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UMA ESCURIDÃO BONITA

A luz faltou de repente, nessa escuridão de melodia, silêncio, entre zumbidos e o cheiro dos fósforos
a acender a primeira vela de casa, ganhei coragem e falei:

-Tu não achas que as pessoas são uma coisa tão bonita?

Ela não disse nada, mas também eu não estava certo de uma resposta possível.

Nessa ausência de luz, ela olhava para mim, numa travessia de escuridão e cheiros. Tinha uns olhos
lindos.

Ela fez-me uma festinha rápida na mão. Gesto de ternura ou de amansamento.

Afinal uma pessoa pode também dizer coisas sem ser com a voz.

A mão dela estava perto da minha. Eu não queria que algo interrompesse aquela escuridão.

Às vezes é bom estarmos numa escuridão sozinhos, numa gruta de conforto, como se o nosso
mundo, por instantes pudesse ser assim. Também é bom dividir uma escuridão com outra pessoa,
em uma concha e aconchego, como se dois mundos fossem um só.

Na contraluz de um luar minguante, podia ouvir a respiração dela.

Naquela respiração, havia um pensamento pendurado... Não fiz nenhum ruído para não sacudir esse
pensamento.

Eu tinha só a carência da mão dela... Quase não falei o que a minha boca acabou por murmurar:

-Dá me um beijo...- pedi.

-Não posso...-os dentes dela riram na escuridão.

-Porquê?

-Porque não tenho vontade.

Eu precisava de nuvens cinzentas para me esconder num labirinto de desilusão.

Num susto quase pouco, ela fez-me uma festinha lenta na mão e perguntou:

-A tua avó chama-se mesmo Dezanove?

-É uma estória muito longa.

-Quando eu era pequeno, apareceu à casa da minha avó um soviético que gostava muito dela. Ele
sempre trazia flores e garrafas de vinho para lhe oferecer. Passado muito tempo assim, o homem
disse à minha avó que tinha de ir embora e perguntou-lhe a ela se queria ir também. Ao primeiro a
minha avó queria, mas nós, os netos ficámos muito tristes, então mudou de ideias. O soviético ficou
furioso e partiu todas as garrafas de vinho que tinha dado à minha avó Dezanove. A última garrafa
partiu-se no pé dela e cortou-lhe um dedo.

-Se ele gostava assim tanto da tua avó, o soviético podia ter ficado cá.

Nós rimos. Eu numa timidez de querer repor a verdade e ela numa doçura de perdão para comigo.

-A estória verdadeira do dedo é que ela tinha uma infeção e o médico teve de lhe cortar o dedo.
-Gosto mais da tua estória com o soviético nela.

As nossas vozes espalhavam barulhos nessa varanda onde primeiro só havia cheiros.

Lá dentro a avó Dezanove tossiu. Nesse sopro, a vela apagou-se.

Cá fora, entre o riso de um grilo e o soluço de um pirilampo, nessa escuridão dividida, ela ganhou
coragem na voz e falou bem perto de mim:

-Empresta-me só os teus lábios...

Então, foi aí que aconteceu o que ambos mais desejávamos no momento...

Era um beijo num baile de coqueiros que dançavam no vai-e-vir das ondas com algas bonitas. Um
beijo sem nenhumas palavras de explicação.

Depois das mãos e dos lábios, os nossos corações acelerados eram um único chuvisco de contenteza.

-Porquê que inventas estórias? - ela perguntou.

-Para a nossa escuridão ficar mais bonita.

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