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A LEI DE BIOSSEGURANÇA E O DECRETO 5591/05

A LEI DE BIOSSEGURANÇA E O DECRETO 5591/05


Soluções Práticas - Nery | vol. 1 | p. 15 | Set / 2010DTR\2012\603
Nelson Nery Junior
Professor titular da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Titular da
Cadeira n. 54 da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Procurador de Justiça aposentado.

Área do Direito: Constitucional

Resumo: A LEI DE BIOSSEGURANÇA (L 11105/05) E OS LIMITES DO DECRETO QUE A


REGULAMENTA (D 5591/05). Competências políticas do Conselho Nacional de Biossegurança
(CNBS) e competências técnicas vinculantes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio)

Palavras-chave: Lei de biossegurança - Conselho Nacional de Biossegurança - Comissão Técnica


Nacional de Biossegurança - Competência técnica - Competência política - Separação de poderes.
Sumário:

1.A consulta: Introdução e colocação do problema. - 2.Competências estabelecidas pela LBio para o
CNBS e a CTNBio. - 3.Separação de poderes: Legislativo e Executivo. - 4.Conclusão e resposta ao
quesito formulado.

1. A consulta: Introdução e colocação do problema.

A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE ALIMENTOS PARA FINS ESPECIAIS E


CONGÊNERES - ABIAD, por intermédio de sua ilustre advogada, Dr.ª Patrícia Fukuma, consulta-nos
sobre as competências do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) e da Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio), bem como sobre os limites do poder regulamentar do
Presidente da República na emissão do Decreto n. 5591 (LGL\2005\1388) , de 22.11.2005, que
regulamenta a Lei n. 11105 (LGL\2005\2650) , de 24.3.2005 (Lei de Biossegurança).

A consulta reside na interpretação do significado e alcance do recurso administrativo previsto na LBio


16 § 7.º e no D 5591/05 52.

Ao regular as atividades dos órgãos e entidades de registro e fiscalização dos Organismos


Geneticamente Modificados (OGM), o art. 16, § 7.º da LBio estabelece:

“Art. 16. …

§ 7.º Em caso de divergência quanto à decisão técnica da CTNBio sobre a liberação comercial de
OGM e derivados, os órgãos e entidades de registro e fiscalização, no âmbito de suas competências,
poderão apresentar recurso ao CNBS, no prazo de até 30 (trinta) dias, a contar da data de
publicação da decisão técnica da CTNBio”.

No D 5591/05, que regulamenta a LBio, há desdobramento desse recurso nos seguintes termos:

“ Art. 52. O CNBS decidirá sobre os recursos dos órgãos e entidades de registro e fiscalização
relacionados à liberação comercial de OGM e seus derivados, que tenham sido protocolados em sua
Secretaria-Executiva, no prazo de até trinta dias contados da data da publicação da decisão técnica
da CTNBio no Diário Oficial da União.

§ 1.º O recurso de que trata este artigo deverá ser instruído com justificação tecnicamente
fundamentada que demonstre a divergência do órgão ou entidade de registro e fiscalização, no
âmbito de suas competências, quanto à decisão da CTNBio em relação aos aspectos de
biossegurança de OGM e seus derivados.

§ 2.º A eficácia da decisão técnica da CTNBio permanecerá suspensa até a expiração do prazo
previsto no caput sem a devida interposição de recursos pelos órgãos de fiscalização e registro ou

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até o julgamento final pelo CNBS, caso recebido e conhecido o recurso interposto.

§ 3.º O CNBS julgará o recurso no prazo de sessenta dias, contados da data do protocolo em sua
Secretaria-Executiva.

§ 4.º O prazo previsto no § 3.º poderá ser suspenso para cumprimento de diligências ou emissão de
pareceres por consultores ad hoc, conforme decisão do CNBS”.

O centro da questão é saber como deve o CNBS proceder quando der provimento ao recurso
interposto pelos órgãos ou entidades de registro e fiscalização de OGM com base na LBio 16 § 7.º e
n D 5591/05 52, em caso de divergência quanto à decisão técnica da CTNBio.

Para tanto formula-nos o seguinte quesito, que respondemos ao final desta opinião legal:

“Qual deve ser o teor da decisão do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), quando acolher o
recurso administrativo interposto com fundamento no art. 16, § 7.º da Lei n. 11105/05 e no art. 52 do
Decreto n. 5591/05?”
2. Competências estabelecidas pela LBio para o CNBS e a CTNBio.

2.1 Competência política do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS).

A LBio 8.º cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) e enumera a competência desse
órgão integrado por 11 (onze) Ministros de Estado conforme LBio 9.º.

Trata-se de órgão de assessoramento superior e direto do Presidente da República, para a


formulação e implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB).

Como o Conselho é órgão político, suas competências têm, igualmente, essa característica, verbis:

“Art. 8.º …

§ 1.º Compete ao CNBS:

I - fixar princípios e diretrizes para a ação administrativa dos órgãos e entidades federais com
competências sobre a matéria;

II - analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade


socioeconômicas e do interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e
seus derivados;

III - avocar e decidir, em última e definitiva instância, com base em manifestação da CTNBio e,
quando julgar necessário, dos órgãos e entidades referidos no art. 16 desta Lei, no âmbito de suas
competências, sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e
seus derivados”.

Outra competência do CNBS é dada pela LBio 16 § 7.º, para julgar recurso interposto por órgão ou
entidade de registro ou fiscalização, quando houver, no âmbito da competência desses órgãos,
divergência quanto à decisão técnica da CTNBio sobre a liberação de OGM. O texto da norma é o
seguinte:

“Art. 16. …

§ 7.º Em caso de divergência quanto à decisão técnica da CTNBio sobre a liberação de OGM e
derivados, os órgãos e entidades de registro e fiscalização, no âmbito de suas competências,
poderão apresentar recurso ao CNBS, no prazo de até 30 (trinta) dias, a contar da data da
publicação da decisão técnica da CTNBio”.

Esta é a previsão legal para a atuação do Conselho Nacional de Biossegurança.

Como se pode notar, trata-se de competência exclusiva e eminentemente política, dado que o
Conselho ter por responsabilidade a formulação e implementação da Política Nacional de

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Biossegurança e decidir quanto aos aspectos de conveniência e oportunidade socioeconômicas e do


interesse nacional, os pedidos de liberação para uso comercial de OGM e seus derivados.

Não tem competência para decidir sobre os aspectos técnicos de biossegurança, competência essa
da CTNBio, mas somente quanto a aspectos políticos dos pedidos de comercialização de OGM.

Isso faz todo o sentido, porque o CNBS é formado por onze Ministros de Estado, responsáveis pela
condução dos destinos políticos do Governo, enquanto que a CTNBio, formada por 27 (vinte e sete)
profissionais de múltiplas áreas, todos com título acadêmico mínimo de doutor, tem competência
para analisar os aspectos técnicos da segurança dos OGM.

Nessa medida, o CNBS somente pode decidir o recurso administrativo previsto na LBio 16 § 7.º, no
âmbito de sua competência, vale dizer, quanto à conveniência e oportunidade socioeconômicas e do
interesse nacional.
2.2 Competência técnica e vinculante da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio)

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), cuja previsão para criação constava dos
arts. 5.º e 6.º da revogada Lei de Engenharia Genética (L 8974/95), foi efetivamente criada pela
Medida Provisória n. 2191-9, de 23.8.2001, que fixou suas competências e convalidou atos
administrativos por ela praticados, MedProv essa que foi posteriormente revogada pela LBio.

A CTNBio, sua formação, atribuição e funcionamento vêm regulados na LBio 10 a 15, sendo que sua
competência é expressa na LBio 14.

A Comissão é integrada por 27 (vinte e sete) membros, todos com o grau acadêmico de Doutor (LBio
11 caput), de notório saber científico e competência técnica nas áreas de biossegurança,
biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente. São designados pelo Ministro de
Estado da Ciência e Tecnologia, a partir de lista tríplice elaborada por vários Ministérios e por
organizações da sociedade civil. São 11 (onze) os Ministérios que têm representantes com assento
na CTNBio. Dada essa formação plural, com indicação inclusive da sociedade civil, a CTNBio é
órgão plenamente legitimado a decidir a respeito de biossegurança no poder público brasileiro.

Tendo em vista essa expertise técnica da CTBio, a LBio 14 § 1.º estabelece que “quanto aos
aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da CTNBio vincula os
demais órgãos e entidades da administração”. No campo específico da biossegurança, a vinculação
dos órgãos da administração à decisão técnica, prévia e conclusiva da CTNBio é definitiva.

A CTNBio, portanto, não é mero órgão consultivo, mas deliberativo quanto à segurança dos produtos
que contenham OGM, porque decide com eficácia vinculante para os demais órgãos e entidades da
administração. A eficácia vinculante da decisão técnica da Comissão quanto aos aspectos de
biossegurança de OGM já era prevista no art. 7.º § 1.º da revogada Lei de Engenharia Genética (L
8974/95) e foi repetida na vigente LBio.
2.3 Conclusão parcial.

Em vista do exposto neste capítulo, podemos concluir no sentido de que, quanto à biossegurança de
OGM, inclusive para fins de comercialização, a LBio estabeleceu competência política para o CNBS
e competência técnica vinculante CTNBio, competências essas distintas uma da outra e que devem
ser exercidas com autonomia e independência.
3. Separação de poderes: Legislativo e Executivo.

Conforme expresso na CF 2.º , o exercício do poder do Estado deve ser exercido de forma
harmônica, entre o Executivo, Legislativo e Judiciário, que são independentes entre si.

“O Poder é uno e indivisível e seu exercício é realizado pelo Estado por meio de três funções:
legislação, administração e jurisdição. Legislar é editar o direito positivo; administrar é aplicar a lei de
ofício; julgar é aplicar a lei contenciosamente.1 Essas três funções, que se completam e se esgotam
em extensão, são exercidas pelos órgãos estatais denominados Poder Legislativo, Poder Executivo
e Poder Judiciário. A função típica - mas não exclusiva - do Legislativo é legislar, do Executivo é
executar as leis e do Judiciário é julgar”.2

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Os decretos delegados bem como os decretos autônomos, que fazem as vezes de lei e independem
delas para serem editados, são inadmissíveis no direito brasileiro, salvo, quanto a estes últimos, no
caso autorizado pela CF 84 VI .

No direito brasileiro o poder regulamentar do Executivo é de mero cumprimento da lei, conforme


determinação contida na CF 84 IV. “Os únicos regulamentos conciliáveis com as exigências da Lei
Maior brasileira são os que se subordinam inteiramente à lei, denominados executivos (ou de
execução)”.3 Por isso é que se pode definir o regulamento, no direito brasileiro, como “ato normativo,
unilateral, inerente à função administrativa, que, especificando os mandamentos de uma lei não
auto-aplicável, ria normas jurídicas gerais”,4 ou, ainda, como “ato geral e (de regra) abstrato, de
competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as
disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande
atuação da Administração Pública”.5

A função do decreto regulamentar não é repetir a lei, copiando literalmente os seus termos, mas sim
dar elementos e condições para que seja possível a fiel execução da lei. Deve tornar explícito tudo
aquilo que a lei encerra, dando a forma e procedimento para que seja possível cumprir o comando
que emerge da lei. Cabe-lhe preencher eventuais lacunas de ordem prática ou técnica.

A edição de decreto tem a lei como seu fundamento de validade, de sorte que encontra limitação da
lei regulamentada e não pode criar nem extinguir direitos e obrigações não constantes da lei
regulamentada. “Esses decretos regulamentares não contém novas obrigações, mas se encontram
limitados a especificar aqueles já existentes na lei regulamentada ou com fundamento em outra lei.
Pelo fato de estarem limitados ao cumprimento da lei, esses decretos denominam-se regulamentos
de execução (Ausführungsverordnungen)”.6 Por isso é que a atribuição do Poder Executivo para
editar decretos regulamentadores não se caracteriza como competência originária, mas sim como
competência derivada. 7

Em seu poder regulamentar, o Presidente - e demais Chefes do Poder Executivo estadual, municipal
e distrital - age, exclusiva e indelegavelmente, apenas e somente secundum legem, sendo-lhe
vedado agir praeter ou contra legem. 8

O decreto regulamentar será inconstitucional se tratar de matéria não prevista em lei;9 será ilegal se,
embora tratando de matéria prevista em lei, ultrapassar os limites do regulamento criando direitos ou
obrigações ou, ainda, aumentando atribuições para além daquilo previsto na lei regulamentada. Pode
ser controlada, em abstrato pela via concentrada, a inconstitucionalidade do decreto. É inadmissível
o controle abstrato e concentrado do desvio de poder regulamentar, de ilegalidade do decreto, cuja
higidez infraconstitucional somente pode ser examinada no caso concreto.

Como pontua José Afonso da Silva, “o poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte
não pode criar normatividade que inove a ordem jurídica. Seus limites naturais situam-se no âmbito
da competência executiva e administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa abuso
de poder, usurpação de competências, tornando írrito o regulamento dele proveniente, e sujeito a
sustação pelo Congresso Nacional (art. 49, V)”. 10 (grifamos) Em outras palavras, o exercício do
Poder Regulamentar deve respeitar, sempre e inexoravelmente, o princípio da legalidade,
contido na CF 5 .º II.

Ao editar a Lei de Biossegurança, o Poder Legislativo agiu dentro de sua competência constitucional
estrita, estabelecendo as regras para efetivar-se a segurança e fiscalização de atividades que
envolvam organismos geneticamente modificados (OGM), fazendo-o de forma a regulamentar a CF
225 § 1.º II, IV e V .

Ao editar o regulamento da Lei de Biossegurança, por intermédio do Decreto n. 5591


(LGL\2005\1388) , de 22.11.2005, o Chefe do Poder Executivo Federal assim estabeleceu, quanto ao
recurso administrativo previsto na LBio 16 § 7.º, verbis:

“(D 5591/05) Art. 52. O CNBS decidirá sobre os recursos dos órgãos e entidades de registro e
fiscalização relacionados à liberação comercial de OGM e seus derivados, que tenham sido
protocolados em sua Secretaria-Executiva, no prazo de até trinta dias contados da data da
publicação da decisão técnica da CTNBio no Diário Oficial da União.

§ 1.º O recurso de que trata este artigo deverá ser instruído com justificação tecnicamente

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fundamentada que demonstre a divergência do órgão ou entidade de registro e fiscalização, no


âmbito de suas competências, quanto à decisão da CTNBio em relação aos aspectos de
biossegurança de OGM e seus derivados.

§ 2.º A eficácia da decisão técnica da CTNBio permanecerá suspensa até a expiração do prazo
previsto no caput sem a devida interposição de recursos pelos órgãos de fiscalização e registro ou
até o julgamento final pelo CNBS, caso recebido e conhecido o recurso interposto.

§ 3.º O CNBS julgará o recurso no prazo de sessenta dias, contados da data do protocolo em sua
Secretaria-Executiva.

§ 4.º O prazo previsto no § 3.º poderá ser suspenso para cumprimento de diligências ou emissão de
pareceres por consultores ad hoc, conforme decisão do CNBS”.

A dúvida que a leitura mais apressada desse dispositivo do decreto regulamentar pode provocar
reside na parte final do § 1.º (“… em relação aos aspectos de biossegurança de OGM e seus
derivados“).

Isto porque ao mesmo tempo em que a LBio 16 § 7.º prevê o recurso administrativo dirigido ao
CNBS, que é órgão político e tem competência exclusivamente política para decidir sobre pedido de
comercialização de OGM, apenas no que tange à conveniência e oportunidade socioeconômicas e
do interesse nacional (LBio 8.º § 1.º II), o D 5591/05 52 § 1.º, ao invés de tratar da competência
política do CNBS, menciona expressão técnica de “aspectos de biossegurança de OGM e seus
derivados”, criando no intérprete desavisado a falsa impressão de que o decreto estaria dando
competência técnica ao CNBS, que a LBio efetivamente não lhe deu.

O recurso administrativo que a LBio coloca à disposição dos órgãos e entidades de registro e
fiscalização deve situar-se no âmbito de competência desses mesmos órgãos, sendo-lhes vedado
recorrer sobre tema que extrapole essa competência.

Estão dentro do âmbito de abrangência desse recurso administrativo questões relativas ao registro e
à fiscalização de OGM, à subsunção de determinado produto à decisão vinculante da CTNBio.

Quanto aos aspectos de biossegurança de OGM, os órgãos e entidades de registro e fiscalização


encontram-se vinculados à decisão técnica da CTNBio. Não teria sentido o órgão subordinado
insurgir-se no cumprimento de decisão de seu superior, que o vincula e obriga.

A interpretação que deve ser feita do D 5591/05 52 implica análise não apenas literal, isolada, mas,
ao contrário, exige exame sistemático, teleológico de toda a LBio, para averiguar-se a
constitucionalidade e a legalidade do Decreto n. 5191/05.

Com efeito, a decisão técnica da CTNBio, quanto à biossegurança de OGM, é definitiva e tem
caráter vinculante aos demais órgãos e entidades da administração (LBio 14 § 1.º). Este é o princípio
fundante da competência dada pela LBio à CTNBio, do qual decorrem os demais preceitos
estatuídos na LBio.

Como a decisão técnica da CTNBio é vinculante para a administração, essa eficácia atinge
inexoravelmente todos os Ministérios que compõem a Administração Pública Federal, como é curial.

Isso não deve gerar nenhuma perplexidade porque os 11 (onze) Ministérios envolvidos nas questões
de biossegurança de OGM fazem parte integrante da CTNBio, porquanto indicam doutores de sua
confiança, em lista tríplice, para compor referida Comissão.

Assim, toda e qualquer dúvida ou divergência científica quanto à biossegurança de OGM que tiver de
ser levantada por algum Ministério, isso deverá ser feito no âmbito da CTNBio, foro competente para
discutir e decidir acerca do tema. A decisão, como em qualquer colegiado, será tomada
democraticamente pela maioria absoluta dos membros da CTNBio (LBio 11 § 8.º-A).

Essa é a razão pela qual não se pode admitir que o Ministério que, eventualmente, tenha algum
interesse seu contrariado no âmbito do colegiado da CTNBio porque seu representante doutor votou
vencido, voltar à carga e “recorrer” para o CNBS, numa espécie tosca de repescagem, não tolerada
pelo princípio constitucional da legalidade (CF 37caput ), com a consequente boa-fé objetiva da
Administração que decorre dessa mesma legalidade.

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A esse respeito já escrevemos, verbis:11

“…deve a administração pública pautar-se pela boa-fé objetiva em suas condutas, já que o estado
democrático de direito,12 a segurança jurídica,13 a solidariedade,14 a legalidade15 e a moralidade
administrativa, das quais decorrem a boa-fé objetiva e a proibição de venire contra factum proprium,
são princípios positivados na CF 1.º , 3.º I , 5.º caput e XXXVI e 37 caput, que vinculam
indisputavelmente o poder público”.

Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que admitir que juiz que votara vencido em órgão
colegiado pudesse recorrer para órgão superior a fim de fazer valer seu voto vencido! O membro da
CTNBio representante de Ministério, é juiz administrativo quando julga matéria de biossegurança de
OGM que culmina com decisão técnica da Comissão.

Por isso é que, quando se procede à exegese da LBio 8.º § 1.º III [verbis, (o CNBS pode) “avocar e
decidir, em última e definitiva instância, com base em manifestação da CTNBio e, quando julgar
necessário, dos órgãos e entidades referidos no art. 16 desta Lei, no âmbito de suas competências,
sobre os processos relativos a atividades que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados“],
não significa inferir que, quando a norma diz avocar e decidir, em última e definitiva instância, isso se
traduza em competência para redecidir tecnicamente a decisão técnica emitida pela CTNBio.

Consubstanciar-se-ia em verdadeiro disparate normativo [o que, por óbvio, não pode existir, haja
vista que o ordenamento não pode ser contraditório] criar e dotar um órgão de nítido caráter técnico
[CTNBio] e, ao mesmo tempo, permitir que o outro órgão criado, porém com nítido caráter político,
possa rever tecnicamente a decisão daquele.

A entender-se dessa maneira, seria admitir que uma vez que o CTNBio [composto por 27
profissionais de diversas áreas ligadas à questão de biossegurança, todos com titulação acadêmica
de doutor, inclusive com representantes de todos os Ministérios ligados à biossegurança] proferisse
sua decisão técnica [atestando, por exemplo, a segurança ou insegurança de um determinado OGM
ou derivado], que essa decisão pudesse, ad absurdum, ser revista tecnicamente por um órgão
político [composto pelos Ministros de Estado, independentemente de qualificação técnica].

Em verdade, portanto, quando a norma diz avocar e decidir, em última e definitiva instância, quer
com isso dizer avocar a decisão proferida pelo órgão técnico do CTNBio para - sem entrar no mérito
técnico da questão [segurança ou insegurança de um determinado OGM ou derivado] - aferir as
questões ligadas à conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional. É
dizer, significa afirmar que o CNBS pode avocar a questão técnica para decidir politicamente acerca
da sua conveniência ou não, em atendimento ao interesse nacional. Sua competência é para
expressar como o Estado brasileiro politicamente se posicionará sobre aquela matéria, sem adentrar
na questão técnica, que lhe foge à competência.

Essa é a interpretação que nos parece a mais razoável, conforme a Constituição (


verfassungsmäßige) e a LBio, tendo-se em conta o complexo processo hermenêutico da LBio 8.º §
1.º II e III, 11 caput, 14 e § 1.º e16 § 7.º, bem como do D 5591/05 52 § 1.º parte final.

Outra interpretação, de que o CNBS poderia, ao ingressar no mérito da decisão técnica da CTNBio,
modificá-la, alterando politicamente os critérios técnicos e vinculantes a que chegara a CTNBio, será
inconstitucional e ilegal, de modo que pode ser sindicada pelo Poder Judiciário.
4. Conclusão e resposta ao quesito formulado.

Diante de todo o exposto, passamos a responder o quesito que nos foi formulado pela Consulente:

“Qual deve ser o teor da decisão do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), quando acolher o
recurso administrativo interposto com fundamento no art. 16, § 7.º da Lei n. 11105/05 e no art. 52 do
Decreto n. 5591/05?”

Resposta: O CNBS, no âmbito de sua competência política, pode conhecer ou não conhecer do
recurso administrativo interposto por órgão ou entidade de registro e fiscalização de OGM, nos
termos da LBio 16 § 7.º e D 5591/05 52.

Caso conheça do recurso, proferindo juízo positivo de admissibilidade, pode prover ou improver o

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recurso. Negando provimento a decisão técnica da CTNBio adquire eficácia plena.

Quanto o CNBS entender que seja o caso de dar provimento ao recurso administrativo, acolhendo os
reclamos do órgão ou entidade de registro ou fiscalização de OGM, deverá proceder ao exame do
tema dentro de sua competência política, dada pela LBio 8.º § 1.º II e III.

Isto significa que o CNBS somente poderá analisar o pedido de liberação de OGM, para uso
comercial, sob os aspectos de conveniência e oportunidade socioeconômicas e de interesse
nacional, nos exatos termos da LBio 8.º § 1.º II.

Primeiro, porque esse é o limite de sua competência política dada pela LBio; segundo, porque não
tem habilitação técnica-científica para contrapor-se à decisão técnica de órgão colegiado
interministerial, integrado por vinte e sete doutores, inclusive por indicação dos próprios Ministros
membros do CNBS, tribunal administrativo ad quem; terceiro, porque não pode membro do tribunal
administrativo a quo, insurgir-se contra o próprio colegiado que integra e recorrer ao tribunal
administrativo ad quem.

Caso o CNBS decida ingressando no mérito da decisão técnica da CTNBio, essa decisão do recurso
será inválida.

É a nossa opinião, salvo melhor juízo.

São Paulo, 9 de fevereiro de 2009.

Nelson Nery Junior

1 Miguel Seabra Fagundes. Controle O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 7.ª
ed. (revista e atualizada por Gustavo Binenbojm), Rio de Janeiro: Forense, 2006, n. 2, pp. 3/4.

2 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal Comentada e leis
constitucionais, 2.ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, coment. 1 CF 2.º.

3 Roque Antonio Carrazza. O regulamento no direito tributário brasileiro, São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 1981, I, n. 2.2, p. 13.

4 Roque Antonio Carrazza. O regulamento no direito tributário brasileiro, cit., I, n. 2.2, p. 14.

5 Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo, 20.ª ed., São Paulo: Malheiros,
2006, Cap. VI, IV, n. 4, p. 317.

6 “Solche gesetzesdurchführenden Verordnungen enthalten keine neuen Verpflichtungen, sondern


spezialisieren nur diejeningen, die bereits auf Grund des ermächtigenden Gesetzes und anderer
Gesetze bestehen. Sofern sie zur Durchführung eines Bundesgesetzes in einem Lande dienen,
werden sie ‘Ausführungsverordnungen’ gennant” (Hans J. Wolff, Otto Bachof, Rolf Stober, Winfried
Kluth. Verwaltungsrecht I: Ein Studienbuch, 12.ª ed., (com a colaboração de Martin Müller e Andreas
Peilert), München: Beck, 2007, § 25, VIII, 4, n. 49, p. 260). (grifado no original)

7 Renato Alessi. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 3.ª ed., Milano: Giuffrè, 1960,
n. 20, p. 31.

8 Michel Stassinopoulos. Traité des actes administratifs, Paris: Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence, 1973 (reimpressão da edição de 1954), § 10, I, p. 69.

9 “A ponderabilidade da tese da requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel


execução das leis (CF 84 IV). A Emenda Constitucional n. 8 (LGL\1995\34) , de 1995 - que alterou o
inciso XI e alínea a do inciso XII da CF 21 - é expressa ao dizer que compete à União explorar,
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicação, nos
termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o
assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por

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inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige” (STF, Pleno, ADIn 1435-8-DF,
rel. Min. Francisco Rezek [vencido], j. 27.11.1996, m.v.).

10 José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, 5.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008,
p. 484. No mesmo sentido: Luis Pinto Ferreira. Comentários à Constituição brasileira, v. 3, São
Paulo: Saraiva, 1992, p. 549; Clèmerson Merlin Clève. A atividade legislativa do Poder Executivo, 2.ª
ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 298.

11 Nelson Nery Junior. Poderes públicos, boa-fé objetiva e segurança jurídica: eficácia da decisão
judicial que altera jurisprudência do mesmo tribunal superior, in Araken de Assis, Eduardo Arruda
Alvim, Nelson Nery Junior, Rodrigo Mazzei, Teresa Arruda Alvim Wambier e Thereza Alvim
(coordenadores). Direito Civil e Processo: Estudos em homenagem ao Professor Arruda Alvim, São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, n. 3, p. 1198.

12 Propugnando pelo entendimento de que a boa-fé do poder público (Executivo, Legislativo e


Judiciário) decorre do estado democrático de direito: Humberto
Bergmann Ávila. Materiell verfassungsrechtliche Beschänkungen der Besteuerungsgewalt in der
brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz [Limitações constitucionais materiais do
poder de tributar na Constituição brasileira e na Constituição alemã], 1.ª ed., v. 16 da coleção
“Beiträge zum ausländischen und vergleichenden öffentlichen Recht” [Estudos de direito público
estrangeiro e comparado], Baden-Baden: Nomos Verlag, 2002, 4. Kapitel, § 1.º, II, 3, p. 275.

13 No sentido de que a boa-fé decorre dos princípios da segurança jurídica e da legalidade: François
Picot. La bonne foi en droit public, Basel: Helbing & Lichtenhahn, 1977, p. 172 et seq. No Brasil, a
segurança jurídica está assegurada na CF pelo caput do art. 1.º (Estado Democrático de Direito),
pelo caput do art. 5.º e pela garantia da irretroatividade prevista na CF 5.º XXXVI.

14 A doutrina italiana, igualmente, afirma que a boa-fé como princípio vinculante do poder público,
tem sede constitucional no princípio da solidariedade. Assim: Elio Casetta. Buona fede e diritto
amministrativo, in “Il ruolo della buona fede oggettiva nell’esperienza giuridica storica e
contemporanea (Atti del Convegno Internazionale di studi in onore di Alberto Burdese)”, coordenado
por Luigi Garofalo, v. I, Padova: Cedam, 2003, n. 5, pp. 378/379. Entre nós a solidariedade é,
também, preceito constitucional expresso (CF 3.º I).

15 Afirmando que a boa-fé é aplicável ao direito público porque manifestação do princípio da


legalidade: Katharina Sameli. Treu und Glauben im öffentlichen Recht, Basel: Helbing & Lichtenhahn,
1977, p. 310 et seq.

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