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ISSN 1981 - 5646 [REVISTA ELETRÔNICA DE TURISMO CULTURAL] 2º.

Semestre de 2007

HOSPEDAGEM NA “CIDADE HISTÓRICA”:


Formação espacial e simbólica

Prof. Dr. Arley Andriolo

RESUMO

Pretende-se apresentar a implantação da hotelaria na “cidade histórica” de Ouro Preto, a partir


de uma análise histórica da documentação encontrada em acervos da localidade e outros
arquivos de São Paulo e Rio de Janeiro. A disposição cronológica dos dados acerca da criação
de hotéis e pousadas e a identificação de categorias pertinentes a esse processo possibilitam
compreender as dimensões espaciais e simbólicas dessa história.

Palavras-Chave: Hotelaria; Psicologia Social; Percepção

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1. Introdução

Este artigo tem por objetivo principal narrar a história da formação da rede hoteleira de

Ouro Preto durante o século XX, para indicar algumas categorias pertinentes à implantação da

hotelaria nas chamadas “cidades históricas”. A pesquisa baseou-se em documentos

localizados em arquivos de São Paulo, Rio de Janeiro e Ouro Preto, sobretudo na Casa do

Pilar (Museu da Inconfidência) e na Biblioteca Municipal de Ouro Preto.

A esse conjunto documental, aplicou-se uma organização cronológica da criação de

hotéis e pousadas, bem como a identificação de categorias que estabeleceram o processo de

significação desses estabelecimentos junto ao imaginário brasileiro. Nesse sentido, a análise

conduz àquilo que em Psicologia Social designa-se “função simbólica”, “fonte de toda razão e

de toda irrazão”, no dizer do filósofo Merleau-Ponty (1989, p. 151). De modo sintético, essa

afirmação compreende a definição do humano como um ser que, mais do que criar uma

segunda natureza – econômica, social, cultural –, é capaz de ultrapassar as estruturas criadas

para criar outras. “Assim a dialética humana é ambígua: ela se manifesta de início pelas

estruturas sociais ou culturais que faz aparecer e nas quais se aprisiona. Mas seus objetos de

uso e seus objetos culturais não seriam aquilo que são se a atividade que os faz aparecer não

tivesse também por sentido negá-los e ultrapassá-los”. (MERLEAU-PONTY, 1942/2002, p. 189;

grifos no original). A estrutura presente fora de nós, nos sistemas naturais e sociais, está

também em nós como função simbólica, habita nosso corpo e alimenta nossos atos

(MERLEAU-PONTY, 1989, p. 153).

Vale lembrar, com Hans-Georg Gadamer (1985, p. 50), que, na Grécia, símbolo

significava “pedaços de recordação” num sistema de hospedagem – a tessera hospitalis. O

hospedeiro quebrava um caco ao meio, conservando consigo uma metade e entregando a outra

ao hóspede. Esse pedaço era o passaporte para o retorno do hóspede ou de seus sucessores.

Essa compreensão de função simbólica, que remete à noção de Goethe e Schiller, permite

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interpretar os meios de hospedagem em uma dimensão na qual a representação não é mero

substituto de algo ausente, mas uma “presença”, neste caso, o próprio hotel é representativo.

Neste texto, procurou-se construir uma história da hotelaria ouropretana, sobretudo para

indicar possibilidades de pesquisa nas quais hotéis e pousadas são parte importante da

imaginação do turista, assim como os atrativos e as paisagens, porque se inscrevem na própria

percepção como objetos de valor. Assim, complementa-se o campo de pesquisas iniciado no

Brasil sobre a duração psicossocial de comportamentos relativos à hospitalidade (e.g.

Boccardo, 2000). As cidades turísticas, particularmente as chamadas “cidades históricas”,

encontram na rede hoteleira um importante elemento material e simbólico de produção do

espaço urbano, além das conhecidas forças do capital imobiliário, do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, dos interesses dos habitantes, entre outras ordens próximas e

distantes, nos termos de Lefebvre (1969).

2. Primórdios da hotelaria em Ouro Preto

A idéia de hotel impõe algumas considerações, pois, introduzido no Brasil no século

XIX, não correspondia à prática de hospedar turistas. De modo mais remoto, a hospitalidade

enquadra-se no espírito de solidariedade da cultura popular, tal como mostrou Oswaldo

Xidieh (1993, p.85). Rocha Pita notara, em Salvador, na segunda metade dos Seiscentos, a

instalação dos irmãos Carmelitas Descalços, quando edificaram um “pequeno hospício” a

cumprir a tarefa de hospedar viajantes. Mesmo quando se generaliza o termo turista, no início

do século XX, não se tratava propriamente do consumidor de serviços que seria o significado

dominante a partir da década de 1950.

Lembre-se do caso citado por Manuel Bandeira (1938, p. 35), quando da visita do

Reverendo Walsh ao Brasil, em 1828, que não teve ânimo de hospedar-se no local que lhe

conferiram, pois, tratava-se de uma “hospedaria aos pedaços”. Tal hospedaria fazia parte de

um tipo de abrigo aos moldes da estalagem, referente a práticas de hospedagem que, durante o

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século XIX, prolongavam a hospitalidade do período colonial. Conforme observou Mário

Jorge Pires (1993, p. 50), a palavra “hotel”, embora não fosse desconhecida no Rio de Janeiro

daquele século, “talvez não passasse de um eufemismo para designar uma simples

estalagem”.

Considera-se que havia alguns desses hotéis quando da visita de Dom Pedro II a Ouro

Preto, na década de 1880. Eram destinados, sobretudo, a comerciantes e políticos que

visitavam constantemente a antiga capital mineira para a realização de negócios. Ali, figurava

o Hotel Goiano, no Fundo de Ouro Preto, em plena atividade quando foi proclamada a

República; local onde o presidente da província de Minas Gerais se abrigou até sua saída

(Tribuna de Ouro Preto, 03 fev. 1946, p. 2).

Alguns anos antes da transferência da capital para Belo Horizonte, pode-se contar

quatro estabelecimentos de hospedagem em funcionamento: 1) Hotel Monteiro, na Rua de

São José, seu proprietário era Antônio Gomes Monteiro, e gerente Domingos de Carvalho

Reis; 2) Hotel Familiar, na Rua de Ouro Preto, de propriedade de Benedito Paladini; 3) Hotel

Martinelli, Rua do Paraná, propriedade de Martinelli & Irmãos, sendo gerente Carlos

Martinelli; 4) Hotel Antunes, Rua de Santa Quitéria, dos herdeiros de dona Mathilde do

Carmo Pereira Campos, tendo como gerente Antônio Maria Antunes (Ozzori, 1890, pp. 82-

84).

Todos os hotéis registrados nesse ano ficavam localizados na Freguesia de Ouro Preto,

em torno do bairro do Pilar. Nenhum foi mencionado na Freguesia de Antônio Dias. Em

Almanaque de 1864, essa distinção não é percebida, pois, há indicação da Hospedaria de

Manoel Miguel Soares e Costa, na Freguesia de Ouro Preto (bairro do Rosário), e a

Hospedaria de José Rodrigues Meira, em Antônio Dias (Martins e Oliveira, 1864, pp. 117-

119). Provavelmente, com a parada do trem a realizar-se na estação junto à Freguesia de Ouro

Preto, ocorria uma valorização dos meios de hospedagem nesse setor da cidade.

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Depois desse levantamento, não se encontrou nenhuma outra publicação em que

constassem os meios de hospedagem de Ouro Preto no início do século passado. Não se sabe

exatamente como a mudança da capital repercutiu na atividade hoteleira. Supõe-se uma

redução considerável, quando, por exemplo, o Hotel Monteiro faliu e foi vendido a João

Batista Fortes, tornando-se um armazém de “secos e molhados”. Quanto ao Hotel Familiar,

não se dispõe de informações. Talvez apenas os hotéis Martinelli e Antunes tenham

permanecido após a mudança da capital, ambos citados nas comemorações do Bicentenário da

elevação de Vila Rica, em 1911. O primeiro seria destinado aos convidados, o segundo não

figura como hospedagem, referido apenas num breve comentário de Furtado de Menezes, por

ser o edifício portador de um oratório particular em homenagem a Santa Quitéria (Menezes,

1975, p. 110).

Por outro lado, foi fundada, por volta de 1900, a firma Toffolo, na Rua Tiradentes n. 10,

da qual surgiu o mais antigo hotel em funcionamento atualmente em Ouro Preto. O patriarca

da família, Olívio Ângelo Toffolo, chegou à cidade após a criação da Estrada de Ferro,

quando muitos estrangeiros, entre espanhóis, portugueses e italianos, vieram trabalhar na

ferrovia. O edifício, inicialmente, ocupava um restaurante, ampliado posteriormente em

hospedagem, para melhor aproveitamento do espaço. Sua propaganda apresentava os serviços

de hospedagem e do restaurante, em que se ofertavam vinhos, confeitos e conservas

estrangeiras; nada se falava das acomodações (Tribuna de Ouro Preto, 24 ago. 1924, p.4).

Durante as festividades do Bicentenário, quando grande quantidade de visitantes chegou

à cidade, Ouro Preto possuía apenas três hotéis e muita gente ficou sem ter onde dormir, no

dizer de José Alves, na ocasião com oito anos de idade (depoimento em Barbosa, 1993, p. 28).

Eram o Toffolo, o Martinelle e o “antigo” Grande Hotel, situado na Rua Paraná. O prédio do

Liceu de Artes e Ofícios, na Rua dos Contos, foi transformado em uma hospedaria para

receber os prefeitos das outras cidades, bem como a Secretaria das Finanças hospedou a

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imprensa. As bandas vindas de Belo Horizonte e outros hóspedes alojaram-se no Colégio

Mineiro, cedido por Benjamin Dias. No Palacete dos Camargos prepararam-se cômodos para

os deputados, senadores e outras autoridades (Bi-centenário de Ouro Preto, 1911, p. 317).

Talvez a inauguração do Hotel Reis, de “tipo familiar”, inspirara-se nos ares entusiastas

das comemorações do Bicentenário e da valorização, ainda insipiente, da cultura colonial

mineira. Seu proprietário era José Braz dos Reis, tendo como gerente Américo Martins de

Abreu; funcionava em prédio próprio, na Praça Rio Branco, n. 2, a “pouca distancia da

Estação da Central do Brasil”. Ao contrário dos discursos ascendentes anunciando os valores

das coisas antigas, o Hotel Reis apostava na sedução de seu público pela oferta de

“instalações completas e modernas, mobiliário novo e de bom gosto”. Concluindo sua

promoção: “Cozinha de primeira ordem, variado sortimento de bebidas finas nacionais e

estrangeiras, serviço irrepreensível” (Tribuna de Ouro Preto, 24 ago. 1924, p.4).

Ilustração 1. Edifício construído no final do século XIX para o Hotel Monteiro, voltou à atividade
original como Solar do Rosário. Fotografia de Luís Fontana, 1946, col. IFAC.

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Ilustração 2. À direita, Hotel Toffolo. Fotografia de Luís Fontana, 16 jun. 1946,col. IFAC

3. O Grande Hotel Ouro Preto

Entre as comemorações do Bicentenário e a construção do Grande Hotel permaneceu

um vazio na documentação recolhida, que não permite precisar o ano de fechamento dos

hotéis Martinelli, Reis e Antunes, bem como da inauguração do Hotel Internacional, este

último presente apenas na primeira edição do guia de Bandeira, em 1938. Este hotel instalara-

se provavelmente no mesmo edifício do Hotel Reis, na esquina da Rua Diogo de Vasconcellos

com a Praça Rio Branco. O uso hoteleiro do edifício se perdeu, décadas depois abriga a

prefeitura.

Sabe-se também que, nas vésperas da elevação da cidade a Monumento Nacional

(1933), havia algum interesse por parte dos governantes em ampliar, ainda que timidamente, a

infra-estrutura de hospedagens. De modo bastante peculiar, o presidente da província Antônio

Carlos deliberou sobre a aquisição da casa onde supostamente morara o Aleijadinho.

Conforme Gustavo Pena (1928, pp. 17-18), o edifício era um sobrado de pau a pique, parecia

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ser de “pouca valia” e “mesquinho”, “ruína melancólica em meio de outras ruínas

lamentáveis”. O projeto do governo era reformar a casa e transformá-la em albergue para

arquitetos e artistas que desejassem estudar, “na cidade legendária”.

O Hotel Toffolo continuou em funcionamento, servindo de hospedagem a políticos

como, por exemplo, o ministro do Uruguai, Dionísio Ramos Montero (Tribuna de Ouro

Preto, 18 out. 1925). Ali também se hospedaram intelectuais como Manuel Bandeira e Carlos

Drummond de Andrade.

O Grande Hotel foi uma importante empreitada do governo na articulação de Ouro Preto

como cidade turística. Como afirmou à época Rodrigo M. F. de Andrade: “Em relação ao

estímulo ao turismo, decisiva e onerosa contribuição para aí se construir um hotel de 1a

classe” (Tribuna de Ouro Preto, 08 jun. 1947, p.1 e 10). Para João Velloso Filho, o prefeito

João Velloso teria iniciado as negociações para a construção desse hotel, em meado dos anos

1930.1 No entanto, conforme Ângelo Oswaldo, tais negociações teriam surgido apenas em

1938, após a visita de Getúlio Vargas à cidade, por meio do então prefeito Washington de

Araújo Dias.2 Nessa ocasião, como pregava o costume, os políticos eram recebidos nas casas

de personalidades eminentes da política local. Assim, Vargas hospedou-se na residência do

prefeito Washington Dias, na Rua Direita, quando iniciaram as conversas sobre o futuro hotel.

A despeito de tais polêmicas, convergiam-se interesses em três instâncias

governamentais. Os custos ficaram a cargo dos governos Federal e Estadual, este último sob o

governo de Benedito Valladares. Foi determinante nessa transação a mediação do Ministério

da Educação e Saúde, via Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rodrigo M.

F. de Andrade aceitou a tarefa ainda em 1938, encomendando o primeiro projeto a um

1
João Velloso Filho, “Ouro Preto antes e depois de 1930”, documento mimeo., Ouro Preto, 1984, Biblioteca
Municipal de Ouro Preto.
2
“Discurso do prefeito Ângelo Oswaldo”, documento mimeo., Ouro Preto, outubro de 1993, fl.1, Biblioteca
Municipal de Ouro Preto.

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membro do Serviço. Lauro Cavalcanti (1995, p. 168) notou a construção do Grande Hotel

como um importante episódio pelo qual a arquitetura moderna alcança a condição de obra de

arte e “seus adeptos vêem consolidadas suas posições nos quadros do Sphan”.

Primeiramente, foi escolhido para a realização do projeto o arquiteto Carlos Leão.

Baseado na arquitetura local, Leão desenvolveu linhas tipológicas harmônicas, entre as

escolhas revelavam-se os telhado em capa e canal, bem como paredes caiadas de branco. O

projeto foi colocado em questão devido ao tamanho desproporcional às construções do

entorno e sua vinculação à corrente “neocolonial” (CAVALCANTI, 1995, p. 150). Este último

aspecto parece ter sido mais relevante, tendo em vista o argumento da “trama” que o

desmereceu, levantando outro nome para o trabalho: Oscar Niemeyer. A figura principal

desses acontecimentos foi Lúcio Costa, em cujas correspondências com o diretor do Serviço

questionou as soluções de Leão, atribuindo o projeto a um “recuo” dos modernistas diante dos

“neocoloniais”.

Apesar de algumas considerações em seu favor, o arquiteto Carlos Leão, ao sofrer duras

críticas, afastou-se das discussões, ocorrendo uma polarização entre a “proposta moderna” e

outra que partira de Renato Soeiro. Segundo Cavalcanti, Soeiro era apoiado por Paulo

Thedim, pretendendo resolver o problema da hospedagem em Ouro Preto através do uso de

construções já existentes, preservando suas fachadas e reformando o interior. Entre as opções

de edifícios estavam o Fórum de Ouro Preto, na esquina do Largo dos Contos com a Rua

Direita, e mais duas casas descendo a Rua do Paraná.3 Esta última proposta era rejeitada pelo

prefeito Washington Dias, que, embora apreciador do “projeto neocolonial” de Leão, aliou-se

aos poucos à proposta modernista (CAVALCANTI, 1995, p. 166).

O primeiro projeto de Niemeyer recebeu algumas críticas de Lúcio Costa, sobretudo

3
“Discurso do prefeito Ângelo Oswaldo”, documento mimeo., Ouro Preto, outubro de 1993, fl.1, Biblioteca
Municipal de Ouro Preto.

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pela solução empregada na cobertura, com laje recoberta de grama para provocar uma ilusão

de continuidade com a vegetação do solo. Por intermédio de Rodrigo Andrade, ouvindo os

comentários do prefeito e de Costa, Oscar Niemeyer realizou, enfim, o projeto vencedor. Da

intervenção de Lúcio Costa resultam os telhados em telha capa e as treliças na varanda,

“harmonizando” a arquitetura do Grande Hotel com o espaço urbano no seu entorno.

Julgava-se naquele momento, como notou Lia Motta (1987, p. 110), que a cidade estava

e continuaria estagnada. Assim, a obra em questão seria uma exceção junto ao conjunto da

cidade que, conforme Lúcio Costa, não abriria “precedente perigoso” através da imitação por

novas construções citadinas. A carta de Lúcio Costa, como “arquiteto filiado aos CIAM e

técnico especialista do SPHAN”, endereçada ao diretor do Serviço do Patrimônio (c. 1939),

contendo o parecer sobre o Grande Hotel, tornou-se documento fundamental não apenas ao

estudo da intervenção do SPHAN em Ouro Preto, como da política empreendida pelos

modernistas nos anos 30 e 40: “Ouro Preto é uma cidade já pronta e as construções novas que,

uma ou outra vez, lá se fizerem, serão obrigatoriamente controladas pelo SPHAN”, pensava

Costa.

Para esse arquiteto, o “aspecto turístico-sentimental” de Ouro Preto não seria

prejudicado com a edificação do hotel, da mesma forma que o tráfego de automóveis nas

ladeiras não causa “dano visual a ninguém”. Desse modo, conclui Lúcio Costa:

De excepcional pureza de linhas, e de muito equilíbrio plástico, é, na verdade, uma


obra de arte e, como tal, não deverá estranhar a vizinhança de outras obras de arte,
embora diferentes, porque a boa arquitetura de um determinado período vai sempre
bem com a de qualquer período anterior - o que não combina com coisa nenhuma é a
falta de arquitetura (citado em MOTTA, 1987, p. 110).

Supunha-se um diálogo entre as obras de arte existentes na cidade, através do qual, a

qualidade expressa no Grande Hotel definia sua equidade junto à arquitetura setecentista. Nas

palavras de Motta (1987, p. 110), a obra do hotel e as já existentes eternizariam “como um

santuário, o ideal de atualização e nacionalidade modernista”.

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Em 1940, tudo estava acertado para a edificação do hotel. Cinco anos depois,

inaugurou-se oficialmente o Grande Hotel Ouro Preto. Por ser uma obra contemporânea de

vulto, desde o início, o empreendimento tornou-se depositário de esperanças quanto ao

desenvolvimento econômico da localidade, associado à idéia de “progresso”.

O turista era convidado a perceber tanto o “moderno” quanto o “colonial” em

arquitetura. Essa dupla afirmação, promovida pela construção do Grande Hotel, reitera o

problema da memória na “cidade histórica”. Ao mesmo tempo em que se afirmavam o

“moderno” e o “colonial”, rejeitava-se implicitamente o que estava temporalmente entre essas

duas categorias, a exemplo da arquitetura eclética, dos arremedos neoclássicos, entre outras

formas arquitetônicas. Mesmo diante das práticas de preservação, a “cidade monumento

nacional” era também o lugar do esquecimento.

Ilustração 2. Terreno na Rua das Flores destinado à construção do Grande Hotel Ouro Preto.
Fotografia de Luís Fontana, s.d., col. IFAC.

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Ilustração 3. Grande Hotel Ouro Preto, em 1944. Fotografia de Luís Fontana, col. IFAC.

4. Vanguarda e tradição na hotelaria

Na década de 1940, eram três os principais hotéis de Ouro Preto. Nos festejos de 12 de

outubro de 1945, aniversário da Escola de Minas, ex-alunos e seus familiares dirigiram-se

para ex-capital a fim de participarem das comemorações. Uma notícia coeva informava:

Todas as acomodações disponíveis em Ouro Preto foram insuficientes para acolher


os visitantes. O Grande Hotel, o Hotel Tuffolo [sic] e o Hotel Rodrigues ficaram
superlotados, de sorte que as comissões promotoras das festas tiveram de improvisar
acomodações em residências particulares para atender aos inúmeros pedidos vindos
de diferentes partes do país (Tribuna de Ouro Preto, 21 out. 1945, p. 1).

Acerca do Hotel Rodrigues, na Praça Cesário Alvin (Praça da Estação), administrado

por José Feliciano Rodrigues, são poucas as referências. Ele aparece entre as sugestões de

hospedagem fornecidas pelo guia de Geraldo Trindade (1948, p. 29) e na terceira edição de

Bandeira, de 1957; não constando mais nos guias a partir dos anos 1970. Basicamente, as

disputas por hóspedes na imprensa local eram travadas entre o Toffolo e o Grande Hotel.

Não se fizera em Ouro Preto outro hotel em moldes “modernistas”. O hotel Toffolo

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tornara-se parte do grupo de hotéis instalados em antigos casarões, mantendo a “tradição”

também dentro do estabelecimento hoteleiro. Além das modificações programáticas dos

edifícios, para atender às exigências dos turistas, operavam-se mudanças também no plano da

decoração.

A qualidade dos serviços oferecidos pelos dois hotéis, naquele tempo, parece não

diferir. Ambos dispunham de “restaurante de primeira ordem” e “asseio”. O Hotel Toffolo

comunicava que era “o mais antigo de Ouro Preto, o preferido dos srs. viajantes, com

transporte próprio para a Estação da Central do Brasil, em ótimos automóveis, instalado no

centro da cidade”. O Grande Hotel de Ouro Preto dispunha de “conforto, […] cozinha

nacional e estrangeira, recomendado aos srs. turistas e pessoas de bom gosto, […]

apartamentos para casais e solteiros” (Tribuna de Ouro Preto, 03 jun. 1945, ps. 2 e 4).

Os termos empregados, um como viajante, outro como turista, pode revelar algum

significado. No guia de Trindade (1948, p. 28), pouco se fala do Hotel Toffolo e do Hotel

Rodrigues, fornecendo apenas suas localizações. Não obstante, o Grande Hotel consistia de:

“Prédio inteiramente novo, dotado de todo o conforto moderno, possuindo 1 apartamento de

luxo, 17 apartamentos comuns, 7 quartos para casal e 20 para solteiros”. A construção

“modernista” associa-se a um conforto “moderno”, diferentemente do antigo Toffolo que se

mantivera nos moldes tradicionais. O guia de Trindade (1948, p. 28) indicava que o Grande

Hotel era explorado pela firma Alberto Quatrini Bianchi, posteriormente a Hidrominas

assumiu o hotel, até 1989, quando em leilão passou para particulares.

O Toffolo enquadrava-se nas representações produzidas pelos modernistas quando

ampliaram o simbolismo do casario e das igrejas para outros objetos. Por meio de seu poema

“Hotel Toffolo”, de 1951, Drummond (1992, p. 226) expressava essa relação, dizendo:

“hoteleiro, nosso repasto é interior”. Poder-se-ia considerar a função simbólica da tradição,

estendida aos objetos, sugerindo uma amplitude maior das “cidades históricas”, em níveis

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distintos de consumo de acordo com a origem social do turista, desde o restrito mercado de

antiguidades até as modestas cópias em cimento de obras de arte famosas. Durand (1989, p.

91) notou a difusão do gosto por objetos antigos do Brasil como resultado do efeito

acumulado da valorização da cultura material de Minas Colonial. Essa atitude, porém, não

contrariava a promoção do hotel modernista que permaneceu, durante as décadas seguintes,

como referência para a hotelaria em Ouro Preto.

Observava-se o surgimento de novas instalações, baseadas em formas tradicionais do

casario, as quais se tornariam referência nas “cidades históricas”. Pela cronologia das

inaugurações de hotéis na cidade, percebe-se que, entre as décadas de 1940 e 1960, ocorreu

uma estabilidade dos meios de hospedagem. Há também os estabelecimentos que, embora

ignorados pelas fontes oficiais, praticavam a hospedagem. Esse é o caso, por exemplo, da

residência de Enedina Lucas Machado, que desde os anos 1950 abrigava passantes num

sobrado de pau-a-pique e canga, datado de 1754, e que não se registrara à época como hotel.4

Apesar de lento, nota-se algum crescimento em reflexo da constituição da cidade como ponto

de interesse turístico e também da organização do turismo no Brasil. O pesquisador Ashworth

(1989, p. 93) afirma que à promoção das “cidades históricas” precedem os estabelecimentos

hoteleiros, os quais são mais reguladores que estimuladores dos viajantes.

Embora se note a gênese do “turismo industrial” brasileiro nos anos de 1950, a sua

maior expressão se daria apenas a partir da década seguinte (RODRIGUES, 1997, p. 133;

Andriolo, 1998, p. 83). A “modernização” dessa época, iniciada com as inversões de capitais

do Governo de Kubitschek e ampliada com a política impetrada pelos militares, forneceu

bases para as atividades turísticas no país: normatização, com a criação da EMBRATUR; e

desenvolvimento dos meios de comunicação, com a EMBRATEL, sobretudo no campo das

4
Data inscrita em verga de granito no primeiro pavimento do edifício n.33, à Rua Antônio Martins, Barra.
Conforme sua proprietária, ali teria sido também moradia do Aleijadinho.

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telecomunicações. Em Ouro Preto, o “progresso”, afirmado pelos discursos da construção do

Grande Hotel, não veio inicialmente pelo turismo, mas sim pela exploração das mineradoras.

Processaram-se repercussões espaciais fundamentais para a cidade quando a Eletro-Química

Brasileira S.A. foi adquirida pelo grupo canadense Aluminium Limited, implantando o

complexo da ALCAN em Saramenha (Jornal de Ouro Preto, 08 jun. 1984, p. 8). Pode-se

também perceber que o discurso desenvolvimentista, desde Kubitscheck, em torno do turismo

e do transporte, criava a infra-estrutura para a instalação de indústrias de mineração. Na

década de 1970, essa mineradora era a principal mantenedora da economia local,

acompanhada em segundo lugar pela pecuária leiteira e alguns produtos agrícolas como o chá-

da-índia (CANÇADO, 1976, p. 33).

Nas décadas de 1950 e 1960, foram inauguradas três pousadas em Ouro Preto. Esse

número é pouco significativo em relação aos anos seguintes, mas importante em relação aos

seus antecedentes. A primeira delas foi criada em 1957, por dona Lilli Corrêa de Araújo

(nascida na Alemanha, em 1907) e seu marido, o pernambucano Pedro Araújo, e instalada

num sobrado em frente à igreja de Nossa Senhora do Carmo. Nomeada Pouso do Chico Rei,

ela ocupa um imóvel provavelmente do século XVIII, de pedras e pau-a-pique, cuja

arquitetura apresenta vergas e cunhais distintos nos dois pavimentos. Foi residência, tendo

sofrido poucas adaptações para atender o novo uso. Abrigou, entre outros, Guignard, Vinícius

de Morais e Manuel Bandeira, em seus cinco quartos.

Seis anos depois, em 1964, na Praça Tiradentes, seria inaugurado o Hotel Pilão.

Também em sobrado adaptado, o estabelecimento ocupou o segundo pavimento da casa de

comércio de Painhas (cf. Erothides Vieira, depoimento em BARBOSA, 1993, p. 24). Trata-se

de uma construção na esquina da Praça Tiradentes com a Rua do Ouvidor, onde se forma mais

um pavimento inferior acompanhando o desnível. O hotel contava com 16 quartos (CANÇADO,

1976, p. 53).

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Ao final da década de 1960, inaugurou-se a Pousada Ouro Preto (depois Hotel Luxor).

Seu projeto reforça a posição desses novos hotéis que, ao invés de produzirem construções

especificas para a função hoteleira, ocupavam edifícios já existentes e com aspectos

“coloniais”. A ocupação não era direta, os edifícios passaram por reformas, segundo as

proporções do investimento e público alvo. No caso da Pousada Ouro Preto, Sylvio de

Vasconcellos foi o responsável pelo projeto de adaptação do casarão que recebeu um anexo.5

A promoção fundamentava-se na crítica à infra-estrutura hoteleira das chamadas

“cidades históricas”. Assim, observa-se que simbolicamente a imagem das “cidades

históricas” ganhava projeção nacional; faltavam-lhes as condições técnicas para a operação do

turismo. O folder explicava que “Essas cidades, apesar de encerrarem um dos maiores

complexos de atrações turísticas existentes no mundo, não dispõem de acomodações

apropriadas para seus visitantes que, devido a isso, vêem-se forçados a percorrê-las ‘de

corrida’”.6

Pelas palavras do folheto, era preciso ampliar o tempo de estada do turista (que amplia

também os seus gastos). Referia-se à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, pois o

investimento fora planejado para o Largo de Antônio Dias. Nas imagens da propaganda, a

imponente igreja aparecia registrada pelos traços de Guignard e recebia ao lado uma flecha

indicando o antigo casarão. O monumento, conhecido como obra de Manuel Francisco

Lisboa, pai do lendário mestre Aleijadinho, empresta prestígio ao estabelecimento hoteleiro.

No Compromisso de Salvador, de 1971, cristalizou-se uma nova orientação quando se

recomendou a “facilitação” na implantação de pousadas, preferencialmente utilizando os

imóveis tombados (IPHAN, 1995, p. 173). Na década anterior, Rodrigo Andrade assumira a

5
Os incorporadores da obra foram Jorge Leal da Costa Neves e Álvaro Luciano Dias de Toledo, realizada pela
construtora Walter Coscarelli Ltda., de Belo Horizonte.
6
“Viva (confortavelmente...) o mais importante ciclo de nossa história”. Folder promocional de projeto para a
Pousada Ouro Preto, s/ data (c. 196?), 8 ps., form. +- 20cm./40 cm., Arquivo Noronha Santos, IPHAN, Rio de
Janeiro.

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necessidade de conciliar as práticas turísticas com as do Patrimônio, substituído depois por

Renato Soeiro que pregava a “reciclagem” como a melhor alternativa para o problema da

hospedagem nas “cidades históricas”. Vê-se, novamente pelas mãos de técnicos do

Patrimônio, desta vez Sylvio de Vasconcellos, o projeto de “soluções ideais”, porém, desta

vez, sem a polêmica gerada pelo Grande Hotel. As pousadas revelariam a afirmação da forma

arquitetônica “colonial”, distinguindo “pousada” de “hotel”, bem como uma propriedade

privada definida pelo tempo de uso do estabelecimento, num misto de colônia de férias com

hotel. Na definição do citado folheto, as pousadas seriam “hotéis pequenos (somente trinta

apartamentos), porém, de alto luxo”. Representariam “a solução ideal para o seu bem estar,

um negócio seguro e rendoso, e a melhor maneira para você ‘viver confortavelmente’ os mais

importantes episódios de nossa história”. A administração das “Pousadas” ficou a cargo da

Jato Viagens, encarregada de “enviar um constante afluxo de hóspedes, não deixando haver

vacâncias em nenhuma época do ano”.

Esse conjunto de hotéis fundados em Ouro Preto revelou uma nova orientação na forma

assumida pelos estabelecimentos hoteleiros. O Grande Hotel tornou-se a única referência

modernista, tanto do ponto de vista do projeto arquitetônico como no plano da decoração.

Para os hotéis criados a partir dos anos 1960, uma nova ordem tornou-se preponderante; a de

adaptar-se a função hoteleira ao edifício “antigo”. Externamente, mantinha-se a aparência

“colonial”, propugnada pelos técnicos do Patrimônio para o espaço urbano, enquanto

internamente, a maioria optou por fazer uso de antiguidades ou de novos objetos estilizados

que representassem a concepção de passado que se construíra para as “cidades históricas de

Minas”.

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Ilustração 4. Pouso do Chico Rei, Rua Brigadeiro Mosqueira, 90, Centro. Fotografia do autor, 1997.

Ilustração 5. Hotel Pilão, Praça Tiradentes. Fotografia do autor, 1997.

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Ilustração 6. Pousada Ouro Preto, depois Luxor Hotel, Largo Antônio Dias, 10. Fotografia do
autor, 1997.

5. Hotéis e Monumentos

Diante dos meios de hospedagem criados até 1969, pequeno em quantidade, mas

substancialmente significativo qualitativamente, percebe-se uma importante relação com os

monumentos. Todos eles foram estabelecidos junto de construções reconhecidas como

monumentos de valor histórico e artístico. Essa nova ordenação do espaço urbano caracteriza-

se em setores, primeiramente determinados pelo monumento, quando se desloca a hotelaria do

bairro do Pilar e do entorno da ferrovia, com a implantação das rodovias, e a definição de

pontos de visitação e percursos de circulação no interior da cidade.

Assim, pode-se notar: o Grande Hotel em local privilegiado, próximo à Casa dos

Contos; o Pouso do Chico Rei em frente à igreja de Nossa Senhora do Carmo; o Pilão na

Praça Tiradentes; e a Pousada Ouro Preto ao lado da igreja de Nossa Senhora da Conceição de

Antônio Dias, esquina da Rua do Aleijadinho. Ladeando os monumentos, indiretamente os

hotéis projetavam-se nas paisagens e nos roteiros turísticos da cidade. O Hotel Toffolo, nesse

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sentido, refere-se a outro sistema de relações, do qual também o Grande Hotel participou. O

atrativo turístico, nas primeiras décadas do século XX, não existia e a firma Toffolo foi

instalada na rua mais dinâmica no que concerne às atividades econômicas e sociais.

Observa-se também que a Pousada Ouro Preto, de 1969, rompe com a tradição de se

fazer hotéis na freguesia do Pilar, próximos do Centro ou da Estação, iniciando um processo

de inversão. Em poucas décadas, havia proeminência do bairro de Antônio Dias em relação ao

do Pilar no que diz respeito à quantidade de hospedagens.

Ao quadro hoteleiro definido nos anos de 1960, seguiriam algumas modificações na

década seguinte. O hotel Pilão, embora continuasse hospedando, perdeu essa condição no guia

publicado pela EMBRATUR, passando a figurar apenas como restaurante

(EMBRATUR/AGGS, 1978). Quatro novos meios de hospedagem foram criados então: a

Quinta dos Barões; o Hotel Colonial; o Solar das Lages; e a Hospedaria Antiga.

A primeira pousada a ser inaugurada nessa década foi a Quinta dos Barões, na Barra,

sentido a Saramenha, em 1970. É a primeira a sair do centro buscando regiões periféricas,

mas mantendo o aspecto “colonial”. Pertence ao grupo de hotéis instalados em casas de

reconhecido valor histórico, no conjunto denominado “Casa de Pedra”, datado da década de

1720. Nesse local vivera um dos governadores da Capitania de Minas Gerais.7 Em 1972,

inaugurou-se o Hotel Colonial, no beco entre a Rua das Flores e a Direita, em construção

antiga, porém sem registros.

Pouco depois da criação da Secretaria de Turismo (1973), um jornal local anunciava

parcerias junto aos grupos hoteleiros Tropical-Varig, e ainda, Pousadas Quatro Rodas e

Hoturminas (O Ouro Preto, 31 mar. 1974, p. 2). Previa-se iniciar as obras em 1974, com a

Empresa Tropical de Hotéis Centro-Sul, em colaboração com a Varig, articuladas por

7
Cf. José Christiano Penna de Andrade, “Antigos palácios e quartéis dos governadores e dragões reais,
existentes ou em ruínas, no arraial de Nossa Senhora da Conceição de Ouro Preto, em Vila Rica de Albuquerque,
na atual cidade de Ouro Preto”, documento mimeo., Ouro Preto, 1991. Biblioteca Municipal de Ouro Preto.

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Armando Sanders. O projeto fora realizado pelo arquiteto paulista Arnaldo F. Paoliello e seria

executado pela construtora, também paulista, Adolfo Lindemberg, prevendo uma obra em

patamares na encosta do morro. Nesse ano, estava à mostra a maquete da edificação, projetada

para o bairro Água Limpa, acesso principal da cidade, “com base no Plano de Viana de Lima,

procurou-se localizar o mais próximo possível da Rodovia dos Inconfidentes…” (O Ouro

Preto, 15 maio 1974, p.1). Mais dois hotéis estavam projetados para Ouro Preto, dos quais

um, de grandes proporções, deveria localizar-se no terreno vago ao lado da Escola de Minas.

O projeto teria sido aprovado pelo IPHAN, mas em seguida embargado pela Prefeitura. Pelo

que se constatou, nenhum desses projetos foram implantados (C. J. Arquitetura, n. 17, 1977,

p. 82).

Ao final da década, inauguravam-se o Solar das Lages e a Hospedaria Antiga. O

primeiro em uma construção do século XIX muito modificada, no antigo caminho para

Mariana, foi criado pelo artista Pedro Corrêa de Araújo. A Hospedaria Antiga foi instalada na

casa que pertencera a Xavier da Veiga e onde funcionara o Arquivo Público Mineiro, por ele

fundado em 1894, utilizando-se do piso superior para moradia, deixando o inferior reservado

ao arquivo.

Neste período, não se nota mais a inauguração de meios de hospedagem privilegiando a

proximidade dos monumentos, buscava-se, quando possível, fazer do próprio edifício objeto

de memória (como é o caso da Quinta dos Barões e da Hospedaria Antiga), reforçando a

concepção de conjugar hotel e atrativo em um único ponto.

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Ilustração 7. Pousada Quinta dos Barões, com 15 quartos na inauguração. Rua Pandiá Calógeras,
474, Barra. Fotografia do autor, 1997.

Ilustração 8. Hotel Colonial. Travessa Padre Camilo Veloso, 26, Centro.


Fotografia do autor, 1997.

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Ilustração 9. Solar das Lages. Rua Conselheiro Quintiniano, 604, Lages. Fotografia do autor, 1997.

Ilustração 10. Hospedaria Antiga. Rua Xavier da Veiga, n.1, Centro. Fotografia do autor, 1997.

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6. Conclusão

Para concluir, convém notar que o ritmo atingido pelas inaugurações de meios de

hospedagens no período seguinte atingiu índices surpreendentes. Em grande parte, tais

empreendimentos foram motivados pela relativa abertura política e pela nova condição da

cidade que, desde 1980, foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade. Essa foi a década

em que o número mais cresceu, a superar as inaugurações de todos os hotéis ao longo do

século XX. Foram cerca de quinze meios de hospedagem contra onze identificados até então.

Dos 44 hotéis em funcionamento em 1997, cerca de 41% estavam localizados no centro,

o setor mais desenvolvido do ponto de vista do turismo. Esses estabelecimentos espalharam-

se por todo o centro e áreas periféricas e, de maneira geral, não mantiveram vínculo direto

com os monumentos. Não obstante, a Pousada do Mondego, está entre aquelas que seguiram a

proximidade dos monumentos. Instalou-se ao lado da Igreja de São Francisco de Assis e faz

uso constante desse atrativo em sua promoção.

A relação entre hotéis e monumentos não é unívoca. Embora o monumento recebido

como atrativo de primeira ordem na cidade seja responsável em fornecer os benefícios na

troca simbólica, valorizando os hotéis adjacentes, pode-se observar casos em que houve uma

inversão nessa relação. A partir daí, demarcam-se outros setores até então de pouco interesse

turístico, fato também notado em algumas cidades européias por Ashworth e Tumbridge

(1990, p. 63). Em Ouro Preto, o maior exemplo dessa questão é o Solar do Rosário. O largo

ficava fora dos principais roteiros dentro da cidade e a igreja, embora de reconhecida

importância, estava fechada e carente de restauração. Depois da inauguração do luxuoso hotel,

na década de 1990, iniciou-se a restauração da igreja ao mesmo tempo em que bares e lojas

foram criados no largo, invertendo a relação simbólica e impondo importante reflexão aos

estudiosos do patrimônio e do turismo acerca da hospedagem nas “cidades históricas”.

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16
14
12
10
8
6
4
2
0
1900 10 20 30 40 50 60 70 80 90

Tabela 1. Número de estabelecimentos hoteleiros inaugurados em Ouro Preto, distribuídos por décadas do

século XX.

Agradecimentos

Todas as fotografias em P&B foram gentilmente cedidas em cópias pelo Instituto de Filosofia

Artes e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, MG, neste artigo designado Col. IFAC.

O autor agradece a colaboração de Flávio Andrade, de Ouro Preto, que permitiu a consulta a

sua coleção pessoal de jornais do município. Na Casa do Pilar, foi decisiva a ajuda das

pesquisadoras Sueli e Carmem. Às generosas entrevistas de Dona Gracinda Bayão Toffolo,

nora de Olívio Ângelo Toffolo, Enedina Lucas Machado e Pedro Corrêa de Araújo,

concedidas em dez. 1998.

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