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A Crise da Psicanálise e A Arte de Perguntar

Maria de Fátima Siqueira

Uma das perguntas que Cristina Magalhães nos envia, como sugestão para discussão
na reunião dos Estados Gerais do dia 7/11, parece servir como pontapé inicial de um
jogo que promete ser muito interessante:

"Quais são as fronteiras do que possa ser legitimamente chamado de psicanálise? Até
onde é possível inovações na psicanálise?"

Num momento como este, em que os Estados Gerais convidam à participação todos os
psicanalistas, como responder a esta e a outras perguntas? Mais ainda, como formular
nossas próprias perguntas? Por onde iniciar o questionamento?

Seguindo a lógica do I Ching, a qualidade da resposta depende da capacidade de bem


formular a pergunta, já que pergunta e resposta são os dois lados da mesma moeda.

Sendo assim, de que crise se fala, ou de onde se fala a crise?

Como diria uma criança, a psicanálise não está em crise simplesmente porque não é
viva; quem está em crise são os psicanalistas. A psicanálise em si, enquanto método,
teoria e técnica vai muito bem, obrigada. O que há então, a que se chama crise e qual
é sua natureza?

Recapitulando, podemos dizer que essa crise começou a se esboçar para nós, ou
começou a ser falada, via a desacomodação — extremamente incômoda no sentido
ético, diga-se de passagem — do caso Amilcar Lobo, discutido no livro de Helena Viana,
fluxo que foi crescendo e abarcando outras possíveis questões de comprometimento
político, a discussão sobre a propagação da psicanálise e a formação do psicanalista, as
diversas formas de relação com o poder, com as instituições e por ai afora.

Coisas que parecem mexer com o cerne da atividade psicanalítica e que se ramificam
em galhos e mais galhos de uma árvore imensa, que vai desde a acepção do que seja a
psicanálise e suas implicações com o poder desembocando na transferência, referência
primeira e última de toda prática clínica; ou, vice-versa (o que dá no mesmo), surgindo
na transferência e ramificando-se a partir dela.

Pela própria natureza da indagação, um dos galhos desta árvore é nossa relação (de
nós, psicanalistas brasileiros) com a atual psicanálise européia e/ou o saber europeu,
onde temos de lidar com o, por vezes, indelicado e sufocante peso da tutela cultural
francesa e/ou européia sobre nossa formação e nossa clínica.

Nessa relação, muitas vezes somos tentados a ocupar, cada um à sua maneira, (ainda
que de modo tímido, às vezes meio disfarçado até para si próprio), o lugar do
colonizado obediente, deslumbrado diante da possibilidade de ser acolhido e
reconhecido pelos detentores de um suposto e invisível saber psicanalítico, à espera do
cafezinho na sala dos professores de uma Viena romanceada, ou onde quer que nosso
imaginário arrivista nos leve. (Quem sabe isso explique por que se dá tanto valor aos
trabalhos escritos por lá, enquanto só muito raramente reconhecemos o que os colegas
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daqui estão pensando ou fazendo). Posição que trai os princípios da própria psicanálise
enquanto caminho solitário, que pede sempre um desbravamento original, sem tutela.

Nessa rede, à primeira vista tão cheia de meandros, a resistência já insinuada


embrenha-se nas voltinhas menos aparentes, faz das suas, e organiza, muito
ironicamente, um momento de discussão e de debate mundial como este nosso — um
fórum —, cujo nome já de cara evoca episódio marcante da história francesa, velha
tutora do outro lado do Atlântico, umbigo do mundo.

Meio como o índio que aprendeu com o jesuíta a rezar o pai-nosso com o terço numa
mão e a flecha na outra, começamos a nos mexer, devagar, cautelosos, tentando ao
mesmo tempo escutar a própria voz e sermos ouvidos pelo grande navio advindo do
além-mar.

Se fôssemos todos modistas, ou estilistas — que é como chamam agora os da alta-


costura — menos mal seguirmos os ditames europeus de certo e errado, bonito e feio;
a pior consequência seria ver nossa coleção prêt-à-porter, num deslize, desfilar pesados
modelitos de pura lâ para vestir o caloroso pessoal destes trópicos. Só que nosso
material de trabalho é um pouco mais enjoado e bem mais exigente e se ressente
tremendamente de toda e qualquer distração de nossa parte, de todo e qualquer
descuido, intencional ou não, indo denunciar a desatenção em nossa delicadíssima
clínica.

Então, veja você meu caro e paciente leitor, em que inhaca danada estamos nós,
psicanalistas: a crise vem colada à natureza mesma de nossa atividade, é uma crise
transferencial, que para nosso pesar e nosso prazer, é a seiva que alimenta a árvore e
por onde mesmo está ameaçando enfraquecê-la.

Ao psicanalista cabe escutar, paciente; ou, melhor dizendo, constituir sua escuta no
livre-trânsito pelo próprio inconsciente, criando desse modo condições para que algum
lugar transferencial aconteça. E por ser assim, por ser essa a natureza de nossa
atividade, toda e qualquer modalidade de relação com o poder e com suas facetas mais
sutis será traduzida, transferida, deslocada, retratada, na transferência. A relação que
estabelecemos com a teoria está ali, com os colegas, está ali, com as instituições, ali,
presentificada com todas as vírgulas, aspas, reticências e pontos de exclamação.

Nas "Conferências Introdutórias" Freud diz que "aprende-se psicanálise em si mesmo,


estudando-se a própria personalidade". René Major, em uma de suas conferências no
Brasil ("Por uma autonomia da clínica psicanalítica") diz o seguinte: "No que se refere
às exigências de Freud, quanto aos conhecimentos exigidos do analista clínico, além de
saber fazer a análise de seus próprios sonhos, hoje em dia o perigo está, certamente,
em uma insuficiência quanto à competência. E este perigo é reduplicado pelo aumento
do risco de fechamento epistêmico que representa qualquer ensino do que a clínica do
inconsciente poderá sempre questionar a legitimidade."

Em sua frase Freud parece indicar, com toda simplicidade, por quais não-sabidos
caminhos pautar o trabalho clínico, qual o ponto de partida: o conhecimento do próprio
inconsciente. Neste sentido, a insuficiência quanto à competência, de que nos fala René
Major, só pode ser pensada em relação ao divã (já que, nessa lógica, é onde a
formação do analista se dá).
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Sendo assim, toda e qualquer crise que possamos encarar, diz respeito,
necessariamente, ao divã de cada um enquanto paciente, às formas com as quais
estamos lidando com a transferência, seja entre nós colegas, seja com nossos
pacientes, que são, também e efetivamente, com quem nos constituímos psicanalistas
(na abertura de "O Brincar e a Realidade" Winnicott dá uma tocante demonstração de
gratidão ao dedicar seu livro: "Aos meus pacientes, que pagaram para me ensinar".
Somos o que somos — psicanalistas — graças ao que aprendemos com o inconsciente,
nosso e de nossos pacientes pacientes.)

Penso que está exatamente aí o começo e o fim da crise dos psicanalistas: numa quase
imperceptível volta do parafuso, que muda o eixo de lugar e altera uma visão lúcida.

Os mestres tibetanos de meditação estão fartos de saber que sempre que um mestre
morre, a prática dos discípulos tende a ser negligenciada, dando lugar ao surgimento
de uma nova religião. A morte do mestre leva à dissociação da experiência: no lugar da
vivência prática e do exercício cotidiano a tendência é surgir a adoração, uma
idealização. Uma ideologia, onde antes havia gesto, experiência.

O que a transferência tem de melhor é que não é apenas discurso, é vivência, da


mesma forma que meditar não é pensar. Há um algo extra quando o inconsciente
acontece.

Seguindo por este caminho, sou levada a concluir que o que os psicanalistas enfrentam
atualmente é a ameaça de esvaziamento de uma prática que tenta se sustentar
exacerbadamente no discurso, deixando a dimensão do ser relegada a um segundo
plano. O gesto humano, no sentido Winnicottiano, vai ficando de lado, enquanto vamos
aos poucos entronizando um certo discurso intelectual muito bem articulado, muito
bonitinho, mas sem coração.

Que mesmo sendo muito bem articulado e bonitinho, guarda meandros e dobras por
onde transferências mal resolvidas e envolvimentos com o poder se preservam,
escamoteadas. E que agora vão surgindo na forma de um furo que todo mundo busca
entender qual é. Furo na clínica, furo na transferência, furo na forma como nos
relacionamos uns com os outros.

O político, para mim, no que tange à discussão dos Estados Gerais, parece ter muito
pouco a ver com a ciência dos fenômenos referentes ao Estado, com a ciência política.

Ao contrário, o que chamo de político tem mais a ver com a habilidade no trato das
relações humanas, com o existir. Este último sentido, tomado via nossa função de
analistas, diz respeito à habilidade de promover a expressão do inconsciente —
começando e terminando em nós mesmos —; diz respeito ao ser e a uma escolha
existencial com a qual nos deparamos a cada minuto, no gesto em direção ao outro.

Há uma certa confusão difícil de ser abordada porque se mantém preservada em


regiões fronteiriças, quase justificadas pela teoria, e que diz respeito a tópicos da maior
importância para qualquer psicanalista, como neutralidade, abstinência, etc.

O antigo e confiável bom senso ainda serve para resolver impasses desta natureza: um
psicanalista deve manter sigilo e neutralidade diante de notícias de torturas escutadas
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do divã? Uma confusão dessa ordem só pode ocorrer numa época de depauperamento
ético como a nossa.

Será que no afã de sondarmos o desconhecido, nós, psicanalistas, nos esquecemos que
o óbvio é óbvio?

Se sairmos de campos tão gritantes como a tortura e a perseguição política e


passarmos para outras modalidades de relação, o mesmo raciocínio continua valendo:
por exemplo, o descaso dos psicanalistas entre si, que coexiste, lado a lado, com o
requinte de suas formações teóricas e a sofisticação intelectual vigente, numa vaidade
velada que em certos casos beira à presunção. Será que os eruditos em relações não
sabem se relacionar? Qual é o papel do intelecto numa prática como a psicanalítica?

Se em nosso campo a desconstrução faz parte do ofício, se um determinado olhar


despojado e disponível é o que possibilita a escuta do não sabido, o que fazer com a
persona vaidosa, o esnobismo? E nesses casos, do que é que se tem tanta certeza?

Outro dia escutei uma historinha (real!) bem bonita: uma jovem aluna de psicologia
estava aguardando seu horário de estágio na sala de espera de um ambulatório
psiquiátrico; sentada a seu lado uma paciente psicótica, que começou a se sentir muito
mal e a chorar.

Já estava entrando em pânico, quando olhou para a estudante e disse: "Vai acontecer
uma coisa terrível, por favor me ajude, senão eu vou matar uma criança; eu não posso
fazer isso ... acho que eu vou fugir, vou sair correndo daqui..."

A estudante, sem saber o que fazer, respondeu: "se você quiser, eu te dou a mão e
saio correndo com você".

Desnecessário dizer que a paciente não saiu correndo nem matou criança nenhuma. Ao
contrário, acalmou-se.

Isso não é novo, nem é sofisticado intelectualmente. É um gesto simples. Mas gesto.

O inconsciente é um esquilo arredio, ora vulcão, ora lago insondável. Um pouco de


simpatia e despretensão só podem ajudar a expressar o que ninguém sabe como e
quando se expressará.

Pode soar como a mais cabal banalidade, mas é estratégia das boas.

O que o paciente leva com ele da transferência e da escuta não é uma lista
bibliográfica, nem requinte intelectual. É calor. Um misterioso calor que o ser humano
percebe como ninguém, mesmo no mais absoluto silêncio. Os psicanalistas sabem
muito bem disso. Ou deveriam saber.

Sendo assim, penso que nossa crise é a crise de cada um diante de seus pacientes, de
seu próprio inconsciente, da maneira como se relaciona com o saber, com o poder e
suas mais variadas formas. Uma modalidade de crise que tem a ver com a falta do
gesto, com um esvaziamento de sentido atopetado de letras, às vezes tão bem
acabadas.
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Mas como na história da estudante, o amor ontológico continua sendo a panacéia


universal, solução para todos os males, até numa prática tão sofisticada e cheia de
sutilezas como a Psicanálise.

Amor que se traduz em um certo olhar e em uma certa escuta que delimitam um
campo e que põem um ser humano próximo a outro de maneira única; que propiciam o
voltar para casa, em direção ao próprio inconsciente, a uma narrativa interior.

Ao expor um tal posicionamento o risco que se corre é o de ser criticada como


romântica; o individualismo moderno tornou o amor um palavrão, um artigo antiquado,
coisa de final do século XVII, meio ridículo, pouco inteligente, etéreo e evasivo.

Vá lá, corro o risco.

Ao contrário de romântico — no sentido de ingênuo e incipiente —, só o gesto é eficaz.

Para ser psicanalista é preciso compreender os próprios sonhos, estar familiarizado com
o inconsciente, conhecer as próprias mazelas e prestar-lhes atenção constante, ser
capaz de sentir empatia, responder intimamente ao outro. E gostar de gente.

Sem isso, com ou sem erudição, com ou sem crise, nada feito.

Maria de Fátima Siqueira


mfmarques@uol.com.br

Novembro de 1998.

SIQUEIRA, M. F. A Crise da Psicanálise e A Arte de Perguntar. (Nov.1998). Disponível


em: <http:/www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/index.htm.>.

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