazer literário.
Outro ponto de grande relevância em seus contos é que, por morar na periferia, Geovani
Martins tem total imersão no que se refere às vivências nesse espaço, o que permite, portanto, que
ele, em um ato de transgressão, escreva sobre as favelas a partir da perspectiva de quem está dentro
delas, ou seja, de um sujeito experienciador dos fatos narrados. Nesse sentido, é através da perspectiva
desses sujeitos que vivem nas favelas que a obra nos permite conhecer o cotidiano dos habitantes
desse espaço social, bem como refletir acerca das formas de poder e de dominação presentes nesse
ambiente e nas vivências de seus moradores.
Diante disso, este trabalho tem como objetivo propor uma sequência didática para uma
turma da 1ª série do Ensino Médio, a partir da abordagem do livro O Sol na Cabeça, a fim de:
apresentar aos alunos uma forma de literatura que se encontra fora do cânone; tratar sobre temas
socialmente relevantes levantados pelo livro; e mostrar que, assim como fez Geovani, todos podem
exercer o fazer literário.
Para que isso seja possível, discutiremos, inicialmente, acerca do campo literário como
um espaço de exclusão, a partir, principalmente, das discussões propostas por Pierre Bourdieu (1996a;
1996b) sobre campo social e campo de poder; e do que discutem Márcia Abreu (2006), Dalcastagné
(2007) e Rosa, Guedes e Leite (2019) sobre o cânone literário brasileiro e a literatura marginal. Sobre
esta última, a partir da noção de “lugar de fala” de Ribeiro (2017), trataremos da linguagem como
uma forma de os grupos marginalizados fazerem-se escutados.
Em seguida, a partir do trabalho de Rezende (2013), refletiremos a respeito do modo
como a literatura é ensinada nas escolas e da necessidade de transformarmos o ensino de literatura
438

em ensino de leitura literária. Somado a isso, com base na função da literatura, apontada por Perrone-
Moisés (2016), de dar conta de várias perspectivas sociais, destacamos a relevância da inserção junto
ao cânone, também, de obras da literatura marginal no ensino de leitura literária.
Após esse percurso teórico, realizaremos uma breve análise de alguns temas relevantes
tratados no livro O Sol na Cabeça, com o auxílio de trabalhos como os de Botton (2018) e Pimentel
(2020). Além da análise temática, com a contribuição de Martínez (2018), também trataremos sobre
a linguagem próxima da oralidade empregada na escrita da obra, o que será problematizado com base
nas reflexões sobre língua e dominação de hooks (2017). Tendo sido feita a análise, a partir dela
evidenciaremos a importância da abordagem desse livro em sala de aula, considerando, como defende
Candido (2011), a literatura como um direito, por proporcionar a humanização do sujeito.
Por fim, como resultado de toda a discussão fomentada no presente trabalho, será
apresentada uma proposta de ensino, na forma de uma sequência didática, para uma turma da 1ª série
do Ensino Médio, cujo propósito é o ensino de leitura literária utilizando o livro O Sol na Cabeça.

CAMPO LITERÁRIO: UM ESPAÇO DE EXCLUSÃO

Literatura é um termo de difícil definição, de tal forma que não há muito consenso sobre
o que, afinal, ele significa. Posto isso, se por um lado não há consenso sobre o que seja a literatura,
há no que diz respeito àqueles que, historicamente, têm acesso à produção dela e, no caso de um país
marcado pela desigualdade social e educacional como o nosso, também à sua leitura.
Para melhor compreendermos a questão do acesso à literatura, é pertinente convocar a
discussão de Bourdieu (1996a) sobre o campo literário. Segundo o autor, esse campo é um campo
social que, como tal, é definido como um campo de poder, isto é, um campo marcado por relações
de força entre agentes ou instituições que dispõem de capital econômico e cultural.
O capital econômico e o capital cultural são os dois princípios de diferenciação
responsáveis por definir as posições que os agentes ou grupos ocupam no espaço social, sendo,
portanto, princípios que afastam ou aproximam os sujeitos, como explica Bourdieu (1996b). Dessa
forma, possuir esses dois tipos de capital, na sociedade, é um privilégio que um grupo seleto tem, o
que faz desses grupos dominantes.
Tendo isso em vista, no campo literário, os grupos dominantes é que são responsáveis por
criar, segundo Bourdieu (1996a), um monopólio da legitimidade literária, a partir do qual definem os
limites desse campo, isto é, quem pode acessá-lo ou não. Isso é realizado por meio de critérios que
elegem artistas e obras verdadeiras, seguindo determinados critérios por eles criados e perpetuados
ao longo dos tempos.
439

Posto isso, manter a hegemonia do classe dominante no campo literário é também uma
forma de permitir o acesso a esse campo apenas de sujeitos e obras que se assemelham aos seus
habitus (BOURDIEU, 1996b), a saber, os modos de ser, de se comportar e de enxergar o mundo de
cada sujeito de acordo com a posição que ele ocupa no espaço social.
As classes dominantes do campo literário, assim como de outros campos sociais, no caso
do Brasil, são compostas, em sua maioria, por homens, brancos, moradores dos grandes centros
urbanos e de classe média (DALCASTAGNÈ, 2007). Dessa forma, considerando que uma das faces
da literatura é manifestar emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos grupos (CANDIDO,
2011), os autores legitimados pelo campo literário são os que se assemelham ou fazem parte dos
grupos dominantes, fazendo com que seus habitus sejam perpassados, difundidos e mantidos na
sociedade, assim como a perpetuação da sua hegemonia de poder e a ordem social imposta por ela.
Nesse sentido, na literatura, os grupos não-dominantes, como mulheres, pobres negros e
trabalhadores, são representados, em sua maioria, por autores de grupos dominantes; segundo,
portanto, a perspectiva deles. Assim, entendidos como o outro, quando essas minorias aparecem nas
narrativas, costumam ser retratadas em posição secundária, sem voz, e, muitas vezes, marcadas por
estereótipos (DALCASTAGNÈ, 2007).
Diante disso, Abreu (2006), em uma discussão sobre o cânone brasileiro, aponta que o
que faz uma obra ser literária não são suas características internas, mas sim o espaço que lhe é
atribuído pelas “instâncias de legitimação”, as quais, segundo ela, são a universidade, as revistas
especializadas, os livros didáticos e os suplementos culturais dos grandes jornais. Essas instâncias,
portanto, são instituições que poderíamos associar aos agentes e grupos com capital cultural e
econômico descritos por Bourdieu (1996a), já que controlam as fronteiras do campo literário ao
definir o que é ou não literatura.
Dizer que um texto é literário subentende sempre que outro não é. Esse outro excluído
são os grupos marginzalizados, isto é, todos os sujeitos que fazem parte de grupos que recebem uma
valoração negativa da cultura dominante, devido ao sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas
relações de produção, condição física ou a outro critério (DALCASTAGNÈ, 2007).
Todavia, mesmo excluídos dos campos sociais, dentre eles, o campo literário; os grupos
que estão à margem insistem em seu direito de acessar esse espaço, fazendo com que a literatura
escrita por eles coloque-se como resistência às posições fixas da literatura, isto é, ao “cânone
literário”, evidenciando a necessidade de desconstrução de conceitos até então legitimados por ele
(ROSA, GUEDES, LEITE, 2019).
Sobre esse ponto, é interessante levantar o conceito de “lugar de fala”, que Djamila
Ribeiro (2017) define como o lugar que possibilita refutar, através da fala, a historiografia tradicional
e a hierarquização de saberes consequentes da hierarquia social. Desse modo, é que Ribeiro (2017)
440

conclui que para os grupos historicamente silenciados, a fala, então, não se restringe apenas ao ato de
emitir palavras, mas de poder existir.
Dito isso, através de um instrumento institucionalizado como o é a literatura, os grupos
excluídos da esfera socioeconômica e cultural produzem um novo discurso, em que retratam suas
experiências cotidianas, as quais são preenchidas, de forma significativa, pela violência (FERREIRA,
2004). Não só isso, a literatura produzida por sujeitos historicamente à margem da sociedade também
conta, como apontam Rosa, Guedes, Leite (2019, p. 03), com uma “linguagem própria, ligada às
experiências da oralidade e da performance, como no caso do rap”.
Tendo isso em vista, segundo Dalcastagnè (2007), os textos escritos por esses grupos
precisam lidar com duas tensões ao mesmo tempo: a primeira é a de ter que se contrapor às
representações estereotipadas sobre eles já fixadas na tradição literária; e a segunda é a de precisar
reafirmar a legitimidade de sua própria construção como literária.
Tarefas que obras como O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, e Quarto de Despejo, de
Carolina Maria de Jesus, cumprem ao não só retratar a favela com a linguagem da favela, mas junto
a isso, utilizando-se, também, da linguagem da cultura letrada e dos recursos da grande literatura,
para que a obra seja entendida como literária. É isso que faz, por exemplo, Carolina Maria de Jesus
em seu livro, ao, mesmo com um domínio precário da escrita, “utilizar a linguagem o mais próxima
possível — o seu possível — da linguagem daqueles que queria que a escutassem” (SOUZA,
WELTER, 2020, p. 85).
Assim, ao escrever textos literários narrando sua realidade a partir de sua perspectiva e
de sua própria linguagem, os grupos marginalizados, além de atuarem na desconstrução de
estereótipos e de denunciarem a realidade violenta e marcada por necropolíticas (MBEMBE, 2016
apud LIBERALI, 2020) em que vivem, ainda proporcionam uma pluralidade de perspectivas que
enriquece a literatura.
A partir disso, retornando ao começo desta seção sobre a definição de literatura,
concordamos com Candido (2011, p. 178), quando diz que

A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade


de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura
sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos
movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Dessa forma, seja a literatura produzida pelos grupos dominantes, seja a literatura
produzida pelos grupos marginalizados, não há como negar que todas essas manifestações são
literárias e devem ser legitimadas como tal, não importando a origem social da voz de quem escreve.
441

OS CAMPOS DE PODER PERPASSANDO O ENSINO DE LITERATURA

Os campos de poder e, consequentemente, o caráter de exclusão da literatura, por serem


perpetuados ao longo do tempo, perpassam o seu ensino. Isso faz com que, na escola, sejam
abordadas, majoritariamente, as obras consideradas como pertencentes ao cânone literário, e, assim,
obras dominadas, principalmente, por homens brancos, héteros e de classe média, que tiveram acesso
à educação.
Diante disso, consideramos pertinente ressaltar a discussão de Perrone-Moisés (2016) de
que a literatura deve ser compreendida como um meio de preservar e transmitir os modos de vida e
as experiências dos outros. Nesse sentido, a escola, ao mostrar apenas um tipo de literatura — a
canônica —, faz com que os alunos tenham acesso somente à visão de mundo e às experiências da
classe dominante, de forma que passam a compreendê-la como a única e a correta, e, portanto,
desconsiderando as outras perspectivas existentes. A partir disso, é possível averiguar que a
instituição escolar, entendida como uma das instâncias de legitimação do que é ou não considerado
literatura, auxilia na manutenção da hegemonia dos grupos dominantes e, por isso, compreendemos
que a escola não é apenas perpassada pelos campos de poder, como também serve para reforçá-los.
Por esse motivo, o ensino de literatura tem sido objeto de debate entre especialistas e
educadores, de modo a considerarmos importante abordar as discussões propostas por Rezende
(2013) acerca desse assunto. Segundo a autora, na escola ensina-se, principalmente, a história da
literatura, centrando-se no nacionalismo literário e privilegiando as características ideológicas e
formais das obras do cânone português e brasileiro, a partir de uma linha do tempo, de modo a refletir
os modos de ser e de viver da classe dominante de cada época.
Vale salientar que o reforço dado pela escola à hegemonia dos grupos dominantes não se
caracteriza apenas pelo fato de ela abordar somente as obras canônicas, mas também por não permitir
a reflexão e o pensamento crítico dos alunos acerca das obras e das suas instâncias de produção. Isso
porque, como afirma Rezende (2013), na maioria das vezes, os discentes têm contato apenas com
pequenos trechos de obras ou resumos prontos, já que a escola não utiliza os textos literários como
objeto de ensino e, com isso, não promove a leitura literária das obras pelos alunos.
Tendo isso em vista, concordamos com Rezende (2013), ao defender que, assim como os
demais elementos de cultura, a escola também é histórica e precisa mudar de atuação quanto ao ensino
de literatura. Uma dessas mudanças apontadas pela autora é o deslocamento do ensino de literatura
para o de leitura literária. Esse deslocamento permite que a escola, em vez de transmitir apenas a
história da literatura, utilizando-se de fragmentos e de resumos de obras canônicas, concentre-se nos
alunos, de modo a promover a leitura do texto literário realizada por eles e a auxiliá-los no
desenvolvimento do pensamento crítico e da subjetividade, a partir dessa leitura.
442

Além dessa, outra mudança que indicamos ser necessária ao meio escolar é a inserção
também de obras fora do cânone literário, isto é, obras consideradas “marginais”, que são
constantemente excluídas das instâncias de legitimação, como a escola. Isso porque, as obras
canônicas, em sua maioria, retratam as experiências da classe dominante e, quando trazem as
vivências dos grupos excluídos, elas são abordadas pela perspectiva “de fora”, isto é, de alguém que
se encontra afastado desse meio. Assim, o contato dos discentes com outros tipos de literatura para
além do cânone permite que eles tenham acesso a experiências, vivências e pontos de vista diferentes
daqueles da classe dominante, o que os permite compreender que os modos de vida dos grupos
hegemônicos não são os únicos, e nem podem ser tidos como parâmetro universal.
Diante disso, defendemos a inserção da leitura literária de obras consideradas “marginais”
na escola, pois isso possibilita aos alunos o conhecimento e a reflexão acerca da perspectiva dos
sujeitos pertencentes aos grupos excluídos, de maneira a, como afirma Perrone-Moisés (2016),
tornarem-se sensíveis à diversidade e à existência de valores distantes uns dos outros.
Além disso, a partir da inserção dessas obras, os estudantes terão contato com uma
literatura que é, em sua maioria, mais acessível à leitura e à escrita dos alunos, por aproximar-se, em
geral, da linguagem deles. Com isso, os alunos poderão compreender que não apenas os indivíduos
considerados “eruditos” podem realizar o fazer literário, mas qualquer pessoa, utilizando-se de suas
próprias vivências e linguagens, pode ler e escrever literatura.
Ao garantir esse acesso à leitura e à produção literária, estará sendo cumprido o que
Candido (2011) defende quando afirma ser a literatura um direito, assim como outros direitos
humanos, à medida que proporciona a humanização do sujeito. Essa humanização, explica Candido
(2011), é o processo que confirma no homem os traços essenciais de sua humanidade — valendo
salientar que nem todos são essencialmente bons —, levando-nos à reflexão, à aquisição do saber, e,
tornando-nos, dentre outras coisas, mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante.

O SOL NA CABEÇA COMO OBRA TRANSGRESSORA DOS LIMITES DO CAMPO


LITERÁRIO

A obra O Sol na Cabeça é ambientada nas favelas e apresenta os sujeitos moradores


desses espaços como personagens principais dos seus contos, de modo que a representação da favela
é construída, na obra, através da perspectiva desses habitantes da periferia. Isso, portanto, faz com
que esse espaço seja visto de dentro, ou seja, pela ótica dos indivíduos que vivenciam as experiências
desse lugar (BOTTON, 2018; PIMENTEL, 2020), o que possibilita uma maior reflexão por parte do
leitor a respeito de como são, de fato, o cotidiano e os modos de vida nesse local.
443

Diante disso, O Sol na Cabeça segue no sentido contrário ao que comumente acontece
em outros livros ou nas mídias. Isso porque, geralmente, as obras literárias e os meios de comunicação
retratam a periferia sob a perspectiva de quem está fora dela, isto é, de indivíduos que não passam
pelas mesmas experiências e problemas daqueles que nela habitam. Por esse motivo, essas instâncias
normalmente retratam a favela como margem e reproduzem estereótipos a respeito desse espaço.
Dito isso, devido ao fato de a favela ser vista de dentro no livro de Geovani Martins, há
um movimento de centralização da margem (BOTTON, 2018), isto é, a favela, comumente retratada
como margem da cidade, passa, nessa obra, a ser retratada como o centro, pois é o local onde as
narrativas normalmente acontecem e onde os protagonistas vivem. Como afirma Botton (2018), em
alguns contos o narrador se movimenta entre diferentes favelas ou percorre alguns locais do Rio de
Janeiro, porém a periferia continua sendo o centro, pois é o local onde o narrador mora e se identifica,
sentindo-se pertencido e acolhido. Essa representação da favela como centro pode ser observada no
trecho a seguir, retirado do conto Sextou:

Acendi um cigarro e fiquei olhando em volta. Tava escaldado com a situação. Várias vezes
cheguei ali no Jacarezinho e a bala tava comendo sério, mas aí era só atravessar ali pra
Manguinhos, ou então pegar um ônibus na Suburbana até outra favela pra não perder a
viagem. Mas daquele jeito nunca tinha visto, parecia que a qualquer momento podiam
começar os pipocos comigo ali no meio, de bucha, sem saber pra onde correr, numa favela
que não é nem a minha (grifo nosso) (MARTINS, 2018, p. 61).

Nesse trecho, podemos perceber o deslocamento do narrador de uma favela em direção à


outra (Jacarezinho, Manguinhos…), mas, como já informado anteriormente, esse movimento tem a
periferia como o centro, pois o narrador sai da favela onde mora e se dirige a outras. Além disso,
através do trecho “numa favela que não é nem a minha” percebemos a centralidade da periferia, por
meio de uma relação de pertencimento e de identidade entre o narrador e a favela onde ele mora, local
em que ele se sente acolhido.
Por retratar a favela pela perspectiva de dentro e como centro, ao narrar as diversas
experiências do cotidiano dos sujeitos moradores da periferia, o livro também aborda as dificuldades
enfrentadas por essas pessoas, como o racismo, a violência, o tráfico e o uso de drogas. Isso pode ser
observado, por exemplo, em um trecho do conto Rolézim, no qual é narrada a história de quatro
amigos, moradores de uma favela, que decidem aproveitar um dia ensolarado na praia, e, na volta
para casa, são abordados pela polícia, sem que tenham realizado nenhum crime ou ato suspeito que
motive a abordagem, como pode ser observado a seguir:

Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro,
o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem
dinheiro de passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia
444

pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na
hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é
tomada, ela já me engoliu na porrada (MARTINS, 2018, p. 9).

Como o livro enfoca o ponto de vista de quem mora nas favelas, os problemas presentes
na periferia e narrados ao longo dos contos também são retratados através da perspectiva desses
mesmos sujeitos. Isso ocorre, por exemplo, no trecho citado acima, em que a abordagem policial não
é representada sob o ponto de vista da polícia, mas sim pela ótica dos rapazes abordados. Assim, a
utilização dessa perspectiva se mostra transgressora, pois estamos acostumados apenas a conhecer a
visão dos policiais e, com isso, a tratar esses sujeitos como culpados ou criminosos, como ocorre, por
exemplo, no filme Tropa de Elite.
Também podemos observar nesse trecho a descrição implícita da cor da pele das
personagens e da questão do racismo. Essa implicitude se deve ao fato de, segundo a jornalista Naiara
Gortázar (2019), Geovani Martins, intencionalmente, não explicitar a raça dos protagonistas dos seus
contos, por estar farto de as personagens negras da literatura serem definidas, em primeiro lugar, pela
cor da sua pele. Assim, é por meio da narração de acontecimentos majoritariamente comuns aos
negros, como o autoritarismo em abordagens policiais, que o leitor, de forma reflexiva, pode chegar
à conclusão acerca da raça dos protagonistas, e ao caráter racista da abordagem policial, uma vez que
as pessoas brancas não são abordados dessa forma.
Nesse sentido, a utilização de O Sol na Cabeça em sala de aula é um excelente modo de
fazer com que os alunos reflitam a respeito do tratamento violento e injusto dispensado pela polícia
aos moradores da periferia, sobretudo aos negros que, quando sofrem abordagens policiais, na maioria
das vezes, não são os criminos que deveriam ser procurados, e sim vítimas do racismo instaurado e
perpetuado pela sociedade.
Também vale ressaltar que O Sol na Cabeça ao retratar a periferia, não aborda apenas os
problemas presentes nela, mas também as relações familiares, o companheirismo e as amizades lá
existentes, como pode ser visto no fragmento a seguir, retirado do conto Estação Padre Miguel:

Além de mim e do Rodrigo, estavam Felipe, Alan e Thiago. Naquela época a gente não se
desgrudava nunca, qualquer missão que fosse a gente tava junto. Eu não fazia a mínima ideia
do que fazer com a minha vida, mas sentia que o que quer que fosse pra ser feito, seria ao
lado deles (MARTINS, 2018, p. 42).

Nesse trecho, podemos perceber que a periferia não deve ser compreendida apenas como
um lugar violento, como comumente é retratada, e sim como um espaço de construção de laços de
amizade. Desse modo, ao ser apresentado aos alunos, o livro possibilita o rompimento com os
445

estereótipos criados pela mídia e por outras obras literárias a respeito da favela, uma vez que permite
aos estudantes refletirem sobre os vários aspectos positivos presentes nesse lugar.
Outro elemento importante e característico dos contos de O Sol na Cabeça é a linguagem.
Isso porque os contos não são escritos de acordo com a norma padrão do cânone literário, mas sim
em uma linguagem próxima à oralidade e em uma variante linguística própria dos sujeitos moradores
das favelas do Rio de Janeiro. Dessa forma, as narrativas apresentam muitas gírias, palavrões e outras
construções linguísticas que fogem à norma padrão, como a presença de desvios de concordância.
Isso pode ser observado, por exemplo, no trecho a seguir, retirado do conto Rolézim:

Quando foram ver, não viram nada. Dois menó passou voado e levaram as mochila com
tudo dentro. Depois se enfiaram no meio da praia lotada. Os play ficou de bucha, com o
celular na mão, panguando. Aí passou mais um menó e levou o celular também. Achei
foi bem feito pra deixar de ser otário. Eu e os menó rimo pra caralho da cara deles. Os
comédia meteu o pé, levando só a canga (MARTINS, 2018, p. 7).

Sobre essa linguagem próxima à oralidade e típica da periferia em O Sol na Cabeça, ao


contrário do que se pode imaginar, ela não reforça os estereótipos do morro, mas sim, “expõe a
criatividade linguística e a sonoridade oral produzida na periferia” (MARTÍNEZ, 2018, p. 290).
Ainda de acordo com Martínez (2018, p. 290), a presença dessa linguagem pode, para alguns, resultar
em algo “exótico” ou “artificial”, mas, dentro dessa comunidade linguística, tem uma função fática
ou emotiva.
Além disso, a utilização da linguagem próxima à oralidade típica da periferia em O Sol
na Cabeça pode ser uma forma de, apoiando no que defende hooks (2017), possibilitar a rebelião ao
transgredir a língua padrão utilizada pelo colonizador como instrumento de dominação. Assim, por
meio dessa linguagem, o livro nos mostra que os sujeitos da periferia também têm voz e que ela deve
ser representada, escutada e respeitada.
Dessa forma, a linguagem empregada por Geovani Martins na maioria dos contos rompe
com o português da norma padrão e não apenas permite uma maior proximidade do leitor às
personagens e aos fatos narrados, como também possibilita a desconstrução da crença de que o fazer
literário necessariamente deve ser normativo.
Ao abordar essa obra em sala de aula, outro elemento que pode ser debatido é o fenômeno
da variação linguística, a partir da análise da linguagem utilizada no livro. Nesse sentido, poderemos
promover reflexões nos discentes a respeito da existência de variedades com maior ou menor
prestígio, bem como acerca do preconceito linguístico. Além disso, o debate, em sala de aula, sobre
a linguagem com a qual o livro é escrito nos possibilita mostrar aos alunos que o fazer literário não
deve ser exclusivo aos sujeitos considerados “eruditos”, que fazem uso da norma padrão em seus
446

escritos; mas sim, que qualquer pessoa, utilizando-se de qualquer variedade linguística, pode exercitar
o fazer literário.
A partir de todos os elementos aqui discutidos, podemos perceber que O Sol na Cabeça
é uma obra transgressora, pois consegue se introduzir no excludente campo literário e, com isso, abre
espaço para que outras obras provenientes de espaços socialmente excluídos ganhem lugar e respeito
na literatura.
Dessa forma, consideramos O Sol na Cabeça uma excelente obra a ser aplicada para a
leitura literária na escola, não apenas por possibilitar aos alunos debates e reflexões sobre aspectos
relevantes como o racismo, a violência e os laços de amizade construídos nas favelas, mas também
por instigá-los a realizar a escrita literária, utilizando-se de seus próprios conhecimentos, experiências
e linguagens. Por esse motivo, elaboramos uma sequência didática, a qual será apresentada na
próxima seção, com o objetivo de propor uma abordagem descentralizadora da leitura e da escrita
literárias por meio de O Sol na Cabeça.

SEQUÊNCIA DIDÁTICA: UMA PROPOSTA DE ENSINO DE LEITURA E ESCRITA


LITERÁRIAS A PARTIR DO LIVRO O SOL NA CABEÇA

1 - Tema

O Sol na Cabeça e a escrita e leitura literária.

2 - Ementa

Durante as duas aulas que compõem esta sequência, será realizada, pelos alunos, a leitura
dos contos do livro O Sol na Cabeça, bem como uma pesquisa a respeito da biografia do autor. Após
isso, em sala de aula, será realizada uma roda para o compartilhamento de experiências de leitura e
de vida relacionadas às situações retratadas no livro que podem ter sido vivenciadas por eles.
Posteriormente, será realizada uma discussão coletiva, mediada e guiada pelo(a) professor(a), acerca
dos principais temas abordados nos contos e da linguagem empregada neles; e, ao final, os alunos
serão instruídos sobre a avaliação em que será proposta a escrita de um conto literário em que contem
sobre suas experiências, utilizando sua própria linguagem. Dessa forma, além de refletirem sobre
temas socialmente relevantes e sobre a linguagem dos contos, os alunos poderão exercitar a leitura e
o fazer literário e, assim, perceber que a literatura não é algo produzido apenas por “seres iluminados”
(REZENDE, 2013).
3 - Objetivos

● Vivenciar a experiência de leitura subjetiva de um conto literário;


447

● Compartilhar suas experiências de leitura;


● Refletir coletivamente sobre os trechos e/ou temas que mais lhes chamaram atenção;
● Pensar sobre os temas socialmente relevantes que são levantados nos livros;
● Traçar paralelos entre as vivências retratadas no conto e as vivenciadas por eles;
● Praticar a escrita literária.
4 - Público-alvo

Alunos da 1ª série do Ensino Médio de uma escola pública brasileira.


5 - Número de aulas

Serão necessárias duas aulas de 90 minutos.


6 - Descrição das aulas

AULA 01 (90 minutos)

Depois de ter sido disponibilizado um conto para cada aluno ler em casa e pedido para
que eles pesquisassem sobre a vida do autor, serão realizados os seguintes momentos na aula:

● Roda de compartilhamento de experiências de leitura;


● Momento de compartilhamento de experiências individuais, em que os alunos compartilharão
possíveis experiências vivenciadas por eles e que se assemelham às experiências retratadas
nos contos.
AULA 2 (90 minutos)

● Discussão coletiva, em que, mediados pelo(a) professor(a), os alunos irão discutir


coletivamente sobre os temas abordados nos contos e sobre a linguagem empregada neles;

● Instrução sobre a avaliação, em que será proposta aos alunos a escrita de um conto literário
no qual contem suas experiências e façam reflexões sobre elas, assim como fez o autor de O
Sol na Cabeça.
Nas aulas seguintes, o(a) professor(a) irá acompanhar o processo de escrita dos alunos e
orientá-los em suas dúvidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
448

Como foi discutido neste trabalho, a escassez de diversidade de autores e, assim, de


perspectivas na literatura é algo que, historicamente, faz parte desse campo social marcado pela
hegemonia das classes dominantes. Todavia, atualmente, alguns autores e autoras, com obras
transgressoras, vêm conseguindo penetrar nesse campo tão exclusivo, e fazer com que sua voz não
só esteja presente, mas também seja escutada.
O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, é uma dessas obras por retratar a favela sob o olhar
de quem está dentro dela, com uma linguagem própria dos que lá vivem, e tratando sobre diversas
situações do cotidiano vivenciadas por eles.
Em paralelo a isso, no ensino de literatura, vê-se o cânone ainda como a única forma de
literatura a ser levada para a sala de aula, e, mesmo assim, não sendo propriamente lido pelos alunos,
já que o foco está não na leitura literária, mas no ensino de história da literatura, sendo necessário,
para isso, apenas a leitura de fragmentos.
Tendo isso em mente, propomos uma sequência didática em que seja realizada a leitura
literária do livro O Sol na Cabeça e, a partir dela, sejam discutidos os temas socialmente relevantes
abordados na obra e a linguagem própria das periferias utilizada pelo autor, a fim de que os alunos,
ao ter contato com a literatura marginal e não só com o cânone, possam escrever seus próprios contos.
Com isso, esperamos que a sequência didática proposta possa ser utilizada em sala e que atinja os
objetivos pretendidos, aproximando o aluno da literatura e do fazer literário.

REFERÊNCIAS

ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996a. 431 p. ISBN: 8571645221.

________________. Razões práticas: sobre a teoria da ação / Pierre Bourdieu; tradução Mariza
Corrêa. Campinas: Papirus, 1996b. 231 p. ISBN: 8530803930.

BOTTON, André. A representação da favela nos contos de O Sol na Cabeça, de Geovani Martins. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL 2018 DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA
COMPARADA – ABRALIC, 15., 2018, Uberlândia. Anais. Uberlândia: Abralic, 2018. v. 3, p. 3896-
3909. Disponível em: <https://abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547745521.pdf>. Acesso em: 28
nov. 2020.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ____________. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul. São Paulo: Duas Cidades, 2011.

DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na


narrativa contemporânea. Letras de Hoje, v. 42, n. 4, p. 18-31, dez. 2007. Disponível em:
<https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/4110/3112>. Acesso em: 28 nov.
2020.
449

FERREIRA, Tailze. Realismo, cânone e exclusão na literatura brasileira contemporânea. Revista de


Letras, vol. 44, n. 1, p. 113–122, 2004. Disponível em: <www.jstor.org/stable/27666790>. Acesso
em: 28 jan. 2021.

GEOVANI MARTINS, o fenômeno literário das favelas cariocas. Veja, SN, 26 mar. 2018. Cultura.
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/geovani-martins-o-fenomeno-literario-das-favelas-
cariocas/>. Acesso em: 29 nov. 2020.

GORTÁZAR, Naiara. Geovani Martins: “Percebi que era negro na Flip, porque era o único”. El País,
Rio de Janeiro, 16 set. 2019. Cultura. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/16/cultura/1568657421_834925.html>. Acesso em: 29 nov.
2020.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Wmf
Martins Fontes, 2017.

LIBERALI, Fernanda. Construir o inédito viável em meio a crise do coronavírus – lições que
aprendemos, vivemos e propomos. In: ___________; et al. (orgs). Educação em tempos de
pandemia: brincando com um mundo possível. 1. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.

MARTÍNEZ, Valentina. A junção de linguagens no conto "Estação Padre Miguel", de Geovani


Martins. Communitas, v. 2, n. 4, p. 282-301, jul/dez. 2018. Disponível em:
<https://periodicos.ufac.br/index.php/COMMUNITAS/article/view/2168/pdf>. Acesso em: 28 nov.
2020.

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.

PIMENTEL, Davi. O sol na cabeça, de Geovani Martins: a literatura do morro. Eixo Roda, Belo
Horizonte, v. 29, n. 2, p. 252-273, jul. 2020. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/15771/1125613224>
. Acesso em: 28 nov. 2020.

REZENDE, Neide. O ensino de literatura e a leitura literária. In: DALVI, Maria; _____________;
JOVER-FALEIROS, Rita (orgs). Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento Justificando, 2017. 111 p.
(Feminismos plurais) ISBN: 9788595300408.

SOUZA, Marcela; WELTER, Juliane. A favela aos olhos de uma “favelada”: representação do espaço
e legitimação do discurso na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus. Revista Garrafa,
v. 18, n. 53, p. 85-104, jul/set. 2020. Disponível em:
<https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/38827/21224>. Acesso em: 28 nov. 2020.
450

“ERA UMA VEZ” ... AS PRÁTICAS SOCIAIS E VIRTUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL


EM TEMPOS DE PANDEMIA

Betânia Maria Silva de Oliveira Albuquerque137


Rosa Dalva Sousa da Silva138
Thabatta Louise Zilio139

RESUMO
Apresentamos o projeto pedagógico “Era uma vez...” realizado no contexto da Pandemia do
Coronavírus, em uma turma do nível V da Educação Infantil, com crianças entre cinco e seis anos de
idade, da Escola Sesc Potilândia, localizada no município de Natal/RN, no ano de 2020 através do
Ensino Remoto. O objetivo deste projeto foi o estimular práticas de leitura e escrita remotamente, a
partir da exploração da literatura infantil por meio dos contos de fadas. Nas plataformas de ensino do
Google Classroom e do Google Meet, iniciamos o nosso trabalho no ambiente virtual, como forma
de darmos continuidade ao ano letivo. Assim, para engajarmos as crianças no mundo da leitura e da
escrita, exploramos diferentes contos de fadas com diversos materiais e estratégias para contações ou
leitura de alguns dos considerados clássicos, partimos do livro de literatura “A última história antes
de dormir”, da autora Nicola O’Byrne, o qual brindou-nos com o encontro de alguns dos personagens
mais famosos dos contos de fadas. Antes da leitura em si, consideramos a necessidade que as crianças
têm de desenvolver a oralidade, imaginação, criatividade e diferentes linguagens na Educação
Infantil, baseando-nos em Edwards; Gandini; Forman, (2016) e Sesc (2015). Utilizamos como aporte
teórico a andaimagem de Graves & Graves (1995), os quais compreendem as diferentes etapas que
se relacionam à pré-leitura, leitura e pós leitura de um texto. Na perspectiva do alfabetizar letrando,
Ferreiro (2011), Magda Soares (2003) e Mortatti (2004), explanam sobre diferentes versões do
letramento. A autora Yunes (2010) embasa a nossa prática com relação a importância da literatura.
Em Moran (2019) a fundamentação acerca das metodologias ativas foi encontrada, ampliando o nosso
olhar com relação ao uso da literatura a partir de meios tecnológicos. Com a realização deste projeto
observamos que a maioria das crianças desenvolveu a oralidade, segundo recontos dos contos de
fadas que trabalhamos. A timidez tornou-se menos evidente, por meio da exploração, vivência e
encenação de narrativas expressas por diferentes linguagens, como por exemplo, a dramatização e a
música. Com a utilização de diferentes recursos digitais, as crianças avançaram em relação às
hipóteses de escritas em que se encontravam no início do ano, algumas destas passaram a ler palavras
simples no nosso cotidiano virtual.

Palavras-chave: Ensino Remoto. Oralidade. Literatura. Leitura e Escrita. Metodologias Ativas.

137
Graduada em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), com Especialização em Coordenação Pedagógica
e Educação Infantil e Anos Iniciais, pela Faculdade Uninassau. Possui vínculo com o Serviço Social do Comércio
(SESC/RN). E-mail: betealburquerque26@gmail.com
138
Graduada em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), com Especialização em Leitura e Produção Textual
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e Especialização em andamento em Educação Infantil. Possui
vínculo com o Serviço Social do Comércio (SESC/RN). E-mail: dalvinha_ss21@hotmail.com
139
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Especialização em
Psicopedagogia, no ano do projeto atuou como professora de Educação Infantil (SESC/RN) e atualmente é Suporte
Pedagógico na Secretaria da Educação da Cultura, do Esporte e do Lazer (SEEC) do Estado do Rio Grande do Norte. E-
mail: thabatta.louise@gmail.com
451

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta o projeto pedagógico “Era uma vez...” realizado no contexto da
Pandemia do Coronavírus, durante os meses de julho à setembro do ano de 2020 em uma turma do
nível V da Educação Infantil, com crianças entre cinco e seis anos de idade, da Escola Sesc Potilândia,
localizada no município de Natal/RN, através do Ensino Remoto e teve o objetivo de estimular
práticas de leitura e escrita remotamente, a partir da exploração da literatura infantil por meio dos
contos de fadas.
A proposta foi desenvolvida a partir do livro de literatura “A última história antes de
dormir”, da autora Nicola O’Byrne (2017), o qual problematiza sobre as personalidades de alguns
personagens de contos de fadas, defendendo o que possuem de mais atrativo nos seus enredos, a partir
de encontros inusitados e diálogos interativos das mais famosas narrativas infantis. Dentre as obras
apreciadas através de contações de histórias destacamos as dos primeiros autores, são eles Charles
Perrault, Irmãos Grimm (Wilhelm e Jacob) e Hans Christian Andersen, com os títulos: Chapeuzinho
Vermelho, Os Três Porquinhos, Cachinhos Dourados e Cinderela.
Quando falamos em literatura, automaticamente nos remetemos a livros, leituras, sem
refletirmos sobre o período de criação da literatura para as crianças, e o que gira em torno deste tema,
sem de fato pararmos para pensar no conceito de infância que se considerava ao explorar a literatura
infantil. Em Zilberman (2003), reconhecemos que os textos infantis foram adaptações de diversos
tipos de narrativas, transmitidas através da tradição oral, e que passaram a ser desenvolvidas versões
“infantis” pelos irmãos Grimm, os quais tinham a intencionalidade de introduzir comportamentos
morais e valores sociais nas crianças para que estas pudessem ser inseridas de fato na sociedade da
época.
A seguir, discorreremos acerca do desenvolvimento de tal projeto, relatando a nossa
prática pedagógica e as experiências de três professoras da Educação Infantil. Descreveremos como
foi realizado o ensino remoto no período mencionado acima, trazendo fundamentações acerca das
metodologias ativas atreladas à literatura, aos contos de fadas, às práticas sociais e ao letramento,
estes que narram o percurso de aprendizagem e desenvolvimento das crianças.

CONTEXTUALIZANDO O ENSINO REMOTO

Considerando o panorama que surgiu no início do ano de 2020 com a pandemia do


Coronavírus, e as orientações das autoridades para contermos os avanços desta doença e atender aos
direitos de aprendizagens das crianças, as aulas remotas foram uma estratégia encontrada por grande
452

parte das instituições de ensino para dar continuidade às atividades escolares. Entendemos este
modelo de ensino como uma metodologia emergencial em um contexto jamais vivenciado antes pela
Educação Infantil.
Para não perdermos o vínculo afetivo com as crianças, bem como evitar demasiada
defasagem em relação ao aprendizado e desenvolvimento delas, passamos, desde março do ano
passado, a implementar o uso de ferramentas on-line e redes sociais, tais como Google Classroom,
Google Meet e WhatsApp para interagirmos com as crianças. Partindo deste pressuposto, adaptamos
a nossa metodologia para aulas remotas, estabelecendo comunicação através das plataformas
mencionadas, como principal meio de comunicação e interação nas atividades desenvolvidas com a
suspensão das aulas presenciais.
Baseadas na proposta pedagógica da Escola Sesc (2015), a qual apresenta uma
perspectiva sociointeracionista, passamos a enviar orientações de atividades práticas às famílias,
prevalecendo o caráter lúdico, como facilitador da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças.
Evidenciamos algumas a seguir: gravações de vídeos curtos sobre as pesquisas realizadas como forma
de valorizar o protagonismo das crianças; explorações dos ambientes da casa; releituras de obras de
arte com a temática de contos de fadas com diferentes tipos de materiais; customização de fantasias;
propiciando ainda, atividades como leitura e contações de histórias, alguns jogos on-line, dentre
outras intervenções. Dessa forma, tais propostas foram sucedidas através de interações síncronas e
assíncronas e para a sistematização destas, os familiares e responsáveis das crianças postavam fotos
e vídeos no Google Classroom ou mesmo através do WhatsApp.
Quando trabalhamos com crianças entendemos que o estabelecimento de laços afetivos é
fundamental para o desenvolvimento da aprendizagem, para a relação de confiança entre seus pares
e professores, pois o processo de ensino-aprendizado poderá, desta forma, tornar-se mais
significativo. Durante o ano de realização do projeto, passamos um tempo relativamente curto
presencialmente com os pequenos, entretanto, tais laços já haviam sido criados, tendo em vista que a
grande maioria das crianças já nos conhecia devido ao nível de ensino anteriormente cursado conosco.
Assim, um dos nossos desafios foi manter este vínculo à distância e também continuarmos
propagando valores que cotidianamente seriam trabalhados em sala de aula, nas rodas de conversa,
nos momentos do parque, de leituras deleites e demais momentos da nossa rotina. Rotina esta que na
proposta da nossa Escola destaca os ambientes como espaços de aprendizagem, pois consideramos
que “criar um ambiente atraente, de oferecer mudanças, de promover escolhas e atividade, e seu
potencial para iniciar toda espécie de aprendizagem social, afetiva e cognitiva” (MALAGUZZI, 1984
apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 148) é primordial na prática pedagógica com
crianças pequenas.
453

Valorizando a importância de tais espaços para a formação das crianças, começamos, com
o ensino remoto explorando, o primeiro ambiente em que as crianças convivem e socializam – as suas
casas. Assim, experimentamos diferentes nuances que o espaço familiar propicia a cada um de nós,
dentre estes o mais explorado, ou sugerido para exploração, foram os momentos de contações de
histórias pelos familiares e responsáveis das crianças, outra forma de criar vínculos afetivos, de
construir a autoestima e a personalidade de nossos pequenos e pequenas.

METODOLOGIAS ATIVAS ATRELADAS À LITERATURA E AOS CONTOS DE FADAS

Nas plataformas de ensino do Google Classroom e do Google Meet, iniciamos o nosso


trabalho no ambiente virtual, como forma de darmos continuidade ao nosso ano letivo. Assim, para
engajarmos as crianças no mundo da leitura e da escrita, exploramos diferentes contos de fadas com
diversos materiais e estratégias para contações ou leitura de algumas narrativas que são consideradas
clássicas. Partimos do livro de literatura “A última história antes de dormir”, da autora Nicola
O’Byrne (2017), o qual brindou-nos com o encontro de alguns dos personagens mais famosos do
mundo do faz de conta. Antes da leitura em si, consideramos a necessidade que as crianças têm de
desenvolver a oralidade, imaginação, criatividade e diferentes linguagens na Educação Infantil,
baseando-nos nas experiências de Loris Malaguzzi, conseguimos colocar estes aspectos em prática,
pois as vivências foram fundamentalmente priorizadas, durante o planejamento das atividades
(EDWARDS; GANDINI &FORMAN, 2016).
Ao apoiarmo-nos na andaimagem (GRAVES & GRAVES, 1995) destacamos a diferença
que as perguntas antes, durante e após as leituras e contações de histórias fizeram, bem como a nossa
intervenção inicial de apresentar um conto em que diversos personagens dos contos de fadas se
encontravam e buscavam alguns de seus objetos mais preciosos. Tamanha foi a nossa surpresa ao
descobrirmos que muitas crianças não estavam familiarizadas com os personagens “Peter Pan”,
“Robin-Hood”, “Rei Arthur”, “João e Maria” e “Cachinhos Dourados”, por exemplo.
Sabemos que os contos de fadas, como qualquer outro tipo de texto literário estimulam o
desenvolvimento da linguagem oral, mediando o entendimento da criança em relação ao mundo
social, de modo a propiciar “pela leitura, um alargamento do domínio linguístico, a literatura
preencherá uma função de conhecimento” (ZILBERMAN, 2003, p.45–46), suscitando assim um
maior repertório cultural para as crianças.
Nas brincadeiras e interações das crianças a oralidade é elemento principal, visto que se
expressam não apenas pela fala, assim, para se fazerem entender, fazem uso de diferentes recursos,
tais como: “apontam com os braços, olhos, utilizam as mãos para mostrar tamanho, altura, distância,
mudam o tom de voz, puxam o interlocutor pela mão” (RESENDE, 2018, p. 176) entre outras. E tais
454

descrições apontadas pela autora refletem os conteúdos dos vídeos com novas versões para contos de
fadas que foram criados por elas nas atividades propostas.
Em Yunes (2010, p. 55), encontramos que a leitura

[...] especialmente a interativa, desenvolvida sobre expressões artísticas que convocam o leitor e
facilitam o desenvolvimento do pensamento crítico –, encaminha a construção do próprio juízo
e da própria opinião, favorece o aparecimento do desejo mobilizado pela co/moção, pela
sensibilização da inteligência.

Neste aspecto, podemos relatar o desenvolvimento da criatividade, da imaginação e


expressividade das crianças, as quais toda semana se empenhavam em dramatizar e criar novos
enredos para os clássicos conhecidos envolvendo toda a família nesta produção. As próprias crianças
pensaram, criaram, organizaram, recriaram e atuaram nas novas versões dos contos de fadas,
orientando os próprios responsáveis e familiares nas gravações. Citamos o exemplo de uma história
da “Chapeuzinho Vermelho” com uma mãe mais nova que a própria Chapeuzinho e um narrador
apresentando um Lobo bom, que, além de adotar os Três Porquinhos, também passou a cuidar de
carneirinhos em um castelo como o da Cinderela.
Durante o desenvolvimento remoto deste projeto a tecnologia foi essencial e passou a ser
a nossa aliada, as metodologias ativas fizeram parte fundamental das nossas ações. Nesta perspectiva,
os estudos de Morin (2019) nos auxiliam na compreensão desse conceito. Segundo o autor, as
metodologias ativas:

procuram criar situações de aprendizagem nas quais os aprendizes possam fazer coisas,
pensar e conceituar o que fazem construir conhecimentos sobre os conteúdos envolvidos nas
atividades que realizam, bem como desenvolver a capacidade crítica, refletir sobre as práticas
que realizam, fornecer e receber feedback, aprender a interagir com colegas, professores, pais
e explorar atitudes e valores pessoais na escola e no mundo. (MORIN, 2019, p. 7).

Tais metodologias complementam a nossa Proposta Pedagógica, tornando as crianças


protagonistas e ativas no ensino aprendizado, a partir de vivências e exploração de situações do
cotidiano escolar e familiar, integrado com as mídias digitais. Pautado nesta discussão a inserção ao
meio tecnológico veio ratificar a realidade social da nossa sociedade posto que

[...] o desenvolvimento cultural e tecnológico, industrial e econômico das sociedades


contemporâneas vem determinando diferentes modos de produção e distribuição de bens
materiais e culturais, estabelecendo formas cada vez mais sofisticadas de valores e padrões
de comportamento de indivíduos e grupos sociais com o material e o espaço do escrito. É
esse o caso da cibercultura, que determina um outro espaço, a tela do computador, para leitura
e a escrita e que não mais existe tecnologia tipográfica, mas digital. (MORTATTI, 2004, p.
99).
455

Dessa forma, introduzimos na nossa prática pedagógica, a leitura e manuseio de livros


tanto digitais quanto físicos, proporcionando assim às crianças o contato com o letramento por meio
de outras perspectivas, visto que na sala de aula a ênfase era dada ao livro físico. Acreditamos que
propiciar tais experiências permitem o conhecimento de diferentes pontos de vista e suscitam a
ampliação das visões de mundo das crianças, e, ratificamos tal pensamento ao observarmos em Yunes
(2010, p. 56) quando a autora destaca que:

A intimidade com a palavra, a ordenação do pensamento, as visões de mundo, os sentimentos


expressos, o diálogo sobre as divergências carecem dessa prática discursiva sobre a qual se
assenta hoje toda cultura, mesmo aquela que se quer oral se vê modelada pela escrita. Mas o
livro pode estar na tela do computador, como um rolo antigo, no suporte de papel,
encadernado, pouco importa são modos de apresentação que não se eliminam mutuamente,
mas se realocam no espaço das modalidades de apresentação da vida humana em grafias
diversificadas.

AS PRÁTICAS SOCIAIS E O LETRAMENTO

Nas nossas intervenções síncronas e assíncronas, a leitura e contação de histórias foram


muito presentes, percebemos assim o interesse e o engajamento das crianças e seus familiares na
realização das atividades propostas. Observamos que mesmo no período de ensino remoto, houve a
apropriação da consciência fonológica por parte de algumas crianças, considerando o estímulo vindo
do núcleo familiar, aspectos como a leitura e a escrita foram progredindo na medida em que as
interações ocorriam.
Diferentes tipos de linguagens foram utilizadas, atribuindo maior autonomia e liberdade
para os pequenos interagirem conosco através do chat no Google Meet por meio de emojis. Como
forma de mantermos o trabalho desenvolvido com o nome deles, por tratar-se de um texto arraigado
de significado, elegemos a estratégia de digitação dos nomes ao entrarem na reunião, como forma de
registro da presença, bem como, para nos auxiliar na interação e apropriação de diferentes funções da
escrita em nossa sociedade.
Antes mesmo da alfabetização, a criança exposta à literatura tem início ao seu processo
de letramento, pois, segundo Magda Soares (2003) existem duas principais dimensões do letramento:
a dimensão individual e a dimensão social. Enfatizamos no Projeto “Era uma vez…” a dimensão
social do letramento, na qual este é considerado um fenômeno cultural, que está relacionado “às
práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social”
(SOARES, 2003, p. 72), atrelamos a isto, as mensagens enviadas com sugestões de leituras de contos
de fadas em PDF, por meio do WhatsApp; a decifração dos títulos dos contos de fadas; a partir da
interpretação de uma série de emojis, além de listas com os nomes de personagens das histórias
456

apreciadas, dentre outras propostas que foram pensadas considerando algo que fosse expressivo para
as crianças.
Ao falarmos em alfabetizar letrando (FERREIRO, 2011), não podemos deixar de destacar
a participação das crianças na leitura da capa do livro “A última história antes de dormir”, arriscando
o reconhecimento das letras até a leitura espontânea dos nomes dos personagens. Além disso, a forma
como o livro apresenta a narrativa da história permite diferentes possibilidades de intertextualidade:
diálogos entre narrador e leitor; entre personagens, e, entre personagens e leitor, bem como, a
apresentação de tais conversas por meio de balões de diálogo, proporcionando a inferência, ou seja,
a relação com conhecimentos prévios referentes aos quadrinhos e gibis tão explorados pelos pequenos
nesta fase de ensino que é a Educação Infantil, visto que ainda estão se apropriando do sistema de
escrita alfabético e as imagens, por sua vez existentes, possibilitam a compreensão e interpretação da
história pelas crianças.
Com o desenvolvimento deste projeto, observamos que a vivência com a literatura
permitiu o amadurecimento das hipóteses de escrita das crianças que acompanharam e demonstraram
mais assiduidade em nossos encontros, participando ativamente do ensino remoto.
A Psicogênese da Língua Escrita, de Emília Ferreiro, aponta três principais hipóteses de
escritas da alfabetização, as quais compreendem a lógica do pensamento da criança para a construção
da escrita, suas especificidades, e, consequente evolução do pensamento, o qual pode ocorrer de modo
não linear (BRITO, 2012). Neste processo percorre-se etapas que indicam avanços e retrocessos até
que as crianças compreendam o funcionamento da língua escrita e a sua relação com a oralidade.
Dentre as diferentes hipóteses que se desenvolvem durante a alfabetização, a primeira
delas é a pré-silábica, que consiste na diferenciação existente entre o desenho e a escrita, é
comumente marcada por garatujas, ou seja, rabiscos que na compreensão das crianças representam a
escrita.
A segunda hipótese refere-se às escritas pré-silábicas, sendo caracterizada pela
elaboração de formas de diferenciação interfigurais ou inter-relacionais relativas à quantidade e
qualidade das letras para a formação de uma palavra. A criança em relação ao aspecto quantitativo,
acredita que deve haver um mínimo de letras para que haja a representação escrita; neste caso o que
passa a ser analisado por ela são as propriedades dos objetos. Sobre o aspecto qualitativo da escrita,
utilizará o recurso da diferenciação qualitativa, na qual as letras são trocadas ou alteradas, havendo
assim uma expressão de diferenciação controlada para distinguir as representações escritas.
Na terceira hipótese as crianças começam a assimilar a existência de uma vinculação
intrínseca entre o discurso e a escrita, já iniciando a compreensão do sistema alfabético, e a
representação dos sons, produzindo assim escritas alfabéticas, observando o acordo ortográfico da
Língua Portuguesa.
457

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a realização deste projeto, observamos que a maioria das crianças desenvolveu a
oralidade, a partir de recontos dos contos de fadas que trabalhamos. A timidez tornou-se menos
evidente, através da exploração, vivência e encenação de contos expressos por diferentes linguagens,
como por exemplo, a dramatização e a música. Com a utilização de diferentes recursos digitais, as
crianças avançaram em relação às hipóteses de escritas em que se encontravam no início do ano,
algumas destas passaram a ler palavras simples no nosso cotidiano virtual.
Em consonância com o exposto no decorrer deste trabalho, identificamos ainda um
amadurecimento da personalidade das crianças, mediante as nossas intervenções, permitindo que os
pequenos descobrissem aptidões para a arte do teatro, por exemplo, e expressassem as suas emoções
ao recontarem as histórias, além de aprenderem a lidar com seus sentimentos.
Na tela de um celular, tablet ou computador algumas imagens e personagens foram
projetados, várias formas de se apresentar as linguagens foram exploradas, algumas narrativas
inventadas, outras reinventadas e até mesmo recriadas. Não deixemos, assim, que as nossas crianças
tenham as suas infâncias desperdiçadas. Precisamos encontrar a medida exata para equilibrar as
experiências que lhes são pensadas e ofertadas. Podemos ter o melhor dos dois mundos, pois o
analógico e o tecnológico se complementam para juntos auxiliarmos os nossos pequenos a criar um
novo milênio.
Para além da proposta desenvolvida com as crianças do nível V da Educação Infantil,
destacamos que as vivências delas não foram completamente finalizadas, posto que o livro escolhido
desafiava ao leitor a dar continuidade à narrativa e diálogos dos personagens, mediante aos novos
conhecimentos a serem desenvolvidos nos próximos anos da vida escolar delas, porque sabemos que
a nossa imaginação, mas principalmente, o potencial das crianças vai muito além das últimas páginas
de uma história, dando sempre possibilidade para um novo “Era uma vez”.

REFERÊNCIAS

BRITO, Janira Bezerra de. Alfabetização de crianças e jovens: superando desafios da inclusão
escolar. 2012. 177 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2012.

EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As Cem Linguagens da Criança: A


abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Penso, 2016. 295 f.
Maria Carmen Silveira Barbosa Dayse Batista (Revisão Técnica); Dayse Batista (Tradução).

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. 26 ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção
questões da nossa época: v.6).
458

GRAVES, Michael; GRAVES, Bonnie. The scaffolded reading experience: a flexible framework for
helping students get the most out of text. Reading, Oxford, v. 29, n. 1, p. 29-34, apr.1995.

MORIN, José. Metodologias Ativas de bolso: como os alunos podem aprender de forma ativa,
simplificada e profunda. São Paulo: Editora do Brasil, 2019.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Letramento, alfabetização, escolarização e educação. In:


MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: UNESP, 2004, p. 98-
121.

O’BYRNE, Nicola. A última história antes de dormir. Tradução: Gilda de Aquino. 1 ed. São Paulo:
Brinque Book, 2017. 44p.

RESENDE, Valéria Barbosa de et al (org.). Leitura e produção de textos na alfabetização [recurso


eletrônico]: a formação continuada no PNAIC 2017/2018.Belo Horizonte: FaE/ UFMG. Disponível
em:
http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/files/uploads/PNAIC%202017%202018/LEITURA%20
E%20PRODU%C3%87%C3%83O%20DE%20TEXTOS%20NA%20ALFABETIZA%C3%87%C
3%83O%20-%20DIGITAL.pdf. Acesso em: 23 nov. 2020.

SESC. Departamento Nacional. Proposta pedagógica [da] Educação Infantil/Sesc Departamento


Nacional. – Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2015. 258p.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. 7. Reimpressão; - Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. 128p.

YUNES, Eliana. A provocação que a literatura faz ao leitor. In: AMARILHA, Marli (org.). Educação
e Leitura: redes de sentido. Brasília, Líber Livro, 2010. p. 53-62.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003.


459

LEITURA DE CHARGES: UMA ANÁLISE À LUZ DA PERSPECTIVA DIALÓGICA DA


LINGUAGEM

Francisco Pereira da Silva Fontinele140

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo fazer uma análise discursiva de charges, bem como apresentar
uma proposta de leitura à luz de uma perspectiva dialógica da linguagem. O uso de textos como a
charge tem ganhado notoriedade nos meios de comunicação de massa por abordar um tema da
atualidade em forma de humor, o que instiga muitos leitores a reflexões sobre assuntos de interesse
da sociedade, motivo pelo qual se justifica o desenvolvimento desse trabalho. Além disso, o gênero
charge é carregado de diferentes estratégias textuais que dialogam com o contexto de produção, como
os fatos sociais e políticos, o que exige a cooperação do leitor no texto para a construção de sentidos.
A charge torna-se de um importante gênero do discurso para trabalhar práticas de leitura à luz de uma
perspectiva dialógica da linguagem, em que é possível observar relações sociais abordadas no gênero,
crítica a determinados assuntos em um dado momento na sociedade, relações de discursos na
sociedade, bem como ideológicas e entre outras. A presente pesquisa tem como suporte teórico as
concepções de Bakhtin (2006), Romualdo (2000) entre outros autores. Trata-se de uma pesquisa de
natureza qualitativa com abordagem exploratória e descritiva, em que analisamos charges do
cartunista Amarildo extraídas do jornal “A Gazeta”. Os resultados mostram que o conteúdo das
charges analisadas, bem como seu propósito comunicativo dialogam com discursos difundidos
socialmente, envolvendo o leitor com diferentes estratégias e discursos que se relacionam para a
construção de sentidos. A título de conclusão, podemos afirmar que as charges analisadas apresentam
em sua composição elementos que dialogam e recuperam outros discursos para estabelecer o projeto
de dizer no gênero, o que sugere ao leitor reflexões sobre a temática abordada nas charges, bem como
convida-o a interagir com o texto acionando outros discursos para compreender o sentido veiculado.
Palavras-chave: Charges. Leitura. Sentido. Discurso.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa tem como objetivo fazer uma análise discursiva de charges à luz da
perspectiva dialógica da linguagem proposta por Bakhtin, em que apresentamos a discussão do texto
observando como os elementos que os compõem requerem a cooperação do leitor nas charges para a
construção de sentidos. Assim, a interação texto/leitor corrobora a estreita relação entre os
mecanismos/recursos utilizados na charge e o contexto a que está vinculado o texto, o que exige do
leitor uma relação dialógica entre os discursos produzidos nas charges e o fato retratado.
As charges que foram selecionadas para o estudo abordam temáticas atuais que causaram
repercussão e impactos discursivos nas redes sociais, comunicação de massa e no âmbito político. As
charges analisadas são de autoria de Amarildo, cartunista que frequentemente faz publicações

140
Graduando em letras vernáculas pela Universidade Federal do Piauí. Membro do grupo de pesquisa proletras/UFPI e
Bolsista de Iniciação Científica-CNPq. E-mail: franciscofontinele2018@gmail.com
460

humorísticas com forte teor critico político no jornal “A Gazeta”. O autor faz críticas e sugere em
seus textos reflexões sobre assuntos atuais de interesse da população. O conteúdo abordado nas
charges é apresentado por meio do humor e que requer relações dialógicas entre os elementos que
fazem parte da charge com os discursos difundidos socialmente para a construção de sentidos.
Na charge, geralmente o autor utiliza personagens para representar políticos ou figuras
que pertencem a um determinado cargo na sociedade. Esses recursos que o autor utiliza sugerem ao
leitor mobilização de conhecimentos de mundo para serem projetados no texto e assim estabelecer o
sentido.
Nesse estudo, adotamos a perspectiva dialógica da linguagem, em que consideramos que
os sujeitos integram os projetos de dizer no mundo. Nesse caso, integram o texto, relacionando e
criando sentido, seja pelos elementos na superfície do texto ou acionados cognitivamente para
construir sentidos. O sujeito faz parte da linguagem e a produz na forma de conhecimento, estando
frequentemente negociando sentido com sua realidade que pode ser ilustrada por meio de textos. O
leitor é peça chave para construir sentido.
Para efeitos de organização, as discussões contidas no presente artigo estão distribuídas
por sessões, na primeira sessão encontra-se as considerações iniciais da pesquisa; na segunda os
pressupostos teóricos que embasaram o desenvolvimento do estudo, bem como reflexões sobre o
gênero charge; posteriormente apresenta-se a metodologia adotada; análise do corpus e descrição dos
resultados; as considerações finais, em que sintetiza-se as conclusões da pesquisa , bem como
apresenta-se sugestões e reflexões para estudos posteriores, e, por fim, as referências que nortearam
o desenvolvimento da pesquisa.

O GÊNERO CHARGE: ALGUMAS PARTICULARIDADES


A charge se caracteriza como um gênero do discurso, pois apresenta um propósito
comunicativo que age na sociedade retratando diferentes assuntos de interesse social e político, vale-
se de diferentes estratégias para alcançar seus objetivos, o leitor é convidado a apreciar um gênero
que aborda uma temática atual e temporal, daí a importância do envolvimento dialógico do leitor no
texto. Ao realizar estudos sobre o gênero charge Romualdo pontua:

A Charge é um tipo de texto que atrai o leitor, pois, enquanto imagem é de rápida leitura,
transmitindo múltiplas informações de forma condensada. Além da facilidade de leitura, o
texto chárgico diferencia-se dos demais gêneros opinativos por fazer sua crítica usando
constantemente o humor (ROMUALDO, 2000, p. 5).

A charge, conforme ressaltou o autor, é de rápida leitura, isso se deve às estratégias que
o cartunista utiliza para vincular o sentido no texto, ora faz uso de imagens, ora mescla o conteúdo
461

abordado em forma de humor, o que se constitui como um atrativo que envolve o leitor no texto. O
gênero retrata uma temática atual específica, situada em um determinado momento no tempo, por
isso o seu caráter temporal, bem como expressa a opinião do cartunista sobre o assunto que a charge
se refere.
O gênero charge é vinculado a um contexto específico que precisa ser identificado pelo
leitor para construir o sentido, por isso a importância de atentar-se aos elementos que compõem a
charge, uma vez que eles direcionam a referência a que o texto está vinculado. Para isso, é preciso
acionar conhecimentos prévios durante a leitura, identificar o sentido que cada elemento expressa no
texto e observar a relação entre imagens e texto verbal.
O humor é uma outra estratégia textual que compõe a charge e funciona como elemento
de atração, capaz de despertar no leitor o interesse pela leitura do gênero. A crítica na charge é
carregada de tom humorístico direcionada geralmente a personagens políticos ou agentes sociais. A
caricatura e a ironia também são frequentes nas charges, a primeira funciona como um dos elementos
responsáveis pelo efeito de humor, uma vez que mostra uma ilustração não real das personagens
envolvidas, mas uma semelhança que provoca comicidade no leitor. É comum caricaturas de
personagens políticos, representando traços característicos da pessoa de forma exagerada, o que
auxilia a construção do humor na charge.
O uso da caricatura constitui-se em uma estratégia para o leitor identificar o personagem
envolvido na charge, reconhecendo os elementos que o caracteriza no texto. Já a ironia faz parte do
gênero de uma forma diferente, o cartunista utiliza um tom irônico para expressar a crítica, geralmente
utiliza uma discrepância de ideias na charge para gerar a ironia.

METODOLOGIA
Uma pesquisa visa a construção de passos para chegar a um dado objetivo, bem como
compreender um objeto ora em investigação na pesquisa a partir de pressupostos teóricos que
fundamentam a realização do estudo. Nesse sentido, adotamos uma perspectiva qualitativa de
pesquisa, com abordagem exploratória e descritiva de charges.
Para este trabalho, selecionamos um corpus composto por três charges de autoria do
cartunista Amarildo publicadas no jornal “A Gazeta”. Em relação ao critério de escolha, foram
selecionadas charges que retratam acontecimentos no âmbito político e social que causaram
repercussão na sociedade brasileira. Posteriormente foi feita a análise das charges, bem como uma
proposta de leitura à luz da visão dialógica da linguagem de Bakhtin.

LINGUAGEM DIALÓGICA: ABORDAGEM EM BAKHTIN


462

Para essa pesquisa adotamos a perspectiva sociodiscursiva e dialógica, tomando como


norte os pressupostos teóricos de Bakhtin (2006), para o qual a linguagem é eminentemente dialógica.
Ao escolhemos essa baliza teórica consideramos que as charges, objeto dessa investigação, são
construídas utilizando-se de elementos carregados de valores ideológicos e informações circulantes
na sociedade, que o sujeito projeta no texto, mantendo uma interação discursiva vinculada a um
contexto comunicativo específico. Os elementos que fazem parte desse processo ganham vida pela
relação que eles estabelecem com a realidade do interlocutor, ou seja, requer uma negociação de
sentido no texto que permite o leitor a fazer referências e reflexões sobre o tema abordado.
É importante deixar claro que não objetivamos abordar todos os pressupostos teóricos de
Bakhtin, apenas os quais julgamos necessários para o presente estudo. Ao contrário de muitos
estudiosos da sua época, Bakhtin propõem que a linguagem não se resume a um conjunto de formas
linguísticas, mas deve ser estudada levando em consideração o seu conteúdo ideológico. Nesse
sentido, o autor considera que a língua é um fato social em que os sujeitos interagem em determinados
contextos e com diferentes discursos. Para Bakhtin (2006, p.125):

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas


linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou
das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(Bakhtin, 2006, p. 125).

Desse modo, para o autor as formas linguísticas se manifestam em contextos ideológicos,


uma vez que a língua está interligada com as relações sociais. Então a linguagem, na perspectiva
Bakhtiniana, é construída por relações dialógicas entre sujeitos e os discursos existentes na sociedade.
Nesse sentido, existe um diálogo entre os sujeitos sociais, isto é, um enunciado mantém
interação comunicativa e discursiva com um remetente, a palavra então constitui-se como elemento
ideológico que carrega diferentes significados em contextos específicos. Assim, salientamos que a
língua se constitui como um fenômeno da interação social e comunicativa, em que os sentidos
construídos socialmente mantêm uma relação de dependência com os envolvidos nesse processo de
comunicação. O indivíduo é visto como sujeito histórico e social, daí a necessidade de levar em
consideração a baliza ideológica, as relações sociais, as crenças, entre outros elementos que importam
para a construção de sentidos.
Além dessa relação dialógica que atua entre os sujeitos, a teoria Bakhtiniana advoga que
existe também um diálogo entre discursos na interação social comunicativa e não somente entre
sujeitos. Assim, um discurso está sempre vinculado a outro discurso estabelecendo relações
discursivas nos textos.
463

ANÁLISE DO CORPUS E DESCRIÇÃO DOS RESULTADOS


A partir de agora, conforme já dito anteriormente, vamos analisar algumas charges do
cartunista Amarildo à luz dos pressupostos teóricos da linguagem dialógica de Bakhtin.

Charge 1: Monitorando os riscos

Fonte: Amarildo (2020)

A charge acima foi publicada no jornal “A Gazeta”, no dia 12/07/2020. Nas imagens,
podemos perceber um personagem caricato, um rádio anunciando que o presidente da República
contraiu o novo coronavírus e que está fazendo uso da cloroquina para tratar a doença.
O presidente da República Jair Bolsonaro desde quando o novo coronavírus se alastrou
na sociedade brasileira tem defendido reiteradas vezes o uso da hidróxido cloroquina como
medicamento para tratar a doença. No entanto, estudos realizados, bem como declarações feitas pela
organização mundial da saúde mostram que a cloroquina não possui eficácia comprovada
cientificamente para ser utilizada no tratamento da Covid-19. Nesse sentido, muitos entraves de
ordem política têm suscitado debates e discussões sobre o uso ou não da cloroquina, pois estudos
mostram que esta pode provocar efeitos colaterais, como problemas cardíacos, em pacientes com
Covid-19.
Na charge acima, observamos que, após saber que Bolsonaro está fazendo uso da
cloroquina por ter contraído o novo coronavírus, o personagem então afirma que também vai utilizar,
fato que nos leva a entender que ele também contraiu a doença. Percebemos claramente a pílula na
mão do personagem, o copo com água e a caixinha de hidróxido cloroquina próxima ao sofá, o que
sugere o contexto de uso da cloroquina. Em seguida, o rádio informa que o presidente está fazendo
dois exames cardíacos por dia para monitorar os riscos do uso da cloroquina. É essa informação que
gera o humor da charge junto com a ação do personagem de cuspir o comprimido da cloroquina,
464

conforme vemos na imagem. Podemos então perceber que a construção de sentido possui uma relação
dialógica entre o discurso da charge e o discurso sobre os entraves do uso da cloroquina defendida
por Bolsonaro. Para Miranda (2010):

O dialogismo e a polifonia são presenças fortíssimas nas charges, pois há uma interação de
vivências entre o chargista (eu) e leitor (outro). E é por meio destes diálogos ideológicos e
destas miscelâneas de vozes, que surge: o efeito de sentido proposto pelo chargista. Desta
forma, a interação charges/leitor torna-se rápida e a compreensão da mensagem ocorre, na
maioria das vezes, sem grandes dificuldades. (MIRANDA, 2010, p. 42).

Na charge em questão, podemos perceber essa relação dialógica entre os discursos, uma
vez que o leitor estabelece esse diálogo entre o discurso do chargista e o discurso difundido na
sociedade sobre a temática abordada. Na charge, observamos que o autor utiliza o enunciado “ele está
fazendo dois exames cardíacos por dia para monitorar os riscos” como estratégia que faz o leitor
estabelecer o diálogo entre o discurso de não existir uma eficácia comprovada cientificamente para o
uso da cloroquina e o discurso de defesa do uso do medicamento pelo presidente, o que faz o sentido
emergir no texto. Assim, percebemos que os elementos que constroem o sentido na charge carregam
valores ideológicos que se estabelecem por relações discursivas e dialógicas.

Charge 2: Ou ele ou eu

Fonte: Amarildo (2020)

Na charge acima, publicada no jornal “A Gazeta” no dia 01/10/2020, podemos observar


três personagens envolvidos na cena. A priori percebemos o “Zé Gotinha”, boneco símbolo do
Programa Nacional de Imunização (PNI), representando nacionalmente o processo de vacinação, o
que fica claro com a presença do nome “Vacina” que consta no boneco. Observamos um outro
465

personagem que simboliza o “coronavírus”, representado por uma figura paramentada com túnica e
capuz pretos, empunhando uma gadanha, o que sugere ao leitor a representação da morte na terra. E,
por último, temos uma caricatura que, pelo cabelo, o rosto e o terno, caracteriza o presidente Jair
Messias Bolsonaro. Observa -se que o personagem que representa o presidente da República
encontra-se sendo puxado tanto pelo boneco símbolo da vacinação quanto pelo boneco que simboliza
o “coronavírus”, o que sugere um “cabo de guerra” entre os dois personagens em face do presidente.
Para Bakhtin (2006) todo enunciado ou discurso dialoga com outro discurso. A charge
em discussão requer uma relação dialógica para estabelecer a construção de sentidos.
Percebe-se que o enunciado “ou ele ou eu” proferido pelo boneco-símbolo da vacinação
dialoga com a conduta do presidente Bolsonaro frente a pandemia de coronavírus, expressando a ideia
de que o chefe de Estado Brasileiro representa insegurança para a população, uma vez que ele
constantemente tem negado a compra de vacinas para o combate à covid-19 em entrevistas à imprensa
brasileira, isto é, a charge se refere a falta de decisão do presidente, ou escolhe a vacina ou o
coronavírus. Essa ironia cria um efeito de humor que constrói um discurso negativo em relação à
imagem de Bolsonaro, caracterizando-o como incapaz de trazer uma solução para o problema
(Coronavírus) na sociedade brasileira.
Observamos que a construção do sentido da charge requer a cooperação do leitor no texto,
como por exemplo identificar o momento de produção da charge, ou seja, o contexto de discussão
política sobre uma possível vacina como medida imediata para combater o coronavírus. Além disso,
é esperado que o leitor identifique o sentido que cada elemento carrega na charge, o boneco que
representa a vacina e o outro que representa o coronavírus. Esse processo de construção de sentidos
durante a leitura se configura por meio das relações dialógicas entre os elementos que compõem a
charge e o contexto imediato sugerido no texto.
Na charge, um elemento que carrega um discurso dialoga com outro discurso para se
construir sentidos, o traje do personagem “coronavírus”, a túnica preta e a gadanha, representa a
morte, isto é, um discurso com estreita relação com o vírus. Além disso, a composição da charge leva
o leitor a dialogar/remeter ao contexto de discussão política da vacina em um processo de recuperação
e a alusão ao discurso/enunciado já dito que possibilita ao leitor construir sentidos.
466

Charge 3: Medidas urgentes

Fonte: Amarildo (2020)

A charge ora citada foi publicada no jornal “A Gazeta” no dia 13 de janeiro do corrente
ano (2021). A princípio, observamos um personagem em forma de caricatura, cujas características
apresentadas, como o formato do rosto do personagem, os óculos e a vestimenta leva o leitor a inferir
que se trata do ministro da Economia Paulo Guedes. Além disso, é esperado que o leitor identifique
o contexto de produção da charge e que assunto ela está abordando. Conforme podemos observar na
charge, o personagem que representa o ministro da Economia recebe uma ligação informando que a
empresa de automóveis Ford está saindo do Brasil, notícia que, aos olhos de um ministro da Economia
seria preocupante para os rumos econômicos do país.
Por meio da frase “nossa! Preciso tomar uma providência urgente” o ministro exprime
um tom de preocupação, afirmando que vai tomar uma providência urgente. Essa frase sugere
supostamente ao leitor que o ministro adotaria medidas para que a Ford não saísse do País. No
entanto, houve uma quebra de expectativa na charge, o que provoca a comicidade no texto, haja vista
que o personagem coloca à venda, como medida urgente, por meio de anúncio na internet, um modelo
Ford Ka pelo preço de 25 mil reais.
No caso da charge, retratar o ministro colocando à venda o carro modelo Ford Ka nos
leva ao resgate do discurso de que esse modelo saiu de linha do país com a consequente saída da
467

empresa, o que sugere de forma irônica o motivo de Paulo Guedes pôr o carro à venda. Ademais,
observa-se uma crítica à postura do ministro da Economia, em relação ao descompromisso frente às
relações econômicas do país, o que responsabiliza o governo pelo fechamento da Ford. O que se
percebe na charge é um verdadeiro diálogo entre informações que precisam ser resgatadas e
projetadas no texto para entender o discurso veiculado. Ao discutir sobre multiplicidade de discursos
que possuem um texto, Brait (2008, p.115) postula que:

A multiplicidade de discursos que constituem um texto e se modificam em função da sua


circulação; as relações dialógicas; o pressuposto metodológico de que as relações dialógicas
se estabelecem a partir do ponto de vista assumido por um sujeito; as consequências teórico-
metodológicas da visão de que as relações dialógicas não são dadas, mas estabelecidas a
partir de um ponto de vista; o papel da linguagem e dos sujeitos na construção dos sentidos;
a concepção de texto como assinatura de um sujeito.(BRAIT, 2008, p. 115).

Nesse sentido, a charge em discussão possibilita ao leitor assumir um ponto de vista sobre
o conteúdo abordado, uma vez que o texto requer relações dialógicas não só entre enunciados, mas
também entre discursos que remetem a outros já ditos. Na charge em realce, percebemos essa relação
dialógica contida nos elementos do texto, que remetem a outro discurso para construção de sentido.
Além disso, não só nessa charge, mas também nas demais analisadas percebe-se uma
ponte dialógica entre os sentidos/discursos que cada elemento carrega no texto. Identificar os
personagens caricatos por si só possibilita o leitor resgatar informações que dialogam com os
elementos da charge para construir sentidos. Assim, as charges não só representam fatos e ironizam
acontecimentos políticos ou sociais, mas possibilitam uma ação de leitura dialógica com o texto, bem
como envolve o leitor a despertar seu senso crítico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou analisar e propor uma leitura de charges à luz da visão dialógica da
linguagem proposta por Bakhtin. O estudo permitiu mostrar que os elementos responsáveis pela
construção de sentidos nas charges analisadas carregam valores ideológicos que assumem uma
perspectiva dialógica no texto, uma vez que requer a cooperação do leitor, bem como a identificação
dos elementos que caracterizam o episódio abordado no texto. Nesse sentido, evidencia-se que as
charges analisadas assumem um papel social à medida que abarcam em sua composição
acontecimentos de ordem política e social que causaram repercussão na sociedade brasileira.
Além disso, a análise revela que a construção de sentidos nas charges se configura por
meio de relações dialógicas da linguagem. Como prova disso, podemos perceber a relação dialógica
entre um discurso contido na charge e outro discurso resgatado pelo leitor com base nos elementos
468

do texto para construir o sentido e, com isso, surge o efeito cômico na charge. Assim, conclui-se que
o texto chárgico, além de expressar uma opinião do cartunista sobre o tema abordado, também
constitui-se de vínculos ideológicos com a presença do dialogismo da linguagem que possibilita,
longe de uma perspectiva estrutural, trabalhar a atividade de leitura sob uma ótica dialógica da
linguagem.

REFERÊNCIAS

AMARILDO. Monitorando os riscos. Disponível em:


https://www.agazeta.com.br/charge/monitorando-os-riscos-0720. Acesso em: 12 jul. 2020

AMARILDO. OU ELE OU EU. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/charge/ou-ele-ou-eu-


1120 . Acesso em: 1 out. 2020.

AMARILDO. Medidas Urgentes. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/charge/medidas-


urgentes-0121 . Acesso em: 1 jan. 2021.

BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

BRAIT, B. Memória, linguagens, construção de sentidos. In: LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L.;
EMEDIATO, W. (org.) Análises do discurso hoje, v. 2, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p.
115-132.

MIRANDA, H. S.C. Entre a crítica e o humor: A influência dialógica, polifônica e carnavalizada


das charges de Angeli na Folha de São Paulo. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, 2010.

ROMUALDO E. C. Charge Jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da


Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000.
469

PROPOSTAS DE PRODUÇÃO DE SEMINÁRIOS EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO


MÉDIO

Maria Clara Batista Monteiro141


Ana Virgínia Lima da Silva Rocha142

RESUMO
O trabalho com a oralidade ocupa cada vez mais espaço nas atividades em salas de aulas de Língua
Portuguesa. Apesar disso, ainda se nota um significativo desconhecimento sobre como transpor, por
parte dos professores, as especificidades do oral para o ensino. Para esses profissionais, o
planejamento de suas aulas e práticas pedagógicas é, predominantemente, guiado e amparado pelo
livro didático que, na maioria dos casos, também é o único material de apoio disponível para o aluno.
Visando isso, este trabalho tem como objetivo analisar propostas de produções de seminários em três
livros didáticos do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª série), com ênfase nas etapas de planejamento e execução
do gênero. Foram selecionadas propostas de três coleções diferentes para o corpus do trabalho:
Trilhas e Tramas, Ser Protagonista e Diálogo, Reflexão e Uso, todas aprovadas pelo PNLD/2018 do
Ensino Médio e usadas por alunos e professores da rede pública básica de todo o país. As análises
apoiam-se na concepção bakhtiniana de gêneros discursivos, nos pressupostos teóricos de Marcuschi
(2007) e Dolz & Schneuwly (2004), que consolidam a relevância da oralidade como objeto de ensino,
como também nas orientações dadas nos documentos oficiais de ensino no Brasil, a BNCC (2017),
os PCN (1998) e o Guia de Avaliação do PNLD (2018). Os resultados apontam que, na etapa do
planejamento, há uma predominância de encaminhamentos voltados para aspectos conteudísticos, e,
na etapa da execução, predominam direcionamentos relacionados à estrutura do gênero. Além disso,
evidencia-se a ausência de um consenso em relação à separação entre os elementos de cada etapa, ou
seja, em diferentes coleções, o mesmo direcionamento pode ser encontrado tanto no planejamento
quanto na execução. As implicações desses resultados revelam um desconhecimento relativo à
oralidade como objeto de ensino, reforçando a concepção do oral como algo não planejado e intuitivo,
totalmente desvinculado da escrita e, consequentemente, das práticas de letramento.

Palavras-chave: Seminário. Livros didáticos. Oralidade. Gêneros do discurso.

INTRODUÇÃO

Este trabalho resulta do projeto de Iniciação Científica (2019.2/2020.1), “Gêneros Orais


e Ensino Médio”. A partir de reflexões sobre o tema do título, despertou-se a necessidade de observar
como essa relação se apresenta nos livros didáticos. Posteriormente, fizemos o recorte do gênero
seminário no LD e, em detrimento da brevidade da exposição, nossa análise incluirá apenas as etapas
do planejamento e execução.

141
Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC - UFRN). Graduanda em Letras - Língua Portuguesa pela UFRN;
mariaclaraabm@hotmail.com.
142
Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG. Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN;
anavirginialsr@gmail.com.
470

Nesse sentido, nosso objetivo é analisar até que ponto as propostas de produção de
seminários podem contribuir para a formação dos estudantes no que diz respeito ao conhecimento e
ao domínio do seminário enquanto prática de oralidade formal. Por essa razão, a questão de pesquisa
para esse trabalho é: que possíveis contribuições oferecem as propostas de produção de gêneros orais
em LD para o conhecimento e o domínio dos discentes acerca do gênero seminário?
Inicialmente iremos tecer algumas considerações sobre nosso referencial teórico, que
consiste nas nossas concepções de oralidade, sua relação com o ensino e os documentos oficiais,
assim como o que compreendemos por seminário neste trabalho. Logo em seguida, faremos uma
exposição sobre o corpus e as categorias de análise; por fim, partiremos para as considerações finais.

ORALIDADE E ENSINO

De acordo com Marcuschi (2007), as modalidades linguísticas oral e escrita possibilitam


a construção de textos que podem ser coesos e coerentes; formais ou informais e com variações
estilísticas, sociais e dialetais, mobilizadas a partir do contexto de produção. Partindo desse
pressuposto e desprendendo-se de mitos oriundos de uma sociedade grafocêntrica, observa-se cada
vez mais, no campo dos estudos da linguagem, pesquisas que comprovam a importância de conceber
a oralidade como objeto de ensino da educação básica.
Entretanto, no Brasil, a didatização do oral nas salas de aulas de Língua Portuguesa ainda
acontece de maneira tímida e despreparada. As causas para isso são várias, mas partem do
desconhecimento acerca da oralidade por parte não só dos professores da rede básica, como também
dos professores responsáveis pela sua formação, e pelos produtores de materiais didáticos.
É importante destacar que não se trata de hierarquizar a fala em relação à escrita, mas sim
de compreender as duas como fenômenos diferentes com igual complexidade. Adotar a fala como
uma atividade não planejada é desconsiderar as diversas práticas sociais que são realizadas oralmente
e necessitam de um planejamento, como a apresentação de um seminário, uma entrevista de emprego
ou uma batalha de rap. Todas essas ações mobilizam uma necessidade de planejamento, que acontece
simultaneamente à produção. Assim, tomar a modalidade oral como objeto de ensino não é ensinar o
aluno a falar, mas prepará-lo para possíveis situações interacionais reais que façam uso dessa
atividade.
Partindo desse raciocínio, reconhecemos que é papel da escola preparar o aluno para as
mais diversas práticas de uso da linguagem oral, principalmente em contextos formais de produção.
Essa ideia já é defendida nos documentos oficiais desde o final da década de 1990. A relevância do
ensino da oralidade é apontada nos Parâmetros Nacionais Curriculares - PCN:
471

ensinar língua oral deve significar para a escola, possibilitar acessos a usos da linguagem
mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da
enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício
da cidadania (BRASIL, 1998, p.67).

No mais recente documento nacional sobre educação, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), organizada em competências específicas que devem ser desenvolvidas por meio de um
conjunto de habilidades, a análise e a produção de gêneros orais considerando seus fatores linguísticos
e extralinguísticos é considerada uma das habilidades responsáveis pela competência 1 e pela
competência 4, conforme verificamos:

Competência 1:
Compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas culturais (artísticas,
corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos
nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de
participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica
da realidade e para continuar aprendendo (BRASIL, 2018, p. 490).

Competência 4:
as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, cultural, social, variável, heterogêneo e
sensível aos contextos de uso, reconhecendo suas variedades e vivenciando-as como formas
de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como agindo no enfrentamento de
preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018, p. 490).

Oralidade no PNLD

Com a exaustiva jornada de trabalho dos professores da educação básica, os livros


didáticos ocupam um espaço significativo no planejamento e execução das aulas e atividades. O
Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), programa do MEC, é responsável pela
avaliação e distribuição desse material nas escolas públicas da rede básica federal, estadual, municipal
e distrital. Em razão disso, buscamos deter nossa análise aos livros do PNLD 2018, o mais recente
para o Ensino Médio.
Para uma coleção ser aprovada no PNLD 2018, é indispensável que a oralidade seja um
dos eixos trabalhados nos livros de Língua Portuguesa. De acordo com os critérios de seleção, as
atividades desse eixo devem:

a. favorecer a reflexão sobre as diferenças e semelhanças que se estabelecem entre as


modalidades oral e escrita, combatendo os preconceitos associados às variedades orais;
b. explorar gêneros orais adequados a situações comunicativas diversificadas,
particularmente os mais relevantes, seja para a expressão pública de opinião, seja para o
desenvolvimento da autonomia relativa nos estudos (entrevista, jornal falado, debate,
seminário, exposição oral etc.);
472

c. desenvolver a capacidade de escuta atenta e compreensiva do estudante;


d. orientar a construção do plano textual dos gêneros orais (critérios de seleção e
hierarquização de informações, padrões de organização geral, recursos de coesão). (BRASIL,
2015, p. 37 - 38).

Além disso, as resenhas divulgadas das coleções analisadas contam com uma seção
responsável para verificar o tratamento da oralidade; essas devem ser lidas pelos professores na hora
de escolherem a coleção que será adotada na escola em que lecionam.

SEMINÁRIO COMO EVENTO

Alguns autores utilizam os termos “seminário” e “exposição oral” como sinônimos. No


texto clássico “A exposição oral”, de Dolz et al. (2004), a exposição oral parece ser assemelhada com
o que, no Brasil, denominam de seminário. Segundo Goulart (2005), o seminário consiste em uma
atividade escolar ligada a um universo mais complexo do qual o aluno deve se apropriar, por meio da
leitura e da compreensão de textos, de novos conteúdos e de novas expressões, colocando-se, dessa
forma, como sujeito enunciador desse evento. Consideramos o seminário como um evento de
letramento, constituído por gêneros diversos, tais como exposição oral (o momento central de
execução do seminário), roteiro, esquema, resumo, discussão, etc (SILVA, 2013).
Nas propostas de LD, o seminário, tomado como objeto de ensino, é considerado como
um gênero. Ao nosso ver, o que alguns autores como seminário nesses materiais se tratam, em parte,
de exposição oral. Feito esse esclarecimento, tendo em vista o objetivo deste artigo, bem como o
corpus de estudo, utilizaremos a terminologia “seminário” empregada nos livros didáticos, mas
entendo esse “gênero” como exposição oral.
Partindo da concepção bakhtiniana de gênero textual-discursivo, que são tipos
relativamente estáveis de enunciados produzidos nas práticas sociais, o gênero em foco é definido
como:

um gênero textual público, relativamente formal e específico, no qual um expositor


especialista dirige-se a um auditório, de maneira (explicitamente) estruturada, para lhe
transmitir informações, descrever-lhe ou lhe explicar alguma coisa. (DOLZ; SCHNEUWLY;
PIETRO; ZAHND, 2004, p. 185).

Adotamos ainda, a compreensão de gêneros como “megainstrumentos” (SCHNEUWLY,


2004) que tornam possível a produção e compreensão dos mais diversos textos em circulação. Sendo
um gênero do domínio escolar/acadêmico, a exposição oral/seminário é comumente usada como
atividade avaliativa para as diversas áreas do conhecimento, mas raramente se torna objeto de ensino.
473

Por essa razão, os alunos aprendem a apresentar seminários de maneira intuitiva e, na maioria das
vezes, não conseguem identificar melhorias, pois dificilmente recebem uma avaliação precisa.
Evidenciamos aqui que a produção de um seminário, como um evento mais amplo do que
o gênero exposição oral, requer do aluno uma série de ações que vão além da exposição oral, mas que
também são cruciais para a produção dessa. Há, assim, três etapas básicas envolvidas no evento
seminário: o planejamento, em que se são feitas pesquisas sobre os temas, a seleção de conteúdo, a
confecção de slides ou cartazes e os possíveis ensaios da apresentação; a exposição, em que a
exposição acontece, mobilizando recursos linguísticos e extralinguísticos; e a avaliação, com critérios
pré-estabelecidos.

ORIENTAÇÕES DE LD PARA A REALIZAÇÃO DE SEMINÁRIOS

Considerando-se o aporte teórico apresentado, especialmente no que diz respeito aos três
elementos caracterizadores dos gêneros (BAKHTIN, 2003), analisamos as orientações para a
produção de seminários a partir de três categorias básicas para análises de gêneros em geral:
planejamento e execução do conteúdo temático; planejamento e execução da estrutura
composicional, incluindo a organização dos turnos de fala e sua hierarquização, haja vista tratarem-
se de situações de predomínio da oralidade; estilo, que delimitaremos como planejamento e execução
de “aspectos linguísticos”. Dada a dinâmica do seminário, com base em Dolz et al. (2004),
acrescentamos a categoria planejamento e execução de aspectos extralinguísticos. Teceremos
reflexões, ainda, acerca dos recursos de apoio e de questões operacionais envolvidas na situação
comunicativa em foco.
Como já mencionado, foram selecionadas para a análise três coleções de LD de Língua
Portuguesa do Ensino Médio, aprovadas no PNLD/2018, quais sejam:

1. Português contemporâneo- Diálogo; reflexão e uso (doravante, COL 01)

2. Trilhas e Tramas (doravante, COL 02)

3. Ser protagonista (doravante, COL 03)

Essas coleções apresentam, cada uma, uma proposta para a produção de seminários
considerando-se os três volumes, sendo em cada coleção a proposta realizada em uma única série. É
importante destacar que, em todos esses casos, apresentam-se etapas de planejamento, execução e
avaliação do seminário, o que revela influência de uma abordagem sociointeracionista para os
gêneros, bem como a tentativa de atendimento dos critérios do PNLD. Além disso, o reconhecimento
de tais etapas é coerente com a própria natureza do seminário como um evento constituído por vários
gêneros (ou, sob outras perspectivas, como um “hipergênero”).
474

Esta análise recairá sobre as duas primeiras etapas, pois consideramos que a avaliação de
gêneros e eventos que envolvem a oralidade merecem um capítulo à parte. Na COL 01, no volume
da 1ª série, propõe-se como tema para o seminário a “supervalorização da juventude”. A proposta é
dividida em duas etapas: a) “antes de apresentar o seminário” (planejamento); b) “após apresentar o
seminário” (execução).
Na primeira etapa, predominam orientações relativas à dimensão do conteúdo do
seminário, desde a sua seleção até sua organização. Esse é um movimento essencial no ensino-
aprendizagem de gêneros orais, pois, sem a consciência dos alunos acerca da validade das fontes de
informações e da retextualização a partir dessas fontes, os seminários se resumirão a simples repetição
de outros textos, como uma atividade avaliativa, apenas.
Por outro lado, as orientações relativas à estruturação do texto são vagas, limitando-se à
conexão entre as falas e à gestão do tempo. Essas orientações, obviamente, contribuem para a
qualidade da apresentação, mas outras, como a hierarquização de conteúdos (DOLZ et al., 2004) e a
criação de estratégias para prender a atenção do público (SILVA, 2013), são igualmente necessárias.
Na Fig. 1, a seguir, é possível visualizar as orientações para a etapa de planejamento. No
Quadro 1, essas orientações encontram-se transcritas e categorizadas.

Fig. 1: COL 01 - Planejamento

Fonte: COL 01

Quadro 1: COL 01 - Orientações para o planejamento

COL 01 - Orientações para o planejamento Conteúdo Estrutura

Definam a questão que será foco do seminário X

Definir qual será a ordem das falas, quem será responsável por apresentar o X
tema, quem dará a sequência a cada fala, quem vai encerrar a apresentação
475

Buscar fontes confiáveis de pesquisa: artigos de revistas e jornais, portais e X


sites da internet, livros, conversas com especialistas do assunto

Selecionar textos que julgarem mais relevantes e que fundamentarão a X


apresentação do grupo

Fundamentem a argumentação com dados, fatos e exemplos X

Fazer resumos e anotações dos tópicos centrais dos textos lidos e X


compartilhem com o grupo

Discutam ideias e definam uma linha de argumentação, isto é, um fio X


condutor que possa guiar a apresentação: como ela começa, como se
desenvolve e como se encerra

Elaborem um roteiro para a apresentação e conectem as falas dos X


participantes, dando continuidade e fluência à apresentação

Ensaiem as falas em grupo, observando o tempo máximo estipulado para a X


apresentação de cada participante

Tentem prever questões que podem surgir do público e, antecipando-se a elas, X


pensem em possibilidades de respostas

Fonte: COL 01

A proposta apresenta, ainda, orientações quanto à preparação de material de apoio para


o público, indicando possibilidades (“slides; cartazes; textos para escrever na lousa, etc”), bem como
modo de apresentação do conteúdo em linguagem objetiva, em forma de tópicos, com recursos visuais
e referências bibliográficas. Tratam-se de orientações que auxiliam não só os apresentadores e o
público, como podem levam a todos a pensar o seminário como um espaço de interlocução, de
compreensão entre os agentes. Entre as três propostas analisadas, essa é a única que menciona de
modo explícito a forma, ou seja, como preparar materiais de apoio.
Outras orientações na proposta em análise se referem às questões operacionais – a
imprevistos como falta de luz, problemas técnicos, etc. Também essa é a única, entre as três propostas,
que aborda questões operacionais mais detalhadamente.
Em se tratando da etapa de execução, as orientações se voltam especialmente para
aspectos linguísticos e extralinguísticos, com o acréscimo das indicações para filmar o seminário, de
modo que ele possa ser assistido e avaliado, e para fotografar o evento. Resumidamente, observamos
que orientações relativas às quatro categorias são contempladas, apesar da ressalva já destacada
anteriormente quanto à estrutura composicional. Além disso, ter a possibilidade sugerida de assistir
e avaliar o seminário constitui um dos procedimentos para o desenvolvimento de capacidades
relativas a esse evento de letramento.
476

Assim como anteriormente, na Fig. 2, a seguir, podemos visualizar as orientações para


a etapa de planejamento. No Quadro 2, essas orientações encontram-se transcritas e categorizadas.

Fig. 2: COL 01 - Execução

Fonte: COL 01

Quadro 2: COL 01 - Orientações para a execução

COL 01 - Orientações para a execução Estrutura Aspectos Aspectos


linguísticos extralinguísticos

Procurem falar pausadamente e com clareza x

Leiam o mínimo possível, utilizando o material de x


apoio apenas para fazer conexões com o que está
sendo falado

Ao fazer referência a um slide ou cartaz, evitem ficar x


de costas para o público

Direcionem a fala para o público em geral, alternando x


o olhar entre os espectadores e, assim, evitando olhar
para apenas uma pessoa

Encerrem a fala fazendo alguma relação com a fala do x


apresentador seguinte e comecem a fala retomando o
que foi dito antes e dando sequência ao que o
apresentador anterior disse

Procurem ter uma postura natural e evitem se apoiar x


em paredes, na mesa ou na lousa

Peçam a um colega do grupo que controle o tempo e x


avise quando faltar 1 minuto para o término de cada
fala
477

Usem uma linguagem de acordo com a norma-padrão, x


adequando o grau de formalidade ou informalidade ao
perfil do público. Evitem gírias e expressões de apoio
como né, tipo, tá ligado? e outras

Fonte: COL 01

Na COL 02, no volume da 2ª série, o seminário aparece como uma atividade em conjunto
com o assunto de literatura do módulo – “Romances do Romantismo brasileiro e do Romantismo
Português”. As etapas são nomeadas conforme o conjunto de procedimentos de cada momento: a)
“Pesquisa e preparação” (planejamento) e b) “Realização” (execução).
Na etapa de planejamento da proposta em análise predominam orientações relativas à
estrutura composicional do seminário. Além dessas, é mencionada apenas a escolha de um romance
para apresentação, acerca do conteúdo; a elaboração de um cartaz como recurso de apoio e a sugestão
de gravação e edição do seminário, como uma questão operacional.
Observa-se a influência de uma concepção de texto como estrutura, incoerente com
documentos oficiais (PCN, 1998; BNCC, 2018) e com a abordagem que orienta os critérios de
avaliação do PNLD. Embora haja orientações para elaboração e “correção” de um roteiro,
procedimento essencial e que contribui para a organização do texto oral, em uma das orientações,
diz-se que um dos componentes será o moderador e os demais os apresentadores. Porém, não é
esclarecido qual é o papel do moderador. Ademais, a orientação de que cada um dos apresentadores
“deve ficar responsável pela apresentação de pelo menos um dos aspectos da obra escolhida”
relaciona-se a uma concepção fragmentária de seminário, desprovida de reflexão e de integração. Da
forma como está redigida, como se vê no Quadro 3, a seguir, essa orientação induz ao entendimento
de que o seminário é uma simples soma de partes e cada um responde apenas por sua parte.
As orientações supracitadas se encontram na Fig. 3 e 4 e no Quadro 3, a seguir.

Fig. 3: COL 02 - Planejamento (1) Fig. 4: COL 02 - Planejamento (2)


478

Fonte: COL 02 Fonte: COL 02

Quadro 3: COL 02 - Orientações para o planejamento

COL 02 - Orientações para o planejamento Conteúdo Estrutura

Reúnam-se em grupos de pelo menos quatro alunos. Cada grupo deve X


escolher, com a ajuda do professor, um dos romances da relação ou outro
mesmo período literário. Os títulos também podem ser sorteados pelo
professor

Um dos componentes do grupo deve ser o moderador, que será o responsável X


por conduzir a apresentação do seu grupo. Os outros integrantes serão os
expositores.

Cada um deve ficar responsável pela apresentação de pelo menos um dos X


aspectos da obra escolhida

Após a escolha da obra e da leitura individual, reúna-se com seu grupo e X


preparem um roteiro para orientar a apresentação à turma. Para elaborar o
roteiro, observem e registrem os seguintes aspectos da obra lida (...)

Antes da exposição oral, o grupo deve reler o roteiro da apresentação e fazer as X


correções necessárias. Todos os integrantes do grupo devem participar dessa
etapa

Fonte: COL 02

Na etapa de execução, são contempladas as dimensões de conteúdo, de estrutura, de


aspectos linguísticos e de aspectos extralinguísticos. Sobre esses dois últimos, são apresentadas
479

orientações necessárias para o seminário, como o uso de recursos linguísticos para o estabelecimento
da clareza e da coesão, assim como a adoção de estratégias e de postura adequada.
Entretanto, na dimensão do conteúdo, a única orientação que consta diz respeito à
introdução do seminário por meio de um roteiro; ou seja, nem no planejamento, nem na execução,
dá-se enfoque à seleção, discussão, organização e sistematização do conteúdo. Como atestado no
Quadro 4, novamente predominam orientações quanto à estrutura composicional, voltadas para a
execução de procedimentos para a abertura e encerramento dos turnos. “Como estruturar cada um
dos turnos de fala?” Essa é uma pergunta cuja resposta não encontra respaldo nas orientações da
proposta analisada.
Fig. 5: COL 02 - Execução

Fonte: COL 02

Quadro 4: COL 02 - Orientações para a execução

COL 02 - Orientações para a execução Conteúdo Estrutura Aspectos Aspectos


linguísticos extralinguísticos

Antes do início da atividade o moderador X


deve: contar aos colegas o título da obra
escolhida e o nome do autor, com pequena
bibliografia, além de expor brevemente o
tema do romance escolhido; justificar
resumidamente a importância do romance
escolhido dentro do Romantismo; relacioná-
lo ao conteúdo estudado e, se possível, à
cultura contemporânea e esclarecer como
vai ser feita a apresentação

Em seguida, cada um dos expositores X


apresenta pelo menos um dos aspectos da
obra, definidos na etapa da preparação

Durante a apresentação, o expositor deve X


estabelecer interação com a plateia
480

Utilizar recursos para tomar a palavra X

Organizar o discurso claramente, X X


hierarquizando as informações e utilizando
palavras e expressões que ajudem a dar
sequência à exposição

Empregar a linguagem formal, em falas X


claras objetivas e concisas

Manter a postura adequada e utilizar gestos X


e expressões corporais que favoreçam a
apresentação

Encerrar a exposição apropriadamente e X


agradecer ao público

Ao final da apresentação, o moderador do X


grupo deve perguntar à turma se é
necessário retomar algum aspecto e
apresentar novas informações. Os colegas
do grupo devem auxiliar nesse momento

Todos os grupos devem respeitar o tempo X


de apresentação combinado previamente

Fonte: COL 02

Na COL 03, no volume da 3ª série, propõe-se algum tema relacionado aos direitos
humanos. A proposta é dividida nas seguintes etapas: a) “Proposta” (delimitação do tema); b)
“Planejamento”; c) “Elaboração”. Nessa proposta, há um quadro com as condições de produção do
gênero (cf. Fig. 6), o que não aparece em nenhuma dentre as outras coleções. A partir de Bronckart
(1999), consideramos que as condições de produção constituem o ponto de partida para a
compreensão de uma situação comunicativa e dos gêneros relacionados a ela. No contexto do LD de
Língua Portuguesa, a explicitação das condições de produção provoca uma discussão sobre o objeto
de ensino, as definições e práticas de letramento associadas.
Além das condições de produção, há destaque também para a dimensão do conteúdo, com
enfoque na seleção de materiais para pesquisa e na organização de informações. Vale ressaltar, ainda,
as orientações acerca da preparação de material de apoio, que se referem à definição de materiais de
apoio a serem utilizados, ao cumprimento da própria “parte” na preparação do material.
Por fim, no tocante à estrutura, há a orientação para a elaboração conjunta de um roteiro
e depois de um roteiro individual (seguido de ensaio). A realização e a ordem dessas ações,
apresentadas didaticamente, são significativas para a compreensão do seminário como um trabalho
conjunto (e não soma de partes), em que cada um, por outro lado, assume o seu papel. Entretanto,
481

consideramos que outros elementos estruturais tornariam a proposta de produção textual em análise
mais consistente.

Fig. 6: COL 03 - Planejamento (1) Fig. 7: COL 03 - Planejamento (2)

Fonte: COL 03 Fonte: COL 03

Quadro 5: COL 03 - Orientações para o planejamento

COL 03 - Orientações para o planejamento Conteúdo Estrutura

Defina e delimite, com seu grupo, o tema escolhido: selecione um tema X


entre os sugeridos e dê um subtítulo que o especifique ainda mais

Faça uma lista de aspectos do tema que podem ser abordados pelo X
grupo

Escolha uma tarefa de pesquisa. (O grupo deve dividir a lista de X


aspectos do tema entre seus integrantes para que cada um realize uma
pesquisa individual)

Realize a pesquisa individual: Busque no mínimo três fontes diferentes X


para pesquisar o aspecto que lhe coube

Anote todas as informações que puder. Cite as fontes consultadas X

Tome cuidado com textos da internet. Verifique se o site é confiável, X


pesquise o currículo de seus colaboradores na Plataforma Lattes,
disponível em: <http://linkte.me/rthqo>. Acesso em: 10 mar. 2016. Se
nesse site não constar o currículo do colaborador, isso pode ser um
indício de que ele não está plenamente integrado à comunidade
científica

Partilhem as informações e impressões resultantes das pesquisas X


individuais
482

Definam a visão do grupo sobre o tema X

Determinem a fala de cada um e o respectivo tempo X

Realizem um roteiro completo do texto oral a ser apresentado pelo X


grupo

Faça um roteiro escrito de sua fala e ensaie sua participação X

Fonte: COL 03

Ao contrário das orientações apresentadas na etapa de planejamento – apesar das


ressalvas –, na etapa de execução as orientações se limitam à indicação da gestão do tempo (o último
tópico, na Fig. 8, refere-se, na verdade, à etapa de avaliação). Portanto, observamos que a dimensão
estrutural não foi suficientemente contemplada na proposta da COL 03, tampouco as dimensões
linguística e extralinguística. Sobre essas duas últimas, há apenas um box denominado “Atenção”,
localizado entre o Planejamento e a Elaboração, em que é abordada a voz e a formalidade do aluno
durante a apresentação.
Fig. 8: COL 03 - Execução

Fonte: COL 03

Quadro 6: COL 03 - Orientações para a execução

COL 03 - Orientações para a execução Estrutura

Agora você já pode iniciar sua participação no seminário X

O grupo terá de 10 a 30 minutos para se apresentar. Esse tempo será previamente X


combinado com o professor

Os últimos minutos devem ser reservados para as perguntas do público e as respostas dos X
expositores

Fonte: COL 03

Considerando-se o conjunto das etapas de planejamento e de execução em cada uma das


coleções, constatamos tratamentos diferentes entre si em cada um dos casos. Na COL 01, dimensões
genéricas variadas são contempladas, com a ressalva para o detalhamento de elementos estruturais.
483

A lacuna quanto aos elementos estruturais se apresenta também na COL 03, em que, assim como na
COL 01, o conteúdo é o elemento mais destacado na etapa de planejamento. Esse distanciamento
quanto às orientações quanto à estrutura – seria tentativa de distanciamento da tradição? – é o oposto
do que ocorre na COL 02, cuja proposta indica fortemente influência de uma abordagem estrutural.
Os dados apresentados indicam que, em todos os casos, há encaminhamentos coerentes e
relevantes para a realização do seminário. Por outro lado, vemos também lacunas que podem
dificultar o conhecimento e o domínio do seminário. Obviamente, essas lacunas podem ser sanadas a
partir do trabalho docente. Porém, para isso faz-se necessária uma formação que permita às
professoras e aos professores de Língua Portuguesa refletir e discutir acerca da oralidade, das suas
relações com a escrita, bem como dos elementos multimodais envolvidos na produção oral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante destacar que nossa análise não busca desqualificar ou desaprovar nenhuma
das coleções, apenas levantar questões relevantes para aprofundar as discussões sobre o ensino de
oralidade. Nesse sentido, as implicações desses resultados revelam um certo desconhecimento
relativo à oralidade como objeto de ensino (DOLZ et al., 2004), reforçando a concepção do oral como
algo não planejado e intuitivo, totalmente desvinculado da escrita e, consequentemente, das práticas
de letramento. Observam-se, também, indefinições quanto às concepções de seminário e à
compreensão das suas dimensões ensináveis.
Uma vez que muitos professores da rede básica não tiveram acesso a uma formação que
trouxesse a oralidade como um objeto de ensino e, consequentemente, terão dificuldades na
transposição de assuntos relacionados a essa modalidade, é importante que os livros didáticos
auxiliem não só o aluno, mas também o docente que irá orientar e avaliar as atividades. Por isso,
ressaltamos, mais uma vez, a importância de produções e análises que contemplem atividades com
gêneros orais em materiais didáticos da rede básica, visto que a relevância de um trabalho de
qualidade sobre tema já é reconhecida em todos os documentos oficiais de ensino do país. É por meio
dessas investigações que, paulatinamente, essas discussões que permeiam a área dos Estudos
Linguísticos podem ganhar cada vez mais aplicabilidade nas salas de aulas do Brasil. Além disso,
vale ressaltar, que esse trabalho será aprofundado posteriormente, visando analisar, também, a
avaliação dessas propostas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
484

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da
Educação, 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Edital de convocação 04/2015 - CGPLI. Brasília, DF: Ministério
da Educação, 2015. Assunto: PNLD 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia do livro didático 2018:
língua portuguesa, Ensino Médio. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Brasília, DF:


Ministério da Educação, 1998.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo


sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard; PIETRO, Jean-François de; ZAHND, Gabrielle . A


exposição oral. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola.
Campinas: Mercado de Letras, 2004. p.183-211.

GOULART, Claudia. As Práticas orais na escola: o seminário como objeto de ensino. 2005. 206 f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem,
Campinas, SP.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. [Tradução e


organização: Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro]. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

Livros didáticos analisados

BARRETO, Ricardo; MARTINS, Matheus; STRECKER, Heidi; PENTEADO, Ana Elisa; ABREU-
TARDELLI, Lília; PRADO, Manuela; CLETO, Mirella; BERGAMIN, Cecília. Ser protagonista:
língua portuguesa, 3º ano: ensino médio. [Editora responsável: Andressa Monique Paiva]. 3. ed. São
Paulo: Edições SM, 2016.

CEREJA, William; VIANNA, Carolina; DAMIEN, Christiane. Português contemporâneo: diálogo,


reflexão e uso, volume 1. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

SETTE, Graça; RIBEIRO, Ivone; TRAVALHA, Márcia; STARLING, Rozário. Português: trilhas e
tramas, volume 2. 2. ed. São Paulo: Leya, 2016.
485

O PROCESSO DA ESCRITA NA PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS DO ENSINO


FUNDAMENTAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA

Eline Eduarda Samuel Barros143


RESUMO
Este trabalho objetiva fazer uma análise do processo de escrita dos alunos do ensino fundamental,
observados em contextos multiculturais (Brasil e Peru). Para isso, temos como objeto de pesquisa as
produções textuais dos alunos brasileiros e peruanos, e como objeto de análise o processo de escrita
deles. No que se refere ao ensino de Produção Textual, analisaremos como se dá as diferenças e
semelhanças entre as produções de países diferentes, pois apesar de terem línguas diferentes podem
ter alguma proximidade na escrita. Como metodologia, temos uma pesquisa etnográfica de caráter
qualitativo. As coletas dos dados foram feitas por meio de idas às escolas e eles inserem-se no projeto
intitulado O trabalho com a escrita no ensino fundamental: uma análise comparativa entre as
produções brasileiras e peruanas. Com o corpus selecionado, duas produções textuais, uma do Brasil
e uma do Peru, analisaremos o trabalho com a reescrita de um mesmo texto, com o intuito de entender
como as mudanças foram ocorrendo, como o aluno foi articulando o seu texto até chegar a um texto
final que ele considera estar no ponto ideal. Pretendemos, assim, analisar a reescrita dos alunos do
Brasil e do Peru com a finalidade de comparar as práticas de escrita desses dois países. Com base
nisso, buscaremos responder ao seguinte questionamento: Como o trabalho com a reescrita pode
modificar a produção textual final do aluno? Por meio desse questionamento, podemos observar uma
evolução na escrita do aluno de uma produção textual para outra, sendo possível ver resultados
significativos quanto à informatividade do texto. Para tanto, utilizaremos como suporte teórico
Calkins (1989) com a sua abordagem sobre o processo de escrita, Certeau (1998) ressaltando a
importância do ato de escrever, Riolfi (2008) mostrando a relevância do papel do professor no ensino
da escrita, Koch (2008) abordando sobre a coesão textual.

Palavras-chave: Escrita. Produção Textual. Processos.

INTRODUÇÃO
O tema proposto surgiu a partir de uma bolsa de pesquisa oferecida para a participação
de um projeto internacional, que contava com a participação de mais duas discentes de Letras. O
projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Maranhão – FAPEMA. Trata-se de um projeto amplo intitulado Práticas Escolares
em Contextos Rurais e/ou Multiculturais: um estudo sobre a leitura e escrita no Brasil e Peru, cujo
desenvolvimento dava-se por meio de planos individuais. No plano individual apresentado para
desenvolvimento, seria necessário acompanhar as aulas de produção textual do ensino fundamental,
durante um mês, tanto do Brasil quanto do Peru, para coletar as produções textuais dos alunos e tentar
compreender como acontecia o processo de escrita, a fim de fazer uma comparação entre as produções

143
Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFMA, campus Bacabal – MA. E-mail: elineeduarda8@gmail.com
486

textuais do Brasil e do Peru. Portanto, partindo desse plano de pesquisa, nasceu o seguinte título: O
processo da escrita na produção textual de alunos do Ensino Fundamental: uma análise comparativa.
Buscaremos fazer uma comparação, no que diz respeito ao processo da escrita, das
produções brasileiras e peruanas, tomando como processo de escrita as mudanças que foram sendo
realizadas até o aluno obter a sua produção final. Além disso, levaremos em consideração também
que são países diferentes que podem ou não apresentar semelhanças no modo de produzir um texto.
Trata-se de olhar não só para a produção escrita de alunos do ensino fundamental, mas de olhar para
a produção de jovens pertencentes a comunidades multiculturais e/ou rurais, visto que são jovens
pertencentes a comunidades periféricas que precisam ser ouvidas.
Nesta pesquisa, observaremos o texto para além da sua materialidade, vendo o autor/aluno
como sujeito que se coloca dentro do texto a partir do momento em que de uma reescrita para outra,
na produção do seu texto, ele decide que assunto vai abordar, como vai abordar e que nesse momento
da reescrita escolhe o que vai permanecer e o que vai retirar.
O que nos instigou a aprofundarmos ainda mais nessa temática foi o fato de, na maioria
das vezes, durante as observações das aulas de produção textual, percebermos que os alunos não
tinham muita paciência para reescrever o seu texto, o que fazia com que muitos não achassem
importante reescrever e fazer direto a produção final. Dessa maneira, surgiu a seguinte pergunta
norteadora de pesquisa: Como o trabalho com a reescrita pode modificar a produção textual final do
aluno?
Para tentar responder a essa pergunta, temos como objetivo geral comparar diversas
versões de texto produzidas por alunos do Brasil e do Peru e analisar como as suas reescritas foram
sendo construídas.
Para tanto, pretendemos especificamente: 1) Analisar, comparativamente, textos
produzidos por alunos do Ensino Fundamental do Brasil e do Peru em contextos rurais e/ou
multiculturais; 2) Verificar como a produção de diferentes versões de texto no Brasil e no Peru
interveem qualitativamente no texto produzido; e 3) Realizar um diagnóstico das produções escritas
de alunos da educação básica de Tumbes e Olho d’Água das Cunhãs em contextos rurais e/ou
multiculturais.
Outro ponto a ser discutido quanto à escrita, é a ideia que o aluno tem de que na primeira
versão do texto já se deve apresentar um texto perfeito em relação às competências que envolvem a
escrita. O pensamento de que o texto só poderá ser realmente bom se não houver erros gramaticais e
ortográficos é o que acaba atrapalhando a concentração de alguns alunos durante a produção textual.
Portanto, no momento que o professor for propor para os alunos as etapas propostas pela Calkins
(1989), faz-se necessário intervir nesse ponto, enfatizando para os alunos que, no primeiro momento,
487

o essencial é que eles coloquem no papel aquilo que desejam falar e só depois, por meio do processo
da escrita, eles aperfeiçoem o texto às regras gramaticais.

REFERENCIAL TEÓRICO
Vale ressaltarmos a importância do ato de escrever, “Mas então, o que é escrever?
Designo por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em
construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado [...]”
(CERTEAU, 1998, p. 225). O autor traz um conceito aparentemente simples sobre escrever, é o ato
de pegar a folha em branco e construir um texto, mas o que está posto em evidência é o valor que
esse texto tem, não é um texto qualquer, é um texto que tem poder para além do papel, pois, ele é
capaz de modificar a realidade. “[...] Pelo contrário, o jogo escriturístico, produção de um sistema,
espaço de formalização, tem como “sentido” remeter à realidade de que se distinguiu em vista de
mudá-la144. Tem como alvo uma eficácia social. Atua sobre sua exterioridade [...]” (CERTEAU,
1998, p. 226)
A importância que existe no ato de ensinar a escrever, não se trata apenas de alfabetizar
o aluno, mas de incentivá-lo a ter uma fruição maior no ato de escrever, “[...] A entrada no mundo da
escrita não se limita e não se realiza somente pelo ato de ser alfabetizado. Ela requer e constrói, ao
mesmo tempo, um domínio simbólico e reflexivo da linguagem”. (RIOLFI, 2008, p. 122).
Com isso, ressaltamos a importância de sempre motivar o aluno para escrever e refletir
sobre o mundo em que vive, fazendo com que desde criança pense e expresse no papel aquilo que vê
e pensa, pois assim será possível o seu interesse pela escrita permanecer vivo, para além das
dificuldades que serão impostas a ele no ensino médio e no ensino superior.
A autora Calkins (1989), relata o que aconteceu com ela, como foi o seu desenvolvimento
com a escrita. Ela explica que quando começou a estudar raramente a escrita era ensinada, pois, na
maioria das vezes, ela era exigida. Por isso, enfatiza que o foco não estava no processo, mas no
produto final. Além disso, destaca que jamais algum professor chegou a observar sua escrita, a saber
das suas ideias, das suas inquietações, muito menos das suas dificuldades em expressar o que sentia
no papel. Dessa forma, destaca quão importante é dar uma maior visibilidade para o processo de
escrita.
Com base no processo de escrita, Calkins propõe criar ambientes de sala de aula que nos
permitam escutar as crianças. Portanto, os alunos terão que ter mais tempo para conseguirem executar
a tarefa com maior excelência, bem como um ambiente agradável que permita isso, por esse motivo

144
Grifo do autor
488

ela enfatiza que o “[...] processo de escrita requer um ritmo e estrutura de sala de aula radicalmente
diferentes daqueles utilizados em nossas escolas [...].” (CALKINS, 1989, p. 36)
De maneira geral e clara, a oficina de escrita funciona com um espaço onde o aluno irá
desenvolver sua escrita, afim de olhá-la de uma forma diferente, não como uma exigência, mas como
algo que desperte o seu desejo em expressar-se. Por isso, que a autora Calkins propõe algo diferente,
etapas de escrita, tais como: ensaio, esboço, revisão e edição.

COLETA DOS DADOS


Esta pesquisa foi realizada apresentando duas grandes etapas, sendo uma a coleta dos
dados e outra a análise comparativa. Para isso, foram efetuadas, por meio de um levantamento
bibliográfico sobre o processo de escrita, a leitura e sistematização das leituras realizadas.
Posteriormente, a coleta dos dados foi executada com a ida às escolas, peruanas e brasileiras, bem
como o registro das aulas observadas por meio dos diários de campo, e com a coleta e a digitalização
dos textos produzidos nas aulas, conseguimos realizar a análise comparativa das produções textuais.

Análise dos dados


Por meio da coleta dos diários de campo e das produções textuais, foram selecionadas as
duas produções, cuja temática são respectivamente: Los benefícios de los programas de televisión e
Páscoa. Para melhor apresentar a análise, mostraremos as etapas da escrita do aluno e faremos
comentários acerca de cada etapa (chuva de ideias, rascunho e produção final).
No que diz respeito às produções, faz-se necessário uma breve explicação ao que foi
proposto em sala de aula pela professora. Sendo assim, falaremos sobre os diários de campo
observados no dia da produção.
No primeiro diário de campo, a professora propõe aos alunos que eles elaborem a primeira
versão do texto (borrador) com tema e tipologia textuais livres, depois explicou que poderia ser
argumentativo, dissertativo, narrativo, etc, e que eles teriam que fazer a lluvia de ideas (chuva de
ideias) para poder selecionar as ideias que fossem principais.
No segundo diário de campo, a professora entrega para os alunos o borrador (rascunho)
que eles produziram na primeira aula voltada para a temática e pede para que eles façam a versão
final do texto, mas que eles devem fazer isso sem alterar o borrador, devem fazer um exercício de
leitura e só na versão que fossem produzir adicionassem ou retirassem informações que continham
no borrador.
Partindo dessa explicação, podemos iniciar a análise da primeira produção selecionada,
cujo título é: Los benefícios de los programas de televisión.
489

Figura 1 - Chuva de ideias

Fonte: autora

Figura 1.1 - Tradução


01 Chuva de ideias

02 É um elemento importante.

03 É um grande meio de comunicação.

04 Ajuda os ensinamentos.
05 É benéfico.

06 Deve existir mais programas de educação.


07 Ajuda a ter um melhor conhecimento.

08 Ajuda a estar ciente de tudo.

Fonte: autora

No exercício da lluvia de ideas, o aluno é convidado a pôr no papel tudo que vem a sua
mente sobre o tema que quer abordar, ou seja, o objetivo é o aluno colocar no papel tudo aquilo que
ele pensa sobre um tema e só depois selecionar o que é principal para inserir no seu texto, conforme
afirma Prado:

En síntesis, el TI es una actividad mental consistente en remover todas las ideas (cuantas más
mejor) e impresiones del cerebro, sin ninguna limitación, censura ni cortapisa exterior o
interior, con libertad y espontaneidad. Podría equivaler a una asociación libre de cuanto existe
en el cerebro. El concepto analógico es eminentemente creativo prestándose a
interpretaciones y aplicaciones variadas y divergentes en distintos contextos. (PRADO, 2001,
p.30).
490

Nessa citação o autor fala de TI (Torbellino de Ideas), não é diferente de lluvia de ideas,
pois essa expressão é um sinônimo que surgiu de TI.
Podemos perceber que nas sete frases presentes na chuva de ideias, o aluno inicia com
verbos já conjugados é, ajuda e deve. Vemos o uso da modalidade alética nas linhas 02, 03, 04, 05,
07 e 08, na qual o aluno ao formular as frases coloca nelas um grau de certeza, pois nelas ele afirma
como se tivesse a certeza do que está falando como, por exemplo, na linha 03: “é um grande meio de
comunicação”.
Há uma única frase que contém a modalidade deôntica, que é quando o aluno escreve na
linha 06, “deve existir mais programas de educação”. Nessa frase, ele utiliza o verbo dever no
imperativo para expressar uma ordem. Segundo Neves (2006, p.56) a modalidade deôntica é um
“enunciado em que há manifestação de uma regra moral, social a ser seguida”. Sendo, assim, o uso
da modalidade deôntica marca o que seria uma espécie de solução ao problema apresentado. A partir
das frases da chuva de ideias, veremos como suas certezas aparecem no rascunho e na produção final.
Essa etapa do processo pode ser considerada a etapa que Calkins (1989) nomeia de ensaio,
que é o momento em que o aluno vai decidir qual tema abordar, ou seja, ele vai planejar o seu texto.
Ela afirma ser “um modo de vida”, pois as pessoas que escrevem as estórias acreditam que elas
existem, vendo assim estórias em potencial, portanto, todo tema é válido.

Figura 2 - Rascunho

Fonte: autora
491

Figura 2.1 – Tradução


01 Os benefícios dos programas de televisão

02 Tem como inciativa que o público veja o benefício dos programas de televisão.

03 Na atualidade a televisão tem se tornado um elemento importante para a vida coti-


04 diana do homem, é catalogada como um grande meio de comunicação.

05 A televisão é um grande benefício que existem propagandas ou programas que po-


06 dem ensinar as crianças, assim obtendo melhores conhecimentos e ensinamentos.

07 Educar com televisão é um meio benéfico já que existem programas que podem

08 ensinar e podem prevenir a tecnologia audiovisual como material didático integra-

09 do nas diferentes áreas de ensinamentos.

10 Para finalizar sobre os benefícios da televisão podemos dizer que é muito boa para

11 nossa vida e é uma ferramenta de aprendizagem para os jovens de hoje.


Fonte: autora

Fazendo uma comparação entre a chuva de ideias e o rascunho, podemos observar que
das 07 frases escritas, somente duas não aparecem no rascunho. Observamos que a frase contida na
linha 2 da chuva de ideias está no segundo parágrafo do rascunho, linha 03, “elemento importante”.
E, que a frase da linha 03 presente na chuva de ideias está presente também no segundo parágrafo do
rascunho, linha 04, “um grande meio de comunicação”. A frase da linha 04 da chuva de ideias
aparece no terceiro parágrafo, linha 05 do rascunho: “é um meio benéfico”. Uma das frases que o
aluno não utilizou da chuva de ideias foi a frase da linha 06, ela não aparece em nenhum momento
no rascunho, mas o aluno poderia ter utilizado em sua conclusão, como uma proposta. A frase
presente na linha 07 da chuva de ideias aparece também no terceiro parágrafo, linha 06, “obtendo
melhores conhecimentos”. Por fim, temos a frase da linha 08 da chuva de ideias, que não aparece no
rascunho.
O tema escolhido pelo aluno é “Os benefícios dos programas de televisão”, e a partir do
título do texto, já podemos compreender qual deve ser o seu posicionamento em relação aos
programas de televisão. O aluno divide seu texto em cinco parágrafos pequenos, nesses parágrafos
ele tenta explicar por que os programas de televisão têm benefícios, por exemplo, quando ele fala no
terceiro parágrafo nas linhas 05 e 06 que pode ensinar as crianças os fazendo terem mais
conhecimentos.
No quarto parágrafo, o aluno não traz exemplos de programas que podem ensinar, apenas
diz nas linhas 08 e 09 que “existem” programas. Nesse mesmo parágrafo, o aluno se contradiz quando
diz que os programas de televisão podem prevenir a tecnologia audiovisual como material didático
integrado, podemos perceber que o aluno utiliza um verbo de maneira equivocada e acaba deixando
492

a frase contraditória, pois ele estava falando dos benefícios que os programas podem trazer. Para esta
situação, Perelman (2014) afirma:

[...] duas proposições são ditas contraditórias, num sistema formalizado, quando, sendo uma
a negação da outra, supõe-se que, cada vez que uma delas pode aplicar-se a uma situação a
outra também o pode. Apresentar proposições como contraditórias é tratá-las como se, sendo
a negação uma da outra, elas fizessem parte de um sistema formalizado. Mostrar a
incompatibilidade de dois enunciados é mostrar a existência de circunstâncias que tornam
inevitáveis a escolha entre as duas teses em presença. (PERELMAN, 2014, p.228)

Levando em consideração a tipologia textual a qual o aluno enquadrou seu tema, podemos
observar que ele conclui seu texto sem trazer uma solução para o problema apresentado, apenas
reafirma o que já havia dito no decorrer do desenvolvimento, ele diz que os programas de televisão é
muito bom para a nossa vida, mas não diz o motivo, e isso acontece de novo quando diz que é uma
ferramenta de aprendizagem para os jovens, mas não explica como e o porquê de os programas serem
uma ferramenta de aprendizagem.
Com a leitura do borrador, podemos perceber que o texto apresenta um grau de
informatividade baixo e não possui embasamentos para os argumentos, fazendo com que a redação
fique redundante, pois há uma repetição da informação que os programas trazem benefícios, seja para
as crianças ou para os jovens. Conforme afirma Koch (2008, p.86) “a informatividade diz respeito ao
grau de previsibilidade (ou expectabilidade do texto) da informação contida no texto [...] se contiver
apenas informação previsível ou redundante, seu grau de informatividade será baixo”.
Após o esboço, o aluno passa para a terceira etapa proposta por Calkins (1989) que é
chamada de revisão, etapa na qual o aluno vai rever o esboço (borrador) sem alterar nada, vai apenas
fazer a leitura para ver se tem algo que precisa acrescentar ou retirar do texto para poder reelaborá-lo
e produzir a versão final.
Na revisão, a professora propôs que os alunos fizessem a leitura do borrador (rascunho)
para depois pensar no que deveria ser retirado ou acrescentado dentro do texto, mas para isso eles não
poderiam mexer no borrador, apenas fazer a leitura. Dessa forma, alguns alunos se concentraram na
leitura do rascunho, enquanto outros começaram a mexer no rascunho, e a professora avisou
novamente que não podia, depois todos se organizaram e começaram a elaborar a produção final.
Após a revisão, o aluno passa para a última fase proposta por Calkins (1989) que é a
edição, ela fala que o termo edição pode soar estranho, como algo negativo, mas que para ela é a
melhor fase da escrita, pois o escritor vai alterar seu texto e aos poucos vai sentir que ele está mais
forte.

Figura 3 - Produção final


493

Fonte: autora

Figura 3.1 - Tradução


01 Os benefícios dos programas de televisão
02 Tem como iniciativa que o público veja o benefício dos programas de televisão assistindo

03 aos programas educacionais.

04 Na atualidade a televisão tem se tornado um elemento importante para a vida cotidiana

05 do homem. A televisão é catalogada como um grande meio de comunicação de ensino

06 para os jovens e ao mesmo tempo pode fazer propagandas para vender bem e comprar-
07 mos as coisas necessárias que precisamos.

08 A televisão é um grande benefício já que existem propagandas ou programas que podem

09 ensinar as crianças (palavras em inglês, sobre os animais, sobre nossa cultura, etc)

10 obtendo assim melhores conhecimento e ensinamentos.

11 Educar com televisão é um grande benefício já que existem programas logo pode ensi-
12 nar e podem aproveitar a tecnologia audiovisual como material didático integrado às

13 distintas áreas de ensinamentos. Existem muitos programas educativos bastante interes-

14 santes e reportagens informativa e documentos que se pode usar em aula.


494

15 A televisão também nos ajuda a estar informados com o que se passa ao nosso redor (ro-

16 bos, mortes, sequestros, fenômenos naturais, acidentes, etc).

17 Para finalizar sobre os benefícios da televisão podemos dizer que também tem sua parte

18 positiva para nós e é uma ferramenta para a aprendizagem.

Fonte: autora
Nessa última etapa, nomeada pela Calkins (1989) como edição, podemos perceber que o
aluno apresenta um desenvolvimento maior, pois ele acrescenta mais exemplos no texto e em todos
os parágrafos acrescenta mais informações.
Fazendo uma comparação entre o esboço (borrador) e a edição (producción final),
percebemos, inicialmente, que há um aumento no número de parágrafos, pois já não são mais cinco
como no borrador, mas sim seis. No primeiro parágrafo o aluno não muda muita coisa, mas
acrescenta mais uma informação quanto ao seu objetivo, acrescenta que a iniciativa de falar sobre os
benefícios dos programas de televisão não é apenas para que o público assista aos programas de
televisão, linha 02 (esboço), mas que vejam a programas específicos, ou seja, aos programas
educacionais, linha 03 (edição). Nessa mudança, podemos perceber que o aluno tenta especificar mais
sobre o que ele pretende defender no desenvolvimento do seu texto.
No segundo parágrafo, o aluno mantém a mesma informação que havia escrito nas linhas
03 e 04 (esboço), mas na edição ele acrescenta mais informações colocando outra característica da
televisão, que são as propagandas que vendem seus produtos para as pessoas comprarem aquilo que
necessitam, vemos isso nas linhas 06 e 07.
No terceiro parágrafo, o aluno deixa as mesmas palavras que havia escrito nas linhas 05
e 06 do esboço, mas depois da palavra “crianças” ele abre um parênteses para acrescentar informações
sobre o que os programas podem ensinar as crianças, deixando assim o seu parágrafo mais
consistente, vemos isso na linha 09 da edição.
No quarto parágrafo, o aluno mantém as mesmas palavras das linhas 07, 08 e 09 do
esboço, mas acrescenta na edição nas linhas 13 e 14 os tipos de programas educativos que existem,
tais como reportagens informativas e documentos que podem ser utilizados na sala de aula, porém o
aluno comete o deslize de não citar um exemplo de documento que pode ser utilizado.
O quinto parágrafo não contém no esboço, esse é o parágrafo que ele acrescenta na edição,
no qual diz que a televisão além de trazer benefícios educacionais, pode informar sobre o que acontece
e ele acrescenta exemplos, como roubos, sequestros etc. Nesse parágrafo percebemos que o aluno se
preocupa em ressaltar outras finalidades que a televisão possui, além de servir como um princípio
educativo para crianças e jovens.
Por fim, temos o sexto parágrafo que o aluno mantém praticamente a mesma informação,
porém ele diz que “também tem uma parte positiva para nós”, o que faz com que a frase fique
495

redundante, pois já que ela traz benefícios ela tem uma parte positiva para nós. Percebemos que na
conclusão, o aluno continuou sem fazer uma conclusão, o que acabou se tornando redundante,
diferentemente do esboço, no qual ele conseguiu concluir sem ser redundante.

Produção brasileira
Figura 4- Rascunho

Fonte: autora

Figura 4.1 - Transcrição

01 Páscoa

02 Passando pela porta de uma loja me veio

03 uma sensação nítida de tristeza de que aquilo

04 era a porta de uma loja de ovos de

05 páscoa.

06 Saudades do tempo que eu ganhava


07 ovos de páscoa.

08 Saudades de quando minha mãe me da-

09 va ovos de páscoa.

10 Saudades que quando era pequena.

11 hoje só ganho chocolate de colher e olhe lá.

Fonte: autora

A sua produção textual nos faz recordar também do poema “Meus oito anos” escrito por
Casimiro de Abreu, no qual o eu-lírico sente saudade da sua infância querida e já começa o poema
falando “Oh! que saudades eu tenho...”. Talvez, para fazer sua produção, o aluno tenha se recordado
desse poema, fazendo, assim, um intertexto.
496

É interessante as palavras que o aluno utiliza para expressar seus sentimentos, porque
cada palavra traz um tom melancólico para a produção, o que faz com que a gente imagine com
nitidez aquilo que está escrito, podendo até mesmo sentir o mesmo que ele.
A história tem um começo que explica claramente a atenção que o aluno deu à porta de
uma loja de ovos de páscoa, juntamente com o observar dessa porta veio os sentimentos que ele
guardava em relação a essa comemoração festiva. Após explicar o que despertou o sentimento de
tristeza, o aluno repete três vezes a palavra saudade, linha 06, 08 e 10.
Conforme ele vai expressando essa saudade, ele vai tornando-a mais íntima, primeiro a
saudade é de ganhar ovos de páscoa, depois ele já especifica de quem ele tem saudade de receber esse
ovo de páscoa, que é da sua mãe. Por fim, sente saudade de ser pequena, pois tem consciência que na
infância os pais têm uma preocupação maior em alimentar essas histórias festivas.
No final do texto, observamos uma quebra da melancolia para uma certa comicidade no
momento em que o aluno afirma na linha 11 “hoje só ganho chocolate de colher e olhe lá”, dando a
ideia que chocolate de colher não é suficiente para suprir a falta do ovo de páscoa, não só do chocolate
em si, mas do significado que tem ganhar um ovo de páscoa da sua mãe na infância.

Figura 5 - Produção final

Fonte: autora

Figura 5.1 - Transcrição


01 Páscoa

02 Passando pela porta de uma loja tão


03 linda e muito colorida, me veio uma sensa-
497

04 ção nítida de tristeza de que aquilo era uma

05 porta de loja de ovos de páscoa mas

06 não era ovos de páscoa comuns era os mais

07 gostosos, coloridos e recheados da cidade.

08 Saudades do tempo que ganhava ovos de

09 páscoa.

10 Saudades de quando ganhava ovos

11 de páscoa da minha mãe.

12 Saudades de quando eu era pequena

13 E ganhava ovos de páscoa.

14 Saudades de quando eu esperava ansiosamente

15 Para ver os brindes dos ovos de páscoa.


16 Hoje só ganho chocolate de colher e

17 olhe lá.

Fonte: autora

Na produção final, vemos algumas mudanças em relação ao rascunho, percebemos isso


na linha 02, que o aluno caracteriza a porta da loja que viu quando estava passando, não era qualquer
porta, era uma porta linda e muito colorida. Suponhamos, então, que isso fez com que ela olhasse
para a porta da loja.
Nas linhas 06 e 07, observamos um acréscimo também de informações em relação à loja
de ovos de páscoa. Não se tratava de uma loja qualquer, nela havia os ovos de páscoa mais gostosos,
coloridos e recheados da cidade. Percebemos uma super valorização à loja e aos ovos que nela tem.
Nesse momento, temos uma ação que é típica de crianças quando desejam alguma coisa, elas veem
com outros olhos aquilo que tanto quer, trazendo um “ar” de idealização maior.
O aluno acrescenta a quantidade de saudades, repete a palavra quatro vezes. Com isso,
vemos nas linhas 14 e 15, que o aluno acrescenta um elemento novo ao texto, na verdade, uma
sensação nova, ele sente saudade da ansiedade que sentia para abrir os ovos da páscoa e ver os brindes
que vinham dentro.
O final permanece igual, mas com as modificações que ele fez a comicidade que antes
existia passa a não existir mais, pois na versão final ele deu um tom mais fantasioso para sua produção,
diferente do rascunho que era mais melancólico.
Com a reescrita do texto, percebemos que o aluno foi capaz de melhorá-lo trazendo mais
elementos que deixassem claro ao leitor o motivo de ele ter se recordado do tempo em que ganhava
ovos de páscoa, tudo começou a partir da porta de uma loja que vendia ovos de páscoa e ele
498

desencadeou diversas sensações. Ele foi capaz também de recordar mais uma sensação que ele
gostava muito, que era a de esperar ansiosamente para ver os brindes que vinham dentro dos ovos da
páscoa.

ALGUMAS CONCLUSÕES
Esta pesquisa teve como enfoque o processo da escrita na produção textual do aluno do
Ensino Fundamental, e como reforço teórico principal as quatros etapas propostas por Calkins (1989)
ensaio, esboço, revisão e edição. Com essas etapas, foi possível fazermos uma relação com as etapas
que o professor tinha proposto para os alunos (lluvia de ideas, borrador e producción final). A partir
disso, formulamos o seguinte questionamento: Como o trabalho com a reescrita pode modificar a
produção textual final do aluno?
Podemos perceber, por meio da análise de todas as etapas, que a escrita vista como um
processo pode auxiliar na produção textual do aluno, pois observamos que do esboço para a edição o
aluno consegue deixar sua produção mais rica, acrescenta mais informações e consegue ajeitar
algumas partes que estavam sendo contraditórias no esboço. Dessa forma, há um avanço na escrita
do aluno quando é permitido a ele a reformulação do seu texto inicial.
Apesar de percebemos em algumas produções poucos avanços em relação à
informatividade do texto, vemos que o aluno consegue se inserir colocando seu conhecimento de
mundo. Sendo assim, não é necessário o professor se ater somente à estrutura, mas, sim, àquilo que
o aluno escreveu.

REFERÊNCIAS
CALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever - O desenvolvimento do discurso
escrito – Trad. Deise Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

CERTEAU, de Michel. A invenção do cotidiano – nova edição, estabelecida e apresentada por Luce
Giard. – 3 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça, Luiz Carlos Travaglia. A coerência textual. 17. ed. – 2ª
reimpressão – São Paulo: Contexto, 2008.

KOCH, Ingedore Villaça, Vanda Maria Elias Escrever e argumentar. 1 ed. – 1ª reimpressão. – São
Paulo: Contexto, 2017.

PERELMAN, Chaïm, Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão Tratado da argumentação: a


nova retórica. 3 ed. São Paulo WMF Martins Fontes, 2014.

PRADO, Devid de. Torbellino de ideas. Por una EducAcción participativa y creativa. 1 ed.
Santiago de Compostela, 2001.
499

RIOLFI, Claudia. Ensino de língua portuguesa – São Paulo: Thomson Learning, 2008. – (Coleção
ideias em ação / coordenadora Anna Maria Pessoa de Carvalho).

SERCUNDES, Maria Madalena. Ensinando a escrever. In: CHIAPPINI, Ligia (coord.) Aprender
e ensinar com textos. v. 1. São Paulo: Cortez, 2000.
500

IMAGENS DO LUGAR DO ESPANHOL NO ENSINO FUNDAMENTAL EM


RELATÓRIOS DE ESTÁGIO DA UFRN

Maiara do Nascimento Araújo145


Sulemi Fabiano Campos146

RESUMO

Devido ao contexto do ensino de língua espanhola em nosso país, foram elaboradas algumas
modalidades para que os alunos da Licenciatura em Letras – Língua Espanhola e Literaturas, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), possam realizar o estágio que deveria ocorrer
em turmas regulares do ensino fundamental. Neste trabalho, direcionamos nosso olhar para a escrita
dos relatórios de estágio resultantes desta conjuntura, a partir do seguinte questionamento: quais
imagens do lugar do espanhol no ensino fundamental materializam-se nos relatórios de nosso corpus?
Por isso, estabelecemos como objetivo analisar a partir de operações linguístico-discursivas as
imagens presentes nos relatórios sobre o lugar do espanhol no ensino fundamental. Para tanto, o
trabalho filia-se à Análise do Discurso de linha francesa e fundamenta-se, principalmente, nos estudos
de Pêcheux (2014) sobre as formações imaginárias. Nossa pesquisa é de natureza qualitativa e utiliza
o método do Paradigma Indiciário proposto por Ginzburg (1989). O corpus é composto por relatórios
da disciplina de Estágio Supervisionado de Formação de Professores para o Ensino Fundamental
(Espanhol). A partir da análise duas imagens contrastantes se delinearam, a primeira de um lugar não
existente e a segunda de um lugar possível, mas pouco alcançado.

Palavras-chaves: Formações Imaginárias. Língua Espanhola. Ensino Fundamental. Relatórios de


Estágio.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é um recorte da nossa pesquisa de mestrado que está em desenvolvimento,


intitulada até o momento de “Imagens da construção da identidade de professores de língua espanhola
em relatórios de estágio da UFRN”. Um estudo no qual nos voltamos para a escrita de licenciandos,
do curso de Letras – Língua Espanhola e Literaturas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), em relatórios da disciplina de estágio supervisionado direcionada para o ensino
fundamental.
Como sabemos, a ordem mais lógica dos estágios de atuação é: primeiro em turmas do
ensino fundamental, depois nas do ensino médio, tendo normalmente como supervisor um professor
da sua área de atuação. Porém, quando pensamos nos estágios da licenciatura em língua espanhola

145
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED). Email:
maiaraaraujo@rocketmail.com.
146
Orientadora. Professora Doutora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem (PPgEL/UFRN). Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED). E-mail:
sulemifabiano@yahoo.com.br.
501

isso pode ser reformulado, dada a ausência do espanhol no ensino fundamental em muitos estados do
nosso país. Na UFRN encontramos um exemplo dessa reformulação, pois como um dos estágios da
licenciatura é voltado para o ensino de espanhol no fundamental, foram elaboradas modalidades para
que esse estágio se realizasse.
Na primeira modalidade os estagiários ofertam, na escola de estágio, minicursos
direcionados para alunos do ensino fundamental II, os minicursos possuem um tema previamente
estabelecido entre os estagiários e os seus supervisores de campo e as aulas ocorrem no contraturno
dos alunos. Na segunda, os estagiários possuem como campo de atuação as instituições que oferecem
cursos técnicos e tecnológicos que possuem na estrutura curricular a língua espanhola, nessa
perspectiva as aulas de espanhol são mais voltadas para a área de formação dos alunos. Já na terceira,
os futuros professores ministram aulas no ensino fundamental I, mesmo que na escola os alunos não
estudem regularmente o espanhol. E a proposta da última modalidade são aulas no ensino livre,
através de cursos de idiomas, no entanto, vale salientar que esta é a menos desenvolvida até o
momento, visto que boa parte dos cursos são particulares e os estágios supervisionados possuem como
campo privilegiado as instituições públicas.
Considerando que as experiências de estágio influenciam diretamente nas imagens que
um futuro professor constrói do ensino, dos alunos, da escola e da própria profissão, começaram a
surgir vários questionamentos que nos conduziram a nossa pesquisa de mestrado. Neste trabalho em
específico, iremos nos debruçar sobre a seguinte pergunta: quais imagens do lugar do espanhol no
ensino fundamental materializam-se nos relatórios de nosso corpus? Por isso, estabelecemos como
objetivo analisar a partir de operações linguístico-discursivas as imagens presentes nos relatórios
sobre o lugar do espanhol no ensino fundamental. Para tanto, o trabalho filia-se à Análise do Discurso
de linha francesa e fundamenta-se, principalmente, nos estudos de Pêcheux (2014) sobre as formações
imaginárias.

ENSINO DE ESPANHOL NO CONTEXTO BRASILEIRO

Considerando o objetivo deste trabalho faz-se necessário que abordemos, ainda que
rapidamente, o contexto do ensino de língua espanhola no Brasil.
Como nosso intuito não é realizar um histórico aprofundado sobre o ensino de espanhol
em nosso país, mas sim possibilitar uma compreensão da situação atual, iremos partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) publicada em 1996. A LDB, ainda que de forma
indeterminada, abriu espaço para a presença do espanhol tanto no Ensino Médio quanto no
Fundamental, pois estabeleceu como obrigatório o ensino de uma língua estrangeira moderna que
deveria ser escolhida pela comunidade escolar, em ambos os níveis (BRASIL, 1996).
502

Foi somente em 2005 com a publicação da Lei nº 11.161, que ficou conhecida
popularmente como “Lei do Espanhol”, que a oferta de língua espanhola se tornou obrigatória no
ensino médio, sendo facultativa a matrícula pelo aluno (BRASIL, 2005). Quanto a presença da língua
estrangeira em questão no ensino fundamental, a referida lei a colocou como facultativa.
Em 2017 o cenário de ensino de línguas estrangeiras no Brasil sofreu mais uma mudança,
a partir da aprovação da Lei nº 13.415. Essa lei que ficou conhecida como Reforma do Ensino Médio,
revogou a Lei do Espanhol e fez alterações consideráveis na LDB no que tange o ensino de línguas
estrangeiras nas etapas da educação básica aqui mencionadas. De forma resumida, a partir do sexto
ano do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio, o aluno passa a estudar de forma
obrigatória somente a língua inglesa (BRASIL, 2017).
Esse contexto de ensino chega até os cursos de formação de professores, como
exemplificamos a partir da UFRN.

FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS

Segundo Pêcheux (2014) o processo de produção de um discurso é o resultado da


combinação entre as suas condições de produção, que envolvem os protagonistas e o objeto do
discurso, e um sistema linguístico. Para desenvolver sua teoria o autor parte do esquema
informacional desenvolvido por Roman Jakobson, composto por seis fatores constitutivos de
qualquer processo comunicativo: um destinador (A), um destinatário (B), um referente (R), um código
linguístico comum aos protagonistas do processo, um canal pelo qual se dê o contato entre os
interlocutores e a mensagem a ser transmitida.
O que propõe Pêcheux (2014) ao dialogar com esse sistema é que os elementos A e B não
sejam compreendidos como presenças físicas individuais, mas como lugares numa estrutura social,
como, por exemplo, o lugar do estagiário, do supervisor, do orientador, do aluno. Esta forma de
compreender o destinador e o destinatário permite ao autor falar em relação de forças, através da qual
um mesmo enunciado pode assumir estatutos diferentes dependendo do lugar ocupado por quem
enuncia. Sendo assim, o que ocorre entre A e B não é simplesmente uma transmissão de informação,
mas um “efeito de sentidos” ao qual o teórico preferiu nomear de discurso.
Para dar prosseguimento a sua teoria, Pêcheux (2014, p. 82) parte da hipótese de que esses
lugares estão representados nos processos discursivos, não de forma objetiva, mas a partir de
formações imaginárias que “[...] designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a
imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.”. É importante ressaltar que esse
grau imaginário não se limita a posição dos protagonistas do discurso, mas se estende também ao
referente (R), sendo constitutivo de todo processo discursivo.
503

Deter-nos-emos aqui ao conjunto de formações imaginárias de A, por considerar o


relatório de estágio enquanto discurso-monólogo, caso no qual o destinatário só se encontra presente
na situação pela imagem que o destinador faz dele (PÊCHEUX, 2014). O quadro a seguir sintetiza a
forma como é designado esse conjunto de formações imaginárias:

Quadro 1: Primeiro grau imaginário


Expressão que
Questão implícita cuja “resposta”
designa as
Significado da expressão subtende a formação imaginária
formações
correspondente
imaginárias
Imagem do lugar de A para o
IA(A) “Quem sou eu para lhe falar assim?”
sujeito colocado em A
Imagem do lugar de B para o
IA(B) “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”
sujeito colocado em A
“Ponto de vista” de A sobre R
IA(R) “De que lhe falo assim?”
(referente)
Fonte: Adaptado de Pêcheux (2014, p. 82-83).

Pêcheux (2014, p. 83) coloca que devemos considerar ainda um segundo grau imaginário,
através do qual se estabelece a estratégia do discurso, que corresponderia a “antecipação das
representações do receptor”. Nesta dinâmica, A formula para si um conjunto de imagens das
representações de B.

METODOLOGIA

Nesta investigação partimos de uma abordagem qualitativa e utilizamos o método do


paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989). O referido método nos direcionou a uma leitura
atenta do nosso corpus, de modo a encontramos pistas que nos possibilitassem chegar as imagens do
lugar do espanhol no ensino fundamental que se materializam na escrita dos estagiários.
Como mencionado anteriormente, este trabalho está atrelado a nossa pesquisa de
mestrado, que possui como corpus 06 relatórios de estágio relativos à disciplina de Estágio
Supervisionado de Formação de Professores para o Ensino Fundamental (Espanhol) e que foram
desenvolvidos durante os anos de 2018 e 2019. É importante ressaltar que o acesso aos relatórios foi
autorizado pelo professor responsável pela disciplina, como também pelos alunos que os produziram
conforme recomenda o Comitê de Ética em Pesquisa.
Desses relatórios, dois são relativos ao estágio por minicursos (RE1 e RE2), outros dois
correspondem ao ensino de espanhol em cursos técnicos (RE3 e RE4), um é relativo ao ensino de
espanhol no Ensino Fundamental I (RE5) e o último não se encaixa em nenhuma das modalidades
previstas, pois as aulas de espanhol foram ministradas em substituição às aulas de língua inglesa no
Ensino Fundamental II (RE6).
504

Concluída a leitura dos seis relatórios, observamos que a imagem do lugar do espanhol
no ensino fundamental não se faz presente em todos os textos, estando ausente em RE4 e em RE5.
Observamos também a existência de duas imagens contrastantes, com base nisto selecionamos dois
relatórios para compor a análise deste trabalho, sendo eles RE1 e RE6.

IMAGENS DO LUGAR DO ESPANHOL NO ENSINO FUNDAMENTAL NOS


RELATÓRIOS

Em nossa análise tomamos como norte a seguinte expressão, formulada por Pêcheux
(2014), a saber: IA(R). Primeiramente, vejamos a imagem (I) presente no relatório 1 (RE1) sobre o
lugar do espanhol no ensino fundamental (LEEF), ou seja, IRE1(LEEF):

La referida escuela fue elegida por la pareja por tener una ubicación de fácil acceso y por
contemplar la exigencia de funcionamiento de todo el Ensino Fundamental y Médio, y tener
la enseñanza de lengua extranjera, en nuestro caso: español. Por supuesto, la enseñanza de
la lengua española es restricta al ensino médio, que nos compelió a criar un pequeño curso
en contra turno de los alumnos do Fundamental. (RE1 - grifos nossos)

Nesse excerto de RE1, os futuros professores de língua espanhola contextualizam o


estágio falando sobre os critérios de seleção que levaram a escolha da escola e do porquê o estágio se
desenvolveu a partir de um minicurso. O fato de que o local de estágio não ofereça a língua espanhola
no ensino fundamental não surpreende os alunos, na verdade, já era algo esperado pelos indícios que
encontramos em sua escrita.
O principal indício que encontramos é o uso da locução adverbial de afirmação “por
supuesto”, que neste caso ao anteceder “la enseñanza de lengua extranjera es restricta al ensino
médio” modifica o significado de todo o enunciado. A modificação realizada por esta locução cria o
efeito de sentido de evidência. Resta-nos perguntar: por que é evidente que o ensino de língua
espanhola nessa escola só ocorra no ensino médio? Para os licenciados os motivos para essa ausência
são tão óbvios que nem sequer são mencionados, e por trás dessa evidência ecoa a legislação vigente,
onde consta que a língua estrangeira a ser ensinada no ensino fundamental é a inglesa. E a título de
confirmação encontramos a presença da LDB nas referências deste relatório, mesmo que esta não seja
citada diretamente em momento algum pelos estagiários.
A certeza da ausência do espanhol no currículo do fundamental é confirmada ainda por
outro indício na escrita desses licenciandos, o uso do verbo “ser” conjugado no presente do indicativo,
seguido do adjetivo “restricta”. O uso do verbo “ser” no lugar de “estar” institui uma restrição
permanente e não temporária do espanhol ao ensino médio. É como se a própria história do ensino de
língua espanhola em nosso país atravessasse o dizer dos estagiários, já que mesmo quando havia
505

legalmente a possibilidade do ensino de espanhol no fundamental, na maioria das vezes era o inglês
que entrava no currículo.
Ainda sobre o excerto de RE1, nos chama a atenção o uso do verbo “compeler”,
conjugado na terceira pessoa no pretérito perfeito simples “compelió”, que pela forma como foi
empregado remete ao sentido de forçar alguém a fazer alguma coisa pela autoridade e não pela força.
Nesse caso, são os estagiários que são forçados a criar um minicurso para poderem realizar o estágio,
mas de quem parte a autoridade para isso? Mesmo que os estagiários tenham mencionado a escola,
essa autoridade não parte dela, não é ela que determina, mas ela cumpre a determinação, ela cumpre
o que determina a lei.
Esse lugar da ausência gerado a partir da determinação legal é encontrado também em
RE2. Além disso, foi possível observar que em ambos os relatórios a imagem do lugar do espanhol
no ensino fundamental só se faz presente na introdução, atrelada a contextualização do estágio.
Mesmo que os estagiários de RE1 e RE2 tragam para sua escrita que receberam retorno positivo dos
projetos, pois os alunos tinham interesse em continuar os minicursos, eles não problematizam a partir
disso a ausência do espanhol no Ensino Fundamental, eles não estabelecem um diálogo entre o que é
posto e o que eles desenvolveram.
Para realizar um contraponto, trouxemos a imagem (I) presente no relatório 6 (RE6) sobre
o lugar do espanhol no ensino fundamental (LEEF), ou seja, IRE6(LEEF):

La enseñanza de la lengua española en Brasil para niños del nivel fundamental no es


obligatoria, pero algunas escuelas públicas y privadas ofrecen el español en sus grades de
asignaturas. La ley 9.394 de 1996 (Lei de diretrizes e bases da educação nacional) habla de
la importancia de la enseñanza de lenguas extranjeras en todos los niveles de educación, y
dispone que a partir del sexto año de la enseñanza fundamental es obligatorio que la
escuela ofrezca alguna lengua extranjera, que debe ser elegida por la comunidad
escolar. Lo que se ve es que la lengua que generalmente se elige es la lengua inglesa y el
español se pone en segundo plano.
Este es el caso de la escuela pública en la cual se dio a cabo las prácticas que relataremos
en este trabajo. (RE6 - grifos nossos)

Diferentemente de todos os outros relatórios, encontramos inicialmente em RE6 a


imagem do lugar do espanhol no ensino fundamental na seção de fundamentação teórica. Para
construir essa imagem, a aluna busca fazer um contra ponto entre o que diz a LDB e a realidade do
ensino de espanhol nessa etapa da educação escolar.
Fixemo-nos, primeiramente, no segundo grifo em negrito, no qual a aluna diz trazer o que
determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Como podemos observar, a estagiária
traz para sua escrita elementos presentes no parágrafo que foi revogado da LDB. Mesmo que
encontremos nas referências do relatório o acesso a esta lei, a escrita dessa futura professora nos dá
indícios de que ela não realizou realmente a leitura do texto, mas que partiu de sua memória
506

discursiva, pois já não se deve ser ofertada “alguna lengua extranjera”, mas sim a língua inglesa.
Acreditamos que essa desinformação esteja relacionada com o fato de que foi muito mais propagado
as implicações da aprovação da Lei 13.415 sobre o lugar do espanhol no ensino médio, já que assim
um lugar que vinha aos poucos sendo conquistado sofreu uma forte regressão. Enquanto que as
implicações dessa lei sobre o ensino de línguas estrangeiras no fundamental foram e seguem sendo
menos abordadas.
E é a partir dessas informações desatualizadas que se delineia a IR6(LEEF), de que é um
lugar possível, mas pouco concretizado. Percebemos que na construção dessa imagem a estagiária
reproduz o discurso de que o inglês é a língua “escolhida”, quando já não é mais essa a situação,
marcada pelo uso do verbo “elegir”. Essa reprodução implica também na imagem que a futura
professora vai trazer do lugar do espanhol na escola de realização do estágio, pois ao colocar que
“este es el caso de la escuela pública en la cual se dio a cabo las prácticas”, atribui a escola a escolha
pela língua inglesa em detrimento a língua espanhola.
Um outro diferencial de RE6 é que nele a futura professora busca fazer uma relação entre
a imagem que ela traz anteriormente no seu relatório e a sua experiência de estágio:

Con esta experiencia de impartir clases a chicos de la enseñanza fundamental, que nunca
tuvieron clases de español, podemos afirmar que todos los alumnos ya tuvieron contacto
con el idioma español, sea por medio de videojuegos o de músicas, y todos saben algunas
palabras en el idioma español. Creo que eso solo aumenta la importancia de la enseñanza
de este idioma en Brasil, pues estamos rodeados de países hispanohablantes y tenemos
contacto sin percibir con la lengua española. (R6 - grifos nossos)

É partindo da imagem de lugar possível e autorizado que a futura professora vai defender
a importância do estudo da língua espanhola não somente no ensino fundamental, mas no país. A
estagiária reproduz um discurso conhecido para defesa do ensino de língua espanhola constante em
“estamos rodeados de países hispanohablantes”, já que o Brasil é um dos doze países que constituem
a América do Sul, subcontinente americano formado por nove países que têm a língua espanhola
como língua oficial, dos quais sete fazem fronteiras com o Brasil. Mas ela vai além disso, ao colocar
que o espanhol não está somente ao nosso redor, ele se faz presente também aqui no Brasil, e ela vai
sustentar isso a partir do conhecimento que os alunos do fundamental expressaram nas aulas, a partir
das formas que os alunos demonstraram ter contato com a língua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, tivemos como objetivo analisar as imagens do lugar do espanhol no ensino
fundamental materializadas na escrita de relatórios, referentes a estágios desenvolvidos a partir de
modalidades. Com base na análise realizada, verificamos que duas imagens contrastantes se
507

delinearam, a primeira de um lugar não existente e a segunda de um lugar possível, mas pouco
alcançado.
O que pudemos observar é que a legislação influencia fortemente esse lugar do espanhol
na escrita dos licenciandos. Um indício disso é que a única futura professora que buscou estabelecer
um diálogo entre a sua prática e esse lugar é a que desconhece a atualização da LDB. Os estagiários
que conhecem a atualização não relacionaram esse lugar com sua experiência de ensino, no máximo
colocaram como essa experiência de estágio foi importante para seu processo formativo e algumas
vezes de forma generalizada.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.161, de 2005. Brasília, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11161.htm. Acesso em: 06 jun. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Brasília, Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm#art22>. Acesso em:
18 jul. 2019.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 20 out. 2020.

GINZBURG, Carlos. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK, Tony
(Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p. 59-106.
508

MARCAS DE REMISSÃO A DISCURSOS OUTROS NA ESCRITA DE ALUNOS DO


ENSINO FUNDAMENTAL

Maria Claudiane Silva de Souza (SEEC/GETED)147

RESUMO
A prática pedagógica de leitura, orientada pelo viés teórico da Análise de Discurso de linha francesa,
tem por objetivo conduzir os alunos a interpretar, sob a forma de interrogação, os discursos suscitados
na materialidade dos textos lidos, considerando, sobretudo, as atribuições de sentidos que dão às
leituras que realizam. No contexto enunciativo de realização do ensino, mediado por ferramentas
digitais em tempos de pandemia da Covid-19, frente à emergência de continuar mediando saberes em
espaço enunciativo de sala de aula distanciada, escolhemos trabalhar com textos do gênero histórico-
memorialísticos. Essa escolha se deu por reconhecemos que a historicidade discursiva materializada,
nesses escritos, propicia aos estudantes o contato com os discursos que circulam nas práticas
linguageiras do cotidiano cultural, facilitando, desse modo, o reconhecimento e a compreensão de
alguns discursos ouvidos, por exemplo, tendo em vista nossa impossibilidade de interlocução direta
em sala de aula. Assim, neste trabalho, apresentamos uma análise de atividades de leitura
desenvolvidas com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, na disciplina de Língua Portuguesa,
proposta com objetivo de estimular deslocamentos subjetivos e oferecer possibilidades dos
estudantes, por meio da interpretação de textos, se inscreverem nos enunciados em resposta a textos
lidos. Orientamo-nos pela seguinte pergunta: que marcas interlocutivas de remissão e interpretação
dos discursos outros, podemos observar na materialidade dos textos produzidos por alunos da
educação básica? Para tanto, buscamos embasamentos nas reflexões sobre mediação empreendidas
por Geraldi (2013), que concebe a leitura como um processo que possibilita ao leitor recompor os
passos de produção de sentido percorridos pelo autor do texto lido e descobrir novos significantes.
Nos postulados de Pêcheux (2015), quando afirma que os enunciados linguisticamente descritos, no
que concerne aos sentidos que lhes possam ser atribuídos, estão sempre suscetíveis à interpretação.
A partir da análise do enunciado resposta elaborado pelo estudante, em referência aos discursos
suscitados nos textos lidos, observamos que ele inscreve em seu escrito impressões interpretativas
que entrelaçam pontos de vista heterogêneos e fragmentados que, em certa medida, evidenciam sua
maneira de compreender e pensar o mundo social e o cotidiano cultural em que está inserido.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Ensino. Interpretação. Sentido.

INTRODUÇÃO
A busca por interpretar e atribuir sentido as discursividades linguageiras de outros é
um gesto peculiar de todo ser humano. É gesto de vida que simboliza a busca por compreensão de si,
por meio das palavras, dos movimentos, dos olhares e das ações responsivas trocadas com outros.
Desse modo, existir é, desde o início da vida, condição de linguagem, pois, como tão bem nos afirma
Benveniste (2005, p. 286) em seus estudos enunciativos, “é na e pela linguagem que o homem se

147
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail:
claudiane.23@hotmail.com
509

constitui enquanto sujeito”. Seguindo esse entendimento, a ação de interpretar os sentidos de textos
lidos, também é uma atividade de linguagem, e, principalmente, uma experiência de transmissão de
saberes que, como tal, necessita de mediação.
Na escola pública, com exceção de algumas atividades elaboradas individualmente pelo
professor, o livro didático, na disciplina de Língua Portuguesa, configura-se, basicamente, como fonte
de estudo e único objeto por meio do qual os alunos entram em contato com materiais que textualizam
diferentes discursividades linguageiras. A formulação de enunciados em referência a textos lidos
presente em livros didáticos é a questão posta em discussão neste trabalho.
Realizamos uma reflexão sobre o modo de elaboração de enunciados que são perguntas
de questões que solicitam aos alunos a formulação de respostas em referência aos conteúdos lidos,
em atividades realizadas no livro didático. Propósito surgido a partir da observação como professora
de Língua Portuguesa, que media atividades de leitura e utiliza o livro didático, de enunciados
endereçados à espera de respostas, perguntas que buscam explicitar os conhecimentos adquiridos
pelos alunos, as quais, a partir do modo como são formuladas, limitam e, até mesmo, cerceiam a
compreensão dos sentidos suscitados pelos discursos presente nos textos. Impedindo, desse modo, os
estudantes de textualizarem qualquer interlocução, induzindo-os, praticamente, a reproduzirem
literalmente os trechos posto no texto lido.
Como exemplo de modo de elaboração de enunciado pergunta, em nosso percurso
analítico com as atividades de leitura proposta pelo livro didático, nos defrontamos com enunciados
estruturados como no formato que exemplificamos na imagem abaixo e que justifica, sobretudo, nossa
preocupação.
O fragmento apresenta um trecho de um artigo de divulgação científica, e, na sequência,
a pergunta sobre o conteúdo abordado. Escolhemos apresentar um excerto do manual do professor,
concernente ao livro didático denominado “Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem”,
de Ormundo e Siniscalchi (2018), destinado aos professores e, por conseguinte, o livro destinado aos
alunos do 9º ano, do ensino fundamental.

Trecho do texto do LD

Formulação da pergunta e o modo de resposta sugerida pelo próprio livro.


510

Fonte: ORMUNDO; SINISCALCHI (2018, p. 249-250)

Observando o fragmento referente a pergunta, notamos que o enunciado é


desenvolvido sob a forma de afirmação, apontado para o aluno que a resposta da pergunta que será
feita na sequência, foi definida no corpo do texto lido. Esse modo afirmativo de orientar para
elaboração de resposta, funciona como uma espécie de remissão e ou direcionamento para que o aluno
retorne ao texto ou rememore o que leu e, então, responda ao que se pede.
Observamos, no entanto, que a orientação para a realização desse movimento
argumentativo, não se confirma no enunciado, pois, como podemos visualizar, a pergunta elaborada
pede que o aluno explique o conceito. Modo de perguntar que transmite a ideia de que o aluno poderá
elaborar uma resposta usando palavras que demonstrem uma compreensão sobre o que leu e, até
mesmo, elaborem um comentário sobre algum conhecimento lido/ouvido, relacionado ao assunto
inquerido.
Contudo, como podemos certificar na resposta apontada no manual do professor, a
orientação discursiva proposta para resolução da questão, ou seja, a possível resposta correta, se
configura como um encaminhamento de dizer que direciona o aluno para a reprodução modalizada
de resposta que corresponde ao movimento de reprodução-ajuste-reprodução da definição conceitual
dada pelo texto lido.
Diante desta problemática, situada no contexto de ensino mediado por ferramentas
digitais, em tempos de pandemia da Covid-19, frente a emergência de continuar mediando saberes
em espaço enunciativo de sala de aula distanciada, forma modalizada de ensino, que impossibilita a
interlocução direta entre professor e aluno, escolhemos trabalhar com textos que abordassem
discursos histórico-memorialísticos.
A escolha por essa temática se deu por reconhecemos que a historicidade discursiva
materializada nos escritos memorialísticos, propicia aos estudantes o contato de forma mais
significativa com os discursos que circulam nas práticas linguageiras do cotidiano cultural em que
estão inseridos, em diferentes perspectivas. Discursividades que possibilitam que percebam, por
exemplo, como os discursos ditos em momentos históricos distintos, por vezes, ainda influenciam e
constituem, não só o modo como falam sobre e olham para os fatos cotidianos, como também
organizam a maneira como compreendem, experienciam e habitam o mundo social.
511

Portanto, com vistas a provocar possíveis deslocamentos subjetivos e oferecer aos


estudantes possibilidades de inscreverem em seus escritos, enunciados-resposta com dizeres
endereçados não só aos discursos postos nos textos fonte de leitura, mas também aos discursos que
fazem parte de seu conhecimento cultural, elaboramos diversas atividades de leitura. Para essa
reflexão, apresentamos uma análise de uma atividade desenvolvida com alunos do 9º ano do ensino
fundamental, na disciplina de Língua Portuguesa.
Concordamos com Geraldi (2013, p.164) quando afirma que “a escola é, talvez, o
único espaço social que nos restou de uma leitura coletiva onde os sentidos não são fechados”. A sala
de aula, nesse sentido, torna-se um lugar determinante na e para a formação das sociabilidades leitora.
O professor, por sua vez, como interlocutor que circula no entrelugar do conhecimento
científico/cultural e, em certa medida, visualiza os saberes que os estudantes já sabem e o que
precisam aprender, torna-se, na verdade, um mediador de discursividades e ouvinte de vozes que
circundam os educandos e o mundo. É essa escuta que viabiliza sua compreensão sobre as
discursivizações proferidas/escritas pelos estudantes, em relação ao que dizem sobre o que
estudam/leem, ao que dizem de si, a partir do que aprendem/leem e, até mesmo, o que não conseguem
dizer sobre o que estudam/leem.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Teoricamente, dialogamos com Geraldi (2013) no que concerne a sua compreensão de
que é possível formar um aluno/leitor com capacidade de recompor sentidos e textualizar
posicionamentos sobre leitura, a partir do trabalho de mediação de leitura realizado por um professor.
Com Pêcheux (2015), na compreensão de que os enunciados linguisticamente descritos, no que
compete aos sentidos que lhes possam ser atribuídos, implicam uma interpretação.

O PROFESSOR COMO MEDIADOR NAS ATIVIDADES DE LEITURA EM SALA DE


AULA
O aprendizado da leitura e da escrita nas práticas escolares, como destaca Geraldi
(2013) se dá por meio da imersão sobre todas as formas de textos. É a experiência de se lançar e ter
contato com narrativas e gêneros discursivos variados, que facilita e impulsiona o aprendizado da
leitura e, por conseguinte, da escrita. Sob a compreensão de que “ninguém aprende a ler sem debruçar-
se sobre textos”.
Nessa perspectiva, o saber sobre ler, sobre compreender e interpretar o que ler, sobre
aprender a escrever e sobre dominar os conhecimentos linguísticos relativos a uma determinada
língua, se dá na vivência cotidiana, por intermédio do ativo e sucessivo acesso a objetos de linguagem
que possibilitem incessantes leituras.
512

A partir dessa premissa, o professor assume o papel de mediador, isso ocorre porque
“não é o professor que ensina, é o aluno que aprende ao descobrir por si a magia e o encanto da
literatura” e da complexidade que envolve os fatos de linguagem. Nesse sentido, cabe ao professor
criar situações de aprendizagem que viabilizem aos estudantes o acesso aos textos a serem lidos.
Assim, para ser professor e ser mediador

é preciso ser leitor. Ninguém pode oferecer ao texto outros textos com que cotejá-lo se não
for leitor. Ser mediador de leitura na escola é ser leitor, e como leitor, ser capaz de enriquecer
o contato do leitor iniciante pela oferta de outros textos com os quais cotejar o que se leu e
como se leu. (GERALDI, 2013, p.165-166)

Nesse sentido, cabe ao professor em seu trabalho pedagógico, promover atividades de


leitura que abordem tipologias textuais e gêneros discursivos diversificados, pois são os variados
modos de realização de leitura que possibilitarão aos estudantes, o contato com contextos
culturais/ideológicos e campos discursivos com sentidos heterogêneos.
São, portanto, as situações de apropriação de leitura que dão aos alunos repertório
literário/discursivo para conseguir compreender o que leem, como também competência leitora para
articular as significações postas nos escritos, com os conhecimentos discursivos já adquiridos.

A LEITURA COMO UMA ATIVIDADE DE INTERPRETAÇÃO E ATRIBUIÇÃO DE


SENTIDO A DISCURSOS OUTROS

As atividades de leitura orientadas pelo viés metodológico da Análise de Discurso, têm


como proposito principal desenvolver mecanismos que possibilitem aos alunos interpretar os sentidos
que as palavras, os ditos sobre outros e os dizeres do outro significam nos textos.
A questão central se assenta em compreender as ideias, ou seja, as ideologias que que,
fazendo uso língua, os sujeitos de seus lugares sociais, põem em funcionamentos saberes, dizeres e
compreensões sobre os assuntos que circulam no mundo social. A interpretação das significações e a
configurações de sentido que reverberam nos enunciados é objeto do ensino da leitura na perspectiva
da análise do discurso. A reflexão sobre a necessidade de dar lugar a interpretação, se sustenta no
entendimento de que:

Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como


uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo
lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise do discurso. E é neste
ponto que se encontra a questão das disciplinas de interpretação: é porque há o outro nas
sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguageiro discursivo, que
aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo
a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-
se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes. (PECHÊUX, 2015,
p.53).
513

Considerando a orientação de Pechêux (2015), compreendemos que os enunciados postos


nos textos que circulam no livro didático, materializam discursos que, por não terem sentidos únicos,
dão lugar para interpretação. Desse modo, sendo o discurso uma unidade aberta para significações
que necessita de interpretação, o trabalho com textos em sala de aula, precisa dar margem para que
os alunos possam expressar a sua compreensão e atribuir sentido as suas experiências de leitura que
realizam.

UMA LEITURA ANALÍTICA

Como já dito, o objetivo dessa investigação é apresentar uma análise de enunciados em


resposta a leitura de texto memorialísticos, elaborados por estudantes do 9° ano do ensino
fundamental, em referência aos discursos suscitados nos textos lidos.
O corpus escolhido para esta análise é um recorte de uma atividade elaborada por mim,
professora de Língua Portuguesa, a partir da leitura de um texto memorialístico, realizada via arquivo
PDF, orientada e disponibilizada pela ferramenta WhatsApp, com uma turma de 38 alunos. O excerto
escolhido para está análise, trata-se de um fragmento da devolutiva da atividade realizada pelo aluno
nomeado (A1).
Inicialmente, foi solicitado aos alunos que fizessem a leitura do texto, abaixo transcrito:
Quadro 1: Texto trabalhado.
A CASA DE INSTRUÇÃO NA VILA DE CEARÁ-MIRIM

Cleoneide Maria Maciel da Silveira, Acadêmica da ACLA.

A história de Ceará-Mirim é tão rica que é impossível falar sobre tudo numa única crônica. Das
tantas possibilidades, escolhi falar sobre educação pública ofertada na Casa de Instrução, já que faço
parte da educação nesse Município há 22 anos.

Aqui, a educação é pioneira em ter sido a primeira cidade a ter escola funcionando em prédio
público de todo o interior da Província do Rio Grande do Norte, prédio este doado em 1878 pelo
Coronel Manoel Varela do Nascimento e que lhe rendeu o título de Barão de Ceará-Mirim, em 1874.

Para entendermos melhor como essa educação pública se iniciou a partir da doação desse prédio,
precisamos compreender alguns aspectos e realizarmos uma contextualização com o que acontecia na
Província à época.

Em 03 de maio de 1760 foi criada a primeira Vila da Capitania do Rio Grande: a “Villa de
Estremoz”. Ceará-Mirim, na época, era a povoação de Boca da Mata e pertencia à pioneira vila. Era
vigente a Constituição Imperial de 1824, que em seu art. 179, Inciso XXXII dizia que “A Instrucção
primaria, e gratuita a todos os Cidadãos”. Assim, negros e escravos alforriados não nascidos no novo
Império não eram considerados cidadãos, e, portanto, não tinham direito à instrução.

A Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827 “manda crear as escolas de Primeiras Letras em
todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio”; Em 1837, a Lei nº 20 de 08 de
514

novembro “proibia a admissão de pessoas escravas nas aulas públicas”, contradizendo o texto
constitucional que abria espaço para escravos nascidos no Novo Império.

Em 1855 a sede da Vila passa para a povoação de Boca da Mata, passando a ser chamada de
Vila de Ceará-Mirim. A nível imperial a Lei nº 686, de 30 de julho de 1874 “autorizou as câmaras
municipais da Província a despender os saldos [...] com a construção e reparos de casas de escolas
públicas nos seus municípios” e a Lei nº 720 de 5 de setembro do mesmo ano “autorizava o Presidente
da Província a emitir apólices cujos produtos serão empregados na construção de casas para o ensino
público”. Eram as Casas de Instrução que começavam a surgir. Nesse mesmo ano a villa de Ceará-
Mirim recebe a boa notícia que ganharia a sua Casa de Instrução.

Na fala de abertura da 1ª sessão da vigésima legislatura da Assembleia Legislativa Provincial do


Rio Grande do Norte, em 13 de julho de 1874, Dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho informa
que “finalmente o coronel Manoel Varella do Nascimento ofereceu a V. Ex. cinco contos de reis para a
construção de uma casa de escola na villa do Ceará-Mirim, compromettendo-se o Dr. José Ignácio
Fernandes Barros a dotal-a dos utensis necessários, mandando-os vir à sua custa dos estados Unidos”.
(SILVA, 1874)

A fala esclarece qualquer especulação quanto ao recebimento do título de Barão pelo coronel
Manoel Varella do Nascimento ter sido em virtude da doação do prédio, como afirma a carta-diploma
onde Dom Pedro afirma que: “Atendendo aos relevantes serviços prestados à instrução pública na
província do Rio Grande do Norte pelo Coronel Manuel Varella do Nascimento e Querendo Distingui-
lo e Honrado; Rei por bem Fazer-lhe mercê do Título de Barão do Ceará-Mirim” (CASCUDO, 1955,
p. 199).

A Casa de Instrução da vila de Ceará-Mirim era o que havia de mais moderno na arquitetura
provincial. Apresentava características do estilo Neoclássico, fazendo relação com a arquitetura greco-
romana como as colunas e frontões, trazendo ao centro o brasão do Império. A simetria também era
característica visível no prédio. Possuía três espaços para o funcionamento das escolas e um espaço
central de entrada, onde ficava a recepção e por onde se tinha acesso aos armários de madeira onde
ficavam os documentos.

O termo escolas se referia a cada turma: masculina ou feminina. Tempos depois é que surgem as
turmas “mixtas”. Meninos eram ensinados por professores e meninas por professoras, com requisitos
bastante rígidos para a seleção. As carteiras eram de madeira e duplas. À época, não existia luz elétrica
e as compridas janelas permitiam que a iluminação solar chegasse à sala.

O ensino era baseado na educação moral e religiosa, na leitura e escrita, noções de gramática,
aritmética e práticas de cálculo, noções de Geografia e história resumida do Brasil. Para as meninas
eram ensinados trabalhos em agulha e prendas domésticas. As aulas duravam das 8h da manhã às 14h.
O currículo era organizado a partir dos chamados “Programas de estudo” de cada modalidade.

Os professores tinham por obrigação garantir hábitos higienistas, conferência de unhas, cabelos e
vestimenta era comum. Os métodos de ensino e adoção de livros eram indicados pelo Conselho de
Instrução Pública. O ensino era acompanhado pelos inspetores de comarca e pelo do Diretor Geral de
Inspeção do Ensino Primário e Secundário da Província.

As vagas destinadas aos professores eram nomeadas de “cadeiras” e foram classificadas a partir
do regulamento nº 28, de 17 de dezembro de 1872, aprovado pela Lei nº 729 que determinava a
“reorganização da Instrução Pública na Província (ensino primário e secundário) classificando as
escolas por entrância”, sendo as de 1ª entrância as escolas das povoações, de 2ª as escolas das vilas e
de 3ª as das cidades. Portanto, na Casa de Instrução de Ceará-Mirim funcionou escolas de 2ª entrância
até 9 de junho de 1882, quando Ceará-Mirim passa a ser cidade através da Lei nº 837.

Esse é apenas o início de uma longa trajetória educacional. Ainda há muito o que falarmos sobre
a educação de Ceará-Mirim. Que essa breve introdução provoque a vontade de conhecer mais sobre a
história da educação municipal, pois os frutos dessa colheita auxiliarão na construção de nossa
identidade cultural!!!!

https://www.facebook.com/photo?fbid=2378418552449867&set=a.1375732419385157
515

Na sequência, foi orientado aos alunos que respondessem a seguinte pergunta:


Quadro 2: Atividade proposta.

Atividade

1. Na aula passada, realizamos a leitura de um texto falando sobre a nossa escola. Agora, como
atividade referente a leitura realizada, elabore um texto falando sobre as descobertas mais
interessantes, em relação a nossa instituição de ensino, que você ficou sabendo ao realizar essa leitura.

Fonte: elaboração própria da autora.

Como devolutiva da atividade solicitada em referência ao texto, obtive do aluno (A1) a seguinte
resposta para a questão:

Quadro 3: Texto referente a devolutiva da atividade solicitada pela professora.

Texto resposta elaborado pelo aluno (A1),


enviada via mensagem de whatsApp.

Fonte: A1
Para análise, transcrevo abaixo a devolutiva da atividade proposta
516

Quadro 4: Transcrição da devolutiva da atividade proposta.


“Para mim as coisas mais interessantes sobre a escola que eu descobri no texto sobre a escola que o
ensino era totalmente diferente do que temos hoje, Como ela foi fundada e suas características, o
modo como os alunos tratavam os professores e os respeitavam, mais outra coisa que chamou minha
atenção foi o modo que os alunos eram tratados não achei interessante no modo gostar de saber qui o
ensino era bastante nojento praticamente ensinando que o dever de uma mulher e cuidar da casa
desvalorizando qualquer mulher e privando as pessoas que não eram considerados cidadãos de
obter uma chance de ter conhecimento e ter alguma oportunidade de ter uma vida melhor .”

Fonte: A1

Nesse primeiro momento de análise, lançaremos o olhar para as marcas de subjetividade,


ou seja, para as formas de inscrição de si expressadas pelo sujeito aluno, ao produzir o enunciado
resposta, a tarefa elaborada pelo professor.
A partir da lente benvenistiana, percebemos que o aluno (A1) expressa sua compreensão
da leitura e faz uma reflexão sobre o mundo e os discursos que o constitui enquanto sujeito de
linguagem e social, já no início da construção do enunciado resposta. Movimento subjetivo marcado
no escrito pelo uso da forma demarcação de pessoa no discurso “mim”. Expressado na expressão
“para mim”. Forma usada pelo aluno para direcionar o olhar do leitor para as informações que ele
selecionou para falar sobre o texto.
Notamos, ainda, a marcação de pessoa pelo uso da forma “minha”, mostrada no
enunciado pela asserção “o que mais chamou minha atenção”. Observamos que o uso da marca de
pessoa “minha” é empregado de forma diferente de “mim”, utilizada na expressão anterior, posta no
enunciado. Isso ocorre porque, como podemos observar, pelo modo como é dita, a forma linguística
“minha”, assume no enunciado, o caráter especificador da temática selecionada. Ou seja, a marca
“minha” especifica, o que no texto lido, foi considerado como assunto ou o conhecimento interpretado
como mais relevante para o aluno. Designa, portanto, movimento de inscrição de si no texto de
enunciado-resposta.
Retomamos, aqui, nessa segunda parte da análise, os postulados de Pêcheux (2015),
quando afirma que os enunciados linguisticamente descritos, no que concerne aos sentidos que lhes
possam ser atribuídos, estão sempre suscetíveis à interpretação, como lente para analisar o modo
como o aluno (A1), realiza os movimentos interpretativos dos discursos postos nos textos lidos, em
referência a pergunta/questão proposta pelo professor. A partir da ótica pecheutiana de interpretação
discursiva, observamos o encadeamento enunciativo e a assertiva, “o ensino era totalmente diferente
do que temos hoje, Como ela foi fundada e suas características, o modo como os alunos tratavam os
professores e os respeitavam”, dito pelo aluno (A1), como sendo um gesto de interpretação do texto
517

lido, realizado, aqui, a partir de uma espécie de deslocamento temporal. É perceptivo o gesto de
comparação temporal realizado pelo aluno (A1), quando ele aponta suas impressões sobre a mudança
no modo como o ensino era ministrado; na forma como a escola era caracterizada e para as maneiras
como os alunos eram tratados e como tratavam os professores.
Percebemos, também, que esse deslocamento temporal coloca o aluno em interlocução
com várias discursividades que circulam na sociedade, sobre as quais ele demonstra ter um certo
conhecimento. O encadeamento enunciativo “o ensino era bastante nojento praticamente ensinando
que o dever de uma mulher e cuidar da casa desvalorizando qualquer mulher e privando as pessoas
que não eram considerados cidadãos de obter uma chance de ter conhecimento e ter alguma
oportunidade de ter uma vida melhor”, elaborado pelo o aluno (A1), nos mostra uma interlocução
remissiva a pontos de vista defendidos por pautas como o movimento feminista, quando questiona o
modo como a mulher era tratada e o Artigo 26°, da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), no que compete a afirmação de que “toda a pessoa tem direito à educação”, por exemplo.
Desse modo, percebemos que, embora o aluno (A1) não desenvolva uma argumentação
demonstrado com palavras próprias, a sua compreensão sobre em as redes de significantes marcados
nos discursos postos nos textos lidos, em seu enunciado resposta, ecoam vozes remissivas que
atualizam saberes sobre as temáticas apontadas no texto, como um saber de ouvido. Um saber que
ele sabe existir e não sabe como dizer, mas que entende como inaceitável para os padrões de
compreensão do seu tempo.
Nesse sentido, podemos afirmar que sim, o aluno (A1) realiza uma interpretação de
leitura e consegue fazer uma interlocução das informações contidas no texto lido com o seu
conhecimento de mundo.

CONSIDERAÇÕES
A partir da análise do enunciado resposta elaborado pelo estudante (A1), concluímos que,
quando é dado ao aluno a oportunidade de escrever enunciados resposta para além da reprodução
literal do discurso posto no texto lido, mesmo que de maneira fragmentada, ele realiza no escrito
movimentos de dizer que textualizam, em certa medida, expressões de compreensão de si e do seu
saber sobre o mundo.
Desse modo, como mediador de saberes, cabe ao professor no trabalho com textos em
sala de aula, cotejar textos que deem margens para construções interpretativas e ofereçam aos alunos
possibilidades de atribuir sentido as suas experiências de leitura que realizam, compreendendo,
sobretudo, os discursos uma unidade aberta para significações que necessita de interpretação.

REFERÊNCIAS
518

ACLA PEDRO SIMÕES NETO, SILVEIRA, Cleoneide Maria Maciel. A CASA DE INSTRUÇÃO
NA VILA DE CEARÁ-MIRIM. 29 de abril de 2020. Facebook Aclapedrosimoesneto. Disponível
em: https://www.facebook.com/photo?fbid=2378418552449867&set=a.1375732419385157/
Acesso em: 02 set. 2020.

AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras mantidas a distância. In: Entre a transparência e a


opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral I: Tradução de Maria da Glória Novak e


Maria Luísa Neri: revisão do prof. Isaac Nicolau Salum – 5. ed. Campinas, SP. Pontes Editores, 2005.

GERALDI, Wanderley João. Tranças e danças. Linguagem, ciência, poder e ensino. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2018.

ORMUNDO, W.; SINISCALCHI, C. Se liga na língua: literatura, produção de texto, linguagem:


manual do professor. – 1. - São Paulo: Moderna, 2018.

PÊCHEUX, Michel, 1938-1983. O Discurso: estrutura ou acontecimento/ Michel Pêcheux.


Tradução: Eni P. Orlandi- 7ª Edição, Campinas, SP: Pontes Editora, 2015.
519

DA PROPOSTA À REDAÇÃO NOTA MIL DO ENEM 2019: ANÁLISE DA ESTRUTURA


DE UM TEXTO

Renata Ingrid de Souza Paiva148


Sulemi Fabiano Campos149

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo o estudo das marcas estruturais que compõem uma redação nota
mil do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com base, principalmente, na sua significativa
relação com a proposta de redação a que os candidatos têm acesso no dia da prova. Ancorados na
perspectiva teórica da Análise do Discurso (AD), o aporte teórico que norteia este trabalho é
composto por Authier-Revuz (1990, 2004) no que diz respeito às reflexões que a autora faz sobre a
heterogeneidade enunciativa mostrada; de Pêcheux (1995), para subsidiar as reflexões sobre a posição
do sujeito por trás dessas redações; e de Charaudeau (2009) para compor as questões que envolvem
a organização de textos argumentativos e a lógica argumentativa. Para o direcionamento do presente
estudo, desenvolvimento da análise e reflexões que puderam ser feitas, nos pautamos no trabalho de
Paiva (2020) que objetivou o estudo da massificação de redações nota mil do ENEM dos anos de
2014, 2015, 2016 e 2017 com base na estrutura e no conteúdo dessas redações. O corpus deste estudo
é constituído por uma redação nota mil do ENEM do ano de 2019. No que diz respeito à análise,
seguimos, metodologicamente, os preceitos do paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1986) já
que esse paradigma parte de uma interlocução muito direta com o objeto analisado, trazendo à tona o
que o corpus, em sua singularidade, pode proporcionar. Os resultados reverberam os que foram
encontrados na pesquisa de Paiva (2020) no que versa sobre as questões estruturais, pois apontam
uma “manutenção” da massificação que vai, anualmente, padronizando, cada vez mais, as escolhas
estruturais das redações. Além disso, essa perspectiva de resultado nos remete a algumas reflexões
bem pertinentes ao ensino de produção de texto do país visto o grande alcance do ENEM e, com isso,
sua maior inserção nas salas de aula.

Palavras-chave: Redação nota mil do ENEM. Estrutura dos textos. Análise do discurso.

INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre as marcas estruturais que compõem uma redação nota mil
do ENEM em relação significativa com a proposta de redação a que os candidatos têm acesso no dia
da prova. Desta forma, serão identificadas as marcas de estrutura componentes do texto, observando
as que se repetem; à caracterização de como se dá a utilização; a recorrência da inserção da voz alheia;
e, também, como essas vozes são inseridas na lógica argumentativa.

148
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), bolsista CAPES e integrante do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso
(GETED/UFRN). E-mail: renataidsp@gmail.com
149
Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPgEL) e do Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), unidade de Natal-
RN. Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED/UFRN). E-mail:
sulemifabiano@yahoo.com.br
520

Para o direcionamento desse estudo e desenvolvimento da análise, nos pautamos no


trabalho de Paiva (2020), intitulado “REDAÇÕES NOTA MIL DO ENEM: UM ESTUDO
ANALÍTICO DA MASSIFICAÇÃO DE SUA ESTRUTURA E CONTEÚDO” que tem como
objetivo geral: investigar de que forma as escolhas estruturais e conteudísticas dos alunos, bem como
a utilização da voz do outro, influenciam na lógica argumentativa para o êxito das redações nota mil.
Para que pudéssemos atender ao nosso objetivo, nos ancoramos nas perspectivas da
Análise do Discurso e é pelos preceitos dessa abordagem que apontamos as questões específicas,
principalmente, contextuais. Indo além dessa delimitação, na composição do quadro teórico,
recorremos às contribuições de Authier-Revuz (1990, 2004) no que diz respeito as reflexões da
heterogeneidade enunciativa mostrada; de Pêcheux (1995), para refletir sobre a posição do sujeito; e
de Charaudeau (2009) para compor as questões sobre organização de textos argumentativos e da
lógica argumentativa.
Para que pudéssemos executar a análise proposta, delimitamos a escolha de uma redação
nota mil do ENEM 2019 – o espelho dessa redação foi disponibilizado integralmente no portal de
notícias G1 que, anualmente, desde 2014, disponibiliza, espelhos de redações que obtiveram a nota
máxima. Ademais, a metodologia adotada é fundamentada com base nos pressupostos fundamentais
da análise do discurso.
O presente artigo está dividido em seis seções, sendo elas a introdução, fundamentação
teórica, metodologia, análise da redação, aspectos conclusivos e referências.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No intuito de compor a filiação epistemológica buscamos uma síntese das teorias que
foram mobilizadas a fim de auxiliar na análise do corpus. Ancorados na perspectiva teórica da Análise
do Discurso, assegurados de que é pela máxima de que é pela interação linguística de homens que
falam que se interessa a Análise do discurso (ORLANDI, 2003, p.15). Nosso ponto de partida se dá
pelo conceito de discurso ao qual chegamos com base nos estudos de Foucault (1997), olhando para
p que dizem as formações discursivas e os processos discursivos, uma vez que “um enunciado
pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um
conjunto dedutivo” (FOUCAULT, 1997, p. 135). Com base nessas afirmações é que chegamos ao
conceito, por ele elaborado, de discurso.
Foucault ao elaborar os conceitos citados, determinou o discurso como sendo “um
conjunto de regras anônimas, históricas sempre determinadas no tempo espaço, que definiram em
uma dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de
exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1997, p. 43). É, portanto, o discurso quem
521

movimenta as relações que se estabelecem nas práticas sociais e esse foi o direcionamento adotado
para nossa análise.
É, portanto, com base nesses pressupostos analíticos que permeiam nossa filiação
epistemológica no que concerne à Análise do Discurso, que selecionamos os conceitos já
apresentados, de forma basilar, a exemplo do conceito de heterogeneidade, para que compreendamos
a pluralidade dos discursos e a sua não homogeneização, assim como o olhar para um sujeito que não
é apático ao texto, mas está inserido em um contexto e pertence a uma (ou mais) ideologia. Esses dois
últimos conceitos citados são melhor apresentados a seguir.
Fases anteriores da AD já consideraram o discurso como homogêneo, entretanto, essa
homogeneidade foi dando lugar a outras interpretações de análise. Ao longo do tempo, as formações
discursivas foram estabelecendo o que se considera por heterogeneidade do discurso e essa concepção
passou a determinar várias questões analíticas. Foi nos estudos da linguista Authier-Revuz (1990,
2004) que nos ancoramos para refletir sobre essas questões.
A autora refletiu, com base nos postulados da AD, sobre os elementos interdiscursivos e
constatou alguns mecanismos linguísticos que estabelecem as inserções de outras vozes no discurso;
considerando essa explanação, a linguista postulou que as heterogeneidades enunciativas são
divididas em constitutiva e mostrada. Considerando, com base nisso, que “sempre sob as palavras,
‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma
cadeia (discursiva), se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (AUTHIER-
REVUZ, 1990, p. 28). Somado a isso, destacamos a heterogeneidade enunciativa mostrada ocorrendo
quando “no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz, um certo número de
formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade,
o outro” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12).
Seguindo, para discorrer sobre o sujeito, já que partimos de uma concepção que o
considera a fonte do discurso, recorremos a Pêcheux (1995) que reflete, a respeito do sujeito, que
“podemos resumir o que precede dizendo que, sob a evidência de que ‘eu sou realmente eu’ (com
meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças, minhas ‘idéias’, minhas intenções e
meus compromissos)” (PECHÊUX, 1995, p. 159). O que faz entender o sujeito como numa posição
estratégica, uma vez que ele, assujeitado, escolhe a partir do lugar que ocupa.
Por fim, para a composição do nosso quadro epistemológico, buscamos os olhares de
Charaudeau (2009) para a análise da materialidade do discurso a partir das pistas e do que se pode
resgatar com base nos mecanismos linguísticos. A compreensão da argumentação, para Charaudeau
(2009, p. 205) se dá da seguinte forma:

c) Para que haja argumentação, é necessário que exista:


522

– uma proposta sobre o mundo que provoque um questionamento, em alguém, quanto


à sua legitimidade [...].
– um sujeito que se engaje em relação a esse questionamento (convicção) e desenvolva
um raciocínio para tentar estabelecer uma verdade (quer seja própria ou universal,
quer se trate de uma simples aceitabilidade ou de uma legitimidade) quanto a essa
proposta.
– um outro sujeito que, relacionado com a mesma proposta, questionamento e
verdade, constitua-se no alvo da argumentação. Trata-se da pessoa a que se dirige o
sujeito que argumenta, na esperança de conduzi-la a compartilhar da mesma verdade
(persuasão), sabendo que ela pode aceitar (ficar a favor) ou refutar (ficar contra) a
argumentação. (2009, p. 205)

Nessa linha de raciocínio, no que diz respeito ao dispositivo argumentativo,


destacamos que é dividido em três momentos: o propósito, a proposição e a persuasão. Nosso olhar
para a redação analisada se deu com base nessas três características apontadas, uma vez que
compreendemos que o desenvolvimento da argumentação precisa da presença desses três momentos
de forma organizada, consistente e bem desenvolvida para que a argumentação seja exitosa.

METODOLOGIA
Para a execução desse estudo, nos pautamos nos pressupostos fundamentais da Análise
do Discurso, ancorando-nos nessa perspectiva para a escolha do corpus, desenvolvimento da análise
e organização das partes. Nesse sentido, a teoria mobilizada anda junto com os aspectos
metodológicos, uma vez que um solicita o outro, concomitantemente e reciprocamente.
Resgatamos, metodologicamente, o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1986),
para ancorar essa pesquisa, pois parte de uma interlocução muito direta com o objeto analisado,
trazendo à tona o que o corpus, em sua singularidade, pode proporcionar. A investigação ancorada
nesse paradigma, perpassa por procedimentos abdutivos de investigação, assim como de questões
metodológicas que enfatizam: i) os critérios de identificação dos dados a serem tomados como
representativos do que se quer tomar como a “singularidade que revela”, uma vez que, em um sentido
trivial do termo, qualquer dado é um dado singular; II) o conceito de “rigor metodológico” que não
pode aqui ser entendido no mesmo sentido que é tomado no âmbito de paradigmas de investigação
centrados nos procedimentos experimentais, na replicabilidade e na quantificação. (PAIVA, 2020)
A seleção do corpus se deu baseado na escolha de uma redação nota mil do ENEM do
portal de notícias g1. Inicialmente, olhamos o contexto que engloba a produção dessa redação:
caracterizando a proposta de redação e os textos motivadores. Seguindo, partindo da linha de
raciocínio de Paiva (2020), foi feita uma observação da forma como a redação é estruturada no que
diz respeito à sequência argumentativa e a inserção da voz alheia. Por fim, observamos alguns
aspectos encontrados na proposta de intervenção.
523

ANÁLISE DOS DADOS

Seguindo os moldes de análise de Paiva (2020), partimos dos direcionamentos a que


os candidatos têm acesso nos textos motivadores eu compõem as propostas de redação. Todos os
anos, as propostas veem, normalmente, com quatro textos de gêneros e composições de conteúdos
diversas. Essa análise se dá por uma ótica estrutural e procura mapear possíveis influenciadores
diretos para a escrita das redações.
A proposta do ENEM 2019 teve como tema “Democratização do acesso ao cinema no
Brasil”. No ano supracitado, foram selecionados quatro textos motivadores com formatações e
abordagens do conteúdo de formas variadas. O Texto I traz a narrativa que resgata o cenário do dia
da primeira exibição pública de cinema, que podemos ver na imagem abaixo:

Imagem 1 – Proposta de Redação do ENEM 2019

Fonte: Prova do ENEM 2019.

O texto II apresenta a conceituação de Edgar Morin a respeito de cinema. Esse tipo de


texto, geralmente, surge nas propostas como uma espécie de norte para os candidatos. Além disso, é
também um texto que pode atrapalhar os candidatos, caso resolvam copiar integralmente o conceito,
por exemplo. Vejamos:

Imagem 2 – Texto motivador II

Fonte: Prova do ENEM 2019.

O Texto III traz percentuais que mapeiam o comportamento dos brasileiros no que diz
respeito a ida ao cinema e, também, ao consumo de filmes nas próprias televisões. Outros tipos de
texto comuns nas propostas de redação são esses que apresentam inúmeros recortes de informações,
524

principalmente comparativas, pois, essas informações podem auxiliam na construção e manutenção


da argumentação. Vamos observar o texto na íntegra:

Imagem 3 – Texto motivador III

Fonte: Prova do ENEM 2019.

O texto IV traz uma espécie de trajetória do cinema brasileiro com elementos que
também podem auxiliar na construção da argumentação das redações, como datas, números
referenciais e afins. Esse tipo de conteúdo é importante pois faz uma espécie de panorama da situação,
resgatando informações e contrastando com as atuais. Para situar o candidato no tema é de grande
valia. Vejamos, abaixo, o texto na íntegra:
Imagem 4 – Texto motivador IV
525

Fonte: Prova do ENEM 2019.

A seleção de textos motivadores é essencial para direcionar os candidatos, para situá-los


no tema e, dessa forma, apresentar alguns dados, indicativos, conceitos e possibilidades de caminhos
para embasar o tema proposto. Os candidatos não podem copiar integralmente os textos e nem
tomarem como argumentos principais apenas ideias contidas neles. Ou seja, a presença dos textos
pode ser muito bem aproveitada, mas, por outro lado, também pode atrapalhar caso o candidato opte
por seguir os mesmos argumentos, copie os textos, embase toda a sua produção a partir desses textos.
Adiante, tendo visto como se deu a organização da proposta de redação do ENEM 2019,
vamos seguir com a análise integral de uma redação nota mil desse mesmo ano, que está disposta no
Quadro 1.

Quadro 1 – Excerto da Redação nota mil do ENEM 2019


"Ao longo do processo de formação da sociedade, o pensamento cinematográfico
consolidou-se em diversas comunidades. No início do século XX, com os regimes
totalitários, por exemplo, o cinema era utilizado como meio de dominação à adesão das massas
ao governo. Embora o cinema tenha se popularizado, posteriormente, como entretenimento,
nota-se, na contemporaneidade, a sua limitação social, em virtude do discurso elitizado que o
compõe e da falta de acesso por parte da população. Essa visão negativa pode ser
significativamente minimizada, desde que acompanhada da desconstrução coletiva, junto à
redução do custo do ingresso para a maior acessibilidade.

Em primeira análise, é evidente que a herança ideológica da produção cinematográfica, como


um recurso destinado às elites, conservou-se na coletividade e perpetuou a exclusão de classes
inferiores. Nessa perspectiva, segundo Michel Foucault, filósofo francês, o poder articula-se
em uma linguagem que cria mecanismos de controle e coerção, os quais aumentam a
subordinação. Sob essa ótica, constata-se que o discurso hegemônico introduzido, na
modernidade, moldou o comportamento do cidadão a acreditar que o cinema deve se restringir
a determinada parcela da sociedade, o que enfraquece o princípio de que todos indivíduos têm
o direito ao lazer e ao entretenimento. Desse modo, com a concepção instituída da produção
cinematográfica como diversão das camadas altas, o cinema adquire o caráter elitista, o qual
contribui com a exclusão do restante da população.

Além disso, uma comunidade que restringe o acesso ao cinema, por meio do custo de ingressos,
representa um retrocesso para a coletividade que preza por igualdade. Nesse sentido, na teoria
da percepção do estado da sociedade, de Émile Durkheim, sociólogo francês, abrangem-se
duas divisões: ‘normal e patológico’. Seguindo essa linha de pensamento, observa-se que um
ambiente patológico, em crise, rompe com o seu desenvolvimento, visto que um sistema
desigual não favorece o progresso coletivo. Dessa forma, com a disponibilidade de ir ao cinema
mediada pelo preço — que não leva em consideração a renda regional —, a democratização
torna-se inviável.

Depreende-se, portanto, a relevância da igualdade do acesso ao cinema no Brasil. Para que isso
ocorra, é necessário que o Estado proporcione a redução coerente do custo de ingressos por
região, junto à difusão da importância da produção cinematográfica no cotidiano, nos meios de
comunicação, por meio de anúncios, a fim de colaborar com o acesso igualitário. Ademais, a
instituição educacional deve proporcionar aos indivíduos uma educação voltada à
democratização coletiva do cinema, como entretenimento destinado às elites, por intermédio
de debates e palestras, na área das Ciências Humanas, como forma de esclarecimento
526

populacional. Assim, haverá um ambiente estável que colabore com a acessibilidade geral ao
cinema no país."

Fonte: G1 (2020, grifos nossos).

Essa redação seguiu a média do padrão estrutural das redações nota mil que encontramos
na pesquisa de Paiva (2020), com uma média de 4 parágrafos. Seguindo os moldes de marcação da
pesquisa supracitada, as delimitações foram feitas da seguinte forma: em negrito, no primeiro
parágrafo, localizamos a tese “Ao longo do processo de formação da sociedade, o pensamento
cinematográfico consolidou-se em diversas comunidades”. A tese inicial é o que sustenta, ao longo
do texto, a necessidade de argumentação, gerando questionamentos, reflexões e afins. Nessa redação,
ela está posta logo no início do texto o que é bem comum.
Nos dois parágrafos seguintes em itálico e negrito, destacamos a inserção da voz alheia
que coincidem com os pontos de sustentação da argumentação – determinando, também, que nessa
redação, o candidato optou pelo molde mais comum de formatação: tese > argumentação > proposta
de intervenção. Ambas as inserções se deram pela utilização da modalização em discurso segundo e
entraram, estrategicamente, na sustentação do argumento que já havia sido introduzido, como
podemos perceber no quadro a seguir.

Quadro 2 – Estratégia argumentativa observada


Argumento Voz alheia (ponto de sustentação do
argumento)
“é evidente que a herança ideológica da Nessa perspectiva, segundo Michel Foucault,
produção cinematográfica, como um recurso filósofo francês, o poder articula-se em uma
destinado às elites, conservou-se na linguagem que cria mecanismos de controle e
coletividade e perpetuou a exclusão de classes coerção, os quais aumentam a subordinação
inferiores”
“uma comunidade que restringe o acesso ao Nesse sentido, na teoria da percepção do
cinema, por meio do custo de ingressos, estado da sociedade, de Émile Durkheim,
representa um retrocesso para a coletividade sociólogo francês, abrangem-se duas divisões:
que preza por igualdade” "normal e patológico".
Fonte: Autoria própria.

Como podemos perceber, no quadro 2, na primeira coluna, encontra-se a tese do


argumento a tese do argumento a ser defendido, logo em seguida, na segunda coluna, o ponto de
sustentação desses argumentos ancorados em uma voz alheia (de autoridade). Nessa situação,
527

percebemos a validação, baseada numa voz “qualificada”, dos argumentos apresentados. Esse
movimento caracteriza uma estratégia bem utilizada nas redações eu obtêm êxito.
Ademais, sublinhado, temos a proposta de intervenção que devem conter uma solução
para o problema proposto. Na proposta, além da sua posição, também comum à maioria dos textos -
último parágrafo -, destacamos o que já era esperado tomando como base outras pesquisas nesses
textos: a responsabilização ao governo ou a algum órgão público.
De maneira geral, o “retrato” da redação não obteve, com base nesse exemplo, alterações
no que diz respeito a literatura disponível. As estratégias, as posições e algumas formas pré-
estabelecidas seguem firmes ao longo dos anos, apenas se consolidando cada vez mais.

ASPECTOS CONCLUSIVOS

A análise nos proporcionou um mapeamento de uma redação nota mil, nela, podemos
estabelecer alguns direcionamentos a que o texto está submetido, bem como de que forma,
estruturalmente, essa redação se configura no que tange aos aspectos de estratégias argumentativas.
Além disso, também observamos a estrutura e composição da proposta de redação que pré-
estabelecem alguns direcionamentos para a produção do texto.
No que diz respeito à proposta, o exame não alterou a forma de compor, dividir, organizar
os textos motivadores, sendo esses extremamente interessantes para situar os candidatos no tema. Por
outro lado, a má utilização das informações, como a cópia integral, pode ser extremamente prejudicial
para o desempenho da produção. Ou seja, os textos podem ser muito bem aproveitados, caso o
candidato saiba a melhor maneira de fazê-lo.
O retrato estrutural da redação permanece tal qual foi observado na pesquisa em que nos
ancoramos. A redação possui os elementos já esperados e segue padrões que já vem se repetindo ao
longo dos anos, bem como algumas estratégias linguísticas e modelos estruturais propriamente ditos,
como número de parágrafos, por exemplo.
Paiva (2020), em seu trabalho, aponta questões que envolvem os manuais do candidato
que são divulgados alguns meses antes do exame com algumas diretrizes que auxiliam na execução
das redações. Nessa pesquisa, é possível notar que alguns desses aspectos aparecem nas análises e
que, assim como as competências, não são fatores limitadores e sim norteadores. Essa informação é
de extrema importância para as conclusões que chegamos com a análise integral da redação exposta
nesse estudo.
A redação, estruturalmente, segue os mesmos moldes das redações analisadas no trabalho
de Paiva (2020), ou seja, as escolhas que envolvem a estrutura que formam o texto permanecem
baseados numa padronização que não está limitada nas cinco competências que ancoram o exame.
528

Essa perspectiva de resultado nos remete a reflexões muito pertinentes quanto ao que esses resultados
podem suscitar, por exemplo, no ensino de produção de texto do país, principalmente pelo grande
alcance do ENEM. É interessante buscar respostas para mapear o reflexo do que essa produção
massificada resulta e, com isso, discutir, a nível social, em futuros trabalhos, os possíveis danos.

REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva:
elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: ______. Entre a transparência e a opacidade:
um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidades enunciativas. Cadernos de estudos lingüísticos,


19. Campinas, IEL. 1990.

BRASIL, Ministério da Educação. REDAÇÃO NO ENEM 2019: CADERNO DE QUESTÕES, 1


DIA, CADERNO 1 AZUL (aplicação regular). 2020. Disponível em:
https://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2019/caderno_de_questoes_1_dia_cade
rno_1_azul_aplicacao_regular.pdf. Acesso em: 2 mai. 2021.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 1 .ed., 1ª reimpressão.-


São Paulo: Contexto, 2009.

G1. Leia redações do Enem que tiraram nota máxima no exame de 2019. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/enem/2020/noticia/2020/06/03/enem-leia-10-redacoes-nota-mil-em-
2019-e-veja-dicas-de-candidatos-para-fazer-um-bom-texto.ghtml. Acesso em: 2 mai. 2021.

GINZBURG, Carlo. Mitti Emblemi Spie: Morfologia e Storia. Torino, Einaudi. Tradução brasileira:
Mitos Emblemas Sinais: Morfologia e História. F. Carotti (trad.). São Paulo: Companhia das Letras,
1986.

PAIVA, Renata Ingrid de Souza. Redações nota mil do ENEM: um estudo analítico da massificação
de sua estrutura e conteúdo. 2020. 131f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni
Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2.
ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
529

HETEROGENEIDADE E(M) DISCURSO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O OUTRO E


O DIFERENTE

Heitor Pereira de Lima150


Kátia Regina de Sousa e Silva151

RESUMO
A noção de heterogeneidade cada vez mais tem sido iluminada pelas discussões que buscam
compreender o funcionamento da linguagem. Nesse sentido, deve-se à Jacqueline Authier-Revuz
(2004) o reconhecimento pelo seu trabalho que, partindo dos estudos bakhtinianos sobre dialogismo
e polifonia, trouxe o conceito de heterogeneidade enunciativa, dividindo-a em “Heterogeneidade
Constitutiva” e “Heterogeneidade Mostrada”. O conceito de heterogeneidade, problematizado por
Authier-Revuz (2004), promove um deslocamento ao considerar a enunciação e não apenas a
gramática. Isto é, discute a noção de enunciação e seus efeitos ilusórios (daí sua grande contribuição
teórica); mas quando esse mesmo conceito é deslocado para o terreno da Análise do Discurso (AD)
de linha francesa, podemos mobilizar outras reflexões. Orlandi (2008, p. 47) afirma que a noção
desenvolvida por Authier-Revuz trabalha muito com a formulação e pouco com a constituição do
sentido. Por isso, prefere-se a noção de diferença à de heterogeneidade. Diante dessa discussão, este
trabalho, atento às divergências teóricas das autoras mencionadas, pretende realizar uma reflexão, por
meio de aproximações/comparações, que tome a heterogeneidade e a diferença. Dito de outro modo,
sem perder de vista a relevância dos estudos desenvolvidos pela pesquisadora francesa e valendo-se
de categorias analíticas – interdiscurso, formações discursivas e sujeito – da AD, que se atualizam
em território nacional por meio das produções científicas desenvolvidas pelas analistas do discurso
brasileiras, Eni Orlandi, Freda Indursky e Maria Cristina Leandro Ferreira, busca-se compreender,
metodologicamente, a noção de diferença — pelo viés da constituição — e a noção de
heterogeneidade — pelo viés da formulação —, iluminando, assim, a discussão sobre
heterogeneidade discursiva (diferente) e heterogeneidade enunciativa (outro). Para esta pesquisa,
selecionamos um excerto de tese, no qual pretendemos analisar as formas explícitas da
heterogeneidade, partindo do pressuposto que: i) o locutor não se apresenta como simples “porta-
voz” no discurso direto; e, ii) há a possibilidade de estruturar uma heterogeneidade constitutiva
marcada.
Palavras-chave: Dialogismo. Heterogeneidade. O outro. Diferente. Análise do Discurso.

ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS

O presente trabalho surge a partir de reflexões sobre a heterogeneidade da linguagem.


Nessa empreitada, diversos teóricos foram convocados com o propósito de iluminar os debates. Para

150
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa/PUC Minas. Integrante do
Grupo de Pesquisa NELLF da mesma instituição. Bolsista CNPq. https://orcid.org/0000-0002-3247-4847. E-mail
oiheitorlima@gmail.com
151
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa/PUC Minas. Bolsista CAPES.
Professora da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte/MG. https://orcid.org/0000-0003-2324-553X. E-mail
katiarasols@gmail.com
530

este estudo, convocaremos, principalmente, três estudiosos que, no nosso entendimento, são
essenciais às reflexões sobre a heterogeneidade da linguagem: Mikhail Bakhtin, Jacqueline Authier-
Revuz e Eni Orlandi.
Em relação ao primeiro teórico, vale destacar que a obra Marxismo e Filosofia da
Linguagem, ao propor uma mudança nos estudos da linguagem, tornou-se um marco na medida em
que considerou o signo de natureza ideológica e a alteridade como elementos constitutivos do
discurso. Bakhtin, ao dialogar com o materialismo histórico, desenvolveu uma reflexão sobre o
discurso de outrem, iluminando, assim, a questão do histórico, do social e do sujeito nos estudos da
linguagem. Nesta rápida convocação do autor, interessa-nos, especificamente, a tese do dialogismo,
na qual Bakhtin afirma que

na relação criadora com a língua, não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em
cada palavra há vozes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos
matizes lexicais, dos estilos, etc.) quase imperceptíveis, e vozes próximas, que somam
concomitantemente. (BAKHTIN, 2011, p. 230).

Embora ainda persistam leituras que tomam o dialogismo enquanto sinônimo de


conversa, bate-papo, troca de mensagens, etc., antes de passarmos para a noção de heterogeneidade
de Authier-Revuz, observemos o que ela diz sobre o dialogismo.

O “dialogismo” do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem como preocupação central o
diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária,
uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente,
“as palavras dos outros”: esta intuição atravessa as análises do plurilinguismo e dos jogos de
fronteiras constitutivas dos “falares sociais”, das formas linguísticas e discursivas do
hibridismo, da bivocalidade, que permitem a representação no discurso do discurso do outro,
gêneros literários manifestando uma “consciência galileana da linguagem”, um rir
carnavalesco, um romance polifônico. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26).

Em relação à noção de heterogeneidade, cada vez mais tem sido iluminada pelas
discussões que buscam compreender o funcionamento da linguagem. Nesse sentido, deve-se à
Jacqueline Authier-Revuz o reconhecimento pelo seu trabalho no qual considerou-se que: i)
“constitutivamente, no sujeito, em seu discurso, há o Outro” – heterogeneidade constitutiva; e ii) “no
fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz, um certo número de formas,
linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem em sua linearidade, o outro”
– heterogeneidade mostrada (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.12). Ou seja: a heterogeneidade
constitutiva é da ordem do interdiscurso, do Outro; enquanto a heterogeneidade mostrada é da ordem
do intradiscurso, do outro. Para este estudo, é esta que nos interessa mais de perto.
531

O conceito de heterogeneidade enunciativa, problematizado por Authier-Revuz (2004) e


alicerçado nos estudos bakhtinianos, promove um deslocamento ao considerar a enunciação e não
apenas a gramática. Isto é, discute a noção de enunciação e seus efeitos ilusórios (daí sua grande
contribuição teórica). Com isso, a pesquisadora francesa sugere um entendimento de sujeito múltiplo,
heterogêneo; diferentemente da noção de sujeito uno, dono do seu dizer e, portanto, proprietário de
suas palavras.
Por fim, a terceira estudiosa, Eni Orlandi, grande responsável por uma AD à brasileira,
da qual, para esta pesquisa, selecionamos o texto “Não o outro, mas o diferente”, que se encontra na
obra Terra à vista – Discurso do confronto: Velho e novo mundo (2008). Nele, a autora lança luz para
uma questão polêmica na qual pretendemos nos debruçar: a reflexão sobre o “outro” (heterogeneidade
mostrada). Segundo a autora, que reconhece as relevantes contribuições teóricas de Authier-Revuz,
essa classificação da heterogeneidade discutida pela pesquisadora francesa refere-se à composição,
ou seja, uma espécie de formulação (a + b), sendo esses distintos e passíveis de uma recuperação,
uma mistura, de certa maneira, homogeneizada. Por outro lado, ainda segundo Orlandi (2008), temos
a heterogeneidade discursiva, àquela da AD, preocupada com os efeitos de sentido da combinação
(ab), sem a preocupação com a origem. Em outras palavras, a noção desenvolvida por Authier-Revuz
trabalha muito com a formulação e pouco com a constituição do sentido. Por isso, na/para AD,
prefere-se a noção de diferença à de heterogeneidade.
Diante desta discussão, este trabalho, atento às divergências teóricas das autoras
mencionadas, pretende realizar uma reflexão, por meio de aproximações/comparações, sobre a
heterogeneidade (mostrada) e a diferença. Dito de outro modo, sem perder de vista a relevância dos
estudos desenvolvidos por Authier-Revuz e valendo-se da discussão de Orlandi (2008), por meio das
categorias analíticas – formação discursiva, interdiscurso e sujeito – da AD, busca-se compreender
metodologicamente a noção de diferença e a noção de heterogeneidade, iluminando, assim, este
debate.
Para esta pesquisa, selecionamos um excerto de uma tese, no qual pretendemos analisar
as formas explícitas da heterogeneidade por meio do discurso direto relatado. Assumimos como
hipóteses: i) o locutor não se apresenta como simples “porta-voz” no discurso direto; e, ii) a
possibilidade de estruturar uma heterogeneidade constitutiva marcada.

HETEROGENEIDADE E DIFERENÇA

Abordaremos, a seguir, o conceito de heterogeneidade discutido por Authier-Revuz e a


noção de diferença problematizada por Eni Orlandi.
532

Heterogeneidade: O Outro e o outro

Ancorados nos estudos de Authier-Revuz, buscaremos elucidar como ocorre a


heterogeneidade enunciativa, considerando que essa estudiosa fundamentou seus estudos no
dialogismo do Círculo de Bakhtin, na análise do discurso francesa e na psicanálise lacaniana. Para
ela, é necessário considerar o discurso na compreensão do sentido e a importância do sujeito e da
situação. Orlandi (1998) aponta que o modo como Authier entende o sujeito e a enunciação “passa-
se da mera utilização ornamental de referências à psicanálise e à análise de discurso para uma
articulação premeditada delas tendo como base a linguística no estudo da enunciação” (ORLANDI,
1998, p. 6-7).
Partiremos para um percurso convocando, principalmente, o dialogismo e a polifonia de
Bakhtin – cujas concepções estão ancoradas no princípio de que toda palavra é dialógica por natureza
porque propõe o Outro – e alguns postulados da psicanálise e da análise do discurso para, enfim,
chegarmos à teoria de Authier-Revuz acerca da heterogeneidade enunciativa.
Bakhtin, através de suas pesquisas, rompeu com a barreira linguística ao propor um
sujeito situado historicamente como agente das relações sociais e que se vale do conhecimento de
enunciados anteriores para formular seu discurso. Além disso, compreende que um enunciado sempre
é produzido considerando o contexto social, histórico, cultural e ideológico.
Na concepção bakhtiniana, “o diálogo, no sentido restrito do termo”, constitui uma das
formas mais importantes da interação verbal. Contudo, no sentido amplo, não apenas será considerado
como a comunicação face a face, “mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”
(BAKHTIN, 2002, p.127). É por meio da palavra que o “eu” se define em relação ao “outro” e à
coletividade, pois a palavra marca a expressão do um em relação ao outro, é como se fosse uma ponte
que os liga. E, conforme Authier-Revuz (1990), “as palavras são sempre e, inevitavelmente, as
palavras dos outros” uma vez que “sempre sob as palavras, outras palavras são ditas” (AUTHIER-
REVUZ, 1990, p.26-28).
O dialogismo deve ser percebido, então, como um conjunto no qual ressoam várias vozes
que permeiam os discursos e se relacionam entre si, que “constitui, através de uma reflexão
multiforme, semiótica e literária, uma teoria de dialogização interna do discurso” (AUTHIER-
REVUZ, 1990, p. 26), em que os enunciados se manifestam de uma forma dialógica, fazendo
diferentes vozes ecoarem, simultaneamente, nos discursos.
Assim, o caráter dialógico da comunicação se encontra na linguagem e o fenômeno social
da interação verbal se desencadeia através de enunciações que se exprimem por meio de situações
reais pois, segundo Bakhtin (2002), só podemos compreender a comunicação verbal dentro do vínculo
com a situação concreta, uma vez que “a comunicação verbal se entrelaça inextricavelmente aos
533

outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção”
(BAKHTIN, 2002, p. 128).
Já a polifonia consiste no entrecruzamento de diversas vozes, em outras palavras, é uma
multiplicidade de vozes e pensamentos que influenciam na interação entre os sujeitos. Essas vozes
presentes no discurso não se anulam, mas se complementam.
Partindo do dialogismo e da polifonia bakhtinianos, dos postulados de Lacan — que
definem o inconsciente e o sujeito clivado — e na concepção de interdiscurso proposta pela Análise
do Discurso de linha francesa, Authier-Revuz (2004) elabora o conceito da heterogeneidade
enunciativa do sujeito no discurso, classificando-a como: heterogeneidade mostrada — que se
subdivide em marcada ou não marcada — e heterogeneidade constitutiva, através das quais se busca
compreender como o discurso do outro/Outro ocorre e de que forma ele determina outros discursos.
Vale salientar que, na concepção lacaniana, o “Outro” é condição primeira e necessária para que haja
interação entre o “eu e o “outro”, ele se interpõe na fala, pode ser entendido como a própria
linguagem, a cultura, a história de uma sociedade.
Discorreremos, brevemente, sobre a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade
mostrada, ressaltando que é a última que nos interessa neste trabalho.
O ponto de vista da psicanálise mostra que “sob nossas palavras ecoam outras palavras”,
ou seja, atrás da emissão de uma única voz é preciso entender uma polifonia. Nesse sentido, Authier-
Revuz (2004) postula que o discurso é constitutivamente atravessado pelo “discurso do Outro”,
baseando também seus estudos, conforme mencionado, na psicanálise lacaniana.

Todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “outros discursos” e pelo


“discurso do Outro”. O outro não é um objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição
(constitutiva, para que se fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira
desse discurso (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 69).

Diante disso, entendemos a heterogeneidade constitutiva como a que não aparece


marcada linguisticamente no fio do discurso, o Outro não está explícito. De acordo com a concepção
de Authier-Revuz (2004), as palavras não são exclusividade de um enunciador, embora haja essa
ilusão. Nas palavras ditas ecoam as palavras do Outro, que já foram ditas e, por isso, estão
impregnadas de valores ideológicos, tendo o seu sentido alterado em função do momento, do uso e
do lugar discursivo do enunciador. E segue explicando que

O Outro é o lugar estranho, de onde emana todo discurso: lugar da família, da lei, do pai, na
teoria freudiana, elo da história e das posições sociais, lugar a que é remetida toda
subjetividade; dizer que o inconsciente é o discurso do Outro é reafirmar, de maneira
determinista, que um discurso livre não existe e é dar-lhe a lei (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.
64).
534

Para que se possa entender o Outro, Authier-Revuz aponta um sujeito – cuja concepção
se baseia na psicanálise de Lacan (2005) – que não é fonte do seu dizer, “um sujeito produzido pela
linguagem e estruturalmente clivado pelo inconsciente – quer dizer, onde o sujeito, efeito de
linguagem, advém dividido, na forma de uma ‘não-coincidência’ consigo mesmo” (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 186). Assim, a concepção de sujeito do inconsciente, do Outro como parte de todo
e qualquer discurso, permite conceber o discurso como um campo heterogêneo, no qual várias vozes
se entrelaçam.
Assim, ao entender esse discurso inconsciente, conclui-se que todo discurso é polifônico.
Na concepção de Authier-Revuz (2004), todo discurso se mostra constitutivamente atravessado por
“outros discursos”, pelo “discurso do Outro”. Dessa forma, tem-se o outro/Outro para circunscrevê-
lo e afirmar o um como o faz na sua procura pela heterogeneidade mostrada, sobre a qual
discorreremos agora.
De acordo com Authier-Revuz, os discursos se atravessam a todo momento,
possibilitando que o sujeito possa interagir com seus interlocutores por meio do que a autora define
como sendo a heterogeneidade mostrada da palavra.
Authier-Revuz (2004), considera a heterogeneidade mostrada como “formas linguísticas
de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade
constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.32). Essas formas são os modos de trazer
o outro para o discurso e se referem às noções enunciativas. Para a autora, existem dois tipos de
enunciados: os que mostram, explicitamente, a heterogeneidade – heterogeneidade mostrada marcada
– como por exemplo as glosas enunciativas, o discurso relatado direto e indireto, as aspas; e aqueles
cujas marcas não aparecem – heterogeneidade mostrada não marcada – como por exemplo, a ironia
e o discurso indireto livre.
As formas não-marcadas são consideradas mais complexas, pois não estão explícitas,
exigindo a reconstituição da heterogeneidade a partir do discurso indireto livre, da ironia, da antífrase,
da alusão, do pastiche, da imitação, das metáforas, dos jogos de palavras e da reminiscência. Ou seja,
“contam com o ‘outro dizer’, sem explicitá-lo, para produzir sentidos” (KADER, 2012, p. 2).
Conforme Authier-Revuz (2004), “no fio do discurso, um locutor único produz, um certo
número de formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso. Inscrevem, em sua
linearidade, o outro”. É o outro do discurso relatado, que, sintaticamente, no discurso direto ou no
indireto vai ser designado como um “outro ato de enunciação”. Esse outro também pode vir através
de uma conotação autonímica – discurso marcado por aspas, por itálico, por uma entonação ou por
alguma forma de comentário – que recebe, em relação ao restante do discurso, “um estatuto outro”.
Para a estudiosa, é na conotação autonímica que aparece uma das formas mais complexas da
heterogeneidade, sendo nesta que “o locutor faz uso de palavras inscritas no fio de seu discurso, sem
535

a ruptura própria à autonímica e, ao mesmo tempo, ele as mostra” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12-
13).
Essas maneiras de produzir linguagem são as formas explícitas da heterogeneidade, ou
seja, o que a autora chamou de “heterogeneidade mostrada marcada”. Contudo, é importante refletir
que, se o outro é inscrito no enunciado, designado como objeto de estudo, pela heterogeneidade
mostrada, quando inserimos em nosso discurso – porque temos a ilusão de que o discurso é nosso –
o discurso desse outro, queremos atribuí-lo a quem de fato o concebeu. E marcamos esse discurso
sinalizando qual a sua origem. É como se demarcássemos: Esse discurso é do outro e aquele é de
minha procedência. Assim, esquecemos que não são nossas palavras, nada ali é nosso – nem as
palavras, nem os sentidos – tudo é compartilhado. Entendemos, assim, que a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva são indissociáveis, estão atreladas uma à outra.

O diferente

Nos estudos da linguagem, a discussão sobre o “outro” ganhou notoriedade quando a


presença do “outro” – reflexão advinda da teoria da enunciação e que se aproxima dos estudos sobre
a ideologia e a psicanálise – foi entendida enquanto constitutiva da fala de qualquer sujeito. Ou seja,
a dialogia, por diversas vezes lida, principalmente, enquanto sinônimo de conversa, preencheu o vazio
da linguagem. Dessa forma, não há mais solidão possível, não há descontrole da linguagem: a relação
com o “outro” regula tudo, preenche tudo, explica tudo, tanto o sujeito quanto o sentido (ORLANDI,
2008, p. 45).
Ainda, segundo Orlandi (2008), o conceito de heterogeneidade, discutido por Jacqueline
Authier-Revuz, trouxe uma maior especificidade aos conceitos de dialogia e à noção de enunciação.
A pesquisadora brasileira dos/nos estudos em Análise do Discurso (doravante, AD), reconhece o
conceito de heterogeneidade desenvolvido pela estudiosa francesa, que se subdivide em
heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada (discussão feita na seção anterior). Nas
palavras de Orlandi (2008),

A heterogeneidade constitutiva (J. Authier, 1990) diz que “constitutivamente, no sujeito, em


seu discurso, há o Outro”. É a ideia de que o sujeito da linguagem é determinado pela sua
relação com a exterioridade: é um sujeito descentrado, dividido, essa divisão tendo um caráter
estrutural ou estruturante (ORLANDI, 2008, p. 45-46).

Por outro lado, “A heterogeneidade mostrada é coisa já diferente: as suas formas são
aquelas pelas quais se altera a unicidade aparente do fio do discurso, pois elas aí inscrevem o ‘outro”’
(ORLANDI, 2008, p. 45-46).
Embora essa divisão da heterogeneidade pareça coisa distinta, ela não o é. Authier-Revuz
(2004) diz que as maneiras de representação da heterogeneidade evidenciam
536

uma negociação com as forças centrífugas, de desagregação, da heterogeneidade constitutiva:


elas constroem, no desconhecimento desta, uma representação da enunciação que, por ser
ilusória, é uma proteção necessária para que um discurso seja mantido (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 26).

Ou seja: por elas, o sujeito se apresenta como tendo domínio do que é seu e do que do
“outro”, no “seu” dizer (ORLANDI, 2008, p.46). Portanto, ainda que visível a olho nu, a
heterogeneidade marcada não é também constitutiva? Voltaremos a esta questão.
Em poucas palavras, “face ao ‘isso-fala’ da heterogeneidade constitutiva responde através
dos ‘como-diz-outro’ e o ‘se-me-é-permitido-dizer’ da heterogeneidade mostrada” (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 32).
Temos aí uma formulação da heterogeneidade pela qual o visível (mostrado) é colocado
em pauta. Na/para AD, o visível corresponde ao “dizível”. Diante dessa afirmação, podemos
questionar: O que pode e deve ser dito? Quem pode dizer, diz o que quer? Ao dizer, digo com minhas
palavras?
Essas perguntas nos fazem caminhar em direção à perspectiva discursiva, objetivando
iluminar a discussão sobre o dizível, e nos imputa a necessidade de (re)visitar três categorias analíticas
que, no nosso entendimento, são preponderantes para entendermos o que contempla esse dizível
na/para AD: formação discursiva, interdiscurso e sujeito. Vale destacar que esses conceitos foram (e
são) amplamente discutidos por vários analistas do discurso — estrangeiros e brasileiros. Diante das
inúmeras possibilidades de abordagens teóricas, selecionamos três grandes pesquisadoras para, com
as palavras delas, clarearmos esta discussão: i) Freda Indursky (formação discursiva), ii) Eni Orlandi
(interdiscurso) e iii) Maria Cristina Leandro Ferreira (sujeito).
Em relação à primeira categoria, formação discursiva152 (FD), Indursky nos diz que “a
formação discursiva pode ser entendida como o que pode e deve ser dito pelo sujeito, ou seja, ela tem
seus saberes regulados pela forma-sujeito e apresenta-se dotada de bastante unicidade” (INDURSKY,
2020, p. 306-307). E ainda,

é lícito afirmar que, no quadro teórico da Análise do Discurso, tal como formulado por
Pêcheux, [...] ao contrário do que ocorre na Arqueologia de Foucault, não só é lícito falar em
ideologia, como é ela, juntamente com o sujeito, que é tomada como princípio organizador
da formação discursiva. Redizendo e já me posicionando: é o indivíduo que, interpelado pela
ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva
que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica (INDURSKY, 2020, p.
306).

152
Para este trabalho, não pautamos nossa discussão sobre Fds nos estudos foucaultianos (cf. LIMA, H. P.; SILVA, K.
R. de S., 2020). Embora reconheçamos a relevância de Foucault para os estudos discursivos.
537

A autora, alicerçada nos postulados pêcheutianos, esclarece a noção de FD enquanto


porosa, de uma homogeneidade ilusória, uma vez que o sujeito se relaciona com a FD e a partir daí
observa-se o funcionamento do sujeito do discurso. Isso faz o sujeito, interpelado pela ideologia,
identificar-se com a forma-sujeito (dotada de unicidade) por uma tomada de posição que o faz
comportar-se como o bom sujeito (1ª modalidade: superposição), mas também, por uma tomada de
posição outra, pode revelar-se um mau sujeito (2ª modalidade: contra-identificação), ou, ainda,
desidentificar-se plenamente com a FD vigente e portar-se como um péssimo sujeito153 (3ª
modalidade: desidentificação).
O parágrafo anterior cuidou de tratar sobre FD, entretanto, a convocação do conceito de
sujeito foi inevitável porque essas categorias analíticas são intercambiáveis.
Já em relação ao interdiscurso, este é definido como o lugar de constituição de sentidos,
a verticalidade (domínio da memória) do dizer, que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito
(ORLANDI, 2008, p. 49). As FDs relacionam-se pelo interdiscurso, todo um complexo de FDs com
dominante. E, ainda segundo Orlandi (idem), a exterioridade que consideramos como constitutiva só
se define em função do interdiscurso, ou melhor, a exterioridade tem o seu modo de existência
definido pelo interdiscurso.
Por fim, para a terceira categoria, sujeito, usaremos as palavras da pesquisadora Maria
Cristina Leandro Ferreira pelas quais observou-se o lugar do sujeito na trama do discurso,
representado pelo “nó borromeano” que

[...] simbolizaria o lugar do sujeito no entremeio das três noções de linguagem - ideologia -
inconsciente. O sujeito estaria assim sendo afetado, simultaneamente, por essas três ordens e
deixando em cada uma delas um furo, como é próprio da estrutura de um ser-em-falta: o furo
da linguagem, representado pelo equívoco; o furo da ideologia, expresso pela contradição, e o
furo do inconsciente, trabalhado na psicanálise (FERREIRA, 2010, p. 67).

As categorias analíticas FD, interdiscurso e sujeito nos ajudam a compreender o todo


complexo da produção de discursos com outros, por meio exclusões, inclusões, pressuposições, etc.
A exterioridade, enquanto elemento constitutivo, se define em função do interdiscurso e este, nas
palavras de Orlandi (2008), “solda” a relação entre as formações discursivas. No movimento de deriva
e estagnação de sentidos, a diferença, o furo, a contradição, o vazio são tão importantes quanto a
ilusão do igual, da completude, da certeza, do preenchimento. No que se refere à discussão sobre
heterogeneidade e diferença, Orlandi esclarece que

Termo oriundo da nossa reflexão a partir do texto “A Fragmentação do Sujeito em Análise do Discurso” (INDURSKY,
153

2000).
538

a noção de heterogeneidade não considera a natureza da relação entre diferentes. Acreditamos


que isso se dá pelo compromisso desta com a enunciação. Ao se fazer entrar a noção de
enunciação, pelo mesmo movimento, se expulsa a de contradição e se reduz a importância
do histórico e, de certo modo, reproduz-se a divisão: de um lado, as sistematicidades, de
outro, a obscuridade e a desordem (ORLANDI, 2008, p. 47).
No discurso direto, são “as palavras do outro que ocupam o tempo – ou o espaço [...]; o
locutor se apresenta como simples “porta-voz” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12). Em relação à
primeira afirmação de Authier, Orlandi esclarece o que se passa quando pensamos o sentido quanto
ao espaço e quanto ao tempo.

O espaço em que se espraiam os sentidos é o da multiplicidade, da largueza, mas também da


truncação: um sentido se desdobra em outro, em outros: ou se emaranha no seu mesmo e dele
não se solta. Fica à deriva. Se perde em seu mesmo ou se multiplica. O tempo é o da
fugacidade. O sentido não se deixa pegar. Instável, errático. O sentido não dura. O que dura
é seu “arcabouço”, a instituição que o fixa e o eterniza. Ele, no entanto, se move em outros
lugares (ORLANDI, 2008, p. 51).

Em relação à segunda afirmação, incomoda-nos pensar no locutor, sujeito no/do discurso,


enquanto simples “porta-voz”. Nessa perspectiva, questionamos: ao direcionar nosso olhar para o
discurso direto; ao colocar em suspenso os componentes: locutor (a) e a voz que ele porta (b), ou seja,
a mistura (a+b); e centrar nossa atenção para os efeitos de sentidos da combinação (ab), teríamos um
trabalho mais produtivo? Trazer explicitamente o outro em meu dizer resultaria numa ação discursiva
para além do simples trabalho do porta-voz? Em outras palavras, levando em consideração o conceito
de diferença da AD, conseguiríamos perceber no discurso direto um movimento discursivo no qual a
falta e a incompletude são, também, constitutivas do discurso?
Na tentativa de contemplar as questões abordadas, nosso exercício será este: i) olhar para
o discurso direto, por meio do excerto selecionado, para além das vozes que lá se apresentam: a do
locutor e a que ele porta; e, ii) analisar a combinação de vozes, os efeitos de sentidos desta.

Algumas reflexões sobre o outro e o diferente


A fim de clarearmos as considerações feitas em relação ao “outro” e ao “diferente”,
analisaremos o excerto abaixo, apoiando-nos, com o propósito de refletir sobre os efeitos de sentido
do discurso relatado direto, nos estudos de Jacqueline Authier-Revuz sobre o “outro” e de Eni Orlandi
sobre o “diferente”
Da fundamentação teórica da linguista francesa, Jacqueline Authier-Revuz, focaremos na
heterogeneidade mostrada, que é aquela “acessível aos aparelhos linguísticos, na medida em que
permite apreender sequências delimitadas que mostram claramente sua alteridade”
(MAINGUENEAU, 2008, p.31). Evidenciaremos as formas marcadas a partir de marcas linguísticas
que sinalizam a presença de outra voz.
539

Em relação à analista brasileira, Eni Orlandi, observaremos, por meio das categorias
analíticas da AD, os efeitos de sentido (com os possíveis furos, silêncios, derivas, truncamentos)
existentes na articulação de vozes presentes no discurso relatado direto.

Excerto
Segundo Marcuschi, o movimento de reescrita não é uma questão de correção, mas de
adequação (2015, p. 209), revela a presença do outro, pois é em função dele, nosso interlocutor,
que avaliamos o que escrevemos. No período escolar, no entanto, quando se está aprendendo a
lidar com o código, a língua, há o predomínio do “ensino prescritivo, que objetiva levar o aluno
a substituir seus próprios padrões linguageiros considerados errados/inaceitáveis pelos
considerados corretos/aceitáveis” (TRAVAGLIA, 2002, p. 38), dentro de uma concepção de
linguagem que concebe a língua como expressão do pensamento.
Essa postura de mera análise de fatos de linguagem tem marcado, de forma acentuada,
as práticas pedagógicas com as atividades de linguagem na escola. Hugo Mari, referindo-se a
essa preocupação com fatos sistêmicos, comenta:
Numa redação, em geral, corrigem-se as concordâncias, as regências, as
colocações, os erros de ortografia, com a pretensão suposta de que essa prática
possa conduzir a uma clareza sobre a significação3 . Nada disso deve ser
considerado como um desserviço às práticas de linguagem na escola; o reparo
a ser feito, no meu entendimento, é fazer desse ritual a única forma de ver a
produção de linguagem do aluno. É possível que os processos de letramento
estejam apontando numa outra direção. [...] a ausência de uma preocupação
com a questão da significação [...] consagrou procedimentos que deixaram à
margem aquilo que é essencial a qualquer prática de linguagem, isto é, o
sentido a ser produzido (Afirmação contida em texto de Hugo Mari, ainda não
publicado, usado em sala de aula).
Fonte: Oliveira (2020).

A presença do outro é explicitada quando o locutor abre um espaço e traz as palavras do


outro154 para o seu discurso, assumindo o papel de “porta-voz”. E são “as próprias palavras do outro
que ocupam o tempo – ou espaço – claramente recortado da citação na frase” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p.12). Assim, ao trazer, por exemplo, o discurso de Hugo Mari, o locutor não opta por trazer o
conceito de “leitura discursiva” segundo o seu próprio entendimento. Ele se assume como “porta-
voz”, trazendo o discurso do outro para dentro do seu discurso, a fim de reforçar/enfatizar o seu dizer.
Ao entrar com o discurso do outro, o locutor tem a ilusão de que está reforçando o seu dizer,
acreditando que os demais dizeres são seus, esquecendo, assim, que não é apenas o discurso marcado
que não é dele.
Também podemos apontar no excerto uma outra forma de trazer o discurso direto: a
utilização das aspas. Ao optar pelas aspas como um recurso para demarcar uma citação direta, o
locutor traz o outro para a cena enunciativa e, assim, abre espaço, de forma explícita, para o discurso
deste. É o que Authier-Revuz (2004) chama de heterogeneidade marcada autonímica, um modo

154
Ver o discurso direto marcado, no excerto, nos discursos de Travaglia (2002) e de Hugo Mari (s/d), nas citações diretas.
540

particular do “outro” ser inserido no discurso, ou seja, “o locutor faz uso de palavras inscritas no fio
de seu discurso [...] e, ao mesmo tempo, ele as mostra (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.13).
Quando partimos para uma análise discursiva, podemos compreender que o papel do
“locutor”— sujeito-autor — vai além de um simples “porta-voz” do outro. O movimento de convocar
explicitamente o outro aponta para: i) FDs distintas (FD¹ / FD²) que se relacionam entre seus limites
e atestam a relação do discurso com a exterioridade. Esse trabalho é marcado pelo interdiscurso e seu
modo de funcionamento (o pré-construído); ii) O espaço no qual o outro é trazido, nesse caso, é o da
largueza. Convocar as palavras do outro atende a um desejo do sujeito-autor: o da completude. Aquela
ilusão tão necessária de cercar o sentido e não deixá-lo escapar para que, só assim, o texto se torne
“claro” e “objetivo”. Tudo ilusão se considerarmos a falta enquanto constitutiva porque há solidão,
silêncio, descontrole na linguagem: a relação com o “outro” não regula tudo, não preenche tudo, não
explica tudo, tanto o sujeito quanto o sentido. Logo, não são apenas as palavras do outro que ocupam
espaço. É preciso considerar o efeito de sentido produzido pelos diferentes; iii) o sujeito do discurso
(FD¹) é um bom sujeito, uma vez que esse reduplica os sentidos da FD na qual se inscreve.
Além disso, o sujeito do discurso, ao se posicionar de modo contrário à concepção de
linguagem na qual a (re)escrita é concebida, no período escolar, pelo viés normativo da prescrição, e
que, portanto, acentua as mais variadas formas de preconceito linguístico, denuncia uma postura de
mera análise de fatos de linguagem que tem marcado intensamente as práticas pedagógicas. Para esse
trabalho discursivo, o sujeito-autor não necessita apenas de um porta-voz. Ele precisa de mais: um
discurso outro no qual o sentido seja multiplicado, esgarçado, estendido (aqui consideramos que as
palavras do outro ocupam o espaço). Para isso, ele convoca, por meio do discurso direto, o outro, que
também corrobora a visão sobre a qual os processos de letramentos contemplem qualquer prática de
linguagem.
Podemos pensar que o efeito de sentido do gesto discursivo de trazer o outro é instável,
não dura porque não se deixa pegar. Entretanto, o seu arcabouço, é fixado e eternizado pela instituição
(aqui consideramos que as palavras do outro ocupam o tempo, este é o da fugacidade). Em outras
palavras: os sentidos sobre as práticas de linguagem são movidos na/pela instituição escola.
Assim, “no discurso direto, são as palavras do outro que ocupam o tempo – e o espaço –
claramente recortado da citação na frase [...]” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12). (Grifo nosso).

ALGUMAS PALAVRAS FINAIS: UMA ILUSÃO NECESSÁRIA

Ao trazermos as divergências teóricas de Authier-Revuz e Eni Orlandi, no que se refere,


particularmente, à heterogeneidade mostrada, nosso propósito, como assinalado no início, foi realizar
alguns apontamentos de aproximações/comparações defendidos por essas duas importantes
541

estudiosas e propor uma reflexão para entender se o que ambas defendem consegue, de fato,
contemplar a heterogeneidade numa análise discursiva.
Após uma abordagem teórica, seguida de uma análise bem sucinta, das formas explícitas
da heterogeneidade, procuramos evidenciar a posição de cada uma das autoras para, enfim, elucidar
nossos apontamentos: i) o locutor não se apresenta como simples “porta-voz” no discurso direto; e ii)
a possibilidade de estruturar uma heterogeneidade constitutiva marcada.
Retomamos Authier-Revuz (2004), segundo a qual “No discurso direto, [...] o locutor se
apresenta como simples ‘porta-voz’” e lembramos que seus apontamentos são a partir de estudos da
heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12). Assim, no que se refere à
heterogeneidade discursiva, o papel do locutor vai além de figurar como “porta-voz” do outro no seu
discurso. Ao trazer essa voz outra, procuramos mostrar, na análise do excerto acima, que tal conceito
não é suficiente quando se trata da heterogeneidade discursiva.
Também apontamos a possibilidade de estruturar a heterogeneidade marcada como
“heterogeneidade marcada constitutiva”, uma vez que, para trazer o “outro”, evoca-se,
inconscientemente, a presença do “Outro”, que está, constitutivamente, no discurso. E, nas palavras
de Authier (2004), todo discurso se mostra constitutivamente atravessado por “outros discursos”, pelo
“discurso do Outro”.
A proposta aqui apresentada soa, num primeiro momento, até como audaciosa, pois
estamos aqui problematizando a teoria de Authier-Revuz. Contudo, deixamos bem claro que, como
estudiosos da AD,, nossa pretensão foi apenas levantar uma reflexão sobre o fato de que a
heterogeneidade enunciativa não contempla a heterogeneidade discursiva, como faz parecer muitos
estudiosos. Sendo assim, assumimos nossa preferência pela noção de diferente à de heterogeneidade,
considerando os estudos discursivos.

REFERÊNCIAS

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de estudos


linguísticos, 19. Campinas, IEL. 1990.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas:


Unicamp, 1998.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva:


elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a
transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10. ed. brasileira. São Paulo: Hucitec,
2002.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
542

INDURSKY, Freda. A fragmentação do sujeito em análise do discurso. In: INDURSKY, Freda.


Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000. (Col. Ensaios, 15).

INDURSKY, Freda. Da interpelação à falha no ritual: a trajetória teórica da noção de formação


discursiva. In: BARONAS, Roberto Leiser (org.). Análise de discurso: apontamentos para uma
história da noção-conceito de formação discursiva. Araraquara: Letraria, 2020.

KADER, Cárla Callegaro Côrrea. A Heterogeneidade Enunciativa: um entrelugar. In: Seminário


ANPED Sul — Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. 9., 2012. Anais do IX Seminário
ANPED Sul. RS: Universidade Caxias do Sul, 2012.

LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. São Paulo: Zahar, 2005.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Análise do Discurso e suas interfaces: o lugar do sujeito na
trama do discurso. Organon. Porto Alegre, Revista do Instituto Letras/UFRGS, v. 24, n. 48, p. 63-
68, 2010.

OLIVEIRA, Sérgio de Freitas. A escrita, a leitura e a reescrita como expressão de uma posição
autoral: um estudo de caso. 2020. Tese (Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Belo Horizonte/MG, 2020. Disponível em:
http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Letras_SergioDeFreitasOliveira_8417.pdf.

ORLANDI, Eni. Heterogeneidade teoricamente sustentada. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline.


Palavras incertas – As não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

ORLANDI, Eni. Não ao outro, mas o diferente. In: ORLANDI, Eni. Terra à vista – Discurso do
confronto: Velho e Novo Mundo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1988.
543

UM ESTUDO SOBRE A GÊNESE DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS BRASILEIROS

Aline Kananda Matias Silva155


Kátia Cilene Ferreira França156

RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de discutir sobre a gênese dos periódicos no Brasil, a partir do século
XIX. A pesquisa justifica-se pela necessidade de se fazer uma leitura questionadora dos discursos que
permeiam essas revistas, a fim de compreendermos a história desses periódicos, que não é óbvia e
muito menos linear. Buscamos desenvolver esta investigação por meio de uma metodologia
qualitativa e abordagem bibliográfica. Para isso, fizemos um levantamento de diversos autores que
exploram a temática e tratam sobre os periódicos da época, bem como sobre a chegada da coroa
portuguesa nas terras brasileiras, já que o estudo temporal do século XIX tem esse fenômeno como
desencadeador das primeiras divulgações científicas. Fizemos ainda uma catalogação das revistas
desse período e delimitamos como corpus de análise O patriota, primeiro periódico brasileiro
puramente científico. O quadro teórico que embasa esta investigação centra-se em autores como
Freitas (2006) e Fonseca (1999), que nos auxiliam na compreensão da história das revistas; Pêcheux
(1999) e Orlandi (2006), que nos ajudam, por meio da análise do discurso, a problematizar essa
história. Como resultado de análise, conseguimos perceber que a linha editorial de O patriota não
tinha como foco a divulgação de textos com caráter científico estrangeiro, mas nacional, pois o intento
estava em criar um padrão nacional sólido pela valorização das pesquisas que aqui já vinham sendo
desenvolvidas, mesmo antes da chegada da família real portuguesa e da oficialização da tipografia.
Os resultados ainda apontam que a escrita científica dos artigos que compunham este periódico era
de cunho prescritivo e prático, voltada para a construção de uma proposta de instaurar, em terras
brasileiras, ares de desenvolvimento. Inferimos que o sentido do discurso de ciência disseminado em
O patriota, mesmo se referindo à chegada da família real e trazendo uma atmosfera europeia, estava
ligado a um discurso que buscava, ainda que implicitamente, por uma independência política
brasileira.

Palavras-chave: Periódicos Científicos. Produção de conhecimento. O Patriota.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem a intenção de compreender a gênese do primeiro periódico científico


nacional, considerando seu processo de construção histórico e o sentido de pátria com a divulgação
científica da época, mais especificamente, no século XIX. Essa intenção envolve muito mais do que
uma descrição histórica, envolve as análises dos discursos que foram engendrados nesses contextos
sociais. Desta forma, traçar uma linha do tempo e evidenciar o processo de construção das revistas

Graduada em Linguagens e Códigos – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus
155

São Bernardo. E-mail: kanandaa10@gmail.com


156
Doutora em Estudos da Linguagem, professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus São
Bernardo. E-mail: katiacfranca@yahoo.com.br
544

científicas, no país, significa fazer uma crítica ao que parece ser óbvio, sobre o sentido do lugar que
essas ocupam hoje como indicadoras de produção de pesquisadores e da qualidade de pesquisa.
Uma retomada breve ao contexto histórico do século XIX remete-nos à chegada da coroa
lusitana ao Brasil e ao aparelhamento do Estado para criar uma atmosfera europeia, o que significou
um investimento científico e artístico. De acordo com Freitas (2006), foi neste período que a
tipografia ganhou destaque, abrindo espaço para a divulgação do primeiro periódico científico
nacional com temas científicos utilitários e também literários, nomeado de O Patriota. Este periódico,
que marca a gênese das revistas, é o ponto de partida desse estudo.
Do século XIX aos dias atuais, muitas transformações aconteceram no que se refere: ao
número de revistas que circulam; às formas de circulação (do papel à tela do computador); à
quantidade de leitores; às especificidades das áreas, aos critérios para avaliar (o que deve ou não ser
publicado); ao sistema de organização e avaliação de qualidade das revistas – criado e alimentado
pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Desta forma, refletir
sobre a linha do tempo dos periódicos permite compreender que essa história não é clara nem direta,
mas formada por acontecimentos, evoluções e padrões discursivos que foram sendo agregados aos
periódicos.
Em linhas gerais, o problema que norteia essa investigação é: Como se deu o processo de
nascimento dos periódicos científicos no Brasil? O que essa gênese diz sobre o sentido de produção
de conhecimento? Esta pesquisa tem como aporte teórico os trabalhos de Freitas (2006), Fonseca
(1999), Barata (2010), pois nos ajudam a resgatar as histórias dos periódicos nacionais; de Orlandi
(2006) e Pêcheux (1999), pois auxiliam para uma leitura questionadora dessa história, que não é
óbvia; Foucault (2012), que nos ajuda compreender as ordens discursivas na sociedade. São esses,
entre outros autores, que nos orientam nas discussões deste estudo.
O plano de exposição deste trabalho consiste, primeiramente, em um debate importante
sobre o século XIX, como um período que trouxe novos ares para o Brasil no que diz respeito ao
surgimento do periodismo, logo na sequência discutiremos sobre a revista O patriota, e fechamos a
discussão com as considerações finais.
Esta investigação é uma pesquisa desenvolvida no Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC) e faz parte do projeto de pesquisa “Filiação teórica e produção científica:
análise dos periódicos”, do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Linguagens e Códigos – Língua
Portuguesa, da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo. Esse projeto tem apoio
da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão
(FAPEMA).

O CONTEXTO DE SURGIMENTO DOS PERIÓDICOS


545

Bettamio (2019) conta que a instalação da coroa portuguesa, no Brasil, em 1808,


ocasionou uma vasta mudança social e estrutural, pela incorporação dos padrões europeus e pela
modernização que requeria investimentos na imprensa, a fim de permitir uma comunicação entre o
rei e seus súditos. Para tanto, foi criada a Imprensa Régia, uma oficina tipográfica estatal que estava
incumbida de imprimir decretos e leis do reino, com o intento de atender um conjunto de necessidades
e sustentar as acomodações e as demandas administrativas.
A institucionalização da tipografia e criação da Impressa Régia, de acordo com Bettamio
(2019), permitiu um novo instrumento de comunicação negado à colônia durante séculos, a letra
impressa. Desta forma, a escrita se tornou relevante para proporcionar um ar de civilidade e
desenvolvimento, permitindo a prospecção de novos panoramas sociais, uma nova atmosfera que
inseria o Brasil no mundo, cristalizada pela maior circulação de impressos na colônia. Concatenando
com a discussão da referida autora, Barata (2010) elucida que inauguração da tipografia, assim como
da biblioteca nacional no ano de 1810, foram os principais meios de contribuição para a criação de
uma:

Base sólida para a educação profissionalizante uma vez que passou a ser possível o acesso as
publicações, sobretudo livros, impressas no país para o ensino de disciplinas, como medicina,
engenharia incluindo traduções de obras clássicas. Um importante passo para tornar o Brasil
menos dependente, ao menos no modo de adquirir e divulgar obras. (BARATA, 2010, p. 26).

Nesse cenário planejado para criar um ambiente que respondesse às demandas da Coroa,
um lugar mais próximo do desenvolvimento europeu, nasceu o primeiro periódico brasileiro, A
Gazeta do Rio de Janeiro (1808) que era redigido pelo Frei Tibúrcio José da Rocha, sendo o primeiro
periódico a ser tipografado em terras brasileiras. O periódico em voga tornou-se um instrumento do
governo para divulgar os principais acontecimentos da Europa, calendários de festas da corte,
publicação de leis, decretos e comunicados, notícias locais, venda de produtos, fuga de escravos,
cursos de navios, mercadorias que chegavam ao porto, cursos que outrora não existiam na colônia.
Segundo Bettamio (2019), A Gazeta possibilitou a criação de um público leitor, proporcional às
mudanças sociais e econômicas que a chegada da Corte tinha provocado.
Além do periódico citado acima, outros surgiram como, por exemplo, Idade d’Ouro
(1811), que pregava a supremacia da corte portuguesa; O Patriota, Jornal Literário, Político,
Mercantil do Rio de Janeiro (1813). Primeiro periódico puramente científico, dentre outros, O
Patriota divulgava diversos estudos sobre uma ciência prática, principalmente de escritores
nacionais, conforme Fonseca (1999, p. 82), este foi “o primeiro periódico a dedicar-se especialmente
à divulgação das ciências e das letras, entendidas como instrumento desencadeador de progresso”.
546

Seu redator, o baiano Ferreira, tinha um envolvimento direto com as ciências, como descreve Carolino
(2012), ao dizer:

Na sequência da transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1807/1808, foi


fundada Academia Real Militar do Rio de Janeiro, em 1810, com o objetivo de formar a elite
técnico-científica do Estado joanino. [...] Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, professor de
astronomia na Academia Real Militar do Rio de Janeiro, decidiu orientar o seu curso para
esse ramo aplicado da astronomia e escreveu aquele que viria a tornar-se um dos primeiros
manuais de astronomia esférica. (CAROLINO, 2012, p. 251).

O redator d’O Patriota fomentava a divulgação de uma ciência prática buscando o


desenvolvimento da nação, a fim melhorar as práticas de exploração dos recursos brasileiros a partir
das tendências europeias e das próprias pesquisas científicas feitas nacionalmente. O conhecimento
divulgado nas páginas d’O Patriota se revelou como um caminho a ser seguido para dar eficiência
aos processos que precisavam ser desenvolvidos no território.

3 O PATRIOTA, PRIMEIRO PERIÓDICO CIENTÍFICO BRASILEIRO

O Patriota teve um período curto de publicações157, com um total de 18 edições entre os


anos de 1813 a 1814, sendo 12 mensais em seu primeiro ano e 6 bimestrais em seu último ano. Cada
periódico tinha em média de 80 a 120 páginas. Na sequência veremos uma tabela que traz a
organização das publicações d’O Patriota, feita a partir de uma catalogação dos artigos que foram
publicados durantes seus dois anos:

Tabela 1 - Distribuição do número de publicações por eixo e ano d’O Patriota

ANO DE PUBLICAÇÃO TOTAL DE


EIXOS
1813 1814 PUBLICAÇÕES

Agricultura 10 1 11

Artes 10 1 11

Botânica 4 0 4

Chímica 3 0 3

Commercio 3 0 3

Eloquencia 1 0 1

Geografia 1 2 3

GrammaticaPhilosophic
10 0 10
a

157
Ver as versões deste periódico no site a seguir: <https://bndigital.bn.gov.br/artigos/o-patriota-jornal-litterario-politico-
mercantil-c-do-rio-de-janeiro/>
547

História 12 6 18

Hydraulica 2 0 2

Hydrographia 6 0 6

Literattura 59 17 76

Mathematica 1 0 1

Mineralogia 4 3 7

Medicina 3 2 5

Meteorologia 10 6 16

Navegação 2 0 2

Necrologia 2 1 3

Notícia 2 0 2

Política 38 31 69

Statistica 13 6 19

Topografia 4 7 11

Advertências 1 2 3

TOTAL 201 85 286

Fonte: elaborado pelas autoras (2019)

A tabela acima aponta para o resultado obtido a partir de uma contagem individual de
cada artigo das 18 edições de O Patriota. Nesta catalogação, encontramos 286 artigos, divididos em
diversas áreas de conhecimentos científicos, como: agricultura, artes, botânica, química, comércio
eloquência, geografia, gramática filosófica, história, hidráulica, hidrografia, literatura, matemática,
mineralogia, medicina, meteorologia, navegação, necrologia, notícia, política, estatística, topografia
e advertências (comunicados) do redator; voltados, principalmente, para o contexto nacional.
Nesta pesquisa, atentamo-nos em catalogar individualmente cada artigo que compunha
as páginas de O Patriota. Após a reunião dos dados, foi feita uma comparação com o índice geral
deixado pelo redator, em que foram encontrados alguns erros, relativos às páginas e à falta da
descrição de alguns artigos, que subtraídos da quantidade encontrada resulta em de 27 artigos que
não foram evidenciados no índice geral. A seguir temos um gráfico com nível de publicações d’O
Patriota em 1813 – 1814:

Imagem 1 – Gráfico dos níveis de publicações d' O Patriota nos anos de 1813 - 1814
548

1813 1814

Fonte: elaborado pelas autoras (2019)

Pode-se perceber, no gráfico acima, um nível maior de publicações no primeiro ano do


periódico, em relação ao segundo ano, que pode ser explicado pela mudança mensal para bimestral.
É possível notar também a partir da imagem, que as áreas de conhecimento com mais publicações
foram: literatura e política. Esse destaque nos faz pensar sobre interesses que estavam em evidência,
sobre o valor da literatura e da política na construção de uma imagem de Brasil.
É importante destacar que, nessas publicações, havia o cuidado da tipografia com o uso
de tabelas e imagens ilustrativas, principalmente nas áreas de estatística, comércio e artes, que, de
acordo Kury (2011), tinha o intento de acrescentar qualidade ao periódico e contribuir para a
compreensão do leitor, ou seja, tinha um valor didático. Outro ponto a ser elucidado, é a preocupação
do redator em deixar notórios os nomes dos assinantes, os quais eram expostos de forma semestral,
contudo esse registro aconteceu apenas no primeiro ano de publicação, isto é, apenas em 1813. Sendo
assim, a contagem feita das listas de assinantes constatou que O Patriota tinha cerca 163 assinantes
no primeiro semestre e, no segundo, com um número reduzido para 114.
A capa, além do nome oficial, a comprovação de licenciamento garantido pelo selo da
Impressão Régia, traz uma citação autoral do redator, como pode ser visto abaixo:

Imagem 2 – Capa de O patriota


549

Fonte: O Patriota (1813)

A imagem de capa de O Patriota possibilita uma visão da organização linguística do


periódico, cuja materialidade discursiva pode dizer muito mais do que está impresso neste anúncio,
se relacionado com às condições de produção da época, tal como enfatiza Orlandi (2006) ao dizer que
o sentido preciso e ideal de um enunciado só pode ser obtido se a sua materialidade estiver
correlacionada ao contexto de tempo e espaço que constituiu o discurso, se houver relação com outros
conjuntos discursivos, com as intenções e as defesas ideológicas e sociais que o seu redator traz nas
publicações.
O discurso, como diz Orlandi (2006), não nasce da própria consciência do sujeito, mas
das ações exteriores e ideológicas que incidem sobre ele. Para ela, a ideologia “é uma prática
significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da relação do sujeito
com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique” (ORLANDI, 2006,
p. 48).
Nesse sentido, o redator, ao tomar a palavra em O Patriota, se torna, consequentemente,
o sujeito que materializa por meio da nova tecnologia (os periódicos) um posicionamento discursivo
que permite reflexões. Diante disso, contempla-se a importância de problematizar o enunciado
linguístico que chega ao leitor, pela capa, pois, consideramos que, como aponta Pêcheux (1990), todo
enunciado linguisticamente descritível pode promover diversos pontos de derivas, isto é, pode levar
a outros sentidos e a outros lugares de interpretação.
550

Na capa acima, vemos uma citação do próprio editor, que diz “Eu desta glória só fico
contente, que a minha terra amei, e a minha gente”. As palavras de Ferreira mostram o sentido de
periódico científico associado à ideia de uma espécie de sentimento nacionalista, de patriotismo, a
partir de um jogo de formas linguísticas que envolve pronomes em 1ª pessoa, como “eu” e “minha”;
por verbos com desinências de 1ª pessoa como “fico” ligado a um adjetivo “contente” e “amei”
relacionado aos substantivos” terra” e “gente”. O editor coloca-se como alguém que não cuida apenas
do território, mas também das pessoas. Nota-se um sentimento de pertencimento, ao local e ao povo.
Contudo, o enunciado acima, não pode ser visto apenas pela análise da forma, é preciso
considerar, pois, a posição enunciativa do redator, como bem acentua Orlandi (2006, p.95) ao dizer
que “as palavras não significam por si mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam”.
Questiona-se, então, o porquê do posicionamento patriótico de Ferreira, o sentido da utilização e das
escolhas dessas palavras presentes na epígrafe em correlação no contexto de produção do periódico.
Para responder a estas inquietações, torna-se necessário olhar para o contexto histórico
daquele período, em que a colônia voltava sua atenção para a criação de universidades, bibliotecas
que, segundo Freitas (2006) tinha o intento de sustentar a implantação do Estado Português, o que
incluía também a oficialização da tipografia, que até a chegada da coroa era proibida, dando espaço
assim para o periodismo, que ‘‘surge no Brasil no século XIX, quando são afrouxadas as amarras da
política colonial portuguesa, com a inédita e instantânea transformação brasileira de colônia à sede
do reino’’(FREITAS, 2006, p. 65).
O afrouxamento ocorreu com a reformulação de políticas econômicas e sociais, ratificam
apenas que amarras ainda eram mantidas pelo poder institucional lusitano, por meio de um controle
da comunicação escrita, a qual deveria passar por uma censura prévia, como afirma a referida autora.
Essa assertiva reconfirma a ideia defendida por Foucault (1996, p. 8-9) de que as instituições que
regem a sociedade impõem um controle da circulação discursiva, a fim de manter o seu poderio. Nas
palavras do autor, “em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos”.
No contexto social emergente, as novas necessidades da Coroa tornaram-se fomento para
o fortalecimento do território brasileiro, que precisava ganhar ares de civilidade europeia. Mas à
medida que o território crescia e se desenvolvia com as novas condições ofertadas, também crescia o
desejo dos brasileiros para a elaboração de uma identidade nacional. Como afirma Freitas (2006), ao
elucidar que

[...] as condições artificialmente criadas tiveram o intuito de transplantar as instituições


portuguesas para o Brasil, servindo às necessidades da Corte portuguesa, acabaram por iniciar
551

a institucionalização da cultura brasileira e por estimular os brasileiros a elaborar uma


identidade nacional e organizarem-se como nação. (FREITAS, 2006. p. 55).

É neste contexto que o editor Ferreira toma por meio de O Patriota uma posição de sujeito
participativo na busca por uma identidade e pelo reconhecimento das potencialidades das terras
brasileiras, que só poderia ser efetivado de fato por intermédio da ciência e das letras, isto é, por meio
da divulgação científica. Como pode ser vislumbrado nas palavras introdutórias de Ferreira na
primeira publicação de O Patriota, em sua versão original, ao dizer que:

He huma verdade, conhecida ainda pelos menos instruídos, que sem a prodigiosa invenção
das letras ,haverião sido muito lentos os progressos nas Sciencias, e nas Artes. Por ellas o
Europeu transmitte ao seu antipoda as suas descobertas, e as mais doces sensações da nossa
alma. [...] Tenho a satisfação de que ninguém se persuadirá que o dezejo do lucro guiou a
minha, penna. Ha muitas cousas mais appreciaveis que ouro, e estas, só estas, desafião a
minha ambição (FERREIRA, 1813, p. III- XII).

A fala de Ferreira no enunciado acima enaltece o poder que as letras têm de levar o
conhecimento e as descobertas aos distintos e longínquos lugares, usando como exemplo a divulgação
científica. O redator evidencia, ainda, que objetivo das publicações de O Patriota, não era financeiro,
mas a disseminação da ciência.
Dentre os objetivos do redator neste periódico, estava o desejo de fazer um resgate das
obras científicas que já haviam sido produzidas nas terras, mas que, pelas proibições da tipografia,
não puderam ser divulgados em grande escala, como, por exemplo, a obra tão importante de Manoel
Arruda da Câmara, sobre o cultivo do algodão, autor que tinha um ideal patriótico e desejava o
estabelecimento de uma república nas terras brasileiras, segundo Fonseca (1999).
Nas palavras de Ferreira, a seguir, pode-se perceber que ele mesmo se propõe a organizar
e a divulgar essas obras:

Convencido de que apodreciáo no esquecimento Obras assaz recomendáveis, e noticias de


sobra interessantes , sem que huma mão hábil colligisse., e ordenasse aquelles dispersos
meinbros , e formasse hum" todo digno Ha attenção publica , doendo-me de que não
acordasse a emulação á vista de tantos modelos das nações cultas , como se a posição physica
retardasse a luz a chegar ao nosso horizonte. (FERREIRA, 1813, p. IV - V).

Ainda na citação acima, Ferreira evidencia o seu sentimento de angústia pela demora de
um reconhecimento público das obras acerca do território brasileiro, tal como acontece nas nações
cultas e civilizadas. É como se a luz do conhecimento científico não pudesse chegar ao horizonte
brasileiro ou ao “nosso” horizonte, como diz o redator, trazendo mais uma vez a noção de
pertencimento. A necessidade de ciência em sua terra e para sua gente, impulsiona a proposição da
552

revista O Patriota, ou seja, Ferreira evoca o sentimento patriótico como argumento, ao dizer que
“cego á insufficiencia de minhas forças, mas desperto ao brado da Pátria” (FERREIRA, 1813, p. V).
O redator deixa explícito que as divulgações d’O Patriota contemplariam tantos
conteúdos europeus, como nacionais, tal como pode ser observado por sua própria voz, ao dizer que
“tenho curado de misturar notícias nacionais com estrangeiras, preferindo as primeiras” (FERREIRA,
1813, p. VIII). A preferência pelas notícias voltadas para o contexto nacional indicia a defesa por um
ideal, a busca por identidade brasileira. O redator trabalha para construir um discurso que não é
individual, mas a representação da linha editorial da revista, dos sentidos que ela legitima e defende.
A partir das leituras do periódico, em questão, percebeu-se que a divulgação científica
presente neste estava voltada para a disseminação de uma ciência que visava o crescimento e o
fortalecimento do Brasil em diferentes instâncias, um exemplo desse tipo de ciência está no artigo
‘‘Memoria sobre hum Alambique existente no Laboratório do Excellentissimo Antonio de Araujo,
que contém as invenções mais modernas praticadas na Escossia, e ao qual se fizerão algumas adições
para a sua perfeição’’(1813, 2 ed., p. 99), por Gaspar Marques, presente no eixo de Artes do periódico,
cujo sentido de arte carrega a ideia de engendra manualmente alguma coisa.
No artigo, Gaspar Marques trata sobre as novas tecnologias desenvolvidas na Escócia na
fabricação de aguardente, as quais ajudaram no melhoramento de seus alambiques e, por conseguinte,
de suas economias. O autor afirmava que esta nova tecnologia contribuiria muito para a economia do
Brasil com potencial de país, ao dizer que ‘‘O Brazil He hum dos paizes onde se póde tirar
immensautilizade, com o uso destes novos alambiques’’. Abaixo, tem-se a imagem ilustrativa do
alambique, impresso por Ferreira nas páginas de O Patriota:

Imagem 3 – Alambique

Fonte: O Patriota (1813)


553

Percebe-se a partir da imagem do alambique, O Patriota como um manual de fazer


ciência. Esse cunho utilitário também pode ser visto na área da medicina no artigo ‘‘Mappa das
plantas do Brazil, suas virtudes e lugares em que floreem. Extrahida de varios medicos e cirurgions’’
(1814, 7 – 8 ed., p. 3), o qual faz o levantamento das plantas brasileiras que têm um alto poder de
cura, trazendo uma descrição das plantas, seus benefícios e as regiões que poderiam ser encontradas
no Brasil. A imagem abaixo traz um recorte desta matéria médica:

Imagem 4 – Artigo de medicina

Fonte: O patriota (1814)

Seguindo para outro eixo, observa-se que os artigos de O Patriota, na área de estatística,
também tinham um fim útil para a construção da identidade nacional por intermédio de um
reconhecimento, pois traziam, em suas estruturas, contagens das terras, das regiões e da população
de todo Brasil, como, por exemplo, a contagem feita nas 16 vilas da capitania do Ceará, levando em
consideração a etnia, sexo e o estado civil, como está destacada na ilustração a seguir:

Imagem 5 – Artigo de estatística


554

Fonte: O Patriota (1813)

Neste seguimento, também se aponta para a área de topografia, um eixo de destaque neste
periódico. Buscava-se descrever e refletir sobre a geografia brasileira, a fim de evidenciar as melhores
rotas e os melhores caminhos para ser seguido nas viagens de uma capitania a outra. O artigo ‘‘
Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauhí’’ (1814, 5 – 6 ed., p. 3), organizado e
produzido por Ferreira, é um exemplo das discussões que eram tratadas nesta área, na escrita do
primeiro parágrafo da estampa abaixo, o redator é enfático ao falar que o roteiro em questão não se
tratava apenas da organização de notícias já existentes, mas também era uma produção sua,
explicando ao público leitor a forma que ele iria desenvolver a escrita do roteiro, como traz a descrição
a seguir:
Imagem 6 – Artigo de Topografia

Fonte: O Patriota (1814)

Estes e tantos outros artigos d’ O Patriota apontam para concepção utilitarista das revistas
científicas, para a divulgação de uma ciência prática para a construção do território nacional, que era
visto como uma terra vasta, única e com potencialidade de nação. Assim, o misto de transformações
ocorridas com as instalações de diversos suportes sociais no Brasil, abriu espaço para a consumação
científica, vê-se o início do reconhecimento de uma cultura, de um povo que a cada dia buscava e se
aproximava da soberania. Desta forma, como diz Fonseca, 1999, p.82). O Patriota foi um dos
principais meios e “recursos técnicos para expressar o tipo de "pátria" que começava a ser imaginada.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo dessa investigação foi fazer um estudo sobre a gênese das revistas científicas
no século XIX. Para tanto, dedicamo-nos ao estudo do primeiro periódico nacional puramente
555

científico, O Patriota, buscando conhecer o sentido de ciência que era divulgado em suas páginas. A
linha editorial da revista, em relação com o contexto de sua produção no século XIX, nos permitiu
ver que O Patriota surgiu objetivando a exposição de uma ciência prática e local que beneficiasse
diretamente a nação, a fim potencializar e fortalecer a sociedade por intermédio dos meios de
comunicações estruturados.
O sentido de ciência que era publicado na gênese das revistas científicas no Brasil estava
ligado à ideia de saberes úteis para desenvolvimento nacional, à busca pelo crescimento econômico,
cultural e político do Brasil. Os 286 artigos foram publicados e divididos em diversas áreas de
conhecimento, artigos evidenciam as capacidades de terras brasileiras para sua exploração enquanto
país com potencialidade de independência política, e não apenas como fonte de exploração para
Portugal. A publicação de textos, produzidos anos antes de O Patriota, mostra que mesmo sem
periódicos científicos, a pesquisa era uma realidade nacional, especialmente nas áreas de Literatura e
Política.
O volume de artigos nas áreas citadas acima, fazem-nos pensar sobre o sentido da
Literatura como ciência nos primeiros periódicos, fato que nos ajudaria a ler melhor periódicos da
área de Letras e observar as relações e divisões dos estudos da Linguística e da Literatura,
especialmente porque em O Patriota a Linguística não figura como uma área de conhecimento, em
seu lugar está a Gramática.

REFERÊNCIAS

BARATA, G. F. Nature e science; mudança na comunicação da ciência e a constituição da


ciência brasileira (1996 – 2009). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo,
São Paulo. (2010).

BETTAMIO, R. Imprensa no Período Joanino. Biblioteca Nacional Digital. Disponível em :


https://bndigital.bn.gov.br/exposicoes/dom-joao-vi-e-a-biblioteca-nacional-o-papel-de-um-
legado/imprensa-no-periodo-joanino/. Acesso em: 29 ago. 2019.

CAROLINO, L. M. Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro
e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX. Revista Brasileira de
História. São Paulo: v. 32, n. 64, p. 251-278, 2012.

FONSECA, M. R. F. Luzes das ciências na corte americana:


observações sobre o periódico O Patriota. Anais do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro, v. 31, p. 81-104, 1999.

FOUCAULT. M. Ordem do discurso: Aula inaugural no College de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

FREITAS, M. H. Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros. Ciência da


Informação. Brasília, v. 35, n. 3, p. 54-66, set./dez. 2006.
556

KURY, L. A Ciência útil em O Patriota (Rio de Janeiro, 1813-1814). Revista Brasileira de História
da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 115-124, jul | dez, 2011.

O PATRIOTA: Jornal litterario, político, mercantil, &c. do Rio de


Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1813-1814.

ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 7 ed. São Paulo: Cortez. 2006.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Pucinelli Orlandi. Campinas,


SP: Pontes, 1998.
557

DISCURSO RELIGIOSO E SILENCIAMENTO NA ESCRITA: UM ESTUDO DE CASO

Emari Andrade158

RESUMO

Como resposta à articulação proposta pelo Simpósio “Lacan com Freire: escrever para além da cultura
do silêncio”, neste trabalho, tomamos como objeto o discurso religioso enquanto uma possibilidade
de alienação ao Outro (LACAN, 1964), que corrobora com o silenciamento do sujeito. Para nós, trata-
se de uma teorização pertinente para ser relacionada com o campo da educação, em especial com a
proposta freireana, já que permite observar as transformações ocorridas com relação às posições
subjetivas de alguém ao longo de uma formação. Nesse sentido, buscamos relacionar um tipo de
enlaçamento do discurso religioso que operou como agente da “cultura do silêncio” (FREIRE, 2013).
Silenciado, o sujeito ignora a própria divisão subjetiva e a daqueles com quem convive, fixando-se
em um único modo de estabelecer laço social, que é tomado como correto e verdadeiro. Um percurso
de formação foi escolhido por ilustrar uma incidência do discurso religioso que leva o sujeito a
emudecer e a não conseguir ouvir o outro a cada vez que é convidado a falar/ouvir em outros contextos
que não aquele da sua religião. Partimos da hipótese de que esse modo cristalizado de se relacionar
com a linguagem é uma das consequências da cultura do silêncio. Julgamos que ela pode se estender
a ponto de impedir um modo de leitura e de escrita que leve em consideração os sentidos metafóricos
e as condições de produção de um texto. Para comprovar nossa hipótese, analisaremos uma parte do
percurso de formação de uma pesquisadora nomeada como Louise que, por cerca de 20 anos, viveu
sob vigência, majoritariamente, do discurso religioso. O trabalho dá continuidade a investigações
anteriores que tomaram a produção escrita de Louise como objeto (IGREJA, 2017; ANDRADE,
2015; RIBEIRO, 2015; RIOLFI, 2020). Buscamos mostrar como Louise leu o discurso religioso e
como esse modo de leitura influenciou na sua formação, especialmente no que se refere à dificuldade
de, ao escrever, calcular os elementos necessários para que o outro pudesse entender seu projeto
enunciativo.

Palavras-chave: Discurso religioso. Escrita. Leitura. Silenciamento.

NO PRINCÍPIO, O OUTRO ONISCIENTE

O que você faz,


O que você diz,
Deus tudo escuta e tudo vê, vê, vê

Sim, Deus tudo vê


escuta o Senhor
tudo que faz ou diz você
(cântico infantil, de autoria desconhecida159)

O cântico, cuja letra serve de epígrafe para este texto, foi por mais de quinze anos cantado
por mim. Talvez o tenha aprendido com menos de dois anos de idade, na escola dominical da igreja

Professora de Língua Portuguesa. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP.
158

Contato: emaryjesus@yahoo.com.br
159
Disponível em: https://www.vagalume.com.br/corinhos-infantis/deus-ve.html
558

evangélica que, à época, eu frequentava religiosamente todos os domingos. A melodia era


acompanhada por gestos, principalmente com o dedo indicador que apontava para a boca, o ouvido e
para os céus, indicando o quanto Deus sabia e controlava os pensamentos, as falas e as ações. Lembro
que o cântico era usado para ensinar valores morais e as ações consideradas como pecados pela
comunidade cristã. Enfatizava-se que alguém poderia, diante das “infrações”, até se esconder, mas
era inútil, afinal, Deus saberia de tudo e conhecia o pensamento das pessoas. Várias passagens
bíblicas eram lidas para comprovar a onipotência, onisciência e a onipresença divina, entre as mais
recorrentes estava esta:

Senhor, tu me sondaste, e me conheces. Tu sabes o meu assentar e o meu levantar; de longe


entendes o meu pensamento. Cercas o meu andar, e o meu deitar; e conheces todos os meus
caminhos. Não havendo ainda palavra alguma na minha língua, eis que logo, ó Senhor, tudo
conheces (SALMOS, 139, 1-4).

Se começo este texto recorrendo a esse “caldo cultural da infância” é porque ele me é
caro para pensar o que buscarei desenvolver nas linhas que se seguem: pensar em que medida a crença
em um Grande Outro, todo poderoso, (no caso, Deus) fez um curto-circuito na minha constituição
subjetiva a ponto de tomar o meu semelhante, no caso, o outro, como um ser onisciente e onipotente.
Mais especificamente, buscarei mostrar como esse modo de ver o semelhante como Outro
afeta os modos de escrever de alguém. Minha hipótese é a de que o texto de alguém que toma o outro
como aquele que tudo sabe é uma elaboração em que faltam referentes, informações, articulações,
tendo em vista que aquele que o escreve imagina um outro que já sabe de tudo. Trata-se de um
imaginário tão forte que silencia aquele que escreve, afinal, se o outro já sabe tudo, pensa-se que o
sujeito em nada pode contribuir com a elaboração de algo diferente.
Nessa visada, o sujeito se sente “esmagado pelos restos metonímicos do discurso do
Outro” (RIOLFI; MAGALHÃES, 2008) a ponto de não se autorizar a colocar no mundo uma
elaboração que lhe seja própria. É nesse ponto que, neste trabalho, Lacan e Freire dialogam. Para o
pesquisador brasileiro:

Na cultura do silêncio, as massas são ‘mudas’, isto é, são proibidas de, criativamente, tomar
parte nas transformações da sociedade e, portanto, proibidas de ser. Mesmo que elas possam
ocasionalmente ler e escrever porque foram ensinadas em campanhas de alfabetização
humanitárias – mas não humanistas – elas estão, mesmo assim, alienadas ao poder
responsável pelo seu silêncio. (FREIRE, 1970, a tradução é de Claudia Riolfi, da página 7,
da edição em inglês).

Na cultura do silêncio, existir é apenas viver, no sentido de que sempre haverá um Outro
(consciente ou inconsciente) que terá a palavra conveniente, a adequada, a correta para ser dita.
559

Segundo Freire (2013, p. 50), “O corpo segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra,
proibido”.
Para abordar essa “cultura do silêncio” atrelada à alienação a um outro todo poderoso,
tomo como objeto de análise parte de meu percurso como pesquisadora, cuja produção escrita está
no banco de dados do Movimentos do Escrito, do GEPPEP160. Dou continuidade a trabalhos que
anteriormente tomaram as versões de textos produzidos por ocasião da escrita de minha dissertação
de mestrado como objeto de estudo (ANDRADE, 2015; RIBEIRO, 2015; IGREJA, 2017; RIOLFI,
2020). À época, para fins de preservação da identidade, me foi escolhido o nome de Louise. Neste
trabalho, assumo que se trata do meu percurso acadêmico e de escrita.

DA CONCEPÇÃO DE SUJEITO QUE PARTIMOS


Partimos da concepção de sujeito tal como entendido pela psicanálise de orientação
lacaniana. Trata-se de um sujeito cindido, dividido pelos efeitos da linguagem em seu corpo.
Caminhar na inclusão de um além de um sujeito da cognição, aquele que adquire conhecimento por
meio da compreensão e do raciocínio lógico, implica considerar que quem escreve/pesquisa: a) pode
assumir diferentes posições frente ao saber; b) pode sofrer transformações subjetivas – decorrentes
do tipo de laço social em que se insere –, as quais podem ser localizadas no texto.
Nessa perspectiva, torna-se pesquisador e conquista proficiência singular na escrita quem
consegue agenciar a própria divisão subjetiva. Essa vitória instala-se sobre o ego de quem se propõe
a escrever. Ao desconfiar de si mesmo e tornar-se sensível, nos momentos de releitura do texto, às
manifestações do desejo inconsciente que aparecem no processo de tessitura da escrita, a relação da
pessoa com o saber e, muito particularmente, com a escrita se altera. Em outras palavras, aquele que
escreve pode romper com a cultura do silenciamento quanto mais conseguir se desvencilhar da
imagem fixa que tem de si e do outro.
É o agenciamento da divisão subjetiva que o permitirá fazer diferentes ações: a) sair da
realidade empírica e projetar os potenciais leitores de seu texto; 2) calcular o quanto de leitura já fez
para escrever a respeito de um assunto; 3) avaliar quais impactos busca (ou não) causar em seus
leitores. Nesse ponto, trata-se de projetar um leitor que não seja colocado como Outro. Isso porque,
como colocamos na introdução deste trabalho, caso aquele que escreve projete um leitor onisciente,
em primeiro lugar, terá muita dificuldade de mostrar esse texto ao outro e, em segundo, de calcular o
quanto de informações são necessárias para que o leitor consiga seguir o projeto de texto.
Lacan (1964) ensina que o sujeito não se refere a um ser no mundo (alguém que tem
materialidade ou forma física). Remete-se à instância do desejo inconsciente. Nessa concepção, o

160 Disponível em: http://paje.fe.usp.br/~geppep/movimentosdoescrito.html.


560

sujeito não é um conteúdo, é efeito de linguagem (LACAN, 1960) e, como tal, não é determinado
pela realidade empírica, mas pelo modo como a linguagem incidiu em seu corpo. Dizendo de outro
modo, pode-se afirmar que “sujeito” é aquele que, em sua constituição, foi dividido pela linguagem,
tendo, portanto, perdido seu instinto animal.
Para demarcar a divisão subjetiva, a representação gráfica escolhida por Lacan foi fazer
uma barra na letra “S” ($). Vejamos como essa divisão ocorre. Ao nascer, o bebê é um ser biológico,
um corpo. Para se constituir como sujeito da linguagem, ele precisa aceitar o convite para renunciar
a sua lalação, definida como uma forma de satisfação que independe da significação, é puro
significante. Na prática, ele precisa de alguém que não se disponha a “compreender” seus balbucios
e o convoque (de modo amoroso) a produzir palavras.
Lacan forjou a palavra lalangue (1972-73) para designar o uso gozoso da linguagem feito
pelo bebê. Para se tornar ser de linguagem, o bebê precisará submeter-se aos significantes já existentes
na cultura. Ao fazer isso, perde uma parte si: sua animalidade. O preço dessa perda é nunca achar um
modo pré-construído de expressar a justa medida da sua satisfação.
Ao perceber que o objeto de satisfação completa não existe, o sujeito divide-se entre o
saber inconsciente (relativo a um saber-fazer que passa, de modo relativamente invisível, de geração
em geração) e a verdade (relativa à instância do que se fala, é um semi-dizer, já que é impossível ter
acesso à sua completude) (LACAN, 1966). Isso quer dizer que há uma parte de si que é acessível pelo
pensamento cognitivo e outra que lhe é inconsciente, aparecendo nas quebras dos discursos, nos atos
falhos, nos sonhos e lapsos.
Segundo Lacan (1964), o ser humano torna-se sujeito do desejo inconsciente quando
aceita renunciar a sua ligação direta, não mediada, com os objetos por meio dos quais obtém
satisfação. A partir disso, ele precisará das palavras para se relacionar com a dita “realidade empírica”.
Em poucas palavras, é essa a “divisão”: de um lado está o que pode ser nomeado e, de outro, o que
não tem nome.
Dada a divisão subjetiva, durante toda a vida, o sujeito dividido oscilará entre duas
operações centrais: a alienação, que seria a submissão a um significante qualquer, e a separação, o
apartamento do sentido de um significante qualquer. A figura 1, a seguir, mostra como Lacan tentou
dar uma representação para essa condição humana.

Figura 1 – A alienação
561

Fonte: Lacan (1964, p. 200).

A figura foi montada a partir de dois círculos sobrepostos, nos quais se formam um campo
de intersecção entre o não-senso – campo comum entre o sujeito (“O ser”, representado por meio do
círculo do lado esquerdo) – e o sentido (“o Outro”, representado por meio do círculo do lado direito).
Ao explicar a lúnula formada pela sobreposição dos campos, Lacan (1964) escreveu que se trata do
lugar do objeto pequeno a, isto é, o campo da falta por excelência, da satisfação perdida, aquela
parcela de não saber de si mesmo, o que não pode ser recoberto pela linguagem.
O ciclo da constituição do sujeito completa-se em dois tempos. O primeiro consiste em
sua adesão ao sentido oferecido pelo Outro. Por sua vez, o segundo é o esvaziamento desse sentido.
Lacan (1964) nomeou o ciclo formado por esses dois tempos de assujeitamento. Importante destacar,
ainda, que a alienação e a separação não cessam de se repetir ao longo da vida de um sujeito.
Na passagem entre os dois tempos, está a separação. Quando Lacan (1964) usava a
palavra “separação”, ele se referia à separação do campo do sentido. Ela se caracteriza por um "isso
não faz sentido".
Em ambiente universitário, o assujeitamento pode ser visto, por exemplo, quando um
pesquisador se encanta por determinada teoria. Entendemos que, assim como o bebê precisou alienar-
se aos significantes para tornar-se sujeito, o pesquisador, ao entrar na universidade, precisa, ao menos
no início do contato com cada teoria, assujeitar-se ao discurso vigente para constituir-se como
pesquisador. Ele costuma passar por um tempo de reprodução de seus principais significantes
(alienação) para, só depois, conseguir articulá-los em seu repertório pessoal (separação). Quando a
pessoa articula esses significantes, mostra que já se alienou a uma nova rede de sentidos.
Como nos ensinou Lacan, alienação e separação vão acontecer ao longo da vida de
alguém e é nesse ponto que, no caso de Louise, entra o discurso religioso como aquilo que, via
alienação, fazia com que os seus modos de escrita fossem sempre relacionados a um Outro e, portanto,
562

silenciados por esse Outro. Projetando um leitor como um Deus que tudo sabia, a mestranda parecia
reproduzir esse discurso na universidade. Vejamos, na sequência, como isso se deu.

A CRENÇA EM UM SABER TOTALIZANTE


Louise ingressou no mestrado, aos 22 anos, em uma universidade pública. Na época, era
ainda apegada fortemente à religião. Sob orientação de Jacqueline, sua orientadora no mestrado,
realizou duas iniciações científicas, ambas com bolsas de agências de fomento de pesquisa e escreveu
artigos e capítulos de livro com a sua orientadora.
Ao acompanhar longitudinalmente seu percurso de escrita, a orientadora em vários
momentos apontou a dificuldade que a informante tinha de escrever e de mostrar aos outros seus
textos. A segunda característica era um apego mais à forma do texto do que às ideias propriamente
ditas. Em seu corpus, podemos ver que a orientanda era bastante insistente na quantidade de
reformulações que fazia nos textos. No entanto, tendia a repetir a mesma ideia. Nesse sentido, parecia
que, para ela, a escrita se dava por acumulação. Se tinha conseguido chegar a alguma elaboração
considerada “adequada” para o outro, provavelmente temendo errar, silenciava, de maneira que não
prosseguia os seus textos, tampouco a análise dos dados de seu trabalho. Repetia muitas vezes o já
tido.
Consequentemente, grande parte das intervenções da orientadora foi cortar o que era
excesso no texto, como as repetições e as partes que ajudavam a progressão temática de uma ideia. A
tabela 1 apresenta a quantidade de versões que compôs o processo de escrita da dissertação de
mestrado.

Tabela 1 – Número de versões de cada parte da dissertação de Louise

Parte do Trabalho Total de versões Versões com intervenção do


orientador
Introdução 29 8

Capítulo 1 28 10
Capítulo 2 30 12

Capítulo 3 27 8

Capítulo 4 33 11
Considerações finais 12 8

Referências bibliográficas 9 0
Fonte: Elaborado pela autora.
563

Com base nos números apresentados na tabela, vemos que Jacqueline acompanhou bem
de perto o percurso de escrita, incidindo em todas as partes do trabalho, com exceção das referências
bibliográficas, muito provavelmente por entender que, para Louise, essa parte normativa do trabalho
não traria muita dificuldade.
O relatório qualificação de Louise foi entregue em junho de 2007. Das 111 páginas do
trabalho, somente cinco foram análise de dados. Esse pequeno número de páginas, dedicadas à análise
de dados, nos indica a dificuldade da mestranda de “falar” aquilo que seria próprio de sua pesquisa.
Naquela ocasião, dedicou-se exclusivamente à elaboração teórica do trabalho e à introdução.
Ao analisar a versão entregue, chamou-nos a atenção que Louise usa 18 vezes o verbo
“crer” e três vezes “confessar”. Para nós, trata-se de uma primeira incidência de sua alienação ao
discurso religioso, tendo em vista que, ao longo de sua infância, muitas crenças foram a constituindo,
as quais, provavelmente, estavam relacionadas desde aos muitos hinos e cânticos que Louise cantava
cotidianamente quanto ao Credo dos apóstolos, que recitava dominicalmente, bem como nos muitos
versículos, cujo imperativo era a crença: “Crê no Senhor Jesus, e assim serás salvo, tu e os de tua
casa!” (Atos 16. 11), Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá;
E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto? João 11: 25, 26.
Para nós, a alienação a esse discurso fazia com que Louise, mesmo estando em um
contexto diferente do religioso, não conseguisse se separar dele. O quadro 1, na sequência, traz uma
seleção de trechos em que aparece o uso do verbo crer no texto.

Quadro 1 – Uso do verbo “crer” no relatório de qualificação de Louise


Localização no
Trecho
texto
por conta de ser um amor platônico, creio que até hoje não sabe da
Memorial influência que os anos em que pudemos conviver juntos significaram em
mim...
Creio que essa experiência foi construtiva a todos os pós-graduandos, pois
Memorial pudemos fazer uma espécie de “mapa” das pesquisas desenvolvidas
dentro de nossa área.
Creio que participar de eventos internacionais é uma oportunidade única
Memorial do estudante de pós-graduação ampliar seus horizontes, visão de mundo
e até mesmo de Brasil.
Creio que mais instigante que revelar os modos como elas trilharam
caminhos que as levaram à escrita da dissertação é procurar entender
Introdução como cada uma enfrentou seu próprio entrave com as palavras, com a
linguagem e consigo mesma.
Introdução Nesse sentido, creio que vale a pena me remeter a uma das cenas do filme.
(descrição do
corpus)
564

Consequentemente, as diversas versões de um texto eram enviadas por


Introdução arquivo e não entregues no suporte do papel, como fazia Jones. Creio que
(perfil das essa particularidade de Pietra se deveu ao fato de ela ser uma pessoa do
informantes) gênero “não tenho tempo a perder...”, é muito direta nas coisas que faz.

Fonte: Elaborado pela autora.

Outra incidência do discurso religioso, a nosso ver, se deu pela dificuldade de descrever
e analisar os dados, levando em consideração a materialidade dos textos que analisava, sem fazer
juízo de valor a partir de suas crenças. Soma-se, como buscaremos mostrar, a dificuldade de calcular
um outro que não fosse um Outro onisciente. Para nós, essa era a razão de ser tão difícil, para Louise,
escrever um texto “generoso” com seu leitor, com hierarquização das informações mais relevantes e
com contextualização dos dados etc.
No intuito de verificar a dificuldade de sopesar as partes mais importantes para o
desenvolvimento de sua pesquisa, sem investir em elementos secundários, que contribuíam pouco
para o raciocínio lógico da pesquisa, selecionamos o manuscrito 235, que corresponde à versão 19 da
introdução da dissertação de Louise. Essa versão foi escrita em três meses antes do depósito e enviada
à orientadora no dia 19 de janeiro, sendo devolvida um dia depois, via e-mail.
Nessa versão, Louise tentou desenvolver teoricamente o conceito de automatismo da
repetição, que serviu de base para sua pesquisa. O arquivo contém oito páginas, nas quais a
orientadora inseriu 18 bilhetes, destacados na cor amarela, solicitando: a) corte de partes em excessos;
b) reescrita de partes confusas; c) correção de erros teóricos; d) articulação entre os parágrafos; e)
destaque de partes que avaliou como importantes; e f) ajuste na formatação.
Nessa parte de seu trabalho, a pesquisadora tentava, há oito meses, discorrer a respeito da
relação entre os conceitos de pulsão e de automatismo da repetição. Essa relação era essencial, pois
era a partir dela que os dados de sua pesquisa estavam sendo analisados. Analisando seu relatório de
qualificação, entregue seis meses antes, nota-se que essa articulação teórica apareceu ainda de modo
incipiente no texto, ocupando apenas três páginas. À época, Louise valeu-se de uma definição de
pulsão retirada de um dicionário de psicanálise e, em forma de nota, indicou dois textos de Freud que
seriam ainda mobilizados na dissertação.
Nos meses subsequentes à qualificação, a partir das versões dos textos, observamos que
Louise investiu mais no estudo do conceito de pulsão e passou a incluí-lo em seu trabalho,
mobilizando-o como chave de leitura dos dados. A articulação do conceito de automatismo da
repetição como uma das manifestações do funcionamento pulsional, inclusive, passou a ser tema de
reuniões de orientações, nas quais, a partir da escrita de Louise, Jacqueline a explicava aquilo que,
no seu entendimento, a orientanda ainda não tinha entendido.
565

Após ter escrito e mostrado para Jacqueline várias versões, nas quais buscava articular
dois dos textos freudianos, um escrito em 1915 e outro em 1920, a orientadora devolveu a última
versão enviada informando que tinha reescrito várias partes, a fim de ajudar na finalização dessa parte
da dissertação. Em um dos seus comentários, escreveu:

Quadro 2 – Excerto da introdução da dissertação


01 Voltarei a tratar a respeito do conceito de [...], essencial para minha reflexão, no próximo
02 capítulo. A ÚLTIMA FRASE VC JÁ DISSE UMAS 10 VEZES, E EU CORTEI 15.
03 Vai precisar formular uma passagem, anunciando que o que te interessa é o automatismo
04 de repetição. Senão, parece que vc está apenas justapondo textos.

Fonte: Corpus da pesquisa – Movimentos do Escrito (GEPPEP).

Esse comentário foi colocado na quarta página do texto, após duas páginas em que Louise
resenhou um dos textos de Freud (1915). Contudo, essas duas páginas estavam em uma seção
nomeada por Louise como “O automatismo da repetição”. A mestranda, porém, ao invés de ater-se
ao texto de 1920, em que Freud apresentou o conceito, fez um longo preâmbulo, valendo-se do texto
de 1915 para, somente duas páginas depois, introduzir o conceito de automatismo da repetição.
Na avaliação de Jacqueline, essa retomada não era essencial a ponto de merecer a
insistência textual de Louise. Além disso, o ponto principal que articulava os dois textos, que era
como Freud chegou à elaboração do conceito de automatismo da repetição, não estava sendo
privilegiado por Louise. Logo, a pesquisadora estava tomando o secundário como o essencial. Para
nós, essa dificuldade se dava porque, ao projetar um leitor que tudo já sabia, caberia a ele fazer a
articulação necessária. Ou seja, ela delega ao leitor o que precisaria ser feito por ela.
Outra faceta dessa alienação e do silenciamento, a nosso ver, era a repetição da mesma
ideia, com ligeiras alterações na formulação, no decorrer do texto. Para dar a ver essa tendência e,
mais ainda, o quanto Jacqueline a rechaçava, lembremos de que a orientadora se utilizou de uma
hipérbole (“umas dez vezes”) e de um paradoxo lógico (“e eu cortei 15”). A hipérbole é construída a
partir de um pronome indefinido (“umas”), que justamente marca um número aproximado dos efeitos
de repetição do texto, e de um numeral (dez), que indica uma grande quantidade.
A hipérbole utilizada por Jacqueline, a nosso ver, tinha a função de promover uma
separação. A partir dessa, a orientanda poderia mudar o lugar desimplicado, cujo local não a
propiciava verificar a sua tendência de dizer sempre o mesmo. Ela lia o que escrevia, mas, sem
agenciar a divisão subjetiva, não conseguia retroagir sobre o texto, a ponto de estranhar e de ver essas
repetições. Para nós, essas repetições constantes configuram-se como silenciamento, porque não se
produz nada de novo. O sujeito não tem voz, apenas reproduz o que, no seu entender, vai ser aceito
pelo Outro.
566

Já o paradoxo foi uma estratégia de mostrar à orientanda o quão contraditória estava


aquela parte de seu trabalho e como já estava antecipando o que se repetiria ao longo da versão do
capítulo. É como se dissesse: “já vou cortar cinco vezes a mais, para antecipar o que, provavelmente,
você vai repetir na continuidade do capítulo”.
Em nosso entendimento, um dos princípios que norteou a ação de Jacqueline foi pensar
em uma estratégia que pudesse deslocar Louise do lugar estático e repetitivo a partir do qual escrevia.
Para tanto, não se utilizou do nível da comunicação (por exemplo, se apenas informasse que o texto
estava repetitivo), mas de algo inusitado cujo efeito é muito mais forte: surpreende! A nosso ver, essa
intervenção não passa via entendimento, mas tem efeito de tocar o corpo do outro e, por consequência,
produzir transformação.
O paradoxo lógico faz uma quebra no discurso lógico corrente e causa surpresa no fluxo
linear de quem estava escrevendo. Ele introduz a dimensão do não sentido, de modo que, ao ser tocado
por essa dimensão, pode trazer transformação em quem recebe os seus efeitos.
Além disso, com a utilização dessa estratégia, a orientadora marcou a diferença das ações
feitas por ela frente àquelas feitas por Louise. A mestranda tinha escrito dez vezes a mesma frase e a
orientadora cortou 15 vezes partes do texto. Observamos que, ao marcar sua ação, Jacqueline não
usou nenhum pronome indefinido ou operador que colocasse em suspenso o número de sua ação
(cerca de; umas, por volta de). Ao contrário disso, foi assertiva: “Eu cortei 15”.
Para nós, Jacqueline ajudou Louise a “passar para outra coisa” (ALLOUCH, 1995),
entendida como uma renovação no modo de falar, pensar e de agir. É, portanto, um modo de romper
com a cultura do silenciamento.

ANTÍDOTO CONTRA A CULTURA DO SILENCIAMENTO


Frente à alienação a um Outro que tudo sabe, tudo pode, tudo vê, o sujeito “tem boca,
mas não fala”, ou, ainda, pode até falar, mas trata-se de uma elaboração que pouco leva em conta seu
potencial leitor. Assim, no caso de Louise, tratava-se de um texto repetitivo ou que faltavam
informações, a partir das quais seu leitor pudesse recuperar as ideias essenciais a serem
desenvolvidas.
Ela precisou, com a ajuda da orientadora, separar-se do discurso religioso, no qual há um
saber constituído e crenças que fundamentam a religião para poder autorizar-se a falar dentro de outro
contexto, no caso, a Universidade.
A orientadora funcionou como agente do real (RIOLFI, ANDRADE, 2009), produzindo
um antídoto contra a cultura do silenciamento. Nesse caso, trata-se de intervir mais na posição
subjetiva da aluna do que no texto ou na pesquisa propriamente dita. Essa função de agente do real
apontou a necessidade de a aluna assumir uma posição ativa e rigorosa diante da pesquisa, que a
567

possibilitou abandonar a lógica do discurso religioso e construir uma outra, na qual não precisava ter
medo de errar, de arriscar a escrever suas ideias, sem considerar que o outro já saberia de tudo.
O exemplo exposto, neste estudo, mostra a necessidade de pensarmos uma educação que
acolha o outro em seu silêncio, criando possibilidades para que ele aprenda a ter entusiasmo pelo
conhecimento, a não ver o outro como onisciente e possa, assim, assumir um lugar de fala, quebrando
a cultura do silêncio e o ciclo da repetição.

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1999.

ALLOUCH, Jean. Letra a Letra: transcrever, traduzir e transliterar. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1995.

ANDRADE, Emari. Intervenções do orientador na escrita: efeitos na formação do futuro


pesquisador. 2015. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-
03082015-160608/pt-br.php. Acesso em: 5 mar. 2021.

FREIRE, Paulo. Cultural Action for Freedom. Harvard Educational Review and Center for the
Study of Development and Social Change. Monograph Series nº 1., 1970.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2013.

IGREJA, Suelen Gregatti da. A escrita na formação de um pesquisador: marcas de reformulação


textual em versões de texto. 2017. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-31102017-113700/pt-br.php. Acesso em: 5
mar. 2021.

LACAN, Jacques (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo freudiano. In: ______. Escritos.
4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 275-311.

______. (1964). O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

______. (1966a). A ciência e a verdade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.

RIBEIRO, Mariana Aparecida de Oliveira. A formação do pesquisa-dor: do enigma ao sinthoma.


2015. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-09032016-
102326/pt-br.php. Acesso em: 05 mar. 2021.

RIOLFI, Claudia Rosa; MAGALHÃES, Mical de Melo Marcelino. Modalizações nas posições
subjetivas durante o ato de escrever. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 13, n. 24, p. 98-121, jun. 2008.

RIOLFI, Claudia; ANDRADE, Emari. Ensinar a escrever o texto acadêmico: as múltiplas funções do
orientador. Trabalhos em Lingüística Aplicada, Campinas, p. 99-118, jan./jun. 2009.
568

RIOLFI, Claudia Rosa. Do “eu sei tudo” para “meu percurso é este” – Conquista da autoria na escrita
de relatórios de Iniciação Científica. In: (Livro SETED, Natal, 2021, no prelo).
569

LEITURA DE SI E ESCRITA DO MUNDO: SOBRE TRADUZIR E FAVORECER


DESLOCAMENTOS161
Flavia Krauss162

RESUMO
Esta reflexão apresenta resultados preliminares de uma pesquisa cujo objetivo principal é interpretar
percursos subjetivos percorridos por alunas leitoras e tradutoras163, moradoras do interior do Mato
Grosso, ao se embrenharem coletivamente nos caminhos literários trilhados e colocados em cena por
uma editora cartonera boliviana. Primeiramente, demos início a um trabalho de tradução individual
de títulos publicados por uma editora boliviana, a Yerba Mala Cartonera. Seis meses depois,
organizamo-nos nos moldes de uma tertúlia literária, encontrando-nos semanalmente através da
plataforma Google Meet para lermos e conversarmos a respeito dos livros que estamos traduzindo.
Os encontros são gravados para posterior transcrição e análise. A esses encontros acrescentamos uma
entrevista feita individualmente com cada uma das participantes. A partir da análise desse material,
pudemos identificar quebras e deslocamentos vivenciados pelas participantes do processo. Como
quebra, entendemos o movimento subjetivo que implica uma abrupta interrupção, ocasionado por um
desmoronamento do caminho que vinha sendo seguido; de modo que o sujeito a vive como se
estivesse em um lugar de passividade, já que interpreta a alteração como que algo lhe aconteceu, sem
ter sido protagonizado por ele. Nesse sentido, a quebra seria inconsciente e independente de quem a
vive. Já como deslocamento, estamos entendendo o movimento subjetivo feito conscientemente e
assumido pela aluna-tradutora. Ao alinhavar tais vozes, identificamos duas quebras – a do imaginário
e a das barreiras linguísticas – e dois deslocamentos – a assunção de um saber-fazer e o início da
construção de um sentimento de latino-americanidade.

Palavras-chave: literatura boliviana; tradução entre mulheres; deslocamentos subjetivos.

1, 2, COMEÇANDO!
Para dar início à minha contribuição por escrito a esse grupo de trabalho cujo título é
“Lacan com Freire: escrever para além da cultura do silêncio”, que se propõe a fazer uma intersecção
entre o pensamento de Lacan e o de Paulo Freire partindo do pressuposto de que vivemos em uma
cultura do silêncio, retomo as palavras de Claudia Riolfi, coordenadora da sessão de trabalho, no dia
03 de dezembro de 2020, ao afirmar que ambos os pensadores sempre se preocuparam em melhorar
a relação do sujeito com sua palavra. Pois bem, de minha parte, para abordar a relação que o sujeito
estabelece com a própria palavra, gostaria de, enquanto professora de língua e literaturas de língua

161
O presente trabalho foi realizado com apoio do FMAL-CBEAL da Fundação Memorial da América Latina e do Centro
Brasileiro de Estudos da América Latina.
162
Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso. E-mail para contato: flaviakrauss@unemat.br
163
Gostaria de agradecer imensamente à Alyne, Maryssol, Letícia e Patrícia, mulheres que aqui comparecem com seus
nomes reais e que durante o ano de 2020 compareceram com seus corpos, energia e disposição também reais para que
construíssemos um circuito literário em Tangará da Serra que segue ganhando corpo, se retroalimentando da própria
energia que aí se gera neste ano de 2021. Sigamos!
570

espanhola, apresentar uma prática de leitura coletiva e os efeitos enunciados pelas participantes a
partir de entrevistas individuais que realizamos com cada uma164.

DE ONDE SAÍMOS
Para começar, apresento meu ponto de partida: uma interpretação da sociedade em que
vivemos. Dunker (2020)165 afirma que nossa civilização caminha cada vez mais em direção a uma
civilização obsessiva: uma civilização em que cada um dos sujeitos que a constituem se esmera em
ter o controle do que lhe pode vir a acontecer. Em suas palavras:

Então vamos olhar para nossa civilização [...] e vamos dizer: ela é uma civilização que
caminha na direção da neurose obsessiva e da escrupulosidade anal, quando ela propaga e
vende para gente a ideia de que você pode controlar tudo o que vai se passar na sua vida,
você pode planejar tudo o que vai se passar na sua vida e isso é uma vida boa. Bom, isso é
uma vida boa para neuróticos obsessivos. (DUNKER, 2020, transcrição da autora)

Ao começar este texto trazendo uma interpretação de que somos uma sociedade na qual
muito nos compraz a ideia do planejamento visando a um maior domínio de todas as possibilidades,
lanço a hipótese de que os saberes (e seus modos de produção) que circulam nessa sociedade em
muito contribuem para esse estado de coisas. E aqui, talvez, tenhamos uma explicação para a assunção
protagonizada pelos “saberes de regulação” presenciados pela sociedade moderna.
Quem define os “saberes de regulação” é o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2007),
dizendo que tais saberes se apresentam como sinônimo de ordem, de modo que saber significa ter
capacidade para organizar a alteridade, a realidade e a sociedade. Ao definir os saberes de regulação,
o sociólogo os contrapõe aos saberes de emancipação, os quais define como solidariedade entre os
seres de forma esclarecida. Como ainda lembrado pelo sociólogo, o conhecimento para a regulação
estabelece sua hegemonia quando a modernidade ocidental passa a coincidir com o capitalismo e
termina por perverter as possibilidades do conhecimento para a emancipação. Assim, o saber
hegemônico considera a autonomia solidária como uma forma de caos, representante da falta de
conhecimento, de modo que o colonialismo se erige como a forma canônica de organização da
sociedade. Ao alinhavar as vozes dos pensadores aqui já citados, temos a seguinte situação: de um
lado, o capitalismo censura os saberes para emancipação, mas, por outro lado, cada sujeito vem
apresentando uma crescente necessidade de organizar o mundo que o rodeia. Assim, na interpretação
que faço, essa necessidade sentida como individual oferece corpo e energia para a construção de uma
hegemonia dos saberes que visam à regulação e impedem a emancipação.

164
Foram realizadas cinco entrevistas com cada uma das tradutoras e/ou participantes da prática de leitura coletiva.
165
DUNKER, C. Sobre a neurose obsessiva/ Christian Dunker/ Falando nIsso 260. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cPuEH-W1oJA. Acesso em: 20 jan. 2021.
571

Entendo também que os saberes de regulação, ao se empenharem em organizar o mundo


para melhor conhecê-lo, matam esse mundo, transformando-o em tema de estudo, em matéria a ser
aprendida e organizada. Segato (2018) chama às estratégias de assassinato do mundo de “pedagogias
da crueldade”. Trazendo a voz da autora, temos:

Llamo pedagogías de la crueldad a todos los actos y prácticas que enseñan, habitúan y
programan a los sujetos a transmutar lo vivo y su vitalidad en cosas. En ese sentido, esta
pedagogía enseña algo que va mucho más allá del matar, enseña a matar de una muerte
desritualizada, de una muerte que deja apenas residuos en el lugar del difunto. (SEGATO,
2018, p. 11)

Às práticas que se esforçam em burlar a hegemonia das pedagogias da crueldade, Segato


chama de contra-pedagogias da crueldade, que se constituiriam como práticas (SEGATO, 2018, p.
15) “capaces de rescatar una sensibilidade y vincularidad que puedan oponerse a las pressiones de la
época y, sobre todo, que permita visualizar caminos alternativos”.
Trago essas categorizações no início deste texto, porque entendo que em Tangará da Serra
(MT), lugar onde a pesquisa está sendo realizada, estejamos construindo uma prática de contra-
pedagogia da crueldade: nosso Ayni Literário.

O QUE PROPUSEMOS
Com o distanciamento social imposto por conta da pandemia mundial vivida em 2020 –
que segue em 2021, comecei a pensar no que poderia fazer para promover a conexão entre algumas
alunas mesmo com tanto distanciamento. Pensei na palavra literária. Pensei que pudéssemos nos
aproximar via literatura. O pensamento virou ação em abril. São oito os livros que começaram a ser
traduzidos em 2020. Organizei um roteiro de aproximação à cena literária boliviana e à atuação da
Yerba Mala Cartonera: esse roteiro incluía um documentário, a leitura de um manifesto escrito por
esse coletivo, alguns recortes de seu blog. Na sequência, disse que as alunas poderiam escolher
qualquer dos livros166 da editora para traduzir. Assim que os títulos iam sendo escolhidos,
conversávamos com o editor boliviano, para que fizesse o contato com a autora ou autor. Assim que
recebíamos a permissão, a aluna começava o processo de tradução. Esse circuito de trabalho acabou
por ser institucionalizado como um projeto de extensão da Universidade do Estado do Mato Grosso
com o nome de “Leitura e Tradução Literária Cartonera”.
Foi em setembro de 2020 que percebi que as alunas se conectavam à obra que cada qual
estava traduzindo, mas não umas às outras enquanto um coletivo de trabalho. Naquele momento,
propus um encontro semanal com as tradutoras para que pudéssemos ler coletivamente as traduções
já feitas. Nosso primeiro encontro ocorreu dia 01 de outubro de 2020. De lá para cá nos encontramos

166
Todos os títulos da Yerba Mala estão disponíveis em https://issuu.com/yerbamalacartonera.
572

toda semana. Intitulamos nossos encontros de Ayni Literário, porque gostaríamos de fazer ressoar
esse significante aimará. Ayni seria a coluna vertebral do pensamento andino: significa partilha,
compartilha; é um princípio que entende que o universo se organiza em uma relação de
complementariedade.
Os moldes desses encontros inspiram-se nas tertúlias literárias dialógicas desenvolvidas
na Comunidade de Aprendizagem La Verneda de San Martí, em Barcelona, na Espanha. Surgida em
1980, em um período de transição democrática após o fim da ditadura de Franco em 1975, os
idealizadores e realizadores dessa comunidade muito nutriram-se do pensamento do brasileiro Paulo
Freire. Inclusive Soler y Lleras (2003, n.p.) citam o famoso educador para dizer onde está o núcleo
principal da ação realizada com a Tertúlia Literária Dialógica: “la clave está en promover una
comunicación cultural entre conocimiento popular y académico”.
A ideia de trazer a tertúlia literária para o interior do Mato Grosso apareceu porque entre
2008 e 2009, participei de uma dessas tertúlias literárias em um bairro cigano de uma cidade chamada
Castelló de la Plana, também na Espanha. Esses encontros aconteciam em uma língua até então
desconhecida para mim, o valenciano. No entanto, algo se moveu aqui dentro, mesmo a partir de tanto
desconhecimento. Algo aconteceu e permaneceu: até hoje me sinto conectada às pessoas que também
participavam daquela tertúlia toda tarde de sexta-feira.
Minha proposta, ao idealizar nosso ayni, também era criar conexão via palavra literária e
dar lugar às vozes de todas as envolvidas a partir da palavra literária. Nosso Ayni Literário parte da
ideia de conversarmos a respeito da literatura produzida pelos nossos vizinhos bolivianos. Desse
modo, então, já subvertemos um dos princípios das Tertúlias Literárias Dialógicas, justamente o que
diz que o objetivo de tais encontros é democratizar o acesso aos clássicos da literatura. Não lemos os
clássicos. Lemos justamente latino-americanas que não entram no cânone: as bolivianas publicadas
por uma editora sem fins lucrativos que fabrica livros com capas de papelão, uma editora cartonera.
Há alguns anos (KRAUSS, 2016) entendo que a proposta cartonera, ao afastar o objeto
livro de uma categoria meramente mercadológica167, é uma porta de entrada privilegiada a um recorte
da literatura latino-americana capaz de produzir certos deslocamentos em nossos modos de
subjetivação hegemônicos (PALMEIRO, 2010; NAVARRO, 2020) e é capaz, talvez, de produzir
alguns desvios de rota no processo de regulação de nossa sociedade.
Paralelamente, interessei-me em saber quais os deslocamentos subjetivos que essa prática
tem produzido nessas mulheres participantes do projeto. Assim, meu objetivo em minha pesquisa
maior é: interpretar os percursos subjetivos percorridos por mulheres leitoras e tradutoras, habitantes

De fato, nas fichas catalográficas de seus livros, o Yerba Mala apresenta-se como um “proyecto social, cultural y
167

comunitario sin fines de lucro”.


573

do interior do Mato Grosso, ao embrenharmo-nos coletivamente nos caminhos literários trilhados e


colocados em cena por uma editora cartonera boliviana.

“O QUE MUDOU?”: ÀS INTERPRETAÇÕES AGORA VAMOS


Por entender a noção de sujeito a partir de uma perspectiva psicanalítica, interpreto o
sujeito como sendo dividido, clivado, descrito como constituído por uma “heteronomia radical”
(LACAN, 1998 [1957], p. 528). Indo ao encontro dessa heteronomia, observamos que as falas das
participantes do nosso Ayni Literário, a princípio, apontam-nos para uma quebra. Como quebra,
entendemos o movimento subjetivo que implica uma abrupta interrupção, ocasionado por um
desmoronamento do caminho que vinha sendo seguido; de modo que o sujeito a vive como se
estivesse em um lugar de passividade, já que interpreta a alteração como que algo lhe aconteceu, sem
ter sido protagonizado por ele. Nesse sentido, a quebra seria inconsciente e independente de quem a
vive.
Comecemos pelo depoimento da Alyne:

Quadro 1 – Alyne168 – Quebra do imaginário


Eu tenho isso, não como um preconceito, mas como que não tivesse nada que pudesse me
agregar. Olha só, que pretensão, que ridículo. É como se eles não tivessem valor nenhum. Eu
venho de uma família, né? Eu ouço até hoje o meu pai dizer “ah, só tem índio, atrasado”. E aí
como a vida vai passando, ficou e nunca me interessou nada. Eu fui começar a aprender e to
super apaixonada por eles e quero cada vez aprender mais, não só deles, mas de todos da
América Latina, foi com você na aula de espanhol, porque até então para mim, quando falavam
da Bolívia, parecia que era aquele monte de gente, andando de carro velho pra cima e pra
baixo, tipo a Índia, e eles ainda andavam armados. Além de ser aquela loucura da Índia eles
ainda estavam armados. Por causa dessa história do tráfico. A gente passou a vida, aqui no
Mato Grosso vendo muitas notícias de mortes, aqui nas fronteiras, que prenderam a carga de
não sei quantos quilos de cocaína é... Carros são roubados, eu nem sei mais né? Mas
antigamente sempre soube que o carro é roubado em Cuiabá – eu morei muitos anos em Cuiabá
– em menos de 4 horas ele está na Bolívia, aí você já não pega mais, nem a polícia, entendeu?
A gente tem essas notícias: “ah, já atravessaram com seu carro” [...]. Agora você imagina seu
carro com quatro bolivianos armados andando dentro dele. E é como se a gente realmente
tivesse de costas para eles, porque a gente só olha para a Europa, pros Estados Unidos, ninguém
olha ali, pra trás ali. Quer dizer, eles não estão atrás, eles estão do lado [...]. A gente faz com
eles exatamente o que a gente faz com nossos índios. E eles são índios (pausa) também. A

168
Acadêmica do quarto semestre de Letras de Tangará da Serra. Sua família é considerada como pioneira em Tangará
da Serra - MT. Seu pai foi dono da primeira farmácia da cidade, onde ela foi funcionária por anos. Inclusive, cursou
alguns semestres, mas não se formou no curso de Farmácia. Tem 43 anos e carrega o sonho antigo de ser professora.
574

gente não quer ver e se acha superiores a eles porque eles são índios como nossos índios. É
exatamente isso o que a gente faz: eles estão lá no canto, ninguém quer ver, só quer fazer
turismo em aldeia, por um cocar, tirar uma foto, mas depois não quer o cara aqui na cidade
solicitando nada, nenhum direito à terra, nenhum direito a ser um vereador, a fazer faculdade,
nada. Você pode ver que na fronteira do Uruguai não tem isso. Eles podem até ser bem pobres,
ser colonos, mas não é o mesmo preconceito, muito pelo contrário, as pessoas acham lindo
dizer que atravessaram ali para o Uruguai. (grifos nossos)
Fonte: material da pesquisa

Como trataremos de analisar a partir dessa longa, mas elucidativa fala, a aluna-tradutora
já começa com uma denegação que vai ganhando corpo ao apontar o preconceito como sendo do
outro, mas acaba assumindo inconscientemente esse preconceito para si, como demonstramos com
as oposições que elencamos na sequência:

1. “não como um preconceito” versus “como se eles não tivessem valor nenhum”;
2. ouço até hoje o meu pai dizer: “ah, só tem índio, atrasado” versus eles são índios (pausa)
também; e
3. é como se a gente tivesse de costas pra eles versus ninguém olha ali, pra trás ali.

No interior desse jogo no qual se tensiona sobre o fato do preconceito ser apontado como
sendo do outro, mas ao mesmo tempo ser assumido por ela, existe uma declaração de apaixonamento,
o que nos oferece o indício de que o afeto viria antes do esclarecimento e se sobreporia à lógica.
Frisamos ainda que o preconceito apontado como sendo do outro (“meu pai”, “venho de
uma família”) reaparece na fala de Alyne, a partir de uma comparação assumida como própria - já
que ela, nesse momento, não está relatando nada, está tratando de ser mais clara para o interlocutor –
que retoma o imaginário implementado desde a chegada de Cristóvão Colombo à América: o
imaginário de que havia chegado às Índias. Alyne diz que imaginava a Bolívia tipo a Índia, o que nos
indicia que as imagens implementadas durante a época da colonização seguem em pleno
funcionamento na atualidade, mas com um toque de contemporaneidade que comparece por via da
violência pela qual se sentia ameaçada: “e eles ainda andavam armados”.
Como vemos, a partir de alguns indícios trazidos pelo depoimento dessa aluna-tradutora,
o discurso da colonialidade mostra-se bastante vigente em nossa relação com os vizinhos bolivianos:
eles são tipo a Índia, “só tem índio, atrasado”. Trata-se de juízos de valores que vão nos dando mostras
de que nossos vizinhos seriam vistos como uma nação em débito com a modernidade e com a
civilidade, representada pela lei, o que se vislumbra pelo fato de que, ao atravessarem algum carro
para o lado de lá da fronteira, se faz impossível seu resgate.
575

Também no próximo excerto, transcrito da fala de Maryssol169, nos encontramos com


uma anterior invisibilização da cena literária boliviana – na verdade, a partir do depoimento de Alyne
a cena literária nem sequer chega a ser hipotetizada, já que em imaginário tão disfórico não há lugar
para as produções culturais. Ao se invisibilizar a produção literária boliviana, Maryssol relata um
desinteresse em sua procura, ainda que ela tivesse um contato anterior com a realidade de nossos
vizinhos, como nos relata na sequência.

Quadro 2 – Maryssol – Quebra do imaginário


Maryssol: Sempre que você aprofunda você começa a pegar uma outra nuance da cultura né?
Porque eu ia até a Bolívia em uma situação, então eu via uma parte da Bolívia. A tradução e o
contato com a autora me mostram outra parte da Bolívia. Tanto a literatura de qualidade que a
Bolívia produz, quanto um olhar sobre a Bolívia... que é muito parecida com a gente, né? Só
que é em espanhol (risos).
Eu: E você não imaginava que fosse parecido com a gente?
Maryssol: Flavia, é difícil dizer isso, mas é verdadeiro. É vergonhoso, mas, assim, a gente tem
um distanciamento muito grande né? Para o brasileiro existe um imaginário da América do Sul.
Então, ora ele é praia, são as praias caribenhas, ora ele é o ideal comunista revolucionário e ora
ele é Buenos Aires e Uruguai que é Europa no Brasil. Mas você vai ler, vai ver as
dificuldades econômicas e sociais que eles têm e são muito próximas das nossas: as mesmas
dificuldades de desigualdade social, de extrema colonização e imposição de uma cultura do
exterior”

Como gostaríamos de pontuar, no caso de Maryssol também existe um imaginário que


aqui se quebra: é o imaginário de que simbolicamente os bolivianos estão longe da gente (como lemos
em “um olhar sobre a Bolívia... que é muito parecida com a gente, né? Só que é em espanhol (risos)”.
Se no caso da Alyne existia um imaginário de que o outro inclusive estava perto (como lemos: “em
menos de 4 horas ele está na Bolívia, aí você já não pega mais, nem a polícia, entendeu?”, mas era
ameaçador, no caso Maryssol temos um outro que está distante (“Flavia, é difícil dizer isso, mas é
verdadeiro. É vergonhoso, mas, assim, a gente tem um distanciamento muito grande né?”). É a própria
aluna quem nos explica o motivo desse distanciamento também assumido por ela, por estar dentro do
conjunto constituído pelos “brasileiros”: “Para o brasileiro existe um imaginário da América do Sul”
e os bolivianos – e, acrescentamos, a literatura por eles produzida – não são contemplados nesse
imaginário pré-fabricado e oferecido “de bandeja”.

169
Irmã da Alyne, nossa primeira aluna entrevistada. Tem 44 anos e também é acadêmica do 4º. Semestre de Letras.
576

Assim como no depoimento de Alyne, na fala de Maryssol reaparece uma menção ao


Uruguai em termos eufóricos. Se na fala da primeira aluna o Uruguai era visto pelos brasileiros como
um lugar-objeto de desejo: “as pessoas acham lindo dizer que atravessaram ali para o Uruguai”,
Maryssol acaba explicando o processo que coloca esse pequeno país em um circuito do desejo para
os brasileiros: juntamente com Buenos Aires é a personificação da Europa no Brasil, de modo que
são uma representação dos colonizadores por essas paragens colonizadas. Chamamos ainda a atenção
de que a noção de América do Sul ou Latina, por um lapso, sofre um apagamento na fala de Maryssol:
Buenos Aires e Uruguai figuram como estando no Brasil, não na América do Sul, de modo que se
oferece destaque à “proximidade” que estabelecemos (ou gostaríamos de estabelecer) como
brasileiros com esses dois locais europeus em detrimento de sua localização na América do Sul.
Buenos Aires e Uruguai seriam uma Europa nossa, dos brasileiros.
Afastando-nos um pouco das quebras de um imaginário instalado na região do Brasil que
habitamos e aproximando-nos de uma quebra no imaginário que se constrói ao redor de uma língua
estrangeira, vamos ao depoimento da Patrícia170.

Quadro 3 – Patrícia – Quebras das barreiras linguísticas


Eu: Patrícia, você traduziu Gramática do Desejo, do Augusto Rodriguez171, e agora tá
traduzindo Ferro, do Roberto Oropeza172. Você acha que você conheceu algo a mais sobre a
cultura destes dois autores, de onde foi escrito os livros e tal?
Olha, eu acredito que sim. Às vezes a gente não se aprofunda taaaanto, mas a gente começa a
perceber a subjetividade né? O ser humano. Porque eu acredito que nas obras o autor deixa um
pouquinho do que é dele, mesmo que ele não seja o eu-lírico, você começa a entender a
subjetividade humana do outro e você começa a perceber que, independente da nacionalidade,
você vê que, você sente, você se sente meio que representado na obra. Eu acho que dá uma
quebra, quebra um pouco das barreiras linguísticas né?

Eu: Antes de começar a traduzir você tinha alguma imagem dos escritores latino-americanos?

170
Patrícia é aluna do quinto semestre do curso de Letras de Tangará da Serra. Traduziu Gramática del Deseo, de Augusto
Rodríguez, e no momento da entrevista estava traduzindo Ferro, de Roberto Oropeza. Interessada pela temática cartonera,
desenvolve seu trabalho de conclusão de curso analisando aspectos relacionados à democratização dessa forma de
literatura. Atualmente é bolsista do projeto de extensão “Leitura e Tradução Literária Cartonera” e desenvolve uma série
de podcasts sobre as traduções que estão sendo desenvolvidas pelo grupo de acadêmicas aqui de Tangará da Serra
mencionadas neste artigo.
171
Nasceu em Guayaquil, Equador, em 1979. Jornalista, poeta, narrador e editor é ganhador de inúmeros prêmios entre
América e Espanha, é considerado um dos grandes nomes da literatura equatoriana.
172
Poeta boliviano, nascido em Cochabamba em 1983, é editor e professor universitário. Com Ferro ganhou o concurso
de poesia jovem da Fundación Pablo Neruda, em Santiago do Chile. É também um dos atuais editores de Yerba Mala
Cartonera.
577

Não, não tinha assim uma imagem. Mas imaginava que seria diferente, sabe? Talvez sobre a
cultura, a escrita fosse voltada... mais assim, sabe? Mas aí a gente, igual eu falei, a gente começa
a perceber que na verdade [...]. Quer dizer, tem a sua subjetividade, as suas características
próprias, mas a gente acaba se envolvendo bastante.
Fonte: material da pesquisa

Como vamos interpretando, devido à barreira linguística, Patrícia pensava em não


encontrar – do lado de lá da barreira – algum ponto de conexão ou alguma questão que lhe tocasse.
Parece que se movia em um esquema no qual a alteridade, por estar organizada em uma língua
estrangeira, lhe fosse totalmente estranha. Desse modo, vemos que – para além da quebra de uma
barreira linguística – também rui o imaginário de que línguas distintas constroem subjetividades que
não sejam intercomunicáveis, que não se sensibilizem entre si.
Para além das quebras, alguns deslocamentos foram anunciados. Como deslocamento,
entendemos o movimento subjetivo conscientemente feito e assumido pela aluna-tradutora. Em nossa
análise, pudemos identificar dois: 1) A assunção de um saber-fazer; e 2) O início da construção de
um sentimento de latino-americanidade.

Deslocamento 1 – A assunção de um saber-fazer

Conforme podemos interpretar, sobretudo a partir do depoimento de Letícia173, no Quadro


5, o exercício da tradução propiciou-lhe um saber-fazer que pode ser carregado para a vida, não se
esgotando no mero exercício tradutológico entendido como uma prática escolar. Esse saber-fazer
relaciona-se com uma habilidade de permitir que o texto se mostre e permita ler o que carrega por
escrito, uma habilidade em permitir que o outro se mostre como alteridade ao invés de ir já
interpretando-o a partir de esquemas próprios e prévios.

Quadro 4 – Letícia – A assunção de um saber-fazer


[...] Quando a gente teve as literaturas de língua espanhola... Antes de começar, eu tinha uma
visão, como eu falei, que era só literatura: ah, eu só vou ler, é só texto, né? Assim, algo sem
importância [...]. Quando a professora começou a ensinar pra gente, eu fiquei “uau” porque é
uma história de um povo, não é só um texto inventado por alguém, não, é uma história, coisas
que realmente aconteceram e que foram transmitidas através de textos né? Eu gostei aí. Só que
na tradução a gente se aprofunda mais [...] a gente entra na história, a gente realmente faz parte

173
Letícia Navarro concluiu a graduação em Letras em 2020. Tem 33 anos. Traduziu seu primeiro conto em sala de aula
e se interessou tanto por esse texto, que a ele se dedicou em seu trabalho de conclusão de curso, defendendo o TCC com
o título “La lengua de las locas: um pequeno recorte sobre o catálogo de Eloísa Cartonera”.
578

da história, porque a gente tem que tentar traduzir de uma forma que as outras pessoas vão
entender também para elas compreenderem [...]. Porque quando a gente lê no espanhol, muitas
vezes eu já fiz isso, muitas coisas a gente só interpreta (a gente junta tudo ali e faz uma
interpretação das palavras. A gente não vai ler palavrinha por palavrinha e traduzir na cabeça
da gente (risos) mas na tradução a gente tem que fazer isso, tem que traduzir palavrinha por
palavrinha para pensar ali no contexto e para tentar dar uma interpretação do que tá sendo dito.
Então foi completamente diferente, a minha visão mudou completamente a partir dali. Porque
agora quando eu vou ler algum outro texto em espanhol, eu já fico com isso na cabeça, eu já
vou lendo ele, já vou traduzindo na minha cabeça “ah, então é assim, então é assim”. Mudou a
minha forma de ler. A tradução mudou minha forma de ler.
Fonte: material da pesquisa.

Consideramos esse deslocamento apontado pela aluna como um dos efeitos produzidos pelo
trabalho de tradução, um efeito que não havia sido anteriormente calculado. Como interpretamos, a
necessidade de debruçar-se com extrema atenção ao texto a ser traduzido modificou sua relação com
os textos e com a leitura em geral. Se no trecho anterior Letícia aponta-nos para o fato de que a
tradução modificou sua relação com a leitura em língua estrangeira, no próximo (Quadro 6), ela vai
construindo a linha de raciocínio de que antes nem sequer era capaz de compreender o que os textos
diziam, ainda que julgasse que sim, que estivesse compreendendo.
Como fomos tratando de ir interpretando, a partir do depoimento de Letícia, lemos que a
prática de tradução oferece subsídios para uma possível corporificação da alteridade, que passa a
ganhar efetivamente estatuto de outra coisa, de outro, de não idêntico a mim (lembremos que antes a
aluna mesma foi quem disse “a gente junta tudo e faz uma interpretação das palavras”), de modo que
parecia não existir espaço e paciência para permitir que a alteridade se mostrasse, se dissesse, se
fizesse entender:

Quadro 5 – Letícia – A assunção de um saber-fazer


Eu lia – um exemplo – quando a gente foi traduzir Gaby y el Amor, que foi dividido em duplas
né? Daí, Rosana e coisa ficou com um e eu e Alessandra ficamos com O Pobre Rodrigues. A
primeira vez que eu li o Pobre Rodrigues, antes de chegar no final, eu tava achando assim
muito sem graça a história. Tá, mas eu não tinha chegado no finalzinho. Daí eu falei “não, eu
vou voltar e vou ler mais devagar né?” Porque a gente até tinha que traduzir ele, né? Vou voltar
e vou ler mais devagar”. Quando eu li devagarzinho, que eu realmente me aprofundei na
história, eu chorei no final da história, realmente eu chorei de verdade, porque eu realmente
entrei ali e é como se eu sentisse o que ele sentiu, quando ele perde o filho dele lá, que ele se
mata. Então, realmente eu fiquei emocionada de verdade, daí eu falei “agora sim eu entendi”
579

Por quê? Porque eu precisava traduzir, então eu precisava entender, eu tinha que saber o que
tava ali. Aí eu li com mais calma, mais paciência, sem atropelar palavras, aí, a partir daí eu fui
começar a ler outros textos também com mais paciência [...].
Fonte: material da pesquisa

Se nesse excerto Letícia fala-nos que a tradução lhe ofereceu ferramentas para construir
outro estatuto para a leitura, no próximo (Quadro 6), na sequência, aponta-nos para o fato de que esse
saber-fazer, a princípio relacionado com a leitura em língua estrangeira, ressoa nos textos em língua
materna e, inclusive, nos textos escritos por ela mesma.

Quadro 6 – Letícia – A assunção de um saber-fazer


Isso me ajudou muito no TCC, porque eu tive que ler mais no final do TCC. Aí isso me ajudou
muito muito muito muito. Até com o meu próprio trabalho, porque até o meu próprio trabalho
eu lia com mais pressa. Aí não, fui lendo com mais calma. Aí, ajuda muito, o processo de
tradução é uma coisa maravilhosa, muito bom mesmo, ajuda muito [...]. Talvez eu não tivesse
agora essa visão de leitura se eu não tivesse feito tradução.
Fonte: material da pesquisa

O que gostaríamos de mostrar e de argumentar a partir da análise dos trechos do


depoimento fornecido por Letícia é que a tradução, ao obrigá-la entrar na materialidade da língua
estrangeira com a tarefa de voltar para a superfície com os sentidos construídos já em língua materna,
faz com que ela se despoje dos sentidos já construídos de antemão e que compareciam no momento
da “interpretação” sob a etiqueta de “leitura”. Letícia, já ao fim da graduação em Letras, percebe que
ler é uma coisa diferente daquela que sempre havia imaginado.

Deslocamento 2 – O início da construção de um sentimento de latino-americanidade

A desconexão com nossa vizinha Bolívia faz-se presente e é sentida em nossas relações
cotidianas, mas também na construção de um cânone literário latino-americano. Como inclusive
fomos notamos nas entrevistas realizadas, o processo de tradução dá indícios de que um maior
(re)conhecimento vai gestando um sentimento de coletividade, de pertencimento, de que somos
parecidos a eles, como percebemos ao lermos o depoimento de Alyne:

Quadro 7 – Alyne e o início da construção de um sentimento de latino-americanidade


Eu percebi que (risos) eles são como a gente, eles têm os mesmos, as mesmas questões que a
gente. As questões não são iguais, mas os questionamentos né? Em relação aos problemas
deles... Em relação à Bolívia, assim... Como eu não tinha prestado atenção em nada deles, é
580

como se eles não tivessem literatura (risos, tapa a cara com a mão) e diz: Ai, que horror. Mas
é.

Eu: E ao descobrir que eles são semelhantes a você... Qual o impacto na sua subjetividade?
Porque movimenta alguma coisa dentro da gente, né?

Tipo de irmandade, de ver que eles estão lá buscando as mesmas coisas que nós aqui, né? [...].
E talvez assim, não que eles tenham entrado para a minha irmandade, mas que eu tenha entrado
para a deles. Pô, eu sou deles ali, né? Eu to aqui também, as coisas são iguais [...] como se eu
tivesse passado a ser latino-americana, entendeu? Porque antes eu acho que eu achava que eu
era europeia (risos). Agora eu acho: “eu acho que to aqui” (e aponta com a mão para o ar,
simulando que está de frente para o mapa da América).

Fonte: material da pesquisa

Como podemos ler no depoimento de Alyne, funcionava em sua subjetividade um


processo que invisibilizava muitos aspectos que a aproximava de nossa vizinha Bolívia, fazendo com
que ela se sentisse mais europeia que latino-americana. De fato, ela é descendente de espanhóis em
uma comunidade latino-americana que faz questão de fazer a árvore genealógica da parte europeia
da família e censurar a parte indígena: do seu avô europeu se conhece nome, sobrenome, de onde
veio, que ano veio e o motivo da vinda. Da sua avó, só se sabe que era uma “índia”.
Se contamos essa anedota de cunho pessoal, é porque acreditamos que ela esteja
carregada de teor político e em muito explica nossa relação com a América Latina e, sobretudo, com
nós mesmos. Nos vemos em espelhos que nos deturpam. Alyne, ao enunciar “eles estão lá buscando
as mesmas coisas que nós aqui”, percebe que sua ascendência faz parte de um passado e pode, então,
se olhar em outros espelhos, para além dos recebido anteriormente, e, assim, construir relações de
“irmandade”, como caracterizado por ela.

NO PRINCÍPIO TUDO ESTAVA EM SEU LUGAR, SÓ QUE ESSE LUGAR ERA


EQUIVOCADO
Ao reunir e tecer as vozes de algumas tradutoras de Tangará da Serra e participantes de
nosso Ayni Literário, percebemos que algo se quebra e pode vir a se deslocar com a tradução e com
a prática da leitura coletiva: duas quebras e dois deslocamentos foram analisados nesta reflexão.
As duas quebras aqui descritas indiciam-nos que elas acabam por recair no imaginário
(no caso da Patrícia, a quebra é da barreira linguística, mas que produzia efeitos também no
imaginário). Já os dois deslocamentos vislumbrados a partir das falas das tradutoras colocadas em
581

cena apontam-nos que os movimentos vislumbrados se relacionam sobretudo a um assumir um corpo


que consiga mergulhar no texto, encará-lo e, desse encontro, observar as informações materiais
realmente trazidas com a escrita do outro. Interessante observar que esse deslocamento não leva a
tradutora para um lugar outro, mas lhe dá subsídios para assumir o corpo que habita. Como
consequência, lhe dá paciência para encarar o texto, enfrentando a materialidade escrita. Ao
reconhecer o local que seu corpo ocupa, outra tradutora, Alyne, chega a gestar um sentimento de
coletividade ao perceber que a Bolívia está do nosso lado, e não atrás da gente.
Ao interpretarmos os textos traduzidos como espelhos para os quais as tradutoras se
podem olhar e, a partir daí, se re/conhecerem desde outra perspectiva, para além da herdada, vamos
concluindo esta reflexão com a certeza de que muitas vezes nos vemos, nos pensamos e agimos a
partir de uma perspectiva que não é propriamente a nossa. “A cabeça pensa onde os pés pisam” –
disse o Frei Betto que esse era um dos princípios da epistemologia. Recito essa frase de memória,
cheia de recordações afetivas. Devo tê-la escutado pela primeira vez no Magistério, no interior de
São Paulo. Muitos anos depois, entendo que fazer com que a cabeça pense onde os pés estão pisando,
estabelecendo uma relação mais visceral com a própria palavra, é trabalho para toda uma vida: uma
vida de professora, mas, sobretudo, uma vida de ser humana.

REFERÊNCIAS

DUNKER, Christian. Sobre a neurose obsessiva. Falando nIsso 260. 17 jan. 2020 (21m17s).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cPuEH-W1oJA. Acesso em: 20 jan. 2021.

KRAUSS, Flávia. O Acontecimento Eloísa Cartonera: memória e identificações. 2016. 204f. Tese
(Doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) - Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, 2016.

LACAN, Jacques (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN,
Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 498-533.

NAVARRO, Letícia. “La lengua de las locas”: um pequeno recorte sobre o catálogo de Eloísa
Cartonera. Trabalho de Conclusão de Curso. Mato Grosso: Universidade do Estado do Mato Grosso,
Campus Tangará de Serra, 2020.

PALMEIRO, Cecília. Desbunde y felicidad: de la Cartonera a Perlongher. Buenos Aires: Título,


2010.

SEGATO, Rita Laura. Contra-pedagogías de la crueldad. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:


Prometeo Libros, 2018.

SOLER, María; LLERAS, Jordí. Las tertúlias literárias dialógicas: compartiendo lectura y cultura.
SABERES. Decisio, Inverno 2003. Disponível em
https://www.crefal.org/decisio/images/pdf/decisio_6/decisio6_saber5.pdf. Acesso em: 06 jan. 2021.
582

SOUSA SANTOS, Boaventura. Uma nova cultura política emancipatória. In: SOUSA SANTOS,
Boaventura. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo,
2007. p. 52-54.
583

A RECATEGORIZAÇÃO DO OBJETO DE DISCURSO ISOLAMENTO NA PÁGINA


RECIFE ORDINÁRIO NO TWITTER

Letícia Júlia Silva de Oliveira174


Thaís Ludmila da Silva Ranieri175

RESUMO
O trabalho em tese pretende analisar como o objeto de discurso isolamento – termo evocado pelo
contexto pandêmico imposto pela pandemia da COVID-19 no ano de 2020- é recategorizado por meio
dos processos referencias realizados pelas interações dos usuários na página Recife Ordinário no
Twitter. Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Textual na figura de
Cavalcante (2012); Filho e Silva (2013) para quem os processos referenciais são analisados de
maneira a revelar suas relações não somente com o cotexto, mas primordialmente com o contexto.
Também observmos as discussões basilares engendradas por Mondada e Dubois (2003), as quais
refletem sobre o caráter mutável da referenciação, uma vez que esta revela as visões de mundo dos
usuários da língua. Visto isso, evidencia-se, assim como postulado pelas teóricas, que os processos
referenciais que ensejam a recategorização dos objetos de discurso estão dentro de uma perspectiva
linguística, sociocognitiva e interacional, uma vez que se nota que os processos enunciativos se
constroem em um campo social. Sob esse ótica, a análise em questão objetiva apresentar como o
fenômeno atual isolamento, alvo de debates fervorosos, é (re)construído pela voz dos usuários da rede
Twitter, bem como as interações provocadas pela postagem. Para isso, foi selecionada a página
humorística “Recife Ordinário”. Nota-se que a rede social, não apresenta um posicionamento
uniforme quanto à adesão ou não ao isolamento, porém, por fazer parte de uma geração que busca
influenciar digitalmente os sujeitos, utiliza-se, pois, de suas mídias digitais para debater temas atuais
e gerar engajamento dos seus seguidores. A título de síntese, a breve análise visa provar o dito por
Cavalcante (2020) que os processos referenciais não são previamente selecionados, mas sim ocorrem
no aqui/agora do texto. Com isso, para um mesmo objeto de discurso, a saber o isolamento, haverá
uma recategorização constante, posto que os processos de referenciação são realizados a cada evento
comunicativo de forma colaborativa, com intuito de negociar os dizeres.

Palavras-chave: Recategorização. Isolamento. Twitter.

INTRODUÇÃO

A pesquisa em tela, intitulada “A recategorização do objeto de discurso isolamento na


página Recife Ordinário no Twitter”, objetiva analisar como os usuários dessa rede social realizam
os processos de recategorização que permitem a transformação do objeto de discurso isolamento o
desestabilizando referencialmente, comprovando, assim, que as referências realizadas pelos sujeitos
não são estáveis, posto que buscam imprimir as visões heterogêneas do mundo do qual fazem parte.

174
Graduanda em Letras – Universidade Federal Rural de Pernambuco, leticiajulia2@hotmail.com
175
Profa. Dra. Depto. de Educação – Universidade Federal Rural de Pernambuco, thaisranieri@yahoo.com.br
584

Para tanto, nos debruçamos sobre os pressupostos teórico-metodológicos da Linguística


Textual na figura de Cavalcante (2012); Filho e Silva (2013), como também em Mondada e Dubois
(2003), além de outros teóricos que contribuíram para a realização dessa análise.
Obstinando apresentar uma análise cirúrgica dos processos de referenciação -os quais
culminam em uma recategorização dos referentes- em um contexto virtual de comunicação, optamos
por analisar a rede social twitter, esta que tem sido palco de intensas discussões de ordem política,
em que os usuários, de forma calorosa, imprimem suas visões de mundo sem se importarem com a
necessidade de se utilizarem de discursos polidos. Visto esse campo de batalha hodierno, a pesquisa
toma essa mídia digital com o intuito de colaborar com demais pesquisas que observam, também,
esse novo campo de troca linguística, o qual tem revelado produtivos resultados sobre os usos
multissemióticos da língua que permitem plurissignificações linguísticas.
Nas investigações que aqui se evidenciam, optou-se por um recorte -devido à extensão da
pesquisa originária- em que se focalizou em um tweet postado em maio de 2020 (período em que o
isolamento social no Brasil estava em foco nas mídias) pela página de humor local denominada
“Recife Ordinário”. No entanto, característico de outras redes sociais como instagram, facebook etc.
as postagens não se esgotam pelo dono da página que as emite, quando se trata de páginas públicas,
os usuários costumam comentar, seja diretamente com o responsável pela postagem, seja com os
demais que também apresentam seus comentários, formando, assim, uma rede hipertextual complexa,
típica desse contexto on-line.
Tomando esses objetivos, primeiramente, de forma sucinta, levantaremos o arcabouço
teórico-metodológico da Linguística textual que embasa nossas análises, refletindo sobre como as
teorias contribuíram para os resultados aqui encontrados. Em seguida, analisaremos os dados
coletados, também de forma resumida, posto que o espaço desse artigo nos dá margem apenas para
colocações pontuais, mas extramente necessárias. Por fim, teceremos nossas conclusões, buscando
reafirmar as explanações aqui expostas, evidenciando a importância desse tipo de investigação para
compreender os novos modos de diálogo que marcam uma sociedade altamente inserida em um
contexto virtual de comunicação.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS

Desde a Antiguidade, os sujeitos buscavam compreender a relação língua-mundo. Nisso,


na obra “O Crátilo”, Platão reflete sobre a linguagem, pondo em questão seu viés como fonte de
conhecimento ou como meio de comunicação (WEEDWOOD, 1995). Nessa reflexão, Crátilo, um
dos personagens da narrativa, assume a visão de a língua como espelho do mundo. A partir dessas
585

colocações, começamos a observar que, desde os primórdios, os sujeitos buscavam relacionar a língua
com o mundo onde habitavam.
No entanto, nos debates mais atuais ensejados pela Linguística, principalmente a
Linguística de Texto (doravante LT), notamos que a língua, como heterogênea e assumindo a função
de meio de interação, não estabelece uma relação direta com as coisas do mundo. Exemplo disso é o
campo de estudos denominado Referenciação, eixo da LT que põe fim ao olhar estabilizador que
antes a referência detinha, assumindo a ótica da referenciação enquanto um processo dinâmico e
instável.
Nesse tocante, tomamos os estudos de Mondada e Dubois (2003), as quais explicitam o
caráter heterogêneo da referenciação, justificando que os indivíduos buscam em seus processos de
representação do mundo estabelecer versões públicas dele. Nessa tentativa, as autoras nos apresentam
exemplificações, como a gramática, esta que seria um sistema de referenciar às formas de dizer dos
sujeitos de uma dada comunidade consideradas estabilizadas.
No entanto, ao longo da discussão, observamos que a referenciação, como o próprio nome
sugere, é um processo, este que não visa, primordialmente, à estabilidade dos referentes, mas sim,
possui uma característica de instabilidade típica. Isso ocorre porque o ato de referir não se concretiza
em um produto pronto e acabado, mas sim faz parte de uma dinâmica comum da atividade interativa
de comunicação entre os sujeitos que buscam estabelecer seus pontos de vista. Pensando nisso,
Mondada e Dubois (2003) nos alertam:

Não são mais consideradas como algo que estabiliza uma ligação direta com o mundo, mas
como processos que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais como o
mundo e como os outros, e por meio de mediações semióticas complexas. (MONDADA;
DUBOIS, 2003, p. 22)

Nota-se, portanto, que o processo de referenciar não busca estabilizar a língua para com
as coisas do mundo, uma vez que não há uma ligação direta entre a língua e o mundo, pois a primeira
não busca etiquetar a segunda, nem vice-versa. Contudo, o que notamos é que os fatos que norteiam
o mundo influenciam a língua, não em um processo passivo, mas sim ativo, posto que as línguas
mudam por questões coletivas que vão desde o campo social ao mental (BAGNO, 2014).
Sabendo, pois, que o processo de referenciação é mutável e evidencia as visões de mundo
dos sujeitos em interação, podemos, pois, analisar que os referentes se relacionam a objetos do
discurso construídos pelos usuários de uma dada língua. Com isso, ao analisar textualmente os
discursos, fica claro que tanto o locutor quanto os interlocutores negociam sentidos em busca de
construir um objeto de discurso que revele os seus anseios intersubjetivos.
586

Sob esse prisma, recorremos a Filho e Silva (2013) para quem os processos de
referenciação, que constroem objetos de discurso ou referentes, realizam a recategorização -
tranformação do referente- desses mesmos objetos, o que culmina em uma modificação desses
referentes conforme o desenvolvimento de um dado discurso. Porém, o que se ressalta na visão desses
autores é o caráter não linear desse processo.
Sob essa ótica, os autores observam que “a estratégia de recategorização não se esgota na
relação entre termo recategorizador e termo recategorizado.” (FILHO; SILVA, 2013, p. 68). Com
isso, fica claro que os processos de referenciação, os quais desembocam na recategorização dos
objetos de discurso, não se circunscrevem a relação correferencial, ou seja, na relação objeto-
referente.
A recategorização pode, também, ocorrer pelo todo textual, uma vez que se vai
enriquecendo o referente, não só por meio de outras expressões nominais a ele cunhadas, mas também
por meio de predicações que modificam a sua representação no mundo. Esse processo de
transformação não é realizado individualmente, na verdade, é uma atividade colaborativa que revela
as intenções discursivas dos enunciadores. Todo esse processo social-textual que ocorre no ato
comunicativo permite a formação de um objeto de discurso diferente daquele que foi introduzido no
início dessa interação.
Na busca por sistematizar esses processos referenciais aqui explanados, Cavalcante
(2012) os classifica, de forma geral, em:

• introdução referencial;176
• anáfora direta;177
• anáfora indireta;178
• dêixis.179

Ademais, a autora nos expõe um ponto relevante sobre o aspecto textual-discursivo dessas
expressões referenciais: “Os processos referenciais [...] desempenham papéis importantes na tessitura
textual. Eles exercem funções textual-discursivas que podem servir para organizar, argumentar,
introduzir referentes, entre outras possibilidades.” (CAVALCANTE, 2012, p. 133).
Com isso, fica claro que ao se analisar os processos referenciais, pode-se compreender as
intenções dos enunciadores, posto que ao retomar ou introduzir um referente, o sujeito o faz não de
maneira aleatória, mas com intenções definidas. No entanto, há que se ressaltar que essas ações

176
Apresentam pela primeira vez o referente.
177
Retomada do referente já introduzido no texto.
178
Não estabelece uma relação correferencial, sendo inferível pelo contexto evocado.
179
Exerce tanto o papel de introdução referencial como o de retomada, sendo interpretado de acordo com o seu tipo: local;
temporal, textual etc.
587

referenciais ocorrem de forma inédita no aqui/agora do texto (CAVALCANTE, 2020). Com isso, é
notório o aspecto sociocognitivo desse processo, visto que no momento da comunicação, os
indivíduos acionam o contexto situacional, bem como os seus conhecimentos prévios para realizarem
os processos de ativação, desativação, bem como a recategorização dos objetos de discurso.
O fato de se postular os tipos de expressões referenciais não pretende negar que esses
processos são complexos e vão além dessa restrita classificação, posto que a referenciação não se
esgota na palavra, também sendo passível de observá-la em um viés multisemiótico, trazendo à baila
a multimodalidade da referenciação (BENTES, 2005). Com isso, ressaltamos o postulado por Filho
e Silva (2013, p. 82) para quem os processos referenciais não são estáveis, sendo marcados por idas
e vindas: “A recategorização não se limita a alçada do cotexto apenas, mas se encontra,
principalmente, no universo do discurso.”
Diante dessa breve retomada teórica sobre os estudos em referenciação e o fenômeno da
recategorização, cabe, pois, investigar como eles ocorrem na prática. Com isso, na próxima seção,
analisaremos como esses processos referenciais, os quais desembocam na recategorização do
referente isolamento, atestando sua instabilidade constitutiva, ocorrem e revelam as visões de mundo
dos seus locutores de maneira colaborativa.

ANÁLISE DOS DADOS COLETADOS NA REDE SOCIAL TWITTER

Para esta investigação, devido ao curto espaço de análise, escolhemos apenas um tweet
postado em maio de 2020 pela página de humor intitulada “Recife Ordinário” (RO). A escolha por
essa página se deu conforme a sua forte influência nas redes sociais, principalmente para com o
público infanto-juvenil -embora não se restrinja a esse-. Atualmente ela soma 189.000 seguidores,
tendo uma alta frequência de postagens na sua página na rede social twitter. Suas atividades nessa
rede iniciaram em 2012, possuindo, também, uma página no Instagram, igualmente de forte
influência nesse outro contexto virtual de interação.
Observou-se que a página não assumiu um posicionamento claro sobre a adesão ou não
ao isolamento social exigido pelas autoridades mundiais de saúde, a saber OMS (Organização
Mundial de Saúde), posto o contexto pandêmico acionado pelo vírus da COVID-19. No entanto,
conjeturamos que o posicionamento mais neutro adotado pela página pode estar associado a uma
tentativa de conter a perda de seguidores que são contra o isolamento, preocupação bastante presente
na vida de influenciadores que têm sua vida social e financeira pautada em suas atividades virtuais
em páginas como essa.
Todavia, na postagem aqui analisada, é possível observar que houve um posicionamento
da página RO “pró” isolamento social, provocando diversos comentários que corroboravam com esse
posicionamento, enquanto outros divergiam severamente, adotando, assim, posturas pouco polidas
588

em seus tweets. Com isso, notamos como os usuários, seguidores da página em tela, desconstroem a
visão positiva que o objeto de discurso isolamento detinha no momento da sua introdução e é
recategorizado pelos opositores de modo a lhe legar um caráter negativo. Para atestar essa conclusão,
vejamos, primeiramente, a figura abaixo.

Figura 1 – Da introdução referencial do objeto de discurso isolamento

Fonte: Twitter, 2020. Disponível em: https://twitter.com/recifeordinario/status/1265962215028506630.


Acesso em: 02 ago. 2020.

Antes de introduzir o referente isolamento, notamos o caráter não linear dos processos
referenciais, principalmente quando se observa os discursos inseridos no contexto on-line, uma vez
que as postagens estão em uma rede hipertextual, referindo-se a postagens anteriores formando
verdadeiras cadeias referenciais.
No caso dessa postagem supra, notamos que antes dela, há uma outra, também realizada
pela página Recife ordinário, sendo, na verdade, esse tweet acima, um comentário da página a sua
própria postagem anterior. Feito essas considerações, observamos que há todo um contexto verbal
realizado pela página RO para asseverar necessidade de se manter o isolamento.
Para tanto, notamos que o referente, ao ser introduzido, é categorizado como “única forma
de reduzir esses números”. Os números a que a postagem se refere está contido na postagem
antecedente, a qual trata sobre o aumento de casos da COVID-19 em Pernambuco. Aqui, já
evidenciamos que o processo de introdução referencial já vem categorizando o referente, não por
meio de uma expressão nominal, mas uma predicação, confirmando o postulado de que esse processo
textual-discursivo é bem mais amplo e complexo. Vejamos, agora, como os usuários reagem a esse
posicionamento.
589

Figura 2 – Da recategorização iniciada pelos usuários do twitter

Fonte: Twitter, 2020. Disponível em:


https://twitter.com/recifeordinario/status/1265962215028506630. Acesso em: 02 ago. 2020.

No primeiro comentário realizado pela usuária “Marynha”, já notamos a oposição ao


comentário da página RO, quando notamos o uso do palavrão “teu c*”. Por seu uso, claramente a
seguidora se exalta com a visão positiva ao isolamento adotada pela página. Além disso, ela retoma
o referente isolamento, dando-lhe uma nova predicação, desestabilizando o referente quando, agora,
o caracteriza como não funcional, utilizando-se, novamente, de um novo palavrão, agora de maneira
mais clara “na casa do krai”.
Um ponto crucial que corrobora para a construção desse posicionamento negacionista ao
isolamento adotado pela usuária são os recursos semióticos que ela faz uso. Notemos, pois, que junto
ao seu nome na rede, há emojis de corações verde-amarelo e de um robô. A vivência na rede social
twitter nos permite compreender que o uso de emojis, como esses, caracterizam os apoiadores do
Governo do então presidente Jair Messias Bolsonaro, este que sempre foi contra a medida do
isolamento. Visto isso, fica claro, por meio da ativação desses conhecimentos contextuais semióticos,
o ponto de vista da seguidora, desembocando verbalmente nessa oposição ao postado pela página
RO.
Porém, ao analisar o tweet posterior, realizado pelo usuário “César Galdino”, não temos
evidências multisemióticas sobre seu posicionamento político, no entanto, analisando verbalmente o
seu discurso, novamente, nota-se a colaboração com o posicionamento anterior de descrença ao
isolamento. Isso pode ser asseverado quando o referente isolamento é retomado, mas agora a
predicação, antes dada como “única forma de reduzir esses números”, é questionada, utilizando-se
assim dos termos “números” e “fatos” para que se prove a então categorização ensejada pela página
590

RO, além de um outro questionamento do usuário, o qual rótula toda a predicação dada ao objeto de
discurso como fruto de “achismo”.
Visto essas considerações, vê-se como vários sentidos precisam ser ativados para se
observar as transformações/recategorizações que o objeto de discurso isolamento vem tomando ao
longo das interações dos usuários com a página RO. Confirmamos com isso, o dito por Mondada e
Dubois (2003) sobre como as atividades discursivas são marcadas pelas instabilidades. Nesse
espectro, fica claro como o referente é modificado a cada interação realizada, uma vez que os sujeitos
tentam imprimir os seus pontos de vista. Dando continuidade a essas modificações, vejamos a
próxima figura.

Figura 3 – Da busca pela estabilidade do referente

Fonte: Twitter, 2020. Disponível


em:https://twitter.com/recifeordinario/status/1265962215028506630. Acesso em: 02 ago. 2020.

Contrário ao que até então estava sendo realizado, observamos que a categorização
inicial, realizada pela página RO é reforçada. O usuário “Ap. OI”, encapsula o discurso da página
com a expressão “nesse apelo” acrescentando a ideia de apoio a ele. Cavalcante (2012) afirma que o
encapsulamento anafórico traz um teor avaliativo, vemos isso com o termo “apelo”, posto que o
usuário entende a fala da página RO como uma súplica aos cidadãos para se manterem em isolamento.
Além disso, observamos que a ideia de “se proteger do vírus” também está associada à
questão do isolamento, textualmente observado como um anáfora direta, que não possui a função
correferencial, mas que devido a um processamento sociocognitivo do texto (CAVALCANTE, 2012)
é possível realizar essa inferência. Com isso, fica claro que todo o conteúdo desse tweet busca
reestabelecer a estabilidade positiva dada ao objeto de discurso isolamento. Na figura a seguir, será
possível notar que os processos de negociação da recategorização nem sempre são pacíficos.

Figura 4 – Das visões de mundo sobre o mesmo referente


591

Fonte: Twitter, 2020. Disponível em:


https://twitter.com/recifeordinario/status/1265962215028506630. Acesso em: 02 ago. 2020.

Aqui há uma configuração diferente dos demais tweets analisados, pois há um diálogo
direto entre os usuários, não mais voltado apenas para a página que inaugurou a postagem. Para tanto,
temos o comentário da usuária “Carol Sobral”, até então direcionada ao conteúdo da página do RO,
e, logo em seguida, um outro usuário “Cidadão, não!” responde ao comentário da primeira,
questionando-a sobre seu posicionamento.
Nesse embate direto, vemos as duas visões sobre o isolamento, que estavam sendo
construídas separadamente, ocorrendo de forma direta pela interação que o segundo usuário
estabeleceu com a primeira. Notamos que Carol, busca recategorizar o referente isolamento como
algo a ser realizado por “quem quer” além disso, para se referir ao objeto, ela não o repete, o toma,
na verdade, por uma oração inusitada: “senta a bunda em casa”.
Com isso, fica claro o posicionamento contrário da usuária ao isolamento não só pela
forma que o associa, mas também por caracterizá-lo como uma prática que pode ser escolhida, não a
vendo como necessária. Em contrapartida, o usuário questiona a fala da seguidora, rotulando todo seu
discurso por meio de um encapsulamento “o problema não é esse”. Percebemos, novamente o teor
avaliativo do encapsulamento, pois se considera a questão do ficar em casa como um problema.
Ademais, ao referir-se a fala contrária ao isolamento da usuária, notamos que há a
formação de um campo semântico que se refere aos cuidados necessários para se evitar o contágio da
COVID-19, campo semântico este ao qual o isolamento é um dos hiperônimos. Vejamos que não se
trata de apoiar totalmente o isolamento, o usuário, na verdade, busca atentar a usuária sobre a
necessidade de se ter cuidados, uma vez que, de fato, para alguns, o isolamento não é uma opção,
posto que trabalham nas atividades essenciais.
Ressaltamos que mesmo o usuário não corroborando diretamente para a realização total
do isolamento, ainda assim, o campo semântico que ele constrói permite inferir que este vê a
necessidade de se proteger contra o vírus, sendo assim, um dos que acreditam nas medidas preventivas
necessárias para conter o avanço do vírus.
592

Notando o diálogo direto aqui estabelecido, Bentes e Rios (2005), pontuam que esse
processo dinâmico que enseja os processos referenciais se faz na intersubjetividade dos sujeitos,
estando propensa a acordos e desacordos. Com isso, fica claro que na busca pela estabilização de suas
visões de mundo, os referenetes são tranformados conforme o enriquecimento de informação que os
usários acionam. Nesse movimento é possível observar, de forma clara, como esse processo revela as
visões de mundo, as intenções argumentativas dos falantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, é possível notar como os processos referenciais revelam as visões


de mundo que os indivíduos buscam expor. Quando se recategoriza um referente, se objetiva dar-lhe
um novo olhar que está diretamente ligada ao que o sujeito crê como verdade sobre ele. No entanto,
sabemos que as verdades que os usuários carregam não são completamente fruto de sua subjetividade,
mas de suas vivências que transformam a sua forma de conceber o mundo ao qual faz parte.
É diante disso, que não podemos defender a tese de que os processos referenciais ocorrem
de forma individual, nem tampouco que são unos e responsáveis por uma visão homogênea e estável
do mundo. Se pode asseverar, sim, que a referenciação permite observar de forma processual os
pontos de vista dos usuários sobre um dado referente. Na investigação aqui realizada, se almejou
expor como alguns usuários transformaram o objeto de discurso isolamento de modo a hora
concordarem com essa prática hora descordarem. Tais discordâncias, ou concordâncias, geraram
diferentes formas de se enxergar um mesmo fenômeno.
Nesse viés, é nítido que todas as recategorizações que foram aqui analisadas não se
encerram nesses usuários, ao contrário, foram construídas socialmente por eles, são, então, situadas,
sendo necessário analisar para além do verbal, para que se possa compreender o comportamento -por
muitas vezes pouco polido- dos usuários.
Não almejando esgotar essas análises, demonstra-se a necessidade de se debruçar cada
vez mais nesse contexto on-line, para que se possa compreender como as relações linguísticas estão
sendo construídas por esses usuários nesse contexto veloz que as novas tecnologias imprimem e que
modificam drasticamente a forma de se comunicar. Exigindo-se, assim, o desenvolvimento de novas
formas de observar os fenômenos linguísticos que vêm gradativamente se embricando a outras
semioses.

REFERÊNCIAS
BAGNO, Marco. Língua, linguagem, linguística: pondo os pingos nos ii. Parábola, 2014.
593

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Argumentação e interação em Linguística textual. Fortaleza,


15 mai. 2020. Youtube. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=oBcqw7LXclk&t=4870s. Acesso em: 15 mai. 2020.

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os Sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.

MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Daniele. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma
abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES,
Bernadete Biasi; CIULLA, Alena (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-52.

KOCH, INGEDORE VILLACA; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina.


Referenciação e discurso. Editora Contexto, 2005.

SANTOS, Leonor W.; CAVALCANTE, M. Referenciação: continuum anáfora-dêixis. Revista


Intersecções, ano 7, n. 1, p. 224-246, 2014.

SILVA, F. O.; CUSTÓDIO FILHO, V. O caráter não linear da recategorização referencial. In:
CAVALCANTE, M. M. et al. Referenciação: teoria e prática. Cortez Editora, 2013.
594

AFINAL, O QUE É “ESQUERDA”?: UM ESTUDO SOCIOCOGNITIVO ACERCA DA


REFERENCIAÇÃO DA CATEGORIA “ESQUERDA” EM TWEETS DE SUJEITOS DE
POSICIONAMENTO POLÍTICO DE EXTREMA DIREITA

Marcela Costa de Souza180


Ana Flávia Santiago de Andrade181

RESUMO

Após 13 anos de governos presidenciais de esquerda, o cenário político brasileiro passa por grandes
transformações com a reemergência do discurso conservador e reacionário da direita (MIGUEL,
2018). O discurso populista de extrema direita coloca-se contra o establishment liberal e progressista
alcançado pelos governos de esquerda e passa a disputar com ele a produção de novos regimes de
verdade sobre o mundo (PINHEIRO-MACHADO, 2019). Entre essas disputas está a que envolve a
categorização do que seja “esquerda”, categoria cuja instabilidade, característica que, de acordo com
Mondada e Dubois (2003), é inerente às categorias, é intensificada pelo contexto-macro (HANKS,
2008) atual que representa o crescimento da influência do discurso de extrema direita. Diante disso,
este trabalho busca investigar o processo de referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003) realizado
em torno da categoria “esquerda” em alguns textos de viés político de extrema direita, para descobrir,
a partir da identificação dos enquadres sociocognitivos (frames) dos quais os sujeitos partem, quais
as conceptualizações de esquerda realizadas por eles e pretendidas para disputar como versão pública.
Para isso, analisaremos algumas publicações feitas, entre os anos de 2016 a 2019, na rede social
Twitter, através da qual será possível acompanhar não só os processos de referenciação, como
também a validação social, por meio do alcance observado nas curtidas e nos retweets. Quanto à
análise, situando-nos no domínio da Linguística Textual e partindo da hipótese sociocognitiva da
construção do conhecimento (SALOMÃO, 1999; KOCH, CUNHA-LIMA, 2004; MARCUSCHI,
2007; MORATO, 2017), iremos realizá-la utilizando-nos dos pressupostos teóricos de Koch (2003,
2014) no que diz respeito aos princípios e estratégias de progressão referencial que ocorrem durante
a referenciação; aqueles, a categorização e a recategorização do referente, e estas, pronomes,
expressões nominais definidas e indefinidas. A partir da análise dos resultados, observamos que,
frequentemente, nos tweets, os processos de categorização dessa versão de extrema direita sobre a
categoria “esquerda” são pautados no compartilhamento de conceitos de outros frames mais
estabilizados na categoria “governos totalitaristas”. Dessa forma, os processos de referenciação
apontam para uma versão do que seja “esquerda”, a qual elege como traços de maior
representatividade dessa categoria o autoritarismo e a manipulação do povo e da imprensa.

Palavras-chave: Sociocognitivismo; Linguística Textual; Referenciação; Esquerda; Twitter.

INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira vem passando por mudanças em seu cenário político, o qual, por
muito tempo, esteve dominado pelo posicionamento de esquerda, devido à longa estadia desse

180
UFRN, Graduada em Letras Língua Portuguesa, marceladesouza27@gmail.com
181
UFRN, Graduanda em Letras Língua Portuguesa, anafsantiago1@gmail.com
595

posicionamento político à frente do governo brasileiro em um sistema governamental calcado no


estado de bem-estar social. Entretanto, agora, o que se vê é uma grande alteração no cenário político.
Isso porque, nos últimos anos, junto à polarização política, tem havido a reemergência, considerando
que nunca esteve ausente (MIGUEL, 2018), do discurso conservador e reacionário da direita, que,
com ares extremos, tornou-se a grande opositora aos governos esquerdistas, ganhando grande
quantidade de seguidores na população que concorda com seus ideais neoliberais.
A chamada “extrema direita” é uma vertente política na qual misturam-se ideais do
conservadorismo, do libertarianismo e do reacionarismo (CARAPANÃ, 2018), com um anti-
intelectualismo que se mostra na superfície. O seu discurso coloca-se contra uma elite intelectual
específica, qual seja, o establishment liberal e progressista, e passa a disputar com ela a produção de
novos regimes de verdade sobre o mundo (PINHEIRO-MACHADO, 2019).
Tendo isso em vista, aproveitando-se da grande insatisfação de parte da população com
as ações, como as de corrupção, realizadas pelos governos esquerdistas, o discurso de extrema direita
passou a questionar os princípios da esquerda. Diante disso, a esquerda deixa de ser entendida,
majoritariamente, como um posicionamento político, partidário e ideológico atuante na defesa de
interesses de grupos sociais e de igualitarismo, para adquirir outra conotação, de acordo com a
perspectiva da extrema direita sobre ela. Assim, essas duas versões de mundo sobre o que é a esquerda
passam a disputar por maior aceitação na sociedade.
Com isso, percebe-se a existência de uma instabilidade inerente às categorias
(MONDADA; DUBOIS, 2003) do mundo, tornando-as provisórias e, assim, passíveis de sofrerem
novas conceptualizações, o que leva a tornarem-se alvo de disputas entre grupos sociais pela fixação
normativa e histórica de um modelo sobre o mundo. Disputas que são realizadas utilizando a
linguagem, uma vez que ela cumpre a função de dispositivo para a construção do conhecimento
(FAUCONNIER, 1997).
Partindo da hipótese sociocognitiva da construção do conhecimento (SALOMÃO, 1999;
KOCH, CUNHA-LIMA, 2004; MARCUSCHI, 2007; MORATO, 2017), cognição é compreendida
enquanto um processo não só individual, como também social, de modo que a nossa percepção de
mundo se dá pela linguagem, através da referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003), a qual, por
sua vez, é entendida como uma atividade discursiva que diz respeito às escolhas sobre o material
linguístico que o sujeito realiza para categorizar os objetos do mundo (KOCH, 2003, 2014). Escolhas,
vale destacar, que são realizadas de acordo com os frames nos quais o sujeito está ancorado, isto é,
os enquadramentos sociocognitivos com que enxerga o mundo, visto que ele é entendido como um
sujeito sociohistoricamente situado.
Diante disso, este trabalho busca investigar o processo de referenciação realizado em
torno da categoria “esquerda”, em alguns tweets de contas de sujeitos de viés político de extrema
596

direita (2016-2019), para descobrir, a partir da identificação dos enquadres sociocognitivos (frames)
dos quais os sujeitos partem, quais as conceptualizações de esquerda realizadas por eles na disputa
pela fixação por uma versão pública coletivamente validada e mais aceita dessa categoria.
Nossa discussão se encaminhará, então, de modo a mostrar que a alteração do cenário
sociopolítico brasileiro resultou em uma significativa mudança na correlação de forças, uma vez que
a esquerda perdeu o poderio político que vinha sustentando por 13 anos. Com as eleições de 2018,
esse posto foi ocupado pelos partidos de extrema direita, principalmente, o PSL. Diante disso, a
mudança ocorrida no contexto macro (HANKS, 2008) acaba reorganizando a percepção que as
pessoas, de determinados grupos sociais, partilham em relação ao campo político, e, assim, o modo
como constroem a referência sobre alguns objetos de mundo, como a esquerda.
Essa investigação terá como base os pressupostos teóricos, principalmente, de Mondada
e Dubois (2003), sobre categorização e a referenciação na construção de objetos do discurso; de Koch
(2003, 2014) em torno da relação entre texto, conhecimento e progressão referencial; de Marcuschi
(2007) e Morato (2017) sobre texto e cognição, incluindo a noção de frames; e, por fim, de Hanks
(2008) acerca da noção de emergência e incorporação do contexto.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Desde o seu início, a Linguística Textual vem lidando com diferentes concepções de
texto, as quais são responsáveis por direcionar as pesquisas em posicionamentos teóricos específicos,
dependendo do que se entende por essa unidade linguística. Posto isso, a concepção de texto que
iremos seguir aparelha-se com a hipótese sociocognitiva e é a adotada pelas agendas atuais dessa
área, as quais compreendem os textos como formas de cognição social que permitem ao homem
organizar o mundo cognitivamente, constituindo-se não só como uma forma de “tornar o
conhecimento visível, mas sociocognitivamente existente” (KOCH, 2003, p.157).
Sendo o texto uma forma de cognição social, a cognição é entendida como “situada e
modelar, isto é, constitui-se como formas e construtos organizados de representação da realidade
contextual socioculturalmente definidos ou ancorados” (MORATO, 2017, p. 396). Sobre essas
representações da realidade que constituem o nosso conhecimento acerca do mundo, de acordo com
Koch (2003), podemos dividi-las em dois tipos: o conhecimento declarativo e o conhecimento
procedural.
O primeiro refere-se aos conhecimentos sobre “estados de coisas” ou dos sujeitos, e, por
isso, é possível que nós possamos verbalizar esse tipo de conhecimento, isto é, transformá-lo em
palavras, e, assim, fazer dele explícito. Já o segundo está mais ligado ao processamento, isto é, ao
597

como agir, por isso, além de ser mais dinâmico em relação ao conhecimento declarativo, também é
implícito.
Ainda de acordo com Koch (2003), o conhecimento declarativo é constituído pela
memória semântica e episódica. Em relação à memória semântica, ela engloba o conhecimento
categorial, isto é, o conhecimento geral sobre o mundo e as proposições a respeito dele. Já a memória
episódica (também chamada de memória experimental), abarca informações sobre as nossas
experiências pessoais, ou seja, as nossas vivências.
Posto isso, o conhecimento está armazenado na memória de longo prazo na forma de
conceitos, os quais são unidades que têm por função armazenar conhecimento sobre o mundo. Os
conceitos, então, de acordo com Koch (2003), não podem ser compreendidos como unidades bem
definidas e claramente distintas umas das outras, mas sim unidades de representação flexíveis e
dinâmicas, sempre sujeitos à atualização.
Sobre os conceitos, é importante destacar que eles não são armazenados isoladamente em
nossa memória, mas estão conectados uns aos outros, já que se relacionam entre si. É o que possibilita
pensarmos em clusters ou blocos (KOCH, 2003), isto é, unidades de representação em que esses
conceitos são agrupados.
Os clusters, também chamados de frames (CIENKI, 2007), são estruturas complexas de
conhecimento, as quais representam as experiências vivenciadas pelo sujeito em sociedade e servem
de base aos processos referenciais (KOCH, 2003). Vale salientar, no entanto, que esses modelos não
são construções individuais dos próprios sujeitos sobre o mundo, mas são organizados, de acordo
com Van Dijk (1992), segundo um sistema de estratégias e estruturas mentais partilhadas pelos
membros de um grupo. A esse sistema partilhado dá-se o nome de cognição social.
O conceito de cognição social nos auxilia no entendimento da seguinte afirmação de Koch
(2001, p. 17): “todo conhecimento coletivamente válido é sempre um conhecimento linguisticamente
constituído e, só desta forma, sociocognitivamente existente”. Isso quer dizer que nem toda
representação textual é validada como conhecimento social, pois sua validação depende de outras
fontes, tanto históricas como socioculturais, capazes de fazer com que a sociedade aceite-o como
legítimo ou não, segundo uma cognição social.
Essas fontes nas quais o conhecimento está ancorado apontam para o entendimento de
que não é possível considerar um sujeito discursivo sem que se considere o entorno sociohistórico
em que está inserido. Esse entorno diz respeito, de acordo com Hanks (2008), ao contexto, que se
refere não só ao micro, isto é, à efemeridade da situação comunicativa, mas também ao macro,
referente a campos sociais como o político e econômico em que esse sujeito está inserido. Esses dois
níveis de contexto emergem e são incorporados (HANKS, 2008) a todo tempo nos textos produzidos
pelo sujeito e, assim, na construção referencial realizada por ele.
598

Diante disso, considerando que as representações que fazemos sobre o mundo são
instáveis e são construções discursivas realizadas via texto, Mondada e Dubois (2003) passam da
ideia de referência, para considerar a ideia de referenciação, ou seja, a construção de objetos
cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de
concepções individuais e públicas do mundo.
Nesse sentido, podemos concordar com Marcuschi (2007) quando diz que o saber sobre
o mundo não diz respeito à identificação de realidades discretas, objetivas e estáveis, mas sim à
fabricação socialmente elaborada. Essa fabricação social, de acordo com Marcuschi (2007), é
realizada por meio de atividades linguísticas e comunicada para outros sujeitos também
linguisticamente. Isso faz com que seja possível dizer que o mundo é construído sociocognitivamente
através de nossos discursos sobre as coisas. E, portanto, é por isso que podemos falar em objetos não
do mundo, mas do discurso.
Os objetos do discurso são construídos por meio de escolhas linguísticas ao longo da
progressão textual, ao que dar-se o nome de progressão referencial (KOCH, 2003, 2014). Ao longo
do processo de progressão referencial, segundo Koch (2003, 2014), para a constituição de uma
representação na memória compartilhada, atuam os seguintes princípios de referenciação:
a)construção/ativação, pela qual um “objeto” textual é introduzido e passa a preencher um nódulo,
ou endereço cognitivo, na rede conceptual, de modo a ser colocado em foco na memória de trabalho;
b)reconstrução/reativação, quando o nódulo é reintroduzido na memória operacional por meio de
uma forma referencial, ficando o objeto de discurso ainda em foco; e c)desfocagem/de-ativação, que
ocorre quando um novo objeto do discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal, enquanto
o outro fica em estado de ativação parcial, podendo ser ativado novamente pelos sujeitos do discurso.
Baseando-se nesse princípios, o objeto do discurso é construído no texto por meio de
algumas estratégias de progressão textual responsáveis por categorizar ou recategorizar
discursivamente os referentes, quais sejam (KOCH, 2003): o uso de pronomes ou elipses, e uso de
expressões nominais definidas e indefinidas.
A partir disso, vemos que, em nossos discursos, nós construímos a referência com base
numa interpretação do mundo real, recategorizando a informação existente, por meio do acréscimo
de novas predicações, disponíveis no conhecimento das pessoas, à medida que transcorre a interação
(CAVALCANTE; SANTOS, 2012). Assim, a construção dos objetos do mundo, ou melhor, dos
objetos do discurso, é instável devido às pressões exercidas pelas atividades dos sujeitos ao interpretar
o mundo.
Dito isso, analisaremos, neste trabalho, como os sujeitos sociocognitivamente situados
estão construindo versões públicas da categoria “esquerda”.
599

METODOLOGIA
A análise será realizada a partir de dados provenientes da rede social Twitter, publicados
entre os anos de 2016 e 2019, e extraídos dos perfis de Jair Messias Bolsonaro, atual Presidente da
República, e de Eduardo Bolsonaro, atual Deputado Federal pelo estado de São Paulo e filho de Jair
Bolsonaro.
Esses perfis foram selecionados para o corpus, porque pertencem a pessoas públicas,
atualmente, de grande importância para o cenário político brasileiro, visto que Jair Bolsonaro, como
presidente, é o representante máximo da política brasileira e Eduardo Bolsonaro, nas eleições de 2018,
ganhou o posto de deputado federal mais votado da história do país. Além disso, ambos os políticos,
no período de coleta de dados para formação do corpus, eram filiados ao PSL, partido de extrema
direita que, nos últimos anos, ganhou força no cenário político brasileiro e também um grande número
de apoiadores, através, principalmente, das redes sociais.
A escolha do Twitter se deu, porque, além de ser o veículo oficial de comunicação do
governo de Bolsonaro, esses políticos têm vários seguidores nessa rede social e, assim, as suas
postagens no Twitter (os tweets) são muito visualizadas, curtidas, comentadas e compartilhadas, de
modo a alcançar, portanto, grande visibilidade na sociedade. Dessa forma, a validação social dessa
versão pública da categoria “esquerda” pode ser melhor visualizada.
É importante observar que, devido ao fato de o Twitter aceitar apenas textos curtos, não
será possível perceber o processo de referenciação através de anáforas ou de catáforas na maioria dos
tweets. Desse modo, em grande parte, a progressão referencial será realizada por meio de expressões
nominais e, até mesmo, por elementos não-verbais, como vídeos e imagens.
A partir disso, serão apresentados, através de capturas de tela (printscreens), alguns dos
tweets selecionados e será realizada a análise de cada um deles, de forma a demonstrar o processo de
referenciação em torno da categoria “esquerda”.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


Nesta análise, iremos investigar o processo de referenciação da categoria “esquerda”
realizado por dois sujeitos, em posição de poder, de posicionamento político partidário de extrema
direita. Esses sujeitos, aproveitando as tensões no contexto macro, quanto aos campos político,
econômico e social, intensificam a instabilidade da categoria “esquerda”, propondo uma
conceptualização dela, a fim de que se torne uma versão pública com grande aceitabilidade.
O que observamos é que a categoria “esquerda”, que, majoritariamente, era entendida
como um posicionamento político, partidário e ideológico alinhado aos governos que procuram
defender os interesses de grupos sociais e lutam pela igualdade de direitos e de oportunidades para
600

todos, passa a ter um novo valor. De acordo com a referenciação que está sendo realizada, a esquerda
é construída discursivamente como um posicionamento cujos princípios são os mesmos dos governos
totalitaristas, ou seja, governos calcados na obediência absoluta ou inquestionável à autoridade, e,
além disso, que fazem oposição à liberdade individual.
Essa construção da referência à esquerda como autoritarista pode ser verificada nos tweets
selecionados, através da predicação realizada, dentre outros modos, pelas expressões nominais
utilizadas. É por meio da predicação que percebemos os conceitos que se conectam em blocos ou
clusters para formar a nova categoria.
Diante disso, o primeiro dos tweets em que a referenciação do objeto “esquerda” por um
sujeito de extrema direita pode ser observada, foi publicado no dia 30 de abril de 2019, no perfil do
próprio Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Esse tweet pode ser visto a seguir:

Figura 1— Tweet de Jair Bolsonaro sobre políticos da esquerda e Nicolás Maduro

Fonte: Twitter, 2019.

Nesse tweet, em que há a presença de dados multimodais, podemos observar que o perfil
do presidente publicou uma colagem de duas fotos. Na primeira delas, tirada em 2013, estão presentes
dois senadores do PSOL, Randolfe Rodrigues e Ivan Valente. Já na segunda, aparecem os ex-
presidentes da República, Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), ambos do PT. As duas
fotos têm em comum o fato de os políticos de partidos de esquerda estarem acompanhados por Nicolás
Maduro, atual presidente da Venezuela, cujo governo tem claros indícios de ser totalitarista.
601

Também podemos perceber que, nas duas imagens, essa relação entre os políticos de
partidos da esquerda brasileira (PT, PSOL) e o presidente venezuelano autoritarista, Maduro, parece
ser, principalmente na primeira foto, uma relação amistosa. Além disso, a legenda dada pelo
presidente e que acompanha as fotos corrobora ainda mais com essa ideia de cordialidade, pois traz
o símbolo de três corações vermelhos, o que indica afeto.
A partir disso, notamos que a relação entre os políticos da esquerda brasileira e o líder
autoritário venezuelano é caracterizada, pelo Presidente do Brasil, como amistosa, pois haveria um
alinhamento ideológico entre eles. Dessa forma, essa relação intrínseca entre esquerda e autoritarismo
configura-se como um enquadre cognitivo com que é vista a categoria “esquerda”. Assim, esse
enquadre reforça o discurso clássico da direita ao liberalismo, ao conservadorismo e ao
neoliberalismo, doutrinas atualmente detentoras do poder político e governamental brasileiro.
Outro tweet que analisamos, também publicado em 30 de abril de 2019, pelo perfil do
presidente Jair Bolsonaro, conta com 17.362 retweets, 91.223 curtidas e 6,4 mil comentários, e
corrobora com o enquadre de uma relação amistosa entre a esquerda brasileira e o autoritarismo
venezuelano, como pode ser visto a seguir, na figura 2:

Figura 2 — Tweet de Jair Bolsonaro sobre a situação política e social da Venezuela

Fonte: Twitter, 2019.

Nesse tweet, podemos verificar a predicação realizada em torno do povo venezuelano, a


partir das expressões nominais “sofrido” e “escravizado”, e em torno do presidente Maduro, a partir
da expressão nominal “ditador”. A predicação apontada é responsável por enquadrar o governo
venezuelano como autoritário, e o povo, como sofredor das consequências desse governo. Com essa
construção referencial, é possível afirmar que Bolsonaro busca elencar os traços negativos de um
governo autoritarista, a fim de, através do sentimento de empatia pelo sofrimento do povo
venezuelano, causar o sentimento de raiva em relação a Maduro, já que é por causa dele que o povo
602

está sofrendo. Sentimento de raiva que é estendido para o PT, PSOL e outros partidos de esquerda,
referenciados como apoiadores e, assim, também alinhados ao totalitarismo.
Além disso, o conceito de relação amistosa é corroborado pelo segundo período do tweet,
em que a predicação em torno do governo brasileiro, que é de extrema direita, é construída de modo
positivo, pois ele apoia a liberdade da Venezuela e a democracia no país. Assim, a predicação em
relação ao governo aponta para uma relação de repúdio ao autoritarismo, diferente da predicação em
relação à esquerda, que aponta para uma relação de amizade e alinhamento.
O próximo tweet a ser analisado foi publicado em 18 de setembro de 2016, pelo perfil de
Eduardo Bolsonaro, e pode ser observado na figura 3, a seguir:

Figura 3 — Tweet em que Eduardo Bolsonaro afirma que o nazismo é de esquerda

Fonte: Twitter, 2016.

Esse tweet, que teve 303 retweets, 591 curtidas e 34 comentários, traz como objeto do
discurso o nazismo, ideologia associada ao Partido Nazista e também a outros grupos de extrema
direita, que acreditavam na existência de uma raça pura e, por isso, perseguiam e exterminavam os
outros grupos contrários aos seus ideais. Essa ideologia tem como principal nome Adolf Hitler, o qual
governou a Alemanha no período de 1933 a 1945 e, portanto, consolidou o ideal nazista.
603

Na figura 3, observamos a ocorrência de dados multimodais, por meio da existência de


registro verbal e não-verbal, este último representado pela imagem. Começando pelo registro verbal,
podemos ver que a legenda traz o tema “nazismo” predicado como uma política de esquerda. Para
comprovar essa afirmação, o autor do tweet convida o interlocutor, através do verbo “reparar” no
modo imperativo, a olhar a imagem, em que há um discurso de Hitler defendendo os direitos dos
trabalhadores, isto é, fazendo o que é comum aos governos de esquerda.
Além disso, Eduardo Bolsonaro, ainda na legenda, recategoriza o nazismo através da
catáfora realizada pelo item lexical “coletivista”, o qual faz remissão à palavra “trabalhadores”
(presente na primeira legenda contida na imagem), que é parte da sigla do Partido Nazista. A remissão
feita tem como objetivo comprovar que o nazismo é coletivista, pois, como os trabalhadores
representam uma classe, ou seja, um coletivo, a palavra “trabalhadores” presente na sigla remete ao
coletivismo. Assim, ao atrelar o nazismo ao coletivismo, que é uma marca do posicionamento de
esquerda, Eduardo Bolsonaro afirma ser o nazismo uma ideologia de esquerda.
Ainda na primeira legenda inserida na imagem, percebemos que, após definir a sigla do
Partido Nazista, o deputado coloca “ = PT da Alemanha” e, com isso, iguala o PT ao Partido Nazista,
a fim de reforçar que o nazismo é de esquerda.
Em relação aos dados não-verbais, vemos, na figura 3, que a imagem anexada ao tweet,
além de conter a foto de Hitler, possui um plano de fundo vermelho e a cor das letras em amarelo e
branco. O amarelo é utilizado para dar destaque às partes do discurso mais atreladas aos ideais
comunistas e esquerdistas, ideologias cuja representação é feita pelas cores vermelha e amarela,
fazendo remissão, assim, às bandeiras da URSS e da China. Portanto, o fundo vermelho com letras
amareladas é um elemento contextual incorporado ao texto com o intuito de atrelar o nazismo à
esquerda.
A partir do tweet de Eduardo Bolsonaro, vemos que ele faz uso da categoria “nazismo”,
a qual estava, até pouco tempo atrás, estabilizada na cognição social como algo de direita, para
enquadrá-la no mesmo frame de “esquerda”. Assim, identificamos nesse tweet mais um modo de
reforçar que a esquerda é ligada ao autoritarismo.
Outro conceito que observamos organizar o cluster em torno da esquerda, a partir de uma
perspectiva neoliberal, pode ser visto por meio do tweet do deputado Eduardo Bolsonaro, publicado
em 15 de maio de 2019, e que teve 1.595 retweets, 8.577 curtidas e 570 comentários. Esse tweet pode
ser observado a seguir, na figura 4.

Figura 4 — Tweet em que Eduardo Bolsonaro trata do assistencialismo do PT


604

Fonte: Twitter, 2019.

Observamos que o deputado inicia o tweet com a declaração de que “o PT deu bolsas
assistencialistas para quem precisa e quem não precisa”, e, além disso, ainda atribui o objetivo desse
ato, que teria sido realizado pelo PT, como sendo o de ganhar eleitores. Eduardo Bolsonaro acusa o
PT de manipulador, por usar do assistencialismo para chantagear os eleitores e fazer com que eles
votassem nos seus partidários.
A partir disso, acrescentando ao cluster o conceito de “manipulação” ligado ao PT, e,
assim, à esquerda, automaticamente, se conecta a esse conceito o de “antidemocrático”. Isso porque,
se as eleições que colocaram o PT no poder foram calcadas na chantagem e na manipulação, elas não
aconteceram de forma democrática, mas sim de forma autoritária, uma vez que a manipulação é um
dos traços dessa categoria. Vale ressaltar que esse conceito aparece no último período do tweet, em
que o deputado iguala o ato realizado pelo PT ao que os governos comunistas e totalitaristas de Cuba
e da Venezuela fazem. Portanto, a partir desse tweet, percebemos que o conceito de manipulador e de
antidemocrático aparecem conectados e juntos, corroborando para a construção do cluster da
categoria “esquerda” como posição político-partidária alinhada aos governos totalitaristas.
O próximo tweet, publicado em 12 de maio de 2019, também pelo perfil de Eduardo
Bolsonaro, conta com 2.463 retweets, 9.002 curtidas e 698 comentários. Como podemos perceber na
figura 5, a seguir:

Figura 5 — Tweet em que Eduardo Bolsonaro trata sobre a “extrema imprensa”


605

Fonte: Twitter, 2019.

Nesse tweet, que se direciona ao campo jornalístico, mais precisamente à imprensa


tradicional brasileira, podemos notar, na legenda criada por Eduardo Bolsonaro, que ele adjetiva a
imprensa com a palavra “extrema”. Essa adjetivação leva à recategorização da imprensa, que, por sua
vez, deixa de ser entendida como um veículo de informação imparcial e passa a ser compreendida
como tendenciosa, já que tende para um lado.
O autor continua o processo de referenciação em relação à imprensa quando realiza uma
catáfora, através do dêitico “isso”, para informar que tudo o que está no vídeo em anexo é arquitetado,
isto é, fruto de uma estratégia pensada para manipular os leitores da imprensa brasileira.
O vídeo anexado, a que o deputado se refere, trata-se de uma gravação da tela do celular,
em que são mostrados vários tweets de perfis de veículos da imprensa brasileira, contendo manchetes
de diferentes fatos. O deputado, através do repost do tweet de um outro seguidor, faz uso do vídeo
para evidenciar o quão tendenciosa e manipuladora dos fatos é a imprensa. Isso, porque, pelo vídeo,
ele afirma ser possível ver que todas as manchetes exaltam Lula (ex-presidente do Brasil e principal
nome da esquerda brasileira) e, por isso, são tendenciosas e mentem a respeito de Bolsonaro (atual
presidente e principal nome da extrema direita nacional), sendo, portanto, manipuladoras da
realidade.
606

Posto isso, devido à intensificação da instabilidade também da categoria “imprensa”, por


ela fazer parte, assim como a esquerda, do establishment liberal e progressista; na perspectiva do
discurso de extrema direita, como visto na figura 5, ela deixa de ser enquadrada como informativa e
imparcial e passa a ser categorizada como parcial e manipuladora, tendendo para o lado da esquerda.
Dessa forma, o conceito da categoria imprensa como tendenciosa e manipuladora da realidade, ao
interligar-se ao conceito de manipulação atribuído à categoria “esquerda”, colabora na construção de
uma rede de conceitos mentais que organiza essa categoria como alinhada a princípios totalitaristas.
Isso porque, a aliança da esquerda com a imprensa promoveria uma rede de emparelhamento de
aliados, com o objetivo de deter maior poder e, assim, maior controle sobre a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de referenciação observado nos diversos tweets nos mostra as novas
conceptualizações da categoria “esquerda” realizada pelos dois sujeitos que têm em comum o
posicionamento político adotado: a extrema direita. Através desse processo, percebe-se a
reorganização do modelo mental, com a realização de enquadramentos sociocognitivos influenciados
pelo contexto de grandes tensões e disputas no cenário político, econômico e social do país.
Os conceitos organizados nos enquadramentos percebidos nos tweets em relação à
esquerda apontam para o alinhamento aos governos totalitaristas, o que foi percebido pelo
compartilhamento de traços com essa categoria, sendo o principal deles o autoritarismo e a
manipulação, relacionados ao controle do povo e da imprensa.
Além da referenciação, através dos tweets analisados, foi possível perceber a grande
validação social que a referenciação dessa versão da extrema direita sobre a categoria “esquerda”
vem recebendo, pois há um grande número de curtidas e retweets, o que mostra que muitas pessoas
não só estão concordando, como também compartilhando, e consequentemente, estendendo o alcance
dessa versão pública.
Portanto, com a realização deste trabalho, podemos constatar que, devido à reorganização
do cenário sociopolítico brasileiro e, assim, à mudança de correlação de forças entre os partidos, a
categoria “esquerda” está passando por grandes disputas pela sua referenciação, o que está
intensificando a instabilidade já inerente às categorias.

REFERÊNCIAS

CARAPANÃ. A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo. In: SOLANO, E. (org.).


O ódio como política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. Edição do Kindle.
CAVALCANTE, Mônica; SANTOS, Leonor. Referenciação e marcas de conhecimento partilhado.
Linguagem em (Dis)curso, v. 12, n. 3, p. 657-681, dez. 2012.
607

CIENKI, A. Frames, idealized cognitive models and domains. In: GEERAERTS, D; CUYCKENS,
H. (Eds). The Oxford handbook of cognitive linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2007.
p. 170-187.

HANKS, W. O que é contexto. In: BENTES, A. C. et al (Orgs.) Língua como prática social: das
relações entre língua, sociedade e cultura a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2008. p.
119-145.

KOCH, I. G. V. Linguística textual: quo vadis?. DELTA, São Paulo, v. 17, p. 11-23, 2001.
Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/delta/v17nspe/6708.pdf>. Acesso em: 04/03/2021

KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.

_____________. As tramas do texto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

_____________; CUNHA-LIMA, M. L. Do cognitivismo ao sócio-cognitivismo. In: MUSSALIM,


F.; BENTES, A. C. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, Vol. 3, São Paulo:
Cortez, 2004. p. 251-299.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro:


Lucena, 2007.

MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In.: SOLANO, E. (org.). O ódio como política.
1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

MONDADA, L; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem


dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.et al. (orgs.) Coleção clássicos da
linguística: Referenciação. Contexto. São Paulo, 2003. p. 17-52.

SALOMÃO, M. M. M. A questão da construção do sentido e a revisão da agenda dos estudos da


linguagem. Revista Veredas. v. 3, n. 1, p. 61-79, 1999. Disponível em:
<https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo35.pdf>. Acesso em: 04/03/2021
608

O DISCURSO JURÍDICO E AS PROVAS RETÓRICAS EM UM PROCESSO JUDICIAL:


ANÁLISE DE UMA PETIÇÃO INICIAL

Patrícia Rodrigues Tomaz182


João Benvindo de Moura183

RESUMO

A Análise do Discurso preconiza um olhar voltado para a pluralidade, para a heterogeneidade


constitutiva da linguagem, para as práticas discursivas sociais de saberes e sujeitos. A partir dessa
ótica, o presente estudo apresenta uma proposta interdisciplinar, envolvendo a Linguística e o Direito
e tem por objetivo analisar a construção de imagens por meio da argumentação em um processo
judicial, dando ênfase a aspectos retóricos e discursivos, a partir da noção de ethos, que são as
representações construídas de si por meio das falas dos sujeitos processuais. No campo da Retórica,
tomamos por base os meios de prova apontados por Aristóteles (2005), quais sejam: ethos, pathos e
logos. A noção de ethos é retomada sob o ponto de vista da Análise do Discurso de linha francesa,
com base nos estudos de Maingueneau (1997), com elementos da Teoria Semiolinguística de Patrick
Charaudeau (2005) e da Argumentação em Ruth Amossy (2005). Trata-se de uma pesquisa de
natureza básica, de abordagem qualitativa e interpretativa, cujo corpus é composto por excertos dos
autos de um processo de divórcio litigioso que envolve guarda compartilhada, partilha de bens,
provisão de alimentos e acusação de alienação parental. Preliminarmente, a análise do corpus
demonstra que os sujeitos constroem imagens de si (ethos) através de uma argumentação lógica
(logos) cria efeitos de verdade com o interesse de sensibilizar (pathos) e ganhar a adesão dos
envolvidos no processo. Nessa perspectiva, a AD de linha francesa se constitui como fator credível
para a análise da argumentação jurídica aqui proposta, à medida em que esta objetiva a anuência do
interlocutor e nesse jogo enunciativo, portanto, realiza diálogos com outros discursos.

Palavras-chave: Discurso. Direito. Processo judicial. Retórica. Semiolinguística.

INTRODUÇÃO

A petição objeto de análise compõe excertos dos autos de um processo de divórcio


litigioso que envolve guarda compartilhada, partilha de bens, provisão de alimentos e acusação de
alienação parental. Em linhas gerais, devido a alguns acontecimentos que abalaram a relação
conjugal, o requerente entrou com pedido de divórcio em decorrência da desarmonia que se instaurou
entre o casal. Os trechos analisados compõem a seção “Dos fatos” e descrevem algumas ocorrências
que abalaram o casamento e os motivos, que foram expostos através de argumentos, que comprovam
o fundamento do pedido com amparo na lei.

182
Mestra em Letras-Linguística (UFPI). Advogada. Mediadora Extrajudicial de Conflitos. Membro do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso da Universidade Federal do Piauí, NEPAD/UFPI/CNPq. E-mail:
monitorapatriciatomaz@gmail.com.
183
Possui doutorado e pós-doutorado em Linguística pela UFMG. Professor da Graduação e Pós-graduação em Letras da
UFPI. Editor da revista Form@are (PARFOR/UFPI). Fundador e atual coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Análise do Discurso - NEPAD/UFPI/CNPq. E-mail: jbenvindo@ufpi.edu.br.
609

Dessa maneira, as petições são construídas através dos relatos dos fatos que deram origem
ao processo e a descrição narrativa é imprescindível para levar o conhecimento da causa ao Estado
Juiz, representado pelo magistrado. Na narrativa, o jurisdicionado, por meio do seu advogado, utiliza
argumentos para mostrar que seu direito foi violado, bem como fundamentar o pedido seguindo o
ordenamento jurídico vigente e exigindo a prestação jurisdicional do Estado. Como uma peça jurídica,
está sujeita aos requisitos formais estabelecidos na legislação processual civil brasileira.

DA RETÓRICA À ANÁLISE DO DISCURSO: O ETHOS, O PATHOS E O LOGOS COMO


MEIOS DE PROVA

Segundo Aristóteles (2007), é pelo discurso que persuadimos, sempre que demonstramos
a verdade ou o que parece ser a verdade. Sendo assim, o orador não deve demonstrar somente
credibilidade, mas se concentrar na tarefa de fazer confiável e persuasivo o seu argumento (logos),
devendo ficar atento à sua própria imagem e à apresentação de si, tendo em vista que o seu caráter
(ethos) também é objeto de avaliação do auditório, assim como a necessidade de colocar os
destinatários numa determinada disposição mental (pathos), considerando que o indivíduo sofre ação
de uma emoção, sendo afetado por ela, formando os três meios de convencimento ou provas retóricas
(TOMAZ, 2020).
No transcorrer da história ocidental, a retórica foi ensinada como uma arte, depois perdeu
a credibilidade, durante muito tempo esquecida, desaparecendo do ensino no final do século XIX.
Mesmo assim, o estudo da retórica renasceu a partir da segunda metade do século XX, ressurge
denominada de Nova Retórica. Nesse sentido, o pesquisador Chaïm Perelman foi o primeiro autor a
resgatar a Retórica na contemporaneidade. Nessa sequência, ao lado de sua aluna Lucie Olbrechts-
Tyteca, os estudiosos escreveram o livro mais importante dos autores, qual seja, o Tratado da
Argumentação: a Nova Retórica, publicado em 1958.
Isto nos leva a observar que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) focalizam o objeto da
Retórica para o estudo das “técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que lhes apresentam ao assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 4). Perelman defende um espaço próprio para a argumentação, o estudo dos tipos de ligações
entre a simples técnica de manipulação do auditório de um lado e a demonstração lógica do outro
(TOMAZ, 2020).
Dando continuidade ao estudo das provas retóricas, identificamos nos estudos da linguista
francesa Ruth Amossy (2005), ao tratar da noção de ethos (noção emprestada da Retórica), a autora
considera a ligação entre os termos apresentação de si (usado inicialmente na Sociologia) e imagem
de si que, juntos, convergem para a construção das identidades dos sujeitos que se constroem nas
610

trocas linguageiras. Nessa lógica, compreendemos que a “imagem de si” está diretamente relacionada
ao ethos vindo da Retórica.
Efetivamente, na Análise do Discurso de linha francesa, doravante AD, a configuração
do ethos sofre variações em função das situações comunicativas vivenciadas pelos interlocutores,
ainda que os sujeitos envolvidos tenham ou não a intenção de persuadir. Essa noção apresentada por
Amossy (2005), parte da perspectiva da Pragmática, dos estudos de Goffman (2012) sobre o
gerenciamento de faces, depois retomado por Kerbrat-Orecchioni (2006), que amplia o conceito de
ethos e identidade na interação verbal (DE MELLO, 2012).
Segundo Amossy (2005), no que tange ao estudo do ethos, a autora compartilha da teoria
proposta por Maingueneau (2015) sobre a ideia de que a imagem de si não é mais forjada apenas na
enunciação, mas pode ser construída antes mesmo da enunciação, algo que precede o discurso. Dessa
forma, é possível dizer que o ethos discursivo mantém uma ligação com a imagem prévia que é feita
do orador, pelas pistas deixadas, antes mesmo que este fale, o que caracterizaria aquilo que
Maingueneau chamou de ethos pré-discursivo, mas, atualmente, substituiu pela noção de ethos prévio
(MAINGUENEAU, 2018).
Nessa sequência, para Maingueneau (2008), a concepção de ethos é resultante da
interação de diversos elementos. O ethos efetivo é formado pelo ethos pré-discursivo (ou ethos
prévio) e o ethos discursivo, relacionando-se reciprocamente. O ethos pré-discursivo (ou ethos
prévio) está diretamente relacionado aos estereótipos ligados aos mundos éticos, representações
sociais cristalizadas, ou seja, situações que representam os modelos pré-construídos184 pelo senso
comum para atribuir características ao enunciador, para afirmar ou desconstruir um ethos prévio ou
pré-discursivo (MIRANDA, 2011).
Há que se considerar ainda os estudos de Charaudeau (2017, p.115), para quem o ethos
está ligado a toda enunciação discursiva e é resultado de uma encenação linguageira e “depende dos
julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem uns aos outros” e resulta na
constituição de uma dupla identidade que se funde numa só. Desse modo, “o sujeito aparece ao olhar
do outro com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída e, ao mesmo tempo, mostra-se
mediante uma identidade discursiva que ele constrói para si” (CHARAUDEAU, 2017, p. 115).
Nesse seguimento, Charaudeau (2017) também considera o ethos uma relação entre
aquilo que é dito e aquilo que existe previamente, o ethos prévio que, por sua vez, condiciona a
construção do ethos discursivo, construindo figuras identitárias que o autor divide em duas categorias
de ethos: o ethos de credibilidade (sério, virtuoso, competente) e o ethos de identificação (potência,
caráter, inteligência, humanidade, chefe e solidariedade).

184
Na Análise de Discurso, segundo Pêcheux, todo discurso pressupõe outro discurso que lhe é anterior.
611

Mediante o exposto, compreendemos que o enunciador externa uma maneira própria de


dizer, o que deve ser relevante, uma enunciação personificada em consonância com cada relação
discursiva. Para Amossy (2005), qualquer ato de linguagem185 implica a construção de uma imagem
de si no discurso que pode ser negativa ou positiva. Maingueneau (2005) ressalta que é possível
levantar estimativas acerca do ethos do enunciador, a partir do gênero do discurso escolhido e da
posição ideológica adotada (TOMAZ, 2020).
Em suma, na Retórica e na AD o papel do ouvinte é fundamental, sendo que ambas
reconhecem a importância da interação entre os sujeitos. Destarte, as marcas que irão compor o
discurso serão definidas considerando o sujeito que fala, para quem fala e com quais objetivos fala.
Na Retórica, o ouvinte é o auditório (particular ou universal) e na AD o co-enunciador ocupa essa
posição.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Devemos ressaltar que não estamos analisando a conduta dos operadores de direito, mas
sim as estratégias argumentativas que são produzidas no processo, na seção dos fatos, identificando
escolhas lexicais e as marcas linguísticas essenciais para a eficácia da argumentação. Nesse sentido,
o magistrado que presidir a causa assume o papel de julgador, buscando alcançar o equilíbrio entre
as partes envolvidas. Na ação, como no corpus analisado, a petição inicial do autor apresenta diversos
elementos de prova e argumentos que podem trazer consequências negativas para os sujeitos
envolvidos no litígio, como será demonstrado a seguir.

ESTADO DO MARANHÃO
PODER JUDICIÁRIO
QUARTA VARA
COMARCA DE CAXIAS
(Segredo de Justiça)
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da __ Vara da Comarca de Caxias/MA
PROCESSO: XXX-XX.XX.X.XX.XXXX. (XXXXXXXX)
Distribuição: XX/XX/XXXX 08:57:12 Volumes:1
JUIZ: YYYY YYYY YYYYY YYYYY
SECRETARIA JUDICIAL DA QUARTA VARA: YYYYY YYYY YYYY
OFICIAL DE JUSTIÇA: CLASSE CNJ: Divórcio Litigioso/Ação

No âmbito do Direito Civil, a petição inicial é dirigida ao juiz de direito da 4ª Vara da


Comarca de Caxias, no Maranhão, área de atuação do magistrado, que representa o auditório jurídico.
Nesse caso, o magistrado representa o auditório particular, ou seja, é representado por um único

185
Segundo Charaudeau (2015), o ato de linguagem pode ser compreendido como uma combinação entre o espaço do
fazer (instância situacional) e o de dizer (instância enunciativa), considerando a linguagem em uso numa estreita relação
com as particularidades sociais e psicológicas do sujeito, refletindo suas intencionalidades. Assim, o ato de linguagem se
configura como uma encenação (CHARAUDEAU, 2015).
612

ouvinte; e universal, pois a função que exerce o determina como universal, representando a figura
do Estado, sob a vigilância do Poder Judiciário. Nesse caso, a decisão proferida pelo magistrado
poderá ser utilizada como embasamento e argumentação em outra ação.
Na seara jurídica, o Direito tem a função de regular a vida em sociedade, bem como
solucionar conflitos, para preservar a harmonia social. Com efeito, o argumentante atua
discursivamente, destacando informações sobre o requerente, situações constrangedoras vivenciadas
por ele, fazendo uso de estratégias de patemização. Nessa peça processual, o magistrado é levado a
verificar e julgar os atos da requerida através da apresentação das consequências negativas trazidas
ao requerente.

O requerente é casado com a requerida desde XX.XX.XX, sob o regime de comunhão parcial de bens,
conforme registro de casamento lavrado sob n° XXXX, fls. XXX-x, livro XX, do 3° Cartório do
Registro Civil da Cidade de Caxias – MA (doc. anexo).

Da sociedade matrimonial nasceu em XX.XX.XXXX uma criança, YYYY.

Após 09 anos de convívio, o casal se separou de fato em XX.XX.XXXX e desde então o requerente
deixou o lar conjugal, ficando a criança menor impúbere sob a guarda fática da requerida.

Nos últimos anos de convívio, a requerida passou então a dirigir-se ao requerente com rispidez e
palavras ofensivas, inadmissíveis ao convívio comum.

Nos trechos acima, vemos marcas de temporalidade, como “09 anos de convívio” e “nos
últimos anos de convívio”. Nessa primeira parte, apontando o decurso do tempo da união até a efetiva
separação. Na segunda, a conduta da requerida e os eventuais conflitos existentes indicam um
ambiente hostil e produzem efeitos de sentido de sofrimento, criando uma imagem de humanidade
no requerente a fim de que o julgador adira ao seu discurso. Nesse sentido, os atos da requerida são
reprováveis, uma vez que os aborrecimentos e as ofensas, que são de ordem patêmica, causaram um
desgaste emocional no relacionamento.
A narrativa dos fatos é usada para não facilitar, bem como desconstruir a provável defesa
da outra parte em seu favor, tentando persuadir e convencer o magistrado [auditório], apresentando
uma tese favorável a si e que espera que seja atendida. Essas premissas apontam para uma
verossimilhança, uma vez que o discurso apresentado pelo cônjuge, autor da ação, trata do que é
provável e não do que é verdadeiro, das interpretações possíveis do saber jurídico, na tentativa de
vencer o debate.
613

O requerente contribui mensalmente para as despesas de sua antiga residência, fazendo a


manutenção material de sua filha menor no importe de R$ 1.091,00 (hum mil e noventa e um reais),
que engloba despesas de supermercado, água, luz, internet e escola (docs. Anexos), porém, mesmo
diante da presente contribuição do requerente nas despesas, a requerida tratou por furtar o ticket
alimentação do requerente para utilizá-lo sem qualquer critério e em compras que desconhece,
chegando a gastar só nos dias XX.XX.XXXX e XX.XX.XXX R$ 789,49 (setecentos e oitenta e nove
reais e quarenta e nove centavos), fato este que foi levado a conhecimento da polícia (extrato ticket
alimentação e B.O. anexos).

Nesse trecho, o advogado do requerente, constrói uma imagem negativa de uma mãe
enraivecida, desequilibrada, que pratica atos indevidos e sem controle pessoal e emocional, que vive
perseguindo o requerente e não aceita a separação. Ao passo que constrói o ethos de sério, dada à
credibilidade do requerente, como cuidadoso, responsável e que, mesmo em face do divórcio,
continua cumprindo com seus deveres de pai e marido quanto ao sustento da casa e da criança. Dentro
dessa ótica, a requerida é apresentada como culpada pelo fim do casamento, por ter um
comportamento reprovável, inapropriado e instável.
Também é possível inferir que, ao relatar que “a requerida tratou de furtar o ticket” e
cometera um crime, o advogado transmite a imagem de uma pessoa mal-intencionada e um ethos
prévio de inconsequente, construindo seus argumentos por meio de estratégias que desqualificam a
ex-mulher perante o juiz. Em contrapartida, no excerto “contribui mensalmente para as despesas de
sua antiga residência, fazendo a manutenção material de sua filha menor”, a seleção lexical e o uso
de alguns recursos linguísticos contribuem para uma imagem de leveza e confiabilidade do
requerente.

Acrescente-se ainda o fato da requerida, ter se dirigido à Delegacia da Mulher deste município
caluniando o requerente, atribuindo a este falsamente o crime de violência doméstica, o que de
imediato foi arquivado pela autoridade policial, vez que não foi constatado qualquer traço violento
no requerente (intimação anexa).

Nesse seguimento, os argumentos de ordem patêmica são usados pelo advogado e chama
a atenção para as atitudes da requerida, pretendendo que o magistrado julgue como reprováveis, em
razão das consequências danosas para seu cliente, buscando comprovar que seu pedido tem
fundamento com amparo na lei. As escolhas linguísticas feitas pelo procurador apontam para a
construção de uma imagem favorável ao requerente, projetando um ethos de credibilidade. Ademais,
“ não foi constatado qualquer traço violento no requerente” projeta uma imagem positiva do seu
cliente, sinalizando para o que já conhecemos e sabemos, que não deve existir violência de gênero.
614

No presente trecho, é importante destacar que a argumentação (logos) realizada pelo uso
da emoção (pathos), quando bem utilizada, pode desempenhar um papel decisivo no processo de
divórcio. Nesse caso, várias emoções negativas foram atribuídas à ex-esposa como raiva,
ressentimento e mágoa, construindo uma imagem (ethos) de amargurada. Além disso, expressa
indignação pelo comportamento condenável e injusto da requerida, que não pensou em sua família,
não mediu as consequências do seu ato, estabelecendo um juízo de valor e criando um efeito patêmico,
uma vez que as provas retóricas estão interligadas.

A requerida persegue o requerente denegrindo sua imagem e de sua família (mensagem de texto a
serem apuradas via ATA NOTARIAL – CPC, art. 384), inclusive tratando de expor sua criança de
apenas X (xxxxx) anos às discussões que provoca com o requerente, falando inverdades para a
criança e criando nesta um sentimento de repúdio contra o requerente, tratando-se da odiosa
prática da ALIENAÇÃO PARENTAL, que deverá ser alvo de investigação.

No excerto acima, o procurador narra a sequência de fatos buscando a adesão do auditório


[magistrado] e apontando pontos negativos relacionados à conduta desrespeitosa da requerida,
persegue e denigre a imagem do requerente e de seus familiares. Ainda, ao utilizar o operador
“inclusive” adiciona um argumento mais forte a favor do seu cliente, qual seja, expor a criança e
imprimindo nesta um sentimento de repúdio pelo pai. Assim, reforça conjecturas que poderão ser
utilizadas em favor do seu cliente em uma eventual contestação, como na acusação de alienação
parental.
Em relação a essa prática, a expressão síndrome da alienação parental, doravante SAP,
foi criada pelo psiquiatra estadunidense Richard Gardner, em 1985, para a situação em que a mãe ou
o pai de uma criança a induz a romper os laços afetivos com o outro genitor, criando sentimentos de
ansiedade e rejeição em relação a ele. Na prática, os atos de alienação parental ocorrem porque uma
das partes não aceita o fim do relacionamento amoroso. Por conta da raiva, passa a querer se vingar
do antigo parceiro [ou parceira] e utiliza a criança, tentando colocá-la contra o outro genitor. No
Brasil, é regulada pela lei n° 12.318/2010 com fundamento constitucional no princípio da paternidade
responsável, previsto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal.
No que tange à Ata Notarial, é uma inovação trazida pelo Novo Código de Processo Civil
(BRASIL, 2015) e se constitui como um instrumento público através do qual o tabelião descreve
determinadas situações ou fatos que lhes são apresentados pela parte interessada e o translada para
seus livros de notas ou para outro documento, mediante lavratura de ata. É uma novidade trazida pelo
artigo 384 do Código de Processo Civil, cujos dados podem ser representados por imagem ou som
615

gravados em arquivos eletrônicos, bem como as mensagens de texto de whatsapp, podendo servir
como prova nos autos do processo.

Embora o casal se encontre separado de fato, a requerida, procurada pelo requerente, negou-se a
acertar consensualmente os termos do divórcio, não restando alternativa ao requerente senão optar
pelo divórcio e requerer a dissolução da sua relação.

No excerto acima, o advogado reafirma a razão do requerente ao ingressar com o pedido


de divórcio, provando a necessidade e legitimidade da ação. Como em um debate, há regras a serem
cumpridas, as leis e as normas devem ser consultadas e utilizadas na ação petitória, para que o
discurso se torne credível perante o auditório [magistrado] e obtenha uma decisão favorável. Nesse
sentido, o advogado [procurador] da parte, defende seu cliente e sustenta a tese através dos seus
argumentos e estratégias discursivas, desde que plausíveis e aceitas pelo juiz que arbitra sobre o
direito das partes e profere a sentença.
No processo utilizado como modelo, para conquistar o auditório, as partes utilizam-se de
estratégias argumentativas, escolhas lexicais, formulações carregadas de intencionalidade, de modo
a influenciar o auditório. Dentro dessa ótica, as partes apresentam perspectivas diferentes, que
modificam e geram efeitos de sentidos diversos, tornando o discurso do outro contraditório, sendo o
caráter especulativo uma característica do discurso jurídico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que diz respeito ao estudo do gênero discursivo petição inicial, compreendemos que
o advogado, após cuidar de questões formais em tópicos direcionados ao Judiciário, na Vara de
Família, apresenta a descrição narrativa dos fatos, inicia sua argumentação, bem como fundamenta
em pressupostos normativos existentes. Nesse seguimento, o magistrado que deverá presidir a causa
e assumir o papel de julgador, buscará alcançar o equilíbrio e sua decisão será lei entre as partes.
Em suma, as análises mostraram que as provas retóricas estão intrinsecamente
interligadas e a emoção, quando bem utilizada, pode desempenhar um papel importante na
argumentação da petição inicial. Nesse sentido, o advogado construiu uma imagem positiva do
requerente, a fim de conquistar a adesão do seu auditório, em contrapartida, imagens negativas da
requerida, aqui representada pela ex-esposa.

REFERÊNCIAS
AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de
si no discurso: a construção do ethos. Tradução Dílson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio
Possenti. São Paulo: Contexto, 2005. p. 9-28.
616

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel, 2007.

BRASIL, Código de Processo Civil. In: Saraiva. Vade Mecum Saraiva. 29 ed. São Paulo: Saraiva,
2020.

BRASIL, Constituição Federal. In: Saraiva. Vade Mecum Saraiva. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz.
2 ed. São Paulo: Contexto, 2017.

DE MELLO, Renata Aiala. Especificidades e interseções entre os conceitos de imaginários


sociodiscursivos, imagem de si, estereótipos e representações sociais. Anais do SIELP. Volume 2.
Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2012. ISSN 2237-8758.

KERBRAT-OREVVHIONI, Catherine. O ethos em todos os seus estados. In: MACHADO, Ida


Lúcia; MELLO, Renato. (Orgs.) Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010,
v. 3. p. 117-135.

MAINGUENEAU, Dominique. A noção de ethos discursivo. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L.


Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 11-32.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. São Paulo. Parábola editorial, 2015.

MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico à noção de ethos. Letras de Hoje, v. 53, n. 3, p. 321-
330, jul.-set. 2018. Estudos e debates em linguística, literatura e língua portuguesa Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUCRS. ISSN: 1984-7726 | ISSN-L: 0101-3335. Tradução de Maria da
Glória Corrêa di Fanti.

MIRANDA, Daniela da Silveira. Discurso jurídico: constituição do ethos e orientação


argumentativa. 2011. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade de São Paulo, USP, São Paulo-
SP.

PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São


Paulo: Martins Fontes, 2005.

TOMAZ, Patrícia Rodrigues. Discurso, retórica e mediação de conflitos. Teresina: EDUFPI, 2020.
E-book. ISBN 978-65-86171-58-7.
617

A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA APRESENTADA EM LIVROS DIDÁTICOS DE


LÍNGUA ESPANHOLA: UMA ANÁLISE DOS LIVROS ENTRE LÍNEAS 7 E CAMBIO 8

Bruna Elisa Gaedicke186


(Graduanda em Letras-Espanhol)
Cibele Krause Lemke187
(Doutora em Educação)
UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro Oeste

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar como a diversidade linguística é apresentada nos livros Entre
Líneas 7 (integrante do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD) e Cambio 8. A língua
espanhola por ser a língua oficial de muitos países, apresenta uma grande diversidade linguística. Esta
diversidade linguística deve ser trabalhada no ensino da língua, conforme pregam as Orientações
Curriculares Nacionais (OCN), do Brasil, que presam a importância do desenvolvimento da
diversidade linguística no ensino de língua espanhola, para tanto, analisamos a diversidade linguística
presente em materiais didáticos para o ensino de ELE. A presente pesquisa pretendeu investigar se
as variedades linguísticas do Espanhol são apresentadas nos dois livros e de que forma ocorre essa
apresentação. Como resultado, verificamos que o Entre Líneas 7 apresenta uma atividade que trabalha
a variedade regional, além de alguns quadros dispostos nos capítulos, com curiosidades de variedades
lexicais. Já no livro Cambio 8, só identificamos um momento em que a variação aparece, através de
uma mera indicação do país de origem de determinadas palavras. Por meio da nossa análise dos dois
livros, pudemos perceber que ambos não põem ênfase em atividades que trabalhem a questão das
variedades linguísticas. Pois encontramos apenas uma atividade em um dos livros, a qual está
estritamente ligada à variedade linguística. No entanto, no livro Entre Líneas 7 foram encontrados
mais espaços que proporcionam o conhecimento da existência da diversidade linguística, do que no
livro Cambio 8. Apesar de acharmos as aparições da diversidade linguística no livro Entre Líneas 7
um tanto quanto inexpressivas, elas são bem mais significativas ao compará-las com a única
ocorrência encontrada no Cambio 8. Isso pode estar ligado à evidência de que o Entre Líneas 7 foi
um livro que circulou nas escolas e, para tal, precisou passar por uma seleção entre tantos outros
livros, que é feita pelo PNLD, o que faz com que o Entre Líneas 7 esteja mais adequado com as
exigências de um ensino de Espanhol contextualizado. Os resultados contribuem para elucidar como
os materiais didáticos abordam a diversidade linguística, e assim contribuir para a formação de
professores de língua espanhola, na medida em que refletimos neste artigo sobre a importância de se
trabalhar a diversidade da língua espanhola por meio de livros didáticos.

Palavras-chave: Língua espanhola. Livro didático. Diversidade linguística.

RESUMEN

Ese artículo tiene como objetivo analizar como la diversidad lingüística es presentada en los libros
Entre Líneas 7 y Cambio 8. Siendo que solamente el Entre Líneas 7 forma parte de las selecciones
del Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). La lengua española por ser la lengua oficial de

186
brunairati@gmail.com
187
cklemke@unicentro.br
618

muchos países, presenta una gran diversidad lingüística. Esa diversidad lingüística debe ser trabajada
en la enseñanza de la lengua, de acuerdo con las Orientações Curriculares Nacionais (OCN), de
Brasil, que presan por la importancia del desarrollo de la diversidad lingüística en la enseñanza de
lengua española, para tanto, analizamos la diversidad lingüística presente en materiales didácticos
para la enseñanza de ELE. La presente pesquisa pretendió investigar si las variedades lingüísticas del
Español son presentadas en los dos libros y de qué manera ocurre esa presentación. Como resultado,
verificamos que el Entre Líneas 7 presenta una actividad que trabaja la variedad regional, además de
algunos cuadros dispuestos en los capítulos, con curiosidades de variedades lexicales. Ya en el libro
Cambio 8, solo identificamos un momento donde la variación aparece, por medio de una simple
indicación del país de origen de determinadas palabras. Por medio de nuestro análisis de los dos
libros, logramos percibir que ambos los dos no ponen destaque en actividades que trabajen la cuestión
de las variedades lingüísticas. Pues encontramos solamente una actividad en uno de los libros, la cual
está totalmente ligada a la variedad lingüística. Sin embargo, en el libro Entre Líneas 7 fueran
encontrados más espacios que proporcionan el conocimiento de la existencia de la diversidad
lingüística, que en el libro Cambio 8. A pesar de entender que las apariciones de la diversidad
lingüística en el libro Entre Líneas 7 un tanto cuanto inexpresivas, ellas son más significativas al
compararlas con la única ocurrencia encontrada en el Cambio 8. Eso puede ser que tenga que ver con
la evidencia de que el Entre Líneas 7 fue un libro que tuvo circulación en las escuelas y, para tal,
necesitó pasar por una selección entre tantos otros libros, que es hecha por el PNLD, lo que hace que
el Entre Líneas 7 esté más adecuado con las exigencias de una enseñanza de Español contextualizado.
Los resultados contribuyen para aclarar cómo materiales didácticos abordan la diversidad lingüística
y, de esa forma, contribuir para la formación de profesores de lengua española, por ese artículo hacer
la reflexión sobre la importancia de trabajar la diversidad de la lengua española por medio de libros
didácticos.

Palabras-Clave: Lengua española. Libro didáctico. Diversidad lingüística.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a diversidade linguística presente em materiais
didáticos de espanhol para estrangeiros, mais especificamente nos livros Entre Líneas 7 e Cambio 8.
Escolhemos estes livros pois ambos estão destinados ao ensino do Espanhol para a educação básica,
sendo um para o sétimo ano e, o outro, para o oitavo ano, ou seja, são livros que estão equiparados
no nível escolar, pois se tratam de materiais para o ensino fundamental. A diferença é que o Entre
Líneas 7 é um dos materiais selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e de
circulação na escola pública, já o livro Cambio 8 não compõe este programa, e essa evidência
despertou nosso interesse em saber se essa distinção entre eles influencia ou não sobre a diversidade
linguística que buscamos encontrar em nossa análise.
O Espanhol é um idioma que está ganhando cada vez mais espaço no mundo todo quando
o assunto é aprender uma língua estrangeira. Com base no Instituto Cervantes (2016), há uma
estimativa de 21 milhões de alunos que estudam o espanhol como língua estrangeira, somatória feita
pelo número de estudantes de 106 países que não têm o espanhol como língua oficial. Já os países
619

que têm o Espanhol como língua oficial, estão a maioria na América do Sul, próximos ao Brasil, os
quais ultrapassam duas dezenas.
Levando em conta que cada lugar apresenta um povo e uma cultura específica, essas
diferenças atingem, impreterivelmente, a língua falada nesse lugar. Língua e Cultura estão
intrinsecamente ligadas. “Como a língua é uma forma de comportamento social e a sociedade é
bastante diversificada, assim como suas manifestações culturais, a ocorrência da variação linguística
é inteiramente justificável e previsível” (RODRIGUES, 2005, p.18). Ou seja, se o Espanhol está
presente em diversos países, logo apresentará diversidade também enquanto língua.
Tratando de livros didáticos de ELE (Espanhol como Língua Estrangeira), eles deveriam
apresentar a diversidade linguística da língua a ser ensinada. Mas, conforme Zolin-Verz (2013), por
exemplo, muitos materiais didáticos que são produzidos principalmente por editoras espanholas
apresentam apenas uma variedade, geralmente a de prestígio. Tal fato, não condiz com o que pregam
as Orientações Curriculares Nacionais. Segundo esse documento, o ensino de língua espanhola deve
ser voltado para a heterogeneidade característica dessa língua. Há um capítulo específico sobre tal
tema no documento que diz:

O fundamental, portanto, em que pese a impossibilidade de abarcar toda a riqueza linguística


e cultural do idioma, é que, a partir do contato com algumas das suas variedades, sejam elas
de natureza regional, social, cultural ou mesmo de gêneros, leve-se o estudante a entender a
heterogeneidade que marca todas as culturas, povos, línguas e linguagens (BRASIL, 2006,
p. 137).

Tendo em vista essas considerações e entendendo que as OCN prezam a importância do


desenvolvimento da diversidade linguística no ensino de língua espanhola, nesta pesquisa analisamos
a diversidade linguística presente em materiais didáticos para o ensino de ELE.
Este artigo está dividido em seção de referencial teórico sobre o que entendemos por
variedade linguística dentro da diversidade linguística do espanhol; sobre ensino de língua e livro
didático; e seção de análise dos livros. Por fim, apresentamos as considerações finais.

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA DO ESPANHOL E O LIVRO DIDÁTICO

Variedades linguísticas dentro da diversidade linguística do espanhol

O Espanhol, assim como todas as línguas naturais, possui diversidade. Essas diversidades
podem ocorrem em várias instâncias, dentre elas a que vamos investigar, a diversidade linguística. A
língua é algo vivo, pois é usada por pessoas dentro das comunidades de fala. Esse constante uso da
620

língua faz com que, além de viva, ela seja mutável, estando em constante mudança, e é a partir dessas
mudanças que as variedades linguísticas vão surgindo e se evidenciando.
Para reiterar essa questão, de acordo com Nascimento (2007), a diversidade é encontrada
no ato de se comunicar de cada falante, pois cada pessoa possui suas referências próprias (geográfica,
histórica, cultural), e é através disso que as variações ocorrem dentro de uma língua.
Por muito tempo as línguas foram estudadas de forma estrutural, ou seja, a linguística se
empenhava em estudar aspectos próprios da língua, ignorando fatores externos a ela e seu caráter
social. Porém, isso foi se alterando com o tempo, e o campo social e da variação da língua foram
ganhando espaço nos estudos linguísticos, e é disso que vamos tratar.
Primeiro, vamos aclarar a significação e implicação da variação linguística, que está
presente na diversidade linguística do Espanhol, e é um termo de grande relevância em nossa
pesquisa. A teoria da variação linguística está dentro dos estudos da Sociolinguística, que é uma área
da Linguística e que estuda a língua enquanto fator social. O precursor mais conhecido no estudo
variacionista foi William Labov, que fez pesquisas em comunidades de fala, tomando a língua em
seu uso e, dessa forma, passou a estudar a língua de uma forma heterogênea, assim como a sociedade
que a utiliza também é.
De acordo com Coelho (2007, p. 10) “essa concepção de língua como um sistema
heterogêneo tem importantes implicações porque coloca a variação linguística no centro da análise
do processo de estruturação da língua”. E, para elucidar de que se trata a variação linguística, a autora
cita que “denomina-se variação linguística o uso de um elemento no lugar de outro sem alteração
semântica. Ou seja, os falantes recorrem a elementos linguísticos distintos para expressar as mesmas
ideias” (COELHO, 2007, p.10).
A variação linguística é, portanto, um fenômeno das línguas, e ela pode ocorrer em vários
níveis e motivada por diversos aspectos, como nos esclarece Coelho (2007)

Em todos os níveis de fala pode ocorrer variação, seja variação fonético-fonológica,


morfológica, sintática, semântica, lexical ou estilístico-pragmática. A variação pode ser
influenciada por fatores linguísticos ou extralinguísticos, como origem geográfica, status
socioeconômico, grau de escolarização, idade, sexo, mercado de trabalho, redes sociais do
falante. Além, é claro, do estilo pessoal, porque cada indivíduo é único e possui uma maneira
única de falar (COELHO, 2007, p.10).

Considerando isso, temos a clareza de que a diversidade é algo inerente à língua, e as


variedades podem estar presentes em vários aspectos, influenciadas por diferentes componentes. As
variedades linguísticas são classificadas usualmente em: histórica, social, regional e de estilo.
A variedade que, talvez, tenha maior visibilidade dentro do Espanhol é a variedade
regional, fato explicado pela vasta extensão do uso da língua no mundo. Em linhas gerais, o Espanhol
621

é dividido em dois grandes blocos, o primeiro seria o Espanhol Peninsular, que compreende a
Espanha, e o segundo o Espanhol Americano, que se refere a todos os países falantes do Espanhol
contidos na América. Porém, Moreno Fernández (2017) faz uma divisão de forma mais específica
dessas variedades, tornando-as em cinco, as quais seriam: da Espanha; Caribe; México e América
Central; Andes e Rio da Prata.
Neste trabalho todas as variedades citadas serão levadas em conta, e o nosso interesse se
concentra em saber se os livros escolhidos para serem analisados, negligenciam as variedades ou,
pelo contrário, contemplam a língua espanhola como heterogênea, tratando dela como uma língua
que será aprendida por estrangeiros, e estes, ao terem contato com esse material, terão o discernimento
que o Espanhol é uma língua grandiosa que contempla vários países e diversidades.

O ensino de língua espanhola e o livro didático

Conforme exposto anteriormente, há uma estimativa de 21 milhões de alunos que


estudam o Espanhol como língua estrangeira, somatória feita pelo número de estudantes de 106 países
que não têm o Espanhol como língua oficial.
No tocante ao ensino de línguas estrangeiras, nos dias atuais a aprendizagem de uma ou
mais línguas estrangeiras está se tornando imprescindível, pois a nossa realidade atual é de grande
facilidade de comunicação com pessoas de diversos e distantes lugares. Andrade e Seide (2016)
afirmam que o uso das tecnologias de comunicação facilita a aproximação linguística e cultural,
trazendo à tona a necessidade de que compreendamos a cultura do outro, os valores e as convenções
distintas. Nesse caso, a língua deve ser ensinada de forma com que os alunos tenham conhecimento
dessas diversidades, nesse sentido que Andrade e Seide afirmam:

Neste contexto, o ensino de língua estrangeira cumpre um papel importante na construção


identitária do indivíduo e da comunidade de que faz parte, na compreensão do outro e sua
alteridade, tornando-se igualmente dinâmico e complexo tendo em vista a pluralidade
linguística e cultural que caracteriza muitas sociedades hoje em dia. É preciso considerar que
o estudante, ao aprender uma língua estrangeira, terá acesso a uma nova realidade
sociocultural, regida por normas e convenções que podem ser muito diferentes das que
existem no grupo social no qual se insere (ANDRADE; SEIDE, 2016, p. 51).

Compreendemos que o ensino de uma língua estrangeira precisa estar ligado à


diversidade, tanto linguística como cultural, como acabamos de observar. Entretanto, o foco desta
pesquisa recai com veemência nas questões linguísticas, pois entendemos o Espanhol como uma
língua especialmente heterogênea linguisticamente e, por esse fato, consideramos totalmente
necessário um ensino de língua estrangeira que se destine a trabalhar essas variedades que a língua
possui.
622

Relatado isso, é de nosso interesse investigar os livros didáticos de ELE, especificamente


o Entre Líneas 7 e o Cambio 8, para constatarmos se eles trabalham de uma forma a tentar contemplar
as variedades da língua espanhola, pois isso é de suma importância se considerarmos que um aluno
estrangeiro está aprendendo uma segunda língua que é essencialmente heterogênea, pois nela
podemos encontrar todos os tipos de variedades já explanados.
De acordo com Lessa (2013), o ensino-aprendizagem de uma língua não deve estar
reduzido a uma abordagem normativa. Mas, em linhas gerais, o que acontece é que a realidade do
material didático que está disponível no mercado brasileiro, como relata Vilhena (2013), é de livros
que trazem uma visão abstrata da língua, com apego ao léxico e com uma variedade conhecida como
europeia. É essa é uma realidade que acaba divergindo com a concepção adequada de ensino de
língua. “A língua é um lugar de experiências e práticas sociais que envolvem sujeitos atravessados
por suas identidades sociais e relações de poder” (LESSA, 2013, p.18).
A necessidade de um tratamento heterogêneo dos materiais perante à língua é evidente,
mas a ênfase ainda recai em um ensino de língua homogênea, e conforme cita Zolin-Verz (2013), isso
causa uma redução da língua espanhola, pois nos materiais didáticos que são produzidos
principalmente por editoras espanholas, as variações aparecem como fenômenos marginais, não
constituindo uma realidade linguística. “Mesmo apresentando as respectivas variedades da língua
espanhola, os livros didáticos também incorrem na ideia da existência de uma língua modelar da qual
as variedades seriam [...] deturpações do que consideram a língua original” (KRAUSS, 2006, p. 2,
apud ZOLIN-VERZ, 2013, p. 56).
Os trechos que se encontram sobre variedade em livros didáticos de ELE geralmente são
poucos e trazem, segundo Vilhena (2013), atividades com características negativas, isso se deve,
principalmente, por não haver uma articulação delas com o restante do livro, pois, geralmente,
achamos palavras que se encontram sem contextualização, além de não serem retomadas em textos
ou atividades.
Tendo em vista o grande papel desenvolvido pelo livro didático nas aulas de língua
estrangeira, Rodrigues (2005, p.36) afirma que esse material deve “apresentar um equilíbrio entre a
forma e o uso para sua eficácia. Além de apresentar as regras gramaticais, o livro também deve
contemplar os diferentes usos de uma língua, explorando as formas de como expressar cada uso num
contexto específico”.
O ensino de uma língua estrangeira envolve, como pudemos ver até agora, uma gama de
elementos intrínsecos à língua, e as variedades são componentes extremamente essenciais nesse
ensino. O ensino de ELE baseado em práticas contemporâneas, não pode ser um ensino que ignora a
diversidade da língua, por isso este trabalho tratou de buscar dentro das análises feitas nos livros e,
623

pautado em nossos estudos sobre a diversidade linguística, perceber se esse ensino das variedades e
diversidades linguísticas está possibilitado dentro dos materiais didáticos por nós analisados.

ENTRE LÍNEAS 7 E CAMBIO 8 E A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA

Em se tratando de ensino de uma língua estrangeira, compreendemos, então, que a língua


possui diversidade, pois as línguas, em geral, são heterogêneas. Neste sentido, nas aulas de ELE, nas
quais o professor terá o livro didático, majoritariamente, como o principal material
condutor/facilitador de sua aula, as tarefas pedagógicas para o ensino da língua devem estar de acordo
com a realidade dessa língua e apresentarem conteúdos e atividades que trabalhem a diversidade
linguística de maneira abrangente e não excludente.
O problema é que, em geral, quase não se é trabalhada essas variedades, pois há uma
tendência ao privilégio de apenas uma variedade. Como relata Zolin (2013), é comum fazer essa
relação que já está beirando o natural entre a língua e o país – o lugar que fala o Espanhol é a Espanha.
No entanto, a Espanha é apenas um dentro da grande quantidade de países que têm o Espanhol como
língua oficial, os quais não devem ser anulados, por uma suposta superioridade do Espanhol
peninsular.
Tendo essas questões em vista, pretendemos expor, por meio de análise dos livros de
ensino de língua espanhola para estrangeiros já citados, e pautados nos estudos da variação linguística
presente na Sociolinguística, se os materiais trazem as variedades da língua espanhola e analisar a
maneira que nos apresentam tal diversidade.

A escolha dos livros entre líneas 7 e cambio 8

Para nossa análise contamos, como já dito anteriormente, com o livro Entre Líneas 7 –
cujas autoras são Rosimeire Silva, Luiza Martins e Ana Beatriz Mesquita, publicado pela editora
Saraiva. Este livro foi distribuído gratuitamente para as escolas públicas no Brasil e foi utilizado no
ensino do Espanhol com alunos do sétimo ano, nos anos de 2017 a 2019. E o segundo livro, intitulado
Cambio 8 – seus autores são Virginia Martínez Luque, Maria Cristina Pacheco e Agustín Berti, da
editora Companhia Editora Nacional. Este livro foi produzido no ano de 2010, destinado a alunos do
oitavo ano e não se trata de um livro que circulou nas escolas públicas para o ensino do espanhol.
O primeiro livro escolhido foi o Entre Líneas 7, pelo fato de ter sido o livro utilizado pela
autora deste artigo em seu período de estágio obrigatório no ano de 2019. Após feita a análise do
Entre Líneas 7, a busca foi por um livro que estivesse no mesmo nível escolar, ou seja, de preferência
outro livro do sétimo ano ou, então, algum que estivesse destinado do sexto ao nono ano. Desta forma,
624

optamos por contrapor a análise do Entre Líneas 7 com a análise do Cambio 8, já que este foi criado
para ser trabalhado com os oitavos anos, no caso, um ano a mais que aquele.
Além deste adendo de que a escolha dos livros se motivou por conta de os dois livros
estarem destinados ao ensino fundamental, o primeiro ao sétimo ano e, o segundo, ao oitavo ano, o
que faz eles estarem, praticamente, no mesmo nível. Também os escolhemos por um se tratar de um
livro de circulação nas escolas e ser Manual do Professor, já o outro não ser nem Manual do Professor,
nem ter circulação escolar, fazendo com que houvesse uma comparação bem instigante, entendendo
essas disparidades como possíveis fatores de resultados para uma boa contraposição. Estas são as
capas dos livros analisados:

Imagem 1 (à esquerda): Capa do livro Entre Líneas 7. Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza;
SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015).
Imagem 2 (à direita): Capa do livro Cambio 8. Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE,
Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010).

Entre líneas 7 e a diversidade linguística

Primeiro vamos relatar a nossa análise do livro Entre Líneas 7. Contamos com sua versão
do Manual do Professor, o que significa que além de todos os conteúdos e lições destinada aos alunos,
pudemos analisar todas as informações extras contidas e destinadas ao professor, sejam elas as
respostas das atividades ou orientações à parte para auxiliar o professor na condução da sua aula.
O livro Entre Líneas 7 possui em sua abertura um pequeno texto intitulado
“Presentación”, nele é possível identificar uma breve explicação dos objetivos do livro. Nesse texto
pudemos observar que as autoras entendem que aprender uma língua estrangeira é estar em contato
com o outro e consigo mesmo. Além disso, diz que o ensino do Espanhol no livro está voltado a
capacitar o aluno a se comunicar em diferentes contextos, conhecendo diferentes manifestações
625

culturais, trabalhando com uma variedade de gêneros discursivos, e dessa forma, promovendo o
desejo do aluno em descobrir novas realidades e refletir sobre sua própria realidade.
Nesse texto introdutório é notória a preocupação de um ensino de ELE contextualizado,
que não ensine a língua por ela mesma, mas mostre ao aluno todo o entorno da língua espanhola. No
entanto, não encontramos nenhum trecho nesse texto que abordasse a diversidade linguística.
Antes de iniciar o primeiro capítulo, o livro traz um espaço chamado “Conoce tu libro”.
Nesse espaço há uma explicação para pequenos títulos que aparecerão distribuídos nos capítulos.
Cada título está relacionado a um tipo de atividade que será proposta. A seguir veremos os títulos que
antecedem lições nas quais provavelmente encontraríamos diversidade linguística.

Imagem 3: Conoce tu libro: Más que

Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 04).

Imagem 4: Conoce tu libro: ¿Te suena?

Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 04).

Imagem 5: Conoce tu libro: Textos y contextos

Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 05).

Como é possível observar nas imagens 3, 4 e 5, essa parte inicial do livro indica que
quando houver um desses três títulos dentro do capítulo, teremos a possibilidade de encontrar algum
conteúdo que se refire à diversidade linguística ou às variedades linguísticas. Ou seja, esses títulos
nos auxiliaram em nossa análise, pois tínhamos um olhar ainda mais atento quando encontrávamos
626

atividades antecedidas por um desses títulos, e realmente as ocorrências encontradas em nossa análise
geralmente estavam precedidas desses títulos.
Ao adentrarmos nos capítulos para análise, encontramos já na primeira página do primeiro
capítulo a seguinte imagem:

Imagem 6: Oda a los alimentos: de los sabores prehispánicos a hoy

Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 10).

Na imagem 6 podemos perceber que o alimento batata está posto com dois nomes
diferentes “la papa/la patata”, o mesmo ocorre com a banana, “la banana/el plátano”. Se trata de
uma variedade de léxico, que é explicada um pouco mais adiante, como podemos ver na imagem a
seguir.

Imagem 7: Quadro roxo


627

Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 17).

De acordo com o quadro, o termo “papa” é mais utilizado na América, enquanto “patata”
é a forma que chamam batata na España. Além disso, o quadro faz uma pequena explicação da origem
do termo “papa”, pois o espanhol, assim como a maioria das línguas, possui influência de outros
povos, que resultam na variedade de palavras. Essa variedade lexical que difere de região para região,
ou de país para país, trata-se da variedade conhecida como regional.
Além desse quadro roxo já citado, encontramos mais quatro ocorrências de quadros
semelhantes dispostos nos capítulos. Um deles, que está na página 36, mostra que celular em espanhol
pode ser chamado de móvil ou celular, e que fones de ouvido recebem o nome de auriculares ou
cascos. Nesse quadro não foi citado em qual região cada uso é mais comum. Após essa ocorrência,
temos mais três quadros encontrados na mesma lição, presentes nas páginas 58, 59 e 60. A lição trata
de vestimentas, e nos quadros há informações sobre diferentes nomes dados às roupas. Explica que
alguns nomes possuem influência de outros povos, e que na América os nomes das vestimentas
diferem um pouco das formas faladas na Espanha.
Mais adiante em nossa análise, nas páginas 129 e 130 encontramos um texto seguido por
algumas atividades, onde há ocorrência da diversidade linguística, e a que teve maior articulação das
variedades linguísticas com a lição. Trata-se da atividade a seguir:

Imagem 8: Donde los derechos del niño Pirulo chocan con los de la rana Aurelia

(MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 129-130).
628

O texto é uma historinha que se passa na Argentina e trata um pouco sobre os direitos da
criança e do adolescente. Como o texto está ligado à Argentina, a variedade linguística que aparece é
a desse país. No fim do texto, em forma de nota de rodapé, temos a seguinte frase: “Pirulo es un
escolar argentino, pero el argumento del cuento sirve para trabajar con adolescentes uruguayos”.
Dentro das atividades, mais especificamente na atividade de número três, essa frase é
retomada. Temos duas perguntas relacionadas à variedade linguística. A primeira pede ao aluno que
encontre palavras que exemplifiquem que os personagens são argentinos. E a segunda quer que o
aluno justifique o porquê de o argumento do texto também servir para crianças uruguaias. E a resposta
para as perguntas está relacionada ao uso do vos, que é comum tanto na Argentina quanto no Uruguai.
Essa atividade trabalha a variedade regional do Espanhol.

Cambio 8 e a diversidade linguística

O livro Cambio 8 que dispomos para nossa análise é destinado aos alunos, ou seja, não
tivemos acesso ao Manual do Professor, portanto nossa análise se pauta nos conteúdos que os alunos
possuem ao receber o material. Sabemos que o Manual do Professor pode conter informação extra
para ajudar o professor a guiar melhor os conteúdos apresentados nos livros, no entanto, nossa análise
é do livro destinado aos alunos.
Apesar do presente livro não se tratar de um livro escolhido e aprovado pelo PNLD,
resolvemos analisá-lo para contrapô-lo com o Entre Líneas 7, este sim, de circulação em escolas
públicas. Além disso, nosso interesse em analisá-lo também se acentuou ao lermos sua apresentação.

Imagem 9: Apresentação

Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010, p.
3).
629

Como é possível notar dentro da apresentação, os autores consideram a língua viva, como
um objeto social e cultural. Por isso, dizem que trabalharão com discursos orais e escritos autênticos,
pois o aluno precisa ter contato com os usos sociais da língua para conseguir sua apropriação. Um
trecho muito interesse que eles citam é o seguinte: “São colocados à disposição os modos de falar de
distintas regiões da América e da península ibérica, abrindo, desta maneira, um espectro de
possibilidades que permite entrever as distintas e múltiplas identidades que compõem o espanhol”
(PACHECO; BERTI; LUQUE, 2010, p .3). Ou seja, dentro do apresentado nessa parte inicial do
livro, o ensino de Espanhol que os autores se propõem a disponibilizar no livro, está de acordo com
o que entendemos como um ensino eficaz de língua estrangeira, apesar de não estar citado
especificamente que será trabalhada a diversidade linguística, consideramos sua apresentação
instigante e por isso o elegemos para análise.
Contudo, nossa expectativa foi frustrada, pois não encontramos nenhuma atividade que
tratasse da diversidade linguística, nem ao menos encontramos quadros de curiosidade de léxico,
como os que encontramos no livro Entre Líneas 7, e que são comuns em livros de ELE. A única
ocorrência que aparece de maneira muito vaga e nos apresenta de maneira não explícita algo
relacionado à variedade linguística está no seguinte quadro.
Imagem 10: Algunas expresiones para indicar sentimientos

Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010, p.
50-51).

Neste quadro da Imagem 10 são trazidas expressões para indicar sentimentos em


Espanhol. Quando a palavra choca é citada ao lado dela vem a sigla do México, indicando que essa
expressão é usada neste país. O mesmo ocorre com a palavra embola que é usada na Argentina, e as
expressões buen rollo e mal rollo oriundas da Espanha.
Esse foi o único fragmento encontrado em todo o livro que traz algo que remete à
diversidade linguística. Faz isso ao mostrar que as palavras já citadas são específicas daqueles países,
não sendo usadas ou até mesmo não compreendidas em outros países hispanohablantes. Porém,
630

ocorre de maneira muito superficial, não explicando essa variação lexical de uma maneira mais
explícita, o que faria, possivelmente, o aluno ter uma consciência maior da existência das variedades
linguísticas no Espanhol.

Comparativo entre os livros entre líneas 7 e cambio 8

Por meio da nossa análise dos dois livros, pudemos perceber que ambos não põem ênfase
em atividades que trabalhem a questão das variedades linguísticas. Pois encontramos apenas uma
atividade em um dos livros, a qual está estritamente ligada à variedade linguística.
No entanto, no livro Entre Líneas 7 foram encontrados mais espaços que proporcionam
o conhecimento da existência da diversidade linguística, do que no livro Cambio 8. Apesar de
acharmos as aparições da diversidade linguísticas no livro Entre Líneas 7 um tanto quanto
inexpressivas, elas são bem mais significativas ao compará-las com a única ocorrência encontrada no
Cambio 8. Isso pode estar ligado à evidência de que o Entre Líneas 7 foi um livro que circulou nas
escolas e, para tal, precisou passar por uma seleção entre tantos outros livros, que é feita pelo PNLD,
o que faz com que o Entre Líneas 7 esteja mais adequado com as exigências de um ensino de Espanhol
contextualizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou responder a inquietação sobre a presença da diversidade


linguística nos materiais didáticos de ELE citados, e de que forma essa apresentação ocorre. Pudemos
perceber que no livro Entre Líneas 7 obtivemos mais resultados positivos à nossa busca, pois
encontramos uma atividade ligada diretamente à variedade linguística, além de cinco quadros que
apresentam variedades lexicais da língua. Já no livro Cambio 8, só conseguimos identificar um
momento onde a variação aparece, através de uma mera indicação do país de origem de determinadas
palavras, sem demais explicações sobre a variedade linguística.
Buscamos saber também se o fato de o livro Entre Líneas 7 ser aprovado pelo PNLD e
utilizado em escolas públicas, diferentemente do livro Cambio 8, influenciaria de alguma maneira
nos resultados obtidos. Nossa resposta foi, de certa forma, positiva, pois a diversidade linguística foi
mais valorizada no livro Entre Líneas 7 do que no livro Cambio 8. Ou seja, o Entre Líneas 7 está
mais em concordância com o que pregam as Orientações Curriculares Nacionais.
Concluímos que a presença da diversidade linguística nos dois livros analisados é
pequena, o espaço destinado a esse quesito da língua é singelo demais considerando sua importância,
pois o Espanhol é uma língua de grandes dimensões e isso precisa estar explicitado dentro do ensino
de ELE, tanto nos materiais didáticos, como no entendimento dos professores de língua espanhola,
631

por isso, entendemos que este trabalho contribui para a formação dos mesmos, pois este artigo
possibilita uma visão mais ampla da necessidade do trabalho das diversidades linguísticas no de ELE
e, apesar de o nosso foco ter sido os livros didáticos, entendemos que os professores são agentes
indispensáveis na viabilização desse ensino que tanto valorizamos na trajetória deste trabalho. E,
acerca da presença da diversidade linguística nos livros analisados, enfatizamos que, apesar da
pequena quantidade de ocorrências, o livro selecionado e aprovado pelo PNLD, Entre Líneas 7, se
destacou mais no trabalho com a diversidade linguística, comparado ao livro que não compõe o
PNLD, portanto não circulou nas escolas, o livro Cambio 8.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Daniele Wulff de; SEIDE, Márcia Sipavicius. Língua e cultura no ensino de espanhol
como língua estrangeira: um estudo de caso com duas professoras do ensino público do oeste
paranaense. Entreletras, Araguaína/TO, v. 7, n. 1, p. 50 - 69 jan/jun. 2016.

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias.
Brasília: MEC, 2006.

COELHO, Paula Maria Cobucci Ribeiro. O tratamento da variação linguística no livro didático
de português. Dissertação (Mestrado em Linguística), Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

FERNÁNDEZ, Moreno. Las variedades de la lengua esáñola y su enseñanza. Madrid:


Arco/Libros, 2017.

INSTITUTO CERVANTES. Español una lengua viva. Madrid: Biblioteca Nueva, 2016.

LESSA, Giane da Silva Mariano. Memórias e identidades latino-americanas invisíveis e silenciadas


no ensino-aprendizagem de espanhol e o papel político do professor. In: ZOLIN-Vesz, Fernando
(Org.). A (In)Visibilidade da América Latina no Ensino de Espanhol. Campinas: Pontes, 2013. p.
17-27.

MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 7. São Paulo:
Saraiva, 2015.

NASCIMENTO, Wellington Júnior do. Texto IV. In: BARROS, Cristiano. GOETTENAUER,
Elzimar. Variación Lingüística y Enseñanza de E/LE. FALE/UFMG, Belo Horizonte, 2007.

PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.

RODRIGUES, Daniel de Sá. O tratamento da variação linguística em livros didáticos de Língua


Inglesa. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Curso de Mestrado Acadêmico em
Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2005.

VILHENA, Flavia Krauss de. Sobre a invisibilidade das variedades linguísticas latino-americanas no
livro didático nacional para o ensino de língua espanhola. In: ZOLIN-Vesz, Fernando. (Org.). A
(In)Visibilidade da América Latina no Ensino de Espanhol. Campinas: Pontes, 2013. p. 63-76.
632

ZOLIN-Vesz, Fernando (Org.). A (In)Visibilidade da América Latina no Ensino de Espanhol.


Campinas: Pontes, 2013.
633

MOBILIZANDO NOÇÕES SOBRE AUTORIA E AUTORIALIDADE NOS DISCURSOS

Lucas Piter Alves-Costa188

RESUMO

A autoria como um fenômeno de linguagem e objeto de estudos perpassa campos como o da literatura,
o das artes, o da música, o das histórias em quadrinhos, o da pintura, o do jornalismo, o da escrita
acadêmica e/ou escolar, o das escritas na cibercultura, o das traduções, o da religião etc. Mas a função-
autor não se exerce da mesma maneira em todos esses campos, ela é engendrada e gerida em
diferentes regimes de autorialidade e atende às necessidades do campo que a institui. Diante dessas
observações, interessa-nos, neste trabalho, a autoria como fenômeno discursivo do campo literário,
sendo a Literatura tomada aqui como uma instituição discursiva. Dessa forma, os objetivos deste
trabalho são: (1) discutir o conceito de discurso autorial; (2) discutir as noções de autor e nome de
Autor; (3) apresentar e discutir o conceito de enunciado complexo. Inicialmente, tratamos da
Literatura tomada como uma instituição discursiva e um discurso autorial – discursos que se
sustentam na função-autor –, com foco no campo discursivo literário, apropriando-se de pressupostos
de Maingueneau (2006) e Costa (2016). Em seguida, é abordada a relação entre os nomes próprios e
os nomes de Autor, a partir de interpretação e síntese das teorizações de Foucault (2009), Bakhtin
(1997), Barthes (2004) e, principalmente, Maingueneau (2009, 2010). Por fim, explica-se o conceito
de enunciado complexo, formulado em Costa (2016) com base nos autores supracitados e avançando
a noção de nome de Autor. A discussão aponta a possibilidade de abordar a concepção de autor e/ou
autoria em duas dimensões: uma personificada, a qual se atribui subjetividade e estilo, e que é
comumente atrelada à persona do autor como agente no campo; outra enunciativa, atrelada ao nome
de Autor como um enunciado complexo, que tende a apagar a importância do sujeito empírico em
favor da função-autor nos campos que dela fazem uso.

Palavras-chave: enunciado complexo. discursos autoriais. nome de autor. função-autor. campo


literário.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A categoria de autor pode ser atribuída a produções textuais de diversos gêneros, alguns
dos quais não têm muito valor para a crítica literária: uma redação escolar, um artigo de opinião na
internet, uma matéria jornalística, um discurso eleitoral, um panfleto revolucionário, uma propaganda
publicitária, dentre outros.
Ainda que alguns desses gêneros possam figurar como textos de um autor famoso no
campo literário, raramente funcionariam como obras, mas sim como textos periféricos aos quais a
crítica poderia ou não investir algumas notas com o intuito de entender ou justificar a obra. Essa
observação é consoante aos apontamentos foucaultianos sobre a constituição da autoria, da
autorialidade e do estatuto de obra de algumas produções.

188
Doutor em Estudos Linguísticos e bolsista PNPD-CAPES pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
alvescosta.lp@gmail.com.
634

Diante dessas observações, as propostas deste trabalho são: discutir o conceito de


discurso autorial, com foco na Literatura tomada com instituição discursiva, a partir de Costa (2016);
discutir as noções de autor e nome de Autor a partir de interpretação e síntese das teorizações de
Foucault (2009), Bakhtin (1997), Barthes (2004), Maingueneau (2009, 2010); em seguida, apresentar
a noção de enunciado complexo formulada em Costa (2016) a partir dos autores supracitados.
Para atingir esses objetivos, inicialmente, discute-se sobre a Literatura tomada como uma
instituição discursiva e um discurso autorial – discursos que se sustentam na função-autor. Em
seguida, é abordada a relação entre os nomes próprios e os nomes de Autor. Por fim, explica-se o
conceito de enunciado complexo a partir da noção de nome de Autor.

A literatura como instituição e como discurso autorial

Para um pesquisador interessado no fenômeno da autoria nos campos das linguagens, é


importante se “perguntar em que condições um enunciado é suscetível de ter um ‘autor’”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 28), e, da mesma forma, que aspecto da noção de autor está sendo
analisado. Maingueneau (2010) assinala três dimensões da noção de autor, quais sejam: a de autor-
responsável, a de autor-ator, a de auctor. As duas primeiras são de pouca importância para os
objetivos deste trabalho, que parte da problemática formulada por Foucault (2009). Interessa-nos,
portanto, a noção de auctor. O estatuto de um auctor (doravante, Autor, com maiúscula) é relacionado
a um Opus (doravante, Obra, com maiúscula), e faz com que o nome do Autor exerça a função-autor.
Assim, a partir dessas observações, podemos apontar as produções autorais e autoriais. As primeiras
são ligadas a quaisquer autores, em qualquer ordenamento discursivo; as segundas são ligadas aos
Autores e Obras e às práticas que os instituem. Essas são, conforme Costa (2016), constituintes dos
discursos autoriais.
Os discursos autoriais são aqueles discursos instituídos em torno de nomes de Autor,
sendo a função-autor fundamental. A funcionalidade do nome de Autor nos discursos autoriais é
construída de maneira coletiva por meio de uma rede de aparelhos (composta por agentes e práticas
institucionalizadas) e com base em um arquivo. Para um discurso autorial, o nome de Autor,
diferentemente de um nome próprio qualquer, “manifesta a ocorrência de um certo conjunto de
discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura.”
(FOUCAULT, 2009, p. 274). Assim, segundo Foucault (2009), podemos dizer que há, em uma
civilização como a nossa, alguns discursos que são providos da função-autor, enquanto outros são
dela desprovidos. Sobre a função-autor, é preciso ressaltar o que Foucault (2009) diz:

[...] a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina,
articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre
todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida
635

pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações
específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode
dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de
indivíduos podem vir a ocupar. (FOUCAULT, 2009, p. 279-280, grifos nossos).

O caráter jurídico da função-autor, embora seja um elemento incontornável, é o ponto


menos importante para o estudo da autoria, pois ele deposita excessiva atenção aos aspectos
pragmáticos da autoria voltados aos direitos e deveres dos sujeitos sobre uma produção textual. O
sistema jurídico é um conjunto de forças externas sobre o fenômeno da autoria, que tende a minimizar
as leis internas do campo discursivo em questão, em uma relação interdiscursiva que posiciona
agentes, materialidades e práticas.189 Como bem ressaltou Foucault (2009), a função-autor não se
exerce da mesma maneira em todos os campos, isso quer dizer que campos como o literário, o
quadrinístico, o musical, etc., têm sua própria autorialidade, e esse é o ponto principal nos estudos de
autoria: a forma como cada campo institui seus Autores e Obras; por que há campos que contém
autores, mas não Obras; por que há campos em que a unidade da obra é possível, mas a unidade Autor
é problemática (como é o caso das artes performáticas e das pinturas corporais que não levam
assinatura); e assim por diante, visando sempre o regime de autorialidade.
A função-autor, nos discursos autoriais, permite diferenciar autorial e autoral. Os
discursos autoriais conectam os dizeres de Autores – as obras e as performances dos autores no campo
– e as práticas de uma dada instituição que possibilitam a existência desses Autores, tais como a
crítica e a propaganda, portanto, conectam também os dizeres de não-autores, dizeres esses que têm
por função (ou por efeito) sustentar os nomes de Autores. Já um discurso autoral diz respeito a
qualquer discurso no qual um sujeito possa se inserir como o seu responsável e/ou o seu produtor
efetivo, não ascendendo obrigatoriamente ao estatuto de Autor. Todo discurso autorial abrigaria,
portanto, discursos autorais (por uma relação hierárquica), mas nem todo discurso autoral residiria
em um discurso autorial.
Enquanto os autores da ordem do comum se limitam a produzir discursos autorais, um
tipo restrito de autor é capaz de produzir discursos autoriais: trata-se do Autor enquanto correlato de
uma Obra, de um Opus, e não de “uma sequência contingente de textos dispersos”
(MAINGUENEAU, 2010, p. 30). Nem todo produtor de textos, a despeito de qualquer talento
linguístico, tem o amparo institucional que qualifica e reconhece o seu nome como um nome de
Autor, e o seu objeto de autoria como uma Obra. Dessa maneira, a Literatura como um discurso
autorial engendra continuamente sua própria estrutura e regras ao engendrar também seus Autores e
Obras, formando, então, o seu arquivo.

189
Para uma melhor compreensão do primado do interdiscurso como fenômeno que posiciona concomitantemente
agentes, materialidades e práticas, em detrimento das abordagens voltadas exclusivamente para os textos, ver Costa
(2016).
636

A noção de arquivo é palavra-chave na teorização foucaultiana para algumas análises de


discursos. O termo arquivo representa o sistema de possibilidades dos enunciados, o conjunto de suas
condições históricas. Sendo os enunciados considerados acontecimentos discursivos, estão sujeitos a
regras de existência, formação, dispersão e transformação. Para Foucault (2008):

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares [...]; é o que, na própria raiz do enunciado-
acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua
enunciabilidade [...]; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de
seu funcionamento [...], é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2008, p. 147).

Vê-se que a atividade propriamente autorial se distingue daquelas voltadas para a


produção de textos efêmeros, que atendem a uma necessidade pontual, como alguns advindos do
jornalismo, da política ou do ensino, por exemplo. Tais textos podem ter autores, mas não Autores,
pois não costumam ser coligidos para terem a função de Obras. O discurso autorial, portanto, se
fundamenta pela construção coletiva de: (a) Autores, Obras e público, (b) um sistema de
possibilidades de produção, circulação e recepção contínuas, (c) mediações (interdependentes)
realizadas por um sem número de agentes não exclusivamente empenhados em atividades advindas
de discursos autoriais. A atividade autorial, então, é sustentada por autores e não-autores.

Nomes próprios e nomes de autor

O nome de Autor é um nome próprio, mas sua natureza e função estão além dos nomes
próprios comuns. Um nome próprio se refere a um elemento bem marcado em uma situação de
comunicação, exercendo uma função pontual de expressão. Os sentidos dos nomes próprios estão
estreitamente atrelados às suas diferentes ancoragens sociais nos discursos: histórica, geográfica,
sociológica, literária e inúmeras outras (LECOLLE et al., 2009). Sem uma ancoragem social, o nome
próprio seria apenas a possibilidade de apropriação. Para a questão da função-autor, o analista deve
se perguntar como um nome próprio adquire historicidade e como ele passa a ser o ponto central de
certos investimentos simbólicos em um campo específico.

Pode-se dizer do [nome próprio] que ele procede de duas caracterizações do signo: ele é ao
mesmo tempo signo linguístico (provido de um significante e de um significado, seja ele
mínimo), [...] e signo como substituto (ele se refere a um indivíduo, mas pode também valer
como símbolo, ou como ato de linguagem). [...] De fato, como unidade relevante de um modo
de significação “semiótica” [...], ele possui uma forma (fonológica e gráfica) e um sentido.
Como unidade de denominação (relevante de um modo de significação “semântica”,
“engendrada pelo discurso” [...]), ele se refere ao mundo.190 (LECOLLE et al., 2009, p. 11,
tradução nossa).

190
On peut dire du [nom propre] qu’il procède de deux caractérisations du signe : il est à la fois signe linguistique (pourvu
d’un signifiant et d’un signifié, fût-il minimal), […] et signe comme substitut (il renvoie à un individu, mais peut aussi
637

Na língua, um nome próprio é um signo, com significante, significado e referente. O


significante adota uma forma gráfica e fonética, por exemplo Machado de Assis. O significado, por
sua vez, nem sempre tem uma “forma material” observável, mas tem sempre uma “forma conceitual”,
por exemplo Machado de Assis, o maior escritor da Literatura Brasileira. O referente de um nome
próprio – que não é meramente Joaquim Maria Machado de Assis em pessoa – contrai seus
significados segundo sua historicidade e sua capacidade de se atualizar. O uso do nome próprio em
contextos variados com uma mesma referência o enriquece em significados, significativamente. O
referente é, ao mesmo tempo, aquilo sobre o qual se fala por meio do nome próprio e as condições
desse ato de falar, pois essas são contextuais. Falar de Machado é falar de sua Obra, e vice-versa.
No caso dos discursos autoriais, pela ótica da prática discursiva e não apenas da forma do
nome, o nome de Autor problematiza as formas sob as quais ele pode se apresentar: pseudônimo
(nome de Autor fictício, diferente do ortônimo/nome civil); autônimo (nome de Autor igual ao nome
civil); alônimo (nome de outra pessoa, mas não é nome falso; caso dos ghost writers, assinam a obra
com o nome do artista); heterônimo (nome de Autor diferente do nome civil, bem como a invenção
de uma pessoa para servir de referente).
A questão toma novas dimensões se pensarmos que o nome de Autor está atrelado à
função-autor, não obrigatoriamente a quem fala. Assim, a proximidade formal entre nome de Autor
e nome civil não altera o fato de que o nome de Autor será um pseudônimo em sentido lato devido à
distância entre os contextos antes e depois do estado de autoria. Não se trata apenas de um nome falso
de uma persona, mas sim de uma pessoa que se transforma em mero suporte ou materialização do
nome de Autor que a transcende. A função que os nomes de Autor exercem na sociedade parece
estabelecer relação interdiscursiva entre sua possível dimensão ordinária (atrelada aos sujeitos) e sua
inevitável dimensão extraordinária (atrelada à Literatura como discurso constituinte). São nomes que
transcendem seus portadores.

Ato consciente e voluntário, a autonominação é, antes de tudo, um ato significante que


inscreve na forma linguística escolhida como pseudônimo valores relativos ao quadro social,
ao contexto temático e à identidade pessoal.191 (CISLARU, 2009, p. 41, tradução nossa).

Se tentamos responder à notória pergunta – O que é um autor? – de Foucault (2009),


podemos ser levados a responder quem é o autor. Isso por que se pensa no autor como um sujeito

valoir comme symbole, voire comme acte de langage). […] En effet, comme unité relevant d’un mode de signifiance
« sémiotique » […], il possède une forme (phonologique e graphique) et un sens. Comme unité de dénomination (relevant
d’un mode de signifiance « sémantique », « engendré par le discours » […]), il renvoie au monde.
191
Acte consciente et volontaire, l’auto-nomination est avant tout un acte signifiant qui inscrit dans la forme linguistique
choisie comme pseudonyme des valeurs relatives au cadre social, au contexte thématique et à l’identité personnelle.
638

inserido em um dispositivo comunicacional. A questão dos direitos autorais, por exemplo, é centrada
nesse dispositivo comunicacional e nos direitos e deveres do dizer. Saber quem detém os direitos
autorais de uma obra é irrelevante para compreender o funcionamento do nome de Autor em uma
dada instituição, no caso, a literária. A função-autor estabelece um movimento de ofuscação do(s)
sujeito(s) produtores para fazer emergir no discurso o nome de Autor.

A convergência entre pseudônimo [ou nome de Autor] e discurso se opera via um simulacro
de apagamento do sujeito. Se o pseudônimo – que é também um autônimo – faz convergir
referente e significado até se tornar um substituto do sujeito, não faria ele desaparecer esse
último uma vez que ele se confunde com o discurso?192 (CISLARU, 2009, p. 56, tradução
nossa).

O nome de Autor está além da persona. Tratar o pseudônimo autoral em sua função
discursiva possibilita-nos visualizar essa dimensão do Autor que não faz parte do dispositivo de
comunicação. Essa dimensão, a qual só é possível perceber por meio de uma cisão, é produto
permanente desse dispositivo, do conjunto de atos de linguagem que têm como horizonte o-homem-
e-a-obra.

Nomes de autor como enunciados complexos

A partir da concepção foucaultiana de enunciado, trataremos, a seguir, da noção de


enunciado complexo: aquele tipo de enunciado que se materializa em um nome próprio, que permite,
regula e/ou restringe os dizeres de uma dada instituição sobre um mesmo objeto – qual seja, o nome
do Autor. Tais dizeres funcionam como partes de um complexo, ainda que contraditórios, sendo
relativamente autônomos uns em relação aos outros, mas que sejam também responsáveis pela
construção dos sentidos do todo, que é o nome de Autor. Para Foucault (2008):

Um enunciado não tem diante de si (e numa espécie de conversa) um correlato – ou uma


ausência de correlato, assim como uma proposição tem um referente (ou não), ou como um
nome próprio designa um indivíduo (ou ninguém). Está antes ligado a um “referencial” que
não é constituído de “coisas”, de “fatos”, de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de
possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados,
designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O
referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de
diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são
postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de
delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade. (FOUCAULT,
2008, p. 103).

192
La convergence entre pseudonyme et discours s’opère via un simulacre d’effacement du sujet. Si le pseudonyme –
qui est aussi un auto-nyme – fait converger référent et signifié jusqu’à devenir un substitut du sujet, ne fait-il pas
disparaître ce dernier lorsqu’il se confond avec le discours ?
639

Os enunciados se formam por meio de regulações dentro de um campo discursivo como


conjuntos de regras de possibilidades para os discursos. A cada enunciação, essas regras de existência
para um determinado objeto se transformam, acumulam-se, opõem-se, enfim, tornam-se outras
devido ao caráter histórico da enunciação e do enunciado. Para Foucault (2008), o enunciado é um
acontecimento: único como todo acontecimento, mas aberto a repetições, a transformações, porque
está ligado não apenas às situações que o provocaram, mas também a enunciados outros que o
precedem e o seguem. (FOUCAULT, 2008).
O enunciado complexo assume, como indica o nome, a forma de um complexo: um todo
divisível, mas cujas partes, ainda que visem excluir umas às outras, delas precisam
concomitantemente para se formar o todo. Para manter essa ilusão de unicidade, o enunciado
complexo precisa se abrigar sob um nome próprio ou denominação própria. Esse nome, que seria, em
qualquer enunciação, naturalmente um enunciado, assume a função de enunciado complexo se
preencher alguns requisitos, dentre os quais, o de funcionar como index para um tipo de discurso.

O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos
variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função
de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em
seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se
sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por
sua formulação (oral ou escrita). (FOUCAULT, 2008, p. 98).

Sendo o enunciado, de acordo com Foucault (2008), um modo de regular os dizeres sobre
um tal objeto e as regras de possibilidades desses dizeres, um enunciado complexo seria, além de
guardar as mesmas características apontadas por Foucault (2008), um tipo de enunciado marcado por
um nome próprio que, por sua vez, exerce a função de indexar outros discursos dentro de uma
conjuntura institucional.
Há, portanto, uma instância de sujeito-autor, atrelada a um dispositivo de comunicação,
e uma instância de produção de sentidos que é resultado também do funcionamento desse dispositivo
comunicacional, mas que não se limita a uma posição sujeito no discurso, qual seja, a instância do
enunciado-Autor. Enquanto a primeira corresponde a um lugar discursivo atribuído ao sujeito-
comunicante/sujeito-enunciador, a segunda, por sua vez, é uma categoria construída coletivamente
por meio de todo um aparato instituído discursivamente.
O autor, enquanto instância de sujeito produtora de sentidos, inclui uma instância
coprodutora de sentidos, que é a do leitor. Mas o Autor como correlato da Obra não se trata de uma
categoria de sujeito ou de uma posição-sujeito, mas sim produto desse mesmo dispositivo em que há
uma instância que também é chamada “autor”. Trata-se do “Autor” como enunciado, e não como
enunciador. E, o enunciado, em sua historicidade, tem:
640

[...] suas margens povoadas por outros enunciados, mostra-o correlacionado a um campo
adjacente, um campo associativo constituído por uma série de outras formulações e um
conjunto de formulações a que se refere. Face à historicidade própria à existência do
enunciado, a produção de sentidos vincula-se à memória e reatualiza outros enunciados.
(FERNANDES, 2007, p. 53).

Na historicidade do enunciado-Autor, ao enunciar sua obra, o autor-persona


enuncia/projeta também a si mesmo como efeito de sentido de autoria, em um processo de cisão do
sujeito por meio do seu nome e em seu nome. Sua atividade de tomar a palavra não se trata de uma
enunciação corriqueira, efêmera, mas uma enunciação que visa legar para a posteridade uma Obra. O
campo literário estabelece a enunciabilidade da obra, suas condições de produção, o que pode ou não
ser dito, que, por sua configuração, engendra a autorialidade do campo, o que pode ou não ser
passível de ter autoria e um nome de Autor. Assim ocorre a cisão entre uma posição-sujeito-autor e
um nome de Autor como parte da Obra. Não analisar meramente a subjetividade da figura do autor
fez parte do projeto de Foucault (2009) no texto que encabeça nossa discussão:

Deixarei de lado [...] a análise histórico-sociológica do personagem do autor. Como o autor


se individualizou em uma cultura como a nossa, que estatuto lhe foi dado, a partir de que
momento, por exemplo, pôs-se a fazer pesquisas de autenticidade e de atribuição, em que
sistema de valorização o autor foi acolhido, em que momento se começou a contar a vida não
mais dos heróis, mas dos autores, como se instaurou essa categoria fundamental da crítica “o
homem-e-a-obra”, tudo isso certamente mereceria ser analisado. Gostaria no momento de
examinar unicamente a relação do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta para
essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente. (FOUCAULT, 2009, p.
267).

Nesse quadro teórico, o “o-homem-e-a-obra” não se trata do autor, do homem, de um


lado, e do outro, do texto, da obra, mas sim de um amálgama dos dois concomitantemente. Não se
trata da união dos elementos “o sujeito que enuncia” e “a obra enunciada”, mas sim de um elemento
outro, à parte, nem autor/sujeito, nem obra/texto, mas que ainda assim aponta para ambos, para o
portador do nome de Autor e para o produto de sua autoria.
No que tange à produção literária, Bakhtin (1997, p. 403) ressalta que o autor de uma obra
“está presente somente no todo da obra. Não será encontrado em nenhum elemento separado do todo,
e menos ainda no conteúdo da obra, se este estiver isolado do todo”, quer dizer, se esse elemento não
se remeter ao contexto literário. Ressalta a diferença entre a imagem do homem real e a imagem do
autor, que, nas palavras retomadas por Faraco (2005), são o autor-pessoa (o escritor, o artista) e o
autor-criador (a função estético-formal criadora da obra), respectivamente.
Aqui cabe uma observação sobre a leitura de Faraco (2005). A distinção estabelecida por
Bakhtin entre autor-pessoa, autor-criador e herói merece cuidado ao ser interpretada, pois, em
narrativas cujo narrador é também personagem, esse poderia ser o herói, portanto, o autor-criador não
poderia ser tomado pelo narrador. Faraco (2005) parece ignorar isso ao trazer narrador e autor-criador
641

na mesma instância. Estaria Bakhtin se referindo ao narrador ao falar de autor-criador? As frustradas


tentativas de categorizar os tipos de narradores existentes nos romances da narratologia literária
mostram que tomar o autor-criador pela figura do narrador restringiria muito o alcance da teorização
bakhtiniana, pois funcionaria, com ressalvas, apenas com os narradores oniscientes heterodiegéticos
– sendo assim, é preciso cautela ao afirmar, por exemplo, que um narrador machadiano representa a
voz do autor-criador.
O narrador, já mostrou bem a narratologia, é uma instância do texto, intradiegética, ao
passo que o autor-criador é uma instância da obra, estética e ética. Ademais, o excedente de visão a
partir de um mundo axiológico atribuído ao autor-criador só seria possível em uma instância superior
ao mundo ficcional e/ou textual. Em Problemas da poética de Dostoievski fica ainda mais difícil
sustentar a proximidade entre autor-criador e narrador. Certamente, esse tópico mereceria mais
atenção, mas por questões que fogem de nossos objetivos, deixá-lo-emos em suspenso.193
Como uma só substância, o nome de Autor e a Obra não se permitem notar na cisão entre
criador e criatura, pois evocam-se mutuamente. O nome de Autor remete ao mesmo tempo à entidade
produtora e à Obra produzida, pois ele é parte da rede de significados da Obra. Essa ambiguidade
talvez explique ou justifique as abordagens biográficas da figura do autor, e por que ainda se fala
desse nome mesmo após a morte da persona.

O autor ainda reina nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas
entrevistas dos periódicos e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao
seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura
corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas
paixões; a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o
fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovsky é o seu vício:
a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da
alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma
pessoa, o autor, a revelar a sua “confidência”. (BARTHES, 2004, p. 58).

Do ponto de vista da noção de enunciado complexo, a vida do autor seria semiotizada,


tornar-se-ia conteúdo da Obra, enriqueceria o imaginário sobre o nome do Autor, ao custo do que
Barthes (2004) chamou de a morte do autor, o ofuscamento ou apagamento do sujeito na Obra. A
crítica de Barthes (2004) incide diretamente na necessidade dos leitores especializados em definir um
autor para a obra, e definir o autor a partir dela e da sua biografia. Tomando aqui o conceito de
enunciado complexo, o que Barthes (2004) ataca é a dimensão personificada do nome de Autor,
aquela que traz a persona do autor. Mas, ao matar o autor, Barthes (2004) faz restar a dimensão
enunciativa do nome de Autor. A obra, assim, se torna aberta ao leitor, mas também se torna um lugar
de disputas entre os leitores mais autorizados.

193
Para aprofundar essa discussão, remetemos o leitor a um artigo de Jean Peytard (1983), pesquisador que teve grande
influência dos estudos de Bakhtin. Seus textos foram ainda pouco traduzidos para o português.
642

A obra produzida por Michel Foucault abarca toda a produção de Paul-Michel Foucault
sob a égide acadêmica, ou seja, o que o indivíduo fez e publicou como filósofo, intelectual, professor,
acadêmico. Na biografia de Paul-Michel Foucault, consta que ele nasceu em Poitiers, na França, em
uma família de classe média-alta. Também consta que ele teve uma relação tensa com o seu pai, que
esse, por sua vez, o internou aos 22 anos, sob alegação de loucura por causa de uma tentativa de
suicídio. Além disso, registra-se que o pai de Paul-Michel Foucault, bem como seu irmão e avô, era
médico. Vê-se que na biografia de Paul-Michel Foucault há traços da vida e da identidade de outros
indivíduos (como é comum ocorrer nas biografias).
Duas questões emergem sobre a relação biografia e obra para a problemática da autoria:
a primeira é compreender como e quando a biografia de Paul-Michel Foucault passou a ser a biografia
de Michel Foucault. Sem o autor Michel Foucault, talvez a biografia do indivíduo de mesmo nome
não tivesse importância alguma. A segunda questão é compreender como e por que a obra de Michel
Foucault tende a ser lida, ao menos em parte, pela ótica de sua biografia, e por que sua biografia é
detalhada pelo viés de sua obra, como se houvesse o tentame de mútua justificativa. A resposta para
os dois questionamentos parece residir na hipótese de que a função-autor faz sujeitos ordinários se
tornarem sujeitos extraordinários, quer dizer, opera o apagamento do indivíduo e instaura,
gradativamente, um nome próprio em outra ordem do discurso, para abrigar e regular os modos de
ler a biografia (outrora ordinária) e a obra.
No campo literário, os leitores (dentre eles, os leitores especializados), os mediadores
(editores, livreiros, revisores, tradutores...) e autores (incluindo o próprio autor) investem maior ou
menor capital simbólico no nome do Autor. Dizer “Estou lendo Machado e Shakespeare” faz sentido
se considerarmos o Autor como correlato da Obra. O nome de Autor não existe para dizer quem fala
– não importa quem fala, diria Foucault (2008) –, ele não existe para especificar quem é a origem do
enunciado, pois ele mesmo é um enunciado originário dessa mesma fonte. Sua função, enquanto
enunciado, e apesar de se confundir com o enunciador, é especificar a Obra e o sistema que a
engendra.

Se podemos desenvolver hoje uma reflexão sobre a imagem de autor, é porque a encenação
discursiva do escritor não é mais apreendida como um conjunto de atividades que
permanecem no exterior do recinto sagrado do Texto, mas como uma dimensão inteirada ao
mesmo tempo da comunicação literária como coenunciação e do discurso literário como uma
atividade dentro de um determinado espaço social. Encontra-se a um nível de complexidade
superior o princípio mesmo de uma “cena de enunciação” de obras [...]: enunciar em literatura
não é somente configurar um mundo ficcional, é também configurar a cena de fala que é ao
mesmo tempo a condição e o produto dessa fala.194 (MAINGUENEAU, 2009, p. 3, tradução
nossa).

194
Si l’on peut développer aujourd’hui une réflexion sur l’image d’auteur, c’est que la mise en scène discursive de
l’écrivain n’est plus appréhendée comme un ensemble d’activités qui demeureraient à l’extérieur de l’enceinte sacrée du
Texte, mais comme une dimension à part entière à la fois de la communication littéraire comme co-énonciation et du
643

O Autor, como correlato da Obra, deve muito pouco aos autores que, de fato, escreveram
a obra, no sentido laboral do ato. Esse Autor deve o seu nome a todo um sistema, uma conjuntura,
uma cena de enunciação. Sobre a relação existente entre o nome de Autor e o habitus da persona,
Maingueneau (2009) toma como base o campo filosófico, e diz que:

Em particular, a relação entre o “homem” e a “obra” aparece diferente. Evidenciado o fato


de que o discurso filosófico é reticente a respeito do pseudonimato, da mistificação, em suma,
de todos os jogos sobre a autorialidade aos quais se lançam os escritores. Além disso, os
escritores têm vidas muitas vezes caóticas, muitas vezes sem relação óbvia (na verdade, é a
arte de analistas mostrar a coerência oculta) com a sua obra. Nestes dois traços, os autores
filosóficos não se inscrevem: em geral, os seus textos têm um respondente que se refere à sua
persona, e não um pseudônimo, um responsável diante da humanidade, e sua vida não deixa
de tentar cumprir as regras que regem o seu universo de pensamento. 195 (MAINGUENEAU,
2009, p. 5, tradução nossa).

No caso dos autores mortos, fala-se deles como se suas personas ainda regulassem seus
posicionamentos no campo. Mas eles não existem mais nem como agentes civis, nem como agentes
discursivos no campo literário. O que se conserva são os seus nomes, e o nome em si mesmo não é o
sujeito. Apesar disso, o nome de Autor dá ainda ao texto uma fonte personificada, a despeito de a
fonte real ser uma ou várias pessoas, de estar viva ou morta, de ser homem ou mulher, ou de nunca
ter andado pela terra; ao mesmo tempo que permite, a partir dele, traçar suas possibilidades de sentido,
constituir/indexar uma Obra e determinar as leis que regem a sua compreensão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a Literatura como uma instituição discursiva e como um discurso constituinte


(MAINGUENEAU, 2006) implica reconhecer seu próprio conjunto de regras que a distingue dos
outros discursos e que funda, nos seus próprios limites, os critérios, os valores e as hierarquias de
suas produções textuais. Pensar a Literatura como um discurso autorial, por sua vez, implica
reconhecer que ela é uma instituição discursiva que se funda na construção coletiva de autores e obras,
mais especificamente, Autores e Obras, com maiúsculas.

discours littéraire comme activité dans un espace social déterminé. On retrouve à un niveau de complexité supérieur le
principe même d’une « scène d’énonciation » des œuvres […] : énoncer en littérature, ce n’est pas seulement configurer
un monde fictionnel, c’est aussi configurer la scène de parole qui est à la fois la condition et le produit de cette parole.
195
En particulier, la relation entre « l’homme » et « l’œuvre » y apparaît différente. En témoigne le fait que le discours
philosophique est réticent à l’égard de la pseudonymie, de la mystification, bref de tous les jeux sur l’auctorialité auxquels
se livrent les écrivains. En outre, les écrivains ont des existences souvent chaotiques, souvent sans rapport évident (en
fait, c’est tout l’art des analystes de montrer la cohérence cachée) avec leur oeuvre. A ces deux traits les auteurs
philosophiques ne souscrivent pas : en règle générale leurs textes ont un répondant qui renvoie à leur personne, pas un
pseudonyme, un responsable devant l’humanité, et leur vie ne cesse d’essayer de se mettre en conformité avec les règles
qui régissent leur univers de pensée.
644

Quanto mais conhecido se torna o autor, mais seu nome pode vir a ser um enunciado
complexo, pois mais dizeres sobre ele podem ser instituídos, de modo parafrástico e/ou polissêmico.
A paráfrase consiste no reconhecimento, na reprodução ou reformulação dos sentidos atribuídos ao
nome de Autor. A polissemia, por sua vez, se instaura pela atribuição de diferentes sentidos ao nome
de Autor, imprevisíveis. A transgressão sobre o que pode ser dito de um nome de Autor entra no
âmbito da polissemia dos discursos, pois ela não repete o que se diz, mas sim abre a possibilidade do
dizer. A transgressão tende a desestabilizar os limites do dizível, podendo ser negada, silenciada ou
ignorada ativamente no campo, ou ainda, incorporada ao nome, ampliando a sua complexidade, mas
não pacificamente.
Como um enunciado complexo, os significados do nome de Autor estão sujeitos à disputa
no campo correlato da instituição discursiva, de modo que os agentes mais proeminentes tendem a
gerir o que se pode dizer ou não sobre um determinado autor. Se um crítico, teórico, editor, jornalista,
etc., organiza o seu dizer em virtude do que outros agentes gabaritados disseram, ele tem chance de
ser aceito como enunciador desse enunciado complexo, podendo contribuir para a semântica do nome.
O conceito de enunciado complexo visa explicar, por exemplo, por que dois especialistas em
Literatura podem dizer coisas diferentes sobre uma obra e/ou autor, às vezes até antagônicas, e
estarem os dois corretos pela lógica do campo literário.
Devido ao seu caráter sintético, a noção de enunciado complexo concebida para o nome
de Autor poderia ser aplicada aos pressupostos de Bakhtin, Barthes e Foucault, possibilitando novas
interpretações sobre o fenômeno da autoria nesses teóricos. O primeiro leva em conta a totalidade da
obra para apreender o seu autor, sendo essa uma parte significante da obra; Barthes, por sua vez,
considera a morte do autor, enquanto pessoa, para que haja a ascensão do leitor, e, portanto, da obra;
Foucault traz a função-autor, que nada deve à pessoa física que enuncia, mas serve para delimitar o
conjunto da obra no interior de uma dada sociedade. Nos três autores há um elemento proeminente
do nome de Autor como enunciado complexo, a saber, respectivamente, a totalidade da obra, o
direcionamento da leitura, o distanciamento do autor empírico ou persona do autor.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARTHES, R. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 57-64.

CISLARU, G. Le pseudonyme, nom ou discours ? D’Etienne Platon à Oxyhre. In: LECOLLE, M.;
PAVEAU, M.-A.; REBOUL-TOURÉ, S. Les carnets du Cediscor: le nom propre en discours, n.11.
Paris: PSN, 2009, p. 39-57.
645

COSTA, L. P. A. Uma análise do discurso quadrinístico: práticas institucionais e interdiscurso.


2016. 223 f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos). Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais.

FARACO, C A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005, p. 37-60.

FERNANDES, C. A. A noção de enunciado em Foucault e sua atualidade na análise do discurso. In:


FERNANDES, C. A.; SANTOS, J. B. dos. (Orgs.). Percursos da análise do discurso no Brasil. São
Paulo: Claraluz, 2007, p. 49-68.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.

FOUCAULT, M. O que é um autor? In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e


cinema. 2.ed. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009, p. 264-298.

LECOLLE, M. et al. Les sens des noms propres en discours. In : LECOLLE, M.; PAVEAU, M.-A.;
REBOUL-TOURÉ, S. (Orgs.). Le nom propre en discours. Les carnets du Cediscor, 11, 2009.
Paris : PSN, 2009, p. 9-22.

MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.

MAINGUENEAU, D. Auteur et image d’auteur en analyse du discours. Argumentation et Analyse


du Discours [Online], 3, 2009, p. 1-14. Disponível em: <http://aad.revues.org/660>. Acesso em: 01
dez. 2012.

MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. Trad. Adail Sobral [et al.]. São Paulo:
Parábola, 2010.

PEYTARD, J. La place et le statut du ‘lecteur’ dans l’ensemble ‘public’. Semen, n. 1, 1983. Versão online
de 2007. Disponível em: <http://semen.revues.org/4231>. Acesso em: 04 de janeiro de 2012.
646

A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO DO LEITOR NO CONTO TIGRELA, DE LYGIA


FAGUNDES TELLES

Daniele Aparecida Barbosa Zenz196


Veridiana Valeska Ribas197

RESUMO

O conto base para este trabalho é Tigrela, de Lygia Fagundes Telles e o viés analisado por nós será
sob a ótica do fantástico, de forma a comprovarmos a importância da função do leitor no texto, posto
que é através deste que a composição da ambiguidade, enquanto elemento fundamental do gênero,
será comprovada no conto. Para tanto, nos pautaremos, principalmente, nas teorias de Tzvetan
Todorov, Wolfgang Iser, e Umberto Eco, autores que, apesar de possuírem estudos com perspectivas
diferentes, analisaram o papel do leitor de forma corroborativa ao texto narrativo em suas teorias e,
por isso, pareceu-nos interessante refletir acerca de como uma teoria complementa a outra se levarmos
em consideração a composição do gênero fantástico e suas principais características, assim como as
interessantes jogadas de Lygia para inserir o seu leitor no texto.

Palavras-chave: Leitor. Narrativa. Fantástico.

INTRODUÇÃO
Já dizia Todorov: “A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico”.
Segundo ele, esse leitor está inscrito no texto do mesmo modo que a criação dos personagens e ele é
tão implícito quanto a sua própria ideia sobre o narrador. Analisando por esse viés, nos ocorre outro
teórico que também debate questões que implicam num ideal de leitor e autor do texto. Certamente
que estamos falando de Umberto Eco, de modo que desenvolver um paralelo acerca das duas teorias
nos pareceu possível. E semelhante à teoria de Eco, encontramos o leitor implícito de Iser, que
segundo o próprio autor italiano, assemelha-se à sua em partes, a ponto de considerarmos interessante
agregar mais essa visão no desenvolvimento de nossa análise.
Entretanto, ao contrário dos dois teóricos da recepção citados acima, Todorov é mais
específico ao tratar sobre o leitor, posto que este o relaciona diretamente a um gênero literário, o que
nos remete imediatamente a outras teorias sobre o gênero. Por isso, nos pareceu mais eficaz
demonstrar esses aspectos diretamente dentro do texto fantástico e o conto escolhido para tanto foi
Tigrela, do livro de contos Mistérios (1981), de Lygia Fagundes Telles.
Portanto, neste trabalho iremos abordar a importância da presença do leitor no texto
narrativo, comprovando-a, principalmente, de acordo com as teorias de Wolfgang Iser, em A

196
Mestranda em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Email: danielezenz@gmail.com.
197
Mestranda em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Email: veridiana_ribas@hotmail.com.
647

interação do texto com o leitor; de Umberto Eco, em sua obra Seis passos pelo bosque da ficção
(1994); e de Tzvetan Todorov, em seu trabalho Introdução à literatura fantástica (2010).
Cada um desses autores apresenta certas particularidades de pensamento referente à sua
teoria. Contudo, o que há de similar entre elas tão bem se complementa, ao ponto de nos indicar que
o que está implícito no texto corrobora não só para sua interpretação, como também para a sua criação
enquanto gênero de obra literária.

O FANTÁSTICO
A literatura fantástica tem algo bastante próprio ao gênero que é a ambiguidade em suas
entrelinhas narrativas. O seu estudo em si é bastante controverso entre estudiosos, inclusive, muitos
discordam da ideia de se tratar de um gênero, mas o que quase todos concordam em uníssono é sobre
o papel da ambiguidade na interpretação do texto.
Todorov foi um dos primeiros a sistematizar a literatura fantástica como gênero, por isso
nos pareceu de suma relevância colocar aqui algumas considerações do autor sobre a questão do leitor
no texto e como este acaba interferindo na contextualização da ambiguidade.
Para Todorov, o fantástico acontece quando um quadro de mistério interfere de forma
abrupta no ambiente de normalidade:

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso,
aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento
que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar
por uma destas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da
imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta
realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 1975, p. 30).

Ao sugerir que há duas soluções possíveis, Todorov remete a característica da


ambiguidade que ele apresenta sob a forma de “hesitação” ou “dúvida”: “O fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (Idem, p. 31).
O próprio autor levanta a questão: a quem cabe duvidar? Seria um personagem? Ou o
leitor? A princípio ele afirma: “O fantástico [...] define-se pela percepção ambígua que tem o próprio
leitor dos acontecimentos narrados.” (Idem, p. 37). Em seguida ele completa: “A hesitação do leitor
é pois a primeira condição do fantástico. Mas será necessário que o leitor se identifique com uma
personagem particular [...], ou seja que a hesitação seja representada no interior da obra?” (Ibdem,
itálicos do autor). E ele mesmo reponde:
648

A maior parte das obras que preenchem a primeira condição satisfazem igualmente a
segunda; existem todavia exceções. [...] Diremos quesetrata, com esta regra de identificação,
de uma condição facultativa do fantástico: este pode existir sem satisfazê-la mas a maior
parte das obras fantásticas submete-se a ela. (TODOROV, 1975, p. 37).

Essas são duas das três condições que Todorov propõe para conceituar o gênero
fantástico. A terceira é que “o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a
interpretação alegórica quanto a interpretação ‘poética’.” (Idem, p. 39). A interpretação poética,
basicamente, seria considerar o caráter metafórico do discurso poético, o uso da linguagem figurada,
que não permite, portanto, uma interpretação literal, realista do texto; e a interpretação alegórica é a
que considera os dois planos dessa modalidade: o metafórico expresso e o real que ela, ponto a ponto,
representa. (Todorov, 1975; cf. Cap. 4. A poesia e a alegoria, p. 65-81).
Dessas três condições, Todorov (p. 39) afirma que só a primeira: o leitor “hesitar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.”, e esta terceira
são absolutamente necessárias para ocorrer o gênero fantástico; a segunda (identificação do leitor
com uma personagem, a hesitação representada dentro da obra) seria eventual, não obrigatória,
embora a maior parte das narrativas fantásticas preencham as três condições.
Para concluir esse ponto, é válido acrescentarmos que a hesitação é vista mais claramente
quando o narrador está em primeira pessoa, pois: “O leitor não suspeita nunca do narrador,
esquecendo que este também é um personagem”. (Todorov, 1975, p. 91).
Outro aspecto que vamos pontuar, entretanto, é que a teoria de Todorov obteve certa
discordância entre estudiosos do meio. Entre eles, por exemplo, está Remo Ceserani que acusou a
teoria de Todorov de ser abstrata demais. Ainda assim, reconheceu a sua importância em “conseguir
manter ainda hoje uma notável utilidade hermenêutica”. (CESERANI, 2006, p. 48).
Outro autor que também faz considerações acerca da tese de Todorov, é Filipe Furtado
em seu livro A construção do fantástico na narrativa. Embora enalteça alguns aspectos positivos e
reconheça que com ela “a crítica do gênero [fantástico] atinge de certo modo a maioridade”.
(FURTADO, 1980, p. 14). Ele considera discutível o que se refere, principalmente, a hesitação do
leitor. Segundo Furtado, a ambiguidade e a hesitação são representadas no interior do próprio texto e
seriam as dúvidas do leitor um “mero reflexo”.

Assim, um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade,
a mantém ao longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a reflectir-se em
todos os planos do discurso [...]. Longe de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do
destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo dele, constituindo apenas
mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras
evocados”. (FURTADO, 1980, p. 40-41).
649

No entanto, não nos atribuiremos à função de analisarmos essa controvérsia, posto que,
ainda sim, entendemos que a hesitação do leitor, justamente por ser um “reflexo” da interação deste
com o texto, cumpre, portanto, com seu papel junto à ambiguidade tão característica ao gênero.
Para todo texto existe um leitor. Não seria diferente com “Tigrela”, de Lygia Fagundes
Telles, que é um dos seus contos considerados pertencentes ao gênero fantástico pela grande crítica.
E, independentemente de alguns aspectos concernentes ao gênero, assim como em qualquer texto
narrativo, iremos verificar nele a presença de um leitor específico, que se enquadra à visão de Todorov
e que chamaremos de leitor implícito, considerando o termo criado por Iser e, por conseguinte, de
leitor-modelo, considerado por Umberto Eco.

O LEITOR

Segundo Umberto Eco, especificamente no primeiro capítulo de seu livro Seis passos
pelo bosque da ficção, o leitor faz escolhas.
Isso quer dizer que, de acordo com a perspectiva do autor - em que ele faz o seguinte
comparativo: a obra seria um bosque e o leitor é quem deve percorrê-lo -, seriam as bifurcações desse
bosque as interpretações possíveis para esse leitor. Para tanto, está claro que cabe ao leitor escolher
o caminho, porém não pode este fugir ao seu destino.
Essa metáfora usada por Eco é, na verdade, inspirada por Jorge Luis Borges que a usou
pela primeira vez em uma de suas conferências literárias. Em sua obra, que estamos tratando aqui,
Eco explica por que se apropriou do termo: “um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam.
Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria
trilha[...], optando por esta ou aquela direção.” (ECO, p.12, 1994).
O leitor que fugir do bosque não faz parte da narrativa criada pelo autor, pois a
possibilidade de não seguir é dada somente ao leitor empírico, aquele que está à parte do texto: “[...]
Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler”
(ECO, 1994, p. 14). Esse leitor possui concepções de realidade e de valores próprias e pode, por
exemplo, não estar apto para desvincular questões de cunho pessoal da obra ficcional, pois mais
adiante Eco completa: “[...] considerando que um bosque é criado para todos, não posso procurar nele
fatos e sentimentos que só a mim dizem respeito. De outra forma [...] não estou interpretando um
texto, e sim usando-o”. (Idem, p. 16). Por outro lado, o leitor que escolhe por onde seguir até o final
da obra, vai fazê-lo seguindo as regras da narrativa. Esse leitor específico, vai atender ao que Eco
chama de “pacto ficcional”, ou seja, o leitor deve ser capaz de perceber a narrativa como possível de
acordo com a realidade ficcional que ela apresenta e não somente baseado no mundo pessoal de suas
vivências.
650

A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar
tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor
tem de saber que o que se está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso
deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor
simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é
narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, p. 81)

E esse leitor que atende às expectativas do autor, segue um padrão e é chamado de leitor-
modelo por Umberto Eco:

No amplo leque de obras sobre a teoria da narrativa, sobre a estética da recepção e sobre a
crítica orientada para o leitor existem várias entidades chamadas Leitores Ideais, Leitores
Implícitos, Leitores Virtuais, Metaleitores, e assim por diante [...]. Nem sempre esses termos
são sinônimos. Meu leitor-modelo, por exemplo, parece-se muito com o Leitor Implícito de
Wolfgang Iser [...]. (Idem, 1994, p. 22).

Eco levanta a questão, lembrando que existem diferentes percepções acerca da ideia
de leitor para alguns outros estudiosos que se atêm à estética da recepção, no entanto, admite que seu
leitor-modelo se aproxima muito com o leitor implícito de Iser. Este último não tem uma definição
idêntica à de Eco que, inclusive, pontua isso, mas é interessante observarmos a seguinte colocação de
Iser: “o leitor efetivamente faz o texto revelar sua multiplicidade potencial de associações[...]. (Apud
ECO, 1994, p. 22). Ao considerarmos essa frase, de acordo com nosso parecer, é possível dizer que,
assim como Todorov, Iser acredita, portanto, na interação do leitor com o texto através da leitura.
Entretanto, obviamente, são teorias diferentes que podem se complementar ao
verificarmos a importância da comunicação entre o leitor e o texto. Ou seja, de acordo com Iser, em
seu trabalho A interação do texto com o leitor, o texto literário não é uma obra plena, mas que possui,
sim, lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor, embora isso não valide toda e qualquer
interpretação. Embora, sejam difíceis de enumerar, o texto ficcional possui diretrizes às quais o leitor
implícito deve atender e, portanto, existem sugestões que movem os vazios do texto. Esses vazios,
para Iser, são as “instâncias do controle”, e através delas há a “conexão potencial”:

O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do
sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios
(Leerstellen) no texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor. Como eles não
podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o podem ser por meio de outro sistema.
Quando isso sucede, se inicia a atividade da constituição, pela qual tais vazios funcionam
como um comutador central da interação do texto com o leitor. (ISER, 2002, p. 91)

E mais para a frente, o autor completa:


651

Os vazios derivam na inderterminação do texto[...] Em vez de uma necessidade de


preenchimento, ele mostra a necessidade de uma combinação[...] Esta operação exigida do
leitor, encontra nos vazios o instrumento decisivo. Eles indicam os segmentos do texto a
serem conectados. (Idem, 2002, p. 106)

De acordo com esse pensamento, Iser postula que os vazios são “negações” que
invocam conhecimentos determinados para sua supressão, culminando na interação de envolvimento
e movimentação do leitor no texto.
Nesse contexto, o leitor implícito é compreendido como algo estrutural ao texto e que
oferece “pistas” que direcionam para a interpretação coerente. E esse leitor só existe na proporção em
que o texto determina sua existência.
Por isso, a ideia do leitor implícito se assemelha com a ideia do leitor-modelo de Eco, que
seria aquele que sabe preencher os “vazios” do texto.
Ainda que Todorov não tenha tratado, especificamente, sobre certos requisitos da
recepção do texto, pudemos traçar um paralelo, entre sua teoria e as de Eco e Iser, em relação à
importância da função do leitor no gênero fantástico, se observado o que o primeiro coloca acerca da
“hesitação do leitor”.
Como já falamos anteriormente, mesmo não sendo nossa intenção nos aprofundarmos na
definição de cada um desses autores, através delas é possível reconhecermos no conto a importância
do papel do leitor.

TIGRELA

Esse conto é a história de uma mulher que vive com seu felino. Um dia ela encontra
casualmente com uma velha conhecida num bar e resolve colocar algumas novidades em dia.
Estranhamente, essa situação, que poderia ser reconhecida como normal, inicia-se de maneira
bastante curiosa. Romana tem um felino, mas que não é um bichano qualquer, ela tem um tigre:
Tigrela.
Antes de dar continuidade ao resumo da narrativa, é importante ressaltarmos que a
narração desse conto é feita em primeira pessoa e, no entanto, não é a narradora quem nos apresenta
a história, mas sim a personagem Romana. Pouco se sabe da narradora, ela fica oculta no texto e há
trechos que se dividem entre falas dela e as de Romana como se fosse esta última quem de fato
narrasse o conto diretamente. Segundo a pesquisadora Juliana Seixas Ribeiro em sua dissertação de
mestrado Mistérios de Lygia Fagundes Telles: uma leitura sob a ótica do fantástico, esse recurso
usado por Lygia serve para dar mais veracidade aos fatos:

É interessante a técnica utilizada por Lygia Fagundes Telles, em que ocorre uma mescla entre
as falas da narradora e a reprodução das falas da personagem Romana[...]. Este recurso
652

fornece a ilusão de que o conto não é uma história recontada, na tentativa de tornar a
veracidade dos acontecimentos menos parcial. (RIBEIRO, 2008, p. 56)

No início é mais presente a fala da narradora que reconhece a figura de Romana num bar
e se lembra que esta fora uma mulher muito bonita, mas que após tantas desilusões amorosas tem um
olhar triste. Romana, que já se separou de seu quinto marido, vai contando tudo com naturalidade,
embora, pareça estar levemente alcoolizada: “Estava meio bêbada mas lá no fundo da sua transparente
bebedeira senti um depósito espesso subindo rápido quando ficava séria.” (TELLES, 1981, p. 95).
Segundo o que contava, também o tigre bebia uísque e até sabia reconhecer se a bebida fosse
falsificada. Era como se a personalidade das duas se misturasse, Tigrela aprendera coisas com
Romana e vice-versa: “No começo me imitava tanto, era divertido, comecei também a imitá-la e
acabamos nos embrulhando de tal jeito” [...] (Idem, p. 95). Romana diz que Tigrela estava quase
sempre lúcida e quando não estava gostava de dançar tango. Ficava deprimida nesses momentos: “No
fim, quis se atirar do parapeito do terraço, que nem gente, igual, igual” [...] (Idem, p.96).
No decorrer das confidências, vai ficando cada vez mais evidente o fato de que a tigresa
apresentava comportamentos humanos. Além do já citado, Tigrela gostava de ouvir Bach, era vaidosa,
olhava-se constantemente no espelho, gostava de jóias, inclusive, usava um colar de âmbar e cortava
as unhas. Porém, o sentimento mais humano que a tomou foi o ciúme. De acordo com Romana, a
tigresa nem sequer aceitou sua empregada anterior porque esta era jovem, detestava que a dona saísse
à noite e controlava seus passos e ligações. Devido a isso, a relação das duas parece estar desgastada.
Justamente nesse dia, Tigrela ouvira a dona ao telefone com seu antigo namorado, aquele, inclusive,
que foi quem a deu como presente a Romana. Devido a isso as duas brigaram e a dona comenta sobre
ter deixado a vasilha da felina cheia de uísque antes de sair.
Ao se aproximar da meia-noite Romana parece cada vez mais perturbada. Segundo ela,
Tigrela gosta da noite, costuma acordar por volta das onze e nesse dia, como já aconteceu em outros,
ela deixou a porta do terraço aberta: “Volto tremendo para o apartamento porque nunca sei se o
porteiro vem ou não me avisar que de algum terraço se atirou uma jovem nua, com colar de âmbar
enrolado no pescoço”. (Idem, p. 99).
A ambiguidade no conto Tigrela é bastante presente na narrativa. Desde o início do texto,
Lygia já faz o interessante uso de algumas artimanhas para envolver seu leitor. Mas não é a qualquer
leitor e, sim, ao leitor implícito ao texto, aquele que serve como modelo para o gênero da narrativa
em questão: o fantástico.
Se para a construção do fantástico é sabido que se faz necessário um contexto de aparente
normalidade, podemos afirmar que o conto preenche esse requisito. A ambiguidade, por sua vez, vai
sendo inserida a partir do momento que o sobrenatural vai tomando conta do texto: é possível que um
653

tigre tenha esse nível de comportamento humano ou estaria o tigre passando por um processo de
metamorfose? Em algum momento a própria narradora questiona: “[...] é verdade, Romana? Tudo
isso”. (TELLES, 1981, p. 97) Ao que a personagem não responde, estando aparentemente distraída
com lembranças.
Sobre isso, a pesquisadora Jeanine Javarez, em seu trabalho O animal que me tornei
(2018), faz a interessante colocação:

A ambigudade que perpassa[...] deixa a metamorfose no âmbito discursivo a ser completada


no processo de leitura.O leitor se deparará com dois caminhos no bosque e terá de optar por
um deles. Ou pelos dois se for um leitor mais ousado, pois o narrador jamais dará certeza
alguma sobre o que aconteceu. (JAVAREZ, 2018, p. 31)

Simplificando aos nossos termos, o que os estudiosos do gênero e principalmente


Todorov definem acerca daquele, o fantástico surge da tensão entre o real empírico e o sobrenatural.
Essa tensão levaria à hesitação do leitor, contudo, não é a qualquer leitor simplesmente e, sim, a uma
espécie de leitor-modelo defendido por Umberto Eco. Pois, partindo dos conceitos reais
contemporâneos, o leitor empírico pode não compartilhar da ordem estabelecida no texto diante da
possibilidade do sobrenatural e, portanto, o leitor predisposto a essa leitura seria o leitor-modelo,
aquele que possui sua função já pré-estabelecida pelo autor do texto. De modo que o leitor que não
hesitar mediante a dúvida não estará colaborando para existência do fantástico. Caberá a este acreditar
ou não no que lê e é isso que determinará sua função no texto.
Por exemplo, em Tigrela, uma das explicações poderia ser a de que o animal teria se
transformado em humano ou na verdade tudo não passaria de uma metáfora criada pela personagem
Romana para simbolizar o amor homossexual que vive com uma moça? Inclusive, a pesquisadora
Juliana Seixas Ribeiro em sua dissertação já citada, faz a interessante observação de que a composição
do nome Tigrela é igual a junção dos termos tigre mais ela, indicando seu lado animal e sua aparente
humanização. (RIBEIRO, 2008, p. 56-57)
Diante dessa ambiguidade, o leitor terá que assumir sua posição, buscando pistas que a
narrativa possa oferecer, ao que nos remete, justamente, ao conceito de Iser acerca da interação entre
o leitor e o texto. Ainda assim, o próprio Iser pontua: “O leitor contudo nunca retirará do texto a
certeza explícita de que sua compreensão é a justa”. (ISER, 2002, p. 87)
Ao fazer uso aparente do que parece ser um anagrama, Telles está explorando mais uma
artimanha para composição de seu jogo entre a representação realista e o fantástico em suas narrativas.
Inclusive, Javarez em sua pesquisa já citada anteriormente, coloca:

Nesse sentido, as narrativas de Lygia Telles podem ser compreendidas como fantásticas,
seguindo a noção de literatura fantástica de Tzevetan Todorov[...], na medida em que há nelas
654

um pêndulo que hora aponta para o estranho, ora para o maravilhoso. A animalidade, nos
contos destacados, manifesta-se a partir da movimentação desse pêndulo[...] (JAVAREZ,
2018, p. 31)

No caso desse conto, o pêndulo aponta para a metamorfose, aspecto que Todorov não
deixou de mencionar em sua obra, ao citar As mil e uma noites para elucidar a presença recorrente da
metamorfose na literatura enquanto aspecto de composição da fantasia. Para ele, o fenômeno em
questão é a ruptura do limite entre matéria e espírito.
Javarez, por sua vez, faz uso em sua pesquisa de uma citação da estudiosa Vera Tietzmann
Silva a respeito da metamorfose nos contos de Telles:

[...] a transformação faz-se subitamente, colhendo personagem e leitor de surpresa, deixando


a ambos perplexos, incapazes de se dedicarem quer por uma interpretação racional quer por
uma interpretação sobrenatural dos eventos. Essa vacilação compartilhada por leitor e
personagem caracteriza as narrativas fantásticas.” (1985, p. 53, apud JAVAREZ, 2017, p.
28)

Para Silva, ainda de acordo com citações de Javarez, a presença do agente que promove
a transformação deve ser evidenciada no texto, pois do contrário remeteria ao gênero do absurdo. O
fantástico, entretanto, adverte o agente, deixando-o apenas suspenso para que o mistério corrobore
para a criação do fantástico.
Ribeiro justifica em seu trabalho, que temas comuns à literatura de Lygia, como medo,
angústia e terror, acabam se refletindo através dos sentimentos causados, justamente, devido a
aspectos da metamorfose.
Por fim, devemos ressaltar que em Tigrela é bastante marcante no texto características da
escrita da autora que é sempre tão alusiva e insinuante, rica no uso de símbolos e plurissignificações
poéticas. Lygia Fagundes Telles “é uma escritora que sugere e dá ao leitor a oportunidade (ou
desafio?) de decifrar o que deixa apenas subententido, insinuado, em aberto, apontando para distintas
direções...” 198

REFERÊNCIAS

CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora da


UTFPR;Londrina: Editora da UEL, 2006

ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção.Tradução de Hildegard Feish. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994. (A edição original é de 1932)

198
Aproveitamos esse trecho retirado do nosso ensaio “A construção do fantástico no conto ‘As formigas’, de Lygia
Fagundes Telles”, apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, apresentado na Universidade Estadual
de Ponta Grossa – UEPG. Ponta Grossa, PR. Outubro de 2014.
655

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.

ISER, W. In: LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. Ed.
São Paulo: Paz e terra, 2002.

JAVAREZ, Jeanine Geraldo. O animal que me tornei. 1.Ed. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2018.

RIBEIRO, Juliana Seixas. Mistérios de Lygia Fagundes Telles: uma leitura sob a óptica do
fantástico, 2008, 120 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira do Programa de Pós-
Graduação em Teoria e História Literária). Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
Instituto de Estudos de Linguagem. Campinas, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtlsooo439373. Acesso em:3 mar. 2014.

RIBAS, Veridiana, Valeska. A construção do fantástico no conto ‘As formigas’, de Lygia


FagundesTelles. Ensaio apresentado como Trabalho de conclusão de curso-TCC, na condição de
requisito parcial para a obtenção do título de Licenciada no Curso de Letras, Habilitação Português-
Espanhol, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, Ponta Grossa, PR. Outubro 2014.

TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. 1. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Corea Castello.
São Paulo: Perspectiva, 1975. (A edição original francesa é de 1970)
656

A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DO GÊNERO EPOPEIA NA ESCOLA

Jackeline Rebouças Oliveira (UFRN-PPgEL)199

Maria da Penha Casado Alves (UFRN-GEBAK)200

RESUMO

A epopeia é um dos gêneros mais antigos da literatura e sua importância está em narrar os feitos
heroicos das civilizações antigas e se perpetuar em um período em que não havia escrita. Hoje, a
leitura desse gênero está praticamente desaparecida do universo escolar. Isso é decorrente de uma
série de fatores que vão desde a má formação do futuro professor à falta de hábito com a leitura
literária. Infelizmente, o que se observa nos cursos de letras é uma lacuna entre a teoria e prática, pois
é comum o docente não conciliar o ensino de literatura com a prática de sala aula, já que o universo
acadêmico elege apenas a leitura de livros canônicos, excluindo as demais leituras. Além disso, nos
cursos de graduação há uma divisão muitas vezes por aptidão ou gosto, há os que se identificam mais
com a literatura, em contraposição àqueles que privilegiam a linguística, reconhecendo-se
exclusivamente como professor de língua. Seja por uma não identificação com a literatura ou por
lacunas entre teoria e prática, alguns professores ao assumir a sala de aula ficam presos aos livros
didáticos, às fichas de leituras dos livros paradidáticos, aos fragmentos de textos; ou, para tentar
cativar o aluno, lançam mão dos livros indicados pelo mercado. Soma-se a isso, no ensino médio, as
obras serem selecionadas em função dos exames que os alunos vão prestar. Como consequência de
todos os problemas apresentados, a leitura da epopeia tem perdido espaço para outros gêneros. Diante
de tais problemas, o nosso estudo pretende mostrar sugestões de atividades e de leitura comparativa
que levem os alunos a ler o gênero epopeia. Acreditamos que a partir de leituras de HQs há uma
possibilidade de o aluno vir a tomar gosto pela leitura da epopeia. Apesar de serem gêneros diferentes,
narram histórias de heróis, mitos, deuses, permitindo ao professor trabalhar sobre a figura do herói e
super-heróis, mitos, em seus aspectos estruturais.

Palavras chave: HQs; Clássicos; Sala de aula; Gênero épico.

INTRODUÇÃO

O primeiro tipo de literatura narrativa foi à poesia épica cujos feitos de um povo eram
narrados por meio da oralidade. Era um gênero métrico feito para ser recitado. Tais poemas têm uma
grande importância por fazer com que os leitores tomem conhecimento da cultura e costumes da
cultura dos povos da antiguidade. Para Lukács (2009, p.67) “O herói da epopeia nunca é a rigor, um
indivíduo. Desde sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu objeto não é o destino
pessoal, mas o de uma comunidade”. A Odisseia, por exemplo, é um romance folclórico que narra as
lendas e tradições de um povo de navegadores. A importância está em enaltecer os feitos heroicos

199
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em estudos da Linguagem (UFRN-PPgEL)
reboucasoliveira@yahoo.com.br
200
Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora do Mestrado Profissional em Letras-
ProfLetras penhalves@mns.com
657

coletivos da civilização da Grécia antiga e de possuir uma riqueza mítica extraordinária. Circe,
Calipso, as sereias, Polifemo, entre outros mitos, pertencem ao patrimônio cultural dos povos da
Grécia antiga. Apesar de ser um romance antigo, ele ainda permanece bem atual se levarmos em conta
que essas histórias se perpetuaram em um período que ainda não havia escrita.
Soma-se a isso, que as epopeias Gregas e Romanas influenciaram a escrita de outras
epopeias, assim como outros gêneros. Hoje, infelizmente, esse gênero está praticamente esquecido
no universo escolar, já que grande parte dos professores prefere trabalhar com textos mais curtos
como os contos. Geralmente, para fazer o discente ter acesso ao gênero épico, o professor lança mão
do livro didático, ficando restrito a fragmentos que servem para interpretação do texto. Diante de tais
problemas, o nosso estudo pretende mostrar a importância de estimular a leitura do gênero épico na
escola, apontando que apenas o livro didático não contempla o ensino da epopeia, pois esse gênero
possui uma riqueza extraordinária que o aluno só pode ter acesso por meio da leitura da obra.
Entendendo a importância desses poemas, o nosso objetivo é, por meio da prática
comparatista, montar sugestões de leitura e atividade para trabalhar com a epopeia. Acreditamos que
a partir de leituras de HQ como o Thor - o renascer dos Deuses, há possibilidade de o aluno entrar
no universo da leitura de clássicos antigos, já que os dois gêneros retratam de forma diferente histórias
de heróis, mitos, deuses e lendas, permitindo um trabalho didático com as façanhas do herói nos dois
gêneros, fazendo um estudo comparativo sobre a figura do herói, super-heróis e intertextualidade.
Com essa proposta, o professor respeitará o universo de leituras do aluno e acrescentará os textos
clássicos, de tal forma que sua leitura se mostre imprescindível para a formação do aluno.

A APROPRIAÇÃO DO SABER POR MEIO DA LITERATURA

Desde a antiguidade, a literatura desfrutou de grande destaque. Na Grécia antiga, a


literatura passava os costumes e os feitos heroicos da cultura helênica por meio das leituras das
epopeias e das peças trágicas e cômicas. Como diz Consson, “as tragédias gregas tinham o princípio
básico de educar moral e socialmente o povo. Daí a subvenção dos dramaturgos pelo estado e a
importância do teatro entre os gregos” (CONSSON, 2014, p. 20). No século XVIII, a literatura voltou
seu foco para as belas letras, deixando de lado o escritor, concentrou-se apenas na perfeição da escrita,
o princípio de tudo era o saber. A importância da literatura estava na estrutura do texto, e as aulas
tinham como prioridade a história da literatura tendo como centro as regras e as técnicas. “Regras e
técnicas indicavam os meios de produzir efeitos expressivos e específicos. Regras de gosto permitiam
julgar quais efeitos deviam ou não deviam se produzidos” (RANCIERE, 1995, p.25).
Apenas no século XIX, a literatura passa do saber e passa a incidir sobre quem escreve.
Seja como função moralizante como aconteceu na Grécia antiga ou tendo como princípio básico o
658

saber voltado para a perfeição da escrita, a literatura por muito tempo gozou de grande destaque,
servindo, principalmente, a elite humanista. Somente com a modernidade, e com os processos
midiáticos, foi que a literatura começou a perder espaço na sociedade e na escola.
Por isso, a importância de começar a pensar em meios para que ela volte a ter o mesmo
valor de antes. Até porque nenhuma outra forma de escrita detém tantos saberes sobre os homens e
sobre o mundo como a literária. Tanto que Candido (1995, p.180) destaca que a literatura desenvolve
em nós a quota de humanidade na mediada em que nos tornamos mais compreensivos. Isso é
decorrente de a literatura com sua forma peculiar de escrita nos convidar para adentrar em outras
culturas e vivenciar os problemas, proporcionando novas experiências, por isso, que todos devem ter
acesso a literatura. Barthes nos ensina que a literatura assume muitos saberes:

Num romance de Robson Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial),


técnico, botânico, antropológico (Robson passa da natureza a cultura). Se, por não sei que
excesso do socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do
ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário. (BARTHES, 1977, p.18)

Sendo portadora dessa qualidade, o professor deve empreender esforços para que o
discente se aproprie dos gêneros literários clássicos, tanto os antigos, como os modernos.
Infelizmente, desde a universidade, não se propõe uma relação entre a teoria literária e prática de sala
de aula. Como consequência, muitos professores não se identificam com literatura, optando pelos
caminhos da linguística, abandonando o próprio percussor de leitores de literatura. Essa postura faz
com que alguns professores, ao assumir a sala de aula, lancem mão dos manuais didáticos, fichas de
livros para didáticos ou usem os documentos oficiais como se fossem receitas a serem seguidas.
Para efetuar o letramento literário, o professor deve trabalhar, primeiramente, com
gêneros do mundo do aluno para, em seguida, abordar os gênero literários clássicos, pois todo gênero
cumpre uma função comunicativa, e é dever da escolar trabalhar com gêneros diversificados. Além
disso, para formar um bom leitor de literatura, o aluno tem que ter acesso a textos variados para
aprofundar o conhecimento, pensar de forma crítica e entender que todo gênero tem seu valor,
objetivo, estrutura específica e quanto mais gêneros forem lidos mais competentes para leitura e
escrita serão. Sobre isso, Antunes dá o seguinte esclarecimento:

A atividade de leitura favorece, num primeiro plano, a ampliação dos repertórios de


informação do leitor: Na verdade, por ela, o leitor pode incorporar novas ideias, novos
conceitos, novos dados, novas e diferentes informações acerca das coisas, das pessoas, dos
acontecimentos, do mundo em geral. (ANTUNES, 2003, p. 70)
659

Antunes deixa clara a importância da atividade de leitura, pois através das leituras de
gêneros diferentes, o aluno pode ter acesso a informações e ao mundo tornando-se competente. A
leitura de gêneros diferentes proporciona informações novas, conhecimento de mundo e o aluno
torna-se capacitado para identificar os intertextos e a estrutura de cada gênero. Diante dessas
informações, podemos dizer que é impossível formar um leitor de literatura clássica sem munir o
aluno de leituras prévias.
O texto clássico requer do leitor um leque de leituras mais amplo. O gênero épico, por
exemplo, é um texto que narra os costumes de um povo antigo agregando várias lendas e mitos. Por
isso, a importância de o aluno ter outras leituras para poder entender esse gênero. Hoje, muitos cursos
de letras já têm uma disciplina específica que aborda o ensino de literatura e ensino. Mas, o número
de pesquisas ainda continua muito restrito ao mundo da literatura acadêmica com pesquisas voltadas
para obras literárias sem abordar problemas do ensino de literatura ou mostrar solução para o ensino
do texto literário.
Desse modo, por falta de uma formação mais sólida, alguns professores se sentem mais
confortáveis em selecionar textos mais fáceis e gêneros do cotidiano para trabalhar com a turma.
Além disso, fazer com que o aluno tome gosto por textos clássicos não é uma tarefa muito fácil. Há
muita resistência por parte do próprio aluno. Essa postura é decorrente de o texto clássico exigir uma
maior reflexão e mais tempo para leitura. No entanto, é necessário o professor achar meios para fazer
com que o educando tenha acesso aos textos clássicos sejam eles antigos ou modernos, pois são obras
que têm o valor incomparável de um patrimônio da humanidade que sobreviveu ao tempo:

[..] a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos
dentro os quais( ou relação ao qual) você possa reconhecer os seus clássicos. A escola é
obrigada a da-lhe instrumentos para efetuar uma opção. Mas as escolhas, que contam são
aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. É só na leitura desinteressada que pode
acontecer deparasse com aquela que torna o seu livro (CALVINO, 1993, p. 13)

Cabe à escola fazer com que o aluno tenha acesso aos textos clássicos na íntegra, para
que eles possam ter certo repertório de leitura e passem pensar criticamente e futuramente possam
fazer as suas escolhas. Assim, são necessárias atividades que façam com que os alunos troquem
impressões sobre os textos, pois cada pessoa ao entrar em contato com o texto tem diferentes visões.
E é a partir dessas leituras compartilhadas que o aluno constrói seu saber e começa a fazer reflexões,
desenvolve a escrita e melhora o posicionamento diante de qualquer gênero.
Seguindo este pensamento, as orientações curriculares (2006, p.56) chamam atenção para
dois tipos de professores: o que só trabalha como obras canônicas e o que utiliza todo tipo de texto.
Nessa forma libertária de lançar mão de todos os gêneros literários, sem levar em consideração o
660

valor que o clássico universal possui, já fica subentendido que o aluno não tem capacidade de ler
textos clássicos ou de outro porte. Como consequência dessa postura, o educando deixa de se
apropriar de fato da literatura.
Há professores que só trabalham com cultura popular, como há também os que só
ensinam história da literatura, recusando-se a utilizar o texto na íntegra, recorrendo apenas aos
fragmentos dos livros didáticos que servem de apoio para mostrar as escolas literárias. Ao tomar
qualquer uma dessas posições, o educador está privando o educando de conhecer os textos clássicos.

Eleito o tipo preferencial de leitura na escola, a literatura assume uma significação que se
confunde, muitas vezes, com um modelo de transmissão de valores de natureza autoritárias
e normativa. E, empregada por confirmar atributos que lhe são essencialmente designados,
ela desenha um espaço para pertence-lhe com exclusividade, portanto não pode ser
preenchida por nenhuma outra modalidade de texto, nem material suplementar de leitura
(ZILBERMAN, 1988, p.116-117).

Tanto a escola como o professor têm que entender que o texto literário não deve servir
como material de apoio para ensinar gramática, interpretação de texto, história da literatura e nem ser
substituído por outros gêneros ou material com resumo e análise da obra.

O gênero épico no livro didático

Partindo do princípio que a maioria dos professores segue o livro didático, observamos
que no livro de Leila Luar e Douglas Tufano, o gênero épico é abordado ainda de forma tradicional,
utilizando fragmentos do texto para fazer perguntas de interpretação de texto de forma superficial, o
que resulta em bastantes prejuízos para o aluno, visto que, estes alunos ficam sem conhecer de fato o
gênero épico.
No primeiro trecho abaixo, que foi retirado do livro didático de Leila Luar e Douglas
Tufano, a primeira pergunta serve apenas para localizar o narrador da história, já a segunda pergunta
está centrada na busca pelo ponto fraco do herói (Ulisses).
661

Para que entendam as façanhas de um herói como Ulisses, primeiramente, os leitores têm
que ser munidos de leituras prévias para em seguida ler a epopeia, pois não dá para entender um
poema épico a partir de um fragmento:

O primeiro papel do ensino, é, então, munir o leitor de informação para que a obra voltem a
lhe falar. Como fazer ideia de que a canção de Rolland representava sem no mínimo de
662

conhecimento da sociedade feudal? Como atualizar os implícitos do texto de Toltoi sem


conhecer nada da Rússia na segunda metade do século XIX (JOUVE, 2012, p.146).

As palavras de Jouve corroboram para entender a importância de outras leituras antes de


adentrar na leitura do texto literário. Nesse sentido, são as leituras complementares que vão fazer com
que entendam, primeiramente, sobre a cultura da Grécia e seus mitos. Assim, perceberam que Ulisses
foi amarrado ao mastro porque não podia escutar o canto das Sereias, pois os cantos das sereias
levavam os marujos à morte.
A pergunta de número três pede para que os alunos identifiquem heróis como Ulisses em
filmes, o que demanda ter conhecimento sobre o que é um herói. Só assim, vão entender que Ulisses
é um herói que representa a coletividade de um povo. Já a quarta questão, é restrita a localizar no
texto o ponto fraco de Ulisses e a última saber qual o tempo da história. As questões não trabalham
de fato com a literatura, mas com interpretação de texto a partir de um fragmento que está escrito em
prosa e não em verso. Mesmo em tradução, seria melhor o aluno ter acesso ao texto mias próximo de
como foi escrito, isto é, em versos divididos por cantos. Assim, entenderão como era a escrita das
primeiras narrativas, como se estrutura o gênero épico e qual era a função desses poemas. Segundo
Calvino (1993, p.11) “Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas
das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas
que atravessam (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. Por isso, ao fazer a leitura
da Odisseia na íntegra podemos ter uma dimensão das práticas culturais antigas, inclusive entender
que esses poemas foram feitos para serem recitados.

UMA PROPOSTA PARA TRABALHAR COM A LEITURA DA EPOPEIA NA ESCOLA

Há várias maneiras para se trabalhar com a leitura de epopeia na sala de aula tendo em
vista que o poema épico possui uma riqueza extraordinária tanto com relação à parte da linguagem
como à própria temática. Na nossa sugestão, abordamos leitura e atividade que não fiquem presas ao
livro didático. Desse modo, o modelo adotado é forma comparatista e a concepção de linguagem
interacionista, pois acreditamos que proporciona ao aluno descobrir elementos específicos de cada
gênero, permitindo que se trabalhe com as façanhas do herói. Não estamos propondo uma sequência
didática, mas apenas sugestões de leitura com foco no herói, mitos, super-herói, deuses e estrutura do
gênero, por isso, não indicaremos número de aulas para cada abordagem. Pensando dessa forma,
escolhemos o gênero epopeia Odisseia e o gênero quadrinho Thor - Renascer dos Deuses.
Antes de passar para as sugestões de atividade, cabe destacar que para trabalhar com
formação de leitores, o professor tem que pensar o texto como narrativas, deixando a hierarquia de
lado, pois todo texto tem o seu valor. O objetivo é formar o leitor de leituras clássicas, mas sempre
663

ponderando que os gêneros considerados de massa têm ganhado muito espaço e proporcionam
também muitos conhecimentos. Desse modo, o leitor tem que ter acesso tanto à cultura mais
prestigiada como à cultura de massa, principalmente porque as séries e as sagas sempre encantaram
adolescentes de várias épocas com seus super-heróis e, nesse contexto, também têm sua função.
Tanto que, por meio da série Westworld o adolescente consegue ter acesso a um jogo
polifônico incrível, pois a série permite fazer várias alusões a culturas diferentes e instiga reflexões
filosóficas. Já o jogo Age of empires é baseado na mitologia e na cultura de várias civilizações,
permitindo o conhecimento histórico e cultural de vários povos. Se o adolescente gosta de assistir a
séries e dedicar-se a jogos de alta complexidade, ele também pode começar a ter interesse pelo gênero
épico, basta o professor encontrar o caminho para que comecem a fazer a leitura de epopeias. O fato
de o aluno desprezar o texto literário acontece pela forma como são colocadas as leituras na escola,
pois o texto literário sempre vem para cumprir uma obrigação, ou seja, ler para passar na prova do
Enem ou para cumprir o currículo. A leitura vem dissociada do prazer, perdendo o seu encanto:

O professor faria bem, então, em ajudar o aluno a construir uma representação positiva da
leitura e dos poderes que ela confere ao cidadão. E, em cada situação particular de sala de
aula, deveria explicar para os alunos os objetivos de toda atividade de leitura,ou seja, porque
ele é convidado a ler aquele texto, de forma a despertar-lhe o interesse por fazê-lo bem.
(ANTUNES, 2003, p. 81)

Partindo desse princípio, a nossa sugestão é que antes de fazer a leitura do quadrinho e
da Odisseia, o professor explique a importância da leitura para a formação deles e dê suporte para
que entendam os gêneros que vão ser lidos, para que durante a leitura o aluno encontre sentido. Por
isso, antes de fazer as leituras, o professor deve pedir para que façam pesquisas sobre mitos, heróis,
super-heróis e deuses. Após essas pesquisas, recomenda-se que a turma faça uma exposição oral sobre
o que pesquisou e diga o que entendeu. O professor deve intervir durante as discussões e esclarecer a
função do mito e o papel dos primeiros heróis da literatura. Na segunda aula, o professor pode fazer
uma leitura compartilhada com a turma da revista Thor - o renascer dos deuses. Após a leitura da
revista em quadrinho, sugerimos que o professor faça perguntas. Por exemplo, por que Thor é um
super-herói? Quais as características de Thor? Há presença de Deuses na história? Qual a temática da
história? Onde se passa a história? Que tipo de linguagem apresenta o quadrinho? Sugerimos como
atividade para casa a leitura do livro Odisseia de Homero.
Na aula seguinte, o professor pode perguntar se os alunos gostaram da Odisseia e se
tiveram dificuldade com a leitura, e a partir dessas perguntas começar as discussões. Num segundo
momento, pode ser pedido para que a turma leia os três primeiros cantos da Odisseia e responda as
seguintes perguntas: Como é escrita a epopeia? A narrativa tem deuses e mitos? Qual as diferença
664

de Thor e Ulisses no que se refere à figura do herói e o que tem em comum? Qual a temática da
Odisseia? Onde se passa a Odisseia? Dentro dessa proposta de leitura comparativa, os alunos vão ter
acesso a dois gêneros, o épico e o quadrinho. E com as atividades propostas, vão perceber que o
gênero literário clássico exige uma maior reflexão por ser uma literatura mais bem elaborada. Além
disso, a leitura de um poema épico permite o conhecimento da cultura da Grécia antiga, os seus
costumes e feitos heroicos, pois a literatura é marcada por um contexto em que é produzida,
conduzindo-nos ao universo cultural de cada época. Além disso, a turma vai saber diferenciar um
herói de um super-herói e como se originaram os super-heróis. Esse processo de conhecimento ocorre
porque a literatura amplia a nossa visão.

Resultados esperados

Fonte:https://i1.wp.com/oquadrinheiroveio.com.br/wp-content/uploads/2014/01/20130802-thor-
ironman.jpg

Após as atividades propostas espera-se que a turma entenda que o quadrinho Thor - o
Renascer dos Deuses é um gênero de ficção com linguagem narrativa e marcas da oralidade, tais
como onomatopeia, linguagem verbal e não-verbal e expressão dos personagens. Thor é um mito
nórdico que na versão quadrinho, como a maioria dos super-heróis, deve a sua origem aos mitos sobre
deuses e heróis que existiram em algumas culturas da antiguidade. Como todo super-herói, Thor tem
como característica combater forças do mal (vilões) que um simples mortal não consegue combater.
665

Com relação à Odisseia, trata-se de um poema épico dividido em cantos e escrito em


versos. O poema inicia-se com um prólogo e a proposição. O primeiro é o momento em que o autor
invoca a divindade protetora dos poetas, já o segundo é trecho inicial que resume o assunto. A
Odisseia narra os feitos heroicos do povo da Grécia Antiga, tendo como tema principal as viagens de
Ulisses rumo a Ítaca. Ulisses se apresenta como um herói que é sábio, astuto, e prudente, o que faz
superar as dificuldades durante as viagens:

O grande valor didático deste poema, reside, portanto, na abertura do conhecimento de um


mundo novo e maravilhoso. Junto as narrativas de aventuras fantásticas de lotófagos, ciclopes
e sereias,temos a descrição de episódios realísticos que ocorrem nas cortes das cidades de
Esparta, de pilos, de Esquéria e de Ítaca. (D’ONOFRE, 1981, p. 48)

Sendo assim, espera-se que a turma entenda que o valor deste poema está em proporcionar
o conhecimento de um mundo em que havia uma mistura do plano maravilhoso com episódios
realísticos. A presença dos deuses se dá porque o povo da Grécia da antiguidade mantinha uma crença
em várias divindades, já a presença de mitos, lendas e monstros faz parte do universo dos navegadores
que navegavam em águas desconhecidas e iam passando por meio da oralidade esses mitos que foram
incorporados ao poema. Vejamos um trecho:

CANTO XII
“Pois bem; atende agora, e um deus na mente
Meu conselho te imprima. Hás de as Sereias
Primeiro deparar, cuja harmonia
Adormenta e fascina os que as escutam:
Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos
Não regozijará nos doces lares;
Que a vocal melodia o atrai às veigas,
Onde em cúmulo assentam-se de humanos
Ossos e podres carnes. Surde avante;
As orelhas aos teus com cera tapes,
Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros.
“Dali passado, a via não te aponto
Que te cumpre seguir; tu mesmo a escolhas.
(HOMERO, P. 226)
666

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo teve como objetivo mostrar que ensinar ao aluno gostar do gênero épico ou
qualquer outro clássico não é uma tarefa muito fácil. Isso é decorrente de uma série de fatores: um
dos principais é devido à própria formação do professor ser fragmentada, pois a maioria dos
professores não consegue conciliar a teoria com a prática. Além disso, há grande resistência por parte
dos alunos que estão acostumados a ter o seu próprio universo de leitura. Por todos os problemas
apresentados, a maioria dos professores acaba ficando presa ao livro didático, utilizando apenas
perguntas superficiais ou apenas limitada ao ensino de história da literatura.
Para tentar mudar essa situação, cabe ao professor tentar montar estratégias de de leitura
para fazer com que o aluno passe a gostar de ler clássicos. Assim, o professor proporcionará ao aluno
pensar mais criticamente, pois terá acesso a um tipo de leitura que exige mais reflexão. A nossa
proposta foi justamente mostrar que o aluno pode passar a gostar de leituras indicadas pelo professor,
basta tentar entrar pelo mundo em que vivem, os quadrinhos, as sagas e o mundo dos heróis. Esse é
um dos caminhos, porém, existem muitos outros que o professor pode adotar nas suas aulas.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Aula de português. São Paulo: Parábola, 2003.

BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989

BRASIL. Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da


Educação; Secretaria de Educação Básica, 2006. (volume 1).

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: Ministério da Educação; área de Educação


Básica, 1998.

CANDIDO, Antonio. O direito á literatura. In: -------. Vários escritos. 3.ed. São Paulo: Duas
Cidades,1995, p. 235-263.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
letras, 1993.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2.ed., 4ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2014.

D’ONOFRIO, Salvatore. Da Odisseia ao Ulisses: evolução do gênero narrativo. São Paulo: Duas
Cidades, 1981.

HOMERO. Odisseia: Texto integral.Tradução de Manoel Odorico Mendes. São Paulo: Martin
Claret, 2005.
667

JACQUES, Rancière. Política da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete et alii. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1995.

JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? Tradução de Marcos Bagno e Marcos Marcionile.
São Paulo: Parábola. 2012.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande


épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2009.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI - 1.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.

SARMENTO, Leila Luar; TUFANO, Douglas. Português: literatura, gramática, produção de


texto. São Paulo: Moderna, 2010.

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1991.


668

DISCURSO POLÍTICO, IDENTIDADE E IDEOLOGIA NAS POSTAGENS DO


FACEBOOK

Josane Daniela Freitas Pinto 201


(UEPA, Doutora em Letras)

RESUMO
Esta pesquisa apresenta como suporte teórico os Estudos Críticos do Discurso, além de sua base
multidisciplinar, como Filosofia, Comunicação e Ciência Política, para estudar a inter-relação entre
identidade, ideologia e discurso político no texto multimodal presente nas postagens das Páginas no
Facebook. Definimos como objetivos: analisar os elementos verbais e visuais que marcam,
ideologicamente, as páginas, ao se posicionarem frente às questões políticas; e verificar as estratégias
que envolvem uma autoapresentação positiva em detrimento da ênfase negativa do opositor (VAN
DIJK, 2010). Estabelecemos as seguintes hipóteses: a construção da identidade das páginas do
Facebook ocorre a partir das postagens; as marcas ideológicas, apesar de serem omitidas no momento
de definição inicial, revelam-se na interação; e a inter-relação identidade, ideologia e discurso político
materializa-se na composição dos elementos visuais e verbais. Como procedimento metodológico,
optamos pela abordagem qualitativa e nosso corpus é constituído pelas páginas: Poder ao povo, Eu
era Direita e Não sabia e Movimento do Povo Brasileiro; em cada uma, selecionamos as fotos de
perfil e de capa e uma postagem, a partir da identificação do eixo ideológico. Realizamos a discussão
teórica a partir de três eixos de estudo. No primeiro, buscamos compreender a relação entre discurso
político e novas mídias, recorrendo a teóricos como, Aquino (1997), Pinto (2006) e Charaudeau
(2011), ao destacarem a emergência das práticas discursivas, a partir do discurso político. No segundo
eixo, objetivamos o entendimento do conceito de ideologia, recorremos, principalmente a van Dijk
(2011). O terceiro constitui-se da discussão sobre identidade, com base nos estudos de Hall (2006),
Bauman (2001, 2005), entre outros. Nesse sentido, concluímos que a composição do texto multimodal
de cunho político no Facebook possui como ponto de partida a questão identitária, associada ao viés
ideológico.
Palavras-chave: Discurso político; Identidade; Ideologia; Texto multimodal.

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma parte da pesquisa de doutorado, cuja temática é o discurso
político veiculado pelas redes sociais, em especial no Facebook. O crescente número de páginas
envolvidas com discurso político tem sido cada vez maior nessa rede social que faz parte de nosso
cotidiano e tem refletido a efervescência das discussões sobre política na realidade atual do Brasil.
Partimos do questionamento de como a identidade se constrói a partir das escolhas
lexicais e das imagens em cada página de cunho político no Facebook. Para respondê-lo,
determinamos as seguintes hipóteses: a construção da identidade das páginas do Facebook ocorre a
partir das postagens; as marcas ideológicas, apesar de serem omitidas no momento de definição
inicial, revelam-se na interação; e a inter-relação identidade, ideologia e discurso político materializa-

201
E-mail: josane.daniela@uepa.br
669

se na composição dos elementos visuais e verbais. Para isso, definimos o período de campanha para
as eleições de 2018, no qual as discussões entre as comunidades de direita, de esquerda e as que se
classificam como “apartidárias” são intensas, em virtude das polêmicas originadas a partir das
denúncias de corrupção da Operação Lava-jato; da decisão de Dilma Rousseff ter sido retirada da
presidência por conta das pedaladas fiscais e seu vice, Michel Temer, ter assumido seu lugar; da crise
econômica e política instalada no país (SINGER, 2018).
Assim, estabelecemos como objetivos: analisar os elementos verbais e visuais que
marcam, ideologicamente, as páginas, ao se posicionarem frente às questões políticas; e verificar a
estratégia de interação geral que envolve uma autoapresentação positiva em detrimento da ênfase
negativa do opositor (VAN DIJK, 2010). Para alcançá-lo, usaremos a abordagem qualitativa e o
suporte teórico alicerçado nas pesquisas sobre os Estudos Críticos do Discurso (ECD), realizadas
pelos autores, van Dijk (2010, 2011) e Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011); sobre o discurso
político, feitas por Charaudeau (2011) e Pinto (2006); sobre a ideologia, recorremos, principalmente
a van Dijk (2011); e sobre a identidade, com base nos estudos de Hall (2006), Bauman (2005),
Charaudeau (2011).
Nossos corpora constituem-se das postagens de páginas políticas no Facebook no período
eleitoral de 2018. Selecionamos para este artigo uma página da direita, outra da esquerda e a terceira
que se classifica como “apartidária” para realizar os procedimentos de análise, que consiste na
identificação dos elementos verbais e visuais da “autoapresentação positiva” e da “outro-apresentação
negativa”, proposta por van Dijk (2010).
A relevância desta pesquisa reside no fato de destacarmos o Facebook como uma rede
social que dissemina, de forma dinâmica, as informações, as notícias e os comentários, possibilitando
que se conheça a atual situação política do Brasil, a partir das postagens.

DISCURSO POLÍTICO E O PAPEL FUNDAMENTAL DA IDEOLOGIA


Os Estudos Críticos do Discurso (ECD) interessam-se pela relação entre discurso e poder,
devido a esse engajamento social e político a favor da igualdade, permeando essa relação, temos as
ideologias e, neste sentido, destacamos a afirmação de que elas “[...] são uma forma de cognição
social, isto é, crenças compartilhadas e distribuídas pelas (mentes dos) membros do grupo” (VAN
DIJK, 2011, p. 382, tradução nossa).202 Elas caracterizam-se por serem sistemas de representações
mentais, partilhadas socialmente, exercendo o controle das práticas sociais dos indivíduos. Como o
discurso é uma prática social, logo, as ideologias têm influência nele, porque:

No original: “[...] are a form of social cognition, that is, beliefs shared by and distributed over (the minds of) group
202

members”.
670

[...] são definidas informalmente como sistemas gerais de ideias básicas compartilhadas pelos
membros de um grupo social, ideias que irão influenciar sua interpretação dos eventos sociais
e situações e controlar seu discurso e outras práticas sociais como membros de um grupo
(VAN DIJK, 2011, p. 380, tradução nossa).203

Concebendo de modo semelhante a van Dijk, o discurso como prática social, que
continuamente influencia ou sofre interferências do contexto sociocultural, Fairclough, Mulderrig e
Wodak (2011) elencam os fundamentos dos ECD, a seguir: a teoria trata dos problemas sociais; as
relações de poder são discursivas; a sociedade e a cultura são constituídas pelo discurso; o discurso
revela um trabalho ideológico; o discurso é histórico; o texto e a sociedade têm uma relação mediada;
a análise do discurso é interpretativa e explanatória; o discurso é uma forma de ação social.204
Para van Dijk (2011), as ideologias não são adquiridas ou sofrem modificação de forma
repentina; na verdade, elas vão se desenvolvendo, adaptando-se, a partir de debates, discussões e
outras formas de discurso, o autor exemplifica com o caso do liberalismo, feminismo e socialismo.
Ainda ao se referir às ideologias, afirma que “elas são definidas para os grupos, e não para membros
individuais que ‘usarão’, ‘aplicarão’ ou ‘realizarão’ ideologias nos seus cotidianos, para os quais
devemos considerar de um modo diferente, em termos de modelos mentais” (VAN DIJK, 2011, p.
383, tradução nossa).205
Qualquer alteração, mudança só ocorrerá se for aceita e compartilhada por todos na
comunidade. O autor ainda ressalta que as ideologias são representações mentais, usadas e aplicadas
pelos seus membros, como base para uma conduta ideológica, que se reflete na prática discursiva
(apenas uma das muitas outras práticas).
Mészáros (2014), Ardalan (2018), Bobbio (2011), Singer (2018), entre outros concordam
com o uso dos termos esquerda – direita, tendo seu sentido político se originado a partir da Revolução
Francesa. Para Bobbio (2011, p. 15), “[...] a distinção não está morta e sepultada, mas mais viva do
que nunca” e ele também afirma:

É precisamente a ativação desse jogo que continua a manter viva – numa vida em contínuo
movimento – a distinção. Num universo conflitual como o da política, que exige
continuamente a ideia do jogo das partes e do empenho para derrotar o adversário, a divisão
do universo em dois hemisférios não é uma simplificação, mas uma fiel representação da
realidade (BOBBIO, 2011, p. 11).

203
No original: “[...] informally defined, are general systems of basic ideas shared by members of a social group, ideas
that will influence their interpretation of social events and situations and control their discourse and other social practices
as group members”.
204
Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011, p. 368-373).
205
No original: “They defined for groups, and not for individual members who will ‘use’, ‘apply’ or ‘perform’ ideologies
in their everyday lives, for which we must account in a diferente way, namely in terms of mental models”.
671

Essa oposição histórica entre os dois polos é necessária, reflete o nosso cotidiano,
principalmente, as discussões presentes nas redes sociais. O pesquisador constata que alguns autores
consideraram ultrapassado os termos “direita” e “esquerda” e substituíram por “conservadores” e
“progressistas”, ou seja, a díade não deixou de existir, houve apenas uma tentativa de mudança na
nomenclatura. Dessa forma, ele resume as características básicas que opõe as duas ideologias: uma
mantém as tradições, mas é a favor da não-intervenção do Estado na economia, enquanto a outra
defende o contrário.
Bobbio (2011, p. 53) conclui que se existe o eixo esquerda – direita, é possível a
existência do “centro”. Ele diz que entre a direita e a esquerda existem as “posições intermediárias
que ocupam o espaço central entre os dois extremos”. “Posições intermediárias” é um dos termos
utilizados pelos estudiosos para se referir aos partidos ou grupos que se identificam com a posição
que nem é de direita e nem de esquerda, ou seja, de centro. O autor acrescenta que a presença de uma
posição central reforça a existência da díade:

De resto, não há melhor confirmação da persistência do modelo dicotômico do que a


presença, em um universo pluralista, de uma esquerda que tende a ver o centro como uma
direita camuflada, ou de uma direita que tende a ver o mesmo centro como o disfarce de uma
esquerda que não deseja declarar-se enquanto tal (BOBBIO, 2011, pp. 55-56).

Ao constatar a existência do centro, o autor reforça a tese da existência dessa antítese, que
é representada pela díade. Considerando a questão da igualdade, que diferencia de forma relevante a
esquerda da direita. A primeira defende a igualdade, entretanto, a segunda não tem nenhum interesse
em promover a igualdade, pois para os que acreditam nessa ideologia a exclusão é a regra.
Para o indivíduo pertencente à esquerda, as desigualdades lhe causam indignação, ou seja,
ele (a) se mobiliza pelas questões sociais, porque seu desejo maior é eliminar as diferenças. No
entanto, o indivíduo da direita é “inigualitário”, como diz Bobbio (2011), pois para ele as
desigualdades existentes fazem parte da natureza, portanto, acredita que não pode eliminar e não
empreende nenhum esforço para mudar essa realidade.
Ele também identifica outra característica distintiva entre elas. A direita encontra-se
sempre preocupada em respeitar e manter os princípios morais, porém, a esquerda é defensora da
emancipação, da liberação dos indivíduos de qualquer prisão aos costumes, à raça, à classe social,
etc. Por coadunarmos com Bobbio (2011), usamos a terminologia esquerda-direita nessa pesquisa,
porque ela continua presente no discurso político e, principalmente, nas redes sociais.
Para entendermos melhor a definição de discurso político, buscamos em Charaudeau
(2011) o suporte teórico. Ele apresenta três palavras-chave que definem o discurso político: discussão,
ação e persuasão, compreendendo que os sujeitos envolvidos no discurso político apresentam ideias,
672

opiniões, propostas, mas também se envolvem em atitudes práticas para a solução dos problemas
sociais e, para isso, usam o poder da palavra para convencer os membros do próprio grupo ou de
grupos opositores. É a dinâmica do campo discursivo político que mantém interligados em interação
constante esses três espaços apresentados pelo autor, como podemos verificar na afirmação seguinte:

[...] a política é um espaço de ação que depende dos espaços de discussão e de persuasão que,
para serem válidos devem ser divididos em domínios, pois toda sociedade tem necessidade
de reconhecer e de classificar as trocas realizadas (CHARAUDEAU, 2011, p. 27).

Com base no autor, entendemos que a ação, a linguagem e o discurso se apresentam de


forma indissociável. O discurso político acontece como evento de comunicação, no qual os sujeitos
interagem para apresentar suas ideias, influenciar os membros de seu grupo ou de outros, usando
“estratégias de persuasão e sedução”, além de diferentes “procedimentos retóricos”
(CHARAUDEAU, 2011, p. 40).
Por causa dessa natureza do discurso político, podemos considerá-lo como dinâmico,
transformador, porque pode iniciar de uma maneira e finalizar seu percurso de modo totalmente
diferente de sua origem. Pinto (2006) também destaca as mudanças pelas quais o discurso político
está sujeito e declara que: “Ele sofre cotidianamente a desconstrução, ao mesmo tempo só se constrói
pela desconstrução do outro. É, portanto, dinâmico, frágil e, facilmente, expõe sua condição
provisória” (PINTO, 2006, p. 89). Essas transformações contínuas refletem como o discurso de um
indivíduo muda sucessivamente a partir de suas experiências no processo contínuo de (re)construção
da identidade em uma sociedade, na qual imperam as mídias digitais.

DISCURSO POLÍTICO, IDENTIDADES E MÍDIA DIGITAL: UMA RELAÇÃO DE


MANIPULAÇÃO E PODER?
O discurso político se alimenta da polêmica, da luta, do conflito. Esse último é o termo
que Aquino (1997) usou para se referir às interações polêmicas. Compartilhando da mesma ideia,
Charaudeau (2011, p. 46) apresenta a seguinte concepção: “A política é um campo de batalha em que
se trava uma guerra simbólica para estabelecer relações de dominação ou pactos de convenção”.
Assim, a imagem do discurso político como um lugar de batalha, como uma arena onde ocorre o
embate das ideias, reflete justamente a ligação com o poder. É desse lugar que acontece a construção
de si e a desconstrução do outro.
Na discussão sobre identidade, Bauman (2005, p. 18) destaca a influência da globalização
na sucessão de transformações, na ressignificação do espaço/tempo, resultando em uma sociedade
“líquido-moderna”. Por isso, o conceito de identidade reflete a diversidade, o multiculturalismo e a
instantaneidade, característicos desse novo mundo.
673

O autor declara que nós, “[...] habitantes do líquido mundo moderno” (BAUMAN, 2005,
p. 32), procuramos construir e manter as referências de nossas identidades, que sempre se encontram
em movimento de forma veloz, promovendo a constituição de grupos, cuja característica principal
constitui a transitoriedade, porque a união dos indivíduos ocorre devido a um objetivo em comum.
Quando ele deixa de existir, o grupo também pode se desfazer, por isso, o autor denomina de
“comunidade guarda-roupa” e define-a como aquela, na qual os indivíduos se reúnem “[...] enquanto
dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus casacos nos cabides”
(BAUMAN, 2005, p. 37).
A fluidez das identidades reflete a transitoriedade do mundo moderno e os conflitos
identitários e ideológicos. Pavloski (2012, p. 13), também como Bauman (2001) e Hall (2006),
apresenta a ideia da identidade múltipla, fragmentada, instável: “Tanto na esfera pública quanto
privada, as transfigurações dos paradigmas identitários substituíram a unicidade pela multiplicidade
e a solidez pela desconstrução”.
Van Dijk (2010) identifica o uso da estratégia de interação geral: “autoapresentação
positiva” e “outro-apresentação negativa”. Em outras palavras, na situação de manipulação, ocorre a
apresentação positiva do próprio grupo, enquanto é ressaltado apenas as características negativas do
grupo opositor.
A esse respeito, van Dijk (2010, p. 252-253) destaca a possibilidade de serem utilizadas
outras estratégias que podem ser usadas nos vários níveis do discurso, como: macroato de fala,
indicando os bons atos do grupo e destacando os maus atos do grupo opositor; léxico, selecionando
palavras positivas para “Nós” e palavras negativas para “Eles”; figuras retóricas, por exemplo,
“hipérboles versus eufemismos para significados positivos/negativos”, “metonímias e metáforas
enfatizando propriedades negativas/positivas Nossas/Deles”, entre outras.
O uso dessas estratégias comprova a polarização do discurso com base nas questões
ideológicas. No entanto, não se pode limitar a análise simplesmente às questões discursivas, mas
também deve ser levado em conta o contexto político-social no qual os grupos se encontram inseridos.
Dessa forma, o Facebook como uma rede social permite a presença da instantaneidade e criatividade
na interação entre os usuários (BARTON; LEE, 2015) possibilita-nos, por meio da análise dos
elementos verbais e visuais, identificar a estratégia de interação geral proposta por van Dijk (2010)
nas postagens realizadas nas páginas de cunho político.
O Facebook apresenta perspectivas comunicativas, permitindo explorar o uso das
linguagens verbal e visual. Essa é a ideia que Crystal (2010) discute. Ele foi um dos primeiros
linguistas a refletir sobre o impacto da chegada da Internet na linguagem e apresentou o escopo da
chamada “Linguística da Internet”. Para o autor, há inúmeras capacidades comunicativas que podem
ser exploradas de diversas maneiras, ele afirma que “o mundo da Internet é extremamente fluido, com
674

usuários explorando as possibilidades de expressão, introduzindo uma combinação fresca de


elementos e reagindo aos desenvolvimentos tecnológicos” (CRYSTAL, 2006, p. 16, tradução
nossa).206
As redes sociais trazem a possibilidade dos acontecimentos, fatos, opiniões, etc. serem
compartilhados e comentados instantaneamente. Podemos considerar isso como uma forma peculiar
moderna de “reflexividade”, conforme a seguinte citação:

Esta construção reflexiva e reconstrução de si próprio é uma característica normal da vida


cotidiana e continuamente está tomando novas formas. Por exemplo, a tendência popular
atual da ‘rede social’ cria práticas discursivas reflexivas (por exemplo, Facebook, MySpace,
Twitter), construindo identidades sociais, relações, protesto político, luta social, consumo e
entretenimento (FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2011, p. 359, tradução
nossa).207

Com o mundo online, a materialidade do texto se faz em uma tela de computador, de


celular, entre outros, na qual temos a possibilidade de expor ideologias, crenças, experiências, de
forma reflexiva, construindo a identidade individual ou de grupo na relação com o outro. Dessa forma,
as postagens representam essa materialidade e, normalmente, são textos curtos, muito importantes no
processo interacional. De acordo com Barton e Lee, o mundo digital trouxe uma mudança, na qual a
produção textual se tornou parte central desse novo universo:

O mundo online está sendo constantemente escrito, seja na forma de sites de um único autor,
de wikis escritos colaborativamente, ou apenas um breve comentário num site da rede social.
Ao escrever, as pessoas deixam registros em toda a parte e criam informação que outras
pessoas podem usar, que informa os buscadores e que é o produto vendável de empresas
como Google e Facebook (BARTON; LEE, 2015, p. 43).

Assim, o texto passa a ser o centro desse mundo e deve ser entendido como algo fluido e
em mudança constante e com a presença concomitante de escrita, layout, imagens, som, objetos 3D,
formando textos coerentes e com sentido, que produzem e reproduzem opiniões, crenças, ideologias,
ou seja, na atualidade, se faz presente o texto multimodal, no qual vários modos são usados ao mesmo
tempo para apresentar um todo coerente, lógico, conforme os autores destacam:

206
No original: “The Internet world is an extremely fluid one, with users exploring its possibilities of expression,
introducing fresh combinations of elements, and reacting to technological developments”.
207
No original: “This reflexive construction and reconstruction of the self is a normal feature of everyday life, and is
continually taking new forms. For example, the currently popular trend of ‘social networking’ creates reflexive discourse
practices (e.g. Facebook, MySpace, Twitter), constructing social identities, relationships, political protest, social struggle,
consumption, and entertainment.”
675

Os modos, que também são conhecidos como modos comunicativos ou modos semióticos,
referem-se em geral a sistemas ou recursos que as pessoas mobilizam na construção de
sentido. Eles incluem as linguagens falada e escrita, imagem, som, gesto, etc. Os textos
multimodais são onipresentes em nossa vida cotidiana especialmente aqueles que combinam
o verbal com o visual (BARTON; LEE, 2015, p. 47).

Os textos multimodais não são uma novidade, já se faziam presentes em jornais, revistas,
propagandas, etc., no entanto, no mundo virtual, ganharam uma dinamicidade e um potencial criativo
maior. Podem ser percebidos quando combinados de diferentes formas, gerando várias maneiras de
serem compreendidos pelos interlocutores. Barton e Lee (2015, p. 48) enfatizam esse potencial
criativo presente nos textos multimodais: “A convergência de espaços de escrita nas novas mídias
sociais apresenta novas oportunidades para fácil criação, postagem e compartilhamento de textos
multimodais [...].
Cada vez mais seu uso se intensifica nas redes sociais, como uma forma mais interessante
de construção do sentido para mostrar o posicionamento dos indivíduos no mundo. O discurso político
circula, metamorfoseando-se continuamente, por meio dos textos multimodais, em um ambiente de
intensa interatividade, o Facebook.
Sobre essa utilização da discussão sobre o discurso político na mídia digital, Pinto (2006,
p. 79) afirma:

Nas últimas décadas, os partidos, as assembleias, os comícios e as rodas informais de


discussão receberam uma poderosa companhia da mídia falada, escrita, televisiva, que deixou
de ser um espaço onde o discurso político se expressa e passou a ser um espaço de construção
de discurso. E não pode ficar esquecida aqui a Internet, que começa a ocupar importantes
espaços nesta arena.

A autora reconhece a importância da mídia digital como cenário de discussão sobre


assuntos políticos, visto que neste meio podemos ter o debate das questões ideológicas, a disputa
entre os diferentes partidos, a formação de grupos unidos em torno de um ideal comum. Ela ainda diz
que: “a mídia está sempre tratando de revelar a verdade sobre os políticos, para os cidadãos [...]”
(PINTO, 2006, p. 86). Dessa forma, no Facebook, cada grupo político que realiza as postagens traz
para esse ambiente virtual suas experiências sociopolíticas, ideologias, construindo sua identidade de
forma dinâmica, como analisamos no próximo item.

ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS


Selecionamos o período das eleições para presidente, governadores, deputados federais e
estaduais em 2018. Observamos que a discussão política no Facebook continuava intensa, refletindo
esse conflituoso contexto sociopolítico, e selecionamos três páginas de cunho político nessa rede
676

social para realizarmos os procedimentos de análise. As três possuem o rótulo de comunidade e foram
escolhidas para podermos visualizar as fotos de capa e de perfil e as postagens e observarmos a
construção da identidade de cada uma, considerando a concepção de que o discurso é a prática social
da linguagem (FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2011) e, por isso, nele está presente a
realidade na qual estamos inseridos.
A primeira página denomina-se o Poder ao Povo, criada em 18 de fevereiro de 2015. Em
abril de 2018, apresentava a seguinte definição: “Esta página é para todos que lutam por justiça social,
igualdade, e pelo respeito à democracia”. Até aquele momento, houve 444.287 curtidas e 445.546
seguidores. Podemos observar a seguir a Figura 1:

Fig 1: FOTOS DE PERFIL E DE CAPA DA PÁGINA PODER AO POVO

Fonte: https://www.facebook.com/opoderaopovo

Na Figura 1, temos, na foto de perfil, um punho cerrado com um fundo


parcialmente vermelho. A imagem simboliza a atitude de enfrentamento e resistência, usada,
normalmente por movimentos de esquerda. O vermelho está relacionado ao derramamento de sangue
no período da Revolução Russa e é usado, principalmente, pelos grupos ligados à esquerda. Na foto
de capa, a imagem apresenta vários trabalhadores rurais com os instrumentos de trabalho levantados,
a foice e a picareta.
O comunismo é representado pela imagem da foice e do martelo. A picareta é semelhante
ao martelo, logo, na imagem temos a representação visual dos símbolos ligados à esquerda. A
representação visual e a definição apresentadas em sua página reiteram a ligação do grupo com essa
ideologia, pois defende a luta pela igualdade e pela justiça social. Apresentamos na Figura 2 uma
postagem realizada no dia 24 de abril de 2018:
677

Fig 2: POSTAGEM DO DIA 24/04/2018

Fonte: https://www.facebook.com/opoderaopovo

Na postagem, temos um burro, usando óculos escuros e com uma placa, na qual
consta o enunciado: “Fui de Aécio, agora vou de Bolsonaro! Sou muito inteligente!”. Há uma crítica
às escolhas realizadas, Aécio e Bolsonaro. Assim, a imagem do eleitor desses dois políticos é
representada como um burro.
Além disso, considerando o enunciado que consta na placa, na Figura 2, as linguagens
verbal e visual associadas reforçam a presença de uma ofensa clara ao eleitor de Aécio e Bolsonaro
com a imagem do animal segurando a mesma. Por isso, identificamos, na Figura 2, a presença da
estratégia de interação geral, que é a autoapresentação positiva e a outro-apresentação negativa (VAN
DIJK, 2010), ou seja, o indivíduo que vota em Aécio e Bolsonaro é caracterizado como não-
inteligente. Ao caracterizar os opositores de forma negativa, há um reforço positivo do grupo Poder
ao Povo.
Em sua página no Facebook, observamos uma coerência na escolha dos elementos
visuais, como o vermelho, a foice, o punho cerrado, o burro, e os elementos lexicais, como “justiça”,
“igualdade”, “inteligente”, pois eles constroem a identidade de um grupo de esquerda, na qual há uma
uniformidade das linguagens visual e verbal, representando a positividade das ideias dessa
comunidade, enquanto que os adversários são caracterizados como negativos.
A página seguinte nomeia-se Eu era Direita e Não sabia. Sua página no Facebook foi
criada em 06 de fevereiro de 2016 e, em abril de 2018, obteve 459.000 curtidas e 464.000 seguidores.
Na Figura 3, temos as fotos de perfil e de capa:

Fig 3: Fotos de perfil e de capa da página Eu era Direita e Não sabia


678

Fonte: https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia

Na Figura 3, as mãos apresentam dois botons com símbolos: na mão esquerda o


símbolo do comunismo, a foice e o martelo, e na direita, a bandeira do Brasil. Na foto de capa, há
uma colagem de quatro imagens: a primeira é um cartão de filiação ao partido comunista de Carlos
Marighella, considerado o inimigo número um da ditadura; a segunda é uma foto de Lula preso no
período ditatorial; na terceira, Bolsonaro aparece com um instrumento com a bandeira do Brasil na
ponta, destruindo a estrela com o símbolo comunista no centro (a estrela é o símbolo do Partido dos
Trabalhadores- PT); e, por último, a imagem do Bolsonaro com os dedos em forma de V indicando
que os olhos estão bem abertos. A seleção das imagens destaca a oposição desse grupo à ideologia de
esquerda, ao comunismo, ao Partido dos Trabalhadores. A seguir, apresentamos a Figura 4:

Fig 4: Postagem do dia 21 de abril de 2018

Fonte: https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia

Na Figura 4, temos uma referência à informação de que Lula ingeriu bebida


alcoólica antes de se entregar à Polícia Federal e, também, ao envolvimento de Aécio Neves com as
679

drogas. O enunciado acima da imagem, “Se no último discurso do Lula lhe deram cachaça[...]”,
apresenta a crítica ao fato do país estar representado por dois políticos, um envolvido com “cachaça”
e o outro com “cocaína”. Na representação visual dessa crítica, aparece a imagem do Aécio rodeada
de pó branco e a seguir “[...] imaginando como vai ser o do Aécio Neves”. Assim, o uso do pó branco
caindo sobre Aécio Neves é uma alusão às drogas. Observamos que, na Figura 4, temos a outro-
apresentação negativa, pela possível vinculação do Aécio com drogas e esse reforço negativo do outro
traz um sentido positivo para o próprio grupo.
O Movimento do Povo Brasileiro (MPB) é a terceira página. Foi criado em 21 de
setembro de 2015 e em abril desse ano totalizou 243.066 curtidas e 787.504 seguidores. Em sua
página do Facebook, eles identificam-se como: “Somos a favor de um estado mínimo e lutamos pelo
fim da corrupção e privilégios na vida pública”, ou seja, defendem uma intervenção mínima do
Estado. A seguir, sua foto de perfil e de capa:

Fig 5: Fotos de perfil e de capa da página Movimento do Povo Brasileiro

Fonte: https://www.facebook.com/movimentodopovobrasileiro/

Na Figura 5, apresenta-se a bandeira do Brasil na foto de perfil e na de capa, em forma


de coração. Ela se caracteriza como o “símbolo máximo de representação da nação brasileira”, por
isso, podemos entender que essa escolha reflete o forte sentimento nacionalista presente na
comunidade, intensificado ainda pela bandeira em formato de coração nas duas imagens.
Selecionamos uma postagem do grupo, apresentada na Figura 6:
680

Fig 6:Postagem do dia 24 de abril de 2018

Fonte: https://www.facebook.com/movimentodopovobrasileiro/

Na Figura 6, lê-se a seguinte pergunta: “Tem certeza de que o problema do mundo é o


capitalismo?”. Logo depois, temos as imagens de: Hugo Chávez, ex-ditador da Venezuela; Kim Jong-
un, ditador da Coréia do Norte; Benito Mussolini, ex-ditador da Itália; Nicolás Maduro, atual
presidente/ditador da Venezuela; Fidel Castro, ex-ditador de Cuba; Mao Tsé-tung, ditador da China;
Lenin, ditador da antiga União Soviética; Pol Pot, ditador do Camboja; Idi Amim Dada, ditador de
Uganda.
Abaixo de cada imagem, vem a palavra socialista escrita em caixa alta e na cor branca,
destacando o movimento ideológico ao qual o Movimento do povo brasileiro acredita que eles tenham
feito ou fazem parte. O nome da comunidade Movimento do povo brasileiro vem em destaque, escrito
na cor amarela, na primeira fileira de fotos. A pergunta feita acima de todas as imagens dos ditadores
é respondida com a palavra embaixo de cada foto, ou seja, socialista, destacando a ideia negativa que
o MPB acredita haver nos seguidores do socialismo. Dessa forma, verificamos a utilização da
estratégia de interação geral, na qual é realizada a outro-apresentação negativa, por ser socialista, e a
autoapresentação positiva, por ser defensor do capitalismo.
Considerando o objetivo estabelecido para este trabalho, ao propor a identificação da
estratégia de interação geral (VAN DIJK, 2010), verificamos nas fotos de perfil e de capa e nas
postagens a construção das identidades, usando elementos verbais e visuais. Esse processo traz
reflexividade à identidade do grupo que se (re)constrói continuamente (FAIRCLOUGH;
MULDERRIG; WODAK, 2011), por isso, a discussão política se torna mais criativa e dinâmica nesse
meio midiático. Dessa forma, as duas primeiras páginas identificam-se por meio das linguagens
681

verbal e visual, mantendo a coerência entre esses elementos iniciais e suas postagens. A página Poder
ao Povo apresenta palavras-chave em seu enunciado “justiça social”, “igualdade”, “respeito”,
“democracia”. Além disso, as imagens selecionadas para as fotos de perfil e de capa estão em
consonância com itens lexicais que destacamos, ou seja, apresenta uma caracterização ideológica
ligada à esquerda, que anseia pela igualdade, justiça e democracia. Em sua postagem, a outro-
apresentação negativa reforça a autoapresentação desse grupo de esquerda.
Na segunda página, a identificação ideológica apresenta-se logo em seu nome, ou melhor,
“Direita”. Nas fotos de capa e perfil, as imagens também conduzem ao entendimento que se
caracteriza por ser uma página de direita, contra o comunismo, contra os defensores de uma ideologia
de esquerda, Carlos Marighella e Lula. Ela também publicou uma postagem coerente com essas
ideias, ou melhor, há a referência negativa a Lula e a Aécio na mesma.
Na definição do Movimento do Povo Brasileiro, está presente a ideia de que os membros
são favoráveis ao estado mínimo, ou seja, a não-intervenção do estado na economia e ao fim da
corrupção. Nas imagens escolhidas para a capa e o perfil, temos a bandeira do Brasil no formato de
um coração, representando um caráter fortemente nacionalista.
A última página não apresenta de forma explícita sua ligação ideológica, mas dá pistas
nas escolhas lexicais e imagéticas. Dessa forma, sua identidade se constrói nesse espaço de discussão,
que faz parte do discurso político (CHARAUDEAU, 2011). No exemplo de postagem que
selecionamos, podemos relembrar o destaque dado por van Dijk (2011) às ideologias como
representações mentais que se refletem na prática discursiva, sendo assim, temos a apresentação do
socialismo como uma ideologia negativa, pois foi associada aos ditadores, que se distanciaram
completamente dos ideais de igualdade, justiça e democracia propostos por aqueles que são de
esquerda. Isso é feito com o propósito de convencer o leitor de que o capitalismo não é o problema
mundial, mas sim, o socialismo.
Nessa utilização da estratégia de interação geral, as postagens analisadas revelam,
principalmente a dinamicidade dessa interação, o quanto ela é polêmica e fluida, em mudança
constante. Essa instantaneidade, essa criatividade (BARTON; LEE, 2015) e essa reflexividade
(FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2011) possibilita-nos entender que as identidades se
constroem ao longo das apresentações das ideias nas postagens, trazendo-nos o entendimento de que
a página Movimento do Povo Brasileiro se caracteriza por ser de direita. Relembramos Bobbio (2011)
quando ele afirma que esse jogo de oposição da díade direita-esquerda não é de forma nenhuma uma
simplificação do cenário político, não se encontra morto, mas sim, vivo, se moldando aos novos
tempos.
O mundo online, em especial o Facebook, materializa esse potencial discursivo criativo,
como bem ressaltou Crystal (2006, 2010). Por isso, no discurso político presente nas páginas dos
682

grupos no Facebook, identificamos o uso do poder, a intenção dos autores ao revelar o viés ideológico,
a partir do posicionamento de uma página ao desqualificar o discurso dos opositores, trazendo mais
dinamicidade ao debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para este estudo, propusemos uma análise das postagens políticas de páginas selecionadas
no Facebook: Poder ao Povo, Eu era Direita e Não sabia e Movimento do Povo Brasileiro. Dessa
forma, discutimos os conceitos de discurso político, ideologia e identidade, promovendo um diálogo
entre teóricos como, van Dijk (2010, 2011), Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011), Charaudeau
(2011), Pinto (2006) e Crystal (2006, 2010), apresentando a ideia de que o discurso traz as
experiências, as vivências desses indivíduos que o materializam, sem podermos isolá-los dessa
realidade social e política que os constituem.
O Facebook se caracteriza pela fluidez e pela dinamicidade. Ao analisar as postagens
escolhidas das três páginas, constatamos haver a presença da estratégia de apresentação geral (VAN
DIJK, 2010) para divulgar as ideias que cada uma defende a favor ou contra o contexto político do
momento, realizando uma autoapresentação positiva, enquanto o opositor é caracterizado de forma
negativa. Ao se posicionarem ideologicamente, as identidades se constroem em um processo de
mudança contínua, revelando uma relação de poder.
As identidades revelam-se pelas imagens selecionadas e pelas escolhas lexicais. Dessa
forma, realiza-se a representação da comunidade e de suas concepções político-ideológicas. No caso
da página Movimento do Povo Brasileiro, suas postagens revelam um posicionamento contrário à
ideologia de esquerda.
Nesse sentido, a análise do discurso das postagens caracteriza-se como relevante para
entender o discurso político que se faz presente no cotidiano e nas redes sociais como forma de
divulgação das ideias, das concepções de cada página, refletindo a polêmica realidade brasileira.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Zilda Gaspar Oliveira de. Conversação e conflito: um estudo das estratégias discursivas
em interações polêmicas. 1997. 367 f. Tese – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

ARDALAN, Kavous. Ideology: a multi-paradigmatic approach. Journal of Interdisciplinary


Economics. March 22, 2018. Disponível em:
<http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0260107917736408>. Acesso em 10 maio 2018.

BARTON, David; LEE, Carmem. Linguagem online: textos e práticas digitais. Trad. Milton Mota.
São Paulo: Parábola, 2015.
683

BOBBIO, Noberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. Trad. Marco
Aurélio Nogueira. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad. Fabiana Komesu e Dilson da Cruz. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2011.

Conheça os ditadores mais cruéis da história. ÚLTIMO SEGUNDO, 22 fev. 2014. Disponível em:
<https://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2014-02-22/conheca-os-ditadores-mais-crueis-da-
historia.html> Acesso em 24 ago 2018.

CRYSTAl, David. Language and the Internet. 2nd ed. New York: Cambridge University Press,
2006.

______. The changing nature of text: a linguistic perspective. In: VAN PEURSEN, Wido;
THOUTENHOOFD, Ernst; VAN DER WEEL, Adriaan (eds.). Text Comparison and Digital
Creativity. Leiden: Brill, 2010. pp. 229-251. Disponível em: <http: www.davidcrystal.com/?fileid=-
4122>. Acesso em 26 jun. 2016.

DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS: significado dos símbolos e simbologias. Símbolo comunista.


Disponível em: < https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolo-comunista/ >. Acesso em:
20 ago. 2018.
_______. Símbolo da Bandeira do Brasil. Disponível em: <
https://www.significados.com.br/bandeira-do-brasil/>. Acesso em: 20 ago. 2018.
12 fatos que aconteceram neste um ano pós-impeachment. CATRACA LIVRE, 17 abr. 2017.
Disponível em: < https://catracalivre.com.br/cidadania/12-fatos-que-aconteceram-neste-um-
ano-pos-impeachment/>. Acesso em: 20 ago. 2018.
FAIRCLOUGH, Norman; MULDERRIG, Jane; WODAK, Ruth. Criticial Discourse Analysis.
In: VAN DIJK, T. (ed.) Discourse Studies: a multidisciplinar introduction. 2nd ed. London:
Sage Publications, 2011. pp. 357- 378.
LIMA, Juliana. Qual o significado de levantar o braço com o punho fechado. NEXO, 24 jun.
2016. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/06/24/Qual-o-
significado-do-gesto-de-levantar-o-bra%C3%A7o-com-o-punho-fechado> Acesso em: 20 ago.
2018.
MEMÓRIAS DA DITADURA. Carlos Marighella. Disponível em:
<http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/carlos-marighella/index.html>.
Acesso em: 20 ago. 2018.
MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. 1. ed.
São Paulo: Boitempo, 2014. 566p.

NOGUEIRA, Kiko. Aécio Neves e as drogas. Diário do Centro do Mundo (DCM), 25 maio 2014.
Disponível em: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/aecio-neves-e-as-drogas/>. Acesso
em: 20 ago. 2018.

PINTO, Célia. Elementos para uma análise do discurso político. Barbarói, n. 24, 2006. Disponível
em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/821/605>. Acesso em: 04 nov.
2017.

SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). 1. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
VAN DIJK, Teun. Discurso e Poder. 2. ed. Trad. Judith Hoffnagel, Karina Falcone, et. al. São Paulo:
Contexto, 2010.
684

_______. Discourse and Ideology. In: VAN DIJK, T. (ed.) Discourse Studies: a multidisciplinar
introduction. 2nd ed. London: Sage Publications, 2011. pp. 378 - 407.

Vídeo desmoraliza ainda mais o discurso de Lula: Gleisi Hoffmann cheira o pescoço do ex-
presidente e diz que está com cheiro de cachaça. FOLHA POLÍTICA. ORG, 7 abril 2018.
Disponível em: < http://www.folhapolitica.org/2018/04/video-desmoraliza-ainda-mais-o-
discurso.html> . Acesso em: 20 ago. 2018.
685

IDEOLOGIA E TOMADAS DE POSIÇÃO: A IMPORTÂNCIA DA(S) FORMAÇÃO(ÕES)


DISCURSIVA(S) NA/PARA MOBILIZAÇÃO DE SENTIDO(S)

Kátia Regina de Sousa e Silva208


(mestranda, PUC, Minas)
Heitor Pereira de Lima209
(mestrando, PUC/Minas)

RESUMO

Nossa pretensão, neste ensaio, é trazer o sujeito do discurso como foco e mostrar como ocorre a
interpelação da ideologia, por meio das tomadas de posição. Para isso, partimos da compreensão de
que a noção de formação discursiva (FD) corresponde a um domínio de saber, constituído de
enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente,
regulando o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988). Também apontamos a necessidade de
compreender a relevância das FDs para os estudos que discorrem sobre o discurso. Nesse sentido,
evoca-se a noção de sujeito, categoria analítica que difere pontualmente o quadro teórico da Análise
do Discurso (AD) de linha francesa pecheutiana das demais teorias que também contemplam o
discurso. Assim, neste estudo, pretendemos nos debruçar sobre a noção de FD, ancorados no
arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa que tem Michel Pêcheux como iniciador.
Mas, para esclarecer nossa escolha pela AD francesa de linha pecheutiana, apontaremos, num
primeiro momento, a noção de FD sob duas perspectivas: a primeira, em consonância com as
contribuições foucaultianas – um caminho do qual desviaremos; e, a segunda, pautada nos postulados
pecheutianos – caminho no qual seguiremos. Apoiar-nos-emos, principalmente, no aporte teórico de
Michel Pêcheux (1988), por sua importância na teorização do conceito de formação discursiva pela
qual foi possível, ao considerar as formações ideológicas, esgarçar o olhar sobre essa categoria
analítica tão cara aos estudos discursivos; de Michel Foucault (1969), pela sua preocupação em
estabelecer as regularidades, os sistemas de dispersão; e de Freda Indursky (2020) por compreender
sua relevância às pesquisas que visam explorar formações discursivas, sobretudo àquelas que elegem
corpus da realidade brasileira. Embora neste ensaio assumamos o interesse por formação discursiva,
não pretendemos perder de vista as noções de tomada de posição, de formações ideológicas e de
sujeito, como já anunciamos, uma vez que a reunião dessas noções é fundamental para que
consigamos acesso aos efeitos de sentido mobilizados nas/pelas formações discursivas (estas a
serviço de ideologia) que autorizam o discurso. A fim de elucidar o que propomos aqui, elegemos
como corpus três textos propagandísticos da empresa de cozinhas planejadas Todeschini, produzidos
em períodos distintos.

Palavras-chave: Formação discursiva. Tomada de posição. Formação ideológica. Sujeito.

THE DIRECTIONS CHANGE AND THE KITCHEN AL SO: ANALYSIS OF THE


DISCURSIVE FORMATION (S) OF TODESCHINI ADVERTISEMENTS

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa – da Pontifícia Universidade


208

Católica de Minas Gerais - PUC Minas. E-mail: katiarasols@gmail.com. Professora da Rede Pública Municipal de Belo
Horizonte/MG. Bolsista CAPES.
209
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa – da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Integrante do Grupo de Pesquisa NELLF da mesma instituição. E-mail:
oiheitorlima@gmail.com. Bolsista CNPq.
686

ABSTRACT

Our intention, in this essay, is to bring the subject of the discourse as a focus and show how the
interpellation of ideology occurs, through taking positions. For that, we start from the understanding
that the notion of discursive formation (FD) corresponds to a domain of knowledge, constituted of
discursive statements that represent a way of relating to the prevailing ideology, regulating what can
and should be said (PÊCHEUX, 1988). We also point out the need to understand the relevance of
FDs for studies that discuss discourse. In this sense, the notion of subject is evoked, an analytical
category that punctually differs from the theoretical framework of Discourse Analysis (AD) of the
French Pecheutian line from other theories that also contemplate discourse. Thus, in this study we
intend to focus on the notion of FD, anchored in the theoretical framework of Discourse Analysis of
the French line that has Michel Pêcheux as initiator. But, to clarify our choice for the French AD of
the Pecheutian line, we will first point out the notion of FD from two perspectives: the first, in line
with Foucault's contributions - a path from which we will deviate; and the second, based on
Pecheutian postulates - the path we will follow. We will rely mainly on the theoretical contribution
of Michel Pêcheux (1988), due to its importance in theorizing the concept of discursive formation
through which it was possible, when considering ideological formations, to widen the gaze on this
analytical category so dear to studies discursive; Michel Foucault (1969), for his concern in
establishing regularities, dispersion systems; and Freda Indursky (2020) for understanding its
relevance to research aimed at exploring discursive formations, especially those that choose corpus
from the Brazilian reality. Although in this essay we assume the interest in discursive formation, we
do not intend to lose sight of the notions of positioning, of ideological formations and of the subject,
as we have already announced, since the meeting of these notions is fundamental for us to gain access
to the effects of meaning mobilized in / by discursive formations (these at the service of ideology)
that authorize discourse. In order to elucidate what we propose here, we chose as corpus three
advertising texts from the planned kitchen company Todeschini, produced in different periods.

Keywords: Discursive formation. Position taking. Ideological formation. Subject.

COLOCANDO A MÃO NA MASSA

Essas plataformas movediças sem as quais não se poderia ter percorrido a estrada pela
primeira vez… (PÊCHEUX, 1966).

Este ensaio surge a partir das discussões realizadas durante a disciplina Análise do
Discurso, ofertada pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas), que abordou, dentre vários, um operador teórico-analítico
importantíssimo ao analista do discurso: formações discursivas. Embora o bom desenho da disciplina
tenha nos proporcionado, de modo estendido, reflexões sobre esse operador, tomando Michel
Pêcheux, Michel Foucault e alguns pesquisadores brasileiros que estudam sobre o assunto,
assumimos os postulados pecheutianos como horizonte, neste trabalho, por entendermos que a
discussão promovida pelo iniciador da Escola Francesa da Análise do Discurso, ao perceber que as
formações ideológicas são preponderantes nas regiões de sentido, vai além de estabelecer as
regularidades, os sistemas de dispersão.
687

A noção de formação discursiva (a partir de agora FD) é revisitada/tomada


frequentemente, seja pelas pesquisas científicas que buscam legitimar visões que garantam a
paternidade do termo a quem faz jus, ou ainda, pelas situações ordinárias da vida cotidiana que
buscam possibilidades de “desvendar” os efeitos de sentido, sem o compromisso acadêmico-
científico.
O nosso trabalho caminha em direção diferente às mencionadas: compreender como a
textualização de um discurso, materializada num texto verbal, numa fotografia, numa pintura etc., ou
seja, por qualquer semiose, é autorizada por uma FD que legitima o dizer, bem como a forma como
se diz, tendo aí um efeito de homogeneidade; por outro lado, como esse mesmo discurso, ao ser
inscrito em outras FDs e, portanto, ideológicas, passa a mobilizar sentidos diferentes por meio daquilo
que Pêcheux chamou de tomada de posição, o que configura a manifestação da heterogeneidade.
Segundo Pêcheux:

[...] a tomada de posição resulta de um retorno do ‘Sujeito’ no sujeito, de modo que a não-
coincidência subjetiva que caracteriza a dualidade sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa
daquilo de que ele ‘toma consciência’ e a propósito do que ele toma posição, é
fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se
identifica consigo mesmo, com seus ‘semelhantes’ e com o ‘Sujeito’. O ‘desdobramento’ do
sujeito – como ‘tomada de consciência’ de seus ‘objetos’ - é uma reduplicação da
identificação [...] (PÊCHEUX, 1988, p. 172).

Diante do exposto, reiteramos que este estudo pretende debruçar-se sobre a noção de FD,
ancorado no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa que tem Michel Pêcheux
como iniciador.
Há ainda outro ponto a ser considerado neste ensaio à guisa de consideração inicial: a
necessidade de que sigamos na urgência de compreender a relevância das FDs para os estudos que
discorrem sobre o discurso. Freda Indursky, grande pesquisadora brasileira que estuda esse assunto,
já nos questionava em seu texto “Formação Discursiva: ela ainda merece que lutemos por ela?”
(2007b) sobre a necessidade de apostar num conceito tão importante aos estudos discursivos,
sobretudo, àqueles que não abandonam a noção de formações ideológicas.
Uma vez que percebemos o corpus selecionado – três textos criados e propagados pela
empresa Todeschini, em períodos distintos – como um fato de linguagem por excelência que tem
memória e, portanto, nos conduz à memória linguística (ORLANDI, 1995, p. 115), acreditamos que
ele nos permitirá: i) acessar às FDs que o autoriza e, portanto, aos efeitos de sentidos; e ii) por meio
das tomadas de posição, observar como sujeito ao dizer (com suas intenções e objetivos) não possui
controle desse dizer, ou seja, os textos selecionados dizem de maneira completamente diferente em
relação a eles próprios, o que nos faz pensar em (re)significação dos sentidos por tomadas de posição.
688

Diante disso, nosso trabalho aponta para a necessidade de intensificar a discussão teórica
que evidencia os estudos sobre a heterogeneidade da linguagem.

DOIS CAMINHOS… UMA DIREÇÃO

A partir de agora, discutiremos a noção de FD sob duas perspectivas: a primeira, em


consonância com as contribuições foucaultianas – um caminho do qual desviaremos; e, a segunda,
pautada nos postulados pecheutianos – caminho no qual seguiremos.

Um caminho do qual desviamos: a noção de Formação Discursiva em Michel Foucault

Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um


discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática (FOUCAULT, 2005,
p.82).

Embora já tenhamos evidenciado a pretensão de nos debruçarmos sobre a noção de FD


em Michel Pêcheux, entendemos ser importante considerar a concepção de FD trazida por Foucault,
tendo em vista a importância desses dois teóricos no arcabouço da Análise do Discurso de linha
francesa, inclusive no que se refere à origem do próprio conceito de FD.
Baronas (2011) considera que há uma paternidade partilhada entre ambos, mas faz uma
ressalva, pois muitos estudos, tanto na França quanto no Brasil, apontam que tal conceito surgiu, pela
primeira vez, com Michel Foucault, em seu livro Arqueologia do Saber (1969), quando, na verdade,
ele já havia sido enunciado no artigo Lexis et metalexis: les problemes des determinants, publicado
em 1968, por Pêcheux e Fuchs, caindo por terra a noção de que Pêcheux teria emprestado a ideia de
Foucault.
Contudo, não devemos perder o foco. Parafraseando Maldidier (1993), o que nos importa
não é a origem da expressão, mas o seu deslocamento, a sua concepção como um “componente da
Formação Ideológica”, que determina “o que pode e deve ser dito a partir de uma dada posição numa
dada conjuntura”. E isso se deu com Pêcheux, a partir de 1977, quando ele reordena o conceito
foucaultiano de FD que representava “uma primeira relação entre a História, vista sob os tipos de
relações ideológicas de força nas sociedades de classe, e a materialidade linguageira” (MALDIDIER,
1993, p. 6).
Foucault deixou suas marcas no campo da Análise do Discurso, uma vez que trouxe,
como de fundamental importância para esta área, a relação entre o sujeito, o discurso, a história e o
poder. Segundo ele, para compreender a constituição da FD faz-se necessário considerar a
importância dos elementos históricos, uma vez que o saber é uma construção histórica e, como tal,
produz verdades que se instauram e se revelam nas práticas discursivas. O saber e o discurso são
689

definidos baseados no conceito de enunciado e este “pertence a uma formação discursiva, como uma
frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo” (FOUCAULT, 1969, p. 135).
É importante entender, conforme o filósofo, que enunciado não é sinônimo de proposição,
de frase e tampouco de ato de fala, mas é ele que dá condições para que esses ocorram. O enunciado
é regido por regras e faz parte dessa ou daquela FD, é ele que garante a existência de uma proposição
que pode ou não ter sentido, de uma fala que vai ou não se encaixar naquele contexto, de uma frase
que pode ser gramatical ou agramatical. Conforme Foucault (1969), um sistema linguístico só poderá
ser estabelecido se utilizado um corpo de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso. É
necessário definir regras que permitam construir outros enunciados diferentes, possíveis - “um
conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos” (FOUCAULT, 1969, p.
30).
O discurso, na concepção foucaultiana, é um conjunto de regras “anônimas e históricas”
determinadas no tempo e no espaço, é um conjunto de enunciados que provêm da mesma formação
discursiva. Por sua vez, a formação discursiva “caracteriza-se não por princípios de construção, mas
por uma dispersão de fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidades, mas
uma lei de coexistência […]” (FOUCAULT, 1969, p. 135).
Visando construir o conceito de FD, Foucault buscou, por meio de um projeto no campo
da Análise de Discurso, encontrar algo que definisse o discurso numa única unidade. Assim, ele
elegeu e analisou quatro categorias: formação dos objetos, relações dos modos enunciativos,
formação dos conceitos e escolhas dos temas. Foram, a seu ver, quatro tentativas e quatro fracassos,
mas ele quis prová-las e percebeu que não descreviam a realidade. Concluiu, então, que a dispersão
era melhor que a unidade, encontrando, assim, o foco da sua análise. Em relação às quatro categorias
analisadas, as regras de FD foram criadas seguindo as condições a que seus elementos estão
submetidos.
Um ponto decisório que nos desviou do conceito de FD trazido por Foucault refere-se a
sua consideração em termos de saber e de poder, não em termos de ideologia; o filósofo compreende
FD numa perspectiva de dispersão, sendo estabelecidas as relações entre o dizer e o fazer e as práticas
discursivas marcadas por uma não-autonomia. Em outras palavras, Foucault (1969) defendeu que,
quando o sistema de dispersão fosse semelhante entre um determinado número de enunciados e
quando uma regularidade pudesse ser definida entre as quatro categorias analisadas – objetos, tipos
de enunciação, conceitos e escolhas temáticas – haveria uma formação discursiva.
Enfim, conforme dito, a contribuição deste teórico é de fundamental importância para a
Análise do Discurso e não haveria espaço suficiente, em um ensaio, para discorrer sobre ela. Contudo,
tendo em vista o nosso objetivo, seguimos trazendo a concepção de FD na linha de Michel Pêcheux,
pela qual seguirá nossa análise.
690

Um caminho no qual seguimos: a noção de Formação Discursiva em Michel Pêcheux

[...] a formação discursiva pode ser entendida como o que pode e deve ser dito pelo sujeito,
ou seja, ela tem seus saberes regulados pela forma-sujeito e apresenta-se dotada de bastante
unicidade [...] (INDURSKY, 2020, p. 306-307).

Michel Pêcheux, em parceria com Catherine Fuchs, atento às observações, interpretações,


críticas e deformações no que se refere à difusão da análise automática do discurso (AAD), por meio
do nível teórico e do nível das aplicações experimentais, propôs uma reformulação de conjunto,
visando a eliminar certas ambiguidades, retificar certos erros, constatar certas dificuldades não-
resolvidas e indicar as bases para uma nova formulação da questão (PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p.
163). Nesse sentido, os autores trazem as noções de discurso e ideologia estabelecidas numa relação
pela qual

[...] se deve conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de
materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence ao gênero
ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas comportam
necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa
conjuntura, isto é, numa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico
(PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p.166-167).

Percebe-se, portanto, que essa noção, desde sempre, é algo importante ao quadro teórico
de Pêcheux por considerar as FDs atravessadas pela ideologia que faz parte, ou melhor, é a condição
para a constituição dos sujeitos e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia
para que se produza o dizer (ORLANDI, 1995, p. 46). Também não esqueçamos da importância da
convocação da noção de sujeito para formular a noção de FD.
Isso coloca em suspenso o modo homogêneo pelo qual se entende e se discute FD à
margem dos postulados pecheuxtianos: i) na perspectiva da não-falha, ou seja, da impossibilidade de
conceber um sujeito que ao estar vinculado a uma dada FD, sujeitando-se, em concordância com os
dizeres, identificando-se plenamente com o sujeito universal, à forma-sujeito, de fato um bom sujeito,
poderia romper com essa FD ao ponto de inscrever-se em outra e comportar-se como tal; ii) entendida
sem ideologia, da pureza, da neutralidade, de sujeitos livres que dizem e se dizem o que querem e
como querem, senhores de si e, portanto, proprietários de consciência; iii) do discurso inscrito em
uma única FD, ou seja, da insistência da homogeneidade ilusória.
Diferentemente dessas percepções, entendemos que a interpelação do indivíduo em
sujeito de seu discurso se efetua pela identificação com a formação discursiva que o domina
(PÊCHEUX, 1988, p. 147). Vale salientar que embora essa “dominação”, ou seja, o assujeitamento
seja uma noção compreendida fora da concepção pecheutiana, na esteira da subserviência, da
691

ingenuidade, da tolice, aqui a compreendemos enquanto movimento de interpelação dos indivíduos


por uma ideologia, condição necessária para que o indivíduo se torne sujeito do seu discurso. E ainda,
segundo Pêcheux, os indivíduos são interpelados em sujeitos de seu discurso, pelas formações
discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes
(PÊCHEUX, 1988, p. 147).
Diante do exposto, uma questão precisa ser esclarecida: por que Michel Pêcheux
apresenta-se como o melhor caminho para compreender FD? Convocamos Freda Indursky, que nos
esclarecerá:

[...] é lícito afirmar que, no quadro teórico da Análise do Discurso, tal como formulado por
Pêcheux, [...] ao contrário do que ocorre na Arqueologia de Foucault, não só é lícito falar em
ideologia, como é ela, juntamente com o sujeito, que é tomada como princípio organizador
da formação discursiva. Redizendo e já me posicionando: é o indivíduo que, interpelado pela
ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva
que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica (INDURSKY, 2020, p.
306).

A partir disso, passamos a observar, por meio das propagandas selecionadas da


Todeschini, como a identificação do sujeito com os dizeres da FD muda. Assumimos como hipóteses
que: i) no primeiro texto, o discurso racista convive harmoniosamente com os discursos de gênero e
capitalista, todos autorizados por FDs que legitimam dizeres inaceitáveis à época atual; ii) na segunda
propaganda, percebe-se, por um lado, o rompimento do sujeito com a FD que evidencia o discurso
racista, embora possamos interpretar a permanência do racismo atuando por meio do não-dito e, por
outro lado, o discurso de gênero e o discurso capitalista produzindo efeitos “parecidos” ao texto
anterior; e iii) por fim, a terceira materialidade apresenta um rompimento com o discurso de gênero,
mas não com o discurso capitalista.

Figura 1 - A cozinha de antes


692

Fonte: <https://www.propagandashistoricas.com.br/2020/07/cozinha-todeschini.html>. Acesso em: 20 set.


2020.

Embora sejamos péssimos sujeitos devido a nossa desidentificação com as FDs vigentes
no texto acima, precisamos entendê-las. Se considerarmos o contexto sócio-histórico, isto é, a
exterioridade, entendemos que essas premissas foram preponderantes para a legitimação de tais
dizeres. Os enunciados, em especial, “a melhor maneira de segurar sua empregada” e “Se você é
destas felizardas que possuem empregada…” (grifos nossos), somados à fotografia de uma mulher
de pele branca, provavelmente a patroa, “abraçando” numa teatralização que sugere uma “prisão” de
uma mulher de pele negra, a empregada, endossam FDs que entendem e reforçam o lugar das
mulheres: i) ambas na cozinha, espaço designado para elas, uma vez que “lugar de mulher é na
cozinha”; ii) a demarcação do território da cozinha: o espaço da patroa difere do espaço da empregada.
Ademais, a figura da mulher de pele negra, usando uniforme, reporta-nos à memória discursiva na
qual essa mulher representa as escravizadas do período colonial, época na qual era legítimo segurar
e possuir seres humanos. Por fim, o discurso capitalista é reforçado pela ideia da compra da cozinha
Todeschini, afinal, é necessário “abrir o olho” com a concorrência para que sua empregada “não fique,
em cima do muro, de conversinhas com a vizinha”.
Assim, ao elegermos esta propaganda, percebemos que há uma identificação do sujeito
com as FDs que o interpelam, o que, de acordo com Pêcheux, chamamos de primeira modalidade.
Indursky (2020), diz que
693

a primeira modalidade remete ao que Pêcheux designou de superposição entre o sujeito do


discurso e a forma-sujeito. Tal superposição revela uma identificação plena do sujeito do
discurso com a forma-sujeito da FD que afeta o sujeito [...]”. E que nada mais é do que foi
descrito por ele como a reduplicação da identificação, tal como vimos nos parágrafos
precedentes e que representam a primeira formulação destas noções, no âmbito do quadro
teórico da AD (INDURSKY, 2020, p. 308).

Em outras palavras: o sujeito do discurso é um bom sujeito.

Figura 2 - A cozinha e algumas mudanças

Fonte: <http://www.propagandaemrevista.com.br/propaganda/97/>. Acesso em: 20 set. 2020.

Mesmo tendo ocorrido algumas mudanças, ainda nos consideramos péssimos sujeitos,
pois prevalece nossa desidentificação com as FDs vigentes no texto acima.
Nessa propaganda, o discurso capitalista segue evidenciado pelas semioses, trata-se de
um texto de finalidade comercial pelo qual se reforça que “Todeschini é a melhor cozinha que existe”.
Por outro lado, o discurso de gênero, autorizado por FDs, segue produzindo efeitos “parecidos” ao
texto anterior: a mulher continua “no seu lugar” e, agora, servindo a um homem. O enunciado
“Entender de cozinha não significa saber preparar molhos ou temperos especiais” endossa uma
competência que toda mulher “deve ter”: a capacidade de servir. O lugar da mulher, enquanto aquela
que serve, e o lugar do homem, aquele que é servido, apontam para o discurso de gênero que sempre
coloca a figura feminina num espaço desprestigiado em relação ao ser masculino.
694

O discurso racista, conforme discutimos no primeiro texto, não se evidencia nesse


segundo. Tal constatação nos faz perceber que houve aí um processo pelo qual o sujeito do discurso
não se comportou como um bom sujeito. Em outras palavras: os dizeres que reforçam o discurso
racista não mais são aceitos, uma vez que houve um possível rompimento do sujeito com a FD. O
sujeito, por uma tomada de posição, se contrapõe ao sujeito universal, o que configura o mau sujeito.
Essa modalidade

[...] caracteriza o discurso do “mau sujeito”, discurso em que o sujeito do discurso, através
de uma “tomada de posição”, se contrapõe à forma-sujeito e aos saberes que ela organiza no
interior da Formação Discursiva. Essa segunda modalidade consiste em “uma separação
(distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...)” em relação ao que diz a
forma-sujeito, conduzindo o sujeito do discurso a contra-identificar-se com alguns saberes
da formação discursiva que o afeta (INDURSKY, 2020, p. 308).

Figura 3 - A cozinha de hoje

Fonte: <https://www.behance.net/gallery/29854801/Todeschini-Colecao%20Ser2016>. Acesso em:


20 set. 2020.

Em relação a esse terceiro texto, que traduz bem a situação sócio-histórica atual, somos
quase bons sujeitos, uma vez que nos identificamos, em parte, com o discurso presente. Assim como
nos anteriores, o discurso capitalista apresenta-se em sua forma plena: i) pelo enunciado “Minha casa
tem que ser o meu amor”, no qual “amor” acomoda uma ambiguidade – a pessoa e a cozinha
Todeschini; ii) pela representação da fartura de alimentos sobre a bancada e objetos tidos como
elegantes (luminárias, tábuas, acessórios), pelo comportamento consumista reiterado pelo
capitalismo.
695

No que se refere ao discurso de gênero, percebe-se uma ruptura com a ideia


preconceituosa de que “lugar da mulher é na cozinha”. O homem apresentado na propaganda ocupa
“o lugar feminino”; a mulher, por sua vez, espera para ser servida. Essa encenação denuncia uma
desidentificação do sujeito do discurso com o discurso machista. Assim, o rompimento do sujeito
com a FD aconteceu por meio de uma tomada de posição não subjetiva. Dito de outra forma:

O modo da “desidentificação, isto é, de uma tomada de posição não-subjetiva, que conduz


ao trabalho de transformação deslocamento da forma-sujeito”, ou seja, o sujeito do discurso
desidentifica-se de uma formação discursiva e sua forma-sujeito para deslocar sua
identificação para outra formação discursiva e sua respectiva forma-sujeito (INDURSKY,
2020, p. 310).

Portanto, faz-se necessário perceber o sujeito do discurso identificando-se, contra-


identificando-se ou desidentificando-se com FDs para que percebamos como somos interpelados
pelas formações ideológicas. Daí a necessidade de tal estudo, embora que por um ato de consciência,
devemos compreender como somos assujeitados nas e pelas FDs nas quais nos inscrevemos. Mais
uma vez, convocamos Indursky. Ela nos mostra a relevância de lutar pela FD:

Julgo, pois, que a FD merece que lutemos por ela, desde que se entenda que não é possível
cristalizá-la; desde que ela não se converta em um colete rígido que impeça a fragmentação
da forma-sujeito; desde que se entenda que não há ritual sem falhas e que esta falha permite
que novos saberes podem inscrever-se, obedecendo ao princípio da transformação; desde que
saibamos que esta falha no ritual conduz o sujeito do discurso a apropriar-se de saberes
alheios e inseri-los no âmbito de uma FD. Ou seja: a FD deve ser tomada como uma unidade
dividida em relação a si mesma, a qual comporta em seu interior diferentes posições-sujeito
que representam a fragmentação da forma-sujeito. Penso que é difícil suportar a diferença,
mas é ela que mostra que a FD, e não apenas o discurso, é lugar de tensão e não apenas de
segurança (INDURSKY, 2020, p. 316).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA ILUSÃO NECESSÁRIA

Embora a FD pareça homogênea, sem possibilidade de interferência, dotada de unicidade,


ela não o é, haja vista suas porosidades que podem levar o sujeito do discurso a significá-la
diferentemente, considerando a ideologia vigente.
No primeiro texto analisado, percebemos que o “bom sujeito” se identifica com as FDs
apresentadas, sendo possíveis os discursos sobre a exclusividade das mulheres ocuparem a cozinha,
“segurar a empregada” (negra) e a compra de um produto Todeschini ser sinônimo de conforto e
praticidade. No entanto, já no segundo texto, observamos uma desidentificação do sujeito com a FD
do discurso racista. Não é mais permitido “segurar a empregada” ou achar que “ela pode ser tomada
pela vizinha”. Por outro lado, o discurso de gênero foi ressignificado ao ponto de que o espaço da
cozinha passou a ser habitado por um homem, mesmo que na condição de quem é servido. Já no
terceiro texto, o sujeito desidentifica-se com a FD que legitima o discurso da mulher subserviente às
696

necessidades masculinas, ou seja, o homem passa a servir à mulher. O discurso capitalista, em todos
os textos, foi endossado pelas FDs que interpelam o sujeito. Portanto, nossas hipóteses foram
confirmadas pelas análises realizadas que nos mostram: os sentidos mudam e a cozinha também.
Nesses processos, nos quais trouxemos o sujeito do discurso como foco, nossa pretensão
foi mostrar que a interpelação da ideologia, por meio das tomadas de posição, dá-se por aquilo que
Pêcheux chamou de falha no ritual. Embora não tenhamos espaço para problematizar esse conceito,
faremos a última convocação de Indursky que nos esclarecerá:

É precisamente sobre o que estou chamando de falhas no ritual que penso ser necessário
colocar o foco: no meu entendimento, a falha no ritual remete para uma falha na interpelação
do sujeito, ou seja: é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode se contraidentificar
com os saberes de sua formação discursiva e passar a questioná-los, fragmentando a forma-
sujeito e produzindo diferentes posições-sujeito (INDURSKY, 2020, p. 314).

REFERÊNCIAS

BARONAS, R. L. Formação discursiva em Pêcheux e Foucault: uma estranha paternidade. In:


Sargentini, V., NAVARRO-BARBOSA, P. (Orgs.). M. Foucault e os domínios da linguagem:
discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004, p. 45-62.

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.

INDURSKY, Freda. A fragmentação do sujeito em análise do discurso. In: INDURSKY, F. Discurso,


memória, identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000 (Col. Ensaios, 15).

INDURSKY, Freda. A noção de sujeito em Análise do Discurso: do desdobramento à


fragmentação. ANPOLL, CD-ROM Síntese 2, Porto Alegre, 2002.

INDURSKY, Freda. Da interpelação à falha no ritual: a trajetória teórica da noção de formação


discursiva. In: BARONAS, R. L. (org.). Análise de discurso: apontamentos para uma história da
noção-conceito de formação discursiva. Araraquara: Letraria, 2020.

INDURSKY, Freda. Formação discursiva: esta noção ainda merece que lutemos por ela? In:
BARONAS, R. L.; LEANDRO FERREIRA, M. C. (orgs.). Análise do Discurso no Brasil:
mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos/SP: Claraluz, 2007b, p. 163-72.

MALDIDIER, D. A inquietude do discurso. Um trajeto na história da análise do discurso: o trabalho


de Michel Pêcheux. Semen, número 8, 1993, p. 107-119. Disponível em:
<https://www.passeidireto.com/arquivo/4568978/maldidier-denise-a-inquietude-do-discurso-um-
trajeto-na-historia-da-analise-do-d)>. Acesso em 20/07/2020.

PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e


perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso. Campinas:
Ed. da UNICAMP, 1990.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da


UNICAMP, 1988.
697

ORLANDI, Eni P. Texto e discurso. Organon. Porto Alegre, Revista do Instituto Letras/UFRGS, v.
9, n. 23, p. 63-68, 1995.

Você também pode gostar