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O Inferno de Dante: Imagens do

Medo

Commedia, Dante Alighieri


Deixai toda a
esperança, ó vós
que entrais.
(Inferno, Canto III, 9)
A emoção mais antiga e
mais forte da humanidade
é o medo, e o tipo de medo
mais antigo e mais
prazeroso é o medo do
desconhecido.
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Canto I
A meio caminhar de nossa vida
Fui me encontrar em uma selva escura:
Estava a reta minha via perdida.

Ah! que a tarefa de narrar é dura


essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.
(Inf., I, 1-6)
Pinturas de Gustave Doré
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Segundo Cristiano Martins, a Floresta Escura


em que o poeta se vê representa o seu
sentimento de ter sucumbido aos vícios, por
ter se desviado dos bons caminhos, o
caminho das virtudes (segundo Aristóteles)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Floresta:

“a floresta possui toda espécie de perigos e


demônios, de inimigos” (CIRLOT, 1984, p. 25)

Insconsciência, medo de revelações do


inconsciente (CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A., 1990)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Escura:

“a escuridão projetada no mundo ulterior ao


aparecimento da luz é regressiva; por isto se
identifica tradicionalmente com o princípio do
mal e com as forças inferiores não
sublimadas.” (CIRLOT, 1984, p. 25)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

“quando termina o dia, então sobrevêm os


animais maléficos (Salmos, 104: 20), a peste
tenebrosa (Salmos, 91: 6), os homens que
odeiam a luz – adúlteros, ladrões ou
assassinos (Jó, 24: 13-17) [...] O inferno (...) é
o domínio das trevas (Salmos 88: 13)”
(DELUMEAU, J., 1989, p. 96-97)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

O encontro com as três feras ocorre no findar


da noite:

 Onça (pantera ou leopardo) – luxúria e fraude

 Leão – soberba e violência

 Loba – avareza e incontinência


O Inferno de Dante: Imagens do Medo

De acordo com Cristiano Martins, pelos


símbolos da luxúria, o governo de Florença,
da violência, a Casa de França e da avareza,
a Cúria papal.
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

E eis que, ao encetar a rampa certa,


uma onça ligeira e desenvolta,
de pelo maculado recoberta,

saltando à minha frente e à minha volta,


tanto me obstava a via do meu destino
que mais vezes voltei-me para a volta.
(Inf., I, 31-36)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

matinais horas e a doce estação;


mas não tanto que medo não me desse
a vista, que surgiu-me, de um leão

que parecia que contra mim viesse


co’a fronte erguida e com fome raivosa,
parecendo que o próprio ar o temesse;
(Inf., I, 43-48)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

e de uma loba, de cobiça ansiosa,


em sua torpe magreza, carregada,
que a muita gente a vida fez penosa.

Essa tornou-me a alma tão pesada,


pelo pavor manante de sua vista,
que perdi a esperança da assomada.
(Inf., I, 49-54)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
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 Por isso o poeta se vê impedido de


prosseguir até o Monte do Purgatório pelos
vícios aos quais esteve sujeito, suas “feras”
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Segundo Durand (2002), os animais compõem


os símbolos teriomórficos:
 o lobo
é símbolo de medo pânico, ameaça, punição
(séc. XX); encarnação espírito nefasto; animal
feroz por excelência
o leão
semelhante ao lobo; animal terrível; devorador;
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Onça

ferocidade, observação, espreita


“É, portanto, na goela animal que se vêm
concentrar todos os fantasmas terrificantes
da animalidade: agitação, mastigação
agressiva, grunhidos e rugidos sinistros”
(DURAND, 2002, p. 85)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Cantos XXVII e XXVIII


que cobre o fosso onde o tributo paga,
por sua carga, o que adquire desunindo.
(Inf., XXVII, 135-136)

Quem poderia, ainda que em despojada


fala, narrar do sangue e das feridas
que ora eu vi, mesmo vezes recontada?
(Inf., XXVIII, 1-3)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Há um diabo que aqui nos atavia


assim, cruelmente, ao gume de sua espada:
todos golpeia desta companhia

a cada volta da dolente estrada,


pois antes se nos fecham as feridas
de reencontrá-lo à próxima chegada.
(Inf., XXVIII, 37-42)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
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 Nas tradições
judaicas e cristãs, a
importância da porta
é imensa, porquanto
é ela que dá acesso
à revelação.
Chevalier

William Blake – Portal do


Inferno
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

O inferno

O que vem a ser o inferno?!


O Inferno de Dante: Imagens do Medo

De acordo com BECKER (2007, p. 151), o


inferno é um lugar em que todos os mortos
levam uma vida de sombra.
“todos os mortos no inferno levam uma vida de
sombra. Em numerosas religiões é o lugar do
castigo no além, o tradicional oposto do céu, o
reino dos cruéis dominadores do outro mundo ou
do diabo. Geralmente representado como lugar de
calor insuportável ou de tormentos pelo fogo,
raramente como lugar de frio gelado.”
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Já de acordo com Nogueira (1986, p. 45), o


inferno é um lugar repleto de “lagos de fogo e
gelo, bestas formidáveis que se alimentam das
almas dos avarentos e dos religiosos infiéis
aos seus votos, e pântanos fumegantes
repletos de sapos, de serpentes e outros
animais hediondos, que somente uma fantasia
desenfreada e mórbida poderia conceber”
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Para Dante, conforme relado de Thomaz Eliot,


o inferno não é um lugar e sim um estado, pois
“o Inferno embora sendo um estado, é estado
que só pode ser pensado e mesmo
experimentado pela projeção de imagens
sensoriais” (ELIOT, 1989, p. 79-80)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

As punições associadas aos elementos


Água

Ar

Fogo

Terra
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
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O Inferno de Dante:
Imagens do Medo
assim, sob um penhasco alcantilado,
vimos estrondear essa água escura
que nos teria bem logo atordoado.

(…)

que vi através desse ar pesado e escuro


subir nadando um vulto singular,
(Inf., XVI, 103-105; 130-131)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo
aqui as almas carrega a ventania,

(…)

E, como grous cantando o seu lamento,


que longas trilhas formam no ar passando,
assim, trazidas pelo negro vento,
(Inf., V, 42; 46-48)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
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O Inferno de Dante:
Imagens do Medo

Só, da boca dos furos, ressaltava


pernas pra fora e pés dos penitentes
cujo corpo pra dentro inserto estava.

Por terem todos suas plantas ardentes,


com tanta força as pernas sacudiam
(Inf., XIX, 22-26)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo
E eis que a um que de nós estava perto,
de um golpe, uma serpente trespassou
o colo, onde ele está no busto inserto.

Nem o nem i tão preste alguém traçou


como ele se incendiou, e cinza ardente,
no chão precipitando, se tornou;
(Inf., XXIV, 97-102)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
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Imagens do Medo
Aqui fazem as vis Harpias seus ninhos,
(Inf., XIII, 10)

Têm asas amplas e rostos humanos,


garras nos pés e emplumados os ventres;
(13-14)

e um raminho arranquei de um espinheiro;


gritou seu cepo: “Por que me quebrantas?”

Após de sangue se cobrir inteiro (32-34)


O Inferno de Dante: Imagens do Medo
Maior terror, suponho, não seria
o de Fetón, perdendo a rédea à mão,
enquanto o céu de fogo se tingia;

nem o de Ícaro, ao ver, em ascensão,


soltas as penas da inflamada cera,
ouvindo o pai gritar-lhe: "Não vai, não!"

- do que eu sentia, então, naquela espera,


suspenso sobre o poço, sem ver nada
mais que a silhueta lúrida da fera.
(Inf., XVII, 106-114 – Cristiano Martins)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Medo maior não creio ter havido


quando Faetonte abandonou o comando
e deixou o céu, como inda o mostra, ardido;

nem quanto achou-se Ícaro miserando


a desplumar pela aquecida cera,
com seu pai a gritar: “Estás errando!”,

do que eu senti quando vi que estivera


no ar por todo lado, e apagada
outra vista que não da própria fera.
(Inf., XVII, 106-114 – Ítalo Mauro)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo

Essa descida que Gerión proporciona marca a


transição dos pecados mais leves para os
traidores, passando pelo longo e pavoroso
mergulho até a fraude e a mentira.
(LEWIS, 2002, p. 125)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Os seres e paisagens chocantes e mitológicos que


Dante e Virgílio encontram pelo caminho.
“os séculos XI e XII vêem produzir-se, ao menos no
Ocidente, a primeira grande ‘explosão diabólica’ que
ilustram para nós o Satã de olhos vermelhos, de
cabelos e asas de fogo do Apocalipse de Saint-Sever,
o diabo devorador de homens de Saint-Pierre-de-
Chauvigny, os demônios de Autun, as criaturas
infernais, que em Vézelay, em Moissac ou em Saint-
Benoît-sur-Loire, tentam, possuem ou torturam os
humanos.” (DELUMEAU, 1989, p. 239)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

A partir do século XIV a


atmosfera na Europa se
torna pesada. Há uma
progressiva invasão
demoníaca. A Divina
Comédia, segundo
Delumeau, marca essa
passagem de uma época
em que o diabo estava
contido e quando a
sociedade deixa de resistir
à convulsão do satanismo.
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Duas formas refletidas pela iconografia:

“Um alucinante conjunto de imagens infernais e


a idéia fixa das incontáveis armadilhas e
tentações que o grande sedutor não cessa
de inventar para perder os humanos”
(DELUMEAU, 1989, p. 240)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo
“Vexilla regis prodeunt inferni
pra cá, portanto tu para frente mira”,
começou o Mestre meu, “e bem discerne.”

e decidiu o Mestre me mostrar


o ser que teve tão belo semblante,

E agora o rei do triste reino eu vejo,


de meio peito do gelo montante;
e mais com um gigante eu me cotejo
(Inf, XXXIV)
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo
Se belo foi quão feio ora é o seu modo,
e contra o seu feitor ergueu a fronte,
só dele proceder deve o mal todo

Mas foi o meu assombro inda crescente


quando três caras vi na sua cabeça;
toda vermelha era a que tinha à frente,
(Inf., XXXIV, 34-39)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo
O Inferno de Dante:
Imagens do Medo

Lúcifer na cúpula do batistério em Florença

Influencia para o futuro Lúcifer de Dante.


O Inferno de Dante: Imagens do Medo

“The enjoyment of the Divine Comedy is a


continuous process. If you get nothing out of
it at first, you probably never will; but if from
your first deciphering of it there comes now
and then some direct shock of poetic
intensity, nothing but laziness can deaden the
desire for fuller and fuller knowledge.”(ELIOT,
1951, p. 238)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

“O prazer da Divina Comédia é um processo


contínuo.Se você nada consegue na primeira
leitura, provavelmente jamais conseguirá; mas
se da primeira decifração que você faz dela,
advém aqui e ali algum choque direto de
intensidade poética, só a preguiça amortecerá
o desejo de um conhecimento mais completo”
(ELIOT, T. S, 1989, p. 64)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

 Dante percorre o inferno e o purgatório para


somente então chegar ao paraíso, que é
repleto de luz, tanta luz que incomoda.

 “Os apocalipses judaicos já haviam descrito


a ressurreição como um despertar após o
sono da noite, um retorno à luz após
mergulho na escuridão total do xeol”
(DELUMEAU, J., 1989, p. 97)
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

Para que caímos, senhor? Para


aprendermos a levantar!
(Alfred, Batman Begins)
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 Referências
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução de Ítalo Eugênio Mauro.
São Paulo: Editora 34, 1998.

BECKER, Udo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Paulus, 2007,


p. 151.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.


Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1990.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Tradução de Rubens


Eduardo F. Frias. São Paulo: Ed. Moraes, 1984.
O Inferno de Dante: Imagens do Medo

DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade


sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 2.ed. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2001.

ELIOT, T. S. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.

______. Selected Essays. London: Faber and Faber, 1951.

LEWIS, R. W. B. Dante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.


O Inferno de Dante: Imagens do Medo

LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural em literatura. Tradução Celso


M. Paciornilk. São Paulo: Iluminuras, 2007

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. Editora


Ática, São Paulo,1986.

REYNOLDS, B. Dante: O poeta, o pensador político e o homem.Tradução


Fátima Marques. Rio de Janeiro: Record, 2011.

STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008.

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