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TA

Teologia

UMA INTRODUÇÃO
À TEOLOGIA DE KARL RAHNER:
a reabilitação do conhecimento válido e verdadei-
ro como premissa para a Teologia da Revelação

Filipe Henrique de Araújo1

RESUMO: A Modernidade trouxe para a Igreja inúmeros questionamen-


tos e dificuldades, tornando evidente, mas não aceito em um primeiro
momento, as insuficiências de muitos aspectos da teologia católica. En-
tre os pontos controversos está a relação entre Deus e o ser humano.
Karl RAHNER propõe e reflete sobre uma relação transcendental e ab-
soluta do ser humano com Deus: há um sujeito capaz de reconhecer o
Deus que se manifesta, que se revela. Sua grande preocupação é ofe-
recer uma forma de expressar e compreender a experiência de Deus de
forma pertinente ao ser humano moderno, para tanto o teólogo alemão
busca superar a impossibilidade metafísica do discurso sobre Deus ao
reabilitar a existência do conhecimento válido e verdeiro acerca do Ab-
soluto, ou seja, devolve-se a revelação a credibilidade perdida a partir
do Iluminismo. Isso é possível pois o discurso sobre a revelação possui
caráter científico através da epistemologia tomista-transcendental-exis-
tencial desenvolvida por RAHNER. Desse modo, esse artigo, através de
uma pesquisa de cunho exploratório-bibliográfico, procura compreen-
der a epistemologia da teologia fundamental de Karl RAHNER.

1
Bacharel em filosofia e teologia; especialista em teologia contempo-
rânea. Esse artigo científico apresenta o resultado da pesquisa para o
primeiro capítulo do trabalho de conclusão de curso de Teologia da Fa-
culdade Dehoniana, em junho de 2021, com o título O ser humano diante
do Absoluto: a autocomunicação de Deus segundo Karl Rahner, sob a orientação
do prof. Dr. Marcelo Batalioto.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

PALAVRAS CHAVES: Teologia fundamental; Revelação; Karl Rahner.


ABSTRACT: Modernity has brought numerous questions and
difficulties to the Church, making evident, but not at first accepted,
the inadequacies of many aspects of Catholic theology. Among the
controversial points is the relationship between God and the hu-
man being. Karl RAHNER proposes and reflects on a transcendental
and absolute relationship of the human being with God: there is
a subject capable of recognizing the God who manifests himself,
who reveals himself. His great concern is to offer a way to express
and understand the experience of God in a way that is pertinent
to the modern human being. To this end, the German theologian
seeks to overcome the metaphysical impossibility of the discourse
on God by rehabilitating the existence of valid and truthful knowl-
edge about the Absolute, that is, he gives back to revelation the
credibility that has been lost since the Enlightenment. This is pos-
sible because the discourse on revelation has a scientific character
through the tomist-transcendental-existential epistemology devel-
oped by RAHNER. In this way, this article, through an explorato-
ry-bibliographical approach, seeks to understand the epistemology
of Karl RAHNER’s fundamental theology.
KEY WORDS: Fundamental theology; Revelation; Karl Rahner.

INTRODUÇÃO

A reviravolta copernicana causada pela crítica kantiana à


epistemologia de seu tempo, ainda repercute na produção dos sa-
beres. Em certa medida, qualquer pesquisa séria precisa posicio-
nar-se quanto à credibilidade das conclusões desta, isto é, deve-se
questionar acerca dos saberes por ela produzidos, este é um dos
legados kantianos.
Na filosofia transcendental de Kant, alma, mundo e Deus
são considerados ideias transcendentais e nenhum saber objeti-
vo sobre eles pode ser produzido. A não-objetivação das ideias
transcendentais deve-se a impossibilidade de estas passarem
pelos sentidos, ponto de partida para a “construção” do conhe-
cimento para Kant.
Sendo assim, Karl RAHNER propõe uma analítica do co-
nhecimento humano que, apesar de se apropriar de conceitos e
métodos da filosofia transcendental, busca retificar a impossibili-
dade metafísica da filosofia kantiana. Por isso, o ponto de partida

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

do teólogo será o estudo do art. 7 da questão 84, da primeira parte


da Suma Teológica2.
Vale destacar, então, que prescindindo da tradição tomista,
mas buscando um tomismo “puro”3, RAHNER não apenas bus-
cará reabilitar a metafísica, mas demonstrará, a partir da unidade
entre ser e conhecer, que a objetivação negada por Kant às ideias
transcendentais é indevida, pois a metafísica é necessária para um
conhecimento autêntico e verdadeiro.
Com isso, esse artigo, após apresentar como Karl RAHNER
concebe a relação entre filosofia e teologia, vai abordar, principal-
mente, a partir da obra Espíritu en el mundo: metafísica del conocimiento
finito segun San Tomás de Aquino4, como o teólogo compreende o co-
nhecimento e o modo como o conhecimento metafísico é possível
e necessário5. Em outras palavras, esse artigo, a partir da temati-
zação da existência do conhecimento válido e verdadeiro, será o
referencial teórico para postular uma possível revelação, que não
seja mero fruto da subjetividade humana, mas um conhecimento
universalmente válido e verdadeiro.

2
O título desse artigo é: O intelecto pode conhecer em ato pelas espécies inteligíveis
que possui em si, não se voltando para as representações imaginárias? Nele o Aqui-
nate investiga como o conhecer humano pode ser espírito no mundo. A
tese, basicamente, sustenta que todo conhecimento metafísico só poder
ser conseguido através do mundo, isto é, demanda uma experiência con-
creta. Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 17.
3
Cf. Ibidem. p. 11.
4
O título original da obra é Geist in Welt. Zur Metaphysik der endlichen Erken-
ntnis bei Thomas von Aquin. É a sua tese de doutorado em filosofia, escrita
em 1936, e reprovada por ser demasiadamente fundamentada no pen-
samento de Heidegger. Teve a primeira edição em 1941 e, em 1957,
Metz organizou uma segunda edição. No prólogo à segunda edição,
RAHNER afirma que as conclusões dessa pesquisa continuam válidas e
constituem-se uma importante chave de leitura para a sua obra teológi-
ca. Cf. SESBOÜE, Bernard. Karl Rahner: itinerário teológico. 2004. p. 59.
5
Cf. ROCHA, Acílio. O Conhecimento à Luz Do Método Transcendental:
Uma via Para a Antropologia De Karl Rahner, in Revista Portuguesa De Filosofia.
v. 40. n. 4. (1984). p. 418.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

1.1 A relação entre filosofia e teologia para RAHNER

A revelação foi definida pela Dei Verbum como a autocomu-


nicação de Deus. Sendo comunicação, pressupõe um emissor, um
receptor e uma mensagem. Isto é, Deus fala, o ser humano escuta
e o conteúdo dessa comunicação é a revelação, como Deus fala de
Si mesmo, ele autocomunica-se.
A respeito disto, RAHNER chama a atenção para uma ob-
viedade, embora a revelação tenha um caráter universal, ela sem-
pre se dá na história, ela sempre é situada e dirigida a sujeitos con-
cretos. Deste modo, Deus não “fala” no vazio para um ser humano
genérico, mas comunica-se, no tempo e no espaço, com pessoas
específicas.
Entende-se, assim, a consequência desta constatação de
RAHNER: todo conhecimento de Deus é mediado ou compreen-
dido a partir de categorias que as pessoas já possuem, isto é, a
originalidade de Deus se dá na cotidianidade da vida humana. Ao
dirigir-se a sujeitos concretos é preciso que a revelação possa ser
ouvida e compreendida. Como não há sujeitos aculturados a forma
como se dá a revelação não pode prescindir do modo como o su-
jeito se autocompreende e da cosmovisão que possui.
Como o teólogo alemão propõe que a filosofia seja a busca
de autocompreensão ou de interpretação da situação existencial
do próprio indivíduo e, sendo isto, imprescindível ao considerar o
processo através do qual qualquer epistemologia se forma, a filo-
sofia é necessária para a teologia6.
Sobre isto, Tomás de Aquino ensina que da mesma forma
que a fé pressupõe o conhecimento natural, a graça pressupõe a
natureza7. RAHNER, como bom tomista, utiliza desta célebre pas-
sagem do Aquinate para explicitar a relação entre filosofia e teolo-
gia. Como a graça e a revelação dirigem-se ao ser humano inteiro,
ao considerar a natureza humana, não pode preterir-se a raciona-
lidade, o que faz com que a teologia “exija” a filosofia. Ademais, a

6
Cf. PÉREZ, Angel Cordovilla. La teologia es pensar: La relación entre
teología y filosofía en K. Rahner, in Estudios Eclesiásticos: Revista de investiga-
ción e información teológica y canónica. v. 79. n. 310. (2018). p. 396.
7
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Ia. q. 2. a. 2. ad 1.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

história da teologia também demonstra como essa sempre utilizou


e refletiu a partir de métodos e conceitos filosóficos8.
Dito de outra forma, sendo a graça a autocomunicação ab-
soluta de Deus, como condição de possibilidade, exige-se que se
considere o destinatário. Do mesmo modo, a revelação implica a fi-
losofia, pois é preciso pressupor a autocompreensão transcenden-
tal e histórica daquele que escuta a revelação histórica de Deus.
Na teologia fundamental rahneriana considera-se que já no
primeiro contato com a revelação o ser humano teologiza. Isso
porque não é possível expressar e compreender a revelação em
si, pois desde o primeiro momento a compreensão da revelação é
contextualizada, mediada pela autocompreensão do interlocutor
divino, portanto, teologia. Nas palavras de RAHNER:
Revelación en cuanto escuchada y creída es ya nece-
sariamente teología. Tal vez rudimentaria, incipiente. Pero
teología. Puesto que la revelación se hace donde y cuando
es escuchada como histórica y proposicional por un hombre
que sabe otras cosas más que esa revelación, la cual no acon-
tece en todas partes, sino aquí y ahora9.

A compreensão adequada da realidade humana indicará que


filosofia e teologia estão intimamente relacionadas, pois estas ciên-
cias referem-se à essência do ser humano. A filosofia, por ser uma
reflexão teórica sobre a realidade e a existência humana, oferece os
pressupostos para a compreensão do conteúdo da teologia revela-
da. Desta maneira, a filosofia é um momento interno da teologia10:
Pero esta teología, elemento necesario e inevitable del
escuchar de la revelación y de la revelación misma, implica
filosofía: una autocomprensión precedente, tanto trascen-
dental como histórica, del hombre que escucha la revelación
histórica de Dios11.

8
Cf. RAHNER, Karl; VORGRIMLER, Herbert. Diccionário Teológico.
1966. p. 262s.
9
RAHNER, Karl. Filosofía y Teología, in Escritos de teología. 1969. p. 91.
10
Cf. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé. 1989. p. 38.
11
RAHNER, Karl. Filosofía y Teología, in Escritos de teología. 1969. p. 90.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

Não obstante a autonomia das duas ciências, é preciso fi-


losofar na teologia, visto que uma teologia “afilosófica” seria uma
teologia ruim12. Ao propor a necessidade da filosofia para uma
teologia profícua, RAHNER defende que o ser humano precisa
confrontar a mensagem da fé com sua autocompreensão e com sua
cosmovisão, há uma forte conotação existencial.
Sendo assim, o verbete escrito por Karl RAHNER, na enci-
clopédia Sacramentum Mundi, explicita ainda mais a relação entre
filosofia e teologia. A despeito das pretensões de universalidade
e totalidade destas duas ciências, elas não são excludentes, pelo
contrário, ajudam-se mutuamente.
Para RAHNER, se a teologia arrogar para si um valor ab-
soluto e, consequentemente, uma posição totalmente superior à
filosofia, ela se confundirá com Deus. Do mesmo modo, a filosofia
não conseguirá uma reflexão autêntica acerca da existência, caso
negue o aspecto religioso presente nas estruturas fundamentais da
existência humana, pois “uma filosofia que não seja também filo-
sofia da religião e teologia natural seria uma má filosofia, porque
não veria seu objeto”13.
A complementariedade entre filosofia e teologia é impres-
cindível para as duas ciências, enquanto a primeira, conforme fora
visto, reflete sobre a existência humana, a segunda indica quem
é o ser humano e qual é a sua vocação. Como bem sintetiza Pan-
nenberg: “sem um conhecimento sólido da filosofia não é possível
compreender a doutrina cristã em sua forma histórica, nem chegar
a um juízo próprio, fundamentado, a respeito da pretensão à ver-
dade da doutrina cristã na atualidade”14.
Portanto, a filosofia, reflexão primeira sobre a existência hu-
mana, não é capaz de refletir sobre a totalidade da realidade. A
essência desta totalidade pode ser encontrada na revelação. En-
tretanto, a revelação se dá na existência concreta e, desta maneira,
desde o início matizada e mediada por sujeitos concretos. Com

12
Cf. RAHNER, Karl. Filosofía y teología, in Sacramentum Mundi:®Enciclo-
pedia teológica. 1973. p. 210.
13
Ibidem.
14
PANNENBERG, Wolfhart. Filosofia e teologia: Tensões e convergências de uma
busca comum. 2008. p. 9.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

isso, aquele que teologiza precisa buscar uma síntese positiva com
a filosofia, isto é, a filosofia e a teologia encontram sua unidade em
Deus que permeia e transcende toda a realidade15.

1.2 A leitura introdutória Rahneriana do


art. 7 da questão 84 da Suma Teológica

Tomás de Aquino, na Suma Teológica, trata no artigo 7 da


questão 84 sobre o conhecimento em si. É condensada, neste tre-
cho, a epistemologia tomista, isto é, o meio através do qual o co-
nhecimento se forma. Karl RAHNER lerá e interpretará este tre-
cho, a partir da filosofia transcendental e existencialista, sobretudo
de Kant, Marechal e Heidegger.
Todavia, neste artigo, não será apresentada e explicitada toda
a influência filosófica recebida por RAHNER. Os esclarecimentos
necessários acerca dos pressupostos filosóficos serão feitos à me-
dida que tais influências irrompem no texto desta pesquisa. Com
isso pretende-se facilitar a compreensão do uso que RAHNER faz
da filosofia transcendental e do existencialismo.
Após o introito, dois elementos das influências filosóficas rece-
bidas por RAHNER destacam-se na leitura rahneriana do trecho do
Aquinate: (1) ao perguntar-se sobre o ser do homem, irrompe o locus
onde o conhecimento é engendrado, a alma; (2) o filosofar começa por
uma pergunta, que já delimita, de algum modo, a resposta16.
Kant nega que a alma possa ser conhecida objetivamente,
pois não podendo passar pelos sentidos, não pode ser experimen-
tada. RAHNER, partindo da leitura que Marechal faz de Kant,
supera o pensamento deste, ao propor que a imaterialidade do co-
nhecimento demande a existência da alma imaterial, que leva à
unidade entre ser e conhecer17.
A unidade entre ser e conhecer é afirmada pelo teólogo ale-
mão a partir da constatação de que não existe o puramente obje-

15
Cf. SCHULZ, Michael. La necesaria mediación filosófica de la fe y la
teología según Karl Rahner, in Estudios Eclesiásticos: Revista de investigación e
información teológica y canónica. v. 80. n. 313. (2018). p. 327s.
16
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 75-77.
17
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Karl Rahner: Itinerário teológico. 2004. p. 61.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

tivo e nem um conceito totalmente claro e distinto do objeto. Há


uma unidade originária entre ser e conhecer: só pode ser conhe-
cido o que “é” e só poder “ser” aquilo que pode ser conhecido18.
Como se verá adiante, ser é poder ser cognoscível.
Já o ponto de partida do ofício do filósofo, por meio de uma
pergunta, possui a densidade dada por Heidegger a este aspecto
em Ser e Tempo. Porém, ressalta-se, aqui, que a motivação inicial e
pessoal de RAHNER para a sua teologia é encontrar um modo de
explicar Deus para o ser humano hodierno. Com Heidegger, ele
propõe que se não há respostas adequadas, o erro começa pela
pergunta inadequada.
Dito isto, tem-se que RAHNER vai apropriar-se, nesta obra
da compreensão tomista, de que o ser humano possui um cognitio
immaterialis, universalis et necessaria. Isto levará ao cerne da obra Espí-
ritu en el Mundo: conversio ad phantasma. A natureza do conhecimento
humano, imaterial, universal e necessário, exige uma abertura espi-
ritual que há apenas no ser humano e o distingue de todas outras
criaturas19.
Sendo assim, uma importante consequência desta com-
preensão rahneriana da epistemologia metafísica de Tomás é
que para conhecer o ser humano será preciso entendê-lo como
um espírito no mundo. Tal entendimento será aprofundado
adiante, mas desde já é preciso reter que o caráter espiritual do
ser humano possibilita que a partir dos entes finitos, desvele-se
possibilidades infinitas. Ou seja, aquilo que é imaterial, univer-
sal e necessário no intelecto humano encontra correspondência
no ente material, singular e contingente, isto é, há uma unidade
entre ser e conhecer.
Por fim, o que foi visto nos parágrafos anteriores será desdo-
brado ao longo do artigo, a fim de demonstrar como todo conhe-
cimento é, de algum modo, metafísico, pois a estrutura humana é
abertura e tende para o absoluto, para o infinito, para o mistério.
Assim, a lógica transcendental kantiana é assumida e tam-
bém superada, no sentido de que, antes de tematizar as categorias,
há uma estrutura atemática que as possibilita. Tal superação se dá

18
Cf. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé. 1989. p. 27s.
19
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 35.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

quando RAHNER a utiliza para compreender a metafísica do co-


nhecimento tomista em si mesma. Com isso, categorias e conceitos
engendrados pelo Aquinate serão aplicados segundo a lógica trans-
cendental. De modo que o a priori kantiano será compreendido a
partir da natureza espiritual do ser humano conforme é proposto
por Tomás de Aquino.
Kant oferece as bases para um conhecimento válido e ver-
dadeiro. RAHNER utilizará “Kant contra Kant”, ao defender a
unidade entre ser e conhecer oriunda da metafísica tomista do
conhecimento. Assim, a lógica transcendental e a espiritualidade
humana não estarão mais em oposição ou contradição, através da
analítica do Ser Absoluto a unidade entre ser e o conhecer é, não
apenas possível, mas necessária.

1.3 O Absoluto como possibilidade do conhecimento

Nesta seção, serão retomados e aprofundados alguns aspec-


tos da metafísica do conhecimento tomista, tal como são com-
preendidos por RAHNER. Não se busca apresentar a epistemolo-
gia metafísica, mas demonstrar como o Absoluto é necessário para
qualquer conhecimento verdadeiro e como o ser humano é o locus,
no qual o Absoluto é desvelado.

1.3.1 Homo quaerens

A curiosidade impele o ser humano a fazer muitas desco-


bertas, tanto que os avanços científicos são inumeráveis, as técnicas
utilizadas para lidar com o solo e até mesmo nas relações huma-
nas, desenvolvem-se cada vez mais. Todavia, nenhum avanço tec-
no-científico ou sociocultural, nenhum domínio sobre a natureza
foi capaz de cessar a busca do ser humano por “algo a mais”.
Isto porque o ser humano “tem que” perguntar. Esse plus
que impele a humanidade a sempre questionar, a perguntar, não se
dirige a um ente específico, isto é, diante das singularidades, o ser
humano pergunta pela universalidade, pela totalidade do ser. Com
isso, esse perguntar existencial não é corriqueiro, não se pergunta
por qualquer coisa. O questionamento existencial é profundo e

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

decisivo, pois liberta o ser humano da superficialidade e da inge-


nuidade primitivas.
Assim, a mendicância, a contingência e a finitude humana
são manifestadas claramente na pergunta nunca totalmente res-
pondida pela totalidade do ser, que, por sua vez, jamais deixará
de ser colocada, pois ao perguntar-se sobre o ser, o ser humano,
também, pergunta sobre si mesmo20.
Em tempos de um materialismo-positivista senão explícito,
diáfano, é mister colocar em xeque a credibilidade de questões
metafísicas. Talvez, não se deva perguntar sobre a razão pela qual
este tipo de pergunta é feita, mas por que o ser humano é capaz de
fazê-la. Não há pergunta sobre o que é totalmente desconhecido
ou incognoscível, pergunta-se sobre o que pode ser conhecido e
sobre o que é parcialmente conhecido.
Portanto, a pergunta pelo ser revela, segundo RAHNER, que
o ser humano é espírito no mundo, isto é, possui a abertura ao ser
em absoluto, é espírito, por isso questiona-se sobre o ser. Entretan-
to, não consegue inteligir sem recorrer ao exterior, ao mundo. O
conhecimento humano é marcado pela unidade do mundo (sensi-
bilidade) e do espírito (pensamento)21.

1.3.2 Homo quaerens in mundi

O ser humano não pergunta ex nihilo, pelo contrário, são pes-


soas concretas, situadas no tempo e no espaço que questionam.
A existência humana é necessariamente histórica e, consequente-
mente, sujeita a situações e contextos vitais, culturais e sociais. Este
locus é o ponto de partida da pergunta metafísica.
Nesta subseção, além de refletir sobre o tempo e o espaço,
é indispensável apresentar o conceito heideggeriano de mundo, o
que dará condições de compreender o que RAHNER propõe ao
postular a mundanidade como um aspecto intrínseco ao ser huma-
no e do conhecimento.
A partir disto, afirma-se que a sensibilidade é o ser-em-si de
uma forma enquanto matéria. RAHNER tem presente a clássica

20
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 74.
21
Cf. Ibidem. p. 93.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

distinção de matéria e forma, a matéria apenas é pura potencia-


lidade ou indeterminação, enquanto a forma é como que o “re-
ceptáculo” do ser, que delimita e que atualiza a potencialidade da
matéria no tempo e no espaço.
Com base nisto, pode-se dizer que só se pode conhecer
aquilo que em certa medida já se é, o que faz com que o cognos-
cente tenha em seu ser, a priori, o que ele pode conhecer. Assim,
os sentidos (a sensibilidade) tem como forma apriorística o espaço,
ou seja, aquilo que de algum modo pode ser percebido.
Neste processo de percepção, os sentidos externos não go-
zam de plena autonomia, não há, como ver-se-á adiante, uma per-
cepção ou um conhecimento puramente objetivo. Isto leva, em
um primeiro momento, à complementariedade imprescindível de
um sensus internus, a imaginatio. Quanto à imaginatio, entende-se que
é uma ilimitação pura da espacialidade. De certo modo, aquilo
que é captado pelos sentidos é reconhecido e inteligido através da
imaginação22.
Deste modo, o tempo não é uma sucessão de eventos, como
tradicionalmente muitos concebem. Para o teólogo alemão, é justa-
mente o tempo que permite que haja a sucessão de eventos, visto
que é anterior aos eventos. Isto é fruto da teologia da criação cristã. Já,
para os sentidos, o tempo limita toda potencialidade daʃʀʆɻʍɿʎ 23 e tal
limitação é constitutiva do tempo e um dos à priores da imaginatio24.
Compreende-se, então, que espaço e tempo são caracterís-
ticas da materialidade e são indissociáveis. A importância destes
para a sensibilidade advém que, na matéria sensível, espaço e tem-
po estão profundamente enraizados. Através da materialidade ir-
rompem, necessariamente, a temporalidade e a espacialidade. Des-
ta forma, a quantitas expressa a matéria, que, posteriormente, pode
ter uma determinação qualitativa25.

22
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 128.
23
A opção de utilizar a palavra gregaʃʀʆɻʍɿʎpara referir-se ao movimento
deve-se ao fato de que a palavra em português, normalmente, é associa-
da apenas ao movimento espacial. Já em grego é um conceito clássico
que considera o movimento enquanto local, quantitativo, qualitativo,
isto é, qualquer mudança no ente.
24
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 124.
25
Cf. Ibidem. p. 127.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

Conforme foi dito, a concepção rahneriana de mundo é


fortemente influenciada pelo conceito de mundo de Heidegger.
A fim de aprofundar a reflexão de como o ser humano pode ser
compreendido como espírito no mundo, será apresentado o que é
o mundo na filosofia existencialista heideggeriana.
A pergunta sobre a formação do mundo é, também, sobre
a formação do homem, bem como sobre de que modo as coisas
estão em relação ao homem.26 O Mundo não é, ontologicamente,
uma determinação do ente que em sua essência o Dasein27 não é.
Mundo é um caráter do Dasein.28 Em outras palavras, o entendi-
mento sobre o Mundo não será obtido por meio da enumeração
dos entes visíveis, mas do fenômeno, que é determinado como o
que se mostra como ser e estrutura-do-ser.29
O que se apresenta primeiro no mundo? As coisas.30 Toda-
via, as coisas não são uma simples presença, providas de uma exis-
tência puramente objetiva, uma vez que elas se revelam para o
homem como instrumentos.31 Assim, não se trata de conhecer as
propriedades ônticas do ente, mas de determinar a estrutura do
seu ser.32
Por fim, o Dasein possui o seu mundo cotidiano, com o qual
ele possui familiaridade. Tal mundo é também denominado de
mundo ambiente. A mundanidade é uma estrutura existenciária
que permite ao Dasein, no mundo ambiente, se mover entre as
coisas e manejá-las. De tal modo que as coisas deixam de ser sim-

26
Cf. HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo,
finitude, solidão. 2011. p. 361.
27
Dasein, literalmente pode ser traduzido como ser aí. É um conceito im-
portantíssimo na filosofia de Heidegger, que, não obstante ao desenvol-
vimento que o mesmo teve no pensamento do autor, pode ser compre-
endido como o próprio ser. Cf. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger.
2002. p. 29s.
28
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2012. p. 201.
29
Cf. CLAROS, Luis Fernando Moreno. Martin Heidegger: el filósofo del ser.
2002. p. 169.
30
Cf. RODRÍGUEZ, Ramón García. Heidegger y la crisis de la época moderna.
1987. p. 86.
31
Cf. VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. 2002. p. 28.
32
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2012. p. 207.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

plesmente coisas e passam a ter um novo significado, a partir de


sua relação com o Dasein.33
Enfim, sem o mundo aberto pela existência humana, os en-
tes não teriam sentido. Logo, o fenômeno Mundo não deve ser
entendido como a simples totalidade dos entes, mas como uma
estrutura das relações de referência constituída pela existência hu-
mana, como ser-em-o-mundo34.

1.3.3 Homo quaerens ex mundi

O ser humano está no mundo e, segundo RAHNER, mesmo


se houvesse a possibilidade de ir para “outro lugar” ou para outra
“realidade”, o fato do ser humano, ser-em-o-mundo aqui, conti-
nuaria determinando sua forma de pensar e ser35. Não há fuga mun-
di, não há lugar que o ser humano poderia refugiar-se do mundo
sem a pena de já não ser humano e de racionar sem as “categorias”
mundanas.
Todavia, no ser e no conhecer, o sujeito distancia-se do mun-
do, aliena-se, estranha-se, afasta-se dos entes. Isto pode ser percebi-
do pela busca de conhecimentos universais válidos e verdadeiros.
Embora o universal, para RAHNER, não exista em si, há a busca
pelo o conhecimento universal. Tal pendor é fruto da abertura es-
piritual humana: o sujeito inserido no mundo pergunta pela tota-
lidade da realidade.
Deste modo, por ser “espírito encarnado”, o ser humano
só conhece através da materialidade, da sensibilidade. Mas, para
RAHNER, a objetividade do conhecimento requer uma oppositio
mundi36, pois somente assim é possível a elaboração de conceitos
universais, isto é, um saber que existe em vários e que pode ser
dito de vários.

33
Cf. CLAROS, Luis Fernando Moreno. Martin Heidegger: el filósofo del ser.
2002. p. 171.
34
Cf. ZIMMERMAN, Michael. Confronto de Heidegger com a modernidade: tec-
nologia, política e arte. 2001. p. 221.
35
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 78.
36
Essa categoria tomista utilizada por Karl RAHNER significa o conhecer
único enquanto ato de pensar. Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo.
1963. p. 92.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

Quanto a isto, sabe-se que o processo através do qual se for-


ma um conceito universal chama-se abstractio. Abstrair seria sepa-
rar ou identificar no quid particular aquilo que pode ser aplicado a
outros quid. Em outras palavras, é aquilo que pode ser identificado
em um ente qualquer, que permita que ele seja da mesma espécie
de outros singulares.
Por exemplo, ao deparar-se com um cachorro, ele é reconhe-
cido como tal, pois o sujeito cognoscente já possui um conceito
universal de cachorro que permite tal identificação. Entretanto,
nunca em um ente singular poder-se-á encontrar todas as poten-
cialidades contidas no conceito universal, uma vez que este possui
certa ilimitação que é fruto do ser. Assim, o ser fundamenta o quid,
que, por sua vez, limita o ser37.
Desta maneira, para RAHNER, a diferença ontológica, por
meio da qual o sujeito cognoscente distingue-se do cognoscido é
através do “pensar”. O inteligir requer um equilíbrio entre corpo/
sensibilidade/ente e o espírito/abstração/ser, de modo que nessa fa-
culdade os conceitos universais são aplicados aos entes e dos entes
os conceitos universais são engendrados. Esse movimento de mão
dupla entre o esse e o ente, é chamado por RAHNER de reditio38.

1.3.4 Conversio ad phantasma

No ato de conhecer, praesentia mundi39 e oppositio mundi são


concomitantes, como a reditio torna claro. Isso se deve à unidade
do conhecimento: não há conhecimento apenas sensível e nem
conhecimento apenas abstrato, há o conhecimento. Deste modo,
o conhecimento intelectual sempre está relacionado ao conheci-
mento sensível e vice-versa40.

37
Cf. OLIVEIRA, Manfredo de Araujo. É necessário filosofar na teologia:
unidade e diferença entre filosofia e teologia, in Pedro Rubens Ferreira
de OLIVEIRA; Claudio PAUL (orgs.), Karl Rahner em perspectiva. 2004. p.
215.
38
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 225s.
39
Rahner utiliza esse conceito tomista para expressar o conhecer como
sensibilidade. Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 91.
40
Cf. RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 235.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

Este processo de ir do singular ao universal e do uni-


versal ao singular, a reditio, é o ponto de partida da conversio ad
phantasma, processo esse que expressa a unidade essencial do
único conhecimento humano, resultado da unidade da estru-
tura humana.
A conversio ad phantasma evidencia a unidade estrutural do
ser humano e do conhecer pela constatação de não se conseguir
pensar ou compreender algo sem recorrer a alguma forma de con-
teúdo sensível. Assim ao se deparar com algum ente, para que ele
seja percebido, há algum conhecimento universal a priori que o
possibilita.
Por isso, a memória não é um depósito de representações
sensíveis, phantasmata, que são utilizadas à medida em que o ser
humano conhece, mas é a expressão do único conhecimento que
se torna patente através da sensibilidade (corpo) e do espírito,
isto é, a conversio é um ato do espírito relacionado a um ato da
sensibilidade41.
Portanto, o conhecimento humano é espiritual que, por
meio da abstractio, almeja conceitos universais. Todavia, por ser
espírito no mundo, não pode escapar do uso das imagens, phantas-
mata. Logo, o conhecimento humano é paradoxal, toca o ser puro
e simples, o Absoluto, mas a partir de entes finitos42.
A metafísica do conhecimento exposta aqui, apesar de sua
brevidade, apresenta a teoria epistemológica rahneriana: partindo
do mundo sensível segue-se a abstractio, obtém-se conceitos uni-
versais e eles são aplicados ao mundo através da reditio. Por sua vez,
o conhecimento, mesmo que abstrato, não se desvencilha das ima-
gens, é retido através da conversio ad phantasma. Mas nesse ínterim,
uma questão permanece aberta: como o Ser, um ente extramun-
dano, pode ser conhecido? Isso se dá através da antecipação, como
será visto na próxima seção.

41
Cf. ROCHA, Acílio. O Conhecimento à Luz Do Método Transcendental:
Uma via Para a Antropologia De Karl Rahner, in Revista Portuguesa De Filosofia.
v. 40. n. 4 (1984). p. 411.
42
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Karl Rahner: Itinerário teológico. 2004. p. 61.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

1.3.5 A antecipação

A antecipação é, para RAHNER, a capacidade que o espíri-


to humano possui de, ao se deparar com um objeto particular, con-
siderar todos os objetos possíveis. Assim, essa faculdade humana
leva o sujeito a uma contínua busca pela totalidade. Conforme foi
visto, o ser humano sempre se depara com perguntas existenciais,
ou seja, que problematizam a totalidade da realidade. Essa facul-
dade provoca e possibilita esse “dinamismo questionante”, pois é
uma abertura para que no ato de conhecer, concomitantemente,
seja percebido o horizonte de todo o conhecimento.
Desse modo, ao conhecer um objeto particular apresenta-se
mais do que ele mesmo. Sendo o horizonte de todo o conheci-
mento o Absoluto ou Ser, percebe-se que o objeto da antecipação
é o Ser. Através do limitado conhecimento de um ente finito vis-
lumbra-se o ilimitado, a antecipação desvela a infinitude. De certo
modo, por considerar o Ser a possiblidade de todo conhecimento,
no ente finito manifesta-se o limite do Ser que em si não possui
limite algum43.
Ao argumentar sobre o modo como a antecipação é aber-
tura do espírito e, de certo modo, um conhecimento que tende ao
Absoluto e busca pelo Ser, o teólogo alemão propõe que, sendo a
antecipação a condição sine qua non para o conhecer e o agir hu-
manos, ela aponta para a existência de um ente que possui toda a
posse de seu ser. Ou seja, a antecipação tem como meta a Deus.
Isso poderia parecer com um argumento a priori para a
existência de Deus. Entretanto, basta relembrar que a antecipação
exige uma experiência com um ente particular. Para RAHNER,
ao afirmar a finitude real de um ente, é preciso que haja a existên-
cia de um ens absolutum, cuja existência é afirmada implicitamente
através da antecipação44.
Do conceito de antecipação aqui apresentado é possível ain-
da destacar que, graças a essa faculdade, é possível a existência de

43
Cf. TABORDA, Francisco. Ouvinte da Palavra: uma introdução a sua
leitura, in OLIVEIRA, Pedro Rubens de; TABORDA, Francisco (orgs).
Karl Rahner 100 anos: teologia, filosofia e experiência espiritual. 2005. p. 103s.
44
Cf. RAHNER, Karl. Oyente de la palabra. 1976. p. 89-95.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

conceitos universais, bem como da abstração, conforme abordada


anteriormente nessa pesquisa. De modo que se pode compreender
porque tal faculdade é a condição de possibilidade para o conhe-
cimento dos objetos45.
Sendo a Revelação necessariamente mediada e situada no
tempo e na história, através da antecipação há a possibilidade de
se conhecer mais do que aquilo que se apresenta aos sentidos. A
abertura, característica essencial da antecipação, dota o espírito
humano de “ouvidos” para escutar, mesmo que atematicamente, o
Ser e o que ele quer falar.

1.3.6 A negação

Após tratar das categorias da antropologia e epistemologia


rahnerianas da sensibilidade, da abstractio, da conversio ad phantasma
e da antecipação, há ainda um conceito que se relaciona a essas ca-
tegorias e que é imprescindível: a negação. Através desse conceito
será possível compreender o modo como se é possível contemplar
o Ser já que todo e qualquer conhecimento, ordinariamente, parte
de uma experiência sensível.
Na conversio ad phantasma, sinteticamente, através da reditio
um conceito universal é aplicado a um ente a fim de “reconhecê-
-lo”. Nesse movimento, o non ens também é conhecido, pois graças
a antecipação, o ente é percebido simultaneamente com o Ser em
sua totalidade. Esse não-ente (non ens) é a negação.
Por ser a dimensão do horizonte do Ser que não está no
ente apreendido, mas que a partir desse se manifesta, vê-se que a
negação não é o “nada”, mas uma affirmatio transcendental. Con-
vém citar novamente, se com a antecipação, o Ser sempre se dá
conhecer, esse “algo mais”, o non ens, que surge nesse processo é a
afirmação do Ser: “esta affirmatio trascendetalis es ya de por sí aquella
negativo”46.
É de suma importância reter essa caracterização que RAH-
NER faz sobre a negação: a infinitude do Ser é manifesta pela
antecipação na experiência com um ens, faz com que o non ens não

45
Cf. OLIVEIRA. op. cit. p. 216.
46
RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 290.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

seja nihil, mas a afirmação transcendental do Ser, ou seja, o não


ser apreendido através da negação não é o nada, mas remente a
infinitude. Somente assim será compreendido que a palavra pode
comunicar Deus, pois ela é a portadora da negação, ou seja, porta-
dora do Ser47.

1.4 Considerações finais

A intenção desse artigo foi indagar sobre a possiblidade de


um conhecimento verdadeiro e universalmente válido sobre o ser.
A busca pela reabilitação da metafísica é necessária pois qualquer
discurso acerca da revelação, dirigido ao ser humano hodierno,
precisa de credibilidade. Sobretudo, nesse tipo de conhecimento
que muitas vezes encerra o discurso sobre Deus no ambiente pri-
vado e subjetivo. No fim, trata-se de apresentar a teologia como
ciência. Ao fim do texto, assim expressa RAHNER:

Para que podamos oír, si Dios habla, tenemos que sa-


ber que Él es; para que su palabra no encuentre a uno que ya
sabe, tiene Él que permanecemos oculto; para que Él hable
al hombre, tiene que encontramos su palabra allí donde ya
siempre estamos, en nuestra situación terrestre, en la hora
terrestre. Al penetrar el hombre en el mundo convertendo se
ad phantasma, se ha cumplido ya la revelación del ser en ab-
soluto y, en el hombre, el saber de la existencia de Dios; y,
sin embargo, este Dios nos permanece oculto como el más
allá del mundo. Abstractio es la apertura del ser en absoluto
que coloca al hombre delante de Dios; conversio es sumirse
en el aquí y ahora de este mundo finito, que hace de Dios
el lejano desconocido. Abstractio y conversio son para santo
Tomás lo mismo: el hombre. Entendido así el hombre, éste
puede escuchar si por acaso Dios habla, porque sabe que
Dios es; puede hablar Dios, porque Él es el desconocido. Y si
cristianismo no es idea del eterno y siempre presente espí-
ritu, sino de Jesús de Nazaret, la metafísica de santo Tomás

47
Cf. RAHNER, Karl. Oyente de la palabra. 1976. p. 91.

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Uma introdução à teologia de Karl Rahner

será cristiana, si revoca al hombre hacia el aquí y ahora de


su mundo finito, pues también el Eterno penetro en él, para
que el hombre «le» encontrara y en «Él» se encontrara una
vez más a sí mismo48.

Portanto, através destes fundamentos metafísicos, RAHNER


demonstra que a teologia é possível, pois o ser humano é capaz de
superar a finitude e a contingência do mundo para colocar-se dian-
te do Absoluto. Assim, tratar a revelação como um conhecimento
universalmente válido, permite superar qualquer psicologismo da
experiência religiosa humana, fazendo com que essa discussão não
seja mais reservada ao foro íntimo, mas uma questão que toca a
toda existência humana.

48
RAHNER, Karl. Espíritu en el mundo. 1963. p. 388.

69
Uma introdução à teologia de Karl Rahner

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