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In: Enciclopédia das Relações Internacionais, ed.

Nuno Canas Mendes e


Francisco Pereira Coutinho, Lisbon, Instituto do Oriente, pp. 309-311 (No
Prelo)

LEGÍTIMA DEFESA
José Pina Delgado

1. A Legítima Defesa (LD) é um direito limitado de auto-tutela do Estado garantido


pelo Direito Internacional (DI) que lhe permite adoptar medidas militares para repelir
uma agressão ilícita e evitar a sua continuação. Neste sentido, a LD sempre teve
presença nas relações entre os Estados, haja em vista ser uma reação natural de qualquer
entidade submetida a condutas lesivas de caráter bélico de outras. Contudo, antes de se
assumir como o conceito juridicamente recortado e limitado da atualidade, a sua
existência material estava ou acantonado a um plano mais moral ou político ou a sua
extensão jurídica apresentava-se excessivamente abrangente. Associou-se à teoria da
guerra justa, pois danos ou ‘injúrias’ causados a um Estado legitimava não só as ações
necessárias para repelir uma agressão atual ou iminente, mas igualmente para punir o
agente ex post factum; esteve mais tarde ligada ao direito à auto-preservação, de acordo
com o qual os interesses supremos do Estado na ordem internacional sempre podem ser
defendidos a partir de meios militares, e a uma concepção abrangente de auto-tutela de
direitos, a qual permitia que o Estado usasse a força para proteger os seus direitos e os
dos seus nacionais de condutas afetantes de outros Estados. Neste sentido,
classicamente não havia uma separação total entre noções ligadas à LD e figuras como a
retaliação ou a retorsão.
2. Há muito a LD fazia parte do DI, mas não deixa de ser relevante que a caraterização
que foi atribuída à LD pela Carta das Nações Unidas (CNU), ‘direito natural’ ou ‘direito
inerente’, representa precisamente a sua tripla-natureza política-jurídica e moral. Se o
conceito em si é jurídico, ele não deixa de estar conformado por elementos políticos e
morais, amparados na ideia da necessidade de um ente garantir a sua preservação e
disso ser intrinseco e justo. Ademais, se se atentar à realidade, o DI é apenas um sub-
sistema do grande sistema de ordenação global, o qual é marcado por dinâmicas
políticas e morais que se entrecruzam com a jurídica, um aspeto que encontra o seu
reconhecimento máximo no papel que o costume desempenha no DI, permitindo que
práticas decorrentes de interesses políticos ou da tentativa de concretização de valores
morais poderem alterar as normas jurídicas internacionais. Destarte, o entendimento
adequado da LD depende da consideração desses níveis normativos distintos, mas
complementares, particularmente porque se no momento em que a juridificação do jus
ad bellum contemporâneo ocorre, podia-se ainda tratar do quadro legal separadamente,
desenvolvimentos posteriores desencorajariam tal abordagem.

3. A LD clássica desenvolve-se no quadro de uma relação tradicional Estado-


Estado, que envolve uma agressão à margem do DI, neste caso fazendo despoletar um
direito de auto-tutela reconhecido pelo artigo 51 da CNU. Pressupõe um ataque armado
atual ou iminente, uma agressão ilícita e ausência de ação efetiva do CS e no seu
decurso obedece aos requisitos da necessidade, imediatidade e proporcionalidade (Caso
Carolina de 1837), bem como a obrigação de informar o CS. Distingue-se claramente
da retaliação armada, ato de motivação punitiva, não limitado do ponto de vista
temporal e sequer pela necessidade de defesa, como decorre do laudo arbitral do Caso
Naulilla de 1914, do qual Portugal foi um dos protagonistas. As medidas defensivas,
neste contexto, podem ser adoptadas em nome próprio (LD individual) ou de terceiros
(LD coletiva), neste caso exigindo-se um pedido do Estado atacado. A obrigação de
socorro não decorre do DI Geral, podendo, outrossim, resultar de obrigações assumidas
por via de um tratado multilateral (Tratado do Atlântico Norte; Tratado Inter-Americano
de Assistência Recíproca) ou bilateral (Tratados de Defesa EUA-Japão; EUA- Coréia
do Sul).
4. Desenvolvimentos políticos recentes das relações internacionais introduziram
elementos que levaram à invocação cada vez mais diversificada de LD por actores e
sujeitos de DI e em relação não só a ataques ou ameaças de atores estaduais como de
não-estaduais, com cada vez maior capacidade bélica. Tem-se observado a sua
invocação para a proteção de nacionais em perigo no estrangeiro (Raide sobre Entebbe),
para antecipar uma agressão próxima (Guerra dos Seis Dias), para prevenir uma
agressão futura (Israel; Estados Unidos/Iraque – 1981 e 2003), para destruir a
capacidade de entidades responsáveis por ataques frequentes ao território do Estado
(Afeganistão-2001; Israel-Líbano) ou até para eliminar responsáveis políticos ou
militares através de ataques dirigidos/assassinatos seletivos (Ahmed Yassin; Bin
Laden), num contexto umbilicalmente ligado à chamada guerra contra o terrorismo
lançada em 2001 logo a seguir ao ataque promovido pela Al Qaeda. Pese embora muitas
dessas reivindicações políticas terem sido efetivamente absorvidas pela Comunidade
Internacional, há as que até hoje continuam a causar grande controvérsia entre Estados,
para além de resultarem na decomposição de conceitos tradicionais da Ordem Global
com o esfacelamento da distinção entre LD e agressão (o caso da LD preventiva) e entre
LD e retaliação (as retaliações com fins preventivos), e a mistura entre, por um lado, o
Direito da Segurança Internacional (DSI) e, do outro, do DI dos Direitos Humanos, do
DI Humanitário e do DI Penal (DPI) e ainda entre medidas de guerra e medidas de
manutenção da ordem e de responsabilização criminal, no quadro de ataques dirigidos a
pessoas.
5. A LD não é só um conceito relevante para o DSI, já que central igualmente para o
Direito da Responsabilidade Internacional e para o DPI, ramos que a incluem entre as
causas de exclusão da ilicitude de condutas contrárias ao DI. Espraia-se também, para
além das áreas tradicionais do Direito Interno, Direito Penal e Direito Civil, para o
Direito Público Externo dos Estados. A LD é uma das causas que justificam a utilização
das forças armadas de um país, faz parte das obrigações do Estado para com a sua
população e para com a República, e constitui-se em base habilitante para a declaração
do estado de exceção constitucional.

Leituras complementares
ALEXANDROV, S., Self-Defense Against the Use of Force in International Law, The Hague, Kluwer,
1999.
BOWETT, D., Self-Defence in International Law, Manchester, MUP, 1958.
DELGADO, J.P., “Legítima Defesa e Antecipação no Direito Internacional: Desenvolvimentos
Recentes”, RDP, Lisboa, a. 1, n. 2, 2009, pp. 133-171.
DINSTEIN, Y., War, Aggression, and Self-Defence, 5. ed., Cambridge, UK, CUP, 2012.
RUYS, T., 'Armed Attack' and Article 51 of the UN Charter: Evolutions in Customary Law and Practice,
Cambridge, UK, CUP, 2011.

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