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História dos Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde

Elisandro Sanches da Silva

Cidade da Praia, 2021


Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais

Departamento de Direito e Estudos Internacionais

História dos Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde

Monografia apresentada no Instituto

Superior de Ciências Jurídicas e Sociais

como requisito parcial para a obtenção do

grau de licenciatura em Relações

Internacionais e Diplomacia, sob a

orientação Professor Mestre Carlos Brito


Agradecimentos

É com grande satisfação que agradeço ao Senhor, fonte inesgotável, o caminho e o melhor

companheiro de sempre. Agradeço igualmente a minha mãe e a minha madrinha, as minhas

forças e meus suportes durante todo processo.

Aos meus familiares que de uma forma ou de outra estiveram sempre do meu lado.

Igualmente agradeço aos meus professores e colegas alunos, que também fizeram parte deste

percurso.
Resumo

O presente trabalho debruça-se sobre os órgãos de administração da justiça em Cabo

Verde. Procura-se identificar os órgãos de administração da justiça cabo-verdiana desde os

primeiros tempos, onde a justiça era administrada exclusivamente pelos colonos portugueses,

passando por um longo processo de modificação, até chegar ao patamar em que se encontra

hoje, onde a administração compreende vários atores como os próprios órgãos do Estado e até

mesmo instituições internacionais de justiça de que Cabo Verde seja parte. É nesta senda que

se preocupa em conhecer os diferentes órgãos que fizeram e que fazem parte da administração

da justiça em Cabo Verde.

Palavras chave: Administração, Justiça, Órgãos, Cabo Verde, Tribunais


Índice

Introdução 7
Enquadramento teórico 10
História dos órgãos de administração da justiça 10
Conceitos 11
Conceito de Justiça 12
Conceito de administrar e administração 12
Conceito de Órgãos 13
Conceito de Administração da Justiça 16
Administração da Justiça e conceitos de proximidade 17
Administração da Justiça e Administração Pública 17
Administração da Justiça e Justiça Administrativa 19
Administração da Justiça, Direito Judiciário e Direito Administrativo 20
Administração da justiça e sistema judicial 21
Aspetos gerais de Cabo Verde 23
Clima 24
Agricultura 25
Descoberta e Povoamento 25
Independência 29
Separação com a Guiné-Bissau 30
Capítulo I – Os Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde nos primeiros tempos e
antes da independência 32
A instituição Donatária 32
As Câmaras 37
O Corregedor e o Syndicante 38
Os órgãos de administração da justiça na ilha do Fogo 41
O Juiz de Fora 42
Os Capitães Gerais 43
Os Ouvidores Gerais 43
Os naturais da ilha na administração 44
Os Governadores 45
Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde no século XIX 49
Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde no século XX 51
Capítulo II - Os Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde após a independência 55
Período de 1975 a 1980 55
Década de 80 (1980) a 90 (1990) 59
Década de 90 (1990) a 99 (1999) 60
A partir de 1999 63
Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde nos dias atuais 64
Tribunais internacionais como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde 68
Considerações Finais 76
Referências 80
7

Introdução

O tema no qual recaiu a escolha como objeto de estudo da investigação é a história dos atores

de administração da justiça em Cabo Verde, tendo como título “História dos órgãos de

administração da justiça em Cabo Verde”.

O trabalho terá uma dupla abordagem: Na primeira, optaremos por identificar os órgãos que

fizeram parte da administração da justiça em Cabo Verde nos primeiros tempos e antes da

independência, e na segunda, iremos identificar os atores que fizeram e que fazem parte da

administração da justiça em Cabo Verde no período pós-independência.

A ideia do tema surgiu com a problemática do caso do cidadão colombiano de nome Alex

Saab, que, durante uma escala técnica no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, foi preso

pela Interpol e pelas autoridades cabo-verdianas na ilha do Sal, com base num mandado de

captura internacional emitido pelos Estados Unidos de América. O dito cidadão mantido preso

em Cabo Verde por vários meses, sem uma decisão final dos tribunais, levou que a questão

fosse levada ao Tribunal de Justiça da Comunidade Económica dos Estados da Africa

Ocidental (CEDEAO). O Tribunal de Justiça da CEDEAO ordenou que soltasse o dito Alex

Saab, ordem a qual não chegou a cumprir o Tribunal da Relação de Barlavento, alegando por

sua vez que este não tenha jurisdição sobre Cabo Verde, por não ter assinado nem ratificado

os protocolos que lhe atribui competências sobre esse Estado. Desse facto e da proposta do

assunto pelo professor, despertou-me o interesse em conhecer os diferentes órgãos que fazem

parte da administração da justiça em Cabo Verde, fazendo um apanhado histórico desses

principais órgãos, sem se aprofundar muito na problemática do Tribunal de Justiça da

CEDEAO, assunto de grande relevância que também abriria um outro campo de estudo. No

entanto, não é essa o assunto principal deste trabalho. Como dito anteriormente, a nossa
8

preocupação é conhecer os atores que fizeram e os que legalmente agora fazem parte da

administração da justiça em Cabo Verde.

Nos estudos das obras antigas de José Senna de Barcellos, editada recentemente pela

Biblioteca Nacional de Cabo Verde a partir de 2003 por ser mais de um volume, se encontra

de forma dispersada os principais órgãos que fizeram parte da administração da justiça cabo-

verdiana, assim como também nos volumes da “História Geral de Cabo Verde” se encontra

alguns desses órgãos. A nossa atual Constituição da República, no número um e número dois

do artigo 210°, identifica os atores ou os órgãos que atualmente fazem parte da administração

da justiça cabo-verdiana, sendo os tribunais, os órgãos não jurisdicionais de composição de

conflitos e os tribunais instituídos através dos tratados, acordos ou convenções internacionais

de que Cabo Verde faz parte. Com isso, vê-se que atualmente os órgãos que fazem parte da

administração da justiça cabo-verdiana são atores tanto internos como internacionais. Nos

resta então conhecer esses atores tanto internos como internacionais como órgãos de

administração da justiça no país.

Em suma, a pretensão principal deste trabalho foi de conhecer e identificar de uma forma

mais recente e atualizada os principais órgãos que fizeram e que fazem parte da administração

da justiça em Cabo Verde. Dentro desse objectivo pretendemos responder a seguinte questão:

Os figurinos dos órgãos de administração da justiça seguiram sempre uma estrutura linear e

contínua em Cabo Verde? Pretendemos ainda entender como funcionava os órgãos de

administração da justiça nas primeiras décadas do povoamento, no período pós-independência

e a partir da década de 1990, com a chegada do multipartidarismo e da democracia em Cabo

Verde, e, se houve mudanças ou não introduzidas nesses órgãos nos diferentes períodos.

Quanto a metodologia de pesquisa, o trabalho fundamenta-se numa base jurídica, através da

análise de instrumentos jurídicos que versam sobra a matéria, e descritiva, através da análise
9

comparativa dos dados obtidos nas diversas fontes bibliográficas que demonstram o percurso

dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde.

O trabalho se encontra estruturado da seguinte forma: começa-se por um enquadramento

teórico seguido pelos aspetos gerais de Cabo Verde, de seguida o capítulo primeiro que refere

aos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde nos primeiros tempos e antes da

independência, o capítulo segundo relativo aos tais órgãos no período pós-independência e

finalmente as considerações finais.


10

Enquadramento teórico

História dos órgãos de administração da justiça

A administração da justiça, desde sempre, constituiu um problema que preocupou a

humanidade (Justo, 2010). De acordo com Liuti e Moraes (2009), desde a pré-história, “para

garantir a sua sobrevivência, o homem teve de aprender a cooperar e a se organizar

socialmente” (p. 102). É dessa organização social que, segundo Liuti e Moraes (2009), veio a

surgir a justiça.

Conforme as afirmações em Justo (2010), uma das formas de administrar a justiça na Roma

antiga foi o processo das fórmulas, introduzido inicialmente pelo costume, onde tinha como

elemento fundamental um documento escrito pelo pretor que era atribuído ao juiz onde lhe

autorizava a “proferir uma sentença de condenação ou absolvição, consoante provasse ou não

os factos aí referidos” (p. 316). Justo (2010) considera que nesse período, a administração da

justiça era processada em duas fases: na primeira, o pretor depois de ouvir o demandante e o

demandado, declarava solenemente o direito, e na segunda, o juiz fazia a prova dos factos e

proferia a sentença. Portanto, podemos dizer que nesse período na Roma antiga, o pretor e o

juiz eram considerados os órgãos de administração da justiça.

Uma outra forma de administrar a justiça na Roma antiga, ainda antes de cristo, foi o processo

da cognição extraordinária apresentado por Justo (2010). Justo (2010) alega que com esse

processo, a administração da justiça foi confiada ao imperador e seus funcionários “que

apreciam e resolvem determinados litígios…” (p. 318).

Levando em conta esse novo processo em substituição do processo das fórmulas, Justo (2010)

considera que a administração da justiça deixou de possuir um caracter privado e passou a ter

um caracter público ou a ser gerida pelo Estado.


11

No período Feudal, segundo Mendes (2018) “os senhores detinham o poder de administrar a

justiça aos seus vassalos, por outorga real. Na relação feudo-vassálica entendia-se que a

justiça era uma “graça” dada pelo senhor ao vassalo” (p. 37).

Mendes (2018) considera que nessa época, havia possibilidade de aplicação da justiça privada

e fuga da justiça pública: “Os senhores feudais e a nobreza agiam em nome do poder real e

arrogavam-se donos da justiça – da tal “justiça privada” que lhes conviria, por legitimação

social e de classe, fosse vista como justiça pública…” (p. 38).

No entanto, levando em conta esse período e as afirmações de Mendes (2018), podemos dizer

que os senhores os quais possuíam uma alta classe social podiam normalmente administrar a

justiça, junto dos órgãos públicos que possuíam essa função.

Já no Estado-moderno, como sabido, o poder de administrar a justiça é atribuído ao Estado,

fixando a função jurisdicional nos tribunais, que são um dos principais órgãos de

administração da justiça atualmente.

Conceitos

Antes de entrarmos na questão em estudo, consideramos ser importante a compreensão de

alguns conceitos que se aproximam aos órgãos de administração da justiça.

Como se sabe, a justiça é sempre uma condição necessária ao bom funcionamento de um

Estado ou de uma sociedade, e Cabo Verde não foge a essa regra. De acordo com Lucas,

Soares e Dias (2017), em Cabo Verde, a justiça é sempre vista nos programas das diferentes

legislaturas como uma questão de prioridade, “refletindo a sua centralidade enquanto

condição-chave para o desenvolvimento e o bem-estar da população” (p. 47).

Conceito de Justiça
12

A palavra justiça derivou do termo justitia, de justus, que na linguagem jurídica significa

aquilo que se faz conforme o direito ou segundo a lei (Silva, 1980).

A justiça é entendida ainda por Silva (1980) como “a prática do justo ou da razão de ser do

próprio Direito… é o próprio Direito realizado… Indica, assim o aparelhamento político-

jurídico destinado à aplicação do Direito aos casos concretos, a fim de fazer a justiça” (p.

906).

Conceito de administrar e administração

A palavra administração “formou do verbo latino administrare (administrar, governar, gerir,

executar), pela composição do substantivo administratio, dá a ideia da reunião de atos

praticados por uma pessoa afim de cumprir a direção ou gerência de uma determinada soma

de negócios ou afazeres…” (Silva, 1980, p .70).

Já para Gulick (1969), “administração tem a ver com fazer coisas, com a prossecução de

objectivos definidos” (citado em Caupers, 2009, p. 27). Relativamente a este conceito de

administração, Caupers (2009) considera o como sendo amplo e sem operatividade, tendo em

conta que, para ele, “nem toda a acção humana que vise prosseguir certos fins ou obter certos

resultados, é administração” (p. 47).

Segundo Otero (2016), na sua origem histórico etimológica, a palavra administrar

consubstancia três ideias fundamentais: ação, rumo e subordinação – “administrar é um agir

que, tendo em vista um propósito, não goza de autonomia primaria… é servir os interesses

alheios” (p. 20).

Silva (1980) entende que “segundo o caracter dos negócios geridos ou da natureza dos atos

praticados, a administração se especializa, tomando designações as mais variadas:

administração comercial, administração pública, administração da justiça, administração

aduaneira, administração de bens, administração da falência, etc.” (p. 71).


13

Ainda para Otero (2016), o termo administração comporta dois significados diferentes:

traduz-se no exercício de uma atividade ou numa acção de gerir os recursos tendentes à

satisfação de interesses, (conceito em sentido material ou objectivo), e, “identifica também o

protagonista, o autor ou o sujeito da ação de administrar: a administração é agora a estrutura

decisória que tem a seu cargo a atividade administrativa – trata-se do conceito de

administração em sentido subjetivo ou orgânico” (p. 22).

No entanto, seria este último significado de administração, ou seja, o conceito em sentido

subjetivo ou orgânico, que aplicaria ao nosso estudo em concreto, isto é, relativo aos órgãos

de administração da justiça em Cabo Verde, os quais são atribuídos a capacidade de aplicar o

direito e administrar a justiça.

Conceito de Órgãos

De acordo com Silva (1980), a expressão órgão originou do termo latino “organum” e traduz

a ideia de instrumento. Ainda segundo Silva (1980), órgão “exprime ou designa tudo que

possa servir de meio à realização ou à execução de alguma coisa. É o instrumento, a que se

comete o desempenho de uma função determinada” (pp. 1102-1103).

No entanto, Silva (1980) apresenta também conceito de órgão como terminologia médica, os

órgãos do corpo humano, mas não seria o que iria aplicar ao nosso estudo em análise.

O conceito de órgão referente ao nosso estudo seria o conceito técnico em Direito apresentado

por Silva (1980) como, “a instituição, legalmente organizada, encarregada de por em função

uma certa ordem de serviços” (p. 1103). Ainda para Silva (1980), órgão exprime a ideia de

executor ou realizador, tendo em conta que é através dele que se executam as finalidades da

organização ou desempenham as suas funções.

Relativamente ao conceito de órgãos, tentaremos ainda importar alguns dos conceitos

apresentado por Amaral (2007) no âmbito do direito administrativo, relativo aos órgãos das
14

pessoas coletivas para os órgãos de administração da justiça. A questão importante, que agora

surge, é saber se os órgãos de administração da justiça são considerados pessoas coletivas ou

se o conceito de pessoas coletivas pode servir ou ser atribuído aos órgãos de administração da

justiça. A pessoa coletiva pode ser entendida como, “entidades ou criações jurídicas,

personalizadas ou personificadas por força da lei, para fins de várias ordens… representa os

direitos e interesses de uma coletividade, donde a justeza da designação, é o argumento do

insigne jurista” (Silva, 1980, p. 1158). Por este conceito, pode se verificar que as pessoas

coletivas e os órgãos de administração da justiça são entes geralmente distintos, por terem

natureza diferentes, tendo em conta que enquanto um representa os direitos e interesses da

coletividade, a natureza do outro é de resolver conflitos de direitos e interesses.

Segundo Amaral (2007), existem duas conceções sobre a natureza dos órgãos das pessoas

coletivas: a primeira defendida por Marcelo Caetano que considera órgãos como instituições e

não indivíduos, e a segunda, “que foi designadamente defendida entre nós por Afonso Queiró

e Marques Guedes, considera que os órgãos são indivíduos, e não instituições” (p. 759). De

acordo com Amaral (2007), para a primeira conceção os órgãos são instituições que possuem

poderes funcionais a ser exercido pelos indivíduos. Os indivíduos agem no mundo real, mas

“…como titulares dos órgãos destas, pois os órgãos são instituições…” (p. 760). Amaral

(2007) afirma que já para a segunda conceção, o órgão é o individuo porque são eles quem

tomam decisões - “o órgão não é centro de poderes e deveres. O conjunto de poderes

funcionais chama-se competência, não se chama órgão…” (p. 760).

Na perspectiva de Amaral (2007), ambas as correntes de pensamento em parte estão corretas,

mas erram quando abarcam com exclusividade o conteúdo da outra conceção, alegando que se

nos colocarmos na perspectiva da organização administrativa ou na perspectiva que analisa a

estrutura da administração pública, os órgãos são instituições, mas se nos colocarmos na

perspectiva da atividade administrativa ou de quem atua ou toma decisões, o órgão é o


15

indivíduo. De acordo com essa teoria de Amaral (2007), o órgão pode então ser tanto

indivíduo como a instituição.

A instituição é entendida por Silva (1980) como “o conjunto de órgãos representativos da

soberania nacional e que formam o próprio governo” (p. 841). Levando em conta esse

conceito, importa relembrar que os tribunais, um dos órgãos de administração da justiça, são

considerados órgãos da soberania nacional em Cabo Verde, além do Presidente da República

da Assembleia Nacional e do Governo, conforme se encontra estipulado no número um do

artigo 119° da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV).

Embora suas diferenças com a natureza dos órgãos de administração da justiça, iremos

verificar como essa conceção sobre a natureza dos órgãos das pessoas coletivas pode ser

aplicado ao nosso estudo.

Como teremos a oportunidade de ver mais a frente, nos primeiros séculos do povoamento das

ilhas de Cabo Verde, à algumas pessoas particulares eram atribuídos títulos e capacidades de

atuar como órgãos de administração da justiça. Assim como também no período pós-

independência, os órgãos de administração da justiça passaram a ser mais as instituições,

sendo os indivíduos que compõem esses órgãos já não são mais considerados como órgãos,

mas sim como seus titulares.

Enfim, podemos dizer que essa conceção sobre a natureza dos órgãos apresentada por Amaral

(2007) que considera órgãos como indivíduos ou como instituições pode se aplicar ao nosso

estudo, já não na perspectiva da organização ou da atividade administrativa, mas sim,

dependendo do período em análise.

Conceito de Administração da Justiça

Sendo já identificado o conceito de justiça, de administração e de órgãos, resta nos saber o

que se entende por administração da justiça. Coelho (2017) define administração da justiça

como:
16

função ou atividade estatal relativa ao poder de declarar o direito, de aplicar uma

norma ao caso concreto ou para resolver com caráter definitivo uma questão litigiosa

ou um conflito intersubjetivo… o que se fala quando nos referimos à aplicação do

direito ou à tarefa de aplicação da justiça. (p. 17).

Todavia, essa definição nos parece ser um pouco restrita, pois, como teremos a oportunidade

de verificar mais adiante, a administração da justiça não é apenas uma função ou atividade

estadual, tendo em conta que a outros órgãos, como os tribunais internacionais que são

instituídos através de tratados, acordos ou convenções internacionais, também são atribuídos a

capacidade de administrar a justiça, como por exemplo no Estado de Cabo Verde. A

Constituição da República de Cabo Verde de 2010, artigo 209°, não menciona que a

administração da justiça é apenas uma função estatal, mas sim que tem por objecto “dirimir

conflitos de interesses públicos e privados, reprimir a violação da legalidade democrática e

assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.

A administração da justiça ou a função jurisdicional conforme dito em Sousa e Matos (2006),

traduz-se, portanto, na implementação da Constituição, das leis e dos demais actos

normativos vigente na ordem jurídica, mediante a sua interpretação, desenvolvimento

e concretização, o esclarecimento da sua aplicação no tempo e no espaço, a apreciação

da sua conformidade constitucional e lato sensu legal dos actos das entidades públicas

e dos cidadãos, designadamente – mas não apenas – através da dirimição de conflitos

entre interesses privados, entre interesses públicos e entre interesses públicos e

privados. (p. 38).

Silva (1980) entende administração da justiça como, “a aplicação da justiça pelos

magistrados, consoante as regras estabelecidas pelas leis, pela doutrina e pela jurisprudência e

referentes aos casos concretos submetidos à sua decisão” (p. 71).

Já para Andrade (2017),


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a função jurisdicional se caracteriza por uma <<intensão axiológica>>… tendo como

conteúdo e, sobretudo, como fim exclusivo a resolução de uma <<questão de

direito>>… e, em última instância, sempre a cargo de um órgão <<indiferente

(imparcial) e <<inoficioso>> quando dirime um conflito de interesses. (p. 36).

Na ótica de Silva (1980), a administração da justiça, que dentro das três funções do Estado se

enquadra na função jurisdicional, tem como objectivo,

assegurar, na sociedade, o império da justiça, pela manutenção da ordem jurídica, seja

pública ou privada, pela sobrevivência efetiva das leis, que asseguram a integridade

dos direitos individuais, livrando-os das importunações atiradas contra êles ou punindo

as violações que atendem contra os interesses da própria coletividade. (p.71).

Enfim, a administração da justiça então seria a resolução dos conflitos de direitos e interesses

legalmente instituídos, encarregados aos órgãos que pela lei são atribuídos essa competência.

Administração da Justiça e conceitos de proximidade

Administração da Justiça e Administração Pública

A administração publica é considerada por Amaral (2007) como todo o conjunto de

necessidades coletivas cuja satisfação é assumida como tarefa fundamental pela coletividade,

através de serviços por esta organizados e mantidos. No sentido amplo, Silva (1980) a entende

como “uma das manifestações do poder público na gestão ou execução de atos ou de negócios

políticos”, e em sentido estrito, “a simples direção ou gestão dos negócios ou serviços

públicos, realizados por todos os seus departamentos ou institutos especializados, com a

finalidade de prover às necessidades de ordem geral ou coletiva” (p. 73).


18

Em sentido orgânico, Amaral (2007) afirma que para os especialistas na matéria, a

administração pública seria a organização dos serviços centrais do Estado, como por exemplo

o Governo, os ministérios, entre outros.

No entanto, Sousa e Matos (2006) ao considerarem as funções do Estado, apresentam as

funções primárias e secundárias, sendo funções primárias a política e a legislativa, ambas

partindo da essência do político, e, secundárias, a jurisdicional (o mesmo que o de administrar

a justiça) e a administrativa, ambas subordinadas às funções primárias, tendo em conta que

traduz no seu afastamento das escolhas essenciais da colectividade política, na

necessidade que as suas decisões encontrem um fundamento em tais escolhas e de que

não as contrariem, e ainda na necessidade de que essas decisões se reconduzam de

forma valorativamente coerente ao conjunto sistemático formado pelas decisões

constitucionais, políticas e legislativas vigentes. (pp. 37/38).

Na relação entre a justiça e a administração pública, Amaral (2007) é da opinião de que entre

os dois podem ser encontrados traços comuns, pois, ambas são secundárias, executivas e, se

encontram subordinadas à lei. Por sua vez, Santos et al. (2001) ao referenciar, num trecho, a

administração da justiça “…enquanto sector fundamental da Administração Pública…” (p.

25), parece considerá-la como parte da administração pública. Já Torres (2000) apresenta uma

visão mais clara, alegando que “a administração da justiça é um serviço público que o Estado

deve assegurar aos seus cidadãos, tal como o serviço público de saúde ou o serviço público

de ensino” (citado em Santos et al. 2001, p. 29). Amaral (2007) defende que as duas

atividades podem se interrelacionar, tendo em conta que a administração pública em certos

casos pode praticar actos jurisdiconalizados, assim como também os tribunais comuns podem

praticar actos materialmente administrativos.

Embora essa relação de proximidade, Amaral (2007) alega que pelo facto do princípio da

submissão da administração pública à lei, ela encontra-se submetida aos tribunais, e apresenta
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um conjunto de diferença entre os dois campos: para ele a justiça visa aplicar o direito aos

casos concretos, enquanto que a administração pública visa prosseguir os interesses gerais da

colectividade; a justiça pronuncia-se sobre os conflitos e a administração pública procura

satisfazer as necessidades colectivas que lhe são confiadas; na justiça os tribunais são

independentes nos seus julgamentos, enquanto que na administração pública os órgãos e

agentes seguem uma hierarquia, de modo que em regra os subalternos dependem dos

superiores, devendo-lhes obediência nas suas decisões.

Enfim, a administração pública, conforme é referenciado em vários autores, preocupa-se com

a satisfação de interesses públicos ou coletivos, enquanto que a administração da justiça

procura resolver conflitos e não satisfação de interesses, entre entes públicos e privados.

Administração da Justiça e Justiça Administrativa

A justiça administrativa, conceito que, pela terminologia, se aproxima da administração da

justiça, também merece uma pequena atenção. De acordo com Brito (2021), a justiça ou o

contencioso administrativo antigamente traduzia apenas a defesa dos particulares contra as

ações ilegais da administração, quando este lesa os seus direitos e legítimos interesses, mas

que actualmente, com o fenómeno da descentralização e da desconcentração, houve um

alargamento deste conceito por integrar não somente a garantia dos particulares, como

também a dos entes públicos.

No entanto, Brito (2021) define a justiça administrativa em sentido restrito como a “ordem

jurisdicional específica, constitucionalmente consagrada e inte-grada no órgão de soberania

Tribunais, e especializada na resolução dos litígios emergentes das relações jurídicas de

direito público–administrativo entre a Administração Pública e outros sujeitos de direito” (p.

18).
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Então à luz deste conceito, a justiça administrativa seria um dos ramos ou uma modalidade de

administração da justiça direcionada à resolução de litígios que surgem entre a administração

pública e outros sujeitos de direito, encarregados aos tribunais administrativos ou outros

tribunais que pela lei são atribuídos essa competência.

Administração da Justiça, Direito Judiciário e Direito Administrativo

Segundo Sousa e Matos (2006), o direito administrativo tem por objecto a atividade

administrativa, e o direito judiciário, a função jurisdicional (que seria o mesmo que o de

administrar a justiça) do Estado, “incluindo as matérias da organização, do funcionamento e

da actuação dos tribunais” (p. 76). Aqui então, a função de administração da justiça estaria

enquadrada dentro do direito judiciário.

No que tange à relação entre o direito judiciário e o direito administrativo, Sousa e Matos

(2006) alega que estruturalmente os dois direitos são semelhantes, mas possuem pontos de

diferenças, pois, enquanto o direito administrativo regula a organização, o funcionamento e a

atividade da administração, o direito judiciário regula a organização, o funcionamento e a

atividade dos tribunais. Segundo Sousa e Matos (2006), as suas proximidades radicam no

facto de “…ambos terem como objecto a disciplina do exercício de uma função do Estado por

parte de órgãos especificamente concebidos para tal” (p. 78).

Sousa e Matos (2006) acrescenta que o aparelho judiciário é semelhante ao aparelho

administrativo do Estado, pois, “está estruturado em serviços organizados segundo uma lógica

hierárquica e integra um funcionalismo próprio, com um estatuto de direito público” (p. 79).

Ainda de acordo com Sousa e Matos (2006), os tribunais, nos seus normais funcionamentos,

praticam atos materialmente administrativos, como nomeações, ordens e instruções de

serviços, que seguem o mesmo regime dos atos administrativos praticados pelos órgãos da

administração.
21

Administração da justiça e sistema judicial

O sistema judicial, pelo que não pode ser confundido com a administração da justiça, é

entendida por Coelho (2017) como “um conjunto de instituições constitucionalmente

diferenciadas e independentes entre si, cuja finalidade é a realização da justiça. Para o cidadão

comum, envolve a atividade do Estado dedicada tanto à segurança como à resolução dos

litígios” (p. 85).

Segundo Coelho (2017), o sistema de justiça em sentido amplo engloba em simultâneo órgãos

independentes como os tribunais, órgãos de justiça como o Ministério Público, órgãos

públicos ou dependentes do Governo e órgãos privados como os advogados ou solicitadores.

No entanto, Coelho (2017) alega que a justiça e os tribunais possuem um caracter

pluridimensional, e apresenta três planos de que o sistema judicial deve ser analisado: plano

macro, que abrange o sistema judicial na sua organização macro ou institucional, plano

médio, que é destinado à organização e administração dos tribunais, e plano micro, “relativo

ao núcleo decisional, isto é, ao núcleo atomístico da tarefa jurisdicional” (p. 14).

Por outro lado, Santos et al. (2001), no âmbito da administração e gestão dos tribunais,

apresenta apenas dois planos de que este deve ser analisado: plano macro, que engloba todo o

sistema de justiça como tribunais, policias, prisões, Ministério da Justiça, entre outros, e plano

micro, mas diferentemente do plano micro apresentada por Coelho (2017), aqui para Santos et

al. (2001), o plano ou a visão micro, como se referem, tem a ver com a “administração de

cada tribunal, enquanto unidade organizacional” (p. 28). A tal visão micro se enquadra no

plano médio em Coelho (2017), sendo um outro plano não apresentado em Santos et al.

(2001).

Contudo, seria de acordo com a classificação de Coelho (2017), especificamente o plano

micro, relativo ao núcleo decisional da tarefa jurisdicional, ou seja, relativo aos órgãos de
22

administração da justiça em Cabo Verde, o ponto de abordagem do nosso estudo, partindo de

uma análise histórica. Mas, antes de entrarmos na questão em estudo, consideramos ser

importante introduzir alguns aspectos que desrespeitam ao Estado de Cabo Verde, pois, falar

da história dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde sem conhecer um pouco

aquilo que é Cabo Verde, consideramos ser, pois, um pouco inconveniente.

Aspetos gerais de Cabo Verde

Cabo Verde é um arquipélago que se encontra localizado no oceano atlântico,

aproximadamente a 500 km da costa ocidental africana (Ferreira, 1997). O país ocupa uma

posição geográfica privilegiada entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente, o continente


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africano, europeu e americano, e na rota das grandes linhas de navegação e do comércio

marítimo (Madeira, 2014, 2015).

Nas palavras de Madeira (2015), o arquipélago é composto por dez ilhas e vários ilhéus, mas

Ferreira (1997) especifica-o, afirmando que o arquipélago é constituído por dez ilhas e oito

ilhéus:

O arquipélago é composto por dez ilhas e oito ilhéus que se distribuem em dois grupos

e dispostos em relação a direcção do vento alíseo do Nordeste: ao Norte, o grupo do

Barlavento, formado pelas ilhas de Santo Antão, S. Vicente, Santa Luzia (desabitada),

S. Nicolau, Sal, Boa Vista e os ilhéus desabitados dos Pássaros, Branco e Raso; ao Sul,

o grupo de Sotavento, que compreende as ilhas de Maio, Santiago, Fogo, Brava e os

ilhéus desabitados de Santa Maria, Grande, Luís Carneiro, Sapado e de Cima. (p. 13)

No entanto, em relação aos ilhéus, não existe uma uniformidade de textos que se convergem

quanto a um único número referente a ilhéus existentes no país. Nalguns textos diz-se que

Cabo Verde é composto por dez ilhas e oito ilhéus, noutros, como no do Cabo Verde., e Cabo

Verde (2004), diz-se que é constituído por treze ilhéus, ou noutros, como nos de Andrade

(1996), que aponta cinco ilhéus para o Estado de Cabo Verde.

Por sua vez, o Governo de Cabo Verde, na sua página internet, não menciona o número nem

os nomes dos ilhéus existentes, mas apenas as ilhas de que o país é formado

(http://governo.cv/o-arquipelago/geografia/). Na mesma linha, a Constituição da República de

2010 somente menciona, na alínea a) do número um do artigo sexto - 6°. 1. a) -, que território

da República de Cabo Verde é constituído pelas as dez ilhas, e “pelos ilhéus e ilhotas que

historicamente sempre fizeram parte do arquipélago de Cabo Verde”.

Com isso, pode se verificar que também a Constituição da República de Cabo Verde não

mencionou o número nem os nomes dos ilhéus existentes no país.


24

A maior ilha é a ilha de Santiago, com uma superfície de 930 km², a menor habitada é a ilha

da Brava, com uma superfície de 64 km², e no geral, Cabo Verde possui uma superfície de

4033 km² (Ferreira, 1997).

Segundo Madeira (2015), as ilhas na sua maioria são de origem vulcânica, com exceção das

ilhas do Sal, Maio e Boa Vista, estas que de acordo com Ferreira (1997) são enquadradas na

categoria das ilhas planas e de longas praias, diferentemente das outras restantes enquadradas

na categoria das de relevo acidentado ou montanhosas.

O ponto mais alto de Cabo Verde encontra-se na ilha do Fogo, com uma altitude de 2829

metros (Ferreira, 1997 & Madeira, 2015). Nessa ilha encontra-se um vulcão ativo, cujo a

última erupção foi registada no ano de 2014 (Madeira, 2015).

Clima

Em relação ao clima, a sua caraterização é de tropical seco, segundo Gonçalves (2008), sujeita

às influências da região do Sahel e marcado por período de longas secas, conforme nos diz

Ferreira (1997). Já Andrade (1996) considera-o como sendo árido, semi-árido e tropical.

As chuvas de acordo com Madeira (2015) e Cabo Verde., e Cabo Verde (2004), são fracas e

insuficientes. Partilhando do mesmo pensamento, Gomes, Semedo, Gomes, Rendall e

Gominho (2013) consideram que o período das chuvas varia de um ano para o outro e, por

vezes, é acompanhada de episódios de seca. Apesar disso, Ferreira (1997) afirma que, alguma

das vezes, pode haver período de fortes precipitações.

Enfim, podemos verificar que as chuvas em Cabo Verde geralmente são caracterizadas como

irregulares e, muita das vezes, insuficientes.

Agricultura
25

A principal atividade desempenhada é a agricultura que desde sempre se figurou como uma

das principais atividades económicas no país, abarcando cerca de 55% da população ativa

(Ferreira 1997). Apesar disso, a agricultura não é considerada o sector prioritário do

desenvolvimento económico (Cabo Verde., e Cabo Verde, 2004). De acordo com Gomes et

al. (2013), a agricultura é praticada segundo dois regimes: o regime sequeiro e o regime do

regadio.

A agricultura de sequeiro trata-se de uma agricultura de subsistência, praticada à base das

condições climáticas (Ferreira 1997). Sabendo das dificuldades que confrontam o sector

agrícola, Gomes et al. (2013) apresenta as seguintes iniciativas tomadas pelo governo no

sentido de se contornar a problemática das chuvas:

A forte aposta na infra-estruturação rural, como barragens, … na organização das

fileiras …; na promoção de normas de qualidade e de segurança alimentar; na

transformação agro-alimentar; turismo rural; introdução de tecnologias adaptadas para

a intensificação e diversificação agrícola e da valorização dos produtos… (p. 124).

Embora frequentemente Cabo Verde se enfrenta desafios pela falta, demora ou irregularidade

das chuvas que condiciona o desenvolvimento, vê-se que medidas tem sido tomada no sentido

de ultrapassar essa problemática.

Descoberta e Povoamento

No que tange a descoberta e povoamento das ilhas de Cabo Verde, a primazia é atribuída aos

portugueses entre os anos de 1460 e 1462, sendo ano da descoberta e povoamento

respetivamente. De entre esse facto, houve sempre problemática e em particular sobre o caso

da descoberta, tendo em conta que vários foram os autores que apresentaram as suas teorias

ou argumentos a defenderam a legitimidade da descoberta, o que torna um desafio identificar

logo à primeira vista os verdadeiros descobridores das ilhas (Barros, 2017). Conforme nos diz
26

nos Barros (2017), “os indícios disponíveis até hoje sugerem dúvidas acerca da data e das

circunstâncias em que os navegadores deram a conhecer aquele arquipélago oeste-africano”

(p. 78). Na mesma linha, Andrade (1996) afirma que “as datas do achamento das ilhas pelos

portugueses só são conhecidas através de documentos que lhe são posteriores” (p. 32). Vários

atores foram apresentados como sendo senhores da descoberta, cada um correspondendo a

períodos geralmente destintos: “Vicente Dias (1445), Luís de Cadamosto, também conhecido

como Alvise de Cá da Mosto (1456), António de Noli, Digo Gomes (1460) e Diogo Afonso

(1461-1462)” (Barros, 2017, p. 81).

Por sua vez, Da Costa (1940) apresenta dois conceitos de descobridor: o de descobridor

histórico, em que ele integra Vicente Dias e Diogo Gomes, e o de descobridor oficial, em que

ele integra António de Noli (citado em Barros, 2017).

Embora a cada um desses protagonistas foram apresentados documentos e argumentos a favor

com vista a legitimar suas posições, todos foram alvos de críticas, mostraram como não sendo

autossuficientes, ou apresentaram algumas dúvidas (Barros, 2017). A fonte que obteve mais

credibilidade ou a mais aceite pela generalidade dos académicos foram os documentos da

chancelaria régia que figura o nome de António de Noli e Diogo Afonso como sendo

descobridores oficias (Barros, 2017).

No entanto, oficialmente admite-se que as ilhas foram descobertas por António da Noli,

Diogo Gomes e Diogo Afonso, entre os anos de 1460 e 1462.

Em relação ao povoamento, embora é quase uniforme a ideia de que foram os portuguese os

responsáveis pelo povoamento das ilhas, existem opiniões diferentes que versam sobre a

matéria. Há uma outra hipótese defendida por alguns autores no qual defendem um

povoamento ou uma espécie de ocupação sem continuidade da ilha de Santiago “por negros

Jalofos ou outros vindos do Cabo Verde, anteriormente à descoberta dos portugueses”


27

(Carreira, 2000, p. 291). Na mesma linha, Andrade (1996) afirma que muitos autores

partilham da ideia de que algumas das ilhas já eram conhecidas das populações do continente

africano, dos gregos e dos geógrafos árabes.

Em contrapartida a essas afirmações, Ferreira (1997) defende que é quase certo que as ilhas

foram encontradas desabitadas. Já Madeira (2014) é da opinião de que os portugueses lhas

encontraram desabitadas.

Todavia, Carreira (2000) diz que embora não se deva negar essas hipóteses sem uma base

segura, não existem provas consistentes sobre a possível ocupação da ilha de Santigo antes da

chegada dos portuguese, e que “Se se deu, não parece tivesse sido continua e prolongada”

(p.291).

O povoamento aceite pela maioria, segundo Madeira (2014), iniciou-se a partir do ano 1462,

época quando os navegadores António da Noli e Diogo Afonso, pela decisão do Infante D.

Fernando, instalaram-se na ilha de Santiago, formando as primeiras capitanias, uma na atual

Cidade Velha e outra na Cidade da Praia. Contudo, essa afirmação de Madeira (2014) deveria

ser muito questionada, pois, as informações em Barcellos (2003) demostram que pelo

contrário, as primeiras capitanias a serem instituídas foram a da Ribeira Grande, a atual

Cidade Velha, e a dos Alcatrazes, atual Freguesia da Nossa Senhora da Luz, mas não a da

Cidade da Praia, que só foi ocupada a partir de 1516 pelos moradores dos Alcatrazes quando,

estes, o abandonaram. Vejamos:

Posteriormente à Ribeira Grande, séde da capitania do sul, se estabeleceu o povoado

dos Alcatrazes, na actual freguezia de Nossa Senhora da Luz, proximo ao seu porto

principal da Praia Abaixo. Era a séde da capitania do norte, de que foi donatario Diogo

Affonso…. Da villa dos Alcatrazes, que foi muito menos importante, sob o ponto de

vista commercial e de opulencia, do que a Ribeira Grande, foram desapparecendo as

suas melhores casas em 1516… enquanto a Ribeira Grande augmentava o numero de


28

fogos, tendia a diminuir o dos Alcatrazes, pela emigração dos seus mais importantes

moradores para o porto da Praia… (p. 39).

Seguindo com o povoamento das ilhas, na sequência de Santiago foi povoada a ilha do Fogo,

nos séculos XVI e XVII as ilhas de São Nicolau, Boa Vista, Brava, Maio e Santo Antão, e as

últimas a serem povoadas foram as ilhas de São Vicente no século XVIII e Sal no século XIX

(Ferreira, 1997). A única ilha que ainda se encontra desabitada é a Santa Luzia, localizada à

norte das ilhas do grupo Barlavento.

No entanto, no processo do povoamento das ilhas é atribuída grande importância às cartas

régias como sendo fatores que condicionaram e aceleraram o seu desenvolvimento. Primeiro,

a Carta de Privilégios de 1466 que acabou por influenciar e atrair os colonos para a ilha, com

intenção de nela se fixarem (Madeira, 2014). Cabral (2015) afirma que a carta de 1466

possibilitou a vinda dos comerciantes. A Carta de Privilégios de 1466 tratava-se de uma carta

composta por muitas vantagens e regalias, que “quase entregavam aos moradores/vizinhos de

Santiago o monopólio do comércio com a Costa da Guiné…” (Cabral, 2015, p. 27).

Todavia, todos os privilégios da carta de 1466 foram limitados pela Carta de limitação de

Privilégios de 1472, que obrigou os moradores de Santiago a comercializarem unicamente os

produtos originais e produzidos na ilha, e como consequência acabou por forçar a utilização

de uma grande parte da mão-de-obra escrava nas produções, que inicialmente era direcionada

para o tráfico (Cabral, 2015). Sendo assim, os escravos começaram a ser fixados nas ilhas, o

que causou um acelerado impacto no desenvolvimento do povoamento.

Recorrendo às duas cartas que tiveram um valor inquestionável no povoamento de Cabo

Verde, Cabral (2015) considera que “Se a primeira atraiu os brancos a arriscarem-se a viver

por tempo indeterminado nos trópicos, a segunda conduziu à fixação dos africanos e à criação

da primeira sociedade escravocrata de produção no Atlântico” (p. 25).


29

Em relação às origens do substrato populacional em que se desencadeou o povoamento das

ilhas, Carreira (2000) aponta os pretos provenientes de algumas etnias da Africa, como

jalofos, fulas-pretos e alguns africanos livres, os brancos provenientes de Portugal, Madeira,

Espanha, Itália, e, em menor número, das outras regiões europeias.

A sociedade cabo-verdiana, inicialmente, era classificada como escravocrata, tendo em conta

que tinha como a principal base económica e social a exploração do tráfico de escravo

(Cabral, 2015). Nas palavras de Madeira (2015), os escravos e os colonos foram os pilares

principais da estruturação social, económica e administrativa das ilhas.

Enfim, vê-se que em Cabo Verde estiveram pessoas de diferentes regiões, cada um possuindo

características geralmente distintas, mas que acabaram por dar um grande contributo na

formação e estruturação da sociedade.

Independência

Cabo Verde alcançou a sua independência em 1975, fruto de um longo processo que iniciou

desde os movimentos de luta anticolonial que surgiram em Africa na década de 1950, pelo

qual foi fundada em 1955 o Partido Africado para a Independência de Guiné e Cabo Verde

(PAIGC) na cidade de Bissau, sendo um partido político que visava a unidade entre Guiné e

Cabo Verde, liderada por Amílcar Cabral, composta por militantes guineenses e cabo-

verdianos, no qual deram grandes esforços tanto pela via da luta armada (o que aconteceu

integralmente na Guiné Bissau, a partir de 1963, que veio a proclamar a sua independência

pela Assembleia Nacional Popular formada pelos deputados eleitos nas zonas conquistadas

pelo PAIGC, a 24 de Setembro de 1973), como pela via da negociação, onde as delegações de

Portugal (formada pelo Major Melo Antunes, Dr. Mário Soares e Dr. Almeida Santos) e de

Cabo Verde (formada por Pedro Pires, Dr. Amaro da Luz e Dr. José Luís Fernandes),

reunidos em Lisboa a 19 de dezembro de 1974, chegaram a assinar o acordo da independência


30

de Cabo Verde, sem necessidade de passar por uma luta armada ao contrario daquilo que

aconteceu na Guiné Bissau, o que veio a concretizar com a sua proclamação a 5 de Julho de

1975 pela então Assembleia Nacional (Cardoso, 2016).

Separação com a Guiné-Bissau

A unidade entre Guiné e Cabo Verde veio a ser posta em causa na sequência de um golpe de

Estado que acorreu em Guiné-Bissau, dirigido por João Bernardo Vieira (Nino Vieira) ao

então Presidente da Republica Luís Cabral, a 14 de Novembro de 1980, o que em

consequência causou em Janeiro de 1981 a dissolução do PAIGC em Cabo Verde, em

detrimento da formação do Partido Africano de Independência de Cabo Verde (PAICV), que

passou a ser a única força politica dirigente da sociedade e do Estado até a abertura política

(Cardoso, 2016).

A abertura política, que deu-se com a aprovação da lei dos partidos políticos pela Assembleia

Nacional Popular, publicada no Boletim Oficial da República a 6 de outubro de 1990, veio a

culminar com a realização das primeiras eleições multipartidárias a 13 de Janeiro de 1991,

deixando uma grande vitoria ao Movimento para a Democracia (MPD), com a maioria de

70% dos votos, onde conseguiu eleger 56 dos 79 deputados previstos para a Assembleia

Nacional Popular, sendo o único partido político emergente que conseguiu preencher os

requisitos necessários a obtenção da personalidade jurídica e a cumprir o prazo para a

apresentação da lista dos candidatos (Cardoso, 2016).

Desde então, Cabo Verde que era dirigido por um único partido político deixou de ser um

Estado monopartidário e passou a ser um Estado pluripartidário, ou seja, um Estado

denominado de Estado de Direito Democrático, tendo em conta que desde as eleições

legislativas de 1991, o resultado das eleições vem sendo aceites sem grandes problemas,
31

embora, tal como em qualquer parte do mundo, sempre haja contestações de uma ou de outras

partes.
32

Capítulo I – Os Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde nos primeiros

tempos e antes da independência

Como dito anteriormente, foram os portugueses quem deram início ao povoamento das ilhas

de Cabo Verde. Obviamente, foram eles também os responsáveis pela resolução dos litígios

que iam surgindo na terra desde os primeiros momentos até uma evolução mais profunda da

população, onde a administração alargou-se para um campo mais complexo, devido ao

aumento e desenvolvimento da população local. De acordo com Andrade (1996), sendo que

Cabo Verde era uma colónia de Portugal, progressivamente tinha-se adquirido certos

mecanismos do aparelho daquele Estado, afim de assegurar a administração.

A instituição Donatária

Ne entanto, foi através dos oficiais enviados que a metrópole ou a coroa portuguesa dava o

controlo das ilhas, os que inicialmente possuíam grandes poderes e influencias na

administração da justiça em Cabo Verde. Nesta senda, apareceram as instituições donatárias

como as primeiras instituições administrativas, abarcando ao mesmo tempo poderes

administrativos, fiscais e judiciais, pelas cartas de doações que o rei concedia aos donatários,

atribuindo-lhes direito de exploração a nível económico, de receber os direitos que lhe

pertencem, cobrar impostos e “administrar a justiça, salvo nos casos de morte ou amputação

de membros, da competência dos tribunais régios” (Santos, 2007, p. 45). Segundo Andrade

(1996), nessa época, “instituiu-se pois, o regime de capitanias, sendo a administração, polícia

e justiça, da responsabilidade dos capitães donatários” (p. 169). Cohen (2001) defende a

instituição donatária como a instituição pioneira, embora pouco especializada, com domínio

sobre quase todos os campos de gestão publica. Os capitães donatários foram considerados
33

“os primeiros administradores da Justiça em Cabo Verde…. [e], a primeira autoridade judicial

em Santiago capaz de julgar casos cíveis e criminais…” (Santos, 2007, p. 63).

De acordo Barcellos (2003), os donatários eram os responsáveis designados pelo rei para o

povoamento das ilhas, os quais podiam nomear os capitães donatários para exercer as suas

funções mediante confirmação régia. Os capitães donatários podiam também nomear os seus

representantes, ou seja, o capitão-do-donatário (Santos, 2007). Barcellos (2003) aponta como

os primeiros donatários das ilhas António da Noli, encarregado da capitania da parte sul de

Santiago com sede em Ribeira Grande, e Diogo Affonso, encarregado da capitania da parte

norte da mesma ilha sediada nos alcatrazes.

Santos (2007) afirma que os poderes dos capitães donatários eram limitados do ponto de vista

jurídico, administrativo e fiscal, pois, embora possuíam jurisdições nos feitos civis e

criminais, não tinham competências nos casos de morte ou amputação de membros de que era

de recurso ao rei, havendo ainda a correição do donatário que possuía também parte dos

direitos e rendimentos senhoriais.

Cabral (2015) denomina os responsáveis da administração do país dessa época de “homens

honrados brancos”, sendo eles quem controlavam exclusivamente a sociedade cabo-verdiana a

nível social, económico e judicial até aos finais do século XVI e meados do século XVII,

onde os filhos da terra, ou seja, os mulatos nascidos em Cabo Verde passaram também a

participar na administração. Cabral (2015) considera como “homens honrados brancos” os

que eram brancos por natureza, que eram ricos, que possuíam bens que podiam gastar

honradamente e que podiam armar navios.

Uma vez que nem todas as ilhas foram povoadas num mesmo período, ao mesmo tempo que

nem todas nas primeiras décadas dos descobrimentos já se encontravam povoadas, é de

esperar que as realidades das instituições administrativas também teriam de ser diferentes

consoante as ilhas. De acordo com Cohen (2001), havia espaços onde os organismos de
34

gestão pública estavam presentes e, por outro lado, ilhas onde marcavam pela total ausência

dessas instituições. Por sua vez, Varela (2011) aponta que sendo que o povoamento se centrou

inicialmente na ilha de Santiago, a consolidação do poder judicial também ocorreu nessa

mesma ilha. Na mesma linha, Santos (2007) defende que as jurisdições dos capitães

donatários eram somente para as ilhas de Santiago e do Fogo, que já se encontravam

constituídas por um capitão e por uma câmara.

Referindo-se às outras ilhas, os quais a instituição donatária só chegou mais tarde, Santos

(2007) afirma que diferentemente daquilo que se passava em Santiago, no reinado de D.

Manuel, em Santo Antão o donatário apenas possuía direitos vitalícios sobre a ilha, isto é, sem

possibilidade de herdança a seus familiares, e nas ilhas do Sal, Brava, Santa Luzia e os ilhéus

Branco e Raso o donatário apenas possuía direitos de arrendamento. Santos (2007) defende

que nessas ilhas, não foram concedidos poderes judiciais aos indivíduos encarregados de as

governar ou as explorar como aconteceu em Santiago e no Fogo.

Para Santos (2007), foi só a partir do reinado de D. João III é que foi doada a jurisdição cível

e criminal às ilhas até então não povoadas, particularmente o caso de Santo Antão a partir de

1576. Na ilha da Brava, segundo Brásio (1962), “não houve nem capitão, nem donatários,

nem morgados” (citado em Andrade, 1996, p. 49).

A primeira ilha a ser instituída de um instrumento jurídico foi a ilha de Santigo, no ano 1466,

pela Carta de Privilégios que D. Afonso V deu aos moradores desta ilha para irem com os

seus navios comerciarem na Guiné, sendo a única ilha povoada nessa data (Barcellos, 2003).

Como se pode verificar, assim como atualmente fazem fé as leis, decretos, acordos ou tratados

internacionais, nessa altura as cartas régias possuíam forças de leis, ou seja, seus conteúdos

vigoravam. Tomaremos como exemplo o próprio conteúdo da Carta de Privilégios de 1466:


35

mamdamos a todos os vedores da nossa fazenda, contadores, thesoureiros, almoxarifes

e recebedores escrivães, corregedores juises e justiças e a quaesquer outros officiaes e

pessoas a que esta carta fôr mostrada e o conhecimento d’ella pertencer que d’aqui em

diante lh’a cumpram e guardem e façam mui bem cumprir e guardar assim e pela guisa

que se em ella contem. <<E querendo algum ir contra ella que lh ‘o não consintam em

maneira alguma, porquanto assim é nossa mercê, sem outra duvida nem embargo que

uns e outros a elle ponham (Torre do Tombo, Livro das ilhas, fl. 2 v., citado em

Barcellos, 2003, p. 36).

Pela citação em cima, pode se verificar que até essa data já existiam oficiais régios em

Santiago como os vedores, contadores, tesoureiros, almoxarifes ou recebedores, escrivães,

corregedores e juízes enviados pela coroa.

A Carta de Privilégios de 1466, além das liberdades e licenças que davam aos moradores de

Santiago de irem com os seus navios tratarem e resgatarem nas partes da Guiné todas as

mercadorias excepto armas, ferramentas, navios e aparelhos, lhes isentavam de pagarem as

dizimas das mercadorias, e da parte jurídica outorgava ao infante D. Fernando uma grande

jurisdição, sendo “a alçada do civil e crime sobre todos os mouros negros e brancos forros e

captivos e de toda a sua geração que em dita ilha houver…” (Torre do Tombo, Livro das

ilhas, fl. 2 v. citado em Barcellos, 2003, p. 34).

O infante D. Fernando, donatário da ilha nessa época, possuía jurisdição civil e criminal sobre

todos os seus habitantes.

Andrade (1996) considera a Carta de Privilégios de 1466 como uma espécie de carta orgânica

das ilhas, na mesma linha Barcellos (2003) como “o primeiro codigo judicial e administrativo

pelo qual se deviam reger os moradores sob a vontade suprema do infante D. Fernando” (p.

36). Dessa carta, pode se verificar que importantes passos já se tinham iniciados direcionado à

administração da justiça em Cabo Verde.


36

Contudo, além das cartas régias, as leis, regimentos e alvarás da coroa possuíam força de

obrigatoriedade do cumprimento. Esses instrumentos jurídicos encontram-se referenciados de

forma dispersadas nos trabalhos de Barcellos (2003), sendo cartas e alvarás semelhantes, mas

com diferença no período dos seus efeitos, uma vez que as ações cujo efeito durariam mais de

um ano normalmente tomariam forma de cartas, obviamente os que cujo efeito durariam

menos, tomariam forma de alvarás, embora mesmo assim de vez em quando, as coisas cujo

efeito durariam mais de um ano eram atribuídas forma de alvarás, conforme se pode constatar

num alvará dado a Jorge Pimental pelo rei D. João III a 20 de Março de 1550:

mandei dar este meu alvará ao qual quero que valha e tenha força e vigor como se

fosse carta feita em meu nome e assellada do meu sello pendente sem embargo da

ordenação do livro segundo, titulo 20 que diz que as cousas cujo effeito houver de

durar mais de um anno passem por cartas, e passando por alvarás, não valham

(Barcellos, 2003, p. 124).

Em Silva (1980), considera-se alvará o termo utilizado para designar uma espécie de lei que

tinha como função modificar ou impor declarações sobre coisas já estabelecidas, “no que se

diferia da carta de lei, que vinha impor novas regras ou estabelecimentos, e que durava

sempre, enquanto o alvará tinha a vigência anual, se outra condição não lhe era imposta (p.

113).

Já os regimentos seriam os poderes, alçadas e ordenações que o rei atribuía a um oficial,

quando este é enviado às ilhas, sendo que o próprio conteúdo da carta dizia: “e qual officio

servirá segundo forma do regimento, poder e alçada que leva e como no dito regimento e

minhas ordenações é declarado…” (Barcellos, 2003, p. 124).

As Câmaras
37

Na administração da justiça cabo-verdiana, tarefa que somente era confiada aos capitães

donatários ou aos donatários, veio a participar as câmaras, passando a atuar num mesmo

espaço de resolução de litígios que surgiam nas populações (Santos, 2007). De acordo com

Varela (2011), com o aumento da população e do dinamismo dos moradores de Ribeira

Grande, “levou à consolidação do regime municipal que, em paralelo com o Capitão do

Donatário, passa a ser um dos grandes poderes do arquipélago” (p. 278). A administração da

justiça passou a compor ao mesmo tempo os órgãos do poder local e os oficias régios

enviados pela metrópole. A ilha de Santiago passou a ter duas instituições administrativas,

uma que representava o capitão donatário (feitor ou rendeiro) e uma que representava a

população local (a câmara) (Santos, 2007). Andrade (1996) afirma que embora os centros de

decisões encontravam-se na metrópole e a administração das ilhas manteve-se dependente

dela, foi atribuída uma certa autonomia aos governos locais.

Todavia, com o aparecimento das câmaras, os poderes dos capitães donatários diminuíam-se

aos poucos. Andrade (1996) aponta que já no reinado de D. João II, os poderes dos capitães

donatários se encontravam reduzidos. Na mesma linha, Santos (2007) afirma que pela carta de

D. Manuel, a 11 de julho de 1511, foi determinada ao capitão que as questões judiciais que

implicassem pena de morte, julgassem juntamente com os juízes e vereadores da câmara.

Santos (2007) considera que o município ou a câmara surgiu como um poder concorrente,

vigilante e equilibrante da autoridade do capitão, isto é, “como um parceiro na administração

e na justiça em concorrência com o capitão, transformando-se num poder local paralelo, que

actua numa área geográfica delimitada” (p. 52).

Como é de esperar, nessa época, a câmara ou município não se encontrava em todas as ilhas,

sendo que na primeira metade do século XVI, apenas estava presente em três regiões: uma na

capitania sul de Santiago sediada na Ribeira Grande, uma na capitania norte com jurisdição
38

sobre a Praia e Alcatrazes e uma no Fogo ou S. Filipe, cada um exercendo jurisdição e

limitando seu campo de atuação sobre seu determinado território (Santos, 2007).

A câmara era composta pelos juízes ordinários, vereadores, procurador, tesoureiro e escrivão,

sendo os juízes com maior projeção ou relevância, competindo lhes manter a ordem pública e

fazer cumprir as leis do reino (Santos, 2007). Eram dois os juízes camarários: um julgava as

causas dos navegantes e todos assuntos relacionados com o mar, outro administrava a justiça

aos habitantes da ilha (Santos, 2007). Varela (2011) considera que os juízes ordinários eram

os responsáveis diretos da administração da justiça régia local.

Segundo Santos (2007), os dois poderes, a câmara e os capitães donatários, atuavam

paralelamente na administração da justiça, sem uma delimitação definida das suas áreas de

atuações, destacando-se para os juízes camarários que julgavam a maioria dos casos de crimes

em primeira instância. É nesta senda que Varela (2011) aponta que frequentemente podiam os

juízes camarários entrar em conflitos com o capitão, principalmente na fase inicial, ou seja, na

fase da consolidação das suas estruturas.

O Corregedor e o Syndicante

Sendo já identificados os capitães donatários e a câmara, resta saber se, estes, eram os únicos

órgãos de administração da justiça em Cabo Verde nessa época. No entanto, Santos (2007)

apresenta uma outra autoridade, o corregedor como autoridade régia periférica e com

jurisdição sobre todo o arquipélago, que passou a repartir a administração entre a câmara e os

capitães donatários. Nas palavras de Cabral (2015), o corregedor era tido como a autoridade

máxima da coroa no arquipélago. Já Varela (2011) o considera como um “elemento

subtractivo da liberdade e da esfera jurisdicional dos órgãos locais e, por conseguinte, alvo de

uma oposição relativamente dissimulada por parte dos moradores e do Capitão” (p. 279). Ao

contrário dos capitães donatários que mantinham cargo até à morte ou que podiam nomear
39

seus representantes, os corregedores eram nomeados por um determinado período de tempo e

possuíam poderes superiores aos quais possuíam os capitães donatários (Cohen, 2001).

Em Barcellos (2003), embora se considera nomeada anteriormente corregedores ad hoc, a

figura do corregedor é dada como aparecido a partir do ano 1516 e 1517 na ilha do Fogo e

Santiago respectivamente, sendo autoridade nomeada pelo poder central com o objectivo de

controlar a jurisdição dos poderes locais, “correger ou emendar” os erros da administração

judicial, controlar as ações dos capitães e impedir que ultrapassem das suas jurisdições,

arbitrar conflitos entre as populações, sendo vistas como o garante da ordem na sociedade.

O problema que se coloca em relação à nomeação inicial dos corregedores data-se anterior ao

ano de 1516 e 1517, com a nomeação de Pedro Lourenço em 1481 como autoridade para as

ilhas. Contudo, existem informações de duas fontes, referindo-se à mesma data e com a

nomeação do mesmo Pedro Lourenço pelo rei D. João II, mas com designações diferentes: em

Barcellos (2003), o dito Pedro Lourenço é referenciado como syndicante, enquanto que em

Santos (2007) ele aparece como corregedor. Resta-nos então saber se o syndicante e

corregedor era designação feita à mesma autoridade. As duas fontes, Santos (2007) e

Barcellos (2003), citam como causa de nomeação do dito Pedro Lourenço, as transgressões

dos moradores que iam tratar e resgatar nas partes da Guiné as mercadorias proibidas pelo rei

D. Afonso V.

Nas palavras de Cabral (2015), após a morte do infante D. Henrique, houve uma viragem na

política dos descobrimentos imposta por D. Afonso V, onde a situação dos moradores de

Santiago tornaram-se mais complexas pela limitação geográfica de seus privilégios, como a

interdição de comerciarem na costa da Guiné com produtos que não sejam criadas e

produzidas na ilha, entre outras restrições, sendo caso procedessem, estariam sujeitos a sofrer

penas de castigo e perda de bens.


40

É nessa sequência que Barcellos (2003) cita o ano de 1481 onde D. João II, aclamado rei a 31

de agosto do mesmo ano, através de uma carta, nomeou o syndicante Pedro Lourenço com o

objectivo de julgar os moradores culpados que iam resgatar e tratar nas partes da Guiné as

mercadorias proibidas por D. Affonso V.

Barcellos (2003) considera que essa carta dava a figura do Syndicante um grande poderio

perante a justiça, sendo “a alçada judicial, julgando os feitos sem apellação, nem agravo, e

execução nos bens dos culpados; de lhes applicar penas de cadeia e degredo, perdimento de

capitanias, officios, bens e fazendas” (p. 47).

A partir dessa carta, o rei D. João II figurou o Syndicante como a maior autoridade judicial na

ilha, tendo em conta que todos os outros oficiais deviam lhe obedecer perante qualquer

decisão por ele tomada. Vejamos o que diz a carta de nomeação do Syndicante Pedro

Lourenço:

… mandamos aos capitães e ouvidores, juizes e officiaes e tabeliaes da dita Ilha e a

quaesquer outras pessoas em ella estantes e moradores que em todo o que nas ditas

ordenações e cumprimento dellas pertencer obedeçam ao dito Pedro Lourenço e

compram (cumpram) e façam todo (tudo) o que lhes ello por vossa e de nossa parte

por ello requerer e mandar asy (por assim) e tam compridamente e com tanta

obediencia como se lhe nós em pessoa mandassemos e nem comprindo elles ou cada

hum delles o que nom cremos nem esperamos por esta damos ao dito Pedro Lourenço,

nosso inteiro e comprido poder … (Torre do Tombo, Chancellaria de D. Affonso 5.°,

Livro 26, fl. 140 v., citado em Barcellos, 2003, p. 48).

Nas palavras de Barcellos (2003), não tinha muita confiança do rei a justiça local que estava a

cargo dos capitães donatários, enquanto que a justiça régia estava confiada a um syndicante.

Dessa disposição, pode-se depreender que nessa época, a administração da justiça em Cabo
41

Verde estava subdividida em dois polos, sendo a justiça régia, através dos oficiais régios

enviados às ilhas, e a justiça local, através dos nomeados pelos capitães donatários.

No entanto, Barcellos (2003, p. 49) ao referenciar que pela “falta de corregedores, que a ilha

pela sua pobreza ainda não podia sustentar, a justiça régia era confiada a um syndicante”,

mostra-se claramente que o sindicante e o corregedor não eram a mesma autoridade, embora

como se pode verificar, o sindicante podia normalmente desempenhar as funções dos

corregedores.

As duas fontes, (Barcellos, 2003 & Santos, 2007), denominam as duas autoridades de

inquiridor, sendo encarregados de tirar inquirições e descobrir informações de todos os que

violassem as ditas ordenações e aplicar-lhes as ditas penas.

Contudo, Santos (2007) afirma que apesar dos amplos poderes que possuíam os corregedores,

possuíam limitações, pois podiam ser suspendidos do cargo pelo rei, não podiam interferir na

jurisdição local, não podiam averiguar nos agravos relativos às sentenças dos tribunais locais,

embora tinham autoridade para solicitar auxílio do aparelho coercivo no âmbito das suas

funções, e em caso de recusa aplicar-lhes punições.

Os órgãos de administração da justiça na ilha do Fogo

Como dito anteriormente, a situação da administração da justiça não era homogenia para

todas as ilhas, uma vez que as principais autoridades se centravam sobretudo na ilha de

Santiago. Conforme nos diz Varela (2011), com o povoamento da ilha do Fogo e das outras

restantes ilhas, a configuração da justiça local implantada inicialmente em Santiago foi

transferida para essas ilhas. Santos (2007) afirma que em Fogo, na fase inicial, supostamente a

justiça estava entregue a um capitão à semelhança da ilha de Santiago, e que a partir de 1528,

quando o rei D. João III pela carta doou a capitania dessa ilha a D. João de Meneses de

Vasconcelos, “a justiça passou a ser administrada localmente por um representante deste,


42

simultaneamente capitão e ouvidor” (p. 65). Barcellos (2003) considera que só a partir

daquela carta os moradores do Fogo passaram a gozar dos privilégios sobre a jurisdição e

eleição, rendas, direitos e tributos que já gozavam os moradores de Santiago, carta aquela que

ele considera como a primeira legislação administrativa para os moradores do Fogo que

viviam à sombra dos privilégios concedidos aos os de Santiago.

De acordo com Santos (2007), na ilha do Fogo o capitão e ouvidor apreciava os feitos depois

de julgados pelos juízes ordinários, havia um tribunal de primeira instância composta por dois

juízes membros da câmara, que funcionava como um poder concorrente e vigilante da

autoridade do capitão e ouvidor, julgando causas cíveis e criminais excepto casos de pena de

morte, e o corregedor como a terceira autoridade que podia julgar na ilha. Na ilha do Fogo

assim como em Santiago, era frequente conflito de jurisdição entre as três autoridades com

competências para julgar (Varela, 2011).

Em suma, no primeiro século do povoamento das ilhas de Cabo Verde, são os que foram

apresentados (os capitães donatários, a câmara com seus juízes e os corregedores) os

principais órgãos judiciais que participaram na administração da justiça. Barcellos (2003)

apresenta como as primeiras autoridades régias os corregedores, os contadores, almoxarifes e

feitores, e considera que só a partir de 1521 é que se deu o alargamento da administração

geral, com a criação de novas autoridades fiscais, fazendeiras e judiciais.

O Juiz de Fora

No entanto, um outro órgão que veio a participar na administração da justiça em Cabo Verde

pela denominação régia, foi o juiz de fora, a partir de 31 de outubro 1566 onde foi nomeada

um oficial com este título para a Ribeira Grande (Barcellos, 2003). Apesar das diferenças

encontradas numa letra do nome do oficial nomeado nessa data para esse cargo em Barcellos

(2003) e em Cohen (2001), mostra-se que tratava da mesma pessoa. Em Barcellos (2003) o
43

dito oficial aparece com o nome de “Francisco Pires Pisão” (p. 138), enquanto que em Cohen

(2001) ele é referenciado como “Francisco Pires Picão” (p. 217).

O juiz de fora tratava-se de um indivíduo que não pertencia a comunidade local, eleito pelo

centro de administração régia para ocupar os cargos que normalmente ocupavam os juízes da

terra (Cohen, 2001).

De acordo com Hespanha (sd.), os juízes de fora, em princípio, possuíam as mesmas

atribuições que os juízes ordinários, atuavam junto com corregedor, promovendo a vigência

do direito régio e dos padrões oficiais de julgamento (citado em Cohen, 2001).

Contudo, os juízes de fora não parecem ter sido uma autoridade nomeada frequentemente para

as ilhas. Cohen (2007) demostra-nos que em Cabo Verde, apenas teve notícia da nomeação de

um único juiz de fora (citado em Varela, 2011).

Os Capitães Gerais

Já a partir do ano 1587, Barcellos (2003) afirma que D. Filippe alterou a administração das

ilhas de Cabo Verde e definiu melhor a alçada das autoridades administrativas e judiciais,

nomeando a partir desta data um capitão geral. Foi nomeado Duarte Lobo da Gama capitão de

todas as ilhas, e com provisão sobre todos os ofícios da justiça, ficando então os donatários

sujeitos à ação tutelar dos capitães gerais (Barcellos, 2003). Cohen (2001) carateriza essa

época como uma “fase… “de transição” para o estabelecimento de um governo centralizado

para a “Capitania do Cabo Verde” (p. 223).

Os Ouvidores Gerais

Já nos finais do século XVI e início do século XVII (ano de 1596), houve uma pequena

alteração nas autoridades judiciais das ilhas de Cabo Verde. Passou-se a nomear os ouvidores

gerais, em substituição dos corregedores, tendo sido primeiro nomeado Manuel Dias Calheta
44

(Barcellos, 2003). A partir do ano 1606 passou-se regimento aos ouvidores semelhante ao que

possuíam os corregedores, atribuindo-lhes alçada e poder sobre escravos, piões e pessoas de

mais qualidade, conferindo-lhes jurisdição nos feitos cíveis e criminais, podendo tomar

conhecimento do agravo dos juízes ordinários, passar cartas de seguros nos casos que

passavam os corregedores das comarcas, aplicar penas e condenar em penas de dinheiro até

dois mil reis (Barcellos, 2003).

Enfim, pode se verificar que em Cabo Verde nessa época não havia uma estrutura judicial

bem definida, e que os vários cargos de administração da justiça que existiam surgiam em

função da necessidade da melhor administração judicial por parte da coroa.

Os naturais da ilha na administração

Como dito anteriormente e de acordo com Cabral (2015), os “homens horados brancos”

constituíam o poder local, isto é, eram eles quem controlavam a sociedade cabo-verdiana,

influenciando a política local. Já os naturais da ilha ou os filhos da terra aos poucos veio se

afirmar na administração social em Cabo Verde. Nos finais do século XVI e meados do

século XVII, os naturais da ilha começaram a ocupar os vazios nos cargos deixados pelos

brancos quando estes começaram a abandonar a ilha, tendo em conta que para eles, “já nada

atraía para essa ilha do Atlântico, <<longínqua>>, <<doentia>> e sem nenhuma riqueza

natural” (Cabral, 2015, p. 96).

No entanto, Barcellos (2003) e Cabral (2015) figuram o ano de 1546 o marco desse período,

quando os moradores de Santiago começaram a reclamar ao o rei certos cargos na

administração.

Barcellos (2003) aponta que através de uma carta, no ano de 1546, os moradores de Santiago

pediram ao rei para entrarem nos ofícios do concelho ou no policiamento da terra para

acabarem com os abusos dos poderosos, vigiar melhor a terra para onde fugiam os escravos, e
45

opor às exigências dos poderosos que faziam dos seus parentes vizinhos que ali chegavam

sem terem cumprido o tempo previsto nas ordenações, prejudicando assim os tratos da Guiné.

No entanto, Barcellos (2003) figura o nome de André Alvares d’Almada em primeiro lugar

que ocupou os cargos entre os filhos ilustres de Cabo Verde. Foi-lhe atribuído o cargo de

Cavaleiro da ordem de Cristo, cargo este que Cabral (2015) alega como o único que estava ao

alcance das ilites dos filhos de Cabo Verde. De acordo com Barcellos (2003), “André Alvares

d’Almada era natural de S. Thiago, filho de Cypriano Alvares d’Almada e neto de João

Alvares d’Almada, proprietario dos mais poderosos da ilha, e foi capitão de ordenanças” (p.

145).

Na segunda metade do século XVI e início do século XVII, os nascidos em Cabo Verde

conquistaram direitos como o de entrar no regimento da câmara, de servir nos cargos não

eleitos da câmara, e em 1608, a autorização do rei para obterem a propriedade de certos

cargos régios (Cabral, 2015). As informações em Cabral (2015) demostram-nos que já no ano

de 1626, na composição da Câmara da Ribeira Grande apenas um oficial não era natural da

ilha, posto que se encontravam presentes em todos os cargos, desde o procurador, até do juiz

ordinário.

No entanto, pode-se depreender que nessa época, a sociedade cabo-verdiana não era

administrada exclusivamente pelos colonos portugueses, ou seja, os filhos da terra ou os

nascidos em Cabo Verde já participavam também na administração da justiça.

Os Governadores

A partir dos anos 1600, os capitães gerais, que eram considerados uma das maiores

autoridades na administração das ilhas, passaram a ajuntar o título de governadores

(Barcellos, 2003). No entanto, Barcellos (2003) considera que embora os governadores

possuíam poderes limitados, ocupando apenas os cargos que sobravam, as suas jurisdições
46

eram sobre todo o arquipélago, e exceptuando-se os capitães-mores, autoridades designadas

ao exército, eram os únicos que deviam receber e transmitir ordens régias.

Os governadores, embora poucas vezes, podiam ser confrontados perante a justiça.

Tomaremos como exemplo a informação em Barcellos (2003), onde pela carta régia foi

autorizada à Manuel da Costa Ramalho a vir como syndicante para Santiago e tirar residência

do governador Inácio da França Barbosa. Ainda em setembro de 1622, foi dada provisão ao

ouvidor Antonio Corrêia de Sousa para que:

devasse dos governadores e capitães que serviram na ilha de S. Thiago, e que se

intrometteram nas coisas e contas das fazendas dos defunctos e auzentes; … que

proceda criminalmente contra todos os culpados, sentenciando-os como fôr de justiça

até final sentença dando appelação e aggravo para a meza da consciencia e ordens;

(Barcellos, 2003, p. 200).

Andrade (1996) defende que desde a nomeação do primeiro governador de Cabo Verde até o

fim da escravatura, toda a história da administração colonial foi marcada por conflitos, “não

só entre governadores e bispos, mas também entre governadores e outros funcionários” (p.

170). Lembrando-se que os bispos podiam interinamente exercer a função de governadores,

nas situações de morte ou ausência destes (Barcellos, 2003).

Como causa de conflito de jurisdição entre governadores e ouvidores, Barcellos (2003)

apresenta o facto do governo da metrópole não tenha se definido claro nos seus regimentos

quais os deveres de cada um.

Os governadores também entravam em conflitos com as câmaras, que de vez em quando

apresentavam reclamações ao rei contra as suas ações. Tomaremos como exemplo um dos

casos apresentados em Barcellos (2003):

Os officiaes da camara, representados no conselho ultramarino pelo seu procurador,

dirigiram queixas contra os governadores, que tiravam de seus cargos os juizes, sem
47

culpa formada, … pediram para que os juizes, vereadores e procurador do conselho,

nos annos em que servissem, não podessem ser presos pelos governadores e ouvidores

sem ordem regia. Assim se resolveu em 19 de março de 1659, prohibindo-se aos

governadores e ouvidores o suspenderem e prenderem os officiaes da camara sem

auctorisação regia. (p. 255).

Barcellos (2003) considera essa decisão como, “o primeiro procedimento real contra a

incorrigibilidade do governador Ferraz” (p. 255). Desse caso, pode-se concluir que a Câmara

tinha como o único recurso as reclamações que dirigiam ao rei para fazer face aos abusos dos

governadores.

Foi criado o Conselho Ultramarino em 1643, órgão que de facto administrava as colónias,

uma vez que para cada decisão importante a ser tomada pelo governador, teria de consultar o

rei, este que por sua vez iria solicitar o parecer do Conselho antes de tomar qualquer decisão

(Andrade, 1996).

De acordo com Barcellos (2003), a 24 de outubro de 1699 foi consultada ao Conselho

Ultramarino se os governadores, os quais também eram denominados de “capitães generaes e

do conselho”, deviam continuar a ter este título, e, respondeu que, “…recahindo a nomeação

em pessoas de qualidade, como tenentes e mestres de campo, deviam ter as patentes de

capitães-generaes ou generaes e do conselho, e aos outros que não tiveram esta graduação

sómente o de governadores” (p. 349). Pela decisão do Conselho, o título continuou-se como

governador-geral até o ano de 1895, onde mudou para o governador de província (Barcellos,

2003).

Andrade (1996) mostra-nos que no ano 1836, em Cabo Verde havia um governo geral

presidido pelo governador, funcionando ao lado do Conselho de Governo, composto por

chefes de serviços judiciários, militares, fiscais e eclesiásticos e, dois conselheiros.


48

A figura de governadores e ouvidores ainda nos finais do século XIX e início do século XX

encontravam se referenciados nos trabalhos de Barcellos (2003), atuando juntamente com os

órgãos do poder local. Com isso, pode se verificar que já no século XX, a figura de

governador continuava ainda no arquipélago.

Enfim, em Cabo Verde os governadores continuaram até as vésperas da independência, mas

com as suas atribuições diminuídas, tendo em conta que com a separação dos poderes

legislativos, executivos e judiciais pela constituição portuguesa de 1822 e de 1933, as

questões relacionadas com a administração da justiça foram deixadas exclusivamente nas

mãos dos juízes ou nos tribunais, ficando assim os governadores direcionados apenas às

questões políticas e administrativas das ilhas.

Varela (2011) considera que a partir da época da nomeação dos ouvidores em substituição dos

corregedores, a situação da justiça local nas ilhas não sofreu grandes alterações até os meados

do século XVIII, enquanto que ao nível da justiça régia as mudanças eram direcionadas

conforme as circunstâncias. Um exemplo disso foi o caso de nomeação do syndicante juiz-

desembargador Custodio Correia de Matos, para investigar e enviar provas à metrópole sobre

caso de conflito entre o governador e o ouvidor geral (Varela, 2011 - caso retirado em

Barcellos, 2003).

Com essa afirmação de Varela (2011), podemos dizer então que até os meados do século

XVIII, os figurinos dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde mantiveram

praticamente os mesmos, verificando-se apenas pequenas alterações, sobretudo em relação

aos oficiais régios enviados pela metrópole.

Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde no século XIX


49

A partir do século XIX, com a aprovação da primeira Constituição de Portugal em 1822, deu-

se a separação entre os poderes legislativo, executivo e judicial, e na sequência foi aprovado o

Código Administrativo de 1842, que mudaram o panorama da justiça local em Cabo Verde

(Varela 2011).

A divisão entre os três poderes é encontrada nos artigos 29° e 30° da Constituição portuguesa

de 1822. O artigo 29° define o regime português como Monarquia constitucional hereditária,

com leis que regulam o exercício dos três poderes do Estado. Já o artigo 30° identifica esses

três poderes como o legislativo, o executivo e o judicial, fixando o poder judicial nos juízes

ou nos tribunais, e estipulando que cada um dos poderes atuam de forma independentes.

Conforme o artigo 176° dessa Constituição, o poder judicial pertencia exclusivamente aos

juízes, não podendo nem o Rei, nem as Cortes as executar.

Desta feita, então à luz dos artigos dessa Constituição, podemos dizer que o longo período de

administração da justiça em Cabo Verde seguiu um novo rumo, tendo em conta que com a

separação dos três poderes do Estado, os grandes oficiais que historicamente intrometiam

facilmente nos feitos da justiça não poderão mais, uma vez que a própria constituição não os

permitia. A prova de aplicabilidade dessa legislação para Cabo Verde é o artigo 20° que

define o território da nação portuguesa, mais concretamente no seu ponto III onde identifica

as ilhas de Cabo Verde como sendo parte do reino de Portugal. Além disso, de acordo com o

Livro/ Praia (2006), “É importante recordar que a constituição de 1822 tinha proclamado o

princípio da unidade de estatuto político e de legislação entre as colónias e a metrópole…”

(citado em Amado, 2019, p. 8)

Em relação aos juízes, a Constituição portuguesa de 1822 aponta os juízes de facto (artigo

177°, com atribuições nos casos de crimes cíveis, as causas relacionadas com o abuso da

liberdade de imprensa entre outras determinadas pelo código), os juízes letrados de primeira

instância para cada um dos distritos (artigo 179°, com competência nas causas que julgam os
50

juízes de facto e outras não pertencentes à competência desses juízes) e os juízes electivos

para cada uma das subdivisões dos distritos (artigo 180°, 181°, com atribuições para julgar

sem recurso as causas cíveis e criminais de pequena instância).

Andrade (1996) considera que no século XIX o arquipélago encontrava-se dividido em

conselhos, sendo responsável o administrador do conselho para cada um dos conselhos, e

ainda havia uma junta de justiça criminal composta pelo governador, juiz, delegado do

procurador do reino e três oficiais mais graduados do exército.

Já o Código Administrativo de 1842, além de mencionar os diferentes oficiais que existiam,

pelo artigo 7° e 10°, ao demonstrar os elementos pertencentes à Câmara Municipal deixa de

fora os juízes ordinários que historicamente fizeram parte das Câmaras e que eram um dos

órgãos de administração da justiça local em Cabo Verde. A partir do artigo 116°, (“SECÇÃO

VI”, do Código Administrativo de 1842), é apresentado as atribuições das Câmaras, como a

de regular suas rendas e administrar seus estabelecimentos, porém também ficaram omissos

questões relacionadas com a administração da justiça.

Podemos concluir então que, a partir dessa data, com a separação dos poderes do Estado e a

nomeação de novos oficiais, embora se continuavam a atuar num mesmo espaço os órgãos do

poder central e do poder local, pelo visto as Câmaras não estavam mais relacionadas com

questões de administração da justiça.

Nos meados do século XIX, através das informações retiradas no B.O n° 34 de 3 de julho de

1843, Andrade (1996) mostra nos que nessa época a administração da justiça compreendia

órgãos como: Juiz da Província, Delegado do Procurador Real e Juízes de Paz, mas que

mesmo assim a justiça era considerada precária no país.

Já a partir do ano 1851, Varela (2011) afirma que foi alterada a figura dos órgãos de

administração da justiça em Cabo Verde, onde a Província foi dividida em Comarcas de


51

Barlavento e de Sotavento, ficando cada um sob a alçada de um Juiz de Direito e de um

Procurador Régio.

Ao nível dos concelhos Varela (2011) aponta como órgãos de administração da justiça nessa

época os Juízes Eleitos, que atuavam sob a jurisdição dos tribunais superiores das comarcas,

os Regedores de Paroquia, instituídos pela Portaria Provincial de 9 de Julho de 1852 que

legitima a participação popular na administração da justiça, com funções semelhantes aos

quais possuíam os Juízes Eleitos, o Administrador do Concelho, que também desempenhavam

cargos de Juízes Eleitos, e os Cabos de Polícia, que juntamente com os regedores eram na

prática os dirimidores dos conflitos das camadas menos favoráveis da população, posto que

suas queixas raramente chegavam ao Administrador do Concelho e aos Tribunais de Comarca

pela falta de meios sociais, políticos e económicos.

Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde no século XX

A partir de 1926, época de vigência da ditadura na metrópole e com reflexo nas colónias, a

situação da administração da justiça em Cabo Verde não parecia ser a melhor coisa do mundo,

tendo em conta que conforme nos diz Amado (2019), era normal presenciar-se com casos de

julgamentos sem culpas formadas, os tribunais não eram independentes nem imparciais, e a

justiça era administrada e função do governo e não da população.

Já a partir da década de 1930, com a ascensão de Salazar ao poder em 1932, marca-se um

novo período de administração das ilhas, época, que coincide com a aprovação da

Constituição de Portugal de 1933, considerado por Varela (2011) como o período do

nascimento do Estado Novo em Portugal, sendo um Estado que de acordo com Amado (2019)

tenta exercer total controlo sobre a vida da população.

Segundo Amado (2019), o regime Salazar rejeitava claramente a separação dos poderes, ao

ponto que os órgãos de soberania perderam suas principais funções em detrimento do


52

Governo. Por sua vez, Andrade (1996) defende que nessa época privilegiavam-se a

centralização e a administração directa, tendo em conta que eram os órgãos de soberania

portuguesa que em última instância decidiam da vida política, económica e social do povo de

Cabo Verde.

A Constituição portuguesa de 1933, artigo 115°, além de informar que a função judicial era

exercida pelos tribunais ordinários e especiais, apresenta os seguintes órgãos de administração

da justiça: O Supremo Tribunal de Justiça, os tribunais de segunda instância nos distritos

judiciais do continente, das ilhas adjacentes e das colónias, os tribunais judicias de primeira

instância nas comarcas de todo o território nacional, os juízes municipais com competências

limitadas nas comarcas, e os juízes de paz.

Contudo, segundo Amado (2019), a Constituição de Portugal de 1933 “continha alguns

artigos importantes, que se fossem aplicados, trariam alguns benefícios para os colonizados.

Esta constituição era incompatível com a realidade vivida nas colónias, e em alguns aspetos,

entrava em choque com a própria realidade vivida em Portugal” (p. 84).

Já no período da luta anticolonial, Varela (2011) defende que na maior parte dos Estados

africanos o direito do Estado colonizador e os chamados direitos tradicionais coexistiam num

mesmo espaço, dando origem a vários conflitos. Dessa situação de confronto entre o direito

colonial e o chamado direito tradicional, Varela (2011) denomina de “pluralismo jurídico”,

período que ele considera como uma fase de “combinação, articulação e tensão entre a justiça

revolucionária e a africana que alberga, em simultâneo, formas de autoridade

<<revolucionárias>> e <<tradicionais>>” (p. 301).

É nesta senda que Varela (2011) afirma que Amílcar Cabral, antigo líder do PAIGC, pretendia

implantar em Cabo Verde e na Guiné-Bissau uma nova forma de administrar a justiça, ou

seja, “uma alternativa ao direito colonial vigente” (p. 299).


53

Como consequência, apareceram os tribunais populares que foram introduzidos nas zonas

conquistadas da Guiné-Bissau, para solucionar casos de conflitos entre as populações dessas

aldeias (Varela, 2011). Os referidos tribunais, denominados de Tribunais de Tabankas,

segundo uma análise da Revista do Ministério da Justiça (1979) mostrou-se que, “os filhos da

nossa terra têm mostrado capacidade de julgar os erros, os crimes e outras faltas cometidas

por outros filhos da nossa terra” (citado em Varela, 2011, p. 300). Em relação à última parte

da afirmação, podemos deduzir que se referia aos filhos de Cabo Verde, uma vez que, na

altura, Cabo Verde e Guiné-Bissau através do PAIGC, se encontravam unidos por um mesmo

objectivo, a independência.

No entanto, o que quer dizer Varela (2011) é que nessa época, além da justiça era

administrada exclusivamente pelos órgãos indicados pela metrópole, PAIGC nas zonas

conquistadas da Guiné-Bissau tentava implantar sua própria forma de justiça, administrada

pelo seu próprio povo, através dos tribunais instituídos com base nas suas ideologias, crenças

e tradições, o que pareceu mais tarde transportar esse modelo de justiça para Cabo Verde com

a implantação dos Tribunais de Zona.

Ao aproximar-se da independência, ano de 1970, conforme a Revista do Ministério da Justiça

(1979), em Cabo Verde “o Estado contava oficialmente com dois Tribunais de Comarca (um

na cidade da Praia e outro em Mindelo), dependentes do Tribunal de Relação de Lisboa, e

também com os Tribunais Municipais que situavam nos concelhos” (Citado em Varela, 2011,

p. 306). Nessa época, as autoridades jurisdicionais locais que existiam eram os Regedores e os

Cabos-Chefes (Varela, 2011).

Em suma, são os que foram apresentados por Varela (2011), os Tribunais de Comarca, o

Tribunal da Relação de Lisboa, os Tribunais Municipais, os Regedores e os Cabos-Chefes, os

principais órgãos de administração da justiça em Cabo Verde dessa época que se prolongaram
54

até as vésperas da independência, onde foram formalmente dissolvidos pelo novo Estado

recém-independente.
55

Capítulo II - Os Órgãos de Administração da Justiça em Cabo Verde após a

independência

Período de 1975 a 1980

Após a independência, parece se ter mudado o quadro dos órgãos de administração da justiça

em Cabo Verde. Obviamente com o Estado recém-independente, vai se introduzir novos

órgãos e novos instrumentos jurídicos no que tange a administração judicial, social e política

da sociedade cabo-verdiana.

Nessa altura, foi aprovada pela Assembleia Nacional Popular, a Lei sobre a Organização

Política do Estado (LOPE), sendo um instrumento jurídico de organização do novo Estado

que vigorou até 1980, com a aprovação da primeira Constituição da República de Cabo

Verde. A LOPE no artigo 17° apresentava como órgãos de administração da justiça em Cabo

Verde o Conselho Nacional de Justiça, como instância judicial suprema, e os tribunais

previstos pela lei (neste caso seriam os que vieram a ser introduzidos pelo Decrecto-lei

n°33/75 de 16 de Outubro, que aprova a Organização Judiciária da República de Cabo Verde).

Como dito anteriormente, com a independência o Estado deixa de lado as estruturas judiciais

e os órgãos de administração da justiça herdada do colonialismo, facto que se evidencie desde

logo pelo preâmbulo do decreto-lei n° 33/75 de 16 de Outubro, onde diz o seguinte:

A estrutura judiciária herdada do colonialismo não serve às reais necessidades nem aos

verdadeiros objectivos da Justiça em Cabo Verde…. Por outro lado, a verdadeira justiça

que se quer edificar no nosso País, de acordo com a linha político-ideológica traçada pelo

PAIGC, requer que os serviços de Justiça se organizem em moldes, mais consentâneos

com as realidades da nossa terra e com os interesses do nosso Povo.


56

Nesse Decrecto-lei, pelo artigo 2° foi dividido o Território Judicial da República de Cabo

Verde em Regiões, que dividem em Sub-Regiões, e estas, que se encontravam subdivididas

em Zonas. As regiões seriam as do Barlavento e as do Sotavento (artigo 3°.1), as sub-regiões,

os concelhos (artigo 5°), e as zonas judicias as que foram determinadas pela lei (artigo 6°).

Figuravam-se como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde o Conselho Nacional

de Justiça, os Tribunais Regionais, os Tribunais Sub-Regionais e os Tribunais de Zona.

O Conselho Nacional de Justiça, como instância judicial suprema, era um tribunal de recurso

e de revista, e possuía competência plena sobre todas as causas cíveis, criminais, judiciarias e

administrativas (decreto-lei n° 33/75, artigo 7°).

Os Tribunais Regionais, conforme artigo 14° do decreto-lei n° 33/75 de 16 de Outubro, se

encontravam direcionados para cada uma das regiões, composto por um Juiz de Direito e

quarenta assessores populares. O Juiz de Direito da região possuía jurisdição sobre toda a

região (artigo 17°). Competia aos Tribunais da Região julgar em primeira instância as causas

cíveis, os procedimentos cautelares, as transgressões e os feitos crimes que não se

encontravam excluídas das suas competências ou não pertenciam ao juízo final (artigo 34°.1 /

34°.2).

Já os Tribunais Sub-Regionais, suas áreas de jurisdições eram os concelhos, sendo cada um

constituído por um juiz e dezasseis assessores populares (decreto-lei n° 33/75 de 16 de

Outubro, artigo 21°).

Os tribunais sub-regionais subdividiam-se em tribunais sub-regionais de primeira e de

segunda classe. Os tribunais sub-regionais de 1ª classe na Região de Sotavento encontravam-

se nos concelhos do Fogo e Santa Catarina, e na Região de Barlavento, apenas em Ribeira

Grande de Santo Antão. Já os tribunais sub-regionais de 2ª classe na Região de Sotavento

eram direcionados para os concelhos do Tarrafal, Santa Cruz, Brava e Maio, e na Região de
57

Barlavento para os concelhos do Paúl, Porto Novo, São Nicolau, Boa Vista e Sal (Decrecto-lei

n° 33/75 de 16 de Outubro, Mapa IV).

Aos Tribunais Sub-Regionais de 1ª classe competiam julgar as transgressões e os feitos-crime

que não pertenciam ao Juízo Especial quando a pena aplicável não era superior a dois anos de

prisão, e os processos cujo valor não ultrapasse a 50.000 escudos (decreto-lei n° 33/75, artigo

39°). Já os de 2ª classe, também possuíam competências para julgar os feitos-crime quando a

pena aplicável não ultrapassasse a dois anos de prisão, mas diferentemente dos Tribunais Sub-

Regionais de 1ª classe, estes só podiam julgar os processos cíveis cujo o valor não

ultrapassasse a 25.000 escudos (decreto-lei n° 33/75, artigo 40°).

Das decisões dos Tribunais Sub-Regionais cabiam recurso aos Tribunais Regionais em

matéria cível, e ao Conselho Nacional de Justiça em matéria criminal (decreto-lei n° 33/75,

artigo 44°.1 / 44°.2)

Por último os Tribunais de Zona, conforme referenciado pelo artigo 26°.1 do decreto-lei n°

33/75 de 16 de Outubro, em cada zona judicial havia um conselho de justiça de zona,

composto por cinco membros eleitos anualmente de entre os membros de reconhecida

idoneidade social.

No entanto, os Tribunais de Zona parecem ser um dos primeiros órgãos de administração da

justiça em Cabo Verde logo após a independência. Nas palavras do Presidente do Supremo

Tribunal de Justiça Benfeito Mosso Ramos,

… nos inícios do Estado pós-colonial, logo após a independência, já na transição do 25 de

Abril para a independência, as estruturas de justiça e de resolução de litígios que existiam

foram praticamente desmantelados, eram os cabos-chefes, e os regedores, e houve um

vazio e esse vazio é preenchido pelos TZs … (Cadernos de Campo, 2011, citado em

Varela, 2011, p. 319).


58

Todavia, as atribuições dos Tribunais de Zona eram menores em relação às do Conselho

Nacional de Justiça, às dos Tribunais Regionais e às dos Tribunais Sub-Regionais. De acordo

com o decreto-lei n° 33/75 de 16 de Outubro, os Tribunais de Zona deviam procurar sempre

conciliação entre as partes, possuíam competências para julgar as causas cíveis cujo o valor

não ultrapasse a 5.000 escudos, as injurias, calunias, difamações e os demais crimes contra a

honra, honestidade e a moral pública, os crimes de roubo, furto, abuso de confiança, crimes de

ofensa corporais e outras atribuições que lhe forem delegadas pela lei.

Maia (1996) defende que a justiça popular, feita pelos Tribunais de Zona, tratava-se de uma

justiça “efectuado por cidadãos comuns, pertencentes inclusive às camadas sociais subalternas

(operários, camponeses, pequenos burgueses), não investidos na função pública de julgar; e,

numa perspectiva material, refere-se a um julgamento de consciência, dispensado da

fundamentação técnico-normativa...” (citado em Varela, 2011, p. 321). É neste sentido que

Varela (2011) afirma que os Tribunais de Zona julgavam apenas as pequenas causas cíveis e

criminais, envolvendo as camadas mais baixas da população.

Apesar que não eram considerados tribunais judiciais, não possuíam juízes ou magistrados

judiciais na composição das suas estruturas e os seus procedimentos possuíam na prática um

caracter informal, os Tribunais de Zona possuíam um código próprio e constituíam uma

alternativa aos tribunais oficiais, que para além de mediação e conciliação, podiam por

iniciativa própria desencadear processos que possivelmente iria originar decisões que gerava

obrigações, o que causaria legalmente recurso aos tribunais superiores (Varela, 2011).

Conforme o artigo 46° do decreto-lei n° 33/75 de 16 de Outubro, das decisões dos Tribunais

de Zona cabiam recurso aos Tribunais Regionais, que iriam decidir definitivamente.

Embora apresentado esses tribunais como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde,

Cardoso (2016) alega que a separação dos poderes, legislativo, executivo e judicial, não havia
59

sido instituído e o poder judicial foi esvaziado do seu conteúdo essencial, uma vez que os

juízes não eram independentes e os tribunais encontravam-se totalmente submetidos aos

interesses políticos e ideológicos do PAIGC. Cardoso (2016) afirma que o próprio artigo 20°

n° 2 da LOPE constituía um obstáculo ao estipular que, “no exercício da justiça <<só pode

participar da composição dos tribunais aquele que tiver provado a sua idoneidade para o

exercício de julgador com fidelidade às conquistas revolucionárias do Povo de Cabo

Verde>>” (p. 54). A última parte da frase parece referir às conquistas e objetivos do PAIGC,

a força política dirigente da sociedade e do Estado na altura.

Enfim, do ano 1975 a 1980, embora figuravam-se como órgãos de administração da justiça o

Conselho Nacional de Justiça, os Tribunais Regionais, os Tribunais Sub-Regionais e os

Tribunais de Zona, a própria lei que se organizava o Estado colocava total subordinação do

poder judicial aos interesses políticos e ideológicos do partido político que dirigia a sociedade

cabo-verdiana.

Década de 80 (1980) a 90 (1990)

Já a partir de 1980, época da aprovação da primeira Constituição da República de Cabo

Verde, a situação dos órgãos de administração da justiça não parece ter tido uma alteração

profunda em relação ao ano de 1975.

A CRCV de 1980, artigo 87°.2, estipula que “a Justiça é administrada com base na ampla

participação popular”, conteúdo que Varela (2011) refere aos Tribunais de Zona, afirmando

que continuou-se com a justiça popular e os Tribunais de Zona em Cabo Verde.

De acordo com o artigo 87°.3 dessa Constituição, a administração da justiça competia

exclusivamente aos tribunais instituídos pela lei. Neste caso, seria o Supremo Tribunal de

Justiça (STJ), os Tribunais Regionais e os Tribunais Sub-Regionais, ou seja, os que vieram a

ser introduzidos pela Lei n° 3/81 de 2 de março.


60

A CRCV de 1980 indicava ainda como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde os

tribunais especiais, sendo tribunais militares e aduaneiros, encarregados do julgamento

exclusivo das causas e processos dentro das suas áreas de atuações (artigo 89°.2). Seria então

essa introdução de tribunais especiais as novidades nos órgãos de administração da justiça em

Cabo Verde em 1980, em relação ao ano de 1975.

Na sequência da Constituição da República de 1980, foi aprovada a Lei n° 3/81 de 2 de

março, que estabelece a Organização Judiciária da República de Cabo Verde. Com a

aprovação dessa lei, o Conselho Nacional de Justiça passou a ser denominado de Supremo

Tribunal de Justiça e o Conselho de Justiça de Zona passou-se para Tribunais de Zona

(Varela, 2011). Por essa lei, o território judicial da República de Cabo Verde também se

dividia em regiões e sub-regiões. Pelo artigo 3°, é indicado que a administração da justiça

competia aos tribunais judiciais, os que de acordo com o artigo 4° seriam o Supremo Tribunal

de Justiça, os Tribunais Regionais e os Tribunais Sub-Regionais. O Supremo Tribunal de

Justiça era considerado a instância judicial suprema no país (artigo 5°.). Já os Tribunais

Regionais, conforme o artigo 15°.1, eram direcionados para cada uma das regiões e possuíam

competências sobre todas as causas, desde que não sejam excluídas das suas competências ou

não pertençam ao juízo especial (artigo 18°.1). Por último, os Tribunais Sub-Regionais,

comparando com o ano de 1975, também eram direcionados para cada uma das sub-regiões

(artigo 22°.1). Em relação aos Tribunais de Zona, todas as disposições que referem a este tipo

de tribunal, encontravam-se revogados.

Década de 90 (1990) a 99 (1999)

A partir da década de 1990, com a revisão constitucional, o PAICV deixou de ser força

política dirigente da sociedade e do Estado de Cabo Verde pela aprovação da lei dos partidos

políticos.
61

Segundo Varela (2011), nessa época, com a abertura política e a substituição do regime do

partido único pela democracia representativa seguido das eleições legislativas de 1991, os

Tribunais de Zona, que eram um dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde,

acabaram por ser dissolvidos pelo novo partido político que entrou no poder. Os Tribunais de

Zona foram formalmente extintos logo no primeiro artigo da Lei n° 6/IV/91. Já no artigo

segundo estipulava-se que suas competências passariam aos Tribunais Regionais e Sub-

Regionais de acordo com as áreas de suas jurisdições. Enfim, com essa presente lei foram

revogados os Tribunais de Zona, os estatutos dos seus juízes, assim como toda a legislação

que lhe desrespeita.

A Constituição da República de Cabo Verde de 1992 parece ter trazido algumas novidades em

relação aos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde. Logo no preâmbulo dessa lei

constitucional defendia-se um poder judicial forte e independente, o que constituía uma boa

impressão sobre os órgãos do Estado no que tange à separação dos poderes.

Portanto, em Varela (2011) é encontrada uma pequena mudança em relação aos órgãos de

administração da justiça dessa época onde, as regiões e sub-regiões (Tribunais Regionais e

Sub-Regionais) passaram a ser denominados de comarcas de primeira, segunda e terceira

instância. De acordo com o artigo 223° dessa Constituição, os órgãos de administração da

justiça seriam exclusivamente os tribunais criados nos termos da Constituição e da lei, em

conformidade com as normas de competência e de processo legalmente estabelecidas.

Seriam os seguintes os órgãos de administração da justiça no ano de 1992: o Supremo

Tribunal de Justiça (STJ), os Tribunais Judiciais de Primeira Instância, o Tribunal de Contas,

Tribunais Militares, fiscais e aduaneiros (CRCV, 1992, artigo 228°). Além disso, era definido

que podia existir Tribunais Judiciais de Segunda Instância, Tribunais Administrativos ou

ainda podiam ser criados nos termos da lei tribunais especializados de acordo com a matéria

(CRCV, 1992, artigo 228°.6).


62

O Supremo Tribunal de Justiça, como sabido, é o órgão jurisdicional supremo no país e com

jurisdição sobre todo o território nacional. O STJ podia apreciar a constitucionalidade das

normas e a legalidade das resoluções, verificar a morte ou incapacidade do Presidente da

República e entre outras funções que lhe foram delegadas pela constituição ou pela lei

(CRCV, 1992, artigo 237°). No entanto, vê-se aqui que o STJ desempenhava o papel que

normalmente desempenha o Tribunal Constitucional, como por exemplo no que tange a

fiscalização da constitucionalidade e a legalidade das resoluções, tendo em conta que nessa

data não havia ainda instituído o Tribunal constitucional em Cabo Verde.

Os Tribunais Judicias de Primeira Instância seriam os Tribunais de Comarca (artigo 228°.3),

os que no período do partido único eram denominados de Tribunais Regionais. De acordo

com as suas competências, os Tribunais Judiciais de Primeira Instância abarcavam as causas

que por lei não eram atribuídas às outras jurisdições (CRCV, 1992, artigo 239°).

O Tribunal de Contas seria o órgão superior da fiscalização da legalidade das despesas

públicas e do julgamento das contas que por lei lhe foram submetidos (CRCV, 1992, artigo

241°).

Os Tribunais Militares, conforme o próprio nome diz e de acordo com o artigo 240°, julga

essencialmente as causas ou crimes militares e das suas decisões cabem recurso ao STJ nos

termos da lei.

Contudo, além dos tribunais nacionais apresentados como órgãos de administração da justiça

em Cabo Verde, no ano de 1992, a Constituição da República estipulava no seu artigo 223°.2

que a justiça podia também ser administrada por “tribunais instituídos por convenções

constitutivas de organizações supra-nacionais de que Cabo Verde seja parte…”, o que

constituía uma grande novidade em relação aos instrumentos jurídicos nacionais que fixaram

os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde.


63

A partir de 1999

A partir de 1999, marca-se um novo período no que tange aos órgãos de administração da

justiça em Cabo Verde. De acordo com Silva (2014), pela revisão constitucional ordinária de

1999 deu-se as seguintes inovações em relação aos órgãos de administração da justiça no país:

a) Foi criado o Tribunal Constitucional para administrar a justiça em matérias de natureza

jurídico-constitucional; … c) Os tribunais arbitrais foram constitucionalizados,

resolvendo-se dúvidas surgidas sobre a sua admissibilidade constitucional; d) Foram

admitidos organismos de regulação de conflitos em áreas territoriais mais restritas do que

as de jurisdição dos tribunais judiciais de primeira instância; … f) Admitiu-se a

possibilidade de a justiça poder ser administrada por Tribunais instituídos através de

tratados, convenções ou acordos internacionais… (p. 38).

No entanto, embora para Silva (2014) foi com a revisão constitucional de 1999 é que se

admitiu a possibilidade de a justiça ser administrada por tribunais instituídos através de

tratados acordos ou convenções internacionais, na CRCV de 1992 já se admitia essa

possibilidade, mas apenas com uma designação diferente. Vejamos o que diz o artigo 223°.2

da CRCV (1992): “O poder jurisdicional poderá também ser exercido por tribunais instituídos

por convenções constitutivas de organizações supra-nacionais de que Cabo Verde seja parte,

em conformidade com as normas de competência e de processo nelas estabelecidas”.

A CRCV de 1999 apresenta como órgãos de administração da justiça os Tribunais, os órgãos

não jurisdicionais de composição de conflitos e os tribunais instituídos através de tratados,

acordos ou convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte (artigo 209°).

Os Tribunais encontravam categorizados em: o Tribunal Constitucional, o STJ, o Tribunal de

Contas, o Tribunal Militar de instância, os Tribunais Fiscais e Aduaneiros, além dos tribunais

judiciais de segunda instância, dos tribunais administrativos, dos tribunais arbitrais e dos
64

organismos de regulação de conflitos em áreas territoriais mais restritas do que a de jurisdição

do tribunal judicial de primeira instância, que podem ser criados nos termos da lei (CRCV,

1999, artigo 213°).

O Supremo Tribunal de Justiça é referenciado como o órgão supremo da hierarquia dos

tribunais judiciais, administrativos, fiscais, aduaneiros e do tribunal militar de instância e

possui jurisdição sobre todo o território nacional (CRCV, 1999, artigo 214°).

Os Tribunais judiciais de primeira instância, segundo o artigo 215°, são os tribunais comuns

com jurisdição nas matérias cíveis, criminais e todas as causas que por lei não sejam

atribuídas à outra jurisdição.

Já o Tribunal de Contas, conforme se encontra estipulado no artigo 216°, é o órgão supremo

da fiscalização de legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que pela lei lhe

foram submetidas.

Ao Tribunal Militar de Instância, conforme o artigo 217°, compete o julgamento de crimes de

matérias essencialmente militares com recurso para o STJ.

Os Tribunais Fiscais e Aduaneiros possuíam competência no julgamento das causas ou crimes

relacionados com matérias fiscal, aduaneira, comercial ou outras infrações de natureza

económica ou financeira (CRCV, 1999, artigo 218°).

Por último, o Tribunal Constitucional, conforme o artigo 219°, possui competências para

administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, fiscalização da

constitucionalidade e legalidade nos termos da Constituição, resolução de conflitos de

jurisdição e, no que tange ao recurso de amparo.

Os órgãos de administração da justiça em Cabo Verde nos dias atuais

Actualmente, com a última revisão ordinária constitucional em 2010, os órgãos de

administração da justiça no país parecem também sofrer alterações em relação ao ano de


65

1999, aquando da publicação da CRCV dessa época. Para Silva (2014), com a CRCV de 2010

deu-se “a mais profunda reforma do sistema judicial do pós-independência” (p. 40).

De acordo com os artigos 210°.1 e 210°.2 da CRCV de 2010, os órgãos de administração da

justiça são: os tribunais, os órgãos não jurisdicionais de composição de conflitos e os tribunais

instituídos através de tratados, acordos ou convenções internacionais de que Cabo Verde seja

parte.

No entanto, no que se refere aos tribunais nacionais como órgãos de administração da justiça,

estes atualmente se encontram definidos na CRCV de 2010 e na Lei n° 88/VII/2011 que

aprova a organização, competência e o funcionamento dos tribunais judiciais.

Conforme o artigo 3° da Lei n° 88/VII/ 2011, os tribunais são os órgãos de soberania

encarregados de administrar a justiça em nome do povo. Já o artigo 17° estipula que os

tribunais judiciais possuem competências para administrar a justiça em matérias cível,

criminal, administrativa e em toda a matéria que por lei não for reservada à outra jurisdição.

Os tribunais como órgãos de administração da justiça encontram-se divididos em diferentes

categorias como o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça, os Tribunais

Judiciais de Primeira Instância, os Tribunais Judiciais de Segunda Instância, o Tribunal de

Contas, o Tribunal Militar de Instância, os Tribunais Fiscais e Aduaneiros e ainda podem ser

criados nos termos da lei Tribunais Administrativos, Tribunais Arbitrais e organismos de

regulação de conflitos em áreas territoriais mais restritas do que a de jurisdição dos tribunais

judiciais de primeira instância, além dos tribunais com competências especificas e

especializados, mas não exclusivo em relação à determinadas matérias (CRCV, 2010, artigo

214°). Pela Lei n° 88/VII/2011, os tribunais judiciais são o Supremo Tribunal de Justiça, os

Tribunais Judiciais de Segunda Instância ou Tribunais de Relação e os Tribunais Judiciais de

Primeira Instância ou Tribunais de Comarca (artigo, 18°).


66

Conforme se encontra estipulado nessa lei, o território judicial da República de Cabo Verde se

divide em Círculos e Comarcas. Os Círculos correspondem ao território de cada conjunto das

ilhas de Sotavento e de cada conjunto das ilhas de Barlavento, cada um composto por um

tribunal de segunda instância (artigo 14°). Já a Comarca corresponde ao território de cada

Município onde o respetivo tribunal se encontra instalado ou as áreas definidas pela lei (artigo

15°).

O Tribunal constitucional, sendo um dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde,

assim como na revisão constitucional de 1999, possui competências para administrar a justiça

em relação às matérias de natureza jurídico-constitucional, designadamente no que se refere a

fiscalização da constitucionalidade e legalidade nos termos da constituição, resolução de

conflitos de jurisdição e do recurso de amparo (CRCV, 2010, artigo 215°).

O Supremo Tribunal de Justiça, agora também considerado órgão superior da hierarquia dos

tribunais judiciais, administrativos, fiscais, aduaneiros e do tribunal militar de instância,

funciona como um tribunal de revista e de recurso das decisões dos Tribunais de Relação

quando estes julgam as causas em primeira instância e como um tribunal de primeira instância

nos casos previstos pela lei (Lei n°88/VII/2011, artigo 22°).

De acordo com a Lei 88/VII/2011, o STJ pode funcionar em plenário sob a direção do seu

presidente ou por secções. O STJ ao funcionar em plenário julga as principais autoridades em

Cabo verde como o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional, o

Primeiro Ministro, o Presidente do Tribunal Constitucional, do STJ, do Conselho Superior de

Magistratura Judicial e exerce as demais funções que lhe forem conferidas pela lei (Lei

n°88/VII/2011, artigo 34°). Já ao funcionar por secções possui competências para julgar as

ações propostas contra os juízes do Tribunal Constitucional, do STJ, dos Tribunais de

Relação, os magistrados do Ministério Público que exerçam funções nos Tribunais de

Relação, os recursos das decisões dos tribunais de segunda instância, os recursos que por lei
67

são da sua jurisdição, pode exercer ainda jurisdição em matéria de habeas corpus, conhecer

conflitos de competência e de jurisdição entre os tribunais e exercer as demais competências

que lhe forem conferidas pela lei (Lei n°88/VII/2011, artigo 35°).

No que se refere aos Tribunais Judiciais de Segunda Instância ou os denominados de

Tribunais de Relação, estes, de acordo com artigo 217° da CRCV de 2010, são considerados

tribunais de recurso das decisões proferidas pelos Tribunais Judiciais de Primeira Instância,

das, pelos tribunais administrativos, fiscais e aduaneiros e das, pelo Tribunal Militar de

Instância. São apresentados dois Tribunais de Relação em Cabo Verde: o Tribunal de Relação

de Sotavento, sediada na Cidade de Assomada com jurisdição sobre todas as comarcas das

ilhas de Sotavento, e o Tribunal de Relação de Barlavento, com sede na cidade de Mindelo e

jurisdição sobre todas as comarcas das ilhas de Barlavento (Lei n°88/VII/2011, artigo 36°).

Já em relação aos tribunais Judiciais de Primeira Instância, conforme o artigo 218° da CRCV

de 2010, estes, são considerados “tribunais comuns em matéria cível e criminal e conhecem

de todas as causas que por lei não sejam atribuídas a outra jurisdição”. “A área de

competência dos tribunais judiciais de primeira instância é, em regra, a comarca e estes,

designam-se pelo nome da circunscrição em que se encontram inseridos” (Lei n°88/VII/2011,

artigo 44°).

Como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde é apresentado ainda o Tribunal de

Contas (CRCV, artigo 219° - com competência na fiscalização da legalidade das despesas

públicas e do julgamento das contas que lhe foram submetidas pela lei), o Tribunal Militar de

instância (CRCV, artigo 220° - que julga as causas de matérias essencialmente militares), os

Tribunais Fiscais e Aduaneiros (que julga as causas relacionadas com matérias fiscais,

aduaneiras ou outras infrações criminais de natureza económica ou financeira - CRCV, 2010,


68

artigo 221°), é apresentado também Tribunais de Execução de Penas e Medidas de Segurança,

que possui competências para decidir no decurso da execução das sanções criminais sobre a

modificação ou substituição das penas e medidas de segurança, as alterações do estado de

perigosidade criminal, a cessação do estado de perigosidade criminal, a liberdade condicional,

a reabilitação judicial e em geral as questões relacionadas com a execução cuja decisão não

esteja legalmente conferida a outro tribunal ou à outra autoridade (Lei n°88/VII/2011, artigo

67°).

É apresentado, ainda, Tribunais de Pequenas Causas, que possui competências na preparação

e julgamento das causas cíveis de condenação ao pagamento de prestações pecuniárias, na

entrega da coisa movel, nos conflitos respeitantes ao uso e administração de compropriedade,

de superfície, nos processos penais especiais de transação, entre outras (Lei n°88/VII/2011,

artigo 69°).

Há ainda o Tribunal Coletivo, sendo um tribunal judicial de primeira instância com

competência para julgar os processos de matéria penal nos termos da lei processual penal, e os

solicitadores, como auxiliares de administração da justiça que exercem mandatos judiciais nos

casos e com limitações estabelecidas pela lei (Lei n°88/VII/2011, artigo 76°).

Tribunais internacionais como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde

No que se refere aos tribunais instituídos através de tratados, acordos ou convenções

internacionais de que Cabo Verde seja parte como órgãos de administração da justiça no país,

Delgado (2018) afirma que, em princípio, Cabo Verde não se encontra vinculado a muitos

tratados, protocolos ou declarações que criam ou atribuam jurisdição aos tribunais

internacionais.
69

Os tribunais instituídos através de tratados, convenções ou acordos internacionais

considerados, também, órgãos de administração da justiça cabo-verdiana é referenciado pelo

artigo 210° n° 2 da CRCV de 2010.

Para Delgado (2018), a disposição que legitima os tribunais internacionais como órgãos de

administração da justiça “insere no ordenamento jurídico cabo-verdiano uma cláusula de

abertura institucional que domestica as Cortes internacionais, transformando-as em órgãos

judiciários do sistema cabo-verdiano de tribunais” (p. 131).

No entanto, Delgado (2018) apresenta seguintes requisitos para que um tribunal internacional

seja considerado órgão de administração da justiça em Cabo Verde: tem que possuir natureza

judiciária, que seja criado por meio de um tratado com base na decisão adotada com amparo

no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que confere poder desse tribunal e fixa

obrigatoriedade do cumprimento dos Estados-membros, e que o tratado pelo qual o tribunal é

instituído Cabo Verde se encontra legalmente vinculado e igualmente se encontra em vigor.

Segundo Delgado (2018), os tribunais internacionais em que legalmente Cabo Verde se

encontra vinculado

são considerados também tribunais cabo-verdianos à luz da Lei Fundamental da

República.… e se tal efeito estiver previsto nesses instrumentos, nem sequer é preciso

reabrir processos, atendendo a que terão executoriedade directa no ordenamento jurídico

cabo-verdiano.… produziria naturalmente os seus efeitos internos, determinando o seu

cumprimento, nos termos das suas regras de competência e de processo. (p. 132).

O que quer dizer autor é que naturalmente Cabo Verde deve cumprir a decisão desses

tribunais, sendo que também são considerados tribunais nacionais à luz da lei constitucional.

Delgado (2018) apresenta os seguintes tribunais instituídos através de tratados, acordos ou

convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte: o Tribunal Penal Internacional, os
70

tribunais criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Sistema de Solução de

Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Tribunal Internacional do

Direito do Mar e o Centro Internacional de Resolução de Diferendos Decorrentes de

Investimentos (CIRDI) do Banco Mundial. Ainda para Delgado (2018), embora Cabo Verde

não fez a concessão geral de jurisdição ao Tribunal Internacional de Justiça, pode ser

demandado perante esse tribunal através dos vários tratados seus de que o país é parte, que

preveem a intervenção desse órgão, como por exemplo os em relação a matéria de proteção de

Direitos Humanos, os tratados de combate ao terrorismo e a criminalidade internacional, em

relação a proteção internacional do meio ambiente e vários outros instrumentos desse tribunal

que o país também se encontra incorporado.

Seriam então esses os legais tribunais internacionais considerados também órgãos de

administração da justiça cabo-verdiana.

Para além dos mencionados tribunais, existem casos de situações mais complexas, que tem

vindo a suscitar discussões no país, que trata de saber se Cabo Verde deve ou não, ou se está

vinculado ou não a um determinado tribunal internacional. Para Delgado (2018), situação

diferente

são as decisões prolatadas por tribunais a cuja jurisdição Cabo Verde não está, geral ou

especialmente, subordinado. Nestes casos, são estranhas ao ordenamento jurídico

nacional, não tendo os tribunais internos qualquer dever de seguir as suas orientações

jurisprudenciais. O que não significa que, não sendo obrigados a acata-las, não as possam

levar em consideração em jeito de inspiração para tratamento de questões similares que

são trazidas ao seu conhecimento para efeitos de análise da decisão. (p. 158).

Um dos exemplos seria o caso do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, em

que Cabo Verde não vinculou ao protocolo que criou este tribunal.
71

A situação mais complexa ou a mais discutida pelos juízes, magistrados, professores e

quadros cabo-verdianos seria a do Tribunal de Justiça da CEDEAO. Delgado (2018) afirma

que Cabo Verde assinou, mas não ratificou o protocolo que criou este tribunal e nem sequer

assinou o que reviu, “permitindo o acesso a indivíduos e atribuindo-lhe jurisdição em matéria

de proteção dos Direitos Humanos” (p. 126). No entanto, em torno do Tribunal de Justiça de

CEDEAO gira uma grande problemática a ser esclarecida em saber se, este, também seria

considerado órgão de administração da justiça cabo-verdiana, ou seja, se Cabo Verde aceita

ou não as obrigações deste tribunal, questão que teve maior discussão recentemente a partir de

2020 quando veio ao público a problemática do caso Alex Saab. Todavia, existem diferentes

opiniões que versam sobre essa mesma matéria.

Em relação ao caso Alex Saab a questão foi levada ao Tribunal de Justiça da CEDEAO, mas o

Tribunal da Relação de Barlavento não acatou as suas decisões, assim como é da opinião do

Procurador Geral da República de que os protocolos aplicáveis a este tribunal não se

encontram em vigor na ordem jurídica interna cabo-verdiana (Almeida, 2021).

Em contrapartida a decisão do Tribunal da Relação de Barlavento e da afirmação do

Procurador Geral da República, Almeida (2021) considera que:

À luz da própria Constituição, declarar que uma decisão do Tribunal de Justiça da

CEDEAO não deve ser cumprida equivale a declarar igualmente que uma decisão do

Supremo Tribunal de Justiça não deve ser cumprida, o que em si mesmo envolve a

falência do sistema judicial constitucionalmente definido. (para. 13).

Continua ainda Almeida (2021), afirmando que

… os Protocolos relativos ao Tribunal de Justiça da CEDEAO não necessitam de ser

aprovados e ratificados para terem vigência na ordem interna cabo-verdiana, porque, no

meu entender, tais Protocolos recebem título de vigência a partir do próprio Tratado que

institui a CEDEAO e cria o Tribunal de Justiça da organização regional. (para. 14).


72

No entanto, a decisão do Tribunal Constitucional, pelo acórdão n° 39/2021, parece seguir um

sentido contrário às afirmações de Almeida (2021) ao considerar que:

A tese da integração do Tratado da CEDEAO, do Protocolo de 1991 e do Protocolo de

2005, no entendimento desta Corte, também não é suficientemente convincente…. A

razão principal é que se está perante um conjunto de tratados que se vão criando a partir

de uma dinâmica mutável e ajustável própria de uma comunidade de integração

regional… até 2006, o sistema jurídico da CEDEAO foi se desenvolvendo de forma

clássica a partir de um Tratado Revisto de 1993 que refundou a Comunidade e absorveu

um conjunto de Protocolos… Todos eles com natureza de tratado, o que significava que

somente vinculavam os Estados que entendiam, de acordo com o princípio da liberdade

convencional, subordinar-se aos mesmos…. Portanto, as obrigações previstas pelos

Protocolos e suas revisões não se aplicam automaticamente a todos os Estados-Membros,

mas somente na medida em que tenha consentido com aquelas obrigações de acordo com

os termos de um determinado protocolo. (Tribunal Constitucional, 2021, p. 184).

Existem ainda outras opiniões que defendem que em princípio, Cabo Verde não possui

obrigações perante o Tribunal de Justiça da CEDEAO por não ter assinado nem ratificado o

protocolo que institui este tribunal, e que por isso os seus relativos protocolos não se

encontram em vigor na ordem jurídica interna cabo-verdiana. Essa foi a primeira vez que

Cabo Verde foi demandado perante o Tribunal de Justiça da CEDEAO, mas, no entanto, não

acatou as suas decisões.

Contudo, a verdade é que os dois tribunais máximos em Cabo Verde, o Tribunal

Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça, nas suas decisões referentes ao caso Alex
73

Saab, deixaram bem claro que o Estado de Cabo Verde não possui obrigações perante o

Tribunal de Justiça da CEDEAO.

De acordo com o Tribunal Constitucional (2021), o órgão judicial recorrido, neste caso o

Tribunal Constitucional num dos recursos feitos pelo senhor Alex Saab,

não aplicou uma norma resultante dos artigos 15, número 4, e artigos 34, 89 e 90 do

Tratado Constitutivo da CEDEAO e dos Protocolos referentes ao Tribunal de Justiça de

1991 e 2005 que, vinculando Cabo Verde, obrigariam o país a cumprir as decisões

tomadas pelo órgão dessa comunidade, usando argumento que para que um tratado tenha

eficácia plena tem de ser assinado e ratificado e não sendo aquela organização

supranacional não poderiam ser incorporados a partir do número 3 do artigo 12, e porque

ela seria desconforme à cláusula da soberania nacional da Lei Fundamental de Cabo

Verde. (p. 154).

Para o Tribunal Constitucional (2021), “a questão central a discutir do ponto de vista do

mecanismo interno de incorporação dessas normas não tem a ver diretamente com o número 3

do artigo 12, mas essencialmente com o seu número 2” (p. 158).

O número 3 do artigo 12 da CRCV (2010) indica que “os actos jurídicos emanados dos órgãos

competentes das organizações supranacionais de que Cabo Verde seja parte vigoram

directamente na ordem jurídica interna, desde que tal esteja estabelecido nas respectivas

convenções constitutivas”. Já o número 2 do mesmo artigo 12 refere que “os tratados e

acordos internacionais, validamente aprovados ou ratificados, vigoram na ordem jurídica

cabo-verdiana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica

internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Cabo Verde”.


74

No entanto, o Tribunal Constitucional (2021) não considera CEDEAO uma organização

supranacional, apresentando um conjunto de requisitos necessários para que uma organização

internacional seja considerada como supranacional:

a) o reconhecimento pelos Estados-Membros do primado do direito comunitário criado

por órgãos da entidade sobre o direito interno; b) a definição clara das competências que a

Comunidade e as suas instituições exercem em nome e por delegação dos Estados; c) o

efeito direto dos seus atos normativos nessas matérias dentro da ordem jurídica de cada

um desses Estados-Membros. (pp. 159-160).

Não preenchendo rigorosamente essas caraterísticas, para o Tribunal Constitucional (2021) a

questão da CEDEAO só pode ser analisada a partir do número 2 do artigo 12 da CRCV de

2010.

Levando então a questão da CEDEAO para o número 2 do artigo 12 da CRCV de 2010, o

Tribunal Constitucional (2021) afirma que sendo não assinados nem validamente aprovados

os protocolos referentes ao Tribunal de Justiça dessa Comunidade, não se encontram em vigor

na ordem jurídica interna cabo-verdiana, pelo que o Estado de Cabo Verde não pode ser

demandado perante esse tribunal.

Das decisões do Tribunal Constitucional pelo acórdão N° 39°/2021 saiu a seguinte conclusão:

O Tribunal Constitucional confirma a inconstitucionalidade de norma hipotética

decorrente dos artigos 15°, número 4, e artigos 34°, 89° e 90° do Tratado Constitutivo da

CEDEAO e os Protocolos Relativos ao Tribunal de Justiça da CEDEAO de 1991 e de

2005, que determina o cumprimento de decisão do TJ-CEDEAO, que o Supremo Tribunal

de Justiça recusou-se a aplicar por desconformidade com o princípio da soberania

nacional, considerando que para que um tratado entre na esfera jurídica interna e tenha

eficácia plena em conformidade com a Constituição tenha de ser assinado e ratificado,

não tendo Cabo Verde assinado os protocolos que reconhecem a competência do Tribunal
75

de Justiça da CEDEAO em termos de direitos humanos e não sendo a CEDEAO uma

organização supranacional para efeitos do número 3 do artigo 12 da Constituição. Por ser

incompatível com o princípio da soberania nacional, das regras constitucionais sobre

vinculação do Estado de Cabo Verde a tratados e do princípio de acordo com o qual não

se pode privar os tribunais da sua competência, dever declarada inconstitucional com

força obrigatória gral. (Tribunal Constitucional, 2021, pp. 189-190).

Em suma, pelas decisões do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, sendo

os dois órgãos jurisdicionais superiores em Cabo Verde, o Tribunal de Justiça da CEDEAO

não pode ser considerado como um dos órgãos de administração da justiça no país, pois, como

referenciado, Cabo Verde não possui obrigatoriedade de cumprimento das decisões deste

tribunal.

Enfim, de acordo com a última Constituição da República de Cabo Verde e com a Lei n°

88/VII/2011, que define a Organização, Competência e o Funcionamento dos Tribunais

Judiciais, são os que foram apresentados, os tribunais, os órgãos não jurisdicionais de

composição de conflitos e os tribunais instituídos através de tratados, acordos ou convenções

internacionais de que Cabo Verde seja parte, os órgãos que actualmente fazem parte da

administração da justiça em Cabo Verde.


76

Considerações Finais

O tema “Historia dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde” se enquadra num

trabalho científico do fim do curso que se interessa pelo campo histórico-jurídico dos órgãos

de administração da justiça em Cabo Verde.

Como dito anteriormente, a pretensão principal deste trabalho foi de conhecer e identificar de

uma forma mais recente e atualizada os principais órgãos que fizeram e que fazem parte da

administração da justiça em Cabo Verde, entender como funcionava esses órgãos e, se houve

mudanças ou não introduzidas em seus figurinos nos diferentes períodos.

No entanto, nas primeiras décadas dos descobrimentos, a administração da justiça

compreendia como os primeiros órgãos os capitães donatários, encarregados do povoamento

das ilhas. Posteriormente, para combater os abusos e a má administração desses capitães

donatários, foi atribuída aos concelhos através da câmara a possibilidade de também

participarem na administração da justiça, o que não chegou a resolver o problema no seu todo

pelo facto desses órgãos preocuparem mais com suas relações económicas do que com o bem-

estar e a resolução dos litígios que surgiam nas comunidades. Muitas das vezes, eram esses

próprios órgãos os causadores de certos problemas o que, de vez em quando, provocava

inquietação nas populações.

Levando em conta essa situação e face a distância da colónia em relação à metrópole, foi

nomeada um outro órgão, de maior confiança do rei e como a mais alta autoridade para as

ilhas, com o intento de aprimorar a justiça no país. Até os meados do século XVII, foram

sucessivas autoridades ou órgãos que vem substituindo uns aos outros, uns adquirindo e

outros perdendo jurisdições na administração da justiça em Cabo Verde. Os diversos cargos

que existiam surgiam em função da necessidade da melhor administração da justiça por parte

da coroa. Nessa época, a justiça encontrava-se dividida em dois polos: haviam autoridades
77

directamente nomeados pela metrópole, assim como órgãos do poder local que, embora

possuíam atribuições menores, participavam também na administração da justiça. Mesmo

assim a justiça era considerada precária no país, posto que não havia instituído a separação

dos poderes, legislativo, executivo e judicial, e as autoridades de administração da justiça

atuavam com uma certa liberdade e pouco controlo, o que levasse a que muitas das vezes

negligenciasse nas suas funções e entrassem em conflitos pela falta de uma delimitação

precisa das suas jurisdições.

No entanto, até o final do século XVIII, a situação dos órgãos de administração da justiça em

Cabo Verde parece continuar praticamente o mesmo.

Já a partir dos meados do século XIX, com a aprovação da primeira Constituição da

República de Portugal em 1822, nota-se uma grande viragem nos órgãos de administração da

justiça em Cabo Verde. Com essa Constituição, foi determinada que a justiça passaria a ser

administrada exclusivamente pelos tribunais. A partir dessa época, as sucessivas autoridades

ou órgãos que eram nomeados conforme as circunstâncias perderam suas relevâncias, tendo

em conta que com a fixação do poder judicial nos tribunais, as nomeações que existiam

passaram a ser direcionadas para os juízes que constituíam esses tribunais. Apesar disso, nessa

época também se nomeavam os órgãos do poder local, que juntamente com os juízes dos

tribunais participavam na administração da justiça.

Contudo, a partir do século XX, os órgãos de administração da justiça que existiam eram

também os tribunais e os órgãos do poder local que atuavam nos concelhos. Nessa época,

embora a Constituição da República portuguesa de 1933 definia que a função judicial era

exercida pelos tribunais, verificou-se que mesmo assim o poder judicial não possuía total

independência, uma vez que o regime salazarista, a partir do ano 1932, tentava exercer total

controlo sobre o Estado.


78

Já com a independência, o Estado de Cabo Verde instituiu novos tribunais como órgãos de

administração da justiça, aceitando também a possibilidade da participação popular na

administração judicial. Nessa época, os tribunais não possuíam independência nas suas ações,

uma vez que se encontravam submetidos aos interesses do partido político que dirigia a

sociedade cabo-verdiana. No entanto, foi só a partir de 1980 é que se admitiu a possibilidade

da justiça ser administrada pelos tribunais especializados de acordo com a matéria.

Com a independência até a década de 1990, os figurinos dos órgãos de administração da

justiça em Cabo Verde mantiveram praticamente os mesmos, verificando-se apenas pequenas

alterações. Nesse período, os principais órgãos de administração da justiça que existiam eram

o Conselho Nacional de Justiça, que passou a ser denominado de Supremo Tribunal de Justiça

a partir do ano 1981, os Tribunais Regionais, os Tribunais Sub-Regionais, os tribunais

especializados e os Tribunais de Zona que, embora com suas atribuições diminuídas, também

julgavam certos casos. Já em 1991, os Tribunais de Zona acabaram por ser formalmente

extintos como órgãos de administração da justiça em Cabo Verde.

Na sequência disso, foi aprovada pela Assembleia Nacional a CRCV de 1992, onde os

Tribunais Regionais e Sub-Regionais passaram a ser denominados de Tribunais de Comarca

de primeira, segunda e terceira instância. Foi a partir dessa época é que se admitiu a

possibilidade de a justiça ser administrada pelos órgãos não internos do Estado, determinando

que a justiça poderia também ser administrada pelos órgãos supranacionais de Cabo Verde

seja parte.

Já em 1999, com a revisão constitucional ordinária, houve também mudanças nos órgãos de

administração da justiça em Cabo Verde. Com essa Constituição foi determinada que a justiça

poderia também ser administrada pelos tribunais instituídos através de tratados, acordos ou

convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte. Foi a partir daí é que se criou o
79

Tribunal Constitucional em Cabo Verde, sendo que antes era o Supremo Tribunal de Justiça

que exercia as suas competências.

Enfim, até o ano de 2010 e a segunda revisão constitucional ordinária, os órgãos de

administração da justiça vem sofrendo alterações em Cabo Verde.

Em suma, face à pergunta inicial proposta, sobre se “os figurinos dos órgãos de administração

da justiça seguiram sempre uma estrutura linear e continua em Cabo Verde”, podemos

responder que não, tendo em conta que como se vem evidenciando ao longo de todo o

trabalho, consoante foram as mudanças de conjuntura, da época e da realidade, os figurinos

dos órgãos de administração da justiça em Cabo Verde vem sofrendo alterações em função da

necessidade de resolução dos diferendos que surgiam no país.

A relevância do tema é a possibilidade de atribuir ao leitor a faculdade de conhecer os

principais órgãos que participaram na administração da justiça em Cabo Verde, desde as

primeiras décadas dos descobrimentos até os dias atuais, onde, com a mudança do panorama e

da conjuntura, e outros fatores mencionados, foram geralmente distintos nos diferentes

períodos.

A delimitação do tempo de pesquisa e a pouca abundância dos estudos bibliográficos que

versam em profundidade sobre os órgãos de administração da justiça no país, principalmente

em relação ao período pós-independência o que levou a que pesquisa baseasse numa

metodologia mais da parte jurídica em relação a essa época, foram fatores que condicionaram

de uma certa forma o desenvolvimento do trabalho.

Enfim, o objetivo desse trabalho foi o de conhecer os principais órgãos de administração da

justiça em Cabo Verde. A sugestão de um estudo futuro então seria o de aprofundamento em

desses órgãos, como por exemplo um dos tribunais internacionais de que o país é parte.
80

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