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PRINCIPIA ETHICA

G. E. Moore

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
C. E. Moore
PRINCIPIA ETHICA

G. E. MOORE

Tradução de
Maria Manuela Rocheta Santos
Isabel Pedro dos Santos

SElt VIÇO DE EDUCAÇÃO


FVNDAÇÀO CALOUSTE GULBENKIAN
Tradução do original inglês intitulado
Principia Ethica,
de George E. Moore
Publicado com autorização de
Syndicate of the University of Cambridge Press
2 ed. revised edition, 1993
Prefacio da 2.' edição © Timothy Moore

Reservados todos os direitos de ham10nia com a lei

Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
A v. de Berna I Lisboa
1999
ISBN 972-31-0858-5
INTRODUÇÃO

No início de 1992, Timothy Moore doou à Biblioteca


da Universidade de Cambridge uma vasta colecção de manus-
critos filosóficos de seu pai . Essa colecção inclui um extenso
texto intitulado "Prefacio da segunda edição", o qual, apesar
de incompleto, possui um considerável interesse intrínseco.
Quando tive acesso a esse manuscrito, cujo conteúdo tinha
sido descrito pelo Dr. C. Lewy (na sua conferência "G. E.
Moore on the Naturalistic Fallacy"1), sugeri à Cambridge Uni-
versity Press que o mesmo fosse publicado numa nova edição
de Principia Ethica. Acontece que, por razões diferentes, a edi-
tora estava já a considerar a possibilidade de publicação de uma
nova edição da obra. Assim, a sugestão foi acolhida de bom
grado, já que a inclusão de um prefacio inédito emprestaria
ainda maior significado à nova edição. Por coincidência, acon-
teceu também que a editora Routledge estava a planear a saída
de uma nova selecção de textos filosóficos de Moore com
especial incidência nos seus escritos metafisicos.2 Parecia assim
que seria interessante alargar a nova edição de Principia Ethica,
a qual funcionaria como uma colectânea de escritos éticos do
autor, com a inclusão de dois importantes textos de uma fase
posterior da sua obra sobre ética que, encontrando-se esgota-
dos, acabariam por se perder. Trata-se do capítulo de Ethics
intitulado "Free Will" ("Livre vontade") e o artigo sobre
"The Conception of Intrinsic Value" ("O conceito de valor
intrínseco") , de Philosophical Studies. Havendo uma relação

' Proceedi11gs ef the British Acade111y L (1964), pp. 251 -62.


2
C. E. Moore: Sclected Writi11gs, ed. T. R. Baldwin (Ro utledge ,
-
London: 1993).

[5]
temáti ca muito evidente entre o in édito "Prefác io da segunda
edição" e o artigo "O conceito de valor intrínseco", torn a-se
assim do maior interesse a inclusão de ambos nesta edição.
É óbvio que, com a escrita do novo prefacio, Moore
pretendia fazer sair uma segunda edição de Principia Ethica . Na
altura, Moore desistiu e quando a obra foi de novo publicada,
em 1922, com apenas algumas correcções textuais, essa nova
publicação não foi considerada como uma segunda edição. Os
parágrafos ini ciais do prefácio sugerem que Moore tinha efec-
tivamente planeado efectuar uma revisão substancial do pró-
prio texto, o que se confirma numa carta enviada pelo autor
à Cambridge University Press, em Novembro de 1921 , na
qual refere ter "em última análise desistido da ideia de pre-
parar uma Segunda Edição da minha obra Principia Ethica,
dado que as correcções necessárias para que essa edição repre-
sente as minhas opiniões presentes seriam tão numerosas que
apenas uma obra totalmente nova satisfaria essas condições" .3
Embora não tenha sido possível encontrar qualquer corres-
pondência relativa ao prefacio ora publicado, creio poder con-
cluir que Moore tenha planeado escrevê-lo em finais de 1921,
quando desistiu da ideia de uma revisão total da obra. Espe-
rava certamente o autor poder fornecer desse modo uma indi-
cação dos aspectos que considerava menos satisfatórios na
obra, esclarecendo simultaneamente quais as proposições que
considerava "de uma forma geral, verdadeiras" ou "importan-
tes de realçar". O estado incompleto do manuscrito demons-
tra que Moore acabou por concluir que nem esse pequeno
projecto poderia ser levado a cabo de forma satisfatória, tendo-
-o abandonado e optado por acrescentar apenas algumas con-
siderações ao prefácio da primeira edição aquando da nova
publicação em 1922. Assim, ao ler o novo prefácio, há que ter
em conta o facto de Moore ter explicitamente decidido não
o publicar. Embora se trate de um guia de inestimável inte-

3
A referida ca rta encontra-se no arquivo da Cambridge University
Press, na Biblioteca da Universidade de Cambridge.

[6]
resse relativamente ao pensamento posterior de Moore sobre
a teoria ética, esse texto não tem , por assim dizer, a chan cela
do autor.

A obra Principia Ethica foi publicada em Outubro de


1903. Lytton Strachey, que era amigo de Moore, leu-a de
imediato e, entu siasmado, escreveu ao autor:
Acho que o seu livro não só destruiu e esmagou todos
quantos escreveram sobre Ética, desde Aristóteles e C risto até
H erbert Spencer e Mr. Bradley, não só lançou as verdadeiras
bases da Ética, não só deixou bafouée toda a filosofia moderna
- esses são , quanto a mim, pequenos êxitos quando compara-
dos com o estabelecimento do M étodo que brilha po r entre
as linhas do seu texto como uma espada. Trata-se do m étodo
científi co deliberadmente aplicado, pela primeira vez, ao
R aciocínio .. . O início da Idade da Razão tem , para mim, a
4
data de Outubro de 1903.

N ão é muito provável que o entusiasmo hiperbólico de


Strachey tenha eco hoje em dia, mas certo é que Principia
Etlúca continua a ser um dos tratados de ética fundamentais
deste séc ulo - importante tanto pelo conceito de teoria ética
qu e propõe, como pela sua celebração do valor da Arte e do
Amor. Inicialmente, a influ ência da obra restringiu-se sobre-
tudo ao círcul o de discípulos e amigos do autor, tai s como
Lytton Strachey, Leonard Woolf e Maynard Keynes, que
conheciam j á os contornos prin cipais das posições teóri cas de
Moore. Contudo, depois da segunda publicação de Principia
Ethica em 1922, quando a influ ência da fil osofia idealista de F.
H . Bradley e o utros desaparecia rapidamente, a obra foi reco-
nhecida como um clássico da teori a éti ca analítica .

4
Ca rta de L. Strachey a M oore, 11 de Out ubro de 1903; a ca rta faz
parte do espóli o de Moo re existente na Biblioteca da Uni versidade de
Ca mbridge.

[7]
M oore tinha apenas trinta anos quando a obra foi publi-
cada. Aproximava -se o fim do seu contrato como " Prize
Fell ow" de Trinity College, em Ca mbridge, o nde estudara
anteriorm ente os C lássicos e C iências M orais (ou sej a, Filo-
sofi a) enquanto alun o de licenciatura, grau qu e obteve em
1896 co m distinção na 2: parte do exa me fin al " Tripos" de
C iências M orais. N aqu ela altura, um a das hipóteses para
qu em pretendia seguir um a carreira académi ca era a de obter
um lu gar de " Prize Fellow" no co légio, sendo a escolha dos
can didatos feita na base da apresentação de uma dissertação.
Assim , um ano depois de obter a licenciatura, em 1897, M oore
apresentou uma dissertação ao Trinity College. N ão tendo
sido escolhido nessa ocasião, M oore passo u o ano seguinte a
reescrever a dissertação e apresentou a nova versão em 1898,
sendo eleito para ocupar o referido posto durante seis anos.
A maior parte do texto das du as dissertações de M oore
ainda existe 5 e como sugere o títul o (comum) - " A base
metafisi ca da Éti ca" - as teses podem ser consideradas como o
ponto de partida de um proj ecto intelectual qu e culmina em
Pri11npia Ethica. Efectiva mente, ambas as teses com eçam com
uma introdução em que M oore critica aquilo a qu e chama "a
fa lácia existente em todas as defini çõ es do bem " - uma linha ,
de pensamento que, descrita depois como "falácia natura-
lista", constitui um dos temas centrais dos Principia Ethica. N o
entanto, as dissertações diferem radicalmente no qu e se refere
aos pressupostos a partir dos qu ais o autor critica as teorias de
valor empiristas ou naturalistas. No texto de 1897, M oore
5
Os textos encontra m-se na Biblioteca de Trini ty College, Cam-
bridge. Um dos primeiros arti gos de M oo re, " Freedom " (111i11 d 11 .s. 7. 1898,
pp . 179-204), correspo nde a um ex tracto da disse rtação de 1897 e consti-
tui um a indicação sobre o co nteúdo temático dessa mesma tese, apesa r de
o autor ter introdu zido algumas alterações para efeitos de publicação.
O a1tigo seguinte "The N ature ofjudgement" (Mi11d 11 .s.8, 1899, pp. 176-93)
é um excerto da tese de 1898 e, se o co mpararmos com " Freedo m" , to rna-
-se evide nte a evolu ção radical da metafisica m ooreana da altura. Ambos os
artigos fo ram pu bli cados em G. E. 1\1/oore: T he Earl y Essays, ed . T. R ega n
(Temple Uni versity Press, Philadelphia: 1986) .

[8]
contenta-se em aceitar a tese idealista segundo a qual o mundo
empírico espacio-temp oral que nos é familiar é uma teia de
aparências baseada numa realidade intemporal que transcende
as nossas percepções: Moore afirma até que há uma relação
necessária entre essa realidade transcendent e e o valor. Con-
tudo, um ano mais tarde, o autor perdeu já a fé nessa realidade
transcendent e e com ela perdeu também a base metafísi ca da
ética que estabelecera na primeira versão. Mas Moore não
muda para uma posição abrangente de realismo empínco, o
que implicaria uma teoria de valor empirista (ou naturalista).
Em vez disso, pelo menos no que diz respeito à sua teoria
ética , o autor mantém um resíduo do seu anterior idealismo
ao adoptar uma concepção quase-platón ica dos valores como
objectos abstractos, desligados da realidade empírica e, no
entanto, tão reais como qualquer objecto empírico (ver Prin-
cipia Ethica - Parágrafo 66). A partir dessa nova posição, o erro
comum das teorias empirista e idealista da ética consiste no
facto de não fazerem justiça à realidade abstracta de valores ao
tentarem integrar valores éticos em teorias não éticas mais
amplas (empíricas ou metafísicas).
As dissertações de Moore lançaram a base a partir da
qual o autor articula a sua metafísica do valor em Principia
Ethica. O estádio seguinte do desenvolvimento do pensamento
de Moore está patente no texto das conferências relativas a um
curso que ministrou em Londres, nos finais de 1898, logo
após ter tomado posse do cargo de "Fellow", com o título
"Os elementos da Ética com vista a uma apreciação da Filo-
sofia Moral de Kant". Moore escreveu os textos de cada con-
ferência antecipadamente, tendo depois mandado dactilografa-
-los com a intenção de os compilar sob a forma de livro; o
texto existe ainda ,6 tendo sido recentement e publicado com o

" Há duas cópias no espólio de Moore existente na Biblioteca da Uni-


versidade de Cambridge, em que se inclui agora també m o texto manusc rito
das conferências subseq uentes de Moore (Primave ra 1899) sobre a filosofia
moral de Kant. Essas conferências têm muito em comum com a tese de 1898
do autor, cobrindo os mesmos aspectos de uma forma muito semelh ante.

f9l
título The Elements of Ethics. 7 Em 1902, os membros do Se-
nado da Cambridge University Press concordaram em publicar
uma versão revista dessas conferências, sendo Principia Ethica
claramente o resultado desse processo de revisão (as respectivas
actas referem-se ao livro proposto como "Moore: Princípios
da Ética"). 8 Uma grande parte do texto dos primeiros três capí-
tulos da obra é retirada 11erbatim das conferências, embora os
últimos três capítulos difiram significativamente do conteúdo
daquelas. Em apêndice a esta edição, incluí um guia da relação
entre os dois textos, o qual mostra quais os parágrafos de Prin-
cipia Ethica que são realmente novos (significativamente, é novo
o famoso argumento da "questão em aberto" - do parágrafo
13); o guia revela ainda o modo como, em Principia Etica,
Moore justapôs directamente alguns passos que, no ori~inal,
pertenciam a conferências diferentes de Os Elementos da Etica -
característica do texto de Principia Ethica, especialmente o capí-
tulo 1, que, sem dúvida, contribui para a sua dificuldade.
Enquanto estudava em Cambridge, Moore mantinha
contactos regulares com Henry Sidgwick, então Professor de
Filosofia em Cambridge e "Fellow" de Trinity College. Moore
frequentou as aulas de Sidgwick, chegando a fazer trabalhos
para ele sobre temas tão conhecidos como "O egoísmo e o
altruísmo" e "A relação da razão com a acção moral". No
9

entanto, as relações entre ambos nunca foram especialmente


íntimas: Sidgwick era já velho (veio a falecer em 1900) e
Moore achava as suas aulas "bastante aborrecidas" . °Contudo,
1

7
The Elemellls ef Ethics, ed. T. Regan (Temple University Press,
Philadelphia: 1991 ).
" A questão foi discutida a 14 de Março de 1902 e, de novo , em 12
de Abril do mesmo ano. A acta do Senado encontra-se na Biblioteca da
Universidade de Cambridge.
" Esses ensaios, co m anotações feitas à margem por Sidgwick, fazem
parte do espólio de Moore existente na Biblioteca da Universidade de
Camb ridge.
10
G. E. M oore, " An Autobi ography", p. 16 in Th e P/,i/osophy ef G.
E. Moore, ed. P. A. Schilpp (3rd edn , Open Co urt , La Salle: 1968).

[1 0)
Moore estudou a obra prima de Sidgwick, The Methods of
Ethics, 11 com a maior atenção e existem muito mais referên-
cias a essa obra em Principia Ethica do que a qualquer outra.
De facto, dois dos temas centrais de Principia Ethica são desen-
volvimentos de raciocínios já presentes em Th e Methods of
Ethics. 12 A tese de Moore segundo a qual quase todos os teóri-
cos éticos anteriores tinham cometido uma falácia , a "falácia
naturalista" da tentativa de definição da bondade, é uma expan-
são da tese de Sidgwick segundo a qual o conceito da razão
prática é a marca característica, mas indefinível, do pensamento
ético. 13 De igual modo, o "utilitarismo ideal", 14 não-hedonista,
de Moore, na medida em que defende que deveríamos sem-
pre agir de modo a que a nossa acção tenha as melhores con-
sequências possíveis, quando estas não são apenas consequên-
cias que maximizam o prazer, tem como ponto de partida a
observação de Sidgwick segundo a qual uma explicação utili-
tarista da obrigação, com a qual concordava, necessita ser suple-
mentada por uma especificação intuicionista dos fins ideais da
acção. 15
Apesar dessa evidente relação intelectual, seria errado
considerar a obra Principia Ethica como uma mera reafirmação
de posições teóricas que já se prefiguravam em The Methods of
Ethics. O estilo das duas obras é bastante diferente: enquanto

11
A obra foi publicada pela primeira vez em 1874; Sidgwick fez
revisões sucessivas do texto , tendo a edi ção fin al, a sé tim a, sido publicada
postumamente em 1907 (Macmillan , Lo ndon).
12
N a recensão crítica perspicaz e de algum modo até favorável qu e
Bosa nqu et faz de Pn.11cipia Erhira (Mi11d 11 .s. 13 11 9041 pp . 254-6 1), o autor
refere a grande influência de Sidgwi ck sobre M oore.
13
Th r Mer/1ods v.f Erhics, 7th edn , Bk. 1, C h. III.
" A expressão " utilitarismo ideal" tem o ri gem na obra de H astin gs
R ashdall , contemporâneo de M oo re - cf. n,e Th eory ef Good m1d Evil
(C larendo n . Oxfo rd: 1907) , p. 84. R ashdall , qu e tinh a sido discí pulo de
Sidgwi ck, fa z uma breve alusão a Pri11ripia Erhira, notando , contudo. qu<' ,
apesa r da sem elhan ça entre as suas posições teó ri cas e as de M oore, o se u
trabalh o havia sido independente.
15
T11e Methods o( Erhics, 7th edn , pp . 400 ss.

[11]
que Moore se preocupa sobretudo com a elaboração de uma
tese metafisica relativa ao estatuto dos valores éticos que con-
sidera de importância absolutamente fundamental para a teo-
ria ética, Sidgwick não se interessava muito pela metafisica do
valor. O que Sidgwick pretendia era elaborar um enquadra-
mento conceptual com base no qual podia fazer justiça tanto
às nossas convicções morais normais, de senso comum, como
às exigências de sistematização da razão refl exiva. Para além
disso, embora de acordo no que se refere à irredutibilidade dos
conceitos éticos, Moore e Sidgwick discordavam totalmente
quanto à questão da relação entre esses conceitos e os objec-
tivos humanos. Moore negava que conceitos como o de bon-
dade tivessem alguma relação com os objectivos humanos, ao
passo que Sidgwick definia a bondade como um resultado
possível em termos das suas implicações relativamente aos
objectivos dos agentes humanos racionais. 16 Esta discordância
manifesta-se claramente nas discussões de ambos os autores
sobre o egoísmo: enquanto Sidgwick afirmava que o conflito
entre o egoísmo e o altruísmo, entre a busca do que é bom
para si próprio e aquilo que é bom em si mesmo, "é uma das
questões éticas mais profundas" 17 , Moore descrevia toda essa
questão como nada mais do que uma trama de confusões, não
havendo um conceito coerente sobre aquilo que é meramente
bom para a própria pessoa. (Principia Ethica, Parágrafos 59-62).

II

Moore dedica os quatro primeiros capítulos de Principia


Ethica à identificação de uma falácia, a "falácia naturalista", da
qual, segundo o autor, enfermam quase todas as teorias éticas
anteriores (à excepçào das de Sidgwick e Platão). O argu-
mento que Moore desenvolve nestes capítulos exerceu , e con-
1
'' T/1e Methods of Ethirs, 7th edn, pp. 109-12. À lu z deste passo, não
fica assim tão clara a razão pela qu al Moore isentou Sidgwick da acusa çã o
de cometer a Faláci a N aturali sta.
17
T/1e Methods <if Erhics, 7th edn , p. 11 O, n. 1.

[12]
tinua ainda a exercer, uma enorme influência . De um modo
geral, Moore co nseguiu persuadir os seus contemporâneos e
os seus sucessores de que existe pelo menos uma profunda
deficiência (se não efectivamente uma "falácia") na maior
parte das teorias éticas " naturalistas" tradicionais. Nem todos
eles ficaram convencidos de que o conceito de valor abstracto e
platónico que Moore contrapunha às teorias naturalistas que
rejeitava fosse em si mesmo defensável: tal conceito parece ser
questionável, tanto por razões metafisicas como por razões
epistemológicas. Assim, muitos foram os que rebateram um
pressuposto que, segundo afirmavam, era defendido tanto por
Moore como pelos teóricos que ele próprio criticava: o de
que os juízos éticos pretendem caracterizar uma matéria de
facto bem definida cuja obtenção lhes faculta as suas con-
dições de verdade. Ao invés disso, propunha-se que os juízos
éticos fossem considerados fundamentalmente como expres-
são de certas emoções ou atitudes. 18
Não é esta a ocasião apropriada para discutir aquelas
posições, as quais encontram ainda muitos adeptos. Pretendo
tão somente mostrar que elas resultam de um processo dialéc-
tico cuja origem se encontra na obra de Moore, em especial
na sua afirmação de que outros teóricos teriam incorrido
numa falácia - a falácia naturalista. O que é exactamente essa
falácia? Como Moore esclarece no " Prefacio da segunda edi-
ção", infelizmente esta pergunta não tem uma resposta sim-
ples. Na discussão da falácia naturalista em Principia Ethica, o
autor oscila entre três teses diferentes, afirmando que a falácia
é cometida (1) pela "identificação de B " (a bondade, que é,
segundo Moore, o conceito ético fundamental) "com um
predicado que não B", ou (2) pela " identificação de B com
um predicado analisá11el", ou ainda (3) pela "identificação de B
com um predicado natural ou metafisico" ("Prefacio da segunda

18
O texto clássico relati vo a esta questão é a obra de C. L. Steven-
son , Ethics a11d La11g11aJe (Yale Universiry Press, New Haven: 1944); cf
também R . M . Hare, T/1e La11g11age of Morais (Clarendo n, Oxfo rd : 1952).

[13]
edição", p. 59). Como também reconhece o autor, a primeira
destas acusações equivale a acusar os opositores de negarem
uma tautologia trivial. Uma vez que se trata de uma acusação
gratuita, provavelmente sem o significado que a acusação da
falácia naturalista pretende ter, as teses importantes associadas
à alegação da falácia naturalista são as que defendem que toda
a bondade é inanalisável e que não é "um predicado natural
ou metafisico" . Moore reconhece que essas teses são indepen-
dentes (p. 55-56) , observando no entanto que podem, em
conjunto, resu1nir-se na tese de que a bondade "não é com-
pletamente analisável em termos de propriedades naturais ou
metafisicas" (p. 56), sendo que a negação deste facto pode ser
tida como equivalente ao cometimento da falácia naturalista .
Ao considerar a posição teórica de Moore, parece-me
ser aconselhável manter separadas aquelas teses, pois são efec-
tivamente independentes umas das outras. No entanto, antes
de continuar, é necessário esclarecer o significado de todas
estas referências à "bondade". No "Pref.kio da segunda edi-
ção" (pp. 43-46), Moore reconhece ter discutido esta quest:10
de modo insatisfatório, explicando estar mais preocupado
com a avaliação de possíveis estados de coisas a fim de deter-
minar quais as acções que devem ser praticadas. Na discussão
dessas avaliações, a autor distingue entre o juízo de que um
estado de coisas é " bom em si mesmo" (ou "intrinsecamente
bom") e os juízos segundo os quais um estado é "bom en-
quanto meio " e "bom enquanto parte". Contudo, dado que
Moore pensa que esses últimos juízos são directamente redu-
tíveis ao primeiro, é o conceito do "bom em si mesmo" ou
do "valor intrínseco" que interessa essencialmente ao autor.
Poderá pensar-se que, ao concentrar a atenção naquele con-
ceito, surge a interferência de um pressuposto ético impor-
tante, nomeadamente, um entendimento utilitário da obriga-
ção, o qual ameaça restringir a amplitude da tese de Moore no
que se refere à inanalisabilidade do valor ético para as teorias
utilitaristas. Creio, no entanto, que embora não haja dúvida
de que o próprio Moore discute essa questão numa perspec-

[14]
tiva amplamente utilitarista, poderá suspender-se esse pres-
suposto nesta fase da discussão, uma vez que ainda não é neces-
sária qualquer explicação da determinação das obrigações
através da avaliação de possíveis estados de coisas.
Assim, a tese de que a bondade é inanalisável torna-se de
facto numa teoria sobre a natureza da avaliação de possíveis es-
tados de coisas, na medida em que o conteúdo dessas avalia-
ções não é passível de ser identificado no contexto de uma
teoria mais ampla que não utilize, explícita ou implicitamente,
a avaliação como um princípio básico. No "Prefacio da se-
gunda edição" (pp. 54-56), Moore considera duas formas de
contestar essa tese: a primeira, pela afirmação de que o con-
teúdo dessas avaliações pode ser conferid, i por meio de uma
explicação das obrigações do sujeito; a segunda, pela afirma-
ção de que o mesmo conteúdo pode ser dado no contexto de
uma teoria psicológica, sociológica ou teológica não valora-
tiva. A primeira destas contestações parece, por assim dizer,
querer "colocar o carro à frente dos bois", já que os juízos re-
lativos ao valor intrínseco dos estados de coisas deveriam ser
capazes de permitir a um agente a possibilidade de determi-
nar o que deveria fazer e não o contrário; no entanto, pode-
mos até certo ponto salvar as aparências pela distinção entre as
obrigações prima facie (que serão entendidas como fornecedo-
ras do conteúdo dos juízos de valor intrínseco) e as obrigações
inclusivas (que são então determinadas pelas obrigações prima
facie relevantes) . Não precisamos, contudo, de nos preocupar dema-
siado com esta contestação relativa à tese de Moore, uma vez que o pró-
prio esclarece no "Prefácio da segunda edição" (p. 46) que, enq uanto
se aceitar que o conceito de obrigação (ou direito ou dever) é um con-
ceito ético, o autor não considera que este tipo de co nsidera-
ções coloque ameaças sérias à sua tese, a qual se ocupava basi-
camente da inanalisabilidade dos conceitos éticos em termos
dos não-éticos.
Desse modo, são principalmente as teses do segundo
tipo que Moore se preocupa em rejeitar: a sua tese relativa à
inanalisabilidade da bondade é uma tese que afirma a irredu-

[15]
tibilidade do conteúdo do pensamento ético. Antes, porém,
de considerarmos os motivos pelos quais Moore nega aquela
teoria, valerá a pena sublinhar o facto de que a questão se
prende com a especificidade do conteúdo dos juízos éticos:
não se trata da possibilidade de os deduzir com base em pre-
missas não éticas. Esta última questão é normalmente associada
a Hume e à possibilidade, ou não, de se derivar um " deve" de
um "é". Na produção crítica, a negação de Hume de que essa
derivação seja possível tem por vezes sido identificada com a
tese de Moore sobre a inanalisabilidade da bondade. No
entanto, a teoria de Moore demonstra que tal é um erro, pelo
menos se avançada antes de outros argumentos, pois embora
o autor afirmasse que o valor intrínseco é inanalisável , combi-
nava também a sua definição utilitarista ideal da obrigação
com a tese segundo a qual o valor intrínseco de um estado de
coisas depende das suas propriedades naturais, considerando
ainda que essa dependência se baseia em rel ações necessár ias
entre as propriedades naturais e o valor intrínseco. Assim, para
Moore, é possível derivar um "deve" de um "é".
O famoso argumento de Moore relativo à inanalisabili-
dade da bondade consiste na afirmação de que, seja qual for a
análise que se faça (por exemplo, que pensar que algo é bom é
pensar que vai satisfazer os meus desejos), poderemos ainda en-
contrar um sentido essencial na questão de se um estado de
coisas que satisfaz a análise possui realmente valor intrínseco
(por exemplo, um estado que satisfaz os meus desejos é, ipso
facto, bom?) - enquanto que, se a análise estiver correcta, a per-
gunta parecer-nos-á uma trivialidade sobre a verdade de uma
tautologia. 19 Este argumento levanta questões complexas relati-
vamente aos critérios de aceitabilidade de uma análise concep-

Como faz notar Rashdall (Tl, e Tl, eNy <if Good a11d Evil, vol. I,
19

p. 135 , n. 1), tal argumento a favor da inan alisabilidade dos con ce itos éti-
cos, que Moo re apropria sem referenciar a o rigem, tinha sido utilizado por
Sidg,.,vick, que o atribuíra ao m o ralista do sécul o XVI II Ri chard Pri ce (cf
Sidg,.,vick, 011tli11 es of rl,e History of Erl,ics fM ac mill an , London: 5th edn ,
1902] , pp. 224-6).

[16]
tua! proposta - não qu eremos aceitar que uma análise tenha que
nos parecer trivial para a aceitarmos.2° C reio, no entanto, qu e
podemos contornar essas questões até certo ponto, pressupondo,
na perspectiva de Moore, que, se uma análise conceptual é cor-
recta , então, ao depararmo-nos com ela, ela deverá acabar por
nos parecer completamente aceitável como orientação possível
dos nossos pensamentos e juízos, mesmo que à primeira vista
nos parecesse óbvia; e a objecção de Moore a algumas análises
de valor intrínseco propostas é precisamente que não somos
capazes de chegar a essa assim.ilação reflexiva. O conceito de
valor intrínseco parece possibilitar a persistente reinserção de
questões sérias sobre o valor intrínseco numa teoria que pre-
tende proporcionar uma explicação redutora dessas questões .
Até agora, o argumento tem apenas a ver com a fenome-
nologia do pensamento ético e, em Principia Ethica, essa fun-
damentação parece ser suficiente para Moore. Os críticos de
Moore dirão que é preciso mais para demonstrar qu e essa feno-
menologia não é apenas uma ilusão - um resíduo não reco-
nhecido, quiçá, da crença religiosa; e a história da teoria ética
do século vinte contém várias tentativas de explicação de con-
ceitos éticos que provam porque é que a tese de Moore está
correcta.21 Não vou sequer tentar discutir esses aspectos, mas
é importante referir sinteticamente a questão que me parece
central em qualquer tentativa de justificar a tese de Moore rela-
tiva à irredutibilidade dos juízos de valor intrínseco. Para isso,
parece-me que devemos começar por reconh ecer que esses
juízos estão ligados a juízos sobre a natureza da vida human a,
2
" O próp ri o Moore tinh a dado atenção a essas questões ao fo rmu -
lar, em trabalhos posteriores, o co nceito do " paradoxo da análise", o qu al
efec tivamente implica qu e, para ser ve rdade ira, a análise tem qu e ser tri vial;
cf C. H. Langford, " The Notion of Analysis in Moore 's Philoso ph y", in
The P/11/osopl,y of G. E. Moore, esp. p. 323 e ainda M oo re, " A R eply to my
C riti cs" , na mesma obra, esp. pp . 665-6. Relativamente a discussões mais
recentes do mesmo co nceito , ver T. Baldwin , G. E. Moore (R o utl edge,
London: 1990), pp. 208-14 .
21
A mais co nh ecida é a tese de R. M. Hare, segundo a qual o pen-
samento ético é claramente prescriti1m; cf T /1 e La11g1111ge of Mora is, p. 30.

[1 7]
no que se refere sobretudo aos propósitos e aos interesses ge-
rais que disponibilizam os elementos e estruturam o sentido
que um indivíduo possui da sua identidade. Reconheço que
esta tese não corresponde ao pensamento de Moore sobre o
valor intrínseco; no entanto, qualquer avaliação assume um
ponto de vista interessado que fornece os critérios pelos quais
as coisas a avaliar são avaliadas, e, uma vez que o próprio Moore
descreve especificamente o seu entendimento de juízos de
valor intrínseco como os juízos que determinam aquilo que os
agentes humanos deveriam fazer, o que informa os juízos de
Moore é a perspectiva dos agentes humanos reflectindo sobre
o modo como deveriam viver as suas vidas. Assim, a tese da
irredutibilidade centra-se na afirmação de que não existe qual-
quer entendimento dos objectivos da vida humana (um dos
quais, como simples exemplo, poderá ser "a satisfação máxi-
ma dos desejos"), por referência ao qual se possa articular o
conteúdo dos juízos de valor intrínseco, que seja completa-
mente abrangente e totalmente isento de valores. Se tal enten-
dimento existisse, para aqueles que o tivessem interiorizado
completamente, a análise dos juízos de valor intrínseco que ele
implica (por exemplo, que pensar que uma coisa é boa é ape-
nas pensar nela como capaz de satisfazer desejos) não teria o
significado óbvio que Moore afirma ser inevitável. Efectiva-
mente, nas circunstâncias actuais, não me parece que tenhamos
chegado a esse entendimento, porque a nossa compreensão de
nós mesmos é, em grande medida, um efeito das identificações
sociais e dos compromissos individuais que incorporam, também
eles, juízos de valor. São esses juízos de valor que, no actual
estado de coisas, tornam possível o tipo de distanciamento refle-
xivo relativamente às supostas análises para que chama a aten-
ção o argumento fenomenológico de Moore. Contudo, o facto
de que as coisas são assim agora não implica que é assim que
devem ser (nem, o que é ainda mais importante, que tenham
sido sempre assim) . Parece-me então que, para se provar que
a tese de Moore relativa à inanalisabilidade do valor intrínseco
corresponde à verdade conceptual que o autor reclamava, é

[18]
necessáno demonstrar que é uma verdade conceptual que a
perspectiva de um agente humano deliberativo é informada por
um auto-entendimento que inclui já juízos de valor. Deixo em
aberto a questão de se é ou não possível demonstrar-se isso, e,
no caso afirmativo, na base de que pressupostos o é.
A outra tese importante cuja negação Moore descreve
como o cometimento da falácia naturalista é a de que a bon-
dade não é uma propriedade " natural nem metafisica". As
propriedades "metafisicas" são aquelas que se referem a uma
entidade metafisica putativa, como, por exemplo, Deus. Vamos
deixar estes aspectos de lado, uma vez que a tese interessante
- e debatível - é a de que a bondade não é uma propriedade
"natural". Penso que Moore apresenta três definições dife-
rentes do que é, relativamente a uma propriedade, ser natural.
Referi já que, em Principia Ethíca, o autor associa o seu anti-
naturalismo a uma posição platónica segundo a qual as ver-
dades fundamentais relativas à bondade, tal como as verdades
aritméticas, não se referem a coisas com uma existência espá-
cio-temporal; isto parece implicar que todas as verdades rela-
tivas a uma propriedade natural se referem ao mundo espácio-
-temporal. Contudo, Moore aqui aborda a questão de outra
forma. Tentado esclarecer o modo como a bondade, ao con-
trário da qualidade de ser amarelo, não é uma propriedade
natural, Moore encontra um problema: uma vez que afirma
também que enquanto universal abstracto, a propriedade "ama-
relo" é tão não-empírica e não-natural quanto a bondade -
por esse motivo, quanto a este aspecto, nada de específico se
pode reclamar relativamente à bondade. Do mesmo modo, tal
como alguns objectos naturais são amarelos, assim também
alguns são bons, não sendo por isso a falta de exemplos natu-
rais uma marca de bondade. De que modo, então, é que a
bondade pode ter uma especificidade própria? Segundo Moore,
enquanto que as propriedades naturais de um objecto são
partes dele que são independentes e que co nferem ao objecto
toda a sua substância (Principia Ethica - cf. Parágrafo 26, cf.
Parágrafo 73), a sua bondade não é, como aquelas , uma parte

(1 9]
independente dele, sendo esse o motivo fundamental por que,
em Principia Ethica, o autor considera que a bondade não é
uma propriedade natural. Trata-se de uma perspectiva pecu-
liar, que levanta outras questões relativamente a alguns aspec-
tos da metafisica mooreana da relação parte / todo na altura
(e que o autor veio a abandonar relativamente pouco tempo
depois); no entanto, essa perspectiva está aberta a uma rein-
terpretação, tal como a teoria de que o que é específico rela-
tivamente à bondade é que se trata de uma propriedade essen-
cialmente derivativa, dependente de outras propriedades de
estados de coisas bons, e, como tal (como veremos), acaba por
vir a ocupar um lugar de destaque nas reflexões éticas poste-
riores de Moore. Mas, nessas reflexões , o autor não considera
essa característica como prova definitiva do facto de a bondade
não ser uma propriedade natural: em vez disso, no "Prefacio
da segunda edição", depois de reconhecer que Principia Ethica
não define de forma satisfatória o que é uma propriedade na-
tural, Moore afirma que a melhor definição que pode propor
é a de que uma propriedade é natural quando se trata de uma
" propriedade cujo estudo compete às Ciências Naturais ou à
Psicologia" (p. 55).
Como Moore admite, esta terceira definição não é com-
pletamente satisfatória, já que precisa de ser complementada
por uma explanação daquilo que torna uma ciência "natural"
e por uma demonstração de que o estudo da bondade não é
do foro próprio da Psicologia - o que certamente não é tarefa
facil. Há, no entanto, uma pequena modificação que pode evi-
tar essas dificuldades, mantendo-se, contudo, fiel ao espírito
da proposta de Moore: para uma propriedade ser natural é
preciso que seja causal - ou, por outras palavras, que a sua pre-
sença, em condições adequadas, gere determ.inados efeitos.
Muitos filósofos contemporâneos afirmam que, dessa forma ,
todas as propriedades genuínas são causais; 22 mas não é neces-

22
Cf. S. Shoemaker, "Causality and Properties", in Identity, Ca11se,
m1d Mi11d (Ca mbridge University Press, Ca mbridge: 1984).

[20]
sário tomar aqui uma posição definitiva sobre a questão, por-
que, através dessa definição do que é, no caso de uma pro-
priedade, ser natural, evitamos a necessidade de especificar
quais as ciências que são naturais, bem como a de argumentar
que a Psicologia não inclui a bondade, ou valor intrínseco, no
seu âmbito. Pelo contrário, a tese antinaturalista de Moore
relativa à bondade é assim interpretada como a tese de que a
bondade, ou valor intrínseco, não é uma propriedade causal,
o que, embora não sendo trivial, parece absolutamente cor-
recto. Apesar do título da disciplina que Moore estudou em
Cambridge, "Moral Sciences Tripos", 23 não existe qualquer
ciência que estude as funções causais do valor intrínseco. É, no
máximo, na teologia que se podem encontrar afirmações
como as de que o bem tem o poder de triunfar sobre o mal;
mas nem mesmo essa asserção pode realmente ser considerada
causal, e terá, de qualquer modo, que ultrapassar as dúvidas
cépticas induzidas pela questão tradicional do mal.
Desse modo, parece-me que, à luz desta interpretação, a
tese antinaturalista de Moore relativa à bondade é correcta.
Mas como é que ela se articula com as outras interpretações
da tese antinaturalista? Consideremos a primeira interpretação
platónica: se a bondade é uma propriedade platónica abstracta,
então não possui o poder de provocar alterações ao nível do
mundo espácio-temporal; assim sendo, a interpretação plató-
nica implica a interpretação a-causal. O inverso, contudo, não
é verdadeiro. Por exemplo, a tese segundo a qual o valor in-
trínseco não é uma propriedade causal poderá ser combinada
com a perspectiva (que referi quando se discutia a tese de que
a bondade é inanalisável) de que os juízos de valor intrínseco
se referem aos interesses e preocupações dos agentes humanos
quando se questionam sobre como deverão agir. Todavia, esse
entendimento do valor intrínseco implica que as questões

21
·O term o " M oral Sciences" (ciências morais) tem origem na o bra
de J S. Mill , Sysre111 vf Lilgic (Book VI ) e, de facto , signi fi ca apenas "ciên-
cias humanas".

(21]
relativas ao valor intrí nseco dos estados de coisas não são total-
mente abstraídas a partir de todas as matéri as de fac to, como
exige a tese platónica .
Esta concl usão implica qu e du as das linhas do anti - natu -
ralismo de Moore não são equivalentes. As coisas tornam-se
mais complicadas ainda quando se introdu z a terceira inter-
pretação, a qu e tem origem na tese que M oore defende em
Principia Ethica segundo a qu al, ao contrári o das suas proprie-
dades naturais, o va lor intrínseco de uma coisa não constitui
um a " parte" substancial e independente dela. Despoj ada dos
termos da metafisica parte/ todo, esta posição teórica não parece
muito diferente da qu e é afirmada no " Prefácio da segunda
edi ção" (p. 65) e em "O conceito de valor intrínseco" (p. 360),
na medida em qu e o valor intrínseco de um estado de coisas
não pertence à natureza intrínseca desse estado, embora dependa
dessa natureza intrínseca; assim sendo, concentrar-me- ei nesta
formulação. O termo-chave é " intrínseco"; as explicações de
Moore relativas ao uso do termo não são muito claras (espe-
cialmente no " Prefácio da segunda edição"), embora pareça
razoavelmente evidente (especialmente a partir dos termos
qu e o autor utili za em oposição a ele - "externo" e " contin-
gen te") qu e os aspectos modais são especialmente relevantes;
"intrínseco" implica "essencial" . Muitas vezes, " intrínseco" im-
plica também " não relacio nal" . C reio qu e é possível pensar-se
qu e o conceito da " natureza intrínseca" de algo que M oore
propõe tem ambas as impli cações, a " não relacio nal" e a es-
sencialista. Poderá pôr-se em qu estão que os estados de coisas
possuam realmente, nesse sentido, uma " natureza intrínseca",
mas é possível aproximarmo-nos o suficiente da posição de
Moore se entendermos que os poderes causais inerentes a um
estado de coisas podem ser considerados como aquilo que
constitui a sua " natureza intrínseca" , uma vez qu e são não
relacionais e essenciais. Partindo deste entendim ento da natu-
reza intrínseca de um estado de coisas, podemos agora inter-
pretar a tese de M oore de que o valor intrínseco de um estado
não pertence à sua natureza intrínseca com o uma tese qu e

[22)
defende que o valor intrínseco não é uma propriedade causal
- uma tese que já encontrámos e que considerámos perfeita-
mente aceitável.
E o que dizer do próprio carácter intrínseco do valor
intrínseco? E sobre a teoria de Moore que afirma que ele
depende apenas da natureza intrínseca daquilo que tem valor?
Se considerarmos que a dependência do valor intrínseco surge
a partir de relações necessárias entre alguns aspectos da natu-
reza intrínseca do estado e o valor intrínseco (como afirma
Moore em "O conceito de valor intrínseco" - p. 355), então o
próprio valor intrínseco de um estado será tão essencial e não
relacional como a sua natureza intrínseca . Parece-me que essa
conclusão nos leva à linha do anti-naturalism o de Moore que
me parece importante diferenciar da negação do valor intrín-
seco como propriedade causal, o conceito platónico abstracto
de valor, uma vez que essas supostas relações necessárias, e a
necessidade que implicam do próprio valor intrínseco, não são
consistentes com a teoria de que o valor intrínseco de um
estado de coisas é dependente das preocupações e dos inte-
resses de agentes que deliberam sobre a sua forma de actuação,
pelo menos se se considerar que a identidade dessas preocu-
pações e desses interesses é contingente. De facto, o próprio
Moore utiliza este argumento para negar todos os conceitos
"subjectivos" de valor intrínseco ("O conceito de valor in-
trínseco", p. 358). Assim, embora se sugira mais adiante que
existe ainda uma outra opção, é razoável supor-se que, para
que as relações necessárias façam sentido, há que invocar o
conceito abstracto de valor e concluir desse modo que as três
linhas do antinaturalismo de Moore - o anticausalismo, o pla-
tonismo e o essencialismo - acabam por se ajustar perfei-
tamente.
Embora essa conclusão confirme a coerência da crítica
de Moore ao naturalismo ético, o modo como se chega a ela
levanta uma questão que Moore nunca enfrentou adequada-
mente - a questão de ser ou não necessário dar a sua inter-
pretação essencialista ao carácter intrínseco do valor intrínseco

[23)
(ou, dito de outro modo, se o autor tem ou não razão em
supor que a dependência da natureza por parte do valor é uma
qu estão de relações necessárias). O facto é que existe uma
forma de pensar o valor intrínseco que, perante ele mesmo,
não precisa necessariamente desses pressupostos. Distinguimos
muito facilmente coisas que são desejadas por si mesmas e coisas
que são desejadas apenas devido às suas consequências, sem
inclusão de quaisquer considerações essencialistas relativa-
mente à primeira categoria. Do mesmo modo, somos também
capazes de distinguir estados que têm valor por si mesmos, ou
que têm valor intrínseco, e estados que têm valor devido às suas
consequências, sem quaisquer pressupostos essencialistas. Pois
assim como as coisas que se desejam por si mesmas são coisas
que se crê serem compatíveis com o conteúdo dos desejos
presentes, poderemos pensar que os estados que possuem
valor intrínseco são estados com características que combinam
com os interesses de quem tem a capacidade de lhes dar valor.
Dado este conceito de valor intrínseco, é verdade que o
valor intrínseco de um estado depende das suas outras carac-
terísticas ("naturais"); no entanto, essa dependência é, no pre-
sente contexto, entendida como relativa às preocupações e
interesses de quem possui a capacidade de o valorizar. É certo
que dada uma determinada especificação dos mesmos, já não
depende deles quais os estados que possuem valor intrínseco e
quais os que não possuem; mas não era isso que Moore pre-
tendia. No entanto, poderia chegar-se à tese essencialista de
Moore com base neste ponto de partida, pela suposição de que
as verdades relativas aos interesses humanos são verdades neces-
sárias - e isso constitui um modo de reconciliar duas vias do
antinaturalismo de Moore sem um compromisso com a via pla-
tónica abstracta, embora se possa também considerar que o con-
ceito implícito de psicologia moral é efectiva e marcadamente
platónico. Contudo, neste contexto, o aspecto mais importante
é que a tendência essencialista da posição antinaturalista de
Moore pode ser entendida, talvez um pouco paradoxalmente,
como sendo baseada numa forte tese essencialista relativa à

[24]
natureza humana. Mas como Moore não aborda a questão
nesta perspectiva, é óbvio que não formula a sua posição teó-
rica nesses termos: de facto, o autor teria até certamente repu-
diado um entendimento da sua posição que incluísse o tipo de
psicologia racionalista que ele próprio critica na filosofia kan-
tiana. No entanto, não creio que o essencialismo de Moore
relativo ao valor intrínseco seja defensável sem esse tipo de
psicologia.

III

Nos dois últimos capítulos de Principia Ethica, Moore


afasta-se da metafisica do valor e assume o objectivo de elabo-
rar uma teoria ética substantiva, descrevendo o que devería-
mos fazer (Capítulo V) e os principais tipos de coisas que pos-
suem valor intrínseco (Capítulo VI). Os capítulos anteriores
seriam, na perspectiva do autor, passos preliminares essenciais
à prossecução dessa tarefa, uma vez que considera que apenas
a partir de um entendimento dos conceitos éticos fundamen-
tais se pode elaborar uma teoria ética propriamente "científica"
(Parágrafo 5 Principia Ethica) - e o título newtoniano que esco-
lheu mostra ser essa exactamente a sua aspiração. Contudo, a
ordem dos capítulos V e VI é estranha, já que seria natural
considerar-se que é necessário sabermos quais as coisas que
possuem valor intrínseco antes de podermos saber como deve-
ríamos agir. Como veremos, no entanto, embora muito prova-
velmente aceitasse esse argumento em princípio, Moore con-
sidera que, na prática, não precisamos desse conhecimento
nem ele poderia ser utilizado de forma mais séria na decisão
relativa ao modo como deveríamos agir.
O entendimento da obrigação é, em Moore, fundamen-
talmente utilitarista (ou "consequencialista") : em qualquer situa-
ção, a acção que venha a provocar o melhor estado do uni-
verso é aquela que deveríamos praticar (a acção certa, o nosso
dever- conceitos que Moore não diferencia). Em Th e Elements
of Ethics, o autor tinha apresentado esse princípio como sendo

[25]
um princípio necessário mas sintético, reconhecendo assim a
existência de dois conceitos éticos fundamentais : o valor intrín-
seco e a obrigação.24 Contudo, em Principia Ethica, Moore uti-
liza o princípio utilitário para a sua definição da obrigação em
termos de valor intrínseco (Parágrafo 89) . Na recensão daquela
obra, Russell defende que se trata de um erro, uma vez que se
poderia facilmente utilizar o próprio argumento de Moore
relativamente ao carácter inanalisável? do valor intrínseco para
criticar a análise da obrigação proposta; Moore aceitou essa
crítica de imediato.25 Assim, nas suas obras subsequentes, o
autor regressa a, pos1çao
· ~ , ·
teonca · 16
antenor.-
0 argumento directo de Moore a favor do princípio
utilitário consiste na afirmação de que é evidente que "se sou-
béssemos que o efeito de uma determinada acção seria efecti-
vamente o de fazer com que o mundo, no geral, se tornasse
pior do que seria se tivéssemos agido de forma diferente, então
seria errado praticá-la" .27 Os críticos de Moore reagiram a esta
questão de diferentes modos. 28 A objecção mais convincente
é, a meu ver, a que argumenta que a combinação do princí-
pio utilitário com o conceito de valor intrínseco de Moore
implica que a avaliação moral da conduta de um agente deve-
ria processar-se a partir de um ponto de vista totalmente neu-
tro, sem referência às responsabilidades ou aos privilégios es-
pecíficos do mesmo agente; pelo contrário, sob a perspectiva
oposta, as questões de dever e obrigação, de certo e errado (entre
as quais se podem estabelecer distinções significativas) são

24
Elements of Ethics, p. 118.
25
Cf. Moore, " Reply to my Critics", in 77,e Pl,i/osopl,y of G. E.
Moore. p. 558.
2
' ' Cf. Ethics (2nd edn. Oxford University Press, London: 1966) , pp.
28-9.
27
Etllics, pp . 93-4.
2
" Sir W. D. Ross foi um eminente crítico deste aspecto da teoria
mooreana, apesar de, de um modo global, se mostrar de acordo com a
respectiva teoria geral da metafisica do valor. Cf. n,e R(i;/11 and the Cood
(Clarendon, Oxford: 1930).

[26]
basicamente determinadas pelas responsabilidades específicas
dos agentes, as quais normalmente têm origem em relações
específicas com os outros (por exemplo, paternidade e materni-
dade, cidadania, procuração legal). 29 Estas questões continuam,
no entanto, a ser acesamente discutidas, pelo que o assunto
não será aqui mais amplamente debatido. 30
Os motivos que levam Moore a pensar que, antes
mesmo de especificar que tipos de coisas têm valor intrínseco,
pode indicar-nos de uma forma geral o que deveríamos fazer
têm origem numa tese céptica. Para o autor, para se saber pro-
priamente o que deve ser feito há que ter um conhecimento
pormenorizado das consequências de todas as acções que se
nos apresentam disponíveis; uma vez que Moore pensa tam-
bém que não possuímos esse conhecimento, então "nunca
temos nenhuma razão para supor que uma acção é o nosso
dever" (Parágrafo 91). Assim, o máximo a que podemos aspi-
rar é um entendimento de segunda ordem de quais as acções
que "são geralmente melhores como meios do que qualquer
alternativa provável" (Parágrafo 95). E Moore é de opinião de
que somos capazes de identificar a maioria dessas acções sem
um conhecimento pormenorizado de valor intrínseco, afir-
mando relativamente à maior parte das regras da moralidade
convencional que "[e]m qualquer opinião comum, parece
certo que a preservação da sociedade civilizada, a que estas
regras são absolutamente indispensáveis, é necessária para a
existência, em qualquer grau de grandeza, do que quer que
possa ser tido como bom em si" (Parágrafo 95). Desse modo,
Moore passa de um cepticismo moral completo a um conser-
vadorismo moral algo acrítico; essa linha de pensamento é
paradoxal, embora não seja rara na tradição céptica.

29
Cf. T. Nagel, Thc View from N owhere (Clarendon, Oxford: 1986),
caps. IX, X.
-~• Apresento uma discussão mais completa do debate em Baldwin,
Moore: Selected Writi11gs, cap. 4. Para referências mais recentes, cf. J. Glover,
ed. , Utilitan·a11is111 a11d its Critics (Collier Macmillan, London: 1990) .

[27]
Como sublinha Tom R egan, há uma excepção a esse
conservadorismo.31 Quando surge uma questão prática que
não é abrangida por uma regra convencional cuja utilidade
geral é defensável , Moore valoriza a consideração individual
do valor das consequências de possíveis linhas de acção. Se se
combinar este aspecto com a especificação que Moore faz dos
tipos de coisas que possuem valor intrínseco, então existe
potencial para opções morais radicalmente inusitadas. Con-
tudo, quando há uma regra geral adequadamente defensável,
Moore é tão rigorista como qualquer moralista tradicional:
" Deste modo, podemos afirmar que qualquer regra que seja
útil em geral deve ser sempre cumprida" (Parágrafo 99). No
entanto, como observa Russell, esse princípio dá origem a um
conflito na teoria de Moore: por um lado, podemos ter a
certeza de que haverá casos relativamente aos quais a obser-
vância dessa regra não produz o melhor resultado possível - e
a perspectiva utilitarista de Moore no que se refere à obri-
gação implica que, nesses casos, não deveóamos cumprir a
regra; por outro lado, Moore afirma também que, uma vez
que não sabemos antecipadamente quais serão esses casos,
deveóamos seguir sempre a regra . O conflito advém do facto
de que, em Principia Ethica, Moore advoga simultaneamente
um entendimento " objectivo " da obrigação, segundo o qual
as nossas obrigações são determinadas pelos factos objectivos
da nossa situação, e um entendimento "subjectivo", de acordo
com o qual essas obrigações são determinadas pelas nossas
crenças relativamente à nossa situação: sempre que essas cren-
ças se mostram erradas, os dois modos de conceber a obri-
gação tornam-se incompatíveis. Quando lhe foi chamada a
atenção para o conflito, Moore optou, na sua obra de 1912,
Ethics, pelo conceito objectivo, passando a considerar o con-
ceito subjectivo da obrigação como uma referência que per-
11
· T . Regan, B/00111s/mry 's Prophet [Temple University Press, Phila-
delphia: 1986) . Infelizmente, Regan não considera esta catego ria como uma
mera excepçào ao argumento geral de Moore, entendendo, erradamente,
que Moore faz uma "defesa radi cal da liberdade do indivíduo".

[28]
mite classificar a conduta do agente como louvável ou como
censurável. 32 Embora seja fácil entender por que motivo
Moore queria manter o conceito objectivo da obrigação, uma
vez que permite a avaliação crítica dos juízos relativos à obri-
gação muito mais facilmente do que o conceito subjectivo,
torna-se inevitável a conclusão céptica, dado o pressuposto de
Moore, de que, a maior parte das vezes, não sabemos como
deveríamos agir. E o impacto dessa conclusão não é efectiva-
mente mitigado pela concessão de que, de qualquer modo,
somos capazes de distinguir, em geral, quais as acções que
serão louváveis e quais as censuráveis. Creio que Moore teria
feito melhor se tivesse mantido os juízos de tipo "deveria"
como constituindo a forma na qual se apresentam a um su-
jeito as conclusões práticas, reservando outro conceito (por
exemplo, o de certo e errado) para a avaliação objectiva das acções.
Resolvida assim, pelo menos em sua opinião, a disputa
objectivo/subjectivo relativa à obrigação, em A Ética, Moore
avança para a discussão de uma objecção "extremamente séria
e fundamental" à sua teoria: a questão da liberdade da von-
tade. O capítulo em causa tornou-se num clássico sobre o
tema, sendo reproduzido na presente edição. Tratava-se de um
tópico que Moore já tinha efectivamente analisado na sua
primeira dissertação para o obtenção do grau de "Fellow", em
1897. 33 Algum desse material surge de novo em The Elements
ef Ethics, obra que inclui o texto de uma conferência sobre o
Livre Arbítrio na qual o autor afirma que o determinismo é
correcto e que é incompatível com o Livre Arbítrio. Con-
tudo, não existem quaisquer sinais desse material em Principia
Ethica, provavelmente porque Moore tinha acabado por rejei-
tar o argumento kantiano a favor do determinismo que ele
próprio havia anteriormente utilizado.

32
Ethics, p. 100.
33
O artigo de Moore de 1898, " Freedom ", incluído em Erhics , con-
tém a maior parte dessa disrnssão inicial do tema.

[29]
Em Ethics, Moore aborda a questão de uma forma algo
estranha, referindo o determinismo como constituindo uma
grave ameaça à sua teoria utilitarista. Efectivamente, os utili-
taristas afirmam normalm ente que a sua teoria não compro-
mete essa área, uma vez que, se existe apenas uma acção pos-
sível para um determinado agente, então, ipso facto, essa será a
melhor possível e, portanto, a que deverá ser praticada. A preo-
cupação de Moore tem origem no facto de o autor definir a
sua própria posição utilitarista por referência ao tipo de acções
que um agente pode desempenhar, se assim o decidir; e Moore
interpreta então um crítico determinista como defendendo,
em primeiro lugar, que nem todas as acções que um agente
poderia praticar se assim quisesse são acções que o mesmo
agente poderia praticar absolutamente (de facto, os determinis-
tas afirmam que apenas a acção efectivamente praticada respeita
essa condição) e, em segundo lugar, que a teoria utilitarista se
deveria aplicar não ao tipo mais amplo de acções possíveis que
Moore define, e sim ao tipo mais restrito das acções que são
absolutamente possíveis. Torna-se assim perfeitamente claro
que há agora um conflito entre o determinista e a posição
utilitária de Moore; o que é menos claro é que o utilitarista
teve necessidade de assumir o compromisso que Moore lhe
havia imposto. No entanto, existem certamente áreas do foro
da moral em que é inevitável a existência de uma certa preo-
cupação relativamente ao determinismo, nomeadamente no
que se refere à justiça do louvor ou da censura, que, de uma
forma geral, se considera dependente do facto de ser possível
que o agente tivesse agido de maneira diferente; a análise de
Moore pode redireccionar-se fac ilmente em termos dessa
questão, à qual, aliás, se bem que de uma forma breve, o autor
também alude.
A maior parte do capítulo de Moore tem como objec-
tivo demonstrar que o sentido em que nos preocupamos sobre
o facto de um agente poder ter agido de modo diferente é
apreendido por uma análise condicional do mesmo enquanto
proposição de que teria agido de modo diferente, se assim tivesse

[30]
decidido, que é , aliás, consistente com a verdade da tese deter-
minista segundo a qual , num sentido absoluto, o agente não
podia ter agido de outra forma. Se assim for, quer abordemos
o problema por via da questão da justiça do louvor e da cen-
sura, quer por via da questão que Moore coloca relativamente
a qual o conceito de possibilidade que é relevante para a
determinação das nossas obrigações, então é certo que o autor
terá provado a tese compatibilista segundo a qual a verdade do
determinismo não constitui uma grave ameaça à nossa teoria
moral.
O próprio autor reconhece que podem surgir dúvidas
relativamente à suficiência da sua análise condicional - espe-
cialmente se não será ainda necessária a condição de o agente
poder ter escolhido agir de outro modo.34 Se se permitir essa
condição, ficará então aberto um espaço para a objecção de-
terminista de que o agente não poderia ter feito uma escolha
diferente. Moore sugere que essa objecção pode ser posta em
questão pela reintrodução da análise condicional - talvez que
a afirmação de que o agente poderia ter feito uma opção dife-
rente signifique apenas que o agente deveria ter feito essa escolha
se tivesse escolhido fazer a escolha. No entanto, esse raciocínio
parece artificial e, de qualquer modo, continua a ser vulnerá-
vel ao mesmo tipo de objecção (poderia o agente ter escolhido
escolher assim?). Se se adoptar este raciocínio, então o melhor
será aceitar a sugestão feita por Frankfurt, segundo a qual, em
vez da condição suplementar de o agente poder ter escolhido
agir de forma diferente, a exigência seria a de que a escolha
do agente fosse livre, no sentido em que se tratava de uma esco-
lha que o agente desejava fazer. 35
O capítulo de Moore deu azo à famosa reacção de J. L.
Austin, na qual este argumentava que Moore tinha feito con-
14
· Pp. 377-378 (da presente edição). Esse tipo de objecção foi efec-
tivamente apresentado por R . Chisholm; cf. " Human Freedom and th e
Self' in Free Wi/1, ed. G. Wtson (Oxford University Press, Oxford: 1982).
35
Cf. H. Frankfurt, "Freedom of the Will and the Concept of a
Person ", in Free Wi/1, ed G. W atson.

[31]
fusão no que refere às complexidades relativas à definição de
capacidades tais como a capacidade de agir de outra forma. 36
Provavelmente, Austin estaria certo no que se refere ao tema
das capacidades em geral, m as não é assim tão óbvio que a sua
tese seja capaz de ferir radicalmente a posição teórica de
Moore. 37 Mais recentemente, veio a surgir um novo desafio à
teoria de Moore por parte dos que afirmam ser errado o pres-
suposto mooreano de que é de importância crucial o facto de
o agente poder ter feito uma opção diferente.38 Sem ess~ pres-
suposto deixa de ser claro o significado geral da análise de
Moore. Segundo me parece, embora os críticos de Moore este-
jam certos ao afirmar que a conhecida tese da possibilidade de
o agente fazer uma escolha diferente devia ser substituída (pelo
menos no âmbito da teoria da responsabilidade) pela condição
causal de que a acção praticada fosse o resultado de uma opção
própria e livre, não se pode concluir daí que a análise de
Moore não seja pertinente. Podemos reinterpretá-la, no con-
texto de uma teoria causal da responsabilidade, como uma
base de justificação de um conceito de possibilidade prática
que parece essencial para as nossas deliberações práticas. 39

VI

Na sua autobiografia, Moore refere que "todo o plano


do último capítulo de Principia teve origem numa conversa
com um anugo• " . º C orno sugere essa afiIrmaçao,
4
- o cap1tu-1o
em questão é diferente do artigo final de The Elements ef Ethics
36
Cf. "Ifs and Cans", publicado em Austen, Philosophical Papers
(Clarendon, Oxford: 3rd edn, 1979).
37
Cf. D . Pears, "Ifs and Cans" in Questions i11 the Philosophy ef Mind,
do mesmo autor (Duckworth , London: 1975).
3
" A formulação clássica do argumento encontra-se em H . Frankfurt,

"Alternate Possibilities nd Moral Responsibility", joumal of Philosophy 66


(1969), pp. 829-39.
19
· Cf. Baldwin, pp. 142 ss.
40
11,e Philosophy ef G. E. Moore, p. 25 . Esse amigo poderá ter sido
R . A. Ainsworth.

[32]
- apesar de tudo comparável - no qual o autor pouco diz
sobre a constituição de "O Ideal", ou seJa , os tipos de coisas
que possuem valor intrínseco. 41 Em vez disso, muitas das ideias
lançadas nesse capítulo foram testadas nas discussões do clube
"Os Apóstolos", um grupo particular de discussão, em Cam-
bridge, sobre o qual , na altura, Moore tinha grande influên-
cia. Os trabalhos que Moore escreveu para essas discussões
foram guardados e, a partir deles e de outros ensaios seus da
mesma época, 42 pode verificar-se o desenvolvimento dos temas
que virão a ser articulados nas partes finais de Principia Ethica
- as críticas aos valores cristãos e à ética aristotélica de virtude
(Parágrafos 103-8) e a celebração dos valores da arte e do amor
(Parágrafos 113-23) .
A análise de Moore é famosa pela tese de que " [a]s coisas
mais valiosas que conhecemos ou podemos imaginar são, sem
dúvida , certos estados de consciência que se podem descrever
genericamente como os prazeres das relações humanas e o gozo
dos objectos belos" (Parágrafo 113) . Foi esta a tese que os dis-
cípulos e os amigos de Moore do grupo de Bloomsbury adap-
taram e fizeram lema de vida - por vezes esquecendo a defesa
da moralidade convencional que o autor apresenta no capítulo
anterior. Como refere Keynes, os valores de Moore tornaram-
-se, para ele e para os amigos, numa "religião" - "a inaugu-
ração de um novo paraíso na terra" .43 Mesmo a partir da pers-
pectiva de 1938, capaz de ver as limitações dessa "religião",
Keynes ainda escrevia que "O Novo Testamento é um manual
para políticos quando comparado com o desprendimento espi-

41
Embora refira resumidamente o valor do amor e da beleza - 77,e
Elements of Ethics, p. 192.
42
Em Moore: G. E. Moore and the Cambridge Apostles (Weidenfeld &
Nicholson, London: 1979), Paul Levy descreve de forma muito expressiva
essa sociedade e o papel nela desempenhado por Moore.
· J. M. Keynes, " My Early Beliefs" in Two Menroirs, publicada em
41

Collected Writings X (Macmillan, London: 1972), p. 435; cf igualmente C.


Bell, Civilisatio11 (Chatto & Windus, London: 1928) , esp. cap. IV; P. Levy,
Moore and the Cambridge Apostles.

[33]
ritual do capítulo de Moore sobre 'O Ideal'. N ão conheço nada
igual na literatura desde Platão. E é ainda melhor do que
Platão porque completamente isento de fantasia ." 44
De facto, os valores de Moore não eram de todo inteira-
mente novos: a tese de que a arte possui valor intrínseco é um
aspecto central de todo o movimento romântico e McTaggart
tinha já afirmado o valor supremo do amor, um valor que
tem, de qualquer modo, um lugar proeminente nos escritos
de Platão e no cristianismo. A novidade de Moore consistiu
na inserção desses ideais no contexto de uma ética utilitarista,
a qual era até então geralmente considerada oposta a esses va-
lores (embora a hierarquização qualitativa dos prazeres ela-
borada por J. S. Mill possa ser interpretada como uma tenta-
tiva de seguir nessa direcção.45 ) Nesse contexto, Moore não
precisava de fazer cercar a sua defesa desses mesmos valores da
metafisica idealista que geralmente os acompanhava 4 (, e que
parecia ensombrá-los com compromissos indesejáveis (é isso,
segundo creio, que Keynes queria dizer quando louva Moore,
no passo acima citado, por ser "completamente isento de fan-
tasia"). O resultado foi que todos quantos se sentiam desiludi-
dos com os interesses entediantes e dúbios do poder e da polí-
tica imperialistas encontraram em Moore um defensor de um
modo de vida cujo objectivo era, apesar de afastado desses
interesses, completamente aceitável, uma vez que, como Moore
afirmava, os seus ideais "constituem o fim último e racional da
acção humana e o único critério do progresso social" (Pará-
grafo 113). Antes da primeira Grande Guerra, esse evangelho
atraiu especialmente os artistas e intelectuais de Bloomsbury;
mas no período do pós-guerra, quando muitos começaram a
pensar que a política era irremediavelmente corruptora, a

44
Keynes, " My Early Beliefs" , p. 444.
45
J. S. Mil!, Utilitarianism, ed. M. Wamock (Fontana, London:
1962) cap. 2.
46
Cf, por exemplo, as referências de Bradley ao valor da arte em
Et/1ical Studies (2nd edn, Clarendon, Oxford: 1927), pp. 222-3.

[34]
mensagem de Moore - especialmente difundida por autores
como E. M. Foster - gerou um interesse muito mais amplo.
Embora os ideais de Moore não constituam de facto
uma novidade total, o facto de o autor os apresentar como
"estados de consciência" merece alguma atenção. Nesse as-
pecto, há um contraste significativo com o tratamento do
valor da arte por parte do movimento romântico: enquanto
que os românticos davam maior importância ao valor da
actividade artística criativa, Moore centra-se na apreciação
passiva das obras de arte, nos "prazeres estéticos" . Essa posição
de Moore relaciona-se com a tese mais geral de que as únicas
coisas que possuem valor intrínseco são os estados de cons-
ciência agradáveis. Como veremos, em Principia Ethica, Moore
não aceita esta tese geral: no entanto, sob a sua influência, o
Grupo de Bloomsbury adaptou-a e o próprio autor a defen-
deu em Ethics (p. 129). O que poderá ter levado Moore e os
amigos a assumir essa posição? Há uma expressão que Moore
utiliza apenas uma vez em Principia Ethica, quando introduz o
seu conceito de bens ideais na secção 113, e que me parece
sugestiva - o autor define-os como "as coisas que vale a pena
termos unicamente por si mesmas". 47 Esta expressão implica que,
ao considerarmos as coisas que possuem valor intrínseco,
devemos lembrar o facto de que a sua avaliação é feita na pers-
pectiva de um sujeito consciente, cujos estados (diferentes dos
estados do mundo exterior) são coisas que o sujeito "tem"; e
se considerarmos também esse pressuposto relativo ao valor
instrínseco, poderá então tornar-se óbvio que apenas os esta-
dos de consciência agradáveis podem ter um valor intrínseco
positivo - outros estados de coisas terão valor apenas enquanto
meios para o gozo daqueles. Além disso, rejeitado o hedonismo
puro, pelo motivo suficiente de que o valor de um prazer de-
pende do valor daquilo em que se tem prazer (Parágrafo

47
Mais tarde, o autor utiliza essa expressão para descrever a bondade
intrínseca - cf " Is Goodness a Quality?" , publicado em Philosophical Papers,
de E. G. Moore (George Allen & Unwin , London : 1959), pp . 94-5.

[35]
112 48), é bastante tentador pensar que os altos valores da ami-
zade e do prazer estético possuem um estatuto especial.
É esta a minha reconstrução do trajecto de Moore em
direcção ao seu ideal. No entanto, torna-se necessário especi-
ficar de imediato dois aspectos. Em primeiro lugar, em Prin-
cipia Ethica, Moore co ntrariou explicitamente o conceito de
que apenas os estados de consciência possuem valor intrínseco
(Parágrafo 50). A argumentação de Moore é concretizada na
famosa experiência pelo pensamento: se compararmos a mera
existência, "sem a possibilidade de ser contemplada por seres hu-
manos" de um mundo belo ("Imaginemo-lo tão belo quanto
possível") e de "o mundo mais feio que se possa conceber"
("Imaginemo-lo como uma montanha de imundície"), tere-
mos que concluir que é intrinsecamente melhor que exista o
mundo belo do que o feio - embora Moore conceda apenas
" um valor tão pequeno que pode até não ser tido em conta"
(Parágrafo 113) à existência do mundo belo. Moore não jus-
tifica argumentativamente essa conclusão, apenas se limitando
a apresentar a própria experiência pelo pensamento; assim, não
é muito claro o que terá mais tarde induzido o autor a mudar
de opinião sobre esta questão, a não ser que tenha reconhe-
cido que a mera existência de um mundo belo não é algo que
pudesse "valer a pena termos unicamente por si mesmo".
O segundo aspecto a referir relativamente ao argumento
a favor da tese posterior de Moore segundo a qual apenas al-
guns estados de consciência agradáveis possuem valor intrínseco
(argumento que, deve dizer-se, não foi avançado pelo próprio
Moore) é que ele não é efectivamente mais persuasivo do que
a anterior experiência pelo pensamento relativamente à con-
clusão contrária. No argumento, a conclusão derivava da hipó-
tese de que as questões relativas ao valor intrínseco devem ser
consideradas a partir da perspectiva de um sujeito consciente;

,x Apesa r de não se tratar de uma grave deturpação da teoria de


Moore, esta forma de enunciar a questão simplifica drasticamente o pensa-
mento mooreano.

[36]
parece-me possível a objecção de que tal conclusão não de-
corre dessa hipótese. O que dela deriva é que as característi-
cas da vida humana cuja obtenção satisfaz os interesses consti-
tutivos de um sujeito consciente possuem valor intrínseco para
esse sujeito, mas não são necessariamente apenas estados de
consciência. Efectivamente, em termos de qualquer entendi-
mento razoável da vida humana, essas características incluem
mais provavelmente a própria actividade artística e as relações
de amizade com os outros do que os "prazeres estéticos e os
afectos pessoais" passivos que Moore refere e que ameaçam
49
idealizar uma forma de vida solipsista. Além do mais, nesta
perspectiva, não há motivo para se excluírem outros valores
instrínsecos putativos, tal como a da individualidade, a que
J. S. Mill dava tanto valor, e valores com uma dimensão política
essencial, como o da cidadania num Estado-nação democrá-
tico. Os ideais mooreanos da Arte e do Amor têm muito em
seu favor, embora não apenas como estados de consciência;
mas não há qualquer razão para os considerarmos como cons-
tituindo o único "fim último e racional da acção humana" .

Tentei nesta introdução seleccionar alguns dos temas


tratados em Principia Ethica que se mostram de interesse, tanto
relativamente à metafisica geral do valor, como a questões con-
cretas referentes à obrigação moral e aos ideais pessoais. Há
obviamente outros temas na obra que mereceriam atenção e
reflexão crítica, como por exemplo, o tratamento da "ética
metafisica", o "princípio das unidades orgânicas" e o conceito
mooreano da intuição ética. A selecção por que optei é repre-
sentativa dos temas que me parecem constituir o contributo
mais importante de Moore para a teoria ética - outras pessoas
terão certamente outros pontos de vista . Torna-se claro na

4
'' O romance de Virgínia Woolf Waves pode ser lido como uma

exploração desse tema.

[37]
minha discussão dessas questões que não concordo inteiramente
com a posição teórica de Moore relativamente a nenhuma
delas. No entanto, esse facto não deverá ser mal entendido, já
que a expressão de uma atitude cótica relativamente ao tra-
balho de outro filósofo não equivale à afirmação de qu e não
se considera esse trabalho importante. Muito pelo contrário, é
precisamente ao revelar em pormenor o que nos parece cor-
recto ou errado nas obras de outro filósofo que se prova que
o seu trabalho é efectivamente levado a sério. Vota-se nor-
malmente ao silêncio aquilo que se julga não ser importante.
Faz parte da essência da filosofia que a evolução da disciplina
surja dialecticamente - quando, ao analisarmos as posições
teóricas dos outros, somos capazes de elaborar argumentos que
nos permitem ir para além dessas mesmas posições. Embora
esta tese um tanto hegeliana possa parecer estar em desacordo
com a filosofia de Moore, efectivamente ela manifesta-se não
raro na própria prática do autor. Nos seus primeiros trabalhos,
o filósofo que Moore critica com mais veemência, sendo no
entanto também aquele que considera com mais seriedade, é
Kant: Moore desenvolve a sua própria teoria ética (e a sua
metafisica inicial) precisamente a partir de uma decisão sobre
o que estaria errado na teoria de Kant. Na sua obra subse-
quente, é Russell quem ocupa uma posição semelhante. Por
um lado, Moore afirma na sua autobiografia: "Fui mais influ-
enciado por ele do que por qualquer outro filósofo"; 50 no
entanto, reconhece também que palestras sobre a obra de
Russell foram sempre, até certo ponto, cóticas" .5 1
Assim, os filósofos que mais contribuem para a evolução
da disciplina não são apenas aqueles cujas teorias seguimos e
repetimos (se é que alguma vez o fazemos realmente) . São
também, em igual medida, aqueles que pela primeira vez
enunciam opiniões e argumentos que anteriormente apenas
tinham encontrado uma expressão incompleta e que, ao serem

5
° Cf. The Philosophy of G. E. Moore, p. 16.
51
Cf. The Plúlosophy of G. E. Moore, p. 16.

[38]
coerentemente formulados, se revelam como muito relevantes
(mesmo quando discordamos deles). São textos desse tipo que
nos lançam o desafio de definirmos as razões da nossa discor-
dância e de descobrirmos e enunciarmos os nossos próprios
argumentos. O valor perdurável de Principia Ethica consiste no
facto de que se trata de uma obra desse tipo. Moore elabora
uma formulação clássica de uma série de posições teóricas que
se inter-relacionam no que se refere ao estatuto da teoria ética,
à irredutibilidade dos conceitos éticos, às objecções relativas às
teorias naturalistas de valor, à natureza da obrigação moral e
aos critérios de decisão em situação de dúvida, ao papel dos
ideais pessoais na teoria moral, etc. Ninguém que hoje em dia
analise com seriedade estas questões poderá estar totalmente
de acordo com as posições teóricas de Moore; no entanto, isso
também não é o que mais importa - o "Prefacio da segunda
edição" revela bem até que ponto o próprio autor criticava
muitos aspectos das suas próprias posições anteriores. O mé-
rito de Moore consiste antes em ter elaborado o ponto de par-
tida definitivo da teoria ética do século vinte.

(39]
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

NOTA DO ORGAN IZADOR

Este prefacio inédito é ora publicado com a amável


autorização do Bibliotecário da Universidade e de Timothy
Moore. Tal como sucede com a maior parte dos manuscritos
de Moore, há muitas coisas apagadas e acrescentadas; tomei-as
em consideração na preparação deste texto, à excepção de uma ,
que será explicada em nota ao texto. No envelope que con-
tinha o manuscrito, havia ainda outras páginas que pareciam
pertencer a versões anteriores de rascunho do texto. Essas não
são reproduzidas aqui, já que é muito provável que Moore as
tenha rejeitado, para além de não acrescentarem nada de signi-
ficativo ao texto. Entre os textos de Moore, existem também
dois outros manuscritos que parecem ser esboços de um prefá-
cio, embora ambos estejam incompletos e nenhum deles tenha
título. Num deles, Moore submete a sua discussão de defi-
nições das secções 6-9 de Principia Ethica (que inclui a famosa
discussão da definição de "cavalo") a uma análise crítica exaus-
tiva na qual se acusa a si mesmo da prática de inconsistências,
confusões e "erros monstruosos" . O outro manuscrito tem
mais directamente a ver com a teoria ética. Aí, Moore discute
o tipo de bondade que mais directamente lhe interessou tratar
em Principia Ethica e os temas principais discutidos no texto
são, em grande medida, semelhantes aos do prefacio ora repro-
duzido. Os principais pontos de diferença são os seguintes: (I)
aqui o autor define explicitamente B (o tipo de bondade em
questão) em termos da sua relação com o certo e o errado; (ii)
afirma que B é uma propriedade intrínseca da estados de coi-
sas que a possuem, embora, segundo nota, não seja o único

[41 J
tipo de bondade intrínseca nesse sentido; (iii) explica com
considerável pormenor que a sua tese de que B é intrínseco é
incompatível com a opinião de que B é, num outro sentido,
"subjectivo."
A presente edição desta obra é uma mera reimpressão da
primeira, com excepção da correcção de alguns erros tipográ-
fi cos e a inclusão de algumas notas de rodapé que remetem o
leitor para o presente Prefacio.
Verificamos agora que a obra, tal como se apresenta, se
encontra repleta de erros e confusões. Mas pareceu-nos que
seria impossível corrigir tudo aquilo que precisava mais de ser
corrigido sem uma rescrita total da obra - um trabalho que cer-
tamente levaria vários anos a ser concluído. Pensámos assim
que a hipótese alternativa de seleccionarmos apenas algumas
coisas para correcção, deixando como estavam outras que tam-
bém precisavam urgentemente de ser corrigidas, seria, mesmo
parecendo-nos exequível, altamente insatisfatório. Para já, por-
tanto, decidimos reimprimir o livro na sua forma actual, em-
bora nos pareça que essa decisão tenha sido provavelmente
errada.
A nossa desculpa para publicar de novo a obra é a de que
as proposições a que ela dá maior importância e que, na medida
em que nos é dado entender, constituem a parte principal do
que os leitores apreendem da sua leitura, são proposições que
ainda consideramos, no geral, serem verdadeiras e que vale a
pena realçar; apesar disso, na maioria dos casos, essas proposi-
ções não são enunciadas com suficiente precisão nem são cla-
ramente diferenciadas de outras que nos parecem agora falsas
ou relativamente questionáveis. No que se refere a essas propo-
sições mais importantes, pretendemos dar-lhes, neste prefacio,
a exactidão de que nos parecem necessitar, na medida em que
nos seja possível fazê-lo agora; pretendemos ainda referir os
principais casos em que, no texto, elas se confundem quer
entre si, quer com outras proposições que nos parecem agora
falsas ou questionáveis. Esperamos que a decisão de não mo-
dificar o texto, suplementando-o, num prefacio separado, com

[42]
uma breve discussão das suas proposições essenciais, possa vir
a ter mais utilidade ainda do que a própria alteração do mesmo,
caso tivesse sido possível efectuá-la. Se tivéssemos lançado
mãos a uma tal tarefa, possivelmente teríamos perdido mais
em termos de clareza e destaque do que ganho em termos de
precisão.
Sendo assim, iremos de seguida considerar por ordem as
proposições que, de entre as fundamentais da obra, nos pare-
cem necessitar de uma formulação mais clara, ou, inclusiva-
mente, de correcção. Tentaremos fazê-lo da forma mais clara
e sintética possível, embora tenhamos consciência de que, nal-
guns casos, tal não é praticável, havendo necessidade de utilizar
conceitos que certamente exigiriam uma análise mais apro-
fundada e uma definição mais precisa. Gostaríamos ainda de
realçar novamente o facto de que as questões que vamos tratar
não são, de modo algum, as únicas da obra que precisam de
ser corrigidas. Quase todos os pormenores presentes na obra
são mais ou menos susceptíveis de objecção, sendo que, em
alguns casos, esses pormenores, que gostaríamos de ter oportu-
nidade de corrigir, mas teremos que passar em branco, apenas
merecem o epíteto de pormenores no âmbito da Ética - no
contexto da Metafisica, eles não são, de todo, meros porme-
nores, e sim questões da maior importância .

Para começar, quereríamos ms1st1r numa propos1çao


que, nos Parágrafos 0-14, é formulada nos seguintes termos:
"'bom' é indefinível". As nossas afirmações sobre esse tema
constituem uma tamanha série de confusões que não nos é
possível, nestas circunstâncias, referi-las na totalidade. Espe-
ramos poder esclarecer o assunto, tomando alguns dos pontos
principais e tentando exprimir o mais precisamente possível
qual a proposição fundamental que, daquela forma confusa,
pretendíamos formular e que nos parece ser ainda verdadeira
e importante.

[43]
(1) Em primeiro lugar, não se rá demais repetir que o
predicado que, nesse passo, referimos como " bom" e que afir-
mamos ser indefinível, é apenas um dos predicados significa-
dos normalmente pelo uso da palavra " bom ". Parece-nos per-
feitamente óbvio que a palavra em questão é ambígua - que é
utilizada com sentidos diferentes em co ntextos diferentes; daí
que não haja um predicado único qu e possa ser, em boa ver-
dade, entendido como o significado da palavra. M ais adiante
no texto (por exemplo, p. 106), acabamos por esclarecer expli-
citamente que é esse o nosso ponto de vista; mas é importante
insistir agora nesta questão, pelo menos por dois motivos.
O primeiro é que, no passo em referência, por vezes fi ca im-
plícito o contrário: na p. 91, por exemplo, referimos "aquela
qualidade que atribuímos a uma coisa quando dizemos que ela
é boa " , como se efectivamente houvesse apenas uma quali-
dade assim. O segundo motivo é que, uma vez entendida cla-
ramente a ambiguidade de " bom", torna-se óbvio que vamos
ter qu e fazer uma escolha com a qu al nunca nos confrontámos
na própria obra: ou teremos de limitar-nos a afirmar apenas
que há um sentido da palavra "bom" relativamente ao qual
certas proposições que desejamos avançar são verdadeiras, ou
teremos que definir, de forma prec isa, qual o sentido da pala-
vra que nos interessa. Ora parece-nos que a mera proposição
de qu e qualquer sentido da palavra possui todas as propriedades
que atribuímos a este é, em si mesma, de importância consi-
derável , uma vez que é normalmente negada . É, no entanto,
desejável, por muitas razões, que não nos satisfaçamos com
essa proposição, e sim que nos confrontemos com a questão
de qual o sentido que aqui referimos. De facto, sugerimos, no
próprio texto, uma resposta a esta questão, resposta essa que
agora entendemos ser falsa: afirmamos (p. 87) que pensamos
que o sentido que nos interessa é aquele "em que é geralmente
usada " . Presentemente, temos dúvidas de que seja assim. Pen-
samos, de facto, que, provavelmente, na maioria dos casos de uso
normal do termo, haja uma referência ao sentido em questão,
que é um elemento contido na sua análise. No entanto, isso é

[44]
muito diferente de dizer-se que é idêntico ao sentido mais vul-
gar da palavra (mesmo se um dos sentidos é mais vulgar do
que qualquer dos outros) e, sendo assim, parece-nos agora
falso que seja idêntico ao sentido mais vulgar.
Por essa razão, é impossível especificar o sentido exacto
que nos importa nesta discussão afirmando que se trata daquele
em que a palavra é comuntmente usada. No entanto, cremos
ser capazes de o especificar mais facilmente, e de forma sufi-
ciente no contexto em questão, dizendo que se trata do sen-
tido da palavra que tem a maior importância para a Ética, uma
vez que possui uma relação com os conceitos de "correcto" e
"errado" que nenhum outro sentido da palavra tem. Em nossa
opinião, a relação única e de importância fundamental entre o
sentido que nos interessa e esses conceitos é significada de
forma suficientemente clara em Principia Ethica. O que nos
propomos fazer é apenas referir - o que não foi feito na obra
- que o sentido pode ser especificado por via dessa mesma
relação - uma forma de especificação que simultaneamente
nos revela a razão pela qual discutimos especificamente o sen-
tido desta palavra e não de outras. Qual a relação exacta que
o termo tem com os conceitos de "correcto" e "errado" é
uma questão complexa que teremos agora que abordar. Pode
até negar-se, evidentemente, que haja um sentido da palavra
"bom" que tenha de facto a relação que propomos com os
referidos conceitos; todavia, supõe-se normalmente que essa
relação existe e, em nossa opinião, tal suposição será correcta.
Se não for efectivamente correcta, ser-nos-á então impossível
especificar assim o sentido que nos interessa; admitimos até
que, nesse caso, esse sentido não teria a importância que lhe
atribuímos. Partamos, então, do princípio de que a suposição
é correcta; e, assim sendo, se o não for, desistimos da questão
sobre o modo como poderia ser especificado o sentido que
nos interessa.
Poderemos então, por agora, afirmar que o predicado
que nos importa considerar é o sentido da palavra "bom" que
tem uma determinada relação com os conceitos de "correcto "

[45]
e "errado" a qual o torn a no sentido de mais fundamental
importância para a Ética. Vamos denominá-lo predicado B.
O que é qu e realmente importa dizer sobre B?
(2) Afirmámos efectivamente que B é "indefinível",
explicando essa caracterização de forma suficientemente precisa
pela identificação de "indefinível" com "simples" ou " inana-
lisável " .
Consideremos, então, em primeiro lugar, a proposição
segundo a qual B é inanalisável. Essa proposição é verdadeira?
Devemos desde já afirmar que nos parece que, provavelmente,
o é, mas não temos absoluta certeza de que assim seja . Um dos
motivos da nossa dúvida será referido mais adiante, quando
nos detivermos na relação de B com "correcto", pois será
então possível entender-se que, na verdade, talvez o conceito
inanalisável seja o de "correcto", sendo B um conceito ana-
lisável que inclui o elemento "correcto".
No entanto, quer B seja analisável ou não, o mais impor-
tante é insistir que esta questão não tem a importância que lhe
atribuímos. Na verdade, muitas das proposições que conside-
ramos importante e urgente apresentar sobre B decorreriam
do facto de que B não poderia ser idêntico a quaisquer pro-
priedades como "é desejado", "é agradável", "serve algum
objectivo", uma vez qu e todas elas são, obviamente, anali-
sáveis. Mesmo se se interpretar "é agradável" corno "é um
estado de prazer", sentido no qual o predicado B se aproxima
da inanalisibilidade, parece ainda evidente que não é rigorosa-
mente assim. Seria, contudo, um grande erro supor-se, como
sugerimos, que o facto de B não ser idêntico a nenhuma
daquelas propriedades se baseie na afirmação de que é inana-
lisável. Existem outras razões - e razões muito menos contro-
versas - que nos podem levar a afirmar que esse predicado e
essas propriedades não são idênticos. E, além disso, embora
este aspecto da nossa discussão decorra da simplicidade de B,
o mesmo não se verifica relativamente a um outro aspecto de
igual importância, nomeadamente o de se tratar de uma pro-
priedade que depende apenas da natureza intrínseca de esta-

[46)
dos de coisas que a possuem. Esta proposição, que desen-
volveremos adiante, parece ser a mais importante das que urge
apresentar sobre B e, em nosso entendimento, mesmo que B
fosse inanalisável, ela não seria necessariamente verdadeira;
por outro lado, no entanto, mesmo sendo verdadeira, isso não
significa necessariamente que B seja inanalisável.
Por esse motivo, não temos a menor preocupação de
insistir que B é " indefinível " em termos de " inanalisável" .
Julgamos que provavelmente será, mas foi claramente errado
termos dado tanta importância a essa questão.
(3) Há ainda duas outras coisas que efectivamente afir-
mamos no passo em discussão (Parágrafos 6-14) que obvia-
mente não devem ser entendidas como uma asseveração da
inanalisabilidade de B, nem podem ser tratadas como equiva-
lentes a uma afirmação do carácter "indefinível " de B, em
qualquer acepção do termo, embora as tenhamos tratado
como tal. Referimo-nos às duas afirmações feitas imediata-
mente antes e depois da primeira enunciação do princípio de
que bom não é passível de ser definido (pp. 87), nomeada-
mente (a) a afirmação " bom é bom , e ponto final na questão"
e (b) a declaração segundo a qual "todas as proposições que
dizem respeito ao bom são sempre sintéticas, nunca analíticas".
Será que aquelas afirmações exprimem melhor aquilo
que realmente queremos dizer acerca de B?
Relativamente a (a), o sentido da afirmação, tal qual está
formulada, não é muito claro. É, contudo, óbvio que se trata
da proposição a que diz respeito a citação de Butler que trans-
crevemos na folha de rosto: queremos , relativamente a B, afir-
mar aquilo que Butler afirma como sendo verdade relativa-
mente a tudo, ou seja, que é o que é e não é outra coisa. Ou,
de modo ligeiramente diferente, a proposição que evidente-
mente pretendemos enunciar relativamente a B é a que cor-
responde à que, na p. 94, é apresentada relativamente a " prazer"
e, na p. 96, a "amarelo", a qual identificamos erradamente com
a proposição de que prazer e amarelo são indefiníveis, assim
como também erradamente identificamos a nossa proposição

[47)
sobre B com a afirmação de que B é indefinível. Queremos,
em resumo, declarar que "B é B, e ponto final ".
Consideremos, então, a afirmação de que "B é B, e nada
mais". Tanto quanto nos é dado entender, há apenas duas
proposições que tal afirmação poderia , em sentido restrito,
exprimir: ou (a) a proposição de que B é diferente de tudo
quanto seja outra coisa que não B, ou (b) que B é diferente de
tudo quanto exprimimos através de uma palavra ou expressão
que não seja o termo "bom" . Analisemos cada um delas.
(ex) No que se refere à proposição de que B é diferente
de tudo quanto seja outra coisa que não B, é evidente que é
diferente de qualquer coisa que seja diferente dele - e essa
proposição, mesmo não o sendo, em termos restritos, dificil-
mente se distingue de uma mera tautologia e certamente não
poderá ter a importância que parecemos conferir-lhe. Trata-se
obviamente de uma proposição completamente diferente da
proposição de que B é inanalisável, embora as identifiquemos
entre si; e, obviamente, dela não decorre que B é inanalisável,
uma vez que (como a afirmação de Butler poderia ter-nos
sugerido) a propriedade de ser diferente de todos os predica-
dos que são diferentes dele é uma propriedade que deverá per-
tencer a todos os predicados, sem excepção, quer sejam analisá-
veis, quer não o sejam; daí que, mesmo se B fosse analisável,
seria verdade que era diferente de todos os predicados que fos-
sem diferentes dele. Obviamente também, pela mesma razão,
daí não decorre que, como parece que supomos, certos predi-
cados específicos, como "é um estado de prazer" ou "é dese-
jado" sejam diferentes dele. Pois, de novo, mesmo se B fosse
idêntico a "é um estado de prazer", seria ainda evidentemente
verdade que era diferente de todos os predicados que fossem
diferentes dele; e daí que o mero facto de esta última pro-
posição ser verdadeira não possa justificar a inferência de que
B é diferente de "é um estado de prazer" .
Por tal motivo, torna-se óbvio que esta proposição não
tem o tipo de importância que lhe atribuímos. Não diríamos,
no entanto, que não tem qualquer importância, pois que nos

[48]
parece claro que, por vezes, a enunciação de uma mera tau-
tologia não é necessariamente uma toli ce ou uma inutilidade:
a própria afirmação de Butler parece constituir um bom
exemplo desse facto. No entanto, se esse for o caso, cremos
que a razão é que a enunciação da tautologia tem por objec-
tivo algo como chamar a atenção para a questão de se os dois
predicados que estão a ser tratados como idênticos realmente
o são. Com essa chamada de atenção, será mais fácil verificar-
-se que não são idênticos. De modo semelhante, parece-nos
que a afirmação de que B é diferente de todos os outros pre-
dicados pode ser útil. Mas esta nossa afirmação equivale,
segundo supomos, a dizer que poderá ser útil apenas na me-
dida em que realmente signifique algo que, tomado em sen-
tido restrito, não é aquilo que exprime mais adequadamente.
No sentido mais restrito, teremos, portanto, de conceder que
é totalmente trivial e sem importância.
(~) No que se refere à proposição de que B é diferente
de qualquer predicado que seja expresso através de qualquer
palavra ou expressão que não seja o termo "bom" , ela não cons-
titui, de modo algum, uma tautologia. Se fosse verdade, seria
então verdade também que B seria diferente de qualquer pre-
dicado como "é um estado de prazer" ou "é desejado", uma
vez que, obviamente, esses predicados são expressos através das
expressões "é um estado de prazer" e "é desejado", e, não é
menos evidente, essas expressões são diferentes da expressão
"é bom". Para além disso, a ser verdade, teríamos pelo menos
uma base para conjecturar que B é inanalisável, uma vez que,
quando uma palavra exprime um predicado analisável, o pre-
dicado é geralmente também por vezes expresso através de
uma expressão formada por várias palavras e que indica os ele-
mentos integrantes da sua análise, sendo que, nesse sentido,
"contém uma análise" do predicado; assim, se B fosse anali-
sável, seria provavelmente muitas vezes expresso através de
uma expressão complexa do tipo descrito - uma expressão
necessariamente diferente de "é bom ". Na realidade, cremos
que esse facto explicará provavelmente em parte como fomos

(49]
levados a a identificar proposições tão evidentemente dife-
rentes como "B é B e nada mais" e "B é inanalisável" . Vimos
já que, se a primeira daquelas proposições for entendida no
sentido que estamos a analisar, ou seja, como uma afirmação
de que B é diferente de qualquer predicado expresso por qual-
quer expressão que não seja "bom" , essa proposição, a ser ver-
dadeira , dar-nos-ia uma base para conjecturar que B é inana-
lisável. E poderemos ter suposto que, inversamente, do facto
de B ser inanalisável decorreria que B não poderia ser expresso
por qualquer expressão que não fosse "bom", dado a nosso
entendimento (correcto) de que, se fosse inanalisável, não
poderia ser expresso através de qualquer expressão que con-
tivesse uma análise de B, não tomando em atenção a diferença
existente entre a expressão do significado de um termo através
de outros termos e a sua expressão por m eio de um mero
sinónimo. Parece-nos muito facil perdermos de vista essa dis-
tinção porque, quando falamos da expressão do significado de
uma palavra "em termos de outras", queremos normalmente
dizer em termos de outras palavras que contenham uma análise
do conceito em causa; isso só é possível, obviamente, quando
esse conceito é analisável. É, assim, facil de verificar que,
mesmo que um conceito seja inanalisável, poderá ser, e nor-
malmente é, possível exprimi-lo por outras palavras, embora
não por palavras que contenham uma análise desse conceito e,
portanto, concluir que afirmar que um conceito é inanalisável
não implica realmente que não possa ser significado por outras
palavras.
No entanto, o facto de haver uma distinção, a qual não
levámos em conta, entre a expressão do sentido de uma
palavra através de outras palavras que contenham uma análise
desse sentido e a mera expressão do sentido da mesma palavra
por outras palavras torna-se, mal dele nos apercebemos, fatal
relativamente à verdade da proposição em análise. Pode ser
verdade que B seja inanalisável e que, portanto, não possa ser
significado por outras palavras que contenham uma análise do
mesmo, mas não é certamente verdade que não possa ser sig-

[50]
nificado por quaisquer outras palavras. Mesmo para além do
facto evidente de que, noutras línguas, as palavras que expri-
mem B são diferentes daquela com que o exprimimos (N.T. :
"good", em Inglês), também não é verdade que, em Inglês,
nunca usamos outras palavras ou expressões como sinónimos
de "bom", nesse sentido. É claro que, por exemplo, a palavra
"desejável" é por vezes utilizada nesse sentido, bem como a
expressão "com valor intrínseco", que nós próprios usamos
mais adiante na obra. Por esse motivo, não é verdade que B
seja diferente de qualquer predicado que exprim2i-:1os por
palavras ou expressões diferentes de "bom".
Daí que, tanto quanto nos é dado entender, a afirmação
de que "B é B e nada mais" tomada em qualquer acepção
estrita que seja , será 011 uma mera trivialidade, ou então obvia-
mente falsa . Se significa algo que seja verdadeiro e importante,
apenas o faz na medida em que for entendida num sentido
que, de uma forma precisa, não deveria possuir. Assim, se
efectivamente exprime algo que é verdadeiro e importante,
fa-lo certamente de um modo muito imperfeito.
Consideremos agora (b) a asserção de que "todas as pro-
posições que dizem respeito ao bom são sempre sintéticas,
nunca analíticas". Nesta afirmação, com a utilização do termo
"analítico" certamente queríamos apenas dizer tautológico e
com "sintético", não tautológico; trataremos, portanto, a afir-
mação apenas como uma declaração de que "Nenhuma pro-
posição sobre o bem é uma mera tautologia".
(a) Uma objecção óbvia que pode ser feita a essa decla-
ração é a de que, se considerarmos afirmações do tipo "O que
é bom é bom" ou "O que é desejável é bom" (usando "dese-
jável" como um mero sinónimo de "bom"), parece que esta-
mos perante proposições que são certamente tautologias e
que, de certa forma, são, em determinado sentido, "propo-
sições sobre o bem". Cremos que é inegável que, num certo
sentido, o são; daí que, numa dada acepção dos termos, de
qualquer forma, a nossa afirmação, se entendida em sentido
restrito, é completamente falsa.

[51 l
(t3) Contudo, parece efectivamente que poderíamos uti-
lizar com propriedade a expressão "proposições sobre o bem"
num sentido em que nenhuma tautologia é uma " proposição
sobre o bem" . Evidentemente que, quando falamos de "pro-
posições sobre o bem", não deveria entender-se que incluí-
mos qualquer tautologia. E, sendo assim, há possivelmente um
sentido em que é verdadeira a afirmação "Todas as propo-
sições sobre o bem são não tautológicas" . No entanto, no que
se refere a esse sentido, parece-nos muito questionável que ele
próprio não constitua uma mera tautologia. A razão pela qual
se torna evidente que nenhuma mera tautologia deve ser ape-
lidada de " proposição sobre o bem" poderá ser apenas que, ao
referir uma proposição como "proposição sobre o bem", urna
das características que lhe estamos a atribuir poderá ser a de
não constituir uma tautologia - e isso pode ser um aspecto do
nosso entendimento de uma proposição sobre o bem. Nesse
caso, é óbvio que o nosso princípio de que "Todas as pro-
posições sobre o bem são não tautológicas" é completamente
irrelevante, pois que é, ele mesmo, uma tautologia. De facto,
não temos a certeza absoluta de que seja assim. Parece-nos
possível que a expressão " proposições sobre o bem" possa ser
verdadeira sem constituir uma tautologia. Mas já é muito
questionável que ela tenha esse sentido. Assim, mesmo que
essa asserção, tomada num sentido muito restrito, possa expri-
mir algo que não seja falso nem tautológico, cremos que se
deve concordar que não o exprime de forma muito clara.
Parece-nos assim correcto afirmar que as duas proposi-
ções "B é B e nada mais" e "Todas as proposições que possuem
a propriedade B são não tautológicas" são ambas, se tomadas
num determinado sentido em que devem ser estritamente
entendidas, ou falsas, ou completamente triviais.
Não poderemos, por isso, dizer que essas proposições
exprimam algo, nem sequer de uma forma aproximada, do
que pretendemos afirmar relativamente a B, a não ser que, de
facto, transmitam às pessoas uma proposição muito diferente
daquela que deveriam, com precisão, exprimir. No entanto,

[52)
é-nos impossível pensar que o não façam . Desconhecemos até
que ponto para isso contribuem os exemplos que demos de
predicados que consideramos não serem idênticos a B e de
proposições sobre o bem que afirmamos serem não tautológi-
cas. Contudo, não podemos deixar de admitir a possibilidade
de que, de facto, possam sugerir à maior parte das pessoas um
tipo de predicados relativamente específico, em nada idêntico
ao tipo "predicados que não sejam B" nem ao tipo "Predica-
dos expressos por uma palavra ou expressão que não seja
'bom' " . Também poderão dar a entender que o que pretende-
mos efectivamente afirmar é que B não é idêntico a nenhum
predicado desse tipo especifico, ou que são não tautológicas as
proposições que afirmam relativamente aos predicados desse
tipo que aquilo que os possui possui B. Sugerem, de facto, que
B não é idêntico a quaisquer predicados que sejam, num deter-
minado aspecto, como "é um estado de prazer" ou "é desejá-
vel" - que não é idêntico a quaisquer predicados desse género;
e, segundo cremos, o tipo de predicados sugerido não é cer-
tamente aquele que é como estes no que se refere à caracte-
rística de serem analisáveis; aquilo em que as pessoas realmente
pensam é naqueles que são como estes num aspecto comple-
tamente diferente. É facil de verificar que nós próprios tínha-
mos em mente um tipo de predicados como "é um estado de
prazer" em certo aspecto bastante diferente do de ser analisá-
vel pelo simples facto de que, no próprio passo do texto em
que repetimos que a afirmação "O prazer é bom" não significa
O prazer é prazer, referimos, no entanto (e erradamente,
segundo agora pensamos) que "o prazer" é inanalisável (p. 94) .
Ou seja, até aí, como pretendíamos afirmar que B não é idên-
tico a qualquer predicado como este, não queríamos efectiva-
mente dizer "como este em termos de ser analisável", uma
vez que considerávamos (embora erradamente) que este o não
era. Parece-nos extremamente provável que os leitores possam
ser levados a entender o que afirmámos como referindo-se a
um tipo de predicados como este no mesmo sentido em que
nós próprios originalmente o entendíamos.

[53]
Qual era, então, o tipo de predicados que pretendíamos
referir e relativamente aos quais nos parece que sugerimos
efectivamente à maioria dos leitores que B não é (em nossa
opinião) idêntico a quaisquer predicados desse tipo ?
Parece-nos que se trata do tipo claramente descrito pelo
conjunto das afirmaçõ es das pp. 94-7 e dos Parágrafos 25 e
26. No primeiro dos passos referidos, repetimos a afirmação
de que B não é idêntico a nenhum "objecto natural"; no
segundo, afirmamos ainda que não é idêntico (1) nem a qual-
quer "propriedade natural" , (2) nem a qualquer propriedade
de um tipo que consideramos obviamente como propriedades
que têm a mesma relação com os "objectos supra-sensíveis"
que as "propriedades naturais" têm relativamente aos "objec-
tos naturais" (pp. 124-6). Parece, assim, que o que queríamos
dizer que era que B não é (1) nem um "objecto natural" , (2)
nem uma " propriedade natural" e nem (3) aquilo a que
chamaríamos agora uma " propriedade metafisica", ou seja,
uma propriedade que tem com os "objectos supra-sensíveis"
a mesma relação que uma "propriedade natural" tem com os
"objectos naturais". No entanto, de facto podemos facilmente
reduzir para dois estes três tipos de coisas. Quando, a pp. 94-
- 7, referimos que bom não é um "objecto natural", é evidente
que o fazemos porque estamos a confundir factos ou objectos
naturais com um certo tipo de propriedade que podem pos-
suir - de facto, a confusão verificava-se entre um aconteci-
mento natural específico, que consiste no facto de alguém se
encontrar satisfeito, e a propriedade que atribuímos a B quan-
do afirmamos tratar-se de um "estado de prazer", exactamente
como, sempre que referimos "amarelo" (por exemplo, nas pp.
91, 96, 126) , estávamos a confundir uma área específica de
amarelo (que podia com propriedade designar-se por "objecto
natural") com a propriedade que lhe atribuímos ao dizermos
que é amarela. Podemos, então, afirmar que o que se preten-
dia realmente dizer é que B não é uma propriedade natural
nem uma propriedade metafisica. Porém, as nossas tentativas
de definição de "propriedade natural" são efectivamente muito

[54]
confusas. Começamos (p. 125) por sugerir que uma proprie-
dade natural é uma propriedade que consiste em possuir algu-
ma relação com um "objecto natural" - e esta é uma definição
que se aplicaria apenas a um dos tipos das propriedades que
realmente pretendíamos considerar. Mais adiante, a pp. 127,
quando expressamente nos confrontamos com a questão de o
que são realmente "propriedades naturais" (e reconhecemos
que não se trata de uma questão simples) propomos uma
definição que é totalmente incompatível com a definição
anterior e que não é de todo aplicável a qualquer propriedade
natural, uma vez que confunde as " propriedades" de um
"objecto natural" com as suas"partes". A definição mais apro-
ximadamente correcta de "propriedade natural", capaz de
abranger efectivamente a totalidade do tipo de propriedade
que queríamos referir, é a que se encontra na p. 126, quando
se afirma que a identificação de B com qualquer propriedade
natural tem por consequência a substituição da Ética por qual-
quer uma das ciências naturais (incluindo a Psicologia). Esta
afirmação sugere que seria possível definir " propriedade natu-
ral" como significando "propriedade cujo estudo pertence ao
âmbito das ciências naturais ou da Psicologia" - e, se a substi-
tuirmos por "propriedade cujo estudo pertence ao âmbito das
ciências naturais ou da Psicologia ou que pode ser cabalmente
definida nos termos dessas disciplinas" , teremos pelo menos
uma definição de "propriedade natural" que abrange tudo
aquilo que queremos designar através daquela expressão. Pen-
samos, além disso, que, se mantivermos a nossa definição de
"propriedade metafisica" como "propriedade que possui rela-
tivamente a um objecto supra-sensível a mesma relação que as
propriedades naturais (segundo a última definição) possuem
relativamente aos objectos naturais", ficará então correcta-
mente descrito o tipo de propriedades relativamente às quais
era nosso intuito afirmar que B não era idêntico.
Não restam dúvidas, segundo nos parece, que era apro-
ximadamente essa proposição - que B não é idêntico a qual-
quer propriedade natural ou metafisica (tal como são agora

[55]
definidas) - que tínhamos em mente. Pensamos ainda que
aquilo que realmente afirmámos poderia sugerir à maioria dos
leitores, de modo mais ou menos vago, uma proposição dessa
natureza. Trata-se obviamente de uma proposição que não
implica nem é implicada pela proposição de que B é inanali-
sável, uma vez que poderia simplesmente ser verdade, mesmo
se B fosse analisável, e, por outro lado, ainda que B fosse
inanalisável, poderia ser idêntico a uma propriedade natural,
já que muitas delas podem ser inanalisáveis. E não é menos
evidente que não pode ser expressa com propriedade pela afir-
mação de que B é " indefinível" em qualquer outro sentido.
Assim sendo, somos certamente culpados de uma grande con-
fusão, uma vez que, ao usarmos aquela expressão era esta pro-
posição que pretendíamos exprimir. Contudo, o facto de que
era essa proposição que pretendíamos exprimir parece poder
explicar em parte a nossa insistência na inanalisabilidade de B,
já que dela decorrem duas outras importantes proposições
para as quais gostaríamos de chamar a atenção dos leitores e
que são facilmente confundíveis com a proposição de que B é
inanalisável. A primeira é (1) que B não é completamente
analisável em termos de propriedades naturais ou metafisicas e
que, portanto, se for de algum modo analisável, certamente
que a sua análise implicará um conceito inanalisável que não
é idêntico a qualquer propriedade natural ou metafisica. Pa-
rece-nos que a confusão residia na identificação da proposição
de que B não é analisável de um modo específico com a propo-
sição de que B não é de todo analisável. A segunda proposição
que queremos destacar é (2) a de que as proposições éticas têm
a ver com um conceito inanalisável que não é idêntico a qual-
quer propriedade natural ou metafisica. Quando afirmámos
ser B inanalisável, uma parte do que pretendíamos dizer era
que a Ética inclui um conceito inanalisável desse tipo. Não
vimos, contudo, que essa questão era muito mais importante
e muito menos duvidosa do que a (precipitada) consideração
de que B constituía esse mesmo conceito.
Talvez valha a pena notarmos ainda que o facto de que

[56]
pretendíamos afirmar que B não é idên tico a qualquer pro-
priedade natural ou metafisica poderá também explicar algo
que várias vezes referimos relativamente a B - nomeadamente
que B é " único". Trata-se obviamente de uma expressão
ambígua. Poderá simplesmente significar "diferente da todas
as outras propriedades", ou seja, a proposição de que " B é B e
nada mais". No entanto, quando dizemos que uma coisa é
"única", ímpar, nunca queremos dizer simplesmente que seja
apenas diferente de outras coisas e sim que é muito diferente.
Assim, ao dizermos que B é ânico, poderíamos ter querido
afirmar que B é muito diferente de todos os outros predicados
- e essa é uma asserção relativamente à qual temos grandes
dúvidas. Mesmo se B for inanalisável, poderá haver outros
predicados inanalisáveis a que B seja semelhante; se for anali-
sável, então é quase certo que outros predicados que têm a ver
com o mesmo conceito inanalisável e especificamente ético
de B sejam tão semelhantes a ele que se torne impossível clas-
sificá-lo de "único". Parece-nos, no entanto, que o que efec-
tivamente pretendíamos dizer era que B é muito diferente de
todas as propriedades naturais e metafisicas. Essa é uma afir-
mação que ainda consideramos verdadeira .
Desse modo, consideramos válida e importante a pro-
posição de que B é diferente de qualquer propriedade natural
ou metafisica e julgamos que ela se aproxima muito mais da
nossa actual posição relativamente a B do que a proposição de
que B é inanalisável. Todas as consequências importantes que
teriam derivado daquela proposição também decorrem desta,
que é, aliás, segundo cremos, muito menos controversa. Há,
contudo, três razões pelas quais nos parece que ela deverá ser
substituída por algo bastante diferente. Em primeiro lugar (1)
não é tão exacta quanto seria desejável. Para se entender esta
afirmação, teremos que esclarecer o significado de " proprie-
dades naturais"; e para que se entenda este conceito, é neces-
sário entender o que significa a definição "propriedades cujo
estudo pertence ao âmbito das Ciências Naturais ou da Psico-
logia" . No entanto, este último conceito, embora nos pareça

[57]
ser de facil compreensão para a maioria das pessoas e possa ser
definido com precisão, não é assim tão facil de definir. Have-
ria, por exemplo, que esclarecer em que sentido o próprio B
não é uma propriedade cujo estudo pertence ao âmbito da
Psicologia, uma vez que aquilo em que acreditamos relativa-
mente a B pertence ao âmbito da Psicologia . Pelo motivo
exposto, parece ser aconselhável substituir, se possível, esta
proposição por algo mais preciso. Em segundo lugar (2) não
nos parece tão certo como gostaríamos que seja verdade. É,
em nossa opinião, bastante mais acertado afirmar-se que B não
é idêntico a qualquer propriedade natural ou metafísica de um
determinado tipo, bem limitado, do que que não é idêntico a ne-
nhuma. Assim sendo, é importante que definamos esse tipo
limitado (mas, ainda assim, bastante amplo) de propriedades
naturais e metafisicas, insistindo que B não é idêntico a ne-
nhuma delas. Finalmente, (3) a nossa proposição possui ainda
o mesmo defeito que, como referimos, a proposição "B é
inanalisável" contém: ela não implica uma das características
mais importantes que cremos essencial relativamente a B - a
proposição de que B depende apenas da natureza intrínseca
dos estados de coisas que o possuem. Tanto quanto sabemos,
as únicas propriedades que não dependem assim exclusiva-
mente da natureza intrínseca daquilo que as possui são as pro-
priedades naturais ou metafísicas. É, no entanto, possível que
B seja um exemplo duma propriedade desse tipo, apesar do
facto de não ser uma propriedade natural ou metafísica; assim,
é muito importante que afirmemos explicitamente que este é
um aspecto em que B difere de um amplo conjunto de pro-
priedades naturais e metafísicas.
Propomo-nos, desse modo, tentar substituir a proposi-
ção segundo a qual B não é idêntico a qualquer propriedade
natural ou metafisica por uma proposição que difere desta em
três aspectos. Contudo, antes de o fazermos, devemos comen-
tar ainda uma outra expressão que é introduzida no passo em
análise e que continua a ser utilizada no texto.
(4) A expressão a que nos referimos é "a falácia natura-

(58]
lista". Obviamente, com essa expressão, pretendemos signi-
ficar algo que se relaciona muito de perto com as proposições
que temos vindo a considerar. Qual é essa relação? E o que é
exactamente "a falácia naturalista"? Estas questões são tratadas
de modo bastante confuso na obra e, embora não seja possí-
vel nesta ocasião expor e esclarecer todos os aspectos de que,
por nossa culpa, o tratamento da questão enferma, parece-nos
que poderá ser útil tentarmos esclarecer alguns deles.
O erro principal que cometemos nas nossas afirmações
sobre "a falácia naturalista" tem a ver com uma confusão exac-
tamente igual à que fazemos relativamente, como vimos, às
nossas proposições sobre B. Acabámos de ver que, neste último
caso, são confundidas três proposições completamente dife-
rentes: "B não é idêntico a nenhum outro predicado que não
seja ele mesmo" "B não é idêntico a nenhum predicado ana-
lisável" e uma outra que pode ser expressa como "B não é
idêntico a nenhum predicado natural ou metafísico". No que
se refere à "falácia naturalista", confundimos também as seguin-
tes três afirmações: (1) "Fulano identifica B com um predicado
que não é B", (2) "Fulano identifica B com um predicado
analisável" e (3) "Fulano identifica B com um predicado natu-
ral ou metafisico." Por vezes, parece ficar implícito que dizer-se
que alguém comete a falácia naturalista equivale a afirmar (1);
outras vezes, que equivale a afirmar (2) e outras ainda, a afirmar
(3) ou algo de semelhante sobre essa pessoa. Assim, a asserção
a que queremos dar a maior importância - que constitui um
erro ou uma "falácia" cometer a falácia naturalista - transforma-
-se, dependendo de qual das três afirmações a substitui, (1) ou
(2) ou (3), respectivamente em: "É errado identificar B com
qualquer outro predicado que nãos seja B"; "É errado identi-
ficar B com qualquer predicado analisável"; "É errado identi-
ficar B com qualquer predicado natural ou metafísico".
Obviamente, estas três afirmações são respectivamente equi-
valentes à tautologia "B não é idêntico a qualquer predicado
que não seja B", "B é inanalisável" e "B não é um predicado
natural ou metafísico".

(59]
Como é óbvio, se se der um desses três sentido à "falá-
cia naturalista", a proposição segundo a qual é errado come-
ter a falácia é algo que, sendo uma mera tautologia, não exige
nem admite prova. Assim, o fa cto de referirmos ser necessário
rejeitar a falácia e de aduzirmos uma série de argumentos con-
tra a mesma revela que não havíamos entendido a expressão
apenas no primeiro dos sentidos que referimos, e sim de algum
modo no sentido (2) ou (3) . No entanto, no caso da falácia
naturalista, existe uma complicação que torna essa confusão
mais justificável do que relativamente às proposições sobre B.
Se, naturalmente, substituirmos a palavra "confundir" pela
palavra "identificar" nos casos (2) e (3) acima mencionados, as
proposições "É errado efectuar a operação (2)" e "É errado
efectuar a operação (3)" tornam-se efectivamente tautologias.
Isso é verdade porque se dissermos que alguém conjimde B
com um predicado analisável, estamos a afirmar não só que essa
pessoa ident!fica B com um predicado analisável, mas também
que identifica B com um predicado que não é B (uma vez que
é isso mesmo que "confundir" significa) . É obviamente uma
tautologia dizer-se que é errado fazer essas duas coisas ao
mesmo tempo. Assim, a proposição "é errado confundir B com
qualquer predicado analisável" e a proposição "é errado con-
fundir B com qualquer predicado natural ou metafisico" são
proposições que, tal como a proposição "é errado identificar
B com qualquer predicado que não seja ele mesmo", não pre-
cisam de ser provadas. O que precisa efectivamente de ser
provado é que identificar B com um predicado analisável, na-
tural ou metafisico é, em todos os casos, um caso de confusão.
E é, no entanto, muito natural que tivéssemos identificado essas
proposições tautológicas com as seguintes proposições não
tautológicas: "É errado identificar B com qualquer predicado
analisável" e "É errado identificar B com qualquer predicado
natural ou metafisico".
É facil verificar que confundimos a proposição "é errado
cometer a falácia naturalista" com a proposição "é errado
identificar B com qualquer predicado analisável" dado o facto

[60]
de que, depois de termos apresentado os argumentos (Pará-
grafos 11 e 12) no sentido de rejeitar a falácia, começamos (no
início do parágrafo 13) a expor o assunto como se tivéssemos
estado constantemente a argumentar que B era inanalisável.
De modo semelhante, na pp. 124, reconhecemos efectiva-
mente "o facto de que a falácia naturalista é uma falácia" com
"o facto de que" B é simples. No entanto, também se torna
evidente que o que pretendíamos avançar era uma proposição
bastante diferente dessa e também da tautologia "é errado
identificar B com qualquer predicado que não seja B" bem
como algumas mais semelhantes a "é errado identificar B com
qualquer predicado natural ou metafisico". Essa nossa inten-
ção é revelada pelo facto de que é nesses mesmos argumentos
(parágrafo 11 e 12), que pretendíamos capazes de eliminar a
falácia naturalista, que defendemos que "O prazer é B" não é
uma tautologia e, ao mesmo tempo, afirmamos que "O pra-
zer" é inanalisável. O mesmo demonstra o facto de que, na
p. 126, declaramos que qualquer teoria que defenda que B é
idêntico a "amarelo" ou "verde" ou "azul" é un1a teoria na-
turalista, enquanto que, na p. 96, afirmamos que "amarelo" é
também inanalisável. É óbvio que o motivo pelo qual afir-
mamos que defender essa tese equivaleria a cometer a falácia
naturalista não é porque pensamos que equivaleria a identi-
ficar B com um predicado analisável e sim porque equivaleria
a identificar B com um predicado natural.
Não sabemos bem como provar que, ao utilizarmos a
expressão "cometer a falácia naturalista", o nosso intuito era
realmente apenas dizer "identificar B com outro predicado que
não B". Parece-nos, no entanto, que é o que damos a enten-
der constantemente. Desse modo, é possível afirmar que faze-
mos realmente uma confusão relativamente às asserções (1),
(2) e (3), confusão que é provavelmente a mais importante no
que se refere à "falácia naturalista" .
É efectivamente verdade que alguém que cometa a falá-
cia naturalista em qualquer desses três sentidos também o faz
relativamente aos outros dois, porque os únicos predicados

(61]
que de facto se confundem com B são analisáveis e naturais ou
metafisicos . É por isso que, como já foi referido, a maior parte
das consequências que derivam da proposição de que B não é
um predicado natural nem metafisico decorreriam também da
proposição de que B é inanalisável, uma vez que a expressão
consequências importantes, utilizada neste contexto, significa
que se trata de consequências importantes porque afirmam
que um predicado que é de facto susceptível de ser confundido
com B não é idêntico a B. E o facto de que alguém que
cometa a falácia naturalista num dos três sentidos estará tam-
bém a cometê-la nos outros dois poderá explicar em parte a
nossa confusão relativamente às três coisas. É, porém, óbvio
que não justifica a confusão, uma vez que dizer que alguém
está a fazer uma dessas três coisas não é evidentemente o
mesmo que dizer que está a fazer qualquer uma das outras.
Essa confusão é bastante grave porque se trata de uma con-
fusão entre as três proposições seguintes: "É errado efectuar
uma operação do tipo (1), "É errado efectuar uma operação
do tipo (2) e "É errado efectuar uma operação do tipo (3).
A primeira dessas três proposições é uma tautologia e, por esse
motivo, não precisa de ser provada e nem poderá ter conse-
quências muito importantes; a segunda, como já referimos,
parece ser muito mais problemática do que a terceira. Além
disso, mesmo que a segunda e a terceira fossem verdadeiras, é
óbvio que o facto teria que ser provado de forma diferente em
cada um dos casos. Nem será provavelmente necessário dizer
que, se fosse nossa intenção manter a denominação "falácia
naturalista", não a usaríamos agora como sinónimo de qual-
quer das três operações referidas. Em vez disso, emprega-la-
-íamos como sinónimo da identificação de B com um predi-
cado do tipo que passaremos agora a definir e que, como já foi
dito, vai substituir o tipo "predicados naturais e metafisicos".
O erro que acabámos de descrever é o mais importante
que cometemos relativamente à utilização do termo "falácia
naturalista". No entanto, há alguns outros erros que talvez
valha a pena referir.

[62]
Um deles é o seguinte: na p. 96, parece que falamos em
"cometer a falácia naturalista" como se isso não signifi casse
nenhuma das três coisas atrás referidas , querendo, em vez
disso, dizer "supor que, em proposições como ' Isto é bom' ou
como 'O prazer é bom', a palavra 'é' exprime sempre, no
primeiro caso, identidade entre a coisa denominada 'isto' e B e,
no segundo, identidade entre o predicado que afirmamos per-
tencer a uma coisa quando dizemos tratar-se de um estado de
prazer e B". Uma confusão deste tipo, entre o "é" que ex-
prime predicação e o "é" que exprime identidade, ou entre o
"é" que exprime a inclusão de um tipo em outro e o que
exprime identidade, pode ser um dos motivos que está na
origem do cometimento da falácia em qualquer dos outros três
sentidos. Todavia, não é idêntica a eles e, por esse motivo, ao
expressarmo-nos como se cometer a falácia significasse fazer
essa confusão, estávamos a fazer ainda outra confusão.
Finalmente, quando tentamos pela primeira vez definir
qual é, para nós, o significado da expressão "a falácia natura-
lista", bem assim como noutros passsos, referimo-nos a ela em
termos de alguém que, ao cometê-la relativamente a um pre-
dicado de certo tipo, considera que esse predicado é idêntico a
B. No entanto, noutras ocasiões, como por exemplo na p. 95 ,
referimos-nos a ela como se a pessoa que a comete estivesse a
confundir determinado predicado de certo tipo com B. Ora
bem, será verdade que ninguém consideraria que um predicado
que não fosse B seja idêntico a B, a não ser que os confundisse.
Contudo, considerar que dois predicados são idênticos e con-
fundir ambos não parece corresponder exactamente ao mesmo
tipo de operação psicológica; donde, se o cometimento da
falácia corresponde a uma operação do primeiro tipo, não cor-
responderá a uma operação do segundo, e vice-versa. Reco-
nhecemos que confundimos essas duas operações. Para além
disso, parece-nos duvidoso que qualquer das duas possa propria-
mente ser classificada como constituindo o cometimento da
falácia, pelo simples motivo de que cometer a falácia significa
mais propriamente fazer um certo tipo de inferência, enquanto

(63]
que a mera confusão de dois predicados ou um determinado
entendimento deles não parecem constituir processos de infe-
rência. Ao que parece, portanto, o nosso erro seria o de utili-
zar erradamente o termo "falácia". Embora não consideremos
que estes erros sejam uma questão de grande importância,
para os remediar, no caso de querermos manter o termo "falá-
cia naturalista", proporíamos definir "Fulano está a cometer a
falácia naturalista" como significando "01-1 está a confundir B
com um predicado do tipo a definir, 01-1 o considera idêntico
a esse predicado, ou está a fazer uma inferência baseada nessa
confusão", referindo explicitamente que, ao usarmos desse
modo o termo "falácia", estávamos a utilizá-lo num sentido
muito lato e talvez mesmo inexacto.
Falta agora apenas tentar explicar o mais claramente pos-
sível o que queremos realmente afirmar de importante relati-
vamente a B - qual é a proposição (que é apenas ligeiramente
diferente) pela qual pretendemos substituir a asserção de que
B não é um predicado natural ou metafisico. Para começar,
gostaríamos de sublinhar que, embora essa proposição nos
pareça ser mais precisa do que a proposição de que B não é
um predicado natural ou metafisico, para além de ser também
menos controversa e de, além disso, afirmar algo que é muito
importante e que aquela não diz, ela não é efectivamente tão
exacta quanto desejaríamos que fosse e, um pouco por esse
motivo, não nos parece que esteja inteiramente isenta de am-
biguidade. Trata-se de uma proposição que é composta por
duas proposições diferentes, cujos significados parecem não ser
pe,feítamente claros: provavelmente, ambas precisam de ser ana-
lisadas em mais pormenor. Parece-nos que o melhor a fazer é
começar por enunciá-las de forma sintética, de modo a que
nos pareçam exprimir o que pretendemos dizer melhor do
que qualquer outra expressão sintética o faria. Passaremos
depois a explicar, com a maior exactidão possível e de forma
mais aprofundada, o que queremos significar quando utiliza-
mos essas duas breves expressões, referindo tanto as razões
pelas quais essas mesmas expressões não são completamente

[64)
adequadas, como o motivo po r que as explicações mais deta-
lhadas não nos parecem perfeitamente sa tisfató rias nem claras.
De seguida, tentaremos explicar qual o motivo pelo qual as
consideramos verdadeiras.
As expressões que, no seu conjunto, constituem a expres-
são mais sintética daquilo que consideramos realmente impor-
tante afirmar relativamente a B são as seguintes:
(1) B é uma propriedade que depende apenas da natureza
intrínseca das coisas que a possuern.
É esta a proposição a que já nos refer imos um par de
vezes como correspondendo àquilo qu e de m ais importante
tínhamos para dizer acerca de B. É essa a proposição que ten-
tamos exprimir na obra quando dizemos qu e os juízos que
afirmam que certos tipos de coisas são boas em si mesmas, se
de algum modo verdadeiros, são todos eles universalmente
verdadeiros e ainda ao dizermos que um juízo que afirma que
uma coisa é boa em si mesma, se é correcto relativamente a
um aspecto dessa coisa, é necessariamente verdadeiro no que
se refere a todos os aspectos. Pode também exprimir-se essa
ideia dizendo que B é um tipo intrínseco de valor. Quando
normalmente as pessoas dizem que uma coisa possui "valor
intrínseco", parte do que querem dizer é, segundo cremos,
que possui sempre um tipo de valor que tem essa propriedade.
Propomos por vezes exprimir essa proposição através da
afirmação de que B não é uma propriedade "contingente".
(2) Embora B dependa apenas das propriedades intrínsecas das
coisas que a possuem e constitua, nesse sentido, um tipo de valor
intrínseco, não é em si mesma uma propriedade intrínseca.
Esta é uma proposição que tentamos exprimir na pró-
pria obra ao dizermos que, no que se refere ao significado de
bom, qualquer coisa pode ser boa e ainda quando dizemos que
proposições como a de que "O prazer é bom" ou "Aquilo
que contém um equilíbrio de prazer e dor é bom" são sempre
sintéticas. Com isso queremos por vezes dizer que proposições
como essas, no que se refere ao facto de afirmarem que o que

[65]
quer que possua determinada propriedade intrínseca possui B,
1
nunca são tautológicas •
(Afirmamos, assim, que B não é nem uma propriedade
contingente, nem sequer uma propriedade intrínseca. Isso dis-
tingue B de imediato da grande maioria das propriedades que
até aqui classificámos como "naturais" e "metafisicas", bem
como de todas aquelas com as quais B é mais susceptível de
ser identificado. Se não todos, a maior parte dos predicados
naturais e metafisicos é, pelo que) nos é dado entender, ou
contingente ou intrínseca . De facto, não conhecemos quais-
quer predicados, à excepção de B e de alguns outros que têm
em comum a característica peculiar de que atribuí-los a coisas
é atribuir a essas coisas um tipo de valor que não nos parece ser
contingente nem intrínseco. Ao afirmarmos isso sobre B, esta-
mos a atribuir-lhe uma posição muito especial enquanto pre-
dicado - uma posição que, em nosso entender, só pertence a
um número limitado de predicados de valor. Mas não nos
parece que o facto de a posição que pretendemos atribuir-lhe
ser tão peculiar contradiga a nossa tese, muito antes pelo con-
trário, uma vez que, prima facie, a natureza dos predicados de
valor parece ser efectivamente bastante peculiar.
Vamos então explicar mais detalhadamente as duas pro-
posições. É facil verificar que nenhuma delas se pode enten-
der sem se entender o que queremos dizer com a expressão
"propriedade intrínseca" . Por esse motivo, propomo-nos então,
antes de mais nada, começar por explicar esse conceito. Para
começar, poderíamos dizer que, com essa expressão, quere-
mos dizer o mesmo que a maioria das pessoas teria em mente
ao falar de propriedades que nos dizem algo sobre a natureza
intrínseca das coisas que as possuem. Quase toda a gente, de vez
em quando, usa expressões deste tipo - a natureza intrínseca das

1
Moore tinha cortado a parte do parágrafo seguinte que se encon-
tra entre parêntesis. No manuscrito, isso ocorre no final de uma página, mas
uma vez que o texto no cimo da página seguinte é claramente uma conti-
nuação do parágrafo anterior, decidi restaurar o material que fora suprimido.

[66]
coisas. O que pretendemos fazer é tentar explicar o seu signi-
ficado o melhor possível.
O primeiro aspecto que devemos focar numa explicação
como esta é o seguinte: vamos utilizar o termo "propriedade
intrínseca" no sentido em que uma propriedade só será intrín-
seca se se· tornar imediatamente evidente que, se uma coisa, A,
a possuir, e uma outra, B, a não possuir, então A e B não
poderão ser exactamente iguais.
Pensamos que essa proposição torna mais claro em que
área devemos procurar as propriedades intrínsecas, uma vez
que o conceito de "exacta igualdade" é perfeitamente óbvio
para toda a gente e uma vez também que não há um grande
número de propriedades relativamente às quais não seja ime-
diatamente evidente que duas coisas, uma das quais possui a
propriedade em questão e a outra não a possui, possam ser
exactamente iguais. Por esse motivo, esta proposição permite-
-nos verificar de imediato que há imensas propriedades que
não são propriedades intrínsecas. E é óbvio que não podem ser
exactamente iguais, a não ser que tenham exactamente a mesma
forma, exactamente o mesmo tamanho e exactamente a mesma
cor. De acordo com o nosso teste, a forma, o tamanho e a cor
poderão, portanto, ser propriedades intrínsecas. No entanto,
por outro lado, não é de todo óbvio que duas manchas de cor
possam não ser exactamente iguais apesar do facto de que uma
delas é vista por mim e a outra não é vista por mim e sim por
si, leitor; ou apesar do facto de que uma delas tem uma orla
vermelha, enquanto que a outra não tem uma orla vermelha.
Assim, o nosso teste permite-nos distinguir com toda a cer-
teza que propriedades como "ser vista por mim" ou "ter uma
orla vermelha" não são propriedades intrínsecas. Uma das teo-
rias preferidas de alguns filósofos é a de que não existem
relações puramente "externas" e uma das coisas que esses filó-
sofos possivelmente querem dizer com isso é que se uma coisa,
A, possui qualquer propriedade que uma outra coisa; B, não
possui, então A e B não podem ser exactamente iguais - há cer-
tamente uma diferença intrínseca nas suas respectivas natu-

(67)
rezas. A ser verdadeira, esta tese teria como consequência,
para toda e qu alquer propriedade, sem excepção, que, se A a
possuir e B não a possuir, A e B não podem ser exactamente
iguais. No entanto, não se poderia daí concluir que qualquer
propriedade é "intrínseca" no sentido em que entendemos o
conceito, uma vez que é óbvio de imediato que duas coisas, das
quais uma possui uma propriedade e a outra não a possui, não
podem ser exactamente iguais, verificando-se isto relativamente
a todas as propriedades. Contudo, ao que sabemos, nunca
ninguém defendeu essa tese relativamente a propriedades como
ser visto por uma determinada pessoa ou possuir uma orla
vermelha e, mesmo que alguém a defenda, ela parece-nos cla-
ramente errada. Portanto, se afirmamos que há muitas pro-
priedades relativamente às quais não se torna imediatamente
evidente que o facto de A as possuir tem como consequência
A não poder ser exactamente como B, uma outra coisa que as
não possui , estamos a afirmar algo que é claramente verdade e
que não compromete o dogma de que não há relações pura-
mente "externas", no sentido em que foi definido. De facto,
parece-nos que o próprio enunciado desse dogma constitui
uma das formas mais claras de realçar o facto de que aquilo
que seria naturalmente designado por propriedade "intrínseca"
difere de muitas outras propriedades exactamente em termos
do aspecto em discussão. Dizer a alguém, como nos diz o
dogn1a, que quaisquer duas coisas que têm relações diferentes
com outras coisas possuem uma diferença intrínseca parece-nos
transmitir uma ideia muito clara, principalmente ao exprimir
que essas duas coisas não podem ser "exactamente iguais" no
sentido em que naturalmente usaríamos essas palavras. Assim,
toda a gente pode facilmente ver que o que nos é dito é algo
que não é imediatamente óbvio, mas que, a ser verdade, nos
transmite uma informação surpreendente e da maior impor-
tância sobre o universo. Se nos dizem que uma mancha de cor
que não é vista por nós é intrinsecamente diferente de qual-
quer outra que é vista por nós, ou que uma mancha de cor
que é vista por nós em determinada ocasião é intrinsecamente

(68]
diferente de qualquer outra que não é vista por nós nessa
mesma ocasião e sim noutra altura, entendemos claramente que
0 que nos é dito é que, para além da diferença constituída pelo
facto de que uma é vista por mim e a outra não, o que ninguém
classificaria de intrínseco, as duas manchas em questão terão
também uma outra diferença - uma diferença de algum modo
análoga à diferença de tom ou à diferença de forma que torna-
ria evidente de imediato que as duas manchas não são exacta-
mente iguais. Entendemos de imediato que se trata de algo que
não é de todo óbvio e que necessita de ser provado. Por outro
lado, a proposição de que as duas manchas de cor que têm tons
ou formas diferentes não podem ser exactamente iguais é ime-
diatamente evidente e não precisa de ser provada. Há então
com certeza propriedades relativamente às quais se torna ime-
diatamente óbvio que, se uma coisa as possui e outra não, essas
coisas não podem ser exactamente iguais, não sendo menos
certo que há outras propriedades relativamente às quais tal não
é imediatamente óbvio, mesmo que (como afirma o dogma das
relações internas) possa ser verdade que, em relação a duas
coisas, uma possuindo e a outra não possuindo uma proprie-
dade do segundo tipo, também seja verdade que uma possui e a
outra não possui uma propriedade do primeiro tipo.
Assim, ao dizermos que uma propriedade não pode ser
"intrínseca", no sentido em que utilizamos o termo, a não ser
que seja imediatamente óbvio que duas coisas, das quais uma
possui a propriedade em questão e a outra não, não podem ser
exactamente iguais, estamos a afirmar algo que nos permite
ver imediatamente que há uma imensa quantidade de proprie-
dades que não são intrínsecas. O próprio facto de reservarmos
o termo "propriedades intrínsecas" para referir propriedades
relativamente às quais o que foi afirmado é verdadeiro pode
explicar um dos motivos por que o termo não é inteiramente
adequado ao que queremos expressar, uma vez que poderá
naturalmente supor-se que, quando afirmamos que uma coisa
complexa possui um elemento constituinte específico, a pro-
priedade que assim lhe atribuímos é uma propriedade "in-

[69]
trínseca", já que se trata de uma propriedade que nos diz algo
sobre a constituição interna da coisa em questão. E é, con-
tudo, óbvio que essa propriedade não se adequa ao nosso teste,
porque pode haver uma outra coisa que seja perfeitamente
igual a essa, apesar do facto de não possuir aquele elemento cons-
tituinte especifico, desde que possua um elemento constituinte
exactamente como ele. Portanto, em relação às propriedades
relativamente às quais, se afirmarmos que uma coisa, A, as
possui, estamos a afirmar, sobre uma outra coisa específica, B,
que B é um elemento constituinte de A, não é óbvio que, se
A possuir essa propriedade e uma outra coisa, C, a não possuir,
A e C não poderão ser exactamente iguais; pelo contrário, é
perfeitamente evidente que podem sê-lo. Essas propriedades,
portanto, não são "intrínsecas" no sentido em que tomamos o
termo. No entanto, poderia parecer que deviam ser natural-
mente descritas como "intrínsecas", uma vez que efectivamente
nos dizem algo sobre a constituição interna de qualquer coisa
que as possua. Por esse motivo, deveremos admitir que a nossa
utilização do termo "propriedade intrínseca" é susceptível de
induzir os leitores em erro; contudo, parece-nos assim estar
mais de acordo com o uso normal do que se tivéssemos usado
o termo para designar propriedades do tipo que acabámos de
considerar. Quando as pessoas falam da "natureza intrínseca"
de algo, usam sempre o termo, segundo cremos, no sentido
em que quaisquer duas coisas que fossem exactamente iguais
seriam entendidas como tendo a mesma natureza intrínseca.
Porém, como acabámos de ver, essas duas coisas, mesmo sendo
complexas, não terão que possuir os mesmos elementos cons-
tituintes, sendo suficiente que cada um desses elementos seja,
relativamente a uma das coisas, exactamente igual a algum cons-
tituinte da outra. Nessa acepção normal da expressão "natu-
reza intrínseca" fica implícito, portanto, que qualquer pro-
priedade relativamente à qual, ao afirmar-se que A a possui, se
afirma que B, uma coisa especifica, é um elemento constituinte
de A, não faz parte da natureza intrínseca de A, pois que se
fizesse, então não seria verdade que algo exactamente igual a

[70]
A teria que ter a mesma natureza intrínseca que A. Assim, cre-
mos que a nossa utilização da expressão "natureza intrínseca" ,
ao excluir essas propriedades, se situa efectivamente mais
próximo do uso comum do que se as incluísse, embora possa
parecer, à primeira vista, que o contrário? (?) é que é verdade.
Assim, uma das razões pelas quais a expressão "natureza
intrínseca" não é completamente adequada ao que queremos
exprimir é a de que, ao excluir, como fazemos , todas as pro-
priedades do tipo que acabámos de mencionar, parece que
estamos a usá-la num sentido demasiado restrito. A razão
principal por que não é de facto adequada é exactamente a
oposta, dado o facto de que, ao pretendermos incluir, como
fazemos, certas propriedades que podem ser consideradas
como não propriamente intrínsecas, parece que estamos a usar
a expressão "natureza intrínseca" num sentido demasiado lato.
Efectivamente, poder-se-á pensar que não podemos falar pro-
priamente da constituição interna de algo, a não ser que se
trate de algo complexo - ou seja, a não ser que tenha ele-
mentos constituintes; daí que nada que seja simples - que não
tenha elementos constituintes - possa ser propriamente enten-
dido como possuindo quaisquer propriedades intrínsecas. Que-
remos, no entanto, utilizar a expressão "propriedade intrínseca"
num sentido em que todas as coisas simples possuem algumas
propriedades intrínsecas, pois, se o não fizermos, não poderá
ser sempre verdade que, quando temos uma propriedade in-
trínseca tal que, ao afirmar-se que ela pertence a A, se afirma,
relativamente à mesma propriedade, q>, que A tem um ele-
mento constituinte que possui q>, então q> deve ser também
uma propriedade intrínseca. Parece-nos conveniente podermos
referir propriedades intrínsecas desse tipo enquanto proprie-
dades que consistem em afirmar relativamente a uma pro-
priedade intrínseca, que a coisa que dizemos possuí-las tem um
elemento constituinte que possui essa propriedade. No entanto,
para o fazermos, é óbvio que teremos que utilizar a expressão
"propriedade intrínseca" num sentido que admita que as coisas
simples podem possuir propriedades intrínsecas.

[71]
'Everything is what it is,
and not another thing'

BISHOP Bu nrn.

PREFÁCIO

Parece-nos que na Ética , como em todas as questões


filosóficas, as dificuldades e divergências de opinião de que a
sua história está repleta se devem principalmente a uma causa
muito simples, a saber, a tentativa de responder a perguntas
sem primeiro descobrir exactamente qual a pergunta para que
se deseja encontrar resposta. Não sabemos até que ponto seria
possível eliminar esta fonte de erro se os filósofos tentassem
descobrir que pergunta estão a formular antes de lhe responde-
rem, pois a tarefa de analisar e estabelecer distinções é muitas
vezes difícil - e muitas vezes podemos não conseguir des-
cobrir o que é necessário, mesmo quando nos esforçamos ver-
dadeiramente por isso. A nós, porém, parece-nos que bastaria
tentar resolutamente para conseguir êxito em muitos casos, e
que, se se fizesse essa tentativa, se poderiam eliminar as dificul-
dades e divergências mais gritantes da filosofia. Seja como for,
os filósofos parecem em geral não fazer o esforço e, quer seja
por isso, quer não, estão constantemente a tentar responder
com um "sim" ou um "não" a perguntas para as quais nem
"sim" nem "não" é a resposta adequada, já que se trata não de
uma pergunta mas de várias, sendo que algumas delas podem
ser respondidas por "sim" e outras por "não".

[73]
Tentámos neste livro distinguir claramente entre duas
questões para as quais os filósofos da Ética afirmam ter encon-
trado resposta, mas que, na verdade, como tentámos demons-
trar, sempre confundiram, não só entre si como também com
outras. Estas duas questões podem ser formuladas, a primeira,
da seguinte forma: que espécie de coisas devem existir em fun-
ção de si mesmas? e, a segunda, que tipo de acções devemos
praticar? Tentaremos mostrar com clareza exactamente o que
pretendemos saber quando perguntamos se uma determinada
coisa deve existir por si mesma, se ela é, em si mesma, boa, se
tem valor intrínseco; e exactamente o que pretendemos saber
acerca de uma acção quando perguntamos se a devemos pra-
ticar, se se trata de uma acção correcta ou de um dever.
Mas, de uma clara visão da natureza destas duas questões,
parece-nos ressaltar uma segunda e importantíssima consequên-
cia, nomeadamente, saber qual é a natureza das provas segundo
as quais , e apenas segundo as quais, se pode provar ou refutar,
confirmar ou pôr em causa, uma proposição ética. Logo que
reconheçamos o significado exacto destas duas questões, torna-
-se muito claro o tipo de razões que são relevantes como argu-
mentos a favor ou contra qualquer resposta que lhes seja dada.
Para responder à primeira questão, torna-se claro não ser pos-
sível aduzir nenhuma prova relevante: de nenhuma outra ver-
dade, a não ser dela própria, se pode inferir se é falsa ou ver-
dadeira. A única forma de nos precavermos contra o erro,
quando tentamos responder a uma pergunta desta natureza, é
concentrarmos a nossa atenção apenas nessa pergunta e não
noutra qualquer; mas não deixaremos de mostrar o perigo real
que existe de se cair neste tipo de confusão, bem como ten-
taremos indicar as principais precauções a tomar para o evitar.
Quanto à segunda questão, torna-se igualmente óbvio que
qualquer resposta que se lhe dê é susceptível de ser provada ou
refutada - que, na realidade, são tantas as considerações perti-
nentes à sua verdade ou falsidade que se torna muito dificil
alcançar a probabilidade e impossível atingir uma certeza. Não
obstante, é possível definir com exactidão o tipo de provas que

[74]
são ao mesmo tempo necessárias e as únicas pertinentes para
a demonstração ou refutação de tais questões. Estas provas
devem conter proposições de duas e apenas duas categorias:
devem, em primeiro lugar, consistir em verdades relativas aos
resultados da acção em causa - ou seja, verdades causais - mas
devem incluir também as verdades éticas da nossa primeira cate-
goria, aquelas que são auto-evidentes. São necessárias muitas
verdades de ambos os tipos para provar que uma determinada
acção deve ser executada; e qualquer outro tipo de prova é total-
mente irrelevante. Assim, se um filósofo da Ética apresentar
quaisquer provas para uma proposição da primeira categoria,
ou se, no caso de proposições da segunda categoria, não apre-
sentar tanto verdades causais como éticas, ou ainda se aduzir
verdades que não são nem uma coisa nem outra, o seu raciocí-
nio não tem a menor possibilidade de estabelecer conclusões.
Mas não se trata apenas do facto de as suas conclusões estarem
totalmente desprovidas de peso: temos ainda boas razões para
desconfiar de que terá caído no erro da confusão, já que a
inclusão de provas irrelevantes costuma indicar que o filósofo
estava a pensar, não na questão à qual pretendia responder, mas
noutra qualquer, totalmente diferente. Talvez que o debate das
questões éticas até à data tenha consistido principalmente em
discussões irrelevantes deste género.
Um dos objectivos principais deste livro poderá ser ex-
presso alterando ligeiramente um título famoso de Kant . Ten-
támos escrever "Prolegomena para uma futura Ética que se
pretenda minimamente científica" . Tentámos, por outras pala-
vras, descobrir quais são os princípios fundamentais do racio-
cínio ético; e o estabelecimento destes princípios, mais do que
quaisquer conclusões a que eles possam levar, pode ser con-
siderado como o principal objectivo deste trabalho. No en-
tanto, tentámos também, no capítulo VI, apresentar algumas
conclusões relativas à resposta adequada à pergunta "O que é
bom em si mesmo?", conclusões que são bem diferentes das
que têm sido defendidas pelos filósofos. Tentámos definir as
classes onde se enquadram todos os grandes bens e males; de-

(75]
fendemos a posição de que muitas coisas diferentes são boas
ou más em si mesmas e de que nenhuma das duas classes de
coisas possui qualquer outra propriedade que seja simultanea-
mente comum a todos os seus membros ou específica deles.
Para expriinir o facto de que as proposições éticas incluídas na
nossa primeira categoria não são susceptíveis de serem provadas
ou refutadas, recorremos por vezes ao termo "Intuições", no
sentido em que o Professor Sidgwick o emprega. Mas importa
esclarecer desde logo que não somos " Intuicionistas" no senti-
do vulgar do termo. O próprio Sidgwick parece não se ter
apercebido da importância enorme da diferença que distingue
o seu Intuicionismo da doutrina geralmente conhecida por
esse nome. Para o verdadeiro Intuicionista, as proposições da
nossa segunda categoria - aquelas que afirmam que uma
determinada acção é correcta ou um dever - não são susceptíveis
de serem provadas ou refutadas por nenhuma averiguação dos
resultados da referida acção. Nós , pelo contrário, estamos tão
empenhados em afirmar que as proposições desta natureza não
são "Intuições", como em asseverar que as incluídas na nossa
primeira categoria o são.
Além disso, convém salientar que quando nós apelida-
mos estas proposições de 'Intuições', queremos dizer apenas
que elas não são susceptíveis de serem provadas; não estamos a
tomar qualquer posição quanto à forma ou origem do conhe-
cimento que temos delas. Muito menos ainda pretendemos
sugerir (como tem feito a maior parte dos Intuicionistas) que
uma proposição, seja ela qual for, é verdadeira, pelo simples
facto de nós a conhecermos de uma determinada maneira, ou
através do exercício de uma determinada faculdade; entende-
mos, pelo contrário, que é tão possível conhecer uma propo-
sição falsa como uma verdadeira.
Estava este livro já pronto, quando encontrámos, na obra
de Brentano, "Origin ofthe Knowledge ofRight and Wrong", 1

1
Tlz e Origin of knowlcdgc of Right and Wrong. De Franz Brentano.
Tradução inglesa de Ceei] Hagu e. Constable, 1902. - Escrevemos uma

[76]
posições muito mais p_róximas das nossas do que as de qual-
quer outro filósofo da Etica nosso conhecido. Brentano parece
concordar inteiramente connosco (1) ao considerar todas as
proposições éticas como definidas pelo facto de predicarem
um só conceito, único e objectivo; (2) ao dividir claramente
estas proposições nas mesmas duas categorias; (3) ao afirmar
que as proposições da primeira categoria não são passíveis de
demonstração; e (4) em relação ao tipo de provas que são
necessárias e relevantes para a demonstração de proposições da
segunda categoria. Mas, para ele, o conceito ético fundamen-
tal não é o conceito simples a que nós damos o nome de "bom",
mas aquele outro, complexo, que para nós define o "belo"; al€m
disso, não reconhece, antes implicitamente nega, o princípio
a que nós chamamos princípio das unidades orgânicas. Em con-
sequência destas duas diferenças, também as suas conclusões
quanto às coisas que são intrinsicamente boas diferem substan-
cialmente das nossas. No entanto, concorda connosco quanto
à existência de muitos bens diferentes, e quanto ao facto de o
amor por objectos bons e belos constituir uma categoria im-
portante entre eles.
Não podemos deixar de referir aqui uma omissão, de
que apenas nos apercebemos quando era já tarde demais para
a corrigir, e que receamos possa causar dificuldades a alguns
leitores. Trata-se do facto de não termos analisado directamente
as relações entre as várias e diferentes noções que se encon-
tram reunidas na palavra 'fim'. Talvez seja possível minorar
parcialmente as consequências desta omissão, consultando o
nosso artigo sobre "Teleologia", incluído no Dictionary of Phi-
losophy and Psychology, de Baldwin.
Se fosse possível reescrever este livro, seria um livro dife-
rente e queremos crer que melhor. Resta saber se, no desejo
de fazermos melhor, não iríamos tornar mais obscuras justa-

recensão crítica desta obra, que será publicada na edição de ltitema tional
Jouma/ ,?f Ethics de Outubro 1903. Essa recensão poderá esclarec er melhor
os motivos pelos quais discordamos de Brentano.

(77]
mente aquelas ideias que mais empenho temos em transmitir,
sem, em contrapartida, ganharmos em profundidade ou preci-
são. Seja como for, a nossa convicção de que devíamos publi-
car a obra tal como está não impede que lamentemos os mui-
tos defeitos que nela reconhecemos .

TR.INITY COLLEGE, CAMBRIDGE

Agosto de 1903

(78]
NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO

[Este livro volta a ser publicado sem qualquer alteração,


a não ser no tocante a algumas gralhas e erros sintácticos, que
foram corrigidos. Volta a ser publicado por continuarmos de
acordo com a sua orientação e conclusões principais. E volta
a ser publicado sem qualquer alteração porque, se fôssemos a
corrigir tudo o que nele carece de correcção, acabaríamos tendo
de o escrever todo de novo.

G.E.M .]

CAMBRIDGE, 1922

(79]
CAPÍTULO I
O ÂMBITO DA ÉTICA

1. É muito facil apontar alguns dos nossos juízos quoti-


dianos cuja verdade diz sem dúvida respeito à Ética. Sempre
que dizemos, "Fulano é um homem bom" , ou "Cicrano é
um traste"; sempre que perguntamos, "Que devo fazer?" ou
"Será errado fazer isto?"; sempre que arriscamos uma frase
como "A temperança é uma virtude e o alcoolismo um vício"
- estamos sem dúvida nenhuma nos domínios das perguntas e
afirmações qu e compete à Ética debater; compete-lhe igual-
mente demonstrar qual é a resposta verdadeira, quando nos
interrogamos sobre o que é correcto fazer, e aduzir argumen-
tos que nos habilitem a decidir se as nossas afirmações sobre o
carácter das pessoas ou sobre a moralidade dos seus actos são
verdadeiras ou falsas. Na esmagadora maioria dos casos, sem-
pre que os tern1os "virtude", "vício", "dever", "correcto",
"bem", "mal" surgem nas nossas afirmações, estamos a fazer
juízos de natureza ética e, se os quisermos debater, estaremos
a debater um aspecto da Ética.
Tudo isto é aceite, mas fica muito aquém de uma defi-
nição do domínio da Ética, domínio que pode, na verdade, ser
definido como toda a verdade acerca daquilo que é, a um
tempo, comum a juízos desta natureza e específico deles. Mas
falta-nos ainda formular a pergunta sobre o que é que é simul-
taneamente comum e específico. Esta é uma questão à qual
filósofos da Ética de indiscutível reputação têm dado respostas
diversas, sem que nenhuma delas seja talvez inteiramente satis-
fatória.
2. Se tomarmos exemplos como os atrás referidos, não

[81]
estaremos muito longe da verdade ao afirmarmos que todos
eles têm a ver com a questão do "comportamento" - ou seja,
com o que, no nosso comportamento como seres humanos, é
bom ou mau , correcto ou incorrecto. Pois quando afirmamos
que determinada pessoa é boa, queremos geralmente dizer
que ela procede correctamente; e quando dizemos que 0
alcoolismo é um vício, é porque entendemos que -o embria-
gar-se é um acto incorrecto ou mau . E é com esta análise do
comportamento humano que a Ética está mais intimamente
associada. Associada por derivação; e o comportamento é, sem
dúvida, o mais comum e geralmente também o mais interes-
sante objecto dos juízos éticos.
Sendo assim, muitos filósofos aceitam, como definição
adequada de Ética, a afirmação de que ela trata da questão do
que é bom ou mau no comportamento humano. São da
opinião de que a área de investigação que lhe compete está
adequadamente limitada ao "comportamento" ou à "prática";
entendem que a expressão "filosofia prática" cobre toda a ma-
téria que lhe diz respeito. Ora, sem querermos entrar na dis-
cussão acerca do verdadeiro significado da expressão (pois que
as questões verbais devem ser deixadas aos lexicógrafos e a
outras pessoas interessadas em literatura; à filosofia, como tere-
mos ocasião de ver, não compete ocupar-se delas), é nossa
inten ção empregar o termo "Ética" para denotar muito mais
do que isso, emprego para o qual nos parece haver autoridade
mais que suficiente. Para nós, o termo abarca uma área de
investigação para a qual, em todo o caso, não há outra palavra:
a averiguação geral do que é bom.
A Ética ocupa-se sem dúvida da questão de saber o que
constitui um bom comportamento; mas, ao ocupar-se disto
não começa obviamente pelo princípio, a menos que seja
capaz de nos explicar o que se entende por bom e por com-
portamento. Pois a noção de "bom comportamento" é uma
noção complexa: nem todo o comportamento é bom - cer-
tos comportamentos são sem dúvida maus e outros podem ser
indiferentes. Por outro lado, outras coisas, que não o compor-

[82]
tamento, podem ser boas, e, sendo assim, "bom" denota uma
dada propriedade que lhes é comum a elas como ao compor-
tamento; e se, entre as coisas boas, nos detivermos apenas no
bom comportamento, corremos o risco de pensar que se trata
desta propriedade quando se trata de uma outra que não é
partilhada pelas restantes; e teremos cometido um erro em
relação à Ética, mesmo neste sentido restrito, pois não sabe-
remos o que é realmente o bom comportamento. Este é um
erro em que muitos autores têm na verdade caído, pelo facto
de restringirem a sua especulação ao comportamento. Por essa
razão, tentaremos evitar cair nesse erro, considerando em
primeiro lugar o que é bom em geral, na esperança de que,
caso seja possível obter uma certeza em relação a isso, se torne
muito mais facil decidir a questão do que é o bom comporta-
mento, já que todos nós temos uma noção do que se entende
por "comportamento". A nossa primeira questão será pois: O
que é bom? e O que é mau?. À análise desta questão (ou ques-
tões) , damos o nome de Ética, uma vez que ela tem forçosa-
mente de a incluir.
3. Esta, porém, é uma pergunta que pode ter muitos
sentidos. Se, por exemplo, cada um de nós dissesse "Agora
estou agindo bem" ou "Comi ontem um bom jantar" , qual-
quer destas afirmações constituiria uma espécie de resposta à
nossa pergunta, embora talvez uma resposta falsa. Assim tam-
bém, quando A pergunta a B qu e escola deverá escolher para
o seu filho, a resposta de B representará certamente um juízo
ético. Do mesmo modo, tudo o que represente um elogio ou
uma censura a qualquer pessoa ou coisa que tenha existido,
exista ou esteja para existir, responde de certa maneira à per-
gunta "O que é bom?". Em todos os casos semelhantes, julga-
-se se determinada coisa é boa ou má: à pergunta 'O quê? '
~esponde-se ' Isto '. Mas este não é o sentido com que uma
Etica científica põe a questão. Nenhuma, dos muitos milhares
de respostas deste género, que devem ser verdadeiras, pode
fazer parte de um sistema ético, embora este tenha de incluir
razões e princípios suficientes para ajuizar da verdade de todas

[83]
elas. Há demasiadas pessoas, coisas e acontecimentos no mundo,
quer no passado, quer no presente ou ainda no futuro, para
que seja possível a qualquer ciência abarcar a análise dos seus
méritos individuais. A Ética, portanto, não se ocupa dum todo
de factos desta natureza, factos que são únicos , individuais,
totalmente particulares; factos que ciências como a História, a
Geografia, a Astronomia são obrigadas, pelo menos em parte,
a tratar. E, por esta razão, não compete ao filósofo da Ética dar
conselhos pessoais ou exortar.
4. Mas há um outro sentido que pode ser dado à per-
gunta "O que é bom?". "Os livros são bons" constituiria uma
resposta , embora manifestamente falsa, pois livros há que são
sem dúvida alguma muito maus. Juízos éticos deste género
competem de facto à Ética, embora não nos vamos ocupar de
muitos deles. Assim, por exemplo, o juízo "O Prazer é bom"
é um juízo cuja verdade a Ética deve analisar, embora não seja
tão importante quanto este outro "Apenas o prazer é bom",
de que em breve nos ocuparemos a fundo. Encontramos juí-
zos desta natureza em obras que incluem uma lista de "vir-
tudes", como, por exemplo, na "Ética" de Aristóteles. Mas são
precisamente juízos desta natureza que constituem o objecto
de estudo de uma ciência que se pensa geralmente ser distin-
ta da Ética e muito menos respeitável do que ela - o estudo
da Casuística. Poderão dizer-nos que a Casuística difere da
Ética pelo facto de ser muito mais pormenorizada e particular,
sendo que a Ética é muito mais geral. Mas é muito importante
constatar que a Casuística não se ocupa de nada que seja abso-
lutamente particular, particular no único sentido em que é
possível traçar com precisão uma linha divisória entre o que é
particular e o que é geral. Não é particular, no sentido que
acabamos de enunciar, no sentido em que este livro é um livro
particular e o conselho do amigo de A um conselho particu-
lar. A Casuística poderá, na verdade, ser mais particular, e a
Ética mais geral, mas isso quer dizer que diferem apenas em
grau e não em qualidade. E isto é universalmente verdadeiro
em relação ao "particular" e ao "geral", quando usados neste

[84]
sentido comum mas inexacto. Na medida em que a Ética se
permite incluir listas de virtudes ou mesmo nomear constituin-
tes do Ideal, deixa de se distinguir da Casuística. Uma e outra
tratam do que é geral, no sentido em que a Física e a Química
tratam do que é geral. Assim como a Química pretende des-
cobrir as propriedades do oxigénio onde quer que ele ocorra, e
não deste ou daquele espécimen, também a Casuística pre-
tende descobrir as acções que são boas onde quer que ocorram.
Neste aspecto, tanto a Ética como a Casuística devem ser clas-
sificadas juntamente com ciências como a Física, a Química e
a Fisiologia, para as distinguir totalmente de um outro grupo
de ciências de que fazem parte a História e a Geografia. E há
que salientar que, devido à sua natureza pormenorizada, a
investigação casuística se situa de facto mais perto da Física e
da Química do que a investigação normalmente atribuída à
Ética. Pois tal como a Física não se pode dar por contente
com a descoberta de que a luz é propagada nas ondas de éter
- tem de descobrir a natureza específica das ondas de éter que
correspondem a cada cor, também a Casuística não se pode
contentar com a lei geral de que a caridade constitui uma vir-
tude - tem de tentar descobrir os méritos relativos de todas as
diferentes formas de caridade. A Casuística faz, portanto, parte
do ideal da ciência ética: sem ela, a Ética não poderia estar
completa. Os defeitos da Casuística não são defeitos de princí-
pio; não há nada a criticar quanto à sua finalidade e objecto.
Falhou apenas por ser um assunto demasiado complexo para
poder ser adequadamente tratado no nosso actual estado de
conhecimento. A Casuística não tem sido capaz de distinguir,
nos casos de que se ocupa, os elementos de que depende o
valor deles. O resultado é que, por vezes, considera dois casos
como sendo iguais em valor, quando, na realidade, eles apenas
são iguais noutro aspecto. É a erros deste tipo que se deve a
influência perniciosa de investigações desta natureza. Pois a
Casuística é a meta final da investigação ética. Não pode ser
tentada com segurança no início da nossa investigação, mas
apenas no final.

(85)
5. Mas a nossa pergunta "O que é bom?" pode ter ainda
outro significado. Podemos, em terceiro lugar, pretender saber
não que coisa ou coisas são boas, mas sim como definir "bom".
Eis uma questão que apenas diz respeito à Ética, não à Casuís-
tica, e de que nos ocuparemos em primeiro lugar.
Trata-se de uma questão que exige uma atenção muito
especial, já que a definição de "bom" é a questão mais funda-
mental de toda a Ética. O que se entende por "bom" é, excep-
tuando o seu oposto "mau", o ânico objecto simples do pensa-
mento que é peculiar à Ética. A sua definição é, portanto, o
ponto mais essencial para a definição da Ética. Além disso, qual-
quer erro neste domínio implica um número muito mais vasto
de juízos éticos errados do que qualquer outro. A menos que
esta primeira questão seja bem compreendida e se conheça cla-
ramente a sua resposta verdadeira, o resto da Ética de nada va-
lerá, do ponto de vista de um conhecimento sistemático. Tanto
aqueles que sabem a resposta a esta pergunta como os que não
a sabem podem, na verdade, formular juízos éticos verdadeiros
das duas últimas classes a que nos referimos, e escusado será
dizer que as duas categorias de pessoas podem levar vidas igual-
mente boas. Mas é extremamente improvável que os juízos éti-
cos mais gerais sejam igualmente válidos se não houver uma res-
posta verdadeira a esta questão. Tentaremos mostrar mais adiante
que os erros mais graves se têm devido em grande parte a acre-
ditar-se numa resposta falsa. Em todo o caso, enquanto não for
conhecida a resposta a esta questão, é impossível alguém saber
qual é a evidência de qualquer juízo ético. Mas o objectivo prin-
cipal da Ética, enquanto ciência sistemática, é fornecer razões
correctas para se considerar isto ou aquilo bom e sem se respon-
der a esta pergunta não será possível fornecê-las. Assim, e para
além do facto de que uma resposta falsa conduz a conclusões
falsas, a presente investigação apresenta-se como uma parte mui-
tíssimo importante e necessária da ciência da Ética.
6. O que é então bom? Como defini-lo? Poderá pensar-
-se que se trata de uma questão meramente verbal. De facto,
muitas vezes uma definição consiste em explicar o significado

[86]
de uma palavra por meio de outras. Mas não é esse tipo de
definição que pretendemos, po_is ele jamais poderá ter uma
importância fundamental a não ser na Lexicografia. Se quisés-
semos este tipo de definição, teríamos, em primeiro lugar, de
considerar como é que as pessoas geralmente usam a palavra
"bom", mas não nos interessa o emprego adequado estabele-
cido pelo costume. Seria certamente insensato da nossa parte se
resolvêssemos usar a palavra para denotar qualquer coisa que
ela habitualmente não denota, se, por exemplo, declarássemos
a nossa intenção de a usar para referir o objecto normalmente
denotado pela palavra "mesa". Empregaremos, portanto, a pala-
vra no sentido em que julgamos que ela é geralmente usada,
embora não estejamos especialmente interessados em saber se
estamos ou não certos ao pensarmos assim. Interessa-nos exclu-
sivamente o objecto ou ideia que, correcta ou incorrectamente,
pensamos que a palavra geralmente significa. O que pretende-
mos descobrir é a natureza deste objecto ou ideia, e em rela-
ção a isto estamos empenhadíssimos em chegar a um acordo.
Mas, se entendermos a pergunta neste sentido, a nossa
resposta poderá parecer muito decepcionante. Se nos pergun-
tarem "O que é bom?" , a nossa resposta será que bom é bom
e ponto final na questão. Ou ainda, se nos perguntarem "Como
havemos de definir bom?", r_esponderemos que não pode ser
definido e que é tudo o que temos a dizer sobre o assunto. Mas,
por decepcionantes que estas respostas possam parecer, elas
revestem-se da maior importância. Para os leitores familiariza-
dos com a terminologia filosófica, poderíamos explicitar esta
importância dizendo simplesmente que elas se resumem a isto:
que todas as proposições que dizem respeito ao bom são sempre
sintéticas, nunca analíticas, afirmação que nada tem de trivial.
E poderá dizer-se o mesmo de outra maneira, mais informal,
ou seja, se a nossa tese está correcta, então ninguém poderá
impingir-nos um axioma tal como "O Prazer é o único bem",
ou "O bom é o que é desejado", sob o pretexto de que é esse
"o verdadeiro significado da palavra."
7. Consideremos então esta posição. A nossa proposta é

(87]
que "bem" é um conceito simples, tal como "amarelo". E tal
como é impossível explicar a alguém, seja de que maneira for,
o que é o amarelo, a não ser que essa pessoa já saiba o que é,
também não é possível explicar o que é o bem. Definições do
género que pretendíamos, que descrevem a verdadeira natu-
reza do objecto ou conceito denotado por uma dada palavra,
e que não se limitam a dizer-nos o que se entende habitual-
mente pelo seu emprego, apenas são possíveis quando o objecto
ou conceito em causa é complexo. Assim, é possível definir
um cavalo porque ele possui muitas características diferentes,
todas elas susceptíveis de serem enumeradas. Mas, uma vez
enumeradas, logo que se tenha reduzido o cavalo aos seus ter-
mos mais simples, deixa de ser possível definir estes. São sim-
plesmente algo que pensamos ou de que nos apercebemos, e
a quem não seja capaz de fazer o mesmo, jamais será possível
explicar, seja por que definição for, a sua verdadeira natureza.
Poderá talvez objectar-se que é possível descrever a outras pes-
soas objectos que elas nunca viram nem imaginaram. Pode-
mos, por exemplo, levar alguém a compreender o que é uma
quimera, embora ele nunca tenha visto nenhuma ou ouvido
falar em tal. Podemos dizer-lhe que se trata de um animal com
cabeça e corpo de leoa, com uma cabeça de cabra a nascer-
-lhe no meio das costas e uma serpente a fazer de cauda. Mas,
neste caso, o objecto que se está a descrever é um objecto com-
plexo, um todo inteiramente constituído por partes que todos
conhecemos - uma serpente, uma cabra e uma leoa, tal como
sabemos perfeitamente a maneira como estas partes costumam
estar reunidas, pois percebemos o que se entende quando se
fala do meio das costas de uma leoa, como também sabemos
onde lhe costuma nascer a cauda. E o mesmo se passa com
todos os objectos desconhecidos que somos capazes de definir.
Trata-se sempre de objectos complexos, todos eles constituí-
dos por partes, as quais podem, numa primeira instância, ser
passíveis de uma definição semelhante, mas que têm eventual-
mente de ser reduzidas aos seus termos mais simples, e estes já
não podem ser definidos. Mas amarelo e bom, dizemos nós,

[88]
não são conceitos complexos: pertencem àquela classe de
conceitos simples a partir dos quais se compõem definições e
com os quais cessa a capacidade de continuar a definir.
8. Quando dizemos, como Webster, que 'A definição de
cavalo é: quadrúpede ungulado do género Equus,' " podemos,
na realidade, querer significar três coisas diferentes. (1) Pode-
mos simplesmente querer dizer: "Quando digo 'cavalo ', deve
entender-se que me estou a referir a um quadrúpede ungula-
do do género Equus". Poderia dizer-se que se trata aqui de
uma definição verbal arbitrária, e não pretendemos afirmar
que bom não é susceptível de ser definido deste modo. (2)
Podemos querer dizer, como Webster devia dizer, "quando a
maior parte das pessoas diz 'cavalo', deve entender-se que se
estão a referir a um quadrúpede ungulado do género Equus."
Aqui, poderia dizer-se que se trata da definição verbal propria-
mente dita, e também não queremos dizer que bom não é sus-
ceptível de ser definido deste modo, pois é perfeitamente pos-
sível descobrir como é que as pessoas empregam uma palavra,
nem de outra forma poderíamos saber que a palavra "bom"
pode ser traduzida pela palavra alemã "gut" e pela francesa
"bon". Mas também podemos, ao definir cavalo, significar algo
muito mais importante. Podemos querer dizer que um certo
objecto, que todos conhecemos, é constituído de uma certa
forma, que tem quatro pernas, uma cabeça, um coração, um
fígado, etc., etc., e que todas estas partes estão relacionadas
entre si de uma determinada maneira. É neste sentido que nega-
mos que bom seja passível de definição. Em nosso entender,
bom não é constituído por partes que possam substituir-se ao
todo no nosso espírito. Seria perfeitamente possível pensarmos,
com igual clareza e correcção, num cavalo, se pensássemos nas
várias partes que o compõem e na forma como elas estão rela-
cionadas entre si, em vez de pensarmos no todo. Poderíamos,
até, pelo mesmo processo, pensar igualmente bem no que dis-
tingue um cavalo de um burro, apenas não nos seria tão facil.
Mas não há absolutamente nada que possa substituir bom,
razão pela qual afirmamos que é impossível defini-lo.

[89]
9. Receamos, no entanto, não ter ainda eliminado a difi-
culdade que poderá constituir o obstáculo principal à aceita-
ção da proposição de que é impossível definir bom. Não se
trata de afirmar que é impossível definir o bem, aquilo que é
bom; se fosse esse o caso não estaríamos a escrever sobre Ética,
pois o nosso objectivo principal é ajudar a descobrir essa defi-
nição. É precisamente para evitarmos cair em erro ao definir-
mos o bem que insistimos na impossibilidade de definir bom.
Tentaremos explicar a diferença entre os dois termos. Admi-
tindo que "bom" ("good", no original inglês, N .T.) é um adjec-
tivo, então "o bem", ("the good", no original inglês, N.T.)
"aquilo que é bom" , terá de ser o substantivo, ao qual deverá ser
aplicado o adjectivo "bom"; terá de ser a totalidade daquilo a
que se vai aplicar o adjectivo, e este terá sempre de se lhe apli-
car verdadeiramente. Mas, se é ao substantivo que o adjectivo
irá aplicar-se, então terá de ser algo de diferente do adjectivo
em si. E a totalidade desse algo de diferente, seja o que for,
será a nossa definição de o bem. Ora, pode dar-se o caso de ser
possível aplicar outros adjectivos, além de "bom", a este algo.
Ele poderá, por exemplo, ser muito aprazível e inteligente. E,
se estes dois adjectivos fizerem de facto parte da sua definição,
então poderá dizer-se com inteira verdade que o prazer e a
inteligência são bons. E muitas pessoas parecem pensar que
quando dizemos "O prazer e a inteligência são bons", ou "Ape-
nas o prazer e a inteligência são bons" estamos a definir "bom".
Ora bem, não podemos negar que por vezes seja possível
chamar a proposições desta natureza definições. Não sabemos
o suficiente acerca da maneira como essa palavra é geralmente
usada para podermos decidir a questão. Desejamos apenas dei-
xar bem claro que não é isso que queremos dizer quando afir-
mamos não ser possível qualquer definição de bom, e que, se
voltarmos a usar a palavra, continuará a não ser isso que quere-
mos dizer. Acreditamos plenamente que será possível encon-
trar uma proposição verdadeira do género "A inteligência é
boa e apenas a inteligência é boa" - se não fosse assim, a nossa
definição de o bem seria impossível. Sendo assim, pensamos

[90]
que é possível definir o bem, e mantemos a nossa afirmação de
que é impossível definir bom.
10. "Bom", portanto, se por "bom" entendemos aquela
qualidade que atribuímos a uma coisa quando dizemos que ela
é boa, não admite qualquer definição, no sentido mais impor-
tante dessa palavra. O significado mais importante da palavra
"definição" é aquele em que uma definição estabelece quais
são as partes que invariavelmente constituem um determinado
todo. E, neste sentido, "bom" não admite definição porque é
simples e não é decomponível em partes. É um daqueles inú-
meros objectos do pensamento que não podem ser definidos
porque representam já os termos finais em função dos quais se
tem de definir aquilo que seja defacto susceptível de ser definido.
Que deve haver um sem número de termos desta natureza
torna-se óbvio, se reflectirmos um pouco, pois não podemos
definir seja o que for sem procedermos a uma análise, e esta,
levada às suas últimas consequências, conduzir-nos-á sempre a
algo que é pura e simplesmente diferente de tudo o resto, e
que por esta diferença última explica o carácter peculiar do
todo que estamos a definir; não há todo que não contenha
algumas partes que são também comuns a outros todos . Não
há, assim, qualquer dificuldade intrínseca na tese de que "bom"
denota uma qualidade simples e impossível de definir. Há
muitos outros exemplos de qualidades assim.
Consideremos, por exemplo, amarelo. Podemos tentar
defini-lo descrevendo o seu equivalente fisico, enunciando a
espécie de vibrações luminosas que devem estimular o olho
normal para que este se aperceba da cor. Mas bastará um mo-
mento de reflexão para nos convencermos de que essas vibra-
ções luminosas não são o que entendemos por amarelo. Não
é delas que nos apercebemos. Na realidade, nem teríamos
dado pela sua existência se não nos tivesse causado estranheza
a manifesta diferença de qualidade entre as várias cores. O
mais que podemos legitimamente dizer em relação a estas
vibrações é que elas correspondem no espaço ao amarelo que
realmente vemos.

[91]
E no entanto, é frequ ente cometerem-se erros deste tipo
no que diz respeito a "bom". Pode ser verdade que todas as coi-
sas que são boas sejam também outra coisa qualquer, tal como
é verdade que tudo o que é amarelo produz um determinado
tipo de vibração na luz. E é um facto que a Ética tem por
objectivo descobrir quais são essas outras propriedades que
pertencem a todas as coisas qu e são boas. Mas a verdade é que
um número excessivo de filósofos tem pensado que ao enu-
merar todas essas outras propriedades estava de facto a definir
bom, que essas propriedades não eram "outras", diferentes, mas
se identificavam total e absolutamente com bondade. A esta
posição propomos que se dê o nome de "falácia naturalista" e
passamos a demonstrar que o é.
11. Vejamos o que dizem esses filósofos. E comecemos
por observar que estão em desacordo entre si. Não só afirmam
ter razão quanto ao que entendem que bom é, como tentam
demonstrar que os outros, que pensam que bom é outra coisa,
estão errados. Um dirá, por exemplo, que bom é o prazer,
enquanto outro afirmará que bom é o que é desejado, e cada
um argumentará acaloradamente no sentido de demonstrar que
o outro está errado. Mas como é isso possível? Um diz que bom
não é mais do que o objecto do desejo, ao mesmo tempo que
se esforça por provar que não é prazer. Mas da sua primeira
afirmação, de que bom significa apenas o objecto do desejo,
deve seguir-se uma de duas coisas, no que toca às suas provas:
(1) Pode estar a tentar provar que o objecto do desejo
não é o prazer. Mas, se se trata apenas disso, onde está a sua
Ética? A posição que defende é apenas uma posição psicoló-
gica. O desejo é algo que acontece na nossa mente, tal como
o prazer, e o nosso candidato a filósofo da Ética está apenas a
defender que este último não é o objecto do primeiro. Mas
que tem tudo isto a ver com o que está em causa? O seu inter-
locutor defendia a proposição ética de que o prazer era bom,
mas ainda que ele conseguisse provar milhares de vezes a
proposição psicológica de que o prazer não é o objecto do
desejo, nem por isso estaria mais perto de demonstrar o erro

[92]
do seu adversário. A posição é a seguinte: um afirma que o
triângulo é um círculo, o outro responde que "um triângulo
é uma linha recta e eu posso provar que tenho razão pois que"
(e é o único argumento) " uma linha recta não é um círculo."
"Isso é uma grande verdade," dirá o outro, "mas não altera o
facto de que um triângulo é um círculo e nenhum dos seus
argumentos conseguiu provar o contrário. O que ficou pro-
vado foi que um de nós dois está errado, pois concordamos
que um triângulo não pode ser ao mesmo tempo uma linha
recta e um círculo; mas é humanamente impossível provar
qual de nós está errado, já que você define o triângulo como
sendo uma linha recta e eu o defino como um círculo." Ora,
esta é uma alternativa que tem de ser tomada em consideração
por qualquer Ética naturalista: se bom for definido em termos
de outra coisa diferente, torna-se impossível não só provar que
qualquer outra definição está errada, como até negá-la .
(2) A outra alternativa dificilmente conseguirá um acolhi-
mento melhor. Segundo esta, trata-se apenas de uma questão
verbal. Quando A afirma " Bom quer dizer aprazível" e B diz
"Bom quer dizer desejado," podem ambos querer apenas afir-
mar que a maioria das pessoas emprega a palavra para designar
tanto aquilo que é aprazível como aquilo que é desejado.
E estamos aqui perante um assunto que seria interessante dis-
cutir, só que a discussão teria tão pouco a ver com a Ética
como a anterior. Tão-pouco pensamos que qualquer defensor
da Ética naturalista estivesse disposto a admitir que a sua posi-
ção se resumia apenas a isto. Estão todos eles empenhadíssimos
em persuadir-nos de que aquilo a que chamam bom é realmente
o que devemos fazer. "Por favor," dizem-nos, "é assim que
devem agir, porque a palavra 'bom' é geralmente usada para
denotar acções desta natureza." Isto seria, nesta perspectiva, a
essência da sua doutrina. E, na medida em que nos diz como
devemos agir, é uma doutrina verdadeiramente ética, como
eles pretendem. Mas como é absurda a sua argumentação!
"Devem agir assim, porque a maioria das pessoas emprega uma
certa palavra para designar acções deste tipo." Ou ainda este

[93]
outro argumento, que vale tanto como o primeiro. "Devem
dizer aquilo que não é, porque a maioria das pessoas chama a
isso mentir." Meus caros senhores, o que nós pretendemos que
nos digam, na vossa qualidade de filósofos da Ética, não é a
maneira como a maior parte das pessoas emprega uma determi-
nada palavra, nem ainda quais as acções que a maioria aprova
e que o emprego da palavra "bom" poderá sem dúvida implicar
- o que nós queremos saber é o que é bom. Podemos até estar
de acordo em que aquilo que a maioria considera que é bom
o é de facto. E estamos sempre interessados em saber o que
pensam, mas quando falamos das suas opiniões acerca do que
é bom, queremos de facto significar o que dizemos. Pouco nos
interessa que chamem "gut", "bon1" ou "cxyot0óç" a essas
coisas que designam por "cavalo", "n1esa" ou "cadeira" - o
que desejamos saber é em que consiste aquilo a que dão esse
nome. Quando dizem que "o prazer é bom", não podemos
crer que estejam a afirmar apenas que "o prazer é prazer" e
nada mais.
12. Suponhamos que alguém diz "Sinto prazer" e supo-
nhamos ainda que não se trata de uma mentira ou de um erro,
mas da verdade. Bem, se corresponde à verdade, o que signi-
fica? Significa que a sua mente, uma determinada mente, bem
definida e que se distingue de todas as outras por certos traços
definidos, experimenta neste momento uma certa e determi-
nada sensação a que se dá o nome de prazer. "Sinto prazer" sig-
nifica apenas sentir prazer, e embora seja possível sentirmos
mais ou menos prazer, ou, até, podemos admiti-lo por agora,
prazer desta ou daquela espécie, na medida em que o que sen-
timos é prazer, quer ele seja mais ou menos intenso, desta ou
daquela natureza, o que sentimos é uma coisa determinada,
impossível de definir, qualquer coisa que permanece igual a si
mesma, seja qual for o seu grau ou natureza. Podemos con-
seguir relacionar o prazer com outras coisas, dizer, por exem-
plo, que se localiza na mente, que provoca desejo, que temos
consciência dele, etc. Podemos, pois, descrever o seu rela-
cionamento com outras c01sas, mas defini-lo não podemos.

[94]
E se alguém tentasse definir o prazer como se fosse qualquer
outro objecto natural, se alguém afirmasse, por exemplo, que
prazer significa a percepção do encarnado e daí deduzisse que
0 prazer é uma cor, teríamos o direito
de troçar dele e de des-
confiar de qualquer afirmação que viesse a fazer acerca do pra-
zer. Bem, estaríamos perante a mesma falácia a que chamámos
falácia naturalista. O facto de "sentir prazer" não significar "ter
a percepção do encarnado", nem outra coisa qualquer, não nos
impede de perceber o que de facto significa. Basta-nos saber
que "sentir prazer" significa "ter a sensação de prazer", e em-
bora seja absolutamente impossível defini-lo, embora o prazer
seja apenas prazer e nada mais, não sentimos qualquer dificul-
dade em afirmar que o sentimos. A razão, claro, é que quando
dizemos "Eu sinto prazer", não queremos com isso dizer que
"eu" e "sinto prazer" sejam uma e a mesma coisa. Do mesmo
modo, não deve haver qualquer dificuldade em aceitar que,
quando dizemos "o prazer é bom", isso não significa que "pra-
zer" é a mesma coisa que "bom", que prazer significa bom e
bom significa prazer. Se pensássemos que ao dizer "Sinto prazer"
estávamos a significar que "eu" e "sinto prazer" eram exacta-
mente a mesma coisa, não diríamos, na verdade, que se tratava
de uma falácia naturalista, embora se trate da mesma falácia a
que chamámos naturalista em relação à Ética. A razão é óbvia.
Quando uma pessoa confunde dois objectos naturais, definindo
um em função do outro, por exemplo, confundindo-se a si
mesma, que é um objecto natural, com "sentir prazer" ou
"prazer", que também o são, não há qualquer justificação para
que se fale de falácia naturalista. Mas, se confundir "bom",
que não é, no mesmo sentido, um objecto natural, com um
objecto natural, seja ele qual for, então, sim, há motivo para
se dizer que é uma falácia naturalista. O facto de ela se veri-
ficar em relação a "bom" marca-a como qualquer coisa muito
específica, e este erro específico merece um nome, por ser tão
frequente. Quanto às razões por que não devemos considerar
"bom" um objecto natural, vamos deixá-las para outra ocasião.
Por agora, bastará assinalar que, mesmo que fosse um objecto

[95]
natural, isso não alteraria a natureza da falácia, nem atenuaria
minimamente a sua importância. Tudo o que foi dito a seu
respeito continuaria a ser igualmente verdadeiro - apenas 0
nome que lhe demos não seria tão adequado como pensamos
que é. E pouco nos interessa o nome; o que nos interessa é a
falácia . Não importa o que lhe chamemos, desde que a saiba-
mos reconhecer quando a encontramos. Surge em quase todos
os livros sobre Ética e, apesar disso, não é reconhecida, pelo que
é necessário multiplicar-lhe os exemplos e atribuir-:lie um
nome. Trata-se, na verdade, de uma falácia muito simples.
Quando dizemos que uma laranja é amarela, não consideram01
que a nossa afirmação nos obriga a defender que "laranja"
significa apenas "amarelo", nem que só uma laranja pode ser
amarela. Suponhamos que a laranja também é doce. Será que
estamos obrigados a afirmar que "doce" é exactamente o
mesmo que "amarelo", que "doce" tem de ser definido como
"amarelo"? E supondo que fosse reconhecido que "amarelo"
significa apenas "amarelo", e absolutamente mais nada, isso
dificultaria de algum modo a afirmação de que as laranjas são
amarelas? É claro que não; muito pelo contrário, não faria
qualquer sentido afirmar que as laranjas são amarelas se, em
última análise, "amarelo" não quisesse dizer apenas e só ama-
relo, se não fosse absolutamente impossível de definir. Não
chegaríamos a nenhuma noção clara acerca das coisas que são
amarelas, não iríamos muito longe com a nossa ciência, se fos-
semos obrigados a defender que tudo o que é amarelo sign!fiúl
exactamente o mesmo que amarelo. Isso equivaleria a dizer
que uma laranja é exactamente a mesma coisa que um banco,
ou um pedaço de papel, ou um limão, ou seja o que for. Pode-
ríamos demonstrar um sem-número de coisas absurdas, mas
estaríamos mais perto da verdade? Porque teria então de ser
diferente em relação a "bom"? Se bom é bom e impossível de
definir, por que razão seríamos obrigados a negar que o prazer
é bom? Haverá alguma dificuldade em afirmar que ambas as
coisas são simultaneamente verdadeiras? Pelo contrário, não
faz sentido afirmar que o prazer é bom a menos que bom seja

[96)
diferente de prazer. No que toca à Ética, é completamente
inútil provar, como Spencer tenta fazer, que um aumento de
prazer coincide com um aumento de vida, a menos que bom
signifique algo que é diferente tanto de vida como de prazer.
Equivale a tentar provar que uma laranja é amarela com base
no argumento de que ela se apresenta sempre embrulhada em
papel.
13. Na realidade, se não for verdade que 'bom' denota
algo de simples e impossível de definir, só restam duas alter-
nativas: ou é algo complexo, um todo dado, sendo possível
haver desacordo quanto à sua análise correcta; ou não significa
absolutamente nada e não existe nenhuma disciplina chamada
Ética. De um modo geral, os filósofos da Ética têm tentado
definir bom sem reconhecerem o que isso implica. Chegam a
recorrer a argumentos que implicam um (ou os dois) dos
absurdos referidos no parágrafo 11. Fica assim justificada a
nossa conclusão de que a tentativa de definir bom se deve
principalmente à falta de ideias claras quanto à possível natureza
da definição. Há, na verdade, apenas duas alternativas sérias a
considerar, para se chegar à conclusão de que "bom" denota
de facto um conceito simples e impossível de definir. Poderia
talvez denotar um conceito complexo, como "cavalo", ou po-
deria não ter qualquer significado. No entanto, nenhuma
destas possibilidades tem sido claramente concebida ou seria-
mente defendida, enquanto tal, por aqueles que se propõem
definir bom; e ambas podem ser postas de lado pelo simples
recurso aos factos .
(1) A hipótese de que discordar quanto ao significado de
bom é discordar em relação à análise correcta de um dado todo
aparece como sendo manifestamente incorrecta, se conside-
rarmos o facto de se poder sempre, seja qual for a definição
proposta, perguntar, e significativamente, se o conceito com-
plexo assim definido é em si mesmo bom. Se, por exemplo,
tomarmos uma das mais plausíveis, porque é uma das mais
complicadas, dessas propostas de definição, poderá facilmente
parecer, à primeira vista, que ser bom pode significar ser aqui-

[97]
lo que desejamos desejar. Assim, se aplicarmos esta definição
a um exemplo específico e dissermos "Quando achamos que
A é bom, estamos a pensar que A é uma das coisas que deseja-
mos desejar," a nossa proposição pode parecer bastante plausí-
vel. Mas, se aprofundarmos um pouco mais a nossa investi-
gação e perguntarmos "Será bom desejar desejar A?", bastará
reflectirmos um pouco para nos apercebermos de que esta
pergunta é ela própria tão inteligível como a pergunta inicial
"A é bom?" - e de que estamos, na realidade, a pedir exacta-
mente a mesma informação acerca do desejo de desejar A que
já tínhamos pedido em relação a A em si. Mas torna-se tam-
bém muito claro que o significado desta segunda pergunta não
pode ser analisado correctamente como "Será o desejo de
desejar A uma das coisas que nós desejamos desejar?". Não
estamos perante nada tão complicado como "Desejamos nós
desejar desejar desejar A?" . Além disso, bastará um simples
exame para que qualquer pessoa possa facilmente verificar que
o predicado desta proposição - "bom" - é positivamente dife-
rente da noção de "desejar desejar" que faz parte do seu sujeito:
"Que desejarmos desejar A é bom" não é equivalente a "Que
A seja bom é bom." De facto, pode ser verdade que aquilo
que desejamos desejar também seja sempre bom; pode ser que
até o seu oposto seja verdade, mas é muito duvidoso que assim
seja, e o simples facto de compreendermos perfeitamente o
que representa essa nossa dúvida mostra claramente que esta-
mos perante duas noções diferentes.
(2) E o mesmo raciocínio basta para pôr de lado a hipó-
tese de que "bom" não tem qualquer significado. É muito
natural cometer o erro de se pensar que aquilo que é univer-
salmente verdadeiro é de uma natureza tal que negá-lo seria
contraditório em si mesmo: a importância que tem sido atri-
buída, na história da filosofia, a proposições analíticas mostra
como é facil cair neste erro. Torna-se assim muito facil con-
cluir que aquilo que parece ser um princípio ético universal é,
na realidade, uma proposição idêntica; que, por exemplo, se
qualquer coisa considerada boa parece dar prazer, a proposição

[98]
"O prazer é o bem" não afirma haver uma ligação entre duas
noções diferentes, antes refere-se apenas a uma, o prazer, que
facilmente se reconhece como sendo uma entidade distinta.
Mas quem quiser meditar atentamente sobre o que verdadei-
ramente tem em mente quando se interroga "Será o prazer
(ou seja lá o que for) no fim de contas bom?", facilmente se
convencerá de que não está apenas especulando se o prazer dá
prazer. E, se quiser repetir a experiência sucessivamente com
cada uma das definições propostas, pode vir a adquirir a mes-
tria suficiente para reconhecer que em cada caso está perante
um objecto único, cuja ligação com qualquer outro objecto
dará lugar a urna interrogação diferente. Toda a gente, de facto,
compreende a pergunta "Isto é bom?". E, quando reflecte
sobre ela, o seu estado de espírito é diferente do que seria se
a pergunta fosse "Isto é agradável, ou desejado, ou aprovado?"
Tem um significado distinto, embora se possa não reconhecer
em que consiste a diferença. Sempre que se pensa em "valor
intrínseco", ou "importância intrínseca", ou se diz que uma
coisa "deve existir", tem-se em mente o objecto único - a pro-
priedade única das coisas - a que chamamos "bom". Todos nós
temos constantemente consciência desta noção, embora talvez
nunca nos venhamos a aperceber de que ela é diferente das
outras noções de que também temos consciência. Mas, para
um raciocínio ético correcto, é extremamente importante ter-
-se consciência deste facto. E logo que se compreenda clara-
mente a natureza do problema, deixará de haver dificuldade
em prosseguir a análise até esse ponto.
14. Não é, portanto, possível definir "bom", mas, tanto
quanto sabemos, apenas um especialista da Ética, o Professor
Henry Sidgwick, o reconheceu e afirmou claramente. Teremos,
na verdade, ocasião de ver como muitos dos sistemas éticos de
grande reputação não foram capazes de tirar as conclusões que
derivam desse reconhecimento. Por agora, limitar-nos-emos a
apontar um exemplo, que servirá para ilustrar o significado e
a importância deste princípio de que "bom" é indefinível, ou,
como diz Sidgwick, "uma noção inanalisável". Trata-se de um

[99]
exemplo dado pelo próprio Sidgwick, numa nota ao passo em
que defende que "deve" é inanalisável 1•
"Bentham," diz Sidgwick, "explica que o seu princípio
fundamental 'estabelece que a maior felicidade de todos aque-
les cujo interesse está em causa constitui o objectivo conecto
e próprio da actividade humana'"; mas "a sua linguagem nou-
tros passos do mesmo capítulo parece sugerir" que, para ele,
"correcto" significa "conducente à felicidade geral." Sidgwick
observa que, tomando estas duas afirmações em conjunto, se
chega ao resultado absurdo de que "a maior felicidade é o
objectivo da actividade humana, a qual é conducente à felici-
dade geral." E tão absurdo lhe parece qualificar este resultado,
como faz Bentham, de "princípio fundamental de um sistema
ético" que põe em causa ter sido isto o que Bentham queria
dizer. Não obstante, o próprio Sidgwick, noutro passo (2),
afirma que o Hedonismo Psicológico é "frequentemente con-
fundido com o Hedonismo Egoísta". Ora, essa confusão, como
teremos ocasião de ver, assenta fundamentalmente na mesma
falácia - a falácia naturalista - que está implícita nas afirmações
de Bentham. Sidgwick reconhece, portanto, que se cai por
vezes nesta falácia, absurda como ela é. E, na nossa opinião,
Bentham pode bem ter sido um dos que nela caíram. Mill,
como veremos, sem dúvida que a cometeu. Seja como for,
quer Bentham a tenha ou não cometido, a sua doutrina, tal
como é apresentada atrás, serve para ilustrar esta falácia e para
acentuar a importância da proposição contrária de que bom é
indefinível.
Consideremos esta doutrina. Bentham parece sugerir,
segundo Sidgwick, que a palavra " correcto" significa "condu-
cente à felicidade geral". Ora, isto, por si só, não implica neces-
sariamente a falácia naturalista, pois a palavra "correcto" é
muitas vezes aplicada a acções que levam à obtenção do que é
bom e que são consideradas como meios para se atingir o ideal
e não como fins em si mesmas. Este emprego de "correcto"

1
Methods cif Ethics, Tomo I, Cap. III, par. 1 (6.' ed.) .

[100)
para significar algo que é bom enquanto meio, quer seja ou
não igualmente bom enquanto fim, é sem dúvida aquele que
daremos à palavra. Se Bentham tivesse usado "correcto" neste
sentido, teria podido, com toda a legitimidade, definir a palavra
como sendo "conducente à felicidade geral," desde que (note-
-se a condição) tivesse antes demonstrado, ou postulado como
axioma, que a felicidade geral era o bem, ou (o que é a mesma
coisa) que apenas a felicidade geral era boa. Pois nesse caso
teria já definido o bem como a felicidade geral (posição que é
perfeitamente coerente, como já vimos, com a afirmação de
que "bom" é indefinível), e, uma vez que correcto era definido
como "conducente ao bem," significaria, na verdade, "condu-
cente à felicidade geral." Mas esta possibilidade de escapar à acu-
sação de ter cometido a falácia naturalista foi destruída pelo pró-
prio Bentham, pois ele proclama, como princípio fundamental
do seu sistema, que a maior felicidade de todos os que estão
em causa é o objectivo correcto e próprio da actividade humana.
Aplica a palavra "correcto" ao objectivo em si e não apenas aos
meios que a ele conduzem. Sendo assim, deixa de ser possível
definir correcto como "conducente à felicidade geral," sem cair
na referida falácia. Pois torna-se agora óbvio que a definição
de correcto, como conducente à felicidade geral, pode ser
usada por ele para apoiar o princípio fundamental de que a
felicidade geral é o objectivo correcto, em vez de ser derivada
do referido princípio. Se correcto, por definição, significa con-
ducente à felicidade geral, então é óbvio que a felicidade geral
é o fim correcto. Deixa agora de ser necessário demonstrar
primeiro ou afirmar que a felicidade geral é o fim correcto,
antes de definir correcto como conducente à felicidade geral
- procedimento que é perfeitamente válido. Mas, pelo con-
trário, a definição de correcto como conducente à felicidade
, geral prova que esta é o fim correcto - procedimento que já
não é válido, pois, neste caso, a afirmação de que "a felicidade
geral é o fim correcto da actividade humana" deixa de ser um
princípio ético para se transformar, como já vimos, ou numa
proposição acerca do significado das palavras, ou então numa

[101]
proposição acerca da natureza da felicidade geral e não acerca
da sua correcção ou bondade.
Não gostaríamos que a importância que atribuímos a
esta falácia fosse mal interpretada. A sua descoberta em nada
invalida a posição de Bentham de que a maior felicidade é 0
fim próprio da actividade humana, se isso for entendido como
uma proposição ética, como ele certamente pretendia. É muito
possível que esse princípio continue a ser válido, questão que
passaremos a analisar nos capítulos que se seguem . É possível
que Bentham o tivesse mantido, como Sidgwick o faz , mesmo
que alguém lhe tivesse chamado a atenção para a falácia.
O que nós afirmamos é que os argumentos que ele de facto
apresenta para suporte da sua proposição ética são falaciosos,
na medida em que consistem numa definição de correcto.
Pensamos que ele não se terá apercebido de que eram falacio-
sos, que se se tivesse apercebido, teria sido levado a procurar
outros argumentos para suporte do seu Utilitarismo, e que, se
o tivesse feito, talvez não tivesse encontrado argumentos que
lhe parecessem suficientes. Nesse caso, teria alterado todo o seu
sistema - consequência da maior importância. É sem dúvida
também possível que tivesse achado suficientes esses outros
argumentos e nesse caso o seu sistema ético, no que diz respeito
aos seus resultados principais, ter-se-ia mantido. Mas, neste
último caso, o seu recurso à falácia teria ainda constituído uma
séria objecção contra ele enquanto filósofo da Ética. Pois
compete à Ética, não será demais repeti-lo, não só alcançar
resultados verdadeiros, mas também encontrar razões válidas
para eles. O objectivo directo da Ética é o conhecimento e
não a prática, e quem recorra à falácia naturalista não atingiu
certamente este primeiro objectivo, por muito correctos que
possam ser os seus princípios práticos.
As nossas objecções ao Naturalismo são, pois, em pri-
meiro lugar, que ele não apresenta nenhuma razão, muito
menos uma razão válida, para qualquer princípio ético, no
que começa logo por não satisfazer as exigências da Ética
enquanto estudo científico. Mas, em segundo lugar, pensamos

[102]
que, além de não apresentar qualquer argumento a favor de
um princípio ético, é responsável pela aceitação de princípios
falsos - induz a razão a aceitar princípios éticos que são falsos,
no que contraria todos os propósitos da Ética. É facil de ver
que, se partirmos de uma definição de conduta correcta como
conduta conducente à felicidade geral, então, sabendo que a
conduta correcta é universalmente a conduta que conduz ao
bem, chegamos com toda a facilidade à conclusão de que o
bem é a felicidade geral. Se, por outro lado, reconhecerm os a
necessidade de iniciar a nossa Ética sem qualquer definição, é
muito mais provável que olhemos à nossa volta, antes de adop-
tarmos qualquer princípio ético, e quanto mais olharmos,
menos probabilidade teremos de adoptar um falso. Poderá
argumentar-se que também se pode olhar igualmente à nossa
volta antes de formular uma definição e que, portanto, as pos-
sibilidades de acertar são iguais. Vamos tentar demonstrar que
não é esse o caso. Se partirmos da convicção de que é possí-
vel encontrar uma definição de bom, partimos da convicção
de que bom não pode significar senão uma determinada pro-
priedade das coisas, e a nossa única preocupação será então
descobrir essa propriedade. Mas, se aceitarmos que, pelo que
diz respeito ao significado de bom, qualquer coisa pode ser
boa, teremos à partida uma atitude muito mais receptiva.
Além disso, e para além do facto de que quando achamos que
encontrámos uma definição não temos maneira de defender
logicamente os nossos princípios éticos, torna-se menos pro-
vável que os defendamos bem, mas ilogicamente . Pois estare-
mos a partir da convicção de que bom tem de significar isto
ou aquilo e portanto maior será a nossa tendência para inter-
pretar mal os argumentos do nosso interlocutor ou para o
interromper com a desculpa de que "Não se trata aqui de uma
questão em aberto: o próprio significado da palavra a decide
e ninguém pode pensar de outra forma a não ser por con-
fusão."
15. A nossa primeira conclusão quanto ao objecto de
estudo da Ética será então que ela tem de ser definida em

(103]
relação a um objecto do pensamento, simples e impossível de
definir ou analisar. O nome a dar a este objecto único não in-
teressa, desde que o reconheçamos com toda a clareza e sai-
bamos que ele se distingue de todos os outros objectos. Todas
as palavras que geralmente se tomam como sinalizando juízos
éticos se referem a ele e apenas por essa referência são ex-
pressão de juízos éticos. Mas essa referência pode processar-se
de duas maneiras diferentes, que é importante distinguir, se
queremos ter uma definição global do donúnio dos juízos éti-
cos. Antes de iniciarmos a nossa argumentação no sentido de
que as noções éticas implicam essa tal noção impossível de
definir, salientámos (parágrafo 4) a necessidade de a Ética enu-
merar todos os juízos universalmente verdadeiros, e afirmar
que esta ou aquela coisa é boa sempre que se verifica. Mas,
embora todos esses juízos se refiram de facto a essa noção
única a que nós demos o nome de "bom", não o fazem sempre
da mesma maneira. Podem afirmar ou que esta propriedade
única está sempre presente na coisa em questão, ou apenas que
a coisa em questão é causa ou condição necessária para a existên-
cia de outras coisas nas quais esta propriedade única está na
verdade presente. A natureza destas duas espécies de juízos éti-
cos universais é extremamente diferente, e grande parte das
dificuldades que surgem na especulação ética vulgar resultam
de não se fazer claramente essa distinção. A diferença está
expressa na linguagem comum pelo contraste entre os termos
"bom como meio" e "bom em si", "valor como meio" e
"valor intrínseco". Mas, geralmente, estes termos são aplica-
dos correctamente apenas nos casos mais óbvios, o que talvez
se explique pelo facto de esta diferença entre os conceitos que
eles denotam não ter sido objecto de qualquer investigação.
Esta distinção pode ser resumida da seguinte forma:
16. Sempre que ajuizamos que uma coisa é "boa como
meio", estamos a fazer um juízo relativo às suas relações cau-
sais: julgamos a um tempo que essa coisa irá ter um determi-
nado tipo de efeito e que esse efeito será bom em si mesmo.
Mas, encontrar juízos causais que sejam universalmente ver-

[104]
dadeiros é notoriamente difícil. A data tardia em que a maior
parte das ciências físicas se tornou exacta, e o número relati-
vamente pequeno de leis que tem conseguido estabelecer
mesmo nos nossos dias, são disso prova suficiente. Em relação,
portanto, àquilo que com maior frequência é objecto de juí-
zos éticos, a saber, as acções, é óbvio que não podemos ter
qualquer certeza quanto à veracidade de nenhum dos nossos
juízos causais universais, nem mesmo no sentido em que se
pode dizer que as leis científicas são verdadeiras. Nem sequer
conseguimos formular leis hipotéticas do género: "Exacta-
mente esta acção produzirá sempre, nas mesmas condições,
exactamente este efeito." Mas, um juízo ético conecto em rela-
ção aos efeitos de certas acções, requer mais do que isto e em
dois sentidos. (1) Precisamos de saber que uma dada acção irá
produzir um determinado efeito, sejam quais forem as circuns-
tâncias em que ocorra. Mas isto é seguramente impossível. É
sabido que, em circunstâncias diferentes, a mesma acção pode
produzir efeitos que são totalmente diferentes em todos aque-
les aspectos de que depende o valor dos efeitos. Sendo assim,
nunca poderemos conseguir mais do que uma generalização -
uma proposição do tipo "Este resultado segue-se geralmente a
este tipo de acção", e mesmo esta generalização apenas será
verdadeira se as circunstâncias em que decorre a acção forem
de um modo geral idênticas. Isto é, de facto, o que se verifica,
em grande medida, numa dada época e sociedade. Mas quando
tomamos em consideração outras épocas, verificamos serem as
circunstâncias normais em que ocorre uma determinada acção
tão diferentes, em tantos casos importantes, que a generaliza-
ção que é verdadeira para um já não o será para outro. Por-
tanto, nenhum dos juízos éticos que afirmam que um certo
tipo de acção é bom enquanto meio para obter um certo tipo
de efeito poderá ser universalmente verdadeiro, e muitos, que
poderão ser geralmente verdadeiros num determinado período,
serão geralmente falsos noutros. Mas (2) precisamos de saber
não apenas que se irá conseguir um bom resultado, mas ainda
que, entre todos os acontecimentos subsequentes afectados pela

[105]
acção em causa, o saldo de bem será maior do que se tivesse
sido praticada qualquer outra acção possível. Por outras palavras,
decidir que uma acção é geralmente um meio para alcançar 0
bem é decidir não só que ela geralmente produz algum bem,
mas que geralmente produz o maior bem que as circunstân-
cias admitem. Neste aspecto, os juízos éticos acerca dos efeitos
de uma acção implicam dificuldades e complicações muito
maiores do que as sentidas na formulação das leis científicas.
Quanto a estas, precisamos apenas de considerar um único
efeito; quanto àqueles, temos de considerar não só o efeito,
mas também os efeitos do efeito, e assim sucessivamente, até
onde a nossa visão do futuro conseguir penetrar. Torna-se, na
verdade, óbvio que a nossa visão do futuro não consegue nunca
ir suficientemente longe para nos garantir que qualquer acção
irá produzir os melhores efeitos possíveis. Teremos de nos dar
por contentes se nos parecer que o maior saldo possível de
bem está a ser produzido dentro de um período limitado. Mas
é importante salientar que toda a série de efeitos que se pro-
duzem dentro de um período consideravelmente longo é real-
mente tomada em consideração pelos nossos juízos vulgares
sobre se uma determinada acção é boa como meio. E daí que
esta complicação adicional de que falávamos, e que torna muito
mais dificil estabelecer generalizações éticas do que leis cien-
tíficas, tenha a ver com a discussão real de questões éticas e se
revista de importância prática. As mais vulgares regras de con-
duta implicam considerar coisas como pesar o risco de pouca
saúde no futuro contra as vantagens imediatas. E mesmo sa-
bendo que não podemos nunca, com um mínimo de certeza,
assegurar a maior soma possível de bem, tentamos ao menos
garantir que os eventuais males futuros sejam menores que o
bem imediato.
17. Há, portanto, juízos que asseveram que certas cate-
gorias de coisas produzem bons efeitos. Estes juízos, pelas ra-
zões atrás apontadas, apresentam as seguintes características
importantes: (1) se afirmam que a espécie de coisa em causa
produz sempre bons efeitos, é pouco provável que sejam verda-

[106]
deiros, e (2) mesmo quando se limitam a dizer que os efeitos
são geralmente bons, muitos deles apenas serão verdadeiros em
relação a um determinado período histórico. Há, por outro
lado, juízos que afirmam que certas categorias de coisas são
boas em si mesmas. Estes diferem dos outros, pois, a serem ver-
dadeiros, serão, todos eles, universalmente verdadeiros. Torna-
-se, assim, extremamente importante distinguir entre estas duas
espécies de juízos possíveis. Ambas podem ser expressas na
mesma linguagem - em ambos os casos, podemos dizer "Esta
ou aquela coisa é boa." Mas, num caso, "bom" significará
"bom enquanto meio", isto é, meramente que a coisa em
causa é um meio para alcançar o bem, que ela produzirá bons
efeitos. No outro caso, significará "bom enquanto fim" , esta-
mos a afirmar que é a coisa em si que possui a propriedade
que, no primeiro caso, atribuímos apenas aos efeitos. É evi-
dente que se trata de afirmações muito diferentes a serem
feitas sobre uma coisa. Também é evidente que se pode fazer
uma delas ou ambas acerca de toda a espécie de coisas, tanto
com verdade, como com falsidade. E é certo que se não sou-
bermos claramente qual das duas pretendemos afirmar, pou-
cas probabilidades teremos de decidir correctamente se a nossa
afirmação é verdadeira ou falsa. É precisamente esta noção clara
do significado da interrogação feita que tem faltado quase
totalmente até agora na especulação ética . Esta tem-se preo-
cupado sempre predominantem ente com a investigação de
uma classe limitada de acções. Em relação a estas, podemos
inquirir tanto até que ponto são boas em si mesmas, como até
que ponto tendem geralmente a produzir bons resultados. E
os argumentos invocados na discussão ética têm saído sempre
tanto de uma classe como da outra - argumentos no sentido
de provar que a conduta em questão é boa em si mesma, e
outros no sentido de provar que é boa enquanto meio. Mas
que estas são as únicas questões que a discussão ética tem de
resolver, e que resolver uma delas não é a mesma coisa que
resolver a outra - estes dois factos fundamentais têm geral-
mente escapado à atenção dos filósofos da Ética . As perguntas

[107)
de natureza ética são geralmente formuladas de uma maneira
ambígua. Pergunta-se "Qual é o dever de um homem, nestas
circunstâncias?" ou "Será correcto agir desta forma?" ou ainda,
"Que devemos tentar conseguir?" . Mas todas estas interro-
gações são susceptíveis de serem analisadas mais em profundi-
dade - uma resposta correcta a qualquer delas implica tanto
juízos acerca do que é bom em si mesmo como juízos causais.
Isto está implícito mesmo naqueles que defendem que somos
capazes de fazer juízos directos e imediatos no que diz respeito
aos direitos e deveres absolutos. Um juízo desta natureza só
pode significar que a linha de acção em causa é a melhor pos-
sível, que, agindo assim, se alcançará todo o bem que é pos-
sível alcançar. Ora bem, não nos preocupa saber se um tal
juízo poderá alguma vez ser verdadeiro. O que nos interessa
saber é o que é que ele implica, se for verdade. E a única
resposta possível é que, quer seja verdadeiro ou não, implica a
um tempo uma proposição quanto ao grau de bem da acção em
causa, em comparação com outras coisas, e um certo número
de proposições causais. Pois não se pode negar que a acção
terá consequências, e negar importância a essas consequências
é fazer um juízo quanto ao seu valor intrínseco em relação à
acção em si . Ao afirmarmos que uma determinada acção é a
melhor coisa a fazer, estamos a afirmar que ela, e as suas con-
sequências, oferecem um somatório de valor intrínseco maior
do que qualquer outra alternativa. E esta condição pode ser
cumprida em qualquer dos três casos seguintes: - (a) Se a
acção em si tiver mais valor intrínseco do que qualquer alter-
nativa, enquanto as suas consequências e as das alternativas não
têm qualquer mérito ou demérito intrínsecos; ou (h) se, ape-
sar de as suas consequências serem intrinsecamente más, o
saldo de valor intrínseco é maior do que seria produzido por
qualquer alternativa; ou (c) se, sendo as suas consequências
intrinsicamente boas, o grau de valor que lhes pertence, a elas
e à acção, tomadas em conjunto, for maior que o de qualquer
série de alternativas. Numa palavra, afirmar que uma determi-
nada linha de acção é, num dado momento, absolutamente

[108]
correcta e obrigatória, é, obviamente, afirmar que a sua adop-
ção trará mais bem ou menos mal ao mundo do que qualquer
outra coisa que se pudesse fazer no seu lugar. Mas isto implica
um juízo quanto ao valor tanto das suas próprias consequên-
cias, como das que resultem de qualquer alternativa possível.
E O facto de uma acção ter estas e aquelas consequências im-
plica um certo número de juízos causais.
Do mesmo modo, responder à pergunta "Que devemos
tentar conseguir?" implica igualmente juízos causais, embora
de uma forma ligeiramente diferente. Esquecemo-nos com
certa frequência, porque é demasiado óbvio, que é impossível
responder correctamente a esta pergunta a não ser nomeando
alguma coisa que seja susceptível de ser conseguida . Nem tudo o
é; e mesmo que decidamos que uma coisa que não pode ser
obtida nunca pode ter o mesmo valor do que outra que o pode
ser, o facto de existir esta última possibilidade, bem como o
seu valor, é essencial para que possa ser um objectivo adequado
da acção. Sendo assim, nem os nossos juízos em relação às
acções que devemos levar a cabo, nem tão-pouco os nossos juí-
zos quanto aos fins que elas devem produzir são juízos puros de
valor intrínseco. Em relação aos primeiros, uma acção abso-
lutamente obrigatória pode não ter qualquer valor intrínseco; o
facto de ela ser perfeitamente virtuosa pode querer dizer ape-
nas que produz os melhores resultados possíveis. Quanto aos
segundos, estes resultados melhores possíveis que justificam a
nossa acção não podem, em qualquer caso, ter mais valor
intrínseco do que aquele que as leis da natureza nos permitem
conseguir. E estas, por sua vez, podem não ter qualquer valor
intrínseco e ser apenas um meio para alcançar (num futuro
ainda mais longínquo) qualquer coisa que tenha esse valor.
Portanto, sempre que perguntamos "Que devemos fazer?" ou
"Que devemos tentar obter?", estamos a fazer perguntas que
implicam uma resposta correcta a outras duas perguntas, de
naturezas totalmente diferentes. Precisamos de saber, por um
lado, o grau de valor intrínseco que coisas diferentes têm e,
por outro, como obter essas c01sas diferentes. Mas a esma-

[109]
gadora maioria das questões que têm de facto sido analisadas
na Ética - todas elas, na verdade, de natureza prática - impli-
cam este conhecimento duplo; e têm sido analisadas sem que
tenha sido feita uma separação clara entre as duas questões dis-
tintas implicadas. Grande parte dos inúmeros desacordos que
são frequentes na Ética devem-se a esta falha na análise. O facto
de se terem usado conceitos que implicam quer os de valor
intrínseco, quer os de relação causal, como se se tratasse ape-
nas de conceitos de valor intrínseco, levou a que se tornassem
quase universais dois erros distintos. Ou se parte do princípio
de que nada que não seja possível tem valor intrínseco, ou
então de que o que é necessário tem de ter valor intrínseco.
Daí que a finalidade principal e específica da Ética - o deter-
minar que coisas têm valor intrínseco e em que grau - não
tenha sido analisada de forma adequada. Por outro lado, tam-
bém a discussão exaustiva dos meios tem sido grandemente
negligenciada, devido a uma obscura percepção do facto de
que ela nada tem a ver com a questão dos valores intrínsecos.
Seja como for, e por muito convencido que possa estar algum
leitor de que um dos sistemas mutuamente contraditórios que
imperam nesta área forneceu a resposta correcta quer à per-
gunta sobre aquilo que tem valor intrínseco, quer à relativa ao
que devemos fazer, quer a ambas, não poderá deixar de admitir-
-se, pelo menos, que as questões do que é em si mesmo bom e
do que produzirá os melhores resultados possíveis são questões
totalmente distintas; que ambas pertencem ao verdadeiro âm-
bito da Ética; e que quanto mais claramente distinguirmos
entre estas questões que são distintas, maiores probabilidades
teremos de encontrar para ambas uma resposta correcta.
18. Falta tratar um aspecto que não pode ser omitido de
uma descrição completa do género de questões a que a Ética
tem de responder. Estas questões dividem-se, como já foi dito,
em dois grupos principais: a questão de saber quais são as coi-
sas que são boas em si mesmas, e a de saber quais são as outras
coisas que se relacionam com as primeiras como seus efeitos.
A primeira destas questões, que é a principal interrogação ética

[110]
e é pressuposta pela outra, inclui uma comparação correcta
das várias coisas que possuem valor intrínseco (se é que as há
em grande número) em relação ao grau de valor que têm. Este
tipo de comparação implica uma dificuldade de princípio que
tem contribuído em grande medida para a confusão entre
valor intrínseco e aquilo que é meramente "bom como meio".
Tem-se apontado, como uma diferença entre um juízo que
afirma que uma coisa é boa em si mesma e outro que afirma
que ela é boa enquanto meio, para o facto de, no primeiro caso,
se o juízo for verdadeiro para uma ocorrência da coisa em
causa, o ser necessariamente para todas as outras, ao passo que
uma coisa que produz efeitos bons sob certas circunstâncias
pode produzir maus sob outras. Ora, é um facto que todos os
juízos de valor intrínseco são, neste sentido, universais, mas o
princípio que passamos a enunciar poderá facilmente levar a
pensar que não é esse o caso e que eles são afinal semelhantes
aos juízos de meios e são meramente gerais. Há, como será
demonstrado, um vasto número de coisas diferentes, cada uma
das quais tem valor intrínseco; há também muitas coisas que
são francamente más; e há uma classe ainda maior de coisas
que parecem ser indiferentes. Mas uma coisa pertencente a
qualquer destas três categorias pode ocorrer como parte de
um todo, o qual inclui, entre as suas outras partes, coisas per-
tencentes à mesma classe e às outras duas; e estes todos podem
também ter valor intrínseco. O paradoxo, para o qual é neces-
sário chamar a atenção, reside no facto de não se verificar qualquer
relação constante entre o valor de um tal todo e a soma dos valores das
suas partes. É certo que uma coisa boa pode existir numa tal rela-
ção com outra coisa boa que o valor do todo assim constituído
se torna imensamente superior à soma dos valores das duas coi-
sas boas. É certo que um todo formado por uma coisa boa e
por outra indiferente pode ter um valor imensamente superior
ao da coisa boa em si. É certo que duas coisas más, ou uma
coisa má e uma indiferente, podem formar um todo muito
pior do que a soma do mal das suas partes. E parece que coisas
indiferentes podem ser os únicos elementos constituintes de

[111]
um todo de grande valor, quer positivo, quer negativo. Se a adi-
ção de uma coisa má a um todo bom pode aumentar o valor
positivo desse todo, ou se a adição de uma coisa má a outra
má pode produzir um todo com valor positivo, pode parecer
mais duvidoso, mas é, pelo menos, possível, e essa possibi-
lidade deve ser tomada em consideração na nossa investigação
ética. Seja como for que venhamos a resolver casos particula-
res, o princípio em si é claro: Não se pode partir do princípio de
que o valor do todo é igual à soma dos valores das suas partes.
Um único exemplo bastará para ilustrar o tipo de relação
que está em causa. Parece ser verdade que o ter-se consciên-
cia de um objecto belo é uma coisa de grande valor intrínseco,
enquanto o mesmo objecto, se ninguém tiver consciência dele,
terá relativamente pouco valor e é geralmente considerado
como não tendo nenhum. Mas a consciência de um objecto
belo constitui, sem dúvida, um todo à sua maneira, em que é
possível distinguir duas partes - por um lado, o objecto em si,
e, por outro, o ter-se consciência dele. Ora este último factor
pode ocorrer como parte de um todo diferente, sempre que
temos consciência de qualquer coisa; e tudo parece indicar
que alguns destes todos têm, em qualquer dos casos, muito
pouco valor, e podem até ser indiferentes ou positivamente
maus. No entanto, nem sempre podemos atribuir a insigni-
ficância do seu valor a qualquer demérito real do objecto que
os distingue da consciência da beleza; o objecto em si pode
estar tão próximo quanto possível de uma neutralidade abso-
luta. Uma vez, portanto, que a mera consciência nem sempre
confere grande valor ao todo de que faz parte, mesmo que o
objecto não tenha qualquer demérito grande, não podemos
atribuir a grande superioridade da consciência de um objecto
belo em relação ao objecto belo em si à mera adição do valor
dessa consciência ao valor do objecto belo. Seja qual for o
valor intrínseco da consciência, não dá ao todo de que faz
parte um valor proporcional à soma do seu valor e do valor do
seu objecto. Se assim é, então estamos perante um caso em
que o todo possui um valor intrínseco que é diferente da soma

[112]
do valor das suas partes; e quer seja assim ou não, este exemplo
serve para ilustrar o que se entende por essa diferença.
19. Há, assim, todos que possuem a característica de o
seu valor ser diferente da soma dos valores das suas partes, e as
relações que subsistem entre essas partes e o todo a que per-
tencem não foram até hoje claramente reconhecidas nem lhes
foi dado um nome diferente. Dois aspectos há que merecem
atenção especial. (1) É manifesto que a existência de uma
dessas partes é condição necessária para a existência desse bem
que é constituído pelo todo. E exactamente a mesma lingua-
gem servirá também para expressar a relação entre um meio e
a coisa boa que é o seu efeito. Mas há uma diferença funda-
mental entre os dois casos: - é que a parte, ao contrário do
que se passa com o meio, é um constituinte da coisa boa e a
sua existência é condição necessária para a existência daquela.
A necessidade de que existam os meios para que o bem em
questão exista, é apenas uma necessidade natural ou causal. Se
as leis da natureza fossem diferentes, podia existir exactamente
o mesmo bem, embora aquilo que é agora condição para a sua
existência não existisse. A existência dos meios não tem valor
intrínseco, e a sua total aniquilação em nada alteraria o valor
daquilo que agora permite alcançar. Mas o caso é bem dife-
rente quando se trata de uma parte de um todo como estamos
agora a considerar. Neste caso, o bem em questão não pode
de maneira nenhuma existir a não ser que a parte exista tam-
bém. A relação de necessidade que há entre ambos é comple-
tamente independente das leis naturais. O que se afirma ter
valor intrínseco é a existência do todo, e a existência do todo
inclui a da sua parte. Vamos supor que se tira a parte - o que
fica não é aquilo que se afirmou que tinha valor intrínseco.
Mas, se supusermos que se tirou o meio, o que fica é exacta-
mente aquilo que se cifirmou ter valor intrínseco. No entanto
(2), a existência da parte em si pode não ter mais valor
intrínseco que o do meio. É neste facto que reside o paradoxo
da relação de que estamos a tratar. Acabou de se dizer que o
que tem valor intrínseco é a existência do todo, e que esta

(113]
inclui a existência da parte. Daqui, pareceria natural inferir
que a existência da parte tivesse valor intrínseco. Mas a ilação
seria tão falsa como se chegássemos à conclusão de que, pelo
facto de o número de duas pedras ser dois, cada uma delas
teria também de ser dois. A parte de um todo valioso conserva
exactamente o mesmo valor quando faz parte desse todo
como quando não faz. Se tinha valor noutras circunstâncias, 0
seu valor não é aumentado pelo facto de fazer parte de um
todo mais valioso. E se, por si só, não tinha qualquer valor,
continua a não o ter, por muito que seja o valor do todo de
que agora faz parte. Nada, portanto, nos autoriza a afirmar
que uma e a mesma coisa possa, em certas circunstâncias, ser
intrinsecamente boa e, noutras, não, ao passo que podemos
afirmar que um meio umas vezes produz resultados bons e
outras vezes não. E, no entanto, podemos afirmar que é infini-
tamente mais desejável que uma determinada coisa se verifique
nestas circunstâncias, em vez de naquelas, nomeadamente
quando existam outras coisas de tal modo relacionadas com
ela que formem um todo mais valioso. Não terá mais valor
intrínseco nestas circunstâncias do que noutras; não será até,
necessariamente, um meio para a existência de coisas com
mais valor intrínseco; mas será, tal como um meio, condição
necessária para a existência de alguma coisa, essa sim, com mais
valor intrínseco, embora, ao contrário do meio, vá fazer parte
dessa entidade mais valiosa.
20. Dissemos que a relação especial entre a parte e o
todo que temos estado a tentar definir, não tem ainda um
nome específico. Seria útil que o tivesse, e há até um nome
que se poderia atribuir-lhe, se fosse possível dissociá-lo do seu
pouco feliz emprego actual. Os filósofos , especialmente aque-
les que se afirmam devedores da obra de Hegel, têm, nos últi-
mos tempos, recorrido frequentemente aos termos "todo orgâ-
nico", "unidade orgânica" e "relação orgânica". A razão pela
qual estes termos seriam apropriados ao uso atrás sugerido é
que a relação especial entre as partes e o todo, que acabamos de
definir, é uma das propriedades que caracterizam justamente

[114]
os todos a que eles são mais frequentemente atribuídos. E a
razão pela qual seria desejável dissociá-los do seu emprego
actual é que, neste, não têm um significado claro - muito pelo
contrário, implicam e propagam erros devidos à confusão.
Dizer-se que uma coisa constitui um "todo orgânico"
equivale geralmente a sugerir que as suas partes estão relacio-
nadas entre si e com o próprio todo como os meios com o
fim; sugere igualmente que essas partes possuem a proprie-
dade de não terem "qualquer sentido ou significado separadas
do todo"; finalmente, o próprio todo é tratado como se tivesse
a tal propriedade à qual pretendemos atribuir o nome. Mas
aqueles que se servem do termo não nos dão, em geral, ne-
nhum indício quanto à maneira como supõem que estas três
propriedades estão relacionadas entre si. Parecem, de um modo
geral, partir do princípio de que elas são idênticas e sugerem
sempre, pelo menos, que estão necessariamente ligadas entre
si. Que não são idênticas, tentámos já demonstrar - supor que o
fossem seria ignorar as próprias diferenças apontadas no último
parágrafo, e bastaria o facto de encorajar este tipo de falta para
justificar o abandono do uso corrente do termo. Mas há uma
razão ainda mais forte para o seu abandono - é que, longe de
estar necessariamente ligada, a segunda propriedade não pode
associar-se a nada, por ser um conceito que se contradiz a si
próprio, ao passo que a primeira, se insistirmos no seu sentido
mais importante, se aplica a muitos casos aos quais nada nos leva
a crer que a terceira se possa também aplicar, e esta aplica-se, sem
dúvida alguma, a muitos casos a que a primeira não se aplica.

21. Estas relações entre as três propriedades que acaba-


mos de distinguir podem ser ilustradas pela referência a um
todo do género que deu origem ao termo "orgânico" - um
todo que é um organismo no sentido científico - a saber, o
corpo humano.
(1) Há entre muitas partes do nosso corpo (embora não
entre todas) uma relação, que se tornou conhecida através da
fabula, atribuída a Menénio Agripa, sobre o estômago e os

(115]
membros, onde se verifica que a continuação da existência de
uma parte é condição necessária para a continuação da existên-
cia de outra, e vice-versa . Isto equivale a dizer que encontra-
mos no corpo humano exemplos de duas coisas, ambas com
uma certa duração, que estão ligadas entre si por uma relação
de dependência causal mútua - uma relação de "reciproci-
dade" . Quando se diz que as partes do corpo formam uma
"unidade orgânica" ou que são, umas para as outras, reciproca-
mente meios e fins, é, com frequência, apenas isto que se quer
dizer. Estamos aqui, sem dúvida, perante uma característica
notável de todas as coisas vivas, mas seria extremamente impru-
dente afirmar que esta relação de dependência causal mútua era
característica exclusiva das coisas vivas e, nessa medida, sufi-
ciente para definir a sua especifidade. E é óbvio que, no caso
de duas coisas ligadas entre si por uma relação deste tipo, pode
acontecer que nenhuma delas tenha valor intrínseco, ou que
só uma o tenha. Não são necessariamente "fins" uma para a
outra, a não ser no sentido em que "fim" significa "efeito".
Além disso, é evidente que, neste sentido, o todo não pode ser
um fim para nenhuma das suas partes. Habituámo-nos a falar
do "todo" em oposição a uma das suas partes, quando, na ver-
dade, queremos dizer apenas as restantes partes. Mas o todo,
estritamente falando, tem de incluir todas as suas partes, e
nenhuma delas pode ser a causa do todo, porque não pode ser
causa de si mesma. É evidente, portanto, que esta relação de
dependência causal mútua não tem qualquer implicação
quanto ao valor de qualquer dos objectos que a têm, e que,
mesmo quando acontece terem ambos valor, esta relação entre
eles não pode ser válida entre a parte e o todo.
Mas (2) pode também dar-se o caso de o nosso corpo
como um todo ter um valor superior ao da soma dos valores
das suas partes, e talvez seja apenas isso que se quer significar
quando se diz que as partes são um meio para o todo. É óbvio
que se fizermos a pergunta "Porque hão-de as partes ser o que
são?", uma resposta adequada poderia ser "Porque o todo que
formam tem tanto valor." Mas é igualmente óbvio que a rela-

[116]
ção que assim afirmamos existir entre a parte e o todo é com-
pletamente diferente daquela que afirmamos existir entre uma
parte e outra, quando dizemos "Esta parte existe porque, sem
ela, aquela outra não poderia existir." Neste último caso, esta-
mos a afirmar que as duas partes estão causalmente ligadas,
mas, no primeiro caso, a parte e o todo não podem estar cau-
salmente ligados e a relação que afirmamos haver entre eles é
possível, ainda que também as partes não estejam causalmente
ligadas. Nem todas as partes de um retrato estão ligadas por
essa relação de dependência causal mútua que se verifica entre
certas partes do corpo, e, no entanto, a existência dessas partes
não relacionadas pode ser absolutamente essencial para o valor
do todo. As duas relações são de naturezas completamente dis-
tintas, e não podemos inferir a existência duma da existência
da outra. Não pode, portanto, ter qualquer utilidade reunir as
duas sob o mesmo termo. E se devemos dizer que um todo é
orgânico porque as suas partes são (neste sentido) um "meio"
para o todo, não podemos dizer que é orgânico porque as suas
partes estão causalmente dependentes uma da outra.
22. E, finalmente, (3) o sentido em que tem sido recen-
temente mais usado o termo "todo orgânico" é o de afirmar
· que as partes de um todo desta natureza têm uma propriedade
que as partes de nenhum todo podem alguma vez ter. Tem-se
suposto que tal como o todo não seria o que é se as suas partes
não existissem, também as partes não seriam o que são se não
existisse o todo. Tem-se entendido por isto, não apenas que
nenhuma parte poderia existir a menos que as outras existis-
sem também (que é o caso em que se verifica a relação (1)
entre as partes), mas, também, na realidade, que a parte não é
um objecto de pensamento distinto - que o todo a que per-
tence é, por sua vez, parte dela. Bastará reflectir um pouco
para se ver que esta suposição se contradiz a si própria. Temos
de admitir, na verdade, que, quando uma determinada coisa
faz parte de um todo, ela tem, de facto, um predicado que de
outra forma não teria - ou seja, o facto de ser uma parte desse
todo. Mas o que já não se pode admitir é que este predicado

[117]
altere a natureza da coisa que o tem, ou afecte a sua definição.
Quando pensamos na parte em si, queremos dizer apenas aquilo
que afirmamos ter, no caso presente, o predicado de ser parte
do todo. E o simples facto de se afirmar que é parte do todo
implica que tem de ter uma existência distinta daquilo que
afirmamos a seu respeito. De outra forma, estaríamos a con-
tradizer-nos a nós próprios, pois afirmamos que não é ela, mas
sim outra coisa diferente - constituída por ela e por aquilo que
afirmamos a seu respeito - que tem o predicado que lhe atri-
buímos. Numa palavra, é óbvio que nenhuma parte contém
analiticamente o todo a que pertence, ou quaisquer outras
partes desse mesmo todo. A relação parte-todo não é a mesma
que todo-parte; esta última define-se mesmo pelo facto de, ela
sim, conter analiticamente aquilo que se afirma ser a sua parte.
E, no entanto, esta mesma doutrina contraditória em si mesma
é a marca principal da influência de Hegel na filosofia mo-
derna - influência que impregna quase toda a filosofia orto-
doxa. Isto é o que significam geralmente os protestos contra a
falsificação pela abstracção - que um todo é sempre uma parte
da sua parte! "Se se quer saber a verdade acerca de uma parte,"
dizem-nos, "é preciso examinar, não a parte em si, mas outra
coisa - a saber, o todo: pois nada é verdade acerca da parte mas
tão somente do todo." E, no entanto, é óbvio que tem de ser
verdade, em relação à parte, pelo menos que ela é uma parte
do todo; e é óbvio que quando afirmamos isso não queremos
dizer simplesmente que o todo é uma parte de si próprio. Esta
doutrina, portanto, de que uma parte não pode ter "qualquer
sentido ou significado separada do seu todo" tem de ser total-
mente posta de lado. Ela própria implica que a proposição
"Isto é uma parte daquele todo" tem um significado, e, para
que isso seja possível, é forçoso que o sujeito e o predicado
tenham significados distintos. E é facil ver-se como esta dou-
trina falsa nasceu da confusão entre os dois tipos de relação (1)
e (2), que podem realmente ser propriedades dos todos.
(a) A existência de uma parte pode estar ligada por uma
necessidade natural ou causal à existência das outras partes do

[118]
seu todo; mais ainda, o que é parte de um todo e o que já
deixou de o ser, embora sejam intrinsecamente diferentes um
do outro, podem chamar-se pelo mesmo nome. Assim, para
dar um exemplo típico, um braço que tenha sido amputado
continua a chamar-se braço, mas um braço que é parte do
corpo difere seguramente de um braço morto. Daí podermos
facilmente ser levados a dizer "O braço que é parte do corpo
não seria o que é se não fosse parte do corpo," e a pensar que
a contradição assim expressa é na verdade uma característica
das coisas. Mas, na realidade, o braço morto nunca foi parte
do corpo; apenas parcialmente é idêntico ao braço vivo. Aque-
las partes que são idênticas às partes do braço vivo são exacta-
mente as mesmas, quer pertençam ao corpo, quer não; e aqui
temos um exemplo irrefutável de como é possível uma e a
mesma coisa ser, numa altura, uma parte do presumível "todo
orgânico" e, noutra altura, já não o ser. Em contrapartida,
aquelas propriedades do braço vivo que o braço morto não
tem, não existem neste sob uma forma diferente - não existem
pura e simplesmente aí de todo. Por uma necessidade causal, a
sua existência depende de terem a tal relação com as restantes
partes do corpo que nós expressamos quando dizemos que
fazem parte dele. No entanto, e sem qualquer dúvida, se al-
guma vez não fizeram parte do corpo, seriam exactamente o
que são quando fazem parte dele. Que elas diferem intrinse-
camente das propriedades do braço morto e que fazem parte
do corpo são proposições que não estão analiticamente relacio-
nadas uma com a outra. Não há qualquer contradicção em se
supor que conservam essas diferenças intrínsecas e no entanto
não fazem parte do corpo.
Mas (b) quando se diz que um braço vivo não tem sen-
tido ou significado separado do corpo a que pertence, está a
sugerir-se ainda urna outra falácia. "Ter sentido ou significado"
é muitas vezes usado no sentido de "ter importância", ou seja,
"ter valor, quer como meio, quer como fim." Ora, é bem pos-
sível que mesmo um braço vivo, separado do seu corpo, não
tenha qualquer valor intrínseco, apesar de o todo de que faz

[119)
parte ter grande valor intrínseco graças à sua presença. Assim,
podemos facilmente ser levados a dizer que, enquanto parte do
corpo, tem grande valor, ao passo que, por si só, não teria ne-
nhum, e que, portanto, todo o seu " significado" reside na sua
relação com o corpo. Mas, na realidade, o valor em questão
obviamente não lhe pertence de todo. Ter valor simplesmente
por ser uma parte é o mesmo que não ter qualquer valor -
antes se é, simplesmente, parte daquilo que tem valor. Devido,
porém, a nem sempre se fazer esta distinção, a afirmação de
que uma parte tem valor, enquanto parte, que de outra forma
não teria, leva facilmente a partir-se do princípio de que ela é
também diferente, enquanto parte, do que de outra forma seria,
pois é, de facto, verdade que quando duas coisas têm valores
diferentes, devem também diferir noutros aspectos. Daí que o
partir-se do princípio de que uma e a mesma coisa pode ter
mais ou menos valor intrínseco consoante faz parte de um
todo mais ou menos valioso, tenha fomentado a ideia contra-
ditória em si mesma de que uma e a mesma coisa possa ser
duas coisas diferentes, e que apenas numa dessas formas seja
verdadeiramente o que é.
Por estas razões, tomaremos a liberdade, sempre que nos
pareça conveniente, de empregar o termo "orgânico" num sen-
tido especial, o de denotar o facto de que um todo tem um
valor intrínseco quantitativamente diferente da soma dos va-
lores das suas partes. Empregaremos o termo para denotar isto
e apenas isto. Ele não implicará nenhuma relação causal, seja
ela qual for, entre as partes do todo em causa, como também
não implicará que as partes são inconcebíveis a não ser como
partes desse todo, ou, ainda, que, quando fazem parte de um
todo assim, têm um valor diferente daquele que teriam se não
o fizessem. Entendida neste sentido especial e perfeitamente
definido, a relação entre um todo orgânico e as suas partes é
uma das mais importantes que a Ética tem de reconhecer.
Uma parte importante deste ramo da ciência devia ocupar-se
da comparação dos valores relativos de vários bens. E, numa
comparação desta natureza, não deixarão de aparecer os erros

(120)
mais grosseiros se se partir do princípio de que, sempre que
duas coisas constituem um todo, o valor desse todo será apenas
a soma dos valores dessas duas coisas. Completamos, assim, com
a questão dos "todos orgân_icos", a enumeração do género de
problemas que compete à Etica tratar.
23. Tentámos, neste capítulo, fundamentar as seguintes
conclusões. (l) A especifidade da Ética reside na investigação
de afirmações, não acerca da conduta humana, mas sim acerca
daquela propriedade das coisas que denotamos através do termo
"bom", assim como da propriedade oposta, denotada pelo
termo "mau". Compete-lhe, para poder estabelecer as suas
conclusões, investigar da verdade de todas essas afirmações,
excepto aquelas que afirmam haver uma relação desta proprie-
dade apenas com uma entidade única (l-4). (2) Esta proprie-
dade, em função da qual o âmbito da Ética deve ser definido,
é, em si mesma, simples e indefinível (5-14). E (3) todas as afir-
mações acerca da sua relação com outras coisas pertencem a
duas, e apenas duas, espécies: ou afirmam em que grau as coi-
sas em si possuem esta propriedade, ou então afirmam haver
relações causais entre outras coisas e aquelas que a possuem
(15-17). Finalmente, (4) ao considerar os diferentes graus em
que as coisas em si possuem esta propriedade, há que tomar
em conta o facto de que um todo pode possuí-la num grau
diferente daquele que resultaria da soma dos graus das suas
partes (18-22).

[121]
CAPÍTULO II
A ÉTICA NATURALISTA

24. Resulta das conclusões do Capítulo I que todas as


questões éticas pertencem a uma de três classes. A primeira
contém apenas uma questão - a questão Qual é a natureza desse
predicado peculiar, cuja relação com outras coisas constitui o
objecto de toda a investigação ética? ou, por outras palavras,
Que se entende por bom? A esta primeira questão, já tentámos
responder. O predicado peculiar, em função do qual o âmbito
da Ética deve ser definido, é simples, inanalisável e indefinível.
Restam duas classes de questões pelo que diz respeito à relação
entre este predicado e outras coisas. Podemos perguntar (1) A
que coisas e em que grau é que este predicado se pode unir
directamente? Que coisas são boas em si mesmas? ou (2) Por
que meios poderemos tornar aquilo que existe no mundo tão
bom quanto possível? Que relações existem entre aquilo que
é melhor em si mesmo com outras coisas?
Neste capítulo e nos dois que se lhe seguem, vamos ana-
lisar certas teorias que nos propõem uma resposta à pergunta
O que é bom em si mesmo? Dizemos, prudentemente, uma
resposta, porque estas teorias são todas caracterizadas pelo facto
de, se forem verdadeiras, simplificarem extraordinariamente o
estudo da Ética. Todas elas defendem que há apenas uma espé-
cie de facto cuja existência tem qualquer valor. Mas têm todas
também outra característica, que é o motivo pelo qual as reu-
nimos no mesmo grupo e as tratamos em primeiro lugar: é
que a razão principal por que se tem considerado que a espé-
cie única de facto que essas teorias mencionam define o bem
único é que se tem considerado que define aquilo que se en-

[123)
tende por "bom" propriamente dito. Por outras palavras, são
ou todas elas, teorias acerca do fim ou do ideal, que foram
adaptadas sobretudo devido àquilo a que chamamos a falácia
naturalista - todas confundem a primeira e a segunda das três
perguntas que a Ética pode fazer. É, na realidade, este facto
que explica a sua afirmação de que apenas uma única espécie
de coisas é boa. Tem-se pensado que uma coisa ser boa significa
que ela tem esta propriedade única, e daí o pensar-se que só
aquilo que possui esta propriedade é bom. A ilação parece
muito natural; e, no entanto, o que ela significa é contraditó-
rio. Pois aqueles que a fazem não se aperceberam de que a sua
conclusão, "aquilo que possui esta propriedade é bom", é uma
proposição significativa: que nem significa "aquilo que possui
esta propriedade, possui esta propriedade", nem "a palavra
'bom' denota que uma coisa possui esta propriedade." E, no
entanto, se não significa nem uma coisa, nem a outra, então a
ilação contradiz a sua própria premissa.
Propomo-nos, portanto, analisar certas teorias acerca do
que é bom em si mesmo, que têm na base a falácia naturalista,
no sentido de que foi esta que levou à sua aceitação generali-
zada. Esta análise tem por fim (1) levar mais longe a demonstra-
ção de que a falácia naturalista é uma falácia, ou, por outras
palavras, demonstrar que todos nós nos apercebemos de uma
certa qualidade simples, que representa (ela e apenas ela) aquilo
que entendemos pela palavra "bom"; e (2) demonstrar que há
não apenas uma mas muitas coisas diferentes que possuem esta
propriedade. Pois não posso pensar em recomendar a doutrina
de que as coisas que são boas não devem a sua bondade à posse
comum de qualquer outra propriedade, sem primeiro proce-
der a uma análise crítica das principais doutrinas que se lhe
opõem e cujos méritos estão comprovados pela sua genera-
lizada aceitação.
25. As teorias que nos propomos analisar podem, por
uma questão de conveniência, ser divididas em dois grupos.
A falácia naturalista implica sempre que quando pensamos "Isto
é bom", estamos na realidade a pensar que a coisa em causa

[124]
tem uma relação precisa com qualquer outra coisa. Mas esta
coisa, em função da qual se define o bem, pode ser ou aquilo a
que podemos chamar um objecto natural - cuja existência é
admitidamente um objecto da experiência - ou um objecto
cuja existência num mundo real super-sensível é apenas infe-
rida. Propomo-nos tratar estes dois tipos de teoria separada-
mente. As teorias do segundo tipo podem, por uma questão
de conveniência, ser denominadas "metafísicas" e deixamos o
seu tratamento para o Capítulo IV No presente capítulo e no
que se lhe segue, pelo contrário, analisaremos as teorias que
devem a sua importância à suposição de que é possível definir
bom em função de um objecto natural - são elas que explicam
o título dado a este capítulo, "A Ética Naturalista." É de notar
que a falácia em função da qual definimos "Ética Metafisica" é
da mesma natureza, razão pela qual lhe damos apenas um nome,
o de falácia naturalista. Quando, porém, se trata de analisar as
teorias éticas defendidas por esta falácia, parece ser de toda a
conveniência distinguir entre aquelas que consideram que o
bem consiste numa relação com qualquer coisa que existe
aqui e agora, das outras que não o fazem . Segundo as primei-
ras, a Ética é uma ciência empírica ou positiva, cujas con-
clusões podiam ser todas estabelecidas através da observação
empírica e da indução. Mas, no que toca à Ética Metafísica, o
caso é diferente. Há, portanto, uma diferença marcada entre
estes dois grupos de teorias éticas baseadas na mesma falácia .
E também dentro das teorias naturalistas é possível e conve-
niente estabelecer uma divisão. Há um objecto natural, o pra-
zer, que tem sido considerado como sendo o único bem talvez
mais vezes que todos os outros juntos. Há ainda outra razão
para tratar o Hedonismo em separado. Em nossa opinião, esta
tese deve a sua preponderância, tão evidentemente como qual-
quer outra, à falácia naturalista, mas teve um destino diferente
das outras pelo facto de o autor que primeiro demonstrou a
falácia dos argumentos naturalistas que pretendiam provar que
o prazer era o único bem, ter reafirmado que, apesar de tudo,
o prazer é o único bem. Decidimos, portanto, separar a análise

[125]
do Hedonismo da das restantes teorias naturalistas, consagran-
do o presente capítulo à Ética Naturalista, em geral, e o pró-
ximo ao Hedonismo, em particular.
26. O tema do presente capítulo é, assim, a análise das
teorias éticas que defendem a posição de que nada tem valor
intrínseco se não possuir uma qualquer propriedade natural
que não seja o prazer. E defendem esta posição com base na
suposição de que ser "bom" significa possuir a propriedade em
questão. A estas teorias damos o nome de "naturalistas." Res-
tringimos, assim, o termo Naturalismo a um método especí-
fico de abordar a Ética - um método que, entendido no seu
sentido mais estrito, é incompatível com a possibilidade de
haver qualquer Ética. Este método consiste na substituição de
"bom" por uma qualquer propriedade de um objecto natural,
ou de um conjunto de objectos naturais, substituindo assim a
Ética por qualquer das ciências naturais. De um modo geral,
a ciência que é assim posta de lado é uma das ciências que mais
tem a ver com o homem, devido ao erro generalizado (pois,
em nosso entender, é de um erro que se trata) de se considerar
que o objecto de estudo da Ética está limitado à conduta hu-
mana. De um modo geral, tem sido a Psicologia, pela mão de
J. S. Mill, a ocupar o lugar da Ética, mas também a Sociologia,
pela mão de Clifford e de outros autores modernos. Mas pode-
ria ser qualquer outra ciência. É a mesma falácia que está em
causa quando Tyndall nos incita a "acatar as leis da matéria";
aqui, a ciência que se propõe para o lugar da Ética é pura e
simplesmente a Física. O termo é, portanto, perfeitamente
geral, pois, seja qual for o significado atribuído a bom, a teo-
ria continua a ser o Naturalismo. Que se defina bom como
amarelo, verde ou azul, como forte ou suave, como redondo
ou quadrado, como doce ou amargo, como produzindo vida
ou prazer, como algo querido, desejado ou sentido, seja qual
for destes objectos, ou doutros quaisquer, que seja atribuído a
bom como seu significado, a teoria que defenda esse significado
será uma teoria naturalista. Designamos estas teorias por natu-
ralistas porque todas estas palavras denotam propriedades, sim-

[126]
pies ou complexas, de algum objecto natural , simples ou com-
plexo. E, antes de procedermos à sua análise, será conveniente
definir o que se entende por "natureza" e por "objectos na-
turais".
Por natureza, então, entendemos, e sempre temos enten-
dido, tudo o que constitui o objecto de estudo das Ciências
Naturais e também da Psicologia. Pode dizer-se que inclui
tudo o que já existiu, existe ou venha a existir no tempo.
Quando consideramos que um objecto é de uma natureza tal
que se pode dizer que ele existe agora, já existiu ou está pres-
tes a existir, então ficamos a saber que se trata de um objecto
natural e que nenhum objecto do qual não se possa afirmar
que isto é verdade será um objecto natural. Assim, por exem-
plo, em relação às nossas mentes, podemos afirmar que existi-
ram ontem, que existem hoje e provavelmente existirão dentro
de um ou dois minutos. Podemos dizer que pensámos ontem
e que esses pensamentos, embora já tenham deixado de exis-
tir, podem ainda fazer sentir os seus efeitos; e, na medida em
que esses pensamentos existiram de facto, também eles são
objectos naturais.
Não há, na verdade, qualquer dificuldade quanto aos
"objectos" em si, no sentido em que acabamos de empregar o
termo. É facil dizer quais são naturais e quais (se é que há al-
guns) não o são. Quando, porém, se começa a examinar as pro-
priedades dos objectos, a questão torna-se mais difícil. Entre
as propriedades dos objectos naturais, quais são naturais e quais
não? Pois não negamos que o bem é uma propriedade de cer-
tos objectos naturais: alguns deles, em nosso entender, são
bons; e, não obstante, afirmámos que "bom" em si não é uma
propriedade natural. Ora bem, a minha demonstração em rela-
ção a estas também tem a ver com a sua existência no tempo.
Acaso podemos imaginar a existência no tempo de "bom" por
si só, e não, simplesmente, enquanto propriedade de algum
objecto natural? Pela parte que nos toca, não conseguimos
imaginá-lo, ao passo que, no que diz respeito à maioria das
propriedades dos objectos - aquelas que designamos por pro-

[127]
priedades naturais - a sua existência nos parece ser indepen-
dente da existência desses objectos. São, na realidade, mais
partes de que o objecto é constituído do que meros predica-
dos que lhe são anexados. Se as eliminássemos todas, não res-
taria qualquer objecto, nem a mais pequena substância: pois
elas são, em si mesmas, substanciais e são elas que dão ao
objecto toda a substância que ele tem. Mas não é esse o caso
de bom. Se, na verdade, bom fosse um sentimento, como há
quem nos queira fazer crer, então sim existiria no tempo. Mas
essa é a razão por que classificá-lo assim equivale a cometer a
falácia naturalista. Porque será sempre pertinente perguntar se
o sentimento em si é bom, e, nesse caso, bom não pode ser
idêntico a nenhum sentimento.
27. São "naturalistas", portanto, as teorias da Ética que
proclamam que o único bem consiste numa dada propriedade
das coisas, que existe no tempo; e proclamam-no com base na
suposição de que o próprio "bom" pode ser definido em fim-
ção dessa propriedade. Podemos agora passar à análise destas
teorias.
E, em primeiro lugar, uma das máximas éticas mais fa-
mosas é a que recomenda uma "vida de acordo com a Natu-
reza". Era esse o princípio da Ética Estóica, mas como esta tem
algum direito a ser considerada uma teoria metafisica, não nos
ocuparemos dela aqui. Mas a mesma máxima reaparece em
Rousseau e, ainda hoje, é frequente afirmar-se que devemos
viver naturalmente. Vejamos então, na sua forma mais geral,
esta afirmação. É óbvio, em primeiro lugar, que não podemos
dizer que tudo o que é natural é bom, a não ser talvez mercê
de alguma teoria metafisica, de que oportunamente tratare-
mos. Se tudo o que é natural é igualmente bom, então, sem
dúvida, a Ética, no sentido em que é normalmente entendida,
deixa de existir, pois nada é mais certo, de um ponto de vista
ético, do que o facto de que algumas coisas são más e outras
boas. A finalidade da Ética é justamente fornecer-nos regras
gerais que nos permitam evitar as primeiras e alcançar as segun-
das. O que é, então, que "natural" quer dizer, neste conselho

[128]
para viver naturalmente, já que manifestamente não pode
aplicar-se a tudo o que é natural?
A frase parece apontar para uma vaga noção de que o
bem natural é uma coisa que existe e para a convicção de que
a Natureza pode determinar e decidir o que há-de ser bom,
tal como determina e decide o que há-de existir. Por exemplo,
é legítimo supor que a "saúde" é susceptível de ser definida
em termos naturais, que a Natureza determinou o que a saúde
deve ser. E a saúde, pode dizer-se que é obviamente um bem .
Sendo assim, a Natureza, neste caso, resolveu a questão - bas-
tará perguntar-lhe o que é a saúde e ficaremos a saber o que
é bom. Teremos ainda criado uma ética fundamentada na
ciência. Mas, em que consiste esta definição natural de saúde?
Apenas podemos conceber que a saúde seja definida, em ter-
mos naturais, como o estado normal de um organismo, pois a
doença é também, seguramente, um produto natural. Dizer
que a saúde é aquilo que é conservado pela evolução, aquilo
que, por sua vez, tenta conservar, na luta pela existência, o
organismo que a possui, vem a dar no mesmo, pois a van-
tagem da evolução é que pretende dar uma explicação causal
para o facto de algumas formas de vida serem normais e outras
anormais. Explica a origem das espécies. Quando, portanto,
nos dizem que a saúde é natural, é lícito supor que o que
querem dizer é que é normal; e que quando nos dizem para
tentarmos alcançar a saúde como um fim natural, o que está
implícito é que o que é normal tem de ser bom. Mas, será
assim tão óbvio que o que é normal tem de ser bom? Será
realmente óbvio que a saúde é um bem? Terá a excelência de
Sócrates ou de Shakespeare sido normal? Não terá antes sido
anormal, extraordinária? É óbvio em primeiro lugar, parece-nos,
que nem tudo o que é bom é normal; que, pelo contrário, o
anormal é muitas vezes melhor que o normal: a excelência
extraordinária, tal como o vício extraordinário, devem obvia-
mente ser anormais e não normais. No entanto, pode dizer-
-se que, apesar de tudo, o normal é bom. Pela parte que nos
toca, não estamos dispostos a pôr em causa que a saúde seja

[129]
um bem. O que dizemos é que isso não pode ser tomado como
óbvio, mas antes deve ser deixado em aberto. Declarar que é
óbvio equivale a sugerir a falácia naturalista, tal como, em al-
gumas obras recentes, a prova de que o génio é doentio, anor-
mal, tem sido usada com o fim de sugerir que não se deve
fomentar o génio. É uma argumentação falaciosa, perigosa-
mente falaciosa. O facto é que nós habitualmente incluímos,
nas próprias palavras "saúde" e "doença", a noção de que uma
é boa e a outra má. Mas quando se trata de encontrar para elas
uma definição pseudocientífica, uma definição em termos
naturais, a única possível é a que recorre a "normal" e "anor-
mal". Ora, é fácil demonstrar que algumas coisas geralmente
consideradas excelentes são anormais, e daí se segue que sejam
doentes. Mas não se segue, a não ser mercê da falácia natura-
lista, que essas coisas geralmente tidas por boas sejam, por causa
disso, más. Tudo o que se mostrou foi que há, por vezes, um
conflito entre o juízo corrente de que o génio é bom, e o juízo
corrente de que a saúde é um bem. Não foi ainda suficiente-
mente reconhecido que a verdade deste último não tem nem
uma ponta mais de garantia que a do primeiro; que se trata, em
ambos os casos, de questões em aberto. Pode bem ser verdade
que por "saudável" nós entendamos geralmente "bom", mas
isso apenas prova que quando usamos a palavra assim, não damos
a entender o mesmo que se entende na Medicina. O facto de
a saúde, quando a palavra é usada para denotar algo _bom, ser
um bem, não serve de argumento para provar que ela seja,
quando a palavra é usada para denotar algo normal, igualmente
um bem. É como se, pelo facto de a palavra "gato" denotar
um engano e também um certo animal, o engano e o animal
tivessem de ser uma e a mesma coisa. A afirmação de que uma
coisa é natural não deve, portanto, intimidar-nos a ponto de
sermos levados a admitir que ela é boa. Por definição, bom
não significa nada que seja natural, e, portanto, saber se uma
coisa que é natural é boa, será sempre uma questão em aberto.
28. Mas há um outro sentido, ligeiramente diferente, em
que a palavra "natural" é usada com a implicação de que de-

[130]
nota algo de bom: é quando se fala de afectos naturais ou de
crimes e vícios contra naturam. Aqui, o significado parece ser,
não tanto que a acção ou sentimei;to em causa são ou não na-
turais, como que são necessários. E neste contexto que somos
aconselhados a imitar os selvagens e as feras . Um conselho
curioso, sem dúvida, mas, quem sabe! Não se trata agora aqui
de averiguar em que circunstâncias teríamos algum proveito
em seguir o exemplo das vacas. Certamente não faltarão casos.
O que nos interessa é um certo tipo de argumento que é, por
vezes, usado para apoiar esta doutrina - um argumento natu-
ralista. A noção que por vezes está no fundo do espírito dos
pregadores deste evangelho é a de que não podemos melho-
rar a Natureza. Esta noção é sem dúvida verdadeira, no sen-
tido de que tudo o que possamos fazer, que venha a melhorar
o actual estado de coisas, será um produto natural. Mas não é
nesse sentido que a frase é empregada - mais uma vez, usa-se
a palavra natureza para denotar apenas uma parte dela, só que,
neste caso, essa parte não corresponde ao mínimo normal mas
a um mínimo arbitrário do que é necessário à vida. E quando
se recomenda este mínimo como "natural" - como o modo de
vida que a Natureza nos aponta - recorre-se à falácia natural.
Contra esta posição, queremos apenas salientar que o facto de
se cometerem certos actos, não desejáveis em si mesmos, pode
ser desculpado enquanto meio necessário para a preservação da
vida, mas isso não é razão para o louvar, nem para nos acon-
selhar a limitar a nossa acção a esses actos simples que são
necessários, se pudermos melhorar a nossa situação, ainda que
seja à custa de fazermos aquilo que é, neste sentido, desneces-
sário. É verdade que a Natureza estabelece limites ao que é
possível, que é ela quem controla os meios de que dispomos
para alcançar o que é bom, e este facto tem de ser tomado em
consideração pela Ética prática, como veremos mais adiante.
Mas quando se pensa que ela tem preferência pelo que é neces-
sário, o que é necessário significa apenas o que é necessário
para obter um determinado fim, que se pressupõe constituir o
mais alto bem, e o que esse mais alto bem possa ser não é a

[131]
Natureza capaz de aJmzar. Porque havemos de supor que
aquilo que é m eramente necessário à vida é ipso facto melhor
do que aquilo que é necessário ao estudo da Metafisica, por
muito inútil que esta possa parecer? Pode bem dar-se o caso
de a vida apenas valer a pena ser vivida por nos possibilitar o
estudo da Metafisica, por ser o meio necessário a esse fim.
A descoberta da falácia deste argumento tirado da Natureza
data já de Luciano. "Quase me deu vontade de rir," diz
Calicrátidas, num diálogo que lhe é atribuído "agora mesmo,
1

quando Cáricles estava a elogiar as feras irracionais e a selva-


jaria dos Citas: no calor da discussão, ele quase se arrependia
de ter nascido grego. Como havemos de nos espantar pelo
facto de os leões, os ursos e os porcos não agirem como eu
estava a propor? Aquilo que o raciocínio levaria logicamente
um homem a escolher, não pode ser alcançado por criaturas
que não raciocinam, pela razão muito simples de que são
estúpidas. Se Prometeu ou outro deus qualquer tivesse dado a
cada uma delas a inteligência de um homem, não viveriam no
deserto e nas montanhas, nem se comeriam uns aos outros.
Teriam construído templos, como nós fazemos, cada um vive-
ria no centro da sua família, e teriam formado uma nação
delimitada por leis recíprocas. Será assim surpreendente que
pobres feras, que tiveram a pouca sorte de não poderem obter
pela previsão nenhum dos bens que o raciocínio nos faculta a
nós, estejam também privadas do amor? Os leões não amam,
mas também não filosofam. Os ursos não amam, mas a razão
é porque não conhecem a doçura da amizade. Só o homem,
mercê da sua sabedoria e dos seus conhecimentos, e depois de
muito experimentado, soube escolher o melhor."
29. Argumentar que uma coisa é boa porque é "natural",
ou má porque não é natural, nos sentidos correntes do termo, é,
portanto, falacioso, o que não impede que argumentos deste
tipo sejam usados com muita frequência. Mas não pretendem
geralmente fundamentar uma teoria sistemática da Ética.

1 ,
'Epwn:ç , 49.36.

[132]
Entre as várias tentativas de sistematiz ar este recurso à Natu-
reza, aquela que tem hoje mais aceitação consistiu na apli-
cação do termo "Evolução" às questões morais, nas doutrinas
éticas a que chamamos "evolucionistas". Estas doutrinas
defendem que o curso da "evolução", na medida em que nos
mostra a direcção em que estamos a evoluir, nos mostra tam-
bém, por isso mesmo, a direcção em que devemos evoluir. São
muitos e muito populares hoje os autores que defendem esta
teoria, e, entre eles, talvez Herbert Spencer, que escolhemos
como exemplo, seja o mais conhecido. A doutrina de Spen-
cer, há que reconhecê-lo, não representa o exemplo mais claro
do recurso à falácia naturalista para defender a Ética Evolu-
cionista. Poderíamos encontrar um exemplo muito mais claro
na doutrina de Guyau 2, um autor que tem estado muito na
moda recentemente em França, mas que não é tão conhecido
como Spencer. De Guyau quase se pode dizer que é um dis-
cípulo de Spencer. É francamente evolucionista e francamente
naturalista, e é de notar que não parece considerar que o seu
Naturalismo o distinga de Spencer. O aspecto em que tem
criticado Spencer diz respeito à questão de saber até que ponto
os fins do "prazer" e da "vida alargada" coincidem, enquanto
motivos e meios para alcançar o ideal. Não parece pensar que
se afasta de Spencer, nem no que diz respeito ao princípio
fundamental de que o ideal será "Quantidade de vida, medida
em largura e não só em comprimento," ou, no dizer de Guyau,
"expansão e intensidade da vida", nem no que toca ao argu-
mento naturalista em que fundamenta o seu princípio. E não
nos parece, de facto, que ele se afaste de Spencer nestes pon-
tos. É certo que Spencer utiliza a falácia naturalista, como tere-
mos ocasião de demonstrar, em questões de pormenor. Mas,
no que diz respeito aos seus princípios fundamentais, surgem-
-nos as seguintes dúvidas: Será ele fundamentalmente um
Hedonista? E, nesse caso, será um Hedonista naturalista? A ser

,
- Ver Esquisse d'rme Mora/e sa11s Obligation 11i S1111ctio11, de M . Guyau.
4.' ed. Paris: F. Alcan, 1896.

[133]
esse o caso, teria sido preferível tratá-lo no capítulo seguinte.
Defenderá ele que a tendência para aumentar a quantidade de
vida é um mero critério de boa conduta? Ou achará que esse
alargamento de vi da é assinalado pela Natureza como um fim
para o qual devemos tender?
Em nosso entender, as palavras de Spencer, em sítios dife-
rentes, poderiam dar apoio a todas estas hipóteses, não obstante
algumas delas serem incompatíveis entre si. Tentaremos ana-
lisar os aspectos principais.
30. A vaga recente da "Evolução" deve-se sobretudo às
investigações de Darwin sobre a origem das espécies. Darwin
formulou uma hipótese estritamente biológica quanto ao modo
como certas formas de vida animal se tinham fixado, enquanto
outras morriam e se extinguiam. Segundo a sua teoria, isto
talvez se pudesse explicar, pelo menos em parte, da seguinte
maneira: quando apareciam certas variedades (e a causa prin-
cipal do seu aparecimento é ainda desconhecida), é possível
que alguns dos aspectos em que se distinguiam das espécies
progenitoras ou de outras então existentes as tornassem mais
aptas a sobreviver no seu meio ambiente e menos expostas à
extinção. Podiam, por exemplo, ter mais capacidade para resis-
tir ao frio ou ao calor, ou a mudanças climatéricas; maior capa-
cidade para encontrar alimento no seu habitat, para fugir ou
resistir às outras espécies que se alimentavam delas, para atrair
ou dominar o sexo oposto. Estando assim menos expostas a
morrer, o seu número aumentaria, em relação a outras espé-
cies, e esse mesmo aumento podia contribuir para a extinção
das outras espécies. Esta teoria, a que Darwin deu o nome de
"Selecção Natural", é também conhecida como a teoria da
sobrevivência do mais forte. E ao processo natural assim des-
crito dá-se o nome de evolução. Foi muito natural supor-se
que a evolução se dava partindo do que era inferior para o que
era superior, e, de facto, podia observar-se que pelo menos
uma espécie, geralmente considerada superior - a espécie
humana - tinha sobrevivido assim. Dentro da própria espécie
humana, também se supunha que as raças superiores, como,

[134]
por exemplo, a nossa, tinham demonJtrado uma tendência para
sobreviver às inferiores, tais como os Indios Norte-Americanos.
Somos capazes de os matar mais depressa do que eles a nós.
A doutrina da evolução foi então apresentada como uma
explicação de como as espécies superiores sobrevivem às infe-
riores. Spencer, por exemplo, emprega constantemente "mais
evoluído" como equivalente a "superior". Mas é preciso fazer
notar que isto não faz parte da teoria científica de Darwin.
Esta teoria explica, igualmente bem, como, através de uma
alteração do meio ambiente (por exemplo, o arrefecimento
gradual da terra), é possível uma espécie considerada infinita-
mente inferior vir a sobreviver-nos. Sobrevivência do mais
apto não significa, como se poderia supor, sobrevivência do
mais apto para realizar algo de bom - não significa aquele que
está mais bem preparado para alcançar um fim bom, mas, em
última análise, apenas aquele que está mais apto para sobrevi-
ver. O mérito desta teoria científica, e é uma teoria de grande
mérito, reside apenas no facto de apontar as causas que pro-
duziram certos efeitos biológicos - não pretende ajuizar se
esses efeitos são bons ou maus.
31. Mas vejamos agora o que Spencer tem a dizer acerca
da aplicação da teoria da Evolução à Ética.
"Regresso," diz ele 3 , à proposição principal, descrita
nestes dois capítulos, e qu e me parece ter sido cabalmente jus-
tificada. Com base na verdade de que, como a conduta de que
a Ética se ocupa faz parte da conduta geral, esta tem de ser
entendida na generalidade antes de se poder entender a parte
na especialidade; com base ainda noutra verdade, decorrente
daquela, de que, para compreender a conduta geral, é preciso
compreender a evolução da conduta, fomos levados a ver que
a Ética tem por objecto de estudo aquela forma que a conduta
universal assume nos últimos estádios da sua evolução. Che-
gámos também à conclusão de que estes últimos estádios na

Data of Ethics, Cap. II, § 1, ad finem.


3

(135]
evolução da conduta se manifestam no ser superior4, quando é
forçado, pelo aumento numérico, a viver cada vez mais na pre-
sença dos seus semelhantes. Daqui, segue-se o corolário de que
a conduta adquire valor ético 5, que é proporcional, à medida que
as actividades, tornando-se menos militantes e mais indus-
triais, necessitam de menos agressividade e oposição, e passam
a reger-se e a desenvolver-se pela cooperação e ajuda mútua.
"Teremos agora ocasião de ver que estas implicações da
Hipótese da Evolução se harmonizam com as principais ideias
morais a que os homens chegaram por outras vias."
Ora bem, se interpretarmos esta última frase no seu sen-
tido mais estrito - se as proposições que a antecedem são vis-
tas por Spencer como implicações da Teoria da Evolução - então
não resta a menor dúvida de que ele cometeu a falácia natu-
ralista. Tudo o que a Hipótese da Evolução nos diz é que cer-
tos tipos de conduta são mais evoluídos do que outros, e é isto
também tudo quanto Spencer tentou demonstrar nos dois
capítulos em causa. No entanto, ele afirma que uma das coisas
que a Hipótese provou é que a conduta ganha valor ético à medida
que manifesta certas características. O que ele tentou provar
foi apenas que à medida que apresenta certas características, e
em proporção com elas, a conduta se mostra mais evoluída.
É evidente, assim, que Spencer identifica a aquisição de valor
ético com um grau maior de evolução - é o que se conclui
logicamente das suas próprias palavras. Mas a linguagem de
Spencer é extremamente vaga e, como teremos ocasião de ver,
ele parece considerar a posição que as suas palavras aqui impli-
cam como falsa. Não podemos, portanto, tomar como posi-
ção definitiva de Spencer que "melhor" significa apenas "mais
evoluído", ou mesmo que o que é "mais evoluído" é, por isso
mesmo, "melhor". Mas podemos legitimamente chamar a aten-
ção para o facto de ele ter sido influenciado por estas posições
e portanto pela falácia naturalista. Só supondo que ele sofreu

• Itálicos nossos.
Itálicos nossos.

(136]
esta influência podemos explicar a sua confusão quanto ao que
de facto demonstrou, e a ausência de qualquer tentativa no
sentido de demonstrar aquilo que afirma ter demonstrado: que
a conduta que é mais evoluída é melhor. Em vão buscaremos
qualquer tentativa de demonstrar que o "valor ético" é propor-
cional à "evolução", ou que é o ser "superior" que manifesta
a conduta mais evoluída. E, no entanto, é essa a conclusão a
que Spencer chega. É da mais elementar justiça supor que ele
não se apercebeu suficientemente de quanto estas proposições
careciam de demonstração, nem de como ser "mais evoluído"
é diferente de ser "superior" ou "melhor" . É claro que pode
bem ser verdade que o que é mais evoluído seja também supe-
rior e melhor. Mas Spencer parece não se ter apercebido de
que fazer a primeira afirmação não é, em qualquer dos casos,
o mesmo que fazer a segunda. Desenvolve uma longa argu-
mentação no sentido de provar que certos tipos de conduta
são "mais evoluídos" e depois declara ter provado que eles
adquirem valor ético proporcional, sem nos avisar de que omi-
tiu o passo mais essencial de uma tal demonstração. Bastará isto,
seguramente, para demonstrar que ele não viu quão essencial
esse passo é.
32. Qualquer que seja o grau de culpa de Spencer, o que
acaba de ser dito serve para ilustrar o género de falácia cons-
tantemente cometida por aqueles que professam " fundamen-
tar" a Ética na Evolução. Mas, apressamo-nos a acrescentar
que a posição defendida com muito mais ênfase por Spencer,
noutro passo, é radicalmente diferente. E valerá a pena analisá-
-la, ainda que rapidamente, para não cometer nenhuma injus-
tiça em relação a Spencer. A análise será reveladora, em parte,
por causa da falta de clareza demonstrada por Spencer quanto
à relação entre esta posição agora defendida e a posição "evo-
lucionista" anteriormente descrita, e, em parte, porque há
razões para suspeitar que, também aqui , ele foi influenciado
pela falácia naturalista.
Como já vimos, no final do seu segundo capítulo, Spen-
cer parece anunciar já ter demonstrado que certas característi-

(137]
cas da conduta são uma medida do seu valor ético. Parece
pensar que demonstrou isto pelo simples facto de ter conside-
rado a evolução da conduta, e a verdade é que não demonstrou
coisa nenhuma,· a não ser que entendamos que "mais evo-
luído" não passa de um mero sinónimo de " eticamente me-
lhor". Promete agora simplesmente co,if,rmar esta conclusão
mostrando como ela se "harmoniza com as principais ideias
morais a que os homens chegaram por outras vias". Mas,
quando chegamos ao seu terceiro capítulo, verificamos que o
que ele faz na verdade é outra coisa, muito diferente - afirma
agora que, para se chegar à conclusão de que "a conduta é
melhor, proporcionalmente, à medida que evolui", se torna
necessária uma demonstração totalmente nova. Esta conclusão
será falsa, a não ser que uma certa proposição, da qual ainda
ninguém nos falou, seja verdadeira - isto é, a não ser que seja
verdade que a vida é, de um modo geral, agradável. E a propo-
sição ética, para a qual se reclama do apoio das "principais
ideias morais" da humanidade, é, afinal, que "a vida é boa ou
má, consoante nos proporcione ou não um excedente de sensa-
ções agradáveis" (parágrafo 10). Aqui, portanto, Spencer apa-
rece-nos, não como um Evolucionista, mas como um Hedo-
nista, em matéria de Ética. Nenhuma conduta é melhor porque
é mais evoluída. Quando muito, o grau de evolução pode ser
um critério de valor ético, e mesmo isso, só se pudermos de-
monstrar a generalização extremamente difícil de que o mais
evoluído é sempre, regra geral, mais agradável. É evidente que
Spencer rejeita aqui a identificação naturalista de "melhor"
com "mais evoluído", mas é possível que ele esteja aqui a ser
influenciado por outra identificação naturalista - a de "bom"
com "agradável". É possível que Spencer seja um Hedonista
naturalista.
33. Examinemos as próprias palavras de Spencer. Inicia
este terceiro capítulo com uma tentativa de demonstrar que
chamamos "bons aos actos que conduzem à vida, quer seja a
nossa, quer a dos outros, e maus aos que directa ou indirecta-
mente visam a morte, seja ela especial ou geral" (parágrafo 9).

(138)
Pergunta então: ao chamar-lhes assim "estará a pressupor-se
alguma coisa?" "Sim", responde, "está a pressupor-se algo
extremamente importante, algo que subjaz a todas as estima-
tivas morais. A pergunta que tem definitivamente de ser for-
mulada e respondida antes de se abordar qualquer discussão
ética, é uma pergunta que tem sido muito discutida ultima-
mente - A vida vale a pena ser vivida? Devemos adoptar a
posição pessimista ou a optimista? Da resposta a esta pergunta
dependem todas as decisões sobre o carácter bom ou mau da
conduta." Mas Spencer não responde imediatamente a esta
pergunta, preferindo, em vez disso, formular nova pergunta:
"Ora bem, terão estas posições irreconciliáveis (pessimista e
optimista) alguma coisa em comum?" E a esta pergunta res-
ponde prontamente: "Há, sim, há um postulado sobre o qual
pessimistas e optimistas estão de acordo. Ambas as argumenta-
ções partem do princípio de que a vida é boa ou má, consoante
nos proporcione ou não um excedente de sensações agradá-
veis" (parágrafo 10). O resto do capítulo é dedicado à defesa
desta afirmação. No fim, Spencer formula assim a sua con-
clusão: "Nenhuma escola pode deixar de ter, como objectivo
moral último, o atingir de uma sensação desejável, seja qual
for o nome que lhe queiramos dar - satisfação, contentamento
ou felicidade. Prazer, num dado lugar, num dado momento,
para algum ou alguns seres, é um elemento inexpugnável da
concepção" (parágrafo 16 adfinem).
Ora bem, há aqui dois aspectos para os quais desejamos
chamar a atenção. O primeiro é que Spencer, na verdade, não
explica claramente como vê a relação entre o Prazer e a Evo-
lução, no âmbito da teoria ética. Obviamente, devia querer
dizer que o prazer é a única coisa intrinsecamente desejável;
que as outras coisas boas apenas são "boas" no sentido de que
servem de meio para alcançar a sua existência . Nada a não ser
isto se pode entender da afirmação de que ele é "o fim moral
último por excelência," ou, como afirma depois (parágrafo 62
adfinem), "o fim supremo último" . E, se assim fosse, seguir-
-se-ia que a conduta mais evoluída era melhor do que a menos

[139]
evoluída, só porque, e em proporção, dava mais prazer. Mas
Spencer afirma que duas condições, tomadas em conjunto, são
suficientes para provar que a conduta mais evoluída é melhor:
(1) que ela tenda a produzir vida, e (2) que a vida valha a pena
ser vivida ou tenha um saldo positivo de prazer. E o que dese-
jamos sublinhar é que, se estas condições são suficientes, então
o prazer não pode ser o único bem. Pois embora produzir
mais vida seja, se a segunda proposição de Spencer está cor-
recta, uma forma de produzir mais prazer, não é a única forma.
É muito possível que uma pequena quantidade de vida, intensa
e uniformement e vivida, proporcione uma quantidade maior
de prazer do que a maior quantidade possível de vida que mal
valesse a pena viver. E, nesse caso, partindo da suposição
hedonista de que o prazer é a úni ca coisa que vale a pena ter,
teríamos de optar pela quantidade menor de vida e, portanto,
segundo Spencer, pela conduta menos evoluída. Sendo assim,
se Spencer é um verdadeiro hedonista, o facto de a vida pro-
porcionar um excedente de prazer não é, como ele parece pen-
sar, o suficiente para provar que a conduta mais evoluída é a
melhor. Se Spencer quer dizer que é suficiente, então a sua
posição quanto ao prazer só pode ser, não que ele é o único
bem ou o "fim supremo último" , mas que um excedente dele
é um constituinte necessário do fim supremo. Numa palavra,
Spencer parece afirmar que mais vida é indiscutivelmente
melhor do que menos, desde que proporcione um excedente
de prazer; e esta posição não é compatível com a de que o
prazer é "o fim moral último". O que Spencer sugere é que,
se duas quantidades de vida proporcionam igual quantidade de
prazer, a quantidade maior continua ainda a ser preferível.
E se é assim, então tem de defender que a quantidade de vida,
ou grau de evolução, é, em si , uma condição última de valor.
Deixa-nos, portanto, na dúvida se não estará ainda apegado à
proposição evolucionista de que o mais evoluído é melhor,
simplesmente porque é mais evoluído, e, simultaneamente, à
proposição hedonista de que o mais agradável é melhor, sim-
plesmente porque é mais agradável.

(140]
Mas a segunda pergunta que temos de fazer é: Quais as
razões de Spencer para atribuir ao prazer o lugar que, de facto,
lhe atribui? Diz-nos, como já vimos, que os "argumentos "
tanto dos pessimistas como dos optimistas "partem do princí-
pio de que a vida é boa ou má , consoan te proporciona ou não
um excedente de sensações agradáveis"; e vai ainda mais longe
posteriormente ao afirmar que "uma vez que os pessimistas e
os optimistas, confessos ou não, de um ou de outro matiz,
juntos, constituem a humanidade, daí resulta este postulado ser
universalmente aceite" (parágrafo 16). Que estas afirmações
são absolutamente falsas é, claro, perfeitamente óbvio, mas o
que leva Spencer a pensar que são verdadeiras? E, o que é mais
importante (uma pergunta que Spencer parece confundir com
a anterior), porque pensa ele que o postulado em si é verda-
deiro? O próprio Spencer nos diz que a sua "prova consiste
em que, invertendo a aplicação das palavras" bom e mau - apli-
cando a palavra "bom" ao comportamento cujos " resultados
somados" são dolorosos, e a palavra "mau " àquele cujos "resul-
tados somados" são agradáveis, "se dá origem a afirmações
absurdas" (parágrafo 16). Não diz se isto é assim pelo facto de
ser absurdo pensar que a qualidade a que nos qu eremos referir
quando usamos a palavra " bom" possa, realmente, ser aplicada
ao que é doloroso. No entanto, mesmo que se parta do princí-
pio de que é isto que ele quer dizer, e de que assim se dá ori-
gem a afirmações absurdas, ainda assim, apenas provaria que é
correcto pensar-se que o qu e é doloroso é mau até certo ponto,
e o que é agradável é bom até certo ponto: de modo algum pro-
varia que o prazer é "o fim supremo". H á, porém, razões para
se pensar que parte daquilo que Spencer propõe é a falácia
naturalista, que ele imagina que "agradável" ou "produzindo
prazer" é o significado mesmo da palavra " bom", e que resulte
daí o absurdo. É um facto, pelo menos, que ele não distingue
entre este significado possível e aquele que admitiria que "bom"
denota uma qualidade única e indefinível. A doutrina do He-
donismo naturalista está, na verdade, estritamente implícita na
sua afirmação de que "a virtude" não pode "ser definida senão

[141]
em termos de felicidade" (parágrafo 13); e, embora não possa-
mos, como já foi dito, tomar as palavras de Spencer como indi-
cações seguras de um significado definido, isso deve-se apenas
ao facto de ele geralmente as usar para exprimir várias alter-
nativas incompatíveis - sendo a falácia naturalista, neste caso,
uma dessas alternativas. O que é certo é que é impossível en-
contrar quaisquer outras razões apresentadas por Spencer para
justificar a sua convicção de que o prazer é o fim supremo, e
de que ele é, também, universalmente reconhecido como tal.
Parece supor, através de toda a sua argumentação, que temos
de entender por boa conduta aquela que produz prazer, e por
má a que produz dor. Até onde se pode dizer, portanto, que
ele é um hedonista, parece ser um Hedonista naturalista.
E é tudo quanto a Spencer. É claro que é muito possí-
vel que o seu tratamento da Ética contenha muitos comen-
tários interessantes e instrutivos. Tudo leva a crer, na verdade,
que a posição fundamental de Spencer, aquela de que ele está
mais frequente e mais claramente consciente, é que o prazer é
o único bem, e que a análise da direcção em que se dá a evo-
lução é, de longe, o melhor critério de como alcançar o máximo
de prazer. E esta teoria, se ele conseguisse provar que o grau
de prazer é sempre directamente proporcional ao grau de evo-
lução e se pudesse ainda mostrar claramente qual é a conduta
mais evoluída, seria uma contribuição extremamente valiosa
para a ciência da Sociologia; seria, até, se o prazer fosse o único
bem, uma contribuição valiosa para a Ética. Mas tudo o que
aqui ficou dito deverá ter mostrado claramente que, se o que
nós pedimos a um filósofo da Ética é uma Ética científica e
sistematizada, e não apenas uma Ética alegadamente 'funda-
mentada na ciência'; se o que pretendemos é a discussão clara
dos princípios fundamentais da Ética e a definição das razões
últimas pelas quais uma determinada forma de agir deve ser
considerada melhor do que outra - então os "Data of Ethics"
de Spencer estão incomensuravelmente longe de preencher ,
esses requisitos.
34. Falta apenas apontar claramente aquilo que é defi-

[142]
nitivamente falacioso nas posições mais importantes acerca da
relação entre a Evolução e a Ética - posições que não sabemos
muito claramente até que ponto Spencer tenciona encorajar.
Pelo que nos diz respeito, vamos restringir o termo "Ética Evo-
lucionista" à posição de que basta apenas considerar a tendência
da "evolução" para se descobrir a direcção que devemos tomar.
Mas há que distinguir muito claramente esta posição de certas
outras, que podem geralmente confundir-se com ela. (1) Po-
derá, por exemplo, afirmar-se que a direcção em que têm evo-
luído as coisas vivas até à data tem, de facto, sido no sentido
do progresso; que o "mais evoluído" é também, de facto, me-
lhor. E uma tal posição não implica qualquer falácia. Mas, se
se pretende que ela nos ajude a saber como devemos agir no
futuro, então implica uma longa e árdua investigação dos aspec-
tos precisos que constituem a superioridade do mais evoluído.
Não podemos partir do princípio de que, pelo simples facto
de evolução corresponder, de um modo geral, a progresso,
cada aspecto em que o mais evoluído difere do menos evoluído
é um aspecto em que aquele é melhor do que este. Segundo
esta posição, portanto, uma simples consideração do sentido
da evolução não bastará, de modo algum, para nos informar
quanto ao caminho que devemos seguir. Teremos de empre-
gar todos os recursos de uma discussão estritamente ética para
chegar a uma avaliação conecta dos diferentes resultados da
evolução - para distinguir entre os mais e os menos valiosos,
e entre ambos e outros que não são melhores do que as suas
causas, ou podem até ser piores. De facto, segundo esta posi-
ção, se se entende apenas que a evolução tem, de um modo
geral, representado progresso, é difícil ver como é que a teo-
ria evolucionista pode dar qualquer apoio à Ética. O juízo de
que a evolução se tem feito no sentido do progresso já é, em
si mesmo, um juízo ético independente; e ainda que o tome-
mos como mais certo e óbvio do que qualquer dos juízos de
pormenor dos quais a sua confirmação tem logicamente de
depender, não podemos de modo algum usá-lo como dado
para dele inferirmos pormenores. Uma coisa é, em qualquer

(143]
dos casos, certa: se se tivesse pensado que esta era a única relação
existente entre a Evolução e a Ética, não se teria dado tanta
importância à influência da Evolução sobre a Ética como, na
realidade, se dá. (2) A posição que parece, como já foi dito, ter
sido a posição principal de Spencer pode igualmente ser man-
tida sem falácia. Pode afirmar-se que o mais evoluído, embora
não em si o melhor, é um critério - por ser concomitante - do
melhor. Mas também esta posição exige uma análise prelimi-
nar exaustiva da questão fundamental da Ética sobre o que, no
fim e ao cabo, constitui o melhor. Que Spencer prescindiu
inteiramente desta análise para fundamentar a sua afirmação
de que o prazer é o único bem, já nós o demonstrámos; e ten-
taremos agora demonstrar que, se tentarmos nós proceder a
essa análise, não chegaremos a um resultado assim tão simples.
Se, porém, o bom não é simples, não é nada provável que con-
sigamos chegar à conclusão de que a Evolução é um critério
seu. Teremos de estabelecer uma relação entre dois conjuntos
altamente complexos de dados. Além disso, se já tivéssemos
estabelecido quais eram os bens e quais os seus valores rela-
tivos, é extremamente improvável que precisássemos de recor-
rer à teoria da Evolução como critério para alcançarmos o
maior número possível deles. Sendo assim, torna-se, mais uma
vez, evidente que, se se pensasse ser esta a única relação exis-
tente entre a Evolução e a Ética, não haveria grande justificação
para se atribuir qualquer importância, na Ética, à teoria da
Evolução. Finalmente (3), pode ainda defender-se a posição
de que, embora a teoria da Evolução não nos ajude a desco-
brir quais serão os melhores resultados dos nossos esforços,
sempre nos ajuda a descobrir o que é possível atingir e quais os
meios para isso. Que a teoria pode realmente ser útil à Ética
neste aspecto não se pode negar. Mas é, sem dúvida, pouco
vulgar vermos atribuir-lhe, clara e exclusivamente, este papel
humilde e ancilar. No mero facto, portanto, de estas posições
não falaciosas acerca da relação entre a Evolução e a Ética
atribuírem tão pouca importância a essa mesma relação, temos
a prova de que o que é típico da ligação dos dois nomes é a

[144]
concepção falaciosa a que nos propomos restringir o termo
"Ética Evolucionista" . Esta é a posição de que devemos seguir
na direcção da evolução simplesmente porque é a direcção da
evolução. O facto de as forças da natureza estarem a actuar
nesse sentido é tomado como pressuposto de que é o sentido
correcto. Que esta posição, independentemente das pressu-
posições metafisicas que abordaremos em seguida, é simples-
mente falaciosa, tentámos já demonstrar. Apenas pode assen-
tar numa noção confusa de que, não se sabe muito bem como,
bom significa simplesmente o lado de que está a Natureza.
E implica ainda outra noção confusa, que se encontra bem
patente em toda a obra de Spencer sobre a Evolução. Pois, ao
fim e ao cabo, será que é do lado dJ Evolução mesmo que a
Natureza está? No sentido que Spencer dá ao termo, e em
qualquer sentido em que se possa considerar que o mais evo-
luído é superior, Evolução denota apenas um processo histórico
temporário. Não temos a mais pequena razão para acreditar que
as coisas continuarão permanentemente a evoluir no futuro,
nem que sempre tenham evoluído no passado. Pois a Evolu-
ção não denota , neste sentido, uma lei natural, como a lei da
gravidade. A teoria darwiniana da selecção natural é que esta-
belece uma lei natural: afirma que, dadas certas condições,
verificar-se-ão sempre certos resultados. Mas a Evolução, como
Spencer a entende e como ela é geralmente entendida, denota
algo muito diferente. Denota apenas um processo que de facto
se verificou num dado período, pelo facto de as condições, no
início desse período, terem sido de uma certa natureza. Não
se pode pressupor que essas condições se verificarão sempre,
nem que sempre se verificaram, e é apenas o processo, que, de
acordo com a lei natural , tem de seguir-se a estas condições e
a nenhumas outras, que parece ser também, de um modo ge-
ral, um progresso. Precisamente as mesmas leis naturais - a de
Darwin, por exemplo - tornariam inevitável, noutras circuns-
tâncias, não a Evolução, não um desenvolvimento do inferior
para o superior, mas o processo oposto, a que se tem chamado
Involução. No entanto, Spencer refere-se constantemente ao

[145]
processo que é exemplificado pelo desenvolvimento do homem
como se tivesse a dimensão de uma lei universal da Natureza,
ao passo que nós não temos qualquer razão para crer que seja
mais do que um acidente temporário, que requer não só cer-
tas leis naturais universais, mas também a existência de um
certo estado de coisas, num certo período. As únicas leis que
estão aqui em causa são certamente de uma natureza tal que,
noutras circunstâncias, nos levariam a inferir, não o desen-
volvimento, mas a extinção do homem. E nada nos leva a crer
que as circunstâncias serão sempre favoráveis à continuação do
desenvolvimento, nem que a Natureza esteja sempre do lado
da Evolução. Assim, a ideia de que a Evolução lança uma nova
luz sobre a Ética parece dever-se a uma dupla confusão. Por
um lado, o nosso respeito pelo processo é conquistado pela sua
apresentação como Lei da Natureza. Mas, por outro, o nosso
respeito pelas Leis da Natureza diminuiria rapidamente se pen-
sássemos que este processo desejável não estava incluído nelas.
Supor que uma Lei da Natureza é ípso facto respeitável é come-
ter a falácia naturalista; mas provavelmente ninguém se sentiria
tentado a cometê-la a não ser que alguma coisa de facto respei-
tável fosse apresentada como uma Lei da Natureza . Se fosse
claramente reconhecido que não há quaisquer provas para se
supor que a Natureza esteja do lado do Bom, haveria provavel-
mente menos tendência para se adoptar a posição, cuja falsidade
é demonstrável por outros argumentos, de que tais provas não
são necessárias. E se as duas opiniões fossem claramente vistas
como sendo falsas, tornar-se-ia evidente que a Evolução tem,
na realidade, muito pouco a ver com a Ética.
35. Começámos, neste capítulo, a crítica de certas posi-
çõs éticas, que parecem dever a sua influência fundamental-
mente à falácia naturalista - falácia que consiste em identificar
o conceito simples que entendemos por "bom" com outro
conceito qualquer. Trata-se de posições que pretendem dizer-
-nos o que é bom em si mesmo, e a nossa crítica visa princi-
palmente (1) salientar o resultado negativo de que não temos
razões para supor que aquilo que declaram ser o único bem o

[146]
seja de facto, (2) acentuar ainda mais o resultado positivo, esta-
belecido já no Capítulo I, de que os princípios fundamentais
da Ética têm de ser proposições sintéticas, que afirmem que
coisas, e em que grau , são detentoras dessa propriedade sim-
ples e inanalisável a que podemos chamar "valor intrínseco" ou
"bondade". Iniciámos o capítulo (1) dividindo as várias posi-
ções a criticar em (a) aquelas que, supondo que "bom" deve ser
definido em função de uma realidade supra-sensível, chegam
à conclusão de que é nessa realidade que poderemos encon-
trar o único bem, e às quais podemos chamar "metafisicas"; (b)
aquelas que atribuem um papel semelhante a um objecto natu-
ral e as quais dizemos, portanto, que são "naturalistas". Destas,
a que tem sido alvo de um tratamento mais sério e aprofun-
dado é a que considera o "prazer" como o único bem, razão
por que a reservámos para o Capítulo III. Todas as outras for-
mas de Naturalismo podem ser postas de lado pela simples
observação de exemplos típicos (24-26). (2) Como concepção
típica das posições naturalistas, sem ser o Hedonismo, con-
siderou-se primeiro a ideia que vulgarmente se tem do que é
"natural", e chamou-se a atenção para o facto de a palavra
poder ser interpretada tanto no sentido de "normal", como
no de "necessário", e de, em ambos os sentidos, não se poder
seriamente pôr a hipótese de serem sempre bons ou de cons-
tituírem as únicas coisas boas (27-28). (3) Mas encontramos na
Ética Evolucionista uma posição ainda mais importante, por
se afirmar capaz de sistematização. A influência da opinião
falaciosa de que ser "melhor" significa ser "mais evoluído" foi
exemplificada por uma análise da Ética de Herbert Spencer.
Salientou-se ainda que, se não fosse a influência desta opinião,
dificilmente se teria podido supor que a Evolução tivesse tido
qualquer influência importante na Ética (29-34).

[147)
CAPÍTULO III
O HEDONISMO

36. Neste capítulo, ocupar-nos-emos do que é talvez o


mais conhecido e mais defendido dos princípios éticos - o de
que nada é bom a não ser o prazer. A razão principal por que
abordamos aqui este princípio é que, como já foi dito, o
Hedonismo parece ser fundamentalmente uma forma da Ética
Naturalista. Por outras palavras, o facto de o prazer ter sido tão
geralmente considerado como sendo o único bem deve-se
quase inteiramente a ter-se pensado que ele estava de alguma
forma implicado na definição de "bom" - que era determinado
pelo próprio significado da palavra. Se assim é, então o pre-
domínio do Hedonismo deve-se principalmente àquilo a que
chamámos a falácia naturalista - a incapacidade de distinguir
claramente a qualidade única e indefinível que entendemos
por bom. E temos uma prova muito convincente de que assim
é no facto de, entre todos os autores Hedonistas, Sidgwick ter
sido o único a reconhecer que por "bom" queremos, de facto,
denotar qualquer coisa que não é susceptível de ser analisada,
e de ter sido ele, por isso mesmo, o único a salientar que, a ser
verdadeiro o Hedonismo, ele terá de fundamentar as suas pre-
tensões a sê-lo apenas na sua própria evidência - que temos
de manter que a proposição "O prazer é o único bem" é uma
simples intuição. Aos olhos de Sidgwick surgiu como se fosse
uma nova descoberta, o facto de se ter de conservar aquilo a
que ele chama método do Intuicionismo como método válido,
ao lado, e até como fundamento, daquilo a que ele chama os
"métodos" alternativos do Utilitarismo e do Egoísmo. E que
se tratava, de facto, de uma nova descoberta é indiscutível. Não

(149]
encontramos, nos H edonistas que o antecederam, nenhum
reconhecimento claro e coerente do facto de a sua proposição
fundamental implicar a suposição de que é possível ver ime-
diatamente que um certo predicado único pertence, entre
todos os entes, apenas ao prazer. Não salientam , como certa-
mente não teriam deixado de fazer, se se tivessem apercebido
disso, o facto de esta verdade ter de ser completa e totalmente
diferente de todas as outras verdades .
Além disso, compreende-se facilmente qu e se tenha atri-
buído esta posição única ao prazer sem se ter uma consciên-
cia muito clara do que isso pressupunha . Por razões que são
suficientemente óbvias, o Hedonismo é a primeira conclusão
a que naturalmente chega qualquer pessoa que comece a reflec-
tir sobre questões de Ética. É muito fácil apercebermo-nos de
que as coisas nos dão prazer. As coisas que nos dão prazer e as
que não o fazem constituem duas classes inconfundíveis, para
as quais a nossa atenção é constantemente chamada. Mas é re-
lativamente dificil distinguir o facto de apro11armos uma coisa
do facto de ela nos dar prazer. Embora, se analisarmos os dois
estados de espírito, sejamos forçados a ver que são diferentes,
apesar de geralmente andarem juntos, é muito dificil ver em
que aspecto diferem ou que a diferen ça possa, de algum modo,
ter mais importância do que as muitas outras diferenças, tão
evidentes mas tão dificeis de analisar, entre uma espécie de pra-
zer e outra. É muito dificil ver que quando "aprovamos" uma
coisa queremos dizer que sentimos que ela possui um certo predi-
cado - aquele que define a área específica da Ética, ao passo
que quando uma coisa nos dá prazer, não está implicado ne-
nhum objecto único de pensamento. Nada é mais natural do
que o erro comum que encontrámos numa obra recente sobre
Ética 1: "O facto ético primário é, já o dissemos, que aprova-
mos ou desaprovamos uma coisa, ou seja, por outras palavras,
a representação ideal de certos acontecimentos ligados a uma
sensação, percepção ou ideia, é acompanhada de um senti-

' A. E. Taylor, Problcm ef Co,,duct, p. 120.

[150]
menta de prazer ou de dor." N a linguagem corrente, expres-
sões como "Quero isto ", "Gosto disto ", são constantemente
usadas como equivalendo a "Acho isto bom". É-se assim muito
naturalmente levado a supor que não existe nenhuma catego-
ria distinta de juízos éticos, mas tão-somente uma categoria de
"coisas que dão prazer". Isto, apesar de ser bem claro, mesmo
que pouco comum, que nem sempre aprovamos o que nos dá
prazer. É perfeitamente óbvio, claro, que da suposição qu e
"Acho isto bom" seja idêntico a "Isto dá-m e prazer" não se
pode, logicamente, inferir que só o prazer é bom. Mas, por outro
lado, também é muito dificil ver o que poderia inferir-se logi-
camente de uma tal suposição; e parece, até certo ponto, natural
tirar-se uma tal ilação. Bastará um breve exame do que vulgar-
mente se escreve sobre o assunto, para mostrar como é frequente
uma confusão lógica desta natureza . Acresce, além disso, que
o próprio facto de se cometer a falácia naturalista implica que
quem a comete não reconhece claramente o significado da pro-
posição "Isto é bom" - não é capaz de a distinguir de outras
proposições semelhantes. E é claro que quando isto se verifica,
é impossível ter-se uma percepção clara das relações lógicas.
37. Há, portanto, razões de sobra para se supor que o
Hedonismo é, de um modo geral, uma forma de Naturalismo
- que a sua aceitação se deve geralmente à falácia naturalista.
De facto, só quando detectamos esta falácia, quando nos aper-
cebemos claramente do objecto único que se entende por
"bom", é que podemos dar ao Hedonismo a definição precisa
atrás referida , "Nada é bom a não ser o prazer" . Poderá, por-
tanto, objectar-se que, ao atacarmos esta doutrina chamada
Hedonismo, estamos a atacar uma doutrina que nunca foi real-
mente defendida. Mas é muito vulgar defender-se uma dou-
trina sem se ter uma noção muito clara do que é que se está a
defender. E embora admitamos que, quando os Hedonistas
argumentam a favor daquilo a que chamam Hedonismo, te-
nham de ter em mente uma doutrina diferente da que definimos,
se querem supor válidos os seus argumentos, pensamos igual-
mente que, para chegarem às conclusões a que chegam, terão

(151]
também de ter em mente esta outra doutrina. Na verdade, a
nossa justificação para supormos que, se refutarmos a propo-
sição "Nada é bom a não ser o prazer", teremos refutado 0
Hedonismo histórico, é que, embora só muito raramente os
hedonistas tenham apresentado o seu princípio sob esta forma,
e embora a verdade do seu princípio, sob esta forma, não se
siga de modo algum dos seus argumentos, o facto é que o seu
método ético não pode seguir-se logicamente de mais nada.
Qualquer pretensão do método hedonista a fornecer-nos ver-
dades práticas, a que, de outra forma, não teríamos acesso,
assenta no princípio de que a linha de acção que proporcionar
o maior saldo positivo de prazer será forçosamente a correcta.
E, na falta de uma prova absoluta de que o maior saldo posi-
tivo de prazer coincide sempre com o maior saldo positivo de
outros bens, prova que geralmente não se tenta apresentar, este
princípio só se pode justificar se o prazer for o único bem. De
facto, dificilmente se poderá pôr em causa que os Hedonistas
se têm distinguido por argumentarem, em questões práticas de
natureza polémica, como se o prazer fosse o único bem. E que,
por esta razão, entre outras, se justifica que tomemos este
princípio como o princípio ético por excelência do Hedonismo,
tornar-se-á mais evidente, assim o esperamos, no decorrer de
todo este capítulo.
Entendemos, assim, por Hedonismo a doutrina de que
apenas o prazer é bom como fim - "bom", no sentido que
tentámos demonstrar não ser definível. A doutrina de que o
prazer é, entre outras coisas, bom como fim, não é Hedonismo,
nem nós pomos em causa a sua verdade. Nem tão-pouco é a
doutrina de que outras coisas, além do prazer, são boas en-
quanto meios, de modo algum, incompatível com o Hedo-
nismo. O Hedonista não está obrigado a defender que "Apenas
o prazer é bom", se debaixo de bom incluir, como geralmente
se faz, aquilo que é bom enquanto meio para alcançar um fim,
além do fim em si. Quando atacamos o Hedonismo, portanto,
estamos simples e exclusivamente a atacar a doutrina de que
"Apenas o prazer é bom como fim ou em si mesmo" - não

(152)
estamos a atacar a doutrina de que "O prazer é bom como fim
ou em si mesmo", nem qualquer outra doutrina sobre quais os
melhores meios à nossa disposição para alcançarmos o prazer
ou qualquer outro fim. A verdade é que os Hedonistas reco-
mendam geralmente uma linha de acção muito sem elhante à
que nós próprios recomendaríamos. Não discordamos deles
no que respeita à maior parte das suas conclusões práticas - dis-
cordamos, sim, das razões que eles parecem pensar que podem
apoiar essas conclusões. E negamos categoricamente que o
facto de as suas conclusões serem correctas possa servir de justi-
ficação para se inferir que os seus princípios também o sejam.
É sempre possível chegar a uma conclusão correcta através de
uma argumentação falaciosa, e a vida boa ou as máximas vir-
tuosas dos Hedonistas não representam qualquer garantia de
que a sua filosofia ética seja igualmente boa. É apenas esta úl-
tima que nos interessa - o que está em causa é a excelência da
sua argumentação, não a excelência do seu carácter enquanto
homens, ou, até, enquanto professores de moral. Poderá pen-
sar-se que a nossa posição não tem importância, mas isso não
quer dizer que não tenhamos razão. O que nos interessa é
apenas o conhecimento, é sermos capazes de pensar correcta-
mente e de chegar assim a alguma verdade, por muito pouca
importância que ela tenha. Não estamos a dizer que um tal
conhecimento nos torne mais úteis como membros da socie-
dade. Mas nada temos a dizer a quem não se interesse pelo
conhecimento por si mesmo. Apenas não se deverá pensar que
a falta de interesse por aquilo que temos a dizer possa alguma
vez justificar o duvidar-se da sua veracidade.
38. Os Hedonistas defendem, portanto, que todas as coi-
sas, excepto o prazer, quer sejam a conduta, a virtude, ou o
conhecimento, quer a vida, a natureza, ou a beleza, apenas são
boas enquanto meios para alcançar o prazer, ou pelo prazer
em si, nunca por elas próprias ou como fins em si mesmas. Esta
posição já era defendida por Aristipo de Cirene, discípulo de
Sócrates, e pela Escola Cirenaica que ele fundou. Tem também
ligações com Epicuro e os Epicuristas, e tem sido defendida na

(153]
nossa época por aqueles filósofos que se intitulam "utilitaris-
tas", como, por exemplo, Bentham e Stuart Mill. Já vimos
também que Spencer se afirma seu defensor, e teremos ainda
ocasião de ver que Sidgwick a professa também.
No entanto, tod_os estes filósofos , como já foi dito, di-
vergem uns dos outros, em maior ou menor grau, quanto ao
que entendem por Hedonismo, e quanto às razões pelas quais
a doutrina deve ser aceite como verdadeira. A questão, por-
tanto, não é obviamente tão simples quanto poderia parecer à
primeira vista. O nosso objectivo é mostrar muito claramente
o que a teoria necessariamente implica, logo que a tornamos
precisa, logo que lhe retiramos tudo o que é confuso e inçoe-
rente. Feito isto, parece-nos que se tornará evidente que todos
os argumentos apresentados em abono da sua verdade são, na
realidade, inadequados - não são argumentos a favor do Hedo-
nismo, mas sim de outra doutrina qualquer que com ele se
confundiu. Para atingir este objectivo, começaremos por anali-
sar a doutrina de Stuart Mill, tal como está exposta na sua obra
Utilitarianism . Vamos encontrar em Stuart Mill uma concep-
ção de Hedonismo e um conjunto de argumentos a seu favor,
que são bastante representativos de um número considerável de
autores Hedonistas. A esta concepção, como a estes argumen-
tos, foram feitas, por Sidgwick, objecções graves, objecções
que nos parecem concludentes. Tentaremos apresentá-las nas
nossas próprias palavras e só então passaremos a analisar e a
refutar as concepções e os argumentos do próprio Sidgwick,
que são muito mais precisos. Uma vez feito isto, pensamos, tere-
mos percorrido todo o espaço da doutrina hedonista. Como se
poderá ver pela análise que se segue, a tarefa de decidir o que
é ou não é bom em si mesmo, está longe de ser uma tarefa
facil. Deste modo, a análise proporcionará um bom exemplo
do método que é necessário seguir ao tentar-se chegar à ver-
dade sobre esta classe primária de princípios éticos. Tornar-se-
-á patente, em particular, que há dois princípios metodológicos
a ter sempre presentes: (l) o de não cometer a falácia naturalista
e (2) o de respeitar a distinção entre meios e fins.

[154]
39. Começaremos, portanto, por examinar o Utilita-
rianism de Stuart Mill, obra que contém uma análise admi-
ravelmente clara e justa de um grande número de princípios e
métodos éticos. Stuart Mill chama a atenção para vários erros
simples em que facilmente cai quem abordar problemas de
natureza ética sem grande reflexão prévia. Mas o que nos
interessa a nós são os erros em que o próprio Mill parece ter
caído, e apenas aqueles que têm a ver com o princípio hedo-
nista. Convém repetir aqui em que consiste esse princípio:
consiste em que o prazer é a única coisa que devemos tentar
alcançar, a única coisa que é boa como fim e em si mesma.
Regressemos agora a Mill, para ver se ele aceita esta descrição
do que está em causa. " O prazer," afirma ele no início, "e a au-
sência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins" (p. 10 2),
e novamente, no final da sua argumentação, "Pensar num
objecto como desejável (a não ser por causa das suas conse-
quências) ou pensar nele como dando prazer são uma e a
mesma coisa" (p. 58) . Estas afirmações, tomadas em conjunto,
e exceptuadas certas confusões que nelas são óbvias, parecem
sugerir o princípio por nós indicado. E, se conseguirmos de-
monstrar que os argumentos que Mill invoca para elas não as
provam, então, pelo menos, terá de se reconhecer que não
estamos a lutar contra moínhos de vento, nem a demolir um
homem de palha.
É de notar que Stuart Mill acrescenta ao "prazer" a "au-
sência de dor" na primeira mas já não na segunda afirmação.
Trata-se de uma confusão, com a qual, no entanto, não preci-
samos de nos preocupar. Por uma questão de concisão, referir-
-nos-emos sempre só ao "prazer", mas todos os nossos argu-
mentos se aplicarão a fortiori à "ausência de dor", sendo facil
proceder às necessárias substituições.
Mill defende, portanto, que "a felicidade é desejável, e a
única coisa desejável 3, como fim; todas as outras coisas apenas o

2
As citações referem-se à 13.' edição , 1899.
3
Itálicos nossos.

[155]
são enquanto servirem de meio para alcançar esse fim" (p. 52) .
A felicidade já ele a definiu como sendo "o prazer e a ausência
de dor" (p. 10); para ele, isto não passa de uma definição verbal
arbitrária, e, nessa qualidade, não temos nada a objectar. O seu
princípio é, assim, que "o prazer é a única coisa desejável", se
se entender que, quando falamos de " prazer", incluímos na
palavra (até onde for necessário) a ausência de dor. Quais são
então as suas razões para admitir como verdadeiro esse princí-
pio? Mill já nos informou (p. 6) de que as " questões relativas
aos fins últimos não são passíveis de demonstração directa".
Tudo o que seja susceptível de se provar que é bom tem de 0
ser pela demonstração de que é um meio para alcançar algo
que se reconhece ser bom sem prova alguma." Com isto, estamos
inteiramente de acordo. Aliás, o objectivo principal do nosso
primeiro capítulo foi demonstrar exactamente isso. Tudo o que
seja bom enquanto fim tem de se reconhecer que é bom sem
prova. Até aqui, estamos de acordo. Mill até recorre aos mes-
mos exemplos que usámos no nosso segundo capítulo. "Como
será possível", pergunta ele, "provar que a saúde é boa?"; "Que
prova se pode dar de que o prazer é bom?" Ora, no Capítulo
IV, que trata da demonstração do seu princípio utilitarista, Mill
repete a afirmação anterior nos seguintes termos: '1á foi dito
que as questões relativas aos fins últimos não são passíveis de
demonstração, na acepção vulgar da palavra" (p. 52) . "As ques-
tões relativas aos fins", continua ele no mesmo passo, "são, por
outras palavras, questões acerca de que coisas são desejáveis."
Citamos estas repetições porque elas tornam evidente aquilo
que poderia, de outra forma , suscitar dúvidas, ou seja, que Mill
emprega as palavras "desejável" e "desejável como fim" como
se fossem precisa e absolutamente equivalentes às palavras "bom
como fim". Resta-nos agora saber que razões ele apresenta
para a sua teoria de que apenas o prazer é bom como fim .
40. "As questões relativas aos fins," diz ele (pp. 52-3),
"são questões acerca de que coisas são desejáveis. A doutrina
utilitarista é que a felicidade é desejável, e a única coisa dese-
jável como fim. Todas as outras coisas apenas o são enquanto

[156)
servirem de meios para alcançar esse fim. Que deve ser exi-
gido a esta doutrina - que condições é necessário ela satisfa-
zer - para validar a sua pretensão a ser aceite?"
"A única prova que pode dar-se de que uma coisa é visí-
vel é o facto de ser realmente vista por alguém; a única prova
que pode dar-se de que uma coisa é audível é o facto de ser
ouvida por alguém, e assim também com as restantes fontes da
nossa experiência. Do mesmo modo, parece-nos, a única prova
que é possível apresentar de que uma coisa é desejável é o
facto de ser realmente desejada por alguém. Se o fim que a
doutrina utilitarista se propõe para si própria não fosse, na teo-
ria e na prática, reconhecido como fim, nada poderia alguma
vez convencer ninguém de que o era. Não se pode apresentar
qualquer razão para o facto de a felicidade geral ser desejável,
a não ser que cada pessoa deseja a sua própria felicidade, na
medida em que acredita na possibilidade de a alcançar. Dado
que assim é, porém, temos não só todas as provas que o caso
admite, mas também todas as que é possível exigir, de que a
felicidade é um bem - de que a felicidade de cada pessoa é um
bem para essa pessoa e a felicidade geral, um bem para o con-
junto de todas as pessoas. A felicidade conquistou o seu lugar
como um dos fins da conduta e, consequentemente, um dos
critérios da moralidade."
Pronto, já é suficiente. Era este o primeiro ponto que
queríamos salientar. Mill serviu-se da falácia naturalista de uma
forma tão ingénua e cândida quanto se poderia desejar. "Bom",
afirma ele, significa "desejável", e só podemos descobrir o que
é desejável tentando descobrir o que é, de facto, desejado. É
claro que isto é apenas um passo no sentido da demonstração
do Hedonismo, pois pode bem dar-se o caso, como Mill acres-
centa, de haver outras coisas, além do prazer, que são dese-
jáveis. Se o prazer é ou não é a única coisa desejada é, como
o próprio Mill admite (p. 58), uma questão psicológica, que
~bordaremos em seguida. O passo que é importante para a
Etica é o que acabamos de dar, o passo que pretende demons-
trar que "bom" significa "desejado".

[157)
Ora bem, a falácia, neste passo, é tão evidente, que é per-
feitamente espantoso que Mill não se tenha apercebido dela.
A verdade é que "desejável" não quer dizer "capaz de ser dese-
jado", no mesmo sentido em que "visível" significa "capaz de
ser visto". Desejável significa apenas aquilo que deve ser dese-
jado, tal como detestável significa, não o que pode ser, mas
sim o que deve ser detestado, e condenável, o que deve ser
condenado. O que Mill fez foi introduzir ilicitamente, sob a
capa da palavra "desejável" , precisamente aquele conceito
acerca do qual devia ter ideias bem claras. "Desej ável" signifi-
ca, sem dúvida, "aquilo que é bom desejar", mas, uma vez isto
compreendido, deixa de ser plausível afirmar-se que a única
maneira que temos de o provar é saber o que é realmente dese-
jado. Tratar-se-á apenas de uma tautologia quando na Sagrada
Escritura se fala nos desejos bons? Não haverá, também, desejos
maus? Não. O próprio Mill se refere a "um objecto de desejo
melhor e mais nobre" (p. 10), como se aquilo que é desejado
não fosse, afinal, ipso facto, bom, e bom em proporção ao grau
em que é desejado. Além disso, se o desejado é ipso facto o
bem, então o bem é ípso facto a motivação das nossas acções, e
deixa de haver qualquer necessidade de encontrar motivações
para agirmos, como Mill tanto se esforça por fazer. Se a expli-
cação que Mill dá de " desejável" é verdadeira, então a sua afir-
mação (p. 26) de que é possível confundir-se a regra de acção
com a sua motivação, é falsa; pois a motivação da acção será
então, segundo ele, ipso facto, a sua regra, não podendo haver
entre ambas qualquer distinção, e muito menos confusão.
O caso é que ele cai aqui numa total contradição. E é em con-
tradições desta natureza, como temos tentado mostrar, que se
tem fatalmente de cair quando se recorre à falácia naturalista.
Esperamos agora não precisar de voltar ao assunto.
41. Temos assim que o primeiro passo de Mill no sentido
de fundamentar o seu Hedonismo é simplesmente falacioso.
Tentou estabelecer a identidade de bom e desejado, confun-
dindo o sentido próprio de "desejável", ou seja, aquilo que é
bom desejar, com o sentido que teria se fosse análogo a pala-

(158]
vras como "visível" . Se "desejável" for idêntico a " bom", terá
um significado; se for idêntico a "desejado", terá outro, muito
diferente. No entanto, para a pretensão de Mill de que o dese-
jado é necessariamente bom, é absolutamente indispensável
que estes dois sentidos de "desejável" sejam idênticos. Se ele
mantém que são idênticos, tem de ter caído nalguma con-
tradição noutro passo qualquer; se mantém que não são idên-
ticos, então o seu primeiro passo no sentido da demonstração
do Hedonismo não vale absolutamente nada.
Mas passemos ao segundo passo. Tendo provado, ou pelo
menos, na convicção de o ter feito, que bom significa desejado,
Mill reconhece a necessidade, para defender a sua posição de
,que apenas o prazer é bom, de provar que apenas o prazer é
realmente desejado. Esta doutrina de que "apenas o prazer é
o objecto de todos os nossos desejos" é aquela a que Sidgwick
chama Hedonismo Psicológico, e que a maioria dos psicólo-
gos eminentes concordam actualmente em rejeitar. Mas cons-
titui um passo necessário na demonstração de um Hedonismo
naturalista como o de Mill, e encontra-se tão difundida entre
pessoas que pouco sabem de Psicologia e de Filosofia, que
entendemos aconselhável analisá-la em profundidade. E vere-
mos que Mill não a defende nesta versão reduzida, admite que
outras coisas, além do prazer, são desejadas; e, ao fazê-lo, con-
tradiz imediatamente o seu Hedonismo. Teremos ocasião ainda
de analisar um dos subterfúgios a que recorre para fugir a esta
contradição. Mas não faltará quem pense que não é necessário
subterfúgio algum, e diga de Mill o que Cálicles diz de Pólo,
no Górgias 4 - que ele admitiu o que admitiu pelo receio
indigno de parecer paradoxal, ao passo que eles, pelo contrá-
rio, terão a coragem de assumir as suas convicções e não se
acanharão de cair em paradoxos, na defesa daquilo que con-
sideram ser a verdade.
42. Ora bem, suponhamos que se defende que o prazer
é o objecto de todo o desejo, que ele é o fim universal de toda

' 481 c-487b .

[159]
a actividade humana. O ra mn guém negará, ao que cremos,
qu e as pessoas desejam outras coisas - todos nós falamos habi-
tualmente em desej ar comida e bebida, dinheiro, aprovação,
fa ma. Tratar-se-á, então, de saber o que se entende por desejo
e objecto de desejo. H á obviamente uma relação necessária ou
universal qu alquer entre uma coisa chamada desejo e outra
chamada prazer. A questão está em saber de qu e espécie de
relação se trata, e se, em conjun ção com a fa lácia na tu ralista já
mencionada, ela poderá j ustifi car o H edo nismo. O ra, não faz
parte das nossas intenções negar a existência de uma relação
universal entre o prazer e o desejo, mas espera mos demonstrar
qu e, se ela existe, a sua natureza é tal qu e testemunh ará con-
tra e não a favo r do H edonismo. Afirma-se qu e o prazer é
sempre o obj ecto do desej o, e nós estamos pro ntos a reco-
nhecer que o prazer é sempre, pelo m enos em parte, a causa
do desej o. M as esta distin ção é m uito importante. Tanto uma
posição como a outra podem ser expressas na mesma lingua-
gem ; uma e outra afirm am qu e se mpre que desejamos, dese-
j amos sempre por ca usa de algum prazer. Se perguntássemos a
um suposto hedonista "Por que desej as isso?", ele poderia
responder, em total coerência com a sua posição, " Porque isso
me dá prazer", e se ele nos fizesse a nós a mesma pergunta, nós
poderíamos respon der, também em total coerência com a
nossa posição, "Porqu e isto me dá prazer". Só que essas duas
respostas não significariam a mesma coisa. É esta possibilidade
de usar a mesma linguagem para deno tar fac tos totalmente
dife rentes que, em nossa opinião, está na base de se defender
com tanta frequência o H edo nismo Psicológico, como esteve
igualmente na base da falácia natu ralista de M ill .
M as analisemos o estado psicológico a que se chama
" desej o". O termo restringe- se geralmente a um estado de
espírito em que a ideia de algu m obj ec to ou acontecimento,
ainda não existente, se nos apresenta. Suponham os, por exem-
plo, que desej amos um cáli ce de Porto. Tem os a ideia de o
beber presente no espírito, embora ainda não estej amos a beber.
Como é qu e o prazer entra nesta relação? A nossa teoria é a

[1 60]
seguinte: a ideia de beber ca usa uma sensação de prazer na nossa
mente, qu e ajuda a produzir o estado de actividade in cipi ente
a que se cham a " desej o" . É, assim, por ca usa dum prazer qu e
já temos - o prazer suscitado por uma simpl es ideia - qu e
desej amos o vinh o, qu e ainda não temos. E estam os prontos a
reconh ecer qu e um prazer desta natureza, um prazer real, está
sempre entre as causas de to do o desej o, e não só de todo o
desej o, de toda a actividade m ental, consciente o u sub-cons-
ciente. Esta mos prontos a reconhecer isto, dizíamos, não pode-
mos garantir qu e esta sej a a verdadeira doutrin a psicológica -
mas, pelo m enos, não é prima f acie to talmente absurda. E
quanto à outra doutrina, a qu e atribuímos a Mill e qu e é, em
qualquer caso, essencial à sua argumentação? É a seguinte:
quando desej amos o vinho, não é o vinh o qu e desej am os, mas
sim o prazer qu e esperam os obter dele. Por outras palavras, a
doutrina é qu e a ideia dum prazer não rea l é semp re necessá ria
para suscitar o desej o, ao passo qu e, segundo a nossa teoria, é
o prazer real ca usado pela ideia de outra coisa qu alqu er qu e é
necessári o para causar o desej o. São estas du as teori as dife-
rentes qu e sup omos são confundidas pelos hedoni stas psicoló-
gicos . A confu são dá- se, nas palavras de Bradl ey 5, entre " um a
ideia aprazí vel" e "a ideia de um prazer" . N a verdade, é só
neste último caso, quando "a ideia de um prazer" está presente,
qu e podemos di ze r que o prazer é o objecto do desej o, ou o
motor da acção. Por outro lado, qu ando se tra ta apenas de uma
ideia aprazível, e admitimos qu e possa ser sempre esse o caso,
então é o obj ecto da ideia - aquil o em qu e estamos a pensar
- que é o obj ecto do desejo e o mo tor da acção. E o prazer
qu e essa ideia provoca poderá, na verdade, suscitar o nosso
desej o ou mover-n os a agir, mas não co nstituirá o nosso fim ,
nem o nosso obj ecto, nem a nossa m otivação.
Esperamos qu e a distin ção tenha fi cado suficientemente
clara. Vej amos agora em qu e medida afecta o H edonismo Ético.

Etliical S111rlies, p . 232.

11 61 l
Partimos do princíp10 de que é perfeitamente óbvio que a
ideia de objecto do prazer não é sempre e exclusivamente a
ideia dum prazer. Em primeiro lugar, nem sempre temos cons-
ciência de esperar prazer, quando desejamos uma coisa. Po-
demos estar conscientes apenas da coisa que desejamos , e ser
levados a procurar imediatamente obtê-la, sem termos calcu-
lado se nos irá trazer prazer ou dor. E, em segundo lugar,
mesmo quando a nossa expectativa é de prazer, só muito rara-
mente será apenas prazer que desejamos. Por exemplo, admi-
tindo que ao desejarmos o nosso cálice de Porto, temos tam-
bém uma ideia do prazer que esperamos obter, esse prazer não
pode, manifestamente, ser o único objecto do nosso desejo -
dele tem também de fazer parte o vinho do Porto, sob pena
de o nosso desejo nos levar a beber um copo de fel em vez de
Porto. Se o desejo fosse orientado exclusivamente para o prazer,
não poderia levar-nos a beber o vinho; se tem de tomar uma
direcção definida, torna-se absolutamente necessário que a
ideia do objecto, do qual se espera obter prazer, esteja também
presente e controle a nossa actividade. Portanto, a teoria de
que o que é desejado é sempre e só o prazer tem de cair pela
base - é impossível provar que apenas o prazer é bom por essa
linha de argumentação. Mas, se substituirmos esta teoria pela
outra, possivelmente verdadeira, de que o prazer é sempre a
causa do desejo, então a nossa doutrina ética de que apenas o
prazer é bom deixa imediatamente de ser plausível. Pois, neste
caso, o prazer não é o que desejamos, nem o que queremos -
é algo que já temos, antes de podermos querer seja o que for.
E poderá alguém sentir-se tentado a defender que aquilo que
já temos, quando ainda estamos a desejar outra coisa, seja sem-
pre e só o que é bom?
43. Mas voltemos atrás para analisar outro dos argumen-
tos de Stuart Mill em defesa da sua posição de que "a felici-
dade é o fim único da actividade humana" . Mill reconhece,
como já dissemos, que o prazer não é a única coisa que real-
mente desejamos. "O desejo de virtude", diz ele, "não é tão
universal , mas é um facto tão autêntico como o desejo de feli-

(162]
cidade6 ". E ainda, "O dinheiro é, em muitos casos, desejado
em si e por si 7 ". Ao admitir isto, é claro, caiu em profunda e
gritante contradição com o seu argumento de que o prazer é
a única coisa desejável, porque é a única coisa desejada. Como
é então que Mill pode sequer tentar escapar a esta contra-
dição? O seu argumento principal parece ser que "a virtude",
"o dinheiro" e outros objectos da mesma natureza, quando são
desejados assim, em si e por si, são-no apenas como "parte da
felicidade " 8 . Ora, o que é que isto quer dizer? A felicidade,
vimo-lo já, é definida por Mill como "prazer e ausência de dor" .
Quererá Mill dizer que "o dinheiro", estas moedas concretas,
que ele reconhece serem desejadas em si e por si, fazem parte
do prazer ou da ausência de dor? Defenderá ele que estas mes-
mas moedas estão presentes na nossa mente e fazem realmente
parte da nossa sensação de prazer? Se é possível dizer-se isto,
então as palavras não servem para nada. Nada se pode distin-
guir de coisa alguma. Se estas duas coisas não são distintas, o
que é que o é? Só nos falta ouvir dizer que esta mesa é ver-
dadeiramente a mesma coisa que esta sala; que um cavalo não
se distingue, na realidade, da Catedral de S. Paulo; que este
livro de Mill, que seguramos nas nossas mãos porque ele teve
o prazer de o produzir, faz agora, neste momento, parte da
felicidade que ele sentiu há tantos anos e já deixou de existir.
É preciso reílectir um pouco sobre o que este absurdo dislate
significa realmente. "O dinheiro", diz Mill, "só é desejável en-
quanto meio para alcançar a felicidade". Talvez, mas e depois?
"Ora," diz Mill, "o dinheiro é sem dúvida desejado por si
mesmo." "Pois, e então?", dizemos nós. " Bem" , diz Mill, "se
o dinheiro é desejado por si mesmo, então tem de ser desejável
como um fim em si mesmo. Eu próprio já o afirmei." "Ah,"
dizemos nós, "mas o senhor também acabou de dizer que só
era desejável enquanto meio." "Pois disse," diz Mill, "mas isso

6
p. 53.
7
p. 55.
H pp. 56-7.

(1 63]
resolve-se já, dizendo que ser apenas um meio para atingir um
fim é o mesmo que ser parte desse fim . Acho que o público
não vai dar por isso." E não d eu mesmo, mas foi isso, sem
dúvida, o que Mill fez . Destruiu a distinção entre meios e fins,
quando o seu Hedonismo assenta na estrita observância dessa
distinção. E viu-se obrigado a fazê-lo, por não ter sido capaz de
distinguir "fim" no sentido daquilo que é desejável, de "fim"
no sentido daquilo qu e é desej ado, distinção, no entanto, que
é pressuposta tanto por este argumento como por todo o seu
livro. Isto é uma consequência da falácia naturalista.
44. Mill, portanto, não tem nada melhor para dizer, em
defesa da sua posi ção, do que isto. As suas duas proposições
fundamentais são, nas suas próprias palavras, " que pensar num
objecto como desejável (a não ser que seja por causa das suas
consequências) e pensar nele como aprazível, é uma e a mesma
coisa; e que desejar uma coisa sem ser na medida em que a sua
ideia seja aprazível representa uma impossibilidade física e me-
tafisica " 9 • Ambas estas afirmações assentam, como já vimos,
em falácias. A primeira parec e assentar na falácia naturalista; a
segunda assenta, em parte, nessa falácia, em parte na falácia
que consiste em confundir os meios e os fins, e em parte na
que confunde uma ideia aprazível com a ideia de um prazer.
Isto reflecte-se, aliás, na sua própria linguagem, pois é óbvio
que quando ele fala, na segunda cláusula, em ideias aprazíveis,
está a denotar o mesmo facto que refere, na primeira, em ter-
mos de " pensar nele como aprazível."
Assim, os argumentos de Mill para a proposição de que
o prazer é o único bem, juntamente com a nossa refutação dos
mesmos , podem resumir-se da seguinte forma:
Em primeiro lugar, atribui a "o desejável" , que emprega
como sinónimo de "o bom", o significado do que pode ser dese-
jado. Depois, a prova do que pode ser desejado é, segundo ele,
aquilo que de facto é desejado. Assim, continua ele, se puder-
mos encontrar alguma coisa que seja sempre e exclusivamente

9
p. 58.

[1 64]
desejada, essa coisa será necessariam ente a úm ca coisa dese-
jável, a única coisa boa enquanto fim. É evidente que esta
argumentação implica a falácia naturalista, falácia que consiste,
como já foi dito, na afirmação de que bom significa apenas um
conceito simples ou complexo, que é susceptível de definição
em termos de qualidades naturais. No caso de Mil!, parte-se do
princípio de que bom significa simplesmente o que é desejado;
e o que é desejado é algo que pode assim ser definido em ter-
mos naturais. Mill afirma que devemos desejar uma coisa
(uma proposição ética), porque a desejamos de facto. Mas, se
a sua tese de que "Devo desejar" significa apenas "Desejo de
facto", fosse verdadeira, então o máximo que ele pode afirmar
é "Desejamos isto ou aquilo porque o desejamos de facto", o
que não constitui de todo uma proposição ética, mas sim uma
simples tautologia. Todo o objectivo da obra de Mill é ajudar-
-nos a descobrir o que devemos fazer. Mas , na realidade, a sua
tentativa de definir este "devemos" impossibilita-o completa-
mente de alguma vez alcançar esse objectivo: ficou reduzido
pelas suas próprias mãos a dizer-nos o que de facto fazemos.
O primeiro argumento de Mill é, pois, que, pelo facto
de bom significar desejado, o desejado é portanto bom. Mas,
tendo chegado assim a uma conclusão ética pela negação de
que seja possível qualquer conclusão ética, necessita ainda de
um outro argumento para que a sua conclusão possa servir de
base ao Hedonismo. Precisa de provar que desejamos sempre
o prazer ou a ausência de dor, e que nunca desejamos outra
coisa, seja ela qual for. Esta segunda tese, a que Sidgwick
chama Hedonismo Psicológico, foi já devidamente analisada.
Chamámos a atenção para o facto de ser manifestamen te falso
que nunca desejemos coisa alguma a não ser o prazer, e para
o facto de não haver a mínima justificação para se afirmar
sequer que, sempre que desejamos qualquer coisa, desejamos
sempre prazer além da coisa em si. Atribuímos a teimosia em
acreditar nestas falsidades, em parte, a uma confusão entre
causa e objecto do desejo. Pode ser um facto, afirmámos, a
impossibilidade de o desejo ocorrer sem ter sido precedido de

(165)
algum prazer real, mas, mesmo que isto seja verdade, não jus-
tifi ca obviamente que se afirme qu e o objecto do desejo seja
sempre um prazer futuro. Entende-se por objecto de desejo
algo cuja ideia nos causa desejo. É um prazer qu e antegoza-
mos, um prazer que ainda não temos, esse é que é o objecto
do desejo, sempre que desejamos prazer. E qualquer prazer
que possa ser suscitado agora pela ideia desse prazer antego-
zado, é manifestamente diferente deste, de que apenas temos
presente a ideia. Este prazer agora não é o qu e desejamos; o
que desejamos é sempre algo que não temos, e dizer-se que o
prazer provoca sempre desejo em nós é muito diferente de
dizer-se que o que desejamos é sempre prazer.
Vimos, finalmente, que Mill admite tudo isto. Insiste em
afirmar que desejamos realmente outras coisas além do prazer,
e, por outro lado, diz que não desejamos verdadeiramente outra
coisa. Ao tentar justificar esta contradição, confunde dois con-
ceitos, entre os quais estabelecera cuidadosamente uma clara
distinção - os conceitos de meios e de fins. Afirma agora que
um meio para alcançar um fim é a mesma coisa que uma parte
desse fim. Devemos prestar uma atenção muito especial a esta
última falácia, pois a nossa decisão final sobre o Hedonismo
vai depender, em grande medida , dela .
45. É a esta decisão final sobre o Hedonismo que temos
agora de tentar chegar. Até aqui tratámos apenas de refutar os
argumentos naturalistas de Mill a favor do Hedonismo. Mas
ainda é possível que a doutrina de que só o prazer é desejável
seja verdadeira, embora as falácias de Mill não tenham conse-
guido prová-lo. É essa a questão que temos agora de resolver.
Esta proposição de que "só o prazer é bom ou desejável" per-
tence indiscutivelmente àquela classe de proposições, onde Mill
inicialmente a colocou e muito bem, que não são passíveis de
prova directa. Mas, neste caso, como ele também afirma e com
razão, "podem ser apresentadas considerações capazes de in-
fluenciar a razão no sentido de aceitar ou rejeitar a doutrina"
(p. 7). São considerações desta natureza que Sidgwick apre-
senta e que nós tentaremos também propor em defesa da

[166]
posição contrária. Esta proposição de que "só o prazer é, bom
como fim", que é a proposição central do Hedonismo Etico,
vai pois aparecer, nas palavras de Sidgwick, como objecto da
intuição. Tentaremos apresentar as razões que levam a nossa
intuição a negar esta proposição, tal como a dele o leva a afirmá-
-la. E, no entanto, é possível que ela seja, apesar de tudo, ver-
dadeira - só que nenhuma intuição o pode provar, nem para
um lado, nem para o outro. Quanto a nós, dar-nos-emos por
satisfeitos se pudermos "apresentar considerações capazes de
influenciar a razão" no sentido de a rejeitar.
Ora bem, poderá objectar-se que é um estado de coisas
extremamente insatisfatório. É-o, sem dúvida, mas é impor-
tante estabelecer aqui uma distinção entre duas razões dife-
rentes que podem ser invocadas para explicar por que é insa-
tisfatório. Será insatisfatório por não ser possível provar o
princípio? Ou por não estarmos de acordo? Parece-nos que a
última será a razão principal, pois o mero facto de em certos
casos a prova ser impossível não nos perturba geralmente nada.
Por exemplo, ninguém pode provar que isto é uma cadeira,
mas não nos parece que alguém se preocupe com isso. Esta-
mos todos de acordo que se trata de uma cadeira, e isso nos
basta, embora seja muito possível que estejamos errados. É
claro que se um louco entrasse e declarasse que não é uma
cadeira mas sim um elefante, não poderíamos provar que ele
estava errado, e o facto de não concordar connosco talvez nos
começasse a inquietar. Como não havemos de ficar ainda mais
inquietos quando alguém, que não temos na conta de louco,
discorda de nós. Tentaremos argumentar com ele, e provavel-
mente dar-nos-emos por satisfeitos se o levarmos a concordar
connosco, muito embora não tenhamos conseguido provar a
nossa posição. Apenas conseguiremos convencê-lo mostrando-
-lhe que a nossa posição é coerente com outra coisa que ele
considere verdadeira, enquanto a sua posição original a con-
tradiz. Mas será impossível provar que essa tal outra coisa,
sobre cuja verdade estamos de acordo, é, de facto, verdadeira.
Dar-nos-emos por satisfeitos por termos resolvido assim a ques-

[167]
tão, simplesmente por estarmos d e acordo sobre ela. Numa
palavra , a nossa insatisfação nestes casos é quase sempre como
a do pobre louco de que reza a história: "Eu disse que o
mundo estava louco ", disse ele, "e o mundo disse que eu é que
estava lou co, e, com mil diachos, fui d errotado na votação."
Assim , é quase sempre uma situa ção de d esacordo, e não a
impossibilidade de fazer prova , que nos leva a considerar o
estado de coisas insatisfatório. Pois , na realidade, quem pode
provar que a própria prova seja garantia de verdade' Estamos
todos de acordo que as leis da lógi ca são verdadeiras e por isso
aceitamos um resultado demonstrado por seu intermédio, mas
esta demonstração só é satisfatória por concordarmos todos
que é uma garantia de verdade. E, no entanto, não podemos,
pela natureza do caso, provar que estamos na razão ao con-
cordarmos.
Sendo assim, não nos parece que precisemos de nos afli-
gir pelo facto de termos admitido que não podemos provar se
apenas o prazer é bom ou não. Talvez possamos chegar ainda
assim a um acordo, e, se assim for, parece-nos que ele será sa-
tisfatório. Mas não temos grandes esperanças quanto às proba-
bilidades de isso vir a acontecer. A Ética, e a Filosofia em
geral, têm-se mantido sempre num estado particularmente
insatisfatório. É que nunca houve acordo sobre elas, como há
quanto à existência de cadeiras, luzes e bancos. Seríamos, por-
tanto, uns tolos se esperássemos resolver um asp ecto essencial
da controvérsia, agora e de uma vez por todas. É extrema-
mente improvável que sejamos convincentes. E seria altamente
presunçoso da nossa parte sequer esperar que no futuro, daqui
a dois ou três séculos, se venha a concordar que o prazer não
é o único bem. As questões filosóficas são tão difíceis, e os pro-
blemas que suscitam tão complexos, que ninguém pode razoa-
velmente esperar, hoje, tal como no passado, conquistar mais
do que uma limitadíssima aceitação. E, no entanto, temos de
confessar que as considerações que vamos apresentar nos pare-
cem totalmente convincentes. Estamos convencidos de que
deviam convencer, assim nós as saibamos expor. Vamos, pelo

[168]
menos tentar. E vamos decididamente tentar pôr fim ao tal esta-
do de coisas insatisfatório de que temos vindo a falar. Tenta-
remos levar todos a concordarem que o princípio central do
Hedonismo é um absurdo, mostrando-lhes o que claramente
significa se levarmos o nosso raciocínio até ao fim , e como
esse significado claro entra em conflito com outras convicções
que esperamos não possam tão facilmente ser postas de parte.
46. Passamos agora a analisar o H edonismo Intuicio-
nista. E é preciso notar que o início desta análise marca um
ponto de viragem na nossa metodologia ética. O aspecto que
temos estado a frisar até aqui , o facto de qu e " bom é indefiní-
vel" e de que negá-lo é in correr numa falácia, é um facto pas-
sível de demonstração rigorosa, pois negá-lo acarreta con-
tradições . Mas chegamos agora à pergunta cuja resposta a
Ética deve dar - Que coisas e qualidades são boas? Qualquer
que seja a resposta a esta pergunta, ela não será passível de uma
demonstração directa , e isso pela simples razão de a nossa
anterior resposta , relativa ao significado de bom , o ser. Estamos
assim restringidos à esperança daquilo a que Stuart Mill chama
"demonstração indirecta", a esperança de avaliarmos a inteli-
gência uns dos outros. E estamos assim restringidos exacta-
mente porque não o estávamos em relação à pergunta anterior.
Eis-nos aqui, pois, perante uma intuição submetida ao nosso
veredicto - a intuição de qu e "apenas o prazer é bom como
fim , bom em si mesmo e por si mesmo".
47. Neste contexto, parece desejável abordarmos , em
primeiro lugar, outra das teorias de Mill , uma teoria que, no
interesse do Hedonismo, Sidgwick teve o bom senso de rejeitar.
Trata-se da teoria das " diferenças qualitativas dos prazeres" .
"Se me perguntarem " , diz Mill 10 , "o que enten do por dife-
rrnça de qualidade nos prazeres, ou o que torna um prazer
mais vaiioso do que outro, enquanto simples prazer, excep-
tuando a sua maior qu;intidade, só há uma resposta possível.
Se há dois prazeres e se todo, ou quase todos aqueles que

11) p. 12.

[1 69]
experimentaram ambos mostram uma preferência marcada
por um deles, sem ser por se sentirem moralmente obrigados
a preferi-lo, então será esse o prazer mais desejável. Se um dos
dois é colocado, por aqueles que têm um conhecimento ade-
quado de ambos, tão acima do outro qu e o preferem, mesmo
sabendo que ele acarretará uma soma maior de dissabores, e
não o trocariam por nenhuma quantidade do outro prazer de
que a sua natureza é capaz, temos razões suficientes para atri-
buir ao prazer preferido uma qualidade superior tal que reduz
o peso da quantidade ao ponto de esta se tornar, em com-
paração, quase insignificante."
Ora, é sabido que Bentham assentava a sua defesa do
Hedonismo apenas na "quantidade de prazer" . A sua máxima
era que "se a quantidade de prazer for igual, o jogo da cabra
cega é tão bom como a poesia." Aparentemente, Mill consi-
dera que Bentham tinha provado que, apesar de tudo, a poe-
sia era melhor do que o jogo da cabra cega, que a poesia pro-
porciona uma maior quantidade de prazer. Mas, no entanto,
diz Mill, os Utilitaristas "podiam ter escolhido o outro cri-
tério, que se poderá descrever como mais elevado, com inteira
coerência" (p. 11) . Como se pode ver, Mill reconhece que a
"qualidade do prazer" é um outro critério, diferente da quan-
tidade de Bentham, para avaliar os prazeres. Além disso, o
emprego da expressão ambígua "mais elevado", que ele poste-
riormente alterou para "superior" , parece denunciar um certo
mal-estar, um certo receio de que tomar a quantidade como
critério único do prazer possa, afinal, ser errado, correndo-se
o risco de merecer o epíteto de javardo. E talvez se venha a
mostrar mais adiante que é bem provável merecer-se, de facto,
esse epíteto. Mas, entretanto, queremos apenas mostrar que os
pressupostos de Mill em relação à qualidade do prazer ou sào
incompatíveis com o seu Hedonismo, ou não propõem, para
ele, nenhum fundamento diferente do qu e seria dado pela
mera quantidade de prazer.
Como já se viu, para Mill, a prova da superioridade
qualitativa de um prazer em relação a outro reside no facto de

[1 70]
ser preferido pela maiona das pessoas que já experimentaram
ambos. Um prazer assim preferido é, segundo ele, mais dese-
jável. Mas também já vimos que ele defende que "pensar num
objecto como desejável e pensar nele como aprazível, é uma
e a mesma coisa " (p. 58). Defende, portanto, que a preferência
demonstrada pelos entendidos prova apenas que um prazer é
mais aprazível do que o outro. Se assim é, porém, como pode
ele distinguir este critério do critério da quantidade de pra-
zer? Como pode um prazer ser mais aprazível do que outro, a
não ser no sentido de que proporciona mais prazer? A menos
que as palavras deixem de ter algum significado, "aprazível"
tem forçosamente de denotar uma determinada qualidade que
é comum a todas as coisas que são aprazíveis. E sendo assim,
então uma coisa só pode ser mais aprazível do que outra se
tiver mais dessa qualidade. Mas vejamos agora a outra alterna-
tiva e suponhamos que Mill não quer seriamente dizer que
esta preferência por parte dos entendidos prova apenas que um
prazer é mais aprazível do que outro. Ora bem, nesse caso o
que se entende por "preferido"? Não pode entender-se "mais
desejado", pois já sabemos que, para Mil!, o grau de desejo está
sempre na razão directa do grau de prazer. Mas, a ser assim, a
fundamentação do Hedonismo de Mill cai pela base, pois ele
está a admitir que uma coisa pode ser preferida a outra, pro-
vando-se assim que é mais desejável, embora não seja mais
desejada. E sendo assim, o juízo de preferência de Mill per-
tence àquela categoria de juízos intuitivos que temos vindo a
argumentar serem necessários para estabelecer o princípio hedo-
nista ou qualquer outro. Que uma coisa seja mais desejável ou
melhor do que outra é um juízo directo, um juízo que é total-
mente independente de todas as outras considerações sobre se
uma coisa é mais desejada ou mais aprazível do que outra. Isto
equivale a admitir que bom é bom e impossível de definir.
48. De notar ainda um outro aspecto que resulta desta
análise. É que o juízo de preferência de Mill, longe de esta-
belecer o princípio de que apenas o prazer é bom, é manifes-
tamente incompatível com ele. Mill admite que é possível os

[171]
peritos ajuizarem se um prazer é mais desej ável do qu e outro,
porqu e os prazeres diferem em qualidade. M as, o que quer isto
dizer? Se um prazer pode diferir qualitativamente de outro,
isso significa qu e um prazer é algo de complexo, algo consti-
tuído, na realidade, de prazer, além daquilo qu e causa o prazer.
Mill refere, por exemplo, os " prazeres sensuais" como " prazeres
inferiores". M as, o qu e é um prazer sensual? Certam ente uma
certa excitação de um determinado sentido, juntamente com
o prazer causado por essa excitação. Portanto, ao admitir que
um prazer sensual pode ser directamente julga do inferi or a
outro prazer, qu e poderá aprese ntar o m esmo grau de prazer,
MilJ está a admitir qu e outras coisas podem ser boas ou más,
independentemente do prazer qu e as acompanha. Um prazer
é, na realidade, um termo enga nador, qu e serve para ca muflar
o facto de qu e estam os a lidar, não com o prazer, mas com
qualqu er coisa diferente, qu e até, talvez, produza necessaria-
mente prazer, mas é, ap esar di sso totalm ente distinto dele.
Assim , Mill, pensa ndo qu e avaliar a qu alidade do prazer
era perfeitamente compatível com o seu princípio hedo nista de
qu e apenas o prazer e a ausência de dor são desej áveis como
fin s, cometeu novam ente a falácia de co nfundir meios e fin s.
Senão vej amos até a interpretação mais favo rável das suas pala-
vras: suponham os qu e por um prazer ele não qu eira significar,
corno as suas palavras implicam , aquilo que dá prazer e o prazer
dado. Suponhamos qu e o qu e ele qu er dizer é qu e há várias
espécies de prazer, no sen tido em qu e há várias espécies de cor
- azul , vermelho, verde, etc. M esmo neste caso, se vamos dizer
qu e o nosso fim é apenas co r, então, embora sej a impossível
ter cor se m ter uma cor específi ca, ainda assim essa cor especí-
fi ca, qu e não podemos deixar de ter, é apenas um meio para o
nosso fim de obter cor, se esta é realm ente o nosso fi m . E, se
a cor é o nosso úni co fim possível, como Mill afirm a em rela-
ção ao prazer, então não pode haver qualqu er razão para se
preferir uma cor a outra, preferir, por exemplo, o verm elho
ao azul, a não ser qu e uma sej a m ais cor do qu e a o utra. C on-
tud o, o qu e Mill está a tentar defender é o oposto disto.

1172]
Sendo assim , uma análise da posição de Mill de que
alguns prazeres são superi o res a outros em qualidade, chama a
atenção para um aspecto que talvez "ajude o intelecto", no que
diz respeito à intui ção de qu e "o prazer é o úni co bem ", po is
chama a atenção para o fac to de qu e quando se di z " prazer",
se tem de signifi car " prazer" - tem de se significa r alguma coisa
que é comum a todos os diferentes prazeres, alguma coisa qu e,
embora possa existir em graus diferentes, não poderá di ferir
quanto à sua natureza. Salientámos j á qu e, a partir do momento
em que se afirm a, como Mill fa z, que a qualidade do prazer
tem de ser tomada em consideração, deixa de poder defender-
-se a posição de que apenas o prazer é bom como fim , uma vez
que se está impli citamente a afirmar qu e há outra coisa dife-
rente, uma coisa qu e não está presente em todos os prazeres,
que também é boa como fim. O nosso exemplo da cor ilustra
bem este aspecto na sua fo rma mais aguda. É evidente qu e, se
se afirma qu e " Apenas a cor é boa com o fim", não se pode
apresentar razão alguma para o fac to de se preferir uma cor a
outra. O único critério para avaliar o bem e o mal será "cor" ,
e, uma vez que tanto o vermelho como o azul obedecem a este
critério, e el e é o único, não resta mais nenhum que permita
ajuizar se o vermelho é melhor do que o azul. É verdade que
não se pode ter cor sem ter uma determinada cor, ou todas as
cores. Estas, portanto, se a cor é o fim, serão todas boas como
meios, mas nenhuma pode ser melh or do qu e outra, nem mes-
mo enquanto meio, e muito menos ainda se pode considerar
alguma delas como um fim em si. Também é assim com o pra-
zer: se entendemos realm ente que "Apenas o prazer é bom como
fim ", então temos de concordar com Bentham que "Se a quan-
tidade de prazer fo r igual, o j ogo da cabra cega é tão bom como
a poesia." O fac to de se ter assim eliminado a referência de Mill
à qualidade do prazer representa, sem dúvida, um passo no sen-
tido desejado. O leitor não se sentirá j á impedido de concordar
connosco pela ideia de o princípio hedoni sta de que " Apenas o
prazer é bom como fim " ser compatível com a posição de que
um prazer pode ter m elhor qualidade do que outro. Trata-se,

[1 73]
como vimos, de duas posições contraditórias, entre as quais
somos obrigados a escolher. E, se escolhermos a última, somos
obrigados a pôr de parte o princípio do Hedonismo.
49. Mas , como já dissemos, Sidgwick viu que eram in-
compatíveis. Viu que tinha de escolher entre as duas e escolheu.
Rejeitou o teste da qualidade do prazer e aceitou o princípio
hedonista. Continua a afirmar que " Apenas o prazer é bom
como fim ". Vamos, portanto, analisar os argumentos a que ele
recorre com o fim de nos convencer. Esperamos, através dessa
análise, eliminar mais alguns daqueles preconceitos e más
interpretações que podem impedir a adopção do nosso ponto
de vista. Se conseguirmos mostrar que algumas das conside-
rações que Sidgwick tece não são de molde a obrigar-nos a
concordar com ele, e que outras até militam mais a nosso
favor que a favor dele, teremos talvez dado mais alguns passos
no sentido da unanimidade qu e desejamos.
50. Vamos focar a nossa atenção agora nos seguintes pas-
sos de "Methods of Ethics" , I. ix. 4 e III. xiv. 4-5.
Diz assim o primeiro desses passos:
"Penso que se considerarmos com atenção aqueles resul-
tados permanentes que geralmente julgamos serem bons, ex-
ceptuando as qualidades dos seres humanos , bastará um pouco
de reflexão para verificarmos que não há nada que pareça pos-
suir esta qualidade de bondade que não esteja relacionado
com a existência humana, ou, pelo menos, com uma certa
consciência ou sentimento.
"Por exemplo, consideramos geralmente que certos objec-
tos inanimados, paisagens, etc., são bons porque possuem beleza,
enquanto outros são maus porque feios. Mas ninguém acharia
racional que se tentasse criar beleza na natureza exterior sem
pelo menos a possibilidade de ela ser contemplada por seres
humanos. Na verdade, quando se afirma que a beleza é objec-
tiva , não se está a pensar que ela exista sem qualquer relação
com qualquer mente, mas sim que há um critério de beleza
que é válido para todas as mentes.
"Pode, no entanto, dizer-se que a beleza e outros resul-

[174]
tados geralmente considerados bons, embora não possamos
conceber a sua existência fora de uma relação com o ser hu-
mano (ou, pelo menos, com uma mente qualquer), são tão
separáveis, enquanto fins, dos seres humanos de quem a sua
existência depende, que não custa a crer que a sua realização
possa, até, entrar em competição com a perfeição ou feli ci-
dade destes. Assim, embora seja incon cebível produzir objec-
tos belos se não for para serem contemplados, é, no entanto,
perfeitamente possível que um homem se dedique à sua pro-
dução sem pensar sequer naqueles que os hão-de contemplar.
Do mesmo modo, o conhecimento é um bem que não pode
existir senão na mente, mas pode-se estar mais interessado no
seu desenvolvimento do que na sua detenção por esta ou
aquela mente. E pode-se eleger aquele como fim último, sem
tomar esta em consideração.
"Todavia, uma vez entendidas claramente as alternativas,
creio que todos concordarão que apenas é razoável esperar
que o homem procure a beleza, o conhecimento e os outros
bens ideais, assim como todas as coisas materiais exteriores, se
daí lhe advier (!) Felicidade ou (2) a Perfeição ou Excelência
da existência humana. E digo ' humana' porque, embora a
maioria dos Utilitaristas considere que o prazer (e a ausência
de dor) dos an imais inferiores devam ser incluídos na Felici-
dade que eles consideram ser o fim adequado e correcto de
toda a conduta, ninguém parece defender a posição de que
devemos aperfeiçoar os irracionais, a não ser para servirem de
meios aos nossos fins, ou, pelo menos , na qualidade de objec-
tos de contemplação estética ou científica para nós. Como
também não podemos, por outro lado, incluir, como fim prá-
tico, a existência de seres superiores ao Homem. É evidente
que atribuímos a ideia de bom a Deus, tal como a toda a sua
criação, e até de uma forma bem marcada. E quando se diz
que "devemos fazer todas as coisas para maior glória de Deus",
poderá parecer que estamos implicitamente a afirmar que a
existência de Deus é melhorada pelo facto de O glorificarmos.
Mas quando esta ilação se torna explícita, resulta um tanto ou

1175]
quanto ímpia, razão por qu e os teólogos geralm ente mostram
certa relutância em men cioná-la e se abstêm de recorrer a esta
noção de um possível acréscimo da Bondade Divina como
incentivo para a conduta humana . T ão-pouco a influ ência dos
nossos actos sobre outras inteligências extra-terrenas, além da
Divina, pode neste momento ser objecto de estudo científico.
" Por isso, não tenho qualquer hesitação em afirmar que
se há outro Bem, sem ser a Feli cidade, ao qu al o Homem
possa aspirar, co mo fim prático último, só pode ser a Bondade,
Perfeição ou Excelência da Existência Humana. Até que
ponto esta noção inclui mais do qu e as Virtudes, qual a sua
relação exacta com o Prazer e a que método seremos logica-
mente levados se a aceitarmos com o fundamental , são ques-
tões que poderemos abordar com mais confian ça quando tiver-
mos examinado pormenorizadamente outras duas noções , o
Prazer e a Virtude, a qu e dedicaremos os dois Livros seguintes."
Como se terá observado, Sidgwick tenta , neste passo,
restringir o número de objectos susceptíveis de constituírem o
fim último. Não indica ainda qual é esse fim , mas exclui dele
tudo menos certos aspectos da Existência Humana. E os fins
possíveis assim excluídos não voltam a ser tomados em con-
sideração. São excluídos definitivamente por este passo e por
ele apenas. Ora, será esta exclusão justificada ?
Pensamos que não. " Ninguém", afirma Sidgwick, "acha-
ria racional que se tentasse criar beleza na natureza exterior,
sem pelo menos a possibilidade de ela ser contemplada por
seres humanos." Ora bem, devemos dizer desde já que nós o
consideraríamos racional, e vamos ver se conseguimos que al-
guém concorde connosco. Vejamos o que esta afirmação real-
mente significa. Ela permite-nos colocar a seguinte hipótese.
Imaginemos um mundo extraordinariam ente belo. lmaginemo-
-lo tão belo quanto possível, coloquemos nele tudo o que mais
admiramos - montanhas, rios, o mar, árvores e acasos, estre-
las, a lua. Imaginemos tudo isto reunido nas mais perfeitas
proporções, de tal modo que nada destoa e tudo se combina
para aumentar a beleza do todo. Imaginemos agora o mundo

[176]
mais feio que se possa conceber. Imagin emo-lo como uma
montanha de imundí cie, com tudo aquilo que mais nos
repugna , seja por que razão for, e o todo, tanto quanto pos-
sível, sem o núnimo traço positivo. Temos todo o direito de
comparar estes dois mundos - enquadram-se no que Sidgwick
dá a entender e a comparação entre eles é extremamente rele-
vante para a sua posição. A única coisa que não temos o direito
de imaginar é a possibilidade de algum ser humano ter alguma
vez habitado qualqu er destes mundos, ou de haver a mais re-
mota possibilidade de ele o poder fa zer, de ele poder ver e
apreciar a beleza do primeiro, o u odiar a fealdade do segundo.
Ora, mesmo assim, mesmo supondo qu e não há a menor pos-
sibilidade de eles serem contemplados por olhos humanos,
será irracional afirm ar qu e seria preferí vel que existisse o
mundo belo e não o horrendo? N ão seria desejável que, em
qualquer caso, fiz éssemos o que estivesse ao nosso alcance para
criar um e não o ou tro ? N ão tem os dúvida em afirmar que
sim, e esperamos que haj a quem conco rde connosco, neste
exemplo levado ao extremo. E trata-se, de facto, de um caso
extremo, pois é altam ente improvável, para não dizer mesmo
impossível , que algum a vez nos enco ntrem os perante uma
escolha desta natureza. Num a situação real, teríamos sempre
de ponderar os possíveis efei tos dos nossos actos sobre seres
conscientes, e entre esses efeitos há sempre alguns qu e, em
nossa opinião, devem ter pri o ridade sobre a existência da mera
beleza . Mas isto sign ifi ca apenas que, no actu al estado de coi-
sas, em que só é possível alca nça r uma pequeníssi ma parcela
do bem, a procura da beleza pela beleza terá sempre de ceder o
passo à procura de algum bem maior e igualm ente alcançável.
Mas para o nosso argum ento agora , basta qu e se reconh eça
que, na hipótese de não se pode r alcançar nenhum bem m aior,
a beleza em si tem de ser considerada com o um bem maior do
que a fealdade. Se se reconh ecer que nesse caso não fi ca ríamos
sem nenhuma razão para preferirmos uma linh a de acção a
outra qualqu er, não nos veríamos sem nenhum dever, m as
antes teríamos o dever positivo de to rnar o mundo mais belo,

11 77]
dentro das nossas possibilidades, uma vez que nada melhor do
que a beleza poderia resultar dos nossos esforços. Uma vez que
se admita isto, que se reconheça, em quaisquer circunstâncias
imagináveis, que a existência de uma coisa mais bela é melhor
em si mesma do que a de uma coisa mais feia, independente-
mente dos seus efeitos sobre qualquer sentimento humano,
então o princípio de Sidgwick cai pela base. E teremos de in-
cluir no nosso fim último alguma coisa para além dos limites da
existência humana. Admitimos, claro, que o nosso belo mundo
seria ainda melhor se contivesse seres humanos para contem-
plarem e gozarem a sua beleza. Mas, admitir isto em nada
enfraquece o nosso argumento. Uma vez que se admita que o
mundo belo é em si mesmo melhor do que o feio, então segue-
-se que, por muitos que sejam os seres qu e possam deleitar-se
nele, e por muito que esse deleite seja melhor do que ele é em
si, ainda assim o simples facto de existir acrescenta alguma coisa
à bondade do todo - não é apenas um meio para atingir o
nosso fim , mas faz, ele próprio, parte dele.
51. No segundo passo a que nos referimos, Sidgwick,
depois de se ocupar da Virtude e do Prazer, retoma a análise
daquelas partes da existência humana às quais restringiu, como
já vimos, o fim último, para descobrir quais de entre elas podem
realmente ser consideradas como tal. O qu e acabamos de dizer,
claro, parece-nos destruir também a força desta parte do seu
argumento. Se, como é nossa opinião, outras coisas, que não
qualquer parte da existência humana, podem ser fins-em-si-
-mesmas, então Sidgwick não pode pretender ter descoberto o
Summum Bonum, pois apenas identificou as partes da existên-
cia humana que são em si mesmas desejáveis. Mas este erro é
totalmente insignificante em comparação com aquele que pas-
samos a analisar.
" Pode afirmar-se", diz Sidgwick (III. xiv. 4-5), "que
podemos ... considerar o conhecimento da Verdade, a contem-
plação da Beleza e a acção Livre ou Virtuosa como em certa
medida alternativas preferíveis ao Prazer ou à Felicidade - em-
bora admitamos que a Felicidade tem de ser incluída como

[1 78]
parte do Bem último ... Penso, no entanto, que esta posição não
tem nada que a recomende às pessoas reflectidas que formam
os seus juízos com sobriedade. Para demonstrar isto, tenho de
pedir ao leitor que recorra ao mesmo processo duplo que lhe
pedi que usasse ao considerar a validade absoluta e indepen-
dente dos preceitos morais comuns. Faço apelo, em primeiro
lugar, ao seu JUÍZO intuitivo, depois de devidamente ponderada
a questão, se ela lhe tiver sido colocada com justeza; em segundo,
a uma comparação exaustiva dos juízos vulgares da humanidade.
Em relação ao primeiro argumento, a mim, pelo menos, parece-
-me claro, depois de alguma reflexão, que estas relações objec-
tivas do sujeito consoente, quando distintas da consciência que
as acompanha e resulta delas, não são intrínseca e ultimamente
desejáveis, como também o não são os objectos materiais ou
outros, quando considerados fora de qualquer relação com a
existência consciente. Admitindo que temos experiência real
de preferências como as que acabam de ser descritas, o último
objecto das quais é algo mais do que a simples consciência,
ainda assim me parece que (na expressão de Butler), quando
nos 'sentamos pela fresca', apenas podemos justificar, perante
nós próprios, a importância que atribuímos a qualquer destes
objectos, considerando que eles conduzem, de uma maneira
ou de outra, à felicidade de seres sensíveis.
"O segundo argumento, que diz respeito ao senso comum
da humanidade, não pode obviamente ser completamente con-
vincente, pois, como já foi dito, várias pessoas cultas são habi-
tualmente da opinião de que o conhecimento, a arte, etc., -
para não falar já da Virtude - constituem fins, independente-
mente do prazer que dão. Nós, porém, podemos afirmar não
só que todos estes elementos do 'bem ideal' produzem prazer,
de várias maneiras, mas também que parecem merecer grosso
modo a aprovação do Senso Comum, em proporção com o
grau de prazer produzido. Em relação à Beleza, isto parece
óbvio, e será dificil refutá-lo em relação a qualquer ideal de
natureza social - seria paradoxal manter-se que qualquer grau
de Liberdade, ou qualquer forma de ordem social podiam ser

[l79J
geralmente consideradas desejáveis mesmo que tivéssemos a
certeza de que não mostravam qualquer tendência para pro-
mover a felicidade geral. O caso do Conhecimento é um pouco
mais complexo, mas o Senso Comum deixa-se, sem dúvida,
impressionar pelo valor do conhecimento quando a sua 'fecun-
didade ' é comprovada. Sabe, no entanto, como a experiência
tem mostrado que um conhecimento há longos anos infru-
tífero pode, inesperadamente, dar fruto, e que se pode fazer
luz sobre determinada área do campo do conhecimento a par-
tir de outra área aparentemente remota. Mas mesmo que fosse
possível mostrar que um determinado ramo da investigação
científica não tinha sequer esta utilidade indirecta , mereceria,
ainda assim, algum respeito por razões utilitaristas - primeiro,
por proporcionar ao investigador os prazeres requintados e
inocentes da curiosidade, e, segundo, porque a disposição in-
telectual que lhe é inerente e que estimula acaba geralmente
por produzir conhecimento frutuoso. Contudo, em casos seme-
lhantes a este, o Senso Comum mostra uma certa tendência
para lamentar o mau aproveitamento de um esforço valioso.
Assim, o preito de homenagem normalmente prestado à Ciên-
cia parece ser graduado, talvez inconscientemente, por uma
escala utilitarista razoavelmente precisa. Uma coisa é certa -
logo que a legitimidade de qualquer ramo da investigação
científica é posta em causa, como sucedeu recentemente com
o caso da vivissecção, a polémjca , quer de um lado, quer do
outro, é geralmente conduzida numa base confessadamente
utilitarista.
"O caso da Virtude requer uma atenção muito especial,
pois o incitamento mútuo aos impulsos e estados de espírito
virtuosos é um dos objectivos principais do discurso moral
normal do homem, de tal modo que até o perguntar-se se este
incitamento não poderá ser levado longe demais tem laivos de
paradoxo. No entanto, a nossa experiência inclui casos raros e
excepcionais em que a concentração de esforços no culto da
virtude parece ter tido efeitos adversos sobre a felicidade geral,
por se ter intensificado até ao ponto do fanatismo moral , com

[180]
o consequente abandono de outras condições da felicidade .
Se, portanto, admitimos que estes efeitos 'infelicitadores' do
culto da virtude são reais e possíveis, penso que devemos admi-
tir, também, no caso em questão, que o critério para se decidir
até onde se pode levar o culto da Virtude deve ser o da pro-
moção da feli cidade geral."
Completamos aqui a argumentação de Sidgwick. Não
devemos, segundo ele, aspirar a co nh ecer a Verdade, ou a con-
templar a Beleza, a não ser na medida em que esse conheci-
mento ou essa contemplação contribuam para aumentar o
prazer ou diminuir a dor dos seres sensíveis. Só o Prazer é
bom em si mesmo; o conhecimento da Verdade só é bom
enquanto meio para obter o prazer.
52. Vejamos o qu e isto significa. O que é o prazer? É,
sem dúvida , alguma coisa de que nos podemos aperceber e,
portanto, alguma coisa que é possível distinguir da percepção
que dela temos. A pergunta que deseja mos formular, em pri-
meiro lugar, é a seguinte: poderá realmente dizer-se que apre-
ciamos o prazer, a não ser na medida em qu e temos cons-
ciência dele? Acaso acharíamos que a obtenção do prazer, se
nunca tivéssemos tido, nem nunca pudessemos ter, consciên-
cia dele, poderia ser uma meta pelo prazer em si? Talvez seja
impossível existir alguma vez um prazer assim, divorciado a
este ponto da nossa co nsciência, embora haja algumas razões
para crer qu e seja não só possível mas até bastante comum.
Mas, mesmo supondo que seja impossível, isso não tem qual-
quer relevância. A nossa pergunta é: é ao prazer, independen-
temente da consciência qu e dele se tem, que nós damos valor'
Achamos o prazer valioso em si mesmo, ou teremos de insis-
tir que, para o acharmos bom, temos de ter também cons-
ciência dele?
Esta questão foi muito bem desenvolvida por Sócrates,
no Filebo de Platão (21 A).
"Aceitarias, Protarco," diz Sócrates, "viver toda a tua vida
no gozo dos maiores prazeres?"
"É claro que sim," responde Protarco.

(1 8 1]
Sócrates. E achas qu e, tendo esse gozo na sua pl enitude,
precisarias de mais alguma coisa?
Protarco. É claro que não.
Sócrates. Pensa bem no que estás a dizer. Não precisarias
de ter sabedoria, nem inteligência, nem sensatez, nem nada
deste género? Não quererias ao menos conservar a tua vista?
Protarco. Para quê? Penso que se tivesse prazer, teria tudo
quanto desejava.
Sócrates. Muito bem, supondo que vivias assim, achas
que ias gozar durante toda a tua vida os maiores prazeres?
Protarco. Claro.
Sócrates. Mas , por outro lado, na medida em que não
terias inteligência, nem memória, nem conhecimento, nem
uma opinião verdadeira, começarias necessariamente por não
saberes se estavas ou não a ter prazer, pois não terias nenhuma
espécie de sabedoria. Admites que isto é assim?
Protarco. Admito. É uma consequência absolutamente
necessária.
Sócrates. Ora bem, além disso, não tendo memória,
também não poderias lembrar- te sequer de alguma vez teres
tido prazer. E do prazer que viesses a sentir num dado mo-
mento, não poderia ficar nem o mais leve vestígio. Além disso,
como não tens opinião verdadeira, tão-pouco poderias saber
que estavas a ter prazer quando estivesses a tê-lo e, privado da
tua capacidade de raciocinar, nem sequer poderias prever pra-
zer no futuro. Terias de viver como uma ostra, ou como outra
dessas criaturas que vivem nos mares e cujas almas estão escon-
didas dentro de carapaças. Não será isto assim, ou podemos
pensar de outra maneira?
Protarco. Não vejo como ...
Sócrates. Ora bem, e podemos considerar desejável uma
vida assim?
Protarco. A tua argumentação deixa-me sem palavras,
Sócrates."
Como vemos, Sócrates convence Protarco de que o
Hedonismo é um absurdo. Se queremos realmente manter que

[182)
só o prazer é bom como fim , temos de manter que ele é bom,
quer se tenha ou não consciência dele. Temos de afirmar que
é razoável tomar como nosso ideal (talvez um ideal inatingí-
vel) que devemos ser tão felizes quanto possível, mesmo com
a condição de nunca sabermos, de nunca podermos saber, que
estamos felizes. Temos de aceitar trocar, pela simples felici-
dade, até o mais pequeno vestígio de conhecimento, nosso e
dos outros, não só da felicidade em si mas de todas as outras
coisas. Será possível que ainda estejamos em desacordo? Será
que alguém ainda é capaz de declarar que isto é obviamente
razoável? Que apenas o prazer é bom como fim?
11
O caso é manifestamente como o das cores , só que ainda
não está tão bem fundamentado. É infinitamente mais prová-
vel que venhamos um dia a conseguir produzir o mais intenso
prazer, sem qualquer consciência dele, do que sejamos capazes
de produzir apenas cor, sem que ela seja uma determinada
cor. É muito mais facil distinguir o prazer da consciência, do
que a cor das cores individuais. E, no entanto, mesmo que isto
não fosse assim, seríamos obrigados a distingui-las, se real-
mente quiséssemos declarar o prazer sozinho como nosso fim
último. Mesmo que a consciência fosse inseparável do prazer,
uma condição sine qua non da sua existência, ainda assim, se o
prazer é o único fim, seríamos obrigados a dizer que a cons-
ciência é apenas um meio para o alcançar, em qualquer sentido
inteligível que se possa dar à palavra meio. E se, por outro lado,
como esperamos que se tenha já tornado claro, o prazer seria
relativamente nulo sem a consciência, então temos de reco-
nhecer que o prazer não é o único fim, que pelo menos alguma
consciência tem de estar presente, como verdadeira parte do fim.
Pois, de momento, a questão que nos interessa é qual é
o fim - até que ponto esse fim é atingível per se, ou precisará
da obtenção simultânea de outras coisas, constitui uma outra
questão completamente diferente. Pode até ser que as con-
clusões práticas a que os Utilitaristas chegam, e até aquelas a

11
Parágrafo 48 sup.

[183]
que deveriam logi camente chegar, não estejam muito longe
da verdade. M as, na medida em que a raz ão qu e apresentam
para afirmar que essas conclusões são verdadeiras é a de que
" Apenas o prazer é bom como fim ", estão absolutamente enga-
nados. E são as razoes que prin cipalmente nos interessam em
qualquer Ética científica .
53. Parece, portanto, claro que o Hedonismo é um erro,
enquanto afirma que apenas o prazer, e não a consciência do
mesmo, é o único bem . E este erro parece dever-se, em grande
parte, à falácia que apontámos a Stuart Mill - a falácia de con-
fundir os meios e os fins. Supõe-se, erradamente, que, uma
vez que o prazer tem invariavelmente de ser acompanhado
pela consciência (suposição, aliás, extremamente duvidosa), é
indiferente dizer-se que é o prazer ou dizer-se que é a cons-
ciência do prazer que constitui o único bem. Na prática, é
claro, seria indiferente indicar o primeiro ou a segunda, desde
que tivéssemos a certeza de que não poderíamos obter um
sem a outra . M as, quando se trata de saber o que é bom em
si, quando se pergunta - por amor de quê é desejável obter
aquilo a que aspiramos? - a distinção não é, de modo algum,
de somenos importância. Somos colocados perante duas alter-
nativas que se excluem mutuamente: ou bem o prazer per se
(embora não o possamos alcançar) é tudo o que é desejável,
ou bem a consciência que dele temos é ainda mais desejável. As
duas proposições não podem ser ambas verdadeiras, e parece-
-nos evidente que a última é a verdadeira, donde decorre que
o prazer não é o único bem.
No entanto, poderá dizer-se que, mesmo que seja a cons-
ciência do prazer, e não o prazer por si só, que constitua o
único bem, esta conclusão não afecta grandemente o Hedo-
nismo. Poderá dizer-se que os Hedonistas sempre entenderam
por prazer a consciência que dele se tem, e que apenas não se
deram ao trabalho de o dizerem . E tudo isto é, no fundamen-
tal, verdadeiro. Portanto, para os Hedonistas, corrigir a sua for-
mulação seria apenas uma questão de importância prática, se
é que é possível produzir prazer sem produzir a consciência

[1 84]
que dele se tem. Mas, temos de admiti-lo, mesmo esta impor-
tância que pensamos que a nossa conclusão até aqui realmente
tem, é uma importância muito relativa. O que nós preten-
demos afirmar é que mesmo a consciência do prazer não é o
único bem - que é, de facto, um absurdo, defender essa
posição. E a principal importância do que já foi dito até aqui
reside no facto de o mesmo método que demonstrou que a
consciência do prazer tem mais valor do que o prazer parecer
demonstrar também que a consciência do prazer em si tem
muito menos valor do que outras coisas. A suposição de que
a consciência do prazer é o único bem assenta no não estabe-
lecimento das mesmas distinções que tem encorajado a afir-
mação leviana de que o prazer é o único bem.
O método que empregámos para mostrar que o prazer
em si não era o único bem foi o de ponderar o valor que lhe
atribuiríamos se ele existisse totalmente isolado, despojado de
tudo o que geralmente o acompanha. E este é, na verdade, o
único método a que podemos recorrer com segurança, quando
pretendemos descobrir o grau de valor que uma coisa tem em
si mesma. A necessidade de empregar este método tornar-se-
-á mais evidente se analisarmos os argumentos de Sidgwick,
no último passo citado, e denunciarmos a maneira como eles
foram concebidos para induzir em erro.
54. Em relação ao primeiro destes argumentos, ele ape-
nas afirma que aquelas coisas que se supõe partilharem com o
prazer do atributo da bondade, "parecem obter a aprovação do
Senso Comum, grosso modo em proporção ao grau" de prazer
que produzem. Saber se mesmo esta proporção aproximada,
entre a aprovação do Senso Comum e os efeitos produtores de
felicidade do que é aprovado, se mantém, é uma questão difi-
cílima de decidir, mas não precisamos aqui de nos ocupar dela.
Pois, mesmo partindo do princípio de que isto é verdade e de
que os juízos do Senso Comum são, regra geral, correctos, o
que é que se provaria? Provaria, sem dúvida, que o prazer é
um bom critério para avaliar se uma acção é correcta - que a
conduta que produzisse o máximo de prazer, produziria tam-

[185)
bém, regra geral, o máximo de bem. Mas isto de modo algum
nos autorizaria a tirar a conclusão de que o prazer máximo
constituiria o qu e é melhor de um modo geral. Deixaria ainda
em aberto a alternativa de que uma maior quantidade de pra-
zer é, automaticamente, em condições reais, geralmente acom-
panhada por uma maior qu antidade de outros bens e de que,
portanto, ele não é o único bem. Poderá, até, parecer uma coin-
cidência estranha o facto de estas duas coisas surgirem sempre,
mesmo neste mundo, em proporção uma à outra. M as a estra-
nheza da coincidência não nos autoriza, de modo algum, a
argumentar directamente que ela não existe, que é uma ilusão,
devido ao facto de o prazer ser realmente o único bem. A coin-
cidência pode ter outras explicações, e seria até nosso dever
aceitá-la mesmo sem explicação se a nossa intuição directa nos
parecesse indicar que o prazer não é o único bem. Além disso,
acresce ainda que a necessidade de pressupor uma tal coin-
cidência assenta, em qualquer caso, na proposição extrema-
mente duvidosa de que os efeitos causadores de felicidade são
mais ou menos proporcionais à aprovação do Senso Comum.
E é preciso notar que, embora Sidgwick afirme qu e é esse o
caso, os exemplos pormenorizados que apresenta provam ape-
nas uma proposição totalmente diferente - a de que uma coisa
não é considerada boa a não ser qu e proporcione um saldo
positivo de prazer - não provam que o grau de aprovação seja
proporcional à quantidade de prazer.
55. A decisão tem, pois, de depender do primeiro argu-
mento do Professor Sidgwick - "o apelo" ao nosso "juízo
intuitivo, depois de devidamente ponderada a questão, se ela
lhe tiver sido colocada com justeza." Ora, aqui, parece-me
evidente que o Professor Sidgwick não conseguiu, em dois
aspectos fundamentais, formular com justeza a questão nem
perante si mesmo, nem perante o leitor.
(1) O que ele tem de provar, como ele próprio diz, não
é apenas que "A Felicidade tem de ser incluída como parte do
Bem último". Esta posição, segundo ele, "não tem nada que
a recomende às pessoas reflectidas que formam os seus juízos

(186)
com sobriedade." E porqu ê? Porque "estas relações objectivas
do sujeito conscien te, quando distintas da consciência que as
acompanha e delas resulta , não são intrínseca e ultimamente
desejáveis." Ora, esta razão, apresentada para mostrar que con-
siderar a Felicidade como mera parte do Bem último não está
de acordo com os dados da intuição, é, pelo contrário, apenas
suficiente para mostrar que elafaz , defacto, parte do Bem último.
Pois do facto de uma parte dum todo, considerada por si só,
não ter qualquer valor, não se pode inferir qu e todo o valor
pertencente ao todo esteja de facto na outra parte, considerada
por si só. Mesmo admitindo qu e o gozo da Beleza tem muito
valor, e que a mera contemplação da mesma não tem nenhum,
que é um dos elementos constituintes desse facto complexo,
não se segue que todo o valor resida no outro constituinte, ou
seja, o prazer que sentimos ao contemplá-la. É muito possível
que também este constituinte não tenha qualquer valor em si
mesmo, que o valor esteja no todo e apenas nele, de tal modo
que tanto o prazer como a contemplação são meras partes do
bem, e ambas igualmente necessárias. Em resumo, o argumento
do Professor Sidgwick depende aqui de se ignorar o princípio
que tentámos explicar no nosso primeiro capítulo, o princípio
das "relações orgânicas" 12 • O argumento foi calculado para in-
duzir em erro, porque parte da suposição de que, perante um
todo valioso e perante o facto de um dos elementos desse todo
não ter qualquer valor, considerado por si só, somos levados a
pensar que o outro elemento, por si só, tem de ter a totalidade
do valor do todo. Acontece, pelo contrário, qu e, pelo facto de
o todo poder ser orgânico, o outro elemento pode não ter
valor nenhum, e mesmo que tenha algum, o valor do todo
pode ser infinitamente maior. Por esta razão, assim como para
evitar a confusão entre meios e fim, é absolutamente essencial
analisar isoladamente cada uma das qualidades que é possível
distinguir, de maneira a decidir qual o seu valor. Por seu lado,
o Professor Sidgwick aplica este método de isolamento apenas

ll pp. 27-30, 36.

[187]
a um dos el ementos dos todos qu e anali sa. N ão se interroga:
se a consciência do prazer existisse completam ente isolada,
poderia um juízo sóbrio atribuir-lhe algum valor' É, na ver-
dade, sempre enganador tomar-se um todo valioso (ou não) e
perguntar simplesmente a qual dos se us constituintes deve o
seu valor ou a sua vileza. Pode bem dar-se o caso de não o
dever a nenhum deles; e se um deles parece ter algum valor por
si só, seremos induzidos no erro grave de supormos que a to-
talidade do valor do todo lh e pertence por inteiro. Quer-nos
parecer que este erro tem sido repetidamente cometido em
relação ao prazer. Este parece, de facto, ser um constituinte
necessário da maior parte dos todos valiosos, e dado que os
outros constituintes, em qu e é possível decompô-los , podem
facilmente parecer não ter valor algum, torna-se natural atri-
buir todo o valor ao prazer. Que esta suposição natural não se
segue das premissas é um facto, e que está, pelo contrário, ridi-
culamente longe da verdade, parece evid ente ao nosso "j uízo
refl ectido ". Se aplicarmos ao prazer ou à consciência do pra-
zer o único método seguro, o do isolamento, e perguntarmos
a nós próprios se poderíamos aceitar, como uma coisa muito
boa, que a simples consciência do prazer, e absolutamente mais
nada , existisse, mesmo nas maiores quantidades, estamos certos
de que a resposta teria de ser: Não. Muito menos ainda pode-
ríamos admitir isto como o único bem. Mesmo aceitando a
implicação do Professor Sidgwick (que, no entanto, nos pa-
rece extremamente duvidosa) de que a consci ência do prazer
tem , por si só, um valor maior do que a Contemplação da
Beleza, parece-nos a nós que uma Contemplação da Beleza
que proporcione prazer tem, sem dúvida , infinitamente mais
valor do que a mera Consciência do Prazer. A favor desta
conclusão apelamos confiantemente ao "juízo sóbrio das pes-
soas reflectidas" .
56.(2) Que o valor de um todo que proporciona prazer
não pertence exclusivamente ao prazer que contém, torna-se
ainda mais evidente se analisarmos um outro aspecto em que
a argumentação do Professor Sidgwick é defi ciente. Defende

[1 88]
ele, como já vimos, a proposição duvidosa de que a capaci-
dade de uma coisa para proporcionar prazer está mais ou menos
em proporção com a sua aprovação pelo Senso Comum. Mas
não defende, o que seria indiscutivelmente falso, que o grau
de prazer de cada estado é proporcional à sua aprovação. Por
outras palavras, é só quando tomamos em consideração todas
as consequências de qualquer estado que ele consegue manter a
coincidência entre a quantidade de prazer e os objectos apro-
vados pelo Senso Comum. Se considerarmos cada estado iso-
ladamente, e averiguarmos qual é o juízo do Senso Comum
no que respeita à sua bondade enquanto fim, independente-
mente da sua bondade enquanto meio, não resta qualquer
dúvida de que o Senso Comum considerará muitos estados
menos agradáveis como sendo melhores do que muitos outros
bem mais agradáveis, ou seja, Sidgwick concorda com Stuart
Mill em que há prazeres superiores, que têm mais valor, em-
bora proporcionem menos prazer do que os inferiores. O Pro-
fessor Sidgwick poderia, é claro, argumentar que neste aspecto
o Senso Comum está simplesmente a confundir meios e fins
- que aquilo que afirma ser melhor como fim, é, na realidade,
apenas melhor como meio. Pensamos, porém, que este argu-
mento é deficiente, na medida em que Sidgwick não parece
aperceber-se de que, no tocante a intuições de bondade en-
quanto fim, ele contraria frontalmente o Senso Comum, e na
medida ainda em que não dá o relevo suficiente à distinção
entre o que é imediatamente agradável e o que é conducente ao
prazer. Para se colocar bem a questão do que é bom como
fim, temos de escolher estados que sejam imediatamente agra-
dáveis e de averiguar se os mais agradáveis são também sempre
os melhores, e se aqueles que são menos agradáveis o parecem
ser apenas porque pensamos que é provável que eles aumen-
tem o número dos mais agradáveis. Que o Senso Comum
negaria ambas estas proposições parece-nos fora de dúvida .
É comum pensar-se que algumas das que poderiam chamar-se
as mais baixas formas de prazer sexual, por exemplo, são posi-
tivamente más, embora não fique de modo algum claro que

[189]
elas não constituam as experiências mais agradáveis que jamais
temos. O Senso Comum certamente não pensaria que consti-
tuiria justificação suficiente para perseguir, aqui e agora, aquilo
a que Sidgwick chama "prazeres requintados", o facto de eles
serem os melhores meios para alcançar, no futuro, um céu
onde não haveria mais prazeres requintados - nenhuma con-
templação da beleza, nenhuns afectos pessoais - mas no qual
se poderia obter o máximo prazer possível numa entrega per-
pétua à bestialidade. E no entanto, o Professor Sidgwick não
poderia deixar de manter que se fosse possível obter deste
modo o máximo prazer, e se ele fosse alcançável, um tal esta-
do de coisas seria de facto um paraíso, e todos os esforços
humanos se deviam conjugar para a sua realização. Atrevemo-
-nos a pensar que esta posição é tão falsa quanto parodoxal.
57. Parece-nos, então, que se formularmos bem a per-
gunta sobre se a consciência do prazer é o único bem, a res-
posta terá de ser negativa. E com isto cai por terra a última
defesa do Hedonismo. Para podermos formular bem a per-
gunta, há que isolar a consciência do prazer. Temos de nos
interrogar: Suponhamos que tínhamos consciência apenas do
prazer, e de mais nada, nem sequer do facto de estarmos cons-
cientes, acaso esse estado de coisas, por muito grande que
fosse a quantidade, seria muito desejável? Ninguém, parece-
nos, acharia que sim. Por outro lado, parece evidente que
consideramos altamente desejáveis muitos estados de espírito
complicados, em que a consciência do prazer se alia à cons-
ciência de outras coisas - estados que descrevemos como
"comprazimento" nisto ou naquilo. Se isto está correcto, então
segue-se que a consciência do prazer não é o único bem, e
que há muitos outros estados, de que ela é uma parte inte-
grante, que são muito melhores do que ela. Uma vez que
reconheçamos o princípio das unidades orgânicas, qualquer
objecção a esta conclusão, fundada no suposto facto de que os
outros elementos de tais estados não têm valor em si mesmos,
terá de desaparecer. E parece-nos que não será necessáno
acrescentar mais nada para refutar o Hedonismo.

[190]
58. Falta apenas dizer alguma coisa acerca das duas for-
mas mais cor rentes da doutrina hedonista - o Egoísmo e o
Utilitarismo.
O Egoísmo, enquanto forma do Hedonismo, é a dou-
trina que defende que cada um de nós deve perseguir a sua
própria e máxima felicidade como fim último. É evidente que
a doutrina admite a possibilidade de, por vezes, o melhor meio
de alcançar esse fim ser proporcionar prazer aos outros. Ao
fazê-lo, conseguimos, por exemplo, conquistar para nós pró-
prios os prazeres de sermos compreendidos, de nos vermos
livres de interferências e de termos mais estima por nós pró-
prios. E estes prazeres, que podemos por vezes conseguir
quando estamos directamente empenhados na felicidade de
outras pessoas, podem ser maiores do que quaisquer outros
que pudéssemos obter de outro modo. Há, portanto, que ter
o cuidado de distinguir entre este sentido de Egoísmo e o
outro, o sentido em que Egoísmo se opõe a Altruísmo. Neste
último sentido, Egoísmo tende a denotar apenas egocentrismo,
e diz-se que um homem é egoísta quando todos os seus actos
têm realmente a finalidade de alcançar o próprio prazer, quer
ele defenda que deve agir assim porque será assim que con-
seguirá obter para si mesmo a maior felicidade possível, quer
não. Sendo assim, o Egoísmo pode denotar a teoria de que
devemos sempre empenhar-nos em conseguir prazer para nós
próprios, porque é esse o melhor meio de alcançar o fim último,
quer este seja o nosso maior prazer, quer não. O Altruísmo,
por outro lado, pode denotar a teoria de que devemos sempre
procurar a felicidade dos outros, pela razão de que é esse o
melhor meio de garantir a nossa, assim como a deles. Portanto,
um Egoísta, no sentido em que vamos agora falar de Egoísmo,
que defenda que a sua própria e máxima feli cidade é o fim
último, pode simultaneamente ser um Altruísta, e defender
que deve "amar o próximo", como o melhor meio de atingir
a sua própria felicidade. E, ao invés, um Egoísta, no primeiro
sentido, pode ser ao mesmo tempo um Utilitarista, argumen-
tando que deve sempre orientar os seus esforços no sentido de

[191)
alcançar prazer para si próprio, pela razão de que terá assim
maiores probabilidades de aumentar a soma geral de felicidade.
59. Voltaremos oportunamente a esta segunda espécie
de Egoísmo, um Egoísmo anti-altruísta, um Egoísmo como
doutrina de meios. Por agora, o que nos interessa é a outra
espécie, totalmente distinta , que sustenta que cada homem
deve racionalmente defender que a sua máxima felicidade é a
única coisa boa que há , e que as suas acções apenas podem ser
boas enquanto meios para alcançar esse fim . Esta é uma dou-
trina pouco em voga hoje em dia, mas que teve grande acei-
tação entre os Hedonistas ingleses dos séculos XVII e XVIII
- está subjacente, por exemplo, à Ética de Hobbes. Mas até a
escola inglesa parece ter dado um passo em frente no nosso
século, sendo a maior parte dos seus membros actualmente
Utilitaristas. Reconhecem, na verdade, que se a nossa própria
felicidade é boa, seria estranho que a dos outros não o fosse
também.
Para se poder denunciar cabalmente o absurdo desta
espécie de Egoísmo, é necessário examinar certas confusões
que estão na base da sua credibilidade.
A principal destas confusões tem a ver com a distinção
entre " o meu próprio bem" e "o bem dos outros". Trata-se
de um conceito que todos usamos todos os dias, e ao qual o
homem comum tende a recorrer sempre que aborda qualquer
questão ética. E o Egoísmo é geralmente defendido principal-
mente por o seu significado não ser claramente apreendido.
É, de facto, evidente que a palavra "Egoísmo" se aplica com
mais propriedade à teoria de que "o meu próprio bem" consti-
tui o único bem, do que se se tratasse do meu próprio prazer.
É perfeitamente possível ser-se um Egoísta sem se ser um He-
donista. Talvez que o conceito mais intimamente associado ao
Egoísmo seja "o meu próprio interesse". Um Egoísta é o ho-
mem que defende que a tendência para promover o seu
próprio interesse constitui justificação suficiente para todos os
seus actos, e é a única possível. Mas este conceito do "meu
próprio interesse" inclui, geralmente, muito mais do que o meu

(192]
próprio prazer. É, na verdade, apenas porqu e, e na medida em
que, se tem entendido que "o meu próprio interesse" consiste
exclusivamente no meu próprio prazer, que os Egoístas têm
sido levados a defender que o nosso próprio prazer é o único
bem. A sua linha de argumentação é a seguinte: a única coisa
que devo procurar obter é o meu próprio interesse, mas o
meu próprio interesse consiste no meu maior prazer possível,
e, por conseguinte, a única coisa que devo procurar é o meu
próprio prazer. Que é muito natural, após reflexão, identificar
deste modo o meu próprio prazer com o meu próprio inte-
resse, e que tem sido esta a prática dos moralistas modernos,
admite-se. Mas , quando o Professor Sidgwick salienta isto (III.
xiv. parágrafo 5, Div. III), devia igualmente salientar que esta
identificação não é, de modo algum, fruto do pensamento
vulgar. Quando o homem comum refere "o seu próprio inte-
resse", não está a pensar no "seu próprio prazer" - geralmente
nem o inclui - está a pensar, sim, em melhorar a sua posição,
a sua reputação, ou a sua situação económica, etc. etc. Que o
Professor Sidgwick não tenha reparado nisto, e que tenha
apresentado a razão que apresentou para explicar o facto de os
moralistas antigos não identificarem "o meu próprio interesse"
com o meu próprio prazer, parece dever-se a não se ter aper-
cebido exactamente da confusão que passamos a apontar,
quanto ao conceito de "o meu próprio bem". Platão viu esta
confusão talvez com mais clareza do que qualquer outro mo-
ralista, e apontá-la bastará para refutar a posição de Sidgwick
de que o Egoísmo é uma doutrina racional.
O que se entende então por "o meu próprio bem"? Em
que sentido pode uma coisa ser boa para mim? É óbvio, se
reflectirmos um pouco, que a única coisa que me pode per-
tencer a mim, que pode ser minha, é alguma coisa que é boa, e
não o facto de ser boa. Assim, quando nos referimos a alguma
coisa que recebemos em termos de "o meu próprio bem",
queremos dizer ou que a coisa que recebemos é boa, ou que
o facto de a possuirmos é bom. Em ambos os casos, é apenas
a coisa em si ou a sua posse que é minha, e não a bondade da

(193)
coisa ou da sua posse. Já não tem qualquer significado anexar-
-se "meu" ao predicado e dizer-se : A posse disto por mim é o
meu bem. Mesmo que interpretemos isto como significando:
"A minha posse disto é o qu e eu penso que é bom" , nada se
altera, pois o que eu penso é que a minha posse disto é boa
simplesmente; e, se eu pensar correctamente, então a verdade é
que a minha posse disto é boa simplesmente - e não, em sen-
tido nenhum, o meu bem; e, se pensar incorrectamente, não é
mesmo nada boa. Numa palavra, quando nos referimos a
qualquer coisa como sendo "o meu próprio bem", apenas
podemos significar que essa coisa, que possuímos exclusiva-
mente, como possuímos o nosso próprio prazer (quaisquer
que sejam os vários sentidos desta relação a que se dá o nome
de "posse") , é, também, boa em absoluto, ou antes, que a nossa
posse dela é boa em absoluto. O bom não pode, em sentido
algum, ser "privado", ou pertencer-me a mim , tal como nada
pode existir privadamente ou apenas pertencer a uma pessoa.
A única razão que podemos ter para procurarmos "o meu
próprio bem", é o facto de ser bom absolutamente que aquilo
que assim chamamos nos pertença - bom absolutamente que eu
possua algo, que, porque eu o possuo, os outros não podem
ter. Mas, se é bom absolutamente que eu o tenha, então todas as
outras pessoas têm tanta razão para quererem que eu o possua
como eu próprio. Se, portanto, é verdade que o "interesse"
ou a "felicidade" de qualquer indivíduo deve constituir o seu
único fim último, isto só pode significar que o "interesse" ou
"felicidade" desse mesmo homem é o único bem , o Bem Uni-
versal, e a única coisa a que todos nós devemos aspirar. Assim,
o que o Egoísmo sustenta é que a felicidade de cada um de nós
constitui o único bem - que cada uma de um grande número
de coisas diferentes constitui a única coisa boa que existe -
uma contradição absoluta! Não se poderia desejar refutação
mais completa e exaustiva.
60. Todavia, o Professor Sidgwick sustenta que o Egoísmo
é uma doutrina racional. E não deixará de ser útil rever rapi-
damente as razões que apresenta para essa absurda conclusão.

(1 94]
"O Egoísta", afirma (último cap., parágrafo 1), "pode evitar a
prova do Utilitarismo negando-se a afirmar," quer "implícita
quer explicitamente, que a sua própria felicidade máxima não
constitui apenas o fim último e racional para si próprio mas é
parte do Bem Universal." E, no passo para o qual nos remete,
onde afirma ter "visto" isto, afirma: "Não se pode provar que
a diferença entre a sua própria felicidade e a de outrem não
seja para ele da maior importância" (IV. ii. parágrafo 1). Que
entende o Professor Sidgwick por estas frases "o fim último
racional para si próprio" e "para ele da maior importância"?
Não faz qualquer tentativa no sentido de as definir, e é, em
grande medida, o emprego de frases assim por definir que leva
à criação de absurdos na filosofia .
Haverá algum sentido em que uma coisa possa ser um
fim último racional para uma pessoa e não para outra? Por
'último' tem forçosamente de se entender pelo menos que o
fim é bom-em-si-mesmo - bom no sentido em que afirma-
mos não ser definível; e por "racional", pelo menos , que é
verdadeiramente bom. Que uma coisa seja um fim último
racional significa, assim, que ela é verdadeiramente boa em si
mesma, e o facto de ser verdadeiramente boa em si mesma
significa que é parte do Bem Universal. Poderemos nós atri-
buir algum significado ao qualificativo "para si mesmo" que
faça com que deixe de ser parte do Bem Universal? A tarefa é
impossível: pois ou a felicidade do Egoísta é boa em si mesma,
e como tal parte do Bem Universal, ou então não pode ser boa
em si mesma de todo. Não há maneira de escapar ao dilema.
E, se não é boa de todo, que razão pode ele ter para a procu-
rar? Como pode ser um fim racional para ele? A qualificação
"para si mesmo" não pode ter qualquer significado, a menos
que implique "não para os outros", e se implica isso então não
pode ser um fim racional para ele, uma vez que não pode ser
verdadeiramente boa em si mesma - a frase "um fim último
racional para si mesmo" é uma contradição de termos. Dizer-
-se que uma coisa constitui um fim para uma determinada
pessoa, ou que ela é boa para ele, só pode significar uma de

(195)
quatro coisas. Ou (1) significa que o fim em questão é algo que
lhe pertencerá exclusivamente, mas, nesse caso, para que isso
constitua um fim racional para ele, o facto de lhe pertencer
exclusivamente tem de ser parte do Bem Universal. Ou (2)
significa que é a única coisa a que ele deve aspirar, mas isto só
pode ser porque, ao fazê-lo, estará fazendo tudo o que está ao
seu alcance no sentido de realizar o Bem Universal, e isto, no
nosso entender, apenas dá ao Egoísmo o estatuto de uma
doutrina de meios. Ou (3) significa que a coisa é aquilo que ele
deseja ou considera boa, e, nesse caso, se considera errada-
mente, o fim não é de todo racional, e se pensa correctamente,
ele é parte do Bem Universal. Ou (4) significa que é particu-
larm ente apropriado que ele aprove ou procure obter uma
coisa que lhe irá pertencer exclusivamente, mas, neste caso,
tanto o facto de ela lhe pertencer como o de ele a procurar
obter têm de ser parte do Bem Universal. Dizer-se que uma
certa relação entre duas coisas é adequada ou apropriada só
pode significar que a existência dessa relação é absolutamente
boa em si mesma (a menos que assim seja enquanto meio, e
estamos perante o caso apontado em (2)). Não há, portanto,
nenhum significado possível que possa ser atribuído à frase de
que a sua própria felicidade é o fim último racional para si
mesmo que permita ao Egoísta fugir à implicação de que a sua
própria felicidade é absolutamente boa. E, ao afirmar que é o
fim último racional, ele tem forçosamente de querer dizer que
é a única coisa boa - a totalidade do Bem Universal. E, se para
além disto, ele sustentar ainda que a felicidade de cada um de
nós constitui o fim último racional para cada um de nós, depa-
ramos com a contradição fundamental do Egoísmo - o facto
de cada uma de um número vastíssimo de coisas diferentes
poder ser o único bem. E é facil ver que o mesmo se pode dizer
em relação à frase "a diferença entre a sua própria felicidade e
a de outrem é para ele da maior importância." Isto apenas pode
significar ou (1) que a sua própria felicidade é o único fim que
o poderá afectar, ou (2) que a única coisa importante para ele
(como meio) é preocupar-se com a sua própria felicidade, ou

[196]
(3) que só a sua própria felicidade lhe interessa, ou (4) que é
bom que cada um se preocupe apenas com a sua própria feli-
cidade. E nenhuma destas proposições, por muito verdadeiras
que possam ser, denotam a menor tendência para mostrar que,
se a sua própria felicidade é de todo desejável , ela não é parte
do Bem Universal. Ou bem que a sua própria felicidade é
uma coisa boa, ou bem que não é - e, seja qual for o sentido
em que ela é para ele da maior importância, tem forçosamente
de ser verdade que, a não ser uma coisa boa, ele não tem ne-
nhuma justificação para a procurar, e a ser boa, todas as outras
pessoas têm a mesma justificação para a procurarem, na me-
dida em que puderem e na medida em que isso não as impeça
de alcançarem outras partes mais valiosas do Bem Universal.
Resumindo, é evidente que a junção de "para ele" "para mim"
a frases como "o fim último racional", "bom", "importante"
apenas pode provocar confusão. A única justificação possível
para qualquer acção é o facto de ela permitir a realização da
maior quantidade possível de bem absoluto. E se alguém afir-
ma que a obtenção da sua própria felicidade justifica as suas
acções, tem forçosamente de significar que é essa a maior
quantidade possível de Bem Universal que é capaz de realizar.
E isto novamente só pode ser verdade ou por ele não ser capaz
de realizar mais, e nesse caso considera o Egoísmo como ape-
nas uma doutrina de meios, ou então por a sua própria felici-
dade ser a maior quantidade de Bem Universal que pode ser
de facto realizada e neste caso estamos perante o Egoísmo
propriamente dito e a contradição flagrante de que a felici-
dade de cada um é, caso por caso, a maior quantidade de Bem
Universal que é possível realizar.
61. Deve salientar-se que, sendo assim, "a relação entre o
Egoísmo Racional e a Benevolência Racional", que, segundo
o Professor Sidgwick, representa "o problema mais profundo da
Ética" (III, xiii, parágrafo 5, n. 1), terá de ser vista a uma luz
muito diferente daquela em que ele a apresenta. "Mesmo que
alguém", diz ele, "reconheça a manifesta evidência do princí-
pio da Benevolência Racional, poderá ainda sustentar que a

(197]
sua própria felicidade constitui um fim que seria irracional
sacrificar a outro qualquer, e que, portanto, se torna necessá-
rio demonstrar de alguma forma que existe uma harmonia
entre a máxima da Prudência e a máxima da Benevolência
Racional, se se pretende que a moralidade seja inteiramente
racional. Esta última posição é aquela que eu próprio defendo"
(último cap. parágrafo 1). Seguidamente, o Professor Sidgwick
trata de mostrar que "a ligação inseparável entre o Dever Uti-
litarista e a maior felicidade do indivíduo que a el e se submete
não pode ser satisfatoriamente demonstrada a partir de bases
empíricas" (lbid., par. 3). E o último parágrafo do seu livro diz-
-nos que "uma vez que a recon ciliação entre o dever e o inte-
resse próprio deve ser encarada como uma hipótese logica-
mente necessária para evitar uma contradição fundamental numa
das principais áreas do nosso pensamento, resta saber até que
ponto essa necessidade constitui fundamento suficiente para
que se aceite a referida hipótese" 13 (Ibid., par. 5) . "Partir do
princípio de que existe um Ser, tal como Deus é concebido
pelo consenso dos teólogos", asseguraria, segundo ele, a neces-
sária reconciliação, pois que as Sanções Divinas de um tal Deus
"seriam, é claro, suficientes para que fosse sempre do interesse
de todos promover a felicidade universal até onde os seus conhe-
cimentos o permitissem" (Ibid., par. 5) .
Ora, que " reconciliação" é esta "entre o dever e o inte-
resse próprio, que as Sanções Divinas poderiam assegurar?
Consistiria no simples facto de que a mesma conduta que pro-
duzisse a maior felicidade possível ao maior número possível
de pessoas, produziria também, sempre, a maior felicidade
possível ao seu agente. Se assim fosse (e o nosso conhecimento
empírico mostra que não é esse o caso neste mundo), "a mo-
ral" seria, na opinião do Professor Sidgwick, "completamente
racional": evitaríamos "uma última e fundamental contradição
nas nossas intuições aparentes do que é Razoável em matéria
de conduta." Isto é, evitaríamos a necessidade de pensarmos

13
Itálicos nossos.

[1 98]
que alcançar a nossa maior Felicidade (máxima da Prudência)
é tão manifestamente uma obrigação quanto alcançar a maior
Felicidade geral (máxima da Benevolência). Mas é por demais
claro que não evitaríamos coisa alguma. O Professor Sidgwick
comete aqui a falácia característica do Empirismo - a falácia
de pensar que alterar os factos pode fazer com que uma con-
tradição deixe de o ser. Que a felicidade de um único homem
possa ser o ânico bem, e que a felicidade de toda a gente possa
igualmente ser o ânico bem, é uma contradição que não pode
ser resolvida pelo pressuposto de que a mesma conduta asse-
gurará ambas - continuaria a ser uma contradição mesmo que
tivéssemos a certeza de que o pressuposto era justificado.
O Professor Sidgwick não consegue engolir um mosquito mas
traga um camelo. Entende que é necessária a intervenção da
Divina Omnipotência para assegurar que aquilo que dá prazer
aos outros lhe dará também a ele prazer - que só assim a Ética
pode ser racional. Entretanto, não toma em consideração o
facto de que até esta intervenção da Divina Omnipotência
introduziria na Ética uma contradição, em comparação com a
qual a sua dificuldade não passa duma trivialidade - uma con-
tradição que reduziria toda a Ética a um mero sem-sentido, e
perante a qual a Divina Omnipotência seria forçosamente im-
potente para todo o sempre. Que a felicidade de cada homem
seja o ânico bem, e vimos já ser esse o princípio do Egoísmo,
é, em si mesmo, uma contradição. E que também seja verdade
que a Felicidade geral seja o ânico bem, que é o princípio do
Hedonismo Universalista, introduziria nova contradição. E que
todas estas proposições sejam verdadeiras constitui aquilo a
que bem se poderia chamar "o problema mais profundo da
Ética", já que seria necessariamente um problema sem solução.
Mas não podem ser todas verdadeiras, e não há qualquer razão,
a não ser uma confusão, para se pensar que o sejam. O Pro-
fessor Sidgwick confunde esta contradição com o simples facto
(no qual não há nenhuma contradição) de a nossa maior felici-
dade e a de todos nem sempre serem alcançáveis pelos mesmos
meios. Este facto, se a Felicidade fosse o único bem, revestir-

[199]
-se-ia, na verdade, de algum significado - factos desta natureza
são importantes, seja qual for a posição. Mas não passam de
ocorrências do facto verdadeiramente importante de que neste
mundo a quantidade de bem qu e é possível alcançar-se é uma
parcela irrisoriamente pequena daquele que é possível imagi-
nar. O facto de eu não poder obter para rnim mesmo o má-
ximo de prazer possível, ao produzir o máximo de prazer pos-
sível para todos, está tão longe de constituir o problema mais
profundo da Ética como o facto de eu não conseguir, em
qualquer caso, obter todo o prazer que seria desejável. Afirma-
-se apenas que, se conseguirmos obter o máximo bem possí-
vel num determinado lugar, é provável que obtenhamos
menos no total, pois que a quantidade de bem que é possível
alcançar-se é limitada. Dizer-se qu e temos de escolher entre o
nosso próprio bem e o de todos constitui uma falsa antítese -
a única questão racional que se põe é a de saber escolher entre
o nosso bem e o de outros, e o princípio a que deve obedecer
esta escolha é exactamente o mesmo que nos leva a escolher
entre dar prazer a esta ou àquela pessoa.
62. É então evidente que a doutrina do Egoísmo é, em
si mesma , contraditória, e que a razão pela qual isto não é logo
percebido se deve à confusão quanto ao significado da frase "o
meu próprio bem" . Deve observar-se ainda que esta confusão
e o facto de não se tomar na devida conta esta contradição
têm muito a ver necessariamente com a transição do Hedo-
nismo Naturalista, tal como é geralmente entendido, para o
Utilitarismo. Stuart Mill, por exemplo, como já vimos, afirma
que "cada um deseja a sua própria felicidade, na medida em
que acredita ser possível alcançá-la" (p. 53) . E apresenta esta
razão para justificar o facto de a felicidade geral ser desejável.
Considerá-la como tal implica, em primeiro lugar, como já
vimos, a falácia naturalista. Mas , mais do que isso, ainda que a
falácia não existisse, este argumento apenas poderia usar-se para
o Egoísmo, nunca para o Utilitarismo. É a seguinte a argu-
mentação de Mill: um homem deseja a sua própria felicidade.
Logo, a sua própria felicidade é desejável. E ainda, um homem

[200]
não deseja senão a sua própria felicidade. Logo, a sua própria
felicidade é a única coisa desejável. Bastará lembrar que toda
a gente, segundo Mill, deseja igualmente a sua própria felici-
dade para se chegar à conclusão de que a felicidade geral é a
única coisa desejável. E isto é pura e simplesmente uma con-
tradição de termos. Se não, vejamos: a felicidade de cada um
é a única coisa desejável, logo, muitas coisas diferentes são,
cada uma de per si, a única coisa desejável. Esta a contradição
fundamental do Egoísmo. A fim de poder pensar que os seus
argumentos servem para demonstrar não o Egoísmo mas sim
o Utilitarismo, Mill tem forçosamente de pensar que pode
inferir da proposição "a felicidade de cada um é o seu próprio
bem", esta outra proposição de que "a felicidade de todos é o
bem de todos", quando, na realidade, e se compreendemos o
significado de "o seu próprio bem", é evidente que a última
proposição só pode ser inferida de "A felicidade de todos é o
bem de cada um" . Sendo assim, o Hedonismo Naturalista só
pode logicamente conduzir ao Egoísmo. É claro que um Natu-
ralista poderia sustentar que o que procuramos alcançar é ape-
nas "prazer" e não o nosso próprio prazer, o que, continuando
a dar como suposta a falácia naturalista, forneceria ao Utili-
tarismo uma fundamentação irrefutável. Mas o que realmente
sucede, na maioria dos casos, é ele defender que é o seu
próprio prazer que deseja, ou, pelo menos, confundir os dois ,
e é então levado logicamente a adoptar o Egoísmo e não o
Utilitarismo.
63. A segunda razão que temos para apresentar para o
facto de se dever considerar o Egoísmo razoável é simplesmente
a confusão existente entre esta e a outra espécie de Egoísmo
- o Egoísmo como doutrina de meios. Esta segunda espécie
tem todo o direito de nos aconselhar a perseguirmos a nossa
própria felicidade, pelo menos algumas vezes, e poderá mesmo
dizer-nos para o fazermos sempre. E quando ouvimos este
conselho, esquecemo-nos geralmente da condição que o acom-
panha - mas apenas enquanto meio para alcançar outra coisa.
A verdade é que estamos numa situação imperfeita - não

[20 1]
podemos atingir o ideal todo de uma vez. E daí o facto de ter-
mos muitas vezes a obrigação estrita de fazer, de "devermos"
absolutamente fazer, coisas que são apenas , ou principalmente,
boas enquanto meios - temos de fazer o melhor que pode-
mos, aquilo que é absolutamente "correcto ", embora não abso-
lutamente bom. Voltaremos a esta questão oportunamen te.
Mencionámo -la apenas por nos parecer muito mais plausível
dizer que devemos procurar a nossa própria felicidade como
meio para alcançar um fim do que como um fim em si mesma,
e por pensarmos que esta doutrin a, graças a uma confusão,
veio dar alguma da sua credibilidade à doutrina totalmente
distinta do Egoísmo propriament e dito : o m eu máximo pra-
zer é a única coisa boa .
64. E sobre o Egoísmo não é preciso dizer mais nada.
Sobre o Utilitarismo, pouco haverá a di zer, mas há dois pon-
tos que merecem alguma atenção.
O primeiro é que o nome, tal como sucede com o
Egoísmo, não sugere naturalment e que todas as nossas acções
devem ser julgadas consoante o grau em que são um meio
para se alcançar o prazer. O seu significado natural é que o
padrão do que é correcto ou errado na conduta é a tendência
desta para promover o interesse de todos. E entende-se geral-
mente por interesse uma variedade de bens diferentes, reunidos
numa mesma classe apenas porque representam o que o homem
geralmente deseja para si mesmo, na medida em que os seus
desejos não sejam caracterizados por essa qualidade psicológica
que se dá a entender por "moral". O elemento " útil" significa
assim, e era esse o significado qu e lhe era sistematicamente
atribuído na Ética antiga, aquilo que serve de meio para a
obtenção de bens distintos dos morais. Não há a minima jus-
tificação para se pressupor qu e estes bens apenas são bons en-
quanto meios para o prazer ou que são geralmente assim con-
siderados. A principal razão que levou à adopção do termo
" Utilitarismo" foi, na realidade, simplesmente a necessidade de
salientar o facto de que a conduta tem de ser julgada correcta
ou incorrecta em função dos seus resultados, como um meio,

[202]
em oposição à posição estritamente Intuicionista de que cer-
tas formas de conduta são correctas e outras incorrectas, inde-
pendentemente dos resultados que possam ter. Nesta sua insis-
tência em que o que é correcto tem forçosamente de significar
o que produz os melhores resultados possíveis, o Utilitarismo
está plenamente justificado. Mas, a esta tese correcta, tem-se
associado, historica e muito naturalmente, um erro duplo.
(1) Presumia-se que os melhores resultados possíveis consistiam
apenas numa classe muito restrita de bens, que coincidiam mais
ou menos com aqueles geralmente caracterizados como cons-
tituindo o resultado de actos meramente "úteis" ou "interes-
sados". E pressupunha-se ainda, um tanto levianamente, que
eram bons apenas como meios para o prazer. (2) Os Utilita-
ristas tendem a considerar tudo como meros meios, não
tomando em consideração o facto de que algumas coisas,
sendo boas como meios, o são também como fins. Assim, por
exemplo, partindo do princípio de que o prazer é um bem, há
uma certa tendência para se valorizar o prazer actual mera-
mente como meio para alcançar prazer futuro, em vez de o
ponderar, como seria estritamente necessário se o prazer é bom
enquanto fim, em relação a possíveis prazeres futuros. Grande
parte da argumentação utilitarista tem a ver com o absurdo
lógico de que o que acontece aqui e agora nunca tem valor
algum em si, e apenas deverá ser julgado em função das suas
consequências. Estas, por sua vez, é claro, uma vez atingidas,
também não teriam qualquer valor em si, antes seriam meros
meios para um futuro ainda mais distante, e assim por diante,
ad infinitum.
O segundo ponto que merece destaque em relação ao
Utilitarismo é o facto de o termo, quando aplicado a uma
forma do Hedonismo, geralmente não distinguir correcta-
mente entre meios e fim, mesmo na descrição do seu próprio
fim. A sua fórmula mais bem conhecida é que o resultado
pelo qual as acções devem ser julgadas é "a maior felicidade
para o maior número". Mas é óbvio que, se o prazer é o único
bem, poderá obter-se um resultado igualmente desejável, inde-

[203]
pendentemente de ele, prazer, ter sido sentido por muitos ou
por poucos, ou até por ninguém, desde, evidentemente, que
a sua quantidade seja igualmente grande. É óbvio que, se
devemos procurar a maior felicidade do maior número, só
pode ser, de acordo com o princípio hedonista, porque a
existência de prazer num grande número de pessoas parece ser
o melhor meio ao nosso alcance de obter a existência da maior
quantidade de prazer. Pode até ser que seja esse o caso. Mas é
lícito suspeitar que os Utilitaristas tenham sido influenciados,
na sua adopção do princípio hedonista, por esta incapacidade
de distinguir claramente o prazer, ou a consciência do prazer,
por um lado, e a sua posse por parte de uma pessoa, por outro.
É incomparavelmente mais fácil considerar a posse do prazer
por parte de um número de pessoas como sendo o bem único,
do que considerar que a mera existência de uma quantidade
igualmente grande de prazer o seja. Se, na verdade, tomásse-
mos à letra o princípio utilitarista e partíssemos do princípio
de que eles entendem que a posse do prazer por parte de
muitas pessoas era boa em si mesma, o princípio não é hedo-
nista: inclui, como parte necessária do fim último, a existên-
cia de um certo número de pessoas, e isto significa que inclui
muito mais do que mero prazer.
O Utilitarismo, porém, tal como é geralmente entendido,
tem de ser visto como sustentando que tanto a mera cons-
ciência do prazer, como a consciência do prazer juntamente
com o adjunto núnimo que possa representar a existência de
uma tal consciência em pelo menos uma pessoa, constituem o
bem único. Esta a sua importância enquanto doutrina ética,
que, nessa qualidade, foi já refutada aquando da nossa refuta-
ção do Hedonismo. O mais que se poderá dizer em seu abono
é que as suas conclusões práticas não induzem seriamente em
erro, devido ao facto empírico de o método de acção que
acarreta mais bem, acarretar também, geralmente, mais prazer.
Na verdade, os Utilitaristas consagram geralmente a maior parte
dos seus argumentos à demonstração de que a linha de acção
que traz mais prazer é, regra geral, aquela que o senso comum

[204]
aprovaria. Vimos já que o Professor Sidgwick recorre a este
facto para demonstrar que o prazer é o único bem, como
vimos que ele não o consegue demonstrar. Vimos igualmente
como são frágeis os outros argumentos apresentados a favor
desta proposição, e que, se esta for devidamente considerada
em si mesma, aparece como bastante ridícula. Além disso, é
extremamente duvidoso que as acções que produzem mais
bem sejam também, regra geral, aquelas que produzem mais
prazer. Os argumentos tendentes a demonstrar isto estão
todos, em maior ou menor grau, viciados pelo pressuposto de
que as condições que parecem ser necessárias para a obtenção
da maior parte do prazer no futuro próximo, continuarão sem-
pre a sê-lo. E mesmo recorrendo a este pressuposto viciado,
apenas conseguem apresentar uma fundamentação altamente
problemática. Portanto, como explicar este facto, se de um
facto se trata, não nos diz respeito. Bastará termos mostrado
que há muitos estados de espírito complexos que são muito
mais valiosos do que o prazer que contêm. Se isto é assim,
nenhuma forma de Hedonismo pode ser verdadeira . E, uma vez que
a orientação prática fornecida pelo prazer enquanto critério é
pequena, na proporção em que o cálculo se esforça por ser
exacto, podemos aguardar calmamente os resultados de uma
nova investigação antes de adaptarmos um guia de acção cuja
utilidade é muito duvidosa e cuja idoneidade temos graves
razões para pôr em causa .
65. Os factos mais importantes que tentámos estabelecer
ao longo deste capítulo são os seguintes. (1) O Hedonismo
deve ser estritamente definido como a doutrina de que "O Pra-
zer é a única coisa boa em si mesma" . Esta posição parece
dever a sua aceitação sobretudo à falácia naturalista, e os argu-
mentos de Stuart Mill podem ser tomados como exemplos de
um tipo de argumentação falaciosa neste aspecto. Sidgwick é
o único a defender esta posição sem incorrer na referida falá-
cia, e a sua refutação final tem, portanto, de chamar a atenção
para os erros da sua argumentação (36-38). (2) Faz-se a crítica
do "Utilitarismo" de Mill - demonstra-se (a) que ele incorre

(205]
na falácia naturalista ao identificar "desejável" com " desejado" ,
e (b) que o prazer não é o único objecto do desejo. A maioria
dos argumen tos a favor do Hedonis mo parece assentar nestes
dois erros (39-44). (3) O Hedonis mo é visto como uma "In-
tuição" , e mostra-se (a) que o facto de Mill admüir que alguns
prazeres são inferiores a outros em qualidade implica simulta-
neamente que se trata de uma Intuição e que ela é falsa (46-48);
(b) que Sidgwick não distingue entre " prazer" e "consciência
do prazer" , e qu e é absurdo considerar, em todo o caso, o
primeiro como sendo o único bem (49-52); (c) que parece
igualmen te absurdo considerar "a consciência do prazer" como
o único bem, uma vez que, se assim fosse, um mundo onde
não existisse mais nada podia ser absolutam ente perfeito -
Sidgwick não põe a si mesmo esta questão, que é a única
questão clara e decisiva (53-57). (4) Aquelas que são geral-
mente consideradas as duas principai s espécies de Hedonism o
- o Egoísmo e o Utilitaris mo - são não só diferentes uma da
outra, mas estão em fran ca contradição uma com a outra, já
que a primeira sustenta que "O meu máximo prazer é o único
bem", ao passo que a segunda defende que "O máximo prazer
de todos é o único bem" . A plausibilidade do Egoísmo parece
dever-se, em parte, ao facto de não se ter dado por esta con-
tradição - falha exemplificada por Sidgwick - e, em parte, ao
facto de se ter confundi do Egoísmo enquanto doutrina de fins
e enquanto doutrina de meios. Se o Hedonis mo é verdadeiro,
então o Egoísmo não pode sê-lo, e muito menos ainda o
poderia ser se o Hedonis mo fosse falso. O fim do Utilitarismo,
por outro lado, seria, no caso de o Hedonis mo ser verdadeiro,
não na verdade o melhor fim concebív el, mas o melhor pos-
sível que poderíam os promove r. Simplesm ente, está refutado
pela refutação do Hedonis mo (58-64).

[206]
CAPÍTULO IV
A ÉTICA METAFÍSICA

66. Neste capítulo, propomo-nos tratar de um género


de teoria ética que se encontra exemplificado nas concepções
estóica, de Espinosa, de Kant e, particularmente, de vários
autores modernos cttjas concepções, neste aspecto, se devem
sobretudo à influência de Hegel. Estas teorias éticas têm em
comum o facto de utilizarem uma proposição metafisica como
base para inferir uma proposição fundamental da Ética. Todas
assumem, e muitas declaram expressamente, que as verdades
éticas derivam logicamente de verdades metafisicas - que a
Ética deve basear-se na Metefísica. Como consequência, todas
descrevem o Bem Supremo em termos metafisicas.
O que se deve então entender por "metafisico"? Como
explicámos no Capítulo II, usamos este termo por oposição a
"natural" e designamos por preeminentemente "metafisicas"
os filósofos que reconheceram, de forma muito clara, que nem
tudo o que é, é um "objecto natural". Os "metafisicas" pos-
suem, portanto, o grande mérito de insistirem no facto de o
nosso conhecimento não se restringir a coisas que podemos
tocar, ver e sentir. Debruçaram-se, desde sempre, não só sobre
uma outra classe de objectos naturais que constituem os fac-
tos mentais, mas também sobre a classe de objectos, ou pro-
priedades de objectos, que não têm qualquer existência no
tempo, não constituindo, portanto, parte da Natureza e que,
na realidade, pura e simplesmente não existem. Como já referi-
mos, pertence a esta classe o que designamos pelo substantivo
"bem" . Não é a "bondade", mas tão só as coisas ou qualidades
que são boas, que podem existir no tempo - podem ter du-

[207]
ração, principiar e cessar de existir - que podem ser objectos
de percepção. Mas os membros mais proeminentes desta classe
são, porventura, os números. É verdade que dois objectos na-
turais podem existir; mas não é menos verdade que dois em si
mesmo não existe e nem poderá existir. Dois mais dois são
quatro . Mas isso não significa que dois ou quatro existam.
Contudo, quer dizer alguma coisa. Dois, de alguma forma, é,
embora não exista. E não são apenas os simples termos de pro-
posições - os objectos sobre os quais sabemos verdades - que
pertencem a esta classe. As verdades que sabemos sobre eles
formam, porventura, uma subdivisão ainda mais importante.
De facto, não existe verdade alguma, mas tal torna-se óbvio,
de forma peculiar, no que diz respeito a verdades como "Dois
mais dois são quatro ", em que os objectos sobre os quais exis-
tem verdades também não existem. É com o reconhecimento
de verdades como estas - verdades que designamos por "uni-
versais" - e a sua dissemelhança fundamental em relação ao
que podemos tocar, ver e sentir, que principia a metafisica pro-
priamente dita. Estas verdades "universais" sempre tiveram um
papel importante no raciocínio dos metafisicos, desde Platão
até ao presente. O facto de estes se terem dedicado à diferença
entre aquelas verdades e aquilo a que chamámos "objectos
naturais" é a contribuição fundamental para o conhecimento
que os distingue da outra classe de filósofos - filósofos "em-
píricos" - a que tem pertencido a maior parte dos ingleses.
Embora - se definirmos a "metafisica" através da con-
tribuição que, na realidade, deu para o conhecimento - deva-
mos afirmar que acentuou a importância de objectos que pura
e simplesmente não existem, os próprios metafisicos não o
reconheceram. Reconheceram e insistiram, sim, que existem,
ou podem existir, objectos de conhecimento que não existem
no tempo, ou, pelo menos, que não conseguimos apreender, e
ao reconhecer a sua possibilidade como objecto de investigação,
deve confessar-se que prestaram um serviço à humanidade.
Pressupuseram, todavia e no geral, que o que quer que seja
que não existe no tempo, deve, pelo menos, existir noutro

(208]
sítio, considerando que chega a ser - que, o que quer que seja
que existe na Natureza, deve existir numa qualquer realidade
supersensível, intemporal ou não. Em consequência, defendem
que as verdades sobre as quais se têm debruçado, para além dos
objectos de percepção, eram, de certa forma, verdades sobre
essa realidade supersensível. E, portanto, se definirmos "me-
tafisica" não pelo que se alcançou, mas pelo que se tentou,
devemos afirmar que consiste na tentativa de obter conheci-
mento, através de processos de raciocínio, do que existe mas
não constitui parte da Natureza. De facto, os metafisicas de-
fendem que nos podem dar esse conhecimento de uma exis-
tência não natural. Defendem que a sua ciência consiste em
transmitir o conhecimento, que se pode apoiar em razões, da
realidade supersensível que a religião professa para nos trans-
mitir um maior conhecimento, sem quaisquer razões. Assim,
quando nos referimos a proposições "metafisicas", o que que-
ríamos dizer era proposições sobre a existência de algo super-
sensível - de algo que não constitui um objecto de percepção
e que não pode ser inferido, daquele que o é, pelas mesmas
regras de inferência por meio das quais inferimos o passado e
o futuro daquilo a que chamamos "Natureza". E, ao referirmo-
-nos a termos "metafísicas", queríamos dizer termos que se
reportam a qualidades dessa realidade supersensível, que não
pertencem a nada "natural" . Reconhecemos que a "n1etafísica"
devia investigar as razões que possam existir para uma crença
nessa realidade supersensível, dado que sustentamos que o seu
domínio peculiar consiste na verdade sobre todos os objectos
que não são objectos naturais. E pensamos que a característica
verdadeiramente predominante da metafísica, ao longo da his-
tória, tem sido o dedicar-se a provar a verdade sobre os exis-
tentes não naturais. Assim sendo, definimos "metafisica" por
referência à realidade supersensível, embora consideremos que
apenas objectos não naturais, sobre os quais conseguiu alcançar
a verdade, são objectos que não existem em absoluto.
Cremos que esta explicação é suficiente para se com-
preender o que entendemos por "metafísica" e para demonstrar

(209]
que se refere a uma distinção relevante e clara. Dado o objectivo
que tínhamos em mente, não se nos afigurou necessário forne-
cer uma definição exaustiva ou demonstrar que corresponde,
no essencial, ao uso estabelecido. A distinção entre " Natureza"
e uma realidade supersensível é muito familiar e importante: e
uma vez que o metafisico se esforça por provar coisas relativa-
mente a uma realidade supersensível, e dado qu e se ocupa, em
grande parte, de verdades que não são meros factos naturais, é
claro que os seus argumentos, e erros (se os houver) , serão de
um género mais subtil do que aqueles de que nos ocupámos sob
a designação de "Naturalismo". Por estas duas razões, pareceu
conveniente tratar da "Ética Metafisica" separadamente.
67. Já referimos que os sistemas da Ética que propomos
designar por " M etafisicas" são caracterizados pelo facto de des-
creverem o Bem Supremo em termos "metafisicas". E tal foi
explicado como significando que este é descrito por aqueles em
termos de algo que (afirmam eles) existe de facto, mas não existe
na natureza - em termos de uma realidade supersensível. Uma
"Ética Metafisica" é marcada pelo facto de fazer a afirmação
seguinte: aquilo que seria perfeitamente bom é algo que existe,
mas não é natural; que possui alguma característica pertencente
a uma realidade supersensível. Esta asserção foi feita pelos Es-
tóicos quando afirmaram que uma vida em concordância com
a Natureza era perfeita. É que, para eles, "Natureza" não signi-
ficava o que definimos como tal, mas algo supersensível que eles
inferiam que existia e que consideravam ser perfeitamente bom.
Uma tal afirmação é também feita por Espinosa, quando diz
que estamos mais ou menos intimamente ligados à Substância
Absoluta pelo "amor intelectual" de Deus. Uma tal afirmação
é feita por Kant quando diz que o seu "Reino dos Fins" é o
ideal. E por fim , o mesmo é feito pelos autores modernos que
dizem que o fim último e perfeito consiste em realizarmos o
nosso verdadeiro eu - um eu diferente não só do todo como de
qualquer parte do que existe aqui e agora na Natureza.
Torna-se evidente que estes princípios éticos têm o mé-
rito, que o Naturalismo não possuía, de reconhecer que para

(210)
a perfeita bondade é necessário muito mais do que uma qual-
quer quantidade do que existe aqui e agora, ou que possa ser
inferido como tendo probabilidade de vir a existir no futuro.
Além do mais , é possível que as suas afirmações sejam verda-
deiras, se as entendermos como afirmando qu e algo que é real
possui todas as características necessárias para a perfeita bon-
dade. Mas não é, de forma alguma, isto que eles afirmam.
Como referimos, também pressupõem que esta proposição
ética resulta de uma proposição que é metafisica: que a per-
gunta "O que é real?" tem algum peso lógico na pergunta
"O que é o bem?". Foi devido a isto que descrevemos a "Ética
Metafísica" no Capítulo II como estando assente numa falácia
naturalista. Manter que a partir de qualquer proposição que
afirme que "A realidade é desta natureza" se pode inferir qual-
quer proposição que afirme que "Isto, em si mesmo, é bom",
ou obter a sua confirmação, é cometer uma falácia naturalista .
E que um conhecimento do que é real fornece razões para
defender que certas coisas são boas em si mesmas é algo que
está implícito, ou que é expressamente afirmado por todos os
que definem o Supremo Bem em termos metafisicas. Esta
afirmação é, em parte, o qu e se entende quando se diz que a
Ética se deve basear na Metafisica . Considera-se que é neces-
sário algum conhecimento da realidade supersensível como pre-
missa para chegar a conclusões correctas relativamente ao que
deve existir. Este ponto de vista é, consequentemente, expresso
de forma frontal nas afirmações seguintes: "A verdade é que a
teoria ética qu e parece mais satisfatória é .: que possui uma
base metafisica .. . Se basearmos o conceito de Ética na noção
de desenvolvimento do eu ideal ou do universo racional, o seu
significado não se torna completamente evidente sem uma aná-
lise metafisica da natureza do eu; nem tão pouco se pode estabelecer
a sua validade sem uma discussão sobre a realidade do universo racio-
nal." 1 A validade de uma conclusão ética sobre a natureza do

Prof. J. S. M ackenzie, A Ma1111al of Etliiecs, 4th Fd., p. 431. Os itáli-


1

cos são meus.

[211]
ideal, afirma-se, não pode ser estabelecida se não se considerar a
questão de esse ideal ser real. Uma tal afirmação implica a falá-
cia naturalista. Assenta na incapacidade de apreender que qual-
quer verdade que afirme que "Isto é bom em si mesmo" é razoa-
velmente única - que não pode ser reduzida a nenhuma afir-
mação sobre a realidade e, por consequência, deve permanecer
inalterada em relação a quaisquer conclusões a que consigamos
chegar sobre a natureza da realidade. Esta confusão relativamente
à natureza única das verdades éticas está implícita, como referi-
mos, em todas as teorias éticas que designámos por metafisicas.
É óbvio que, devido a uma qualquer confusão, nem considera-
ríamos a hipótese sequer de descrever o Bem Supremo em ter-
mos metafisicas. Se, por exemplo, nos disserem que o ideal reside
na realização do "verdadeiro eu", as próprias palavras sugerem
que o facto de o eu em questão ser verdadeiro deverá ter relevân-
cia no facto de ser bom. Toda a verdade ética que possa ser trans-
mitida por uma afirmação, pode, da mesma forma, ser transmi-
tida ao dizer-se que o ideal consistiria na realização de um tipo
de eu particular, que poderia ser real ou meramente imaginário.
A "Ética Metafisica" implica, portanto, a suposição de que a
Ética se pode basear na Metafisica; e aqui, a nossa principal pre-
ocupação é deixar claro que esta presunção dever ser falsa.
68. De que forma é que a natureza supersensível poderá
ter relevância na questão da Ética?
Estabelecemos a distinção entre dois tipos de questões
éticas que são confundidas uma com a outra com demasiada
frequência. A Ética, como é geralmente entendida, deve dar
resposta tanto à pergunta "O que deve ser?" como a "O que
devemos fazer?". A segunda destas questões só pode ser respon-
dida se se considerarem os efeitos que têm as nossas acções.
Uma resposta completa remeter-nos-á para o departamento
da Ética que podemos designar pela doutrina dos meios, ou
Ética prática. E, em relação a este departamento de interro-
gações éticas, é óbvio que a natureza de uma realidade super-
sensível pode ter relevância. Se, por exemplo, a Metafisica nos
pudesse dizer não só que somos imortais, mas também, em

[212)
que medida os efeitos das nossas acções nesta vida irão afectar
a nossa situação numa vida futura, essa informação teria, indu-
bitavelmente, relevância na questão de o que devemos fazer.
As doutrinas cristãs do Céu e do Inferno são, neste aspecto,
grandemente relevantes para a Ética prática . Mas deve notar-
-se que as doutrinas mais características da Metafísica ou não
têm relevância na Ética prática, ou têm uma relevância mera-
mente negativa - implicando a conclusão de que não há abso-
lutamente nada que devêssemos fazer. Declaram que nos
transmitem não a natureza de uma realidade futura, mas de
uma realidade que é eterna e que, por conseguinte, as nossas
acções, quaisquer que sejam, não conseguirão alterar. Esta
informação pode, de facto, ter relevância para a Ética prática,
mas esta será de índole puramente negativa. Pois, a ser verdade
que essa realidade eterna não só existe, como também, o que
é correntemente o caso, que nada mais é real - que nada é real
agora ou será real no tempo - então, verdadeiramente, se con-
clui que nada do que possamos fazer originará algum bem.
Pois é verdade que as nossas acções só podem afectar o futuro;
e, se nada é real no futuro, não podemos ter esperança de,
alguma vez, transformar algo de bom em realidade. Daqui
resulta que não existe nada que devamos fazer. Não temos
possibilidade de fazer bem algum, dado que nem os esforços
que façamos, nem quaisquer efeitos que eles pareçam pro-
duzir, têm qualquer existência real. Mas raramente se retira
esta consequência, embora, em rigor, ela resulte de muitas
doutrinas metafísicas. Apesar de um metafísico poder afirmar
que o que não é eterno não é real, ele concede, em geral, que
também existe alguma realidade no que é temporal: e a sua
doutrina sobre uma realidade eterna não interfere necessaria-
mente com a Ética prática se admitir que, por muito boa que
a realidade eterna seja, existem igualmente algumas coisas no
tempo, e que a existência de algumas será melhor do que a
existência de outras. Contudo, é importante realçar este ponto,
dado que é raro que seja verdadeiramente compreendido.
Se se defender que existe, porventura, alguma validade na

[213]
Ética prática - que qualquer proposição que afirme "Devemos
fazer isto e aquilo" pode conter alguma verdade - este argu-
mento apenas é coerente com a Metafisica da realidade eterna,
se se verificarem duas condições. Uma delas é: (1) que a ver-
dadeira realidade eterna, que nos vai guiar, não pode, como
resultado de se lhe chamar verdadeira, ser a única realidade ver-
dadeira. Dado que uma regra moral, pedindo-nos que realize-
mos um certo fim, só pode justificar-se se for possível realizar
esse fim, pelo menos em parte. A menos que os nossos esforços
possam produzir a existência real de algum bem, por pequeno
que seja, não haverá, por certo, razão para os fazer. E se a rea-
lidade eterna é a única realidade, então nada de bom pode ter
existência possível no tempo: apenas nos podem dizer para ten-
tar dar existência a algo que sabemos, de antemão, não ter pos-
sibilidade de existir. Se se disser que o que existe no tempo é
apenas uma manifestação da verdadeira realidade, deve, no mí-
nimo, aceitar-se que essa manifestação é uma outra realidade
verdadeira - um bem que cuja existência podemos realmente
provocar; pois a produção de algo irreal, admitindo que seja
possível, não pode constituir um fim razoável para uma acção.
Mas se a manifestação daquilo que existe eternamente for real,
então aquilo que existe eternamente não é a única realidade.
E a segunda condição que deriva deste princípio meta-
fisico da Ética é: (2) que a realidade eterna não pode ser per-
feita - não pode ser o único bem. Pois, assim como uma regra
de conduta razoável exige que o que nos é ordenado que faça-
mos seja passível de ser verdadeiramente real, também exige
que a realização deste ideal seja verdadeiramente bom. É pre-
cisamente aquilo que pode ser realizado pelos nossos esforços
- a aparência do eterno no tempo, ou o que quer que seja que
é permitido alcançar - que deve ser verdadeiramente bom,
para ser merecedor dos nossos esforços. O facto de a realidade
eterna ser boa não justifica, de forma alguma, que tenhamos
como objectivo a sua manifestação, a menos que essa mani-
festação seja, em si mesma, também boa. Porque a manifesta-
ção é diferente da realidade: a diferença é permitida, quando

[214]
nos dizem que a sua existência pode ser provocada, enquanto
que a própria realidade existe inalteradamente. E a existência
desta manifestação é a única coisa que podemos esperar pro-
duzir: isso também é permitido. Se, por conseguinte, a máxima
moral tiver que ser justificada, é a existência desta manifes-
tação, enquanto distinta da existência da realidade correspon-
dente, que deve ser verdadeiramente boa. A realidade pode ser
boa também; mas para justificar a afirmação de que devemos
produzir qualquer coisa, deve defender-se que apenas essa
coisa em si mesma, e não qualquer outra coisa parecida, é ver-
dadeiramente boa. Se não for verdade que a existência dessa
manifestação acrescenta algo à soma de bem no Universo, en-
tão não haverá razão para procurar provocar a sua existência;
e se for verdade que acrescenta algo à soma de bem, então a
existência daquilo que é eterno não pode ser perfeito por si só
- não incluirá o conjunto dos bens possíveis.
A metafisica terá, portanto, relevância na questão da Ética
prática - na pergunta "O que devemos fazer?" - se nos puder
dizer algo sobre as consequências futuras das nossas acções,
para além do que puder ser apurado pelo raciocínio indutivo
normal. Mas as doutrinas metafisicas mais características, as
que nos elucidam não sobre o futuro mas sobre a natureza de
uma realidade eterna, podem ou não ter relevância nesta ques-
tão prática ou então têm uma relevância meramente destrutiva.
Pois é óbvio que o que existe eternamente não pode ser afec-
tado pelas nossas acções; e só o que é afectado pelas nossas
acções pode ter alguma relevância no seu valor como meio.
Contudo, a natureza de uma realidade eterna ou não permite
nenhuma inferência em relação aos resultados das nossas ac-
ções, excepto se nos puder também dar alguma informação
sobre o futuro (e a forma como o pode fazer não é clara), ou
então se, como é vulgar, defende que é a única realidade e o
único bem, demonstra que nenhuns resultados das nossas acções
podem ter qualquer valor que seja.
69. Mas esta relevância na Ética Prática, tal como se põe,
não significa o que vulgarmente se quer dizer ao defender-se

[215]
que a Ética deve basear-se na Metafisica. Não é a afirmação
desta relação que considerámos ser característica da Ética Meta-
fisica . O que os escritores metafisicos mantêm, por via de regra,
não se limita à ajuda que a Metafísica nos pode dar a decidir
quais os efeitos que as nossas acções produzem , mas sim à pos-
sibilidade de nos dizer quais, de entre os efeitos possíveis,
serão bons e quais serão maus. Defendem que a Metafísica é
a base necessária para uma resposta a uma outra pergunta ética
primária: O que deve ser? O que é bom em si mesmo? No
Capítulo I demonstrou-se que nenhuma verdade sobre o que
é real pode ter relevância lógica na resposta a esta pergunta.
Supor que tem implica a falácia naturalista. Tudo o que nos
resta fazer, por conseguinte, é expor os erros principais que
parecem ter dado credibilidade a esta falácia, na sua forma
metafísica. Se nos perguntarmos: Que relevância pode ter a
Metafisica na pergunta "O que é o bem?", a única resposta
possível é: obvia e absolutamente nenhuma. Podemos apenas
ter esperança de reforçar a convicção de que esta resposta é a
única verdadeira, ao responder à pergunta: Por que é que se
chegou à conclusão de que tinha relevância? Veremos que os
autores metafísicos não conseguiram distinguir a questão ética
primária "O que é o bem?", de várias outras. Apontar estas
distinções serve para confirmar a perspectiva de que, ao defen-
derem que a Ética se baseia na Metafisica, apenas o fazem por
confusão.
70. E, para já, existe uma ambiguidade na própria per-
gunta: O que é o bem?, a que se deve atribuir alguma influên-
cia. A pergunta pode significar ou Quais as coisas que, entre
as existentes, são boas? ou, então, Que espécie de coisas são
boas, que coisas é que, quer sejam reais quer não, deviam ser
reais? E para responder à primeira destas perguntas torna-se
óbvio que devemos saber a resposta à segunda e também à
pergunta: o que é real Ser-nos-á necessário um catálogo de
todas as coisas boas do Universo; e, para respondermos à per-
gunta, devemos saber não só as coisas que existem no Uni-
verso, mas também quais, dentre elas, são boas. Assim, a nossa

[216]
Metafisica terá relevância sobre esta questão, se nos puder
dizer o que é real. Auxiliar-nos-ia a completar a lista das coisas
que são simultaneamente reais e boas. Contudo, não compete
à Ética fazer uma tal lista. Na medida em que se interroga
sobre O que é o bem?, a sua competência termina quando
completar a lista das coisas que deveriam existir, quer existam
ou não. E se é suposto a nossa Metafisica ter alguma relevân-
cia nesta parte do problema ético, tal deve ser devido ao facto
de que se algo é real, existe uma razão para pensar que essa ou
qualquer outra coisa é boa, seja ou não real. Que um tal facto
possa originar uma tal razão é impossível, mas pode supor-se
que o contrário tenha sido encorajado pela incapacidade de
distinguir entre a afirmação "Isto é o bem", quando significa
"Este tipo de coisa é boa", ou "Isto seria bom, se existisse", e a
afirmação "Esta coisa que existe é boa". A última proposição
não pode, obviamente, ser verdadeira, a menos que a coisa
exista; e daí que a prova da existência da coisa seja um passo
necessário para que esta possa ser provada. Todavia, e apesar
desta imensa diferença entre elas, ambas as proposições são
usualmente expressas nos mesmos termos. Utilizamos as mes-
mas palavras quando afirmamos uma proposição ética sobre
um sujeito que tem existência real e quando o afirmamos so-
bre um sujeito considerado como meramente possível.
Nesta ambiguidade de linguagem, deparamo-nos, assim,
com uma fonte possível de erro no tocante à relevância das
verdades que afirmam a realidade sobre verdades que afirmam
a bondade. E que esta ambiguidade é, de facto, negligenciada
pelos autores metafisicas que defendem que o Bem Supremo
consiste numa realidade eterna pode ser demonstrada da se-
guinte forma. Ao considerarmos a possível relevância da Meta-
fisica na Ética Prática, vimos que, dado que o que existe eter-
namente não tem possibilidade de ser afectado pelas nossas
acções, não existe nenhuma máxima prática que seja verda-
deira, uma vez que a única realidade é eterna. Como referi-
mos, este facto é vulgarmente descurado pelos autores metafi-
sicos, que afirmam ambas as proposições contraditórias de que

[217]
a única realidade é a eterna e de que a sua realização no futuro
também é um bem. Vimos como o Professor Mackenzie afir-
ma que devemos ter como objectivo a realização de "o ver-
dadeiro eu" ou "o universo racional"; e, contudo, o Professor
Mackenzie defende que, como claramente se depreende da
palavra "verdadeiro" , tanto "o eu verdadeiro" como "o uni-
verso racional" são eternamente reais. Aqui temos, desde já,
uma contradição ao supor que o que é eternamente real pode
ser realizado no futuro; e é relativamente pouco importante o
acrescentar, ou não acrescentar, a esta contradição, uma outra,
que resulta da suposição de que o eterno é a única realidade.
O facto de esta contradição ser supostamente válida , explica-
-se pelo descuido ao distinguir entre um assunto real e o carác-
ter que o assunto real possui. Aquilo que é eternamente real
pode, de facto, ser realizado no futuro, se, por tal, se entender
apenas o tipo de coisa que é eternamente real. Mas ao afirmar-
mos que uma coisa é boa, o que queremos dizer é que a sua
existência ou realidade é boa; e a existência eterna de uma
coisa não é, necessariamente, tão boa como a existência no
tempo daquilo que, num sentido necessário, é, todavia, a mesma
coisa. Ao dizerem-nos que a realização futura do verdadeiro eu
é boa, isto pode querer dizer, na melhor das hipóteses, que a
realização futura de um eu exactamente como o eu, que é verda-
deiro e existe eternamente, é boa. Se este facto fosse objecto
de uma afirmação clara, em vez de ser pura e simplesmente
ignorado por aqueles que defendem que o Bem Supremo pode
ser definido nestes termos metafisicos, parece provável que
esta perspectiva de que o conhecimento da realidade é neces-
sário ao conhecimento do Bem Supremo perdesse alguma da
sua verosimilhança. Que aquilo que se devia almejar não possa
nunca ser aquilo que é eternamente real, mesmo que seja
exactamente a mesma coisa, e que a realidade eterna não possa
ser o único bem - estas duas proposições parecem, de forma
sensata, diminuir a probabilidade de a Ética ser baseada na
Metafisica. Não se afigura muito plausível defender que por
uma coisa ser real, qualquer coisa como ela, que não é real,

[218]
seria boa. Parece, assim, que alguma da verosimilhança da Ética
Metafisica pode ser atribuída, de forma razoável, ao facto de
esta ambiguidade verbal não ter sido observada, pelo que " Isto
é bom" pode querer dizer "Esta coisa real é boa" ou "A exis-
tência desta coisa (quer exista quer não) seria boa".
71. Ao expor esta ambiguidade, torna-se mais facil com-
preender o que significa a pergunta: A Ética pode basear-se na
Metafisica?, e torna-se mais facil também encontrar a resposta
correcta. Ficou claro que um princípio metafisico da Ética que
afirme que "Esta realidade eterna é o Bem Supremo" apenas
pode significar que "Algo como esta realidade eterna seria o
Bem Supremo" . Deve então compreender-se estes princípios
como tendo o único sentido que podem ter, de forma coe-
rente, nomeadamente, ao descrever o tipo de coisa que deveria
existir no futuro e que deveria ser provocada. E, ao reconhecê-
-lo claramente, torna-se mais evidente que o conhecimento
de que uma coisa assim é também eternamente real não pode
fornecer qualquer ajuda na decisão da questão propriamente
ética: A existência de uma coisa desse tipo é boa? Considerar
que uma realidade eterna é boa leva-nos a considerar, com
igual facilidade, que, uma vez que a ideia dessa coisa nos foi
sugerida, seria boa. Por conseguinte, a construção metafisica
da Realidade seria tão útil, para efeitos da Ética, como se fosse
a mera construção de uma Utopia imaginária: desde que a
coisa sugerida seja a mesma, a ficção é tão útil como a ver-
dade, dado que nos fornece matéria sobre a qual podemos
exercer um juízo de valor. Assim, apesar de admitirmos que a
Metafisica tem uma função ética, ao sugerir coisas que, de
outro modo, não nos ocorreriam, mas que, ao serem sugeri-
das, verificamos serem boas, não é enquanto Metafisica - ao
afirmar distinguir o que é real - que possui este uso. E, de
facto, a procura da verdade deve limitar a utilidade da Meta-
fisica neste aspecto. Por muito incríveis e extravagantes que
sejam as afirmações que os metafisicos tenham feito sobre a
realidade, não é de supor que se tenham coibido, em parte, de
as fazer ainda mais incríveis pelo facto de acharem ser seu

(219]
dever dizer apenas a verdade. Mas quanto mais mcríveis e
menos úteis para a Metafisica, mais úteis serão para a Ética. Isto
porque para nos certificarmos de que não esquecemos nada na
descrição do nosso ideal, deveríamos ter-nos colocado perante
um campo de bens sugeridos tão vasto quanto possível. É pro-
vável que esta utilidade da Metafisica, ao sugerir ideais pos-
síveis, possa consistir, por vezes, naquilo que se quer dizer ao
afirmar que a Ética deve basear-se na Metafisica. Não é fora
do comum depararmo-nos com uma confusão entre aquilo que
sugere uma verdade e aquilo de que ela logicamente depende.
Referimos já que os sistemas Metafisicos têm , no geral, uma
superioridade em relação aos sistemas Naturalistas, na medida
em que concebem o Bem Supremo como algo que difere mais
acentuadamente do que existe aqui e agora. Mas, se se reco-
nhecer que, neste sentido, a Ética deve ser, de modo bem mais
enfático, baseada na ficção, os metafisicas admitirão, cremos,
que uma ligação desta natureza entre a Metafísica e a Ética não
justificaria, de forma alguma, a importância que atribuem à
relevância que um estudo tem no outro.
72. Assim, o preconceito obstinado de que o conheci-
mento da realidade supersensível é um passo necessário para o
conhecimento do que é bom em si mesmo pode atribuir-se,
em parte, à falta de percepção de que o objecto deste último
julgamento não é nada de real enquanto tal e, em parte, à inca-
pacidade de distinguir a causa da nossa percepção de uma ver-
dade, da razão pela qual é verdadeira. Mas estas duas causas
adiantam muito pouco no sentido de explicar a razão pela
qual a Metafisica devia, supostamente, ter relevância na Ética.
A primeira explicação apresentada apenas daria conta da supo-
sição de que a realidade de uma coisa é condição necessária
para que possa ser boa. De facto, esta suposição é geralmente
feita; pressupõe-se, vulgarmente que, a menos que se possa
demonstrar que uma coisa faz parte da constituição da reali-
dade, ela não é boa. E, por conseguinte, vale a pena insistir
que não é este o caso; que a Metafísica não é necessária para
preencher sequer uma parte das bases da Ética. Mas quando os

[220]
Metafisicas se referem a basear a Ética na Metafísica querem,
regra geral, abranger muito mais do que isso. Vulgarmente,
querem dizer que a Metafisica é a única base da Ética - que
fornece não só uma condição necessária, mas todas as condi-
ções necessárias para provar que certas coisas são boas. E esta
perspectiva pode, à primeira vista, parecer revestir duas formas
diferentes. Pode afirmar-se que o simples provar que uma
coisa é supersensivelmente real é suficiente para provar que é
boa: que o verdadeiramente real deve, por si só, ser verdadei-
ramente bom. Mas, mais comummente, parece considerar-se
que o real deve ser bom porque possui certas características.
E cremos que se pode reduzir o primeiro tipo de afirmação a
não mais do que isto. Ao afirmar-se que o real deve ser bom,
porque é real, é também vulgar considerar-se que isto é assim
apenas porque, para ser real, deve ser de um certo género.
O raciocínio por meio do qual se pensa que uma questão me-
tafisica pode resultar numa conclusão ética é do seguinte teor:
pode inferir-se da consideração do que constitui o ser real,
que o que é real deve possuir certas propriedades supersen-
síveis: mas possuir estas características é o mesmo que ser bom
- é o significado da própria palavra; daqui resulta que o que
possui estas propriedades é bom; e da consideração do que
constitui o ser real, pode, de novo, inferir-se o que é que pos-
sui essas características. Parece óbvio que, se tal raciocínio esti-
vesse correcto, qualquer resposta que fosse dada à pergunta
"O que é que é bom em si mesmo?" poderia obter-se através
de uma discussão puramente metafisica, sem necessidade de algo
mais. Exactamente como, quando Mill supôs que "ser bom"
significava "ser desejável", a pergunta "O que é bom?" podia e
devia ser respondida unicamente por meio da investigação
empírica da pergunta sobre o que era desejável? Portanto, se
ser bom significa possuir uma propriedade supersensível, a
questão ética pode e deve ser resolvida através da indagação
metafisica relacionada com a pergunta O que é que possui esta
propriedade? O que resta fazer, de modo a destruir a plausibi-
lidade da Ética Metafisica, é denunciar os principais erros que

(221)
parecem ter levado os metafisicas a supor que ser bom significa
possuir uma propriedade supersensível.
73. Quais são, por conseguinte, as razões principais que
fizeram parecer plausível o facto de defender que ser bom deve
significar possuir uma propriedade supersensível, ou estar rela-
cionado com uma realidade supersensível?
Deve, antes de mais, notar-se uma que parece ter tido
alguma influência no aparecimento da perspectiva que encara
o bem como sendo definido por uma propriedade assim, em-
bora não sugira nenhuma propriedade em particular como a
requerida. Essa razão reside na suposição de que a proposição
"Isto é bom", ou "Isto seria bom, se existisse" deve, de uma
certa forma, ser do mesmo tipo de outras proposições. O facto
é que existe um tipo de proposição tão familiar a todos e, por-
tanto, com tal influência na imaginação, que os filósofos têm
sempre suposto que todos os outros tipos devem ser redutíveis
àquele. Este tipo é o dos objectos de experiência - todas aque-
las verdades que nos preenchem a mente durante a parte defini-
tivamente maior da nossa vida desperta: verdades como a que
está alguém na sala, que estou a escrever, a comer ou a falar.
Todas estas verdades, por muito que difiram entre si, têm em
comum o facto de que tanto o sujeito gramatical como o pre-
dicado gramatical representam algo que existe. Portanto, o tipo
de verdade, que é de longe o mais comum, é o que afirma
uma relação entre duas coisas existentes. As verdades éticas são
imediatamente sentidas como não se conformando a este tipo
e a falácia naturalista deriva da tentativa de estabelecer que, de
uma forma indirecta, aquelas se conformam a este. Torna-se
imediatamente óbvio que ao encararmos uma coisa como
boa, a sua qualidade de ser boa não constitui uma propriedade
que possamos agarrar, ou separar daquela, mesmo utilizando
os instrumentos científicos mais delicados, e transferir para
outra coisa. De facto, não se assemelha à maioria dos predica-
dos que atribuímos às coisas, uma parte da coisa a que a atri-
buímos. Todavia, os filósofos supõem que a razão pela qual não
se pode agarrar na bondade e movimentá-la não é por ser uma

[222]
espec1e diferente de objecto daqueles que se podem movi-
mentar, mas apenas por necessariamente existir ligada a algo
que seja, com que, de facto, existe. Explicam o tipo de verda-
des éticas supondo que é igual ao tipo de leis científicas. E é
apenas ao fazerem-no que os filósofos naturalistas, na verda-
deira acepção da palavra - os que são empíricos - e aqueles
que designámos por "metafisicos" se separam. Estas duas classes
de filósofos diferem, na verdade, no que diz respeito à natu-
reza das leis científicas. A primeira classe tende a supor que ao
afirmarem "Isto acompanha sempre aquilo", querem apenas
dizer "Isto tem acompanhado, acompanha agora e acompa-
nhará aquilo nestas circunstâncias particulares" : reduzem a lei
científica, muito simples e directamente, ao tipo familiar de pro-
posição que indicámos acima. Mas isto não satisfaz os metafisi-
cos. Sabem que ao afirmar-se que "Isto acompanharia aquilo,
se aquilo existisse", não se quer apenas dizer que isto e aquilo
existiram e existirão, em conjunto, umas quantas vezes. Está
para além da sua própria capacidade acreditarem que aquilo
que realmente se quer dizer é o que se diz. Tal como os em-
píricos, são incapazes de imaginar que se quer realmente dizer
que 2+2=4. Os empíricos afirmam que isto significa que
muitos pares de pares de coisas eram, em cada caso, quatro
coisas; e daí, que 2 e 2 não sejam 4, a menos que essas coisas,
e não outras, tenham existido. Os metafisicos sentem que isto
não é correcto, mas também não apresentam melhor explicação
do seu significado do que, com Leibniz, que a mente de Deus
se apresenta num certo estado, ou com Kant, que a nossa mente
se apresenta num certo estado, ou até com o Sr. Bradley, que
algo se apresenta num certo estado. Aqui reside, por con-
seguinte, a raiz da falácia naturalista. Os metafisicos têm o
mérito de perceber que, ao afirmar-se que "Isto seria bom, se
existisse" não se pode apenas querer dizer "Isto existiu e foi
desejado", por muitas vezes que isso tenha sido verdade. Admi-
tem que algumas coisas boas não existiram neste mundo, e que
algumas podem nem ter sido desejadas. Mas o que se pode
querer dizer, excepto que algo existe, não conseguem real-

[223)
mente perceber. Precisamente o mesmo erro que os leva a
supor que deve existir uma Realidade supersensível, leva-os a
cometer a falácia naturalista no qu e diz respeito ao significado
de " bom " . Pensam que cada verdade deve significar, de algum
modo, que algo existe; e dado que, contrariamente aos empí-
ricos, reconhecem algumas verdades que não significam que
algo exista aqui e agora, pensam que estas querem dizer que
algo existe não aqui e agora. Partindo do mesmo princípio,
uma vez que "bom " é um predicado que não existe nem pode
existir, são obrigados a supor qu e "ser bom" significa estar rela-
cionado com outra coisa concreta que pode existir, e existe de
facto "na realidade", ou que significa apenas " pertencer ao
mundo real " - que a bondade é transcendida ou absorvida na
realidade.
74. Que é errónea uma tal redução de todas as propo-
sições ao tipo das que afirmam que algo existe, ou que algo
que existe tem um certo atributo (o que significa que ambos
existem numa certa relação um com outro), pode facilmente
ver-se por referência à classe particular das proposições éticas.
Pois o que quer que seja que tenhamos provado existir, e
quaisquer que sejam os dois existentes que tenhamos provado
estarem necessariament e ligados um ao outro, ainda perma-
nece uma pergunta distinta e diferente, que é se o que assim
existe é bom; se cada um, ou ambos são bons; e se é bom que
existam em conjunto. Afirmar uma coisa não é, clara e obvia-
mente, o mesmo que afirmar a outra. Compreendem os o que
se quer dizer ao perguntar: Isto, que existe, ou que necessa-
riamente existe, é bom, afinal? e apercebemo-no s de que esta-
mos a fazer uma pergunta que ainda não foi respondida. Face
a esta percepção directa de que as duas perguntas são distintas,
nenhuma prova de que devem ser iguais é passível de ter qual-
quer valor. Que a proposição "Isto é bom" é, assim, diferente
de qualquer outra, ficou provado no Capítulo I. E podemos
agora ilustrar esse facto, indicando como se distingue de duas
proposições particulares, com as quais tem sido identificado.
Que isto e aquilo deveria ser feito é comummente designado

[224]
por lei moral; e esta expressão sugere, naturalmente, que esta
proposição é, de alguma forma, análoga a uma lei natural, ou
a uma lei em sentido legal , ou a ambas. De facto, as três são
realmente análogas num aspecto, e num só: ao incluírem uma
proposição que é universal. Uma lei moral afirma "Isto é bom
em todos os casos"; uma lei natural afirma " Isto acontece em
todos os casos"; e uma lei em sentido legal , "Ordena-se que isto
seja feito, ou que não seja feito, em todos os casos". Mas, dado que
é muito natural supor que a analogia é ainda mais extensível, e
que a afirmação " Isto é bom em todos os casos" é equivalente
à afirmação "Isto acontece em todos os casos", ou à afirmação
"Ordena-se que isto seja feito em todos os casos", parece ser
conveniente salientar, brevemente, que elas não são equivalentes.
75. A falácia de supor a lei moral análoga à lei natural ,
no que toca a afirmação de que uma acção é sempre neces-
sariamente realizada, está contida numa das mais famosas dou-
trinas de Kant. Este filósofo identifica o que deveria ser com
a lei, segundo a qual uma Vontade Pura ou Livre deve agir -
com o único tipo de acção que lhe é possível. E, ao fazê-lo,
Kant não pretende apenas afirmar que a Vontade Livre se en-
contra também sob necessidade de fazer o que deveria; pre-
tende dizer que o que deveria ser não significa nada a não ser
a sua própria lei - a lei segundo a qual deve agir. Difere da
vontade humana tão só nisso, o que nós deveríamos fazer é o
que necessariamente ela faz. É "autónoma"; e isto significa,
entre outras coisas, que não há um padrão à parte, pelo qual
possa ela ser julgada: que a pergunta "A lei pela qual esta Von-
tade age é boa?" não tem sentido, neste caso. Daqui resulta
que necessariamente o desejado por esta Vontade Pura é bom,
não porque esta Vontade seja boa, nem por nenhuma outra
razão; mas meramente porque é o que é desej ado necessaria-
mente por uma Vontade Pura.
A afirmação da "Autonomia da Razão Prática" de Kant
tem, por conseguinte, o efeito oposto ao que era desejado; faz
com que a sua Ética seja, em última análise e irremediavel-
mente, "heterónima". A sua Lei Moral é "independente" da

[225]
Metafisica, apenas no sentido de que, segundo o filósofo, pode-
mos conhecê-la independentemente; defende que podemos
apenas inferir que existe Liberdade do facto de a Lei Moral ser
verdadeira. Mantendo-se fiel a este ponto de vista , evita o
erro, que a grande parte dos escritores metafisicos comete, de
permitir que as suas opiniões influenciem as suas decisões
acerca do que é bom. Mas, por este ponto de vista , a Lei Moral
é dependente da liberdade, de uma maneira muito mais im-
portante do que a liberdade depende da Lei Moral. O autor
reconhece que a liberdade é a ratio essendi da Lei Moral, mas
a Lei Moral é somente a ratio cognoscendi da liberdade. Isto signi-
fica que, a menos que a Realidade seja como ele diz, nenhuma
afirmação de que " isto é bom" pode ser verdadeira: pode, na
realidade, não ter qualquer significado. Assim, Kant forneceu
aos seus opositores um método conclusivo de atacar a validade
da Lei Moral. Se só podem mostrar por outros meios (que ele
nega serem possíveis mas que, na teoria, deixa em aberto) que
a natureza da Realidade não é como o autor afirma, não pode
negar que eles provarão que o seu princípio ético é falso. Con-
siderando que "Isto deveria ser feito" significa "Isto é desejado
por um Vontade Livre" , então se é possível mostrar que não
existe Vontade Livre que deseje o que quer que seja, logo nada
deverá ser feito.
76. Kant também comete a falácia de supor que " Isto
deveria ser" significa "Isto é ordenado". Kant considera que a
Lei Moral é um Imperativo. Trata-se de um erro muito comum.
"Isto deveria ser" presume-se que deva significar "Isto é orde-
nado"; assim nada seria bom a não ser que ordenado; e uma
vez que neste mundo as ordens são passíveis de serem incor-
rectas, em última análise o que deveria ser significa "o que é
ordenado por alguma autoridade supersensível real" . No que
diz respeito a esta autoridade, não é possível perguntar "É
idónea?". As suas ordens não podem deixar de estar certas pois
estar certa significa ser aquilo que ordena. Logo, a lei, no sen-
tido moral, é supostamente análoga à lei no sentido legal e
não, em última análise, à lei no sentido natural. E supõe-se

(226]
que a obrigação moral é análoga à obrigação legal, com a
diferença de que a obrigação legal é terrena e a obrigação
moral é celestial. É obvio que se por fonte da obrigação se
quer dizer apenas o poder que nos obriga ou compele a fazer
alguma coisa, não é porque na verdade nos obriga ou com-
pele que devemos obedecer. Só se em si próprio for tão bom
que obrigue e ordene apenas o que é bom , é qu e pode ser
uma fonte de obrigação moral. E, deste modo, o que ordena
e obriga será bom, fosse ou não ordenado e obrigado. Aquilo
que faz uma obrigação legal, o facto de que é ordenado por
um certo tipo de autoridade, é absolutamente irrelevante para
uma obrigação moral. Seja como for que se defina uma auto-
ridade, as suas ordens serão moralmente obrigatórias apenas se
forem - moralmente obrigatórias; unicamente se nos infor-
marem sobre o que deveria ser ou sobre o meio como atingir
o que deveria ser.
77. Neste último erro, na suposição de que quando se
diz "deves fazer isto" pretende-se dizer "foi-te ordenado que
faças isto" , temos uma das razões que leva à suposição de que
a particular qualidade supersensível por referência à qual o que
é bom deve ser definido é a Vontade. E que as conclusões éti-
cas podem ser obtidas através de uma investigação sobre a natu-
reza de uma vontade fundamentalmente real parece ser de longe
a presunção mais comum da Ética Metafisica nos dias de hoje.
Mas esta presunção parece dever a sua plausibilidade não tanto
à suposição de que "deveria" exprime uma "ordem", mas a
um erro bem mais fundamental. Este erro consiste em supor
que atribuir certos predicados a uma coisa é a mesma coisa
que dizer que essa coisa é o objecto de um certo estado psí-
quico. Supõe-se que dizer que uma coisa é real ou verdadeira
é o mesmo que dizer que é conhecida de uma certa forma; e
a diferença entre a afirmação de que é bom e a afirmação de
que é verdadeiro - entre uma proposição ética e uma propo-
sição metafisica - consiste no facto de, enquanto esta afirma a
sua relação com a Cognição, aquela afirma a sua relação com
a Vontade.

[227]
Que isto é um erro já foi exposto no Capítulo I. Que a
afirmação "isto é bom" não é igual a afirmação "isto é dese-
jado", seja por uma vontade supersensível, ou de outra natu-
reza, ou por outra proposição qualquer, já foi provado; não
podemos acrescentar nada mais a esta prova. Mas perante esta
prova podemos antecipar duas linhas de defesa que podem ser
adoptadas. (1) Pode-se sustentar, contudo, que elas são real-
mente iguais, e podem apontar-se factos no sentido de provar
a sua igualdade. Ou então (2) pode dizer-se que uma igual-
dade absoluta não é passível de ser defendida: que tem apenas
a intenção de afirmar que existe uma ligação especial entre a
vontade e a bondade, de modo a que uma investigação sobre
a natureza real daquela constitua um passo essencial na demons-
tração das conclusões éticas. Com o objectivo de dar resposta
a estas duas objecções possíveis, propomo-nos, em primeiro
lugar, mostrar as possíveis ligações entre bondade e vontade e
ainda que nenhuma delas nos pode justificar ao afirmar que
"isto é bom" é igual a "isto é desejado" . Por outro lado, po-
derá parecer que alguns deles podem ser facilmente confundi-
dos pela afirmação de igualdade; e, por conseguinte, é provável
que se gere confusão. Esta parte do nosso argumento irá assim
de certa maneira dar resposta à segunda objecção. Mas o que
deve ser conclusivo contra isto é mostrar que qualquer possível
relação entre vontade e bondade, excepto a absoluta igualdade em
questão, não seria suficiente para a indagação sobre a Vontade
ter a mínima importância para provar qualquer conclusão ética.
78. É habitual, desde a época de Kant, afirmar que Cog-
nição, Volição e Sentimento são três atitudes distintas e funda-
mentais do espírito, em relação à realidade. São três diferentes
maneiras de sentir, cada uma informando-nos sobre um aspecto
distinto segundo o qual se pode considerar a realidade. O mé-
todo "Epistemológico" de abordar a Metafisica assenta na pre-
sunção de que ao considerarmos o que está "implícito na" Cog-
nição - o que constitui o seu "ideal" - podemos descobrir as
qualidades que o mundo deve ter, se queremos que seja verda-
deiro. E, da mesma forma, defende-se que, ao considerar o que

[228)
0 facto de Querer ou Sentir "implica"- qual é o "ideal" que
pressupõem - podem descobrir-se quais as propriedades que o
mundo deve ter para que seja bom ou belo. O Epistemologista
Idealista ortodoxo difere do Sensacionista ou do Empírico na
medida em que defende que aquilo que conhecemos directa-
mente não é tudo verdadeiro nem a verdade completa: para que
possamos rejeitar o falso e descobrir mais verdades, devemos,
afirma, apreender o conhecimento não apenas como se nos apre-
senta, mas devemos descobrir o que ele implica. E, do mesmo
modo, o Ético M etafisico ortodoxo difere do simples Naturalista
na medida em que defende que nem tudo o que desejamos de
facto é bom, nem, mesmo sendo bom, é completamente bom:
o que é verdadeiramente bom é aquilo que a natureza essencial
do querer envolve. Por outro lado, outros autores pensam que o
Sentimento, e não a Vontade, constitui o dado fundamental da
Ética. Em qualquer dos casos, contudo, é ponto assente que a
Ética mantém uma relação com a Vontade ou o Sentimento que
não mantém com a Cognição, e que outros objectos de estudo
mantêm com a Cognição. A Vontade ou o Sentimento, por um
lado, e a Cognição, por outro, são consideradas como, de alguma
forma, fontes conjugadas do conhecimento filosófico - uma da
filosofia Prática, a outra da filosofia Teórica.
O que, dentro desta perspectiva , se pode querer dizer
que seja verdadeiro?
79. Em primeiro lugar, pode querer dizer-se que, assim
como ao reflectir sobre a nossa experiência perceptiva e sen-
sorial nos tornamos conscientes da distinção entre verdade e
falsidade, é também ao reflectir sobre as nossas experiências
sentimentais e volitivas que tomamos consciência das distin-
ções éticas. Não deveríamos saber o que significa pensar qu e
uma coisa é melhor do que outra, a não ser que a atitude da
nossa vontade ou sentimento em relação a uma coisa fosse
diferente da atitude em relação a outra coisa. Pode admitir-se
tudo isto. Contudo, até agora, temos apenas o facto psicoló-
gico de que é apenas porque queremos ou sentimos as coisas de
um certo modo, que alguma vez pensamos que são boas; tal

(229]
como é apenas devido ao facto de termos certas experiências
perceptivas que pensamos que as coisas são verdadeiras. Existe,
portanto, uma ligação especial entre o querer e a bondade; é,
no entanto, uma ligação causal - o querer é condição neces-
sária da bondade.
Pode ainda acrescentar-se que o querer e o sentimento
não são a única origem de cognições da bondade; e ainda que
querer uma coisa ou ter um certo sentimento em relação a ela,
é o mesmo que a considerar boa. Pode assim admitir-se que
mesmo isto é geralmente verdadeiro, em certo sentido. Parece,
de facto, ser verdade que quase nunca pensamos se uma coisa
é boa, e nunca de forma definitiva , sem simultaneamente ter
uma atitude especial de sentimento ou querer em relação a
ela; embora não se dê o caso de isto ser verdadeiro, a nível uni-
versal. O inverso pode, no entanto, ser verdadeiro, a nível uni-
versal: pode dar-se o caso de uma percepção de bondade estar
incluída nos complexos factos que queremos significar quando
queremos algo e quando temos ceno tipos de sentimento.
Admitamos, portanto, que pensar que uma coisa é boa e querê-
-la constituem a mesma coisa, no sentido em que sempre que
esta última ocorre, aquela ocorre também como parte dela; e até
que são geralmente a mesma coisa no sentido inverso, que quando
aquela tem lugar é, em geral, como parte da última.
80. Estes factos podem parecer apoiar a afirmação geral
de que pensar que uma coisa é boa é preferi-la ou aprová-la,
no sentido em que a preferência e a aprovação denotam cer-
tos tipos de querer ou de sentimento. Afigura-se ser sempre
verdade que quando assim preferimos ou aprovamos, está
incluído nesse facto o facto de acharmos que é bom; e, por
certo, que é verdade na grande maioria dos casos, que quando
achamos que é bom, estamos também a preferir ou a aprovar.
Parece assim natural dizer que achar que é bom é preferir.
E será mais do que natural acrescentar: Quando digo que uma
coisa é boa, quero dizer que a prefiro? No entanto, acrescentar
isto implica uma confusão grosseira. Mesmo que seja verdade
que pensar que algo é bom equivalha a preferi-lo (o que, como

(230)
vimos, nunca é verdade no sentido de serem absolutamente
iguais; e nem sempre é verdade, mesmo no sentido de ocor-
rerem em conjunto), não é, no entanto, verdade que aquilo
que se pensa, quando se pensa que uma coisa é boa, seja aquela
que se prefere. Mesmo se considerarmos que pensar que uma
coisa é boa é o mesmo que a preferirmos, a bondade da coisa
- daquela em que pensamos - não é obviamente, por essa
mesma razão, o mesmo que a nossa preferência por ela. Uma
questão reside em ter ou não ter um certo pensamento; outra,
bem diferente, reside naquilo que se pensa ser verdade, e a res-
posta à primeira não tem qualquer efeito sobre esta. O facto
de se preferir uma coisa não contribui para demonstrar que ela
é boa; mesmo que contribua para demonstrar que é isso que
se pensa.
Parece ser devido a esta confusão que a pergunta "O que
é bom?" é considerada igual à pergunta "O que se prefere?" .
Diz-se, e é verdade, que nunca saberíamos que uma coisa é
boa, se não a preferíssemos, tal como nunca saberíamos que
uma coisa existia, se não a percepcionássemos. Acrescenta-se,
contudo, e é falso, que nunca saberíamos que uma coisa é boa,
a menos que soubéssemos que a preferimos, ou que essa coisa
existia a não ser que soubéssemos que a percepcionamos.
E acrescenta-se ainda, embora seja completamente falso, que
não se consegue distinguir o facto de que uma coisa é boa do
facto de a preferirmos, ou o facto de que existe do facto de a
percepcionarmos. Diz-se frequentemente que não é possível,
a dado momento, distinguir o que é verdade daquilo que pen-
samos ser verdade: o que é verdade. Mas apesar de não poder-
mos distinguir o que é verdade do que pensamos ser verdade,
podemos sempre distinguir o que queremos dizer ao afirmar
que é verdade, do que queremos dizer ao afirmar que pensamos
ser verdade. E isto porque compreendemos o significado da
suposição de que aquilo que consideramos verdadeiro pode,
todavia, ser falso. Por conseguinte, ao afirmarmos que é ver-
dade, queremos afirmar algo diferente do facto de pensarmos
que é verdade. Aquilo pensamos, nomeadamente que algo é

[231]
verdadeiro, é completamente distinto do facto de o pensarmos.
A afirmação de que é verdadeiro nem sequer inclui a afirmação
de que pensamos que é verdadeiro; embora, evidentemente,
sempre que pensamos que uma coisa é verdade, de facto, é
também verdade que o pensamos. Esta proposição tautológica
que afirma que para se pensar que uma coisa é verdadeira é
necessário que seja pensada, é, no entanto, comummente iden-
tificada com a proposição que afirma que para uma coisa ser
verdadeira é necessário que seja pensada. Um breve acto de
reflexão deveria ser suficiente para convencer qualquer pessoa
de que esta identificação é errónea; e um pouco mais chegará
para mostrar que, a ser assim, ao dizer "verdadeira" devemos
querer dizer algo que não inclui qualquer referência ao acto
de pensar ou a qualquer outro facto físico. Poderá ser difícil des-
cobrir exactamente aquilo que queremos dizer - ter o objecto
em questão à nossa frente, de forma a compará-lo com outros
objectos: mas o facto de que queremos dizer algo distinto e
único já não pode deixar margem para dúvida. A circunstân-
cia de que "ser verdade" significa ser pensado de certo modo
é, por conseguinte e com toda a certeza, falso. No entanto,
esta afirmação desempenha um papel essencial na "revolução
coperniciana" da filosofia, de Kant, e torna irrelevante toda a
literatura moderna a que aquela revolução deu origem e que
se denomina Epistemologia. Kant defendia que o que estava
unificado, de certo modo, através da actividade sintética do
pensamento era verdade ipso facto : que este era precisamente o
significado da palavra. Mas é claro que a única ligação que pode
existir entre ser verdade e ser pensado de certa forma reside no
facto de que ser pensado de certa forma deve ser um critério
ou teste de ser verdade. Contudo, para estabelecer que é na rea-
lidade assim, seria necessário estabelecer, através de métodos in-
dutivos, que o que é verdade é sempre pensado de certa forma.
A moderna Epistemologia dispensa esta investigação longa e
difícil, à custa da suposição, contraditória em si mesma, de que
a "verdade" e o critério da verdade são uma e a mesma coisa.
81. É assim uma suposição muito natural, embora total-

[232]
mente falsa, que afirma que uma coisa ser verdade equivale a
ser percepcionada ou pensada de certa forma. E dado que,
pelas razões já expostas, a preferência parece estar, grosso
modo, na mesma relação com o pensar que as coisas são boas,
em que o facto da percepção está em relação com pensar que
elas são verdade ou existem, é muito natural que se suponha
que uma coisa ser boa equivale a ser preferida de certa forma.
Mas ao aceitar esta coordenação da Volição com a Cognição,
resulta também muito natural que cada facto que parece
apoiar a conclusão de que ser verdade é igual a ser apreendido
deve confirmar a conclusão correspondente de que ser bom é
igual a ser desejado. Será assim apropriado chamar a atenção
para uma outra confusão, que parece ter tido grande influên-
cia na aceitação da perspectiva de que ser verdade é o mesmo
que ser apreendido.
Esta confusão é devida à incapacidade de compreender
que quando dizemos que temos uma sensação ou percepção ou
que sabemos uma coisa, queremos afirmar não só que a nossa
mente é cognitiva, mas também que aquilo que ela apreende é
verdadeiro. Não se costuma comentar que o uso destas pala-
vras é tal que, se uma coisa não for verdade, esse facto é sufi-
ciente em si só para justificar o afirmarmos que a pessoa que
afirma que a apreende ou sabe, não a apreende ou sabe, sem
perguntarmos, ou supormos, que o seu estado de espírito di-
fere, em algum aspecto, do estado de espírito que experimenta-
ria se não tivesse apreendido ou sabido. Com esta negação não
pretendemos acusar a pessoa de erro de introspecção, mesmo
que esse erro exista: não negamos que ela tivesse conheci-
mento de um certo objecto, nem que o seu estado de espírito
fosse exactamente aquele que a pessoa pensava ser: negamos
apenas que o objecto do qual a pessoa tinha conhecimento
tivesse uma certa propriedade. É, no entanto, vulgarmente
suposto que, quando afirmamos que uma coisa é apreendida
ou conhecida, estamos apenas a afirmar um facto; e dado que,
dos dois factos que afirmamos, a existência de um estado fi-
sico é, de longe, mais fácil de distinguir, supõe-se que este é

[233]
o único que afirmamos. Assim, a percepção e a sensação são
encaradas como se denotassem estados de espírito e apenas
isso; este erro é muito faci1 de cometer, uma vez que o estado
de espírito mais comum, ao qual damos um nome que não
envolve o facto de o seu objecto ser verdadeiro, nomeadamente
imaginação, pode, com alguma plausibilidade, supor-se diferir
da sensação e percepção, não apenas por meio da propriedade
possuída pelo seu objecto, mas também através do seu carác-
ter como estado de espírito. Chega, portanto, a supor-se que
a única diferença entre a percepção e a imaginação, através da
qual se podem definir, deve ser unicamente uma diferença
física : e, se for esse o caso, decorre imediatamente que ser ver-
dade é igual a ser percepcionado de certa forma; dado que a
afirmação de que uma coisa é percepcionada inclui, com cer-
teza, a afirmação de que é verdadeira e se, apesar disso, o facto
de ser percepcionada significa apenas que o espírito tem uma
certa atitude em relação a ela, então a verdade dela deve ser
igual ao facto de que é considerada deste modo. Podemos,
portanto, atribuir a perspectiva de que ser verdade significa ser
apreendido de certa forma, em parte, à incapacidade de com-
preender que certas palavras que normalmente se supõe repre-
sentarem apenas um certo estado cognitivo incluem também, na
realidade, uma referência à verdade do objecto desses estados.
82. Passamos agora a resumir a nossa perspectiva das liga-
ções aparentes entre vontade e proposições éticas, que pare-
cem sustentar a ténue convicção de que "Isto é bom" é igual
a "Isto é desejado de certa forma." (1) Pode defender-se, com
a necessária demonstração de verdade, que é apenas devido ao
facto de certas coisas terem sido originalmente desejadas, que
alguma vez temos convicções éticas, quaisquer que elas sejam.
E tem sido vulgarmente assumido que revelar qual foi a causa
de uma coisa é o mesmo que mostrar o que é a coisa em si
própria. Não se torna realmente necessário, no entanto, de-
monstrar que não é este o caso. (2) Pode ainda sustentar-se,
com alguma plausibilidade, que pensar que uma coisa é boa e
desejá-la de certa forma são agora verdadeiramente iguais. Deve-

[234]
mos, contudo, distinguir alguns significados possíveis desta as-
serção. Pode admitir-se que quando pensamos que uma coisa
é boa, temos geralmente uma atitude especial de vontade ou de
sentimento em relação a ela; e que, porventura, quando a de-
sejamos de uma certa forma, pensamos sempre que é boa. Mas
0 simples facto de podermos assim distinguir a questão de que,
embora uma esteja sempre acompanhada da outra, apesar de
esta outra poder nem sempre estar acompanhada da primeira,
revela que as duas coisas não são iguais, em sentido estrito.
O facto é que, seja o que for que queiramos dizer com vontade,
ou com qualquer tipo de vontade, o facto que queremos signi-
ficar com isso inclui sempre, por certo, algo além do pensar que
uma coisa é boa: e, por conseguinte, ao afirmar que desejar e
pensar que é boa são iguais, o máximo que se pode significar
é que este outro elemento da vontade acompanha sempre e é
sempre acompanhado por pensar-se que é boa; e isto, como
foi dito, é uma verdade muito duvidosa. No entanto, mesmo
que fosse realmente verdade, o facto de as duas coisas poderem
ser distinguidas é desastroso para a suposta coordenação entre
vontade e cognição, num dos sentidos em que vulgarmente se
faz essa suposição. E isto porque é apenas em relação ao outro
elemento da vontade que a volição difere da cognição; en-
quanto que é apenas em relação ao facto de a volição, ou uma
forma de volição, incluir uma cognição de bondade, que a von-
tade pode manter com as proposições éticas a mesma relação
que a cognição mantém com as proposições metafisicas. Assim
sendo, o facto da volição, no seu conjunto, ou seja, se nele
incluirmos o elemento que o define como volição e o distin-
gue da cognição, não tem com as proposições a mesma relação
que a cognição tem com as que são metafisicas. A volição e a
cognição não são formas equivalentes de sentir as coisas, dado
que é apenas na medida em que a volição denota um facto
complexo, o qual inclui um único facto simples e igual, que se
traduz na cognição, que a volição pode constituir uma forma de
sentir as coisas.
Contudo, (3) se permitirmos que os termos "volição"

[235]
ou " querer" represente1n " pensar qu e é bon1", embora usual-
mente não representem isso, haverá uma qu estão qu e perma-
nece: Qual a ligação qu e este facto estabeleceria entre a volição
e a Éti ca? Será qu e uma investi gação sobre o qu e é desej ado
poderia ser igual a uma investigação ética sobre o qu e é bom?
É bastante claro que não poderiam ser iguais; apesar de ser
também clara a razão pela qual se poderia pensar qu e o são.
A pergunta " O qu e é qu e é bom ?" é co nfundida com a per-
gunta " O que é qu e se pensa qu e é bom ?", e a pergunta
" O que é qu e é verdade?" é confundida com "O que é que
se pensa qu e é verdade?" por du as razões prin cipais. (1) Uma
delas consiste na dificuldade geral co m qu e se depara ao dis-
tinguir o que é conh ec ido da respectiva cognição. Afirma-se
qu e não é possível conh ecer nada qu e sej a verdade sem o
conhecer. Por conseguinte, dado qu e sempre qu e conh eço
uma coisa qu e é verdade, essa coisa é certamente co nhecida,
presum e- se qu e um a coisa ser verdadeira é o m esm o qu e ser
conh ecida. E (2) não se costuma afirm ar qu e certas palavras,
que deveriam denotar apenas espécies particulares de cognição,
também denotam , de fac to, qu e o obj ecto conhecido é ver-
dadeiro. Assim, se considerarmos qu e a " percepção" denota
apenas um certo tipo de facto m ental, uma vez qu e o objecto
é sempre verdadeiro, será fác il supor que ser verdadeiro signi-
fi ca apenas ser obj ecto de um estado mental daquele tipo. E, de
igual m odo, será fa cil supor qu e ser verdadeiram ente bom
difere de erradam ente se pensa r qu e o é, tão som ente no que
diz respeito ao fac to de qu e ser aqu ele consiste em ser o
obj ecto de uma voli ção que difere daqu ela em qu e o objecto
é um b em aparente, da mesma fo rma qu e uma percepção
(partindo desta suposição) difere da ilusão.
83. Ser bom não é, portanto, o m esmo que ser desejado
ou sentido sej a de qu e modo for, assim com o ser verdadeiro
não é igual a ser pensado seja de qu e forma for. M as suponha-
mos que isto é admitido: Será ainda possível qu e uma inda-
gação sobre a natureza da vontade o u do sentimento sej a uma
medida n ecessária para provar conclusões éticas? Se ser bom e

(236)
ser desejado não são equivalentes, então o máximo que se pode
defender relativamente à conexão da bondade com a vontade,
é que o que é bom é sempre desejado também, de certa forma,
e que o que é desejado de certa forma é sempre bom também.
Pode mesmo dizer-se que a isto se resume o que os escritores
metafisicas que pretendem basear a Ética na Metafisica da
Vontade querem expressar. O que poderá decorrer desta
suposição?
Parece claro que se o que é desejado de certa forma fosse
sempre bom também, o facto de uma coisa ter sido assim dese-
jada constituiria um critério da sua bondade. No entanto, para
que se possa estabelecer que a vontade é um critério de bon-
dade, devemos ser capazes de mostrar separadamente, e em
primeiro lugar, que num grande número de exemplos em que
encontramos um certo tipo de vontade, vemos também que
os objectos dessa vontade são bons. Podemos assim, talvez, in-
ferir que em alguns casos, em relação aos quais não era óbvio
se uma coisa era boa ou não, mas em que era óbvio que foi
desejada da forma requerida , a coisa era na verdade boa, dado
que possuía a propriedade que, em todos os outros exemplos,
tínhamos verificado estar acompanhada da bondade. A refe-
rência à vontade poderia assim, de forma plausível, ser útil no
final das nossas investigações éticas, na altura em que já tivés-
semos conseguido mostrar, independentemente de um grande
número de objectos diferentes, que estes eram realmente bons
e em que medida o eram. E mesmo contra esta possível utili-
dade, pode ser argumentado: (1) Que é impossível ver porque
razão não é tão fácil (e seria por certo o caminho mais seguro)
provar que a coisa em questão era boa, pelos mesmos méto-
dos que usámos para provar que outras coisas eram boas, usando
o nosso critério como referência; e (2) Que, se nos dispuser-
mos seriamente a descobrir as coisas que são boas, encontra-
remos razões para pensar (como se verá no Capítulo VI) que
elas não possuem nenhuma outra propriedade, que lhes seja
comum e peculiar, para além da sua bondade - que, de facto,
não existe nenhum critério de bondade.

[237]
84. No entanto, é desnecessário para os nossos objec-
tivos considerar se alguma forma de vontade constitui ou não
critério de bondade; e isto porque nenhum dos autores que
afirmam basear a sua Ética numa investigação sobre a vontade
reconheceu a necessidade de provar, directa e independente-
mente, que todas as coisas que são desejadas de uma certa
forma são boas. Não fazem nenhuma tentativa para mostrar
que a vontade é um critério da bondade; e não existe nenhuma
prova mais forte de que não reconhecem que isto é, no má-
ximo, tudo o que pode ser. Como acabou de se referir, se de-
fendermos que o que quer que se deseje de uma certa forma
é também bom, devemos em primeiro lugar conseguir mos-
trar que certas coisas possuem uma propriedade de "bondade",
e que as mesmas coisas têm também a outra propriedade, que
consiste em serem desejadas de uma certa maneira. Em segundo
lugar, devemos ser capazes de mostrar isto em relação a um
vasto número de exemplos, se quisermos ter o direito de rei-
vindicar a aceitação da proposição que estas duas propriedades
se encontram sempre em companhia uma da outra: mesmo
depois de isto ficar demonstrado, seria ainda duvidoso que a
inferência de "em geral" para "sempre" fosse válida e seria
quase certo que este princípio duvidoso fosse inútil. Mas a
questão a que a Ética tem por função responder é a questão
sobre quais as coisas que são boas; e, enquanto o Hedonismo
mantiver a sua popularidade, tem de admitir-se que é uma
questão sobre a qual dificilmente haverá concordância e que,
consequentemente, requer um exame muito cuidadoso.
A parte maior e mais dificil da Ética deveria assim ter sido já
realizada, antes de podermos reivindicar qualquer critério de
bondade. Se, por outro lado, ser desejado de uma certa forma
fosse igual a ser bom, deveríamos na verdade ter direito a ini-
ciar as nossas investigações éticas perguntando o que foi dese-
jado da forma requerida. É desta forma que os escritores me-
tafisicos começam as suas investigações, o que parece provar,
de modo conclusivo, que são influenciados pela ideia de que
"bondade" é igual a "ser desejado" . Não reconhecem que a

[238]
pergunta "O que é bom?" é diferente da pergunta "O que é
desejado de uma certa forma?" .
Assim, vemos que Green afirma explicitamente que " a
característica comum de bom é que satisfaz um desejo." ~ Se
considerarmos esta afirmação em sentido restrito, a mesma
declara obviamente que as coisas boas não têm características
em comum, excepto na satisfação de um desejo - nem mesmo,
por conseguinte, que são boas. E só pode ser esse o caso se ser
bom for igual a satisfazer um desejo: se "bom" for tão somente
outra designação para "que satisfaz um desejo" . Não pode
haver exemplo mais claro de falácia naturalista. E não se pode
encarar a afirmação como um mero deslize verbal, o que não
afecta a validade do argumento principal de Green. Dado que
este autor não apresenta nem pretende nunca apresentar ne-
nhuma razão para que se acredite que algo é bom seja em que
sentido for, excepto que constitui aquilo que satisfaria um
certo tipo de desejo - o tipo de desejo que o autor tenta mos-
trar ser o de um agente moral. Estamos colocados perante uma
triste alternativa. Este raciocínio forneceria razões válidas para
as suas conclusões apenas no caso de ser bom e ser desejado
de uma forma especial serem iguais: e neste caso, como se viu
no Capítulo I, as conclusões de Green não seriam éticas. Por
outro lado, se as duas coisas não são iguais, as suas conclusões
podem ser éticas e até correctas, mas o autor não nos deu uma
única razão para acreditar nelas. Aquilo que é necessário que
a Ética científica demonstre, nomeadamente que certas coisas
são realmente boas, é algo que o autor pressupõe, ao presumir
que as coisas que são desejadas de uma certa forma são sempre
boas. Podemos, por conseguinte, respeitar tanto as conclusões
de Green como as de qualquer outro homem que nos dê
conta das suas convicções éticas em pormenor; contudo, deve
ser claramente negado que qualquer dos seus argumentos nos
dê razões para considerar que as suas convicções têm mais pro-
babilidades de ser verdadeiras do que as de qualquer outro ho-

Prolegomena to Ethics, p. 178.

[239]
mem. Os Prolegomena to Ethics estão tão longe de contribuir,
ainda que da forma mais modesta possível, para a resolução
dos problemas éticos, como os Data cif Ethics do Sr. Spencer.
85. O objecto principal deste capítulo tem sido o de
mostrar que a Metafisica, entendida como a investigação de
uma realidade supersensível, não pode ter qualquer influência
lógica na resposta à questão ética fundamental "O que é bom
em si mesmo?". Que isto é verdade, decorre desde logo da con-
clusão do Capítulo I, na qual "bom" denota um predicado não
passível, em última instância, de ser analisado; mas esta verdade
tem sido tão sistematicamente ignorada, que se afigurava rele-
vante discutir e distinguir, pormenorizadamente, as principais
relações que existem, ou se tem suposto que existem, entre a
Metafisica e a Ética. Neste sentido, realçámos: (1) Que a
Metafisica pode ter influência na Ética prática - na pergunta
"O que devemos fazer?" - na medida em que nos possa infor-
mar sobre os efeitos futuros das nossas acções: o que não nos
pode dizer é se esses efeitos são bons ou maus em si mesmos.
Um certo tipo de doutrina metafisica, que é frequentemente
defendida, tem indubitavelmente essa espécie de influência na
Ética prática: pois se é verdade que a única realidade é um
Absoluto eterno e imutável, então nenhuma das nossas acções
pode ter qualquer efeito real e nenhuma proposição prática pode
ser verdadeira. A mesma conclusão decorre da proposição
ética comummente combinada com esta proposição metafi-
sica - nomeadamente de que esta Realidade eterna é também
o único bem (68). (2) Que os autores metafisicos, quando não
reparam na contradição agora apontada entre qualquer pro-
posição prática e a afirmação de que uma realidade eterna é o
único bem, parecem confundir, com frequência, a proposição
de que uma coisa existente, particular, é boa com a proposição
de que a existência dessa espécie de coisa seria boa, onde quer
que pudesse ocorrer. Para provar a primeira proposição, a Me-
tafisica poderia ser relevante, ao mostrar que a coisa existia;
para provar a Segunda, é totalmente irrelevante: pode apenas
servir para a função psicológica de sugerir as coisas que podem

[240]
ter valor - uma função que seria mais convenientemente
desempenhada pela ficção pura. (69-71).
No entanto, a fonte mais importante da suposição de
que a Metafísica é relevante para a Ética parece ser a presunção
de que "bom" deve denotar alguma propriedade real das coisas
- uma presunção que é principalmente devida a duas doutri-
nas erróneas, a primeira lógica e a Segunda epistemológica. Assim,
(3) discutimos a doutrina lógica de que todas as proposições
afirmam uma relação entre existentes; e mostrámos que a assi-
milação das proposições éticas pelas leis naturais ou por ordens
constituem exemplos desta falácia lógica (72-76). E, por fim,
(4) discutimos a doutrina epistemológica de que ser bom é equi-
valente a ser desej ado ou sentido de um modo particular; uma
doutrina que retira apoio do erro análogo que Kant conside-
rou como o ponto cardeal do seu sistema e que obteve uma
aceitação imensamente generalizada - a perspectiva errónea
de que ser "verdadeiro" ou "real" é equivalente a ser pensado
de um modo particular. Nesta discussão, os principais pontos
para os quais desejamos chamar a atenção são os seguintes:
(a) Que a Volição e o Sentimento não são análogos à Cognição,
da forma que se supõe; na medida em que estas palavras deno-
tam uma atitude do espírito em relação a um objecto, são elas
próprias meras instâncias da Cognição: diferem apenas no que
respeita ao género de objecto em relação ao qual tomam conhe-
cimento, e no que concerne aos outros acompanhamentos
mentais de tais cognições; (b) Que universalmente o objecto de
uma cognição deve ser distinguido da cognição da qual cons-
titui o objecto; e assim que, em caso algum, a questão de o
objecto ser verdadeiro pode ser igual à questão de como é per-
cepcionado ou se é sequer percepcionado: daqui decorre que
mesmo que a proposição "Isto é bom" fosse sempre o objecto
de certas espécies de vontade ou de sentimento, a verdade dessa
proposição não podia, em caso algum, ser estabelecida por meio
da prova de que constituía o seu objecto; ainda menos que essa
proposição, em si mesma, seja igual à proposição cujo sujeito
é objecto de uma volição ou de um sentimento (77-84).

[241]
CAPÍTULO V
A ÉTICA EM RELAÇÃO À CONDUTA

86. No presente capítulo temos que dar, uma vez mais,


um grande passo no método ético. Até aqui, o nosso estudo
tem sido feito tendo por base dois aspectos principais. No que
diz respeito ao primeiro, tentámos mostrar o que é que
"bom" - o que o adjectivo "bom" - significa. Este deveria ser
o primeiro ponto a ser esclarecido, devendo tornar-se sis-
temático em qualquer tratamento de Ética. É necessário que
saibamos o que "bom" significa antes de pensarmos no que é
bom, que objectos ou qualidades são bons. É necessário que
o saibamos por duas razões. A primeira é que "bom" é a noção
da qual toda a Ética depende. Não podemos querer com-
preender o que queremos dizer quando dizemos que isto ou
aquilo é bom sem antes compreendermos claramente não só
o que "isto" é ou "aquilo" é (o que as ciências naturais e a filo-
sofia podem dizer-nos), mas também o que se pretende dizer
ao apelidá-los de bons, uma matéria que está exclusivamente
reservada à Ética. A menos que estejamos esclarecidos em
relação a este ponto, o nosso raciocínio ético terá sempre
tendência a ser capcioso. Pensamos que estamos a provar que
uma coisa é "boa", quando na realidade estamos somente a
provar que é outra coisa, porque, a menos que saibamos o que
"bom" significa, a menos que saibamos o que se entende pela
noção em si, como distinta do que se entende por qualquer
outra noção, não seremos capazes de dizer quando estamos a
lidar com outra coisa que pode talvez ser como esta mas não
é, no entanto, a mesma coisa. E a segunda razão pela qual de-
vemos antes de mais fazer esta pergunta "O que é que 'bom'

(243]
significa?" é por uma qu estão de método. É isto qu e nunca
conseguimos saber, em que provas uma proposição ética se ba-
seia, até que saibamos a natureza da noção que faz da pro-
posição uma proposição ética. Não podemos dizer o que é
possível, através de provas, a favor de um juízo de "Isto ou
aquilo é bom", ou contra outro juízo "Isto ou aquilo é mau",
a menos que tenhamos reconhecido qual deve ser sempre a
natureza de tais proposições. De facto, o que se depreende do
significado de bom e de mau é que tais proposições são todas,
na expressão de Kant, "sintéticas": em última análise, devem
basear-se todas em alguma proposição que deve ser simples-
mente aceite ou rejeitada e que não pode logicamente ser
deduzida de nenhuma outra proposição. Este resultado obtido
na nossa primeira investigação pode ser expresso de outra
forma , dizendo que os princípios fundamentais da Ética de-
vem ser evidentes por si mesmos. Esperamos que a expressão
"evidente por si m esmo" não seja mal compreendida . Tal ex-
pressão significa que a proposição em si é evidente ou ver-
dadeira por si só, sozinha; que não é uma inferência de outra
proposição que não dela própria. A expressão não significa que
a proposição é verdadeira porque é evidente para mim, para si,
ou para a Humanidade porque, por outras palavras, nos parece
ser verdadeira. Dizer-se qu e uma proposição parece ser verda-
deira nunca poderá ser um argumento válido para afirmar que
ela é realmente verdadeira. Ao dizermos que uma expressão é
evidente por si mesma entendemos, enfaticamente, que o facto
de assim nos parecer não é a razão pela qual ela é verdadeira:
queremos, portanto, dizer que ela não tem absolutamente ne-
nhuma razão de ser. Não poderíamos afirmar que uma propo-
sição era evidente se disséssemos acerca de algo : Eu não posso
pensar de outra forma , portanto é verdade, porque, sendo
assim, a evidência ou prova não estaria na proposição em si
mas noutra coisa qualquer, nomeadamente, na nossa convic-
ção de tal. O facto de nos parecer ser verdade pode ser a causa
da nossa afirmação ou a razão pela qual pensamos e dizemos
ser verdade. Mas uma razão, neste sentido, é algo totalmente

(244]
diferente de uma razão lógica ou da razão pela qual algo é ver-
dade. Além do mais, não é obviamente uma razão da mesma
natureza. A prova de uma proposição, para nós, é apenas uma
razão para a considerarmos verdadeira: enquanto uma razão lógica,
ou uma razão no sentido em que as proposições que são evi-
dentes por si mesmas não possuem uma razão, é a razão pela
qual a própria proposição deve ser verdadeira e não a razão pela
qual a consideramos verdadeira. Por outro lado, o facto de
uma proposição ser evidente para nós pode não ser apenas a
razão pela qual a pensamos ou afirmamos, pode mesmo ser uma
razão pela qual deveríamos pensá-la ou afirmá-la. Mas uma
razão, também neste sentido, não constitui uma razão lógica
para a verdade da proposição, ainda que seja uma razão lógica
para a justeza de defender a proposição. No entanto, na nossa
linguagem comum estes três significados de "razão" são cons-
tantemente confundidos sempre que dizemos "Tenho uma
razão para pensar que é verdade". Mas é absolutamente essen-
cial, se queremos esclarecer noções de Ética, ou eventualmente
de outro tema qualquer, especialmente de estudos filosóficos,
que as distingamos. Portanto, quando falamos de Hedonismo
Intuitivo não devemos entendê-lo como uma insinuação de
que a negação de que "O prazer é o único bem" é baseada na
nossa Intuição da sua falsidade. A nossa Intuição da sua falsidade
é, portanto, a nossa razão para a considerar e declarar falsa; é, por-
tanto, a única razão válida para o fazer. Isto só porque não há
uma razão lógica para tal porque não há nenhuma prova ou
razão conveniente para a sua falsidade excepto ela própria.
É falso porque é falso e não há outra razão: mas declaramos que
não é verdadeira porque a sua falsidade é evidente para nós e
defendemos que essa é uma razão suficiente para a nossa afir-
mação. Não devemos, no entanto, considerar a Intuição como
uma alternativa ao raciocínio. Nada pode tirar o lugar das razões
quanto à verdade de qualquer proposição: a intuição só pode
fornecer a razão para considerarmos qualquer proposição como
verdadeira, o que deve fazer quando a proposição é evidente
e não haja efectivamente razões que provem a sua veracidade.

[245]
87. Nada mais há a acrescentar ao pnme1ro passo no
nosso método ético, o passo que estabelece que bom é bom e
nada mais e que o Naturalismo é uma falácia. Um segundo
passo foi dado quando começámos a considerar os princípios
evidentes de Ética propostos. Nesta segunda divisão, que se
apoia na nossa conclusão de que bom significa bom, começá-
mos o estudo de proposições que afirmam que este e aquele
objecto, qualidade ou conceito são bons. O princípio de Hedo-
nismo Intuitivo ou Ético - princípio de que "O prazer por si
é bom" era deste tipo. Seguindo o método estabelecido pelo
nosso primeiro estudo, reivindicámos que a falsidade destas
proposições era evidente por si mesma. Não podíamos fazer
nada para provar que não era verdade, só podíamos indicar o
mais claramente possível o que isso significava e como contra-
dizia outras proposições que pareciam igualmente verdadeiras.
O nosso único objectivo era necessariamente o de convencer.
No entanto, mesmo que tenhamos convencido, não fica pro-
vado que estejamos certos. Justifica-se a nossa afirmação de
que estamos certos, mas podemos, contudo, estar errados. De
uma coisa podemos, no entanto, orgulhar-nos com justiça de
nós próprios. É que tivemos uma melhor hipótese de respon-
der correctamente à nossa pergunta do que Bentham, Mill,
Sidgwick ou outros que nos contradisseram. Provámos assim
que estes nunca se fizeram a pergunta à qual pretenderam
responder. Confundiram-na com outra pergunta, não sendo
portanto de estranhar que a sua resposta seja diferente da nossa.
Temos que ter a certeza de que foi feita a mesma pergunta
antes de nos preocuparmos com as diversas respostas que lhe
são dadas. Tanto quanto sabemos, o mundo inteiro concor-
daria connosco se pudesse por uma vez compreender clara-
mente a pergunta para a qual queremos a sua opinião. Certo
é que, em todos os casos em que encontrámos uma diferença
de opinião, descobrimos também que a pergunta não tinha
sido bem entendida. Sendo assim, apesar de não podermos
provar que estamos certos, temos razões para crer que todas as '
pessoas, a menos que estejam enganadas em relação ao que

[246]
pensam, pensarão o mesmo que nós. É como uma soma na
matemática. Se encontramos nos cálculos um erro grande e
evidente não ficamos surpreendidos ou perturbados com o
facto de a pessoa que fez o erro obter um resultado diferente
do nosso. Pensamos que a pessoa vai admitir que o seu resul-
tado está errado se o seu erro lhe for mostrado. Por exemplo,
se uma pessoa tivesse que somar 5 + 7 + 9 não deveríamos
esperar que desse um resultado de 34 se começasse por fazer
5 + 7 = 25. E, por conseguinte, em Ética, se descobrimos,
como já aconteceu, que se confunde "desejável" com " dese-
jado" ou que "fim" é confundido com "meio", não ficaremos
portanto perturbados com o facto de aqueles que cometeram
estes erros não concordarem connosco. A única diferença é
que em Ética, devido à complexidade dos assuntos de que
trata, é muito mais dificil persuadir alguém de que tenha
cometido um erro ou que o erro afecte o seu resultado.
Nesta segunda divisão do nosso tema - divisão que trata
da pergunta "O que é que é bom em si?" - tentámos até aqui
estabelecer somente uma conclusão definitiva que viria a ser
uma conclusão negativa: nomeadamente que o prazer não é o
único bem. A ser verdadeira, esta conclusão refuta metade ou
mesmo mais de metade das teorias éticas que têm sido defen-
didas e tem, portanto, a sua importância. Será no entanto
necessário de momento que lidemos positivamente com a
pergunta: Que coisas são boas e em que graus o são?
88. Mas antes de prosseguirmos este estudo, devemos
lidar primeiro com o terceiro tipo de pergunta ética - a per-
gunta: O que devemos nós fazer?
A resposta a esta pergunta constitui a terceira grande
divisão do inquérito ético e a sua natureza foi brevemente
explicada no Capítulo I (parágrafos 15 - 17) . Esta introduz na
Ética, como atrás foi demonstrado, uma questão totalmente
nova - a questão das coisas que são referidas como causas para
o que é bom por si só. Esta pergunta só pode ser respondida
através de um método totalmente novo - o método da inves-
tigação empírica através do qual nas outras ciências as causas

[247]
são descobertas. Perguntar que tipo de acções devemos exe-
cutar ou que tipo de conduta é correcta é perguntar que tipo
de efeitos produzirá tal acção ou conduta. Na Ética prática,
qualquer resposta implica uma generalização causal. Todas
estas perguntas envolvem no entanto também um juízo ético
apropriado - o juízo de que certos efeitos são em si melhores
do que outros. Mas elas afirmam de facto que essas coisas me-
lhores são efeitos - que são causalmente relacionados com a
acção em questão. Qualquer juízo na Ética prática pode ser
reduzido à seguinte forma: Isto é a causa desta coisa boa.
89. O primeiro ponto sobre o qual gostaríamos de cha-
mar a atenção é o caso das perguntas: O que está certo? Qual
é o meu dever? Que devo fazer? Estas perguntas pertencem
exclusivamente a este terceiro ramo do inquérito ético. Todas
as leis morais, como pretendemos demonstrar, são meras decla-
rações de que certo tipo de acções terá efeitos bons. O oposto
deste ponto de vista tem sido de um modo geral predomi-
nante na Ética. "O correcto" e "o útil" são entendidos como
sendo pelo menos capazes de chocarem um com o outro e
serem ao mesmo tempo essencialmente distintos. Tem sido
característico de uma certa escola de moralistas, como da mo-
ral do senso comum, declarar que o fim nunca justifica os
meios. O que pretendemos demonstrar primeiro é que "cor-
recto" significa e pode significar nada mais do que "causa de
um bom resultado" e, sendo assim, é idêntico a "útil". Daí
decorre que o fim justificará sempre os meios e que nenhuma
acção que não seja justificada por estes resultados estará cor-
recta. Admito plenamente que possa haver uma proposição
verdadeira que tenha por intuito ser transmitida pela afir-
mação "O fim não justificará os meios" mas, noutro sentido,
num sentido muito mais fundamental para a teoria Ética, isto
é totalmente falso e deverá ser primeiro demonstrado.
O facto de a afirmação "Estou moralmente sujeito a
praticar esta acção" ser idêntica à afirmação "Esta acção pro-
duzirá a maior quantidade possível de bem no Universo" já foi
brevemente demonstrado no Capítulo I (parágrafo 17). Porém,

[248]
é importante insistir no facto de que se pode demonstrar que
este ponto fundamental é correcto, o que pode talvez tornar-
-se mais evidente da seguinte maneira: é certo que quando
afirmamos que uma determinada acção é nosso dever absoluto
estamos a afirmar que a execução dessa acção nesse momento
é única no que diz respeito ao valor. Mas nenhuma acção que
deva ser cumprida pode ter valor único no sentido em que é
a única coisa de valor no mundo. Sendo assim, neste caso, cada
acção desse tipo seria a única coisa boa, o que é uma con-
tradição óbvia. E, pela mesma razão, o seu valor não pode ser
único no sentido em que tem mais valor intrínseco do que
qualquer outra coisa no mundo. Desse modo, cada acto de
dever seria então a melhor coisa do mundo, o que é também
uma contradição. Pode então ser único somente no sentido
em que o mundo inteiro será melhor se este for executado,
em vez de ser tomada qualquer outra alternativa. E a questão
de ser ou não assim pode não depender só da questão do seu
próprio valor intrínseco. Daí que qualquer acção terá também
efeitos diferentes dos de qualquer outra acção, e se qualquer
um destes tiver valor intrínseco, esse valor será tão relevante
para o total de bondade do Universo como o valor da sua
causa. É de facto evidente que, por mais valiosa que uma
acção possa ser em si, ainda que devido à sua existência a soma
de bem no Universo pode de modo concebível tornar-se menor
do que outra acção menos valiosa que tenha sido executada.
Mas esta afirmação equivale a dizer que teria sido melhor que
a acção não tivesse sido praticada e isto é uma vez mais equi-
valente à declaração de que não havia necessidade de ser pra-
ticada - que não era o dever necessário. "Fiat justia, ruat
caelum" só pode ser justificado no sentido em que, ao fazer-
-se justiça, o Universo ganhe mais do que na queda dos céus.
É com certeza possível que isso seja verdade, mas, de qualquer
modo, afirmar que a justiça é um dever apesar de tais conse-
quências é afirmar que isso é verdade.
O nosso "dever" só pode, portanto, ser definido como a
acção que causará maior bem no Universo do que qualquer

[249]
outra alternativa. E o que está "certo " ou o que é "moral-
mente admissível" só difere disto enquanto algo que não causará
menos bem do que qualquer outra alternativa. Logo, quando a
Ética se atreve a afirmar que certas formas de agir são "deve-
res" pretende afirmar que agir dessa forma produzirá sempre
a maior soma possível de bem. Se nos dizem que "não matar"
é um dever, estão a dizer-nos que a acção à qual se chama
matar, seja ela qual for, não causará em nenhuma circunstân-
cia tanto bem no Universo como o facto de se a evitarmos.
90. Mas, se isso for reconhecido diversas outras conse-
quências mais importantes se seguem no que diz respeito à
relação da Ética com a conduta.
(1) É certo que nenhuma lei moral é evidente por si
mesma , como tem sido geralmente defendido pela escola In-
tuitiva dos moralistas. A visão Intuitiva da Ética consiste na
suposição de que certas regras que declaram que certas acções
devem ser sempre praticadas ou omitidas podem ser vistas
como premissas evidentes. Demonstrámos em relação aos juí-
zos relativos àquilo que é que é bom por si, dos quais este é um
caso, que nenhuma razão pode ser dada por eles. Mas é a
essência do Intuicionismo supor que as regras de acção - decla-
rações não do que deve ser mas do que devemos fazer - são,
de uma certa forma, intuitivamente indubitáveis. Tem sido
concedida plausibilidade a este ponto de vista pelo facto de
que fazemos indubitavelmente juízos imediatos, dizendo que
certas acções são obrigatórias ou erradas: estamos assim muitas
vezes intuitivamente certos dos nossos deveres, num sentido psi-
cológico. Mas, no entanto, estes juízos não são evidentes por si
mesmos e não podem ser tomados por premissas éticas, a menos
que, como foi demonstrado, sejam passíveis de ser confirma-
dos ou refutados por uma investigação de causas e efeitos. É
de facto possível que algumas das nossas intuições imediatas
sejam verdadeiras. Mas, uma vez que aquilo que intuímos, uma
vez que o que a nossa consciência nos diz é que certas acções
produzirão sempre a maior soma de bem possível, consoante
as circunstâncias, é certo que podem ser dadas razões que

[250]
demonstrarão se os veredictos da consciência são verdadeiros
ou falsos .
91. (2) Para demonstrar que qualquer acção é um dever,
é necessário sabermos não só quais são as outras condições
que, em conjunto com esta, vão determinar os seus efeitos,
mas é também preciso saber-se exactamente quais serão os
efeitos destas condições e ainda quais os acontecimentos que
serão de alguma forma afectados pela nossa acção, num futuro
infinito. Devemos ter todo este conhecimento causal e, para
além dele, devemos saber exactamente o grau de valor da acção
em si e de todos esses efeitos; devemos também ser capazes de
determinar como é que, em conjunção com as outras coisas
no Universo, eles afectarão o seu valor como um todo orgâ-
nico. Mas não só, devemos também possuir todo este conhe-
cimento em relação aos efeitos de cada alternativa possível e
devemos então ser capazes de verificar, pela comparação, que
o valor total devido à existência da acção em questão será
maior do que o que seria se produzido por qualquer uma des-
tas alternativas. Mas é óbvio que o nosso conhecimento causal
por si só é muito incompleto para que alguma vez possamos
ter certezas relativamente a esta questão. Por consequência,
depreende-se que nunca temos nenhuma razão para supor
que uma acção é o nosso dever, nunca podemos ter a certeza
de que uma acção produzirá o maior valor possível.
Sendo assim, de uma certa forma, a Ética é incapaz de
nos fornecer uma lista de deveres mas, no entanto, continua a
haver uma modesta tarefa que a Ética Prática pode desem-
penhar. Apesar de não podermos esperar conseguir descobrir
qual é, em determinada situação, a melhor alternativa possível
de todas as acções alternativas possíveis, pode haver uma pos-
sibilidade de mostrar qual, de entre as alternativas que possam
ocorrer a qualquer um, produzirá a maior soma de bem. Esta
segunda tarefa é certamente tudo o que a Ética poderá alguma
vez ter realizado e certamente tudo aquilo que tentou provar
através do material seleccionado para tal, uma vez que nunca
ninguém tentou esgotar as acções alternativas possíveis em

[251]
nenhum caso particular. Os fil ósofos éti cos restringiram de
facto a sua atenção a uma categoria muito limitada de acções,
as quais foram seleccionadas por serem as que ocorrem mais
frequentemente à humanidade como alternativas possíveis.
No que diz respeito a estas, poderá talvez ter sido mostrado
que uma alternativa é melhor, isto é, que produz um total
maior de valor do que as outras. Mas parece importante insis-
tir no facto de que, apesar de terem descr ito esta conclusão
como uma determinação de deveres, pode na realidade nunca
ter sido assim. É certamente pelo facto de o termo " dever" ser
tão usado qu e, se mais tarde formos persuadidos de que qual-
quer acção possível teria produzido mais bem do que a que
adoptámos , admitimos ter falhado o nosso dever. Será, no en-
tanto, uma tarefa útil se a Ética puder determinar qual de entre
as alternativas que possam ocorrer produzirá o maior valor total.
Porque, ainda que esta alternativa não possa ser provada como
sendo a melhor possível, deve no entanto ser melhor do que
qualquer tipo de acção que devêssemos de outro modo adoptar.
92. Uma dificuldade em distinguir esta tarefa , que a
Ética pode empreender com alguma esperança de sucesso, da
tarefa desesperada de descobrir os deveres , surge da ambigui-
dade da utilização do termo "possível". Pode dizer-se, num
sentido perfeitamente legítimo, que uma acção é impossível
somente porque a ideia de a executar não nos ocorre. Neste
sentido então, as alternativas que ocorrem a uma pessoa se-
riam as únicas alternativas possíveis, e a melhor delas seria a
melhor acção possível consoante as circunstâncias, sendo, con-
sequentemente, abrangida pela nossa definição de " dever".
Mas quando falamos da melhor acção possível como sendo o
nosso dever, entendemos pelo termo qualquer acção que ne-
nhuma outra circunstância conhecida evitaria, se a ideia da
mesma nos tivesse ocorrido. E esta utilização do termo está de
acordo com o uso popular, pois admitimos que uma pessoa
possa falhar no seu dever por não lhe ter ocorrido pensar no
que poderia ter feito. Visto que dizemos que ela poderia ter
feito, o que todavia não lhe ocorreu, é claro que não limita-

[252]
mos as suas poss1ve1s acções àquelas que ela pensa . Pode ser
afirmado, com mais plausibilidade, que entendemos pelo de-
ver de uma pessoa somente o melhor das acções nas quais ela
pode ter pensado. E é verdade que não culpamos ninguém
muito severamente por omitir uma acção na qual, como dize-
mos, "não se esperava que pensasse". Mas até nisto é claro que
reconhecemos a distinção entre o que a pessoa poderia ter
feito e o que poderia ter pensado fazer: consideramos ser uma
pena que não tenha agido de outra forma. E "dever" é, indu-
bitavelmente, usado num sentido tal que constituiria uma con-
tradição afirmar que era de lamentar que uma pessoa fizesse o
seu dever.
Devemos assim distinguir uma acção possível de uma
acção em que é possível pensar. A primeira significa uma
acção que não seria impedida por nenhuma causa conhecida,
partindo do princípio que nos tinha ocorrido: e que uma de
entre essas acções, que produzirá o maior bem total, é o que
entendemos por dever. A Ética não pode certamente esperar
descobrir que tipo de acção é sempre neste sentido o nosso
dever. Pode no entanto esperar decidir qual, de entre uma ou
duas acções possíveis, é a melhor e aquelas que a Ética tiver
escolhido são, na realidade, as mais importantes de entre aque-
las em relação às quais as pessoas deliberam se devem ou não
praticá-las. Uma decisão em relação a estas pode, por conse-
guinte, ser facilmente confundida com uma decisão relativa a
qual é a melhor acção possível. Mas é de notar que, ainda que
nos limitemos a considerar qual é a melhor de entre as alter-
nativas que possam ser pensadas, o facto de estas alternativas
poderem ser pensadas não está incluído naquilo que queremos
dizer quando as designamos por alternativas possíveis. Mesmo
se, em qualquer caso, fosse impossível que a ideia destas tivesse
ocorrido a uma pessoa, a questão pela qual nos interessamos é
a de qual, se tivesse ocorrido, teria sido a melhor alternativa?
Se dizemos que matar é sempre a pior alternativa, pretende-
mos afirmar que é assim, mesmo se fosse impossível ao homi-
cida pensar fazer outra coisa qualquer.

(253]
Assim, o melhor que a Ética Prática pode esperar desco-
brir é qual de entre algumas alternativas possíveis em certas
circunstâncias produzirá ao fim e ao cabo o melhor resultado.
Poderá assim dizer-nos qual é a melhor, neste sentido, de cer-
tas alternativas sobre as quais tenhamos que deliberar; e, uma
vez que podemos também saber que, mesmo que não esco-
lhamos nenhuma delas, o que devemos fazer nesse caso não é
muito provável que seja tão bom como uma delas, pode tam-
bém dizer-nos qual das alternativas, de entre as que podemos
escolher, é a melhor. Se a Ética pudesse fazer isto, já seria o
suficiente para uma orientação prática.
93. Mas (3) é evidente que mesmo esta é uma tarefa de
uma dificuldade imensa. É dificil ver como podemos estabe-
lecer nem que seja uma probabilidade de que, ao fazermos
uma coisa, obtenhamos um resultado total melhor do que fa-
zendo outra. Vamos preocupar-nos apenas em mostrar o que
pressupomos quando assumimos que há uma tal probabilidade
e em que medida é que é possível que esta suposição possa ser
justificada. Será óbvio o facto de que nunca foi até aqui justi-
ficada - que nenhuma razão suficiente foi ainda encontrada
para considerar uma acção mais correcta ou mais errada do
que outra.
(a) A primeira dificuldade na forma de se estabelecer
uma probabilidade de que uma actividade planeada dará um
melhor resultado total do que outra reside no facto de termos
que ter em conta os efeitos de ambas através de um futuro
infinito. Não temos nenhuma certeza a não ser a de que se
praticarmos uma acção agora, o Universo irá ao longo dos
tempos diferir de alguma forma do que teria sido se tivésse-
mos praticado outra acção. E, se há uma tal diferença perma-
nente, isso é certamente relevante para o nosso cálculo. Mas é
quase certo que o nosso conhecimento causal é totalmente
insuficiente para nos dizer que diferentes efeitos resultarão
provavelmente de duas acções diferentes , excepto dentro de
um espaço de tempo comparativamente curto; podemos cer-
tamente pretender calcular somente os efeitos de acções na-

[254]
quilo a que se pode chamar um futuro "imediato". Ninguém ,
quando age na base daquilo que considera uma consideração
de efeitos racionais, orientaria a sua escolha através de uma
previsão que fosse para além, no máximo, de alguns séculos; e
geralmente consideramos ter agido racionalmente se pensamos
que conseguimos assegurar um equilíbrio do bem no espaço
de poucos anos, meses ou dias. No entanto, para que uma
escolha orientada por tais considerações seja racional, deve-
mos ter certamente alguma razão para acreditar que nenhumas
consequências da nossa acção num futuro mais distante serão
em geral de modo a inverter o equílibrio provável do bem
provável no futuro que podemos prever. Este constitui um
importante postulado se alguma vez quisermos defender que
os resultados de uma acção serão, ainda que apenas provavel-
mente, melhores do que os de outra. A nossa total ignorância
do futuro longínquo não nos dá nenhuma justificação para
sequer dizermos que é provavelmente certo, escolher o maior
bem dentro da área que a provável previsão possa abranger.
Assumimos então que é improvável que, após um certo tempo,
os efeitos sejam geralmente de modo a reverter o valor com-
parativo dos resultados da alternativa dentro desse tempo. E o
facto de que esta suposição é justificada deve ser demonstrado
antes de podermos reclamar ter dado qualquer razão que seja
para agirmos de uma forma em vez de outra. Pode talvez ser
justificada por considerações como as que seguem. Como nos
afastamos cada vez mais do tempo em que as acções alternati-
vas nos estão abertas, os acontecimentos dos quais cada acção
seria uma causa parcial tornam-se cada vez mais dependentes
dessas outras circunstâncias que são as mesmas qualquer quer
que seja a acção que adoptemos. Os efeitos de qualquer acção
individual parecem, após um certo espaço de tempo, ser ape-
nas encontrados em frívolas modificações que se espalham por
uma área muito vasta enquanto que os seus efeitos imediatos
consistem em algumas modificações proeminentes numa área
comparativamente limitada. Visto que, de qualquer forma, a
maior parte das coisas que têm grande importância para o

[255]
bem ou para o mal são co isas deste tipo, pode haver uma
probabilidade de, após um certo período de tempo, todos os
efeitos de qualquer acção particular se tornarem tão indife-
rentes que se torne pou co provável que qualquer diferença
entre os seus valores e o valor dos efeitos de outra acção pre-
valeçam sobre uma diferença óbvia no valor dos efeitos ime-
diatos. Parece ser de facto verdade que, na maior parte dos
casos, qualquer que seja a acção que adaptemos agora, "tudo
estará igual daqui a cem anos" no que diz respeito à existên-
cia nesse tempo de algo extremamente bom ou mau. Isto pode
talvez provar-se ser verdadeiro através de uma investigação do
modo pelo qual os efeitos de qualquer acontecimento parti-
cular são neutralizados pela passagem do tempo. Na falta de
tal prova, não teremos certamente qualquer motivo racional
para afirmar que uma das duas alternativas é, ainda que apenas
provavelmente, certa, sendo a outra errada. Se qualquer um
dos nossos juízos de correcção e erro são para simular proba-
bilidades, devemos ter razão para pensar que os efeitos das
nossas acções num futuro longínquo não terão valor suficiente
para prevalecer relativamente a qualquer superioridade de um
conjunto de efeitos sobre outro no futuro imediato.
94. (b) Devemos então presumir que, se os efeitos de
uma acção são geralmente m elhores do que os de uma outra
acção no âmbito futuro dentro do qual formos capazes de pre-
ver qualquer diferença provável nos seus efeitos, então o efeito
total da primeira acção sobre o Universo é também geralmente
melhor. Não podemos certamente esperar comparar directa-
mente os seus efeitos excepto num futuro limitado; e todos os
argumentos que têm sido usados em Ética, sobre os quais agi-
mos geralmente no dia-a-dia, e referidos para mostrar que um
comportamento é superior a outro são (à parte os dogmas
teológicos) apenas para mostrar essas prováveis vantagens ime-
diatas. No entanto, a questão mantém-se: Será que podemos
estabelecer quaisquer regras gerais no sentido de que uma entre
algumas acções alternativas produz em geral um maior total de
bem no futuro imediato?

[256)
É importante insistir no facto de que esta questão, limi-
tada como é, ser a única, para a qual a Ética Prática pode
esperar dar uma resposta com o conhecimento que temos
nesta fase ou que provelmente venhamos a ter num futuro
longínquo. Mencionámos já que não podemos esperar desco-
brir a melhor alternativa possível numa dada situação, mas ape-
nas a que, entre umas quantas, é melhor do que as outras.
Referimos também que não existe mais do que a probabili-
dade, mesmo que nos achemos com direito a presumi-lo, de
que o que se afigura ser melhor em termos de efeitos imedia-
tos seja melhor também no seu todo. R esta insistir que, mes-
mo no que respeita a esses efeitos imediatos, apenas podemos
esperar descobrir quais os que, de entre umas quantas alterna-
tivas, produzirão, de um modo geral, a maior proporção total de
bem no futuro imediato. N ão podemos assegurar que a obe-
diência a mandamentos como "Não mentirás" ou até "Não
matarás" é universalmente melhor do que as alternativas de
mentir e matar. Já foram dadas no Capítulo I (parágrafo 16)
algumas razões pelas quais não é possível mais do que um co-
nhecimento geral; poderemos, no entanto recapitulá-las aqui.
Em primeiro lugar, relativamente aos efeitos que nos dizem
principalmente respeito nos estudos éticos como tendo valor
intrínseco, conhecemos tão pouco as causas que dificilmente
podemos reivindicar, em relação a qualquer um, ter obtido
uma ainda que hipotética lei universal, como têm feito as ciên-
cias exactas. Não podemos sequer dizer: Se esta acção for exe-
cutada nestas exactas circunstâncias, pelo menos este efeito
importante será sempre produzido. Mas, em segundo lugar,
uma lei ética não é só hipotética. Para sabermos se será sempre
melhor agir de certa forma, em certas circunstâncias, devemos
saber não somente que efeitos tais acções produzirão, desde que
não interfiram outras circunstâncias, mas também que não
haverá interferência de nenhuma outra circunstância. E isto é
obviament~ possível apenas enquanto probabilidade. Uma lei
ética tem a natureza não de uma lei científica mas de uma pre-
visão científica: e a mais recente é sempre meramente provável,

(257)
ainda que a probabilidade seja muito grande. Um engenheiro
está habilitado a declarar que, se uma ponte for construída de
uma certa forma, aguentará provavelmente certos pesos durante
um certo tempo ; mas nunca poderá ter a certeza absoluta de
que foi construída da forma necessária, nem que, mesmo que
o tenha sido, um qualquer acidente não possa ocorrer, alterando
a sua previsão. O mesmo acontece com qualquer lei ética, já
que não pode ser mais do que uma generalização: e no nosso
caso, devido à ausência comparativa de conhecimentos hipo-
téticos exactos sobre os quais a previsão devia basear-se, a pro-
babilidade é comparativamente pequena. Mas, finalmente, para
uma generalização ética é necessário que saibamos não somente
que efeitos serão produzidos, mas também quais são os valores
comparativos desses efeitos; e também nesta pergunta deve ser
admitido, tendo em conta o quanto o Hedonismo tem sido
uma opinião predominante, que estamos sujeitos a erro.
É então evidente que tão cedo não viremos a saber mais do
que o seguinte: que esse tipo de acção produzirá geralmente
melhores efeitos do que outro; e que nunca foi possível provar
mais do que isso. Em nenhum caso todos os efeitos de qual-
quer tipo de acção serão exactamente os mesmos de outro
caso, porque em cada um deles algumas das circunstâncias
serão diferentes; e ainda que os efeitos que são importantes
para o bem ou para o mal possam ser geralmente os mesmos,
é extremamente improvável que o sejam sempre.
95. (c) Se nos limitarmos agora a uma investigação das
acções que são geralmente melhores como meios do que qual-
quer alternativa provável, parece possível estabelecer o seguinte
em defesa da maior parte das regras universais reconhecidas
pelo Senso Comum. Não proponho encetar esta defesa com
grande pormenor, mas tão somente mostrar quais parecem ser
os princípios fundamentais que podemos utilizar para esse efeito.
Em primeiro lugar, então, só podemos demonstrar que
uma acção é geralmente melhor do que outra como meio
desde que existam certas outras circunstâncias. De facto, só
observamos os seus efeitos positivos em determinadas circuns-

(258]
tâncias, podendo verificar-se facilmente que uma mudança
dessas mesmas circunstâncias tornaria duvidosa o que parecia
ser a mais universalmente certa das regras gerais. Deste modo,
a não utilidade de matar só pode ser provada se a maioria da
raça humana persistir em existir. Para provar que o assassínio,
se fosse universalmente adaptado de modo a causar a rápida
exterminação da raça, não seria bom como meio, teríamos que
refutar a principal afirmação do pessimismo - nomeadamente,
que a existência da vida humana é, ao fim e ao cabo, um mal.
E a opinião do pessimismo, por mais fortemente convencidos
que estejamos da sua verdade ou falsidade, nunca foi nem
provada nem refutada de modo conclusivo. Que o homicídio
universal não seria uma coisa boa neste momento não pode
então ser provado. Mas, na realidade, nós podemos e assumimos
com certeza que, mesmo se algumas pessoas tiverem vontade
de matar, a maior parte das pessoas não terão essa vontade.
Quando dizemos, portanto, que o homicídio deve ser geral-
mente evitado, queremos somente dizer que é assim enquanto
a maioria da humanidade não concordar certamente com o
homicídio e persistir em viver. E, assim, nestas circunstâncias
é facil provar que é errado que uma pessoa cometa homicídio.
Por isso, uma vez que não existe a mínima hipótese de exter-
minar a raça, os únicos efeitos que temos que considerar são
os que a acção terá sobre o aumento dos bens e a diminuição
dos males da vida humana. Quando o melhor não se pode
alcançar (presumindo que a exterminação fosse o melhor) uma
alternativa pode ainda ser melhor que outra. E para além dos
males imediatos que os homicídios produzem geralmente,
poderíamos ainda contra-argumentar afirmando que se o acto
de matar fosse uma prática comum, o sentimento de insegu-
rança causado absorveria muito tempo, tempo que poderia ser
gasto em melhores fins. Enquanto os homens desejarem tanto
viver como desejam e durante tanto tempo quanto esperam
continuar a viver, tudo o que os impeça de dedicar a sua ener-
gia à obtenção de bens positivos parece claramente mau como
meio. E a prática geral de homicídio, não sendo, nem de

[259]
longe, uma prática universal como é certamente necessário
que sejam todas as condições sociais, certamente parece ser
um obstáculo deste tipo.
Uma defesa semelhante parece ser possível para a maio-
ria das regras reforçadas universalmente por sanções legais,
como é o caso do respeito pela propriedade, bem como para
algumas das mais vulgarmente reconhecidas pelo Senso Comum
como a capacidade de trabalho, a temperança e a capacidade
de ser fiel às promessas feitas . Em qualquer estado da socie-
dade na qual os homens tenham esse intenso desejo de pro-
priedade de qualquer espécie, desejo esse que parece ser uni-
versal, as regras legais comuns para a protecção da propriedade
devem servir para facilitar o melhor uso possível de energia.
E do mesmo modo, a capacidade de trabalho é um meio para
a obtenção dessas coisas necessárias, sem as quais a obtenção
de quaisquer grandes bens positivos suplementares é impos-
sível; a temperança apenas impõe o evitar dos excessos que,
prejudicando a saúde, impediriam o homem de contribuir o
máximo possível para a obtenção dessas coisas necessárias; e a
capacidade de respeitar as promessas feitas facilita grande-
mente a cooperação no sentido da obtenção desses bens.
Todas estas regras parecem ter duas características às quais
devemos dar atenção. (1) Todas elas parecem ter em comum
o facto de que, em qualquer estado conhecido da sociedade,
um cumprimento geral das mesmas seria bom enquanto meio.
As condições de que depende a sua utilidade, nomeadamente
a tendência para preservar e propagar a vida e o desejo de pro-
priedade, parecem ser tão universais e tão fortes que seria im-
possível fazer com que deixassem de existir; sendo assim, pode
dizer-se que, em quaisquer circunstâncias, a observância geral
destas regras seri boa enquanto meio. Já que, enquanto parece
não haver razão para se pensar que essa observância contribui
para tornar uma sociedade pior do que uma outra em que as
mesmas regras não fossem observadas, ela certamente é neces-
sária como meio para qualquer estado de coisas em que se pre-
tenda alcançar os melhores bens possíveis. E (2) estas regras,

[260]
dado poderem ser recomendadas como meio para aquilo que
é, em si mesmo, uma condição necessária à existência de qual-
quer grande bem, podem ser defendidas independentemente
de opiniões correctas sobre a primeira questão ética relativa ao
que é que é bom em si . Em qualquer opinião comum , parece
certo que a preservação da sociedade civilizada, a que estas
regras são absolutamente indispensáveis, é necessária para a exis-
tência, em qualquer grau de grandeza, do que quer que possa
ser tido como bom em si.
96. Mas de modo nenhum todas as regras comummente
reconhecidas reúnem estas duas características. Os argumentos
a favor da moralidade do Senso Comum pressupõem muitas
vezes a existência de condições que não podem ser razoavel-
mente assumidas como sendo tão universalmente necessárias
como a tendência para continuar a vida e o desejo de proprie-
dade. Tais argumentos, por consequência, só provam a utili-
dade da regra enquanto certas condições, que podem alterar,
se mantiverem as mesmas: não pode ser exigido das regras assim
defendidas que sejam geralmente boas enquanto meios em
todos os estados da sociedade. Para estabelecer esta utilidade
universal geral seria necessário chegar a uma interpretação cor-
recta do que é bom ou mau em si . Este parece aliás ser o caso
da maior parte das regras contidas sob a designação de Castidade.
Essas regras são geralmente defendidas por autores Utilitaristas
ou por autores que assumem como seu objectivo a conservação
da sociedade, com argumentos que pressupõem a necessária
existência de sentimentos tais como o ciúme conjugal e o
afecto paternal. Estes sentimentos são, sem dúvida, suficiente-
mente fortes e gerais para que defesa seja válida relativamente
a diferentes condições da sociedade. Mas não é dificil imagi-
nar a existência de uma sociedade civilizada sem eles; e, em tal
caso, se a castidade continuasse a ser defendida, seria neces-
sário estabelecer que a sua violação produziria efeitos maus,
diferentes daqueles que têm a ver com a opinião de que essa
violação tenderia a desintegrar a sociedade. Tal defesa pode
sem dúvida ser feita, mas necessitaria de uma análise das ques-

[261]
tões levantadas pela pergunta ética básica relativa à definição do
que é que é mau em si, uma análise necessariamente muito mais
completa do que qualquer autor ético alguma vez levou a cabo.
Quer seja ou não assim neste caso específico, o que é certo é
que deveria fazer-se uma distinção, que não é normalmente re-
conhecida, entre as regras cuja utilidade social depende da exis-
tência de circunstâncias mais ou menos prováveis de alterar e
aquelas cuja utilidade parece ser certa em quaisquer condições.
97. É obvio que todas as regras que foram acima enu-
meradas como provavelmente úteis em quase todos os estados
de sociedade, podem também ser defendidas com base nos
resultados que produzem em condições que só existem em
estados particulares de sociedade. E devia dar-se atenção ao
facto de termos a possibilidade de reconhecer _entre estas con-
dições as sanções relativas a penalizações legais, a desaprovação
social, e o remorso pessoal sempre que elas ocorrem. Estas
sanções são de facto normalmente tratadas pela Ética apenas
enquanto motivos para a prática de acções cuja utilidade pode
ser provada independentemente da existência dessas sanções.
E pode ser admitido que as sanções não deveriam ser ligadas a
acções que não fossem correctas independentemente delas. Não
obstante, é certo que, quando elas existem, não constituem
apenas só motivos mas também justificações para as acções em
questão. Uma das principais razões pelas quais uma determi-
nada acção não deveria ser praticada em nenhum estado par-
ticular da sociedade é a de que seria punida; uma vez que o
castigo é geralmente por si só um mal maior do que o que
teria sido causado pela omissão da acção punida. Assim, a exis-
tência de um castigo pode ser uma razão adequada para con-
siderar uma acção como errada em geral, mesmo que não tenha
nenhum outro efeito mau e, até pelo contrário, possa ter alguns
efeitos relativamente bons. O facto de que uma acção será
punida é uma condição exactamente do mesmo tipo de ou-
tras, com maior ou menor permanência, que devem ser tidas
em conta quando se analisa a utilidade ou a não utilidade geral
de uma acção num estado particular da sociedade.

[262]
98. É certo então que as regras geralmente reconhecidas
pelo Senso Comum na sociedade em que vivemos e normal-
mente defendidas como se fossem igual e universalmente cor-
rectas e boas pertencem a várias categorias. Mesmo as que
parecem ser as mais universalmente boas como meios só po-
dem ser entendidas como tal devido à existência de condições
que, ainda que talvez constituam males , podem ser tidas como
necessárias; e mesmo essas, muitas das quais são males , devem
a sua utilidade mais óbvia à existência de outras condições que
não podem ser tidas como necessárias a não ser durante perío-
dos mais longos ou mais curtos da história. Outras parecem
ser justificáveis unicamente pela existência de condições mais
ou menos temporárias, a não ser que desistamos da tentativa
de demonstrar que são meios para a preservação da sociedade,
o que é em si um mero meio, e que sejamos ainda capazes de
provar que são directamente meios para coisas boas ou más em
si mas que não são comummente reconhecidas como tal.
Se perguntamos então quais são as regras cujo cumpri-
mento é ou seria útil para a sociedade em que vivemos, parece
possível provar que existe uma utilidade definitiva na maior
parte das que são em geral reconhecidas e praticadas. Mas uma
grande parte da exortação moral e do debate social normal
consiste na defesa de regras que não são geralmente praticadas;
e em relação a estas parece duvidoso que se possa defender
conclusivamente a sua utilidade geral. Essas regras sofrem geral-
mente de três defeitos. Em primeiro lugar, (1) as acções que
defendem são de um modo geral impossíveis de executar por
uma acto de vontade para a maior parte dos indivíduos. Muitas
vezes encontram-se classificadas, a par com acções que podem
ser realizadas desde que se deseje, outras cuja possibilidade
depende da existência de uma disposição especial que poucos
possuem e que nem sequer pode ser adquirida. Pode sem
dúvida ser útil indicar que os que têm a disposição necessária
devem obedecer a estas regras; e seria desejável em muitos
casos que todas as pessoas tivessem essa disposição. Contudo,
deveria ser reconhecido que, quando consideramos uma coisa

[263]
como uma regra ou uma lei moral, queremos dizer que é uma
regra ou lei que quase todos podemos cumprir com um esforço
de vontade no estado da sociedade em que a regra se aplica.
(2) Muitas vezes são defendidas acções possíveis em si mesmas
mas cujos efeitos esperados não são todavia possíveis porque as
condições necessárias à sua existência não são suficientemente
gerais . Defende-se uma regra cujo cumprimento produziria
bons efeitos se a natureza humana fosse nalguns aspectos dife-
rente do que é, como se a sua observância geral produzisse os
mesmos efeitos agora e imediatamente. No entanto, na altura
em que haja as condições necessárias para tornar útil a sua
observância, é muito provável que possam também ter surgido
outras condições que interpretem a sua observância como des-
necessária ou mesmo prejudicial; e, no entanto, esse estado das
coisas pode ser um estado melhor do que aquele em que a regra
em questão teria sido útil. (3) Também é possível surgir um
caso em que a utilidade de uma regra dependa de condições
que provavelmente irão alterar-se ou cuja alteração seria mais
fácil e mais desejável do que a observância da regra proposta.
Pode até acontecer que a observância geral da regra proposta
destrua por si as condições das quais a sua utilidade depende.
Uma ou outra destas objecções parece geralmente aplicar-
-se às propostas de alteração de costumes sociais, defendidas
como sendo regras melhores do que as que na verdade o são;
por esta razão, parece duvidoso que a Ética seja capaz de esta-
belecer a utilidade de quaisquer outras regras que não sejam as
que são geralmente praticadas. A sua incapacidade para o fazer
é, felizmente, de pouca importância prática. A questão relativa
à possibilidade de a observância de uma regra ser desejável ou
não desejável não pode afectar profundamente a questão de
como um indivíduo deveria agir; isto porque, por um lado,
existe uma forte probabilidade de ele não conseguir de modo
nenhum impor a sua observância geral e, por outro lado, o
facto de a observância geral poder ser útil provavelmente não
lhe daria qualquer motivo para concluir que ele próprio devia
cumpri-la na ausência de tal observância geral.

[264]
No que diz respeito às acções geralmente classificadas na
Ética como obrigações, crimes ou pecados, devem notar-se os
seguintes pontos. (1) Ao classificá-las deste modo, queremos
dizer que são acções que um indivíduo terá possibilidade de
executar ou evitar, dependendo unicamente do seu desejo de
0 fazer; significa ainda que são acções que todas as pessoas
podem executar ou evitar de acordo com as circunstâncias. (2)
Não podemos certamente provar que qualquer dessas acções
deva ser executada ou evitada em todas as circunstâncias; pode-
mos apenas provar que a sua execução ou o facto de serem
evitadas produzirá geralmente melhores resultados do que a
alternativa. (3) Se perguntarmos depois relativamente a que
acções isto pode ser provado, parece somente possível fazê-lo
em relação às que são efectivamente praticadas geralmente
entre nós. E destas existem apenas algumas cuja prática geral
seria útil em qualquer estado de sociedade possível; a utilidade
das outras depende das condições que existem no presente mas
que podem ser mais ou menos alteráveis.
99. (d) Deste modo, nada mais há a acrescentar sobre
regras ou leis morais no seu sentido comum - regras que sus-
tentam a ideia de que é, no geral, útil para todos e em circuns-
tâncias mais ou menos comuns cumprir ou omitir algum tipo
de acção específico. Falta-nos assim dizer algo relativamente
aos princípios a partir dos quais o indivíduo decidiria o que
fazer, (a) no que se refere às acções relativamente às quais uma
determinada regra geral é verdadeira e (13) relativamente àque-
las em que determinada regra não existe.
(a) Uma vez que, como já tentámos provar, é impossível
demonstrar que em todos os casos um determinado tipo de
acção ocasionará um resultado final melhor que outro tipo de
acção alternativa, é lógico pensar que em alguns casos a ausên-
cia de cumprimento de uma regra estabelecida seja provavel-
mente a forma de agir mais adequada. Levanta-se então a se-
guinte questão: Poderá o indivíduo justificar-se afirmando que
o seu caso é um desses casos excepcionais? Parece-nos que a
resposta a esta questão é claramente negativa, pois se é verdade

[265)
que, numa grande maioria de casos, o cumprimento de uma
regra estabelecida é útil , não é menos verdade que há uma
grande probabilidade de que o desrespeitar da regra em qual-
quer caso específico seja errado; e a incerteza do nosso conhe-
cimento dos efeitos e dos valores da violação da regra em casos
específicos é tão grande que parece improvável que o juízo de
um indivíduo que pense que os efeitos lhe serão possivel-
mente favoráveis possa ser contrariado pela probabilidade uni-
versal de esse tipo de acção ser errado. Há que acrescentar a
esta ignorância geral o facto de que, se esta questão surge a
todos nós, o nosso juízo será geralmente influenciado pela
realidade de um forte desejo de virmos a obter um dos resul-
tados que esperamos obter ao desrespeitarmos a regra . Deste
modo, podemos afirmar que qualquer regra que seja útil em
geral deve ser sempre cumprida, não nos baseando na ideia de
que o respeito da regra seja útil em todos os casos particulares,
mas sim na ideia de que, em qualquer caso particular, a proba-
bilidade de ser útil é bem maior do que a certeza de decidir-
mos correctamente se estamos perante um exemplo de não
utilidade. Ou seja, embora saibamos que existem casos em que
a regra deveria ser violada, nunca saberemos quais são esses
casos, e, por conseguinte, não devemos nunca desrespeitar a
regra. Este facto que parece justificar a rigidez com a qual as
regras morais são normalmente impostas e sujeitas a sanções,
bem como dar um sentido às máximas (que podemos aceitar
como verdadeiras) que afirmam: "Os fins não justificam os
meios" e "Não devemos praticar o mal para obter o bem". Os
"meios" e o "mal" referidos por estas máximas são de facto a
violação das regras morais reconhecidas e praticadas e que, por
conseguinte, podemos considerar como úteis em geral. Nestes
termos, essas máximas significam simplesmente, mesmo sendo
o desrespeito considerado útil em certos casos, que a regra
deveria ser respeitada apesar de não reconhecermos claramente
qualquer bem produzido pelo facto de se seguir a regra e de
reconhecermos, pelo contrário, que poderá advir um bem do
facto de ela não ser seguida. É absolutamente necessário refe-

[266]
rir o facto de que isto só acontece porque há uma certeza de
que, em geral, o fim justifica os meios em questão, e que, por
conseguinte, existe uma probabilidade de que, nesse caso, o
mesmo aconteça, mesmo sendo difícil prever que seja assim.
Além do mais, o cumprimento universal de uma regra
geralmente útil detém em muitos casos uma utilidade especial
que merece destaque. Isto porque, mesmo se conseguíssemos
perceber que o nosso caso é um dos tais casos em que é van-
tajoso desrespeitar a regra, no entanto, na medida em que o
nosso exemplo pudesse provocar qualquer estímulo para uma
acção semelhante, não conseguiríamos provar que o nosso
caso é especial e estaríamos assim a encorajar transgressões que
não seriam vantajosas. Podemos supor com confiança que o
que impressiona a imaginação dos outros não são as circuns-
tâncias em que o nosso caso difere de casos comuns e que jus-
tificam a nossa acção especial, mas sim os aspectos semelhantes
as outras acções que são realmente criminosas. Assim, em casos
em que o exemplo possa ter influência, o efeito de uma acção
excepcionalmente correcta originará, em geral, o encoraja-
mento de acções incorrectas. Este efeito terá provavelmente
repercussões não só em outras pessoas mas também no pró-
prio agente da acção, já que é impossível que alguém consiga
manter a inteligência e os sentimentos num estado de pureza;
ou seja, se já houve alguma vez uma aceitação de uma acção
incorrecta, o agente aceitará mais facilmente essa incorrecção
em circunstâncias diferentes daquelas que justificaram esse des-
respeito da primeira vez. Essa incapacidade de distinguir casos
excepcionais dá ainda maior razão à imposição universal de
acções úteis através de sanções legais e sociais. É incontesta-
velmente correcto punir-se alguém que tenha executado uma
acção que seja conecta no seu caso específico mas incorrecta
numa perspectiva geral, mesmo que o exemplo dessa acção
não venha a ter repercussões indesejáveis. As sanções têm, em
geral, um poder de maior influência sobre as condutas dos
indivíduos do que os exemplos, de maneira que a suavização
de uma sanção num determinado caso excepcional conduziria

[267]
de certeza a um encorajamento para acções semelhantes em
casos que não são excepciona1s.
Por conseguinte, o indivíduo deve sempre seguir com
confiança as regras universalmente praticadas. Esta recomen-
dação geral não pode ser feita no caso de algumas regras: em
alguns casos em que seria útil um cumprimento geral mas este
não existe e noutros em que esse cumprimento geral existe
mas em que a regra não tem utilidade. Em muitos casos, as
sanções ligadas a essas regras podem ser decisivas no sentido da
harmonização com os costumes existentes. Torna-se assim
importante mostrar que a utilidade geral de uma acção depende
habitualmente do facto de ela ser geralmente praticada: numa
sociedade em que certos tipos de roubos são regra geral, a
decisão de os não praticar por parte de um único indivíduo
torna-se muito duvidosa, mesmo sendo incorrecta a regra
comum. Deste modo, há uma grande probabilidade a favor da
adesão a um costume existente, mesmo que este seja mau.
Contudo, não podemos, neste caso, afirmar com segurança que
essa probabilidade é sempre maior do que o poder de avalia-
ção individual da utilidade de uma excepção, uma vez que
consideramos como certo um facto relevante - nomeadamente,
que a lei que o indivíduo se propõe seguir seria melhor do que
a que ele se propõe infringir, caso fosse seguida de uma forma
geral. Como consequência, o efeito do seu exemplo, na me-
dida em que tende a infringir o costume existente, será, neste
caso, a melhor hipótese. No entanto, e de acordo com o que
foi dito anteriormente, são muito raros os casos em que ou-
tras regras seriam certamente melhores do que a regra geral; e
os casos que suscitam dúvida e que são mais frequentes levam-
-nos ao próximo ponto do nosso trabalho.
100. (B) Este próximo ponto consiste na discussão do
método pelo qual um indivíduo deve escolher o que fazer re-
lativamente a possíveis acções cuja utilidade geral não se pode
provar. De acordo com as nossas conclusões prévias, é impor-
tante notar que esta discussão irá percorrer quase todas as ac-
ções, excepto aquelas que são geralmente praticadas no estado

(268]
presente da nossa sociedade. Tem sido sublinhado que é tão
difícil provar a utilidade geral de uma acção que raramente
essa prova pode ser efectivamente conclusiva. Ela não é certa-
mente possível no que se refere às acções que são geralmente
praticadas; no entanto, se as sanções forem suficientemente for-
tes, elas serão por si só suficientes para provar a utilidade geral
do respeito do indivíduo para com os costumes. Se é possível
provar uma utilidade geral no caso de algumas acções não pra-
ticadas de forma geral, é certamente impossível fazê-lo com o
método usual, o qual tenta mostrar que há nessas acções uma
tendência de preservação da sociedade, o que é por si só ape-
nas um meio; só é possível fazê-lo, como afirmaremos adiante,
com o método pelo qual o indivíduo deve guiar o seu juízo -
nomeadamente mostrando as tendências directas de determi-
nadas acções para produzir o que é propriamente bom ou para
evitar o que é mau.
A extrema improbabilidade de que qualquer regra geral
seja correcta no que se refere à utilidade de uma acção parece
de facto ser o princípio fundamental a ser tomado em conta
relativamente à questão de como um indivíduo deve orientar
a sua escolha . Se tomarmos como excepções as regras que são
geralmente praticadas e fortemente sancionadas entre nós, pa-
rece que há muito poucas regras do tipo relativamente ao qual
se podem simultaneamente encontrar argumentos a favor e
contra. O máximo que se pode dizer sobre os princípios con-
traditórios que enunciados por moralistas de diferentes escolas
como sendo deveres universais é que, de uma forma geral, eles
indicam acções que, para pessoas com determinado carácter e
em determinadas circunstâncias particulares, levariam e levam
mesmo a um equilíbrio de bem. É sem dúvida possível enun-
ciar até certo ponto quais as tendências e as circunstâncias par-
ticulares que geralmente tornam aconselháveis certos tipos de
acções, mas é certo que isso ainda não foi feito até agora; e é
importante notar que se tivesse sido feito, não nos daria aquilo
que as leis morais deveriam ser - regras desejáveis para toda a
gente, ou até mesmo apenas para a maioria das pessoas. Geral-

[269]
mente, os moralistas assumem que, em matéria de acções ou
hábitos de acção habitualmente reconhecidos como deveres e
virtudes, seria desejável que todas as pessoas fossem iguais,
embora seja certo que, em circunstâncias específicas e em con-
dições ideais, o princípio da divisão do trabalho de acordo com
as capacidades especiais que é reconhecido no domínio do
emprego desse também um melhor resultado no que se refere
às virtudes.
Parece, por conseguinte, que, em casos de dúvida, em
vez de seguir estas regras cujos efeitos positivos o indivíduo
não consegue ver no seu próprio caso, ele deveria antes guiar
a sua escolha por uma consideração directa do valor intrínseco
ou do potencial carácter negativo dos efeitos que a sua acção
pode produzir. Os juízos sobre o valor intrínseco ultrapassam
os juízos sobre meios no sentido em que uma vez verdade, são
sempre verdade, enquanto que um meio que num caso possa
gerar um efeito bom, poderá noutro caso não o fazer. Por esta
razão, o ramo da Ética que seria mais útil desenvolver para a
orientação prática seria aquele que analisa a questão de quais
as coisas que têm valor intrínseco e em que grau o possuem;
e é precisamente este o ramo que tem sido geralmente esque-
cido, sendo substituído por tentativas de formulação de regras
de conduta.
No entanto, não temos de considerar somente a relativa
bondade dos diferentes efeitos, mas também a relativa proba-
bilidade de eles serem alcançados. Um efeito menos bom mas
mais provável de ser alcançado é preferível a um melhor mas
menos provável, se a diferença de probabilidade for suficien-
temente forte para se sobrepor à diferença de bondade. Este
facto dá-nos o direito de afirmar que são, no geral, verdadeiros
três princípios que as regras morais vulgares normalmente
esquecem.(1) Um bem menor pelo qual qualquer indivíduo
tenha preferência (tratando-se de um bem e não de um mal)
constituirá mais provavelmente um fim apropriado para esse
indivíduo do que um outro bem maior que ele não aprecie,
pois que a inclinação natural torna-o imensamente mais facil

[270]
de atingir do que o outro relativamente ao qual essa inclinação
não existe. (2) Como quase todos têm uma preferência muito
maior por coisas que lhes dizem propriamente respeito, será
em geral correcto para uma pessoa desejar atingir bens que
tenham a ver com ela própria e com as pessoas pelas quais
nutre um forte interesse pessoal do que tentar atingir algo que
signifique uma ampla beneficência geral. O Egoísmo é indu-
bitavelmente superior ao Altruísmo enquanto doutrina de
meios: na imensa maioria dos casos, a melhor coisa que se
pode fazer é tentar atingir um bem seguro no qual estamos
envolvidos, pois esta boa razão dá-nos uma maior capacidade
para o conseguirmos. (3) Os bens que podem ser conseguidos
num futuro tão próximo que já possa considerar-se "presente"
são em geral preferíveis relativamente àqueles que, pertencen-
do a um futuro mais distante, são, por esta razão, menos cer-
tos de alcance. Se olharmos a tudo o que fazemos sob o ponto
de vista da sua correcção, ou seja, como um mero meio para
atingir o bem, será provável que esqueçamos um facto essen-
cial: nomeadamente, que uma coisa boa em si mesma que
existe agora tem precisamente o mesmo valor que uma coisa
do mesmo tipo cuja existência futura pode ser provocada.
Além disso, como já foi dito, as regras morais não constituem
em geral um meio directo para a obtenção de bens positivos,
mas sim para aquilo que é necessário à existência de bens posi-
tivos; assim, muito do nosso esforço deve ter por base a preo-
cupação de assegurar a continuidade daquilo que é apenas um
meio - as necessidades do trabalho e dos cuidados relativos à
saúde determinam a utilização de tanto do nosso tempo que,
nos casos em que podemos escolher, o alcance certo de um
bem presente será em geral a opção que produz um apelo mais
forte. Se não fosse assim, a vida toda seria gasta apenas a ten-
tar assegurar a sua continuação e o que dá valor à vida não
existiria se essa mesma regra permanecesse no futuro.
101. (4) Uma quarta conclusão, que resulta do facto de
que o que é "correcto" ou o que é o nosso "dever" deve, em
qualquer caso, ser definido como um meio para a obtenção de

[271]
um bem, será, como foi referido anteriormen te (parágrafo 89)
que a distinção vulgar entre esses conceitos e os de "con-
veniência" ou "utilidade" desaparece. O nosso "dever" é mera-
mente aquele que venha a constituir um meio para atingir 0
melhor possível, e a utilidade, a realmente existir, deverá ser a
mesma coisa. Não podemos distingui-los dizendo que o pri-
meiro é algo que deveríamos fazer, enquanto que em relação
à segunda não podemos dizer " deveríamos". Ou seja, os dois
conceitos não são, como é geralmente considerado por todos
excepto os moralistas utilitaristas, simples conceitos em última
análise distintos. Tal distinção não existe na Ética . A única dis-
tinção fundamental é a existente entre o que é propriament e
bom e o que é bom como meio, o último subentenden do o
primeiro. Mas já foi demonstrado que a distinção entre " dever"
e "conveniênc ia" não deve corresponde r ao seguinte: ambos
devem ser definidos como meios para o bem, por conse-
guinte, ambos podem também ser fins em si mesmos. A questão
persiste então: Qual é a diferença entre dever e conveniência?
Uma das distinções relativas ao que estas palavras diferentes
referem é bastante clara. Certos tipos de acções despertam, em
geral, os sentimentos especificame nte morais, enquanto que
outras classes o não fazem. E o termo "dever" é comumment e
aplicado apenas à classe de acções que despertam a aprovação
moral ou àquelas cuja omissão suscita reprovação moral - em
especial, às últimas. A razão pela qual este sentimento moral
se encontra ligado a certas espécies de acções e não a outras é
uma questão à qual não se pode ainda, por certo, dar resposta;
pode, contudo, observar-se que não existe razão para pensar-
mos que as acções às quais esse sentimento se liga eram ou são,
em todos os casos, acções capazes de ajudar a sobrevivência de
uma raça: o sentimento moral estaria, nas origens, relaciona-
do com muitos rituais e cerimónias religiosas, que não têm a
menor utilidade no que se refere à questão apontada. Afigura-
-se-nos, no entanto, que entre nós, os tipos de acção com as
quais o sentimento moral está relacionado possuem também
duas outras características, num número de casos suficiente

[272]
para terem influenciado o significado das palavras "dever" e
"conveniência". Uma delas é que "deveres" são, em geral,
acções que um considerável número de indivíduos são forte-
mente tentados a omitir. A segunda é que a omissão de um
"dever" geralmente origina consequências claramente desa-
gradáveis a outra pessoa. A primeira característica é mais uni-
versal ou ampla do que a segunda: uma vez que os efeitos
desagradáveis dos "deveres de respeito próprio", a prudência
e a moderação, não são tão marcantes na outra pessoa como
os efeitos que terão no próprio agente, enquanto que as ten-
tações da imprudência e da intemperança são muito fortes .
No entanto, de um modo geral, o grupo de acções designadas
por deveres manifesta ambas as características: não são só acções
contra cuja prática existem fortes tendências naturais, mas tam-
bém acções cujos efeitos mais óbvios, geralmente considerados
bons, são efeitos noutras pessoas. Acções convenientes, por
outro lado, são acções incitadas por fortes tendências naturais
e universais e cujos efeitos mais óbvios, geralmente considera-
dos bons, são efeitos sobre o agente. Podemos então distinguir
"deveres" de acções convenientes de uma forma geral enten-
dendo aqueles como acções em relação às quais existe um sen-
timento moral que somos frequentemente tentados a omitir, e
cujos efeitos mais óbvios são efeitos sobre outro que não o
agente.
Mas temos que notar que nenhuma destas características
pelas quais se distingue um dever de uma acção vantajosa nos
dá qualquer razão para concluirmos que o primeiro grupo de
acções é mais útil que o último - que aquele tem de produzir
maior equilíbrio de bem do que este. Nem tencionamos per-
guntar se a acção em questão possui essas características ao per-
guntarmos, "Será este o meu dever?"; estamos simplesmente a
perguntar se tal acção produzirá o melhor resultado possível
em geral. E se fizéssemos a mesma pergunta em relação a
acções convenientes, teríamos que responder afirmativamente
tanto quanto como quando a fazemos em relação a acções que
possuem as três características de "deveres" . É verdade que

[273]
quando perguntam os "Será que isto é convenien te?" estamos
a levantar uma questão diferente - nomeadam ente se a acção
produzirá certos tipos de efeito relativame nte aos quais não
investigamos se são bons ou maus. Contudo, se se duvidasse,
num caso específico, se esses efeitos eram bons, essa dúvida
seria entendida como lançando igualment e dúvidas sobre a
conveniên cia de uma acção: se quisermos provar a conveniên-
cia de uma acção, só o poderemo s fazer colocando a mesma
questão com a qual provaríamos ser um dever - nomeada-
mente, "Terá esta acção os melhores efeitos possíveis no geral?"
Conseque ntemente, o problema da identificaç ão de uma
acção como um dever ou merament e como um meio é uma
questão que não tem consequên cias no que se refere à questão
ética de saber se devemos executá-la. No sentido em que são
considerados como as raz ões principais para a execução de
uma acção, dever e conveniên cia são vistos no mesmo sentido:
se pergunto se uma acção é realmente meu dever ou realmente
convenien te, o predicado cuja aplicabilidade à acção em ques-
tão constitui o objectivo da minha pergunta é precisamente o
mesmo. Em ambos os casos, pergunta-s e: "Será este aconte-
cimento o melhor que posso realizar em geral?" ; e quer o
acontecim ento em questão tenha algum efeito sobre o que é
meu (como é habitualm ente o caso quando se fala em conve-
niência) ou algum outro acontecim ento (como é habitual
quando se fala de dever) , esta distinção não tem mais relevân-
cia para a minha resposta do que a distinção entre dois efeitos
diferentes sobre mim ou dois efeitos diferentes sobre outras
pessoas. A verdadeira distinção entre deveres e acções de con-
veniência e não é a de que os primeiros são acções cujo cum-
primento é mais útil ou obrigatóri o ou melhor, mas que são
acções que é mais útil louvar e fazer cumprir através de san-
ções, visto serem acções cujo incumprim ento constitui uma
tentação.
102. No que diz respeito às acções de "interesse" , o caso
torna-se um pouco diferente. Quando formulamo s a questão
"Isto é mesmo do meu interesse?" estamos exclusivamente a

[274]
perguntar se os seus efeitos em mim serão mesmo os melhores
possíveis; pode muito bem acontecer que aquilo que me está
a afectar da forma que é realmente a melhor possível não
venha a produzir os melhores resultados possíveis no geral. Do
mesmo modo, o meu verdadeiro interesse poderá ter um rumo
diferente do que é conveniente ou do que constitui um dever.
Afirmar que uma acção é "do meu interesse" é, como já foi
referido no Capítulo III (parágrafos 59-61), afirmar que os
seus efeitos são realmente bons. "O meu próprio bem " indica
apenas algo que me afecta , algo absoluta e objectivamente bom;
é esse algo que é meu, não a sua característica de bondade.
Tudo deve pertencer ou ao " bem universal" ou então não é
bom de todo; não existe qualquer terceiro conceito alternativo
do que é " bom para mim". Mas "o meu interesse", devendo
ser algo verdadeiramente bom , é apenas um entre tantos ou-
tros efeitos bons possíveis; por isso, embora pratiquemos algum
bem, podemos não estar a praticar menos bem em geral do
que se tivéssemos agido de outra forma. O sacrificio próprio
pode ser considerado como um verdadeiro dever, como aliás
poderá ser igualmente necessário o sacrificio de qualquer outro
bem que nos afecte a nós próprios ou a outros para obter me-
lhores resultados finais. Por esta razão, o facto de uma acção
ser realmente do nosso interesse não pode nunca ser razão
suficiente para praticá-la: demonstrando que não constitui um
meio para atingir o melhor possível, não demonstramos que
não é do nosso interesse, mas sim que não é conveniente.
Todavia dever e interesse não entram necessariamente em
conflito: o que é do meu interesse pode também ser um meio
para chegar ao melhor possível. A principal distinção signifi-
cada pelas palavras "dever" e "interesse" não parece ser a fonte
de um possível conflito; parece sê-lo outrossim a distinção
significada pelo contraste entre "dever" e "conveniência". En-
tendemos pois por acções de "interesse" principalmente as acções
cujos efeitos mais óbvios se fazem sentir sobre o agente, quer
constituam meios para atingir o melhor possível ou não ; são
ainda acções que o agente não é tentado a omitir e relativa-

[275]
mente às quais não há qualquer sentimento de natureza moral.
O mesmo é dizer que a distinção não é basicamente de ordem
ética. Neste caso, "deveres" não são, em geral, mais úteis ou
obrigatórios do que as acções de interesses, são apenas acções
que é mais útil exaltar.
103. (5) Uma quinta conclusão, de alguma importância,
em relação à Ética Prática, tem a ver com o modo como as
"virtudes" devem ser avaliadas. O que se pretende significar
quando designamos uma coisa por "virtude"?
Não restam dúvidas que a definição de Aristóteles está
conecta, de um modo geral, quando define a virtude como
sendo uma " disposição habitual" para praticar certas acções:
esta é uma das marcas pelas quais devemos distinguir uma vir-
tude de outras coisas. " Virtude" e "vício" são também termos
éticos: isto quer dizer que quando empregamos seriamente
estas palavras pretendemos transmitir um sentido de louvor à
primeira e de censura à segunda. Louvar algo significa afirmar
que esse algo é bom em si mesmo ou que constitui um meio
para o atingir. Estaremos então a incluir na nossa definição de
virtude a obrigação de esta ser algo de bom em si mesmo?
Ora bem, é um facto que certas virtudes são normal-
mente consideradas como boas em si mesmas. O sentimento
de aceitação moral com que geralmente as estimamos con-
siste, em parte, no reconhecimento da existência de valor
intrínseco. Mesmo um Hedonista, quando sente um afecto
moral em relação às virtudes, considera-as como boas em si
mesmas; e sabe-se que a Virtude tem concorrido com o
Prazer no acesso à posição exclusiva de bem único. Mas é nossa
opinião que não deveríamos incluir a característica de bon-
dade em si mesma na definição de virtude, pois a palavra
detém um significado independente; ou seja, se, num qual-
quer caso específico, uma disposição considerada por todos
como sendo virtuosa se revelasse como não boa em si mesma,
tal não iria constituir razão suficiente para se dizer que não se
tratava de uma virtude mas apenas algo considerado como tal.
O teste da conotação ética de virtude é o mesmo que o rela-

[276]
tivo ao dever: o que é que consideraríamos necessário demons-
trar relativamente a determinado caso para considerarmos incor-
recta a aplicação do termo? E o teste considerado conclusivo
relativamente às virtudes e aos deveres, consiste na questão:
Será um meio para o bem? Se fosse possível provar que uma
disposição considerada, regra geral, virtuosa era nociva, pode-
ríamos afirmar que afinal essa disposição não era realmente
virtuosa. Portanto, uma virtude pode ser definida como uma
disposição habitual para a prática de certas acções, acções essas
que geralmente produzem os melhores resultados possíveis.
Não há dúvidas também quanto ao tipo de acções que é "vir-
tuoso" praticar habitualmente. Essas acções são em geral aquelas
que constituem deveres com as seguintes, incluindo também
as que seriam deveres se fosse possível que todas as pessoas as
executassem. Desta forma, a mesma conclusão se pode tirar
relativamente à vitudes e aos deveres. Se se trata realmente de
virtudes, estas devem ser geralmente boas como meios; não se
pode discutir que a maioria das virtudes normalmente consi-
deradas como tal, bem como a maioria dos deveres, são real-
mente meios para o bem. Não se quer com isto dizer que as
virtudes são um pouco mais úteis que aquelas disposições e
tendências que nos levam a praticar acções de interesse. Do
mesmo modo que os deveres diferem de acções convenientes,
também as virtudes diferem de outras disposições úteis, não
pela superioridade da utilidade, mas pelo facto de serem dis-
posições cujo louvor ou sanção se mostram especialmente
úteis, uma vez que há muitas e fortes tentações que levam a
negligenciar as acções a que aquelas disposições conduzem.
Virtudes são, deste modo, disposições habituais para pra-
ticar acções que são deveres, ou seriam deveres se houvesse uma
vontade generalizada que garantisse a sua prática. Os deveres
constituem um tipo especial das acções cuja prática produz
melhores resultados finais do que a respectiva omissão. Ou seja,
essas acções são geralmente meios para atingir o bem, mas
nem todas acções constituem deveres; a palavra restringe-as a
um tipo especial de acções: as que são dificeis de praticar por

[277]
existirem fortes tentações em contrário. Assim , para se deter-
minar se uma disposição ou acção específica é uma virtude ou
um dever, teremos que nos confrontar com as dificuldades
enumeradas na secção (3) deste capítulo. Não teremos possi-
bilidade de afirmar se uma disposição é uma virtude ou um
dever se não procedermos a uma análise do tipo que foi des-
crito. Temos de ser capazes de provar que a disposição ou acção
em questão é, de forma geral, melhor como meio do que
quaisquer outras alternativas possíveis e de ocorrência provável;
e só conseguiremos prová-lo relativamente a estados específi-
cos da sociedade: o significado de uma virtude ou de um dever
numa sociedade pode não ser o mesmo noutra sociedade.
104. Mas há outra questão em relação também às vir-
tudes e deveres que deve ser resolvida pela própria intuição -
pelo método que foi explicado aquando da referência ao
Hedonismo. A questão é se as disposições e acções geralmente
consideradas (com razão ou não) como virtudes e deveres são
boas por natureza, ou seja se possuem valor intrínseco. A vir-
tude ou o exercício de virtude tem sido normalmente classifi-
cada por moralistas como sendo o bem único, ou pelo menos,
o melhor de todos os bens. De facto, tendo eles analisado a
questão do bom em si mesmo, assumiram sem excepção tratar-
-se de virtude ou de prazer. Se o significado da questão tivesse
sido claramente percebido, seria praticamente impossível que
tão grande diferença de opinião pudesse existir, ou que se
assumisse que a discussão deveria ser restringida apenas a essas
duas alternativas. E vimos já claramente que o significado da
questão nunca foi claramente percebido. Quase todos os escri-
tores éticos cometeram a mesma falácia naturalista - não
perceberam que a noção de valor intrínseco é simples e única;
e, como consequência, quase todos foram incapazes de distin-
guir claramente meio e fim e discutiram a questão " O que
deveríamos fazer?" ou " O que é deveria existir agora?" como
se fosse simples e evidente, e sem distinguirem se a razão pela
qual algo deveria ser feito e por que algo deveria existir agora
é porque possui valor intrínseco ou porque é um meio para

[278]
atingir aquilo que possui já valores intrínsecos. Assim devemos
estar preparados para concluir que a virtude tem tão pouco
direito a ser considerada o único ou principal bem como pra-
zer; mais especialmente agora, depois de termos observado,
que de acordo com a definição, chamar a algo uma virtude é
apenas declarar que esse algo é um meio para o bem. Os de-
fensores da virtude têm, como veremos, uma certa superiori-
dade relativamente aos Hedonistas: do mesmo modo que as
virtudes são factos mentais muito complexos, existem nelas
muitas coisas que são boas em si mesmas e também boas a um
nível muito mais elevado do que o prazer. Os defensores do
Hedonismo, por outro lado, têm a vantagem de o seu método
dar mais relevância à distinção entre meios e fins; apesar de
não terem apreendido a distinção de modo suficientemente
claro para entenderem que o predicado ético especial que atri-
buíram ao prazer como não sendo um mero meio deve tam-
bém aplicar-se a muitas outras coisas.
105. Com respeito ao valor intrínseco da virtude, pode
afirmar-se de um modo geral: ( 1) que a maioria das dispo-
sições a que chamamos virtudes - e que realmente coincidem
com a definição, na medida em que se trata de disposições
geralmente valiosas como meios pelo menos na nossa socie-
dade - não têm qualquer valor intrínseco; e (2) que seria um
absurdo considerar que qualquer elemento que esteja contido
na minoria, ou mesmo todos os diferentes elementos juntos,
possa constituir o bem único. Sobre o segundo ponto, pode-
mos afirmar que mesmo aqueles que acreditam que o bem
único se encontra na virtude, quase sempre acreditam também
noutras coisas que contrariam essa mesma afirmação, devido
principalmente ao facto de não analisarem o significado dos
conceitos éticos. O ponto mais marcante desta inconsistência
encontra-se no conhecido conceito cristão segundo o qual a
virtude, não obstante ser o bem único, pode ser recompensada
por outra coisa que não a virtude. O Céu é geralmente con-
siderado como a recompensa da virtude; considera-se também
normalmente que, para chegar a tal gratificação, é necessário

[279]
possuir um elemento, chamado felicidade, o qual não é, por
certo, exactamente igual ao mero exercício daquelas virtudes.
Deste modo, algo que não é a virtude deve ou ser bom em si
mesmo ou ser um elemento constituinte de algo que possui
maior valor intrínseco. Se uma coisa vai realmente constituir
uma recompensa, essa coisa não é geralmente considerada
como algo que deve ser bom em si mesmo: é absurdo pensar
em recompensar uma pessoa dando-lhe algo que tenha menos
valor do que aquilo que ela já tem, ou algo que não tenha
valor algum. Assim , o ponto de vista de Kant segundo o qual
a virtude nos torna merecedores de felicidade está em total con-
tradição com o ponto de vista, que ele subentende e que está
ligado ao seu nome, de que a Boa Vontade é a única coisa que
tem valor intrínseco. Mas isto não nos permite formular a
acusação que às vezes se faz: que Kant é, incongruentemente,
um Eudemonista ou um Hedonista : pois não indica que a feli-
cidade é o bem único. Indica sim que a Boa Vontade não é o
bem único: ou seja, que um estado de coisas no qual somos
virtuosos e felizes é melhor por si só que um estado de coisas
no qual a felicidade está ausente.
106. No entanto, para considerar com justiça o direito
da virtude ao reconhecimento de valor intrínseco, torna-se
necessário distinguir alguns estados mentais muito diferentes,
todos abrangidos pela definição geral de serem disposições
habituais para o cumprimento de deveres. Podemos assim dis-
tinguir três estados mentais muito diferentes, que são alvo de
certa confusão entre si e aos quais diferentes sistemas morais
atribuíram grande ênfase; cada um deles reclama, por assim
dizer, o direito exclusivo de ser considerado virtude e, impli-
citamente, de ser o único bem. Em primeiro lugar, podemos
distinguir (a) a característica permanente da mente que con-
siste no facto de que o cumprimento de um dever se torna,
em sentido restrito, num hábito como, por exemplo, uma
grande parte da série de operações que constituem o acto de
uma pessoa se vestir e (b) a característica permanente que con-
siste no facto de se considerar que os chamados bons motivos

(280]
habitualmente constituem factores adjuvantes na motivação
do cumprimento dos deveres. Ainda relativamente à segunda
classificação, podemos distinguir a tendên cia habitual de se ser
accionado por um motivo, nomeadamente o desejo de cum-
prir o dever pelo amor ao dever, e todos os outros motivos,
como o amor, a benevolência, etc. Temos assim os três tipos
de virtudes cujo valor intrínseco vamos analisar.
(a) Não há dúvida que a personalidade de uma pessoa a
pode levar a cumprir habitualmente alguns deveres sem pen-
sar, quando os deseja , que são deveres ou que deles resultará
algum bem. De uma pessoa assim não podemos recusar dizer
que possui a virtude que consiste na disposição de cumprir
aqueles deveres. Somos, por exemplo, honestos no sentido em
que habitualmente nos abstemos de quaisquer acções desi-
gnadas legalmente por roubos , mesmo em situações em que
outras pessoas seriam fortemente tentadas a cometê-los. Seria
uma extrema contradição relativamente à prática comum
negar que, por esta razão, possuímos mesmo a virtude da ho-
nestidade: é claramente evidente que temos uma disposição
habitual para cumprir um dever. E não há dúvida que seria
uma grande utilidade se muitas mais pessoas tivessem uma dis-
posição semelhante: um bem como meio. Contudo, podemos
afirmar com segurança que nem os nossos desempenhos desse
dever, nem a nossa disposição para os cumprir têm o mínimo
valor intrínseco. É porque a maioria dos exemplos de virtude
aparentam ser desta natureza que podemos atrever-nos a dizer
que as virtudes não têm, em geral, qualquer valor intrínseco.
E parece haver boas razões para se pensar que quanto mais as
virtudes forem desta natureza, mais úteis se tornam, uma vez
que se produz uma grande economia de trabalho quando uma
acção útil se torna habitual ou instintiva. Permanecer com a
ideia de que uma virtude que não inclui mais nada é boa em
si mesma constitui um grande absurdo. A Ética aristotélica,
deve observar-se, é culpada deste absurdo, pois a sua definição
de virtude não exclui a disposição de praticar acções deste
género, ao passo que as suas descrições das virtudes especiais

[281]
incluem claramente tais acções: para que uma acção, de forma
a demonstrar ser uma virtude, tenha de ser praticada (tO'lJQK
Ào'Ú E'UEKa), é uma característica que Aristóteles muitas vezes
perde de vista. Por outro lado, ele parece considerar certa-
mente o exercício de todas as virtudes como um fim em si
mesmo. O seu estudo sobre a Ética é, sem dúvida, nos seus
pontos mais importantes, extremamen te confuso e pouco sis-
temático devido à tentativa de o basear na falácia naturalista;
com base nas palavras do filósofo, deveríamos ser obrigados a
considerar (0Ewpi.a) , como a única coisa boa em si mesma e,
neste caso, a bondade que ele atribui às virtudes úteis não
pode ser um valor intrínseco, embora, por outro lado, não
pareça considerá-la como uma mera utilidade, pois não tenta
mostrar que se trata de meios para atingir (0Ewpí.a). Sem
sombra de dúvida , e de um modo geral, Aristóteles considera
o exercício das virtudes práticas como um bem do mesmo
género (ou seja, que possui valor intrínseco) de (0Ewpí.a), mas
a um nível inferior; assim, não pode evitar a acusação de que
considera terem valor intrínseco os casos de exercício de vir-
tude que estamos presentemen te a discutir - casos em que
existe uma disposição para praticar acções que, de acordo com
a expressão moderna, têm apenas uma "rectidão externa".
Não pode haver argumentos contra o facto de ele estar certo
ao aplicar a palavra "virtude" a esse tipo de disposições. Mas o
protesto contra a ideia de que a "rectidão externa" é o suficiente
para constituir "dever" ou "virtude"- um protesto atribuído
geralmente como mérito, e com justiça, às morais Cristãs -
parece ser uma maneira errada de afirmar uma verdade impor-
tante: quando existe apenas "rectidào externa" não existe de
certeza qualquer valor intrínseco. Entende-se geralmente (em-
bora de forma errada) que chamar a algo uma virtude significa
que essa coisa possui valor intrínseco: e, neste sentido, a ideia
de que virtude não consiste numa mera disposição para pra-
ticar acções exteriormen te correctas constitui realmente um
avanço na verdade ética relativament e à Ética de Aristóteles.
É perfeitamen te correcta a inferência de que se o significado

[282]
de virtude inclui o conceito de "bom em si mesmo" , então a
definição de virtude de Aristóteles não é adequada e exprime
um julgamento ético falso; só a premissa segundo a qual uma
virtude inclui esse conceito na sua significação está errada.
107. (b) A personalidade de uma pessoa pode ser tal que,
quando pratica habitualmente um determinado dever, e em
cada caso da sua execução, está presente na sua mente um
amor a alguma consequência intrinsecamente boa que espera
adquirir pela sua acção, ou um ódio de alguma consequência
intrinsecamente má que espera evitar pela sua acção. Em tal
caso, esse amor ou esse ódio serão originados pela acção e
podemos portanto classificá-los como seus motivos. Quando tal
sentimento está presente habitualmente no cumprimento de
deveres, não se pode negar que o estado de espírito de quem
os pratica contenha algo de intrinsecamente bom. Nem se
pode negar também que, quando uma disposição para cum-
prir deveres consiste na disposição de se ser movido a cumpri-
-los por tais sentimentos, ela é apelidada de virtude. Aqui , por
conseguinte, temos exemplos de virtude, cujo exercício pos-
sui realmente algo que é bom em si mesmo. Resulta assim a
ideia de que sempre que uma virtude consiste numa dispo-
sição de possuir certos motivos, o exercício dessa virtude pode
ser intrinsecamente bom, apesar de o grau da sua bondade
depender da natureza precisa dos motivos e dos seus objectos,
podendo assim varia indefinidamente. Podemos afirmar que a
Cristandade tem prestado um serviço à Ética, pois aquela tende
a realçar a importância dos motivos, da disposição "interior"
que leva a que uma boa acção seja executada. Mas deve notar-
-se que quando a Ética Cristã, representada pelo Novo Testa-
mento, é louvada pelo motivo exposto, são geralmente igno-
radas duas distinções de extrema importância. Em primeiro
lugar, o Novo Testamento tem como tarefa principal a con-
tinuação da tradição dos profetas Hebreus, recomendando vir-
tudes como a "justiça" e a " misericórdia" em vez de meras
práticas rituais; e ao mesmo tempo que o faz, recomenda vir-
tudes que podem ser boas, mas só como meio, exactamente

[283)
como as virtudes aristotélicas. Por conseguinte, esta caracte-
rística do ensino cristão deve ser rigorosamente diferenciada
da que consiste na imposição de, por exemplo, um princípio
segundo o qual estar-se furioso sem razão é tão mau quanto
cometer de facto um homicídio. E, em segundo lugar, embora
o Novo Testamento louve algumas coisas que são boas apenas
como meios e outras que são boas em si mesmas, não reco-
nhece de todo essa distinção. Embora o estado da pessoa que está
furiosa possa ser tão mau em si mesmo quando o do homicida,
e neste aspecto Cristo possa ter razão, a Sua linguagem levar-
-nos-ia a supor que esse estado é também mau em todos os sen-
tidos, que também provoca muito ódio: e isso é absolutamente
falso. Ou seja, quando a Ética Cristã aprova, não distingue se a
sua aprovação afirma " Isto é um meio para o bem" ou " Isto é
bom em si mesmo"; por isso, louva coisas meramente boas
como meio como se fossem boas em si mesmas, e coisas mera-
mente boas em si mesmas como se fossem também boas como
meio. E mais, se a Ética Cristã dirige a sua atenção aos ele-
mentos das virtudes qu e são bons em si mesmos, não é de
modo nenhum a única a fazê-lo. A Ética de Platão distingue-se
por defender, muito mais claramente e com mais consistência
do que qualquer outro sistema, a opinião de que um valor
intrínseco pertence exclusivamente aos estados de espírito que
consistem no amor ao que é bom ou no ódio pelo que é mau.
108. Mas (c) a Ética do Cristianismo diferencia-se da de
Platão por dar mais ênfase ao valor de um motivo particular -
a emoção produzida pela ideia, não de quaisquer consequências
intrinsecamente boas da acção em questão, nem mesmo da
acção em si, mas pela ideia da sua rectidão. A ideia de "recti-
dão" abstracta e os vários níveis da emoção específica produzida
por aquela ideia constituem o "sentimento especificamente
moral" ou a "consciência". Uma acção parece poder ser cha-
mada "internamente correcta" unicamente graças ao facto de
1

1
Este sentido do termo deve ser cuidadosamente diferenciado da-
qu ele em que a intenção do agente pode ser considerada "correcta" se os
resultados que ele pretendia tivessem sido os melhores possíveis.

[284)
0 agente a ter previamente considerado como conecta: a ideia
de "rectidão" deve ter estado presente na sua mente, mas não
necessariamente incluída nos seus motivos. Consideramos
"conscienciosa" uma pessoa que, quando reflecte, tem sempre
presente essa ideia e não actua enquanto não acreditar que a
sua acção é correcta.
A presença desta ideia e da sua acção como motivo pare-
cem de facto ter-se tornado em objectos de atenção e de reco-
mendação mais comuns devido à influência do Cristianismo;
mas é importante observar que não há qualquer base que fun-
damente a opinião sugerida por Kant de que se trata do único
motivo que o Novo Testamento considera como intrinseca-
mente valioso. É quase certo que, quando Cristo nos disse para
"Amar o próximo como a nós mesmos", não se referia mera-
mente ao que Kant apelida de "amor prático" - beneficência
cujo único motivo é a ideia da sua rectidão ou a emoção cau-
sada por aquela ideia. Entre as "disposições interiores" cujo
valor é incutido pelo Novo Testamento certamente que se in-
clui aquilo que Kant designa por meras "inclinações naturais",
tal como a piedade, etc.
Mas o que pode afirmar sobre a virtude se esta consiste
numa disposição para se ser impelido para o cumprimento de
deveres? É dificil negar que a emoção originada pela rectidão
como tal tem algum valor intrínseco e parece mais dificil ainda
negar que a sua presença pode aumentar o valor de alguns
todos em que se insere. Mas, por outro lado, certamente não
tem mais valor do que muitos dos motivos referidos na nossa
última secção - emoções de amor em relação a coisas real-
mente boas em si mesmas. E quanto à insinuação de Kant de
que se trata do único bem 2 , ela parece inconsistente em
relação a outras das suas opiniões. Kant considera claramente
melhor executar as acções para as quais, segundo ele afirma, ela

2
Tanto quanto sabemos, Kant nun ca afirmou expressame nte esta
opinião, mas ela é implícita , por exemplo , no seu argumento contra a H ete-
ronímia.

(285]
nos impele - nomeadamente deveres "materiais" - do que
omiti-las. Desta maneira, se são realmente melhores, essas acções
deverão sê-lo ou em si mesmas ou como um meio. A primeira
hipótese iria contrariar directamente a afirmação de que este
motivo era bem único e a última é excluída pelo próprio Kant
quando admite que nenhuma acção pode causar a existência
deste motivo. E igualmente se pode observar que a outra opi-
nião que ele mantinha, nomeadamente a de que esse motivo
é sempre bom como um meio, não pode também ser defen-
dida. É perfeitamente verdade que há acções muito maléficas
que são praticadas por motivos conscienciosos ; e essa Cons-
ciência não nos diz sempre a verdade sobre quais as acções que
são correctas. Nem se pode afirmar sequer que esse motivo é
mais útil do que qualquer outro. O que se pode ad1nitir é que
se trata de uma das coisas que são geralmente úteis.
O que nos resta acrescentar em relação aos elementos de
algumas virtudes que são bons em si mesmos e em relação aos
seus graus relativos de excelência, bem como também relati-
vamente à prova de que o conjunto de todos eles não pode
constituir o bem único, pode ser deixado para o próximo
capítulo.
109. Os pontos principais deste capítulo, para os quais
chamamos a atenção, podem ser resumidos da seguinte ma-
neira: - (1) Referimos em primeiro lugar que o assunto de
que o capítulo trata, nomeadamente os juízos éticos da con-
duta, inclui uma questão de um tipo completamente diferente
das duas discutidas previamente: (a)Qual a natureza do predi-
cado específico da Ética? e (b) Que tipos de coisas possuem
elas próprias esse predicado? A Ética Prática pergunta-se não
"O que deve ser?", mas "O que devemos fazer?" ; interroga-se
sobre quais as acções que são deveres, que acções são correctas e
quais são erradas. Todas estas questões só podem ser respondi-
das mostrando a relação das acções em questão, como causas
ou condições necessárias, com aquilo que é bom em si mesmo.
As perguntas colocadas pela Ética Prática incluem-se inteira-
mente no terceiro grupo das questões éticas - questões como,

[286]
"O que é bom como meio - qual é a causa ou a condição
necessária das coisas boas em si mesmas?" (86-88). Mas (2)
pergunta-se isto quase exclusivamente em relação a acções
passíveis de serem praticadas por todas as pessoas que o dese-
jarem; e em relação àquelas não pergunta apenas quais entre
elas produzirá algum bom ou mau resultado, mas quais de
entre todas as acções possíveis de cumprir pela vontade pro-
duzirão o melhor resultado total. Afirmar que uma acção é um
dever é afirmar que é uma acção possível que, em circunctân-
cias específicas, produzirá sempre melhores resultados que
qualquer outra. Daqui decorre que aquelas proposições uni-
versais das quais o dever é um predicado, longe de serem evi-
dentes por si mesmas, requerem sempre uma prova, o que está
fora do alcance dos nossos meios de conhecimento presentes
(89-92). Mas (3) toda a Ética tem tentado mostrar que certas
acções possíveis por vontade, produzem geralmente melhores
ou piores resultados finais que qualquer alternativa provável: e
deve ser obviamente difícil comprovar essa afirmação em
relação aos resultados finais num futuro mesmo que relativa-
mente próximo; se a que tem melhores resultados nesse futuro
próximo é também a que tem o melhor no total é uma
questão que ainda não foi completamente analisada. Se é ver-
dade, e se, por isso, chamamos "dever" a acções que geralmente
produzem melhores resultados totais num futuro próximo do
que qualquer alternativa possível, é possível provar que algu-
mas das regras mais comuns do dever são verdadeiras, embora
apenas sob algumas condições da sociedade que podem ser
mais ou menos universalmente apresentadas na história; e essa
prova só é possível em alguns casos sem um juízo correcto re-
lativamente a que coisas são boas ou más em si mesmas - um
juízo que nunca foi apresentado por autores da Ética. Em
relação às acções cuja utilidade geral foi provada, o indivíduo
deveria sempre praticá-las; mas em outros casos, em que geral-
mente se apresentam regras, o indivíduo deveria antes ajuizar
dos resultados prováveis no seu caso particular, guiado por um
conceito correcto de quais as coisas que são intrinsecamente

(287]
boas ou más (93-100). (4) Para demonstrar que uma acção
pode ser um dever, deve demonstrar-se que preenche as con-
dições acima referidas; mas as acções geralmente chamadas
"deveres" não preenchem muito mais essas condições do que
acções "convenientes" ou "de interesse": chan1ando-lhes "deve-
res" , queremos somente dizer que têm , adicionalmente, certos
predicados não-éticos. De igual modo, a "virtude" é princi-
palmente considerada com uma disposição permanente para
cumprir "deveres" nesse sentido restrito: e assim a virtude, se
se trata realmente de uma virtude, deve ser boa como um meio,
no sentido em que preenche as condições referidas acima; mas
não é melhor como meio do que as disposições não virtuosas;
não tem geralmente nenhum valor em si mesma e, quando o
tem , está longe de ser o bem único ou o melhor dos bens.
Assim , "virtude" não é, como geralmente se subentende, um
predicado ético único (101-109) .

[288]
CAPÍTULO VI
O IDEAL

110. O título deste capítulo é ambíguo. Quando classi-


ficamos um estado de coisas de "ideal", podemos querer dizer
três coisas diferentes que têm em comum apenas o facto de
querermos afirmar que o estado de coisas em questão não só
é bom em si mesmo, mas que é bom em si mesmo num grau
muito maior do que muitas outras coisas. O primeiro destes
significados de "ideal" é (1) aquele que se descreve mais pro-
priamente através da expressão "O Ideal" . Assim se significa o
melhor estado de coisas que se pode conceber, o Summum Bonum
ou o Bem Absoluto. É nesse sentido qu e um conceito cor-
recto do Céu seria um conceito correcto do Ideal: com a
expressão o Ideal, queremos significar um estado de coisas que
seria absolutamente perfeito. Mas este conceito de "ideal"
pode distinguir-se claramente de um outro, ou seja (2) o do
melhor estado de coisas possível neste mundo. Este segundo
conceito pode identificar-se com aquele que frequentemente
surge na filosofia como o "Bem Humano", ou o fim último
para que se deveria dirigir a nossa acção. É neste sentido que
se diz que as Utopias são Ideais. Quem constrói uma Utopia
pode supor que sejam possíveis muitas coisas que de facto são
impossíveis; no entanto, assume sempre que algumas coisas pelo
menos são impossibilitadas pelas leis naturais, e daí que a sua
construção difira essencialmente de outra que não tenha em
conta qualquer lei natural, por mais solidamente estabelecida que
seja. De qualquer forma, a pergunta "Qual o melhor estado
de coisas que poderíamos produzir" é completamente dife-
rente da pergunta "Qual seria o melhor estado de coisas con-
cebível?" . Contudo, em terceiro lugar, ao qualificarmos um

[289]
estado de coisas de " ideal", podemos qu erer apenas dizer (3)
que esse estado é bom em si mesmo num grau elevado. É óbvio
que a questão de que coisas são "ideais" neste sentido é uma
questão para a qual terá qu e haver uma resposta antes de pre-
tendermos chegar a uma conclusão sobre o que é o Absoluto
ou o Bem Humano. É principalme nte do Ideal neste terceiro
sentido que o presente capítulo se ocupará, com o objectivo
de obter uma resposta positiva para a qu estão fundamental da
Ética , ou seja: "Que coisas são bens ou fins em si mesmas?".
Até aqui só obtivemos uma resposta negativa a esta pergunta
- a de que o prazer não é certamente o único bom.
111. Acabámos de afirmar que de uma resposta correcta
a esta pergunta dependerão as respostas correctas às outras
duas questões, "O que é o Bem Absoluto?" e "O que é o Bem
Humano?" . Antes, no entanto, de iniciarmos essa discussão,
será conveniente referir a relação entre a primeira e as outras
questões.
(1) É possível que o Bem Absoluto seja inteiramente
composto por qualidades que nem somos sequer capazes de
imaginar. Isso é possível porque, embora certamente conhe-
çamos muitas coisas que são boas em si mesmas, e são-no em
elevado grau, no entanto o melhor não contém necessariamente
em si todas as coisas boas que existem. A verdade desta afir-
mação decorre do princípio descrito no Capítulo I (parágra-
fos 18-22), ao qual se deveria limitar, como aí foi proposto, a
designação de "princípio das unidades orgânicas". Segundo
este princípio, o valor intrínseco de um todo não é idêntico
nem proporciona l à soma dos valores das suas partes. Daí se
depreende que, embora para obter a maior soma possível de
valores das suas partes o Ideal devesse necessariam ente conter
todas as coisas que possuem um qualquer grau de valor intrín-
seco, no entanto, o todo que contivesse todas essas partes po-
deria não ter tanto valor como um outro todo do qual alguns
bens positivos fossem omitidos. Contudo, se um todo que não
contém todos os bens positivos pode ser ainda melhor do que
um outro todo que os contenha, então podemos concluir que

(290]
0 melhor todo poderá não conter nenhum dos bens positivos _
que conhecemos.
É portanto possível que não sejamos capazes de descobrir
0 que é o Ideal. Mas é claro que, embora esta possibilidade
não possa ser negada , ninguém tem o direito de afirmar que
ela se realiza - que o Ideal é algo inimaginável. Não podemos
fazer juízos sobre o valor comparativo das coisas se as coisas
que julgamos não estiverem perante o nosso espírito. Não pode-
mos, assim , ter direito a afirmar que algo que não temos a
capacidade de imaginar possa ser melhor do que algumas das
coisas que podemos imaginar; apesar disso, não temos tam-
bém o direito de negar a possibilidade que assim seja. Daí que
a nossa busca do Ideal tenha que limitar-se a ser uma procura
do todo que, de entre a totalidade dos todos que são compos-
tos por elementos que conhecemos, parece ser o melhor. Não
poderemos nunca afirmar que esse todo é a Perfeição, mas
podemos dizer que ele é melhor do que qualquer outro que
se possa apresentar como seu rival.
Contudo, uma vez que o que quer que possamos ter
qualquer raz ão para pensar que é ideal terá que ser composto
por coisas que nos são conhecidas, torna-se claro que o nosso
principal instrumento para decidirmos o que é ideal é a avalia-
ção comparativa dessas mesmas coisas. O melhor ideal que
podemos construir será o estado de coisas que contenha o
maior número de coisas com valor positivo e nada de mau ou
neutro - desde que a presença de nenhum desses bens, ou a
ausência de coisas más ou neutras pareça diminuir o valor do
todo. De facto, o defeito principal das tentativas que já foram
feitas pelos filósofos para construir um Ideal - para descrever
o Reino dos Céus - parece consistir no facto de que se omi-
tem muitas coisas de grande valor positivo, embora seja evi-
dente que essa omissão não dá relevo ao valor do todo. Nesse
caso, pode dizer-se com segurança que o ideal proposto não é
ideal. Esperamos que a análise de bens positivos a que iremos
proceder mostre que nenhum dos ideais até agora propostos é
satisfatório. Os grandes bens positivos são tão numerosos que

[291]
qualquer todo que os contenha terá , temos que convir, grande
complexidade. Embora tal facto torne dificil ou, em termos
humanos , impossível decidir o que é O Ideal, qual será o me-
lhor estado de coisas imaginável, ele é suficiente para condenar
esses Ideais que são formados por omissão, sem qualquer ga-
nho decorrente dessa mesma omissão. Os filósofos, ao que
parece, procuraram apenas a melhor das coisas singulares, negli-
genciando o facto de que um todo composto por dois grandes
bens, ainda que sendo um deles obviamente inferior ao outro,
pode muitas vezes ser, em si mesmo, francamente superior a
ambos os bens.
(2) Por outro lado, as Utopias - tentativas de descrição
de um Paraíso na Terra - enfermam normalmente deste de-
feito e até do oposto. Sendo normalmente construídas com
base no princípio da mera omissão de grandes males positivos
existentes no presente, não consideram de forma adequada a
bondade que retêm: aquilo a que chamam bens e a que dão
valor corresponde, na maioria, a coisas que não passam de meros
meios para atingir o bem - coisas, como a liberdade, sem as
quais certamente nada de bom pode existir neste mundo, mas
que não têm valor em si mesmas, e nem sequer se poderá ga-
rantir que venham a produzir algo de valor. Em termos dos
objectivos desses autores, os quais pretendem apenas construir
aquilo que é o melhor possível neste mundo, torna-se evi-
dentemente necessário incluir no estado de coisas que descre-
vem muitas coisas que são, em si mesmas, neutras, mas que, de
acordo com as leis naturais, parecem ser absolutamente neces-
sárias à existência de algo que seja bom. No entanto, de facto,
tais autores tem a tendência de incluir muitas coisas cuja
necessidade nem é muito evidente, com a ideia errada de que
essas coisas são boas-em-si-mesmas e não apenas, aqui e agora,
um meio para atingir o bem. Por outro lado, porém, são omi-
tidos na descrição grandes bens positivos cujo alcance parece
ser tão possível quanto muitas das mudanças que esses autores
recomendam. Quer isto dizer que os conceitos do Bem Hu-
mano sao muitas vezes errados, não só porque, como os do

[292]
Bem Absoluto, omitem alguns grandes bens, mas também por-
que incluem coisas neutras; e tanto os omitem como as in-
cluem em casos em que as limitações impostas pela necessi-
dade natural, pelas quais eles se diferenciam legitimamente de
conceitos do Bem Absoluto, não justificam essa omissão e essa
inclusão. É efectivamente óbvio que para se decidir correcta-
mente sobre a que estado de coisas deveríamos aspirar, não
devemos apenas ter em consideração que resultados são pos-
síveis de obter, mas também quais , de entre resultados igual-
mente possíveis, terão o maior valor. No que se refere a esta
segunda questão, a avaliação comparativa dos bens conhecidos
é de não menor consequência do que no qu e se refere à inves-
tigação do Bem Absoluto.
112. O método a utilizar na decisão da resposta à per-
gunta "Que coisas têm valor intrínseco e em que graus o pos-
suem?" foi já descrito no Capítulo III (parágrafos 55, 57). Para
chegarmos a uma decisão correcta sobre a primeira parte desta
questão, torna-se necessário considerar quais são as coisas que,
a existirem por si próprias, em absoluto isolamento, deveríamos
julgar boas na sua própria existência; para decidirmos sobre os
graus de valor relativos de coisas diferentes, devemos também
considerar que valor comparativo parece ligar-se à existência
isolada de cada uma. Com este método, evitar-se-ão dois erros
que parecem ser as causas principais que viciaram as conclu-
sões anteriores sobre esta questão. O primeiro deles é (1) que
aquilo que consiste em supor que o que parece absolutamente
necessário aqui e agora para a existência de algo bom - aquilo
sem o que não podemos passar - é por esse motivo bom em
si mesmo. Se isolarmos essas coisas, que não são mais do que
meros meios para atingir o bem, e supusermos um mundo no
qual elas e apenas elas existissem, a sua ausência de valor torna-
-se evidente. Em segundo lugar, temos o erro mais subtil (2) que
consiste em negar o princípio das unidades orgânicas. Comete-
-se esse erro quando se supõe que, se uma parte de um todo
não tiver valor intrínseco, o valor do todo deverá residir in-
teiramente nas outras partes. Assim , pensa-se normalmente

(293]
que, se se encontrar uma propriedade única que seja comum
à totalidade dos todos com valor, esses todos teriam valor uni-
camente pelo facto de possuírem essa propriedade; tal ilusão é
ainda mais forte se a propriedade comum em questão parecer,
em si mesma, possuir mais valor do que as outras partes des-
ses todos consideradas em si mesmas. Contudo, se considerar-
mos a propriedade em questão isoladamente e a compararmos
depois com o todo do qual faz parte, tornar-se-á evidente
que, em si mesma, a propriedade em questão não possui tanto
valor quanto o todo a que pertence. Assim, se compararmos o
valor de uma certa quantidade de prazer existente por si mesmo
em absoluto com o valor de certas "satisfações" que contenham
uma igual quantidade de prazer, poderá verificar-se que a "sa-
tisfação" é muito melhor do que o prazer ou, noutros casos,
muito pior. Nesse caso, torna-se claro que a "satisfação" não
deve o seu valor apenas ao prazer que contém, embora provalve-
mente tenha parecido que sim quando apenas considerámos os
seus outros elementos constituintes e nos pareceu que, sem o
prazer, eles não teriam tido qualquer valor. Agora, pelo con-
trário, é óbvio que toda a "satisfação" deve o seu valor de igual
modo à presença dos outros elementos constituintes, apesar de
poder ser verdade que o prazer é o único elemento com valor
em si mesmo. E, de igual modo, se nos for dito que todas as
coisas devem o seu valor apenas ao facto de serem "concretiza-
ções do verdadeiro eu" poderemos facilmente refutar essa afir-
mação perguntando se, supondo que existisse por si só, o pre-
dicado significado pela expressão " realização do verdadeiro eu"
teria qualquer valor. Ou a coisa que de facto "realiza o verda-
deiro eu" tem valor intrínseco, ou não; e se tem, certamente
não o deve exclusivamente ao facto de realizar o verdadeiro eu.
113. Se usarmos então esse método do isolamento abso-
luto e se nos precavirmos contra os erros referidos, parece que
a questão a que teremos de dar resposta é muito menos dificil
do que fazem crer as controvérsias da Ética. De facto, uma vez
claramente entendido o significado da questão, a resposta a
ela, em linhas gerais, parece tão óbvia que corre até o risco de

(294]
parecer uma banalidade. As coisas mais valiosas que conhece-
mos ou podemos imaginar são, sem dúvida, certos estados de
consciência que se podem descrever genericamente como os
prazeres das relações humanas e o gozo dos objectos belos.
Provavelmente ninguém que alguma vez se tenha confrontado
com esta questão terá tido alguma dúvida de que o afecto pes-
soal e a apreciação do que é belo na Arte ou na Natureza
sejam bons em si mesmos; nem parece provável que, se con-
siderarmos apenas as coisas que vale a pena termos unicamente
por si mesmas, alguém pense que qualquer outra coisa diferente
daquelas duas tenha tanto valor quanto elas. Destacámos no
Capítulo III (parágrafo 50) o facto de que a mera existência
do que é belo parece ter algum valor intrínseco; no entanto,
parece-nos indubitável que o Professor Sidgwick tinha razão,
na opinião aí discutida segundo a qual a mera existência do
que é belo tem, quando comparada ao valor que se liga à cons-
ciência da beleza, um valor tão pequeno que pode até não ser
tido em conta. Podemos dizer que esta simples verdade é de
facto reconhecida universalmente. O que não foi reconhecido
ainda é que se trata da verdade última e fundamental da Filo-
sofia Moral. Que é apenas por essas coisas - para que o maior
número possível delas possa vir a existir - que se justifica que
qualquer pessoa cumpra um dever público ou particular; que
elas são a raison d'être da virtude; que são elas - os próprios todos
complexos e não quaisquer dos seus elementos ou caracterís-
ticas - que constituem o fim último e racional da acção hu-
mana e o único critério do progresso social, parecem ser ver-
dades normalmente esquecidas.
Que se trata de verdades - que os afectos pessoais e o
prazer estético englobam todos os maiores, de longe os maiores,
bens que possamos imaginar, ficará mais claro a partir da aná-
lise a que iremos agora proceder. Todas as coisas que preten-
demos incluir nas descrições apresentadas são unidades orgâni-
cas altamente complexas; esperamos confirmar e definir a nossa
posição pela discussão das consequências desse facto, bem como
dos elementos que compõem essas unidades.

(295]
114. 1. Propomo-nos começar analisando aquilo a que
chamámos prazeres estéticos, uma vez que o caso dos afectos
pessoais se torna mais complicado. É geralmente admitido, se-
gundo pensamos, que a apreciação adequada de um objecto
belo é uma coisa boa em si mesma; perguntemos, então: Quais
os principais elementos que se incluem nessa apreciação?
(1) É óbvio que nos casos de apreciação estética que
consideramos de maior valor se inclui não uma mera cognição
daquilo que é belo no objecto, mas também um certo tipo de
sentimento ou emoção. Não é suficiente que um indivíduo
veja as características belas de um quadro e saiba que são belas
para se considerar que o seu estado de espírito é altamente lou-
vável. Exige-se, para isso, que o indivíduo aprecie também a
beleza do que vê e do que sabe que é belo - que sinta e veja
essa belez a. Com isto queremos dizer que ele deverá ter uma
emoção adequada relativamente às características belas que
apreende. Talvez seja verdade que todas as emoções estéticas
têm uma característica comum, mas é certo que as diferenças
da emoção parecem ser adequadas a diferenças do tipo de
beleza apreendido. Ao dizermos que emoções diferentes são
adequadas a diferentes tipos de beleza, queremos dizer que o
todo que é formado pela consciência desse tipo de beleza em
co1·Uunto com a emoção a ele adequada é melhor do que se
qualquer outra emoção tivesse sido sentida na contemplação
daquele objecto belo específico. Temos, assim, uma grande
variedade de diferentes emoções, sendo cada uma delas um
elemento constitutivo necessário a um estado de consciência
que julgamos bom . Todas essas emoções são elementos essen-
ciais dos grandes bens positivos; são partes de todos orgânicos
que têm grande valor intrínseco. É, no entanto, importante
notar que esses todos são orgânicos e que desse facto não de-
riva que a emoção tenha, por si 1nesma, qualquer valor, nem
que, se fosse dirigida para um objecto diferente, o todo assim
formado não pudesse ser positivamente mau. De facto, parece
ser verdade que, em qualquer apreciação estética, se distin-
guirmos o elemento emocional do elemento cognitivo que o

[296]
acompanha e qu e é de facto normalmente entendido como
parte integrante da emoção, e se pensarmos que valor esse ele-
mento emocional teria se existisse por si mesmo, certamente
concluiríamos que ele não tem grande, ou mesmo nenhum,
valor. Por outro lado, se a mesma emoção fosse dirigida a um
objecto diferente, se, por exemplo, recaísse sobre um objecto
indiscutivelmente feio, todo o estado de consciência seria pro-
vavelmente considerado mau num grau elevado.
115. (2) No parágrafo anterior referimos dois factos:
que é necessária a presença de alguma emoção para que seja
dado um alto grau de valor a um estado de apreciação estética
e, por outro lado, que essa mesma emoção, em si mesma , pode
ter pouco, ou mesmo nenhum, valor. Daí que essas emoções
confiram aos todos de que fazem parte um valor muito supe-
rior ao que elas em si mesmas possuem. Obviamente, o
mesmo se poderá dizer sobre o elemento cognitivo que tem
que ser combinado com essas emoções a fim de formar esses
todos altamente valiosos. Neste parágrafo tentaremos definir o
que se entende por esse elemento cognitivo para evitar um
possível equívoco. Quando referimos a visão de um objecto
belo ou, mais normalmente, a cognição ou consciência de um
objecto belo, poderemos significar algo que não faz parte de
qualquer todo valioso. Há uma ambiguidade na utilização do
termo "objecto", a qual é provavelmente responsável por alguns
erros cometidos pela filosofia e pela psicologia. Tal ambigui-
dade pode detectar-se facilmente se considerarmos uma pro-
posição que, embora uma contradição, é obviamente verda-
deira - quando se vê um quadro belo, pode não se ver nada
de belo. A ambiguidade consiste no facto de que a referência
ao "objecto" da visão (ou cognição) pode significar ou as qua-
lidades efectivamente vistas, ou todas as qualidades possuídas
pela coisa vista. Assim, no nosso caso, quando se afirma que o
quadro é belo, quer-se dizer que ele contém características que
são belas; quando se diz que alguém vê um quadro, quer-se
dizer que a pessoa vê um grande número das características
contidas nesse quadro; e quando se afirma que, apesar de tudo,

(297)
a pessoa não vê nada de belo, quer-se dizer que ela não vê as
características do quadro que são belas. Desse modo, quando
referimos a cognição de um objecto belo como um elemento
essencial de uma apreciação estética com valor, deve entender-
-se apenas a cognição das características belas possuídas pelo
mesmo objecto e não a cognição de outras características do
objecto que as possui. Esta distinção tem que ser ela própria
diferenciada de uma outra que foi expressa através dos termos
"ver a beleza de uma coisa " e "ver as suas características be-
las". Com a expressão "ver a beleza de uma coisa" queremos
normalmente dizer sentir uma emoção perante as suas caracte-
rísticas belas, enquanto que os termos "ver as suas característi-
cas belas" não se referem a qualquer emoção. Por elemento
cognitivo, que é, em conjunto com a emoção, igualmente
necessário para a existência de uma apreciação com valor, pre-
tendemos significar apenas a cognição real ou a consciência de
algumas ou de todas as qualidades belas de um objecto, ou seja,
de alguns ou de todos os elementos do objecto que possuem
qualquer beleza positiva. Pode facilmente verificar-se que esse
elemento cognitivo é essencial a um todo valioso, perguntando:
Que valor deve ser atribuído à emoção específica adequada
que é produzida pela audição da 5.' Sinfonia de Beethoven se
essa emoção não fosse acompanhada por uma qualquer cons-
ciência ou das notas, ou das relações melódicas e hrmónicas
entre elas? Que a mera audição da Sinfonia, mesmo se acom-
panhada pela emoção adequada , não é suficiente pode ser
facilmente entendido se pensarmos qual seria o estado de uma
pessoa que ouvisse todas as notas sem consciência de quais-
quer das relações melódicas e harmónicas, necessárias à cons-
tituição dos núnimos elementos belos da Sinfonia.
116. (3) Relacionada com a distinção que acabámos de
fazer entre "objecto" no sentido das características efectiva-
mente presentes na mente e "objecto" no sentido do todo da
coisa que possui as características efectivamente presentes na
mente, há uma outra distinção da maior importância para a
análise conecta dos elementos constituintes necessários a um

[298]
todo com valor. Pensa-se normalmente - e correctamente -
que a visão da beleza numa coisa qu e não possui beleza é de
algum modo inferior à visão da beleza numa coisa em que ela
realmente existe. No entanto, sob a mesma expressão, "ver
beleza naquilo que não tem beleza", incluem-se dois factos
muito diferentes, dois factos de valor muito diferente. Podere-
mos querer dizer ou a atribuição a um objecto de características
realmente belas que ele não possui, ou o sentimento relativo a
qualidades que o objecto possui mas que não são realmente
belas, uma emoção que é apenas apropriada a características
realmente belas. Ambos os factos ocorrem com muita fre-
quência e sem dúvida ocorrem em simultâneo na maior parte
das emoções; são, contudo, perfeitamente distintos e a distinção
entre eles é da maior importância para uma correcta avaliação
dos valores. O primeiro pode classificar-se de um erro de juízo
e o segundo um erro de gosto, sendo, no entanto, importante
observar que o "erro de gosto" normalmente inclui um falso
juízo de valor, enquanto que o "erro de juízo" é apenas um
falso juízo de facto.
O caso que classificámos como sendo um erro de gosto,
nomeadamente aquele em que as qualidades que admiramos
(quer sejam possuídas pelo "objecto" quer não) são feias, pode
em qualquer caso não ter valor, excepto aquele que pertence
à emoção por si mesma; em alguns casos, se não em todos ,
trata-se de um mal verdadeiramente positivo. Nesse sentido, é
sem dúvida correcto, portanto, pensar que a visão de beleza
numa coisa que a não possui é inferior em valor à visão de
beleza onde ela realmente existe. O outro caso, porém, é muito
mais dificil. Neste caso está presente tudo aquilo que já men-
cionámos como necessário para a constituição de um bem
positivo : há uma cognição de características realmente belas e
uma emoção adequada relativamente a essas qualidades. É por-
tanto indubitável que estamos perante um grande bem posi-
tivo. Contudo, está presente ainda um outro aspecto: o acre-
ditar que essas características belas existem e que existem com
uma determinada relação com outras coisas, nomeadamente,

[299]
com algumas propriedades do objecto ao qual atribuímos essas
qualidades e ainda que o objecto dessa crença é falso. Podere-
mos perguntar, no que se refere ao todo assim constituído, se
a presença dessa crença e se o facto de que aquilo em que se
acredita é falso interferem no seu valor. Temos assim três casos
diferentes cujos valores relativos se torna muito importante
determinar. Quando estão presentes a cognição de caracterís-
ticas belas e a emoção adequada, podemos ter também (1)
uma crença na existência dessas características, cujo objecto é
verdadeiro (ou seja, que existem); ou (2) uma mera cognição
sem crença, quando é (a) verdade (b) falso que o objecto da
cognição, ou seja, as características belas, existe; ou (3) uma
crença na existência das características belas, quando elas não
existem. A importância destes casos provém do facto de que
o segundo define os prazeres da imaginação, incluindo uma
grande parte da apreciação das obras de arte representativas,
enquanto que o primeiro opõe a essas a apreciação do que é
belo na natureza e nos afectos humanos. O terceiro, por outro
lado, opõe-se a ambos num sentido que pode ser exemplificado
com aquilo a que se chama um afecto mal dirigido, sendo pos-
sível que o amor a Deus, no caso de um crente seja incluído
neste último caso.
117. Ora, como afirmámos, estes três casos têm algo em
comum: em todos eles há uma cognição de características real-
mente belas associada a uma emoção adequada perante essas
características. Parece-nos, deste modo, que não pode pôr-se
em dúvida (e normalmente não o é) que os três casos referi-
dos incluem grandes bens positivos, que se trata de coisas que
vale a pena possuir por si mesmas. Parece-nos também que o
valor do segundo, em qualquer das suas subdivisões, é precisa-
mente o mesmo que o valor do elemento comum aos três. Ou
seja, no caso de apreciações puramente imaginativas temos ape-
nas a cognição de características realmente belas em conjunto
com a emoção adequada; a questão da existência ou não do
objecto, quando não há crença nem na sua existência nem na
sua não existência, parece, neste caso não alterar o valor do es-

[300]
tado total. Somos de opinião, no entanto, que, em termos de
valor intrínseco, os outros dois casos diferem tanto daquele
que acabámos de referir como entre si, embora o objecto da
cognição e a emoção adequada devam ser idênticos nos três
casos. Parece-nos que a presença de uma crença na realidade
do objecto torna o estado total muito melhor, no caso de a
crença ser verdadeira, e pior, se for falsa. Em resumo, quando
a crença existe, no sentido em que acreditamos, por exemplo,
na existência da Natureza e dos cavalos e não acreditamos na
existência de uma paisagem ideal nem em unicórnios, a ver-
dade daquilo em que se crê interfere no valor do todo orgâ-
nico. Se esse for o caso, teremos provado a opinião de que o
conhecimento, no sentido vulgar, distinto, por um lado, da crença
no que é falso e, por outro, do mero reconhecimento do que
é verdade, contribui para o valor intrínseco, que, pelo menos
em alguns casos, a sua presença como parte torna o todo mais
valioso do que seria sem ele.
Consideramos que não há dúvida de que se julga que há
uma diferença de valor, como foi referido, entre os três casos
em análise. Pensa-se que a contemplação emocional de um
cenário natural cujas características se supõem igualmente belas
constitui de algum modo um melhor estado de coisas do que
a contemplação de uma paisagem pictórica: pensa-se que o
mundo seria melhor se pudessemos substituir as melhores obras
da representação artística por objectos reais igualmente belos .
Do mesmo modo, considera-se de algum modo infeliz um
afecto ou uma admiração desajustada mesmo que se trate apenas
de um erro de juízo e não de um erro de gosto. Além disso,
pelo menos as pessoas que têm um grande respeito pela ver-
dade têm tendência para pensar que uma contemplação mera-
mente poética do Reino dos Céus seria superior à do crente
religioso se a verdade fosse que o Reino dos Céus não existe
nem existirá nunca de facto. A maior parte das pessoas, se
ajuizassem sóbria e reflectidamente, hesitariam de algum modo
em preferir a felicidade de um louco convencido de que o
mundo é ideal à condição ou de um poeta que imaginasse um

(301]
mundo ideal ou de si mesmas usufruindo e apreciando os bens
menores que existem e poderão existir. Contudo, para termos
a certeza de que esses juízos são efectivamente juízos de valor
intrínseco relativamente à questão que nos é colocada, e para
nos assegurarmos de que esses juízos são correctos, é necessá-
rio distinguirmos claramente a nossa questão de duas outras
que têm um peso muito importante relativamente à totalidade
do nosso juízo perante os casos em questão.
118. Em primeiro lugar (a) , é óbvio que, quando acre-
ditamos, a questão de saber se aquilo em que acreditamos é
verdadeiro ou falso terá um peso da maior importância relati-
vamente ao valor da nossa crença enquanto meio. Quando acredi-
tamos, somos capazes de agir perante a nossa crença de um
modo que não seremos capazes de agir perante a nossa cogni-
ção dos acontecimentos que fazem parte de um romance.
A verdade daquilo em que acreditamos é por isso muito impor-
tante como meio de evitar o desgosto de uma desilusão ou de
evitar consequências ainda mais graves. Poderá pensar-se que
um afecto mal dirigido foi infeliz pela única razão de que nos
leva a esperar determinados resultados que a verdadeira natu-
reza do seu objecto não pode assegurar. Do mesmo modo, o
Amor a Deus, quando, como normalmente acontece, é acom-
panhado pela crença de que ele providenciará determinadas
consequências de acordo com determinadas acções, seja nesta
vida ou na próxima, consequências essas que o curso natural
das coisas não nos permite esperar, poderá levar o crente a
cometer acções cujas consequências reais, supondo que tal Deus
não existe, podem ser muito piores do que as que ele pudesse
ter promovido - e poder-se-ia pensar que essa era a única ra-
zão (sendo uma razão suficiente) pela qual deveríamos hesitar
em encorajar o Amor a Deus, na ausência de qualquer prova
da sua existência. Do mesmo modo se poderia pensar que o
único motivo pelo qual a beleza existente na Natureza deve-
ria ser considerada superior a uma pintura igualmente bela ou
à imaginação seria que a sua existência poderia provocar uma
maior permanência e uma maior frequência da nossa contem-

[302]
plação emocional dessa beleza. É de facto verdade que a prin-
cipal importância de grande parte do conhecimento - da ver-
dade da maior parte das coisas em que acreditamos - consiste,
neste mundo, nas suas vantagens extrínsecas, sendo imensa-
mente valioso enquanto meio.
Em segundo lugar, (b) poderá dar-se o caso de que a
existência daquilo que contemplamos seja em si mesma um
grande valor positivo, e assim, por esse único motivo, o esta-
do de coisas descrito através da afirmação de que o objecto da
nossa emoção realmente existe seria intrinsecamente superior
àquele em que o mesmo objecto não existisse. O motivo para
essa superioridade tem sem dúvida grande importância no caso
dos afectos humanos, quando o objecto da nossa admiração é
constituído pelas qualidades mentais de uma pessoa admirável,
uma vez que se existissem duas dessas pessoas admiráveis seria
muito melhor do que se existisse apenas uma. Assim se dife-
renciaria também a admiração da natureza inanimada das suas
representações artísticas, na medida em que podemos conceder
um pequeno valor instrínseco à existência de um objecto belo
independentemente de qualquer contemplação desse objecto.
Mas deve notar-se que esse motivo não justificaria qualquer di-
ferença de valor entre um caso em que se acreditasse na verdade
e um caso de mera cognição, independentemente de crença
ou de descrença . Por outras palavras, em termos desse motivo,
a diferença entre as duas subdivisões do nosso segundo tipo (o
da contemplação imaginativa) seriam tão grandes quanto aque-
las que existem entre o nosso primeiro tipo e a segunda sub-
divisão do segundo. Assim, a superioridade da mera cognição
de um objecto belo que existe de facto relativamente à mesma
cognição no caso de o objecto não existir seria tão grande
quanto a superioridade do conhecimento de um objecto belo
relativamente à mera imaginação desse objecto.
119. Em nosso entender, esses dois motivos de distinção
entre o valor dos três casos em análise devem, por seu lado, ser
diferenciados daquele cuja validade questionamos agora a fim
de obtermos uma resposta correcta à questão relativa ao último.

(303)
A questão que pretendemos levantar é a seguinte: será que o
todo constituído pelo facto de que há uma contemplação emo-
cional de um objecto belo que é tido como sendo real e efec-
tivamente o é não obtém algum do seu valor do facto de que
o objecto é real? O que perguntamos é se o valor desse todo,
enquanto todo, não é maior do que o daqueles que diferem dele
seja pela ausência de crença, com ou sem verdade, seja, no caso
de haver crença, pela mera ausência de verdade. Não estamos
a perguntar nem se ele não é superior a eles como meio (cer-
tamente que o é) nem se ele não poderá conter uma parte de
maior valor, nomeadamente a existência do objecto em ques-
tão. Perguntamos apenas se a existência do seu objecto não
constituirá um valor acrescido ao valor do todo, perfeitamente
distinto da adição constituída pelo facto de que este todo con-
tém uma parte valiosa.
Colocando a questão nestes termos, certamente a res-
posta será afirmativa. Podemos explicitá-la claramente através
do método de isolamento, sendo que a única decisão depen-
derá do nosso juízo reflexivo. Podemos evitar a tendência ge-
rada pela consideração do valor como meio supondo que se trata
de um caso de ilusão mais completo e permanente do que
qualquer ilusão deste mundo. Podemos imaginar o caso de
uma pessoa desfrutando por toda a eternidade da contempla-
ção de um cenário tão belo e de relações tão adntiráveis com
as outras pessoas quanto nos seja possível imaginar. No entanto,
todos os objectos da sua cognição são absolutamente irreais.
Parece-nos sem dúvida que deveríamos considerar a existên-
cia de um universo no qual existisse apenas essa pessoa como
tendo um valor muito inferior àquele em que os objectos em
cuja existência a pessoa acredita existissem exactamente como
ele crê que existem; assim, seria inferior não apenas porque lhe
faltariam os bens que consistem na existência dos objectos em
questão, mas também meramente pelo facto de a sua crença ser
falsa. Que esse universo seria inferior por essa única raz ão de-
corre da nossa admissão, que igualmente nos parece acertada,
de que o caso de uma pessoa que imagina apenas, sem acredi-

(304]
tar, nos objectos belos em questão seria, embora esses objectos
realmente existissem, ainda inferior ao de uma pessoa que, para
além de imaginar, acreditasse também na sua existência. Pois
neste caso está presente todo o bem acrescido que consiste na
existência dos objectos e mesmo assim ainda parece haver uma
grande diferença de valor entre este caso e o caso em que se
crê na sua existência. Pensamos, no entanto, que a nossa con-
clusão poderá ser mais convincentemente apresentada do se-
guinte modo. (1) Não nos parece que o pequeno grau de valor
que possamos conceder à existência de objectos inanimados
belos seja igual em quantidade à diferença que nos parece exis-
tir entre a apreciação (acompanhada de crença) desses objectos,
no caso de realmente existirem, e uma apreciação puramente
imaginativa de objectos inexistentes. Essa desigualdade torna-
-se mais dificil de verificar quando o objecto é uma pessoa
admirável, uma vez que deve atribuir-se um grande valor à sua
existência. Cremos contudo que não será paradoxal afirmar-
-se que a superioridade do afecto recíproco, no caso de ambos
os objectos terem valor e existirem, relativamente a um afecto
não correspondido, no caso de ambos terem valor mas um deles
não existir, não depende apenas do facto de que, no primeiro
caso, temos duas coisas boas em vez de uma, mas também do
facto de cada uma delas ser aquilo que a outra crê que é. (2)
Parece-nos que o caso que passamos a descrever tornará óbvia
a importância da contribuição da crença na verdade da exis-
tência para o valor. Supondo que um objecto digno de afecto
realmente existe e que se acredita na sua existência, havendo
porém um erro de facto que consistiria na situação de as quali-
dades amadas, embora exactamente semelhantes não fossem as
mesmas que realmente existem, tal estado de coisas será facil de
imaginar e cremos que não se pode evitar considerar que, em-
bora ambas as pessoas existam, ele não é tão satisfatório quanto
seria um estado de coisas em que a própria pessoa amada e em
cuja existência se crê seja também aquela que realmente existe.
120. Partindo desse pressuposto, incluímos nesta terceira
secção uma terceira conclusão a juntar às duas anteriores. Essa

(305)
terceira conclusão é a de que uma crença na realidade de um
objecto aumenta consideravelmente o valor de muitos todos
valiosos. Tal como nas secções (1) e (2) se afirmava que as emo-
ções estéticas e afectivas têm pouco ou nehum valor para além
da cognição dos objectos adequados e que a cognição desses
objectos tem pouco ou nenhum valor para além da emoção
adequada, sendo que o todo em que ambas se combinam pos-
sui um valor muito superior à soma dos valores das suas partes.
Portanto, nos termos desta secção, se a estes valores se juntar
uma crença na realidade do objecto, o novo todo assim forma-
do terá um valor muito superior à soma obtida pela adição do
valor da crença na verdade, considerada em si mesma, ao valor
dos todos iniciais. Este novo caso difere do primeiro apenas no
sentido em que, enquanto que a crença na verdade tem, em si
mesma, tão pouco valor como qualquer um dos dois outros
elementos constitutivos, no entanto, se os considerarmos em
conjunto, parecerá que formam um todo de muito grande
valor, não sendo esse o caso de dois todos que fossem formados '
pela soma da crença na verdade com qualquer um dos outros.
A importância da conclusão de que trata esta secção pa-
rece ter a ver sobretudo com duas das suas consequências. (1) Ela
permite justificar o imenso valor intrínseco que parece ser nor-
malmente atribuído ao mero conhecimento de algumas verdades
e que foi expressamente atribuído a alguns tipos de conheci-
mento por Platão e por Aristóteles. De facto, o conhecimento
perfeito competiu muitas vezes com o amor perfeito para o
acesso à condição de Ideal. Se as conclusões desta secção esti-
verem conectas, parece que o conhecimento, embora tendo
pouco ou nenhum valor por si mesmo, é um elemento absolu-
tamente essencial aos maiores bens, contribuindo imensamente
para o seu valor. Parece assim que essa função pode ser cum-
prida não apenas pelo tipo de conhecimento que considerá-
mos principalmente, ou seja, o conhecimento da realidade do
objecto belo conhecido, mas também pelo conhecimento da
identidade numérica desse objecto e do que realmente existe,
e pelo conhecimento de que a existência desse objecto é ver-

[306]
<ladeiramente boa. Efectivamente, todo o conhecimento que
se reporta directamente à natureza dos elementos constitutivos
de um objecto belo pareceria ser capaz de aumentar consi-
deravelmente o valor da contemplação desse objecto, embora,
em si mesmo, tal conhecimento não tenha qualquer valor. -
(2) A segunda grande consequência decorrente desta secção
tem a ver com o facto de que a presença da crença na verdade
pode, apesar de uma grande inferioridade do valor da emoção
e da beleza do seu objecto, constituir com eles um todo igual
ou superior em valor a todos nos quais a emoção e a beleza
são superiores, mas em que não há uma verdadeira crença ou
o que existe é uma crença falsa . Podemos assim justificar a
atribuição de valor igual ou superior a uma apreciação de um
objecto real inferior comparada com a apreciação de um
objecto claramente superior mas que é um mero produto da
imaginação. Do mesmo modo, uma apreciação justa da natu-
reza e de pessoas reais pode ser igual a uma apreciação igual-
mente justa de objectos produzidos pela imaginação artística,
mesmo que o grau de beleza dos últimos seja muito superior.
Assim também, embora possamos admitir que Deus é um
objecto mais perfeito do que qualquer ser humano real, o amor
a Deus pode ser inferior ao amor humano, se Deus não existir.
121. (4) Para completar a discussão desta primeira espé-
cie de bens - bens que se referem essencialmente a objectos
belos - será necessário elaborar uma classificação e uma avalia-
ção comparativa de todas as diferentes formas de beleza, uma
tarefa que pertence mais propriamente à disciplina da Estética.
Não nos propomos, porém, levar a cabo tal tarefa. Deve ser
sublinhado apenas que pretendemos incluir entre os elemen-
tos essenciais que constituem os bens que temos vindo a dis-
cutir todas as formas e variedades de objectos belos, sob a
única condição de serem verdadeiramente belos; entendido
esse facto, parece-nos óbvio existir um consenso relativamente
ao que é realmente belo e ao que é realmente feio, e mesmo
no que se refere a grandes diferenças de grau de beleza, será
suficiente partirmos do princípio de que os nossos juízos sobre

(307]
o bem e o mal não serão muito errados. No que quer que seja
que um número considerável de pessoas acha belo haverá
muito provavelmente alguma característica bela; neste âmbito, as
diferenças de opinião parecem dever-se sobretudo mais a uma
atenção exclusiva por parte de diferentes pessoas a diferentes
qualidades do mesmo objecto do que ao erro concreto de se
julgar bela uma característica que é realmente feia. Quando um
objecto que algumas pessoas acham belo é considerado por
outras como não o sendo, por via de regra, a verdade é que falta
a esse objecto alguma qualidade bela ou então que o mesmo
objecto enferma de uma característica feia , nas quais se con-
centram alternativamente as atenções exclusivas dos críticos.
Poderemos, no entanto, enunciar dois princípios gerais,
intimamente relacionados com as conclusões deste capítulo e
cujo reconhecimento é da maior importância para a averigua-
ção do que é realmente belo. A falácia naturalista é normal-
mente cometida no que se refere à questão da beleza e à ques-
tão do bem, provocando erros tanto no campo da Estética como
:10 da Ética. Mais normalmente ainda se supõe que o belo
pode definir-se como aquilo que produz determinados efeitos
sobre os nossos sentimentos, sendo muito frequente a con-
clusão que daí deriva - que os juízos de gosto são meramente
subjectivos, que precisamente a mesma coisa pode, dependendo
das cicunstâncias, ser simultaneamente bela e não bela . As con-
clusões deste capítulo sugerem uma definição de beleza que
pode explicar em parte e resolver as dificuldades que estão na
origem desse erro. Parece aceitável que o belo seja definido como
aquilo cuja contemplação apreciativa é boa em si mesma, ou
seja, afirmar que uma coisa é bela equivale a afirmar que a sua
cognição é um elemento essencial de um dos todos intrinse-
camente valiosos que temos vindo a discutir; daí que a questão
de ser ou não ser verdadeiramente belo dependa da questão
objectiva de se o todo em apreço é ou não é verdadeiramente
bom, não dependendo por seu lado da questão de produzir ou
não produzir determinados sentimentos em pessoas específi-
cas. Esta definição é duplamente aceitável porque resolve o

[308]
problema da evidente relação entre a bondade e a beleza e das
não menos evidentes diferenças entre esses mesmos dois con-
ceitos. Surge à primeira vista como uma estranha coincidên-
cia que haja dois predicados objectivos de valor diferentes, 'bom'
e 'belo', no entanto tão intimamente relacionados que o que
é belo é também bom. Contudo, se a nossa definição estiver
conecta, essa estranheza desaparece, uma vez que ficamos ape-
nas com um predicado de valor inanalisável, ou seja, 'bom' ,
enquanto 'belo', embora não idêntico, é definido por referên-
cia a ele, sendo assim ao mesmo tempo diferentes e necessaria-
mente relacionados. Ou seja, sob esta perspectiva, dizer que
uma coisa é bela é dizer, não que é em si mesma boa, mas que
é um elemento necessário a algo que o é: provar que uma
coisa é verdadeiramente bela é provar que um todo com o
qual tem uma relação específica enquanto parte é verdadeira-
mente bom. Assim se poderá explicar a predominância de
objectos materiais - objectos dos sentidos - entre os objectos
que normalmente são considerados belos. Embora tendo, como
já foi afirmado, pouco ou nenhum valor intrínseco, esses
objectos são elementos constituintes essenciais ao grupo mais
amplo de todos que possuem valor intrínseco. Esses todos
podem ser - e são - eles próprios também belos, mas a rela-
tiva raridade dos casos em que os consideramos como eles
próprios objectos de contemplação parece ser suficiente como
explicação do facto de se associar a beleza a objectos externos.
Em segundo lugar (2), devemos notar que os objectos
belos são, eles próprios, na sua maioria, unidades orgânicas, no
sentido em que constituem todos de grande complexidade, a tal
ponto que a contemplação de qualquer das suas partes, em si
mesma, pode não ter valor e que, no entanto, a não ser no
caso em que a contemplação do todo inclua a contemplação
dessa parte, perderá em valor. Deste facto decorre a impossi-
bilidade da existência de um critério único de beleza. Nunca
poderá afirmar-se com verdade que um objecto deve a sua
beleza unicamente à presença de determinada característica, nem
que qualquer objecto que a possua é necessariamente belo.

[309]
O que se pode dizer é que alguns objectos são belos porque pos-
suem algumas características, no sentido em que não seriam
belos se as não possuíssem. É certamente também possível
verificar que algumas características estão mais ou menos uni-
versalmente presentes em todos os objectos belos e, nesse sen-
tido, constituem condições mais ou menos importantes de
beleza. Torna-se no entanto importante observar que as pró-
prias características que diferenciam um objecto belo de todos
os outros são, se o objecto for realmente belo, tão essenciais à
sua beleza quanto outras que o objecto possui em comum
com tantos outros. O objecto não teria a beleza que tem sem
as suas características específicas e também se não possuísse as
características genéricas que possui; e as qualidades genéricas,
em si mesmas, impediriam a existência de beleza tanto quanto
as específicas.
122. II. Lembremos que iniciámos este levantamento de
grandes bens distintos dividindo todos os maiores bens conhe-
cidos em dois tipos de prazeres estéticos, por um lado, e o pra-
zer das relações humanas ou do afecto pessoal, por outro. Adiá-
mos a consideração destes últimos, uma vez que apresentam
maiores complexidades, cuja natureza passará agora a ser clari-
ficada, apesar de a já termos tomado em consideração quando
dicutimos o papel da relação entre o valor e a crença na ver-
dade. O facto é que, no caso do afecto pessoal, o objecto em
si é não apenas belo, possuindo ou não valor intrínseco, mas é
ele próprio, pelo menos em parte, de grande valor intrínseco.
Todos os elementos constituintes que verificámos serem neces-
sários aos prazeres estéticos mais valiosos, nomeadamente a
emoção adequada, a cognição de características verdadeira-
mente belas e a crença na realidade do objecto são igualmente
necessários no caso do afecto pessoal. Temos aqui, no entanto,
um novo elemento: o facto de que o objecto deve ser não só
verdadeiramente belo mas também verdadeiramente bom num
alto grau.
Evidentemente, este factor de maior complexidade ocorre
na medida em que se incluem no objecto do afecto pessoal

[310)
algumas das qualidades mentais da pessoa relativamente a quem
o afecto é sentido. Parece-nos admissível que, por mais valioso
que seja o afecto, ele constará em grande parte na apreciação
das qualidades mentais e a presença dessa parte torna o todo
bem mais valioso do que seria sem ela. No entanto, é muito
duvidoso que a apreciação possua em si mesma tanto valor
como o todo no qual se combina com uma apreciação da
expressão corpórea adequada das qualidades mentais em ques-
tão. É verdade que em todos os casos reais de afecto valioso,
as expressões fisicas de carácter, seja através do olhar, de pala-
vras, ou de acções, fazem parte do objecto em relação ao qual
o afecto é sentido e o facto da sua inclusão parece aumentar o
valor do estado no seu todo. É extremamente difícil imaginar
como seria a cognição de qualidades mentais por si só, ou seja,
não acompanhada por quaisquer expressões corpóreas e, na
medida em que chegámos a esta abstracção, o todo em causa
parece realmente possuir menos valor. Podemos assim concluir
que a importância de uma admiração de qualidades mentais
admiráveis se baseia principalmente na imensa superioridade
de um todo do qual essa admiração faz parte relativamente a
um outro do qual a mesma admiração esteja ausente e não em
qualquer grau de valor intrínseco que possua em si mesma.
Parece até duvidoso que se, em si mesma, possua tanto valor
quanto a apreciação da mera beleza física sem dúvida possui, ou
seja, se a apreciação daquilo que tem grande valor intrínseco
é tão valiosa quanto a apreciação do que é meramente belo.
No entanto, se considerarmos ainda a natureza das quali-
dades mentais admiráveis em si mesmas, veremos que a aprecia-
ção adequada das mesmas exige um outro tipo de referência à
beleza puramente material. Se as nossas conclusões anteriores
estiverem correctas, as qualidades mentais admiráveis consis-
tem em grande medida na contemplação emocional de objec-
tos belos; daí que a respectiva apreciação venha a consistir
essencialmente na contemplação dessa contemplação. É ver-
dade que a apreciação mais valiosa das pessoas parece ser aquilo
que consiste na apreciação da sua própria apreciação de outras

(311]
pessoas, mas mesmo assim haverá muito possivelmente uma
referência à beleza material, tanto devido ao facto de que aquilo
que é apreciado pode, em última análise, ser a contemplação
do que é meramente belo, como devido ao facto de que a apre-
ciação mais valiosa de uma pessoa parece incluir uma aprecia-
ção da sua expressão corpórea. Por isso, embora possamos
admitir que a apreciação da atitude de uma pessoa relativa-
mente a outras pessoas, como por exemplo o amor pelo amor,
é sem dúvida o bem mais valioso que conhecemos, muito mais
valioso do que o mero amor pela beleza, apenas se admitirá
que o é se o pnme1ro incluir o segundo, de forma mais ou
menos directa.
No que se refere à questão de quais são as qualidades
mentais cuja cognição é essencial ao valor do relacionamento
humano, é óbvio que entre elas se encontram em primeiro lugar
todas as variedades de apreciação estética que integravam o
nosso primeiro tipo de bens. Incluem assim uma grande varie-
dade de diferentes emoções, cada umas das quais adequada a
um tipo diferente de beleza. Devemos agora juntar a essas todo
o conjunto de emoções adequadas às pessoas, diferentes daque-
las que são apenas adequadas à mera beleza material. Devemos
também lembrar que, assim como essas emoções possuem pouco
valor em si mesmas, e como o estado de espírito no qual exis-
tem pode ver o seu valor extremamente aumentado ou perdê-
-lo inteiramente e tornar-se efectivamente mau, dependendo
do facto de as cognições que acompanham essas emoções
serem adequadas ou inadequadas, também a apreciação dessas
mesmas emoções, podendo embora ter valor em si mesma,
poderá fazer parte de um todo que possui um valor muito
maior ou que não possui valor algum, dependendo de ser ou
não acompanhado de uma percepção da adequabilidade das
emoções relativamente aos respectivos objectos. Torna-se deste
modo evidente que o estudo daquilo que tem valor no rela-
cionamento humano apresenta uma enorme complexidade e
que há muito relacionamento humano que possui pouco ou
mesmo nenhum valor, ou que é até efectivamente mau . Con-

(312)
tudo, também neste caso, tal como relativamente à questão de
o que é belo, não há dúvida de que, no geral, um juízo refle-
xivo terá a capacidade de decidir correctamente o que são
bens positivos e até de distinguir quaisquer grandes diferenças
de valor entre esses bens. Em especial, poderíamos dizer que
as emoções cuja contemplação é essencial aos maiores valores
e que são, elas também , adequadamente produzidas por essa
contemplação parecem ser aquelas a que normalmente se dá
mais valor, sendo conhecidas pela designação de afecto.
123. Tendo completado a nossa análise da natureza dos
grandes bens positivos que não parecem incluir entre os seus
elementos constituintes algo efectivamente mau ou feio, em-
bora integrem muitos elementos que são em si mesmos de
valor neutro, prossigamos referindo um certo número de con-
clusões relativas à natureza do Summum Bonum, ou seja, o
estado de coisas mais perfeito qu e possamos conceber. Os filó-
sofos idealistas cujas opiniões estão mais próximas das que
advogamos, no sentido em que negam que o prazer constitua
o único bem e consideram que o que é completamente bom
é bastante complexo, normalmente representam o Ideal como
um estado de existência puramente espiritual. Entendendo
que a matéria é essencialmente imperfeita, se não mesmo má,
esses filósofos concluem que para haver um estado de per-
feição é necessário que haj a uma ausência total de proprie-
dades materiais. Na sequência dos nossos argumentos, esse
ponto de vista estaria correcta no sentido em que afirma que
qualquer grande bem deve ser mental e ainda que, em si mesma,
uma existência puramente material, só poderá possuir um valor
reduzido, ou talvez até nenhum. A superioridade do espiritual
relativamente ao material foi já, en certo sentido, amplamente
provada. No entanto, dessas superioridade não decorre que
um estado de coisas perfeito tenha que ser um estado de coisas
do qual se excluem rigidamente todas as propriedades mate-
riais; bem pelo contrário, se as nossas conclusões estiverem cor-
rectas, deveremos crer que um estado de coisas que inclua essas
propriedades é certamente muito melhor qu e qualquer estado

(313]
concebível que as não inclua. Para verificarmos esse facto,
torna-se indispensável considerar exactamente o que é que afir-
mamos ser bom quando dizemos que a apreciação da beleza
na Arte e na Natureza o é. Na sua maioria, os filósofos em
questão não negam que essa apreciação seja boa. No entanto,
se o admitirmos, teremos que lembrar a máxima de Butler,
segundo a qual tudo é aquilo que é e não outra coisa. Tentámos
demonstrar, e parece-nos uma evidência impossível de negar,
que essa apreciação constitui uma unidade orgânica, um todo
complexo e que, nos exemplos mais manifestos, uma parte desse
todo é a cognição de qualidades materiais, em especial de uma
grande variedade daquilo que se designa por qualidades sec,m-
dárias . Portanto, se se trata deste todo que sabemos ser bom e
não de outra coisa, então sabemos também que as qualidades
materiais, mesmo sendo em si perfeitamente isentas de valor,
são no entanto elementos essenciais de algo muito valioso.
O que sabemos possuir valor é a apreensão dessas mesmas qual-
idades e não de outras, e se nos propusermos subtraí-las ao
todo, o que resta não é aquilo que sabemos ter valor, e sim algo
diferente. Notemos que esta conclusão é correcta mesmo que
se negue a nossa afirmação de que uma crença na verdade da
existência dessas qualidades faz aumentar o valor do todo.
Deste modo, deveríamos poder afirmar que a existência de um
mundo material é perfeitamente irrelevante em termos da
perfeição, porém, há ainda que ter em conta o facto de que
aquilo que sabemos ser bom ser uma cognição de qualidades
materiais (mesmo que puramente imaginárias). Teremos assim
que admitir sob pena de contradição - sob pena de se afirmar
que as coisas não são o que são e sim algo diferente - que um
mundo do qual fossem banidas todas as qualidades materiais
seria um mundo desprovido de muitas das coisas, ou mesmo
de todas as coisas que sabemos com certeza serem grandes
bens. Que esse mundo poderia contudo ser um mundo muito
melhor do que um outro que mantivesse esses bens é algo que
já admitimos (parágrafo 111 (1)); todavia, para demonstrar que
tal mundo seria melhor seria necessário provar que a existên-

[314]
eia dos elementos em questão, embora bons em si mesmos,
faria diminuir em maior grau ainda o valor de um todo a que
pertencessem. Essa prova constitui certamente uma tarefa que
nunca ninguém tentou levar a cabo e, até que o seja, teremos
que afirmar que as qualidades materiais são um elemento cons-
tituinte necessário ao Ideal e que, embora algo completamente
desconhecido pudesse ser melhor do que qualquer mundo
conhecido que contenha esses elementos ou qualquer outro
bem, não há qualquer razão para crermos que qualquer coisa
seria melhor do que um estado de coisas que os incluísse. Ne-
gar e excluir a matéria é negar e excluir o melhor que conhe-
cemos. É falso que algo possa manter o seu valor ao perder
algumas das qualidades que possui. A verdade é que a coisa
alterada pode ter tanto ou mais valor quanto o das qualidades
que perdeu. O que propomos é que nada que sabemos ser bom
e que não contenha qualidades materiais tem tanto valor que
possa ser considerado por si mesmo superior a um todo que,
para além dele, incluísse ainda uma apreciação de qualidades
materiais. Não interessa aqui discutir que um bem puramente
espiritual pode ser a melhor das coisas singulares, embora, pelo
que foi dito sobre a natureza do afecto pessoal, haja razões para
se poder duvidar que assim seja. No entanto, adicionando-lhe
uma apreciação de qualidades materiais que, embora talvez
inferior em si mesma, constitui certamente um grande valor
positivo, obter-se-ia uma soma maior de valor que não seria
contrabalançada por um decréscimo correspondente do valor
do todo - a nosso ver, sobre este facto não restam quaisquer
dúvidas.
124. Para completarmos a discussão dos princípios fun-
damentais relativos à determinação de valores intrínsecos, há
ainda que tratar dois temas principais. O primeiro é a natureza
de grandes males intrínsecos, incluindo aqueles que poderemos
denominar males mistos, ou seja, os todos maus que apesar de
tudo contêm, como elemento essencial, algo efectivamente bom
ou belo. O segundo aspecto refere-se à natureza daquilo que
poderemos, numa mesma lógica, denominar de bens mistos,

[315]
ou seja, os todos que, apesar de intrinsecamente bons enquanto
todos , contêm, como elemento essencial, algo efectivamente
mau ou feio. Para facilitar esta discussão, deverão ser entendidos
os termos "belo" e " feio " não como necessariamente refe-
rindo-se a coisas do tipo que mais normalmente nos ocorre
como exemplo do que é belo ou do que é feio e sim em ter-
mos da nossa proposta de definição de beleza. Assim, o termo
"belo" será usado para denotar algo cuja contemplação admi-
rativa é boa em si mesma, sendo 'feio' utilizado para denotar
algo cuja contemplação admirativa é má em si mesma.
I. No que se refere então aos grandes males positivos,
parece-nos ser evidente que, se forem tomadas as devidas pre-
cauções no sentido de descobrirmos precisamente o que são essas
coisas cuja existência, se existissem absolutamente por si mesmas,
seria considerada como um grande mal, descobriremos que são
na sua grande maioria unidades orgânicas exactamente com a
mesma natureza das que constituem os grandes bens positivos.
Ou seja, trata-se de cognições de um objecto acompanhadas
por uma emoção. Do mesmo modo que nem uma cognição
nem uma emoção em si mesmas pareciam capazes de ser muito
boas também (embora com uma excepção) nem uma cogni-
ção nem uma emoção em si mesmas parecem capazes de ser
muito más. E assim como um todo formado por ambas, mesmo
sem se lhe juntar qualquer outro elemento, parecia perfeita-
mente capaz de constituir um grande bem, assim também um
todo, em si mesmo, parece capaz de constituir um grande mal.
Quanto ao terceiro elemento que entendemos como capaz de
fazer aumentar grandemente o valor de um bem, a crença na
verdade, o mesmo parece ter relações diferentes com diferentes
tipos de males. Em alguns casos, a junção de uma crença na
verdade a um mal positivo constitui um mal ainda maior; nou-
tros casos, porém, não parece fazer muita diferença.
Os maiores males positivos podem dividir-se nos três
tipos que passamos a descrever.
125. (1) O primeiro tipo consiste nos males que pare-
cem incluir sempre um prazer ou uma contemplação admira-

[316]
tiva de coisas que são em si mesmas más ou feias. Quer dizer,
esses males caracterizam-se pelo facto de incluírem precisa-
mente a mesma emoção que é essencial aos grandes bens não
mistos , dos quais aqueles se diferenciam pelo facto de que a
emoção em causa é dirigida a um objecto inadequado. Na
medida em que tal emoção constitui ou um pequeno bem em
si mesma ou um objecto ligeiramente belo, os males corres-
pondentes podem ser classificados de males 'mistos', como já
referimos. No entanto, como também já foi referido, é muito
duvidoso que uma emoção completamente isolada do seu
objecto possa ter valor ou beleza - certamente não terá muito
de nenhum. É, contudo, importante observarmos que exacta-
mente as mesmas emoções que de um modo pouco preciso
são muitas vezes referidas como sendo os maiores bens, ou
mesmo até os únicos bens, podem ser elementos constituintes
essenciais dos piores todos e que, dependendo da natureza da
cognição que os acompanha, podem constituir-se em condi-
ções tanto dos maiores bens como dos piores males.
Para ilustrar a natureza dos males deste tipo podemos
tomar dois exemplos - a crueldade e a lascívia. Podemos ter a
certeza de que se trata de dois grandes males intrínsecos se
imaginarmos o estado de uma pessoa cujo espírito se encon-
tre exclusivamente ocupado por qualquer uma dessas paixões
na sua pior forma . Se pensarmos então que juízo faríamos de
um universo que consistisse unicamente em espíritos ocupados
da forma que descrevemos , sem qualquer esperança de que aí
pudesse haver a mínima consciência de qualquer outro objecto
que não os objectos próprios dessas paixões, ou qualquer sen-
timento dirigido a um desses objectos, cremos que não seria
possível deixar de concluir que a existência de um universo
como o referido constituiria um mal muito pior do que a exis-
tência de nenhum outro. Mas, assim sendo, é lógico que esses
dois estados de vício não são apenas, como normalmente se
reconhece, maus enquanto meios , mas são certamente maus
em si mesmos. E não é menos evidente que a natureza de tais
males contém em si a complexidade de elementos que refe-

[317]
rimos em termos de um amor pelo que é mau ou feio. No
que se refere aos prazeres da luxúria, torna-se muito difícil
analisar a natureza da cognição por cuja presença se definem,
embora pareça incluir tanto cognições de sensações orgânicas
como percepções de estados do corpo cujo prazer é certamente
um mal em si mesmo. Quanto a estas, a lascívia incluiria na
sua essência uma contemplação admirativa daquilo que é feio.
Contudo, um dos seus ingredientes mais vulgares, nas suas
piores formas, é o prazer no mesmo estado de espírito em
outras pessoas, incluindo neste caso também um amor por
aquilo que é mau . No que se refere à crueldade, é facil veri-
ficar que se trata essencialmente de um prazer na dor de ou-
tras pessoas e, como veremos quando considerarmos a questão
da dor, trata-se certamente de um amor pelo mal , embora, na
medida em que inclui também um prazer nos sinais físicos de
agonia, seja também um amor pelo feio. Em ambos os casos,
devemos notar que o mal do estado é aumentado não só pelo
maior grau de maldade ou fealdade do objecto, mas também
pelo maior grau de prazer.
No caso da crueldade, poder-se-ia levantar a objecção
de que o nosso repúdio, mesmo no caso isolado apresentado
como exemplo, em que não somos influenciados por consi-
derações relativas à sua maldade, pode ser ainda realmente
dirigido à dor das pessoas que é contemplada com deleite.
A essa objecção poder-se-á responder, em primeiro lugar, que
ela não consegue de forma alguma explicar o juízo que, se-
gundo cremos, ninguém que pondere sobre o assunto poderá
deixar de fazer, de que, apesar de a quantidade de dor con-
templada ser a mesma, quanto maior for o deleite na sua con-
templação, pior será o estado de coisas. Pode ainda, em nossa
opinião, argumentar-se através da verificação de um facto que
não pudemos referir quando considerámos uma possibilidade
semelhante no que se refere aos bens - nomeadamente, a pos-
sibilidade de que a razão pela qual atribuímos maior valor a
um afecto valioso dirigido a uma pessoa real seja a de que leva-
mos em conta o bem acrescido que consiste na própria existên-

[31 8]
eia dessa pessoa. N o caso da cru eldade, podemos também afir-
mar qu e o ca rác ter abo minável qu e possui é igual qu er a do r
contemplada exista rea lm ente, qu er ela sej a puram ente imagi-
nária . Pessoalmente, não cremos qu e a prese nça de um a rre11ça
na verdade neste caso possa alterar o valor instrín seco do todo
considerado, embora possa ce rtamente fa zer alterar o se u valo r
enquanto meio. E o mesmo se poderá dizer relativa mente a ou-
tros males do mesm o tipo : não conseguimos pensa r qu e uma
crença na verdade da existência dos seus obj ectos possa fazer
qualqu er diferença em termos do grau dos respectivos demé-
ritos concretos. Por outro lado, a presença de um outro tipo
de crença parece, essa sim, provocar diferenças co nsideráveis.
Quando gostamos do qu e é feio ou mau apesar do nosso conh e-
cimento dessa co ndi ção, o estado de coisas parece co nside-
ravelm ente pi or do que seria se não fiz éssemos qu alqu er juízo
relativamente ao valor do obj ecto. O m esmo parece ser tam-
bém verdade, por estranho qu e pareça, qu ando fa zemos um
juízo de valor errado. Quando admiramos o qu e é feio ou mau
acreditando qu e é bonito ou bom , esse m esmo j uízo parece
agudizar a vil eza intrínseca da nossa co ndi ção. Deve entender-
-se, como é evidente, que em ambos os casos o juízo em qu es-
tão é apenas aquilo a qu e chamám os um juízo de gosto; qu er
dizer, tem a ver co m o valor das característi cas efectiva mente
conhecidas e não co m o va lor do obj ecto a qu e essas quali-
dades possa m ser correcta ou in correctam ente atribuídas .
Finalm ente, deve ser dito qu e, para além do elemento
emocional (o prazer e a admiração) que têm em comum com
os grandes bens não mistos, os males deste tipo parecem inte-•
grar uma em oção específi ca qu e não entra na constitui ção de
bem algum . A presença dessa emoção específica agrava clara-
mente a maldade do todo, embora não sej a evidente qu e eb
possa, por si só, ser má ou feia.
126. (2) O segundo tipo de grandes males correspond e
sem dúvida aos males mistos. Tratamo-los de seguida porqu e,
de certo m odo, el es parecem ser o inverso do tipo que acabá-
mos de analisar. Assim com o é essencial neste últim o tipo qu e

[319]
haja uma emoção adequada à cognição do que é bom ou belo
mas dirigida a um objecto inadequado, também no que se re-
fere ao segundo tipo de males é essencial que haja uma cog-
nição do que é bom ou belo, acompanhada, no entanto, por
uma emoção inadequada. Em síntese, assim como o primeiro
tipo se pode descrever como um caso de amor pelo que é feio
ou mau , o segundo corresponde a um caso de ódio do que é
bom ou belo.
Em relação a estes males, deve referir-se que, em primeiro
lugar, os vícios do ódio, da inveja e do desdém, quando são
males em si mesmos, parecem pertencer a este segundo tipo;
depois , deve notar-se que são frequentemente acompanhados
por males do primeiro tipo, por exemplo, quando se sente
prazer na dor de uma pessoa boa. Quando assim acontece, o
todo formado por ambos é obviamente pior do que seria se
ocorressem separadamente.
Em segundo lugar, é importante notar que, no caso des-
tes males, uma crença na verdade da existência do objecto bom
ou belo, que é odiado, parece favorecer a maldade do todo em
que está presente. Não há dúvida também que, tal como
acontece relativamente ao primeiro tipo, a presença de uma
crença na verdade relativamente ao valor dos objectos contem-
plados faz aumentar o mal; todavia, contrariamente ao que
sucede no primeiro tipo, a existência de umjuízo falso parece
diminuí-lo.
127. O terceiro tipo dos grandes males positivos parece
ser o das dores.
No que se refere àquelas, há que entender à partida que,
tal como sucede no caso do prazer, não é à dor em si e sim à
consciência da dor que os nossos juízos de valor se dirigem.
Assim, como se afirmou no Capítulo Ili que, por mais intenso
que fosse , um prazer que não fosse sentido por ninguém não
seria de todo bom, também uma dor, mesmo intensa, da qual
não haja consciência, não constituirá um mal.
Assim, apenas se pode chamar um grande mal à cons-
ciência da dor intensa. Não podemos contudo negar que, por

[320]
si só, se trata de um grande mal. Por esse motivo, o caso da dor
é diferente do do prazer: por mais forte que seja, a mera cons-
ciência do prazer, por si só, não parece constituir um grande
bem, mesmo que possua algum pequeno valor intrínseco. Resu-
núndo, a dor (e devemos entender por esta expressão a cons-
ciência da dor) parece ser um mal em muito maior grau do
que o prazer é um bem. Sendo assim, teremos que admitir,
porém, que a dor é uma excepção à regra que se aplica a todos
os outros grandes males e a todos os grandes bens: nomeada-
mente, a de que se trata de unidades orgânicas às quais é essen-
cial tanto uma cognição de um objecto como uma emoção diri-
gida a esse objecto. Exclusivamente no caso da dor, parece ser
verdade que uma mera cognição pode ser, em si mesma, um
grande mal. Trata-se efectivamente de uma unidade orgânica,
uma vez que integra a cognição e o objecto, nenhum dos quais,
em si mesmos, possui mérito ou demérito. No entanto, trata-
-se de uma unidade orgânica menos complexa do que qualquer
outro grande mal e do que qualquer grande bem, tanto no que
se refere ao facto de que não inclui, para além da cognição,
uma emoção dirigida ao respectivo objecto, como também no
que se refere ao facto de o objecto poder ser, no caso, absolu-
tamente simples, enquanto que na maioria dos outros casos, se
não em todos, o próprio objecto é profundamente complexo.
Esta ausência de analogia entre a relação da dor com o
mal intrínseco e a do prazer com o bem intrínseco parece sur-
gir também em termos de um outro aspecto. Não só é ver-
dade que a consciência da dor intensa é, em si mesma, um
grande mal enquanto que a consciência do prazer intenso não
é, em si mesma, um grande bem, mas também é verdade que
essa oposição surge relacionada com a contribuição de cada
uma para o valor do todo quando se combinam respectiva-
mente com outro grande mal ou com um grande bem. Ou
seja, a presença do prazer (embora proporcionalmente à sua
intensidade) parece fazer aumentar o valor de um todo no
qual se combina com qualquer um dos grandes bens não mis-
tos que já analisámos. Poderá inclusivamente afirmar-se que

[321]
apenas os todos qu e in cl uem algum prazer possuem g rande
valo r, send o certo qu e, em q ualqu er caso, a presença do pra-
zer contribui para o va lo r dos todos bo ns muito para além do
seu pró prio valo r intrínseco. Pelo contrári o, se um sen ti mento
de do r se combin ar com qu alqu er estado de espírito qu e
te m os vindo a analisa r, a diferença pro du zida pela sua presença
c::m term os do valor do todo, enquan to todo, parece ser uma
difere nça positi va e não nega ti va. Seja como fo r, o úni co mal
adiciona l qu e desse m odo se ac resce nta é aq uele qu e ele por
si mesm o intrinseca mente co nstitui . Assim, enquanto que a dor
é em si mesma um gra nde mal mas não intensifi ca a m aldade
de um todo no qu al se co mbina com qu alquer o utra coisa má,
excepto em term os da sua própria m aldade intrínseca, o pra-
zer, pelo co ntrári o, não co nstitu i em si 1nesmo um g rande bem,
m as, indep endentem ente do seu pró pri o va lor intrínseco, fa z
aumentar em g rand e grau a bo ndade de um todo no qu al se
co mbin a com uma coisa boa.
128. Finalm ente, deve m os in sistir no fac to de que o
prazer e a do r são compl etam ente análogos no segu inte aspecto:
não podem os afirm ar nem qu e a presença do prazer m elh ore
sempre genericamente um estado de coisas nem qu e a presença
da do r o pi o re. Trata - se de um a verdade relativa ao prazer e à
dor qu e é fac ilmente esqu ec ida e é exactam ente po rqu e esse
fac to é verdadeiro qu e a teori a geral segundo a qu al o prazer
co nstitu iri a o úni co bem e a do r o úni co m al tem consequ ên-
cias g raves, dando o rigem a j uí zos de valo r errados. O facto
não é apenas qu e a agradabili da de de um detennin ado estado
não é pro po rcio nal ao seu valo r intrínseco, uma vez q ue até
poderá fa zer aumentar o seu carácter vil. N ão se acha qu e o
ódi o de um vilão é m enos negativo só po rqu e ele tem um
enorm e prazer nesse ódi o; efectivam ente, nem há a mínima
necessidade lógica de qu e pensem os desse m odo, a não ser de-
vido à existência de um precon ceito po u co inteli ge nte a favor
do prazer. O qu e parece suceder, de fa cto, é qu e quando se
j unta prazer a um estado m au pertencente a qu alqu er dos nos-
sos dois primeiros tipos, o todo assim for m ado é sempre p10r

(322]
do qu e se n ão ti vesse h avid o praze r. O m esm o se passa relati -
va m ente à d o r : se se juntar do r a um estado m au p erte n cente
a qualqu er d os n ossos d o is prim eiros tipos , o to d o assim for-
mado é sempre melhor do que se não ti vesse havido dor. Con -
tudo, n este caso, se a d o r for demasiado intensa, um a vez que
se trata d e um g rande m al, o estado po d erá n ão melh o rar no seu
todo. É d esta fo rm a que se p o d e d efe nder a teo ri a da puni ção
vingativa. O inflig ir d o r a algu ém cujo estado de espírito é m au
pode, se a dor n ão fo r d em asiado inten sa , criar um estado d e
coisas que é melh or no seu todo d o que seria se o estad o de espí-
rito m au tivesse existido sem puni ção. Se um estado d e espírito
com o esse p o d e alguma vez constituir um bem positivo j á é
outra questão.
129. 11. Essa questão inclui -se m ais propriamente n o
segundo tem a que re ferimos atrás, remetendo para m ais tard e
a su a disc ussão - n o m ea dam e nte, o tem a dos b e ns " mi stos" .
Definimos j á esses b e ns com o sendo coisas qu e, embo ra posi-
tivam ente b oas enquan to todos, contêm como elemento essen-
cial algo intrinseca m ente m au o u feio. É p erfeitam ente verdade
qu e existem b ens d esse tipo, m as p ara os an alisarmos ad e-
quadamente torna-se n ecessári o co nsiderar uma nova distin-
ção - a di stin ção en tre o valor que uma coisa p ossui "como 11m
todo" e aquele qu e p ossui "no ,<?era/" .
Quando se definiram os b ens "m.istos" como coisas posi-
tivam ente b oas enquan to todos, a expressão era ambígu a. Signi-
fi cava qu e esses b ens e ram positivam ente b o ns no geral. N o
entanto, terem os agora qu e observar qu e o valor qu e uma coisa
possui no geral po de ser equivalente à som a do valor qu e p ossui
enquanto todo com os valores intrínsecos qu e p ossa m p erten cer
a qu alquer das su as partes. De facto, a expressão "o valor qu e
uma co isa poss ui no geral" p o d e significar du as coisas com-
pletam ente distintas . Ou (1) o valor qu e é produzid o ap enas
pela com binação d e du as ou m ais coisas, o u (2) o valor to tal for-
mado p ela som a de (1) com quaisqu er va lores intrínsecos qu e
perten ça m às coisas combin adas. O significado d essa distin ção
pode talvez ser m ais facilmente apree ndido se co nsiderarm os

[323]
o caso da punição vingativa. Se for verdade que a existência
de dois males combinados pode constituir um mal menor rela-
tivamente àquele que constituiriam cada um deles separada-
mente, é evidente que isso só acontece porque a combinação
produz um bem positivo que é maior do que a diferença entre
a soma dos dois males e o demérito de cada um deles em sepa-
rado - esse bem positivo seria então o valor do todo, enquanto
todo, no sentido (1) . Contudo, se esse valor não fosse um bem
tão grande quanto a soma dos dois males é um mal, é claro que
o valor do estado de coisas total será um mal positivo - esse
seria o valor do todo, enq11anto todo, no sentido (2). Qualquer
que seja a perspectiva que se adopte relativamente ao caso
específico da punição vingativa, é evidente que estamos pe-
rante duas coisas distintas, em relação a cada uma das quais se
deve colocar uma questão no caso de qualquer unidade orgâ-
nica. A primeira delas pode ser referida como a diferença entre
o valor da coisa no seu todo e a soma do valor das suas partes.
Obviamente, se as partes tiverem pouco valor intrínseco ou
mesmo nenhum (tal como vimos relativamente ao primeiro
tipo de bens, Parágrafos 114, 115), aquela diferença será rela-
tiva ou absolutamente idêntica ao valor da coisa no seu todo.
Por esse motivo, a distinção só é importante no caso de todos
com uma ou mais partes que possuam grande valor intrínseco,
seja positivo ou negativo. O primeiro desses casos, o de um todo
uma parte do qual possui um grande valor positivo, pode ser
exemplificado através dos segundo e terceiro tipos dos nossos
grandes bens não mistos (parágrafos 120, 122); de igual modo,
o Summum Bonum é um todo com muitas partes que pos-
suem um grande valor positivo. Deve notar-se que esses casos são
também objectos de juízo estético muito frequentes e muito
importantes, dado que a distinção essencial entre o estilo "clás-
sico" e o estilo "romântico" consiste no facto de que o objec-
tivo do primeiro é a obtenção do maior valor possível para o
todo, enquanto todo, no sentido (1), e o segundo sacrifica o todo
a fim de obter o maior valor possível para uma parte que cons-
titui em si mesma uma unidade orgânica .. Donde, não podemos

(324]
afirmar qu e qualquer dos estilos é necessa riamen te superior ao
outro, pois qualqu er um dos respectivos métodos consegue
levar a um resultado igualmente bom no geral ou "enquanto
todo" , no sentido (2). Contudo, o temp eramento especifica-
mente estético parece caracterizar-se pela tendência para pre-
ferir um bom resultado obtido através do método clássico a um
resultado igualm ente bom alcançado pelo método romântico.
130. Teremos agora que considerar, no entanto, os casos
de todos em que urna ou mais partes possuem grande valor
negativo - ou seja, grandes males positivos. Podemos então
começar pelos casos mais fortes , como o da puni ção vingativa,
no quaJ- temos um todo composto exclusivamente por dois
grandes mal es positivos - a maldade e a dor. Poderá um todo
como este ser positivamente bom no geral?
(1) Não entendemos que haj a razões para qu e se pense
que todos como esse possam ser positivamente bons no geral.
No entanto, o facto de poderem ser males menores relativa-
mente a qualqu er urna das suas partes em separado sugere que
os mesmos possuem uma característica da maior importância
no contexto de tomadas de decisão relativas a questões práti-
cas. Daí decorre que, não considerando as consequências ou
qualquer valor que um mal possa ter enquanto apenas um
meio, e supondo que exista já um mal, poderá valer a pena criar
um outro, uma vez que, pela mera criação do segundo, se
pode constituir um todo menos mau do que o mal original
por si só. E, do mesmo modo, no que se refere à generalidade
dos males que passamos agora a considerar, devemos lembrar
que, mesmo que não sejam bons no geral, se existir j á um mal,
como neste mundo certamente existem, a existência da outra
parte desses males constituirá uma coisa desej ável em si mesma
- isto é, não apenas um m eio para atingir bens futuros , mas
sim um dos _fins a considerar quando se avalia qual é o melhor
estado de coisas, relativamente ao qual todas as acções correc-
tas devem funcionar como meios.
131. (2) No entanto, de facto, não podemos deixar de
pensar que existem males que contêm algo positivamente mau

(325]
e feio e qu e são mesmo assim grandes bens positivos no geral.
Efectivamente, parecem incluir-se sobretudo nesse tipo os casos
de virtude que contêm qualqu er coisa intrinseca mente boa.
N ão será necessário negar, co mo é evidente, qu e numa pre-
disposição de virtude se inclui por vezes um a mai or ou menor
quantidade dos bens não mistos qu e analisá mos em primeiro
lu gar - ou sej a, um amor verdadeiro pelo qu e é bom ou belo.
Contudo, as predisposições para a virtude típi cas e caracterís-
ti cas parece m mais constituir bens mi stos, na medida em que
não são meros meios. Como exempl os, podem os pensar em
(a) Coragem e Compaixão, qu e parecem pertencer ao segundo
dos três tipos de virtude qu e distin guimos no último capítulo
(parágrafo 107) e (b) nos sentim entos espec ifica mente " mo-
rais" por referência aos quais se definiu o terceiro daqueles três
tipos (parágrafo 108).
Na medida em qu e con têm um estado de espírito intrin-
secamente desejável, a coragem e a compaixão parecem incluir
essencialmente uma cognição de algo mau ou feio. N o caso da
coragem , o objecto da cogni ção pode ser um mal de qualquer
dos três tipos referidos; no caso da compaixão, o obj ecto ade-
quado é a dor. Assim também , estas du as vi rtudes devem con-
ter precisamente o mesmo elemento cognitivo qu e é também
essencial aos males do tipo (1) , diferenciando-se destes pelo
fac to de qu e a emoção qu e é diri gida a estes objectos é, no
caso, uma em oção do mesmo tipo daquela que é essencial aos
males pertencentes ao tipo (2). Em síntese, assim como os
mal es do tipo (2) pareciam consistir num ódio do que é bom
ou belo e os males do tipo (1) num amor pelo qu e é mau ou
feio, assim também as virtudes em apreço incluem um ódio
do qu e é mau ou feio. N ão há dúvida qu e estas virtudes tam-
bém contêm outros elementos e, entre el es, cada um contém
a sua emoção específi ca, mas podemos ter a certeza de que o
seu valor não dep ende apenas desses outros elementos se con-
siderarmos o qu e pensaríamos de uma atitude de resistência
ou de forte desprezo perante um objecto intrinsecamente bom
ou belo, ou do estado de uma pessoa cujo espírito se enchesse

[326]
de pena pela feli cidade d e um a justa admiração. N o entanto,
a piedade sentida pelo sofrim ento im erecido d os o utros, a pa-
ciência perante a nossa própria dor e o d esprezo pelas m ás ten-
dências em n ós e nos o utros parecem , sem sombra d e dú v ida,
ser admiráveis em si m esm as; e, se assim é, elas constituem coi-
sas admiráveis que se p erderi am se não houvesse reco nh eci-
m ento do m al.
De igual m o d o, o sentim e nto especifi cam ente " m o ral"
parece incluir um ó di o de m ales d o prim e iro e do segundo
tipos em todos os casos em qu e p ossui valor intrín seco con-
siderável. É verdad e que a e m oção é n este caso suscitada pela
ideia d e qu e um a acção po d e ser certa ou errada ; daí que o
obj ecto da ideia que a suscita não seja, em geral , um mal intrín-
seco. Contudo, pel o que n os é d ado p erceb er, a emoção com
a qual uma p essoa conscienciosa julga uma acção correcta, rea l
ou imagin ár ia, contém , co m o elemento essencial, a m esm a
em oção com a qual julga uma acção errad a: parece, efec tiva-
mente, qu e esse elem ento é necessário para to rnar a em oção
especifica m ente m o ral. A em oção especifi cam ente m o ral sus-
citada pela ide ia d e uma acção errad a parece-nos conter essen-
cialmente um a cogni ção m ais o u m enos vaga do tipo d e m ales
intrínsecos qu e são norm alm ente causados po r acções erradas,
independentemente do facto d e virem ou n ão a ser causad os
pela acção específi ca em qu estão. De facto, é-nos dificil dis-
tinguir, nas suas prin cipais ca racterísticas, o sentimento m o ral
intenso suscitado pela ideia d o correcto e do errado e o estado
total constituído por uma cognição d e algo intrinsecam e nte
mau em conjunto com a em oção de ódio qu e lh e é dirig ida.
N ão nos surpreenderemos com o facto d e que esse estado
mental sej a n o rm alm ente o qu e se en contra associado à ideia
do correcto se refelectirmos sobre a natureza das acções que são
normalmente recon hecidas como d everes, já que a g rande
maioria d essas acções é negati11a: o que sentim os ser nosso d e-
ver é a abstenção d e uma acção para a qual nos impele um forte
impulso natural. E as acções erradas em cuj o evitam ento o
dever consiste produzem , po r v ia d e regra e de imedi ato, co n-

[327]
sequ ências negativas de do r em o utras pessoas, ao passo que,
em muitos casos, a tendên cia qu e nos impele para essas acções
é ela pró pria um m al intrínseco qu e contém um prazer na
previsão de algo m au o u feio, como acontece no caso da lu xú-
ri a o u da cru eldade. A acção co rrecta impli ca assim frequen-
tem ente a supressão de um impulso mau, to rnando-se por isso
necessá ri o expli ca r a plausibilidade da o pinião qu e sustenta
qu e a virtude consiste no co ntrolo da paixão pela razão. Assim,
a verdade parece ser qu e qu an do a ideia do correcto suscita
uma emoção m oral fo rte, essa m esma emoção é acompanhada
po r uma cogni ção vaga do tipo de m ales normalm ente supri-
midos o u evitados pelas acções qu e m ais frequ entem ente nos
ocorrem como exem plos de dever; é ainda verdade qu e a emo-
ção se dirige a essa característi ca m á. Poderem os então con-
cluir qu e a em oção m oral espec ífi ca deve a quase to talidade do
se u va lo r intrínseco ao fa cto de incluir uma cogni ção de males
acompanhada po r um ódi o dos m esmos: a m era correcção,
qu er sej a verdadeiram ente atribuída a uma acção o u não, pa-
rece ser incapaz de co nstituir o obj ecto de uma contemplação
em ocio nal qu e ve nh a a tornar-se num grande bem.
132. Se assim é, em muitos casos m anifestos de virtude,
o qu e temos são casos de um todo extrem am ente bo m em si
m esm o qu e co ntém , no entanto, a cogni ção de algo cuj a exis-
tência constituiri a um grande m al: o valo r de um g rande bem
depende em absoluto da inclusão de algo mau o u feio, embora
o m esm o va lo r não se deva apenas à prese nça desse eleme nto.
N o caso das virtudes, o obj ecto m au existe de fa cto, m as pa-
rece não haver razão para se pensar qu e, qu ando ele existe, o
estado de co isas assim constituído seja po r isso melh o r 11 0 geral.
O qu e parece indubitável é apenas qu e a co ntemplação emo-
cio nal de um obj ec to cuj a existência co11sti111iria um grande
mal (ou qu e é fe io) sej a esse ncial à existência de um todo va-
li oso. A apreciação da tragédia pode tam bém servir co m o ilus-
tração clara desse fac to. Emb ora os so frim entos do R ei Lear e
a maldade de lago possam, na tragédia, ser puramente imaginá-
rios, parece certo qu e, se existissem na rea lidade, o mal assim

1328)
existente, embora decerto prejudique o bem que consiste num
sentimento adequado perante eles, não adicionaria qualquer
valor positivo ao bem suficientemente grande para contraba-
lançar a perda. Parece, de facto, que a existência de uma crença
na verdade do objecto desses bens mistos dê algum valor acres-
cido ao todo no qual se combina com eles: a compaixão cons-
ciente pelo sofrimento real parece ser melhor, enquanto todo,
do que a compaixão sentida por sofrimentos meramente ima-
ginários; e isto poderá ser verdade, mesmo que o mal incluí-
do no sofrimento real torne mau o estado total das coisas no
geral. É sem dúvida verdade que uma crença falsa na existên-
cia real dos respectivos objectos produz um bem misto pior do
que no caso de o nosso estado de espírito ser aquele com o
qual normalmente encaramos a pura ficção. De igual modo
poderemos concluir que os únicos bens mistos que são posi-
tivamente bons no geral são aqueles cujo objecto é algo que, a
existir, constituiria um grande mal, ou que é feio.
133. No que se refere, então, as bens mistos que consis-
tem numa atitude mental adequada relativamente a coisas más
ou feias entre os quais se inclui a maior parte das virtudes que
possuem qualquer valor intrínseco, devemos realçar os seguin-
tes três aspectos:
(1) Parece não haver qualquer razão para pensarmos que,
quando o objecto é uma coisa má em si mesma que existe de
facto, o estado total das coisas seja positivamente bom no geral.
A atitude mental adequada perante um mal que realmente existe
contém obviamente um elemento que é absolutamente idên-
tico à mesma atitude perante o mesmo mal, se este for pura-
mente imaginário. Esse elemento comum aos dois casos pode
ser um grande bem positivo no geral. Porém, não há também
qualquer razão para duvidarmos que, se o mal for real, a quan-
tidade em que existe esse mal real é sempre suficiente para re-
duzir a soma total de valor a uma quantidade negativa. Assim,
não podemos manter o paradoxo decorrente da afirmação de
que um mundo ideal seria aquele em que o mal e o sofrimento
teriam que existir a fim de que esse mundo pudesse conter os

[329)
bens qu e consistem na em oção adequada perante eles. A exis-
tência do sofrimento para que possa m os sentir co mpaixão não
constitui um bem positivo; do m esm o m odo, a maldade, para
que pudésse m os odiá- la. N ão tem os razão para pensa r qu e o
Ideal co ntenh a qualq uer mal real. Da í decorre o facto de não
podermos admitir a validade real de quaisquer dos argumentos
no rm alm ente usados na Teodi ceia, po is nenhum deles con-
segue justifi ca r o fac to de que aí existe se qu er o míni mo dos
muitos males qu e este mundo contém . O m.áximo que se pode
di zer relativamente a tais argum ento é que, qu ando apelam
para o pri ncípi o da unidade o rgâ ni ca, esse apelo é válido em
princípio. Poderá aco ntecer que a ex istência do mal sej a neces-
sá ri a para a existência do m aio r bem, não apenas como meio,
m as analitica m ente. N ão há, to davia, m o tivo para pensar mos
qu e isso seja verda de em caso algum.
(2) Existe, no entanto, m otivo para pensarmos que a cog-
ni ção de coisas m ás o u fe ias que são purame nte imagin árias é
uma condi ção essencial do Ideal. N este caso, o ón us da prova
é o oposto. N ão podem os du vidar qu e a apreciação da tragé-
dia constitui um grande bem positivo, parecendo também ser
certo qu e as virtud es da co mpaixão, da coragem e do auto-
controlo contêm bens desse m esm o tip o. E m todos estes casos
é analiti camente necessá ri o que haj a uma cognição de coisas
qu e, a existirem , seriam más. Assim tem os coisas cuj a existên-
cia deverá acrescentar valo r a qu alqu er to do que as con ten ha,
não sendo possível prova r qu e qualqu er todo do qu al fosse m
o mitidas ganharia m ais em termos do seu valo r como urn todo
do qu e perderi a pela o m.i ssão das m esm as. N ão tem os qual-
quer razão para pensar qu e qualqu er to do que as não co n-
tivesse seria tão bo m no geral como um to do que as obtivesse.
A hip ótese da sua inclusão no Idea l é tão aceitável qu anto a da
inclusão de qualidades materiais (parágrafo 123) . Contra a in-
clusão desses bens, nenhum argumento pode ser aduzido a
não ser com o uma m era possibilidade.
Por último (3) é impo rtante insistir qu e, com o j á fo i afir-
m ado, estas virtudes mistas têm grande valor prático para além

(330]
do qu e possu em quer em si m esmas , q u er apenas com o meios.
Quando existem males, com o certam ente existem neste mundo,
o facto d e sere m conh ec idos e ad equadam en te avaliad os cons-
titui um estado d e coisas que tem m ais valor 11 0 geral d o que a
mesma avaliação se se tratar de males puramente imagin ári os.
Esse estado de coisas, co m o j á fo i referido, nunca é positiva-
m ente bo m no geral, mas se o mal qu e reduz o va lor total d esse
estad o a uma quantidade n ega ti va existe já de fo rma in evitá-
vel, a o bten ção d o valor intrín seco qu e lh e pertence no ,(tera /
produ z o bv iam e nte um estado d e coisas m e lh o r d o qu e se o
mal existisse por si só , sem nada ter a ver com o elemento bom
nele existente e que é idênti co à avali ação d e males imagin á-
rios, n em com quaisquer consequ ências ulteri o res qu e a sua
existência pudesse provocar. Este caso é se melhante ao d a
punição vingativa. Quando já existe um mal, ele d everá ser
obj ecto d e pe na, d e ó di o o u d e resistên cia, d ep ende ndo d a
respectiva natureza; assim com o é correcto qu e alguns mal es
deva m ser punidos. Obviamente, como em to d os os casos prá-
ticos, aco ntece frequentemente qu e a o bten ção d esse b em é
incompatível com a obtenção d e o utro bem maior. É, contudo,
impo rtante in sistirmos n o fac to d e qu e estam os p erante um
valo r intrínseco rea l qu e d eve ser tomado em conta qu ando se
calcula a mai o r quantidade d e valor intrínseco que é sempre
nosso d ever produzir.
134. Comple támos assim as referên cias qu e se ofereciam
com o as m ais n ecessárias re lati va m ente aos valores intrínsecos.
É ó bvio qu e para d ar resposta àqu ela qu e é a qu estão funda-
mental da Ética fica ainda por explorar o vasto e complexo
campo d e investigação qu e foi atribuído à Ética Prática no
últim o capítul o. H á ainda tanto a dizer relati vam e nte às con -
sequên cias que são intrinsecam ente b oas e em qu e diferentes
graus o são quan to relativam e nte a qu e resultados nos é pos-
sível produzir - ambas as questões exigem, e justificam , uma
análise igu alm ente aprofundada. É provável qu e muitos dos
juízos qu e emitim os no presente capítulo pareçam in ad equa-
dam ente arbitrários e devem os co nfessar que muitas d as ca rac-

[33 1]
terísticas atribuídas ao valor intrínseco que nos pareceram ser
verdadeiras não revelam ter a simetria e o carácter sistemático
que normalmente se exige dos filósofos. Se tal facto for usado
como uma objecção, poderemos , com o maior respeito, res-
ponder que ele não pode constituir nenhuma objecçào. Não
temos o direito de presumir que a verdade, seja sobre que
assunto for, revele a simetria que gostaríamos de encontrar -
ou (usando a expressão comum mais vaga) que possua uma
forma específica de " unidade". A busca da "unidade" e do
"sistema" à custa da verdade não é, segundo cremos, a tarefa
própria da filosofia , m esmo que tenha sido essa a práti ca uni-
versal dos filósofos. E só se pode afirmar com legitimidade
que todas as verdades acerca do Universo mantêm entre si
todas as relações significadas pelo termo " unidade" depois de
cuidadosamente diferen ciadas todas essas diferentes relações e
depois de descobertas essas verdades. Em especial, não podemos
ter a presunção de afirmar que as verdades éticas são " unifi-
cadas" de qualquer modo específico excepto com base numa
investigação levada a cabo através do método que pretendemos
seguir e exemplificar. O estudo da Ética seria indubitavelmente
mais simples e os seus resultados bem mais "sistemáticos" se,
por exemplo, a dor fosse um mal com a mesma magnitude
que o prazer tem co mo um bem ; mas não temos qualquer
razão para supor que o Universo seja de tal forma que as ver-
dades éticas tenham qu e possuir esse tipo de simetria, ou seja,
nenhum argumento contra a conclusão de que o prazer e a
dor não têm essa correspondência poderá ter qualquer peso,
não tendo analisado profundamente os casos que nos levaram
a formular aquela afirmação. No entanto, será para nós sufi-
cientemente satisfatório que as conclusões do presente capítulo
sejam vistas como uma ilustração dos princípios que devem
ser observados e do método que deve ser utilizado na tentativa
de resposta à pergunta fundamental da Ética e não tanto como
constituindo a resposta correcta a essa pergunta. As conclusões
que queremos destacar como verdadeiras são as seguintes: as
coisas intrinsecamente boas ou más são muitas e variadas; são,

[332]
na sua maioria, " unidades orgânicas" no sentido muito especí-
fico a que limitámos o termo; o único meio de que dispomos
para decidir sobre o seu valor intrínseco e respectivos graus é
o que passa por uma especificação exacta e cuidadosa da coisa
sobre a qual recai a nossa análise, seguida de uma investigação
da presença ou ausência na mesma do predicado único "bom"
em qualquer dos seus diferentes graus. De igual modo, no
capítulo anterior, e no que se refere à questão "O que deve-
mos fazer?", tentámos mostrar qual é exactamente o significado
dessa pergunta e quais as dificuldades com que, por consequên-
cia, uma tentativa de resposta se depara, mais do que provar a
verdade de quaisquer respostas específicas. A conclusão prin-
cipal a tirar dos capítulos antecedentes é que estas duas per-
guntas, que possu em precisamente a natureza que referimos ,
são as perguntas a que a Ética tem por objectivo responder.
Trata-se de questões que os filósofos sempre consideraram cen-
trais e se preo cuparam em resolver, embora sem terem reco-
nhecido qual era exactamente a pergunta , ou seja, qual o pre-
dicado qu e afirmavam ligar-se à coisas. Perguntar que coisas
são virtudes ou deveres sem distinguir o exacto sentido desses
termos , perguntar o que deveria ser aqui e agora sem distin-
guir se como meio ou como fim - se por si m esmo ou com
vista à obtenção de resultados , procurar um critério único para
a distinção entre o correcto e o errado sem reconhecer qu e,
para se descobrir esse critério, há qu e saber primeiro quais as
coisas que são correctas e quais as erradas, não considerar o
prin cípio das " unidades orgâni cas" - são fontes de erro que
têm estado até hoje quase universalm ente presentes na Ética.
Tanto quanto sabemos, é nova a tentativa consciente de não
incorrer nesses erros e de aplicar a todos os objectos comuns
do juízo ético apenas as seguintes duas interrogações: Possui
valor intrínseco? É um meio para atingir o melhor possível?
Os resultados desta nova atitude são bastante surpreendentes,
se os compararmos com aqueles a que nos habituaram os filó-
sofos morais , mas gostaríamos de pensar e acreditamos qu e
não sejam tão estranhos assim para o Senso Comum . É muito

[333]
desejável qu e o esforço normalm ente dedi ca do a responder a
q uestões como se certos " fin s" são m ais o u m e nos "abrangen-
tes" ou m ais o u m enos "consistentes" entre si - qu estões que,
m esm o se fosse m do tadas d e um sentido muito prec iso, são
co mpl etam e nte irrel evantes em termos da prova d e qu alquer
co nclu são éti ca - esse esforço, em nossa o pini ão, d everi a ser
d iri g ido à investi gação di stinta d os d o is p ro bl e mas co ncretos
q u e cl aram ente enun ciám os.
135. O o bj ecti vo prin cipal d este capítul o fo i o d e d efi-
n ir em term os gerais o tipo d e coisas entre as qu ais se espera
encontrar o u g randes bens intrínsecos o u grandes mal es intrín-
,ecos e especialm ente o d e referir o fa cto d e qu e existe uma
g rande va ri edad e d essas coisas , sendo qu e m esm o as m ais sim-
ples , emb o ra haja uma excep ção, co nstitu em to d os ex trema-
mente complexos, compostos po r partes qu e possuem p o uco
o u m esm o n enhum valo r po r si m esm as. To d as implicam a
co nsciência d e um o bj ec to qu e é ele tamb ém no rmalmente
muito co mpl exo e quase to d as impli ca m também um a atitude
em oc io nal rel ati vam ente a esse o bj ec to . N o entanto, ap esa r de
te rem essas ca rac terísti cas em co mum , a g rande vari edade de
cara cterísti cas qu e as to rn a, n esse asp ecto, diferentes é igual-
m ente essen cial para o valo r qu e p ossu em , o u sej a, nem o
carác ter geral d e to d as, n em o carác ter espec ífi co d e ca da uma
t· muito bo m o u muito m au em si m esmo : o valo r o u o dem é-
r ito d e cada um a d eve- se, em cada caso , à prese nça d e ambos.
A nossa análi se recaiu sobre três asp ec tos prin cipais, tratando
réspectivam e nte d e (l ) bens n ão mistos, (2) m ales, e (3) bens
mistos. (1 ) O s bens não mistos po d em ser d escritos com o sendo
o amor por coisas b elas ou pesso as boas, mas o número de dife-
rentes b ens deste último tipo é tão g rande com o o d e obj ec-
tos bel os, h avendo também diferen ças relati va m ente ao tipo
de emoçõ es qu e são ad equad as aos difere ntes obj ecto s. Esses
bens são indubitavelm ente bo ns, m esmo se as coisas ou pessoas
-:i.ue são obj ecto desse amor forem imaginárias. Foi , no entanto,
J firmado qu e, qu ando a coisa ou a p essoa é real e se ac redita
nessa realidade, o conjunto d esses dois fa ctos combinado com

[334]
o amo r pelas ca racterísti cas em apreço constitui um todo que
é muito m aio r do qu e apenas o am o r, adquirindo um va lo r
adi cio nal muito diferente daquele qu e pertence à existência
do obj ecto, no caso de o obj ecto ser uma pessoa boa. Por úl-
tim o, fi zem os no tar qu e o am o r pelas qualidades mentais po r
si mesmas não pa rece se r um bem tão grand e qu anto o qu e
tem po r obj ec to q ualidades m entais e qu alidades materiais em
conjunto; seja como fo r, um grande nú mero das coisas mel ho-
res é, o u incl ui , um am o r po r q ualidades materiais (11 3-1 23).
(2) Os grandes ma les podem descrever-se com o consistindo
ou (a) em amor po r aquil o qu e é mau o u feio, o u (b) em ódio
por aquil o qu e é bo m o u belo, o u (c) na consciência da dor.
Assim , a consc iência da do r, q uando é um grande mal, cons-
titui a única excepção à regra segundo a qu al todos os grandes
bens e todos os gran des m ales in cl uem uma cogni ção e uma
emoção qu e é diri gida ao respectivo obj ecto (124-128) . (3) Os
bens mistos são os qu e incl uem um elem ento qu e é m au o u
feio. Pode di zer-se qu e consistem o u em ódio por aquilo que é
mau o u feio o u po r m ales dos tipos (a) e (b), o u ainda na com-
paixão pela dor. Todavia, se in cl uem um m al qu e existe rea l-
mente, o respectivo dem érito parece ser sempre em g rau sufi -
ciente para exceder o valo r positivo qu e possuem (129-1 33).

[335]
ÍNDICE DE ASSUNTOS

Acção possíve l 252-3 va lor da 11 2-3, 174-5, 176-8,


Acei tação 276 179, 188,295, 308- 9, 316,320,
Adeq uado/i nadequ ado 298, 299, 334
306, 312 , 3 17, 320, 329 "ver" a 296-8
Afecto Bem
beleza do 3 11 Absolu to 289, 290, 293
desajustado 30 1, 304-5 = bom como meio 104-5, 106-7
recíproco 305 Hu mano 289, 290, 293
va lor do 294-5 , 310-3 indefiní vel 86- 99, 128, 171-2,
Altruísmo 19 1, 271 207-8 , 243-6
Am or misto e não misto 315-6, 3 16-7,
C risto e Kant 285 323-4, 326, 328-9, 334
do belo e do bom 283-5 , 306-7, o meu próprio 192-4, 196-7,
311 -2 , 326, 335 274-5
do mau e do feio 316-8, 318-9, " pri vado" 194,
319-20, 327 , 335 o 90-1
Apreciação 296-7 , 307 , 3 12, 330 " Universa l" 194- 7
Aprovação 230 Benevolência, " princípio da Bene-
Aprovar 150 volência R acional" de Sidgwick
Aristóteles 84 197-200
definição de virtude 276 Benth am 246
valor da virtude 281-2 fa lácia naturalista 100-3
valor do co nh ecimento 306-7 quantidade de prazer 170
Arte Bradl ey, F. H .
representativa, valor da 300, 301, praze r e desej o 161
302,307 teoria do JUÍZO 223
va lor da 295 Butler, Bispo 179,3 14
Autonom ia 225
Castidade 261
"Basear-se" 124, 137, 142,2 11 , 212, Casuísti ca 84-5
216, 218, 220, 245 Cé u 279, 289, 29 1,30 1
Beleza na T erra 292
corpórea 3 11-2 C iência positiva 125
critéri o da 309- 1O C lifford, W . K. 126
defini ção de 308-9, 316 Cogni ção
mental 3 10-1 3 dist. de co nh ecimento 301

[337]
do mal 326-8 vo ntade co mo 237-8
relação co m a vo ntade e o se nti - C ru eldade 3 17-9, 328
mento 228-9. 230-3, 235, 241
valor da 178-9, 296-8, 301, 306- Darwin 134
-7, 317, 320, 334 Defini ção, natu reza da 86-9 1, 100-3
Co mpai xão 326, 329 , 334-5 Desej áve l, signifi cado de 155 -8,
Co mpo rtamento , rela çã o co m a 16-t- 6
Ética 81-2, 247-8 , 286-7 DeseJO , ca usa e obJ ec to de 159-62,
Co nh ecim ento 165-6
implica a crença 300- 1 Desprezo 3 17-8, 326
implica ve rdad e do obJecto 230- De us 175- 6, 198-9
-2, 232-4 amo r a 2 1O, 300, 302 , 307
va lor do 175 , 179-80, 300- 1, Deve r
30 1-2, 302-3 , 303- 5, 305 - 7. = ca usa de o u meio para o qu e é
319-20, 33 1 bom 108- 10, 20 1-3 , 247-50,
Co nsciência 27 1- 2, 286-8
defini ção de 284 de respeito próprio 273
não in fa lível 250- 1, 286 defini ções mais co mpl etas de 249,
Co nscienciosidade 327-8 264- 5, 286-8, 33 1
defini ção de 285 impossibilidade de se r conh eci-
utili dade 286 do 25 1- 2, 287
Co nveni ência 273- 4, 288 não evidente por si rnesmo 250,
Co ragem 326 287
Co rpó rea, beleza 311-2 obj ecto de intuição psicológica
Correc to 100, 108 , 202 , 248 , 286, 250
323-5 , 327 , 333 prin cipalm ente negativo 327
dist. de "deve r" 249-50 relações co m
extern amente 282-3 co nve ni ência 272-4, 288
intn narn ente 284-5 interesse 275-6, 288
relação co m co nveni ência 27 1-2 o qu e es tá certo 249-50
C rença, valor da 298-307, 3 16, 3 19, possibilidade 252-3
320,329 , 333 utilidade 248- 9, 272- 4
C rim es 265 virtude 277-8
C ri sto vo ntade 264 , 265
e o amor 285 Dever-se
va lor dos moti vos 283-4 aspirar 108-9
Critério fazer 109-1 O, 202 , 212, 213- 4,
de beleza 307-'JO 226, 227, 240-1, 247 , 250, 278,
de bondade 237 286,333
de co rrec to e de errado 333 ser ou existir 99 , 212, 216, 226-
de ve rdade 232 -7, 250,278,286,333
evolução co mo 133, 138, 143 Do r 155- 6, 318- 9, 321-2, 326,332 ,
prazer como 185 , 188- 90, 205 33 5

[338]
Egoísmo, co mo do utrin a de meios Evide nte po r si mesmo 244-5, 250,
192, 201-2, 27 1-2 287
Egoísmo, co mo doutrina dos fin s Evolução 134-6 , 143-6
101, 192-201. 206 Evolucionista 133 , 138, 140, 147
contradi ção do 19-t, 197-201, 206 Existência
" R acio nal" de Sidgwick 193 . rlisr. de se r 207-9
198-9 J UÍ ZOS sobre a 222-4
relação co m o Hedo nismo 192 relação co m o va lor 2 l 2-6. 2 16-
relação co m o Hedonismo Natu- -20. 224-5, 300- 1, 302-3, 304- 6,
ralista 201-2 313-5, 3 18-9 , 325-6, 328, 329,
Egoísta , Hedon ismo 100 330,335
Emoção
estéti ca 296-7 Feio 3 15-7, 3 18-9, 323-4, 325-8,
va lor da 296-8, 306 , 310-1 , 3 12, 330
317,3 18,320, 326,334, 335 Fi cção 2 19-20
Empírico 125, 208, 221 Fim= bom em si mesmo 10 1, 107,
Empirismo 199-200. 222-3 , 229 155-7, 164, 165, 172-3, 175-6,
Epistemologia 232 , 24 1 178-9, 189, 290, 333
Errado 286, 327 , 333 rlisr. de " bom co mo meio" 106-
Espi ritu al, va lor do 3 13 -7 , 163, 16-t-5 , 172-3, 183, 184,
Estética 307 189, 203, 278-9, 284, 325 , 333
Estéti co(s) " nun ca justifi ca os mei os" 248 ,
j uízo 324 266-8
prazeres 296-3 1O " últim o" 138-9, 176-7, 178-9 ,
temperamen to 325 191, 195-7, 289,295
Estilo clássico 32 4 Fim= efei to 11 6-7
Estilo rom ânti co 324 Fim= objecto de desejo 159, 161,
Estóicos 128, 207 162-3, 164
Ética
domínio da 81-6, 103-4, 107-8, Ge ral, ve r T oda
11 0-1 , 121, 123 , 169,2 12, 215- Gosto, erro de 299-300, 319-20
- 6, 243-8, 290, 33 1-4 Gozo 169, 190- 1, 295,316
Evolucionista 138, 1-tl -3, 147 do qu e é mau e fe io 316-9
Metafisi ca 125 , 147, 210-2 estéti co 295-6, 310-2
Naturalista 125-8, 147, 149 sex ual 189-90
Práti ca 2 12-5, 240, 248, 251 , Green, T. H. 239
25 4, 257 , 286,33 1 Guya u, M . 133
Ética C ristã 284
e a rectidào "extern a" 282 Hábito 276-7, 280-1 , 283
e a rectidào " interna " 283-4 Hedonismo 126, 139-40, 149-54,
e o valor da virtude 279-80 184, 279
e o valor dos moti vos 283-5 Ego ísta 100
Eudemonista 280 Ético 161, 166,246

(339]
Intuiti vo 149, 166-7, 245, 246 de ca usalidade
Naturalista 133, 138, 141-2, 159, relação com a Éti ca 103- 1O,
200, 201 121, 248-50, 285- 6
Psicológico 100, 159, 160, 165 dois tipos de juízo éti co 104-5,
Uni versalista 199-200 107-10, 212, 248, 250, 33 1-2,
Hegel 114, 11 8, 207 333
Heterónimo 225 erro de 299-300
Hipotéti ca, lei 105, 257-8 Jurídico 225 , 227
Hobbes 192 Ju sti ça 283
Homi cídio 250, 253, 257 , 259, 284 Ju stifica r 192-3, 197,249, 267
Honestidade 28 1
Kant 207 , 228
Idea l "amor práti co" 285
o 289, 292, 33() co nexão da " bondade" com a
três signifi cados de 289- 90 "von tade " 225-7
1<lealista 171, 3 13 " R eino dos Fins" 21 O
Imaginação. valor da 300, 301, 302-3, revolu ção coperniciana 232
303-4,3 18-9, 328,329, 330,334 teori a do juízo 223
Imperati vo 226 va lor da Boa Vontade 280, 285,
Intenção 284 286
Interesse 198-9 va lor da Felicidade 280
d, sr. de "dever" 275 , 288
signifi cado de 192, 202- 3, 275 Lascívia 318
Intrínseco Legal , ver Jurídi co
mal 258- 9, 32 1-3, 327,334 Lei
valor 99, 104, 109-1 4, 249 , 278- cien tífi ca 105, 223, 257-8
- 83, 293, 296, 313-5 , 324-5 , ética 257-8
33 1-4 hipotéti ca 105, 257-8
Intui ção jurídica 225, 227
em se ntido psicológico 166-8, moral 225-7, 248 , 250, 263-4,
17 1-3, 178-9, 185- 7, 206, 245 , 265- 6, 269-71
250-2, 278 natural 109, 11 3, 145, 225, 289,
= proposição não passível de 292
prova 149, 169, 205- 6 Leibniz 223
Intuicionismo Liberdade, va lor da 179-80, 292
em sen tido próprio 203-4, 250 Liberdade (da Vontade) 226
no se ntido de Sidgwick 149-50, Lógica
166- 8, 246 dependência 152, 207, 216, 220,
lnvep 320 238-40
falácia 241
Juízo Louvor 277
analítico 87, 113-4, 118, 11 9, Luciano 132
330-1 Luxúria 318, 328

[340]
Mackenzie, Prof J. S. 211 , 2 18 ace itação 276
Mal 256, 258-60, 26 1-2, 264, 292, lei 225- 7, 248, 250, 264, 266,
312- 3, 3 15-23 , 334, 335 269-70
misto 3 17, 3 18, 3 19-20 obri gação 227
va lo r positivo do 325-3 1, 335 sentim ento 272- 3, 283-4
Maldade 330 Motivo 158, 16 1, 283, 284-6
Matéria, va lor da 313-4
Mau 86, 111 , 189, 240, 244, 259, Natural
284, 287 , 294 , 3 16, 3 17, 322, lei 109-1 O, 11 3-4, 145-6, 225,
323,325 , 328 289, 292
Meio(s) = ca usa ou co ndi ção neces- obJec to e propri edade 95-6, 124-
sá ria 99- 10 1, 104-5 , 183-4 , 286 -8, 147, 207-8
bondade como, disr. de valo r in- selecção 134
trín seco 103-4, 106-8, 109-1 O, Natural = necessá rio 130-2, 147
172-3, 183-4 , 184- 5, 189, 203, Natural = normal 129-30, 147
212-3, 2 16, 278-9, 284, 286, N aturalism o 102- 3, 126, 14 7, 246
302, 304-5, 325,333 Naturalista
disr. de " parte do todo orgân ico" Ética 125-8, 147, 149
11 0-2 , 11 1, 11 3, 183- 4, 286 fa lácia 92, 95-6, 100- 2, 124-5,
" não justifi cado(s)" pelo fim 248, 136, 145-6, 147, 151 , 153, 157-8,
266 160, 164, 165,200, 205-6, 211 ,
Mental 216. 222,223,239, 278, 282,308
beleza 3 11--2, 335 Hedonismo 133, 138, 141 -2,
va lor 3 13-4 159, 200, 201
Mentir 257 N atureza 127-8, 207-8, 209
Metafisico 125 , 147, 207- 12, 240-1 va lo r da 296, 298- 300, 301-2,
Método 307-8, 3 14-5
de desco berta do va lo r co mo vida de acordo co m a 128-9,2 1O
meio 105-6, 248 . 250-8, 278 Necessidade
de descoberta do va lor intrínseco analíti ca 104-5 , 11 8, 11 9-20, 330
102-3 , 12 1, 149-50, 154, 182, ca usa l o u natural 11 3- 4, 11 6,
185-7, 189-90, 243-7, 278, 29 1- 11 8-9, 292-3
-2, 30 1-2. 304 , 3 14, 3 17-8, 332 Novo T estamento 283, 284, 285
Mil!, ]. S. 246
falácia natura lista 124, 157-8, 16U, O bj ec tivo 17 4-5 , 308-9
164-5 , 200- 1, 205 Objecto
Hedoni smo 153-74, 206 de cogni ção 24 1, 297 , 298 , 300,
H edo ni sm o Psico lógico 159, 3 19-20
164-6 de desejo 159-62
quali dade do prazer 169-74, 206 natural 95-6, 125-8 , 147, 207-8
Utilitarismo 200-3 Obngaçào
Mi seri có rdi a 283 mo ral 198-9 , 226-7, 248-9
Moral Obri gatóri o 108- 9, 250, 275-6

[34 11
Ó di o 320, 322 H edo nism o 100 . 159. 160, 161,
do belo e do bom 320 , 326, 335 165
do mau e do feio 284, 326, 327, Puni ção 267-8
329,33 1, 335 vin ga tiva 324-5 , 33 1
Ordens, co nfusão co m leis morais
226- 7, 240- 1 Qualidades materi ais, va lor das 311-
O rgâ ni co(a) . ve r R t'lação -2, 3 13-4, 330, 335
Qualidades sec undári as 314
Parti cular 84-5
Pecados 265 R azão 244-5
Perce pção 208-9, 232-4, 235-6 R eali zação do ve rdadeiro eu 2 10-1 ,
Pessimismo 139-40, 14 1, 258-9 2 18, 294
Pi edade 327, 33 1 R eco mpensa 279-80
Platão R elação orgâ ni ca, unidade, todo
e as ve rdades uni ve rsa is 208 o meu próprio se ntid o 11 0-14,
e o bem 284 11 7. 121. 186-7 , 25 1, 290, 293-
e o egoísmo 193 -4, 296-7. 309- 10, 313-4, 315-
e o Hedo nismo 18 1-2 -6, 320- 1, 323-5, 329 , 332-3
e o va lor do Co nh ecimento 306 sentido vulga r 114-2 1
Práti ca, a 82 , 102-3 R elações ca usa is 11 5-6 , 11 8- 20
Práti ca(o) 325, 330- 1 R eprese ntati va, arte 299-300
Éti ca 212-6, 240, 248 , 25 1, 254 , Rousseau 128
257, 286, 33 1
Filosofi a 82 Sacrifi cio próprio 275
Prazer 94-5 , 97-9 Sanções 262 , 268
co mo critéri o 185, 206 Saúde 129-30, 156, 259-60, 27 1
co nsciência do 181-5, 206 Sensação 233-4
e desejo 159- 62, 164- 5 Sensacionista 229
e " prazeres" 171-2 Senso co mum 333
" qu alidade" do 169-74 e o va lo r do praze r 179, 185-6,
valor do 125, 133, 138-42 , 149- 188- 90
-58, 162-4. 166, 172-3, 176-7, e os deveres 258-62
178- 90, 246,247,276,278,279, Sentim ento
294, 313,32 1, 332 suposta analogia co m cog111çào
Preferência 170-1 , 230 228-9, 241
Promessas 260- 1 suposta relevâ ncia para a Ética
Propriedade, respeito pela 260-1 228-9, 241
Proposições, tipos de 222-5 Ser, dist. de existir 207-8
Prova 92 , 156-7, 165-6, 168- 9, 195- Sidgwick, H enry 246
-6 , 210,241 , 244, 246, 274,287 " bem " inanalisável 99
Prudência 273 desprezo pelo princípio dos todos
"M áxi ma " da 199 orgânicos 186-8
Psicológico 92, 229-30, 240-1 , 250 e Benth am 99-1 00

(342]
Hedo n ismo 149. 154. 17-+-80. Uni ve rsa lista, H edo ni smo 199-200
185-90, 205 Úti l 202-5, 248, 272-3
"método'' do Intuicio nismo 149. Utilitarism o 154 , 19 1-2 , 193-5,
186-8 202-5 , 206
prazer como c1itéri o 185-6, 188- Utopias 289 , 292
-9
qu ali dade do prazer 169-70, 17 4 Valor
ra cionalidade do Ego ísm o 194- co mo meio 104, 279, 302
-200 intrínseco 99, 103-4, 109- 14,
va lo r da beleza 17 4-7 , 178-9 121. 249, 278-84 , 293, 296,
va lo r do co nh ec im ento 174-5, 3 13-6, 323-5 , 33 1-4
178-9 nega ti vo 325
va lor do inconscie nte 174-7 Verdade
Significado, " não ter qu alqu er" 11 5. relação com a existência 209,
11 9 222-3
Sintéti co 87, 147, 244 cognição 228-30, 231-2, 234-
Spence r, H erbe rt 133 , 135-46 -6, 242, 302-3
Spinoza 207 conh ec imento 232-3 , 300- 1
Summum Bo num 289 , 3 13-4 tip os de 209- 1O, 222- 3
Superior 136-7, 169-70 val o r da 300-7, 315 , 316-9, 320
Vício 276 , 316-8, 3 19- 20
Taylor, A. E. 150 Vida 97, 134, 138, 139-40, 258-9
Temperança 260, 273 Virtude
T eodi ce ia 330 defini ção de 276-8, 288 . 333
Todo mi sta 330
bom enquanto 3 16-7, 329 , 323- rda ção de " dever" 277-8
-5 , 330 três espécies 280
bom no todo / ge ral 323-5, 328, va lor da 176-7, 178-80,278-86,
329, 330 287-8, 328 , 330- 1
orgânico , ver " R elação Orgâ- Vo li çào
nica" supos ta coordenação com a cog-
Tra gédia 328 , 330 ni ção 228-9, 232-4, 235 , 24 1
Tyndall 126 suposta relevâ ncia para a Étic;a
228-9 , 235-6, 241
Último, fim 138-9, 179-7 , 178-9 , Vo ntade
19 1, 195-7. 289,295 Boa 280, 285 , 286
Unidade 332 com o critério de valor 238
Orgânica, ve r "Relação Orgâ- relação co m dever 263-5, 286-7
ni ca" suposta analogia corn cogni ção
Universa l(is) 228 ,235
Bem 195-7 suposta relevâ ncia para a Éti ca
verdades 104- 6, 111-2 , 146, 225-6, 227-9, 235-40, 241
208,225, 257-8, 287

1343]
O CONCEITO DE VALOR INTRÍNSECO

NOTA DO ORGANIZADOR.

Este texto foi publicado originalmente em 1922, consti-


tuindo o capítulo VIII (pp. 253-75) da selecção de artigos
filosóficos publicados por Moore sob o título de Philosophical
Studies (Kegan Paul, Trench, Trubner & Co ., London). A obra
foi publicada na colecção "lnternational Library of Philosophy
Psychology and Scientific M ethod", fundada e coordenada por
C. K. Ogden. No prefãcio de Philosophical Studies, Moore dá a
entender que este artigo fora escrito um pouco antes de 1922,
no período entre 1914 e 1917. Aqui se reproduz, com a auto-
rização da Routledge Publishers e de Timothy Moore.

O objectivo principal deste artigo é tentar definir com


maior precisão a questão mais importante que nos parece ser
o que realmente se discute quando se pretende debater se
determinado predicado de valor é ou não um predicado "sub-
jectivo". Há três casos principais em que essa discussão tende
a surgir. Surge, em primeiro lugar, relativamente aos conceitos
de "correcto" e "errado" e ao conceito próximo de "dever"
ou "aquilo que deveria ser feito" . Surge, em segundo lugar, rela-
tivamente a "bom" e "mau" nun1 sentido dos tern1os em que
os conceitos qu e representam são bem distintos dos conceitos
de "correcto" e "errado", mas no qual é indiscutível que de-
vem ser tratados no contexto da ética. E surge, por último,
relativamente a certos conceitos estéticos, tais como "belo"
ou "feio", ou "bom" e "mau" no sentido en1 que estes ter-
mos se aplicam a obras de arte e no qual, portanto, a questão
de o que é bom e mau é uma questão não do âmbito da ética
e sim da estética.

[345]
Em todos os três casos, há pessoas qu e defe nd em qu e os
predi cados em qu estão sã o puramen te "subj ec tivos" , num
sentido qu e crem os que pode ser fa cilm ente definido. Não
va mos ago ra tentar elaborar um a defini ção perfeitam ente
exac ta desse sentido; no entanto, um a vez qu e o termo "sub-
jecti vo" é tão exasperantemente ambíguo, teremos qu e, pelo
menos, dar um a id eia geral do se ntido a qu e nos referim os.
Tomemos, por exemplo, a palavra " belo" . H á um sentid o do
term o "subj ec tivo" relativame nte ao qual dizer-se qu e " belo "
representa um predi cado subj ectivo, sign ifica, grosso modo, qu e
qualquer afirmação da forma " Isto é belo" apenas exprime
um a asserção psico lógica no se ntid o em que um determin ado
indivídu o o u um grupo de indivíduos tem efe ctivamen te ou
teri a, em determin adas circunstâncias, um certo tipo de ati -
tud e mental relativam ente à coisa em qu estão. E o que qu ere-
m os dizer co m a expressão " ter uma atitude mental " perante
uma coisa pode expli ca r-se dizendo qu e desejar algo é ter um
tipo de atitude mental perante essa coisa, ficar agradado dela
é ter uma o utra atitude m ental, querê-la é ainda o utra; em
resumo, ter qualqu er tipo de sentim ento ou emoção por algo
é ter uma determinada atitude mental peran te essa coisa.
Assi m , qu em defende r que quando di zemos que uma co isa é
bela, o que queremos dizer é apenas que nós próprios - ou um
grupo específico de pessoas - tem os, ou teríam os, em deter-
min adas circun stâncias, um certo sentim ento pela coisa em
qu estão, está a ter um a opinião "subj ecti va" sobre beleza.
M as nos três casos há também um grande núm ero de
pessoas qu e defendem que os predicados em questão não são
"subj ectivos" nesse sen tido; e cremos qu e qu em assim pensa
tenderá a exprimir-se como se a perspectiva que deseja m
manter em oposição à "subj ectividade" desses predicados con-
sistisse pura e simpl esm ente na afirmação da contraditória - ou
seja, na afirma ção de que os predicados em qu estão são " obj ec-
tivos", signifi cando "obj ectivo" apenas o m esm o qu e " não
subj ectivo" . Cremos, no entanto, qu e esse será um sentido
muito raro. No caso da bo ndade e da beleza, o que essas pes-

(346I
soas se preoc upam realm ente em defender não é de modo
algum apenas que esses conceitos são "obj ectivos", e sim que,
para além de serem "obj ectivos", são tamb ém , num determi -
nado se ntid o que ten taremos expli ca r, tipos de valor " in-
trínsecos". Ta l co nvicção - a co nvicção de qu e a bondade e a
beleza são tip os de va lor intrínsecos - é, segundo cremos, a
mais fo rte base de obj ecção a qualquer perspec tiva subj ecti va.
De fac to, qu ando referem a "obj ectividade" desses conceitos,
o qu e parecem entender por isso é um conceito a qu e não
pode propri am ente dar-se o nom e de "obj ectividade", uma
vez qu e in cl ui , co mo parte essencial, uma outra característi ca
a qu e chamaríamos um tipo de valor " intrínseco" .
A verdade é, a nosso ver, qu e, embora da proposição de
que um determinado tipo de valor é " intrínseco" não decorra
qu e o mesmo sej a necessa riam ente "obj ectivo", o oposto não
é de modo algum verdadeiro; muito pelo contrári o, é per-
fe itamente fác il conceber teo ri as de, por exemplo, " bondade"
segundo as quais a bondade seri a, no senti do mais restrito,
"obj ectiva", não se ndo, no entanto, " intrínseca". Existe, por-
tanto, um a diferença muito importante entre o co nceito de
"obj ectividade" e aquil o que designaríam os por " intern ali-
dade"; contudo, se não estamos em erro, quando se refere a
"obj ectividade" de qualqu er tipo de valor, quase sempre se
confun dem os dois conceitos, devido ao fac to de qu e a maio-
ria das pessoas qu e nega m a " intern alidade" de um dado tipo
de valor também afirmam a sua "subj ectividade". Poderemos
verifi car melh or através de um exempl o de uma teoria que
defendesse qu e a bondade é obj ectiva mas não intrínseca que
se trata de uma diferença enorm e e qu e aquel es qu e defendem
que a bondade é "obj ectiva" geralmente se referem não ape-
nas a "obj ectividade" mas também a " internalidade".
Suponh am os então, por exempl o, qu e se defendia qu e
afirm ar qu e um tipo de ser humano, A, é " mel hor" do qu e
um outro tipo, B, signifi ca apenas que, no (de)curso da evo-
lu ção, há uma tendência para o aumento do núm ero de pes-
soas do tipo A e diminui ção de pessoas do tipo B. Tra ta- se de

[347]
um conceito que, de facto, é frequentemente sugerido, ainda
que não expresso exactamente deste modo; o que de facto
significa é apenas a ideia vulgar de "melhor" como " mais bem
preparado para sobreviver". É claro que " melhor", nessa
acepção do seu sentido, não é, de modo algum, um conceito
"subjectivo": o conceito de pertencer a um tipo que seria
mais favorecido do qu e outro na luta pela sobrevivência é o
mais "objectivo" possível. No entanto, se for como pensamos,
as pessoas que têm objecções a um entendimento subjectivo
da "bondade" e insistem na sua "objectividade" também não
estarão correctas, tanto quanto não estão as que defendem
qualquer interpretação "subj ectiva" do conceito. Assim, é óbvio
que o que aquelas pessoas realmente pretendem defender não
é apenas que a bondade é "objectiva", uma vez que têm
objecções relativamente a uma teoria que é "objectiva", e sim
uma outra coisa. Essa outra co isa é com certeza apenas, segun-
do cremos, que é " intrínseca" - uma característica que é tão
incompatível com essa interpretação evolucionária objectiva
como com toda e qualquer interpretação subjectiva . Mas se se
afirmar que qualificar o tipo A de " melhor" do que o tipo B
significa apenas que esse tipo é mais favorecido na luta pela
sobrevivência, consequentemente que o ser "melhor" consti-
tui um predicado que não depende apenas da natureza intrínseca
respecti11amente de A e B. Pelo contrário, embora aqui e agora
A possa encontrar-se mais favorecido do que B, é evidente
que, em circunstâncias diferentes, ou de acordo com leis na-
turais diferentes, exactamente o mesmo tipo B poderá encon-
trar-se mais favorecido do que A e, portanto, exactamente o
mesmo tipo que, num determinado conjunto de circunstân-
cias, é melhor do que B, seria, noutras circunstâncias, pior.
Aqui temos um caso em que uma interpretação de " bondade"
que torna o conceito "objectivo" é incompatível com a
hipótese de ser " intrínseca". E é exactamente esse facto tam-
bém - o facto de que, numa qualquer interpretação "subjec-
tiva", precisamente o mesmo tipo de coisas que, sob determi-
nadas circunstâncias, é melhor do que outro, seria, noutras

[348]
circunstâncias, pior - que constitui, segundo cremos, a objec-
ção fundamental a qualquer intepretação "subjectiva". Por esse
motivo, é óbvio que é muito incorrecto exprimir essa objec-
ção afirmando que a bondade é "objectiva ", uma vez que a
bondade poderá muito bem ser "objectiva" e, no entanto, não
possuir a própria característica que se pretende fundamental-
mente atribuir-lhe.
Assim, no caso da "bondade" ética e estética, pensamos
que o que aqueles que afirmam a "objectividade" desses con-
ceitos efectivamente querem defender não é de todo a mera
"objectividade" e sim, principalmente e essencialmente, que se
trata de tipos de valor intrínsecos. Contudo, não se pode afir-
mar o mesmo relativa1nente aos casos de "correcto" e "errado"
e "dever" porque muitas das pessoas que discordam de que
esses conceitos são "subjectivos" defendem, contudo, que são
"intrínsecos". Portanto, não se pode afirmar que quem defende
a "objectividade" do correcto e do errado queira sempre sobre-
tudo dizer que esses conceitos são intrínsecos, mas julgamos
que poderá afirmar-se que o que querem dizer não é certa-
mente "objectividade", exactamente como no outro caso. Isso
porque, em ambos os casos, seria possível que houvesse deter-
minadas posições absolutamente "objectivas" a que essas pes-
soas teriam objecções tão fortes como as que têm perante
qualquer posição subjectiva. E embora o que "objectividade"
neste caso significa não é que "correcto" e "errado" sejam em
si mesmos " intrínsecos", e sim, segundo nos parece, também
que possuem uma relação fixa com um tipo de valor que é
"intrínseco". A nosso ver, é essa relação fixa com um tipo de
valor intrínseco que confere ao correcto e ao errado o tipo e
o grau de fixidade e de imparcialidade que efectivamente se
pensa que eles possuem, e que é de facto o que as pessoas têm
em mente quando referem a respectiva "objectividade".
Portanto, também neste caso, denominar a característica que
descrevemos de "objectividade" é utilizar uma designação tão
errada como nos outros casos, uma vez que, embora se trate
de uma característica que é incompatível com qualquer tipo

[349]
de "subj ectividade", ela é também incompatível, pelas mesmas
razões, com muitos tip os de "obj ec tividade" .
Pelos motivos expostos, parece-n os qu e aq ueles que
defendem a "obj ectivida de" de ce rtos tipos de valo r, o u a
"obj ectividade" dos juízos de va lor, geralm ente não estão de
fac to a pensar em "obj ectivida de" e pretendem sim di zer ou
que os tipos de valor em questão são eles própr ios intrín secos,
ou qu e possuem um a relação fi xa com um tipo de va lo r que
o é. O co nceito que pretendem efec tiva m ente sali entar não é
o conceito de "valor obj ectivo" e sim o de "valo r intrínseco",
embora os co nfunda m. E parece-n os que isso acontece não só
relativamente aos defendores da dita "obj ectividade" m as tam-
bém aos seus opositores. Muitos dos qu e defendem pere mp-
tori am ente (e são em grande n úm ero) que todos os tipos de
valor são subj ectivos certamen te colocam o~jecções à chamada
posição "obj ectiva", não tanto por ser objectiva, e sim por não
ser naturalista ou positivista - uma característi ca qu e decorre
naturalm ente do entendim ento do valor com o " intrínseco",
embora não do m ero entendim ento do va lor com o "obj ec-
tivo" . Essas m esmas pessoas não colocam o m esmo tip o (ou o
mesm o grau) de obj ecção qu e colocam a qualqu er perspectiva
teóri ca dita "obj ectiva" a uma perspectiva que sej a sim ultanea-
mente tanto " naturalista" ou " positivista" com o "obj ectiva",
co mo é o caso da teoria evolu cionista qu e descrevemos há
pouco. N o que se refere às chamadas perspec tivas "obj ecti-
vas", dirão não apenas qu e são falsas, mas também qu e a sua
fa lsidade é de algum m odo perve rsa - ao construir um a en ti-
dade metafisi ca a partir de algo qu e é perfeitamente suscep-
tível de uma simpl es explicação natu ralista. C rêem qu e quem
defende essa posição está não só a co m eter um erro, mas
com ete um erro de natureza supersti ciosa. Têm o mesmo tipo
de desdém por essas pessoas que nós poderemos sentir por quem
consideram os ser grosseiram ente sup ersticioso e qu e outras
pessoas sentem também por aquilo qu e consideram ser a " me-
tafisi ca". Por isso, é evidente qu e as suas obj ecções rea is não se
dirigem simplesmente ao entendimento desses predicados como

[350)
"objectivos" e sim a algo diferente - algo que de todo nao
resulta da afirmação da sua "objectividade" e sim da afirmação
de que são "intrínsecos".
Portanto, quando se discute se determin ados tipos de
valor são ou não são "subjectivos" , cremos que a questão que
é considerada importante, normalmente por um dos lados do
debate, mas frequentemente também por ambos, não é real-
mente a questão da diferença entre "subjectivo " e "não subjec-
tivo", mas sim entre "intrínseco" e "não intrínseco" . Parece-
-nos que se trata, de facto, da qu estão fundamental, porque a
diferença que implica relativamente à nossa perspectiva do
Universo considerarmos que alguns tipos de valor são " intrín-
secos" ou que nenhuns o são é muito maior do que qualqu er
outra que seja consequência de uma mera diferen ça de opi-
nião sobre se alguns são "não subjectivos" ou se são todos,
sem excepção, " subjectivos". Defender que haja tipos de valor
"intrínsecos" significa o reconhecimento de um tipo de predi-
cado extrememente diferente de qualquer outro que teríamos,
de outra forma , que reconhecer - e talvez mesmo único -
enquanto que, seja como for, é verdade que há predicados
"objectivos" e "subjectivos".
Ora bem, o que é essa " internalidade" que temos esta-
do a referir? O que é que queremos dizer quando afirmamos
que determinado tipo de valor é "intrínseco"? Cremos que é
fácil explicar de forma aproximada o que isso significa e todos
reconhecerão de imediato qu e se trata de um conceito cons-
tantemente presente no nosso espírito; desejamos, no entanto,
tecer algumas considerações mais pormenorizadas sobre esse
mesmo conceito, uma vez que não nos parece que tenha já
sido alguma vez expressamente explicado e definido e porque,
embora se trate de um conceito extremamente simples e fun-
damental, a tarefa de o descrever com precisão não é uma
tarefa fácil, mas apresenta dificuldades que, teremos que con-
fessar, ainda não sabemos bem como resolver.
A ideia principal foi já avançada, casualmente, quando
referimos a interpretação evolucionária de " bondade" segundo

[351]
a qu al, com o se di sse, a bo ndade seria "obj ectiva", mas não
" intrínseca" . Co m o equivalente à asserção de qu e, segundo
essa de fini ção, " melh o r" não seri a " intrínseco", utilizámos
então a asserção de qu e a qu estão de se um tipo de ser, A, era
m elho r d o qu e o utro, B, não dependeria apenas das naturezas
intrínsecas de A e B e sim das circunstâncias e das leis da
natureza . Co nsideram os qu e essa expressão po derá efectiva-
mente sugerir o que se pretende signifi car com valo r " intrín-
seco". Po dem os, assim , estabelecer a seguinte defim ção: dizer
que 11111 tipo de valor é intrínseco s((!n[{,ca apenas que a questão de se
u111 a ro isa o possui e e111 que ,(!ra 11 o possui depende apenas da na tu-
reza i11trí11sera da coisa e111 questão .
N o entanto, embora essa defini ção exprima exactam ente
o se ntido qu e pretendem os da r ao co nceito, é impo rtante
analisa r esse senti do, po r um lado, po rque o co nceito de " dife-
re nça de natureza intrín seca", qu e nos parece ser de prim or-
dial impo rtância, é susceptível d e ser co nfundido com o utros
conceitos e, po r o utro lado, po rqu e a defi nição se prende com
noções q ue não tem os bem a certeza como definir de fo rma
exac ta.
Q uando afirm am os relativa m ente a um d eterminado
tip o de va lo r que a q uestào de alguma co isa o possuir e o grau
em q ue o possui depende apenas da 11at11reza in trínseca da coisa em
q11c.i tão , querem os di zer simultanea m ente du as coisas dife-
rentes: (1) qu e é i111poss í11cl qu e algo qu e sej a estritam ente uma
e a 111 cs11 ,a cmsa possuJ esse tipo de va lo r numa ocasião o u em
deter lllin adas circun stâncias e não o poss ua no utras; e é tam-
bt·m imp ossível que possua esse tip o de valor em determjnado
c'. rau num a ocas ião o u em certas circu nstâncias e qu e o possua
nu!ll grau dife rente no utra ocasião o u no utras circuntãncias.
Obv iam ente q ue, em parte, é isto qu e naturalmente se qu er
dizer q u:lll do se afi rm a que a q uestão de se algo possui , e em
que gra u poss ui . o ti po de va lo r em qu estão depende sempre
,111C11,1., eh 11 aturez:1 intrím eca da coisa. Se x e y poss uírem

d i~~Tl'lllcs naturcz:i s 111trínsecas. é ce rto qu L' x não po derá ser


u11 1:1 e :1 mes!ll a cmsa q ue )'; e daí que se x e y pod em ter um
valor intrínseco diferente apenas se as suas naturezas intrínse-
cas forem diferentes, é certo qu e uma e a mesma coisa terá
necessariamente sempre o mesmo valor intrínseco. Esse é,
então, um aspecto do sentido que pretendemos analisar relati-
vamente ao qual não nos parece necessário avançar muito mais,
excepto para fazer uma chamada de atenção para o facto de
que, ligado a este, temos um outro conceito que, como vere-
mos, também se liga ao outro aspecto da questão, trazendo,
em ambos os contextos, alguma dificuldade - trata-se do con-
ceito que é expresso pela palavra " impossível ". (2) A segunda
parte do sentido que se pretende veicular é a seguinte: se uma
determinada coisa possui algum tipo de valor intrínseco num
dado grau, então não só essa mesma coisa o possuirá, no mesmo
grau, em quaisquer circunstâncias, como também algo que
seja exactamente igual o possui, em todas e quaisquer circuns-
tâncias e exactamente no mesmo grau. Ou, exprimindo esse
mesmo princípio de forma negativa, é impossível que, de duas
coisas exactamente iguais, uma possua um tipo de valor intrín-
seco e a outra não possua, ou que uma o possua num deter-
minado grau e a outra o possua num grau diferente.
Cremos que esta segunda proposição pode também ser
expressa por meio da afirmação de que o tipo de valor em
questão depende apenas da natureza intrínseca daquilo que o
possui, uma vez que naturalmente diríamos que duas coisas
que fossem completamente iguais intrinsecamente, teriam a mesma
natureza intrínseca, apesar de serem duas . Mas é importante
salientar expressamente o facto de que o que queremos dizer
com a expressão "ter uma natureza intrínseca diferente" é
equivalente a "não exactamente iguais", uma vez que há efec-
tivamente o risco de se confundir este conceito com um
outro. Trata-se do seguinte: é natural supor-se que a expressão
"ter uma natureza intrínseca diferente" é equivalente à
expressão "ser intrinsecamente diferente" ou "ter propriedades
intrínsecas diferentes"; no entanto, se se considerarem essas
expressões como identificáveis entre si, corre-se o rico de uma
confusão, uma vez que é evidente que existe um sentido em

(353]
qu e, qu ando se trata de co isas exactam e nte iguais, essas coisas
serão " intrin secam ente diferentes" e terão propriedades intrín-
secas dife re ntes pelo mero facto d e se tratar d e du as coisas. Por
exempl o, du as man ch as de cor p o d em ser exactam ente iguais ,
m esm o qu e ca da um a d elas possu a um elem e nto constituinte
qu e a o utra não p oss ui , desde que esses o utros ele m entos
sejam exactam e nte igu ais. E , n o entanto, num ce rto sentido,
é óbvio qu e o fac to de que cada uma p ossui um elem ento
co nstituinte qu e a o utra não p ossui co nstitui uma dife rença
intrínseca entre elas e impli ca qu e cada uma te nha uma pro-
pri edad e intrín seca que a o utra não tem . E m esm o se se tratar
d e duas coisas simpl es, o m ero facto de se rem num eri ca m ente
difere ntes constitui , e m certo sentido, uma difere n ça intrín-
seca entre ambas e cada um a d elas terá p elo m e n os uma pro-
pri edade intrín seca qu e a o utra nã o tem - a de ser idê nti ca a
si m esm a. É p o r isso evide nte qu e as expressões " intrin seca-
m e nte difere nte" e " ter propri edad es intrínsecas diferentes"
são ambíguas. Podem ser utilizadas num sentido que implica
qu e, ao dizer-se qu e du as co isas são intrinsecam ente diferentes
o u qu e têm propriedades intrínsecas dife rentes não implica
qu e elas não sej am exactam e nte iguais, m as ap en as qu e são
numericamente diferentes . Ou poderão ainda ser utilizadas num
se ntido no qu al se p o d e afirm ar qu e du as coisas são intrinse-
cam e nte dife re ntes e têm difere ntes propri edad es intrínsecas
apenas qu ando não são exac tam e nte iguais. É, p or isso, muito
impo rtante in sistir no facto d e qu e, quando afirm am os que
duas coisas só po dem ser diferentes em valor intrínseco quando
têm naturezas intrínsecas diferentes, estamos a utilizar a expres-
são " ter naturezas intrín secas difere ntes" n esse últim o sentido
e não no primeiro, o u seja, estam os a usá-las num sentido em
que o mero facto de du as coisas serem du as, ou sej a, o facto
de serem num ericam e nte diferentes , não implica que ten ham
naturezas intrínsecas difere ntes, mas em qu e apenas se pode
dizer qu e têm n aturezas intrínsecas diferentes se, para além da
diferen ça num érica, n ão forem exactam ente igu ais.
No entanto, explicado isto, surge de imediato o risco de

[354]
uma outra co nfu são d evido ao fac to d e q u e, q uando se com-
para co ntras tivam e nte uma m era diferen ça numéri ca com um
tipo d e diferen ça intrínseca qu e não é m eram ente numéri ca,
tende a have r um a id entifi cação d a últi ma com uma diferen ça
qualitativa. Assim , seri a fác il d e co nclui r qu e, com a expressão
" diferença d e n atureza in trí nseca" quiséssem os dizer " dife-
rença de qualidade" . Co ntud o, essa ide ntifi cação d e diferen ça
de qualidad e co m diferen ça d e natureza intrínseca também
seria errada. É ve rdad e q u e o qu e no rmalme nte se qu er dizer
com diferença d e qu alidad e, no sentido restrito, é qu e se trata
sempre de uma dife ren ça d e natureza intrínseca: duas coisas
não podem ser diferentes em qualidad e sem diferirem na sua
natureza intrín seca - esse é um d os fa ctos m ais importantes n o
que se refere à natureza qu alitati va. N o entanto, o o posto não
é, de m o d o algum, verdad eiro: embo ra du as co isas não pos-
sam ser dife rentes em qu alidad e sem diferirem na su a natureza
intónseca, poderão dife rir em natureza intónseca sem diferirem
em qualidad e, o u , por o utras palav ras, a dife ren ça d e qualidad e
é apenas uma espécie d e diferen ça d e n atureza intrínseca. Isso
decorre do fac to d e qu e, com o j á fo i expli cad o, estam os a uti-
lizar a expressão " diferentes em natureza intrínseca" com o
equivalente a " n ão exactam ente iguais", uma vez que é per-
feitam ente claro qu e du as coisas po d em n ão ser exactam ente
iguais, apesa r d o fac to d e não diferirem em qu alidad e, p o r
exemplo, se a úni ca difere nça entre elas for uma diferen ça em
termos do g rau em qu e possu em uma qualidade qualquer qu e
possuam. Ningu ém diria qu e um som muito forte era exacta-
mente igual a um so m muito su ave, m esm o se fo ssem exacta-
mente iguais em qu alidad e; n o entanto, é evidente qu e há um
sentido em que a respecti va natureza intrínseca é diferente. E sse
motivo é j á suficiente para qu e a diferen ça qualitativa não possa
ser identifi cada com uma dife ren ça d e natureza intrínseca, m as
há ainda o utros motivos . A diferen ça d e tam anh o, por exem-
plo, pode ser uma di fe ren ça d e natureza intónseca, no sentido
em que utilizam os o con ceito, m as não se po d e classifi car d e
diferença d e qu alidad e. Ou p ensem os numa diferen ça com o a

[355]
diferença entre dois padrões, sendo um um círculo amarelo
com um po nto ver melh o no centro e o o utro u m cí rculo
am arelo com um ponto azul no centro. Talvez qu e, de uma
fo rma menos precisa, se pudesse dizer que existe um a dife-
rença de qualidade, mas seria obviam ente mais exacto dizer-se
qu e se trata de um a diferença co nstituída pelo fac to de que
um dos padrões tinha um elem ento constituinte qualitativamente
diferente de qualquer um dos do outro padrão. A diferença entre
ser qu alitativam ente diferen te e ter elem entos constituintes
qualitativam ente diferentes é uma diferença importante, tanto
porque o segundo caso pode ser definid o apenas em termos
do primeiro e também porque é possível qu e coisas simpl es
di fi ram umas das outras do m odo descr ito em primeiro lugar,
enquanto apenas as coisas compl exas diferem em term os do
segundo.
Esperam os qu e a explicação tenh a sido sufi ciente para
tornar claro qual o conceito exacto qu e pretendem os signifi-
car usa ndo a expressão " diferentes em natureza intrínseca" . Os
pontos m ais impo rtantes são: (1) qu e se trata de um tipo de
diferença qu e nào existe entre duas coisas qu e sej am apenas
num ericamente diferentes e sim apenas quando, além de mune-
ri cam ente diferentes, também nào são exactam ente iguais; e
(2) que não é idêntica a diferença qu alitativa, embora esta sej a
uma espécie específica daqu ela. O conceito parece-nos ser
extremam ente importante e fu ndam ental, embora, pelo qu e
conh ecem os, não possua uma deno minação simpl es e não
ambígua. É essa a razão pela qual nos detivem os nele de for ma
tão demorada. " N ão exactam ente igual" será a fo rma menos
ambígua de o expressar, embo ra tenha a desvantagem de suge-
rir qu e a ideia de igualdade exacta fosse a ideia fundam ental
de qu e o conceito deriva , o qu e pensam os ser exactam ente o
oposto do qu e se passa. Por tal razão, apesar de pouco satis-
fatória, talvez sej a m elh or m antermos a expressão " diferentes
em natureza instrínseca".
Encerremos assim a qu estão do que se pretende dizer ao
referir qu e du as coisas " diferem na natureza intrínseca". Tere-

[356]
mos ago ra qu e tratar uma qu estão m ais complexa, rela ti va ao
significado dos ter mos " imp ossíve l" e " necessá ri o" qu ando se
afirma qu e u m tipo d e valo r será intrínseco se e apenas se for
in1possível q ue x e y tenh am uma natureza diferente e ainda, na
afirmação equi valente: um tipo d e valo r é intrínseco se e ape-
nas se algo com o ele o possuísse neressaria,nente em to d as as
circunstân cias e exac tam e nte n o m esmo g rau .
N o qu e se refere ao sentido dessa necessidad e e dessa im -
possibilidade, deve m os com eçar po r esclarecer d o is aspectos.
(1) Defende- se p o r vezes - e, até certo po nto, d e fo rma
plausível - q u e o qu e se pretende dizer quando se afirma q u e
é possível qu e algo qu e p ossui um predicad o F poss ua também
um o utro predi cad o G é ape nas, pelo m enos po r vezes, q u e
algumas coisas qu e possu em F d e fac to também possu em G .
Se entendermos " possível" nessa acepção, o signi ficad o corres-
po ndente da afirm ação d e qu e é impossível q u e q u e algo qu e
possui F possua G será apen as : as coisas qu e possu e m F d e
fac to nun ca possuem G. Então, se ente nderm os " impossível"
nesse sentido, a condição da " intern alidad e" d e um tipo d e
valo r, qu e fo i desc rita através da afirm ação d e que, para q ue
um tipo d e valo r sej a " intrínseco", d everá ser impossível q ue
du as coisas qu e são exactam ente iguais o possuam em dife-
rentes g raus, signifi ca rá ap enas qu e duas co isas exactam ente
iguais uma à o utra não o possu em em g raus diferentes . Daí
que, se o sentido fosse apenas esse, para q ue a condição se veri-
fi casse bastava ser ve rdade (e, tanto qu anto sab em os, po d erá
até sê-l o) qu e, n o caso d e to d as as coisas qu e possu em um tipo
específi co d e valo r intrín seco, não existisse nada m ais n o
Universo que fosse exactame nte igual a n enhuma d e las, po is
qu e, se existisse, seria verdad e qu e du as coisas exactam ente
iguais não possu ía m o tipo d e valo r em qu estão em graus
diferentes, pela simples razão d e qu e tudo qu anto o possuísse
seria único, n o sentido em qu e não have ria nada m ais exacta-
m ente igual. Po rtanto, se fosse ap enas esse o sentido, poderia
provar-se qu e qualqu er tipo esp ecífico d e valo r satisfari a essa
condição d em o nstrando apenas que efectivam ente nun ca ho u ve

[357]
nem nun ca haverá nada exactam ente igual a qualqu er uma das
co isas qu e o possui ; assim sendo, a nossa afirmação d e qu e esse
valor pree ncheria essa co ndi ção seria apenas uma generaliza-
ção em píri ca . Mas m ais ainda, se fosse apenas esse o sentido,
obviamente não teríamos qualquer certeza de que os predicados
puram ente subj ectivos não sa tisfizessem a condi ção em ques-
tão, j á qu e ela poderi a ser satisfeita por qu alquer predi cado
subj ectivo relativam ente ao qual qualquer coisa qu e o pos-
suísse fosse, de facto, única, o u seja, que não havia m ais nada
exactam ente igual a ela; e, ao que sabemos, pode have r muitos
predica dos assim. Po rtanto, qu ase não será necessá rio dizer
qu e não estamos a utilizar " impossível" no sentido qu e anali-
sá mos. Quan do afirm am os que, para qu e determinado tipo de
valor sej a intrín seco, ele deverá satisfazer a co ndição segundo
a qual é impossível qu e duas coisas exactamente iguais o pos-
suam em diferentes graus, não queremos dizer qu e essa condi-
ção se verifiqu e pelo mero facto empírico de que não houvesse
nada exactam ente igual às coisas que possu em o referido tipo
de valor. Tal co m o en tendem os o conceito, é essencial que se
possa afirmar não apenas que du as coisas exactam ente seme-
lh antes não o possuem defarto em graus diferentes, mas que, se
tivesse havido ou v iesse a haver algo exactamente sem elh ante
a uma co isa que o possui, m esmo que não tenha havido nunca
nem nun ca venha a existir tal coisa, ela teria possuído ou pos-
suiri a o tipo de valor em qu estão exactamente no m esm o grau.
N esta acepção de " impossibilidade", é essencial poder afirmar-
-se o que poderia ter sido, em co ndições que nunca existiram
nem nun ca virão a verificar-se; e parece ser óbvio que não o
podemos fazer por via de uma qualquer generalização empírica.
No entanto (2) afirmar que não utilizamos o termo
" necessidade " neste prim eiro sentido não é de todo suficiente
para deixar esclarecido o qu e pretendemos dizer. De facto,
parece (embora seja po nto de controvérsia) que as leis ca usais
nos permitem fazer asserções exactamente do tipo das qu e as
meras generalizações empíricas não nos permitem fazer. Tendo
por base uma lei causal, parece que nos é permitido afirmar,

1358]
por exemplo, q ue, se uma determin ada coisa tivesse tido ou
viesse a ter um a pro pri edade, F, q ue não possuía o u não viesse
a possuir, ela teria tido o u viria a ter uma o utra propri edade,
G. Seria, assim , possível pensar qu e o tipo de " necessidade" e
de " imp ossibili dade" de q ue fa lam os é este tipo de " necessi-
dade" o u " imp ossibilidade" ca usais. Po rtanto, é impo rtante
sali entar o fac to de qu e tamb ém não é este tipo qu e querem os
referir. Se fosse só isso, não seria eviden te, de novo, qu e os
predica dos puram ente subj ecti vos pudessem não satisfazer a
nossa segunda condi ção. Pelo q ue sabemos, pode muito bem
ser verdade qu e haj a leis causa is que determin em q ue, por
exemplo, algo qu e sej a exactamente igual ao qu e é " belo" pro-
duziria, neste Universo, em toda a gente a qu em fosse apre-
sentado de determin ada fo rma, um tipo especial de sentimento.
Se assim fosse, teríam os um predicado subj ectivo que preenche
a condi ção segundo a qual, qu ando determin ada coisa possui
esse predi cado, é impossível (no sentido ca usal) qu e algo exac-
tamen te igual a ela o não possua tam bém . O tipo de necessi-
dade a qu e nos referim os não é, po rtanto, também uma m era
necessidade ca usa l. Quando afirmam os qu e, se determin ada
coisa possui um certo grau de valo r intrínseco, algo qu e fosse
precisa mente se m elhante a ela teria necessariam ente possuído
esse valo r exactam ente no m esm o grau , querem os dizer qu e o
possuiria m esm o qu e tivesse existido num Universo em qu e as
leis causais fosse m muito diferentes das deste Universo. O qu e
qu eremos di zer, em síntese, é qu e é impossível qu e uma coisa
precisamente sem elhante possuísse um valo r diferente precisa-
mente num sentido com o aqu ele em qu e geralmente se aceita
qu e nào é impossível qu e as leis ca usa is sej am di fe rentes do qu e
são - uma acepção de impossibilidade qu e, portanto, não
depende apenas das leis causa is.
Pensam os que os exemplos qu e apresentám os to rn am
bastante clara essa acepção - uma acepção qu e nos permite afir-
mar qu e o qu e possui F possuiria G, m esm o se as leis ca usais
fossem diferentes do qu e são. To m em os, po r sup osição, uma
determinada mancha de co r am arela. Poderem os afirmar com

[359)
certeza que qualquer mancha exactamente igual a essa seria
amarela, mesmo que existisse num Universo onde as leis causais
fossem completamente diferentes das deste Universo. Pode-
mos afirmar que qualquer mancha assim teria que ser amarela,
incondicionalmente, quaisquer que fossem as circunstâncias e
quaisquer que fossem as leis causais. É num sentido seme-
lhante a esse, no que se refere ao facto de não ser empírico nem
causal, que a expressão "terá que" deverá ser entendida, quando
se afirma que, se um tipo de valor for intrínseco, então, su-
pondo que detenninada coisa o possui num dado grau, algo
que seja exactamente igual a ela terá que o possuir exacta-
mente no mesmo grau . Assim , afirmar que a " beleza" ou a
" bondade" são intrínsecas é apenas afirmar que o que é ver-
dadeiro relativamente à qualidade de ser amarelo, azul ou ver-
melho é também verdadeiro relativamente a esses predicados.
E, se dermos esse sentido à expressão " terá que ", então é óbvio
que dizer que um determinado tipo de valor é intrínseco é
inconsistente com uma afirmação da sua "subjectividade".
Parece-nos bastante claro que não existe nenhum predicado
subjectivo relativamente ao qual se possa afirmar incondicio-
nalmente que, se determinada coisa o possuir, então, qualquer
outra coisa que seja exactamente como ela, também o pos-
suiria, em quaisquer circunstâncias e de acordo com quaisquer
leis causais. Tomemos, por exemplo, qualquer tipo de senti-
mento ; supondo que nutrimos esse sentimento por determi-
nada coisa, A, não é verdade que tivéssemos necessariamente,
quaisquer que fossem as circunstâncias, que nutrir o mesmo
sentimento por algo precisamente semelhante a A, pelo sim-
ples motivo de que uma coisa perfeitamente semelhante a A
poderia existir num Universo em que nós não existíssemos. De
igual modo, se alguém tiver um determinado sentimento por
uma coisa, A, então, em qualquer Universo em que existisse
algo precisamente semelhante a A, alguém teria esse sentimento
relativamente a essa coisa. Nem é sequer também verdade
que, se de acordo com leis causais específicas, alguém a quem
fosse apresentada de detenninada forma uma dada coisa, A,

[360)
tivesse por ela um determinado sentimento, então, em qual-
quer Universo, o mesmo predicado hipotético pertenceria a
qualquer coisa que fosse precisamente semelhante a A. Em
todos os casos, parece ser possível que existisse um Universo
cujas leis causais inviabilizariam essa proposição.
Assim , é devido ao facto de que, na nossa definição de
valor "intrínseco", a expressão "terá qu e" deve ser entendida
nesse sentido incondicional que nos parece que a proposição
segundo a qual um tipo de valor é "intrínseco" é inconsistente
com uma afirmação da sua subjectividade. Mas deve notar-se
que, ao dizermos que essa inconsistência se verifica, estamos a
contradizer uma doutrina que parece ter a concordância de
muitos filósofos . Como o leitor provavelmente sabe, há alguns
filósofos qu e defendem veementemente a tese de que não
existem relações puramente externas. Uma das coisas que isso
significa é apenas, se bem entendemos, que, sempre que x
tenha uma relação qu e y não tenha, x e y não poderão ser exac-
tamente iguais, ou seja, que qualquer diferença de relação
implica necessariamente uma diferença de natureza intrínseca.
Não há qualquer dúvida de que, ao afirmarem isso, esses filó-
sofos utilizam os termos " não poderão" e "necessariamente"
no sentido respectivamente de um incondicional "não pode-
rão" e "terá que " . Assim , defendem que se, por exemplo, uma
coisa, A, agora me agrada, então, qualquer outra coisa, B, pre-
cisamente semelhante a A, terá que, em quaisquer circunstân-
cias e em qualquer Universo que seja, agradar-me também ,
uma vez que, se B não me agradasse, não possuiria uma relação
que A possui e, portanto, de acordo com o seu princípio, não
poderia ser precisamente semelhante a A - terá que ser dife-
rente em natureza intrínseca. Parece-nos, contudo, óbvio, que
se trata de um princípio falso. Se fosse verdade, aconteceria
que saberíamos a priori, por exemplo, que uma mancha de cor
que fosse vista pelo leitor e não fosse vista por mim não pode-
ria ser nunca exactamente igual a uma mancha que é vista por
mim e não por si, ou que uma mancha de cor com uma orla
vermelha não poderia ser exactamente igual a uma que não

[36 1]
tivesse essa orla. M as é óbvio que, qu er essas coisas sejam ver-
dade ou não, são co isas qu e não podemos saber a priori , sim -
pl esm ente po rque não é evide nte a priori qu e uma man cha de
cor que é vista por A e não por B não é exactamen te igual a
u ma man cha que é vista por B e não po r A, n em que uma
ma ncha de cor co m uma orla verm elh a não é exactam ente
igual a uma qu e não tem essa orla. Este exem plo serve para
m ostrar tanto o qu e signifi ca afirm ar qu e um predicado com o
" belo" é " intrínseco" com o porq u e é qu e, se é intrínseco, não
pode ser subj ectivo. O qu e se qu er di zer é apenas que se A é
belo e B não é, poderíamos sa ber a priori que A e B não são
exactam ente iguais, en qu anto que, relativam en te a um predi-
cado subj ectivo co mo o da ca pac idade de provoca r um senti-
m ento espec ífico em nós, o u o de ser algo capaz de provocar
esse sentimento em qu alqu er espectado r, não se pode dizer a
priori qu e uma co isa, A, qu e possuísse esse predi ca do e uma
coisa, B, que o não possuísse não poderiam ser exac tamente
1gua1s.
Parece-nos, desse m odo, apesa r do dogma de qu e não
existem relações puram ente externas , qu e há muitos predi ca-
dos, com o, po r exempl o, a m aio ria dos predi cados subj ectivos
(se não todos) o u o predicado obj ec tivo de possui r uma orla
verm elha, que não dependem apenas da natureza intrínseca
daq uilo qu e os possui , o u, por outras palavras, relativa m ente
aos quais não é verdade qu e, se x os possui e y não os possui ,
x e y têm de ser diferentes em term os de natu reza intrínseca.
Contudo, tem os qu e confessar qu e não sab em os o qu e signi-
fica precisam ente esse " têm qu e" . O m ais óbvio é qu e pos-
sivelmente se trata do " tem qu e" lógico, qu e é efectivam ente
incondicional exactamente no seguinte sentido: o tipo de neces-
sidade qu e afirmam os existir por exempl o quando dizem os
qu e qu alqu er triângulo rectângul o terá qu e ser um triângulo
ou qu e qualqu er coisa am arela terá qu e ser ou am arela ou azul.
N o entanto, não nos parece qu e to da a n ecessidade in co ndi-
cional sej a desta natureza. N ão vem os realmente com o é qu e
se pode deduzir de uma regra lógica qu e, se uma man cha de

[362]
cor for amarela, então qualquer mancha que seja exactamente
igual a ela será também amarela . Do mesmo modo, no caso
do valor "intrínseco", embora pensemos que é verdade que a
beleza, por exemplo, é intrínseca , não vemos realmente como
é que se pode deduzir de uma regra lógica que, se A é belo,
tudo o que seja exactamente igual a A será amarelo também,
exactamente no mesmo grau.
Para além disso, embora entendamos que tanto "amarelo "
(no sentido em que se aplica aos dados dos sentidos) como
"belo" são predicados que, nesse sentido incondicional, depen-
dem apenas da natureza intrínseca daquilo que os possui ,
parece-nos que há uma diferen ça extremamente importante
entre eles que constitui um outro obstáculo relativamente à
compreensão do sentido incondicional de " terá que". A dife-
rença a que nos referimos pode ser descrita pela afirmação de
que, embora tanto a qualidade de ser amarelo como a beleza
sejam predicados que dependem apenas da natureza intríneca
daquilo que os possui, enquanto o amarelo é um predicado
intrínseco, a belez a não o é. De facto, uma das verdades mais
importantes relativamente aos predicados de valor é, a nosso
ver, que, embora muitos deles sejam tipos de valor intrínsecos,
no sentido em que os definimos, no entanto, nenhuns são pro-
priedades intrínsecas, no sentido em que o são "amarelo" ou
a propriedade de constituir "um estado de prazer" ou "ser um
estado de coisas que contém um equilíbrio de prazer". É óbvio,
por exemplo, qu e, se rejeitarmos todas as teorias naturalistas
de valor, deveremos não apenas rejeitar aquelas segundo as
quais não existem tipos de valor intrínsecos, mas também as
que defendem, por exemplo, que afirmar que um estado de
espírito é bom é dizer que se trata de um estado de se estar
agradado, ou que afirmar que um estado de coisas é bom é
dizer que contém um equilíbrio entre prazer e dor. Em resumo,
há dois tipos completamente diferentes de teorias naturalistas,
. podendo a diferença entre ambos ser ilustrada pela diferença
entre a asserção "A é bom" significa "A é agradável" e a asser-
ção "A é bom" significa " A é um estado de prazer" . As teorias

[363]
que se integram no primeiro tipo implicam que a bondade
nào é um tipo de valor intrínseco, enquanto que as do segundo
tipo implicam, de forma igualmente enfática, que é, uma vez
que predicados como "ser um estado de prazer" ou "conter
um equilíbrio de prazer" são predicados como "amarelo" no
sentido em que, se algo os possui, uma outra coisa que seja
exactamente igual também os terá que possuir. Parece-nos
evidente que ambos os tipos de teoria são falsos , embora não
saibamos como os excluir senão através da afirmação de que
há duas proposições diferentes relativas à bondade que são ver-
dadeiras: (1) que ela depende apenas da natureza intrínseca
daquilo que a possui - o que exclui as teorias do primeiro
tipo; e (2) que, embora isso seja verdade, não se trata em si
mesmo de uma propriedade intrínseca - o que exclui as do
segundo tipo. Foi por essa razão que se afirmou atrás que, se
há tipos de valor intrínsecos, eles constituem um grupo de
predicados que talvez seja único, uma vez que não podemos
dar exemplo de qualquer um outro predicado que se assemelhe
a eles no sentido em que, embora não sendo intrínsecos em si
mesmos, têm em comum com as propriedades intrínsecas a
característica de dependerem apenas da natureza intrínseca
daquilo que os possui . Tanto quanto sabemos, certos predica-
dos de valor constituem as únicas propriedades não intrínsecas
que têm em comum com as propriedades intrínsecas a carac-
terística de dependerem apenas da natureza intrínseca daquilo
que os possm.
No entanto, se dissermos que os predicados de valor,
embora dependam apenas de propriedades intrínsecas, não
constituem propriedades intrínsecas, deverá então haver uma
característica que pertence às propriedades intrínsecas e que os
predicados de valor nunca possuem. E parece-nos bastante
evidente que há, embora não saibamos dizer qual é. Parece-
-nos perfeitamente óbvio que, ao afirmar-se que determinado
estado de coisas contém um equilíbrio de prazer e dor, o pre-
dicado que se atribui a esse estado de coisas é não só diferente
daquele que se atribuiria se se afirmasse que o estado de coisas

[364]
é " bom" , mas que é tamb ém um predicado de um tipo com-
pletamente diferente; do mesmo modo, quando se afirma que
uma determinada mancha de cor é "amarela ", o predicado
que se atribui é não só diferente de " belo" como também é
de um tipo diferente, como no caso anterior. E é claro que o
mero facto de muitas pessoas terem pensado que a bondade e
a beleza eram subjectivas prova que existe uma grande dife-
rença de tipo entre elas e os predicados ser amarelo ou conter
um equilíbrio de prazer. No entanto, qual é essa diferença,
supondo-se qu e, como cremos, a bondade e a beleza não são
subjectivas e que têm em comum com a característica de ser
amarelo ou de conter prazer a propriedade de dependerem
apenas da natureza intrínseca daquilo que as possui , confes-
samos que não sabemos. Poderemos apenas tentar exprimir de
forma algo vaga o tipo de diferença que nos parece existir
nesse caso dizendo que as propriedades intrínsecas parecem
descrever a natureza intrínseca daquilo que as possui num sen-
tido em que os predicados de valor nunca o fazem. Se se pu-
desse enumerar a totalidade das propriedades intrínsecas que
uma determinada coisa possui, teríamos uma descrição com-
pleta dela , não sendo necessário referir quaisquer predicados
de valor que essa mesma possuísse; pelo contrário, não tería-
mos uma descrição completa de algo se fosse omitida qualquer
das suas propriedades intrínsecas. Seja como for, no entanto,
devido ao facto de que os predicados de valor intrínseco não
são propri edades intrínsecas, não podemos definir "proprie-
dade intrínseca" da forma que à primeira vista parece correcta,
ou seja, não se pode dizer que uma coisa que possui uma dada
propriedade intrínseca e outra que a não possua tenham por
isso naturezas intrínsecas diferentes. Pois é isso exactamente
que afirmamos ser verdade relativamente aos predicados de
valor intrínseco, enquanto simultaneamente defendemos que
não são propriedades intrínsecas. Essa definição de "propriedade
intrínseca" seria possível apenas se pudéssemos dizer que que
a necessidade que existe de que, se x e y possu em proprieda-
des intrínsecas diferentes, a sua natureza deverá ser diferente,

(365]
é um a necessidade de tipo d[ferente da necessidade que existe
de que, se x e y possuem diferentes valores intrínsecos, a sua
natureza deverá ser diferente, embora ambas as necessidades
sejam condicionais. Parece-nos possível que seja esta a ver-
dadeira explicação, mas , se o é, torna-se obviamente ainda
mais dificil explicar o significado do "deverá" incondicional,
uma vez que, neste caso, haveria dois sentidos diferentes de
"deverá", ambos incondicionais, não sendo, no entanto, ao
que parece, nenhum deles idêntico ao "deverá" lógico.

[366]
O LIVRE ARBÍTRIO

N OTA DO O R GANI Z A DO R

O presente texto correspo nde ao capítulo VI (pp . 196-


- 222) de Erhics , obra publicada em 1912 para a " H ome
Uni ve rsity Library of M odem Knowledge " (Williams and
N orgate, Lo ndon) . Em 1966, fo i publicada uma segunda
edição na " Oxford Paperbac ks Unive rsity Seri es" (Oxford
University Press, Londo n). Aqui se reprodu z, com a auto ri za-
ção da Oxford Uni11ersiry Press e de Timoth y Moore.

N os últim os três capítulos considerámos várias obj ecções


qu e poderiam ser levantadas relativa mente à teoria exposta
nos Capítulos I e II. A última dessas obj ecções consistia na afir-
mação de que a qu estão de se uma acção é correcta ou errada
não depende das suas consequ ências reais, porqu e se as conse-
qu ências, na medida em que o agente pode prevê-las, forem prova-
velmente as m elhores possíveis, a acçã o é correcta, mesm o qu e
não sej am realmente as melh ores possíveis. Por outras palavras ,
essa obj ecção tinha por base o conceito de qu e o correcto e o
errado dependem , em certo sentido, do que o agente pode saber.
No presente C apítulo, propomo-nos considerar algumas obj ec-
ções qu e têm por base um o utro conceito - o de que o cor-
recto e o errado dependem do qu e o agente podeJazer.
D evemos lembrar qu e, em determinado sentido, a nossa
teoria original defende - e sublinha - qu e é, de fa cto, assi m .
Por exemplo, referimo-nos frequ entemente a essa teoria no
último capítulo, afirmando qu e ela considera qu e uma acção
é correcta apenas se produzir as m elhores consequ ências pos-
síveis; a expressão "as melhores consequ ências possíveis" signi-
fi cava "consequ ências pelo menos tão positivas como as qu e

[367]
decorreri am de qualquer acção qu e o agente pudesse ter prati-
cado em vez da que prati cou". Portanto, a nossa teoria defende
que a qu estão de se uma acção é correcta ou errada depende
sempre de uma comparação das suas consequ ências com as de
todas as outras acções que o agente poderia ter praticado em vez
dessa. Parte-se assim do prin cípi o de qu e, havendo uma acção
voluntária, correcta ou errada (e temos estado sempre a co n-
sid era r acções voluntárias), é verdade qu e o agente poderia, num
certo sentido, ter feito outra coisa. Este é um aspecto essen-
cial da teoria.
Contudo, devemos agora lembrar ao leitor qu e temos
vindo a usar sempre os termos " pode", " poderia" e " possível"
1111111 sentido especial. Foi explicado no Capítulo I (pp. 29-3 1)
1

que propúnham os dizer, apenas para sermos mais breves, que


um age nte poderia ter prati cado uma dada acção, que não pra-
ti co u, mesmo sendo verdade qu e el e a pudesse ter praticado se
assim tivesse decidido; de igual modo, com as expressão o que
pode fazer ou o que é possfvel, quisemos sempre dizer apenas o
que é possível, se o agente assim decidir. Portanto, a nossa teo-
ria não defende, afinal, que o correcto e o errado dependem
daquil o qu e o agente pode fazer em termos absolutos, e sim
apenas daquilo qu e pode fazer, se escolher fazê-lo. Esta dife-
rença é da maior importância. Co m essa condi ção, a nossa
teoria evita uma controvérsia que é incontornável para quem
defende qu e o correcto e o errado dep endem daquilo que o
agen te pode fazer em absoluto. Haverá muito poucas pessoas -
se é qu e há mesmo algumas - capazes de negar expressamente
que, muitas vezes, se tivéssemos optado por isso, poderíamos
realmente ter feito algo diferente daquilo qu e efectivam ente
fizemos. No entanto, mal se afirma qu e qualqu er pessoa pode-
ria absolutam ente ter feito algo diferente do que fez, há muita
gente que certam ente negaria que é assim. Assim, o conceito

1
Esta referência é relati va à edição o rigina l da Honie U11i11ersiry
Li/Jrary. N a edição seguinte, a da "Oxford Paperbac ks Un ivesity Series" , a
referência correspo nde às páginas 12- 13.

(368]
que vam os analisar neste capítulo - o co nceito segundo o qu al
o correcto e o errado dependem daquilo qu e o agente pode
fazer em absoluto - coloca-nos de imediato no contexto de uma
controvérsia extremamente complexa - a controvérsia relativa
ao Livre Arbítri o. H á muitas pessoas qu e nega m veemen te-
mente qu e alguém pudesse ter feito algo diferente daquilo que
realmente fez, ou que possa alguma vez faze r algo diferente
daquilo qu e quer faze r; e há outras que afirmam o contrário
com a mesma veemência. Qualqu er dessas perspectivas sobre
a questão, em co11junto ainda com o conceito de qu e o correcto
e o errado dependem daquilo que o age nte pode fazer em
absoluto, é susceptível de entrar em grave co ntradi ção com a
nossa teoria . Quem defende qu e ningu ém poderia ter agido de
forma diferente da que agiu , se pensar também que o con ecto
e o errado dependem daquilo qu e podemos fazer, terá logica-
mente que defender qu e nenhuma das nossas acções pode ser
conecta, nem nenhuma das nossas acções pode ser errada.
Pensamos qu e se trata de uma opinião que muitos, de fac to,
defendem e qu e, obviamente, constitui uma obj ecção séria e
fundamental relativam ente à nossa teoria, j á qu e esta implica,
pelo contrári o, que muitas vezes agimos de fo rma errada, se é
que alguma vez agimos de forma totalmente correcta. Por outro
lado, qu em defende que podemos efe ctivam ente fazer co isas
que não fazemos e qu e o correcto e o errado dependem
daquilo qu e desse modo podemos fazer, poderá também , em-
bora por motivos diferentes, ser levado a contradizer a nossa
teoria . Essa teoria defende qu e, se uma pessoa pudesse ter
agido de forma diferente se tivesse optado por fazê-lo, isso j á
seria suficiente para nos permitir afirmar se a sua acção é real-
mente correcta ou errada. Contudo, as pessoas que defendem
a opinião de que em análise certamente argumentarão que isso
não é suficiente, que afirmar que é suficien te é não enten der
de todo a natureza do correcto e do errado. Dirão qu e, para
que uma acção possa realmente ser correcta ou errada, é abso-
lutamente necessário que o agente pudesse efectivamente ter agido
de forma diferente, num sentido co mpl etamente diferente de

[369]
apenas poder se tivesse optado por isso. Se realm ente fosse ver-
dade qu e apenas pudéssemos ter agido de forma diferente se
assim tivéssem os decidido, então, diriam essas pessoas, seria
realm ente verdade qu e as nossas acções nun ca poderão ser
correctas nem erradas. Dirão, portanto, qu e a nossa teoria não
consid era uma co ndi ção absolutamente esse ncial relativa-
mente aos co nceitos de correcto e errado - para qu e uma
acção seja correcta ou errada é necessári o qu e ela seja prati ca-
da de fo rma livre. Além disso, muitas dessas pessoas defenderão
igualm ente que o tipo de acções que podemos praticar em abso-
luto não é muitas vezes idênti co ao tipo de acções qu e pode-
ríamos prati car se quiséssem os. Podem , por exe mplo, afirmar
que muitas vezes uma acção que poderíamos ter praticado se
tivéssemos qu erido é, no entanto, uma acção que não podíamos
ter prati cado; e ainda qu e uma acção sej a correcta sempre qu e
tenha consequ ências tão positivas quanto qualqu er outra acção
qu e rea lm ente pudéssemos ter praticado em vez dela . Donde se
depreen de qu e muitas das acções qu e a n ossa teoria classifi ca
de erradas serão, no entender dessas pessoas, correctas, uma vez
qu e essas acções são realmente as melhores de entre todas as
qu e poderíamos ter praticado, embora não sejam as melh ores
de todas as que poderíamos ter praticado se quiséssemos .
Bem , essas obj ecções parecem-nos ser as mais séri as que
j á tivemos qu e tomar em consideração. Parecem-nos sérias
porqu e (1) é muito dificil ter-se a certeza de que o correcto e
o erra do não dependam realmente, como afirmam os se us de-
fe nso res, daquilo que podemos fazer e não apenas do que po-
dem os fazer se quisermos; e porqu e (2) é muito difi cil saber
com certeza em que sentido é verdade qu e pudéssemos ter feito
algo diferente do qu e fizem os realmente. Não qu eremos afir-
mar certezas relativamente a nenhuma dessas duas qu estões.
A única coisa qu e poderemos tentar fazer é referir alguns fac-
tos que nos parecem ser claros, apesar de no rmalmente igno-
rados, identifi cando assim de forma clara, para qu e o leitor
possa decidir, as questões que nos parecem mais dificeis e con-
troversas.

[370]
Comecemos com a seguinte qu estão: será verdade qu e
uma pessoa poderia ter feito outra coisa que não aquilo que
realmente fez ? Em primeiro lugar, é talvez melhor explicar-
mos exactamente o que é que esta pergunta tem a ver com a
questão do Livre Arbítrio. É facto que, em muitas discussões
sobre o Livre Arbítno, essa pergunta específica nem sequer é
colocada, poden do por isso parecer que as duas coisas nada
têm a ver uma com a outra. De facto, alguns filósofos sugerem
implicitamente que elas não têm mesmo nada a ver uma com
a outra, parec endo defender que se pode dizer que as nossas
vontades são livres mesmo que, no final de contas, nós pró-
prios nunca possamos, seja em que sentido for, agir de forma
diferente daquela que realmente agimos. Uma teoria dessas, se
alguém a defender, será, em nossa opinião, um mero mau uso
de linguagem. A afirmação de que possuímos Livre Arbítrio é
normalmente entendida no sentido de que temos, por vezes,
o poder de agir de forma diferente daquela em que de facto
agimos; daí que, se alguém nos disser que possuímos Livre
Arbítrio e ao m esmo tempo quiser negar que temos esse
poder, estará com certeza a querer ludibriar-nos. Obviamente
que não temos Livre Arbítrio, no sentido comum do termo,
se realmente não pudéssemos, em qualquer sentido que seja, ter
agido de forma diferente daquela em que agimos; assim
sendo, nesse sentido, as duas questões estão, de facto, relacio-
nadas. No entanto, por outro lado, o mero facto (se é que se
trata de um facto) de que por vezes podemos, em certo sentido,
fazer o que não fazemos, não nos dá o direito de afirmar que
possuímos Livre Arbítrio. Certamente que o não possuímos, se
não pudermos; mas isso não implica que o tenhamos, mesmo
que possamos. A questão de possuirmos ou não depende do
sentido preciso em que realmente seja verdade que podemos .
Portanto, se concluirmos que realmente às vezes podemos, em
certo sentido, fazer o que não fazemos, isso não quer dizer que
se possa afirmar que possuímos Livre Arbítrio.
O primeiro ponto que convém esclarecer é, em nossa
opinião, o seguinte: é verdade que muitas vezes podemos, em

[371]
certo sentido, fazer o qu e não fa zemos. Parece-nos por demais
evidente qu e assim é, e é muito impo rtante qu e tenham os
consciência disso. Muitas pessoas afirmariam simpl esm ente
qu e ningu ém poderia, fo sse em qu e ocasião fosse, ter feito algo
diferente do qu e o qu e efectiva m ente fez n essa ocasião. Com o
é óbvio, com essa afirm ação sem reservas o u condi ções, fi ca
implícito (m esm o qu e qu em a profira não pretenda isso) que
não existe um sentido adequ ado da palavra " poderia" em qu e
sej a verdade qu e um a pessoa pudesse ter agido de modo dife-
rente - e é isso qu e nos parece ser absolutam ente fal so. Por
esse motivo, se uma pessoa afirm ar simpl esm ente, sem reser-
vas ou condições, qu e nenhuma outra coisa poderia ter acon-
tecido a não ser o qu e realmente aconteceu, estará a faz er uma
asserção qu e é absolutam ente injustifi cável e qu e ela própria
não poderá deixar de co ntradizer constantem ente. É impor-
tante insistir neste ponto porqu e muitas pessoas fa zem afir-
mações deste tipo sem se aperceberem do m odo com o co n-
tradizem aquilo em qu e elas próprias acreditam - e todos nós
acreditamos - no utras ocasiões. Se, de fac to, fizessem depen-
der essa afirm ação de um a condição ou de um a reserva, se
dissessem simplesm ente, por exemplo, " Num determinado sen-
tido da palavra 'poderia', nenhuma outra coisa poderia ter
acontecido a não ser o qu e realm ente aconteceu ", então talvez
estivessem completam ente certos - não disc utim os qu e pos-
sam ter razão. Aquilo qu e pretendemos afirmar é qu e, numa
acepção perfeitam ente adequada e legítima da palavra "pode-
ria", e qu e é um dos sentidos mais comuns em qu e a palavra
é usada, é realmente verdade qu e algumas coisas que não acon-
teceram poderiam ter acontecido. A prova de qu e é assim é
simplesm ente a que passamos a apresentar.
Em inúmeras ocasiões, todos nós fazem os uma distinção
entre duas coisas, nenhuma das quais se passou - é uma dis-
tinção que exprimimos dizendo que, embora uma pudesse ter
acontecido, a outra não podia. Trata- se de uma das distinções
mais vulgares qu e existem . Ninguém qu e analise com justeza
as ocasiões em qu e essa distin ção é feita poderá duvidar de três

(372]
coisas: (1) muitas vezes existe realmente uma distinção entre as
duas coisas, correspondendo à linguagem que utilizamos; (2)
essa distinção, que subsiste efectivamente entre as duas coisas,
é aquela que pretendemos exprimir quando dizemos que uma
é possível e a outra impossível; (3) essa expressão é perfeita-
mente adequada e legítima. Contudo, se assim é, isso significa
que uma das utilizações mais vulgares das expressões "pode-
ria" e " não poderia " exprime uma diferença que realmente
existe entre duas coisas das quais nenhuma aconteceu real-
mente. São necessários apenas alguns exemplos. Eu poderia ter
percorrido uma milha em vinte minutos hoje de manhã, mas
de certeza que não poderia ter percorrido duas milhas em cinco
minutos. De facto, não fizemos nenhuma das duas coisas, m as
é um perfeito disparate dizer que o mero facto de as não ter-
mos feito neutraliza a distinção existente entre elas e que é
expressa quando dizemos que poderíamos fazer uma delas, en-
quanto que não nos era possível fazer a outra. Apesar de não
termos feito nenhuma delas , uma era certamente possível para
nós num sentido em que a outra era totalmente impossível.
Ou, para darmos outro exemplo: é verdade, por via de regra,
que os gatos conseguem subir às árvores, enquanto que os cães
não conseguem. Suponhamos que, numa dada tarde, nem o gato
de A nem o cão de B sobem a nenhuma árvore. É perfeita-
mente absurdo dizer-se que esse facto prova que não temos
razão se afirmarmos (como muitas vezes com certeza fazemos)
que o gato poderia ter subido a uma árvore, embora o não
tenha feito, ao passo que o cão não podia. Ou ainda, para refe-
rirmos um exemplo relativo a um objecto inanimado: alguns
navios podem atingir os 20 nós, enquanto outros não podem
ultrapassar os 15. O simples facto de, em determinada ocasião,
um vapor de 20 nós não ter efectivamente atingido essa veloci-
dade não nos permite afirmar que o navio não poderia tê-lo
feito no sentido em que um de 15 nós não podia. Bem pelo
contrário, todos podemos e d evemos distinguir entre casos em
que (como, por exemplo, devido a uma avaria na ventoinha)
o navio não atingiu essa velocidade porque não podia e casos

(373]
em que não atingiu a velocidade, em bora pudesse. Podem en-
contrar-se inúmeros exemplos deste género e é bastante evi-
dente que todos nós usamos permanentemente esta lingua-
gem , por exemplo, quando consideramos dois casos dos quais
nenhum aconteceu , distinguimo-los muitas vezes dizendo
que, enquanto um era possível, embora não tenha ocorrido, o
outro era impossível. E é bastante evidente também que o que
qu eremos dizer co m essa afirmação (relativamente ao qu e
quer que seja) é algo qu e é muitas vezes completamente ver-
dade. Contudo, se é assim , se uma pessoa disser, sem reservas
nem condi ções, qu e nenhuma outra coisa poderia ter aconte-
cido a não ser o qu e realm ente aco nteceu , essa pessoa estará a
afirmar algo qu e é falso.
Por esse motivo, é perfeitamente verdade qu e muitas
vezes poderíamos (num determinado sentido) ter feito aquilo que
não fizemos. Vejamos, então, corno é que esse facto se rela-
ciona co m o argumento através do qual algumas pessoas ten-
tam convencer-nos de que não é um facto.
Esse argumento, bem co nhecido, é simplesmente o se-
guinte: parte-se do pressuposto (por motivos que não vamos
discutir agora) qu e tudo o que acontece tem atrás de si uma
causa, ou seja: tudo é causado pelo qu e o precede. Contudo,
afirmar isso é dizer qu e uma coisa decorre necessariamente de
algo que a precedeu , ou, por outras palavras, uma vez ocorri-
dos os acontecimentos qu e constituem a sua causa, essa coisa
tinha mesmo qu e acontecer. No entanto, dizer que tinha mesmo
que acontecer é dizer qu e não poderia ter acontecido outra
coisa em vez dessa; por isso, se tudo tem uma causa, nada pode-
ria ter acontecido a não ser o que aconteçeu.
Vamos então partir do princípio que a premissa desse
argumento está correcta , ou seja, que tudo realmente tem urna
causa. Quais são as consequências disso? Obviamente que as
consequências são que, num sentido da palavra "poderia", nada
mais poderia ter acontecido excepto o que aconteceu. Isso é
realmente verdade. Mas, se a palavra "poderia" é ambígua -
quer dizer, se é usada em sentidos diferentes em diferentes

(374]
ocasiões - é obviamente possível que, embora num sentido
nada pudesse ter acontecido a não ser o que aconteceu, num
outro sentido, pode também ser igualmente verdade que algu-
mas coisas que não aconteceram poderiam ter acontecido.
E pode alguém afirmar com toda a certeza que a palavra
"poderia" não é ambígua, que não pode ter mais do que um
sentido legítimo? É possível que não seja ambígua, e, se não é,
então o facto de algumas coisas que não aconteceram poderem
ter acontecido contradiria realmente o princípio de que tudo
tem uma causa, nesse caso, deveríamos ter de abandonar esse
princípio, porque é certamente um facto que poderiamas muitas
vezes ter feito aquilo que não fizemos. Contudo, o pressuposto
de que a palavra poderia" não é ambígua é um pressuposto de
que não se devia partir sem provas sólidas. Pensamos, no en-
tanto, que é isso que acontece frequentemente, simplesmente
porque não ocorre às pessoas que, muitas vezes, as palavras são
ambíguas. Por exemplo, na discussão do Livre Arbítrio, muitas
vezes se pressupõe que a questão é simplesmente se todas as coi-
sas têm as suas causas ou se os actos de vontade são por vezes
a-causais. Quem defende a posição de que temos Livre Arbítrio
sente-se por vezes obrigado a afirmar que os actos de vontade
às vezes não têm causa e quem defende que tudo tem uma causa
pensa que isso é uma prova concludente de que não temos
Livre Arbítrio. No entanto, é extremamente controverso se o
Livre Arbítrio é completamente inconsistente com o princí-
pio da causalidade geral. Se é ou não, tudo depende de uma
questão muito complexa que se prende com o significado da
palavra "poderia". As certezas que existem sobre essa questão
são apenas (1) que, se possuímos Livre Arbítrio, deve então ser
verdade, num determinado sentido, que por vezes poderíamos
ter feito o que não fizemos; e (2) que, se tudo tem uma causa,
deve então ser verdade, em determinado sentido, que nunca
poderiamas ter feito aquilo que não fizemos. O que não é certo
e precisa de ser averiguado é se esses dois sentidos da palavra
"poderia" são iguais.
Comecemos então por perguntar qual é o sentido da

(375]
palavra " poderia" relativamente ao qual é verdade que muitas
vezes poderíamos ter feito o que não fizemos? Qual é, por exem-
plo, o sentido em que poderíamos ter percorrido uma milha
em vinte minutos hoje de manhã, embora não o tenhamos
feito? Uma sugestão muito óbvia é a de que o que queremos
dizer é simplesmente, afinal de contas, que poderíamos, se tivés-
semos optado por fazê-lo; ou (para evitar uma possível com-
plicação) talvez devêssemos dizer "que deveríamos, se tivéssemos
optado por isso" . Por outras palavras, a sugestão é a de que
usamos frequentemente a expressão "eu podia" apenas como
uma alternativa mais breve a "eu deveria, se tivesse optado por
isso ". E em todos os casos em que é indubitavelmente verdade
que poderíamos ter feito o que não fizemos , torna-se muito
dificil, ao que julgamos, ter a certeza de que não é isso que
pretendemos dizer através da palavra " poderíamos" . O caso
do navio a vapor pode parecer uma excepção, porque não é
de todo verdade que ele teria atingido uma velocidade de 20
nós se tivesse optado por isso; no entanto, mesmo nesse caso,
parece ser possível que o que queremos dizer é simplesmente
que o navio teria chegado aos 20 nós se a tripulação quisesse.
Temos boas razões para pensar que muitas vezes, usando a pa-
lavra " poderia", queremos apenas dizer " teria, se Fulano assim
tivesse decidido" 2 . Se assim for, teremos uma acepção da pala-
vra "poderia" na qual o facto de que muitas vezes podíamos ter
feito o que não fizemos é perfeitamente compatível com o
princípio de que tudo tem uma causa, uma vez que afirmar
que, se tivéssemos praticado um determinado acto de vontade,
teríamos feito algo que não fizemos não contradiz de modo
algum esse princípio.
Uma outra razão para supormos que é isso mesmo que
queremos dizer ao usarmos a palavra "deveria" - e que é tam-
bém uma razão pela qual é importante insistir no facto evi-

2
N.T.: A palavra usada para contrapor a "could" ("poderia") é
"would" , que, na língua inglesa, corresponde a uma fonna auxiliar do condi-
cional, dependendo assim o seu sentido do verbo principal que auxilia.

(376]
dente de que muitas vezes deveríamos ter agido de modo dife-
rente, se a nossa vontade tivesse sido diferente é que aqueles
que negam que pudéssemos alguma vez ter feito algo que não
fizemos raciocinam geralmente como se isso realmente impli-
casse a conclusão de que nunca deveríamos ter agido de forma
diferente, mesmo que tivéssemos querido fazê-lo. Isso sucede,
parece-nos, em dois contextos diferentes - um que diz res-
peito ao futuro, outro que diz respeito ao passado. O primeiro
ocorre quando essas pessoas pensam que só pode acontecer
aquilo que terá de acontecer, adoptando assim uma posição
conhecida por Fatalismo - uma teoria que defende que, seja o
que for que desejemos, o resultado será sempre o mesmo, por-
tanto, que não vale de nada optarmos por uma coisa em vez
de outra. E essa conclusão seria realmente verdadeira se com
"pode" quisermos dizer "aconteceria, mesmo se o quiséssemos".
A verdade, porém é que não é assim e essa conclusão não de-
corre do princípio da causalidade. Pelo contrário, há razões
exactamente do mesmo tipo e igualmente fortes às que nos
levam a supor que tudo tem uma causa que nos fazem concluir
que, se escolhermos uma determinada via, o resultado será sem-
pre de algum modo diferente do que seria se tivéssemos optado
por outra; e sabemos também que a diferença por vezes seria a
de que aconteceria aquilo que escolhemos. Por tal motivo, rela-
tivamente ao futuro, é verdade que, em muitos casos, qualquer
que fosse, de entre duas acções, aquela que escolhêssemos, seria
essa a que efectivamente seria praticada, sendo embora perfeita-
mente inegável que apenas uma das duas será praticada.
O segundo exemplo que vamos apresentar tem a ver
com a tendência de algumas pessoas para dizerem e pensarem
como se se pudesse concluir que, urna vez que ninguém pode-
ria ter feito outra coisa que não aquilo que fez , não o faria,
mesmo se tivesse querido. De facto, ao que parece, muitas pes-
soas concluem, a partir da primeira das duas proposições enun-
ciadas, que não há razão para se louvar ou censurar alguém por
fazer seja o que for, ou até mesmo por fazer uma distinção
entre o que é correcto e o que é errado, num caso, e entre o

(377]
que é feliz ou infeliz, num outro. Concluem, por exemplo,
que não há qualquer razão para tratar ou considerar o cometer
voluntário de um crime de maneira diferente daquela como
se trata ou considera o contrair involuntário de uma doença,
afirmando que a pessoa que cometeu o crime não poderia não
o ter cometido, tanto quanto a outra pessoa que apanhou a
doença não a pode evitar. Ambos os acontecimentos são
igualmente inevitáveis e, embora possam obviamente consti-
tuir grandes infelicidades, embora ambos possam ter conse-
quências muito negativas - e igualmente negativas - não há
qualquer justificação, defendem essas pessoas, para a distinção
que normalmente fazemos entre tais acontecimentos, classifi-
cando o cometimento de um crime de errado, ou reprovando
moralmente quem o cometeu, enquanto se considera que o
apanhar a doença não é errado e que a pessoa que a apanhou
não é censurável por isso. De novo, essa conclusão será ver-
dadeira se com "não poderia" quiséssemos significar "não teria,
mesmo se tivesse querido evitá-lo" . É importante sublinhar
que essa conclusão pode ser verdadeira apenas se partirmos desse
pressuposto, quer dizer: o mero facto de que a pessoa teria
conseguido evitar o crime, se tivesse optado por isso (o que
decerto pode acontecer muitas vezes), enquanto que a outra
não teria conseguido evitar a doença, mesmo que o quisesse (o
que também é frequentemente o que se passa) justifica plena-
mente uma consideração diferente e um tratamento diferente
para cada um dos casos. E justifica-o porque, se a ocorrência
de um acontecimento dependeu da vontade, se se agir sobre a
vontade (como é o caso da censura ou da punição) teremos
uma possibilidade razoável de evitar que acontecimentos
semelhantes voltem a ocorrer no futuro, enquanto que, se o
acontecimento não dependeu da vontade, não haverá essa
possibilidade. Poderemos, assim, concluir que quem considera
que uma pessoa que causou voluntariamente uma infelicidade
deverá ser tratado e considerado de modo exactamente igual
a outra que causou uma infelicidade de igualmente grandeza
involuntariamente, considera que não é verdade que devêssemos

[378]
agir de modo diferente, mesmo se o tivéssemos querido fazer.
É, por isso, extremamente importante insistir na verdade abso-
luta do facto de que, muitas vezes, deveríamos realmente ter
agido de modo diferente, se tivéssemos querido fazê-lo.
Existem, assim, muitas razões para pensarmos que, quando
se diz que poderíamos ter feito algo que não fizemos, queremos
muitas vezes dizer apenas que deveríamos tê-lo feito, se tivés-
semos querido. Se assim é, será então verdade que, nesse sen-
tido, realmente podíamos ter feito o que não fizemos, facto que
não contradiz o princípio de que tudo tem uma causa. Quanto
a nós, temos que confessar que não temos a certeza de que
não seja apenas isso que se quer dizer quando se afirma que
possuímos Livre Arbítrio. Assim, os que negam que o possuí-
mos negam efectivamente (embora, sem dúvida alguma, muitas
vezes inconscientemente) que devêssemos ter agido de modo
diferente, mesmo se tivéssemos querido fazê-lo. Tem sido por
vezes afirmado que é isso que queremos dizer e não nos ocorre
qualquer argumento conclusivo em contrário. Então, se é isso
que queremos dizer, conclui-se obviamente que possuímos de
facto Livre Arbítrio e ainda que esse facto seja perfeitamente
compatível com o princípio de que tudo tem uma causa; tam-
bém se pode, assim, concluir que a nossa teoria estará per-
feitamente correcta se fizer depender o correcto e o errado
daquilo que poderíamos ter feito se tivéssemos optado por isso.
No entanto, não existem quaisquer dúvidas de que ha-
verá muitos que afirmam que isso não é suficiente para nos
permitir dizer que possuímos Livre Arbítrio; terão certamente
uma razão de algum modo plausível para o afirmar, embora
ela não nos pareça conclusiva. O argumento é que, dado que
muitas vezes deveríamos ter agido de forma diferente se tivésse-
mos decidido fazê-lo, não é, contudo, verdade que tenhamos
Livre Arbítrio, a não ser que seja também verdade que nesses
casos que pudéssemos ter escolhido de modo diferente. A questão
do Livre Arbítrio tem, assim, sido descrita como se se tratasse
apenas de uma questão de se podíamos ter optado por aquilo
por que não optámos, ou se podemos optar por aquilo por que

[379]
de facto não vamos optar. Uma vez que este argumento é, de
certo modo, plausível, valerá a pena sublinhar que, de novo, é
absolutamente certo que, pelo menos em dois sentidos dife-
rentes, muitas vezes poderíamos ter decidido o que efectiva-
mente não decidimos e que esse facto não contradiz, em qual-
quer dos dois sentidos, o princípio da causalidade.
O primeiro desses sentidos é simplesmente o velho sen-
tido. Se ao dizer-se que poderíamos ter feito o que não fizemos,
a maior parte das vezes apenas queremos dizer que o devería-
mos ter feito se tivéssemos decidido fazê-lo, então obviamente,
ao dizermos que podíamos ter optado por fazê-lo, poderemos
querer apenas dizer que deveríamos ter optado por isso se tivés-
semos decidido.faz er essa opção. Não nos parece que haja dúvi-
das de que é muitas vezes verdade que devíamos ter optado
por fazer determinada coisa se tivéssemos escolhido fazer essa
opção - este é um sentido muito importante no qual está em
nosso poder fazer uma opção. Existe certamente aquilo a que se
chama fazer um esforço para nos induzir a escolher uma deter-
minada via e parece-nos não haver dúvida de que, muito fre-
quentemente, se tivéssemos feito esse esforço, teríamos optado
por fazer aquilo que de facto não fizemos.
Além desse, há um outro sentido em que nos é possível,
sempre que nos deparamos com diferentes vias de acção, esco-
lher qualquer uma delas. Trata-se de um sentido que tem bas-
tante importância prática, mesmo que não justifique neces-
sariamente a asserção de que possuímos Livre Arbítrio. )Esse
sentido tem origem no facto de que nesses casos é muito im-
provável que saibamos antecipadamente e com toda a certeza qual
a escolha que efectivamente iremos fazer; e um dos sentidos
mais vulgares da palavra "possível" é aquele em que dizemos
que um acontecimento é "possível" quando ninguém pode
saber com toda a certeza que nào irá acontecer. Disso decorre
que quase sempre, se não mesmo sempre que fazemos uma
escolha depois de termos considerado as alternativas, era pos-
sível que devêssemos ter escolhido uma das alternativas que de
facto não escolhemos; e muitas vezes, é claro, não apenas pos-

[380]
sível, mas muito provável, que o tivéssemos feito. Este facto
tem, evidentemente, importância em termos práticos, porque
muitas pessoas têm tendência para simplesmente pensar que
com toda a certeza não irão fazer determinada escolha que
sabem que deveriam fazer se fosse possível; e uma vez que
acreditam nisso, vão com certeza ter tendência para a não
fazerem. É, por esse motivo, importante insistirmos no facto
de que não é nada provável que se saiba com toda a certeza
que nunca faremos determinada escolha.
Desse modo, é perfeitamente verdade (1) que muitas
vezes deveríamos ter agido de maneira diferente se tivéssemos
optado por fazê-lo; (2) que, de igual modo, muitas vezes de-
veríamos ter decidido de modo diferente se tivéssemos deci-
dido decidir assim; e (3) que seria quase sempre possível que
devêssemos ter feito uma opção diferente, no sentido em que
ninguém pode saber com toda a certeza que não deveria fazer
essa escolha. Tudo isto são factos e factos que são perfeita-
mente consistentes com o princípio da causalidade. será que
alguém pode afirmar com absoluta certeza que nenhum desses
três factos ou que nunhuma combinação dos mesmos justifica
a afirmação de que possuímos Livre Arbítrio? Ou, supondo
verdadeira a hipótese de que não possuímos Livre Arbítrio, a
não ser que seja muitas vezes verdade que poderíamos ter optado
por aquilo por que não optámos, poderá algum defensor do
Livre Arbítrio, ou mesmo algum opositor, provar concluden-
temente que aquilo que quer dizer nessa proposição com a
expressão "poderia ter optado" é de algum modo diferente dos
dois factos inquestionáveis que referimos acima como (2) e (3)
ou de alguma combinação dos mesmos? Muitos dirão certa-
mente que, por si só, esses dois factos não são suficientes para
nos autorizar a dizer que possuímos Livre Arbítrio, que deve
ser verdade que pudémos escolher, num sentido muito diferente.
Contudo, tanto quanto sabemos, ninguém ainda foi capaz de
explicar exactamente qual é esse sentido. Pelo que nos diz
respeito, não encontramos qualquer argumento concludente
que prove que esse outro sentido de "pode" é ou não é neces-

[381]
sário. Assim sendo, este capítulo terá que terminar com uma
dúvida. Pensamos que é possível que, em vez de afirmar, como
defende a nossa teoria, que uma acção é correcta apenas se
tiver consequências tão positivas como quaisquer outras que
decorressem de qualquer outra acção que o agente tivesse pra-
ticado se tivesse optado por isso, se devesse afirmar que a acção
é correcta sempre que e apenas quando o agente não pudesse
ter feito outra coisa que produzisse melhores consequências; e
ainda que a expressão "não pudesse ter feito" não seja equiva-
lente a "não teria feito se tivesse optado por isso", mas terá
que ser entendida num sentido, seja ele qual for, que seja sufi-
ciente para nos permitir afirmar que possuímos Livre Arbítrio.
Se assim fosse, então a nossa teoria estaria errada no que se
refere apenas a este ponto.

[382]
APÊNDICE

PRINCIPIA ETHICA E THE ELEMENTS OF ETHICS

Como foi explicado na introdução, a obra Principia Ethica


resultou das revisões efectuadas por Moore ao texto das suas
conferências The Elements of Ethics (Os Elementos da Ética) .
O quadro seguinte mostra quais as partes de Principia Ethica
que têm origem aproximadamente verbatim em The Elements
ef Ethics. Poderá assim o leitor verificar quais as partes de
Principia Ethica que contêm as novas ideias de Moore, podendo
ver-se também que, nos primeiros três capítulos de Principia
Ethica, o autor coligiu alguns passos que pertenciam original-
mente a conferências diferentes.

As referências a Principia Ethica baseiam-se nas secções da


obra; as referências a The Elements of Ethics baseiam-se nas
conferência e nas páginas da edição de Tom Regan (Temple
University Press, Philadelphia: 1991).

PRINCIPIA ETHICA THE ELEMENTS OF ETHICS


Capítulo I
secção conferência
páginas
1 adaptada de pp. 7-8
2-4 sem alterações, de pp. 8-11
5 adapatado de p. 12
6-7 adaptado de I pp. 13-14
8-9 sem alterações, de II pp . 22-3
10 parágrafo 1 novo
1O restante - 11 sem alterações, de pp . 14-16
12 sem alterações, de Ili pp . 44-7
13 novo

[383]
14 sem alterações, de li pp. 25-9
15- 23 novo

Capítulo li
24-5 novo
26 parágrafo sem alterações, de li pp . 230
26 restantes em alterações, de V pp . 99- 100
27-30 adaptado de li pp . 3 1- 7
31-35 novo

Capítulo llI
36-7 parágrafo 1 novo
37 restante sem alterações, de V p. 87
38-44 parágrafo 1 se m alterações, de III pp. 48-59
44 restantes em alterações, de IV pp. 65-7
45 parágrafo 1 sem alterações, de llI pp . 59-60
45 restantes em alterações, de IV pp . 67-9
46-8 pará grafo 2 sem alterações, de III pp .60-3
48 n:stante - 52 sem alterações, de IV pp. 69-78
53-7 novo
58- 9 parágrafo 1 se m alterações, de IV pp. 79-80
59 restante - 65 quase completamente novo

Capítulo IV
Este capítulo é quase completamente novo

Ca pítulo V
86-7 sem alterações, de VI pp. 105-8
88-1 09 novo

Ca pítulo VI
Este capítulo é completamente novo

[384)
ÍNDICE

C APÍTULO 1
O ÂMBITO DA ÉTI C A

A.

SECÇÃO P,-,a NA .

1. Para definir a Ética, temos qu e descobrir o qu e há de comum e


de específi co em todos os juízos éti cos aceites como tal; .. .. .. .. 81
2. Mas não se trata de terem a ver co m o co mportamento humano ,
e sim de terem a ver com um ce rto predi cado, " bom ", e o seu
oposto, " mau", que podem ser aplicados tanto à conduta como
a outras coisas............. .... .................................... .. .. .. ........ .. .. . 81
3. Os objectos dos juízos de um a Éti ca científi ca não são, como os
de algum as disciplinas, "coisas particulares";.. ........ .. .. .. ...... .... . 83
4. mas a Ética engloba todos os juízos 1111i11ersais qu e afirm am a rela-
ção da " bondade" com qu alquer tema, incluindo assim a Ca-
suística .... .. .. .. ... ... ...... .. .... ... .. .. .... .. ... ...... .... .. ..................... ...... 84

B.

5. Deve, no entanto, investigar não só quais as coisas universalmente


relacionadas com a bondade, mas também o que é o predicado
com o qu al estão relacionadas: .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. . 86
6. e a resposta a essa qu estão é qu e ele é indefiní vel .. .. .. .... .. 86
7. ou simples: pois se por defini ção se significa a análise de um objec-
to do pensamento, apenas os objectos compl exos poderão ser
definidos;.. .. ... ... .. .. ... ... .. .. .. ... .. ... ....... .. ....... .. .... .... .. .. .. .. ... .. .. ... 87
8. e dos três sentidos em que se pode usar o tem10 "defini ção", esse
é o mais importante .. .... .. .... .. .. .. ............ .. .................... .. ...... .. . 89
9. O qu e é assim indefinível não é "o bem ", ou o todo daquilo qu e
possui sempre o predicado " bom ", e sim o próprio predi cado. 90

(385]
1O. Assim, "bom" denota um simples objecto único do pensamento
entre inúmeros outros; no entanto, esse objecto tem sido nor-
malmente identificado com outro - uma falácia a que pode-
mos dar o nome de "falácia naturalista "; 91
11. e que reduz o que é usado como um princípio fundamental da
Ética a uma tautologia ou uma afinnação sobre o significado
de uma palavra. . . . .. . . ... ..... ..... .. .. . 92
12. A natureza dessa fa lácia é facil de reconhecer; ......................... .. 94
13. e, se fosse evitada , seria claro que as únicas alternativas à admis-
são de que "bom" é indefinível são ou que é complexo, ou
que não há qualquer noção peculiar à Ética - alternativas que
apenas podem ser refutadas com base num apelo à análise, mas
que podem assim se r refutadas. .. . .... .. 97
14. A "falácia naturalista" exemplificada por Bentham ; referência à
importância de a evitar. 99

e.
15. As relações entre a "bondade" e outras coisas que os JUÍzos éti-
cos afirmam serem universalmente válidos são de dois tipos:
pode afirn1ar-se que uma coisa é boa em si mesma ou que está
causalmente relacionada com uma outra coisa que é ela pró-
pria boa - ser "bom como meio" .. .. ... .. .. .. . 103
16. Não se pode esperar que as nossas análises do segundo tipo de
relação sejam capazes de estabelecer mais do que a afinnação de
que a um certo tipo de acção geralmente se seguirão os melho-
res resultados possíveis; . . . .. . . .. . . . .. . . . . . . . .. . . . .. . . . . .. . . .. 104
17. mas uma relação do primeiro tipo , se for de todo verdadeira, será
verdadeira em todo e qualquer caso. Todos os juízos éti cos
vulgares afirn1am a existência de relações causais, mas são nor-
malmente tratados como se o não fizessem, já que os dois tipos
de relação não são diferenciados. . . .. . . ... .. .... .. .. 106

D.

18. A análise de valo res intrínsecos é complicada pelo facto de que


o valor de um todo pode ser diferente da soma dos valores das
suas partes, .. .. .. . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . .. . . .. .. . .. . 110
19. e, nesse caso, a parte tem com o todo uma relação que revela
uma diferença e uma semelhança igualmente importantes rela-
tivamente à relação entre o meio e o fim........................... .. .. 113
20. O tenno " todo orgânico" poderia ser usado para significar que o

[386]
todo tem essa propriedade, uma vez que, das outras duas pro-
priedades qu e nonnalmente implica,. .. ... . 114
21. uma, a da dependência causal recíproca entre as partes, não tem
relação com essa , .. .... . ......... ... .. ...... ...... .... ......... ...... .... .... ... .. .. 115
22. a outra, a que se tem dado mais importância, não pode ser válida
relativamente a nenhum todo, tratando-se de um conceito con-
traditório que é devido a uma confusão. . .. . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . .. . . .. . . 117
23. Resumo do capítulo..... .. ....... .. . .... ...... .. .. .... .. ... ... . ... .. .... .... 121

CAPÍTULO II
A ÉTICA NATURALISTA

24. Este capítulo e os que se seguem consideram algumas das respos-


tas propostas relativamente à segunda questão ética: O que é
bom em si mesmo' Essas respostas caracterizam-se pelo facto de
que (1) afirmam que 11m tipo de coisa é por si só bom em si
mesmo; e (2) fazem-no porque supõem que apenas essa coisa
define o significado de "bom" . . . . .. . . . . .. . . .. . . . .. . . . .. . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . 123
25. Essas teorias podem dividir-se em dois grupos (1) Metafisicas, (2)
Naturalistas: e o segundo grupo pode ser subdividido em ou-
tros dois, (a) o das teorias que afirmam que o único bem é um
objecto natural, diferente do prazer, (b) O Hedonismo. O pre-
sente capítulo tratará do sub-grupo (a) . ... .. ... . .. . . .. .. ..... .. . . .. ... .. 124
26. Definição do significado de " Naturalismo" . .... ...... ................. ... 126
27. O argumento vulgar de que as coisas são boas porque são natu-
rais pode estar ligado ou (1) à proposição fàlsa de que o "nor-
mal", como tal, é bom ; .... ......... .. ........... .. .. .. ... .. .. .. ... .. ... ...... ,. 128
28. ou (2) à proposição falsa de que o "necessário", como tal, é bom. 130
29. Mas um apelo sistematizado à Natureza é agora mais prevalecente
em relação ao termo " Evolução". Esta forma de Naturalismo
será ilustrada através de uma análise da Ética de Herbert
Spencer. .. . . . .. . . . .. . . . .. . . .. .. . .. . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . . .. . .. . . 132
30. A teoria científica da "selecção natural" de Darwin, causa prin-
cipal da vaga recente do termo "Evolução ", deve ser distin-
guida de determinadas ideias que se associam nom1almente ao
segundo termo. ... . .... ..... . ... .. ... .. .... . ........ .......... ..... .... ... . ..... .... 134
31. A relação da Evolução e da Ética proposta por Spencer parece
revelar a influência da falácia naturalista;..... .. ......................... 135
32. mas Spencer é vago no que se refere às relações entre " prazer"
e "evolução" e o seu naturalismo pode ser sobretudo um Hedo-
nismo naturalista........ .... .. .. ... ... ..... ... .. .... .. .. .... .. .. ... .. .. .. .. ... .. ... 137
33. Ilustram-se esses dois pontos através de uma discussão do terceiro
capítulo de Data of Ethics (Dados da Ética), demontrando-se

[387]
que Spencer confunde completamente os princípios fundamen-
tais da Ética . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . .. .. . . . 138
34. Distinguem-se três perspec ti vas possíveis relativa mente à relação
entre a Evolução e a Ética da perspec ti va naturalista a qu e se
propõe limitar-se o âmbito do termo " Ética Evolucionista".
Para cada uma dessas três perspectivas, a relação não seria im-
portante e a perspecti va "Evolucionista" , que a co nsidera im-
portante, co mete um a fal ác ia dupla . . . . . ..... ... .... .. .. 142
35. R esum o do ca pítulo... . .... ,., ... ... ... ..... ... 146

C APÍTULO Ili
O HEDO NISMO

36. A prevalência do H edonismo deve-se sobretudo à fa lácia na tu-


ralista. .. .. . ..... . ......... .... .. . . . . .... ... .. .... . .... .. ... ... ... 149
37. O Hedonismo pode definir-se como sendo a doutrina do " prazer
co mo úni co bem "; é um a doutrin a que sempre fo i defendida
pelos hedonistas e por eles usada como princípio ético fund a-
mental, embora sendo muitas vezes confundida com outras... 15 1
38. O método seguido neste capítu lo co nsiste numa exposição das
razões nomialmente aduzidas a favo r do Hedonismo e na apre-
sentação das razões sufi cientes para mostrar qu e é fa lso, através
de uma críti ca a J. S. Mill e a H . Sidgwick ............................ 153

A.

39. Mill declara qu e " A feli cidade é a úmca coisa desej ável como
fim ", afirm ando qu e "As qu estões relati vas aos fin s últim os
não são passíveis de demonstração directa"; .... ......... ............ .. 155
40. dá-nos, no entanto , um a prova da prim eira proposição, qu e con-
siste (2) na confusão fa laciosa entre " desej ável" e "desejado", 156
41. (2) numa tentativa de demonstrar qu e apenas o prazer é desejado. 158
42 . A teo ri a segundo a qual apenas o praze r é desejado parece dever-
-se fun damentalmente a uma confusão entre a ca1-1sa e o objecto do
desejo: o prazer não é certamente o único objecto do desejo e,
mesmo que se encontrasse sempre entre as ca11sas do desejo,
esse fac to não tentari a ninguém a co nsiderá-lo como um bem . 159
43 . Mill tenta reconciliar a sua doutrin a de qu e o prazer é o único
objecto de desejo co m a admissão de qu e outras coisas são
também desej adas, através da afim1 ação absurda de qu e aquilo
qu e constitui um meio para atingi r a felicidade faz " parte" da
felicidade . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . .. .. . . . . . . .. . . . . 162
44. R esum o do argum ento de Mill e da nossa críti ca. ... .. ..... .. 164

[388)
B.

45 . Vamos agora co ntinuar considerando o princípio do Hedonismo


como " Intuição", como foi claramente reconhecido apenas
pelo Professor Sidgwick. O fac to de ser impossível de provar
não constitui motivo para preocupação.. ........ ... . . ... ..... . ... . ... .. 166
46. Começando assim a considerar que coisas são boas em si mesmas,
deixamos a refutação do Naturalismo e entramos na segunda
divisão das questões éticas... . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . .. . .. . . . . .. . .. . . .. . . 169
47. A doutrina de Mil! que afirma que alguns prazeres são superiores
"em qualidade" a outros implica que (1) os juízos dos fins
devem ser "intuições";.. .. ...... ... .. .. ... .... . 169
48. e que (2) o prazer não é o único bem . ... . .... . .... ...... .. . 171
49. O Professor Sidgwick evitou as confusões feitas por Mil! : ao
considerannos os seus argumentos, vamos, por isso, considerar
apenas a qu estão "O prazer é o único bem'" 174
50. Em primeiro lugar, o Professor Sidgwick tenta demonstrar que
nada que não esteja relacionado com a existência humana pode
ser bom. São dadas razões para essa dúvida .. . . . .. . . .. . . . .. . 17 4
51. Avan ça depois para uma proposição muito mais importante: ne-
nhuma parte da existência humana, excepto o prazer, é dese-
jável. ..... .. ... .. ... .... .... ... .. .. ... .. .. .. ........ .... ... ... .... .. .. ..... . 178
52. Mas o prazer deve distinguir-se da consciência do prazer e (1) é
óbvio que , dessa forma, o prazer não é o único bem.... .. . 181
53. e (2) pode ficar igualmente claro que a consciência do prazer não é
o único bem, se tivem1os o mesmo cuidado em distingui-la
dos elementos que nom1almente a acompanham ... . .... .... .... ... 184
54 . Dos dois argumentos do Professor Sidgwick a favor da perpec-
tiva contrária , o segundo é igualmente compatível com o
pressuposto de que o prazer é um mero critério do que é cor-
recro ; ...... ... ... ....... ...... .. .. ... ... .. ...... ... .. .. .. ... .. ... .... ... .. ..... ........ ... 185
55. e no primeiro argumento, em que apela para a intuição reflexiva,
a questão não é colocada de forma clara (1) no sentido em que
o autor não reconhece os princípio das unidades orgânicas; . . ... . 186
56. e (2) porque não dá suficiente importância ao fac to de a con-
cordância que tenta mostrar que existe entre os juízos hedo-
nistas e os do Senso Comum apenas ser válida em termos de
j11ízos de meios: os juízo dos fins hedonistas constituem um fla-
grante paradoxo ...... .. .. .. ....... ... ...... .. .. ........... ... .......... ... ..... ..... 188
57. Concluímos, então, que uma intuição reflexiva, se forem tomadas
as devidas precauções, estará em concordância com o Senso
Comum no sen tido em que é absurdo entender a mera cons-
ciência do prazer como sendo o único bem. ...... ... .. ............... 190

(389]
58. Falta considerarmos o Egoísmo e o Utilitarismo. É importante
distinguir o primeiro, enquanto doutrina de que "o meu prazer
é o único bem", da doutrina, oposta ao Altruísmo, segundo a
qual a busca exclusiva do meu próprio prazer é correcta e11-
q11a11to 111efo... .................. .... .......... ................. ....... ................. 191
59. O Egoísmo propriamente dito é indefensável, uma vez que é
contraditório: não entende que quando eu afim10 que algo
constitui o meu próprio bem, estou a declarar que é bom abso-
/11ta111ente, ou então não é bom de todo......... . .. . ..... .. ... . . .... ... . 192
60. Essa confusão é ainda evidenciada por uma análise da perspectiva
oposta do Professor Sidgwick; . .... . ..... ... . .. ... . .. .. .. ... . . ... ...... ..... 194
61. demonstra-se que, em consequência dessa confusão, a sua caracte-
rização da " relação entre o Egoísmo Racional e a Benevolên-
cia Racional" como sendo "o problema mais profundo da
Ética", bem como a sua tese de que é necessária uma deter-
minada hipótese para " tomar a Ética racional" são manifesta-
mente erradas . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . .. . . . . .. . . . .. . . .. . . . . . 197
62. A mesma confusão surge na tentativa de inferir o Utilitarismo do
Hedonismo Psicológico, como nonnalmente se faz, por exem-
plo, Mill .. . . .. . . . . . . .. . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . . 200
63. O Egoísmo propriamente dito parece dever a sua plausibilidade
à confusão com o Egoísmo enquanto doutrina de meios. ... . . . 201
64. Referem-se detenninadas ambiguidades relativas ao conceito do
Utilitarismo; afinna-se que (1) enquanto doutrina do fim a atin-
gir, é finalmente refutado pela refutação do Hedonismo e (2)
apesar de os argumentos mais commumente aduzidos em seu
favor apenas conseguirem mostrar que a doutrina oferece um
critério correcto de acções correctas, eles são, no entanto, clara-
mente insuficientes mesmo para esse efeito. ....... ..... .... .. .. .... ... 202
65. Resumo do capítulo....... .... ...... ............ ...... ... ..... ..... .... ..... ......... 205

CAPÍTULO IV
A ÉTICA METAFÍSICA

A.

66. Define-se o tenno "metafisico" como referindo-se primordial-


mente a qualquer objecto do conhecimento que não faça parte
da Natureza - que não existe no tempo, como obJecto de per- ,.._
cepção; mas uma vez que os metafisicas, não se satisfazendo
apenas com a afim1ação da verdade sobre essas entidades, sem-

[390]
pre supuse ram que o que não existe na N atureza, deve, pelo
menos, existir, o tenno também se refere a uma suposta " reali-
dade supersensível": ... ........ .. .. ...... ........ ... ... .. .. .. .. ....... ... .. ... ..... 207
67. e com a expressão " Ética metafisica" queremos significar os sis-
temas que afinnam ou sugerem que a resposta à questão "O
que é o bem'" depende logica111e11te da resposta à questão "Qual
é a natureza da realidade supersensível'" . Todos esses sistemas
incorrem obviamente na mesma falácia - a "falácia naturalista"
- por cujo uso também o N aturalismo se definiu .. . ...... . .... ... . 21 O
68. Uma vez que trata de uma " realidade supersensível", a Metafisica
poderá certamente ter implicações na Ética prática (1) se se
co nceber a sua realidade supersensível como algo futuro que
as nossas acções podem afe ctar; e (2) uma vez que provará que
todas as proposições da Ética prática são falsas se conseguir
demonstrar que uma realidade eterna é a úni ca coisa real ou a
única coisa boa. A maior parte dos autores metafisicos, acredi-
tando numa realidade do segundo tipo, sugerem assim que
todas as proposições práticas são falsas, embora não vejam que,
desse modo, a sua Metafisica contradiz a sua Ética . .. . . .. . . .. . . .. . . 212

B.

69. Contudo, a teoria segundo a qual definimos a Ética Metafisica


11ào é a de que a Metafisica tenha relevância lógica relativa-
mente à questão do foro da Ética prática " Que efeitos é que a
minha acção irá produzir'", mas sim relativamente à questão
ética fundamental "O que é bom em si mesmo?". Esta teoria
foi refutada, no Capítulo I, pela prova de que a falácia natu-
ralista é uma falác ia: falta apenas discutir ainda certas confusões
que parecem ter- lhe emprestado alguma plausibilidade. .... ... .. 215
70. Uma dessas fontes de confusão parece ter a ver com a ausência
de distinção entre a proposição "Isto é bom", quando significa
"Esta coisa q11e existe é boa" , e a mesma proposição na sua
acepção de " A existência deste tipo de coisa seria boa";. .. ...... 216
71. e uma outra parece estar ligada à ausência de distinção entre
aquilo que sugere uma verdade ou é a causa de a conhecennos
e aqu ilo de que ela logicamente depende ou que é uma razão
para acreditam10s nela: no primeiro sentido, a ficção tem uma
relevância maior para a Ética do que a Metafisica . .. . . .. . . .. . . .. . . . 219

e.
72. Con tudo, uma fonte de confusão mais importante ainda parece

[391]
ligar-se à suposição de que "ser bom" é idêntico à posse de
uma qualquer propriedade supersensível qu e está também
incluída na definição de " realidade" .... .... . .. . . .. . .. . .. . . .. . .. 220
73. Uma das causas dessa suposição parece ser o preconceito lógico
de que todas as proposições são do tipo mais vulgar - aquelas
em que o sujeito e o predicado são ambos existentes........ ..... 222
74. Mas as proposições éticas não podem ser reduzidas a esse único
tipo: em particular, têm que ser obviamente distinguidas..... .. 224
75 . (1) das Leis Naturais, com as quais as confunde uma das doutri-
nas mais famosas de Kant... .. .. ....... . ... . .. . ... ... . .. . 225
76. e (2) das Ordens, com as quais são confundidas por Kant e outros. 226

D.

77. Esta segunda confusão está na origem da doutrina moderna preva-


lecente segundo a qual "ser bom " é idêntico a "ser desejado".
Mas a prevalência desta doutrina parece dever-se principal-
mente a ou tras ca usas. T entaremos demonstrar relativamente
a ela (1) quais os erros principais que parecem ter levado à sua
adopção, e (2), fo ra essa teoria, a Metafisica da Vontade pou-
cas implicações lógicas poderá ter para a Ética. .. ... . ... . 227
78 . Desde Kant que se tem afirmado que a bondade tem a mesma
relação com a Voliçào e com o Sentimento que a "verdade"
ou a "realidade" têm com a Cognição: que o método próprio
da Ética é descobrir o que está i111plicado na Vontade ou no
Sentimento, tal como, segundo Kant, o método próprio da
Metafisica foi descobrir o que está implicado na Cognição. . .. 228
79. As verdadeiras relações entre a "bondade" e a Vontade ou o
Sentimento das quais se infere essa doutrina fa lsa parecem ser
sobretudo (a) a relação causal que consiste no facto de que
apenas pela reflexão sobre as experiências da Vontade e do
Pensamento nos tomamos conscientes das distinções éticas:
(b) os factos de que talvez sempre uma cognição de bondade
esteja incluída em certos tipos de Vontade e de Sentimento e
que ela é geralmente acompanhada por eles: ... . .. . .. ...... .. ... .. .. ... . 229
80. mas de nenhum desses factos psicológicos decorre que "ser bom"
seja idêntico a ser desejado ou sentido de determinado modo.
A suposição em que se baseia é um exemplo da contradição
fundamental da Epistemologia moderna - a contradição que
tem a ver com a simultânea distinção e identificação do objecto e
do acto do pensamento, da própria "verdade" e do seu suposto
critério:........................ .. .... .. .............. .. ... .. .... ..... .... .................. 230

[392]
81. e, um a vez aceite essa analogia entre Volição e Cognição, a
opinião segundo a qu al as propostas éti cas terão uma referên-
cia essencial à Vontade ou ao Sentimento é ainda reforçada
por um outro erro relati vo à natureza da Cognição - o erro
de se supor qu e a " percepção" denota apenas um ce rto modo
de conhecer um objecto, embora inclua efectivamente a asser-
ção de que o objec to é também verdadeiro. .... ... ........ ........ ... 232
82. R eca pitula-se o argum ento dos últimos três parágrafos e afirm a-
-se qu e (1) a Vontade e o Sentimento não são análogos à
Cognição, (2) que, mesmo se o fossem , "ser bom " não pode-
ria sig11ificar "ser desejado ou sentido de detenninado modo" ... 234
83. (2) Se "ser bom " e "ser desejado" não são idê11ticos, então o úl-
timo poderia apenas ser um critério do primeiro e para demons-
trar que assim era, teríamos qu e estabelecer defo n11a i11dependeme
que muitas coisas eram boas - ou seja, teríamos que estabele-
cer a maior parte das nossas co nclusões éticas antes de a Meta-
fisi ca nos poder dar a mais pequ ena ajuda. ... .. ... . ... . ... ... ... ... .... 236
84. O fac to de qu e os autores metafisi cos que, como Green, tentam
basear a Ética na Volição, nem sequ er tentam efec tuar essa in-
vestigação independente mostra qu e os mesmos partem do
pressuposto fa lso de qu e a bondade é idêntica ao ser desejado ,
e daí que os seus raciocínios éticos não tenham o menor valor 238
85 . R esumo do capítul o... .. ... .. ..... ... .. ... .... ... .. ... .... ... .. .. .......... .. ...... .. 240

C APÍTULO V
A ÉTIC A EM RELA Ç ÃO À CO N DUTA

86. A qu estão qu e vai ser discutida no prese nte capítulo tem qu e se r


claramente distinguida das outras duas qu estões até aqui dis-
cutidas, nom eadamente (1) Qual é a natureza da proposição
" Isto é bom em si mesmo"?.. ... .. .. .. ........ ...... ... ....... ... .. .. .. .. .... 243
87 . e (2) Que coisas são boas em si mesmas?, qu estão à qual respon-
demos afirm ando que o prazer não é a única coisa boa em si
mesma.. .... ...... ..... ...... ........ ..... ... .. ........... ... .. ................. .. .. ..... 246
88 . N este capítulo va mos tratar do terceiro objec to da in vestigação
éti ca, ou seja, va mos analisar as respostas à questão " Que con-
duta constitui um 111eio para a obtenção de bons resultados'"
ou " O qu e deveríamos faze r?" . Trata-se de qu estões da Ética
Prática, cuja resposta exige uma afirmação de relações causais .... 247
89. Demontra-se qu e as afirm ações "Esta acção é correcta" ou "é
meu deve r" são equivalentes à afirm ação de que os resultados
totais da acção em qu estão se rão os melhores possíve is; ..... .... . 248

[393]
90. o resto do capítulo referirá detenninadas conclusões que este
facto elucida. A primeira é a de que (1) o Intuicionismo
incorre em erro, uma vez que não há nenhuma proposição
relativa ao dever que seja evidente por si mesma. .. . . 250
91. É claro que não podemos pretender provar qual é, de entre todas
as acções que nos é possível realizar em todas as ocasiões,
aquela que vai produzir os melhores resultados totais, sendo
impossível , nesse sentido restrito, descobrir qual é o nosso
"dever". Poderá, no entanto, ser possível demonstrar qual, de
entre as acções que seja provável que pratiquemos, a que pro-
duzirá os melhores resultados ..... ....................... .. ..... .. .. .. ........ 251
92. Aprofunda-se a distinção feita no último parágrafo e afirma-se
que a única coisa que a Ética conseguiu fazer, ou pode fazer,
não é detemúnar valores absolutos e sim apontar quais, de entre
algumas das alternativas possíveis em determinadas circunstân-
cias, terão os melhores resultados .. .......................... ............. .. 252
93. (3) Mesmo essa é uma tarefa extraordinariamente dificil e não há
qualquer prova razoável de que os resultados totais de uma
determinada acção sejam superiores aos de outra qualquer.
Isto porque (a) podemos apenas calcular resultados concretos
em tennos de um futuro relativamente próximo: teremos,
então, que partir do princípio de que os resultados da mesma
acção em tennos de um futuro infinito não farão inverter o
equilíbrio - uma suposição que talvez possa ser provada, mas
que certamente ainda não o foi; ........ ....................... .. .. ..... ..... 254
94. e (b) decidir que , de duas quaisquer acções, uma delas terá um
melhor resultado total no futuro imediato do que a outra é,
mesmo assim, muito dificil ; e é muito improvável e difi cil de
demonstrar que uma qualquer acção específica seja, em todos os
casos, melhor como meio do que a alternativa provável. As
nonnas do dever, mesmo neste sentido tão restrito, poderão,
no máximo, constituir não mais do que verdades gerais... .... ... 256
95. Contudo, (c) pode talvez demonstrar-se que a maioria das acções
universalmente sancionadas pelo Senso Comum são geralmellfe
melhores como meios do que qualquer alternativa provável,
em tem10s dos seguintes princípios: (1) No que se refere a
algumas regras, pode ser demonstrado que a sua observância
geral seria útil em qualquer estado da sociedade em que os
instintos de preservação e propagação da vida e o desejo de
possuir propriedade sejam tão fortes como sempre se têm
revelado; essa utilidade pode provar-se, independentemente
de uma perspectiva correcta sobre aquilo que é bom em si
mesmo, desde que a respectiva observância seja um meio para

(394]
obter coisas que constituam condição necessária à obtenção de
quaisquer grandes bens em quantidades consideráveis. .. . . .. . . . .. . . 258
96. (2) Há outras regras cuja observância geral pode apenas ser com-
provadamente úti l como meio para a preservação da socie-
dade , sob condições mais ou menos temporárias: se se puder
provar que alguma delas é útil em todas as sociedades, tal só
pode ser feito pela demonstração da sua relação causal a coisas
boas ou más em si mesmas que não são geralmente reconhe-
cidas como tal.... ....... ... .. . . . .. . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . .. . 261
97. É claro que as regras do tipo (1) podem também ser justificadas
pela existência das condições temporárias que justificam as do
tipo (2); entre essas condições temporárias devemos referir as
chamadas sa11ções. . . . .. . . .. . .. . . . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . .. . .. . .. . . . .. . 262
98. Assim, será talvez possível provar a utilidade geral, no contexto
do presente, das acções que, na nossa sociedade, são não só reco-
nhecidas como deveres mas também geralmente praticadas;
parece, todavia, muito duvidoso que se possa fazer a mesma
afirmação relativamente a qualquer alteração de costumes so-
ciais sem uma prévia análise de quais as coisas que são boas ou
más em si mesmas.. .... ... .............. .... .... ................ .. .. .......... ..... 263
99 . E (d) se considerarmos a questão específica de como um indi-
víduo deveria decidir agir (a) nos casos em que a utilidade
geral da acção em questão seja certa , e (~) noutros casos: pa-
n:ce haver motivo para pensarmos que, no que se refere a (a),
se a regra que é útil em geral é também observada em geral, o
indivíduo deveria sempre segui-la; mas estas razões não são
conclusivas se não houver ou observância geral ou utilidade
geral:. .. .. ..... .... .. .. ................................................ .. .. .... .... .... ... 265
100. e que (~) em todos os outros casos, as regras de acção não deve-
riam ser seguidas, devendo o indivíduo considerar que bens
positivos é que ele, nas suas condições específicas, seria capaz
de efectuar e que males deveria evitar............. .... .. .. ... .. ... ... .. .. 268
101 (4) Segue-se ainda que a distinção significada pelos termos
" dever" e "conveniência " não é de natureza primordialmente
ética. Quando perguntamos " Isto é realmente conveniente'"
estamos a colocar precisamente o mesmo tipo de questão que
colocamos ao perguntar "Será este o meu dever'", ou seja,
" Isto é um meio para obter o melhor possível?" . Os "deveres"
são sobretudo caracterizados pelas seguintes marcas não éticas
(1) muitas pessoas são não raro tentadas a evitá-los, (2) os seus
efeitos mais proeminentes são efeitos sobre outras pessoas que
não o age nte, (3) produzem sentimentos morais: podendo dis-
tinguir-se por uma peculiaridade ética, ela não será o facto de

(395]
o seu cumprimento ser peculiarmente útil , e sim de a sua san-
ção ser peculiannente útil. .. . . .. . . .. .. . . .. . . .. . . .. . .. . .. . .. .. . .. . .. . . .. . . .. . . .. 271
102 . A distinção entre " dever" e " interesse" é também, de um modo
geral, uma distinção não ética: todavia, o termo " interesse "
refere-se também a um predicado ético distinto - uma acção
é " do meu interesse" significa apenas que ela vai ter os melho-
res efeitos possíveis de um tipo específico e não que os efeitos
totais venham a ser os melhores possíveis...... .. .. ... .. .. .. .. 27 4
103. (5) Podemos ver ai nda que as "virtudes" não se definem como
disposições que são boas em si mesmas: não se trata necessaria-
mente de mais do q ue disposições para pratica r acções que são
geralmente boas enquanto meios e destas, em maioria , só as
que se qualificam como " deveres" nos termos da secção (4).
Daí que decidir se uma disposição é ou não " virtuosa" impli-
que a complexa análise causal discutida na secção (3); e ainda
que aquilo que é um a virtude num estado da sociedade pode
não o ser num outro.... .. .. ... .. ........ ..... ...... ..... ....... ....... ....... .. .. 276
104. Daí também que não haja razões para se presumir, como tem
sido comummente feito, que o exercício da virtude no cum-
primento de " deveres" seja sempre bom em si mesmo - e
muito menos que se trate do único bem:..... ...... .. .. .. ......... .. ... 278
105. e, se considerannos o valor intrínseco desse exercício, veremos
que (1) na maioria dos casos, ele não tem valor e (2) mesmo
nos casos em que tenha valor, não constitui, nem de perto, o
único bem . A verdade da última afirmação é normalmente
aplicada de fom1a inconsistente mesmo por aqueles que a
negam;... ...... ............. ....... ....................... .......... .......... .... ... . 279
106. mas para decidim1os com justiça do valor intrínseco da virtude,
haverá que distinguir três tipos diferentes de disposição, cada
um dos quais geralmente assim designado e entendido como
sendo o único que merece a designação de virtude. Assim , (a)
o tipo mais vulgar é o mero " hábito " inconsciente de cumprir
deveres , que não tem o mínimo valor intrínseco; os moralis-
tas cristãos estão correctos quando sugerem que a " rectidão
externa " não possui qualquer valor intrínseco, embora não
co ncordemos quando afi nnam que essa rectidão não é, por
esse motivo, vi rtu osa, um a vez que isso implica que não tem
valor nem mesmo como meio: . . .. . . .. . . .. . . .. .. . . .. . .. . . .. . . .. . .. . . .. . . .. . . 280
107 . (b) a virtude tem algum valor intrínseco quando co nsiste numa
disposição de ter e de se deixar impelir por um sentimento de
amor pelas consequências verdadeiramente boas de uma acção
e de ódio pelas verdadeiramente más, mas o grau desse valor
pode variar muito:...... ..................................... ...................... 283

[396]
108. finalmente (c) a virtude parece ter algum valor intrínseco quando
consiste na "consciência", isto é, na disposição de não agi r, em
certos casos, até se acreditar e sentir que a acção é correcta: a
Ética cristã tem dado relevo ao valor deste sentimento, mas ele
não é de fac to, como Kant poderia fazer-nos pensar, nem a
única coisa de valor, nem sempre sequer bom como meio ... . 284
109 . Resumo do capítul o............. .... ... .. ... .. .. . ... .. ... .................... .... . 286

CAPÍTULO VI
O IDEAL

11 O. Um estado de coisas " ideal" pode significar ou (1) o Summum


Bonum ou o bem absoluto, ou (2) o melhor que as leis da
Natureza pennitem que exista neste mundo, ou (3) algo
extremamente bom em si mesmo. Este Capítulo ocupar-se-á
principalmente com o que é ideal no sentido (3) - a resposta
à questão fundamenta l da Ética;................... ................. .... .... . 289
111 . mas uma resposta correcta a essa questão constitui um passo
essencial no sentido de um entendimento correcto do qu e é
"ideal" nos sentidos (1) e (2) ... ............................ .................. 290
112. Para obtermos uma resposta correcta à pergunta "O que é bom
em si mesmo?", devemos co nsiderar o valor que as coisas te-
riam se existissem absolutamente por si mesmas;............... ..... 293
113. e, se usarmos este método, é certo que o afecto pessoal e o
prazer estético incluem de longe os maiores bens que conhe-
cemos.. .... ...... ............ ... .. ... .. .. ........ .. ... ... .. ....... ....................... 294
114. Se começarmos por considerar I. Os prazeres estéticos, toma-se
óbvio que (1) lhes é sempre essencial que haj a uma emoção,
de entre uma grande variedade de emoções, embora elas pos-
sam ter pouco valor por si 111es111as: .. .. .. . . .. . . . .. . . .. . .. . . . .. . . 296
115. e (2) que lhes é igualmente esse ncial que haja uma cognição de
qualidades realmente belas e que tem também pouco valor
por si mesma . . . .. . . . .. . .. . .. .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . .. .. . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . . .. . .. 297
116. Mas (3) dado que a combinação adequada desses dois ele-
mentos constitui sempre um bem considerável, qu e pode ser
um bem muito grande, podemos perguntar se, quando a eles
se j1111ta ainda 11111a crença na verdade da existência do objecto da
co_~11içiio, o todo assim formado não será ainda muito mais
valioso.......... ........................... ................... 298
117. Parece-nos que a resposta a essa pergunta deve ser afirmativa;
no entanto, para nos assegurannos da correcção desse juízo,
teremos que distingui-lo... .. .... .... .. .... ... . 300

(397]
118. dos dois juízos segundo os quais (a) o con hecimento tem valor
enquanto meio e (b) quando o próprio objecto da cognição é
algo bom, a sua existência aumenta o valor total do estado de
coisas;.... .... ................................. .. ..... ............... ..... ................ 302
119. no entanto, mesmo se tentannos não se r condicionados por
esses dois factos, parece mesmo assim ser verdade que a mera
crença na existência do objecto pode ser uma condição essen-
cial à existência de grande valor. .. . . . . .. . . . . . .. . . . . . .. . . . . .. . . . . . .. . . . . 303
120. T emos assim um terceiro elemento essencial de muitos grandes
bens; podemos, deste modo, justificar (1) a atribuição de valor
ao conhecimento, para além do seu valor como meio, e (2) a supe-
rioridade intrínseca da admiração adequada de um objecto real
relativamente à admiração de um objecto com o mesmo valor
mas que é fruto da mera imaginação: as emoções dirigidas aos
objectos reais podem assim considerar-se iguais aos mais altos
prazeres imaginativos, mesmo que o objecto seja inferior..... .... 305
121. Por fim (4), no que se refere aos objectos da cognição que é
essencial a esses todos bons, a análise da respectiva natureza é
tarefa da Estética, cabendo aqui apenas afim1ar (1) que, quando
os apelidamos de " belos" queremos dizer que possuem essa
relação com um todo bom; e (2) que se trata, na sua maior
parte, de todos complexos, de tal fom1a que a contemplação
apreciativa de todo é superior em valor à soma dos valores da
contemplação apreciativa das partes. . . .. .. . . . .. . . . . . . .. . . . . .. . . . . . .. . . . . .. 307
122. No que se refere a II. Afectos Pessoais, aqui o objecto não é
meramente belo mas também bom em si mesmo; parece, con-
tudo, que a apreciação do que é assim bom em si mesmo, ou
seja, as qualidades mentais de uma pessoa, não é certamente
em si mesmo um bem tão grande como o todo constituído
pela sua combinação com a apreciação da beleza corpórea;
pode duvidar-se até que seja um bem tão grande como a mera
apreciação da beleza corpórea, mas é certo que a combinação
de ambos constitui um bem muito maior do que qualquer um
deles separadamente................. ............... ................... .. ..... .. ... 31 O
123. Do que foi dito se depreende que temos todos os motivos para
supor que uma cognição de qualidades materiais, ou mesmo a
sua existência, é um elemento constituinte essencial do Ideal
ou do Summum Bonum, sendo apenas mínima a possibilidade
de não serem incluídas.......................................... ................. 313
124. Falta ainda considerarmos os males positivos e os bens mistos.
I. Os Males podem dividir-se em três tipos: . .. . . . .. . . . . . . .. . . . . . .. . . . . 315
125. (1) os males que consistem em amor, admiração ou prazer na-
quilo que é mau ou feio . . . . . . .. . . . . .. . . . . . .. . . . .. . . . . . .. . . . . .. . . . . .. .. . . . . .. . . . 316

[398]
126. (2) os males que consistem no ódio ou desprezo pelo que é
bom ou bonito .. . . . .. . . . .. . . . . .. . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . . . . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . 319
127. e (3) a co nsciência da dor intensa, a qual parece ser a única
coisa, quer se trate de um grande bem ou de um grande mal,
que não inclui uma cognição j11ntamente com uma emoção
relativamente ao respectivo objecto; daí que não seja análoga
ao prazer em termos do seu valor intrínseco, embora também
não pareça fazer aumentar a maldade de um todo, enq11a11to
todo, no qual se combina com ou tra coisa má, enquanto que
o prazer faz aumentar a bondade de um todo no qual se com-
bina com ou tra coisa boa; ............ .... ..... .. .. ... ... .. ... .. ... .... ... .. ... . 320
128. mas o prazer e a dor são co mpletamente análogos no sentido
em que nem o prazer inevitavelmente faz aumentar o valor
total do todo em que se inclui, nem a dor inevitavelmente faz
diminuir esse valor: o inverso é, muitas vezes, verdadeiro...... 322
129. Para a análise dos II. Bens Mistos, há que fazer uma distinção em
primeiro lugar entre (1) o valor de um todo enquanto todo e (2)
o seu valor no geral, ou seja, o seu valor total : (1) = à dife-
rença en tre (2) e a soma dos valores das partes. Em tem1os
desta distinção, temos que . . .. . . .. . . . .. . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . .. . . . .. . 323
130. (1) A mera combinação de dois ou mais males nunca é positi-
vamente boa no geral, embora podendo possuir grande valor
intrínseco enquanto todo;.................. ..................................... .. 325
131. mas (2) Um todo que inclua uma cognição de algo mau ou feio
pode, no entanto, constituir um grande bem positivo no geral:
a maioria das virtudes com algum valor intrínseco parece ser
desse tipo, por exemplo (a) a coragem e a compaixão e (b) a
bondade moral; todas elas constitu em exemplos de ódio ou des-
prezo pelo que é mau ou feio ;... ...... ... ... .. .. .... .... .. ... .... ..... ... .. . 325
132. contudo, parece não haver motivo para pensar que, quando o
objecto mau existe de facto , o estado de coisas total seja sem-
pre positivamente bom no geral, embora a existência do mal
possa fazer aumentar o seu valor enquanto todo . . . . . . . .. . . .. . . .. . . . . . 328
133. Assim, não é necessária ao Ideal a existência efectiva de um
mal; (2) é, sim, necessária a contemplação de males imaginá-
rios, e (3) se j á existem males, o valor da existência de virtudes
mistas é independente tanto das suas consequências como do
valor que tem em comum com a apreciação adequada de males
imaginários . .................... .......... ............................. .. . 329
134. Concl usões finais .............. .. ....... ......... ........... .. ........... . 331
135. Resumo do capítulo ......... .. ....... ....... ........... ......... ...... . 334

[399]
ÍNDICE

Introdu ção 5

PRINC IPIA ETHI C A

Prefacio da segunda edição. .. .. .... .... .. ..... .. ........ .. ......... ....... .. ... 41
Prefacio da primeira edição ....... .... . . .......... ............ . ........... ...... 73
Sinopse relati va à prim eira edição
Capítul o I O âmbito da Ética ... . .. .... . ...... ..... .. .... ..... .. .... ... 81
Ca pítulo II A Ética naturalista. .... .. .......... ..... .. .... ... ... ......... 123
Capítulo III O H edo nismo..... ..... .... ... .... .. ... ......... 149
Capítulo IV A Éti ca m etafisi ca .. ... ... ... ... .... .. ... ... ....... .. .... .. ... 207
Capítulo V A Éti ca em relação à conduta............. ........ .. ... 243
Capítulo VI O Ideal... .... ............ ........ . .. . . . . .. . . . .. . . .. . . . . .. . . . .. . . . 289
Capítulo VII Índice de assuntos..... .. .. ....... ... ... ... .. .... ........ .. ... 337
O co nceito de va lor intrínseco..... . . . .... . .. ... . ..... .. . ... ..... ....... .... 345
O li vre arbítrio .. ..... .. ..... ....... ........... .... .. ...... ...................... ... 367
Apêndice: " Principia Ethica" e " The Elem ents of Ethics" ... .... .. ..... 383

(401]
Esta tradução portuguesa dos
PRINC IPIA ETHI CA, de G. E . Moore,
foi composta, impressa e encadernada
na Gráfica de Coimbra
para a Fundação Calouste Gulbenkian.
A tiragem é de 2 000 exemplares.
Dezembro de 1999
Depósito Legal n. 0 144620/ 99
ISBN 972-31-0858-5
EDIÇÕES DA FUNDAÇÃO
CALOUSTE GULBENKIAN

Manuais Universitários
306 volumes publicados

Textos Clássicos
17 volumes publicados

Próxima publicação:
Ensaio sobre o Entendimento Humano
John Locke

Cultura Portuguesa
3 7 volumes publicados

Capa de Sebastião Rodrigues


EDIÇÕES
DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

TEXTOS CLÁSSICOS - As raízes da cultura estão naquelas obras


chamadas clássicas, obras cuja mensagem se não esgotou e pemianecem
fontes vivas do progresso humano. Por isso a Fundação, ao esquemati-
zar o seu Plano de Edições, julgou que seria indispensável colocar ao
alcance do público lusófono livros que marcassem momentos decisivos
na história dos vários sectores da civilização. Da ciência pura à tecno-
logia, da quantidade abstracta ao humanismo concreto, procurar-se-á
que os depoimentos mais representativos figurem nesta nova série edi-
torial. Para dificultar ao núnimo o acesso do leitor, todas as obras serão
vertidas em português e apresentadas com a dignidade e a segurança
que naturalmente lhes são devidas. Integrando na língua pátria estes gran-
des nomes estrangeiros, supomos contribuir para uma mais perfeita
consciência da própria cultura nacional, cujos clássicos terão também
o lugar que lhes compete no Plano de Edições da Fundação Calouste
Gulbenkian.
GEORGE EDWA M ORE (1873-1958) . Filósofo, nascido em
Londres. Estudou em Dulwich College e em Cambridge, tendo desistido
dos Estudos Clássicos para se dedicar à Filosofia. Leccionou Ciência Moral
e foi professor de Filosofia Mental e Lógica na Universidade de Cambridge.
Inicialmente adepto do idealismo hegeliano, veio mais tarde a rejeitá-lo.
A sua obra mais importante sobre Ética, Principia Educa, foi originalmente
publicada em 1903, sendo reconhecida como o ponto de partida da Teo-
ria Ética do século XX. Lytton Strachey afirmou que a data de publicação
de Principia Ethica corresponde ao "início da Idade da Razão" e Maynard
Keynes considerou a obra "melhor do que Platão". A influência inicial de
Principia Ethica linútou-se sobretudo ao Grupo de Bloomsbury, que a
adaptou pela celebração que faz dos valores da arte e do amor; contudo,
a obra veio mais tarde a ser geralmente reconhecida, como ainda é, como
um texto clássico da teoria ética analítica. Moore considera que as teorias
éticas anteriores cometiam aquilo a que chamou "a falácia naturalista"; a
sua teoria, que pretende evitar o mesmo erro, analisa os tipos de coisas que
possuem valor intrínseco e os tipos de acções que deveríamos praticar.
O texto de Principia Ethica ora publicado inclui o prefacio inédito que
Moore preparara tendo em vista uma segunda edição, que nunca chegou
a ser ternúnada . Embora incompleto, o prefacio revela com clareza as
reflexões e críticas do autor sobre a obra. Incluem-se igualmente dois
importantes textos que integram a obra mais tardia de Moore sobre Ética,
"O livre arbítrio" e "O conceito de valor intrínseco", bem como uma
nova introdução, da autoria de Thomas Baldwin. Trata-se de uma edição
de leitura obrigatória para todos os estudiosos da obra de Moore e da
Teoria Ética em geral. Isabel Pedro dos Santos. Doutorada em Literatura
Inglesa pela Universidade de Coimbra, onde lecciona. Exerce também a
actividade de tradutora . Maria Manuela Rocheta Santos. Nasceu em 1933.
Faleceu em 1997. Licenciada em Filologia Germânica pela Universidade
de Coimbra (1969). Foi assistente no Grupo de Estudos Anglo-Americanos
da mesma Universidade, tendo regido as cadeiras de Linguística Inglesa
(licenciatura) e de Tradução de Inglês para Português (Curso de Especia-
lização em Tradução).

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