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Dto.

Processual Civil – Noções Gerais

1. Introdução

Nos sistemas primitivos, um dos modos de se conseguir fazer respeitar as normas


jurídicas que foram violadas consistia no emprego da força, na auto tutela ou ao que chamamos
de justiça com as próprias mãos por parte do titular do direito subjectivo. Com a evolução da
sociedade, a abordagem usualmente seguida para repor a situação tutelada pelo direito civil e
solucionar os conflitos existentes na sociedade, é recorrer aos Tribunais, órgãos competentes
aos quais se solicita que ditem o direito aplicável ao caso concreto.

Sabemos que é por meio do poder legislativo que o Estado cria as normas, estabelecendo
os direitos e os deveres dos membros da sociedade. E se todas as pessoas cumprissem os seus
deveres jurídicos e respeitassem os correspondentes direitos das outras, isto é, se o
comportamento de todos estivesse em conformidade com o que prescreve o ordenamento
jurídico, não chegaria a desencadear-se qualquer conflito de interesses e consequentemente,
não haveria a necessidade de existirem processos. No entanto, na dinâmica social, não é assim
que as coisas sucedem, pois nem sempre as leis são respeitadas. E é dessa violação que surgem
os conflitos de interesses.

Caso as partes envolvidas não consigam encontrar uma solução para essa contenda, uma
delas pode recorrer aos tribunais, para ver o seu direito violado reintegrado, por meio da decisão
imparcial do Juiz, decisão esta que é dotada de força coercitiva.
E é daqui então que surge um processo.

Neste sentido, compreendemos o processo como sendo o conjunto de actos ou peças


apresentadas por uma das partes, neste caso, o autor, junto ao Tribunal competente, com o
objetivo de submeter a sua petição inicial quando este sentir que algum direito foi ou esteve em
iminência de ser violado.

1.1. Noções de Processo Civil

A) Seu significado

A expressão processo tem origem no vocabulário latino, das palavras pro+cedere, que
significa avançar para, caminhar para frente, avançar para um objetivo. Em suma, a palavra
processo significa a realização continua e prolongada de uma actividade.
Mas é o conceito jurídico que nos interessa. E neste, o processo é uma sequência de
actos destinados a justa composição, por um órgão imparcial de autoridade (o tribunal), de um
litígio. Além deste, existem outros conceitos de processo civil apresentados por diversos
autores, dos quais se seguem:

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A luz de Antunes Varela, direito processual civil corresponde “a disciplina normativa
que se traduz em uma série de actos logicamente encadeados entre si, com vistas à obtenção de
um determinado fim”.

Para Lebre de Freitas, processo civil “é uma sequência de actos jurídicos destinados à
justa composição de um litígio praticado por um órgão imparcial de autoridade (o tribunal)”.

Segundo Castro Mendes, processo civil “é a sequência de actos destinados à justa


composição de um litígio de interesses privados comuns, mediante a intervenção de um órgão
imparcial de autoridade, o tribunal.”

Conclui Manuel Correia, processo civil “é a sequência lógica e estruturada de actos que
visam a justa composição dos litígios com a finalidade única de administrar a justiça”.

Desta última definição depreendem-se os seguintes elementos:


a. Quanto a estrutura: o processo é uma sequência lógica e estruturada de actos;
b. Quanto ao meio: o processo é desencadeado através de um órgão de autoridade pública,
especificamente os tribunais;
c. Quanto ao objecto: a relação jurídica entre os particulares ou entre esses e o Estado;
d. Quanto ao fim: o processo visa a justa composição dos litígios;
e. Quanto a finalidade: o processo tem como finalidade a disciplina dos actos do processo de
composição dos litígios, para que esta, não se faça de forma arbitrária e respeite os direitos
das partes de igual forma.

O processo civil consubstancia-se numa sequência de actos e formalidades encadeados


entre si, tendestes a um fim ou resultado. E este resultado é a decisão ou uma sentença. Então,
não se pode analisar o processo civil de forma isolada. Temos que olhar para o processo como
um todo, e não somente como um momento. São as várias fases/momentos que
simultaneamente, compõem o processo.

B) Requisitos para a existência de um processo

Para que se fale da existência de um processo, são necessárias algumas condições


cumulativas, especificamente:

• Existência de um conflito de interesses: é necessário que exista um conflito de interesses


entre os sujeitos de processo civil. Pois, para que o processo exista se pressupõe que haja
algum litígio por dirimir;
• O conflito tem que ser posto em juízo por uma das partes: somente a existência de um
conflito não é suficiente para que as normas relactivas ao processo sejam aplicadas. É
necessário que uma das partes envolvidas, recorra ao poder jurisdicional, levando a sua
pretensão para que o juiz decida sobre o caso concreto.

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Este último requisito faz-nos perceber que o processo deve ser de iniciativa dos próprios
autores do conflito, ou seja, não é o juiz que procura por processos. Embora seja o Estado, por
meio dos tribunais a proferir a decisão sobre o direito que é objecto de litígio entre os
particulares, é a estes que cabe a iniciativa de pôr em funcionamento a máquina jurisdicional.

A actividade do tribunal, não se desenvolverá, porém, de uma forma arbitrária ou


improvisada. Pelo contrário, seguirá os trâmites ditados pelas normas processuais.
E ao conjunto dessas normas processuais, chamamos de direito processual civil.

C) Características do Dto. Processual Civil

I. Ramo do Dto. Público: o direito processual civil é ramo do direito público porque disciplina
o exercício da função jurisdicional, que é uma função do Estado confiada aos órgãos de
soberania deste, que são os tribunais;

II. Ramo de direito instrumental ou adjetivo: o direito processual civil é um ramo instrumental
do Dto. Civil. Ele é instrumental na medida em que, não são as suas normas que facultam a
solução aplicável ao conflito de interesse existente entre as partes litigantes, nem a resposta
para a questão da existência ou inexistência do direito invocado pelo requerente. O direito
processual civil somente assegura a questão da tramitação processual. Ele visa mostrar os
meios, as etapas e caminhos adequados a seguir, para assegurar a materialização das normas
do Dto. Civil previstas no Código Civil (direito substantivo), mediante a intervenção do
tribunal.

D) Fontes do Dto. Processual Civil e sua evolução histórica

Fontes são os modos de criação e produção de normas jurídicas. É o modo pelo qual o direito é
formado e revelado, enquanto conjunto de normas jurídicas devidamente sistematizado, conformadoras
e disciplinadoras da realidade social de um estado.

Os três marcos fundamentais na evolução legislativa do direito processual civil, são o Código
de Processo de 1876, o Código de 1939 e o Código de 1961.

Antes de 1876, inexistia um código de processo civil consolidado. Em vez disso,


existiam apenas diplomas avulsos que estabeleciam as normas às quais as partes de um processo
específico estavam sujeitas, a fim de verem seu direito substantivo devidamente materializado.
Portanto, em 1876 os diplomas avulsos foram compilados, pela iniciativa espontânea de
Alexandre de Seabra, e com isso foi aprovado o primeiro Código de Processo Civil.
O Código de 1876, representava um progresso incontestável, pela sistematização das
matérias e pela clareza da generalidade das soluções.

Mas, tal Código, era caracterizado por:

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i) Um excessivo formalismo e ausência de praticidade o que fazia com que, as questões
formais prevalecessem sobre as questões essenciais, existisse uma excessiva
burocratizarão no processo, onde o papel do juiz era equiparável ao de um árbitro, pois
este não tinha um papel activo no processo e limitava-se a proferir a decisão final;
ii) A concessão privatística (direito privado) prevalecia sobre a concessão publicista
(direito público);
iii) A escrita prevalecia aonde as questões orais;
iv) A verdade formal prevalecia sobre a verdade material.

Era de facto, um código imbuído de excessivas formalidades.

No ano de 1939, sob a influência marcante do professor Alberto dos Reis, o Código de
Processo Civil de 1876, passou por uma revisão abrangente. Isso porque as soluções do Código
de 1876, à medida que o tempo foi passando, já se mostrava um pouco afastado do novo espírito
da época.
Essa revisão, introduziu alterações substanciais e profundas ao antigo sistema
processual, e visou corrigir as características menos favoráveis deste. O Código de 1939, era
mais aperfeiçoado ao espírito dos tempos e trouxe uma melhoria incontestável à administração
da justiça.

Mas foi em 1961, que se aprovou um terceiro Código de Processo Civil, o actual,
encabeçado pelo professor Antunes Varela, que fez uma reforma ao código de Alberto dos Reis.
O actual código de processo civil (de 1961), traz as seguintes características inovadoras:
i) Consagra a obrigação do dever de fundamentação das decisões do juiz;
ii) Introdução ao processo dos articulados supervenientes.

E) Sujeitos do processo civil

São sujeitos do processo civil, o tribunal e as partes.

Temos como sujeitos no processo civil, primeiramente, o tribunal que não é parte do
processo, mas sim o órgão de soberania que profere a decisão, e este é um sujeito exclusivo. E,
posteriormente, temos as partes (autor e réu ou ainda demandante e demandado de modo geral)
que em função do tipo de processo isto é, do meio processual em causa, estes últimos poderão
receber outras denominações (ex: autor e réu/ré, exequente e executado, recorrente e requerido),
etc.

Nesta senda, estamos diante de uma espécie de relação triangular, em que, o tribunal
encontra-se no topo, dotado de ius imperi, conforme disposto nos artigos 105.° e 172.° da
Constituição da República de Angola (doravante CRA), cujas suas decisões judiciais têm força
vinculativa especial para as partes, pois com o tribunal, as partes têm uma relação de
subordinação.

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Entre as partes, temos:
1) Autor: é aquele que tem a prerrogativa de iniciar o processo, com a convicção de
que tem um direito ou interesse a ser protegido pela tutela jurisdicional;

2) Réu: é a parte contra a qual a acção é movida. O réu é chamado a se defender das
alegações apresentadas pelo autor, apresentando suas próprias argumentações,
fazendo jus ao princípio do contraditório.

F) Acesso à justiça

Supondo que, um devedor não faz a prestação devida ao seu credor ou não cumpre em
tempo devido com a prestação a que estava adstrito, essa atitude de desrespeito ou violação dos
direitos do credor, desencadeiam a necessidade de proceder à reintegração desse direito violado.

Vimos que, anteriormente nos sistemas primitivos, a primeira via a ser usada para
remediar tais situações de ofensa ao direito do particular era fazendo recurso à própria força,
afim de o particular, por si mesmo, repor a solução que decorre do direito substantivo aplicável.
Mas este sistema de justiça privada, assente no princípio fundamental da autodefesa
(337.° do CC) e da acção directa (336.° do CC), é um sistema imperfeito, manifestamente
inadequado às exigências de uma sociedade civilizada. Pois, com certeza em vez de resolver os
conflitos de interesses, constituiria uma fonte geradora de outros conflitos, devido aos excessos
de injustiça que daria lugar.
Por estas razões, o artigo 1.° do Código de Processo Civil, proíbe a autodefesa
determinando que “a ninguém é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o
próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites declarados na lei”.

Como resulta do próprio preceito, a proibição da autodefesa comporta excepções, o que


significa que a acção directa é admitida em alguns casos e em condições muito restritas,
exigindo-se a verificação de alguns requisitos. Em Angola, ela é lícita aos particulares nas
seguintes circunstâncias:
a. Acção directa (art 336.° CC)
b. Legítima defesa (art 337.° CC)
c. Estado de necessidade (art 339.° CC)
d. Consentimento do lesado (art 340.° CC)

Sem a verificação dessas exceções, é vedado ao particular o recurso à própria força e o


Estado obriga-se naturalmente, através dos órgãos adequados (os tribunais), a conceder a todo
o titular do direito violado a providência necessária à reintegração efectiva desse direito.
O art.° 2.°, n.°2 do Código de Processo Civil, dispõe que “a todo o direito, excepto
quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção, destinada a fazê-lo reconhecer em
juízo ou a realizá-lo coercitivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o
efeito útil da acção”

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A este sistema, oposto ao da justiça privada, em que o Estado chama exclusivamente
para si, através dos seus órgãos jurisdicionais, o poder de reconhecer os direitos dos particulares
e de coercivamente os realizar, dá a doutrina o nome de sistema se justiça pública. A CRA prevê
o sistema da justiça pública. Significa isso, que o Estado detém o monopólio da justiça pública.

Mas não basta porém, que a lei atribua aos interessados a possibilidade de obterem a
composição do litígio, é aos particulares que cabe a iniciativa de pôr em funcionamento a
máquina jurisdicional, propondo a acção adequada no tribunal competente.
Como é de conhecimento geral, nem sempre as pessoas dispõem de meios financeiros
que lhes permitam suportar as custas da acção ou os honorários dos advogados. E para tornar
efectiva a garantia do acesso à via judiciária para todos, foi publicada a Lei que regula o acesso
ao direito e aos tribunais, visando possibilitar o apoio judiciário a favor de quem se encontre
em situação de insuficiência económica. Em Angola trata-se da Lei n.º

G) Interpretação das leis processuais

Não há na lei processual civil, nenhuma disposição que estabeleça critérios especiais
para a interpretação do direito adjectivo.

Os princípios gerais sobre o método de interpretação das leis, encontram-se hoje


condensados no artigo 9.° do Código Civil. E dele, podemos retirar os seguintes métodos de
interpretação:
1. Interpretação literal: aquela que vai cingir-se a letra da lei;
2. Interpretação sistemática: considera a unidade do sistema jurídico em que a lei está
inserida;
3. Interpretação histórica: leva em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada;
4. Interpretação teleológica: atenta para as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada.

Através deles, procura a lei conciliar, em termos criteriosos, o interesse na justiça e no


progresso da ordem jurídica presumindo que o legislador tenha consagrado as soluções mais
acertadas. Além disso, a lei busca atender ao interesse na certeza do direito e na segurança do
comércio jurídico, ao mesmo tempo que respeita o princípio da obediência ao poder
legitimamente constituído, essencial à disciplina da vida social.

H) Aplicação da lei processual civil no tempo e no espaço

Aplicação no Tempo

Já é sabido que, o processo civil se traduz em uma sequência ou encadeamento de actos


tendentes a um certo resultado: a sentença ou decisão. No entanto, sabendo que o processo é
marcado por várias fases, desde o momento da propositada da acção até à tomada da decisão a
lei processual civil (doravante LPC), poderá eventualmente sofrer alguma alteração.

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Deste modo, poderá suscitar também um conflito entre os actos sob vigência da lei
antiga e aqueles sob vigência da lei nova.
Qual a lei aplicável ao acto, se assim ocorrer?

A doutrina geral aceite no direito civil, como se sabe, é a de que a nova lei só rege para
o futuro (art 12.° do CC), não se aplicando aos factos pretéritos.
E no direito processual civil, vigora um princípio doutrinário que é o Princípio da
Aplicação Imediata da LPC. Significa isto que, havendo alguma alteração na lei, aplicar-se-a
imediatamente a lei nova, pois a alteração do direito substantivo (CPC) não afecta de modo
algum no direito subjetivo (CC).

Levanta-se aqui a questão da instrumentalidade do direito processual civil porque este,


não visa dizer quem tem razão ou à quem pertence o direito. O direito processual civil, somente
assegura a questão da tramitação processual. Não são as normas processuais que regulam o
conflito de interesses entre os particulares; não é com base nela que os juízes decidem sobre a
existência ou inexistência do direito que o autor arroga. Essa é a tarefa específica do direito
substantivo, do direito civil.

Portanto, a orientação geral é no sentido da aplicação imediata da lei processual civil


nova, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos
os actos a realizar futuramente.

São invocadas duas razões fundamentais cumulativamente, pela generalidade dos


autores, para justificar a aplicabilidade imediata das leis do processo:
1. O facto do direito processual ser um ramo do direito público: sendo assim, acima dos
interesses particulares divergentes dos litigantes pairam os interesses superiores da
colectividade, inerentes ao sistema da justiça pública.
2. O facto de o direito processual ser ramo de direito adjectivo: o direito processual civil,
limita-se a regular o modo como as pessoas devem fazer valer em juízo os poderes que
a lei substantiva lhes concede.

Acrescenta ainda Alberto dos Reis, que quando se publica uma lei nova, significa que o
Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da justiça ou para
o regular funcionamento do poder judicial.

I) Importância da aplicação prática e teórica do Dto. Processual Civil

Quanto a importância teórica deste ramo do Dto. Público, elencamos as seguintes:


i. A garantia dos direitos das partes envolvidas em uma determinada lide;
ii. Garantia do devido processo legal: tal vai assegurar o respeito ao ritual
procedimental como a audição das partes do processo, o contraditório, apresentação
de provas e o benefício a uma decisão imparcial;
iii. Este ramo serve de aplicação subsidiária para os demais ramos do Dto, por conta da
sua vasta elaboração científica;

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Sua importância prática:
i. Garantia do acesso à justiça: facilita o acesso à justiça ao estabelecer os procedimentos
e os mecanismos para a resolução de conflitos, permitindo que as partes busquem
remédios legais de forma eficaz;
ii. Garantia da segurança jurídica: garante a segurança jurídica ao definir regras claras para
a condução dos processos garantindo que as partes conheçam os seus direitos e deveres;
iii. Proteção dos direitos fundamentais: promove a proteção dos direitos fundamentais,
garantindo que os processos respeitem os princípios de igualdade, contraditório e da
defesa.

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