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Realização
Apoio
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Seminário de Estudos do Texto e do Discurso, (4. : 2020 : Natal, Rio Grande do Norte).
Anais do IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso (SETED): leitura e escrita em
qualquer língua, suporte ou perspectiva / organizado por Sulemi Fabiano Campos ... [et al.]. –
Natal: UFRN, 2021.
698 p.: il. color.
Inclui bibliografia.
Ficha catalográfica elaborada por Heverton Thiago Luiz da Silva – Bibliotecário-Documentalista / CRB 15/710
Organizadores
SULEMI FABIANO CAMPOS
JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA
RENATA INGRID DE SOUZA PAIVA
REBECCA CRUZ PINHEIRO
BRUNA FRANCINETT BARROSO FAUSTINO DE SOUZA
MAIARA DO NASCIMENTO ARAÚJO
Diagramação
Vinicius Rodrigues da Silva
Projeto Gráfico
Melina Nascimento Gomes
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 5
CULTURA, DIVERSIDADE E AQUISIÇÃO DE LÍNGUAS......................................................... 18
A LÍNGUA PORTUGUESA E O INSUCESSO DO SISTEMA DE ENSINO NA GUINÉ-BISSAU:
CASO DAS CRIANÇAS DA ETNIA BALANTA-NHACRA DE TOMBALI ............................... 28
ENSINO DAS LÍNGUAS MOÇAMBICANAS: AVANÇOS E DESAFIOS PARA O SISTEMA
NACIONAL DE EDUCAÇÃO ......................................................................................................... 41
FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM MOÇAMBIQUE: AVANÇOS E RECUOS PARA
INTRODUÇÃO DA LEITURA E ESCRITA DAS LÍNGUAS BANTU NO ENSINO BÁSICO ... 47
DO PASSADO AO PRESENTE: A CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE LÍNGUA ............. 60
A LÍNGUA COMO BASE DA IDENTIDADE CULTURAL DOS POVOS .................................. 73
LETRAMENTOS NA PERSPECTIVA DECOLONIAL: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE
EXTENSÃO BRINQUEDOTECA DE HISTÓRIAS ....................................................................... 86
ESCRITA SOBRE AS PRÁTICAS DE ENSINO E APROPRIAÇÕES DAS TEORIAS
LINGUÍSTICAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DOS RELATÓRIOS DE ESTÁGIO
SUPERVISIONADO ......................................................................................................................... 96
EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O USO DO GÊNERO MEME NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA ............................................................................................................... 109
MULTILETRAMENTOS: CONTRIBUIÇÕES PARA O TRABALHO COM AS TECNOLOGIAS
NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................................. 123
O ENSINO DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO: UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE
LEITURA......................................................................................................................................... 133
RELATO DE EXPERIÊNCIA: O GÊNERO COMENTÁRIO ONLINE NA EDUCAÇÃO BÁSICA
.......................................................................................................................................................... 147
ESPECIFICIDADES ESTILÍSTICAS DO GÊNERO ARTIGO CIENTÍFICO DE LINGUÍSTICA
EM DUAS LÍNGUAS/CULTURAS ............................................................................................... 161
A SEQUÊNCIA INJUNTIVA: ANÁLISE NO GÊNERO DISCURSIVO TEXTUAL CARTILHA
EDUCATIVA EM TEMPOS DE PANDEMIA .............................................................................. 173
TECENDO CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ESCRITA NA EDUCAÇÃO BÁSICA DA
REGIÃO DO MATO GRANDE: ASPECTOS TEXTUAIS E ENUNCIATIVOS DO GÊNERO
ARTIGO DE OPINIÃO PRODUZIDO NO PROCESSO SELETIVO ENSINO MÉDIO
INTEGRADO .................................................................................................................................. 188
PROJETOS DE LEI E SUAS NORMAS NA PERSPECTIVA DA ANÁLISE TEXTUAL DOS
DISCURSOS.................................................................................................................................... 204
EXCESSO DE LINGUAGEM – O PAPEL DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA
ANULAÇÃO DE DECISÕES DE PRONÚNCIA .......................................................................... 217
VISADA ARGUMENTATIVA E RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NA “SUSTENTAÇÃO
ORAL” DE ADVOGADOS DE DEFESA EM CRIMES DE HOMICÍDIOS ................................ 232
A FUNÇÃO ARGUMENTATIVA DO DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA NA SENTENÇA
PENAL CONDENATÓRIA ............................................................................................................ 245
PLANO DE TEXTO E VISADA ARGUMENTATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO DECRETO
NO CENÁRIO DE PANDEMIA DA COVID-19 ........................................................................... 255
PLANO DE TEXTO, RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E VISADA ARGUMENTATIVA
NO GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA JORNALÍSTICA ......................................................... 264
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO DISCURSIVO/TEXTUAL SENTENÇA
JUDICIAL ........................................................................................................................................ 279
A (NÃO) ASSUNÇÃO DA RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NOS GÊNEROS
DISCURSIVOS DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA E SENTENÇA CONDENATÓRIA ........ 291
LEITURAS E ESCRITAS NO ENSINO REMOTO E AS FERRAMENTAS DIGITAIS COMO
ESTRATÉGIA DE APRENDIZAGEM EM TEMPOS DE PANDEMIA ...................................... 305
AÇÕES INTERATIVAS NO ESTUDO DA LEITURA/ESCRITA DE MANEIRA REMOTA ... 317
ABORDAGEM DIALÓGICA NO ENSINO REMOTO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ESCOLA
ESTADUAL PROFESSOR ANTÔNIO PINTO DE MEDEIROS ................................................. 324
A MEDIAÇÃO DOCENTE NOS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE LEITURA
E DE ESCRITA EM TEMPOS DE ENSINO REMOTO................................................................ 332
PARA LER, ESCREVER E COMPARTILHAR: A LEITURA LITERÁRIA HOJE. ................... 343
O ALUNO-LEITOR COMO SUJEITO SOCIAL E POLÍTICO: EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM
O GÊNERO CONTO NO ESTÁGIO CURRICULAR DA UFPE.................................................. 356
A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TEMPOS DE PANDEMIA
NO ENSINO REMOTO .................................................................................................................. 370
MULTIMODALIDADE E LETRAMENTO CRÍTICO: CAPACIDADES DE LEITURA
EXIGIDAS PELAS REDES SOCIAIS ........................................................................................... 384
A PROBLEMÁTICA DA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA (EAD) EM TEMPOS DE COVID-19 E OS
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................................ 399
MAPEAMENTO DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: UMA ESTRATÉGIA DE LEITURA
LITERÁRIA..................................................................................................................................... 409
A VOZ NARRANTE NO TEXTO LITERÁRIO: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE LEITURA
COM PROFESSORES EM FORMAÇÃO ...................................................................................... 417
AS MICRONARRATIVAS LITERÁRIAS: UM CAMINHO PARA A LEITURA LITERÁRIA NO
ENSINO BÁSICO?.......................................................................................................................... 429
“O SOL NA CABEÇA”, DE GEOVANI MARTINS: ENSINANDO A TRANSGREDIR A PARTIR
DE UMA PROPOSTA DESCENTRALIZADORA DE LEITURA E ESCRITA LITERÁRIA .... 436
“ERA UMA VEZ” ... AS PRÁTICAS SOCIAIS E VIRTUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL EM
TEMPOS DE PANDEMIA ............................................................................................................. 450
LEITURA DE CHARGES: UMA ANÁLISE À LUZ DA PERSPECTIVA DIALÓGICA DA
LINGUAGEM ................................................................................................................................. 459
PROPOSTAS DE PRODUÇÃO DE SEMINÁRIOS EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO
MÉDIO............................................................................................................................................. 469
O PROCESSO DA ESCRITA NA PRODUÇÃO TEXTUAL DE ALUNOS DO ENSINO
FUNDAMENTAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ............................................................... 485
IMAGENS DO LUGAR DO ESPANHOL NO ENSINO FUNDAMENTAL EM RELATÓRIOS DE
ESTÁGIO DA UFRN ...................................................................................................................... 500
MARCAS DE REMISSÃO A DISCURSOS OUTROS NA ESCRITA DE ALUNOS DO ENSINO
FUNDAMENTAL ........................................................................................................................... 508
DA PROPOSTA À REDAÇÃO NOTA MIL DO ENEM 2019: ANÁLISE DA ESTRUTURA DE
UM TEXTO ..................................................................................................................................... 519
HETEROGENEIDADE E(M) DISCURSO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O OUTRO E O
DIFERENTE .................................................................................................................................... 529
UM ESTUDO SOBRE A GÊNESE DOS PERIÓDICOS CIENTÍFICOS BRASILEIROS .......... 543
DISCURSO RELIGIOSO E SILENCIAMENTO NA ESCRITA: UM ESTUDO DE CASO ....... 557
LEITURA DE SI E ESCRITA DO MUNDO: SOBRE TRADUZIR E FAVORECER
DESLOCAMENTOS ....................................................................................................................... 569
A RECATEGORIZAÇÃO DO OBJETO DE DISCURSO ISOLAMENTO NA PÁGINA RECIFE
ORDINÁRIO NO TWITTER ........................................................................................................... 583
AFINAL, O QUE É “ESQUERDA”?: UM ESTUDO SOCIOCOGNITIVO ACERCA DA
REFERENCIAÇÃO DA CATEGORIA “ESQUERDA” EM TWEETS DE SUJEITOS DE
POSICIONAMENTO POLÍTICO DE EXTREMA DIREITA ....................................................... 594
O DISCURSO JURÍDICO E AS PROVAS RETÓRICAS EM UM PROCESSO JUDICIAL:
ANÁLISE DE UMA PETIÇÃO INICIAL ...................................................................................... 608
A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA APRESENTADA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA
ESPANHOLA: UMA ANÁLISE DOS LIVROS ENTRE LÍNEAS 7 E CAMBIO 8 .................... 617
MOBILIZANDO NOÇÕES SOBRE AUTORIA E AUTORIALIDADE NOS DISCURSOS ...... 633
A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO DO LEITOR NO CONTO TIGRELA, DE LYGIA FAGUNDES
TELLES ........................................................................................................................................... 646
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DO GÊNERO EPOPEIA NA ESCOLA ................................ 656
DISCURSO POLÍTICO, IDENTIDADE E IDEOLOGIA NAS POSTAGENS DO FACEBOOK 668
IDEOLOGIA E TOMADAS DE POSIÇÃO: A IMPORTÂNCIA DA(S) FORMAÇÃO(ÕES)
DISCURSIVA(S) NA/PARA MOBILIZAÇÃO DE SENTIDO(S) ................................................ 685
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Resistência. Essa é a palavra que nos move e nos moveu neste período de pandemia
para a realização do nosso evento de forma remota e para a publicação deste Anais. Em anos em que
a ciência é ameaçada e as instituições de ensino perdem recursos e precisam sustentar suas atividades
remotamente, precisamos resistir e nos reinventar para dar continuidade aos nossos projetos e esta
publicação é fruto dessa resistência.
Em nome dessa resistência, no ano de 2020, nos dias 3 e 4 do mês de dezembro,
realizamos o IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso (IV SETED), no formato remoto, por
meio das plataformas Youtube e Google Meet, unindo professores e alunos de diversos países sem
saírem de suas casas. Esse seminário é o evento anual de socialização de pesquisas criado pelo Grupo
de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED), parceiro da Associação Nacional de
Pesquisa na Graduação em Letras (ANPGL).
O GETED, fundado em 2010 e registrado junto ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), é liderado pela Profa. Dra. Sulemi Fabiano
Campos e hoje conta com aproximadamente 32 membros, dentre os quais estão alunos da graduação,
Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu, bem como professores do ensino básico e superior. Durante
o IV SETED, comemoramos 10 anos de criação do grupo e suas contribuições para produção de
conhecimento, que contava com 18 dissertações, 20 artigos científicos, 22 livros, organização de
livros e capítulos e 6 teses até o ano de 2020.
Tendo em vista a expansão do evento no seu formato remoto, que possibilitou amplas
inscrições para pesquisadores do Brasil e do mundo, o evento teve como tema "Leitura e Escrita em
qualquer língua, suporte ou perspectiva" e tornou-se espaço para o compartilhamento de resultados
de pesquisas diversas, em especial as desenvolvidas pelo GETED, que têm como foco a análise
discursiva de produções textuais da educação básica e superior.
Nesta edição do evento, tivemos 6 mesas redondas, divididas nos dois dias do
seminário. A mesa de abertura, “Políticas para pesquisa e ensino de leitura e a escrita em defesa da
vida”, tratou do momento de pandemia em que estamos vivendo e da importância da ciência para
defesa da vida, como forma de romper com o negacionismo instaurado no Brasil. A segunda mesa,
“Reflexos das perspectivas teóricas e do multilinguismo na escrita e leitura na escola básica”, foi
marcada pela discussão sobre a escrita na escola básica em diferentes realidades, do Brasil ao
Marrocos. A terceira mesa redonda, “O fazer científico presente na universidade e a produção de
conhecimento”, debateu a produção de conhecimento nas universidades, suas dificuldades e o
caminho para superá-las.
No segundo dia, tivemos a quarta mesa redonda do evento, intitulada “A escrita na
formação de professores e a produção científica” cujos participantes discorreram sobre a importância
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da produção científica para a formação de professores que sejam também pesquisadores. A quinta
mesa teve como tema “Escrita e produção de conhecimento: línguas que definem as perspectivas
teóricas”, em que a produção no ensino superior foi foco de discussão, especialmente o modo como
os pesquisadores definem suas fundamentações teóricas. Por fim, a mesa de encerramento, intitulada
“Relatórios de estágios como suporte para circulação ou produção de conhecimento: texto e discurso”
foi marcada por debates sobre a escrita de graduandos e as imagens que eles constroem de si, dos
professores da escola básica e do próprio fazer do professor por meio de seus relatórios de estágio.
Todas essas mesas podem ser (re)assistidas por meio do canal do GETED no Youtube.
Além das mesas redondas, o IV SETED contou com 18 simpósios: “Ler e escrever na
América Latina”; “Ler e escrever nas línguas da África”; “Leitura, escrita e formação na universidade
contemporânea: (re)produção de conhecimento”; “Gêneros do discurso e multiletramentos nas
práticas de Leitura e de Escrita no ensino de línguas”; “Os gêneros do discurso: perspectivas
bakhtinianas”; “Diferentes gêneros discursivos em análise”; “Leitura e Escrita em suporte eletrônico:
o ensino remoto e a educação a distância”; “Do planejamento pedagógico ao ensino de leitura e
escrita: discursos, abordagens teóricas e práticas de ensino”; “Educação, formação de professores e
tecnologias digitais da informação e comunicação: interações, linguagens e experiências de
pesquisa”; “Caminhos para a leitura e a escrita do texto literário”; “Práticas e experiências de ensino
de Língua Portuguesa na Educação Básica”; “Discurso, Leitura e Escrita”; “Escrita, leitura e
heterogeneidade enunciativa: da escola à universidade”; “Lacan com Freire: escrever para além da
cultura do silêncio”; “Argumentação, discurso e texto: possibilidades de diálogos”; “Linguagem,
interculturalidade e decolonialidade: potenciais para o estudo de discursos e práticas comunicativas”;
“Discurso e Enunciação”; e “Estudos do discurso: perspectivas crítica e transdisciplinar”. Esses
simpósios acolheram diversas comunicações orais e foram realizados por meio do Google Meet,
possibilitando o acesso de pesquisadores de diferentes estados e países.
Dentro desses simpósios, contamos com 216 comunicações inscritas e com 473
participantes de instituições diversas, cerca de 71, que tornaram esse evento de grande alcance, com
participação de muitas instituições brasileiras, mas também internacionais, como universidades
argentinas, moçambicanas, angolanas, marroquinas, entre outras. Além disso, também destacamos os
grupos de pesquisa da rede que estão envolvidos no evento, sendo eles: Grupo de Pesquisa em Estudos
do Texto e do Discurso (GETED); Grupo de Estudos Escrita e Produção de Saberes (GEEPS); Grupo
de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso; Leitura e Escrita (GEPADLE); Grupo de Estudos
sobre Texto e Enunciação (GETEn); Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise
(GEPPEP); Grupo de Pesquisa de Pesquisa em Discurso, Sujeito e Ensino (DISSE); Grupo de
Pesquisa “Análise Textual dos Discursos” (ATD); Grupo de Pesquisa Ensino, Leitura e Escrita
(GPELE); Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Formatação e Prática Docente de Línguas; Práticas de
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sustentado por uma língua dominante. A abordagem dialoga com a proposta do texto que segue, “A
língua como base da identidade cultural dos povos”, o qual defende que as aulas de História
constituem um espaço de desenvolvimento da identidade cultural dos estudantes com vistas à
compreensão e à valorização das diversidades linguísticas em Angola.
Fechando os trabalhos do simpósio, em “Letramentos na perspectiva decolonial: a
experiência do projeto de extensão brinquedoteca de histórias”, encontramos o relato de uma
experiência vivenciada no âmbito do Projeto de Extensão “Brinquedoteca de histórias: ludicidade,
contação de histórias e vivências de letramento na infância”, da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. O destaque do relato está em oportunizar vivências
lúdicas que contemplem, entre as diversas possibilidades do brincar, a fruição da literatura infantil e
a contação de histórias a partir de ferramentas digitais em virtude da pandemia de covid-19.
O Simpósio “Leitura, escrita e formação na universidade contemporânea: (re)produção
de conhecimento”, mediado pela Profa. Dra. Marinalva Vieira Barbosa (UFTM) e pelo Prof. Dr.
Thomas Massao Fairchild (UFPA), discutiu trabalhos que tivessem como foco a leitura e escrita
acadêmica, a fim de problematizar as produções universitárias – tanto no âmbito da graduação quanto
da pós-graduação, em diferentes áreas – e refletir sobre que elementos tornam possível que um texto
seja considerado bom e fruto de um trabalho em que o sujeito está implicado e produz algo de próprio
na sua área.
No âmbito desse simpósio, temos como representante o trabalho “Escrita sobre as práticas
de ensino e apropriações das teorias linguísticas: uma análise discursiva dos relatórios de estágio
supervisionado”, que reflete sobre a constituição de conhecimento e do próprio sujeito produtor em
relatórios de estágio supervisionado, a partir da análise de 20 relatórios de estágio no curso de Letras
na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Para isso, a pesquisa teve como base os
pressupostos teóricos de Barzotto (2007); Geraldi (2003); Bianchi (2002) e Vásquez (1977).
O Simpósio “Gêneros do discurso e multiletramentos nas práticas de leitura e escrita no
ensino de línguas”, por sua vez, foi coordenado pelas professoras Dra. Eliane Pereira dos Santos
(UFMA) e Dra. Maria Francisca da Silva (UFMA) com a motivação de abraçar trabalhos que
discutem as práticas de leitura e escrita a partir da perspectiva de multiletramentos.
Nele, o trabalho “Educação em tempos de pandemia: o uso do gênero meme no ensino de
língua portuguesa” discute estratégias de leitura e produção textual a partir do gênero meme,
destacando a funcionalidade do gênero digital e o seu papel na interação social em tempos de
pandemia. O trabalho “Multiletramentos: contribuições para o trabalho com as tecnologias no ensino
de língua portuguesa” também se volta para o ensino de língua, e traz uma revisão bibliográfica sobre
as contribuições dos estudos em multiletramentos para o fortalecimento do ensino a partir de
tecnologias educacionais.
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que explore a concisão da micronarrativa literária a partir dos pressupostos da Análise do Discurso.
Já o artigo “O sol na cabeça, de Geovani Martins: ensinando a transgredir a partir de uma
proposta descentralizadora de leitura e escrita literária”, rompe com a definição dominante de
literatura e discute a descentralização do lugar de fala, dando voz à favela, de modo a abordar o ensino
de literatura sob a perspectiva da diversidade social e cultural.
O Simpósio “Práticas e experiências de ensino de Língua Portuguesa na Educação
Básica” foi coordenado pelas Profa. Dra. Valnecy Oliveira Corrêa Santos (UFMA/GETED), Profa.
Ma. Maria de Jesus Melo Lima (SEEC/RN e PPgEL/UFRN/GETED), Profa. Dra. Ana Maria de
Oliveira Paz (PPgEL/UFRN) e pelo Prof. Dr. Joil Antonio da Silva (UNEMAT/GETED. Este
simpósio objetivou reunir trabalhos de pesquisa sobre práticas de ensino de Língua Portuguesa na
Educação Básica, com o intuito de estabelecer um diálogo sobre o que se tem constituído como
práticas de ensino de Língua Portuguesa e de que forma a constituição da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) interpela as práticas docentes.
O trabalho “Leitura de charges: uma análise à luz da perspectiva dialógica da linguagem”
se propôs a fazer uma análise discursiva de charges, bem como apresentar uma proposta de leitura à
luz de uma perspectiva dialógica da linguagem. Enquanto o trabalho “Propostas de produção de
seminários em livros didáticos do Ensino Médio” se propôs a analisar propostas de produções de
seminários em três livros didáticos do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª série), com ênfase nas etapas de
planejamento e execução do gênero.
Sob a condução do Prof Dr. José Antônio Vieira (CESPE/UEMA) e da Profa. Dra.
Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro (PPGLB/UFMA), o Simpósio “Discurso, Leitura e Escrita”
teve como ideia central a criação de um espaço para os trabalhos que compreendem toda a produção
discursiva como uma construção social, refletindo sobre uma visão de mundo vinculada aos
pesquisadores filiados às diferentes abordagens dos estudos discursivos que problematizam os
sujeitos e a sociedade em que vivem a partir do contexto histórico-social e de suas condições de
produção.
O trabalho “O processo da escrita na produção textual de alunos do Ensino Fundamental:
uma análise comparativa” se propôs a fazer uma análise do processo de escrita dos alunos do ensino
fundamental, observados em contextos multiculturais (Brasil e Peru). Já o trabalho “Imagens do lugar
do espanhol no Ensino Fundamental em relatórios de estágio da UFRN” a partir de operações
linguístico-discursivas, se propôs analisar as imagens presentes nos relatórios sobre o lugar do
espanhol no ensino fundamental.
Coordenado pelas Profa. Dra. Maria Aparecida da Silva Miranda (SEEC/RN-
GETEDUFRN), Profa. Dra. Katia Cilene Ferreira França (GEEPS-UFMA/GETED) e Profa. Ma.
Maria Claudiane Silva de Souza (SEEC/RN-GETEDUFRN), o Simpósio “Escrita, leitura e
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podem ser analisados a partir da tríade ethos, pathos e logos, os proponentes objetivavam discussões
entre estudos sobre argumentação.
O artigo “A recategorização do objeto de discurso isolamento na página Recife Ordinário
no Twitter” aborda os processos referenciais para o termo isolamento em uma página do Twitter. As
autoras se apoiam em pressupostos da Linguística Textual para demonstrar que os usuários
recategorizam o termo com base tomando como base suas perspectivas linguísticas, sociocognitivas
e interacionais.
O trabalho seguinte, intitulado “Afinal, o que é ‘esquerda’?: um estudo sociocognitivo
acerca da referenciação da categoria ‘esquerda’ em tweets de sujeitos de posicionamento político de
extrema direita”, trata da referenciação da categoria “esquerda” em textos de tendência para a extrema
direita. As autoras analisam publicações entre 2016 e 2019, as quais demonstram maior representação
para referenciações relacionadas a autoritarismo e manipulação.
No texto “O discurso jurídico e as provas retóricas em um processo judicial: análise de
uma petição inicial” temos uma proposta de pesquisa qualitativa e interpretativa que une Linguística
e Direito. O objetivo é analisar a construção de imagens por meio da argumentação em um processo
judicial, dando ênfase a aspectos retóricos e discursivos, a partir da noção de ethos.
O Simpósio “Linguagem, interculturalidade e decolonialidade: potenciais para o estudo
de discursos e práticas comunicativas”, coordenado pelo Prof. Dr. André Marques do Nascimento
(UFG), discutiu pesquisas que versassem sobre leitura, escrita e oralidade nos campos da Retórica e
da Linguística Textual em textos e discursos de diversas naturezas, com foco nos estudos sobre
Argumentação, Discurso e Texto, bem como as estratégias retóricas e textuais mobilizadas nos mais
diversos gêneros textuais e/ou discursivos orais e/ou escritos em diferentes espaços sociais.
Como trabalho representativo desse simpósio, temos “A diversidade linguística
trabalhada em livros didáticos de Língua Espanhola: uma análise dos livros Entre Líneas 7 e Cambio
8”, que teve como objetivo analisar como a diversidade linguística é apresentada por meio dos livros
didáticos “Entre Líneas 7” e “Cambio 8”, uma vez que esse é um tema orientado pelas Orientações
Curriculares Nacionais (OCN) do Brasil.
O Simpósio “Discurso e Enunciação”, foi mediado pela Profa. Dra. Adriana Santos
Batista (UFBA), Profa. Ma. Aline Maria dos Santos Pereira (UNEB) e Prof. Dr. Luiz Felipe Andrade
Silva (UFBA) e teve como proposta dialogar sobre trabalhos em em “diferentes perspectivas teóricas
dos estudos discursivos e enunciativos, em que se promovam: 1) reflexões teórico-epistemológicas
em torno dos conceitos de discurso e/ou enunciação; 2) análises de diferentes materialidades que
tenham como foco descrição e problematização de estratégias discursivas e/ou enunciativas; ou 3)
discussões sobre a produção acadêmica brasileira contemporânea acerca desses conceitos”.
O artigo “Mobilizando noções sobre autoria e autorialidade nos discursos”, parte desse
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simpósio, propõe-se a analisar a autoria como fenômeno discursivo do campo literário, por meio da
discussão dos conceitos “discurso autorial”, “autor”, “nome de autor” e “enunciado complexo”, com
base na teorização de Maingueneau (2006; 2009; 2010), Costa (2016), Foucault (2009), Bakhtin
(1997), e Barthes (2004).
Por sua vez, o Simpósio “Estudos do discurso: perspectivas crítica e transdisciplinar”,
coordenado pelo Prof. Dr. João Batista da Costa Júnior (UFRN), Prof. Dr. Paulo Sérgio da Silva
Santos (UFS), Profa. Dra. Taysa Mércia dos Santos Souza (UFS) se propôs a discutir a relação entre
linguagem e sociedade na modernidade recente por meio de pesquisas afins aos campos da Dialógica
do Discurso, Análise do Discurso de Linha Francesa e Análise Crítica do Discurso.
Nesse âmbito, o texto “A importância da função do leitor no conto Tigrela, de Lygia
Fagundes Telles” analisa o papel da função leitor no conto “Tigrela”, de Lygia Fagundes Telles, sob
a ótica do fantástico, as pesquisadoras se pautam teoricamente em Tzvetan Todorov, Wolfgang Iser,
e Umberto Eco.
O artigo “A importância da leitura do gênero epopeia na escola” busca – pautado nos
estudos da apropriação do saber por meio da literatura – estudar o uso do gênero epopeia na escola e
se propõe a mostrar sugestões de atividades e de leitura comparativa que levem os alunos a ler o
gênero, por meio das Histórias em Quadrinhos, por exemplo.
Em “Discurso político, identidade e ideologia nas postagens do Facebook”, inserido nos
Estudos Críticos do Discurso em relação multidisciplinar com Filosofia, Comunicação e Ciência
Política, analisa os elementos verbais e visuais que marcam os posicionamentos ideológicos em
relação a questões políticas e as estratégias de “autoapresentação positiva em detrimento da ênfase
negativa do opositor” em páginas do Facebook.
Por fim, o trabalho “Ideologia e tomadas de posição: a importância da(s) formação(ões)
discursiva(s) na/para mobilização de sentido(s)” interpretou três textos propagandísticos da empresa
de cozinhas planejadas Todeschini, colocando o sujeito do discurso como foco e as interpelações
ideológicas e tomadas de posição envolvidas na constituição do sujeito como sujeito do discurso,
perpassado pelas formações discursivas, a partir das concepções de Foucault (1969), Pêcheux (1988)
e Indursky (2020).
A diversidade dos trabalhos publicados neste Anais aponta o quão amplo foi o IV SETED,
prova da nossa resistência em continuar produzindo e divulgando conhecimento científico.
Esperamos que o evento realizado em 2020 tenha sido proveitoso para você, assim como esperamos
que você possa encontrar o que procura nesta publicação.
Agradecemos a todos aqueles que se dispuseram a participar do evento, seja como
organizador ou auxiliar na execução de partes do evento, seja como preletor/mediador de mesas, seja
como comunicador ou ouvinte. A sua participação foi e é valiosa para nós!
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Aguardamos sua presença e parceria na realização do V SETED! Por ora, boa leitura!
Com apreço,
Os organizadores.
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RESUMO
Este trabalho apresenta alguns conceitos referentes ao tema Cultura, Educação e Diversidade, tendo
como foco central a abordagem da “língua” como patrimônio cultural de um povo e em específico a
língua espanhola. No artigo faz-se, ainda, uma análise de algumas políticas linguísticas brasileiras,
com relação ao ensino de língua espanhola em nossas escolas. Compreender uma língua seja no
âmbito oral e/ou textual são importantes e os estudantes carecem desta apropriação, porém, o ensino
da língua espanhola busca não somente a apropriação por parte do aluno das habilidades linguísticas,
mas também que este possua uma compreensão cultural e social dos falantes deste idioma.
Atualmente o conceito de cultura não está centrado apenas a eventos culturais, mas sim com uma
relação entre cidadania, sustentabilidade, patrimônio cultural e outros campos. É através da educação
que conseguimos compreender a importância dos conhecimentos culturais. Considerando que a
cultura permeia o processo de escolarização, que é construída a partir das diferenças e se manifesta
na diversidade, estes conceitos devem ser melhores compreendidos, principalmente por nós
professores, que somos os principais agentes do ensino aprendizagem. Sendo a cultura patrimônio de
um povo, devemos como educadores cuidar para que este seja repassado de maneira íntegra para
nossos alunos, para que estes possam conhecer, valorizar, difundir e respeitar a sua própria cultura e
principalmente a cultura do outro, e sendo a língua um patrimônio indispensável para a preservação
da identidade cultural de um povo, o ensino de uma Língua Estrangeira não deve trazer somente a
parte gramatical para dentro da sala de aula, mas também toda a sua cultura, seus costumes, suas
crenças. Com relação ao ensino da Língua Espanhola em específico, foi criado em 2005 a Lei
11.161/2005 conhecida como a Lei do Espanhol que tratava da oferta obrigatória da disciplina de
Língua Espanhola no Ensino Médio e opcional para o Ensino Fundamental. Esta lei foi um ganho
importante no que tange as políticas linguísticas brasileira, pois pela primeira vez em nosso país foi
aprovada uma lei que trata exclusivamente da inserção da língua espanhola dentro de nossas escolas.
Infelizmente em 2017, a Lei 13.415 revoga a chamada Lei do Espanhol e, entre outras finalidades,
altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Com a Lei 13.415 o espanhol perde seu espaço dentro das instituições de ensino, esta lei
traz a oferta obrigatória da língua inglesa na educação fundamental, a partir do sexto ano,
desconsiderando e revogando a possibilidade da escolha da língua estrangeira nesse seguimento de
acordo com a comunidade escolar e, a obrigatoriedade do ensino de língua inglesa também no ensino
médio. Com essa perda significativa para o ensino da língua espanhola, também se perde a
oportunidade de conhecer sobre muitas culturas presentes dentro da América Latina, culturas estas
que possuem o espanhol como língua materna para mais da metade dos latinos americanos.
INTRODUÇÃO
1
rosangela.kuspiosz@hotmail.com UNICENTRO (mestranda).
2
cibelekl@gmail.com UNICENTRO (Prof.ª Drª.).
19
Com relação aos estudos culturais Costa, Silveira e Sommer (2003, p.40), destacam que,
eles não constituem um conjunto articulado de ideias e de pensamentos, eles são e sempre foram um
conjunto de formações instáveis e descentradas, devido as suas diferentes posições teóricas e os seus
vários caminhos de pesquisa podendo ser descritos como um tumulto teórico. Os autores também
salientam que:
Os Estudos Culturais não pretendem ser uma disciplina acadêmica no sentido tradicional,
com contornos nitidamente delineados, um campo de produção de discursos com fronteiras
balizadas. Ao contrário, o que os tem caracterizado é serem um conjunto de abordagens,
problematizações e reflexões situadas na confluência de vários campos já estabelecidos, é
buscarem inspiração em diferentes teorias, é romperem certas lógicas cristalizadas e
hibridizarem concepções consagradas.
A cultura não pode ser mais concebida como acumulação de saberes ou processo estético,
intelectual ou espiritual. A cultura precisa ser estudada e compreendida tendo-se em conta a
enorme expansão de tudo que está associado a ela, e o papel constitutivo que assumiu em
todos os aspectos da vida social (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 38).
Para o educador Paulo Freire (1984), cultura é todo resultado da atividade humana. A
cultura não está fora do homem ela é parte dele. Tendo, portanto, uma importância significativa para
o desenvolvimento do indivíduo o conhecimento acerca de sua cultura e também a do outro, percebe-
se a relevância de ensinar no ambiente escolar a valorização da mesma.
A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura),
importante colaboradora para a difusão da cultura no âmbito mundial, criou a Declaração Universal
da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, o documento foi aprovado em 2001 por 185 Estados-
Membros sendo pioneiro na definição, preservação e promoção da diversidade e do diálogo cultural
mundial. O documento destaca que:
20
a cultura deve ser considerada o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais,
intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange,
além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de
valores, as tradições e as crenças[...]
Educação e Cultura
Segundo Freire (1982), o processo educativo é organizado com a relação entre currículo,
cultura e conhecimento. A tarefa de envolver temáticas culturais no processo de ensino e
aprendizagem não pode vir dissociada de um planejamento, por isso é de sua importância que estas
constem no Projeto Político Pedagógico de cada instituição escolar. Hall (2003), afirma que os
estudos culturais abrangem e interagem dentro de inúmeras disciplinas, tendendo o estudo aos
aspectos culturais da sociedade. O que se propõe, entretanto, não é a constituição de uma disciplina
nova, mas a reflexão das limitações que elas possuem. Segundo Candau (2008, p.15):
Uma outra contribuição que consideramos muito interessante para uma nova compreensão
das relações entre educação e cultura (s) diz respeito a uma concepção da escola como um
espaço de cruzamento de culturas, fluido e complexo, atravessado por tensões e conflitos.
O trabalho com a cultura e a diversidade em sala de aula, muitas vezes é árduo para o
professor, pois é a partir da escola que os docentes sistematizam e objetivam o conhecimento de
mundo dos alunos, as questões sociais, culturais, entre outras. Sendo assim, surge a dicotomia de
como ensinar e do que ensinar. A dificuldade está, em primeiro lugar, no que os alunos trazem
internalizado, ideias e conceitos predeterminados, tornando ainda mais difícil essa questão de como
e o que ensinar. Sendo a sala de aula um ambiente multicultural, é necessária a realização de trabalhos
para a valorização e o respeito das diferenças presentes em cada aluno. Cabe aqui ressaltar o que
Moreira (2001, p.66) descreve a respeito da educação multicultural:
e das desigualdades, enfatizando-se que elas não são naturais e que, portanto, resistências são
possíveis.
A educação multicultural pode também ser usada, em outro enfoque, para integrar grupos
que contestem valores e práticas dominantes, celebrar manifestações culturais dominantes,
garantir a homogeneidade e tentar apagar (ou esmaecer) as diferenças, bem como evitar que
a compreensão da constituição das diferenças questione hierarquias estabelecidas.
Diversidade Cultural
Diversidade Linguística
Estima-se que mais de 250 línguas sejam faladas no Brasil entre indígenas, de imigração, de
sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades. Esse patrimônio
cultural é desconhecido por grande parte da população brasileira, que se acostumou a ver o
Brasil como um país monolíngue. Como resultado da mobilização da sociedade civil e de
setores governamentais interessados em mudar esse cenário, em dezembro de 2010 foi
publicado o Decreto Nº 7.387, que instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística
(INDL) como instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização
das línguas faladas pelos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (IPHAN,
2019).
Não só os índios foram vítimas da política lingüística dos estados lusitano e brasileiro:
também os imigrantes - chegados principalmente depois de 1850 - e seus descendentes
passaram por violenta repressão lingüística e cultural. O Estado Novo (1937-1945), regime
ditatorial instaurado por Getúlio Vargas, marca o ponto alto da repressão às línguas alóctones,
através do processo que ficou conhecido como “nacionalização do ensino” e que pretendeu
selar o destino das línguas de imigração no Brasil.
Segundo Hall (2003) a cultura deve ser trabalhada de maneira interdisciplinar. Esta
interdisciplinaridade pode ser explorada de maneiras distintas dentro de sala de aula, como por
exemplo, na aquisição de uma língua estrangeira. As cidades que fazem fronteira com outros países
têm, diariamente, contato com outros idiomas e suas variações, seja nas relações interpessoais,
econômicas, educacionais ou outras, e, portanto, acabam por apresentar uma maior diversidade
linguística e necessidade de se conhecer mais sobre o idioma “do outro”.
Em regiões de fronteira com países hispano-americanos a área de contato que os
indivíduos brasileiros possuem com uma segunda língua, o espanhol, é muito maior do que aquele
que quase não tem contato com estrangeiros, o que poderia resultar em percepções distintas sobre a
aquisição de uma segunda língua. A “Fronteira” não é somente a delimitação de territórios, ela é um
lugar diferenciado, onde línguas distintas se encontram e se misturam.
[...] a Fronteira não significa apenas pela sua relação espacial, como o lugar que marca o
limite entre territórios. Os limites cartográficos são referências simbólicas que significam a
fronteira através de um marco físico, embora a vida da fronteira, o habitar a fronteira
signifique, para quem nela vive muito mais, porque ela já se define em si mesma como um
espaço de contato, um espaço em que se tocam culturas, etnias, línguas, nações (STURZA,
2006, p. 26).
Estes diversos contextos fazem com que cada aluno construa uma relação diferente com
a língua estrangeira, principalmente pela frequência com que tem experiências comunicativas ou de
escrita em uma segunda língua. Em regiões de fronteira com países hispano-americanos a área de
contato que os indivíduos brasileiros possuem com uma segunda língua, o espanhol, é muito maior
do que aquele que quase não tem contato com estrangeiros, o que poderia resultar em percepções
distintas sobre a aquisição de uma segunda língua.
METODOLOGIA
CONSIDERAÇÕES
O presente artigo teve por objetivo, apresentar conceitos sobre cultura, educação e
diversidade com foco em especial na diversidade linguística e a importância do ensino da língua
espanhola não somente como instrumento de comunicação, mas também de imersão dentro da cultura
e da sociedade dos falantes de língua.
Sabe-se que um dos pontos fortes que levou à criação da lei n°. 11.161 de 05 de agosto
de 2005 foi o MERCOSUL, uma vez que o governo acreditava na importância do ensino do espanhol
que é a “língua mãe” de vários idiomas latinos. A projeção do governo na época em que a lei foi
sancionada era de que 10 anos após a implantação obrigatória do espanhol nas escolas de ensino
médio, 30 milhões de brasileiros seriam fluentes no idioma. Mas algo se perdeu pelo caminho e hoje,
14 anos após a lei ter sido sancionada, apenas estima-se que 18,5 milhões de brasileiros são fluentes
em espanhol como segunda língua.
26
Vários fatores podem ter contribuído para a falta de êxito, dentre eles a falta de
infraestrutura, falta de formação inicial e continuada de qualidade, falta de interesse por parte dos
alunos ou até mesmo a supervalorização da língua inglesa. É difícil apontar um fator principal,
acredita-se que tenha sido uma soma de vários desses fatores, porém, não justificaria o fato de acabar
com essa lei, afinal, qualquer redução na educação caracteriza uma grande perda para o aluno.
Acreditamos que a saída correta seria tentar encontrar outros caminhos para melhorar os índices de
ensino da língua espanhola e não simplesmente desistir dela.
Outra grande brecha dessa lei foi ter dado liberdade para as escolas decidirem se
implantariam o espanhol na grade curricular ou o ofertariam através do Centro de Língua Estrangeira
Moderna (CELEM). Isso pode ter sido um agravante na, já não tão boa, situação do ensino da língua
espanhola, uma vez que, quando ofertado o ensino do idioma através do CELEM, o mesmo seria feito
em horário distinto do qual o aluno estaria matriculado. Se a lei obrigasse a intercalação anual das
matérias de língua estrangeira moderna, talvez o ensino do espanhol ganhasse espaço no cenário
educacional do Brasil.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996
(estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira, e dá outras providências).
BRASIL. Lei n°. 11.161, de 05 de agosto de 2005. Dispõe sobre o ensino da língua espanhola. Diário
Oficial da União, n. 151, s. 1, p. 1, 8 ago. 2005.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. CARRARA, Ana Regina. LIMA, Thais. Cultura e
Educação na Sociedade Contemporânea. Cadernos Cenpec, 2010, n. 7.
CARVALHO, Mauro. A construção das identidades no espaço escolar. Revista Reflexão e Ação,
Santa Cruz do Sul, v.20, n1, p.209-227, jan./jun.2012.
CAVALCANTI, M. Línguas Ilegítimas em uma visão ampliada da educação linguística. IN: ZILLES,
A. M. & FARACO, C. A. A pedagogia da variação linguística. Parábola, São Paulo, 2015. pg. 287-
302
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
FREIRE, Paulo. Sobre Educação: diálogos (Paulo Freire e Sérgio Guimarães) – Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1982.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006.
STURZA, Eliana Rosa. In: Letras e Instrumentos Linguísticos, nº. 18, jul./dez.2006. Campinas,
SP: Universidade Estadual de Campinas: Pontes Editores, 2006. p.101-121.
Dabana Namone3
RESUMO
Na Guiné-Bissau falam-se várias línguas étnicas e a língua crioula, a mais falada. Contudo, a língua
portuguesa é a oficial e a única de ensino, embora seja falada apenas por 11% da população, cuja
maioria reside na capital Bissau. A transmissão dos conhecimentos entre diferentes grupos étnicos do
país é dominada pela tradição oral, transmitida pela na língua materna. A presente pesquisa analisou
o impacto da língua portuguesa (LP) no sistema de ensino da Guiné-Bissau, especialmente dos alunos
da 1ª a 4ª classe (série) da etnia Balanta-Nhacra, na região de Tombali, sul do país. Descreveram-se
a política educativa e linguística adotada pelo regime colonialista portuguesa e seu impacto após a
independência do país. Constatou-se que a LP é o principal fator de insucesso do sistema de ensino
guineense, na medida em que ela é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a
desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali,
protagonistas dessa pesquisa, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo - o idioma
mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas
sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à
realidade sociocultural desta nação. A metodologia utilizada consiste, na pesquisa
bibliográfica/documental e a pesquisa de campo: entrevista e observação direta, nas escolas e nas
tabancas/aldeias pesquisadas. A pesquisa foi realizada na região de Tombali, concretamente nas
quatro (4) escolas, a saber: Ensino Básico Unificado de Mato-Farroba (EBU de Mato-Farroba),
Ensino Básico Unificado de Cufar (EBU de Cufar), Escola de Autogestão de Mato-Farroba,
conhecida como Escola Tona Namone (EAG Tona Namone) e Escola de Autogestão de Areia,
chamada Escola Abêne (EAG Abêne). Foram entrevistados 16 estudantes, 8 professores e 3
especialistas, sendo 2 em educação e 1 em língua portuguesa.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
3
UNESP/ Araraquara – SP, Doutorado, dabana.namone@gmail.com
4
Os demais países que foram invadidos por Portugal são Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
29
No país falam-se varias línguas étnicas oriundas de diferentes grupos étnicos que o
compõem, tais como: Fulas, Balantas, Mandingas, Pepeis (ou papeis), Manjacos, Mancanhas (ou
Brames), Beafadas, Bijagos, Nalus, Felupes, Mansoancas, Sossos, Saracules, Tandas, Djacancas
entre outros menores. Além dessas línguas, temos também a língua crioula que é a mais falada,
sobretudo nas cidades. A língua portuguesa que, muito embora não seja língua materna da maioria
esmagadora da população sendo falada apenas por 11% dos guineenses (INEC, 1991), ou 11,08%
(SCANTANBURLO, 2013, p. 28), cuja maioria reside na capital Bissau, figura-se como única língua
oficial de ensino, sendo inglês e francês tidos como línguas complementares.
A presente pesquisa analisou o impacto da língua portuguesa (LP) no sistema de ensino
da Guiné-Bissau, especialmente dos alunos da 1ª a 4ª classe (série) da etnia Balanta-Nhacra, na região
de Tombali, sul do país. Constatou-se que a LP é o principal fator de insucesso do sistema de ensino
guineense, na medida em que ela é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a
desconhece, sobretudo no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali,
protagonistas dessa pesquisa, que só falam a língua materna, pois poucas falam o crioulo - o idioma
mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos alunos. Estes apenas
sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma língua estranha à
realidade sociocultural desta nação.
O trabalho está dividido em quatro seções: a primeira descreveu a política de assimilação
adotada pelo regime colonialista portuguesa e seu impacto após a independência do país; a segunda
apresentou caminhos metodológicos percorridos que permitiram a realização dessa pesquisa, cuja
metodologia consiste, na pesquisa bibliográfica/documental e a pesquisa de campo: entrevista e
observação direta, nas escolas e nas tabancas/aldeias pesquisadas; a terceira trouxe relatos dos
informantes que apontam que a metodologia utilizada para ensinar a LP como a língua materna,
contribuiu decisivamente no insucesso do sistema de ensino guineense e a quarta seção destacou
vários relatos dos nossos informantes, que são unanimes de que a LP é o principal fator de insucesso
escolar na Guiné-Bissau, na medida em que é ensinada como a LM/L1 num país cuja maioria dos
alunos a tem como língua estrangeira (LE). Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar não é dos
alunos. Estes apenas sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado em uma
língua estranha à realidade sociocultural do país.
1-) Ter 18 anos completos; 2-) Saber ler, escrever e falar corretamente em português; 3-) Ter
profissão ou renda que lhe assegurasse o suficiente para prover as suas necessidades e do
número de familiares; 4-) Ter bom comportamento, uma vida correta e possuir a instrução e
os costumes indispensáveis à aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos
portugueses; 5-) Não estar inscrito como refratário ao serviço militar e não ter desertado
(ALMEIDA, 1981, p. 37).
o africano “indígena”, que quisesse adquirir estatuto de assimilado, teria que renunciar a sua
cultura e a sua língua em proveito da cultura europeia “civilizada”, devendo falar
corretamente a língua portuguesa (NAMONE, 2020, p.100-101).
Namone (2020, p. 100) considera ainda que o sistema colonialista separou também esse
território em dois mundos: “o da cultura escrita – portanto, civilizado e avançado – e o da cultural
oral, selvagem e atrasado, sendo esse último relegado ao abandono”. Apesar das injustiças desse
regime, no período da luta pela independência (1963-1973), o PAIGC6 manteve a língua portuguesa
5
O Estatuto do Indígena era uma lei que visava à “assimilação” dos nativos na cultura lusa. Essa lei estabelecia três
grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos, estes últimos os portugueses natos. Os primeiros eram
considerados como aqueles que não têm direitos civis ou jurídicos e nem cidadania (NAMONE, 2020). Segundo este
estatuto, “são considerados indígenas os indivíduos da raça negra e os seus descendentes que nasceram ou vivem
habitualmente na província, sem possuir ainda a instrução e os costumes pessoais e sociais indispensáveis à aplicação
integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses” (ALMEIDA, 1981, p. 36).
6
PAIGC (Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo-Verde) foi o partido liderado por Amílcar Cabral, que
lutou e conquistou a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde da dominação colonialista portuguesa.
31
como a única de ensino nas zonas libertadas (doravante Z.L.), pois, segundo Amílcar Cabral (1979),
a língua crioula não reunia condições para desenvolver o processo educativo. Vale lembrar que:
quando o partido iniciou a educação nas Z.L, decidiu adotar o kriol como língua de ensino.
Pouco tempo depois, essa língua foi abandonada, através da decisão de Amilcar Cabral –
líder do PAIGC – ao chegar à conclusão de que o kriol dificultava esse processo de ensino
que se pretendia dinâmico, visto que a língua crioula não dispunha de escrita normalizada a
ser adotada, e que o país carecia de quadros especializados capazes de normalizar e fixar a
sua escrita (NAMONE, 2020, p. 110-111).
Diante desses desafios, não restava dúvidas para o líder do PAIGC de que a língua
portuguesa deveria ser a única de ensino na Guiné-Bissau até o país reunir as condições viáveis para
ensinar as línguas maternas, especialmente o crioulo – o que deveria ocorrer após a independência
(CABRAL, 1979). Segundo o ponto de vista de Cabral, em Guiné-Bissau, a língua portuguesa era a
única com um sistema de escrita desenvolvido, o qual faltava à língua crioula e às línguas étnicas.
Além disso, ela poderia ser usada para comunicar-se com o mundo, para avançar a ciência e a
tecnologia:
Nós, Partido, se queremos levar para frente o nosso povo durante muito tempo, [...] para
escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português. [...] Até
um dia em que de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrando todas as regras
de fonéticas boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo (CABRAL, 1979,
p.105-106).
Sendo assim, a língua portuguesa foi adotada no ensino das Z.L. No entanto, após a
independência, a elite política que assumiu o poder decidiu mantê-la como a única de ensino no país,
enquanto esperava criar condições que permitissem o uso do crioulo nas escolas, contudo, essas
condições não foram criadas até hoje. Enquanto isso, o português continua como único idioma de
ensino guineense. Ou seja, da independência até o presente momento, o país não estabeleceu nenhum
planejamento linguístico que levasse em consideração as línguas autóctones. Sendo a língua
portuguesa mantida como a única do ensino.
Mas, apesar de Cabral e os governantes que tomaram o destino da nação depois da
independência optarem pela adoção do português como a única língua de ensino, as consequências
de seu uso logo se fizeram sentir: de modo geral, os alunos guineenses não dominam esse idioma.
Essa situação é pior nas zonas rurais, fato que interferem negativamente dos seus rendimentos
escolares, resultando em reprovações de grande parte deles. Pois, a metodologia usada para ensinar
esse idioma no sistema de ensino guineense contribui para seu insucesso, como veremos na próxima
seção.
Os caminhos metodológicos
32
Aluno EBU1-1; Aluna EBU1-2; Prof. EBU1-1; Prof. EBU1-2; DRE/C1; DRE/C2;
Aluno EBU1-3; Aluna EBU1-4; Profa. EAG1-1; Prof. EAG1-2; ESP/FEC1.
Aluno EAG1-1; Aluna EAG1-2; Prof. EBU2-1; Prof. EBU2-2;
Aluno EAG1-3; Aluna EAG1-4; Profa. EAG2-1; Profa. EAG2-
Aluno EBU2-1; Aluna EBU2-2; 2.
Aluno EBU2-3; Aluna EBU2-4;
Aluno EAG2-1; Aluna EAG2-2;
Aluno EAG2-3; Aluna EAG2-4.
O português até hoje não é praticamente falado como língua vernácula na Guiné-Bissau. Ele
só é adquirido como língua materna, por uma insignificante franja de filhos de guineenses
que, tendo estudado em Portugal ou no Brasil, adotaram-na como língua de comunicação
familiar.
O aluno logo desde a 1ª classe o que vai aprender é igual ao aluno de 1ª classe, por exemplo,
em Portugal ou no Brasil. O fato é que os alunos de Portugal e do Brasil já sabem a língua
portuguesa quando vão para escola. E os alunos da Guiné-Bissau, a maioria, quase todos –
então nas regiões de Quinara e Tombali eu imaginaria que 99% – não sabem a LP. Não sabem
falar, nem ouvir, nem ler e nem escrever e quando entram para escola, o programa curricular
da Guiné-Bissau não está adaptado e vai começar a falar da gramática, dos verbos, dos
advérbios, das preposições para o aluno como se ele já soubesse falar a LP. Mas o aluno não
sabe falar a LP e nem tem minimamente a noção de como se comunicar nessa língua.
(ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
aluno tem que aprender a expressar oralmente da LP; tem que aprender primeiros os vocabulários
dessa língua e não dar mais atenção à parte formal, por exemplo, os verbos, os pronomes, os advérbios
etc”. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone). O
mencionado informante explica que:
Quando aprendemos uma língua estrangeira, por exemplo, a língua inglesa, no primeiro ano
os verbos são dois ou três. A maioria das coisas que você aprende são os vocabulários,
pequenas frases, como cumprimentar as pessoas, como falar vou à feira fazer compras, como
pedir as coisas, perguntar quanto custa. Ou seja, aprender coisas do cotidiano do dia a dia,
aprender os sons daquela língua, aprender as semelhanças daquela língua com a sua língua
materna. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone).
Mas, para ele, não é isso que está sendo feito com as crianças guineenses. O que ocorre
hoje na Guiné-Bissau é como se a LP fosse língua materna delas, partindo do princípio de que elas já
sabem falar a LP. Nesse contexto, o aluno estuda LP até a nona classe, mas, mesmo assim, não sabe
usá-la para se comunicar. Ou seja, o aluno faz um percurso de 9 anos ouvindo a LP sem conseguir
falar o idioma.
Mas, se você perguntar as coisas formais da LP, por exemplo, o tempo verbal ou o que é um
nome, o que é um verbo, o que é um adjetivo, eles sabem. Aquelas coisas formais de uma
língua, os bons alunos sabem. Por quê? Porque o programa curricular da Guiné-Bissau, ou
seja, o currículo que os professores têm que cumprir, é um currículo formal e tradicional da
LP, que ensina os verbos, as classes das palavras, como dividir os parágrafos, tipos de textos.
Mas há pouco espaço para treinar a oralidade e acho que a oralidade que é o segredo de
qualquer língua. (ESP/FEC1. Buba/Guiné-Bissau, out: 2019. Entrevista concedida a Dabana
Namone).
Porque imagine um nativo que nasceu numa determinada zona, por exemplo, aqui
na região de Tombali – predominada pela etnia Balanta – para um aluno balanta falar a LP
tem que fazer a ligação entre três línguas: primeiro da língua balanta (LBal) para LC e desta
para LP. Isso cria muitas dificuldades para ele. (O DRE/C2. Catió /Guiné-Bissau, jun.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).
Ainda o DRE/C2 critica que, em vez de ensinar o aluno a ter contato e aprender os
vocabulários da LP através da oralidade, fazendo-os dialogar entre si, eles são ensinados logo de
início apenas a gramática:
35
Se você ensinar o aluno baseando-se apenas na gramática, tais como: o que é verbo, o que
são os pronomes, os adjetivos, entre outros, será que esse aluno um dia vai conseguir
comunicar na LP? Achamos que não. Por que não ensinamos a LP como a L2? Por que não
fazemos os alunos de 1º e 2º anos ter contato com a língua portuguesa criando-os diálogo,
estimulando-os a falar? (DRE/C2. Catió/Guiné-Bissau, jun.: 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).
Chico (2012) já vinha chamando atenção sobre a metodologia usada para ensinar a LP
nas escolas guineenses, ao considerar que essa metodologia,
Diallo (2007) foi mais radical no assunto, considerando que nenhum país do mundo
conseguiu desenvolver-se na base de um sistema educativo em que o ensino é exclusivamente
ministrado numa língua em que a maioria da população ignora. Para ele “o desenvolvimento durável
é possível só quando acompanhado por um sistema educativo em que as comunidades beneficiárias
se apropriam dele” (DIALLO, 2007, p. 8). E ainda afirma que
Contudo, este problema continua sendo ignorado, até hoje, pelos sucessivos governantes
guineenses, que em vez de adotar uma metodologia de ensino da LP adequada à realidade
sociolinguística do país, continuam ensinando-a como a língua materna para os alunos, cuja maioria
não tem o mínimo conhecimento dela, o que prejudica a sua aprendizagem, resultando em
reprovações e abandono escolar.
Imagine, por exemplo, nessas regiões, caso concreto aqui no sul, a maioria dos alunos falam
a língua da sua etnia. Aliás, aconteceu comigo aqui na escola mesmo a menos de dois meses
o seguinte: expliquei as matérias em português, no final, um aluno virou e falou com o seu
colega na língua balanta: “tudo que o professor falou até agora não entendi nada”. Logo, o
colega dele virou para mim e disse em crioulo: purssor, nha colega fala kuma i ka ntindi nada
ki bu fala. [professor, meu colega diz que não entendeu nada que você disse até agora]. Aí,
perguntei: por quê? Ahah...kima i ka sibi papia purtuguis. [Ahah... ele diz que não sabe falar
o português] – respondeu o colega. Olha só... Isso me marcou muito, pois acontece que o
mesmo aluno não domina também a língua crioula e eu não domino a língua balanta. Ou seja,
isso cria um pouco de limitação ao aluno. O aluno fica limitado e mesmo que tem dúvidas
fica com dificuldade de apresentá-las, porque tem medo de que se falar errado os colegas vão
rir dele na sala. Por isso, se verifica na sociedade, às vezes você que tem dificuldade de falar
uma língua fica com medo de falar porque acha que se falar errado as pessoas vão rir. (Prof.
EBU2-2. Cufar /Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
O caso relatado por esse professor sobre seu aluno não é um caso isolado. É, sim, o retrato
de um problema que a maioria dos alunos enfrenta na escola, principalmente nas zonas rurais do país,
como é o caso dos alunos balantas pesquisados. A LP é praticamente inexistente no seu vocabulário,
fato que gera muitas dificuldades ao longo da sua trajetória escolar.
Percebe-se que esse aluno, além de ter dificuldades na LP e na LC, apresenta também
outros problemas decorrentes do anterior, isto é, timidez, medo ou vergonha de apresentar suas
dúvidas e expressar suas opiniões na sala de aula. Nesse caso, apesar de estar com dúvidas, ele mesmo
não conseguiu apresentá-las ao professor. Isso acontece porque o aluno/a fica com medo ou vergonha
de falar a LP, pensando que se errar será alvo de ridicularização por parte dos seus colegas. Ou seja,
é uma realidade que acontece com muitos estudantes guineenses, que ficam praticamente passivos na
sala de aula devido ao fato de ter dificuldades na LP, ficam com medo ou vergonha de falar para não
sofrer bullying por parte dos colegas, fato que obriga muitos/as a ficarem o tempo todo calado/a na
sala de aula.
O Prof. EBU2-2 aponta ainda as consequências negativas da LP no ensino básico,
explicando que muitas das vezes o professor explica a matéria, passa um exercício no quadro e explica
e alunos compreendem bem, agora, para eles te responder aquele exercício na LP é onde eles
enfrentam dificuldades, sobretudo, na escrita. Mas, se fossem nas suas próprias línguas eles não
teriam dificuldade em responder. (Prof. EBU2-2. Cufar /Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).
Ademais, a Profa. EAG1-1 considera também que a língua portuguesa é o maior causador
das dificuldades nos alunos, uma vez que eles não têm habilidade nela, por falta de hábito de falar e
escrever. “Por exemplo, esses aqui da nossa escola falam sempre a língua balanta, porque quase
todos são Balantas, o que interfere na aprendizagem tanto da língua crioula como da língua
portuguesa”. (A Profa. EAG1-1. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista concedida a
Dabana Namone).
Por seu turno, o Prof. EAG1-2 segue apontando o mesmo problema:
37
A primeira dificuldade dos alunos é da língua portuguesa. Por quê? Porque o aluno sai da
tabanca, na família falando a sua língua materna ao chegar à escola tudo muda, ou seja, o
aluno começa a lutar para se enquadrar na língua da escola [a LP]. Isso dificulta a sua
aprendizagem. Na escola, o professor tem que ter a concentração, porque se ele explicar as
matérias apenas em português, a maioria dos alunos não compreende, só um ou dois vão
compreender. (Prof. EAG1-2. Mato-Farroba/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019. Entrevista
concedida a Dabana Namone).
Também, a Profa. EAG2-2 acha que o primeiro fator de dificuldade dos alunos está na
falta de domínio da LP:
Para mim, o primeiro fator é o não domínio da língua portuguesa, porque em casa alunos
falam as línguas maternas e quando chegam na escola para estudar deparam com a língua
portuguesa que nunca aprenderam a falar, fato que prejudica sua aprendizagem, gerando
muitas dificuldades e reprovações. (Profa. EAG2-2. Areia/Guiné-Bissau, jun./jul.: 2019.
Entrevista concedida a Dabana Namone).
A criança aprende com mais facilidade e mais rápido na primeira língua, ou seja, a sua língua
materna. Por exemplo, essas que ainda não sabem falar a LC se você ensiná-las nas suas
línguas étnicas, vão apreender mais rápido. Agora, se forem ensinadas na língua que não
dominam, vão apreender com dificuldade. (Profa. EAG2-1. Areia/Guiné-Bissau, jun./jul.:
2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
O maior causador das dificuldades e reprovações dos alunos está na incompreensão da língua
do ensino (a LP). Por que reprovar significa o quê? Significa que o aluno estudou até o final
do ano, foi avaliado e em consequência dessa avaliação foi reprovado. E se o aluno não
38
conseguir resultado que o permite passar, significa que sua aprendizagem é insuficiente e
quando é assim, temos que procurar fatores que provocaram tal insuficiência e se você
pesquisar vai descobrir que o primeiro fator é a língua. Ou seja, aprendizagem dos nossos
alunos está fraca, mas a culpa não é do professor nem dos alunos e, sim, da incompreensão
da língua de ensino - LP. Porque aplicação do método depende mais do domínio de língua.
(DRE/C1. Catió/Guiné-Bissau, jun.: 2019. Entrevista concedida a Dabana Namone).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
7
Se entendermos o analfabetismo como um conceito que define a pessoa desprovida de conhecimento da escrita.
39
porque a “grande maioria dos alunos, principalmente das zonas rurais nascem e crescem sem ter
contato nenhum com o português. O contato com o português inicia-se na 1ª série de ensino quando
a aluno já está com 7, 8 ou 9 anos, atitude que dificulta a aprendizagem” (NAMONE; TIMBANE,
2018, p. 15).
O insucesso do sistema do ensino guineense deve-se à metodologia utilizada no ensino
da LP, uma vez que ela é ensinada segundo a metodologia da língua materna - LM, para crianças que
a desconhecem, independentemente se a escola se encontra na cidade ou nas zonas rurais. Ao
contrário, a língua crioula que é a mais falada e as línguas étnicas são ignoradas.
O ensino de língua portuguesa é desenvolvido por processos didáticos que se assentam
na repetição e na memorização, isto é, o aluno não é levado a perceber o conteúdo até ao ponto de
poder relacioná-lo com a sua realidade, num contexto comunicativo (CANDÉ, 2008). “Os alunos
decoram frases mecanicamente, sem nenhum senso crítico, porque o ensino da gramática ou o
funcionamento da língua é exclusivamente baseado na memorização” (COUTO; EMBALÓ, 2010,
p.41). Essa atitude reflete negativamente no resultado do aluno, pois, em momentos de avaliação,
esses alunos não conseguem desenvolver seu próprio raciocínio.
A metodologia da memorização inibe a criatividade do aluno e faz com que ele fique
preso em frases pré-elaboradas e ditas pelo professor, o que acarreta graves consequências para o
próprio aluno, em particular, e para o sistema de ensino em geral. Uma das principais consequências
desse método é o maior índice de reprovações e abandono escolar, fato que também não contribui
para a melhoria de qualidade da educação.
Portanto, quando se fala de insucesso escolar na Guiné-Bissau, deve-se ter na mente que
tal insucesso não se deve ao fato dos alunos terem dificuldades na aprendizagem escolar ou de
apresentarem maior índice de reprovações. O insucesso é do próprio sistema de ensino, na medida
em que a LP é ensinada como a língua materna das crianças, cuja maioria a desconhece, sobretudo
no interior do país, caso das crianças Balanta-Nhacra de Tombali, que só falam a língua materna, pois
poucas falam o crioulo - o idioma mais falado no país. Portanto, concluiu-se que o insucesso escolar
não é dos alunos. Estes apenas sofrem as consequências do insucesso no sistema de ensino pautado
em uma língua estranha à realidade sociocultural desta nação.
A realidade sociolinguística da Guiné-Bissau demostra que é urgente adotar a língua
crioula (ou guineense) no ensino, umas que é a mais falada pela maioria da população. Também, as
línguas étnicas devem ser valorizadas nas escolas, pois elas são as línguas maternas de muitas
crianças. A valorização das línguas maternas dos alunos na escola é um desafio que os governantes
guineenses e a sociedade em geral devem encarar como benéfica para o país. Pois, como dizem os
especialistas no assunto, o ensino na língua materna, além de facilitar a aprendizagem do aluno e
elevar a sua autoestima, facilita a sua aprendizagem nas outras línguas.
40
REFERENCIAS
DIALLO, I. GUINÉ-BISSAU: que papel e que lugar nas políticas nacionais de desenvolvimento e
estratégias de integração Subregional? INEP (mimeografado), Bissau, 2007.
INTRODUÇÃO
8
Mestrando em Educação/Ensino de Português na Universidade Pedagógica de Maputo. Docente do Departamento de
Letras e Ciências Sociais da Universidade Rovuma – Extensão de Cabo Delgado. andalitojoao@unirovuma.ac.mz
42
moçambicano e constituem a L1 da maioria dos seus falantes, entretanto, o português é a língua mais
falada nas zonas urbanas comparativamente com as zonas rurais. O mapeamento linguístico
moçambicano e sua diversidade constituem uns dos problemas fundamentais para a implementação
de políticas públicas cujas minorias linguísticas vêem-se ameaçadas.
A primeira lei do SNE de Moçambique, lei 4/83 de 23 de Março, no Artigo 5, refere-se
ao estudo e à valorização das línguas moçambicanas, do mesmo modo, a primeira Constituição da
República de Moçambique de 1990, como um Estado de Direito Democrático, no Artigo 9, refere
que “o Estado valoriza as línguas nacionais como património cultural e educacional [...].” Como se
pode observar, desde a criação do novo Estado, após a independência, o governo moçambicano, a
partir da sua política linguística, mostra a preocupação e importância da valorização das línguas
moçambicanas como um património cultural e incentiva o seu uso na educação. Apesar da questão
de ensino de línguas moçambicanas ser legislada em 1983, os primeiros passos foram marcados 5
anos depois, com a realização do I Seminário para a Padronização da Ortografia de Línguas
Moçambicanas.
Após longos anos de discussão sobre a sua introdução nas escolas, implementou-se o
Projecto de Educação Bilíngue em Moçambique, no período de 1993-1997, mais tarde em 2003 com
a reforma curricular do Ensino Básico, ainda que na fase experimental. Como resultado verificaram-
se muitos obstáculos como a falta de professores capacitados, falta de material didáctico, entre outros,
embora se tenha verificado um bom desempenho nos alunos das escolas bilíngues comparativamente
com os das escolas monolíngues. (BENSON, 1997)
O ensino das línguas moçambicanas foi introduzido através do Ensino Bilíngue a partir
do modelo transicional conforme ilustra a figura abaixo:
9
Adahttp://ead.mined.gov.mz/manuais/Didactica%20de%20Lingua%20Primeira/aula1.3.html
43
Seguindo-se esse modelo de Ensino Bilingue, as 1.a e 2.a classes são leccionadas na L1
do aluno, isto é, as línguas moçambicanas são o meio de ensino. Já a partir da 3.a classe em diante, as
línguas nacionais, como meio de ensino, são abandonadas gradualmente, cedendo o espaço para a
língua portuguesa que passa a ser a língua de ensino.
Para LOPES (2004), o modelo transicional de ensino das línguas moçambicanas é ideal
e é, no entanto, problemático porque por um lado, o autor defende o uso das línguas moçambicanas
como meio de ensino para as crianças moçambicanas que as têm como L1’s e, por outro lado, defende
o uso da língua portuguesa como meio de ensino para as crianças moçambicanas que a têm como L1.
Neste contexto, como a língua portuguesa constitui a língua de ensino das classes mais avançadas, as
crianças que têm as línguas moçambicanas como L1’s têm maior probabilidade de gerar competência
empobrecida nessa língua e criar dificuldades às crianças que não têm a língua portuguesa como
língua materna quando forem confrontadas com outras para quem a língua portuguesa é língua
materna.
Com efeito, o aluno não é capaz de aprender o funcionamento das línguas moçambicanas,
principalmente nas competências de leitura e escrita, e, do mesmo modo, aceder ao conhecimento
científico e técnico por meio dessas línguas, após os primeiros 3 anos de escolarização (período
transicional).
1. Proposta para a Padronização da Ortografia das línguas nacionais (ainda não aprovada);
2. Projecto de Educação Bilíngue em Moçambique;
3. Estratégia de Expansão de Ensino Bilingue (2020-2029);
4. Cursos de Licenciatura em Ensino de Línguas Bantu;
44
O currículo do ensino secundário prevê, desde 2004, o ensino de línguas Bantu, escolhidas
pela própria escola ou pela comunidade local, como uma disciplina opcional; no entanto, o
Ministério da Educação nunca fez esforços para que esta decisão fosse efetivada alegando
falta de recursos financeiros para a elaboração de materiais, bem como a falta de professores
formados. ( PATEL E CAVALCANTE, 2013,p.7)
45
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho pretendeu analisar as políticas educacionais face ao ensino das
línguas moçambicanas tendo em conta os seus avanços e os desafios que o SNE tem que enfrentar
para a concretização efectiva da valorização e promoção dessas línguas para o acesso ao
conhecimento científico e técnico, à informação bem como de participação nos processos de
desenvolvimento do País (cf. Lei 18/2018 de Dezembro), do mesmo modo, pretendeu avaliar o
modelo transicional do Ensino Bilingue adoptado pelo SNE tendo em conta os resultados do ensino
das línguas nacionais, tendo constado que o aluno não é capaz de aprender o funcionamento das
línguas moçambicanas, principalmente nas competências de leitura e escrita e, do mesmo modo,
aceder ao conhecimento científico e técnico por meio dessas línguas, após os primeiros 03 anos de
escolarização que se cumprem com o modelo transicional de Educação Bilingue.
Na mesma ordem de ideias, durante a luta contra o tribalismo a favor da unidade nacional,
as línguas moçambicanas foram relegadas para dar espaço à língua portuguesa, considerada como
língua de unidade nacional sob ponto de vista político e ideológico. Neste contexto, nasce um desafio
de resgatá-las, também, através de uma estratégia político-ideológica que não se funde apenas na
educação, mas sob um olhar de ascensão social e de manifestação da moçambicanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
46
INDE. Plano Curricular do Ensino Básico: Objetivos, Políticas, Estrutura, Plano de Estudos e
Estratégias de Implementação. Maputo: INDE/MINED. 2003.
PFlEPSEN, A.; BENSON, C.; CHABBOTT, C.; van GINKEL, A. (Prepared by). Planning for
Language Use in Education: Best practices and practical steps to improve learning outcomes.
Research Triangle Park, N.C. (Prepared for) USAID Bureau for Africa. 2015.
RESUMO
A formação de professores para o ensino das línguas, especificamente para as línguas bantu é um
campo de estudo com maior interesse na sociedade tipicamente como a moçambicana caracterizada
por multiculturalismo e com uma paisagem linguística extraordinariamente ampla e diversificada. O
objetivo central deste trabalho é refletir sobre os avanços e recuos do processo de formação de
professores para o ensino de leitura e escrita das línguas bantu no contexto moçambicano. O trabalho
foi baseado por uma pesquisa bibliográfica e que considerou a experiência do próprio autor como
falante de línguas bantu e formador de professores para o ensino secundário. Em Moçambique o
estudo da língua bantu e sua incorporação no ensino foi um desafio iniciado desde finais da década
70, na faculdade de letras da Universidade Eduardo Mondlane e seguidamente descontinuado por
motivos adversos, tendo, no entanto, prevalecido a língua portuguesa como o único meio de
multiletramento e formação de professores. O processo de ensino de leitura e escrita das línguas bantu
em Moçambique após a independência foi deixada em segundo plano (como foi também no período
colonial) e mais tarde as políticas educativas deliberaram a incorporação da disciplina língua bantu e
metodologia de Educação bilíngue no sistema de formação de professores para o ensino primário e,
a especialização no ensino de línguas bantu no curso superior de formação de professores para ensino
secundário. Esse esforço foi desencadeado em 2004 na decorrência da introdução do novo currículo
do ensino básico e na tentativa de retrair os gritantes insucessos escolares registrados nas classes
iniciais do ensino primário, onde a maioria dos alunos que ingressam neste nível apresentam o bantu
como sua língua materna. Adicionalmente, foi estabelecida nova estrutura na grade curricular do
ensino básico constituída por três ciclos de aprendizagem e o desenvolvimento do modelo bilingue.
Apesar dos esforços no sistema educativo moçambicano ainda carece vários desafios para introduzir
de forma efetiva o processo de leitura e escrita das línguas bantu no sistema nacional de ensino, pois
que, o modelo de recrutamento e seleção de professores ainda desconsidera o domínio das línguas
locais como elemento essencial no recrutamento de professores.
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea tem passado por momentos atípicos e controversos em
diversos domínios que caracterizam a vida humana. A formação de professores tem sido área de muito
interesse de se investigar, visto que nela existem muitos dilemas e desafios por se enfrentar. Em
Moçambique, país que se tornou independente do regime colonial português em 1975, localizada na
zona do continente africano, com cerca de 28,65 milhões de habitantes, segundo os dados do Censo
Geral da População realizado em 2017, a formação de professores para o ensino bilíngue nesse país
tem tido diversos embates e questionamentos nos espaços acadêmicos devido a sua complexidade.
10
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Docente da Faculdade de Educação da Universidade Púnguè -
Moçambique. E Mail: rogeriofilipemario@gmail.com
48
Moçambique é um país multilíngue, com uma única língua oficial de origem europeia –
o português, dominada ainda por poucos. A imposição dessa língua na sociedade moçambicana
deveu-se ao legado colonial e a satisfação da opção das elites políticas nos primórdios da instalação
da primeira República, baseado no princípio de que o português é a única língua suficientemente
desenvolvida para servir a administração do estado e outros domínios públicos (Dias, 2009;
Gonçalves, 1996; Lopes, 1997, 1999, 2004).
Portanto, a oficialização da língua portuguesa no espaço moçambicano é acautelada no
parágrafo nº 1 do artigo 5º da Constituição da República de Moçambique, publicada em 2004 e
estabelece que “na República de Moçambique, a Língua Portuguesa (LP) é a língua oficial”.
Adicionalmente, o parágrafo nº 2 do mesmo articulado, ainda enfatiza que “o Estado valoriza as
línguas nacionais e promove o seu desenvolvimento e utilização crescente como línguas veiculares e
na educação dos cidadãos” numa abordagem que reconhece a existência das numerosas Línguas
Bantu (LB) faladas na República de Moçambique.
Paradoxalmente, apesar do reconhecimento das línguas bantu no tecido moçambicano, a
importância das mesmas na promoção da cultura, na identidade de um povo, na comunicação eficiente
e eficaz nas comunidades ainda tem sido um tabu e atribuído muitos estereótipos e preconceitos, tal
como avança Wilson, Manuel e Bahule (2019) “as funções que as línguas bantu (faladas pela maioria
da população moçambicana) desempenham nas sociedades não têm merecido a devida atenção,
agindo quase que na clandestinidade.” Nota-se algum desprezo sobre as línguas bantu, uma
marginalização que evidencia a assunção de que a língua do ex-colonizador é superior, pensamento
reflexo da colonização mental, (MUTASA, 2006; NGUJI, 1977).
A educação como um processo de transmissão de conhecimentos, cultura, tecnologia
acumulada de velha geração para a nova geração é metodicamente transmitida através da linguagem
podendo ser oral, escrita, gestual, entre outras.
desconhecida (LE) pelos alunos das zonas rurais. Ainda sobre o mesmo debate, Gonçalves e Diniz
(2004) reforçam dizendo que,
Quase na totalidade das nossas crianças, quando entram para a escola, não falam português
e, naturalmente, não lê e não escreve. Esta é a situação típica do meio rural, onde prevalece
o uso das línguas locais, as línguas bantu, e onde o português é praticamente uma língua
“estrangeira”: é apreendido e usado na sala de aula, sobretudo através do contacto com o
professor e com os livros escolares, sendo pouco frequentes as situações de comunicação em
que é falado em ambiente natural. No seu dia a dia, em casa com a família e nas brincadeiras
com os amigos, as crianças comunicam na sua língua materna (GONÇALVES & DINIZ,
2004, p. 1).
A Geolinguística moçambicana
inglês – língua de contato com outros povos da região e do mundo, e as línguas asiáticas- que
compreende o hindi e o urdo ou gujarate.
Firmino (2010) prefere chamar as línguas autóctones de Moçambique por línguas bantu,
ou simplesmente de línguas moçambicanas (Guthrie, 1967; Moisés et al., 2012; Ngunga, 2012, 2014;
Ngunga & Bavo, 2011; Ngunga & Faquir, 2012; Petter, 2015). Para Guthrie (1967, p. 71) em
Moçambique “as línguas bantu estão distribuídas por quatro zonas linguísticas” e a sua escrita está
em processo de padronização. As línguas com a ortografia já padronizada são kimwani, shimakonde,
ciyaawo, emakhuwa, echuwabo, cinyanja, cinyungwe, cisena, cibalke, cimanyika, cindau, ciwute,
gitonga, cicopi, citshwa, xichangana e xirhonga, 17 ao todo (Moisés et al., 2012; Ngunga & Faquir,
2012).
Segundo Ngunga e Bavo (2011, p. 14-15) citando INE (2010), as línguas moçambicanas
são maioritariamente faladas no país com a estimativa de 90% de falantes. E o português tem 10,8%
de falantes de cinco ou mais anos de idade sedeados nos grandes centros urbanos (cidades, vilas e
sede dos distritos).
Portanto, a luz dos dados descritos, a política de promoção e valorização das línguas
moçambicanas, desde a era colonial, continuado copiosamente após a instauração da primeira
república, subjugou as línguas moçambicanas a um papel terciário, com precariedade da sua função
e a sua fala circunscrita a meios informais. Só a partir da década de 90 as línguas bantu começaram
de forma leviana a coabitar o mesmo espaço com o português nas escolas.
Entende-se por Formação de professores toda a estratégia que se desenvolve por certa
entidade visando moldar ou preparar os futuros profissionais da educação com os fundamentos mais
essenciais que caracterizam a educação e orientação do processo de ensino e aprendizagem dos
alunos.
Para Donaciano (2006), define a Formação de Professores como,
[…] em 1975, o MEC criou Centros de Formação de Professores Primários, cujo requisito
de ingresso mínimo era a 4ª classe do ensino primário. Os conteúdos eram didático-
pedagógicos, embora houvesse o apelo à formação político-ideológica aos professores em
vivência do momento histórico, revolucionário do Partido Único. Entretanto, os formadores
possuíam o curso de Magistério Primário, equivalente ao nível médio e professores de Posto
Escolar (prolongamento dos grupos dinamizadores). (DOMINGOS, 2015, p.233)
52
Neste tipo de curso, a componente ideológica está acima de tudo. Fazia parte dos objetivos
desta formação a conduta como educador, a aquisição de conhecimentos que permitissem
melhorar o ensino, a formação na área didática e pedagógica e a capacidade reflexiva. O
plano de estudos contemplava as áreas sócio-políticas, psico-pedagógicas e metodológicas.
(WITINESSE, 2009, p.164)
Já em 1991 o curso de formação de professores para ensino primário passou para outro
modelo de 7ª + 3 anos. Neste período foi marcado por uma profunda transformação dos objetivos e
53
conteúdo de ensino, porque o país transitava do sistema monopartidária em que se preocupava com a
criação do homem novo repleto de espírito nacionalista, arquiteto da sociedade socialista para o
multipartidarismo.
Ao analisar currículo de formação de professores primário em Moçambique, Niquice
(2005) considera-o assente em dois enfoques principais:
(1) de transmissão dos conhecimentos, dos preceitos, das regras que asseguram a eficiência
e a eficácia na altura de realização da prática pedagógica. (2) de treinamento das
habilidades, através das práticas pedagógicas e do estágio posterior à fase de
transmissão. (NIQUICE, 2005, p. 52)
Curso de Formação de Professores do Magistério Primário (5º ano do Liceu + 2 anos); Curso
de Formação de Professores de Posto Escolar (4ª classe+ 4 anos); Curso de Formação de
Professores de 6ª + 6 meses; Curso de Formação de Professores de 6ª + 1 ano; Curso de
Formação de Professores de 6ª + 2 anos (EFEP); Curso de Formação de Professores de 8ª +
2 anos (EFEP); Curso de Formação de Professores de 9ª + 1 ano (Faculdade de Educação-
FE. UEM); Curso de Formação de Professores de 9ª + 2 anos (EFEP); Curso de Formação
de Professores de 9ª/10ª + 3 anos (IMP); Curso de Formação de Professores de 6ª/7ª + 3 anos
(CFPP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 2 anos (IMAP); Curso de Formação de
Professores de 10 + 1 + 1 (IMAP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 2,5 anos
(ADPP); Curso de Formação de Professores de 10ª + 1 ano (IFP); Curso de Formação de
Professores de 12ª + 1 ano (IFP); Curso de Formação de Professores de 12ª ou Equivalente
+ 4 anos - Bacharelado (UP); Curso de Formação de Professores de 12ª ou Equivalente + 5
anos - Licenciatura (UP); Cursos de Reciclagem de Professores de curta duração como, por
exemplo, de duas semanas, um, dois, três, quatro meses, etc. (MINEDH, 2017, p. 50-51)
É importante destacar que a esses desafios colocados nesse período, também se somavam
discussões sobre as línguas de ensino, sobretudo na alfabetização e nas primeiras classes do
ensino primário para atender à diversidade que se colocava, constituindo-se temas polêmicos
sobre os quais não houve, na altura, desfecho. (ARENA & COVANE, 2019, p.1037)
O estudo científico das línguas moçambicanas começa nos finais da década de setenta, na
Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane com a introdução de algumas
disciplinas de linguística bantu nos cursos ali oferecidos e nos de Formação de Professores
da Faculdade Preparatória. (NGUNGA & FAQUIR, 2012, p.3)
O processo de afetação não olha para a região de origem nem a(s) língua(s) falada(s) pelo
novo professor. O que acontece muitas das vezes é que os professores são colocados em
regiões onde a língua da comunidade não coincide com a língua do professor, todavia, ele
tem que dar aulas porque é lá onde foi afeto e é o lugar da garantia do seu sustento (ABDULA,
2013, p. 230)
VIII. Formar professores para o ensino bilíngue através da modalidade de educação a distância e;
IX. Assegurar a formação contínua dos professores através da Zona de Influência Pedagógica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
57
REFERÊNCIAS
ABDULA, R.A.M. O ensino das línguas nacionais como solução para o processo de alfabetização
em Moçambique. Revista de Letras Dom Alberto, 2013, p. 219-232.
GARCIA, Carlos Marcelo. Formação de professores: para uma mudança educativa. Portugal:
Porto Editora, 1999.
Lei nº 4/83 de 23 de Março, que aprova a Lei do Sistema Nacional de Educação e define os princípios
fundamentais na sua aplicação. Publicada no Boletim da República, II SÉRIE- Número 12,
LOPES, A. J. Language policy: Principles and problems. Maputo: Livraria Universitária, 1997.
MÁRIO, M. et al. Review of education sector analysis in Mozambique, 1990-1998. Paris: Working
Group on Education Sector Analysis, 2002.
MOISÉS, L., Cande, E., & JESUS, J. Geografia linguística de Moçambique. In A. Ngunga & G.
FAQUIR (Eds.), Padronização da Ortografia de Línguas Moçambicanas: Relatório do III
Seminário (pp. 279293). Maputo: Centro de Estudos Africanos/UEM, 2012.
MUTASA, D. E. (Ed.). African languages. in the 21st century: The main challenges. Simba Guru
Publishers, 2006.
WILSON, Francelino; MANUEL, Juma & BAHULE, Orlando. Integração das línguas nacionais
na formação de professores moçambicanos: práticas, experiências, desafios. IV Encontro
Internacional de Formação na Docência, Instituto Politécnico de Bragança, Bragança, 2019.
60
Eugénia Kossi11
Natalia Penitente12
RESUMO
A questão do multilinguismo em Angola é tratada com uma leveza que se denota no ensino somente
em língua portuguesa e por meio dele a disseminação de uma cultura dominante e de uma imagem de
língua versada na noção centrípeta da língua. Apesar disso, os discursos oficiais apresentam a tese de
que é preciso respeitar as línguas e as culturas locais. Observamos, desta forma, que este desvalor e
a hipervalorização da língua portuguesa acarretam um desencontro entre cultura escolar/culturais
locais, comunidades locais/filhos escolarizados. Esta última se dá por estes passarem a serem
portadores de outros desígnios culturais. Portanto, carregam os ensinamentos da escola, assim como
a língua da mesma, e afastam-se das suas culturas e das suas línguas passando a ser representantes
das línguas e culturas “alheias” dentro das suas comunidades. Com isso, este trabalho pretende
analisar as relações de sentido que se estabelecem entre o discurso colonial sobre línguas e indígenas
e o discurso atual sobre a importância das línguas nacionais no ensino em Angola. Portanto, o nosso
intuito é compreender a manutenção de um discurso oficial atual que se assenta na ideia da língua
dominante e com estatuto para a sua integração ao ensino e à administração pública. Com este intuito,
olharemos as motivações oficiais que impõem estratégias para a manutenção de uma ideologia para
o controle do aparelho do estado remetendo à construção de imagens de língua que se mantêm desde
o tempo colonial. Para orientarmos este estudo recorremos à abordagem de Pêcheux (2017) sobre as
formações imaginárias na produção do discurso. Recorremos também aos trabalhos de Koch (2000)
de modo a descrevermos as marcas linguísticas ideológicas que permeiam os textos oficiais. O
trabalho tem como corpus dois documentos oficiais: um do tempo colonial “O Estatuto dos Indígenas
Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique” publicado, em 1954, pelo governo
colonial português, e o “Ante-projecto sobre o Projecto de Lei do Estatuto das Línguas Nacionais”
proposto, em 2011, pelo Instituto de Língua Nacionais ligado ao Ministério da Cultura de Angola.
Com isso, percebemos que há uma retomada dos discursos anteriores com a projeção de imagens
negativas sobre cultura e línguas locais.
Palavras-chave: Discurso colonial. Língua portuguesa. Línguas nacionais.
INTRODUÇÃO
Angola é um país multicultural que passou por um processo de colonização que impôs a
uma parte do seu território a língua portuguesa13 e secundarizou as línguas dos povos originários,
11
Mestranda em Educação, na área de concentração Educação, Linguagem e Psicologia, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP), sob orientação do professor Dr. Valdir Heitor Barzotto da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (FEUSP). E-mail: eugeniakossi@usp.br
12
Mestranda pelo Programa de Filologia e Língua Portuguesa (FLP) da Universidade de São Paulo (USP). Sob a
orientação do professor Dr. Valdir Heitor Barzotto da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
E-mail: nataliapenitente@usp.br
13
Segundo Mingas (2000, p. 30) no início do período colonial a presença portuguesa era sentida no litoral do país e
somente em 1926, os portugueses adentraram o país todo, quase 50 anos antes da independência, em 1975.
61
chamados indígenas pelos colonizadores. Do mesmo modo, as culturas desses povos foram
consideradas inferiores e discriminadas. Consequentemente, foram discriminadas as populações que
só passaram a usufruir de alguns direitos quando se instaurou o Estatuto do Indígena das Províncias
da Guiné, Angola e Moçambique.
Este estatuto foi publicado em 1954 no governo de Salazar cedendo às pressões externas
da comunidade internacional e dos movimentos de libertação nacional criados por toda África para
reivindicar a liberdade dos povos africanos e a independência dos seus países. Essas movimentações
pelo reconhecimento da soberania das nações africanas, incentivou o uso de estratégias de
condicionamento de atribuição da cidadania aos habitantes das então províncias ultramarinas de
Portugal, nomeadamente, a Guiné, Moçambique e Angola.
Foram impostos, para este fim, no documento supracitado, critérios para obtenção da
cidadania. Um deles era que o indígena, que concorresse ao grau de cidadão, falasse “correctamente”
o Português14 e se comportassem tal como os portugueses. Com isto estabeleceu-se a continuação de
uma relação de dominação que obrigava os assimilados a manterem uma cultura alheia ao do seu
povo. Uma relação retomada com a independência pela orientação de toda a vida administrativa e
escolar com base na língua portuguesa.
Isto propiciou a manutenção da língua portuguesa como hegemônica, enquanto se
mantinha uma discussão sobre o papel das línguas nacionais na sociedade angolana. O que culminaria
com a elaboração, em 2011, do Ante-projecto de Lei do Estatuto das Línguas Nacionais, ainda não
aprovado. Esse documento discute a inserção dessas línguas nas diferentes esferas sociais,
nomeadamente no ensino e na administração pública, em defesa do “pluralismo cultural e linguístico”
(ANGOLA, 2011, p. 2).
Apesar desta defesa, observamos que a manutenção de um estatuto de línguas próprias
das línguas ocidentais é defendida por meio de um discurso que cria imagens de língua que continuam
a atribuir um lugar outro às línguas locais. Observamos, por isso, que os dois documentos
supracitados fundamentam uma negação de línguas e culturas dos povos de Angola, mantendo-se um
já-dito (passado colonial) no presente. Compreendemos aqui que dada a conjuntura que impõe um
papel central do ocidente diante de outros países movidos pela atual formação social capitalista, há
uma interpelação do sujeito (PÊCHEUX, 2017) que incide sobre a reprodução no discurso de
formações ideológicas.
Nisso, concordamos com Pêcheux (2017), que defende que o discurso é um aspecto da
materialidade ideológica, portanto nele se desvelam formações imaginárias que antecipam posições
dos sujeitos. Não cessa a atribuição de lugares aos sujeitos na formação dos Estados na pós-
14
Artigo 56 do Estatuto do Indígena Português da Guiné, Angola e Moçambique.
62
independência, em África, pois assumem uma orientação política de base ocidental, que impõe uma
língua oficial considerada de motor para a manutenção de uma unidade nacional. Do mesmo modo,
a escolha dessa língua segue uma orientação ocidental, uma vez que pressupõe um estatuto, ou seja,
não pode ser escolhida qualquer língua, mas aquela que tem determinado prestígio tanto cultural,
quanto científico.
Compreendemos com isso, que se desenvolvem formas de se olhar a língua que
transparece no discurso, uma aproximação às imagens da língua enunciadas por Calvet (2002, p. 72)
sobre “os sentimentos, atitudes, comportamentos diferenciados” que se expressam por haver já a
aceitação de uma norma estabelecida que faz com que as pessoas não aceitem o que a contradiga. O
que chamamos de imagens de língua a partir do projeto “Imagens de língua: sujeito, deslocamento,
conhecimento e tempo15” coordenado pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto.
O estatuto do indígena
Tendo perdido o Brasil como colônia no século XIX, Portugal vira todas as suas fichas
de jogo para as suas outras possessões territoriais ultramarinas. O que levou, em 1931, António
Salazar, então ministro das finanças, a organizar a colônia nos domínios político e econômico.
Reforçando, consequentemente, o controle dos indígenas que eram a mão de obra fundamental para
a manutenção da economia imperial.
Um ano antes, foi publicado o Acto Colonial que tinha como objetivo manter a integração
das colónias com a metrópole, retirando-lhes a autonomia, e garantir os direitos dos indígenas.
Direitos reforçados, segundo os documentos oficiais da metrópole, pelo estatuto do indígena que
surge em 1954. Este documento foi elaborado para regular os deveres e os direitos dos indígenas.
Portanto, o regulamento estipulava, leia-se no capítulo III (1954), normas que permitiriam
ao indígena ascender ao patamar de civilizado se falasse corretamente o português, se tivesse 18 anos,
uma profissão bem remunerada, um comportamento exemplar e nunca tivesse sido refratário e tivesse
cumprido o serviço militar.
No entanto, conseguir tal documento ou alvará como era designado, não era tarefa fácil,
uma vez que eram poucos os que tinham as condições de assimilado enumeradas acima. Sobretudo,
eram poucos os que falavam português ou que se expressavam como impunha o documento.
15
Este projeto se propõe a investigar os mecanismos que concorrem na formação das imagens de língua em contextos
multilíngues, analisando os discursos produzidos em quatro instâncias argumentadoras – o Estado, a Igreja, a
Universidade e a Comunidade – como partes integrantes de um continuum que gera tais imagens.
63
O estatuto das línguas nacionais está ainda vinculado ao anteprojeto de Lei sobre o
estatuto das línguas nacionais que visa reconhecer o papel das línguas angolanas de origem africana
bantu e khoisan. O estatuto surge em 2011, chamando a atenção do Estado para a implementação de
um estatuto e uso das línguas africanas tanto na administração do estado quanto no ensino.
O seu objetivo primordial é permitir a inclusão social e linguística da população angolana
por meio da valorização das suas línguas. Para isso, adverte que é preciso a delimitação das línguas,
enumerando as que poderão ser usadas pelo Estado, sem se deixar de investigar cientificamente as
demais.
O mesmo documento apresentando os princípios da valorização das línguas baseia-se na
lei do patrimônio cultural que reconhece as línguas como bens de interesse cultural relevante 16. Do
mesmo modo, apoia-se na Constituição da República que define como uma das tarefas fundamentais
do estado “proteger, valorizar e dignificar as línguas angolanas de origem africana”.
Sequência 1 – R1
Sequência 2 – R2
16
Lei sobre o Património cultural de 2005.
64
R3
R4
Sequência 3 – R5
R6
Sequência 4 – R1
65
Sequência 5 – R2
Sequência 5 – R3
Martinez (2010, p. 49) apresenta duas finalidades específicas das leis implementadas para
as províncias do ultramar, a explícita e a implícita, afirmando que:
Neste contexto, olhando para a situação histórica em que Portugal estava submerso por
ser um dos últimos países colonizadores a negociar as independências das suas colónias, a publicação
do estatuto foi uma forma de mostrar que havia desejo de mudança. António Salazar, para proteger o
Estado português, reiterou com ímpeto nacionalista que as colônias eram parte da metrópole:
a nossa obra não é a do caminheiro que olha e passa, do explorador que busca à pressa as
riquezas fáceis e levantou a tenda e seguiu, mas a do que, levando em seu coração a imagem
da Pátria, se ocupa amorosamente em gravá-la fundo onde adrega de levar a vida, ao mesmo
tempo que lhe desabrocha espontâneo da alma o sentido da missão civilizadora. Não é a terra
que se explora: é Portugal que revive, (SALAZAR, 1959, p. 178-179).
66
Para Hanna Arendt (1989, p.184), embora, essa relação estabelecida tenha sido
camuflada, em muitos impérios, pela separação entre as políticas coloniais e as políticas domésticas,
ela reconhece que “A expansão deu nova vida ao nacionalismo e, portanto, foi aceito como
instrumento de política nacional”. Uma nacionalização que vai ser reforçada pelo desejo de uma
hegemonia linguística apresentada no recorte 4 da sequência 2, em que a língua portuguesa tem de
ser falada no ensino. Há a aceitação do uso da língua nacional, mas somente usada para reforçar a
aprendizagem da primeira.
No recorte 1 da primeira sequência, retiramos três trechos: 1. Deseja-se acentuar ter
havido agora a preocupação de considerar situações especiais em que é apresentado o verbo modal
desejar como auxiliar, indicando uma modalidade epistêmica que denota vontade acompanhado de
outro verbo modal ter que caracteriza uma probabilidade; 2. em que ele pode encontrar-se no caminho
da civilização nesta oração, o verbo poder também caracteriza uma modalização epistêmica de
possibilidade; e 3. Para que o estado tem o dever de impeli-lo.
As três acepções, a priori, denotam uma necessidade de enfatizar um desejo do Estado
português em reconhecer o estatuto do indígena cujas normas “claras” não foram observadas em
outros documentos jurídicos do estado. Uma crítica que se impõe como um argumento a favor da
ascensão do indígena. Porém, a construção do enunciado iniciada com o verbo desejar parece retirar
a certeza do locutor na mensagem que transmite. Em todo o caso, na última oração, o uso do
imperativo com o verbo modal “tem de”, embora dependa da consideração das situações especiais
que permitam que se torne civilizado, é estabelecida.
Neste enunciado também transparece o uso da marca de impessoalidade com o pronome
pessoal “se” em relação enclítica com o primeiro verbo modal introduzindo uma frase passiva
pronominal ligada a uma oração substantiva. Nesse trecho, o governo parece não querer posicionar-
se de forma imperativa, tal como ocorre noutras partes do documento em que o locutor é marcado
pelos substantivos “Governo”, “Estado”, o pronome “Eu” e verbos no imperativo como “decreta”
e “promulgo”. Estes últimos atribuem a responsabilidade ao locutor, que determina a sua posição
assumindo a veracidade do que é dito introduzindo um modalizador epistêmico assertivo.
No capítulo I do estatuto, onde encontramos o recorte 2 da sequência 2, no artigo terceiro,
impõem-se aos indígenas a sua definição e o seu lugar no documento. No enunciado, temos, do
mesmo modo, uma construção passiva marcada pelo verbo modal “ser”, “é”, modalizador deôntico
de obrigatoriedade, aparece como condição sine qua non sobre a tolerância da cultura indígena, isto
caso fique dentro dos parâmetros portugueses, bem como se forem considerados princípios de
humanidade.
Acreditamos, neste trabalho, que o uso do sintagma preposicional “da humanidade”
revela o interesse do Estado português em mostrar ao mundo que não estava aquém dos princípios
67
adotados pela comunidade internacional. E o estatuto elaborado nos moldes em que foi apresentado
respeitava tais condições de aceitação dos direitos do outro, camuflando os seus verdadeiros
interesses.
Porém, no quadro de convencer das boas intenções do seu governo, Portugal esclarece,
no recorte 3, que a sua intenção era de transformar os usos e costumes primitivos dos indígenas
valorizando-os ao permitir o seu acesso à cidadania.
Aqui notamos a não aceitação da cultura de um povo moldando-o para ser aceito. A
ascensão à cidadania dependia da mudança cultural, o que denota a precariedade da sua condição no
colonialismo. O argumento, portanto, era que havia uma predisposição para que se melhorasse a sua
vida material e a moralidade.
Porém, Washington Santos (2014) alega, nesse contexto, que era extremamente
burocrático conseguir o documento, para a transição de indígena para cidadão. O que demonstrava
uma contradição relativamente ao objetivo do documento como se evidencia em primo Jerônimo de
Conceição Neto17.
Não havia uma vontade de promoção da igualdade. Além de ser necessário conseguir um
emprego num contexto ocidental, era preciso falar corretamente o Português, como aparece no recorte
5. Ambos eram um privilégio para poucos. E mesmo que um indígena conseguisse a cidadania,
poderia perdê-la como aparece no recorte 6.
Conseguir a cidadania, portanto, não conferia toda a estabilidade que o indivíduo poderia
usufruir. A sua manutenção estava ligada à capacidade do cidadão de apartar-se da sua condição de
indígena, caso não conseguisse provar a qualidade de não indígenas (capítulo III, artigo 62º, parágrafo
único, p.224), ele perdia alvará de assimilado. No recorte mencionado anteriormente, a decisão
categórica é feita com a demonstração de um valor afetivo do advérbio modalizador
“definitivamente” reforçado pelo verbo ser deôntico de obrigatoriedade em “será apreendido o
bilhete de identidade18”.
O estatuto das línguas nacionais é mais recente, de 2011, e está vinculado a um contexto
contemporâneo de igualdade de direitos na ótica democrática e da inclusão social. Entretanto, é o
17
Maria da Conceição Neto (1997) escreve no seu artigo “Maria do Huambo: Uma de “indígena”; Colonização e estatuto
jurídico e discriminação racial em Angola (1926-1961)” mostra a forma como o estatuto influenciou a vida dos nativos
em Angola e as dificuldades que advieram da sua implementação.
18
O mesmo que RG
68
dilema que remonta a década de 70, após a independência, em que se olhava para a necessidade de
afirmação de uma identidade angolana.
O recorte 1 da sequência 4 apresenta o verbo “ir”, um verbo pleno, que aqui aparece como
auxiliar do verbo retirar denotando uma ação futura movida pela reforma e pela reposição das línguas
nacionais. Este último termo é definido pelo dicionário Michaelis online (2019) como restituição a
situação ou estado antigo ou anterior.
Parece haver um desejo de retorno às origens em que as línguas nacionais eram utilizadas
pelos governos tradicionais na resolução dos seus problemas comunitários. Com a colonização e a
instituição de documentos oficiais, elas foram excluídas tanto da vida escolar quanto da
administrativa, ficando ligadas apenas ao poder tradicional e ao direito costumeiro. O estatuto
pretende neste enunciado mostrar que é preciso ultrapassar a noção colonial de língua e adotar o
plurilinguismo.
Esse esquecimento, ostracismo e autoexclusão que, segundo o documento, se constata em
Angola até ao momento em que surge a proposta, 2011, 36 anos depois da independência, determina
que elas continuaram até àquela data a ser esquecidas, ostracizadas não mais pela exclusão imposta
pela colonização, mas pela autoexclusão.
O verbo “ir”, auxiliar, nesse trecho designa uma ação futura que denota que as línguas
ainda estão na condição apontada acima por não terem ainda sido reformadas e repostas pelo estado
angolano. Do mesmo modo, elas têm de ser inseridas no ensino, pois este é meio que permitirá que
elas sejam, como vemos na segunda frase deste recorte, “línguas de pensar, querer e agir, em suma,
línguas de trabalho e de cultura”. O fato que se observa aqui é que somente por meio do ensino,
essas línguas passam a denotar o pensar, o querer e o agir.
Embora se entenda que a intenção não foi de minorizar as línguas, a enumeração
apresentada pressupõe que as línguas em destaque se tornarão importantes, primeiro porque serão
reconhecidas pelo poder do Estado e segundo, inseridas no ensino, elas serão preenchidas de valor.
A identidade, portanto, deverá ser preservada, remetendo o valor social à instância de poder, único
capaz de promover tal valor. Portanto no recorte 2, vemos que a escola permite a possibilidade real
de assimilação de conhecimentos. O adjetivo real tem o sentido de concreto ou autêntico, denotando
que o conhecimento concreto e autêntico é aquele proporcionado pelo ato de escolarização.
Esse conceito unilateral de conhecimento necessária para o reconhecimento da ascensão
de uma língua nacional a oficial é apresentado pela marca de modalidade deôntica de obrigatoriedade
do verbo modal dever. Portanto é imperativo que a língua obedeça aos critérios de cientificidade
como, por exemplo, a criação de um alfabeto e a sua subsequente gramaticalização, em comparação
com a língua portuguesa que tem esse valor agregado em si.
69
traço herdado impõe em certa medida assumir resquício de uma cultura de uma geração que a deixou,
embora se perceba que na sua dinamicidade a língua não se alimenta infindavelmente do passado.
Porém, como foi dito anteriormente, a questão ficou para o professor, não só de língua
portuguesa, mas por usarem a língua como instrumento de trabalho e de transmissão de
conhecimentos. Em que língua se deve ensinar? É a questão que fica sobreposta, uma vez que a
gramática se assenta sobre um contexto do passado.
É patente que as línguas ocidentais, nomeadamente o português, representam ainda a
possibilidade de integração numa esfera internacional como defende Zau (2007). E assim foi
defendido no período pós-independente mesmo por Amilcar Cabral que afirmou ser a língua
portuguesa “uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (CABRALJALÓ, 2019 apud
JALÓ, 1974, p. 211).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a questão que se põe em cheque seja a falta do real reconhecimento do valor que
estas línguas devem ter numa época em que se discute e se exalta o resgate das línguas e culturas
nacionais, é preciso que se faça a pergunta: se a base desse reconhecimento deve ser posta à mesa
apenas pelas preocupações da classe dominante ou também é preciso reconhecer que as próprias
populações, não olhando somente para Luanda, regem-se pelas práticas culturais permitidas pela
construção de sentidos emanadas do uso das suas próprias línguas?
Quando se diz que as línguas em Angola estão relegadas ao esquecimento, retira-se a
importância das populações no uso das suas línguas e responde-se ao questionamento da linguística
sobre a supervalorização das línguas da elite. As classes dominantes põem as cartas à mesa e as
populações submetem-se transportando para si os preconceitos que advêm desta relação de poder.
O estatuto do indígena exigia o português para todos, do mesmo modo o Estado angolano
o exige em sinal de unidade nacional. O anteprojeto não contrapõe, mas aparece para equilibrar a
situação, adotando uma postura de aceitação da hegemonia do português, apesar de já assumir a
necessidade de se pôr rédeas à problemática. Portanto, o discurso que ainda predomina o cenário é de
que haja ainda línguas que exerçam maior influência do que outras como no caso da Língua
Portuguesa frente às línguas de Angola.
REFERÊNCIAS
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de Angola, 2011.
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http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/hga_I_metodologia_e_prehistoria_da_africa.pdf. Acesso
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CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. Tradução: Marcos Marciolino. São Paulo:
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CHAMUHONGO, A.; CARVALHO, F. V. Língua Portuguesa – 1ª. classe. Luanda: Moderna, 2018.
Actualização curricular.
CONCEIÇÃO NETO, M. Maria do Huambo: Uma vida de “indígena”. Colonização, estatuto jurídico
e discriminação racial em Angola (1926-1961). África, v. 35, p. 119-127, 2015. DOI
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LÍNGUAS nacionais não têm estatuto próprio. Jornal de Angola, Angola, 21 fev. 2018. Disponível
em: https://jornaldeangola.ao/ao/noticias/detalhes.php?id=399022. Acesso em: 21 maio 2020.
RAMPINELLI, W. J. Salazar: uma longa ditadura derrotada pelo colonialismo. Lutas Sociais, v. 18,
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http://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.32/waldir_jose_rampinelli.pdf. Acesso em 15 maio 2021.
72
SILVA, S. F. O ensino das línguas nacionais em Angola. Jornal de Angola. Disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/o_ensino_das_linguas_nacionais_em_angola. Acesso em: 9
maio 2020.
73
Autor:
Carlos Guerra Caquarta.
Mestre em Ciências da Educação, Especialidade Ensino da História. Instituto Superior
de Ciências da Educação do Cuanza Sul19.
Coautores:
Ph.D. Rosell Ramón Hidalgo Herrera. Professor do Departamento de Ciências Sociais
no Instituto Superior de Ciências da Educação do Cuanza Sul 20.
RESUMO
A contribuição das línguas ao desenvolvimento identitário e cultural é de vital importância, já que
elas são reconhecidas na formação da nacionalidade dos povos. Nesse sentido, o presente estudo
evidencia a aula de História como espaço de desenvolvimento da Identidade Cultural, numa
perspectiva que se sustenta na evolução e desenvolvimento das línguas em relação com as tendências
atuais sobre a relevância do processo de ensino-aprendizagem da História. O objetivo principal do
trabalho consiste em oferecer ações metodológicas que facilitem o processo de ensino-aprendizagem
que integre procedimentos, ações e operações que permitirão desenvolver a Identidade Cultural e seus
elementos básicos estruturais, desde a perspectiva das línguas e a interculturalidade. Aprender a viver
em sociedade e compreender as individualidades culturais apoia-se na relação história-aluno-
sociedade, na qual o aluno é um agente ativo do vínculo entre passado e presente, o que permite
projetar de forma positiva o futuro e constitui uma amostra do desenvolvimento da Identidade
Cultural. Os métodos investigativos empregados, tanto do nível teórico como empírico, permitiram
obter informações a respeito das concepções de diferentes autores sobre a Identidade Cultural, com
ênfase no avanço da língua como mosaico cultural. O estudo do tema foi analisado como parte da
política educativa inserida na Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino de Angola (Lei nº17/16,
de 7 de outubro). A pesquisa ficou contextualizada segundo as potencialidades do contexto educativo,
que na sociedade angolana tem características especiais, havendo diversidade de cultura em cada
região. O que carrega consigo traços linguísticos diferentes para desenvolver um único processo
educativo que exige a criatividade do professor que leciona a aula na qual, para o caso da História, é
muito significativo. O tema abordado transversaliza o processo de ensino-aprendizagem e favorece
modos de atuação que potencializam a formação dos elementos identitários nos alunos,
contextualizados na concepção desenvolvedora do ensino-aprendizagem mediante o uso das línguas,
ou seja, da diversidade linguística.
19
guerraoevangelizado@gmail.com
20
rosellhgo@gmail.com
21
ladislausacambonde301081@gmail.com
74
EL RESUMEN
La contribución de los idiomas al de desarrollo identitary y cultural es de importancia vital desde que
se reconocen la formación de la nacionalidad de las personas. En este sentido, las evidencias del
estudio presentes la clase de Historia como el espacio de desarrollo de la Identidad Cultural en una
perspectiva que se sostiene en la evolución y desarrollo de los idiomas en la relación con las
tendencias sobre la relevancia del proceso de enseñanza-aprender de la Historia. El gaol principal del
trabajo consiste en ofrenda acciones metodológicas que facilitan el proceso de enseñanza-aprendizaje
que integra los procedimientos, acciones y funcionamientos que permitirán desarrollar la Identidad
Cultural y sus elementos básicos estructurales de la perspectiva de los idiomas y los intercultural. Los
métodos de la investigación usaron tanto del nivel teórico como empírico que ellos permitieron
obtener la información con respecto a las concepciones de los autores diferentes sobre la Identidad
Cultural, con el énfasis en el progreso del idioma como el mosaico cultural. El estudio del tema se
analizó como una parte de la política educativa insertada en la Ley de Base del Sistema de Educación
y Enseñando de Angola (el nº17/16 de la Ley, del 7 de octubre). La investigación era el contextualized
según las potencialidades del contexto educativo, que la sociedad del angolan tiene características
especiales que tienen la diversidad de la cultura en cada área. Qué lleva con sí mismo las líneas
lingüísticas diferentes para desarrollar uno solo proceso educativo, que exige la creatividad del
maestro que el teachs la clase en que, para el caso de la Historia ys muy significante. El uno esa parte
de atrás yo consigo las líneas lingüísticas diferentes para desarrollar un solo proceso educativo que
ellos exigen la creatividad del maestro que enseña la clase en que es muy importante para el caso de
la Historia. El tema se acercó el globala el proceso de enseñanza-aprendizaje y favorece los modaleses
de acciones que el potentiate la formación de la identidad de los elementos en los alunos.
INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
De acordo com Rodrigues (2011) o homem é resultado do meio cultural em que foi
socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a
experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. Prevalece, então, uma
personalidade espiritual distintiva de determinado povo. A cultura depende de uma acumulação e
uma transmissão no tempo, com modificações e acréscimos de valores, formas de pensamento,
técnicas, normas religiosas, morais e jurídicas, entre unidades históricas que mantêm contatos ou que
se relacionam por um nexo de filiação.
Para Cipriano (2014) a identidade de um povo, ou de uma nação, abrange entre outros
aspectos um conjunto de critérios distintos e comuns, tais como a língua, a religião, costumes, o
território, a história, os critérios morfológicos de esculturas e os antepassados. Também a identidade
no sentido lato traduz um conjunto de dados objetivos que caracterizam o estado do desenvolvimento
das estruturas econômicas, políticas e ideológicas em que cada povo está inserido.
Segundo Cipriano, a Identidade Cultural é um conjunto híbrido e flexível de elementos
que formam a cultura identitária de um povo, ou seja, que fazem com que um povo se reconheça
enquanto agrupamento cultural que se distingue dos outros. O desenvolvimento social está
relacionado com o desenvolvimento da Identidade Cultural de cada povo na medida em que o homem
é inserido no mundo social da sua cultura.
Por outro lado, segundo Peres (2014), a nação angolana é rica em valores, saberes,
técnicas, religiões, tradições, artes e iniciativas diversas nos domínios políticos, econômicos e sociais
que constituem os pilares para a sua identidade cultural.
Consequentemente, com a abordagem realizada até aqui, e de acordo com Ladica, Claudia
e Batista (2019) o rasgo essencial que distingue a Identidade Cultural está dado em sua natureza e se
desenvolve dentro da atuação de cada pessoa, dentro do seu próprio contexto, o que constitui um
referente básico para o seu desenvolvimento. Compreende-se que é a construção de um processo
contínuo de socialização, onde a forma como o indivíduo se percebe no futuro, está intimamente
relacionado com a forma como este é visto nas interações do seu cotidiano, seja no contexto pessoal,
seja no laboral.
77
língua, ao jeito de falar em nosso grupo. Esse apego é uma forma de selarmos nossa adesão a esse
grupo.
Para Soltes e Raupp (2013), a língua é produto de uma comunidade, ela é
parte do domínio dessa comunidade. A língua que falamos nos identifica aos outros, permitindo
sabermos a que grupos pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades. A linguagem
é realmente o nosso meio de interação social.
Assim, a língua seria um produto histórico e, ao mesmo tempo, uma unidade idealizada,
devido a impossibilidade de se alcançar, na realidade, uma língua que se quer idêntica e unitária. A
língua nunca é um sistema único, mas um conjunto de sistemas que encerra em si várias tradições.
Uma mesma língua apresenta diferenças internas: no espaço geográfico, no nível sociocultural e no
estilo ou aspecto expressivo.
De acordo com Santos (2017), a cultura angolana é, em grande parte, de origem Bantu,
em que misturam-se tradições e línguas nativas ou dialetos. Nesse caso se incluem os Ovimbundos,
os Ambundos, os Bakongos, os Côkwe e outros.
Por meio da linguagem ritualista os seres humanos rememoram e atualizam mistérios e
acontecimentos importantes de um passado distante, geralmente explicados por meio da linguagem
mítica. Os rituais normalmente são realizados com distintas finalidades como em cerimônias de
casamentos, processos de iniciação ou passagem litúrgicas, comemorativas ou festivas, rituais
mortuários, divinatórios, de cura, entre outros (SANTOS, 2017).
Segundo o linguista Guthrie (2010), a origem da grande massa dos povos de língua Bantu
se situaria em Shaba e na região adjacente do nordeste da atual Zâmbia. Angola, inicialmente, foi a
região habitada majoritariamente pelo povo bantu. Práticas religiosas, conhecimentos técnicos
agrícolas e de mineração, valores sociais, costumes e hábitos de alimentação e tantos outros elementos
fizeram parte da bagagem cultural que formou a atual República Democrática de Angola e essas
contribuições estão presentes no cotidiano até os dias atuais (SANTOS, 2017).
A partir da análise feita, não se pode ensinar a língua fora dos interesses, elementos
culturais e linguísticos. É necessário provocar situações comunicativas que permitam aos indivíduos
interagir com uma finalidade comunicativa e cultural, como é o caso do desenvolvimento das línguas
em Angola.
A língua nacional é a língua falada num determinado território que, por refletir uma
determinada herança étnico-cultural, representa um elemento que indica uma consciência nacional e,
nos casos mais evoluídos, é também suporte de uma expressão literária independente. Uma língua
considerada oficial em um país é expressa no texto constitucional. Língua materna (língua nativa) é
a primeira língua que uma criança aprende e que geralmente corresponde ao grupo étnico-linguístico
com que o indivíduo se identifica culturalmente.
79
A expressão língua materna provém do costume em que as mães eram as únicas a educar
os seus filhos na primeira infância, fazendo com que a língua da mãe seja a primeira a ser assimilada
pela criança, condicionando seu aparelho fonador àquele sistema linguístico.
O português é a língua oficial de Angola, mas a maioria da população angolana fala, como
primeira língua, alguma das línguas africanas de Angola. As principais línguas africanas faladas em
Angola são o Umbundo (Umbundu), o Quimbundo (Kimbundu), o Quicongo (Kikongo), o Tshócue
(Côkwe), o Ganguela (Nganguela) e o Cuanhama (Kwanyama). Além destas, são faladas dezenas de
outras línguas africanas.
Segundo Silva (2007) e Carvalho (2014), o Umbundu é a língua do grupo etnolinguístico
dos Ovimbundu. Eles englobam quinze povos de características étnicas muito similares, tais como:
os Bienos, Bailundos, Seles, Sumbes, Mbuis, Quissanjes, Lumbos, Dombes, Hanhas, Gandas,
Huambos, Sombos, Cacondas Xicumas, e Quiacas.
Para os mesmos autores, o Kimbundu é a língua do grupo etnolinguístico dos Ambundu
(Bundos). O Kimbundu é falado na região centro-norte nas províncias de Luanda, Malanje, Bengo,
Kwanza-Sul, Kwanza-Norte e uma pequena parte do Uíge. Englobam os Kimbundos uma média de
vinte povos, sendo, os Ambundos, os Lundas, os Hungos, Luangos, os Ntemos, os Punas, os Dembos,
os Ngolas, os Bondos, os Bangalas, os Holos, os Caris, os Xinjes, os Munungos, os Songos, os
Bambeiros, os Quissamas, os Libolos, os Quibalas, os Hacos, e os Sendes. Falam todos a mesma
língua apenas com alguma diferença fonética (SILVA, 2007; CARVALHO, 2014).
Para eles, o Kikongo é a língua do grupo etnolinguístico Bakongo. Os Bakongos
encontram-se no norte de Angola, nas províncias do Uíge, do Zaire e uma parte do Kwanza-Norte.
Entre os Bakongos se distingue dezoito povos, cuja maioria são os Kikongos (Muxicongos), os
Mussorongos, os Sossos, os Pombos, os Solongos, os Zombos (Maquelas), os Iacas e os Sucos. No
grupo Kikongo se encontram os Oios (Cabinda), Cacongos (Lândanas) e Iombes (Maiombes). Os
Kikongos de Angola são tidos como os “guardiões” das tradições culturais do grupo bantu, por estar
no território angolano, a antiga capital do grande reino do Congo (SILVA, 2007; CARVALHO,
2014).
O Tchokwe é a língua falada pelo grupo etnolinguístico Tchokwe. Neste grupo destacam-
se: os Bangalas, os Xinjes, os Mussucos, os Libolos, os Quibalas, os Bundos, os Sumbes, os
Huambos, os Bailundos, os Sambos, os Dembos, os Quissanjes, os Hanhas, os Gandas, os Bieno, os
Buenas, os Luchazes, os Bundas, os Uhanecas (Muílas, Quipungos, Gambos, Humbes), os Hereros,
os Dimbas, os Cuanhocas, os Cuvales, os Vátuas, os Cuissis, os Cuepes, os Bochimanes, os
Ambuelas, os Nhembas, os Camaxes, os Cuangares, os Ambó, os Xilongas, os Diricos, os
Cuanhamas, os Cuamatos, os Evales e os Nhanecas-Humbes.
80
Fazem também parte deste grupo os representantes das etnias Lunda-Tchinde, Lunda-
Ndemba, Matamba, Badinga, Maia, que possuem características comuns, indivíduos de pequena
estatura física que varia conforme a região. Assim como as várias tribos de Angola, os Lunadas
possuem ricas tradições orais. (Ibidem). Estes grupos estão presentes numa boa parte do leste de
Angola, desde a Lunda Norte e Lunda Sul ao Moxico e mesmo ao Bié.
De acordo com Silva (2007), Nganguela é língua do grupo etnolinguístico Tchingangela.
Pertencem a este grupo as etnias Luimbe, Luena, Lovale, Luchadi, Bunda, Camachi. Os Nganguelas
encontram-se no leste e sul de Menongue. Os Ovambus pertencem ao grupo etnolinguístico Ambo.
Este grupo engloba as etnias Evale, Cafima, Cuanhama, Cuamato, Dombondola e Cuangare. Os
Ambos encontram-se na província do Kunene, no sul de Angola.
Ainda para o autor, os Nhyanecas – Humbi pertencem ao grupo etnolinguístico
Lunhaneca. Fazem parte desse grupo as etnias Muílas, Gambos, Humbes, Dongenas, Inglos,
Cuanacuás, Andas, Quipungos, Quilenjes-Humbes e Quilenjes-Mussos. Os Lunhaneca encontram-se
no planalto da Huíla. Os Hereros pertencem ao grupo etnolinguístico Tcherero. Neste grupo
distinguem-se os agrupamentos étnicos: Dimba, Chimba, Chavícua, Cuanhoca, Cuvale e
Nguendelengo. Esse grupo é formado por etnias nômades. Encontram-se no sudeste de Angola na
faixa que separa o deserto de Moçâmedes e o Planalto da Huíla.
A reflexão apresentada mostra o processo da evolução das línguas no povo de Angola.
Aspecto que tem relação direta com o desenvolvimento da Identidade Cultural bem como uma
necessidade na educação nos dias de hoje.
Durante o período colonial, o uso das línguas indígenas estava praticamente circunscrito
ao ensino do catolicismo. Contudo, a língua portuguesa não conseguiu fixar-se em todo o território
devido à limitada utilização que as populações africanas dela faziam, principalmente nas zonas rurais,
permanecendo as línguas indígenas, relativamente intactas.
Com a independência do país, algumas dessas línguas adquirem o estatuto de línguas
nacionais, coexistindo com a língua portuguesa como veículos de comunicação e expressão,
teoricamente em pé de igualdade. A adoção da língua do antigo colonizador como língua oficial foi
um processo comum à grande maioria dos países africanos. No entanto, em Angola, deu-se o fato
pouco comum de uma intensa disseminação do português entre a população angolana, a ponto de
haver uma expressiva parcela da população que tem como sua única língua, aquela herdada do
colonizador.
Nesse sentido, segundo Quintiliano (2013), existem alguns traços sociolinguísticos que
definem como uma língua se estabelece em uma determinada comunidade linguística. Elia (2001)
destaca alguns: o primeiro traço é a língua berço, pois essa característica é dada quando a língua nasce
em um determinado país. O segundo traço é a língua materna, esta é a primeira língua aprendida pelo
81
falante, geralmente na infância, dos lábios de sua mãe ou de parentes próximos. Outro traço
sociolinguístico é a língua oficial – é a língua que o Estado reconhece como válida em sua vida
política e administrativa. O quarto chama-se língua nacional, tem-se por essa a língua falada sem
contrastes em toda a extensão do país.
Um traço interessante (e o mais recente) é o da língua de cultura. Ela permite o acesso à
cultura e sendo ela mesma um patrimônio cultural. O sexto traço é gerado pela língua de cultura,
sendo ele por sua vez a língua padrão, como o próprio nome estabelece, é a língua reconhecida pela
comunidade nacional e que se ensina nas escolas. Podemos classificar o outro traço como língua
transplantada, que é a língua levada de um país para o outro e estabelecida. E como exemplo, temos
a Língua Portuguesa, que após se estabelecer como língua oficial de Portugal, foi levada por meio
dos movimentos expansionistas a vários países, se estendeu por vários lugares e é hoje uma das
línguas mais faladas do mundo.
Observando-se esta análise, se pode compreender que a língua como parte da cultura
transmite e desenvolve a Identidade Cultural, considerada também como a base desse
desenvolvimento. Através da ação educativa, o meio social exerce influências sobre os indivíduos e
eles, ao assimilarem e ao recriarem essas influências, tornam-se capazes de estabelecer uma relação
ativa e transformadora em relação ao meio social. Tais influências se manifestam através de
conhecimentos, experiências, valores, crenças, modos de agir, técnicas e costumes acumulados por
muitas gerações de indivíduos e grupos, transmitidos, assimilados e recriados pelas novas gerações
(LIBÂNEO, 2006).
De acordo com o exposto, a educação foi sempre um processo que visou a preparação do
homem para as exigências da vida em todos os domínios: político, econômico, social e cultural.
Depois do período colonial e dos conflitos armados que o país conheceu, ainda assim, vários povos
de Angola continuam a preservar suas culturas e as línguas angolanas continuam a ser faladas, em
algumas regiões mais que outras por razões históricas.
Desde essa perspectiva, a língua, como parte da comunicação das pessoas, é base do
desenvolvimento identitário, que no ensino da História é muito importante. De acordo com Mattoso
(2008) citado por Joaquim (2015): “[…] a História constitui para a sociedade atual um dos
fundamentos mais importantes da memória coletiva e, por conseguinte, da consciência de identidade”.
Para Maria (2007), tudo o que rodeia a educação institucionalizada é fruto de nossa
própria história de sociedade em suas mais variadas ramificações. As concepções sobre a educação
também fazem parte dos caminhos tomados pela humanidade numa incansável procura de cultura e
conhecimento.
Enquanto segundo Carvalho (2012), as identidades estão intimamente vinculadas à classe
social, gênero, idade, etnia, raça, língua, costumes, educação, religião, que são tradições presentes
82
nas relações sociais. Uma reflexão acerca da pluralidade cultural, presente no cotidiano escolar,
ratifica a diversidade cultural como traço fundamental na construção das identidades, onde a língua
desenvolve um importante papel.
A reflexão sobre a identidade aponta para o processo de interação dos indivíduos nos
diversos espaços sociais, nos quais buscam construir uma gama de sentidos de si mesmos e,
simultaneamente, do outro. Esse processo de conhecimento não se reduz, contudo, apenas a um
conjunto de crenças e representações sobre os indivíduos, mas também, pelo ambiente social no qual
estão inseridos, e que se convergem na produção da identidade (CARVALHO, 2012).
No mundo contemporâneo, as identidades são necessárias para que reconheçamos nossa
pertença: o que somos, o que temos em comum, o que nos diferencia dos outros e o que gostaríamos
de ser. No caso de Angola, o ensino da História ocupa um lugar de extrema importância na formação
da consciência histórica no estudo do seu povo na dimensão da sua identidade cultural, política,
econômica, social e espiritual na busca de soluções dos problemas de cada etnia.
O processo de ensino-aprendizagem da História abre caminho para a formação de atitudes
de tolerância face às formas de pensar e de agir diferentes da nossa cultura. A aprendizagem da
História pode ajudar a compreender melhor a época em que vivemos, de maneira individual e coletiva,
do ponto de vista cultural e identitário.
É imprescindível que a História seja trabalhada nas aulas incorporando toda a sua
coerência interna e oferecendo as chaves para o acesso a sua estrutura como conhecimento científico
do passado. É mais interessante que os alunos compreendam como podemos conseguir saber o que
passou e como o explicamos, do que a própria explicação de um fato ou período concreto do passado.
Ximenes (2018) aponta que o processo de ensino-aprendizagem da História, em constante
diálogo com as diversas áreas e com as experiências próximas e locais do aluno, se solidifica e permite
que ele, enquanto cidadão, se perceba como um sujeito histórico no espaço, no tempo e da sua
comunidade.
No que tange ao ensino da História, seu pilar é sustentado pela tese de que a “educação é
vida”, ou seja, o aluno aprende e apreende não somente para utilizar o conhecimento objetivando
chegar a algum lugar, mas sim, possibilita relacioná-la com o espaço de vivência e experiência do
aluno. Assim, para Ximenes “deve haver relação íntima e necessária entre os processos de nossa
experiência real e a educação”, construindo assim, novas visões sobre o processo de aprendizagem
dos acontecimentos históricos (XIMENES, 2018).
Assim, acreditamos que a abordagem da Identidade Cultural no processo de ensino-
aprendizagem da História, tendo como bases o desenvolvimento da língua, caracteriza-se como um
importante instrumento metodológico no processo de ensino-aprendizagem.
83
CONCLUSÕES
84
REFERÊNCIAS
ANGOLA. Decreto Lei nº. 17/16, de 7 de outubro de 2016. Nova Lei de Bases do Sistema de
Educação e Ensino. Diário da República, I Série-Nº170, 2016b, p.3994-4012.
ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
LADICA, A.; CLAUDIA, A.; BATISTA, S. Identidade cultural dos refugiados: um olhar sobre a
realidade do Alto Tietê. Revista Diálogos Interdisciplinares. vol. 8 n. 3 - ISSN 2317-3793, 2019.
RESUMO
22
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Doutora em Educação. Instituto de
Humanidades e Letras. E-mail: anarita.barbosa@unilab.edu.br
23
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Graduanda em Pedagogia. Instituto
de Humanidades e Letras E-mail: gabibpts@gmail.com
24
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Instituto de Humanidades e Letras
Graduanda em Letras. E-mail: belisa.amaral@gmail.com
25
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Instituto de Humanidades e Letras.
Graduando em Letras. E-mail: habildollar@gmail.com
87
O brincar é uma ação inerente à infância, sendo substancial sua importância para o
desenvolvimento social, cognitivo e emocional das crianças. Diversos estudos, no âmbito do
Letramento Emergente (Emergent Literacy), também apontam que as experiências lúdicas que
envolvem práticas sociais de leitura e escrita na primeira infância propiciam um bom
desenvolvimento dos processos de alfabetização e letramento. Contudo, em contextos de históricas
desigualdades de oportunidades educacionais (e literárias), muitas crianças acabam ficando à margem
desses processos, sendo ainda mais necessário o fortalecimento das redes de apoio (escola, família,
comunidade), a fim de proporcionar experiências lúdicas de letramentos (KISHIMOTO, 2013;
SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2013; BARBOSA, 2018).
A prática de ouvir e contar histórias, presente em diversos povos, culturas e gerações, é
uma possibilidade lúdica que aproxima as crianças dos contos de tradição oral, bem como das
histórias escritas, propiciando assim o desenvolvimento de seus processos de letramento e também
de alfabetização. Além disso, favorece o desenvolvimento de competências linguísticas e
metalinguísticas (PINTO; BIGOZZI, 2002; De BENI, CISOTTO, CARRETTI, 2002; BELLONE,
OGLETREE, 2004; PROPP, 1997; RAVID, TOLCHINSKY, 2002; WHITEHURST e LONIGAN,
1998; TEALE e SULBZBY, 1986).
Para além dos aspectos relacionados à cognição e à aprendizagem, o ouvir e contar
histórias também envolvem questões de natureza histórica, social, cultural, psicológica e identitária.
Conforme Bruner (1996), todo o processo de escolha dos contos, histórias e práticas lúdicas deve ter
o propósito de contribuir, de forma responsável, para a construção positiva das identidades das
crianças. Isso porque o conto propicia o desenvolvimento psíquico e emocional, a partir da construção
de processos de identificação com os modelos encontrados, representados pelas personagens e
histórias com as quais se tem contato, o que é ainda mais urgente em sociedades marcadas
historicamente por desigualdades, diversas formas de opressão, assim como pelo racismo epistêmico
(SANTOS, 1999).
Partindo deste propósito e em diálogo com a Lei 11.645/08 para o ensino da história e da
cultura afro-brasileira, africana e indígena, o projeto de extensão “Brinquedoteca de histórias:
ludicidade, contação de histórias e vivências de letramento na infância”, desenvolvido há um ano na
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), está ancorado em
três principais pressupostos: 1) a valorização da ludicidade nas práticas educacionais propostas para
a infância; 2) a valorização de práticas de leitura e de contação de histórias escritas e de tradição oral;
3) a boa escolha do repertório de contos orais e escritos, considerando as peculiaridades históricas e
socioculturais do contexto envolvido, bem como a implementação da Lei 11.645/08 – concernente à
construção positiva de identidades e à promoção de práticas educacionais decoloniais e antirracistas.
O projeto foi pensado, portanto, enquanto possibilidade de criar e experimentar “caminhos” para o
88
Figura 1 – Registro de atividade presencial realizada no mês de março/2020 pelo estudante da UNILAB,
Valdimiro, em uma escola pública do município de São Francisco do Conde – BA.
Figura 2 – Registro de atividade presencial realizada no mês de março/2020 pela estudante da UNILAB,
Gabriele, em uma escola pública do município de São Francisco do Conde – BA. Leitura do conto: “Tanto,
tanto!”, de Trish Cooke.
26
O Projeto Facul das Crias é uma ação de Extensão da Universidade, voltada para acolher, com atividades educativas e
lúdicas, as crianças filhas de discentes, docentes e técnicos do Campus do Malês.
27
As atividades da extensão ocorreram em parceria com o projeto de pesquisa “Oficinas Brincantes de alfabetização e
Letramento: espaços e possibilidades para o desenvolvimento sociocultural de sujeitos”.
89
Figura 3 – Organização dos áudios na plataforma digital do projeto, realizada por Belisa, voluntária do projeto.
Figura 4 – Registro da primeira história que foi divulgada no mês de abril, na plataforma SoundCloud.
Fonte: soundcloud.com/brinquedotecadehistorias
No segundo semestre de 2020, foram criadas mais duas plataformas. Uma delas seria para
dar continuidade às publicações após termos atingido o limite de material que poderia ser publicado28
, e a outra para ampliar a divulgação, tratando-se do mesmo material já existente na plataforma
SoundCloud.29
Figura 5 – Página inicial da Plataforma Spotify, com a coletânea de todos os áudios (podcasts) publicados.
28
https://soundcloud.com/brinquedotecadehistorias2.
29
https://open.spotify.com/show/1aY7caC0VfhhLE7e6zLjuw.
91
Fonte: open.spotify.com/show/1aY7caC0VfhhLE7e6zLjuw
Fonte: soundcloud.com/brinquedotecadehistorias/
92
Apesar de não termos realizado o contato direto com o público infantil, percebemos que
o redimensionamento das ações gerou outras possibilidades não imaginadas anteriormente, uma vez
que, ao longo de um ano de trabalho, construímos uma audioteca de histórias de acesso livre para um
público muito mais extenso. Tais ações terão continuidade mesmo em cenários de pós-pandemia, pois
buscam dar visibilidade, escuta e voz a atores sociais historicamente excluídos pelo racismo e pelas
desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que apontam e experimentam estratégias educativas
lúdicas e criativas.
Em relação à interação com o público, tivemos dificuldades em ter retornos específicos
relacionados à interação das crianças com as histórias e como estavam sendo utilizadas por pais e/ou
educadores. Imaginamos que o próprio cenário de incertezas, inseguranças e dificuldades, em
decorrência da pandemia, pode ter sido um fator que de certa forma atrapalhou essa interação e
obtenção de maior retorno ao longo do tempo. Contudo, obtivemos alguns feedbacks interessantes,
conforme ilustram as imagens abaixo:
Figura 7 – Desenho da história30 preferida: O canto dos pássaros. Ouvinte: Levi Santana, seis anos,
residente em Salvador – BA.
Figura 8 – Desenho da história preferida: Quando o sol e a lua foram morar no céu. Ouvinte: Letícia, nove
anos, residente em Salvador – BA.
30
“A história que eu mais gostei de ouvir na brinquedoteca foi a do Canto dos pássaros. Eu gostei dessa história porque
gosto de pássaros e também gostei da parte que o mago jogou o pó mágico nos pássaros. Eu gosto de história de animais”.
93
Figura 9 – Desenho da primeira história ouvida por Enzo, 1 ano, residente na França: “Quando o sol e a
lua foram morar no céu”.
online, ou que apenas acompanham e apreciam cada publicação pelo simples prazer de ouvir histórias
e aprender coisas novas.
Além da contínua pesquisa, planejamento e divulgação de histórias, realizamos, no
segundo semestre de 2020, algumas atividades formativas no formato de lives, com a participação de
especialistas para tratar de temas vinculados às ações do projeto, por exemplo, a discussão sobre as
relações étnico-raciais a partir das histórias, que contou com a participação da Professora Claudilene
Silva. Os encontros foram mediados pelos estudantes colaboradores e divulgados por meio do canal
do Grupo de pesquisa GEPILIS/UNILAB31.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
31
https://www.youtube.com/watch?v=LYNLVQcHRAY&t=1860s.
95
REFERÊNCIAS
BELLONE, M.; OGLETREE, B.T. Usare i libri di fiabe e racconti per l’avviamento alla letto-
scrittura. Difficoltà di apprendimento, v. 9, n. 4, p. 521-530, 2004.
BRUNER, J. The culture of education. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1996.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modicada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/ lei/l11645.htm.Acesso em 25 jul.2018.
DE BENI, Rossana; CISOTTO, Lerida; CARETTI, Barbara. Psicologia della lettura e della
scrittura. Trento: Erickson, 2002.
PINTO, Giuliana; BIGOZZI, Lucia (org.). Laboratorio di lettura e scrittura. Trento: Erikson, 2002.
PROPP, Vladimir. Morfologia della fiaba. Trad. it. S. Arcella, Roma,Newton Compton, 1997.
TEALE W. H.; SULZBY, E. Emergent literacy: writing and reading. Norwood: Ablex, 1986.
RESUMO
Este trabalho origina-se de um trabalho de conclusão de curso que buscou apresentar uma reflexão
sobre as dificuldades que o aluno contemporâneo apresenta para mobilizar o conhecimento adquirido
para ler textos teóricos e transformá-los em embasamento de suas reflexões no decorrer da formação
inicial. Na área de Letras, considerando que o estágio supervisionado é um momento em que o aluno
deve aprender a mobilizar as teorias para construir reflexões e compreensões sobre o ensino da língua
portuguesa, a escrita destituída da base teórica ou como mera reprodução, constitui-se em um sério
problema, uma vez que essa apropriação é fundamental para que se possa produzir conhecimento
sobre e para a escola. Diante disso, a pergunta central que conduziu o artigo foi se a escrita produzida
no e por meio dos relatórios de estágio supervisionado se configura como um recurso constitutivo de
conhecimento e, consequentemente, do sujeito que a produz? Para a efetivação da análise, foram
selecionados 20 relatórios para a composição do corpus, produzidos por alunos do Curso de Letras
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no ano de 2015, nas disciplinas estágio
supervisionado em Língua Portuguesa I e II. Dentre essas 20 produções, foram analisadas aquelas
que, por sua forma de construção, foram representativas dos modos como organizam a escrita do
gênero relatório e se apropriam das teorias linguísticas para produzir reflexões sobre o ensino-
aprendizagem da escrita. A escrita do relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir
do dado concreto e chegar a uma reflexão de cunho teórico sobre a escrita como produção de
conhecimentos na universidade, a partir de uma concepção não dicotômica entre teoria e prática.
Como aporte teórico, foram utilizadas as teorias desenvolvidas por Barzotto (2007); Geraldi (2003);
Bianchi (2002) e Vásquez (1977). Os resultados da pesquisa mostraram que os professores em
formação tendem a relacionar a teoria em suas produções acadêmicas de modo bastante superficial,
ou seja, apropriação como forma de manter a formalidade que o gênero relatório de estágio
supervisionado demanda e não como embasamento de suas reflexões.
INTRODUÇÃO
32
Licenciada em Letras (Português e Espanhol). Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM). E-mail: agda.nmoreira@gmail.com
97
sujeito o traçado da entrada na linguagem feito por qualquer falante. A depender do encaminhamento
dado aos medos, ao refazer esse traçado, alguns passam a procurar um modelo que acomode o texto
e as posições nele constituídas para se livrar do embate com os próprios temores.
Para que se efetive como esse momento de constituição de conhecimento sobre a prática,
sobre o papel da teoria na prática, é necessário que o estagiário tome a teoria como um aporte
fundamental para a prática e, principalmente, se aproprie da teoria vista em sala de aula para organizar
o seu agir no campo prático. O aprendizado se dá pela compreensão da teoria e seu papel na
constituição de compreensões sobre a prática. A escrita do relatório, nesse sentido, é o momento de
expor a esse conhecimento e, principalmente, de articular esses conhecimentos de forma a produzir
outros novos conhecimentos sobre a prática de ensino e aprendizagem da língua portuguesa.
Diante disso, a pergunta central que conduziu a elaboração deste artigo foi se a escrita
produzida no e por meio dos relatórios de estágio supervisionado em Letras se configura como um
recurso constitutivo de conhecimento e, consequentemente, do sujeito que a produz? A escrita do
relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir do dado concreto e chegar a uma
reflexão de cunho teórico sobre a escrita como produção de conhecimentos na universidade, a partir
de uma concepção não dicotômica da relação entre teoria e prática.
mera relação parafrástica com vistas a cumprir a organização do gênero relatório. Embora a paráfrase
seja um recurso utilizado para a escrita do texto, isso não pode justificar uma acomodação como o de
sempre retomar a escrita do outro como forma de produção de conhecimento. O estagiário precisa
apropriar-se do conhecimento teórico e fazer emergir sua criticidade, assim como confirmar ou
descartar um ponto de vista e mobilizar o embasamento teórico suficiente em suas práticas.
Bianchi (2002) afirma que estagiar é tarefa do aluno do curso de licenciatura e é preciso
que ele demonstre sua capacidade de reflexão e produção de conhecimento sobre os objetos e
problemas relacionados ao ensino da disciplina para qual está se formando; é também necessário que
exerça funções condizentes com o seu conhecimento teórico-prático e tenha consciência do papel
profissional que desenvolverá ao assumir a posição de educador. Para o autor, no estágio, a
observação prática dos espaços de atuação profissional sem articulação com a teoria não é suficiente
para se construir um saber sobre a realidade escolar que a cada dia se mostra mais caótica. A partir
disso, buscamos analisar se o aluno de Letras, ao cursar o estágio supervisionado, também mobiliza
as teorias para explicar os problemas de aprendizagem; ou seja, se mobiliza a teoria na prática,
sabendo atuar em salas com contextos diferentes, de modo a não ficar refém dos materiais didáticos,
por exemplo.
Barzotto (2007) parte do pressuposto que estudantes do Curso de Letras apenas seguem
o legado deixado por teóricos e não conseguem escrever partindo da teoria como base. Ou seja,
somente reproduzem o que leem e utilizam as teorias em contextos diferentes, além de possuírem
dificuldades de escrita. A partir da discussão proposta pelo autor, analisa-se como essa dificuldade se
materializa nos relatórios e as dificuldades de escrita. Fazer essa análise é importante porque
diferentes pesquisadores destacam ser preocupante o alto índice de estudantes que chegam aos cursos
universitários com dificuldades de escrita, em relação à norma culta, às variantes, ao conhecimento
da língua. No caso do profissional da área de Letras, esse problema ganha maior relevância porque é
o professor de língua portuguesa que ensinará a escrita na educação básica.
Segundo Brait (2000, p. 53), “o profissional de Letras terá que conhecer muito bem a
língua, as suas variantes, a sua norma culta. Terá ainda de estar atento às teorias da linguagem em
geral para ser capaz de enfrentar textos e fazer deles seu instrumento de ver e mostrar o mundo”. Ou
seja, saber escrever mobilizando as teorias de base dessa área é fundamental para que o professor de
língua portuguesa, no momento de exercício da docência, tenha condições de compreender e construir
estratégias visando à aprendizagem da escrita na escola.
Para Vásquez (1977), mesmo que a teoria seja vista de forma autônoma em relação à
prática, a prática não existe sem orientação teórica, ou seja, ambas caminham juntas. Entre essas
orientações o autor destaca o conhecimento da realidade que deverá ser transformada; da técnica que
100
deverá ser utilizada na transformação e da prática acumulada que deverá avançar em relação a
determinado nível teórico. Para esse autor,
Nota-se que não basta uma boa teoria para que a prática se realize com êxito, mas tão
pouco se entende que a prática se basta por si mesma. Em síntese, as teorias usadas para a análise dos
dados contribuirão para o alcance dos objetivos propostos, uma vez que, em relação ao uso da
linguagem, temos as assertivas de Geraldi e Brait, que mostram a importância da linguagem para a
construção do sujeito. Bianchi, que discute o papel do estagiário, oferece o suporte para as análises
sobre o modo como o aluno coloca em prática as teorias linguísticas, a aplicabilidade da teoria na
prática. Por fim, Vásquez contribui para a análise da relação entre teoria e prática nos relatórios.
Sendo assim, o estágio possibilita ao futuro professor realizar intervenções a partir da observação
sistemática da sala de aula, além de possibilitar que invista na possibilidade de atuação docente
reforçada por critérios teóricos.
PROCEDIMENTO METODOLÓGICO
Esta pesquisa é de caráter qualitativo, uma vez que, com base em Esteban (2010),
pesquisa qualitativa é um conjunto sistemático de atividades interpretativas que tem como principal
foco a construção e compreensão de fenômenos educativos e sociais. Para tanto, inicialmente foram
selecionados 20 relatórios de estágios supervisionados, produzidos por alunos do Curso de Letras da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro no ano de 2015, nas disciplinas de estágio supervisionado
em Língua Portuguesa I e II. Dentre essas 20 produções, foram selecionadas 14 produções que, por
sua forma de construção, são representativas dos modos como os alunos, de forma geral, organizam
a escrita do gênero relatório. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, não será o dado repetido que
terá relevância, mas o dado que, na relação com outros, embora aparentemente isolado, permita a
construção de uma compreensão acerca de como o aluno se vê e mobiliza os recursos linguísticos e
discursivos na produção da escrita.
Os textos que compõem o corpus são identificados pela letra R de “relatório” e números
que indicarão se estagiário 01 ou 02 e assim sucessivamente. Ou seja, nesse sentido, a preocupação
maior é com a não identificação dos autores dos relatórios. Os autores dos relatórios foram
informados da realização da pesquisa e, no momento em que foram convidados a participar,
receberam o Termo de Consentimento Livre Esclarecido para assinatura (TCLE). Além disso, foram
101
informados de que poderiam desistir da participação na pesquisa – e não autorizar o uso do relatório
– a qualquer momento.
No que diz respeito à análise, como se trata de uma pesquisa ancorada na concepção
discursiva da linguagem, não serão priorizadas, embora consideradas, nas análises, características
“textuais” ou “formais” que perfaçam um “bom relatório de estágio” por si só, mas discutiremos
traços que apontem para uma relação produtiva do sujeito com as instâncias às quais ele se dirige em
seu texto e com aquilo que é tomado como objeto de seu discurso: as práticas de ensino na escola
básica. Nesse sentido, será também analisado como um enunciado se constitui enquanto portador de
um conhecimento do sujeito que o produziu.
Para a efetivação da análise das produções textuais discursivas, foram utilizados quatro
critérios que serão apresentados em subtópicos. Sendo assim, na seção 3.1, são analisados os aspectos
da descrição da prática de ensino e aprendizagem; em 3.2, são analisadas as operações discursivas
realizadas sobre os dados registrados nas práticas de observação e regências descritos e analisados
nos relatórios, ou seja, se os estagiários mobilizam e problematizam os dados observados e como
efetivam esses dados. Na sequência, em 3.3, apresenta-se o desenvolvimento da escrita partindo dos
conceitos teóricos apresentados no embasamento do relatório e o uso das afirmações teóricas nas
práticas de ensino registradas. Por fim, na seção 3.4, são analisadas as reflexões produzidas nos
relatórios sobre as aprendizagens a partir das práticas de ensino realizadas pelos estagiários e pelos
professores observados na escola básica.
O estagiário propõe o tema “Ditadura Militar no Brasil nos anos de 1964 e 1985” para
promover um debate e desenvolver o caráter crítico nos alunos com a justificativa de que isso não é
explorado pelo professor; porém, não apresenta ao leitor uma explicação sobre a escolha do tema,
também não diz muito sobre quais aspectos desse período/conteúdo será abordado em sala de aula.
Como intervenção, propõe a escrita de um parágrafo introdutório que, consequentemente, resultará
na produção de uma dissertação crítica e novamente não explica o que é esse crítico. Ao observar que
a turma não é participativa devido à timidez, o estagiário aplica uma atividade de escrita crítica, de
modo a suprir o debate. Diante da primeira problemática a ser enfrentada, a falta de participação da
turma, não descreve como chegou a essa conclusão, o que se torna superficial a escrita apresentada
no relatório. Posteriormente, verifica-se outro aspecto de descrição da prática de ensino referente ao
relatório 01:
A ideia de introdução de tais conceitos não foi tarefa fácil, mas houve extrema colaboração
por parte dos alunos [...]. Após a apresentação superficial dos conceitos de língua e linguagem
[...] o texto não foi reescrito, pois os alunos não devolveram no prazo [...] para concluir a aula
de regência foi um sucesso. [R 1, p. 5].
momento, explicaremos como se constrói uma produção textual, depois aplicaremos o tema,
corrigiremos e assim os alunos vão reescrever”.
Nos relatórios, ao professor é atribuído um papel de capataz de fábrica, como aponta
Geraldi (2003), cuja função é controlar o tempo de contato do aprendiz com o material previamente
selecionado. Além disso, conforme menciona o autor, os livros didáticos tendem a fundamentar-se
em dois tipos: livros textos para os alunos e livros-roteiros para os professores, ou seja, basta oferecer
um livro que ensine aos alunos o que for preciso e, consequentemente, solucione o despreparo do
professor. Porém, dessa forma, professor e aluno são automatizados e reduzidos a máquinas de
repetição material.
Nas últimas aulas observadas o professor fez uma revisão para a prova [...]. O professor pediu
que formulasse 5 questões para a prova que foi, com exceção de duas questões, toda de
múltipla escolha. Este tipo de avaliação não permitiu que os alunos demonstrassem
efetivamente os conhecimentos adquiridos e o domínio sobre eles para elaboração de um
texto, por exemplo. [R14, p.6].
Embora não tenham mobilizado teorias para embasar a crítica sobre a prática do
professor, observa-se que há uma discordância diante do que estava sendo analisado, algo pouco
manifestado pelos estagiários no decorrer da análise. Nota-se no excerto R12, a forma no qual o
professor explica os conteúdos, de modo simples, superficial, não mobilizando teorias em suas
práticas para melhor expor os conceitos. No excerto R14, o estagiário discorda do tipo de avaliação
aplicado pelo professor, alegando que não são condizentes. As críticas são registradas, porém a teoria
não comparece como recurso necessário para explicar onde está o problema com relação à prática do
professor. Fica para o leitor a impressão de que afirmou uma verdade que não carece fundamentação
e explicitação, mesmo tendo sido solicitada pela coordenação do estágio.
Tínhamos a todo o momento a ajuda da professora da escola que dava bastante dicas e nos
ajudava a como corrigir melhor as produções.
De acordo com Mendonça e Bunzen (2006, p. 202): “o ensino de língua portuguesa no EM
apresenta características especificas que se relacionam à organização dessa etapa de
escolarização [...]”
Segundo o texto “No espaço do trabalho discursivo, alternativas”, de João Wanderley Geraldi
(1997, p. 135) [...], temos a seguinte citação: “considero a produção de textos (orais e
escritos) como ponto de partida. [R7, p. 2].
105
A escrita do trecho acima não parte da teoria como base e é estruturada em parágrafos
com muitas citações, como se, diante do embate da escrita, recorresse à voz do outro para compor o
próprio texto. Esse pode ser o modo mais fácil que o estagiário encontra para resolver o problema da
escrita. Porém, torna-se preocupante quando consideramos que a escrita é constitutiva do sujeito e do
conhecimento. No trabalho que faz com e sobre a linguagem é que constituem a possibilidades de o
futuro professor construir para si um saber próprio sobre o ensino da língua portuguesa. Não há
dissertação sobre a citação utilizada em seu aporte teórico e, em seguida, inicia o parágrafo para
abordar sobre o modo como a gramática deve ser trabalhada. O estagiário, ou melhor dizendo, o
futuro professor de língua portuguesa e, consequentemente, mediador da escrita, faz uso das citações
como fonte para preencher o espaço frente a dificuldade para escrever sobre a aula. Tal ocorrência
mostra a dificuldade da escrita materializada nos relatórios, dificuldade em apropriar-se da teoria e
dissertar sobre como os conceitos auxiliarão no processo de estágio, qual a finalidade, em qual aspecto
a teoria irá auxiliá-lo na prática.
As citações, nos fragmentos acima, se tornam ponto de partida para dissertar sobre a
variante linguística, sobre o modo como é abordado no âmbito escolar, além da importância do texto.
A discussão que o estagiário traz, a partir das citações, é a de que, na maioria das vezes, estudar a
língua na escola resume-se em estudar a gramática e suas estruturas, porém, verifica-se que, no
trabalho com a voz do autor, os estagiários constroem sua visão em relação ao ensino da língua, uma
vez que manifestam suas opiniões frente a prática de ensino observada: “a escola abole qualquer
variante linguística de nossa língua, execrando toda diferença no modo de falar dos alunos que estão
inseridos naquele meio” ; “não basta que um professor mande o aluno ficar calado, decorando regras
previstas pela gramática tradicional”. A partir das citações, verifica-se também a concepção que o
estagiário assume em relação ao conhecimento prático dos princípios da linguagem e a gramática
interiorizada que cada aluno possui: “que o garoto ou garota não sabe falar português, ignorando todo
processo de aquisição da linguagem e causando desconforto na sala”; observa-se que os estagiários
viabilizam a língua como sendo dinâmica e, portanto, mediante ao tempo, sofre influências do
contexto sócio-histórico-cultural. Ademais, nota- se que a língua é entendida sob duas perspectivas:
um instrumento comunicativo ou um sistema cujos mecanismos estruturais visa identificar e
descrever.
Um professor de língua portuguesa precisa ter claro em sua mente a importância do que está
ensinando para seus alunos e deve manter o compromisso de não só ensinar, mas mediar o
processo de aprendizagem e isso não foi o que puder perceber. [R11, p. 12].
De acordo com esses excertos, verifica-se que os estagiários, mesmo quando buscam não
apresentar seu posicionamento crítico ao longo do relatório, optam por usá-lo no momento da
conclusão. Sabe-se que a própria seção permite tal criticidade, porém, nas seções de observações
diárias e regência também permitem essa análise. O estagiário tende a não expor a conduta do
professor, a didática e o âmbito escolar como um todo. Sendo assim, dificulta-se a visualização do
âmbito escolar no qual estão inseridos, de modo a prevalecer apenas à concepção que o professor tem
sobre a língua e o falho trabalho em relação à escrita. Os dados apresentados, de fato, são relatos
107
encapsulados na sua perspectiva. A voz do outro professor é encapsulada na sua que apresenta a
crítica sem dar ao leitor condições para construir uma leitura próprio do que foi visto pelo estagiário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
precisa ser feita, mas que a busca pelo melhor deve ser uma constante ação de produção de novos
conhecimentos. Essa produção exige relação entre teoria e prática.
Os aspectos apontados a partir da escrita dos relatórios são relevantes porque, caso essa
dificuldade da não mobilização teórica perpetue, ou se não for manejada pelos professores
acadêmicos para que evidenciem aos seus estagiários sobre sua importância para a futura prática
efetiva, refletirá no ofício do futuro professor da educação básica. Nesse sentido, é necessário, na
universidade, trabalhar para que o futuro professor, já no momento do estágio, compreenda que o
papel da teoria é possibilitar diferentes leituras da prática e que ambas não ocorrem de forma
distanciada; o estágio é uma ação social e educacional, uma forma de intervir na realidade, não
bastando somente observar e/ou denunciar, é necessário enfrentar situações e buscar construir
alternativas de ação.
REFERÊNCIAS
PIMENTA, S. G. O. Estágio na Formação de Professores: unidade teoria e prática? 4.ed. São Paulo:
Cortez, 2001.
RESUMO
Os memes referem-se a qualquer assunto da sociedade que viralize na internet. Geralmente, são
compostos por imagens legendadas, vídeos ou gif’s com conteúdo humorístico a respeito de
determinado assunto. Em tempos de pandemia da covid-19, os memes se tornaram aliados na
divulgação de informações sobre a prevenção do vírus, e também uma espécie de “alívio” cômico em
meio às dificuldades que estão sendo enfrentadas. Dentre as características do gênero meme,
destacamos a multissemiose e a dialogicidade que esse gênero mantém com acontecimentos sociais,
com outros discursos já ditos e que são necessários para a atualização dos efeitos de sentido. Diante
disso, o presente trabalho objetiva discutir possíveis estratégias de leitura e produção textual e sugerir
uma proposta para o ensino do gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa, tendo em vista a
funcionalidade e as características desse gênero digital no processo de interação social. O corpus é
composto por memes relacionados à pandemia da covid-19, bem como ao isolamento social, ao uso
do álcool em gel, à alta dos preços de alguns alimentos e às dificuldades relacionadas ao ensino e ao
trabalho de maneira remota. A análise do corpus se constitui como possibilidades de estratégias de
leitura para formação de um leitor crítico na educação básica, tendo como público alvo alunos do 9º
ano do Ensino Fundamental. Como referencial teórico, recorremos a Alves Filho (2011), à BNCC
(2018), a Rojo e Barbosa (2015), entre outros. Como resultados alcançados, entendemos que em sala
de aula, ao interpretar e criar memes, o aluno pode revelar seu ponto de vista sobre determinado
assunto, sua criatividade em organizar imagens e enunciados para tratar sobre um determinado tema
e também sua visão crítica do que está acontecendo na sociedade, entre outras habilidades.
Destacamos que foi perceptível a necessidade de selecionar um número significativo de textos
pertencentes ao gênero meme enquanto objeto de ensino. Além disso, ressaltamos que o trabalho com
o gênero meme poderá garantir a aproximação entre o ensino de Língua Portuguesa na escola com o
seu uso na vida real.
INTRODUÇÃO
33
Graduanda em Linguagens e Códigos/Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo. Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de
Linguagem e Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM). Pesquisadora do projeto PIBIC na linha de
pesquisa intitulada “Práticas de Linguagem em Diferentes Contextos”. E-mail: elaynesilva2701@gmail.com
34
Doutora em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (2018). Professora adjunta do Curso de
Licenciatura em Linguagens e Códigos/Língua Portuguesa, na Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem e
Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM). E-mail: eliani-phb@hotmail.com
110
Sobre gêneros
Segundo Bakhtin (2016, p. 12), “a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são
infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discurso [...]”,
isto é, na medida em que cada campo se desenvolve, novas formas de se comunicar surgem e outras
vão se modificando com as necessidades de interação ou com as novas tecnologias.
Marcuschi (2011) afirma que os gêneros circulam na sociedade das mais variadas
maneiras e nos mais variados suportes, são flexíveis e permitem lidar de maneira mais estável com
111
as relações humanas em que utilizamos a linguagem. Com o advento das novas tecnologias digitais,
os seres humanos passaram a se comunicar de maneira mais rápida e flexível, conforme Marcuschi
(2005, p. 16) afirma:
Pode-se dizer que parte do sucesso da nova tecnologia deve-se ao fato de reunir em um só
meio várias formas de expressão, tais como texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade
para a incorporação simultânea de múltiplas semioses, interferindo na natureza dos recursos
linguísticos utilizados. A par disso, a rapidez da veiculação e sua flexibilidade linguística
aceleram a penetração entre as demais práticas sociais.
Com isso, novos gêneros foram surgindo e outros foram se adaptando ao longo do tempo.
Se antes enviávamos cartas impressas, hoje enviamos e-mails e podemos nos comunicar por meio das
redes sociais com pessoas que estão em diferentes partes do mundo. Além disso, temos facilidade em
acessar informações e compartilhar conteúdos sobre determinados assuntos que são do nosso
interesse.
Para Marcuschi (2005, p. 15), os gêneros digitais são “[...] gêneros textuais que estão
emergindo no contexto da tecnologia digital em ambientes virtuais”. O autor aponta que os gêneros
presentes no meio digital possuem características similares aos gêneros textuais já consolidados no
meio impresso e que eles apresentam um caráter inovador no contexto das relações entre fala e escrita.
No que diz respeito ao uso de tecnologias digitais no ensino, de acordo com a BNCC
(2018, p. 487), é preciso considerar “[...] propostas de trabalho que potencializem aos estudantes o
acesso a saberes sobre o mundo digital e as práticas da cultura digital devem também ser priorizadas,
já que, direta ou indiretamente, impactam seu dia a dia nos vários campos de atuação social [...]”. Por
outro lado, é importante ressaltar que muitas escolas ainda não possuem acesso à internet para todos
os alunos e também não têm equipamentos (computadores, tablets, smartphones, etc) suficientes para
auxiliar os estudantes durante as aulas.
Por isso, é necessário conhecer a realidade das escolas e dos alunos no momento de
escolher os gêneros que serão trabalhados em sala de aula. Mesmo com todas as dificuldades, de
forma direta ou indireta, os alunos estão inseridos em espaços virtuais e, diariamente, têm contato
com gêneros digitais, tais como: memes, vlogs, videoaulas, fanfics, notícias online, entre outros.
Desse modo, “[...] para além da cultura do impresso (ou da palavra escrita), que deve continuar tendo
centralidade na educação escolar, é preciso considerar a cultura digital, os multiletramentos e os
novos letramentos [...]”, conforme cita a BNCC (2018, p. 487).
O gênero meme
Segundo Martino (2014, p. 177), “[...] a palavra ‘meme’ foi usada pela primeira vez, no
sentido atual, pelo cientista britânico Richard Dawkins em seu livro O gene egoísta, de 1976”.
112
Conforme o autor, Dawkins buscou a palavra no grego antigo “mimeme” 35, para explicar a
propagação e transformação de ideias entre seres humanos por meio de replicadores culturais. A partir
de estudos feitos por Blackmore (1999), Shifman (2014), entre outros, os memes passaram a
representar elementos da cultura popular em ambientes virtuais.
Diante disso, atualmente os memes caracterizam-se como uma ideia ou conceito, que se
difunde rapidamente na internet, sobretudo nas redes sociais. Por se tratar de um gênero que está
presente predominantemente na mídia digital, os memes apresentam uma linguagem multimodal ou
multissemiótica. Segundo Rojo e Barbosa (2015), a linguagem multimodal ou multissemiótica refere-
se a textos que recorrem a mais de uma modalidade de linguagem, signos ou símbolos.
Na maioria das vezes, os memes são veiculados nas redes sociais (Facebook, Instagram,
Telegram, Twitter, WhatsApp etc.) e, dependendo do seu sucesso, podem ser compartilhados por
outras pessoas em diferentes ambientes virtuais. Por se tratar de um gênero relativamente fácil de ser
criado, os memes geralmente são feitos pelos próprios internautas, tendo em vista que podem ser
produzidos com qualquer programa editor de texto para computador ou aplicativo do celular. Diante
disso, Martino (2014, p. 178) destaca que “qualquer pessoa com conhecimentos rudimentares de
edição digital de imagens pode, potencialmente, se apropriar de uma ideia, modificá-la e compartilhá-
la”.
No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, o gênero meme pode ser um bom
aliado às práticas de leitura e escrita, visto que sua forma composicional é relativamente simples e
que podem ser abordados aspectos relacionados aos elementos verbais e não verbais, os efeitos de
sentido e as condições de produção pelas quais os memes são criados.
Por se tratar de um gênero que tem como caraterística principal replicar acontecimentos
da sociedade de uma maneira humorística e/ou crítica, o gênero meme pode abordar diversos assuntos,
tais como: críticas sociais, fatos do dia a dia, notícias sobre o mundo dos famosos, entre outros.
Martino (2014, p. 179) destaca que os memes “[...] têm a capacidade justamente de atrair o interesse
de indivíduos e comunidades para determinados assuntos ou situações [...]”; a exemplo disso,
podemos citar o fato de que atualmente existem diversas páginas nas redes sociais que divulgam
memes para um público específico, a fim de propiciar laços comunicativos entre os indivíduos que
compartilham os mesmos interesses.
35
Martino (2014) explica que a palavra grega “mimeme” significa aquilo que pode ser imitado.
113
Devido à proliferação da covid-19, muitos internautas utilizaram suas redes sociais para
compartilhar memes sobre a pandemia. Dentre os principais temas, destacamos memes referentes ao
isolamento social, ao uso do álcool em gel, à alta dos preços de alguns alimentos e às dificuldades
relacionadas ao ensino e ao trabalho de maneira remota, com o intuito de apresentar possíveis
estratégias de leitura e produção textual para o ensino do gênero meme nas aulas de Língua
Portuguesa, tendo como público alvo alunos do 9º ano do ensino fundamental.
Alves Filho (2011, p. 51) destaca que “para se compreender satisfatoriamente um gênero
é necessário também compreender os contextos nos quais os seus textos são produzidos e postos em
circulação”. Isto é, ao levar um determinado gênero para a sala de aula, o professor precisa conhecer
previamente os textos que irá trabalhar, assim como o contexto no qual eles foram produzidos e o que
especificamente será analisado.
Tratando-se do contexto de pandemia, o professor pode recolher diversos memes de
diferentes veículos de divulgação, a fim de expor aos alunos como se dá a construção de sentidos
presentes em cada um deles, se eles dialogam ou não uns com os outros, se utilizam as mesmas
imagens, quais são as personagens que aparecem, em quais mídias são veiculados, entre outros
elementos. Diante disso, apresentaremos a seguir alguns memes sobre a pandemia que podem ser
utilizados nas aulas de Língua Portuguesa:
Figura 1 – Meme do caixão
36
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/16/sp-empresario-usa-meme-do-
caixao-em-outdoor-para-pedir-isolamento-social.htm>. Acesso em: 25 nov. 2020.
114
caixão” para alertar os moradores da cidade de Sorocaba sobre os riscos do novo coronavírus e sobre
a importância do isolamento social.
A propaganda feita pelo empresário refere-se aos vídeos compartilhados na internet, em
que carregadores de caixões dançam ao som da música “Astronomia”, de Tony Igy. A montagem dos
vídeos que deu origem ao meme é composta por uma sequência de imagens de alguém que está ao
ponto de se meter em problemas. Mas, antes da tragédia ser concluída, a sequência é interrompida e
surgem homens de terno preto dançando de maneira animada carregando um caixão, dando a entender
que a pessoa do vídeo morreu. De acordo com a reportagem, o vídeo original foi gravado em Gana,
pela emissora BBC37, para demonstrar que é uma tradição do país celebrar velórios com danças e
carregadores de caixões dançando.
Nesse sentido, em sala de aula é necessário que o professor aborde o contexto de situação
ao qual o meme está se referindo, para que os alunos possam entender as relações de sentido
constituídas a partir da leitura do texto e da imagem. Segundo Alves Filho (2011, p. 52-53), “o
contexto de situação corresponde à situação imediata na qual um texto é produzido e posto em
circulação, o qual pode incluir o tempo, o espaço físico e o suporte onde o texto é produzido e posto
em circulação, os interlocutores presentes ou presumidos [...]”. Além disso, o professor pode
perguntar aos alunos sobre o que as pessoas estão comentando com relação às medidas adotadas para
a prevenção do vírus, qual a opinião deles a respeito do que está sendo dito, quais são as relações
intertextuais presentes, se eles conhecem ou não as personagens demonstradas etc.
Além do isolamento social, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou o uso
do álcool em gel como forma de prevenção contra o novo coronavírus. Diante disso, o uso do produto
tornou-se obrigatório em muitos estabelecimentos públicos e privados, e as pessoas começaram a usá-
lo diariamente para não contrair a doença. Com isso, surgiram diversos memes com relação ao uso
excessivo de álcool em gel, como mostra a figura a seguir:
37
A British Broadcasting Corporation (Corporação Britânica de Radiodifusão, mais conhecida pela sigla BBC) é uma
corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido.
115
38
Disponível em: <https://twitter.com/GatoConfuso/status/1239739344677715968/photo/1>. Acesso em: 25 nov. 2020.
116
Figura 3 – Meme 1 do preço do álcool em gel Figura 4 – Meme 2 do preço do álcool em gel
As figuras acima demonstram alguns memes que tratam sobre o preço elevado do álcool
em gel. Na figura 3, temos a imagem de um carro que está sem o assento traseiro e dentro do veículo
estão as personagens da família Simpson41: Homer (dirigindo o carro), Marge (sentada ao lado de
Homer), Lisa e Bart (em pé). Ao ser questionado sobre a ausência do assento, Homer responde da
seguinte maneira: “Tive que vender para comprar álcool em gel”. A partir da leitura da imagem e das
falas atribuídas aos personagens, podemos inferir que o criador do meme de maneira cômica associou
a venda dos bancos de um carro para expressar como um pai de família conseguiu comprar um
produto de higiene para manter sua família prevenida do vírus.
Por outro lado, na figura 4, podemos observar que o meme possivelmente diz respeito ao
lucro obtido pelos fabricantes de álcool em gel no ano de 2020. Na imagem, temos a presença da
personagem Denver, da série espanhola “La Casa de Papel”, deitado em cima de uma enorme pilha
de dinheiro, esbanjando um belo sorriso de felicidade. Apesar de os memes abordarem um mesmo
tema, podemos perceber que demonstram realidades diferentes. Se por um lado, temos uma família
que precisou vender o assento traseiro do carro para comprar álcool em gel; do outro, temos a
“imitação” do lucro obtido pelos fabricantes com a venda do produto.
39
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/B99mVCTjIEc/>. Acesso em: 25 nov. 2020.
40
Disponível em: <https://i.redd.it/k7ud7z54v8m41.png>. Acesso em: 25 nov. 2020.
41
The Simpsons (Brasil: Os Simpsons) é uma série de animação norte-americana criada por Matt Groening. A série é
uma paródia satírica do estilo de vida da classe média dos Estados Unidos, simbolizada pela família protagonista, que
consiste de Homer Jay Simpson, Marjorie (Marge) Bouvier Simpson, Bartholomew (Bart) Simpson, Elisabeth (Lisa)
Marie Simpson e Margareth (Maggie) Simpson. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Simpsons>. Acesso
em:
117
Em sala de aula, o professor pode levar notícias (online ou impressas) que tratam sobre o
impacto da pandemia no preço de produtos e alimentos, para que os alunos possam compreender a
relação que os memes mantêm com acontecimentos sociais e com outros discursos já ditos que são
necessários para a atualização dos efeitos de sentido. Sobre isso, Alves Filho (2011, p. 56) destaca
que “quando observamos os usos efetivos dos textos em situações reais logo nos damos conta de que
os gêneros não existem isoladamente, nem possuem uma realidade inteiramente própria e apartada
dos outros”.
Assim como o álcool em gel, devido à grande demanda de vendas o preço do arroz
disparou em todo o país42. Com isso, diversos memes surgiram nas redes sociais e, consequentemente,
críticas ao atual Governo Federal, conforme mostra o meme a seguir:
Figura 5 – Meme do arroz
42
Ver mais em: <https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/por-que-o-arroz-esta-mais-
caro,cfb67eae19417928db0b72315fb46729jbzhdxqb.html>. Acesso em: 30 dez. 2020.
43
Disponível em: <https://twitter.com/CarlaCostaBrz/status/1304423160876597248/photo/1>. Acesso em: 25 nov. 2020.
44
Tags são palavras-chave ou termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma
explícita no aplicativo Twitter, e também adicionado ao Facebook, Google+, Youtube e Instagram. Hashtags são
118
alguns memes podem apresentar um teor político, a fim de reclamar direitos, apontar e/ou ridicularizar
ações, criticar posturas e de reconstruir sentimentos dos usuários das redes sociais.
Nesse sentido, a partir da leitura do meme podemos deduzir que a internauta demonstra
ser contra o Governo comandado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, visto que ela utiliza o
prefixo –des para demonstrar que ela sequer considera o atual Governo como tal. Em tom de ironia,
a internauta faz referência ao “Programa Minha Casa Minha Vida”45 ao perguntar se o Governo atual
criará o programa “meu arroz minha vida” para ajudar as famílias de baixa renda a comprarem o
alimento. Por fim, ao utilizar a hashtag “#MSTContraFome” a internauta demonstra apoio ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que doou cerca de mais de 1.200 toneladas de
alimentos durante a pandemia46.
Sobre o trabalho com gêneros discursivos em sala de aula, Alves Filho (2011) afirma que:
compostas pela palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Hashtag>. Acesso em 30 nov. 2020.
45
O “Minha Casa Minha Vida” é um Programa do Federal, criado no ano de 2009 pelo Governo Lula, que tem como
objetivo promover a produção de unidades habitacionais para famílias de baixa renda. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Minha_Casa,_Minha_Vida>. Acesso em: 30 nov. 2020.
46
Ver mais em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/06/03/campanha-nacional-do-mst-ja-doou-1-200-toneladas-de-
alimentos-durante-pandemia>.
119
que outras pudessem conhecer um pouco mais sobre as particularidades da nossa rotina e do nosso
lar. Diante disso, os memes a seguir tratam, respectivamente: sobre o trabalho e o ensino remoto.
Figura 6 – Meme sobre o trabalho remoto Figura 7 – Meme sobre o ensino remoto
47
Disponível em: <https://www.facebook.com/pocoyomemes1/posts/d41d8cd9/179501196875270/>. Acesso em: 30
nov. 2020.
48
Disponível em: <https://twitter.com/hfernandesbio/status/1329804870522691585/photo/1>. Acesso em: 30 nov. 2020.
49
Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/23/no-de-desempregados-diante-da-pandemia-
aumentou-em-34-milhoes-em-cinco-meses-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em: 30 nov. 2020.
120
A figura 7 demonstra outra realidade de trabalho remoto, dessa vez referindo-se ao ensino.
O meme é composto por uma imagem de uma conversa que possivelmente aconteceu durante uma
aula virtual, seguida da legenda: “A vida online de quem dá aula num campus do interior”. Na
imagem, a frase “Professor, vou ter que da uma saidinha. Meu porco saiu do chiqueiro” está circulada
de vermelho para dar destaque ao que foi dito. Logo abaixo da frase, há a presença de uma sequência
de letras “K", que acabam produzindo uma onomatopeia de risada: kkkkkk. Vale destacar que o nome
das pessoas que escreveram as frases está coberto de vermelho, demonstrando que o criador do meme
teve a preocupação de não expor os indivíduos em questão.
Assim como o aluno que teve que sair da aula por causa da fuga de seu porco, diversos
outros alunos praticam atividades parecidas em seu cotidiano. Devido à pandemia, o ensino passou a
ser realizado de maneira remota e os estudantes tiveram que ficar em casa durante um período maior.
Com isso, a sala de aula teve que ser adaptada à realidade do dia a dia, e muitas pessoas tiveram que
lidar com dificuldades para poder conciliar os estudos com as tarefas de casa.
No momento da produção dos memes em sala de aula, o professor pode pedir para que os
alunos retratem como eles lidaram com as aulas remotas, revelando as suas dificuldades, impressões
e momentos engraçados no manuseio de aplicativos em ambientes virtuais. Alves Filho (2011, p. 51)
destaca que “[...] inseridos numa situação social e agindo de acordo com os papeis que desempenham
na sociedade, os sujeitos constroem uma interpretação da situação na qual se encontram e respondem
a ela com base nesta interpretação”. Desse modo, ao trabalhar com o gênero meme o professor
possibilitará que os alunos tenham a oportunidade de serem produtores de conteúdos que podem ser
usados como ferramenta de ensino nas aulas de Língua Portuguesa e das demais disciplinas.
Atualmente, existem vários aplicativos que possibilitam a criação de memes, tais como:
o Meme Generator Free, o Memedroid, o Criador de Memes, o Meme Creator, entre outros. Também
é possível criar memes através de ferramentas para edição de fotos, que estão disponíveis na maioria
dos celulares. Vale lembrar que o professor precisa considerar a realidade dos alunos e da escola ao
trabalhar com o gênero meme, para que dessa forma ele possa adaptar as atividades conforme as
necessidades de ensino/aprendizagem da turma. Diante disso, Rojo e Barbosa (2015) afirmam que:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que as práticas pedagógicas para o ensino de Língua Portuguesa ainda estão
muito ligadas à cultura dos textos impressos, porém precisamos levar em consideração que podemos
trabalhar com diferentes gêneros da esfera digital em sala de aula. Para realizar tal trabalho, a
realidade dos alunos e das escolas deve ser levada em consideração no momento de preparação das
aulas, tendo em vista o processo de ensino/aprendizagem dos estudantes.
Com o avanço das tecnologias digitais, a Base Nacional Comum Curricular e outros
documentos orientadores do trabalho pedagógico permitiram a incorporação de gêneros digitais no
ensino, com o intuito de promover a ampliação de competências e habilidades dos alunos nas práticas
de interação social, sobretudo em ambientes virtuais.
Ao longo deste artigo, vimos que o gênero meme vai muito além do humor, ele se constitui
como um artefato cultural da internet que propicia o engajamento social entre os usuários das mídias
digitais. Desse modo, ao trabalhar com o gênero meme em sala de aula, podemos propiciar aos alunos
o conhecimento e o aperfeiçoamento das múltiplas linguagens que compõem os processos de
interação do nosso cotidiano.
Portanto, é fundamental estimular a participação dos alunos no momento de análise e
criação dos memes, destacando a multissemiose e a dialogicidade que esse gênero mantém com
acontecimentos sociais e com outros discursos já ditos. Dessa maneira, esperamos que as sugestões
apresentadas possam contribuir para formação de leitores críticos na educação básica, visto que o uso
do gênero meme nas aulas de Língua Portuguesa pode auxiliar o trabalho com o imagético, com o
verbal e com o conhecimento prévio dos alunos a respeito dos acontecimentos da sociedade.
REFERÊNCIAS
ALVES FILHO, F. Gêneros jornalísticos: notícias e cartas de leitor no ensino fundamental. São
Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2020.
__________. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, Luiz
Antônio; XAVIER, Antônio Carlos. (Org.). Hipertextos e gêneros digitais: novas formas de
construção de sentidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
ROJO, R. H. R.; MOURA, E. de. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012.
RESUMO
O trabalho com os gêneros multimodais está cada vez mais presente no processo de ensino e como
vivemos em um mundo tomado pelas tecnologias digitais, no qual nossos alunos estão cada vez mais
conectados, a tecnologia já se torna uma necessidade a ser estar inserida no ambiente escolar, em
especial dentro da sala de aula, para uso do professor e dos alunos e não apenas para uso dos trabalhos
em secretarias. E, devido ao grande advento das novas tecnologias de informação e comunicação
proporcionadas pela atual globalização tecnológica da sociedade moderna, notam-se novos desafios
para com os ambientes escolares, uma vez que eles se veem sujeitos a adotarem novas pedagogias
que façam uso de elementos tecnológicos, a fim de transformar as suas aulas em lugares multiletrados
que façam uso de elementos do cotidiano. Sendo assim, o presente trabalho pretende discutir o uso
das tecnologias na sala de aula e como se dá a interação de tecnologia e o ensino de Língua
Portuguesa, tal interação será comprovada por meio do uso dos multiletramentos na sala de aula. Para
tanto, a presente pesquisa será fundamentada em autores como Rojo (2012); Moran (2004); Lion
(1997) entre outros. Buscou-se realizar uma pesquisa bibliográfica sobre o uso das tecnologias no
ensino e as contribuições dos multiletramentos para esse processo, com o trabalho com os gêneros
multissemióticos que circulam em nossa sociedade, principalmente nas atividades diárias de
adolescentes e jovens, sujeitos que estão inseridos no processo de ensino de Educação Básica. Desse
modo, espera-se que esse trabalho possa contribuir para discussões acerca das tecnologias aliadas ao
ensino com base nas considerações dos multiletramentos, bem como para pesquisas futuras sobre o
tema, uma vez que ao se considerar o trabalho com as práticas de linguagem contemporâneas, é
imprescindível que se considere também as tecnologias, que se tornam aliadas do professor, além de
estar preparando o aluno para situações de seu cotidiano.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É notório que a sociedade vem avançando em várias áreas. Diante disso, o sistema de
ensino não poderia deixar de se atentar para esses avanços e considerá-los em atividades dentro de
sala de aula e isso já vem acontecendo há muitos anos, de acordo com cada mudança e cada
ferramenta que surge.
Hoje em dia, vivemos em um mundo tomado pelo tecnológico digital, de modo que
muitos alunos estão cada vez mais conectados e a tecnologia cada dia avança mais e já se torna uma
necessidade estar inserida no ambiente escolar, em especial dentro da sala de aula, para uso do
professor e dos alunos.
50
Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: teciene.souza1@estudante.ufla.br.
51
Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: taisaragi@gmail.com.
124
Ao longo das últimas décadas, notamos que a revolução técnica e científica provocou
inúmeras mudanças com relação à forma como a sociedade se relaciona e interage entre si. Tais
mudanças são perceptíveis na interação escola e aluno, uma vez que devido a tal revolução
tecnológica na sociedade notamos a inserção das ferramentas midiáticas no meio educacional.
É perceptível que há uma grande circulação de novas tecnologias na atual sociedade
que contribui para a comunicação “instantânea”, no entanto, apenas o fato da existência de tais
ferramentas não contribui com um ensino multiletrado para com os alunos, ou seja, o uso de
tecnologias na sala de aula não irá contribuir para a desenvoltura do conhecimento, mas podem
facilitar o aprendizado dos alunos desde que seja utilizada de maneira adequada, afinal o contato com
tais ferramentas é inevitável e constante, dentro e fora da sala de aula,
Através da internet, tanto professores quanto alunos ampliaram seus horizontes do saber, e
passaram a conhecer e aprender coisas que até então eram de difícil acesso. Logo, a internet
trouxe para o ensino/aprendizagem a inovação das informações, aproximando as pessoas de
novos conhecimentos e até mesmo do mundo (SOARES, 2012, p. 2)
[...] à primeira vista, podem parecer simples desenhos, mas trazem não somente uma
oportunidade de trabalho com gêneros discursivos que fazem parte do cotidiano desses
alunos e do contexto de mundo do qual participam, como constituem um desafio teórico para
que esse trabalho pedagógico possa ser empreendido. (VILLARTA-NEDER; RAGI;
CASTRO, 2019, p. 179)
O professor, em qualquer curso presencial, precisa hoje aprender a gerenciar vários espaços
e a integrá-los de forma aberta, equilibrada e inovadora. O primeiro espaço é o de uma nova
sala de aula equipada e com atividades diferentes, que se integra com a ida ao laboratório
para desenvolver atividades de pesquisa e de domínio técnico-pedagógico. Estas atividades
se ampliam e complementam a distância, nos ambientes virtuais de aprendizagem e se
complementam com espaços e tempos de experimentação, de conhecimento da realidade, de
inserção em ambientes profissionais e informais. (MORAN, 2004, p. 2-3)
52
Para saber mais sobre o trabalho com o gênero videoanimação em sala de aula, indicamos a seguinte obra: FERREIRA,
Helena Maria; DIAS, Jaciluz; VILLARTA-NEDER, Marco Antonio. O trabalho com a videoanimação em sala de
aula: múltiplos olhares. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. Cap. 1. p. 179-194. Disponível em:
https://pedroejoaoeditores.com/2019/11/27/o-trabalho-com-videoanimacao-em-sala-de-aula-multiplos-olhares/ .
126
visando um ensino e aprendizagem que se relacione com a sociedade. Nesse viés é importante
ressaltar que os educadores compreendam que as TICs tratam-se de recursos digitais que envolvem
as novas ferramentas tecnológicas, como computadores, celulares, internet etc., a fim de que possam
utilizá-las na sala de aula como instrumento de ensino e aprendizagem dos alunos.
No entanto, mesmo com a importância e com as contribuições que as TICs podem trazer
para o ensino, é necessário considerar que a falta de infraestrutura midiática, encontrada em várias
escolas, principalmente no ensino público, dificulta a inserção de estudantes e professores na
sociedade da informação, todavia as novas tecnologias já estão contempladas na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), sendo assim cabe aos gestores públicos buscarem e se empenharem para
inserir e proporcionar equipamentos para as escolas a fim de cumprir seu papel com a educação
pública e aproximá-la do que é resguardado nos documentos norteadores da educação no país.
De acordo com a BNCC (2018), é de suma importância a utilização das novas
tecnologias de comunicação e informação no ensino, principalmente no que diz respeito às aulas de
línguas. Assim, é essencial “utilizar novas tecnologias, com novas linguagens e modos de interação,
para pesquisar, selecionar, compartilhar, posicionar-se e produzir sentidos em práticas de letramento
[...].” (BRASIL, 2018, p. 244). Isso, porque a linguagem utilizada para a interação, atualmente, se dá
por meio de redes sociais, nas quais produtor e leitor se comunicam por diferentes modos e
linguagens, ou seja, trocam mensagens de texto, áudio, vídeo, gifs, memes, emojis, entre outros, e que
também precisam ser consideradas em sala de aula.
Desse modo, os dispositivos móveis podem ser grandes aliadas nas práticas em sala de
aula, uma vez que, muitos dos alunos têm acesso a esses materiais e a maioria possui aparelhos
celulares que podem ser utilizados de maneira consciente e didática. Assim, o professor não precisa
necessariamente depender do computador, Datashow ou outro aparelho que a escola oferece e que
muitas vezes não conseguem atender a todos os professores. Com as diferentes opções disponíveis e
com as adaptações necessárias para cada turma e cada contexto, o profissional da educação poderá
buscar a inserção dos recursos tecnológicos em suas aulas e torná-las mais atrativas, além de ser uma
ótima maneira de relacionar o ensino da Língua Portuguesa com o cotidiano dos alunos.
Consequentemente, durante as aulas os alunos terão acesso a conteúdo e textos multimodais, que
compõem o cotidiano dos estudantes, desse modo temos que os alunos irão ter uma formação
continuada e maior participação das aulas, visto que eles poderão relacionar o material utilizado na
sala de aula com o que eles estão acostumados fora da sala.
A nova tecnologia está aqui. Não desaparecerá. Nossa tarefa como educadores é assegurar
que quando entre em aula faça-o por boas razões políticas, econômicas e educativas, não
porque os grupos poderosos querem redefinir nossos principais objetivos educacionais à sua
imagem e semelhança. (APLLE,1989 apud LION,1997, p.35)
127
O uso de tecnologias na sala de aula, além de se perceber que poderia ser uma
ferramenta de auxílio para o professor, se deu também pelo fato de que grande parcela dos alunos não
atentava ao conteúdo ministrado nas aulas, dessa forma, era notado que essa parcela ficava a aula
toda conectada em seus smartphones, ou seja, conectados a um mundo exterior à sala de aula, estando
na aula. Nesse ínterim, surge a ideia de utilizar esses recursos já frequentes na lista de presença da
classe de Língua Portuguesa por meio de um viés que contribua para o desenvolvimento dos alunos
perante as aulas.
Em algumas realidades, o professor vem perdendo o seu espaço na sala de aula devido
ao grande uso da tecnologia nas aulas, nesse viés temos que a proibição de tais equipamentos na sala
de aula não resolve em nada, diante disso há a necessidade da autorização do uso de tecnologias na
sala de aula, como mencionado anteriormente, mas de forma consciente e que contribua para o
desenvolvimento acadêmico dos alunos, a fim de tornar as aulas menos maçantes. Assim, segundo
Silva (2001, p. 30)
O método de ensino não acompanha a velocidade das mudanças e novidades que surgem a
cada momento. O aluno, por sua vez, perde o encantamento com o estudo formal e com a
sala de aula. Não é por nada que a opinião corrente entre os alunos é de que as aulas deveriam
ser alegres, descontraídas e criativas.
Devemos nos lembrar que os avanços tecnológicos a cada dia que passa influenciam
mais a maneira como as pessoas vivem e interagem, sendo assim a educação não pode ficar para trás,
ela deve utilizar tais mecanismos a seu favor a fim de realizar aulas interativas e atuais. De acordo
com Lion (1997, p. 30) “não educamos na homogeneidade, mas na diversidade. Sabemos que as
crianças estão informadas, não desconhecemos o poder dos meios de comunicação, mas relativizamos
sua influência.”. Vale ressaltar que o contato com os mecanismos tecnológicos é algo mundial e não
é isolado, desse modo se faz importante mostrar que a UNESCO lançou um guia “Diretrizes de
políticas para a aprendizagem móvel”, que estimula e recomenda o uso das TICs nas salas de aulas a
fim de que as disciplinas sejam ministradas.
No guia supracitado é possível encontrar treze motivos para o uso do smartphones na
sala de aula como ferramenta de ensino e aprendizagem, além de conter dez recomendações para os
governos adotarem as TICs em seus sistemas de ensino de disciplinas voltadas para a área de
linguagem. Alguns dos motivos presentes no guia e que gostaríamos de ressaltar no presente trabalho
são: “Permitir a aprendizagem a qualquer hora, em qualquer lugar; criar novas comunidades de
128
estudantes; apoiar a aprendizagem fora da sala; criar uma ponte entre a aprendizagem formal e não
formal; Auxiliar estudantes com deficiências” (UNESCO, 2014, p.16), entre outros.
Além do mais, o guia recomenda que alguns itens sejam seguidos com o intuito de
conciliar a sala de aula com o uso do celular como: “treinar professores sobre como fazer avançar a
aprendizagem por meio de tecnologias móveis” (UNESCO, 2014, p.33), afinal não adianta querer
inserir novas tecnologias na sala de aula se os professores não estiverem instruídos a como usar tais
recursos de maneira consciente, “os professores devem receber formação sobre como incorporá-las
com sucesso na prática pedagógica” (UNESCO, 2014, p.33). O professor é o mediador entre o
conhecimento científico e os alunos, sendo assim ele deve estar preparado para lidar com as novas
mudanças perpassadas dos novos tempos globalizados.
Tais pressupostos são elencados uma vez que os equipamentos tecnológicos fazem
parte do nosso cotidiano. Sendo assim, não há a opção de proibir o seu uso, em outras palavras, o uso
de mecanismo tecnológico na atual sociedade é inevitável e cabe ao ambiente escolar fazer uso deles
de maneira a contribuir para com o ensino e aprendizagem dos seus alunos.
Sustentando essa proposição, apoiamo-nos nas orientações de documentos que regem o sistema de
ensino, como a Base Nacional Comum Curricular – BNCC, que propõe que
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da pesquisa realizada, notamos que a relação de tecnologia com a sala de aula
é inevitável devido à grande globalização que estamos vivendo nas últimas décadas. Desse modo, o
docente deve procurar um meio de anexar esses elementos externos à sala de aula com o intuito de
realizar aulas interativas e que preparem os alunos para a atual realidade que é vivida pela sociedade.
Sendo assim, nota-se que a comunidade escolar deve caminhar em conjunto com os avanços
perpassados na sociedade, a fim de realizar um ensino crítico e que contribua para o desenvolvimento
dos estudantes como futuros cidadãos críticos e ativos.
131
Para tanto, constatamos que o uso dos multiletramentos nas aulas, principalmente nas
aulas de Língua Portuguesa contribui de maneira progressiva para a inserção das tecnologias na sala
de aula de uma forma consistente e orientada pelo professor, ou seja, a partir do momento em que são
utilizados os multiletramentos nas aulas, celulares, internet, games, vídeos, músicas e diversos outros
textos multimodais advindos da era tecnológica não serão mais “distração” para os alunos, mas
material de aprendizado.
REFERÊNCIAS
FANTIN, Monica. Alfabetização Midiática na Escola. VII Seminário Mídia, educação e Leitura.
10 a13 de julho. Campinas, SP, 2007.
GARCIA, Clarisse de Paiva; SILVA, Marli Regina da; CASTRO, Silvana de Paula; VIEIRA,
Vanessa Ferreira. Multiletramentos no ensino público: desafios e possibilidades. Revista Práticas de
Linguagem, Juiz de Fora, v. 6, n. especial, p. 123-134, nov. 2016. Disponível em:
https://www.ufjf.br/praticasdelinguagem/files/2017/01/11-multiletramentos.pdf. Acesso em: 10 dez.
2020.
MORAN, José Manuel. Os novos espaços de atuação do professor com as tecnologias. Revista
Diálogo Educacional (PUCPR), Curitiba, PR, v. 4, n.12, p. 13-21, 2004.
RIBEIRO, Otacílio José. Educação e novas tecnologias: um olhar para além da técnica. In:
COSCARELLI, Carla Viana.; RIBEIRO, Ana Elisa. Letramento digital: aspectos sociais e
possibilidades pedagógicas. 3. ed. Belo Horizonte: Ceale; Autentica Editora, 2017, p.85-97.
ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial,
2012.
SILVA, Mozart Linhares da (Org.). Novas tecnologias: educação e sociedade na era da informação.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
132
THE NEW LONDON GROUP. A pedagogy of multiliteracies: designing social futures. The
Harvard educational review, v. 1, 1996.
VILLARTA-NEDER, Marco Antonio; RAGI, Taísa Rita; CASTRO, Kleissiely de. Videoanimação
Reflexion: a construção da identidade feminina a partir da problemática do padrão de beleza. In:
FERREIRA, Helena Maria; DIAS, Jaciluz; VILLARTA-NEDER, Marco Antonio. O trabalho com
a videoanimação em sala de aula: múltiplos olhares. São Carlos: Pedro & João Editores, 2019. Cap.
1. p. 179-194. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com/2019/11/27/o-trabalho-com-
videoanimacao-em-sala-de-aula-multiplos-olhares/. Acesso em: 11 dez. 2020.
133
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar estratégias argumentativas e dialógicas presentes no gênero
artigo de opinião enquanto objeto de ensino. A partir disso, questionamos: como as relações
dialógicas colaboram na construção dos sentidos do gênero artigo de opinião? Como desenvolver
habilidades para formação de um leitor crítico tendo o artigo de opinião como objeto de ensino? A
metodologia utilizada para a realização da pesquisa é bibliográfica e tem como corpus de análise o
artigo de opinião retirado do jornal GGN, intitulado: “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de
Deus”, de autoria de Albertino Ribeiro. Para fundamentar a pesquisa, recorremos aos estudos de
Bakhtin (2016[1979]), Antunes (2003), Rodrigues (2001), Boff, Köche e Marinello (2009), Authier-
Revuz (2004), entre outros. Como resultados parciais, destacamos que é preciso ir além do linguístico
para construir os sentidos do texto. Mas não o desconsiderando, uma vez que, este norteia o leitor
para as inserções da fala do outro presentes no texto, dando pistas sobre possíveis sentidos. O artigo
de opinião analisado mostra que muitos dos discursos citados das relações dialógicas funcionam como
estratégias argumentativas, as quais proporcionam que, durante o ato da leitura do texto, o leitor possa
construir sentidos. Buscando ainda compreender quais as intenções pretendidas pelo autor ao utilizar
discursos outros em seu processo argumentativo. Assim, é possível desenvolver práticas de leitura as
quais vão além da materialidade linguística, além da superfície do texto. Sendo possível analisar
discursos outros que estão no texto de forma marcada ou não. Desse modo, para que os alunos possam
aprender as características temáticas, estilísticas e composicionais do gênero artigo de opinião, é
necessário que eles leiam diferentes artigos de opinião, produzidos em espaços jornalísticos diversos.
O planejamento de atividades precisa considerar a dialogicidade existente entre o artigo de opinião e
outros acontecimentos discursivos.
INTRODUÇÃO
Muitas transformações têm ocorrido no que se refere a novas práticas de leitura e escrita
na contemporaneidade digital. As formas de comunicação, informação e interação exigem dos
falantes, novas habilidades. Portanto, cabe à escola ser sensível a essa nova realidade de uso da
linguagem, utilizando metodologias de ensino favoráveis ao desenvolvimento de habilidades que
garantam a formação de leitores e escritores competentes nesse novo contexto. Essa pesquisa visa
apresentar uma análise ilustrativa do gênero artigo de opinião, possibilitando a visualização de como
53
Graduada em Licenciatura em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Maranhão,
Campus São Bernardo. E-mail: marcialinguagens@hotmail.com.
54
Docente do Curso de Licenciatura em Linguagens e Códigos- Língua Portuguesa, da Universidade Federal do
Maranhão, Campus São Bernardo. Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: eliani-
phb@hotmail.com.
134
ensinar na sala de aula, a leitura do gênero artigo de opinião em seus aspectos temáticos, estilísticos
e composicionais, a partir de uma abordagem dialógica, contemplando aspectos linguísticos e
extralinguísticos.
Frente ao objetivo de apresentar uma análise ilustrativa, utilizamos como corpus um
artigo de opinião retirado do jornal GGN, intitulado: “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de
Deus”, de autoria de Albertino Ribeiro. Contudo, reconhecemos a importância de ensinar um gênero
a partir de vários textos, ou seja, de vários exemplares desse gênero. Portanto, a escolha por um único
texto justifica-se por uma questão metodológica de espaço.
O gênero artigo de opinião é importante para ser trabalhado no processo de ensino, mais
especificamente, no processo de leitura. Pois ele permite ao aluno, desenvolver uma leitura crítica,
na qual ele busca informações, busca estabelecer relações de sentidos com outros discursos, os quais
foram utilizados pelo articulista, tendo em mente a construção dos sentidos do texto que ele está
lendo.
Os alunos precisam conhecer a estrutura e a função social dos gêneros. E a partir disso,
conhecer suas características, as estratégias argumentativas utilizadas na sua produção, as intenções
enunciativas de quem escreve.
De acordo com a teoria dialógica de Bakhtin, a todo momento em que o sujeito enuncia,
produz um discurso, em meio ao seu processo argumentativo. Ele está sempre a retomar discursos
anteriores ao seu. Ou seja, ele estabelece relações de sentidos com outros discursos, caracterizando o
que Bakhtin (2016[1979]) define como Relações dialógicas.
As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de enunciados na
comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano do
sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica
[...] (BAKHTIN, 2016[1979], p. 92)
Como destacado por Bakhtin (2016[1979]), quando um discurso é analisado apenas numa
perspectiva de análise linguística, como objeto de análise, não há a presença das relações dialógicas.
Para haver relações dialógicas, é necessário analisar um discurso além de sua materialidade
linguística, é necessário relacioná-lo com discursos anteriores a ele, analisar o contexto extraverbal,
as ideologias presentes em tal discurso. Pois, como destaca Bakhtin/Volochínov (2014, p. 34) “[...]
A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e,
consequentemente, somente no processo de interação social”. Todo discurso está repleto de
ideologias, de posicionamentos, valorações.
135
[...] incorporação de outras vozes ao discurso do autor, avaliadas positivamente, que são
"chamadas" para a construção do seu ponto de vista, que se denominou como movimento
dialógico de assimilação (ou acentuação, confluência); e o apagamento, distanciamento,
isolamento, desqualificação das vozes às quais o autor se opõe, que se denominou como
movimento dialógico de distanciamento (ou desqualificação, reacentuação). (RODRIGUES,
2001, p. 164)
caráter de responsividade, pois tais discursos surgem como uma réplica do discurso do outro, uma
resposta.
O articulista, ao produzir um artigo, está expondo, assumindo uma atitude valorativa a
respeito do assunto que está sendo tratado. E para isso, vai retomando outros discursos, discursos
alheios, estabelecendo relações de sentidos para com eles, tendo em vista a construção de sua opinião.
E para isso, o autor faz uso das estratégias argumentativas em meio a construção de seu texto,
estratégias estas, já ressaltadas no tópico anterior.
Assim, quando levado para a sala de aula, como um objeto de ensino, o gênero artigo de
opinião pode ser explorado de forma bastante produtiva. Uma vez que, os alunos terão contato com
um gênero que trata sobre temáticas de forma crítica. Proporcionando a eles, uma leitura que extrapola
os limites do linguístico, ou seja, os alunos serão levados a buscar o já dito por outro (s), para construir
os sentidos do texto, o qual eles terão contato. Isso permite aos alunos estabelecer relações de
sentidos, relações dialógicas com outros discursos, anteriores ao atual. Eles irão precisar retomar
notícias, comentários, etc. E com isso, eles se posicionarão de forma crítica. Além de ativar seus
conhecimentos prévios.
Além disso, em relação ao trabalho com gêneros no processo de ensino, Boff, Koche e
Marinelo (2009) destacam que: “[...] cabe à escola protagonizar ações que permitam ao estudante
conhecer a especificidade e a finalidade de cada gênero, considerando-se as necessidades enfrentadas
no dia-a-dia” (p. 02). Ou seja, é papel da escola, em meio ao processo de ensino, apresentar os gêneros
aos alunos, e levá-los a compreender a finalidade, as especificidades, de cada um desses gêneros.
Rojo e Barbosa (2015) destacam a importância dos multiletramentos no ensino de práticas
de leitura e de escrita de gêneros digitais, no tocante ao desenvolvimento de novas habilidades que
permitam os alunos a lerem e escreverem com mais criticidade e ética no espaço digital, frente ao
surgimento de novas formas de comunicação, informação e interação. Em consonância com esse
pensamento, a BNCC (2018), sugere o desenvolvimento de habilidades dentro do campo jornalístico-
midiático voltadas para a dialogicidade, criticidade e ética.
Nesse sentido, compreende-se a importância e os pontos positivos de desenvolver o
trabalho com o gênero artigo de opinião. E além disso, ter em vista um processo de leitura, no qual
os alunos trabalhem essa retomada a discursos outros. Ou seja, os alunos passaram a desenvolver o
processo de leitura tendo em vista o aspecto dialógico da linguagem, possibilitando a eles,
construírem sentido (s) ao que estão lendo.
apenas no linguístico do texto, mas uma leitura que extrapole, que vá além do material linguístico do
texto.
Ao tratar sobre o processo de leitura, Antunes (2003) destaca que ainda há muitos desafios
a serem superados. Entre esses, o fato de que ainda há na atualidade, o desenvolvimento de atividades
de leitura: “[...] centrada nas habilidades mecânicas de decodificação da escrita [...] quase sempre,
nessas circunstâncias, não há leitura, porque não há "encontro" com ninguém do outro lado do texto”
(p. 27). Ou seja, a decodificação da escrita é colocada de forma superior à compreensão do texto, a
construção dos sentidos deste. Sendo importante assim, por meio da leitura, levar os alunos à
construção de uma compreensão de forma crítica, em que eles não apenas leiam o material linguístico,
sem objetivos, mas que busquem nas entrelinhas os sentidos do texto. Sentidos esses que são possíveis
por meio de retomada a outros discursos. Permitindo ainda, perceber a relação com o contexto
extraverbal.
Aqui entra o papel do gênero artigo de opinião enquanto objeto de ensino. Esse gênero
possibilita aos alunos, recorrerem a discursos anteriores ao atual, de modo que ao fazerem isso, estão
estabelecendo relações de sentidos com outros discursos. Compreendendo-os e atribuindo a eles
novas valorações, visto que eles irão posicionar-se de forma crítica. Sendo necessário, assim, que os
alunos ativem seus conhecimentos prévios a respeito da temática abordada no artigo de opinião.
Compreende-se desse modo, como destaca Antunes (2003, p. 78):
[...] as informações prévias com que o leitor chega ao texto, derivadas de seu próprio
conhecimento de mundo e das relações simbólicas que, aí, estabelece, também cumprem um
papel fundamental na atividade de compreensão do texto [...] (ANTUNES, 2003, p. 78)
Muito daquilo que o aluno compreende do texto, parte do que ele já tem em sua bagagem
de conhecimento, isto é, os conhecimentos prévios. Ele retoma esses conhecimentos, discursos
anteriores e, assim, constrói as relações dialógicas que proporcionam construção e compreensão dos
sentidos do texto que o aluno está lendo.
Como destaca Antunes (2003), o sentido de um texto não depende unicamente do próprio
texto, assim como também não depende unicamente do leitor, depende de ambos. Pois, o material
linguístico apresenta os caminhos para a construção dos sentidos, e o leitor, por meio de seus
conhecimentos prévios, e de retomadas a outros discursos, constrói esses sentidos. Conhecimentos
esses que, como destaca Antunes (2003), são anteriores ao que ali está no texto. Assim ocorre quando
um artigo de opinião é analisado, pois o leitor terá que recorrer a notícias produzidas anteriormente
ao artigo, assim como comentários, etc. Ou seja, os argumentos utilizados no artigo surgiram tendo
como base outros discursos que já estão a circular no meio social.
139
Ainda de acordo com Antunes (2003), o sentido de um texto “[...] é de agora e é de antes”
(p. 78). Isto é, o sentido do texto parte do material linguístico, mas o leitor precisa do extraverbal,
precisa retomar acontecimentos, discursos anteriores ao atual, para construir esses sentidos, para
acompanhar a linha de raciocínio do autor, e produzir suas valorações a respeito do que está lendo.
Nota-se a importância de que o aluno não esteja preso apenas ao material linguístico, mas que ele
analise, esteja atento às marcas linguísticas, às estratégias argumentativas, as quais direcionam o leitor
a construir os sentidos do texto.
Nesse sentido, pode-se recorrer a Antunes (2003) quando ela destaca que, “[...] se pode
perceber o quanto a interpretação de um texto depende de outros conhecimentos além do
conhecimento da língua [...]” (p. 68- 69). Isto é, para que os alunos compreendam um texto, depende
não apenas de conhecimentos linguísticos, mas depende muito dos conhecimentos de mundo que eles
trazem em sua bagagem, seus conhecimentos prévios.
No tópico a seguir será realizada a análise do artigo de opinião, tendo em vista as
estratégias argumentativas utilizadas pelo articulista e como essas estratégias permitem ao
leitor/aluno construir os sentidos do texto.
Será discutido aqui sobre as possibilidades de análise do gênero artigo de opinião, tendo
em vista as estratégias argumentativas utilizadas pelo autor. Estratégias essas que são utilizadas tendo
em vista a inserção do discurso outro no gênero artigo de opinião que, neste caso, será o artigo
intitulado “Para Bolsonaro, o nacionalismo está acima de Deus”.
Algumas das estratégias argumentativas mais recorrentes no texto são as relações
dialógicas de aproximação, nas quais o autor preserva os sentidos do discurso do outro, o qual está
sendo utilizado. E as relações dialógicas de distanciamento, em que ao discurso utilizado são
atribuídas novas valorações, neste caso, valorações negativas, afastando-se dos sentidos desse
discurso que foi utilizado. Podendo ser perceptível, por exemplo, por meio de ironias. Desse modo,
essas estratégias argumentativas marcam a presença do discurso do outro no atual. E esse uso pode
vir, como destaca Rodrigues (2001, p. 173), por meio do movimento dialógico de assimilação e
movimento dialógico de distanciamento.
Nas análises que serão realizadas adiante, poderá ser observado que, como destaca
Bakhtin (2016[1979]), os discursos formam um elo. Pois eles mantêm relações de sentidos com outros
discursos, ao serem retomados. No artigo de opinião, será possível observar que os argumentos
utilizados surgiram do embate com outros discursos, isto é, eles são réplicas. Discursos esses de
caráter político, religioso, entre outros. Assim, o artigo inicia da seguinte forma:
140
Logo de início, o leitor já pode observar que o texto irá discutir sobre questões políticas,
pois há o nome de Bolsonaro e a ideia do nacionalismo logo no título. Isso permite ao leitor ativar
várias relações dialógicas para com outros discursos, os quais circulam na mídia jornalística. Sendo
assim, os argumentos utilizados pelo articulista, surgem a partir de uma atitude responsiva, em relação
a esses discursos que circulam no meio social. E com isso, atribui a eles novas valorações, as quais
ocorrem por meio das retomadas aos discursos alheios, realizadas pelo articulista.
O autor faz o uso do slogan da campanha presidencial, de forma direta, por meio de uma
heterogeneidade mostrada marcada, como destaca Authier-Revuz (2004), por meio do uso das aspas.
Nesse momento, o articulista busca mostrar seu distanciamento em relação ao slogan da campanha
de Bolsonaro. Ao serem usadas as aspas, o articulista realiza o que Rodrigues (2001) chama de
movimento dialógico de distanciamento. Ou seja, o autor busca desprestigiar, distanciar-se do ponto
de vista defendido pelo discurso, isto é, pelo slogan. O articulista busca distanciar-se da ideia de
religiosidade presente no governo e nos discursos de Bolsonaro.
Além disso, é importante observar os sentidos atribuídos às palavras “tudo” e “todos” no
discurso. Observando os sentidos em que elas estão sendo utilizadas, compreende-se que o “tudo”
está relacionado ao todo, todos os seres, tudo que existe. Enquanto o “todos” corresponde apenas a
141
uma parte específica que forma esse “tudo”, todos nós, todas as coisas. Nesse sentido, o governo de
Bolsonaro está acima de “tudo”. Enquanto Deus é colocado em uma posição inferior “acima de
todos”. Diante disso, observa-se que o nacionalismo está acima de tudo, até mesmo acima do próprio
Deus.
Uma das estratégias argumentativas do articulista consiste em que ele dialoga com seu
leitor, prevendo a réplica antecipada. Momento no qual ele tenta convencer o seu leitor a adesão do
seu ponto de vista. Assim, ele utiliza a expressão “Quem não lembra da frase da ministra Damares no
dia da posse”. Aqui o leitor é instigado a ativar o já dito, ou seja, a retomar ao discurso da ministra.
Citamos Antunes (2003, p. 68- 69), quando destaca que, para que haja uma interpretação e
compreensão do texto, são necessários conhecimentos que vão além dos conhecimentos linguísticos,
isto é, da língua. Os alunos/leitores precisam ter conhecimento desses discursos já ditos, ativando
assim, seus conhecimentos prévios, para construírem os sentidos do texto.
O articulista fala ainda sobre a ministra Damares (a então ministra da Mulher, Família e
Direitos Humanos), apresentando de forma direta, o discurso proferido por ela no dia de sua posse,
“Somos um estado laico, mas essa ministra aqui é terrivelmente cristã”. Em que o articulista
argumenta em uma relação de oposição ao dito.
A ministra Damares não percebeu que sua frase foi um ato falho, onde a expressão
“terrivelmente cristã” desnuda a personalidade de um grupo de pessoas contraditórias que
coloca um grande abismo entre o discurso e a prática cristã.
Há logo no início, uma glosa, um comentário, o qual possui um valor negativo em relação
ao discurso da ministra “sua frase foi um ato falho”. O articulista busca mostrar que a fala da ministra
foi falha contra ela mesma, pois há pessoas que proferem um discurso, todavia, seus discursos não
condizem com sua prática. Nesse momento, o articulista busca convencer seu leitor, buscando
redefinir a contra palavra do outro (BAKHTIN, 2016[1979]).
Além disso, o adjetivo utilizado “terrivelmente” entra em uma relação de oposição com
“cristã”. Pois ele argumenta contra o sentido de religiosidade do dito, isto é, do discurso da ministra,
havendo, assim, uma relação de distanciamento (Rodrigues, 2001).
Percebe-se aqui que o aluno/leitor precisa retomar os seus conhecimentos prévios, precisa
ativar esses conhecimentos, como destaca Antunes (2003). Mas, também precisa estar atento às
estratégias argumentativas presentes no texto, as quais proporcionam ao leitor construir os sentidos.
O autor continua sua argumentação da seguinte forma:
142
Entre as duas palavras – terrivelmente e cristã – a que tem servido de exemplo para as ações
do governo é a palavra terrivelmente. Se o leitor acompanhar meu raciocínio irá concordar com
este humilde colaborador. A última decisão tomada pelo governo de Bolsonaro foi
“terrivelmente anticristã”, pois revogou a adesão ao pacto global de imigração, acompanhando
os EUA e Hungria cujas lideranças também são terríveis. Uma atitude completamente contrária
aos ensinamentos do cristianismo, inclusive, é algo criminalizado no velho testamento onde
prevalecia a lei de Talião (“Dente por dente olho por olho”).
Percebe-se que o autor se preocupa com seu leitor, pois ele o chama novamente para a
sua construção argumentativa, ao dizer “se o leitor acompanhar meu raciocínio irá concordar com
este humilde colaborador”. Aqui há o encontro entre leitor e autor, o que Antunes (2003, p. 27) sugere
que aconteça no momento da leitura. Assim, o articulista busca convencer o seu leitor, do seu ponto
de vista defendido. O aluno precisa ser orientado a observar essas estratégias argumentativas como
constitutivas de sentidos.
O articulista, ao utilizar e ao dar ênfase às palavras terrivelmente e cristã, busca de forma
clara, mostrar que a palavra terrivelmente dialoga com o governo de Bolsonaro, pois a não adesão ao
pacto global de imigração não condiz com uma atitude cristã. Ao utilizar o discurso da ministra, o
articulista atribui a ele uma nova valoração, por meio da relação dialógica de distanciamento, quando
usa a expressão “terrivelmente anticristã”. Os sentidos empregados nessa expressão, pelo articulista,
são diferentes dos atribuídos pela ministra. Assim, o articulista busca mostrar esse não sentido de
religiosidade presente nos discursos e no governo de Bolsonaro.
Retomamos Antunes (2003, p. 67), quando ela destaca que o leitor deve atuar de forma
participativa, buscando construir os sentidos do texto, buscando interpretá-lo, e buscando ainda
entender as informações sobre o que o autor busca dizer, quais as suas intenções.
Diante disso, o aluno precisa estar atento às informações, às estratégias argumentativas,
buscando compreender, por exemplo, porque o autor utilizou o discurso da ministra substituindo a
expressão dita por ela, por “terrivelmente anticristã”. Ou seja, quais os efeitos de sentidos pretendidos
pelo autor, quais as intenções dele ao fazer isso. Pois como visto, há uma intenção, há uma nova
valoração sendo atribuída à expressão. E o aluno, enquanto leitor participativo da construção dos
sentidos, precisa ser levado a compreender isso.
Não obstante aos ensinamentos bíblicos, o mesmo governo que levanta a bandeira da
cristandade, dizendo colocar Deus acima de todos, peca colocando o nacionalismo acima de
Deus. Recentemente o papa Francisco, em um encontro com diplomatas, alertou sobre o
ressurgimento do nacionalismo e fez um apelo para que os países cumpram o acordo de
imigração para ajudar os refugiados que hoje são, segundo a ONU, 21,3 milhões de pessoas.
É mais de três vezes a população da cidade do Rio de Janeiro, onde Bolsonaro morava a até
pouco tempo.
143
Nessa parte do texto há uma oposição de discursos, entre o que pregam os ensinamentos
bíblicos e o discurso nacionalista de Bolsonaro, no qual coloca Deus acima de todos. Há também a
presença de uma heterogeneidade mostrada marcada, por meio do discurso indireto. Evidenciado por
meio dos verbos dicendi “dizendo” e “alertou”.
Além disso, o autor retoma o discurso do Papa Francisco, o qual foi proferido em um
encontro com diplomatas, momento no qual ele chamou a atenção para o ressurgimento do
nacionalismo55. O articulista, por meio de seus argumentos, busca evidenciar que há o nacionalismo,
a exaltação da pátria, como algo superior até mesmo a Deus, no governo de Bolsonaro.
O articulista mostra por meio de seus argumentos que a não adesão ao pacto global de
imigração deixa claro que o governo de Bolsonaro que se diz cristão, é contrário aos ensinamentos e
às práticas religiosas. Com isso, o articulista busca mostrar que o governo é anticristão, ao tomar uma
decisão que irá atingir inúmeras pessoas, inúmeros refugiados que vêm para o Brasil em busca de
melhores condições de vida. E o governo mostra-se desinteressado em recebê-los.
Diante disso, em relação ao processo de leitura e construção dos sentidos, Antunes (2003)
destaca que:
Evidentemente, tais instruções "sobre a folha do papel" não representam tudo o que a gente
precisa saber para entender o texto. Muito, mas muito mesmo, do que se consegue apreender
do texto faz parte de nosso "conhecimento prévio", ou seja, é anterior ao que lá está [...]
(Antunes, 2003, p. 67)
Muito do que o aluno precisa compreender para construir os sentidos do texto, como
destaca Antunes (2003) é anterior ao texto. O aluno/leitor precisa como, visto anteriormente, conhecer
todo um contexto extraverbal. Ele precisa ter informações, conhecimentos sobre o que foi esse
encontro que o Papa teve com diplomatas. Ele precisa ainda saber o que é o nacionalismo. Essas são
informações que os alunos para retomarem, precisam inicialmente conhecer, elas precisam estar
arquivadas na memória do leitor para que eles as retomem. E se tais informações ainda não fizerem
parte dos conhecimentos prévios dos alunos, o professor precisa trabalhar essas informações.
Percebe-se aqui a importância do professor ao trabalhar com o gênero artigo de opinião,
levar notícias, comentários online, etc. para só então levar o artigo de opinião para os alunos. Ou seja,
eles precisam conhecer os argumentos, os discursos, os quais deram origem ao artigo.
Aturdido com a decisão desse governo “terrivelmente cristão”, resolvi pesquisar alguns textos
bíblicos que tratam do assunto e verifiquei a inequívoca e unânime visão favorável ao
acolhimento dos estrangeiros.
55
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/100-anos-apos-1-guerra-nacionalismo-mostra-nova-
roupagem,362d50927f812b9b814a374779e8d4e2q1mxzhls.html. Acesso em: 16 de nov. de 2019.
144
“E quando o estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o oprimireis. Como um natural
entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo, pois
estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus.” – Lv 19.33-34
“Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis
o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” – Deuteronômio 10.18-19
Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui
estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo,
e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram’. Mt 25.35-36
Reforça-se a ideia de que a escolha dos textos bíblicos não se deu por acaso, sem intenção,
visto que, como destaca Bakhtin (1997[1929]), o sujeito é sempre um ideólogo. Tais textos bíblicos
foram utilizados com o intuito de defender os argumentos apresentados pelo articulista a respeito do
governo de Bolsonaro. Desse modo, o aluno/leitor precisa estar atento a essas retomadas a discursos
outros, seja de forma direta, marcada, ou não, pois elas não acontecem sem objetivo. O autor sempre
busca dizer algo por meio dessas estratégias argumentativas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
145
REFERÊNCIAS
AUTHIER- REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do
sentido. Apresentação: Marlene Teixeira; revisão técnica da tradução: Leci Borges Barbisan e Valdir
do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
ANTUNES, Irandé. Aula de português- encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad.: Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
2016[1979].
_____. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad.: Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997[1929].
BOFF, Odete M. B.; KÖCHE, Vanilda S.; MARINELLO, Adiane F. O gênero textual artigo de
opinião: um meio de interação. ReVEL, vol. 7, n. 13, 2009.
146
BRASIL. Ministério da Educação. Base nacional comum curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2020.
RESUMO
Com o avanço dos meios tecnológicos e do uso em massa da internet, os gêneros digitais têm ganhado
cada vez mais destaque, modificando, assim, as formas de comunicação e de interação. O comentário
online oportuniza a interação entre os usuários em plataformas digitais, tais como sites de notícias e
redes sociais. Tendo o gênero comentário online sobre notícia enquanto objeto de ensino, este
trabalho tem como objetivo relatar uma experiência vivenciada durante a realização de uma oficina
sobre o gênero comentário online, com alunos de 8° e 9° anos do Ensino Fundamental de uma escola
municipal da rede pública de ensino, no município de São Bernardo – MA. A oficina foi realizada na
Universidade Federal do Maranhão, campus São Bernardo, fazia parte de um projeto sobre ensino de
gêneros digitais: memes, vlog, notícia online, fanfic e comentário online. Para cada gênero foi
organizada uma oficina. A oficina em questão teve como principais objetivos: 1) apresentar aos
alunos o gênero comentário online e suas características funcionais; 2) produzir comentários online
sobre a notícia lida, promovendo uma interação virtual; 3) refletir sobre questões éticas na escrita
desse gênero. A atividade de leitura e produção do gênero comentário online foi realizada a partir de
uma notícia retirada do portal G1, cuja manchete é: “Manchas de óleo no litoral atingem mais de 500
locais no Nordeste e Sudeste”, publicada no dia 13/11/2019. Como aporte teórico, recorremos às
concepções de Bakhtin (2016), Cunha (2014), Rojo e Barbosa (2015), BNCC (2018), dentre outros.
Dentre os resultados alcançados, destacamos o envolvimento dos alunos na atividade de leitura da
notícia que gerou os comentários e, principalmente, na leitura dos próprios comentários. Destacamos
ainda o engajamento dos alunos no momento de produção de seus comentários, respondendo à notícia
e a outros comentários. Foi possível perceber a importância de inserir os alunos em práticas de ensino
envolvendo os gêneros do espaço digital, em situação real de uso.
Palavras Chaves: Comentário online. Interação. Ensino.
INTRODUÇÃO
Com o passar do tempo, os debates em torno dos gêneros digitais têm se intensificado
cada vez mais. O desenvolvimento de novas formas de comunicação, bem como o uso em massa da
internet tem feito com que esses gêneros ganhem cada vez mais destaque, ocasionando, assim, a
inserção dos sujeitos em novas formas de comunicação social, atreladas ao uso de ferramentas
tecnológicas. No que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa, os gêneros digitais se constituem
como importantes ferramentas interativas quando levadas para o contexto da sala de aula, uma vez
que proporcionam o contato com práticas comunicativas reais, permitindo também a construção de
56
Graduação em Linguagens e Códigos – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Maranhão, Campus São
Bernardo; integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa Sobre formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem
e Memórias do Ensino de Espanhol no Maranhão (GEPFMEM); maiaramorimp@gmail.com
57
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora adjunta no curso de Linguagens
e Códigos - Língua Portuguesa / UFMA - São Bernardo; elianiphb@hotmail.com
148
uma visão crítica. Além de direcionar os sujeitos sobre como se portar de forma ética diante das
práticas de interação possibilitadas pelo meio digital.
Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo relatar uma experiência vivenciada
durante a realização de uma oficina sobre o gênero comentário online, realizada na Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), campus São Bernardo. A oficina teve como público alvo os alunos
do 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, da Escola Nilza Coelho Lima. A oficina teve como objetivos:
apresentar aos alunos o gênero comentário online e suas características funcionais; produzir
comentários online, promovendo a interação no espaço virtual; além de refletir sobre questões éticas
na escrita desse gênero. As atividades de leitura e produção dos comentários na oficina foram
realizadas a partir de uma notícia retirada do portal G1, cuja manchete era: “Manchas de óleo no
litoral atingem mais de 500 locais no Nordeste e Sudeste”.
A oficina em questão foi realizada por meio do Grupo de Estudos e Pesquisa Sobre
Formação e Prática Docente de Línguas, Práticas de Linguagem e Memórias do Ensino de Espanhol
no Maranhão (GEPFEMEM), na linha de pesquisa intitulada “Práticas de Linguagem em Diferentes
Contextos”, em parceria com o Grupo Residência Pedagógica, fazendo parte do projeto “GÊNEROS
DIGITAIS: incentivo à leitura e a produção textual. Essa oficina foi apenas uma dentre outras que
aconteceram nas dependências da instituição (UFMA); na ocasião, tivemos também oficinas
envolvendo os gêneros digitais: memes, vlog, notícia online e fanfic. Na próxima seção teceremos
uma discussão em torno dos gêneros discursivos relacionados ao ensino.
Ainda segundo os mesmos autores, na década de 70, novas necessidades no que diz
respeito à preparação para o trabalho, o tecnicismo, provocaram mudanças no ensino de língua
materna, havendo uma valorização da linguagem enquanto instrumento de comunicação. A
concepção de linguagem como instrumento de comunicação teve um viés altamente estruturalista e
utilitário, a fim de atender ao contexto social da época, que era possibilitar a comunicação pelo
material escrito. Contudo, essa concepção de linguagem, pautada em teorias da comunicação, era de
caráter monológico, considerando uma relação unilateral entre locutor e receptor.
Em paralelo a esse ensino estruturalista, desde a década de 60, começaram a surgir novas
tendências linguísticas, dentre elas a Sociolinguística, a Análise do Discurso e outras tendências
discursivas que deslocam o foco estruturalista para uma concepção de linguagem interacional,
considerando como centro norteador da linguagem o contexto extraverbal, os aspectos sócio-
históricos e não mais o código linguístico em sua imanência. Esse novo olhar sobre a linguagem
ganha força no Brasil com a publicação dos textos do círculo de Bakhtin, principalmente, com os
conceitos de gêneros discursivos e dialogismo.
Na década de 90, outro grande avanço foi a publicação dos PCN, que ancorados no texto
de Bakhtin – Gêneros do discurso –, usam de sua força enquanto documento oficial para orientar o
ensino de língua materna, tendo como centro das atividades de leitura, oralidade, análise linguística
e produção textual, os gêneros do discurso. Segundo Bakhtin (2016, p. 12), o estudo da linguagem
deve acontecer a partir dos gêneros discursivos, considerados por ele como “Tipos relativamente
estáveis de enunciados”. Contudo, vale ressaltar que, de início, muitas vezes, os gêneros foram
ensinados com foco em sua estrutura composicional, sendo, portanto, um ensino ainda de viés
estruturalista.
A BNCC (2018) orienta o ensino de língua materna pautado numa concepção de
linguagem interacional e dialógica, considerando que a linguagem precisa ser ensinada na sua relação
com o social, com o contexto extraverbal, ou seja, levando os alunos a perceberem as relações de
sentidos enquanto relações dialógicas entre diferentes discursos que se intercruzam no espaço social
da comunicação da vida real, e não numa interpretação de elementos linguísticos isolados do contexto
de uso.
Na linguagem como objeto da linguística, não há e nem pode haver quaisquer relações
dialógicas: estas são impossíveis entre os elementos no sistema da língua (por exemplo, entre
as palavras no dicionário, entre os morfemas, etc.) ou entre elementos do ‘texto’ num enfoque
rigorosamente linguístico deste. (BAKHTIN, 2018, p. 208).
A linguagem acontece em um grande contínuo, no qual tudo está ligado a um início, mas
sem um fim absoluto, haja vista que aquilo que consideramos o fim é o ponto para um novo recomeço.
Para Bakhtin (2016), a linguagem é marcada pelo dialogismo. Nada é dito sem se correlacionar com
150
dizeres anteriores e sem se lançar para réplicas futuras. Nisso consiste a alternância dos sujeitos,
terminando seu enunciado para passar a palavra ao outro.
Os alunos precisam entender os textos enquanto espaço de diálogo, de responsividade, ou
seja, o olhar de cada leitor é um ponto a mais no traçado de um tecido formado pelas muitas vozes já
ditas e por aquelas ainda não ditas, mas antecipadas pelo leitor. Essas relações de diálogo com o já
dito e de antecipação da resposta do outro frente à compreensão responsiva do texto é o que
fundamenta as relações de sentido.
Podemos perceber, que assim como nos PCN (1999), na BNCC (2018), o foco do ensino
de língua portuguesa continua sendo os gêneros discursivos. Segundo Bakhtin (2016), os gêneros são
constituídos de três elementos: tema, estilo e forma composicional. Cada um desses elementos,
embora relativamente estável – o que garante a comunicação entre os falantes –, também pode sofrer
alterações ao longo das transformações sócio-históricas, ou mesmo em um recorte sincrônico, ou seja,
em uma mesma época, textos pertencentes a um mesmo gênero podem apresentar configurações
temáticas, estilísticas e composicionais diferentes. Por exemplo, se pensarmos no gênero comentário
online sobre notícias, a depender do espaço jornalístico, podemos ter comentários muito agressivos
ou não. Essas mudanças não são ocasionadas por regras gramaticais, mas sim pelo uso social de
determinado gênero, pela comunidade de falantes em determinadas situações de interação.
O advento das novas tecnologias – a internet – provocou grandes mudanças nas formas
de leitura e de escrita, no uso da linguagem, apontando para a necessidade de repensar o ensino de
língua materna, buscando novas metodologias, inserindo novos gêneros discursivos – gêneros digitais
– como objeto de ensino na escola. O ensino distanciado das novas tecnologias passou a ser uma
barreira entre as práticas de linguagem, das quais os alunos participam efetivamente nas atividades
de leitura e de escrita na vida real, e as atividades de leitura e de escrita ensinadas na escola, centradas
unicamente numa cultura impressa. Marcuschi e Xavier (2010) destacam a importância de a escola
desenvolver habilidades de leitura e de produção textual voltadas para a cultura digital.
Considerando essas novas mudanças nas formas de comunicação e interação, a BNCC
(BRASIL, 2018) traz orientações com ênfase para a inserção dos gêneros digitais no ensino de língua
materna, visando ao desenvolvimento de habilidade de leitura e de escrita que potencializem a
capacidade dos educandos usarem os meios tecnológicos, de forma crítica e ética nas mais diferentes
formas de comunicação e interação. (BRASIL, 2018, P. 512); além disso, explicita como habilidade
a ser desenvolvida no ensino médio: “Atuar de forma fundamentada, ética e crítica na produção e no
compartilhamento de comentários, textos noticiosos e de opinião, memes, gifs, remixes variados etc.
em redes sociais ou outros ambientes digitais”. Aqui ressaltamos também a importância do gênero
comentário online como espaço de debate, de autoexpressão, de ampliação de informação, portanto,
151
Nos tempos de hiper, não basta viver, é preciso contar o que se vive (reordenamento das
fronteiras entre o público e o privado) ou mais do que isso, é preciso mostrá-lo (em selfies,
em fotos, em vídeos). Somos impelidos a buscar a novidade o tempo todo. (ROJO;
BARBOSA, 2015, p. 121).
perceber que o comentário online se constitui como um gênero de fácil acesso e utilização, muito
comum no meio digital, podendo ser utilizado nos mais variados suportes, podendo qualquer pessoa
fazer uso dele.
O comentário online é um gênero que, de acordo com Cunha (2014), é construído a partir
de um texto fonte, de modo que o leitor passa a construir novos discursos. Desse modo, o texto fonte
é um convite para que o internauta passe a expor sua opinião, ou seja, a partir desse texto fonte,
diferentes posicionamentos vão sendo expostos. Ao fazer uso do gênero comentário online, o
internauta pode discutir, opinar tanto sobre o assunto apresentado pelo texto fonte, como pode trazer
novos assuntos para o espaço interacional em que o comentário online se materializa, essas atitudes
vão ajudando a construir esse gênero.
De acordo com Santos (2018, p. 29): “O gênero comentário online58 organiza-se numa
cadeia de enunciados. Cada um deles surge como réplica ou reação-resposta a diferentes destinatários
(reais ou presumidos)”. Cada comentário faz parte de uma corrente que o liga a outros comentários,
uma vez que cada um deles surge seja respondendo ao texto fonte ou respondendo a outros
comentários anteriores, nessa atitude responsiva, cada comentário se direciona seja aos outros
indivíduos que dialogam naquele espaço, seja aos possíveis leitores.
Quando se fala do comentário online sobre notícia, Cunha (2014, p. 17) pontua: “[...] os
comentários funcionam como um diálogo cotidiano, em que o propósito principal é interagir, a notícia
servindo apenas como motivo a partir do qual os internautas ‘conversam’”59. Nesse sentido, podemos
perceber que os comentários se assemelham a uma conversa do cotidiano, sem a exigência de uma
organização formal em torno do assunto discutido pelos internautas, são os internautas os próprios
responsáveis por nortear as discussões nesse gênero. Quando voltamos nosso olhar para os
comentários online sobre notícia, nos deparamos como um espaço de debate em torno do conteúdo
noticiado.
Sobre o aspecto linguístico dos comentários, Santos (2018) pontua:
O próprio gênero dá abertura para a liberdade de escolha do material, conforme o que julga
pertinente o sujeito falante. Essa liberdade não é resultado apenas da vontade do falante, mas
orientada pelo gênero. O comentador usa uma linguagem, que muitas vezes, distancia-se da
norma padrão, configurando-se como uma forma de linguagem específica do espaço digital
(SANTOS, 2018, p. 117).
O gênero comentário online é marcado pela liberdade de escolha linguística, com regras
definidas socialmente pelos internautas e sem a subordinação da norma padrão. Cada internauta
58
Grifos da autora.
59
Grifos da autora.
153
escolhe neste espaço, comentar da maneira que julga pertinente para alcançar seu propósito
comunicativo. Nesse sentido, a liberdade se constitui como uma das características do gênero, no qual
a interação é marcada pela espontaneidade. Além disso, Santos (2018) ressalta outro aspecto desse
gênero, o imediatismo. Esse imediatismo permite que os comentários sejam expostos de maneira
imediata, em tempo real, facilitando que o público tenha acesso a ele de maneira rápida e que responda
de forma mais emotiva.
Temos na próxima seção o relato da experiência constituída a partir da aplicação da
oficina com o gênero comentário online.
A oficina sobre o gênero comentário online integrou, juntamente com outras oficinas, o
projeto intitulado: GÊNEROS DIGITAIS: incentivo a leitura e a produção. O projeto foi realizado
em uma manhã, tendo como público alvo os alunos de 8º e 9º anos do Ensino Fundamental, da Escola
Municipal Nilza Coelho Lima, localizada no município de São Bernardo - MA. As oficinas foram
realizadas nas dependências da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo. Esse
deslocamento até a universidade fez-se necessário devido à falta de suporte tecnológico na própria
escola.
Escolhemos trabalhar com comentários online sobre notícia; desse modo, as atividades
de leitura e produção do gênero comentário online foram realizadas a partir de uma notícia retirada
do portal G1, tendo como manchete: “Manchas de óleo no litoral atingem mais de 500 locais no
Nordeste e Sudeste”. A notícia tratava sobre as manchas de óleo que atingiram o litoral brasileiro no
ano de 2019, causando a morte de vários animais e deixando outros feridos, provocando, assim, sérios
danos ao meio ambiente. A escolha da notícia se deu devido ao seu conteúdo bastante relevante e por
ter sido um assunto muito debatido pela sociedade à época.
Fonte: https://g1.globo.com/natureza/desastre-ambiental-petroleo-praias/noticia/2019/11/13/manchas-de-
oleo-no-litoral-atingem-mais-de-500-locais-no-nordeste-e-sudeste.ghtml. Acesso em 10 de dez de 2019.
A oficina em questão foi realizada a partir de uma sequência de aplicação, que foi
elaborada tendo em vista o aspecto metodológico. A sequência de aplicação foi dividida em três
momentos: o momento de apresentação, o momento de contato com o gênero e, por fim, o momento
de produção.
1ª momento: a apresentação
Este primeiro momento se constituiu como o contato inicial com os alunos, no qual foi
possível dialogar com eles, buscando saber um pouco sobre os conhecimentos prévios dos alunos a
respeito do gênero. Fizemos alguns questionamentos do tipo: Vocês conhecem o gênero comentário
online? Vocês têm costume de comentar coisas na internet? Vocês costumam ler os comentários das
publicações na internet? A maioria das respostas foram negativas, muitos dos alunos não tinham
costume de fazer a utilização desse gênero. A partir da sondagem dos conhecimentos dos alunos,
falamos de que se tratava a oficina e os seus objetivos e explicamos um pouco sobre o gênero
comentário online. Esse momento foi bastante significativo, uma vez que foi possível ficar a par dos
conhecimentos prévios dos alunos, bem como explicar um pouco sobre a oficina em geral.
3ª momento: a produção
Esse momento foi destinado à orientação dos alunos para a produção de seus próprios
comentários. Pedimos que os alunos produzissem, diretamente no portal G1, comentários a partir da
155
Dando continuidade à sequência, temos a inserção de outro comentário por parte de outro
aluno, o comentador (B), que diz: Verdade, o governo deveria se importar mais com isso..
Percebemos que esse aluno expõe uma relação dialógica de apoio logo no início quando utiliza a
expressão: verdade, já deixando explícita sua atitude de concordância com o exposto no comentário
anterior. Essa interação entre comentadores é propiciada pela alternância enunciativa que o gênero
comentário online oferece, no qual os internautas se respondem, e não só dialogam com a notícia,
mas também entre si, revelando a presença do dialogismo interlocutivo, defendido por Cunha (2011)
como um direcionamento específico ao outro. Desse modo, os internautas (alunos) constroem entre
si uma relação de concordância, ou seja, relações dialógicas. Bakhtin (2016) esclarece que as relações
dialógicas são relações de sentidos entre enunciados. O comentário online é um gênero bastante
interessante devido a essa troca que ele propicia, essa possibilidade de construção de diálogos com
outros internautas, seja de concordância ou discordância.
Marcuschi e Xavier (2010) destacam a importância de a escola levar para seu contexto
esse ensino de gêneros digitais, uma vez que essa forma de interação veio para ficar. Ou seja, oferecer
aos alunos essa possibilidade de interação no meio virtual através dos gêneros digitais é permitir que
eles aprimorem ainda mais seus processos comunicativos e se familiarizem com essas novas formas
de linguagem.
Fazendo parte ainda dessa sequência de comentários, temos o comentário do aluno (C)60,
que apresenta uma reação de oposição, de confronto em relação ao que foi dito pelos comentários
anteriores, ao dizer: Isso não tem nada haver com a política, é culpa dos seres humanos que não tem
coração ou amor pela natureza. No comentário nós podemos perceber que o aluno (C) expressa uma
reação ao que é dito pelo primeiro internauta. Temos aí uma apreciação crítica diferente, uma relação
dialógica de confronto com outro comentador, retirando a suposta culpa que foi atribuída aos políticos
pelo primeiro internauta (A), colocando-a nos próprios seres humanos, isso pode ser percebido a partir
da expressão: [...] é culpa dos seres humanos. Apesar de ser um posicionamento oposto, podemos
notar que esse comentador (C) se expressa de forma respeitosa, respondendo de forma ética, sem
agressões aos outros internautas.
Rojo e Barbosa (2015) apontam para a necessidade de se manter princípios éticos, diante
da sociedade, da manifestação de práticas sociais, do outro, mantendo-se o respeito. Nesse sentido, é
importante conscientizar os alunos sobre a utilização de gêneros como esse, de maneira ética, uma
vez que o gênero comentário online se materializa em um espaço público, o meio virtual, sendo um
gênero destinado à exposição de opiniões diversas.
60
O nome de usuário Ana Silva se trata de uma conta extra, que recebeu um nome fictício diferente das demais
combinações de nomes dados às outras contas.
157
Percebemos que os alunos nessa segunda sequência estavam mais familiarizados com o
gênero, interagindo com internautas externos e mais à vontade em relação à exposição de seus
comentários, podemos verificar isso através das escolhas linguísticas utilizadas pelos alunos,
revelando uma espontaneidade.
Nessa terceira sequência, temos mais um comentário externo que inicia a discussão: NÃO
QUERO SER CHATO, MAS....O NORDESTE SÓ PRODUZ O QUE NÃO
PRESTA.........PRIMEIRO CRIARAM O INFELIZ DO.....L. U L A......AGORA TENTAM
DESTRUIR O PAÍS COM ESSE ÓLEO. Nesse caso, podemos perceber que ele expressa um
posicionamento de desqualificação, de preconceito em relação ao nordeste, como se a região fosse a
principal causadora do desastre ambiental que contaminou as praias. Assim, podemos ver que o
internauta expressa uma valoração depreciativa em relação ao nordeste.
O comentador (G) da escola Nilza Coelho Lima se insere no diálogo com uma atitude de
discordância em relação ao que foi dito pelo internauta que iniciou a sequência. O Aluno (G) diz:
Você esta se achando de mais, e você onde mora para está falando do nordeste ? E mais uma coisa
isso só esta acontecendo por causa desses barco que esta jogando óleo no mar ok. O comentário se
constitui como uma resposta ao comentário de desqualificação do internauta anterior, o comentador
coloca-se como um sujeito crítico, revelando um posicionamento frente ao preconceito manifestado
no comentário lido. Ou seja, o aluno se coloca em defesa do povo do nordeste, ganhando voz diante
de um tema social.
Pensando nessa atitude crítica adotada pelo aluno (G), apresentamos a BNCC (2018), no
que tange às habilidades voltadas para o desenvolvimento do senso crítico. Habilidades de diferenciar
o discurso de ódio da liberdade de expressão e, assim, se posicionar de modo contrário. Destacamos
a importância de trabalhar em sala de aula o gênero comentário online, no que diz respeito a
159
habilidades voltadas ao aprimoramento do senso crítico dos alunos, uma vez que o gênero é um
espaço voltado à exposição de posicionamentos por parte dos leitores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho com o gênero digital comentário online em sala de aula representa inúmeras
possibilidades para o processo de ensino de leitura e produção textual. Esse gênero, quando levado
para o contexto educacional, não se constitui apenas como uma maneira de inserir os alunos diante
de uma nova forma comunicativa, mas também a possibilidade de despertar nesses alunos
comportamentos mais éticos e críticos diante de situações que exigem um posicionamento por parte
deles. Além disso, é uma possibilidade de desenvolver habilidades de escrita em situações reais
propiciadas pelo gênero comentário online.
A aplicação dessa oficina possibilitou um primeiro contato de alguns alunos com o gênero
comentário online, reforçando a importância de inserir os alunos em práticas de leitura e produção no
espaço digital. Para a sua realização, destacamos alguns desafios, como a necessidade de adaptação
em relação ao número de computadores, uma vez que não tínhamos computadores suficientes para
todos. Todo o deslocamento e a quantidade de tempo disponibilizado fizeram com que a oficina
ocorresse em apenas uma manhã, o que acreditamos que tenha sido mais um desafio, uma vez que
tivemos que programar toda a aplicação para um espaço de tempo limitado.
Em relação aos resultados positivos, destacamos o envolvimento dos alunos durante a
aplicação da oficina, a curiosidade em conhecer e fazer uso do gênero comentário online. Destacamos,
ainda, a interação constante nos momentos de leitura da notícia e também dos comentários. No
momento de produção, os alunos demonstraram interesse e empenho ao produzir seus próprios
comentários, interagindo com a notícia e com outros internautas, mantendo sempre comportamentos
éticos. Através da oficina, percebemos o quanto o trabalho com os gêneros digitais se faz necessário
diante dessa evolução constante dos meios comunicativos. Colocar os alunos diante de práticas
voltadas para o ensino dos gêneros digitais em situações reais de uso é dar a eles possibilidades de
conhecer esses gêneros e aprimorar seus processos comunicativos no espaço virtual.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad.: Paulo Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
2016[1979].
_________. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad.: Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2018.
CUNHA, D. A. C. Formas de presença do outro na circulação dos discursos. Bakhtiniana, São Paulo,
v. 1, n. 5, p. 116-132, 2011.
MARCUSCHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio Carlos. (Org.). Hipertextos e gêneros digitais:
novas formas de construção de sentidos. (orgs.). – 3. ed. – São Paulo: Cortez, 2010.
RESUMO
O gênero artigo científico é um dos mais prestigiados na esfera científica, são produzidos
normalmente por universidades e centros de pesquisa, onde circulam textos elaborados por cientistas
para seus pares. Por isso, esse gênero discursivo foi escolhido para compor o corpus de pesquisa dessa
análise. O objetivo desta pesquisa é compreender as especificidades do gênero artigo científico em
duas línguas/culturas, a brasileira e a chilena, e o português e o espanhol. Tal objetivo foi alcançado
por meio de uma análise que possibilitou a interpretação da parte verbal (linguística) em parceria com
a parte extraverbal (destinatário presumido). O corpus de análise e interpretação deste artigo são
artigos publicados na revista brasileira “Filologia e Linguística Portuguesa”, da Universidade de São
Paulo (USP), e na revista “Boletín de Filología”, da Universidad de Chile. A abordagem teórica
empregada está na teoria do Círculo de Bakhtin, focando especificando em um dos elementos
constitutivos do gênero, o estilo. O estilo é um dos elementos do enunciado e o gênero do discurso
uma forma relativamente estável do enunciado, ambos estão indissoluvelmente atrelados. A marca
deixada na obra pelo estilo individual cria princípios específicos que a diferenciam de outras da
mesma esfera da comunicação discursiva. O gênero artigo científico possibilita a expressividade do
autor materializada no estilo individual por meio dos seguintes recursos: pessoa gramatical,
transferência de agente da ação para o objeto de pesquisa e desinência modo-temporal. Neste artigo,
primeiramente será conceituado o elemento constitutivo do gênero do discurso na teoria do Círculo
de Bakhtin. Em seguida, o foco do estudo será a dimensão extraverbal dos artigos, focando no
destinatário presumido. Na sequência, analisaremos o estilo por meio dos aspectos linguísticos.
Finalmente, será sintetizado os resultados da análise comparativa do gênero artigo científico nas duas
línguas/culturas. Diante da análise feita nos 6 artigos, podemos observar que há grande normatização
estilística no gênero artigo científico, compartilhadas por autores do Brasil e Chile.
INTRODUÇÃO
61
Graduanda de Letras em Linguística e Português pela Universidade de São Paulo, USP, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, FFLCH. Teve sua pesquisa financiada com bolsa FAPESP de Iniciação Científica. Endereço
eletrônico: andressavillagra@usp.br.
162
62
As pesquisadoras publicaram um artigo científico na Revista Bahtiniana em 2016 intitulado “A divulgação científica
no Brasil e na Rússia: um ensaio de análise comparativa de discursos” que funda-se na metalinguística bakhtiniana, na
qual o objeto de estudo são as relações dialógicas no interior e entre os enunciados, compostos por elementos linguísticos
e extralinguísticos.
163
A pesquisa apresentada neste artigo faz parte da Iniciação Científica realizada pela autora,
na qual a análise comparativa foi feita a partir dos três elementos constitutivos do gênero do discurso
(estilo, conteúdo temático e construção composicional) em parceria com a parte extraverbal (esfera,
destinatário presumido, relações de autoria). Para compor este o presente texto, foram recortados
alguns aspectos linguísticos analisados dentro do estilo: pessoa gramatical, transferência de agente da
ação para o objeto de pesquisa e desinência modo-temporal, os aspectos que mais demonstram
semelhanças nas duas línguas/ culturas. No entanto, na pesquisa original outros aspectos foram
estudados, os que mais demonstraram diferenças: modalizadores, discurso do outro e travessões.
Nas seções a seguir, serão conceituados, primeiramente, o estilo como elemento
constitutivo do gênero do discurso na teoria do Círculo de Bakhtin. Em seguida, o foco do estudo será
a dimensão extraverbal dos artigos. Na sequência, analisaremos o estilo e os aspectos linguísticos,
para, ao final, sintetizarmos os resultados da análise comparativa do gênero artigo científico nas duas
línguas/culturas.
O gênero do discurso está indissoluvelmente atrelado ao estilo, uma vez que, para
Bakhtin, “Onde há estilo há gênero” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 21). Sendo o estilo um dos
elementos do enunciado e o gênero do discurso uma forma relativamente estável do enunciado, não
teria como ser diferente. “Todo enunciado - oral e escrito, primário e secundário e em qualquer campo
da comunicação discursiva - é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de
quem escreve), isto é, pode ter estilo individual.” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 17). O autor ressalta
que, apesar do caráter individual ser inerente ao estilo, alguns gêneros estão mais propensos a ele do
que outros, um exemplo desse tipo são os gêneros da literatura nos quais a individualidade é parte
integrante do enunciado.
Na via contrária desses gêneros, estão aqueles em que o reflexo do estilo individual quase
não atinge o enunciado. Nesses “só podem refletir-se os aspectos mais superficiais, quase biológicos
da individualidade (e ainda assim predominantemente na realização oral dos enunciados desses tipos
164
padronizados)” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 17). Para Bakhtin, isso se justifica pela forma muito
padronizada de tais gêneros como por exemplo: documentos oficiais ou ordens militares.
Os enunciados das esferas científica e literária, como o artigo científico e o romance, por
exemplo, têm sua construção complexa e, apesar de serem diferentes entre si, guardam um ponto em
comum: pertencem a esferas secundárias, complexas e marcadas pela escrita. Para Bakhtin, enquanto
unidades da comunicação discursiva, os gêneros científicos e ficcionais, apesar de não se construíram
muitas vezes pela presença física de seus interlocutores, não são menos dialógicos:
estão nitidamente delimitadas pela alternância dos sujeitos do discurso, cabendo observar que
essas fronteiras, ao conservarem a sua precisão externa, adquirem um caráter interno graças
ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aí revela a sua
individualidade no estilo, na visão de mundo, em todos os elementos da ideia de sua obra.
(BAKHTIN, 2016 [1979], p. 34)
A marca deixada na obra pelo estilo individual cria princípios específicos que a
diferenciam de outras da mesma esfera da comunicação discursiva, isto é, das obras que vieram antes
dela e com as quais o autor estabelece relações dialógicas explícitas ou não, de outras obras da mesma
área ou das obras de correntes contrárias refutadas pelo autor.
O que determina o estilo (e a composição) é o elemento expressivo do enunciado, ou seja,
“a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do
seu enunciado” (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 47). Esse elemento pode ter significado variado dentro
dos diferentes campos da comunicação discursiva, além de ter um grau distinto de força em cada
enunciado, porém o que é certo é a inexistência da neutralidade nos enunciados, não existe enunciado
neutro. A escolha dos recursos composicionais, gramaticais e lexicais também é determinada pela
relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso.
O falante adquire as formas do enunciado, os gêneros do discurso, assim como as formas
da língua nacional (com a composição vocabular e a estrutura gramatical), ambas obrigatórias para a
compreensão entre os interlocutores da comunicação discursiva. Desse modo, o estilo individual se
inter-relaciona de maneira recíproca com a língua nacional.
Volóchinov (2019) teoriza que o enunciado é composto por uma parte verbal e outra
extraverbal. Esse estudo visa analisar o discurso como “a língua em sua integridade concreta e viva”
(BAKHTIN, 2010 [1961], p. 207), ou seja, não se restringindo à língua como objeto abstrato e
linguístico. A metalinguística proposta por Bakhtin objetiva analisar aspectos do discurso que
ultrapassam os limites linguísticos, pois o enunciado compreende elementos extralinguísticos. Em
consonância com esse projeto, iniciaremos a análise com uma comparação dos aspectos extraverbais
do gênero artigo científico nas duas línguas/culturas.
165
Os dois aspectos extraverbais dos artigos científicos das revistas brasileira e chilena
selecionados para análise serão: a esfera da atividade humana do qual o gênero artigo científico faz
parte e o destinatário presumido de tais artigos. Eles foram escolhidos, pois observamos que
apresentaram maior influência no estilo dos enunciados do corpus.63
Passemos agora para outro aspecto extraverbal importante focalizado na análise: o
destinatário presumido dos artigos. Ele é um respondente ativo, segundo Bakhtin (2016 [1952-1953]),
que assume diferentes matizes e posições sociais no intercâmbio da comunicação e está sempre se
orientando axiologicamente, expressando valores, presente fisicamente ou não. Assim, o interlocutor
cumpre um papel essencial nas escolhas estilísticas da pessoa que fala ou escreve e participa
ativamente da construção do enunciado.
O interlocutor presumido se apresenta como um destinatário já determinado pelo gênero
no qual se constrói o dizer com motivações, julgamentos, apreciações específicas. Assim, para os
propósitos desta análise, consideramos como destinatário presumidos pares, colegas pesquisadores
da comunidade acadêmico-científica e linguistas em geral.
Uma das dimensões da natureza dialógica do enunciado é a consideração do fundo
aperceptível da percepção do destinatário, ou seja, “[...] até que ponto ele está a par da situação, dispõe
de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação” (BAKHTIN, 2016[1952-
1953], p. 302). Para determinar a compreensão responsiva, o autor pondera as concepções,
convicções, preconceitos, as simpatias e antipatias. Essa consideração determina a escolha do gênero
e dos procedimentos que formam a construção composicional e dos meios linguísticos.
Em suas páginas, os dois periódicos expõem a delimitação de seus públicos-alvo de
maneira semelhante: para pesquisadores e interessados na área da Linguística ou Filologia. A revista
brasileira disponibiliza em seu website um tópico unicamente dedicado a explicitar o público-alvo do
periódico. “A revista busca atender estudantes, professores, pesquisadores dos mais diversos níveis
de formação e interessados em geral nas áreas de Filologia e Linguística, incluindo a área dos estudos
sobre língua portuguesa.64” A política editorial destaca ainda a acessibilidade da revista como um
ponto positivo para esses estudiosos e ressaltam que se trata de uma versão totalmente on-line com
todos os artigos disponíveis para downloads com livre acesso. Apesar da política editorial da revista
63
Esfera e destinatário presumido foram aspectos escolhidos para compor esse artigo por conta da limitação no número
de páginas, no entanto, a pesquisa na íntegra analisou ainda outros aspectos: relações de autoria e coautoria, público-alvo,
momento sócio-histórico.
64
Trecho retirado do site da Revista Filologia e Linguística Portuguesa. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/flp/index Acesso em 10 fev. 2019.
166
mostrar que valoriza as pesquisas locais, os artigos são recebidos do Brasil e do exterior. Para os
trabalhos produzidos por estrangeiros há o limite de 40% da composição total de cada edição.
No website da revista chilena não há um tópico específico para mostrar qual é o público-
alvo do periódico. No entanto, é possível verificar, no texto que explicita a história da revista, para
quem se destinam as publicações: o conteúdo do Boletín de Filología “está dirigido a estudiosos de
la lengua española así como a público interesado en problemas de lingüística y filología, en
general.65”
Observamos que, em ambas as revistas, há grande generalização com relação ao público-
alvo. Ao invés de se destinar especificamente a um nicho de pesquisadores de dada área, é possível
depreender que os periódicos estão abertos a qualquer pessoa que seja minimamente interessada no
assunto abordado. A nosso ver, essa caracterização é influenciada pela publicização das revistas, ou
seja, pela intenção dos editores de obterem o máximo de acesso possível do periódico e, com isso,
fortalecer a relevância da publicação. É possível perceber aqui o valor de replicação e o valor da
publicação da esfera, nos quais pretende-se com os artigos disseminar a pesquisa científica, já que
em ambas as revistas o acesso aos artigos é livre e destinado ao público em geral. Contudo, pensamos
que esse aspecto não interfere ou interfere pouco na elaboração dos artigos, pois os autores têm em
seus pares – pesquisadores e profissionais da área - o destinatário presumido.
Apesar de as revistas se mostrarem preocupadas com a língua de cada país como objeto
científico, elas não exigem que os artigos submetidos sejam exclusivamente em português ou
espanhol, mas por conta da internacionalização do conhecimento científico, ambas aceitam textos em
espanhol, português, inglês e francês. A temática da revista chilena é mais específica do que a da
brasileira, pois os trabalhos devem ser obrigatoriamente voltados para o estudo do espanhol (valor de
preservação do conteúdo), enquanto na revista brasileira são consideradas investigações sobre
linguagem em geral, mesmo o foco maior sendo a língua portuguesa.
A esfera científica, como aspecto do gênero discursivo, tem primordialmente como leitor
presumido a comunidade científica. Nessa comunidade o reconhecimento acadêmico de um cientista
ocorre principalmente pelos seus pares e é um indicador significativo de seu prestígio e de poder de
influência, pois o cientista aumenta sua credibilidade dentro da esfera ao ter suas pesquisas
divulgadas, lidas, discutidas e refutadas. Por isso, o papel do interlocutor cientista cumpre uma dupla
relação na produção dos artigos. Por um lado, o autor presume que os pares da esfera científica
conheçam uma linguagem característica especializada e conceitos de correntes teóricas, no caso
desses artigos, inseridos no campo da Linguística e da área da Sociolinguística. Nesse afunilamento
65
Trecho retirado do site do Boletín de Filologia. Disponível em: https://boletinfilologia.uchile.cl/
167
de especificidades de uma dada área, a linguagem e as teorias tornam-se ainda mais específicas, sendo
quase impossível um pesquisador de outra área ou um leitor comum compreenderem.
Por outro lado, o interlocutor cientista, o destinatário presumido, explica a
inconclusibilidade dos artigos. O pesquisador, ao expor sua pesquisa aos pares e à academia em geral,
partiu de ideias desenvolvidas por outros autores, e, por nenhuma obra estar acabada, principalmente
na esfera científica, é fato que sua pesquisa não termina ali. Ela continua num diálogo constante com
os leitores dos artigos, que poderão escrever outros para desenvolver a ideia inicial, refutar e
apresentar ideias substitutas, ou ainda utilizá-la para analisar novos dados.
(3) Galvão nunca foi príncipe, sabemos nós, mas ele está convencido de que o é realmente.
(BORBA, 2015, p. 467, grifo nosso)
168
(5) En términos comparativos, por lo que refiere a sus frecuencias de uso, hemos
comprobado que por ser y onda manifiestan comportamientos de sentido inverso. (NÚÑEZ;
INOSTROZA; GONZÁLEZ, 2016, p. 249, grifo nosso)
entanto, nos artigos em português e espanhol o plural assume a forma inclusiva, ou seja, a primeira
pessoa do plural, formada pelo elemento ‘eu/yo’ e somada ao elemento ‘vós/vosostros’, efetua “a
junção das pessoas entre as quais existe a ‘correlação de subjetividade’” (BENVENISTE,
1991[1966], p. 257).
Assim, podemos perceber que, ao empregar a primeira pessoa do plural, mesmo quando
se trata de um único autor, a subjetividade fica atenuada e marca-se a relação de cumplicidade entre
o autor e o destinatário presumido. A partir do corpus podemos perceber que essa forma é usada
quando o pesquisador (‘eu/yo’) expressa uma opinião ou ideia compartilhada com seus leitores
(‘vós/vosotros’).
No artigo científico, a escolha de recursos gramaticais, que não a primeira pessoa do
plural, é comum. Sobre essas marcas de pessoa, Coracini (1991) argumenta que os autores preferem
utilizar diversos recursos com o intuito de o enunciador do artigo parecer assumir todo o tempo “a
postura de um observador distante do objeto observado” (CORACINI, 1991, p. 104). Vejamos como
isso se dá nos excertos nos artigos analisados neste trabalho:
(6) Em suma, nota-se que a subida de clíticos varia de acordo com dois grandes princípios
funcionais: a topicalidade e a coesão estrutural. (ANDRADE; CARNEIRO, 2014, p. 140,
grifo nosso)
(7) No início deste trabalho, assumiu-se a ideia de que seria condição essencial para o
estabelecimento do caráter glocal a uma determinada língua o da dialogicidade entre o
particular e o universal. (MACHADO, 2017, p. 261, grifo nosso)
(8) Retoma-se então Labov (2008), para quem a significação social que é atribuída às
variantes linguísticas pode servir como indicador para medir outras formas de
comportamento social, entre elas aspirações à ascensão social, mobilidade e insegurança
social, mudanças na estratificação e segregação social. (BORBA, 2015, p. 470, grifo nosso)
(10) Nótese en este ejemplo que el personaje utiliza primero el voseo flexivo pronominal (“Y
vos te lo pasás moquiando”) y, a continuación, el voseo flexivo no pronominal, con uso de
pronombre átono segunda singular (“tehacís el mojigato”) y, finalmente, sin pronombre
(“tenís toda la culpa de que mi chiquilla llore”). (PEREIRA; PUENTES; AMAYA;
MASQUIARÁN, 2018, p. 210, grifo nosso)
Como podemos verificar a partir dos excertos acima, um dos recursos muito utilizados
nos artigos é a construção passiva. Nos artigos brasileiros, a escolha da voz passiva sintética se
destaca. Ao escolher essas formas gramaticais, o autor cria um efeito estilístico de distanciamento em
relação ao objeto analisado, com o intuito de dar mais credibilidade ao seu discurso científico. Isso
ocorre por meio do uso da partícula apassivadora ‘se’. Esse deslocamento de foco é um fenômeno
frequente no discurso científico, e no material analisado ele aparece com o objetivo de ser uma forma
170
sintética e com foco nas ações. Todas as vezes que essa partícula apareceu nos artigos foi para
descrever os processos que envolvem a pesquisa, ao deixar de lado quem a fez (pesquisadores).
Podemos perceber mais uma vez a presença do valor da ocultação da subjetividade, exigência do
gênero que se expressa por meio das escolhas estilísticas.
Outro recurso utilizado com o objetivo de ocultar a subjetividade é a transferência da ação
do verbo para o objeto de análise, ou seja, o sujeito gramatical agente é o próprio material analisado.
O emprego do particípio em estrutura passiva possibilita colocar o sujeito da oração em posição
temática. Essa organização da mensagem mantém o tema apresentado na oração anterior. Ao mesmo
tema, novas informações são relacionadas na sequência de cada oração. Se optasse por outra forma
linguística, como o presente do indicativo, por exemplo, o sujeito da oração teria de ser outro, e
posições temáticas alternativas poderiam ser escolhidas. No entanto, a organização temática escolhida
mantém mais claramente a relação dado-novo e contribui para deixar o texto fluente.
A situação imediata da comunicação abarca a articulação entre tempo e espaço em que o
enunciado é produzido. Com relação às escolhas das desinências modo-temporais, a mais frequente
nos artigos é o presente do indicativo, principalmente na primeira pessoa do plural. Vejamos:
(11) “Neste texto revisitamos a hipótese de acordo com a qual o português brasileiro é
formado por duas vertentes – a norma culta e a norma vernacular ou popular –, a partir do
problema da posição e da colocação de clíticos em predicados complexos.” (ANDRADE;
CARNEIRO, 2014, p. 126)
(12) “Entre os anos de 1882 e 1887, localizamos cerca de sessenta artigos publicados no
periódico Carbonario.” (BORBA, 2015, p. 448, grifo nosso)
(13) “En español contamos con excelentes obras de carácter general sobre los marcadores
del discurso, como las de Martín zorraquino y Montolío (coords. 1998), Martín zorraquino
y Portolés (1999), Portolés (2001) y Loureda y Acín (coords. 2010), entre otras.” (NÚÑEZ,
2013, p. 174, grifo nosso)
(14) “Por último, respecto del nivel de instrucción de los sujetos, el empleo de por ser se
concentra en el grupo de instrucción medio y no registramos casos en el alto.” (NÚÑEZ;
INOSTROZA; GONZÁLEZ, 2016, p. 250, grifo nosso)
pesquisadores da esfera), pessoa gramatical, transferência de agente da ação para o objeto de pesquisa
e a desinência modo-temporal.
As possibilidades estilísticas que os autores têm para construir seu discurso são muitas a
partir da gramática, mas as escolhas feitas demonstram o dialogismo entre autor-pesquisador e
destinatário presumido. Diante da análise feita nos 6 artigos, podemos observar que há grande
normatização estilística no gênero artigo científico no Brasil e Chile.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016
[1952-1953].
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora
Forense Universitária, 2010 [1961].
BORBA, L. Escrita e comportamento social: Dom Obá II nas páginas dos jornais cariocas do século
XIX. Revista de Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, v. 17, p. 447-472, 2015. Disponível
em: https://doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v17i2p447-472. Acesso em: 10 fev. 2019.
RESUMO
A pesquisa com os gêneros discursivos textuais tem se tornado constante nas práticas do âmbito dos
estudos linguísticos. Como sabemos, os gêneros discursivos textuais estão nos mais diversos meios
de comunicação, auxiliando-nos em nossa prática social como ponte de interação. Sua variedade
existente na sociedade é enorme e possui fundamental importância ao favorecer o desenvolvimento
de competências textuais e discursivas de quem os utiliza. Diante dessa diversidade, pretendemos
analisar a sequência injuntiva no gênero cartilha educativa que focaliza informações sobre a pandemia
da covid-19. Para orientar nosso estudo acerca das sequências textuais injuntivas elaboramos os
questionamentos: (1) como as sequências injuntivas se apresentam nos gêneros midiáticos? (2) que
recursos são utilizados para garantir que o leitor cumpra o que está dito? Assim, procurando responder
a essas questões, estabelecemos como objetivos: (a) descrever a forma como as sequências injuntivas
se apresentam e (b) analisar os recursos que nelas se encontram. Teoricamente, estamos considerando
que o gênero instrucional (a exemplo da cartilha) é caracterizado por ser predominantemente
composto de sequências imperativas (SANTOS e FABIANI, 2012, p. 66) e que “um gênero realiza
várias sequências de tipos textuais [...]” (MARCUSCHI, 2002, p. 31). As sequências definem-se
como “[...] unidades textuais complexas, compostas de um número limitado de conjuntos de
proposições-enunciados [...]” (ADAM, 2011, p. 204). A pesquisa realizada segue uma abordagem
qualitativa de base interpretativa, segue o método indutivo e baseia-se em postulados da Linguística
Textual e da Análise Textual dos Discursos – ATD (ADAM, 2011), considerando principalmente as
discussões sobre texto, sequência injuntiva e gênero discursivo, sendo esta última noção retomada da
abordagem bakhtiniana de gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003). Diante dessa diversidade,
analisamos a sequência injuntiva no gênero cartilha educativa que focaliza informações sobre a
pandemia de covid-19, momento atual que ficará marcado na história da humanidade como um
divisor de águas, instaurando novos costumes, pensamentos e comportamentos na sociedade global.
Os resultados evidenciaram que a sequência injuntiva no referido gênero instrucional é aplicada de
modo a instruir seus leitores a seguirem o passo a passo com cuidado e atenção para que todas as
normas se segurança e higiene sejam respeitas e colocadas em prática, a fim de garantir o sucesso da
prevenção durante o contexto da pandemia da covid-19.
PALAVRAS INICIAIS
As investigações acerca dos gêneros discursivos textuais 68 têm grande relevância nas
práticas de pesquisa do campo da Linguística. Nessa perspectiva, os gêneros discursivos textuais estão
66
E-mail: romenacalixta@gmail.com
67
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
68
Adotamos a posição de que a expressão pode ser assim utilizada, tendo em vista que há um nível enunciativo para o
discurso e um nível textual que se refere aos elementos linguísticos próprios do texto.
174
presentes nos modos de comunicação mais heterogêneos, ajudando-nos nas mais diversas formas de
interação da nossa prática social. A pluralidade de gêneros que se efetua na sociedade é vasta e possui
importância substancial no desempenho dessas práticas no favorecimento do desenvolvimento de
competências textuais e discursivas de quem os utiliza.
O gênero cartilha está presente há bastante tempo no cotidiano das pessoas, abrangendo
um público diversificado. Outro aspecto que podemos citar sobre a cartilha é o seu discurso
persuasivo ao convocar o leitor a seguir algum caminho. Esse ponto é bem explorado nas cartilhas de
saúde atuais. Nesse sentido, segundo Mendonça (2008, p. 83): “A cartilha educativa foi criada no
âmbito das campanhas governamentais, com o intuito de facilitar o acesso à informação, por parte de
pessoas oriundas de diferentes contextos socioculturais, com diferentes graus de escolaridade”.
Assim, a cartilha é caracterizada como um gênero instrucional que utiliza de uma
linguagem simples, a fim de se fazer com que se compreenda seu conteúdo pelo fato de atingir
diversos públicos, pois os textos instrucionais, “em que se dão regras de como fazer algo” (DISCINI;
TEIXEIRA, 2007, p. 13), são definidos como a concretização do tipo textual injuntivo. Nessa direção,
Para orientar nosso estudo acerca das sequências textuais injuntivas, elaboramos os
seguintes questionamentos: (1) como as sequências injuntivas se apresentam nos gêneros midiáticos?
(2) que recursos são utilizados para garantir que o leitor cumpra o que está dito? Assim, procurando
responder a essas questões, estabelecemos como objetivos: (a) descrever como as sequências
injuntivas se apresentam e (b) analisar os recursos que nelas se encontram.
Teoricamente, estamos considerando que o gênero instrucional (a exemplo da cartilha) é
caracterizado por ser predominantemente composto de sequências imperativas (FABIANI; SANTOS,
2012, p. 66) e que “um gênero realiza várias sequências de tipos textuais [...]” (MARCUSCHI, 2002,
p. 31). As sequências definem-se como “[...] unidades textuais complexas, compostas de um número
limitado de conjuntos de proposições-enunciados [...]” (ADAM, 2011, p. 204).
Nas cartilhas educativas, especialmente as que veiculam informações sobre a promoção
da saúde, há uma tentativa de aproximação entre os fatos da realidade da ciência e o público leigo.
Evocamos Mendonça (2008), a fim de evidenciar algumas estratégias que incidem para essa
aproximação:
a) o uso de imagens e de recursos gráficos que permitam, mesmo ao leitor pouco escolarizado
ou com dificuldades de leitura, compreender parte do que é dito no texto; b) a didatização
175
das informações, por meio das frases curtas, do vocabulário de uso comum e das gírias; e c)
a junção justificativa dos dois itens anteriores: o texto verbal e a imagem [...] (MENDONÇA,
2008, p. 86).
Esses fatores fazem com que a linguagem veiculada seja facilmente compreendida pelos
leitores, corroborando para a finalidade do gênero em questão: instruir o leitor a fazer algo.
Na próxima seção, trazemos alguns aspectos teóricos sobre texto, gênero discursivo
textual e sequência injuntiva, os quais nossa pesquisa filia-se para dar-nos o suporte necessário para
os esclarecimentos deste trabalho.
PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS
níveis de complexidade, que são realizadas pelos enunciados”. No que concerne à concepção de texto,
para Adam (2011), pode ser assim definida como
[...] um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia justificar o recurso a
diferentes teorias, mas é de uma teoria desse objeto e de relações com o domínio mais vasto
do discurso em geral que temos necessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos
diferentes ciências da linguagem, um novo quadro e uma indispensável coerência. (ADAM,
2011, p. 25).
Ao tratar de gêneros de discurso, Adam (2011) enfatiza a posição adotada por Todorov
(1977, 1978), cuja definição se circunscreve em uma relação entre língua e gênero, permitindo afirmar
que é caracterizada por qualquer propriedade verbal, de caráter facultativo ao nível da língua, pode
se tornar indispensável/obrigatório em um discurso. Alguns autores da linguística textual dão uma
significativa contribuição aos estudos nesse campo. Entre outros, situa-se Marcuschi (2008), cuja
definição de texto afirma que depende do conceito de língua que se tem. Para o autor, “[...] a língua
é um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas” (MARCUSCHI, 2008, p. 61)
e, consequentemente, o texto é visto como
[...] o resultado de uma ação linguística cujas fronteiras são em geral definidas por seus
veículos com o mundo no qual ele surge e funciona. Esse fenômeno não é apenas uma
extensão da frase, mas uma entidade teoricamente nova. [...] falamos de texto como um
evento que atualiza sentidos e não como uma entidade que porta sentidos na independência
de seus leitores. (MARCUSCHI, 2008, p. 72).
Isto quer dizer que o autor destaca a importância de considerá-lo quanto ao objetivo dos
interlocutores e ao contexto sociocognitivo, por conseguinte o “[...] texto é uma entidade concreta
realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual”. Da mesma maneira que o autor,
partiremos da perspectiva dos gêneros textuais, com base em uma concepção de língua como
atividade social, histórica e cognitiva, na qual os gêneros se estabelecem como ações sociodiscursivas
a fim de agir/dizer sobre o mundo, organizando-o de alguma forma.
Segundo Marcuschi (2008, p. 242), o texto deve ser visto como “um processo” e como
“um evento comunicativo sempre emergente”. Dessa maneira, não podendo ser considerado como
“um produto acabado e objetivo” ou muito menos “um depósito de informações”, e sim visto como
“um evento ou um ato enunciativo” (MARCUSCHI, 2008, p. 242), pois o texto está sempre em
elaboração.
Adam (2011) explica as sequências como unidades que compõem a proposição-
enunciado. Nesse sentido, conforme o autor, “as sequências são unidades textuais complexas,
177
Figura 1
.
Fonte: Cartilha Tempos de Pandemia.
As cores vibrantes contrastam com o fundo escuro. Com o auxílio de setas, a fonte
chamativa e em caixa alta também chama a atenção quando utilizadas no início de cada tópico
apresentado, como na Figura 3, a seguir.
Figura 3
179
Figura 4
A sequência injuntiva é marcada por verbos no infinitivo que indicam ação futura, e conta
com uma linguagem bastante clarificada, de fácil compreensão, procurando a aproximação para o
público a que se destina.
A segunda cartilha (C2) tem por título “COVID-19 E ARQUIVOS: A proteção de
pessoas e acervos em tempos de pandemia”, e contêm 35 slides. Logo de início, podemos observar
180
que a injunção se faz presente na pergunta direta: “Vamos cuidar da nossa saúde?”, em caixa alta,
com fonte grande e fundo amarelo, dando contraste e chamando o leitor a cuidar da saúde, ao mesmo
tempo em que tenta manter uma relação de proximidade com o público alvo.
Figura 5
Figura 6
Na Figura 6 acima, o slide traz a assertiva que introduz o que está por vir, isto é, algumas
dicas de cuidados de higiene preventiva e como se comportar diante do momento pandêmico.
Também, a apresentação de um link de acesso a mais informações sobre como se prevenir do novo
Coronavírus, disponibilizado pela UFJF.
Figura 7
181
Figura 8
Essa cartilha se direciona ao público que utiliza os serviços do arquivo da UFJF e aos
seus funcionários, por entender que o acervo é um forte vetor de contaminação vinculado ao fato de
ser manuseado. Dessa forma, essa cartilha objetiva atualizar os dados sobre as diretrizes que propõem
novos procedimentos de rotina no arquivo.
Figura 9
Figura 10
A respeito do layout dos slides, percebemos que, em sua maioria, há presença de desenhos
ilustrativos que representam o vírus da covid-19, bem como outras imagens que colaboram na
didatização e, junto com as cores utilizadas (turquesa, amarela, branca e azul escuro), auxiliam a
fixação das informações dadas, quanto aos modos de transmissão da doença e o uso de máscaras,
entre outras medidas preventivas.
Figura 11
Figura 12
183
Figura 14
Figura 15
Figura 16
Figura 17
PALAVRAS FINAIS
Como vimos, ao examinarmos as sequências textuais, não podemos somente considerá-
las isoladamente do conjunto do gênero em que estão inseridas. O fato é que a sequência se encontra
em uma relação de dependência-independência com o conjunto mais amplo do qual faz parte – o
texto. As sequências exercem um papel essencial no conjunto do gênero, na colaboração e no
cumprimento de sua função social.
Por conseguinte, observamos que a compreensão das sequências textuais não deve ser
pautada somente no nível da textualidade, como também elas devem servir tal qual elementos
culturalmente organizados na história, em conformidade com os conhecimentos do produtor e seu
contato com diversos tipos de gêneros, construídos de sequências diversas.
A análise realizada evidenciou que a sequência injuntiva no gênero instrucional é aplicada
de modo a instruir seus leitores a seguirem o passo a passo com cuidado e atenção para que todas as
normas de segurança e higiene sejam respeitadas e colocadas em prática, a fim de garantir o sucesso
da prevenção durante o contexto da pandemia de covid-19, evitando a contaminação e a disseminação
da doença.
Além disso, podemos dizer que há a existência de estratégias argumentativas como
escolhas lexicais, modalizações, expressões atitudinais, elementos tipográficos e cores, como já
mencionados, os quais influenciam na orientação argumentativa do texto, com o intuito de que o leitor
possa ser motivado/atraído para aquilo presente no dito.
REFERÊNCIAS
ADAM, J. M. 2011. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. 2 ed. São Paulo:
Cortez, 373 p.
BAKHTIN, M. 2003. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra e Tzvetan Todorov.
São Paulo, Martins Fontes.
FABIANI, S. J. S. N. SANTOS, L. W. dos. 2012. Gêneros instrucionais nos livros didáticos: análise
e perspectivas. Revista de Letras. (n. 31, v. 1/2). UFRJ, jan/dez, p. 63-71.
_____. 2008. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Parábola, 296 p.
https://www.ufrgs.br/coronavirus/base/cartilha-elaborada-por-pesquisadores-da-ufrgs-orienta-
profissionais-do-sexo-durante-a-pandemia/. Acesso em: 09/09/2020.
RESUMO
INTRODUÇÃO
69
emilianasousa@yahoo.com.br
70
hendrio.hector@escolar.ifrn.edu.br
189
ensino, pesquisa e extensão de forma indissociável, com a oferta de cursos técnicos de nível médio
integrado, bem como é destaque nos modelos que instituiu para os processos de seleção que utiliza
para o ingresso de seus estudantes, com seriedade. Nessa direção, particularizamos o Campus João
Câmara do IFRN, que, em 2019, fez 10 anos de atuação, o qual teve seu funcionamento autorizado
pela Portaria n. 755, de 27 de julho de 2009, instalado na região do Mato-Grande, que compreende
os municípios da microrregião de Baixa Verde ao Litoral Nordeste, composta pelos municípios de
Bento Fernandes, Caiçara do Norte, Ceará-Mirim, Jandaíra, Jardim de Angicos, João Câmara,
Maxaranguape, Pedra Grande, Poço Branco, Pureza, Rio do Fogo, São Bento do Norte, São Miguel
do Gostoso, Parazinho, Pureza, Taipú e Touros. Dos municípios que compõem a região, cinco estão
situados na região litorânea norte do estado, sendo os demais interioranos. Além disso, três
municípios têm função de polos regionais na oferta de serviços e comércio, a saber: Ceará-Mirim,
João Câmara e Touros (NASCIMENTO et al, 2018).
O certame do Processo Seletivo para os Cursos Técnicos de Nível Médio na Forma
Integrada, ofertados pelo IFRN, é um relevante mecanismo avaliativo da competência textual de
escrita de alunos oriundos da educação básica. Pois abrange a escolarização do ensino fundamental,
em conformidade com as diretrizes do Edital, tendo como uma das etapas a Produção Textual Escrita,
enquanto questão discursiva, visando avaliar o candidato quanto ao domínio de conteúdo e habilidade
de produção escrita.
Nessa direção, diversos trabalhos discutem a temática da avaliação da prática de escrita
de alunos da Educação Básica no contexto educacional, sendo vista como questão relevante no Ensino
de Língua Portuguesa. Nessa direção, neste trabalho, apresentamos considerações sobre a proposta
teórico-metodológica e um recorte inicial dos estudos que se encontram sendo desenvolvidos no
âmbito do projeto de pesquisa intitulado Escrita na educação básica: análise dos aspectos textuais e
enunciativos do gênero artigo de opinião produzido pelos participantes do processo seletivo dos
cursos técnicos do integrado do IFRN, em particular do Campus João Câmara, bem como tecemos
reflexões sobre o perfil dos candidatos, especificamente do ano 2019.
O trabalho é situado no quadro dos postulados da Análise Textual dos Discursos (ADAM,
2011), em diálogo com os aspectos textuais e linguístico-enunciativos da argumentação. Nessa
perspectiva, o corpus é constituído por textos produzidos no Exame de Seleção (2019) para ingressar
no campus do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), assim como
os dados dos participantes sobre as questões sociais, econômicas, escolares e do rendimento no
exame.
Nessa direção, este estudo foca também na análise do plano de texto articulado aos
direcionamentos da banca examinadora e aos dispositivos enunciativos concernentes à orientação
argumentativa e a (não) assunção da responsabilidade enunciativa do referido gênero.
190
QUESTÕES METODOLÓGICAS
tivemos acesso apenas aos dados do último edital, em decorrência do contexto pandêmico. A coleta
foi realizada por meio de link no drive, em razão da pandemia que ocasionou a suspensão das
atividades presenciais.
No que concerne ao tratamento do corpus para análise, considerando os princípios da
ética na pesquisa e para garantir o anonimato dos participantes, registramos um termo de sigilo no
âmbito sistêmico, bem como digitamos os textos a serem analisados, como também salientamos que
excluímos qualquer identificação dos candidatos, conforme ilustramos, a seguir:
No que se refere à proposta de produção textual do edital selecionado para este trabalho,
apresentamos, a seguir:
como a ação verbal pela qual se leva uma pessoa e/ou todo um auditório a aceitar uma
determinada tese, valendo-se, para tanto, de recursos que demonstrem a consistência dessa
193
tese. Esses recursos são as verdades aceitas por uma determinada comunidade, assim como
os valores e os procedimentos por ela considerados corretos ou válidos. Dessa forma,
argumentação é um termo que se refere tanto a esse ato de convencimento quanto ao conjunto
de recursos utilizados para realizá-lo. Por isso mesmo, a argumentação sempre parte de um
objetivo a ser atingido (a adesão à tese apresentada) e lança mão de um conjunto de
estratégias próprias para isso, levando em conta aquilo que faz sentido para quem lê ou ouve.
Daí a importância de conhecer-se o leitor ou o ouvinte; afinal, o argumento que funciona
muito bem para um grupo de estudantes adolescentes não terá o mesmo efeito sobre uma
comunidade de senhoras católicas – e vice-versa (SEVERIANO, GAGLIARDI, AMARAL,
2019, p.43)
No que concerne aos direcionamentos que servem de base para a correção das produções
escritas no certame em estudo, ou seja, para a avaliação do gênero textual artigo de opinião,
delineamos os seguintes aspectos:
ESTRUTURA (20): será observado se o candidato produziu o gênero textual solicitado (artigo de opinião), no comando
da questão discursiva e se o texto apresenta: título/assinatura, ponto de vista (tese), argumentos e conclusão.
(Pontuação: 04, 08, 12, 16, 20).
ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICO-TEXTUAL (20): será avaliado se o texto está adequado à situação de comunicação
proposta, incluindo os aspectos relativos às convenções da norma escrita e de adequação vocabular. (Pontuação: 00,
05, 10, 15, 20)
TEXTUALIDADE (60): será observado se o texto apresenta coesão, coerência, progressão, informatividade e se
argumenta em favor do ponto de vista assumido. (Total: 60 pontos) Coesão (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20)
Coerência (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20) Construção da argumentação (Pontuação: 00, 05, 10, 15, 20)
Nessa direção dos aspectos estruturais, Adam (2011) assinala os planos e níveis de análise
textual e de discurso, de acordo com a reprodução seguinte:
Nessa visão, consoante Adam (2011, p. 258), o plano de texto é o principal fator
unificador da estrutura composicional e é fundamental para a organização estrutural interna do texto.
Os planos de texto convencionais são fixados “pelo estado histórico de um gênero ou subgênero de
discurso” (ADAM, 2011, p. 258) e correspondem às constantes composicionais de gêneros
discursivos.
195
Dessa forma, considerando o exposto, nota-se como fixo, convencional o plano de texto
do gênero artigo de opinião do processo seletivo.
Fonte: Elaborado pelos autores baseada nas orientações para correção da prova escrita
(PROEN/CADIS/IFRN, 2019).
De modo sucinto, refletimos sobre o plano de texto de estrutura fixa que se encontra
articulado aos direcionamentos dos critérios de correção da produção textual, equivalente a 20 pontos,
bem como haja vista os estudos de Adam (2011).
A seguir, tecemos considerações sobre a análise textual de exemplar do corpus, assim
como refletimos sobre a influência do Enem nas práticas de escrita do Ensino Fundamental, conforme
ilustramos no parágrafo do plano de texto em que se apresenta a conclusão do artigo, tendo como
formato a proposta de intervenção nos moldes do texto dissertativo-argumentativo do Enem, em
cumprimento às exigências da competência V, inclusive com repertório sociocultural de autor
(Immanuel Kent) muito comum em redações nota mil divulgadas pela imprensa.
Excerto textual 1
Portanto, a participação dos pais ou responsáveis em acompanhar seus filhos no mundo tecnológico é algo
imperativo, sem questionamentos, mesmo não tendo o conhecimento de tudo, procurem saber como estão os
filhos, e com auxílio das escolas devem criar palestras de ensinamentos sobre o tal, o governo deve fazer
campanhas publicitárias para a conscientização de todos e talvez assim os casos podem ser menores. “O homem
so é aquilo que a educação faz dele” dizia Immanuel Kent e devemos levar como exemplo para nossas vidas,
ser educado e respeitoso é um dever de todos.
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
apesar do campus se encontrar localizado na referida cidade, os candidatos na maioria eram de outros
municípios da região do Mato Grande.
Gráfico 2 - Percentual de candidatos com provas corrigidas-seleção para a correção da produção textual
nº de candidatos
31%
não selecionados
nº de candidatos
69% selecionados
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
44% Masculino
56% Feminino
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
No tocante ao sexo, os dados revelam que a maioria dos candidatos é do sexo feminino.
Apesar disso, percebe-se que não há uma grande diferença entre o percentual do sexo feminino (56%)
e o percentual do sexo masculino (44%), como constatamos a partir do gráfico 3. Os dados
evidenciam, portanto, que a maioria dos candidatos são do sexo feminino, tendo o percentual de 56%.
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
800
600
400
200
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
Constatamos, no que concerne à instituição de origem escolar dos participantes, que mais
de 700 candidatos estudaram somente em escolar pública. Observa-se que os estudos dos candidatos
que majoritariamente são oriundos de escola pública são de grande diferença quantitativa em
199
comparação aos que estudaram em escolas particulares (quase 200 candidatos) ou em ambas, sendo
mista (mais de 100 candidatos), de acordo com o que consta no gráfico 5.
Somente em
5% escola pública
33% Somente em
62% escola particular
Mista: pública e
particular
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
Somente em escola
15% pública
28%
Somente em escola
particular
Mista: pública e
57%
particular
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
Observa-se que apesar do percentual de aprovados que tiveram estudo somente em escola
pública ser o maior dentre os parâmetros analisados, como verificamos no gráfico 6, o mesmo não
acontece em relação à taxa de aprovação dos candidatos. Os dados revelam que a maior taxa de
aprovação refere-se aos candidatos que tiveram estudo somente em escola particular (57%) e para os
candidatos que tiveram estudo somente em escola pública e misto a taxa de aprovação foi
relativamente pequena – respectivamente 28% e 15%.
200
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados Cadis/PROEN (2019).
No que tange o estudo dos candidatos pretos, obtivemos os seguintes dados: 74% dos
candidatos pretos estudaram somente em escola pública, 9% somente em escola particular e 17%
tiveram estudo misto, como mostra o gráfico 8.
Em relação aos percentuais de aprovação dos candidatos, no tocante à questão de cor, os
dados coletados mostram que 77% dos candidatos aprovados se declaram pardo – dado este que se
reflete em grande parte ao fato de que mais de 700 candidatos se declararam pardo como foi
observado no gráfico 4. Além disso, percebe-se que as demais cores englobando questões raciais
possuem percentuais pequenos, como ilustra o gráfico 9. Tais dados se relacionam com a aprovação
por cota racial.
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados disponibilizados pela Cadis/PROEN (2019).
A partir dos dados obtidos, evidencia-se que a grande maioria dos candidatos pretos
possuem uma renda familiar bruta menor ou igual a R$800,00, com um percentual de 65%. Apenas
35% dos candidatos pretos possuem uma renda familiar bruta maior que R$800,00, consoante mostra
o gráfico 10.
0% Entre 0 e 300
11%
Entre 500 e 800
70%
Entre 800 e
1000
Fonte: Elaborados pelos autores com base nos dados disponibilizados pela Cadis/Proen/IFRN/2019.
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo:
Cortez, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília:
MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.
KOCH, Ingedore. Vanda; ELIAS, V. M. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto, 2016.
PASSEGGI, Luis. et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual
de sentido. In. BENTES, Anna Christina; LEITE, Marli Quadros (org.). Linguística de texto e
análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
SEVERIANO, Ana Paula; OLIVEIRA, Egon de; GAGLIARDI, Eliana; AMARAL, Heloísa. Ponto
de vista: caderno do professor: orientação para a produção de textos. São Paulo: Cenpec. Coleção 6ª
edição Olímpiadas, 2019 Disponível
em:https://www.escrevendoofuturo.org.br/arquivos/8148/caderno-artigo.pdf. Acesso em 10
jan.2020.
RESUMO
Os gêneros discursivos textuais consolidam práticas sociais nas diferentes situações de interação e, a
depender do propósito comunicativo, podem alcançar implicações para a coletividade. Diante disso,
estudos que discorrem sobre a linguagem jurídica e seus operadores do Direito estão se tornando cada
vez mais evidentes, motivados pela grande demanda de dados registrados em diferentes suportes e
manifestados em diversos gêneros, além das amplas possibilidades linguístico-investigativas desses
textos e das finalidades que o discurso jurídico desempenha na sociedade. Nessa direção, nosso
corpus é constituído por Projetos de Lei e suas respectivas normas, formulados de maneira escrita
por representantes do Poder Legislativo para inserção e posterior garantia de direitos no ordenamento
jurídico do país. Diante disso, é notória a importância desses documentos para uma sociedade que é
regida por um conjunto de direitos e deveres e que tem pouco acesso, ou talvez nenhum, a
conhecimentos inerentes ao universo jurídico. Assim, objetivamos investigar a enunciação e a
orientação argumentativa empregadas na estrutura composicional de Projetos de Lei e de suas normas
por meio do estudo dos níveis enunciativo e argumentativo que compõem a materialidade desses
textos concretos. Do ponto de vista teórico, esta pesquisa fundamenta-se nos pressupostos da
Linguística Textual (LT), da Análise Textual dos Discursos (ATD), da Linguística da Enunciação
(LE) e nos estudos da Argumentação. Do ponto de vista metodológico, seguimos a abordagem
qualitativa de natureza interpretativista e o método indutivo de análise, sendo um estudo documental
do tipo exploratório. Nossos resultados sugerem que as análises da responsabilidade enunciativa, da
coesão polifônica e da orientação argumentativa favorecem o desvelamento do conteúdo normativo
dos textos, contribuindo para tornar o Direito mais compreensível e utilizável socialmente.
Palavras-chave: Projetos de Lei. Normas. Análise Textual dos Discursos. Discurso jurídico.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, estudos desenvolvidos na interface Linguagem e Direito estão sendo
cada vez mais produzidos, motivados pela substancialidade de dados gerados na formação
sociodiscursiva jurídica, além de ampla possibilidade de investigação das estratégias linguístico-
discursivas nesses textos concretos. Nesse sentido, pesquisas vêm sendo desenvolvidas tendo por
unidade de análise o texto que circula socialmente, a exemplo da produção acadêmico-científica do
Grupo de Pesquisa em Análise Textual dos Discursos (ATD) da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) – ATD/UFRN.
71
E-mail: claudiacynara.souza@gmail.com
72
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
205
Nessa perspectiva, este estudo encontra-se centrado no universo do Direito e nas relações
entre a linguagem e o discurso jurídico, cujo corpus é constituído por Projetos de Lei e suas
respectivas normas. O Projeto consiste em um tipo de proposta normativa formulada de maneira
escrita por representantes do Poder Legislativo com vistas à propositura de leis, cuja aprovação
contribuirá para a inserção e posterior garantia de direitos no ordenamento jurídico do país, com
implicações sociais variadas a depender do tipo de norma (Emenda à Constituição, Lei Complementar
ou Lei Ordinária).
Diante disso, é notória a importância desses documentos para uma sociedade que é regida
por um conjunto de normas e que tem pouco acesso, ou talvez nenhum, a conhecimentos inerentes ao
universo jurídico. Por isso, investigações que focalizam o estudo dos níveis de linguagem para o
cotidiano contribuem para tornar o Direito compreensível e utilizável.
Nesse contexto, evoca-se Lourenço (2015) para fortalecer a justificativa da importância
de estudar o gênero jurídico:
[...] promover o estudo dos gêneros jurídicos escritos implica descrever e sistematizar
elementos caracterizadores desse tipo de texto/discurso, que por sua vez é detentor de
características próprias, obedece a exigências previstas na legislação e possui um caráter
prático. (LOURENÇO, 2015, p. 71).
Ainda, nessa direção, Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2014) apontam que o
desvelamento da linguagem jurídica, buscando compreender os eixos centrais das normas que a
mobiliza, é uma atividade investigativa valiosa, pois pode colaborar para que sejam compreendidos
direitos e deveres, porém, é inesgotável, uma vez que há muito a ser dito, a ser interpretado. À vista
disso, concordamos com os autores e é, por isso, que empreendemos a analisar e interpretar a
linguagem jurídica na perspectiva do texto e do discurso, considerando a enunciação e a
argumentação como dimensões de análise.
Assim, objetivamos investigar a enunciação e a orientação argumentativa empregadas na
estrutura composicional de Projetos de Lei e de suas respectivas normas, por meio do estudo dos
níveis enunciativo e argumentativo que compõem a materialidade textual dos gêneros examinados, a
partir da identificação das sequências e dos planos de texto, da expressão da responsabilidade
enunciativa e da coesão polifônica e a maneira como estratégias linguísticas contribuem para a
orientação argumentativa dos textos.
ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
206
Do ponto de vista teórico, este estudo fundamenta-se nos pressupostos da Análise Textual
dos Discursos, com Adam (2011); da Linguística da Enunciação, com Flores (2008), Fiorin (2016),
Rabatel (2016), Guentchéva (1996); nos estudos da argumentação e nos trabalhos que versam sobre
a argumentação e a formação sociodiscursiva jurídica, com Pinto (2010, 2016), Cabral (2014, 2017),
Lourenço (2008, 2013), Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, 2014, 2016), Rodrigues e Passeggi
(2016), Rodrigues (2017), Gomes (2014), Medeiros (2016), Fernandes (2016), entre outras pesquisas.
Definida como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido que deve,
necessariamente, ser fundamentada na análise de textos concretos” (ADAM, 2011, p. 13), a ATD
propõe “articular uma linguística textual desvencilhada da gramática de texto e uma análise de
discurso emancipada da análise de discurso francesa (ADF)” (ADAM, 2011, p. 43).
A ATD adota a perspectiva teórico-metodológica que, “com o objetivo de pensar o texto
e o discurso em novas categorias, situa decididamente a Linguística Textual no quadro mais amplo
da análise do discurso” (ADAM, 2011, p. 24), apresenta, de modo particular, categorias concretas
para descrição e análise de fenômenos linguísticos ao desenhar níveis ou planos de análise
representados no clássico esquema que segue ilustrado:
O esquema teórico proposto por Adam defende que a ação de linguagem (visada,
objetivo) acontece na interação social (N1), manifestada em uma dada formação sociodiscursiva (N2)
que, por sua vez, produz interdiscursos (N3), materializados por meio de língua(s), intertextos e
207
sistemas de gêneros realizados nas atividades comunicativas. Para o autor, esses níveis de análise
estão no plano do discurso.
Já no plano do texto, Adam postula que os gêneros são passíveis de análise em cinco
níveis distintos, que se imbricam e se complementam para o estabelecimento de sentidos. Dessa
forma, o texto é analisável no plano da textura (proposições enunciadas e períodos), N4; no plano da
estrutura composicional (sequências e planos de texto), N5; no plano da semântica (representação
discursiva), N6; no plano de enunciação (responsabilidade enunciativa e coesão polifônica), N7; e no
plano dos atos do discurso e orientação argumentativa, N8 de análise.
Por esse ângulo, os estudos que envolvem a ATD consideram a língua em sua forma e
uso nas dimensões semântica, enunciativa, argumentativa e pragmática, sendo o enunciado o
resultado da enunciação e essas “áreas abrigadas sob a enunciação partem do pressuposto de que a
linguagem, ou, melhor dizendo, a produção de sentidos pela linguagem, deve ser investigada
nos/pelos usos efetivos que os sujeitos fazem dela” (CAVALCANTE, 2010, p. 57).
Para Fiorin (2016, p. 26), “o primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do
enunciado” que sofre reformulações pelas teorias enunciativas ao incorporar aspectos da
subjetividade, da polifonia, do dialogismo e da heterogeneidade ao seu conceito. Segundo Flores
(2008), estudos desenvolvidos na perspectiva da Linguística Textual recorrem a mecanismos
enunciativos com vistas a discutir questões referentes à problemática do texto, uma vez que o
considera imerso em questões pragmáticas e discursivas. Nessa direção, Adam (2011) considera o
nível da enunciação como uma das dimensões teórico-analíticas no seu projeto linguístico e propõe
o estudo da responsabilidade enunciativa e da coesão polifônica a partir da identificação de marcas
linguísticas materializadas nos enunciados.
Conforme Adam (2011, p. 117), “o grau de responsabilidade enunciativa de uma
proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da língua”, a saber: os
índices de pessoas, os dêiticos espaciais e temporais, os tempos verbais, as modalidades, os diferentes
tipos de representação da fala, as indicações de quadros mediadores, os fenômenos de modalização
autonímica e as indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados.
De acordo com Rodrigues (2017, p. 299-230),
Segundo Rabatel (2016), a responsabilidade enunciativa pode ser identificada pelo estudo
do Ponto de Vista (PDV) nos atos de enunciação. Para o autor,
Ancorado nos postulados teóricos da Análise Textual dos Discursos, o estudo da estrutura
composicional dos Projetos de Lei possibilitou a identificação de um plano de texto delimitado por
seções recorrentes, conforme segue organizado em um quadro ilustrativo geral:
Com base no exposto, nossas análises indicaram uma materialidade linguística que não
varia quanto aos aspectos de forma. Nesse sentido, a estrutura composicional dos Projetos de Lei
investigados apresenta regularidade na disposição dos planos de texto, sendo, portanto, considerados
convencionais ou fixos, conforme Adam (2011). Esse plano de texto fixo é marcado “pelo estado
histórico de um gênero ou subgênero de discurso” (ADAM, 2011, p. 258) e sua organização é
condicionada pelas determinações da Resolução N° 17 de 1989 da Câmara dos Deputados que
preconiza:
Art. 111. Os projetos deverão ser divididos em artigos numerados, redigidos de forma concisa
e clara, precedidos, sempre, da respectiva ementa.
§ 1º O projeto será apresentado em três vias:
I - uma, subscrita pelo Autor e demais signatários, se houver, destinada ao Arquivo da
Câmara;
II - uma, autenticada, em cada página, pelo Autor ou Autores, com as assinaturas, por cópia,
de todos os que o subscreveram, remetida à Comissão ou Comissões a que tenha sido
distribuído;
III - uma, nas mesmas condições da anterior, destinada a publicação no Diário da Câmara
dos Deputados e em avulsos.
§ 2º Cada projeto deverá conter, simplesmente, a enunciação da vontade legislativa, de
conformidade com o § 3º do art. 100, aplicando-se, caso contrário, o disposto no art. 137, §
1º, ou no art. 57, III.
§ 3º Nenhum artigo de projeto poderá conter duas ou mais matérias diversas. (BRASIL,
1989).
- Artigos
- Parágrafos
- Incisos
- Alíneas
- Itens
Endereçamento Local, dia, mês e ano da aprovação da lei
Assinatura Assinaturas
Ratificações Retoma a validade do texto original publicado no Diário Oficial da União
Publicações Sugestões de acesso aos textos
Fonte: a autora.
Denomina “Luís Fausto de Medeiros” o Porto-Ilha de Areia Branca, situado no município do mesmo nome,
Estado do Rio Grande do Norte.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte
Lei:
Art. 1° Fica denominado Porto-Ilha 'Luís Fausto de Medeiros' o atual Porto-Ilha de Areia Branca, situado no
município do mesmo nome, no Estado do Rio Grande do Norte.
Art. 2° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo:
Cortez, 2011.
ADAM, Jean-Michel. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. São
Paulo: Contexto, 2019.
BRASIL. RESOLUÇÃO Nº 17, DE 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
120f.
BRASIL. Manual de Redação da Presidência da República. 3. ed., rev., atual. e ampl. – Brasília:
Presidência da República, 2018. 189f.
CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. Linguística Textual e Teoria da Argumentação na Língua: texto e
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CABRAL, Ana Lúcia Tinoco; GUARANHA, Manoel Francisco. O conceito de justiça: argumentação
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LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. A argumentação na petição inicial. 2008. 103 f.
Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada; Literatura Comparada) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2008.
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Comparada) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. Análise textual dos discursos: responsabilidade
enunciativa no texto jurídico. Curitiba: CRV, 2015.
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Prática política, jurídica, jornalística. Lisboa:
Quid Juris Sociedade Editora, 2010.
MEDEIROS, Célia Maria de. Responsabilidade enunciativa no gênero jurídico contestação. 2016.
180f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa.
São Paulo: Cortez, 2016.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes
da.“Voltarei. O povo me absolverá...”: a construção de um discurso polêmico de renúncia. In:
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes da (Org.).
Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010. p. 150-195.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes da. Planos
de texto e representações discursivas: a seção de abertura em processo-crime. In: BASTOS, N. B.
Língua portuguesa e lusofonia. São Paulo: EDUC, 2014. p. 240-255.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João Gomes. “SAIO DA
VIDA PARA ENTRAR NA HISTÓRIA” – pontos de vista, responsabilidade enunciativa coletiva e
polêmica pública na Carta-Testamento de Getúlio Vargas. Conexão Letras, v. 11, n. 15, 2016, p.
100-113.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis. “Tentam colocar medo no povo”: vozes,
emoções e representações num texto jornalístico. In: BASTOS, Neusa Barbosa (Org.). Língua
portuguesa e lusofonia: história, cultura e sociedade. São Paulo: EDUC, 2016. p. 259-272.
216
RESUMO
Este trabalho está situado no eixo teórico da Análise Textual dos Discursos (ATD), tendo como base
os postulados de J-M. Adam (2011), considerando o texto em sua relação necessária com o co(n)texto
e discurso e, consequentemente, compreendendo-o a partir de sua materialização num gênero
discursivo. Numa abordagem também em consonância com Adam, são utilizados os conceitos e
pressupostos de Alain de Rabatel (2013, 2016), como Ponto de Vista (PDV), Empatia e Emoção. O
gênero escolhido para análise é a decisão de pronúncia anulada por excesso de linguagem, bem como
sua versão refeita, sendo utilizadas decisões de domínio público. A referida peça jurídica é produzida
por um juiz, na primeira fase do Tribunal do Júri (competente para julgar crimes dolosos contra a
vida e conexos), em que são analisados os indícios de materialidade e indícios suficientes de autoria
(art. 413, §1º, Código de Processo Penal); sendo o réu pronunciado, ele será julgado pelo Tribunal do
Júri (jurados). A importância de se estudar mais este gênero jurídico em relação à Responsabilidade
Enunciativa (RE) se dá por ser, primeiramente, uma decisão cujos limites são impostos para evitar
que os jurados, na segunda fase do Tribunal do Júri, venham a ter seu convencimento já formado por
esta decisão, impossibilitando uma defesa efetiva do réu e, segundo, porque a análise prévia do corpus
indica que anulação dessas decisões por “excesso de linguagem” está ligada a questões relacionadas
às categorias relacionadas a RE do Locutor Enunciador Primeiro (L1/E1), juiz, em relação ao seu
dizer. Em razão dessa ligação, privilegia-se o nível de análise em que é possível perceber e estudar a
RE no gênero discursivo jurídico decisão de pronúncia. Depois de identificado e detalhado o plano
de texto do gênero, tendo como base as categorias de análise indicadas por Adam (2011), são
identificadas, descritas, analisadas e interpretadas as marcas linguísticas que caracterizam o “excesso
de linguagem”, bem como marcas que evidenciam o Ponto de Vista (PDV) e a Responsabilidade
Enunciativa (RE) nas decisões de pronúncia anuladas e, em seguida, nas decisões refeitas.
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objeto observacional decisões de pronúncia anuladas por
“excesso de linguagem”, bem como suas respectivas decisões refeitas. Essas decisões tem uma
estrutura que impõem ao magistrado um posicionamento reticente quanto à sua convicção, ancorando
seu ponto de vista, especialmente, a questões objetivas constantes nos autos (laudo necroscópico,
73
E-mail: ryanny.guimaraes@gmail.com
74
E-mail: gracasrodrigues@gmail.com
218
laudo pericial) e à visão de terceiros, fazendo uso de discursos alheios (testemunhas, réu) para se
manter distante. Por tais características, não raro essas decisões são objeto de recurso e findam
anuladas por tribunais superiores, especialmente por algo que a jurisprudência75 chama de “excesso
de linguagem”.
A importância de estudarmos mais este gênero jurídico em relação à Responsabilidade
Enunciativa (RE) se dá por ser, primeiramente, uma decisão cujos limites são impostos para evitar
que os jurados, na segunda fase do Tribunal do Júri, venham a ter seu convencimento já formado por
esta decisão, impossibilitando uma defesa efetiva do réu e, segundo, porque a análise prévia do corpus
indica que anulação dessas decisões por “excesso de linguagem” está ligada a questões conjugadas
às categorias relacionadas a RE do Locutor Enunciador Primeiro (L1/E1), isto é, o juiz, em relação
ao seu dizer. Em razão dessa ligação, privilegiamos o nível de análise em que é possível perceber e
estudar a RE no gênero discursivo jurídico decisão de pronúncia.
Com o propósito de compreender linguisticamente o fenômeno jurídico denominado
“excesso de linguagem”, temos os objetivos de identificar, descrever, analisar e interpretar: (a) o
plano de texto e as características do gênero “decisão de pronúncia”; (b) marcas linguísticas que
caracterizam o “excesso de linguagem” no gênero; (c) marcas linguísticas que evidenciam o PDV e
a RE em decisões de pronúncia anuladas por “excesso de linguagem”; (d) marcas linguísticas que
evidenciam o PDV e a RE em decisões de pronúncia refeitas após a anulação e, por fim, (e) a relação
entre a RE e o “excesso de linguagem” nas decisões de pronúncia.
Para nosso intento, utilizamos os pressupostos teóricos de J-M. Adam (2011), no que diz
respeito à Responsabilidade Enunciativa (RE), bem como Rabatel (2013, 2016) para conceituar e
compreender Ponto de Vista (PDV) e Empatia e Micheli (2010) para melhor conceituar
linguisticamente Emoção.
É importante destacar que a pesquisa aqui explanada ainda está em andamento, sendo
parte da dissertação que estamos desenvolvendo durante o mestrado. Em razão disso, optamos por
explorar apenas duas decisões que compõem nosso corpus, referente a um mesmo processo judicial,
a fim de preservar a originalidade da investigação científica quando da sua publicação nos bancos de
dados das teses e dissertações da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
ASPECTOS TEÓRICOS
Nesta seção são discutidos alguns aspectos teóricos importantes para composição deste
trabalho, que se localiza no eixo teórico da Análise Textual dos Discursos (ATD). Com isso,
75
Jurisprudência é um conjunto das decisões de um tribunal ou tribunais. Representa a visão do tribunal, em determinado
momento, sobre as questões legais levadas a julgamento.
219
A Análise Textual dos Discursos (ATD) proposta por Jean-Michel Adam (2011) nasce a
partir da carência de uma teoria que ligue elementos da Linguística Textual (LT), bem como da
Análise dos Discursos, sendo um intermédio entre ambas, com categorias analíticas que possibilitem
sua interligação e que acompanhem as transformações da compreensão do sentido de texto76.
Notamos que as referidas teorias (LT e AD francesa) assumiram pontos de partida opostos e,
consequentemente, metodologias distintas. Percebendo isso, Adam (2011, p. 43) mostra-nos seu
objetivo:
É sobre novas bases que propomos, hoje, articular uma linguística textual desvencilhada da
gramática de texto e uma análise do discurso emancipada da análise de discurso francesa
(ADF).
A proposta da ATD concebida por Adam (2011, p. 43) define a “linguística textual como
subdomínio do campo mais vasto da análise das práticas discursivas”. O autor ainda reconhece, ao
explicar um de seus esquemas, qual o objeto da (a) LT e qual o objeto da (b) AD: no caso da primeira,
(a) o texto, em suas proposições, constituídas em uma unidade e, no caso da segunda, (b) as regulações
“que as situações de interação nos lugares sociais, nas línguas e nos gêneros dados impõem aos
enunciados” (ADAM, 2011, p. 44).
Assim, a ATD, esclarece-nos Lanzillo (2016, p. 41): “estuda as práticas discursivas por
meio de textos e somente pelos textos é possível estudar o(s) discurso(s)”. Nesse sentido, Karlheinz
Stierle (apud ADAM, 2011, p. 52) diz:
Uma vez que é a partir do texto que o leitor/analista compreende as condições de sua
enunciação, Adam (2011, p. 52) revela-nos nossas (de)limitações para empreender uma análise:
Não se pode esquecer que não temos acesso ao contexto como dado extralinguístico objetivo,
mas somente a (re)construções pelos sujeitos falantes e/ou por analistas (sociólogos,
historiadores, testemunhas, filólogos ou hermeneutas).
76
A definição de texto, atualmente, incorpora aspectos comunicacionais, interacionais, cognitivos.
220
Responsabilidade Enunciativa
Passeggi, Rodrigues, Silva Neto, Sousa & Soares (2010) sustentam, fundamentados nos
estudos de Adam (2011), que a responsabilidade enunciativa ocorre através da assunção da
responsabilidade pelo conteúdo dito ou pela atribuição desse conteúdo a outrem. Por meio de tal
conceptualização, percebe-se que na composição textual pode haver marcas que responsabilizam o
enunciador pelo dizer.
Segundo Adam (2011), a responsabilidade enunciativa é entendida como uma das
dimensões elementares da unidade textual mínima, a proposição-enunciado, chamada de “produto de
um ato de enunciação: ela é enunciada por um enunciador inseparável de um coenunciador” (ADAM,
2011, p. 108).
Para Adam (2011), a RE ou PdV pode ser firmado textualmente por diversas marcas que
caracterizam o grau de Responsabilidade Enunciativa de uma proposição. Tais marcas podem ser: (i)
os índices de pessoa; (ii) os dêiticos espaciais e temporais; (iii) os tempos verbais, (iv) as modalidades;
(v) os diferentes tipos de representação da fala; (vi) as indicações de quadros mediadores; (vii) os
fenômenos de modalização autonímica; (viii) as indicações de um suporte de percepções e de
pensamentos.
Vemos, então, que a RE diz respeito à dimensão enunciativa. Tal categoria (RE) permite
dar conta do “desdobramento polifônico” dos enunciados e torna possível identificar de que forma e
quem se responsabiliza pelos pontos de vista que são mobilizados no texto. Perceber a decisão de
pronúncia sob essa ótica, portanto, mostra-se pertinente em razão da ocorrência de “excesso de
linguagem”, notadamente com vias a entender sua relação com o grau de Responsabilidade
Enunciativa.
221
[...] analisar um ponto de vista é recuperar, de uma parte, os contornos de seu conteúdo
proposicional e, de outra, sua fonte enunciativa, inclusive quando esta é implícita, a partir de
atribuição dos referentes e dos agenciamentos das frases em um texto. (RABATEL, 2016,
p.71, grifo nosso)
O sujeito, responsável pela referenciação do objeto, mostra seu PDV, tanto diretamente,
utilizando comentários explícitos, como indiretamente, pela referenciação, isto é, pelas escolhas,
combinações e atualização do material linguístico. (RABATEL, 2016, p. 30). Rabatel (2016, p. 29)
ainda combina o conceito de PDV com o de empatia, dizendo-nos que antes de ser um conceito
linguístico, ele é uma postura psico-cognitiva que movimenta o sujeito a se colocar no lugar do outro
e até de todos os outros.
Já a empatia, sob o prisma linguístico, significa colocar-se no lugar de outrem, de modo
que um locutor empresta sua voz a outro para projetar um acontecimento do ponto de vista do outro,
baseando-se “na distinção entre locutor (na origem material de um ato de dicção ou de escrita) e o
enunciador na origem das posições enunciativas que transmitem os discursos” (RABATEL, 2013, p.
160).
O autor também definiu algumas instâncias para esse conceito. Ele nomeia como
empatizador ou instância empatizante, o locutor/enunciador primeiro, aquele que vai se colocar no
lugar do outro e empatizado, o sujeito que vai se beneficiar do tratamento empático do empatizador.
Para o linguista, um centro de empatia corresponde ao enunciador segundo o qual vai sofrer as
influências do movimento empático.
Para nossa análise, também utilizamos o conceito de enunciado de emoção, de Plantin
(2011, p. 145):
O enunciado de emoção traz uma resposta à questão elementar “quem sente o que sente o
que e por quê?”atribui uma emoção a uma pessoa e, em certos casos, menciona a fonte da
emoção. Esse modelo é linguisticamente fundamental na medida em que a relação de emoção
(fonte - lugar – emoção) corresponde à estrutura semântica de uma família de enunciados
elementares. [...] O enunciado de emoção é definido como uma forma ligando um termo de
emoção (verbo ou substantivo), um lugar psicológico (chamado, por vezes, experienciador)
e uma fonte da emoção. (grifo nosso)
222
Renato Brasileiro nos ensina que o Tribunal do Júri é um órgão que pertence ao Poder
Judiciário, cuja formação heterogênea é composta por: (i) um juiz togado, que presidirá a sessão, e
(ii) juízes leigos, que comporão o Conselho de Sentença:
art. 74 A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização
judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.
§ 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º,
122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.
(BRASIL, 1941. DECRETO-LEI N. 3.689)
METODOLOGIA E ANÁLISE
Nesta seção, trataremos dos métodos de análise e analisaremos parte do corpus coletado
para presente pesquisa77. Assim, vamos observar os excertos que foram considerados, pelos
respectivos tribunais de cada um dos estados, como exemplos de “excesso de linguagem” nas
decisões.
Metodologia
Neste trabalho, adotamos uma abordagem qualitativa, uma vez que nos concentramos na
análise e compreensão do corpus com a finalidade de demarcar linguisticamente os elementos
constituintes do “excesso de linguagem”, a partir de categorias analíticas exemplificadas 78 por Adam
(2011) no estudo da Responsabilidade Enunciativa, bem como do Ponto de Vista, de Rabatel (2016,
2013), possibilitando a construção do sentido do texto.
Nossa escolha pela abordagem qualitativa, implica-nos a utilização de um método, em
particular: o indutivo, pois, a partir da observação de fatos particulares, podemos apreender
formulações subjacentes, adequando-se ao nosso trabalho em razão da relação dinâmica e
interconectada entre o mundo e o sujeito (PRODANOV; FREITAS, p. 2013, p. 70).
77
Processo n. 079/2.16.0000610-5 (TJRS), publicação da primeira Pronúncia: 8 de janeiro de 2018; publicação da
segunda Pronúncia: 25 de outubro de 2018.
78
No sentido de não ser um rol exaustivo em termos analíticos para o fenômeno da Responsabilidade Enunciativa (RE).
224
Critérios Motivação
79
“research is a systematic process of inquiry consisting of three elements or components: (1) a question, problem, or
hypothesis, (2) data, (3) analysis and interpretation of data”.
225
De acordo com Sueli Marquesi (2017, p.14): “O plano de texto reflete a maneira como
as informações estão organizadas no texto, indicando também a organização das sequências textuais,
sempre de acordo com as intenções de quem escreve”. Assim, identificar a estrutura do texto nos
auxilia na compreensão do texto.
Abaixo colocamos um plano de texto genérico que nos ajuda a compreender a decisão
de pronúncia e que, no que diz respeito ao conteúdo, podemos observá-lo em todas as decisões
analisadas:
Quadro 2
Análise
Como já dissemos, recortamos para este trabalho apenas um dos autos que compõem
nosso corpus. As decisões foram proferidas por um juiz de direito vinculado ao Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul (TJRS)80 e o contexto do caso é de uma suposta tentativa de homicídio ocorrida
após uma tentativa de assalto, enquanto policiais, em sua viatura, perseguiam os réus que também
estavam em um veículo.
Abaixo, separamos seis excertos dispostos de maneira que a coluna do lado esquerdo
corresponde à decisão anulada por excesso de linguagem, e a coluna do lado direito à decisão refeita
após a anulação.
Quadro 3
80
Processo n. 079/2.16.0000610-5 (TJRS), publicação da primeira Pronúncia: 8 de janeiro de 2018; publicação da
segunda Pronúncia: 25 de outubro de 2018.
227
Quadro 4
No excerto 3, mais uma vez o magistrado (L1/E1) faz uma concessão por meio da
expressão conjuntiva “mesmo que”, indicando uma modalização epistêmica de incerteza. Ao fazer
isso, L1/E1 dá menos relevância à informação “absolutamente impossível dizer que os disparos foram
realizados por este ou por aquele réu”. Assim, o período seguinte: “a combinação de vontades e a
conjugação dos seus esforços levam a crer que todos assumiram, com igual intensidade” ganha
mais destaque, fortalecendo a vontade e responsabilidade dos réus, vez que L1/E1 usa o verbo de
opinião “assumiram”, no pretérito perfeito, bem como o grupo preposicional “com igual intensidade”
em contraposição à informação de que não é possível saber quem efetuou os disparos.
Vemos, então, que “todos assumiram, com igual intensidade” é para onde se desloca a
atenção do interlocutor, em vez da incerteza quanto aos disparos. Nesse excerto, as marcas de RE não
se dão de maneira direta, isto é, pela presença do “Eu digo”, podendo ser inferidas pelos verbos de
opinião, modalizações, grupo preposicional, os quais indicam o PDV do juiz no sentido de acreditar
no propósito dos réus do cometimento dos crimes em análise.
No trecho refeito (Excerto 4), notamos que o L1/E1 prefere dizer que há
“verossimilhança” quanto ao fato em comento: os disparos. Desse modo, dá menos indícios de sua
orientação argumentativa quanto à consciência dos réus pelos seus atos.
Quadro 5
229
Não é possível afirmar quem efetuou estes disparos. Não é possível afirmar quem efetuou estes
Mas, fato incontestável é que todos estavam disparos. Mas, não pode ser afastado de
perfeitamente ajustados nesta empreitada, com plano um ajuste nesta empreitada, com
missões bem claras e definidas, sobretudo de quem missões bem claras e definidas, cabendo ao
dirigia o Vectra e que deveria dar a necessária órgão acusador expor ao Conselho de
segurança de fuga, cabendo aos outros, na Sentença as ações individuais e/ou em grupo
contribuição desta segurança de fuga, desferir tiros e as respectivas consequências para o fato
que parassem a autoridade policial, a qualquer global.
preço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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2020.
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sequências textuais e orientação argumentativa. SC Marquesi, AL Pauliukonis & VM orgs, p. 13-
32, 2017.
231
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PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do trabalho científico:
métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico-2ª Edição. Editora Feevale, 2013.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis
Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.
RANGEL, P. Tribunal do júri - visão linguística, histórica, social e jurídica. 6 ed. rev, atual e ampl.
São Paulo: Atlas, 2018. (E-book)
232
RESUMO
O propósito deste trabalho é analisar o valor da argumentação presente na sustentação oral do
advogado de defesa em um crime de homicídio no estado do Rio Grande do Norte e sua relação com
o convencimento dos jurados do Tribunal do Júri. A fim de alcançar esse propósito, este estudo
objetiva identificar, descrever, analisar e interpretar a argumentação na sustentação oral do advogado
criminal no que concerne à assunção da Responsabilidade Enunciativa, ao Ponto de Vista, à Emoção
e à Empatia, a partir da função argumentativa. Dessa maneira, esta pesquisa qualitativa de cunho
interpretativista segue o método indutivo e se fundamenta, teoricamente, nos postulados da Análise
Textual dos Discursos (ATD), com Adam (2011), Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2016) e
Rodrigues (2017), em diálogo com teorias linguísticas enunciativas, como Rabatel (2016a, 2016b e
2013) e Guentchéva (2011). Esta pesquisa segue alguns critérios bem delimitados para a escolha do
corpus, são eles: ser de caso de crime de homicídio; o réu ter sido absolvido; a sustentação oral está
disponível no Youtube e ter acesso ao documento de sentença penal absolutória do caso. Com o
propósito de padronizar a transcrição do corpus, que é um texto oral, a sustentação foi transcrita e
passada para as normas do Projeto da Norma Urbana Oral Culta (NURC). Devido ao corpus
apresentar ocorrências que não estavam marcadas nas normas de transcrição do projeto, foram
acrescentados alguns sinais além dos previstos no NURC. A análise dos dados aponta para os
seguintes resultados prévios: o locutor enunciador primeiro ora assume a responsabilidade pelo
enunciado, ora não; a assunção da responsabilidade enunciativa ocorre, principalmente, nos
cumprimentos iniciais do exórdio, enquanto a não assunção tem mais ocorrência na argumentação da
confirmação, quando o advogado precisa evocar outras vozes para fortalecer o seu argumento; a
construção do PDV de cada locutor enunciador primeiro, organizada por meio de esquemas da
sequência textual argumentativa, revela argumentos que certamente influenciaram diretamente na
decisão final dos jurados.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um recorte de nossa dissertação de mestrado, vinculada ao
Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Portanto, segue a mesma temática, aporte teórico, e metodologia do
trabalho completo.
81
UFRN/ Mestranda/ karlastephany7@gmail.com
82
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
233
Dessa maneira, após o dito acima, o artigo analisa o valor da argumentação presente na
Sustentação oral do advogado de defesa em um crime de homicídio e a sua relação com o
convencimento dos jurados do Tribunal do Júri. Para isso, procuramos observar na argumentação do
advogado marcas de responsabilidade enunciativa, pontos de vista, empatia e um discurso emocional.
A Sustentação oral analisada ocorreu no estado do Rio Grande do Norte (RN), tendo a
sua defesa sido realizada em 2019. Essa defesa foi colhida do site do Youtube e liberada pelo
advogado para fins acadêmicos. Por se tratar de um texto oral, toda a Sustentação foi transcrita e
normatizada para as normas do Projeto da Norma Urbana Oral Culta (NURC).
Este trabalho está situado nos postulados de Jean-Michel Adam (2011), considerando o
texto em sua relação necessária com o co(n)texto e discurso. Numa abordagem também em
consonância com Adam, são utilizados os conceitos e pressupostos de Alain Rabatel (2013, 2016a,
2016b), como ponto de vista (PDV), empatia e emoção, sendo o último também analisado sob o viés
dos estudos Aristotélicos (2000) e Plantinianos (2011).
Para analisar o gênero “Sustentação oral”, esta pesquisa volta-se à resposta das seguintes
questões: (1) Como se apresenta o plano de texto e a sequência argumentativa no gênero jurídico
“Sustentação oral”, com foco na estrutura composicional? (2) Como a assunção da responsabilidade
enunciativa auxilia na argumentação do advogado de defesa no tribunal do júri? (3) Quais marcas
linguísticas presentes no gênero em questão induzem a um quadro de assunção da responsabilidade
enunciativa? (4) Como o ponto de vista (PDV) pode auxiliar na construção da orientação
argumentativa do advogado? (5) Como o discurso emotivo e a Empatia orientam a argumentação do
advogado? Para responder a esses questionamentos, neste estudo objetiva-se identificar, descrever,
analisar, interpretar a sustentação oral do advogado de defesa de um crime de homicídio no RN, no
que se refere ao ponto de vista (PDV), emoção, empatia e responsabilidade enunciativa (RE).
ASPECTOS TEÓRICOS
Nesta seção, discutimos alguns aspectos teóricos importantes para composição deste
trabalho, são eles: alguns pressupostos da ATD, como a responsabilidade enunciativa, a sequência
argumentativa e o plano de texto; categoria da teoria enunciativa, como o ponto de vista; e, por fim,
alguns conceitos sobre emoção e empatia.
Conforme dito por Adam (2011), a RE de uma proposição possui um grau, que pode ser
marcado por um grande número de unidades da língua. A fim de demonstrá-las, o autor enumera as
grandes categorias, a partir dos estudos de Benveniste (1974), são elas: índices de pessoas, dêiticos
espaciais e temporais, tempos verbais, modalidades, diferentes tipos de representação de fala,
indicação de quadros mediadores, fenômenos de modalização autonímica e indicações de um suporte
de percepções e de pensamentos relatados.
Além da RE, Adam (2011, 2019) também desenvolve estudos sobre as sequências
textuais, que para ele seria:
Voltando o foco na sequência argumentativa, vemos em Adam (2011, p. 233) que esta se
concretiza por meio de dois movimentos: a demonstração e/ou justificativa de uma tese e a refutação
de outras teses ou argumentos. Nessa perspectiva, o autor revela que em ambos os casos partem de
premissas (dados) para chegar em uma conclusão (asserção). Ele explica que, entre essa passagem
das premissas para a conclusão se tem os “procedimentos argumentativos” que “assumem a forma de
encadeamentos de argumentos-provas, correspondendo ora aos suportes de lei de passagem, ora a
microcadeias de argumentos ou a movimentos argumentativos encaixados.” (ADAM, 2011, p. 233)
Para demonstrar isso, o autor apresenta um esquema para argumentação prototípico, com
lugar para contra-argumentação no nível P.arg.4, conforme vemos na Figura 1, a seguir.
235
Dessa maneira, com base na estrutura prototípica ampliada de Adam (2011), cada
proposição argumentativa (P. arg) compreenderá a estrutura do texto como um todo, como descrito a
seguir:
P.arg0 – a tese anterior a ser refutada ou confirmada;
P.arg1 – os dados, os fatos do mundo;
P.arg2 – as justificativas que sustentam um posicionamento;
P.arg3 – a conclusão ou posicionamento assumido pelo produtor do texto;
P.arg4 – contra-argumento a uma possível voz contrária.
Por fim, das categorias usadas da ATD neste trabalho, ainda utilizamos o plano de texto.
De acordo com Cabral (2013), o plano de texto está relacionado com a estrutura composicional, um
dos elementos que permitem a identificação de um gênero textual. Para ela, essa estrutura “se trata
de um esquema pré-estabelecido que orienta tanto a elaboração como a leitura de um texto,
correspondendo à sua organização global prescrita pelo gênero ao qual pertence''. (CABRAL, 2013,
p. 244)
Adam (2011) destaca os planos de textos como “o principal fator unificador da estrutura
composicional”, principalmente, quando “os agrupamentos de proposições não correspondem sempre
a sequências completas''. (ADAM, 2011, p.258).
Ponto de vista
O ponto de vista tem a sua definição ligada às marcas linguísticas que um sujeito faz ao
considerar um certo objeto. Sobre isso, Rabatel (2016a) relata que o PDV se define:
236
pelos meios linguísticos pelos quais um sujeito considera um objeto, em todos os sentidos do
termo considerar, quer o sujeito seja singular ou coletivo. Quanto ao objeto, ele pode
corresponder a um objeto concreto, certamente, mas também a um personagem, uma
situação, uma noção ou um acontecimento, porque, em todos os casos, trata-se de objetos de
discurso. O sujeito responsável pela referenciação do objeto, exprime seu PDV, tanto
diretamente, por comentários explícitos, como indiretamente, pela referenciação, isto é, pelas
escolhas de seleção, de combinação, de atualização do material linguístico. (RABATEL,
2016a, p. 30).
Nos seus estudos, Rabatel divide o ponto de vista em três tipos: o representado, o narrado
e o assertado.
• Representado: é possível notá-lo a partir de um “sujeito perceptivo” em seu
processo de percepção do objeto identificado, ou seja, um agente focalizador
projetando sua percepção ao focalizado (RABATEL, 2016a, p. 122).
• Narrado: é possível notá-lo na ocultação das “falas pessoais, mascarando-as por
trás de uma narração tão objetiva quanto possível” (RABATEL, 2016a, p. 165).
• Assertado: é possível notá-lo na tentativa de “pôr em ação mecanismos para
definir os limites da interpretação ou para dar aos julgamentos pessoais um traço
“objetivo”, “científico” etc. (RABATEL, 2016a, p. 166).
Empatia e emoção
O enunciado de emoção traz uma resposta à questão elementar “quem sente o que e por
quê?”: atribui uma emoção a uma pessoa e, em certos casos, menciona a fonte da emoção.
Esse modelo é linguisticamente fundamental na medida em que a relação de emoção (fonte-
lugar-emoção) corresponde à estrutura semântica de uma família de enunciados elementares.
237
[...] O enunciado de emoção é definido como uma fonte ligando um termo de emoção (verbo
ou substantivo), um lugar psicológico (chamado, por vezes, experienciador) e uma fonte da
emoção. (PLANTIN, 2011 p. 145)83
METODOLOGIA
83
“L’énoncé d’émotion apporte une réponse à la question élémentaire “qui éprouve quoi, et pourquoi?”: il attribue une
émotion à une personne, et, dans certains cas, mentionne la source de l’émotion. Ce modèle est linguistiquement
fondamental, dans la mesure où la relation d’émotion (source – lieu – émotion) correspond à la structure sémantique
d’une famille d’énoncés élémentaires. Dans ce qui suit, l’énoncé d’émotion est défini comme une forme liant une terme
d’émotion (verbe ou substantif) un lieu psychologique (dit parfois expérienceur), et une source de l’émotion.” (PLANTIN,
2000, p. 145).
238
durante a noite do dia 23 de maio de 2013, quando a vítima, descrita como membro de um grupo de
criminoso denominado “Turma do Gueto” foi à casa do acusado e o ameaçou de morte, a fim de se
defender o réu atirou com uma “soca soca” na vítima e saiu correndo, descobrindo que havia o matado
somente no outro dia.
ANÁLISE
Plano de texto
Todo o plano de texto da sustentação analisada neste artigo será demonstrado no quadro
abaixo:
Quadro 1 - plano de texto da sustentação oral do advogado do RN
84
Todos os exemplos do corpus, seja no plano de texto ou nos excertos, estão na letra Courier New, a fim de melhorar a
visualização dos sinais da transcrição.
239
o desejo do ministério
público... e a NObre
representante e que no
qual é uma mulher
extremamente... ca↗paz... e nos
traz aqui uma explanação...
coerente... e nós...
respeiTAmos e reconhecemos... o
brilhante trabalho do
ministério público... porque é
o fiscal da ↗lei... e aí ela
faz um pedido aos juízes aqui
Tem-se a função de hoje... “nós queremos a
Confirmação
contrariar, “destruir” os condenação dele... pelo artigo
(refutação) cento e vinte e um do código
argumentos da acusação.
penal com a qualificadora…” MAS
ESSAS CONDIÇÕES... em que...
doutor Lúcio... nós conhecemos
esses fatos aqui ↗hoje... SE
NÓS TIVÉSSEMOS que deslumbrar a
possibilidade algum delito...
não poderia passar de uma
↗lesão corporal... por
resultado morte... e o que
significa essa atitude↗ EU NÃO
TENHO O:: DOLO [...]
• Exórdio
Excerto 1
• Narração
Excerto 2
17
EnTÃO↗... naquele↗ momento que a ah::/o acusado aqui↗ que na
18
verdade↗ hoje aqui nós podeRÍamos estaR:: com as pessoas
19
invertidas POSSIVELMENTE↗ hoje Nós poderíamos aqui estar↘ para
20
JULgar:: os senhores juízes↘ julgar a VÍtima↗ neguinho↗ poderia
21
tá ali sentado↗ e nós estaríamos aqui falando↗... que a vítima
22
seria o ACUSAdo↘ ... Ele volta pra fechar a porta da sua casa↘
23
a vítima chega e diz: tá prepaRAdo↗ ele corre com medo para
24
dentro de casa↘ pega a sua espingarda ... de dentro de casa faz
25
um disparo↗ ele disse aqui... na presença dos senhores... que...
26
não estava com a intenção de matar↗ E SEQUER de atingir a vítima↘
27 Ele fez um disparo de alerta... para... espantar: o acusado↘
28 e... depois fugiu↘... correu↘... daquela situação... (grifos
29 nossos)
• Confirmação
Excerto 3
1. Ele não tinha a intenção de matar e sequer atingir a vítima. (P.arg.1, dado)
2. Ele fez um disparo de alerta para espantar a vítima e fugiu dali. (P.arg.2-
Argumento 1)
3. Mas por que fugiu e não ajudou a vítima? (P.arg 4- Contra-argumentação)
4. Fugiu porque já tinha sido ameaçado quatro vezes pela vítima e ela estava o
ameaçando novamente, agora na porta da casa dele. (P.arg 2- Argumento 2, em
resposta à Contra-argumentação)
5. (Logo), ele não tinha intenção de matar, só queria se proteger daquela ameaça.
(P.arg.3– Conclusão)
O PDV do L1/E1 está marcado nesse excerto em “poSSÍvel algoz quem
possivelMENTE poderia estar no banco dos réus...”, nas linhas 33-34. Esse PDV assertado está
auxiliando na orientação argumentativa do advogado, que faz esse julgamento negativo a vítima, o
chamando de “algoz”, mesmo modalizado pelo termo “possível”. O uso desse termo junto a repetição
da opinião anterior de que os papéis poderiam estar trocados (o réu ser a vítima e a vítima o réu), só
reforçam a argumentação de que o agressor fugiu para se livrar da agressão.
Nesse excerto, ainda se nota a presença de um movimento empático entre o advogado e
o réu. O advogado convida os jurados e todos os presentes para se colocar no lugar do réu naquela
situação em que a vítima vai à casa do réu à noite e pergunta se ele está preparado. Vemos esse
movimento no trecho das linhas 37 ao 40. Ao perguntar “quem é que”, o L1/E1 está pedindo se fazer
uma pergunta reflexiva que induz a empatia dos jurados ao réu. O advogado colocou no centro de
empatização o réu, e sugeriu que qualquer pessoa faria a mesma coisa que o réu fez.
• Peroração
Excerto 4
243
272 nós não temos nenhum profissional de ↗armas... nós não temos
273 nenhum profissional... de tiro... um PEDREIRO... PE-DRE-IRO...
274 PEdreiro... não atira em ninguém ... o pedreiro constrói...
275 pedreiro constrói casa... hospitais... creche::... ele quer o
276 bem da sociedade↘ ENtão↗ NINguém pode ser acusado no Brasil↗ e
277 muito MEnos condeNAdo numa condição que nós contamos aqui
278 senhores... não é poSSÍvel... isso trazia uma fragilidade... se
279 quer trair o equiLÍbrio da sociedade brasiLEIra↘ alguém ser
280 condenado... por defender a sua Vida... a sua Casa... utilizando
281 uma soca soca... pra matar passaRInho... não é possível...
282 (grifos nossos)
283
CONSIDERAÇÕES FINAIS
244
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
________. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. 1.ed. São Paulo:
Contexto, 2019.
GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français.
Langue Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em:
http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2018.
PASSEGGI, L. et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual dos
sentidos. In: BENTES, A.C; LEITE, M, Q. (org.). Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p.262- 312.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica.
Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PLANTIN, Cristian. Les bonnes raisons des émotions. Principes et méthode pour l’étude du
discours émotionné. Bern, Peter Lang, 2011.
RABATEL, Alain. Empathie et émotions argumentées en discours. Le discours et la langue, Cortil-
Wodon: Editions modulaires européennes, 2013, Tome 4.1. (2012), p.159-178.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016a. v.1
RABATEL, Alain. Diversité des points de vue et mobilité empathique. L’Énonciation aujourd’hui,
2016b. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/303697811. Acesso 29 out. 2020.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Beneditti. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. (Col. Justiça e direito)
245
RESUMO
Com o propósito de analisar o valor da argumentação do depoimento da testemunha na decisão final
do juiz, este trabalho investiga a (não) assunção da responsabilidade enunciativa a partir da sequência
argumentativa em dois depoimentos de testemunhas do crime de roubo majorado pelo concurso de
pessoas e pelo emprego de arma de fogo, dispostos em uma sentença penal condenatória. O roubo
majorado tem sua previsão no artigo 157, § 2º e seus incisos do Código Penal Brasileiro e quando é
praticado em qualquer uma das circunstâncias previstas no mencionado dispositivo, a pena do crime,
prevista no caput, poderá ser aumentada de um terço até a metade. O gênero discursivo textual
depoimento de testemunha é uma peça do inquérito policial, no qual uma testemunha relata o que
sabe e o que é relevante para a investigação de determinado caso e, quando acontece um crime em
que há testemunhas, estas são chamadas para depor e os seus dizeres são anotados pelo escrivão, no
qual, no final do depoimento, lê todo o depoimento transcrito para que a testemunha conheça as
declarações ali escritas. A pesquisa é qualitativa de cunho interpretativista e objetiva identificar,
descrever, analisar e interpretar narrativas de testemunhas no que concerne à (não) assunção da
responsabilidade enunciativa. Nesse sentido, o foco é na sequência argumentativa, vista como
dominante nos depoimentos de testemunhas. Para a análise, seguimos os postulados da Análise
Textual dos Discursos (Adam, 2011, 2017) e da linguística enunciativa (Guentchéva, 1994, 2011;
Rabatel, 2016), além dos estudos de Rodrigues e Passeggi (2015, 2016) e Rodrigues (2016, 2017).
Os resultados apontam que o locutor testemunha (L-T) e o enunciador ora assumem a
responsabilidade enunciativa, ora apresentam um quadro de mediatividade. Também observamos que
os PDV das testemunhas podem ter influenciado diretamente a decisão final do juiz, que decidiu pela
condenação dos acusados.
INTRODUÇÃO
Na presente investigação, analisamos o depoimento de testemunhas em uma sentença
penal condenatória do crime de roubo majorado pelo concurso de pessoas e pelo emprego de arma de
fogo, encartado nos arts. 157, § 2o, inciso II e art. 157, § 2o-A, inciso I, em concurso formal de crimes
(art. 70).
Para o estudo, seguimos os postulados da Análise Textual dos Discursos (ATD) que,
segundo Adam (2011, p. 13), constitui-se como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que
85
UFRN / Bolsista PIBIC CNPq (IC) / anaarele@hotmail.com
86
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
246
CONCEPÇÕES TEÓRICAS
Há cada vez mais pesquisas sendo realizadas acerca do fenômeno da responsabilidade
enunciativa, enfatizando a importância do trabalho do grupo de pesquisa em Análise Textual dos
Discursos. Tais pesquisas apresentam a descrição, análise e interpretação dos dispositivos
enunciativos concernentes à responsabilidade enunciativa e ao ponto de vista.
A Análise textual dos discursos (ATD) se propõe a estudar a produção co(n)textual de
sentido, com base em textos concretos, oferecendo elementos para que compreendamos o texto como
uma prática discursiva, analisado através de vários planos ou níveis de análise linguistica (ADAM,
2011, 2017).
Para nossas análises, utilizaremos algumas categorias de análise da ATD, mais
precisamente as de nível 5 (sequência e plano de texto), nível 7 (Responsabilidade enunciativa), nível
8 (orientação argumentativa) e outras teorias enunciativas, que serão discutidas nos tópicos a seguir.
o enunciado a outro enunciador (e2). Para Adam (2011, p. 117), “o grau de responsabilidade
enunciativa de uma proposição é suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da
língua”. Em outros termos, a RE irá se apresentar no discurso através de conectores, organizadores e
marcadores de responsabilidade enunciativa.
A respeito da mediatividade, Guentchéva (1994, 2011) nos apresenta o quadro mediativo,
que ocorre quando o enunciador não assume a responsabilidade pelo conteúdo proposicional, quando
se distancia e imputa o seu dizer a outro enunciador, trazendo uma outra voz à sua fala, marcando o
distanciamento ou o não engajamento do enunciador em relação ao dito.
Para esta análise, recorremos a Rodrigues (2017) que introduz a categoria Locutor-
Testemunha, sendo usada para se referir a testemunhas. Já a juíza será referida como Enunciador,
visto que essa instância enunciativa atribui, de forma explícita, os dizeres transcritos ao Locutor-
Testemunha, sem, contudo, se engajar com o conteúdo proposicional dos dizeres dele.
Também recorremos a Rabatel (2016, p. 165), que classifica os pontos de vista em três
tipos:
a) ponto de vista representado: expressa pensamentos, reflexões e percepções, ou seja,
dando às percepções pessoais (e aos pensamentos associados) o modo objetivante das descrições
aparentemente objetivas, uma vez que o leitor encontra-se diante das “frases sem fala” [...];
b) ponto de vista narrado: narram os fatos segundo uma perspectiva que pode se
distanciar da perspectiva do autor, ocultando, igualmente, as falas pessoais, que são mascaradas por
uma narração tão objetiva quanto possível;
c) ponto de vista assertado: apoia-se, explicitamente, em atos de fala, em julgamentos
mais ou menos construídos que remetem, explicitamente, a uma origem identificável.
Sequência argumentativa
De acordo com Adam (2011), as sequências textuais são dividas em cinco: a narrativa, a
dialogal, a explicativa, a argumentativa e a descritiva.
Neste trabalho, focaremos apenas na sequência argumentativa, que é a sequência
trabalhada nos depoimentos de testemunhas. A sequência argumentativa acontece através de dois
movimentos: a demonstração e/ou justificativa de uma tese e a refutação de outras teses ou
argumentos; e, a partir do raciocínio feito, chega-se a uma conclusão ou afirmação.
Com base na estrutura prototípica ampliada de Adam (2011), cada proposição
argumentativa (P. arg) compreenderá a estrutura do texto como um todo, como descrito a seguir:
248
METODOLOGIA
O depoimento de testemunha
A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe
for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua
profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das
partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando
sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua
credibilidade87.
87
BRASIL. Código de processo penal. Lei 3.689/1941. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/Del3689.htm. Acesso em: 15 set. 2018.
88
Os dados pessoais do condenado são preservados.
250
D1 - A testemunha XXXXX – PM disse que estava tomando café no bar de um colega por volta de umas
18:30/19h, quando chegou uma mulher numa moto, informando que um Gol e uma Duster tinham sido os
carros utilizados no assalto a uma lanchonete; que não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento
que essa mesma mulher era um traficante, procurada pela polícia, que estava armada atrás dos assaltantes.
Entraram nas viaturas e seguiram em perseguição, ao encontrarem os veículos, efetuaram um disparo em um
Gol (atiraram no gol errado, mas que seguia logo atrás do Gol dos assaltantes) momento esse em que os dois
veículos pararam; que logo em seguida, efetuaram a prisão dos mesmo e depois as vítimas reconheceram na
delegacia; que foi apreendido na ação vários celulares, além disso, realmente existia um sanduíche dento do
Duster; que na ocasião da apreensão, as vítimas já verificaram os seus celulares (desbloqueando-os para
demonstrar q era seu) e depois foram conduzidas para delegacia; que se lembra que puxaram a ficha do carro
Duster e constataram que o mesmo foi tomado através de roubo; que não era a dona do bar que era traficante
e sim outra mulher completamente diferente.
Exemplo 01
A testemunha XXXXX disse que estava tomando café no bar de um colega por volta
de umas 18:30/19h, quando chegou uma mulher numa moto, informando que um
Gol e uma Duster tinham sido os carros utilizados no assalto a uma lanchonete; que
não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento que essa mesma mulher era
um traficante, procurada pela polícia, que estava armada atrás dos assaltantes.
Entraram nas viaturas e seguiram em perseguição, ao encontrarem os veículos,
efetuaram um disparo em um Gol (atiraram no gol errado, mas que seguia logo atrás
do Gol dos assaltantes) momento […]
o operador contra-argumentativo “mas” com a função de argumentar o motivo pelo qual realizaram
disparos no carro errado, utilizando o organizador espacial “logo atrás” como tentativa de atenuar o
erro cometido. Os PDV identificados no discurso do L-T foram: narrado e assertado. Nos termos de
Rabatel (2016).
Sobre o aumento da testemunha “que logo em seguida, efetuaram a prisão dos mesmo e
depois as vítimas reconheceram na delegacia”, vejamos o quadro argumentativo abaixo que nos ajuda
a entender a linha de raciocínio da testemunha ao argumentar que acredita que os acusados são
realmente quem realizaram o delito:
(1) Houve um assalto em uma lanchonete (P. arg. 1, dados)
(2) Os carros em que os acusados se encontravam foram os mesmos descritos pelos
populares e vítimas (P. arg. 2, argumento)
(3) Os acusados foram reconhecidos pelas vítimas na delegacia (P. arg. 2, argumento)
(4) Dentro do carro havia um sanduíche e vários celulares (P. arg. 2, argumento)
(5) Os acusados foram quem realmente realizaram assalto a lanchonete (P. arg. 5,
conclusão)
Análise do depoimento
Exemplo 2
A testemunha YYYYY disse que estava na BR 226, quando chegou um casal de
moto e avisou que tinham acabado de fazer um arrastão em uma lanchonete […]
252
Exemplo 3
[…] que lembra que era a noite, mas não especificamente a hora […]
Exemplo 4
Que havia também dinheiro da loja no carro, além disso, acredita que eles se livraram
da arma de fogo antes de serem pegos
Sobre o argumento da testemunha “acredita que eles se livraram da arma de fogo antes
de serem pegos”, vejamos o esquema argumentativo abaixo que nos ajuda a entender a linha de
raciocínio da testemunha ao argumentar que acredita que uma arma de fogo tenha sido realmente
usada na hora do crime:
(4) Os acusados utilizaram uma arma de fogo durante o assalto e se livraram dela antes de
serem pegos (P. arg. 3, conclusão)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
ADAM, Jean-Michel. O que é Linguística Textual?. In: SOUZA, Edson Rosa Francisco de;
PENHAVEL, Eduardo; CINTRA, Marcos Rogério. (org.). Linguística Textual: interfaces e
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255
RESUMO
O gênero discursivo decreto apresenta atos administrativos de competência exclusiva do chefe do
executivo, tendo como objetivo prover situações gerais ou individuais, previstas de modo expresso
ou implícito na lei. Nesse contexto, os decretos regulamentares possuem valor normativo e são
organizados através de atos subordinados ou secundários, auxiliando no estabelecimento dos
regulamentos, partindo do pressuposto de que apenas as leis inovam o ordenamento jurídico.
Tomando por base essas informações, a descrição do plano de texto do gênero discursivo decreto
fornece-nos informações a respeito da (não) assunção da responsabilidade enunciativa do conteúdo
proposicional por meio da recorrência das marcas linguísticas. Para tanto, neste trabalho, objetivamos
identificar, descrever, analisar e interpretar três decretos, do âmbito estadual, no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero estudado. Sobre a metodologia, é
do tipo qualitativa de natureza interpretativista, sendo o método indutivo. O corpus analisado é
constituído de 1 (um) decreto emitido pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, a saber: o
decreto nº 29.524, de 17 de março de 2020. A escolha do decreto partiu do delineamento temático
acerca da pandemia de Covid-19 e das determinações sobre a suspensão das aulas presenciais no
Estado do RN. Teoricamente, o estudo fundamenta-se em Adam (2011, 2019) com os postulados da
análise textual dos discursos, cujo enfoque é analisar a produção co(n)textual de sentido,
fundamentada na análise de textos concretos, em diálogo com Rabatel (2016), no que concerne às
instâncias enunciativas e ao ponto de vista e Vanderveken (1997, 2013) e Vanderveken e Melo
(2019), acerca dos atos de discurso. Os dados demonstram que no texto analisado o locutor
enunciador primeiro assume a responsabilidade enunciativa pela recorrência do ponto de vista
assertado, uma vez que se apoia em atos de discurso assertivos, pois os enunciados apresentam relação
de comprometimento com a verdade.
INTRODUÇÃO
89
Graduanda em Letras – Língua Portuguesa Licenciatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN).
E-mail: gameleiramonica@gmail.com
90
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN). E-mail:
celia.ufcaico@gmail.com
256
argumentativa no gênero decreto, tendo como foco: a) descrever o plano de texto e b) analisar e
interpretar os posicionamentos assumidos pelo locutor enunciador primeiro (L1/E1) em relação ao
conteúdo proposicional enunciado.
Para a realização deste trabalho, recorremos a uma pesquisa no Diário Oficial do Estado
do Rio Grande do Norte com o intuito de identificar os decretos que versavam a respeito da temática
“suspensão das aulas presenciais” no Estado. Dos textos encontrados, delimitamos como corpus de
análise o decreto nº 29.524, de 17 de março de 2020, visando atender aos objetivos propostos nesta
exposição.
Posto isso, o artigo estrutura-se, além desta parte introdutória, nas seguintes seções: a)
Pressupostos teórico-metodológicos, seção na qual fazemos uma exposição teórica sobre o tema,
abordando os dispositivos enunciativos plano de texto, responsabilidade enunciativa e visada
argumentativa; b) Análise e discussão dos resultados, seção em que é apresentada a análise do gênero
discursivo decreto, mobilizando os fundamentos teóricos discutidos na seção precedente. Por fim, são
apresentadas as considerações finais e as referências.
PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Como respaldo teórico para esta pesquisa, recorremos aos estudos da Análise Textual dos
Discursos, proposta por Jean-Michel Adam (2011), uma teoria da produção co(n)textual de sentido
que deve, necessariamente, ser fundamentada na análise de textos concretos, oferecendo elementos
para o entendimento do texto como uma prática discursiva analisado à luz de determinados planos ou
níveis de análise linguística.
Para Adam (2011), o estudo analítico de um texto deve considerar o exame de um plano
textual dado, levando em consideração os elementos de textura, estrutura composicional, semântica,
enunciação e atos de discurso que, por sua vez, completam-se, apenas, se postos em relação a
elementos do plano discursivo ou externo ao texto, os quais se configuram na ação visada, na
interação social, na formação sociodiscursiva e no interdiscurso.
A proposta teórica constituída por Adam (2011) sobre a ATD é relevante porque funda o
entendimento do texto enquanto circunscrito em um discurso – caracterizado por uma formação
sociodiscursiva, pela interação autor/leitor, por objetivos e por um gênero determinado, representando
a possibilidade de articular o texto e o discurso em que pese o intento da eficácia da interpretação
do(s) sentido(s) do texto. Assim, podemos afirmar que a ATD analisa o texto considerando o seu
comportamento discursivo.
Adam (2011) estabelece uma associação entre o texto e o discurso no sentido de pensá-
los a partir de novas categorias que permitam compreender a LT como perspectiva situada no quadro
257
mais amplo da AD. Dessa maneira, a proposta do linguista francês estabelece, “ao mesmo tempo,
uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos objetos da linguística textual e da análise
do discurso”. (Ibid., p. 43).
Diante do exposto, apresentamos, a seguir, a figura 1, que mostra os níveis ou planos da
análise discursiva e textual, esquema proposto por Adam (2011), bem como os dispositivos
enunciativos em que nos situamos neste trabalho.
De acordo com Rabatel (2016), o locutor, que é o aparelho físico responsável pela
enunciação de um enunciado, poderá coincidir ou não com aquele que é o enunciador, que é aquele
258
que está na fonte do enunciado, que assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo
proposicional do seu dizer. Nesse sentido, quando há coincidência do locutor com o enunciador, diz-
se que há sincretismo entre o locutor e o enunciador primeiro, grafando-se L1/E1.
Rabatel (2016) explica que, com relação ao enunciador primário, o locutor exprime seu
PDV enquanto locutor, através do seu papel na enunciação (esse seria o locutor defendido por
Ducrot), enquanto ser do mundo e enquanto sujeito que fala, aquele a quem se pede satisfações pelo
que ele diz.
No tocante à estruturação textual, Adam (2011) postula que os planos de texto estão, com
os gêneros discursivos textuais, disponíveis no sistema de conhecimento dos grupos sociais. Eles
fazem, portanto, parte dos conhecimentos prévios do leitor, atuando na construção dos sentidos de
um texto.
O plano de texto - ao explicitar a estrutura global do texto, a forma como os parágrafos
se organizam, a ordem em que as palavras se apresentam no texto - pode fornecer os elementos
necessários à compreensão e à produção, uma vez que, para a percepção/elaboração da estrutura
global do texto, o leitor lança mão de seus conhecimentos linguístico e textual. Com efeito, “o
reconhecimento do texto como um todo passa pela percepção de um plano de texto” (ADAM, 2011,
p. 254).
Utilizamos também como referência os atos de discurso, preconizados por Vanderveken
(1997, 2013), em que atos ilocucionários como asserções, perguntas, declarações, ordens, ofertas e
recusas, e suas tentativas de realização de tais atos de discurso, fazem parte daquilo que eles
significam e daquilo que eles têm a intenção de comunicar aos interlocutores, no contexto de suas
enunciações.
Considerando o contexto linguístico, enunciativo e discursivo do gênero decreto,
destacamos a presença de atos de discursos diretivos, cujo propósito ilocucionário consiste nas
tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer algo. A direção do ajuste dessa categoria é o mundo-
palavra e a condição de sinceridade é a vontade (ou desejo). Vanderveken e Melo (2019, p. 31)
asseveram que “[...] fazer uma injunção é prescrever alguém de agir com ênfase (modo mais forte de
atingir o objetivo), às vezes fazendo uma declaração [...] fazendo apelo a valores (modo de atingir)”.
Para uma maior visualização do gênero discursivo decreto, na próxima seção,
delimitamos o seu plano de texto objetivando descrever e analisar suas partes constituintes, no
gerenciamento da visada argumentativa, no que concerne à responsabilidade enunciativa do conteúdo
proposicional.
Excerto 1
Art. 2º Ficam suspensas as atividades escolares presenciais nas unidades da rede pública e privada
de ensino, no âmbito do ensino infantil, fundamental, médio, superior, técnico e profissionalizante,
pelo período inicial de 15 (quinze) dias.
Excerto 2
Art. 3º Ficam suspensas as atividades coletivas, eventos de massa, shows, atividades desportivas e
congêneres, com a presença de público superior a 100 (cem) pessoas, sejam públicos ou privados,
ainda que previamente autorizados.
261
Excerto 3
Art.5º Fica autorizada a Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) e a Fundação
de Atendimento Socioeducativo (FUNDASE) dispor sobre visitas, transferências e transportes de
presos e socioeducandos.
Observamos que os excertos (1), (2) e (3) são marcados por atos de discurso diretivos,
destacando-se como núcleo as formas verbais “Ficam” e “Fica as quais indicam a ação que deve ser
realizada, a suspensão das atividades. Notamos também que a orientação argumentativa pretendida
nos enunciados é consolidada pelo engajamento dos locutores enunciadores primeiros (Governadora
Fátima Bezerra e o Secretário de Saúde Cipriano Maia de Vasconcelos. Ainda mais, o L1/E1 está
institucionalmente constituído para deliberar, em razão disso cria as condições que garantam que, ao
declarar realizar num momento uma ação, engaja-se a realizá-la.
Excerto 4
§ 1º: O prazo de duração da medida prevista no caput poderá ser estendido por períodos
indeterminados, a ser avaliado pelo Comitê Governamental de Gestão da Emergência em Saúde
Pública decorrente do Coronavírus (COVID-19), instituído pelo Decreto nº 29.521, de 16 de março
de 2020.
Excerto 5
§ 2º Competirá à Secretaria de Estado da Educação e Cultura (SEEC) a adoção das medidas
indispensáveis à implementação da suspensão na rede pública de ensino e na consecução das
posteriores medidas necessárias à compensação das horas aulas exigidas.
Excerto 6
Art. 7º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos enquanto durar a
declaração de situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, declarada por meio
da Portaria nº 188/GM/MS, de 2020, no Ministério da Saúde.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
ADAM, Jean-Michel. Textos: tipos e protótipos. Tradução Mônica Magalhães Cavalcante et al. São
Paulo: Contexto, 2019.
RABATEL, Alain. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração - teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Prática política, jurídica, jornalística. Lisboa: Quid
Juris Sociedade Editora, 2010.
RESUMO
Compreender um gênero discursivo textual perpassa pelo reconhecimento de sua organização global,
e isso significa identificar os planos de texto que o constitui. Neste trabalho, estabelecemos como
objetivos identificar, descrever, analisar e interpretar quatro crônicas jornalísticas no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero discursivo crônica jornalística. A
respeito da metodologia, é do tipo qualitativa de natureza interpretativista. O corpus analisado é
constituído de quatro crônicas jornalísticas extraídas de veículos de comunicação presentes no âmbito
digital, a saber: El País, Estadão e Folha de S. Paulo. A escolha das crônicas jornalísticas,
selecionadas no mesmo espaço temporal, partiu do delineamento temático acerca da pandemia de
Covid-19. Acerca do recorte temporal, priorizou-se os materiais veiculados entre os meses de março
e julho, período em que a pandemia esteve presente, de maneira mais intensa, no Brasil. Quanto à
escolha dos cronistas, optamos por Eliane Brum, no El País; Luis Fernando Verissimo, no Estadão;
Antonio Prata e Gregório Duvivier, ambos na Folha de S. Paulo. Ainda que existam muitos veículos
de comunicação no âmbito online, esses são os que têm maior abrangência nacional e que também
reservam uma parcela do espaço virtual para veiculação de crônicas jornalísticas, especialmente sobre
a temática analisada. Já a escolha dos autores, para além da vinculação ao meio jornalístico,
pretendemos trazer uma heterogeneidade quanto ao estilo de escrita, bem como o perfil de cada autor.
Teoricamente, o estudo fundamenta-se nos postulados da Análise textual dos discursos (ATD), em
diálogo com Rabatel (2016) e Adam (2011), Guentchéva (2011), além de Campos (2011), Melo
(2004), Menezes (2002) e Silva e Lüersen (2016), para a compreensão do gênero crônica. A análise
dos dados aponta que nos quatro textos há a presença de instâncias enunciativas - o locutor enunciador
primeiro (L1/E1) e os enunciadores segundos (e2), que demonstram a (não) assunção da
responsabilidade enunciativa em um jogo de engajamento ou distanciamento pelo dito.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, propomo-nos a identificar o plano de texto e discutir a responsabilidade
enunciativa e a visada argumentativa no gênero discursivo textual crônica jornalística, que é
reconhecido dentro do domínio discursivo jornalístico como um gênero opinativo, uma vez que
91
Bolsista PIBIC UFRN (IC) e discente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-
mail: le_ticiafranca@hotmail.com
92
Professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN). E-mail:
celia.ufcaico@gmail.com
265
misturam as tipologias textuais narrativa e argumentativa. Isso porque, a partir da narração de fatos
cotidianos, os cronistas de jornal promovem reflexões e desenvolvem teses e argumentos.
Como definem Silva e Lüersen (2016), o formato da crônica jornalística tem origem
ligada às técnicas do jornalismo literário e da própria literatura. O estilo permite a utilização de figuras
de linguagem, de jogar com as palavras, o uso de personagens fictícios, a subjetividade atrelada à
crítica, o uso da primeira pessoa, bem como exige uma pesquisa eficiente, que possibilite o
conhecimento acerca dos fatos narrados.
Esta investigação fundamenta-se no âmbito da Linguística Textual (LT), nos postulados
da Análise textual dos discursos (ATD), em diálogo com teorias linguísticas enunciativas, com
Rabatel (2016), Adam (2011) e Guentchéva (1994, 2011).
Neste estudo, buscamos responder às seguintes questões: (1) Como o locutor enunciador
primeiro (L1/E1) assume a responsabilidade enunciativa? (2) Quais marcas linguísticas apontam a
orientação argumentativa dos enunciadores? (3) Quais marcas linguísticas presentes nas reportagens
induzem a um quadro de mediatividade? Para responder a essas indagações, estabelecemos como
objetivos identificar, descrever, analisar e interpretar quatro crônicas jornalísticas no que concerne à
responsabilidade enunciativa e à visada argumentativa no gênero discursivo textual crônica
jornalística.
A responsabilidade enunciativa (RE) é considerada uma das principais noções e
categorias da análise textual dos discursos (ATD) e é, também, um dos níveis propostos por Adam
(2011). Esse dispositivo textual, que pode ser individual ou coletivo, é compreendido como a
assunção por determinadas entidades ou instâncias acerca do que é enunciado, ou na atribuição de
alguns enunciados a certas instâncias. Sobre a mediatividade, Guentchéva (2011) concebe como a
expressão da não responsabilidade do conteúdo proposto a partir de um enunciado por um enunciador.
Dessa maneira, quando o locutor enunciador não assume a responsabilidade enunciativa, estamos
diante de um quadro mediativo.
METODOLOGIA
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Caracterização do gênero discursivo textual crônica jornalística e descrição dos planos de texto
do corpus
A crônica jornalística é reconhecida, no âmbito discursivo jornalístico, como um gênero
que traz à tona, por meio de uma narrativa, a visão do cotidiano. Tomada de senso crítico do cronista,
ela é também marcada pelo caráter opinativo e argumentativo. Segundo Menezes (2002, p. 165), a
crônica “se apropria da realidade do cotidiano, como o jornalismo factual, mas procura ir além e
mostrar o que está por trás das aparências, o que o senso comum não vê (ou não quer ver).”
Esse pensamento é complementado por José Marques de Melo, que define a crônica
jornalística como um “relato poético do real”, significando para os leitores contemporâneos “um
espaço ao mesmo tempo de reflexão e deleite sobre os fatos cotidianos, habilmente captados por
jornalistas capazes de expressá-los de forma amena e crítica” (MELO, 2004).
A crônica, no âmbito jornalístico, é um gênero que conversa com o jornalismo literário e
com a própria literatura. Isso porque o seu estilo permite ao cronista fazer uso de mecanismos
267
A primeira crônica escolhida para análise intitula-se “O vírus somos nós (ou uma parte
de nós)” e foi escrita pela jornalista Eliane Brum para o jornal El País. Antes de partir para a análise
do plano de texto, cabe uma breve biografia sobre a autora. Eliane Brum é gaúcha, nasceu em 1966
no município de Ijuí, no Rio Grande do Sul. Ela é jornalista, escritora e documentarista. Trabalhou
11 anos como repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e 10 anos como repórter especial da
Revista Época, em São Paulo.
Desde 2010, Brum atua como freelancer e faz projetos de longo prazo com populações
tradicionais da Amazônia e das periferias da Grande São Paulo. De 2009 a 2013 foi colunista do site
da revista Época. Desde 2013 tem uma coluna quinzenal, em português e espanhol, no jornal El País.
Desde 2018, mantém uma coluna quinzenal no jornal El País impresso, de Madri. É também
colaboradora do jornal britânico The Guardian e de outros jornais e revistas europeias. Publicou oito
livros – sete de não ficção e um romance -, além de participar de coletâneas de crônicas, contos e
ensaios.
Dentre os inúmeros textos escritos por Eliane Brum está a crônica jornalística escolhida
para este estudo. Publicado no dia 25 de março de 2020, o texto veiculado pelo jornal El País está
classificado na editoria ‘Opinião. Com relação ao aspecto estético da crônica, nota-se a presença de
um cabeçalho, o qual é composto pelo chapéu (“Pandemia do coronavírus”), cuja função no âmbito
jornalístico é a de definir, através de poucas palavras, o assunto da matéria. Além disso, ainda no
268
cabeçalho, há o título da reportagem: “O vírus somos nós (ou uma parte de nós)”, escrito com uma
fonte maior e destacado em negrito, a fim de atrair a atenção do leitor, bem como sintetizar o conteúdo
textual exposto.
Logo abaixo, há a linha fina, a qual tem o objetivo de complementar a mensagem dada
no título. Nesse caso, utilizou-se: “O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou
apenas mais da mesma brutalidade)”. Em seguida, há a imagem que ilustra a reportagem, seguida
pela legenda e o crédito do fotógrafo. Na sequência, observa-se a presença da assinatura da autora
(Eliane Brum), seguida da data (25 de março de 2020) e horário (14h44) da publicação.
A crônica é dividida em 33 parágrafos, os quais seguem a estrutura padrão do gênero
discursivo textual crônica jornalística. Há a predominância da sequência narrativa, uma vez que os
fatos são narrados a fim de contar uma história. O texto também conta com a sequência descritiva, de
modo que a autora traz detalhes sobre os aspectos citados ao longo da construção textual. Além disso,
com o objetivo de emitir uma opinião sobre o assunto, a sequência argumentativa também se faz
presente em virtude das escolhas lexicais da cronista que demonstram o seu posicionamento quanto
à temática. Essas são características marcantes do próprio gênero analisado.
Ainda sobre a estrutura, ao final do texto, há novamente o nome da cronista, sinalizado
em negrito e itálico e acompanhado de uma breve descrição sobre a autora (“Eliane Brum é escritora,
repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a
Bolsonaro (Arquipélago)”).
A segunda crônica escolhida para a análise foi escrita pelo renomado cronista brasileiro
Luis Fernando Verissimo e publicada no jornal Estadão. Sobre a biografia do autor, Veríssimo nasceu
em 26 de setembro de 1936 em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O trabalho do autor também é
conhecido na TV, que adaptou para minissérie o livro Comédias da Vida Privada. O programa recebeu
o prêmio da crítica como o melhor da TV brasileira. É filho do escritor Érico Veríssimo e Mafalda
Veríssimo.
De 1943 a 1945, Luis Fernando morou com a família nos Estados Unidos, pois seu pai
foi lecionar na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Ao retornar ao Brasil, em 1956, Verissimo
começou a trabalhar na editora Globo de Porto Alegre. Em 1962, transferiu-se para o Rio de Janeiro
onde exerceu as atividades de tradutor e redator de publicações comerciais.
De volta a Porto Alegre em 1967, Luis Fernando trabalhou no jornal Zero Hora. Em pouco
tempo já mantinha uma coluna diária, que o consagrou por seu estilo humorístico e uma série de
269
cartuns e histórias em quadrinhos. O primeiro livro, "O Popular", de crônicas e cartuns, foi publicado
em 1973. Atualmente, o autor é colunista no jornal Estadão.
Luis Fernando Veríssimo acumula muitas crônicas ao longo de sua trajetória e é
reconhecido como uma referência na área. Para esta análise, o texto de sua autoria escolhido foi “Pós-
choque”, publicado no dia 2 de abril de 2020, na editoria Cultura, do jornal Estadão. Em termos
estéticos, nota-se a presença de um cabeçalho, o qual é composto, inicialmente, por uma foto do autor,
acompanhado do termo “Colunista” e do nome do cronista (Luis Fernando Verissimo). Abaixo, há
um fio, isto é, uma linha horizontal usada para separar elementos. Em seguida, posiciona-se o título
da crônica, que também recebe destaque por meio de uma fonte com tamanho maior e em negrito. Há
ainda a linha fina: “O mundo que emergirá do choque que estamos sofrendo será um mundo purgado
pelo horror, e melhor, ou condenado pelo amoralismo para sempre”.
Logo abaixo, há a presença da assinatura do autor (Luis Fernando Verissimo),
acompanhado do nome do jornal (O Estado de S. Paulo, também conhecido como Estadão). Na parte
inferior, observa-se a data (2 de abril de 2020) e horário (3h00) da publicação. Nesse caso, a
publicação não conta com uma imagem/foto para ilustrar a narrativa. Partindo para o corpo do texto,
a crônica é dividida em cinco parágrafos, que também seguem a estrutura padrão do gênero analisado.
Semelhante ao texto de Eliane Brum, Verissimo também faz uso, com maior predominância, da
sequência narrativa e descritiva, uma vez que os fatos são narrados a fim de contar uma história. Além
disso, com o objetivo de emitir uma opinião sobre o assunto, a sequência argumentativa também é
marcada na crônica, pois as escolhas lexicais do cronista revelam o seu posicionamento quanto à
temática com o objetivo de emitir uma opinião e gerar convencimento no leitor.
Já com relação ao jornal Folha de S. Paulo, um dos cronistas escolhidos foi Antonio Prata.
Ele nasceu em 24 de agosto de 1977, na cidade de São Paulo. Escritor, cronista e roteirista, escreve
atualmente em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Como roteirista, contribuiu com novelas e
séries da Rede Globo. Também teve suas crônicas publicadas na revista Capricho e no jornal O Estado
de S. Paulo. Publicou seu primeiro livro em 2001, chamado Douglas e Outras Histórias. Alguns de
seus outros trabalhos na literatura são O Inferno Atrás da Pia, de 2004, Adulterado: crônicas, de 2009,
e Felizes Quase Sempre, um infantil de 2013 com ilustrações de Laerte Coutinho. Em 2012, foi
incluído na lista da revista Granta como um dos vinte melhores escritores brasileiros com menos de
40 anos.
Desde o início da pandemia da covid-19, o autor vem produzindo crônicas sobre o assunto
e publicando na sua coluna do jornal Folha de S. Paulo. Para este estudo, a escolhida foi a crônica
270
cujo título é: “Quando a quarentena acabar”, publicada no dia 23 de maio de 2020, na editoria
classificada como Colunas & blogs. Em termos estéticos, semelhante aos demais jornais citados
anteriormente, na página analisada, há a presença de um cabeçalho, o qual conta com uma foto e o
nome do autor (Antonio Prata). Após a separação pelo que, no contexto da diagramação, chama-se
de ‘fio’, há o título da crônica: “Quando a quarentena acabar”, enfatizado com uma fonte maior e o
estilo itálico.
Logo abaixo, observa-se, com uma fonte menor, a linha fina: “Vou compor uma sinfonia,
correr uma maratona e me formar em filosofia”. Um pouco mais abaixo, à esquerda, há as
informações sobre data (23 de maio de 2020) e hora (23h15) de publicação. Na mesma altura, porém
posicionada ao centro, observa-se a foto que foi utilizada para ilustrar o texto, como também o crédito
do fotógrafo. Nesse caso, não há legenda na imagem.
A crônica de Antonio Prata é dividida em oito parágrafos, nos quais há a predominância
pela sequência narrativa, muito comum nesse gênero discursivo textual em análise, já que se nota que
os fatos vão sendo narrados pelo autor a fim de conduzir a construção textual. Há ainda a presença
das sequências descritiva e argumentativa. A primeira é utilizada pelo cronista para caracterizar e
descrever alguns aspectos citados por ele ao longo do texto e a segunda é usada pelo autor, por meio
das escolhas lexicais, como um recurso para emitir sua opinião sobre a temática e gerar
convencimento.
Ao final do texto, o nome do autor aparece novamente, acompanhado de uma breve
caracterização dele (Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”).
O quarto e último cronista contemporâneo escolhido neste estudo foi Gregório Duvivier,
que escreve semanalmente para o jornal Folha de S. Paulo. Nascido em 11 de abril de 1986, Duvivier
é ator, humorista, escritor, roteirista e poeta brasileiro. Carioca, o filho da cantora Olivia Byington
com o músico Edgar Duvivier, além de sobrinho da atriz Bianca Byington, é formado em Letras na
PUC-Rio desde 2008. Começou a atuar aos 9 anos no curso de teatro Tablado e, aos 17 anos, junto
com os atores Marcelo Adnet, Fernando Caruso e Rafael Queiroga, formou o grupo que faria a peça
“Z. É. Zenas Emprovisadas”, permanecendo em cartaz pelo país por mais de dez anos.
Além de ator, o artista escreveu os livros "Ligue os pontos - Poemas de amor e Big Bang",
"Put Some Farofa", lançado com a atriz Fernanda Torres, e "A partir de amanhã eu juro que a vida
vai ser agora", que foi elogiado por mestres como Millôr Fernandes e Ferreira Gullar. Apesar de ter
começado cedo a carreira e ficar conhecido pelo seu trabalho no cinema e teatro, Gregório ganhou
271
notoriedade por ser um dos criadores e participantes do canal do YouTube Porta dos Fundos.
Atualmente, o artista assina uma coluna semanal no jornal Folha de São Paulo.
Dentre as inúmeras crônicas publicadas na coluna de Duvivier, a escolhida para esta
análise foi “A grande ficha, em algum momento, vai cair”, publicada na editoria Colunas e blogs no
dia 25 de março de 2020. Em termos estéticos, o plano de texto desta crônica se assemelha à produção
de Antonio Prata, já que ambas foram publicadas no mesmo veículo de comunicação. Para começar,
há um cabeçalho, o qual conta com uma foto e o nome do autor (Gregório Duvivier), seguido de um
“fio” que tem a finalidade, na diagramação, de separar elementos da página. Logo abaixo, há o título:
“A grande ficha, em algum momento, vai cair”, destacado com uma fonte maior e o estilo itálico.
Logo abaixo, observa-se, com uma fonte menor, a linha fina: “V pandemia deixa claro
que não estamos todos no mesmo barco”. Um pouco mais abaixo, à esquerda, há as informações sobre
data (25 de março de 2020) e hora (1h00) de publicação. O texto é dividido em dez parágrafos. Ao
longo das crônicas, observa-se alguns recursos gráficos utilizados, como uma tira - logo após o
primeiro parágrafo - de autoria de Laerte e cujo conteúdo norteia o texto de Duvivier. Há ainda, após
o quarto parágrafo, uma galeria de fotos, a qual traz oito imagens sobre o tema: “Coronavírus em
favelas do rio”, que dá título à seleção. Ainda na galeria, nota-se a possibilidade de deslizar para o
lado a fim de conferir todas as fotos. Para cada imagem, nota-se a legenda acompanhada do crédito
do fotógrafo 3. Ao final do texto, o nome do autor aparece novamente, acompanhado de uma breve
caracterização do mesmo (“É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta
dos Fundos.”).
As instâncias enunciativas
os cronistas se afastam do dito e imputam a outro enunciador (e2) a responsabilidade pelo conteúdo
proposicional.
[1] Está em curso a maior intervenção do Estado na vida das nações e das pessoas desde a
Segunda Guerra Mundial, mas a velha briga entre dirigismo econômico e mercado persiste,
enquanto contam os mortos. O mundo que emergirá do choque que estamos sofrendo será
um mundo purgado pelo horror, e melhor, ou condenado pelo amoralismo para sempre.
(Crônica jornalística - Luis Fernando Verissimo para o Estadão)
[2] Quando a quarentena acabar eu não vou mais escrever essas crônicas preguiçosas que
repetem uma frase e só mudam o finalzinho, que nem música ruim da MPB. Quando a
quarentena acabar eu vou compor uma sinfonia, escrever um romance, correr uma maratona
273
[3] Vivemos dentro de um prédio construído por gente que não tem onde morar, e essa
conta não fecha. Não pode fechar. [...]A pandemia deixa claro que não estamos todos no
mesmo barco. Ou estamos, mas tem gente remando e tem gente tomando sol na proa [...].
(Crônica jornalística - Gregório Duvivier para a Folha de S. Paulo)
No caso da crônica jornalística escrita por Gregório Duvivier no jornal Folha de S. Paulo,
o excerto [3] também traz à tona marcas linguísticas que sinalizam a assunção do L1/E1 quanto ao
conteúdo proposicional. O cronista assume a responsabilidade enunciativa pelo dito já na minha
274
primeira quando decide utilizar o verbo “viver” conjugado na primeira pessoa do plural. Ou seja, a
expressão ”vivemos” demonstra que o L1/E1 se inclui na situação tratada, marca a pessoalidade do
texto e, mais que isso, traz para si a incumbência pelo que será dito na sequência. O mesmo fenômeno
é demonstrado pelo verbo “estamos”, que também aparece em outro momento do excerto.
Quanto ao processo de sinalizar, no tempo e no espaço, o contexto sobre o qual está sendo
falado, o cronista promove essa focalização no momento em que escolhe utilizar os dêiticos espaciais:
dentro de um prédio; onde; no mesmo barco e na proa. Esse mecanismo funciona como uma
ferramenta para aproximar o L1/E1 e o leitor da situação citada. A opinião é também marcada pelo
uso de modalizadores, como a expressão “claro”, um adjetivo utilizado pelo cronista para
caracterizar um dos efeitos provocados pela pandemia, que é o de deixar claro, ou melhor, comprovar
que “não estamos todos no mesmo barco”.
Há ainda a presença de conectores argumentativos que, além de conectar as partes do
texto, também promove sentido a partir da perspectiva que o L1/E1 pretende imprimir no conteúdo
proposicional: adição (e), alternância (ou) e adversidade (mas). Diante de todas essas marcas
linguísticas, as quais apresentam, de forma explícita, a percepção do autor, constatamos que o excerto
também traz à tona um ponto de vista assertado.
[4] Na guerra, temos dois caminhos pessoais que determinam o coletivo: nos tornarmos
melhores do que somos ou nos tornarmos piores do que somos. Esta é a guerra
permanente que cada um trava hoje atrás da sua porta. Momentos radicais expõem uma
nudez radical. Isolados, é também com ela que nos viramos. O que o espelho pode mostrar
não é a barriga flácida. Pouco importa, já não há onde nem para quem desfilar barrigas-
tanquinho. O duro é encarar um caráter flácido, uma vontade desmusculada, um desejo sem
tônus que antes era mascarado pela espiral dos dias. O duro é ser chamado a ser e ter medo
de ser. Porque é isso que momentos como este fazem: nos chamam a ser. (Crônica
jornalística - Eliane Brum para o El País)
Eliane Brum, em sua crônica jornalística publicada no jornal El País e escolhida para esta
análise, também faz escolhas lexicais que demonstram o seu engajamento com o conteúdo
proposicional. No excerto [4], constatamos a presença, primeiramente, de dêiticos - espaciais e
temporais - que transmitem a ideia de, respectivamente, espaço e tempo dentro do contexto narrado.
Expressões como na guerra; atrás da sua porta; onde e hoje; já; antes; este sinalizam para o leitor
onde e quando a situação citada pelo L1/E1 se constrói, permitindo uma aproximação entre quem
enuncia e quem recepciona o dito.
Esse processo de aproximação também ocorre no momento em que L1/E1 apresenta
escolhas lexicais classificadas na categoria de índices de pessoas. Um exemplo são os pronomes
pessoais oblíquos na primeira pessoa do plural (nós), bem como os verbos conjugados também na
275
primeira pessoa do plural (temos; tornamos; somos; viramos; chamam). Esse mecanismo, ao passo
em que permite ao L1/E1 assumir a responsabilidade enunciativa pelo dito, também possibilita à
cronista a inclusão dos receptores no contexto citado.
Outro ponto analisado refere-se aos advérbios (melhores, piores) e adjetivos (radicais,
radical, permanente, isolados, flácida, desmusculada, mascarado) utilizado pela cronista a fim de
demonstrar, por meio dessas escolhas, a sua opinião acerca das mais diversas situações apontadas.
Por exemplo, ao falar que “nos tornamos melhores do que somos ou nos tornamos piores do que
somos”, Eliane Brum consegue expressar uma dicotomia existente no contexto da pandemia. Isto é,
há dois caminhos - um positivo e outro negativo - aos quais os seres humanos estão sendo expostos
para que façam sua escolha ao longo desse processo.
Essas marcas linguísticas demonstram que o excerto analisado exprime um ponto de vista
assertado, já que o posicionamento de L1/E1 aparece de maneira explícita.
Marcas de enunciação do e2
[6] Um estudo alemão afirma que a economia global será totalmente repensada até o fim do
ano. Um estudo espanhol afirma que não haverá mais economia global até o fim do ano. Os
imbecis do governo brasileiro não acreditam em estudo. (Crônica jornalística - Antonio
Prata para a Folha de S. Paulo)
276
[7] “A grande ficha”, diz a tira da Laerte, “em algum momento, ela vai cair”. (Crônica
jornalística - Gregório Duvivier para a Folha de S. Paulo)
[8] Desde o segundo semestre de 2018 adolescentes do mundo inteiro abandonam as escolas
toda sexta-feira para gritar nas ruas que os adultos estão roubando seu futuro. Eles dizem:
parem de consumir, fiquem no chão, nosso planeta não aguenta mais tanta emissão de
carbono. Dizem ainda, literalmente: “vocês estão cagando no nosso futuro”. Greta
Thumberg, a jovem ativista sueca, avisou repetidamente: “nossa casa está em chamas”.
Acordem.
O que há em comum nos excertos acima mencionados é a presença dos chamados verbos
“dicendi”. Eles têm a função de remeter ao discurso direto ou indireto de outra pessoa. No caso das
crônicas, esse mecanismo foi utilizado pelos autores para trazer ao texto outras vozes e retirar do
produtor do texto, em dado momento, a responsabilidade enunciativa. Nesses casos, o autor se afasta
do conteúdo proposicional e imputa a outro indivíduo ou instituição a responsabilidade pelo dito.
Conforme exemplificado em negrito nos excertos [5], [6], [7] e [8], os verbos utilizados
pelos jornais que remeteram à fala foram: afirma; (não) acreditam; diz; gritar; dizem; avisou. A
função desses verbos é deixar claro que o conteúdo proposicional exposto se refere a outras pessoas.
Além disso, por meio dos excertos escolhidos para análise, percebemos que os enunciadores
segundos, sinalizados nos exemplos com um sublinhado, que aparecem são: Naomi; um estudo
alemão; um estudo espanhol; os imbecis do governo brasileiro; Laerte; adolescentes; Greta
Thumberg.
Em alguns casos, a referência a enunciadores segundos pode representar a tentativa do
produtor do texto de se amparar em um chamado “argumento de autoridade” como um mecanismo
de sua própria argumentação. Isso pode ser visualizado, por exemplo, através do uso das conjunções
subordinativas adverbiais conformativas. Nas crônicas analisadas, constatamos, no excerto [5],
sinalizada em itálico, a presença da conjunção segundo. Essa é uma estratégia bastante utilizada no
âmbito jornalístico, visto que comprova que as informações foram checadas e torna público as fontes
das quais foram extraídos os dados apresentados. Além disso, o uso das aspas, as quais foram
identificadas nos excertos [7] e [8], também é uma maneira de inserir o discurso de outra pessoa no
corpo do texto, visto ser possível identificar os conteúdos que foram citados por outros enunciadores
e que estão transcritos de maneira direta nas reportagens./ Dessa maneira, quando o locutor
enunciador não assume a responsabilidade enunciativa, ocorre um quadro de mediatiavidade, nos
termos de Guentchéva (2011).
CONCLUSÕES
Neste trabalho, discutimos como a responsabilidade enunciativa e a visada argumentativa,
enquanto dispositivos enunciativos, são marcados no gênero discursivo textual crônica jornalística.
277
Para tanto, descrevemos as instâncias enunciativas presentes nos textos analisados, constituídos por
quatro crônicas de jornais online (El País, Estadão e Folha de S. Paulo), e pudemos analisar o
engajamento do locutor enunciador primeiro (L1/EI), nesse caso o cronista que assina a matéria, bem
como a imputação do dizer aos enunciadores segundos (e2), gerando, dessa maneira, um quadro
mediativo, conforme Guentchéva (1994, 2011).
Com base na Análise Textual dos Discursos (ADAM, 2011), foi possível demonstrar o
plano de texto de cada crônica jornalística analisada, além da identificação das sequências textuais
predominantes, como a narrativa, descritiva e argumentativa, as quais objetivaram a orientação
argumentativa pretendida pelos enunciadores.
Por fim, percebemos que a investigação em texto jornalístico contribui para a
compreensão desse domínio discursivo e que a assunção da responsabilidade enunciativa é
estruturada por meio de argumentos que auxiliam na produção opinativa dos meios de comunicação,
a exemplo dos jornais online.
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução: Maria das
Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos
métodos. Tradução: Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto
Editora, 1994. (Coleção Ciências da Educação).
BRUM, Eliane. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). 2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-25/o-virus-somos-nos-ou-uma-parte-de-nos.html. Acesso em: 29
set. 2020.
CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional das crônicas da Revista do Brasil. São
Paulo: Olho D'água, 2011, p.88.
CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Tradução Magda
Lopes. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.
DUVIVIER, Gregório. A grande ficha, em algum momento, vai cair. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2020/03/a-grande-ficha-em-algum-momento-vai-
cair.shtml. Acesso em: 29 set. 2020.
GUENTCHÉVA, Zlatka. Manifestations de la catégorie du médiatif dans lês temps du français. Langue
Française, Paris, v. 102, n. 1, 1994, p. 8-23. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/lfr_0023-
8368_1994_num_102_1_5711. Acesso em: 18 dez. 2015.
GUENTCHÉVA, Zlatka. L’ opération de prise em charge et la notion de médiativité. In: DENDALE, Patrick;
COLTIER, Danielle. La prise en charge énonciative: éthudes théoriques e empiriques. Bruxelles: De Boeck/
Duculot, 2011, p. 117-142.
MELO, José Marques de. Prefácio. In: PEREIRA, Wellington. Crônica: a arte do útil e do fútil: ensaio sobre
crônica no jornalismo impresso. Salvador, BA: Calandra, 2004. p. 7-10.
278
MENEZES, Rogério. Relações entre a crônica, o romance e o jornalismo. In: Jornalismo e Literatura: a
sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa – pontos de
vista e lógica da narração- teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi, João
Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.
SILVA, Daniela da; LÜERSEN, Angélica. A construção da identidade nacional das crônicas da Revista
do Brasil. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUL, 27°, 2016, Curitiba.
RESUMO
A cada dia, as interfaces entre os estudos da linguagem e os estudos do Direito avançam para
caminhos de convergência, uma vez que vários linguistas procuram analisar como a linguagem é
utilizada pelos operadores do direito para relacionar fatos, julgar ações e propor soluções. Além disso,
como o direito se constitui, sobremodo, por meio da linguagem, os estudos linguísticos também fazem
mais conhecidas as práticas utilizadas pelos locutores dessa esfera de comunicação, bem como
colaboram com o entendimento dos textos pela sociedade, porque podem atuar analisando as
construções complexas, geralmente, contidas nos gêneros jurídicos. Inserido nesse contexto de
produção e análise é que se encontra nosso trabalho. Nele, analisamos como ocorre o fenômeno da
responsabilidade enunciativa em uma sentença judicial, além de verificar como ocorre a
mediatividade nesse gênero discursivo textual. O corpus usado para demonstrar como ocorre esse
fenômeno é composto por uma sentença judicial sobre ameaça a policiais. A sentença encontra-se
disponível de forma pública no portal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP. A
corrente linguística que foi empregada para análise dos dados é a Análise Textual do Discurso. Nela,
proposta por Adam (2011), é considerado como objeto de análise o texto, o que está posto e os fatores
que ali se apresentam. O texto e o discurso são vistos sob um novo paradigma teórico e, assim, a
linguística textual é vista como o ponto mais amplo situado na análise de discurso. A importância
desta pesquisa reside, entre outros, no fato de ser necessário utilizar mecanismos de análise linguística
que levem em consideração o uso real que os falantes fazem, em contextos efetivos de uso da língua,
bem como demonstra como um fenômeno linguístico acontece em um gênero do âmbito jurídico, o
que faz com que as relações entre o direito e a linguagem se desenvolvam. Metodologicamente, o
trabalho possui viés qualitativo, e as análises são realizadas por meio do método interpretativista. O
resultado demonstra que a locutora/enunciadora primeira utiliza as demais vozes para embasar sua
decisão acerca da lide. Desse modo, ela tende a assumir o grau da responsabilidade enunciativa pelo
discurso enunciado.
Palavras-chave: Análise textual dos discursos. Responsabilidade enunciativa. Sentença judicial.
INTRODUÇÃO
93
E-mail: bruno.madson2011@gmail.com;
94
E-mail: gracarodrigues@gmail.com.
280
[...] o Direito, mais que qualquer outro saber, é servo da linguagem. Como Direito posto é
linguagem, sendo em nossos dias de evidência palmar constituir-se de quanto editado e
comunicado, mediante a linguagem escrita, por quem com poderes para tanto. Também
linguagem é o Direito aplicado ao caso concreto, sob a forma de decisão judicial ou
administrativa. Dissociar o Direito da Linguagem será privá-lo de sua própria existência,
porque, ontologicamente, ele é linguagem e somente linguagem. (CALMON DE PASSOS
2001, p. 63-64).
Com a citação, podemos enxergar que é muito salutar essa união, de forma
interdisciplinar, entre os campos científicos, uma vez que o Direito fez faz a partir do uso da
linguagem e, quando a utilizamos para estudar os ordenamentos jurídicos e realizações do Direito,
enxergamos dados que, em somente uma análise linguística restrita, talvez não fosse possível.
A teoria empregada para análise dos dados é a Análise Textual dos Discursos – ATD –
quadro teórico formulado por Adam (2011), no qual o texto e o discurso são utilizados em uma mesma
teoria, a fim de dar conta da análise de um objeto extremamente multifacetado, o texto. Assim, é
fomentada uma teoria de conjunto para perceber as nuances e os usos do texto, esse produzidos de
forma real, por falantes em determinada situação sociocomunicativa.
A justificativa reside na importância de tecermos comentários acerca do gênero sentença
judicial, uma vez que ele é basilar na estrutura do nosso ordenamento jurídico. Com a sentença, o juiz
pode decidir o desenrolar da vida das pessoas envolvidas na lide. Nesse sentido, esse gênero
discursivo / textual é de grande relevância e, com os estudos da RE na sentença, podemos analisar
como se constrói o jogo argumentativo envolvido na enunciação do locutor enunciador primeiro, a
saber, o juiz.
281
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Por meio desse esquema, podemos ver que os planos ou níveis do discurso são: 1 – ação
de linguagem (visada, objetivos); 2 – interação social; 3 – interdiscurso (formação sociodiscursiva,
socioletos, intertextos e gêneros). Já nos planos ou níveis do texto, temos: 4 – textura (proposições
enunciadas e períodos); 5– estrutura composicional (sequências e planos de textos; 6 – semântica
(representação discursiva); 7 – enunciação (responsabilidade enunciativa e coesão polifônica) e 8–
atos de discurso (ilocucionários e orientação argumentativa).
Ao averiguarmos o nível 7, enxergamos a presença da coesão polifônica e da
responsabilidade enunciativa, chamada adiante de RE. Ela está ligada ao jogo de vozes presente nos
enunciados, pois, consoante Adam (2011), por meio de algumas marcas textuais, o locutor pode se
engajar pelo dito, assumindo o conteúdo proposicional do dizer ou pode utilizar outros meios para
mostrar menor engajamento, recorrendo a quadros mediativos.
Passeggi et al. (2010), adaptando os estudos de Adam (2011), expandem as categorias
abordadas pelo autor e propõem um quadro adaptado das categorias de marcação da responsabilidade
enunciativa, a saber:
282
Com o quadro, vemos que variadas categorias linguísticas e discursivas podem ser
utilizadas para que os analistas estudem tal fenômeno. Em nossa análise, a partir da leitura da
sentença, analisamos os verbetes, as construções linguísticas e as marcas, a fim de perceber o
posicionamento enunciativo da L1/E1 em relação ao processo de (não) assunção.
Os gêneros discursivos/textuais são construções sociais e históricas. Sem eles, não pode
haver comunicação humana. Nessa direção, os interlocutores, em um contexto situacional específico,
datado e com viés histórico, imerso a processos ideológicos, produzem um enunciado. Esse, é dito
sob determinadas condições, tem um valor interacional e se realiza por meio de gêneros.
Nesse contexto, Bakhtin (2016, p. 12) afirma: “evidentemente, cada enunciado particular
é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.”. Com tal definição, podemos enxergar que
os gêneros são tipos de enunciados produzidos em determinados campos de uso da língua. Assim, os
gêneros podem perpassar diversas áreas, como a área jornalística, médica, jurídica entre outras.
Marcuschi (2008) apresenta alguns desses campos, os quais o autor denomina como
domínios discursivos. Vejamos:
De Plácido e Silva (1993, p. 201) estudam tal gênero discursivo/textual. Em suas análises,
os autores a definem como: “sentença designa a decisão, a resolução, ou a solução dada por uma
autoridade a toda e qualquer questão submetida à sua jurisdição”.
A estrutura desse gênero advém do Código de Processo Penal, artigo 381. O plano de
texto do gênero discursivo / textual deve ser composto, de acordo com o ordenamento jurídico,
(BRASIL, 2018), por:
Assim, vemos que o gênero possui uma estrutura fixa e é de extrema relevância social,
uma vez que, por meio dela, uma lide é resolvida. Com isso, visualizamos que é um gênero que evoca
a argumentação, a fim de satisfazer as partes, tendo uma articulação de dizeres por parte do juiz, o
responsável por proferir a decisão.
METODOLOGIA
O corpus é composto por uma sentença judicial do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo – TJSP. A escolha do corpus foi relativa à facilidade de acesso, uma vez que tal sentença
judicial foi publicada eletronicamente no sítio do Tribunal. Trata-se, assim, da sentença resultante do
processo de número 1502929-20.2018.8.26.0577, que tem como classe - Assunto Inquérito Policial
– Ameaça.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Trata o presente feito de fatos tipificados no artigo 147, do Código Penal, bem como no
artigo 21, do Decreto-lei 3.688/1941, onde figuram como vítimas XXXXXXX XXXXXXX
XXXXXX e XXXXX XXXXX XX XXX e como investigado XXXXX XXXXXXXXX XX
XXXXX, cuja autoria veio a ser conhecida em 20/03/2018, tendo as ofendidas comparecido
em Juízo e se retratado das representações anteriormente oferecidas (fls.32 e 39).
No tocante ao crime de ameaça, diante das retratações das vítimas, ocorreu a extinção da
punibilidade, que, com fulcro no artigo 107, inciso IV, do Código Penal, combinado com o
artigo 38, do Código de Processo Penal, fica declarada.
Isso posto, quanto ao delito previsto no artigo 147, do Código Penal, declaro extinta a
punibilidade e determino o arquivamento dos presentes autos, com fundamento, ainda, no
artigo 395, inciso II, do Código de Processo Penal.
P.R.I.C.
São José dos Campos, 25 de setembro de 2018.
CONCLUSÃO
Por meio da marcação da RE, vemos que a L1/E1 tende a assumir o conteúdo
proposicional do dizer, utilizando, para isso, a categoria das modalidades, com o uso de lexemas
avaliativos, verbos de opinião e os quadros mediadores, com o uso da voz do representante do
Ministério Público.
Com isso, vemos que, no gênero discursivo/textual sentença judicial, o qual segue uma
estrutura composicional rígida, evocada pelo ordenamento jurídico vigente e faz parte do domínio
jurídico, o L1/E1 tende a realizar a assunção da RE, porquanto é necessário um engajamento
enunciativo, o qual, com valor argumentativo, faz com que haja a resolução de um problema de
âmbito social.
É interessante perceber ainda que toda a assunção se dá em concordância com alguns
dispositivos jurídicos, como leis e normas. Assim, vemos o caráter de consonância entre a voz da
L1/E1 e dos ordenamentos que segue, fato que pode ser visto em trabalhos futuros. Além dessa
temática, também é possível enxergar temas como o jogo das vozes, por meio da coesão polifônica,
os atos ilocucionários, o plano de texto dos gêneros, as sequências entre outros.
REFERÊNCIAS
ADAM, J-M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. 2.ed. rev. aum. São
Paulo: Cortez, 2011.
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. v.1. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1993.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
MICHEL, Maria Helena. Metodologia e pesquisa científica em ciências sociais. 2. Ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
288
PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da produção co(n)textual dos
sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q. (Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p. 262-312.
ANEXO
290
291
RESUMO
Este trabalho tem por escopo a função de estudar a responsabilidade enunciativa no depoimento de testemunha
e na sentença condenatória judicial, uma vez que nos interessa saber se, quando o locutor enunciador primeiro
assume a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional do seu dizer no depoimento de testemunha,
essa assunção impacta na decisão do juiz, que é o locutor enunciador primeiro da sentença condenatória. Para
responder a essa indagação, a investigação focaliza a descrição, análise e interpretação das instâncias
enunciativas (locutor e enunciador), das posturas enunciativas, pontos de vista e o quadro de mediatividade.
Por essa razão, se faz mister a correlação entre os dois gêneros supracitados, para que se compreenda a relação
entre eles. A relevância desse fenômeno é tamanha que ele permite ao interlocutor compreender se o locutor
e/ou enunciador é/são responsável(eis) ou não pelo conteúdo proposicional do enunciado veiculado. Para o
estudo, seguimos Adam (2011), Guentchéva (1994, 2011), Rabatel (2009, 2016) e Rodrigues e Passeggi
(2016). No que concerne aos procedimentos metodológicos, tomamos como fundamento uma abordagem
qualitativa, inerpretativista de pesquisa, baseada no método indutivo, haja vista partirmos dos dados
observados no gênero sentença judicial condenatória, enquanto marca de (não) assunção da responsabilidade
enunciativa, bem como em depoimentos de testemunha. A construção do corpus da pesquisa se deu a partir da
investigação virtual ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (http:/www.tjrn.jus.br), visando a
obtenção de sentenças penais condenatórias. Nesse sentido, foram consideradas sentenças disponibilizadas
para consulta pública, por meio do referido site. Esse parâmetro resultou no quantitativo de 02 (duas) sentenças
penais condenatórias e seus respectivos depoimentos testemunhais, prolatadas por diferentes juízes,
protocoladas na Comarca de Natal, no estado do Rio Grande do Norte, ambas relativas ao ano de 2018. Os
documentos consultados versam sobre matéria de Direito Processual Penal. Os resultados apontam que o
locutor enunciador primeiro, nesse caso, o juiz da sentença condenatória judicial, assume o dizer a partir de
pontos de vista assertado, representado e narrado em consonância com o depoimento da testemunha, que
colabora para a culpabilidade do réu.
INTRODUÇÃO
95
UFRN / Bolsista PIBIC CNPq (IC) / vmo.ufrn.letrasesp@gmail.com
96
UFRN/ Doutora/ gracasrodrigues@gmail.com
292
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
sentença judicial condenatória, enquanto marca de (não) assunção da RE, bem como em depoimentos.
Para tanto, delimitamos o tempo e espaço da pesquisa, dos objetos de estudo, a revisão da literatura
e a coleta de dados.
A construção do corpus da pesquisa se deu a partir da investigação virtual ao site do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (http:/www.tjrn.jus.br), visando a obtenção de sentenças
penais condenatórias. Nesse sentido, foram consideradas sentenças disponibilizadas para consulta
pública, por meio do referido site. Esse parâmetro resultou no quantitativo de 02 (duas) sentenças
penais condenatórias e seus respectivos depoimentos testemunhais, prolatadas por diferentes juízes,
protocoladas na Comarca de Natal, no estado do Rio Grande do Norte, ambas relativas ao ano de
2018. Os documentos consultados versam sobre matéria de Direito Processual Penal.
Nesse sentido, o nosso foco de investigação diz respeito à relação entre a sentença
condenatória judicial e o depoimento de testemunha, conforme esquema a seguir:
SENTENÇA
CONDENATÓRIA
JUDICIAL
DEPOIMENTO DE
SENTENÇA PENAL
TESTEMUNHA
Realizada a coleta dos dados, fez-se necessária a revisão bibliográfica dos pressupostos
teóricos que embasaram o fenômeno da responsabilidade enunciativa, partindo da análise textual dos
discursos e contemplando, na sequência, a linguística enunciativa, a teoria dos pontos de vista e o
quadro mediativo, além da consulta a artigos científicos, capítulos de livros, livros, dissertações e
teses do grupo de pesquisa em Análise Textual dos Discursos.
Sobre os procedimentos de análise dos dados, foram realizadas as seguintes etapas: a)
descrição do plano de texto de cada sentença e de cada depoimento; b) identificação e descrição do(s)
locutor(es) enunciador(es) primeiro(s) (L1/E1) e enunciadores segundos (e2) de cada sentença; c)
identificação e descrição do(s) locutor(es) testemunhas de cada depoimento; d) identificação e
descrição das marcas linguísticas reveladoras de (não) assunção da responsabilidade enunciativa nos
dois gêneros investigados; e e) análise e interpretação dos resultados.
em face das definições e dos requisitos essenciais da sentença judicial, e levando-se em conta
o seu funcionamento na esfera jurídica e o seu papel social, podemos entendê-la como um
texto com características normativas que obedece às exigencias prevista na lei e na jurisdição.
Acrescenta, ainda, que o gênero sentença apresenta uma estrutura ritualizada, formal,
padronizada, evidenciando uma linguagem técnica, às vezes incompreensível ao cidadão comum.
A sentença judicial é obrigatoriamente um texto escrito, embora possa ser proferido
oralmente em audiência. É do domínio público, sendo um documento indispensável nos autos do
processo como documento da “perene memória da decisão que o contém”, diz a doutrina.
Assim, de acordo com o art. 489, do Código de Processo Civil, no que tange aos requisitos
essencias da sentença judicial apresenta a seguinte estrutura textual:
I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do
pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do
processo;
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe
submeterem.
295
* Exigência legal;
* Histórico, resumo, partes
principais do Processo;
* Relatar os fatos * Sequências textuais
atinentes ao processo de narrativas;
PREÂMBULO * Sequências textuais
maneira clara e
descritivas;
objetiva.
* Estrutura composicional
com parágrafos únicos
relacionados a cada ação
distinta do Processo.
* Identificação da Jurisdição,
vara, cidade;
* Identificar * Código numérico de
RELATÓRIO textualmente a peça identificação da Sentença;
processual. * Identificação das partes
litigantes;
* Ementa.
* Exigência legal;
* Materializar a decisão * Sequências textuais
DECISÃO argumerntativas;
judicial.
* Sequências textuais
expositivas.
296
* Assumir
ASSINATURA institucionalmente o * Assinatura do juiz.
documento.
Sentença condenatória
A sentença condenatória é aquela que, além de promover o acertamento do direito,
declarando-o, impõe ao vencido uma prestação passível de execução. A condenação consiste numa
obrigação de dar, de fazer, ou de não fazer. Reflete um conflito que é visto na perspectiva da parte
autora, do réu, das testemunhas, dos declarantes, do promotor, do defensor público, do juiz, de um
denso conjunto de normas, das fontes epistemológicas, do Conselho de Sentença, entre outros.
Constitui também fonte basilar para a fundamentação da condenação, o Código Penal – Decreto-Lei
n. 2848, de 07 de dezembro de 1940, cuja redação é atualizada por diversas leis.
Sentença Penal
No processo penal, existem várias classificações de atos jurisdicionais, entre elas temos,
os despachos, as decisões interlocutórias e as definitivas, essas últimas são também
denominadas sentenças. Nas palavras do jurista Nucci (2014, p. 28), “É a decisão terminativa do
processo e definitiva quanto ao mérito, abordando a questão relativa à pretensão punitiva do Estado,
para julgar procedente ou improcedente a imputação”.
Após todo o percurso do processo, esse que discutia o direito de liberdade do indivíduo
e, em contrapartida, o direito-dever de punir do Estado. A sentença vai ser o marco final do conflito
principiológico no primeiro grau de jurisdição.
No aspecto condenatório, a Sentença Penal, gênero jurídico, é a
que julga procedente a denúncia, impõe a pena, devendo apresentar, obrigatoriamente, as
circunstâncias agravantes ou atenuantes. Por outro lado, quando não se reconhece essa pretensão
punitiva, negando sua concretização, a sentença é tida como declaratória ou absolutória.
Assim, de acordo com o art. 381, do Código de Processo Penal, a sentença judicial
apresenta a seguinte estrutura textual:
297
I – o nome das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las;
V – o dispositivo;
O escrivão, tem por função ouvir o relato testemunhal, reduzi-lo a termo e lê-lo ao final
para que a testemunha conheça as declarações ali contidas. Feito isso, o delegado de polícia
responsável pelo caso, o escrivão e a testemunha deverão assiná-lo.
A estrutura composicional do gênero é fixa e segue um modelo padronizado pelo código
de processo penal (CPP), no art. 203. Vejamos abaixo:
A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe
for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua
profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes,
ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as
razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
298
PLANO DE TEXTO
CARACTERÍSTICA
NO GÊNERO FUNÇÃO DO GÊNERO
DEPOIMENTO
Exemplo 01:
Recorda dos fatos. Lembra do acusado XXXXXXX que se acha presente nesta oportunidade nesta
audiência.
299
No exemplo 01, temos PDV assertado, tendo em vista que o L-T se engaja-se ao utilizar
o suporte de focalização cognitiva “recordar” e “lembra", deixando claro em seu depoimento que, de
acordo com suas recordações, o acusado é, de fato, quem cometeu o crime. Além disso, o dêitico
espacial “nesta” (nesta oportunidade, nesta audiência) sinaliza o lugar de fala
Exemplo 02:
Recorda de duas correntes e relógio que não foram reconhecidos pelo homem que se dispôs a ir
para a delegacia.
No exemplo 02, temos PDV assertado, dado o engajamento do L-T com o conteúdo
proposicional do seu dizer através da utilização do suporte de focalização perceptiva “recorda”,
“duas”, e a negativa “não foram”, deixando clara sua presença e suas percepções sobre o relato do
ocorrido, assumindo a responsabilidade pelo conteúdo proposicional. Além disso, o texto está
marcado em negrito e sublinhado, deixando clara a intenção de destaque do fragmento apresentado.
Exemplo 03:
No exemplo 03, temos PDV assertado, visto que o L-T deixa clara a assunção da
responsabilidade enunciativa quando utiliza a modalização “nem”, dizendo que, de acordo com sua
percepção dos fatos, o casal ficou tão impactado com o assalto que não conseguiu nem fazer o
reconhecimento dos réus propriamente.
Exemplo 04:
Quando ia chegando ao hotel para almoçar o vigilante informou que turistas passaram a informação
de que surfistas tinham assaltado e fugido na direção do Pestana.
No exemplo 04, temos PDV representado, visto que está presente a mediatividade quando
o L-T utiliza futuro do pretérito, através da locução verbal “tinham assaltado”, se afastando do
conteúdo proposicional, criando assim, um quadro meditativo. Há também a atribuição da fala ao
vigilante, quando diz: “o vigilante informou que turistas passaram a informação”, nos deixando diante
de um quadro mediativo, ou seja, o L-T não se compromete com conteúdo proposicional do seu dizer.
Exemplo 05:
Nesse exemplo 05, temos PDV assertado e representado, visto que o L-T utiliza o dêitico
temporal “depois de 10 minutos” para marcar sua percepção de tempo sobre o ocorrido, mostrando
seu engajamento no discurso. Porém, encontramos características de mediatividade em sua fala,
quando a atribui a um enunciador segundo, “um popular”, distanciando-se do conteúdo proposicional
do seu dizer, construindo assim um
Exemplo 06:
No exemplo 06, temos PDV assertado, onde o juiz (L1/E1), assume o conteúdo
proposicional do seu dizer ao utilizar verbos em primeira pessoa “ratifico” e “remeto”, além de utilizar
o modalizador “já”, deixando sua voz explicita na sentença.
Depoimento 01 – sentença 02
Exemplo 07
A testemunha XXXXXXXXXXXXXXX disse que estava tomando café no bar de um colega por volta
de umas 18:30/19h
No exemplo 07, observamos a construção de um PDV assertado em que o L-T faz o uso
de um verbo dissendi “disse”, como também se utiliza do organizador temporal “umas 18:30/19h”,
acompanhado do marcador de subjetividade “por volta de” para contextualizar sobre o que estava
fazendo e a que horas recebeu a informação sobre o assalto, se comprometendo com o dito.
Exemplo 08
quando chegou uma mulher numa moto, informando que um Gol e uma Duster tinham sido os carros
utilizados no assalto a uma lanchonete
Exemplo 09
que não sabia no momento, mas depois tomou conhecimento que essa mesma mulher era um
traficante, procurada pela polícia.”
301
No exemplo 09, temos PDV assertado e PDV narrado, visto que em um primeiro
momento o L-T utiliza um suporte de focalização cognitiva “não sabia”, onde se engaja, porém ao ao
atribuir a fala a outrem “tomou conhecimento”, se distancia do conteúdo proposicional do seu dizer,
valendo-se da mediatividade. Há ainda, a formação do ethos negativo da mulher quando a testemunha
comenta sobre ser traficante e procurada pela polícia.
Exemplo 10:
No exemplo 10, temos PDV assertado e PDV narrado pois observamos que há
engajamento do L-T quando este utiliza o verbo dicendi “avisou”, porém não se compromete com o
dito pelo casal, atribuindo a fala através de um discurso indireto.
Exemplo 11
No exemplo 11, temos PDV assertado, pois o L-T utiliza o suporte de focalização
cognitiva “lembra”, se engajando diretamente com o dito, além de utilizar o dêitico temporal “noite”.
Há também um completo engajamento quando menciona “mas não especificamente a hora”,
utilizando um suporte de focalização conectiva para dizer que não lembra “especificamente”,
modalizando sua fala, se engajando com o conteúdo proposicional.
Exemplo 12
que havia também dinheiro da loja no carro, além disso, acredita que eles se livraram da arma de
fogo antes de serem pegos
No exemplo 12, temos PDV assertado, pois observamos o engajamento do L-T quando
utiliza o operador argumentativo “também”, e a modalização “além disso”, afirmando que ainda
existiam outros elementos dentro do carro dos acusados. De igual modo, quando utiliza o suporte de
focalização cognitiva “acredita que”, deixando claro no depoimento sua opinião sobre o que os
acusados teriam feito com a arma antes de serem pegos.
Exemplo 13
No exemplo 13, temos PDV representado, visto que o juiz (L1/E1) utiliza da
mediatividade para se referir ao depoimento da testemunha quando imputa sua voz para um
enunciador segundo, utilizando o marcador “segundo”, porém se mostra presente em outro momento
de sua fala, quando utiliza os modalizadores “evidenciando” e “nem um pouco”, assumindo o
conteúdo proposicional.
Exemplo 14:
É que o crime foi praticado com o emprego de arma de fogo, embora não tenha sido apreendida,
circunstância confirmada pela prova oral colhida, além disso foram apreendidas05 (cinco)
munições, calibre .38, mesmo calibre da suposta arma utilizada no assalto como afirmou a
testemunha XXXXXXXXXX.
No exemplo 14, o juiz (L1/E1) constrói PDV assertado e PDV representado, visto que
percebemos seu engajamento quando utiliza o modalizador “embora”, o marcador “além disso” e o
operador argumentativo “mesmo”. Porém se distancia em alguns momentos, por exemplo, quando
utiliza o modalizador “suposta”, se distanciando da afirmação, além de imputar o dito à testemunha,
retirando toda sua responsabilidade sobre o conteúdo proposicional.
Exemplo 15:
Assim, reconheço que o conjunto probatório autoriza o julgamento pela procedência do pedido
acusatório, como se extrai dos depoimentos das vítimas e testemunhas
No exemplo 15, temos PDV assertado, visto que o L1/E1 se mostra presente em seu
discurso quando utiliza o modalizador “assim”, e quando utiliza o verbo “reconheço” conjugado em
primeira pessoa, deixando presente seu posicionamento no tocante a sentença.
CONCLUSÕES
Considerando a análise e síntese das análises dos dados, apresentamos as conclusões da
nossa pesquisa. Para tanto, retomaremos algumas considerações importantes a respeito dos gêneros
textuais estudados.
303
REFERÊNCIAS
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia
Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20 jan. 2016.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
304
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sentença judicial. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, PPgEL, Natal, 2014. Disponível em: http://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/19592.
Acesso em: 10 abr. 2018.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Forense, 2014.
RABATEL, Alain. Prise en charge et imputation, ou la prise en charge à la responsabilité limitée.
Langue Française, Paris, n. 162, p. 71-87, 2009.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa –
pontos de vista e lógica da narração- teoria e análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues,
Luis Passeggi, João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis. "Tentam colocar medo no povo": vozes,
emoções e representações num texto jornalístico. In: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua
portuguesa e lusofonia: história, cultura e sociedade. São Paulo: EDUC, 2016, p. 259-272.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Prática de processo penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
305
RESUMO
Com o ensino remoto foi possível perceber a ampliação da necessidade da leitura e da escrita, por
meio das ferramentas digitais, entre professores e alunos nas aulas síncronas e assíncronas. Este
trabalho tem como objetivo identificar o potencial das ferramentas digitais e promover uma discussão
sobre a imersão da leitura e da escrita na prática docente. O momento pandêmico carece da
apropriação e do uso das tecnologias por parte dos docentes/discentes, enquanto isso temos a
impressão que nunca se leu e escreveu tanto, dada a recorrência dos usuários de celulares,
smartphones, tablets e outros, diante da leitura da/na tela. As ferramentas virtuais disponíveis hoje
possuem grande importância na aproximação dos alunos com o mundo digital, de forma que a
tecnologia da informação permite aprimorar cada vez mais os conhecimentos, tendo os sistemas
computacionais voltados para atividades mediadas pelo WhatsApp, Meet, Zoom, Google Classroom,
etc. A pluralidade de discursos sobre a leitura e escrita, se movimentam e afloram os mais diversos
lugares sociais e escolares. No referencial teórico adotado na pesquisa destacaram-se os estudos de:
Soares (2014), Marchuski (2010), Kleiman (2008) e pesquisas em sites do Scielo e a base de dados
da Scopus. Como metodologia dos procedimentos faz-se o uso da pesquisa bibliográfica e
documental, e para completar essa análise técnica de coleta é aplicado um questionário
semiestruturado com base nos estudos de (Gil, 2010). O uso de ambientes virtuais denota resultados
positivos no que se refere ao incentivo da leitura e da escrita, e no que consiste o desenvolvimento de
práticas que demandam o ensino remoto por meio de diversos gêneros textuais, em que os professores
são postos a todo instante em contato com o mundo tecnológico letrado, valendo-se de uma tecnologia
diferenciada e dinâmica a cada aula. Essa discussão é de suma relevância para se refletir sobre a
questão da leitura em tempos de pandemia e dos usos das tenologias digitais. Se fizer necessário uma
organização sistemática para o enfrentamento superando desafios, e do que se propõe para resolvê-
lo. Assim, pode se fortalecer as articulações intersetoriais entre a EaD e o ensino da escrita, para
mediar as aprendizagens dos alunos.
INTRODUÇÃO
97
Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrando em Cognição e Linguagem – E-mail: amarotiao@yahoo.com.br
98
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Doutoranda em Cognição e Linguagem – E mail:
jack.barcelos1@hotmail.com
99
Universidade Estácio de Sá (ESTÁCIO). Licenciada em Pedagogia – E-mail: adrimonteirocamara@hotmail.com
100
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Licenciando em Pedagogia – E-mail: jjjpessanha@gmail.com
306
Com a inserção das novas tecnologias presentes na sociedade, as pessoas estão lendo e
escrevendo mais, e vem se popularizando mediante à pandemia do Covid-19, que passou de uma
tendência para uma necessidade de adaptação à realidade atual. Assim aumentou-se a pressão para a
implantação da EAD em vários níveis da educação com o ensino remoto (SOUZA, 2009).
O isolamento social contribuiu notoriamente para as práticas de leitura e escrita,
mantendo as relações literárias a partir da inserção da multimodalidade, o que representa uma ligação
essencial, que tem por premissa várias características interligadas concomitantemente.
De acordo com Barbosa, Viegas e Batista (2020), os docentes tiveram que aprender a
manusear diversos equipamentos tecnológicos, utilizar softwares e aplicativos, gravar e editar vídeos,
ter celulares ou computadores mais atualizados, além de reformular todo o seu planejamento, tudo
isso em pouquíssimo espaço de tempo para que o ensino remoto pudesse realmente ser implementado,
dando continuidade ao processo de ensino e contribuindo para a diminuição da disseminação do vírus.
Os autores ainda ressaltam que:
Diante de tal importância, aderir o uso das mídias virtuais na educação significa para o
professor investir em si próprio, na ampliação de suas capacidades profissionais e possibilita aos seus
alunos o acesso à informação e ao conhecimento, ampliando as estratégias de ensino.
França Filho, Antunes e Couto (2020) elucidam que:
A crise da pandemia de covid-19 se torna uma janela de oportunidades para uso da tecnologia
na educação neste âmbito de parceria público-privada, considerando a maleabilidade do
Sistema Nacional de Educação aos interesses e ações desses novos sujeitos da educação
pública brasileira (FRANÇA FILHO, ANTUNES e COUTO, 2020, p. 23).
(...) Ninguém duvida dos benefícios que a tecnologia da informação tem proporcionado.
Acessar, em tempo real informações sobre quase tudo que existe no mundo e poder
308
Ensino remoto, devido à pandemia da COVID-19, está sendo aplicado como forma
emergencial, para dar conta de uma situação até então inesperada, ou seja, os Projetos
Pedagógicos das Instituições de Ensino e de seus respectivos cursos não foram construídos
para dar conta da modalidade de ead, a fim de estruturar o currículo e os processos de ensino
e de aprendizagem nesta modalidade diferenciada. Desta forma, os professores estão apenas
utilizando as TDICs como meio, mantendo as mesmas metodologias de ensino utilizadas no
ensino presencial, baseadas, quase que em sua totalidade, na transmissão de conhecimentos,
por meio de aulas expositivas e exercícios para fixação do conteúdo (SILVEIRA, 2020, p.
38).
Se comunicar é reconhecer o outro (FREIRE, 1976), é nesse movimento que será possível
vislumbrar um fio nesta meada, que puxado, dinamizará a construção de estratégias alternativas à
resistência aos recursos tecnológicos, aos quais se transige especialmente sobre a possibilidade de
filhos e alunos saberem mais que pais e professores neste campo.
A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2020)
afirma que desde o registro do primeiro caso de covid-19 no Brasil, o sistema escolar sofreu
adaptações com o esquema 100% remoto, professores, alunos e pais precisaram experimentar
diferentes ferramentas e formatos de aula para dar continuidade aos estudos. A partir deste contexto
percebeu-se que os professores estão trabalhando juntos para alcançar um nível de aprendizado e
desenvolvimento nessas novas ferramentas digitais.
Muitos professores ainda resistem às Novas Tecnologias da Comunicação e Informação
(NTCI) como citado pelos pesquisadores Carmo e Corrêa (2012), que o medo de escrever associado
à resistência ao uso das novas tecnologias, e correspondente falta de desejo e esforço, observou-se
que se configura um contexto que interfere negativamente na comunicação de muitos docentes.
309
Se comunicar é reconhecer o outro (FREIRE, 1976) e, além disso, torna-se uma prática
essencial à existência humana, causando transformações que a cotidianidade da internet tem
provocado. Tal fato exige que o sujeito seja capaz de ler e escrever lidando com textos de variados
tipos e gêneros, o que se configura como uma habilidade a ser desenvolvida no decorrer de toda sua
trajetória educativa e não apenas nas séries iniciais. Freire (1989) ainda destaca que:
O problema que se coloca não é o da leitura da palavra, mas o de uma leitura mais rigorosa
do mundo, que sempre precede a leitura da palavra. Se antes raramente os grupos populares
eram estimulados a escrever seus textos, agora é fundamental fazê-lo, desde o começo mesmo
da alfabetização para que, na pós-alfabetização, se vá tentando a formação do que poderá vir
a ser uma pequena biblioteca popular, com inclusão de páginas escritas pelos próprios
educandos. (FREIRE, 1989, p. 19).
Durante a pandemia surgiram muitos desafios, os quais as escolas estão aprendendo como
lidar com essa nova forma de ensinar. A aprendizagem é um processo ativo, sendo consequência da
310
relação entre professor e o aluno e suas práticas educacionais, nas quais os mesmos possibilitam ações
reflexivas em diversas áreas de ensino.
Bamberger (2002) afirma que:
Mesmo que o acesso aos dispositivos e a conectividade não sejam problemas para a maioria
dos jovens, as crianças precisam do apoio da família para se envolverem no aprendizado remoto. Os
pais podem auxiliar seus filhos a navegar na Internet e na leitura das propostas pedagógicas
contribuindo para a realização dos conteúdos.
Dentre as TDICs (Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação) mais utilizadas no
ensino remoto estão o WhatsApp, Google ClassRoom, Google Meet, Zoom, Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (AVAs) entre outros (SILVEIRA, 2020). Além de disponibilizar atividades e
311
videoaulas, alguns desses possibilitam a interação entre professor e aluno em tempo real por meio de
conferências e reuniões online.
Os desafios da aplicabilidade no uso das ferramentas digitais são inúmeros: além da própria
demanda elevada de atividades, muitos estudantes não têm acesso à internet, ou dividem aparelhos
celulares com outros familiares. Além disso, algumas plataformas de ensino precisam de
equipamentos mais modernos ou com ampla memória de armazenamento.
Cabe salientar que alguns professores não tiveram contato com tecnologias educacionais em
sua formação pedagógica e, com isso não têm habilidades virtuais para lidar com o ensino remoto,
ou não possuem equipamentos adequados para produzir conteúdos digitais.
Leal (2020) aponta que, diante da nova realidade imposta pela situação de pandemia, as
limitações que existem no processo de ensino e aprendizagem tornaram-se mais evidentes, pois, o
momento acentuou diversas situações negativas de exclusão tecnológica e sociais na aprendizagem
dos alunos que antes passavam despercebidas.
METODOLOGIA
ANÁLISE DE DADOS
Esta pesquisa teve como amostras docentes e discentes atuantes na modalidade remota
durante a pandemia. Foram coletadas 10 respostas por meio da aplicação de um questionário on-line,
cujo objetivo foi identificar os principais desafios enfrentados por eles no ensino remoto. Essa
estrutura de trabalhar em home-office não está sendo fácil, pois é um desafio para a família, sociedade
e professores, que a cada é preciso se reinventar em suas aulas utilizando novas tecnologias.
Para fundamentar a pesquisa, destacam-se alguns depoimentos de professores e alunos
no ensino remoto para corroborar com a pesquisa:
312
P1 – “Estou atuando em tempo integral, e ainda contribuo ajudando os alunos nos mais
diversos problemas, desde conteúdos com suas dificuldades, à problemas pessoais e uso das
novas plataformas, é tão frenético que me tornei psicóloga... Dou aulas em três escolas.
Mas, me sinto mais cansada agora” (T. P. M., 32 anos, casada).
P2 - “Sinto-me mais cansada com o ensino remoto. O cansaço multiplicou demais. São aulas
para gravar, tarefas que precisam ser postadas nas plataformas, tirar dúvidas o dia inteiro e
as reuniões pedagógicas, agora somos professores multifacetados. Com o relacionamento
virtual é muito difícil criar vínculo afetivo. E isso tem dificultado o avanço deles” (M. A. M.
R., 30 anos, solteira).
P3 - “Eu tenho muita dificuldade com tecnologia, mas persisto na profissão porque sinto que
faço a diferença na vida de alguns alunos. Mesmo com uma demanda muito maior de tarefas,
pois, tenho que adaptar todo o conteúdo das aulas para a forma remota, mas mesmo assim é
gratificante” (A. C. S. Q., 35 anos, casada).
P4 - “É muita novidade em pouco tempo para aprender, sem ninguém para ensinar e, além
disso, aqui em casa só tem um computador e divido com a minha filha. Essa situação me faz
prolongar meu horário de trabalho. Já postei aula de madrugada, para o computador ficar
livre para minha filha no outro dia” (C. C., 34 anos, solteira).
Por meio da análise dos dados coletados, observamos que os docentes afirmaram ter tido
dificuldades para a utilização de equipamentos tecnológicos e mídias digitais na gravação e/ou edição
de videoaulas, ou para as aulas síncronas, e ainda relataram nãose sentir preparados para dar aulas
remotas, tendo em vista as carências da sua formação acadêmica.
Nesta concepção pode-se afirmar que segundo os depoimentos dos professores a
interação professor/aluno fica prejudicada no ensino remoto devido a falta de acesso e/ou
participação dos alunos, apesar das vantagens que a tecnologia proporciona em sua aplicabilidade,
mas em contrapartida é necessário que se gaste mais tempo na preparação das aulas e na elaboração
das atividades remotas.
Santos (2020) elucida que:
Nesse sentido, o uso das ferramentas tecnológicas na educação deve ser vista
sob a ótica de uma nova metodologia de ensino, possibilitando a interação digital dos
educandos com os conteúdos, isto é, o aluno passa a interagir com diversas ferramentas que
o possibilitam a utilizar os seus esquemas mentais a partir do uso racional e mediado da
313
Desta forma, os professores que não são nativos digitais ou os resistentes aos usos das
NTIC’s começaram a planejar aulas mediadas pelo Meet ou WhatsApp junto a seus coordenadores
pedagógicos, e ao mesmo tempo em que descobrem sobre o funcionamento e praticidade de
ferramentas tecnológicas.
Com aulas on-line, surgiram novos desafios que não eram comuns nos encontros
pedagógicos presenciais, aprendendo a lidar com problemas de conexão e engajamento dos alunos à
distância.
Dentre os depoimentos dos professores, alguns docentes alegam que não estão sendo mais
reconhecidos em seu papel de educador durante a pandemia, pois, nem sempre os alunos retornam as
atividades comprometendo a avaliação da aprendizagem.
Já os alunos por sua vez afirmam que:
A1 – “Não está sendo fácil, para nós alunos, são muitas tarefas online. Tudo para dar conta
num de muitas atividades em curto espaço de tempo. Há um excesso de atividades e um vazio
intelectual, a tela do computador é o nosso quadro branco, mais eficiente, porém menos
interativo no meu caso, sinto falta do contato com o professor” (G. O. M. D., 18 anos, casada).
A2 - “Este momento é muito delicado, porque saímos de uma sala de aula física que
estávamos acostumados com os colegas e professores, para de repente entrar em um universo
tecnológico com aulas remotas, e com o compromisso de cumprimos curtos prazos, poucas
interações e ter um resultado satisfatório, independente da especificidade de cada um” (G. P.,
17 anos, solteira).
A3 - “Me sinto exausta, tensa, preocupadíssima, a tecnologia facilita muito, mas não é mesma
coisa que tirar dúvidas na sala de aula presencial. Me perguntam se estou aprendendo, eu
nem sei, criamos uma rotina de estudos para dar conta, a vida está uma loucura, ainda comecei
a fazer um curso, fico o dia todo no computador, me desgasta bastante” (A. C. S. Q., 16 anos,
solteira).
A4 - “Recebo atividades o dia todo, parece que os professores têm a necessidade de ocupar
todo nosso tempo, estão passando mais tarefas do que tínhamos quando era presencial,
acredito que não precisaria de tanto, já que a avaliação remota é falha, e é impossível
acumular tanto conteúdo num pequeno espaço de tempo, mas vamos caminhando...” (A. M.
F. 19 anos, solteira).
A5 - “Com a pandemia aprendi a fazer tanta coisa que eu não sabia, aprendi a usar as
ferramentas digitais quem nunca interessei em aprender, repensei conteúdos neste contexto
de distância, aprendi a dar valor mais as pessoas, estou me adaptando ainda, mas com menos
dificuldades tecnológicas” (F. T. G., 18 anos, casada).
314
Um ponto que facilita a minimização do impacto da pandemia sobre os alunos, é que essa
geração do Século XXI tem apresentado muita facilidade em aprender e operacionalizar diversas
mídias digitais, o que se configura como uma grande vantagem para aqueles que precisavam aliar o
ensino ao uso de tecnologias. Com os depoimentos, percebemos que mesmo com dificuldades do
acesso á internet, ou excesso de atividades, os alunos estão se equilibrando para manter um
aprendizado dentro das metas.
Desta forma percebe-se que é crucial que professores e alunos utilizem as ferramentas
digitais, onde cotidianamente é preciso se reinventar e reaprender novas maneiras de adquirir e
compartilhar conhecimentos. Não obstante, esse tem sido um caminho que apesar de árduo, é
essencial neste período pandêmico.
Já alguns alunos questionam fatores limitantes que podem influenciar no aprendizado,
tais como: a falta de interação social de maneira presencial, o excesso de conteúdos, e a falta dos
amigos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considera-se que com a pandemia do novo Coronavírus e a necessidade das aulas virtuais,
o ensino ficou comprometido em vários aspectos, principalmente com o uso exagerado das novas
ferramentas virtuais ou com a falta delas, e o excesso de conteúdos propostos, provocando um caos e
uma exclusão escancarada dos alunos mais carentes.
As interações sejam elas presenciais ou virtuais servem como grande estímulo nas
aprendizagens dos alunos. É por isso que é importante visar o desenvolvimento integral dos alunos
em todos os aspectos, o social, o cognitivo, o afetivo, em busca de uma aprendizagem prazerosa em
relação a leitura e escrita em tempos de pandemia e isolamento social.
REFERÊNCIAS
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FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 23.ed. São Paulo.
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LEAL, P. C. S. A educação diante de um novo paradigma: ensino a distância (ead) veio para ficar!
Gestão & Tecnologia Faculdade Delta, v. 1, n.30, p. 41-43, jan./jun. 2020. Disponível em:
http://faculdadedelta.edu.br/revistas3/index.php/gt/article/view/44/40 Acesso em: 18 fev. 2021.
SILVEIRA, S. R. et al. O Papel dos licenciados em computação no apoio ao ensino remoto em tempos
de isolamento social devido à pandemia da COVID-19. Série Educar- Prática Docente, p. 35.
Disponível em: https://poisson.com.br/2018/produto/serie-educar-volume-40-pratica-docente
Acesso em: 17 fev. 2021.
SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. Ática, São Paulo, 2014.
UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Suspensão das aulas
e resposta à COVID-19. Disponível em: https://pt.unesco.org/news/educacao-escolar-em-tempos-
pandemia-na-visao-professoresas-da-educacao-basica-uma-pesquisa. Acesso em: 22 fev. 2021.
317
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho tem por objetivo evidenciar as ações alternativas para o estudo da
leitura/escrita, em nível superior, em situação remota. Isso se deu devido à pandemia causada pela
Covid-19, o que exigiu a adoção de algumas medidas de segurança para a prevenção dessa doença,
entre elas a prática do ensino remoto para a área da educação. Pensando nisso, para a execução deste
trabalho, temos as seguintes perguntas: Em tempo de pandemia, com a aplicação do ensino remoto,
os gêneros textuais podem ser incluídos nas ações inventivas por ocasião do ensino de categorias
101
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-doutora pela Universidade Federal
da Bahia, (UFBA), e-mail: mfosal@gmail.com.
102
Graduanda em Letras Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Alagoas
(UNEAL), e-mail: gabriellee54321@gmail.com.
103
Graduando em Letras Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas pela Universidade Estadual de Alagoas
(UNEAL), e-mail: vandersonsts321@gmail.com.
318
PONTUAÇÕES TEÓRICAS
Para o trabalho em foco, buscamos uma concepção de linguagem não centrada no código,
nem no instrumento, mas na interação, considerando que, no período da pandemia, professor e alunos
foram adaptados com mais frequência ao uso da tecnologia, concretizando-se o chamado ensino
remoto, aquele que se dá de maneira síncrona, isto é, as ações e decisões são tomadas em uma mesma
escala temporal entre professor e alunos. Assim, consideramos a língua(gem) como uma atividade
que viabiliza a construção do conhecimento, bem como a convivência entre os seres humanos, pois a
realização dessa língua(gem) se dá na interlocução entre esses seres, e o ato linguístico somente se
concretiza na chamada interação social.
Associada a essa concepção de língua(gem), aparece a de texto, que nos permite viabilizar
o elo interativo entre os participantes (professor e alunos) do processo interativo em sala de aula para
o tratamento dos sentidos veiculados nos materiais didáticos postos para estudo e discussão. Temos
então esse texto como o “lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de
sentidos (concepção de base sociocognitiva-interacional)” (KOCH, 2004, p. XII), que, num
319
continuum tipológico, assegura as especificidades para cada uma das modalidades de língua, a falada
e a escrita. Para a primeira, são reservadas características como pausas, truncamentos, repetições,
entre outras; para a segunda, aparecem rigor gramatical e cumprimento da normal culta.
Nessa linha de estudo, entendemos leitura e escrita como, respectivamente “uma
atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com
base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual [...]” (KOCK; ELIAS, 2006, p.11) e
como uma atividade interativa em que “o sentido é um constructo, não podendo, por conseguinte, ser
determinado a priori.” (KOCK; ELIAS, 2006, p.11)
No meio das discussões feitas entre professor e alunos, vimos a importância da
conversação, percorrendo as ideias de Marcuschi (2010), que a considera como uma prática social de
caráter comum na vida diária, bem como um espaço privilegiado para que haja a construção de
identidades com atuação em contextos sociais. Dessa maneira, cada aluno ou cada professor se institui
como sujeito falante em espaços interlocutivos organizados por causa do período de pandemia
causada pela Covid 19.
Aliado à noção da oralidade, apresentamos o conceito de gênero textual, uma vez que
designa as ações concretas realizadas por professor e alunos nas múltiplas atividades diárias. Desse
modo, entendemos os gêneros textuais como “nossa forma de inserção, ação e controle social no dia-
a-dia. Toda e qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero [...]” (MARCUSCHI, 2008,
p.161). Tomamos por base ainda a categoria do expor de Schneuwly e Dolz (2004), a qual se
caracteriza como a apresentação textual de diferentes formas do saber. Nesse sentido, foi o gênero
entrevista escolhido para estudo definido como “conversa/conversação entre pessoas em local
combinado, para obtenção de esclarecimentos, avaliações, opiniões, etc., como numa entrevista de
emprego” (COSTA, 2008, p.93); no caso específico, tratou-se de uma entrevista de caráter avaliativo,
pois, após a leitura crítica de um texto lido previamente, o professor elaborou perguntas para aquisição
de informações e concretude da aprendizagem pelo aluno.
O gênero entrevista assume as categorias de um gênero assimétrico, pois o entrevistador
organiza um conjunto de perguntas, procurando ouvir e registrar as respostas; por outro lado, o
entrevistado tem conhecimento do assunto, além do poder da palavra, com limites a responder apenas
o que lhe fora questionado. Assim, numa relação de assimetria (SANTOS, 2008), de maneira remota,
entrevistador (professor) e entrevistados (alunos) procuram agir interativamente, em uma entrevista
pela plataforma do google meet, com fins avaliativos, ou melhor para averiguação das ideias contidas
no gênero previamente lido.
Neste trabalho, contemplamos a interação, segundo Thompson (2018), não como: a)
interação face a face com contexto de copresença, cenários espaço-temporais comuns, caráter
dialógico e multiplicidade de sinais simbólicos; b) interação mediada com diferentes categorias
320
MOMENTOS INTERATIVOS 1 E 2
O MOMENTO INTERATIVO 2
O momento interativo 2 foi atribuído ao F3 que usou o turno para também expressar sua
opinião acerca do texto, com um objetivo claro de demonstrar sua apreensão sobre o conteúdo lido,
em período de pandemia, num circuito interativo de comunicação on-line.
F2: bom ... é:: eu acredito que um pontos mais importantes da
tecnologia é a questão dela dentro do meio da saúde né ... a
gente sabe que com o avanço da tecnologia hoje a gente pode
fazer diversos é:: exames é:: entre outras coisas que antes não
era possível ... e com esse avanço da tecnologia hoje é né ...
então facilitou bastante a vida de muitas pessoas ... então eu
coloco o uso da tecnologia no meio da saúde como um dos
pontos ... importantes.
lexical “tecnologia”, como em: “eu acredito que um pontos mais importantes da tecnologia”, “a gente
sabe que com o avanço da tecnologia”, entre outros fragmentos. O importante da repetição é que ela
está inserida em um evento comunicativo para elaborar e reelaborar a realidade, ser um processo
sociocognitivo e negociar os sentidos desse evento (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO,
2014). Esse momento interativo é importante em si por consolidar a interação on-line defendida por
Thompson (2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelas considerações feitas, com enfoque no aspecto interacional desenvolvido nas aulas
de leitura e escrita, em contexto acadêmico, vimos ser possível responder às questões formuladas
inicialmente: a primeira relacionada à inclusão dos gêneros textuais entre as ações inventivas por
ocasião do ensino de categorias conversacionais e textuais, em contexto acadêmico, em tempo de
pandemia; a segunda diz respeito às alterações sofridas pelo conceito de interação.
As análises e as pontuações apresentadas apontam para a possibilidade de ensino de
categorias conversacionais e textuais, em gêneros textuais (entrevista), em pleno circuito das
atividades remotas, quando ações alternativas para o ensino da leitura/escrita devem ser reinventadas;
tudo foi viável por meio da interação on-line, mediada pela plataforma do Google meet.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de Gêneros Textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa; tradução Joice Elias Costa. 3. Ed. Porto Alegre:
Artmed; Bookman, 2009.
KOCH, Ingedore. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto,
2016.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 5. ed., 6ª reimpressão. São Paulo: Editora
Ática, 2003.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
323
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo: Parábola
Editorial, 2012.
PRETI, Dino (org.). Fala e escrita em questão. São Paulo: Humanitas, 2000.
SANTOS, Maria Francisca Oliveira. Simetria e assimetria no discurso de sala de aula. In: MOURA,
Denilda (org.). Os desafios da língua: pesquisas em língua falada e escrita. Maceió: Edufal, 2008.
THOMPSON, Jonh B. A interação mediada na era digital.. V.12 - Nº 3 set./dez. 2018 São Paulo -
Brasil p. 17-44.
324
RESUMO
O estágio supervisionado remoto em língua portuguesa possibilitou uma experiência prática de
saberes e conhecimentos, com a realidade e a rotina escolar, de uma forma diferente da habitual e
revela-se ainda como um período oportuno de organização e preparação para que acadêmicos possam
vivenciar a experiência, vislumbrar as dificuldades cotidianas da educação, os desafios e as carências
individuais de cada aluno, frente a este novo formato de aulas em ambientes virtuais. As aulas
propositivas foram planejadas a partir de uma abordagem dialógica pelo viés teórico de BAKHTIN,
como princípio metodológico transdisciplinar, ou seja, na dialógica não se refuta nenhuma lacuna do
conhecimento e do saber, a condução do conhecimento disciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar
e interdisciplinar fazem parte da unicidade na diversidade que compõe a transdiciplinaridade. Logo,
o planejamento do ensino-aprendizagem partiu do príncipio da complexidade e como possibilidade
de perceber o mundo, a realidade particular e individual dos alunos, de modo a proporcionar aulas
interativas, reflexivas, com a prática de ensino voltada para despertar interesses e discussões a partir
das experiências e cotidiano dos alunos. Os percursos metodológicos das atividades laborais foram
orientados a partir da concordância com as habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
Ensino Fundamental Anos Finais, especificamente da turma do 9º ano. Tais procedimentos
consistiram com transmissão em tempo real, sendo essencial a adoção de tecnologias, permitindo-se
a comunicação, interação e a avaliação dos estudantes, adotando-se aulas expositivas, discussões
temáticas e atividades de pesquisa. A atividade do estágio, desenvolvida na Escola Estadual Professor
Antônio Pinto de Medeiros, seguiu o formato de aulas remotas síncronas e assíncronas mediante a
utilização da plataforma do G suíte. O processo de atividade auxiliar e de acompanhamento, foi
iniciado no dia 19 de agosto de 2020 e encerrado em 18 de novembro do mesmo ano, sob a supervisão
da professora de Português, regente da turma do nono ano. Durante o decurso das aulas remotas
síncronas, teve um momento que despertou a sensibilidade e emoção, na aula ‘começando o debate’,
final seqüencial de três planos de aula, na qual foram apresentadas quatro charges com temáticas
diferentes, ‘educação pública e particular’, ‘o sistema único de saúde’, ‘cotas raciais’ e ‘lei da
palmada’, contextualizadas e explicada, abordando temas polêmicos, além do funcionamento e regras
de um debate. Ademais foi sugerida, que a decisão e escolha do tema fossem feita pelos alunos e
assim, foi decidido à temática da educação e logo na aula subsequente, os alunos organizaram e
participaram do debate, com regras definidas, participação do mediador, dos debatedores, além de
perguntas, respostas, réplicas e tréplicas. De modo que os participantes se apropriaram de forma
crítica, utilizando-se a retórica e argumentação na defesa de suas teses, com discursos afirmativos,
coerentes e fundamentadas diante das percepções e realidades individuais. Portanto, infere-se e
avalia-se de forma satisfatória, mediante a competência, boa desenvoltura e expressividades dos
alunos na tarefa desenvolvida, que o ensino remoto supriu as expectativas e necessidades dos
discentes.
INTRODUÇÃO
104
Mestre em Letras pela UERN. E-mail: marcoscipriano34@hotmail.com
325
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A partir da adaptação das reflexões bakhtinianas para uma abordagem das práticas de
ensino e aprendizagem, algumas atividades podem ser planejadas e executadas para desenvolver ou
aprimorar a compreensão responsiva ativa, bem como os espaços de interlocução, de dialogicidade
na sala de aula.
Na atividade realizada, a justificativa foi contrapor-nos a um trabalho com a oralidade.
Na perspectiva adotada neste estudo, a decodificação é apenas parte do processo de compreensão.
Esse conceito de decodificação está associado ao de descodificação, segundo Bakhtin/Volochinov
(2006). O primeiro conceito pode ser associado à ideia de identificação da materialidade linguística
(compreensão passiva) e o segundo, ao de compreensão (ativa). Segundo Fiorin (2008, p. 6), “isso
quer dizer que a compreensão passiva de significação é apenas parte do processo global de
compreensão. O todo é a compreensão responsiva ativa, que se expressa num ato real de resposta.”
Assim, uma prática de ensino fundamentada numa perspectiva dialógica proporciona uma
integração entre aspectos linguísticos e discursivos. Para que haja a instauração de outros discursos,
que acontecem em função da compreensão, é necessário que se vá além da materialidade linguística
327
do texto, como também que o leitor valha-se de conexões com conhecimentos e informações
anteriores associadas a elementos implícitos ou explícitos no texto. A falta dessas informações,
concebidas como conhecimento de mundo, pode comprometer o processo de compreensão.
No processo de observação e intervenção em sala de aula, percebemos que um dos fatores
que interferem na produção de uma atitude responsiva ativa não é apenas a limitação de
conhecimentos anteriormente adquiridos, é também a capacidade de identificação de informações
implícitas, que, em alguns casos, fica a depender de experiências de leitura e do uso corrente da
língua. Nesse sentido, o professor exerce significativo papel na condução da práxis pedagógica.
Esse papel que o professor pode exercer deve estar em consonância com uma concepção
de língua que vai além de um sistema abstrato de formas, alheio à realidade social do indivíduo; uma
concepção que considera o enunciado como discurso (MAINGUENEAU, 2008). Um discurso que
“reencontra o discurso do outro em todos os caminhos que levam a seu objeto, e um não pode não
entrar em relação viva e intensa com o outro” (MAINGUENEAU, 2008, p. 33).
METODOLOGIA DA PESQUISA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que, o espaço escolar na conjuntura atual se apresenta como um ambiente cercado
de diversos interesses, tanto visíveis e tangíveis, como invisíveis e intangíveis, que são capazes de
afetar tremendamente a vida dos alunos que se encontram inseridos nesse rico espaço.
330
considerado é que os alunos assimilaram a atividades proposta, que foi possível compreender o texto
e a aula sob outra perspectiva, permitindo-se outras produções de sentido tanto acerca do texto do
outro, autor, quando na contra-palavra proposta escrita sobre o dizer desse outro, instaurando, assim,
espaços de dialogicidade, reafirmando a importância dos pressupostos bakhtinianos para um
redimensionamento das concepções que embasam as práticas pedagógicas sobre ensino e
aprendizagem da língua portuguesa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(Tradução Paulo Bezerra).
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
RESUMO
O mundo está, desde o final de 2019, atravessando um período difícil e conturbado por causa da
pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19). E a medida adotada pelos governantes para
conter a disseminação da covid-19 foi o isolamento social. Essa medida forçou algumas mudanças
nos diferentes setores da sociedade, inclusive, na educação. As instituições de ensino de diversos
estados brasileiros adotaram plataformas digitais para a manutenção das aulas durante o isolamento
social implementado. Várias secretarias de educação passaram a utilizar o Google Classroom (Google
Sala de Aula) acompanhado de outras ferramentas digitais. Diante desse contexto, objetivamos, com
o presente trabalho, relatar a experiência da mediação docente nos processos de ensino e
aprendizagem de leitura e de escrita durante o ensino remoto. Para tanto, observamos a atuação de
uma professora de Língua Portuguesa e o desempenho de alunos de uma turma do segundo ano do
Ensino Médio de uma escola pública da rede estadual de ensino localizada no município de Duque
de Caxias no estado do Rio de Janeiro. Os alunos realizaram uma série de atividades de leitura e
escrita com a orientação da professora através da plataforma Google Sala de Aula e do Google Meet.
Tomamos, como pressupostos teóricos, os estudos críticos de autores que tratam da temática do
professor como um mediador e, também, de autores que tratam da prática de leitura e de escrita, em
especial, Giroux (1997), Martins (2007), Tébar (2011), Freire (1988), Lakatos e Marconi (2018,
2019), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). A metodologia utilizada para a realização desta
investigação foi de cunho qualitativo, justamente porque queríamos saber as opiniões e os pontos de
vista dos entrevistados. Os resultados da pesquisa revelaram que os alunos não estavam habituados a
trabalhar a leitura e a escrita da forma que foram trabalhadas nestas aulas e que eles têm dificuldade
no autodidatismo. Concluímos que a atuação ativa do professor é imprescindível para uma melhor
performance de seus alunos, até mesmo, quanto ao uso das ferramentas digitais, pois, apesar de o
Google Meet e o Google Classroom serem ferramentas que aproximam e facilitam a interação entre
alunos e entre alunos e professores, é o docente que realiza a seleção dos conteúdos para pôr na
plataforma; é ele que orienta, medeia e ajuda os discentes a construir sua própria capacidade para
enriquecer seus conhecimentos.
INTRODUÇÃO
Desde o final do ano de 2019, o mundo está atravessando um período inabitual e difícil
por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus (covid-19). E a medida adotada pelos
governantes para conter a disseminação da covid-19 foi o isolamento social. Essa medida forçou
Professora de Língua Portuguesa e Literaturas da Secretaria de Estado e Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC-RJ/
105
Aluna de Pós-Graduação em Linguística Textual e Ensino da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-
mail: glaupecanha@gmail.com
333
REFERENCIAL TEÓRICO
Para a realização desse trabalho, tomamos, como pressupostos teóricos, os estudos
críticos de autores que tratam da temática do professor como um mediador e, também, de autores que
tratam da prática de leitura e de escrita, em especial, Giroux (1997), Martins (2007), Tébar (2011),
Freire (1988), Lakatos e Marconi (2018, 2019), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).
As metodologias ativas são métodos nos quais os alunos são postos no centro do processo
de aprendizagem, ou seja, diferente do método tradicional, que o enfoque era o ensino e o professor
o protagonista, com essas metodologias o aluno passa a protagonizar e é o principal responsável por
sua aprendizagem. Se antes esse discente era passivo, esperava receber todo o conteúdo do docente,
com as metodologias ativas ele se torna participativo e autônomo.
334
A Sala de aula invertida é a metodologia ativa que, como está posto em seu nome,
apresenta uma metodologia inversa à que ocorre na sala de aula tradicional. No ensino tradicional, os
alunos têm o primeiro contato com os conteúdos na sala de aula, todo o ensino é passado pelo
professor e em casa é que resolvem exercícios e, depois, passam por uma avaliação formal
(prova/teste). Já com a Sala de aula invertida, os alunos têm o contato com os conteúdos fora da sala
de aula física (em casa) e levam, para a sala de aula, suas dúvidas, questões, aprendizados e, assim,
há o compartilhamento e a interação. O papel do professor, nessa metodologia, não é passar, transferir
os conteúdos, mas sim mediar os estudos, provocar seus alunos. Fazer com que esses alunos
participem de forma ativa do processo de aprendizagem.
Para que o docente atue de forma efetiva nessa metodologia, é necessária uma formação
desse profissional. Não necessariamente uma formação formal, mas muitas leituras, participações em
eventos acadêmicos, científicos etc., pois, assim, ele terá contato com teorias mais atuais e também
conhecerá experiências na área.
Valente (1999, p.31) diz que “a educação não pode mais ser baseada no fazer que leve ao
compreender”. Sendo assim, o professor precisa estar capacitado para saber o modo que transmitirá
os conhecimentos para que os alunos protagonizem no processo de aprendizagem. O professor
mediador é aquele que mostra os caminhos e orienta seus alunos no percurso. Ele desperta no aluno
o interesse e a vontade de aprender. Com professores mediadores, os alunos não serão mais aqueles
alunos passivos do ensino tradicional. Eles contribuirão com a aula. Levarão para a turma os
conhecimentos que obtiveram em suas pesquisas, por exemplo. Enriquecerão a aula com
questionamentos pertinentes e apresentando suas percepções. Então, esse professor não trabalha
esperando que os alunos compreendam algo exposto por ele, antes, o seu objetivo é que os alunos
façam parte de todo o processo de aprendizagem. E que esses alunos consigam aplicar o que
aprenderam em problemas reais que possam surgir em seu cotidiano. Além disso, que sejam críticos,
que leiam, reflitam e ajam com perspicácia.
Para Giroux (1997), os educadores devem combinar ação e reflexão para formarem
educandos críticos, que analisam o mundo criticamente e o transforma. Em seu ensaio “Professores
como intelectuais transformadores”, ele trabalha com a tese de que o professor não é um técnico, mas
sim um intelectual e, como tal, deve se assumir e ser assumido como intelectual transformador. Ele
diz ainda que o docente deve ser considerado intelectual transformador, cujo forte está em “tornar o
pedagógico mais político e o político mais pedagógico”(GIROUX, 1997, p. 163). Então, nessa
perspectiva, os professores, como intelectuais transformadores, devem contribuir no engajamento de
seus alunos de forma a orientá-los para transformar as situações de injustiças econômicas, políticas
ou sociais.
Ainda dentro dessa perspectiva, destacamos a fala de Tébar (2011, p. 77), pois para ele:
335
O professor é o responsável pela gestão dentro da sala de aula. É ele que leva o grupo a
participar das ações de forma coletiva e comprometida com o interesse de todos. Ele ensina os alunos
a aprender. Por isso o professor precisa sempre estar engajado, atuante, informado e preparado, para,
assim, instruir e orientar seus alunos.
O ato de ler é complexo, com várias relações. O leitor, além de conhecer o código, precisa
prever, antecipar e dialogar com os possíveis sentidos e desfazer ambiguidades. É necessário, ainda,
conferir as informações, articulá-las, relacioná-las com outros saberes, com outros discursos e valores
do contexto social. Ler é construir significados, é buscar e gerar informações.
Confirmando o que está sendo tratado nesta seção do trabalho, Antunes (2003, p. 66) diz
que a leitura é “[...] parte da interação verbal escrita, enquanto implica a participação cooperativa do
leitor na interpretação e na reconstrução do sentido e das intenções pretendidos pelo autor”, isto é,
para ela a leitura não é somente a decodificação do código, a leitura ultrapassa o que está escrito. É a
atribuição de sentido pelo leitor. Além disso, para a autora a atividade de leitura se completa na
atividade de produção textual. Então, as atividades de leitura e produção devem ser trabalhadas
relacionadamente.
Para tanto, os textos precisam circular pela sala de aula. E é muito importante que se
trabalhe a leitura com textos autênticos. É necessário um planejamento de acordo com as necessidades
da turma. Marcuschi (2008, p.51) reforça que:
[…] o ensino de língua deve dar-se através de textos é hoje um consenso tanto entre linguistas
teóricos como aplicados. Sabiamente, essa é, também, uma prática comum na escola e
orientação central dos PCNs. A questão não reside no consenso ou na aceitação deste
postulado, mas no modo como isto é posto em prática, já que muitas são as formas de se
trabalhar texto.
Conforme disse Marcuschi, a questão está na forma que os textos serão trabalhados. O
texto não pode ser utilizado como pretexto para o ensino de gramática. E como os textos são
apresentados, no cotidiano, em gêneros textuais, estes necessitam ser considerados no momento de
ensino-aprendizagem de línguas.
Para Schneuwly e Dolz (2004), “é o gênero que é utilizado como meio de articulação
entre as práticas sociais e os objetos escolares — mais particularmente, no domínio do ensino da
produção de textos orais e escritos”. Então, é imprescindível o uso da sequência didática (SD), que é
“um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero
textual” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97), para o ensino-aprendizagem de
línguas, pois ela (SD) guia tanto o trabalho de leitura quanto o de produção textual. Para que os alunos
produzam textos de determinado gênero, é preciso que leiam textos desse gênero.
Através da sequência didática, o professor pode orientar o aluno no passo a passo. Será
um trabalho de construção. Além de o professor ensinar e o aluno aprender pontos específicos, ficam
mais perceptíveis as dificuldades dos alunos para o professor. Sendo assim, o planejamento feito pelo
337
docente pode ser mais direcionado. O trabalho com as sequências apresenta melhores resultados no
que diz respeito à formação de leitores competentes.
E, como está posto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a escola tem a
responsabilidade de formar leitores competentes.
METODOLOGIA
Local da pesquisa
Sujeitos da pesquisa
Essa pesquisa foi desenvolvida em uma turma do segundo ano do Ensino Médio. A turma
era composta por trinta e dois (32) alunos, com aproximadamente dezesseis, dezoito anos de idade.
No entanto, somente dez alunas participaram de forma mais assídua. Alguns alunos acessaram,
inicialmente, à plataforma adotada para a ministração das aulas, mas, com o passar do tempo, não
estavam mais acessando. Uma parte dos alunos fez as tarefas e respondeu as questões da entrevista
formuladas para a investigação da pesquisa. Diante disso, a maior parte da investigação foi baseada
nas respostas e produções dessas dez alunas.
Método da pesquisa
Implementação pedagógica
compartilhavam com os colegas suas compreensões sobre o assunto trabalhado, suas leituras e,
também, apresentaram sua produção. A professora realizou um trabalho baseado na orientação, na
produção de materiais e na curadoria.
Foi feito um planejamento para que o trabalho pudesse ser realizado. E esse planejamento
foi baseado na sequência didática sugerida por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) associada à
aplicação da metodologia Sala de aula invertida. O procedimento se deu da seguinte forma:
1º Momento: Sondagem para verificar o que os alunos sabiam sobre o gênero cordel. Ocorreu
em uma aula síncrona através do Google Meet.
2º Momento: Os alunos deveriam pesquisar sobre o gênero cordel em um momento assíncrono.
Além disso, a professora postou um vídeo, produzido por ela, com uns três minutos de duração. No
vídeo, ela falou sobre o gênero, leu um cordel para eles, deixou três perguntas para os alunos e pediu
para eles pesquisarem sobre o Patativa do Assaré.
3º Momento: Sondagem para verificar o que os alunos aprenderam sobre o gênero. E, nessa
mesma aula, eles deveriam escrever um primeiro texto, um esboço.
4º Momento: Os alunos deveriam postar a produção inicial na plataforma Google Sala de Aula
para a docente avaliar e corrigir. Alguns alunos enviaram via whatsapp.
5º Momento: postagem de materiais sobre a Literatura de cordel. Então, a professora realizou
também um trabalho de curadoria.
6º Momento: Módulos – trabalhar os problemas de diferentes níveis:
b) Leitura de alguns cordéis. Cada aluno lia, no momento síncrono, os cordéis que havia
escolhido no momento assíncrono.
RESULTADOS
A maioria dos alunos dessa turma não participou ativamente na plataforma. Muito alunos
participaram de forma offline, através da aquisição da apostila feita pelos docentes e disponibilizada
na escola. Então, como já foi mencionado, a pesquisa foi realizada, em sua maior parte, com dez
alunas que participaram de forma assídua.
Em relação ao estudo do gênero cordel, quando perguntados quem já havia estudado esse
gênero, os alunos responderam que nunca havia estudado. E a maioria afirmou não conhecer o gênero.
Na primeira sondagem feita pela professora sobre o gênero, os alunos não souberam dizer
o que é esse gênero, o que o caracteriza. Depois de uma primeira pesquisa, por parte desses alunos,
pouquíssimos souberam responder o que é um cordel. Os alunos responderam parte das perguntas
feitas pela professora. Alguns responderam somente duas ou uma pergunta. Nenhum aluno conseguiu
responder todas as perguntas.
Na entrevista, os alunos disseram que, em relação ao trabalho com textos, o costume era
realizar uma leitura simples somente para responderem exercícios de interpretação de texto, ou seja,
não havia um trabalho minucioso de leitura nem um trabalho de produção textual como realizaram
neste trabalho com o gênero cordel. Inclusive, relataram que só haviam escrito redação do tipo do
ENEM. E somente alguns alunos. Outros nem esse tipo de produção haviam feito.
Sobre o trabalho com metodologia ativa, Sala de aula invertida, quando perguntados se
eles já fizeram uso dessa metodologia, todos responderam que não. Os alunos não estavam
acostumadas a trabalhar neste formato, ou seja, não estudavam e se preparavam para a aula. Estavam
habituados a estudar ou fazer pesquisas quando se tratava de uma avaliação, de um trabalho valendo
nota (de forma direta). Eles tinham muitas dificuldades com o protagonismo. Sentiam-se muito
dependentes da escola, dos professores. Depois desse trabalho, tornaram-se mais autônomos.
De acordo com as respostas dos alunos, nenhum deles tinha trabalhado com sequências
didáticas para aprender determinado gênero textual. Eles falaram que gostaram dessa estratégia e que
foi bastante proveitosa. E que o trabalho, no todo, foi excelente, pois, além de aprenderem muito e
despertarem a criatividade, desenvolveram um pensamento crítico e uma postura mais autônoma.
Enfim, destacaram o quanto foi importante a mediação da professora. Afirmaram que as orientações,
341
a curadoria, a preparação das aulas foram direcionando-os ao resultado final. Observaram a diferença
tanto em suas produções textuais quanto neles mesmos, pois cresceram enquanto estudantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 157-164.
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2019.
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TÉBAR, L. O perfil do professor mediador: pedagogia da mediação. Tradução: Priscila Pereira Mota. São
Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2011.
RESUMO
A literatura é uma substância ampla e abundante cuja composição movimenta uma aporia textual e
contextual vasta. A compreensão, a extensão, a expressão e o conteúdo da arte literária, frutificam um
campo de signos de valores discursivos férteis (COMPAGNON,1999). E, como efeito, no âmbito do
ensino de literatura, as práticas de leitura, escrita e compartilhamento de experiências evocam um
ativismo comunicativo. Justamente, por isso, pode-se perceber a importância da literatura no processo
de formação dos indivíduos, como sujeitos leitores, escritores e intérpretes das diversas realidades do
mundo. À vista disso, considerando, principalmente, o contexto político e educacional do país, no
qual a maioria dos indivíduos têm o primeiro contato com a literatura na escola, compreende-se que
as práticas pedagógicas dos mediadores da leitura literária, ou seja, dos professores, devem motivar
os alunos, sobretudo ao ativismo leitor, a escrita expressiva e a interação comunicativa (STEPHANI
e TINOCO, 2019). As ações de aprendizagem, para que sejam significativas, precisam incentivar e
ensinar o gosto e prazer pela leitura. Entretanto, devido aos desafios enfrentados pela educação
brasileira, efetivar essas atividades em sala de aula não é uma tarefa simples. Por esse motivo, esse
texto objetiva pensar a mediação da leitura literária como prática coletiva dos professores e alunos.
Para tal discussão, utilizamos, como aporte teórico, as proposições de Marisa Lajolo (1993) em
relação à leitura literária e os impasses no âmbito do ensino, também as considerações de Adriana
Demite Stephani e Robson Coelho Tinoco (2019), os quais propõem a mediação da leitura literária
como um processo comunicativo. E, por fim, as sugestões de Edgar Roberto Kirchof (2016) para uma
aprendizagem de literatura que contemple as transformações advindas da cultura digital como uma
aliada na distribuição, na circulação e no ensino desses textos.
INTRODUÇÃO
Antes de falar sobre a leitura literária, atividade que consiste em inferir, a partir de um
processo linguístico, psicológico, representacional e social, os textos definidos como literários, é
necessário articular qual a compreensão que alvitramos sobre o conceito de literatura. Nos estudos
literários, segundo Antoine Compagnon (1999), enquanto definição, em sentido amplo, a literatura
não se remete apenas às escrituras, à erudição e ao conhecimento das letras, mas também a tudo aquilo
que é impresso, “todos os livros que tem na biblioteca”, não se limitando à ficção, mas a produção
histórica, filosófica e científica em geral (COMPAGNON, p.31, 2002).
Em outros termos e em sentido estrito, o que se compreende como produção literária
passa por um limiar de questionamentos sobre os traços de literariedade107 de um texto e, por
consequência, as perguntas insurgidas por essa acepção, amiúde, resgatam questionamentos e
106
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestranda em Estudos de Literatura –lino.gabriella@posgraduacao.uerj.br.
107
A literariedade é o conjunto de atributos estéticos, estilísticos e representacionais do fazer literário. Para Guarany
(1975) ela se apresenta em nível linguístico, contemplando o discurso e a enunciação dos textos literários e em nível
translinguístico, levando em conta a noção de verossimilhança (GUARANY, 1975).
344
caracterizações em relação ao que se dedicam esses escritos (COMPAGNON, 2002). Bem como
elenca Compagnon, quando ele atina as inquisições da Teoria da Literatura que, sistematicamente,
colocam em cheque os possíveis objetivos de um texto literário. Como a perscrutação que nos
interessa para compreender a leitura literária como um processo comunicativo: “o que é e como se
constitui a recepção literária?” (COMPAGNON, p.30, grifos no original, 2002).
Por esse motivo, ao passo que o autor dilucida a literatura como um processo dicotômico
e apórico que, dentro de seu próprio contexto sócio-histórico, reconstitui as composições atribuídas
pelo crivo da literariedade dos textos, tomamos partido da posição de Compagnon. Sobretudo
“porque os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade se apropria sem remetê-los
necessariamente ao seu contexto de origem” (COMPAGNON, p.45, 2002). E é por isso, pelo efeito
do uso singular que a literatura faz da linguagem, que, despojadamente, a leitura do texto literário
acessa um discurso social e destaca a recepção do público, pois os próprios indivíduos os quais
acolhem um texto, determinam os contextos de enunciação dele (COMPAGNON, 2002).
Não é em vão que, para pensar a leitura literária, devemos destacá-la não só como uma
ação de depreensão de textos, mas como um processo comunicativo e formativo. Apesar disso, o que
já não é tarefa fácil no contexto social e político da educação brasileira, torna-se um ofício ainda mais
difícil nos tempos atuais, nos quais uma pandemia assola o mundo e como medida emergencial, há a
necessidade de distanciamento social e, consequentemente, a inviabilização do acesso ao espaço sala
de aula.
Por conta desse contexto, o objetivo deste artigo é pensar o ensino de literatura e a
formação leitora dos alunos como um processo interativo, além de propor, ao final desse texto, uma
ação de aprendizagem multiletrada, com o gênero infopoesia. Sendo assim, em primeiro momento, é
fundamental que ponderemos alguns dos impasses do ensino de literatura e da mediação da leitura
literária no Brasil, antes de propor esta alternativa didática para o trabalho docente. Logo, apoiaremos
as nossas reflexões nas concepções de Lajolo (1993), nas propostas de Stephani e Tinoco (2019) e
Kirchof, (2016), autores os quais refletem a aprendizagem de literatura e as transformações advindas
da cultura digital como uma aliada na distribuição, na circulação e no ensino desses textos.
Na educação brasileira, não só a leitura literária, mas a própria leitura, configura-se como
um processo desafiador para os alunos e professores, a começar pelo acesso aos livros, que ainda não
é democratizado no país e por muito tempo não teve uma política pedagógica educacional para a
fruição deles em sala de aula.
345
Na história da educação, até o século XVII, o sistema de ensino público brasileiro sequer
tinha adotado um material didático norteador de incentivo à leitura, fato que só ocorre entre os séculos
XIX e XX, depois da publicação dos volumes intitulados Livros de Leitura (1865) do professor
Romão Puiggari e das seções de livros para a educação infantil, O Livro das Crianças (1837), da
professora Zalina Rolim (FAILLA, 2012; VALDEZ, 2005).
Com essa herança histórica de pensar o ensino desassociado do papel elementar da leitura,
acrescida do alto índice de analfabetos no país, 6,6%, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística de 2019, o que representa mais de 11,3 milhões brasileiros que não sabem ler,
nem escrever, atualmente, ser um sujeito leitor, é uma condição de privilégio, poder ter a leitura e a
escrita como entretenimento, como hábito ou atividade laboral, é mais ainda. Embora pareça
contraditório, estamos falando de um país que cultiva uma vasta tradição literária e uma história da
literatura assinada por coleções canonizadas mundialmente. Mas sim, nesse mesmo lugar, a
desigualdade social, a pobreza e a miséria, violentamente, retiram o lugar do livro como item básico
de manutenção da vida.
Por vias desses muitos impasses, não é surpreendente que, muitas vezes, o primeiro
contato dos alunos brasileiros com o livro se dê na escola e nem que ele aconteça nas disciplinas de
linguagens, nas aulas de literatura e de português. Muito menos que uma das maiores dificuldades
dos alunos seja a leitura, a interpretação e a produção de textos (STEPHANI e TINOCO, 2019).
Sobretudo, porque o ensino de leitura e a compreensão de textos, majoritariamente, ficam sobre o
encargo dos professores dessas matérias, conjuntura que desconsidera a figura do professor,
independentemente da disciplina que ministra, como um mediador com repertório de leitura para
contribuir na formação do aluno leitor.
A realidade, distante daquilo que é idealizado, só evidencia os problemas estruturais no
projeto básico de educação para formação do aluno nas competências mais estimadas nos planos,
parâmetros, diretrizes e bases que regem as práticas de ensino no Brasil: o desenvolvimento da
capacidade de ler, compreender e escrever diferentes tipos e gêneros de textos. Na Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), documento mais recente dos parâmetros e propostas pedagógicas para
o ensino público e privado no Brasil, apesar dessas competências serem citadas como objetos de
conhecimento e habilidades de todas as disciplinas, é na parte de linguagens, em primeiro momento,
no componente da Língua Portuguesa e depois no de Língua Inglesa, que a BNCC destina eixos à
leitura e à escrita.
Contudo, é na seção dedicada à Língua Portuguesa que as abordagens com relação à
leitura, estão associadas às “práticas de linguagem que decorrem da interação ativa do
leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação”
(BNCC, 2016, p.71). Em continuidade, a BNCC recomenda também que esses norteadores das
346
atividades de leitura, estendam-se à leitura literária e, por consequência, à escrita expressiva, em razão
da base não desassociar as práxis de escrever e ler. Ainda que os operadores de leitura do texto
literário tenham suas especificidades, mesmo que a aporia textual e contextual da leitura e da escrita
expressiva desses textos, fuja a esse “compromisso”, o campo destinado a eles está enredado em um
roteiro similar aos outros gêneros de texto.
No campo artístico-literário, como nomeia a BNCC, “está em jogo a continuidade da
formação do leitor literário e o desenvolvimento da fruição” (BNCC, 2016, p. 503, grifo no original).
Nessa proposta, nota-se um direcionamento procedimental para o trato das práticas das leituras e
escritas literárias: a “análise contextualizada de produções artísticas e dos textos literários”, além de
“formas diversas de produções vinculadas à apreciação das obras”, sejam estas literárias, teatrais,
cinematográficas ou outras produções artísticas as quais incluam “habilidades técnicas e estéticas
mais refinadas” (BNCC, 2016, p.503).
Percebe-se que, para a escrita literária, a qual a base aborda de forma tímida, o “exercício
literário” tem de ser rico “em possibilidades expressivas”, ele também precisa ter “a função de
produzir certos níveis de reconhecimento, empatia e solidariedade e envolve reinventar, questionar e
descobrir-se”, sugere-se que o fazer literário deve explorar as subjetividades “das inter-relações
pessoais” (BNCC, 2016, p.503-504). Eis, nessa proposta, apesar dos direcionamentos instrumentais
sobre o que fazer com o texto literário e como induzir o deleite à escrita expressiva, além da
tendenciosa indicação de “destaque para os clássicos”, isto é, os cânones, um alvitre para a mediação
da leitura e escrita literária como processos interativos e dialógicos (BNCC, 2016, p.503).
E, se, recomenda-se para o cotidiano dos professores de Língua Portuguesa e Literatura
dar suporte nessas atividades, considera-se fundamental que questionemos como essa ação interativa-
expressiva-comunicativa se dá diante do texto literário e de proposições para a sua escrita. Como
essas práticas serão implementadas de forma que a leitura do texto literário e a mediação coletiva dele
se torne um fim e não um meio?
sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpretação como se consomem
pipocas e refrigerantes” (LAJOLO, 2011, p.13). Métodos e procedimentos que arrojam possibilidades
preestabelecidas, “técnicas milagrosas para o convívio harmonioso com o texto”, atividades
programadas de “leitura jogralizada, testes de múltipla escolha, perguntas abertas ou semiabertas,
reescrituras de textos, resumos comentados” (LAJOLO, 2011, p.12-14). Evidentemente, na ocasião
em que o texto literário está presente na sala de aula, quando as aulas de literatura não se restringem
ao ensino da história da literatura, das escolas literárias e da biografia dos autores canonizados, outra
realidade problemática nesse enredo.
Além disso, é necessário chamar atenção também para os problemas que circundam a
figura do professor em relação à sua alçada no tratamento do texto literário, pois, na composição dos
materiais didáticos e paradidáticos, os quais, em tese, são suportes das elaborações das aulas, o
docente não está presente. Segundo Lajolo (2011, p.12), esse movimento retira do professor a atuação
na preparação das aulas, remanescendo a ele “um script de autoria alheia, para cuja composição ele
não foi chamado”, transferindo-se a função às editoras e ao mercado dos livros (LAJOLO, 2011,
p.12).
Em vista disso, depois de discorrer sobre algumas realidades do que se estima para o
ensino de literatura e como, muitas vezes, ele acontece na prática, retomemos a disquisição de
Compagnon (2002, p.23) — “o que é e como se constitui a recepção literária?” — para pensar como
conduzir a proposta de uma mediação interativa, comunicativa e expressiva (COMPAGNON, p.30,
2002).
Para Stephani e Tinoco (2019), refletir sobre o ensino de leitura literária demanda uma
crítica autoavaliativa de como os mediadores desse processo concebem a leitura no contexto escolar,
pois é bem provável que muitos preestabeleçam expectativas de respostas. Nesse contexto, espera-se
que o aluno assuma uma passividade, que ele exerça um papel predefinido numa espécie de ficção,
ou seja, presume-se uma concepção de comunicação formada por dois personagens, o professor,
àquele que enuncia e propõe, e o alunado, àqueles que ouvem e respondem (STEPHANI e TINOCO,
2019).
Esse movimento, por consequência, conflita com os questionamentos de Compagnon
sobre a recepção literária, pois, se, diante de um texto literário, só é levada em consideração a relação
entre o leitor e o texto, de um só leitor — o professor —, que espécie de formação leitora está se
propondo? Provavelmente uma formação passiva erigida na compreensão de análises premeditadas
das quais os alunos não participam. Assim, Stephani e Tinoco (2019, p.51) questionam:
Nesse sentido, a abstração das palavras pessoais antepostas às palavras do outro, cunha
uma fronteira do que, segundo Mikhail Bakhtin (1979), deveria ser um flutuante, isto é, nas
atividades de respostas conduzidas pelas expectativas do mediador, a experiência leitora do aluno
diante do texto é negligenciada. Espera-se uma acomodação e recepção passiva dos alunos, estimativa
que não leva em conta as outras possibilidades de respostas como, por exemplo, o silêncio e o
desprezo (BAKHTIN,1997; STEPHANI e TINOCO, 2019). E desconsidera-se que essas práticas de
respostas guiadas também são formas de utilizar o texto literário como um instrumento e, dessa forma,
evade-se desses escritos a gênese despojada da literatura, o caráter dialógico dela. Além disso, essas
atividades ignoram o “complexo acontecimento do encontro e da interação com a palavra do outro”
(BAKHTIN,1997, p.385).
E é em busca de uma aporia dialógica que sugerimos uma postura interativa no trato do
texto literário. Propomos que na mediação para formação leitora seja levada em conta o incentivo ao
desenvolvimento do gosto pela leitura e a participação ativa do aluno nesse processo. Mesmo que
pareça que está se dizendo o óbvio, a discussão tratada aqui envolve não só um ativismo
comunicativo, mas também ações as quais devam considerar as múltiplas possibilidades de respostas
e interações dos alunos.
É além disso, o que se alvitra é se valer da autenticidade da literatura para fundar um
vínculo de pertencimento, porque na própria relação do leitor com o texto, há um outro escrito sendo
construído, por isso a experiência de leitura desses educandos também deve ser considerada na
mediação da leitura literária em sala de aula. O engajamento desses leitores frente ao texto é o
primeiro limiar dialógico a ser levado em consideração, seguido da construção de sentidos deles, para
que então se inicie a flutuante interação com o mediador, simultânea à escolha de resposta e
expressão.
Assim, é preciso também dar a devida importância à complexidade da interação com o
outro, sobretudo porque a comunicação, ou melhor, “a pergunta, sempre leva consigo mesma e no
interior de sua própria construção, a resposta” (STEPHANI e TINOCO, 2019, p.51). E, “se não
houver resposta, a pergunta perde o seu sentido” (STEPHANI e TINOCO, 2019, p.51). Se não há
uma interação comunicativa e dialógica entre o mediador e os educandos, os quais, por essa troca,
desenvolvem o gosto pela leitura, ao que se dedica então a mediação da leitura literária?
Para os professores Stephani e Tinoco (2019, p. 51) um dos problemas das abordagens
escolares durante a leitura literária, não é somente a resposta em si, pois ela faz parte das práticas
formativas escolares, a questão complicada é conceber este retorno como um momento dissociado da
leitura, “como um momento outro, como uma coisa outra e não como a leitura em si”. O problema é
349
quando a leitura não é o foco da proposta, mas sim, a resposta, a expectativa que os alunos relacionem
pontos, muitas vezes, da história da literatura aos fragmentos do texto literário, predefinidos por
experiências leitoras as quais não são as deles. O impasse dessa dinâmica é quando as construções de
sentidos dos alunos são negligenciadas, quando a apreensão por retornos dentro do esperado pelo
mediador é o foco, ainda que não se saiba de fato o objetivo da resposta e o que se está respondendo:
Como esse professor concebe, de fato, a resposta? Aliás, como ele concebe a pergunta feita
pelo romance? O aluno está respondendo? Como? A quê? A quem? Seria essa a espécie de
resposta que estamos buscando? Será que ela forma leitores de literatura? (STEPHANI e
TINOCO, 2019, p.53).
Nos capítulos anteriores desse texto, foi mencionada a importância da mediação e como
ela pode ser significativa para despertar o gosto pela leitura. Stephani e Tinoco (2019, p. 68) definem
a mediação como “um processo social necessário à vida humana”. Uma vez que essa interação
precede outras “relações interativas, na busca de conduzir o aluno à elaboração de representações
pessoais sobre o objeto de aprendizagem”. A mediação, então, sugere um conhecimento do contexto
e da cultura do lugar onde se media, ela convoca uma atenção à atualidade, aos novos paradigmas, às
novas formas de ensinar e também de aprender.
Por esse motivo, levando em conta os efeitos das transformações digitais e “as facilidades
proporcionadas por esse tipo de tecnologia para produção, distribuição e consumo de informação”
(KIRCHOF, 2016, p. 203). Também o momento atual, no qual, em razão da crise sanitária mundial,
a pandemia de COVID-19, determinou-se como medida preventiva à contaminação, o distanciamento
social e, em tese, o país optou pelo ensino emergencial on-line, o que, inviabilizou o espaço sala de
aula e, assim, tornou-se fundamental que pensemos em ações e práticas docentes para a leitura
literária hoje.
Conforme Edgar Roberto Kirchof (2016), as transformações advindas da cultura digital
trouxeram amplas possibilidades para o mundo da leitura. O livro, antes, somente acessível de forma
impressa, no presente, ganha outras interfaces, “o ciberespaço, onde estão situados virtualmente todos
os textos digitais, propiciou grande liberdade para a produção e divulgação de textos literários”
(KIRCHOF, 2016, p.204). Nesse meio, “alguns escritores hoje iniciam suas atividades literárias no
ciberespaço”, o que não os impede de ter os livros publicados de forma impressa, na verdade, muitos
deles, exploram as múltiplas possibilidades de “recursos transmidiáticos e crossmidiáticos”
(KIRCHOF, 2016, grifos no original, p. 205).
Segundo o autor, esses fenômenos trouxeram ao mundo da leitura “um público cada vez
maior, capaz de consumir livros literários”, bem como “outros produtos culturais” (KIRCHOF, 2016,
p.204). Todavia, o benefício da “facilidade com que uma obra digitalizada pode migrar por diferentes
plataformas de mídia e, inclusive, hibridar-se com outros textos e imagens usando-se ferramentas de
manuseio relativamente simples”, conduz a formas singulares de recepção dos textos, a “novas formas
de experimentação literária” (KIRCHOF, 2016, p.206). O que implica em construções narrativas
antes não possíveis, além da participação do leitor no enredo, ou até mesmo na modificação dele, pois
essas novas possibilidades ressignificam a interação com a leitura, recriam e criam novos gêneros de
textos literários.
O intertexto, o hipertexto e a hipermídia se expandem e se dissipam em outros tipos de
produções literárias diversas, com estéticas e estilos multifacetados, os quais, embora tenhamos o bel-
prazer de explanar, reconhecemos que, assim como Kirchof, em um só artigo não dá para contemplar.
351
Sendo assim, como atividade interativa, sugerimos uma proposta de mediação da leitura literária de
mediação interativa com o gênero infopoesia.
As infopoesias são poesias visuais que se transmutam ao ambiente digital, elas são
caracterizadas pela exploração de diversos recursos da semiótica, senão todos. A “infopoesia expande
quase ao infinito as possibilidades do poeta de lidar com espaço, cor, luz, som, movimento e
fundamentalmente a interatividade” (XAVIER, 2016, p. 187); (KIRCHOF, 2016). Esse gênero da
cultura digital, permite, ainda, a cocriação, formando um campo de intertextos que o leitor pode
acessar, experienciar e recriar. Como por exemplo, a Figura 1 108, o infopoema do autor Bruno
Oliveira:
Figura 1 – Poesia 'AMORXXXXXXXYXYXY '
Levando-se em conta que o gênero infopoesia é uma prática multiletrada que considera a
diversidade das linguagens visuais, textuais e semióticas, e proporciona uma integração do “contexto
cultural e linguisticamente diverso, [...] suas linguagens, suas materialidades, muito afetadas por
invenções como o computador e a multimídia” (RIBEIRO, 2020, p.11). Também que, a partir do
desenvolvimento de ações de mediação coletiva com infopoesias, desenvolve-se a leitura literária
interativa, significativa e que possibilita múltiplas respostas ativas, provocando a ação dos sujeitos
envolvidos, propomos uma atividade conforme os quatro fatores da pedagogia dos letramentos,
metodologia do New London Group (1996). É importante destacar que as ações dessa proposta são
pensadas tanto para turmas dos anos finais do Ensino Fundamental, como para turmas de todos os
anos do Ensino Médio. As atividades multiletradas são ordenadas em quatro momentos: 1) Prática
108
Figura 1. Disponível em:<http://www.mallarmargens.com/2021/01/ultrapassar-os limites-da-forma-poemas.html>.
Acesso em: 23 de Janeiro de 2021.
352
Para ler
Para (inter)agir
109
Figura 2. Disponível em:<https://arnaldoantunes.com.br/new/sec_livros_view .php?id=12&texto=189>. Acesso em:
23 de Janeiro de 2021.
353
vê na imagem? 2) Quais objetos podem ser identificados? 3) Os objetos da imagem remete a algo que
você conheça? 4) Quais sentimentos essas cores transmitem a você? 5) Qual a mensagem que essa
imagem transmite a você? 6) Podemos chamar essa imagem de poesia?
Para escrever
Nesse momento, o docente deve fazer uma instrução explícita do gênero de texto
infopoesia e apresentar um texto sobre o assunto. Recomendamos a seleção de fragmentos do artigo
“Um conceito de infopoesia” (2011) do autor Jorge Luiz Antônio. É importante que haja um destaque
para a definição e características dos infopoemas, para o contexto de circulação desses gêneros e a
finalidade dele, também a contextualização histórico-literária, à qual herda composições da poesia
concreta. Essa atividade pode ser oral, mas é ideal que os alunos tomem notas escritas.
Para compartilhar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
354
O Brasil vive um dos momentos mais críticos da sua história. Além do colapso sanitário
que estamos enfrentando, vivenciamos uma ruína moral e uma crise educacional cujo legado é um
cenário de desigualdade ainda mais acentuado. Por isso, é necessário reconhecer que a proposta
sugerida neste texto, pode não ser possível de ser realizada com uma parte significativa dos que
deveriam ser o foco dessas ações: os alunos e professores do ensino público brasileiro.
Considerando, principalmente, o fato de que a pandemia de COVID-19 evidenciou ainda
mais as desigualdades sociais e digitais no país e, que, até então, nenhuma proposta unificada de
acesso à inclusão digital foi implementada a nível nacional. Assim, muitos alunos ainda estão sem
acesso às aulas na modalidade remota por falta de aparato tecnológico. Muitos professores e
profissionais da educação relatam a crescente evasão escolar nesse período.
Logo, esse texto, produzido a partir de discussões sobre a leitura e a escrita em suporte
eletrônico, no “IV Seminário de Estudos do Texto e do Discurso” da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, faz sugestões um tanto otimistas sobre a possibilidade de se estabelecer um dos
vínculos estimados pelos documentos educacionais do ensino público: a correlação da literatura, da
escrita expressiva e da leitura com o mundo digital. Levando-se em consideração, sobretudo, que os
recursos digitais, hoje, mais do que nunca, fundamentais na vida dos alunos e no cotidiano escolar,
não fazem parte da realidade de muitos estudantes brasileiros.
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356
Palavras-chave: Estágio curricular. Projeto didático. Ensino de língua portuguesa. Leitura literária.
Formação do leitor.
INTRODUÇÃO
110
Licenciada em Letras (UFPE), jessicacoutinho02@gmail.com
111
Licenciada em Letras e mestra em Educação (UFPE), marianamaris@gmail.com
357
LAJOLO, 2018) e a percepção de letramentos não escolares como tentativas inferiores (STREET,
2014) excluem a possibilidade do trabalho com textos sem prestígio social, que circulam em
ambientes não escolares e que dialogam com distintas realidades – tais como a literatura periférica e
a literatura direcionada para o público juvenil, entre outras expressões artísticas e poéticas. Soares
(2011) explicita a importância de se atentar para a seleção de materiais didáticos, visto que limitar
autores e obras resulta em uma escolarização inadequada a partir do conceito de que literatura diz
respeito a apenas aquelas escolhas.
Ao buscar por pluralidade de textos e ceder espaço para a diversidade, pode-se estabelecer
um diálogo com os discentes a partir de um ensino e aprendizagem numa perspectiva de língua como
aquilo que se vivencia, assim como de gêneros discursivos vinculados ao cotidiano cultural e social
(BUNZEN; FISCHER, 2018). Conforme evidencia Batista (2001), “a língua que se ensina é diferente
do português que se usa no dia a dia”. O distanciamento entre língua e sujeitos (STREET, 2014) e a
concepção de língua como aquilo que não faz parte da vida cotidiana alcançam o trabalho com a
literatura (desde a escolha dos gêneros discursivos à discussão textual) e, de modo consequente, faz
com que a seleção textual seja mais atenta ao currículo prescrito e ao Livro Didático de Português
(LDP), bem como que o professor estabeleça procedimentos metodológicos estritos – ancorados em
determinadas concepções de ensino, conscientes ou não – do que necessariamente preocupada em
desenvolver o letramento literário e ampliar as habilidades de leitura e escrita.
Portanto, com um ensino fundamentado em uma percepção da literatura como objeto
artístico de difícil entendimento, o aluno desenvolve uma “compreensão mitificada e homogênea do
fenômeno literário” (MARTINS, 2006, p. 84), apresentando dificuldade em adentrar no universo
ficcional e simbólico: ser sensibilizado pelo texto, compreender as metáforas, realizar análise
linguística relacionada à leitura de determinada obra, refletir sobre seus impactos e críticas sociais,
correlacioná-los com outros materiais e textos de suportes iguais ou diferentes, etc.
Tendo em vista as tendências voltadas para um ensino fragmentado e tradicional nas aulas
de língua materna na educação básica, pode-se dizer que a disciplina Estágio Supervisionado em
Português IV da UFPE desempenha um movimento contrário a essa tradição. Nela, propõe-se a
elaboração de um projeto didático autoral – com orientação do professor da disciplina – em que os
quatro eixos da língua (leitura, análise linguística, produção textual e oralidade) sejam estruturados a
partir de uma sequência didática interligada, de mesma temática, em que os conteúdos apresentem-
se de modo articulado (SUASSUNA; MELO; COELHO, 2006).
360
escrita/ sistematização). Adaptar alguns pontos do projeto foi fundamental para o estabelecimento de
interações favoráveis para o ensino e aprendizagem.
Também há de se considerar que há uma cultura escolar que, naturalmente, demanda
tempo para (de modo gradual) alterar. Assim, a estagiária buscou um equilíbrio entre a cultura
existente e ao que aspirava mudar, bem como as competências que intencionava ampliar no curto
tempo disponível.
Posteriormente à leitura do conto, houve uma discussão. Inicialmente, seria realizada
oralmente. Porém, foi adaptada para questões escritas no quadro a partir da percepção da estagiária
sobre estratégias didáticas e recursos para obter maior participação:
Quadro 1: Questões norteadoras da discussão literária
Q1: O que vocês entenderam do conto? O que chamou a atenção? O que podemos inferir?
Q4: Por quais razões o Rei optou por não ter conhecimento sobre o que se passava no reino?
Q5: Quais eram os critérios do Rei acerca das informações que chegavam?
Q6: Vocês acham que o Rei estava em condições de cumprir sua função? Por quê?
Q8: A partir do texto, pode-se refletir sobre os nossos atos/atos das outras pessoas?
Q9: A partir do que estamos conversando, responda: a literatura pode ser considerada um ato político?
Por quê?
Fonte: autoras
Partindo do texto literário, a licencianda pôde discutir sobre as impressões da classe sobre
a narrativa e iniciar uma discussão sobre o tema do projeto. Para Cosson (2020) há algumas estratégias
de leitura. Entre elas, está a texto-leitor, que explora “a trama, as imagens sensoriais, os efeitos da
obra sobre o leitor [...]. Esse é o modo de ler, por excelência, daquele que busca ser emocionalmente
tocado” (COSSON, 2020, p. 76).
A partir da Q1, para dar base às questões seguintes, a estagiária explanou o significado
de inferência e de leitura não literal, bem como suas relevâncias para a interpretação textual por meio
da atribuição de significado à narrativa. Desse modo, ela realizou uma introdução sobre leitura de
textos literários para, posteriormente, chegar às discussões mais específicas sobre a temática da
narrativa/ sua relação com o tema do projeto. Tal abordagem foi considerada significativa para aquela
classe devido à anterior identificação de ausência de trabalho com textos da esfera literária. Assim,
buscando alcançar a turma em questão e considerando os conhecimentos prévios dos discentes,
estabeleceu-se uma progressão dos conteúdos no processo de ensino e aprendizagem.
364
o fato de que a tomada de consciência, a pesquisa e a busca por informação (atitude contrária à do
Rei do conto) são fundamentais para obter empoderamento, bem como que a produção de texto
explanada configura um ato político. A relação entre o conto e a produção da aluna foi realizada com
a intencionalidade de promover uma ligação entre as aulas, o indivíduo e o que há fora da escola,
fundamentada na concepção da obra literária “como um enunciado vivo que dialoga com textos
anteriores, mas que aponta também para réplicas na esfera escolar” (BUNZEN; FISCHER, 2015, p.
17).
Em um outro momento, houve uma mediação a partir dos seguintes questionamentos –
finalizando as discussões sobre as relações entre a obra e o mundo:
i) O que o Rei fez na história e que as pessoas Fecham os ouvidos para a realidade.
também fazem na vida real?
ii) De que modo nós agimos como o Rei na vida? Quando naturalizamos questões de desigualdade,
quando vemos uma situação de discriminação e
nos sentimos indiferentes a isso, quando estamos
conformados, quando repassamos informações
sem nos certificar se elas são verídicas.
Fonte: autoras
Por fim, dando continuidade aos questionamentos referidos, a estagiária discutiu sobre a
natureza metafórica do texto lido, relacionando a surdez com todo o restante que estava sendo
discutido. Posteriormente, em um outro momento, a licencianda propôs uma discussão guiada por um
exercício no quadro que solicitava a indicação de personagens e também um resumo do conto – a fim
de observar, nas fichas, se os alunos haviam compreendido a ideia central. As indicações das
características do gênero foram desempenhadas através da retomada dos parágrafos e de uma análise
sobre as escolhas discursivas da autora, bem como algumas noções foram apresentadas a partir de
exemplos cotidianos. Houve uma sistematização no quadro/ caderno e uma ficha. Pela observação
das respostas da ficha, a estagiária em questão confirmou o entendimento da turma, de modo geral,
sobre a história do conto, visto que muitos discentes escreveram um resumo com suas próprias
palavras.
O próximo material selecionado foi a adaptação cinematográfica de Ensaio sobre a
Cegueira (José Saramago). O enredo narra uma cidade acometida por uma cegueira branca e
contagiosa. As pessoas que iam ficando cegas eram colocadas em quarentena. Apenas uma mulher
enxerga – e ela decide fingir-se de cega, para acompanhar o marido no local de isolamento. Aos
poucos, a cegueira acomete toda a cidade. No final, todos voltam a enxergar – com exceção da mulher.
366
Após a exibição do filme (recebida com curiosidade, atenção e interesse pelos discentes),
houve a seguinte discussão a partir de fichas:
Quadro 3 – Ficha de Exercícios
Q1: Qual é o conflito principal de Ensaio sobre a Cegueira?
Q2: Pode-se dizer que, no filme, há um cenário de caos, determinado através de imagens e sons, além
do diálogo estabelecido entre os personagens. Exemplifique tal cenário descrevendo passagens do
filme.
Q3: Leia o trecho abaixo, retirado do livro Ensaio sobre a Cegueira, e responda:
O homem disse. Está a chover, e depois, Quem é você, Não sou daqui, Anda à procura de comida, Sim,
há quatro dias que não comemos, E como sabe que são quatro dias, É um cálculo, Está sozinha, Estou
com o meu marido e uns companheiros, Quantos são, Ato todo, sete (...)
Saramago, J. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
a) No trecho – assim como em todo o livro –, há um desvio da norma padrão. Explique qual é o desvio:
b) De que maneira ler isso faz com que o leitor vivencie o caos que ocorre na narrativa?
Q4: Tanto em As notícias e o mel quanto em Ensaio sobre a Cegueira há a perda de um dos cinco
sentidos do corpo humano. Explique a intencionalidade dos autores:
Q5: “Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te
diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem” (trecho de Ensaio sobre a Cegueira)
a) O que são cegos que, vendo, não veem?
b) Em ensaio sobre a Cegueira, porque a cegueira é branca, não preta?
Q6: Pode-se dizer que o livro Ensaio sobre a Cegueira faz uma crítica social que dialoga com o conto
As notícias e o mel, de Marina Colasanti. A partir do que foi discutido em sala, explique qual é a
crítica.
Fonte: autoras
Houve grande participação oral na discussão do exercício: cerca de metade da classe fez
comentários sobre as questões, assim como os discentes demonstraram mais segurança e menor
hesitação, em comparação ao exercício anterior. Algumas questões tratam do confronto com os
recursos imagéticos e visuais da adaptação cinematográfica (Q2) e dos recursos linguísticos utilizados
pelo autor para apontar desordem no enredo no romance, relacionando a forma com o significado da
obra e evidenciando de que modo tais recursos interferem na experiência literária do leitor (Q3).
Desse modo, pôde-se pensar sobre os modos de expressão de manifestações artísticas de naturezas
distintas (romance e filme), refletindo sobre a língua(gem).
A Q4 relaciona duas obras de gêneros discursivos diferentes (conto e filme),
demonstrando a aproximação temática entre ambos ao darem margem para uma reflexão sobre a
alienação social. Já a Q5-a possui a intencionalidade de refletir sobre a crítica social a partir da
metáfora da cegueira: pessoas que enxergam a realidade, mas que não reparam ou não querem reparar.
Durante a discussão da Q5, os discentes demonstraram bastante dúvida. Desse modo, a estagiária
367
escreveu no quadro a frase “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Saramago). Alguns discentes
participaram, explicando as diferenças aos alunos que ainda não haviam compreendido.
A Q5-b coloca em questão o fato de que a cegueira branca pode estar relacionada ao
excesso de informações. A estagiária levou a discussão contextualizando com os dias atuais,
colocando a possibilidade de as telas brancas, dos celulares e notebooks (com seus aplicativos de
comunicação) deixarem-nos “cegos” devido ao excesso de informações (que não são filtradas antes
de serem disseminadas). A partir dessa colocação, a licencianda mediou uma discussão acerca do
comportamento nas redes sociais e em aplicativos como o WhatsApp, explicitando a importância de
não opinar em todas as postagens que surgem – especialmente aquelas com temas polêmicas, em que
todos comentam e muitos revelam posicionamentos dicotômicos simplistas – sem, antes, pesquisar
bem. Também ofereceu exemplos e conversou sobre como verificar se um site é confiável/ como
pesquisar, bem como a relevância em se adotar esse cuidado. Assim, a temática do projeto foi
fundamentada a partir da relação entre o tema central da narrativa e elementos do cotidiano –
buscando romper com a tradicional concepção de língua como objeto distante (cf. BATISTA, 2001).
A Q7 incitou uma discussão sobre nossos locais no mundo: muitas vezes, somos
identificados por números ou características que chamem a atenção por alguma razão (deficientes,
médicos, etc.) e, assim, perdemos a individualidade. De modo geral, a classe esteve atenta e diversos
alunos entraram na discussão. Um deles sugeriu que nós somos determinados pelo que produzimos,
não por quem somos – demonstrando, assim, habilidade no que diz respeito ao levantamento de
inferências e construção de reflexões pessoais críticas sobre o enredo, atreladas ao social.
Em outra aula, a licencianda aplicou uma avaliação com questões que relacionavam As
notícias e o mel e Ensaio sobre a Cegueira – ambos em diálogo com a ideia de literatura como
instrumento de intervenção e ato político –, bem como enunciados que solicitavam indicação dos
recursos linguísticos-discursivos presentes nos materiais didáticos estudados em sala. O trabalho com
linguagens além do texto verbal escrito contribui para a formação do leitor literário ao possibilitar a
abordagem de relação entre enredos de naturezas diversas – no caso, o verbal escrito e o audiovisual:
relacionou-se obras distintas no que diz respeito à temática e aos artifícios linguísticos.
Para a resolução das questões, fez-se necessário retomar ideias de aulas anteriores acerca
da interferência dos recursos próprios do gênero/ escolhas discursivas do autor na composição da
obra, suscitando discussões sobre de que modo tais escolhas impactam na experiência literária do
leitor (pontuação, linguagem, sons, imagens) e atuam como elementos facilitadores na imersão na
história.
O segundo conto trabalhado em sala – Maria, de Conceição Evaristo, constante na obra
Olhos d’água – foi introdutório à produção textual e selecionado com a intencionalidade de
demonstrar outros modos de produzir contos (com mais ou com menos imagens metafóricas). O
368
enredo conta a história de uma mulher negra que é confundida como cúmplice de um assaltante (por
acaso, seu ex-marido). Os integrantes do ônibus, sem buscarem saber de fato sobre a culpa da
personagem/ sem procurarem por um julgamento justo e legal – e punição apropriada, se fosse o caso
–, golpeiam-na com as próprias mãos até à morte. Ao utilizar o texto, a estagiária retomou discussões
sobre as leituras anteriores e, por último, estabeleceu noções/ exemplos acerca de textos literários e
não literários. A escolha do conto referido configura um afastamento da seleção textual de caráter
tradicional (visto que não diz respeito aos clássicos e/ou presentes no LDP).
CONCLUSÃO
A proposta de ampliação do letramento literário a partir da leitura mostrou-se favorável
ao ensino e aprendizagem: pôde-se provocar uma imersão do aluno-leitor acerca do enredo e formar
o discente a partir do despertar da criticidade ante si próprio e o mundo – demonstrando que a
literatura coloca provocações passíveis de serem veiculadas para a realidade em que se vive, bem
como para o próprio modo de estar e agir na sociedade –, incitando, assim, uma autoanálise e possível
intervenção social. No caso do projeto analisado neste trabalho, houve, a partir da abordagem das
características específicas dos materiais didáticos (discussões sobre a linguagem, atribuição de
possíveis significados e apontamento de análises das especificidades e simbologias do enredo e dos
personagens), uma sensibilização acerca da relevância da busca por informação.
Para que haja distanciamento do tradicional tratamento da literatura, há de se pensar em
formar um sujeito crítico a partir de uma seleção textual de qualidade, da admissão de materiais de
diferentes linguagens, da inclusão de literaturas não canônicas e de produções artísticas diversas como
objetos de estudo. Além disso, deve-se definir estrategicamente as metas de ensino, a carga horária,
as metodologias, os recursos e os conteúdos, considerando os conhecimentos prévios da classe e
partindo da concepção de aula como acontecimento (cf. GERALDI, 2010) – adotando a perspectiva
de que o trabalho docente é passível de reajustes.
REFERÊNCIAS
BAJOUR, C. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Pulo do
Gato, 2012.
BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
BATISTA, A. A. G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
369
BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino
médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M (org.). Português no ensino médio e formação do
professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Paulo: Pedro e João Editores, 2010.
LAJOLO, M. Literatura ontem, hoje, amanhã. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
MARTINS, I. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In: BUNZEN, C.;
MENDONÇA, M. (org.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.
RITER, C. A formação do leitor literário em casa e na escola. São Paulo: Biruta, 2009.
SUASSUNA, L.; MELO, I. F.; COELHO, W. E. O projeto didático: forma de articulação entre
leitura, literatura, produção de texto e análise linguística. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M.
(Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial,
2006.
370
RESUMO
O anúncio da pandemia no Brasil em março de 2020, o isolamento social para conter a contaminação
pelo Covid-19 promoveram a redefinição de espaços e práticas de ensino. As aulas nas escolas
começaram a acontecer virtualmente, o ensino remoto tornou-se uma realidade que transformou as
casas em sala de aula, computadores, celulares, tablets em ambientes de ensino virtual e emergencial.
Com o atual cenário educacional, o espaço-tempo da escola foi ressignificado, exigiu novo olhar e
inquietação sobre como e o que ensinar. Os professores foram pegos de surpresa e tiveram que se
reinventar e ressignificar suas práticas. Essa realidade chama atenção e merece ser interrogada,
especialmente quando levamos em conta o trabalho do professor de língua portuguesa, no contexto
da pandemia. Nesse sentido, essa pesquisa tem o objetivo de investigar a mediação do professor
através do uso do livro didático de Língua Portuguesa para o ensino fundamental em tempos de
pandemia e ensino remoto. Delimitamos como corpus, aulas de português gravadas, disponibilizadas
para esta pesquisa. No processo de análise, levamos em conta os recursos como o livro didático e os
roteiros que a professora utiliza como prática pedagógica dessa mediação. A base teórica deste estudo
perpassaremos principalmente pelos autores Geraldi (1997; 2010;2011), Antunes (2003), Oliveira
(2002). Os documentos oficiais, os PCNs de Língua Portuguesa (1998) também fazem parte de nossas
referências bibliográficas. Como resultados apontamos que na observação de três aulas gravadas pelo
google meet, mesmo fazendo o uso constante do livro didático, uma novidade acontece: em uma das
propostas de atividades a professora se desvia do roteiro proposto pelo material didático e propõe
outras possibilidades para trabalhar a leitura e a escrita de forma dinâmica através do uso híbrido dos
gêneros podcast e lendas e essa proposta desenvolveu respostas significativas para o processo de
ensino-aprendizagem nas aulas remotas, e nos conduziu a refletir estratégias e práticas além do que
estávamos acostumados a ver de forma presencial, diante de uma nova forma de repensar a mediação
do professor de Língua Portuguesa nas aulas remotas.
Palavras-chave: Aula de português. Livro didático. Ensino remoto. Leitura. Escrita.
INTRODUÇÃO
O anúncio da pandemia no Brasil em março de 2020 e o isolamento social para conter a
contaminação pela Covid-19 promoveram a redefinição de espaços e práticas de ensino. As aulas nas
escolas começaram a acontecer virtualmente, o ensino remoto tornou-se uma realidade que
112
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Fundamentos Linguísticos para o ensino da Leitura e
da Escrita. ranilza26@gmail.com
113
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Fundamentos Linguísticos para o ensino da Leitura e
da Escrita. leticialouzeiro@hotmail.com
114
Universidade Federal do Maranhão, Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos Escrita e Produção de Saberes (GEEPS), da UFMA e membro do Grupo de
Pesquisa em Estudo do Texto e do Discurso (GETED), da UFRN. katia.franca@ufma.br
371
transformou casas em sala de aula, computadores, celulares, tablets em ambientes de ensino virtual e
emergencial. Com o atual cenário educacional, o espaço-tempo da escola foi ressignificado, exigiu
novo olhar e inquietação sobre como e o quê ensinar.
Considerando esse contexto, esta pesquisa se propõe a investigar as estratégias de
mediação e a construção das aulas de língua portuguesa no ensino remoto frente ao cenário de
pandemia com a utilização do livro didático e observar como ocorreu a interação dos estudantes na
construção do aprendizado.
Nossos objetivos específicos são: discutir sobre a aula de português como uma
experiência de ensino e pesquisa; observar aulas virtuais de língua portuguesa para alunos do ensino
fundamental considerando as estratégias de mediação pedagógica mobilizados pelo professor; refletir
sobre o espaço ocupado pelo livro didático nas aulas de português, no ensino remoto.
Partindo do que for observado na mediação do professor durante as aulas remotas e
levando em consideração o processo de leitura e escrita diante da ação-interação entre professores e
estudantes, a nossa busca nesse trabalho é abordar os seguintes questionamentos: Como ocorre as
estratégias de uso do livro didático e os roteiros mediados pela professora? Como trabalhar o livro
didático nesse contexto de pandemia? Como ocorre a interação no ensino remoto entre professora e
estudantes?
As estratégias de ensino ressignificaram e os recursos utilizados pelos professores
precisou ser adaptado ao formato remoto, logo a mediação do professor ganhou um novo olhar, pois
“O processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores, distinguindo o homem dos outros animais.” (OLIVEIRA 2002,
p. 33).
É neste sentido que refletimos a questão da mediação do professor de português, pois
segundo Geraldi “o mestre já não se constitui pelo saber que produz, mas por saber um saber
produzido que ele transmite” (GERALDI, 1997, p. 87), no atual cenário de pandemia o professor é
levado a refletir ainda mais suas práticas pedagógicas e precisa saber o que ensinar e como ensinar.
O corpus desta pesquisa foi coletado por meio de três aulas remotas gravadas pelo Google
Meet e a gravação foi autorizada pela professora e pela escola privada que está localizada em São
Gonçalo do Amarante/RN. A coleta dessas aulas foi feita em uma turma do 8º ano do ensino
fundamental II; o nosso objetivo foi observar a mediação do professor de Língua Portuguesa nas
estratégias de perguntas e respostas no espaço de tempo ao se fazer uso do livro didático para as
estratégias de leitura e escrita na modalidade remota.
O estudo dessa temática sobre a mediação do professor diante do ensino remoto foi
embasado com uma formação teórica, iniciando-se por uma pesquisa bibliográfica e análises das aulas
gravadas através da plataforma Google Meet.
372
Faremos exposição das transcrições das aulas oralizadas pela professora e mostraremos
como foram feitas as mediações das produções das atividades através do livro didático.
A análise que faremos desta mediação será uma pesquisa qualitativa, pois o nosso foco é
observar o procedimento de mediação do professor nessas aulas e tentar compreender como ocorre
as estratégias metodológicas para a mediação da leitura e da escrita no processo de ensino-
aprendizagem nas aulas remotas.
Ensinar a escrever obriga o professor a criar condições para que determinados processos se
desenvolvem sem implantá-los diretamente. Desenvolvimento cognitivo nunca se pode
ensinar diretamente. Desenvolvimento psíquico representa uma função autônoma do
aprendiz, mas esta função autônoma do aprendiz, mas esta função precisa do contexto social,
das formas sociais de ensino-aprendizagem, ou seja, dos processos de mediação. (GERALDI,
2010 p.169).
Com a chegada da pandemia, no Brasil em março de 2020 vimos a prática remota ser
difundida de forma alargada. Não tínhamos tempo hábil para nos prepararmos para este momento e
os professores foram pegos de surpresa, surgiram muitas dificuldades em lecionar remotamente. Foi
preciso se reinventar diante dessa realidade e aprender a utilizar plataformas digitais, rever tempo, a
preparação das aulas, as condições para dar suas aulas. E a educação, assim como outros setores
sofreram bastante com tais mudanças.
E, conforme essas mudanças, a escola aderiu o ensino remoto, a qual tornou-se uma
realidade que transformou as casas em sala de aula; computadores, celulares, tablets em ambientes
de ensino virtual e emergencial. As casas tornaram-se salas de aulas, escritórios, academias, igrejas e
com isso as pessoas ficaram muito tempo dentro de casa. Com o atual cenário educacional,
estudavam, trabalhavam, exercitavam-se, rezavam, oravam, divertiam-se e precisaram organizar
todas essas tarefas em um único lugar. Não sabemos ao certo, que consequências teremos no futuro
no ensino-aprendizagem dos estudantes.
O ensino remoto veio como uma possível solução para tempos de pandemia. Já tínhamos
o Ensino à Distância (EaD), que é diferente do ensino remoto, pois no ensino à distância as aulas já
373
foram antecipadamente gravadas; já o ensino remoto preconiza a transmissão em tempo real das aulas,
orientadas pelos mesmos princípios das aulas presenciais.
As aulas remotas visam manter a rotina de sala de aula em um ambiente virtual acessado
por diferentes localidades. O que antes poderia ser um problema para o professor e seus estudantes
utilizarem celulares em sala de aula, hoje é essencial para assistirem às aulas, e o meio de
comunicação e a linguagem da internet pautada de gírias e abreviações, que antes se separava do
espaço físico da escola tornou-se importante nesse tempo de pandemia para rever e avaliar a escrita
dos estudantes, porém o que vemos é que a sala de aula está em um ambiente virtual e isto requer
uma escrita bem mais monitorada tanto por parte dos professores quanto dos estudantes.
E agora nos questionamos: como ensinar diante dessa realidade? Na sala de aula
presencial de antes tínhamos recursos, estratégias e preparação para lecionar de forma presencial
como o auxílio do livro didático (LD), a lousa, leitura compartilhada e debates em sala, agora os
professores precisam rever o que fazer para usar ou adaptar esses instrumentos nas aulas remotas, e
um dos recursos de grande importância para a educação é o livro didático, o qual foi elaborado para
ser trabalhado no contexto presencial.
O LD é bastante significativo como apoio para o trabalho dos professores e as escolas
usufruem desse material por ser um acesso prático para todos, pois possibilita desenvolver
competências e habilidades de leitura, escrita e oralidade. Esse recurso didático traz conceitos,
informações sobre linguagem e possibilita ao professor roteiros e estratégias pedagógicas de como
proceder as aulas propostos pelo próprio LD no processo de interação dessas habilidades.
Esse material didático precisa ser usado pelos estudantes, porque houve um custo
financeiro, há uma certa exigência da escola e dos pais, e o professor é cobrado a cumprir metas de
usar o livro em sua totalidade.
O ensino remoto nos remete a ver os desafios de como fazer uso de um livro didático que
foi elaborado para ser trabalhado presencial, mas no momento precisa ser usado no contexto remoto
diante de um tempo de aula reduzido e com a mesma finalidade de cumprir prazos para concluir os
conteúdos.
MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA
Para falarmos de mediação identificamos três diferentes identidades que são construídas
para o ser professor, na concepção proposta por Geraldi (1997): 1. o professor como um sábio; 2. o
professor como alguém que transmite um saber produzido por outro; e 3. o professor como alguém
374
que aplica um conjunto de técnicas de controle em sala de aula. É o sujeito que domina um certo
saber, o produto do trabalho científico.
A partir destas três identidades, vimos uma quarta que é a concepção de professor
mediador. Esta concepção é ratificada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que apontam
o ensino e a aprendizagem como prática pedagógica, resultantes da articulação de três variáveis, que
são o aluno, os conhecimentos, com os quais se operam nas práticas de linguagem e a mediação do
professor (BRASIL, 1998).
A mediação do professor faz parte de um conjunto de variáveis do ensino-aprendizagem
e essa mediação deve estar atrelada a prática educacional do professor favorecendo assim o objeto do
conhecimento e seus sujeitos.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, abordam a mediação do
professor de forma enfática e vê o professor como alguém que cumpre o seu papel em estabelecer o
conhecimento e organizar ações que possibilitem ao aluno um olhar mais crítico e reflexivo.
“Nas situações de ensino de língua, a mediação do professor é fundamental: cabe a ele
mostrar ao aluno a importância que, no processo de interlocução, a consideração real da palavra do
outro assume, concorde-se com ela ou não” (BRASIL, 1998, p. 47). Assim, considerar o dizer do
outro é considerar o outro, levando em conta as múltiplas possibilidades de análises e reflexões que
estão presentes no discurso do outro.
O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento linguístico e discursivo
com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. O professor,
por sua vez, vai planejar e dirigir ações didáticas, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do
aluno, observando as necessidades dos alunos e as possibilidades de aprendizagem.
Na mediação, o docente é visto como um incentivador e motivador da aprendizagem, que
ativamente colabora para que o aprendiz chegue aos seus objetivos e compreenda o que de fato deve
ser entendido.
muito tem ajudado professores e alunos neste processo, pois facilita devido a dinamicidade durante
os encontros online e durante as pesquisas pedagógicas.
O professor enquanto mediador colabora diretamente para esta interação. São notórias as
dificuldades com a leitura que os estudantes possuem ao longo de suas caminhadas, a respeito disso,
Antunes (2003), nos alerta:
Com enormes dificuldades de leitura, o aluno se vê frustrado no seu esforço de estudar outras
disciplinas e, quase sempre, deixa a escola com a quase inabalável certeza de que é incapaz,
de que é linguisticamente deficiente, inferior, não podendo, portanto, tomar a palavra ou ter
voz para fazer valer seus direitos, para participar ativa e criticamente daquilo que acontece à
sua volta (ANTUNES, 2003, p.20).
O ensino remoto veio como uma alternativa para a educação continuar e com isso muitas
questões vieram à tona no que se refere a como pensar e fazer acontecer a aula em um contexto
marcado por inseguranças em relação à saúde, ao acesso e uso de tecnologias, aos equipamentos para
a realização da aula, ao conhecimento para o uso dos equipamentos, ao tempo de aula comparado as
aulas presenciais, à busca por estratégias para a continuidade do aprendizado dos estudantes e à
mediação do professor.
Mediar o processo ensino/aprendizagem requer criar condições e estratégias que
permitam com que o aluno desenvolva sua cognição naturalmente, pois o desenvolvimento cognitivo
não se pode ensinar diretamente (GERALDI, 2010).
A mediação no ensino remoto nos trouxe uma ampla discussão para esses tempos de
pandemia. Como mediar o ensino/aprendizagem em aulas na modalidade remota? Já que este formato
de aula requer muitas outras habilidades e recursos ainda nem tanto explorados se as aulas
permaneciam com suas atividades até então normais, mas de forma on-line. Assim, pretendemos
apresentar diante das aulas remotas de uma professora de língua portuguesa que nos autorizou
observar suas aulas, assim como a própria instituição de ensino, uma análise de como a professora
desenvolveu suas estratégias de mediação por meio do uso do livro didático.
Nessas aulas, a professora utiliza a plataforma digital Google Meet, além disso ela utiliza
também outros recursos para preparar suas aulas, a exemplo o Powerpoint; e segue um roteiro
preparado por ela, organiza o ambiente das aulas, testa a câmera, áudio e confere todo o material
didático necessário para a aula.
Algo a se considerar também é que antes da pandemia, havia 40 alunos matriculados nesta
turma de 8º ano, após o início da pandemia permaneceram 35, o que representa uma queda de 12,5%.
Estavam presentes nas aulas, em média 28 alunos; destes 28 alunos, apenas 11 dialogavam com a
professora, isto se deu devido a aula durar em média 50 minutos, não houve tempo hábil para todos
socializarem; nem todos os 28 alunos fizeram as atividades do livro didático, veremos isto mais
adiante; nem todos os 28 alunos possuem o livro didático em mãos.
Eu vou compartilhar outra tela com vocês, tá bom? Que é a tela do slide. Certo. E
aqui a gente vai começar a nossa aula de hoje, nós vamos ver um gênero textual que
a gente já conhece, inclusive que a gente fez um trabalho no ano passado eu lembro
que algumas que a gente tem a opção de fazer escrito a reportagem escrita ou a
reportagem gravada, lembram desse trabalho? (PROFESSORA)
A professora vai chamando pelos nomes dos estudantes para a leitura compartilhada e
boa parte da turma interage na leitura da reportagem. A leitura tem duração de 9 minutos e 30
segundos e no decorrer da leitura compartilhada um dos estudantes está sem livro como mostra no
fragmento abaixo:
Miguel (PROFESSORA)
Peraí, professora, eu não tava com o livro na mão não, peraí (ALUNO)
(risos) só assim a gente descobre (PROFESSORA)
Nesse momento da aula a professora espera o estudante pegar o livro para dar
prosseguimento a leitura entre os alunos, podemos perceber aqui com mais clareza o quanto o livro é
de grande utilidade para conseguir acompanhar as aulas de português e fica claro também o quanto a
mediação segue um roteiro do próprio livro didático. Logo em seguida a professora levanta uns
questionamentos para que os estudantes reflitam sobre a temática ‘Beleza da diversidade”
Levando em consideração as estratégias de mediação da professora, bem como a leitura
compartilhada, isto nos leva a refletir sobre o texto de Geraldi (1997), quando ele aponta alguns
questionamentos relevantes para o processo de leitura “(...) para que se lê? O que se lê?” Essa leitura
precisa fazer sentido para quem ler para que assim haja a compreensão para as propostas de
atividades, pois depois dessa leitura a professora segue o roteiro de atividades do livro, a qual as
respostas das atividades vão sendo apresentadas através de slides.
Nessa dinâmica, a professora faz perguntas e apresenta as respostas. Algo a se observar
também é que nas aulas presenciais geralmente os professores aguardam um tempo para os alunos
responderem, no entanto nesse formato, o tempo é mais curto, o que faz com que a professora
apresente as respostas das atividades de forma mais dinâmica.
Para concluir a aula, a professora se despede fazendo mais uma vez uma reflexão sobre a
temática trabalhada e deixando uma frase de Martha Medeiros e pede para eles assinarem o formulário
de frequência.
E assim se conclui esta aula de português: seguindo um roteiro do próprio livro de
perguntas e respostas prontas. Para Geraldi (1997, p. 179) “As perguntas já não são perguntas
didáticas, mas perguntas efetivas que fazem diálogo da sala de aula uma troca e a construção do texto
oral co-enunciado”, ou seja, o professor deixa de ser um mero avaliador e passa a ser o provocador
da troca de informações.
A aula do dia dez de agosto de 2020 teve como tema leitura e interpretação de infográfico.
Esta temática foi retirada do livro didático que a professora utiliza com seus alunos.
O infográfico em questão trata de uma reportagem com o título “Condomínio: bom senso
é essencial para convivência harmoniosa”. Nele há dez itens que tratam sobre as regras de convivência
dos condôminos. Observamos que esta temática aborda assuntos que envolvem a prática da cidadania,
pois trata da convivência harmoniosa entre condôminos.
A aula inicia com a professora fazendo a chamada dos presentes e logo depois ela diz:
“no final da aula eu compartilho aquele link da segunda chamada confirmando né que você tava e
que atividade foi feita.” (Provavelmente referindo-se a algum aluno que perguntou sobre isso via
chat).
Pessoal, vou começar aqui a compartilhar a tela com vocês (PROFESSORA)
Logo após ela retoma o assunto da aula passada ao qual iniciou com as características de
infográfico e diz que irá fazer a leitura de um infográfico com temática sobre condomínios.
Observamos que essa estratégia em retomar as aulas passadas é um recurso bastante utilizado pela
professora.
A professora chama os alunos para participarem da aula e fazerem a leitura compartilhada
do infográfico diz: “vamos lá, leitores, dez pessoas aí para fazerem a leitura e[...]”. Então o primeiro
aluno se prontifica a fazer a leitura do item 01 referente a piscina.
Observamos que a professora chama os alunos de leitores, aqui ela deixa clara sua
intenção, que é formar leitores, além do que ela utiliza a metodologia da leitura compartilhada, pois
pede a participação dos alunos, exatamente para que haja trocas de conhecimento entre eles, o que
resulta numa atividade interativa.
Uma atividade é interativa quando é realizada, conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas
ações se interdependam na busca dos mesmos fins. Assim, numa inter-ação (“ação entre”), o
que cada um faz depende daquilo que o outro faz também: a iniciativa de um é regulada pelas
condições do outro, e toda decisão leva em conta essas condições [...]. (ANTUNES, 2003, p.
45, grifo da autora).
A turma observada tem um total de 28 alunos presentes, dentre estes, onze interagem bem
com a professora. Destacamos três alunos ao qual obtivemos as respostas das atividades que eles
fizeram.
O aluno 01, participa ativamente das aulas, interage bem com a professora e com os
demais alunos. Suas respostas no livro em sua maioria estão quase completas. A professora pergunta
e ele está apto a responder, incentiva os outros alunos a participarem da aula. Utiliza o livro durante
as aulas e responde as atividades no próprio livro. Destaca partes no texto que ele julga ser importante
e participa ativamente das aulas.
379
O aluno 02 não interage nas aulas, mesmo não estando presente neste dia na aula, não se
dispôs a resolver posteriormente as atividades do livro. Não há respostas dos exercícios, pois ele não
fez as atividades. Ele geralmente não participa ativamente das aulas.
Já o aluno 03 não participa tanto nas aulas, pois fala pouco, porém faz anotações em seu
livro, grifa partes que julga serem importantes, responde as atividades em seu livro e fez quase
completa a sua atividade. É um aluno esforçado e muito dedicado. É proativo também. Por exemplo,
no início da aula, quando a professora aguarda o próximo aluno que deverá ler, esse aluno toma
iniciativa e começa a leitura dos itens do infográfico. Está atento quando algo lhe é questionado,
quando a professora pergunta: “E aí, pessoal, o que é que você entende por infográfico? O que seria?
Ele prontamente reponde: Aluno: É uma imagem que... Professora: É uma imagem que? Aluno: Traz
informações.”
No diálogo abaixo, observamos que a professora chama a atenção da turma para
retomarem a atenção à aula.
Vamos lá, olha aí, ó. Vamos lá, gente: questão 4. Página 85 já. É, o que se pode
inferir sobre o item 5? Qual a provável razão de estar nesse infográfico? Vamos
voltar lá (PROFESSORA).
Nestes exemplos de diálogos podemos traçar alguns hábitos que ocorrem dentro das salas
de aula presenciais, que é o fato de baterem foto do quadro. Agora, nas aulas remotas, a foto cedeu
espaço para o print, uma prática utilizada pelos alunos observados. São costumes que foram trazidos
para as aulas remotas. Não é algo novo, mas sim algo que foi transformado.
Após as correções das atividades para casa, a professora já orienta a próxima atividade
extra sala virtual que será uma pequena pesquisa sobre o gênero podcast. Ela diz que se o aluno já
sabe o que é um podcast não precisará pesquisar o que é, apenas deverá ouvir um tipo de podcast.
Antes da aula ser finalizada, a professora chama a atenção para uma frase que ela escolheu
e colocou em slide “Colocar-se no lugar do outro...”. Aqui novamente vemos a atenção para a prática
da cidadania, algo que deve ser comum nas aulas de língua portuguesa.
O que a professora propôs é uma atividade que ajudou a todos os envolvidos na produção
de um projeto pedagógico que contemplou a contação de lendas por meios de podcast. Os alunos
380
gravaram seus áudios, em individual e/ou dupla, contendo efeitos sonoplásticos bem distintos e
interessantes. O resultado veremos na próxima aula observada abaixo. Em suma, a professora utiliza
diversas estratégias de mediação neste formato remoto, entre elas: retoma assuntos de aulas passadas,
faz leitura compartilhada, utiliza trechos do livro didático nos slides (até mesmo para ajudar na
dinâmica da aula) e mesmo com a conexão ruim às vezes, ela sempre repete o assunto quando é
necessário e ao final da aula ela retoma o assunto abordado como forma de fixação e sempre finaliza
com frases reflexivas.
2. Identificar a origem desta lenda (indígena? De qual tribo? De qual região? Onde você a ouviu? Quem
te contou?)
5. Todos os passos acima serão gravados em forma de áudio (pelo celular, via mecanismo de “anotações”
ou WhatsApp) para compor o formato Podcast
7. O Podcast (história e reflexão narrada por você) deve ser enviado até o dia 31/08 – Via WhatsApp.
Fonte: autoras
Percebemos nesse momento algo inovador: a professora faz com que os alunos construam
seus próprios conceitos de podcast através de pesquisas. Ela media esse saber de forma prática e
contextualizada, pois a escola trabalha com um projeto folclórico anual, o que permitiu o uso híbrido
381
dos gêneros podcast e lendas folclóricas. O resultado foi uma produção com 16 podcasts contendo
lendas da Iara, Curupira e outras lendas. O que mais predominou foram as lendas indígenas e quase
todos os alunos seguiram as orientações da professora. Dentre eles destacamos dois podcasts que
falam sobre a lenda da Vitória-régia e outra sobre o boto. Dentre os 16 podcasts transcrevemos dois
que foram bem criativos.
Quadro 2 - Aluno 1
Podcast 1
(Música) Olá sábios populares bem-vindos ao Folclorando, então a história que será contada hoje é uma lenda
indígena e amazônica, de origem tupi-guarani e é muito popular no Brasil, principalmente na região norte e eu terei o
maior prazer juntamente com a membra do nosso podcast Camila em contar esta lenda que conheci pela internet. E antes
de começar eu queria perguntar para vocês. Vocês conhecem a Vitória-régia? Se não, dar uma pesquisada light no google
ou no pai dos burrros. Agora chega de blá-blá se joga na cama ou puxa um banquinho porque a gente vai começar. Oi
meu nome é Camila, sou membro do podcast há um tempo eu gostaria de agradecer a Alice, a criadora do Folclorando
por ter me convidado a participar. Venho hoje contar a lenda da Vitória-Régia, então para os indígenas a lua era a Jaci
que costumava a namorar as indígenas mais bonitas... Então pessoal eu acho que Naiá ficou um pouco obcecada demais
nessa história nessa paixão com Jaci, tanto que ela se jogou de cabeça literalmente, mas no final né, deu tudo certo... Mas
pera aí “tá vendo aquela lua que brilha lá no céu”, quando olhar para a lua e as estrelas lembre dessa lenda... Só não
fiquem tão ansiosos com Naiá eu quero todos vivinhos da silva tá. Beijos.
Fonte: autoras
Quadro 3 - Aluno 2
Podcast 2
(Música) O boto, todos sabem foi uma lenda criada para justificar uma gravidez fora do casamento, bom era
isso que todos os povos antigos diziam, um cientista da época queria capturar o boto e saber como ele virava um homem
elegante e bonito e claro tentando justificar tudo isso a partir da ciência. Eu sou Manoel e essa é a minha história. O
cientista fez o seu acampamento perto de onde o boto ficava e com o seu ajudante robô Push Penas capturaram o famoso
boto e para não morrer o boto teve que virar um elegante homem... (barulho de marteladas)
Fonte: autoras
O podcast 2 não segue todos os critérios solicitados pela professora, mas a estrutura do
gênero é perceptível e aceitável, pois é feita a contação da história do boto e o aluno usa sua
criatividade quanto à entonação de voz, aos efeitos sonoros e ao apresentar no enredo os cientistas
para desvendar a história do boto deixando uma mistura entre verdade e fantasia, quando o estudante
diz: “cientista da época queria capturar o boto e saber como ele virava um homem elegante e bonito,
e claro tentando justificar tudo isso a partir da ciência”. Apesar de não seguir totalmente a sequência
apresentada pela professora, ele consegue ser criativo ao recontar a narrativa.
Nessa aula ficamos surpresas com as orientações e com os resultados obtidos, pois a
professora, de forma sutil, pediu para que os estudantes pesquisassem o que era podcast. Depois
avaliou as pesquisas e explicou a estrutura do gênero e em seguida mostrou o passo a passo da
proposta de atividade, o qual foi repensado o conteúdo, pois seria um gênero a se trabalhar no
trimestre seguinte e ela aproveitou o contexto do projeto folclórico que a escola estava vivenciando
no mês de agosto para trabalhar de forma híbrida dois gêneros orais: podcast e lenda. Isso foi
inovador, pois os estudantes foram protagonistas dos seus saberes, pois o gênero lendas já fazia parte
do conhecimento deles, porém a experiência seria em uma outra nova estrutura e assim houve uma
interação maior com todos os envolvidos.
Diante do exposto, percebemos que mesmo com as dificuldades em lecionar no formato
remoto, a professora foi muito criativa e sábia ao escolher um tema tão contemporâneo (elaboração
de podcast). Ela soube resgatar experiências de outras aulas associando ao conhecimento prévio dos
alunos e utilizou além do Google Meet, aplicativos como WhatsApp que muito ajudou na elaboração
da atividade e comunicação entre os envolvidos.
CONCLUSÃO
O atual cenário do ensino remoto tem contribuído e possibilitado a continuidade do
ensino-aprendizado e oportunizando o aprender e o se reinventar na mediação das práticas através da
casa/sala de aula. Nós observamos que, na turma do 8º ano do Ensino Fundamental, alguns estudantes
se adaptaram ao novo formato, o que proporcionou uma boa interação nas aulas remotas.
A professora buscou alternativas para se comunicar com a turma e a estratégia mais
prática foi o uso do livro didático, porque a maioria da turma possuía o livro em mãos.
Percebemos que o tempo foi insuficiente para trabalhar as atividades de maneira eficaz,
porém a professora buscou ressignificar as suas práticas, pois retomou vivências e conhecimento de
outras aulas, incentivou seus estudantes a ler, quando trouxe a leitura compartilhada e trouxe uma
novidade ao propor a contação de lendas em formato de podcast.
Observamos que, mesmo a mediação sendo feita com o uso constante do livro, uma
novidade acontece: a professora se desvia do roteiro proposto pelo material didático e apresenta outras
383
possibilidades para trabalhar a leitura e a escrita de forma dinâmica e criativa e assim desenvolveu
com os seus estudantes respostas significativas para o processo de ensino-aprendizagem nas aulas
remotas.
Portanto, com as aulas remotas diminuiu-se o tempo das aulas e foi preciso a professora
ressignificar suas práticas pedagógicas. Ela buscou se adequar ao cenário atual e deixou claro que é
possível construir novos roteiros e pensar em práticas significativas de aulas no formato remoto e
desse modo dinamizar o processo de ensino-aprendizagem.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, I. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João editores, 2010
RESUMO
Atualmente, a intensidade das ações comunicativas efetuadas pelas redes sociais tem transformado
essas plataformas em um verdadeiro território minado, atravessado por disputas políticas e
ideológicas e crivado de lutas por poder e pelo controle dos sentidos discursivos circulantes. A cada
dia, novos sujeitos são inseridos nessa esfera de ação e compelidos a realizar por meio dela as mais
diversas práticas sociais e culturais: comprar, vender, entreter-se, informar-se, publicitar, posicionar-
se, relacionar-se afetivamente, gerir a própria imagem, autoafirmar-se nas mais variadas situações.
Esse desafio se desdobra à medida que essas tecnologias digitais permitem integrar diversos tipos de
linguagens, de meios e de modalidades que exigem dos seus usuários capacidades leitoras que
extrapolam o âmbito das práticas escritas mais convencionais. Isso porque o ambiente dinâmico da
cultura digital demonstra ter um fôlego inesgotável, não apenas para promover a circulação frenética
de gêneros textuais, mas também de propor novos rearranjos semióticos, midiáticos e linguísticos,
conferindo aos textos contemporâneos um caráter cada vez mais multimodal. No entanto, não é difícil
identificar o descompasso existente entre esse refinado leque de capacidades leitoras, demandado
pelas práticas de letramentos multimodais, e a reconhecida lacuna na formação de leitores no
cotidiano escolar brasileiro, marcado pelo artificialismo de ações pedagógicas, desvinculadas das
situações comunicativas reais. Assim, de um lado, temos o dinamismo comunicativo dos ambientes
digitais, suas exigências por constantes aprimoramentos das capacidades discursivas, por outro, há
toda uma geração de indivíduos com baixos níveis de compreensão leitora, cuja escolarização não
lhes instrumentou o suficiente para uma atuação cidadã nas diversas esferas de usos da linguagem.
Esse encontro tem se mostrado desastroso em vários aspectos, sobretudo, por viabilizar a alguns
grupos um perigoso movimento de manobra política de todo um segmento social despreparado para
lidar com as sutilezas ideológicas que revestem os sentidos das interações digitais. Considerando a
urgência de operar mudanças no quadro descrito e de viabilizar uma formação crítica de leitores para
protagonizarem as práticas comunicativas digitais de forma ética e responsável, o presente estudo se
propõe a investigar, pela perspectiva dos Multiletramentos e Letramentos Críticos (ROJO, 2012),
(SOUZA, 2011) quais capacidades de leitura são mais solicitadas aos sujeitos em interação nas redes
sociais, em especial no Facebook, procurando explicitar como o desenvolvimento adequado dessas
capacidades pode evitar as armadilhas do típico automatismo responsivo, comum nesses espaços. O
objetivo é elucidar um pouco melhor os mecanismos discursivos e os jogos de força presentes nessa
rede que condicionam as experiências de leitura dos usuários, identificando os principais arranjos
multimodais de seus textos e esclarecendo como seus leitores são instados a interagir com esses
textos.
INTRODUÇÃO
115
Instituto Federal do Paraná (IFPR), Doutora em Letras - Linguagem e Sociedade, e-
mail:alessandra.valerio@ifpr.edu.br
385
móvel ou fixa em suas residências, por meio de dispositivos celulares, o que equivale a 166 milhões
de pessoas com acesso à rede. Mesmo entre a população que vive abaixo da linha de pobreza, 65,9%
encontra-se conectada à internet.
Dentre esse estrato recém conectado, o acesso aos suportes digitais das redes sociais
constitui-se na prática comunicativa mais popularizada entre os brasileiros. 95% dos usuários da
internet frequentam a plataforma Youtube; 90% mantêm contas ativas no Facebook; e 89% utilizam
o aplicativo WhatsApp, conforme indica a pesquisa “Global Digital 2019”, conduzida pela instituição
We are Social, que investiga tendências comportamentais dos usuários de redes sociais. Essa
tendência observa-se, inclusive, entre os segmentos populacionais considerados menos escolarizados
e alfabetizados em nível elementar, respectivamente 29% e 34% dos brasileiros, conforme o último
relatório do INAF (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), publicado em 2018. Segundo a
pesquisa, entre esses grupos, 86% usam WhatsApp, 72% o Facebook e 31% são usuários do
Instagram. Ana Lúcia Lima (2019), coordenadora do projeto, esclarece que essa proporção é pequena
quando comparada a do segmento proficiente, cuja atividade nas redes é mais frequente e mais
regular, mas o alcance do grupo tem se ampliado consideravelmente.
Contudo, se o amplo processo de democratização do acesso às tecnologias informacionais
permitiu conectar segmentos sociais tão distintos à cultura digital, por sua vez, o processo de
apropriação pelos diferentes sujeitos das estratégias discursivas e das práticas efetivas de letramento,
que permeiam essa esfera comunicativa, permanece refletindo as assimetrias sociais originais e seus
conflitos imanentes. E, a despeito de certo deslumbre otimista que imprimiu o tom das percepções
incipientes dessa aparente onda de inclusão digital, celebrando “uma cultura participativa, onde cada
um conta e todos colaboram” (SHIRKY, 2011 apud SANTAELLA, 2016), a consciência atual, acerca
do alcance e dos impactos sociais do uso das novas ferramentas da informação e da comunicação,
descortina um cenário de desafios, no qual grandes possibilidades e potenciais armadilhas caminham
juntas. Isso porque, nos últimos anos, na mesma medida em que assistimos à festa da acessibilidade
aos domínios do digital, presenciamos à proliferação incontida de práticas sociais e comunicativas
enviesadas e antiéticas, pautadas na disseminação de notícias falsas, em boatos, na manipulação de
fatos, nas difamações e na violência discursiva materializada nas mais diversas formas e modalidades
textuais.
Atualmente, a intensidade das ações comunicativas efetuadas pelas redes sociais tem
transformado essas plataformas em um verdadeiro território minado, atravessado por disputas
políticas e ideológicas e crivado de lutas por poder e pelo controle dos sentidos discursivos
circulantes. A cada dia, novos sujeitos são inseridos nessa esfera de ação e compelidos a realizar por
meio dela as mais diversas práticas sociais e culturais: comprar, vender, entreter-se, informar-se,
publicitar, posicionar-se, relacionar-se afetivamente, gerir a própria imagem, buscar autoafirmação e
386
projeção social nas mais variadas situações. E esse desafio se desdobra, à medida que essas
tecnologias digitais permitem integrar diversos tipos de linguagens, de meios e de modalidades que
exigem dos seus usuários capacidades leitoras que extrapolam o âmbito das práticas escritas mais
convencionais. Isso porque o ambiente dinâmico da cultura digital demonstra ter um fôlego
inesgotável, não apenas para promover a circulação frenética de gêneros textuais, mas também para
propor novos rearranjos semióticos, midiáticos e linguísticos, conferindo aos textos contemporâneos
um caráter cada vez mais multimodal.
Assim, indivíduos oriundos de diferentes grupos, de distintas ordens sociais, com
diferentes percursos de letramento escolar, travam uma batalha cotidiana para se situarem em meio à
saturação informacional contemporânea e se apropriarem dos mecanismos enunciativos complexos
com os quais são confrontados nesses espaços. No entanto, uma atuação efetiva e funcional dos
usuários, nas esferas comunicativas das redes sociais, requer mais que o desenvolvimento de
capacidades convencionais de leitura e escrita, requer apropriação crítica de práticas sociais e
discursivas que se articulam sob as mais sofisticadas combinações de linguagens, em que tudo precisa
ser considerado passível de atribuir sentidos:
Esses “novos escritos”, obviamente, dão lugar a novos gêneros discursivos, quase
diariamente: chats, páginas, tweets, posts, fanzines, funclips etc. E isso se dá porque hoje
dispomos de novas tecnologias e ferramentas de “leitura-escrita”, que, convocando novos
letramentos, configuram os enunciados/textos em sua multissemiose (multiplicidade de
semioses ou linguagens), ou multimodalidade. São modos de significar e configurações que
se valem das possibilidades hipertextuais, multimidiáticas e hipermidiáticas do texto
eletrônico e que trazem novas feições para o ato de leitura: já não basta mais a leitura do texto
verbal escrito – é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de signos de outras
modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, som, fala) que o
cercam, ou intercalam ou impregnam (ROJO, 2017, p.1).
Não é difícil identificar o descompasso existente entre esse refinado leque de capacidades
leitoras, demandado pelas práticas de letramentos multimodais, e a reconhecida lacuna na formação
de leitores no cotidiano escolar brasileiro, marcado pelo artificialismo de ações pedagógicas,
desvinculadas das situações comunicativas reais. Assim, de um lado, temos o dinamismo
comunicativo dos ambientes digitais, suas exigências por constantes aprimoramentos das capacidades
discursivas, por outro, há toda uma geração de indivíduos com baixos níveis de compreensão leitora,
cuja escolarização não lhes instrumentou o suficiente para uma atuação cidadã nas diversas esferas
de usos da linguagem. Esse encontro, como dito anteriormente, tem se mostrado desastroso em vários
aspectos, sobretudo, por viabilizar a alguns grupos um perigoso movimento de manobra política de
todo um segmento social despreparado para lidar com as sutilezas ideológicas que revestem os
sentidos das interações digitais.
387
Ler a partir da perspectiva do letramento crítico implica, portanto, desempenhar pelo menos
dois atos simultâneos e inseparáveis: (1) perceber não apenas como o autor produziu
determinados significados que têm origem em seu contexto e seu pertencimento sócio
histórico, mas ao mesmo tempo , (2) perceber como, enquanto leitores, a nossa percepção
desses significados e de seu contexto sócio histórico está inseparável de nosso próprio
contexto sócio histórico e os significados que dele adquirimos. (SOUZA, 2011, p. 132).
e semioses que se articulam para conferir sentido ao conjunto todo de possibilidades da plataforma.
Essa capacidade é proposta na matriz de leitura, apresentada anteriormente, pelo descritor CLD 13:
“Perceber/reconhecer outras linguagens/semioses como constitutivas para elaboração de sentidos nos
gêneros multissemióticos e que contribuem para compressão dos sentidos e ideologias presentes nos
textos.” É indispensável que, no acesso inicial, o sujeito tenha consciência de como a disposição e
combinação dos diferentes recursos visuais, sonoros e verbais, assim como a organização das partes
móveis e fixas do layout constituem um conjunto pensado estrategicamente para direcionar os olhares
e as escolhas do usuário. Artifícios como o tamanho das imagens, títulos, legendas, número de
curtidas e comentários de um post, publicidade direcionada em layout fixo são recursos potenciais
para capitalizar a atenção dos sujeitos e fazê-los permanecer o maior tempo possível na plataforma.
Em meio a essa multiplicidade de apelos, o usuário precisa dispor também da habilidade
de filtrar e selecionar conteúdos e informações relevantes, que atendam aos seus reais interesses e
necessidades naquele espaço. Assim, se o objetivo de acesso à rede social for a interação com amigos
e familiares, for o entretenimento simples ou for a busca por notícias sobre os cenários nacional e
mundial, a capacidade descrita no CLD 15, do quadro: “Observar e selecionar elementos da sintaxe
visual, de modo a organizar as informações relevantes à construção da significação” deve ser ativada
para que o usuário não se perca na rede de distratores, planejada justamente para dissipar o seu foco.
Fonte:
116
Disponível em: https://www.facebook.com/netflixbrasil. Acesso em 22 de jun. 2020.
396
Recuperar o contexto de produção do texto multissemiótico: quem é seu autor? que posição
social ele ocupa? Que ideologias assume e coloca em circulação? Em que situação escreve?
Em que veículo ou instituição? Com que finalidade? Quem ele julga que o lerá? Que lugar
social e que ideologias ele supõe que este leitor intentado ocupa e assume? Como ele valora
seus temas? Positivamente? Negativamente? Que grau de adesão ele intenta? Sem isso, a
compreensão de um texto fica num nível de adesão ao conteúdo literal, pouco desejável a
uma leitura crítica e cidadã. Sem isso, o leitor não dialoga com o texto, mas fica subordinado
a ele. (GOMES, 2017, p. 55).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A plataforma Facebook foi escolhida como objeto da reflexão aqui proposta, justamente
por se constituir como uma rede social complexa e com crescente popularidade. Ao acessar esse
espaço, o usuário é exposto a um design poderoso, multimodal e que articula um variado conjunto de
estímulos interativos que o exortam a consumir cada vez mais conteúdos e a reagir a eles de modo
instantâneo, automático e irreflexivo. A velocidade com novas pautas, debates são postos em
circulação, nessa rede, é diretamente proporcional à rapidez com que esses conteúdos desaparecem
ou são substituídos por outras contendas para que o vício por novidade seja constantemente
alimentado. Em um contexto assim, é urgente pensar em práticas educativas que preparem
397
minimamente os sujeitos para exercerem uma postura crítica e cidadã frente a um cenário em que
abundam a proliferação deliberada da desinformação, da distorção dos fatos, das manipulações
afetivas.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BARTON, D.; LEE, C. Linguagem online: textos e práticas digitais. São Paulo: Parábola Editorial.
2015.
GOMES, R. Gêneros multissemióticos e ensino: uma proposta de matriz de leitura. Trem de Letras,
Alfenas, v. 3, n. 1, p. 56-80, 2017b.
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. 2. ed. London:
Routledge, 2006
SANTAELLA, L. Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política. São Paulo: Ed. Paullus, 2016.
398
RESUMO
INTRODUÇÃO
117
Doutoranda em Cognição e Linguagem, Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Contato:
jack.barcelos1@hotmail.com.
118
Pós-Graduado em Gestão em EAD, Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: amarotiao@yahoo.com.br.
119
Licenciando em Pedagogia, Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert (ISEPAM) Contato:
luizvelasco36800@gmail.com.
120
Licenciando em Pedagogia, Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert (ISEPAM). Contato:
denisebsilva7@gmail.com.
400
por outras partes do mundo. A pandemia foi anunciada no mês de março de 2020 no Brasil, e os
governos decidiram fechar as escolas como uma tentativa de inibir a propagação do vírus, e, dessa
forma, todas as aulas presenciais foram suspensas e a solução foi migrar para as salas de aulas virtuais
para impedir que a COVID-19 se proliferasse na sociedade. No Rio de Janeiro, segundo o jornalista
Audrey Furlaneto (2020) do jornal O Globo, são 47 milhões de alunos sem aulas presenciais.
Com mais de 130 mil escolas fechadas, cerca de 47 milhões de alunos estão sem aulas
presenciais desde o fechamento das instituições para conter a propagação do novo Coronavírus no
país, segundo estimativa do coordenador de desenvolvimento humano do Banco Mundial para o
Brasil.
As orientações foram para as aulas sejam realizadas por meio de videoaulas,
videoconferências e atividades em EaD por período indeterminado, devido à pandemia que afeta mais
de 190 países, que adotaram o mesmo método.
Cabe ressaltar que as faculdades e escolas dos Estados Unidos da América, região com a
maior média de mortos pela COVID-19, cerca de 2000/dia, decretou que o ano escolar, que se
encerraria em junho de 2020, foi cancelado. A rápida mudança para plataformas como, por exemplo,
a plataforma Zoom, está dificultando o acesso e o cumprimento dos currículos, principalmente para
professores menos equipados para navegar na Internet e que têm dificuldade para manusear uma sala
de aula mediada por uma tela e um microfone.
No Brasil, muitos professores cancelaram as aulas porque tinham dificuldades técnicas,
problemas com o Wi-Fi ou entravam em pânico com a perspectiva de dar aula para toda a turma por
meio das novas plataformas de ensino.
As instituições de ensino e outras organizações, e, ainda, grupos que fornecem Educação
à Distância tiveram que ter a responsabilidade de incorporar experiências que possibilitam educadores
e alunos a darem conta dos conteúdos escolares. Foram oferecidas diferentes ferramentas de
comunicação em grupo, com propostas de aulas, apresentações e reuniões on-line.
O trabalho pedagógico se tornou árduo, cansativo e desgastante para a maioria dos
professores. Surgiu o zoom que é uma ferramenta que permite comunicação por vídeo,
videoconferência e áudio, bate-papos e seminários on-line, mas a ferramenta mais utilizada tem sido
o Meet. Sendo assim os professores precisam fazer uso dessas ferramentas com urgência, levando-os
ao desespero. Aos poucos os professores foram se adaptando e fazendo os usos das ferramentas com
a ajuda de outras pessoas que já aprenderam a utilizar (TORI, 2017).
O Google Meet é uma ferramenta muito utilizada nesse momento de pandemia e foram
consolidados concomitantemente os grupos de mediação dos professores com os pais no WhatsApp.
Já é fato a inserção do Ensino Híbrido.
402
Em suma, essas experiências com a COVID-19 servirão como forma de preparo para os
desafios futuros que virão com a próxima epidemia e outros desastres e uma coisa é fato: no momento,
as aulas on-line exigem significativamente de mais atenção. Na prática, os professores não avançaram
em EAD e iniciou-se um processo de ensino árduo e despreparado, cansativo e improvisado e na
maioria das vezes sendo capacitados pelos próprios alunos.
Guimarães (2014), acrescenta que em uma educação pela internet, várias pessoas
diferentes participam do processo educacional: o professor que escreve o que faz a mediação, a equipe
pedagógica, e todos os envolvidos no sistema. No ensino a distância requer um plano de aulas muito
bem estruturado, o que ainda falta à maioria dos professores.
Qualificar professores para trabalhar no ensino on-line já foi uma tarefa mais complexa
no Brasil. Durante a pandemia os professores optaram por recursos tecnológicos, que contemplassem
aulas gravadas de maneira intuitiva e vídeos caseiros improvisados, feito em suas residências.
Portanto, o domínio do ensino e aprendizagem on-line é tarefa para tutores, mediadores
pedagógicos imersos nas novas tecnologias e formados em cursos de capacitação contínua, para dar
conta de novos aplicativos e novas ferramentas interativas e não apenas dar conta de seu home office.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determina a realização de 200 dias “de
efetivo trabalho escolar” e carga horária de 800 horas no ciclo básico. Mas, no entendimento dos
integrantes do CNE ouvidos pela nossa reportagem, esta regra é flexível, especialmente em situação
de emergência nacional. O parágrafo 4º do artigo 32 da LDB “§ 4º O Ensino Fundamental será
presencial, sendo o ensino a distância utilizada como complementação da aprendizagem ou em
situações emergenciais”, por exemplo, autoriza expressamente essa possibilidade para o Ensino
Fundamental. Além do mais, a lei já admite a continuidade das atividades em regime domiciliar nos
casos de alunos doentes ou com alguma incapacidade física. O Decreto 9.057/2017, que regulamenta
a LDB, define que Educação a Distância é:
Com o fechamento provisório de escolas, em que alunos estarão sem aulas presenciais,
há grande preocupação sobre uma possível redução do processo de ensino-aprendizagem. Surgem
assim, várias problemáticas e vários questionamentos que nem a equipe gestora dá conta das respostas
do que acontecerá com a validade dos conteúdos mediados.
403
Para o Ensino Fundamental devem ser pensadas estratégias que incentivem e apoiem
atividades à distância que se tornaram essenciais para reduzir os potenciais efeitos da crise na
educação das crianças.
A importância das mídias e tecnologias na vida dos alunos do ensino fundamental é
inegável, por meio delas estão se modificando ambientes de trabalho, de educação, de diversão e a
própria forma de se comunicar, a multimodalidade está em tudo, no cotidiano das pessoas, fazendo
surgir novas formas de comunicação e, portanto, a comunicação se torna ativa e expressiva, nas aulas
síncronas, nas lives, nas webnars, etc.
Neste período pandêmico uma parte dos alunos está conectada na rede em uma era digital
e tecnológica utilizando aparelhos e recursos como ferramentas de expressão e comunicação, de modo
natural e rotineiro, já os usuários que não são nativos digitais, estão se adaptando as novas
multimodalidades e letramentos, e outros não.
Sendo assim, a problemática que se destacou nessa pesquisa foi a dificuldade de lidar
com as tecnologias dos professores, embora eles estejam se adaptando, foi a despreparo da família
em colaborar com as aprendizagens. Outra problemática mais relevante é a exclusão dos alunos das
camadas populares e a falta de acesso e equipamento de uma quantidade significativa de alunos
brasileiros.
Um dos maiores desafios é a avaliação on-line, que não se tem como saber por quem ela
foi realizada de fato, se o aluno fez sozinho ou com o auxílio de terceiros. São diversos os problemas
que assolam o ato avaliativo, no entanto, o que mais desperta preocupações é o seu uso de forma
desvinculada do processo educativo, como meio de classificação e exclusão dos alunos.
Um grande desafio está no comprometimento do aluno e da família com as aprendizagens,
em casa eles se desconcentram facilmente e acabam procrastinando os conteúdos e acumulando
tarefas.
E, considerando o momento atual de suspensão de aulas presenciais e adoção de aulas
remotas on-line, esse desafio tornou-se ainda mais complexo para os (as) docentes, os responsáveis e
os próprios estudantes.
As possibilidades são diversas, mas requer comprometimento de vários sentidos do corpo,
de atenção, e de vários atributos e competências para lidar com a nova modalidade de ensino. Por se
tratar do Ensino Fundamental, os alunos não têm maturidade para lidar com tantas responsabilidades
e habilidades.
Os programas educacionais na modalidade EaD devem atentar-se ao uso de múltiplos
sentidos para que os ambientes virtuais sejam capazes de integrar elementos verbais e imagéticos com
404
[...] essas novas maneiras de relacionamento com as informações e com a tecnologia podem
transformar a relação pedagógica, pois por essa formação digital, alunos conseguem interagir
com muitas informações ao mesmo tempo, impingindo a necessidade de práticas pedagógicas
que tragam maior relação com as TICs (KNUPPEL, 2016, p. 11).
Sendo assim, diferentes ferramentas estão sendo utilizadas para mediar e avaliar o aluno
em tempos de pandemia, e as escolas do mundo inteiro estão aos poucos adotando o ensino híbrido,
o que possibilita a avaliação presencial, mediada pelos conteúdos em EaD. Não se sabe ainda como
ficará o índice de contaminação do Coronavírus entre as crianças e comunidade escolar, por isso não
se tem uma previsão para o início das aulas presenciais.
METODOLOGIA
Como metodologia buscou-se uma revisão bibliográfica e uma análise dos principais
documentos que abordam a temática EaD na base de dados da Scopus, foram realizadas entrevistas
por meio de um questionário semiestruturado, com posterior análise de conteúdos sob a luz das teorias
da Laurence Bardin (2012).
Foram realizadas entrevistas por meio de um questionário semiestruturado com posterior
análise de conteúdo sob a luz das teorias da Laurence Bardin (2011). O grupo selecionado para essa
pesquisa são os alunos da escola pública da zona rural situada no interior do município de Campos
dos Goytacazes - RJ.
ANÁLISE DE DADOS
As ferramentas utilizadas para essa pesquisa foram os questionários feitos no Google
Forms com perguntas abertas e fechadas semiestruturadas aplicados a 4 professores, 4 alunos e 4
responsáveis, elencando a problemática, desafios e possibilidades do ensino remoto em tempos de
pandemia. O referencial teórico subsidiou com conceitos para dar embasamento para as análises dos
dados.
405
Para a análise dos dados obtidos entre os desafios e possibilidades do professor no ensino
remoto podemos citar os depoimentos abaixo (DP- depoimento do professor):
DP1- “Pra mim o maior desafio é fazer com que os alunos interajam, eu fico falando, falando
e eles na maioria das vezes não interagem comigo, saem da sala toda hora... Desligam a
webcam várias vezes, nem sei de estão ali, me sinto em sala cheia, mas sem ninguém”.
DP2- “O desafio é aprender as mexer nas ferramentas, muita novidade ao mesmo tempo,
mas não sei muita coisa, peço ajuda da minha filha, mas nem sempre está perto para ajudar,
tenho aprender o máximo possível, mas agora estou me adaptando melhor, e a prática vai
levando a perfeição”.
DP3- “Neste momento tudo é desafiador, a internet cai, é difícil sabe... a gente tenta fazer o
melhor, mas nem sempre a gente consegue. Como vou saber se os alunos estão aprendendo
mesmo? São tantos questionamentos sobre esse ensino remoto, será que está dando certo?”.
DP4- “Um grande problema é ficar o dia todo falando e sentado em frente ao computador, é
um desgaste físico, mental e emocional, e celular é o dia todo chegando mensagem com
dúvidas e questionamentos dos alunos, por um lado é bom que mostram o interesse deles,
mas por outro complica, sou esposa, sou mãe, sou filha, e o tempo para tudo isso...”.
DA1- “São muitas atividades juntas, eu fico cansado de ficar a manhã toda assistindo aula,
é um grande desafio para mim, tenho sentindo muita dor de cabeça, e minhas está afetando
até a visão, mas entendo que é a única opção que temos, devemos nos cuidar e não podemos
nos expor a esse vírus...”.
DA2- “Eu aprendo bem menos do que no presencial, a presença do professor contribui muito
para meu aprendizado, sinto falta deste contato, virtualmente não é mesma coisa, eu tenho
muita dificuldade de aprendizado. Eles poderiam diminuir o volume de atividades, para
facilitar”.
DA3- “Pra mim, tudo é um desafio, estudar a distância, não ter um professor para em orientar,
uso de tecnologia exagerado, ou seja, não estou preparado para esse mundo virtual, apesar
da tecnologia está tomando conta de tudo, mas estou em adaptando aos trancos e barrancos”.
406
DA4- “Estou fazendo o meu melhor para conseguir aprender, domino as tecnologias, mas
não tenho paciência, essas aulas remotas são cansativas, mas entendo que os professores
estão se esforçando o máximo para fazer o melhor para os alunos, mas o problema não são
eles, mas sim o sistema...”.
Ao analisar os conteúdos dos depoimentos dos alunos, percebe-se que eles questionam o
volume de atividades, a falta de domínio das novas tecnologias e do contato físico, além de ressaltar
fortes e constantes dores de cabeça, afetando a visão dos estudantes.
Vale ressaltar também que por outro lado, encontram-se alunos que estão inseridos e
familiarizados nessa globalização digital, que apesar de tantas dificuldades estão tendo acesso a uma
quantidade infinita de informações de todas as partes do mundo (OLIVEIRA; MOURA, 2015).
Na etapa de análise de conteúdos dos dados, com a perspectiva dos desafios e
possibilidades nos depoimentos dos responsáveis (DR) destacam-se:
DR1- “É complicado isso tudo que estamos vivendo, isso me deixa nervosa, ver o meu
neto o dia todo no computar. Custei a entender essa situação, mas tivemos que nos
adaptar... A situação emergencial nos fez repensar muita coisa, abraçar a tecnologia e
entender que seu uso é fundamental”.
DR2- “Eu fico chamando toda hora falando, “vai estudar”, “ já viu sua aula hoje? ” E ele não
sossega sentado, se distrai toda hora, e ainda tem a internet cai...é muito difícil. Não vejo a
hora de tudo voltar ao normal, tenho ter muita paciência”.
DR3- “Tudo foi uma grande surpresa. De repente a escola fechada e tínhamos que
transformar a nossa casa em escola, sem nenhuma estrutura. Meu filho sempre gostou de
estudar, mas tem muita dificuldade. Começamos a correr para descobrir como ensinar a
distância, sem nunca ter aprendido. E estamos até hoje, buscando conhecer mais...”
DR4- “Não está sendo fácil, imagino que para todos os envolvidos: escolas, responsáveis e
estudantes”. Mas poderia se pensar em diminuir a quantidade de tarefa das aulas online. Vejo
minha filha, com tanta atividade que tem dias que ela nem almoça direito, e tem que dar
conta de tudo, é mensagem chegando o dia todo. Ela estava pensando em fazer um curso
técnico, mas até desistiu, pois ela disse que não vai dar conta. Ela reclama muito disso”.
Enfim, indo ao encontro das análises dos conteúdos verificou-se que é possível vivenciar
um processo de aprendizagem escolar em uma perspectiva complexa, em diferentes espaços sociais,
no sentido de possibilitar que os alunos vivam como sujeitos de conhecimentos em suas residências.
A partir desta perspectiva percebe-se que alguns conflitos são enfrentados pela equipe escolar e
familiares, mediante a dificuldade do uso da tecnologia.
Machado (2004) afirma que:
Sendo assim, os objetivos propostos foram alcançados, pois houve uma discussão sobre
as estratégias pedagógicas dos usos das ferramentas em EaD, elencando as dificuldades dos usos das
ferramentas durante o ensino remoto nas aulas síncronas e assíncronas. Percebeu-se que tais práticas
deverão aproximar ou distanciar os alunos das aprendizagens ou da exclusão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que este é um momento calamitoso, que carece de união entre as partes,
professores, família e escola para atingir o sucesso da aprendizagem, pois o trabalho conjunto nesta
etapa é de suma importância para o aluno. Nesta pesquisa, ficou evidenciada que há uma necessidade
de fortalecer o elo social e colaborativo entre família e escola.
Portanto, considera-se que todos os participantes da pesquisa por mais conhecimento que
possuam, necessitam cada vez mais de informações tecnológicas continuadas, para que possam
realizar esta contribuição no processo de aprendizagem dos alunos do Ensino Fundamental. O
importante é que todos busquem conhecer, estudar para que de alguma forma o aluno consiga
interagir para compreender o lugar onde está inserido, os caminhos alcançados e enfim conhecer o
mundo.
A educação no Brasil não foi vivenciada antes com a parceria e colaboração ativa da
família, fazendo surgir diferentes problemáticas. Os resultados apontam que os alunos estão lidando
com as tarefas de maneira cansativa por causa dos conteúdos exaustivos, deixando claro o estresse
mental deles e dos responsáveis.
A partir das reflexões abordadas nesta pesquisa é possível perceber que é fundamental
buscar alternativas que reforcem os usos das tecnologias no contexto escolar propondo atividades
408
lúdicas, jogos pedagógicos, inserindo a leitura e a escrita de maneira prazerosa com uso de vídeos
que motivem os alunos e envolvam a família.
REFERÊNCIAS
ACÂMPORA, B. Psicopedagogia clínica: o despertar das potencialidades. 2 ed. Rio de Janeiro: Wak
Editora, 2013.
ALVES, L. Educação Remota: Entre a ilusão e a realidade. Interfaces Científicas, v.8, n.3, p. 348-
365, 2020. Disponível em:
BARDIN, L. Análise de conteúdo (L. de A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). (Obra original publicada
em 1977). Lisboa: Edições 70, 2006.
RESUMO
A estratégia de leitura literária que propomos apresentar advém dos estudos e pesquisas
desenvolvidos no GEAL – Grupo de Estudos em Antropologia Literária (UFPB/CNPq). Para isso,
consideramos a Teoria do Efeito Estético, do teórico alemão Wolfgang Iser (1996). Assim, partindo
da leitura do texto literário, temos a interação texto-leitor, a qual promove um objeto estético, ou seja,
um sentido atribuído ao suporte ficcional (neste caso, o texto literário) diante da
articulação/preenchimentos dos vazios ficcionais. Nesse sentido, para considerar a existência do leitor
real nesse processo interativo, associamos à Teoria do Efeito Estético a tese de Santos (2009), a qual
a partir da Teoria Histórico-Cultural, de Lev Semenovich Vigotski, suplementa-a a partir de uma
perspectiva psicológica, visto que a leitura e todo processo mental perpassa pela cognição. É
exatamente essa uma das questões que motivaram a formulação da Teoria do Efeito Estético: quais
processos ocorrem no indivíduo quando ele lê? Isso posto, propomos a leitura literária a partir da
perspectiva de geração de sentido no leitor, não se preocupando com o imanentismo do porquê o autor
escreveu o texto, mas considerando a experiência desse leitor com o texto, a qual se configura como
pessoal, abstrata e, portanto, virtual. Nesse contexto, o mapeamento da experiência estética consiste
na indicação dos principais conceitos da teoria iseriana a partir da interação com o texto literário, o
que permite o acesso à experiência mencionada, podendo ser feito via fala ou escrita. Diante disso,
temos a hipótese de que a leitura literária via mapeamento da experiência estética, propicia ao leitor
o gerenciamento dos processos mentais ocorridos durante o processo de leitura, possibilitando a
construção de sentido e sua posterior emancipação intelectual e cognitiva, visto que a Teoria
Histórico-Cultural promove o alargamento das Zonas de Desenvolvimento Proximal, gerando novos
Níveis de Desenvolvimento Real e Potencial, que resulta da abordagem educativa vivenciada pela
literatura.
121
Universidade Federal da Paraíba; Licenciado em Letras; kayoriky@hotmail.com.
122
Universidade Federal da Paraíba; Graduando em Letras; josuelbelar@hotmail.com.
410
tentasse responder ou investigar sobre o que acontece na mente do leitor no momento de sua leitura.
Daí, percebemos como a antropologia passa a ser questionada, quando o próprio leitor indaga sobre
os processos mentais ocorridos em sua mente, conforme aponta Santos (2020, p. 97): “Se buscar
sentido é uma atividade antropológica e, quando lemos ficção, fazemos isso de modo notório,
ficcionalizar é, por conseguinte, antropológico.” Processos esses que não são e nem podem ser
visualizados como se tivéssemos uma tela de TV em nosso cérebro, que não estão expostos e
acessíveis como gostaríamos para descrever neste artigo, por exemplo.
Assim, para Iser, em sua Teoria do Efeito Estético, tem-se como principal foco a interação
existente entre o texto e o leitor. Nesse caso, o indivíduo considerado por Iser é o leitor implícito, que
para ele, refere-se à própria estrutura textual, ou seja, ao próprio texto, fazendo dessa interação uma
metáfora, pois implicitamente, o leitor está inscrito no texto (SANTOS, 2020). Como pode, então,
existir interação entre texto-texto? Para se referir a esse equívoco teórico, Costa Lima utilizou a
expressão “calcanhar-de-Aquiles da teoria de Iser” (FARIAS, 2009, p. 242), o que indica um ponto
fraco da teoria.
Considerando isso, Santos (2009) elaborou sua tese de doutorado associando a Teoria do
Efeito Estético de Iser à Teoria Histórico-Cultural de Vigotski, que considera a existência real do
indivíduo no meio social, com o qual ele interage. Além disso, considerou também os conceitos
vigotskianos para pensar sobre os processos de aprendizagem mediados via interação texto-leitor.
Desta feita, podemos pensar no ensino de leitura literária considerando a existência de um leitor real,
“de carne e osso” (SANTOS, 2020) que, através do ato da leitura, é capaz de atribuir sentido ao que
está sendo lido, partindo de seu repertório123 para a construção de novos efeitos estéticos. Na próxima
seção será abordado o mapeamento da experiência estética com o texto literário como sugestão de
estratégia de leitura literária.
123
O repertório do leitor refere-se a todo conhecimento prévio que o indivíduo possui. Na tese de Santos (2009) é
associado ao conceito vigotskiano de Nível de Desenvolvimento Real (NDR).
411
formar estudantes leitores, produtores de textos orais e escritos, falantes e ouvintes, que
saibam compreender e produzir textos em diferentes gêneros, esferas sociais variadas,
diversos suportes textuais e que atendam a diferentes propósitos comunicativos (BRASIL,
2012 apud ALBUQUERQUE, 2019, p. 16).
Diante disso, o processo de leitura, sobretudo a literária, se configura como essencial tanto
para o trabalho do professor quanto para a formação letrada dos estudantes. Assim, podemos associar
essa perspectiva ao processo de leitura literária mediada pelo mapeamento da experiência estética,
sem necessariamente, os alunos terem que conhecer a teoria iseriana e seus conceitos, sendo este um
trabalho mediado pelo professor em sala de aula, através de questionamentos previamente elaborados
124
“Resposta dada pelo leitor ao sentido formulado” (COSTA, 2017, p. 10).
412
por ele. Dessa forma, o processo de letramento, em virtude de sua natureza processual e contínua,
tem como pretensão ultrapassar os muros da escola, para que isso se torne um estilo de vida. Na seção
seguinte, será utilizado para exemplificar o mapeamento da nossa experiência estética o conto Come,
meu filho (1998), de Clarice Lispector.
O conto Come, meu filho, de Clarice Lispector (1998), nos apresenta um diálogo entre
um filho, chamado Paulinho, e sua mãe. Esta tenta convencê-lo a comer, enquanto ele, em sua
aleatoriedade de criança, faz diversos apontamentos e indagações para a mãe. O conto inicia-se com
uma fala de Paulinho, refletindo sobre o formato do mundo, a Terra. As conclusões apresentadas por
Paulinho referem-se às possíveis viagens que ele fez, nas quais ele pôde constatar que o céu do Brasil
é igual ao céu em outros países.
O primeiro fato interessante dessa narrativa é que Paulinho usa o adjetivo “chato” para se
referir a algo raso. Assim, para ele, a distinção entre raso (chato) e fundo vem dos formatos dos pratos
que ele utiliza para comer. Ou seja, o seu conhecimento de mundo sobre o formato da Terra parte de
uma atividade rotineira: a de se alimentar. Em nossa experiência estética isso foi percebido como uma
quebra da good continuation125, pois não esperávamos que uma criança utilizasse a palavra “chato”
para se referir a algo raso, reverberando em sua concepção sobre o formato da Terra, percebido por
sua contemplação ao céu.
Essa quebra da good continuation gerou, em nossa experiência estética, o seguinte vazio:
como essa criança adquiriu esse vocabulário? Assim, tivemos que rearticular a nossa percepção sobre
Paulinho e a forma como ele vê as coisas ao seu redor. Nesse sentido, cabe explicar que o efeito
ocorre em um único processo em nossa mente, e que essa separação para a explicação dos conceitos
é realizada apenas para tornar didático e acessível o mapeamento da experiência estética com o texto
literário.
Outro aspecto interessante na fala do menino é que ele se refere nesse trecho da narrativa
a Ronaldo, a quem não foi dada nenhuma informação sobre sua origem ou presença. Isso gerou em
nossa experiência estética um vazio126, pois nos questionamos sobre quem é esse Ronaldo e por qual
motivo Paulinho se refere a ele utilizando de comparações entre o saber deles dois. Ronaldo será um
125
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Rompimento da continuação natural esperada pelo
leitor/expectador, obrigando-o a reformular novas possibilidades” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
126
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “A possibilidade de um preenchimento, por parte do
leitor/expectador, de um ou mais aspectos do texto/filme que não estão explícitos, dando margem a diversas possibilidades
de sentido” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
413
amigo? Um primo? Vizinho? Uma informação marcante sobre Ronaldo é que ele nunca saiu do
Brasil. Com isso, podemos inferir aspectos de seu contexto social, o que em nossa experiência estética
é chamado de negatividade127, ou seja, a nossa tentativa em preencher um vazio também percebido
em nossa experiência estética com o conto.
A narrativa, caracterizada por ser curta, segue composta apenas de falas representadas por
travessões, com perguntas diversas feitas por Paulinho e respostas curtas dadas pela mãe. Esse diálogo
culmina quando, ao final do conto (e da conversa), ela fala sucintamente para o filho: “não fala tanto,
come” (p. 40). Então, ele a provoca dizendo “mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é
para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?” (p. 40). O diálogo,
em nossa experiência estética com esse texto, foi percebido como um looping128, pois as perguntas
feitas por Paulinho e as breves respostas de sua mãe constituem a estrutura Tema e Horizonte129, sob
a qual pudemos perceber a revisitação ao diálogo composto por diferentes perguntas,
questionamentos e reflexões originados do menino.
Dessa forma, nas últimas falas entre o filho e a mãe, temos como atribuir sentido ao
poema, que é, para nós, a evidenciação de diferentes perspectivas de amor. Em nossa experiência
estética, interpretamos os dois modos de amar que são apresentados no texto: o primeiro, é o ato da
criança de confiar e querer agradar a sua mãe, com suas palavras, pensamentos e falas de menino; o
segundo, é a vontade e o dever natural, abraçado pela mãe, de cuidar de seu filho, demonstrado através
do ato de alimentá-lo, e não apenas isso, mas também supervisionar essa atividade, o que revela que
o amor de mãe refletido na refeição do seu filho, abrange todo o processo, desde preparar o alimento,
servi-lo e constatar que foi, de fato, ingerido.
Por conseguinte, interpretamos o ato amoroso da mãe através de nosso repertório
enquanto filhos, da nossa vivência sendo cuidados e amados por nossas mães com ações que
exprimiam (e ainda exprimem) afeto. Esse laço afetivo é construído como um processo, em uma troca
de expectativas, atribuídas à mãe, que deve cuidar e educar da melhor maneira possível o seu filho, e
a este, o de ser um bom filho, que agrade à mãe, sendo um orgulho para a sua família, um exemplo
do qual toda mãe adora conversar com as amigas. A paciência da mãe, o fato de ela não o mandar se
calar e sempre ouvi-lo, demonstra, no conto, junto com as inimagináveis suposições feitas pelo filho,
além de uma mãe atenciosa, um filho criativo, que tem uma vasta imaginação e capacidade de
127
Definida no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Constituída nas entrelinhas do texto/filme, sendo o aspecto
subjetivo, que não é propriamente dito, mas surge na imaginação do leitor/expectador” (SANTOS et al, 2016 apud
COSTA, 2017).
Definido no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Revisitação de algum trecho ou aspecto do texto/filme, porém
128
com novas perspectivas e possibilidades” (SANTOS et al, 2016 apud COSTA, 2017).
129
Definida no Roteiro Didático Metaprocedimental como “Estrutura que coordena e regula as perspectivas textuais,
alternando-as e colocando-as ora em foco (Tema), ora em plano de fundo (Horizonte)” (SANTOS et al, 2016 apud
COSTA, 2017).
414
questionamento acerca das pequenas coisas existentes ao seu redor, como é o caso da descrição do
pepino feita por Paulinho.
De maneira semelhante, associamos justamente à fase da infância essas falas, perguntas
e argumentações que fluem no pensamento da criança e que ela expõe para as pessoas que convivem
com ela, nas quais ela confia. Ao confiar na e amar a sua mãe, mesmo numa atividade cotidiana como
uma refeição, o menino percebe uma forma de demonstrar afeto, que é lhe confiando essa conversa,
apesar de aleatória, significativa para o fortalecimento do vínculo afetivo existente entre ele e a sua
mãe.
Assim, depreendemos, desse texto literário, diversas leituras e significados, que vêm
desde o nosso repertório enquanto filhos até a experienciação com a leitura do conto associada às
lentes da Teoria do Efeito Estético, sob a qual os conceitos guiaram a percepção de uma de nossas
possibilidades de ser (SANTOS, 2020): a criança. Embora não sejamos mais crianças, carregamos
conosco algumas características desse Paulinho, que, na verdade, representa cada leitor que o lê: a
curiosidade, o questionamento, a descoberta, a busca pelo porquê das coisas e a razão pela qual
escrevemos este artigo, o afeto à nossa profissão e às teorias que permitem realizar as variadas facetas
enquanto jovens pesquisadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, buscamos evidenciar, neste trabalho, a relevância e o potencial que os
conceitos iserianos e a própria Teoria do Efeito Estético possuem no meio acadêmico e para o ensino
de leitura literária. Isto é, considerando o ato da leitura como precursor da atribuição de sentido a um
texto e a possibilidade de sua estruturação, a partir do mapeamento da experiência estética, temos
uma estratégia de leitura literária que põe em evidência o sentido que se atribui ao texto, dando
protagonismo ao leitor para uma interpretação consciente e própria, configurando deste modo, uma
forma de emancipação.
Além disso, ressaltamos que tanto os processos estéticos quanto a observação dos
conceitos em um objeto artístico são abstratos e, portanto, acessados apenas pelo indivíduo. A junção
entre essa experiência pessoal com o auxílio da estrutura textual, possibilitada pelo Roteiro Didático
Metaprocedimental (RDM), torna acessível para o leitor a administração de sua interpretação para
atribuir os sentidos ao que se lê, tomando consciência desse processo que é por natureza, virtual.
Em síntese, nota-se que a leitura, a partir das noções da Teoria do Efeito Estético, coloca
em destaque o sentido que o aluno/leitor atribui ao texto, dando espaço para sua interpretação a partir
de seu repertório, o que pode ainda proporcionar aulas com discussões mais democráticas e
participativas dos alunos, autores de seus próprios mapeamentos e experiências com os textos
literários.
415
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Maria Eduarda do Nascimento. Práticas de leitura na alfabetização: uma
experiência didática. 2019. 41 f. TCC (Graduação) - Curso de Letras, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2019.
COSTA, Rafaela Correia. O ensino da literatura sob uma perspectiva emancipadora: aplicação
do Roteiro Didático Metaprocedimental em Antropologia Literária (RM), no Ensino Médio. 2017. 44
f. TCC (Graduação) - Curso de Letras, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. Disponível em:
<https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/2794/1/RCC21072017.pdf>. Acesso em: 29
dez. 2020.
FARIAS, S. R. de. Tendências da crítica literária contemporânea. João Pessoa: Revista Graphos, v.
11, n. 1, 2009, p. 235-244. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/graphos/issue/view/484>. Acesso em: 29 dez. 2020.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. de Johannes Kretschmer. São Paulo:
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LISPECTOR, Clarice. Come, meu filho. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de
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Metaprocedimental. Relatório técnico científico apresentado ao PROLICEN-UFPB, 2017.
SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Da ficcionalização em cinema para o ensino-
aprendizagem da leitura literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental. Relatório técnico científico de projeto continuado apresentado ao PROLICEN-
UFPB, 2018.
416
SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos, et al. Da ficcionalização em cinema para o ensino-
aprendizagem da leitura literária no Ensino Médio: a criação de um Roteiro Didático
Metaprocedimental. Relatório técnico científico de projeto continuado apresentado ao PROLICEN-
UFPB, 2019.
SANTOS, Carmen Sevilla Gonçalves dos. Atos de ficcionalizar e emancipação do leitor: para além
do oxigênio. Revista Graphos, João Pessoa, v. 22, n. 2, p. 96-111, 18 ago. 2020. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/52620/31716>. Acesso em: 29 dez. 2020.
417
RESUMO
A mediação de leitura literária considerando a tradição oral possibilita ao ouvinte o desejo de ouvir,
ler e descobrir outras histórias. A voz narrante tem sua força, haja vista a relação idiossincrática entre
texto e leitor perpassar pela vibração na leitura e na performance do mediador de leitura e, por
conseguinte, promover o protagonismo do leitor. Assim sendo, levando em consideração o contexto
hodierno de pandemia, os sujeitos a serem considerados neste trabalho são professores e professoras
cursistas da formação continuada Cenas de Leitura, promovida pela Secretaria Municipal de
Educação do Natal/SME e que, apesar da grave situação de emergência que atingiu o mundo,
frequentaram assiduamente, de forma síncrona e assíncrona, os encontros formativos, oferecidos
mensalmente. Para este evento, investigamos a relevância da prosódia na leitura oral e como o
processo de ouvir histórias propicia a formação do leitor de literatura. Consoante, na interface a ser
proposta, a saber: literatura, prosódia e formação do leitor, deve ser considerado que o processo de
ouvir histórias, desde a mais tenra idade, favorece a formação do leitor (ABRAMOVICH, 1989);
assim como, na atividade de contar histórias, a voz narrante seduz (AMARILHA, 2006), de modo
que a leitura literária a partir da oralidade com fruição estética está inserida no processo de recepção
leitora (JAUSS, 1979; ZILBERMAN, 1989), além da relevância da performance do contador de
histórias e da relação cultura escrita e oralidade (MATOS, 2014; SISTO, 2012). Como metodologia,
adotamos a leitura oral dos livros de literatura trabalhados durante a formação de acordo com a
temática dos encontros. Como resultados, apontamos que a criatividade do mediador de leitura seduz
e convoca o leitor para a leitura de narrativas literárias, desperta a imaginação e o prazer da leitura de
literatura por meio da expressividade, do ritmo da voz, da postura corporal, da entonação, da
articulação das palavras, do canto e colabora para formação do professor leitor.
Palavras-chave: Literatura. Prosódia. Formação do leitor.
INTRODUÇÃO
A voz que conduz a narrativa literária é responsável pela sedução no leitor; é ela (a voz)
que convoca o leitor a adentrar o mundo ficcional. Assim sendo, a mediação de leitura literária
considerando a tradição oral possibilita ao ouvinte o desejo de ouvir, ler e descobrir outras histórias.
A voz narrante tem sua força, haja vista a relação idiossincrática entre texto e leitor perpassar pela
vibração na leitura e na performance do mediador de leitura e, por conseguinte, promove o
protagonismo do leitor.
130
E-mail: ferreira.adricarmo@gmail.com
131
E-mail: sayonara7.fernandes@gmail.com
418
Modulação da altura, intensidade, tom, duração, e ritmo da leitura oral de um texto pautada
em sua coesão e coerência. Considera as relações hierárquicas do texto, a aceitabilidade da
interpretação feita pelo/a leitor/a e suas condições de interação leitor-texto-contexto em sua
dimensão voz/audição (CASTELLO-PEREIRA Apud AMARILHA, 2010, p. 98).
420
Ademais, a voz que conduz o texto está permeada pelos elementos prosódicos que são
responsáveis pelo encantamento no sujeito ouvinte: expressividade, ritmo da voz, postura corporal,
entonação, articulação das palavras e o canto, colaborando para a formação do leitor literário.
Consideramos ser o professor um exímio mediador nesse processo de transmissão da
cultura oral paramentado pela prosódia para evocar, por meio da oralidade, o leitor contumaz e ávido
pela leitura de literatura.
De acordo com Jauss (JAUSS, 1979, p. 69), “A experiência primária de uma obra de arte
realiza-se na sintonia com seu efeito estético na compreensão fruidora e na fruição compreensiva”.
No que concerne à experiência estética, ao leitor há possibilidades de adentramento à obra
de arte, estar dentro dela e não apenas contemplá-la. É o efeito estético que possibilita a interação
comunicativa entre leitor e obra literária. Desse modo, a partir da escuta das narrativas literárias
contempladas no decurso da formação continuada Cenas de Leitura, sentimentos e emoções foram
despertados e instigados no leitor ouvinte.
A voz que seduz e o ouvido contemplativo estão interligados no processo de função
comunicativa da experiência estética.
É uma construção social que passa então a ser exercida em suas múltiplas dimensões:
sociocultural, pessoal e institucional, considerando a problemática circundante, a
sistematização de conhecimentos e o desenvolvimento de habilidades necessárias à busca
consciente e coletiva da transformação desejada (SECRETARIA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO, 2010, p. 10).
Por isso, a formação em serviço é garantida ao professor para que ele em seu horário de
planejamento possa garantir melhoria na sua prática docente como mediador de leitura, beneficiando,
em efeito cascata, os atores envolvidos no processo ensino aprendizagem: professores e estudantes.
Sendo assim, anualmente, são ofertados aos pedagogos da Rede Municipal de Ensino do
Natal, por meio de encontros mensais, subsídios teóricos e práticos que possibilitem a melhoria do
ensino e da aprendizagem de leitura de literatura na sala de aula, promoção de leitura em comunidade,
desenvolvimento dos espaços de leitura nas escolas, alargamento de ações leitoras envolvendo toda
comunidade escolar.
Para tanto, para este trabalho adotamos a leitura oral dos livros de literatura trabalhados
durante a formação de acordo com a temática dos encontros, qual seja:
de leitura na escola, continuarão adormecidos em caixas, armários e cantinhos de leituras sem que as
crianças e jovens vivenciem a experiência transitória da leitura de literatura.
Acerca da competência leitora e do envolvimento do indivíduo com a leitura, reportamo-
nos ao relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, que afirma:
Uma pessoa letrada em Leitura não tem apenas as habilidades e os conhecimentos para ler
bem, mas também para valorizar e usar a Leitura com diversas finalidades. Portanto, um dos
objetivos da educação é cultivar não apenas a proficiência, mas também o envolvimento com
a Leitura. Envolvimento, neste contexto, implica a motivação para ler e abrange um conjunto
de características afetivas e comportamentais que incluem o interesse e o prazer na leitura, a
percepção de controle sobre o que é lido, o envolvimento na dimensão social da leitura e as
diversas e frequentes práticas desta (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E
PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2020, p. 53).
A prosódia no processo de recepção leitora: o rei sapo ou henrique de ferro e a experiência estética de
leitura com professores em formação
Para este evento, investigamos a relevância da prosódia na leitura oral e como o processo
de ouvir histórias propicia a formação do leitor de literatura. Consoante, na interface a ser proposta,
a saber: literatura, prosódia e formação do leitor, deve ser considerado que o processo de ouvir
histórias, desde a mais tenra idade, favorece a formação do leitor (ABRAMOVICH, 1989), na
atividade de contar histórias, a voz narrante seduz (AMARILHA, 2006), a leitura literária a partir da
oralidade com fruição estética está inserida no processo de recepção leitora (JAUSS, 1979;
ZILBERMAN, 1989), além da relevância da performance do contador de histórias e da relação
cultura escrita e oralidade (MATOS, 2014; SISTO, 2012).
Portanto, ao explicitarmos o estudo na interface oralidade e escrita com o conto O rei sapo
ou Henrique de ferro, dos autores Jacob e Wilhelm Grimm, cuja narrativa versa a história de uma
princesa que foi obrigada a casar com um sapo, antes precisamos partir da definição de leitura,
enquanto prática social e reflexiva, com as contribuições de Amarilha (1997), Jouve (2002), Smith
(2003) e Yunes (2002b).
424
Para Smith (2003), a leitura é uma interação entre texto e leitor, não há compreensão por
parte do leitor se perguntas não obtiverem respostas. Para que o envolvimento com o texto aconteça,
é uma condição sine qua non, a prática das inferências na ampliação da interação, reflexão,
experiência, criação (SMITH, 2003; JOUVE, 2002).
O texto tem seu sentido atribuído pelo leitor, “a noção de leitura como experiência é
favorecida enormemente pela opção de tratar com a literatura, com a ficção. Nela o sujeito se
experimenta e se transforma enquanto transforma o texto” (YUNES, 2002b, p. 14).
A leitura é ímpar, singular e a responsabilidade de dar vida ao texto é do leitor. Assim
afirma Amarilha:
O texto sem leitor é um texto em estado de repouso, é o ato de ler que revitaliza e acorda o
sistema de vida, valores e formas expressos no texto. O texto sendo lido é o texto em
atividade. Assim, ler o texto é a atividade do texto. Se veementemente acreditássemos e
compreendêssemos esse fato, nós, educadores, iríamos valorizar a leitura, mais do que os
exercícios que com que ela fazemos (AMARILHA, 1997, p. 89).
ensino de literatura pelo método da andaimagem e a forte tradição oral das culturas africanas”
(CAMPOS, 2016, p. 25), e de todas as obras literárias.
Entende-se a metodologia da andaimagem, enquanto fio condutor no processo de
mediação de leitura literária; segundo Graves e Graves (1995): “A experiência de leitura com
andaimes desenvolveu-se a partir da percepção de uma necessidade educacional que tem suas raízes
no senso comum, na experiência de sala de aula e em pesquisas” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 01).
Reportamo-nos, ainda, aos estudos de Vygotsky (1999) acerca da presença do sujeito
mais experiente para entendermos a mediação por andaimagem, no destaque à Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP), que é caracterizada pela distância entre o que se sabe
(Conhecimento Real) e o que se almeja aprender (Conhecimento Potencial).
Assim sendo, na oralização atrelada ao canto na narrativa trabalhada com o grupo de
professores da Rede Municipal de Ensino do Natal, percebemos que os sujeitos envolveram-se em
um entrelaçar de fantasias, risos, encantamento, emoções, imaginação, permeadas pela voz cantada
exaltando a palavra escrita.
Paul Zumthor focou como objeto de estudo no campo da teoria e da crítica literária um
elemento até então estudado apenas pela medicina e pela fonoaudiologia: a voz. Ele tratou a
oralidade como uma abstração e em 1987 escreveu: ‘Somente a voz é concreta, apenas sua
escuta nos faz tocar as coisas’ (MATOS, 2014, p. 53).
Desse modo, por meio da prosódia, dessa voz que leva à fruição literária na leitura oral
podemos fazer nascer no ouvinte o desejo da busca por outras narrativas, desde a mais tenra idade,
propiciando a formação do leitor de literatura, conforme afirmação de Abramovich: “É importante
para a formação de qualquer criança ouvir muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem
para ser leitor, é ter um caminho absolutamente infinito de descobertas e de compreensão do mundo”
(ABRAMOVICH, 1989, p. 16).
Nessa perspectiva, podemos afirmar que há poder na palavra falada, na palavra cantada,
na palavra performática do professor mediador de leitura e está em suas mãos a semente para fazer
fecundar e germinar uma geração de leitores autônomos e conscientes da relevância da leitura
literária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultado deste trabalho, apontamos que a criatividade do mediador de leitura seduz
e convoca o leitor para a leitura de narrativas literárias, desperta a imaginação e o prazer da leitura de
literatura por meio da expressividade, do ritmo da voz, da postura corporal, da entonação, da
articulação das palavras, do canto e colabora para formação do professor leitor.
Constatamos que a palavra cantada é um dos elementos que leva à fruição estética literária
no que concerne ao fomento da formação de um país de leitores, pois no processo de recepção da
obra, o conto apresentado O rei sapo ou Henrique de Ferro, foi acolhido veementemente pelos sujeitos
leitores, e a atuação do mediador de leitura conduzindo a palavra escrita por meio da palavra cantada
convoca, estimula, atrai, encanta o ouvinte.
Concluímos que a voz do mediador de leitura literária, por meio da prosódia, de maneira
articulada com a palavra escrita favorece o processo leitor de encantamento e fruição estética pelas
narrativas literárias.
O professor de sala de aula, enquanto mediador de leitura munido de planejamento por
meio dos moldes da andaimagem, tem em suas mãos, e em sua voz, o poder de encantar e contagiar,
de maneira sofisticada e harmônica, o leitor literário.
REFERÊNCIAS
427
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AMARILHA, M. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura crítica na sala de aula.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
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BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Brasil no Pisa
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para estudo exclusivo do grupo de pesquisa Ensino e Linguagem - GPEL - Programa de Pós-
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JOUVE, V. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
PEREIRA, M. I. P. Panorama das abordagens lingüísticas das questões prosódicas. In: PEREIRA,
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ROJO, R. Esfera ou campos de atividade humana. In: Glossário CEALE: Termos de alfabetização,
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SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. 3. ed. rev. e ampl.- Belo Horizonte:
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YUNES, E.; OSWALD, M. L. (org.). A experiência da leitura. São Paulo: Edições Loyola, 2002b.
ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Série
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ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução por Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, P. Tradução por Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz e Maria Inês de Almeida. Introdução
à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
429
RESUMO
Neste ensaio, o nosso objetivo é propor uma reflexão inicial sobre o texto literário na perspectiva
discursiva, mais especificamente no que se refere à possibilidade de micronarrativas literárias na
perspectiva discursiva como um caminho para a leitura literária no ensino básico. Para isso, partimos
da contextualização do nosso projeto de pesquisa, ainda em fase inicial, pensado para o processo de
seleção para o Doutorado em Linguística Teórica e Descritiva. A nossa proposta no projeto que
abordamos aqui é a leitura literária de micronarrativas em uma perspectiva discursiva; assim, nosso
trabalho se insere na Análise do Discurso Francesa, considerando a incompletude dos sentidos, a
linguagem perpassada pela exterioridade e as especificidades do discurso literário. Para isso,
apoiamos a nossa discussão principalmente em Foucault (2005) quanto à visão de linguagem, de
literatura e de discurso. Partimos das micronarrativas literárias pela sua concisão como marca
característica, a fim de problematizar o processo de significação desses textos que exigem
objetividade estrutural e linguística, a qual pode gerar o entendimento de que essa leitura seria menos
complexa para o leitor, de modo que propomos investigar essa relação entre objetividade linguístico-
estrutural e superficialidade/complexidade de leitura, supondo que essa objetividade na materialidade
linguística é, de alguma forma, compensada pelo leitor que se vê diante de um processo de
significação que vai do dito ao não dito no texto, pela mobilização de conhecimentos discursivos
outros. Trabalhamos com a possibilidade de que esses textos podem configurar como um espaço
privilegiado para a subjetividade do leitor, do qual são exigidas estratégias para além da materialidade
do texto no sentido de interpretar. Para refletir sobre essas questões, propomos uma análise preliminar
de um microconto para averiguar a relação entre concisão linguístico-estrutural e
superficialidade/complexidade de leitura.
Palavras-chave: Ensino. Discurso literário. Leitura literária. Escrita literária. Micronarrativas.
PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
Neste ensaio, temos como objetivo propor uma reflexão inicial sobre o texto literário na
perspectiva discursiva, em especial no que se refere à possibilidade de micronarrativas literárias na
perspectiva discursiva como um caminho para a leitura literária no ensino básico.
Dizemos reflexão inicial porque essa exposição surge como um recorte de um projeto de
pesquisa pensado para o processo de seleção para o Doutorado em Linguística Teórica e Descritiva
na linha do estudo do texto e do discurso, ou seja, é um projeto de pesquisa em fase embrionária
132
E-mail: bbrunafran@yahoo.com.br.
133
E-mail: sulemifabiano@yahoo.com.br.
430
de outras questões também muito relevantes, como o processo de interpretação do discurso literário
em uma micronarrativa que, diferentemente das narrativas tradicionais, precisa organizar a
narratividade com objetividade linguística e estrutural.
Se, por um lado, cabe à escola garantir aos estudantes o acesso às práticas de leitura e
escrita com as quais não têm tanto contato em instâncias sociais fora da escola e, pois, dedicar-se aos
textos literários tradicionais; por outro lado, também precisa garantir um acesso mais sistematizado a
práticas com as quais os estudantes já se relacionam em outras esferas de interação. No caso das
micronarrativas literárias, que são textos em circulação em espaços digitais, a escola pode se
beneficiar dessa prática de leitura e escrita?
Diante dessas primeiras inquietações, para o nosso projeto de pesquisa, pensamos nas
questões: 1) Em uma micronarrativa, a leitura é, necessariamente, menos complexa? 2) Quais são os
movimentos empregados por um leitor no processo de produção de sentidos diante de uma narrativa
literária de estrutura mais objetiva? 3) Uma narrativa literária curta representa, necessariamente, um
discurso mais objetivo? 4) Quais contribuições a Análise do Discurso pode proporcionar à leitura de
narrativas literárias curtas?
Inicialmente, formulamos as hipóteses de que a estrutura mais objetiva de uma narrativa
literária não determina que a leitura seja, necessariamente, menos complexa; e de que a perspectiva
da Análise do Discurso pode favorecer a interpretação de narrativas literárias cuja objetividade
linguístico-estrutural comunica muito através de discursos que não foram linguisticamente
manifestos.
Pensando nisso, estabelecemos como objetivo geral no projeto de pesquisa: analisar como
os pressupostos da AD podem explicar o processo de significação de um discurso literário quando a
narrativa apresenta objetividade linguístico-estrutural em decorrência da concisão própria do texto; e
como objetivos específicos, elencamos: i) investigar a superficialidade/complexidade discursiva de
narrativas literárias de estrutura mais objetiva; ii) identificar quais são os movimentos empregados
por um leitor no processo de significação de uma micronarrativa literária; iii) averiguar a relação
entre a objetividade linguístico-estrutural da micronarrativa literária e o modo de envolvimento do
sujeito na sua interpretação; iv) descrever a aplicabilidade da AD como metodologia analítica em
uma micronarrativa literária.
Após essa contextualização das questões e objetivos do projeto de pesquisa, fundamentais
para situar o leitor do nosso trabalho, focamos na nossa proposta para esta exposição, a saber: refletir
sobre a possibilidade da leitura de micronarrativas literárias na perspectiva discursiva como um
caminho para a leitura literária no ensino básico.
Para isso, trazemos alguns aspectos teóricos que conduzem a nossa discussão. Um
primeiro aspecto diz respeito ao conceito de literatura para Foucault (2005, p. 143-144) como um
432
terceiro ponto entre a linguagem e a obra, o espaço da transgressão. Para ele, “nada em uma obra de
linguagem é semelhante àquilo que se diz cotidianamente”; ele afirma ainda que “a linguagem
verdadeira, quando é introduzida em uma linguagem literária, está aí para romper o espaço da
linguagem, para lhe dar como que uma dimensão sagital que não lhe pertence naturalmente”. Isso nos
parece desfavorecer o ensino de literatura comumente adotado nas escolas brasileiras, que ora situa o
texto literário como pretexto para o ensino da gramática, ora foca o trabalho no ensino de história das
escolas literárias, sem, muitas vezes, dar o devido protagonismo ao texto literário.
Foucault fala que toda obra literária além de dizer o que diz, diz também o que é literatura.
Para ele “a literatura é uma linguagem ao infinito, que permite falar de si mesma ao infinito”
(FOUCAULT, 2005, p. 155). Ou seja, o autor estabelece relações entre a linguagem e o espaço
quando fala de literatura; ademais, dá centralidade ao próprio texto literário. Isso nos parece
particularmente interessante por compreendermos a linguagem constituída sócio e historicamente e
por compreendermos que não há ensino de literatura sem a centralidade na leitura do texto literário.
Em Linguagem e literatura, Foucault traz uma proposta de análise do livro Mallarmé,
afastando-se da questão da metalinguagem que, para ele, é um caminho usado pela crítica literária.
Nesse sentido, temos uma noção do tratamento que Foucault propõe ao texto literário sob uma
perspectiva discursiva, embora ele não empregue esses termos claramente em sua escrita. Isso nos
interessa de modo particular porque a nossa proposta é exatamente investigar se a perspectiva
discursiva dá conta de uma análise do texto literário.
Ao discutir as ideias de Foucault quanto à literatura, Machado (2005a, p. 113) afirma que,
para Foucault:
Mesmo que o ato de escrever tenha funcionado até então como uma contestação da
sociedade..., hoje a força transgressiva da literatura se perdeu, a literatura tornou-se a
instituição em que a transgressão, impossível fora dela, torna-se possível. Visto que a
literatura foi recuperada pelo sistema, com uma função social normativa, a subversão pela
literatura tornou-se um puro fantasma, ou mesmo um álibi. (MACHADO, 2005b, p. 129),
433
Embora Foucault deixe de focar na literatura nos seus estudos, entendemos que não se
trata da negação da sua importância; mas, na verdade, configura-se, em primeiro lugar, como uma
maneira de se opor à forma normativa com que a literatura passara a ser tratada e, em segundo lugar,
a partir das suas experiências políticas, mostra-se como uma necessidade de tratar também de outros
pontos de interesse que se ampliam.
No nosso projeto de pesquisa, os dados serão gerados tomando como ponto de partida
micronarrativas disponíveis em livros impressos e em suportes digitais como textos-fonte, a partir
dos quais os estudantes registrarão as suas leituras. Esses registros de leitura serão analisados com
base no paradigma indiciário, de Ginzburg, através do qual as pistas na materialidade linguística
podem revelar os caminhos interpretativos empregados pelo leitor no processo de significação no
sentido de compensar as lacunas próprias das micronarrativas.
Apesar de em uma pesquisa em AD as categorias analíticas serem definidas com base nos
dados ofertados durante o processo de análise, adiantamos como prováveis categorias analíticas: a
tensão entre os processos parafrástico e polissêmico, o jogo de remissões a outros discursos pela
memória discursiva, os diferentes efeitos de sentido produzidos pelas subjetividades de um sujeito
interpelado por questões ideológicas.
Neste ensaio, trazemos uma micronarrativa e exemplificamos as possibilidades de
explorarmos o texto no ensino de leitura literária com estudantes da educação básica.
Texto 1134:
NO EMBALO DA REDE
Vou,
mas levo as crianças
Para ser uma micronarrativa, é fundamental que haja narratividade. Um caminho para o
ensino de leitura a partir desse microconto poderia partir da identificação da narratividade em torno
da ação de “ir”, da reconstrução do espaço de diálogo pela remissão à memória discursiva dos
estudantes de um contexto de separação. Outra possibilidade seria a construção do espaço narrativo
a partir do título “No embalo da rede”, que conduz o leitor para a ambientação da história em um
134
No embalo da rede é um texto de Carlos Herculano Lopes, publicado no livro “Os Cem Menores Contos Brasileiros
do Século” (FREIRE, 2004, p. 53). Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-literatura/5687893.
Acesso em 25/08/2020.
434
contexto doméstico. Todas essas primeiras impressões são possíveis pelas pistas linguísticas que são
dadas com sutileza e concisão próprias do gênero.
Podemos depreender que se trata de uma briga de casal que culmina em separação. Na
discussão, a condição para ir embora é levar os filhos. Surgem, então, as possibilidades de
interpretação subjetiva, para os efeitos de sentido. Para alguns, a mulher está saindo com os filhos,
porque culturalmente as mulheres ficam com a guarda dos filhos, por exemplo; mas para outros
leitores, as construções sociais nas quais estão inseridos conduzirá a interpretação de que a fala é do
esposo que, comumente, é quem deixa a casa; outro grupo de leitores, por exemplo, poderá resolver
essa questão com a interpretação de que se trataria de uma relação homoafetiva na qual esses aspectos
culturais não estão tão marcados.
Enfim, serão mobilizados diferentes interdiscursos que revelarão uma rede de memórias
discursivas dos estudantes no processo de construção de sentidos. Essa atividade, aparentemente
simples, poderia gerar inúmeras discussões decorrentes desses interdiscursos. A riqueza do processo
está na heterogeneidade de leituras possíveis e na discussão sobre leituras não possíveis.
REFERÊNCIAS
RESUMO
O campo literário funciona como um “campo de poder” (BOURDIEU, 1996) em que o gosto e o
modo de ler de uma elite intelectual é tomado como padrão de apreciação estética e de leitura
(ABREU, 2006). Essa elite, ao impor uma definição dominante do que seja literatura, exclui todos os
outros que não se enquadrem nesse padrão, fazendo, dessa forma, esses sujeitos marginalizados
acreditarem não serem capazes de produzir literatura (DASCASTAGNÉ, 2007). O ensino de
literatura colabora com essa exclusão ao pregar, sob uma crença na história da literatura como fator
de humanização, a importância da grande literatura como se dela “irradiasse magicamente sua
humanidade” (REZENDE, 2017, p. 117). Nesse sentido, o livro O Sol na Cabeça, de Geovani
Martins, promove o descentralizamento da palavra literária ao retratar a favela a partir do lugar de
fala (RIBEIRO, 2017) de quem mora nesse espaço; e, assim, proporciona àqueles que o leem a
possibilidade de tornarem-se sensíveis à diversidade e à existência de valores distantes uns dos outros
(PERRONE-MOISÉS, 2016). Dessa forma, o livro, em seus contos, não só narra experiências
diversas do cotidiano dos sujeitos que vivem nesse espaço social, como também traz reflexões sobre
essas vivências e as formas de poder nelas envolvidas (BOTTON, 2018; PIMENTEL, 2020), de modo
a possibilitar a promoção da humanização do sujeito leitor. Isso tudo é feito utilizando, em vez da
língua padrão do cânone literário, uma linguagem próxima à oralidade (MARTÍNEZ, 2018),
promovendo, assim, a ruptura do português padrão e possibilitando a rebelião e a resistência (hooks,
2017). Diante disso, neste trabalho, objetiva-se propor uma sequência didática para uma turma da 1º
série do Ensino Médio, em que seja abordado o livro O Sol na Cabeça. A partir da abordagem desse
livro, busca-se apresentar aos alunos uma outra forma de literatura que não seja a canônica; tratar
sobre temas relevantes socialmente levantados ao longo do livro (como as representações da favela,
o racismo, a desigualdade social, a precarização do trabalho, etc) e que devem perpassar o processo
de humanização do sujeito; e, ainda, mostrar que a literatura não é algo produzido apenas por “seres
iluminados” (REZENDE, 2013), mas que os próprios alunos, utilizando sua linguagem própria,
podem também exercitar o fazer literário.
Palavras-chave: O Sol na Cabeça. Ensino de literatura. Campo literário. Leitura literária. Escrita
literária.
135
E-mail: anafsantiago1@gmail.com.
136
E-mail: marceladesouza27@gmail.com.
437
em ensino de leitura literária. Somado a isso, com base na função da literatura, apontada por Perrone-
Moisés (2016), de dar conta de várias perspectivas sociais, destacamos a relevância da inserção junto
ao cânone, também, de obras da literatura marginal no ensino de leitura literária.
Após esse percurso teórico, realizaremos uma breve análise de alguns temas relevantes
tratados no livro O Sol na Cabeça, com o auxílio de trabalhos como os de Botton (2018) e Pimentel
(2020). Além da análise temática, com a contribuição de Martínez (2018), também trataremos sobre
a linguagem próxima da oralidade empregada na escrita da obra, o que será problematizado com base
nas reflexões sobre língua e dominação de hooks (2017). Tendo sido feita a análise, a partir dela
evidenciaremos a importância da abordagem desse livro em sala de aula, considerando, como defende
Candido (2011), a literatura como um direito, por proporcionar a humanização do sujeito.
Por fim, como resultado de toda a discussão fomentada no presente trabalho, será
apresentada uma proposta de ensino, na forma de uma sequência didática, para uma turma da 1ª série
do Ensino Médio, cujo propósito é o ensino de leitura literária utilizando o livro O Sol na Cabeça.
Literatura é um termo de difícil definição, de tal forma que não há muito consenso sobre
o que, afinal, ele significa. Posto isso, se por um lado não há consenso sobre o que seja a literatura,
há no que diz respeito àqueles que, historicamente, têm acesso à produção dela e, no caso de um país
marcado pela desigualdade social e educacional como o nosso, também à sua leitura.
Para melhor compreendermos a questão do acesso à literatura, é pertinente convocar a
discussão de Bourdieu (1996a) sobre o campo literário. Segundo o autor, esse campo é um campo
social que, como tal, é definido como um campo de poder, isto é, um campo marcado por relações
de força entre agentes ou instituições que dispõem de capital econômico e cultural.
O capital econômico e o capital cultural são os dois princípios de diferenciação
responsáveis por definir as posições que os agentes ou grupos ocupam no espaço social, sendo,
portanto, princípios que afastam ou aproximam os sujeitos, como explica Bourdieu (1996b). Dessa
forma, possuir esses dois tipos de capital, na sociedade, é um privilégio que um grupo seleto tem, o
que faz desses grupos dominantes.
Tendo isso em vista, no campo literário, os grupos dominantes é que são responsáveis por
criar, segundo Bourdieu (1996a), um monopólio da legitimidade literária, a partir do qual definem os
limites desse campo, isto é, quem pode acessá-lo ou não. Isso é realizado por meio de critérios que
elegem artistas e obras verdadeiras, seguindo determinados critérios por eles criados e perpetuados
ao longo dos tempos.
439
Posto isso, manter a hegemonia do classe dominante no campo literário é também uma
forma de permitir o acesso a esse campo apenas de sujeitos e obras que se assemelham aos seus
habitus (BOURDIEU, 1996b), a saber, os modos de ser, de se comportar e de enxergar o mundo de
cada sujeito de acordo com a posição que ele ocupa no espaço social.
As classes dominantes do campo literário, assim como de outros campos sociais, no caso
do Brasil, são compostas, em sua maioria, por homens, brancos, moradores dos grandes centros
urbanos e de classe média (DALCASTAGNÈ, 2007). Dessa forma, considerando que uma das faces
da literatura é manifestar emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos grupos (CANDIDO,
2011), os autores legitimados pelo campo literário são os que se assemelham ou fazem parte dos
grupos dominantes, fazendo com que seus habitus sejam perpassados, difundidos e mantidos na
sociedade, assim como a perpetuação da sua hegemonia de poder e a ordem social imposta por ela.
Nesse sentido, na literatura, os grupos não-dominantes, como mulheres, pobres negros e
trabalhadores, são representados, em sua maioria, por autores de grupos dominantes; segundo,
portanto, a perspectiva deles. Assim, entendidos como o outro, quando essas minorias aparecem nas
narrativas, costumam ser retratadas em posição secundária, sem voz, e, muitas vezes, marcadas por
estereótipos (DALCASTAGNÈ, 2007).
Diante disso, Abreu (2006), em uma discussão sobre o cânone brasileiro, aponta que o
que faz uma obra ser literária não são suas características internas, mas sim o espaço que lhe é
atribuído pelas “instâncias de legitimação”, as quais, segundo ela, são a universidade, as revistas
especializadas, os livros didáticos e os suplementos culturais dos grandes jornais. Essas instâncias,
portanto, são instituições que poderíamos associar aos agentes e grupos com capital cultural e
econômico descritos por Bourdieu (1996a), já que controlam as fronteiras do campo literário ao
definir o que é ou não literatura.
Dizer que um texto é literário subentende sempre que outro não é. Esse outro excluído
são os grupos marginzalizados, isto é, todos os sujeitos que fazem parte de grupos que recebem uma
valoração negativa da cultura dominante, devido ao sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas
relações de produção, condição física ou a outro critério (DALCASTAGNÈ, 2007).
Todavia, mesmo excluídos dos campos sociais, dentre eles, o campo literário; os grupos
que estão à margem insistem em seu direito de acessar esse espaço, fazendo com que a literatura
escrita por eles coloque-se como resistência às posições fixas da literatura, isto é, ao “cânone
literário”, evidenciando a necessidade de desconstrução de conceitos até então legitimados por ele
(ROSA, GUEDES, LEITE, 2019).
Sobre esse ponto, é interessante levantar o conceito de “lugar de fala”, que Djamila
Ribeiro (2017) define como o lugar que possibilita refutar, através da fala, a historiografia tradicional
e a hierarquização de saberes consequentes da hierarquia social. Desse modo, é que Ribeiro (2017)
440
conclui que para os grupos historicamente silenciados, a fala, então, não se restringe apenas ao ato de
emitir palavras, mas de poder existir.
Dito isso, através de um instrumento institucionalizado como o é a literatura, os grupos
excluídos da esfera socioeconômica e cultural produzem um novo discurso, em que retratam suas
experiências cotidianas, as quais são preenchidas, de forma significativa, pela violência (FERREIRA,
2004). Não só isso, a literatura produzida por sujeitos historicamente à margem da sociedade também
conta, como apontam Rosa, Guedes, Leite (2019, p. 03), com uma “linguagem própria, ligada às
experiências da oralidade e da performance, como no caso do rap”.
Tendo isso em vista, segundo Dalcastagnè (2007), os textos escritos por esses grupos
precisam lidar com duas tensões ao mesmo tempo: a primeira é a de ter que se contrapor às
representações estereotipadas sobre eles já fixadas na tradição literária; e a segunda é a de precisar
reafirmar a legitimidade de sua própria construção como literária.
Tarefas que obras como O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, e Quarto de Despejo, de
Carolina Maria de Jesus, cumprem ao não só retratar a favela com a linguagem da favela, mas junto
a isso, utilizando-se, também, da linguagem da cultura letrada e dos recursos da grande literatura,
para que a obra seja entendida como literária. É isso que faz, por exemplo, Carolina Maria de Jesus
em seu livro, ao, mesmo com um domínio precário da escrita, “utilizar a linguagem o mais próxima
possível — o seu possível — da linguagem daqueles que queria que a escutassem” (SOUZA,
WELTER, 2020, p. 85).
Assim, ao escrever textos literários narrando sua realidade a partir de sua perspectiva e
de sua própria linguagem, os grupos marginalizados, além de atuarem na desconstrução de
estereótipos e de denunciarem a realidade violenta e marcada por necropolíticas (MBEMBE, 2016
apud LIBERALI, 2020) em que vivem, ainda proporcionam uma pluralidade de perspectivas que
enriquece a literatura.
A partir disso, retornando ao começo desta seção sobre a definição de literatura,
concordamos com Candido (2011, p. 178), quando diz que
Dessa forma, seja a literatura produzida pelos grupos dominantes, seja a literatura
produzida pelos grupos marginalizados, não há como negar que todas essas manifestações são
literárias e devem ser legitimadas como tal, não importando a origem social da voz de quem escreve.
441
Além dessa, outra mudança que indicamos ser necessária ao meio escolar é a inserção
também de obras fora do cânone literário, isto é, obras consideradas “marginais”, que são
constantemente excluídas das instâncias de legitimação, como a escola. Isso porque, as obras
canônicas, em sua maioria, retratam as experiências da classe dominante e, quando trazem as
vivências dos grupos excluídos, elas são abordadas pela perspectiva “de fora”, isto é, de alguém que
se encontra afastado desse meio. Assim, o contato dos discentes com outros tipos de literatura para
além do cânone permite que eles tenham acesso a experiências, vivências e pontos de vista diferentes
daqueles da classe dominante, o que os permite compreender que os modos de vida dos grupos
hegemônicos não são os únicos, e nem podem ser tidos como parâmetro universal.
Diante disso, defendemos a inserção da leitura literária de obras consideradas “marginais”
na escola, pois isso possibilita aos alunos o conhecimento e a reflexão acerca da perspectiva dos
sujeitos pertencentes aos grupos excluídos, de maneira a, como afirma Perrone-Moisés (2016),
tornarem-se sensíveis à diversidade e à existência de valores distantes uns dos outros.
Além disso, a partir da inserção dessas obras, os estudantes terão contato com uma
literatura que é, em sua maioria, mais acessível à leitura e à escrita dos alunos, por aproximar-se, em
geral, da linguagem deles. Com isso, os alunos poderão compreender que não apenas os indivíduos
considerados “eruditos” podem realizar o fazer literário, mas qualquer pessoa, utilizando-se de suas
próprias vivências e linguagens, pode ler e escrever literatura.
Ao garantir esse acesso à leitura e à produção literária, estará sendo cumprido o que
Candido (2011) defende quando afirma ser a literatura um direito, assim como outros direitos
humanos, à medida que proporciona a humanização do sujeito. Essa humanização, explica Candido
(2011), é o processo que confirma no homem os traços essenciais de sua humanidade — valendo
salientar que nem todos são essencialmente bons —, levando-nos à reflexão, à aquisição do saber, e,
tornando-nos, dentre outras coisas, mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante.
Diante disso, O Sol na Cabeça segue no sentido contrário ao que comumente acontece
em outros livros ou nas mídias. Isso porque, geralmente, as obras literárias e os meios de comunicação
retratam a periferia sob a perspectiva de quem está fora dela, isto é, de indivíduos que não passam
pelas mesmas experiências e problemas daqueles que nela habitam. Por esse motivo, essas instâncias
normalmente retratam a favela como margem e reproduzem estereótipos a respeito desse espaço.
Dito isso, devido ao fato de a favela ser vista de dentro no livro de Geovani Martins, há
um movimento de centralização da margem (BOTTON, 2018), isto é, a favela, comumente retratada
como margem da cidade, passa, nessa obra, a ser retratada como o centro, pois é o local onde as
narrativas normalmente acontecem e onde os protagonistas vivem. Como afirma Botton (2018), em
alguns contos o narrador se movimenta entre diferentes favelas ou percorre alguns locais do Rio de
Janeiro, porém a periferia continua sendo o centro, pois é o local onde o narrador mora e se identifica,
sentindo-se pertencido e acolhido. Essa representação da favela como centro pode ser observada no
trecho a seguir, retirado do conto Sextou:
Acendi um cigarro e fiquei olhando em volta. Tava escaldado com a situação. Várias vezes
cheguei ali no Jacarezinho e a bala tava comendo sério, mas aí era só atravessar ali pra
Manguinhos, ou então pegar um ônibus na Suburbana até outra favela pra não perder a
viagem. Mas daquele jeito nunca tinha visto, parecia que a qualquer momento podiam
começar os pipocos comigo ali no meio, de bucha, sem saber pra onde correr, numa favela
que não é nem a minha (grifo nosso) (MARTINS, 2018, p. 61).
Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro,
o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem
dinheiro de passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia
444
pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na
hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é
tomada, ela já me engoliu na porrada (MARTINS, 2018, p. 9).
Como o livro enfoca o ponto de vista de quem mora nas favelas, os problemas presentes
na periferia e narrados ao longo dos contos também são retratados através da perspectiva desses
mesmos sujeitos. Isso ocorre, por exemplo, no trecho citado acima, em que a abordagem policial não
é representada sob o ponto de vista da polícia, mas sim pela ótica dos rapazes abordados. Assim, a
utilização dessa perspectiva se mostra transgressora, pois estamos acostumados apenas a conhecer a
visão dos policiais e, com isso, a tratar esses sujeitos como culpados ou criminosos, como ocorre, por
exemplo, no filme Tropa de Elite.
Também podemos observar nesse trecho a descrição implícita da cor da pele das
personagens e da questão do racismo. Essa implicitude se deve ao fato de, segundo a jornalista Naiara
Gortázar (2019), Geovani Martins, intencionalmente, não explicitar a raça dos protagonistas dos seus
contos, por estar farto de as personagens negras da literatura serem definidas, em primeiro lugar, pela
cor da sua pele. Assim, é por meio da narração de acontecimentos majoritariamente comuns aos
negros, como o autoritarismo em abordagens policiais, que o leitor, de forma reflexiva, pode chegar
à conclusão acerca da raça dos protagonistas, e ao caráter racista da abordagem policial, uma vez que
as pessoas brancas não são abordados dessa forma.
Nesse sentido, a utilização de O Sol na Cabeça em sala de aula é um excelente modo de
fazer com que os alunos reflitam a respeito do tratamento violento e injusto dispensado pela polícia
aos moradores da periferia, sobretudo aos negros que, quando sofrem abordagens policiais, na maioria
das vezes, não são os criminos que deveriam ser procurados, e sim vítimas do racismo instaurado e
perpetuado pela sociedade.
Também vale ressaltar que O Sol na Cabeça ao retratar a periferia, não aborda apenas os
problemas presentes nela, mas também as relações familiares, o companheirismo e as amizades lá
existentes, como pode ser visto no fragmento a seguir, retirado do conto Estação Padre Miguel:
Além de mim e do Rodrigo, estavam Felipe, Alan e Thiago. Naquela época a gente não se
desgrudava nunca, qualquer missão que fosse a gente tava junto. Eu não fazia a mínima ideia
do que fazer com a minha vida, mas sentia que o que quer que fosse pra ser feito, seria ao
lado deles (MARTINS, 2018, p. 42).
Nesse trecho, podemos perceber que a periferia não deve ser compreendida apenas como
um lugar violento, como comumente é retratada, e sim como um espaço de construção de laços de
amizade. Desse modo, ao ser apresentado aos alunos, o livro possibilita o rompimento com os
445
estereótipos criados pela mídia e por outras obras literárias a respeito da favela, uma vez que permite
aos estudantes refletirem sobre os vários aspectos positivos presentes nesse lugar.
Outro elemento importante e característico dos contos de O Sol na Cabeça é a linguagem.
Isso porque os contos não são escritos de acordo com a norma padrão do cânone literário, mas sim
em uma linguagem próxima à oralidade e em uma variante linguística própria dos sujeitos moradores
das favelas do Rio de Janeiro. Dessa forma, as narrativas apresentam muitas gírias, palavrões e outras
construções linguísticas que fogem à norma padrão, como a presença de desvios de concordância.
Isso pode ser observado, por exemplo, no trecho a seguir, retirado do conto Rolézim:
Quando foram ver, não viram nada. Dois menó passou voado e levaram as mochila com
tudo dentro. Depois se enfiaram no meio da praia lotada. Os play ficou de bucha, com o
celular na mão, panguando. Aí passou mais um menó e levou o celular também. Achei
foi bem feito pra deixar de ser otário. Eu e os menó rimo pra caralho da cara deles. Os
comédia meteu o pé, levando só a canga (MARTINS, 2018, p. 7).
escritos; mas sim, que qualquer pessoa, utilizando-se de qualquer variedade linguística, pode exercitar
o fazer literário.
A partir de todos os elementos aqui discutidos, podemos perceber que O Sol na Cabeça
é uma obra transgressora, pois consegue se introduzir no excludente campo literário e, com isso, abre
espaço para que outras obras provenientes de espaços socialmente excluídos ganhem lugar e respeito
na literatura.
Dessa forma, consideramos O Sol na Cabeça uma excelente obra a ser aplicada para a
leitura literária na escola, não apenas por possibilitar aos alunos debates e reflexões sobre aspectos
relevantes como o racismo, a violência e os laços de amizade construídos nas favelas, mas também
por instigá-los a realizar a escrita literária, utilizando-se de seus próprios conhecimentos, experiências
e linguagens. Por esse motivo, elaboramos uma sequência didática, a qual será apresentada na
próxima seção, com o objetivo de propor uma abordagem descentralizadora da leitura e da escrita
literárias por meio de O Sol na Cabeça.
1 - Tema
2 - Ementa
Durante as duas aulas que compõem esta sequência, será realizada, pelos alunos, a leitura
dos contos do livro O Sol na Cabeça, bem como uma pesquisa a respeito da biografia do autor. Após
isso, em sala de aula, será realizada uma roda para o compartilhamento de experiências de leitura e
de vida relacionadas às situações retratadas no livro que podem ter sido vivenciadas por eles.
Posteriormente, será realizada uma discussão coletiva, mediada e guiada pelo(a) professor(a), acerca
dos principais temas abordados nos contos e da linguagem empregada neles; e, ao final, os alunos
serão instruídos sobre a avaliação em que será proposta a escrita de um conto literário em que contem
sobre suas experiências, utilizando sua própria linguagem. Dessa forma, além de refletirem sobre
temas socialmente relevantes e sobre a linguagem dos contos, os alunos poderão exercitar a leitura e
o fazer literário e, assim, perceber que a literatura não é algo produzido apenas por “seres iluminados”
(REZENDE, 2013).
3 - Objetivos
Depois de ter sido disponibilizado um conto para cada aluno ler em casa e pedido para
que eles pesquisassem sobre a vida do autor, serão realizados os seguintes momentos na aula:
● Instrução sobre a avaliação, em que será proposta aos alunos a escrita de um conto literário
no qual contem suas experiências e façam reflexões sobre elas, assim como fez o autor de O
Sol na Cabeça.
Nas aulas seguintes, o(a) professor(a) irá acompanhar o processo de escrita dos alunos e
orientá-los em suas dúvidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
448
REFERÊNCIAS
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BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996a. 431 p. ISBN: 8571645221.
________________. Razões práticas: sobre a teoria da ação / Pierre Bourdieu; tradução Mariza
Corrêa. Campinas: Papirus, 1996b. 231 p. ISBN: 8530803930.
BOTTON, André. A representação da favela nos contos de O Sol na Cabeça, de Geovani Martins. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL 2018 DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA
COMPARADA – ABRALIC, 15., 2018, Uberlândia. Anais. Uberlândia: Abralic, 2018. v. 3, p. 3896-
3909. Disponível em: <https://abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547745521.pdf>. Acesso em: 28
nov. 2020.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ____________. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul. São Paulo: Duas Cidades, 2011.
GEOVANI MARTINS, o fenômeno literário das favelas cariocas. Veja, SN, 26 mar. 2018. Cultura.
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/geovani-martins-o-fenomeno-literario-das-favelas-
cariocas/>. Acesso em: 29 nov. 2020.
GORTÁZAR, Naiara. Geovani Martins: “Percebi que era negro na Flip, porque era o único”. El País,
Rio de Janeiro, 16 set. 2019. Cultura. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/16/cultura/1568657421_834925.html>. Acesso em: 29 nov.
2020.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Wmf
Martins Fontes, 2017.
LIBERALI, Fernanda. Construir o inédito viável em meio a crise do coronavírus – lições que
aprendemos, vivemos e propomos. In: ___________; et al. (orgs). Educação em tempos de
pandemia: brincando com um mundo possível. 1. ed. Campinas: Pontes Editores, 2020.
MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.
PIMENTEL, Davi. O sol na cabeça, de Geovani Martins: a literatura do morro. Eixo Roda, Belo
Horizonte, v. 29, n. 2, p. 252-273, jul. 2020. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/15771/1125613224>
. Acesso em: 28 nov. 2020.
REZENDE, Neide. O ensino de literatura e a leitura literária. In: DALVI, Maria; _____________;
JOVER-FALEIROS, Rita (orgs). Leitura de literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento Justificando, 2017. 111 p.
(Feminismos plurais) ISBN: 9788595300408.
SOUZA, Marcela; WELTER, Juliane. A favela aos olhos de uma “favelada”: representação do espaço
e legitimação do discurso na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus. Revista Garrafa,
v. 18, n. 53, p. 85-104, jul/set. 2020. Disponível em:
<https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/38827/21224>. Acesso em: 28 nov. 2020.
450
RESUMO
Apresentamos o projeto pedagógico “Era uma vez...” realizado no contexto da Pandemia do
Coronavírus, em uma turma do nível V da Educação Infantil, com crianças entre cinco e seis anos de
idade, da Escola Sesc Potilândia, localizada no município de Natal/RN, no ano de 2020 através do
Ensino Remoto. O objetivo deste projeto foi o estimular práticas de leitura e escrita remotamente, a
partir da exploração da literatura infantil por meio dos contos de fadas. Nas plataformas de ensino do
Google Classroom e do Google Meet, iniciamos o nosso trabalho no ambiente virtual, como forma
de darmos continuidade ao ano letivo. Assim, para engajarmos as crianças no mundo da leitura e da
escrita, exploramos diferentes contos de fadas com diversos materiais e estratégias para contações ou
leitura de alguns dos considerados clássicos, partimos do livro de literatura “A última história antes
de dormir”, da autora Nicola O’Byrne, o qual brindou-nos com o encontro de alguns dos personagens
mais famosos dos contos de fadas. Antes da leitura em si, consideramos a necessidade que as crianças
têm de desenvolver a oralidade, imaginação, criatividade e diferentes linguagens na Educação
Infantil, baseando-nos em Edwards; Gandini; Forman, (2016) e Sesc (2015). Utilizamos como aporte
teórico a andaimagem de Graves & Graves (1995), os quais compreendem as diferentes etapas que
se relacionam à pré-leitura, leitura e pós leitura de um texto. Na perspectiva do alfabetizar letrando,
Ferreiro (2011), Magda Soares (2003) e Mortatti (2004), explanam sobre diferentes versões do
letramento. A autora Yunes (2010) embasa a nossa prática com relação a importância da literatura.
Em Moran (2019) a fundamentação acerca das metodologias ativas foi encontrada, ampliando o nosso
olhar com relação ao uso da literatura a partir de meios tecnológicos. Com a realização deste projeto
observamos que a maioria das crianças desenvolveu a oralidade, segundo recontos dos contos de
fadas que trabalhamos. A timidez tornou-se menos evidente, por meio da exploração, vivência e
encenação de narrativas expressas por diferentes linguagens, como por exemplo, a dramatização e a
música. Com a utilização de diferentes recursos digitais, as crianças avançaram em relação às
hipóteses de escritas em que se encontravam no início do ano, algumas destas passaram a ler palavras
simples no nosso cotidiano virtual.
137
Graduada em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), com Especialização em Coordenação Pedagógica
e Educação Infantil e Anos Iniciais, pela Faculdade Uninassau. Possui vínculo com o Serviço Social do Comércio
(SESC/RN). E-mail: betealburquerque26@gmail.com
138
Graduada em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), com Especialização em Leitura e Produção Textual
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e Especialização em andamento em Educação Infantil. Possui
vínculo com o Serviço Social do Comércio (SESC/RN). E-mail: dalvinha_ss21@hotmail.com
139
Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Especialização em
Psicopedagogia, no ano do projeto atuou como professora de Educação Infantil (SESC/RN) e atualmente é Suporte
Pedagógico na Secretaria da Educação da Cultura, do Esporte e do Lazer (SEEC) do Estado do Rio Grande do Norte. E-
mail: thabatta.louise@gmail.com
451
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta o projeto pedagógico “Era uma vez...” realizado no contexto da
Pandemia do Coronavírus, durante os meses de julho à setembro do ano de 2020 em uma turma do
nível V da Educação Infantil, com crianças entre cinco e seis anos de idade, da Escola Sesc Potilândia,
localizada no município de Natal/RN, através do Ensino Remoto e teve o objetivo de estimular
práticas de leitura e escrita remotamente, a partir da exploração da literatura infantil por meio dos
contos de fadas.
A proposta foi desenvolvida a partir do livro de literatura “A última história antes de
dormir”, da autora Nicola O’Byrne (2017), o qual problematiza sobre as personalidades de alguns
personagens de contos de fadas, defendendo o que possuem de mais atrativo nos seus enredos, a partir
de encontros inusitados e diálogos interativos das mais famosas narrativas infantis. Dentre as obras
apreciadas através de contações de histórias destacamos as dos primeiros autores, são eles Charles
Perrault, Irmãos Grimm (Wilhelm e Jacob) e Hans Christian Andersen, com os títulos: Chapeuzinho
Vermelho, Os Três Porquinhos, Cachinhos Dourados e Cinderela.
Quando falamos em literatura, automaticamente nos remetemos a livros, leituras, sem
refletirmos sobre o período de criação da literatura para as crianças, e o que gira em torno deste tema,
sem de fato pararmos para pensar no conceito de infância que se considerava ao explorar a literatura
infantil. Em Zilberman (2003), reconhecemos que os textos infantis foram adaptações de diversos
tipos de narrativas, transmitidas através da tradição oral, e que passaram a ser desenvolvidas versões
“infantis” pelos irmãos Grimm, os quais tinham a intencionalidade de introduzir comportamentos
morais e valores sociais nas crianças para que estas pudessem ser inseridas de fato na sociedade da
época.
A seguir, discorreremos acerca do desenvolvimento de tal projeto, relatando a nossa
prática pedagógica e as experiências de três professoras da Educação Infantil. Descreveremos como
foi realizado o ensino remoto no período mencionado acima, trazendo fundamentações acerca das
metodologias ativas atreladas à literatura, aos contos de fadas, às práticas sociais e ao letramento,
estes que narram o percurso de aprendizagem e desenvolvimento das crianças.
parte das instituições de ensino para dar continuidade às atividades escolares. Entendemos este
modelo de ensino como uma metodologia emergencial em um contexto jamais vivenciado antes pela
Educação Infantil.
Para não perdermos o vínculo afetivo com as crianças, bem como evitar demasiada
defasagem em relação ao aprendizado e desenvolvimento delas, passamos, desde março do ano
passado, a implementar o uso de ferramentas on-line e redes sociais, tais como Google Classroom,
Google Meet e WhatsApp para interagirmos com as crianças. Partindo deste pressuposto, adaptamos
a nossa metodologia para aulas remotas, estabelecendo comunicação através das plataformas
mencionadas, como principal meio de comunicação e interação nas atividades desenvolvidas com a
suspensão das aulas presenciais.
Baseadas na proposta pedagógica da Escola Sesc (2015), a qual apresenta uma
perspectiva sociointeracionista, passamos a enviar orientações de atividades práticas às famílias,
prevalecendo o caráter lúdico, como facilitador da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças.
Evidenciamos algumas a seguir: gravações de vídeos curtos sobre as pesquisas realizadas como forma
de valorizar o protagonismo das crianças; explorações dos ambientes da casa; releituras de obras de
arte com a temática de contos de fadas com diferentes tipos de materiais; customização de fantasias;
propiciando ainda, atividades como leitura e contações de histórias, alguns jogos on-line, dentre
outras intervenções. Dessa forma, tais propostas foram sucedidas através de interações síncronas e
assíncronas e para a sistematização destas, os familiares e responsáveis das crianças postavam fotos
e vídeos no Google Classroom ou mesmo através do WhatsApp.
Quando trabalhamos com crianças entendemos que o estabelecimento de laços afetivos é
fundamental para o desenvolvimento da aprendizagem, para a relação de confiança entre seus pares
e professores, pois o processo de ensino-aprendizado poderá, desta forma, tornar-se mais
significativo. Durante o ano de realização do projeto, passamos um tempo relativamente curto
presencialmente com os pequenos, entretanto, tais laços já haviam sido criados, tendo em vista que a
grande maioria das crianças já nos conhecia devido ao nível de ensino anteriormente cursado conosco.
Assim, um dos nossos desafios foi manter este vínculo à distância e também continuarmos
propagando valores que cotidianamente seriam trabalhados em sala de aula, nas rodas de conversa,
nos momentos do parque, de leituras deleites e demais momentos da nossa rotina. Rotina esta que na
proposta da nossa Escola destaca os ambientes como espaços de aprendizagem, pois consideramos
que “criar um ambiente atraente, de oferecer mudanças, de promover escolhas e atividade, e seu
potencial para iniciar toda espécie de aprendizagem social, afetiva e cognitiva” (MALAGUZZI, 1984
apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 148) é primordial na prática pedagógica com
crianças pequenas.
453
Valorizando a importância de tais espaços para a formação das crianças, começamos, com
o ensino remoto explorando, o primeiro ambiente em que as crianças convivem e socializam – as suas
casas. Assim, experimentamos diferentes nuances que o espaço familiar propicia a cada um de nós,
dentre estes o mais explorado, ou sugerido para exploração, foram os momentos de contações de
histórias pelos familiares e responsáveis das crianças, outra forma de criar vínculos afetivos, de
construir a autoestima e a personalidade de nossos pequenos e pequenas.
descrições apontadas pela autora refletem os conteúdos dos vídeos com novas versões para contos de
fadas que foram criados por elas nas atividades propostas.
Em Yunes (2010, p. 55), encontramos que a leitura
[...] especialmente a interativa, desenvolvida sobre expressões artísticas que convocam o leitor e
facilitam o desenvolvimento do pensamento crítico –, encaminha a construção do próprio juízo
e da própria opinião, favorece o aparecimento do desejo mobilizado pela co/moção, pela
sensibilização da inteligência.
procuram criar situações de aprendizagem nas quais os aprendizes possam fazer coisas,
pensar e conceituar o que fazem construir conhecimentos sobre os conteúdos envolvidos nas
atividades que realizam, bem como desenvolver a capacidade crítica, refletir sobre as práticas
que realizam, fornecer e receber feedback, aprender a interagir com colegas, professores, pais
e explorar atitudes e valores pessoais na escola e no mundo. (MORIN, 2019, p. 7).
apreciadas, dentre outras propostas que foram pensadas considerando algo que fosse expressivo para
as crianças.
Ao falarmos em alfabetizar letrando (FERREIRO, 2011), não podemos deixar de destacar
a participação das crianças na leitura da capa do livro “A última história antes de dormir”, arriscando
o reconhecimento das letras até a leitura espontânea dos nomes dos personagens. Além disso, a forma
como o livro apresenta a narrativa da história permite diferentes possibilidades de intertextualidade:
diálogos entre narrador e leitor; entre personagens, e, entre personagens e leitor, bem como, a
apresentação de tais conversas por meio de balões de diálogo, proporcionando a inferência, ou seja,
a relação com conhecimentos prévios referentes aos quadrinhos e gibis tão explorados pelos pequenos
nesta fase de ensino que é a Educação Infantil, visto que ainda estão se apropriando do sistema de
escrita alfabético e as imagens, por sua vez existentes, possibilitam a compreensão e interpretação da
história pelas crianças.
Com o desenvolvimento deste projeto, observamos que a vivência com a literatura
permitiu o amadurecimento das hipóteses de escrita das crianças que acompanharam e demonstraram
mais assiduidade em nossos encontros, participando ativamente do ensino remoto.
A Psicogênese da Língua Escrita, de Emília Ferreiro, aponta três principais hipóteses de
escritas da alfabetização, as quais compreendem a lógica do pensamento da criança para a construção
da escrita, suas especificidades, e, consequente evolução do pensamento, o qual pode ocorrer de modo
não linear (BRITO, 2012). Neste processo percorre-se etapas que indicam avanços e retrocessos até
que as crianças compreendam o funcionamento da língua escrita e a sua relação com a oralidade.
Dentre as diferentes hipóteses que se desenvolvem durante a alfabetização, a primeira
delas é a pré-silábica, que consiste na diferenciação existente entre o desenho e a escrita, é
comumente marcada por garatujas, ou seja, rabiscos que na compreensão das crianças representam a
escrita.
A segunda hipótese refere-se às escritas pré-silábicas, sendo caracterizada pela
elaboração de formas de diferenciação interfigurais ou inter-relacionais relativas à quantidade e
qualidade das letras para a formação de uma palavra. A criança em relação ao aspecto quantitativo,
acredita que deve haver um mínimo de letras para que haja a representação escrita; neste caso o que
passa a ser analisado por ela são as propriedades dos objetos. Sobre o aspecto qualitativo da escrita,
utilizará o recurso da diferenciação qualitativa, na qual as letras são trocadas ou alteradas, havendo
assim uma expressão de diferenciação controlada para distinguir as representações escritas.
Na terceira hipótese as crianças começam a assimilar a existência de uma vinculação
intrínseca entre o discurso e a escrita, já iniciando a compreensão do sistema alfabético, e a
representação dos sons, produzindo assim escritas alfabéticas, observando o acordo ortográfico da
Língua Portuguesa.
457
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a realização deste projeto, observamos que a maioria das crianças desenvolveu a
oralidade, a partir de recontos dos contos de fadas que trabalhamos. A timidez tornou-se menos
evidente, através da exploração, vivência e encenação de contos expressos por diferentes linguagens,
como por exemplo, a dramatização e a música. Com a utilização de diferentes recursos digitais, as
crianças avançaram em relação às hipóteses de escritas em que se encontravam no início do ano,
algumas destas passaram a ler palavras simples no nosso cotidiano virtual.
Em consonância com o exposto no decorrer deste trabalho, identificamos ainda um
amadurecimento da personalidade das crianças, mediante as nossas intervenções, permitindo que os
pequenos descobrissem aptidões para a arte do teatro, por exemplo, e expressassem as suas emoções
ao recontarem as histórias, além de aprenderem a lidar com seus sentimentos.
Na tela de um celular, tablet ou computador algumas imagens e personagens foram
projetados, várias formas de se apresentar as linguagens foram exploradas, algumas narrativas
inventadas, outras reinventadas e até mesmo recriadas. Não deixemos, assim, que as nossas crianças
tenham as suas infâncias desperdiçadas. Precisamos encontrar a medida exata para equilibrar as
experiências que lhes são pensadas e ofertadas. Podemos ter o melhor dos dois mundos, pois o
analógico e o tecnológico se complementam para juntos auxiliarmos os nossos pequenos a criar um
novo milênio.
Para além da proposta desenvolvida com as crianças do nível V da Educação Infantil,
destacamos que as vivências delas não foram completamente finalizadas, posto que o livro escolhido
desafiava ao leitor a dar continuidade à narrativa e diálogos dos personagens, mediante aos novos
conhecimentos a serem desenvolvidos nos próximos anos da vida escolar delas, porque sabemos que
a nossa imaginação, mas principalmente, o potencial das crianças vai muito além das últimas páginas
de uma história, dando sempre possibilidade para um novo “Era uma vez”.
REFERÊNCIAS
BRITO, Janira Bezerra de. Alfabetização de crianças e jovens: superando desafios da inclusão
escolar. 2012. 177 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2012.
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. 26 ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção
questões da nossa época: v.6).
458
GRAVES, Michael; GRAVES, Bonnie. The scaffolded reading experience: a flexible framework for
helping students get the most out of text. Reading, Oxford, v. 29, n. 1, p. 29-34, apr.1995.
MORIN, José. Metodologias Ativas de bolso: como os alunos podem aprender de forma ativa,
simplificada e profunda. São Paulo: Editora do Brasil, 2019.
O’BYRNE, Nicola. A última história antes de dormir. Tradução: Gilda de Aquino. 1 ed. São Paulo:
Brinque Book, 2017. 44p.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2 ed. 7. Reimpressão; - Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. 128p.
YUNES, Eliana. A provocação que a literatura faz ao leitor. In: AMARILHA, Marli (org.). Educação
e Leitura: redes de sentido. Brasília, Líber Livro, 2010. p. 53-62.
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo fazer uma análise discursiva de charges, bem como apresentar
uma proposta de leitura à luz de uma perspectiva dialógica da linguagem. O uso de textos como a
charge tem ganhado notoriedade nos meios de comunicação de massa por abordar um tema da
atualidade em forma de humor, o que instiga muitos leitores a reflexões sobre assuntos de interesse
da sociedade, motivo pelo qual se justifica o desenvolvimento desse trabalho. Além disso, o gênero
charge é carregado de diferentes estratégias textuais que dialogam com o contexto de produção, como
os fatos sociais e políticos, o que exige a cooperação do leitor no texto para a construção de sentidos.
A charge torna-se de um importante gênero do discurso para trabalhar práticas de leitura à luz de uma
perspectiva dialógica da linguagem, em que é possível observar relações sociais abordadas no gênero,
crítica a determinados assuntos em um dado momento na sociedade, relações de discursos na
sociedade, bem como ideológicas e entre outras. A presente pesquisa tem como suporte teórico as
concepções de Bakhtin (2006), Romualdo (2000) entre outros autores. Trata-se de uma pesquisa de
natureza qualitativa com abordagem exploratória e descritiva, em que analisamos charges do
cartunista Amarildo extraídas do jornal “A Gazeta”. Os resultados mostram que o conteúdo das
charges analisadas, bem como seu propósito comunicativo dialogam com discursos difundidos
socialmente, envolvendo o leitor com diferentes estratégias e discursos que se relacionam para a
construção de sentidos. A título de conclusão, podemos afirmar que as charges analisadas apresentam
em sua composição elementos que dialogam e recuperam outros discursos para estabelecer o projeto
de dizer no gênero, o que sugere ao leitor reflexões sobre a temática abordada nas charges, bem como
convida-o a interagir com o texto acionando outros discursos para compreender o sentido veiculado.
Palavras-chave: Charges. Leitura. Sentido. Discurso.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa tem como objetivo fazer uma análise discursiva de charges à luz da
perspectiva dialógica da linguagem proposta por Bakhtin, em que apresentamos a discussão do texto
observando como os elementos que os compõem requerem a cooperação do leitor nas charges para a
construção de sentidos. Assim, a interação texto/leitor corrobora a estreita relação entre os
mecanismos/recursos utilizados na charge e o contexto a que está vinculado o texto, o que exige do
leitor uma relação dialógica entre os discursos produzidos nas charges e o fato retratado.
As charges que foram selecionadas para o estudo abordam temáticas atuais que causaram
repercussão e impactos discursivos nas redes sociais, comunicação de massa e no âmbito político. As
charges analisadas são de autoria de Amarildo, cartunista que frequentemente faz publicações
140
Graduando em letras vernáculas pela Universidade Federal do Piauí. Membro do grupo de pesquisa proletras/UFPI e
Bolsista de Iniciação Científica-CNPq. E-mail: franciscofontinele2018@gmail.com
460
humorísticas com forte teor critico político no jornal “A Gazeta”. O autor faz críticas e sugere em
seus textos reflexões sobre assuntos atuais de interesse da população. O conteúdo abordado nas
charges é apresentado por meio do humor e que requer relações dialógicas entre os elementos que
fazem parte da charge com os discursos difundidos socialmente para a construção de sentidos.
Na charge, geralmente o autor utiliza personagens para representar políticos ou figuras
que pertencem a um determinado cargo na sociedade. Esses recursos que o autor utiliza sugerem ao
leitor mobilização de conhecimentos de mundo para serem projetados no texto e assim estabelecer o
sentido.
Nesse estudo, adotamos a perspectiva dialógica da linguagem, em que consideramos que
os sujeitos integram os projetos de dizer no mundo. Nesse caso, integram o texto, relacionando e
criando sentido, seja pelos elementos na superfície do texto ou acionados cognitivamente para
construir sentidos. O sujeito faz parte da linguagem e a produz na forma de conhecimento, estando
frequentemente negociando sentido com sua realidade que pode ser ilustrada por meio de textos. O
leitor é peça chave para construir sentido.
Para efeitos de organização, as discussões contidas no presente artigo estão distribuídas
por sessões, na primeira sessão encontra-se as considerações iniciais da pesquisa; na segunda os
pressupostos teóricos que embasaram o desenvolvimento do estudo, bem como reflexões sobre o
gênero charge; posteriormente apresenta-se a metodologia adotada; análise do corpus e descrição dos
resultados; as considerações finais, em que sintetiza-se as conclusões da pesquisa , bem como
apresenta-se sugestões e reflexões para estudos posteriores, e, por fim, as referências que nortearam
o desenvolvimento da pesquisa.
A Charge é um tipo de texto que atrai o leitor, pois, enquanto imagem é de rápida leitura,
transmitindo múltiplas informações de forma condensada. Além da facilidade de leitura, o
texto chárgico diferencia-se dos demais gêneros opinativos por fazer sua crítica usando
constantemente o humor (ROMUALDO, 2000, p. 5).
A charge, conforme ressaltou o autor, é de rápida leitura, isso se deve às estratégias que
o cartunista utiliza para vincular o sentido no texto, ora faz uso de imagens, ora mescla o conteúdo
461
abordado em forma de humor, o que se constitui como um atrativo que envolve o leitor no texto. O
gênero retrata uma temática atual específica, situada em um determinado momento no tempo, por
isso o seu caráter temporal, bem como expressa a opinião do cartunista sobre o assunto que a charge
se refere.
O gênero charge é vinculado a um contexto específico que precisa ser identificado pelo
leitor para construir o sentido, por isso a importância de atentar-se aos elementos que compõem a
charge, uma vez que eles direcionam a referência a que o texto está vinculado. Para isso, é preciso
acionar conhecimentos prévios durante a leitura, identificar o sentido que cada elemento expressa no
texto e observar a relação entre imagens e texto verbal.
O humor é uma outra estratégia textual que compõe a charge e funciona como elemento
de atração, capaz de despertar no leitor o interesse pela leitura do gênero. A crítica na charge é
carregada de tom humorístico direcionada geralmente a personagens políticos ou agentes sociais. A
caricatura e a ironia também são frequentes nas charges, a primeira funciona como um dos elementos
responsáveis pelo efeito de humor, uma vez que mostra uma ilustração não real das personagens
envolvidas, mas uma semelhança que provoca comicidade no leitor. É comum caricaturas de
personagens políticos, representando traços característicos da pessoa de forma exagerada, o que
auxilia a construção do humor na charge.
O uso da caricatura constitui-se em uma estratégia para o leitor identificar o personagem
envolvido na charge, reconhecendo os elementos que o caracteriza no texto. Já a ironia faz parte do
gênero de uma forma diferente, o cartunista utiliza um tom irônico para expressar a crítica, geralmente
utiliza uma discrepância de ideias na charge para gerar a ironia.
METODOLOGIA
Uma pesquisa visa a construção de passos para chegar a um dado objetivo, bem como
compreender um objeto ora em investigação na pesquisa a partir de pressupostos teóricos que
fundamentam a realização do estudo. Nesse sentido, adotamos uma perspectiva qualitativa de
pesquisa, com abordagem exploratória e descritiva de charges.
Para este trabalho, selecionamos um corpus composto por três charges de autoria do
cartunista Amarildo publicadas no jornal “A Gazeta”. Em relação ao critério de escolha, foram
selecionadas charges que retratam acontecimentos no âmbito político e social que causaram
repercussão na sociedade brasileira. Posteriormente foi feita a análise das charges, bem como uma
proposta de leitura à luz da visão dialógica da linguagem de Bakhtin.
A charge acima foi publicada no jornal “A Gazeta”, no dia 12/07/2020. Nas imagens,
podemos perceber um personagem caricato, um rádio anunciando que o presidente da República
contraiu o novo coronavírus e que está fazendo uso da cloroquina para tratar a doença.
O presidente da República Jair Bolsonaro desde quando o novo coronavírus se alastrou
na sociedade brasileira tem defendido reiteradas vezes o uso da hidróxido cloroquina como
medicamento para tratar a doença. No entanto, estudos realizados, bem como declarações feitas pela
organização mundial da saúde mostram que a cloroquina não possui eficácia comprovada
cientificamente para ser utilizada no tratamento da Covid-19. Nesse sentido, muitos entraves de
ordem política têm suscitado debates e discussões sobre o uso ou não da cloroquina, pois estudos
mostram que esta pode provocar efeitos colaterais, como problemas cardíacos, em pacientes com
Covid-19.
Na charge acima, observamos que, após saber que Bolsonaro está fazendo uso da
cloroquina por ter contraído o novo coronavírus, o personagem então afirma que também vai utilizar,
fato que nos leva a entender que ele também contraiu a doença. Percebemos claramente a pílula na
mão do personagem, o copo com água e a caixinha de hidróxido cloroquina próxima ao sofá, o que
sugere o contexto de uso da cloroquina. Em seguida, o rádio informa que o presidente está fazendo
dois exames cardíacos por dia para monitorar os riscos do uso da cloroquina. É essa informação que
gera o humor da charge junto com a ação do personagem de cuspir o comprimido da cloroquina,
464
conforme vemos na imagem. Podemos então perceber que a construção de sentido possui uma relação
dialógica entre o discurso da charge e o discurso sobre os entraves do uso da cloroquina defendida
por Bolsonaro. Para Miranda (2010):
O dialogismo e a polifonia são presenças fortíssimas nas charges, pois há uma interação de
vivências entre o chargista (eu) e leitor (outro). E é por meio destes diálogos ideológicos e
destas miscelâneas de vozes, que surge: o efeito de sentido proposto pelo chargista. Desta
forma, a interação charges/leitor torna-se rápida e a compreensão da mensagem ocorre, na
maioria das vezes, sem grandes dificuldades. (MIRANDA, 2010, p. 42).
Na charge em questão, podemos perceber essa relação dialógica entre os discursos, uma
vez que o leitor estabelece esse diálogo entre o discurso do chargista e o discurso difundido na
sociedade sobre a temática abordada. Na charge, observamos que o autor utiliza o enunciado “ele está
fazendo dois exames cardíacos por dia para monitorar os riscos” como estratégia que faz o leitor
estabelecer o diálogo entre o discurso de não existir uma eficácia comprovada cientificamente para o
uso da cloroquina e o discurso de defesa do uso do medicamento pelo presidente, o que faz o sentido
emergir no texto. Assim, percebemos que os elementos que constroem o sentido na charge carregam
valores ideológicos que se estabelecem por relações discursivas e dialógicas.
Charge 2: Ou ele ou eu
personagem que simboliza o “coronavírus”, representado por uma figura paramentada com túnica e
capuz pretos, empunhando uma gadanha, o que sugere ao leitor a representação da morte na terra. E,
por último, temos uma caricatura que, pelo cabelo, o rosto e o terno, caracteriza o presidente Jair
Messias Bolsonaro. Observa -se que o personagem que representa o presidente da República
encontra-se sendo puxado tanto pelo boneco símbolo da vacinação quanto pelo boneco que simboliza
o “coronavírus”, o que sugere um “cabo de guerra” entre os dois personagens em face do presidente.
Para Bakhtin (2006) todo enunciado ou discurso dialoga com outro discurso. A charge
em discussão requer uma relação dialógica para estabelecer a construção de sentidos.
Percebe-se que o enunciado “ou ele ou eu” proferido pelo boneco-símbolo da vacinação
dialoga com a conduta do presidente Bolsonaro frente a pandemia de coronavírus, expressando a ideia
de que o chefe de Estado Brasileiro representa insegurança para a população, uma vez que ele
constantemente tem negado a compra de vacinas para o combate à covid-19 em entrevistas à imprensa
brasileira, isto é, a charge se refere a falta de decisão do presidente, ou escolhe a vacina ou o
coronavírus. Essa ironia cria um efeito de humor que constrói um discurso negativo em relação à
imagem de Bolsonaro, caracterizando-o como incapaz de trazer uma solução para o problema
(Coronavírus) na sociedade brasileira.
Observamos que a construção do sentido da charge requer a cooperação do leitor no texto,
como por exemplo identificar o momento de produção da charge, ou seja, o contexto de discussão
política sobre uma possível vacina como medida imediata para combater o coronavírus. Além disso,
é esperado que o leitor identifique o sentido que cada elemento carrega na charge, o boneco que
representa a vacina e o outro que representa o coronavírus. Esse processo de construção de sentidos
durante a leitura se configura por meio das relações dialógicas entre os elementos que compõem a
charge e o contexto imediato sugerido no texto.
Na charge, um elemento que carrega um discurso dialoga com outro discurso para se
construir sentidos, o traje do personagem “coronavírus”, a túnica preta e a gadanha, representa a
morte, isto é, um discurso com estreita relação com o vírus. Além disso, a composição da charge leva
o leitor a dialogar/remeter ao contexto de discussão política da vacina em um processo de recuperação
e a alusão ao discurso/enunciado já dito que possibilita ao leitor construir sentidos.
466
A charge ora citada foi publicada no jornal “A Gazeta” no dia 13 de janeiro do corrente
ano (2021). A princípio, observamos um personagem em forma de caricatura, cujas características
apresentadas, como o formato do rosto do personagem, os óculos e a vestimenta leva o leitor a inferir
que se trata do ministro da Economia Paulo Guedes. Além disso, é esperado que o leitor identifique
o contexto de produção da charge e que assunto ela está abordando. Conforme podemos observar na
charge, o personagem que representa o ministro da Economia recebe uma ligação informando que a
empresa de automóveis Ford está saindo do Brasil, notícia que, aos olhos de um ministro da Economia
seria preocupante para os rumos econômicos do país.
Por meio da frase “nossa! Preciso tomar uma providência urgente” o ministro exprime
um tom de preocupação, afirmando que vai tomar uma providência urgente. Essa frase sugere
supostamente ao leitor que o ministro adotaria medidas para que a Ford não saísse do País. No
entanto, houve uma quebra de expectativa na charge, o que provoca a comicidade no texto, haja vista
que o personagem coloca à venda, como medida urgente, por meio de anúncio na internet, um modelo
Ford Ka pelo preço de 25 mil reais.
No caso da charge, retratar o ministro colocando à venda o carro modelo Ford Ka nos
leva ao resgate do discurso de que esse modelo saiu de linha do país com a consequente saída da
467
empresa, o que sugere de forma irônica o motivo de Paulo Guedes pôr o carro à venda. Ademais,
observa-se uma crítica à postura do ministro da Economia, em relação ao descompromisso frente às
relações econômicas do país, o que responsabiliza o governo pelo fechamento da Ford. O que se
percebe na charge é um verdadeiro diálogo entre informações que precisam ser resgatadas e
projetadas no texto para entender o discurso veiculado. Ao discutir sobre multiplicidade de discursos
que possuem um texto, Brait (2008, p.115) postula que:
Nesse sentido, a charge em discussão possibilita ao leitor assumir um ponto de vista sobre
o conteúdo abordado, uma vez que o texto requer relações dialógicas não só entre enunciados, mas
também entre discursos que remetem a outros já ditos. Na charge em realce, percebemos essa relação
dialógica contida nos elementos do texto, que remetem a outro discurso para construção de sentido.
Além disso, não só nessa charge, mas também nas demais analisadas percebe-se uma
ponte dialógica entre os sentidos/discursos que cada elemento carrega no texto. Identificar os
personagens caricatos por si só possibilita o leitor resgatar informações que dialogam com os
elementos da charge para construir sentidos. Assim, as charges não só representam fatos e ironizam
acontecimentos políticos ou sociais, mas possibilitam uma ação de leitura dialógica com o texto, bem
como envolve o leitor a despertar seu senso crítico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou analisar e propor uma leitura de charges à luz da visão dialógica da
linguagem proposta por Bakhtin. O estudo permitiu mostrar que os elementos responsáveis pela
construção de sentidos nas charges analisadas carregam valores ideológicos que assumem uma
perspectiva dialógica no texto, uma vez que requer a cooperação do leitor, bem como a identificação
dos elementos que caracterizam o episódio abordado no texto. Nesse sentido, evidencia-se que as
charges analisadas assumem um papel social à medida que abarcam em sua composição
acontecimentos de ordem política e social que causaram repercussão na sociedade brasileira.
Além disso, a análise revela que a construção de sentidos nas charges se configura por
meio de relações dialógicas da linguagem. Como prova disso, podemos perceber a relação dialógica
entre um discurso contido na charge e outro discurso resgatado pelo leitor com base nos elementos
468
do texto para construir o sentido e, com isso, surge o efeito cômico na charge. Assim, conclui-se que
o texto chárgico, além de expressar uma opinião do cartunista sobre o tema abordado, também
constitui-se de vínculos ideológicos com a presença do dialogismo da linguagem que possibilita,
longe de uma perspectiva estrutural, trabalhar a atividade de leitura sob uma ótica dialógica da
linguagem.
REFERÊNCIAS
BRAIT, B. Memória, linguagens, construção de sentidos. In: LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L.;
EMEDIATO, W. (org.) Análises do discurso hoje, v. 2, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. p.
115-132.
RESUMO
O trabalho com a oralidade ocupa cada vez mais espaço nas atividades em salas de aulas de Língua
Portuguesa. Apesar disso, ainda se nota um significativo desconhecimento sobre como transpor, por
parte dos professores, as especificidades do oral para o ensino. Para esses profissionais, o
planejamento de suas aulas e práticas pedagógicas é, predominantemente, guiado e amparado pelo
livro didático que, na maioria dos casos, também é o único material de apoio disponível para o aluno.
Visando isso, este trabalho tem como objetivo analisar propostas de produções de seminários em três
livros didáticos do Ensino Médio (1ª, 2ª e 3ª série), com ênfase nas etapas de planejamento e execução
do gênero. Foram selecionadas propostas de três coleções diferentes para o corpus do trabalho:
Trilhas e Tramas, Ser Protagonista e Diálogo, Reflexão e Uso, todas aprovadas pelo PNLD/2018 do
Ensino Médio e usadas por alunos e professores da rede pública básica de todo o país. As análises
apoiam-se na concepção bakhtiniana de gêneros discursivos, nos pressupostos teóricos de Marcuschi
(2007) e Dolz & Schneuwly (2004), que consolidam a relevância da oralidade como objeto de ensino,
como também nas orientações dadas nos documentos oficiais de ensino no Brasil, a BNCC (2017),
os PCN (1998) e o Guia de Avaliação do PNLD (2018). Os resultados apontam que, na etapa do
planejamento, há uma predominância de encaminhamentos voltados para aspectos conteudísticos, e,
na etapa da execução, predominam direcionamentos relacionados à estrutura do gênero. Além disso,
evidencia-se a ausência de um consenso em relação à separação entre os elementos de cada etapa, ou
seja, em diferentes coleções, o mesmo direcionamento pode ser encontrado tanto no planejamento
quanto na execução. As implicações desses resultados revelam um desconhecimento relativo à
oralidade como objeto de ensino, reforçando a concepção do oral como algo não planejado e intuitivo,
totalmente desvinculado da escrita e, consequentemente, das práticas de letramento.
INTRODUÇÃO
141
Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC - UFRN). Graduanda em Letras - Língua Portuguesa pela UFRN;
mariaclaraabm@hotmail.com.
142
Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG. Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN;
anavirginialsr@gmail.com.
470
Nesse sentido, nosso objetivo é analisar até que ponto as propostas de produção de
seminários podem contribuir para a formação dos estudantes no que diz respeito ao conhecimento e
ao domínio do seminário enquanto prática de oralidade formal. Por essa razão, a questão de pesquisa
para esse trabalho é: que possíveis contribuições oferecem as propostas de produção de gêneros orais
em LD para o conhecimento e o domínio dos discentes acerca do gênero seminário?
Inicialmente iremos tecer algumas considerações sobre nosso referencial teórico, que
consiste nas nossas concepções de oralidade, sua relação com o ensino e os documentos oficiais,
assim como o que compreendemos por seminário neste trabalho. Logo em seguida, faremos uma
exposição sobre o corpus e as categorias de análise; por fim, partiremos para as considerações finais.
ORALIDADE E ENSINO
ensinar língua oral deve significar para a escola, possibilitar acessos a usos da linguagem
mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da
enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício
da cidadania (BRASIL, 1998, p.67).
No mais recente documento nacional sobre educação, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), organizada em competências específicas que devem ser desenvolvidas por meio de um
conjunto de habilidades, a análise e a produção de gêneros orais considerando seus fatores linguísticos
e extralinguísticos é considerada uma das habilidades responsáveis pela competência 1 e pela
competência 4, conforme verificamos:
Competência 1:
Compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas culturais (artísticas,
corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos
nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de
participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica
da realidade e para continuar aprendendo (BRASIL, 2018, p. 490).
Competência 4:
as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, cultural, social, variável, heterogêneo e
sensível aos contextos de uso, reconhecendo suas variedades e vivenciando-as como formas
de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como agindo no enfrentamento de
preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018, p. 490).
Oralidade no PNLD
Além disso, as resenhas divulgadas das coleções analisadas contam com uma seção
responsável para verificar o tratamento da oralidade; essas devem ser lidas pelos professores na hora
de escolherem a coleção que será adotada na escola em que lecionam.
Por essa razão, os alunos aprendem a apresentar seminários de maneira intuitiva e, na maioria das
vezes, não conseguem identificar melhorias, pois dificilmente recebem uma avaliação precisa.
Evidenciamos aqui que a produção de um seminário, como um evento mais amplo do que
o gênero exposição oral, requer do aluno uma série de ações que vão além da exposição oral, mas que
também são cruciais para a produção dessa. Há, assim, três etapas básicas envolvidas no evento
seminário: o planejamento, em que se são feitas pesquisas sobre os temas, a seleção de conteúdo, a
confecção de slides ou cartazes e os possíveis ensaios da apresentação; a exposição, em que a
exposição acontece, mobilizando recursos linguísticos e extralinguísticos; e a avaliação, com critérios
pré-estabelecidos.
Considerando-se o aporte teórico apresentado, especialmente no que diz respeito aos três
elementos caracterizadores dos gêneros (BAKHTIN, 2003), analisamos as orientações para a
produção de seminários a partir de três categorias básicas para análises de gêneros em geral:
planejamento e execução do conteúdo temático; planejamento e execução da estrutura
composicional, incluindo a organização dos turnos de fala e sua hierarquização, haja vista tratarem-
se de situações de predomínio da oralidade; estilo, que delimitaremos como planejamento e execução
de “aspectos linguísticos”. Dada a dinâmica do seminário, com base em Dolz et al. (2004),
acrescentamos a categoria planejamento e execução de aspectos extralinguísticos. Teceremos
reflexões, ainda, acerca dos recursos de apoio e de questões operacionais envolvidas na situação
comunicativa em foco.
Como já mencionado, foram selecionadas para a análise três coleções de LD de Língua
Portuguesa do Ensino Médio, aprovadas no PNLD/2018, quais sejam:
Essas coleções apresentam, cada uma, uma proposta para a produção de seminários
considerando-se os três volumes, sendo em cada coleção a proposta realizada em uma única série. É
importante destacar que, em todos esses casos, apresentam-se etapas de planejamento, execução e
avaliação do seminário, o que revela influência de uma abordagem sociointeracionista para os
gêneros, bem como a tentativa de atendimento dos critérios do PNLD. Além disso, o reconhecimento
de tais etapas é coerente com a própria natureza do seminário como um evento constituído por vários
gêneros (ou, sob outras perspectivas, como um “hipergênero”).
474
Esta análise recairá sobre as duas primeiras etapas, pois consideramos que a avaliação de
gêneros e eventos que envolvem a oralidade merecem um capítulo à parte. Na COL 01, no volume
da 1ª série, propõe-se como tema para o seminário a “supervalorização da juventude”. A proposta é
dividida em duas etapas: a) “antes de apresentar o seminário” (planejamento); b) “após apresentar o
seminário” (execução).
Na primeira etapa, predominam orientações relativas à dimensão do conteúdo do
seminário, desde a sua seleção até sua organização. Esse é um movimento essencial no ensino-
aprendizagem de gêneros orais, pois, sem a consciência dos alunos acerca da validade das fontes de
informações e da retextualização a partir dessas fontes, os seminários se resumirão a simples repetição
de outros textos, como uma atividade avaliativa, apenas.
Por outro lado, as orientações relativas à estruturação do texto são vagas, limitando-se à
conexão entre as falas e à gestão do tempo. Essas orientações, obviamente, contribuem para a
qualidade da apresentação, mas outras, como a hierarquização de conteúdos (DOLZ et al., 2004) e a
criação de estratégias para prender a atenção do público (SILVA, 2013), são igualmente necessárias.
Na Fig. 1, a seguir, é possível visualizar as orientações para a etapa de planejamento. No
Quadro 1, essas orientações encontram-se transcritas e categorizadas.
Fonte: COL 01
Definir qual será a ordem das falas, quem será responsável por apresentar o X
tema, quem dará a sequência a cada fala, quem vai encerrar a apresentação
475
Fonte: COL 01
Fonte: COL 01
Fonte: COL 01
Na COL 02, no volume da 2ª série, o seminário aparece como uma atividade em conjunto
com o assunto de literatura do módulo – “Romances do Romantismo brasileiro e do Romantismo
Português”. As etapas são nomeadas conforme o conjunto de procedimentos de cada momento: a)
“Pesquisa e preparação” (planejamento) e b) “Realização” (execução).
Na etapa de planejamento da proposta em análise predominam orientações relativas à
estrutura composicional do seminário. Além dessas, é mencionada apenas a escolha de um romance
para apresentação, acerca do conteúdo; a elaboração de um cartaz como recurso de apoio e a sugestão
de gravação e edição do seminário, como uma questão operacional.
Observa-se a influência de uma concepção de texto como estrutura, incoerente com
documentos oficiais (PCN, 1998; BNCC, 2018) e com a abordagem que orienta os critérios de
avaliação do PNLD. Embora haja orientações para elaboração e “correção” de um roteiro,
procedimento essencial e que contribui para a organização do texto oral, em uma das orientações,
diz-se que um dos componentes será o moderador e os demais os apresentadores. Porém, não é
esclarecido qual é o papel do moderador. Ademais, a orientação de que cada um dos apresentadores
“deve ficar responsável pela apresentação de pelo menos um dos aspectos da obra escolhida”
relaciona-se a uma concepção fragmentária de seminário, desprovida de reflexão e de integração. Da
forma como está redigida, como se vê no Quadro 3, a seguir, essa orientação induz ao entendimento
de que o seminário é uma simples soma de partes e cada um responde apenas por sua parte.
As orientações supracitadas se encontram na Fig. 3 e 4 e no Quadro 3, a seguir.
Fonte: COL 02
orientações necessárias para o seminário, como o uso de recursos linguísticos para o estabelecimento
da clareza e da coesão, assim como a adoção de estratégias e de postura adequada.
Entretanto, na dimensão do conteúdo, a única orientação que consta diz respeito à
introdução do seminário por meio de um roteiro; ou seja, nem no planejamento, nem na execução,
dá-se enfoque à seleção, discussão, organização e sistematização do conteúdo. Como atestado no
Quadro 4, novamente predominam orientações quanto à estrutura composicional, voltadas para a
execução de procedimentos para a abertura e encerramento dos turnos. “Como estruturar cada um
dos turnos de fala?” Essa é uma pergunta cuja resposta não encontra respaldo nas orientações da
proposta analisada.
Fig. 5: COL 02 - Execução
Fonte: COL 02
Fonte: COL 02
Na COL 03, no volume da 3ª série, propõe-se algum tema relacionado aos direitos
humanos. A proposta é dividida nas seguintes etapas: a) “Proposta” (delimitação do tema); b)
“Planejamento”; c) “Elaboração”. Nessa proposta, há um quadro com as condições de produção do
gênero (cf. Fig. 6), o que não aparece em nenhuma dentre as outras coleções. A partir de Bronckart
(1999), consideramos que as condições de produção constituem o ponto de partida para a
compreensão de uma situação comunicativa e dos gêneros relacionados a ela. No contexto do LD de
Língua Portuguesa, a explicitação das condições de produção provoca uma discussão sobre o objeto
de ensino, as definições e práticas de letramento associadas.
Além das condições de produção, há destaque também para a dimensão do conteúdo, com
enfoque na seleção de materiais para pesquisa e na organização de informações. Vale ressaltar, ainda,
as orientações acerca da preparação de material de apoio, que se referem à definição de materiais de
apoio a serem utilizados, ao cumprimento da própria “parte” na preparação do material.
Por fim, no tocante à estrutura, há a orientação para a elaboração conjunta de um roteiro
e depois de um roteiro individual (seguido de ensaio). A realização e a ordem dessas ações,
apresentadas didaticamente, são significativas para a compreensão do seminário como um trabalho
conjunto (e não soma de partes), em que cada um, por outro lado, assume o seu papel. Entretanto,
481
consideramos que outros elementos estruturais tornariam a proposta de produção textual em análise
mais consistente.
Faça uma lista de aspectos do tema que podem ser abordados pelo X
grupo
Fonte: COL 03
Fonte: COL 03
Os últimos minutos devem ser reservados para as perguntas do público e as respostas dos X
expositores
Fonte: COL 03
A lacuna quanto aos elementos estruturais se apresenta também na COL 03, em que, assim como na
COL 01, o conteúdo é o elemento mais destacado na etapa de planejamento. Esse distanciamento
quanto às orientações quanto à estrutura – seria tentativa de distanciamento da tradição? – é o oposto
do que ocorre na COL 02, cuja proposta indica fortemente influência de uma abordagem estrutural.
Os dados apresentados indicam que, em todos os casos, há encaminhamentos coerentes e
relevantes para a realização do seminário. Por outro lado, vemos também lacunas que podem
dificultar o conhecimento e o domínio do seminário. Obviamente, essas lacunas podem ser sanadas a
partir do trabalho docente. Porém, para isso faz-se necessária uma formação que permita às
professoras e aos professores de Língua Portuguesa refletir e discutir acerca da oralidade, das suas
relações com a escrita, bem como dos elementos multimodais envolvidos na produção oral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante destacar que nossa análise não busca desqualificar ou desaprovar nenhuma
das coleções, apenas levantar questões relevantes para aprofundar as discussões sobre o ensino de
oralidade. Nesse sentido, as implicações desses resultados revelam um certo desconhecimento
relativo à oralidade como objeto de ensino (DOLZ et al., 2004), reforçando a concepção do oral como
algo não planejado e intuitivo, totalmente desvinculado da escrita e, consequentemente, das práticas
de letramento. Observam-se, também, indefinições quanto às concepções de seminário e à
compreensão das suas dimensões ensináveis.
Uma vez que muitos professores da rede básica não tiveram acesso a uma formação que
trouxesse a oralidade como um objeto de ensino e, consequentemente, terão dificuldades na
transposição de assuntos relacionados a essa modalidade, é importante que os livros didáticos
auxiliem não só o aluno, mas também o docente que irá orientar e avaliar as atividades. Por isso,
ressaltamos, mais uma vez, a importância de produções e análises que contemplem atividades com
gêneros orais em materiais didáticos da rede básica, visto que a relevância de um trabalho de
qualidade sobre tema já é reconhecida em todos os documentos oficiais de ensino do país. É por meio
dessas investigações que, paulatinamente, essas discussões que permeiam a área dos Estudos
Linguísticos podem ganhar cada vez mais aplicabilidade nas salas de aulas do Brasil. Além disso,
vale ressaltar, que esse trabalho será aprofundado posteriormente, visando analisar, também, a
avaliação dessas propostas.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
484
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da
Educação, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Edital de convocação 04/2015 - CGPLI. Brasília, DF: Ministério
da Educação, 2015. Assunto: PNLD 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia do livro didático 2018:
língua portuguesa, Ensino Médio. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017.
GOULART, Claudia. As Práticas orais na escola: o seminário como objeto de ensino. 2005. 206 f.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem,
Campinas, SP.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
BARRETO, Ricardo; MARTINS, Matheus; STRECKER, Heidi; PENTEADO, Ana Elisa; ABREU-
TARDELLI, Lília; PRADO, Manuela; CLETO, Mirella; BERGAMIN, Cecília. Ser protagonista:
língua portuguesa, 3º ano: ensino médio. [Editora responsável: Andressa Monique Paiva]. 3. ed. São
Paulo: Edições SM, 2016.
SETTE, Graça; RIBEIRO, Ivone; TRAVALHA, Márcia; STARLING, Rozário. Português: trilhas e
tramas, volume 2. 2. ed. São Paulo: Leya, 2016.
485
INTRODUÇÃO
O tema proposto surgiu a partir de uma bolsa de pesquisa oferecida para a participação
de um projeto internacional, que contava com a participação de mais duas discentes de Letras. O
projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Maranhão – FAPEMA. Trata-se de um projeto amplo intitulado Práticas Escolares
em Contextos Rurais e/ou Multiculturais: um estudo sobre a leitura e escrita no Brasil e Peru, cujo
desenvolvimento dava-se por meio de planos individuais. No plano individual apresentado para
desenvolvimento, seria necessário acompanhar as aulas de produção textual do ensino fundamental,
durante um mês, tanto do Brasil quanto do Peru, para coletar as produções textuais dos alunos e tentar
compreender como acontecia o processo de escrita, a fim de fazer uma comparação entre as produções
143
Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFMA, campus Bacabal – MA. E-mail: elineeduarda8@gmail.com
486
textuais do Brasil e do Peru. Portanto, partindo desse plano de pesquisa, nasceu o seguinte título: O
processo da escrita na produção textual de alunos do Ensino Fundamental: uma análise comparativa.
Buscaremos fazer uma comparação, no que diz respeito ao processo da escrita, das
produções brasileiras e peruanas, tomando como processo de escrita as mudanças que foram sendo
realizadas até o aluno obter a sua produção final. Além disso, levaremos em consideração também
que são países diferentes que podem ou não apresentar semelhanças no modo de produzir um texto.
Trata-se de olhar não só para a produção escrita de alunos do ensino fundamental, mas de olhar para
a produção de jovens pertencentes a comunidades multiculturais e/ou rurais, visto que são jovens
pertencentes a comunidades periféricas que precisam ser ouvidas.
Nesta pesquisa, observaremos o texto para além da sua materialidade, vendo o autor/aluno
como sujeito que se coloca dentro do texto a partir do momento em que de uma reescrita para outra,
na produção do seu texto, ele decide que assunto vai abordar, como vai abordar e que nesse momento
da reescrita escolhe o que vai permanecer e o que vai retirar.
O que nos instigou a aprofundarmos ainda mais nessa temática foi o fato de, na maioria
das vezes, durante as observações das aulas de produção textual, percebermos que os alunos não
tinham muita paciência para reescrever o seu texto, o que fazia com que muitos não achassem
importante reescrever e fazer direto a produção final. Dessa maneira, surgiu a seguinte pergunta
norteadora de pesquisa: Como o trabalho com a reescrita pode modificar a produção textual final do
aluno?
Para tentar responder a essa pergunta, temos como objetivo geral comparar diversas
versões de texto produzidas por alunos do Brasil e do Peru e analisar como as suas reescritas foram
sendo construídas.
Para tanto, pretendemos especificamente: 1) Analisar, comparativamente, textos
produzidos por alunos do Ensino Fundamental do Brasil e do Peru em contextos rurais e/ou
multiculturais; 2) Verificar como a produção de diferentes versões de texto no Brasil e no Peru
interveem qualitativamente no texto produzido; e 3) Realizar um diagnóstico das produções escritas
de alunos da educação básica de Tumbes e Olho d’Água das Cunhãs em contextos rurais e/ou
multiculturais.
Outro ponto a ser discutido quanto à escrita, é a ideia que o aluno tem de que na primeira
versão do texto já se deve apresentar um texto perfeito em relação às competências que envolvem a
escrita. O pensamento de que o texto só poderá ser realmente bom se não houver erros gramaticais e
ortográficos é o que acaba atrapalhando a concentração de alguns alunos durante a produção textual.
Portanto, no momento que o professor for propor para os alunos as etapas propostas pela Calkins
(1989), faz-se necessário intervir nesse ponto, enfatizando para os alunos que, no primeiro momento,
487
o essencial é que eles coloquem no papel aquilo que desejam falar e só depois, por meio do processo
da escrita, eles aperfeiçoem o texto às regras gramaticais.
REFERENCIAL TEÓRICO
Vale ressaltarmos a importância do ato de escrever, “Mas então, o que é escrever?
Designo por escritura a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em
construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado [...]”
(CERTEAU, 1998, p. 225). O autor traz um conceito aparentemente simples sobre escrever, é o ato
de pegar a folha em branco e construir um texto, mas o que está posto em evidência é o valor que
esse texto tem, não é um texto qualquer, é um texto que tem poder para além do papel, pois, ele é
capaz de modificar a realidade. “[...] Pelo contrário, o jogo escriturístico, produção de um sistema,
espaço de formalização, tem como “sentido” remeter à realidade de que se distinguiu em vista de
mudá-la144. Tem como alvo uma eficácia social. Atua sobre sua exterioridade [...]” (CERTEAU,
1998, p. 226)
A importância que existe no ato de ensinar a escrever, não se trata apenas de alfabetizar
o aluno, mas de incentivá-lo a ter uma fruição maior no ato de escrever, “[...] A entrada no mundo da
escrita não se limita e não se realiza somente pelo ato de ser alfabetizado. Ela requer e constrói, ao
mesmo tempo, um domínio simbólico e reflexivo da linguagem”. (RIOLFI, 2008, p. 122).
Com isso, ressaltamos a importância de sempre motivar o aluno para escrever e refletir
sobre o mundo em que vive, fazendo com que desde criança pense e expresse no papel aquilo que vê
e pensa, pois assim será possível o seu interesse pela escrita permanecer vivo, para além das
dificuldades que serão impostas a ele no ensino médio e no ensino superior.
A autora Calkins (1989), relata o que aconteceu com ela, como foi o seu desenvolvimento
com a escrita. Ela explica que quando começou a estudar raramente a escrita era ensinada, pois, na
maioria das vezes, ela era exigida. Por isso, enfatiza que o foco não estava no processo, mas no
produto final. Além disso, destaca que jamais algum professor chegou a observar sua escrita, a saber
das suas ideias, das suas inquietações, muito menos das suas dificuldades em expressar o que sentia
no papel. Dessa forma, destaca quão importante é dar uma maior visibilidade para o processo de
escrita.
Com base no processo de escrita, Calkins propõe criar ambientes de sala de aula que nos
permitam escutar as crianças. Portanto, os alunos terão que ter mais tempo para conseguirem executar
a tarefa com maior excelência, bem como um ambiente agradável que permita isso, por esse motivo
144
Grifo do autor
488
ela enfatiza que o “[...] processo de escrita requer um ritmo e estrutura de sala de aula radicalmente
diferentes daqueles utilizados em nossas escolas [...].” (CALKINS, 1989, p. 36)
De maneira geral e clara, a oficina de escrita funciona com um espaço onde o aluno irá
desenvolver sua escrita, afim de olhá-la de uma forma diferente, não como uma exigência, mas como
algo que desperte o seu desejo em expressar-se. Por isso, que a autora Calkins propõe algo diferente,
etapas de escrita, tais como: ensaio, esboço, revisão e edição.
Fonte: autora
02 É um elemento importante.
04 Ajuda os ensinamentos.
05 É benéfico.
Fonte: autora
No exercício da lluvia de ideas, o aluno é convidado a pôr no papel tudo que vem a sua
mente sobre o tema que quer abordar, ou seja, o objetivo é o aluno colocar no papel tudo aquilo que
ele pensa sobre um tema e só depois selecionar o que é principal para inserir no seu texto, conforme
afirma Prado:
En síntesis, el TI es una actividad mental consistente en remover todas las ideas (cuantas más
mejor) e impresiones del cerebro, sin ninguna limitación, censura ni cortapisa exterior o
interior, con libertad y espontaneidad. Podría equivaler a una asociación libre de cuanto existe
en el cerebro. El concepto analógico es eminentemente creativo prestándose a
interpretaciones y aplicaciones variadas y divergentes en distintos contextos. (PRADO, 2001,
p.30).
490
Nessa citação o autor fala de TI (Torbellino de Ideas), não é diferente de lluvia de ideas,
pois essa expressão é um sinônimo que surgiu de TI.
Podemos perceber que nas sete frases presentes na chuva de ideias, o aluno inicia com
verbos já conjugados é, ajuda e deve. Vemos o uso da modalidade alética nas linhas 02, 03, 04, 05,
07 e 08, na qual o aluno ao formular as frases coloca nelas um grau de certeza, pois nelas ele afirma
como se tivesse a certeza do que está falando como, por exemplo, na linha 03: “é um grande meio de
comunicação”.
Há uma única frase que contém a modalidade deôntica, que é quando o aluno escreve na
linha 06, “deve existir mais programas de educação”. Nessa frase, ele utiliza o verbo dever no
imperativo para expressar uma ordem. Segundo Neves (2006, p.56) a modalidade deôntica é um
“enunciado em que há manifestação de uma regra moral, social a ser seguida”. Sendo, assim, o uso
da modalidade deôntica marca o que seria uma espécie de solução ao problema apresentado. A partir
das frases da chuva de ideias, veremos como suas certezas aparecem no rascunho e na produção final.
Essa etapa do processo pode ser considerada a etapa que Calkins (1989) nomeia de ensaio,
que é o momento em que o aluno vai decidir qual tema abordar, ou seja, ele vai planejar o seu texto.
Ela afirma ser “um modo de vida”, pois as pessoas que escrevem as estórias acreditam que elas
existem, vendo assim estórias em potencial, portanto, todo tema é válido.
Figura 2 - Rascunho
Fonte: autora
491
02 Tem como inciativa que o público veja o benefício dos programas de televisão.
07 Educar com televisão é um meio benéfico já que existem programas que podem
10 Para finalizar sobre os benefícios da televisão podemos dizer que é muito boa para
Fazendo uma comparação entre a chuva de ideias e o rascunho, podemos observar que
das 07 frases escritas, somente duas não aparecem no rascunho. Observamos que a frase contida na
linha 2 da chuva de ideias está no segundo parágrafo do rascunho, linha 03, “elemento importante”.
E, que a frase da linha 03 presente na chuva de ideias está presente também no segundo parágrafo do
rascunho, linha 04, “um grande meio de comunicação”. A frase da linha 04 da chuva de ideias
aparece no terceiro parágrafo, linha 05 do rascunho: “é um meio benéfico”. Uma das frases que o
aluno não utilizou da chuva de ideias foi a frase da linha 06, ela não aparece em nenhum momento
no rascunho, mas o aluno poderia ter utilizado em sua conclusão, como uma proposta. A frase
presente na linha 07 da chuva de ideias aparece também no terceiro parágrafo, linha 06, “obtendo
melhores conhecimentos”. Por fim, temos a frase da linha 08 da chuva de ideias, que não aparece no
rascunho.
O tema escolhido pelo aluno é “Os benefícios dos programas de televisão”, e a partir do
título do texto, já podemos compreender qual deve ser o seu posicionamento em relação aos
programas de televisão. O aluno divide seu texto em cinco parágrafos pequenos, nesses parágrafos
ele tenta explicar por que os programas de televisão têm benefícios, por exemplo, quando ele fala no
terceiro parágrafo nas linhas 05 e 06 que pode ensinar as crianças os fazendo terem mais
conhecimentos.
No quarto parágrafo, o aluno não traz exemplos de programas que podem ensinar, apenas
diz nas linhas 08 e 09 que “existem” programas. Nesse mesmo parágrafo, o aluno se contradiz quando
diz que os programas de televisão podem prevenir a tecnologia audiovisual como material didático
integrado, podemos perceber que o aluno utiliza um verbo de maneira equivocada e acaba deixando
492
a frase contraditória, pois ele estava falando dos benefícios que os programas podem trazer. Para esta
situação, Perelman (2014) afirma:
[...] duas proposições são ditas contraditórias, num sistema formalizado, quando, sendo uma
a negação da outra, supõe-se que, cada vez que uma delas pode aplicar-se a uma situação a
outra também o pode. Apresentar proposições como contraditórias é tratá-las como se, sendo
a negação uma da outra, elas fizessem parte de um sistema formalizado. Mostrar a
incompatibilidade de dois enunciados é mostrar a existência de circunstâncias que tornam
inevitáveis a escolha entre as duas teses em presença. (PERELMAN, 2014, p.228)
Levando em consideração a tipologia textual a qual o aluno enquadrou seu tema, podemos
observar que ele conclui seu texto sem trazer uma solução para o problema apresentado, apenas
reafirma o que já havia dito no decorrer do desenvolvimento, ele diz que os programas de televisão é
muito bom para a nossa vida, mas não diz o motivo, e isso acontece de novo quando diz que é uma
ferramenta de aprendizagem para os jovens, mas não explica como e o porquê de os programas serem
uma ferramenta de aprendizagem.
Com a leitura do borrador, podemos perceber que o texto apresenta um grau de
informatividade baixo e não possui embasamentos para os argumentos, fazendo com que a redação
fique redundante, pois há uma repetição da informação que os programas trazem benefícios, seja para
as crianças ou para os jovens. Conforme afirma Koch (2008, p.86) “a informatividade diz respeito ao
grau de previsibilidade (ou expectabilidade do texto) da informação contida no texto [...] se contiver
apenas informação previsível ou redundante, seu grau de informatividade será baixo”.
Após o esboço, o aluno passa para a terceira etapa proposta por Calkins (1989) que é
chamada de revisão, etapa na qual o aluno vai rever o esboço (borrador) sem alterar nada, vai apenas
fazer a leitura para ver se tem algo que precisa acrescentar ou retirar do texto para poder reelaborá-lo
e produzir a versão final.
Na revisão, a professora propôs que os alunos fizessem a leitura do borrador (rascunho)
para depois pensar no que deveria ser retirado ou acrescentado dentro do texto, mas para isso eles não
poderiam mexer no borrador, apenas fazer a leitura. Dessa forma, alguns alunos se concentraram na
leitura do rascunho, enquanto outros começaram a mexer no rascunho, e a professora avisou
novamente que não podia, depois todos se organizaram e começaram a elaborar a produção final.
Após a revisão, o aluno passa para a última fase proposta por Calkins (1989) que é a
edição, ela fala que o termo edição pode soar estranho, como algo negativo, mas que para ela é a
melhor fase da escrita, pois o escritor vai alterar seu texto e aos poucos vai sentir que ele está mais
forte.
Fonte: autora
06 para os jovens e ao mesmo tempo pode fazer propagandas para vender bem e comprar-
07 mos as coisas necessárias que precisamos.
09 ensinar as crianças (palavras em inglês, sobre os animais, sobre nossa cultura, etc)
11 Educar com televisão é um grande benefício já que existem programas logo pode ensi-
12 nar e podem aproveitar a tecnologia audiovisual como material didático integrado às
15 A televisão também nos ajuda a estar informados com o que se passa ao nosso redor (ro-
17 Para finalizar sobre os benefícios da televisão podemos dizer que também tem sua parte
Fonte: autora
Nessa última etapa, nomeada pela Calkins (1989) como edição, podemos perceber que o
aluno apresenta um desenvolvimento maior, pois ele acrescenta mais exemplos no texto e em todos
os parágrafos acrescenta mais informações.
Fazendo uma comparação entre o esboço (borrador) e a edição (producción final),
percebemos, inicialmente, que há um aumento no número de parágrafos, pois já não são mais cinco
como no borrador, mas sim seis. No primeiro parágrafo o aluno não muda muita coisa, mas
acrescenta mais uma informação quanto ao seu objetivo, acrescenta que a iniciativa de falar sobre os
benefícios dos programas de televisão não é apenas para que o público assista aos programas de
televisão, linha 02 (esboço), mas que vejam a programas específicos, ou seja, aos programas
educacionais, linha 03 (edição). Nessa mudança, podemos perceber que o aluno tenta especificar mais
sobre o que ele pretende defender no desenvolvimento do seu texto.
No segundo parágrafo, o aluno mantém a mesma informação que havia escrito nas linhas
03 e 04 (esboço), mas na edição ele acrescenta mais informações colocando outra característica da
televisão, que são as propagandas que vendem seus produtos para as pessoas comprarem aquilo que
necessitam, vemos isso nas linhas 06 e 07.
No terceiro parágrafo, o aluno deixa as mesmas palavras que havia escrito nas linhas 05
e 06 do esboço, mas depois da palavra “crianças” ele abre um parênteses para acrescentar informações
sobre o que os programas podem ensinar as crianças, deixando assim o seu parágrafo mais
consistente, vemos isso na linha 09 da edição.
No quarto parágrafo, o aluno mantém as mesmas palavras das linhas 07, 08 e 09 do
esboço, mas acrescenta na edição nas linhas 13 e 14 os tipos de programas educativos que existem,
tais como reportagens informativas e documentos que podem ser utilizados na sala de aula, porém o
aluno comete o deslize de não citar um exemplo de documento que pode ser utilizado.
O quinto parágrafo não contém no esboço, esse é o parágrafo que ele acrescenta na edição,
no qual diz que a televisão além de trazer benefícios educacionais, pode informar sobre o que acontece
e ele acrescenta exemplos, como roubos, sequestros etc. Nesse parágrafo percebemos que o aluno se
preocupa em ressaltar outras finalidades que a televisão possui, além de servir como um princípio
educativo para crianças e jovens.
Por fim, temos o sexto parágrafo que o aluno mantém praticamente a mesma informação,
porém ele diz que “também tem uma parte positiva para nós”, o que faz com que a frase fique
495
redundante, pois já que ela traz benefícios ela tem uma parte positiva para nós. Percebemos que na
conclusão, o aluno continuou sem fazer uma conclusão, o que acabou se tornando redundante,
diferentemente do esboço, no qual ele conseguiu concluir sem ser redundante.
Produção brasileira
Figura 4- Rascunho
Fonte: autora
01 Páscoa
05 páscoa.
09 va ovos de páscoa.
Fonte: autora
A sua produção textual nos faz recordar também do poema “Meus oito anos” escrito por
Casimiro de Abreu, no qual o eu-lírico sente saudade da sua infância querida e já começa o poema
falando “Oh! que saudades eu tenho...”. Talvez, para fazer sua produção, o aluno tenha se recordado
desse poema, fazendo, assim, um intertexto.
496
É interessante as palavras que o aluno utiliza para expressar seus sentimentos, porque
cada palavra traz um tom melancólico para a produção, o que faz com que a gente imagine com
nitidez aquilo que está escrito, podendo até mesmo sentir o mesmo que ele.
A história tem um começo que explica claramente a atenção que o aluno deu à porta de
uma loja de ovos de páscoa, juntamente com o observar dessa porta veio os sentimentos que ele
guardava em relação a essa comemoração festiva. Após explicar o que despertou o sentimento de
tristeza, o aluno repete três vezes a palavra saudade, linha 06, 08 e 10.
Conforme ele vai expressando essa saudade, ele vai tornando-a mais íntima, primeiro a
saudade é de ganhar ovos de páscoa, depois ele já especifica de quem ele tem saudade de receber esse
ovo de páscoa, que é da sua mãe. Por fim, sente saudade de ser pequena, pois tem consciência que na
infância os pais têm uma preocupação maior em alimentar essas histórias festivas.
No final do texto, observamos uma quebra da melancolia para uma certa comicidade no
momento em que o aluno afirma na linha 11 “hoje só ganho chocolate de colher e olhe lá”, dando a
ideia que chocolate de colher não é suficiente para suprir a falta do ovo de páscoa, não só do chocolate
em si, mas do significado que tem ganhar um ovo de páscoa da sua mãe na infância.
Fonte: autora
09 páscoa.
17 olhe lá.
Fonte: autora
desencadeou diversas sensações. Ele foi capaz também de recordar mais uma sensação que ele
gostava muito, que era a de esperar ansiosamente para ver os brindes que vinham dentro dos ovos da
páscoa.
ALGUMAS CONCLUSÕES
Esta pesquisa teve como enfoque o processo da escrita na produção textual do aluno do
Ensino Fundamental, e como reforço teórico principal as quatros etapas propostas por Calkins (1989)
ensaio, esboço, revisão e edição. Com essas etapas, foi possível fazermos uma relação com as etapas
que o professor tinha proposto para os alunos (lluvia de ideas, borrador e producción final). A partir
disso, formulamos o seguinte questionamento: Como o trabalho com a reescrita pode modificar a
produção textual final do aluno?
Podemos perceber, por meio da análise de todas as etapas, que a escrita vista como um
processo pode auxiliar na produção textual do aluno, pois observamos que do esboço para a edição o
aluno consegue deixar sua produção mais rica, acrescenta mais informações e consegue ajeitar
algumas partes que estavam sendo contraditórias no esboço. Dessa forma, há um avanço na escrita
do aluno quando é permitido a ele a reformulação do seu texto inicial.
Apesar de percebemos em algumas produções poucos avanços em relação à
informatividade do texto, vemos que o aluno consegue se inserir colocando seu conhecimento de
mundo. Sendo assim, não é necessário o professor se ater somente à estrutura, mas, sim, àquilo que
o aluno escreveu.
REFERÊNCIAS
CALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever - O desenvolvimento do discurso
escrito – Trad. Deise Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
CERTEAU, de Michel. A invenção do cotidiano – nova edição, estabelecida e apresentada por Luce
Giard. – 3 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça, Luiz Carlos Travaglia. A coerência textual. 17. ed. – 2ª
reimpressão – São Paulo: Contexto, 2008.
KOCH, Ingedore Villaça, Vanda Maria Elias Escrever e argumentar. 1 ed. – 1ª reimpressão. – São
Paulo: Contexto, 2017.
PRADO, Devid de. Torbellino de ideas. Por una EducAcción participativa y creativa. 1 ed.
Santiago de Compostela, 2001.
499
RIOLFI, Claudia. Ensino de língua portuguesa – São Paulo: Thomson Learning, 2008. – (Coleção
ideias em ação / coordenadora Anna Maria Pessoa de Carvalho).
SERCUNDES, Maria Madalena. Ensinando a escrever. In: CHIAPPINI, Ligia (coord.) Aprender
e ensinar com textos. v. 1. São Paulo: Cortez, 2000.
500
RESUMO
Devido ao contexto do ensino de língua espanhola em nosso país, foram elaboradas algumas
modalidades para que os alunos da Licenciatura em Letras – Língua Espanhola e Literaturas, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), possam realizar o estágio que deveria ocorrer
em turmas regulares do ensino fundamental. Neste trabalho, direcionamos nosso olhar para a escrita
dos relatórios de estágio resultantes desta conjuntura, a partir do seguinte questionamento: quais
imagens do lugar do espanhol no ensino fundamental materializam-se nos relatórios de nosso corpus?
Por isso, estabelecemos como objetivo analisar a partir de operações linguístico-discursivas as
imagens presentes nos relatórios sobre o lugar do espanhol no ensino fundamental. Para tanto, o
trabalho filia-se à Análise do Discurso de linha francesa e fundamenta-se, principalmente, nos estudos
de Pêcheux (2014) sobre as formações imaginárias. Nossa pesquisa é de natureza qualitativa e utiliza
o método do Paradigma Indiciário proposto por Ginzburg (1989). O corpus é composto por relatórios
da disciplina de Estágio Supervisionado de Formação de Professores para o Ensino Fundamental
(Espanhol). A partir da análise duas imagens contrastantes se delinearam, a primeira de um lugar não
existente e a segunda de um lugar possível, mas pouco alcançado.
INTRODUÇÃO
145
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED). Email:
maiaraaraujo@rocketmail.com.
146
Orientadora. Professora Doutora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem (PPgEL/UFRN). Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED). E-mail:
sulemifabiano@yahoo.com.br.
501
isso pode ser reformulado, dada a ausência do espanhol no ensino fundamental em muitos estados do
nosso país. Na UFRN encontramos um exemplo dessa reformulação, pois como um dos estágios da
licenciatura é voltado para o ensino de espanhol no fundamental, foram elaboradas modalidades para
que esse estágio se realizasse.
Na primeira modalidade os estagiários ofertam, na escola de estágio, minicursos
direcionados para alunos do ensino fundamental II, os minicursos possuem um tema previamente
estabelecido entre os estagiários e os seus supervisores de campo e as aulas ocorrem no contraturno
dos alunos. Na segunda, os estagiários possuem como campo de atuação as instituições que oferecem
cursos técnicos e tecnológicos que possuem na estrutura curricular a língua espanhola, nessa
perspectiva as aulas de espanhol são mais voltadas para a área de formação dos alunos. Já na terceira,
os futuros professores ministram aulas no ensino fundamental I, mesmo que na escola os alunos não
estudem regularmente o espanhol. E a proposta da última modalidade são aulas no ensino livre,
através de cursos de idiomas, no entanto, vale salientar que esta é a menos desenvolvida até o
momento, visto que boa parte dos cursos são particulares e os estágios supervisionados possuem como
campo privilegiado as instituições públicas.
Considerando que as experiências de estágio influenciam diretamente nas imagens que
um futuro professor constrói do ensino, dos alunos, da escola e da própria profissão, começaram a
surgir vários questionamentos que nos conduziram a nossa pesquisa de mestrado. Neste trabalho em
específico, iremos nos debruçar sobre a seguinte pergunta: quais imagens do lugar do espanhol no
ensino fundamental materializam-se nos relatórios de nosso corpus? Por isso, estabelecemos como
objetivo analisar a partir de operações linguístico-discursivas as imagens presentes nos relatórios
sobre o lugar do espanhol no ensino fundamental. Para tanto, o trabalho filia-se à Análise do Discurso
de linha francesa e fundamenta-se, principalmente, nos estudos de Pêcheux (2014) sobre as formações
imaginárias.
Considerando o objetivo deste trabalho faz-se necessário que abordemos, ainda que
rapidamente, o contexto do ensino de língua espanhola no Brasil.
Como nosso intuito não é realizar um histórico aprofundado sobre o ensino de espanhol
em nosso país, mas sim possibilitar uma compreensão da situação atual, iremos partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) publicada em 1996. A LDB, ainda que de forma
indeterminada, abriu espaço para a presença do espanhol tanto no Ensino Médio quanto no
Fundamental, pois estabeleceu como obrigatório o ensino de uma língua estrangeira moderna que
deveria ser escolhida pela comunidade escolar, em ambos os níveis (BRASIL, 1996).
502
Foi somente em 2005 com a publicação da Lei nº 11.161, que ficou conhecida
popularmente como “Lei do Espanhol”, que a oferta de língua espanhola se tornou obrigatória no
ensino médio, sendo facultativa a matrícula pelo aluno (BRASIL, 2005). Quanto a presença da língua
estrangeira em questão no ensino fundamental, a referida lei a colocou como facultativa.
Em 2017 o cenário de ensino de línguas estrangeiras no Brasil sofreu mais uma mudança,
a partir da aprovação da Lei nº 13.415. Essa lei que ficou conhecida como Reforma do Ensino Médio,
revogou a Lei do Espanhol e fez alterações consideráveis na LDB no que tange o ensino de línguas
estrangeiras nas etapas da educação básica aqui mencionadas. De forma resumida, a partir do sexto
ano do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio, o aluno passa a estudar de forma
obrigatória somente a língua inglesa (BRASIL, 2017).
Esse contexto de ensino chega até os cursos de formação de professores, como
exemplificamos a partir da UFRN.
FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS
Pêcheux (2014, p. 83) coloca que devemos considerar ainda um segundo grau imaginário,
através do qual se estabelece a estratégia do discurso, que corresponderia a “antecipação das
representações do receptor”. Nesta dinâmica, A formula para si um conjunto de imagens das
representações de B.
METODOLOGIA
Concluída a leitura dos seis relatórios, observamos que a imagem do lugar do espanhol
no ensino fundamental não se faz presente em todos os textos, estando ausente em RE4 e em RE5.
Observamos também a existência de duas imagens contrastantes, com base nisto selecionamos dois
relatórios para compor a análise deste trabalho, sendo eles RE1 e RE6.
Em nossa análise tomamos como norte a seguinte expressão, formulada por Pêcheux
(2014), a saber: IA(R). Primeiramente, vejamos a imagem (I) presente no relatório 1 (RE1) sobre o
lugar do espanhol no ensino fundamental (LEEF), ou seja, IRE1(LEEF):
La referida escuela fue elegida por la pareja por tener una ubicación de fácil acceso y por
contemplar la exigencia de funcionamiento de todo el Ensino Fundamental y Médio, y tener
la enseñanza de lengua extranjera, en nuestro caso: español. Por supuesto, la enseñanza de
la lengua española es restricta al ensino médio, que nos compelió a criar un pequeño curso
en contra turno de los alumnos do Fundamental. (RE1 - grifos nossos)
legalmente a possibilidade do ensino de espanhol no fundamental, na maioria das vezes era o inglês
que entrava no currículo.
Ainda sobre o excerto de RE1, nos chama a atenção o uso do verbo “compeler”,
conjugado na terceira pessoa no pretérito perfeito simples “compelió”, que pela forma como foi
empregado remete ao sentido de forçar alguém a fazer alguma coisa pela autoridade e não pela força.
Nesse caso, são os estagiários que são forçados a criar um minicurso para poderem realizar o estágio,
mas de quem parte a autoridade para isso? Mesmo que os estagiários tenham mencionado a escola,
essa autoridade não parte dela, não é ela que determina, mas ela cumpre a determinação, ela cumpre
o que determina a lei.
Esse lugar da ausência gerado a partir da determinação legal é encontrado também em
RE2. Além disso, foi possível observar que em ambos os relatórios a imagem do lugar do espanhol
no ensino fundamental só se faz presente na introdução, atrelada a contextualização do estágio.
Mesmo que os estagiários de RE1 e RE2 tragam para sua escrita que receberam retorno positivo dos
projetos, pois os alunos tinham interesse em continuar os minicursos, eles não problematizam a partir
disso a ausência do espanhol no Ensino Fundamental, eles não estabelecem um diálogo entre o que é
posto e o que eles desenvolveram.
Para realizar um contraponto, trouxemos a imagem (I) presente no relatório 6 (RE6) sobre
o lugar do espanhol no ensino fundamental (LEEF), ou seja, IRE6(LEEF):
discursiva, pois já não se deve ser ofertada “alguna lengua extranjera”, mas sim a língua inglesa.
Acreditamos que essa desinformação esteja relacionada com o fato de que foi muito mais propagado
as implicações da aprovação da Lei 13.415 sobre o lugar do espanhol no ensino médio, já que assim
um lugar que vinha aos poucos sendo conquistado sofreu uma forte regressão. Enquanto que as
implicações dessa lei sobre o ensino de línguas estrangeiras no fundamental foram e seguem sendo
menos abordadas.
E é a partir dessas informações desatualizadas que se delineia a IR6(LEEF), de que é um
lugar possível, mas pouco concretizado. Percebemos que na construção dessa imagem a estagiária
reproduz o discurso de que o inglês é a língua “escolhida”, quando já não é mais essa a situação,
marcada pelo uso do verbo “elegir”. Essa reprodução implica também na imagem que a futura
professora vai trazer do lugar do espanhol na escola de realização do estágio, pois ao colocar que
“este es el caso de la escuela pública en la cual se dio a cabo las prácticas”, atribui a escola a escolha
pela língua inglesa em detrimento a língua espanhola.
Um outro diferencial de RE6 é que nele a futura professora busca fazer uma relação entre
a imagem que ela traz anteriormente no seu relatório e a sua experiência de estágio:
Con esta experiencia de impartir clases a chicos de la enseñanza fundamental, que nunca
tuvieron clases de español, podemos afirmar que todos los alumnos ya tuvieron contacto
con el idioma español, sea por medio de videojuegos o de músicas, y todos saben algunas
palabras en el idioma español. Creo que eso solo aumenta la importancia de la enseñanza
de este idioma en Brasil, pues estamos rodeados de países hispanohablantes y tenemos
contacto sin percibir con la lengua española. (R6 - grifos nossos)
É partindo da imagem de lugar possível e autorizado que a futura professora vai defender
a importância do estudo da língua espanhola não somente no ensino fundamental, mas no país. A
estagiária reproduz um discurso conhecido para defesa do ensino de língua espanhola constante em
“estamos rodeados de países hispanohablantes”, já que o Brasil é um dos doze países que constituem
a América do Sul, subcontinente americano formado por nove países que têm a língua espanhola
como língua oficial, dos quais sete fazem fronteiras com o Brasil. Mas ela vai além disso, ao colocar
que o espanhol não está somente ao nosso redor, ele se faz presente também aqui no Brasil, e ela vai
sustentar isso a partir do conhecimento que os alunos do fundamental expressaram nas aulas, a partir
das formas que os alunos demonstraram ter contato com a língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, tivemos como objetivo analisar as imagens do lugar do espanhol no ensino
fundamental materializadas na escrita de relatórios, referentes a estágios desenvolvidos a partir de
modalidades. Com base na análise realizada, verificamos que duas imagens contrastantes se
507
delinearam, a primeira de um lugar não existente e a segunda de um lugar possível, mas pouco
alcançado.
O que pudemos observar é que a legislação influencia fortemente esse lugar do espanhol
na escrita dos licenciandos. Um indício disso é que a única futura professora que buscou estabelecer
um diálogo entre a sua prática e esse lugar é a que desconhece a atualização da LDB. Os estagiários
que conhecem a atualização não relacionaram esse lugar com sua experiência de ensino, no máximo
colocaram como essa experiência de estágio foi importante para seu processo formativo e algumas
vezes de forma generalizada.
REFERÊNCIAS
GINZBURG, Carlos. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK, Tony
(Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2014. p. 59-106.
508
RESUMO
A prática pedagógica de leitura, orientada pelo viés teórico da Análise de Discurso de linha francesa,
tem por objetivo conduzir os alunos a interpretar, sob a forma de interrogação, os discursos suscitados
na materialidade dos textos lidos, considerando, sobretudo, as atribuições de sentidos que dão às
leituras que realizam. No contexto enunciativo de realização do ensino, mediado por ferramentas
digitais em tempos de pandemia da Covid-19, frente à emergência de continuar mediando saberes em
espaço enunciativo de sala de aula distanciada, escolhemos trabalhar com textos do gênero histórico-
memorialísticos. Essa escolha se deu por reconhecemos que a historicidade discursiva materializada,
nesses escritos, propicia aos estudantes o contato com os discursos que circulam nas práticas
linguageiras do cotidiano cultural, facilitando, desse modo, o reconhecimento e a compreensão de
alguns discursos ouvidos, por exemplo, tendo em vista nossa impossibilidade de interlocução direta
em sala de aula. Assim, neste trabalho, apresentamos uma análise de atividades de leitura
desenvolvidas com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental, na disciplina de Língua Portuguesa,
proposta com objetivo de estimular deslocamentos subjetivos e oferecer possibilidades dos
estudantes, por meio da interpretação de textos, se inscreverem nos enunciados em resposta a textos
lidos. Orientamo-nos pela seguinte pergunta: que marcas interlocutivas de remissão e interpretação
dos discursos outros, podemos observar na materialidade dos textos produzidos por alunos da
educação básica? Para tanto, buscamos embasamentos nas reflexões sobre mediação empreendidas
por Geraldi (2013), que concebe a leitura como um processo que possibilita ao leitor recompor os
passos de produção de sentido percorridos pelo autor do texto lido e descobrir novos significantes.
Nos postulados de Pêcheux (2015), quando afirma que os enunciados linguisticamente descritos, no
que concerne aos sentidos que lhes possam ser atribuídos, estão sempre suscetíveis à interpretação.
A partir da análise do enunciado resposta elaborado pelo estudante, em referência aos discursos
suscitados nos textos lidos, observamos que ele inscreve em seu escrito impressões interpretativas
que entrelaçam pontos de vista heterogêneos e fragmentados que, em certa medida, evidenciam sua
maneira de compreender e pensar o mundo social e o cotidiano cultural em que está inserido.
INTRODUÇÃO
A busca por interpretar e atribuir sentido as discursividades linguageiras de outros é
um gesto peculiar de todo ser humano. É gesto de vida que simboliza a busca por compreensão de si,
por meio das palavras, dos movimentos, dos olhares e das ações responsivas trocadas com outros.
Desse modo, existir é, desde o início da vida, condição de linguagem, pois, como tão bem nos afirma
Benveniste (2005, p. 286) em seus estudos enunciativos, “é na e pela linguagem que o homem se
147
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail:
claudiane.23@hotmail.com
509
constitui enquanto sujeito”. Seguindo esse entendimento, a ação de interpretar os sentidos de textos
lidos, também é uma atividade de linguagem, e, principalmente, uma experiência de transmissão de
saberes que, como tal, necessita de mediação.
Na escola pública, com exceção de algumas atividades elaboradas individualmente pelo
professor, o livro didático, na disciplina de Língua Portuguesa, configura-se, basicamente, como fonte
de estudo e único objeto por meio do qual os alunos entram em contato com materiais que textualizam
diferentes discursividades linguageiras. A formulação de enunciados em referência a textos lidos
presente em livros didáticos é a questão posta em discussão neste trabalho.
Realizamos uma reflexão sobre o modo de elaboração de enunciados que são perguntas
de questões que solicitam aos alunos a formulação de respostas em referência aos conteúdos lidos,
em atividades realizadas no livro didático. Propósito surgido a partir da observação como professora
de Língua Portuguesa, que media atividades de leitura e utiliza o livro didático, de enunciados
endereçados à espera de respostas, perguntas que buscam explicitar os conhecimentos adquiridos
pelos alunos, as quais, a partir do modo como são formuladas, limitam e, até mesmo, cerceiam a
compreensão dos sentidos suscitados pelos discursos presente nos textos. Impedindo, desse modo, os
estudantes de textualizarem qualquer interlocução, induzindo-os, praticamente, a reproduzirem
literalmente os trechos posto no texto lido.
Como exemplo de modo de elaboração de enunciado pergunta, em nosso percurso
analítico com as atividades de leitura proposta pelo livro didático, nos defrontamos com enunciados
estruturados como no formato que exemplificamos na imagem abaixo e que justifica, sobretudo, nossa
preocupação.
O fragmento apresenta um trecho de um artigo de divulgação científica, e, na sequência,
a pergunta sobre o conteúdo abordado. Escolhemos apresentar um excerto do manual do professor,
concernente ao livro didático denominado “Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem”,
de Ormundo e Siniscalchi (2018), destinado aos professores e, por conseguinte, o livro destinado aos
alunos do 9º ano, do ensino fundamental.
Trecho do texto do LD
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Teoricamente, dialogamos com Geraldi (2013) no que concerne a sua compreensão de
que é possível formar um aluno/leitor com capacidade de recompor sentidos e textualizar
posicionamentos sobre leitura, a partir do trabalho de mediação de leitura realizado por um professor.
Com Pêcheux (2015), na compreensão de que os enunciados linguisticamente descritos, no que
compete aos sentidos que lhes possam ser atribuídos, implicam uma interpretação.
A partir dessa premissa, o professor assume o papel de mediador, isso ocorre porque
“não é o professor que ensina, é o aluno que aprende ao descobrir por si a magia e o encanto da
literatura” e da complexidade que envolve os fatos de linguagem. Nesse sentido, cabe ao professor
criar situações de aprendizagem que viabilizem aos estudantes o acesso aos textos a serem lidos.
Assim, para ser professor e ser mediador
é preciso ser leitor. Ninguém pode oferecer ao texto outros textos com que cotejá-lo se não
for leitor. Ser mediador de leitura na escola é ser leitor, e como leitor, ser capaz de enriquecer
o contato do leitor iniciante pela oferta de outros textos com os quais cotejar o que se leu e
como se leu. (GERALDI, 2013, p.165-166)
A história de Ceará-Mirim é tão rica que é impossível falar sobre tudo numa única crônica. Das
tantas possibilidades, escolhi falar sobre educação pública ofertada na Casa de Instrução, já que faço
parte da educação nesse Município há 22 anos.
Aqui, a educação é pioneira em ter sido a primeira cidade a ter escola funcionando em prédio
público de todo o interior da Província do Rio Grande do Norte, prédio este doado em 1878 pelo
Coronel Manoel Varela do Nascimento e que lhe rendeu o título de Barão de Ceará-Mirim, em 1874.
Para entendermos melhor como essa educação pública se iniciou a partir da doação desse prédio,
precisamos compreender alguns aspectos e realizarmos uma contextualização com o que acontecia na
Província à época.
Em 03 de maio de 1760 foi criada a primeira Vila da Capitania do Rio Grande: a “Villa de
Estremoz”. Ceará-Mirim, na época, era a povoação de Boca da Mata e pertencia à pioneira vila. Era
vigente a Constituição Imperial de 1824, que em seu art. 179, Inciso XXXII dizia que “A Instrucção
primaria, e gratuita a todos os Cidadãos”. Assim, negros e escravos alforriados não nascidos no novo
Império não eram considerados cidadãos, e, portanto, não tinham direito à instrução.
A Lei Geral do Ensino de 15 de outubro de 1827 “manda crear as escolas de Primeiras Letras em
todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio”; Em 1837, a Lei nº 20 de 08 de
514
novembro “proibia a admissão de pessoas escravas nas aulas públicas”, contradizendo o texto
constitucional que abria espaço para escravos nascidos no Novo Império.
Em 1855 a sede da Vila passa para a povoação de Boca da Mata, passando a ser chamada de
Vila de Ceará-Mirim. A nível imperial a Lei nº 686, de 30 de julho de 1874 “autorizou as câmaras
municipais da Província a despender os saldos [...] com a construção e reparos de casas de escolas
públicas nos seus municípios” e a Lei nº 720 de 5 de setembro do mesmo ano “autorizava o Presidente
da Província a emitir apólices cujos produtos serão empregados na construção de casas para o ensino
público”. Eram as Casas de Instrução que começavam a surgir. Nesse mesmo ano a villa de Ceará-
Mirim recebe a boa notícia que ganharia a sua Casa de Instrução.
A fala esclarece qualquer especulação quanto ao recebimento do título de Barão pelo coronel
Manoel Varella do Nascimento ter sido em virtude da doação do prédio, como afirma a carta-diploma
onde Dom Pedro afirma que: “Atendendo aos relevantes serviços prestados à instrução pública na
província do Rio Grande do Norte pelo Coronel Manuel Varella do Nascimento e Querendo Distingui-
lo e Honrado; Rei por bem Fazer-lhe mercê do Título de Barão do Ceará-Mirim” (CASCUDO, 1955,
p. 199).
A Casa de Instrução da vila de Ceará-Mirim era o que havia de mais moderno na arquitetura
provincial. Apresentava características do estilo Neoclássico, fazendo relação com a arquitetura greco-
romana como as colunas e frontões, trazendo ao centro o brasão do Império. A simetria também era
característica visível no prédio. Possuía três espaços para o funcionamento das escolas e um espaço
central de entrada, onde ficava a recepção e por onde se tinha acesso aos armários de madeira onde
ficavam os documentos.
O termo escolas se referia a cada turma: masculina ou feminina. Tempos depois é que surgem as
turmas “mixtas”. Meninos eram ensinados por professores e meninas por professoras, com requisitos
bastante rígidos para a seleção. As carteiras eram de madeira e duplas. À época, não existia luz elétrica
e as compridas janelas permitiam que a iluminação solar chegasse à sala.
O ensino era baseado na educação moral e religiosa, na leitura e escrita, noções de gramática,
aritmética e práticas de cálculo, noções de Geografia e história resumida do Brasil. Para as meninas
eram ensinados trabalhos em agulha e prendas domésticas. As aulas duravam das 8h da manhã às 14h.
O currículo era organizado a partir dos chamados “Programas de estudo” de cada modalidade.
Os professores tinham por obrigação garantir hábitos higienistas, conferência de unhas, cabelos e
vestimenta era comum. Os métodos de ensino e adoção de livros eram indicados pelo Conselho de
Instrução Pública. O ensino era acompanhado pelos inspetores de comarca e pelo do Diretor Geral de
Inspeção do Ensino Primário e Secundário da Província.
As vagas destinadas aos professores eram nomeadas de “cadeiras” e foram classificadas a partir
do regulamento nº 28, de 17 de dezembro de 1872, aprovado pela Lei nº 729 que determinava a
“reorganização da Instrução Pública na Província (ensino primário e secundário) classificando as
escolas por entrância”, sendo as de 1ª entrância as escolas das povoações, de 2ª as escolas das vilas e
de 3ª as das cidades. Portanto, na Casa de Instrução de Ceará-Mirim funcionou escolas de 2ª entrância
até 9 de junho de 1882, quando Ceará-Mirim passa a ser cidade através da Lei nº 837.
Esse é apenas o início de uma longa trajetória educacional. Ainda há muito o que falarmos sobre
a educação de Ceará-Mirim. Que essa breve introdução provoque a vontade de conhecer mais sobre a
história da educação municipal, pois os frutos dessa colheita auxiliarão na construção de nossa
identidade cultural!!!!
https://www.facebook.com/photo?fbid=2378418552449867&set=a.1375732419385157
515
Atividade
1. Na aula passada, realizamos a leitura de um texto falando sobre a nossa escola. Agora, como
atividade referente a leitura realizada, elabore um texto falando sobre as descobertas mais
interessantes, em relação a nossa instituição de ensino, que você ficou sabendo ao realizar essa leitura.
Como devolutiva da atividade solicitada em referência ao texto, obtive do aluno (A1) a seguinte
resposta para a questão:
Fonte: A1
Para análise, transcrevo abaixo a devolutiva da atividade proposta
516
Fonte: A1
lido, realizado, aqui, a partir de uma espécie de deslocamento temporal. É perceptivo o gesto de
comparação temporal realizado pelo aluno (A1), quando ele aponta suas impressões sobre a mudança
no modo como o ensino era ministrado; na forma como a escola era caracterizada e para as maneiras
como os alunos eram tratados e como tratavam os professores.
Percebemos, também, que esse deslocamento temporal coloca o aluno em interlocução
com várias discursividades que circulam na sociedade, sobre as quais ele demonstra ter um certo
conhecimento. O encadeamento enunciativo “o ensino era bastante nojento praticamente ensinando
que o dever de uma mulher e cuidar da casa desvalorizando qualquer mulher e privando as pessoas
que não eram considerados cidadãos de obter uma chance de ter conhecimento e ter alguma
oportunidade de ter uma vida melhor”, elaborado pelo o aluno (A1), nos mostra uma interlocução
remissiva a pontos de vista defendidos por pautas como o movimento feminista, quando questiona o
modo como a mulher era tratada e o Artigo 26°, da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), no que compete a afirmação de que “toda a pessoa tem direito à educação”, por exemplo.
Desse modo, percebemos que, embora o aluno (A1) não desenvolva uma argumentação
demonstrado com palavras próprias, a sua compreensão sobre em as redes de significantes marcados
nos discursos postos nos textos lidos, em seu enunciado resposta, ecoam vozes remissivas que
atualizam saberes sobre as temáticas apontadas no texto, como um saber de ouvido. Um saber que
ele sabe existir e não sabe como dizer, mas que entende como inaceitável para os padrões de
compreensão do seu tempo.
Nesse sentido, podemos afirmar que sim, o aluno (A1) realiza uma interpretação de
leitura e consegue fazer uma interlocução das informações contidas no texto lido com o seu
conhecimento de mundo.
CONSIDERAÇÕES
A partir da análise do enunciado resposta elaborado pelo estudante (A1), concluímos que,
quando é dado ao aluno a oportunidade de escrever enunciados resposta para além da reprodução
literal do discurso posto no texto lido, mesmo que de maneira fragmentada, ele realiza no escrito
movimentos de dizer que textualizam, em certa medida, expressões de compreensão de si e do seu
saber sobre o mundo.
Desse modo, como mediador de saberes, cabe ao professor no trabalho com textos em
sala de aula, cotejar textos que deem margens para construções interpretativas e ofereçam aos alunos
possibilidades de atribuir sentido as suas experiências de leitura que realizam, compreendendo,
sobretudo, os discursos uma unidade aberta para significações que necessita de interpretação.
REFERÊNCIAS
518
ACLA PEDRO SIMÕES NETO, SILVEIRA, Cleoneide Maria Maciel. A CASA DE INSTRUÇÃO
NA VILA DE CEARÁ-MIRIM. 29 de abril de 2020. Facebook Aclapedrosimoesneto. Disponível
em: https://www.facebook.com/photo?fbid=2378418552449867&set=a.1375732419385157/
Acesso em: 02 set. 2020.
GERALDI, Wanderley João. Tranças e danças. Linguagem, ciência, poder e ensino. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2018.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo o estudo das marcas estruturais que compõem uma redação nota
mil do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com base, principalmente, na sua significativa
relação com a proposta de redação a que os candidatos têm acesso no dia da prova. Ancorados na
perspectiva teórica da Análise do Discurso (AD), o aporte teórico que norteia este trabalho é
composto por Authier-Revuz (1990, 2004) no que diz respeito às reflexões que a autora faz sobre a
heterogeneidade enunciativa mostrada; de Pêcheux (1995), para subsidiar as reflexões sobre a posição
do sujeito por trás dessas redações; e de Charaudeau (2009) para compor as questões que envolvem
a organização de textos argumentativos e a lógica argumentativa. Para o direcionamento do presente
estudo, desenvolvimento da análise e reflexões que puderam ser feitas, nos pautamos no trabalho de
Paiva (2020) que objetivou o estudo da massificação de redações nota mil do ENEM dos anos de
2014, 2015, 2016 e 2017 com base na estrutura e no conteúdo dessas redações. O corpus deste estudo
é constituído por uma redação nota mil do ENEM do ano de 2019. No que diz respeito à análise,
seguimos, metodologicamente, os preceitos do paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1986) já
que esse paradigma parte de uma interlocução muito direta com o objeto analisado, trazendo à tona o
que o corpus, em sua singularidade, pode proporcionar. Os resultados reverberam os que foram
encontrados na pesquisa de Paiva (2020) no que versa sobre as questões estruturais, pois apontam
uma “manutenção” da massificação que vai, anualmente, padronizando, cada vez mais, as escolhas
estruturais das redações. Além disso, essa perspectiva de resultado nos remete a algumas reflexões
bem pertinentes ao ensino de produção de texto do país visto o grande alcance do ENEM e, com isso,
sua maior inserção nas salas de aula.
Palavras-chave: Redação nota mil do ENEM. Estrutura dos textos. Análise do discurso.
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre as marcas estruturais que compõem uma redação nota mil
do ENEM em relação significativa com a proposta de redação a que os candidatos têm acesso no dia
da prova. Desta forma, serão identificadas as marcas de estrutura componentes do texto, observando
as que se repetem; à caracterização de como se dá a utilização; a recorrência da inserção da voz alheia;
e, também, como essas vozes são inseridas na lógica argumentativa.
148
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPgEL) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), bolsista CAPES e integrante do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso
(GETED/UFRN). E-mail: renataidsp@gmail.com
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Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPgEL) e do Mestrado Profissional em Letras (ProfLetras), unidade de Natal-
RN. Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso (GETED/UFRN). E-mail:
sulemifabiano@yahoo.com.br
520
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
No intuito de compor a filiação epistemológica buscamos uma síntese das teorias que
foram mobilizadas a fim de auxiliar na análise do corpus. Ancorados na perspectiva teórica da Análise
do Discurso, assegurados de que é pela máxima de que é pela interação linguística de homens que
falam que se interessa a Análise do discurso (ORLANDI, 2003, p.15). Nosso ponto de partida se dá
pelo conceito de discurso ao qual chegamos com base nos estudos de Foucault (1997), olhando para
p que dizem as formações discursivas e os processos discursivos, uma vez que “um enunciado
pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um
conjunto dedutivo” (FOUCAULT, 1997, p. 135). Com base nessas afirmações é que chegamos ao
conceito, por ele elaborado, de discurso.
Foucault ao elaborar os conceitos citados, determinou o discurso como sendo “um
conjunto de regras anônimas, históricas sempre determinadas no tempo espaço, que definiram em
uma dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de
exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1997, p. 43). É, portanto, o discurso quem
521
movimenta as relações que se estabelecem nas práticas sociais e esse foi o direcionamento adotado
para nossa análise.
É, portanto, com base nesses pressupostos analíticos que permeiam nossa filiação
epistemológica no que concerne à Análise do Discurso, que selecionamos os conceitos já
apresentados, de forma basilar, a exemplo do conceito de heterogeneidade, para que compreendamos
a pluralidade dos discursos e a sua não homogeneização, assim como o olhar para um sujeito que não
é apático ao texto, mas está inserido em um contexto e pertence a uma (ou mais) ideologia. Esses dois
últimos conceitos citados são melhor apresentados a seguir.
Fases anteriores da AD já consideraram o discurso como homogêneo, entretanto, essa
homogeneidade foi dando lugar a outras interpretações de análise. Ao longo do tempo, as formações
discursivas foram estabelecendo o que se considera por heterogeneidade do discurso e essa concepção
passou a determinar várias questões analíticas. Foi nos estudos da linguista Authier-Revuz (1990,
2004) que nos ancoramos para refletir sobre essas questões.
A autora refletiu, com base nos postulados da AD, sobre os elementos interdiscursivos e
constatou alguns mecanismos linguísticos que estabelecem as inserções de outras vozes no discurso;
considerando essa explanação, a linguista postulou que as heterogeneidades enunciativas são
divididas em constitutiva e mostrada. Considerando, com base nisso, que “sempre sob as palavras,
‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma
cadeia (discursiva), se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (AUTHIER-
REVUZ, 1990, p. 28). Somado a isso, destacamos a heterogeneidade enunciativa mostrada ocorrendo
quando “no fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz, um certo número de
formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, em sua linearidade,
o outro” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12).
Seguindo, para discorrer sobre o sujeito, já que partimos de uma concepção que o
considera a fonte do discurso, recorremos a Pêcheux (1995) que reflete, a respeito do sujeito, que
“podemos resumir o que precede dizendo que, sob a evidência de que ‘eu sou realmente eu’ (com
meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças, minhas ‘idéias’, minhas intenções e
meus compromissos)” (PECHÊUX, 1995, p. 159). O que faz entender o sujeito como numa posição
estratégica, uma vez que ele, assujeitado, escolhe a partir do lugar que ocupa.
Por fim, para a composição do nosso quadro epistemológico, buscamos os olhares de
Charaudeau (2009) para a análise da materialidade do discurso a partir das pistas e do que se pode
resgatar com base nos mecanismos linguísticos. A compreensão da argumentação, para Charaudeau
(2009, p. 205) se dá da seguinte forma:
METODOLOGIA
Para a execução desse estudo, nos pautamos nos pressupostos fundamentais da Análise
do Discurso, ancorando-nos nessa perspectiva para a escolha do corpus, desenvolvimento da análise
e organização das partes. Nesse sentido, a teoria mobilizada anda junto com os aspectos
metodológicos, uma vez que um solicita o outro, concomitantemente e reciprocamente.
Resgatamos, metodologicamente, o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1986),
para ancorar essa pesquisa, pois parte de uma interlocução muito direta com o objeto analisado,
trazendo à tona o que o corpus, em sua singularidade, pode proporcionar. A investigação ancorada
nesse paradigma, perpassa por procedimentos abdutivos de investigação, assim como de questões
metodológicas que enfatizam: i) os critérios de identificação dos dados a serem tomados como
representativos do que se quer tomar como a “singularidade que revela”, uma vez que, em um sentido
trivial do termo, qualquer dado é um dado singular; II) o conceito de “rigor metodológico” que não
pode aqui ser entendido no mesmo sentido que é tomado no âmbito de paradigmas de investigação
centrados nos procedimentos experimentais, na replicabilidade e na quantificação. (PAIVA, 2020)
A seleção do corpus se deu baseado na escolha de uma redação nota mil do ENEM do
portal de notícias g1. Inicialmente, olhamos o contexto que engloba a produção dessa redação:
caracterizando a proposta de redação e os textos motivadores. Seguindo, partindo da linha de
raciocínio de Paiva (2020), foi feita uma observação da forma como a redação é estruturada no que
diz respeito à sequência argumentativa e a inserção da voz alheia. Por fim, observamos alguns
aspectos encontrados na proposta de intervenção.
523
O Texto III traz percentuais que mapeiam o comportamento dos brasileiros no que diz
respeito a ida ao cinema e, também, ao consumo de filmes nas próprias televisões. Outros tipos de
texto comuns nas propostas de redação são esses que apresentam inúmeros recortes de informações,
524
O texto IV traz uma espécie de trajetória do cinema brasileiro com elementos que
também podem auxiliar na construção da argumentação das redações, como datas, números
referenciais e afins. Esse tipo de conteúdo é importante pois faz uma espécie de panorama da situação,
resgatando informações e contrastando com as atuais. Para situar o candidato no tema é de grande
valia. Vejamos, abaixo, o texto na íntegra:
Imagem 4 – Texto motivador IV
525
Além disso, uma comunidade que restringe o acesso ao cinema, por meio do custo de ingressos,
representa um retrocesso para a coletividade que preza por igualdade. Nesse sentido, na teoria
da percepção do estado da sociedade, de Émile Durkheim, sociólogo francês, abrangem-se
duas divisões: ‘normal e patológico’. Seguindo essa linha de pensamento, observa-se que um
ambiente patológico, em crise, rompe com o seu desenvolvimento, visto que um sistema
desigual não favorece o progresso coletivo. Dessa forma, com a disponibilidade de ir ao cinema
mediada pelo preço — que não leva em consideração a renda regional —, a democratização
torna-se inviável.
Depreende-se, portanto, a relevância da igualdade do acesso ao cinema no Brasil. Para que isso
ocorra, é necessário que o Estado proporcione a redução coerente do custo de ingressos por
região, junto à difusão da importância da produção cinematográfica no cotidiano, nos meios de
comunicação, por meio de anúncios, a fim de colaborar com o acesso igualitário. Ademais, a
instituição educacional deve proporcionar aos indivíduos uma educação voltada à
democratização coletiva do cinema, como entretenimento destinado às elites, por intermédio
de debates e palestras, na área das Ciências Humanas, como forma de esclarecimento
526
populacional. Assim, haverá um ambiente estável que colabore com a acessibilidade geral ao
cinema no país."
Essa redação seguiu a média do padrão estrutural das redações nota mil que encontramos
na pesquisa de Paiva (2020), com uma média de 4 parágrafos. Seguindo os moldes de marcação da
pesquisa supracitada, as delimitações foram feitas da seguinte forma: em negrito, no primeiro
parágrafo, localizamos a tese “Ao longo do processo de formação da sociedade, o pensamento
cinematográfico consolidou-se em diversas comunidades”. A tese inicial é o que sustenta, ao longo
do texto, a necessidade de argumentação, gerando questionamentos, reflexões e afins. Nessa redação,
ela está posta logo no início do texto o que é bem comum.
Nos dois parágrafos seguintes em itálico e negrito, destacamos a inserção da voz alheia
que coincidem com os pontos de sustentação da argumentação – determinando, também, que nessa
redação, o candidato optou pelo molde mais comum de formatação: tese > argumentação > proposta
de intervenção. Ambas as inserções se deram pela utilização da modalização em discurso segundo e
entraram, estrategicamente, na sustentação do argumento que já havia sido introduzido, como
podemos perceber no quadro a seguir.
percebemos a validação, baseada numa voz “qualificada”, dos argumentos apresentados. Esse
movimento caracteriza uma estratégia bem utilizada nas redações eu obtêm êxito.
Ademais, sublinhado, temos a proposta de intervenção que devem conter uma solução
para o problema proposto. Na proposta, além da sua posição, também comum à maioria dos textos -
último parágrafo -, destacamos o que já era esperado tomando como base outras pesquisas nesses
textos: a responsabilização ao governo ou a algum órgão público.
De maneira geral, o “retrato” da redação não obteve, com base nesse exemplo, alterações
no que diz respeito a literatura disponível. As estratégias, as posições e algumas formas pré-
estabelecidas seguem firmes ao longo dos anos, apenas se consolidando cada vez mais.
ASPECTOS CONCLUSIVOS
A análise nos proporcionou um mapeamento de uma redação nota mil, nela, podemos
estabelecer alguns direcionamentos a que o texto está submetido, bem como de que forma,
estruturalmente, essa redação se configura no que tange aos aspectos de estratégias argumentativas.
Além disso, também observamos a estrutura e composição da proposta de redação que pré-
estabelecem alguns direcionamentos para a produção do texto.
No que diz respeito à proposta, o exame não alterou a forma de compor, dividir, organizar
os textos motivadores, sendo esses extremamente interessantes para situar os candidatos no tema. Por
outro lado, a má utilização das informações, como a cópia integral, pode ser extremamente prejudicial
para o desempenho da produção. Ou seja, os textos podem ser muito bem aproveitados, caso o
candidato saiba a melhor maneira de fazê-lo.
O retrato estrutural da redação permanece tal qual foi observado na pesquisa em que nos
ancoramos. A redação possui os elementos já esperados e segue padrões que já vem se repetindo ao
longo dos anos, bem como algumas estratégias linguísticas e modelos estruturais propriamente ditos,
como número de parágrafos, por exemplo.
Paiva (2020), em seu trabalho, aponta questões que envolvem os manuais do candidato
que são divulgados alguns meses antes do exame com algumas diretrizes que auxiliam na execução
das redações. Nessa pesquisa, é possível notar que alguns desses aspectos aparecem nas análises e
que, assim como as competências, não são fatores limitadores e sim norteadores. Essa informação é
de extrema importância para as conclusões que chegamos com a análise integral da redação exposta
nesse estudo.
A redação, estruturalmente, segue os mesmos moldes das redações analisadas no trabalho
de Paiva (2020), ou seja, as escolhas que envolvem a estrutura que formam o texto permanecem
baseados numa padronização que não está limitada nas cinco competências que ancoram o exame.
528
Essa perspectiva de resultado nos remete a reflexões muito pertinentes quanto ao que esses resultados
podem suscitar, por exemplo, no ensino de produção de texto do país, principalmente pelo grande
alcance do ENEM. É interessante buscar respostas para mapear o reflexo do que essa produção
massificada resulta e, com isso, discutir, a nível social, em futuros trabalhos, os possíveis danos.
REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva:
elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: ______. Entre a transparência e a opacidade:
um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.
G1. Leia redações do Enem que tiraram nota máxima no exame de 2019. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/enem/2020/noticia/2020/06/03/enem-leia-10-redacoes-nota-mil-em-
2019-e-veja-dicas-de-candidatos-para-fazer-um-bom-texto.ghtml. Acesso em: 2 mai. 2021.
GINZBURG, Carlo. Mitti Emblemi Spie: Morfologia e Storia. Torino, Einaudi. Tradução brasileira:
Mitos Emblemas Sinais: Morfologia e História. F. Carotti (trad.). São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
PAIVA, Renata Ingrid de Souza. Redações nota mil do ENEM: um estudo analítico da massificação
de sua estrutura e conteúdo. 2020. 131f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Traduzido por Eni
Pulcinelli Orlandi, Lorenço Chacon J. filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana M. Serrani, 2.
ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
529
RESUMO
A noção de heterogeneidade cada vez mais tem sido iluminada pelas discussões que buscam
compreender o funcionamento da linguagem. Nesse sentido, deve-se à Jacqueline Authier-Revuz
(2004) o reconhecimento pelo seu trabalho que, partindo dos estudos bakhtinianos sobre dialogismo
e polifonia, trouxe o conceito de heterogeneidade enunciativa, dividindo-a em “Heterogeneidade
Constitutiva” e “Heterogeneidade Mostrada”. O conceito de heterogeneidade, problematizado por
Authier-Revuz (2004), promove um deslocamento ao considerar a enunciação e não apenas a
gramática. Isto é, discute a noção de enunciação e seus efeitos ilusórios (daí sua grande contribuição
teórica); mas quando esse mesmo conceito é deslocado para o terreno da Análise do Discurso (AD)
de linha francesa, podemos mobilizar outras reflexões. Orlandi (2008, p. 47) afirma que a noção
desenvolvida por Authier-Revuz trabalha muito com a formulação e pouco com a constituição do
sentido. Por isso, prefere-se a noção de diferença à de heterogeneidade. Diante dessa discussão, este
trabalho, atento às divergências teóricas das autoras mencionadas, pretende realizar uma reflexão, por
meio de aproximações/comparações, que tome a heterogeneidade e a diferença. Dito de outro modo,
sem perder de vista a relevância dos estudos desenvolvidos pela pesquisadora francesa e valendo-se
de categorias analíticas – interdiscurso, formações discursivas e sujeito – da AD, que se atualizam
em território nacional por meio das produções científicas desenvolvidas pelas analistas do discurso
brasileiras, Eni Orlandi, Freda Indursky e Maria Cristina Leandro Ferreira, busca-se compreender,
metodologicamente, a noção de diferença — pelo viés da constituição — e a noção de
heterogeneidade — pelo viés da formulação —, iluminando, assim, a discussão sobre
heterogeneidade discursiva (diferente) e heterogeneidade enunciativa (outro). Para esta pesquisa,
selecionamos um excerto de tese, no qual pretendemos analisar as formas explícitas da
heterogeneidade, partindo do pressuposto que: i) o locutor não se apresenta como simples “porta-
voz” no discurso direto; e, ii) há a possibilidade de estruturar uma heterogeneidade constitutiva
marcada.
Palavras-chave: Dialogismo. Heterogeneidade. O outro. Diferente. Análise do Discurso.
150
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa/PUC Minas. Integrante do
Grupo de Pesquisa NELLF da mesma instituição. Bolsista CNPq. https://orcid.org/0000-0002-3247-4847. E-mail
oiheitorlima@gmail.com
151
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa/PUC Minas. Bolsista CAPES.
Professora da Rede Pública Municipal de Belo Horizonte/MG. https://orcid.org/0000-0003-2324-553X. E-mail
katiarasols@gmail.com
530
este estudo, convocaremos, principalmente, três estudiosos que, no nosso entendimento, são
essenciais às reflexões sobre a heterogeneidade da linguagem: Mikhail Bakhtin, Jacqueline Authier-
Revuz e Eni Orlandi.
Em relação ao primeiro teórico, vale destacar que a obra Marxismo e Filosofia da
Linguagem, ao propor uma mudança nos estudos da linguagem, tornou-se um marco na medida em
que considerou o signo de natureza ideológica e a alteridade como elementos constitutivos do
discurso. Bakhtin, ao dialogar com o materialismo histórico, desenvolveu uma reflexão sobre o
discurso de outrem, iluminando, assim, a questão do histórico, do social e do sujeito nos estudos da
linguagem. Nesta rápida convocação do autor, interessa-nos, especificamente, a tese do dialogismo,
na qual Bakhtin afirma que
na relação criadora com a língua, não existem palavras sem voz, palavras de ninguém. Em
cada palavra há vozes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais (as vozes dos
matizes lexicais, dos estilos, etc.) quase imperceptíveis, e vozes próximas, que somam
concomitantemente. (BAKHTIN, 2011, p. 230).
O “dialogismo” do círculo de Bakhtin, como se sabe, não tem como preocupação central o
diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária,
uma teoria da dialogização interna do discurso. As palavras são, sempre e inevitavelmente,
“as palavras dos outros”: esta intuição atravessa as análises do plurilinguismo e dos jogos de
fronteiras constitutivas dos “falares sociais”, das formas linguísticas e discursivas do
hibridismo, da bivocalidade, que permitem a representação no discurso do discurso do outro,
gêneros literários manifestando uma “consciência galileana da linguagem”, um rir
carnavalesco, um romance polifônico. (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26).
Em relação à noção de heterogeneidade, cada vez mais tem sido iluminada pelas
discussões que buscam compreender o funcionamento da linguagem. Nesse sentido, deve-se à
Jacqueline Authier-Revuz o reconhecimento pelo seu trabalho no qual considerou-se que: i)
“constitutivamente, no sujeito, em seu discurso, há o Outro” – heterogeneidade constitutiva; e ii) “no
fio do discurso que, real e materialmente, um locutor único produz, um certo número de formas,
linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem em sua linearidade, o outro”
– heterogeneidade mostrada (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.12). Ou seja: a heterogeneidade
constitutiva é da ordem do interdiscurso, do Outro; enquanto a heterogeneidade mostrada é da ordem
do intradiscurso, do outro. Para este estudo, é esta que nos interessa mais de perto.
531
HETEROGENEIDADE E DIFERENÇA
outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção”
(BAKHTIN, 2002, p. 128).
Já a polifonia consiste no entrecruzamento de diversas vozes, em outras palavras, é uma
multiplicidade de vozes e pensamentos que influenciam na interação entre os sujeitos. Essas vozes
presentes no discurso não se anulam, mas se complementam.
Partindo do dialogismo e da polifonia bakhtinianos, dos postulados de Lacan — que
definem o inconsciente e o sujeito clivado — e na concepção de interdiscurso proposta pela Análise
do Discurso de linha francesa, Authier-Revuz (2004) elabora o conceito da heterogeneidade
enunciativa do sujeito no discurso, classificando-a como: heterogeneidade mostrada — que se
subdivide em marcada ou não marcada — e heterogeneidade constitutiva, através das quais se busca
compreender como o discurso do outro/Outro ocorre e de que forma ele determina outros discursos.
Vale salientar que, na concepção lacaniana, o “Outro” é condição primeira e necessária para que haja
interação entre o “eu e o “outro”, ele se interpõe na fala, pode ser entendido como a própria
linguagem, a cultura, a história de uma sociedade.
Discorreremos, brevemente, sobre a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade
mostrada, ressaltando que é a última que nos interessa neste trabalho.
O ponto de vista da psicanálise mostra que “sob nossas palavras ecoam outras palavras”,
ou seja, atrás da emissão de uma única voz é preciso entender uma polifonia. Nesse sentido, Authier-
Revuz (2004) postula que o discurso é constitutivamente atravessado pelo “discurso do Outro”,
baseando também seus estudos, conforme mencionado, na psicanálise lacaniana.
O Outro é o lugar estranho, de onde emana todo discurso: lugar da família, da lei, do pai, na
teoria freudiana, elo da história e das posições sociais, lugar a que é remetida toda
subjetividade; dizer que o inconsciente é o discurso do Outro é reafirmar, de maneira
determinista, que um discurso livre não existe e é dar-lhe a lei (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.
64).
534
Para que se possa entender o Outro, Authier-Revuz aponta um sujeito – cuja concepção
se baseia na psicanálise de Lacan (2005) – que não é fonte do seu dizer, “um sujeito produzido pela
linguagem e estruturalmente clivado pelo inconsciente – quer dizer, onde o sujeito, efeito de
linguagem, advém dividido, na forma de uma ‘não-coincidência’ consigo mesmo” (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 186). Assim, a concepção de sujeito do inconsciente, do Outro como parte de todo
e qualquer discurso, permite conceber o discurso como um campo heterogêneo, no qual várias vozes
se entrelaçam.
Assim, ao entender esse discurso inconsciente, conclui-se que todo discurso é polifônico.
Na concepção de Authier-Revuz (2004), todo discurso se mostra constitutivamente atravessado por
“outros discursos”, pelo “discurso do Outro”. Dessa forma, tem-se o outro/Outro para circunscrevê-
lo e afirmar o um como o faz na sua procura pela heterogeneidade mostrada, sobre a qual
discorreremos agora.
De acordo com Authier-Revuz, os discursos se atravessam a todo momento,
possibilitando que o sujeito possa interagir com seus interlocutores por meio do que a autora define
como sendo a heterogeneidade mostrada da palavra.
Authier-Revuz (2004), considera a heterogeneidade mostrada como “formas linguísticas
de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade
constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.32). Essas formas são os modos de trazer
o outro para o discurso e se referem às noções enunciativas. Para a autora, existem dois tipos de
enunciados: os que mostram, explicitamente, a heterogeneidade – heterogeneidade mostrada marcada
– como por exemplo as glosas enunciativas, o discurso relatado direto e indireto, as aspas; e aqueles
cujas marcas não aparecem – heterogeneidade mostrada não marcada – como por exemplo, a ironia
e o discurso indireto livre.
As formas não-marcadas são consideradas mais complexas, pois não estão explícitas,
exigindo a reconstituição da heterogeneidade a partir do discurso indireto livre, da ironia, da antífrase,
da alusão, do pastiche, da imitação, das metáforas, dos jogos de palavras e da reminiscência. Ou seja,
“contam com o ‘outro dizer’, sem explicitá-lo, para produzir sentidos” (KADER, 2012, p. 2).
Conforme Authier-Revuz (2004), “no fio do discurso, um locutor único produz, um certo
número de formas, linguisticamente detectáveis no nível da frase ou do discurso. Inscrevem, em sua
linearidade, o outro”. É o outro do discurso relatado, que, sintaticamente, no discurso direto ou no
indireto vai ser designado como um “outro ato de enunciação”. Esse outro também pode vir através
de uma conotação autonímica – discurso marcado por aspas, por itálico, por uma entonação ou por
alguma forma de comentário – que recebe, em relação ao restante do discurso, “um estatuto outro”.
Para a estudiosa, é na conotação autonímica que aparece uma das formas mais complexas da
heterogeneidade, sendo nesta que “o locutor faz uso de palavras inscritas no fio de seu discurso, sem
535
a ruptura própria à autonímica e, ao mesmo tempo, ele as mostra” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12-
13).
Essas maneiras de produzir linguagem são as formas explícitas da heterogeneidade, ou
seja, o que a autora chamou de “heterogeneidade mostrada marcada”. Contudo, é importante refletir
que, se o outro é inscrito no enunciado, designado como objeto de estudo, pela heterogeneidade
mostrada, quando inserimos em nosso discurso – porque temos a ilusão de que o discurso é nosso –
o discurso desse outro, queremos atribuí-lo a quem de fato o concebeu. E marcamos esse discurso
sinalizando qual a sua origem. É como se demarcássemos: Esse discurso é do outro e aquele é de
minha procedência. Assim, esquecemos que não são nossas palavras, nada ali é nosso – nem as
palavras, nem os sentidos – tudo é compartilhado. Entendemos, assim, que a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva são indissociáveis, estão atreladas uma à outra.
O diferente
Por outro lado, “A heterogeneidade mostrada é coisa já diferente: as suas formas são
aquelas pelas quais se altera a unicidade aparente do fio do discurso, pois elas aí inscrevem o ‘outro”’
(ORLANDI, 2008, p. 45-46).
Embora essa divisão da heterogeneidade pareça coisa distinta, ela não o é. Authier-Revuz
(2004) diz que as maneiras de representação da heterogeneidade evidenciam
536
Ou seja: por elas, o sujeito se apresenta como tendo domínio do que é seu e do que do
“outro”, no “seu” dizer (ORLANDI, 2008, p.46). Portanto, ainda que visível a olho nu, a
heterogeneidade marcada não é também constitutiva? Voltaremos a esta questão.
Em poucas palavras, “face ao ‘isso-fala’ da heterogeneidade constitutiva responde através
dos ‘como-diz-outro’ e o ‘se-me-é-permitido-dizer’ da heterogeneidade mostrada” (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 32).
Temos aí uma formulação da heterogeneidade pela qual o visível (mostrado) é colocado
em pauta. Na/para AD, o visível corresponde ao “dizível”. Diante dessa afirmação, podemos
questionar: O que pode e deve ser dito? Quem pode dizer, diz o que quer? Ao dizer, digo com minhas
palavras?
Essas perguntas nos fazem caminhar em direção à perspectiva discursiva, objetivando
iluminar a discussão sobre o dizível, e nos imputa a necessidade de (re)visitar três categorias analíticas
que, no nosso entendimento, são preponderantes para entendermos o que contempla esse dizível
na/para AD: formação discursiva, interdiscurso e sujeito. Vale destacar que esses conceitos foram (e
são) amplamente discutidos por vários analistas do discurso — estrangeiros e brasileiros. Diante das
inúmeras possibilidades de abordagens teóricas, selecionamos três grandes pesquisadoras para, com
as palavras delas, clarearmos esta discussão: i) Freda Indursky (formação discursiva), ii) Eni Orlandi
(interdiscurso) e iii) Maria Cristina Leandro Ferreira (sujeito).
Em relação à primeira categoria, formação discursiva152 (FD), Indursky nos diz que “a
formação discursiva pode ser entendida como o que pode e deve ser dito pelo sujeito, ou seja, ela tem
seus saberes regulados pela forma-sujeito e apresenta-se dotada de bastante unicidade” (INDURSKY,
2020, p. 306-307). E ainda,
é lícito afirmar que, no quadro teórico da Análise do Discurso, tal como formulado por
Pêcheux, [...] ao contrário do que ocorre na Arqueologia de Foucault, não só é lícito falar em
ideologia, como é ela, juntamente com o sujeito, que é tomada como princípio organizador
da formação discursiva. Redizendo e já me posicionando: é o indivíduo que, interpelado pela
ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva
que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica (INDURSKY, 2020, p.
306).
152
Para este trabalho, não pautamos nossa discussão sobre Fds nos estudos foucaultianos (cf. LIMA, H. P.; SILVA, K.
R. de S., 2020). Embora reconheçamos a relevância de Foucault para os estudos discursivos.
537
[...] simbolizaria o lugar do sujeito no entremeio das três noções de linguagem - ideologia -
inconsciente. O sujeito estaria assim sendo afetado, simultaneamente, por essas três ordens e
deixando em cada uma delas um furo, como é próprio da estrutura de um ser-em-falta: o furo
da linguagem, representado pelo equívoco; o furo da ideologia, expresso pela contradição, e o
furo do inconsciente, trabalhado na psicanálise (FERREIRA, 2010, p. 67).
Termo oriundo da nossa reflexão a partir do texto “A Fragmentação do Sujeito em Análise do Discurso” (INDURSKY,
153
2000).
538
Em relação à analista brasileira, Eni Orlandi, observaremos, por meio das categorias
analíticas da AD, os efeitos de sentido (com os possíveis furos, silêncios, derivas, truncamentos)
existentes na articulação de vozes presentes no discurso relatado direto.
Excerto
Segundo Marcuschi, o movimento de reescrita não é uma questão de correção, mas de
adequação (2015, p. 209), revela a presença do outro, pois é em função dele, nosso interlocutor,
que avaliamos o que escrevemos. No período escolar, no entanto, quando se está aprendendo a
lidar com o código, a língua, há o predomínio do “ensino prescritivo, que objetiva levar o aluno
a substituir seus próprios padrões linguageiros considerados errados/inaceitáveis pelos
considerados corretos/aceitáveis” (TRAVAGLIA, 2002, p. 38), dentro de uma concepção de
linguagem que concebe a língua como expressão do pensamento.
Essa postura de mera análise de fatos de linguagem tem marcado, de forma acentuada,
as práticas pedagógicas com as atividades de linguagem na escola. Hugo Mari, referindo-se a
essa preocupação com fatos sistêmicos, comenta:
Numa redação, em geral, corrigem-se as concordâncias, as regências, as
colocações, os erros de ortografia, com a pretensão suposta de que essa prática
possa conduzir a uma clareza sobre a significação3 . Nada disso deve ser
considerado como um desserviço às práticas de linguagem na escola; o reparo
a ser feito, no meu entendimento, é fazer desse ritual a única forma de ver a
produção de linguagem do aluno. É possível que os processos de letramento
estejam apontando numa outra direção. [...] a ausência de uma preocupação
com a questão da significação [...] consagrou procedimentos que deixaram à
margem aquilo que é essencial a qualquer prática de linguagem, isto é, o
sentido a ser produzido (Afirmação contida em texto de Hugo Mari, ainda não
publicado, usado em sala de aula).
Fonte: Oliveira (2020).
154
Ver o discurso direto marcado, no excerto, nos discursos de Travaglia (2002) e de Hugo Mari (s/d), nas citações diretas.
540
particular do “outro” ser inserido no discurso, ou seja, “o locutor faz uso de palavras inscritas no fio
de seu discurso [...] e, ao mesmo tempo, ele as mostra (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.13).
Quando partimos para uma análise discursiva, podemos compreender que o papel do
“locutor”— sujeito-autor — vai além de um simples “porta-voz” do outro. O movimento de convocar
explicitamente o outro aponta para: i) FDs distintas (FD¹ / FD²) que se relacionam entre seus limites
e atestam a relação do discurso com a exterioridade. Esse trabalho é marcado pelo interdiscurso e seu
modo de funcionamento (o pré-construído); ii) O espaço no qual o outro é trazido, nesse caso, é o da
largueza. Convocar as palavras do outro atende a um desejo do sujeito-autor: o da completude. Aquela
ilusão tão necessária de cercar o sentido e não deixá-lo escapar para que, só assim, o texto se torne
“claro” e “objetivo”. Tudo ilusão se considerarmos a falta enquanto constitutiva porque há solidão,
silêncio, descontrole na linguagem: a relação com o “outro” não regula tudo, não preenche tudo, não
explica tudo, tanto o sujeito quanto o sentido. Logo, não são apenas as palavras do outro que ocupam
espaço. É preciso considerar o efeito de sentido produzido pelos diferentes; iii) o sujeito do discurso
(FD¹) é um bom sujeito, uma vez que esse reduplica os sentidos da FD na qual se inscreve.
Além disso, o sujeito do discurso, ao se posicionar de modo contrário à concepção de
linguagem na qual a (re)escrita é concebida, no período escolar, pelo viés normativo da prescrição, e
que, portanto, acentua as mais variadas formas de preconceito linguístico, denuncia uma postura de
mera análise de fatos de linguagem que tem marcado intensamente as práticas pedagógicas. Para esse
trabalho discursivo, o sujeito-autor não necessita apenas de um porta-voz. Ele precisa de mais: um
discurso outro no qual o sentido seja multiplicado, esgarçado, estendido (aqui consideramos que as
palavras do outro ocupam o espaço). Para isso, ele convoca, por meio do discurso direto, o outro, que
também corrobora a visão sobre a qual os processos de letramentos contemplem qualquer prática de
linguagem.
Podemos pensar que o efeito de sentido do gesto discursivo de trazer o outro é instável,
não dura porque não se deixa pegar. Entretanto, o seu arcabouço, é fixado e eternizado pela instituição
(aqui consideramos que as palavras do outro ocupam o tempo, este é o da fugacidade). Em outras
palavras: os sentidos sobre as práticas de linguagem são movidos na/pela instituição escola.
Assim, “no discurso direto, são as palavras do outro que ocupam o tempo – e o espaço –
claramente recortado da citação na frase [...]” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12). (Grifo nosso).
estudiosas e propor uma reflexão para entender se o que ambas defendem consegue, de fato,
contemplar a heterogeneidade numa análise discursiva.
Após uma abordagem teórica, seguida de uma análise bem sucinta, das formas explícitas
da heterogeneidade, procuramos evidenciar a posição de cada uma das autoras para, enfim, elucidar
nossos apontamentos: i) o locutor não se apresenta como simples “porta-voz” no discurso direto; e ii)
a possibilidade de estruturar uma heterogeneidade constitutiva marcada.
Retomamos Authier-Revuz (2004), segundo a qual “No discurso direto, [...] o locutor se
apresenta como simples ‘porta-voz’” e lembramos que seus apontamentos são a partir de estudos da
heterogeneidade enunciativa (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12). Assim, no que se refere à
heterogeneidade discursiva, o papel do locutor vai além de figurar como “porta-voz” do outro no seu
discurso. Ao trazer essa voz outra, procuramos mostrar, na análise do excerto acima, que tal conceito
não é suficiente quando se trata da heterogeneidade discursiva.
Também apontamos a possibilidade de estruturar a heterogeneidade marcada como
“heterogeneidade marcada constitutiva”, uma vez que, para trazer o “outro”, evoca-se,
inconscientemente, a presença do “Outro”, que está, constitutivamente, no discurso. E, nas palavras
de Authier (2004), todo discurso se mostra constitutivamente atravessado por “outros discursos”, pelo
“discurso do Outro”.
A proposta aqui apresentada soa, num primeiro momento, até como audaciosa, pois
estamos aqui problematizando a teoria de Authier-Revuz. Contudo, deixamos bem claro que, como
estudiosos da AD,, nossa pretensão foi apenas levantar uma reflexão sobre o fato de que a
heterogeneidade enunciativa não contempla a heterogeneidade discursiva, como faz parecer muitos
estudiosos. Sendo assim, assumimos nossa preferência pela noção de diferente à de heterogeneidade,
considerando os estudos discursivos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10. ed. brasileira. São Paulo: Hucitec,
2002.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
542
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Análise do Discurso e suas interfaces: o lugar do sujeito na
trama do discurso. Organon. Porto Alegre, Revista do Instituto Letras/UFRGS, v. 24, n. 48, p. 63-
68, 2010.
OLIVEIRA, Sérgio de Freitas. A escrita, a leitura e a reescrita como expressão de uma posição
autoral: um estudo de caso. 2020. Tese (Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Belo Horizonte/MG, 2020. Disponível em:
http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Letras_SergioDeFreitasOliveira_8417.pdf.
ORLANDI, Eni. Não ao outro, mas o diferente. In: ORLANDI, Eni. Terra à vista – Discurso do
confronto: Velho e Novo Mundo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1988.
543
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de discutir sobre a gênese dos periódicos no Brasil, a partir do século
XIX. A pesquisa justifica-se pela necessidade de se fazer uma leitura questionadora dos discursos que
permeiam essas revistas, a fim de compreendermos a história desses periódicos, que não é óbvia e
muito menos linear. Buscamos desenvolver esta investigação por meio de uma metodologia
qualitativa e abordagem bibliográfica. Para isso, fizemos um levantamento de diversos autores que
exploram a temática e tratam sobre os periódicos da época, bem como sobre a chegada da coroa
portuguesa nas terras brasileiras, já que o estudo temporal do século XIX tem esse fenômeno como
desencadeador das primeiras divulgações científicas. Fizemos ainda uma catalogação das revistas
desse período e delimitamos como corpus de análise O patriota, primeiro periódico brasileiro
puramente científico. O quadro teórico que embasa esta investigação centra-se em autores como
Freitas (2006) e Fonseca (1999), que nos auxiliam na compreensão da história das revistas; Pêcheux
(1999) e Orlandi (2006), que nos ajudam, por meio da análise do discurso, a problematizar essa
história. Como resultado de análise, conseguimos perceber que a linha editorial de O patriota não
tinha como foco a divulgação de textos com caráter científico estrangeiro, mas nacional, pois o intento
estava em criar um padrão nacional sólido pela valorização das pesquisas que aqui já vinham sendo
desenvolvidas, mesmo antes da chegada da família real portuguesa e da oficialização da tipografia.
Os resultados ainda apontam que a escrita científica dos artigos que compunham este periódico era
de cunho prescritivo e prático, voltada para a construção de uma proposta de instaurar, em terras
brasileiras, ares de desenvolvimento. Inferimos que o sentido do discurso de ciência disseminado em
O patriota, mesmo se referindo à chegada da família real e trazendo uma atmosfera europeia, estava
ligado a um discurso que buscava, ainda que implicitamente, por uma independência política
brasileira.
INTRODUÇÃO
Graduada em Linguagens e Códigos – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus
155
científicas, no país, significa fazer uma crítica ao que parece ser óbvio, sobre o sentido do lugar que
essas ocupam hoje como indicadoras de produção de pesquisadores e da qualidade de pesquisa.
Uma retomada breve ao contexto histórico do século XIX remete-nos à chegada da coroa
lusitana ao Brasil e ao aparelhamento do Estado para criar uma atmosfera europeia, o que significou
um investimento científico e artístico. De acordo com Freitas (2006), foi neste período que a
tipografia ganhou destaque, abrindo espaço para a divulgação do primeiro periódico científico
nacional com temas científicos utilitários e também literários, nomeado de O Patriota. Este periódico,
que marca a gênese das revistas, é o ponto de partida desse estudo.
Do século XIX aos dias atuais, muitas transformações aconteceram no que se refere: ao
número de revistas que circulam; às formas de circulação (do papel à tela do computador); à
quantidade de leitores; às especificidades das áreas, aos critérios para avaliar (o que deve ou não ser
publicado); ao sistema de organização e avaliação de qualidade das revistas – criado e alimentado
pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Desta forma, refletir
sobre a linha do tempo dos periódicos permite compreender que essa história não é clara nem direta,
mas formada por acontecimentos, evoluções e padrões discursivos que foram sendo agregados aos
periódicos.
Em linhas gerais, o problema que norteia essa investigação é: Como se deu o processo de
nascimento dos periódicos científicos no Brasil? O que essa gênese diz sobre o sentido de produção
de conhecimento? Esta pesquisa tem como aporte teórico os trabalhos de Freitas (2006), Fonseca
(1999), Barata (2010), pois nos ajudam a resgatar as histórias dos periódicos nacionais; de Orlandi
(2006) e Pêcheux (1999), pois auxiliam para uma leitura questionadora dessa história, que não é
óbvia; Foucault (2012), que nos ajuda compreender as ordens discursivas na sociedade. São esses,
entre outros autores, que nos orientam nas discussões deste estudo.
O plano de exposição deste trabalho consiste, primeiramente, em um debate importante
sobre o século XIX, como um período que trouxe novos ares para o Brasil no que diz respeito ao
surgimento do periodismo, logo na sequência discutiremos sobre a revista O patriota, e fechamos a
discussão com as considerações finais.
Esta investigação é uma pesquisa desenvolvida no Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC) e faz parte do projeto de pesquisa “Filiação teórica e produção científica:
análise dos periódicos”, do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Linguagens e Códigos – Língua
Portuguesa, da Universidade Federal do Maranhão, Campus São Bernardo. Esse projeto tem apoio
da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão
(FAPEMA).
Base sólida para a educação profissionalizante uma vez que passou a ser possível o acesso as
publicações, sobretudo livros, impressas no país para o ensino de disciplinas, como medicina,
engenharia incluindo traduções de obras clássicas. Um importante passo para tornar o Brasil
menos dependente, ao menos no modo de adquirir e divulgar obras. (BARATA, 2010, p. 26).
Nesse cenário planejado para criar um ambiente que respondesse às demandas da Coroa,
um lugar mais próximo do desenvolvimento europeu, nasceu o primeiro periódico brasileiro, A
Gazeta do Rio de Janeiro (1808) que era redigido pelo Frei Tibúrcio José da Rocha, sendo o primeiro
periódico a ser tipografado em terras brasileiras. O periódico em voga tornou-se um instrumento do
governo para divulgar os principais acontecimentos da Europa, calendários de festas da corte,
publicação de leis, decretos e comunicados, notícias locais, venda de produtos, fuga de escravos,
cursos de navios, mercadorias que chegavam ao porto, cursos que outrora não existiam na colônia.
Segundo Bettamio (2019), A Gazeta possibilitou a criação de um público leitor, proporcional às
mudanças sociais e econômicas que a chegada da Corte tinha provocado.
Além do periódico citado acima, outros surgiram como, por exemplo, Idade d’Ouro
(1811), que pregava a supremacia da corte portuguesa; O Patriota, Jornal Literário, Político,
Mercantil do Rio de Janeiro (1813). Primeiro periódico puramente científico, dentre outros, O
Patriota divulgava diversos estudos sobre uma ciência prática, principalmente de escritores
nacionais, conforme Fonseca (1999, p. 82), este foi “o primeiro periódico a dedicar-se especialmente
à divulgação das ciências e das letras, entendidas como instrumento desencadeador de progresso”.
546
Seu redator, o baiano Ferreira, tinha um envolvimento direto com as ciências, como descreve Carolino
(2012), ao dizer:
Agricultura 10 1 11
Artes 10 1 11
Botânica 4 0 4
Chímica 3 0 3
Commercio 3 0 3
Eloquencia 1 0 1
Geografia 1 2 3
GrammaticaPhilosophic
10 0 10
a
157
Ver as versões deste periódico no site a seguir: <https://bndigital.bn.gov.br/artigos/o-patriota-jornal-litterario-politico-
mercantil-c-do-rio-de-janeiro/>
547
História 12 6 18
Hydraulica 2 0 2
Hydrographia 6 0 6
Literattura 59 17 76
Mathematica 1 0 1
Mineralogia 4 3 7
Medicina 3 2 5
Meteorologia 10 6 16
Navegação 2 0 2
Necrologia 2 1 3
Notícia 2 0 2
Política 38 31 69
Statistica 13 6 19
Topografia 4 7 11
Advertências 1 2 3
A tabela acima aponta para o resultado obtido a partir de uma contagem individual de
cada artigo das 18 edições de O Patriota. Nesta catalogação, encontramos 286 artigos, divididos em
diversas áreas de conhecimentos científicos, como: agricultura, artes, botânica, química, comércio
eloquência, geografia, gramática filosófica, história, hidráulica, hidrografia, literatura, matemática,
mineralogia, medicina, meteorologia, navegação, necrologia, notícia, política, estatística, topografia
e advertências (comunicados) do redator; voltados, principalmente, para o contexto nacional.
Nesta pesquisa, atentamo-nos em catalogar individualmente cada artigo que compunha
as páginas de O Patriota. Após a reunião dos dados, foi feita uma comparação com o índice geral
deixado pelo redator, em que foram encontrados alguns erros, relativos às páginas e à falta da
descrição de alguns artigos, que subtraídos da quantidade encontrada resulta em de 27 artigos que
não foram evidenciados no índice geral. A seguir temos um gráfico com nível de publicações d’O
Patriota em 1813 – 1814:
Imagem 1 – Gráfico dos níveis de publicações d' O Patriota nos anos de 1813 - 1814
548
1813 1814
Na capa acima, vemos uma citação do próprio editor, que diz “Eu desta glória só fico
contente, que a minha terra amei, e a minha gente”. As palavras de Ferreira mostram o sentido de
periódico científico associado à ideia de uma espécie de sentimento nacionalista, de patriotismo, a
partir de um jogo de formas linguísticas que envolve pronomes em 1ª pessoa, como “eu” e “minha”;
por verbos com desinências de 1ª pessoa como “fico” ligado a um adjetivo “contente” e “amei”
relacionado aos substantivos” terra” e “gente”. O editor coloca-se como alguém que não cuida apenas
do território, mas também das pessoas. Nota-se um sentimento de pertencimento, ao local e ao povo.
Contudo, o enunciado acima, não pode ser visto apenas pela análise da forma, é preciso
considerar, pois, a posição enunciativa do redator, como bem acentua Orlandi (2006, p.95) ao dizer
que “as palavras não significam por si mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam”.
Questiona-se, então, o porquê do posicionamento patriótico de Ferreira, o sentido da utilização e das
escolhas dessas palavras presentes na epígrafe em correlação no contexto de produção do periódico.
Para responder a estas inquietações, torna-se necessário olhar para o contexto histórico
daquele período, em que a colônia voltava sua atenção para a criação de universidades, bibliotecas
que, segundo Freitas (2006) tinha o intento de sustentar a implantação do Estado Português, o que
incluía também a oficialização da tipografia, que até a chegada da coroa era proibida, dando espaço
assim para o periodismo, que ‘‘surge no Brasil no século XIX, quando são afrouxadas as amarras da
política colonial portuguesa, com a inédita e instantânea transformação brasileira de colônia à sede
do reino’’(FREITAS, 2006, p. 65).
O afrouxamento ocorreu com a reformulação de políticas econômicas e sociais, ratificam
apenas que amarras ainda eram mantidas pelo poder institucional lusitano, por meio de um controle
da comunicação escrita, a qual deveria passar por uma censura prévia, como afirma a referida autora.
Essa assertiva reconfirma a ideia defendida por Foucault (1996, p. 8-9) de que as instituições que
regem a sociedade impõem um controle da circulação discursiva, a fim de manter o seu poderio. Nas
palavras do autor, “em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos”.
No contexto social emergente, as novas necessidades da Coroa tornaram-se fomento para
o fortalecimento do território brasileiro, que precisava ganhar ares de civilidade europeia. Mas à
medida que o território crescia e se desenvolvia com as novas condições ofertadas, também crescia o
desejo dos brasileiros para a elaboração de uma identidade nacional. Como afirma Freitas (2006), ao
elucidar que
É neste contexto que o editor Ferreira toma por meio de O Patriota uma posição de sujeito
participativo na busca por uma identidade e pelo reconhecimento das potencialidades das terras
brasileiras, que só poderia ser efetivado de fato por intermédio da ciência e das letras, isto é, por meio
da divulgação científica. Como pode ser vislumbrado nas palavras introdutórias de Ferreira na
primeira publicação de O Patriota, em sua versão original, ao dizer que:
He huma verdade, conhecida ainda pelos menos instruídos, que sem a prodigiosa invenção
das letras ,haverião sido muito lentos os progressos nas Sciencias, e nas Artes. Por ellas o
Europeu transmitte ao seu antipoda as suas descobertas, e as mais doces sensações da nossa
alma. [...] Tenho a satisfação de que ninguém se persuadirá que o dezejo do lucro guiou a
minha, penna. Ha muitas cousas mais appreciaveis que ouro, e estas, só estas, desafião a
minha ambição (FERREIRA, 1813, p. III- XII).
A fala de Ferreira no enunciado acima enaltece o poder que as letras têm de levar o
conhecimento e as descobertas aos distintos e longínquos lugares, usando como exemplo a divulgação
científica. O redator evidencia, ainda, que objetivo das publicações de O Patriota, não era financeiro,
mas a disseminação da ciência.
Dentre os objetivos do redator neste periódico, estava o desejo de fazer um resgate das
obras científicas que já haviam sido produzidas nas terras, mas que, pelas proibições da tipografia,
não puderam ser divulgados em grande escala, como, por exemplo, a obra tão importante de Manoel
Arruda da Câmara, sobre o cultivo do algodão, autor que tinha um ideal patriótico e desejava o
estabelecimento de uma república nas terras brasileiras, segundo Fonseca (1999).
Nas palavras de Ferreira, a seguir, pode-se perceber que ele mesmo se propõe a organizar
e a divulgar essas obras:
Ainda na citação acima, Ferreira evidencia o seu sentimento de angústia pela demora de
um reconhecimento público das obras acerca do território brasileiro, tal como acontece nas nações
cultas e civilizadas. É como se a luz do conhecimento científico não pudesse chegar ao horizonte
brasileiro ou ao “nosso” horizonte, como diz o redator, trazendo mais uma vez a noção de
pertencimento. A necessidade de ciência em sua terra e para sua gente, impulsiona a proposição da
552
revista O Patriota, ou seja, Ferreira evoca o sentimento patriótico como argumento, ao dizer que
“cego á insufficiencia de minhas forças, mas desperto ao brado da Pátria” (FERREIRA, 1813, p. V).
O redator deixa explícito que as divulgações d’O Patriota contemplariam tantos
conteúdos europeus, como nacionais, tal como pode ser observado por sua própria voz, ao dizer que
“tenho curado de misturar notícias nacionais com estrangeiras, preferindo as primeiras” (FERREIRA,
1813, p. VIII). A preferência pelas notícias voltadas para o contexto nacional indicia a defesa por um
ideal, a busca por identidade brasileira. O redator trabalha para construir um discurso que não é
individual, mas a representação da linha editorial da revista, dos sentidos que ela legitima e defende.
A partir das leituras do periódico, em questão, percebeu-se que a divulgação científica
presente neste estava voltada para a disseminação de uma ciência que visava o crescimento e o
fortalecimento do Brasil em diferentes instâncias, um exemplo desse tipo de ciência está no artigo
‘‘Memoria sobre hum Alambique existente no Laboratório do Excellentissimo Antonio de Araujo,
que contém as invenções mais modernas praticadas na Escossia, e ao qual se fizerão algumas adições
para a sua perfeição’’(1813, 2 ed., p. 99), por Gaspar Marques, presente no eixo de Artes do periódico,
cujo sentido de arte carrega a ideia de engendra manualmente alguma coisa.
No artigo, Gaspar Marques trata sobre as novas tecnologias desenvolvidas na Escócia na
fabricação de aguardente, as quais ajudaram no melhoramento de seus alambiques e, por conseguinte,
de suas economias. O autor afirmava que esta nova tecnologia contribuiria muito para a economia do
Brasil com potencial de país, ao dizer que ‘‘O Brazil He hum dos paizes onde se póde tirar
immensautilizade, com o uso destes novos alambiques’’. Abaixo, tem-se a imagem ilustrativa do
alambique, impresso por Ferreira nas páginas de O Patriota:
Imagem 3 – Alambique
Seguindo para outro eixo, observa-se que os artigos de O Patriota, na área de estatística,
também tinham um fim útil para a construção da identidade nacional por intermédio de um
reconhecimento, pois traziam, em suas estruturas, contagens das terras, das regiões e da população
de todo Brasil, como, por exemplo, a contagem feita nas 16 vilas da capitania do Ceará, levando em
consideração a etnia, sexo e o estado civil, como está destacada na ilustração a seguir:
Neste seguimento, também se aponta para a área de topografia, um eixo de destaque neste
periódico. Buscava-se descrever e refletir sobre a geografia brasileira, a fim de evidenciar as melhores
rotas e os melhores caminhos para ser seguido nas viagens de uma capitania a outra. O artigo ‘‘
Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauhí’’ (1814, 5 – 6 ed., p. 3), organizado e
produzido por Ferreira, é um exemplo das discussões que eram tratadas nesta área, na escrita do
primeiro parágrafo da estampa abaixo, o redator é enfático ao falar que o roteiro em questão não se
tratava apenas da organização de notícias já existentes, mas também era uma produção sua,
explicando ao público leitor a forma que ele iria desenvolver a escrita do roteiro, como traz a descrição
a seguir:
Imagem 6 – Artigo de Topografia
Estes e tantos outros artigos d’ O Patriota apontam para concepção utilitarista das revistas
científicas, para a divulgação de uma ciência prática para a construção do território nacional, que era
visto como uma terra vasta, única e com potencialidade de nação. Assim, o misto de transformações
ocorridas com as instalações de diversos suportes sociais no Brasil, abriu espaço para a consumação
científica, vê-se o início do reconhecimento de uma cultura, de um povo que a cada dia buscava e se
aproximava da soberania. Desta forma, como diz Fonseca, 1999, p.82). O Patriota foi um dos
principais meios e “recursos técnicos para expressar o tipo de "pátria" que começava a ser imaginada.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo dessa investigação foi fazer um estudo sobre a gênese das revistas científicas
no século XIX. Para tanto, dedicamo-nos ao estudo do primeiro periódico nacional puramente
555
científico, O Patriota, buscando conhecer o sentido de ciência que era divulgado em suas páginas. A
linha editorial da revista, em relação com o contexto de sua produção no século XIX, nos permitiu
ver que O Patriota surgiu objetivando a exposição de uma ciência prática e local que beneficiasse
diretamente a nação, a fim potencializar e fortalecer a sociedade por intermédio dos meios de
comunicações estruturados.
O sentido de ciência que era publicado na gênese das revistas científicas no Brasil estava
ligado à ideia de saberes úteis para desenvolvimento nacional, à busca pelo crescimento econômico,
cultural e político do Brasil. Os 286 artigos foram publicados e divididos em diversas áreas de
conhecimento, artigos evidenciam as capacidades de terras brasileiras para sua exploração enquanto
país com potencialidade de independência política, e não apenas como fonte de exploração para
Portugal. A publicação de textos, produzidos anos antes de O Patriota, mostra que mesmo sem
periódicos científicos, a pesquisa era uma realidade nacional, especialmente nas áreas de Literatura e
Política.
O volume de artigos nas áreas citadas acima, fazem-nos pensar sobre o sentido da
Literatura como ciência nos primeiros periódicos, fato que nos ajudaria a ler melhor periódicos da
área de Letras e observar as relações e divisões dos estudos da Linguística e da Literatura,
especialmente porque em O Patriota a Linguística não figura como uma área de conhecimento, em
seu lugar está a Gramática.
REFERÊNCIAS
CAROLINO, L. M. Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro
e a definição de um gênero científico no Brasil em inícios do século XIX. Revista Brasileira de
História. São Paulo: v. 32, n. 64, p. 251-278, 2012.
KURY, L. A Ciência útil em O Patriota (Rio de Janeiro, 1813-1814). Revista Brasileira de História
da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 115-124, jul | dez, 2011.
Emari Andrade158
RESUMO
Como resposta à articulação proposta pelo Simpósio “Lacan com Freire: escrever para além da cultura
do silêncio”, neste trabalho, tomamos como objeto o discurso religioso enquanto uma possibilidade
de alienação ao Outro (LACAN, 1964), que corrobora com o silenciamento do sujeito. Para nós, trata-
se de uma teorização pertinente para ser relacionada com o campo da educação, em especial com a
proposta freireana, já que permite observar as transformações ocorridas com relação às posições
subjetivas de alguém ao longo de uma formação. Nesse sentido, buscamos relacionar um tipo de
enlaçamento do discurso religioso que operou como agente da “cultura do silêncio” (FREIRE, 2013).
Silenciado, o sujeito ignora a própria divisão subjetiva e a daqueles com quem convive, fixando-se
em um único modo de estabelecer laço social, que é tomado como correto e verdadeiro. Um percurso
de formação foi escolhido por ilustrar uma incidência do discurso religioso que leva o sujeito a
emudecer e a não conseguir ouvir o outro a cada vez que é convidado a falar/ouvir em outros contextos
que não aquele da sua religião. Partimos da hipótese de que esse modo cristalizado de se relacionar
com a linguagem é uma das consequências da cultura do silêncio. Julgamos que ela pode se estender
a ponto de impedir um modo de leitura e de escrita que leve em consideração os sentidos metafóricos
e as condições de produção de um texto. Para comprovar nossa hipótese, analisaremos uma parte do
percurso de formação de uma pesquisadora nomeada como Louise que, por cerca de 20 anos, viveu
sob vigência, majoritariamente, do discurso religioso. O trabalho dá continuidade a investigações
anteriores que tomaram a produção escrita de Louise como objeto (IGREJA, 2017; ANDRADE,
2015; RIBEIRO, 2015; RIOLFI, 2020). Buscamos mostrar como Louise leu o discurso religioso e
como esse modo de leitura influenciou na sua formação, especialmente no que se refere à dificuldade
de, ao escrever, calcular os elementos necessários para que o outro pudesse entender seu projeto
enunciativo.
O cântico, cuja letra serve de epígrafe para este texto, foi por mais de quinze anos cantado
por mim. Talvez o tenha aprendido com menos de dois anos de idade, na escola dominical da igreja
Professora de Língua Portuguesa. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP.
158
Contato: emaryjesus@yahoo.com.br
159
Disponível em: https://www.vagalume.com.br/corinhos-infantis/deus-ve.html
558
Se começo este texto recorrendo a esse “caldo cultural da infância” é porque ele me é
caro para pensar o que buscarei desenvolver nas linhas que se seguem: pensar em que medida a crença
em um Grande Outro, todo poderoso, (no caso, Deus) fez um curto-circuito na minha constituição
subjetiva a ponto de tomar o meu semelhante, no caso, o outro, como um ser onisciente e onipotente.
Mais especificamente, buscarei mostrar como esse modo de ver o semelhante como Outro
afeta os modos de escrever de alguém. Minha hipótese é a de que o texto de alguém que toma o outro
como aquele que tudo sabe é uma elaboração em que faltam referentes, informações, articulações,
tendo em vista que aquele que o escreve imagina um outro que já sabe de tudo. Trata-se de um
imaginário tão forte que silencia aquele que escreve, afinal, se o outro já sabe tudo, pensa-se que o
sujeito em nada pode contribuir com a elaboração de algo diferente.
Nessa visada, o sujeito se sente “esmagado pelos restos metonímicos do discurso do
Outro” (RIOLFI; MAGALHÃES, 2008) a ponto de não se autorizar a colocar no mundo uma
elaboração que lhe seja própria. É nesse ponto que, neste trabalho, Lacan e Freire dialogam. Para o
pesquisador brasileiro:
Na cultura do silêncio, as massas são ‘mudas’, isto é, são proibidas de, criativamente, tomar
parte nas transformações da sociedade e, portanto, proibidas de ser. Mesmo que elas possam
ocasionalmente ler e escrever porque foram ensinadas em campanhas de alfabetização
humanitárias – mas não humanistas – elas estão, mesmo assim, alienadas ao poder
responsável pelo seu silêncio. (FREIRE, 1970, a tradução é de Claudia Riolfi, da página 7,
da edição em inglês).
Na cultura do silêncio, existir é apenas viver, no sentido de que sempre haverá um Outro
(consciente ou inconsciente) que terá a palavra conveniente, a adequada, a correta para ser dita.
559
Segundo Freire (2013, p. 50), “O corpo segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra,
proibido”.
Para abordar essa “cultura do silêncio” atrelada à alienação a um outro todo poderoso,
tomo como objeto de análise parte de meu percurso como pesquisadora, cuja produção escrita está
no banco de dados do Movimentos do Escrito, do GEPPEP160. Dou continuidade a trabalhos que
anteriormente tomaram as versões de textos produzidos por ocasião da escrita de minha dissertação
de mestrado como objeto de estudo (ANDRADE, 2015; RIBEIRO, 2015; IGREJA, 2017; RIOLFI,
2020). À época, para fins de preservação da identidade, me foi escolhido o nome de Louise. Neste
trabalho, assumo que se trata do meu percurso acadêmico e de escrita.
sujeito não é um conteúdo, é efeito de linguagem (LACAN, 1960) e, como tal, não é determinado
pela realidade empírica, mas pelo modo como a linguagem incidiu em seu corpo. Dizendo de outro
modo, pode-se afirmar que “sujeito” é aquele que, em sua constituição, foi dividido pela linguagem,
tendo, portanto, perdido seu instinto animal.
Para demarcar a divisão subjetiva, a representação gráfica escolhida por Lacan foi fazer
uma barra na letra “S” ($). Vejamos como essa divisão ocorre. Ao nascer, o bebê é um ser biológico,
um corpo. Para se constituir como sujeito da linguagem, ele precisa aceitar o convite para renunciar
a sua lalação, definida como uma forma de satisfação que independe da significação, é puro
significante. Na prática, ele precisa de alguém que não se disponha a “compreender” seus balbucios
e o convoque (de modo amoroso) a produzir palavras.
Lacan forjou a palavra lalangue (1972-73) para designar o uso gozoso da linguagem feito
pelo bebê. Para se tornar ser de linguagem, o bebê precisará submeter-se aos significantes já existentes
na cultura. Ao fazer isso, perde uma parte si: sua animalidade. O preço dessa perda é nunca achar um
modo pré-construído de expressar a justa medida da sua satisfação.
Ao perceber que o objeto de satisfação completa não existe, o sujeito divide-se entre o
saber inconsciente (relativo a um saber-fazer que passa, de modo relativamente invisível, de geração
em geração) e a verdade (relativa à instância do que se fala, é um semi-dizer, já que é impossível ter
acesso à sua completude) (LACAN, 1966). Isso quer dizer que há uma parte de si que é acessível pelo
pensamento cognitivo e outra que lhe é inconsciente, aparecendo nas quebras dos discursos, nos atos
falhos, nos sonhos e lapsos.
Segundo Lacan (1964), o ser humano torna-se sujeito do desejo inconsciente quando
aceita renunciar a sua ligação direta, não mediada, com os objetos por meio dos quais obtém
satisfação. A partir disso, ele precisará das palavras para se relacionar com a dita “realidade empírica”.
Em poucas palavras, é essa a “divisão”: de um lado está o que pode ser nomeado e, de outro, o que
não tem nome.
Dada a divisão subjetiva, durante toda a vida, o sujeito dividido oscilará entre duas
operações centrais: a alienação, que seria a submissão a um significante qualquer, e a separação, o
apartamento do sentido de um significante qualquer. A figura 1, a seguir, mostra como Lacan tentou
dar uma representação para essa condição humana.
Figura 1 – A alienação
561
A figura foi montada a partir de dois círculos sobrepostos, nos quais se formam um campo
de intersecção entre o não-senso – campo comum entre o sujeito (“O ser”, representado por meio do
círculo do lado esquerdo) – e o sentido (“o Outro”, representado por meio do círculo do lado direito).
Ao explicar a lúnula formada pela sobreposição dos campos, Lacan (1964) escreveu que se trata do
lugar do objeto pequeno a, isto é, o campo da falta por excelência, da satisfação perdida, aquela
parcela de não saber de si mesmo, o que não pode ser recoberto pela linguagem.
O ciclo da constituição do sujeito completa-se em dois tempos. O primeiro consiste em
sua adesão ao sentido oferecido pelo Outro. Por sua vez, o segundo é o esvaziamento desse sentido.
Lacan (1964) nomeou o ciclo formado por esses dois tempos de assujeitamento. Importante destacar,
ainda, que a alienação e a separação não cessam de se repetir ao longo da vida de um sujeito.
Na passagem entre os dois tempos, está a separação. Quando Lacan (1964) usava a
palavra “separação”, ele se referia à separação do campo do sentido. Ela se caracteriza por um "isso
não faz sentido".
Em ambiente universitário, o assujeitamento pode ser visto, por exemplo, quando um
pesquisador se encanta por determinada teoria. Entendemos que, assim como o bebê precisou alienar-
se aos significantes para tornar-se sujeito, o pesquisador, ao entrar na universidade, precisa, ao menos
no início do contato com cada teoria, assujeitar-se ao discurso vigente para constituir-se como
pesquisador. Ele costuma passar por um tempo de reprodução de seus principais significantes
(alienação) para, só depois, conseguir articulá-los em seu repertório pessoal (separação). Quando a
pessoa articula esses significantes, mostra que já se alienou a uma nova rede de sentidos.
Como nos ensinou Lacan, alienação e separação vão acontecer ao longo da vida de
alguém e é nesse ponto que, no caso de Louise, entra o discurso religioso como aquilo que, via
alienação, fazia com que os seus modos de escrita fossem sempre relacionados a um Outro e, portanto,
562
silenciados por esse Outro. Projetando um leitor como um Deus que tudo sabia, a mestranda parecia
reproduzir esse discurso na universidade. Vejamos, na sequência, como isso se deu.
Capítulo 1 28 10
Capítulo 2 30 12
Capítulo 3 27 8
Capítulo 4 33 11
Considerações finais 12 8
Referências bibliográficas 9 0
Fonte: Elaborado pela autora.
563
Com base nos números apresentados na tabela, vemos que Jacqueline acompanhou bem
de perto o percurso de escrita, incidindo em todas as partes do trabalho, com exceção das referências
bibliográficas, muito provavelmente por entender que, para Louise, essa parte normativa do trabalho
não traria muita dificuldade.
O relatório qualificação de Louise foi entregue em junho de 2007. Das 111 páginas do
trabalho, somente cinco foram análise de dados. Esse pequeno número de páginas, dedicadas à análise
de dados, nos indica a dificuldade da mestranda de “falar” aquilo que seria próprio de sua pesquisa.
Naquela ocasião, dedicou-se exclusivamente à elaboração teórica do trabalho e à introdução.
Ao analisar a versão entregue, chamou-nos a atenção que Louise usa 18 vezes o verbo
“crer” e três vezes “confessar”. Para nós, trata-se de uma primeira incidência de sua alienação ao
discurso religioso, tendo em vista que, ao longo de sua infância, muitas crenças foram a constituindo,
as quais, provavelmente, estavam relacionadas desde aos muitos hinos e cânticos que Louise cantava
cotidianamente quanto ao Credo dos apóstolos, que recitava dominicalmente, bem como nos muitos
versículos, cujo imperativo era a crença: “Crê no Senhor Jesus, e assim serás salvo, tu e os de tua
casa!” (Atos 16. 11), Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá;
E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto? João 11: 25, 26.
Para nós, a alienação a esse discurso fazia com que Louise, mesmo estando em um
contexto diferente do religioso, não conseguisse se separar dele. O quadro 1, na sequência, traz uma
seleção de trechos em que aparece o uso do verbo crer no texto.
Outra incidência do discurso religioso, a nosso ver, se deu pela dificuldade de descrever
e analisar os dados, levando em consideração a materialidade dos textos que analisava, sem fazer
juízo de valor a partir de suas crenças. Soma-se, como buscaremos mostrar, a dificuldade de calcular
um outro que não fosse um Outro onisciente. Para nós, essa era a razão de ser tão difícil, para Louise,
escrever um texto “generoso” com seu leitor, com hierarquização das informações mais relevantes e
com contextualização dos dados etc.
No intuito de verificar a dificuldade de sopesar as partes mais importantes para o
desenvolvimento de sua pesquisa, sem investir em elementos secundários, que contribuíam pouco
para o raciocínio lógico da pesquisa, selecionamos o manuscrito 235, que corresponde à versão 19 da
introdução da dissertação de Louise. Essa versão foi escrita em três meses antes do depósito e enviada
à orientadora no dia 19 de janeiro, sendo devolvida um dia depois, via e-mail.
Nessa versão, Louise tentou desenvolver teoricamente o conceito de automatismo da
repetição, que serviu de base para sua pesquisa. O arquivo contém oito páginas, nas quais a
orientadora inseriu 18 bilhetes, destacados na cor amarela, solicitando: a) corte de partes em excessos;
b) reescrita de partes confusas; c) correção de erros teóricos; d) articulação entre os parágrafos; e)
destaque de partes que avaliou como importantes; e f) ajuste na formatação.
Nessa parte de seu trabalho, a pesquisadora tentava, há oito meses, discorrer a respeito da
relação entre os conceitos de pulsão e de automatismo da repetição. Essa relação era essencial, pois
era a partir dela que os dados de sua pesquisa estavam sendo analisados. Analisando seu relatório de
qualificação, entregue seis meses antes, nota-se que essa articulação teórica apareceu ainda de modo
incipiente no texto, ocupando apenas três páginas. À época, Louise valeu-se de uma definição de
pulsão retirada de um dicionário de psicanálise e, em forma de nota, indicou dois textos de Freud que
seriam ainda mobilizados na dissertação.
Nos meses subsequentes à qualificação, a partir das versões dos textos, observamos que
Louise investiu mais no estudo do conceito de pulsão e passou a incluí-lo em seu trabalho,
mobilizando-o como chave de leitura dos dados. A articulação do conceito de automatismo da
repetição como uma das manifestações do funcionamento pulsional, inclusive, passou a ser tema de
reuniões de orientações, nas quais, a partir da escrita de Louise, Jacqueline a explicava aquilo que,
no seu entendimento, a orientanda ainda não tinha entendido.
565
Após ter escrito e mostrado para Jacqueline várias versões, nas quais buscava articular
dois dos textos freudianos, um escrito em 1915 e outro em 1920, a orientadora devolveu a última
versão enviada informando que tinha reescrito várias partes, a fim de ajudar na finalização dessa parte
da dissertação. Em um dos seus comentários, escreveu:
Esse comentário foi colocado na quarta página do texto, após duas páginas em que Louise
resenhou um dos textos de Freud (1915). Contudo, essas duas páginas estavam em uma seção
nomeada por Louise como “O automatismo da repetição”. A mestranda, porém, ao invés de ater-se
ao texto de 1920, em que Freud apresentou o conceito, fez um longo preâmbulo, valendo-se do texto
de 1915 para, somente duas páginas depois, introduzir o conceito de automatismo da repetição.
Na avaliação de Jacqueline, essa retomada não era essencial a ponto de merecer a
insistência textual de Louise. Além disso, o ponto principal que articulava os dois textos, que era
como Freud chegou à elaboração do conceito de automatismo da repetição, não estava sendo
privilegiado por Louise. Logo, a pesquisadora estava tomando o secundário como o essencial. Para
nós, essa dificuldade se dava porque, ao projetar um leitor que tudo já sabia, caberia a ele fazer a
articulação necessária. Ou seja, ela delega ao leitor o que precisaria ser feito por ela.
Outra faceta dessa alienação e do silenciamento, a nosso ver, era a repetição da mesma
ideia, com ligeiras alterações na formulação, no decorrer do texto. Para dar a ver essa tendência e,
mais ainda, o quanto Jacqueline a rechaçava, lembremos de que a orientadora se utilizou de uma
hipérbole (“umas dez vezes”) e de um paradoxo lógico (“e eu cortei 15”). A hipérbole é construída a
partir de um pronome indefinido (“umas”), que justamente marca um número aproximado dos efeitos
de repetição do texto, e de um numeral (dez), que indica uma grande quantidade.
A hipérbole utilizada por Jacqueline, a nosso ver, tinha a função de promover uma
separação. A partir dessa, a orientanda poderia mudar o lugar desimplicado, cujo local não a
propiciava verificar a sua tendência de dizer sempre o mesmo. Ela lia o que escrevia, mas, sem
agenciar a divisão subjetiva, não conseguia retroagir sobre o texto, a ponto de estranhar e de ver essas
repetições. Para nós, essas repetições constantes configuram-se como silenciamento, porque não se
produz nada de novo. O sujeito não tem voz, apenas reproduz o que, no seu entender, vai ser aceito
pelo Outro.
566
possibilitou abandonar a lógica do discurso religioso e construir uma outra, na qual não precisava ter
medo de errar, de arriscar a escrever suas ideias, sem considerar que o outro já saberia de tudo.
O exemplo exposto, neste estudo, mostra a necessidade de pensarmos uma educação que
acolha o outro em seu silêncio, criando possibilidades para que ele aprenda a ter entusiasmo pelo
conhecimento, a não ver o outro como onisciente e possa, assim, assumir um lugar de fala, quebrando
a cultura do silêncio e o ciclo da repetição.
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1999.
ALLOUCH, Jean. Letra a Letra: transcrever, traduzir e transliterar. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1995.
FREIRE, Paulo. Cultural Action for Freedom. Harvard Educational Review and Center for the
Study of Development and Social Change. Monograph Series nº 1., 1970.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2013.
LACAN, Jacques (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo freudiano. In: ______. Escritos.
4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 275-311.
______. (1964). O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
______. (1966a). A ciência e a verdade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
RIOLFI, Claudia Rosa; MAGALHÃES, Mical de Melo Marcelino. Modalizações nas posições
subjetivas durante o ato de escrever. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 13, n. 24, p. 98-121, jun. 2008.
RIOLFI, Claudia; ANDRADE, Emari. Ensinar a escrever o texto acadêmico: as múltiplas funções do
orientador. Trabalhos em Lingüística Aplicada, Campinas, p. 99-118, jan./jun. 2009.
568
RIOLFI, Claudia Rosa. Do “eu sei tudo” para “meu percurso é este” – Conquista da autoria na escrita
de relatórios de Iniciação Científica. In: (Livro SETED, Natal, 2021, no prelo).
569
RESUMO
Esta reflexão apresenta resultados preliminares de uma pesquisa cujo objetivo principal é interpretar
percursos subjetivos percorridos por alunas leitoras e tradutoras163, moradoras do interior do Mato
Grosso, ao se embrenharem coletivamente nos caminhos literários trilhados e colocados em cena por
uma editora cartonera boliviana. Primeiramente, demos início a um trabalho de tradução individual
de títulos publicados por uma editora boliviana, a Yerba Mala Cartonera. Seis meses depois,
organizamo-nos nos moldes de uma tertúlia literária, encontrando-nos semanalmente através da
plataforma Google Meet para lermos e conversarmos a respeito dos livros que estamos traduzindo.
Os encontros são gravados para posterior transcrição e análise. A esses encontros acrescentamos uma
entrevista feita individualmente com cada uma das participantes. A partir da análise desse material,
pudemos identificar quebras e deslocamentos vivenciados pelas participantes do processo. Como
quebra, entendemos o movimento subjetivo que implica uma abrupta interrupção, ocasionado por um
desmoronamento do caminho que vinha sendo seguido; de modo que o sujeito a vive como se
estivesse em um lugar de passividade, já que interpreta a alteração como que algo lhe aconteceu, sem
ter sido protagonizado por ele. Nesse sentido, a quebra seria inconsciente e independente de quem a
vive. Já como deslocamento, estamos entendendo o movimento subjetivo feito conscientemente e
assumido pela aluna-tradutora. Ao alinhavar tais vozes, identificamos duas quebras – a do imaginário
e a das barreiras linguísticas – e dois deslocamentos – a assunção de um saber-fazer e o início da
construção de um sentimento de latino-americanidade.
1, 2, COMEÇANDO!
Para dar início à minha contribuição por escrito a esse grupo de trabalho cujo título é
“Lacan com Freire: escrever para além da cultura do silêncio”, que se propõe a fazer uma intersecção
entre o pensamento de Lacan e o de Paulo Freire partindo do pressuposto de que vivemos em uma
cultura do silêncio, retomo as palavras de Claudia Riolfi, coordenadora da sessão de trabalho, no dia
03 de dezembro de 2020, ao afirmar que ambos os pensadores sempre se preocuparam em melhorar
a relação do sujeito com sua palavra. Pois bem, de minha parte, para abordar a relação que o sujeito
estabelece com a própria palavra, gostaria de, enquanto professora de língua e literaturas de língua
161
O presente trabalho foi realizado com apoio do FMAL-CBEAL da Fundação Memorial da América Latina e do Centro
Brasileiro de Estudos da América Latina.
162
Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso. E-mail para contato: flaviakrauss@unemat.br
163
Gostaria de agradecer imensamente à Alyne, Maryssol, Letícia e Patrícia, mulheres que aqui comparecem com seus
nomes reais e que durante o ano de 2020 compareceram com seus corpos, energia e disposição também reais para que
construíssemos um circuito literário em Tangará da Serra que segue ganhando corpo, se retroalimentando da própria
energia que aí se gera neste ano de 2021. Sigamos!
570
espanhola, apresentar uma prática de leitura coletiva e os efeitos enunciados pelas participantes a
partir de entrevistas individuais que realizamos com cada uma164.
DE ONDE SAÍMOS
Para começar, apresento meu ponto de partida: uma interpretação da sociedade em que
vivemos. Dunker (2020)165 afirma que nossa civilização caminha cada vez mais em direção a uma
civilização obsessiva: uma civilização em que cada um dos sujeitos que a constituem se esmera em
ter o controle do que lhe pode vir a acontecer. Em suas palavras:
Então vamos olhar para nossa civilização [...] e vamos dizer: ela é uma civilização que
caminha na direção da neurose obsessiva e da escrupulosidade anal, quando ela propaga e
vende para gente a ideia de que você pode controlar tudo o que vai se passar na sua vida,
você pode planejar tudo o que vai se passar na sua vida e isso é uma vida boa. Bom, isso é
uma vida boa para neuróticos obsessivos. (DUNKER, 2020, transcrição da autora)
Ao começar este texto trazendo uma interpretação de que somos uma sociedade na qual
muito nos compraz a ideia do planejamento visando a um maior domínio de todas as possibilidades,
lanço a hipótese de que os saberes (e seus modos de produção) que circulam nessa sociedade em
muito contribuem para esse estado de coisas. E aqui, talvez, tenhamos uma explicação para a assunção
protagonizada pelos “saberes de regulação” presenciados pela sociedade moderna.
Quem define os “saberes de regulação” é o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2007),
dizendo que tais saberes se apresentam como sinônimo de ordem, de modo que saber significa ter
capacidade para organizar a alteridade, a realidade e a sociedade. Ao definir os saberes de regulação,
o sociólogo os contrapõe aos saberes de emancipação, os quais define como solidariedade entre os
seres de forma esclarecida. Como ainda lembrado pelo sociólogo, o conhecimento para a regulação
estabelece sua hegemonia quando a modernidade ocidental passa a coincidir com o capitalismo e
termina por perverter as possibilidades do conhecimento para a emancipação. Assim, o saber
hegemônico considera a autonomia solidária como uma forma de caos, representante da falta de
conhecimento, de modo que o colonialismo se erige como a forma canônica de organização da
sociedade. Ao alinhavar as vozes dos pensadores aqui já citados, temos a seguinte situação: de um
lado, o capitalismo censura os saberes para emancipação, mas, por outro lado, cada sujeito vem
apresentando uma crescente necessidade de organizar o mundo que o rodeia. Assim, na interpretação
que faço, essa necessidade sentida como individual oferece corpo e energia para a construção de uma
hegemonia dos saberes que visam à regulação e impedem a emancipação.
164
Foram realizadas cinco entrevistas com cada uma das tradutoras e/ou participantes da prática de leitura coletiva.
165
DUNKER, C. Sobre a neurose obsessiva/ Christian Dunker/ Falando nIsso 260. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cPuEH-W1oJA. Acesso em: 20 jan. 2021.
571
Llamo pedagogías de la crueldad a todos los actos y prácticas que enseñan, habitúan y
programan a los sujetos a transmutar lo vivo y su vitalidad en cosas. En ese sentido, esta
pedagogía enseña algo que va mucho más allá del matar, enseña a matar de una muerte
desritualizada, de una muerte que deja apenas residuos en el lugar del difunto. (SEGATO,
2018, p. 11)
O QUE PROPUSEMOS
Com o distanciamento social imposto por conta da pandemia mundial vivida em 2020 –
que segue em 2021, comecei a pensar no que poderia fazer para promover a conexão entre algumas
alunas mesmo com tanto distanciamento. Pensei na palavra literária. Pensei que pudéssemos nos
aproximar via literatura. O pensamento virou ação em abril. São oito os livros que começaram a ser
traduzidos em 2020. Organizei um roteiro de aproximação à cena literária boliviana e à atuação da
Yerba Mala Cartonera: esse roteiro incluía um documentário, a leitura de um manifesto escrito por
esse coletivo, alguns recortes de seu blog. Na sequência, disse que as alunas poderiam escolher
qualquer dos livros166 da editora para traduzir. Assim que os títulos iam sendo escolhidos,
conversávamos com o editor boliviano, para que fizesse o contato com a autora ou autor. Assim que
recebíamos a permissão, a aluna começava o processo de tradução. Esse circuito de trabalho acabou
por ser institucionalizado como um projeto de extensão da Universidade do Estado do Mato Grosso
com o nome de “Leitura e Tradução Literária Cartonera”.
Foi em setembro de 2020 que percebi que as alunas se conectavam à obra que cada qual
estava traduzindo, mas não umas às outras enquanto um coletivo de trabalho. Naquele momento,
propus um encontro semanal com as tradutoras para que pudéssemos ler coletivamente as traduções
já feitas. Nosso primeiro encontro ocorreu dia 01 de outubro de 2020. De lá para cá nos encontramos
166
Todos os títulos da Yerba Mala estão disponíveis em https://issuu.com/yerbamalacartonera.
572
toda semana. Intitulamos nossos encontros de Ayni Literário, porque gostaríamos de fazer ressoar
esse significante aimará. Ayni seria a coluna vertebral do pensamento andino: significa partilha,
compartilha; é um princípio que entende que o universo se organiza em uma relação de
complementariedade.
Os moldes desses encontros inspiram-se nas tertúlias literárias dialógicas desenvolvidas
na Comunidade de Aprendizagem La Verneda de San Martí, em Barcelona, na Espanha. Surgida em
1980, em um período de transição democrática após o fim da ditadura de Franco em 1975, os
idealizadores e realizadores dessa comunidade muito nutriram-se do pensamento do brasileiro Paulo
Freire. Inclusive Soler y Lleras (2003, n.p.) citam o famoso educador para dizer onde está o núcleo
principal da ação realizada com a Tertúlia Literária Dialógica: “la clave está en promover una
comunicación cultural entre conocimiento popular y académico”.
A ideia de trazer a tertúlia literária para o interior do Mato Grosso apareceu porque entre
2008 e 2009, participei de uma dessas tertúlias literárias em um bairro cigano de uma cidade chamada
Castelló de la Plana, também na Espanha. Esses encontros aconteciam em uma língua até então
desconhecida para mim, o valenciano. No entanto, algo se moveu aqui dentro, mesmo a partir de tanto
desconhecimento. Algo aconteceu e permaneceu: até hoje me sinto conectada às pessoas que também
participavam daquela tertúlia toda tarde de sexta-feira.
Minha proposta, ao idealizar nosso ayni, também era criar conexão via palavra literária e
dar lugar às vozes de todas as envolvidas a partir da palavra literária. Nosso Ayni Literário parte da
ideia de conversarmos a respeito da literatura produzida pelos nossos vizinhos bolivianos. Desse
modo, então, já subvertemos um dos princípios das Tertúlias Literárias Dialógicas, justamente o que
diz que o objetivo de tais encontros é democratizar o acesso aos clássicos da literatura. Não lemos os
clássicos. Lemos justamente latino-americanas que não entram no cânone: as bolivianas publicadas
por uma editora sem fins lucrativos que fabrica livros com capas de papelão, uma editora cartonera.
Há alguns anos (KRAUSS, 2016) entendo que a proposta cartonera, ao afastar o objeto
livro de uma categoria meramente mercadológica167, é uma porta de entrada privilegiada a um recorte
da literatura latino-americana capaz de produzir certos deslocamentos em nossos modos de
subjetivação hegemônicos (PALMEIRO, 2010; NAVARRO, 2020) e é capaz, talvez, de produzir
alguns desvios de rota no processo de regulação de nossa sociedade.
Paralelamente, interessei-me em saber quais os deslocamentos subjetivos que essa prática
tem produzido nessas mulheres participantes do projeto. Assim, meu objetivo em minha pesquisa
maior é: interpretar os percursos subjetivos percorridos por mulheres leitoras e tradutoras, habitantes
De fato, nas fichas catalográficas de seus livros, o Yerba Mala apresenta-se como um “proyecto social, cultural y
167
168
Acadêmica do quarto semestre de Letras de Tangará da Serra. Sua família é considerada como pioneira em Tangará
da Serra - MT. Seu pai foi dono da primeira farmácia da cidade, onde ela foi funcionária por anos. Inclusive, cursou
alguns semestres, mas não se formou no curso de Farmácia. Tem 43 anos e carrega o sonho antigo de ser professora.
574
gente não quer ver e se acha superiores a eles porque eles são índios como nossos índios. É
exatamente isso o que a gente faz: eles estão lá no canto, ninguém quer ver, só quer fazer
turismo em aldeia, por um cocar, tirar uma foto, mas depois não quer o cara aqui na cidade
solicitando nada, nenhum direito à terra, nenhum direito a ser um vereador, a fazer faculdade,
nada. Você pode ver que na fronteira do Uruguai não tem isso. Eles podem até ser bem pobres,
ser colonos, mas não é o mesmo preconceito, muito pelo contrário, as pessoas acham lindo
dizer que atravessaram ali para o Uruguai. (grifos nossos)
Fonte: material da pesquisa
Como trataremos de analisar a partir dessa longa, mas elucidativa fala, a aluna-tradutora
já começa com uma denegação que vai ganhando corpo ao apontar o preconceito como sendo do
outro, mas acaba assumindo inconscientemente esse preconceito para si, como demonstramos com
as oposições que elencamos na sequência:
1. “não como um preconceito” versus “como se eles não tivessem valor nenhum”;
2. ouço até hoje o meu pai dizer: “ah, só tem índio, atrasado” versus eles são índios (pausa)
também; e
3. é como se a gente tivesse de costas pra eles versus ninguém olha ali, pra trás ali.
No interior desse jogo no qual se tensiona sobre o fato do preconceito ser apontado como
sendo do outro, mas ao mesmo tempo ser assumido por ela, existe uma declaração de apaixonamento,
o que nos oferece o indício de que o afeto viria antes do esclarecimento e se sobreporia à lógica.
Frisamos ainda que o preconceito apontado como sendo do outro (“meu pai”, “venho de
uma família”) reaparece na fala de Alyne, a partir de uma comparação assumida como própria - já
que ela, nesse momento, não está relatando nada, está tratando de ser mais clara para o interlocutor –
que retoma o imaginário implementado desde a chegada de Cristóvão Colombo à América: o
imaginário de que havia chegado às Índias. Alyne diz que imaginava a Bolívia tipo a Índia, o que nos
indicia que as imagens implementadas durante a época da colonização seguem em pleno
funcionamento na atualidade, mas com um toque de contemporaneidade que comparece por via da
violência pela qual se sentia ameaçada: “e eles ainda andavam armados”.
Como vemos, a partir de alguns indícios trazidos pelo depoimento dessa aluna-tradutora,
o discurso da colonialidade mostra-se bastante vigente em nossa relação com os vizinhos bolivianos:
eles são tipo a Índia, “só tem índio, atrasado”. Trata-se de juízos de valores que vão nos dando mostras
de que nossos vizinhos seriam vistos como uma nação em débito com a modernidade e com a
civilidade, representada pela lei, o que se vislumbra pelo fato de que, ao atravessarem algum carro
para o lado de lá da fronteira, se faz impossível seu resgate.
575
169
Irmã da Alyne, nossa primeira aluna entrevistada. Tem 44 anos e também é acadêmica do 4º. Semestre de Letras.
576
Eu: Antes de começar a traduzir você tinha alguma imagem dos escritores latino-americanos?
170
Patrícia é aluna do quinto semestre do curso de Letras de Tangará da Serra. Traduziu Gramática del Deseo, de Augusto
Rodríguez, e no momento da entrevista estava traduzindo Ferro, de Roberto Oropeza. Interessada pela temática cartonera,
desenvolve seu trabalho de conclusão de curso analisando aspectos relacionados à democratização dessa forma de
literatura. Atualmente é bolsista do projeto de extensão “Leitura e Tradução Literária Cartonera” e desenvolve uma série
de podcasts sobre as traduções que estão sendo desenvolvidas pelo grupo de acadêmicas aqui de Tangará da Serra
mencionadas neste artigo.
171
Nasceu em Guayaquil, Equador, em 1979. Jornalista, poeta, narrador e editor é ganhador de inúmeros prêmios entre
América e Espanha, é considerado um dos grandes nomes da literatura equatoriana.
172
Poeta boliviano, nascido em Cochabamba em 1983, é editor e professor universitário. Com Ferro ganhou o concurso
de poesia jovem da Fundación Pablo Neruda, em Santiago do Chile. É também um dos atuais editores de Yerba Mala
Cartonera.
577
Não, não tinha assim uma imagem. Mas imaginava que seria diferente, sabe? Talvez sobre a
cultura, a escrita fosse voltada... mais assim, sabe? Mas aí a gente, igual eu falei, a gente começa
a perceber que na verdade [...]. Quer dizer, tem a sua subjetividade, as suas características
próprias, mas a gente acaba se envolvendo bastante.
Fonte: material da pesquisa
173
Letícia Navarro concluiu a graduação em Letras em 2020. Tem 33 anos. Traduziu seu primeiro conto em sala de aula
e se interessou tanto por esse texto, que a ele se dedicou em seu trabalho de conclusão de curso, defendendo o TCC com
o título “La lengua de las locas: um pequeno recorte sobre o catálogo de Eloísa Cartonera”.
578
da história, porque a gente tem que tentar traduzir de uma forma que as outras pessoas vão
entender também para elas compreenderem [...]. Porque quando a gente lê no espanhol, muitas
vezes eu já fiz isso, muitas coisas a gente só interpreta (a gente junta tudo ali e faz uma
interpretação das palavras. A gente não vai ler palavrinha por palavrinha e traduzir na cabeça
da gente (risos) mas na tradução a gente tem que fazer isso, tem que traduzir palavrinha por
palavrinha para pensar ali no contexto e para tentar dar uma interpretação do que tá sendo dito.
Então foi completamente diferente, a minha visão mudou completamente a partir dali. Porque
agora quando eu vou ler algum outro texto em espanhol, eu já fico com isso na cabeça, eu já
vou lendo ele, já vou traduzindo na minha cabeça “ah, então é assim, então é assim”. Mudou a
minha forma de ler. A tradução mudou minha forma de ler.
Fonte: material da pesquisa.
Consideramos esse deslocamento apontado pela aluna como um dos efeitos produzidos pelo
trabalho de tradução, um efeito que não havia sido anteriormente calculado. Como interpretamos, a
necessidade de debruçar-se com extrema atenção ao texto a ser traduzido modificou sua relação com
os textos e com a leitura em geral. Se no trecho anterior Letícia aponta-nos para o fato de que a
tradução modificou sua relação com a leitura em língua estrangeira, no próximo (Quadro 6), ela vai
construindo a linha de raciocínio de que antes nem sequer era capaz de compreender o que os textos
diziam, ainda que julgasse que sim, que estivesse compreendendo.
Como fomos tratando de ir interpretando, a partir do depoimento de Letícia, lemos que a
prática de tradução oferece subsídios para uma possível corporificação da alteridade, que passa a
ganhar efetivamente estatuto de outra coisa, de outro, de não idêntico a mim (lembremos que antes a
aluna mesma foi quem disse “a gente junta tudo e faz uma interpretação das palavras”), de modo que
parecia não existir espaço e paciência para permitir que a alteridade se mostrasse, se dissesse, se
fizesse entender:
Por quê? Porque eu precisava traduzir, então eu precisava entender, eu tinha que saber o que
tava ali. Aí eu li com mais calma, mais paciência, sem atropelar palavras, aí, a partir daí eu fui
começar a ler outros textos também com mais paciência [...].
Fonte: material da pesquisa
Se nesse excerto Letícia fala-nos que a tradução lhe ofereceu ferramentas para construir
outro estatuto para a leitura, no próximo (Quadro 6), na sequência, aponta-nos para o fato de que esse
saber-fazer, a princípio relacionado com a leitura em língua estrangeira, ressoa nos textos em língua
materna e, inclusive, nos textos escritos por ela mesma.
A desconexão com nossa vizinha Bolívia faz-se presente e é sentida em nossas relações
cotidianas, mas também na construção de um cânone literário latino-americano. Como inclusive
fomos notamos nas entrevistas realizadas, o processo de tradução dá indícios de que um maior
(re)conhecimento vai gestando um sentimento de coletividade, de pertencimento, de que somos
parecidos a eles, como percebemos ao lermos o depoimento de Alyne:
como se eles não tivessem literatura (risos, tapa a cara com a mão) e diz: Ai, que horror. Mas
é.
Eu: E ao descobrir que eles são semelhantes a você... Qual o impacto na sua subjetividade?
Porque movimenta alguma coisa dentro da gente, né?
Tipo de irmandade, de ver que eles estão lá buscando as mesmas coisas que nós aqui, né? [...].
E talvez assim, não que eles tenham entrado para a minha irmandade, mas que eu tenha entrado
para a deles. Pô, eu sou deles ali, né? Eu to aqui também, as coisas são iguais [...] como se eu
tivesse passado a ser latino-americana, entendeu? Porque antes eu acho que eu achava que eu
era europeia (risos). Agora eu acho: “eu acho que to aqui” (e aponta com a mão para o ar,
simulando que está de frente para o mapa da América).
REFERÊNCIAS
DUNKER, Christian. Sobre a neurose obsessiva. Falando nIsso 260. 17 jan. 2020 (21m17s).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cPuEH-W1oJA. Acesso em: 20 jan. 2021.
KRAUSS, Flávia. O Acontecimento Eloísa Cartonera: memória e identificações. 2016. 204f. Tese
(Doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) - Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, 2016.
LACAN, Jacques (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN,
Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 498-533.
NAVARRO, Letícia. “La lengua de las locas”: um pequeno recorte sobre o catálogo de Eloísa
Cartonera. Trabalho de Conclusão de Curso. Mato Grosso: Universidade do Estado do Mato Grosso,
Campus Tangará de Serra, 2020.
SOLER, María; LLERAS, Jordí. Las tertúlias literárias dialógicas: compartiendo lectura y cultura.
SABERES. Decisio, Inverno 2003. Disponível em
https://www.crefal.org/decisio/images/pdf/decisio_6/decisio6_saber5.pdf. Acesso em: 06 jan. 2021.
582
SOUSA SANTOS, Boaventura. Uma nova cultura política emancipatória. In: SOUSA SANTOS,
Boaventura. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo,
2007. p. 52-54.
583
RESUMO
O trabalho em tese pretende analisar como o objeto de discurso isolamento – termo evocado pelo
contexto pandêmico imposto pela pandemia da COVID-19 no ano de 2020- é recategorizado por meio
dos processos referencias realizados pelas interações dos usuários na página Recife Ordinário no
Twitter. Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Textual na figura de
Cavalcante (2012); Filho e Silva (2013) para quem os processos referenciais são analisados de
maneira a revelar suas relações não somente com o cotexto, mas primordialmente com o contexto.
Também observmos as discussões basilares engendradas por Mondada e Dubois (2003), as quais
refletem sobre o caráter mutável da referenciação, uma vez que esta revela as visões de mundo dos
usuários da língua. Visto isso, evidencia-se, assim como postulado pelas teóricas, que os processos
referenciais que ensejam a recategorização dos objetos de discurso estão dentro de uma perspectiva
linguística, sociocognitiva e interacional, uma vez que se nota que os processos enunciativos se
constroem em um campo social. Sob esse ótica, a análise em questão objetiva apresentar como o
fenômeno atual isolamento, alvo de debates fervorosos, é (re)construído pela voz dos usuários da rede
Twitter, bem como as interações provocadas pela postagem. Para isso, foi selecionada a página
humorística “Recife Ordinário”. Nota-se que a rede social, não apresenta um posicionamento
uniforme quanto à adesão ou não ao isolamento, porém, por fazer parte de uma geração que busca
influenciar digitalmente os sujeitos, utiliza-se, pois, de suas mídias digitais para debater temas atuais
e gerar engajamento dos seus seguidores. A título de síntese, a breve análise visa provar o dito por
Cavalcante (2020) que os processos referenciais não são previamente selecionados, mas sim ocorrem
no aqui/agora do texto. Com isso, para um mesmo objeto de discurso, a saber o isolamento, haverá
uma recategorização constante, posto que os processos de referenciação são realizados a cada evento
comunicativo de forma colaborativa, com intuito de negociar os dizeres.
INTRODUÇÃO
174
Graduanda em Letras – Universidade Federal Rural de Pernambuco, leticiajulia2@hotmail.com
175
Profa. Dra. Depto. de Educação – Universidade Federal Rural de Pernambuco, thaisranieri@yahoo.com.br
584
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS
colocações, começamos a observar que, desde os primórdios, os sujeitos buscavam relacionar a língua
com o mundo onde habitavam.
No entanto, nos debates mais atuais ensejados pela Linguística, principalmente a
Linguística de Texto (doravante LT), notamos que a língua, como heterogênea e assumindo a função
de meio de interação, não estabelece uma relação direta com as coisas do mundo. Exemplo disso é o
campo de estudos denominado Referenciação, eixo da LT que põe fim ao olhar estabilizador que
antes a referência detinha, assumindo a ótica da referenciação enquanto um processo dinâmico e
instável.
Nesse tocante, tomamos os estudos de Mondada e Dubois (2003), as quais explicitam o
caráter heterogêneo da referenciação, justificando que os indivíduos buscam em seus processos de
representação do mundo estabelecer versões públicas dele. Nessa tentativa, as autoras nos apresentam
exemplificações, como a gramática, esta que seria um sistema de referenciar às formas de dizer dos
sujeitos de uma dada comunidade consideradas estabilizadas.
No entanto, ao longo da discussão, observamos que a referenciação, como o próprio nome
sugere, é um processo, este que não visa, primordialmente, à estabilidade dos referentes, mas sim,
possui uma característica de instabilidade típica. Isso ocorre porque o ato de referir não se concretiza
em um produto pronto e acabado, mas sim faz parte de uma dinâmica comum da atividade interativa
de comunicação entre os sujeitos que buscam estabelecer seus pontos de vista. Pensando nisso,
Mondada e Dubois (2003) nos alertam:
Não são mais consideradas como algo que estabiliza uma ligação direta com o mundo, mas
como processos que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais como o
mundo e como os outros, e por meio de mediações semióticas complexas. (MONDADA;
DUBOIS, 2003, p. 22)
Nota-se, portanto, que o processo de referenciar não busca estabilizar a língua para com
as coisas do mundo, uma vez que não há uma ligação direta entre a língua e o mundo, pois a primeira
não busca etiquetar a segunda, nem vice-versa. Contudo, o que notamos é que os fatos que norteiam
o mundo influenciam a língua, não em um processo passivo, mas sim ativo, posto que as línguas
mudam por questões coletivas que vão desde o campo social ao mental (BAGNO, 2014).
Sabendo, pois, que o processo de referenciação é mutável e evidencia as visões de mundo
dos sujeitos em interação, podemos, pois, analisar que os referentes se relacionam a objetos do
discurso construídos pelos usuários de uma dada língua. Com isso, ao analisar textualmente os
discursos, fica claro que tanto o locutor quanto os interlocutores negociam sentidos em busca de
construir um objeto de discurso que revele os seus anseios intersubjetivos.
586
Sob esse prisma, recorremos a Filho e Silva (2013) para quem os processos de
referenciação, que constroem objetos de discurso ou referentes, realizam a recategorização -
tranformação do referente- desses mesmos objetos, o que culmina em uma modificação desses
referentes conforme o desenvolvimento de um dado discurso. Porém, o que se ressalta na visão desses
autores é o caráter não linear desse processo.
Sob essa ótica, os autores observam que “a estratégia de recategorização não se esgota na
relação entre termo recategorizador e termo recategorizado.” (FILHO; SILVA, 2013, p. 68). Com
isso, fica claro que os processos de referenciação, os quais desembocam na recategorização dos
objetos de discurso, não se circunscrevem a relação correferencial, ou seja, na relação objeto-
referente.
A recategorização pode, também, ocorrer pelo todo textual, uma vez que se vai
enriquecendo o referente, não só por meio de outras expressões nominais a ele cunhadas, mas também
por meio de predicações que modificam a sua representação no mundo. Esse processo de
transformação não é realizado individualmente, na verdade, é uma atividade colaborativa que revela
as intenções discursivas dos enunciadores. Todo esse processo social-textual que ocorre no ato
comunicativo permite a formação de um objeto de discurso diferente daquele que foi introduzido no
início dessa interação.
Na busca por sistematizar esses processos referenciais aqui explanados, Cavalcante
(2012) os classifica, de forma geral, em:
• introdução referencial;176
• anáfora direta;177
• anáfora indireta;178
• dêixis.179
Ademais, a autora nos expõe um ponto relevante sobre o aspecto textual-discursivo dessas
expressões referenciais: “Os processos referenciais [...] desempenham papéis importantes na tessitura
textual. Eles exercem funções textual-discursivas que podem servir para organizar, argumentar,
introduzir referentes, entre outras possibilidades.” (CAVALCANTE, 2012, p. 133).
Com isso, fica claro que ao se analisar os processos referenciais, pode-se compreender as
intenções dos enunciadores, posto que ao retomar ou introduzir um referente, o sujeito o faz não de
maneira aleatória, mas com intenções definidas. No entanto, há que se ressaltar que essas ações
176
Apresentam pela primeira vez o referente.
177
Retomada do referente já introduzido no texto.
178
Não estabelece uma relação correferencial, sendo inferível pelo contexto evocado.
179
Exerce tanto o papel de introdução referencial como o de retomada, sendo interpretado de acordo com o seu tipo: local;
temporal, textual etc.
587
referenciais ocorrem de forma inédita no aqui/agora do texto (CAVALCANTE, 2020). Com isso, é
notório o aspecto sociocognitivo desse processo, visto que no momento da comunicação, os
indivíduos acionam o contexto situacional, bem como os seus conhecimentos prévios para realizarem
os processos de ativação, desativação, bem como a recategorização dos objetos de discurso.
O fato de se postular os tipos de expressões referenciais não pretende negar que esses
processos são complexos e vão além dessa restrita classificação, posto que a referenciação não se
esgota na palavra, também sendo passível de observá-la em um viés multisemiótico, trazendo à baila
a multimodalidade da referenciação (BENTES, 2005). Com isso, ressaltamos o postulado por Filho
e Silva (2013, p. 82) para quem os processos referenciais não são estáveis, sendo marcados por idas
e vindas: “A recategorização não se limita a alçada do cotexto apenas, mas se encontra,
principalmente, no universo do discurso.”
Diante dessa breve retomada teórica sobre os estudos em referenciação e o fenômeno da
recategorização, cabe, pois, investigar como eles ocorrem na prática. Com isso, na próxima seção,
analisaremos como esses processos referenciais, os quais desembocam na recategorização do
referente isolamento, atestando sua instabilidade constitutiva, ocorrem e revelam as visões de mundo
dos seus locutores de maneira colaborativa.
Para esta investigação, devido ao curto espaço de análise, escolhemos apenas um tweet
postado em maio de 2020 pela página de humor intitulada “Recife Ordinário” (RO). A escolha por
essa página se deu conforme a sua forte influência nas redes sociais, principalmente para com o
público infanto-juvenil -embora não se restrinja a esse-. Atualmente ela soma 189.000 seguidores,
tendo uma alta frequência de postagens na sua página na rede social twitter. Suas atividades nessa
rede iniciaram em 2012, possuindo, também, uma página no Instagram, igualmente de forte
influência nesse outro contexto virtual de interação.
Observou-se que a página não assumiu um posicionamento claro sobre a adesão ou não
ao isolamento social exigido pelas autoridades mundiais de saúde, a saber OMS (Organização
Mundial de Saúde), posto o contexto pandêmico acionado pelo vírus da COVID-19. No entanto,
conjeturamos que o posicionamento mais neutro adotado pela página pode estar associado a uma
tentativa de conter a perda de seguidores que são contra o isolamento, preocupação bastante presente
na vida de influenciadores que têm sua vida social e financeira pautada em suas atividades virtuais
em páginas como essa.
Todavia, na postagem aqui analisada, é possível observar que houve um posicionamento
da página RO “pró” isolamento social, provocando diversos comentários que corroboravam com esse
posicionamento, enquanto outros divergiam severamente, adotando, assim, posturas pouco polidas
588
em seus tweets. Com isso, notamos como os usuários, seguidores da página em tela, desconstroem a
visão positiva que o objeto de discurso isolamento detinha no momento da sua introdução e é
recategorizado pelos opositores de modo a lhe legar um caráter negativo. Para atestar essa conclusão,
vejamos, primeiramente, a figura abaixo.
Antes de introduzir o referente isolamento, notamos o caráter não linear dos processos
referenciais, principalmente quando se observa os discursos inseridos no contexto on-line, uma vez
que as postagens estão em uma rede hipertextual, referindo-se a postagens anteriores formando
verdadeiras cadeias referenciais.
No caso dessa postagem supra, notamos que antes dela, há uma outra, também realizada
pela página Recife ordinário, sendo, na verdade, esse tweet acima, um comentário da página a sua
própria postagem anterior. Feito essas considerações, observamos que há todo um contexto verbal
realizado pela página RO para asseverar necessidade de se manter o isolamento.
Para tanto, notamos que o referente, ao ser introduzido, é categorizado como “única forma
de reduzir esses números”. Os números a que a postagem se refere está contido na postagem
antecedente, a qual trata sobre o aumento de casos da COVID-19 em Pernambuco. Aqui, já
evidenciamos que o processo de introdução referencial já vem categorizando o referente, não por
meio de uma expressão nominal, mas uma predicação, confirmando o postulado de que esse processo
textual-discursivo é bem mais amplo e complexo. Vejamos, agora, como os usuários reagem a esse
posicionamento.
589
RO, além de um outro questionamento do usuário, o qual rótula toda a predicação dada ao objeto de
discurso como fruto de “achismo”.
Visto essas considerações, vê-se como vários sentidos precisam ser ativados para se
observar as transformações/recategorizações que o objeto de discurso isolamento vem tomando ao
longo das interações dos usuários com a página RO. Confirmamos com isso, o dito por Mondada e
Dubois (2003) sobre como as atividades discursivas são marcadas pelas instabilidades. Nesse
espectro, fica claro como o referente é modificado a cada interação realizada, uma vez que os sujeitos
tentam imprimir os seus pontos de vista. Dando continuidade a essas modificações, vejamos a
próxima figura.
Contrário ao que até então estava sendo realizado, observamos que a categorização
inicial, realizada pela página RO é reforçada. O usuário “Ap. OI”, encapsula o discurso da página
com a expressão “nesse apelo” acrescentando a ideia de apoio a ele. Cavalcante (2012) afirma que o
encapsulamento anafórico traz um teor avaliativo, vemos isso com o termo “apelo”, posto que o
usuário entende a fala da página RO como uma súplica aos cidadãos para se manterem em isolamento.
Além disso, observamos que a ideia de “se proteger do vírus” também está associada à
questão do isolamento, textualmente observado como um anáfora direta, que não possui a função
correferencial, mas que devido a um processamento sociocognitivo do texto (CAVALCANTE, 2012)
é possível realizar essa inferência. Com isso, fica claro que todo o conteúdo desse tweet busca
reestabelecer a estabilidade positiva dada ao objeto de discurso isolamento. Na figura a seguir, será
possível notar que os processos de negociação da recategorização nem sempre são pacíficos.
Aqui há uma configuração diferente dos demais tweets analisados, pois há um diálogo
direto entre os usuários, não mais voltado apenas para a página que inaugurou a postagem. Para tanto,
temos o comentário da usuária “Carol Sobral”, até então direcionada ao conteúdo da página do RO,
e, logo em seguida, um outro usuário “Cidadão, não!” responde ao comentário da primeira,
questionando-a sobre seu posicionamento.
Nesse embate direto, vemos as duas visões sobre o isolamento, que estavam sendo
construídas separadamente, ocorrendo de forma direta pela interação que o segundo usuário
estabeleceu com a primeira. Notamos que Carol, busca recategorizar o referente isolamento como
algo a ser realizado por “quem quer” além disso, para se referir ao objeto, ela não o repete, o toma,
na verdade, por uma oração inusitada: “senta a bunda em casa”.
Com isso, fica claro o posicionamento contrário da usuária ao isolamento não só pela
forma que o associa, mas também por caracterizá-lo como uma prática que pode ser escolhida, não a
vendo como necessária. Em contrapartida, o usuário questiona a fala da seguidora, rotulando todo seu
discurso por meio de um encapsulamento “o problema não é esse”. Percebemos, novamente o teor
avaliativo do encapsulamento, pois se considera a questão do ficar em casa como um problema.
Ademais, ao referir-se a fala contrária ao isolamento da usuária, notamos que há a
formação de um campo semântico que se refere aos cuidados necessários para se evitar o contágio da
COVID-19, campo semântico este ao qual o isolamento é um dos hiperônimos. Vejamos que não se
trata de apoiar totalmente o isolamento, o usuário, na verdade, busca atentar a usuária sobre a
necessidade de se ter cuidados, uma vez que, de fato, para alguns, o isolamento não é uma opção,
posto que trabalham nas atividades essenciais.
Ressaltamos que mesmo o usuário não corroborando diretamente para a realização total
do isolamento, ainda assim, o campo semântico que ele constrói permite inferir que este vê a
necessidade de se proteger contra o vírus, sendo assim, um dos que acreditam nas medidas preventivas
necessárias para conter o avanço do vírus.
592
Notando o diálogo direto aqui estabelecido, Bentes e Rios (2005), pontuam que esse
processo dinâmico que enseja os processos referenciais se faz na intersubjetividade dos sujeitos,
estando propensa a acordos e desacordos. Com isso, fica claro que na busca pela estabilização de suas
visões de mundo, os referenetes são tranformados conforme o enriquecimento de informação que os
usários acionam. Nesse movimento é possível observar, de forma clara, como esse processo revela as
visões de mundo, as intenções argumentativas dos falantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marco. Língua, linguagem, linguística: pondo os pingos nos ii. Parábola, 2014.
593
MONDADA, Lorenza; DUBOIS, Daniele. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma
abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES,
Bernadete Biasi; CIULLA, Alena (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. p. 17-52.
SILVA, F. O.; CUSTÓDIO FILHO, V. O caráter não linear da recategorização referencial. In:
CAVALCANTE, M. M. et al. Referenciação: teoria e prática. Cortez Editora, 2013.
594
RESUMO
Após 13 anos de governos presidenciais de esquerda, o cenário político brasileiro passa por grandes
transformações com a reemergência do discurso conservador e reacionário da direita (MIGUEL,
2018). O discurso populista de extrema direita coloca-se contra o establishment liberal e progressista
alcançado pelos governos de esquerda e passa a disputar com ele a produção de novos regimes de
verdade sobre o mundo (PINHEIRO-MACHADO, 2019). Entre essas disputas está a que envolve a
categorização do que seja “esquerda”, categoria cuja instabilidade, característica que, de acordo com
Mondada e Dubois (2003), é inerente às categorias, é intensificada pelo contexto-macro (HANKS,
2008) atual que representa o crescimento da influência do discurso de extrema direita. Diante disso,
este trabalho busca investigar o processo de referenciação (MONDADA; DUBOIS, 2003) realizado
em torno da categoria “esquerda” em alguns textos de viés político de extrema direita, para descobrir,
a partir da identificação dos enquadres sociocognitivos (frames) dos quais os sujeitos partem, quais
as conceptualizações de esquerda realizadas por eles e pretendidas para disputar como versão pública.
Para isso, analisaremos algumas publicações feitas, entre os anos de 2016 a 2019, na rede social
Twitter, através da qual será possível acompanhar não só os processos de referenciação, como
também a validação social, por meio do alcance observado nas curtidas e nos retweets. Quanto à
análise, situando-nos no domínio da Linguística Textual e partindo da hipótese sociocognitiva da
construção do conhecimento (SALOMÃO, 1999; KOCH, CUNHA-LIMA, 2004; MARCUSCHI,
2007; MORATO, 2017), iremos realizá-la utilizando-nos dos pressupostos teóricos de Koch (2003,
2014) no que diz respeito aos princípios e estratégias de progressão referencial que ocorrem durante
a referenciação; aqueles, a categorização e a recategorização do referente, e estas, pronomes,
expressões nominais definidas e indefinidas. A partir da análise dos resultados, observamos que,
frequentemente, nos tweets, os processos de categorização dessa versão de extrema direita sobre a
categoria “esquerda” são pautados no compartilhamento de conceitos de outros frames mais
estabilizados na categoria “governos totalitaristas”. Dessa forma, os processos de referenciação
apontam para uma versão do que seja “esquerda”, a qual elege como traços de maior
representatividade dessa categoria o autoritarismo e a manipulação do povo e da imprensa.
INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira vem passando por mudanças em seu cenário político, o qual, por
muito tempo, esteve dominado pelo posicionamento de esquerda, devido à longa estadia desse
180
UFRN, Graduada em Letras Língua Portuguesa, marceladesouza27@gmail.com
181
UFRN, Graduanda em Letras Língua Portuguesa, anafsantiago1@gmail.com
595
direita (2016-2019), para descobrir, a partir da identificação dos enquadres sociocognitivos (frames)
dos quais os sujeitos partem, quais as conceptualizações de esquerda realizadas por eles na disputa
pela fixação por uma versão pública coletivamente validada e mais aceita dessa categoria.
Nossa discussão se encaminhará, então, de modo a mostrar que a alteração do cenário
sociopolítico brasileiro resultou em uma significativa mudança na correlação de forças, uma vez que
a esquerda perdeu o poderio político que vinha sustentando por 13 anos. Com as eleições de 2018,
esse posto foi ocupado pelos partidos de extrema direita, principalmente, o PSL. Diante disso, a
mudança ocorrida no contexto macro (HANKS, 2008) acaba reorganizando a percepção que as
pessoas, de determinados grupos sociais, partilham em relação ao campo político, e, assim, o modo
como constroem a referência sobre alguns objetos de mundo, como a esquerda.
Essa investigação terá como base os pressupostos teóricos, principalmente, de Mondada
e Dubois (2003), sobre categorização e a referenciação na construção de objetos do discurso; de Koch
(2003, 2014) em torno da relação entre texto, conhecimento e progressão referencial; de Marcuschi
(2007) e Morato (2017) sobre texto e cognição, incluindo a noção de frames; e, por fim, de Hanks
(2008) acerca da noção de emergência e incorporação do contexto.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Desde o seu início, a Linguística Textual vem lidando com diferentes concepções de
texto, as quais são responsáveis por direcionar as pesquisas em posicionamentos teóricos específicos,
dependendo do que se entende por essa unidade linguística. Posto isso, a concepção de texto que
iremos seguir aparelha-se com a hipótese sociocognitiva e é a adotada pelas agendas atuais dessa
área, as quais compreendem os textos como formas de cognição social que permitem ao homem
organizar o mundo cognitivamente, constituindo-se não só como uma forma de “tornar o
conhecimento visível, mas sociocognitivamente existente” (KOCH, 2003, p.157).
Sendo o texto uma forma de cognição social, a cognição é entendida como “situada e
modelar, isto é, constitui-se como formas e construtos organizados de representação da realidade
contextual socioculturalmente definidos ou ancorados” (MORATO, 2017, p. 396). Sobre essas
representações da realidade que constituem o nosso conhecimento acerca do mundo, de acordo com
Koch (2003), podemos dividi-las em dois tipos: o conhecimento declarativo e o conhecimento
procedural.
O primeiro refere-se aos conhecimentos sobre “estados de coisas” ou dos sujeitos, e, por
isso, é possível que nós possamos verbalizar esse tipo de conhecimento, isto é, transformá-lo em
palavras, e, assim, fazer dele explícito. Já o segundo está mais ligado ao processamento, isto é, ao
597
como agir, por isso, além de ser mais dinâmico em relação ao conhecimento declarativo, também é
implícito.
Ainda de acordo com Koch (2003), o conhecimento declarativo é constituído pela
memória semântica e episódica. Em relação à memória semântica, ela engloba o conhecimento
categorial, isto é, o conhecimento geral sobre o mundo e as proposições a respeito dele. Já a memória
episódica (também chamada de memória experimental), abarca informações sobre as nossas
experiências pessoais, ou seja, as nossas vivências.
Posto isso, o conhecimento está armazenado na memória de longo prazo na forma de
conceitos, os quais são unidades que têm por função armazenar conhecimento sobre o mundo. Os
conceitos, então, de acordo com Koch (2003), não podem ser compreendidos como unidades bem
definidas e claramente distintas umas das outras, mas sim unidades de representação flexíveis e
dinâmicas, sempre sujeitos à atualização.
Sobre os conceitos, é importante destacar que eles não são armazenados isoladamente em
nossa memória, mas estão conectados uns aos outros, já que se relacionam entre si. É o que possibilita
pensarmos em clusters ou blocos (KOCH, 2003), isto é, unidades de representação em que esses
conceitos são agrupados.
Os clusters, também chamados de frames (CIENKI, 2007), são estruturas complexas de
conhecimento, as quais representam as experiências vivenciadas pelo sujeito em sociedade e servem
de base aos processos referenciais (KOCH, 2003). Vale salientar, no entanto, que esses modelos não
são construções individuais dos próprios sujeitos sobre o mundo, mas são organizados, de acordo
com Van Dijk (1992), segundo um sistema de estratégias e estruturas mentais partilhadas pelos
membros de um grupo. A esse sistema partilhado dá-se o nome de cognição social.
O conceito de cognição social nos auxilia no entendimento da seguinte afirmação de Koch
(2001, p. 17): “todo conhecimento coletivamente válido é sempre um conhecimento linguisticamente
constituído e, só desta forma, sociocognitivamente existente”. Isso quer dizer que nem toda
representação textual é validada como conhecimento social, pois sua validação depende de outras
fontes, tanto históricas como socioculturais, capazes de fazer com que a sociedade aceite-o como
legítimo ou não, segundo uma cognição social.
Essas fontes nas quais o conhecimento está ancorado apontam para o entendimento de
que não é possível considerar um sujeito discursivo sem que se considere o entorno sociohistórico
em que está inserido. Esse entorno diz respeito, de acordo com Hanks (2008), ao contexto, que se
refere não só ao micro, isto é, à efemeridade da situação comunicativa, mas também ao macro,
referente a campos sociais como o político e econômico em que esse sujeito está inserido. Esses dois
níveis de contexto emergem e são incorporados (HANKS, 2008) a todo tempo nos textos produzidos
pelo sujeito e, assim, na construção referencial realizada por ele.
598
Diante disso, considerando que as representações que fazemos sobre o mundo são
instáveis e são construções discursivas realizadas via texto, Mondada e Dubois (2003) passam da
ideia de referência, para considerar a ideia de referenciação, ou seja, a construção de objetos
cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de
concepções individuais e públicas do mundo.
Nesse sentido, podemos concordar com Marcuschi (2007) quando diz que o saber sobre
o mundo não diz respeito à identificação de realidades discretas, objetivas e estáveis, mas sim à
fabricação socialmente elaborada. Essa fabricação social, de acordo com Marcuschi (2007), é
realizada por meio de atividades linguísticas e comunicada para outros sujeitos também
linguisticamente. Isso faz com que seja possível dizer que o mundo é construído sociocognitivamente
através de nossos discursos sobre as coisas. E, portanto, é por isso que podemos falar em objetos não
do mundo, mas do discurso.
Os objetos do discurso são construídos por meio de escolhas linguísticas ao longo da
progressão textual, ao que dar-se o nome de progressão referencial (KOCH, 2003, 2014). Ao longo
do processo de progressão referencial, segundo Koch (2003, 2014), para a constituição de uma
representação na memória compartilhada, atuam os seguintes princípios de referenciação:
a)construção/ativação, pela qual um “objeto” textual é introduzido e passa a preencher um nódulo,
ou endereço cognitivo, na rede conceptual, de modo a ser colocado em foco na memória de trabalho;
b)reconstrução/reativação, quando o nódulo é reintroduzido na memória operacional por meio de
uma forma referencial, ficando o objeto de discurso ainda em foco; e c)desfocagem/de-ativação, que
ocorre quando um novo objeto do discurso é introduzido, passando a ocupar a posição focal, enquanto
o outro fica em estado de ativação parcial, podendo ser ativado novamente pelos sujeitos do discurso.
Baseando-se nesse princípios, o objeto do discurso é construído no texto por meio de
algumas estratégias de progressão textual responsáveis por categorizar ou recategorizar
discursivamente os referentes, quais sejam (KOCH, 2003): o uso de pronomes ou elipses, e uso de
expressões nominais definidas e indefinidas.
A partir disso, vemos que, em nossos discursos, nós construímos a referência com base
numa interpretação do mundo real, recategorizando a informação existente, por meio do acréscimo
de novas predicações, disponíveis no conhecimento das pessoas, à medida que transcorre a interação
(CAVALCANTE; SANTOS, 2012). Assim, a construção dos objetos do mundo, ou melhor, dos
objetos do discurso, é instável devido às pressões exercidas pelas atividades dos sujeitos ao interpretar
o mundo.
Dito isso, analisaremos, neste trabalho, como os sujeitos sociocognitivamente situados
estão construindo versões públicas da categoria “esquerda”.
599
METODOLOGIA
A análise será realizada a partir de dados provenientes da rede social Twitter, publicados
entre os anos de 2016 e 2019, e extraídos dos perfis de Jair Messias Bolsonaro, atual Presidente da
República, e de Eduardo Bolsonaro, atual Deputado Federal pelo estado de São Paulo e filho de Jair
Bolsonaro.
Esses perfis foram selecionados para o corpus, porque pertencem a pessoas públicas,
atualmente, de grande importância para o cenário político brasileiro, visto que Jair Bolsonaro, como
presidente, é o representante máximo da política brasileira e Eduardo Bolsonaro, nas eleições de 2018,
ganhou o posto de deputado federal mais votado da história do país. Além disso, ambos os políticos,
no período de coleta de dados para formação do corpus, eram filiados ao PSL, partido de extrema
direita que, nos últimos anos, ganhou força no cenário político brasileiro e também um grande número
de apoiadores, através, principalmente, das redes sociais.
A escolha do Twitter se deu, porque, além de ser o veículo oficial de comunicação do
governo de Bolsonaro, esses políticos têm vários seguidores nessa rede social e, assim, as suas
postagens no Twitter (os tweets) são muito visualizadas, curtidas, comentadas e compartilhadas, de
modo a alcançar, portanto, grande visibilidade na sociedade. Dessa forma, a validação social dessa
versão pública da categoria “esquerda” pode ser melhor visualizada.
É importante observar que, devido ao fato de o Twitter aceitar apenas textos curtos, não
será possível perceber o processo de referenciação através de anáforas ou de catáforas na maioria dos
tweets. Desse modo, em grande parte, a progressão referencial será realizada por meio de expressões
nominais e, até mesmo, por elementos não-verbais, como vídeos e imagens.
A partir disso, serão apresentados, através de capturas de tela (printscreens), alguns dos
tweets selecionados e será realizada a análise de cada um deles, de forma a demonstrar o processo de
referenciação em torno da categoria “esquerda”.
todos, passa a ter um novo valor. De acordo com a referenciação que está sendo realizada, a esquerda
é construída discursivamente como um posicionamento cujos princípios são os mesmos dos governos
totalitaristas, ou seja, governos calcados na obediência absoluta ou inquestionável à autoridade, e,
além disso, que fazem oposição à liberdade individual.
Essa construção da referência à esquerda como autoritarista pode ser verificada nos tweets
selecionados, através da predicação realizada, dentre outros modos, pelas expressões nominais
utilizadas. É por meio da predicação que percebemos os conceitos que se conectam em blocos ou
clusters para formar a nova categoria.
Diante disso, o primeiro dos tweets em que a referenciação do objeto “esquerda” por um
sujeito de extrema direita pode ser observada, foi publicado no dia 30 de abril de 2019, no perfil do
próprio Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Esse tweet pode ser visto a seguir:
Nesse tweet, em que há a presença de dados multimodais, podemos observar que o perfil
do presidente publicou uma colagem de duas fotos. Na primeira delas, tirada em 2013, estão presentes
dois senadores do PSOL, Randolfe Rodrigues e Ivan Valente. Já na segunda, aparecem os ex-
presidentes da República, Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), ambos do PT. As duas
fotos têm em comum o fato de os políticos de partidos de esquerda estarem acompanhados por Nicolás
Maduro, atual presidente da Venezuela, cujo governo tem claros indícios de ser totalitarista.
601
Também podemos perceber que, nas duas imagens, essa relação entre os políticos de
partidos da esquerda brasileira (PT, PSOL) e o presidente venezuelano autoritarista, Maduro, parece
ser, principalmente na primeira foto, uma relação amistosa. Além disso, a legenda dada pelo
presidente e que acompanha as fotos corrobora ainda mais com essa ideia de cordialidade, pois traz
o símbolo de três corações vermelhos, o que indica afeto.
A partir disso, notamos que a relação entre os políticos da esquerda brasileira e o líder
autoritário venezuelano é caracterizada, pelo Presidente do Brasil, como amistosa, pois haveria um
alinhamento ideológico entre eles. Dessa forma, essa relação intrínseca entre esquerda e autoritarismo
configura-se como um enquadre cognitivo com que é vista a categoria “esquerda”. Assim, esse
enquadre reforça o discurso clássico da direita ao liberalismo, ao conservadorismo e ao
neoliberalismo, doutrinas atualmente detentoras do poder político e governamental brasileiro.
Outro tweet que analisamos, também publicado em 30 de abril de 2019, pelo perfil do
presidente Jair Bolsonaro, conta com 17.362 retweets, 91.223 curtidas e 6,4 mil comentários, e
corrobora com o enquadre de uma relação amistosa entre a esquerda brasileira e o autoritarismo
venezuelano, como pode ser visto a seguir, na figura 2:
está sofrendo. Sentimento de raiva que é estendido para o PT, PSOL e outros partidos de esquerda,
referenciados como apoiadores e, assim, também alinhados ao totalitarismo.
Além disso, o conceito de relação amistosa é corroborado pelo segundo período do tweet,
em que a predicação em torno do governo brasileiro, que é de extrema direita, é construída de modo
positivo, pois ele apoia a liberdade da Venezuela e a democracia no país. Assim, a predicação em
relação ao governo aponta para uma relação de repúdio ao autoritarismo, diferente da predicação em
relação à esquerda, que aponta para uma relação de amizade e alinhamento.
O próximo tweet a ser analisado foi publicado em 18 de setembro de 2016, pelo perfil de
Eduardo Bolsonaro, e pode ser observado na figura 3, a seguir:
Esse tweet, que teve 303 retweets, 591 curtidas e 34 comentários, traz como objeto do
discurso o nazismo, ideologia associada ao Partido Nazista e também a outros grupos de extrema
direita, que acreditavam na existência de uma raça pura e, por isso, perseguiam e exterminavam os
outros grupos contrários aos seus ideais. Essa ideologia tem como principal nome Adolf Hitler, o qual
governou a Alemanha no período de 1933 a 1945 e, portanto, consolidou o ideal nazista.
603
Observamos que o deputado inicia o tweet com a declaração de que “o PT deu bolsas
assistencialistas para quem precisa e quem não precisa”, e, além disso, ainda atribui o objetivo desse
ato, que teria sido realizado pelo PT, como sendo o de ganhar eleitores. Eduardo Bolsonaro acusa o
PT de manipulador, por usar do assistencialismo para chantagear os eleitores e fazer com que eles
votassem nos seus partidários.
A partir disso, acrescentando ao cluster o conceito de “manipulação” ligado ao PT, e,
assim, à esquerda, automaticamente, se conecta a esse conceito o de “antidemocrático”. Isso porque,
se as eleições que colocaram o PT no poder foram calcadas na chantagem e na manipulação, elas não
aconteceram de forma democrática, mas sim de forma autoritária, uma vez que a manipulação é um
dos traços dessa categoria. Vale ressaltar que esse conceito aparece no último período do tweet, em
que o deputado iguala o ato realizado pelo PT ao que os governos comunistas e totalitaristas de Cuba
e da Venezuela fazem. Portanto, a partir desse tweet, percebemos que o conceito de manipulador e de
antidemocrático aparecem conectados e juntos, corroborando para a construção do cluster da
categoria “esquerda” como posição político-partidária alinhada aos governos totalitaristas.
O próximo tweet, publicado em 12 de maio de 2019, também pelo perfil de Eduardo
Bolsonaro, conta com 2.463 retweets, 9.002 curtidas e 698 comentários. Como podemos perceber na
figura 5, a seguir:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de referenciação observado nos diversos tweets nos mostra as novas
conceptualizações da categoria “esquerda” realizada pelos dois sujeitos que têm em comum o
posicionamento político adotado: a extrema direita. Através desse processo, percebe-se a
reorganização do modelo mental, com a realização de enquadramentos sociocognitivos influenciados
pelo contexto de grandes tensões e disputas no cenário político, econômico e social do país.
Os conceitos organizados nos enquadramentos percebidos nos tweets em relação à
esquerda apontam para o alinhamento aos governos totalitaristas, o que foi percebido pelo
compartilhamento de traços com essa categoria, sendo o principal deles o autoritarismo e a
manipulação, relacionados ao controle do povo e da imprensa.
Além da referenciação, através dos tweets analisados, foi possível perceber a grande
validação social que a referenciação dessa versão da extrema direita sobre a categoria “esquerda”
vem recebendo, pois há um grande número de curtidas e retweets, o que mostra que muitas pessoas
não só estão concordando, como também compartilhando, e consequentemente, estendendo o alcance
dessa versão pública.
Portanto, com a realização deste trabalho, podemos constatar que, devido à reorganização
do cenário sociopolítico brasileiro e, assim, à mudança de correlação de forças entre os partidos, a
categoria “esquerda” está passando por grandes disputas pela sua referenciação, o que está
intensificando a instabilidade já inerente às categorias.
REFERÊNCIAS
CIENKI, A. Frames, idealized cognitive models and domains. In: GEERAERTS, D; CUYCKENS,
H. (Eds). The Oxford handbook of cognitive linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2007.
p. 170-187.
HANKS, W. O que é contexto. In: BENTES, A. C. et al (Orgs.) Língua como prática social: das
relações entre língua, sociedade e cultura a partir de Bourdieu e Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2008. p.
119-145.
KOCH, I. G. V. Linguística textual: quo vadis?. DELTA, São Paulo, v. 17, p. 11-23, 2001.
Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/delta/v17nspe/6708.pdf>. Acesso em: 04/03/2021
MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In.: SOLANO, E. (org.). O ódio como política.
1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
RESUMO
INTRODUÇÃO
182
Mestra em Letras-Linguística (UFPI). Advogada. Mediadora Extrajudicial de Conflitos. Membro do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso da Universidade Federal do Piauí, NEPAD/UFPI/CNPq. E-mail:
monitorapatriciatomaz@gmail.com.
183
Possui doutorado e pós-doutorado em Linguística pela UFMG. Professor da Graduação e Pós-graduação em Letras da
UFPI. Editor da revista Form@are (PARFOR/UFPI). Fundador e atual coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Análise do Discurso - NEPAD/UFPI/CNPq. E-mail: jbenvindo@ufpi.edu.br.
609
Dessa maneira, as petições são construídas através dos relatos dos fatos que deram origem
ao processo e a descrição narrativa é imprescindível para levar o conhecimento da causa ao Estado
Juiz, representado pelo magistrado. Na narrativa, o jurisdicionado, por meio do seu advogado, utiliza
argumentos para mostrar que seu direito foi violado, bem como fundamentar o pedido seguindo o
ordenamento jurídico vigente e exigindo a prestação jurisdicional do Estado. Como uma peça jurídica,
está sujeita aos requisitos formais estabelecidos na legislação processual civil brasileira.
Segundo Aristóteles (2007), é pelo discurso que persuadimos, sempre que demonstramos
a verdade ou o que parece ser a verdade. Sendo assim, o orador não deve demonstrar somente
credibilidade, mas se concentrar na tarefa de fazer confiável e persuasivo o seu argumento (logos),
devendo ficar atento à sua própria imagem e à apresentação de si, tendo em vista que o seu caráter
(ethos) também é objeto de avaliação do auditório, assim como a necessidade de colocar os
destinatários numa determinada disposição mental (pathos), considerando que o indivíduo sofre ação
de uma emoção, sendo afetado por ela, formando os três meios de convencimento ou provas retóricas
(TOMAZ, 2020).
No transcorrer da história ocidental, a retórica foi ensinada como uma arte, depois perdeu
a credibilidade, durante muito tempo esquecida, desaparecendo do ensino no final do século XIX.
Mesmo assim, o estudo da retórica renasceu a partir da segunda metade do século XX, ressurge
denominada de Nova Retórica. Nesse sentido, o pesquisador Chaïm Perelman foi o primeiro autor a
resgatar a Retórica na contemporaneidade. Nessa sequência, ao lado de sua aluna Lucie Olbrechts-
Tyteca, os estudiosos escreveram o livro mais importante dos autores, qual seja, o Tratado da
Argumentação: a Nova Retórica, publicado em 1958.
Isto nos leva a observar que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) focalizam o objeto da
Retórica para o estudo das “técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que lhes apresentam ao assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 4). Perelman defende um espaço próprio para a argumentação, o estudo dos tipos de ligações
entre a simples técnica de manipulação do auditório de um lado e a demonstração lógica do outro
(TOMAZ, 2020).
Dando continuidade ao estudo das provas retóricas, identificamos nos estudos da linguista
francesa Ruth Amossy (2005), ao tratar da noção de ethos (noção emprestada da Retórica), a autora
considera a ligação entre os termos apresentação de si (usado inicialmente na Sociologia) e imagem
de si que, juntos, convergem para a construção das identidades dos sujeitos que se constroem nas
610
trocas linguageiras. Nessa lógica, compreendemos que a “imagem de si” está diretamente relacionada
ao ethos vindo da Retórica.
Efetivamente, na Análise do Discurso de linha francesa, doravante AD, a configuração
do ethos sofre variações em função das situações comunicativas vivenciadas pelos interlocutores,
ainda que os sujeitos envolvidos tenham ou não a intenção de persuadir. Essa noção apresentada por
Amossy (2005), parte da perspectiva da Pragmática, dos estudos de Goffman (2012) sobre o
gerenciamento de faces, depois retomado por Kerbrat-Orecchioni (2006), que amplia o conceito de
ethos e identidade na interação verbal (DE MELLO, 2012).
Segundo Amossy (2005), no que tange ao estudo do ethos, a autora compartilha da teoria
proposta por Maingueneau (2015) sobre a ideia de que a imagem de si não é mais forjada apenas na
enunciação, mas pode ser construída antes mesmo da enunciação, algo que precede o discurso. Dessa
forma, é possível dizer que o ethos discursivo mantém uma ligação com a imagem prévia que é feita
do orador, pelas pistas deixadas, antes mesmo que este fale, o que caracterizaria aquilo que
Maingueneau chamou de ethos pré-discursivo, mas, atualmente, substituiu pela noção de ethos prévio
(MAINGUENEAU, 2018).
Nessa sequência, para Maingueneau (2008), a concepção de ethos é resultante da
interação de diversos elementos. O ethos efetivo é formado pelo ethos pré-discursivo (ou ethos
prévio) e o ethos discursivo, relacionando-se reciprocamente. O ethos pré-discursivo (ou ethos
prévio) está diretamente relacionado aos estereótipos ligados aos mundos éticos, representações
sociais cristalizadas, ou seja, situações que representam os modelos pré-construídos184 pelo senso
comum para atribuir características ao enunciador, para afirmar ou desconstruir um ethos prévio ou
pré-discursivo (MIRANDA, 2011).
Há que se considerar ainda os estudos de Charaudeau (2017, p.115), para quem o ethos
está ligado a toda enunciação discursiva e é resultado de uma encenação linguageira e “depende dos
julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem uns aos outros” e resulta na
constituição de uma dupla identidade que se funde numa só. Desse modo, “o sujeito aparece ao olhar
do outro com uma identidade psicológica e social que lhe é atribuída e, ao mesmo tempo, mostra-se
mediante uma identidade discursiva que ele constrói para si” (CHARAUDEAU, 2017, p. 115).
Nesse seguimento, Charaudeau (2017) também considera o ethos uma relação entre
aquilo que é dito e aquilo que existe previamente, o ethos prévio que, por sua vez, condiciona a
construção do ethos discursivo, construindo figuras identitárias que o autor divide em duas categorias
de ethos: o ethos de credibilidade (sério, virtuoso, competente) e o ethos de identificação (potência,
caráter, inteligência, humanidade, chefe e solidariedade).
184
Na Análise de Discurso, segundo Pêcheux, todo discurso pressupõe outro discurso que lhe é anterior.
611
Devemos ressaltar que não estamos analisando a conduta dos operadores de direito, mas
sim as estratégias argumentativas que são produzidas no processo, na seção dos fatos, identificando
escolhas lexicais e as marcas linguísticas essenciais para a eficácia da argumentação. Nesse sentido,
o magistrado que presidir a causa assume o papel de julgador, buscando alcançar o equilíbrio entre
as partes envolvidas. Na ação, como no corpus analisado, a petição inicial do autor apresenta diversos
elementos de prova e argumentos que podem trazer consequências negativas para os sujeitos
envolvidos no litígio, como será demonstrado a seguir.
ESTADO DO MARANHÃO
PODER JUDICIÁRIO
QUARTA VARA
COMARCA DE CAXIAS
(Segredo de Justiça)
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da __ Vara da Comarca de Caxias/MA
PROCESSO: XXX-XX.XX.X.XX.XXXX. (XXXXXXXX)
Distribuição: XX/XX/XXXX 08:57:12 Volumes:1
JUIZ: YYYY YYYY YYYYY YYYYY
SECRETARIA JUDICIAL DA QUARTA VARA: YYYYY YYYY YYYY
OFICIAL DE JUSTIÇA: CLASSE CNJ: Divórcio Litigioso/Ação
185
Segundo Charaudeau (2015), o ato de linguagem pode ser compreendido como uma combinação entre o espaço do
fazer (instância situacional) e o de dizer (instância enunciativa), considerando a linguagem em uso numa estreita relação
com as particularidades sociais e psicológicas do sujeito, refletindo suas intencionalidades. Assim, o ato de linguagem se
configura como uma encenação (CHARAUDEAU, 2015).
612
ouvinte; e universal, pois a função que exerce o determina como universal, representando a figura
do Estado, sob a vigilância do Poder Judiciário. Nesse caso, a decisão proferida pelo magistrado
poderá ser utilizada como embasamento e argumentação em outra ação.
Na seara jurídica, o Direito tem a função de regular a vida em sociedade, bem como
solucionar conflitos, para preservar a harmonia social. Com efeito, o argumentante atua
discursivamente, destacando informações sobre o requerente, situações constrangedoras vivenciadas
por ele, fazendo uso de estratégias de patemização. Nessa peça processual, o magistrado é levado a
verificar e julgar os atos da requerida através da apresentação das consequências negativas trazidas
ao requerente.
O requerente é casado com a requerida desde XX.XX.XX, sob o regime de comunhão parcial de bens,
conforme registro de casamento lavrado sob n° XXXX, fls. XXX-x, livro XX, do 3° Cartório do
Registro Civil da Cidade de Caxias – MA (doc. anexo).
Após 09 anos de convívio, o casal se separou de fato em XX.XX.XXXX e desde então o requerente
deixou o lar conjugal, ficando a criança menor impúbere sob a guarda fática da requerida.
Nos últimos anos de convívio, a requerida passou então a dirigir-se ao requerente com rispidez e
palavras ofensivas, inadmissíveis ao convívio comum.
Nos trechos acima, vemos marcas de temporalidade, como “09 anos de convívio” e “nos
últimos anos de convívio”. Nessa primeira parte, apontando o decurso do tempo da união até a efetiva
separação. Na segunda, a conduta da requerida e os eventuais conflitos existentes indicam um
ambiente hostil e produzem efeitos de sentido de sofrimento, criando uma imagem de humanidade
no requerente a fim de que o julgador adira ao seu discurso. Nesse sentido, os atos da requerida são
reprováveis, uma vez que os aborrecimentos e as ofensas, que são de ordem patêmica, causaram um
desgaste emocional no relacionamento.
A narrativa dos fatos é usada para não facilitar, bem como desconstruir a provável defesa
da outra parte em seu favor, tentando persuadir e convencer o magistrado [auditório], apresentando
uma tese favorável a si e que espera que seja atendida. Essas premissas apontam para uma
verossimilhança, uma vez que o discurso apresentado pelo cônjuge, autor da ação, trata do que é
provável e não do que é verdadeiro, das interpretações possíveis do saber jurídico, na tentativa de
vencer o debate.
613
Nesse trecho, o advogado do requerente, constrói uma imagem negativa de uma mãe
enraivecida, desequilibrada, que pratica atos indevidos e sem controle pessoal e emocional, que vive
perseguindo o requerente e não aceita a separação. Ao passo que constrói o ethos de sério, dada à
credibilidade do requerente, como cuidadoso, responsável e que, mesmo em face do divórcio,
continua cumprindo com seus deveres de pai e marido quanto ao sustento da casa e da criança. Dentro
dessa ótica, a requerida é apresentada como culpada pelo fim do casamento, por ter um
comportamento reprovável, inapropriado e instável.
Também é possível inferir que, ao relatar que “a requerida tratou de furtar o ticket” e
cometera um crime, o advogado transmite a imagem de uma pessoa mal-intencionada e um ethos
prévio de inconsequente, construindo seus argumentos por meio de estratégias que desqualificam a
ex-mulher perante o juiz. Em contrapartida, no excerto “contribui mensalmente para as despesas de
sua antiga residência, fazendo a manutenção material de sua filha menor”, a seleção lexical e o uso
de alguns recursos linguísticos contribuem para uma imagem de leveza e confiabilidade do
requerente.
Acrescente-se ainda o fato da requerida, ter se dirigido à Delegacia da Mulher deste município
caluniando o requerente, atribuindo a este falsamente o crime de violência doméstica, o que de
imediato foi arquivado pela autoridade policial, vez que não foi constatado qualquer traço violento
no requerente (intimação anexa).
Nesse seguimento, os argumentos de ordem patêmica são usados pelo advogado e chama
a atenção para as atitudes da requerida, pretendendo que o magistrado julgue como reprováveis, em
razão das consequências danosas para seu cliente, buscando comprovar que seu pedido tem
fundamento com amparo na lei. As escolhas linguísticas feitas pelo procurador apontam para a
construção de uma imagem favorável ao requerente, projetando um ethos de credibilidade. Ademais,
“ não foi constatado qualquer traço violento no requerente” projeta uma imagem positiva do seu
cliente, sinalizando para o que já conhecemos e sabemos, que não deve existir violência de gênero.
614
No presente trecho, é importante destacar que a argumentação (logos) realizada pelo uso
da emoção (pathos), quando bem utilizada, pode desempenhar um papel decisivo no processo de
divórcio. Nesse caso, várias emoções negativas foram atribuídas à ex-esposa como raiva,
ressentimento e mágoa, construindo uma imagem (ethos) de amargurada. Além disso, expressa
indignação pelo comportamento condenável e injusto da requerida, que não pensou em sua família,
não mediu as consequências do seu ato, estabelecendo um juízo de valor e criando um efeito patêmico,
uma vez que as provas retóricas estão interligadas.
A requerida persegue o requerente denegrindo sua imagem e de sua família (mensagem de texto a
serem apuradas via ATA NOTARIAL – CPC, art. 384), inclusive tratando de expor sua criança de
apenas X (xxxxx) anos às discussões que provoca com o requerente, falando inverdades para a
criança e criando nesta um sentimento de repúdio contra o requerente, tratando-se da odiosa
prática da ALIENAÇÃO PARENTAL, que deverá ser alvo de investigação.
gravados em arquivos eletrônicos, bem como as mensagens de texto de whatsapp, podendo servir
como prova nos autos do processo.
Embora o casal se encontre separado de fato, a requerida, procurada pelo requerente, negou-se a
acertar consensualmente os termos do divórcio, não restando alternativa ao requerente senão optar
pelo divórcio e requerer a dissolução da sua relação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No que diz respeito ao estudo do gênero discursivo petição inicial, compreendemos que
o advogado, após cuidar de questões formais em tópicos direcionados ao Judiciário, na Vara de
Família, apresenta a descrição narrativa dos fatos, inicia sua argumentação, bem como fundamenta
em pressupostos normativos existentes. Nesse seguimento, o magistrado que deverá presidir a causa
e assumir o papel de julgador, buscará alcançar o equilíbrio e sua decisão será lei entre as partes.
Em suma, as análises mostraram que as provas retóricas estão intrinsecamente
interligadas e a emoção, quando bem utilizada, pode desempenhar um papel importante na
argumentação da petição inicial. Nesse sentido, o advogado construiu uma imagem positiva do
requerente, a fim de conquistar a adesão do seu auditório, em contrapartida, imagens negativas da
requerida, aqui representada pela ex-esposa.
REFERÊNCIAS
AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth. Imagens de
si no discurso: a construção do ethos. Tradução Dílson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio
Possenti. São Paulo: Contexto, 2005. p. 9-28.
616
ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel, 2007.
BRASIL, Código de Processo Civil. In: Saraiva. Vade Mecum Saraiva. 29 ed. São Paulo: Saraiva,
2020.
BRASIL, Constituição Federal. In: Saraiva. Vade Mecum Saraiva. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz.
2 ed. São Paulo: Contexto, 2017.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. São Paulo. Parábola editorial, 2015.
MAINGUENEAU, Dominique. Retorno crítico à noção de ethos. Letras de Hoje, v. 53, n. 3, p. 321-
330, jul.-set. 2018. Estudos e debates em linguística, literatura e língua portuguesa Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUCRS. ISSN: 1984-7726 | ISSN-L: 0101-3335. Tradução de Maria da
Glória Corrêa di Fanti.
TOMAZ, Patrícia Rodrigues. Discurso, retórica e mediação de conflitos. Teresina: EDUFPI, 2020.
E-book. ISBN 978-65-86171-58-7.
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RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar como a diversidade linguística é apresentada nos livros Entre
Líneas 7 (integrante do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD) e Cambio 8. A língua
espanhola por ser a língua oficial de muitos países, apresenta uma grande diversidade linguística. Esta
diversidade linguística deve ser trabalhada no ensino da língua, conforme pregam as Orientações
Curriculares Nacionais (OCN), do Brasil, que presam a importância do desenvolvimento da
diversidade linguística no ensino de língua espanhola, para tanto, analisamos a diversidade linguística
presente em materiais didáticos para o ensino de ELE. A presente pesquisa pretendeu investigar se
as variedades linguísticas do Espanhol são apresentadas nos dois livros e de que forma ocorre essa
apresentação. Como resultado, verificamos que o Entre Líneas 7 apresenta uma atividade que trabalha
a variedade regional, além de alguns quadros dispostos nos capítulos, com curiosidades de variedades
lexicais. Já no livro Cambio 8, só identificamos um momento em que a variação aparece, através de
uma mera indicação do país de origem de determinadas palavras. Por meio da nossa análise dos dois
livros, pudemos perceber que ambos não põem ênfase em atividades que trabalhem a questão das
variedades linguísticas. Pois encontramos apenas uma atividade em um dos livros, a qual está
estritamente ligada à variedade linguística. No entanto, no livro Entre Líneas 7 foram encontrados
mais espaços que proporcionam o conhecimento da existência da diversidade linguística, do que no
livro Cambio 8. Apesar de acharmos as aparições da diversidade linguística no livro Entre Líneas 7
um tanto quanto inexpressivas, elas são bem mais significativas ao compará-las com a única
ocorrência encontrada no Cambio 8. Isso pode estar ligado à evidência de que o Entre Líneas 7 foi
um livro que circulou nas escolas e, para tal, precisou passar por uma seleção entre tantos outros
livros, que é feita pelo PNLD, o que faz com que o Entre Líneas 7 esteja mais adequado com as
exigências de um ensino de Espanhol contextualizado. Os resultados contribuem para elucidar como
os materiais didáticos abordam a diversidade linguística, e assim contribuir para a formação de
professores de língua espanhola, na medida em que refletimos neste artigo sobre a importância de se
trabalhar a diversidade da língua espanhola por meio de livros didáticos.
RESUMEN
Ese artículo tiene como objetivo analizar como la diversidad lingüística es presentada en los libros
Entre Líneas 7 y Cambio 8. Siendo que solamente el Entre Líneas 7 forma parte de las selecciones
del Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). La lengua española por ser la lengua oficial de
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brunairati@gmail.com
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cklemke@unicentro.br
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muchos países, presenta una gran diversidad lingüística. Esa diversidad lingüística debe ser trabajada
en la enseñanza de la lengua, de acuerdo con las Orientações Curriculares Nacionais (OCN), de
Brasil, que presan por la importancia del desarrollo de la diversidad lingüística en la enseñanza de
lengua española, para tanto, analizamos la diversidad lingüística presente en materiales didácticos
para la enseñanza de ELE. La presente pesquisa pretendió investigar si las variedades lingüísticas del
Español son presentadas en los dos libros y de qué manera ocurre esa presentación. Como resultado,
verificamos que el Entre Líneas 7 presenta una actividad que trabaja la variedad regional, además de
algunos cuadros dispuestos en los capítulos, con curiosidades de variedades lexicales. Ya en el libro
Cambio 8, solo identificamos un momento donde la variación aparece, por medio de una simple
indicación del país de origen de determinadas palabras. Por medio de nuestro análisis de los dos
libros, logramos percibir que ambos los dos no ponen destaque en actividades que trabajen la cuestión
de las variedades lingüísticas. Pues encontramos solamente una actividad en uno de los libros, la cual
está totalmente ligada a la variedad lingüística. Sin embargo, en el libro Entre Líneas 7 fueran
encontrados más espacios que proporcionan el conocimiento de la existencia de la diversidad
lingüística, que en el libro Cambio 8. A pesar de entender que las apariciones de la diversidad
lingüística en el libro Entre Líneas 7 un tanto cuanto inexpresivas, ellas son más significativas al
compararlas con la única ocurrencia encontrada en el Cambio 8. Eso puede ser que tenga que ver con
la evidencia de que el Entre Líneas 7 fue un libro que tuvo circulación en las escuelas y, para tal,
necesitó pasar por una selección entre tantos otros libros, que es hecha por el PNLD, lo que hace que
el Entre Líneas 7 esté más adecuado con las exigencias de una enseñanza de Español contextualizado.
Los resultados contribuyen para aclarar cómo materiales didácticos abordan la diversidad lingüística
y, de esa forma, contribuir para la formación de profesores de lengua española, por ese artículo hacer
la reflexión sobre la importancia de trabajar la diversidad de la lengua española por medio de libros
didácticos.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a diversidade linguística presente em materiais
didáticos de espanhol para estrangeiros, mais especificamente nos livros Entre Líneas 7 e Cambio 8.
Escolhemos estes livros pois ambos estão destinados ao ensino do Espanhol para a educação básica,
sendo um para o sétimo ano e, o outro, para o oitavo ano, ou seja, são livros que estão equiparados
no nível escolar, pois se tratam de materiais para o ensino fundamental. A diferença é que o Entre
Líneas 7 é um dos materiais selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e de
circulação na escola pública, já o livro Cambio 8 não compõe este programa, e essa evidência
despertou nosso interesse em saber se essa distinção entre eles influencia ou não sobre a diversidade
linguística que buscamos encontrar em nossa análise.
O Espanhol é um idioma que está ganhando cada vez mais espaço no mundo todo quando
o assunto é aprender uma língua estrangeira. Com base no Instituto Cervantes (2016), há uma
estimativa de 21 milhões de alunos que estudam o espanhol como língua estrangeira, somatória feita
pelo número de estudantes de 106 países que não têm o espanhol como língua oficial. Já os países
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que têm o Espanhol como língua oficial, estão a maioria na América do Sul, próximos ao Brasil, os
quais ultrapassam duas dezenas.
Levando em conta que cada lugar apresenta um povo e uma cultura específica, essas
diferenças atingem, impreterivelmente, a língua falada nesse lugar. Língua e Cultura estão
intrinsecamente ligadas. “Como a língua é uma forma de comportamento social e a sociedade é
bastante diversificada, assim como suas manifestações culturais, a ocorrência da variação linguística
é inteiramente justificável e previsível” (RODRIGUES, 2005, p.18). Ou seja, se o Espanhol está
presente em diversos países, logo apresentará diversidade também enquanto língua.
Tratando de livros didáticos de ELE (Espanhol como Língua Estrangeira), eles deveriam
apresentar a diversidade linguística da língua a ser ensinada. Mas, conforme Zolin-Verz (2013), por
exemplo, muitos materiais didáticos que são produzidos principalmente por editoras espanholas
apresentam apenas uma variedade, geralmente a de prestígio. Tal fato, não condiz com o que pregam
as Orientações Curriculares Nacionais. Segundo esse documento, o ensino de língua espanhola deve
ser voltado para a heterogeneidade característica dessa língua. Há um capítulo específico sobre tal
tema no documento que diz:
O Espanhol, assim como todas as línguas naturais, possui diversidade. Essas diversidades
podem ocorrem em várias instâncias, dentre elas a que vamos investigar, a diversidade linguística. A
língua é algo vivo, pois é usada por pessoas dentro das comunidades de fala. Esse constante uso da
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língua faz com que, além de viva, ela seja mutável, estando em constante mudança, e é a partir dessas
mudanças que as variedades linguísticas vão surgindo e se evidenciando.
Para reiterar essa questão, de acordo com Nascimento (2007), a diversidade é encontrada
no ato de se comunicar de cada falante, pois cada pessoa possui suas referências próprias (geográfica,
histórica, cultural), e é através disso que as variações ocorrem dentro de uma língua.
Por muito tempo as línguas foram estudadas de forma estrutural, ou seja, a linguística se
empenhava em estudar aspectos próprios da língua, ignorando fatores externos a ela e seu caráter
social. Porém, isso foi se alterando com o tempo, e o campo social e da variação da língua foram
ganhando espaço nos estudos linguísticos, e é disso que vamos tratar.
Primeiro, vamos aclarar a significação e implicação da variação linguística, que está
presente na diversidade linguística do Espanhol, e é um termo de grande relevância em nossa
pesquisa. A teoria da variação linguística está dentro dos estudos da Sociolinguística, que é uma área
da Linguística e que estuda a língua enquanto fator social. O precursor mais conhecido no estudo
variacionista foi William Labov, que fez pesquisas em comunidades de fala, tomando a língua em
seu uso e, dessa forma, passou a estudar a língua de uma forma heterogênea, assim como a sociedade
que a utiliza também é.
De acordo com Coelho (2007, p. 10) “essa concepção de língua como um sistema
heterogêneo tem importantes implicações porque coloca a variação linguística no centro da análise
do processo de estruturação da língua”. E, para elucidar de que se trata a variação linguística, a autora
cita que “denomina-se variação linguística o uso de um elemento no lugar de outro sem alteração
semântica. Ou seja, os falantes recorrem a elementos linguísticos distintos para expressar as mesmas
ideias” (COELHO, 2007, p.10).
A variação linguística é, portanto, um fenômeno das línguas, e ela pode ocorrer em vários
níveis e motivada por diversos aspectos, como nos esclarece Coelho (2007)
é dividido em dois grandes blocos, o primeiro seria o Espanhol Peninsular, que compreende a
Espanha, e o segundo o Espanhol Americano, que se refere a todos os países falantes do Espanhol
contidos na América. Porém, Moreno Fernández (2017) faz uma divisão de forma mais específica
dessas variedades, tornando-as em cinco, as quais seriam: da Espanha; Caribe; México e América
Central; Andes e Rio da Prata.
Neste trabalho todas as variedades citadas serão levadas em conta, e o nosso interesse se
concentra em saber se os livros escolhidos para serem analisados, negligenciam as variedades ou,
pelo contrário, contemplam a língua espanhola como heterogênea, tratando dela como uma língua
que será aprendida por estrangeiros, e estes, ao terem contato com esse material, terão o discernimento
que o Espanhol é uma língua grandiosa que contempla vários países e diversidades.
pautado em nossos estudos sobre a diversidade linguística, perceber se esse ensino das variedades e
diversidades linguísticas está possibilitado dentro dos materiais didáticos por nós analisados.
Para nossa análise contamos, como já dito anteriormente, com o livro Entre Líneas 7 –
cujas autoras são Rosimeire Silva, Luiza Martins e Ana Beatriz Mesquita, publicado pela editora
Saraiva. Este livro foi distribuído gratuitamente para as escolas públicas no Brasil e foi utilizado no
ensino do Espanhol com alunos do sétimo ano, nos anos de 2017 a 2019. E o segundo livro, intitulado
Cambio 8 – seus autores são Virginia Martínez Luque, Maria Cristina Pacheco e Agustín Berti, da
editora Companhia Editora Nacional. Este livro foi produzido no ano de 2010, destinado a alunos do
oitavo ano e não se trata de um livro que circulou nas escolas públicas para o ensino do espanhol.
O primeiro livro escolhido foi o Entre Líneas 7, pelo fato de ter sido o livro utilizado pela
autora deste artigo em seu período de estágio obrigatório no ano de 2019. Após feita a análise do
Entre Líneas 7, a busca foi por um livro que estivesse no mesmo nível escolar, ou seja, de preferência
outro livro do sétimo ano ou, então, algum que estivesse destinado do sexto ao nono ano. Desta forma,
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optamos por contrapor a análise do Entre Líneas 7 com a análise do Cambio 8, já que este foi criado
para ser trabalhado com os oitavos anos, no caso, um ano a mais que aquele.
Além deste adendo de que a escolha dos livros se motivou por conta de os dois livros
estarem destinados ao ensino fundamental, o primeiro ao sétimo ano e, o segundo, ao oitavo ano, o
que faz eles estarem, praticamente, no mesmo nível. Também os escolhemos por um se tratar de um
livro de circulação nas escolas e ser Manual do Professor, já o outro não ser nem Manual do Professor,
nem ter circulação escolar, fazendo com que houvesse uma comparação bem instigante, entendendo
essas disparidades como possíveis fatores de resultados para uma boa contraposição. Estas são as
capas dos livros analisados:
Imagem 1 (à esquerda): Capa do livro Entre Líneas 7. Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza;
SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015).
Imagem 2 (à direita): Capa do livro Cambio 8. Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE,
Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010).
Primeiro vamos relatar a nossa análise do livro Entre Líneas 7. Contamos com sua versão
do Manual do Professor, o que significa que além de todos os conteúdos e lições destinada aos alunos,
pudemos analisar todas as informações extras contidas e destinadas ao professor, sejam elas as
respostas das atividades ou orientações à parte para auxiliar o professor na condução da sua aula.
O livro Entre Líneas 7 possui em sua abertura um pequeno texto intitulado
“Presentación”, nele é possível identificar uma breve explicação dos objetivos do livro. Nesse texto
pudemos observar que as autoras entendem que aprender uma língua estrangeira é estar em contato
com o outro e consigo mesmo. Além disso, diz que o ensino do Espanhol no livro está voltado a
capacitar o aluno a se comunicar em diferentes contextos, conhecendo diferentes manifestações
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culturais, trabalhando com uma variedade de gêneros discursivos, e dessa forma, promovendo o
desejo do aluno em descobrir novas realidades e refletir sobre sua própria realidade.
Nesse texto introdutório é notória a preocupação de um ensino de ELE contextualizado,
que não ensine a língua por ela mesma, mas mostre ao aluno todo o entorno da língua espanhola. No
entanto, não encontramos nenhum trecho nesse texto que abordasse a diversidade linguística.
Antes de iniciar o primeiro capítulo, o livro traz um espaço chamado “Conoce tu libro”.
Nesse espaço há uma explicação para pequenos títulos que aparecerão distribuídos nos capítulos.
Cada título está relacionado a um tipo de atividade que será proposta. A seguir veremos os títulos que
antecedem lições nas quais provavelmente encontraríamos diversidade linguística.
Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 04).
Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 04).
Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 05).
Como é possível observar nas imagens 3, 4 e 5, essa parte inicial do livro indica que
quando houver um desses três títulos dentro do capítulo, teremos a possibilidade de encontrar algum
conteúdo que se refire à diversidade linguística ou às variedades linguísticas. Ou seja, esses títulos
nos auxiliaram em nossa análise, pois tínhamos um olhar ainda mais atento quando encontrávamos
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atividades antecedidas por um desses títulos, e realmente as ocorrências encontradas em nossa análise
geralmente estavam precedidas desses títulos.
Ao adentrarmos nos capítulos para análise, encontramos já na primeira página do primeiro
capítulo a seguinte imagem:
Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 10).
Na imagem 6 podemos perceber que o alimento batata está posto com dois nomes
diferentes “la papa/la patata”, o mesmo ocorre com a banana, “la banana/el plátano”. Se trata de
uma variedade de léxico, que é explicada um pouco mais adiante, como podemos ver na imagem a
seguir.
Fonte: (MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 17).
De acordo com o quadro, o termo “papa” é mais utilizado na América, enquanto “patata”
é a forma que chamam batata na España. Além disso, o quadro faz uma pequena explicação da origem
do termo “papa”, pois o espanhol, assim como a maioria das línguas, possui influência de outros
povos, que resultam na variedade de palavras. Essa variedade lexical que difere de região para região,
ou de país para país, trata-se da variedade conhecida como regional.
Além desse quadro roxo já citado, encontramos mais quatro ocorrências de quadros
semelhantes dispostos nos capítulos. Um deles, que está na página 36, mostra que celular em espanhol
pode ser chamado de móvil ou celular, e que fones de ouvido recebem o nome de auriculares ou
cascos. Nesse quadro não foi citado em qual região cada uso é mais comum. Após essa ocorrência,
temos mais três quadros encontrados na mesma lição, presentes nas páginas 58, 59 e 60. A lição trata
de vestimentas, e nos quadros há informações sobre diferentes nomes dados às roupas. Explica que
alguns nomes possuem influência de outros povos, e que na América os nomes das vestimentas
diferem um pouco das formas faladas na Espanha.
Mais adiante em nossa análise, nas páginas 129 e 130 encontramos um texto seguido por
algumas atividades, onde há ocorrência da diversidade linguística, e a que teve maior articulação das
variedades linguísticas com a lição. Trata-se da atividade a seguir:
Imagem 8: Donde los derechos del niño Pirulo chocan con los de la rana Aurelia
(MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 2015, p. 129-130).
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O texto é uma historinha que se passa na Argentina e trata um pouco sobre os direitos da
criança e do adolescente. Como o texto está ligado à Argentina, a variedade linguística que aparece é
a desse país. No fim do texto, em forma de nota de rodapé, temos a seguinte frase: “Pirulo es un
escolar argentino, pero el argumento del cuento sirve para trabajar con adolescentes uruguayos”.
Dentro das atividades, mais especificamente na atividade de número três, essa frase é
retomada. Temos duas perguntas relacionadas à variedade linguística. A primeira pede ao aluno que
encontre palavras que exemplifiquem que os personagens são argentinos. E a segunda quer que o
aluno justifique o porquê de o argumento do texto também servir para crianças uruguaias. E a resposta
para as perguntas está relacionada ao uso do vos, que é comum tanto na Argentina quanto no Uruguai.
Essa atividade trabalha a variedade regional do Espanhol.
O livro Cambio 8 que dispomos para nossa análise é destinado aos alunos, ou seja, não
tivemos acesso ao Manual do Professor, portanto nossa análise se pauta nos conteúdos que os alunos
possuem ao receber o material. Sabemos que o Manual do Professor pode conter informação extra
para ajudar o professor a guiar melhor os conteúdos apresentados nos livros, no entanto, nossa análise
é do livro destinado aos alunos.
Apesar do presente livro não se tratar de um livro escolhido e aprovado pelo PNLD,
resolvemos analisá-lo para contrapô-lo com o Entre Líneas 7, este sim, de circulação em escolas
públicas. Além disso, nosso interesse em analisá-lo também se acentuou ao lermos sua apresentação.
Imagem 9: Apresentação
Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010, p.
3).
629
Como é possível notar dentro da apresentação, os autores consideram a língua viva, como
um objeto social e cultural. Por isso, dizem que trabalharão com discursos orais e escritos autênticos,
pois o aluno precisa ter contato com os usos sociais da língua para conseguir sua apropriação. Um
trecho muito interesse que eles citam é o seguinte: “São colocados à disposição os modos de falar de
distintas regiões da América e da península ibérica, abrindo, desta maneira, um espectro de
possibilidades que permite entrever as distintas e múltiplas identidades que compõem o espanhol”
(PACHECO; BERTI; LUQUE, 2010, p .3). Ou seja, dentro do apresentado nessa parte inicial do
livro, o ensino de Espanhol que os autores se propõem a disponibilizar no livro, está de acordo com
o que entendemos como um ensino eficaz de língua estrangeira, apesar de não estar citado
especificamente que será trabalhada a diversidade linguística, consideramos sua apresentação
instigante e por isso o elegemos para análise.
Contudo, nossa expectativa foi frustrada, pois não encontramos nenhuma atividade que
tratasse da diversidade linguística, nem ao menos encontramos quadros de curiosidade de léxico,
como os que encontramos no livro Entre Líneas 7, e que são comuns em livros de ELE. A única
ocorrência que aparece de maneira muito vaga e nos apresenta de maneira não explícita algo
relacionado à variedade linguística está no seguinte quadro.
Imagem 10: Algunas expresiones para indicar sentimientos
Fonte: (PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano, 2010, p.
50-51).
ocorre de maneira muito superficial, não explicando essa variação lexical de uma maneira mais
explícita, o que faria, possivelmente, o aluno ter uma consciência maior da existência das variedades
linguísticas no Espanhol.
Por meio da nossa análise dos dois livros, pudemos perceber que ambos não põem ênfase
em atividades que trabalhem a questão das variedades linguísticas. Pois encontramos apenas uma
atividade em um dos livros, a qual está estritamente ligada à variedade linguística.
No entanto, no livro Entre Líneas 7 foram encontrados mais espaços que proporcionam
o conhecimento da existência da diversidade linguística, do que no livro Cambio 8. Apesar de
acharmos as aparições da diversidade linguísticas no livro Entre Líneas 7 um tanto quanto
inexpressivas, elas são bem mais significativas ao compará-las com a única ocorrência encontrada no
Cambio 8. Isso pode estar ligado à evidência de que o Entre Líneas 7 foi um livro que circulou nas
escolas e, para tal, precisou passar por uma seleção entre tantos outros livros, que é feita pelo PNLD,
o que faz com que o Entre Líneas 7 esteja mais adequado com as exigências de um ensino de Espanhol
contextualizado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
por isso, entendemos que este trabalho contribui para a formação dos mesmos, pois este artigo
possibilita uma visão mais ampla da necessidade do trabalho das diversidades linguísticas no de ELE
e, apesar de o nosso foco ter sido os livros didáticos, entendemos que os professores são agentes
indispensáveis na viabilização desse ensino que tanto valorizamos na trajetória deste trabalho. E,
acerca da presença da diversidade linguística nos livros analisados, enfatizamos que, apesar da
pequena quantidade de ocorrências, o livro selecionado e aprovado pelo PNLD, Entre Líneas 7, se
destacou mais no trabalho com a diversidade linguística, comparado ao livro que não compõe o
PNLD, portanto não circulou nas escolas, o livro Cambio 8.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Daniele Wulff de; SEIDE, Márcia Sipavicius. Língua e cultura no ensino de espanhol
como língua estrangeira: um estudo de caso com duas professoras do ensino público do oeste
paranaense. Entreletras, Araguaína/TO, v. 7, n. 1, p. 50 - 69 jan/jun. 2016.
BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias.
Brasília: MEC, 2006.
COELHO, Paula Maria Cobucci Ribeiro. O tratamento da variação linguística no livro didático
de português. Dissertação (Mestrado em Linguística), Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
INSTITUTO CERVANTES. Español una lengua viva. Madrid: Biblioteca Nueva, 2016.
MESQUITA, Ana Beatriz; MARTINS, Luiza; SILVA, Rosemeire. Entre Líneas, 7. São Paulo:
Saraiva, 2015.
NASCIMENTO, Wellington Júnior do. Texto IV. In: BARROS, Cristiano. GOETTENAUER,
Elzimar. Variación Lingüística y Enseñanza de E/LE. FALE/UFMG, Belo Horizonte, 2007.
PACHECO, Maria Cristina; BERTI, Agustin; LUQUE, Virginia Martinez. Cambio: 8º ano. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.
VILHENA, Flavia Krauss de. Sobre a invisibilidade das variedades linguísticas latino-americanas no
livro didático nacional para o ensino de língua espanhola. In: ZOLIN-Vesz, Fernando. (Org.). A
(In)Visibilidade da América Latina no Ensino de Espanhol. Campinas: Pontes, 2013. p. 63-76.
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RESUMO
A autoria como um fenômeno de linguagem e objeto de estudos perpassa campos como o da literatura,
o das artes, o da música, o das histórias em quadrinhos, o da pintura, o do jornalismo, o da escrita
acadêmica e/ou escolar, o das escritas na cibercultura, o das traduções, o da religião etc. Mas a função-
autor não se exerce da mesma maneira em todos esses campos, ela é engendrada e gerida em
diferentes regimes de autorialidade e atende às necessidades do campo que a institui. Diante dessas
observações, interessa-nos, neste trabalho, a autoria como fenômeno discursivo do campo literário,
sendo a Literatura tomada aqui como uma instituição discursiva. Dessa forma, os objetivos deste
trabalho são: (1) discutir o conceito de discurso autorial; (2) discutir as noções de autor e nome de
Autor; (3) apresentar e discutir o conceito de enunciado complexo. Inicialmente, tratamos da
Literatura tomada como uma instituição discursiva e um discurso autorial – discursos que se
sustentam na função-autor –, com foco no campo discursivo literário, apropriando-se de pressupostos
de Maingueneau (2006) e Costa (2016). Em seguida, é abordada a relação entre os nomes próprios e
os nomes de Autor, a partir de interpretação e síntese das teorizações de Foucault (2009), Bakhtin
(1997), Barthes (2004) e, principalmente, Maingueneau (2009, 2010). Por fim, explica-se o conceito
de enunciado complexo, formulado em Costa (2016) com base nos autores supracitados e avançando
a noção de nome de Autor. A discussão aponta a possibilidade de abordar a concepção de autor e/ou
autoria em duas dimensões: uma personificada, a qual se atribui subjetividade e estilo, e que é
comumente atrelada à persona do autor como agente no campo; outra enunciativa, atrelada ao nome
de Autor como um enunciado complexo, que tende a apagar a importância do sujeito empírico em
favor da função-autor nos campos que dela fazem uso.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A categoria de autor pode ser atribuída a produções textuais de diversos gêneros, alguns
dos quais não têm muito valor para a crítica literária: uma redação escolar, um artigo de opinião na
internet, uma matéria jornalística, um discurso eleitoral, um panfleto revolucionário, uma propaganda
publicitária, dentre outros.
Ainda que alguns desses gêneros possam figurar como textos de um autor famoso no
campo literário, raramente funcionariam como obras, mas sim como textos periféricos aos quais a
crítica poderia ou não investir algumas notas com o intuito de entender ou justificar a obra. Essa
observação é consoante aos apontamentos foucaultianos sobre a constituição da autoria, da
autorialidade e do estatuto de obra de algumas produções.
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Doutor em Estudos Linguísticos e bolsista PNPD-CAPES pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
alvescosta.lp@gmail.com.
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[...] a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina,
articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre
todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida
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pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações
específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode
dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de
indivíduos podem vir a ocupar. (FOUCAULT, 2009, p. 279-280, grifos nossos).
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Para uma melhor compreensão do primado do interdiscurso como fenômeno que posiciona concomitantemente
agentes, materialidades e práticas, em detrimento das abordagens voltadas exclusivamente para os textos, ver Costa
(2016).
636
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares [...]; é o que, na própria raiz do enunciado-
acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua
enunciabilidade [...]; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de
seu funcionamento [...], é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2008, p. 147).
O nome de Autor é um nome próprio, mas sua natureza e função estão além dos nomes
próprios comuns. Um nome próprio se refere a um elemento bem marcado em uma situação de
comunicação, exercendo uma função pontual de expressão. Os sentidos dos nomes próprios estão
estreitamente atrelados às suas diferentes ancoragens sociais nos discursos: histórica, geográfica,
sociológica, literária e inúmeras outras (LECOLLE et al., 2009). Sem uma ancoragem social, o nome
próprio seria apenas a possibilidade de apropriação. Para a questão da função-autor, o analista deve
se perguntar como um nome próprio adquire historicidade e como ele passa a ser o ponto central de
certos investimentos simbólicos em um campo específico.
Pode-se dizer do [nome próprio] que ele procede de duas caracterizações do signo: ele é ao
mesmo tempo signo linguístico (provido de um significante e de um significado, seja ele
mínimo), [...] e signo como substituto (ele se refere a um indivíduo, mas pode também valer
como símbolo, ou como ato de linguagem). [...] De fato, como unidade relevante de um modo
de significação “semiótica” [...], ele possui uma forma (fonológica e gráfica) e um sentido.
Como unidade de denominação (relevante de um modo de significação “semântica”,
“engendrada pelo discurso” [...]), ele se refere ao mundo.190 (LECOLLE et al., 2009, p. 11,
tradução nossa).
190
On peut dire du [nom propre] qu’il procède de deux caractérisations du signe : il est à la fois signe linguistique (pourvu
d’un signifiant et d’un signifié, fût-il minimal), […] et signe comme substitut (il renvoie à un individu, mais peut aussi
637
valoir comme symbole, voire comme acte de langage). […] En effet, comme unité relevant d’un mode de signifiance
« sémiotique » […], il possède une forme (phonologique e graphique) et un sens. Comme unité de dénomination (relevant
d’un mode de signifiance « sémantique », « engendré par le discours » […]), il renvoie au monde.
191
Acte consciente et volontaire, l’auto-nomination est avant tout un acte signifiant qui inscrit dans la forme linguistique
choisie comme pseudonyme des valeurs relatives au cadre social, au contexte thématique et à l’identité personnelle.
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inserido em um dispositivo comunicacional. A questão dos direitos autorais, por exemplo, é centrada
nesse dispositivo comunicacional e nos direitos e deveres do dizer. Saber quem detém os direitos
autorais de uma obra é irrelevante para compreender o funcionamento do nome de Autor em uma
dada instituição, no caso, a literária. A função-autor estabelece um movimento de ofuscação do(s)
sujeito(s) produtores para fazer emergir no discurso o nome de Autor.
A convergência entre pseudônimo [ou nome de Autor] e discurso se opera via um simulacro
de apagamento do sujeito. Se o pseudônimo – que é também um autônimo – faz convergir
referente e significado até se tornar um substituto do sujeito, não faria ele desaparecer esse
último uma vez que ele se confunde com o discurso?192 (CISLARU, 2009, p. 56, tradução
nossa).
O nome de Autor está além da persona. Tratar o pseudônimo autoral em sua função
discursiva possibilita-nos visualizar essa dimensão do Autor que não faz parte do dispositivo de
comunicação. Essa dimensão, a qual só é possível perceber por meio de uma cisão, é produto
permanente desse dispositivo, do conjunto de atos de linguagem que têm como horizonte o-homem-
e-a-obra.
192
La convergence entre pseudonyme et discours s’opère via un simulacre d’effacement du sujet. Si le pseudonyme –
qui est aussi un auto-nyme – fait converger référent et signifié jusqu’à devenir un substitut du sujet, ne fait-il pas
disparaître ce dernier lorsqu’il se confond avec le discours ?
639
O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos
variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função
de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em
seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se
sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por
sua formulação (oral ou escrita). (FOUCAULT, 2008, p. 98).
Sendo o enunciado, de acordo com Foucault (2008), um modo de regular os dizeres sobre
um tal objeto e as regras de possibilidades desses dizeres, um enunciado complexo seria, além de
guardar as mesmas características apontadas por Foucault (2008), um tipo de enunciado marcado por
um nome próprio que, por sua vez, exerce a função de indexar outros discursos dentro de uma
conjuntura institucional.
Há, portanto, uma instância de sujeito-autor, atrelada a um dispositivo de comunicação,
e uma instância de produção de sentidos que é resultado também do funcionamento desse dispositivo
comunicacional, mas que não se limita a uma posição sujeito no discurso, qual seja, a instância do
enunciado-Autor. Enquanto a primeira corresponde a um lugar discursivo atribuído ao sujeito-
comunicante/sujeito-enunciador, a segunda, por sua vez, é uma categoria construída coletivamente
por meio de todo um aparato instituído discursivamente.
O autor, enquanto instância de sujeito produtora de sentidos, inclui uma instância
coprodutora de sentidos, que é a do leitor. Mas o Autor como correlato da Obra não se trata de uma
categoria de sujeito ou de uma posição-sujeito, mas sim produto desse mesmo dispositivo em que há
uma instância que também é chamada “autor”. Trata-se do “Autor” como enunciado, e não como
enunciador. E, o enunciado, em sua historicidade, tem:
640
[...] suas margens povoadas por outros enunciados, mostra-o correlacionado a um campo
adjacente, um campo associativo constituído por uma série de outras formulações e um
conjunto de formulações a que se refere. Face à historicidade própria à existência do
enunciado, a produção de sentidos vincula-se à memória e reatualiza outros enunciados.
(FERNANDES, 2007, p. 53).
O autor ainda reina nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas
entrevistas dos periódicos e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao
seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura
corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas
paixões; a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o
fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovsky é o seu vício:
a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da
alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma
pessoa, o autor, a revelar a sua “confidência”. (BARTHES, 2004, p. 58).
193
Para aprofundar essa discussão, remetemos o leitor a um artigo de Jean Peytard (1983), pesquisador que teve grande
influência dos estudos de Bakhtin. Seus textos foram ainda pouco traduzidos para o português.
642
A obra produzida por Michel Foucault abarca toda a produção de Paul-Michel Foucault
sob a égide acadêmica, ou seja, o que o indivíduo fez e publicou como filósofo, intelectual, professor,
acadêmico. Na biografia de Paul-Michel Foucault, consta que ele nasceu em Poitiers, na França, em
uma família de classe média-alta. Também consta que ele teve uma relação tensa com o seu pai, que
esse, por sua vez, o internou aos 22 anos, sob alegação de loucura por causa de uma tentativa de
suicídio. Além disso, registra-se que o pai de Paul-Michel Foucault, bem como seu irmão e avô, era
médico. Vê-se que na biografia de Paul-Michel Foucault há traços da vida e da identidade de outros
indivíduos (como é comum ocorrer nas biografias).
Duas questões emergem sobre a relação biografia e obra para a problemática da autoria:
a primeira é compreender como e quando a biografia de Paul-Michel Foucault passou a ser a biografia
de Michel Foucault. Sem o autor Michel Foucault, talvez a biografia do indivíduo de mesmo nome
não tivesse importância alguma. A segunda questão é compreender como e por que a obra de Michel
Foucault tende a ser lida, ao menos em parte, pela ótica de sua biografia, e por que sua biografia é
detalhada pelo viés de sua obra, como se houvesse o tentame de mútua justificativa. A resposta para
os dois questionamentos parece residir na hipótese de que a função-autor faz sujeitos ordinários se
tornarem sujeitos extraordinários, quer dizer, opera o apagamento do indivíduo e instaura,
gradativamente, um nome próprio em outra ordem do discurso, para abrigar e regular os modos de
ler a biografia (outrora ordinária) e a obra.
No campo literário, os leitores (dentre eles, os leitores especializados), os mediadores
(editores, livreiros, revisores, tradutores...) e autores (incluindo o próprio autor) investem maior ou
menor capital simbólico no nome do Autor. Dizer “Estou lendo Machado e Shakespeare” faz sentido
se considerarmos o Autor como correlato da Obra. O nome de Autor não existe para dizer quem fala
– não importa quem fala, diria Foucault (2008) –, ele não existe para especificar quem é a origem do
enunciado, pois ele mesmo é um enunciado originário dessa mesma fonte. Sua função, enquanto
enunciado, e apesar de se confundir com o enunciador, é especificar a Obra e o sistema que a
engendra.
Se podemos desenvolver hoje uma reflexão sobre a imagem de autor, é porque a encenação
discursiva do escritor não é mais apreendida como um conjunto de atividades que
permanecem no exterior do recinto sagrado do Texto, mas como uma dimensão inteirada ao
mesmo tempo da comunicação literária como coenunciação e do discurso literário como uma
atividade dentro de um determinado espaço social. Encontra-se a um nível de complexidade
superior o princípio mesmo de uma “cena de enunciação” de obras [...]: enunciar em literatura
não é somente configurar um mundo ficcional, é também configurar a cena de fala que é ao
mesmo tempo a condição e o produto dessa fala.194 (MAINGUENEAU, 2009, p. 3, tradução
nossa).
194
Si l’on peut développer aujourd’hui une réflexion sur l’image d’auteur, c’est que la mise en scène discursive de
l’écrivain n’est plus appréhendée comme un ensemble d’activités qui demeureraient à l’extérieur de l’enceinte sacrée du
Texte, mais comme une dimension à part entière à la fois de la communication littéraire comme co-énonciation et du
643
O Autor, como correlato da Obra, deve muito pouco aos autores que, de fato, escreveram
a obra, no sentido laboral do ato. Esse Autor deve o seu nome a todo um sistema, uma conjuntura,
uma cena de enunciação. Sobre a relação existente entre o nome de Autor e o habitus da persona,
Maingueneau (2009) toma como base o campo filosófico, e diz que:
No caso dos autores mortos, fala-se deles como se suas personas ainda regulassem seus
posicionamentos no campo. Mas eles não existem mais nem como agentes civis, nem como agentes
discursivos no campo literário. O que se conserva são os seus nomes, e o nome em si mesmo não é o
sujeito. Apesar disso, o nome de Autor dá ainda ao texto uma fonte personificada, a despeito de a
fonte real ser uma ou várias pessoas, de estar viva ou morta, de ser homem ou mulher, ou de nunca
ter andado pela terra; ao mesmo tempo que permite, a partir dele, traçar suas possibilidades de sentido,
constituir/indexar uma Obra e determinar as leis que regem a sua compreensão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
discours littéraire comme activité dans un espace social déterminé. On retrouve à un niveau de complexité supérieur le
principe même d’une « scène d’énonciation » des œuvres […] : énoncer en littérature, ce n’est pas seulement configurer
un monde fictionnel, c’est aussi configurer la scène de parole qui est à la fois la condition et le produit de cette parole.
195
En particulier, la relation entre « l’homme » et « l’œuvre » y apparaît différente. En témoigne le fait que le discours
philosophique est réticent à l’égard de la pseudonymie, de la mystification, bref de tous les jeux sur l’auctorialité auxquels
se livrent les écrivains. En outre, les écrivains ont des existences souvent chaotiques, souvent sans rapport évident (en
fait, c’est tout l’art des analystes de montrer la cohérence cachée) avec leur oeuvre. A ces deux traits les auteurs
philosophiques ne souscrivent pas : en règle générale leurs textes ont un répondant qui renvoie à leur personne, pas un
pseudonyme, un responsable devant l’humanité, et leur vie ne cesse d’essayer de se mettre en conformité avec les règles
qui régissent leur univers de pensée.
644
Quanto mais conhecido se torna o autor, mais seu nome pode vir a ser um enunciado
complexo, pois mais dizeres sobre ele podem ser instituídos, de modo parafrástico e/ou polissêmico.
A paráfrase consiste no reconhecimento, na reprodução ou reformulação dos sentidos atribuídos ao
nome de Autor. A polissemia, por sua vez, se instaura pela atribuição de diferentes sentidos ao nome
de Autor, imprevisíveis. A transgressão sobre o que pode ser dito de um nome de Autor entra no
âmbito da polissemia dos discursos, pois ela não repete o que se diz, mas sim abre a possibilidade do
dizer. A transgressão tende a desestabilizar os limites do dizível, podendo ser negada, silenciada ou
ignorada ativamente no campo, ou ainda, incorporada ao nome, ampliando a sua complexidade, mas
não pacificamente.
Como um enunciado complexo, os significados do nome de Autor estão sujeitos à disputa
no campo correlato da instituição discursiva, de modo que os agentes mais proeminentes tendem a
gerir o que se pode dizer ou não sobre um determinado autor. Se um crítico, teórico, editor, jornalista,
etc., organiza o seu dizer em virtude do que outros agentes gabaritados disseram, ele tem chance de
ser aceito como enunciador desse enunciado complexo, podendo contribuir para a semântica do nome.
O conceito de enunciado complexo visa explicar, por exemplo, por que dois especialistas em
Literatura podem dizer coisas diferentes sobre uma obra e/ou autor, às vezes até antagônicas, e
estarem os dois corretos pela lógica do campo literário.
Devido ao seu caráter sintético, a noção de enunciado complexo concebida para o nome
de Autor poderia ser aplicada aos pressupostos de Bakhtin, Barthes e Foucault, possibilitando novas
interpretações sobre o fenômeno da autoria nesses teóricos. O primeiro leva em conta a totalidade da
obra para apreender o seu autor, sendo essa uma parte significante da obra; Barthes, por sua vez,
considera a morte do autor, enquanto pessoa, para que haja a ascensão do leitor, e, portanto, da obra;
Foucault traz a função-autor, que nada deve à pessoa física que enuncia, mas serve para delimitar o
conjunto da obra no interior de uma dada sociedade. Nos três autores há um elemento proeminente
do nome de Autor como enunciado complexo, a saber, respectivamente, a totalidade da obra, o
direcionamento da leitura, o distanciamento do autor empírico ou persona do autor.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARTHES, R. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 57-64.
CISLARU, G. Le pseudonyme, nom ou discours ? D’Etienne Platon à Oxyhre. In: LECOLLE, M.;
PAVEAU, M.-A.; REBOUL-TOURÉ, S. Les carnets du Cediscor: le nom propre en discours, n.11.
Paris: PSN, 2009, p. 39-57.
645
FARACO, C A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2005, p. 37-60.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.
LECOLLE, M. et al. Les sens des noms propres en discours. In : LECOLLE, M.; PAVEAU, M.-A.;
REBOUL-TOURÉ, S. (Orgs.). Le nom propre en discours. Les carnets du Cediscor, 11, 2009.
Paris : PSN, 2009, p. 9-22.
MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. Trad. Adail Sobral [et al.]. São Paulo:
Parábola, 2010.
PEYTARD, J. La place et le statut du ‘lecteur’ dans l’ensemble ‘public’. Semen, n. 1, 1983. Versão online
de 2007. Disponível em: <http://semen.revues.org/4231>. Acesso em: 04 de janeiro de 2012.
646
RESUMO
O conto base para este trabalho é Tigrela, de Lygia Fagundes Telles e o viés analisado por nós será
sob a ótica do fantástico, de forma a comprovarmos a importância da função do leitor no texto, posto
que é através deste que a composição da ambiguidade, enquanto elemento fundamental do gênero,
será comprovada no conto. Para tanto, nos pautaremos, principalmente, nas teorias de Tzvetan
Todorov, Wolfgang Iser, e Umberto Eco, autores que, apesar de possuírem estudos com perspectivas
diferentes, analisaram o papel do leitor de forma corroborativa ao texto narrativo em suas teorias e,
por isso, pareceu-nos interessante refletir acerca de como uma teoria complementa a outra se levarmos
em consideração a composição do gênero fantástico e suas principais características, assim como as
interessantes jogadas de Lygia para inserir o seu leitor no texto.
INTRODUÇÃO
Já dizia Todorov: “A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico”.
Segundo ele, esse leitor está inscrito no texto do mesmo modo que a criação dos personagens e ele é
tão implícito quanto a sua própria ideia sobre o narrador. Analisando por esse viés, nos ocorre outro
teórico que também debate questões que implicam num ideal de leitor e autor do texto. Certamente
que estamos falando de Umberto Eco, de modo que desenvolver um paralelo acerca das duas teorias
nos pareceu possível. E semelhante à teoria de Eco, encontramos o leitor implícito de Iser, que
segundo o próprio autor italiano, assemelha-se à sua em partes, a ponto de considerarmos interessante
agregar mais essa visão no desenvolvimento de nossa análise.
Entretanto, ao contrário dos dois teóricos da recepção citados acima, Todorov é mais
específico ao tratar sobre o leitor, posto que este o relaciona diretamente a um gênero literário, o que
nos remete imediatamente a outras teorias sobre o gênero. Por isso, nos pareceu mais eficaz
demonstrar esses aspectos diretamente dentro do texto fantástico e o conto escolhido para tanto foi
Tigrela, do livro de contos Mistérios (1981), de Lygia Fagundes Telles.
Portanto, neste trabalho iremos abordar a importância da presença do leitor no texto
narrativo, comprovando-a, principalmente, de acordo com as teorias de Wolfgang Iser, em A
196
Mestranda em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Email: danielezenz@gmail.com.
197
Mestranda em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Ponta Grossa. Email: veridiana_ribas@hotmail.com.
647
interação do texto com o leitor; de Umberto Eco, em sua obra Seis passos pelo bosque da ficção
(1994); e de Tzvetan Todorov, em seu trabalho Introdução à literatura fantástica (2010).
Cada um desses autores apresenta certas particularidades de pensamento referente à sua
teoria. Contudo, o que há de similar entre elas tão bem se complementa, ao ponto de nos indicar que
o que está implícito no texto corrobora não só para sua interpretação, como também para a sua criação
enquanto gênero de obra literária.
O FANTÁSTICO
A literatura fantástica tem algo bastante próprio ao gênero que é a ambiguidade em suas
entrelinhas narrativas. O seu estudo em si é bastante controverso entre estudiosos, inclusive, muitos
discordam da ideia de se tratar de um gênero, mas o que quase todos concordam em uníssono é sobre
o papel da ambiguidade na interpretação do texto.
Todorov foi um dos primeiros a sistematizar a literatura fantástica como gênero, por isso
nos pareceu de suma relevância colocar aqui algumas considerações do autor sobre a questão do leitor
no texto e como este acaba interferindo na contextualização da ambiguidade.
Para Todorov, o fantástico acontece quando um quadro de mistério interfere de forma
abrupta no ambiente de normalidade:
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso,
aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento
que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar
por uma destas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da
imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta
realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 1975, p. 30).
A maior parte das obras que preenchem a primeira condição satisfazem igualmente a
segunda; existem todavia exceções. [...] Diremos quesetrata, com esta regra de identificação,
de uma condição facultativa do fantástico: este pode existir sem satisfazê-la mas a maior
parte das obras fantásticas submete-se a ela. (TODOROV, 1975, p. 37).
Essas são duas das três condições que Todorov propõe para conceituar o gênero
fantástico. A terceira é que “o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a
interpretação alegórica quanto a interpretação ‘poética’.” (Idem, p. 39). A interpretação poética,
basicamente, seria considerar o caráter metafórico do discurso poético, o uso da linguagem figurada,
que não permite, portanto, uma interpretação literal, realista do texto; e a interpretação alegórica é a
que considera os dois planos dessa modalidade: o metafórico expresso e o real que ela, ponto a ponto,
representa. (Todorov, 1975; cf. Cap. 4. A poesia e a alegoria, p. 65-81).
Dessas três condições, Todorov (p. 39) afirma que só a primeira: o leitor “hesitar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.”, e esta terceira
são absolutamente necessárias para ocorrer o gênero fantástico; a segunda (identificação do leitor
com uma personagem, a hesitação representada dentro da obra) seria eventual, não obrigatória,
embora a maior parte das narrativas fantásticas preencham as três condições.
Para concluir esse ponto, é válido acrescentarmos que a hesitação é vista mais claramente
quando o narrador está em primeira pessoa, pois: “O leitor não suspeita nunca do narrador,
esquecendo que este também é um personagem”. (Todorov, 1975, p. 91).
Outro aspecto que vamos pontuar, entretanto, é que a teoria de Todorov obteve certa
discordância entre estudiosos do meio. Entre eles, por exemplo, está Remo Ceserani que acusou a
teoria de Todorov de ser abstrata demais. Ainda assim, reconheceu a sua importância em “conseguir
manter ainda hoje uma notável utilidade hermenêutica”. (CESERANI, 2006, p. 48).
Outro autor que também faz considerações acerca da tese de Todorov, é Filipe Furtado
em seu livro A construção do fantástico na narrativa. Embora enalteça alguns aspectos positivos e
reconheça que com ela “a crítica do gênero [fantástico] atinge de certo modo a maioridade”.
(FURTADO, 1980, p. 14). Ele considera discutível o que se refere, principalmente, a hesitação do
leitor. Segundo Furtado, a ambiguidade e a hesitação são representadas no interior do próprio texto e
seriam as dúvidas do leitor um “mero reflexo”.
Assim, um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade,
a mantém ao longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a reflectir-se em
todos os planos do discurso [...]. Longe de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do
destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo dele, constituindo apenas
mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras
evocados”. (FURTADO, 1980, p. 40-41).
649
No entanto, não nos atribuiremos à função de analisarmos essa controvérsia, posto que,
ainda sim, entendemos que a hesitação do leitor, justamente por ser um “reflexo” da interação deste
com o texto, cumpre, portanto, com seu papel junto à ambiguidade tão característica ao gênero.
Para todo texto existe um leitor. Não seria diferente com “Tigrela”, de Lygia Fagundes
Telles, que é um dos seus contos considerados pertencentes ao gênero fantástico pela grande crítica.
E, independentemente de alguns aspectos concernentes ao gênero, assim como em qualquer texto
narrativo, iremos verificar nele a presença de um leitor específico, que se enquadra à visão de Todorov
e que chamaremos de leitor implícito, considerando o termo criado por Iser e, por conseguinte, de
leitor-modelo, considerado por Umberto Eco.
O LEITOR
Segundo Umberto Eco, especificamente no primeiro capítulo de seu livro Seis passos
pelo bosque da ficção, o leitor faz escolhas.
Isso quer dizer que, de acordo com a perspectiva do autor - em que ele faz o seguinte
comparativo: a obra seria um bosque e o leitor é quem deve percorrê-lo -, seriam as bifurcações desse
bosque as interpretações possíveis para esse leitor. Para tanto, está claro que cabe ao leitor escolher
o caminho, porém não pode este fugir ao seu destino.
Essa metáfora usada por Eco é, na verdade, inspirada por Jorge Luis Borges que a usou
pela primeira vez em uma de suas conferências literárias. Em sua obra, que estamos tratando aqui,
Eco explica por que se apropriou do termo: “um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam.
Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria
trilha[...], optando por esta ou aquela direção.” (ECO, p.12, 1994).
O leitor que fugir do bosque não faz parte da narrativa criada pelo autor, pois a
possibilidade de não seguir é dada somente ao leitor empírico, aquele que está à parte do texto: “[...]
Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler”
(ECO, 1994, p. 14). Esse leitor possui concepções de realidade e de valores próprias e pode, por
exemplo, não estar apto para desvincular questões de cunho pessoal da obra ficcional, pois mais
adiante Eco completa: “[...] considerando que um bosque é criado para todos, não posso procurar nele
fatos e sentimentos que só a mim dizem respeito. De outra forma [...] não estou interpretando um
texto, e sim usando-o”. (Idem, p. 16). Por outro lado, o leitor que escolhe por onde seguir até o final
da obra, vai fazê-lo seguindo as regras da narrativa. Esse leitor específico, vai atender ao que Eco
chama de “pacto ficcional”, ou seja, o leitor deve ser capaz de perceber a narrativa como possível de
acordo com a realidade ficcional que ela apresenta e não somente baseado no mundo pessoal de suas
vivências.
650
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar
tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor
tem de saber que o que se está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso
deve pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo com John Searle, o autor
simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é
narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, p. 81)
E esse leitor que atende às expectativas do autor, segue um padrão e é chamado de leitor-
modelo por Umberto Eco:
No amplo leque de obras sobre a teoria da narrativa, sobre a estética da recepção e sobre a
crítica orientada para o leitor existem várias entidades chamadas Leitores Ideais, Leitores
Implícitos, Leitores Virtuais, Metaleitores, e assim por diante [...]. Nem sempre esses termos
são sinônimos. Meu leitor-modelo, por exemplo, parece-se muito com o Leitor Implícito de
Wolfgang Iser [...]. (Idem, 1994, p. 22).
Eco levanta a questão, lembrando que existem diferentes percepções acerca da ideia
de leitor para alguns outros estudiosos que se atêm à estética da recepção, no entanto, admite que seu
leitor-modelo se aproxima muito com o leitor implícito de Iser. Este último não tem uma definição
idêntica à de Eco que, inclusive, pontua isso, mas é interessante observarmos a seguinte colocação de
Iser: “o leitor efetivamente faz o texto revelar sua multiplicidade potencial de associações[...]. (Apud
ECO, 1994, p. 22). Ao considerarmos essa frase, de acordo com nosso parecer, é possível dizer que,
assim como Todorov, Iser acredita, portanto, na interação do leitor com o texto através da leitura.
Entretanto, obviamente, são teorias diferentes que podem se complementar ao
verificarmos a importância da comunicação entre o leitor e o texto. Ou seja, de acordo com Iser, em
seu trabalho A interação do texto com o leitor, o texto literário não é uma obra plena, mas que possui,
sim, lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor, embora isso não valide toda e qualquer
interpretação. Embora, sejam difíceis de enumerar, o texto ficcional possui diretrizes às quais o leitor
implícito deve atender e, portanto, existem sugestões que movem os vazios do texto. Esses vazios,
para Iser, são as “instâncias do controle”, e através delas há a “conexão potencial”:
O texto é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar dentro do
sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios
(Leerstellen) no texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor. Como eles não
podem ser preenchidos pelo próprio sistema, só o podem ser por meio de outro sistema.
Quando isso sucede, se inicia a atividade da constituição, pela qual tais vazios funcionam
como um comutador central da interação do texto com o leitor. (ISER, 2002, p. 91)
De acordo com esse pensamento, Iser postula que os vazios são “negações” que
invocam conhecimentos determinados para sua supressão, culminando na interação de envolvimento
e movimentação do leitor no texto.
Nesse contexto, o leitor implícito é compreendido como algo estrutural ao texto e que
oferece “pistas” que direcionam para a interpretação coerente. E esse leitor só existe na proporção em
que o texto determina sua existência.
Por isso, a ideia do leitor implícito se assemelha com a ideia do leitor-modelo de Eco, que
seria aquele que sabe preencher os “vazios” do texto.
Ainda que Todorov não tenha tratado, especificamente, sobre certos requisitos da
recepção do texto, pudemos traçar um paralelo, entre sua teoria e as de Eco e Iser, em relação à
importância da função do leitor no gênero fantástico, se observado o que o primeiro coloca acerca da
“hesitação do leitor”.
Como já falamos anteriormente, mesmo não sendo nossa intenção nos aprofundarmos na
definição de cada um desses autores, através delas é possível reconhecermos no conto a importância
do papel do leitor.
TIGRELA
Esse conto é a história de uma mulher que vive com seu felino. Um dia ela encontra
casualmente com uma velha conhecida num bar e resolve colocar algumas novidades em dia.
Estranhamente, essa situação, que poderia ser reconhecida como normal, inicia-se de maneira
bastante curiosa. Romana tem um felino, mas que não é um bichano qualquer, ela tem um tigre:
Tigrela.
Antes de dar continuidade ao resumo da narrativa, é importante ressaltarmos que a
narração desse conto é feita em primeira pessoa e, no entanto, não é a narradora quem nos apresenta
a história, mas sim a personagem Romana. Pouco se sabe da narradora, ela fica oculta no texto e há
trechos que se dividem entre falas dela e as de Romana como se fosse esta última quem de fato
narrasse o conto diretamente. Segundo a pesquisadora Juliana Seixas Ribeiro em sua dissertação de
mestrado Mistérios de Lygia Fagundes Telles: uma leitura sob a ótica do fantástico, esse recurso
usado por Lygia serve para dar mais veracidade aos fatos:
É interessante a técnica utilizada por Lygia Fagundes Telles, em que ocorre uma mescla entre
as falas da narradora e a reprodução das falas da personagem Romana[...]. Este recurso
652
fornece a ilusão de que o conto não é uma história recontada, na tentativa de tornar a
veracidade dos acontecimentos menos parcial. (RIBEIRO, 2008, p. 56)
No início é mais presente a fala da narradora que reconhece a figura de Romana num bar
e se lembra que esta fora uma mulher muito bonita, mas que após tantas desilusões amorosas tem um
olhar triste. Romana, que já se separou de seu quinto marido, vai contando tudo com naturalidade,
embora, pareça estar levemente alcoolizada: “Estava meio bêbada mas lá no fundo da sua transparente
bebedeira senti um depósito espesso subindo rápido quando ficava séria.” (TELLES, 1981, p. 95).
Segundo o que contava, também o tigre bebia uísque e até sabia reconhecer se a bebida fosse
falsificada. Era como se a personalidade das duas se misturasse, Tigrela aprendera coisas com
Romana e vice-versa: “No começo me imitava tanto, era divertido, comecei também a imitá-la e
acabamos nos embrulhando de tal jeito” [...] (Idem, p. 95). Romana diz que Tigrela estava quase
sempre lúcida e quando não estava gostava de dançar tango. Ficava deprimida nesses momentos: “No
fim, quis se atirar do parapeito do terraço, que nem gente, igual, igual” [...] (Idem, p.96).
No decorrer das confidências, vai ficando cada vez mais evidente o fato de que a tigresa
apresentava comportamentos humanos. Além do já citado, Tigrela gostava de ouvir Bach, era vaidosa,
olhava-se constantemente no espelho, gostava de jóias, inclusive, usava um colar de âmbar e cortava
as unhas. Porém, o sentimento mais humano que a tomou foi o ciúme. De acordo com Romana, a
tigresa nem sequer aceitou sua empregada anterior porque esta era jovem, detestava que a dona saísse
à noite e controlava seus passos e ligações. Devido a isso, a relação das duas parece estar desgastada.
Justamente nesse dia, Tigrela ouvira a dona ao telefone com seu antigo namorado, aquele, inclusive,
que foi quem a deu como presente a Romana. Devido a isso as duas brigaram e a dona comenta sobre
ter deixado a vasilha da felina cheia de uísque antes de sair.
Ao se aproximar da meia-noite Romana parece cada vez mais perturbada. Segundo ela,
Tigrela gosta da noite, costuma acordar por volta das onze e nesse dia, como já aconteceu em outros,
ela deixou a porta do terraço aberta: “Volto tremendo para o apartamento porque nunca sei se o
porteiro vem ou não me avisar que de algum terraço se atirou uma jovem nua, com colar de âmbar
enrolado no pescoço”. (Idem, p. 99).
A ambiguidade no conto Tigrela é bastante presente na narrativa. Desde o início do texto,
Lygia já faz o interessante uso de algumas artimanhas para envolver seu leitor. Mas não é a qualquer
leitor e, sim, ao leitor implícito ao texto, aquele que serve como modelo para o gênero da narrativa
em questão: o fantástico.
Se para a construção do fantástico é sabido que se faz necessário um contexto de aparente
normalidade, podemos afirmar que o conto preenche esse requisito. A ambiguidade, por sua vez, vai
sendo inserida a partir do momento que o sobrenatural vai tomando conta do texto: é possível que um
653
tigre tenha esse nível de comportamento humano ou estaria o tigre passando por um processo de
metamorfose? Em algum momento a própria narradora questiona: “[...] é verdade, Romana? Tudo
isso”. (TELLES, 1981, p. 97) Ao que a personagem não responde, estando aparentemente distraída
com lembranças.
Sobre isso, a pesquisadora Jeanine Javarez, em seu trabalho O animal que me tornei
(2018), faz a interessante colocação:
Nesse sentido, as narrativas de Lygia Telles podem ser compreendidas como fantásticas,
seguindo a noção de literatura fantástica de Tzevetan Todorov[...], na medida em que há nelas
654
um pêndulo que hora aponta para o estranho, ora para o maravilhoso. A animalidade, nos
contos destacados, manifesta-se a partir da movimentação desse pêndulo[...] (JAVAREZ,
2018, p. 31)
No caso desse conto, o pêndulo aponta para a metamorfose, aspecto que Todorov não
deixou de mencionar em sua obra, ao citar As mil e uma noites para elucidar a presença recorrente da
metamorfose na literatura enquanto aspecto de composição da fantasia. Para ele, o fenômeno em
questão é a ruptura do limite entre matéria e espírito.
Javarez, por sua vez, faz uso em sua pesquisa de uma citação da estudiosa Vera Tietzmann
Silva a respeito da metamorfose nos contos de Telles:
Para Silva, ainda de acordo com citações de Javarez, a presença do agente que promove
a transformação deve ser evidenciada no texto, pois do contrário remeteria ao gênero do absurdo. O
fantástico, entretanto, adverte o agente, deixando-o apenas suspenso para que o mistério corrobore
para a criação do fantástico.
Ribeiro justifica em seu trabalho, que temas comuns à literatura de Lygia, como medo,
angústia e terror, acabam se refletindo através dos sentimentos causados, justamente, devido a
aspectos da metamorfose.
Por fim, devemos ressaltar que em Tigrela é bastante marcante no texto características da
escrita da autora que é sempre tão alusiva e insinuante, rica no uso de símbolos e plurissignificações
poéticas. Lygia Fagundes Telles “é uma escritora que sugere e dá ao leitor a oportunidade (ou
desafio?) de decifrar o que deixa apenas subententido, insinuado, em aberto, apontando para distintas
direções...” 198
REFERÊNCIAS
ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção.Tradução de Hildegard Feish. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994. (A edição original é de 1932)
198
Aproveitamos esse trecho retirado do nosso ensaio “A construção do fantástico no conto ‘As formigas’, de Lygia
Fagundes Telles”, apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, apresentado na Universidade Estadual
de Ponta Grossa – UEPG. Ponta Grossa, PR. Outubro de 2014.
655
ISER, W. In: LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. 2. Ed.
São Paulo: Paz e terra, 2002.
JAVAREZ, Jeanine Geraldo. O animal que me tornei. 1.Ed. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2018.
RIBEIRO, Juliana Seixas. Mistérios de Lygia Fagundes Telles: uma leitura sob a óptica do
fantástico, 2008, 120 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira do Programa de Pós-
Graduação em Teoria e História Literária). Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
Instituto de Estudos de Linguagem. Campinas, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtlsooo439373. Acesso em:3 mar. 2014.
TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. 1. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
TODOROV, Tzevetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Corea Castello.
São Paulo: Perspectiva, 1975. (A edição original francesa é de 1970)
656
RESUMO
A epopeia é um dos gêneros mais antigos da literatura e sua importância está em narrar os feitos
heroicos das civilizações antigas e se perpetuar em um período em que não havia escrita. Hoje, a
leitura desse gênero está praticamente desaparecida do universo escolar. Isso é decorrente de uma
série de fatores que vão desde a má formação do futuro professor à falta de hábito com a leitura
literária. Infelizmente, o que se observa nos cursos de letras é uma lacuna entre a teoria e prática, pois
é comum o docente não conciliar o ensino de literatura com a prática de sala aula, já que o universo
acadêmico elege apenas a leitura de livros canônicos, excluindo as demais leituras. Além disso, nos
cursos de graduação há uma divisão muitas vezes por aptidão ou gosto, há os que se identificam mais
com a literatura, em contraposição àqueles que privilegiam a linguística, reconhecendo-se
exclusivamente como professor de língua. Seja por uma não identificação com a literatura ou por
lacunas entre teoria e prática, alguns professores ao assumir a sala de aula ficam presos aos livros
didáticos, às fichas de leituras dos livros paradidáticos, aos fragmentos de textos; ou, para tentar
cativar o aluno, lançam mão dos livros indicados pelo mercado. Soma-se a isso, no ensino médio, as
obras serem selecionadas em função dos exames que os alunos vão prestar. Como consequência de
todos os problemas apresentados, a leitura da epopeia tem perdido espaço para outros gêneros. Diante
de tais problemas, o nosso estudo pretende mostrar sugestões de atividades e de leitura comparativa
que levem os alunos a ler o gênero epopeia. Acreditamos que a partir de leituras de HQs há uma
possibilidade de o aluno vir a tomar gosto pela leitura da epopeia. Apesar de serem gêneros diferentes,
narram histórias de heróis, mitos, deuses, permitindo ao professor trabalhar sobre a figura do herói e
super-heróis, mitos, em seus aspectos estruturais.
INTRODUÇÃO
O primeiro tipo de literatura narrativa foi à poesia épica cujos feitos de um povo eram
narrados por meio da oralidade. Era um gênero métrico feito para ser recitado. Tais poemas têm uma
grande importância por fazer com que os leitores tomem conhecimento da cultura e costumes da
cultura dos povos da antiguidade. Para Lukács (2009, p.67) “O herói da epopeia nunca é a rigor, um
indivíduo. Desde sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu objeto não é o destino
pessoal, mas o de uma comunidade”. A Odisseia, por exemplo, é um romance folclórico que narra as
lendas e tradições de um povo de navegadores. A importância está em enaltecer os feitos heroicos
199
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em estudos da Linguagem (UFRN-PPgEL)
reboucasoliveira@yahoo.com.br
200
Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora do Mestrado Profissional em Letras-
ProfLetras penhalves@mns.com
657
coletivos da civilização da Grécia antiga e de possuir uma riqueza mítica extraordinária. Circe,
Calipso, as sereias, Polifemo, entre outros mitos, pertencem ao patrimônio cultural dos povos da
Grécia antiga. Apesar de ser um romance antigo, ele ainda permanece bem atual se levarmos em conta
que essas histórias se perpetuaram em um período que ainda não havia escrita.
Soma-se a isso, que as epopeias Gregas e Romanas influenciaram a escrita de outras
epopeias, assim como outros gêneros. Hoje, infelizmente, esse gênero está praticamente esquecido
no universo escolar, já que grande parte dos professores prefere trabalhar com textos mais curtos
como os contos. Geralmente, para fazer o discente ter acesso ao gênero épico, o professor lança mão
do livro didático, ficando restrito a fragmentos que servem para interpretação do texto. Diante de tais
problemas, o nosso estudo pretende mostrar a importância de estimular a leitura do gênero épico na
escola, apontando que apenas o livro didático não contempla o ensino da epopeia, pois esse gênero
possui uma riqueza extraordinária que o aluno só pode ter acesso por meio da leitura da obra.
Entendendo a importância desses poemas, o nosso objetivo é, por meio da prática
comparatista, montar sugestões de leitura e atividade para trabalhar com a epopeia. Acreditamos que
a partir de leituras de HQ como o Thor - o renascer dos Deuses, há possibilidade de o aluno entrar
no universo da leitura de clássicos antigos, já que os dois gêneros retratam de forma diferente histórias
de heróis, mitos, deuses e lendas, permitindo um trabalho didático com as façanhas do herói nos dois
gêneros, fazendo um estudo comparativo sobre a figura do herói, super-heróis e intertextualidade.
Com essa proposta, o professor respeitará o universo de leituras do aluno e acrescentará os textos
clássicos, de tal forma que sua leitura se mostre imprescindível para a formação do aluno.
saber voltado para a perfeição da escrita, a literatura por muito tempo gozou de grande destaque,
servindo, principalmente, a elite humanista. Somente com a modernidade, e com os processos
midiáticos, foi que a literatura começou a perder espaço na sociedade e na escola.
Por isso, a importância de começar a pensar em meios para que ela volte a ter o mesmo
valor de antes. Até porque nenhuma outra forma de escrita detém tantos saberes sobre os homens e
sobre o mundo como a literária. Tanto que Candido (1995, p.180) destaca que a literatura desenvolve
em nós a quota de humanidade na mediada em que nos tornamos mais compreensivos. Isso é
decorrente de a literatura com sua forma peculiar de escrita nos convidar para adentrar em outras
culturas e vivenciar os problemas, proporcionando novas experiências, por isso, que todos devem ter
acesso a literatura. Barthes nos ensina que a literatura assume muitos saberes:
Sendo portadora dessa qualidade, o professor deve empreender esforços para que o
discente se aproprie dos gêneros literários clássicos, tanto os antigos, como os modernos.
Infelizmente, desde a universidade, não se propõe uma relação entre a teoria literária e prática de sala
de aula. Como consequência, muitos professores não se identificam com literatura, optando pelos
caminhos da linguística, abandonando o próprio percussor de leitores de literatura. Essa postura faz
com que alguns professores, ao assumir a sala de aula, lancem mão dos manuais didáticos, fichas de
livros para didáticos ou usem os documentos oficiais como se fossem receitas a serem seguidas.
Para efetuar o letramento literário, o professor deve trabalhar, primeiramente, com
gêneros do mundo do aluno para, em seguida, abordar os gênero literários clássicos, pois todo gênero
cumpre uma função comunicativa, e é dever da escolar trabalhar com gêneros diversificados. Além
disso, para formar um bom leitor de literatura, o aluno tem que ter acesso a textos variados para
aprofundar o conhecimento, pensar de forma crítica e entender que todo gênero tem seu valor,
objetivo, estrutura específica e quanto mais gêneros forem lidos mais competentes para leitura e
escrita serão. Sobre isso, Antunes dá o seguinte esclarecimento:
Antunes deixa clara a importância da atividade de leitura, pois através das leituras de
gêneros diferentes, o aluno pode ter acesso a informações e ao mundo tornando-se competente. A
leitura de gêneros diferentes proporciona informações novas, conhecimento de mundo e o aluno
torna-se capacitado para identificar os intertextos e a estrutura de cada gênero. Diante dessas
informações, podemos dizer que é impossível formar um leitor de literatura clássica sem munir o
aluno de leituras prévias.
O texto clássico requer do leitor um leque de leituras mais amplo. O gênero épico, por
exemplo, é um texto que narra os costumes de um povo antigo agregando várias lendas e mitos. Por
isso, a importância de o aluno ter outras leituras para poder entender esse gênero. Hoje, muitos cursos
de letras já têm uma disciplina específica que aborda o ensino de literatura e ensino. Mas, o número
de pesquisas ainda continua muito restrito ao mundo da literatura acadêmica com pesquisas voltadas
para obras literárias sem abordar problemas do ensino de literatura ou mostrar solução para o ensino
do texto literário.
Desse modo, por falta de uma formação mais sólida, alguns professores se sentem mais
confortáveis em selecionar textos mais fáceis e gêneros do cotidiano para trabalhar com a turma.
Além disso, fazer com que o aluno tome gosto por textos clássicos não é uma tarefa muito fácil. Há
muita resistência por parte do próprio aluno. Essa postura é decorrente de o texto clássico exigir uma
maior reflexão e mais tempo para leitura. No entanto, é necessário o professor achar meios para fazer
com que o educando tenha acesso aos textos clássicos sejam eles antigos ou modernos, pois são obras
que têm o valor incomparável de um patrimônio da humanidade que sobreviveu ao tempo:
[..] a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos
dentro os quais( ou relação ao qual) você possa reconhecer os seus clássicos. A escola é
obrigada a da-lhe instrumentos para efetuar uma opção. Mas as escolhas, que contam são
aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. É só na leitura desinteressada que pode
acontecer deparasse com aquela que torna o seu livro (CALVINO, 1993, p. 13)
Cabe à escola fazer com que o aluno tenha acesso aos textos clássicos na íntegra, para
que eles possam ter certo repertório de leitura e passem pensar criticamente e futuramente possam
fazer as suas escolhas. Assim, são necessárias atividades que façam com que os alunos troquem
impressões sobre os textos, pois cada pessoa ao entrar em contato com o texto tem diferentes visões.
E é a partir dessas leituras compartilhadas que o aluno constrói seu saber e começa a fazer reflexões,
desenvolve a escrita e melhora o posicionamento diante de qualquer gênero.
Seguindo este pensamento, as orientações curriculares (2006, p.56) chamam atenção para
dois tipos de professores: o que só trabalha como obras canônicas e o que utiliza todo tipo de texto.
Nessa forma libertária de lançar mão de todos os gêneros literários, sem levar em consideração o
660
valor que o clássico universal possui, já fica subentendido que o aluno não tem capacidade de ler
textos clássicos ou de outro porte. Como consequência dessa postura, o educando deixa de se
apropriar de fato da literatura.
Há professores que só trabalham com cultura popular, como há também os que só
ensinam história da literatura, recusando-se a utilizar o texto na íntegra, recorrendo apenas aos
fragmentos dos livros didáticos que servem de apoio para mostrar as escolas literárias. Ao tomar
qualquer uma dessas posições, o educador está privando o educando de conhecer os textos clássicos.
Eleito o tipo preferencial de leitura na escola, a literatura assume uma significação que se
confunde, muitas vezes, com um modelo de transmissão de valores de natureza autoritárias
e normativa. E, empregada por confirmar atributos que lhe são essencialmente designados,
ela desenha um espaço para pertence-lhe com exclusividade, portanto não pode ser
preenchida por nenhuma outra modalidade de texto, nem material suplementar de leitura
(ZILBERMAN, 1988, p.116-117).
Tanto a escola como o professor têm que entender que o texto literário não deve servir
como material de apoio para ensinar gramática, interpretação de texto, história da literatura e nem ser
substituído por outros gêneros ou material com resumo e análise da obra.
Partindo do princípio que a maioria dos professores segue o livro didático, observamos
que no livro de Leila Luar e Douglas Tufano, o gênero épico é abordado ainda de forma tradicional,
utilizando fragmentos do texto para fazer perguntas de interpretação de texto de forma superficial, o
que resulta em bastantes prejuízos para o aluno, visto que, estes alunos ficam sem conhecer de fato o
gênero épico.
No primeiro trecho abaixo, que foi retirado do livro didático de Leila Luar e Douglas
Tufano, a primeira pergunta serve apenas para localizar o narrador da história, já a segunda pergunta
está centrada na busca pelo ponto fraco do herói (Ulisses).
661
Para que entendam as façanhas de um herói como Ulisses, primeiramente, os leitores têm
que ser munidos de leituras prévias para em seguida ler a epopeia, pois não dá para entender um
poema épico a partir de um fragmento:
O primeiro papel do ensino, é, então, munir o leitor de informação para que a obra voltem a
lhe falar. Como fazer ideia de que a canção de Rolland representava sem no mínimo de
662
Há várias maneiras para se trabalhar com a leitura de epopeia na sala de aula tendo em
vista que o poema épico possui uma riqueza extraordinária tanto com relação à parte da linguagem
como à própria temática. Na nossa sugestão, abordamos leitura e atividade que não fiquem presas ao
livro didático. Desse modo, o modelo adotado é forma comparatista e a concepção de linguagem
interacionista, pois acreditamos que proporciona ao aluno descobrir elementos específicos de cada
gênero, permitindo que se trabalhe com as façanhas do herói. Não estamos propondo uma sequência
didática, mas apenas sugestões de leitura com foco no herói, mitos, super-herói, deuses e estrutura do
gênero, por isso, não indicaremos número de aulas para cada abordagem. Pensando dessa forma,
escolhemos o gênero epopeia Odisseia e o gênero quadrinho Thor - Renascer dos Deuses.
Antes de passar para as sugestões de atividade, cabe destacar que para trabalhar com
formação de leitores, o professor tem que pensar o texto como narrativas, deixando a hierarquia de
lado, pois todo texto tem o seu valor. O objetivo é formar o leitor de leituras clássicas, mas sempre
663
ponderando que os gêneros considerados de massa têm ganhado muito espaço e proporcionam
também muitos conhecimentos. Desse modo, o leitor tem que ter acesso tanto à cultura mais
prestigiada como à cultura de massa, principalmente porque as séries e as sagas sempre encantaram
adolescentes de várias épocas com seus super-heróis e, nesse contexto, também têm sua função.
Tanto que, por meio da série Westworld o adolescente consegue ter acesso a um jogo
polifônico incrível, pois a série permite fazer várias alusões a culturas diferentes e instiga reflexões
filosóficas. Já o jogo Age of empires é baseado na mitologia e na cultura de várias civilizações,
permitindo o conhecimento histórico e cultural de vários povos. Se o adolescente gosta de assistir a
séries e dedicar-se a jogos de alta complexidade, ele também pode começar a ter interesse pelo gênero
épico, basta o professor encontrar o caminho para que comecem a fazer a leitura de epopeias. O fato
de o aluno desprezar o texto literário acontece pela forma como são colocadas as leituras na escola,
pois o texto literário sempre vem para cumprir uma obrigação, ou seja, ler para passar na prova do
Enem ou para cumprir o currículo. A leitura vem dissociada do prazer, perdendo o seu encanto:
O professor faria bem, então, em ajudar o aluno a construir uma representação positiva da
leitura e dos poderes que ela confere ao cidadão. E, em cada situação particular de sala de
aula, deveria explicar para os alunos os objetivos de toda atividade de leitura,ou seja, porque
ele é convidado a ler aquele texto, de forma a despertar-lhe o interesse por fazê-lo bem.
(ANTUNES, 2003, p. 81)
Partindo desse princípio, a nossa sugestão é que antes de fazer a leitura do quadrinho e
da Odisseia, o professor explique a importância da leitura para a formação deles e dê suporte para
que entendam os gêneros que vão ser lidos, para que durante a leitura o aluno encontre sentido. Por
isso, antes de fazer as leituras, o professor deve pedir para que façam pesquisas sobre mitos, heróis,
super-heróis e deuses. Após essas pesquisas, recomenda-se que a turma faça uma exposição oral sobre
o que pesquisou e diga o que entendeu. O professor deve intervir durante as discussões e esclarecer a
função do mito e o papel dos primeiros heróis da literatura. Na segunda aula, o professor pode fazer
uma leitura compartilhada com a turma da revista Thor - o renascer dos deuses. Após a leitura da
revista em quadrinho, sugerimos que o professor faça perguntas. Por exemplo, por que Thor é um
super-herói? Quais as características de Thor? Há presença de Deuses na história? Qual a temática da
história? Onde se passa a história? Que tipo de linguagem apresenta o quadrinho? Sugerimos como
atividade para casa a leitura do livro Odisseia de Homero.
Na aula seguinte, o professor pode perguntar se os alunos gostaram da Odisseia e se
tiveram dificuldade com a leitura, e a partir dessas perguntas começar as discussões. Num segundo
momento, pode ser pedido para que a turma leia os três primeiros cantos da Odisseia e responda as
seguintes perguntas: Como é escrita a epopeia? A narrativa tem deuses e mitos? Qual as diferença
664
de Thor e Ulisses no que se refere à figura do herói e o que tem em comum? Qual a temática da
Odisseia? Onde se passa a Odisseia? Dentro dessa proposta de leitura comparativa, os alunos vão ter
acesso a dois gêneros, o épico e o quadrinho. E com as atividades propostas, vão perceber que o
gênero literário clássico exige uma maior reflexão por ser uma literatura mais bem elaborada. Além
disso, a leitura de um poema épico permite o conhecimento da cultura da Grécia antiga, os seus
costumes e feitos heroicos, pois a literatura é marcada por um contexto em que é produzida,
conduzindo-nos ao universo cultural de cada época. Além disso, a turma vai saber diferenciar um
herói de um super-herói e como se originaram os super-heróis. Esse processo de conhecimento ocorre
porque a literatura amplia a nossa visão.
Resultados esperados
Fonte:https://i1.wp.com/oquadrinheiroveio.com.br/wp-content/uploads/2014/01/20130802-thor-
ironman.jpg
Após as atividades propostas espera-se que a turma entenda que o quadrinho Thor - o
Renascer dos Deuses é um gênero de ficção com linguagem narrativa e marcas da oralidade, tais
como onomatopeia, linguagem verbal e não-verbal e expressão dos personagens. Thor é um mito
nórdico que na versão quadrinho, como a maioria dos super-heróis, deve a sua origem aos mitos sobre
deuses e heróis que existiram em algumas culturas da antiguidade. Como todo super-herói, Thor tem
como característica combater forças do mal (vilões) que um simples mortal não consegue combater.
665
Sendo assim, espera-se que a turma entenda que o valor deste poema está em proporcionar
o conhecimento de um mundo em que havia uma mistura do plano maravilhoso com episódios
realísticos. A presença dos deuses se dá porque o povo da Grécia da antiguidade mantinha uma crença
em várias divindades, já a presença de mitos, lendas e monstros faz parte do universo dos navegadores
que navegavam em águas desconhecidas e iam passando por meio da oralidade esses mitos que foram
incorporados ao poema. Vejamos um trecho:
CANTO XII
“Pois bem; atende agora, e um deus na mente
Meu conselho te imprima. Hás de as Sereias
Primeiro deparar, cuja harmonia
Adormenta e fascina os que as escutam:
Quem se apropinqua estulto, esposa e filhos
Não regozijará nos doces lares;
Que a vocal melodia o atrai às veigas,
Onde em cúmulo assentam-se de humanos
Ossos e podres carnes. Surde avante;
As orelhas aos teus com cera tapes,
Eusurdeçam de todo. Ouvi-las podes
Contanto que do mastro ao longo estejas
De pés e mãos atado; e se, absorvido
No prazer, ordenares que te soltem,
Liguem-te com mais força os companheiros.
“Dali passado, a via não te aponto
Que te cumpre seguir; tu mesmo a escolhas.
(HOMERO, P. 226)
666
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo teve como objetivo mostrar que ensinar ao aluno gostar do gênero épico ou
qualquer outro clássico não é uma tarefa muito fácil. Isso é decorrente de uma série de fatores: um
dos principais é devido à própria formação do professor ser fragmentada, pois a maioria dos
professores não consegue conciliar a teoria com a prática. Além disso, há grande resistência por parte
dos alunos que estão acostumados a ter o seu próprio universo de leitura. Por todos os problemas
apresentados, a maioria dos professores acaba ficando presa ao livro didático, utilizando apenas
perguntas superficiais ou apenas limitada ao ensino de história da literatura.
Para tentar mudar essa situação, cabe ao professor tentar montar estratégias de de leitura
para fazer com que o aluno passe a gostar de ler clássicos. Assim, o professor proporcionará ao aluno
pensar mais criticamente, pois terá acesso a um tipo de leitura que exige mais reflexão. A nossa
proposta foi justamente mostrar que o aluno pode passar a gostar de leituras indicadas pelo professor,
basta tentar entrar pelo mundo em que vivem, os quadrinhos, as sagas e o mundo dos heróis. Esse é
um dos caminhos, porém, existem muitos outros que o professor pode adotar nas suas aulas.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989
CANDIDO, Antonio. O direito á literatura. In: -------. Vários escritos. 3.ed. São Paulo: Duas
Cidades,1995, p. 235-263.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
letras, 1993.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2.ed., 4ª reimpressão. São Paulo: Contexto,
2014.
D’ONOFRIO, Salvatore. Da Odisseia ao Ulisses: evolução do gênero narrativo. São Paulo: Duas
Cidades, 1981.
HOMERO. Odisseia: Texto integral.Tradução de Manoel Odorico Mendes. São Paulo: Martin
Claret, 2005.
667
JACQUES, Rancière. Política da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete et alii. Rio de Janeiro:
Editora 34, 1995.
JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? Tradução de Marcos Bagno e Marcos Marcionile.
São Paulo: Parábola. 2012.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI - 1.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta como suporte teórico os Estudos Críticos do Discurso, além de sua base
multidisciplinar, como Filosofia, Comunicação e Ciência Política, para estudar a inter-relação entre
identidade, ideologia e discurso político no texto multimodal presente nas postagens das Páginas no
Facebook. Definimos como objetivos: analisar os elementos verbais e visuais que marcam,
ideologicamente, as páginas, ao se posicionarem frente às questões políticas; e verificar as estratégias
que envolvem uma autoapresentação positiva em detrimento da ênfase negativa do opositor (VAN
DIJK, 2010). Estabelecemos as seguintes hipóteses: a construção da identidade das páginas do
Facebook ocorre a partir das postagens; as marcas ideológicas, apesar de serem omitidas no momento
de definição inicial, revelam-se na interação; e a inter-relação identidade, ideologia e discurso político
materializa-se na composição dos elementos visuais e verbais. Como procedimento metodológico,
optamos pela abordagem qualitativa e nosso corpus é constituído pelas páginas: Poder ao povo, Eu
era Direita e Não sabia e Movimento do Povo Brasileiro; em cada uma, selecionamos as fotos de
perfil e de capa e uma postagem, a partir da identificação do eixo ideológico. Realizamos a discussão
teórica a partir de três eixos de estudo. No primeiro, buscamos compreender a relação entre discurso
político e novas mídias, recorrendo a teóricos como, Aquino (1997), Pinto (2006) e Charaudeau
(2011), ao destacarem a emergência das práticas discursivas, a partir do discurso político. No segundo
eixo, objetivamos o entendimento do conceito de ideologia, recorremos, principalmente a van Dijk
(2011). O terceiro constitui-se da discussão sobre identidade, com base nos estudos de Hall (2006),
Bauman (2001, 2005), entre outros. Nesse sentido, concluímos que a composição do texto multimodal
de cunho político no Facebook possui como ponto de partida a questão identitária, associada ao viés
ideológico.
Palavras-chave: Discurso político; Identidade; Ideologia; Texto multimodal.
INTRODUÇÃO
Este artigo é resultado de uma parte da pesquisa de doutorado, cuja temática é o discurso
político veiculado pelas redes sociais, em especial no Facebook. O crescente número de páginas
envolvidas com discurso político tem sido cada vez maior nessa rede social que faz parte de nosso
cotidiano e tem refletido a efervescência das discussões sobre política na realidade atual do Brasil.
Partimos do questionamento de como a identidade se constrói a partir das escolhas
lexicais e das imagens em cada página de cunho político no Facebook. Para respondê-lo,
determinamos as seguintes hipóteses: a construção da identidade das páginas do Facebook ocorre a
partir das postagens; as marcas ideológicas, apesar de serem omitidas no momento de definição
inicial, revelam-se na interação; e a inter-relação identidade, ideologia e discurso político materializa-
201
E-mail: josane.daniela@uepa.br
669
se na composição dos elementos visuais e verbais. Para isso, definimos o período de campanha para
as eleições de 2018, no qual as discussões entre as comunidades de direita, de esquerda e as que se
classificam como “apartidárias” são intensas, em virtude das polêmicas originadas a partir das
denúncias de corrupção da Operação Lava-jato; da decisão de Dilma Rousseff ter sido retirada da
presidência por conta das pedaladas fiscais e seu vice, Michel Temer, ter assumido seu lugar; da crise
econômica e política instalada no país (SINGER, 2018).
Assim, estabelecemos como objetivos: analisar os elementos verbais e visuais que
marcam, ideologicamente, as páginas, ao se posicionarem frente às questões políticas; e verificar a
estratégia de interação geral que envolve uma autoapresentação positiva em detrimento da ênfase
negativa do opositor (VAN DIJK, 2010). Para alcançá-lo, usaremos a abordagem qualitativa e o
suporte teórico alicerçado nas pesquisas sobre os Estudos Críticos do Discurso (ECD), realizadas
pelos autores, van Dijk (2010, 2011) e Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011); sobre o discurso
político, feitas por Charaudeau (2011) e Pinto (2006); sobre a ideologia, recorremos, principalmente
a van Dijk (2011); e sobre a identidade, com base nos estudos de Hall (2006), Bauman (2005),
Charaudeau (2011).
Nossos corpora constituem-se das postagens de páginas políticas no Facebook no período
eleitoral de 2018. Selecionamos para este artigo uma página da direita, outra da esquerda e a terceira
que se classifica como “apartidária” para realizar os procedimentos de análise, que consiste na
identificação dos elementos verbais e visuais da “autoapresentação positiva” e da “outro-apresentação
negativa”, proposta por van Dijk (2010).
A relevância desta pesquisa reside no fato de destacarmos o Facebook como uma rede
social que dissemina, de forma dinâmica, as informações, as notícias e os comentários, possibilitando
que se conheça a atual situação política do Brasil, a partir das postagens.
No original: “[...] are a form of social cognition, that is, beliefs shared by and distributed over (the minds of) group
202
members”.
670
[...] são definidas informalmente como sistemas gerais de ideias básicas compartilhadas pelos
membros de um grupo social, ideias que irão influenciar sua interpretação dos eventos sociais
e situações e controlar seu discurso e outras práticas sociais como membros de um grupo
(VAN DIJK, 2011, p. 380, tradução nossa).203
Concebendo de modo semelhante a van Dijk, o discurso como prática social, que
continuamente influencia ou sofre interferências do contexto sociocultural, Fairclough, Mulderrig e
Wodak (2011) elencam os fundamentos dos ECD, a seguir: a teoria trata dos problemas sociais; as
relações de poder são discursivas; a sociedade e a cultura são constituídas pelo discurso; o discurso
revela um trabalho ideológico; o discurso é histórico; o texto e a sociedade têm uma relação mediada;
a análise do discurso é interpretativa e explanatória; o discurso é uma forma de ação social.204
Para van Dijk (2011), as ideologias não são adquiridas ou sofrem modificação de forma
repentina; na verdade, elas vão se desenvolvendo, adaptando-se, a partir de debates, discussões e
outras formas de discurso, o autor exemplifica com o caso do liberalismo, feminismo e socialismo.
Ainda ao se referir às ideologias, afirma que “elas são definidas para os grupos, e não para membros
individuais que ‘usarão’, ‘aplicarão’ ou ‘realizarão’ ideologias nos seus cotidianos, para os quais
devemos considerar de um modo diferente, em termos de modelos mentais” (VAN DIJK, 2011, p.
383, tradução nossa).205
Qualquer alteração, mudança só ocorrerá se for aceita e compartilhada por todos na
comunidade. O autor ainda ressalta que as ideologias são representações mentais, usadas e aplicadas
pelos seus membros, como base para uma conduta ideológica, que se reflete na prática discursiva
(apenas uma das muitas outras práticas).
Mészáros (2014), Ardalan (2018), Bobbio (2011), Singer (2018), entre outros concordam
com o uso dos termos esquerda – direita, tendo seu sentido político se originado a partir da Revolução
Francesa. Para Bobbio (2011, p. 15), “[...] a distinção não está morta e sepultada, mas mais viva do
que nunca” e ele também afirma:
É precisamente a ativação desse jogo que continua a manter viva – numa vida em contínuo
movimento – a distinção. Num universo conflitual como o da política, que exige
continuamente a ideia do jogo das partes e do empenho para derrotar o adversário, a divisão
do universo em dois hemisférios não é uma simplificação, mas uma fiel representação da
realidade (BOBBIO, 2011, p. 11).
203
No original: “[...] informally defined, are general systems of basic ideas shared by members of a social group, ideas
that will influence their interpretation of social events and situations and control their discourse and other social practices
as group members”.
204
Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011, p. 368-373).
205
No original: “They defined for groups, and not for individual members who will ‘use’, ‘apply’ or ‘perform’ ideologies
in their everyday lives, for which we must account in a diferente way, namely in terms of mental models”.
671
Essa oposição histórica entre os dois polos é necessária, reflete o nosso cotidiano,
principalmente, as discussões presentes nas redes sociais. O pesquisador constata que alguns autores
consideraram ultrapassado os termos “direita” e “esquerda” e substituíram por “conservadores” e
“progressistas”, ou seja, a díade não deixou de existir, houve apenas uma tentativa de mudança na
nomenclatura. Dessa forma, ele resume as características básicas que opõe as duas ideologias: uma
mantém as tradições, mas é a favor da não-intervenção do Estado na economia, enquanto a outra
defende o contrário.
Bobbio (2011, p. 53) conclui que se existe o eixo esquerda – direita, é possível a
existência do “centro”. Ele diz que entre a direita e a esquerda existem as “posições intermediárias
que ocupam o espaço central entre os dois extremos”. “Posições intermediárias” é um dos termos
utilizados pelos estudiosos para se referir aos partidos ou grupos que se identificam com a posição
que nem é de direita e nem de esquerda, ou seja, de centro. O autor acrescenta que a presença de uma
posição central reforça a existência da díade:
Ao constatar a existência do centro, o autor reforça a tese da existência dessa antítese, que
é representada pela díade. Considerando a questão da igualdade, que diferencia de forma relevante a
esquerda da direita. A primeira defende a igualdade, entretanto, a segunda não tem nenhum interesse
em promover a igualdade, pois para os que acreditam nessa ideologia a exclusão é a regra.
Para o indivíduo pertencente à esquerda, as desigualdades lhe causam indignação, ou seja,
ele (a) se mobiliza pelas questões sociais, porque seu desejo maior é eliminar as diferenças. No
entanto, o indivíduo da direita é “inigualitário”, como diz Bobbio (2011), pois para ele as
desigualdades existentes fazem parte da natureza, portanto, acredita que não pode eliminar e não
empreende nenhum esforço para mudar essa realidade.
Ele também identifica outra característica distintiva entre elas. A direita encontra-se
sempre preocupada em respeitar e manter os princípios morais, porém, a esquerda é defensora da
emancipação, da liberação dos indivíduos de qualquer prisão aos costumes, à raça, à classe social,
etc. Por coadunarmos com Bobbio (2011), usamos a terminologia esquerda-direita nessa pesquisa,
porque ela continua presente no discurso político e, principalmente, nas redes sociais.
Para entendermos melhor a definição de discurso político, buscamos em Charaudeau
(2011) o suporte teórico. Ele apresenta três palavras-chave que definem o discurso político: discussão,
ação e persuasão, compreendendo que os sujeitos envolvidos no discurso político apresentam ideias,
672
opiniões, propostas, mas também se envolvem em atitudes práticas para a solução dos problemas
sociais e, para isso, usam o poder da palavra para convencer os membros do próprio grupo ou de
grupos opositores. É a dinâmica do campo discursivo político que mantém interligados em interação
constante esses três espaços apresentados pelo autor, como podemos verificar na afirmação seguinte:
[...] a política é um espaço de ação que depende dos espaços de discussão e de persuasão que,
para serem válidos devem ser divididos em domínios, pois toda sociedade tem necessidade
de reconhecer e de classificar as trocas realizadas (CHARAUDEAU, 2011, p. 27).
O autor declara que nós, “[...] habitantes do líquido mundo moderno” (BAUMAN, 2005,
p. 32), procuramos construir e manter as referências de nossas identidades, que sempre se encontram
em movimento de forma veloz, promovendo a constituição de grupos, cuja característica principal
constitui a transitoriedade, porque a união dos indivíduos ocorre devido a um objetivo em comum.
Quando ele deixa de existir, o grupo também pode se desfazer, por isso, o autor denomina de
“comunidade guarda-roupa” e define-a como aquela, na qual os indivíduos se reúnem “[...] enquanto
dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus casacos nos cabides”
(BAUMAN, 2005, p. 37).
A fluidez das identidades reflete a transitoriedade do mundo moderno e os conflitos
identitários e ideológicos. Pavloski (2012, p. 13), também como Bauman (2001) e Hall (2006),
apresenta a ideia da identidade múltipla, fragmentada, instável: “Tanto na esfera pública quanto
privada, as transfigurações dos paradigmas identitários substituíram a unicidade pela multiplicidade
e a solidez pela desconstrução”.
Van Dijk (2010) identifica o uso da estratégia de interação geral: “autoapresentação
positiva” e “outro-apresentação negativa”. Em outras palavras, na situação de manipulação, ocorre a
apresentação positiva do próprio grupo, enquanto é ressaltado apenas as características negativas do
grupo opositor.
A esse respeito, van Dijk (2010, p. 252-253) destaca a possibilidade de serem utilizadas
outras estratégias que podem ser usadas nos vários níveis do discurso, como: macroato de fala,
indicando os bons atos do grupo e destacando os maus atos do grupo opositor; léxico, selecionando
palavras positivas para “Nós” e palavras negativas para “Eles”; figuras retóricas, por exemplo,
“hipérboles versus eufemismos para significados positivos/negativos”, “metonímias e metáforas
enfatizando propriedades negativas/positivas Nossas/Deles”, entre outras.
O uso dessas estratégias comprova a polarização do discurso com base nas questões
ideológicas. No entanto, não se pode limitar a análise simplesmente às questões discursivas, mas
também deve ser levado em conta o contexto político-social no qual os grupos se encontram inseridos.
Dessa forma, o Facebook como uma rede social permite a presença da instantaneidade e criatividade
na interação entre os usuários (BARTON; LEE, 2015) possibilita-nos, por meio da análise dos
elementos verbais e visuais, identificar a estratégia de interação geral proposta por van Dijk (2010)
nas postagens realizadas nas páginas de cunho político.
O Facebook apresenta perspectivas comunicativas, permitindo explorar o uso das
linguagens verbal e visual. Essa é a ideia que Crystal (2010) discute. Ele foi um dos primeiros
linguistas a refletir sobre o impacto da chegada da Internet na linguagem e apresentou o escopo da
chamada “Linguística da Internet”. Para o autor, há inúmeras capacidades comunicativas que podem
ser exploradas de diversas maneiras, ele afirma que “o mundo da Internet é extremamente fluido, com
674
O mundo online está sendo constantemente escrito, seja na forma de sites de um único autor,
de wikis escritos colaborativamente, ou apenas um breve comentário num site da rede social.
Ao escrever, as pessoas deixam registros em toda a parte e criam informação que outras
pessoas podem usar, que informa os buscadores e que é o produto vendável de empresas
como Google e Facebook (BARTON; LEE, 2015, p. 43).
Assim, o texto passa a ser o centro desse mundo e deve ser entendido como algo fluido e
em mudança constante e com a presença concomitante de escrita, layout, imagens, som, objetos 3D,
formando textos coerentes e com sentido, que produzem e reproduzem opiniões, crenças, ideologias,
ou seja, na atualidade, se faz presente o texto multimodal, no qual vários modos são usados ao mesmo
tempo para apresentar um todo coerente, lógico, conforme os autores destacam:
206
No original: “The Internet world is an extremely fluid one, with users exploring its possibilities of expression,
introducing fresh combinations of elements, and reacting to technological developments”.
207
No original: “This reflexive construction and reconstruction of the self is a normal feature of everyday life, and is
continually taking new forms. For example, the currently popular trend of ‘social networking’ creates reflexive discourse
practices (e.g. Facebook, MySpace, Twitter), constructing social identities, relationships, political protest, social struggle,
consumption, and entertainment.”
675
Os modos, que também são conhecidos como modos comunicativos ou modos semióticos,
referem-se em geral a sistemas ou recursos que as pessoas mobilizam na construção de
sentido. Eles incluem as linguagens falada e escrita, imagem, som, gesto, etc. Os textos
multimodais são onipresentes em nossa vida cotidiana especialmente aqueles que combinam
o verbal com o visual (BARTON; LEE, 2015, p. 47).
Os textos multimodais não são uma novidade, já se faziam presentes em jornais, revistas,
propagandas, etc., no entanto, no mundo virtual, ganharam uma dinamicidade e um potencial criativo
maior. Podem ser percebidos quando combinados de diferentes formas, gerando várias maneiras de
serem compreendidos pelos interlocutores. Barton e Lee (2015, p. 48) enfatizam esse potencial
criativo presente nos textos multimodais: “A convergência de espaços de escrita nas novas mídias
sociais apresenta novas oportunidades para fácil criação, postagem e compartilhamento de textos
multimodais [...].
Cada vez mais seu uso se intensifica nas redes sociais, como uma forma mais interessante
de construção do sentido para mostrar o posicionamento dos indivíduos no mundo. O discurso político
circula, metamorfoseando-se continuamente, por meio dos textos multimodais, em um ambiente de
intensa interatividade, o Facebook.
Sobre essa utilização da discussão sobre o discurso político na mídia digital, Pinto (2006,
p. 79) afirma:
social para realizarmos os procedimentos de análise. As três possuem o rótulo de comunidade e foram
escolhidas para podermos visualizar as fotos de capa e de perfil e as postagens e observarmos a
construção da identidade de cada uma, considerando a concepção de que o discurso é a prática social
da linguagem (FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2011) e, por isso, nele está presente a
realidade na qual estamos inseridos.
A primeira página denomina-se o Poder ao Povo, criada em 18 de fevereiro de 2015. Em
abril de 2018, apresentava a seguinte definição: “Esta página é para todos que lutam por justiça social,
igualdade, e pelo respeito à democracia”. Até aquele momento, houve 444.287 curtidas e 445.546
seguidores. Podemos observar a seguir a Figura 1:
Fonte: https://www.facebook.com/opoderaopovo
Fonte: https://www.facebook.com/opoderaopovo
Na postagem, temos um burro, usando óculos escuros e com uma placa, na qual
consta o enunciado: “Fui de Aécio, agora vou de Bolsonaro! Sou muito inteligente!”. Há uma crítica
às escolhas realizadas, Aécio e Bolsonaro. Assim, a imagem do eleitor desses dois políticos é
representada como um burro.
Além disso, considerando o enunciado que consta na placa, na Figura 2, as linguagens
verbal e visual associadas reforçam a presença de uma ofensa clara ao eleitor de Aécio e Bolsonaro
com a imagem do animal segurando a mesma. Por isso, identificamos, na Figura 2, a presença da
estratégia de interação geral, que é a autoapresentação positiva e a outro-apresentação negativa (VAN
DIJK, 2010), ou seja, o indivíduo que vota em Aécio e Bolsonaro é caracterizado como não-
inteligente. Ao caracterizar os opositores de forma negativa, há um reforço positivo do grupo Poder
ao Povo.
Em sua página no Facebook, observamos uma coerência na escolha dos elementos
visuais, como o vermelho, a foice, o punho cerrado, o burro, e os elementos lexicais, como “justiça”,
“igualdade”, “inteligente”, pois eles constroem a identidade de um grupo de esquerda, na qual há uma
uniformidade das linguagens visual e verbal, representando a positividade das ideias dessa
comunidade, enquanto que os adversários são caracterizados como negativos.
A página seguinte nomeia-se Eu era Direita e Não sabia. Sua página no Facebook foi
criada em 06 de fevereiro de 2016 e, em abril de 2018, obteve 459.000 curtidas e 464.000 seguidores.
Na Figura 3, temos as fotos de perfil e de capa:
Fonte: https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia
Fonte: https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia
drogas. O enunciado acima da imagem, “Se no último discurso do Lula lhe deram cachaça[...]”,
apresenta a crítica ao fato do país estar representado por dois políticos, um envolvido com “cachaça”
e o outro com “cocaína”. Na representação visual dessa crítica, aparece a imagem do Aécio rodeada
de pó branco e a seguir “[...] imaginando como vai ser o do Aécio Neves”. Assim, o uso do pó branco
caindo sobre Aécio Neves é uma alusão às drogas. Observamos que, na Figura 4, temos a outro-
apresentação negativa, pela possível vinculação do Aécio com drogas e esse reforço negativo do outro
traz um sentido positivo para o próprio grupo.
O Movimento do Povo Brasileiro (MPB) é a terceira página. Foi criado em 21 de
setembro de 2015 e em abril desse ano totalizou 243.066 curtidas e 787.504 seguidores. Em sua
página do Facebook, eles identificam-se como: “Somos a favor de um estado mínimo e lutamos pelo
fim da corrupção e privilégios na vida pública”, ou seja, defendem uma intervenção mínima do
Estado. A seguir, sua foto de perfil e de capa:
Fonte: https://www.facebook.com/movimentodopovobrasileiro/
Fonte: https://www.facebook.com/movimentodopovobrasileiro/
verbal e visual, mantendo a coerência entre esses elementos iniciais e suas postagens. A página Poder
ao Povo apresenta palavras-chave em seu enunciado “justiça social”, “igualdade”, “respeito”,
“democracia”. Além disso, as imagens selecionadas para as fotos de perfil e de capa estão em
consonância com itens lexicais que destacamos, ou seja, apresenta uma caracterização ideológica
ligada à esquerda, que anseia pela igualdade, justiça e democracia. Em sua postagem, a outro-
apresentação negativa reforça a autoapresentação desse grupo de esquerda.
Na segunda página, a identificação ideológica apresenta-se logo em seu nome, ou melhor,
“Direita”. Nas fotos de capa e perfil, as imagens também conduzem ao entendimento que se
caracteriza por ser uma página de direita, contra o comunismo, contra os defensores de uma ideologia
de esquerda, Carlos Marighella e Lula. Ela também publicou uma postagem coerente com essas
ideias, ou melhor, há a referência negativa a Lula e a Aécio na mesma.
Na definição do Movimento do Povo Brasileiro, está presente a ideia de que os membros
são favoráveis ao estado mínimo, ou seja, a não-intervenção do estado na economia e ao fim da
corrupção. Nas imagens escolhidas para a capa e o perfil, temos a bandeira do Brasil no formato de
um coração, representando um caráter fortemente nacionalista.
A última página não apresenta de forma explícita sua ligação ideológica, mas dá pistas
nas escolhas lexicais e imagéticas. Dessa forma, sua identidade se constrói nesse espaço de discussão,
que faz parte do discurso político (CHARAUDEAU, 2011). No exemplo de postagem que
selecionamos, podemos relembrar o destaque dado por van Dijk (2011) às ideologias como
representações mentais que se refletem na prática discursiva, sendo assim, temos a apresentação do
socialismo como uma ideologia negativa, pois foi associada aos ditadores, que se distanciaram
completamente dos ideais de igualdade, justiça e democracia propostos por aqueles que são de
esquerda. Isso é feito com o propósito de convencer o leitor de que o capitalismo não é o problema
mundial, mas sim, o socialismo.
Nessa utilização da estratégia de interação geral, as postagens analisadas revelam,
principalmente a dinamicidade dessa interação, o quanto ela é polêmica e fluida, em mudança
constante. Essa instantaneidade, essa criatividade (BARTON; LEE, 2015) e essa reflexividade
(FAIRCLOUGH; MULDERRIG; WODAK, 2011) possibilita-nos entender que as identidades se
constroem ao longo das apresentações das ideias nas postagens, trazendo-nos o entendimento de que
a página Movimento do Povo Brasileiro se caracteriza por ser de direita. Relembramos Bobbio (2011)
quando ele afirma que esse jogo de oposição da díade direita-esquerda não é de forma nenhuma uma
simplificação do cenário político, não se encontra morto, mas sim, vivo, se moldando aos novos
tempos.
O mundo online, em especial o Facebook, materializa esse potencial discursivo criativo,
como bem ressaltou Crystal (2006, 2010). Por isso, no discurso político presente nas páginas dos
682
grupos no Facebook, identificamos o uso do poder, a intenção dos autores ao revelar o viés ideológico,
a partir do posicionamento de uma página ao desqualificar o discurso dos opositores, trazendo mais
dinamicidade ao debate.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para este estudo, propusemos uma análise das postagens políticas de páginas selecionadas
no Facebook: Poder ao Povo, Eu era Direita e Não sabia e Movimento do Povo Brasileiro. Dessa
forma, discutimos os conceitos de discurso político, ideologia e identidade, promovendo um diálogo
entre teóricos como, van Dijk (2010, 2011), Fairclough, Mulderrig e Wodak (2011), Charaudeau
(2011), Pinto (2006) e Crystal (2006, 2010), apresentando a ideia de que o discurso traz as
experiências, as vivências desses indivíduos que o materializam, sem podermos isolá-los dessa
realidade social e política que os constituem.
O Facebook se caracteriza pela fluidez e pela dinamicidade. Ao analisar as postagens
escolhidas das três páginas, constatamos haver a presença da estratégia de apresentação geral (VAN
DIJK, 2010) para divulgar as ideias que cada uma defende a favor ou contra o contexto político do
momento, realizando uma autoapresentação positiva, enquanto o opositor é caracterizado de forma
negativa. Ao se posicionarem ideologicamente, as identidades se constroem em um processo de
mudança contínua, revelando uma relação de poder.
As identidades revelam-se pelas imagens selecionadas e pelas escolhas lexicais. Dessa
forma, realiza-se a representação da comunidade e de suas concepções político-ideológicas. No caso
da página Movimento do Povo Brasileiro, suas postagens revelam um posicionamento contrário à
ideologia de esquerda.
Nesse sentido, a análise do discurso das postagens caracteriza-se como relevante para
entender o discurso político que se faz presente no cotidiano e nas redes sociais como forma de
divulgação das ideias, das concepções de cada página, refletindo a polêmica realidade brasileira.
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683
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Aurélio Nogueira. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2011.
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presidente e diz que está com cheiro de cachaça. FOLHA POLÍTICA. ORG, 7 abril 2018.
Disponível em: < http://www.folhapolitica.org/2018/04/video-desmoraliza-ainda-mais-o-
discurso.html> . Acesso em: 20 ago. 2018.
685
RESUMO
Nossa pretensão, neste ensaio, é trazer o sujeito do discurso como foco e mostrar como ocorre a
interpelação da ideologia, por meio das tomadas de posição. Para isso, partimos da compreensão de
que a noção de formação discursiva (FD) corresponde a um domínio de saber, constituído de
enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente,
regulando o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988). Também apontamos a necessidade de
compreender a relevância das FDs para os estudos que discorrem sobre o discurso. Nesse sentido,
evoca-se a noção de sujeito, categoria analítica que difere pontualmente o quadro teórico da Análise
do Discurso (AD) de linha francesa pecheutiana das demais teorias que também contemplam o
discurso. Assim, neste estudo, pretendemos nos debruçar sobre a noção de FD, ancorados no
arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa que tem Michel Pêcheux como iniciador.
Mas, para esclarecer nossa escolha pela AD francesa de linha pecheutiana, apontaremos, num
primeiro momento, a noção de FD sob duas perspectivas: a primeira, em consonância com as
contribuições foucaultianas – um caminho do qual desviaremos; e, a segunda, pautada nos postulados
pecheutianos – caminho no qual seguiremos. Apoiar-nos-emos, principalmente, no aporte teórico de
Michel Pêcheux (1988), por sua importância na teorização do conceito de formação discursiva pela
qual foi possível, ao considerar as formações ideológicas, esgarçar o olhar sobre essa categoria
analítica tão cara aos estudos discursivos; de Michel Foucault (1969), pela sua preocupação em
estabelecer as regularidades, os sistemas de dispersão; e de Freda Indursky (2020) por compreender
sua relevância às pesquisas que visam explorar formações discursivas, sobretudo àquelas que elegem
corpus da realidade brasileira. Embora neste ensaio assumamos o interesse por formação discursiva,
não pretendemos perder de vista as noções de tomada de posição, de formações ideológicas e de
sujeito, como já anunciamos, uma vez que a reunião dessas noções é fundamental para que
consigamos acesso aos efeitos de sentido mobilizados nas/pelas formações discursivas (estas a
serviço de ideologia) que autorizam o discurso. A fim de elucidar o que propomos aqui, elegemos
como corpus três textos propagandísticos da empresa de cozinhas planejadas Todeschini, produzidos
em períodos distintos.
Católica de Minas Gerais - PUC Minas. E-mail: katiarasols@gmail.com. Professora da Rede Pública Municipal de Belo
Horizonte/MG. Bolsista CAPES.
209
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Linguística e Língua Portuguesa – da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Integrante do Grupo de Pesquisa NELLF da mesma instituição. E-mail:
oiheitorlima@gmail.com. Bolsista CNPq.
686
ABSTRACT
Our intention, in this essay, is to bring the subject of the discourse as a focus and show how the
interpellation of ideology occurs, through taking positions. For that, we start from the understanding
that the notion of discursive formation (FD) corresponds to a domain of knowledge, constituted of
discursive statements that represent a way of relating to the prevailing ideology, regulating what can
and should be said (PÊCHEUX, 1988). We also point out the need to understand the relevance of
FDs for studies that discuss discourse. In this sense, the notion of subject is evoked, an analytical
category that punctually differs from the theoretical framework of Discourse Analysis (AD) of the
French Pecheutian line from other theories that also contemplate discourse. Thus, in this study we
intend to focus on the notion of FD, anchored in the theoretical framework of Discourse Analysis of
the French line that has Michel Pêcheux as initiator. But, to clarify our choice for the French AD of
the Pecheutian line, we will first point out the notion of FD from two perspectives: the first, in line
with Foucault's contributions - a path from which we will deviate; and the second, based on
Pecheutian postulates - the path we will follow. We will rely mainly on the theoretical contribution
of Michel Pêcheux (1988), due to its importance in theorizing the concept of discursive formation
through which it was possible, when considering ideological formations, to widen the gaze on this
analytical category so dear to studies discursive; Michel Foucault (1969), for his concern in
establishing regularities, dispersion systems; and Freda Indursky (2020) for understanding its
relevance to research aimed at exploring discursive formations, especially those that choose corpus
from the Brazilian reality. Although in this essay we assume the interest in discursive formation, we
do not intend to lose sight of the notions of positioning, of ideological formations and of the subject,
as we have already announced, since the meeting of these notions is fundamental for us to gain access
to the effects of meaning mobilized in / by discursive formations (these at the service of ideology)
that authorize discourse. In order to elucidate what we propose here, we chose as corpus three
advertising texts from the planned kitchen company Todeschini, produced in different periods.
Essas plataformas movediças sem as quais não se poderia ter percorrido a estrada pela
primeira vez… (PÊCHEUX, 1966).
Este ensaio surge a partir das discussões realizadas durante a disciplina Análise do
Discurso, ofertada pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas), que abordou, dentre vários, um operador teórico-analítico
importantíssimo ao analista do discurso: formações discursivas. Embora o bom desenho da disciplina
tenha nos proporcionado, de modo estendido, reflexões sobre esse operador, tomando Michel
Pêcheux, Michel Foucault e alguns pesquisadores brasileiros que estudam sobre o assunto,
assumimos os postulados pecheutianos como horizonte, neste trabalho, por entendermos que a
discussão promovida pelo iniciador da Escola Francesa da Análise do Discurso, ao perceber que as
formações ideológicas são preponderantes nas regiões de sentido, vai além de estabelecer as
regularidades, os sistemas de dispersão.
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[...] a tomada de posição resulta de um retorno do ‘Sujeito’ no sujeito, de modo que a não-
coincidência subjetiva que caracteriza a dualidade sujeito/objeto, pela qual o sujeito se separa
daquilo de que ele ‘toma consciência’ e a propósito do que ele toma posição, é
fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento pela qual o sujeito se
identifica consigo mesmo, com seus ‘semelhantes’ e com o ‘Sujeito’. O ‘desdobramento’ do
sujeito – como ‘tomada de consciência’ de seus ‘objetos’ - é uma reduplicação da
identificação [...] (PÊCHEUX, 1988, p. 172).
Diante do exposto, reiteramos que este estudo pretende debruçar-se sobre a noção de FD,
ancorado no arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa que tem Michel Pêcheux
como iniciador.
Há ainda outro ponto a ser considerado neste ensaio à guisa de consideração inicial: a
necessidade de que sigamos na urgência de compreender a relevância das FDs para os estudos que
discorrem sobre o discurso. Freda Indursky, grande pesquisadora brasileira que estuda esse assunto,
já nos questionava em seu texto “Formação Discursiva: ela ainda merece que lutemos por ela?”
(2007b) sobre a necessidade de apostar num conceito tão importante aos estudos discursivos,
sobretudo, àqueles que não abandonam a noção de formações ideológicas.
Uma vez que percebemos o corpus selecionado – três textos criados e propagados pela
empresa Todeschini, em períodos distintos – como um fato de linguagem por excelência que tem
memória e, portanto, nos conduz à memória linguística (ORLANDI, 1995, p. 115), acreditamos que
ele nos permitirá: i) acessar às FDs que o autoriza e, portanto, aos efeitos de sentidos; e ii) por meio
das tomadas de posição, observar como sujeito ao dizer (com suas intenções e objetivos) não possui
controle desse dizer, ou seja, os textos selecionados dizem de maneira completamente diferente em
relação a eles próprios, o que nos faz pensar em (re)significação dos sentidos por tomadas de posição.
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Diante disso, nosso trabalho aponta para a necessidade de intensificar a discussão teórica
que evidencia os estudos sobre a heterogeneidade da linguagem.
definidos baseados no conceito de enunciado e este “pertence a uma formação discursiva, como uma
frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo” (FOUCAULT, 1969, p. 135).
É importante entender, conforme o filósofo, que enunciado não é sinônimo de proposição,
de frase e tampouco de ato de fala, mas é ele que dá condições para que esses ocorram. O enunciado
é regido por regras e faz parte dessa ou daquela FD, é ele que garante a existência de uma proposição
que pode ou não ter sentido, de uma fala que vai ou não se encaixar naquele contexto, de uma frase
que pode ser gramatical ou agramatical. Conforme Foucault (1969), um sistema linguístico só poderá
ser estabelecido se utilizado um corpo de enunciados ou uma coleção de fatos de discurso. É
necessário definir regras que permitam construir outros enunciados diferentes, possíveis - “um
conjunto finito de regras que autoriza um número infinito de desempenhos” (FOUCAULT, 1969, p.
30).
O discurso, na concepção foucaultiana, é um conjunto de regras “anônimas e históricas”
determinadas no tempo e no espaço, é um conjunto de enunciados que provêm da mesma formação
discursiva. Por sua vez, a formação discursiva “caracteriza-se não por princípios de construção, mas
por uma dispersão de fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidades, mas
uma lei de coexistência […]” (FOUCAULT, 1969, p. 135).
Visando construir o conceito de FD, Foucault buscou, por meio de um projeto no campo
da Análise de Discurso, encontrar algo que definisse o discurso numa única unidade. Assim, ele
elegeu e analisou quatro categorias: formação dos objetos, relações dos modos enunciativos,
formação dos conceitos e escolhas dos temas. Foram, a seu ver, quatro tentativas e quatro fracassos,
mas ele quis prová-las e percebeu que não descreviam a realidade. Concluiu, então, que a dispersão
era melhor que a unidade, encontrando, assim, o foco da sua análise. Em relação às quatro categorias
analisadas, as regras de FD foram criadas seguindo as condições a que seus elementos estão
submetidos.
Um ponto decisório que nos desviou do conceito de FD trazido por Foucault refere-se a
sua consideração em termos de saber e de poder, não em termos de ideologia; o filósofo compreende
FD numa perspectiva de dispersão, sendo estabelecidas as relações entre o dizer e o fazer e as práticas
discursivas marcadas por uma não-autonomia. Em outras palavras, Foucault (1969) defendeu que,
quando o sistema de dispersão fosse semelhante entre um determinado número de enunciados e
quando uma regularidade pudesse ser definida entre as quatro categorias analisadas – objetos, tipos
de enunciação, conceitos e escolhas temáticas – haveria uma formação discursiva.
Enfim, conforme dito, a contribuição deste teórico é de fundamental importância para a
Análise do Discurso e não haveria espaço suficiente, em um ensaio, para discorrer sobre ela. Contudo,
tendo em vista o nosso objetivo, seguimos trazendo a concepção de FD na linha de Michel Pêcheux,
pela qual seguirá nossa análise.
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[...] a formação discursiva pode ser entendida como o que pode e deve ser dito pelo sujeito,
ou seja, ela tem seus saberes regulados pela forma-sujeito e apresenta-se dotada de bastante
unicidade [...] (INDURSKY, 2020, p. 306-307).
[...] se deve conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de
materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva pertence ao gênero
ideológico, o que é o mesmo que dizer que as formações ideológicas comportam
necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa
conjuntura, isto é, numa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico
(PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p.166-167).
Percebe-se, portanto, que essa noção, desde sempre, é algo importante ao quadro teórico
de Pêcheux por considerar as FDs atravessadas pela ideologia que faz parte, ou melhor, é a condição
para a constituição dos sujeitos e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia
para que se produza o dizer (ORLANDI, 1995, p. 46). Também não esqueçamos da importância da
convocação da noção de sujeito para formular a noção de FD.
Isso coloca em suspenso o modo homogêneo pelo qual se entende e se discute FD à
margem dos postulados pecheuxtianos: i) na perspectiva da não-falha, ou seja, da impossibilidade de
conceber um sujeito que ao estar vinculado a uma dada FD, sujeitando-se, em concordância com os
dizeres, identificando-se plenamente com o sujeito universal, à forma-sujeito, de fato um bom sujeito,
poderia romper com essa FD ao ponto de inscrever-se em outra e comportar-se como tal; ii) entendida
sem ideologia, da pureza, da neutralidade, de sujeitos livres que dizem e se dizem o que querem e
como querem, senhores de si e, portanto, proprietários de consciência; iii) do discurso inscrito em
uma única FD, ou seja, da insistência da homogeneidade ilusória.
Diferentemente dessas percepções, entendemos que a interpelação do indivíduo em
sujeito de seu discurso se efetua pela identificação com a formação discursiva que o domina
(PÊCHEUX, 1988, p. 147). Vale salientar que embora essa “dominação”, ou seja, o assujeitamento
seja uma noção compreendida fora da concepção pecheutiana, na esteira da subserviência, da
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[...] é lícito afirmar que, no quadro teórico da Análise do Discurso, tal como formulado por
Pêcheux, [...] ao contrário do que ocorre na Arqueologia de Foucault, não só é lícito falar em
ideologia, como é ela, juntamente com o sujeito, que é tomada como princípio organizador
da formação discursiva. Redizendo e já me posicionando: é o indivíduo que, interpelado pela
ideologia, se constitui como sujeito, identificando-se com os dizeres da formação discursiva
que representa, na linguagem, um recorte da formação ideológica (INDURSKY, 2020, p.
306).
Embora sejamos péssimos sujeitos devido a nossa desidentificação com as FDs vigentes
no texto acima, precisamos entendê-las. Se considerarmos o contexto sócio-histórico, isto é, a
exterioridade, entendemos que essas premissas foram preponderantes para a legitimação de tais
dizeres. Os enunciados, em especial, “a melhor maneira de segurar sua empregada” e “Se você é
destas felizardas que possuem empregada…” (grifos nossos), somados à fotografia de uma mulher
de pele branca, provavelmente a patroa, “abraçando” numa teatralização que sugere uma “prisão” de
uma mulher de pele negra, a empregada, endossam FDs que entendem e reforçam o lugar das
mulheres: i) ambas na cozinha, espaço designado para elas, uma vez que “lugar de mulher é na
cozinha”; ii) a demarcação do território da cozinha: o espaço da patroa difere do espaço da empregada.
Ademais, a figura da mulher de pele negra, usando uniforme, reporta-nos à memória discursiva na
qual essa mulher representa as escravizadas do período colonial, época na qual era legítimo segurar
e possuir seres humanos. Por fim, o discurso capitalista é reforçado pela ideia da compra da cozinha
Todeschini, afinal, é necessário “abrir o olho” com a concorrência para que sua empregada “não fique,
em cima do muro, de conversinhas com a vizinha”.
Assim, ao elegermos esta propaganda, percebemos que há uma identificação do sujeito
com as FDs que o interpelam, o que, de acordo com Pêcheux, chamamos de primeira modalidade.
Indursky (2020), diz que
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Mesmo tendo ocorrido algumas mudanças, ainda nos consideramos péssimos sujeitos,
pois prevalece nossa desidentificação com as FDs vigentes no texto acima.
Nessa propaganda, o discurso capitalista segue evidenciado pelas semioses, trata-se de
um texto de finalidade comercial pelo qual se reforça que “Todeschini é a melhor cozinha que existe”.
Por outro lado, o discurso de gênero, autorizado por FDs, segue produzindo efeitos “parecidos” ao
texto anterior: a mulher continua “no seu lugar” e, agora, servindo a um homem. O enunciado
“Entender de cozinha não significa saber preparar molhos ou temperos especiais” endossa uma
competência que toda mulher “deve ter”: a capacidade de servir. O lugar da mulher, enquanto aquela
que serve, e o lugar do homem, aquele que é servido, apontam para o discurso de gênero que sempre
coloca a figura feminina num espaço desprestigiado em relação ao ser masculino.
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[...] caracteriza o discurso do “mau sujeito”, discurso em que o sujeito do discurso, através
de uma “tomada de posição”, se contrapõe à forma-sujeito e aos saberes que ela organiza no
interior da Formação Discursiva. Essa segunda modalidade consiste em “uma separação
(distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...)” em relação ao que diz a
forma-sujeito, conduzindo o sujeito do discurso a contra-identificar-se com alguns saberes
da formação discursiva que o afeta (INDURSKY, 2020, p. 308).
Em relação a esse terceiro texto, que traduz bem a situação sócio-histórica atual, somos
quase bons sujeitos, uma vez que nos identificamos, em parte, com o discurso presente. Assim como
nos anteriores, o discurso capitalista apresenta-se em sua forma plena: i) pelo enunciado “Minha casa
tem que ser o meu amor”, no qual “amor” acomoda uma ambiguidade – a pessoa e a cozinha
Todeschini; ii) pela representação da fartura de alimentos sobre a bancada e objetos tidos como
elegantes (luminárias, tábuas, acessórios), pelo comportamento consumista reiterado pelo
capitalismo.
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Julgo, pois, que a FD merece que lutemos por ela, desde que se entenda que não é possível
cristalizá-la; desde que ela não se converta em um colete rígido que impeça a fragmentação
da forma-sujeito; desde que se entenda que não há ritual sem falhas e que esta falha permite
que novos saberes podem inscrever-se, obedecendo ao princípio da transformação; desde que
saibamos que esta falha no ritual conduz o sujeito do discurso a apropriar-se de saberes
alheios e inseri-los no âmbito de uma FD. Ou seja: a FD deve ser tomada como uma unidade
dividida em relação a si mesma, a qual comporta em seu interior diferentes posições-sujeito
que representam a fragmentação da forma-sujeito. Penso que é difícil suportar a diferença,
mas é ela que mostra que a FD, e não apenas o discurso, é lugar de tensão e não apenas de
segurança (INDURSKY, 2020, p. 316).
necessidades masculinas, ou seja, o homem passa a servir à mulher. O discurso capitalista, em todos
os textos, foi endossado pelas FDs que interpelam o sujeito. Portanto, nossas hipóteses foram
confirmadas pelas análises realizadas que nos mostram: os sentidos mudam e a cozinha também.
Nesses processos, nos quais trouxemos o sujeito do discurso como foco, nossa pretensão
foi mostrar que a interpelação da ideologia, por meio das tomadas de posição, dá-se por aquilo que
Pêcheux chamou de falha no ritual. Embora não tenhamos espaço para problematizar esse conceito,
faremos a última convocação de Indursky que nos esclarecerá:
É precisamente sobre o que estou chamando de falhas no ritual que penso ser necessário
colocar o foco: no meu entendimento, a falha no ritual remete para uma falha na interpelação
do sujeito, ou seja: é porque o ritual é sujeito a falhas que o sujeito pode se contraidentificar
com os saberes de sua formação discursiva e passar a questioná-los, fragmentando a forma-
sujeito e produzindo diferentes posições-sujeito (INDURSKY, 2020, p. 314).
REFERÊNCIAS
INDURSKY, Freda. Formação discursiva: esta noção ainda merece que lutemos por ela? In:
BARONAS, R. L.; LEANDRO FERREIRA, M. C. (orgs.). Análise do Discurso no Brasil:
mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos/SP: Claraluz, 2007b, p. 163-72.
ORLANDI, Eni P. Texto e discurso. Organon. Porto Alegre, Revista do Instituto Letras/UFRGS, v.
9, n. 23, p. 63-68, 1995.