Você está na página 1de 47

FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad.

Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa,


Gradiva, 1986, p. 81-98.

Da história-narrativa à história-problema *

A história é filha da narrativa. Não se define por um objecto de estudo, mas por um tipo de
discurso. Dizer que estuda o tempo não tem de facto outro sentido que dizer que dispõe
todos os objectos que estuda no tempo: fazer história é contar uma história.

Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém ou a alguma coisa, a um


indivíduo, a um país, a uma instituição, aos homens que viveram antes do instante em que
se narra e aos produtos da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que
constituem o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito
naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta ao homem como a
própria imagem do tempo: a duração muito nítida de uma vida, entre o nascimento e a
morte, e as datas referenciáveis dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A
divisão do tempo é portanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto» da história.
Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no fundo à mesma lógica: não
pode, por definição, começar senão pelas origens da França, contar em seguida as fases do
crescimento e da aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença está
em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração

* Diogelle, n.O 89, «Problemes des sciences contemporaines», Janeiro-Março de 1975.

81
A OFICINA DA HISTÓRIA

do passado, tesouro da nação, tem igualmente a responsabilidade de . traçar esse futuro e,


por conseguinte, de fechar o tempo.
A narrativa histórica obedece portanto a um recorte do tempo que se inscreve no dado bruto
da vivência: no fundo, fixa as recordações dos indivíduos e das colectividades. Conserva
vivo aquilo que escolheram do seu passado ou simplesmente do passado, sem desfazer nem
reconstruir os objectos desse passado: fala de momentos, não de objectos.
Mesmo quando trata ou quer tratar de «civilizações», esse tipo de história não escapa à
regra: quando Voltaire compara o século de Péricles ou de Augusto ao de Luís XIV, a
encarnação concreta dessas sucessivas grandezas indica bem que está a comparar períodos
e não conceitos.
Essa é com certeza uma das razões pelas quais esta história foi principalmente - mas não
unicamente - biográfica ou política. Na vivência colectiva da humanidade aquilo que é mais
fascinante para as testemunhas e mais disponível para a narração é a aventura dos grandes
homens e dos Estados. Não nos devemos admirar de que a história se tenha desenvolvido,
na Antiguidade grega e romana, e depois na Europa Moderna, como anais do poder e da
guerra. O recorte narrativo compassou os infortúnios e as vitórias dos povos - os grandes
momentos da história.
É que o acontecimento dessa história é um momento. É isso mesmo que o caracteriza por
excelência: é aquele ponto de tempo ímpar em que se passa qualquer coisa que não é
redutível nem àquilo que houve antes, nem ao que virá depois. Essa «qualquer coisa», ou
seja, o facto histórico revestido da dignidade de acontecimento, não é nunca comparável,
falando com todo o rigor, a um facto anterior ou posterior, dado que é o seu carácter
empiricamente singular que lhe dá a sua importância: a batalha de Waterloo ou a morte de
Estaline aconteceram apenas uma vez, não se compararam com nenhuma outra bata, lha,
com nenhuma outra morte, e transformaram a história do mundo.
No entanto, o acontecimento, tomado em si próprio, é ininteligível. É como uma pedra que
apanho na praia: privada de significação. Para que a adquira, tenho de integrá-la numa rede
de acontecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da narrativa.
Waterloo tem um sentido em relação a uma história que conte a vida de Napoleão, o
Primeiro Império ou a rivalidade franco-

82
A HISTÓRIA HOJE

-britânica do século XIX, por exemplo. A morte de Estaline ganha importância na história
da Rússia no século XX, na do comunismo internacional ou noutra qualquer constelação
cronológica de factos que se possa imaginar. O que significa que, no interior da história-
narrativa, o acontecimento, apesar de por natureza ser único e não comparável, extrai a sua
significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, do tempo.
Não sendo ele um objecto intelectualmente construído para ser estudado, não pode portanto
receber a sua significação da análise das suas relações com outros objectos comparáveis, ou
mesmo idênticos, no interior de um sistema. Pertencendo à ordem do vivido, ao domínio
«daquilo que aconteceu», não pode ser organizado ou mesmo simplesmente baptizado a
não ser em relação à significação externa e global do tempo histórico que tem por função
medir. Toda a história-narrativa é uma sucessão de acontecimentos-origens, que podemos
chamar, se quisermos, de história evenemencial; toda a história evenemencial é uma
história teleológica: só o «fim» da história permite escolher e compreender os
acontecimentos com que ela é tecida.
Esse «fim» pode ser diferente segundo os historiadores e os assuntos que escolheram para
contar. Foi envolvido durante muito tempo pela apologética religiosa ou pela edificação
moral, que hoje em dia passaram de moda. Não se pode dizer o mesmo da exaltação do
poderio ou da consciência nacionais, que continua a ser uma das grandes justificações da
história-narrativa, depois de ter sido, sem dúvida, o seu impulso fundamental: todos os
povos precisam de uma narrativa das origens e de um memorial da grandeza que possam
ser ao mesmo tempo garantias do seu futuro. Assim como a escrita é um poder, os nossos
arquivos são recordações ou símbolos do poderio. Mas a história transnacional, geralmente
designada como história das civilizações, também não foge a essa imposição inevitável de
dar um sentido prévio ao tempo. No mundo laicizado em que vivemos, ela traduz na maior
parte das vezes, para além da pertença nacional, a outra grande vivência colectiva da
humanidade desde o século XVIII: o sentimento do progresso. Esse progresso tem nomes e
rostos diferentes, é por vezes o desenvolvimento dos bens materiais, mais frequentemente o
difícil advento da razão, da democracia, da liberdade ou da igualdade. Reco-

83
A OFICINA DA HISTÓRIA

nhece-se nas incertezas desta enumeração ao mesmo tempo toda a ambiguidade das
realizações e dos valores que caracterizam o mundo contemporâneo e a impossibilidade, no
entanto, de não os evocar como outros tantos fundamentos implícitos de uma certa história:
o narrador tem de situar o mundo de que fala no fim do tempo que narra.
Em suma, a história-narrativa é a reconstrução de uma experiência vivida no eixo o tempo:
reconstrução inseparável de um mínimo de conceptualização, mas em que essa
conceptualização nunca é explicitada. Esconde-se no interior da finalidade temporal que
estrutura qualquer narrativa como se fosse o seu sentido.
Ora, o que me parece caracterizar a evolução recente da historiografia é o recuo talvez
definitivo dessa forma de história, sempre florescente ao nível das produções de grande
consumo, mas cada vez mais abandonada pelos profissionais da disciplina. Parece-me que
passámos, sem o sabermos ainda, de uma história-narrativa a uma história-problema, à
custa de mutações que se podem resumir do seguinte modo:
l. O historiador renunciou à imensa indeterminação do objecto do seu saber: o
tempo. Já não tem a pretensão de contar o que se passou, ou até o que se passou de
importante, na história da humanidade, ou numa parte da humanidade. Está consciente de
que escolhe, nesse passado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado,
questões selectivas. Por outras palavras, constrói o seu objecto de estudo delimitando não
só o seu período, o conjunto dos acontecimentos, mas também os problemas colocados por
esse período e por esses acontecimentos, e que terá de resolver. Não pode portanto escapar
a um mínimo de conceptualização explícita: a boa questão, o problema bem colocado são
mais importantes - e são mais raros! - do que a habilidade ou a paciência em trazer à luz do
dia um facto desconhecido, mas marginal.
2. Rompendo com a narrativa, o historidador rompe igualmente com o seu material
tradicional: o acontecimento singular. Se, em lugar de descrever um vivido, único, fugidio,
incomparável, procurar explicar um problema, vai necessitar de factos históricos menos
vagos do que aqueles que encontra constituídos sob esse nome na memória dos homens.
Tem de conceptualizar os objectos da sua investigação, integrá-los numa rede de
significações e, por conseguinte, torná-los, se não

84
A HISTÓRIA HOJE

idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo. É privilégio da história
quantitativa oferecer a via mais fácil - mas não a única - para este tipo de trabalho
intelectual.
3. Ao definir o seu objecto de estudo, o historiador tem igualmente de «inventar» as suas
fontes, que geralmente não são apropriadas, tal como estão, ao seu tipo de curiosidade.
Pode acontecer, evidentemente, que se lhe depare um arquivo que não só será utilizável tal
qual está, mas ainda o vai conduzir a idéias, a uma conceptualização nova ou mais rica. É
uma das bênçãos do ofício. Mas geralmente acontece o contrário. Ora o historiador que
procura colocar e resolver um problema deve achar os materiais pertinentes, organizá-los e
torná-los comparáveis, permutáveis, de modo a poder descrever e interpretar o fenômeno
estudado a partir de um certo número de hipóteses conceptuais.
4. Daí a quarta mutação da profissão de historiador. As conclusões de um trabalho são cada
vez menos separáveis dos procedimentos de verificação que as sustentam, com os
constrangimentos intelectuais que implicam. A lógica muito particular da narrativa, do post
hoc, ergo propter hoc, não se adapta melhor a esse tipo de história do que a história,
também ela tradicional, que consiste em generalizar o singular. E é aqui que aparece o
espectro da matemática: a análise quantitativa e os processos estatísticos, desde que
adaptados ao problema e judiciosamente conduzidos, estão entre os métodos mais rigorosos
de «testagem» dos dados
Antes de ir mais longe, deveríamos interrogar-nos sobre as razões desta mutação da
história. Referem-se provavelmente a factores externos ao próprio conhecimento, como a
crise geral do progresso com a qual nos debatemos, que põe em causa o sentido de uma
evolução dominada pelo modelo europeu dos séculos XIX e XX, e a própria noção de uma
história global e linear. Mas também se referem a elementos internos ao saber, tais como a
influência difusa da conceptualização marxista nas ciências sociais, o desenvolvimento
muito brilhante de algumas dessas ciências de objecto limitado e definido (estou a pensar
na economia, na demografia, na antropologia), ou ainda o impacte da informática, que
permite cálculos até aqui inimagináveis, mas com a condição de serem prévia e
rigorosamente formuladas as questões

85
A OFICINA DA HISTÓRIA

que se quer resolver e as hipóteses que se pretende testar. Sem me querer alongar sobre este
vasto problema, gostaria de me limitar ao exame das consequências dessa mutação na nossa
profissão e no nosso saber.
O arquivo com base no qual se escreve a história passou de uma colecção de documentos a
uma construção serial de dados. Com efeito, se o historiador passa a trabalhar com um
objecto de investigação conceptualmente claro, e se quer por outro lado permanecer fiel à
especificidade da sua disciplina, que- é estudar a evolução dos acontecimentos no tempo,
tem de dispor de dados pertinentes (raramente disponíveis enquanto tais) e comparáveis
entre si num período de tempo relativamente longo. O facto histórico já não é a irrupção de
um acontecimento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim uma
fenômeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que seja referenciado e
estudado através de uma série cronológica de dados idênticos, comparáveis a intervalos
preestabelecidos. Estes dados já não existem em si, mas como elementos de um sistema
formado pelos que os precedem e pelos que os seguem. São menos susceptíveis de uma
crítica externa de verosimilhança (através da comparação com outros testemunhos da
mesma época) do que de uma crítica interna de coerência (através do estabelecimento da
sua comparabilidade no interior do sistema que formam).
A operação intelectual que constitui os dados é portanto dúbia. É preciso primeiro
estabelecer a sua significação, que condiciona a sua utilização exacta. Por exemplo: o
historiador que se interessa pela alfabetização possui antes de mais, para períodos
anteriores ao século XIX, enumerações de assinaturas. Mas que significa saber assinar o
nome, em relação aos critérios actuais de alfabetização, que são a capacidade de ler e
escrever? Ou ainda: o historiador das crises e dos diferentes tipos de crises econômicas na
época moderna utiliza em profusão as séries de preços. Mas tem de responder primeiro à
seguinte pergunta: que significa o preço? Quais os movimentos, quais os níveis da vida
econômica de que é indicador? Uma vez estabelecida a significação dos dados, é necessário
constituir a sua série, torná-los comparáveis entre si, decidir da unidade-tempo que cobrem,
dos procedimentos estatísticos apropriados, etc. Operações que não são

86
A HISTÓRIA HOJE

simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas metodológicas. Poder-se-á
objectar a esta visão do trabalho histórico uma espécie de questão prévia: é que as fontes do
historiador são geralmente lacunares, parciais ou simplesmente inexistentes, segundo os
acasos da sua conservação. Seja como for, não se trata, entre a história e as outras ciências
sociais, de estabelecer uma diferença de princípio mas de situações; existem com certeza
problemas, sobretudo nos períodos recuados do passado, em relação aos quais
desapareceram os materiais de análise.
Porém, em contrapartida, é preciso ver que esses materiais não foram constituídos de uma
vez por todas no século XIX com o depósito público de arquivos: têm uma elasticidade
quase indefinida, e muitos vezes é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si
próprio, que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos registros de
paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante séculos, até que o nascimento
recente da demografia histórica, nos anos cinqüenta, viesse descobrir o seu imenso valor.
Por outro lado, o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca,
dados constituídos directamente pertinentes pode na maioria dos casos contornar o
obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe permita a sua utilização em
segundo grau.
Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização substitutiva dos dados
históricos. Distingui, num artigo recente, três tipos de dados seriais: o primeiro, o mais
simples e mais fácil de manejar, é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis
constituídos de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe. É o caso,
por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos registros de paróquia para o
historiador demógrafo: deles se extraem, com uma manipulação mínima e estandardizada (a
técnica da reconstituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda
resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas.
O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas utilizados de modo
substitutivo, para responder a questões completamente diferentes das razões por que tinham
sido agrupados esses dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos
intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção

87
A OFICINA DA HISTÓRIA

e o comportamento sexual das populações do passado. Ou do especialista do crescimento


econômico que trabalha com séries de preços. Nestes casos, o problema da pertinência e a
eventual reorganização dos dados em relação ao problema posto é o problema central da
sua manipulação. Por fim, existe um terceiro tipo de fontes, mais delicado, ainda de
manejar: as que não são de natureza numérica, mas que o historiador quer utilizar de modo
serial. Para tal, como no caso anterior, deve não apenas estabelecer a sua pertinência e o seu
valor como também reorganizá-las sistematicamente em unidades conceptuais e
cronologicamente comparáveis. Exemplos: a utilização de contratos notariais de casamento
para estudar a endogamia, a mobilidade social, a fortuna ou a alfabetização. Ou a dos
testamentos para a análise do sentimento da morte.
Assim, se se procurasse classificar as mais recentes conquistas da historiografia
contemporânea pelo grau de rigor das suas realizações, seríamos levados a ter em conta ao
mesmo tempo o tipo de conceptualização dos problemas e a qualidade das fontes em
relação a esses problemas. Assim, é fácil de verificar que, por exemplo, a demografia
histórica ou a história econômica são deste duplo ponto de vista, e pelo menos em relação
ao chamado período «moderno», os sectores mais bem apetrechados: primeiro porque
beneficiam de conceitos elaborados por disciplinas específicas como a demografia e a
economia política, pelo que basta importá-los para a história, com adaptações menores.
Depois porque os objectos desses estudos são mais fáceis de abstrair, de definir e de medir
do que a maioria dos produtos da actividade humana e porque, de resto, a maior parte dos
estados europeus estabelecem e conservam dados desse gênero desde há vários séculos.
Contudo, até no interior desses sectores «avançados» da história as coisas não são tão
simples como o poderiam deixar pensar os critérios deste palmarés, retirados da
classificação acadêmica das nossas disciplinas. É que a história, dada a sua natureza
indeterminada, tende a extravasar incessamente às aquisições sectoriais desses saberes
especializados. A questão que se põe é saber se, e em que medida, ao tomar de empréstimo,
ao integrar algumas dessas aquisições, ela terá instituído um conhecimento do passado que
se possa classificar como científico.

88
A HISTÓRIA HOJE

É preferível, a fim de ter uma melhor visão deste velho problema, raciocinar sobre
exemplos, numa ordem crescente de complexidade ou de incerteza. Vou escolhê-los no
campo da demografia histórica, que é um dos sectores mais trabalhados pela historiografia
francesa desde há uns vinte anos. É também um sector que apresenta facilidades
excepcionais para a formalização matemática dos problemas. Esse privilégio resulta da
natureza específica da disciplina e dos sacrifícios que esta consentiu na definição do seu
objecto: a demografia fundamenta-se inteiramente num postulado abstractamente
igualitário, segundo o qual o nascimento de Napoleão tem exactamente a mesma
importância que o de qualquer um dos seus futuros soldados. Sacrificando assim por
hipótese tudo aquilo que haja de peculiar na vida dos indivíduos, ou seja, o essencial da sua
história, constitui a humanidade histórica em unidades permutáveis e mensuráveis,
mediante alguns r tipos constantes e comparáveis de acontecimentos: o nascimento, o
casamento, a morte. Esses acontecimentos, desembaraçados de todas as significações que
as civilizações, cada uma à sua maneira, neles colocam, ficam reduzidos àquilo que têm de
mais elementar: o facto, simplesmente, de terem acontecido.
Digo propositadamente que são acontecimentos porque não vejo, a priori, o que possa
distinguir determinado facto histórico de outro facto histórico: por exemplo, um
nascimento, mesmo anônimo, de uma batalha célebre. Deste ponto de vista, a distinção
usual entre estrutura e acontecimento, entre história estrutural e história factual não pode ter
qualquer significação no que diz respeito ao próprio dado histórico; não há factos não
factuais e factos factuais. A história é um acontecimento permanente. Mas certas categorias
de acontecimentos prestam-se mais facilmente do que outros a uma conceptualização, ou
seja, a uma integração num sistema de inteligibilidade: é o caso dos acontecimentos
demográficos.
De facto, esses dados brutos, e particularmente simples, sobre os nascimentos, casamentos
e óbitos constituíram o objecto de um saber específico: a demografia. Podem portanto dar
lugar a um certo número de cálculos e análises, que são em si outros tantos objectos pré-
fabricados da investigação histórica: ou seja, objectos, conceitos elaborados por uma
disciplina que não é a história - neste caso a

89
A OFICINA DA HISTÓRIA

demografia, mas para a qual a história fornece igualmente os materiais primários-, o


levantamento de nascimentos, casamentos e óbitos.
Por pouco que trabalhe com dados seguros ou verificados - e esse «pouco» é, na realidade,
muito porque o problema da verificação das fontes numéricas não é simples -, a demografia
histórica contribui com resultados comparáveis aos da simples demografia: o conjunto das
relações que permitem medir os elementos de uma dada população e o modo como
evoluem.
Esses elementos, medidos ano a ano, constituem resultados claros (não ambíguos) e certos.
Mas a sua interpretação já não o é. Tomemos uma taxa de mortalidade geral que baixa
durante um século, por exemplo na França do século XVIII. É necessário estabelecer,
decompor essa taxa por grupos etários, obter nomeadamente a taxa de mortalidade infantil
ou juvenil, para saber onde se produz a baixa da mortalidade.
Suponhamos que se trata de ganhos espectaculares na sobrevívência dos recém-nascidos (0
– 1 ano): uma série de hipóteses muito diversas pode explicar um fenómeno desse tipo,
desde a multiplicação das parteiras nos campos até à transformação do sistema de
aleitamento, passando por este ou aquele progresso pontual da medicina numa dada doença
infantil. Como escolher, sem ter testado cada uma destas ideias e algumas outras?
É verdade que se pode proceder de outro modo é partir, não de uma só variável, mas do
conjunto das variáveis de um sistema demográfico.
A abordagem é então menos histórica do que propriamente demográfica: utiliza ou constitui
um modelo de reprodução de uma população supostamente estável, pondo provisoriamente
entre parênteses o factor tempo.
Suponhamos que todas as «casas» deste modelo foram preenchidas; a pergunta do
historiador subsiste: como evolui o sistema? É possível, evidentemente, pela observação
daquilo que se passou ou mesmo pela simulação daquilo que se teria podido passar se esta
ou aquela variável do sistema tivesse estado ausente ou fosse muito diferente diagnosticar
por onde é que o sistema se modifica; como é que, por exemplo, se desenvolve ou, ao
contrário, se retrai. Mas a análise dessas variáveis estratégicas remete, como no caso
anterior, para elementos exógenos ao sistema e que agem sobre ele. Isto é, para hipóteses de
interpretação que saem do campo demo gráfico e remetem imediatamente para con-

90
A HISTÓRIA HOJE

ceitos não constituídos em disciplina científica e para indicadores que na maioria dos casos
estão por inventar.
Vejamos o problema da idade de casamento, variável central da regulação demográfica nas
populações da Europa pré-industrial, entre os séculos XII e XIX. Sem entrar aqui em
pormenores, parece de facto que o recuo da idade de casamento terá sido o instrumento
endógeno essencial para uma estabilização da dimensão global dessas populações,
submetidas por outro lado a punções externas (fomes, guerras, epidemias) cujo impacte
decresce ao longo do período. Como se opera essa regulação? De dois modos. A longo
prazo, a elevação progressiva da idade de casamento, até aos seus «níveis» clássicos de
vinte e cinco, vinte e seis anos (para as mulheres), anula dez anos de fecundidade possível e
diminui assim, independentemente de qualquer acção contraceptiva, o número de crianças
por família «completa». Por outro lado, a mais curto prazo, a extrema variabilidade das
taxas de mortalidade segundo os acasos da conjuntura é equilibrada por variações
compensatórias da idade de casamento: quando uma população atravessa uma crise
demográfica (qualquer que seja a sua causa), adia os seus casamentos, pelo que recua a
idade de casamento. Mal sai dela, pelo contrário, acrescenta aos casamentos adiados outros
de camadas etárias mais jovens. O abaixamento provisório da idade de casamento
desempenha então um papel de recuperação do nível anterior à crise. Deste modo, podemos
facilmente conceber e fazer funcionar um modelo demográfico que permita examinar qual a
evolução de uma população, permanecendo a todos os outros factores iguais, a partir das
variações da idade de casamento: como é que cresce, como é que diminui.
Este tipo de simulação permite seguir o papel desempenhado por uma variável num
sistema, e até na evolução desse sistema. Mas não as causas que sobre ela actuam. Por
outras palavras, permite descrever e não interpretar e muito menos explicar. De facto, basta
colocar a questão: quais são os factores susceptíveis de agir sobre um comportamento
cultural como o da idade em que se casam as pessoas, para se ser remetido para uma
pluralidade de interpretações possíveis. A longo prazo, a elevação da idade de casamento,
na Europa clássica, até aos vinte e cinco, vinte e seis anos, pode ser interpretada como um
ajustamento optimizado da densidade populacional aos recursos disponí-

91
A OFICINA DA HISTÓRIA

veis: veja-se Chaunu, Le Roy Ladurie, redescobrindo Malthus! A Europa rica, a Europa
«desenvolvida» dos séculos XVII e XVIII, essa franja de alta produtividade agrária que se
estende desde a bacia de Londres até à Itália do Norte, passando pelos Países Baixos, a
França do openfield, o vale do Reno, encontraria a sua estabilidade em tomo de uma
relação do homem com a terra de quarenta habitantes por quilômetro quadrado.
Mas esta proposição, mesmo que seja grosso modo verdadeira - o que não é muito evidente,
porquanto os dados sobre a produtividade e a produção agrárias desta época são difíceis de
manejar -, não diz nada sobre as mediações através das quais foi vivido esse ajuste da idade
de casamento. Será que se trata - na medida em que não é acompanhado de um aumento
dos nascimentos ilegítimos - de uma mais perfeita interiorização, durante urna adolescência
mais longa, das regras de austeridade sexual? Ou deveremos ver aí sobretudo uma
adaptação de tipo socioeconómico, de tal modo que os filhos esperam, para se casar, isto é,
para se estabelecerem, que a geração precedente lhes entregue a exploração familiar?
Dir-me-ão que se deve começar pelo mais fácil e que as incertezas são menores no que
respeita às variações da idade de casamento a curto prazo. Porque é que, em períodos de
crise, uma população adia os seus casamentos? A resposta é relativamente clara: por causa
das incertezas em relação ao futuro, que nascem do espectáculo do presente. A consciência
histórica é, de facto, uma consciência determinada pelos ,acontecimentos a curto prazo; é a
conjuntura que condiciona as suas reacções de optimismo ou de pessimismo em relação ao
futuro. Quando o historiador tem de lidar com reacções deste tipo, que são estratégias
conscientes de resposta a um dado acontecimento, está relativamente à vontade para
reconstituir-lhes o encaminhamento através dos vestígios que elas deixaram; pois não faz
mais do que ressuscitar as razões dos agentes históricos. O aborrecimento é que essa
redundância não leva longe! A crise adia os casamentos, a prosperidade multiplica-os antes
que a crise seguinte os atinja novamente. Bom!
Mas fica por compreender o problema essencial: saber como se estabelece, através dessa
sucessão de ajustamentos em sentido contrário, um recuo global da idade de casamento que
permita travar o crescimento «natural» das populações da Europa pré-industrial.

92
A HISTÓRIA HOJE

É aqui que uma descoberta de tipo descritivo, como esta, leva forçosamente o historiador a
hipóteses explicativas que são duplamente delicadas: primeiro porque estavam por natureza
fora do alcance dos homens cujo comportamento estuda e, portanto, não existem traços
escritos directamente utilizáveis. Depois, porque é obrigado a sair da análise propriamente
demográfica e da precisão conceptual e factual que ela implica. Tem de compreender os
mecanismos através dos quais a probabilidade de comportamento colectivo que está inscrita
na análise dos dados sobre a idade de casamento se encama na multiplicidade das condutas
individuais.
Retomemos a título de exemplo as duas hipóteses sugeridas acima. Apesar de serem de
natureza diferente, não são incompatíveis. Têm em comum facilitar nos indivíduos que
viveram nessa época a harmonização das expectativas e das oportunidades que é uma das
condições da vida social, esse mecanismo um pouco melancólico com o qual os homens
prevêem e fabricam o seu futuro mais provável. Mas a primeira é de ordem psicológica, a
segunda de ordem económica. A primeira é uma moral, a segunda uma estratégia. A
primeira não é mensurável, a segunda já o é. De facto, o historiador poderá estabelecer uma
relação entre a procura das novas gerações e o mercado das explorações, ou dos empregos
livres, em resultado do desaparecimento dos velhos. Se não dispuser de dados suficientes
para trabalhar numa escala macroeconómica, poderá ao menos abordar o problema por
intermédio de uma série de monografias de explorações familiares, que lhe permitirão
definir a rotação das gerações numa mesma exploração.
Trata-se de um processo objectivo, que pode, pelo menos em teoria, ser objecto de uma
conclusão clara. Ao contrário, a generalização na Europa clássica de um super-ego puritano
(no plano sexual) é uma hipótese que não pode implicar respostas não ambíguas. Vê-se
facilmente o que é que toma essa hipótese verosímil: a ética protestante, a Contra-Reforma,
a «civilização» de Norbert Elias1... Mas não se pode provar j realmente nem que é
verdadeira nem que é falsa.
Porquê? Antes de mais porque o super-ego é um conceito psico-

________________

1 Norbert Elias, La Civilisation des m(J!urs, Calmann-Lévy.

93
A OFICINA DA HISTÓRIA

lógico a propósito do qual nenhuma demonstração é possível. Serve para interpretar


comportamentos que são indefinidamente interpretáveis noutros termos: por exemplo,
substituindo a ideia weberiana de autodisciplina do indivíduo pela do reforço dos
constrangimentos externos, neste caso a Igreja e o padre; todavia, por outro lado, não
existem e não existirão nunca dados pertinentes para responder a hipóteses que dizem
respeito à psicologia dos agentes históricos: estes morreram já e poucos foram, mesmo
entre os raros que falavam de si, os que se interessaram por essa parte de si próprios que
não tinham, antes de Freud, nem os meios nem mesmo a curiosidade de explorar. O
historiador daquilo que hoje em dia se designa de um modo muito vago por «mentalidades»
é assim levado quer a raciocinar sobre text~s esparsos ou ambíguos quer a achar um
indicador, não nas psicologias, mas nos próprios comportamentos, para induzir a partir
deles as características psicológicas.
No primeiro caso, vai encontrar dificuldades ligadas à significação de um testemunho ao
mesmo tempo subjectivo e excepcional. É verdade que, em certo sentido, todos os dados
históricos (tirando aqueles que constituem os vestígios da vida material do homem) são
subjectivos: mesmo o registo de um nascimento ou a contabilidade de uma exploração
agrícola foram, num certo momento do tempo, lançados no papel por um indivíduo. Mas as
imposições do registo são muito diferentes conforme o objecto observado, a natureza da
observação e do observador: consoante se trate de um acontecimento normal, repetitivo,
isto é, comparável a um anterior, ou de um acontecimento extraordinário, anotado
exactamente porque foge aos hábitos; consoante se trate de uma observação sistemática,
submetida a regras, ou de um testemunho fortuito, de uma contagem ou de uma impressão;
consoante, enfim, a relação que une o observador e a coisa observada é da ordem do
conhecimento ou não.
No que ao meu exemplo diz respeito, os testemunhos históricos que nos podem informar
sobre as características psicológicas dos comportamentos de há vinte séculos são,
evidentemente, de ordem literária; digo «literária» no sentido lato do termo, nele incluindo
alguns textos que a posteridade não elevou a essa dignidade, alguns diários íntimos
inéditos, uns quantos manuscritos antigos que possam lançar

94
A HISTÓRIA HOJE

alguma luz sobre o tema. Porém, limitados a um meio social restrito, estes testemunhos são
por natureza raros, impossíveis de explorar em séries temporais sistemáticas. Quem quiser
ultrapassar o seu carácter aleatório deve voltar-se para uma documentação diferente, de tipo
normativo: por exemplo, os manuais de bem-viver ou os tratados especializados de moral
religiosa, como os livros de penitências. Mas os textos natureza apresentam a mesma
ambiguidade que a produção legislativa dos Estados: prescrevem um dever-ser, do qual
nunca se sabe em que medida é aceite, obedecido, interiorizado pelos homens.
A repetição, no decurso de um longo período histórico, das mesmas prescrições traduzirá
uma penetração social do comportamento prescrito ou, pelo contrário, traduzirá resistências
a esse comportamento?
A segunda hipótese é tanto, se não mais, verosímil do que a primeira: neste caso, o texto
normativo é mais interessante pela «exposição dos motivos» e o que implica de observação
do que por aquilo que interdita ou ordena; no fundo, é essencialmente testemunho dos
meios de que provém, o Estado ou a Igreja.
Por isso o historiador das mentalidades, que procura alcançar níveis médios de
comportamento, não se pode satisfazer com a literatura tradicional do testemunho histórico,
que é inevitavelmente subjectiva, não representativa, ambígua. Deve voltar-se para os
próprios comportamentos, ou seja, para os sinais objetivos desses comportamentos. A
hipótese discutida aqui de um super-ego «weberiano» que estenderia o seu domínio às
almas da Europa clássica pode ser testada com vários desses sinais: o número de
nascimentos ilegítimos e de concepções pré-nupciais ou a prática da contracepção. A
diminuição ou o baixo número de nascimentos ilegítimos ou de concepções pré-nupciais
num mundo onde a idade de casamento é elevada traduz de facto uma prolongada castidade
aceite. Mas é ainda necessário, para que estes indicadores façam sentido, que não tenha
havido, na época, práticas contraceptivas largamente desenvolvidas entre as populações da
Europa. Como saber isso? Não por meio de testemunhos literários, que são por natureza,
nesse domínio por excelência do não-dito, muito raros. Essencialmente através da medida
dos intervalos intergenésicos, ou seja, do espaçamento dos nascimentos das crianças
durante a vida conjugal dos casais. É conhecida a técnica estatística que permite medir

95
A OFICINA DA HISTÓRIA

a evolução desse espaçamento na vida das famílias. Consiste, a partir de um stock de


mulheres casadas em idade de ter filhos, em relacionar o número de nascimentos e a idade
das mães. Se a fecundidade dos casais diminuir muito rapidamente depois das primeiras
crianças e com a idade da mãe, há intervenção de práticas contraceptivas; senão, há apenas
sucessão dos nascimentos, travada unicamente pela duração do aleitamento dos recém-
nascidos e pelo enfraquecimento biológico da fecundidade à medida que a mãe potencial
envelhece.
As condições da experimentação parecem assim simples e claras. As curvas estabelecem
sem ambiguidade, por exemplo, que as populações canadianas no século XVIII ignoravam
a contracepção e que os duques e os pares de França da mesma época já a praticavam. Mas
entre estes dois extremos, os resultados permanecem ambíguos: precisamente porque o
espaçamento dos nascimentos, na vida de um casal, está sujeito a factores diferentes da
simples contracepção, é impossível isolar esse elemento. E o alongamento do intervalo
intergenésico, quando não é brutal, pode dever-se, por exemplo, a uma modificação das
práticas de aleitamento e a um desmame mais tardio do recém-nascido. Por isso as
conclusões categóricas são difíceis, como testemunha a discussão em curso sobre este
problema desde há uma dezena de anos.
Quando se tenta fazer o resumo do balanço metodológico, parece'-me que encontramos
incertezas inultrapassáveis a três níveis: o do conceito (o super-ego pensado como uma
espécie de consciência colectiva de austeridade que dá forma às condutas individuais), que
na realidade não é susceptível de demonstração; o dos dados históricos subjectivos, dos
testemunhos, que são raros, não-represemativos, ambíguo-:; o dos indicadores objectivos,
que são igualmente ambíguos. A hipótese adiantada é mais do domínio do verosímil do que
do verdadeiro.
Seria portanto inexacto pensar que basta passar da história-narrativa à história-problema
(ou, se se preferir, à história conceptualizante) para entrar, ipso facto, no domínio científico
do demonstrável. A história conceptualizante é provavelmente superior, do ponto de vista
do conhecimento, à história-narrativa porque substitui a inteligibilidade do passado em
nome do futuro por elementos de explicação expli-

96
A HISTÓRIA HOJE

citamente formulados, porque descobre e constrói factos históricos destinados a dar apoio à
explicação proposta e alarga assim consideravelmente o domínio da história propriamente
dita, ao recortá-lo e especificá-lo. Max Weber talvez tenha seguido por um caminho errado
com a sua Ética Protestante, mas que posteridade não teve! Uma descoberta conceptual
mede-se pelo campo de investigações que abre, pelo rasto que deixa...
Mas ainda assim não se passa tão simplesmente para uma história científica. Primeiro
porque existem questões, conceitos, que não têm respostas claras (não ambíguas). Depois
porque há questões que, em princípio, têm respostas claras e que, no entanto, não podem
ser resolvidas quer por causa da falta de dados, quer pela sua natureza - seja pelo carácter
ambíguo dos indicadores ou pelo facto de estes não serem susceptíveis de procedimentos de
análise rigorosos.
De facto, como já se viu - e a este respeito poder-se-iam multiplicar os exemplos -, esses
procedimentos adaptam-se ao manejo de indicadores claros (ou assim tornados),
disponíveis' em séries cronológicas e respondendo a questões não ambíguas geralmente
elaboradas pelas ciências sociais contemporâneas mais desenvolvidas, como a demografia
ou a economia. Nesta medida, a história também é susceptível de resultados certos. Por
exemplo: podem calcular-se as grandes variáveis dos comportamentos demo gráficos da
Europa ocidental desde o século XVII. É possível medir a alta dos preços na França do
século XVIII ou o aumento brusco da produtividade agrária no século XIX. Isto equivale a
dizer que este tipo de história, caracterizado pela possibilidade de extra polar no passado
questões muito específicas geralmente elaboradas Doutras disciplinas, é ao mesmo tempo
muito rendível e muito limitado. Permite chegar a resultados seguros, a uma boa descrição
do fenômeno localizado que foi escolhido como objecto de estudo.
Mas a interpretação desses resultados não apresenta o mesmo grau de certeza que os
próprios resultados. A interpretação é no fundo a análise dos mecanismos (objectivos e
subjectivos) pelos quais uma probabilidade de comportamento colectivo - essa mesma que
foi revelada pelo tratamento dos dados - se encarna nos comportamentos individuais numa
dada época e o estudo da transformação desses mecanismos. A interpretação consiste
portanto em ultrapassar o nível

97
A OFICINA DA HISTÓRIA

dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade histórica. Exige
geralmente dados adicionais, pertencentes a um campo diferente, e que nem estão
forçosamente disponíveis, nem são forçosamente claros. Geralmente acarreta hipóteses não
verificadas, ou não verificáveis.
Por isso, o problema colocado pela evolução recente da história, e em particular pela
utilização de procedimentos rigorosos de demonstração, não é saber se a história como tal
pode tomar-se ciência: dada a indeterminação do seu objecto, a resposta a esta pergunta é
indubitavelmente negativa. O problema está em conhecer os limites no interior dos quais
esses procedimentos podem ser úteis a uma disciplina que fundamentalmente não é
científica. Do facto de esses limites serem evidentes não se deve deduzir que a história deve
regressar à sua função antiga de contadora de excelentes aventuras. Devemos antes aceitar a
redução das ambições pouco razoáveis da história total, para utilizar ao máximo, dentro do
nosso conhecimento do passado, as descobertas sectoriais e os métodos de algumas
disciplinas, assim como as hipóteses conceptuais que nascem dessa grande embrulhada
contemporânea chamada ciências sociais. O preço a pagar, para essa reconversão, é o
estilhaçar da história em histórias, a renúncia do historiador a um magistério social. Mas o
ganho em conhecimento merece talvez essas abdicações: a história oscilará provavelmente
sempre entre a arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas; mas se
essas provas forem mais seguras, os conceitos mais explicitados, o conhecimento ganhará
com isso e a arte da narrativa nada perderá.

98
FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad. Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa,
Gradiva, 1986, p. 109-35.

O nascimento da história *

Uma dupla tradição

Se a história não existe no ensino, e portanto como disciplina escolar, na época clássica, é
simplesmente porque não existe como disciplina. Está dividida em duas actividades
intelectuais que se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia. A
primeira está nas mãos dos antiquarii, que os antigos textos franceses também chamam de
antiquários: ou seja, especialistas do antigo e naturalmente da Antiguidade, escondidos por
detrás de conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas.
É desta tradição que nos vem, não a história, como a entende o século XIX, mas o facto
histórico, tal como deve ser estabelecido como material constitutivo da história.
Velha tradição, que remonta ao Renascimento, e que, na sua origem, não é uma tradição
crítica.1 Não toca nos textos sagrados. Se diz respeito à Antiguidade greco-romana, na qual
a Europa do século XVI procura apaixonadamente uma nova identidade, não é porque
queira reescrever a história: essa história já foi escrita pelos Antigos, e quem

__________________________________
* H - Histoire, n. o 1, Março de 1979, Hachette.
1 A melhor exposição desta questão é a de A. Momigliano: «Ancient History and the
Antiquarian», in Journal of the Warburg anil Courtauld Institutes, Londres, vol. 13, 1950.
pp. 285-315.

109
A OFICINA DA HISTÓRIA

faria melhor do que Tucídides, Tito Lívio ou Tácito? Os «modernos» limitam-se a comentar
os historiadores antigos, a trabalhar nas suas margens: a isto se consagram as «belas-
letras». Ou então, quando querem escapar a este jogo de espelhos, escrevem
«antiguidades», e não «histórias» romanas (ou gregas). Mas essas «antiguidades» são
também duplamente marginais em relação à via real da história: descrevem fontes não
literárias, exumam partes de monumentos, moedas, pedras, inscrições, vestígios aleatórios
de um irremediável naufrágio. Alimentam comentários e estudos que não são
verdadeiramente história, visto que dizem respeito a costumes, instituições, arte, e a história
é feita da análise cronológica dos regimes e dos governos.
Assim, o antiquário não é um historiador. Mas na segunda metade do século XVII, no
momento em que vacila a idéia de que existe uma história universal no interior da qual cada
história foi escrita de uma vez por todas, o antiquário toma-se um crítico da história. O
campo da sua «arte» (a ars antiquaria) estende-se para lá da Antiguidade clássica e alcança
a Antiguidade sagrada, por exemplo. Sobretudo emancipa-se da espécie de tutela que sobre
ele exercia a historiografia antiga, o modelo dos Antigos. O antiquário nem sempre é um
historiador. Mas visto que o passado não foi fixado eternamente por Tito Lívio ou Plutarco,
ele pode escrever história.
O que significa que os materiais que exuma e classifica deixaram de ser marginais:
representam, tal como as fontes literárias, elementos constitutivos da história. E as próprias
fontes literárias tomaram-se objecto da crítica erudita. A filosofia não serve apenas para os
restituir, mas para os discutir. E as moedas, as inscrições, os fragmentos de arcos e
colunatas permitem cotejar-lhes as informações. A crítica interna e externa do documento
nasce com a integração dos diferentes tipos de fontes numa busca do verdadeiro.
Deste modo, a segunda metade do século XVII não inventa a história. Retrabalha os seus
materiais e, ao fazê-lo, desloca as suas linhas que pareciam fixadas para sempre. Bossuet
ainda escreve uma História Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na
cronologia sagrada a história profana dos povos antigos da qual as descobertas dos
«antiquários» alargam doravante os limites. A própria história sagrada, esse bloco
intangível, imóvel no fluxo indefinido

110
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

do tempo, é reexaminada pelos cronologistas modernos. O oratoriano Richard Simon


publica, em 1678, uma História Crítica do Antigo Testamento, que lhe custa a exclusão da
ordem.
No entanto, é a própria Igreja que dá o exemplo da investigação erudita, mesmo que não
controle sempre o seu desenvolvimento. "Não só é apanhada no espírito do tempo, como
ainda se vê obrigada, pôr necessidade da controvérsia antiprotestante, a inventariar e exaltar
o conjunto da tradição cristã: e em primeiro lugar esses seis primeiros séculos que
constituem a Antiguidade cristã e que dão a interpretação fundamental da Escritura. A
erudição eclesiástica diz antes de tudo respeito aos Padres da Igreja. Floresce em Port-
Royal, sobretudo através da obra de Tillemont. Vai encontrar o seu centro nos beneditinos
de Saint-Maur que, mais de um século antes da historiografia alemã, estabelecem os
cânones da crítica histórica.
A arte do antiquário culmina assim, no fim do século, na empresa sistemática dos monges
de Saint-Germain-des-Prés para distinguir o verdadeiro, o verossímil e o falso. De acordo
com a divisa de Mabillon: «A verdadeira piedade só gosta daquilo que se funda na
verdade», a investigação histórica moderna nasceu da aplicação dos processos da razão
crítica à exploração da Antiguidade cristã; assim, a Antiguidade pagã, que não se pode
separar dela neste aspecto, porque está incluída na mesma cronologia, é susceptível do
mesmo tratamento.
Mas se a divisão canônica entre história sagrada e história profana tende a desaparecer por
esta razão, a própria história continua a distinguir-se da investigação histórica. Constitui um
gênero literário, do qual uma das regras é precisamente excluir qualquer referência ao
aparelho crítico e às «provas». Os antiquários publicam cronologias, «anais»,
«compilações», «memórias»; a história é uma narrativa continuada, que não se incomoda
com originais e que apresenta ao mesmo tempo uma lição de moral e uma forma regular e
ornamentada. A história perdeu a sua rigidez de conteúdo, mas conserva todas as suas
regras estéticas e morais. É um trabalho de escritor.
Quando Tillemont quis publicar aquilo que serão as suas Mémoires pour servir à l'histoire
ecclésiastique, hesitou no título que daria ao seu trabalho. Se escolheu «mémoires», foi
porque nelas utiliza um método de exposição que é o dos antiquários: «Parece o mais sólido
e o mais

111
A OFICINA DA HISTÓRIA

seguro. É como apresentar peças de um processo; ao leitor caberá escolher. Mas este
método obriga a uma grande extensão e a repetições freqüentes [...]. É mais a matéria da
história do que a própria história.» No entanto, o mesmo autor aceitou o termo «história»
para a parte profana da sua obra, publicando três anos antes, em 1640, a Histoire des
empereurs, com um título que merece ser citado por inteiro: História dos imperadores e
dos outros príncipes que reinaram durante os seis primeiros séculos da Igreja, das
perseguições que fizeram aos cristãos, das suas guerras contra os judeus, dos escritores
profanos e das mais ilustres pessoas do seu tempo, justificada por citações dos autores
originais, com notas para esclarecer as principais dificuldades da história. Deste modo,
Tillemont mescla, e é um dos primeiros a fazê-lo, história e erudição. Mas como se
desculpa por isso na sua advertência! Escutemo-lo, para poder avaliar a tirania dos
«gêneros» na época clássica: «Hesitou-se durante muito tempo em dar a esta obra o título
de memórias, mas é certamente o que mais lhe convém, seja pelo modo como se compõe,
seja pela visão com que foi empreendida. Ainda se pensou no de anais, porque, na
realidade, nela se segue tanto quanto possível a ordem dos tempos e quase sempre está
dividida por anos; para além de que parece que um estilo sem elevação nem ornamento,
como aqui se encontrará, convém melhor a anais do que a uma história. No entanto, o título
de história prevaleceu, como aquele em relação ao qual se é menos obrigado a dar razões,
por ser o mais comum e porque qualquer narrativa é de certo modo uma história. Mas pede-
se aos leitores que não o tomem senão nesse sentido e que não esperem encontrar aqui uma
história regular. Nunca o autor teve a intenção de fazer uma história desse tipo e gostaria
que se soubesse que sempre viu essa intenção como muito difícil em si e extremamente
acima do talento e das luzes que pode ter2.»

_______________________________
2 B. Neveu, Un Historien à l'école de Port-Royal. Sébastien Le Nain de Tillemont 1637-
1698, Haia, 1966, pp. 182-185.

112
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

O século XVIII: um ensino impossível

Poderia, no entanto, inferir-se desses protestos tão modestos que o fosso entre historiadores
e antiquários está a fechar-se. Pelo contrário, o século XVIII francês vai abri-lo ainda mais,
pondo em moda a «história filosófica» da vez mais afastada da investigação dos
antiquários, que desdenha.
Na realidade, são os próprios progressos desta investigação que se viram contra ela, à
passagem do século XVII para o século XVIII.
Pelo facto de haver criticado uma parte das crenças históricas tradicionais, de ter, por
exemplo, destruído milagres, diminuído o número dos mártires cristãos, remodelado a
cronologia bíblica, o individualismo racionalista atrai uma dúvida sistemática sobre o
próprio facto histórico. Bayle dedica um Dicionário inteiro, de A à Z, à destruição dos
fundamentos históricos das crenças religiosas, mas deixa o indivíduo racional apenas com
incertezas. Fontenelle constata simplesmente a impossibilidade de uma história verdadeira:
«Acostumaram-nos com tanto apego durante a nossa infância às fábulas dos Gregos que,
quando estamos em idade de raciocinar, já não as achamos tão admiráveis como o são. Mas
se acabarmos por nos desfazer dos jogos do hábito, não podemos deixar de nos apavorar ao
ver toda a história antiga de um povo que é apenas um acervo de quimeras, de sonhos e de
absurdos. Será possível que se tenha dado tudo aquilo por verdadeiro? Com que fim no-lo
teriam dado por falso? Qual teria sido esse amor dos homens pelas falsidades manifestas e
ridículas e porque não duraria ainda?»
Mas sobretudo este derrotismo histórico é feito de uma obsessão do moderno, ou seja, do
presente. As elites européias viveram, desde o Renascimento, com uma identidade retirada
da Antiguidade, cujos artistas e autores constituíam inultrapassáveis modelos e cujos
gêneros, literários formavam as molduras obrigatórias do belo e do verdadeiro. Ora, eis que
a Europa põe a questão da sua autonomia cultural: a querela acadêmica dos Antigos e dos
Modernos, na França do fim do reinado de Luís XIV, exprime no fundo esse pensamento de
que a cultura clássica não é um passado, mas um presente, e a história, não, um recomeço,
mas um progresso. Sendo assim, ela também se organiza

113
A OFICINA DA HISTÓRIA

em volta da percepção do presente, o que vai relegar a curiosidade dos antiquários para a
gaveta de um período ultrapassado.
Aliás, os «filósofos» anexaram às suas novas histórias as fontes e as «provas» não literárias.
Ao quebrar a tirania da história política como a Antiguidade a tinha transmitido e a
sucessão dos imperadores, utilizam a arte, a religião, as instituições: escrevem a história da
«civilização». Mas escrevem-na para compreender o seu tempo. Montesquieu procura na
história romana os segredos da estabilidade ou da decadência dos regimes. Voltaire
compara o século de Péricles com o de Luís XIV. O século procura na história dos povos
não só o espectáculo da diversidade das religiões e dos costumes, mas o sentido de um
devir liberto da Sagrada Escritura e indefinidamente aberto ao progresso.
A história filosófica tem outro pólo conceptual para além dos progressos da civilização: é a
origem da nação. Os Franceses do século XVIII procuram na sua história nacional
simultaneamente a fonte do seu «contrato» com o rei e a legitimidade da nobreza. Supõe-se
que as invasões germânicas trouxeram para a Gália romana uma realeza electiva e uma
aristocracia de guerreiros. A polêmica em tomo de Clóvis traduz deste modo, à sua maneira,
o drama de uma sociedade em busca da sua representação. Mas a história de
Boulainvilliers, assim como a de Voltaire, já não tem nada que ver com os «antiquários». A
França do século XVIII não tem nenhum Gibbon. Os filósofos e os eruditos estão separados
por uma linha intransponível, que aliás exalta os primeiros para atirar os segundos para o
gueto da academia das inscrições. A tradição da investigação crítica e a da grande narrativa
filosófica e literária só irão reconciliar-se com os historiadores da Restauração.
Basta observar um pouco as bibliografias daquela época para compreender até que ponto a
história nelas constitui um gênero heterogêneo, em plena evolução: as classificações das
bibliotecas, por exemplo, agrupam em nome dela um vasto sector na classificação dos
conhecimentos. A história reúne tudo aquilo que se relaciona com o saber nas sociedades
humanas: como cabeçalho de rubrica epistemológica, acumulou todas as contribuições
eruditas ou simplesmente descritivas da cultura européia desde o Renascimento. Reina
sobre

114
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

o conjunto, com a sua divisão canônica, história sagrada-história profana, a preponderância


cultural da Antiguidade, o modelo de narrativa moral à Tito Lívio. Mas subordinou, como
subgêneros, não só as técnicas e as aquisições da ars antiquaria - a cronologia, a
diplomática, a arqueologia, etc - mas também o inventário do espaço - aquilo que não é
ainda a geografia, mas as «viagens». Com efeito, as sociedades não européias, perdidas na
superfície do Mundo, e progressivamente descritas pelos viajantes, testemunham
igualmente, à sua maneira, da história: o «selvagem» é a infância do homem. O espaço e o
tempo oferecem deste modo ângulos complementares para a constituição de um saber sobre
a evolução. E é a partir desta cumplicidade epistemologia que a geografia vai avançar ao
mesmo tempo que a história, como que ligada a ela, nas futuras reformas do ensino francês.
Mas no século XVIII a indiferenciação do campo histórico é suficiente para mostrar a que
ponto o estudo do passado está longe de ser uma disciplina escolar: se a história não é
ensinada, é porque não está em constituída em matéria ensinável.
Os dois tipos de actividade intelectual que abrange são demasiado, estranhos um ao outro
para formarem um saber homogêneo. Um e outro são, aliás, pouco talhados para o ensino,
mesmo secundário. A erudição é ao mesmo tempo uma arte demasiado incerta e demasiado
sábia para ser objeto de uma transmissão escolar. É uma ocupação de gentlemen e de um
pequeno mundo de especialistas que discutem os seus achados longe do público, até do
público culto. Será que se ensina a numismática na escola ou no colégio? A História
filosófica, por seu lado, atrai numerosos leitores, mas constitui um gênero demasiado
moderno em todos os sentidos da palavra, para não ser, escolarmente, um produto perigoso.
De facto, é demasiado recente, no século XVIII, para ter criado legitimidade e, por
conseguinte, o respeito que envolve as matérias da aprendizagem escolar. Está sobretudo
em contradição com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não
passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo de Tito Lívio ou de
Tácito. É que os colégios jesuítas são fiéis à sua carta, que data do fim do século XVI: o
modelo antigo constitui neles a identidade cultural da Europa. Os alunos só aprendem a
história - para além da história sagrada - nas páginas de Cícero.

115
A OFICINA DA HISTÓRIA

Houve e há excepções a esta regra. As pequenas escolas de Port-Royal fizeram da história


uma disciplina central, à qual se devia consagrar uma parte do tempo quotidiano. Mas o seu
carácter muito provisório, visto que foram encerradas na altura da perseguição dos
«Messieurs» de Port-Royal por Luís XIV, ao mesmo tempo que estritamente elitista, visto
que agrupavam apenas filhos da alta burguesia jansenista, ilustra mais o carácter
excepcional da história do que a sua presença no ensino. Também os colégios oratorianos
tiveram remorsos de não falar mais dela. E as escolas militares, criadas no terceiro quarto
do século pela monarquia, para formar soldados profissionais, procuravam incluí-Ia no
currículo. Mas até à expulsão dos Jesuítas do reino, em 1762, são os seus colégios que dão
o tom ao ensino secundário; e posto que continuem conservadores nos seus programas e só
integrem, por exemplo, o cartesianismo no século XVIII, seria um erro pensar que são
particularmente «reaccionários». As universidades da época - e antes de tudo a de Paris -
são ainda infinitamente mais insensíveis às deslocações nos campos do saber. No fim do
século XVIII, os professores de retórica da Faculdade das Artes, em Paris, não vêem o que
é que poderiam modificar nas suas práticas: apontamentos de história antiga na periferia do
sacrossanto discurso latino.
Acontece que a expulsão dos Jesuítas marca o início de um grande debate de idéias sobre o
sistema educativo nacional. Os famosos colégios, abandonados pelos seus mestres, são
colocados sob a jurisdição do Parlamento de Paris, que tem portanto de os preencher com
professores e ideais novos. Daí o florescer de planos de educação, entre os quais o mais o
mais conhecido é o de La Chalotais, e cujo presidente Rolland d'Erceville procura fazer a
síntese num relatório de l768. É um pouco uma desforra jansenista, na medida em que os
parlamentares do século XVIII nunca aceitaram verdadeiramente a condenação do
jansenismo por Roma e prezam muito os aspectos políticos do que foi uma das raras
resistências à autoridade absoluta de Luís XIV. É portanto também uma desforra da
história, que estivera em tão grande plano em Port-Royal. Mas sobretudo os parlamentares
tinham detestado na Companhia de Jesus uma ordem estranha ao reino, totalmente
dependente do papa. Pretendem a partir de então uma educação «nacional», controlada pelo
Estado. Esta grande nobreza de toga, apaixo-

116
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

nadamente galicana, exprime à sua maneira, e com a sua própria cultura, o forte surto do
sentimento de nacionalidade, enraizado num passado muito antigo: não é tanto a história
que ela deseja ver aparecer nos programas escolares, mas a história de França, garante do
contrato original entre a nação e o rei e depositária de uma tradição imprescritível.
De facto, encontramos aqui e ali, no currículo dos colégios franceses reorganizados no fim
do Antigo Regime um alargamento do ensino da história. No famoso colégio Louis-le-
Grand no monte de Sainte-Geneviève, a partir de 1769, existe meia hora obrigatória para a
história nos «dias feriados – domingos e festas». Muitos temas históricos são propostos
como matérias nos «exercícios» dos alunos, esses concursos públicos que se realizavam nos
dias sem aulas e que tinham por finalidade pôr à prova as faculdades de exposição e
raciocínio. Em 1772, um exercício do colégio de Arras tem por tema demonstrar que «só o
estudo sobretudo da história de França pode fixar no espírito do advogado os verdadeiros
princípios do nosso governo». Em Lille, a história de França está incluída no próprio
currículo, a partir do terceiro ano e abrange o estudo da Gália, das invasões germânicas e
das duas primeiras dinastias (Merovíngios e Capetíngios), para no segundo ano ir até ao
século XVI.3
O melhor exemplo, a este propósito, porque é talvez o mais precoce, é o do famoso colégio
de Juilly, vitrina do ensino oratoriano e freqüentado por crianças da alta sociedade do reino.
Esses velhos rivais dos Jesuítas que são os Oratorianos têm como ponto de honra oferecer à
sua clientela um currículo escolar mais «moderno». Já no fim do século XVII um dos
padres recomendava «o grande cuidado, segundo o uso desta academia, em ensinar o
brasão, a geografia, um pouco de cronologia e a história». Esses diferentes saberes já têm,
portanto, aos seus olhos, um estatuto escolar independente; estão, por outro lado,

____________________________________
3. Retiro estes exemplos de um artigo infelizmente inédito de Louis Trénard.
«L'enseignement de l'histoire en France de 1770 à 1885», que é o texto de uma conferência
pronunciada em Junho de 1968 sob a égide da Federação Belga dos Professores de História.

117
A OFICINA DA HISTÓRIA

emancipados da relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade: ensina-se em Juilly


tanto a história nacional como a geografia da América. O ensino da história apresenta, para
a época, o carácter distintivo de ser cronológico e de culminar, digamos assim, na história
de França: passa-se da história sagrada à história de França, através da Antiguidade greco-
romana, indo dos «mínimos» até aos «grandes». Conserva, no entanto, um carácter
relativamente marginal, visto que não faz parte dos programas regulares das aulas. É
dispensado nas «câmaras», ou seja, nas salas onde os vários grupos de alunos vivem e
estudam (Juilly é um colégio Interno), fora das aulas oficiais. Também faz parte dos
«exercícios» públicos nos dias feriados, as quintas-feiras e aos domingos, mas são
exercícios obrigatórios; parece, aliás, que têm um grande sucesso entre os alunos no século
XVIII.
Estes exemplos, que se poderiam multiplicar, mas não indefinidamente, mostram que o
ensino da história avança a pouco e pouco, no fim do Antigo Regime, ao nível do ensino
secundário, e tende progressivamente a quebrar a dupla tirania da história sagrada e da
Antiguidade clássica. Mas a evolução é lenta, e os progressos tímidos: como disciplina
ensinável, a história é a maior parte das vezes um passageiro clandestino dos programas
oficiais, oferece mais temas para dissertações do que matéria que se baste a si própria; não
existe no ensino elementar; mesmo no mais avançado da época, o dos irmãos das escolas
cristãs. Noutro extremo do sistema educativo, até o alto ensino parisiense, quero dizer o
College de France, quase especializado na inovação visto que foi criado, no século XVI,
para contrabalançar a inércia da Sorbonne, não tem ainda no século XVIII uma cadeira de
história especializada. Surge apenas um ensino intitulado «História e Moral», que vai
sobreviver no século XIX na sexta categoria do cartaz: «Ciências Morais e Políticas», e ao
lado do «Direito da Natureza e das Pessoas», da «História das Legislações Comparadas»,
da «Economia Política». A histólia encontra-se emancipada da tirania das línguas

_________________________
4 Tiro estas informações sobre o colégio de Juilly de uma tese muito recente (1978), ainda
inédita, de Etienne Broglin: De l'Académie royale à l'institution, le College de Juilly, 1745-
1828.

118
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

antigas (que formam a segunda categoria de cadeiras). Mas continua como história
filosófica, separada da erudição. A contribuição indirecta, e de certo modo negativa, do
College de France na especificação da disciplina passa sobretudo pela definição de áreas
culturais específicas, progressivamente separadas do tronco comum da história, porquanto
são marginais em relação à experiência européia, como a sinologia.
Assim, o contraste entre a efervescência reformadora a propósito da modernização dos
estudos e a lentidão da evolução pedagógica mostra que haveria um certo perigo em
confundir história das idéias sobre educação com história da educação propriamente dita: as
duas ordens de factos não obedecem aos mesmos ritmos, não possuem as mesmas
cronologias; é também verdade que não deparam com as mesmas inércias.

A Revolução: ruptura e continuidade

Esta observação aplica-se muito especialmente ao período da Revolução Francesa. Na


verdade, a Revolução legislou muito mais sobre a educação nacional do que transformou
duradouramente as instituições de ensino: o que é facilmente explicável tanto pela
brevidade cronológica do período revolucionário como pela ilusão, precisamente típica da
época, de uma renovação completa dos homens e das coisas.
Na realidade, a escola secundária sai praticamente impoluta do colapso aparentemente
universal das instituições, e nada é mais parecido com um colégio do Antigo Regime do
que um liceu imperial. A história, em particular, continua a ser neles apenas um
complemento dos estudos clássicos e da aprendizagem do latim.
Vale a pena, no entanto, deitar uma olhada pela legislação revolucionária para medir a
evolução das mentalidades e as aspirações das novas elites políticas. A Constituinte esperou
pelos últimos dias da sua existência (Setembro de 1791) para ouvir um vasto relatório de
Talleyrand sobre a educação. O bispo retoma as idéias dos parlamentares do fim do Antigo
Regime: enquanto conserva a ossatura do currículo secundário clássico (gramática,
humanidades, retórica, lógica), introduz a história e a geografia. Condorcet, que o substitui
durante a Legis-

119
A OFICINA DA HISTÓRIA

lativa, é, por seu lado, um herdeiro directo dos homens da Enciclopédia; é um espírito
extenso e profundo, um matemático e filósofo, atormentado pela separação dos
conhecimentos em disciplinas e pela unidade do saber humano. Constrói um projecto de
uma ambição bem diferente, que consiste em reorganizar todo o ensino nacional em função
de uma classificação «filosófica» dos conhecimentos, de modo a situá-lo na vanguarda da
inovação intelectual. Logo a partir do ensino secundário, os alunos deverão abordar «os
elementos de todos os conhecimentos humanos», repartidos em quatro grupos: ciências
matemáticas e físicas, ciências morais e políticas, aplicações das ciências às artes (por
exemplo, a anatomia comparada, os partos, a arte militar, os princípios das artes e ofícios),
finalmente a literatura e as belas-artes (nas quais vamos encontrar, reduzidas à sua parte
congruente, as humanidades dos antigos colégios). A história encontra-se portanto
abrangida pelas «ciências morais e políticas», que para além disso agrupam a análise das
sensações e das idéias, a moral, o direito natural, a ciência social, a economia política, o
direito público, a legislação. É exactamente aquilo que os homens do século XVIII tinham
baptizado de «história filosófica»: uma reflexão sobre a evolução dos povos e das
civilizações, um estudo do passado indispensável para a análise do progresso da
humanidade nas vias da razão. É acompanhada pela cronologia e pela geografia,
decifrações complementares de tempo e do espaço. De Condorcet, pode-se passar a
Lakanal5, porque os debates dedicados à educação durante o período montagnard são
obcecados pelo aspecto puramente político da questão, e de resto não acrescentam nada de
interessante.
Foi depois do 9 Termidor que a sociedade política revolucionária retoma os seus direitos
durante uns tempos abandonados ao Comité de Salvação Pública. A lei de Frimário ano III
(Dezembro de 1794), revogada por Lakanal, institui dois graus de ensino, as escolas pri-

_______________________________________
5 Podem encontrar-se os principais discursos dedicados pelos autores das assembléias
revolucionárias às questões da educação nacional em: C. Hippeau, L'lnstruction publique en
France pendant Ia Révolution, 1881. Para uma informação mais ampla, ver: J. Guillaume,
Proces-verbaux du Comité d'lnstruction Publique de Ia Convention national e, 6 vols., Imp.
Nat.

120
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

márias, para todos, e as escolas centrais, para instruir a elite da nação. Essas escolas
centrais, que são ao mesmo tempo secundárias e superiores, rompem com o sistema das
aulas ordenadas desde o 1º ano até à filosofia, por grupos de níveis. Instituem um sistema
de cursos paralelos, destinados a cobrir a totalidade dos conhecimentos, e no interior dos
quais os alunos podem circular com toda a liberdade. Das catorze cadeiras que uma escola
reúne e que reconstituem a enciclopédia dos conhecimentos de Condorcet, revista pelos
ideólogos, uma delas é dedicada à «história filosófica dos Povos». Nos anos seguintes, os
termidorianos, desejosos de estabelecer novamente um nível superior de ensino, sob a
forma de escolas especiais, organizadas em tomo de determinada disciplina, imaginam que
algumas seriam consagradas à história, reunindo a legislação, a economia política, a
filosofia, a crítica e as antiguidades.
Assim, a Revolução fez triunfar, antes e depois da ditadura de Robespierre, a concepção da
história que tinha sido a dos enciclopedistas, sistematizada por Condillac e Condorcet.
Trata-se no fundo de fazer aa história um dos terrenos privilegiados de demonstração do
sentido da existência social. A história filosófica é um «discurso sobre a história universal»
laicizado. A questão que se põe é a de compreender porque que essa burguesia
revolucionária, que tantas energias e sentimentos patrióticos investiu na guerra com a
Europa, não manifestou mais gosto pela tradição parlamentar e legista da história nacional,
tão forte no fim do Antigo Regime. Para isto vejo várias séries de razões. Umas de ordem
epistemológica: a história pertence, tanto para Condorcet como para os outros ideólogos, ao
domínio do raciocínio científico, e a exaltação da particularidade nacional não se enquadra
bem com uma visão científica do universo, no interior da qual essa particularidade forma
uma espécie de resíduo irredutível. Por outro lado, no plano da ideologia política, os
revolucionários franceses também não se pensaram no interior de um quadro estritamente
nacional: combatendo pela liberdade e pela igualdade, a França jacobina e termidoriana
constitui uma vanguarda da própria humanidade. Mesmo quando os seus exércitos espoliam
os países conquistados, a França revolucionária nunca abdica do universal democrático. Por
fim, e talvez sobretudo, para que lhe servia esse interminável passado nacional, que
pertence

121
A OFICINA DA HISTÓRIA

à monarquia e à feudalidade? Só esteve durante muito pouco tempo ligada à restauração de


uma idade de outro entre a monarquia e a nação; todas as ideais de um contrato popular, de
direitos originais e de uma constituição primitiva desaparecem logo que se mostra e dá a
conhecer aquilo que é: é ela que é a origem, que constitui o contrato e a constituição
primitiva, e que funda a história nacional arrancando os Franceses do seu passado. Visto
que corta a nossa história ao meio porquê narrar a sua parte maldita, que pertence aos
inimigos? Mas a outra parte é demasiado curta para formar um passado; é apenas a
celebração de uma origem.
Para os revolucionários franceses, a história não é portanto uma genealogia, como o vai ser
para as ideologias nacionalistas do século XIX. Constitui um quadro universal de
referências em relação ao qual se revela a excelência e a racionalidade suprema da
experiência francesa. É o laboratório de uma ciência social que tem a seu cargo organizar
os materiais, e não um saber constituído como tal em volta do estudo cronológico dos anais
da nação. Daí que a Revolução Francesa não legue às gerações que lhe sucedem nenhum
corpo doutrinário duradouro sobre a história. A ideia de uma «ciência social» vai continuar
a viver graças a Saint-Simon e a Auguste Comte, mas como corrente marginal, ilegítima,
suspeita, da nossa cultura; o conceito enciclopédico começa a tomar-se antiquado já no
tempo do Directório e nunca passou para o ensino. Quanto à história nacional, que vai
representar o terreno por excelência da constituição da disciplina e da legitimidade escolar,
a Revolução Francesa fez dela um campo de guerra civil intelectual. Os Franceses do
século XIX são esse povo que só pode prezar metade da sua história; não pode amar a
Revolução sem detestar o Antigo Regime e amar o Antigo Regime sem detestar a
Revolução.

A Constituição de uma disciplina

A história toma-se assim um problema e uma aposta escolar tanto mais agudos quanto a sua
linha de desenvolvimento, como saber e como disciplina, vai ser a genealogia da nação e,
por isso, se toma cada vez menos ensinável à generalidade dos Franceses. O Primeiro

122
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

Império pôde ignorar a questão e reinstaurar o estudo da história como um simples anexo
do latim: essa «colocação entre parêntesis» indica a vontade e a capacidade de amnésia do
regime imperial, mas não é uma solução duradoura. Na mesma época em que a Restauração
traz de volta ao poder, com Luís XVIII e os emigrados, as imagens concretas do passado, a
história recebe a consagração de disciplina instituída, ao mesmo tempo no ensino e na
nossa vida intelectual. Guizot, quase meio século depois de Gibbon (que traduz para o
francês), funde a tradição dos historiadores com a dos antiquários, ao mesmo tempo que
reconcilia a história nacional e história da civilização. A «filosofia» fora o tribunal do
século XVIII. A história toma-se o magistério do século XIX.
Mas, ao certo, que história? A Restauração, que é o primeiro regime a estabelecer um
ensino sistematicamente cronológico dela, procura recuperar a sua própria genealogia, a da
tradição monárquica. Um texto de 1814, preparado por Royer-Collard, por conseguinte de
inspiração constitucional e moderada, divide o ensino da história em fatias cronológicas
para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no primeiro ano, Egipto e Grécia no
segundo, Roma (até ao Império) no terceiro, de Augusto a Carlos Magno no quarto, a Idade
Média no quinto, Tempos Modernos e história de França no sexto. É uma tentativa de
síntese entre o antigo ensino, baseado na história sagrada e na Antiguidade, e as exigências
de uma cronologia laicizada, mais moderna e mais «nacional». O espírito do programa
consiste em sublinhar a dupla tradição católica e dinástica de França e formar os espíritos
para a monarquia segunda a Carta. A história não é nunca inocente, e é o menos do que
nunca na cultura francesa do século XIX. Mas é significativo que se tenha tomado ponto de
passagem obrigatório para a monarquia constitucional.
Aliás, sobrevive à passagem autoritária de 1820 e à queda dos Constitucionais. É que,
mesmo que se interrompessem os programas em 1789, é preciso compreender esse
terminus ad quem que é a Revolução Francesa e que domina toda a paisagem para
montante. Ora, para tal, a direita ultra-realista não utiliza nenhum dos conceitos que estão
disponíveis, nem o progresso, nem a democracia, nem a nação. Propõe apenas o direito
divino, a Providência, o regresso a Bossuet. É por isso que inaugura um período durante o
qual a história se torna

123
A OFICINA DA HISTÓRIA

uma disciplina suspeita, que deve ser mantida sob a estreita vigilância dos poderes públicos
não só nos estabelecimentos de ensino secundário, como também nas faculdades de letras,
cujas conferências são nessa altura acontecimentos políticos e mundanos. Enquanto a
história vegeta nos colégios, Guizot enobrece a Sorbonne atacando o regime de Villèle em
nome do terceiro estado, da antiga monarquia e da marcha da civilização. Quando é
destituído, em 1822, é de novo a antiga grande burguesia do terceiro estado, a tradição
protestante, a liberdade, 1789 enfim, que são atingidos por intermédio dele. A queda de
Villèle, em 1827, consagra também a desforra da história, que não tarda a ser emancipada
da tutela das humanidades, sendo-lhe atribuído, nas classes secundárias, um professor
especial (cedo admitido por agregação particular).
Mas é em 1830, com o regime de Julho, que se abre um período decisivo para o ensino da
história. Não só, evidentemente, porque os dois maiores historiadores franceses do século
XIX, Guizot e Michelet, brilham então com todo o seu esplendor, um no poder (o que,
injustamente aliás, vai comprometer a sua fama de historiador), o outro na oposição erudita
e republicana do Collêge de France. Mas sobretudo porque o regime de Órleans, nascido da
sublevação parisiense, tem por única legitimidade a que retira ao mesmo tempo do Antigo
Regime e da Revolução Francesa. Ao contrário do bonapartismo, não dispõe, para esconder
a sua miséria jurídica, de nenhuma lenda, de nenhum assentimento prévio ao despotismo.
Tem de se situar no ponto exacto em que se justapõem e se somam as duas tradições
liberais da história nacional, a da nobreza e a da burguesia, ou seja, re-estabelecer 1789,
mas como traço de união entre o passado e o futuro e não como linha de divisão e despojo
de guerra Civil. Louis-Philippe transforma o palácio de Versailles em museu das glórias
nacionais e manda regressar o caixão do Imperador aos Invalides. A história de França
torna-se assim a grande instância de legitimação do regime que a envolve em atenções
como criança mimada, e testemunho disso é o enorme esforço de conservação do
patrimônio arquivista nacional que foi empreendido nesses anos.
Essa vontade política traduz-se igualmente ao nível do ensino. Em 1838, o ministro da
Instrução Pública, Salvandy, remodela os programas de história deslocando-os
cronologicamente 'para: história sagrada,

124
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

Ásia e Grécia no primeiro ano; Grande Grécia, Macedónia, Judeus no segundo; Roma no
terceiro; Idade Média no quarto; Tempos Modernos (1453-1789) no quinto; história de
França de 406 a 1789 no sexto. Já aqui se desenha uma cronologia universitária de que
ainda somos tributários, visto que na nossa consciência historiográfica nacional, o
«moderno» acaba em 1789, como se isso fosse uma evidência universal. Por outro lado, o
facto de reservar todo o sexto ano do ensino secundário à história de França sublinha o
carácter definitivamente central dessa pedagogia, em oposição à tradição das humanidades.
Quando Louis-Philippe recebe em 1838 no palácio de VersailIes os alunos de dois colégios
parisienses, para lhes dar a honra de atravessarem consigo o passado, não esconde as suas
intenções: «Quis que pudésseis usufruir de todos estes belos exemplos da nossa história, de
todas estas gloriosas recordações da antiga monarquia francesa que bem valia essas
repúblicas de Atenas e de Roma, com as quais vos ocupam talvez demasiado.»
Mas com este jogo, a história inteira, e não só história a história da França, torna-se um dos
centros essenciais do debate político e intelectual francês. A história ecumênica e meio-
termo de Guizot esbarrá à sua direita na tradição reaccionária, possuída pela ideia da
politicização dos espíritos jovens, e à sua esquerda nos dois grandes intérpretes
democráticos da história nacional e europeia: Michelet e Edgar Quinet. Não cabe no quadro
deste artigo traçar novamente a famosa batalha dos dois professores contra os Jesuítas e
contra o domínio clerical da Universidade.
Mas aquilo que importa para a minha intenção é compreender a que ponto essa batalha
desestabiliza uma história que o regime de Julho quisera fixar em volta de 1789 e do seu
remake de 1830. Guizot vira na Revolução de Julho um novo enraizamento das conquistas
de 1789, uma espécie de 1688 francês, destinado a abrir para a França uma era de concórdia
e de prosperidade social comparável com a que tinha inaugurado para a Inglaterra a
Glorious Revolution. Eis que Michelet e Quinet exumam da história a dinâmica da
Reforma, o inacabamento da Revolução e a promessa indefinida da democracia. O
consenso dos Franceses em tomo da sua história não parece mais profundo do que o seu
acordo acerca do regime de Julho. Desaparecem em conjunto em 1848.

125
A OFICINA DA HISTÓRIA

No entanto, aquilo que fora iniciado com Louis-Philippe é irreversível - a história e o


ensino da história, mesmo que continuem a ser objecto de ruidosos conflitos políticos,
permanecem no centro de qualquer pedagogia nacional. Por fim a II República, apesar do
alarido do partido da ordem, e o Segundo Império, apesar da sua desconfiança no
pensamento crítico, irão no sentido da reforma de Salvandy. Em 1848, Carnot inclui o
período 1784-1814 nas classes de seconde e de Retórica *: eis a Revolução e o Império no
ensino secundário. Em 1852, o decreto que estabelece a bifurcação entre estudos literários e
estudos científicos (outro aspecto da modernização do currículo) remodela igualmente os
programas de história. A história sagrada é daí em diante reservada para os mais jovens, na
terceira e quarta classes. Os primeiro, segundo e terceiro anos do secundário são dedicados
à história de França até 1815. Por fim, nos quarto, quinto e sexto anos, a tríade já clássica:
Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos.
Mas esta reforma de Fortoul é por sua vez transformada pela reorganização dos programas
por Victor Duruy, em 1865. História sagrada na terceira classe, história de França na quarta:
esta progressão da história de França nas classes mais jovens representa o sinal de um
acordo crescente sobre a necessidade pedagógica desse ensino e sobre o seu conteúdo. Para
cima, Duruy instaura uma divisão muito moderna, a Antiguidade do primeiro ao terceiro
ano, a Idade Média no quarto, os Tempos Modernos no quinto, o período 1661-1815 no
sexto ano, e o século XIX, até ao Segundo Império, no sétimo ano, chamado de filosofia.
Ganha assim a batalha da história contemporânea, que anexa ao ensino secundário. Ao
mesmo tempo que dá ao século XIX a dignidade histórica, estende, graças ao século XIX, o
campo escolar da história aos factos econômicos e sociais. Com efeito, a história não é só a
genealogia da nação, mas também o estudo do progresso científico e material da
humanidade. E é assim que se prepara, em novas condições, a reconciliação da ideia
nacional com a ideia enciclopédica.

____________________________________
* As classes de seconde e de Retórica equivalem aos anos terminais do ensino secundário
francês. (N. do R.)

126
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

A partir de então a história aparece como o veículo privilegiado por duas séries de razões.
As primeiras são de ordem científica e dizem respeito ao seu estatuto como tipo de
conhecimento e como disciplina. Os meados ou este terceiro terço do século XIX marcam,
em França, uma etapa-chave do desenvolvimento dos estudos históricos, a mais importante,
talvez, desde os beneditinos de Saint-Maur. Taine, Renan, Fustel, Gabriel Monod fundam
de novo a história como ciência. Victor Duruy cria, em 1866, a Escola Prática de Altos
Estudos, para ambientar em França a investigação à alemã, na qual a transmissão de um
método rigoroso e de um saber crítico do mestre para o aluno substitui a conferência
mundana em voga nas universidades.
Mas se a história aparece revestida do prestígio intelectual da ciência, permanece
essencialmente, do 1ado da exigência social, não aquilo que a sociedade sabe sobre si
própria, mas aquilo que nação conhece do seu passado. É o outro aspecto da sua eminente
dignidade. Ora, depois dos anos de «ordem moral», que fizeram reviver os receios
reaccionários sobre os perigos de que ela é veículo, a República vitoriosa traz aos
Franceses, ao mesmo tempo que um consenso duradouro em torno do regime, uma
interpretação cumulativa das suas tradições em confronto. Ao contrário da Monarquia de
Julho, que procurava sobretudo um lugar geométrico comum às classes dirigentes do país,
aquela integra Michelet em Guizot e oferece a toda a nação uma história democrática de si
própria. Os reis de França não foram todos modelos de virtude ou de consciência
profissional; mas, melhor aqui, pior ali, construíram a França, asseguraram o seu progresso
e a sua irradiação. A própria Revolução teve os seus excessos; mas a Declaração dos
Direitos do Homem e os exércitos do ano II fazem da nossa história uma espécie de modelo
universal. Assim as duas metades da nossa história não são tanto rivais como
complementares: não, como escrevera Tocqueville, porque em comum têm o Estado
administrativo centralizado, mas porque partilham o culto do estado-nação, instrumento de
progresso. A III República nascente assume por fim toda a herança nacional em nome do
povo, porque ela própria é, finalmente e quase ao fim de um século, a Revolução Francesa
no poder: essa figura provisória, mas que vai revelar-se bastante duradoura, é constituída
por um poder conservador que governa em nome dos valores revolucionários.

127
A OFICINA DA HISTÓRIA

O Magistério no século XIX

A partir deste momento a história já não constitui apenas uma matéria de ensino secundário
ou superior; é também indispensável aos mais pequenos, cujo juízo e patriotismo devem ser
formados cedo. A partir do momento em que é conhecida a sua economia geral, assente no
encaixe de uma história de França numa história universal cujo sentido é o progresso
material e moral da humanidade, o mestre pode abandonar nas classes mais jovens as ideias
abstractas: a «filosofia» geral da evolução poderá nascer de uma anedota, de um pormenor,
ou, como se diz tão bem, «de uma história». Ouçamos, por exemplo, Lavisse recomendar o
ensino da história antiga, nas suas célebres «Instruções» de 1890, e meçamos o caminho
percorrido desde os colégios jesuítas: «A história de Grécia e de Roma é já a nossa história,
visto que as origens da inteligência e da política moderna já nelas se encontram. É
necessário mostrar ao aluno essas origens e explicar-lhes, mas quase sem que ele dê por
isso, não lhe propor considerações filosóficas nem o embaraçar com nenhum pormenor de
instituições.» A Antiguidade já não é um modelo; é uma introdução à história da Europa e
de França. Já não dá ao mundo moderno o seu sentido; recebe-o dele.
A capacidade de Lavisse de escrever a história a todos os seus níveis, não do mesmo modo,
mas com a mesma certeza (e aliás com uma grande felicidade de expressão) testemunha
que ponto se trata de um saber e de uma disciplina que atingem então uma espécie de
classicismo escolar. Não é que Lavisse seja superficial: as suas leituras são imensas, mas
sabe sempre para onde vai. Escreve à sua maneira, ele "que tanto admira a Enciclopédia e o
século XVIII, uma história «filosófica», dominada pela burguesia esclarecida e erudita,
progressivamente emancipada da Igreja e dos reis, estendendo rapidamente ao mundo as
conquistas das ciências e do progresso. Mas esta «história filosófica» apresenta em relação
à sua antecedente diferenças capitais: integrou a ars antiquaria, sob a forma aperfeiçoada
do positivismo; fez do estado-nação a figura central da evolução. Em suma, tem um método
e um objecto; é aquilo a que se chama uma disciplina.
Pouparei ao leitor o comentário do famoso «pequeno Lavisse», no qual dezenas de gerações
de franceses aprenderam, para a vida inteira,

128
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

o essencial da sua história. O seu testemunho é, evidentemente, capital no que respeita à


utilidade pedagógica e social da história na França republicana do fim do século XIX: na
verdade, é a esse nível que os efeitos da escrita histórica devem ser particularmente
visíveis, para ter o máximo de impacto nos espíritos jovens. Mas o próprio Lavisse, muito
claramente, escreveu a meta-história da sua história de França contada às crianças, no seu
célebre texto de 1885 sobre o ensino da história nas classes primárias. Nele explicou,
melhor do que ninguém, aquilo que fazia. A República nascente não tinha má consciência:
nunca a visão de conjunto foi tão explícita. Primeiro há o lento nascimento da França, com
o esforço dos reis, lutando contra o caos feudal: a viragem decisiva é a Guerra dos Cem
Anos: «Expulso o Inglês, a nossa França aparece. Mas, nesta França, a personagem
principal é aquele em que punha as suas esperanças Jeanne d’Arc, é o rei. Pelo facto de ter
feito a unidade e reconquistado o seu reino ao inimigo, concentra por assim dizer nele a
França inteira. E eis aquilo que os alunos devem saber bem: no século XV, quando já não
há vassalos poderosos, quando Luís XI reuniu as ótimas grandes províncias independentes
e as comunas foram desamparadas pelos agentes do rei e arruinadas pela guerra, o rei já não
é um suserano e um protector, mas um mestre.» Segue a história do desenvolvimento do
poder absoluto, história ambígua, visto que leva a França até à preponderância européia,
embora a mine também e oprima os Franceses. A Revolução prolonga o «lado bom» da
monarquia, enquanto elimina o lado mau: «E uma indiscutível verdade que a Revolução
Francesa um esforço heróico para substituir a monarquia antiga pelo reino da justiça e da
razão. É uma indiscutível verdade que abriu o mundo a uma era nova e que quase toda a
Europa foi de certo modo refundida por ela. O mestre não irá portanto ferir qualquer
consciência quando expuser os princípios dessa Revolução e mostrar como, pela força das
nossas ideias e das nossas armas, os governos absolutos foram transformados por todo o
lado e novos poVos adquiriram, ao longo da nossa história contemporânea, o direito à
existência.» Mas cuidado! A advertência que segue é capital para os futuros cidadãos: «É
uma indiscutível verdade o facto de o regime ideal sonhado pela Revolução Francesa ser,
de entre todos, aquele que é mais difícil

129
A OFICINA DA HISTÓRIA

de pôr em prática: a revolução e os golpes de Estado que se seguiram mostram-no com


bastante clareza. É uma indiscutível verdade [a repetição destas palavras é por si só
reveladora de que precisamente todas estas verdades são discutidas e não deveriam sê-lo] o
facto de que essas revoluções e esses golpes de Estado enfraquecem a França e que, a
processarem-se de novo, a matariam. O mestre não irá portanto enganar qualquer
consciência se ensinar que toda a violência contra a lei é um atentado contra o país e que a
condição da salvação da França é a estabilidade política.»
Por fim, um pensamento sobre a Alsácia-Lorena: «O mestre que tiver traçado perante os
seus alunos os destinos da França, de toda a França, a antiga e a nova, saberá falar da
mutilação que ela sofreu, há quinze anos.» A finalidade do ensino da história é tão clara que
a escola se tomou laica, obrigatória e gratuita: formar «um cidadão compenetrado dos seus
deveres e um soldado que ama a sua arma».
Com o segundo grau, os programas tomam-se mais vastos e as directivas mais
diferenciadas. Permitem sobretudo tomar o pulso a essa parte da transformação pedagógica
que não é devida à ideologia republicana, mas antes à própria disciplina. Neste campo, a III
República consolidou primeiro a obra de Victor Duruy, ameaçada durante a ordem moral.
Sobretudo, com a reforma de 1902, que modifica completamente o ensino secundário
francês, reformulou novamente os programas, fundamentados a partir de então - e até hoje -
em dois ciclos no interior do secundário: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos (até
1789), período contemporâneo do primeiro ao quarto ano. E de novo história moderna no
quinto e no sexto ano (mas até 1815: esse no man's land entre 1789 e 1815 continua difícil
de baptizar), e contemporânea no último ano. Existe sobre os considerandos desta reforma
um interessante comentário, redigido pelo homem que desempenhou o papel principal na
sua concepção: Charles Seignobos. Trata-se aliás de uma introdução geral às suas «aulas»,
que estava incluída nos manuais de todos os anos, do primeiro ao último.
Seignobos não separa aquilo que ele apelida de «revolução» surgida na concepção do
ensino da história desde as famosas «Instruções» de Lavisse, daquilo que se tornou a
própria disciplina. Separa mal as

130
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

duas ordens de factores cuja distinção nos parece evidente e necessária: a autonomia
pedagógica da história cobre a sua emancipação como saber. Outro modo de dizer que a
escolarização triunfante da história naquela época coroa uma disciplina constituída a todos
os níveis, possuindo método, objecto e utilidade social específicos - as três coisas estão
indissoluvelmente ligadas.
A sua «matéria» já não se reduz ao comentário da grande literatura greco-romana, como
nos colégios jesuítas, ou à análise dos tratados e das guerras, como na tradição da Escola
Militar. Já não prepara para uma carreira especial. Forma, em cada um dos Franceses, o
cidadão. «O estudo das ciências permite conhecer o mundo material; o estudo das letras
desvenda o mundo das formas e das ideias; a história introduz o aluno no mundo social e
político. As letras anteriormente ignoravam este mundo que as mantinha afastadas; um
francês, destinado a viver numa democracia, precisa de a compreender.» Trata-se portanto
de formar, através do ensino da história, uma ciência social geral, que ensine ao mesmo
tempo aos alunos a diversidade das sociedades do passado e o sentido geral de sua
evolução. Mas esse passado continua a ser «genealógico», escolhido em função daquilo que
se pretende anunciar ou preparar: a Antiguidade clássica, a Idade Média cristã, a Europa
moderna e contemporânea. As outras sociedades, espalhadas no espaço, são abandonadas a
outras disciplinas. A história só concede a honra de se interessar por aquelas que participem
da «evolução», que é o outro nome do progresso.
Daí advém o relevo posto ao período contemporâneo, em detrimento da Antiguidade e da
Idade Média: não só para marcar a independência finalmente conquistada pela história
sobre as humanidades, como ainda por ser o contemporâneo que dá sentido ao passado e,
por conseguinte, justifica o seu estudo. «Os Tempos Modernos desde o século XVI
fornecem agora a matéria essencial do ensino; desses tempos data a maioria dos factos que
importa conhecer para compreender, o estado actual do mundo.» Mas no próprio interior
daquilo que é «moderno», as proporções tradicionais são invertidas: o século XVII,
«durante o qual não se produziu nenhuma transformação profunda para além das
revoluções de Inglaterra», é reduzido a uma proporção congruente, em proveito do século
XVIII, «durante o qual se formaram

131
A OFICINA DA HISTÓRIA

os grandes Estados contemporâneos, o Império Russo, a Prússia, os Estados Unidos, a


Inglaterra parlamentar, a França revolucionária», e do século XIX, «durante o qual a vida
material e intelectual foi subvertida pela constituição definitiva das ciências e a vida
política transformada pelo regime representativo e pela igualdade democrática». A história
não é só uma genealogia; é igualmente o estudo da mudança, daquilo que é «subvertido»,
«transformado», campo privilegiado em relação àquilo que permanece estável. Genealogia
e mudança são aliás duas imagens gêmeas: a investigação das origens da civilização
contemporânea só tem sentido através das sucessivas etapas da sua formação.
Este fechamento do campo da matéria histórica implica uma modificação da natureza dos
factos nos quais incidem o estudo e o ensino. É preciso renunciar a essas intermináveis
nomenclaturas cronológicas, e em particular a essas enumerações de reis, de personagens
ministeriais, de generais, de batalhas e de tratados que sobrecarregam sem proveito a
memória dos alunos. O essencial é acentuar duas ordens de factos: aqueles que dizem
respeito à civilização material, primeiro, porque é o fundamento da civilização
propriamente dita; e aqueles que permitem compreender o carácter específico de um
período em relação outro, ou seja a mudança, E esses factos serão naturalmente apontados,
datados e descritos segundo o método celebrado pelo positivismo, que deve despertar o
espírito dos alunos para a análise crítica, em lugar de se dirigir apenas à sua memória.
Deixando de ser lima lição de moral, ou a ocasião para um lugar-comum literário, o novo
ensino deve por fim renunciar ao estilo oratório ou filosófico: «Agora que a história
começou a instituir-se como ciência, chegou o momento de romper com a tradição oratória
romana e acadêmica e de adoptar a língua das ciências naturais.»

Uma pedagogia do cidadão

O que faz portanto com que a história seja, no fim do século XIX, uma matéria ensinável de
pleno direito é inseparavelmente um método científico, uma concepção da evolução e ainda
a eleição de um campo

132
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

de estudos ao mesmo tempo cronológico e espacial. As regras elementares da ars


antiquaria, codificadas pelos positivistas, entram no ensino secundário por intermédio de
um consenso provisório quanto ao sentido da história. Para chegar a esse consenso, Lavisse
e Seignobos retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a história é
a nação; a história é a civilização. Mas reúnem-nos de um modo muito mais orgânico do
que o puderam fazer, cinqüenta anos antes, Guizot e os homens de Julho. Esses mantinham-
se prisioneiros de uma concepção estritamente burguesa da evolução e da «civilização»;
parando a história em 1830, ou seja, em 1789, ou ainda no habeas corpus inglês,
apresentavam uma base demasiado estreita para o campo histórico aberto pela ReYQlução
Francesa. Os Franceses nunca foram tão entusiastas do regime representativo que fizessem
dele a cúpula da história universal.
Em contrapartida, «a evolução da humanidade», ao estilo de Seignobos ou de Lavisse,
propõe-lhes uma série de figuras em que investem mais facilmente um consenso colectivo.
A economia interna dessas figuras pode ser decomposta em três níveis sucessivos: a
«civilizacão» é o outro nome da profecia científica reinante nesse fim de século.
Leva os homens, pelas conquistas do espírito, ao domínio sobre a natureza. Desta marcha
para o progresso intelectual e material, o principal agente histórico é a nação ou, mais
precisamente, o Estado nacional, essa invenção da essa invenção da Europa moderna. Ora,
desse Estado nacional, portador de progresso, a história da França oferece o exemplo por
excelência, por intermédio da monarquia absoluta e da Revolução Francesa. É que não é
correcto dizer-se que a historiografia republicana desse tempo seja estritamente patriótica; o
que ela tem de nacionalista nunca esquece, segundo o exemplo jacobino, o universal
democrático. A característica de eleição da história de França é a de possuir, como história
real e como ensino da história, um valor e um alcance pedagógico específicos desse ponto
de vista. Foram necessários cem anos para reunir Mably e Condorcet pela escola
republicana.
A outra vertente desta análise consistiria em ver porquê e como é que este consenso se
desfez, desde então, e em especial depois da Segunda Guerra Mundial, simultaneamente
pelo exterior e pelo interior, em razão da evolução da disciplina e das ciências sociais em
geral, e como

133
A OFICINA DA HISTÓRIA

conseqüência do fim da preponderância da Europa no Mundo. Apesar de, ou em virtude de,


os programas escolares sobreviverem sempre durante muito tempo às conjunturas que
explicam o seu nascimento, toda a gente sente hoje que o nosso ensino da história deve ser
retomado. E talvez que a primeira coisa a fazer seja, antes de avançar com propostas,
compreender aquilo que se desfez em cem anos. Mas para isso é necessário o conhecimento
prévio dos diferentes elementos da síntese; a viagem de ida é uma condição prévia; eis
como vejo as suas principais etapas.
Para existir como disciplina escolar, a história teve de sofrer várias mutações, de modo a
constituir um campo do saber ao mesmo tempo intelectualmente autônomo, socialmente
necessário e tecnicamente ensinável. De facto, ela não tem por natureza objecto específico
(visto que tudo é «histórico»), sem linguagem autônoma (visto que é narrativa), sem limites
fixáveis: existe em todo o lado e em lugar nenhum. Apresenta portanto dificuldades
específicas a ser pensada em termos de disciplina, e mais ainda em termos de disciplina
escolar. Ou não é ensinável, ou então é ensinada, como durante vários séculos passados,
unicamente à margem das letras clássicas, e até, quando se tomou «matéria» escolar, passou
a ser objecto de meticulosas delimitações, com receio de que o aluno se perca no oceano
dos «factos históricos», sem por isso ganhar a aprendizagem de uma linguagem ou de um
método.
Desde o século XVII que o processo de autonomização da história se desenvolveu em duas
direcções paralelas, ou seja, independentes uma da outra. A história filosófica ganhou a
batalha do «moderno» sobre o «antigo» e acabou por elaborar, com Condorcet e os
ideólogos, uma doutrina do progresso. Por seu lado, desde Port Royal aos beneditinos de
Saint-Maur, passando pela Academia das Inscrições, a ars antiquaria construiu um método
de localização e de pesagem do facto histórico. Mas na ausência de um Gibbon francês, o
Século das Luzes nunca uniu as duas tradições eruditas; lega à Revolução e ao século XIX,
por um lado, um conjunto de técnicas sobre a história-universal e, por outro lado, um
conjunto de técnicas e de saberes descritivos distintos, cronologia, diplomacia, viagens, etc.

134
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

São essas tradições distintas que o século XIX vai remodelar profundamente e especificar
para delas fazer, no início da III República, a história que se ensina aos jovens franceses.
Remodelar significa antes de mais excluir. A cultura clássica tinha indicado o caminho
começando por colocar fora da história certos sectores do imenso espectáculo dado pelas
sociedades humanas. As «viagens» representam um inventário do espaço, antes de se
tornarem geografia e antropologia. As civilizações não européias, do passado e do presente,
que exigem investimentos lingüísticos especiais, tendem a constituir campos específicos.
Esta tendência prossegue com a Restauração e a Monarquia de Julho, como se pode ver ao
nível do ensino mais elevado, no Collège de France. A história das religiões, na mesma
época, separa-se igualmente do tronco geral da história para se tomar um campo separado
da erudição. Em sentido inverso, em razão da decadência do latim como língua escolar, a
história erudita tende a recuperar progressivamente a Antiguidade greco-romana como
matéria que deve ser ensinada sob um ângulo que não seja o de um modelo literário. Aquilo
que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora a sua genealogia.
É que a grande mutação do século XIX, e em particular dos anos 1820 e 1830, está aí: a
história é a árvore genealógica das nações européias e da civilização de que são portadoras.
Guizot ainda tem como modelos a França e a Inglaterra, Michelet já só tem a França. A
partir do momento em que o discurso enciclopédico do século XVIII recebe essa
significação, a história nacional é liberta da maldição «feudal» que a Revolução fez pesar
sobre ela e da condenação que a envolvia.
Constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas não única) do progresso da
humanidade e uma «matéria» que deve ser estudada, um patrimônio de textos, de fontes, de
monumentos que permitem a reconstituição exacta do passado. É na confluência dessas
duas ideias que se instala a «revolução» positivista: dá-lhes, às duas, a bênção da ciência. A
história dali em diante já tem o seu campo e o seu método. Toma-se, sob os dois aspectos, a
pedagogia central do cidadão.

135
Furet, Francois 1927- "Democracy and Utopia"
Journal of Democracy - Volume 9, Number 1, January 1998, pp. 65-79
The Johns Hopkins University Press

Excerpt
Journal of Democracy 9.1 (1998) 65-79

The subject of democracy and utopia may be approached in a philosophical fashion. Since the
eighteenth century, democracy has presented itself to the modern individual as a promise of liberty,
or more precisely, of autonomy. This is in contrast to earlier times when men were viewed as
subjects, and consequently were deprived of the right of self-determination, which is the basis of the
legitimacy of modern societies. Ever since the democratic idea penetrated the minds and peoples of
Europe, it has not ceased to make inroads nearly everywhere through a single question, inherent in
its very nature, that crops up continuously and is never truly resolved. That question, which was
posed very early on by all the great Western thinkers from Hobbes to Rousseau and from Hegel to
Tocqueville, was as follows: "What kind of society should we form if we think of ourselves as
autonomous individuals? What type of social bond can be established among free and equal men,
since liberty and equality are the conditions of our autonomy? How can we conceive a society in
which each member is sovereign over himself, and which thus must harmonize the sovereignty of
each over himself and of all over all?" [End Page 65]

In the course of these probings into the central question of modern democracy, one is necessarily
struck by the gap between the expectations that democracy arouses and the solutions that it
creates for fulfilling them. In the abstract, there is a point in political space where the most complete
liberty and the most complete equality meet, thus bringing together the ideal conditions of
autonomy. But our societies never reach this point. Democratic society is never democratic enough,
and its supporters are more numerous and more dangerous critics of...
Furet, Francois 1927- "Democracy and Utopia" Journal of Democracy - Volume 9,
Number 1, January 1998, pp. 65-79 The Johns Hopkins University Press

Excerto
Journal of Democracy 9.1 (1998) 65-79
O assunto democracia e utopia pode ter chegado de um modo filosófico. Desde o século
dezoito, a democracia se apresentou ao indivíduo moderno como uma promessa de
liberdade, ou mais precisamente, de autonomia. Isto está em contraste com tempos antigos
quando os homens foram vistos como sujeitos, e por conseguinte eram privados do direito
de autodeterminação que é a base da legitimidade de sociedades modernas. Desde então a
idéia democrática penetrou as mentes e povos de Europa, não deixou de fazer descaminhos
em quase todos os lugares graça a uma única pergunta, inerente em sua mesma natureza
que semeia continuamente para cima e nunca é solucionada verdadeiramente. Aquela
pergunta que foi posada muito cedo em por todos os grandes pensadores Ocidentais de
Hobbes para Rousseau e de Hegel para Tocqueville, qual seja: "Que tipo de sociedade nós
deveríamos formar se consideraramos-nos como indivíduos autônomos? Que tipo de laço
social pode ser estabelecido entre homens livres e iguais, desde que liberdade e igualdade
são as condições de nossa autonomia? Como nós podemos conceber uma sociedade na qual
cada sócio é soberano sobre si, e no qual tem que se harmonizar a soberania de cada sobre
ele e por toda parte? " [Fim Página 65]
No curso deste sondagens na pergunta central de democracia moderna, a pessoa é golpeado
necessariamente pela abertura entre as expectativas que democracia desperta e as soluções
que cria pelos cumprir. Em teoria, há um ponto em espaço político onde a liberdade mais
completa e a igualdade mais completa se encontram, assim reunindo as condições ideais de
autonomia. Mas nossas sociedades nunca alcançam este ponto. Sociedade democrática
nunca é bastante democrática, e seus partidários são mais numerosos e mais perigosos
críticos de...

Você também pode gostar