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Conselho Editorial

H811 Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. – v.9,


n.17 (1º sem. 2010) – Belo Horizonte: O Lutador, 2010-
140p.

ISSN 1677-4400
Semestral

1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia – Periódicos. I. Instituto


Santo Tomás de Aquino.

CDU: 2:1

Elaborada por Rafaela Amaral CRB6/2300

Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039


Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, Flávio Luís Rodrigues,
José Carlos Aguiar, Manoel de Godoy, Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen.
Revisão: Helena Contaldo - Conttexto
Projeto Gráfico e Diagramação: Tiago Parreiras
Normalização Bibliográfica: Rafaela Amaral - CRB6/2300

As matérias assinadas são da responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos livros


para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou não re-
senha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres.

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Impressão: Editora O Lutador


SUMÁRIO

EDITORIAL 5

A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO


9
NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

APRENDENDO CATEQUESE COM


33
O AUTOR DE HEBREUS

BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE 45

O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS


59
DO SER-TÃO HUMANO

A QUESTÃO DE DEUS E O
77
SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

DEUS E OS POBRES 87

UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS


98
DA LITERATURA DE CORDEL

RECENSÕES 105

NORMAS PARA COLABORADORES 121

LIVROS RECEBIDOS 125


ISTA - Instituto Santo Tomás de Aquino
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos
Diretor Executivo: Manoel José de Godoy

GRADUAÇÃO:

Filosofia (licenciatura)
Coordenação: Antônio Martins Pinheiro

Teologia (bacharelado)
Curso Superior de Gestão Pastoral
Coordenação: Flávio Luis Rodrigues

PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu):


Coordenação: Flávio Luis Rodrigues

Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos – 360 horas / aulas


Janeiro/ Julho/ Janeiro

Especialização para Formadores da Vida Religiosa – 360 horas / aulas


Janeiro/ Julho/ Janeiro

Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual


Julho a Junho

Mais informações:
Rua Itutinga, 300 – Minas Brasil
30535-640 – Belo Horizonte – MG
Telefax: (31) 3419-2800
ista@ista.edu.br
www.ista.edu.br
Pe. Manoel Godoy 5

EDITORIAL

Uma das vantagens de se viver no mundo acadêmico é andar


antenado com criatividades díspares que emergem tanto do corpo
docente quanto do discente. Sobretudo quando o ambiente favorece
a liberdade e a autonomia no pensar. A geração que conviveu com
períodos fortes de recessão é muito sensível a qualquer vestígio
de censura, sobretudo do pensamento. Numa instituição que se
pretende como gestadora de pensamento no campo filosófico e
teológico, o limite é traçado pelo amor, pela defesa intransigente
da vida. Nesses contornos, todos são estimulados a produzir ideias,
que inspiram práticas, que voltam para o mundo das ideias e, assim,
alimentam um círculo hermenêutico cheio de novas perspectivas.
Nossa Revista Horizonte Teológico tem se constituído nesse
espaço criador, apontando para práticas transformadoras. É com
esse espírito que podemos ler os textos que compõem o atual
número de nossa revista, que sugere novas posturas no processo
de formação presbiteral e catequético.

O texto HOMOSSEXUALIDADE NA BÍBLIA está entre


aqueles textos e ideias que, por sua própria natureza, suscitam um
intenso debate. Não será diferente com o referido texto que nossa
revista publica. Já no Conselho Editorial assistimos a um caloroso
debate... É no intuito de provocar mais reflexões sobre o tema

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p. 5-7, jan./jun. 2010.


6 EDITORIAL

que decidimos pela sua publicação. A Revista se mantém aberta


ao diálogo com outras linhas de pensamento, sobretudo, em se
tratando de questão tão disputada, quer no meio eclesiástico, quer
no âmbito de toda a sociedade civil. Somos cientes de que, nesse
assunto, nenhuma reflexão consegue consenso.

Quem sabe a leitura de O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS


DO SER-TÃO HUMANO: uma análise filosófica das categorias do
bem e do mal na obra Grande Sertão, de Guimarães Rosa, possa
oferecer chaves de leitura para o campo da moral, da ética e dos
comportamentos em geral? Percebe-se que as fronteiras do bem e
do mal não são tão nítidas, como nossa mente cartesiana gostaria
que fosse. Não dá para viver deduzindo imperativos categóricos,
sobretudo baseados numa certa concepção de lei natural, tão
frequente em discursos nos meios eclesiásticos. Como exemplo,
não conseguimos tão facilmente resolver o enigma tão presente no
Primeiro Testamento: Por que o justo sofre? É certo que a resposta
não pode emergir da teologia da prosperidade ou da retribuição,
estranhas ao genuíno pensamento e prática de Jesus de Nazaré.
Nessa ótica, vale a pena rever nossos conceitos, a partir dos artigos
A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE
JÓ e DEUS E OS POBRES: sobre a relevância do debate acerca do
fundamento na Teologia da Libertação.

Já com os textos UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA


LITERATURA DE CORDEL: “As proezas de João Grilo” e CONTOS
DO MEU SERTÃO, temos a prova de que a literatura nos leva
a filosofar e a teologar, partindo do cotidiano do povo, com sua
cultura tão rica e variegada.

Por fim, as recensões querem trazer à tona questões ligadas


à arte de educar e de educar-se, bem como a problemática tão atual
dos problemas de linguagem.

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Pe. Manoel Godoy 7
Como fala Guimarães, na sua obra imortal, Grande Sertão:
Veredas, “Viver é um descuido prosseguido”. Portanto, enquanto
estivermos descuidados nessa terra, queremos fazer do livre pensar
um estilo de prosseguir vivendo.

Bom passeio pela agradável aventura de ler textos tão


diferenciados, que apontam para questões tão disputadas.

Pe. Manoel Godoy


Diretor Executivo do ISTA

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p. 5-7, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 9

ARTIGOS A ESCUTA DE DEUS,


DE SI MESMO E DO OUTRO
NO PROCESSO FORMATIVO
PRESBITERAL
Pe. Eduardo Almeida da Rocha

Resumo

O presente artigo trata de um importante aspecto da formação


presbiteral. Tem como viés para análise do processo formativo a
dimensão da escuta, como imprescindível e desencadeadora de
todo o processo educativo da pessoa. Tomando alguns elementos
da estrutura pedagógica que integram o tempo da formação
inicial, o processo formativo é apresentado como ato educativo
da pessoa cuja meta é levá-la à maturidade humana, dando-lhe
assim condições para discernir e poder abraçar ou não o ministério
presbiteral. A partir da escolha de três espaços do ambiente
formativo – direção espiritual, relação formador/formando e
vivência comunitária – busca-se fundamentar a questão da escuta
como elemento essencial para uma formação presbiteral saudável.
Enfocam-se os referidos espaços como ambientes propícios para a
escuta de Deus, de si mesmo e do outro. A escuta de Deus que coloca
a pessoa diante dos ideais e da própria realidade como caminho
para configuração a Cristo; a escuta de si mesmo, acompanhada
pelo formador, possibilitando ao formando se escutar e trabalhar
conteúdos existenciais; a escuta do outro na vivência comunitária
por meio dos encontros e conflitos estabelecidos que remete a
pessoa para si mesma. Assim, a formação presbiteral é perpassada
pelo diálogo, caracterizando-se fundamentalmente como lugar da

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


10 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

escuta que gera o crescimento humano.

Palavras-chave: Formação presbiteral. Escuta. Direção espiritual.


Relação formando/formador. Vivência comunitária.

1 Introdução

O presente artigo pretende enfocar a dimensão da escuta


como elemento determinante do processo de formação para o
Ministério Presbiteral. Dimensão essa de extrema importância,
sem a qual toda a formação ficaria comprometida.

A estrutura pedagógica proposta atualmente pela Igreja


no âmbito da formação presbiteral possibilita aos candidatos ao
ministério ordenado fazer a experiência da escuta. Não é possível
pensar formação presbiteral sem contemplar a escuta como fator
desencadeador do crescimento humano e de todo o processo
formativo.

Para essa abordagem1, foram escolhidos três espaços


do ambiente formativo com o objetivo de pontuar como se dá a
dinâmica da escuta na formação dos futuros padres.

Primeiramente, a Direção Espiritual como lugar propício


para a escuta de Deus. Através da mediação humana, do diálogo
que se estabelece entre formando e diretor espiritual, se dá
a escuta de Deus e de sua vontade. Como tem sido a prática da
Direção Espiritual nas casas de formação? A formação espiritual
tem tocado os formandos em sua integralidade?

1 Essa abordagem é fruto de reflexões suscitadas pelo curso de


especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos no ISTA em Belo
Horizonte e, também, da observação e acompanhamento direto do processo
formativo a partir da experiência como formador no Seminário Arquidiocesano
Santo Antônio em Juiz de Fora/MG, da parte do autor.

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Pe. Eduardo Almeida da Rocha 11
Em seguida, a relação formando/formador será tratada
como espaço para uma relação educativa de escuta. O aceno aqui é
o formador que na escuta do formando deve ajudá-lo a se escutar,
desencadeando assim o processo educativo, de formação na vida
do formando. Esse espaço tem contribuído para que o formando
possa, ao falar de suas questões com o formador, se escutar.

E, por fim, a vida comunitária como espaço da escuta do


outro, fator também preponderante para o crescimento humano.
Merecem destaque as dinâmicas de grupo2 como espaço para
discutir as relações da comunidade, resultando numa maturidade
que o grupo vai conquistando para lidar com a própria realidade
e situações vividas. A vivência comunitária tem possibilitado
a formação humana, fraterna e a maturidade nas relações
interpessoais dos formandos?

Na perspectiva da escuta, segue uma abordagem de espaços


da formação em que essa dimensão fica evidente e é primordial.

2 A escuta como elemento essencial do processo formativo

A dimensão da escuta se configura no processo formativo


presbiteral como elemento essencial. Aliás, essa dimensão quando
experimentada de maneira aprofundada é que proporcionará o
desenvolvimento de uma formação que tende para o crescimento
humano, tocando a pessoa em toda a sua integralidade.

Para falar de formação presbiteral, faz-se necessário ter claro


o que se pretende enquanto objetivos e metas a serem alcançados

2 Por Dinâmicas de Grupo entende-se o acompanhamento Psicopedagógico


realizado por um psicólogo que quinzenal ou mensalmente se encontra com o
grupo, e por meio de técnicas de dinâmicas procura facilitar a verbalização e a
comunicação dos componentes do grupo. Essa experiência é desenvolvida nas
comunidades de formação do Seminário Arquidiocesano de Juiz de Fora desde
1984.

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12 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

por meio de um caminho formativo. Dom Walmor Azevedo bem


explicitou sobre isso ao afirmar que “a meta, naturalmente, é viver
um processo formativo que proporcione a reconfiguração interna
do candidato de modo que adquira as condições para a vivência
de sua consagração e de sua missão” (AZEVEDO, 1998, p.9). Essa
reconfiguração interna, enquanto capacitação da pessoa para a
missão, torna-se possível na história do formando à medida que
ele se abre ao longo de sua formação à dinâmica da escuta. Escutar
para formar-se, escutar para responder às expectativas de uma
formação presbiteral sólida.

Assim, a temática da escuta é de grande pertinência para o


processo formativo presbiteral. É por meio da escuta que o candidato
vive intensamente o seu itinerário, pois escutar pressupõe ser
tocado pelas experiências vividas de tal modo que se tornem vias
de aprendizado. A escuta tem como fonte as experiências vividas,
caracterizando-se como um modo de aprender com a realidade.

A origem etimológica da palavra escutar vem do latim


“auscultare”, que significa ouvir com atenção. Esse ouvir com
atenção tem singular importância para o processo formativo.
Possibilita ao formando o confronto a partir do que ele escuta e
a sua realidade pessoal, desencadeando assim um movimento de
decantação interior.

O confronto que deve ser estabelecido sempre ao longo


da formação com relação às questões que tocam a vida de cada
formando é o que caracteriza a relação da escuta. A subjetividade
de cada um precisa da alteridade para uma autêntica edificação
de si mesmo. Essa relação dialogal faz o sujeito ir ao encontro de
Deus, do outro e consequentemente de si mesmo. Justamente isso
é o que caracteriza a dinâmica da escuta, que faz emergir o sujeito
ético, maduro suficientemente e com possibilidades de abraçar o
ministério presbiteral. A partir da escuta atenta, cada formando

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Pe. Eduardo Almeida da Rocha 13
poderá dar respostas significativas no caminho de discernimento
vocacional, tendo em vista a maturidade humana e vocacional.

Interessante ressaltar que o tempo da formação inicial no


seminário caracteriza-se como um tempo muito oportuno para
a experiência da escuta, tão necessária no percurso de formação
dos candidatos ao presbiterato. A organização do projeto de
formação dentro dos seminários a partir de orientações dadas
pode ser compreendida nessa perspectiva da escuta, uma vez que
os diversos espaços oferecidos possibilitam a escuta de Deus, de si
mesmo e do outro.

Assim, a vocação, seu processo de discernimento e o


tempo da formação devem ser entendidos de maneira dialógica.
Somente a disposição para o diálogo resultará na escuta de Deus
e do outro, o que direciona o formando em relação a si mesmo.
Situa-se aqui a questão da relação dialógica, permitindo a dinâmica
da escuta se efetivar de tal modo que a pessoa seja tocada e viva
o desencadeamento de reconfigurações de aspectos de sua
existência e busque sua maturidade humana.

Dentro do projeto pedagógico formativo destacam-se várias


atividades como meios utilizados que possibilitam aos formandos
a dimensão da escuta: vida comunitária, serviços pastorais, relação
com o formador, direção espiritual, momentos orantes, dinâmicas
de grupo, estudos e outras mais.

A escuta é base fundamental da formação porque é algo


profundo na vida do ser humano. Escutar é mais do que ouvir, pois
esse é apenas resposta a um estímulo físico, enquanto escutar
significa aprofundar conteúdos da vida da pessoa. André Marmilicz
faz uma interessante distinção entre escutar e ouvir – “escutar
ativamente o outro é uma grande arte, porque não significa
simplesmente ouvir e entender as palavras, mas compreender

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


14 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

aquilo que se esconde por detrás das afirmações do outro”


(MARMILICZ, 2003, p.132).

A dinâmica da escuta deve possibilitar aos formandos nos


mais diversificados espaços formativos ser ele mesmo. Deixar que
o outro seja, manifeste quem ele é e revele seu interior. Isso implica
da parte de quem escuta uma postura de estar ali para o outro,
tendo em vista o crescimento da pessoa, pois ao ser escutada por
alguém de maneira qualitativa o próprio sujeito se escuta.

Uma das grandes tarefas da formação consiste em ajudar


o formando a se escutar, ou seja, “educar para a interiorização”
(MARMILICZ, 2003, p.132) como via para o crescimento humano. O
olhar lançado para si mesmo através da escuta e da alteridade faz o
formando sair de suas superficialidades para um aprofundamento
existencial.

A dimensão da escuta de si e do outro se coloca no âmbito da


formação presbiteral como desafio: “está, pois, colocado o desafio
da experiência de si e do outro como condição de possibilidade do
desabrochamento do humano, da autenticidade da fé e do segredo
de uma consagração que consiga sinalizar e atuar o libertário deste
caminho” (AZEVEDO, 1998, p.20). No entanto, é experiência
primordial no processo formativo, pois leva a uma tomada de
consciência da própria vida, o que resulta no trabalho interno de
cada um e em reconfigurações de aspectos que cada um traz a
partir do seu desenvolvimento.

Não se pode nunca desconsiderar que o formando é alguém


em crescimento, permeado de dúvidas e que tem seus limites. No
entanto, é exatamente a experiência da escuta que o levará a dar
respostas significativas frente às escolhas feitas por ele mesmo,
conquistando assim maior clareza para sua vida.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 15
Partindo da constatação de que a escuta é elemento
essencial para um processo de formação saudável, seguem alguns
fatores relevantes de três espaços formativos – direção espiritual,
relação formador/formando e vivência comunitária – nos quais se
evidencia a questão da escuta.

3 A direção espiritual como lugar da escuta de Deus

A direção espiritual desenvolveu-se ao longo da história


como algo fundamental para a vivência da vida cristã. Seu objetivo
está diretamente ligado à ajuda oferecida às pessoas para a prática
do Evangelho.

Percorrendo os séculos, a história mostra que a ideia de


“paternidade espiritual” sempre esteve presente na humanidade
(SCIADINI, 2006, p.57-62). A própria história da salvação pode ser
tomada nessa perspectiva. Deus que escolhe e conduz seu povo,
indicando-lhe caminhos certos para trilhar por meio de lideranças
que suscita entre eles3.

Pensando o ser humano como ser de possibilidades, como


pessoa que traz dentro de si potencialidades para realizar e viver
projetos, no âmbito da espiritualidade deve-se pensar essa questão
da direção espiritual como caminho eficaz para a construção de
uma autêntica vida humana e cristã.

Em sua realidade histórica, o ser humano se vê marcado


pelo seu ideal de vida e por aquilo que constitui sua realidade. Essa
relação entre ideal e realidade é o grande desafio humano que
requer uma construção a ser realizada. Essa construção implica
direcionamentos.
3 Seguem algumas citações bíblicas acerca de lideranças suscitadas
para direcionar/orientar momentos da história da salvação: Gn 12,1-9; 15,1-20
(Abraão); Ex 3,1-12;6,2-13 (Moisés); Jr 1,4-10; 15,10-21 (os Profetas); Mc 1,14-
20; 3,13-19 e MT 4,18-22 (os Apóstolos) e outras mais.

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16 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

Os direcionamentos que cada qual vai dando à própria vida


supõem a liberdade de escolher o próprio ideal e o melhor caminho
a tomar. Cada pessoa é livre para fazer suas escolhas, lidando com
o aspecto do desejo, da vontade. No entanto, esse livre processo
de escolha que o ser humano vive precisa de meios pedagógicos
que o auxiliem no direcionamento de sua vida.

A direção espiritual é aqui abordada como uma pedagogia


utilizada para a formação espiritual do sujeito humano,
considerando o aspecto da fé. “A pedagogia é a arte de conduzir a
pessoa do ponto atual ao ideal proclamado” (TOMASI, 2007, p.220).
Deve contribuir para um discernimento que a pessoa precisa fazer a
partir do confronto entre seus desejos e sonhos com as implicações
da fé cristã na existência humana.

O espaço da direção espiritual é marcado nesse sentido


fortemente pela escuta. Só é possível viver o confronto fé e vida
/ ideal e realidade a partir de uma postura de escuta que o sujeito
deve tomar, sem a qual o caminho do crescimento espiritual fica
comprometido.

A escuta é compreendida na dimensão da espiritualidade,


como escuta do próprio Deus dentro da realidade humana. Dessa
escuta atenta de Deus que revela Sua vontade ao coração humano
é que nasce o homem de fé e a sustentação para o seu caminho
espiritual. É na escuta de Deus, sendo formados por Ele, que o ser
humano se aproxima da perfeição que Jesus convida a todos.

A fé possibilita ao ser humano fazer a experiência de Deus


e escutá-lo. Deus que fala e se revela por meio de sua Palavra, dos
sacramentos como sinais de sua presença, no convívio com as
pessoas sobretudo os mais pobres e de tantas outras maneiras.

Assim, torna-se evidente a importância que a espiritualidade

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Pe. Eduardo Almeida da Rocha 17
e seus direcionamentos têm para o ser humano. Especificamente
essa temática da espiritualidade tem grande relevo para a formação
presbiteral. Não há como pensar na formação presbiteral sem uma
autêntica formação espiritual. Aliás, tal formação é apresentada
pelo papa João Paulo II na Exortação Apostólica Pós-Sinodal
Pastores Dabo Vobis como elemento essencial:

para cada sacerdote, a formação espiritual constitui o


coração que unifica e vivifica o seu ser padre e o seu agir
de padre. Neste contexto, os Padres do Sínodo afirmam
que sem a formação espiritual, a formação pastoral
desenrolar-se-ia privada de qualquer fundamento e que
a formação espiritual constitui como que o elemento
de maior importância na formação sacerdotal (JOÃO
PAULO II, Papa, Pastores dabo vobis, n.45).

O espaço da direção espiritual na vida dos candidatos ao


ministério ordenado deve tocar cada pessoa em sua inteireza.
Trata-se de um fecundo espaço de escuta. Essa dinâmica da escuta
e do confronto gerado possibilita uma maturidade da identidade
humana, cristã e sacerdotal (SCIADINI, 2006, p.315-319). Somente
quem busca silenciar-se para escutar a Deus poderá aprofundar
o sentido da vida e da vocação. Daí a importância da direção
espiritual para a formação presbiteral. Seu conteúdo e finalidade
estão orientados para o seguimento de Jesus: fazer-se discípulo
missionário. Através de uma vida espiritual exercitada na escuta
atenta se realiza o que caracteriza a espiritualidade do padre
diocesano: sua identificação e configuração a Cristo Bom Pastor.

A formação espiritual fomentada por um qualificado


direcionamento permitirá a identificação e configuração com o
Cristo, por meio de algumas conquistas que a pessoa acompanhada
vai fazendo tais como formar o coração de pastor, viver como Cristo,
alcançar a caridade pastoral, ser profeta em tempos atuais, ter um

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18 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

olhar contemplativo (SCIADINI, 2006, p.326-338). O seguimento


de Jesus e a vivência da vocação presbiteral – levando em conta
o processo de formação – estão relacionados à experiência do
encontro pessoal com o Senhor, seu conhecimento e escuta a fim
de que o vocacionado abrace o projeto, a missão e a participação
na construção do Reino de Deus.

A questão que se coloca no horizonte da formação presbiteral


é como esse espaço formativo da espiritualidade tem sido um lugar
da escuta de Deus para os candidatos ao ministério presbiteral.
Como a direção espiritual tem sido uma proposta que ajuda a
alcançar ou aproximar do ideal a partir do lugar em que cada um
se encontra? Como o acompanhamento espiritual nos seminários
tem levado os seminaristas ao conhecimento de si, na tomada de
consciência do distanciamento do ideal e realidade, no olhar para
os valores, a pensar o sentido da vida e da missão presbiteral? Tais
questões, que podem inclusive ser mais aprofundadas num outro
momento, se colocam como via para uma análise da dimensão
espiritual da formação.

A vida espiritual aponta direções para onde se deseja


chegar. A necessidade de um método pedagógico para a direção
espiritual é fundamental para que a pessoa acompanhada viva
o deslocamento do ponto atual de onde ela se encontra para o
ideal proclamado (TOMASI, 2007, p.220), por meio da escuta. A
espiritualidade leva a uma leitura de fé da tensão existente entre
ideal e realidade.

A formação espiritual como perspectiva de escuta de Deus


requer um conteúdo para que isso se efetive. Desse modo, o
Concílio Vaticano II no decreto Optatam Totius, sobre a formação
sacerdotal, apresenta esse conteúdo essencial para a formação
espiritual dos candidatos ao ministério sacerdotal como caminho
da escuta de Deus:

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 19

A formação espiritual [...] seja ministrada de tal modo


que os alunos aprendam a viver em íntima comunhão
e familiaridade com o Pai por meio de seu Filho Jesus
Cristo, no Espírito Santo. Destinados a configurar-se a
Cristo Sacerdote por meio da Ordenação, habituem-
se a viver intimamente unidos a ele, como amigos,
em toda a sua vida. Vivam o mistério pascal de Cristo,
de modo a saberem, um dia, iniciar nele o povo que
lhe será confiado. Sejam ensinados a procurar Cristo
por meio da fiel meditação da Palavra de Deus; pela
participação ativa nos ministérios sacrossantos da
Igreja, sobretudo na Eucaristia e na Liturgia das Horas;
por meio do bispo que os envia e dos homens a quem
são enviados, especialmente os pobres, simples,
doentes, pecadores e descrentes. Com confiança filial,
amem e venerem a Santíssima Virgem Maria, que foi
entregue por Jesus moribundo na cruz, como mãe, ao
seu discípulo (Decreto sobre a formação sacerdotal,
Optatam Totius, 8).

Fundamentam a formação da espiritualidade presbiteral a


configuração pessoal a Jesus Cristo Bom Pastor, a pertença à Igreja
Particular, a caridade pastoral e a mística presbiteral. São balizas da
vida espiritual a comunhão, o serviço, o diálogo e o testemunho4.
Somente a escuta de Deus pode formar o homem espiritual capaz
de assumir o que é próprio da vocação e missão presbiteral.

A dimensão espiritual da formação constitui-se como


elemento fundamental que toca o ser humano em sua integralidade,
chamando cada qual a um direcionamento do caminho que é
o estilo de vida cristão e a construção da identidade presbiteral.
Nesse sentido, a escuta de Deus permitirá a formação do coração
4 Plano de Formação Presbiteral do Seminário Arquidiocesano Santo
Antônio - Juiz de Fora/MG.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


20 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

do pastor.

4 A escuta de si acompanhada pelo formador como ato


formativo

O ato de educar tornou-se complexo no mundo atual,


marcado por características que são entraves à ação educativa.
A ideia dominante do momento presente que valoriza mais o ter
em detrimento do ser favorece a cultura da aparência e não da
essência, delineando-se no ambiente formativo como um fator
de complicação (PAULO VI, Papa. Encíclica Populorum progressio
sobre o desenvolvimento dos povos, n.19).

O conhecido axioma do filósofo Ortega y Gasset – “Eu sou


eu e minhas circunstâncias” (ORTEGA Y GASSET, 1967, p.52) –
ajuda a entender bem a relação e os impactos entre o ser humano
e o mundo que o rodeia. Conhecer bem essa relação tem singular
importância para o ato formativo, pois uma boa formação depende
do conhecimento do sujeito que sofre a ação formativa bem como
a realidade de onde ele vem.

A verdade é que os formandos, em sua maioria jovens, são


frutos da cultura atual. Sofrem os impactos da mentalidade dessa
época e chegam às casas de formação impregnados dos supostos
“valores” do mundo contemporâneo. Dessa forma, o sujeito vai
sendo formado dentro do ambiente social que vive e acaba por
absorver tudo aquilo que é próprio e dominante de seu tempo.

Considerando a formação presbiteral, o papa João Paulo II


falou sobre os impactos da mentalidade do mundo contemporâneo
na vida dos jovens e suas implicações para a formação:

É muito forte sobre os jovens o fascínio da chamada


sociedade do consumo, que os torna submissos e

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 21
prisioneiros de uma interpretação individualista,
materialista e hedonista da existência humana. O
bem estar entendido materialmente, tende a impor-se
como único ideal de vida, um bem estar que se obtém
a qualquer preço: daqui, a recusa de tudo que exige
sacrifício e a renúncia a procurar e a viver os valores
espirituais e religiosos. A preocupação exclusiva do
ter suplanta o primado do ser, com a conseqüência
de se interpretarem e viverem os valores pessoais
e interpessoais não segundo a lógica do dom e da
gratuidade, mas segundo a lógica da posse egoísta e
da instrumentalização do outro (JOÃO PAULO II, Papa,
Pastores dabo vobis, n.8).

A afirmação do papa é pontual em sua exortação apostólica,


a fim de levar a uma consciência do grande desafio que sempre foi
a tarefa da formação, sobretudo nos tempos atuais.

Frente aos desafios impostos pela atualidade à formação


dos futuros presbíteros, torna-se fundamental a preocupação de
encontrar caminhos pedagógicos que respondam às exigências do
tempo presente. Nesse sentido, destaca-se o acompanhamento
vocacional realizado pelo formador como lugar propenso para a
escuta que o formando deve fazer de si mesmo.

A relação formador/formando é espaço para uma relação


educativa. É possibilidade de o formando escutar a si mesmo,
podendo se conhecer mais, autoavaliar-se e, sobretudo, perceber
conteúdos inerentes à própria vida e que são relevantes para sua
formação. O grande desafio do formador é ajudar os formandos a
escutarem a si próprios.

O processo de formação caracteriza-se como processo


de humanização, pois essencialmente é uma construção

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


22 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

que o formando vai realizando por meio de suas escolhas e


direcionamentos, efeitos da dinâmica da escuta. A escuta atenta
de si mesmo produz a demanda formativa. “O ser humano é um
ser histórico que vai articulando suas escolhas livres ao longo
do tempo. Em certo sentido, não nasce pessoa, vai se tornando
pessoa, humanizando-se, a partir da relação com o outro” (JOÃO
PAULO II, Papa, Pastores dabo vobis, n.8). Portanto, o processo
formativo conduz a pessoa a uma tomada de consciência de si
mesma, tornando-se via de construção do sujeito humano maduro
capaz de ter uma atuação positiva onde escolheu estar.

Somente um percurso formativo de escuta levará o


formando a conquistar a maturidade humana realizando-se
enquanto pessoa. A tarefa formativa se situa justamente na
formação da pessoa humana, levando-a ao aprendizado do ser.
Aprender a ser é resultado de uma escuta e formação assumida em
sua profundidade. Isso só se efetiva quando há o despojamento
do que impossibilita o ser humano de se revelar autenticamente
(LIBANIO, 2001, p.84-88).

É relevante recorrer à origem da palavra educação, para


uma maior compreensão do processo formativo como lugar da
escuta e também a relação formador/formando. Sua origem vem
do latim: educere, que tem o sentido de tirar de dentro, e educare,
que significa conduzir. Aquele ligado mais diretamente à posição
do formando, enquanto este a uma atitude do formador. Isso em
vista do crescimento do formando.

Assim compreendido, o processo de formação e,


especificamente, o acompanhamento pelo formador, devem ser
o lugar que ajude o formando a viver de maneira consciente. A
consciência é o estado de estar ciente de algo, das ações. Viver
conscientemente significa buscar conhecer não somente o mundo
externo, mas o próprio mundo interior. Pressupõe deixar as

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 23
defesas e lançar um olhar para dentro do próprio mundo, perceber
ações, sentimentos, analisar-se. É um voltar para dentro de si na
perspectiva de se escutar.

Ligado a essa ideia do viver conscientemente, André


Marmilicz apresenta outros pilares da relação consigo mesmo,
decisivas para a formação da pessoa a partir da escuta e trabalho
interior. São elas: autoaceitação, cada um aceitar-se como é;
autorresponsabilidade, sentir que cada um tem controle sobre
a própria vida; autoafirmação, ter a vida nas próprias mãos;
intencionalidade, viver com propósitos, e integração pessoal, que
é quando palavra e comportamento se equiparam. Tais atitudes
apresentadas são resultado de todo um processo de escuta interior
que coloca a pessoa num lugar de se conhecer e formar-se.

O espaço do acompanhamento realizado pelo formador


só será um lugar para o formando se escutar se tiver algumas
características que proporcionem essa escuta. Historicamente esse
espaço nem sempre foi propício para a escuta de si, quando gerido
de forma que ao formando bastava adequar-se a um modo de vida
e às regras estabelecidas por meio de uma disciplina rígida que não
permitia espaço facilitador para o crescimento do formando.

A relação pedagógica entre formador/formando hoje


entendida tem uma função específica de mediação formativa.
É uma relação essencialmente educativa. Para William Castilho
Pereira, a ação primordial do ato educativo é “trazer à tona o
conteúdo não-dito” (PEREIRA, 2004, p.285), que significa levar o
formando a escutar a si próprio. O ato formativo personalizado tem
grande efeito na vida do formando porque parte da situação em
que ele se encontra, suas questões e o que lhe toca diretamente.

Assim, o acompanhamento vocacional do jovem pelo


formador no tempo da formação inicial para o ministério presbiteral
tem como principal fator o diálogo. Acompanhamento dialogal

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


24 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

que possibilite ao formando um protagonismo em sua formação


presbiteral, no sentido de que deve tomar a sua vida nas próprias
mãos. O decreto conciliar Optatam Totius acena para o fato de que
toda a disciplina do seminário deve estar orientada de tal forma
que o formando tome consciência de sua escolha, lide bem com
sua liberdade e alcance a maturidade humana (Decreto sobre a
formação sacerdotal, Optatam Totius, 11).

O jovem vocacionado precisa fazer a experiência da


escuta de si mesmo, pois essa lhe possibilitará discernimento
e aprofundamento da vocação. As motivações vocacionais que
levam alguém a procurar o seminário podem estar atravessadas,
consciente ou inconscientemente, por muitas questões como:
status, segurança institucional, dificuldades nos aspectos da
sexualidade, recalques e outras mais. A escuta interior é via de
acesso direto às questões existenciais levando a pessoa a trabalhá-
las e poder gerir com responsabilidade a própria vida.

A função formativa é complexa em si mesma, mas


fundamental. A relação formador/formando é elemento importante
da formação, pois o ser humano é um ser de capacidades que
precisa ser educado, acompanhado de perto para fazer emergir
tudo o que de bom traz dentro de si.

5 A escuta do outro na vivência comunitária

A vida comunitária é outro espaço de escuta da formação


presbiteral a ser destacado, lugar propício para a escuta do outro. O
relacionamento com o outro é preponderante para o crescimento
humano e se caracteriza como relação educativa e essencial para
todos aqueles que buscam a maturidade humana.

Os seminários se constituem como comunidades com a


tarefa de formar os futuros presbíteros da Igreja. Nesse estilo de
vida comunitário se estabelecem as relações humanas, fazendo

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 25
de cada membro da comunidade sujeito da ação formativa. A
presença e a escuta do outro remetem a pessoa para si mesma,
desencadeando um processo de trabalho interior de questões
importantes que tocam a pessoa e oportunizam seu crescimento.

As casas de formação devem ser marcadas como um espaço


comunitário de escuta do outro, pois é nessa experiência que é
formado o padre que assumirá o lugar de liderança comunitária
estabelecendo relações diversificadas. O padre é um homem de
relações.

A identidade do seminário enquanto lugar da vivência


comunitária aponta para uma continuidade do mesmo espírito
da comunidade constituída por Jesus como lugar da escuta, da
formação, do aprendizado e da fraternidade.

A identidade do Seminário é a de ser, a seu modo,


uma continuação, na Igreja, da mesma comunidade
apostólica reunida em volta de Jesus, escutando a sua
Palavra, caminhando para a experiência da Páscoa,
esperando o dom do Espírito para a missão (JOÃO
PAULO II, Papa, Pastores dabo vobis, n.60).

O processo formativo tem como modelo a convivência


comunitária de Jesus com seus discípulos. “Depois subiu à
montanha, e chamou a si os que ele queria, e eles foram até ele.
E constituiu Doze, para que ficassem com ele, para enviá-los a
pregar, e terem autoridade para expulsar os demônios” (Mc 3, 13-
15). Não é difícil ler nessa passagem da constituição do grupo dos
doze os aspectos da dimensão comunitária e do acompanhamento
vocacional, a partir da relação que Jesus estabelece com os
apóstolos. Evidencia-se, portanto, o aspecto comunitário como
caminho de formação do discípulo.

A vida comunitária como elemento integrador da formação

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


26 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

presbiteral precisa ser garantida, pois por meio dela cada formando
de uma maneira dinâmica vivencia o seu processo formativo. Dessa
forma, pode-se afirmar que toda a comunidade é formadora, no
sentido de que tudo o que se experimenta torna-se dado importante
que possibilita cada pessoa, e o grupo todo, a trabalhar suas
próprias questões, desencadeando assim um autêntico processo
educativo.

Por uma questão pedagógica há de se falar da necessidade


de um projeto comunitário claro. “O seminário tenha uma precisa
programação, isto é, um programa de vida que se caracterize,
seja pela sua organização e unidade, seja pela sua sintonia ou
correspondência com o único fim que justifica a existência do
Seminário: a preparação dos futuros presbíteros” (JOÃO PAULO II,
Papa, Pastores dabo vobis, n. 61).

Também o Documento de Aparecida fala da importância


de um projeto comunitário no Seminário, para buscar resguardar
a formação de autênticos discípulos missionários. Partindo
da realidade de que os jovens que chegam para compor as
comunidades de formação estão fortemente influenciados
pela cultura contemporânea, o documento aponta elementos
presentes entre a juventude que dificultam a formação. São eles:
influências negativas dos meios de comunicação, fragmentação da
personalidade, incapacidades de assumir compromissos definitivos,
falta de maturidade humana e enfraquecimento da vida espiritual
(DAp, n. 318). Por isso aponta para a necessidade de uma especial
atenção ao projeto comunitário, da abertura ao outro, como um
dos espaços onde a formação acontece.

Por projeto comunitário entende-se, segundo André


Marmilicz, “projetar-se”, ou seja, descobrir caminhos que ajudem
o formando, que o orientem no aprofundamento de sua vida,
vocação e missão (MARMILICZ, 2003, p.147). Isso implica no fato
de que mesmo que exista um conteúdo programático do projeto

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 27
de vida comunitário, nada impede a criatividade e envolvimento
de todos os agentes da formação na elaboração desse projeto de
modo participativo.

O modo participativo na elaboração do projeto comunitário


compromete a todos e de maneira especial aos formandos em sua
sustentabilidade, para alcançar seus objetivos.O comprometimento
com o projeto comunitário, desde a fase de sua elaboração
bem como de seu decurso, contribui significativamente para a
experiência da escuta do outro no processo de formação.

Em seus estudos sobre os Seminários como ambiente


educativo, o autor acima citado apresenta pistas para um projeto
comunitário facilitador da escuta em sua vivência. Primeiramente
o envolvimento e a participação em sua elaboração, que
pressupõem a preparação do projeto comunitário, a criação de um
ambiente formativo marcado positivamente pelo diálogo, que seja
de qualidade e tenha um conteúdo que sirva de eixo para atingir
metas e alcançar objetivos. Depois, que contemple o protagonismo
do formando em sua formação como sujeito ativo fundamental,
pois a escuta do outro na vivência comunitária visa ao crescimento
humano de cada formando. E, em terceiro, que ajude cada um
na construção de um projeto de vida pessoal (MARMILICZ, 2003,
p.148-163).

Um projeto comunitário bem elaborado e assumido


cria um espaço formativo onde as pessoas se expressam. Ao se
expressarem, se revelam e apresentam uma série de conteúdos
da própria vida. Desde qualidades que trazem, dons, aptidões,
valores de vida que fazem parte do modo de ser de cada um, como
também questões importantes que precisam ser aprofundadas e
trabalhadas. A vida comunitária proporciona por meio do convívio
a escuta do outro que oportuniza que cada formando nessa escuta
aprofunde a própria vida e questões. É singular a experiência
comunitária como percurso de conhecimento de si mesmo e do

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


28 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

outro. Na vida comunitária o outro é escutado, conhecido e deve


ser explorado em suas potencialidades.

Assim, para que essa escuta formativa aconteça na


dimensão comunitária, há uma série de atividades e atitudes que
podem ser mencionadas que favorecem o processo formativo.
Como atividades a realização de encontros formativos,
organização da vida comunitária dividindo responsabilidades,
trabalhos em equipes, avaliações comunitárias, passeios com todo
o grupo, atividades esportivas, a pastoral em duplas e outras. E
como atitudes, que essas atividades possam gerar a capacidade
de integração, relacionamento aberto, aceitação do diferente,
partilha, correção fraterna e tantas outras5. Tudo isso tendo em
vista a formação de comunidades de discípulos de Cristo.

Tomando como base o fato de que a comunidade é o lugar


da escuta e expressão do outro e que essa experiência deve ser
sempre submetida ao trabalho interno de cada um e do grupo,
merecem destaque as dinâmicas de grupo coordenadas pelos
psicólogos. A dinâmica de grupo é um espaço que se interessa
pelos componentes da comunidade e por tudo aquilo que intervém
de algum modo na vida dessa mesma comunidade, que são seus
conteúdos.

Falar e escutar sentimentos e conteúdos comunitários,


como se propõe a dinâmica de grupo, remete a pessoa para se
autoavaliar e perceber-se frente ao grupo. Não se trata de uma
avaliação comunitária de uma pessoa, pois isso leva ao risco da
estigmatização, mas da abordagem acerca da vida comunitária,
espaço revelador do ethos de cada um.

As comunidades são compostas por uma pluralidade de


indivíduos com histórias diversificadas e singulares. A dinâmica
5 Plano de formação Presbiteral do Seminário Arquidiocesano Santo
Antônio – Juiz de Fora/MG.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 29
de grupo se caracteriza como um lugar de escuta porque busca
compreender as relações dentro de um grupo, trabalhando os
sentimentos e conteúdos internos do grupo. A escuta que se dá nesse
espaço leva à consciência da realidade, a livrar de preconceitos, à
abertura, à confiança no outro, ao conhecimento do outro e ao
autoconhecimento. Leva ao crescimento e maturidade humana.

O ambiente comunitário é específico da formação dos


futuros padres, pois se firma em torno de um projeto capaz de dar
condições aos candidatos de lançar um olhar apurado para a escolha
que cada qual fez. Também promove o discernimento vocacional.
É na comunidade que o formando se depara com conflitos que lhe
possibilitarão dar passos significativos e necessários e o tornarão
apto, após um período de formação inicial, para assumir o ministério
ordenado.

O tempo da formação constitui-se como tempo da abertura


ao outro e convivência comunitária. Aprender a viver juntos, a
conviver com os outros. Aprender a ser para o outro. O lugar por
excelência do aprendizado para o convívio são as experiências
comunitárias. Nesse sentido é que a formação propõe a experiência
de vida comunitária, enfatizando a importância da alteridade na
formação.

6 Conclusão

A formação presbiteral sempre foi uma grande preocupação


da Igreja. Formar presbíteros configurados ao Cristo Bom Pastor
para assumirem a vocação de maneira madura e exercerem com
responsabilidade o ministério presbiteral.

O caminho formativo busca assegurar aos candidatos


ao ministério algo que lhes proporcione o alcance que cada qual
necessita para seu crescimento humano. Dessa forma, a dinâmica
da escuta é apresentada como via que possibilita tal crescimento

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


30 A ESCUTA DE DEUS, DE SI MESMO E DO OUTRO NO PROCESSO FORMATIVO PRESBITERAL

qualificador da pessoa para o ministério.

A escuta de Deus, de si mesmo e do outro no processo


formativo visa levar a pessoa ao aprofundamento da própria vida e
vocação através de experiências de escuta que despertem para um
olhar mais profundo.

Frente aos grandes desafios do mundo contemporâneo, a


tarefa de formar as pessoas é desafiadora e complexa. Provocar
e despertar o formando para seu crescimento por meio da escuta
deve constituir um dos principais objetivos da formação.

O presente artigo buscou percorrer um itinerário


contemplando espaços do ambiente formativo compreendidos
a partir da dimensão da escuta. Propôs como reflexão e como
maneira de ajudar numa avaliação do processo formativo, de que
modo essa dimensão tão essencial à formação presbiteral tem sido
uma realidade. Destaca-se como a questão da escuta tem se dado
não somente de forma estrutural enquanto projeto pedagógico,
mas tem de fato tocado existencialmente a cada um que está
inserido no processo.

A formação do presbítero com uma identidade bem definida


está intimamente ligada ao fato de como o formando é sensível à
escuta e à vivência aprofundada de sua formação.

Pe. Eduardo Almeida da Rocha. Presbítero da Arquidiocese de


Juiz de Fora/MG. Formado em Filosofia pelo Instituto Teológico
Arquidiocesano Santo Antônio; bacharel em Teologia pelo referido
Instituto e Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/MG. Concluindo
especialização Lato Sensu para Formadores de Presbíteros Diocesanos
no ISTA – Belo Horizonte.
eduardoalmeidadarocha@ig.com.br

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Pe. Eduardo Almeida da Rocha 31
Referências

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constituições, decretos, declarações. 22. ed. Petrópolis: Vozes,
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TOMASI, Flávio Lorenzo Marchesini. Ouro testado no fogo:


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São Paulo: Paulinas, 2007. 440p.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.9-32, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 33

APRENDENDO CATEQUESE COM O


AUTOR DE HEBREUS
Solange Maria do Carmo

Salta aos olhos o caráter cristológico de Hebreus. Uma


catequese cristológica bem elaborada se delineia nesse escrito
do começo ao fim. Seu autor, com maestria e elegância, traça um
verdadeiro itinerário teológico-catequético, mostrando quem é
Jesus e oferecendo aos seus leitores a oportunidade de abraçar
a salvação que só o Filho, o único e sumo sacerdote (Hb 8,1),
oferece.

Num diálogo franco com a comunidade cristã de origem


judaica, o texto de Hebreus escava as raízes escriturísticas que
alicerçam a fé de seu público e aponta as fragilidades desse
arcabouço teológico, mostrando a caducidade dos tempos antigos
– o outrora de Hb 1,1 – e fazendo a passagem para a definitividade
do hoje inaugurado em Cristo Jesus – também chamado de esses
dias que são os últimos, presente em Hb1,2a.

Desde o começo de seu escrito, o autor deixa clara a sua


intenção: passar da palavra de Deus manifestada aos nossos pais
na história de Israel à Palavra de Deus encarnada no Filho que se
fez homem, “a quem Deus constituiu herdeiro de todas as coisas
e pelo qual criou o universo” (Hb 1,2b). E a glória de Deus antes
experimentada pelos pais e pelos profetas acaba elevada à máxima
potência no Filho, “resplendor da glória do Pai e expressão do seu
ser” (Hb 1,3).

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


34 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

Para mostrar que os grandes símbolos da fé judaica – a


Torá, o Templo e o Sacerdócio Levítico, com seus cultos, sacrifícios
e rituais – são apenas prefiguração cristológica e que, por isso,
cederam lugar a algo mais consistente e definitivo, o autor de
Hebreus faz uma catequese cujas bases se encontram no Antigo
Testamento. Busca a significação mais profunda de alguns ritos e
instituições judaicas, fazendo intensa e original exegese de textos
seletos das Escrituras. A partir desse retorno escriturístico, revela
a caducidade desses símbolos, que se tornam aperfeiçoados
somente em Cristo, o “aperfeiçoado de Deus” (Hb 2,10), cuja “vida
foi levada à perfeição e por isso tornou-se causa de salvação eterna
para todos os que lhe obedecem” (Hb 5,9).

Num contínuo jogo entre o outrora e o hoje, o autor de


Hebreus põe na balança o antigo e o novo. É o característico
método hermenêutico judaico, o derash1, que, nas suas mais
diversas modalidades, interpreta e atualiza as Escrituras Antigas,
considerando-as como tradição viva e iluminadora do momento
atual. Dentro desse modelo, encontra-se o derash prefiguração/
realização, que utiliza regra hermenêutica conhecida como Qal
wa-chomer (literalmente, leve e pesado). Por meio dessa regra
hermenêutica, fica revelada a leveza das antigas instituições, sua
inconsistência e incapacidade de salvar, bem como o peso da
realidade em Cristo, a densidade teológica de sua obra salvífica.

Delineia-se, assim, a catequese cristológica de Hebreus:


“Tal é o sacerdote que temos, que se sentou à direita do trono
da Majestade, nos céus. Ele é o ministro do Santuário e da Tenda
verdadeira, erguida pelo Senhor e não por mão humana”. Passaram
os antigos ritos. Os antigos mediadores – Moisés (cf. Hb 3,1-6),
Josué (cf. Hb 4,1-10), os anjos (cf. Hb 2,5-18), os sacerdotes levitas
(cf. Hb 5,1-10; 7,1-28) cederam lugar ao definitivo sacerdote. A
1 Sobre o derash bíblico, cf. AGUA PEREZ, Augustín del. El método
midrásico y la exégesis del Nuevo Testamento. Valencia: Institución San
Jerónimo, 1985.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 35
Tenda do deserto, sombra ou cópia do Santuário Celeste (cf. Hb
8,1-6), fica obsoleta: o Filho, imagem do Pai, inaugurou a Tenda
definitiva com sua entrada no céu (cf. Hb 9,11-12). Os sacrifícios e
rituais perderam seu vigor, tiveram vencido seu prazo de validade.
Quem tem a imagem verdadeira não precisa mais da sombra. O
Filho ofereceu de uma vez por todas o único e irrepetível sacrifício
de sua vida aperfeiçoada pela obediência ao Pai. O Yom Kippur2
definitivo foi realizado no Céu (cf. Hb 9,24-28).

Alimentada por tal catequese, a comunidade cristã ouvinte


dessa belíssima homilia pascal3 sente-se convidada a não se
contentar com a periferia da fé. Tendo mergulhado no mistério de
Cristo sacerdote eterno, faz a experiência da salvação e compartilha
a dolorosa trajetória de Jesus de Nazaré por meio do martírio (cf.
Hb 10,32-39). Mergulha no núcleo da fé recebida, transmitida
pelos apóstolos, fé que não é confundida com mera emoção ou
religiosidade, nem com a prática de rituais, mas que é entendida
como “certeza daquilo que se espera” (Hb 11,1). A comunidade dos
iluminados pelo batismo penetra na dinâmica da salvação, toma
parte na grande procissão de fiéis que desde muito tempo caminha
sustentada pela fé (cf. Hb 11,4-40): uma “nuvem de testemunhas”
que deixa para trás o que a atrapalha de viver a vida nova em
Cristo (cf. Hb 12,1-3), experimentando o amor fraterno no qual é
chamada a perseverar (cf. Hb 13,1). Uma tarefa árdua e exigente:
uma maratona que exige “correr com perseverança na competição
proposta” (Hb 12,1b), sempre com os olhos fixos naquele que leva a
2 Literalmente, Dia da Expiação. Cf. ANDRADE, Aíla Pinheiro. Sombra
e realidade: um estudo de Hb 10 à luz da “perfeição” de Cristo. Revista Bíblica
Brasileira, Fortaleza, v. 21, n. 4, p.100-104, 2004. Sobre a celebração do Yom
Kippur, cf. AVRIL, Anne-Catherine; DE LA MAISONNEUVE, Dominique. As
festas judaicas. São Paulo: Paulus, 1997. p.123-138.
3 Pensa-se que a conhecida Carta aos Hebreus, originalmente, tenha sido
uma homilia proferida na ocasião da Páscoa. Mais tarde, um redator, acrescentando
os versículos finais (13,22-25), remete-a à comunidade de destino com esse
bilhetinho anexo. Cf. VANHOYE, Albert. La question littérarie de Hébreux
13,1-6. New Testament Studies, n. 23, p.121-139, 1976.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


36 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

fé à perfeição: Cristo Jesus (cf. Hb 12,2a). E o desânimo é combatido


quando a comunidade olha para a caminhada do próprio Jesus,
que enfrentou tamanha oposição dos pecadores (cf. Hb 12,2b). A
quem abraçou a fé resta a perseverança no amor fraterno, marca
registrada dos iluminados em Cristo (cf. Hb 13,1). Nada mais tem
importância; nada mais interessa a não ser esse amor fraternal.
Para que perder tempo com coisas inúteis? Afinal, “não temos
aqui cidade permanente, mas estamos à procura da que há de vir”
(Hb 13,14). Então, “por meio de Jesus, ofereçamos a Deus perene
sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que celebram seu
nome” (Hb 13,15) com uma vida a ele agradável (cf. Hb 13,21b).

Impressiona-nos a habilidade do autor de Hebreus para,


dentro do contexto judaico e a partir de categorias e modelos
próprios do judaísmo, anunciar Jesus Cristo. De forma narrativa,
ele resgata as origens, percorre as experiências fundantes, retoma
e atualiza as Escrituras. Vê em Jesus o cumprimento pleno de
tudo que outrora esperaram os pais da fé. O texto faz progressiva
caminhada: reforça os antigos valores, dando-lhes novo significado;
constrói novos alicerces a partir da vida nova experienciada em
Cristo, o único sacerdote do Pai.

O sacerdócio de Cristo em Hebreus encontra suas bases


na figura de “Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus
Altíssimo” (Hb 6,20). Figura enigmática, sem começo e sem fim,
sem genealogia e sem destino (cf. Hb 7,3), Melquisedec desponta
como aquele a quem Abraão, o pai da fé, entrega seu dízimo como
gratidão a Deus por uma batalha vencida (cf. Gn 14,17-20). Pão e
vinho4 são entregues em louvor nas mãos de Melquisedec, muito

4 O mais antigo sacrifício, chamado Zevah, consistia numa refeição ritual


onde aquele que oferece o sacrifício e o Deus a quem ele é oferecido comem
juntos. Alimentos cotidianos eram usados neste ritual, dentre eles pão e vinho.
Cf. ANDRADE, Aíla Pinheiro. À maneira de Melquisedec: o messias segundo
o judaísmo e os desafios da cristologia no contexto neotestamentário e hoje. Belo
Horizonte: FAJE, 2008. p.167. Tese de doutorado.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 37
antes que se pudesse pensar no sacerdócio levítico. Ora – pensa
o genial autor de Hebreus – se Abraão, o patriarca, entrega seu
dízimo a essa figura desconhecida que o abençoa, certamente
Melquisedec é maior que Abraão (cf. Hb 7,4-8). Além disso, se ele
recebe as ofertas, é sacerdote. Logo, antes mesmo de Levi, há
outro sacerdócio que não o tão conhecido sacerdócio dos levitas:
um sacerdócio instituído não por mãos humanas, mas por Deus (cf.
Hb 7,8-10), eterno e imutável; um sacerdócio cujo sacrifício não
é feito no Templo de Jerusalém, mas no Santuário Celeste (cf. Hb
9,11-14); um sacerdócio que não oferece animais como vítimas,
mas cuja vida vitimada é oferenda perfeita aos olhos do Pai, um
sacerdócio de uma oferenda única e irrepetível: a vida na Cruz do
homem Jesus que agrada a Deus e é por ele glorificada (Hb 7,23-28;
9,24-28).

Os sacerdotes, que eram separados do povo para o serviço


do altar, agora já não têm mais função. O grande Separado – o
Santo de Deus – se misturou entre os homens, se fez um com eles
e igual a eles (cf. Hb 4,15) e ofertou sua vida em sacrifício. O autor
de Hebreus percebe a plenitude das promessas anteriores agora
cumpridas em Cristo Jesus, que elimina de vez toda distância
entre Deus e a humanidade. No homem Jesus, o Filho de Deus, a
mediação definitiva acontece. Não há mais o véu que separava o
lugar Santo do Santo dos Santos (cf. Hb 9,1-10). Ele foi eliminado
a partir do momento em que feito homem, Jesus, por sua morte,
retorna ao Pai. Pela encarnação, a esfera divina e a esfera humana
não se encontram mais distantes: há um ponto de interseção
entre Deus e os homens, construída em Cristo, que faz a mediação
definitiva junto do Pai a nosso favor. Por esse motivo, insistente
convite interpela a todos: “Temos, pois, irmãos, a ousadia de entrar
no Santuário, pelo sangue de Jesus, pelo caminho vivo e novo
que ele inaugurou para nós, passando através da cortina, quer
dizer, através de sua humanidade. Aproximemo-nos, portanto, de
coração sincero e cheio de fé, com o coração purificado de toda má

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


38 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

consciência e o corpo lavado com água pura” (Hb 10,19-22).

Ribomba como trovão o apelo do autor de Hebreus à


comunidade judaica, saudosa doTemplo, dos costumes, da tradição,
dos rituais de outrora. Não há nada mais cristológico nem mais
eficaz. Mesmo em tempos de crise e perseguição, o vigor da boa-
nova anunciada pelos evangelistas não se arrefeceu; o evangelho
anunciado pelos apóstolos não perdeu sua potencialidade; ao
contrário, a Palavra de Deus que se fez carne em Cristo e tem sua
plenitude nele encontra acolhida no coração dos fiéis sedentos de
Deus.

Impressiona-nos a atualidade do texto de Hebreus. Nesses


tempos de Pós-modernidade, a Igreja do Brasil5 e do mundo,
preocupada com a fragilidade da fé dos iluminados pelo batismo,
volta seus olhos para a necessidade de concentrar sua força
evangelizadora na centralidade da fé: Cristo Jesus, Palavra do Pai,
único mediador entre Deus e os homens, cujo sacerdócio, exercido
uma vez por todas, introduziu a humanidade na glória definitiva
de Deus. Homens e mulheres deste novo tempo chamado Pós-
modernidade não conhecem mais esse anúncio, não experimentam
mais a eficácia dessa boa-notícia. O que fazer?

Ecoam por todos os cantos vozes imperiosas que percebem


essa urgência cristológica. Os bispos franceses falam de “voltar
ao coração da fé”6, para passar “da herança à proposição da fé”7.
Conhecedora da realidade da secularização e percebendo que
a Cristandade tornou-se página virada, a Igreja francesa deseja
5 Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL.
Diretório Nacional da Catequese. São Paulo: Paulinas, 2006.
6 COMMISSION ÉPISCOPALE DE LA CATÉCHÈSE DU
CATÉCHUMÉNAT. Aller ao coeur de la foi. Questions d’avenir pour la catéchèse.
Paris: Boyard/cerf/ Fleurus-Mame, 2003.
7 LES ÉVÊQUES DE FRANCE. Proposer la foi dans société actualle:
Lettre aux catholiques de France. Paris: CERF, 1997.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 39
anunciar o Cristo vivo e, sabiamente, os cristãos franceses realçam
o caráter da adesão livre e pessoal da fé. Insistem, pois, na urgência
de recuperar a força transformadora da fé, da boa-nova cristã,
que não perdeu seu vigor, nem caducou: Cristo Jesus está vivo e
continua interpelando ao seguimento.

O Episcopado de Quebec8 fala de ir “do rio à fonte”,


de retornar à fonte, relativizando as doutrinas transmitidas
tradicionalmente para se fazer a experiência de Cristo Jesus, fonte
de toda vida, de “conduzir-se para além das crenças [...], de se
esforçar para revelar a experiência espiritual que nasce da vida,
que surpreende, que faz entrever o essencial, que desperta, que
põe a caminho, que faz viver”. Ventos fortes sopram na direção
de resgatar a experiência pessoal com o Ressuscitado, perdida no
marasmo da vida cristã tradicional.

Os alemães9 falam de “Elementarisierung”10, de uma


concentração no nó cristológico que permite responder às
demandas que interpelam a identidade cristã hoje em dia. Em meio
a tanta preocupação com doutrinas e ritos, com intelectualismos
e moralismos, a Igreja percebe que a fé quase se perdeu no
caminho: foi dissipada como pó ao vento. É preciso agregar de
novo os esforços; concentrar-se no núcleo duro da fé, no seu nó
fundamental: o evento Cristo.

O texto belga11, dando centralidade à mensagem do amor


como coração da mensagem cristã, sugere retomar “a mensagem

8 ASSEMBLÉE DES ÉVÊQUES DU QUÉBEC. Proposer aujourd’hui


la foi aux jeunes, une force pour vivre. Montréal: Fidel, 2000.
9 DIE DEUTSCHEN BISCHOFE. Katechese in veranderter Zeit. Bonn:
Sekretariat der Deutschen Bischofskonferenz, 2004.
10 Que literalmente significa “ato de tornar elementar”.
11 Devenir adulte dans la foi. La catéchèse dans la vie de l’Eglise.
Bruxelles: Licap, 2006.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


40 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

única, o único querigma: Deus, em Cristo, ama até o fim e salva


nosso mundo”, uma notícia tão simples e tão elementar, mas ainda
não divulgada e acolhida pelos próprios cristãos.

Convidando a essa conversão cristológica, a reflexão


catequética atual corrige a tendência unilateral de alguns
movimentos catequéticos pós-conciliares que colocaram o acento
sobre o caráter central da experiência humana na caminhada da
fé, como se fosse possível se chegar à fé unicamente fazendo
uma reflexão mais profunda acerca dos mistérios. Um esforço que
merece reconhecimento e cujos efeitos ainda hoje são sentidos
na catequese. Uma virada copernicana se deu, passando de uma
realidade totalmente teocêntrica para um antropocentrismo
teológico. A renovação catequética trouxe a superação do período
catequístico, que fazia uso dos catecismos e dava importância
à memorização das fórmulas. Na América Latina, então, nem
se fala! Uma leitura criteriosa do evento Vaticano II, motivada
pelas Conferências Episcopais, deu amplo espaço à renovação
catequética, que ganhou vida e tomou corpo no Brasil com o
documento Catequese Renovada da CNBB, em 198312.

Uma revolução catequética começava a despontar: novo


modelo teológico, com vertente mais antropológica, ocupava o
lugar cativo da teologia descendente. A pedagogia do ensino –
entendendo o destinatário da catequese como uma tabula rasa
– abria espaço para a pedagogia da aprendizagem, alicerçada em
Piaget ou no brasileiríssimo pedagogo dos pobres, Paulo Freire.
Uma visão muito otimista da humanidade! Uma catequese que se
propõe a revelar aos catequizandos o que eles têm neles, mesmo
sem o saber, fazendo uma conexão entre fé e vida. Uma pedagogia
muito indutiva: o encontro com Deus realizado a partir da vida,

12 Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL.


Catequese Renovada: orientações e conteúdo. São Paulo: Paulinas, 1983. 139 p.
(Documentos da CNBB, 26)

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 41
da experiência concreta à luz da Palavra da Escritura13. E quanta
conquista se deu: quantos desafios enfrentados com sucesso,
quanta encarnação especialmente na realidade latino-americana
que só podia desembocar em avanços.

Acontece, porém, que a fé não é conclusão lógica de uma


meditação sobre o sentido da existência ou sobre o mistério da
realidade, como disseram com propriedade os bispos da Bélgica.
A fé é adesão a Jesus Cristo e sua proposta do Reino, é amor
incondicional a ele, como ele nos amou. A reflexão acerca da
realidade certamente ajuda a perceber onde está o xis da questão:
o que distancia nossa vida do projeto de Deus para a humanidade,
o Reino anunciado e realizado por Jesus. Mas a vida compreende
tramas muito mais complexas e exigentes que uma transformação
social poderia provocar, mesmo que provocada por motivações
evangélicas.

Diversos outros documentos elaboram a mesma


performance. A lógica do processo de fé inclui necessariamente a
experiência da salvação, realizada em Cristo Jesus, único sacerdote
e mediador. Essa experiência se apresenta como exigência
intrínseca da novidade da fé. E, como consequência, a quem já
experimentou a vida de fé, advém o desejo de compreender e de
aprofundar os mistérios cristãos. A experiência do Nazareno morto
e ressuscitado, que entra no Santuário celeste para fazer o único
e definitivo sacrifício, reclama a inteligência da fé, em função do
mergulho no mistério que ela realiza (mistagogia). O que não
elimina, é claro, a tarefa do ensinamento e da aprendizagem, uma
vez que estes têm dimensão didática. Assim, a catequese prioriza
o conhecimento de Cristo, e não de uma doutrina ou até mesmo da
mensagem cristã14, cuja acolhida não vem pela cognição, mas pela
adesão que passa pela via do coração.

13 Cf. VILLEPELET, Deschristianisation, p. 370.


14 Se essa é entendida como conjunto de ensinamentos evangélicos.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


42 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

O autor de Hebreus parecia vislumbrar os tempos atuais.


Não poucos batizados têm abandonado o mistério no qual foram
inseridos para pertencer a grupos misteriosos. Sedentos de Deus
e sem saber onde o encontrar, cristãos trocam o mistério pelo
misterioso. Risco que os destinatários de Hebreus também corriam,
abandonando a liturgia definitiva realizada em Cristo para voltar à
liturgia judaica, cuja validade já tinha passado e cujo lugar do culto
– o Templo – já tinha até sido destruído.

A homilia destinada aos cristãos de origem hebraica fala


hoje ao coração humano, sedento da experiência da salvação que
só o Filho oferece. Em meio a tantos mediadores apresentados
aos fiéis católicos, urge tecer uma cristologia mais consistente na
catequese. É só abrir alguns manuais de catequese e logo saltará
aos olhos a dispersão da fé. É só participar de uma liturgia católica
e se verá a dificuldade para celebrar o mistério salvífico. É só visitar
um santuário, uma catedral, uma igrejinha qualquer: o altar, qual
carro alegórico, carrega uma multiplicidade de enfeites que não
revelam mais a centralidade de Cristo. Maria, cuja piedade marca os
fiéis católicos, é apresentada como medianeira de todas as graças
e como mediadora dos bens celestiais, em vez de seu Filho que deu
a vida pela humanidade. Os santos, amplamente conhecidos pela
piedade popular católica, ofuscam a centralidade de Cristo, sendo
cultuados por si mesmos e não por Cristo que os santificou. Os
anjos, em meio à mística pós-moderna que revive o ressurgimento
do sagrado e seus representantes, ofuscam o papel do Filho, pois
eles enfrentam a luta contra o mal e protegem o fiel. Devoções cada
vez mais extravagantes acerca dos anjos crescem e se proliferam no
meio católico. E mais: os presbíteros, com seu ministério ordenado,
reclamam para si o sacerdócio, entendendo a mediação litúrgica
como algo que só eles podem realizar, esquecendo-se de que são
apenas partícipes do único sacerdócio real, o de Cristo Jesus.

Não seria demais dizer que a catequese feita pela Carta aos

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Solange Maria do Carmo 43
Hebreus seria oportuna para nossa Igreja. Até seu método (Qal wa-
chomer) continua atual. Ao mostrar a relatividade e a leveza de
todos os signos sagrados dos judeus – respeitando o que o povo já
conhece, já experimenta e já conserva em seu imaginário religioso
–, o autor anuncia a boa-nova: a densidade e o peso da obra de
Cristo, único mediador do Pai.

O texto de Hebreus apresenta-se, portanto, como uma


grande catequese: eficaz, profunda, teológica, espiritual, encarnada.
Conserva três características fundamentais da catequese que
hoje a Igreja procura resgatar: o caráter iniciático, mistagógico e
narrativo da fé.

O caráter iniciático se faz presente pois apresenta Jesus


como o Filho que revela o Pai e, por meio do Espírito, realiza a obra
de salvação definitiva (o querigma). A vida, morte e ressurreição
de Cristo é o nó fundamental dessa bela homilia. Não se parte de
conjecturas, nem de vãs elucubrações. Parte-se da vida concreta
de Cristo, por meio do qual Deus agora fala ao mundo: aquele que
é a Palavra de Deus.

O traço mistagógico, tão relevante, introduz os ouvintes no


mistério da salvação por meio de uma catequese experiencial e cuja
pedagogia ultrapassa o ensino-aprendizagem. Já mergulhados em
Cristo, os iluminados pelo batismo dão passos significativos para sair
da sombra e chegar à luz do conhecimento de Deus. Pouco a pouco,
cada mistério é vivenciado, sentido, percebido. Cada realidade
nova em Cristo é vivida como ação salvífica exclusivamente dele
e não de outro mediador: nem de Moisés, nem de Josué, nem dos
anjos, nem dos sacerdotes... O cristão se vê abarcado pelo mistério
da salvação que o Filho realiza em seu favor.

O tom narrativo da fé se conserva. O autor parte da vida


concreta do homem de Nazaré, aperfeiçoado pela obediência,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


44 APRENDENDO CATEQUESE COM O AUTOR DE HEBREUS

vendo nas Escrituras Antigas a Palavra viva de Deus que ganha


cumprimento no Filho. Passeando pelos relatos, ensinamentos
e rituais antigos, o escritor faz um verdadeiro derash; uma
hermenêutica ampla, aberta, histórica. Tudo o que aconteceu
até aqui é apenas tipo do que se realiza em Cristo. Só nele tudo é
definitivo.

Assim, a catequese de Hebreus é respeitosa (parte da


realidade hebraica de seus ouvintes), sem deixar de ser atrevida
(lança seus interlocutores para além do lugar onde se encontram);
é querigmática (apresenta Jesus de Nazaré como Filho de Deus
vindo ao mundo), sem deixar de ser profunda (apresenta algo que
é teológico, dito como difícil de ser compreendido – cf. Hb 5,11-14).
Um belo modelo de catequese para os dias de hoje.

Solange Maria do Carmo é leiga. Cursou teologia na FAJE e licenciatura


em Filosofia na PUC Minas. É mestre em Teologia Bíblica e faz
doutorado em Catequese, também na FAJE.
solangedocarmo@ig.com.br

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.33-44, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 45

BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE
Pe. Peter Mettler, MSF

1 A problemática do debate atual

A discussão, para não dizer, a briga e polêmica em torno das


afirmações bíblicas sobre a homossexualidade mostram de forma
bem exemplar que a Bíblia é somente na teoria ainda o fundamento
da Igreja.1

Segundo a opinião de muitos exegetas, tais declarações


são de tal forma condicionadas pela sua época que elas devem ser
por isso necessariamente reinterpretadas. Elas não correspondem
mais aos critérios do nosso tempo, como se a nossa época não fosse
condicionada também por determinadas visões e opiniões próprias
dela. Tal reinterpretação despreza em primeiro lugar a tradição
exegética da Igreja. É digno de nota que a maioria dos comentários
exegéticos das últimas décadas, especialmente os da língua inglesa
e alemã, ignora os Padres da Igreja, que finalmente estiveram mais
próximos à Bíblia e indicavam em seus escritos sempre de novo a
pecabilidade da prática homossexual.2 Além disso, é desprezado
1 Cf. Lutz, U. (Og.): Zankapfel Bibel. Eine Bibel, viele Zugänge, 2.
Auflage, Zurique 1993.
2 Cf. para isso Mettler, P.: Die Berufung zum Amt im Konfliktfeld von
Eignung und Neigung. Eine Studie aus pastoraltheologischer und kirchenrechtlicher
Persektive, ob Homosexualität ein objectives Weiheindernis ist (A vocação
para o ministério ordenado no campo conflitante entre aptidão e inclinação
pessoal. Um estudo a partir de uma perspectiva teológico-pastoral e canônica,
se a homossexualidade constitui um impedimento objetivo para ser chamado às
Ordens Sacras). Frankfurt/ Main, Berlin, Berna, Bruxellas, Nova York, Oxford,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


46 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

um princípio padrão da interpretação da Sagrada Escritura,


expressamente acentuado e ensinado pelo Concílio Vaticano II: “O
múnus de interpretar autenticamente a palavra de Deus, escrita ou
transmitida, foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja
cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo” (Constituição
Dogmática Verbum Dei sobre a Revelação Divina, 10).

Por detrás de tais tentativas e tendências surgem questões


que obrigam a uma decisão: Quais são, em caso de conflito, as
fontes de orientação? A autoridade da Bíblia e do Magistério são
ainda reconhecidas como fundamentadas? Tal autoridade ainda
vale, ou instruções bíblicas e do Magistério são desvirtuadas ou
negadas, caso entrem em conflito com tendências dominantes na
Igreja e na sociedade?

2 Premissas para uma interpretação razoável

A interpretação das passagens bíblicas que se referem à


homossexualidade só faz teologicamente sentido quando incluída
na questão qual o sentido da sexualidade humana em si. Levantar
tal questão significa perguntar qual é a natureza do homem e o seu
destino. A resposta deve-se orientar na palavra de Deus, na fé e
na tradição da Igreja, como nas declarações do magistério. Caso
isso não aconteça, a exegese dessas passagens bíblicas carece de
fundamento, pois a sua interpretação somente poderá resultar
naquilo que já se havia antes lido e levado para dentro delas,
segundo as decisões próprias. Assim a exegese se torna eisegese.

Criado segundo a imagem e semelhança de Deus, o homem


tem na criação uma posição particular: “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”
(Gn 1,27). Desde o início, aquela imagem de Deus foi criada na sua
Viena 2008, p.191s; Hogan, L.: Homosexualität im Alten und Neuen Testament,
em: Laun, A. (Ed.): Homosexualität aus katholischer Sicht, Eichstätt 2001, p.151-
160, 151.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 47
diversidade dupla. Os dois têm em comum seu ser como imagem de
Deus bem como o mandato de fertilidade e dominação (Gn 1,28),
sua inalienável dignidade como pessoa. Enquanto a narração da
criação segundo a tradição sacerdotal expressa principalmente tal
comunhão, a narração da criação segundo o jahwista complementa,
enfatizando mais a diversidade de homem e mulher, bem como sua
complementação recíproca. O homem “adam” apenas se reconhece
como homem (“isch”) quando aparece a mulher (“ischa”) como
a “outra”, sua companheira. Dependendo um do outro, para ser
homem e ser mulher, os dois têm necessidade de complementação
pelo sexo oposto, correspondem nesta complementação ao
destino do ser humano e são justamente também nesta união e
reciprocidade amorosa imagem de Deus.

Os relatos da criação na Bíblia afirmam a sexualidade


humana como sendo dada desde o início, como característica
querida por Deus para o homem. Deus não criou o homem como
um espírito assexuado, mas como homem e mulher. Ser homem
e ser mulher é aos olhos de Deus “muito bom” (Gn 1,31). Ambas
as narrações da criação são livres de uma negação do corpo e
da sexualidade nem permitem a imaginação de um ser humano
original andrógino, um ser híbrido e hermafrodito macho-fêmeo,
uma imaginação muito em voga hoje em dia, mais uma vez.3

Pelo pecado do início, descrito em Gn 3, surge uma


perturbação das relações originais fundamentadas na criação,
tendo como efeito uma subversão da ordem. Como a relação
entre Deus e homem, do homem consigo mesmo e com a criação
a ele confiada, ficou também o relacionamento entre homem

3 Cf. Ammon, G.: Der mehrdimensionale Mensch. Zur ganzheitlichen


Schau von Mensch und Wissenschaft, Munique 1986, 35. Lutz, R.: Sanfte
Alternativen (ÖKO-LOG-Buch 1), Weinheim, Basel 1981. S. Colegrave, S.: Yin
und Yang. Die Kräfte des Weiblichen und des Männlichen, Frankfurt/Main 1986.
C. Schorsch, C.: Die New Age-Bewegung. Utopie und Mythos der Neuen Zeit,
Gütersloh 1988.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


48 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

e mulher, a original “communio personarum”4, sensivelmente


atingido, chegando a sair do seu equilíbrio. O homem, jogado num
desequilíbrio desarmônico de suas forças, não é mais dono de suas
inclinações e seus impulsos, de forma que poderão se transformar
em fonte de autodestruição e de destruição pelo outro e para o
outro.

O indicado em Gn 1-3 tem um significado fundamental e não


pode ser perdido de vista na interpretação das passagens do Antigo
e do Novo Testamento, que se referem à homossexualidade.

3 A homossexualidade no Antigo Testamento

No tocante aos relatos de Sodoma e Gomorra (Gn 19,1-


25), é afirmado nos comentários das últimas décadas em escala
crescente que o pecado dos sodomitas foi principalmente, se
não exclusivamente, a violação da hospitalidade.5 A componente
homossexual em si é desprezada ou negada.6 A palavra empregada
nas duas narrações “jadah” devia ser compreendida sem

4 Cf.. Carta Apostólica Mulieris Dignitatem do Sumo Pontífice João Paulo


II sobre a Dignidade e a Vocação da Mulher por ocasião do Ano Mariano, 9.
5 “E, com certeza, o episódio aponta mais diretamente ainda para a violoção
da hospitalidade: rejeitar o estrangeiro, eis a verdadeira maldade”. Moser, A. O
Enigma da Esfinge. A sexualidade. Petrópolis: Vozes, 2001, p.239. Esta é também
a opinião de McNeill, J. J.: The Church and the Homosexual, New York 1976.
“La interpretación del pecado de Sodoma en clave de homosexualidad carece de
fundamento bíblico. Se trata de um pecado contra la hospidalidad...” Awi Mello,
A.: Qué dice la Biblia sobre la homosexualidad?, em: Teologia y vida 42 (2001)
p.377-398, 394.
Segundo J. A. Llinares trata-se de uma interpretação “justa y equilibrada”. Cf.
Llinares, J.: A. La Iglesia y el homosexual según John J. McNeill, em: Ciencia
Tomista 351 (1980) p.161-203, 174.
6 “Qui appare chiaro che il loro peccato non consiste specificamente
nella pratica dell’omosessualità, ma nella violenza, nella volontà di dominare e
di umiliare.” Chiavacci, E.: Omosessualità e morale cristiana: cercare ancora, em:
Vivens homo 11 (2000) p.423-457, 432.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 49
qualquer conotação sexual, apenas no sentido de “conhecer”.7
Como somente os autores Josephus e Philo, bem como o Novo
Testamento, designaram mais tarde “o pecado de Sodoma”
como “sensualidade imoral e desnaturada”, a condenação da
homossexualidade na tradição cristã apoia-se numa interpretação
errada dos acontecimentos de Sodoma e Gomorra.8

Contra tal explicação da exegese “revisionista”9 fala


em primeiro lugar o fato de que Ló queria entregar suas filhas
virgens aos moradores de Sodoma no lugar dos seus hóspedes.
Isso indica claramente que as pretensões dos sodomitas eram de
natureza sexual. A narração descreve, além disso, as filhas de Ló
como meninas “que ainda não haviam conhecido homem algum”.
Neste contexto a palavra “jadah” é usada nitidamente com o
significado de “relação sexual”. É de supor que também a exigência
a Ló, de entregar os seus hóspedes para “conhecê-los”, tem como
fundamento o mesmo significado. E por que Ló teve medo dos
sodomitas, quando estes apenas queriam ”conhecer” os seus
hóspedes? E por que ele devia pedir a não lhes fazer mal nenhum,
se as pretensões eram somente pacíficas?

Sodoma e Gomorra têm-se tornado proverbial, sendo um


símbolo para o pecado em si. Embora existam em textos proféticos
do Antigo Testamento (como em Is 1,9s; 3,9; Ez 16,49ss), ainda
outras descrições do pecado de Sodoma, não sendo mencionada
explicitamente a homossexualidade, tais passagens não podem

7 Cf. Ide, A. F.: The City of Sodom and Homosexuality in Western


Religious Thought to 630 C. E, Dallas 1985, p. 39ff.
8 Cf. Bailey, D. S.: Homosexuality and the Western Christian
Tradition, Nova York 1974, 155f. J. Hartmann afirma simplesmente que a
tradição “invirtió el crimen cometido por violadores heterosexuales en crimen de
homosexuales.” Hartmann, J.: Inversión e invertidos. Observaciones exegéticas
sobre Homosexualidad y Biblia, em: Xilotl 11 (1993) p.99-115, 105.
9 Desecar, A.: Die Bibel und die Homosexualität. Kritik der
revisionistischen Exegese, Augsburg 2002.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


50 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

ser empregadas para corrigir Gn 19 no sentido de excluir a


homossexualidade como delito moral.10 O Novo Testamento
descreve o juízo sobre Sodoma e Gomorra como paradigma da ira
divina contra aqueles que haviam vivido “impiamente” (2 Pd 2,6),
bem contra os tais que “haviam se entregado à prostituição, seguindo
após outra carne” (Jd 7).11 A opinião segundo a qual a identificação
dos pecados de Sodoma com a prática da homossexualidade
não estaria fundamentada biblicamente, porém, deveria ser
considerada como acréscimo posterior histórico-tradicional, não é
sustentável. Gn 19 tem, ao contrário, um significado exemplar para
o julgamento da homossexualidade no Antigo Testamento.12

Em forma de proibição bem clara e dura o livro Levítico fala


em dois lugares (18,22 e 20,13) da homossexualidade: dormir com
um homem como se dorme com uma mulher é uma “abominação”.
A. Moser comenta: “Por um lado, não se pode deixar de perceber
que o espaço dedicado à questão é bem reduzido: são apenas duas
passagens entre inúmeras leis, inclusive versando sobre outros
pecados sexuais. Entretanto, por outro lado, não se pode deixar de
perceber a dureza destas duas passagens. Elas são simplesmente
categóricas: deitar-se com homem como se fosse com mulher é
uma ‘abominação’.”13

A interpretação histórico-religiosa, segundo tal proibição,


se aplica apenas à prostituição cultual, que era conhecida e
praticada em Canaã, e podia ser tanto hétero como homossexual.
10 Strecker, G.: Homosexualität in biblischer Sicht, in: Kerygma und
Dogma 28 (1982) p.127-141; Veeser, W.: Homosexuelles Verhalten und biblische
Normen, em: Dieterich M. (Ed): Homosexualität und Seelsorge, Stuttgart 1996,
p.93-124.
11 Cf. Bahnsen, G.L.: Homosexuality: A Biblical View, Grand Rapids
1986, p.35; Hartfeld, H.: Homosexualität im Kontext von Bibel, Theologie und
Seelsorge, Wuppertal, Zurique 1991, p.70.
12 Cf. Strecker, Homosexualität, p.128.
13 MOSER, 2001, p.239s.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 51
Ela qualifica esta proibição apenas como norma de purificação
cultual, e de forma nenhuma como obrigação ética geral.14 Mas
isso se baseia em “pés de barro”, por omitir ou desconhecer fatos
bem importantes. Uma proibição de prostituição cultual nem faria
mais sentido na época depois do exílio, pois os templos de Canaã
nem existiam mais.15 Além disso, é um raciocínio muito difícil a ser
acompanhado de que justamente a prostituição homossexual teria
algo a ver com cultos de fertilidade.16 A Lei da Santidade, na qual
as duas proibições estão embasadas, é lei divina, e não poderia ser
ultrapassada pelo povo de Israel sem provocar a destruição própria.
Trata-se de ordens que promovem e sustentam a vida: “Observai
as minhas leis e os meus costumes: é pondo-os em prática que o
homem tem a vida. Eu sou o Senhor.” (Lv, 18,5). A homossexualidade
praticada fere a ordem dada e instituída por Deus na criação, que
serve ao homem para a vida. Além disso, chama a atenção que
na versão grega do Antigo Testamento (desde a tradução verbal
até a paráfrase livre) no contexto do helenismo, uma cultura do
nudismo, dentro da qual elementos homossexuais faziam parte de
sua identidade cultural, tal proibição da homossexualidade não foi
amenizada de forma alguma.17

A proibição da homossexualidade no Antigo Testamento,


que resume a ordem da criação na forma de lei, não é relativada
na história do judaísmo. Não sendo possível explicá-la com base
em situações específicas do tempo ou da religião, ela faz parte
14 Cf. Schoeps, H.J.: Überlegungen zum Problem der Homosexualität, em:
Idem (Og.): Der homosexuelle Nächste. Ein Symposium, Hamburgo 1963, p.74-
114; Jordan, M.D.: The Invention of Sodomy in Christian Theology, Chicago,
Londres 1997.
15 Desecar, Homosexualität, p. 9; Strecker, Homosexualität, p. 130.
16 Haacker, K.: Exegetische Schwerpunkte zum Thema Homosexualität,
em: Theologische Beiträge 25 (1994) p.173-180, 176.
17 Cf. De Young, J.B.: The contribution of the Septuagint to biblical
sanctions against homosexuality, em: Journal of the Evangelical Theological
Society 34 (1991) p.157-177.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


52 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

das ordenações do Antigo Testamento, constitutivas para a


autocompreensão do judaísmo vétero- e pós-testamentário.18

Existem tentativas crescentes de interpretar relatos bíblicos


referentes a relações de amizade entre dois homens como sendo
relações homossexuais, por exemplo, Davi e Jônatas.19 Mas uma
investigação sóbria não permite tal interpretação.20 Na descrição
18 Cf. Strecker, Homosexualität, p.132.
Awi Mello pergunta se, no caso da aversão do povo judeu contra da
homossexualidade masculina, “se trata de um simple prejuicio cultural, como lo
quiere ver McNeill, o de una sana intuición teólogica, con verdadera trascendencia
ética?... es una simple reacción emotiva culturalmente determinada? Creo que no.
Hay aquí una intuición fundamental confirmada por la antropología comparada,
que comprueba que muchos pueblos y razas lo sienten así, aunque no siempre con
el mismo grado de intensidad.” Awi Mello, Homosexualidad, p.385s.
Llinares dá apoio a Mello: “Así McNeill da a veces la impresión de que los árboles
no le permiten ver el bosque. Tras sus finos y minuciosos análisis histórico-
culturales, tiende a olvidar algunos datos fundamentales de la experiencia humana
universal”. Llinares, Iglesia, p.177.
Resumindo Awi Mello continua: “... no negamos que el rechazo del Levítico esté
motivado por lo cultual, pero este rechazo se ve agravado por un sumo grado de
degradación que son las prácticas homosexuales. Creo que en estas proibiciones
hay también um juicio ético negativo a tales prácticas. Además, con Llinares creo
interesante afirmar que: “En cuanto cristianos, herederos de la tradición bíblica,
pensamos que el diálogo habitual con el verdadero Dios había dado a aquel pueblo
una sabiduría moral de la que los gentiles carecían” Awi Mello, Homosexualidad,
p.386.
19 Cf. Schroer, S. / Staubli, T.: Saul, David und Jonathan - eine
Dreiecksgeschichte? Ein Beitrag zum Thema ‚Homosexualität im Ersten
Testament’, em: Biblischer Kommentar, Altes Testament 51 (1996) 15-22, 15.
20 “Resulta ... problemático tomar a sério a interpretação de alguns
homossexuais que querem encontrar na Bíblia verdadeiramente as bases para
legitimar a sua situação.” ZUCCARO, C. Moral sexual. Novo Manual de Teologia
Moral. São Paulo: Ave – Maria, 2004, p.89.
„L’interpretazione dell’amicizia fra David e Gionata como omosessualità approvata
è infondata nel testo, e del tutto fantasiosa.“ Chiavacci, E.: Omosessualità e morale
cristiana: cercare ancora, em: Vivens homo 11 (2000) p. 423-457, 434.
Cf. também Parker, S. B.: The Hebrew Bible and Homosexuality, em: Quarterly
Review 11 (1991) p. 4-19, 10f; Dietrich, W.: Die frühe Königszeit in Israel. 10.
Jahrhundert v. Chr. (Biblische Enzyklopädie 3), Stuttgart 1993, p. 291f; Zehnder,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 53
da relação entre Davi e Jônatas é empregada a palavra amor
(“ahaba”), e justamente não o termo para uma relação sexual
(“jadah”). Finalmente proíbe a posição nítida do Antigo Testamento
frente à prática homossexual cada interpretação da relação entre
Davi e Jônatas como homossexual. É impossível querer fazer de
JHWH testemunha e garante de um pacto se este tivesse como
fundamento uma relação sexual para a qual falta qualquer prova
positiva dentro da religião de JHWH, mas cuja rejeição é, no
entanto, manifesta e simplesmente categórica.

4 A homossexualidade no Novo Testamento

Para a exegese “revisionista”, Rm 1,26s é o “text of horror”.21


Estes versículos fazem parte do trecho 1,18–3,20, na qual São Paulo
fala da pecabilidade universal do homem e da necessidade de
justificação por meio da justiça divina, revelada no Evangelho. Rm
1,18-32 consiste em uma condenação tríplice de pecados, tendo
cada subdivisão como introdução: “Deus os entregou...” A primeira
subunidade, 1,24s, se refere à idolatria em geral; a segunda (1,26s)
descreve um vício de caráter sexual, e a terceira (1,28-32) é composta
de uma lista de vícios, que têm efeitos destrutivos para as relações
humanas. Fica evidente um nexo interno de três coisas: a idolatria
como mentira referente à relação como o criador; a imoralidade
sexual – especialmente a homossexualidade – como mentira
referente ao próprio ser; e o assassinato como mentira referente
ao outro.22 Paulo destaca a homossexualidade por procurar uma
imagem palpável para a recusa fundamental, com que o homem

M.: Exegetische Beobachtungen zu den David-Jonathan-Geschichten, em: Biblica


79 (1998) p. 153-179. Estes autores vêem na relação entre Davi e Jonatas somente
uma amizade profunda e, de forma nenhuma, uma relação homossexual.
21 Cf. Desecar, Homosexualität, p. 11.
22 Cf. Novak, D.: Before Revelation: The Rabbi´s, Paul and Karl Barth,
em: Journal of Religion 71 (1991) p.50-66, 62.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


54 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

rejeita o domínio de Deus Criador.23 Em outras palavras: A primeira


prova que os homens adoram outra coisa do que o Deus verdadeiro
consiste no fato de que eles desistem do seu próprio ser humano.
A prática homossexual é contra a natureza (“para physin”) por ser
uma rebelião, uma coisa (em sentido verbal) “retorcida”, no sentido
de inverter e alterar a criação, sendo por isso uma rebelião contra a
ordem estabelecida pelo criador. Mesmo não citando verbalmente
as narrativas da criação em Gênesis, Paulo as tinha diante dos seus
olhos como imagem de orientação para a natureza humana.24
Para ele, a homossexualidade consiste numa perturbação de
relacionamento, a saber, daquele com Deus, que abrange todas
as demais relações manifestando-se assim como perturbação do
relacionamento entre os sexos.25

Depois da pergunta inicial: “ou vocês não estão sabendo...?”,


pela qual São Paulo lembra o ensino elementar na fé cristã, segue
em 1 Cor 6,9-11 um “catálogo de vícios”.26 Nele ele determina
com dez dicas características a divisa que marca o ingresso e
a pertença ao reino de Deus. Os itens do catálogo resultam do
direito divino com seu valor absoluto e se fundamentam nas

23 “... Paul´s choice of homosexuality as an illustration of human depravity


is not merely random: it serves his rhetorical purposes by providing a vivid image
of humanity´s primal rejection of the sovereignty of God the creator.” Hays, R. B.:
Relations natural and unnatural: A response to John Boswell’s exegesis of romans
1, em: Journal of Religious Ethics 14 (1986) p.184-215, 191.
24 Cf. Springett, R. M.: Homosexuality in History and the Scriptures.
Some Historical and Biblical Perspectives on Homosexuality, Washington 1988,
52ff; Huggins, K. W.: An Investigation of the Jewish Theology of Sexuality
Influencing the References to Homosexuality in Romans 1:18-32. Dissertation am
Southwestern Baptist Theological Seminary, o.O. 1986, p.200-244.
25 Cf. Wolff, Anthropologie dês Alten Testaments, Munique 1984, p.258;
Friedrich, G.: Sexualität und Ehe, Stuttgart 1977, p.53s.
26 Cf. Klauck, H.: 1. Korintherbrief (NEB), Würzburg 1984, p.46s.;
Schrage, W.: Der erste Brief an die Korinther (EKK), Zurique, Neukirchen-
Vluyn 1991, p.426s.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 55
exigências de Deus no Antigo Testamento.27 São enumerados
principalmente pecados sexuais: o texto grego utiliza os termos
“pornoi”/“libertinos”28, “malakoi”/“homossexuais passivos”29 e
“arsenokoitai”/“homossexuais ativos”.30 A conduta sexual segundo
a norma encontra aqui a sua contrapartida. Paulo condenou
práticas homossexuais em si, a saber, francamente e sem qualquer
distinção.31

5 Conclusões

Todas as tentativas de atenuar a proibição da


homossexualidade dentro de uma perspectiva teológico-bíblica, ou
até de negá-la, não se baseiam num fundamento bíblico. Segundo
o testemunho da Bíblia inteira, a prática homossexual é contrária à
criação. Ela contradiz a ordem que Deus determinou e fixou como
lei; neste sentido toda a tradição judaica e cristã compreendeu
os textos bíblicos correspondentes. A Igreja não pode abandonar
a distinção entre a norma e a atitude dela divergente. Aqui existe

27 Cf. Lang, F.: Die Briefe an die Korinther, Göttingen, Zurique 1986,
p.79.
28 O termo porneia “abrange todo o campo das relações sexuais proibidas.”
Tiedemann, H.: Die Erfahrung des Fleisches. Paulus und die Last der Lust, Stuttgart
1998, p.194.
29 Cf. Bailey, D.S.: Homosexuality and the western christian tradition,
Nova York 1974, p.38.
Esta interpretação se pode apoiar em outros documentos da época. Cf. Brooten,
J.P.: Love between women. Early chrsitian responses to female homoeroticism,
Chicago 1995; Scroggs, R.: The New Testament and Homosexuality. Contextual
background for contempory debate, Philadelphia 1983, p. 63; Springett, R.M.:
Homosexuality in history and the scripters. Some historical and biblical
perspectives on homosexuality, Washington 1988, p.134.
30 Cf. Wright, D. F.: Homosexual or Prostitutes? The Meaning of
ARSENOKOITAI (1 Cor 6:9; 1 Tim 1:10), em: Vigiliae Christianae 38 (1984)
p. 125-153: Idem: Translating arsenokoitai (1 Cor 6:9; 1 Tim 1:10), em: Vigiliae
Christianae 41 (1987) p.393-398.
31 Cf. Sanders, E.P.: Paulus, Göttingen 1985, p.147.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


56 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

para a Igreja o limite. Quem quer obrigá-la a alterar sua doutrina


nesta questão deve saber que está promovendo a sua divisão. A
situação na qual se encontram a Igreja Anglicana e a Igreja Luterana
demonstra e comprova isso com toda a clareza.32

Quem exige reconhecer a homossexualidade como variante


da criação, equivalente à da heterossexualidade, visa de fato uma
outra imagem do homem, divergente da mensagem bíblica.33
Tais exigências atingem o coração da criação, e se dirigem, quer
voluntária, quer involuntariamente, contra o Criador mesmo.
O homem se revolta contra sua própria natureza, reinventa a si
mesmo e combate seu Criador, cuja imagem ele não quer mais ser,
mas o seu próprio criador e senhor. Por isso pode-se falar com razão
de uma “anti-gênesis”, de um “anti-projeto” contra a “gramática
da vida” idealizada e querida por Deus.34

Um exemplo eloquente para isso é um livro do jesuíta James


Empereur, que foi publicado recentemente também no Brasil.35
Ele começa e conclui seu livro afirmando que a homossexualidade
é um dos dons mais significativos de Deus para a humanidade.36
32 Cf. Mettler, Amt, p.124s.
33 “pode-se afirmar que na Bíblia aparece a orientação heterossexual da
pessoa como único destino da sexualidade de acordo com o plano de Deus.”
BONNIN, E. Ética Matrimonial, Familiar e Sexual. São Paulo: Ave – Maria,
2003, p.287s.
34 Cf. Via Sacra 2006, disponível em: <www.kath.net/detail.php?id=13380>.
Acesso em: 01 set. 2010.
“A afirmação pela qual em si a tendência de tipo homossexual e ainda mais o
comportamento homossexual são objetivamente uma desarmonia e uma desordem
não deveria ter necessidade de muitas provas: não é somente a finalidade procriadora
da sexualidade que é anulada; é todo o significado da complementariedade homem-
mulher que é negado.“Screggia, E.: Manuale de bioética, 2, Aspitti medico-
sociali, Milão 1991, p.142.
35 Empereur, J.L.: Direcão espiritual e homossexualidade. São Paulo,
2006.
36 Ibidem, p.1 e 222.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Pe. Peter Mettler, MSF 57
“Ser gay ou lésbica é ter recebido uma bênção especial de Deus.
Todos os humanos recebem suas graças especiais do Criador, mas
Ele escolheu que alguns fossem gays e lésbicas como maneira de
revelar algo a respeito de Sua identidade que os heterossexuais não
revelam.”37 O autor faz expressamente suas as afirmações de John
McNeill: “É minha crença que a presença da comunidade lésbica e
gay na comunidade humana é essencial para o desenvolvimento
humano. Os gays são o óleo que mantém funcionando suavemente
a máquina toda. Isso é tão verdadeiro que se, de alguma maneira,
repentinamente não houvesse pessoas gays, a comunidade
humana estaria em sério perigo.”38

No seu discurso tradicional de Natal, dirigido aos membros


da Cúria Romana e do governo da Cidade de Vaticano, aos 22
de dezembro de 2008, o Papa Bento XVI tocou também no
assunto aqui tratado, pronunciando-se com uma clareza digna de
agradecimento:

O homem quer fazer-se por sua conta e decidir sempre e


exclusivamente sozinho sobre o que lhe afeta. Mas, deste
modo, vive contra a verdade, vive contra o Espírito Criador.
Os bosques tropicais merecem, certamente, nossa proteção,
mas não menos a merece o homem como criatura, no qual
está inscrita uma mensagem que não contradiz a nossa
liberdade, mas que é a sua condição.39

Por isso, a Igreja tem que defender não somente a terra, a


água, o ar, como dons da criação que pertencem a todos, mas tem
que proteger o homem contra sua própria destruição.

37 Ibidem, p.1.
38 NcNeill, J.: Freedom, Glorious Freddom, Boston 1995, p.81.
39 BENTO XVI, Papa: Balanço de 2008 com Jornada de Sydney como
Eixo. Disponível em: <www.zenit.org/article-20422?!=portuguese>. Acesso em:
01 set. 2010.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


58 BÍBLIA E HOMOSSEXUALIDADE

É necessário que haja algo como uma ecologia do homem,


entendida no sentido justo. Quando a Igreja fala da natureza
humana como homem e mulher e pede que se respeite
esta ordem da criação, não está expondo uma metafísica
superada. Aqui se trata, de fato, da fé no Criador e da escuta
da linguagem da criação, cujo desprezo significaria uma
autodestruição do homem e, portanto, uma destruição da
própria ordem de Deus.40

Pe. Peter Mettler, MSF. Possui doutorado em teologia - Albert-


Ludwigs-Universität Freiburg (2007). Atualmente é Professor do
Instituto Santo Tomás de Aquino, Capelão - Congregação das Irmãs
Servas do Santíssimo Sacramento e colaborador como juiz e auditor
no Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Belo Horizonte. Tem
experiência na área de Teologia, com ênfase Direito Canônico.
mettlerpadre@yahoo.com.br

40 Ibidem.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.45-58, jan./jun. 2010.


Fabiano Campos 59

O JOIO E O TRIGO NAS


VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO
Uma análise filosófica das categorias do bem e do mal
na obra Grande Sertão, de Guimarães Rosa
Fabiano Campos

Resumo

Este artigo visa analisar as categorias do bem e do


mal na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
compreendendo-as como realidades distintas, porém contíguas
e complementares entre si, que perpassam a existência humana
em constante construção e mudança, constituindo-se apenas em
referência a ela. Nesse enfoque da obra roseana, faz-se objeção a
concepções que atribuem ao bem e ao mal um caráter ontológico
independente e poderes sobrenaturais com os quais influenciariam
a vida humana em seus múltiplos aspectos. Além disso, põem-se
em questão interpretações fundamentalistas do texto bíblico e
de narrativas míticas, que lançam sobre o feminino o estigma da
origem do mal. Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que a
literatura regionalista de Guimarães Rosa é um instrumento eficaz
no estudo do fenômeno religioso, pois se apresenta como guardiã
e intérprete de memórias e experiências religiosas no contexto
da cultura latino-americana. Mas entende-se que o alcance de
tal obra não se restringe aos limites do sertão, extravasando as
fronteiras do espaço regional e do tempo histórico em que o texto
literário se encontra situado, e abordando a questão do bem e do
mal sob o prisma universal do humano. Pretende-se ressaltar a
importância do diálogo entre literatura e ciências da religião para
a compreensão da problemática do bem e do mal, uma vez que
Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.
60 O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO

os diversos discursos religiosos tentam oferecer explicações acerca


das causas e da distinção entre essas duas realidades.
Palavras-chave: Bem. Mal. Guimarães Rosa.

Introdução

A densidade da experiência humana do bem e do mal é


objeto de interpretação dos mais diversos discursos religiosos.
Além de tentarem oferecer explicações acerca das causas e da
distinção entre o bem e o mal, as religiões, de modos variados,
buscam possibilitar ao homem a experiência do bem, quer seja sob
a forma de um contato com o sagrado, quer seja através de uma
reintegração do homem com o Cosmos, ou mesmo nas espécies de
promessas de paz, prosperidade, harmonia e salvação, suscitando
a esperança numa vida melhor já dada por uma eleição divina ou a
ser conquistada ainda nesta terra, mas cujo desfrute se encontra
reservado para um além futuro e suprasensível. Nesse sentido, as
religiões se erigem em verdadeiras muralhas contra o mal. Quando
não buscam superá-lo ou expurgá-lo das situações humanas, visam
torná-lo tolerável e suportável. Nas palavras de Berger (1997,
p.54), a religião possui uma função de integração das experiências
marginais ou anômicas, de forma que oferece ao indivíduo “uma
sustentação interior para enfrentar a crise do sofrimento e da
morte”. O sentido conferido às experiências-limites através das
teodiceias promove uma espécie de ressignificação da experiência
que o homem tem do mal nas diversas situações da sua existência.
Através da ideia de uma harmonia pré-estabelecida, as teodiceias
impelem à concepção de que o mal em nosso nível pode ser um
bem em um nível superior. O mal seria, nessa concepção, apenas o
resultado da ignorância humana frente a um desígnio divino mais
amplo.

Ora, a linguagem e as experiências religiosas de um


grupo social encontram-se traduzidas nas construções literárias.
Estas, por sua vez, apresentam-se como guardiãs de memórias,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


Fabiano Campos 61
concepções e vivências religiosas de uma determinada cultura, ao
mesmo tempo em que interpretam os aspectos simbólicos, míticos
e estruturais da religião (MAGALHÃES, 2003, p.84-85). Mas ao
passo que preservam e mantêm as representações e a linguagem
religiosas, as obras literárias permitem ou mesmo desencadeiam
um processo de autoconsciência humana. Por meio delas, o homem
é capaz de perceber e reconfigurar os sentidos por ele atribuídos
à realidade, que não raras vezes se fenomenaliza como mistérica
e incompreensível. As construções literárias permitem, pois, a
ressignificação das formas pelas quais uma determinada cultura
estrutura e expressa sua dimensão simbólico-representativa,
descortinando ao homem novos horizontes de compreensão e de
ação.

Desse modo, evidencia-se a importância do diálogo entre


literatura e ciências da religião para a compreensão da problemática
acerca do bem e do mal, uma vez que as interpretações e concepções
religiosas encontram-se refletidas e/ou questionadas nas obras
de caráter literário. Nesse sentido, destaca-se a profundidade da
obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que além de nos
possibilitar a contemplação da religiosidade sertaneja em seus
diversos planos, desafia-nos a romper com uma interpretação
maniqueísta do bem e do mal.

Neste ensaio, pretendemos analisar as categorias do bem


e do mal na supracitada obra roseana, compreendendo-as como
realidades distintas, porém complementares e contíguas entre si,
além de ontologicamente relacionadas ao ser humano concebido
numa perspectiva existencialista. Partimos do pressuposto de
que a literatura de Guimarães Rosa é um instrumento profícuo
para a compreensão da problemática que envolve o bem e o mal,
na medida em que se apresenta como acervo e intérprete de
memórias e experiências religiosas no contexto da cultura latino-
americana. Todavia, compreendemos que o alcance de tal obra
não se restringe aos limites do sertão brasileiro, extravasando as

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


62 O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO

fronteiras do espaço regional e do tempo histórico em que o texto


literário se encontra situado, abordando a questão do bem e do
mal sob o aspecto universal do humano.

Embora cônscios da incapacidade de abranger a


complexidade desta obra, dada a imensidão de seu valor poético-
literário e a capacidade singular de penetrar as questões últimas
da existência humana com uma linguagem ambivalente, que
nunca oferece respostas definitivas, sempre permitindo novas
interpretações, buscamos adentrá-la reflexivamente no intuito de aí
encontrar elementos que favoreçam a revisitação da problemática
acerca do bem e do mal. Acreditamos que tal questão é uma
importante senha de entrada no romance Grande Sertão: Veredas,
uma vez que, como bem salienta Campos (1991, p.332), a epígrafe
que o livro carrega, “O diabo na rua, no meio do redemoinho”, é um
dos grandes temas, se não o principal, dada a importância que lhe
é conferida pelo romancista. Além disso, o problema do bem e do
mal se enquadra no aspecto metafísico-religioso que, segundo o
próprio autor, é preponderante em sua vida e na totalidade de sua
produção literária1. Com efeito, no que concerne a Guimarães Rosa,
a obra não é senão o espelho da vida. Ele mesmo se compreende
como alguém que “se sente no infinito como se estivesse em
casa”, que se lança à existência como se mergulhasse num “mar
de sabedoria”, semelhante a um crocodilo que mora no rio como
se vivesse num oceano (COUTINHO, 1983, p.72-73). Essa essência
1 Numa troca de correspondência com seu tradutor italiano, Guimarães
Rosa (1981, p.50) assim se expressa: “Sou profundamente, essencialmente
religioso, ainda que fora do rótulo estrito e das fileiras de qualquer confissão ou
seita; antes talvez, como o Riobaldo do ‘Grande Sertão: Veredas’, pertenço eu
a todas. E especulativo demais. Daí todas as minhas, constantes, preocupações
religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. [...] como eu, os meus livros,
em essência são ‘antiintelectuais’ – defendem o altíssimo primado da intuição, da
revelação, da inspiração, sobre o bruxulear presunçoso da inteligência reflexiva,
da razão, a megera cartesiana. [...] Por isto mesmo, como apreço de essência e
acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1
ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4
pontos”.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


Fabiano Campos 63
metafísico-religiosa do autor se expressa, portanto, em sua vida
pessoal, desenhando-se numa busca de transcendência, e se
estende à atividade profissional, onde se observa a conversão das
concepções religiosas em processos narrativos (SPERBER, 1976,
p.20). Vivido que se cristaliza em palavras, torna-se literatura;
narrativa que deságua em vivências, faz-se existência...

1 O ser-tão humano: terra donde brota bem e mal

Em Grande Sertão: Veredas, o problema das relações entre


o bem e o mal é analisado no interior do sertão, aqui entendido
não apenas como espaço regional, geográfica e historicamente
delimitado – isto é, o sertão brasileiro nos tempos da República
Velha (1889-1930) –, mas principalmente como a dimensão
universal do ser-tão-humano, tal como compreende Riobaldo ao
dizer que “Sertão é o sozinho... Sertão é dentro da gente” (ROSA,
1974, p.235). No interior de cada indivíduo habita um modo de
ser humano. O ser-tão-humano é isto: o desértico ser-si-mesmo.
Paradoxalmente, a alteridade e a singularidade dos modos de ser
é que tornam o humano uma categoria universal, de tal modo
que não é possível a ele recalcitrar ou dele fugir. Afinal, “sertão é
isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodar
o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera...” (ROSA,
1974, p.218).

E é essa imprevisibilidade da natureza humana que


impossibilita encontrar uma identidade cristalizada no interior
do ser-tão em constante movimento: “Sertão, – se diz – o senhor
querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando
a gente não espera, o sertão vem.” (ROSA, 1974, p.289). O si-mesmo
não repousa na identidade e na permanência, mas flui como um rio
caudaloso. Travessia, tal é o nome dado ao modo de ser humano,
que não é fixo nem retilíneo, mas instável e vagabundo – no sentido
literal de errante, sem moradia fixa, porém sempre a caminho –
cambiante e escorregadio por demais para se apreender numa

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64 O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO

forma fixa: “O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num


rumo sem termo, amanhecendo cada manhã um pouco diferente,
sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda
firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão
tonteia“ (ROSA, 1974, p.239).

O grande sertão, “onde tudo é e não é”, metaforiza,


portanto, a condição existencial do homem, lançado à existência
ainda não acabada, mas a construir. Perene construção que
constitui a beleza do existir, porque exprime a liberdade à qual o
homem se encontra condenado, sempre oscilando entre o bem e
o mal, “afinando-se ou desafinando-se”: Verdade maior, ensinada
pela vida: “[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que
as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam” (ROSA,
1974, p.20-21). Mas a vontade do homem sempre se esbarra com a
contingência da vida. As escolhas e decisões quase nunca nascem
apenas da deliberação, muito menos arvoram certezas. “Travessia
perigosa é a da vida” (ROSA, 1974, p.410), na qual a todo momento
temos de lidar com o acaso, com o que escapa aos nossos domínios
e previsões. Quando o inesperado irrompe, urgindo decisões
humanas, as certezas estremecem.

O “sertão feito homem” é Riobaldo2, que, como o nome já


indica, é aquele que atravessa ou baldeia o fluxo irregular da vida
simbolizado pelo rio. Trata-se de um personagem que representa
esse modo de ser pendular entre o bem e o mal, que constitui o
“homem humano”. Simboliza o homo viator, que peregrina as
estradas exteriores do norte de Minas, sul da Bahia e uma parte
de Goiás, ao passo que percorre as terras desconhecidas do seu
próprio interior, lá onde se encontra o céu, o inferno e o purgatório
(ARAÚJO, 1996, p.21-22).

2 Assim se expressa Guimarães Rosa, numa entrevista com o jornalista


alemão Gunther Lorenz (1991, p.95), referindo-se ao protagonista de Grande
Sertão: Veredas.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


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Em si, “o sertão não é malino nem caridoso” (ROSA, 1974,
p.394), como explica o velho homem no episódio dos Catrumanos.
Mas é no humano que bem e mal se enraízam, adquirindo força
existencial, pois “só é possível o que em homem se vê, o que por
homem passa” (ROSA, 1974, p.139). Com efeito, no nível das
representações, o bem e o mal foram angariando autonomia
ontológica. Personificados nas figuras dos anjos e dos demônios,
de deus e do diabo, o bem e o mal passaram a ser concebidos
como entidades espirituais, como vontades conscientes capazes
de intervir ou mesmo governar o destino do homem. No Brasil, a
ideia cristã do diabo enquanto personificação do mal foi inserida
pela cultura europeia e sofreu influência de culturas pagãs, como
a indígena e a negra. O sertanejo, por meio de estórias narradas
oralmente, contribuiu significativamente para a difusão dessa
imagem plástica do espírito maligno, em que superstição e tradição
filosófico-religiosa cristã se encontram emaranhadas (DURÃES,
p.254-255).

Mas no Grande Sertão bem e mal não são realidades ou


forças exógenas e independentes do homem. Ao contrário, só
existem na medida em que correm nas veias antropológicas,
enquanto brotam do ser-tão-humano ou a ele estão relacionados.

Sob a forma de insistentes indagações, a dúvida sobre a


existência do diabo permeia o relato de Riobaldo até o fim. São
questionamentos que promovem uma desmitologização do
mal, isto é, descontroem a ideia do mal enquanto ente espiritual
constituído de autonomia ontológica. O diabo, tal como explica
o sertanejo, vigora nas profundezas ásperas do ser, é o ‘homem
arruinado’ ou o ‘homem dos avessos’, isto é, não o desumano, ou o
não-humano, mas é o humano às avessas, invertido, “escurecido”3.

3 “E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe?


(...) Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou
é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não
tem diabo nenhum. Nenhum!” (ROSA, 1974, p.11).

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Ora, se o diabo é o ‘homem arruinado’ ou o homem dos avessos’,


o que existe afinal é “homem humano”4. O mal, na figura do demo,
é ilusão. Contudo, é realidade enquanto traição do melhor de que
o homem é capaz de realizar, isto é, na medida em que manifesta
a debilidade alojada na natureza humana sujeita à queda, à
falha e à inexistência (ARAÚJO, 1996, p.27). Noutros termos, o
demônio é a personificação imaginária da malignidade que habita
o humano. É a imperfeição da natureza humana cristalizada
na sua suscetibilidade ao erro e à negação daquilo que é capaz.
O personagem Hermógenes evidencia essa inerência do mal à
natureza humana. Figura o mal encarnado, enraizado no ser-tão-
humano. Trata-se de um homem que se compraz com o medo e
o sofrimento dos outros5. Um homem “ôco de alma”, pois já não
é senhor de suas ações, uma vez que seu corpo e sentidos foram
tomados pelo mal6.

Tal ideia é reiterada no episódio do encontro de Riobaldo


com o cego e gago Borromeu. Enraivecido pelos risos debochados
do cego em referência a sua pessoa, Riobaldo tenta xingá-lo com
nomes que atribui constantemente ao diabo, mas não consegue
a ele se referir senão com o termo “Sertão”: “... e, então, eu ia
denunciar nome, dar a cita:... Satanão! Sujo!... e dele dissera
somente – S... – Sertão... Sertão...” (ROSA, 1974, p.448-449).

4 “Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não


existe. Pois não? [...] O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia.” (ROSA, 1974, p.460).
5 “Esse Hermógenes – belzebu. [...] Homem que tirava seu prazer do medo
dos outros, do sofrimento dos outros. Aí, arre, foi que de verdade eu acreditei que
o inferno é mesmo possível. [...] E aquele inferno estava próximo de mim, vinha
por sobre mim.” (ROSA, 1974, p.139).
6 “Montado, mole, nas costas do Hermógenes, indicando todo rumo. Do
tamanho de um bago de aí-vim, dentro do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir.
Redondinho no lume dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas.
O Hermógenes, que – por valente e valentão – para demais até o fim deste mundo
e do juízo-final se danara, ôco de alma.” (ROSA, 1974, p.229).

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Do mesmo modo, o bem também não possui uma realidade
independente do homem7. Diante do sofrimento dos cavalos,
morrendo sem culpa após terem sido alvejados pelos jagunços,
Riobaldo entende que o bem, representado pela imagem de Deus,
não está dado, mas “é uma plantação” e “a gente – é as areias”. A
bondade não existe se não for semeada e cultivada no coração do
homem.

2 Bem e mal: complementaridade, contiguidade e distinção

Uma visão maniqueísta, hegemonicamente presente em


muitos grupos e intérpretes cristãos, foi responsável por uma
concepção do bem e do mal como realidades dicotômicas ou
radicalmente antagônicas (MAGALHÃES, 2003, p.95). Mas nas
veredas do grande sertão, tal como o compreende Guimarães
Rosa, o que se observa é que bem e mal, apesar de distintos entre
si, estão próximos, se pertencem e se evocam mutuamente, feito
a garapa que se azeda8, a mandioca-doce que se “azanga” ou a
“mandioca brava” que se transubstancia em “mansa”9. Bem e mal
se tocam e se complementam. É como faca afiando faca, ou como
pedras que ao se entrechocarem se lapidam10.

7 “Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só
por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus.” (ROSA, 1974, p.260).
8 “Tem coisas que não são de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso
de virarem, feito o que não é feito. Feito a garapa que se azéda...” (ROSA, 1974,
p.180).
9 “Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente
virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno
sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto,
de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca brava, também é que
às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é?”
(ROSA, 1974, p.11-12).
10 “Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca
em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-
se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo
quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece.” (ROSA, 1974, p.16).

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


68 O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO

Essa relação de contiguidade entre polos contrários também


pode ser percebida na sucessiva inversão de papéis que aparece
na estória de Aleixo, “homem das maiores ruindades calmas”, que
frente à cegueira que acomete seus filhos muda o rumo de sua
alma para “a banda de Deus”, isto é, “para ser bom e caridoso”. E,
de modo inverso, na estória de Pedro Pindó, “homem de bem” que,
acompanhado da esposa, tenta corrigir as ruindades de seu filho
Valtêi. Mas eles acabam por habituarem-se em castigá-lo, “criando
nisso um prazer feito de diversão” (ROSA, 1974, p.12-14). O que se
evidencia nesses relatos é que querer o bem por vias incertas é já
iniciar o mal11, assim como na manifestação do mal também pode
se esconder algum bem. Noutros termos, o mal pode ser vivido
como bem, como desejo ou meio de engendrar a justiça. Mas se
a “boa vontade” pode caracterizar o mal, tornando-o presente de
algum modo, talvez seja certo que, da experiência do mal, possa-
se recolher algum bem.

De fato, em vão reclama Riobaldo por uma justa e


absoluta separação entre o bem e o mal, de modo que se excluam
mutuamente e que em um nada permaneça do outro. Pois o que o
ser-tão-humano expressa é justamente a falta de limites precisos
entre esses dois opostos, a ausência de “pastos bem demarcados”,
de que se queixa o sertanejo ao observar que “o mundo é mundo
misturado”12. Esponjosa é a vida humana que mais absorve e retém
do que filtra e seleciona.

Todavia, a complementaridade e a contiguidade que


11 “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo
se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para
si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu
modo.” (ROSA, 1974, p.16).
12 “[...] mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o
senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim o ruim, que dum lado esteja
o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria
longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este
mundo?... Ao que, este mundo é muito misturado.” (ROSA, 1974, p.169).

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Fabiano Campos 69
enlaçam bem e mal não os reduzem a uma só realidade de modo
a significar a impossibilidade de diferenciação. Bem e mal não são
idênticos e nem se confundem. Conhecido sob a forma divina, o bem
é paciente, age com mansidão e calmaria, semelhante à brisa leve
e mansa que chega silenciosamente. Já o outro, personificado na
figura do diabo, é buliçoso, apressado em manifestar-se, avisando
a sua chegada, tal como o redemoinho que, turbulento, a tudo
revira e tira do lugar13. Ao dinamismo do mal se opõe a lentidão e a
quietude do bem.

A distinção não apenas é possível como também deve ser


realizada, o que não implica dizer que a tarefa seja fácil e rápida. O
protagonista adverte que a natureza de terra boa deve cuidar para
que o joio não arvore e domine o sertão14, que “não tem janelas
nem portas” (ROSA, 1974, p.374), alastrando-se em direção ao
exterior e cristalizando-se em ações. Mas na maioria das vezes não
é possível arrancar o mal pela raiz. Sendo que nas veredas do ser-
tão humano joio e trigo não estão bem separados, convém deixar
que juntos cresçam, pois peneirá-los só será possível quando já
estiverem maduros (Mt 13: 24-30). De fato, o discernimento é um
laborar que envolve perseverança e esforço, dedicação e espera.

Muitas vezes, a distinção entre o que é bom e o que é mal


se reduz a uma questão de focalização, ou seja, é limitada pelo
lugar hermenêutico a partir do qual se observa (UTÉZA,1994, p.73;
MAGALHÃES, 2003, p.94). De fato, o bem e o mal não moram
nas coisas, mas no olhar que a elas se lança. Tal é o ensinamento
de Riobaldo quando diz que “o mal ou o bem, estão é em quem
faz; não é no efeito que dão” (ROSA, 1974, p.77). O discernimento,
13 “[...] o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor!
Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre.
E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.” (ROSA, 1974, p.21).
14 “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor
bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (ROSA, 1974,
p.374).

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70 O JOIO E O TRIGO NAS VEREDAS DO SER-TÃO HUMANO

portanto, não deve beirar as aparências imediatas, mas estender-


se para além delas. Há que ser um trabalho do espírito espiando
por detrás dos sentidos corporais, “como a mente vigia atrás dos
olhos” (ROSA, 1974, p.149).

A figura feminina e infantil de Deodorina, que se esconde sob


a persona (do grego: máscara) masculina de Diadorim, encarna essa
ambiguidade entre bem e mal, que exige atenção e sensibilidade de
espírito para poder discernir entre essas duas realidades. Diadorim
é Deus escondido sob a face do Outro, do Diabo; a bondade
disfarçada de malignidade. Ser andrógino, concomitantemente
divino e diabólico, possui o caráter híbrido do daimon socrático,
que pode ter atributos tanto divinos como demoníacos. “Pessoa em
duas naturezas” (ARAÚJO, 1996, p.55), representa o lado positivo e
o reverso negativo da psique. Lembra a figura de Lúcifer, entidade
de luz que simboliza a iluminação interior à qual geralmente dá-se
o nome de consciência. Mas também remete ao oposto daquela, ao
seu duplo sinistro que identificamos com Satanás, o lado sombrio
da personalidade, imagem das trevas interiores. A personagem
Diadorim é metáfora de uma unidade perdida – em o que o humano
se imiscuía no Absoluto, no Cosmos – a ser recuperada através de
uma peregrinação que constitui os próprios caminhos da vida e na
qual o homem não é senão um eterno aprendiz. “Porque aprender-
a-viver é que é o viver...” (ROSA, 1974, p.443). Como sublinha
Nunes, essa Criança Primordial ou Divina

possui o caráter ambíguo das teofanias primitivas,


peculiar à dialética do sagrado, do numinoso. Seduz
e fascina, aterroriza e inquieta. Força ambígua, seus
efeitos ora são benéficos ora maléficos, podendo ser
fonte do Bem ou causa do Mal. Possui um pólo luminoso,
amável e propício, e outro sombrio, repelente e hostil –
um pólo divino e um pólo demoníaco, reversível, pois que
o diabo fascina e Deus é, por vezes, sombrio e tortuoso.
[...] Nele – em Diadorim – o divino e o diabólico são

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Fabiano Campos 71
permutáveis e simbolizam dois momentos da aventura
que se realiza no homem – o momento ancestral, do
velho ser humano dividido, que permanece presa das
forças elementares, materiais e sensíveis, e o momento
por vir, que lentamente se prepara, da transformação
do humano em divino, e em relação ao qual a vida
constitui uma iniciação e uma aprendizagem (NUNES,
1991, p.164-165).

Com o Menino, barqueiro de Riobaldo durante parte da


viagem de descida do rio das Velhas e do rio São Francisco, inicia-se
uma viagem rumo ao bem, ao Éden interior, por meio da ordenação
do intelecto e da vontade. Mas, nessa peregrinação, o sertanejo
terá de se confrontar diretamente com o mal e derrotá-lo, o que
é metaforizado na cena do pacto com o diabo, na encruzilhada
das Veredas-Mortas. Como salienta Cândido (1991, p.303), o pacto
com o diabo significa “o caminho para adquirir poderes interiores
necessários à realização da tarefa” de transpor “as caudalosas águas
turvas da personalidade”. Noutros termos, tal aliança simboliza o
processo humano de recolher forças interiores para transubstanciar
o mal em bem, superando as dificuldades e atribuindo sentido à
experiência do sofrimento, da dor e da morte. Nesse sentido, o
diabo é tanto um símbolo do mal e da tentação, como também
um instrumento da iniciação humana na vida. De fato, o erro pode
levar tanto ao desânimo diante do fracasso quanto ao desejo de
acertar ou de recomeçar; o sofrimento e a dor podem conduzir
à revolta assim como à esperança e ao esforço de superação das
dificuldades.

Com efeito, antes de efetuar o pacto com o diabo, o


protagonista entra em contato direto com a natureza, que, para
além de uma realidade exterior, significa o espaço da natureza
humana que lhe habita e no qual adentra, descendo às profundezas
de si mesmo. É o menino quem desperta a atenção de Riobaldo
para a beleza da natureza. Mas, para que os sentidos corporais

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sejam capazes de contemplar o que é bom e belo, é preciso


aguçar o espírito, ou seja, convém iluminar os caminhos obscuros
do intelecto e endireitar as veredas da vontade, de modo que o
sertanejo seja capaz de tomar as rédeas da sua própria vida15. É
necessário que se efetue a passagem do mundo exterior e sensível
ao âmago de si mesmo, do reino das aparências e ilusões rumo ao
profundo e verdadeiramente significativo. Trata-se de realizar o
mesmo movimento expresso na sedução que Diadorim exerce sobre
Riobaldo, ao infundir-lhe na alma a inquietude, o desassossego,
atraindo-a para si através de uma impressão espiritual, para além
dos sentidos corporais16.

O caminho percorrido por Riobaldo é, pois, em direção ao


seu interior. E é lá, nos recônditos de sua alma, que encontrará luz
e sombras, o bem e o mal, o anjo de luz identificado com o daimon
divino, mas também o demônio. É Diadorim quem introduz
Riobaldo no mundo maravilhoso e áspero do ser-tão-humano, da
natureza humana em sua dinamicidade que o Rio em seu perene
fluir simboliza17. Amparando-lhe com a mão, faz Riobaldo descer
15 “Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.” (ROSA,
1974, p.268). “Ser chefe – por fora um pouquinho amargo; mas, por dentro, é
rosinhas flores.” (ROSA, 1974, p.66).
16 “Antes fui eu que vim para perto dele. [...] Aquilo ia dizendo, e era um
menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. [...] Mas eu
olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu
não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições,
a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem
intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e
antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não se fosse mais embora,
mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda,
sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. [...] Ele me deu a
mão, para me ajudar a descer o barranco. [...] Ele, o menino, era dessemelhante, já
disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave de ser,
mas asseado e forte – assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível
– o senhor represente. [...] Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado
e sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele gostasse de mim.”
(ROSA, 1974, p.80-82).
17 Assim se expressa Guimarães Rosa em entrevista a Gunter Lorenz

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Fabiano Campos 73
em direção ao ser-si-mesmo, à autenticidade do ser que só se realiza
na integração com o Uno, com o universo. Este toque da mão do
menino, esta ajuda, é a prefiguração de algo que há de se realizar
mais adiante – a re-ligação (religião = religare) com o Todo –, mas
também é a materialização da significação do nome Diadorim: “Dia
é, em grego, o nome de Zeus, de Deus; e doros significa presente,
dom. E o dom de Deus, dado, é a graça. É, assim, a graça de Deus que
acompanha Riobaldo em seu itinerarium ad Deum, em sua viagem
pelo sertão.” (ARAÚJO, 1996, p.33). Diadorim é dom de Deus, mas
que Riobaldo inicialmente percebe apenas como seu contrário, o
mal. Talvez porque, como explica o sertanejo, “a gente criatura é
tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens
é mandando por intermédio do dia? Ou que Deus – quando o projeto
que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem
só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?” (ROSA,
1974, p.33). De fato, Riobaldo nunca chega a possuir Diadorim, a
não ser no instante em que ela já se foi, revelando-se como Deo-
dorina já perdida. Ele não é capaz de reconhecer a graça divina,
isto é, o bem que lhe acompanha, a não ser no momento em que
ela já se recolheu, deixando-o entregue às próprias forças. Como
se o bem, embora dado, não pudesse ser assim tão facilmente
alcançado, exigindo, através da atração que desperta no homem
e da sedução que sobre ele exerce, um movimento próprio, um
atravessar autônomo e pessoal que constitui a própria existência
humana em sua travessia rumo à margem do divino, do bem.

3 O feminino como desencarnação do mal na estória de Maria


Mutema

Na estória de Maria Mutema é possível entrever a


proximidade e a alternância entre bem e mal. Nela, bem e mal
se alojam nas espécies da palavra e do silêncio. O nome de Maria
Mutema, ao mesmo tempo criminosa e santa, pode ser tomado
(1991, p.72): os grandes rios “são profundos como a alma do homem”, “conjugam
eternidade...”.

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como cognato de ‘muda’, lembrando o silêncio que encobre a


verdade e gera o mal, mas também de ‘mutação’, na medida em que
aponta para o processo de conversão desencadeado pela palavra
pronunciada (OLIVEIRA, 2003, p.759). Transformação que adquire
um duplo sentido, pois se o mal é convertido em bem pela palavra
da mulher, o feminino aqui também se transmuta de lugar.

Ora, interpretações fundamentalistas do texto bíblico que


relata o instante da queda no paraíso responsabilizam a mulher
pela entrada do mal no mundo (PASSOS, 2003, p.558). Seduzida
pela palavra serpenteada de maldade, a mulher figura a porta de
entrada do mal no mundo humano. A mesma maldição recai sobre
o feminino no mito de Pandora que, abrindo a caixa, permite que
toda sorte de males adentre o mundo dos homens. O feminino é
ainda concebido como que naturalmente propenso ao mal na figura
de Maria Madalena, a mulher adúltera das Escrituras Sagradas.

Herdeira de Eva, Maria Mutema resgata seu medo e esconde


a verdade (PASSOS, 2003, p.559). Cobre de silêncio a nudez de sua
alma, exposta pela dor da morte do marido. Suas constantes idas
ao confessionário revelam o peso do mistério guardado (na língua
alemã, mistério é “ge-heimnis”, que significa “recolhido em casa”),
o estigma do não-dito. Mas o segredo rompido faz calar a voz da
maldição e resgata o feminino à dignidade do humano que, aliás,
é travessia da morte à vida. “Assim, o que é imaginado na história
de Maria Mutema é a morte: a morte sob a máscara de segredo.
É o que o homem tem de mais íntimo e pessoal” (ARAÚJO, 1996,
p.128). A revelação do mistério lhe permite trilhar o caminho do
bem. No seio de Mutema, que é Maria, o verbo torna-se carne,
palavra e ser se reencontram. Assim, se na representação popular
Maria Madalena é a própria encarnação do pecado, da decadência e
do mal (NOGUEIRA, 2000, p.43), em Maria Mutema vislumbramos
a mutação, a transubstanciação do mal em bem. Se a palavra de
Eva semeara a perdição, a de Maria Mutema fecunda a conversão e
a redenção. O bem é desabitado do silêncio, encarna-se no humano

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.59-76, jan./jun. 2010.


Fabiano Campos 75
pelo feminino.

Fabiano Victor de Oliveira Campos. Mestre em Ciência da Religião


pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professor das Instituições
Arnaldo, Colégio Santo Agostinho e Faculdade de Filosofia e Instituto
de Teologia Sagrado Coração de Jesus (Diamantina-MG). 
fvocampos@hotmail.com

Referências

ARAÚJO, Heloísa Vilhena. O roteiro de Deus: dois estudos sobre


Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1996.

BERGER, Peter. Rumor de anjos: a sociedade moderna e a


redescoberta do sobrenatural. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

CAMPOS, Augusto de. Um lance de “Dês” do Grande Sertão. In:


COUTINHO, Eduardo. Guimarães Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991. p. 321-349.

CÂNDIDO, Antônio. O homem dos avessos. In: COUTINHO,


Eduardo. Guimarães Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991. p.243-247.

DURÃES, Fani Schiffer. O mito de Fausto em Grande Sertão:


Veredas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1999.

LORENZ, Gunter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO,


Eduardo. Guimarães Rosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991. p.62-97.

MAGALHÃES, Antonio Carlos M. de. Representações do bem e o


mal em perspectiva teológico-literária: reflexões a partir de diálogo
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Aíla L. Pinheiro de Andrade 77

COMUNICAÇÃO A QUESTÃO DE DEUS E


O SOFRIMENTO HUMANO
NO LIVRO DE JÓ
Aíla L. Pinheiro de Andrade

Resumo
A questão do sofrimento humano representou um grande
desafio para o movimento sapiencial no antigo Israel. O presente
artigo tem por objetivo provocar uma reflexão sobre os limites
do conhecimento teológico tomando por base a problemática do
sofrimento humano à luz do livro de Jó.
Palavras-chave: Jó. A questão de Deus. Gratuidade. Sofrimento.
Limites do conhecimento teológico.

Introdução
Vivemos num mundo cheio de receitas mágicas oferecidas
em manuais de felicidade. A ideologia da prosperidade acredita
que o segredo para alcançar riquezas está num jogo de interesses
entre o ser humano e Deus. Os propagadores dessa ideologia,
disfarçada de teologia, tomam por base os versículos finais do
livro de Jó (42,10-16) para afirmar que quanto mais dinheiro se
ofertar na igreja maior felicidade se alcança. Para a ideologia da
prosperidade, a correspondência entre o desejo do ofertante e sua

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


78 A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

realização é denominada de benção. Aqui parece está a fórmula


atual da pedra filosofal ou o toque de Midas.

Ao contrário, os versículos finais (42,10-16) são um acréscimo


e destoam visivelmente do texto poético cujo objetivo é questionar
os pressupostos das escolas sapienciais daquela época com relação
à questão do sofrimento humano1. O livro sequer dá uma resposta
ou uma causa para esse problema, pois a obra termina com o
protagonista humildemente admitindo seu pouco conhecimento
sobre Deus e que a experiência pessoal foi mais importante que a
obtenção de respostas (Jó 42, 3.5).

Em que consiste, então, a atualidade de Jó? Em nos


questionar sobre os limites do conhecimento teológico. Em outras
palavras em nos provocar algumas questões: como fazer teologia
diante do mal, da dor e do sofrimento? É possível falar sobre o Deus
da vida para um aidético? Tem sentido anunciar o amor de Deus
aos pais de um bebê cancerígeno? Saberíamos explicar o porquê de
uma experiência degradante da dignidade humana? Poderíamos
falar da filiação divina quando a fatalidade parece impor-se?

1 Os limites do conhecimento teológico

A Escritura trata da Revelação de Deus e da resposta


humana, ou seja, do encontro entre ambos. Desde as
primeiras páginas, a Bíblia afirma a proximidade de
Deus que passeia pelo jardim à procura do ser humano
que foge de sua presença por causa da culpa (Gn 3,8).
No entanto, a Escritura também menciona o Deus
escondido. O profeta exclama: “Na verdade, tu és um
Deus que te ocultas, oh Deus de Israel, Salvador” (Is
45, 15). Um Deus que é visto somente pelas costas (Ex
33,18-23).
1 PIXLEY, J. “Jó ou o diálogo sobre a razão teológica”, Perspectiva
teológica, Belo Horizonte, v. 16, n. 40, p.333-343, set./dez.  1984.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


Aíla L. Pinheiro de Andrade 79
Esse aparente jogo de esconde-esconde significa, sobretudo,
que o encontro realiza-se entre sujeitos livres. Assegura que um não
é anulado ou manipulado pelo outro, mas a alteridade é preservada.
Esse paradoxo garante a luminosidade e a obscuridade2 do mistério
de cada um e resguarda a liberdade do Criador e da criatura.

Dessa forma, o tema principal da teologia, revelação e fé,


resume-se ao encontro entre Deus e o ser humano e, portanto, o
objeto da teologia é Alguém e não um problema a ser resolvido pelo
intelecto. A experiência com Deus dá-se no nível intersubjetivo,
é um conhecimento entre pessoas, entre sujeitos livres. O saber
teológico é alcançado através do relacionamento, do envolvimento
amoroso-afetivo entre quem conhece e quem é conhecido. Então,
se Deus não é um objeto de conhecimento como o das demais
ciências, não podemos possuí-lo, utilizá-lo. Disso se conclui que
não há possibilidade de manipulação do divino pelo humano e
assegura-se a indisponibilidade de Deus para a total apreensão
humana.

Os amigos de Jó, no entanto, têm um esquema teológico


ao qual pretendem submeter Deus. Trata-se de uma chave de
leitura bem limitada da realidade. Tal princípio hermenêutico rege-
se pela bipolaridade justiça-bênção e injustiça-castigo. É uma
visão mecanicista da vida e das relações. Supõe-se que as ações
humanas desencadeariam a felicidade ou a infelicidade. O futuro
do ser humano dependeria da submissão a essa ordem da qual
nem Deus poderia fugir. Esse tipo de cosmovisão não deixa espaço
para as liberdades (humana e divina) em relação intersubjetiva.

O livro de Jó coloca em xeque esse tipo de sabedoria, pois


esta não dá conta dos diversos aspectos da realidade, nem cede
lugar à gratuidade de Deus. Sendo o sofrimento um dos aspectos
mais impressionantes da realidade, então deve ser considerado
2 Cf. RAHNER, Karl. L’Homme à l’écoute du verbe: fondements d’une
philosophie de la religion, Paris: Mame, 1968, p.69-89 e 131-149.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


80 A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

teologicamente sem a preocupação de uma resposta a priori, mas


como ato segundo3.

A resposta à questão do mal e do sofrimento não pode


estar pronta antes mesmo de se colocar a pergunta. Senão o ato
de perguntar torna-se uma farsa, uma mera formalidade. Fazer
teologia depois de Jó sequer garante que haverá uma resposta. Tal
teologia não está preocupada antes de tudo em fazer apologia de
Deus perante o sofrimento, mas sim em defender o sofredor de
quem Deus mesmo é o go’el (Jó 19,25).

O autor de Jó nos ensina a considerar primeiramente o


sofrimento como realidade concreta que desafia a teologia e seu
método. A questão que se põe é como fazer teologia tendo em
conta as situações limites do ser humano.

Em primeiro lugar, esse desafio exige da teologia uma postura


capaz de privilegiar a experiência de Deus e não o conhecimento
puramente racional. Pois “o que sacia e satisfaz a alma não é o
muito saber, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE
3)4. Trata-se de fazer a experiência de Deus na totalidade da vida,
percebendo a ação divina em todas as situações.

Dessa forma, o sofrimento passa a ser teofania. Manifestação


do Crucificado que chama a teologia à conversão. Assim, o
sofrimento também é perpassado pela graça, pois Deus mesmo é
solidário com as vítimas, já que o Filho viveu concretamente essa
realidade.
A kénosis5 de Cristo (Fl 2,5-11) exige da teologia uma total abertura

3 Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas.


4.ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p.24.
4 INÁCIO DE LOYOLA, Santo. Exercícios Espirituais, São Paulo:
Loyola, 2000.
5 Kénosis significa “esvaziamento” e traduz a totalidade da vida de Jesus,
servo sofredor, morto na Cruz.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


Aíla L. Pinheiro de Andrade 81
kenótica. Tal atitude, prévia ao discurso teológico, significa entrega
“do centro mais profundo do próprio eu, teimosamente protegido
e defendido pelo ser humano”6.

Nem Deus, nem a vida humana com suas limitações,


devem se adequar ao discurso teológico, mas quem teologiza é
que precisa sair de si, desapegando-se de ideias preconcebidas
e solidarizando-se com o sofredor, para que assim possa fazer
uma verdadeira experiência de Deus e levar quem sofre a fazê-la
também. Pois somente depois de experienciar Deus pela mediação
de Jó, homem das dores, a teologia poderá não apenas ter uma
palavra para o clamor do sofredor, mas antes, ser o eco do grito
angustiado de quem vive uma situação fronteiriça da vida.

O livro de Jó mostra-nos que, perante o mundo, a teologia é


o grito do sofredor. E para as situações drásticas da vida, é silêncio.
Não se apresenta, antes, como discurso, mas como solidariedade,
compadecimento, inserção.

Grito e silêncio apontam para Deus – sentido último do


incompreensível e do indizível – e para a sua decisão eterna de
redimir a humanidade7. A redenção torna-se então a razão de ser da
vida humana. Por causa dessa decisão eterna de Deus, aconteceram
os eventos da história da salvação, desde o primeiro passo que foi a
Criação, depois a Encarnação e a Paixão-ressurreição.

Esse Deus não pode ser o responsável pelo sofrimento.


Ele criou o ser humano para a vida em plenitude (Jó 10,10), como
mostram os relatos da Criação (Gn 1-2) e a Carta aos Hebreus (Hb
4, 10-11. 15-16). Fomos criados para ter acesso total a Deus, para
receber a vida que é própria da Trindade, para sermos filhos no
6 Cf. FERNANDEZ DE LA CIGOÑA, José Ramón. “Esoterismo e a
experiência de Deus nos Exercícios Espirituais”, Itaici, São Paulo, v.11, p.75-84,
1993. O texto citado encontra-se na p.82.
7 “Façamos a redenção do gênero humano” (EE 107).

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


82 A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

Filho (Ef 1, 3-14).


As três Pessoas Divinas estão empenhadas nessa obra redentora.
É isso que fazem (EE 108). Estão comprometidas na redenção do
gênero humano desde a eternidade. É um “fazer” que traz como
consequência uma imergência do Filho na realidade de morte
(Hb 2,17-18). À máxima imersão de Deus nas realidades humanas
corresponde a máxima elevação do ser humano à esfera de Deus.
Uma teologia não imersa na realidade é forjada artificialmente, é
um artefato, um ídolo que não nos eleva até Deus. Por isso, no final
do livro de Jó, a teologia, ali representada pelos “amigos” precisa
retratar-se porque não falou corretamente de Deus (Jó 42,7-9).

Então, a teologia é mística e mistagogia. É uma


contemplação, i. é., visão ampla e profunda sobre o Mistério de
Deus e, da mesma forma, sobre as realidades humanas. Exige de
quem teologiza uma conversão contínua e sempre inacabada.
Permanente mistagogia e anagogia8.

2 Jó convida a teologia à conversão

A leitura do texto de Jó nos chama à consciência. Em primeiro


lugar, mostrando que o núcleo da teologia está fora dela mesma,
de seus manuais e de seus sistemas. Seu centro não pode ser outro
senão o anúncio de Jesus Cristo e o Projeto de Deus para a salvação
da humanidade, aquela decisão eterna que as Três Pessoas Divinas
estão empenhadas em fazer acontecer.

O projeto de Deus é uma realidade dinâmica. Uma ação


permanente sobre as realidades históricas, principalmente sobre
aquelas situações limites do ser humano. É o Reino enquanto sentido
último de tudo, no qual os sofredores são protagonistas porque
sua situação significa uma negação do amor e da vida. A existência
desses que figuram como Jó questiona uma teologia confortável de

8 Mistagogia, iniciação ao Mistério; anagogia, elevação para Deus, saída


de si.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


Aíla L. Pinheiro de Andrade 83
escritório9. Ainda mais no contexto atual, marcado pela valorização
do extraordinário e desvalorização do compromisso. Isso faz com
que a teologia sofra a tentação de voltar ao dualismo religioso que
expulsa Deus da vida humana e o faz impassível recolhido à esfera
do sagrado como um empresário em férias nas Bahamas.

Um Deus, assim exilado da história, aparece aos míopes


na fé como fiscal, castigador e vingador. Sua relação com a
humanidade aconteceria apenas com poucos iluminados, eruditos
e abençoados. Para os demais seria um desconhecido, encontrado
apenas através de gurus ou homens de poder. Buscado através
de mediadores e mediações, correntes, campanhas e promessas
com as quais se espera alcançar o favor divino, como acontecia nos
mitos das antigas civilizações.

3 Jó convida a teologia à contemplação

No início do livro de Jó, a sabedoria (representada pelos


amigos) senta-se no chão, ao lado do sofredor e o contempla. Este
gesto é um convite para que a teologia de hoje abandone o seu
pedestal de saber e solidarize-se com o sofredor para que a partir
desse lugar possa contemplar Deus.

Contemplação, em seu sentido profundo, quer dizer


abertura do campo de visão. Exige que se tenha um olhar profundo
diante dos fatos. Supõe-se que, em situações limite, o teólogo deve
encontrar-se com Deus de forma mediada e imediata. Ou seja,
imediata como diz Jó: “Conhecia-te só de ouvido, porém agora
meus olhos te vêem” (Jó 42,5). Experiência também feita pelos
samaritanos (Lc 4,42). E mediada pelo engajamento nas realidades
concretas da vida.

9 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. “El pueblo crucificado. Ensayo de


soteriología histórica”. In ASSMANN, H. et. al., Cruz y resurrección: presencia
y anuncio de una iglesia nueva, México: CRT, Zalapa, 1978, p.49-82.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


84 A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

A teologia é, primordialmente, contemplação. Uma


atividade praticada por quem se encontra com Deus, amplia
seu campo de visão, “oferece-lhe todo seu querer e liberdade”
(EE 5) e deixa-se recriar numa profunda unificação interior. Essa
atitude contemplativa torna-se uma maneira de existir, um estado
contínuo e intenso de união com Deus e tem como resultado a ação
evangélica.

4 Jó convida a teologia à compaixão

A teologia poderá não ter uma explicação para o sofrimento,


a dor e o mal, como também o autor de Jó no final do livro. Mas
sua palavra será um apelo em favor dos crucificados desse mundo,
para que tenham esperança e visão mais ampla do seu próprio
sofrimento. Quando a dor for consequência da injustiça, a teologia
será profecia, instrumento do Reino e de vida plena. A teologia
será um convite a que todo sofredor descentralize-se do próprio eu
e faça aquela abertura kenótica que possibilita o encontro com o
Deus compassivo, pois a cruz de Cristo revela uma compaixão10 em
Deus.

Alguns dentre os Padres da Igreja, entretanto, deram muito


enfoque à apatheia11 de Deus. No entanto, a patrística não queria
negar a compaixão divina pelo sofrimento humano, mas apenas
confrontar a fé cristã com as mitologias pagãs antropomórficas.
Quando a teologia afirma a apatheia de Deus pretende dizer que
a vida divina é inesgotável e sem limites, em nada pode passar
da potência ao ato, é imutável – em Deus não há progresso,
desenvolvimento. Entretanto, essa imutabilidade de Deus não
significa que ele seja indiferente aos eventos humanos.
10 O “sofrimento” em Deus não é do mesmo tipo daquele que afeta a
criatura que é o padecimento (pathos), mas o sofrimento próprio de quem ama
que é o compadecer (sympatheo).
11 Apatheia significa não sofrimento, i.é., Deus não sofre como uma
criatura. Apatheia é oposto de pathos (sofrimento imposto, comum às criaturas
sensíveis: seres humanos e animais).

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


Aíla L. Pinheiro de Andrade 85
“A sã reação do sofrimento está mais próxima da imortalidade do
que o embotamento de um sujeito insensível” (Santo Agostinho,
En. in Ps. 55,6, PL 36). A piedade cristã descarta a ideia de uma
divindade indiferente às vicissitudes de sua criatura. A compaixão
que é uma perfeição das mais nobres no ser humano deve existir
em Deus. “A compaixão não é uma falha de poder” (Papa Leão
I, DS 293). Nada impede que a compaixão possa coexistir com a
bem-aventurança eterna.

Portanto, a teologia de hoje, ao enfocar mais a compaixão


de Deus do que sua apatheia, visa preocupar-se mais com o
ser humano e menos com os manuais. Objetiva exercer mais
o intellectus amoris e o intellectus misericordiae12 do que dar
explicações sobre as causas ontológicas do mal e do sofrimento.

5 Para além de Jó: a elevação do ser humano

Em contrapartida à compaixão de Deus, os Padres


enfatizaram a deificação (theosis) do ser humano. “O Verbo de
Deus se fez homem para que o homem seja feito Deus” (Santo
Atanásio de Alexandria, De Inc. Verbi Dei, 54,3, SC 199). A verdadeira
humanização, portanto, atinge seu cume na deificação, no acesso
à Trindade. A theosis é a verdadeira e suprema humanização.
Cristo ressuscitado é o humano pleno. Viver a vida de Cristo é viver
a sublime vocação da humanidade.

O ser humano torna-se próximo de Deus, porém, menos


por sua capacidade intelectual do que pela conversão do coração.
Criado à imagem e à semelhança de Deus, é convidado à comunhão
com a vida divina, como única possibilidade de saciar plenamente
12 Cf. SOBRINO, Jon. “Teología de un mundo sufriente. La teología de la
liberación como ‘Intellectus Amoris’”, ReLat, 15, 243-266, 1988. Idem. “¿Cómo
hacer teología? La teología como intellectus amoris”, Sal Terrae, n.910, p.397-
441, 1989. Idem. “La Iglesia samaritana y el principio-misericordia”, Sal Terrae,
n.927, p. 665-678, 1990.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


86 A QUESTÃO DE DEUS E O SOFRIMENTO HUMANO NO LIVRO DE JÓ

suas aspirações mais profundas, que nada mais são do que a sede
de Deus. “Quanto mais profundamente Jesus Cristo desceu em sua
participação na miséria humana, tanto mais alto o ser humano se
eleva na participação em sua vida divina” (S. Máximo Confessor,
Cap. theo., PG 90). A deificação não atinge plenamente seu fruto
senão na visão do Deus trinitário que comporta a bem-aventurança
na comunhão dos santos. A deificação, portanto, nunca será uma
conquista humana. É graça de Deus, somos filhos no Filho.

Aíla Luzia Pinheiro de Andrade é Graduada em Filosofia pela


Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta
de Filosofia e Teologia (Faje), onde também cursou mestrado e
doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faje e em diversas outras
faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.
aylanj@ig.com.br

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.77-86, jan./jun. 2010.


Ubiratan Nunes Moreira 87

DEUS E OS POBRES:
SOBRE A RELEVÂNCIA DO DEBATE
ACERCA DO FUNDAMENTO NA
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Ubiratan Nunes Moreira

Resumo

O presente texto quer levantar a discussão sobre a relevância


teórica e pastoral do debate sobre a validade do princípio-pobre na
Teologia da Libertação – TdL a partir de publicações de Clodovis
Boff e réplicas de teólogos da libertação na REB. Para Clodovis, a
TdL erra ao colocar o pobre no lugar de Deus (pauperocentrismo), o
que leva à instrumentalização da fé em função do pobre. Do outro
lado, a ruptura entre Jesus e o pobre fere o mistério da encarnação
e, consequentemente, favorece ação pastoral despreocupada com
o pobre enquanto lugar teológico.
Palavras-chave: Cristo. Pobre. Fundamento. Teologia da
Libertação.

Introdução

Toda teologia nasce em determinado contexto cultural,


social, histórico e dentro de um movimento de ideias. Mas as
teologias se igualam por se referirem à Revelação. Tal pluralismo
na teologia é reconhecido pelos documentos do Vaticano II e pode
ser retratado na expressão: “Uma fé – muitas teologias” (BOFF, C.,
1998, p.88). No caso da Teologia da Libertação – TdL, a referência
é a tensão entre dominação e libertação na situação do continente
latino-americano. De acordo com Libanio e Murad, “a TdL lança
suas raízes no solo experiencial e eclesial da percepção teologal

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


88 DEUS E OS POBRES

da presença de Deus no pobre, no explorado e em sua luta pela


libertação” (LIBANIO; MURAD, 1996, p.172).

Clodovis Boff “acumulou muitos méritos no âmbito da


Teologia da Libertação” (BOFF, L., 2008, p.701). Em contrapartida,
em artigos publicados na Revista Eclesiástica Brasileira – REB, quis
mostrar que a TdL “partiu bem, mas, devido à sua ambigüidade
epistemológica, acabou se desencaminhado: colocou o pobre no
lugar de Cristo. Dessa inversão de fundo resultou um segundo
equívoco: a instrumentalização da fé ‘para’ a libertação” (BOFF, C.,
2007, p.1001). Clodovis pretende trazer “reparos” à maneira como
os teólogos da libertação trataram a questão da opção preferencial
pelos pobres.

A crítica feita ad intra aos teólogos da libertação, por sua


vez, suscita indagação para o público que se lança no fazer teológico
em solo latino: como entender a “opção fundamental pelos pobres”
após as considerações de Clodovis? É preciso visualizar o essencial
da crítica e em seguida a repercussão em teólogos ligados à TdL,
para delimitar a relevância do tema. O objetivo é fomentar o debate
sobre a opção preferencial pelos pobres diante sua originalidade e
atualidade enquanto prática pastoral.

1 Contra o pauperocentrismo

Segundo Clodovis Boff (2007), a TdL e sua “funesta


ambigüidade” acerca do fundamento, que não é outra coisa
senão colocar como eixo epistemológico a opção pelos pobres,
gera confusão tanto na teoria quanto na prática, permitindo
ambiguidades, equívocos e reduções. Enquanto tema fundamental,
a opção pelos pobres está fundada teologicamente na Bíblia e
na Tradição, mas, “como princípio epistemológico particular,
conferindo uma perspectiva determinada, permanece largamente
impensada e não discutida” (BOFF, C., 2007, p.1002). Para o autor,
o princípio epistemológico da teologia não cabe absolutamente

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


Ubiratan Nunes Moreira 89
aos pobres, mas a fé apostólica tramita pelo Magistério e Tradição
da Igreja (BOFF, C., 2007, p.1003).

Nessa ótica, a fé no Deus revelado enquanto princípio


primeiro da teologia não opera pra valer na TdL, mas “representa
apenas um dado pressuposto, que ficou para trás, e não um princípio
operante” (BOFF, C., 2007, p.1004). Consequência imediata: “entre
Deus e o pobre, o pobre leva vantagem. Entre salvação e libertação,
esta é favorecida” (BOFF, C., 2007, p.1004). Clodovis confronta o
caminho que ele chama de “desviante” da TdL com o Documento
de Aparecida que, a seu ver, teria feito a correta relação entre
fé e ação libertadora: “A TdL parte do pobre e encontra Cristo;
Aparecida parte do Cristo e encontra o pobre”, (...) a metodologia
de Aparecida é uma metodologia originária principal, enquanto a
outra só pode ser derivada e subalterna” (BOFF, C., 2007, p.1012).
O frei Clodovis Maria Boff é ainda mais contundente ao declarar
que Bento XVI acertou no alvo teológico no discurso de abertura da
V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho
ao dizer que “a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica”
(BOFF, C., 2007, p.1012). Na interpretação do teólogo, as palavras
do pontífice indicam que “o princípio-Cristo inclui o pobre, sem que
o princípio-pobre inclua necessariamente Cristo” (BOFF, C., 2007,
p.1012).

Clodovis é incisivo em afirmar que a TdL coloca o pobre como


“primum epistemológico”. Assim acontece a “instrumentalização
da fé em função do pobre”, o que leva os teólogos da libertação
ao utilitarismo ou funcionalismo em relação à Palavra de Deus e
à teologia em geral, deixando a parte da transcendência como
parte menor e menos relevante (BOFF, C., 2007, p.1005). Para ele a
questão é grave. Revela o ponto fraco da TdL pela “falta de clareza
quanto ao alcance epistemológico da opção pelos pobres (...) que
pode ser ‘ponto de partida’ como ‘começo’ (começo de conversa),
mas não como ‘princípio’ (critério determinante)” (BOFF, C., 2007,
p.1006). Tal equívoco coloca a ideologia no lugar da teologia. A TdL

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


90 DEUS E OS POBRES

teria, assim, cedido ao espírito antropocêntrico da modernidade.


Colocando o pobre no centro (pauperocentrismo), gera graves
consequências na percepção da Igreja como uma ONG, no
esvaziamento da identidade e na idealização da figura do pobre.
Fadado a ser esmagado pela teologia, “o pobre não agüentará por
muito tempo nas costas o edifício de uma teologia que o escolheu
por base: cederá antes de ser esmagado por ela, como a história
não cansa de mostrar” (BOFF, C., 2007, p.1022).

2 Em debate com Clodovis Boff: os teólogos da libertação

Em debate com o autor de Teoria e Prática, Luiz Carlos Susin


e Érico João Hammes (SUSIN; HAMMES, 2008) argumentam que o
pobre é lugar teológico privilegiado. Na verdade, a TdL não coloca
o pobre no lugar de Deus. É o próprio Deus que se coloca no lugar
do Pobre. Aqui, a já famosa afirmação de Bento XVI de que a opção
pelos pobres é decorrência intrínseca da cristologia é radicalizada:
“antes de ser decorrência, é ‘lugar cristológico’, e, por isso, é lugar
teológico” (SUSIN; HAMMES, 2008, p.294). Sobre a acusação de
que a TdL teria idealizado a figura do pobre, a resposta é direta:
“Talvez tenhamos pintado o pobre com idealismo, com o secreto
desejo de que o pobre ocupe o lugar da Igreja, não de Cristo” (SUSIN;
HAMMES, 2008, p.294). Tal afirmação diz respeito à defesa do
lugar teológico conectado com o pobre enquanto “sujeito eclesial”,
no sentido em que retornar ao Deus de Jesus Cristo colocando os
pobres em segundo lugar fere os altos interesses de Deus e de seu
“não-narcisismo”. De outro lado, “quando não se parte dos pobres,
é fácil permanecer longe deles, com um ídolo chamado deus”
(SUSIN; HAMMES, 2008, p.297-298). Dessa forma, é tarefa da
teologia assumir a opção de Deus, isto é, nomear suas preferências
atuais, “o lugar do pobre de carne e osso, o lugar da alteridade ao
mesmo tempo incontornável e irredutível, que se mantém a reserva
de transcendência e mistério” (SUSIN; HAMMES, 2008, p.293).

Leonardo Boff (2008), por sua vez, entende que as críticas

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


Ubiratan Nunes Moreira 91
de Clodovis não fazem justiça à TdL realmente existente, pois
“podemos irritar os poderosos, mas não nos é permitido defraudar
os pobres” (BOFF, L., 2008, p.703). Nesse sentido, para Leonardo,
faltam às colocações de Clodovis adequada teologia da encarnação,
sentido singular do pobre dado pela Teologia da Libertação e
teologia do Espírito Santo.

Pela encarnação Deus se une de algum modo a todo ser


humano (Gaudium et Spes, n. 22) e “não deve ser entendida
como um evento metafísico ahistórico (duas naturezas), mas como
um processo de assunção da totalidade da vida de Jesus na pessoa
do Filho” (BOFF, L., 2008, p.705). E ainda, no dizer de Leonardo
Boff, o lugar central da encarnação foi o anúncio aos pobres, e estes
não podem ser apenas princípio segundo e prioridade relativa,
pois o pobre pertence à substância do Evangelho e à essência da
mensagem e do legado de Jesus. “Dizer o contrário é colocar-se
fora da sagrada herança de Jesus e dos Apóstolos” (BOFF, L., 2008,
p.705). Dessa forma, “desde que o Filho se fez homem e homem
pobre, o lugar do pobre é lugar de Cristo e vice-versa”, e “dizer que
o pobre não inclui necessariamente o Cristo é desdizer o que o Juiz
supremo diz” (BOFF, L., 2008, p.706).

Aqui se percebe que o pobre da TdL não é o mesmo do texto


de Clodovis Boff. NaTdL o pobre e Cristo são pensados como unidade
por causa do mistério da encarnação. Em Clodovis, porém, ocorre
uma ruptura. Reservando a Cristo um primado espistemológico, o
pobre fica relativo e secundário: “Esta divisão não se sustenta em
teologia cristã que toma a sério a verdade dogmática da unidade
inconfundível e indivisível do homem-pobre Jesus com o Filho
eterno do Pai” (BOFF, L., 2008, p.707). Para Leonardo, a ausência de
uma teologia do Espírito Santo faz com que Clodovis se esquive da
presença de Cristo no sacramento do pobre, isto é, “o Ressuscitado
e o Espírito chegam antes da Igreja e do missionário” (BOFF, L.,
2008, p.708). Em síntese, o mistério da encarnação não permite
separar Deus e ser humano, Jesus Cristo e pobres.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


92 DEUS E OS POBRES

José Comblin (2009) ressalta que tais controvérsias não


afetarão teólogos mais do que aos pobres: “Quem vai sofrer serão
os pobres, na medida em que a Igreja se desinteressa deles, por
medo de cair numa heresia (...), a teologia é algo secundário e
dispensável. Mas, os pobres não são dispensáveis” (COMBLIN,
2009, p.198). O que dá a razão de ser do cristão é justamente a
acolhida da mensagem que vem dos pobres. O pobre não é tema
exclusivo do cristianismo. Para o cristão, entretanto, a pobreza tem
um elemento novo. O pobre possui um profundo nexo com Jesus
Cristo e o Reino anunciado. O Verbo assume a condição humana,
subsistindo numa circunstância histórica determinada. O pobre e
o Cristo não podem, portanto, ser separados metodologicamente
como se fossem meros conceitos metafísicos. É nesse sentido que
para Comblin a centralidade do pobre dá acesso à centralidade de
Jesus Cristo, uma vez que “são os pobres que entendem o que é
Jesus Cristo. Não se quer dizer que todos os pobres fazem essa
experiência, mas que o conhecimento se faz dentro dessa condição”
(COMBLIN, 2009, p.200).

Sobre o alcance epistemológico do pobre como princípio


rebatido por Clodovis Boff (BOFF, Clodovis, 2007, p.1006), que
afirma ser o Cristo, e não o pobre, o fundamento da teologia (BOFF,
C., 2007, p.1006), Comblin entende que este não é o ponto de
discussão. Nenhum teólogo, na verdade, negaria que o fundamento
é Cristo. A questão é quem diz “Cristo é o Senhor”, uma vez que
“o papel da teologia não consiste em buscar quais são as palavras
que expressam a fé, mas o que é a fé realmente vivida” (COMBLIN,
2009, p.199). Trata-se aqui da centralidade do pobre não como
mera temática nocional, mas como realidade vivida. Nesta ótica,
o que importa não é como se entende Jesus Cristo a partir desta ou
daquela teologia, mas o sentido com o qual o cristão se assimila a
ele. Aqui, somente os pobres dizem com propriedade que Cristo é
o Senhor (COMBLIN, 2009, p.200).

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


Ubiratan Nunes Moreira 93
Inacianamente e, por que não dizer, mineiramente, João
Batista Libanio (2009), refere-se ao intento de Clodovis Boff
citando os Exercícios Espirituais: “respeitar a verdade do outro, ser
acolhedor e mais disposto a salvar a proposição do próximo do que
condená-la (EE. EE. 22)” (LIBANIO, 2009, p.472). Mas o teólogo
da Faculdade Jesuíta aponta que as acusações de Clodovis Boff,
fazendo reparos teóricos à primazia dada ao pobre pelos teólogos
da libertação, estão mais para uma pureza metodológica acadêmica
do que para a relevância pastoral. O que caracteriza “excesso de
zelo metodológico” (LIBANIO, 2009, p.473). A TdL, neste ínterim,
afirma a centralidade do pobre para além do lugar social para
atingir a própria compreensão de Jesus: “Sem os pobres, não sei
bem como pensar teologicamente a revelação. Essa precedência
do pobre não contradiz ao aspecto principal da fé em Jesus, mas
dá-lhe concretude, consistência, conteúdo, impedindo que a fé se
perca em abstrações e alienações” (LIBANIO, 2009, p.473).

A ausência do pobre é um risco maior para a teologia do que


o excesso de sua relevância. Pode-se acrescentar que a acusação
aos Teólogos da Libertação de ceder ao espírito da modernidade,
instrumentalizando a fé em nome do pobre não parece razoável,
considerando que a fé sem a contribuição da ciência corre sério
perigo de fundamentalismo.

3 Considerações finais: a relevância da questão

O perigo de se habituar a falar do mistério da encarnação do


Verbo em termos metafísicos traz consigo outro risco, desenraizar
a questão dos pobres da Trindade. Vale lembrar que, tanto no
Antigo quanto no Novo Testamento, a Revelação destina-se
primeiramente aos pobres. A Igreja do Vaticano II dava o tom na
frase de João XXIII, apontando já para a opção preferencial pelos
pobres, que ecoaria nas Conferências Episcopais latino-americanas
de Medellín, Puebla e Aparecida: “A Igreja se apresenta tal como
quer ser: a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


94 DEUS E OS POBRES

(MELO, 2008, p.24). A questão da relevância e centralidade do


pobre no fazer teológico específico da TdL, como se vê, parece
inquestionável, uma vez que afastar o pobre de Jesus conduz a um
erro teológico.

Prender-se à polêmica, entretanto, pode dar a sensação


de perda de tempo, uma vez que o excesso de zelo metodológico
pode ofuscar sua relevância pastoral. A opção pelo pobre está sob
vigência da opção por Cristo, como quer Clodovis (BOFF, C.; PIXLEY,
1987, p.146), ou as vítimas são o lugar de onde brota a cristologia,
a lá John Sobrino (BOMBONATO, 2002, p.193)? O perigo não está
em se cometer erros no rigor dos conceitos e na metodologia, mas
em suas consequências pastorais enquanto autocompreensão da
Igreja.

As considerações de Clodovis Boff não estariam apontando


para uma Igreja extremamente preocupada com sua estrutura ad
intra, onde o pobre não passa de uma categoria relativa, metafísica,
o que justificaria atitudes fundamentalistas e triunfalistas de uma
pastoral de manutenção? O pobre é lugar trinitário visível na Igreja?
No contexto acadêmico, nos cursos de teologia e casas de formação
eclesiástica e religiosa, nas estruturas paroquiais e diocesanas, a
opção preferencial pelos pobres é uma realidade pastoral central
ou secundária? O serviço aos pobres é visto como tão essencial à
Igreja como os sacramentos? Valem como reflexão as palavras de
Antônio Alves de Melo:

Nas comunidades onde atuamos, quem são nossos


amigos? Quais são as casas que visitamos? Dedicamos
o mesmo tempo e a mesma atenção a todos ou, como
observava alguém, nos levantamos quando chega
alguém mais rico e continuamos sentados quando
chega um pobre? Tempos atrás se dizia que a Igreja
optara pelos pobres, mas os pobres não optaram pela
Igreja. A observação é incorreta, mas contém elementos

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


Ubiratan Nunes Moreira 95
de verdade e serve de alerta, pois pode estar aqui uma
das razões que levaram tantos pobres para as seitas:
o fato de se sentirem pessoas, “eleitos”, “salvos”, de
serem acolhidos em uma comunidade que os trata
como gente. Sabemos o quanto precisamos melhorar
na acolhida das pessoas em nossas comunidades!
(MELO, 2008, p.35).

A frase de Bento XVI, “a opção pelos pobres está implícita


na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para
nos enriquecer com sua pobreza” (Discurso Inaugural, 3), parece
trazer consigo um duplo aspecto: por um lado, a kénosis de Cristo
deve ser também o esvaziamento da Igreja que acolhe o pobre
enquanto horizonte de compreensão da encarnação, diante dos
povos crucificados e da Terra em perigo de catástrofe ecológica.
Por outro lado, o perigo de cair num otimismo ingênuo, diante de
uma postura magisterial distante do mundo e do sofrimento dos
pobres, fadados a meros objetos da caridade e não como lugar
teológico privilegiado de vivência e encontro com o Ressuscitado,
que também é o Crucificado.

Ubiratan Nunes Moreira. Graduando do 6º Período de Teologia no


Instituto Dom João Resende Costa – PUC Minas.
ubiratansl@hotmail.com

Referências

BENTO XVI, Papa. Discurso Inaugural. CELAM, Documento de


Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007, p.267- 284.

BOFF, Clodovis. Teologia e Prática: teologia do político e suas


mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


96 DEUS E OS POBRES

BOFF, Clodovis; PIXLEY, J. Opção pelos pobres. Petrópolis: Vozes,


1987. (Coleção Teologia e Libertação; Série “Experiência de Deus e
Justiça”).

BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico: versão didática.


Petrópolis: Vozes, 1998. 227 p. (Teologia e Libertação 1/6; Série 1:
Experiência de Deus e justiça).

BOFF, Clodovis. Teologia da Libertação e volta ao fundamento.


REB, Petrópolis, v. 67, n. 268, p.1001-1022, out. 2007.

BOFF, Leonardo. Pelos pobres contra a estreiteza do método. REB,


Petrópolis, v. 68, n. 271, p.703-710, jul. 2008.

BOFF, Clodovis. Volta ao fundamento: réplica. REB, Petrópolis,


v.68, n.272 , p.892-927, out. 2008.

BOMBONATO,Vera Ivanise. Seguimento de Jesus: uma abordagem


segundo a cristologia de Jon Sobrino. São Paulo: Paulinas, 2002.
486 p. (Ensaios teológicos).

COMBLIN, José. As estranhas acusações de Clodovis Boff. REB,


Petrópolis, v.69, n. 273, p.196-202, jan. 2009.

CONCÍLIO VATICANO II. Gaudim Et Spes. São Paulo, Paulus,


2001, p.537-661.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de


Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007.

LIBANIO, J.B. Excesso de zelo metodológico. REB, Petrópolis,


v.69, n. 275, p.472-474, abr. 2009.

LIBANIO, J.B.; MURAD. A. Introdução à Teologia: perfil, enfoques,


tarefas. São Paulo: Loyola, 1996.

MELO, A. A. Opção preferencial pelos pobres e excluídos. Do


Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.
Ubiratan Nunes Moreira 97
Concílio Vaticano II ao Documento de Aparecida. REB, Petrópolis,
v.68, n. 269, p.21-39, jan. 2008.

SUSIN, L.C.; HAMMES, E.J. A Teologia da Libertação e a questão de


seus fundamentos: em debate com Clodovis Boff. REB, Petrópolis,
v. 68, n.270, p.277-299, abr. 2008.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.87-97, jan./jun. 2010.


98 UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL

UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA


LITERATURA DE CORDEL:
“AS PROEZAS DE JOÃO GRILO”
Ronilson Lopes

É primordial falar um pouco sobre esta literatura tão


esquecida em nosso meio. A literatura de cordel é, precisamente,
a poesia popular em rima, antes oral, sendo que ainda em
alguns lugares permanece a oralidade, e impressa em folhetos.
Como exemplo dessa poesia verbalizada, temos, ainda hoje, os
repentistas, que desafiam uns aos outros utilizando a rima.

O momento exato da chegada dessa literatura ao Brasil é


confuso. Uns dizem que veio junto com os colonizadores, outros
dizem que só veio a partir do século XVIII. Porém é certo que chegou
e está entre nós.

Então, por que o nome cordel? Esse nome deriva da forma


de sua comercialização em Portugal. Lá, os folhetos eram vendidos
pendurados em cordões, em barbantes e, portanto, cordéis.
Depois de chegar ao Brasil com a característica inicialmente oral,
esta poesia popular somente foi impressa na segunda metade do
século XIX. Os desenhos eram impressos na capa dos folhetos por
meio da xilogravura, ou seja, a gravura era esculpida na madeira e
posteriormente pressionada na capa como que um carimbo.

Chegando ao Brasil, a literatura de cordel começou a ganhar


uma característica própria, sobretudo, do nordeste brasileiro. Pois
foi aquela região do Brasil que primeiro desenvolveu esta literatura.
Assumindo uma identidade própria, precisamente a do nordeste,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


Ronilson Lopes 99
diversos temas são abordados na literatura de cordel, desde
política a religião, como também história e fatos concretos do
dia-a-dia dos poetas. Mas esse gênero literário não ficou restrito,
especificamente, ao nordeste. Com a saída dos nordestinos para
a região sudeste, como, por exemplo, Rio de Janeiro, São Paulo
e Minas Gerais, o cordel passou a ser conhecido também nesses
estados, ainda que de forma muito tímida.

É interessante perceber a distinção entre a nossa literatura de


cordel, com a sua peculiaridade, e a literatura de cordel portuguesa.
Enquanto que em Portugal essa literatura era dirigida a todos os
públicos, assumindo uma postura ideológica e de reconciliação de
classes, tendo como gênero literário teatral informativo e eram
feitos em verso, prosa e receituário, aqui no Brasil é bem diferente
e particular, ou seja, é dirigida ao meio popular, sendo, também
ideológica, mas crítica e denunciadora contra os opressores, tendo
como gênero literário o seu aspecto informativo e simplesmente
poesia.

Merece, aqui, uma relevância, destacar a forma de como


os cordéis passaram a ser comercializados no Brasil. Muitas vezes,
além de serem vendidos em comércios e em feiras, eram também
vendidos expostos em malas, pelos próprios autores, de casa em
casa.

Pois bem, antes de prosseguirmos, vale destacar os nomes


de dois grandes poetas do passado: Leandro Gomes (1865 – 1918)
e João Martins de Ataíde (1880 – 1959). Este segundo é tido como o
verdadeiro autor do cordel “As proezas de João Grilo”. Antes, havia
um impasse de quem seria essa obra. Uns diziam que era de João
Ferreira de Lima e outros do João Martins de Ataíde. Esse embaraço
só foi resolvido depois de uma pesquisa feita por Ribamar Lopes.
Em sua pesquisa, Ribamar distinguiu que o cordel de João Ferreira
era diferente do cordel de João Martins de Ataíde. No primeiro,
continha oito páginas e o personagem João Grilo era caracterizado

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


100 UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL

como o esperto. No segundo, com Ataíde, o número de páginas


era 32 e João Grilo era trajado como sábio, herói e satírico.

Tendo então passado brevemente pela origem desse


gênero literário, a partir de agora nós iremos adentrar na obra
“As proezas de João Grilo”, e como itinerário fazemos a seguinte
pergunta: é possível encontrar elementos filosóficos no cordel “As
proezas de João Grilo”? Para melhor imergir nessa pergunta, nós
escolhemos algumas estrofes e analisamos. Desse modo, iniciamos
com o segundo verso (nasceu antes do dia) e com o quinto verso
(morreu depois da hora) da primeira estrofe. Esses dois versos nós
relacionamos, porque vimos que estão em consonância com o
sexto verso (no futuro e no presente) da trigésima quarta estrofe.
Portanto, o que perpassa todo o cordel “As proezas de João Grilo”
é justamente essa esperteza dele que o coloca sempre antes e
depois. João Grilo está ininterruptamente à frente de seu tempo
e procura constantemente, com as suas interrogações e soluções,
decifrar os problemas que lhe são impostos. É, pois, essa sabedoria
que o caracteriza.

Já a quarta estrofe, precisamente em duas palavras do quarto


verso (boca grande) e o sexto verso (dava notícia de tudo), mostra
que João Grilo dava notícia de tudo daquilo que ele conhecia. Este
verbo dar vem assinalar o personagem como aquele que transmitia
aos outros a sua inquietude e, talvez, essa inquietude era o que o
tornava sábio. Na trigésima sexta estrofe, em um diálogo com o
mestre dele, seu professor, João grilo fala o seguinte: “cadê os seus
elementos, abra seus olhos mestre velho”. Ele está perguntando
cadê os seus argumentos, cadê a sua verdade, cadê o seu
conhecimento e, ao mesmo tempo abra seus olhos, mestre velho.
Com isso, nos atrevemos a fazer uma analogia com a caverna de
Platão, ou seja, um convite de João Grilo ao mestre, para que ele
veja além e saia da caverna.

Portanto, aquela pergunta que antes fizemos: é possível

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


Ronilson Lopes 101
encontrar elementos filosóficos no cordel “As proezas de João
Grilo”? Vimos que sim, pois é perceptível, na literatura de cordel,
indagações dos próprios poetas, quanto a sua existência, de como
viver no seu cotidiano, como também traços que são próprios da
filosofia, como ética, justiça, moral etc.

Destarte, a literatura de cordel com essa característica


filosófica e, não perdendo a sua raiz popular, vem ocupando um
espaço, ainda que de forma inerme e limitada, em livrarias, nos
meios culturais, como também nos recintos acadêmicos.

As proezas de João Grilo

O cordel As Proezas de João Grilo pode ser dividido da seguinte


forma:
1. João Grilo nasce antes do dia
2. Dava notícia de tudo
3. Apronta com um padre
4. Apronta com um português
5. Sai da escola por ser mais inteligente que seu mestre
6. Encontra sua mãe chorando, visto que ela estava passando por
algumas necessidades
7. Engana os ladrões e fica com o dinheiro deles, desta forma ajuda
sua mãe
8. É convidado pelo rei Bartolomeu do Egito
9. Responde todas as perguntas do rei e se torna o conselheiro
real
10. Ajuda um mendigo a se livrar das acusações de um rico
avarento
11. É convidado por um sultão
12. Apresenta-se esmolambado e é mal recebido pelos súditos do
rei, põe uma roupa fina e é tratado bem. Desta maneira ele ensina
uma lição ao povo que só se importa com a aparência.

O livro é escrito em forma de verso, no total 126, sendo que

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


102 UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL

32 versos são sextilhas e 94 são de sectilhas.

As rimas acontecem no segundo verso combinando com o


quarto e o ultimo, ou seja, nas estrofes de seis versos rimam na
segunda, quarta e sexta, na de sete versos, na segunda, quarta e
sétima.

A história é instigante do início ao fim, porque retrata um


sujeito (personagem popular) que tem que usar de sua esperteza,
sabedoria, para sobreviver.

A narrativa nos lembra a história bíblica velhotestamentária


de José do Egito. Pode-se notar que algumas façanhas são idênticas.
O ambiente onde se dá também é parecido, embora alguns
elementos não se situem só lá. Por exemplo, a vegetação descrita,
como eucaliptos, parece mais Europa, já a descrição do encontro
do personagem central com um português nos faz lembrar da
colonização do Brasil. Sabe-se que as anedotas são algumas das
formas de se libertar da figura que representa o opressor: na história
o português fica como “burro”, caso típico das histórias populares.

Mas, aqui, como nos propomos a responder a pergunta:


é possível fazer filosofia a partir da literatura de cordel?, nos
direcionamos para uma análise mais objetiva, embora em um
curto trabalho, por isso elencamos apenas três estrofes, as quais
pensamos ser essenciais; embora haja outras, aqui apontamos
estas, a saber: Quando o rei faz algumas perguntas a João Grilo:

Perguntou: qual animal


que mostra mais rapidez
que anda de quatro pés
de manhã por sua vez
do meio-dia com dois
passando disto depois,
à tarde anda com três?

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


Ronilson Lopes 103
Deparamo-nos com a mesma pergunta feita a Édipo rei
pela Esfinge na estrada de Delfos, e ele vai dar a mesma resposta:
“o homem”.

Outrossim, escolhemos a estrofe de número 23, já no


finalzinho da narrativa, onde se diz:

Esta mesa tão repleta


De tanta comida boa
Não foi posta para mim
Um ente vulgar, à toa
Desde a sobremesa a sopa
Foi posta para minha roupa
E não para minha pessoa.

Para concluir, a penúltima estrofe:

Eu estando esfarrapado
Ia comer na cozinha
Mas como troquei de roupa
Como junto da rainha
Vejo nisto um grande ultraje
Homenageiam o meu traje
E não a pessoa minha.

Tanto o primeiro exemplo como os dois últimos apontam


para a pergunta fundamental: quem é o homem? Evidente que a
primeira está numa perspectiva, enquanto as outras duas em outra,
embora se complementem. Poderíamos dizer que a primeira, posta
no meio da obra, é o eixo e as “outras o desfecho”, no sentido de
que, se não sabemos quem é o homem, só será possível tratá-lo
segundo as aparências. Ora, o conto não é filosófico, não tem a
pretensão de dar respostas, porém ele nos provoca, nos questiona,
nos fazendo levantar alguns “porquês”, enquanto estudantes de
filosofia.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


104 UM OLHAR FILOSÓFICO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL

Penso que este conto nos convida às seguintes atitudes:


primeiro, a inquietude, segundo, a curiosidade, sempre buscar
novas leituras de mundo.

Referência

AMARAL, Firmino Teixeira et al. Antropologia de folhetos de


cordel: amor, história e luto. São Paulo: Moderna, 2005.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.98-104, jan./jun. 2010.


Recensões 105
LOPES, Ronilson. Contos do meu sertão. Belo Horizonte: O
RECENSÕES
Lutador, 2010. 80p.

Com muita honra apresento a coletânea de contos de Ronilson


Lopes, que estreia na prosa de ficção com bastante sensibilidade
e poesia. Embora com linguagem e temas simples e acessíveis,
Contos do meu sertão é um livro é rico de sentidos. Estudante do 6º
período de Filosofia do ISTA, Ronilson inicia sua obra com o conto
Recordação, em que revisita a Fazenda Grotão, nos arredores de
Carolina, Maranhão, local em que passou a infância.

Nessa visita, guiada com orquestrada maestria pelo narrador/


autor, vemos a casa grande, o pomar e a lembrança da casa que
habitava, que não mais existia. O passeio segue até o rio Itapecuru,
a quem o narrador declara: “vim buscar um pedaço de mim que o
tempo esqueceu!” (p.19). A partir daí somos convidados a entrar
nas memórias dos muitos casos de infância, que incluem temas
dos mais variados: relações familiares, figura paterna, molecagens
e aprontações.

O que mais transparece na leitura de Contos do meu sertão é a


inocência da infância do menino Ronilson e a riqueza de experiências
vividas naquela época. Cavalo de pau, O marimbondo que morreu e
não viveu e Fazendo artes ilustram que esse guri não era nada fácil.
Às vezes eram os irmãos que aprontavam com ele, como relata
em Vem ver quem vem e Iscado no anzol. Nos contos Vaqueiros
e Passarinhar, por exemplo, ficamos sabendo que o menino, ao
mesmo tempo em que se envolvia nas atividades cotidianas, na
faina da fazenda, fugia dos castigos que vinham a galope!

O menino que ganhou o apelido de Bandoleiro, por querer sair para


o mundo, recebeu da mãe o gosto pelos livros. Ainda bem que o
pai, sábio, percebeu cedo e alertou a esposa: “mulher, esse menino
tem que estudar, ele não gosta dessa vida, do que vai viver?” (p.46),
como ele narra em Entre vacas e palavras. Sorte dele, que entrou

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


106 Recensões

no mundo dos livros, e sorte nossa, que podemos agora saborear


essas histórias com gosto de infância. Que bom que, em meio à
correria do cotidiano, o autor nos lembra que somos gente grande
e não temos tempo pra infelicidade.

E assim, em Correntezas, Ronilson se despede do rio, da paisagem,


mas não das lembranças, que, de modo primoroso, partilha
conosco.

Helena Contaldo

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 107
LIBANIO, João Batista.  A arte de formar-se.  4.ed. São Paulo:
Loyola, 2004. 127p. (CES, 10).

Estamos caminhando a passos largos para o fim da primeira


década do novo milênio. O adjetivo novo mais esconde que revela
a realidade em que estamos mergulhados. Isso se dá não só com a
passagem de um milênio para outro. Experiência semelhante se vive
quando da passagem de um ano para outro. Chega-se estourado
ao final do ano e tem-se a falsa sensação de que tudo se renova no
limiar de um ano novo, ainda que nada tenha de fato mudado. O
livro de João Batista Libanio – “A Arte de Formar-se” – quer propor
algo verdadeiramente novo, no campo da formação de novas
gerações, visando dar um conteúdo real e efetivo ao novo. Nesse
sentido, ele aborda que o desafio da formação no mundo de hoje
advém do paradigma do iluminismo, que criou os mitos da razão,
do progresso, da ciência e da técnica todo-poderosos. Aí estão as
características da primeira laicidade, questionadas hoje por uma
nova laicidade, que, porém, não nos liberta do “risco de termos um
pensamento cada vez mais fechado no mundo da especialização, da
fragmentação, do esquadrinhamento das idéias”, no pensamento
de Libanio.

As palavras muitas vezes nos traem. Ao abordar a questão


da formação, Libanio chama a atenção para o risco do uso da
terminologia forma – ção. Apesar de acompanhada do sufixo
“se” e antecedida pela expressão “arte”, o vocábulo formar
pode sugerir colocar na forma. Daí que Libanio opta pela forma
pronominal reflexiva – formar-se – e a define de maneira aberta
e comprometida: “Formar-se é tomar em suas mãos seu próprio
desenvolvimento e destino num duplo movimento de ampliação
de suas qualidades humanas e religiosas e de compromisso com a
transformação da sociedade em que se vive”. Nessa perspectiva,
pode-se usar a expressão “nova”; nova, para significar o que se
quer com um processo de educação voltado às novas gerações.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


108 Recensões

Posto isso, Libanio descreve e analisa cinco pilares da


formação, que devem ser levados em conta num processo educativo
que visa não somente passar informações, mas favorecer às novas
gerações o desenvolvimento de uma inteligência crítica, bem
estruturada.

Sãos os seguintes os pilares apresentados por Libanio: 1.


Aprender a conhecer e a pensar; 2. Aprender a fazer; 3. Aprender a
conviver com os outros; 4. Aprender a ser; 5. Aprender a discernir a
vontade de Deus.

1. Aprender a conhecer e a pensar. Diante da enxurrada de


informações a que estão submetidas as novas gerações,
emerge a necessidade de saber relacionar e contextualizar
toda e qualquer nova informação. Sem um parâmetro que
favoreça comparações, relações, contextualizações, não
se supera o pensamento fragmentado. A contextualização
evita, dentre outros perigos, o fundamentalismo, pois é bem
conhecido o axioma: “um texto fora do contexto serve de
pretexto”. Nessa ótica, entende-se Libanio quando afirma
que “aprender a conhecer é inserir todo conhecimento no
varal do passado, percebê-lo na atualidade do presente e
vislumbrá-lo na sua densidade de futuro”. Resgatando o
pensamento de Edgar Morin, ao qual Libanio se reporta
constantemente em seu livro, sintetiza: “Aprender a
conhecer supera a tendência atual da hiperespecialização,
da fragmentação, da separação, da compartimentação dos
saberes e das disciplinas para pensá-los de maneira poli-
disciplinar, transversal, global, planetário”. Com isso, tem-
se a superação do pensamento especializado desconectado
do contexto e emerge a inteligência geral como portal que
ajuda a entender, evidenciar e lidar com os problemas
específicos. Enquanto a arrogância da razão se apresenta
como portadora de respostas para tudo, e de maneira
especializada, o novo paradigma formativo que favorece o

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 109
aprendizado do conhecer e pensar sabe que “pensa quem
sabe perguntar”. Quem aprendeu a fazer perguntas vê-se
constantemente refletido em realidades exteriores; aprende
a pensar lendo os pensadores e apreende o pensar como
arte de analisar e sintetizar, separar e unir. Quem aprendeu
a conhecer e pensar superou os dogmatismos, curvou-se
diante da complexidade que o rodeia, tomou consciência de
que é um ser de relação e que é nesse mundo de incertezas
que ele vai encontrando fagulhas de certezas.

2. Aprender a fazer. Esse pilar, em articulação com o anterior,


só se o entende em perspectiva histórica. Dirigir com olhar
exclusivamente voltado para o retrovisor pode provocar
um acidente fatal por não permitir que se veja o obstáculo à
frente. Porém, olhar somente para frente não permite muitas
manobras, tais como a troca da faixa, a ultrapassagem.
“Aprender a fazer é colocar-se num movimento histórico
em que o presente assume continuamente uma instância
crítica em relação ao passado”. Por outro lado, faz-se
necessário articular esse presente com o futuro que
se avizinha e com o mais remoto, pois o presentismo
não induz ao aprender a fazer, pois sem futuro não há
necessidade disso. A perspectiva histórica inerente ao
aprender a fazer responsabiliza a pessoa e faz emergir uma
outra perspectiva própria do fazer, a ética. “Aprende-se a
fazer captando o lado ético de todo agir humano”. Isso se
dá porque o pensar histórico se afirma em bases éticas.
“Quanto mais percebemos o alcance de nosso pensamento
e de nosso agir, tanto maior responsabilidade assumimos”.
A tendência atual de irresponsabilidade histórica, tanto
no pensar quanto no fazer, se funda numa mentalidade
de aproveitar o presente diante das incertezas do futuro.
Essa postura, conhecida como “carpe diem”, domina o
agir de homens e mulheres pós-modernos, provocando
uma irrupção do aprender a fazer sem ética. Porém, bem

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


110 Recensões

articuladas as perspectivas históricas e éticas, tem-se a


base para uma relação criativa entre apreender a fazer e
aprender a conhecer. Uma influencia a outra, levando-nos
a afirmar que: “Não há conhecimento sem repercussão
na prática, não há prática sem conhecimento incluído”.
Trata-se aí do velho dilema da articulação entre a prática
e a teoria. Toda e qualquer oposição entre elas redunda
num comportamento prejudicial ao aprendizado. Pode-se
concluir: “Aprender a fazer é, portanto, captar o espírito da
estratégia e da reflexividade que permitem um refazimento
contínuo do agir, à medida que os dados oferecidos pelo
ambiente o pedem e exigem”.

3. Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros.


Mais do que nunca, essa dimensão do aprendizado tem se
mostrado urgente, pois sua primeira lição da convivência é
a tolerância. Tolerância que se expressa em duplo sentido
no verdadeiro aprendizado: teórica e prática. Aqui se entra
de cheio na capacidade de diálogo. Porém pode-se falar do
limite da tolerância? Sim. Há que saber distinguir quando
transigir e quando não. Aprender a conviver tem também
o seu lado de urgência numa sociedade que se impõe
cada vez mais como individualista. Mas não se vence o
individualismo com um mero comunitarismo de evento.
Estar juntos, porém sem articulação de pensamento, de
sentimento, de busca comum, de nada adianta. Precisamos
mudar o velho ditado – “cada um por si, Deus por todos”.
Não. Cada um por si, Deus contra. “Aprender a viver
juntos exige precisamente a capacidade de administrar o
conflito, as divergências, as diferenças, com alegria, paz
e serenidade.” Impõe-se, hoje, o discurso da alteridade.
Como afirma a moral de Lèvinas: “Quando o rosto do outro
irrompe frente a mim, vejo nele escrito – não matarás!”.
Isso é ponto fantástico de superação da moral kantiana,
dos imperativos categóricos. O aprendizado na convivência

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 111
tem duplo resultado: aprende-se a conhecer-se melhor a si
mesmo e ao outro. Descobrimo-nos como seres de tarefas
comuns. A convivência, ainda, nos faz perceber melhor
que não é somente pela razão que aprende, mas por todos
os sentidos e pelas emoções e afetos. “Saber conviver
transforma a vida dos companheiros de vida, de trabalho,
de estudo, de atividade”. A arte de aprender na convivência
pode se constituir como ponte para uma consideração nova
do papel das relações familiares.

4. Aprender a ser. A cultura ocidental, ao mesmo tempo em que


é dualista, é unilateralista. Exatamente por ser dualista, ora
afirma um polo e noutro momento afirma outro. Na questão
de aprender a ser é preciso buscar o equilíbrio: não se é só
cabeça, mas também não se é só coração. Razão e emoção
são duas dimensões que precisam caminhar juntas no
aprendizado do ser. E mais. É preciso um desenvolvimento
integral da pessoa humana, pois “aprender a ser é uma
resposta a esses extremos, procurando o desenvolvimento
integral, total, da pessoa humana: espírito e corpo.” Faz-se
urgente uma antropologia que supere os falsos dualismos:
matéria e espírito, corpo e alma e outros. O holismo tem
se imposto hoje como uma forma de consideração do ser
em meio a outros seres. Como superar o antropocentrismo
e caminhar para uma visão mais planetária do ser? Aqui
entram os temas mais atuais do saber vencer o consumismo
e o hedonismo. Uma boa dialética entre o ter e o ser pode
contribuir para o aprendizado do ser. A busca do sentido
da vida tem se imposto também como tema atual, mas é
preciso estar baseada numa verdadeira busca de si. Essa só
se dá na relação com os outros e com o totalmente outro.
Palavra fora de moda, mas profundamente necessária,
é a humildade do ser frente a outros seres. Aprender a
ser também implica hoje a capacidade do cultivo de uma
consciência crítica frente a tudo o que se impõe como

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


112 Recensões

processo de violência contra o ser e sua consciência.


“Aprender a ser implica necessariamente uma postura crítica
diante da cultura massificada, vulgarizada, banalizada.”
O ser deve resistir a se transformar num mero stand do
consumismo. O ser precisa superar o existir no mero espaço
dos instintos. Isso só se dá na aplicação rigorosa de uma
disciplina dos sentidos. Nada mais falso do que passar da
tirania da castração à tirania do prazer! Beleza, verdade,
ética, transcendência são componentes intrínsecos desse
aprendizado do ser. “Aprender a ser implica ter essa janela
da transcendência aberta para o Absoluto, presente nos
valores e no bem”. Aqui se abre um cenário de plausibilidade
de superação de um ser dominado pelos sentidos.

5. Aprender a discernir a vontade de Deus. Por fim, na arte


de formar-se, depara-se necessariamente com o cultivo
daquilo que torna o ser mais nobre: a liberdade. “Aprender
a discernir é cultivar uma atitude fundamental de liberdade
diante de todas as coisas”. Somente um ser livre está apto
para desencadear um processo de aprendizado positivo. A
atitude de oração, naquilo que ela tem de mais profundo,
pode contribuir verdadeiramente para a conquista de
espaços de liberdade. Aí a própria oração se constitui no
espaço verificador da autenticidade de nossa existência.
Discernir sempre numa atitude permanente de busca.
Somos seres de busca, quando somos livres. Somos seres de
muitas perguntas e poucas respostas. Aprender a discernir
a vontade de Deus nos leva a adquirir a consciência de que
somos meros inquilinos do tempo, como afirma o poeta
espanhol Gonzáles Buelta:

A resposta a uma pergunta


gera em nós novas perguntas.

Alcançar um horizonte

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 113
mostra-nos novos horizontes.

Cada passo dentro de nós


abre-nos novas encruzilhadas.

Um compromisso na história
solidariza-nos com outros desafios.

Se é importante chegar
é para partir de novo.

Se nos satisfaz saber


é para buscar o que não sabemos.

Se nos alegramos com o que somos


é para sair rumo àquilo que não somos.

O mesmo pão que nos sacia hoje


permite-nos sentir fome amanhã.

Somos uma pergunta com respostas parciais


mas só Deus é a resposta.

Somos felizes com os amores humanos


mas só quando têm o brilho do Absoluto.

Somos inquilinos do tempo e do espaço,


mas somos filhos do Infinito.

Mantendo aberto o diálogo para um aprendizado constante.

O texto de Libanio é imensamente rico nas considerações


sobre o aprendizado. Ouso, porém, levantar uma perspectiva
que senti não totalmente presente em suas reflexões. Refiro-me
ao famoso texto de Mao Tse Tung, que começava questionando:
“De onde provêm as idéias corretas? Caem do céu? Não. São
inatas dos cérebros? Não. Só podem se originar da prática social;
Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.
114 Recensões

das três classes de prática: a luta pela produção, a luta de classes


e as experiências científicas da sociedade.” Enfim, a questão da
dialética da luta social é o ponto mais fraco do texto de Libanio.
Está presente, mas falta-lhe a contundência do líder chinês. É
impossível não considerar o que Mão afirma sobre a produção da
teoria:
Na prática social, os homens se enfrentam com todos
os tipos de luta e extraem ricas experiências de seus
êxitos e fracassos. Inumeráveis fenômenos da realidade
objetiva se refletem nos cérebros dos homens por meio
dos órgãos de seus cinco sentidos – a visão, a audição, o
olfato, o paladar e o tato. No começo, o conhecimento
é puramente sensível. No começo esse conhecimento
sensível, se acumulado quantitativamente, produzirá
um salto e se converterá em conhecimento racional, em
idéias. Este é o processo do conhecimento. É a primeira
etapa do processo do conhecimento em seu conjunto,
etapa que conduz, da matéria objetiva à consciência
subjetiva, da existência às idéias. Nessa etapa, todavia,
não se tem comprovado se a consciência e as idéias
(incluindo teorias, políticas, planos e resoluções)
refletem corretamente as leis da realidade objetiva;
ainda não se pode determinar se tais idéias são justas.
Logo se apresenta a segunda etapa do processo do
conhecimento, etapa que conduz da consciência à
matéria, das idéias à existência, e isto significa aplicar
na prática social o conhecimento obtido na primeira
etapa, para ver se essas teorias, políticas, planos e
resoluções podem alcançar os objetivos esperados. De
maneira geral, com relação a esse ponto, o que dá bom
resultado é adequado, sendo errôneo o que dá mau
resultado; especialmente na luta entre a humanidade
e a natureza.

A prática é mãe do conhecimento. Não há, portanto,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 115
verdadeiro aprendizado fora da luta social concreta. É sempre
depois das provas da prática que o conhecimento realiza o salto
necessário do aprendizado: o discernimento das ideias, teorias,
políticas, planos e resoluções formadas durante o curso da reflexão
sobre a realidade objetiva. Aí está o método para comprovar a
verdade.

Deixo aberto o diálogo com o texto de Libanio, propondo


que essas considerações sobre o conhecimento que advém da
militância na luta social possam contribuir para uma assimilação
melhor dos seus cinco pilares da formação.

Pe. Manoel Godoy

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


116 Recensões

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz.


51.ed. São Paulo: Loyola, 2009. 186p.

Com esse título, o linguista Marcos Bagno, apresenta seu


livro no qual denuncia com muita precisão os preconceitos que
envolvem a língua portuguesa no Brasil, sobretudo no meio dos
gramáticos. Com muita ousadia ele afirma: “Ninguém comete
erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém
comete erros ao andar ou ao respirar” (p.149). Sua maior denúncia
é contra os gramáticos que vivem buscando erros aqui e acolá em
um ou outro escrito, em nome de uma “norma culta”. Trata-se de
um verdadeiro deleite percorrer as páginas desse texto que nos
liberta para voos mais altos na arte de escrever. É claro que não se
trata de abolir toda e qualquer norma, mas evitar que em nome de
uma, chamada de culta, se marginalizem todas as demais. O que
importa numa língua é sua capacidade de transmitir com precisão
os conceitos, as ideias, as inspirações. Enfim, a língua serve para
diminuir distâncias entre quem fala ou escreve e quem ouve ou lê.

Nessa perspectiva, aprende-se a valorizar as mais variadas


formas de comunicação que se servem da língua portuguesa no
Brasil. Aprende-se também a se libertar dos fiscais da gramática,
que muitas vezes se tornam verdadeiros inibidores de novos
talentos.

Percebe-se com nitidez o viés militante da obra de Bagno,


que resgata variegadas formas de comunicação espalhadas por
esse país-continente. Os pobres ganham o direito de se comunicar,
sem as amarras gramaticais. Na verdade, os pobres já vivem livres
desses cabrestos, mas com Bagno eles encontram finalmente um
reconhecimento da parte de um erudito da língua. Essa façanha, ou
seja, o reconhecimento do direito dos excluídos de se comunicarem
com liberdade, sem se importarem com a chamada “norma culta”,
Bagno a faz com precisão, transparência, polidez e intrepidez.

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 117
Vejamos seis pontos críticos da atual situação do reconhecimento
do uso da língua descritos por Bagno:

1. “A prioridade absoluta, no ensino de língua, deve ser dada às


práticas de letramento, isto é, às práticas que possibilitem
ao aprendiz uma plena inserção na cultura letrada, dos mais
diferentes gêneros que circulam na sociedade” (p.13).

2. “Todos os aprendizes devem ter acesso às variedade


lingüísticas urbanas de prestígio, não porque sejam as
únicas formas ‘certas’ de falar e de escrever, mas porque
constituem, junto com outros bens sociais, um direito do
cidadão, de modo que ele possa se inserir plenamente na
vida urbana contemporânea, ter acessos aos bens culturais
mais valorizados e dispor dos mesmos recursos de expressão
verbal (oral e escrita) dos membros das elites socioculturais
e socioeconômicas” (p.13-14).

3. “É imprescindível reconhecer que essas variedades


urbanas de prestígio não correspondem integralmente às
formas prescritas pelas gramáticas normativas, isto é, não
correspondem à norma-padrão tradicional” (p.14).

4. “É passada a hora de se produzir uma nova gramática de


referência do português brasileiro contemporâneo que
venha a substituir as gramáticas normativas que ainda
circulam no mercado, eivadas de inconsistências teóricas e
de contradições metodológicas, inspiradas em postulados
não científicos e em preconceitos sociais, cristalizados antes
do início da era cristã; uma nova gramática que descreva e
autorize o que já está pacificamente incorporado à atividade
lingüística de todos os brasileiros” (p.15).

5. “A prática da reflexão lingüística é importante para a


formação intelectual do cidadão; com isso, ainda existe

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


118 Recensões

lugar, em sala de aula, para o estudo explícito da gramática,


desde que ele não seja visto como um fim em si mesmo
nem como o aprendizado de um conjunto de dogmas, de
verdades absolutas e imutáveis” (p.15).

6. “A variação lingüística tem que ser objeto e objetivo do


ensino da língua: uma educação lingüística voltada para a
construção da cidadania numa sociedade verdadeiramente
democrática não pode desconsiderar que os modos de
falar dos diferentes grupos sociais constituem elementos
fundamentais da identidade cultural da comunidade e dos
indivíduos particulares” (p.16).

A grande vantagem de se ter esses seis pontos já definidos


no início de sua obra é que eles dão conta de atirar por terra alguns
preconceitos contra o uso da língua da parte de tantos brasileiros
excluídos em nome de uma “norma culta” gramatical e também
os preconceitos contra os cientistas da língua. É nessa ótica que
Bagno afirma: “Ninguém jamais disse que é preciso deixar os
alunos provenientes das camadas desfavorecidas da população
encerrados em sua própria variedade lingüística, sem permitir que
tenham acesso a outros modos de falar e de escrever” (p.17). A
eliminação da noção de ‘erro’ não significa que vale tudo, embora
se possa dizer que, em termos de língua, tudo vale alguma coisa.
O que nosso autor quer deixar claro é que vale sim, mas desde
que esteja no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas
certas, e, mesmo no lugar errado, no contexto errado e com as
pessoas erradas, se a intenção do falante for precisamente se
contrapor à ordem estabelecida, às normas sociais convencionais,
tais como fazem os compositores de rap e funk das periferias
pobres e marginalizadas.

Tendo esse corolário de ideias em mente, podemos


enumerar os oito mitos que envolvem o preconceito linguístico,
apresentados por Marcos Bagno:

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


Recensões 119
1. “O português do Brasil apresenta uma unidade
surpreendente”.
2. “Brasileiro não sabe português/Só em Portugal se fala bem
português”.
3. “Português é muito difícil”.
4. “As pessoas sem instrução falam tudo errado”.
5. “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o
Maranhão”.
6. “O certo é falar assim porque se escreve assim”.
7. “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”.
8. “O domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão
social”.

Tendo esse valioso instrumento nas mãos, ou seja, a crítica


desses oito mitos que constituem o preconceito linguístico, Bagno
propõe um caminho metodológico de sua desconstrução. Caminho
que começa pelo reconhecimento da crise e culmina numa
mudança de atitude da parte de todos que se conscientizam do
efeito nefasto de se apoiar numa “norma-padrão” gramatical para
excluir parcela significativa (pode-se dizer a maioria) da população
do Brasil do acesso ao conhecimento das mais variadas formas de
uso da língua portuguesa escrita e falada nesse país.

Esse caminho pedagógico de desconstrução do preconceito


linguístico mais se poderia identificar como um método de
subversão no campo da língua portuguesa usada no Brasil, quer
falada, quer escrita.

Essa obra de Marcos Bagno, que já alcançou sua 50ª edição


revista e ampliada, precisa se tornar leitura obrigatória de todos os
que acreditam na pluralidade e riqueza da língua falada no Brasil,
bem como se tornar livro de cabeceira dos mestres da língua. Assim
a gramática estará a serviço da língua e não a língua a serviço da
gramática. Libertar as expressões da língua e ampliar o seu uso,

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


120 Recensões

numa real política de inclusão linguística, deve se tornar uma


bandeira de luta de todos os libertários e defensores dos direitos
de uma cidadania plural e mais ampla possível.

Pe. Manoel Godoy

Horizonte Teológico: Belo Horizonte, v.9, n.17, p.105-120, jan./jun. 2010.


NORMAS PARA COLABORADORES 121

1 Textos inéditos

A revista Horizonte Teológico (HT) recebe contribuições para


suas seções de artigos, comunicações e recensões. Os textos de-
vem ser inéditos e serão submetidos à avaliação do Conselho Edi-
torial.

2 Submissão dos textos

Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial pelo e-


mail: horizonte.teologico@ista.edu.br.

3 Apresentação dos originais

a) O texto deve ser digitado em Word for Windows, fonte Ti-


mes New Roman, corpo 12, papel A4, com margens de 3 cm.
à esquerda, 2 cm. à direita, 3 cm. na margem superior e 2 cm.
na margem inferior.

b) Usar espaçamento 1,5 no corpo do texto e alinhamento


justificado.

c) Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações,


tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso,
basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior.

d) Para citação com mais de três linhas, adentrar o texto em


3 cm e utilizar fonte Times, corpo 10.

e) Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no


próprio corpo do texto.

f) Para notas de rodapé, usar fonte Times, corpo 10.


122

g) Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo,


texto, nome do(s) autor(es), referências e anexos.
h) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da
primeira página com fonte Times 12, em formato negrito, to-
das as letras maiúsculas.

i) Digitar os títulos de seções com fonte Times, corpo 12, em


negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira
linha após o título. Os demais títulos, duas linhas após o úl-
timo parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de
seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de
ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teóri-
ca). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafa-
da com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios.

j) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil pala-


vras, incluindo os anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil pala-
vras.

k) As referências devem ser indexadas pelo sistema autor


data no corpo do texto e não em nota de rodapé. Para citar,
resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um tex-
to de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser
(SILVA, 2005, p.36). Quando o sobrenome vier fora dos parên-
teses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula.

l) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas


e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar
termos estrangeiros.

m) As referências devem ser antecedidas da expressão Re-


ferências, em negrito. A primeira referência deve ser redigi-
da na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências
123
devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser
citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço
entre as referências e sem adentramento; o principal sobre-
nome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais
dos demais nomes do autor (Por exemplo: MATOS, Henrique
Cristiano José. Liturgia das horas e vida consagrada. Belo Ho-
rizonte: O Lutador, 2004.)

n) Se houver outros autores devem ser separados uns dos ou-


tros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais,
em negrito; título de artigo: letra normal, como a do texto.

4 Dados dos autores

Os autores deverão informar obrigatoriamente seus dados


pessoais: nome completo; instituto religioso ao qual está vincula-
do (opcional); maior titulação; atividade atual (local e instituição);
endereço eletrônico.

5 Exemplares dos autores

Os autores de artigos e comunicações publicados receberão


três exemplares da revista; de recensões, dois exemplares.
125
PAULUS
LIVROS RECEBIDOS
www.paulus.com.br

Discernir o chamado – A avaliação vocacional


Luis María García Domínguez

Vocação, do latim vocatione, significa “chamar”. E é assim que as


pessoas se sentem quando decidem servir a vida religiosa: convi-
dadas por Deus a viver essa experiência. O momento é de reflexões
profundas, muitas ponderações e escolhas algumas vezes difíceis
de se fazer.

Em Discernir o chamado – A avaliação vocacional, novo livro da


PAULUS, Luis María García Domínguez aborda os aspectos que
definem a compreensão e o exame da vocação de especial consa-
gração no ministério ordenado e na vida consagrada. Além disso,
oferece ao leitor uma metodologia concreta, a partir de contribui-
ções da psicologia, entre outras disciplinas, para a realização da
avaliação vocacional.

Segundo o autor, discernir esse chamado implica para o candidato


um exercício de busca da vontade de Deus sobre ele e, ao mesmo
tempo, um exercício de disposição livre de sua pessoa a realizar a
126
vontade divina. “Todo discernimento vocacional na Igreja supõe,
além disso, outra instância exterior ao candidato – a dos respon-
sáveis eclesiais que examinam tanto os sinais vocacionais dessa
pessoa como as necessidades do povo de Deus ou da comunidade
consagrada”, explica.

Após o leitor ser apresentado ao sentido e aos critérios eclesiais


relacionados ao discernimento vocacional, o autor apresenta os
passos para estruturar e realizar uma entrevista de avaliação, que
indica os conteúdos considerados necessários para um exame inte-
gral do candidato. As perguntas levam em consideração a história
pessoal do indivíduo, de sua família, personalidade, questões rela-
cionadas à sua sexualidade, entre outras.

A obra constitui a síntese estrita de um tema importante e comple-


xo, por isso foi elaborada de maneira simples e objetiva, tornando-
se um guia de procedimentos e de trabalho para os envolvidos com
o tema. Também destina-se em especial aos superiores religiosos
e eclesiais que desejam conhecer melhor as pessoas que servem
com seu ministério.

Discernir o chamado – A avaliação vocacional é dividido em seis


capítulos e conta com conclusões, apêndices, breve vocabulário de
termos de psicologia e vastas referências bibliográficas.
127

Patativa do Assaré: porta-voz de um povo:


As marcas do sagrado em sua obra
Antonio Iraildo Alves de Brito

“A poesia de Patativa me encantou desde a minha adolescência


pela sua beleza natural, por sua sonoridade, por suas rimas, por
seus temas alegres e tristes. Sua poesia nasce da simplicidade, do
sofrimento e, sobretudo, da beleza do sertão. O sertão de Patativa
é belo. Ele fala a variedade linguística de sua gente. Daí ele ser um
poeta do povo, porta-voz dele. É um defensor ferrenho do serta-
nejo (...).”

Essas palavras são de Antonio Iraildo Alves Brito e confirmam sua


admiração e interesse por esse grande escritor cearense, que re-
sultaram no livro Patativa do Assaré: porta-voz de um povo – As
marcas do sagrado em sua obra, lançamento da PAULUS.

Motivado a apresentar um trabalho que refletisse sobre os as-


pectos do sagrado na obra do poeta sertanejo, o autor inicia sua
abordagem partindo da oralidade, já que a poesia em questão é
essencialmente oral. Em seguida, Brito traça um perfil do sertanejo
e destaca os pontos mais relevantes de sua trajetória.
128
“Sinto-me muito feliz em divulgar o poeta. Patativa não é só do As-
saré. Ele é do Brasil, é do mundo. Sua poesia é universal. Conhecer
Patativa é saber um pouco mais do nosso país, do ‘Brasil de baixo’,
como ele mesmo declamava; é conhecer mais de nossa cultura,
sobretudo a cultura que nasce da vida e resistência dos simples”,
afirma o autor.

No decorrer das páginas, o leitor encontrará análises de poemas


feitas de modo interdisciplinar por meio de múltiplos instrumentos
metodológicos, como a teoria da literatura, a sociologia do conhe-
cimento, a filosofia e a teologia, que mostram como a existência
humana está entrelaçada com os desígnios de Deus.

“Neste globo terrestre


apresento os versos meus
porém eu só tive um mestre
e esse mestre é Deus.”

A obra também conta com ilustrações feitas em xilogravura, todas


produzidas por Nireuda Longobardi, também autora da PAULUS.

Patativa do Assaré: porta-voz de um povo – As marcas do sagrado


em sua obra é fruto da dissertação de mestrado do autor, apresen-
tada ao programa de pós-graduação em Letras, Cultura e Regiona-
lidade da Universidade de Caxias do Sul – RS, em julho de 2009.
129

A fé no evangelho
José Comblin

“É preciso ter fé!”. Quantas vezes já ouvimos essa expressão, prin-


cipalmente quando passamos por alguma situação difícil? Mas o
que é exatamente a fé? O que dizem os textos bíblicos sobre isso?
É o que pretende responder José Comblin em A fé no evangelho,
lançamento da PAULUS.

O livro mostra que a fé é bem diferente daquilo que se ensinava


há alguns anos. Segundo o autor, antes diziam que ela consistia
em acreditar em toda a doutrina proposta pelo magistério ecle-
siástico. Ou seja, os dogmas eram apresentados de maneira que
pareciam puros mistérios incompreensíveis, quando na verdade
são, simplesmente, um ato de confiança. “Ter fé é crer que Deus
nos visitará e entrará na nossa vida, e permanecer aguardando os
acontecimentos para saber aceitar neles o reino de Deus”, afirma
Comblin.

Com o objetivo de estudar essa temática nos seus mais diversos as-
pectos, a obra apresenta reflexões inspiradas nos Evangelhos sinó-
ticos, na teologia do apóstolo Paulo e nos escritos de João, sendo
o mais fiel possível aos textos do Novo Testamento. “Os diversos
livros do Novo Testamento não se repetem, nem se contradizem.
130
Todos são necessários, se quisermos uma visão completa e harmo-
niosa do mistério da fé. Cada livro, tomado isoladamente, nos da-
ria uma concepção parcial e desequilibrada da fé”, explica.

Escrito por um dos mais renomados teólogos do mundo, este tra-


balho não tem o intuito de apresentar ao leitor uma teologia da fé,
mas sim de propor-lhe meditações acerca das Sagradas Escrituras
para voltar às fontes da fé e da vivência cristãs.

A fé no evangelho pertence à coleção Espiritualidade Bíblica, que


contempla mais quatro títulos: A liberdade cristã, Jesus, enviado
do pai, O Espírito Santo no mundo e A oração de Jesus, todos escri-
tos por José Comblin.
131
VOZES
www.paulus.com.br

Medo dos Bárbaros - para além dos choques das civilizações


Tzvetan Todorov

"Numa reflexão que nos leva a atreavessar séculos de história eu-


ripeia, Tzvetan Todorov esclarece as noções de barbárie e de ci-
vilização, de cultura e de identidade coletiva, para interpretar os
conflitos que, aualmente, opõem os países ocidentais ao resto do
mundo. Uma lição magistral de história e de política - e uma verda-
deira 'caixa de ferramentas' - para decodificar os desafios de nosso
tempo."
132

Liturgia das Horas - teologia e espiritualidade


Frei Alberto Bkhäuser

A obra vem ao encontro da necessidade de um aprofundamento


permanente na teologia e na espiritualidade da Oração da Igreja.
Nele o leitor encontrar um precioso subsídio para os sacerdotes,
os diáconos, as comunidades religiosas e todos os cristãos cons-
cientes e participantes, chamados a viverem intensamente como
Igreja essencialmente orante. "Renovada, portanto, e restaurada
completament a oração da santa igreja, conforme sua antiquíssima
tradição, e considerando as nedessidades do nosso tempo, é mui-
to desejável que ela penetre profundamente a oração cristã toda,
torne-se expressão desta e alimente com eficácia a vida espiritual
do povo de Deus." (Paulo VI)
133

Sobre o Viver e o Morrer - manual de tanatolofia e biotanatolo-


fia para os que partem e os que ficam.
Evaldo A. D'Assunpção

Nem sempre a morte foi um tabu na história da humanida-


de. A convivência mais próxima com a natureza e a consequente
observação do ciclo vital de todos os seres vivos permitiam ao ser
humano sentir-se parte desse conjunto, e a sua morte era aceita,
por sua vez, como parte da existência. A vida fluía como um rio des-
lizando em verdejantes planícies. Este livro procura ser um manual
que abre amplamente as portas dessa realidade, sendo sua leitura,
cuidados e refletida, indispensável para todas as pessoas que dese-
jam redescobrir o sentido da vida e vivê-la na melhor de suas quali-
dades. Para isso, sua linguagem é absolutamente compreensível a
qualquer leitor, independentemente de sua formação técnica.
134
PAULINAS
www.paulinas.com.br

ASSIS, Ângelo Adriano Faria de; PEREIRA, Mabel Salgado (Orgs.).


Religiões e religiosidades: entre a tradição e a modernidade. São
Paulo: Paulinas, 2010. 232 p. (Estudos da ABHR, 7).

BINGEMER, Maria Clara L. (Org.). Simone Weil e o encontro entre


as culturas. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Sâo Paulo : Paulinas, 2009.
356 p.

CATÃO, Francisco. Espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas;


Valência: Siquem, 2009. 196 p. (Livros Básicos de Teologia, 14).

CENCINI, Amedeo. Virgindade e celibato hoje: para uma


sexualidade pascal. São Paulo: Paulinas, 2009. 297 p. (Carisma e
Missão).

CHEVITARESE, André L.; CORNELLI, Gabriele (Orgs.). A descoberta


do Jesus histórico. São Paulo: Paulinas, 2009. 167 p. (Quem Dizem
Que Sou?).

CODINA, Victor. Não extingais o Espírito (1Ts 5,19): iniciação


à Pneumatologia. São Paulo: Paulinas, 2010. 333 p. (Iniciação
Teológica).

GOMES, Pedro Gilberto. Da Igreja eletrônica à sociedade em


midiatização. São Paulo: Paulinas, 2010. 174 p. (Comunicação e
Cultura).

HAUGHT, John F.. Cristianismo e ciência: para uma teologia da


natureza. São Paulo: Paulinas, 2009. 292 p. (Kairós).

KESSLER, Rainer. História social do antigo Israel. São Paulo:


Paulinas, 2009. 297 p. (Cultura Bíblica).
135

MALZONI, Cláudio Vianney. 25 lições de iniciação ao grego do


Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2009. 156 p.

MARSILI, Salvatore. Sinais do Mistério de Cristo: teologia litúrgica


dos sacramentos, espiritualidade e ano litúrgico. São Paulo:
Paulinas, 2009. 703 p. (Liturgia Fundamental).

MURAD, Afonso; GOMES, Paulo Roberto; RIBEIRO, Súsie. A


casa da teologia: introdução ecumênica à ciência da fé. São
Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 2010. 246 p. (Percursos e
Moradas).

NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; MACHADO, Jonas (Orgs.).


Morte e ressurreição de Jesus: reconstrução e hermenêutica. Um
debate com John Dominic Crossan. São Paulo: Paulinas, 2009. 167
p. (Quem Dizem Que Sou?).
136
137
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