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Da Rua ao Teatro

EZIO BITTENCOURT

Da Rua ao Teatro,
os prazeres de uma cidade
sociabilidades & cultura
no Brasil Meridional

1999

1
Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
Da Rua ao Teatro

Capa: Iraí Mirapalhete e Ezio Bittencourt


Em destaque, alegoria metálica fabricada na Escócia, apresentando símbolos
alusórios à Comédia, à Tragédia e à Música. Compõe a fachada interna do Teatro
José de Alencar, de Fortaleza, no Ceará. (TEATROS DO BRASIL).
Revisão Lingüística: João Reguffe.
Reproduções Fotográficas: Adão Pedroso e Deoclécio Rembowsky
Editoração: Sandra Morales

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)


________________________________________________________________________

B624s Bittencourt, Ezio.


Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade: sociabilidades &
cultura no Brasil Meridional - Panorama da história de Rio
Grande/Ezio Bittencourt. – Rio Grande: Ed. Furg, 1999.
??? p: il.
1. Espaços teatrais – Rio Grande, R.S. – História. 2. Cultura –
Sociabilidades – Rio Grande, R.S. – História. 3. Cultura – Espaços
teatrais – Rio Grande, R.S. – História. 4. Vida urbana - Lazeres - Rio
Grande, R.S. - História. 5. Espetáculos teatrais – Rio Grande do Sul –
História. I. Título.

CDU: 792(816.5)(091)
________________________________________________________________________

Catalogação na Publicação: Simone Bittencourt CRB: 10/1171

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Da Rua ao Teatro

Da Rua ao Teatro,
os prazeres de uma cidade
sociabilidades & cultura
no Brasil Meridional

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Da Rua ao Teatro

EZIO BITTENCOURT

Da Rua ao Teatro,
os prazeres de uma cidade
sociabilidades & cultura
no Brasil Meridional
(Panorama da história de Rio Grande)

Prefácio de
Ruth M. Chittó Gauer

Edição Comemorativa aos 30 Anos da FURG

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Da Rua ao Teatro

Em memória daqueles que, através de seus


registros ou da preservação de fontes preciosas à
pesquisa da cultura em Rio Grande, viabilizaram
este trabalho:

Coriolano Benício,
Manoel Pinto Ferreira Júnior,
Antenor Monteiro,
Carlos Alberto Minuto,
Frederico Carlos de Andrade,
Inah Emil Martensen...

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Da Rua ao Teatro

Determino o estabelecimento de teatros


públicos bem regulados, pois que deles resulta a
todas as nações grande esplendor e utilidade,
visto serem a escola onde os povos aprendem as
máximas sãs da política, da moral, do amor, do
zelo, e da fidelidade, com que devem servir aos
soberanos, e por isso não só são permitidos
como necessários.
(Alvará do rei D. José I, 1771)

Não podemos deixar de manifestar o nosso


prazer por ver nesta Vila do Rio Grande um
teatro ereto por uma sociedade composta de

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Da Rua ao Teatro

cidadãos que não pouparam trabalho e


despesas para a sua conclusão; o qual servirá
de escola para se aprender os bons costumes,
aumentar a civilização, e para festejar os Dias
Nacionais e as nossas belas instituições.
(O NOTICIADOR. Rio Grande, 10 set.1832)
AGRADECIMENTOS

À família Piragine e, em especial à querida prima Melissa pela


solidariedade, convívio, carinho e amizade.
Aos meus pais pela confiança e dedicação constantes.
A Leandro Barbat, acadêmico do Curso de História da Universidade do Rio
Grande que, atuando como bolsista particular em iniciação científica neste estudo, revelou
seu inabalável entusiasmo e vocação à pesquisa.
Às instituições e bibliotecas onde foram realizadas as investigações,
sobretudo, à Biblioteca Rio-Grandense e à CAPES que viabilizou a execução deste
estudo.
À Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Queiroz (URG – aposentada) pelo incentivo
inicial. Aos professores Dr.ª Maria Eunice Moreira (Pós-Graduação em Letras – PUCRS);
Dr.ª Maria Lúcia Kern (Pós-Graduação em História – PUCRS), Dr. Hélio Silva
(Antropologia – PUCRS), Doutoranda Francisca Michelon (Pesquisadora
cinematográfica. Instituto de Letras e Artes – UFPel), Bailarina Beatriz Batezat Duarte,
Arq. Júlio Nicolau Curtis (Arquitetura – UFRGS), Dr. Ivo Bender (Artes Cênicas -
UFGRS), Musicólogo Décio Andriotti, por seus comentários engrandecedores e sugestões
a versões anteriores de capítulos desta publicação.
À Prof.ª Dr.ª Léa Perez que iniciou-me nos estudos sobre a cidade e
proporcionou-me uma visão mais generosa da realidade brasileira.
Em especial, à Prof.ª Dr.ª Ruth Gauer pelo aceite da orientação, valorização
do material empírico, intervenções sempre precisas, completa flexibilidade e muita
paciência.
À Prof.ª Maria Alice Sampaio pela revisão ortográfica e lingüística e à
Bibliotecária Simone Bittencourt (ULBRA) pela normatização de notas, fontes,
referências bibliográficas e catalogação de minha dissertação.
Ao Curso de Pós-Graduação em História da PUCRS, onde foram
realizados os estudos. À FURG pela publicação desta obra e, mui particularmente, à Pró-
Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis e à Editora e Gráfica desta Universidade
pelo cuidadoso trabalho realizado.
Finalmente, expresso gratidão ao apoio e carinho de meus amigos e colegas
que, direta ou indiretamente, compartilharam de muitas alegrias e angústias ao longo dos
últimos anos na tessitura desse escrito.

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Da Rua ao Teatro

SUMÁRIO

LOCAIS DA PESQUISA.....................................................................................
ILUSTRAÇÕES................................................................................................
LISTAGENS E LEVANTAMENTOS...................................................................
TABELAS......................................................................................................
GRÁFICOS.....................................................................................................
PREFÁCIO...............................................................................................

INTRODUÇÃO: OS ITINERÁRIOS DA PESQUISA..........................................

O ESPETÁCULO DA CIDADE: RIO GRANDE, DO BARROCO AO ECLETISMO


A CONSTRUÇÃO DO URBANO....................................................................
POPULAÇÃO...................................................................................................
IMAGENS E AUTO-IMAGENS.....................................................................

ORGANIZAÇÃO & MOVIMENTO: A SOCIEDADE RIO-GRANDINA


FESTAS E LAZERES AO AR LIVRE..................................................................
SALÕES, CLUBES E ASSOCIAÇÕES...............................................................
ENTRE BOTEQUINS E CAFÉS...................................................................
DIVERSÕES E VIDA NOTURNA.................................................................

EDUCAÇÃO, ARTE & CULTURA: A MONTAGEM DO PATRIMÔNIO LOCAL


EDUCAÇÃO................................................................................................
CONTEXTOS DE LEITURA........................................................................
BELAS-ARTES............................................................................................
MÚSICA.....................................................................................................
DRAMATURGIA......................................................................................

O ESPAÇO TEATRAL: SEUS USOS, IMAGENS & SIGNIFICADOS


IMAGENS E HISTÓRIA.............................................................................
ESPAÇOS TEATRAIS E ARQUITETURA....................................................
OS ESPAÇOS TEATRAIS EM RIO GRANDE.................................................
Os Primeiros Registros.............................................................................
Teatro Sete de Setembro.............................................................................
Anfiteatro Albano Pereira e Politeama Rio-Grandense..................................
Sociedade União Operária.........................................................................
Os Cine-Teatros...........................................................................................
Cine-Teatro Carlos Gomes.......................................................................
Cine-Teatro Guarani...............................................................................
Cine-Teatro Avenida................................................................................

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Da Rua ao Teatro

Rádio-Teatro...........................................................................................
AS UTILIZAÇÕES DO ESPAÇO TEATRAL..................................................
Bailes.....................................................................................................
Reuniões Políticas.....................................................................................
Outros Registros................................................................................

SOB OS OLHOS DE CLIO; MELPÔMENE, TALIA, EUTERPE & TERPSÍCORE


OCUPAM A CENA
TEATRO DRAMÁTICO..............................................................................
TEATRO LIGEIRO.................................................................................
Zarzuelas..................................................................................................
Operetas................................................................................................
Revistas................................................................................................
TEATRO LÍRICO.....................................................................................
MÚSICA..........................................................................................
DANÇAS CÊNICAS...................................................................................

DE ÉRATO À GRETA GARBO


DECLAMAÇÃO.............................................................................................
TRANSFORMISMO...........................................................................
ILUSIONISMO..........................................................................................
PROEZAS, RARIDADES E PUGILISMO.......................................................
BONECOS ARTICULADOS........................................................................
ATIVIDADES CIRCENSES..........................................................................
ESPETÁCULOS DE VARIEDADES...............................................................
MÁQUINAS PRODUTORAS DE IMAGENS E DE SONS......................................
TEM FRANCESA NO MORRO.......................................................................

ÚLTIMAS NOTAS....................................................................................

GLOSSÁRIO......................................................................................
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................

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Da Rua ao Teatro

LOCAIS DA PESQUISA

Arquivo da Prefeitura Municipal do Rio Grande. Rio Grande.

Arquivo do Centro Municipal de Cultura “Inah Emil Martensen”. Rio Grande.

Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Biblioteca da Escola de Belas Artes “Heitor de Lemos”. Rio Grande.

Biblioteca Central da Universidade do Rio Grande. Rio Grande.

Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades. Universidade Federal do Rio Grande do


Sul. Porto Alegre.

Biblioteca do Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

Biblioteca do Curso de Arquitetura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

Biblioteca do Instituto de Ciências e Processamentos de Dados. Pontifícia Universidade Católica


do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

Biblioteca “Érico Veríssimo”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre.

Biblioteca de Música “Armando Albuquerque”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre.

Biblioteca Central da Universidade Luterana do Brasil. Canoas.

Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro.

Centro de Documentação Histórica “Prof. Hugo Neves”/ Universidade do Rio Grande. Rio
Grande.

Discoteca Pública “Natho Henn”. Casa de Cultura Mário Quintana. Porto Alegre.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio Grande.

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Da Rua ao Teatro

Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.

Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande.

Museu de Comunicação Social “Hipólito José da Costa”. Porto Alegre.

ILUSTRAÇÕES

FIGURAS

1 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, em 1809......


2 – Vista da Vila de Rio Grande, por volta de 1824..........................................
3 – Le Quai de Belle-Vue à San Pedro de Rio Grande. s.d................................
4 - Anúncio comercial da Casa Tulherias, em 1881........................................
5 – Planta da região central da cidade de Rio Grande, em princípios do século XX.....................
6 – Planta do centro da cidade de Rio Grande, em 1926 assinalando as reformas urbanísticas
efetuadas................
7 – Desenho comemorativo ao Bicentenário da Fundação de Rio Grande, em 1937....................
8 - Crítica do jornal O Amolador às músicas da Procissão da Ressurreição de
1874.....................................
9 - Passeio burlesco do Clube Boêmio pelo centro da cidade, em 1881...........
10 - Baile na Imperial Sociedade Instrução e Recreio, em 1880......................
11 – Inauguração do Cassino Rio-Grandense, em 1875....................................
12 – Fachada, provavelmente, original do Teatro Sete de Setembro, em 1847..............................
13 – Cidades do Rio Grande do Sul que possuíam teatros na primeira metade do século
XIX..............
14 – Projeto de construção do Cine-Teatro Avenida. 1928............................
15 – Planta central da cidade de Rio Grande com a localização dos seus principais espaços teatrais,
percebidos de finais do século XVIII a 1940........................
16 – Baile de Máscaras no interior de um teatro, em 1868..............................
17 - Homenagem da imprensa ao ator João Caetano dos Santos, em 1881.......
18 - Prospecto anunciando a Companhia Portuguesa de Comédias Aura Abranches.....................
19 - Anúncio do espetáculo da Companhia Dramática Alemã Georg Urban, em 1931...................
20 – Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da Companhia
Nacional de Comédias, de Iracema de Alencar, em 16 de julho de 1936..................
21 - Homenagem do jornal Marui à Companhia Espanhola de Zarzuelas, em
1880.............................
22 - Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da Companhia
Nacional de Operetas, dos Irmãos Celestino, em 9 de outubro de 1935.................
23 - Anúncio da Companhia Italiana de Operetas Giordanino, em 1925............
24 - Programa do Cine-Teatro Avenida anunciando a revista local Ride...Palhaço!.............
25 - Prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro, anunciando o espetáculo da bailarina Ada
de Bogoslowa, em 27 de fevereiro de 1935.......

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Da Rua ao Teatro

26 - Prospecto publicitário do Politeama Rio-Grandense, anunciando os populares espetáculo de


tela e palco, nos dias 23, 24 e 25 de maio de 1925................

FOTOS

1 - Aspecto da Rua dos Príncipes no final do século XIX..................................


2 - Bonde elétrico trafegando pela rua Mal. Floriano Peixoto, em 1915.............
3 - Desfile do Clube Carnavalesco Saca-Rolhas, em 1911................................
4 - Desfile do Clube Carnavalesco Arara, em 1920.......................................
5 – Vista da Praça Xavier Ferreira, na década de 1940.....................................
6 – Vista da Praça Tamandaré, no começo do século XX..................................
7 – Batalha de Flores realizada na rua Marechal Floriano Peixoto, na década de 1910.......
8 – Aspecto da Praia do Cassino, em fins do século XIX..................................
9 – Palco-Salão na “Praia de Banhos”, atual Cassino. s.d................................
10 – Edifício do Clube Caixeiral, construído em 1912.....................................
11 - Cinema Ideal Concerto. Década de 1920...................................................
12 - Aspecto da Biblioteca Rio-Grandense nas décadas de 1920 e 1930..........
13 – Edifício do Conservatório de Música de Rio Grande, na década de 1920.....
14 – Concerto local realizado em dezembro de 1927 no Cine-Teatro Carlos Gomes. No palco, o
Coro das Fiandeiras da ópera Navio Fantasma, de Wagner.....................
15 – Integrantes da Companhia Lírico-Dramática Guarani. s.d.........................
16 – Fachada do Teatro Sete de Setembro na década de 1940..........................
17 – Interior do Teatro Sete de Setembro, em 1940..........................................
18 – Vista do palco do Teatro Sete de Setembro, na década de 1940.................
19 – Fachada do Politeama Rio-Grandense, em 1889......................................
20 – Interior do Politeama Rio-Grandense, no começo do século XX.................
21 – Interior do Politeama Rio-Grandense. s.d. Vista da platéia, frisas e galerias tomadas por
crianças....................................................................
22 – Interior do Politeama Rio-Grandense. s.d. Destaque para as frisas e galerias.......................
23 – Vista externa da Sociedade União Operária, em 1940................................
24 – Interior da Sociedade União Operária. s.d...............................................
25 – Fachada do Cine-Teatro Carlos Gomes. s.d..............................................
26 – Interior do Cine-Teatro Carlos Gomes. s.d.................................................
27 – Exterior do Rádio-Teatro, em 1935...........................................................
28 – Interior do Rádio-Teatro. Vista da platéia e galerias. s.d............................
29 - Em cena, o célebre soprano brasileiro Bidú Sayão.....................................

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Da Rua ao Teatro

LISTAGENS E LEVANTAMENTOS

1 - Hotéis de Rio Grande..........................................................................


2 - Associações Recreativas...................................................................
3 - Associações Recreativas Esportivas....................................................
4 - Associações Recreativas Classistas..................................................
5 - Associações Recreativas Carnavalescas..............................................
6 - Associações Políticas.......................................................................
7 - Associações Maçônicas.......................................................................
8 - Associações de Assistência Social........................................................
9 - Associações de Imigrantes...................................................................
10 - Circos que se apresentaram na cidade..............................................
11 - Escolas............................................................................................
12 - Bibliotecas......................................................................................
13 - Artistas Plásticos..............................................................................
14 - Conjuntos Musicais............................................................................
15 - Músicos, maestros, compositores e obras..........................................
16 - Sociedades dramáticas do século XIX..............................................
17 - Sociedades dramáticas das décadas de 1900 e de 1910......................
18 - Sociedades dramáticas das décadas de 1920 e de 1930.....................
19 - Dramaturgos e obras........................................................................
20 - Atores................................................................................................
21 - Valores dos ingressos aos espetáculos cinematográficos, dos cine-teatros rio-grandinos, nas
décadas de 1920 e 1930............................................

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Da Rua ao Teatro

TABELAS

1 – Quadro do ensino primário em Rio Grande, em 1940, apresentando o número de escolas e


alunos matriculados...............................................

2 – Quadro comparativo das cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande apresentando o
número de habitantes e as respectivas porcentagens de matrículas de alunos no curso
primário, no ano de 1940........................................................................................................

3 – Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande, nas décadas de


1920 e 1930. Por curso.....................................................

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Da Rua ao Teatro

GRÁFICOS

1 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Em anos,


por cursos. Década de 1920.........................

2 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Em anos,


por cursos. Década de 1930...............................

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Da Rua ao Teatro

PREFÁCIO

Este livro aborda diversas questões sobre a vida social da cidade de Rio
Grande, localizada ao sul do Rio Grande do Sul. O olhar do autor voltou-se para a
história da cidade e, mais especificamente, para seus espaços teatrais: teatros, cine-
teatros e sociedades recreativas possuidoras de palcos. Os teatros, territórios de
sociabilidade característicos dos centros urbanos modernos, são descritos em suas
relações com a sociedade da época. Esses locais se constituíram em ambientes sociais
fundamentais à vida urbana do início do século XX. O retrato de Rio Grande construído,
passa pela compreensão da dinâmica dos espaços de representação teatral que, sem
dúvida, revelam a dinâmica da urbanização vinculada à industrialização crescente, a
qual, refletiu-se no mercado do lazer e da diversão.
O panorama histórico da cidade, descrito na obra, revela a vocação desse
centro urbano para as atividades comerciais ao lado da vocação burguesa para o lazer.
No modelo de cultura burguesa, o estilo de vida da cidade, ainda no início do século
XIX, foi marcado pela adoção de práticas européias. Os saraus lítero-musicais, os
clubes, as associações, os espetáculos itinerantes, os cafés, entre outros locais de lazer
se multiplicavam no Rio Grande da época configurando, dessa forma, a vida social da
cidade. Com a chegada das primeiras levas de imigrantes houve uma intensificação da
oferta do tipo de entretenimento que atendia ao desejo de um grupo social local que se
pretendia culto e elitizado. O desenvolvimento das artes plásticas, dos clubes, da
dramaturgia, assim como o aumento dos conjuntos musicais, ao lado do já tradicional
Entrudo e das festas religiosas, revelam, para o autor, algumas características da vida
social da cidade do início do século.
Podemos ler no desenvolvimento da análise que os espaços de lazer, desde
os remotos tempos coloniais, realizavam-se nas áreas públicas. As festas populares -
religiosas ou laicas - ocorriam nesses locais. Com a República, as ruas, praças e os
largos, adquiriram maior importância e foram redesenhados e higienizados segundo os
ditames do período, atendendo às vaidades dos estratos sociais economicamente em
ascensão. Os elementos trabalhados na obra permitem uma leitura alargada do meio
urbano e do lazer, nele desenvolvido. A cidade então descrita, revela uma polifonia

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Da Rua ao Teatro

própria dos momentos de transformação que promoveram a ampliação de novas


elaborações sociais. Essas elaborações são reveladoras da civilização que se
desenvolveu no sul do Brasil, desde o início do século XVIII. No campo do enredo
histórico é enfatizado que paralelamente às transformações desses espaços - que
passaram a ser freqüentados por vários segmentos sociais - ampliaram-se os locais
citadinos de lazer. Criaram-se novas casas de teatro, cine-teatros, clubes, cinemas,
cafés, bares, confeitarias, entre outros. Paralela a essa ampliação via-se também o
alargamento da instrução pública.
Um aspecto importante desta publicação é a revelação do processo de
europeização da sociedade brasileira, do período. Nos palcos de então havia uma
predominância marcante - na dramaturgia, no teatro ligeiro, no teatro lírico, na música,
entre outras formas de expressões artísticas - das influências européias. Nesse contexto,
destacam-se, na dramaturgia, as traduções e adaptações de textos franceses e de
originais portugueses. No teatro ligeiro as zarzuelas espanholas e operetas francesas. No
teatro lírico as óperas italianas. Lê-se na obra, que na música, o repertório austro-
germânico e o francês, também se faziam presentes. Essas formas de espetáculo com
influência européia povoavam os palcos de nosso Estado ao lado das produções
nacionais com destaque na dramaturgia a qual tinha, como um dos temas preferenciais,
as comédias de costumes. Assim, os grupos cultos poderiam criar uma distância de si
próprios que permitisse a auto observação matizada de ironia, fina e sutil às vezes,
outras, cáustica e corrosiva. Esse panorama descrito, não era um privilégio da cidade de
Rio Grande; mas revelador do modelo de lazer cultural das principais cidades do Rio
Grande do Sul. Esses locais integravam a vida urbana do Estado e desvendam o espírito
polissêmico que envolvia a sociedade, calcada na cultura ocidental. Por outro, as
comédias de costumes, entre outras formas de expressões artísticas locais, revelavam os
conteúdos específicos da sociedade nacional. Nesse sentido o estudo encaminha para a
compreensão da heterogeneidade intrínseca dessa sociedade construída historicamente.
A obra aqui apresentada constituí-se em um importante estudo sobre a
difusão artístico-cultural na cidade de Rio Grande, assim como no Estado do Rio Grande
do Sul. Ela permite a compreensão de como os contatos do sul do Brasil com o mundo
europeu, no campo artístico-cultural, ocorreram.
A construção dessa descrição só foi possível de ser realizada graças ao
enorme trabalho de pesquisa realizado pelo autor, tarefa que antecede a sua escrita.
Através da construção de um importante banco de dados, Bittencourt, conseguiu
comprovar a importância do atual estudo. Desse modo, a pesquisa possibilitou localizar
o foco de discussão sobre o modelo de europeização da cultura brasileira, proposto nos
palcos do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX. A narrativa
apresentada revela, de forma visível, uma imagem dos palcos do passado. Através de sua
investigação o autor pode constatar que os espaços teatrais integravam-se,
completamente, à vida urbana; que foram um dos principais fatores que possibilitaram o
contato da cidade com o mundo. Esse contato permitiu que o lazer, a arte, a cultura, o
divertimento, a arquitetura, a política e a economia, pudessem ser lidos na dinâmica do
processo de urbanização marcado pela ampliação e transformação dos espaços públicos
de lazer.
O banco de dados, construído por Bittencourt, permitiu a análise que ora
prefacio. No entanto ele, sem dúvida, não esgotou-se nesta publicação. A riqueza de seus
dados, a densidade de suas informações permitem que se vislumbre muitas outras
análises que poderão se beneficiar do árduo trabalho realizado. Obviamente haverá

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Da Rua ao Teatro

sobreposição de informações na medida em que tal estudo for cotejado por outros
pesquisadores que, abordando a mesma temática, poderão desenvolver análises
complementares, embasadas na sólida pesquisa efetuada pelo autor.

Ruth M. Chittó Gauer


Pós-Graduação em História/PUCRS

INTRODUÇÃO:
OS ITINERÁRIOS DA PESQUISA

Esta obra constitui-se em uma edição revista e ampliada do primeiro


volume de minha dissertação de mestrado em História do Brasil aprovada em agosto de
1998 no Curso de Pós-Graduação em História, da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre.
O estudo buscou resgatar, de forma panorâmica, a vida social e cultural1 da
Cidade de Rio Grande, enfocando, mais precisamente, a história e o papel de seus espaços
teatrais (teatros, cine-teatros e clubes possuidores de palcos) nesta sociedade, de suas
inerentes relações com a coletividade e com o meio urbano.
Embora tenha privilegiado os decênios de 1920 e 1930 – em função das
fontes disponíveis à pesquisa – a obra acompanha o desenvolvimento da cidade e a
dinâmica de sua população, desde o Período Colonial, percorrendo seus espaços públicos
e semi-privados de sociabilidades e de cultura.2 Centrando as análises em Rio Grande, o
estudo adquire dimensões que excedem as fronteiras municipais, revelando diversos
aspectos das sociedades brasileira e sulina inclusas em um amplo processo civilizacional,
irradiado mundialmente a partir do Ocidente e traduzido em nosso país, pela mestiçagem
de culturas.
1
Quando utilizo a expressão “vida social e cultural”, de forma alguma estou dicotomizando sociedade e
cultura. Ao contrário, meu objetivo é justamente enfatizar estas duas dimensões, indissociáveis, da atividade
humana. Constituem-se, pois, em distintos planos de reflexões.
2
O sentido do termo “sociabilidade” empregado neste estudo, associa-se ao utilizado por Georg Simmel que
o entende como uma parte integrante da vida pública, sendo uma prática social relacionada muito mais ao
prazer do contato com o outro, ao gozo do estar junto, do que com a resolução dos problemas da vida, menos
próxima do trabalho do que do lazer, definindo-se pela “interação entre iguais” e onde a diferença não pode
interferir nesta aproximação. (SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal.
São Paulo: Ática, 1983. p. 173.).
Entendido em sua forma popular o conceito de “cultura” utilizado neste estudo relaciona-se a aquisição de
conhecimentos, especificamente vinculados à instrução e às artes.

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Da Rua ao Teatro

A publicação desta dissertação sob a forma de livro, tem por objetivo


atender à demanda não somente do público especializado, mas também dos leitores em
geral, interessados sobre as atividades sociais e culturais desenvolvidas pela sociedade rio-
grandina de tempos passados.

~~~
História, vida social, arte e cultura são temas que sempre despertaram meu
interesse. Desde a infância “viajava” com as estórias de minha bisavó Dinorah ao contar-
me que seu pai fazia parte de uma “companhia de cavalinhos”; do avô Ivan e suas
peripécias nas agitadas matinées do Politeama; da avó Haydée e as aulas de piano e
audições no Conservatório de Música; do maestro Piragine e as vivências dos espaços
teatrais... Com grande prazer, perdia-me - ou encontrava-me ? – por horas, debruçado na
elaboração de desenhos, pinturas, ousando na literatura e na dramaturgia. Aulas de artes
plásticas e de canto lírico na Escola de Belas-Artes e até de ballet no Municipal, marcam
meus primeiros contatos com as artes. O interesse pela vida social e cultural da cidade
efetivaria-se em 1988, quando passei a assinar uma coluna no jornal A Opinião Pública,
de Pelotas, enfocando estes assuntos. As aulas de francês - ou seria melhor, as “lições de
vida” em francês – com a conhecida professora local Lyuba Duprat, intensificaram meu
gosto pelas manifestações do espírito e pela história da cidade. No alto de seus noventa e
tantos anos, mestre em língua e cultura francesas e em história da arte, a mente ainda
lúcida e brilhante recordava, entre uma lição e outra, de um mundo passado: o Rio Grande
do início do século XX, onde seus pais dirigiam-se elegantes em carro puxado a cavalo ao
Teatro Sete de Setembro para assistir a Companhia de Operetas do maestro Lahoz. Na
monografia de conclusão do Curso de História, da Universidade do Rio Grande, já
revelaria o gosto pelas pesquisas na área da cultura. O tema: o antigo Conservatório de
Música local.
Em 1995, atuando então como docente do Departamento de
Biblioteconomia e História, desta universidade, fui apresentado pela Prof.ª Dr.ª Maria
Luiza Queiroz ao Arquivo “Coriolano Benício”. Foi como se as portas do paraíso
tivessem se aberto: uma coleção com cerca de 3.000 prospectos publicitários de espaços
teatrais locais, para não comentar os recortes de jornais com assuntos culturais e demais
fontes. Mais tarde, perceberia que o paraíso idealizado no primeiro contato com aquele
material raro, devidamente catalogado e disposto em muitas pastas perfiladas na
prateleira, seria muitíssimo relativo.
Ante a este material, inquietei-me acerca das atividades sociais e culturais
desenvolvidas na sociedade rio-grandina e, mais especificamente, por àquelas
engendradas por seus espaços teatrais. Apreendendo-os como “espelhos de uma época”
suas análises implicariam na revelação de inúmeros elementos articulados à história
social.
Enfrentar o arquivo valorizando ao máximo suas preciosas informações, foi
minha constante preocupação. Compulsando esse material levantei os nomes e as origens
das companhias e dos artistas que se apresentaram na cidade, as datas dos espetáculos, os
espaços teatrais utilizados, os programas executados, a autoria dos programas, os preços
dos ingressos, a hora e a dinâmica do espetáculo, assim como informações sobre a
orquestra e sua regência, a direção das companhias e outros dados. Após a compilação das
múltiplas informações para fichas de transcrição individuais de cada espetáculo, foram

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Da Rua ao Teatro

elaboradas planilhas que possibilitaram uma primeira visualização da movimentação dos


espaços teatrais rio-grandinos.
Embora possua grandes lacunas, o acervo desta coleção de prospectos
apresenta uma maior periodicidade a partir de 1920, estendendo-se até a década de 1980.
Na impossibilidade de trabalhar com todo o período, resolvi me deter nas duas décadas
iniciais do material, ou seja, os Anos Vinte e os Trinta. Para preencher as
descontinuidades, utilizei o jornal Rio Grande, de janeiro de 1920 a dezembro de 1940,
onde eram veiculadas as programações teatrais. Assim através de uma pesquisa exaustiva
deste recorte temporal reconstituí, a quase totalidade da movimentação diária desses
espaços.
Mas como iniciar um trabalho partindo do ano de 1920 se a história de
muitos desses espaços remontava ao século XIX? Desta feita obriguei-me a mergulhar no
Dezenove e nos primeiros decênios do Vinte. Para tanto utilizei a coluna diária Fatos e
Coisas de Antanho, escrita por Manoel Pinto Ferreira Júnior (M.P.F.J., como assinava)
publicada no jornal Rio Grande a partir de 1941 e que, valendo-se de antigos periódicos
citadinos, remontava a diversos aspectos da vida cotidiana na cidade desde o século XIX,
mais precisamente a partir de 1832 quando foi fundado o primeiro jornal local. A vida em
sociedade e a movimentação teatral eram motes constantes da coluna. Fatos e Coisas de
Antanho remetendo-me aos jornais originais utilizados por seu autor, possibilitou-me,
além da obtenção de informações acerca da programação dos espaços teatrais, a apreensão
de vários aspectos sócio-culturais da sociedade rio-grandina revelados, sobretudo, nos
Capítulos II e III deste livro. Parcialmente transcrita como volume três de minha
dissertação de mestrado e sob o título de Elementos à História Cultural da Cidade de
Rio Grande (com 1.741 registros) a coluna foi organizada em ordem cronológica das
informações nela contidas, facilitando o acompanhamento da história da sociedade local, e
constituindo-se num rico material para futuras investigações.3
Se a movimentação artística percebida nos espaços teatrais de Rio Grande
estava intimamente relacionada às ocorrências registradas por alguns autores, em casas de
espetáculos do mesmo gênero nas cidades de Pelotas e de Porto Alegre, achei fundamental
valer-me dessas publicações para estabelecer conexões entre elas, e assim possibilitar uma
visualização mais ampla das atividades teatrais na Província/Estado. Deste propósito,
somando várias fontes primárias e bibliografia disponível, nasceu a elaboração de um
Banco de Dados – apresentado como o volume dois de minha dissertação de mestrado -
contendo diversas informações sobre a movimentação teatral destas cidades, nos séculos
XIX e XX (até 1940). A informatização do material (Programa Microsoft Access 97)
permitiu-me múltiplas consultas e o entrecruzamento dos dados obtidos. As principais
ocorrências nele levantadas fundamentaram os Capítulos V e VI desta obra, assim como o
trato direto com os periódicos de época a que o referido banco remete. Manancial às
múltiplas análises, Subsídios Para o Estudo da Movimentação Teatral no Rio Grande

3
A transcrição corresponde as colunas editadas entre 2 de janeiro de 1941 a 27 de dezembro de 1950. A
interrupção da coleta de dados deveu-se à intensificação de repetidas informações observadas a partir desta
data. Fatos e Coisas de Antanho, todavia, continuou a ser escrita até 1992, por diferentes autores. O material
reproduzido não corresponde à totalidade dos registros apresentados na referida fonte, mas sim somente
àqueles relacionados ao cotidiano da cidade e às atividades sociais e culturais de sua população. Cf.
BITTENCOURT, Ezio. Elementos à História Cultural da Cidade de Rio Grande. In: _______. Sob Um Olhar
Urbano, Sociabilidade, Cultura & Teatro no Brasil Meridional. Porto Alegre: PUCRS, 1998. v. 3
(Dissertação de Mestrado). Este material encontra-se disponível nas seguintes bibliotecas: FURG, em Rio
Grande; PUCRS e Ciências Sociais e Humanidades/UFRGS, em Porto Alegre.

20
Da Rua ao Teatro

do Sul (com 3.793 registros) não esgotou-se nesta pesquisa, merecendo posteriores
abordagens.4
Somaram-se ao material utilizado na elaboração deste livro, vários
periódicos, documentos oficiais, manuscritos, artigos em jornais, revistas, mapas, plantas
urbanas, depoimentos, fotografias de época, gravuras, reproduções fonográficas, assim
como dissertações de mestrado, teses de doutorado e bibliografia disponível.
E aqui cabe a menção do nome de Leando Xavier Barbat, então acadêmico
do Curso de História, da FURG que sob minha orientação, atuou nesta pesquisa de
mestrado, durante os anos de 1995 a 1997. Sem dúvida, seu precioso auxílio na
transcrição de fontes, determinou a qualidade desse estudo.
Os processos de crescimento populacional, urbanização e industrialização
pelos quais passou Rio Grande, intensificaram e diversificaram as atividades de lazer e
cultura em seus vários segmentos sociais. A modernização da cidade e a adoção de novos
hábitos e costumes, gerou a ampliação dos espaços públicos de sociabilidade, de suas
vivências e a conseqüente dinamização das relações sociais de seus freqüentadores. Destas
transformações os espaços teatrais foram partícipes, desempenhando papel de relevância
nas novas formas de viver a cidade e seus espaços constitutivos. Abertos,
permanentemente, às trocas e manifestações da coletividade, ao lazer (e aqui incluo o
lazer instrutivo), à criação e difusão artístico-cultural, à representação social, à informação
e formação... eles adquiriram grande importância nas dimensões da vida social e cultural
da cidade, constituindo-se em sinônimos de urbanidade e modernidade. Ícones dos
prazeres de uma cidade.
Se os teatros do século XIX metamorfosearam-se em cine-teatros com o
advento do cinematógrafo, este estudo preocupa-se, quase que exclusivamente, com a
movimentação cênica e com as diferentes atividades desenvolvidas nos espaços físicos
dessas casas de espetáculos. Compõem também o que denominei de “espaços teatrais” as
sociedades recreativas possuidoras de palco. A programação cinematográfica registrada,
adquire aqui um papel irrelevante, na medida em que seria impossível dar conta das
ocorrências de palco e de tela, em função do exíguo tempo determinado à pesquisa.
No levantamento bibliográfico realizado, somente três obras, todas de
Lothar Hessel e Georges Raeders fazem referências às atividades teatrais na cidade de Rio
Grande, a saber: O Teatro no Brasil: da Colônia à Regência (1974) e O Teatro no Brasil:
sob Dom Pedro II (1ª Parte, 1979 – 2ª Parte, 1986). O estudo mais recente é o artigo
intitulado Apontamentos Sobre o Movimento Teatral em Rio Grande no Século XIX
(1996) que assino na revista Biblos v. 8 do Departamento de Biblioteconomia e História,
da Universidade do Rio Grande, então baseado em dados levantados na elaboração do
projeto de minha pesquisa desenvolvida no mestrado.
A modernização de Rio Grande, sua vida social e cultural, foram temas até
agora abordados nas franjas dos estudos historiográficos sobre a cidade. Contar sua
história alijando-os desse processo, é desconsiderar aspectos imprescindíveis à
compreensão da sociedade como um todo, em seus diferentes níveis estruturais. Portanto,
esta publicação propõe-se, primeiramente, a preencher esta lacuna, oferecendo subsídios

4
Cf. BITTENCOURT, Ezio. Subsídios Para o Estudo da Movimentação Teatral no Rio Grande do Sul. In:
_______. Sob Um Olhar Urbano, Sociabilidade, Cultura & Teatro no Brasil Meridional. Porto Alegre:
PUCRS, 1998. v. 2 (Dissertação de Mestrado). A obra pode ser, igualmente, consultada nas bibliotecas
supracitadas. Os dados apresentados nesta brochura constituem-se na principal fonte de pesquisa de meu
Doutoramento, em Literatura Comparada: Estudos Culturais desenvolvido junto a Université de Genève,
Suíça.

21
Da Rua ao Teatro

capazes de dar uma maior sustentação e embasamento aos próximos trabalhos de


pesquisa.
Bebendo da História Social e sob a influência de Lucien Febvre, entendo
que o “objeto de nossos estudos não é um fragmento do real, um dos aspectos isolados da
atividade humana, mas o próprio Homem, considerado no seio dos grupos de que é
membro”.5 Na busca da visão do todo, inspiro-me igualmente em Gilberto Freyre que,
com muita propriedade, compreende o processo de desenvolvimento da sociedade
brasileira. As obras Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre, no Século XIX (1956), de
Athos Damasceno; O Teatro São Pedro na Vida Cultural do Rio Grande do Sul (1975),
de Athos Damasceno, Guilhermino César, Paulo Moritz e Herbert Caro; Belle Époque
Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século (1993), de
Jeffrey Needell e A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro
Republicano (1993), de Rosa Maria Araújo, serviram de base a este escrito.
Estruturado em seis capítulos, Da Rua ao Teatro, os Prazeres de Uma
Cidade: sociabilidades & cultura no Brasil Meridional - panorama da história de Rio
Grande, possui como principais características o ineditismo de muitas de suas
informações e o exaustivo levantamento de dados apresentados em listagens ao longo do
texto e em generosas notas de rodapé de página.
O Capítulo I – O Espetáculo da Cidade: Rio Grande, do barroco ao
ecletismo – preocupa-se com o cenário que acolhe a coletividade: aborda
panoramicamente a construção do espaço urbano e suas transformações; a modernização
da cidade; infra-estrutura oferecida, ambiência e atmosfera social, as atividades
produtivas; a origem da população; a utopia da cidade e do Brasil modernos, as imagens
da cidade;
O Capítulo II – Organização & Movimento: a sociedade rio-grandina –
enfoca as diferentes formas de sociabilidades e de “viver a cidade” - festas e lazeres ao ar
livre: procissões; quermesse; festas religiosas; Entrudo e o Carnaval; comemorações
oficiais; utilização de ruas, largos e praças pela coletividade; piqueniques familiares nas
cercanias da urbe; o gosto pelos esportes; as reuniões no balneário; a organização da
sociedade em várias formas associativistas; os saraus lítero-musicais; os clubes; os salões
de festas públicos; a influência dos imigrantes europeus na ampliação e diversificação das
ofertas de entretenimentos e cultura; bilhares; bares; cafés; atrações itinerantes: teatrinhos
de bonecos, circos e espetáculos de vistas; cabarets; e referencia os (cine-) teatros e
cinemas.
O Capítulo III – Educação, Arte & Cultura: a montagem do patrimônio
local – apresenta breves notas sobre a educação em Rio Grande e suas instituições; os
contextos de leitura: bibliotecas, jornais, livrarias; o desenvolvimento das belas-artes:
pintura, escultura, cenografia, litografia, artistas; o ensino local da dança; o aprendizado
da música, instituições e o papel do Conservatório neste processo, compositores, obras,
maestros e músicos; as sociedades dramáticas, autores, obras e atores locais.
O Capítulo IV – O Espaço Teatral: seus usos, imagens e significados –
discute a utilização do material visual como fonte de pesquisa para a história; a relação do
edifício de um espaço teatral com a cidade, com a sociedade e sua apreensão pelo
historiador; a história e a iconologia dos espaços teatrais; a utilização desses espaços para
as manifestações da coletividade: bailes, sessões fúnebres, reuniões políticas, etc.

5
FEBVRE Apud. CARDOSO, Ciro e BRIGNOLI, Héctor. Os Métodos da História. Rio de Janeiro: Graal,
1983. p. 349.

22
Da Rua ao Teatro

O Capítulo V – Sob os Olhos de Clio; Melpômene, Tália, Euterpe &


Terpsícore Ocupam a Cena – traz à ribalta o universo das grandes artes do espetáculo: o
teatro (dramático; ligeiro: zarzuelas, operetas e revistas; e o lírico); a dança e a música.
O Capítulo VI – De Érato à Greta Garbo – ocupa-se das demais atrações
cênicas: declamação; transformismo; ilusionismo; proezas, raridades e pugilismo;
espetáculos de bonecos, números circenses; espetáculos de variedades - assim como dos
aparelhos óticos de reprodução de imagens ou de efeitos visuais; dos aparelhos sonoros e
finalmente, do cinematógrafo. Para finalizar, traço alguns comentários sobre o processo de
formação e o caráter da cultura brasileira.
Em Últimas Notas, revejo os pontos básicos desse estudo, sintetizando as
principais idéias desenvolvidas ao longo dos capítulos.

∼ ∼∼
Qualquer evento, mais ou menos complexo, produz um número
incrivelmente grande de fontes. Não nos é possível, evidentemente, trabalhar com todos
estes documentos. Temos que selecioná-los, cruzando as informações neles contidas.
Neste processo entra a imaginação e a subjetividade. A imagem que fazemos não apenas
de um acontecimento histórico, mas de qualquer elemento da realidade, é sempre o
encontro das fontes e das experiências, com as projeções de expectativas, de conceitos
pré-fabricados, de preconceitos e de conceitos fornecidos por nossa língua e cultura.6
Por mais que nos esforcemos, nossas narrativas jamais retratarão
diretamente a realidade pois percebemos o mundo através de uma estrutura de
convenções, esquemas e esteriótipos próprios de nossa cultura7. Conforme Hayden White,
“as histórias nunca devem ser lidas como signos inequívocos dos acontecimentos que
relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que
‘comparam’ os acontecimentos nelas expostos a alguma forma com que já estamos
familiarizados em nossa cultura literária”8. O trabalho do historiador nada mais é que uma
“síntese hipotética” na medida em que pretende “reconstruir a totalidade da imagem a
partir do conhecimento dos fatos particulares”, levando em consideração que “estes fatos
não são nunca absolutamente evidentes nem verificáveis”. A influência do fator subjetivo
faz com que um mesmo acontecimento seja apreendido de forma distinta por diferentes
historiadores. Outra constatação é a de que o saber é constituído por um processo infinito
de “acúmulo de verdades parciais” e que o somatório delas contribui para o progresso do
conhecimento. O conhecimento individual é sempre limitado e agravado pela influência
do fator subjetivo; verdade parcial, só pode ser relativa. O processo do conhecimento deve
então ser socializado. Sua objetividade realiza-se na superação dos limites ligados a ação
do fator subjetivo. A auto-reflexão apresenta-se, aqui, como um dos meios que permite ao
historiador tomar consciência das formas subjetivas, auxiliando-o a vencer suas más
influências. O historiador, tem que perseguir incessantemente a objetividade, mas sabe-se
de antemão, que esta adquire um caráter “relativo” em nossa disciplina. O “relativismo
objetivo” da história, apontado por Adam Schaff, conduz o autor a afirmar que o processo
6
Cf. BITTENCOURT, Ezio. A Dimensão Literária da História e Seus Desdobramentos. Biblos. Rio Grande:
FURG, v.9, p.11-24, 1997.
7
BURKE, Peter. Abertura: A Nova História, Seu Passado e Seu Futuro. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita
da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p.15.
8
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a critica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994. p. 58,
108.

23
Da Rua ao Teatro

cognitivo histórico “produz sempre verdades relativas e que só o processo infinito do


conhecimento tende para a verdade absoluta”9 .
Assumir a subjetividade e a precariedade das perspectivas no enfoque de
nossos objetos de estudo seria, talvez, uma forma menos ilusória e, portanto, mais eficaz
de conhecer. Na percepção do passado histórico, ocorre, um processo de presentificação.
Por mais que nos alicercemos em documentos e depoimentos, estes serão sempre
permeados por uma consciência atualizada. Não podemos nos esquecer também, que estas
fontes são textos do passado - não o passado e que tampouco são neutros.
Bem entendido, o historiador trabalha não com o passado, mas com o que
dele restou: seus vestígios. O mais, é um esforço imaginativo. É “a arte dentro do
arquivo”, nas palavras de Michel Foucault. O “problema da invenção” é muito bem
trabalhado pela historiadora Natalie Davis. Na tentativa de usar sua imaginação para
reconstruir o passado, adverte ao leitor que, apesar da cuidadosa pesquisa documental na
qual se baseou seus estudos, sua obra (no caso, O Retorno de Martin Guèrre) é, em parte,
invenção dela “ainda que em rigorosa harmonia com as vozes do passado”10. Como bem
conclui o antropólogo Clifford Geertz, “o real é tão imaginado quanto o imaginário”.
Todavia, contra a arbitrariedade do pesquisador na “encenação do arquivo”, as fontes
possuem o poder de impor um veto à fantasia desvairada. A imaginação histórica não é
completamente livre e necessariamente tem que remeter à questão da evidência. Ao
contrário das ficções literárias as obras historiográficas são feitas de acontecimentos que
existem fora da consciência do escritor, e que obedecem a “protocolos de verdade” 11 .
Gilbert Durand alerta que , “uma ‘disciplina’ estreita não pode senão
destapar sobre uma anemia da descoberta”12. Neste sentido, frente à complexidade dos
objetos de investigação, os pesquisadores conscientizam-se da exigência em tornar as
fronteiras das disciplinas, o mais permeável possível, permitindo-lhes um circular nos
diversos domínios do conhecimento. Assim, conforme Jacques Le Goff, o historiador
deve considerar todos os documentos legados pelas sociedades: “o documento literário e o
documento artístico, especialmente, devem ser integrados em sua explicação, sem que a
especificidade desses documentos e dos desígnios humanos de que são produto seja
desconhecida”. Nenhum tipo de documento é uma evidência neutra para a reconstrução
histórica. É antes, um signo incluso num contexto espaço-temporal. O processo de
conhecimento histórico implica a leitura destes sinais13. Consciente de tais postulados este
estudo passeia por vários campos do saber: sociologia, antropologia, filosofia, arquitetura,
comunicação, geografia, economia... letras e artes, sorvendo elementos às análises
históricas.
Isto posto, valendo-me mais uma vez de teóricos da história, gostaria de
expor meu entendimento sobre a elaboração do texto historiográfico. Para Paul Veyne, é
vão opor uma história descritiva ou narrativa a uma outra que teria a ambição de ser
analítica ou explicativa. As ciências humanas, sendo ciências, quer dizer “sistemas
hipotético-dedutivos”, querem “explicar” exatamente como o fazem as ciências físicas.
Entretanto:

9
SCHAFF, Adam. História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 285,286, 303.
10
BIERSACK, Aletta. Saber Local, História Local: Geertz a Além. In: HUNT, Lynn (Org.) A Nova História
Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992,p.104. Cf. DAVIS, Natalie. The Return of Martin Guerre
(Cambridge, Mass.,1983), pp.viii,5.
11
WHITE. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: UNESP, 1992. p.21.
12
DURAND, Gilbert. Interdisciplinarité et Heuristique. UNESCO, Avril, 1991. p.4,2.
13
LE GOFF, Jacques. A História Nova .São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.57.

24
Da Rua ao Teatro

a história não explica, no sentido em que não pode deduzir e prever


(só o pode um sistema hipotético-dedutivo); as suas explicações não
são o reenvio para um princípio que tornaria o acontecimento
inteligível, são o sentido que o historiador empresta à narrativa.
[...] A história é narração; não é determinação e tão pouco
explicação; a oposição dos ‘fatos’ e das ‘causas’ é uma ilusão [...].
É em contrapartida uma idéia generalizada que uma historiografia
digna desse nome e verdadeiramente científica deve passar de uma
história ‘narrativa’ a uma história ‘explicativa’ [...]. O progresso da
história não está em passar da narração à explicação (toda a
narração é explicativa) mas em levar a narração mais longe ao não-
acontecimental.14

Nas palavras de White, “uma das marcas do bom historiador profissional, é


a firmeza com que ele lembra a seus leitores a natureza provisória das suas caracterizações
dos acontecimentos, dos agentes e das atividades encontradas no registro histórico sempre
incompleto”.15 Não podemos mais negar nossa subjetividade, escondendo-nos atrás de
narrativas “impessoais” do tipo: observa-se, conclui-se... ou das “socializantes” com seus
observamos e concluímos. Penso que os historiadores devem se tornar visíveis em suas
narrativas advertindo aos leitores que não são oniscientes ou imparciais e que outras
interpretações além das suas são possíveis. Neste sentido utilizo a voz narrativa na
primeira pessoa e procuro, ao máximo, entremear minha fala com a de outros autores e
com as informações das fontes utilizadas, valorizando tanto aqueles que já trataram dos
temas enfocados, quanto as vozes do passado.
A narrativa tem por objetivo produzir um quadro, uma imagem do passado
vislumbrado por meio de uma boa história. Se a história constituiu-se ciência em suas
“operações investigativas”, compartilho da idéia de que deve igualmente constituir-se arte
em suas “operações narrativas”. A ciência não precisa ser tediosa e a arte não tem porque
ser imprecisa. Nossa função não deve limitar-se a conhecer a realidade histórica, mas
também a de transmiti-la o mais agradavelmente possível, através da difícil arte da
literatura. 16 Todavia, mesmo sob as amarras das formas “científicas” de expressão e
normas técnicas de apresentação que aqui se impuseram, pretendo oferecer-lhes uma
prazeirosa leitura.
Apropriando-me das palavras de Natalie Davis, a história que agora lhes
ofereço é, em parte, invenção minha, embora alicerçado em vasta documentação.

14
VEYNE, Paul. Como Se Escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 108,110,113,114.
15
WHITE, Trópicos..., op. cit., p. 98.
16
BITTENCOURT, Ezio. A Escrita da História e a Sedução do Leitor. Biblos . Rio Grande: FURG, v.10, p.
45-51, 1998.

25
Da Rua ao Teatro

__________ 1 __________

O ESPETÁCULO DA CIDADE:
RIO GRANDE, DO BARROCO AO ECLETISMO

1.1 – A CONSTRUÇÃO DO URBANO

A fundação de Rio Grande em 1737, na embocadura da Laguna dos Patos,


estava intimamente relacionada com o projeto português de expandir seus domínios até o
Prata. Sua importância geopolítica devia-se à proximidade com a Colônia do Sacramento,

26
Da Rua ao Teatro

marco do domínio lusitano na Região Platina, às possibilidades de acesso e conquista da


hinterlândia do território sulino através da rede hidrográfica da Laguna dos Patos e da
Bacia do Rio da Prata, e de constituir-se no único porto marítimo no extremo sul do
Brasil.17
O povoado de crescimento lento, surgido à margem sudoeste do Rio Grande
em torno da função militar do lugar, mal construído e abandonado em si mesmo ganhou
notável impulso a partir de 1752 com a chegada de colonizadores provenientes do lusitano
Arquipélago dos Açores.18 Debruçando-se sobre este passado colonial, Maria Luíza
Bertuline Queiroz enfatiza que “a importância da imigração açoriana para a Vila de Rio
Grande em termos demográficos foi excepcional. Ela representou um acréscimo, em
menos de cinco anos, de pelo menos 1.273 pessoas adultas brancas, a uma população que,
incluindo todos os grupos raciais, na metade da década anterior, teria 1.400 almas”.19
Dedicando-se basicamente à agricultura e à pesca e alguns à criação de gado
e ao comércio, o contingente de ilhéus imprimiu à vila uma feição tipicamente açoriana.
Como símbolo deste período inaugurou-se em 1755 a Matriz de São Pedro, substituindo a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário destruída por um incêndio em 1752. Majestoso entre
as areias brancas e pequenos casebres, o edifício barroco, constituiu-se por décadas, na
única construção em alvenaria do lugar.20
Em 1763 o assentamento urbano instalado junto à margem norte do pontal de
Rio Grande possuía 131 casas e contava com 714 casais. Destes, 545 eram formados por
açorianos e mistos com açorianos e 169 de várias origens. Todavia, com a invasão e o
conseqüente domínio espanhol na vila (1763-1776) muitos casais transferiram-se para o
norte do canal (São José do Norte) e outros espalharam-se pelo “Continente”,
intensificando a irradiação do processo de povoamento.21
Restabelecido o domínio português, recolonizou-se a praça. Somaram-se aos
poucos casais açorianos que permaneceram um contingente de diversas origens, oriundos
de partes do Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai e das Ilhas da Madeira e dos Açores.22

17
Construído na realidade na embocadura da Laguna dos Patos, a proximidade do porto de Rio Grande com
o Oceano Atlântico lhe confere, na prática, a qualidade de porto marítimo. Durante a primeira metade do
século XVIII Rio Grande, Viamão e Rio Pardo constituíam-se nos postos militares avançados da conquista
do território.
18
A imigração açoriana marcou fortemente o processo de formação de muitos núcleos urbanos sul-rio-
grandenses. Neste mesmo ano, os primeiros ilhéus se estabeleceram às margens do lago Guaíba, no porto do
Arraial de Viamão, que passou a ser conhecido como Porto de São Francisco dos Casais, núcleo inicial da
futura cidade de Porto Alegre.
Os primeiros povoadores brancos civis a chegarem a Rio Grande entre os anos de 1737-1738 são de
origem espanhola (provenientes de Santa Fé, Corrientes, Entre Rios e do Paraguai) ou luso-brasileiros
(provenientes de São Paulo, Sacramento, e do Rio de Janeiro). Também neste período índios tapes foram
incorporados à colônia. Mais tarde, por volta de 1749, os índios minuanos são igualmente assimilados. (Cf.
QUEIROZ, Maria Luiza. A Vila de Rio Grande de São Pedro 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987. p.53-
62, 81.)
19
QUEIROZ, A Vila...,op. cit., p. 91.
20
Encontrando-se atualmente restaurado, este templo personifica o passado colonial da cidade.
21
QUEIROZ, A Vila...,op. cit., p.128,116. Confira na obra supracitada mapa da cidade neste período p. 128.
Como conseqüência direta da presença espanhola na vila transferiu-se a sede administrativa da Capitania do
Rio Grande de São Pedro, de Rio Grande para Viamão. Em 1773 a capital da Província passou, de forma
definitiva, para a Freguesia de São Francisco dos Casais.
22
Estes novos ilhéus, provinham diretamente das ilhas, ou do Rio de Janeiro e não possuíam nenhuma
ligação com a “política de casais” do princípio da segunda metade do século XVIII. QUEIROZ, A Vila...,op.
cit., p.129-136.

27
Da Rua ao Teatro

Durante quase todo o século XVIII, a economia rio-grandina esteve ligada à


pecuária, limitada à criação de mulas e cavalos, indispensáveis no intercâmbio e comércio,
e à agricultura de subsistência, estando a cidade totalmente dependente do abastecimento
externo.23 Entretanto, a perda da Colônia do Sacramento aos espanhóis (Tratado de Santo
Ildefonso-1777) e o início do Ciclo do Charque na região no começo da década de oitenta,
cuja produção viria a escoar por Rio Grande, intensificaram as atividades portuárias
proporcionando-lhe uma nova configuração econômica.24
A implantação da Alfândega em Rio Grande em 1804, transformou a vila na
única saída dos produtos derivados do gado produzidos na Campanha que demandavam às
demais regiões do país e ao exterior.25
Em face da expansão da produção e do comércio do charque deu-se um
significativo crescimento populacional, de feição predominantemente urbana. No início do
século XIX a vila modificou sua histórica função militar, metamorfoseando-se no principal
centro comercial do extremo sul do Brasil Conforme Queiroz, ”em 1808 o número de
comerciantes estabelecidos na vila alcançava a 40; desses, 19 eram portugueses e os
demais procediam da Colônia do Sacramento, de Viamão, da Ilha de Santa Catarina, e do
Rio de Janeiro; um era espanhol e um outro era italiano, e apenas um era natural da
Freguesia do Rio Grande”.26
Em 1809 o Município de Rio Grande possuía 41.000 km2, compreendendo as
terras de Jaguarão, Arroio Grande, Bagé, Cangussu, Piratini, Herval, Pelotas, Pinheiro
Machado, São Lourenço do Sul e São José do Norte. Se, mais tarde o desmembramento do
antigo município, deixou grandes e importantes áreas produtivas rurais fora de sua
jurisdição limitando a agricultura e a pecuária locais às difíceis condições impostas por seu
solo arenoso, o desenvolvimento da agropecuária e das charqueadas nestes novos
municípios fez crescer o número de mercadorias movimentadas via porto da cidade. O
comércio por Rio Grande era uma conseqüência natural da expansão econômica e das
necessidades dos novos núcleos urbanos sul-rio-grandenses. Desta feita, o porto constituiu-
se num elemento primordial para o dinamismo, empreendimento e crescimento da urbe.
Sob a política joanina o Brasil transformou-se num fértil terreno para os
produtos da indústria européia, sobretudo, da inglesa. Importavam-se louças e porcelanas,
cristais e vidros, móveis, utensílios de ferro, artigos de luxo e de toucador... e, também,
hábitos e costumes. Foi todavia a partir dos meados do século que eles ampliaram-se e
consolidaram-se no país, suplantando de vez os artigos asiáticos. Aos poucos o Oriente foi

23
QUEIROZ, A Vila...,op. cit.,p.142. Frente a pobreza do solo arenoso, a economia agropastoril rio-grandina
dos primeiros tempos logo cedeu lugar ao intercâmbio comercial.
24
SALVATORI, Elena et alii. Crescimento Horizontal da Cidade de Rio Grande. Revista Brasileira de
Geografia. Rio de Janeiro. V.51, n.1, jan/mai 1989, p. 47. Estudando a urbanização de Rio Grande as autoras
relacionam este processo diretamente com sete ciclos sócio-econômicos, a meu ver, muito bem percebidos:
Período da Conquista (1650-1750), Período da Posse Consolidada (1750-1822), Período do Comércio
Atacadista de Importação e de Exportação (1850-1870), Período de Industrialização (1870-1920), Período da
Modernização Industrial (1920-1950), Período de Estagnação (1950-1970) e Período do Superporto e Distrito
Industrial (a partir de 1970). Cf. Idid., p. 46-49.
25
O charque veio a constituir-se no produto mais importante das exportações do Rio Grande do Sul durante o
Período Imperial. Rio Grande e Pelotas, enquanto cidades catalizadoras da economia pecuário-charqueadora
da região da Campanha, gozavam de grande prosperidade. Durante a República Velha (1890-1930)
entretanto, deu-se uma progressiva redistribuição do peso econômico das diferentes regiões do Estado. A
tradicional economia da Campanha passou por uma estagnação, sendo substituída pela da Serra e do
Planalto, baseadas então na policultura. Sobre o assunto confira: FONSECA, Pedro Dutra. R.S: economia &
conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
26
QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 156.

28
Da Rua ao Teatro

enfraquecendo-se nas casas de comércio, assim como no trajo, no interior das residências,
nas relações e práticas sociais.27
Nas primeiras décadas do Oitocentos Rio Grande havia se transformado no
“maior mercado do Brasil Meridional”, local onde os principais negociantes residiam ou
tinham seus agentes estabelecidos. Segundo o comerciante inglês John Luccock, em 1809
“a pequenina e linda cidadezinha branca de São Pedro do Sul, mais comumente chamada
de Rio Grande” possuía “cerca de 500 habitações, e o total de habitantes fixos talvez
ascendesse a 2.000”, população cujo aumento relacionava-se diretamente ao “decorrente
progresso no comércio”. Apresentava “uma fileira de casas, que era realmente bonita e
graciosa”; por traz desta “ficava uma rua de cabanas pequeninas e baixas, feitas de barro e
coberta de palha, habitações das classes mais baixas”.28

FIGURA 1 – Mapa da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, em 1809 com seus quatro imensos
municípios: Rio Grande, Rio Pardo, Porto Alegre e Santo Antônio.
Extraído de: QUEIROZ Maria Luiza. A Vila do Rio Grande de São Pedro: 1737-1822. Rio Grande: FURG,
1987. p. 155.

De 1811 a 1819 o número de construções na vila elevou-se de 269 para


29
348. Conforme o naturalista francês Auguste François César Provensal de Saint-Hilaire,
Rio Grande em 1820, estendendo-se paralela ao canal, “compunha-se de 6 ruas muito
desiguais, atravessadas por outras excessivamente estreitas, denominadas becos”. A
principal via pública, chamada de Rua da Praia (atual, rua Marechal Floriano Peixoto), era
a mais extensa, estando nela localizadas “belas casas” assobradadas com sacadas e balcões
de ferro, assim como “quase todas as lojas e a maioria das vendas, uma e outra igualmente
sortidas”. Margeando o cais do porto a importante rua Nova das Flores (depois Bela Vista
e, atualmente, rua Riachuelo) possuía, igualmente, modernas construções. As quatro
últimas ruas paralelas eram compostas por casebres miseráveis construídos de pau-a-pique
ocupados pela população pobre.30
No período de 1750 a 1822, segundo as arquitetas Salvatori, Habiaga e
Thormann, “observa-se que o núcleo urbano concentrava-se junto ao porto limitado a leste
e sul por alagadiços e a oeste por dunas móveis, que invadiam lentamente a cidade,
fazendo-a recuar para leste, à custa de aterros de areia e entulho, assumindo a forma
triangular”.31
Em 1822, a vila possuía 346 edifícios32, 24 lojas de fazenda, 15 armazéns de
atacado, 3 boticas, 2 ferreiros, 2 tanoeiros, 2 ourives, duas lojas de louça, 2 latoeiros e 1
caldeiro, a maior parte deste complexo comercial localizado na Rua da Praia.33
27
Sobre a forte presença de elementos asiáticos e também de africanos na sociedade brasileira indico o
brilhante estudo de: FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947.
28
LUCCOCK, John. Aspectos Sul-Rio-Grandenses no Primeiro Quartel do Século XIX. Rio de Janeiro:
Record, 1935. p. 115-117,122.
29
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais do Município do Rio Grande. Porto Alegre: Gráfica da Imprensa
Oficial, 1944, p.56. Confira nessa obra a série completa.
30
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987. p.74. Os
antigos nomes de ruas, praças e largos de Rio Grande podem ser obtidos em: FREITAS, Maria Regina &
HUCH, Elza Edith. História Social do Rio Grande. Rio Grande: FURG, 1983. p. 10-11. (Mimeo.)
31
SALVATORI, op. cit., p. 47.
32
PIMENTEL, op. cit., p.56.

29
Da Rua ao Teatro

A dragagem do cais e a construção do Porto Velho concluídas em 1823,


permitiram o atraque de navios com mais de 200 toneladas, melhorias que dinamizaram o
comércio local.34 Essas obras e inúmeras outras de modernização da vila, foram
financiadas por seus comerciantes, evidenciando o “espírito de associação” e o
“progressismo” da elite rio-grandina.35
Para Queiroz, “em nenhum exagero incorre a afirmação de que todo o
progresso e desenvolvimento da Vila do Rio Grande adveio da sua função comercial e da
ação interessada e direta de seus comerciantes, diante de seus problemas mais graves,
substituindo a inércia a que a Câmara local se via obrigada em razão de contar com
rendimentos que não garantiam, sequer, a sua própria manutenção”.36

FIGURA 2 – Aquarela do pintor francês Jean-Baptiste Debret retratando Saint Pierre du Sud (Rio Grande),
por volta de 1824. Em destaque, observam-se muitos armazéns e sobrados recentemente construídos à Rua
Novas das Flores, e a Matriz de São Pedro .
Extraído de: BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense. v.1. Rio de Janeiro: Conselho Federal
de Cultura, 1973. p. 400.

A prosperidade decorrente das atividades comerciais foi responsável pela


modificação da fisionomia da vila observada por Saint-Hilaire. Da mesma nacionalidade, o
viajante Nicolau Dreys, assim escreve em 1825:

No meio das areias estéreis que a circundam e invadem continuamente,


ela se apresenta como uma criação excepcional da política e do
comércio: indiferente ao território que ocupa, não deve nada senão ao
caráter ativo, industrioso e empreendedor dos habitantes. Ali, o
homem pode mais que a natureza; aonde achou impotência e miséria
ele fez nascer prosperidade; pois a cidade de S. Pedro, com suas casas
suntuosas, seus ricos armazéns, seus cais regulares e seu porto
retificado, pode agora concorrer com as mais notáveis cidades da
América do Sul.37

Em 1834, segundo outro francês - Louis-Fredéric Arsène Isabelle - a Vila de


Rio Grande possuía 4.000 habitantes, “edifícios [...] construídos no gosto e na forma dos de
Porto Alegre [...], soberbas casas de três andares, com balcões de ferro e fachada de pedra
lavrada”. Reafirmando o dinamismo da iniciativa privada, Isabelle comenta que os
negociantes locais empregavam “grande parte de suas fortunas em empresas de utilidade

33
CHAVES, Antônio Gonçalves. Memórias econômico-políticas sobre a administração pública do Brasil...
Separata da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2, 3 trim. 1922.
p.325
34
QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 157.
35
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834) .Porto Alegre: Martins Livreiro: 1983.
p.77.
36
QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.156.
37
DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Porto Alegre:
INL,1961. p. 110-111.

30
Da Rua ao Teatro

pública, tentando atrair o comércio estrangeiro”.38 No ano seguinte, Rio Grande foi elevado
a categoria de cidade.
No mesmo 1835 eclodiria a Revolução Farroupilha que, estendendo por
quase dez anos a guerra civil, arrasou economicamente a Província. Mantendo-se fiel ao
Império, Rio Grande não chegou a ser ocupado pelos revoltosos, no entanto, sentiu
profundamente a crise da guerra refletida na queda da movimentação do porto. Encerrado o
embate os governos provincial e municipal empenharam-se na recuperação de suas finanças.
Neste sentido executaram-se ao final da década de 1840 algumas reformas urbanísticas e o
aperfeiçoamento dos serviços públicos que, objetivando a melhoria da infra-estrutura da
cidade, asseguraram a permanência de sua destacada posição econômica no cenário sul-rio-
grandense.
Em princípios de 1850 impô-se o comércio atacadista de exportação e de
importação. Definiu-se nesta atividade a vocação e pujança do Município.39
As relações do Brasil com nações européias intensificadas neste período,
foram fundamentais na sedimentação do modelo de civilização importado daquele
continente. A adoção de práticas culturais aristocráticas européias, notadamente franco-
inglesas, serviam para reforçar e legitimar a distinção e a superioridade das elites. Envolvida
no grande comércio marítimo, a burguesia citadina ascendeu socialmente e imprimiu seu
estilo de vida europeizado às relações sociais e à fisionomia urbana. Deste segmento social
saíam os representantes do povo na Câmara e na liderança do Executivo local. A dinâmica
social possibilitou o surgimento dos profissionais liberais compondo a classe média.

FIGURA 3 – Litografia do francês Francis Richard intitulada Le Quai de Belle-Vue à San Pedro de Rio-Grande
(Brésil) retratando o próspero Porto de Rio Grande e a arquitetura civil luso-brasileira predominante na cidade.
Embora não se possa datá-la precisamente, sabe-se que é anterior a 1865 quando, em decorrência da Guerra do
Paraguai, a rua Bela Vista passou a ser denominada de Riachuelo.
Extraído de: BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense. v.2. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1976. p. 1132

Com muito talento e propriedade, Gilberto Freyre sintetiza em um


parágrafo, as mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira da segunda metade do
Oitocentos:

A valorização social começara a fazer-se em volta de outros


elementos: em torno da Europa burguesa, donde nos foram
chegando novos estilos de vida, contrários aos rurais e mesmo aos
patriarcais: o chá, o governo de gabinete, a cerveja inglesa, a
botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa de homem menos
colorida e mais cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi
substituindo a igreja; pela carruagem de quatro rodas, que foi
substituindo o cavalo ou o palanquim; pela bengala e pelo chapéu-
de-sol que foram substituindo a espada de capitão ou de sargento-

38
ISABELLE, op. cit., p.77-78.
39
SALVATORI, op. cit., p.47. Já no início do século, Gonçalves Chaves prenunciava a possibilidade da
cidade vir a tornar-se “uma nova Amsterdã ” ao sul do país. (CHAVES, op. cit.. p. 177).

31
Da Rua ao Teatro

mor dos antigos senhores rurais. E todos esses novos valores foram
tornando-se as insígnias de mando de uma nova aristocracia: a dos
sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e bacharéis talvez
mais que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta: a de
senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados
para tolerarem a vida rural na sua pureza rude.40

Se desde o Descobrimento a cultura européia jamais deixou de se fazer


sentir no Brasil, é notório que no tempo da Colônia as influências orientais (asiáticas e
africanas) eram dominantes, revelando-se em diversos aspectos da vida nacional. Com o
fim desde período e o conseqüente estreitamento de nossas relações com as nações
européias, intensificaram-se as influências do Velho Mundo no novel Império. O Brasil
buscaria, então, integrar-se mais participativamente à moderna Civilização Ocidental.41
Refutando o conceito de “reeuropeização” utilizado por Freyre para
designar o processo que levou à maciça presença da cultura européia no país, Jeffrey
Needell fortalece a idéia de que esta influência deve ser vista como um continuum
percebido em diferentes graus desde 1500 e, grandemente, intensificado neste período.
Em suas palavras, “mesmo na condição de possessão portuguesa fechada, muito do que
ocorria no mundo europeu era sentido no Brasil, por mais fracos que fossem os ecos.
Diferente, no século XIX, é a intensidade do impacto, resultante do fim da antiga ordem
colonial e da emergência gradual e segura da ordem neocolonial. [...] O que se vê [em
meados] deste século não é sua introdução, mas seu triunfo”.42
Se na intimidade das casas havia uma acentuada continuidade da cultura
tradicional, fora dela, impunha-se uma fantasia europeizante, deslocada e alienadora. As
populações urbanas das cidades brasileiras da segunda metade do Oitocentos procuravam
parecer o mais européias possível. E aqui se faz importante a noção de que a cidade é,
justamente, o local onde melhor se realiza a padronização dos comportamentos.

40
FREYRE, Sobrados... , op. cit., p. 574.
41
Conforme as idéias de Regis de Morais desenvolvidas em sua tese de livre docência, o rigoroso isolamento
imposto à colônia brasileira advinha da própria segregação que Portugal determinava a si mesmo. Em suas
palavras, “sob uma religiosidade regressiva ou no mínimo estagnante, sob uma concepção político-econômica
igualmente paralisante, a nação portuguesa obstinava-se em não mudar e, conseqüentemente, em não
permitir que a modernização do mundo ocidental atingisse suas colônias”. Mesmo que este pensamento
largamente difundido reflita uma visão linear do processo histórico e já tenha sido contestado por alguns
autores, acho pertinente fazer o registro. O certo é que, com o término do Período Colonial e, principalmente,
a partir da segunda metade do século XIX, incrementou-se o processo de sintonização da sociedade brasileira
com a modernidade européia. Para Ruth Gauer, a modernidade portuguesa foi implantada pela Reforma de
1772 que teve como artífice o Marquês de Pombal, então ministro do monarca D. José I. Sobre o assunto
confira também o capítulo intitulado Fases do Europeísmo Brasileiro em: MORAIS, Regis de. Cultura
Brasileira e Educação. São Paulo: Papirus, 1989. p.69-89. MORAIS, Régis de. Europeização, Europeísmo e
Cultura Brasileira. Reflexão. Campinas. Ano II, n.7, set.1977. p. 399-417. NOGUEIRA, Emília. Alguns
Aspectos da Influência Francesa em São Paulo na Segunda Metade do Século XIX. Revista de História. São
Paulo. Ano IV. N. 16, out/dez. 1953. p. 317-342. LIMA, Alceu Amoroso. A Influência do Pensamento
Francês no Brasil. Reflexão. Campinas,. Ano X, n.31, jan/abr. 1985. p. 4-23. e GAUER, Ruth. A
Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
42
NEEDELL, Jeffrey. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 183-184.

32
Da Rua ao Teatro

FIGURA 4 - A presença da prestigiosa França pode ser identificada em vários aspectos da sociedade local,
manifestando-se também nos nomes de muitos estabelecimentos registrados ao longo de sua história: Paris
Hotel, Cinema Parisiense, Bazar Francês, Casa Tulherias, etc.
Extraído de: MARUI. Rio Grande, 12 dez.1881. n. 49. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Para o austríaco Joseph Hörmeyer, “situada na ponta de uma península, no


meio das areias, [Rio Grande] era de construção bastante bonita e podia ter de 12 a 14.000
habitantes”. Escrevendo em 1852, comentava que “quase toda a gente ocupava-se com o
comércio que aqui era animado”.43 Nas ruas Bela Vista e da Praia residiam os comerciantes
responsáveis pelo desenvolvimento do porto e do comércio com o interior da Província,
com a capital e com os principais portos do Brasil, Europa e Prata.
Raphael Copstein faz um belo retrato das atividades portuárias e da
fisionomia do centro histórico na segunda metade do século:

Grandes sobrados revestidos de azulejos muitas vezes com mais de


dois pisos, além do térreo, beiral de telha, clarabóia iluminando o
acesso aos andares superiores, janelas de guilhotina com caixilhos
habilmente recortados e em parte preenchidos com vidros coloridos
eram comuns nas faces das ruas da Praia e Boa Vista. Os mirantes
mais altos (que serviam para observar a entrada e saída dos navios)
davam funcionalidade aos prédios destinados, no térreo, aos armazéns
das grandes casas importadoras e exportadoras. Nos outros andares
abrigavam-se os familiares dos negociantes e os caixeiros. 44

No universo deste conjunto arquitetônico luso-brasileiro, ”um tráfego intenso


e aparentemente confuso de carroças, escoava do cais as mercadorias chegadas ou
transportava, até os veleiros, a riqueza que o Rio Grande do Sul produzia”. Em outras ruas,
“sobrados menos importantes mas do mesmo estilo do que os citados [...], casas chamadas
de porta-e-janela não raro também azulejadas [...] pertencentes a classe média [...]; a
população mais pobre habitava [...] nas ruas do sul [...] pequenas casas de beiral-de-telha”.45
Por ocasião da Guerra do Paraguai, Luís Felipe Maria Fernando Gastão
d’Orleans, ou simplesmente o Conde D’Eu, esposo da Princesa Isabel, viria ao Rio Grande
do Sul em 1865. Ao transpor a Barra, logo avistou “a cidade do Rio Grande do Sul,
precedida de uma floresta de mastros” das embarcações atracadas no porto. O nobre francês
observou três ruas principais, todas paralelas ao canal, com suas “lojas elegantes” e, “muitas
casas de comércio européias, na maior parte alemãs”, sendo de grande importância a
comercialização de couros e carne seca. Informou que nesta época, diferentemente dos
demais relatos, as mais importantes vias públicas já estavam calçadas e, na rua principal
registrou muitas bandeiras consulares. A cidade possuía , então, 14.000 habitantes.46
Conforme o geógrafo Paulo Roberto Soares:

43
HÖRMEYER, Joseph. O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da Província do Rio Grande do Sul no
Brasil Meridional. Porto Alegre: EDUNI-SUL, 1986, p. 37.
44
COPSTEIN, Raphael. Evolução Urbana de Rio Grande. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, n.122, p. 66, 1982.
45
Ibid., p. 67.
46
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul. São Paulo: EDUSP, 1981. p. 24.

33
Da Rua ao Teatro

[...] a economia agroexportadora impunha às cidades brasileiras e


latino-americanas a hegemonia do capital mercantil [...]. As
principais cidades localizavam-se ao longo da costa. A vida
econômica transitava em torno do porto, onde se situava a alfândega.
Um pouco afastada [...] [encontrava-se] a praça principal, onde se
localizavam os prédios públicos: a Prefeitura, a Câmara de
Vereadores. A riqueza circulante e a ausência de indústrias geravam a
transferência de excedentes para a construção de prédios suntuosos
(teatros, igrejas, clubes sociais), que simbolizavam o poder das elites
comerciais e do baronato. A vida urbana das classes dominantes,
estritamente rentistas, era animada com festas, saraus, bailes,
apresentações de companhias de teatro. O comércio se concentrava
na venda de artigos de luxo, importados da Europa. A infra-estrutura
urbana (iluminação a gás, calçamento das ruas) atendia as casas da
elite.47

A década de 1870 vivenciou a ampliação do mercado interno brasileiro


decorrente da expansão cafeeira no Sudeste e do aumento do contingente de trabalhadores
assalariados. As cidades tornaram-se pólos de atração para os colonos sufocados pelos
latifúndios e para os imigrantes a procura de uma vida melhor. Os imigrantes empregavam-
se no comércio e, sobretudo, nas fábricas onde eram bem aceitos por constituírem mão-de-
obra de melhor nível técnico. Desta feita desencadeou-se um surto de prosperidade urbano-
industrial em várias cidades, que passam a concentrar os novos investimentos.
Inserida nesse processo Rio Grande ao longo dos decênios de 1870 e 1880,
passou a atrair a instalação de várias indústrias não-artesanais, principalmente alimentares
e têxteis; destacando-se a Companhia União Fabril (1873), de Carlos Rheingantz,
exportadora de tecidos de lã e algodão para todo o país e para o exterior.48 Outra
importante empresa era a fábrica de charutos Poock & Cia. (1891) que contava com
técnicos alemães e cubanos.49 Ao fim do Dezenove, a cidade constituía-se no maior parque
industrial do Rio Grande do Sul. Em algumas décadas transformou-se de centro comercial
em significativo pólo industrial. Conforme Paul Singer é provável que a indústria porto-
alegrense só tenha suplantado a rio-grandina na liderança do Estado a partir do primeiro ou
talvez do segundo decênio do século XX.50
Numa decorrência dos processos de urbanização e industrialização,
incrementaram-se as atividades de lazer e cultura oferecidas aos diferentes segmentos
sociais. Aumentou-se o número de teatros, salas de espetáculos, bares, bilhares, cabarets,
bibliotecas, escolas, clubes, sociedades dramáticas, sociedades musicais, jornais, etc. A

47
SOARES, Paulo. Uma Abordagem Histórica do Espaço Urbano e Uma Abordagem Geográfica da Cidade
na História. Biblos. Rio Grande: FURG, v.8, p. 66, 1996.
48
Para Paul Singer “é com Rheingantz que a indústria se inicia realmente no Rio Grande do Sul”. Em 1910 a
União Fabril empregava mais de 1200 operários na produção de tecidos de lã e de algodão, meias, chapéus,
tapetes... SINGER, Paul. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. São Paulo: Cia. Editorial
Nacional, 1977. p.171.
49
SINGER, op. cit., p. 172. FREITAS, op. cit., p. 33-35.
50
SINGER, op. cit., p. 174,180.

34
Da Rua ao Teatro

variação das opções de vida social e cultural “atenuaram a disciplina rígida do


patriarcalismo que segrerara no lar a mulher de classe média e alta. A crescente
diversificação ocupacional nos grandes centros urbanos tornou mais complexa a estrutura
social”.51
Nos últimos anos deste século a cidade possuía cerca de 4.119 edifícios e
uma população de 29.492 habitantes. 52 O historiador local Francisco Alves - estudioso
deste período - comenta que o Oitocentos “caracterizou-se, em Rio Grande, pela busca de
um aprimoramento de sua organização urbana e da prestação de serviços à população,
resultando numa completa transformação do espaço original ocupado pela localidade”.53

FOTO 1 - Rua dos Príncipes (atual Rua Gal. Bacelar). Ao fundo observa-se a Matriz de São Pedro. À
esquerda, casario em partido luso-brasileiro com seus beirais-de-telha, janelas em guilhotina e caixilhos com
vidros coloridos. À direita, prédios ecléticos com elegantes platibandas e fachadas ricamente decoradas que,
doravante, dominariam o cenário urbano. Final do século XIX.
Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Associado à razão e à evolução, o processo civilizacional possui um caráter


de aperfeiçoamento do conhecimento científico, das leis, dos governos, dos costumes, das
instituições, das artes, da educação, etc.54 Uma vez que a sociedade considere este processo
como acabado em seu interior, ou seja, alcançada a civilização, sente a necessidade de
transmiti-la ao exterior. Nas palavras de Norbert Elias, “do processo que fica para atrás, de
todo processo civilizacional, a consciência guarda apenas uma vaga lembrança. Aceita-se o
resultado desse processo como manifestação do fato de ser superiormente dotado. Que esse
comportamento civilizado tenha levado séculos a atingir não interessa, como não interessa
saber de que maneira se atingiu”.55 Era justamente este espírito que tomava a Europa no
Dezenove.

51
COSTA, Emília V. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977. p. 198.
52
PIMENTEL, op. cit., p.56, 36
53
ALVES, Francisco das N. A Pequena Imprensa Rio-Grandina no Século XIX. Porto Alegre: PUCRS,
1996. p. 26. (Dissertação de Mestrado).
54
A civilidade é assinalada por códigos que apontam para caminhos e maneiras de ser e de viver a
coletividade, num processo que acompanha a história do homem desde o medievo, revelando o que o
sociólogo alemão Norbert Elias chamou de “educação dos sentimentos”. Neste mesmo movimento, a
suavização dos costumes originou a cortesia (sinônimo de polidez). O processo civilizacional - fundamentado
nestes elementos: cortesia e civilidade - espraiou-se pelo mundo realizando-se no Brasil sob a empresa
colonial portuguesa, aliado às influências indígenas, africanas e também no caso do sul do país às tradições
italiana e alemã, sobretudo. Todavia, entre nós, este processo adquiriu singulares conotações: “aqui, mais do
que em qualquer lugar, a paixão por juntar, misturar, amalgamar, não definir, abrir e unir, é uma
característica importante. Parecemos e somos maleáveis”. As relações estabelecidas na sociedade brasileira
misturam a cortesia ocidental com uma cultura tradicional milenar, formando um modo civilizacional
denominado por Jussara Pieruccini de “barroco-tropical”, fortemente marcado pelo sincretismo e hibridismo
de códigos. No entendimento de Roger Bastide “o sincretismo consiste em unir os pedaços das histórias
míticas de duas tradições diferentes em um todo que permanece ordenado por um mesmo sistema”. Assim
entendido o sincretismo pressupõe a existência uma tradição dominante que determina e ordena esses
“pedaços das histórias míticas” que deverão ser absorvidos, conforme com os interesses de um determinado
sistema significativo, de uma memória coletiva. (PIERUCCINI, Jussara Maria. Visões do Paraíso: uma
civilização barroco-tropical no sul do Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 1997. p. 94. (Dissertação de Mestrado).
BASTIDE, Roger. Memoire Collective et Sociologie du Bricolage, L’Année Sociologique, v. 21, p. 101,
1970. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizacional. Lisboa: Dom Quixote, 1989. v.I, p. 100.)
55
ELIAS, op. cit., p. 100.

35
Da Rua ao Teatro

Franklin Baumer considera este período como o primeiro “século do devir”,


uma época fortemente caracterizada por um movimento incessante da vida humana, de
mudanças e desenvolvimento contínuos. Sendo a transformação das sociedades passadas o
objeto da história, esta constitui-se então na ciência do devir e o Dezenove, no “Império de
Clio”. Analisando o pensamento europeu moderno nesta centúria, pronuncia-se o autor:

No século XIX, tanto a Europa como os europeus estiveram mais do


que nunca orgulhosos dos seus empreendimentos. Habitualmente, a
história era escrita como se a Europa fosse, na verdade, o centro do
universo, onde todas as idéias novas e criativas se originavam.
Supunha-se também grandemente que o espírito ‘primitivo’
representava uma fase de desenvolvimento muito inferior à da Europa
‘culta’. Tudo isto estava em nítido contraste com o século XVIII
quando, apesar da idéia de progresso, os europeus preferiam localizar
o seu paraíso numa outra parte do globo, no Oriente exótico ou na
primitiva América. A nova auto-estima, na verdade, começava a
chegar ao fim, à medida que os europeus descobriram sérias falhas na
sua própria cultura. Todavia, durante todo o século XIX, os europeus
carregaram com orgulho o ‘Peso do Homem Branco’ [e sua redentora
missão de levar os benefícios da civilização e da modernidade, aos
povos atrasados].56

O Oitocentos apresentou-se como o século da indústria, das inovações


científicas, dos Imperialismos, das teorias racistas, do debate sobre a modernização das
cidades....57 No Brasil, a última década deste período vivenciou grandes modificações
sociais em virtude do fim da escravidão, da implantação do Regime Republicano e da
burocracia estatal, do crescimento das camadas médias, da imigração, da indústria
nascente. Assim surgiram no cenário nacional novos agentes sociais que dinamizaram as
relações em sociedade. A industrialização transformou os hábitos e o modo de vida urbano
gerando a necessidade de uma adequação do espaço físico da cidade ao novo quadro que se
impunha. As cidades brasileiras apresentavam vários problemas: cortiços, pensões e velhos
casarões (espaços associados à doenças epidêmicas e a promiscuidade) próximos à zona
central , ruas escuras e estreitas, infra-estrutura e serviços urbanos deficitários.... A fim de
reverter esse quadro, as elites buscavam construir uma nova imagem da cidade inspirada
nas grandes capitais européias e no gosto pelo monumental. Os discursos ferozes que

56
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno: séculos XIX e XX. Lisboa: Edições 70. v. 2. p.
20-21. Conforme Mara do Nascimento, “conceitualmente, modernidade e civilização entram em comunhão
quando expressam, juntas, a idéia de que existem padrões técnicos, científicos e culturais que devem ser
disseminados, por serem tomados como verdade absoluta. Num processo de dentro para fora, iniciado na
Europa, o Ocidente, sente-se capaz e responsável de transmitir tais padrões aos outros povos”.
(NASCIMENTO, Mara R. do. Sobre os Trilhos do Bonde, os Caminhos de Uma Cidade Brasileira. Porto
Alegre: PUCRS, 1996. p. 20. Dissertação de Mestrado)
57
Segundo Baudrillard, o surgimento da palavra “modernidade” deu-se em torno de 1850, momento em que a
sociedade moderna se pensou enquanto tal, em termos de modernidade. Instalando a civilização do trabalho e
do progresso, a modernidade encontra-se, atualmente em profunda mudança decorrente da passagem desta
civilização para uma outra alicerçada no consumo e no lazer. (BAUDRILLARD, Jean. Modernité. In:
Biennale de Paris. La modernité ou L’esprit du temps. Paris: Editions L’Equerre, 1982. p. 29.).

36
Da Rua ao Teatro

defendiam o “aformoseamento” e a higienização urbana condenaram a cidade herdada do


período colonial à obsolência e às demolições. Com a República esse processo se
intensificou desencadeando o redesenhamento de muitas cidades brasileiras.58 De seu ideal
positivista moralizador-higienista, então em voga, decorreram práticas intervencionistas no
meio urbano, objetivando a modernização da economia e da sociedade brasileira.
Conforme Léa Perez:

A modernidade é, ao mesmo tempo, um valor em si e o paradigma de


desenvolvimento, de estabelecimento da Ordem e do Progresso no
país. Ela é, assim, antes de tudo, e acima de tudo, o projeto de
construção da ‘sociedade e da identidade nacionais’ que se realizaria
pela via da ultrapassagem da situação de atraso e de
subdesenvolvimento resultante da recente e ainda viva ’condição
colonial’. Ser moderno, e eis aqui uma petição de princípio, é também
o modelo de pensamento e de ação através do qual o Brasil deveria
atingir a modernidade, isto é, a substituição das estruturas tradicionais
(leia-se coloniais) [ou seja, de herança portuguesa].59

Com a República surgiram grandes projetos que visavam melhorias urbanas e


a organização da economia. Queríamos ser um país moderno, progressista, diferente de
Portugal e daquelas estruturas “funestamente” herdadas dos lusitanos. O preconceito anti-
português reinante colocava sobre nossos colonizadores a responsabilidade de uma
“modernidade inacabada”, dividida, igualmente, com nosso clima, negros e índios.
Vivíamos fortemente oprimidos por complexos coloniais de inferioridade em relação à
Europa e por teorias climáticas e biológicas preconceituosas. Em fins dos Anos Vinte, o
modernista Mário de Andrade publicou Amar, Verbo Intransitivo onde ironizava as idéias
racistas, então correntes no país sedimentadas no século XIX com o pensamento
“cientifico” de Gobineau.60 Nesta obra, a governanta alemã fräulein Elza acredita na
superioridade da raça ariana. Comentando abertamente com seus alunos brasileiros a
notória inferioridade dos índios e dos negros, esconde-lhes que descendem de uma raça

58
Se a modernidade enquanto modo de civilização ocidental existe desde o século XVI, foi a partir do XIX
que se realizou plenamente, sob a crença na modernização do espaço urbano entendida como via para o pleno
desenvolvimento. O processo civilizacional irradiado pelo Ocidente, carregava também consigo ideais de
urbanidade e higienização.
59
PEREZ, Léa. Por Uma Poética do Sincretismo Tropical. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre:
PUCRS, v. 18, n.2, p. 43-44, 1992.
60
No último quartel do Dezenove a intelectualidade brasileira debruçou-se sob a natureza tropical do país e
as suas raças. O racismo científico tornou-se freqüente nos debates políticos e culturais, e quase, como que
incorporado a identidade das elites de uma sociedade hierarquizada e estamental. A mestiçagem, propagada
como mecanismo de assimilação racial dos “grupos inferiores”, era vista por muitos como a solução para o
Brasil escapar de um futuro alicerçado no atraso e na barbárie. Nas teorias racistas largamente propagadas
por Sílvio Romero, a mestiçagem enquanto “solução” para o dilema racial objetivava, na realidade, nada
mais que a extinção desses “grupos inferiores” através de sua integração à raça branca, superior e a uma
cultura brasileira de base européia. Desta feita, a mistura significava perda: a liquidação progressiva do negro
e do índio, étnica e culturalmente.60 (Cf. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas
literárias no brasil (1870-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 61-68.)

37
Da Rua ao Teatro

latina ”degradada”: a dos portugueses. Com amigos germânicos Elza pronuncia-se: “Os
portugueses fazem parte de uma raça inferior. E então os brasileiros misturados?”61
Sob o signo da modernidade, ergueu-se Belo Horizonte (de 1894 a 1897), a
cidade planejada e construída para ser a capital de Estado de Minas Gerais, fortemente
influenciada pela arquitetura francesa.62 Entre 1902 e 1906 o modelo de cidade européia
perseguido pelo desenvolvimento do Rio de Janeiro ao longo do século XIX teve seu ápice
com as reformas do prefeito Pereira Passos que modificou, radicalmente, o centro da
cidade. Foi aberta a Avenida Central (atual Av. Rio Branco) inspirada nos boulevards
parisienses; construídas praças e jardins; modernizado o porto... Paulatinamente, o
Ecletismo e o modelo francês de modernização passaram a circular por todo o país
inspirando as reformas urbanísticas.63 Em pouco tempo, o espírito da obra haussmanniana
chegaria ao Rio Grande do Sul.64
Em princípios do século XX acelerou-se o processo de crescimento espacial
urbano rio-grandino. A Carta de 1904 faz registro do novo bairro Cidade Nova localizado a
noroeste do centro histórico.65 A cidade crescia, mas em péssimas condições. As denúncias
da falta de infra-estrutura e de asseio da cidade, do porto e dos aglomerados urbanos eram
uma constante na imprensa local. Da mesma forma os miasmas desprendidos dos lixos
orgânicos e os surtos de doenças infecto-contagiosas da época que ameaçavam,
constantemente, a população (varíola, gripe espanhola, peste bubônica, febre tifóide,
tuberculose, sífilis, etc.) revelavam a insalubridade do meio.
A industrialização propiciou um importante fluxo migratório, com operariado
industrial clássico, de baixa renda e pouca instrução, favorecendo, assim a marginalização
social. A intensa atividade fabril percebida em Rio Grande levou a criação de áreas
industriais afastadas do centro da cidade e à formação de zonas residenciais proletárias ao
seu redor. Assim, as indústrias tornaram-se agentes modeladores na produção de seu
próprio espaço urbano.66 Nas palavras de Soares, “essa segregação (e a conseqüente
aglomeração) permitiu ao operariado nascente um grande poder de organização e
mobilização, pois no cotidiano dos clubes, nas festas, nas ‘associações de ajuda mútua’,
localizadas nas vilas operárias, era realizada a conscientização de classe”.67

61
ANDRADE, Mário de. Amar, Verbo Intransitivo. São Paulo: Antônio Tusi, 1927. p. 33. (Primeira edição)
62
Sobre o assunto confira o laureado trabalho de SALGUEIRO, Heliana. La Casaque d’Arlequin: Belo
Horizonte, une capitale écletique au 19e siècle. Paris: EHESC, 1997.
63
Cf. DUBY, Georges. (dir.). Histoire de La France Urbaine. Paris: Seuil, 1983. v.4. CRUBELLIER,
Maurice. Histoire Culturelle de La France: XIXe –XXe siècle. Paris: Armand Colin, 1974.
64
Durante o Segundo Império francês (1852-1870), o prefeito de Paris, Georges-Eugène Haussmann
empreendeu na cidade inúmeras intervenções urbanas, visando sua modernização. Circulando por todo o
mundo, o haussmannismo influenciou a reforma de muitas cidades. Sobre a remodelação de Porto Alegre
ocorrida durante a intendência de Otávio Rocha (1924-1928) confira: MONTEIRO, Charles. Porto Alegre:
urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
65
Embora constando somente em carta do século XX, a Cidade Nova remonta ao ano de 1878 quando
iniciaram-se a demarcação de suas ruas. (SALVATORI, op. cit., p 33. FREITAS, op. cit., p. 3)
66
O espaço de uma cidade é elaborado pela ação do homem e composto por diversas áreas definidas pelos
diferentes usos da terra: tem-se o centro da cidade (onde concentram-se as atividades comerciais, de serviços
e de gestão, as residências da elite), as áreas industriais, áreas de lazer, demais áreas residenciais
(diferenciadas quanto a forma e o conteúdo social), etc. Esse espaço é, simultaneamente fragmentado e
articulado, uma vez que cada uma dessas partes mantém relações espaciais manifestadas através do fluxo de
pessoas e de veículos, observado na ida às compras, ao trabalho, ao teatro, às diversões, à igreja, as visitas a
amigos e familiares, etc. (Cf. CORREA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 1989.)
67
SOARES, Uma Abordagem..., op. cit., p. 68.

38
Da Rua ao Teatro

Paralelo ao desenvolvimento industrial, o comércio rio-grandino mantinha-


se, vigoroso. Em 1905, 1.092 estabelecimentos empregavam muitos funcionários.68
Proporcionando empregos, crescimento demográfico e acelerada
urbanização, a industrialização gerou também necessidades de melhorias no setor de
transportes que assegurassem o escoamento da produção. Em 1884 foi inaugurada a
estrada de ferro Rio Grande-Bagé passando por Pelotas, facilitando a comunicação da
cidade também com outros municípios.69 A partir da década de 1890 foram executados
melhoramentos substanciais no setor portuário: aprofundamento do Canal do Norte;
construção dos molhes leste e oeste na Barra que facilitaram a entrada e saída de navios no
complexo portuário; construção do Porto Novo com modernas instalações (1911-1917).
Em 1923 foi concluída a remodelação do Porto Velho.70
Na realização das obras foram empregados mais de 4.000 trabalhadores,
gerando um fluxo migratório da zona rural e de municípios próximos que intensificou,
sobremaneira, o crescimento populacional. O grande montante de dinheiro investido e a
larga mão-de-obra utilizada favoreceram o desenvolvimento dos negócios citadinos. Ao
término das obras o refluxo dessas populações não foi significativo gerando um elevado
número de agregados marginalizados de grande importância.71
A quase totalidade da execução desses projetos ficou a cargo da Compagnie
Française des Oeuvres du Port de Rio Grande do Sul e “resultou em considerável área
aterrada com o material recuperado do aprofundamento do Canal de Navegação, a leste do
centro histórico“ da cidade.72
O avanço científico e tecnológico do início do século XX alterou o cotidiano
das pessoas, contribuindo para uma supervalorização do progresso e do enaltecimento da
máquina. As novas invenções: o automóvel, o telefone, o avião, o cinema, a lâmpada
elétrica..., atestavam o poderio dos inventos humanos que mudaram os modos de vida.
Arauto do “espírito de modernização” que assolava o país a burguesia
nacional respaldava-se na ação governamental. Com mister de manter o poder e a ordem
social e enquadrar a sociedade aos novos ditames “modernos” os governos estadual

68
VIEIRA, Rio Grande..., op. cit., p. 133.
69
Esta linha férrea ligava o porto de Rio Grande a cidade de Bagé - centro comercial da região da
Campanha. As ferrovias tinham igualmente importante função no transporte de passageiros e, não devemos
nos esquecer que este setor demandava também grande contingente de trabalhadores. Em Rio Grande
existiam duas estações da Viação Férrea: a Marítima e a Central, esta última possuindo oficinas de
construção e de reparo de carris. Nas palavras de Joseph Love, “em 1889, ano derradeiro do Império, trens
diários comunicavam Rio Grande com Bagé e Barra do Quaraí com Itaqui. Dois trens por dia faziam a
ligação de Novo Hamburgo com a capital.” (LOVE, Joseph. O Regionalismo Gaúcho. São Paulo:
Perspectiva, 1975. p. 18. PIMENTEL, op. cit., p. 273-274.)
70
Sobre o assunto, confira os vários artigos do historiador Hugo Alberto Pereira Neves: NEVES, Hugo. O
Porto do Rio Grande no Período de 1890-1930 (1a Parte). Revista do Departamento de Biblioteconomia e
História. Rio Grande: FURG, v. 2, n.1, p. 67-110, 1980. ______. O Porto do Rio Grande no Período de
1890-1930 (2a Parte). Revista do Departamento de Biblioteconomia e História. Rio Grande: FURG, v.3, n.1,
p. 38-136, 1982. ______. Aspectos Gerais do Porto do Rio Grande, no Período de 1930-1945. Revista do
Departamento de Biblioteconomia e História. Rio Grande: FURG, v.3, n.2, p. 14-35, 1982. ______. Estudo
do Porto e da Barra do Rio Grande. In: ALVES, Francisco e TORRES, Luiz H. (Orgs.). A Cidade do Rio
Grande: estudos históricos. Rio Grande: URG/SMEC, 1995. p. 91-106.
71
VIEIRA, Rio Grande..., op. cit.., p. 128.
72
SALVATORI, op. cit., p.33. Nesse espaço ganho ao mar, pretendia-se construir um bairro planejado, cujo
traçado pode ser observado na Planta da Cidade de Rio Grande de 1926. Mapoteca da Biblioteca Rio-
Grandense, Rio Grande. Integrando-se à sociedade local e a colônia francesa domiciliada na cidade, os
membros da Compagnie, celebraram a “Queda da Bastilha” com baile no Politeama Rio-Grandense, em julho
de 1910. (O TEMPO. Rio Grande, 11 jul.1910).

39
Da Rua ao Teatro

(Partido Republicano Rio-Grandense) e municipais empreenderam uma batalha contra a


vadiagem, a mendicância, os jogos de azar, as bebidas alcoólicas e aos “locais perigosos”:
mauvais lieux, nas palavras de Baudelaire. Segundo Charles Monteiro:

Essa campanha é a parte mais visível de uma pedagogia social


totalitária que pretendia estabelecer novos padrões de vida e os
valores da burguesia em ascensão: o trabalho como elemento de
grandeza moral, fator de progresso e obrigação social, a operosidade,
a higiene pessoal e dos espaços de convívio social, a intimidade
familiar, a boa aparência, o cultivo da moral reta, o conforto material,
a previdência, a economia, etc. Combatendo hábitos ‘populares’
almejava-se criar um ‘homem novo’ dotado de senso de
responsabilidade, de ordem e de trabalho. Era necessário erradicar
costumes ‘bárbaros’ herdados do passado e tudo mais que pudesse
impedir a integração das classes populares à sociedade moderna,
enfim, eliminar as ameaças à nova ordem social como pretendia o
PRR.73

Nesta ótica, o grande contingente de operários observados em cidades


industriais como Rio Grande, constituía-se em poderoso e potencial sublevador da ordem;
daí devendo ser vigiado, policiado, disciplinado. Os trabalhadores teriam que se adequar
aos padrões da sociedade moderna burguesa abandonando seus “nocivos” costumes. Nas
palavras de Margareth Rago, “o projeto de integração do proletariado e de suas famílias ao
universo dos valores burgueses, domesticação literal que a imagem projetiva de ‘bárbaros’
[a eles atribuída] justifica, desdobra-se em múltiplas estratégias de disciplinarização:
mecanismos de controle e vigilância que atuavam no interior da fábrica, mas também fora
dela”.74 Através do cumprimento das leis - entendido como condição de tranqüilidade
pública, ordem e progresso - o ideário burguês perpassava ao proletariado seus valores.75 O
objetivo final: redefinir as maneiras de pensar, sentir, e agir dos trabalhadores, erradicando
práticas e hábitos “tradicionais e perniciosos”. A idéia focal era a de que os operários e os
trabalhadores - elementos sociais indesejáveis e perigosos; embora indispensáveis -
deveriam ser afastados do centro da cidade, habitando os subúrbios e deixando o coração
da urbe àqueles em consonância com as regras e preceitos modernizadores ditados pela
burguesia comercial e industrial. Este pensamento escondia-se por detrás do discurso de
embelezamento e higienização das cidades. Para Sandra Jatahy Pesavento:

O centro era o cartão de visitas da cidade e quem não tivesse


educação, moral e higiene para nele habitar, que fosse instalar-se nos
arrabaldes. A varrida dos pobres do centro da cidade começara, assim
como a operosa tarefa de destruição dos becos e cortiços. Era

73
MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 81.
74
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985. p 12.
75
PESAVENTO, Sandra J. O Cotidiano da República: elite e povo na virada do século. Porto Alegre:
UFRGS, 1995. p. 60.

40
Da Rua ao Teatro

declarada guerra às tavernas, bordéis e casas de jogos, numa cruzada


moral, sanitária e urbanística, de destruiçao e reconstrução.76

A Belle Époque impôs um novo modo de viver urbano fortemente enraizado


na Europa e, mais precisamente, na capital francesa. Para a burguesia nacional, como bem
disse Brito Broca, “o chique era ignorar o Brasil e delirar por Paris”.77 Conforme Nicolau
Sevcenko, as mudanças ocorridas na sociedade brasileira, e sobretudo na carioca desta
época, assentavam-se em quatro princípios:

A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à


sociedade tradicional [lê-se luso-brasileira]; a negação de todo e
qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem
civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão
dos grupos populares da área central da cidade que, será praticamente
isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um
cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida
parisiense.78

As classes dominantes atuando sobre a cidade exigiam a criação de novos


espaços urbanos: avenidas, parques, praças, etc. e a remodelação dos já existentes,
adequados à freqüência de um novo modelo de cidadão: “trabalhador, econômico, ajustado
e voltado à intimidade do lar [...]; cheio de deveres e quase sem direito algum, a não ser
trabalhar”.79 Intervindo no meio, coibiam “usos e abusos” das camadas populares.
Elegantes lojas, grandes magazines, asseio público, praças e largos com belos jardins à
francesa e chafarizes ingleses... requeriam novas formas comportamentais à coletividade.
No dizer de Raymond Ledrut “a cidade é o lugar privilegiado para esse fenômeno circular
que é a ação do homem sobre o homem. A cidade é mediadora: feita pelos homens, ela os
educa”.80 Constituindo-se no território da modernidade e da civilização burguesa, deve ser
apreendida também como um “estado de espírito”.
Se a cidade encarnava os valores da civilização, do progresso e da cultura,
apresentava também uma outra imagem associada a perversão moral, a desordem social, às
doenças epidêmicas, a desagregação dos laços familiares, etc.81
A explosão demográfica oriunda do processo de industrialização e a
conseqüente especulação imobiliária decorrente da valorização capitalista da terra, levaram
de roldão importantes construções do acervo cultural arquitetônico rio-grandino. Aqui
torna-se importante a lembrança de que as demolições eram símbolos de renovação, que a
76
PESAVENTO, Sandra J. Um Novo Olhar Sobre a Cidade: a Nova História Cultural e as Representações
do Urbano. In: MAUCH, Cláudia et alii. Porto Alegre na Virada do Século XIX: Cultura e Sociedade. Porto
Alegre/Canoas/São Leopoldo: Ed. Universidade/UFRGS/Ed. Ulbra/ Ed. UNISINOS, 1994. p.139.
77
BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 92. A Belle
Époque no Brasil, pode ser situada, mais ou menos, entre os anos de 1890 e 1920.
78
SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 30.
79
MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 140.
80
LEDRUT, Raymond. Sociologia Urbana. Rio de Janeiro: Florense, 1971. p.169.
81
PINOL, Jean-Luc. Le Monde des Villes au XIXème Siècle. Paris: Hachette, 1991. p. 45.

41
Da Rua ao Teatro

noção de patrimônio histórico surgiu somente após o “urbanismo progressista” e que a


modernização não era tida como uma descaracterização, mas sim como um bem a ser
conquistado. Imponentes edifícios com fachadas ecléticas passaram a compor o cenário
urbano ostentando a riqueza e o “refinamento” da elite local. O gosto pelas formas
arquitetônicas do passado europeu imprimiu uma nova fisionomia ao lugar, caracterizada
pela apropriação e transformação dos modelos importados presentes em várias
combinatórias que persistiram no cenário urbano além dos Anos Trinta. Se na Europa, a
profusão na arquitetura dos “grandes estilos históricos – clássico, medieval, renascentista,
barroco, rococó – fazia parte do depósito de símbolos e imagens que serviam para
bloquear, dignificar e mascarar o presente”, no Brasil foram utilizados como que para a
montagem de um passado nacional inexistente, e que negava nossas verdadeiras raízes
coloniais.82 Para Needell:

a diferença entre o Ecletismo francês e o brasileiro está na função


simbólica do ecletismo cultural para cada elite e deriva da situação do
Brasil como um país na periferia do mundo europeu. Se a burguesia
francesa buscava legitimação ao se identificar com a cultura
aristocrática tradicional [...] a elite brasileira buscava legitimação
identificando-se com a Europa. [...] Os europeus reproduziam um meio
clássico, medieval ou rural como uma reação à cultura européia
moderna industrializante. Os brasileiros reproduziam o mesmo meio
[...] para criar algo associado à moderna cultura européia.83

Durante os anos de 1914 a 1918 a Europa submergiu na Primeira Guerra


Mundial. No desenrolar do embate, caminhou o desenvolvimento do Rio Grande do Sul
que, sob o governo de Borges de Medeiros consolidou-se como o “Celeiro do País”.84
Com o Velho Mundo envolvido diretamente no conflito, iniciou-se um surto
de industrialização em diversas regiões do país e do Estado. A industrialização rio-
grandina, percebida precocemente foi afetada por este fenômeno expandindo-se ainda
mais, colaborando para o abastecimento das potências beligerantes e do mercado interno.
Emersa no processo de “substituição das importações” a elite local vivenciou,
euforicamente, a crença no progresso e na modernidade, refletidas nas reformas de

82
MAYER, Arno. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime. (1848-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 188.
83
NEEDELL, op. cit., p. 177-178. Na realidade, segundo a tese de Mayer, esta “moderna” cultura européia
manifestava-se, singularmente, tradicional, incrustrada na sociedade aristocrática do Ancien Régime. (CF.
MAYER, op. cit.)
84
Conforme Pedro Fonseca, se durante o século XIX a economia do Rio Grande do Sul caracterizou-se pela
produção pecuário-charqueadora, “a produção agrícola diversificada é uma das principais características da
economia gaúcha do final do Império, prolongando-se tal diversificação por toda a República Velha. O Rio
Grande [do Sul] era auto-suficiente em arroz, feijão, lentilhas, milho, erva-mate, cebolas e alhos, alfafas,
batatas, uvas, mandioca, fumo, etc. O trigo, apesar de cultura irregular, às vezes chegava a abastecer o
mercado estadual e ser exportado para outros Estado”. Mais adiante, conclui o autor: “É significativa a
diferença de peso econômico entre o norte e o sul do Rio Grande [do Sul] ao considerarem-se as datas de
1890 e 1930. A imigração e o desenvolvimento da banha e da policultura emprestou à Serra e ao Planalto um
rápido crescimento, descaraterizando, de certo modo, ser o Rio Grande [do Sul] um Estado apenas pecuário –
como o fora no Império”. (FONSECA, op. cit., p. 63,67).

42
Da Rua ao Teatro

embelezamento da cidade e nas melhorias dos serviços urbanos. Todavia, esses benefícios
restringiam-se ao centro histórico e visavam atender aos interesses do comércio e da
indústria locais e ao desfrute, sobretudo, da burguesia.
O centro da cidade constituía-se no espaço público por excelência. As
multidões ganhavam as ruas, tanto nos momentos decisivos da luta de classes e da vida
política, como no lazer.85 Vivenciá-lo, “freqüentar seus cafés, [confeitarias, lojas
elegantes] salões, cabarés, casas de jogos, clubes, e teatros passou a ser um sinal de bom
gosto e de status social. O cinema, a moda, o footing, e o automóvel eram os novos
símbolos da vida moderna. A cidade começava a ser pensada como uma vitrine, em
tamanho ampliado, do luxo e do prestígio burguês, o lugar privilegiado para a
manifestação do fetichismo da mercadoria”.86
Entretanto, as grandes greves operárias registradas ao final da década de
1910, colocariam a descoberto a exploração e a triste condição de vida da massa operária
que “tentava sobreviver amontoada em cortiços, [porões e em casas de hospedagem] -
espaços de sociabilidade fora dos padrões de higiene, [habitadas, em sua maioria, por
operários e imigrantes] - e, constantemente, fiscalizados pelas autoridades.”87 Aos grupos
sociais de baixa renda restavam como possibilidades de moradia os velhos casarões
densamente ocupados, degradados e subdivididos que, outrora, foram habitados pela elite,
localizados no centro da cidade. Os cortiços apresentavam-se, então, como espaços de
resistência e sobrevivência proletária. Desde muito, médicos e engenheiros denunciavam,
através de seus opúsculos, a insalubridade desses “eleijões urbanos”.
Em fins de 1918 o espectro da Gripe Espanhola (ou Influenza) assolou a
terceira cidade do Estado em número de habitantes.88 A epidemia instalou-se, sobretudo,
junto às camadas mais pobres que, sem resistências, tornaram-se presas fáceis do vírus. O
óbito de um significativo contingente humano expôs a fragilidade do sistema revelando
uma realidade obnubilada pela fumaça das chaminés das grandes indústrias. No dizer de
Beatriz Olinto, “como uma torre de cristal construída sobre a lama, a modernidade erguia-
se na cidade de Rio Grande.”89
Encerrado o conflito mundial, deu-se o estabelecimento de indústrias
nacionais e multinacionais no Estado destinadas ao processamento dos produtos de
pecuária em grande escala.90 Em Rio Grande instalou-se a Companhia Swift do Brasil, em

85
SOARES, Uma Abordagem..., op. cit., p. 68.
86
MONTEIRO, Porto..., op. cit., p. 137-138. Sobre a emergência do fetichismo da mercadoria na Europa
burguesa e no Rio de Janeiro de meados do Dezenove até as primeiras décadas do século XX, confira
NEEDELL, op. cit., p. 185-208.
87
OLINTO, Beatriz. Fragmentos de Uma Cidade: a Cidade de Rio Grande frente a alguns aspectos da
Modernidade. Biblos.. Rio Grande: FURG, v. 8, p. 158, 1996. As autoridades locais buscavam vigiar,
normatizar e higienizar esses espaços promovendo inspeções sanitárias e demolições nos moldes das ações
da Diretoria de Higiene aplicadas na capital do Estado. Sobre o assunto confira o interessante estudo de
DELLA CRUZ, Gisele. As Misérias da Cidade: população, saúde e doença em Rio Grande, no final do
século XIX. Curitiba: UFPR, 1998. (Dissertação de Mestrado).
88
Nesta data, Rio Grande contava com 40.000 habitantes.
89
OLINTO, op. cit., p. 158. Desde o século XIX a ocorrência de epidemias colocava em xeque a salubridade
e a organização da cidade.
90
Em Pelotas foi instalada a Companhia Frigorífica Rio Grande e, em Sant’Ana do Livramento a Companhia
Armour do Brasil, cujas produções repercutiram no aumento das exportações e importações via porto de Rio
Grande. Se no Estado a introdução de frigoríficos deu-se somente após o término da Primeira Guerra
Mundial, na Argentina eles são percebidos desde fins do Dezenove, sendo responsáveis por grandes
transformações na pecuária daquele país. (Cf. LOVE, op. cit., p. 17.)

43
Da Rua ao Teatro

área arrendada ao Porto Novo, iniciando suas atividades em 1918, com operações de abate
e industrialização de carnes congeladas para a exportação.
À mão-de-obra acumulada no decorrer do processo de adequação portuária às
exigências de mercado, somaram-se novas migrações que viabilizaram a construção de
amplas instalações e a manutenção dessa importante indústria de capital norte-americano.
Conforme Eurípedes Falcão Vieira, “com capacidade para abater 1.000
reses/dia e empregando 1.500 operários, a Swift do Brasil S.A. teve importante papel na
vida econômica e social do Rio Grande, até fins dos anos 50. [...] Foi um centro gerador de
empregos, porém com uma larga base de operários de baixa renda, o que favoreceu o
processo de marginalização social ”.91
Urbanisticamente, neste período a cidade espraiou-se em direção sul
avançando sobre antigas dunas e a leste, em áreas reservadas à ampliação das atividades
portuárias. Onde havia sido planeado um bairro moderno, surgiu uma imensa favela - a
Vila dos Cedros (hoje, bairro Getúlio Vargas) - habitada por operários de baixa renda,
sobretudo, da Swift.
Em 1919 a Cidade de Rio Grande contava com 6.904 prédios92 e, em 1920 o
Município possuia 53.607 habitantes.93 Nesse ano, a indústria sul-rio-grandense
apresentava-se como a terceira maior do país, superada somente pela de São Paulo e da
Capital Federal.94 Respondendo por 59,9% da produção industrial nacional estavam as
indústria alimentícia (32,9%) e a têxtil (27,0%), justamente os principais ramos da
indústria rio-grandina.95
Nas palavras de Vieira:

A partir de 1920 a indústria local se diversificou com o crescimento da


indústria do pescado, conservas, bolachas, bebidas e outras.
Profundas transformações atingiram as indústrias pioneiras. As que se
modernizaram tecnologicamente progrediram, diversificando suas
atividades. O conservadorismo, contudo, liquidou inúmeras
fábricas.[...] A indústria do pescado, nascida do processo de salga do
peixe em barracas próximas ao cais do Porto Velho teve uma fase de
grande dinamismo com a ampliação das unidades industriais [...]. 96

Em princípios desse decênio intensificou-se a ocupação das terras próximas


ao Porto Novo, em áreas adjacentes às instalações industriais.

91
VIEIRA, Rio Grande... op. cit., p.133-134.
92
PIMENTEL, op. cit., p. 56. Evidentemente que a Vila dos Cedros não entrou neste cômputo. A ocupação
desta área só foi reconhecida em 1948. (Cf. SALVATORI, op. cit., p.48.)
93
Informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
94
LOVE, op. cit., p.106-109.
95
Dados fornecidos por: SILVA, S. Economia Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-
Omega, 1976. p.113. Conforme Pedro Fonseca, a lã foi o único produto da Campanha que, durante a
República Velha, apresentou um significativo crescimento, estando vinculada aos progressos da indústria
têxtil. Entre 1907 e 1927 as quantidades destinadas ao mercado externo quadruplicaram e ao mercado interno
duplicaram. Todavia, a lã não foi solução no sentido de impulsionar com dinamismo a economia, então
estagnada, desta região. (FONSECA, op. cit., p. 61.)
96
VIEIRA, Rio Grande..., op. cit., p. 134-135.

44
Da Rua ao Teatro

A prosperidade econômica ampliou os espaços físicos das cidades e


aumentou a diferenciação da sociedade brasileira. Ante à opulência da burguesia, opunha-
se frontalmente o operariado miserável e desamparado. Nesse quadro bipolar e de
profunda crise social, ganhou espaço a classe média formada por um grupo heterogêneo:
pequenos proprietários e comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais et
cetera.
A etapa histórica que iniciou-se após a Revolução de Trinta, foi marcada pela
aceleração das relações capitalistas e pelo conseqüente crescimento quantitativo e
qualitativo da burguesia e do proletariado brasileiros. Conforme a Estatística Industrial de
1935, Rio Grande possuía na indústria têxtil, 5 fábricas e na alimentícia 44. Em 1937
apresentava 6.000 trabalhadores neste setor; destes, 1.797 na indústria têxtil e 3.209 na
alimentícia. Especificamente nos frigoríficos trabalhavam 2.516 operários. No comércio
contavam-se 508 estabelecimentos de atacado e varejo.97
Outro importante setor da economia local relacionava-se aos
“divertimentos”: teatros, cine-teatros, cinemas..., responsável pela arrecadação de grandes
somas em forma de impostos municipais e pela geração de empregos. O comércio local do
lazer e da cultura ampliou-se e diversificou-se, consideravelmente, desde a década
anterior.98
Durante todo o período enfocado nesse estudo e, até finais dos Anos Trinta, o
crescimento urbano de Rio Grande ocorreu de maneira espontâneo e irregular, dentro dos
padrões tradicionais.99
Ao sul da cidade, próximo ao Porto Novo e da zona das indústrias têxteis e
da malha ferroviária rio-grandina, instalou-se em 1937 a Refinaria de Petróleo Ipiranga S.
A. De suma relevância para a economia local a companhia teve crescimento acelerado,
demandando grande número de empregados e rapidamente desdobrando-se em outras
empresas.
Paralelo aos ciclos econômicos já expostos, sempre desenvolveu-se no
Município a agricultura de hortifrutigranjeiros, sobretudo nas ilhas da Torotama, Leonídeo
e dos Marinheiros, e a pesca artesanal, cujos produtos eram comercializados na Doca do
Mercado (denominada antigamente de Banca do Peixe) ou no Mercado Público, em zona
central da cidade. Com seu cais recuado e entreposto a Doca do Mercado, localizada
próxima ao porto, foi construída em 1848 objetivando facilitar o abastecimento do
Mercado Público adjacente. O grande edifício do Mercado foi erguido em 1863 no mesmo
lugar da antiga construção em madeira. Construído para organizar o comércio local,
constituiu-se, por anos, no principal provedor da cidade em gêneros alimentícios e grande
fonte de arrecadação do Município. Seu prédio compõe e caracteriza uma das mais
tradicionais imagens de Rio Grande até os dias atuais.
Segundo o geógrafo Vieira:

97
PIMENTEL, op. cit., p. 258-259.
98
O maior empresário do setor de divertimentos da cidade durante o Entre-Guerras foi, sem dúvida, Ângelo
Gaudio. Em 1921 ele era co-proprietário do Teatro Sete de Setembro, co-arrendatário do Politeama Rio-
Grandense e proprietário dos cinemas Ideal Concerto, Victol, Parisiense e Recreio Popular. Em princípios
dos Anos Vinte, associou-se ao Cine-Teatro Guarani. Ao final do decênio sua empresa arrendou o Cine-
Teatro Carlos Gomes. Outros nomes de destaque eram Ferdinando Bianchini, Antônio Marques Figueiredo,
João Pereira de Andrade, João Mário de Carvalho Rios e Francisco Andreassi.
99
SALVATORI, op. cit., p. 50.

45
Da Rua ao Teatro

O desenvolvimento industrial é o mais importante fator de


transformação da sociedade. O crescimento e a diversificação da
capacidade industrial instalada operam modificações profundas na
organização social, na estrutura da população e nos ritmos de
crescimento demográficos. A industrialização é insofismavelmente a
maior aspiração com vistas ao desenvolvimento econômico e
social.[...] O progresso, o bem-estar social e a elevação cultural estão
profundamente ligados à criação, à implantação e à evolução do
processo de industrialização.100

Incontestavelmente, a industrialização promoveu um grande aumento da


malha urbana e um progresso econômico e cultural; entretanto esse não se fez acompanhar
de um projeto que criasse condições reais para o desenvolvimento social. Percebe-se a
exploração de mão-de-obra não especializada e de baixa remuneração, intensa
desigualdade na distribuição de renda, inchaço populacional e proliferação de favelas e
cortiços escondidos atrás de uma cidade dita moderna - um Rio Grande de cartão postal.
O processo de modernização pelo qual Rio Grande passou não implicou
todavia em grandes modificações do traçado urbano persistindo na cidade muitas
características de sua expansão desenvolvida de modo anárquico e marcada pelo ritmo dos
seus avanços no campo do comércio e da indústria.
As principais transformações circunscreveram-se ao alargamento da rua
Duque de Caxias na última quadra antes da Praça Xavier Ferreira e ao decorrente
desaparecimento do pequeno quarteirão então existente ao lado direito desta via e ao
alargamento da rua Benjamin Constant nos três últimos quarteirões anteriores à rua
Marechal Floriano Peixoto. Realizaram-se obras destinadas ao embelezamento do espaço
público em sua área central; a instalação dos equipamentos coletivos de infra-estrutura em
parte da cidade e ao aperfeiçoamento dos serviços urbanos. Efetivaram-se substanciais
melhorias no setor portuário. Deslocando-se do coração da urbe, foi executado o projeto
do Bairro Cidade Nova, instalado precariamente e destinado, sobretudo, ao operariado.101
Em 1944 a cidade possuía “ 8.772 prédios sendo destes 532 de mais de um
piso, distribuídos em 10 avenidas, 97 ruas, 44 travessas, 16 largos e praças, 1 parque e 3
praias”.102

FIGURA 5 – Planta da região central da cidade de Rio Grande, em princípios do século XX.
Extraído de: Planta Geral da Cidade do Rio Grande do Sul. 1904. Mapoteca da Biblioteca Rio-Grandense.
Rio Grande.

FIGURA 6 – Planta do centro da cidade de Rio Grande, em 1926 assinalando as reformas urbanísticas
efetuadas. No final deste decênio deu-se também o alargamento da rua Benjamim Constant, na última quadra
antes da rua Marechal Floriano Peixoto (o denominado “Beco do Carmo”), que implicou na demolição da
antiga Igreja de Nossa Senhora do Carmo (1928).
Extraído de: Planta Geral da Cidade do Rio Grande. 1926. Mapoteca da Biblioteca Rio-Grandense. Rio
Grande.

100
VIEIRA, Eurípedes. Rio Grande do Sul: Geografia da População. Porto Alegre: Sagra, 1985. p.158-159.
101
Cf. plantas da cidade de Rio Grande de 1904, 1926 e 1937.
102
PIMENTEL, op. cit., p. 56, 535.

46
Da Rua ao Teatro

∼ ∼∼
Para a compreensão da dinâmica de uma cidade não pode-se deixar de
enfocar sua infra-estrutura e serviços urbanos.
Durante o século XIX principiou-se uma tímida expansão dos serviços
públicos rio-grandinos. Nos últimos anos da década de 1840 foi implantada a iluminação
nas ruas do centro histórico. Em 1874, substituindo os antigos candeeiros a querosene
(antes, a óleo de peixe), a cidade passou a gozar da iluminação a gás pela Companhia Rio-
Grandense de Iluminação e, a partir de 1908 pelo Gasômetro Municipal, perdurando em
algumas vias públicas até 20 de maio de 1917. A luz elétrica, fornecida por uma usina
local, foi inaugurada em 1908 sendo implantada nas ruas centrais em 1915.103 Os
benefícios da iluminação pública repercutiram em todos os setores da sociedade, tornando-
se um dos agentes de dinamização do setor dos divertimentos coletivos e da vida noturna.
Cada vez mais, a noite foi perdendo seu caráter privado.104
O deficitário abastecimento de água potável da cidade percebido durante boa
parte do século XIX era realizado através de poços artesianos. Em 1848 abriu-se um novo
poço próximo ao centro histórico, na Praça Geribanda (atual, Praça Tamandaré). No
decênio de 1870 a Companhia Hidráulica instalou-se nas cercanias da cidade em local
próximo ao Parque Rio-Grandense, possuindo um elegante reservatório metálico com
capacidade para 1.500 litros de água. Embora tivesse melhorado, significativamente, o
serviço de abastecimento local, esse já apresentava-se insuficiente na virada do século.105
A coleta do lixo e a limpeza de ruas e praças eram realizados por meio de
carroças. Quanto aos dejetos fecais esses eram despejados em cubos de madeira existentes
em fossas móveis construídas nos quintais das casas. Os “cubos” eram retirados de duas a
três vezes por semana em carroças fechadas (em cores verde ou vermelha, de acordo com a
empresa). As “águas servidas” – utilizadas na cozinha, banhos e limpezas - eram
depositadas em barris e transportadas em pipas. Ambos resíduos eram liberados em águas
correntes afastadas da cidade.106 Em fins do século XIX a Companhia de Asseio Rio-
Grandense responsabilizava-se por esses serviços.
A instalação de latrinas públicas data de 1854 construídas próximas ao
Mercado. Embora a Municipalidade tivesse se empenhado, repetidas vezes, no sentido de
dotar a cidade de esgotos, diversos fatores contrários impossibilitaram o empreendimento
que só foi efetivado em 1920 quando começou a funcionar a Usina Central de Esgotos em
parte da rede. Em 1922 foram concluídos os trabalhos de abastecimento de água e os
serviços de esgotos que transformaram a cidade em um verdadeiro canteiro de obras.
Melhorias complementares foram executadas em 1923.107
Embora a zona urbana gozasse de serviços de luz elétrica, água e esgotos
encanados, esses não alcançavam toda a população. Em 1943 a cidade contava com mais

103
MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim. PIMENTEL, op. cit., p. 75-76.
104
Cf. CONSTANTINO, Núncia. A Conquista do Tempo Noturno: Porto Alegre ”Moderna”. Estudos Ibero-
Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. XX, n.2, dezembro, 1994.
105
COPSTEIN, op. cit., p. 51. PIMENTEL, op. cit., p. 29, 65.
106
FREITAS, op. cit., p. 50-51.
107
Ibid. Sobre o saneamento da cidade confira OLINTO, op. cit., pp. 147-158. PIMENTEL, op. cit., p.70-71.

47
Da Rua ao Teatro

de 8.000 prédios; desses, somente 5.500 usufruíam do abastecimento de água; 4.000 da


rede de esgotos e 6.000 de ligações elétricas.108
Na área da medicina social destacavam-se a Santa Casa de Misericória
(1841) e a Beneficência Portuguesa (1854), entre outras instituições de caridade
fundamentais à manutenção da saúde da população.109
Instalada estrategicamente entre o Oceano Atlântico e a Laguna dos Patos,
Rio Grande soube utilizar-se de sua qualidade portuária para sobreviver e desenvolver-se.
Em tempos onde as ferrovias ainda não haviam surgido e as estradas de terra eram um
pedido à morte, as calmas águas doces da laguna ofereciam transporte. E, apesar da rima,
que bem certo me anima, as embarcações singravam suas águas desde Rio Grande à
Pelotas, alcançavam Porto Alegre, subiam o Jacuí, via Canal São Gonçalo e Lagoa Mirin
chegavam a Jaguarão... Enfim, a navegação fluvial na rede hidrográfica da Bacia da
Laguna dos Patos constituía-se no meio de transporte intermunicipal mais utilizado.
Transportando cargas e/ou passageiros os vários tipos de embarcações de diferentes
nacionalidades e empresas, com suas linhas regulares, ofereciam passagens para os
principais portos do Rio Grande do Sul, Região Platina, Santa Catarina, São Paulo, Rio de
Janeiro e Europa.110 Conforme Joseph Love:

Em princípios da década de 1870, os vapores já estavam transitando


pela Lagoa dos Patos e seus tributários, até 307 km acima do Jacuí e
538 km do Uruguai, a partir da Barra do Quaraí. Fez-se a ligação de
Montevideo com o Porto de Rio Grande e duas viagens por mês
comunicavam o Rio de Janeiro com o Rio Grande [do Sul]. Por volta
de 1890, um vapor oceânico dava mensalmente acesso aos portos do
Norte do Brasil e da Europa. Ao invés de dois navios mensais para o
Rio, agora havia cinco. Saindo de Porto Alegre, navios atravessavam
os principais afluentes do Jacuí pelo menos três vezes por dia. Entre
1859 e 1883, mais do que duplicou o número de navios que cruzavam a
barra de Rio Grande.111

Gozando desde muito dos serviços de correio e telégrafo, a telefonia foi


implantada na cidade em 1887.112 Em 1907, ofertas de aparelhos telefônicos da Empresa
Ganzo Fernandes ocupavam os anúncios nos periódicos locais.
O transporte urbano coletivo teve início nos primeiros anos da década de
1850 por meio de “carretões”, espécie de ônibus puxado por cavalos e mesmo bois. Em

108
Cf. PIMENTEL, op. cit., p. 56-58.
109
FREITAS, op. cit., p. 52-53. PIMENTEL, op. cit., p. 85.
110
Dentre as principais companhias de navegação estavam a Mala Real Inglesa, Lloyd Brasileiro,
Navigazione Generale Italiana Transoceanica La Veloce, Compagnie Chargeur Réunis... As embarcações e
os trens constituíam-se nos mais importantes meios de transporte. Entretando, com o desenvolvimento da
indústria automobilística e a construção da Rodovia Rio Grande-Pelotas no decênio de 1940, este quadro foi ,
paulatinamente, revertido.
111
LOVE, op. cit., pp. 17-18.
112
Inventado em 1876 por Graham Bell, o telefone foi introduzido no Brasil em 1879. Em Porto Alegre, a
telefonia data de 1884. Em 1889 o Centro Telefônico Rio-Grandense publica na imprensa rio-grandina, uma
listagem geral de seus assinantes na cidade. (ECO DO SUL. Rio Grande, 9 jun.1889. FREITAS, op. cit., p.
29,33).

48
Da Rua ao Teatro

1884 foi fundada a Companhia Carris Urbanos do Rio Grande transportando passageiros
em vagões sob trilhos e puxados por cavalos ou a vapor. Os bondes à tração animal
desapareceram em 1922; todavia vagões puxados por pequenas locomotivas e bondes
movidos à eletricidade (muitos importados da Inglaterra) continuaram a existir.113 O
avanço da técnica nos meios de transporte coletivos urbanos, igualmente se insere num
signo de modernidade. Nas palavras de Mara do Nascimento:

os bondes anunciavam, pelos seus itinerários, que a cidade expandia-


se e que as necessidades da população em se locomover aumentavam.
Eram sinal de mudanças. Viajar, ou passear, por um quarto de hora
ou por meia hora ao lado de um desconhecido, sem dirigir-lhe a
palavra, ou então trocar conversa formalmente sobre a política ou os
costumes, com alguém que não se sabia exatamente quem era,
revelava o sinal de novos tempos que o bonde poderia proporcionar. A
eletricidade, força motriz oculta para os olhos, que não podia ser
vítima de chacotas ou apelidos como os burros, reforçou ainda mais a
veneração do progresso industrial e dos avanços da racionalidade
científica [...].114

Em 1931 a cidade possuía 16 bondes elétricos; em 1935, 22 carros e, em


1940, 42 unidades e um total de 24.500 km de linhas urbanas com um movimento de
5.386.841 passageiros neste ano. Era comum nos prospectos publicitários dos (cine-)
teatros locais o anúncio: “haverá bonds para todas as linhas depois do espetáculo”, o que
certamente favorecia à freqüência às casas de espetáculos e a vida noturna. O primeiro
ônibus da cidade foi inaugurado em outubro de 1939, com capacidade para 30
passageiros.115 Ao lado dos transportes públicos circulavam pelas ruas um tráfego de
transeuntes, carroças, coches e automóveis particulares - um dos grandes símbolos da
modernidade a ser alcançada e entendida como progresso.

FOTO 2 - Bonde elétrico trafegando na rua Mal. Floriano Peixoto. Ao fundo o antigo prédio do Clube do
Comércio. 1915.
Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Em 1936 a S. A. Empresa de Viação Aérea Rio-Grandense (ou


simplesmente, VARIG) utilizando-se do campo de pouso da Base de Aviação Naval de
Rio Grande, restabeleceu o tráfego comercial entre a cidade e Porto Alegre, inaugurado em
7 de maio de 1927.116
Rio Grande como terminal portuário da Província recebia, constantemente,
um grande fluxo de visitantes. Assim, decorria a necessidade de uma rede hoteleira que
possibilitasse a hospedagem dos viajantes. Entre os mais antigos hotéis percebidos estão:

113
FREITAS, op. cit., p. 43-45.
114
NASCIMENTO, op. cit., p. 14.
115
PIMENTEL, op. cit., p.54-56, 78. FREITAS, op. cit., p. 43-45.
116
É interessante ressaltar que esta linha inaugurou a aviação comercial brasileira. (PIMENTEL, op. cit., p.
267).

49
Da Rua ao Teatro

Hotel Internacional (construído em 1826, atual Hotel Paris à rua Mal. Floriano Peixoto)117,
Hotel do Globo (1856, que oferecia “canja com galinha” nas noites de espetáculos do
Teatro Sete de Setembro)118, Hotel Rio-Grandense (1862)119, Hotel Novo Arnaldo (1872)
rebatizado de Grande Hotel (1887, Rua dos Príncipes - atual Gal. Bacelar - ao lado do
Teatro Sete), Hotel Itália (1888, rua D. Pedro II - atual Mal. Floriano Peixoto - n. 196)120,
Hotel Atlântico (construído na virada do século na Vila Sequeira), Avenida Hotel (1919,
rua Gal. Bacelar, n. 147), Bristol Hotel (1920, Gal. Bacelar, depois mudou-se para a rua
Mal. Floriano), Hotel Roma (1920), Hotel do Globo (com o mesmo nome do supracitado,
inaugurado em 1921 à rua Paissandú - atual República do Líbano - próximo a Praça Sete
de Setembro), Hotel Portugal (inaugurado em 1927 a rua Gen. Netto, no 8) e outros. Em
1943 a cidade contava com 27 alojamentos (hotéis, pensões e casas de cômodos).121

1.2 - POPULAÇÃO

Historicamente o Município de Rio Grande sempre apresentou uma


população essencialmente urbana, condicionada às suas atividades produtivas. Em 1940,
marco temporal que baliza este estudo, o Município possuía 60.802 domiciliados; sendo
51.331 no meio urbano e somente 9.471 no meio rural.122
A população rio-grandina fundamentava-se, sobretudo, numa origem
européia portuguesa e numa africana. Uma característica da população local de
ascendência européia era a predominância da matriz étnica portuguesa apesar da freqüente
presença de imigrantes alemães, italianos, poloneses, espanhóis, franceses, ingleses... e
também de platinos, judeus e árabes ao longo de sua história, percebidos tanto no setor
primário quanto no comércio e na indústria que se desenvolveu após a Guerra do
Paraguai.123 Esse significativo contingente imigrante integrou decisivamente o processo de
modernização da cidade.124 Ao grupo caucásico somou-se o africano introduzido
largamente na época da escravidão e depois absorvido, principalmente, pelos setores de
prestação de serviços, da construção civil e da indústria.125 As migrações de outras etnias

117
Construído originalmente em estilo colonial seu prédio sofreu inúmeras reformas e ampliações. Elegante e
confortável foi decorado pelo artista Giovanni Falconi, sendo o mais requintado da cidade.
118
BITTENCOURT, Elementos... op. cit.,p. 17. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio
Grande, 3 jun. 1942.
119
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 27. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 1o ago.1941.
120
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 62. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 23 jul. 1942.
121
PIMENTEL, op. cit., p. 536.
122
Informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Municipal de 1940.
123
Sobre a imigração no Brasil consulte: DIÉGUES JR, Manuel. Imigração, Urbanização e
Industrialização: estudos sobre alguns aspectos da contribuição cultural do imigrante no Brasil. Rio de
Janeiro: MEC/INEP, 1964.
124
Sobre a atuação dos imigrantes na modernização de Pelotas confira: ANJOS, Marcos Hallal dos.
Estrangeiros e Modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX. Porto Alegre: PUCRS,
1996. (Dissertação de Mestrado).
125
Segundo Love, em 1890 cerca de 30% da população do Estado era composta por negros e mulatos. Os
escravos eram utilizados como peões nas estâncias, trabalhadores nas charqueadas e, em Rio Grande,
sobretudo, nas atividades comerciais e domésticas. (LOVE, op. cit., p. 11. Sobre a escravidão em Rio Grande

50
Da Rua ao Teatro

foram inexpressivas e dispersas ao longo dos tempos. Para Copstein, “a todos o Rio
Grande de origem lusa conseguiu absorver e integrar em uma comunidade sem os
problemas que não raro ocorrem nas sociedades de variadas origens”.126 Todavia, apesar
da marcante presença portuguesa, a organização social rio-grandina, assim como a
brasileira, caracterizava-se pela heterogeneidade resultante de um rico processo que
combinou contrastes e antagonismos os mais variados.
Observados a partir da Independência, os anos de maior entrada de
imigrantes portugueses no Rio Grande do Sul foram 1887, 1891, 1896 e 1912. A cidade de
Rio Grande constituiu-se, por todo o século XIX e boa parte do XX, na maior Colônia
Portuguesa da Província/Estado. A forte presença lusitana nos diversos segmentos
produtivos da sociedade revelava-se principalmente no comércio de secos e molhados, na
pesca artesanal e na industrialização do pescado, na agricultura de hortifrutigranjeiros, e
nas várias casas de alimentação (restaurantes, fruteiras, etc.) que possuíam.
Atuando na sociedade local, os portugueses colaboraram, decisivamente, para
o desenvolvimento do lugar. Da presença ativa destes imigrantes decorreram ações
conjuntas que possibilitaram as fundações da Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande
(1841); do Gabinete de Leitura (1846) origem da Biblioteca Rio-Grandense; da Câmara do
Comércio (1844); da Sociedade Portuguesa de Beneficência (1854); da Sociedade União
Comercial dos Varejistas de Secos e Molhados (1888) e de outras instituições.
Os imigrantes teutos também respondiam pelo progressismo da cidade.
Participando com destaque da indústria e do comércio locais, a influência dos germânicos
pode ser ainda claramente observada no estilo arquitetônico de muitos prédios instalados à
avenida Rheingantz.

1.3 – IMAGENS E AUTO-IMAGENS

Sendo a mais antiga cidade do Rio Grande do Sul lusitano, Rio Grande já foi
retratado por inúmeros artistas em suas telas: Jean-Baptiste Debret, Hermann Wendroth,
Francis Richard, Willian Lloyd, e outros.127 Através desses registros a cidade torna-se
história e, sobretudo, ganha imagem possibilitando aos historiadores a apreensão dos
cenário destruídos. Neste sentido, as fotografias de época e os relatos de viajantes
constituem-se igualmente em importantes ferramentas. O Rio Grande atual, não
proporciona uma visualização da cidade imperial e, muito menos, da vila colonial.
Tornam-se cada vez mais raras as construções desses períodos capazes de balizar a história
urbana local. Tem-se não mais que alguns poucos edifícios isolados sobreviventes ao
tempo, marcas do passado sedimentadas na memória urbana coletiva. Aos festins
demolitórios, sobreviveu somente a epiderme do antigo conjunto arquitetônico outrora
existente. A vila fortificada do século XVIII, de caráter militar alterou-se nas primeira
décadas do Dezenove dando origem a cidade burguesa, diretamente ligada ao comércio

confira GATTIBONI, Rita. A Escravidão Urbana na Cidade de Rio Grande. Porto Alegre: PUCRS, 1993.
Dissertação de Mestrado.)
126
VIEIRA, Rio Grande...,op. cit., p. 126. COPSTEIN, op. cit., p. 67.
127
Cf. BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Rio-Grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para
o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976.
Vol. I e II. Para uma visão sintética consulte: ALVES, Francisco e TORRES, Luiz. Imagens do Rio Grande.
In: Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX. Rio Grande: URG, 1995. p.78-84.

51
Da Rua ao Teatro

marítimo. A cidade industrial esboçava-se já em fins do século, apresentando-se nos


decênios de 1920 e 1930 como um importante centro fabril, com seus bairros operários
miseráveis e uma zona central “moderna” e europeizada. Uma cidade polissêmica,
ancorada em antagonismos. Tradição e modernidade dividiam o mesmo espaço: o cenário
onde os atores sociais representavam o dinâmico “espetáculo da vida”.
E assim como Rio Grande, o “Brasil moderno parecia um caleidoscópio de
muitas épocas, formas de vida e trabalho, modos de ser e pensar”. As culturas do passado
“subsistiam e impregnavam o modo de ser urbano burguês, [dito] moderno da cultura
brasileira, dominante, oficial”. A cidade “capitalista, industrial, urbanizada, convivia com
vários momentos pretéritos. Formas de vida díspares aglutinavam-se em um todo
insólito”.128
Em sua territorialidade a cidade brasileira possui, desde o nascimento, o
sincretismo do processo civilizacional do mundo, “uma dinâmica social de hibridização,
de mestiçagem de códigos [...] que não nega o conflito, a contradição e o paradoxo, ao
contrário, faz deles fontes de socialidade [...]”.129 Enquanto espaço à diversidade e ao
contraste, possui uma riqueza incomparável.
Mas qual seria a imagem que os rio-grandinos teriam de sua cidade em fins
do decênio de 1930? Frente à esta questão, torna-se precioso este desenho publicado em
grandes proporções na capa do jornal Rio Grande, de 19 de fevereiro de 1937, por ocasião
do bicentenário de fundação do lugar.

FIGURA 7 – Desenho publicado por ocasião do Bicentenário da Fundação de Rio Grande.


Extraído de: RIO GRANDE. Rio Grande, 19 fev.1937.

O artista Procópio Neto faz diversas alusões à história local registrando a


chegada da expedição fundadora do brigadeiro português José da Silva Paes em 1737; a
construção do Forte Jesus, Maria, José – núcleo inicial da cidade e a presença indígena na
região - personificada na forma vigorosa de um índio, relacionado à agricultura. O presente
do lugar revela-se no registro do rebanho gaúcho, numa clara relação com o importante
setor frigorífico fundeado no Município; no complexo portuário e na retratação de um
imenso parque industrial com suas várias unidades fabris, muitas chaminés e vagas de
fumaça - emblemas do progresso e da modernidade alcançados. Nesses quadros os anos de
1737 e 1937 são emoldurados por raios fúlgidos, num enaltecimento tanto do passado
quanto do presente da cidade.
Assim, eis um Rio Grande idealizado, mítico, mas legítimo na construção do
imaginário urbano coletivo. E aqui cabe a lembrança de que por meio das apelações
emotivas (no caso, da valorização do grupo e da terra) desenvolve-se a dimensão afetiva
da cidade, dimensão essa, que a faz funcionar.130

128
IANNI, Octávio. A Idéia do Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 60-62.
129
PEREZ, Léa. Separatismo ou Tempo das Tribos? In: Colóquio Internacional Separatismo e Pós-
Modernidade. Porto Alegre: Instituto Cultural Brasileiro-Alemão, 1994. Alicerçada nas idéias de Michel
Mafessoli, a autora entende por socialidade os aspectos lúdicos do elo social, o prazer do contato, as relações
informais estabelecidas em sociedade.
130
Palestra intitulada História e Imaginário Urbano, proferida por Maria Stella Bresciane (UNICAMP), na
UFRGS em 18 de abril de 1997.

52
Da Rua ao Teatro

Se esse registro correspondia somente à uma das faces da cidade, não


devemos esquecer que uma outra existia e pulsava vivaz. E que apesar dos muitos
problemas urbanos, Rio Grande oferecia-se às mais variadas manifestações da vida em
sociedade. Formas de lazer, diversões, vida noturna, clubes, associações, sociedades..,
hábitos e práticas sociais urbanas constituem-se no próximo objeto desse estudo.

__________ 2 __________
ORGANIZAÇÃO & MOVIMENTO:
A SOCIEDADE RIO-GRANDINA

2.1 - FESTAS E LAZERES AO AR LIVRE

Entre areias estéreis e zonas alagadiças Rio Grande desenvolveu-se numa


constante luta contra a natureza hostil. Invadida freqüentemente por dunas móveis e
desprovida de vegetação, a cidade foi fruto da ação transformadora de seus habitantes.
Mesmo sem uma paisagem natural a seu favor e um cenário urbano, por épocas, nada
atraente, sua população, desde os primórdios, utilizava-se do espaço público para o lazer e
comemorações, que assim entendido, constituía-se num importante local de integração
social.
Neste sentido, um dos primeiros registros que possuo remete ao ano de 1750
e às comemorações locais pela subida ao trono de Portugal do monarca D. José I.
Manifestando lealdade ao novo rei, a população civil e os militares divertiram-se nas ruas

53
Da Rua ao Teatro

com “banquetes, baile e comédias” às custas da Provedoria do Rio Grande.131 Mui


possivelmente, como era costume da época “ao som de charanga militar, espocar de
foguetes e outras manifestações”.132
A observação da inclusão de representações teatrais nesta festividade adquire
sensível importância se considerado o contexto da época em que está inserida: há apenas
treze anos decorridos de sua fundação, Rio Grande constituía-se num remoto lugarejo
essencialmente militar, composto por uma única rua com pequenas casas de pau-a-pique e
barro. O contingente açoriano que impulsionaria o desenvolvimento do lugar, só chegaria a
partir de 1752.
Guilhermino César comenta que “muito antes, portanto, de inaugurada em
Porto Alegre a Casa da Ópera [fins do século XVIII] já no burgo rio-grandino [...] o teatro
rebentava do chão do areal litorâneo [...]”.133
A fervorosa religiosidade do luso-brasileiro revelou-se desde cedo, já na
fundação do primeiro forte em 1737, evocando a Sagrada Família: Jesus, Maria, José. Ao
longo dos séculos muitas foram as igrejas e instituições religiosas existentes em Rio
Grande.134 Durante o século XVIII e parte do XIX as sociabilidades públicas estavam
intimamente relacionadas não somente com a freqüência às igrejas e capelas, mas também
às festas populares religiosas. Muitas destas atividades eram prescritas pela Igreja com o
fim de desobrigar os fiéis. O Estado igualmente exigia o cumprimento de rituais cívicos -
festas reais ou oficiais - comemorando eventos relativos à Família Real ou acontecimentos
e datas nacionais, como também de algumas celebrações religiosas determinadas pelas
Ordenações do Reino e Cartas Régias assinalando as demonstrações públicas de regozijo
ou de pesar. E aqui torna-se mister a lembrança da união existente entre o Estado e a
Igreja, tanto em Portugal quanto no Brasil Monárquico. O nascimento, a morte, o
casamento, a entronação... de monarcas ou príncipes transformavam-se em acontecimentos
festivos para a população, objetivando a promoção do culto aos governantes. Nessas
comemorações incluíam-se sempre missas cantadas (Te Deum) e atividades religiosas fora
dos templos.
Conforme Arno Mayer, “principalmente nos países ou regiões católicos e
ortodoxos, as procissões religiosas constituíam espetáculos grandiosos, e muitos
teatralizavam visualmente a interligação do altar, trono, classe dominante e nação, como
no caso das coroações e funerais reais”.135 Na falta da presença física do homenageado,
sua personificação realizava-se por meio da retratação de sua imagem em pintura, sendo
pomposamente cortejada pelas ruas da cidade.
Procissões, missas ao ar livre, quermesses, e outros festejos acompanhados
por bandas musicais desenvolviam-se pelas vias públicas e no Largo da Matriz (mais tarde
denominado de Largo Dr. Pio), celebrando datas religiosas: Semana Santa, dia natalício de

131
Documento 20.436. Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil Existentes no Arquivo de Marinha e
Ultramar. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. V. 71.
132
CESAR, Guilhermino. Comédias Portuguesas no Rio Grande de São Pedro - 1750. Correio do Povo.
Porto Alegre, 11 mar. 1978, p. 3. Todavia sabe-se que, muito comumente, os banquetes eram aproveitados
somente pelos cidadãos de destaque; aos pobres eram distribuídos apenas pães. (Cf. WESTPHALEN, Cecília
et BALHANA, Altiva. Lazeres e Festas de Outrora. Curitiba: SBPH-Pr., 1983. p. 14.)
133
CESAR, Comédias..., op. cit.
134
Conforme Pimentel, na divisão eclesiástica católica, a cidade possuía em 1943 duas Paróquias com suas
respectivas matrizes e igrejas, 18 capelas e 2 conventos de carmelitas descalços; seis confissões protestantes,
cada uma com seu templo; 28 sociedades espíritas, 3 esotéricas e uma sinagoga judaica. (PIMENTEL, op.
cit., p. 151, 536.)
135
MAYER, op. cit., p. 239.

54
Da Rua ao Teatro

Santos, Corpus Christi, Espírito Santo, etc. Esses encontros misturavam a religiosidade a
um espírito alegre e lúdico desenvolvido na festa. O compromisso religioso constituía-se,
outrossim, num momento social. Para Roberto Da Matta, “os eventos sociais marcados
pela motivação do divino e realizados sob a égide da Igreja [...] assumem no Brasil um
caráter conciliador entre a extrema formalidade e a extrema informalidade, no ambiente
criado pelo próprio ritual” e que revela a dramatização dos valores da sociedade que o
engendrou.136

FIGURA 8 – Crítica do jornal O Amolador às músicas da Procissão da Ressurreição de 1874.


Legenda: “Tudo Dança. Eis os efeitos causados pelas bandas de músicas na Procissão da Ressurreição, em
conseqüência de tocarem peças impróprias de servirem em atos religiosos. É preciso que se afastem de certos
‘fadinhos’ que fazem com que os homens dos hábitos e da opas, assim como as beatas, esquecendo-se das
cerimônias, caiam no fandango, prejudicando assim a moralidade e a religião”.
Extraído de: O AMOLADOR. Rio Grande. 1874. N. 2. Museu de Comunicação Social Hipólito José da
Costa. Porto Alegre.

As quermesses atuavam como formas comunitárias de estímulo à


solidariedade. As festas juninas: Santo Antônio, São João e São Pedro reuniam a
vizinhança em torno das fogueiras, fogos de artifícios, danças e comidas típicas. Outro
importante elemento lúdico dessa tradicional manifestação popular era a “nada civilizada”
prática da Malhação do Judas que, desde o período colonial era arrastado, surrado e,
finalmente, queimado pelas ruas.137 Com o tempo, essas festas religiosas foram,
paulatinamente, secularizadas.

∼ ∼∼
As festas populares durante a Colônia e o Império tinham seu ápice no jogo
do Entrudo, folguedo carnavalesco popular de origem portuguesa que desenrolava-se pelas
ruas de todo o Brasil.138
Em sua estada na cidade em 1809, o viajante Luccock assim descreve o
festejo:

Por ocasião do Entrudo, conforme lhe chamam, fazem bolas ocas de


cera de cores variegadas, mais ou menos do tamanho de uma laranja,
enchem-nas d’água e bombardeiam-se mutuamente até que os
combatentes fiquem completamente molhados.[...] Embrulha-se
farinha de trigo em cartuchos de papel e, de surpresa, quando um

136
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 1980. p. 41.
137
Conforme Gilberto Freyre, a malhação do Judas de Pano era uma “evidente expressão popular de ódio
teológico do Católico ao Judeu e de ódio social do oprimido ao opressor: do moleque pobre de rua ao homem
apatacado e nem sempre de sangue israelita, embora quase sempre considerado ‘judeu’, [proprietário] de
sobrado comercial”. (FREYRE, Sobrados..., op. cit., p 462).
138
De origem um tanto obscura, o Carnaval localiza-se na Antigüidade associado às celebrações profanas de
caráter orgíaco. Incorporado às tradições cristãs, designa o período dos três dias precedentes a Quarta-feira
de cinzas, sendo marcado por uma série de folguedos populares de interesses lúdicos.

55
Da Rua ao Teatro

pobre negro se encontra distraído o fazem de branco. De tal maneira


o povo gosta desses e de outros divertimentos que dizem todos
abertamente: no Entrudo ficamos todos bobos.139

O Entrudo era um folguedo que tinha a intenção de molhar ou de sujar


transeuntes desprevenidos, atirando sobre eles água através de bisnagas ou de limões de
cera e também farinhas e cal. Mais tarde surgiram os limões de cheiro com água
perfumada e as bisnagas com vinagre, groselha ou vinho.
Conforme Olga Von Simson, no universo da festa:

cabem as brincadeiras com limões e laranjas de cheiro, as


molhadelas com seringas, bisnagas e até baldes ou tintas, os
enfarinhamentos, as peças pregadas em amigos, parentes e
conhecidos e a brincadeira intitulada ‘Você Me Conhece?’. [...] o
negro do Entrudo tem participação minoritária, cumprindo três
funções: auxiliar os brancos [os chamados “pretos-minas” que
carregavam as cestas com os limões], ser vítima passiva das
brincadeiras [como registrou Luccock] ou vender limões e laranjas
de cera [fabricados pelas próprias famílias]. Os negros jogavam o
Entrudo nos intervalos de suas atividades, mas tal jogo era
circunscrito aos seus, mantendo os padrões dos brancos.140

Na década de 1840 surgiu no Rio de Janeiro o Zé Pereira, costume lusitano


de animar os festejos carnavalescos ao som de tambores e zabumbas percutidas pelas ruas
em passeata, que difundiu-se ao longo do século adquirindo novas características com a
introdução de outros instrumentos.
Paralelo a popular folia de rua desenvolveu-se a partir deste decênio o
Carnaval Veneziano caracterizado pelos Bals Masqués (Bailes de Máscaras) dados em
salões ou teatros. Posteriormente, surgiram os Clubes Carnavalescos. Voltados para as
classes dominantes, organizavam-se, também, em préstitos de coches abertos com famílias
fantasiadas e carros alegóricos ricamente decorados e puxados por cavalos, pelas ruas
centrais das cidades. O Corso era acompanhado por bandas que tocavam marchas
militares, polcas, xotes, valsas, etc. Os préstitos luxuosos passaram a caracterizar o novo
tipo de folia. As ruas transformavam-se em verdadeiros palcos apresentando o “Espetáculo
das Elites”.
Em princípios da década de 1880, eram os clubes carnavalescos Saca-Rolhas,
Boêmios e Diógenes que forjavam a folia nas ruas. O Club Carnavalesco Mina, fez seu
primeiro “passeio burlesco” em janeiro de 1888 “acompanhado de imenso povo”.141

139
LUCCOCK, op. cit., p.129.
140
VON SIMSON, Olga R. de Moraes. A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo: Sessenta Anos de
Evolução do Carnaval na Cidade de São Paulo - 1855-1915. São Paulo: FFLCH, USP, 1984.(Dissertação de
Mestrado). Apud. BARRETO, Álvaro. Carnaval Pelotense: Europeu ou Africano?. Revista do IHGPel.
Pelotas, n.2, p.28, jul. 1997.
141
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 61. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 15 jan. 1947. Sobre este clube, Antenor Monteiro, em seu Rebuscos: Coisas e Fatos da Cidade,

56
Da Rua ao Teatro

FIGURA 9 - Passeio burlesco do Clube Boêmio pelas ruas do centro da cidade. Carnaval de 1881.
Extraído de: MARUI. Rio Grande, 20 fev.1881. s/n. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

Ao referir o Carnaval brasileiro de meados do Oitocentos, Freyre comenta


sua função de desobstrução psíquico-social para uma população que nos restantes dias do
ano, continha “alegrias ruidosas e tradições extra-européias de danças sensuais” abafadas
por um europeísmo artificial ou postiço.142
Mesmo proibido pelo Governo, que o considerava um folguedo violento, o
Entrudo gozava de grande prestígio junto à população. O periódico pelotense Diário
Popular em 1o de fevereiro de 1891 comentava que “há bons nove ou dez anos [...]
ninguém se continha: moços e moças, velhos e velhas - de acordo, reuniam-se na Praça
[...] e numa intimidade doce, invejável, numa confiança cega - se atiravam todos às
delícias do Entrudo”.
Entretanto, com as novas ordens do dia: “abaixo o polvilho”, “fora os
banhos”, “sepultem-se as laranjinhas”..., a pressão da polícia e o surgimento de
instrumentos “modernos” de brincar: a serpentina, o confete e o lança-perfume, o velho
folguedo – como realizava-se à época colonial - teve fim nos primeiros anos do século
XX. O surto “civilizador” republicano da época refletiu-se na folia momesca: o Carnaval
disciplinou-se. As sociedades carnavalescas com seus bailes e desfiles organizados
levaram ao fenecimento da forma tradicional dessa manifestação lúdica da cultura colonial
brasileira.
O desfile de carros e, mais tarde de automóveis, acontecia na rua Marechal
Floriano Peixoto, entre batalhas de flores e confetes, numa versão tupiniquim do Carnaval
de Nice, na Côte D’Azur. Compondo o cenário europeizado, pierrots e pierrettes,
arlequins e colombinas, príncipes e princesas... numa “estética da imitação”. Em plena
Belle Époque nos Trópicos os clubes carnavalescos Saca-Rolhas, Arara, Boêmios, Congo
e outros, extravasam sua joi de vivre em “luzidos burlescos” no cenário urbano.143 Nesse
Carnaval burguês, de origem francesa e italiana, e obviamente, branco, as camadas pobres
da população atuavam como espectadores assistindo das calçadas ou seguindo atrás do
Corso. Todavia, mesmo nesta situação, ricos e pobres, compartilhando do mesmo espaço
físico, ou seja, do centro da cidade, passavam de certa maneira a comungar da folia.

fundamentado em jornais de época, revela alguns aspectos surpreendentes sobre a plasticidade da cultura
brasileira percebida na sociedade rio-grandina de finais do Oitocentos. Em suas palavras; “no dia 2 de março
de 1879, findava o carnaval com o Domingo da Pignatta. Saíra o Club Mina, formado de jovens de boa
sociedade que, previamente ensaiados, entoavam cantigas dos africanos, reproduzindo-lhes as danças
exóticas e, à noite no Politeama, banqueteavam-se com o vatapá, conduzido em grande panela de ferro”. Ao
lado da Pignatta de origem italiana, a valorização de elementos da cultura negra por parte da população
branca “de boa sociedade”, notadamente da música e a da dança (sem falar na comida que desde o período
colonial já se fazia notar nas mesas dos brancos) torna-se preciosa se inserida no contexto da época: um
Brasil escravocrata (mesmo que em decadência), dominado pelo racismo científico e sua premissa básica
calcada na superioridade da raça branca e onde o “branqueamento” da população encontrava respaldo,
efetivando-se no ideal europeizante do programa imigrantista, em decurso ao longo daquele século. Sobre o
Domingo da Pignatta confira no Capítulo VI deste estudo o sub-título Bailes. A respeito das questões do
“perigo negro” e do “branqueamento da Nação” consulte: CHIAVENATO, Júlio J. As Lutas do Povo
Brasileiro: do “Descobrimento” a Canudos. São Paulo: Moderna, 1988. FREYRE, Sobrados..., op. cit.
142
FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 111.
143
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 81. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 31 jan. 1941.

57
Da Rua ao Teatro

FOTO 3 - Desfile do Clube Carnavalesco Saca-Rolhas apresentando o carro alegórico intitulado “Jardim da
Rainha”, trazendo a soberana do clube e sua Corte. Carnaval de 1911.
Extraído de: Arquivo Fotográfico do Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande.

Nesse século a festa ampliou-se com a criação de Blocos, Cordões, Ranchos


e Clubes Carnavalescos formados por operários e funcionários públicos e do comércio.
Nos Anos Vinte, o Carnaval de rua já tinha readquirido seu caráter popular, acrescido de
uma singularidade: a importância do elemento negro e de seus costumes. Conforme Álvaro
Barreto:

Aos poucos o carnaval burguês decai por uma série de fatores entre
eles a industrialização, a urbanização, a chegada de novos atores
sociais à cena e a utilização da folia pelo Estado como estratégia
para incorporar as classes populares, ocorrendo, assim, a
popularização da folia, agudizada a partir dos anos 20, quando,
então, destacam-se costumes, danças e músicas africanas, antes
periféricas, desprestigiadas e/ou estranhas à elite. Esse outro estilo de
folia, que paulatinamente ganhava destaque, era o chamado Pequeno
Carnaval, tendo como elemento característico o cordão e depois os
ranchos.144

Desta feita multiplicaram-se os grupos populares organizados para brincar o


Carnaval que, assim constituído, transformou-se num evento de ampla participação social,
numa féerie colossal onde todos compartilhavam do culto ao prazer e da alegria. Com
fantasias sem luxo, os pequenos grupos desfilavam a pé, tocando e cantando ao ritmo de
instrumentos de origem africana. Firmaram-se as marchas e os sambas. Imprimiu-se uma
nova feição ao Carnaval Brasileiro.
Estudiosa do tema, Maria Isaura Pereira de Queiroz considera que o Carnaval
deve ser entendido como uma festa que mantém uma relação íntima com os costumes e os
papéis da sociedade onde desenvolve-se e cuja ruptura que se instala (ou “inversão”, como
prefere Da Matta) embora essencialmente revolucionária, é na verdade simbólica,
subsistindo os condicionantes sociais que, inclusive, sustentam essa simbolização.145
Debruçando-se sobre o Carnaval e as festividades do Dia da Pátria, Da Matta,
valendo-se de uma sociologia comparativa, classifica estes eventos como “rituais
nacionais”, pois percebe que ambos são “ritos fundados na possibilidade de dramatizar
valores globais, críticos e abrangentes de nossa sociedade”. Eles refletem e expressam as
facetas e os problemas da formação social brasileira. Enquanto momentos festivos,
pertencem a um mundo extra-ordinário onde revelam-se muitos aspectos da realidade
social então submersos pelas rotinas, interesses e complicações da vida quotidiana. Desta
feita, “a chamada realidade brasileira se desdobra diante dela mesma, mira-se no seu

144
BARRETO, op. cit., p. 30.
145
Cf. QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval Brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

58
Da Rua ao Teatro

próprio espelho social e ideológico e, projetando múltiplas imagens de si própria,


engendra-se como uma medusa, na luta e dilema entre o permanecer e o mudar”.146

FOTO 4 - Carro alegórico do Clube Carnavalesco Arara em desfile pela rua Mal. Floriano Peixoto. Ao fundo
vê-se o edifício da Cinema Ideal Concerto (posteriormente, sede do Café Nacional). Carnaval de 1920.
Extraído de: Arquivo Fotográfico do Museu da Cidade do Rio Grande. Rio Grande.

Outra importante observação é a de que no Carnaval, como no mundo da


diversão, o “comportamento é dominado pela liberdade decorrente da suspensão
temporária das regras de uma hierarquização repressora”.147 Apresentando-se como uma
festividade extra-ordinária com datas previstas para acontecer, no Carnaval Brasileiro a
sociedade se “desempacota” temporariamente para, ao término das folias voltar a
“empacotar-se” e, ordeiramente, esperar o próximo fevereiro, um mês “mágico”, onde os
excessos coibidos durante todo ano são permitidos.
Conforme Léa Perez, o princípio de organização social de nossa sociedade “é
o da plasticidade e do movimento. E plasticidade e movimento são traduzidos, no Brasil
através da festa.” A cidade sempre constituiu-se no cenário que acolhe a festa “espaço por
excelência de reunião social, de assembléia coletiva e de socialidade.” Para a historiadora:

Na festa à brasileira o que importa, acima de tudo, é a ação, a


participação ativa. O que vale e prevalece é a assembléia
efervescente, a exaltação geral, o carnavalesco próprio à festa. O
carnaval e as festas religiosas, formas de espetáculo por excelência,
dizem respeito a uma maneira particular de viver a sociedade e de
perceber o mundo. No Brasil o carnaval é mais que uma festa, ele
corresponde a um modo de ser e de viver, a um princípio de
organização social que caracteriza o mais profundo deste país. Entre
nós, tudo começa e tudo termina pelo carnaval, o que vale dizer que
nada começa verdadeiramente, tanto quanto nada tem fim. Nós
vivemos sempre em trânsito, em movimento, na abundância
carnavalesca. Neste modo de viver, a realidade não é negada,
exatamente o contrário, ela é transfigurada e exacerbada por um
realismo irônico que, em a afirmando, ri dela.148

Na festa, pessoas se encontram e se reencontram, experiências são


recebidas e transmitidas. A intensificação do processo de comunicação dela decorrente,
torna-se agente de renovação da vida social. Realizando-se num espaço plural, em sua
atmosfera prevalece o movimento da coletividade ancorado na sensibilidade, o congregar
das diferenças, o amolecimento da rigidez dos comportamentos.

146
DA MATTA, op. cit., p. 35-36.
147
Ibid., p. 38.
148
PEREZ, Léa. Por Uma Poética do Sincretismo Tropical. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre:
EDIPUCRS, v. 18, n.2, p. 49-50, 1992.

59
Da Rua ao Teatro

∼ ∼∼
A ordenação da natureza nos espaços da cidade moderna estava inclusa nos
projetos de embelezamento urbano e igualmente alicerçados em modelos parisienses.149
Sob a égide da modernização, praças, largos e jardins tornaram-se os locais favoritos da
elite rio-grandina para o lazer ao ar livre, oferecendo-se às novas relações de uma vida
pública.
Construída no centro histórico em zona comercial e residencial nobre a Praça
Xavier Ferreira (outrora Praça do Mercado, Praça Municipal, Praça Dona Isabel e Praça
General João Telles), com uma de suas faces à rua Marechal Floriano Peixoto, teve seu
delineamento em 1809 através da “Planta da Praça da Vila do Rio Grande de São Pedro”
apresentada por João Vieira à Câmara. Circundada por um gradil, iluminada, arborizada,
com belos jardins em estilo francês, lago em espelho, monumentos e chafariz em metal
importado da Inglaterra, esse tradicional espaço público de sociabilidade foi modernizado
(diz-se, retificado e limpo da presença popular), adquirindo um “tom aristocrático” e
constituindo-se no ponto de encontro das famílias elegantes aos domingos, no passeio
matinal das crianças e dos bebês, e no local predileto dos namorados que embalavam-se
com os sons das retretas ao entardecer. Passeio Público, onde os rio-grandinos viam e eram
vistos. À época do Carnaval a praça era tomada por vários quiosques que vendiam lança-
perfume, confetes, serpentinas e óculos (tipo de aviador) para a proteção dos olhos. Os
realejos povoavam, igualmente, este universo.

FOTO 5 – Vista da Praça Xavier Ferreira, na década de 1940. Destaque para sua concepção fortemente
influenciada pela estética urbana francesa.
Extraído de: PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais do Município do Rio Grande. Porto Alegre: Gráfica da
Imprensa Oficial, 1944. p. 218.

Na Praça Sete de Setembro ocorriam também concertos musicais. Instalada


no local do antigo Forte Jesus, Maria, José, a praça albergou por inúmeras vezes os
pavilhões dos circos que visitavam a cidade. Na virada do século seu velódromo agitava os
sócios do Clube dos Ciclistas.150
Igualmente apreciada era a Praça Tamandaré (antiga Geribanda ou Praça dos
Quartéis). Próxima ao centro era um imenso parque iluminado e gradeado, muito bem
arborizado e ajardinado, com passeios, monumentos, chafariz em metal, quiosques e um
pequeno coreto onde realizavam-se retretas de bandas de música e comícios públicos. Um

149
A partir da segunda metade do Dezenove intensificaram-se às influências européias no Brasil, opondo-se
então às influências orientais dos tempos da Colônia. Esta tendência não revelava-se somente no plano
cultural, mas também na natureza ordenada nos espaços públicos das cidades, onde passaram a imperar
concepções estéticas, árvores e plantas elegantes importadas daquele continente. Freyre registra também o
desprezo e a vergonha que se instalaram no país aos elementos oriundos da flora africana e asiática aqui já
aclimatados. Frente ao afrancesamento, quase que caricaturesco, da sociedade brasileira da Belle Époque,
Sevcenko se pronuncia: “Nada a estranhar, portanto, se para se harmonizar com os pardais – [aves] símbolos
de Paris – que o prefeito Passos importara para a cidade [do Rio de Janeiro], se enchessem as novas praças e
jardins com estátuas igualmente encomendadas na França ou eventualmente em outras capitais européias”.
(Cf. FREYRE, Sobrados..., op. cit., p.456-457. SEVCENKO, op. cit., p. 36-37).
150
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 75. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 28 nov. 1941.

60
Da Rua ao Teatro

catavento captava água para os lagos com pequenas ilhas e canais artificiais cortados por
várias pontes e percorridos por pequenos barquinhos. O esquadriamento do antigo local e a
construção de um parque organizado e limpo, seguia o exemplo da Europa e que deveria
ser seguido pela cidade em busca do progresso e, inserido no ideal modernizador-
higienizador-urbano pelo qual passavam os principais centros brasileiros. A cidade
“modernizada” estimulava a família a usufruir do espaço público, circulando em uma
atmosfera saudável e forjando assim, novas práticas urbanas adequadas aos “novos
tempos”.151

FOTO 6 – Vista da Praça Tamandaré, inspirada nos grandes parques europeus. Princípios do século XX.
Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande:
Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p.

Uma maior atenção ao embelezamento e a higiene da cidade tornaram-na


mais agradável aos olhos, intensificando as vivências da rua, o prazer do footing (ou em
francês, da flânerie) e, favorecendo assim, a integração da sociedade com o meio urbano.
À tardinha, a rua Marechal Floriano Peixoto, com suas lojas, cafés e praça agitava-se com
o trânsito de pessoas flanando despreocupadamente a ver as novidades do comércio,
conversando com amigos, trocando olhares com os pretendentes... ou, simplesmente
exibindo a elegância das boas maneiras e o vestuário da moda: todos os homens - inclusive
os operários - usavam colarinho, gravata e chapéu; as mulheres não saíam à rua sem luvas
e cabeça descoberta. Se Paris impunha-se aos figurinos femininos, Londres ditava os trajes
masculinos. Através da revista local Semana Elegante (no 22) de 1920, o poeta João da
Rua, escreve:

Hora do footing. Quinta-feira.


A praça toda regorgita,
A feminil graça brejeira
A alma comove e o olhar agita152

Deixando de ser o lugar onde se forjava a cultura popular, a rua passava a ser
vista como um espaço de circulação remetido às esferas de consumo e do trabalho. Nesse
universo os pobres eram estrangeiros; mas presentes, forçavam a interação das diferenças.
A rua era também um espaço para as brincadeiras infantis: pula-corda, cabra-
cega, esconde-esconde, amarelinha, bolinhas de gude, pandorgas, carrinho de rolimãs,
brincadeiras de roda, varinha tangendo rodas, pernas-de-pau, futebol, bola na mão,
matador, etc.
Os espaços públicos ofereciam-se igualmente à celebração festiva de grandes
acontecimentos nacionais, como o Dia da Pátria (ou da Independência)153 e o Dia da

151
Antes da transformação do Campo da Redenção no Parque Farroupilha em 1934 em Porto Alegre, a Praça
Tamandaré constituía-se no maior espaço de lazer do gênero localizada em zona urbana no Estado.
152
Primeiro verso do poema A Hora do Footing, transcrito em: RODRIGUES, Sued de O. (Org.). Rio
Grande Nos Versos dos Poetas. Rio Grande: Academia Rio-Grandina de Letras, 1989. p. 37.

61
Da Rua ao Teatro

Proclamação da República; regionais, como a Semana Farroupilha ou locais, como a data


da fundação da cidade no 19 de Fevereiro. Também valiam-se das ruas e praças as
aclamações aos militares e heróis de guerra (sobretudo, à época da Guerra do Paraguai),
aos grandes chefes políticos republicanos (como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros,
Getúlio Vargas...),154 a grandes celebridades (como o ator João Caetano dos Santos)155, aos
membros da Família Imperial (sobretudo, ao Imperador)156, as festas de inaugurações (de
praças, monumentos, obras públicas...), etc. Nestes eventos não podiam faltar as bandas
musicais que davam o tom a festa.

FOTO 7 – “Batalha de Flores” realizada na rua Marechal Floriano Peixoto, na década de 1910. Em decurso, o
processo de substituição do tradicional estilo Luso-Brasileiro pelo Ecletismo.
Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande:
Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p.

Muitos festejos principiavam-se na recepção aos homenageados na


plataforma do cais do Porto Velho ou na Estação Ferroviária Central (embora nesta fossem
mais raros), prosseguiam pelas ruas do centro histórico com foguetórios e, por vezes,
finalizavam-se na Intendência Municipal ou no interior dos teatros com palestras,
discursos, vivas e bailes. A despedida, outrossim, constituía-se numa oportunidade da
população reafirmar seu apreço aos visitantes.
No aproveitamento dos espaços públicos cabe destacar a fundamental
importância da iluminação das ruas implantada em 1848 e da melhoria do serviço ao longo
dos anos. Revelando o misterioso breu do desconhecido, a rua tornou-se mais segura
intensificando a vida social noturna em clubes, cinemas, cafés, teatros, etc.
Outra forma de lazer ao ar livre eram os piqueniques familiares que ocorriam
aos finais de semana nas cercanias da cidade em locais pitorescos como o Parque Rio-
Grandense157 e o Bosque, áreas com matas de eucalíptos e dunas de areias. A população

153
Ao lado do Carnaval e das festas religiosas, o Dia da Pátria com suas paradas militares e estudantis,
compõe o que Da Matta chamou de “triângulo ritual brasileiro” com grande significado, sobretudo em suas
implicações políticas, uma vez que “temos festas devotadas à vertente mais institucionalizada do Estado
Nacional (suas Forças Armadas), festas controladas pela Igreja (outra corporação crítica na formação da
sociedade brasileira) e, finalmente, as festas carnavalescas, consagradas à vertente mais desorganizada da
sociedade civil, ou melhor, da sociedade civil enquanto povo ou massa”. (DA MATTA, op. cit., p. 41.).
154
Estas festas públicas, devido a seu caráter aglutinador de pessoas, grupos e categorias sociais, foram
fundamentais à promoção e cristalização de sentimentos de apreço à Nação, ao Estado e a cidade.
155
Uma prática bem freqüente durante o século XIX era a de acompanhar em cortejo os artistas mais
estimados, pelas ruas da cidade, do teatro onde exibiam-se até o hotel ou residência que estivesse hospedado.
A coluna Fatos e Coisas de Antanho revela que “no fim do espetáculo grande número de espectadores
nacionais e estrangeiros e todos trajando rigorosa gala, acompanharam à sua residência o ator João Caetano,
precedendo-o com archotes [em 27 ago. 1854]”. O pianista Arthur Napoleão recebeu também “um grande
acompanhamento de tochas levadas por muitos cavalheiros desta cidade [...] conduzindo-o ao hotel [...] [em
5 nov. 1857]“. (BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 19. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal
Rio Grande, Rio Grande, 28 ago.1942 e 5 nov. 1943.)
156
Em 1845, por ocasião da visita de Suas Majestades Imperiais D. Pedro II e D. Teresa Cristina, multidões
encheram as ruas para assistir a passagem do cortejo real e, à noite, “entre alas com mais de 30.000 luzes
[velas e lampiões]”, o casal e sua comitiva foram conduzidos do Paço ao Teatro Sete de Setembro onde
realizou-se espetáculo. (RIO GRANDENSE. Rio Grande, 12 nov. 1845.)
157
Inaugurado em 1893 próximo ao Matadouro, aconteciam no local retretas por bandas musicais.
(MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim. BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 84. M.P.F.J. Fatos e
Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 2 abr. 1941.)

62
Da Rua ao Teatro

valia-se dos bondes, e os mais abastados de vários tipos de carruagens (Tilburys,


Cabriolets, Sièges) importadas ou de similares fabricadas na cidade ou em Pelotas e, mais
tarde, de automóveis para alcançar estas localidades. Nessas proximidades, inaugurou-se
em 1922 o Hipódromo Independência, do Jockey Club de Rio Grande reunindo os amantes
do hipismo em torno de movimentados torneios.158
A virada do século XIX trouxe consigo a valorização das atividades físicas e
o gosto pelos esportes competitivos. Em 1900 foi fundado o Sport Club Rio Grande que
introduziu a prática do futebol no Estado. A partir de 1910 a imagem do dandy europeu
passou a conviver com a do sportsman norte-americano, numa clara influência dos meios
de comunicação, notadamente, do emergente cinema. O janota da Belle Époque de roupas
escuras, chapéu coco, pele pálida e músculos frágeis, gradualmente, foi substituído por um
homem de vestuário mais despojado, acompanhado do inseparável chapéu de palha
“Picareta”, jovial e afeito ao desporto.
Desde fins do Oitocentos crescia, entre a elite local o gosto pelos esportes e
recreação náuticos. Tornavam-se freqüentes os passeios e competições em embarcações à
vela pelas águas da Laguna e os “convescotes” (ou piqueniques) nas ilhas próximas.159 Os
campos de várzeas existentes na zona urbana ofereciam-se à prática amadorística do foot-
ball, como escrevia-se à época. Também importado da Inglaterra, o cricket era largamente
difundido entre os mais abastados.
Gozavam de grande popularidade as Touradas à portuguesa, as Cavalhadas e
os Rodeios: festas folclóricas remetidas à origem pastoril do Rio Grande do Sul,
relacionadas à criação de gado.160 E, se formos mais longe, ao medievo europeu. Até finais
do século XIX, nas festas populares regionais ou cívicas, não faltavam as cavalhadas, uma
“espécie de torneio em que 12 cavaleiros de cada partido (mouro e cristão) travavam
simuladas guerrilhas ou escaramuças, acompanhadas de várias provas de equitação, etc.,
terminando tudo, após propostas de paz, pelo aprisionamento dos mouros”.161 Em outubro
de 1882 a empresa artística Pontes, realizou num anfiteatro instalado no local da atual
Praça Tamandaré uma “corrida de oito touros, especialmente escolhidos para este fim,
vindos da Ilha do Leonídeo”.162

∼ ∼∼
Em meados do Oitocentos, velhas famílias aristocráticas e novos-ricos
franceses começaram a se reunir em estações balneárias que se multiplicavam no litoral
daquele país. Arquitetonicamente, o modelo de chalé, saído dos cantões helvéticos seria
introduzido nestes ambientes da moda. A ele seguiriam o “chalé normando”, a “cabana” e

158
PIMENTEL, op. cit., p. 122.
159
O primeiro clube de iatismo da cidade foi fundado em 9 de junho de 1934 por um grupo de amigos
apreciadores das práticas náuticas. Sua instalação deu-se inicialmente na propriedade do Sr. Estevão Plana
Martins, junto ao mar e próximo ao estaleiro naval que possuía à rua General Osório (local da antiga Fábrica
de Pescado Abel Dourado).
160
Cf. ALMEIDA, Renato. A Recreação Popular, Suas Forma e Expressões. História da Cultura Brasileira.
Rio de Janeiro : CFC/FEAME, 1973, v.1, p. 201-213.
161
MEYER, Augusto. Guia do Folclore Gaúcho. Rio de Janeiro: Presença/INL/IEL, 1975. p. 66 e
CORREA, Romaguera. Vocabulário Sul-Rio-Grandense. Pelotas: Universal, 1898. p. 50. Gilberto Freyre
também registra as disputas entre “cristãos” e “mouros” no interior dos teatros, dramatizando os medievais
conflitos entre o Ocidente e o Oriente. (FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 438.).
162
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 51. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 1o out. 1945.

63
Da Rua ao Teatro

outras variações que influenciaram a estética dos balneários em todo o mundo.163 Sob a
influência da fama das estações européias - notadamente de Biarritz na costa francesa do
Atlântico - em fins do século XIX, foi oficialmente inaugurada a Vila Sequeira, a primeira
estação de banhos do Rio Grande do Sul construída as margens do oceano a 14 Km da
Cidade de Rio Grande164. As propagadas qualidades terapêuticas das águas da praia e do
clima ao seu redor conferiam ao local importantes atrativos. À época, e por muitos anos
mais, o banho de mar era receita médica indicada ao bem-estar físico “sendo nos meses de
abril e maio fortemente iodado”.165 Frente a insalubridade da cidade industrial dos finais
do Dezenove, os “novos ares” protegiam contra as doenças infecto-contagiosas que
pairavam sobre a urbe. É somente mais tarde que a praia e o banho de mar passaram a ser
também encarados como formas de lazer.

FOTO 8 – Aspecto da Praia do Cassino, em fins do século XIX.


Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande:
Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p.

Os passageiros iam de bonde até o Parque. Neste local embarcavam em


vagões puxados por locomotiva a vapor da Estrada de Ferro Costa do Mar, até a Estação
na entrada do Balneário. Um pequeno bonde sobre trilhos e movido a tração animal
conduzia os banhistas até a praia, onde existiam cabinas para a troca de roupas. A viagem
em si já era uma festa, fornecendo elementos para a manutenção de relações sociais que,
certamente, continuavam a desenvolver-se no convívio descontraído na orla e no retorno à
cidade. Em 1925 a Viação Férrea “fez correr um trem de excursão diário durante a estação
balnear, entre Pelotas e Cassino [...]”.166 Uma estrada de rodagem, igualmente conduzia ao
local.
Contando com um cassino de jogos, salão de festas e um amplo e moderno
hotel e restaurante, o balneário – que passou a ser conhecido por Cassino - tornou-se ponto
obrigatório de veraneio da aristocracia gaúcha que imprimiu ao lugar seu estilo de vida,
registrado nos grandes casarões e chalés em estilos europeus, alguns ainda hoje existentes
na Avenida Rio Grande.

FOTO 9 – Palco-salão na “Praia de Banhos” (atual Cassino), festivamente decorado.


Extraído de: FONTANA, Amílcar. Álbum Ilustrado da Cidade do Rio Grande (1850-1912). Rio Grande:
Atelier Fotográfico Fontana, s.d. s.p.

2.2 – SALÕES, CLUBES E ASSOCIAÇÕES

163
GUERRAND, Roger-Henri. Espaços Privados. In: PERROT, Michelle (Org.) História da Vida Privada.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 4, p. 349. BURNET, Louis. Villégiature et Tourisme Sur Les
Côtes de France. Paris: Hachette, 1963. p. 484. DÉSERT, Gabriel. La Vie Quotidienne Sur Les Plages
Normande du Second Empire aux Années Folles. Paris: Hachette, 1983. p. 334.
164
Conforme Salvatori, Habiaga e Thormann, a Vila Sequeira foi inaugurada oficialmente em 1898, quando
o balneário já contava então com 20 residências particulares nele instaladas. (SALVATORI, op. cit., p. 44.).
165
PIMENTEL, op. cit., p. 37.
166
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 110. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 11 fev. 1944.

64
Da Rua ao Teatro

Um dos primeiros relatos sobre a vida orquestrada nos salões da Vila de Rio
Grande, foi fornecido por Saint-Hilaire ao descrever alguns bailes que freqüentou em
1820. Em sua visão, a elite local buscava imitar os modismos europeus. Embora, de uma
forma em geral, as brasileiras “ignorassem os encantos da sociedade e os prazeres da boa
conversação” as mulheres “nesta região [...] se ocultavam menos do que nas outras
Capitanias do interior”.167 Essa observação foi confirmada por Hörmeyer que, em 1851
comentou: “[se] nas cidades menores da Província, ainda vigorava o antigo costume do
país que proibia às mulheres brasileiras a se mostrar na rua sem acompanhante”, em Rio
Grande e Porto Alegre, “começa a vingar uma vida metropolitana, européia.”168 Desta
feita, conforme Saint-Hilaire, as sul-rio-grandenses possuíam “melhores noções de vida;
eram desembaraçadas, conversavam um pouco mais, porém ainda estavam a uma infinita
distância das mulheres européias”.169 Na visão não menos eurocêntrica do viajante suiço-
alemão Carl Seidler, os moradores de Rio Grande e de São Francisco de Paula (Pelotas)
apresentavam em 1827, “mais gosto pela vida social e mais trato amigável, do que os das
outras regiões” do país, pois nelas residiam muitos europeus que, “certamente pela
influência do seu dinheiro e de sua cultura contribuíram, consideravelmente, para que seus
habitantes tivessem mais civilização”.170 Desde sempre, porto é passagem de roteiros, de
corpos de línguas e de costumes diversos, é por excelência, expressão de diversidade.171
Rio Grande, enquanto cidade portuária, esteve continuamente aberto a intercâmbios com
outras regiões, tanto a nível nacional quanto internacional, sofrendo influência nos gostos
e nos costumes em função do contato e da troca de experiências com outros centros
urbanos.
Durante o Oitocentos propagou-se o gosto pelos saraus lítero-musicais que
ocorriam nos salões das residências das famílias mais abastadas e que, “invariavelmente,
terminavam com bailes movimentados e lautas mesas de doces”.172 Nesses encontros –
semelhantes aos concertos de palácio do Antigo Regime – encenavam-se pequenos
quadros dramáticos, a elite afeita ao beletrismo recitava suas poesias, os que estudavam
música demostravam suas habilidades no canto e em instrumentos executando um
repertório romântico, trechos de peças ligeiras e árias de óperas italianas. Discutia-se
política, teatro, literatura... ou, simplesmente, divertia-se com os jogos de cartas. Desde
muito, a consolidada sociedade francesa de salão, famosa pelo refinamento e arte da
conversação, inspirava os seletos freqüentadores desses ambientes.173 O salão de festas
passou a adquirir uma forte “importância simbólica, [tornando-se] uma marca de classe:
possuir um salão significava mundanidade e sociabilidade, duas características

167
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 66.
168
HÖRMEYER, op. cit., p. 66.
169
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 66.
170
SEIDLER, Carl. Dez Anos no Brasil. Brasília: INL/MEC, 1976. p. 94.
171
BRESCIANE, op. cit., p. 66-67.
172
DAMASCENO, Athos. Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre: Globo,
1956. p. 24.
173
Embora sejam percebidos em vários países e com algumas variantes, os salões literários são típicos da
vida cultural francesa dos séculos XVII, XVIII e XIX, apresentando-se como centros de intercâmbio de
idéias onde a política, o amor e as artes forneciam os temas da consersação. Promovidos por damas da
sociedade, dominavam estes ambientes o linguajar amaneirado, a finura dos gestos, o culto de todas as
etiquetas, os rasgos competitivos de inteligência. Talento, cultura enciclopédica e paixão pelas letras e artes
triunfavam e caracterizavam a vida gerida pelos salões de França. (Cf. DUBY, op. cit.)

65
Da Rua ao Teatro

burguesas”.174 Através desta peça da casa dava-se o alargamento do universo social da


família. Nas palavras de Jurgen Habermas “a sala de visitas não serve para a casa, mas sim
à ‘sociedade’; e essa sociedade da sala de visitas está bem longe de coincidir, em seu
significado, com o círculo restrito e rigorosamente fechado dos amigos da casa”.175
Estudando a vida social e elegante da Corte durante os anos de 1840 a 1889,
assim escreve Wanderley Pinho na abertura de seu Salões e Damas do Segundo Reinado:

Num salão esmeram-se várias artes: a de receber ou preparar um


ambiente de cordialidade e espírito; a de entreter a palestra ou
cultivar o humor; dançar uma valsa ou cantar uma ária; declamar ou
inspirar versos, criticar com graça e sem maledicência; realçar a
beleza feminina nas últimas invenções da moda...
Rigorosos azedos dirão que tudo isto são futilidades. Mas que é a
metade da vida, senão tudo isto?
O passado não foi apenas sério ou trágico, guerreiro ou político,
religioso, científico ou econômico, mas também alegre e... frívolo.176

O jornal Diário do Rio Grande de 15 de maio de 1864 revela o universo de


um sarau ocorrido na cidade:

À noite teve lugar na chácara do Sr. Michaelis, à rua da Alfândega


[atual Andradas] a primeira representação de uma sociedade
dramática particular alemã que ali estabeleceu o seu teatrinho. O
espetáculo foi muito concorrido comparecendo para mais de 150
convidados, todos do comércio estrangeiro com suas famílias. Depois
do drama houve cantoria e um pequeno concerto acompanhado ao
piano o nosso hábil comprovinciano, Joaquim S. Santos Paiva com
sua rabeca. Este belo e mui particular divertimento, repetir-se-á uma
vez por mês durante o inverno.

Analisando igualmente os salões de festas do Rio de Janeiro e seus


freqüentadores, Jeffrey Needell comenta que:

tanto na Monarquia quanto na República Velha, [eles] demonstram a


vitalidade contínua do paradigma aristocrático franco-inglês
[presente na sociedade brasileira]. Fosse na poesia declamada, nas
canções cantadas, na música tocada, no estilo pessoal valorizado, ou
no francês usado, fosse no champanhe bebido, ou nos outros vinhos

174
GUERRAND, op. cit., p.334.
175
HABERMAS, Jurgen. A Família Burguesa e a Institucionalização de Uma Esfera Privada Referida à
Esfera Pública. In: CAVENACCI, Massimo (Org.). Dialética da Família. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.
228.
176
PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins, 1970. p. 7

66
Da Rua ao Teatro

servidos, nos salgadinhos degustados, ou nos dîners apreciados,


mudavam as modas européias, principalmente as francesas, mas não o
gosto por tais coisas.177

Também duradouro, eram os valores aristocráticos europeus que


determinavam os passatempos de salão e o comportamento de seu público.178
As relações em sociedade intensificaram-se com a urbanização promovendo
um espírito de associação que encontra-se na base do surgimento dos clubes e das
sociedades bailantes. O encontro e a diversão públicos tornaram-se uma extensão da vida e
do lazer domésticos. A industrialização e a modernização por sua vez, agudizaram esse
fenômeno fazendo com que o convívio social fora de casa se transformasse num hábito
urbano cada vez mais comum à família.
No século XIX a sociedade local passou a se organizar em torno de
associações recreativas, artísticas, culturais, esportivas, carnavalescas, classistas, políticas,
filosóficas, filantrópicas, etc. Os clubes constituíam-se em importantes espaços de
recreação atendendo às necessidades de lazer, divertimento e sociabilidade de seus
associados e dependentes, principalmente dos trabalhadores de baixa renda sem acesso aos
poucos locais e instrumentos de diversão disponíveis às camadas superiores.179 Assim,
promoviam inúmeras atividades conforme as características da instituição e do público
freqüentador: festas, bailes, saraus musicais e literários, jantares, almoços, chás,
representações dramáticas, matinées infantis, aulas de dança e música, eventos
esportivos... Nos festivos encontros noturnos, era sempre destacado o caráter familiar da
promoção, dentro dos rigorosos princípios de respeitabilidade da época, calcados na ordem
e no recato e que regiam a família. Comuns eram também os eventos sociais de caráter
filantrópico e as reuniões políticas. Muitas sociedades possuíam igualmente um caráter
instrucionista oferecendo aulas de desenho, pintura, dança, idiomas estrangeiros,
alfabetização de adultos e palestras sobre temas variados. De fundamental importância à
vida cultural da cidade apresentavam-se as muitas sociedades dramáticas e musicais,
enfocadas em capítulo posterior nesse estudo.
Os clubes e as sociedades mais importantes possuíam sede própria com vasto
salão – por vezes com pequenos palcos destinados às apresentações teatrais - e muitas
contavam inclusive com sala de jogos, biblioteca, banda musical, grupo de dança, grêmio
dramático... As associações que não dispunham de salão de festas valiam-se,
freqüentemente, dos (cine-) teatros para suas reuniões e promoções.

FIGURA 10 - Fundada em 1854, a Imperial Sociedade Instrução e Recreio dominou a história da vida social
rio-grandina da segunda metade do século XIX.
Legenda: “O baile da Instrução e Recreio esteve animadíssimo. Desejamos outro dobrado tempo de
existência”.
Extraído de: MARUI. Rio Grande. 1880. N.31. Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

177
NEEDELL, op. cit., p. 141-142.
178
Sobre a persistências de valores aristocráticos na sociedade burguesa dos séculos XIX e XX confira
MAYER, op. cit., passim.
179
No século XVIII, antes do surgimento dos clubes e das sociedades de baile, eram os saraus residenciais e
os pequenos teatros denominados de Casas da Comédia ou Casas da Ópera que ofereciam espaço às reuniões
sociais e mesmo aos divertimentos da cidade. Sobre os clubes confira: AGULHON, Maurice. Le Cercle dans
la France Bourgeoise. Paris: Armand Colin, 1977.

67
Da Rua ao Teatro

Percebidos desde o século XVIII, os bailes sempre gozaram de grande


prestígio na sociedade local. O viajante francês Saint-Hilaire revela que nos festivos salões
rio-grandinos do início da década de 1820 dançavam-se anglaises e valsas e que as
toilettes das damas e dos cavalheiros eram bem cuidadas.180
Valendo-se da crítica social O Amolador, n.° 10 de 7 de junho de 1874
satiriza a etiqueta masculina exigida nestas ocasiões. Direcionado aos freqüentadores das
sociedades locais Instrução e Luso, e sob o título de “Homem na Sociedade”, o periódico
publica seis quadros ilustrados apresentando um “manual da maneira pelas quais um moço
se há de mover com graça num baile. Para caixeiros e outros rapazes de educação fina,
ensinado por Mr. Lafleur de La Bonbonnière, de Paris”:

1) As primeiras condições são: que todos os movimentos sejam leves,


redondos e graciosos; 2) Andando, não deve levantar os pés e mostrar
equilíbrio; 3) Tornar o corpo ágil; 4) Quando pedir uma contradança,
fazer um cumprimento com as pernas tesas e esperar a resposta da
senhora numa posição curva; 5) Se a senhora não quiser, fazer um
movimento elegante e mostrar que não se zangou com a decisão; 6) Se
tiver a infelicidade de pisar no pé da senhora com quem dança, fazer
uma posição de agonia, etc., etc.

Entendido como divertimento coletivo (contraposto à dança vista como arte


ou ritual), o baile constitui-se numa das mais significativas manifestações de sociabilidade,
sendo um fenômeno típico de épocas recentes.181 Esse encontro festivo está envolto em
uma aura passional, hedonista ou voluptuosa que impulsiona os homens à uma atividade
estética. A diversidade dessa manifestação não pode ser restritamente atribuída à moda;
abrange toda a estrutura musical e dos costumes de uma época.182
Nas palavras de Gillo Dorfles o baile “representa uma das escassas tradições
ainda presentes no dia de hoje, daquele impulso para o ritmo, para o movimento
harmonicamente regulado, para a utilização estética do próprio corpo, de que o homem,
desde os primórdios da sua história foi partícipe. A eficácia do baile, portanto, não deve
ser ignorada: eficácia rítmica, lúdica e também estética [...].”183
Para a completa fruição das delícias do baile, tornava-se indispensável o
domínio das danças de salão. Nesse sentido, aprendiam-se os passos da época através de
aulas particulares ministradas, sobretudo, por dançarinas que se apresentavam na cidade de
forma individual, em companhias coreográficas ou compondo o corpo de baile das

180
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 64. Uma descrição pormenorizada das vestimentas das senhoras e dos civis
e militares pode ser apreciada nestas obra e página supracitadas.
181
O renascimento europeu das letras e das artes trouxe consigo o do baile, oferecendo-se no século XVI os
bailes de sociedade e os de teatro, ao lado dos populares, cujos elementos interviram, grandemente, nos
primeiros. Os bailes de sociedade de procedência italiana propagaram-se por todas as nações, sofrendo até
nossos dias, um processo de simplificação (diminuição da pompa e dos cuidados excessivos no vestir, etc.).
182
DORFLES, Gillo. O Devir das Artes. Lisboa: Arcádia, 1979. p. 207-208.
183
Ibid., p.208.

68
Da Rua ao Teatro

companhias líricas, e que sempre estavam atualizadas nos novos movimentos.184 O


aprendizado realizava-se, também, através de manuais de dança contendo regras e
técnicas, vendidos nas livrarias que possibilitavam a sintonia da cidade com a Europa e
suas tendências.
Muitos clubes ofereciam aulas de dança e organizavam grupos para
apresentações em bailes. Na década de 1860 as quadrilhas Príncipe Imperial, Russa e
Americana reuniam-se aos sábados no salão do Clube Recreio Rio-Grandense para o
ensaio semanal.185 Durante o século XIX além das quadrilhas francesas, muito em voga e
onde participavam vários pares, dançavam-se polcas, mazurcas, anglaises, varsovianas,
xotes, habaneras, minuetos, valsas, etc.
Embora existissem junto às camadas populares desde fins do século, o
186
tango e o maxixe (considerada a primeira dança urbana brasileira) só chegaram aos
familiares e refinados salões da elite na década de 1910. O maxixe, com seus “requebros
audaciosos” era proibido. O samba, igualmente, sofria perseguição policial. Na sociedade
rio-grandina de 1880, o semanário ilustrado Marui, lançava-se numa cruzada moralista
contra as reuniões onde dançavam-se o maxixe. Tomando-os por “antros de imoralidades”,
que “terminavam sempre com desordens e graves conflitos”, exigia das autoridades locais
o fim dos tais bailes.187 Todavia, com os anos, os gêneros musicais e as danças populares
contagiaram os setores dominantes.
Após a Primeira Guerra Mundial danças oriundas dos Estados Unidos da
América passaram a compor as noitadas brasileiras: o fox-trot, o ragtime, o charleston,
etc.188
Nos bailes dos Anos Trinta, os conjuntos de jazz davam o tom à festa. E é na
contemporaneidade da narrativa literária que apreendo fragmentos do universo desses
encontros:

A música sapecada do ‘jazz-band’ enchia o salão do hotel, onde o


baile estava correndo, misturada com o ruído do arrastar de pés dos
bailarinos, da conversa dos indiferentes, dos contempladores e das
‘velhas’, que, sentadas em roda do salão, olhavam a ‘filhinha’ passar
rápida, levada pelas mãos do ‘amiguinho’, e metiam a tesoura na

184
Em julho de 1850 a “primeira bailarina do São Pedro de Alcântara, Mlle. Alice [ou Aline] Moreau” que
alcançava sucesso no Teatro Sete de Setembro, anuncia pela imprensa que “tem a honra de participar [...]
demorar-se aqui algum tempo a dar lições de dança, tanto por teatro como por salões [...].”
(BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 10. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio
Grande, 25 jul. 1944.)
185
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 23. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 17 out. 1944.
186
Surgido na Argentina, o tango, espalhou-se primeiramente pela Europa (sobretudo, na França) e depois
ganhou o mundo. Por anos foi bastante criticado considerado uma dança de influência perniciosa e imoral. O
Papa Pio X recomendou sua substituição pela furlana - dança italiana que passou a ser conhecida como a
“dança do Papa”.
187
MARUI. Rio Grande. 1880. N. 40,41.
188
O prospecto publicitário do Teatro Sete de Setembro de 11 de setembro de 1926, anuncia a penúltima
apresentação dos artistas Tânia e Mexican que “executarão o charleston - a dança da moda em Norte-
America. Atenção: Esta dança foi censurada pela polícia de New York”. (COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit.
Pasta 1, 11 set. 1926.)

69
Da Rua ao Teatro

‘filhinha’ da outra ‘velha’, que estava sentada longe e, portanto, não


podiam ouvir a conversa... – Olha só, que pouca vergonha ! 189

Conforme Dorfles, se “assistir a uma sucessão rítmica de movimentos


corporais – especialmente se forem acompanhados de música – é irresistivelmente
contagioso, e se este contágio explica o porquê da participação mágico-histérica nas
danças tribais de populações selvagens ou da Antigüidade” pode, outrossim, explicar o
sucesso dos bailes coletivos.190

∼ ∼∼
Inúmeras e distintas formas de associações marcam a história da sociedade
rio-grandina. Percebidas em diferentes períodos, registro:191

ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS:

Sociedade Recreio e Harmonia (1847);


Sociedade Recreação Familiar (1851);
Imperial Sociedade Instrução e Recreio (fundada em 1854, no final do século sua sede localizava-
se à rua Vileta - atual Napoleão Laureano - canto da Paissandú - atual República do
Líbano);
Sociedade Euterpina (1857, à rua Riachuelo);
Recreio Rio-Grandense (1860);
Sociedade Phenix (que possuía um teatrinho, em 1875);
Grêmio Recreativo (1881);
Recreio Juvenil (fundado em 1890);
novo Recreio Rio-Grandense (à rua Uruguaiana - atual Av. Silva Paes - fundado em 1895);
Clube Recreativo Juvenil (1903);
Sociedade Recreativa Democracia e Progresso (à rua General Câmara esquina da rua Benjamim
Constant, instalou-se em 1903 à rua Andradas, frente ao Politeama);
Clube Instrução e Recreio, da Estação da Quinta (1905);
Sociedade União Européia (à rua Jataí - atual Dr. Nascimento - esquina rua Zalony, 1905);
Juvenil Club União e Progresso (1905);
Clube União e Progresso (à rua Barão de Cotegipe, inaugurou seu palco-salão em 1907);
Sociedade Recreativa União e Progresso (fundada em 1914); etc.

ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS ESPORTIVAS:

Clube de Regatas Rio Grande (1898)192;


Clube dos Ciclistas (1900);
Sport Club Rio Grande (fundado em 1900)193;

189
VERGARA, Telmo. Na Platéia. Porto Alegre: Globo, 1930. p. 117. (1a edição).
190
DORFLES, op. cit., p. 206.
191
Os dados apresentados nestas listagens foram levantados, quase que integralmente, em. M.P.F.J. Fatos e
Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, jan.1941- dez.1950, cuja transcrição e organização
corresponde ao estudo já anteriormente referido: BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. As
informações que advém de outras fontes estão, devidamente, explicitadas.
192
Importante no remo, este clube foi também o responsável pela introdução do basquete no Estado.

70
Da Rua ao Teatro

Foot Ball Club Rio-Grandense (1912);


Grêmio Náutico Almirante Barroso (1915);
Sport Club União Vencedor (à rua Tiradentes no 318, 1915);
Sport Club União Fabril (fundado em 1910);
Sport Club União Rio-Grandense (1920)194;
Foot Ball Club General Osório (1920);
Fluminense Foot Ball Club (1928);
Sport Club Vencedor (1930) etc.;

ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS CLASSISTAS:

Clube Comercial (instalado em 1867 à rua Riachuelo no sobrado anteriormente ocupado pela
Sociedade Euterpina);
Clube Recreio Operário (fundado em 1885 à rua 16 de Julho no 110 - atual Benjaminm Constant);
Clube Caixeiral (fundado em 1895, sua elegante sede localizada à rua Mal. Floriano Peixoto foi
inaugurada em 1912);
Sociedade União Operária (fundada em 1893, sua sede foi inaugurada em 1902)195;
Clube do Comércio (1900);
Associação dos Empregados do Comércio (fundada em 1901);
Sociedade União Comercial dos Varejistas (fundada em 1888) etc.;

ASSOCIAÇÕES RECREATIVAS CARNAVALESCAS:

As Dragas;
“O”;
Xícara;
Archote;
Silêncio;
Afiadores;
Amoladores da Paciência;
Os Homens Vermelhos;
Os Cavalheiros da Meia Noite;
Zé Pereira;
Princesas de Força;
Os Charlatas;
Os Meninos da Candinha (todos percebidos nos carnavais de 1872 e 1873)196;
Os Positivos,
Os Desabusados,
Vai ou Vem,
Os Tampicos,
Tampiquinhos,
Tampicadas;
Tampicões (todos no Carnaval de 1876);
Clube Carnavalesco Saca-Rolhas (fundado em 16 de março de 1876 à rua Andradas esquina Luiz
Loréa, mudou-se em 1912 para a Marechal Floriano Peixoto no 162)197;

193
Fundado por imigrantes ingleses e alemães, este clube foi o introdutor do futebol no Brasil. PIMENTEL,
op. cit., p. 120.
194
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.
195
Esta sociedade foi a mais importante instituição do gênero na cidade.
196
MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim.
197
Esse foi o primeiro clube carnavalesco a ser fundado na cidade, sendo um dos mais antigos do país.

71
Da Rua ao Teatro

Clube Carnavalesco Mina (1888);


Clube Carnavalesco Máscara Preta (1889);
Grupo Carnavalesco Arara (fundado em outubro de 1901, era constituido pela alta sociedade
local);
Clube Carnavalesco Guarani (fundado em 1904, à rua Conde de Porto Alegre);
Clube Carnavalesco Esmeralda (1919);
Club Carnavalesco Congo (à rua General Netto esquina Câmara, 1919);
Clube Carnavalesco Boêmios (à rua Andradas, 1920);
Grêmio Carnavalesco dos Destemidos (1920);
Cordão dos Batutas (1920);
Rancho Carnavalesco Braço é Braço (fundado em 1920, pela comunidade negra local)198;
Rancho Carnavalesco Me Deixa Meu Bem (1923);
Grupo Carnavalesco Filhos da Folia (1925);
Cordão Sim Disfarça e Olha (1929);
Clube Carnavalesco Irresistíveis (fundado em 1930)199;
Clube Carnavalesco Estrela do Oriente (1935); etc;

ASSOCIAÇÕES POLÍTICAS:

Sociedade União Republicana (fundada em 1889);


Centro Republicano Rio-Grandense (fundado em 1902);
Clube Gaspar Martins (1903);
Grêmio R. Borges de Medeiros (fundado em 1924); etc.;

ASSOCIAÇÕES MAÇÔNICAS:

União Constante (fundada em 1840);


Acácia Rio-Grandense (fundada em 1867);
Filantrópica;
Henrique Valadares;
Estrela do Sul 200; etc.

ASSOCIAÇÕES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL:

Sociedade Mutualidade dos Operários da União Fabril (1881)201;


Sociedade Familiar Beneficente (1887);
Sociedade Protetora das Famílias (1890);
Sociedade Protetora das Classes Laboriosas (1890)202;
Clube Beneficente de Senhoras (1901);
Sociedade Beneficente dos Trabalhadores da Alfândega (1904);
Sociedade Espírita Luz Beneficente (1905)203;
Sociedade Auxiliadora da Igreja do Salvador (1906);
Sociedade Beneficente de Senhoras Espíritas (1921);
Caixa de Socorros dos Empregados do Porto (1924);
Associação Beneficente dos Ferroviários do Rio Grande (1928);

198
RIO GRANDE, Rio Grande, 1920.
199
COLEÇÃO de Recortes de Jornais. CDH. FURG. Pasta 19.
200
PIMENTEL, op. cit., p. 120.
201
Ibid., p. 86.
202
Ibid.
203
Ibid.

72
Da Rua ao Teatro

Associação Beneficente dos Guardas da Alfândega (1933);


Asilo dos Pobres; Asilo de Órfãs204; e tantas outras.

O registro de um número significativo de associações assistenciais proletárias


decorria da principal atividade produtiva do lugar e da ação interessada e direta do
operariado rio-grandino no sentido de angariar fundos para momentos de necessidade, uma
vez que o Estado não oferecia assistência médica e social a seus cidadãos. Nesse sentido
organizavam-se festas, quermesses, bailes, apresentações teatrais, etc., cuja renda revertia
para os cofres das associações. Embora já existisse em alguns Estados preocupações
acerca de uma legislação trabalhista, foi nos Anos Trinta que o quadro nacional de total
desamparo das massas trabalhadoras seria alterado. A questão social deixaria de ser apenas
uma “questão de polícia”.
Endossam, a lista das associações locais:

Sociedade União Literária (1877, instituição cultural);


Clube Diógenes (1880);
Clube Emancipador 28 de Novembro (1885);
Club Aliança (fundado em 1901);
Club 28 de Setembro (com seu Grêmio Instrucionista, 1902);
Club Coribantinos (fundado em 1914);
Grupo Internacionalista (1915)
Chigrand Club (1920)205;
Tiro de Guerra (1920, entidade cívico-militar instalada nas dependências da Alfândega); etc.

Falando em associações surgidas da iniciativa de estrangeiros, meu primeiro


registro data de 1809, quando o viajante John Luccock menciona sua participação na
fundação de um “clube inglês” conjuntamente com outros britânicos residentes em Rio
Grande e envolvidos com o comércio.206 Aliás, reitero que, no processo de modernização
da cidade, os imigrantes constituíram-se em elementos fundamentais. Entre suas muitas
organizações aponto:

Clube Germânia (1872 com sede à rua Francisco Marques, depois à rua Benjamim Constant
esquina Conde de Porto Alegre);
Sociedade Cultural Águia Branca (fundada em 1896 pela colônia Polonesa);
Centro Espanhol de Socorros Mútuos (fundado em 1894);
Mutua Cooperazione (1903);
Circulo Pietro Mascagni (1904);
Sociedade Italiana Patria e Lavoro (1907);
Comitato Italiano Pró Fiume (1919);
Sociedade Alemã de Tiro (1920, à rua Rheingantz)207; etc.

FOTO 10 – Aspecto atual do suntuoso edifício do Clube Caixeiral, construído em 1912. Um belo exemplo da
arquitetura eclética na cidade.

204
Ibid.
205
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.
206
LUCCOCK, op. cit., p. 125.
207
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.

73
Da Rua ao Teatro

A vasta Colônia Portuguesa residente na cidade reunia-se no Congresso


Português D. Luiz I (1889); no Centro Republicano Português (1912); na Liga Monárquica
D. Manoel II (1918); na União Portuguesa (1920)208; no Grêmio Lusitano (1928 com sede
à rua General Bacelar esquina Duque de Caxias) e no Centro Português (fundado em 1932,
com sede à rua Andradas esquina Luiz Loréa) .
Os imigrantes europeus desempenharam papel de grande importância na
ampliação e diversificação das ofertas de entretenimento na cidade: os alemães com seu
clube de atiradores, sociedades dramáticas e concertos musicais; os italianos com suas
bandas e orquestras, os portugueses com várias sociedades dramáticas e conjuntos
musicais, assim como outras contribuições de variadas origens étnicas. Clubes e
sociedades bailantes fundados e freqüentadas por imigrantes, logo passaram a atrair os rio-
grandinos. As datas cívicas de seus países de origem eram comemoradas festivamente,
movimentando a sociedade local. O intenso intercâmbio cultural decorrente das muitas
etnias fixadas na cidade, auferiam-na ares cosmopolitas.
Integrando-se à tradição luso-brasileira, os estrangeiros enriqueceram-na com
seus empréstimos culturais, como já ocorrera com os africanos e os indígenas. Desta feita
a cultura brasileira resulta de uma mestiçagem de raças e culturas na qual a matriz
antropológica portuguesa encontra-se na base do processo. Nas palavras de Freyre, “somos
o começo de uma vasta cultura plural”, de um todo caracterizado por um “conjunto
transnacional de valores culturais” que, sob a linguagem portuguesa, originou o “mundo de
formação lusitana”.209 E transnacional significa no Brasil o Velho e o Novo Mundo, o
Oriente e o Ocidente amalgamados numa civilização caracterizada pela plasticidade, pelo
movimento, pelos contrastes, pela trangressão.
Segundo Pimentel, em 1943 existiam na cidade 25 associações recreativas e
31 desportivas.210

2.3 – ENTRE BOTEQUINS E CAFÉS

No início do século XIX, Luccock informava que os bilhares rio-grandinos


gozavam de significativo movimento, constituindo-se em elementos de uma vida mundana
contínua. Surgidas na Europa em fins do medievo, as mesas destinadas ao jogo “das bolas
de marfim” outrora restritas aos palácios e residências elegantes, multiplicaram-se e
popularizaram-se no decorrer do Dezenove.211 De apreço popular estavam, igualmente, os
botequins e as tavernas, largamente freqüentados desde a Colônia.
Os cafés desempenhavam, outrossim, papel de destaque na vida social
noturna e diurna do lugar apresentando-se como espaços permanentes de reuniões para
conversas informais, discussões políticas, profissionais, culturais, etc. Acompanhando a
expansão de uma nova maneira de viver a cidade, os cafés proliferaram na Europa a partir

208
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.
209
FREYRE, Gilberto. O Mundo Que o Português Criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil
com Portugal e as colônias portuguesas. Lisboa: Livros do Brasil, 1940. p. 34-35.
210
PIMENTEL, op. cit., p. 536.
211
LUCCOCK, op. cit., p.125. Sobre as salas de bilhar muito difundidas durante o século XIX, confira
GUERRAND, op. cit., p.343.

74
Da Rua ao Teatro

de século XVIII. No Brasil, o desenvolvimento dos cafezais do Sudeste gerou mudanças


nos hábitos nacionais e sua incorporação à vida cotidiana dos centros urbanos. Em fins do
Oitocentos esses “espaços fechados de sociabilidade” já haviam suplantado os botequins da
época imperial onde bebia-se o “vinho à portuguesa”.212 O Café Moka instalado em frente
ao Politeama Rio-Grandense213, constituindo-se também em restaurante, assim anunciava
no jornal O Artista em 1887:

O Manuel [Português] previne aos povos


(Sem orgulho e glória vã)
Que tem coisas nunca vistas
Para hoje e amanhã

Hoje – uma excelente canja


De galinha das Arábias,
Que são as aves mais sábias
Deste mundo sublunar;
Fiambres, caças e peixes,
Dos mais finos do mercado,
E tudo o mais que contado,
Custa a gente a acreditar.

Amanhã – Oh! Isso é obra!


Temos coisas papafina,
Surpreendente, divina,
Sexquipedal, imprevista.
Temos jantar suculento,
Petiscos extraordinários,
Acepipes novos, vários,
Jantar abolicionista.

Este jantar (novidade!)


Vai ser coisa de espavento,
Um verdadeiro portento,
Um verdadeiro prodígio.
Os gastrômonos da terra
A quem este anúncio toca,
Devem vir ao Café Moka
Sustentar o seu prestígio.

Mas, não é tudo. O sublime

212
Maroneze define “espaço fechado de sociabilidade” como um “local geograficamente demarcado, onde
indivíduos relativamente identificados elegem seus pares para atualizar discursos e trocar idéias” ou
simplesmente comungar do divertimento. (MARONEZE, Luiz Antônio Glozer. Espaços de Sociabilidade e
Memória: fragmentos da “vida pública” porto-alegrense entre os anos de 1890 e 1930. Porto Alegre: PUCRS,
1994. p. 10. Dissertação de Mestrado).
213
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 80. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 24 nov.1941.

75
Da Rua ao Teatro

É que à noite haverá canja


Como somente se arranja
Nesta casa especial.
Canja de antes nunca vista,
Suculenta petisqueira,
Canja sacarrolheira,
Canja fenomenal.
Notem bem que no Domingo
Os acepipes serão
Em vasilhas só de barro
Feitos com perfeição

Quem quiser experimentar


É só pedir e pagar.214

Outro espaço existente era o Café Polaco, reaberto em 1897 com o nome de
Gruta Recreativa215. Em 1920 o Bar e Café Central, localizado na esquina das ruas
Marechal Floriano e Andradas, com sua orquestra e concertos todas as noites, constituía-se
no “ponto de reunião da elite”.216 No decênio de 1930 o Café Dalila ao lado do Cine-
Teatro Carlos Gomes era um dos pontos de reunião do “mundo chique” da cidade. O Café
Nacional, instalado no elegante sobrado que anteriormente abrigou o Cinema Ideal
Concerto (rua Mal. Floriano Peixoto esquina Duque de Caxias) também era muito
concorrido. As confeitarias, enquanto “ambientes elegantes”, gozavam igualmente de
grande freqüência.

2.4 – DIVERSÕES E VIDA NOTURNA

Na sociedade brasileira de princípios do século XIX a cultura vista como


conhecimento ou prenda começou a despertar interesse junto a pequena burguesia. Sob o
Período Joanino o desenvolvimento comercial das cidades se fez acompanhar de expansão
da instrução (entendida como distinção de classe ou exigência utilitária) e de variadas
manifestações artísticas. Cresciam as necessidades de divertimentos públicos e de salão,
para fazer-se “vida social”.
A partir de 1780 começou a se formar em Rio Grande uma elite abastada
vinculada ao comércio217 e que, mui possivelmente, pode-se relacionar às primeiras casas
de espetáculos percebidas na vila. Buscando sintonizar-se com o Velho Mundo que
norteava a vida nos domínios coloniais a elite local economicamente emergente, realizou
“seu processo de ‘modernização’ importando os hábitos de viver das capitais européias,

214
Apud. RODRIGUES, op. cit., p. 223-224.
215
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 70. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 17 jan.1941.
216
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920.
217
QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.156.

76
Da Rua ao Teatro

enquanto as camadas da população que se seguiam permaneciam à margem desse


processo”.218
Assim deve ser entendida a mobilização dessa elite na construção de uma
nova e confortável casa de espetáculos – o Teatro Sete de Setembro - inaugurada em 1832
e adequada a posição econômica do lugar e as exigências de uma parcela da população
enriquecida e ávida por cultura e diversões. Mais tarde ergueram-se o Anfiteatro Albano
Pereira em 1876 e o Politeama Rio-Grandense, em 1885.219 Somavam-se também, vários
teatrinhos pertencentes a sociedades dramáticas particulares.220
O salão de bailes públicos (não confundir com os salões semi-privados)
surgiu na Europa, como um derivativo da taverna por volta da década de 1830; todavia,
esta espécie de diversão não se desenvolveu plenamente, antes de 1848. Hobsbawm
informa que:

as outras formas de divertimento urbano das grandes cidades


[européias] nasceram do conveniente, sempre acompanhadas por seu
séquito de artistas mambembes. Na grande cidade, fixaram-se
permanentemente, e mesmo na década de 1840, a mistura de exibições
variadas com uma atração principal, de teatros, mascates, batedores
de carteiras e mendigos em bulevares proporcionavam diversão ao
populacho e inspiração aos intelectuais românticos de Paris.221

Em Rio Grande, o Salão Paraíso, localizado a rua Zanoly nº 51 promovia


concertos musicais, apresentações de companhias de variedades, reuniões dançantes, e
movimentados bailes de máscaras, que agitavam a sociedade local desde os finais do
decênio de 1850.222
Ao longo do Dezenove várias casas de diversões denominadas Tívolis
espalhavam-se pela cidade, entre elas o Tívoli Recreio, aberto em 1863 à Rua da Praia
(atual Mal. Floriano Peixoto).223
No decênio de 1870 o Cassino Rio-Grandense reunia os amantes dos jogos de
azar e dos bailes.224 Em fins do século inaugurou-se na Vila Siqueira uma nova e
confortável casa do gênero que passou a atrair “o que havia de mais fino e de seleto nos
grandes centros populosos do Rio Grande do Sul”.225 A elite gaúcha oriunda, sobretudo, de
Rio Grande, Pelotas, Bagé e Porto Alegre, reunia-se no “Cassino” em festivas noitadas em
torno da roleta e do bacarat imprimindo uma feição cosmopolita ao local e ao balneário.
Espetáculos dramáticos e musicais desenvolviam-se em seu salão principal. Neste

218
Idid., p. 160. (aspas minhas)
219
O crescimento populacional de Rio Grande animou as atividades urbanas possibilitando, sobretudo a
partir da segunda metade do século, o aparecimento de artistas profissionais para espetáculos dos mais
variados gêneros.
220
Confira no Capítulo IV desse estudo maiores informações sobre os espaços teatrais.
221
HOBSBAWM, Eric. J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 298.
222
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 21,23. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande. 3 ago.1944.
223
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 31. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 6 dez. 1941. FREITAS, op. cit., p. 43.
224
O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. N. 84,86.
225
PIMENTEL, op. cit., p. 37.

77
Da Rua ao Teatro

ambiente, o famoso soprano rio-grandense, Amália Iracena foi presença de destaque,


realizando recitais nas temporadas de 1907 e 1908.226 Em 1910 foi a vez do tenor
português Almeida Cruz.227

FIGURA 11 – Inauguração do Cassino Rio-Grandense, em 1875.


Legenda: “A inauguração de uma sociedade de baile sempre é um feliz acontecimento para a mocidade
esperançosa; assim é que o Cassino [Rio-Grandense], foi inaugurado com todas as honras e mais cerimônias
de estilo. A polícia, no entanto, sempre previdente em tais festas da mocidade, não deixou de espreitar a
coisa”.
Extraído de: O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. n. 86. Museu de Comunicação Social Hipólito José da
Costa. Porto Alegre.

∼ ∼∼
As atrações itinerantes: os Espetáculos de Vistas, os Teatrinhos de Bonecos e
os Circos apresentavam-se como formas de entretenimento de grande popularidade.
Instalados em pavilhões armados em praças e largos, salões ou nos teatros, recebiam
grande afluência.228
Desde a década de 1840 o Rio Grande do Sul convivia com os cosmoramas:
aparelhos óticos de reprodução de imagens, populares durante todo o século XIX e
princípios do XX.229 Recordando suas funções, Frederico Carlos de Andrade comenta que,
“pela cidade [de Rio Grande], aqui e ali, em salões particulares, havia, de quando em
quando, e houve ainda por longo tempo, cosmoramas: um tabique com grandes óculos de
aumento, através dos quais viam-se, lá no fundo, umas apreciáveis paisagens, vultos
célebres, etc.”230
Os “Espetáculos de Vistas” exibiam várias imagens como “As Esquadras
Aliadas em Constantinopla, O Bombardeio de Riga, A Vitória de Sebastopol, O Palácio
de Madrid, Os Jardins de Versailles, A Ponte de Baiona, O Palácio dos Voges, O
Desarvoramento da Nau Capitânia de Vasco da Gama [...], A Basílica de São Pedro, A
Catedral de Milão, O Vesúvio, A Praça da Concórdia, A Exposição Internacional de
1867, A Procissâo da Semana Santa em Roma”. 231 E assim, antes de conhecermos a
capital do país ou a Floresta Amazônica, já estávamos familiarizados com os ambientes
europeus, sob os quais projetávamos nossas aspirações: visualizávamos o que queríamos

226
Amália Iracema já era um nome conhecido da cena lírica. Tendo iniciado carreira na capital do Estado
junto a Filarmônica Porto-Alegrense, aperfeiçoou-se no Conservatório de Música de Frankfurt, apresentando-
se após em várias cidades alemãs. BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 87,89. M.P.F.J. Fatos e Coisas
de Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, 14 fev.,15 mar.1944. CARO, Herbert. Concertos e Recitais:
1900-1973. In: DAMASCENO, Athos et alii. Op. cit., p.305.
227
ECO DO SUL. Rio Grande, 21,22 mar.1910.
228
Sobre estas formas de espetáculos no interior dos teatros confira o Capítulo VI deste estudo.
229
O primeiro cosmorama que tenho notícia na Província foi exibido, sem grandes êxitos ao público porto-
alegrense em 1841, instalado em pavilhão armado no Largo do Paraíso. Em 1847 o aparelho retornou ao
mesmo local, apresentando “as mais recentes vistas das cidades da Europa e de suas sangrentas guerras” ;
tendo sido, então, uma das principais diversões daquele ano na cidade. (DAMASCENO, Palco..., op. cit.,
p.23, 27, 110)
230
ANDRADE, Frederico C. de. O Teatro Sob Diversos Aspectos, na Nossa Cidade. Jornal Rio Grande, Rio
Grande, 27 jun. 1935.
231
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.23, 27.

78
Da Rua ao Teatro

ter e ser.232 O periódico ilustrado Marui, em seu número 14, comenta que o cosmorama
instalado na cidade possuía “uma coleção linda e variadíssima de vistas por meio das quais
pode o leitor transportar-se em um ápice do nosso Rio Grande à Velha Europa, tendo assim
ocasião de conhecer até Paris, e isto, por 500 réis”.233
As guerras igualmente serviam de motivo para muitos diapositivos. Com
entusiasmo, eram noticiadas as imagens de “todas as guerras do mundo, de Moisés a
Napoleão e deste até os dias presentes.”234 À época da Guerra do Paraguai (1865-1870), os
cosmoramas apresentavam “diversos episódios da sangrenta luta [...] através de nítidos e
perfeitos quadros da Passagem de Humaitá e Curupaiti, da Batalha do Riachuelo, da
Abordagem dos Encouraçados Brasileiros pelas Forças Guaranis, etc”.235 Retratando o
universo do conflito, a diversão fomentava na população o fortalecimento de sentimentos
pátrios desencadeados pelo embate. Nesse período intensificaram-se os festejos patrióticos,
sempre marcados com muita pompa.
A representação de bonecos era de grande agrado, junto ao público adulto e,
principalmente, ao infantil. Em 1857 instalou-se na Rua da Praia, nº 153 em frente a Praça
Municipal, um Teatro Mecânico de Marionetes.236 Em 1864 outro divertimento do gênero
foi aberto à rua Direita (atual Gal. Bacelar), próximo ao Beco do Carmo (atual rua
Benjamim Constant correspondente ao último quarteirão antes da rua Mal. Floriano
Peixoto).237
Outra concorrida atração popular eram os circos. Remontando à Antigüidade
Clássica, o circo moderno nasceu no século XVIII com a organização de espetáculos
eqüestres intercalados com exibições de saltimbancos, saltadores, funâmbulos e palhaços.
Durante o século XIX o Brasil foi visitado por diversas companhias estrangeiras que
influenciaram a organização de elencos nacionais.238 Nesses espaços atuavam companhias
de variedades, ginásticas, “zoológicas” e eqüestres - chamadas de “Companhias de
Cavalinhos” - com artistas acrobáticos, ginásticos, cômicos: clowns e tonys 239,
domadores/adestradores e seus animais... Os primeiros circos eram construídos de forma
arredondada em madeira com cobertura de folhas de zinco, telhas portuguesas ou
francesas; mais tarde passaram a construção metálica coberta por lona. Grandes pavilhões
contavam inclusive com salas de bebidas e cafés.240 Os alegres desfiles promocionais dos
espetáculos circenses, com seus palhaços, animais e demais atrações conferiam às ruas
imagens e sons singulares.
Entre os circos que se apresentaram na cidade estão: Circo Olímpico
(1858)241 e Circo New York (1861)242, ambos com pavilhões armados no Largo do Poço

232
O advento do cinema, inicialmente europeu e após a Primeira Guerra Mundial norte-americano, agudizou
este processo.
233
MARUI. Rio Grande, 23 abr.1882. n. 14.
234
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 110.
235
Ibid.
236
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 17. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 18 jan. 1944.
237
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 31. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 22 jan. 1941.
238
Sobre o assunto confica: TORRES, Antônio. O Circo no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte. 1998.
239
Clowns e Tonys era uma terminologia comum à época, utilizada para designar tradicionais duplas cômicas
caracterizadas por um componente ser mais esperto e inteligente e o outro mais ingênuo.
240
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 161.
241
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 20. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 5 ago. 1943.

79
Da Rua ao Teatro

(atual Praça Tamandaré); Circo da Companhia Americana (1872)243 e Circo Universal


(1874)244, instalados na Praça Sete de Setembro. No século XX registro, entre outros, o
Circo Americano (1918), Circo Sul-Americano (1920), Companhia de Cavalinhos dos
Irmãos Queirolo (1920), Circo Cubano (1920), Circo de Touros (1921), Grande Circo
Americano (1921), Circo Romano (1927)245, Circo Alemão Holden (1929), Circo Rio-
Grandense (1929)246, todos à Praça Dr. Pio.247 Nos Anos Trinta assinalo o Circo-Teatro
Dudu (1930) à Praça do Mercado248, Circo Egipciano (1932) à Praça Vasco da Gama,
Circo Irmãos Queirolo (1934) à Praça Dr. Pio249, Circo Vienense (1935) à Praça do
Quartel, Circo Welcome (1935) à Praça Dr. Pio, London Circus (1937) à Praça dos
Eucalíptos, etc.

∼ ∼∼
O setor dos divertimentos incrementou-se ao final do século XIX com o
surgimento do cinematógrafo que, inicialmente, era exibido de forma ambulante, em salões
e teatros. Em 25 de setembro de 1908, Arthur Sampaio & Cia., inauguraram o Cinema
Palace, instalado à rua Ewbank n°11. Acredito ser este o primeiro cinema rio-grandino.250
O sucesso da nova arte levou à rápida ampliação das casas de espetáculo
dessa natureza pela cidade. O desenvolvimento da técnica moderna e da indústria do lazer
aumentou, significativamente, as oportunidades de entretenimento para o grande público e
colaborou, decisivamente, na propagação e na sedimentação de novos hábitos urbanos.
Outro legado da Belle Époque, foi o cartaz publicitário que , rapidamente, integrou-se ao
cotidiano das cidades como um eficiente meio de comunicação, importante na divulgação
da programação das casas de espetáculos.

FOTO 11 - Um dos principais cinemas da cidade era o Ideal Concerto, instalado à rua Mal. Floriano Peixoto,
esquina com a rua Duque de Caxias. Década de 1920.
Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

242
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 24. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 21 out. 1944.
243
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 38. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 12 out. 1942.
244
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 39. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, 20 nov. 1942.
245
Preços: camarote: 15$000 (4 entradas), cadeira: 4$000, geral: 2$000. Para menores, cadeira: 2$000, geral:
1$200 réis.
246
Preços: camarote: 20$000 (4 entradas), cadeira numerada: 5$000, cadeira sem número: 4$000, geral:
2$000, meia entrada (até dez anos): 1$500 réis.
247
RIO GRANDE. Rio Grande, 1920-1940. COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit. Pasta 13.
248
Neste circo foram encenadas as peças A Juriti; Alma de Gaúcho; Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor
Jesus Cristo. (COLEÇÃO de Prospectos. Op. cit. Pasta 13.)
249
Este imenso circo tinha a capacidade para 3.000 pessoas.
250
DIÁRIO DO RIO GRANDE. Rio Grande, 26 set. 1908. A primeira sala a exibir filmes no Rio de Janeiro
data de 1897 sendo que dez anos após, com a regularização da distribuição de energia elétrica, o cinema
invadiu todos os cantos da cidade. Em 20 de maio de 1908 inaugurou-se o primeiro cinema de Porto Alegre:
o Recreio Ideal. No ano seguinte, a cidade contava com três casas destinadas às exibições cinematográficas.
Treze cinemas foram inaugurados nos Anos Vinte e no decênio posterior, a capital do Estado já possuía 26
casas do gênero, número que a equiparava à média européia. (ARAÚJO, op. cit., p. 347. TODESCHINI, op.
cit., p. 12. MEYER, Cláudia. O Cinema em Porto Alegre Visto Pela Imprensa (1921-1930). Veritas, n. 146,
1992. p. 276.)

80
Da Rua ao Teatro

Em 1910 inaugurou-se um ringue de patinação à rua Mal. Floriano Peixoto,


destinado ao prazer dos apreciadores deste “sport chic”. Nesta década, o Ponto Chic –
“centro de diversões ao ar livre”- gozava de grande concorrência, oferecendo a seus
freqüentadores música orquestral, apresentação de cantores, serviço de bar e películas
cinematográficas “exibidas gratuitamente”. No Carnaval de 1920 realizou movimentados
bailes. 251
Outros espaços de destaque eram os cabarets, atraindo a população masculina
em torno do gosto pela música de boulevard, danças, espetáculos de variedades, sempre
acompanhados de mulheres bonitas e audaciosas. As casas mais importantes ofereciam
também cassino de jogos, com preferência pela roleta, e nas cartas, pelo bacarat. Em Rio
Grande destacavam-se o Club Centro dos Caçadores, fundado em 1919 à rua Andrades
Neves n° 1 - local de “reunião da jeunesse dorée [juventude dourada] da cidade”, exibindo
espetáculos com cantores e coristas (vedettes) nacionais e internacionais, serviço de bar e
copa das 22 horas em diante252 e o Mozart Club, outra casa de divertimentos com “ato de
variedades às 22 horas em ponto”, orquestra, bar, restaurante e também sala de jogos,
localizada à rua Benjamin Constant (1921).253 Nesses espaços equivalentes aos cafés-
concertos parisienses (os precursores dos music-halls), o tom picante, característico dos
espetáculos realizados e a presença de “mulheres boêmias e fáceis”, somado aos freqüentes
atritos oriundos das disputas no jogo e do consumo exagerado de bebidas alcoólicas,
colaboravam para a má fama desses estabelecimentos noturnos. As barbearias e as
alfaiatarias constituíam-se da mesma forma em “espaços fechados de sociabilidade”
direcionados ao público masculino, sendo freqüentados por cavalheiros que compunham a
elite.
A urbanização e a industrialização da cidade refletiam-se diretamente no
mundo do lazer e das diversões, sobretudo a partir da Revolução de Trinta quando uma
série de leis sociais que vinham sendo reivindicadas pelos trabalhadores brasileiros desde
fins do Oitocentos foram promulgadas (redução do número de horas de trabalho, descanso
semanal, férias, aposentadoria), gerando a criação e a ampliação do tempo livre do
empregado, que passou a aproveitá-lo de modo mais agradável. Forjou-se assim, um
grande mercado consumidor de diversões de todos os gêneros.
Segundo João Camilo Torres, a industrialização que se operou em todos os
países ocidentais, gerou um aumento da produtividade do homem pelas máquinas e a
conseqüente redução do tempo de trabalho dos operários que não se fez acompanhar por
uma paralela redução salarial; pelo contrário, operou-se uma elevação dos ganhos reais.
Resumindo: trabalhava-se menos e ganhava-se mais. No século XX, nas palavras do autor,
“todos os indivíduos passaram a dispor de oportunidades de lazer [...]. Entramos assim,
numa civilização em que, pela primeira vez, o direito ao descanso passou a ser um direito
fundamental do homem, não um privilégio de certas classes”.254 O crescimento do lazer

251
M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 21 ago. 1946. RIO GRANDE. Rio
Grande, 5 jan.1916. RIO GRANDE. Rio Grande, 20 fev.1920.
252
RIO GRANDE. Rio Grande, 5 mai.1919. Luiz Antônio Maroneze registra também em Porto Alegre, um
Clube dos Caçadores que, fundado no decênio de 1910, apresentava-se como o mais famoso cabaret da
capital nos Anos Vinte e nos Trinta, contando inclusive com cassino.(MARONEZE, op. cit., p. 77.)
253
RIO GRANDE. Rio Grande, 17 set. 1921.
254
TORRES, João C. Lazer e Cultura. Petrópolis: Vozes, 1968. p. 46.

81
Da Rua ao Teatro

pode também ser visto como um fenômeno complementar ou compensatório ao trabalho


árduo nas indústrias e ao próprio modo de vida urbano.255
Ao alcançar o ano de 1943 Rio Grande possuía vários cine-teatros: Sete de
Setembro, Politeama Rio-Grandense, Carlos Gomes, Avenida, Guarani, Liceu e Imperial
256
que funcionavam diariamente, ora como cinema, ora como teatro, ou oferecendo
espetáculos mistos de tela e palco. A cidade modernizada incentivava a família à
freqüência desses espaços, sinônimos de uma vida civilizada. Desde 1933 o Rádio-Teatro
apresentava em seu estúdio-auditório espetáculos dramáticos e musicais também irradiados
para as residências locais. Multiplicavam-se e diversificavam-se assim, as opções de casas
de espetáculos.
E aqui torna-se pertinente a tese de Araújo de que “o vigor de urbanidade se
evidencia, por um lado, pela diversidade da grande produção de espetáculos teatrais e
congêneres e, por outro, pela intensificação da chamada vida noturna” de uma cidade.257
Os (cine-) teatros, cinemas, circos, clubes, praças... constituíam-se em
cenários para as manifestações da coletividade, trocas de experiências, idéias, integração
social, possibilidades que permeavam e transcendiam suas notórias funções alicerçadas,
sobretudo, no consumo, no entretenimento ou no lazer.
A partir de meados do Dezenove, o processo de ampliação da chamada “vida
pública” se fez acompanhar de novos “espaços fechados de sociabilidade” destinados aos
encontros e relações enquadradas nos novos ditames modernos e que catalisavam grande
parte da vida social rio-grandina.
O crescimento populacional decorrente em parte das imigrações, a
industrialização, a modernização do meio urbano assim como o alargamento dos “espaços
fechados de sociabilidade” encontram-se na base do cosmopolitismo e do aburguesamento
da cidade de princípios do século XX e da conseqüente dinamização das relações de seus
habitantes. Todavia, apesar das transformações dos hábitos, as mudanças não levaram à
destruição da cultura tradicional herdada. As festas religiosas, as festas folclóricas, o
Carnaval, por exemplo, que preservam muitas características da época colonial – passaram
por todo o período estudado mantendo-se vivas até a atualidade em todo o país. São as
permanências do passado que revelam-se no presente. Tradição e modernidade
interpenetram-se continuamente. O antigo e o novo sempre estiveram ligados num jogo
sutil, num debate constante, num processo de amálgama e de adaptação. Assim a dialética
da ruptura cede lugar à dinâmica do amálgama.258
Em que pesem as distâncias, as dificuldades de comunicação e sejam
guardadas as devidas proporções, a sociedade rio-grandina apresentava-se em sincronia
com outras formações sociais de importantes cidades industriais do país, em relação às
práticas e aos hábitos urbanos de seus habitantes e às formas de diversão e de
entretenimento públicos por eles freqüentadas.259

255
DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1976. p.93.
256
O Imperial funcionava na rua Mal. Floriano Peixoto, no prédio anteriormente ocupado pelo Rádio-Teatro
e atualmente pela Rádio Minuano.
257
ARAÚJO, Rosa Maria. A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993. p. 341.
258
BAUDRILLARD, op. cit., p. 31.
259
Para uma análise comparativa com o Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba, confira,
respectivamente, ARAÚJO, op. cit. SILVA, Maria Alice S. et alii. Memória e Brincadeiras na Cidade de
São Paulo nas Primeiras Décadas do Século XX. São Paulo: Cortez, 1989. MONTEIRO, Porto..., op. cit. e
WESTPHALEN, op. cit.

82
Da Rua ao Teatro

Isto posto, devo salientar que a formação sócio-cultural e econômica de um


determinado grupo humano determina seu comportamento. Nesse processo a cultura
desempenha papel fundamental condicionando-o às normas, valores, padrões, crenças,
símbolos e conhecimentos, forjados pela sociedade.
A aquisição de conhecimentos, especificamente vinculados à instrução e às
artes por parte da sociedade local e o papel das instituições correspondentes a esse
processo, centram as próximas abordagens. Não pretendo, todavia, enfocar nesse momento,
a produção artística rio-grandina; mas sim encaminhar a discussão para uma posterior
análise, a partir de sua revelação apreendida nos espaços teatrais da cidade, então objeto de
estudo dos capítulos V e VI desta obra.

83
Da Rua ao Teatro

__________ 3 __________
EDUCAÇÃO, ARTE & CULTURA:
A MONTAGEM DO PATRIMÔNIO LOCAL

3.1 - EDUCAÇÃO

A história da educação em Rio Grande, acompanha a do quadro nacional


caracterizada pela ineficiência do sistema. Frente a uma minoria de letrados e eruditos,
impunha-se uma enorme massa de analfabetos.260 As precárias condições de infra-estrutura
e a falta de verbas, materiais e professores, constituíam-se em empecilhos ao pleno
desenvolvimento da instrução sistemática e pública na cidade.
A instrução primária em Rio Grande teve seus primórdios na década de 1770,
introduzida pelo professor baiano Manoel Simões Xavier que ensinava a ler, escrever e
contar. Após lecionar na nesta vila, Xavier transferiu-se para Porto Alegre, por autorização
do Governador da Capitania José Marcelino de Figueiredo em 1778, fundando então a
primeira aula daquele lugar. Em 5 de agosto de 1782, através de uma Provisão do Senado
da Câmara, Caetano Ferreira de Araújo foi nomeado mestre de escola em Rio Grande. Pela
Provisão de 23 de março de 1784, Pedro Francisco da Costa Martins foi nomeado mestre
para o Povo Novo.261 Os mestres ensinavam leitura, escrita, as quatro operações aritméticas

260
Sobre a educação no Brasil confira: AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. São Paulo:
Melhoramentos, 1944. p. 509-768. RIBEIRO, Maria S. História da Educação Brasileira: organização
escolar. São Paulo: Autores Associados, 1995. LOURO, Guacira L.. História, Educação e Sociedade no Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Educação e Realidade, 1986. MORAIS, Cultura..., op. cit. SCHNEIDER,
Regina Portella. A Instrução Pública no Rio Grande do Sul (1770-1889). Porto Alegre: UFRGS/EST, 1993.
261
Deve-se ter presente que nesta época, o Povo Novo apresentava num significativo contingente
populacional. Durante o período do Domínio Espanhol (1763-1776) em Rio Grande, por questões de

84
Da Rua ao Teatro

e doutrina cristã, mediante uma pequena compensação mensal, sendo as aulas restritas ao
sexo masculino.262
A Resolução Régia de 14 de janeiro de 1820 determinava o estabelecimento
de oito aulas públicas de primeiras letras no Rio Grande do Sul, autorizadas a funcionar em
Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santo Antônio da Patrulha, São João da Cachoeira,
Pelotas, Triunfo e Piratini. 263 Neste mesmo ano, em Resolução de 17 de fevereiro, foi
criada uma aula de Filosofia, uma de Retórica e uma de Aritmética, Álgebra e
Trigonometria, em Porto Alegre e duas aulas de Latim, em Rio Grande e em Rio Pardo. As
primeira escolas para o sexo feminino na Província foram criadas pela Resolução de 25 de
outubro de 1831.264
Em 1846 o Rio Grande do Sul contava com 51 escolas de instrução primária,
sendo 36 para meninos e 15 para meninas. Existiam somente algumas poucas escolas de
ensino secundário: 4 em Porto Alegre, 2 em Rio Grande e 1 em Pelotas. Em Rio Grande, as
aulas correspondiam a Gramática Latina (com 5 alunos) e Francês, Geografia e Desenho
(com 26 alunos). Em 1847 foi criada a cadeira de Inglês. Conforme recomendações da
Presidência da Província, em 1848, as aulas de instrução secundária em Rio Grande
passaram a ser reunidas em um só prédio: o recém fundado Gabinete de Leitura cedeu duas
de suas salas para este propósito. O número de alunos no ensino secundário local perfazia
52 estudantes em 1849. 265
Professores europeus residentes na cidade ministravam as aulas de idiomas
estrangeiros, onde destacava-se claramente a preferência pelo francês. Seu domínio
apresentava-se como condição sine qua non ao ingresso no mundo “elegante e civilizado”,
conforme o imaginário da época. Em 1834 Arsène Isabelle comentava que em Rio Grande,
assim como em todo o país e na Região Platina, o ensino da língua francesa era bastante
difundido.266 Desta feita, entrava-se em contato com as publicações e, por sua vez, com o
universo político, artístico e cultural da prestigiosa França burguesa.
Da forte presença cultural francesa no Brasil, decorria o afrancesamento da
sociedade. Censurando este processo, um periódico em 1843 assim pronunciava-se:

As nossas sinhasinhas e iaiás já não querem ser tratadas senão por


demoiselle, mademoiselle e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas,
nas maneiras, só se aprova o que é francês; de sorte que já não temos
usança, uma prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio
do Brasil. [Os antigos], quando meninos, acomodando-se à índole da
nossa língua, diziam mamãe porque em português sempre se chamou
mãe; hoje nem este vocábulo se permite entre os alinhados

segurança, não foi permitido a permanência dos luso-açorianos na Vila, que foram transferidos para seus
arredores. Criaram-se núcleos de colonos, cujo principal era o da Ilha da Torotama, que já existia
anteriormente. Em terras pertencentes a Manuel Fernandes Vieira, que se retirara com a invasão, foram
assentadas 112 famílias. Com a Reconquista da Vila pelos portugueses em 1777 Fernandes Vieira reclamou
sua propriedade. Os colonos foram transferidos então para o continente na localidade de Rincão d’el Rey,
mais tarde denominado de Distrito do Povo Novo. (Cf. QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p. 117-118,137-140)
262
SCHNEIDER, op. cit., p. 14-15.
263
PIMENTEL, op. cit., p. 95. MAGALHÃES, op. cit., p. 225. SCHNEIDER, op. cit., p. 21.
264
SCHNEIDER, op. cit., p. 22, 29.
265
Ibid., p.75,76,91,92,93.
266
ISABELLE, op. cit., p. 80.

85
Da Rua ao Teatro

Galiciparlas: deve-se dizer – a minha maman – porque em francês


assim pronunciarão os pequenos.267

Assim, a influência estrangeira atingia um dos pontos mais íntimos do


sistema patriarcal brasileiro.
Em princípios do decênio de 1850, não mais que 2% da população rio-
grandina beneficiava-se do ensino gratuito. No ensino particular primário, em 1859,
existiam em Rio Grande 6 aulas para homens (145 alunos) e 3 aulas para mulheres (75
alunas). O ensino particular secundário destinava-se exclusivamente ao sexo masculino: 10
aulas (35 alunos).268
Conforme Regina Schneider, durante a década de 1860, “a instrução
secundária na Província limitava-se ao Liceu, na Capital, e a cadeira avulsa de Francês, em
Rio Grande”. Todavia, em 1873, esta aula foi suspensa, ficando o ensino secundário
reduzido à escola Normal, de Porto Alegre.269
Se, em 1876, 492 era o número de alunos que freqüentavam as escolas rio-
grandinas; 2.412 estavam fora das salas de aula. Nesta década, mais precisamente em 1877,
foi introduzido na Província as primeiras escolas mistas freqüentadas por meninos e
meninas. Em 1879 totalizavam 1.133 alunos matriculados nas 8 aulas primárias mantidas
pelo governo, na cidade.270
No início do século XX a rede escolar local possuía 7 aulas com 2.974 alunos
sustentadas pelo Município e 26 estabelecimentos mantidos pelo Estado. O ensino
particular respondia por 11 estabelecimentos, funcionando como pensionatos e/ou
externatos. As escolas públicas destinavam-se ao ensino primário. O ensino secundário era
praticado, timidamente, por algumas escolas privadas, o que restringia seu acesso à uma
diminuta parcela da sociedade em função do elevado custo dos estudos.271
Entre a elite brasileira, durante o Dezenove e até a Primeira Guerra Mundial
sobretudo, era comum a prática do envio de seus filhos à Europa a fim de concluírem os
estudos. A cultura européia propagou-se entre nós, também por intermédio destes jovens
que após formarem-se retornavam ao país e difundiam novas idéias, hábitos e costumes.
Eram principalmente rapazes, valorizados pela educação européia, muitos de famílias da
burguesia mais nova das cidades, filhos ou netos de “mascates”. Deste processo, a
sociedade local também foi partícipe.
Inaugurado em 1906 o Ginásio Municipal Lemos Júnior incrementou,
sobremaneira, a instrução secundária pública na cidade. Neste século, expandiu-se,
consideravelmente, a rede escolar rio-grandina, intensificando o processo de socialização
da educação, sobretudo, primária. Fomentaram-se igualmente os cursos profissionalizantes
voltados para as classes trabalhadoras e menos favorecidas. Dentre os estabelecimentos de
ensino registrados no período de 1920 a 1940, além do supracitado Lemos Júnior,
destacavam-se:

Liceu Salesiano de Artes e Ofícios Leão XIII (ensino primário e profissionalizante);


Escola Industrial Elementar (filiada ao Instituto Parobé, da Escola de Engenharia de Porto Alegre);

267
O CARAPUCEIRO. Recife, 1843. Apud. FREYRE, Sobrados..., op. cit., p. 102.
268
RELATÓRIO da Câmara Municipal da Cidade de Rio Grande, 1851. SCHNEIDER, op. cit., p. 201.
269
SCHNEIDER, op. cit., p.247,283.
270
SCHNEIDER, op. cit., p. 322,284. RELATÓRIO da Câmara Municipal da Cidade de Rio Grande, 1879.
271
RELATÓRIO do Intendente Municipal da Cidade de Rio Grande, 1906.

86
Da Rua ao Teatro

Academia de Comércio Dr. João Fernandes Moreira (instrução secundária);


Colégio Complementar Santa Joana D’Arc (primário e secundário para moças);
Externato Luso-Brasileiro (primário e secundário);
Ginásio São Francisco;
Ginásio Brasileiro (internato primário);
Colégio Rio-Grandense;
Colégio Ernest;
Instituto Comercial São Francisco;
Colégio Elementar Juvenal Miller;
Colégio Elementar Bibiano de Almeida;
Escola Agrícola da Quinta; etc.

Fundada em outubro de 1927 a Liga de Educação do Município do Rio


Grande, inaugurou sua primeira escola em março de 1928, instalada nas dependências do
Tiro de Guerra no 1.272
Segundo números apresentados por Pimentel, Rio Grande possuía em 1940
no ensino primário o seguinte quadro:273

TABELA 1

Escolas/Matrículas Federal Estadual Municipal Particular Total


Unidades Escolares 1 14 27 38 80
Matrículas 69 2.183 1.695 4.080 8.027
Matrículas Efetivas 69 1.709 1.368 3.320 6.466

O mesmo autor, tomando por base as populações dos municípios mais


importantes do Estado em 1940 e suas respectivas matrículas efetivas de alunos no curso
primário, expõe:274

TABELA 2

Município População Total Porcentagem Escolar


Porto Alegre 275.678 95,5
Pelotas 105.852 81,9
Rio Grande 61.791 95,1

Cursos de alfabetização noturnos subvencionados pela Municipalidade eram


freqüentados, sobretudo, pelo operariado, sendo oferecidos pela Biblioteca Rio-Grandense,
Sociedade Polonesa Águia Branca, Liceu Salesiano Leão XIII, Colégio Rio-Grandense,

272
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 112. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 3 mar. e 15 out. 1941.
273
PIMENTEL, op. cit., p. 94.
274
Ibid., p. 95.

87
Da Rua ao Teatro

Centro Cultural Marcílio Dias275, Centro Cultural Rio-Grandino, Sociedade União


Operária276 e por outras instituições.277
Desde o Fin-de-Siècle a capital do Estado e mais tarde Pelotas gozavam de
instituições educacionais de nível superior.278 Rio Grande, entretanto, só se beneficiou
desse ensino a partir da segunda metade da década de 1950.

3.2 - CONTEXTOS DE LEITURA

Por longo tempo, a literatura no Brasil não passou de um “sinal de classe”, de


uma “prenda de gente distinta”, de um “adorno para a sala de visitas do imenso casarão
colonial” que constituía-se o país.279 É interessante lembrarmos, também, da hegemonia da
literatura francesa no Brasil Oitocentista reforçada, sobremaneira, pela propagação de
obras inglesas, alemãs, etc. em traduções nessa língua. O escritor Macedo Soares em 1860
alardeava: “em nossa ignorância não conhecemos senão a literatura francesa; todas as
outras as conhecemos através do prisma das traduções francesas.”280
Em sua estada em Rio Grande, no ano de 1834, Arsène Isabelle registrou a
existência de “uma pequena biblioteca, composta em grande parte de livros franceses.”281
Esta observação enfatiza a forte presença cultural da França entre os leitores locais da
época. Nas primeiras décadas do século XIX, na Capital do Império, proliferavam os
Cabinets de Lecture divulgando, igualmente, a literatura deste país. Apesar dos bons
autores e obras consideráveis, a literatura portuguesa e a nacional encontravam-se
relegadas a um segundo plano na preferência do restrito, e então francófilo, público
letrado.282 A alteração desse quadro constituiu-se num processo lento e fundamental de
nossa história cultural. Neste sentido, de suma importância foi a fundação da Academia
Brasileira de Letras, em 1896. Tendo como primeiro presidente Machado de Assis, a
instituição colaborou grandemente para a consolidação das letras no país.283 Nas palavras
de Fernando de Azevedo, “visando concentrar os grandes nomes da literatura nacional e
fomentar, com o culto das letras o da língua pátria, [ela] acabaria por assumir uma função
de alcance não apenas literário, mas social e político: o da defesa da unidade do idioma
nacional”.284
Em 15 de agosto1846 foi fundado um Gabinete de Leitura em Rio Grande,
instalado à Rua do Arsenal, n.o 3 (atual Ewbank), sendo transferido em 1847 para um

275
Fundado em 1936, proclamava-se o “Bandeirante da Alfabetização dos Brasileiros de Cor”.
(BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 115. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio
Grande, 6 mar. 1941.)
276
Esta sociedade possuía também uma escola primária.
277
PIMENTEL, op. cit., p. 91-92.
278
Universalmente, o Fin-de Siècle corresponde às últimas décadas do século XIX.
279
AZEVEDO, op. cit., p. 316-317.
280
SOARES, Macedo. Da Crítica Brasileira. Revista Popular. Rio de Janeiro,t.8, p.272-273, 1860.
281
ISABELLE, op. cit., p. 80.
282
Cf. SCHAPOCHNIK, Nelson. Contextos de Leitura no Rio de Janeiro do Século XIX: Salões, Gabinetes
Literários e Bibliotecas. In: BRESCIANI, Stella (org.) Imagens da Cidade - Séculos XIX e XX. São Paulo:
Marco Zero, 1994.p.147-162.
283
Um preciso panorama da vida literária brasileira pode ser obtido em: BOSI, Alfredo. História Concisa da
Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
284
AZEVEDO, op. cit., p. 344.

88
Da Rua ao Teatro

amplo sobrado à Rua da Praia n.o 146, 2o andar. 285 Frente ao alto preço dos livros que,
dificultava sua aquisição e a conseqüente formação de bibliotecas particulares, os
gabinetes de leitura, por meio do aluguel de livros, estimulavam a prática social da
leitura.286
Em 1866 o Gabinete de Leitura transferiu-se para a Rua dos Príncipes
esquina com a rua Andradas e, mais tarde, em 1878, mudou-se para a rua Riachuelo n.o 71.
Nesta nova sede, passou a denominar-se Biblioteca Rio-Grandense, adquirindo
personalidade jurídica. Já em 1879 a Biblioteca inaugurava uma série de conferências
literárias, ampliando sua ação educadora junto à coletividade. Desde 1900 passou a
funcionar à Rua dos Pescadores (depois rua Formosa e atual rua General Osório), no
antigo prédio da Casa da Câmara, adquirido pela instituição a Municipalidade. A partir de
1914 o antigo edifício luso-brasileiro sofreu amplas reformas internas e externas que
conferiram-lhe um frontispício eclético, ricamente ornamentado. Esta imagem
personificou a Biblioteca até 1937 quando, uma nova série de reformas findadas somente
nos anos de 1950, deram-lhe a atual configuração.287

FOTO 12 - Conseqüentes reformas realizadas a partir de 1914 deram ao edifício da Biblioteca Rio-Grandense
a rebuscada fachada que caracterizou sua imagem até 1937.
Extraído de: Arquivo Fotográfico da Biblioteca Rio-Grandense. Rio Grande.

A Diretoria de Estatísticas Educacionais do Rio Grande do Sul, através de


seu Anuário de Estatísticas Culturais de 1940 informa que:

das 3 grandes bibliotecas públicas do Estado é mais importante pela


riqueza de suas coleções a de Rio Grande que possui 47.457 obras em
74.650 volumes, sendo de notar que é mantida por uma associação
subvencionada pelos poderes públicos. Segue-se a de Porto Alegre,
propriedade do Estado, magnificamente instalada, com 27.910 obras
em 50.465 volumes. Por último coloca-se a Biblioteca Pelotense,
mantida, como a de Rio Grande, pelos seus associados, com cerca de
20.000 obras e 26.250 volumes.288

A Biblioteca Rio-Grandense possui destacado papel na divulgação da


literatura universal e na produção do saber moderno em nossa cidade e Estado. Importante
núcleo irradiador de cultura, constitui-se em local de investigação e trabalhos científicos.
Sua ação direta junto à comunidade percebia-se através de suas conferências, palestras,
publicações, aulas primárias noturnas, etc. Por anos, suas dependências albergaram a
Escola Industrial. Em 1919 a instituição foi reconhecida de utilidade pública através do

285
Cf. FERREIRA, Athos D. Gabinetes de Leitura e Bibliotecas do Rio Grande do Sul no Século XIX. Porto
Alegre: MEC, 1973.
286
Cf. HALLOWELL, Lawrence. O Livro no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1982.
287
Uma precisa e suscinta história da Biblioteca Rio-Grandense pode ser obtida em: SOAMAR. Rio Grande,
jul/ago. 1996. Ano IV, n.o 19.
288
Apud. PIMENTEL, op. cit., p. 141.

89
Da Rua ao Teatro

Decreto n.o 3.776, de 1 de outubro, sancionado pelo então Presidente da República,


Epitácio Pessoa.
Em 1940 bibliotecas de menor importância existiam na Sociedade Portuguesa
de Beneficência (fundada em 1859); no Clube Saca-Rolhas (fundada em 1878); na
Sociedade Polonesa Águia Branca (fundada em 1896); na Sociedade Espírita Luz
Beneficente (fundada em 1909);289 na Sociedade União Operária290 e em outras
instituições e estabelecimentos de ensino.
Entre as livrarias existentes na cidade estavam as bem montadas filiais das
Americana (inaugurada em 1885), Universal e do Globo291. Nos Anos Vinte, registrei
também a Livraria Royal. Comercializando obras nacionais e estrangeiras dos mais
variados autores, constituíam-se em “espaços fechados de sociabilidade” à intelectualidade
local, servindo-lhe de ponto de encontro. Desenvolvendo intensa atividade editorial as
livrarias Americana e Globo desempenharam papel relevante na indústria cultural gaúcha e
no fomento à leitura. Conforme Francisco das Neves Alves:

A leitura foi uma atividade cultural presente no Rio Grande do século


XIX, através do funcionamento, em diferentes épocas, de uma série de
livrarias que abasteciam a cidade com uma diversificada gama de
livros e revistas, nacionais e estrangeiros, principalmente ingleses,
franceses e alemães; era também notável o interesse por obras de
conteúdo literário, histórico e geográfico. O [elevado] custo dos livros
era, no entanto, um fator limitador à leitura [...].292

Estudando o desenvolvimento da importante indústria livresca sul-rio-


grandense nas décadas de 1930 e 1940, assim escreve Elizabeth Torresini:

desenvolvimento do processo de industrialização, ocorrido no Brasil


do século XX, é fator fundamental para a compreensão da indústria
cultural e de livros. Tal processo vem acompanhado, na década de 30
da ascensão de Getúlio Vargas, que ao inaugurar um estilo de política
dependente da participação das massas, estimula a radiodifusão e o
desenvolvimento do cinema nacional, do disco, da imprensa e do livro.
Este impulso incrementa a indústria cultural e os meios de

289
PIMENTEL, op. cit., p. 140.
290
Em agosto de 1904 “a mesa de leitura [desta sociedade] foi freqüentada [...] por 335 sócios. Recebeu a
visita de 32 jornais e forneceu 68 volumes de várias obras para serem lidas pelos associados”.(
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 82. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio
Grande, 3 set. 1941.). Boa parte dos livros pertencentes à biblioteca da S.U.O. encontra-se preservada no
Centro de Documentação Histórica da Universidade de Rio Grande compondo seu acervo e possibilitando
estudos acerca das leituras do operariado local.
291
MAGALHÃES, op. cit., p. 255. Em 1857 a Livraria Pelotense anunciava através do jornal local Diário do
Rio Grande, “encarregar-se de mandar vir do Rio qualquer obra, que não se encontre no lugar, quando o
freguês a procure”. Embora atuasse na sociedade rio-grandina, não tenho certeza sobre sua instalação na
cidade. (DIÁRIO DO RIO GRANDE. Rio Grande, 28 jun.1857).
292
ALVES, A Pequena..., op. cit., p. 35.

90
Da Rua ao Teatro

comunicação de massa, cujos alicerces o próprio processo de


industrialização já havia lançado.293

No aprimoramento cultural e, de uma certa forma também educacional,


merece destaque o papel da imprensa. Por sinal, seu crescimento constituiu-se na base para
o desenvolvimento da literatura nacional.
Herança do Período Joanino, a imprensa chegou ao Rio Grande do Sul em
fins do decênio de 1820. O primeiro jornal a ser impresso em Rio Grande foi O Noticiador
circulando a partir de janeiro de 1832, seguido pelo O Observador (no mesmo ano) e pelo
O Propagador da Indústria Rio-Grandense (1833). Todavia, foi a partir da Revolução
Farroupilha (1835) que intensificou-se a atividade periodista na Província. Dentre os
jornais locais oitocentistas de maior longevidade destacavam-se o Diário do Rio Grande
(1848-1910) e o Eco do Sul (fundado em 1858, alcança o ano de 1934). Expressando
opiniões, informando ou simplesmente abordando amenidades, as folhas periódicas
apresentavam-se como importantes meios de comunicação, apesar das limitações impostas
pelo analfabetismo. Paralelo aos grandes diários, pequenos periódicos de vida efêmera
pontilhavam a história jornalística local.294
Para Alves “a imprensa rio-grandina foi uma das mais destacadas do Rio
Grande do Sul, tanto pela quantidade, quanto pela qualidade de seus periódicos (sendo
somente superada pela porto-alegrense e seguida com proximidade pela pelotense). Assim,
além de ter sido uma das primeiras localidades gaúchas a possuir jornais, Rio Grande teve
algumas das mais perenes folhas em termos provinciais/estaduais [...].”295
Durante os decênios de 1920 e 1930 circulavam diariamente na cidade três
grandes folhas: Eco do Sul (já referido); O Tempo (fundado em 1906) e Rio Grande
(fundado em 1913) além de pequenas publicações de amenidades ou vinculadas a
interesses específicos de alguns setores da sociedade, como os operários, os bancários, etc.
A saber: O Tagarela, A Luta, O Plectro, O Arauto, A Semana Elegante, O Prego, O
Guarani, A Vovó, O Maneca, Cultura Proletária e outros.
Ao enfocar o crescimento e a importância da imprensa rio-grandina, não
posso dissociá-lo do desenvolvimento do beletrismo e das tipografias, que viabilizavam
esse processo. A imprensa era um meio de incentivo e divulgação da literatura local, mais
especificamente, de crônicas e de poesias publicadas quase que diariamente em suas
páginas. Os periódicos e as revistas exclusivamente literários encontravam grande
aceitação junto ao público feminino e ao estudantil. 296 Um das primeiras publicações do
gênero surgida na cidade, foi a revista Arcádia (1867), mantida por seu fundador Antônio
Joaquim Dias e, dois anos mais tarde, transferida para Pelotas.297 A fundação em Porto

293
TORRESINI, Elizabeth R. Porto Alegre: dos cinemas, cafés, jornais, livrarias e praças, a capital dos
livros (1929-1948). Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 21, n.1, p. 12, 1995. Torna-se
relevante frisar que nos Anos Trinta, a Globo apresentava-se como a mais importante editora brasileira.
294
Cf. em PIMENTEL, op. cit., p. 137, listagem dos principais jornais locais durante o século XIX, e
ALVES, A Pequena..., op. cit.
295
ALVES, A Pequena..., op. cit., p. 42-43, 44.
296
Dentre as revistas literárias, merece destaque a Corimbo (1883-1943), fundada pelas irmãs Julieta e
Revocata Heloísa de Melo. (Cf. VIEIRA, Míriam Steffen. Atuação Literária de Escritoras no Rio Grande do
Sul: Um Estudo do Periódico Corimbo: 1885-1925. Porto Alegre: UFRGS, 1997. Dissertação de Mestrado).
297
CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura no Rio Grande do Sul: 1737-1902. Porto Alegre: Globo,
1956, p.181.

91
Da Rua ao Teatro

Alegre do Parthenon Literário no ano seguinte, daria um novo impulso às letras na


Província.
Em Rio Grande, surgiram a Literária Rio-Grandense (antes de 1875), Juvenil
Literária (1875), Culto às Letras (1875), Sociedade União Literária (1877), Clube Literário
Luso-brasileiro (1879), incentivando tanto à leitura quanto a produção de contos, novelas,
romances, poemas, etc. 298
Se os cafés, bares, confeitarias... se constituíam em locais privilegiados para
troca de idéias e atualizações de discursos, as bibliotecas, livrarias, cinemas e (cine-)
teatros, por meio de seus “produtos”, desempenhavam papel fundamental na constituição
da “cultura pública”, atuando como centros irradiadores de informações que viabilizavam
esse processo.
Embora as escolas, bibliotecas, livros, revistas e jornais respondessem
grandemente pela formação educacional e elevação do nível cultural da sociedade,
devemos ter sempre claro os limites da educação no Brasil e a alta taxa de analfabetismo
registrada, que alijavam da experiência da leitura e do prazer do texto a maior parte da
população.299 Nesse quadro há que se referir à importância da informação/formação
advinda de um processo de oralidade desenvolvido em encontros públicos por ocasião de
palestras e conferências promovidas por várias sociedades “instrucionistas”, partidos
políticos...; na encenação dos mais variados textos literários dramáticos e/ou dramatizados,
etc. Esse processo caracterizado fortemente por uma “persuasão sedutora” da palavra,
tornava-se elemento de grande valor na atenuação desta realidade nacional distanciada da
prática da leitura. O cinema igualmente adquiria sensível relevância, na medida em que
possibilitava aos analfabetos a formação de uma visão de mundo que de outra forma não
teriam subsídios para forjar. Não devemos subestimar o poder dos sons e das imagens.
Assim, também por meio da cultura visual e da auditiva e, através do
entretenimento, socializava-se o conhecimento.

3.4 - BELAS-ARTES

No desenvolvimento das belas-artes no Brasil, o advento da Corte Joanina e a


presença da Missão Artística Francesa no país (1816), constituíram-se em elementos de
grande promoção, sobretudo, à nova capital do Império Lusitano. Uma vez restabelecida
as relações com a França, o príncipe-regente “procuraria embelezar seu reino tropical
recorrendo às artes francesas, [...] num esforço de fortalecer a Monarquia [...] por meio da

298
(BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 41,45-46,49. O AMOLADOR. Rio Grande, 1875. n° 82, 86).
Segundo Ari Martins, Rio Grande, constituindo-se no “berço de tantos vultos de projeção na cultura gaúcha”,
desempenhou relevante papel na evolução das belas-letras no Estado. Em 1943 existiam na cidade 4
agremiações literárias. (PIMENTEL, op. cit., p. 536.). Sobre os literatos (e também os jornalistas) locais
confira: NEVES, Décio Vignolli. Vultos do Rio Grande. 2O Tomo. Rio Grande, 1987 e MARTINS, Ari.
Poetas do Rio Grande do Sul: Subsídios para a história da literatura gaúcha. In: CONGRESSO SUL-RIO-
GRANDENSE DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA, 3, Porto Alegre, 1940. Anais... Porto Alegre, Prefeitura
Municipal, 1940, v.3, p. 1389-1418.
299
Em 1889, a média de alfabetismo no país era de 28%. Conforme Love “em 1872 o Rio Grande do Sul era
a terceira Província entre as demais, na taxa de alfabetizados (21,9% em todas as idades) e, em 1891 tinha
galgado o primeiro lugar.” (LOVE, op. cit., p. 21.) Em 1920 o índice de alfabetização do Estado era o maior
do país, 38,8%, seguido por São Paulo com 29%.

92
Da Rua ao Teatro

promoção das artes e ciências no âmbito das instituições reais”.300 A Missão Francesa
introduziu o ensino artístico acadêmico, apregoando a substituição da pompa e dos
exageros ornamentais do barroco, pelo refinamento e disciplina do neoclassicismo e seus
ideais de beleza perfeita.301
À uma tradição francófila já percebida no período colonial somou-se às
preferências da novel Corte carioca de D. João, dando a base para a formação do
“esplêndido edifício da cultura material francesa no Brasil do século XIX, um edifício
constantemente renovado pelos comerciantes e artesãos franceses imigrados e pelas longas
férias parisienses da elite”. 302 Na segunda metade do Oitocentos, o esplendor da Corte de
Napoleão III serviu para reforçar a admiração pela França. Mais tarde, em nossa Primeira
República, “a chamada Belle Époque levaria o afrancesamento da cultura brasileira a seu
paroxismo, atingindo expressões quase caricaturescas”.303
Já nas primeiras décadas do século XIX, a pequena burguesia brasileira
tornou-se a responsável pela transplantação das ideologias e valores estéticos oriundos do
avanço burguês na Europa Ocidental. Nesse segmento social, a cultura encontrou clima e
se desenvolveu. Nele, recrutavam-se os letrados, os funcionários, os religiosos, todos
aqueles que necessitavam de conhecimentos – quase sempre em escala rudimentar – e que
tinham receptividade, em parte, para as manifestações artísticas, a que a vida urbana em
desenvolvimento proporcionava condições iniciais de existência. A vida artística e cultural
do país estimulava-se com os novos ares.304
Em 1826 instalou-se no Rio de Janeiro a Academia Imperial de Belas-Artes,
núcleo irradiador das tendências neoclássicas que estenderam-se pelo Brasil ao longo do
século.
Durante o Dezenove o aprendizado das belas-artes em Rio Grande
(destacando-se o do desenho e da pintura), realizava-se através de aulas particulares ou
oferecidas por sociedades, ministradas por mestres estrangeiros. Todavia, em 1846
instalou-se na cidade a primeira escola ou aula pública de Desenho da Província. Seu
instrutor era o artista francês Edouard Timoleon Zalony (nomeado também para o ensino
de Língua Francesa e Geografia) - afamado “retratista a esfuminho e pintor a óleo sobre
vidro” - que, anteriormente, lecionara na Corte.305 Em 1854 o referido artista ensinava,
gratuitamente, desenho aos sócios da Sociedade Instrução e Recreio, por ele idealizada.306
Mais tarde, o ensino das artes plásticas passaria a compor o currículo tanto dos colégios
particulares quanto dos públicos.
Sobretudo a partir da segunda metade do Oitocentos muitos foram os artistas
que se instalaram na cidade ou nela nasceram, exercendo várias atividades: professores de
desenho e pintura307; retratistas; fotógrafos; decoradores de interiores e exteriores de

300
NEEDELL, op. cit., p. 175-176.
301
LOPEZ, Luiz R. Cultura Brasileira: de 1808 ao pré-modernismo. Porto Alegre: UFRGS, 1988. p. 15-18.
302
NEEDELL, op. cit., p. 176.
303
NEEDELL, op. cit., p. 132. MORAIS, op. cit., p. 86.
304
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. São Paulo: DIFEL, 1983. p. 23-32.
305
SCHNEIDER, op. cit., p. 76. DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Globo, 1971. p. 83, 248. Damasceno revela também que, exceto em Rio Grande, não existirá na Província até
1859 nenhum curso oficial da matéria.
306
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 14. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 17 out. 1942.
307
Fortemente acadêmica pintava-se, sobretudo, paisagens e retratos mas também, cenas históricas e
bíblicas. As tendências vanguardistas de renovação da pintura observadas no país e no mundo, praticamente,
não fizeram eco em Rio Grande. O academicismo, a mimese, marcam todo o período estudado. Deve-se ter

93
Da Rua ao Teatro

residências, prédios público...; fabricantes de móveis, escultores de imagens e peças


religiosas, etc. Contudo poucos na realidade, íam além da mediocridade .308
Em função da imprensa caricata local desenvolveu-se, fortemente, o desenho
e a litografia.309 Desta feita, através dos periódicos e revistas ilustrados realizou-se a
popularização da arte. Para Azevedo: “a caricatura e o desenho humorístico [...] pela
extensão do público que divertiam, reunindo no mesmo sentimento de prazer a elite e a
massa, são fatores na difusão popular da arte, e constituem a primeira colaboração real
entre as artes e a literatura”.310
Digno de ressalva era também a grande produção vinculada às necessidades
teatrais: pinturas ornamentais observadas nas paredes e teto da Sala dos Espectadores,
panos de boca ricamente trabalhados e renovados periodicamente e os incontáveis cenários
realistas e cheios de detalhes, então em voga e de rápido consumo. Da mesma forma, as
artes plásticas marcavam presença na decoração festiva de clubes por ocasião de bailes e,
sobretudo, em época de carnaval; assim como na confecção dos imensos e luxuosos carros
alegóricos que compunham os préstitos momescos, nos estandartes das sociedades e nos
adereços.
A arte cenográfica desenvolvida na cidade durante os Anos Vinte e os Trinta,
tinha como expoente o português Joaquim Ribeiro Figueiredo Bastos Guerra (1882-1964),
hábil artista na confecção de cenários, fornecendo-os à todas as casas de espetáculos311.
Bastos Guerra trabalhava também em decorações de bailes de carnaval e na construção dos
carros alegóricos do Clube Arara, memoráveis por sua grandiosidade e originalidade.312
Dessas artes efêmeras só restam algumas imagens apreendidas em fotografia de época, nas
quais as matizes de preto sobre o papel branco, pouco revelam.
No começo do século XX foi fundado o Liceu Salesiano de Artes e Ofícios
Leão XIII destinado a formação daqueles que pretendiam fazer da arte sua profissão.
A partir da segunda década deste século dinamizou-se o ensino das artes
plásticas no Estado. Em Porto Alegre, instalou-se em 1910 a Escola de Artes no Instituto
Livre de Belas-Artes do Rio Grande do Sul, subvencionado pelo Estado, oferecendo cursos
de Desenho, Pintura, Perspectiva, Anatomia e História da Arte. O Conservatório de

em mente, todavia, que mesmo na Europa, até 1914 “a pintura e a escultura acadêmicas se mantinham
tranqüilamente estáveis [...] com ênfase sobre a repetição e imitação de formas, motivos e mestres artísticos
do passado”. (MAYER, op. cit., p. 217.)
308
Dentre os artistas de maior notoriedade estavam: o francês Edouard Timoleon Zalony; o espanhol
Guilherme Litran; Romualdo Gomes Magriço; Luiz Pereira da Cunha (todos em desenho e pintura);
Zequinha Koboldt e Isabel Hislop (amadores do desenho e da pintura); os Irmãos Ribeiro (escultura e
entalhe); o francês Bartholomeu Boyer (escultura em mármore); Efísio Anedda (desenho, pintura e
cenografia); os italianos Ricardo Giovannini (desenho, pintura, decoração e cenografia); Bernardo Grasseli
(pintura e cenografia) e Giovanni Falconi (decoração), Matteo Tonietti (pintura, cenografia, escultura); o
alemão Carl Emil (litografia e cenografia); o espanhol Henrique Gonzales; Thádeo de Amorim; Constantino
Alves de Amorim; Pedro Mozer (todos, em desenho e litografia). Nascidos em Rio Grande mas não residindo
nela estão Arthur Pinto da Rocha (amador do desenho e da pintura); Luiz Augusto Freitas (desenho e pintura)
e Carlos Torelly (pintura). Dentre os artistas rio-grandinos, torna-se justiça salientar o nome de Carlos
Torelly (1866-1936), cuja larga produção é de renomado valor artístico. (DAMASCENO, Artes..., op. cit.)
309
Executando os desenhos nas pedras destinados aos periódicos ilustrados - O Amolador, O Diabrete,
Maruí, Semana Ilustrada, O Bisturi ...- registrei a Litografia de Alberto Moutinho (1874) e a Litografia de
Henrique Gonzales (fins do XIX). (DAMASCENO, Artes...,op. cit., p. 558-559.)
310
AZEVEDO, op. cit., p. 470.
311
Outros artistas atuando na mesma área eram Domingos Borges, José de Oliveira Bastos e Franklin Bastos.
312
No carnaval de 1922 o préstito do Clube Arara compunha-se de sete carros alegóricos todos,
soberbamente, decorados.

94
Da Rua ao Teatro

Música de Pelotas metamorfoseou-se em Instituto de Belas-Artes, em 1927. Dez anos mais


tarde criou-se em Bagé a Escola de Artes como departamento do Instituto Municipal de
Belas-Artes. A cidade de Rio Grande não foi partícipe à época desse processo. O
incremento às artes plásticas locais só viria na década de 1950.313
Na composição plástica do cenário urbano rio-grandino tornavam-se
importantes as fachadas das residências e prédios públicos artisticamente trabalhadas
(sobretudo nos estilos neoclássico e eclético) e as esculturas em metal e pedra percebidas
em monumentos instalados em largos e praças.314 Belos exemplos da estatuária brasileira
também decoravam os mausoléus nos cemitérios locais. A arte ao mesmo tempo que
embelezava o espaço público aproximava-se da população fomentando o interesse e o
gosto pelas manifestações da sensibilidade humana e desenvolvendo, dessa forma,
elementos essenciais à sua fruição.

3.5- DANÇA

Paralelo aos movimentados bailes coletivos realizados em clubes, salões e


nos teatros, timidamente, desenvolvia-se a dança cênica, vista como arte, como espetáculo.
O primeiro esboço daquilo que, mui pretenciosamente, classifico de “sarau
coreográfico” percebido na cidade, remete a Saint-Hilaire e a seu registro sobre um solo
executado por uma moça em ocasião de uma reunião dançante a qual participou em 13 de
agosto de 1820. Embora tivesse reconhecido a graciosidade dos movimentos da jovem, o
viajante não deixou de lamentar que “uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de
todos”.315 Muito provavelmente esta exibição não passou de uma ingênua ilustração
musical caracterizada pela improvisação.
Sobre o ensino de danças cênicas, o primeiro nome que aponto é o da
bailarina Moreau que, como já foi dito, comunicava pela imprensa dar “lições de danças
por teatro” à sociedade local de 1850.
Os corpos de baile das companhias artísticas - embora a grande maioria não
primasse por admiráveis qualidades estéticas - desempenharam papel importante na
formação do gosto pela dança cênica e no preparo do público para o desfrute desse tipo de
espetáculo.
Em fins do Oitocentos iniciou-se um processo de valorização das atividades
físicas. Mens sana in corpore sano deixou de ser um jargão perdido na Antigüidade e
passou a ser posto em prática modificando a mentalidade em relação ao culto do corpo.
Nesse contexto, “além da ginástica - benéfica para ambos os sexos - às meninas só eram
recomendados exercícios que desenvolvessem os órgãos respiratórios e estimulassem a

313
Tardiamente, o Curso de Desenho e Pintura foi implantado em 1953 no então Conservatório de Música de
Rio Grande que, em 1954 elevado à categoria de Escola de Belas-Artes, não limitou-se mais à área musical.
Desde o primeiro ano de seu funcionamento o curso já obteve grande público registrando 30 alunos
matriculados, sendo , a partir de então oferecido de forma permanente até os dias atuais.(BITTENCOURT,
Ezio. O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande: 1922-1954. Rio Grande FURG, 1993.
Monografia de Graduação)
314
Várias são as esculturas espalhadas pela cidade destacado-se a produção dos artistas Teixeira Lopes
(Monumento a Bento Gonçalves); Humberto Campinelli (Monumento ao Brigadeiro José da Silva Paes e
Monumento ao Imperial Marinheiro Marcílio Dias) e Cardoso e De Angelis (Monumento ao Barão do Rio
Branco).
315
SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 64.

95
Da Rua ao Teatro

elegância, como o canto, a declamação e a dança”, e que, praticamente, restringiam-se a


esse sexo.316
O século XX assistiu ao nascimento do ballet moderno com a criação dos
Ballets Russes onde despontavam geniais bailarinos como Anna Pavlova, Tamara
Karsavina, Vaslav Nijinski e outros, que fascinavam o mundo com seus movimentos. A
freqüência de afamados artistas e companhias de ballet internacionais nos palcos do Rio de
Janeiro, São Paulo e das metrópoles platinas - a saber: Loie Fuller (a verdadeira criadora
da danse serpentinée), Ballets Russes, Felyne Verbist, a inovadora Isadora Duncan, a diva
Anna Pavlova, Josephine Baker (a “Vênus de Ébano”) etc. - estimulou, igualmente, o
desenvolvimento da arte coreográfica no Rio Grande do Sul, percebido, sobretudo, a partir
da segunda metade da década de 1920. 317
Neste sentido, segundo Paulo Moritz e Antônio Corte Real, a primeira
experiência porto-alegrense data de 1925 por um conjunto de amadores denominado
Troupe Regional formado por ex-alunas de escolas germânicas mantidas pela Sociedade
Alemã de Beneficência. Nessa ocasião foi apresentada a fantasia Contos de Fadas
coreografando temas de Mozart e Grieg, sob a direção artística de Nenê Bercht. Mais
tarde, juntamente com Mina Black-Eckert na assistência técnica, Bercht fundou o Instituto
de Cultura Física objetivando “a cultura sistemática do corpo, o desenvolvimento de suas
funções físicas e sua educação estética”. Em 1928 o espetáculo de apresentação dos cursos
da instituição constava de números de ginástica acrobática e rítmica; movimentos plásticos
e estudos de expressão e de números coreográficos.318
Nos Anos Trinta o culto da dança cênica se intensificou em Porto Alegre
através da fundação de escolas de duas bailarinas locais, egressas daquele instituto, a
saber: Lia Bastian Meyer (1930) e Tony Seitz Petzhold (1934).319
Entre as precursoras no ensino da dança na Zona Sul do Estado, estão
Madge Lawson em Rio Grande e Baby Nunes de Souza em Pelotas. Em suas cidades elas
possuíam cursos de “ginástica rítmica e danças clássicas”. A primeira apresentação que
faço registro da escola de Lawson remonta a dezembro de 1928 e ao palco do Politeama
Rio-Grandense.320 O primeiro recital do curso de Nunes de Souza realizou-se em 1933 no
Teatro Sete de Abril.321
Nas palavras da bailarina Beatriz Batezat Duarte:

Na década de 20 funcionou na cidade, no antigo prédio do Clube do


Comércio, onde atualmente se encontra a Motobrás, a Escola de
Dança de Madge Lawson. Madge, rio-grandina nascida a 15 de março
de 1904, foi estudar num colégio em Londres, na Inglaterra,
freqüentando [...] aulas de dança. Ao retornar a Rio Grande, passou a
ministrar aulas de ballet [...]. Dos espetáculos apresentados

316
ARAÚJO, op. cit., p. 313.
317
Cf. MENDES, Miriam. A Dança. São Paulo: Ática, 1985. SUCENA, Eduardo. A Dança Teatral no
Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Artes Cênicas/Ministério da Cultura, 1988.
318
MORITZ, Paulo A. Dança. In: DAMASCENO, Athos et alii. O Teatro São na Vida Cultural do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: SEC, 1975. p.283. CORTE REAL, Antônio. Subsídios para a História da
Música no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Movimento, 1984. p. 184-192.
319
SUCENA, op. cit., p. 486,487.
320
RIO GRANDE. Rio Grande, 4 dez.1928.
321
ECHENIQUE, Guilherme. História do Teatro Sete de Abril, de Pelotas. Pelotas: Globo, 1934. p. 94.

96
Da Rua ao Teatro

destacaram-se: O Especto da Rosa, L’après-midi d’un Faune, Pierrot e


Colombina.322

Frente à débil estrutura do ensino da dança no país, as primeiras


profissionais no Estado obrigavam-se à viagens de estudos e aperfeiçoamento nos grandes
centros europeus do ballet.
Para a história da dança no Rio Grande do Sul, o decênio de 1930 foi
“decisivo e muito importante, [tanto] para a formação de público, [quanto para] a fixação
de valores que, daí por diante, iriam animar os saraus coreográficos e contribuir de
maneira eficaz à revelação do repertório clássico e contemporâneo”.323

3.6 - MÚSICA

Construída por D. João VI, a Capela Real, com sua orquestra, coro e cantores
italianos castrati,324 transformou-se em Capela Imperial após a Independência. O
desenvolvimento da vida urbana e o brilho dos saraus determinaram a “laicização” e o
crescimento da música no Brasil. Seguiram-se na capital do país a Sociedade Beneficente
Musical (1833), o Conservatório de Música (1847) transformado em Instituto Nacional de
Música (1890), a Filarmônica Brasileira (1841),a Academia Imperial de Música e Ópera
Nacional (1857) transformada em Ópera Lírica Nacional (1860) e outras instituições, com
destaque para o Clube Beethoven (1882).325 A Corte, enquanto sede da Monarquia,
instalada na cidade mais europeizada do país reproduzia em seus festivos salões o estilo de
vida da alta sociedade parisiense do Segundo Império francês, onde não faltava o gosto
pela música. Sob o mecenato do imperador a música profana atingiu no Brasil seu
esplendor.326 Servindo de exemplo à toda a nação, os ecos da Corte se propagavam pelos
domínios de Pedro II.
No Rio Grande do Sul, o desenvolvimento da arte musical relacionou-se,
grandemente, com a contribuição cultural dos imigrantes germânicos e italianos.
Uma das primeiras instituições musicais da Província parece ter sido a
Sociedade Musical Porto-Alegrense fundada em 1856.327 Seqüencialmente surgiram as
bandas musicais União Brasileira, Firmeza e Esperança (1866) e a Euterpe; a Sociedade
Musical Filarmônica Porto-Alegrense (1880); a Sociedade Musical Carlos Gomes (1882);
a Estudantina Porto-Alegrense (1888) e o Instituto Musical de Porto Alegre (1896)

322
DUARTE, Beatriz B. Dança, Poesia em Movimento – sua memória, através da análise histórico-fotográfica
(Rio Grande: 1940-1990). Pelotas: UFPel, 1997. p. 14. (Monografia de Especialização).
323
MORITZ, Dança, op. cit., p. 288.
324
A presença desses cantores na Corte Joanina, foi registrada com surpresa pelo francês J. Arago, em sua
obra intitulada Promenade Autour du Monde, Paris, s/d, I, p. 115. (Apud. FREYRE, Sobrados..., p. 459.)
325
AZEVEDO, op. cit., p. 454-456.
326
Nas palavras de Fernando de Azevedo “era, de fato, grande, no Império, o número de jovens que vinham
para o Rio de Janeiro ou eram enviados à Europa para fazer estudos a expensas de D. Pedro II que ao sistema
de D. João VI, - o de contratar missões artísticas e culturais para o Brasil - , preferiu sempre o de mandar os
artistas aperfeiçoar estudos no estrangeiro”. Destes estudantes, o compositor Carlos Gomes (1836-1896), foi
o que obteve maior notoriedade. (AZEVEDO, op. cit., p. 475. Cf. ANDRADE, Mário de. Compêndio de
História da Música. São Paulo: L. G. Miranda, 1936.)
327
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.34.

97
Da Rua ao Teatro

rebatizado de Club Haydn (1897). Na virada do século surgiu a nova Sociedade Musical
Porto-Alegrense (1900). Em 1908 foi fundado o Conservatório de Música, integrante do
Instituto Livre de Belas-Artes do Rio Grande do Sul, oferecendo cursos de Teoria Musical,
Solfejo e Canto Coral, Canto ou Instrumentos Musicais, Harmonia e Composição Musical.
Nos Anos Dez foram criados o Instituto Musical de Porto Alegre (1913) e o Instituto
Brasileiro de Piano (1917) transformado em Conservatório Mozart (1933). O decênio de
1920 presenciou a fundação da Banda Municipal de Porto Alegre (1925) e da Sociedade de
Concertos Sinfônicos (1927). Objetivando o culto da música coral e operística, surgiu em
1930 o Orfeão Rio-Grandense.328 Na Pelotas do século XIX destacavam-se, entre outras,
as sociedades musicais Club Beethoven, Euterpe e Filarmônica Pelotense, a Orquestra de
Ocarinistas Pelotenses e as bandas Lira Pelotense, União, Santa Cecília, Carlos Gomes,
Satelina, Apolo. Por iniciativa privada, fundou-se em 1918 o Conservatório de Música
daquela cidade. Em 1921 Bagé ganhou seu Conservatório de Música estabelecido por
iniciativa do Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul, tendo transformado-se em
Instituto Municipal de Belas-Artes em 1937.329

∼ ∼∼
Em Rio Grande as atividades musicais apresentavam-se mais cuidadas que
as belas-artes e a dança. Ao longo do Oitocentos muitas formações são registradas atuando
em variados ambientes sociais: Banda Musical Rio-Grandense (1865), Sociedade Musical
Lira Artística (1872), Sociedade Musical Floresta Rio-Grandense (1874), a Banda do
Clube Saca-Rolhas (1887), Sociedade Musical Duas Coroas (1888), Banda Gioachino
Rossini (1890), Club Musical Carlos Gomes (fundado em 1894), Grupo Musical
Mercadante (1895).330
A imprensa local informa que em janeiro de 1902 as sociedades pelotenses
Recreio Operário e União Democrata em visita a suas co-irmãs locais foram recebidas
pelas bandas musicais Floresta Rio-Grandense, Duas Coroas, Fanfarra Garibaldi, Lira
Artística, Santa Cecília e a da União Operária. O primeiro lustro do século XX também
registrou a Estudantina do Clube Caixeiral - conjunto orquestral composto,
principalmente, por instrumentos de cordas (violões e bandolins), a Sociedade Musical
Apolo (fundadas em 1903), a Banda Musical do Círculo Pietro Mascagni (fundada em
1904) e o Grupo das Safiras: fundado em 1905 era composto por moças e objetivada dar
concertos vocais e instrumentais em residências particulares.331
Em 1920 os músicos Guilherme Halfeld Fontaínha e José Corsi fundaram
em Porto Alegre o Centro de Cultura Artística do Rio Grande do Sul, destinado a

328
Um dos importantes espaços musicais de Porto Alegre era o Auditório Araújo Viana, construído na
década de 1920, onde realizavam-se freqüentemente retretas públicas.
329
Contexto histórico elaborado a partir de: DAMASCENO, Palco..., op. cit., passim. CORTE REAL, op.
cit., passim. CARO, Herbert. Concertos e Recitais: 1900-1973. In: DAMASCENO et alii.. O Teatro..., op.
cit., p. 299-400. CALDAS, Pedro H. História do Conservatório de Música de Pelotas. Pelotas: Semeador,
1992. p. 17-26. MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas. Pelotas: UFPel/Livraria mundial, 1993. p. 155.
ROCHA, Cândida I. Madruga da. Um Século de Música Erudita em Pelotas: 1827-1927. Porto Alegre:
PUCRS, 1979. (Dissertação de Mestrado).
330
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, jan.1941–dez.1950.
331
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, jan.1941–dez.1950.

98
Da Rua ao Teatro

incrementar o interesse pela arte musical por meio da criação de conservatórios de música
no interior do Estado e a promoção de concertos e recitais realizados por artistas nacionais
e internacionais de renome. Já em 1921 a instituição tinha patrocinado a instalação de seis
escolas “guiadas com carinho, regidas pelos mais severos processos didáticos,
constituindo-se em cada localidade, em verdadeiros centros de cultura musical.”332
Desta iniciativa decorreu a fundação do Conservatório de Música de Rio
Grande, instalado no pavimento superior do amplo edifício que abrigava o Clube
Beneficente de Senhoras, situado à rua Carlos Gomes, n.o 585 que, arrendado à
Municipalidade, sofreu diversas adaptações às novas necessidades.333 Sua inauguração
deu-se em 1o de abril de 1922, com um concerto de apresentação dos professores da novel
instituição: o violinista Siemed Marra acompanhado ao piano por Alice Brito; o pianista
Tasso Corrêa e o cantor Andino Abreu, aos quais a “assistência aplaudiu, com vivo
entusiasmo.”334
Subvencionada pela Intendência Municipal a escola era “mantida e dirigida
pelo Centro de Cultura Artística, tendo por fim a difusão de uma verdadeira cultura
musical, acessível à mocidade e o preparo de candidatos a exames e ao professorado,
formando bons musicistas e elevando o diletantismo musical a um nível de perfeição tanto
quanto possível.”335 A direção do conservatório ficou sob a responsabilidade do professor
Tasso Bolívar Dias Corrêa até 1923 quando assumiu o cargo o professor Heitor Figueira
de Lemos (1924-1950).336

FOTO 13 – Cartão postal apresentando o edifício do Conservatório de Música de Rio Grande, na década de
1920. Editora Pitombo Lima. Atualmente, a pomposa parte superior deste frontispício eclético encontra-se
completamente descaracterizada, pouco dela restando.
Extraído de: BITTENCOURT, Ezio. O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande: 1922-1954. Rio
Grande: FURG, 1993. p. 8. (Monografia de Graduação)

Desde sua fundação a instituição ofereceu os cursos de Teoria e Solfejo,


Piano, Violino e Canto. O Conservatório passou a preencher uma lacuna na sociedade
local, tornando-se núcleo irradiador da cultura musical, regulando o ensino público da
música, incentivando o prazer da arte e formando profissionais que atuavam nos mais
variados ambientes: cine-teatros, rádio-teatros, cinemas (já que as películas não eram
sonoras), cafés, salões, residências, cabarets, igrejas, praças, cemitérios, etc. Muitos foram
os compositores, regentes e professores que nele realizaram seus estudos. Em seu auditório
a instituição promovia, periodicamente, concertos e recitais com artistas famosos em
excursão pelo Estado e a audição anual dos alunos. Todavia como este não possuía muitas
localidades, tornava-se freqüente a utilização dos espaços teatrais da cidade por ocasião de
grandes espetáculos.

332
Transcrição do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre reproduzido no Jornal Rio Grande, de Rio
Grande em 25 de outubro de 1921. CORTE REAL, op. cit., p. 294.
333
RIO GRANDE, Rio Grande, 19 jan. 1922.
334
ATA da sessão solene de inauguração do Conservatório de Música de Rio Grande em 1o de abril de 1922.
335
RIO GRANDE. Rio Grande, 11 jan. 1922.
336
BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit.

99
Da Rua ao Teatro

Em estudo intitulado O Conservatório de Música da Cidade de Rio Grande


(1922-1954) apresento os números referentes as matrículas dos alunos da escola.337 Aqui
reproduzo o contingente discente matriculado nos Anos Vinte e nos Trinta, nos cursos
oferecidos:

TABELA 3

Década Alunos Teoria e Solfejo Piano Violino Canto


1922-1929 507 443 412 60 24
1930-1939 684 505 560 112 26
Total 1.191 948 972 172 50

De 1922 a 1939 a instituição registrou 1.191 alunos matriculados; desses


1.042 eram mulheres e 149 eram homens. O curso de Teoria e Solfejo era o que possuía o
número mais elevado de alunos, num total de 948 estudantes (822 mulheres e 126
homens). O curso era praticamente obrigatório, sendo dispensados somente os alunos com
formação na disciplina obtida em aulas particulares e comprovado aprendizado. Nesse
período, 134 alunos foram liberados do referido curso. O curso de Piano era o mais
procurado dentre os instrumentais, perfazendo um total de 972 alunos (919 mulheres e 53
homens), seguido pelo de Violino com 172 alunos (83 mulheres e 89 homens) e pelo de
Canto com 50 estudantes, exclusivamente, do sexo feminino.338

GRÁFICO 1 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Por curso. Década
de 1920.
Extraído de: BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit., p. 15.

GRÁFICO 2 - Efetivo de matrículas de alunos do Conservatório de Música de Rio Grande. Por curso. Década
de 1930.
Extraído de: BITTENCOURT, O Conservatório..., op. cit., p. 15.

Em quase todos os cursos oferecidos pelo Conservatório, e de uma forma em


geral, a grande freqüência feminina correspondia às alunas entre os 15-19 anos seguido
pelas de 10-14 anos de idade. Uma exceção é observada no curso de canto, onde a maior
freqüência incidia na faixa etária dos 15-19 anos seguida da dos 20-24 anos de idade. O
público masculino, numericamente inferior, comportava-se de forma distinta: predominava
a faixa etária dos 10-14 anos seguida dos 15-19 anos de idade. Em síntese, a população
freqüentadora, apresentava-se maciçamente jovem em ambos os sexos.
A aceleração das relações capitalistas de produção no Brasil, decorrente da
Primeira Guerra Mundial, da Crise de 1929 e da Revolução de Trinta, impôs novas e
crescentes exigências culturais, quantitativa e qualitativamente. Intensificando-se a

337
Ibid. Este levantamento foi realizado a partir de uma pesquisa direta nas atas de matrículas dos alunos da
escola, estendendo-se até o ano de 1954.
338
É interessante notar que o canto masculino só foi desenvolvido no Conservatório durante a década de
1940, entre os anos de 1944 e 1948 contando com 11 alunos, estando cerca de 70% destes entre os 15-19
anos, 20% entre os 10-14 anos e 10% entre os 25-29 anos de idade. (Cf. BITTENCOURT, O
Conservatório... , op. cit., p.12.)

100
Da Rua ao Teatro

comercialização dos produtos da cultura as criações artísticas se tornaram rendosas


mercadorias e seus produtores transformaram-se em trabalhadores. O amadorismo foi
substituído pelo profissionalismo, auferindo um novo status social àqueles que nas artes
tinham seu sustento. Cresceu o número de artistas oriundos das camadas populares e com
eles novas manifestações mais próximas de nossa gente.339
Antes da fundação do Conservatório, o ensino da música em Rio Grande era
ministrado através de aulas particulares em residências, clubes sociais (destacando-se a
Sociedade Instrução e Recreio) ou em estabelecimentos de ensino regular, sendo a
formação musical considerada essencial na constituição da boa educação, sobretudo das
meninas pertencentes às classes economicamente privilegiadas.340 Sem dúvida, um dos
fatores que muito limitava o acesso ao aprendizado da música era, a aquisição dos
instrumentos musicais. Por outro lado, o contato contínuo do público com grandes
companhias líricas, obras dos mais célebres compositores e famosos artistas do ramo,
fomentava o interesse pela arte e a formação de uma sensibilidade específica, necessária ao
seu fruir.
Nas palavras de Damasceno:

Companhias de Óperas e Companhias de Operetas que no século XIX


[e primeiros decênios do XX] visitaram nossas principais cidades -
Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas - brindaram-nos com alguns
professores de música e canto. Fosse porque essas companhias às
vezes aqui se dissolvessem, em virtude de dificuldades, devidas menos
à falta de receptividade local para espetáculos de gênero do que a
competições, atritos e desajustes de seus quadros e que nestas bandas,
coincidindo com a terminação de contratos, se extremavam e vinham à
tona, fosse porque as condições do meio já então facilitasse e
ensejassem o emprego lucrativo de aptidões daquela ordem - o certo é
que vários figurantes de tais conjuntos aqui abandonariam o teatro
[lírico] e, radicando-se entre nós, acabariam exercendo com proveito
o magistério, tanto público, quanto particular.341

O comércio de instrumentos e de partituras musicais alimentava as


necessidades locais para o desenvolvimento musical. Nesse sentido, tornou-se fundamental
o surgimento do gramofone. Graças a esse aparelho – que adquiriu grande popularidade
nos saraus dos Anos Vinte, com seus discos de 78 rotações - abriu-se a possibilidade de
acesso imediato às obras dos grande compositores e a rápida formação de uma discoteca,
comparável às coleções de músicas de qualquer monarca europeu do século XVIII. Se os

339
O desenvolvimento da técnica e dos meios de comunicação de massa promoveu uma estandartização da
cultura, que intensificou-se após a Segunda Guerra Mundial, divulgando a chamada mass culture. (Cf.
SODRÉ, op. cit., p. 63,64,70,75).
340
O aprendizado do piano tornava-se um indicador de status. Visto como um dos símbolos materiais da
elevação cultural, a aquisição do instrumento e sua entronação na sala de visitas constituía-se numa prática
corrente entre os mais prósperos. Ao piano, as moças burguesas exibiam-se nos saraus executando melodias
românticas e “civilizadas” de Chopin, Schumann e outros compositores europeus.
341
DAMASCENO, Artes..., op. cit., p. 282-283.

101
Da Rua ao Teatro

anos do Entre-Guerras (1919-1938)342 colocaram o gramofone e os discos ao alcance das


massa foi, sem dúvida, o rádio, utilizando-se destes e enquanto poderoso meio de
comunicação de massa, o verdadeiro responsável pela ampliação do contato da população
com o universo da música. Das artes, sem dúvida, ela foi a mais afeta pelo aparelho, que
definitivamente a introduziu na vida cotidiana das pessoas. A técnica moderna e a
indústria aumentaram significativamente as possibilidades de lazer urbano e produziram
uma verdadeira socialização e estandartização da arte e da cultura nos moldes burgueses.
Em nosso país, a radiodifusão foi a grande responsável pela propagação da música popular
brasileira, como também o foi em todo o mundo utilizada para a publicidade comercial e a
propaganda política.343
Em 1928 o Grêmio Lusitano inaugurou sua “tuna” - grupo musical
organizado por estudantes.344

~~~

Incontáveis são os nomes relacionados às atividades musicais em Rio


Grande345; todavia, merecem especial homenagem os maestros José Faini (1866-1949)346,
Antenor de Oliveira Monteiro (1872-1948)347, Hermínio de Morais (1883-1935)348 e a

342
A expressão “Entre-Guerras” é utilizada para nomear o período existente entre a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial. Freqüentemente, referencia, também as décadas de 1920 e 1930.
343
É justamente a partir de 1932, quando o governo permite a veiculação de propagandas no rádio que este,
voltando-se para um público mais amplo, passou a dar especial atenção a música popular brasileira:
notadamente ao samba e a marcha. Nesse quadro ascendeu a Rádio Nacional que, em 1940 encampada pelo
Estado Novo, passou a servir-lhe de meio de publicidade. No mesmo ano foi criado o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) promovendo o governo e controlando, através de rígida censura, toda a
imprensa e os meios de comunicação em geral.
344
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., p. 113. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande,
Rio Grande, 3 dez. 1945.
345
Um dos mais antigos professores de música da cidade foi o espanhol Miguel Ravassa (1804-1874). O
século XIX também registrou os nomes do professor Bernardino de Barros (1833, na regência da orquestra
do Teatro Sete de Setembro); professor de flauta Acilles Malavassi (1855), dos maestros José Maria Gomes
(1856), Cardim (1862, na regência da orquestra do Sete de Setembro), Giuseppe Vignoli (radicado na cidade
em 1865, aqui faleceu em 1892), do professor de violino Eduardo Cavalcanti e de outros mais. (M.P.F.J.
Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande, Rio Grande, 21 abr. 1944; 29 jul. 1942; 2 mar. 1945; 20 nov.
e 30 ago. 1943.). Os prospectos informativos dos vários espaços teatrais existentes na cidade no período de
1920 a 1940 revelam muitos nomes observados na regência de orquestras e conjuntos musicais atuando
nestes ambientes: Mário Silva (1920); Eloy Celis (1920); Lili Schmidt Tavares (1922, na orquestra do Cine-
Teatro Guarani); Humberto Casella (1928, na regência da orquestra do Politeama Rio-Grandense); Adolfo
Corrêa (1930); Ângelo Tagnin (1930, na regência da orquestra do Teatro Sete de Setembro); Rafael Mugica
(1932); Manoel Mendes (1932); Maciel Gomes da Silva (1932, na orquestra Estrela do Sul); José Dias de
Souza (1932, na orquestra do Grêmio Lírico Dramático Guarani); Arlindo Ávila (1933, regendo o Choro
Liberal); Adélia Piragine (1935, na regência da orquestra da Troupe Beira-Mar) e seu filho Luiz Nélson, o
conhecido “Maestro Piragine” (1935, na regência do Jazz de Ouro); Andercídio Faria (1935, na regência do
Jazz Sem Rival); Henrique Pires (1939, na regência do Jazz Namorados da Lua); Eduardo Gordilho; Clarício
Silva; Antônio Gomes; etc. (COLEÇÃO de Prospectos de Espaços Teatrais. Arquivo Coriolano Benício.
Centro de Documentação Histórica Prof. Hugo Neves. Universidade do Rio Grande, Rio Grande.)
346
O maestro italiano José Faini dedicou-se ao ensino da música em aulas particulares e no Conservatório de
Música. Deixou-nos vasta obra musical em que se contam peças para canto, violino, piano, corais, música de
câmara (trios, quartetos, e quintetos) e quatro missas solenes para coro e orquestra. É autor da música do hino
da Cidade do Rio Grande.
347
Um dos maiores intelectuais rio-grandinos foi professor, historiador, conferencista, poeta, jornalista,
cronista, teatrólogo e musicólogo. Lecionou por anos violino, bandolim, teoria e solfejo, realizando com seus

102
Da Rua ao Teatro

professora Valeska Inah Emil Martensen349, por suas produções artísticas e, sobretudo,
pelos valiosos serviços prestados em prol do desenvolvimento cultural da cidade,
notadamente na organização de vários espetáculos públicos com os talentos locais.

FOTO 14 – Concerto local realizado em dezembro de 1927 no Cine-Teatro Carlos Gomes, em benefício da
Santa Casa de Rio Grande. Cenários de Bastos Guerra. No palco, o Coro das Fiandeiras, da ópera Navio
Fantasma, de Wagner. Da esquerda para a direita: Inah Emil Martensen, Merguerite Barcelane, Hortência
Llopart, Olga Levinsohn, Irene Kraft, Nair Nobre, Ercília Tavares, Suzana Klinger, Marina Ennes, Alice
Llopart e Stella Cramer.
Extraído de: Fototeca do Centro Municipal de Cultura “Inah Emil Martensen”. Rio Grande.

3.6 - DRAMATURGIA

Durante o século XIX muitos foram os amantes da literatura seduzidos pela


dramaturgia. Todavia, raros foram os dramas e as comédias impressos, gerando por anos,
uma idéia injusta de que as letras cênicas pouco desenvolveram-se no Rio Grande do Sul.
Se muitas dessas peças perderam-se no tempo, os periódicos de época e os prospectos dos
teatros revelam inúmeros títulos e autores.
Por iniciativa do rio-grandino Apolinário Porto Alegre, fundou-se em 1868
na capital da Província o Parthenon Literário, importante instituição cultural, constituída
por quase uma centena de sócios agrupando escritores renomados como também
beletristas desconhecidos. A sociedade promovia saraus literários e espetáculos teatrais,
incentivando entre seus associados o cultivo das letras cênicas e estimulando o teatro
amador. Sua ação rapidamente irradiou-se pelas principais cidades do Rio Grande do Sul,
estimulando o aparecimento de sociedades dramáticas, autores e atores regionais.350

alunos diversas audições públicas em teatros e clubes. Em seu legado musical destacam-se várias obras:
hinos; peças religiosas; composições para piano e violino; músicas para revistas teatrais, operetas (Eva, Amor
de Príncipe, Geise, I Gramatieri e Mimi, de Iráclito Dias e Pecado de Luizinha, de Frederico Carlos de
Andrade); canções sertanejas; polcas para bandas musicais; mazurcas para instrumentos de sopro e percusão,
etc. (NEVES, Vultos..., op. cti., p. 49-50.)
348
Maestro, compositor e músico da cidade foi autor da letra e música de várias operetas: Amor de Gaúcho,
A Cruz da Estrada, Mexicanos e Fuzileiros, No tempo da Flora, Visão de Glória.(MARTINS, Ari. Os
Nossos Autores Dramáticos. In: CONGRESSO SUL-RIO-GRANDENSE DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA,
3, Porto Alegre, 1940. Anais... Porto Alegre, Prefeitura Municipal, 1940, v.3, p. 1430.)
349
Professora de canto, foi grande incentivadora do teatro lírico local organizando a montagem de várias
óperas e operetas com suas alunas (O Navio Fantasma, Madame Butterfly, Aída, etc.), assim como concertos
e recitais com repertório clássico e popular.
350
Segundo Damasceno, embora existissem na capital da Província alguns conjuntos teatrais amadoristas
como o Grupo do Teatrinho Particular que atuava na Casa da Ópera (1794-1835) e os Ginásio Dramático e
Teatral Rio-Grandense representando no palco do Teatro D. Pedro II (1838-1857) foi somente com o
estímulo da inauguração do Teatro São Pedro (1858) que “sucessivas sociedades dramáticas particulares
começarão a organizar-se entre nós, dessa feita com todas as possibilidades de vingar, como de fato
vingariam. A primeira delas - a Sociedade Dramática Particular Ginásio do Comércio, data de meados de
1866 [...].” Entre as várias sociedades dramáticas particulares registradas pelo autor em Porto Alegre no
século XIX destacam-se por sua longa periodicidade: a S.D.P. Luso-Brasileira (fundada em 1874); S.D.P.
União Militar (fundada em 1876) e a S.D.P. Filhos de Talia (fundada em 1886). (DAMASCENO, Athos. O
Teatro São Pedro e as Sociedades Dramáticas Particulares da Cidade no Século XIX. In: _______. et alii.
Op. cit., p. 27-45.)

103
Da Rua ao Teatro

A construção de teatros e congêneres em Rio Grande a partir de 1832 -


quando ergueu-se o Teatro Sete de Setembro - viabilizou o desenvolvimento da
dramaturgia na cidade, assim como de uma vasta gama de gêneros artísticos voltados ao
espetáculo.
Devido a sua privilegiada posição geográfica e boa situação econômica no
cenário sul-rio-grandense do século XIX, Rio Grande transformou-se em pólo de atração
populacional e movimentado centro urbano ao sul do país, tornando-se ponto obrigatório
às companhias artísticas em excursão pelo Brasil Meridional e Região Platina e adquirindo
também a qualidade de centro cultural.
A grande freqüência de conjuntos dramáticos nacionais e internacionais,
sobretudo observada a partir da segunda metade do Oitocentos, fomentava o gosto pela
ribalta. A arte dramática apresentava-se como uma das mais importantes formas de lazer,
entretenimento e cultura. Nesse contexto e assim entendida, proliferavam as sociedades
dramáticas particulares locais - verdadeiras escolas da arte da representação - o que
confirma as palavras de Olynto Sanmartin ao dizer que “o ardente amor pela arte
dramática era, até o fim do século passado, verdadeiramente contaminador.”351
Em Rio Grande fervilhavam as sociedades e grêmios dramáticos amadores
que objetivavam, de uma forma em geral, a recreação por meio de diversões teatrais e o
desenvolvimento da literatura dramática nacional. Importante também era o caráter
assistencial de muitas agremiações. Dentre elas estavam:

Sociedade Dramática Particular Recreação Rio-Grandense (1849);


Sociedade Dramática Rio-Grandense (1856);
Sociedade Dramática Particular Harmonia Rio-Grandense (1862);
Sociedade Dramática Particular Talia Rio-Grandense (1862);
Sociedade Dramática Particular Alemã (1864);
Sociedade Dramática Recreio Comercial (1865);
Sociedade Dramática Particular Recreio da Mocidade (1865);
Associação Dramática Juvenil (1866);
Sociedade Dramática Particular Ginásio Familiar (1866);
Sociedade Dramática Talia (1867);
Sociedade Particular Filo-Dramática (1867);
Sociedade Dramática Particular Apolo (1867);
Sociedade Dramática Melpômene (1869);
Sociedade Dramática Particular União Artística (1869);
Sociedade Dramática Particular Luso-Brasileira (1869, formada por empregados do comércio);
Sociedade Particular Fênix Rio-Grandense (1871);
Grêmio Ginásio Dramático (1878);
Sociedade Culto ao Progresso (1879);
Sociedade Dramática Hebe (1879, fundada por comerciários);
Grêmio Dramático do Clube Carnavalesco Boêmios (1880);
Grêmio Dramático Rio-Grandense (fundado em 1885);
Sociedade Dramática Particular Filhos da Talia (fundada em 1886);
Núcleo Dramático Castro Alves (fundado em 1886);
Sociedade Dramática Particular Tentativa (1887);

Em Pelotas salientavam-se “as rivais sociedades conterrâneas Discípulos de Melpômene e Filhos de Talia.”
(ECHENIQUE, op. cit., p. 70.).
351
SANMARTIN, Olyntho. O Teatro em Porto Alegre no Século XIX. In: Congresso Sul-Rio-Grandense de
História e Geografia, 3, Porto Alegre, 1940. Separata dos Anais... Porto Alegre. Prefeitura Municipal, 1940.
p. 55.

104
Da Rua ao Teatro

Grêmio Lírico-Dramático do Clube Saca-Rolhas (fundado em 1887);


Grêmio Dramático do Clube Diógenes (fundado em 1888);
Grêmio Artístico Industrial (1890);
Grêmio Dramático do Clube Recreio Operário (fundado em 1890);
Sociedade Culto à Arte (1892);
Sociedade Dramática Particular Recreio Militar (1898);
Sociedade Dramática Instrução e Caridade (fundada em 1899);
Sociedade Recreio Dramático Militar (fundado em 1900) e outras mais.352

Nas primeiras décadas do século XX renovaram-se as sociedades, surgindo:

Sociedade Dramática União Militar (fundada em 1901);


Grêmio Lírico Dramático do Clube Caixeiral (fundado em 1901);
Grêmio Lírico-Dramático da Sociedade União Operária (fundado em 1902);
Sociedade Dramática João Caetano (fundada em 1904, com sede à rua Riachuelo, n ° 42, 3 °
andar);
Grêmio Dramático do Grupo Carnavalesco Arara (fundado em 1905);
Grêmio Dramático do Clube Carnavalesco Apolo (1905);
Grêmio Dramático da Sociedade União Européia (1905);
Grêmio Dramático dos Estudantes (1905);
Grêmio Dramático do Clube Guarani (fundado em 1905);
Grêmio Dramático Crisântemo (1906);
Grêmio Dramático Colomi (1907);
Grêmio Dramático Rui Barbosa (fundado em 1908);
Grêmio Dramático João Caetano (Fundado em 1909);
Grêmio Dramático do Club Rio-Grandense (1912);
Grêmio Dramático do Sport Club União Vencedor (fundado em 1912, durou cerca de 11 anos);
Grêmio Dramático Artur Rocha (fundado em 1912);
Grêmio Dramático Artur Azevedo (fundado em 1913);
Corpo Cênico Pinto da Rocha (fundado em 1916);
Grêmio Dramático Beneficente Infantil Saca-Rolheiro (1916);
Grêmio Lírico-Dramático João de Saldanha, da Liga Monárquica D. Manoel II (1918);
Grêmio Lírico-Dramático Filhos do Trabalho (fundado em 1919, com sede à rua Vileta (atual
Napoleão Laureano), entre Vitorino e Jataí (atual Dr. Nascimento); etc.353

Nos Anos Vinte e nos Trinta além dos antigos grêmios, observo:

Grêmio Dramático 15 de Novembro;


Grêmio Dramático do Foot-Ball Club General Osório;
Grêmio Lírico-Dramático Cruzeiro;
Grêmio Lírico-Dramático Rio Branco;
Grêmio Lírico-Dramático União dos Amadores;
Grêmio Dramático Germinal (fundado em 1927);
Grêmio Lírico-Dramático Carlos Santos (fundado em 1928);
Grêmio Dramático da Petizada Bracista (fundado em 1929);
Grêmio Cômico-Lírico Filhos do Oriente;

352
Informações obtidas em: MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro - I, II e III. Jornal Rio Grande. Rio
Grande, 19, 21 e 24 ago.1946 e BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de
Antanho. Jornal Rio Grande. Rio Grande, jan.1941-dez.1950.
353
BITTENCOURT, Elementos..., op. cit., passim. M.P.F.J. Fatos e Coisas de Antanho. Jornal Rio Grande.
Rio Grande, jan.1941-dez.1950.

105
Da Rua ao Teatro

Corpo Cênico Gaúcho;


Grêmio Lírico-Dramático Luso-Brasileiro;
Grupo Teatral de Cultura Proletária;
Corpo Cênico do Clube Carnavalesco Anjinhos da Terra;
Corpo Cênico dos Folgados;
Companhia Silva Filho;
Grêmio Lírico-Dramático União Fabril;
Corpo Cênico Irresistíveis (fundado em 1939) e outros.

Nesse período devo, entretanto, salientar a importante atuação do Grêmio


Lírico-Dramático da Sociedade União Operária, da Companhia Lírico-Dramática Guarani
e da Companhia Beira-Mar, que dominavam os palcos locais.354
O Grêmio Lírico Dramático da Sociedade União Operária estreiou em 12 de
abril de 1902 no Teatro Sete de Setembro levando à cena o drama José, do rio-grandino
Artur Rocha.355 O periódico Eco do Sul, em 18 de abril de 1904 assim comentou o
espetáculo em comemoração da fundação do grupo:

No Politeama realizou-se perante avultada concorrência o espetáculo


destinado a comemorar o aniversário de fundação do Grêmio
Dramático da União Operária. Aquela casa de espetáculos
apresentava agradável aspecto, pois foi ornamentada previamente com
gosto e elegância. Dos camarotes pendiam rendilhadas cortinas e
festões de flores, destacando-se diversos escudos com várias
inscrições. O camarote principal - pertencente ao proprietário do
Politeama - estava destinado à imprensa, vendo-se todos os jornais de
Rio Grande na parte superior da grade. Muito agradou a
representação do Sonho, drama aparatoso levado à cena pela segunda
vez, com vestuários adequados à época. Abundantes aplausos e
chamados à cena tiveram os intérpretes amadores.

O Relatório da Presidência da Sociedade União Operária de 1917, revela que


seu grêmio dramático contava com 263 peças entre dramas e comédias.356 A Companhia
Lírico-Dramática Guarani foi idealizada pelo ator, diretor e cenógrafo português Bastos
Guerra. Estreiou no Cine-Teatro Guarani em 6 de janeiro de 1923 com a representação do
drama A Rosa do Adro. Em 15 de janeiro de 1933 o ator e diretor Coriolano Benício
organizou a Companhia Beira-Mar. Adotando inicialmente o nome de Troupe Beira-Mar e
apresentando apenas textos de curta duração, estreiou no palco-salão da Sociedade União

354
Informações obtidas, sobretudo em COLEÇÃO de Prospectos, op. cit.
355
ECO DO SUL. Rio Grande, 14 abr. 1902.
356
Desse montante, somente 14 peças restam, preservadas no Centro de Documentação Histórica, da
Universidade de Rio Grande, e que possibilita análises sobre as temáticas e as abordagens de assuntos de
interesse do operariado rio-grandino. Todas são manuscritos sendo, transcrições de peças ou criações dos
próprios associados. Duas peças não possuem título, as outras denominam-se: Helena, Os Escravos, Morto
Vivo, Os Salteadores da Floresta Negra, Um Mistério de Família, O Poder do Ouro, Divino Perfume, O
José do Telhado, O Empedido do Coronel, Afonso o Operário, Os 20 Botões e Adélia Carré. (PEÇAS
teatrais. Arquivo da Sociedade União Operária. CDH -URG. Rio Grande.)

106
Da Rua ao Teatro

Operária com a peça intitulada Amor Louco e a revista de um ato, Você Vai..., de autoria
de Benício.

FOTO 15 – Integrantes da Companhia Lírico Dramática Guarani. Cenários Bastos Guerra. S.d.
Extraído de: Centro de Documentação Histórica “Prof. Hugo Neves”. Universidade do Rio Grande. Rio
Grande.

A existência de espaços teatrais e sociedades dramáticas sempre dispostas a


encenarem novos textos eram, sem dúvida um estímulo aos beletristas cênicos. Inclusive,
muitos literatos renderam-se à dramaturgia na medida em que ela proporciona uma
experiência coletiva e uma imediata expressividade comunicativa com o público que, por
meio de livros e jornais nunca lhes foi possível. O ato de exercer influxo sobre uma
platéia, é um fato que não deve ser subestimado e que revela o íntimo desejo do homem no
contato direto com o próximo.

∼ ∼∼
Assim deve ser entendido o elevado número de dramaturgos nascidos em Rio
Grande ou que nela residiram, contribuindo para o desenvolvimento das letras cênicas no
Rio Grande do Sul. Compõem a importante lista os nomes de: Manoel José da Silva
Bastos (1825-1861)357, Bernardo Taveira Júnior (1836-1892)358, Apolinário Porto Alegre
(1844-1904)359, Luís Canarin Júnior (1847-1917)360, Artur Rodrigues da Rocha (1859-
1880)361, Revocata Heloísa de Melo (1860-1945)362, Artur Pinto da Rocha (1862-1930)363,

357
Obras: O Castelo de Openheim ou O Tribunal Secreto (1850, drama), A Veneziana em Paris
(1850,drama), A Madrasta (1852,drama), Procurador Zacarias (1852,comédia), Quem Pensa Não Casa
(1856, comédia musicada), Os Brilhantes de Minha Mulher (1857, drama), Um Testamento Falso (1857,
drama), O Primo do Diabo (1858, drama), A Filha do Pescador (1858, comédia), Recordações da Juventude
(1858,comédia), Exemplo de Honra (1858, drama), O Louco do Ceará (1859, drama), Os dois Gêmeos
(1859, comédia), Soldado Martins ou O Bravo de Caceres (1859, drama), Apuros de Uma Noiva (1859,
comédia), Quem Porfia Mata Caça (1860, comédia), Os Homens de Honra (1861, drama). (NEVES,
Vultos...,op. cit., p. 154. MONTEIRO, Antenor. Manoel José da Silva Bastos: Um Dramaturgo Rio-
Grandense. In: Anais..., op. cit., p. 1117-1126.)
358
Obras: Coração e Dever (1862, drama), O Guarda-Livros (1865, drama), A Atriz (1868, drama), Anjo da
Solidão (1869, drama), A Virtude (1869, drama), O Voluntário (1869, drama), Heroísmo Feminino ou Joana
D’Arc Brasileira (1870, drama), Anjo Caído , Celina, Luíza (1870, dramas), A Soberba, Um Usuário.
(NEVES, Vultos...,op. cit., p. 88. MARTINS, Ari. Os Nossos Autores Dramáticos. In: Anais... op. cit., p.
1421.)
359
Obras: Triunfo da Esquadra Brasileira (1865, drama), Caim e Jafet (1868, drama), Sensitiva (1873,
drama), Mulheres (1873, comédia), Os Filhos da Desgraça, Ladrões da Honra (dramas), Iriena, Tobis,
Epidemia Política, Benedito (comédias).(NEVES, Vultos...,op. cit., p. 68. MARTINS, Os Nossos..., op. cit.,
p. 1421.)
360
Obras: O Hóspede (1887, drama), Aspirações Galináceas (1892, fantasia musicada por Hermínio de
Moraes).(NEVES, Vultos...,op. cit., p. 148.)
361
Obras: O Filho Bastardo (1875, drama), Anjo do Sacrifício (1875,drama), Marido Por Meia Hora (1875,
comédia), Esquecido (1877, comédia), José o Distraído (1878, drama), A Procura de Musas (1880, comédia
em parceria com João Moreira), Os Filhos da Viúva (1882, drama), Deus e a Natureza (1882, drama), A
Filha da Escrava (1883, drama), Não Faças aos Outros... (1885, comédia), Não Peças aos Outros (1885,
comédia), Lutar e Vencer (1887, drama), Casamento em Concurso (1887, comédia). (NEVES, Vultos...,op.
cit., p. 85-86. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1424-1425.)

107
Da Rua ao Teatro

Julieta de Melo Monteiro (1863-1928)364, Alexandre Fernandes (1863-1907)365, Alberto


Correia Leite (1871-1898)366, Antenor de Oliveira Monteiro (1872-1948)367, Frederico
Carlos de Andrade (1878-1940)368, João Crisóstomo de Freitas (1882-1950)369, Ernani
Guaragna Fornari (1899-1964)370, Antônio Gomes de Freitas (1899-1946)371, Arnold
Coimbra (1902-1951)372, Érico Cramer (1906-1978)373, Coriolano de Araújo Benício
(1911-1984)374, Guedes Coutinho375, Álvaro Delfino376, Carlos Alberto Minuto377 e outros.
Muitos textos elaborados por dramaturgos locais eram encenados pelas
companhias artísticas visitantes e, por vezes, incorporados aos repertórios de suas
tournées.

∼ ∼∼
362
Obras: Grinalda de Noiva, Mário (1902) e Coração de Mãe (dramas em parceria com sua irmã Julieta de
Melo Monteiro) (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 170. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.)
363
Obras: O Dote da Enjeitada (1885, drama em parceria com Júlio Martins), A Farsa (1903, drama),
Serenata das Flores (1904, drama), Talita (1906, drama), Visões de Colombo (1908, poema dramático), Ave
Maria (1916, drama), A Estátua (1918, drama), O Dilema (1919, drama), Entre Dois Berços (1919, drama),
Sonho de Zagala (drama em versos), O Divórcio (drama), Copo (drama), Guiomar e Samaria (drama em
versos), Vanessa (drama em versos), Contrastes (drama em versos), Sorte Grande (comédia), O Vagabundo
(comédia),O Esqueleto (comédia), A Padeira de Aljubarrota. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 82. MARTINS,
Os Nossos..., op. cit., p. 1426.)
364
Obras: Além das supracitadas em parceria com sua irmã Revocata, compôs Noivado no Céu (1899,
drama), Segredo de Marcial (1900, drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 144. MARTINS, Os Nossos..., op.
cit., p. 1426.)
365
Obras: Grito de Consciência (1895, drama), O Diabo na Beócia (1896, revista em parceria com Sílio
Bocanera Júnior), A Fror da Arta Sociedade (1897, comédia de costumes), O Meio do Mundo (1898,
revista), O Reino do Bicho (1899, revista em parceria com Sílio Bocanera Júnior), Violão na Ponta (1900,
burleta regional), As Areias do Prado (1901, revista), A Batalha dos Pássaros (1902, revista em parceria
com Sílio Bocanera Júnior), Escritores em Pena (1902, burleta), Adélia Carré (1903, drama). (NEVES,
Vultos...,op. cit., p.39.)
366
Sob o pseudônimo de “Mário de Artagão”, escreveu: Janina, Feras à Solta, O Grande Exilado, A Taça.
(MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1426.)
367
Obras: O Preconceito (drama), Procurando Noiva (comédia), Aniversário de Lili (opereta), Maria Rosa
(drama), Me Avisa na Véspera (revista). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.49.)
368
Obras: Clélia (1904, drama), Os Pombos (1906, drama), A Denúncia do Luar (1909, drama), Sangue
(1911, drama), Aguaceiro (1912, comédia), Tá na Hora (1914, comédia), Fim de Baile (1916, comédia),
Ânsias de Poeta (1917, comédia em versos), Pecado de Luizinha (1918, comédia em versos), Stá na Hora
(1916, burleta). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.126. O TEMPO. Rio Grande, 16 abr.1940.)
369
Obras: Apostolado da Liberdade (1901, drama), Elenora (1903, drama), O Vigário de Monteli (1904,
drama), Jacques (1905, drama), Celibatários (1910, drama), O Diabo (1914, drama), Ódio Velho (1915,
drama). (NEVES, Vultos...,op. cit., p.133.)
370
Obras: Nada (1937, comédia), Iaiá Boneca (1938, comédia), Sinha Moça Chorou (1940, drama) e outras
obras no decênio de 1950. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 120. MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1429.)
371
Obras: A Cavalgada dos Farrapos, Boa Alma, Eterna Chama, O Sinhô, O Dragão, Estrada Sombria ,
Dor D’Alma , A Verdade, Nossa Senhora de Joelhos, Triaga, Amor de Apache (dramas), Trigre na Gaiola,
Amigo é Amigo, Uma Escola na Roça (comédias). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 55.)
372
Obras: Uma Viagem no Inferno (1940) e várias outras peças nos decênios de 1940 e 1950. (NEVES,
Vultos...,op. cit., p. 78.)
373
Obras: Solar dos Alvarengas (1937, novela radiofônica), Recordar é Viver (1939, comédia) e grande
produção teatral nas décadas posteriores. (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 118.)
374
Obras: Ride Palhaço, Nós Somos da Pária Amada (comédias). (NEVES, Vultos...,op. cit., p. 200.)
375
Obras: A Greve, René, Mostrando o Caminho.
376
Obras: Almas Farroupilha, Mocidade. (MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p. 1431.)
377
Obras: O Perdão da Órfã, Almas Opostas, Para Sua Felicidade. (MARTINS, Os Nossos..., op. cit., p.
1430.)

108
Da Rua ao Teatro

Através do material informativo da programação dos espaços teatrais dá-se o


acesso aos nomes de diversos atores integrantes das sociedades e grêmios dramáticos
locais nos decênios de 1920 e 1930. Entre os amadores locais seduzidos pelos momentos
efêmeros da ribalta, estavam: Bastos Guerra, Silvino Pellegrent, Waldemar Porto,
Boaventura Fernandes, Carlos Vitória, José Vitória, Álvaro Bittencourt, Coriolano
Benício, Álvaro Porto, Leopoldino Marques, Gervásio Dias, Argeu Silva, Afonso Paes,
Antônio Freitas, Álvaro Nobre, Mário Silva, Rômulo Coutinho, Fausto Cruz, Pedro
Grellet, João B. Costa, Osmar Batista, Antônio Freitas, etc. No plantel feminino brilham as
atrizes Ondina Guerra, Aurora da Silva Nunes, Nilsa da Silva Nunes, Dorvalina Medeiros,
Nair Pires, Nilsa Molina, Olga Alves, Zulma Ferreira e Iracema Batista, entre outras.
Iniciando carreira de forma amadorística em grupos locais, alguns atores de
destacado talento, ingressaram em importantes companhias artísticas nacionais que se
apresentavam na cidade, profissionalizando-se na arte e obtendo projeção nos palcos fora
do Estado e por todo o país. Este é o caso de Esnard Fonseca, Roberto Piragine, Alberto
Lopes, Eufrides Porto, Severo Lemos, Tupi Costa, Carlos Hailliot, Herculano Ribeiro,
Procópio Neto, Luiz Bittencourt e Jurema Magalhães.
Alcançando o ano de 1943, a cidade de Rio Grande contava com 7
agremiações de diferentes manifestações culturais.378
Diversos foram os gêneros teatrais e múltiplas as formas cênicas levadas ao
público rio-grandino. Desde dramas e comédias populares até óperas e ballet a sociedade
local ao longo de sua história conviveu com significativa movimentação artístico-cultural.
Famosos atores e atrizes nacionais e internacionais representando os mais
variados textos dramáticos; companhias líricas com suas prima donas, cantores populares,
vedettes sensuais, importantes orquestras... Nesse ambiente fértil às artes cênicas
situavam-se as inúmeras sociedades dramáticas, os conjuntos musicais e uma infinita gama
de profissionais e amadores relacionados ao setor dos espetáculos da cidade. Em minha
exposição procurei resgatar esse contingente.
Os espaços teatrais, notadamente os teatros, cine-teatros e sociedades
possuidoras de palco, ao mesmo tempo em que constituíam-se em agentes estimulantes ao
desenvolvimento artístico-cultural da sociedade forjavam seu próprio público consumidor
de lazer, cultura e entretenimento; fiel e sensível à decodificação das diferentes linguagens
cênicas às épocas e em devir.
A revelação arquitetônica e estética desses espaços constitui-se no capítulo
seguinte.

378
PIMENTEL, op. cit., p. 536.

109
Da Rua ao Teatro

__________ 4 __________
O ESPAÇO TEATRAL:
SEUS USOS, IMAGENS & SIGNIFICADOS

4.1 - IMAGENS E HISTÓRIA

Atualmente, “todo vestígio legado pelo passado é potencialmente admissível


como evidência para o historiador”.379 Cada vez mais os profissionais da história estão se
voltando para o material visual como forma de compreender o passado.
Os historiadores utilizam as imagens de várias formas, quer como mera
ilustração, documento narrativo, auxílio à memória, substituto de elementos revelados
através delas, intérpretes do trajo, do gosto, da moda, dos costumes, dos valores... de uma
sociedade em um determinado espaço-temporal.
A fotografia é uma importante marca cultural de um período, tanto pelo
passado ao qual nos remete, mas também e, principalmente, pelo passado que traz à tona.
Conforme Ciro Cardoso e Ana Mauad:

Um passado que revela, através do olhar fotográfico, um tempo e um


espaço que fazem sentido. Um sentido individual que envolve a escolha
efetivamente realizada; e outro, coletivo, que remete o sujeito à sua
época. A fotografia, assim compreendida, deixa de ser uma imagem
retida no tempo para se tornar uma mensagem que se processa através
do tempo, tanto como imagem/documento quanto como
imagem/monumento.380

Vista como documento, a imagem fotográfica revela aspectos da vida


material de uma determinada época, que a mais detalhada descrição verbal não daria conta.
Como diz o ditado popular: “uma imagem vale mais que mil palavras”. A fotografia pode
ser apreendida também como monumento: “aquilo que no passado, a sociedade queria
perenizar de si mesma para o futuro”.381 Neste caso, constitui-se em “agente do processo

379
GASKELL, Ivan. História das Imagens. In: BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História. São Paulo:
UNESP, 1992. p.267.
380
CARDOSO, Ciro F.; MAUAD, Ana M. História e Imagem: Os Exemplos da Fotografia e do Cinema. In:
CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.406.
381
Ibid., p.406-407.

110
Da Rua ao Teatro

de criação de uma memória que deve promover tanto a legitimação de uma determinada
escolha quanto, por outro lado, o esquecimento de todas as outras”.382
As imagens visuais uma vez historicamente contextualizadas possibilitam a
obtenção das mais variadas informações sobre as antigas sociedades. Para tanto, a análise
deve ir além da pura visibilidade, buscando seu significado mais amplo.
As fotografias de época revelam o passado capturado através de imagens
instantâneas, variavelmente fortuitas, impregnadas do Esprit du Temps, plenas de
significações culturais. Ao trabalharmos com imagens fotográficas não podemos deixar de
ter sempre em mente que elas não são “transparências” do passado nem registros
imparciais da realidade. A idéia do “olho inocente” não é mais defensável. A câmera é
sempre uma presença intrusa e o fotógrafo um elemento participante. É importante termos
igualmente consciência de que as imagens revelam, mas também ocultam elementos, daí
sua ambigüidade, riqueza e fragilidade.383
Apresentando-se como importante fonte de pesquisa, a fotografia deve ser
entendida como imagem visual das coisas registradas, uma ilusão do real, não o real. Seu
poder de convencimento advém muito mais de sua forte eloqüência do que de sua
veracidade. A imagem visual vale-se de uma linguagem diferente das coisas e figuras que
evoca, pois ela não é a coisa representada, mas a utiliza para falar de outras coisas.
Os espaços teatrais focalizados através das visões dos fotógrafos apresentam
múltiplos ângulos e inúmeras leituras: podem ser analisados como espaços produtivos da
cidade, como espaços de sociabilidades, como espaços de civilidade, como espaços
artístico-culturais, como espaços em constantes transformações... Assim apreendida a
fotografia possibilita ver aquilo que não é apenas do domínio do olhar, mas de outros
domínios.
Consciente da importância e implicações da utilização das imagens visuais
no fazer historiográfico, este estudo pretende-se uma análise iconológica.384 Para tanto,
utilizei como fontes primárias, gravura, fotografias e textos literários de época e
depoimentos orais, somados a bibliografia especializada para reconstituir
arquitetonicamente os espaços teatrais existentes em Rio Grande (do final do século XVIII
até a década de 1930) percebendo os significados de suas concepções físicas e estéticas.
Foi somente através da utilização de imagens e relatos que viabilizou-se esse resgate quase
que arqueológico, uma vez que, assim como grande parte do passado arquitetônico da
cidade, os espaços teatrais aqui enfocados atualmente só existem na memória dos mais
antigos, em celulose ou em material fotográfico.385

4.2 - ESPAÇOS TEATRAIS E ARQUITETURA

A palavra teatro deriva do grego theatron, vocábulo que designa “o local


onde se vê.” No decorrer dos tempos esta acepção etimológica sofreu inúmeras mudanças

382
Ibid., p.407.
383
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989. p. 27.
384
Cf. PANOFSKY, Erwin. Significados nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 47-87. PANSO,
Évelyne. L’iconographie et L’iconologie. In: L’Art. Paris: Larousse, 1977.
385
A inexistência de plantas arquitetônicas dessas construções colabora também para a dificuldade da
pesquisa.

111
Da Rua ao Teatro

adquirindo vários significados. Dentre eles o que me interessa nesse momento é o sentido
de espaço arquitetônico destinado à teatralização.
Entendido como condição tipicamente urbana de civilização, um espaço
teatral é um local social onde se desenvolvem atividades cênicas, notadamente, artísticas
e/ou culturais, perante indivíduos voluntariamente reunidos.
Este espaço pode ser teatral desde sua origem, possuindo especificamente a
função de albergar apresentações cênicas (como por exemplo as Casas da Ópera do século
XVIII e os teatros oitocentistas); pode ter sido originalmente teatral, contudo, com o
advento do cinematógrafo adaptou-se à nova arte mas manteve suas atividades cênicas (um
exemplo são os teatros oitocentistas que transformaram-se na prática em Cine-Teatros);
pode ser concebido para espetáculos cênicos e também cinematográficos (exemplifico com
os Cine -Teatros que popularizaram-se nas primeiras décadas do século XX); pode possuir
múltiplas funções, dentre elas a cênica (cito as sociedades recreativas que, muito
comumente durante o século passado e até as primeiras décadas do XX, possuíam em seu
salão de festas um pequeno palco fixo) e pode, outrossim, ser improvisado, destinado em
princípio à outras funções mas, temporariamente, teatralizado por exigência de um
espetáculo (por exemplo tomo um átrio de uma igreja ou uma praça). Além desses, outras
tipificações de espaços teatrais, embora menos freqüentes, encontram registro.
Valendo-se de uma estrutura, antes de tudo, arquitetônica os espaços teatrais
estão intimamente relacionados com a arte de construir.
No dizer de Gillo Dorfles:

até mesmo nas formas mais elementares de espetáculo estabelece-se


quase por germinação espontânea uma espacialidade absolutamente
particular, criada pelo encontro entre o espaço do espectador e o
espaço do ator, entre o universo cênico e o universo do público e,
deste encontro desprende-se aquele equilíbrio, freqüentemente instável
que conduzirá à estruturação sucessiva de uma zona para o auditório
(onde este se possa sentar e ouvir, mais ou menos apartado da cena) e
uma zona isolada sobrelevada, ou de qualquer modo distinta na qual
se possa desenvolver a ação cênica.386

Dessa relação surge a gênese dos diferentes espaços teatrais com suas
infinitas e específicas exigências e atributos arquitetônicos.
Todo espaço destinado à teatralização resulta da concepção das relações que
serão estabelecidas entre os artistas que ocupam a área cênica e o público que preenche o
espaço destinado aos espectadores.
Analisando especificamente concepções arquitetônicas de teatros, Gilles
Girard, Réal Ouellet e Claude Rigault apoiando-se nas idéias de Etienne Souriau
distinguem, basicamente, dois “processos”, dois tipos de espaços: o cubo e a esfera.387
O cubo, corresponde aos teatros de influência italiana. Assenta-se no
princípio de uma nítida separação entre palco e sala; é o frente a frente de dois locais

386
DORFLES, op. cit., p.186-187.
387
Cf. SOURIAU, Etienne. Le Cube et la Sphère. In: Architecture et Dramaturgie. Paris: Flammarion, 1950.
p.63-83.

112
Da Rua ao Teatro

apartados pela ribalta. A Sala dos Espectadores nestas construções apresentam frisas,
camarotes, galerias, balcões, etc. que, segundo Gilles Girard:

acentuam a desigualdade entre os espectadores: por um lado, o


público está dividido em estratos sociais facilmente reconhecíveis; por
outro lado, a disposição da sala em forma de ferradura [...]
transforma-a num segundo local de espetáculo: vai-se ao teatro para
ver mas também para ser visto, para fazer parte do espetáculo.388

Opondo-se a este tipo de teatro está a esfera. O teatro circular389, comum em


fins do medievo europeu, propiciava uma união do mundo fictício do ator com o mundo
real do espectador, na medida em que o local da cena era completamente rodeado pelo
público, constituindo como que um pulsante anel vivo em torno dele. A partir do final da
década de 1940 este tipo de concepção arquitetônica teatral, há muito abandonada, foi
resgatada nos Estados Unidos da América e na Europa como forma de romper o “frente a
frente” de artistas e público. Todavia, o teatro à italiana, como arquitetura teatral, é a
forma mais corrente ainda na atualidade.
Além da função orgânico-funcional a arquitetura apresenta preocupações de
natureza plástica atreladas à normas e valores culturais de uma época.
A estética evoca o universo que a rodeia e, ao mesmo tempo, penetra nos
pensamentos e ações dos homens. Assim, a arte estetiza a vida social. No dizer de Pierre
Francastel “o pensamento plástico é um dos modos pelos quais o homem informa o
universo”.390
O querer estético é um sintoma cultural de uma sociedade e de uma época
revelando-se como valor “simbólico”. A iconologia tem por objetivo descobrir e
interpretar este valor.
Para Giulio Carlo Argan “a história é sempre história de homens. Ao ocupar-
se de fatos ou de objetos, ocupa-se deles na medida em que são feitos pelos homens”.391
Neste sentido, estudando a arquitetura, busco informações sobre a atividade humana.
Entendido como um “produto de civilização” o espaço teatral não é autônomo ao seu
mundo social, mas sim revelador deste.
“Desde a Antigüidade mais remota” diz Argan, “a cidade configurou-se como
um sistema de informação e de comunicação, com uma função cultural e educativa”.392
Os espaços teatrais devem ser entendidos como espaços arquitetônicos constitutivos,
representativos e utilitários de uma cidade: o locus por excelência para uma série de
manifestações da coletividade. É através do uso que eles se qualificam na memória
urbana sendo, conseqüentemente, identificados social, econômica e culturalmente. Suas
utilizações os sedimentam na vida de uma cidade, “alimentam uma tradição, ao mesmo
tempo que estimulam a dinâmica de sua mudança; os índices referenciais de um uso
mantém-se atualizados e, paradoxalmente, conservam a memória do seu passado”

388
GIRARD, Gilles et alii. O Universo do Teatro. Coimbra: Almedina, 1980. p.129-130.
389
Designação de teatro cujo palco ocupa uma posição central, quer ele seja na realidade circular ou não.
390
FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.4.
391
ARGAN, Giulio C. História da Arte Como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.37.
392
ARGAN, Giulio C. Arquitetura e Cultura. Arquitetura e Urbanismo. n.41, p.66, abr./maio 1992.

113
Da Rua ao Teatro

formando um hábito urbano.393 Arquitetonicamente, de um modo em geral, apresentam


papel de destaque na dimensão cênica da cidade.
A produção de um espaço arquitetônico gera: um espaço físico, ao ser
construído e um espaço existencial ou humano, ao ser utilizado. O espaço físico é o
lugar, o cenário que acolhe, permite, favorece ou impede as ações do homem. O espaço
existencial é a imagem que o usuário cria deste meio.
O usuário percebe o espaço existencial através de suas dimensões:
psicológica (que gera sensações como liberdade, poder, exaltação, extroversão...),
semiológica (que cria significados e signos representativos de valores, sentimentos...),
formal (que gera estruturas físicas e materiais combinando volumes e formas com
recursos da simetria, contraste, proporção, equilíbrio e escala) e social (que cria a idéia
das relações entre indivíduos e grupos que vivenciarão o espaço).
Os mais variados tipos de espaços teatrais constituem-se núcleos de criação e
difusão artístico-cultural e de manutenção de sociabillidades, estando integrados à vida
urbana. O estudo destes espaços de representatividade, de suas manifestações e inerentes
relações com a coletividade, deve ser encarado como um elemento articulado à história
social e importante nas análises dos diferentes níveis estruturais percebidos na sociedade.
Desta forma busca-se a compreensão das verdadeiras ligações existentes entre estes. Num
tempo em que os meios de comunicação eram precários e as dificuldades temporais e
físicas impunham o isolamento, uma forma de contato com o mundo além dos limites
municipais, dava-se através dos espaços teatrais. Por intermédio dos palcos, as cidades
presas a seus ciclos próprios, universalizavam-se.394
O edifício de um espaço teatral, uma vez legitimado pela sociedade, torna-se
um marco referencial urbano. Enquanto texto não-verbal deve ser apreendido como
espetáculo, como imagem, constituindo-se numa rica fonte informacional sobre seus
freqüentadores, sobre a cidade, etc.
Isto posto, considero que ao estudar os espaços teatrais não poderia deixar de
deter-me em seus aspectos formais, estéticos e nos significados destas concepções.

4.3 - OS ESPAÇOS TEATRAIS EM RIO GRANDE*

4.3.1 - OS PRIMEIROS REGISTROS

Durante o Período Colonial, edificou-se no Rio de Janeiro, em 1767, a


primeira casa de espetáculos públicos brasileira. A Casa da Ópera do padre Ventura, logo
seguida por outras em várias Províncias começaram a dar corpo às incipientes
manifestações teatrais no país.
Em 1771 o rei D. José I assinou um alvará determinando “o estabelecimento
de teatros públicos bem regulados, pois que deles resulta a todas as nações grande
esplendor e utilidade, visto serem a escola onde os povos aprendem as máximas sãs da

393
FERRARA, Lucrécia. Leitura Sem Palavras. São Paulo: Ática, 1986,.p.21.
394
BITTENCOURT, Ezio. Apontamentos Sobre o Movimento Teatral em Rio Grande no Século XIX.
Biblos. Rio Grande: FURG, v.8, p. 135, 1996.
*
O significado dos termos empregados na descrição arquitetônica dos edifícios aqui abordados podem ser
obtidos no glossário que compõe este estudo.

114
Da Rua ao Teatro

política, da moral, do amor, do zelo e da fidelidade, com que devem servir aos soberanos,
e por isso não só são permitidos como necessários.”395
Nos últimos anos do século XVIII, precisamente em 1794, Porto Alegre,
então já sede da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, ganhou seu primeiro teatro
denominado de Casa da Comédia: “um prédio adaptado às necessidades de uma casa de tal
gênero” com lotação de 400 lugares.396
Athos Damasceno informa que:

apesar dos 36 camarotes de que dispunha o edifício e de uma platéia


capaz de comportar mais de trezentos espectadores (a pomposa
denominação de Casa da Comédia) era evidentemente ambiciosa. Pois
na realidade não passava ele de um mal ajeitado barracão,
pobremente feito de madeira ou, melhor como se diria de pau-a-pique,
com uma entrada lateral e outra pela caixa do teatro, sem abrigo nem
saguão - raso, liso e...amarelo...[...]. Antes da Casa da Comédia;
entretanto, o que havia era muito pior: dois mofinos pardieiros, um no
Largo da Forca e outro no Largo da Quitanda”.397

A partir de 1797 este “barracão vilarengo” passou a denominar-se Casa da


Ópera.398 Manuel Lopes de Almeida revela que, no mesmo 1794 registrava-se em Rio
Pardo a existência de um teatro “onde, [em princípios do mês de janeiro] foram
representados por quatro noites excelentes comédias com maravilhosas danças, em
regozijo ao nascimento da Princesa da Beira”.399
Se o alvará de 1771 foi o toque de alvorecer para o teatro no Brasil, seu
grande impulso só veio em 1808 com a transferência da Família Real Portuguesa e da
Corte para o Rio de Janeiro e a construção na nova capital do reino de uma grande casa de
espetáculos: o Real Teatro São João, inaugurado em 1813, com capacidade para 1.200
espectadores.
Entre essas datas encontra-se o primeiro relato que possuo sobre a existência
em Rio Grande de uma construção destinada às atividades teatrais. Em l809, o
comerciante inglês John luccock, negociando na cidade, registrou em suas anotações as
ruínas de um teatro de madeira, situado próximo à residência do Governador (hoje, a rua
General Bacelar, esquina da Pinto Lima).400 Possivelmente, esse teatro fosse do final do
século XVIII e apresentasse as mesmas características das modestas Casas da Comédia ou

395
OLIVEIRA, Waldemar de. O Teatro Brasileiro. Salvador: Universidade da Bahia, 1958. p.16.
396
SANMARTIN, op. cit., p. 41-42.
397
DAMASCENO, Palco...,.op. cit., p.3-4.
398
Ibid. Expressão do autor.
399
ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícia Histórica de Portugal e Brasil. Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1964. v..2, p.278-280.
400
LUCCOCK, op. cit., p.22-23. Antenor Monteiro em seu artigo Coisas de Teatro (Jornal Rio Grande, 19
ago.1946) diz que Luccock teria encontrado “as ruínas de um teatro de madeira, o São Pedro”, entretanto, o
que o viajante inglês escreve é que observou “as ruínas de uma construção de madeira, outrora o Teatro de S.
Pedro”. O S. Pedro a que se refere Luccock é a Vila do Rio Grande de São Pedro e não o nome do teatro. Do
mesmo equívoco compartilha Maria Luiza Queiroz ao mencionar o “arruinado Teatro São Pedro”.
(QUEIROZ, A Vila..., op. cit., p.157.)

115
Da Rua ao Teatro

Casas da Ópera percebidas neste período em importantes cidades de várias regiões do país
e da Região Platina.401
Na ata da Câmara de 13 de de fevereiro de 1822, consta que “concedeu-se
licença a Luiz Ferran , mestre de música do Batalhão de Infantaria e Artilharia desta vila
para estabelecer um teatro para divertimento público [...]”.402 Nesse mesmo ano, no mês de
maio, o então príncipe-regente D. Pedro assinou um alvará no qual reconhecia que os
teatros “podiam concorrer, mui eficazmente, para reformar os costumes e aperfeiçoar a
civilização”.403
Em 1829, um ofício da Comandância Militar da Vila do Rio Grande relata
que “em teatro particular se pôs em cena, à noite, uma peça”404 em comemoração ao
aniversário do Imperador D. Pedro I; teria sido representada por oficiais do Batalhão 17 e
por algumas outras pessoas.
Em 17 de setembro de 1830, a Câmara recebeu um ofício do Presidente da
Província com uma Portaria de 21 de julho “sobre não consentir-se representação de peças
teatrais que ofendam as autoridades”.405
Durante a sessão da Câmara de 14 de outubro de 1830 o vereador suplente
José Antônio Gonçalves Cardoso requeriu que o também suplente Manoel Pereira Bastos
fosse multado “por não ser verdadeira a alegação de moléstia para não assistir às sessões,
pois foi visto no dia 12 na Casa da Ópera406, enquanto ela [a peça] durou ”.407

4.3.2 - TEATRO SETE DE SETEMBRO

As atividades cênicas em Rio Grande, ganharam impulso a partir de 1832,


quando foi erguido o Teatro Sete de Setembro.
Os teatros eram sinônimos de progresso, cultura e lazer instrutivo; “espaços
fechados de sociabilidade” e de civilidade fundamentais à pequena burguesia ascendente
da sociedade brasileira. Tomando por modelo nacional a cidade do Rio de Janeiro e seu
desenvolvimento cultural sob a regência de D. João VI e importantes capitais européias,
sobretudo Paris, as elites locais esforçavam-se para a edificação de suas casas de
espetáculos. Construído em alvenaria, o edifício do Teatro Sete de Setembro pode ser
considerado o primeiro do gênero no Rio Grande do Sul; isto falando-se em construções
sólidas e que, efetivamente possam receber o nome de teatro, apresentando condições
401
HESSEL, Lothar e RAEDERS, Georges. O Teatro no Brasil: da Colônia à Regência. Porto Alegre:
UFRGS, 1974. p. 155-156. A Casa de Comédias de Montevidéu foi inaugurada em 1793. Seu edifício sofreu
várias remodelações e trocas de nomes sendo demolido em 1879. Em Buenos Aires a Casa de Comédia foi
construída em 1783 tendo sido destruída por um incêndio em 1792. Ambas destinavam-se a bailes e
representações teatrais.(Cf. TEATROS DO BRASIL. São Bernardo do Campo: Mercedez-Benz do Brasil,
1995. passim.; BORBA FILHO, Hermilo. História do Espetáculo. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1968. p. 272-
273; RELA, Walter. Historia del Teatro Uruquayo: 1808-1968. Montevideu: EBO, 1969. p. 12. e
GARLAND, Marguerite. Más allá del Gran Telón: el Teatro Colón en su faz incognita. Buenos Aires:
Nueva, 1948. p. 131-134.)
402
ATAS e Termos da Câmara de Vereadores de Rio Grande. Rio Grande, 13 fev. 1822, p.76-77.
403
Sobre o conteúdo do alvará de 22 de maio de 1822 confira: PAIXÃO, Múcio da. O Teatro no Brasil. Rio
de Janeiro: Brasília, 1936. p. 110.
404
MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro, Jornal Rio Grande, Rio Grande, 19 ago.1946.
405
Ibid.
406
“Casas da Ópera”, era a denominação comum à época para designar a casa de espetáculos públicos.
407
MONTEIRO, Antenor. Coisas de Teatro, Jornal Rio Grande, Rio Grande, 19 ago.1946.

116
Da Rua ao Teatro

indispensáveis à casas de espetáculo desta natureza. Motivo de orgulho dos rio-grandinos,


o teatro recebia grande público e não passava década sem melhoramentos.
Para sua edificação foi constituída a Sociedade Sete de Setembro que, por
venda de ações a 100 mil réis conseguiu o capital necessário ao empreendimento.408
Em 31 de outubro de 1831 lavrou-se a escritura da compra do terreno
localizado à rua Direita (atual General Bacelar) fundos à Praça da Quitanda (hoje, Praça
Júlio de Castilhos), então pertencente ao cônego Francisco Ignácio da Silveira.409
Iniciaram-se as obras e, em 7 de setembro de 1832 o teatro foi inaugurado. O
jornal O Noticiador de 10 de setembro deste ano diz que “às oito horas, no novo teatro
desta vila - 7 de Setembro” foi representada a peça de Antônio Xavier de Azevedo, O Bom
Amigo. Antes de começar o espetáculo, recitou um “elogio”, Carlos Antônio da Silva
Soares. Terminou o “divertimento com uma jovial e graciosa pantomima e com a farsa
intitulada O Casamento por Gazeta. Em tudo isto se fez sentir a companhia com bastante
espírito e jocosidade, o engraçado do enredo e a boa execução dos atores.”
O mesmo periódico comenta que:

Nós não podemos deixar de manifestar o nosso prazer por ver nesta
vila um teatro ereto por uma sociedade composta de cidadãos que não
pouparam trabalho e despesas para sua conclusão; o qual servirá de
escola para se aprender os bons costumes, aumentar a civilização, e
para se festejar os Dias Nacionais e as nossas belas instituições.

E assim, o eco do alvará de D. José I firmou-se no distante burgo sulista, por


iniciativa e para desfrute da emergente elite local. 410
Ao final do ano seguinte, a vizinha cidade de Pelotas inaugurou em 2 de
dezembro o Teatro Sete de Abril,411 outra respeitável construção cujas obras foram
concluídas em 1834.
Segundo o jornal ilustrado Ostensor Brasileiro, do Rio de Janeiro, o edifício
planeado pelo arquiteto alemão Eduardo Von Kretschmar apresentava “arquitetura externa
elegante e regular, com seu pórtico de quatro colunas e salões superiores de desafogo, com

408
MONTEIRO, Rebuscos... op. cit., passim.
409
Vigário da Matriz de São Pedro este religioso é citado nas anotações de viagem do naturalista francês
Auguste de Saint-Hilaire quando esteve na cidade em 1820. (SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 62.)
410
Embora não se tenha efetivado à época a construção de um teatro na Capital da Província, a sociedade
porto-alegrense também preocupava-se com este benefício. Em 1833 um grupo de endinheirados cidadão
endereçou um pedido de doação de terreno ao governador, Sr. Manoel Antônio Galvão, objetivando nele
erguer uma casa de espetáculos. Nesta petição a imagem do teatro, visto como um instrumento de promoção
da civilização também se faz presente. Reproduzo aqui parte deste documento: “São os teatros daqueles
estabelecimentos dignos de atenção dos governos, porque servindo de recreio e de escola da moral pública,
cooperam para a civilização dos povos vindo por esta forma a lucrar o todo da sociedade e grande parte o
mesmo governo, pois que destraído, o povo se afasta de matérias perniciosas nas quais o precipita a
ociosidade: as nações civilizadas tem conhecido tanto esta verdade que, ainda em tempos convulsivos,
fizeram objeto de sua política os divertimentos públicos, levando-os ao maior auge de grandeza [...]”. (Apud.
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p. 44)
411
O NOTICIADOR. Rio Grande, 7 dez. 1833.

117
Da Rua ao Teatro

janelas guarnecidas exteriormente com grades de ferro. A planta interior era elíptica,
continha três ordens de camarotes em número de sessenta, e trinta bancadas na platéia”.412
Em 1838, três anos após o encerramento das atividades da antiga Casa da
Ópera e em pleno decurso da Revolução Farroupilha, Porto Alegre, sedenta por uma casa de
espetáculos, ganhou o Teatro D. Pedro II. Todavia, segundo Damasceno, o novo teatro
constituía-se “num medíocre pavilhão de alvenaria, de fachada desenxabida e instalações
precárias, mau grado a espaçosa platéia de que dispunha e as duas ordens de camarotes
mobiliados com muito luxo, como teve o descoco [descaramento] de dizer certo noticiarista
de então”. 413
O já referido Ostensor Brasileiro, comentava que, em 1845-46, o edifício do
Sete de Setembro apresentava “boa arquitetura, com seu pórtico e frontão triangular,
anunciando que era esse o lugar das honestas recreações da noite” rio-grandina. 414

FIGURA 12 – Fachada provavelmente original do Teatro Sete de Setembro. Gravura de 1847 de autor
desconhecido.
Extraído de: ASPECTOS BRASILEIROS – Meados do Século XIX. Rio Grande: Biblioteca Rio-Grandense,
1937.

Diferentemente da cidade retratada por diversos artistas ao longo do


Dezenove, o Teatro Sete de Setembro foi registrado somente em uma gravura de 1847 de
autor desconhecido. O traçado do artista revela as características externas, possivelmente
ainda originais, do teatro.
Instalada em uma das principais vias centrais da cidade a construção
destacava-se na paisagem urbana encontrando-se recuada em relação ao alinhamento das
casas vizinhas.415 Sua fachada despojada lembra a austeridade da arquitetura civil da
época. O prédio apresentava três pavimentos sendo o último o sótão. No primeiro
pavimento existiam cinco portas, no segundo cinco janelas e no terceiro quatro janelas
sendo duas frontais e duas laterais na forma de água-furtada. Suas aberturas eram típicas
das construções da arquitetura tradicional luso-brasileira, então predominante na cidade.
O frontispício compunha-se, também, por quatro pilastras de ordem toscana
dispostas ao longo do primeiro e segundo pavimentos encimadas por um frontão triangular
de inspiração neoclássica arrematado por moldura e coroado por um coruchéu. Acima das
duas janelas percebidas no frontão destacava-se um elemento decorativo.
A frente da construção estendia-se um pátio aberto por cerca de uns oito a
nove metros distanciados do edifício. Nesse local, por ocasião de bailes à fantasia eram
feitas fogueiras, sobre as quais saltavam os foliões. Um muro em alvenaria com grades em
metal organizava o espaço e um portão dava acesso ao teatro. Os fundos do prédio não iam
até o alinhamento da rua do Pito (atual rua República do Líbano); um galpão de madeira,

412
OSTENSOR BRASILEIRO. Rio de Janeiro, v. I, 1845-1846. Esta obra traz à página 66 a reprodução de
uma gravura do referido teatro. A atual fachada do Sete de Abril é oriunda da remodelação por que passou
em 1916, sendo de autoria do arquiteto José Tonieri. (Cf. ECHENIQUE, op. cit., p.36.)
413
DAMASCENO, Palco..., op. cit., p.20. Segundo Sanmartin o teatro possuía três ao invés de duas ordens
de camarotes. (SANMARTIN, op. cit., p. 44.)
414
OSTENSOR BRASILEIRO. Rio de Janeiro, vol. I, 1845-1846.
415
O recuo de edificações em relação ao alinhamento dos demais prédios junto à via pública só será de uso
mais corrente a partir do final do século XIX. Sua utilização “prematura” enfatiza o exposto no texto acima,
denotando a importância da construção para a sociedade local.

118
Da Rua ao Teatro

utilizado para depósito, terminava a construção. Aos lados, em toda a sua extensão
ficavam estreitos corredores para o arejamento da platéia por meio de janelas aos fundos
dos camarotes.416
Sobre seu interior, O Noticiador de l0 de setembro de 1832 registrava que “o
novo teatro formava uma perspectiva encantadora e elegante. Três ordens de camarotes
uniformemente ornados eram ocupados pelo amável e belo sexo [mulheres]; e platéia por
conspícuos e respeitáveis cidadãos”. O Correio Mercantil do Rio de Janeiro em 13 de
março de 1833 dizia que era um “teatro ricamente decorado e já em exercício”.
Sua Sala dos Espectadores assemelhava-se às das Casas da Ópera do século
XVIII, sendo característica dos teatros de partido luso-brasileiro, cuja disposição
remontava aos teatros barrocos italianos. Pequenas e com várias ordens de camarotes elas
refletiam o espírito de uma sociedade rigidamente hierarquizada que, até no teatro
impunha a separação de classes.
No teatro burguês do século XIX a função teatral ganhou um caráter
mundano. A Sala dos Espectadores, elemento chave da composição de todo edifício
destinado a espetáculos públicos, adquiriu uma faustuosidade (sempre proporcional à
riqueza econômica da região) e consagrou a divisão do público em diferentes categorias
sociais. As mulheres que, inicialmente, quase sempre estavam ausentes, confinavam-se
nos camarotes e, somente desceram à platéia nos últimos anos do Império. Em alguns
teatros mais antigos do Brasil, e em sociedades mais conservadoras, as mulheres eram
protegidas dos olhares masculinos da platéia através de finas cortinas rendadas, nos
camarotes.
A história do espetáculo é inseparável da da luz. No dizer de Paul Virílio, “a
iluminação é sinônimo de desocultamento de um ‘cenário’, de uma revelação da
transparência sem a qual as aparências nada seriam”.417
Sobre a iluminação do Teatro Sete de Setembro os periódicos revelam que
era feita por velas de espermacete. Acesas antes da entrada da assistência, as velas
mantinham-se por toda a função transformando a Sala dos Espectadores num
“prolongamento” da cena e o público num elemento vivo na unidade-espetáculo. Os
artistas obrigavam-se a atuar no proscênio para poderem ser vistos. Os cenários ao fundo
do palco não despertavam muito interesse. A atenção sobre a cena era, freqüentemente
roubada. Por vezes, o fazer social tornava-se mais importante que assistir a apresentação.
O péssimo estado das lanternas e lampiões do teatro foi motivo para críticas
publicadas no jornal O Rio-Grandense, de 26 de outubro de 1847. O colunista do Farol
Teatral, após utilizar adjetivos como “embaçados” e “porcos” para classificá-los, comenta
a ocorrência de pulgas na assistência: “e as pulgas? Oh! Malditas pulgas que tantas
mordidelas ferram no massado espectador”.
A precariedade da iluminação do teatro também foi assunto do mesmo
periódico em 18 de outubro de 1849:

A falta de iluminação é um dos predicados que bastante influi para a


tristeza e monotonia da representação. Sobre o palco deve igualmente
refletir uma luz clara não amortecida; aconselharíamos em tal caso a
iluminação a azeite [...]. Algumas vezes, no nosso camarote fomos

416
MONTEIRO, Rebuscos..., op. cit., passim
417
VIRÍLIO, Paul. A Inércia Polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p.25.

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