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glosas mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa

revista semestral
#3, maio de 2011

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JOLY BRAGA SANTOS n 11
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glosas
Número 3, Maio de 2011 | JOLY BRAGA SANTOS
no próximo número... ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA

Direcção
Edward Luiz Ayres d’Abreu

Redacção
Ana Salazar, Duarte Pereira Martins,
Gustavo Cruz, Lea Cardoso,
Manuela Paraíso, Mónica Brito,
Philippe Marques

Fotografia
José Pedro Cardeiro
(pp. 54-64, 68-71)

Revisão
Alice Costa, Duarte Pereira Martins,
E. L. Ayres d’Abreu, Nuno M. Cardoso,
Raquel Camarinha

Depósito Legal
327498/11

ISSN
2182-1380

Tiragem
500 exemplares

Preço de Capa
€4

Periodicidade
semestral (2 números por ano)

Impressão e Acabamento
Agir, Produções Gráficas

Capa
Joly Braga Santos (1924-1988)

O mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa, agradece a quem tenha contribuído para a concretização deste número da
revista glosas: aos autores dos diversos textos, artigos, fotografias e ilustrações (Alexandre Andrade, André Granjo, António
Pinho Vargas, Carlos Martins Marques, João Madureira, João Vasco, Jonathan Costa, José Pedro Cardeiro, Lea Cardoso,
Manuel Durão, Manuela Paraíso, Maria João Albuquerque, Maria José Borges, Mónica Brito, Nadir Afonso, Nuno M.
Cardoso, Pedro Neves, Ruy Narval, Sérgio Azevedo e Tomás Marco), aos diversos entrevistados (Piedade Braga Santos,
Henrique da Luz Fernandes, Nuno Côrte-Real, Vasco Graça Moura, João Botelho, Sérgio Azevedo e Lídia Jorge), a Alice Costa,
Duarte Pereira Martins, Nuno M. Cardoso e Raquel Camarinha, pela revisão dos textos, a Amílcar Vasques-Dias, pela
composição de uma peça dedicada a este número da glosas, e a Duarte Pereira Martins, Philippe Marques, Gustavo Cruz e Ana Salazar,
pela transcrição das entrevistas. Um especial agradecimento a Piedade Braga Santos pela disponibilidade e interesse
com que nos cedeu e autorizou a publicação de fotografias do espólio de Joly Braga Santos, e a Maria João Franco (Teatro
Nacional de São Carlos), pela cedência de uma fotografia oficial de Banksters, de autoria de Alfredo Rocha.
GLOSAS
uma revista de todos e para todos 2
índice
~ debaixo de olho
Manuela Paraíso
em nome da música portuguesa 7 ~agenda
por Edward Luiz Ayres d’Abreu, presidente do mpmp
_________________________________________

O meio é apático, mesquinho, tristinho. Mas nada


JOLY BRAGA SANTOS
disso me parece demasiadamente grave. O pior, o que nos 11 ~criar música como as árvores dão frutos
destrói enquanto cultura e enquanto país, o que degrada e Sérgio Azevedo
negligencia o nosso património e, claro, a nossa música, é
18 ~permanecer fiel à sua personalidade musical
um mal bem mais preocupante: uma terrível indiferença, entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos
ora cínica ora provinciana.
31 ~em torno de joly braga santos
entrevista de E. L. Ayres d’Abreu a Henrique da Luz Fernandes
Todavia, é com canora felicidade que, sem pompas
ou circunstâncias, nem aparatos (tampouco apoios) que nos 35 ~memórias e evocações
valham, assino o editorial deste terceiro número da glo- Tomás Marco e Maria José Borges
sas. A diversidade dos conteúdos, o número crescente de 38 ~do que foi publicado sobre as sinfonias
excelentes voluntários e a participação de tantas persona- Pedro Neves
lidades de reconhecida idoneidade intelectual, científica,
musical, em prol do mesmo fim, justificam e comprovam, 44 ~a transformação estilística na obra orquestral
Manuel Durão
cada vez mais, a urgência e o sucesso desta publicação.
47 ~otonifonias: sobre a música para banda
É sincero e emocionado o meu agradecimento a André Granjo
todos os que se têm juntado a nós para elevar a glosas a tão 50 ~apolo e dafne
ímpar lugar na cultura portuguesa contemporânea. Sinal Nadir Afonso e Ruy Narval
de que há vida, de que ainda há melómanos apaixonados,
de que há cultura a fervilhar. De que há Música, dentre
tanta indiferença. ~
52 BANKSTERS
Nada melhor, aliás, do que uma homenagem neste ~ à conversa com Nuno Côrte-Real,
número a Joly Braga Santos, tão pródiga figura do nosso Vasco Graça Moura e João Botelho
meio. Mas também vários acontecimentos recentes fize-
ram com que uma homenagem a Joly Braga Santos fosse 66 Romance do Grande Gatão
inadiável. A doação de grande parte do seu espólio à Bi- ~ entrevista a Sérgio Azevedo e Lídia Jorge
blioteca Nacional e o projecto de edição das suas obras pela
AvA Edições Musicais são sem dúvida passos fundamentais
para a divulgação da sua obra tanto nacional como inter- ~
nacionalmente.
72 ~ música e poder: introdução ao livro
Excelentes notícias ainda para os sócios deste António Pinho Vargas
movimento. Uma série de pactos de amizade e colabo- 74 ~ a edição musical em portugal no século xix
ração têm sido desenvolvidos entre o mpmp e outras enti- Maria João Albuquerque
dades. Para além de receber as glosas em casa, usufruem de
77 ~ do coreto ao auditório
novos e alargados descontos. É motivo redobrado para ler, Alexandre Andrade et al.
para criar, para fazer música, para descobrir património.
Motivo redobrado para celebrar.
82 ~ compositores a descobrir: fernando costa
Nuno M. Cardoso
88 ~ glosando: a convite da glosas, uma peça inédita
Amílcar Vasques-Dias
90 ~ alémfado
João Vasco
94 ~ cantos da voz: sobre a minha missa de pentecostes
www.mpmp.pt | geral@mpmp.pt João Madureira
DEBAIXO DE OLHO
O QUE ESTÁ A ACONTECER NA MÚSICA PORTUGUESA
por
Manuela Paraíso

Olhemos um pouco para trás: em Dezembro de


2010, um festival de música antiga em Espanha, o de Úbeda
y Baeza1, colocou Portugal no centro do mundo. Agora
avancemos três meses: entre 20 e 28 de Agosto, outro
festival de música antiga, o reconhecido Laus Polypho-
niae, em Antuérpia, percorre Sons Portugueses, da Idade
Média, Renascença e Barroco. Ao lado de agrupamentos
de prestígio internacional, como o Huelgas Ensemble ou
o Hespèrion XXI, actuam o Coro Casa da Música, o Lu-
dovice Ensemble, o Mediae Vox Ensemble, o grupo vocal
Officium e a soprano Orlanda Velez Isidro, oferecendo
muito do que de melhor o património musical português
do passado tem para dar a quem perante ele se quiser
deter. Nessa semana, muitos serão, e não portugueses.
Pergunta: as direcções artísticas destes eventos tomariam Emmanuel Nunes (fotografia de Guy Vivien)
estas opções se tivessem a mais pequena suspeita de fraca
adesão de público? Segunda pergunta: quantos festivais de Outubro, que incluem a estreia mundial de uma obra, da
música erudita em Portugal, em 2010 e 2011, dedicaram edição de um livro (cf. Livros) e de um simpósio inter-
a maioria da sua programação à música portuguesa? Ter- nacional organizado pelo CESEM – Centro de Estudos de
ceira: quem é que, em Portugal, considera que a música Sociologia e Estética Musical, que decorrerá entre 5 e 6
portuguesa não é suficientemente interessante para justi- de Novembro na Culturgest. Duas semanas antes, entre
ficar muito maior presença nas temporadas - o público ou 21 e 23 de Outubro, no Museu de Aveiro, o CESEM rea-
os programadores? liza outro evento evocativo, o colóquio David Perez e a
música da sua época, no terceiro centenário do nascimento
efemérides e aniversários do compositor napolitano que viveu em Portugal, tendo
sido Mestre da Capela Real no tempo de D. José I. No en-
Entre as mais destacadas efemérides de 2011, tanto, parece ser esta a única iniciativa dedicada a Perez:
as dos nossos reis trovadores (os 800 anos da morte de nem a estreia moderna, ocorrida em Janeiro no CCB, de
Dom Sancho I, em 26 de Março, e os 750 do nascimento Antígono, que tirou dos escombros a memória da Ópera
de Dom Dinis, em 9 de Outubro) estão a passar quase do Tejo, da qual ele foi director e autor da primeira ópera
despercebidas. A excepção é o concerto programado no ali estreada, resultou na programação de concertos com
âmbito do 1º Festival de Música de Setúbal, que a 27 de obras daquela que foi uma das figuras tutelares do barroco
Maio, num concerto pelo grupo La Batalla, de Pedro Cal- musical português. Por outro lado, 2011 daria a oportuni-
deira Cabral, vai dar a ouvir música da corte de D. Dinis, dade de se emendar a mão pelo oblívio, no ano transacto,
incluindo poemas e cantigas dos dois monarcas portu- do quarto centenário de João Lourenço Rebelo, um
gueses. dos mais notáveis polifonistas portugueses, protegido de
Dom João IV. Mas não há notícias de que os 350 anos da
Em contrapartida, por ocasião dos 70 anos de sua morte, em Julho deste ano, irão ser condignamente
Emmanuel Nunes, o compositor é objecto de três con- assinalados, exceptuando um concerto monográfico pelo
certos na Casa da Música, em 4 e 14 de Junho e 22 de Huelgas Ensemble no já referido festival Laus Polypho-
1) Foi esta edição dedicada em grande parte à música portuguesa e ao niae, a 22 de Agosto, uma conferência pelo organista e
papel que ela desempenhou, ao longo dos séculos, na disseminação da musicólogo João Paulo Janeiro, que se irá realizar na
música de tradição europeia.

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debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

Biblioteca Nacional, e alguns concertos planeados pelos sendo o I Acto estreado antes, a 28 de Maio. O composi-
seus grupos Capella Joanina e Flores de Música, ainda tor, que tem dedicado muita da sua produção à música de
por confirmar. Os 150 anos do nascimento do composi- cena, teve estreada em Março a música que escreveu, por
tor portuense João Arroyo, em 4 de Outubro, deveriam encomenda da companhia O Bando, para a peça Pedro e
também servir de pretexto para se conhecer melhor a sua Inês (que em Junho subirá ao palco do Pequeno Auditório
música, mas, para além do CD com a obra para canto e do CCB), e tem pela frente a composição de dois traba-
piano, por Marina Pacheco e Joana David, publicado no lhos de fôlego, a encomenda de uma obra sinfónica e a
final de 2010 pela Phonedition, não nos chegam ecos de sua oitava ópera. Concluídas e à espera da estreia estão
nenhuma evocação. as obras que lhe foram encomendadas pelo Saxacordeon
e pelo FIAR, A Bailarina Electrónica, op. 170 para saxo-
Entre os contemporâneos, António Pinho Var- fone soprano e acordeão e A Fábrica Das Bolinhas De Sabão,
gas vai ter estreada a obra resultante duma encomenda op. 172, para 2 saxofones e gravação.
conjunta da Casa da Música, do Centro Cultural de Belém
e do Teatro Nacional de São Carlos, para assinalar os seus Outros dois compositores têm uma ópera em
60 anos. Onze Cartas, para orquestra sinfónica, três nar- mãos: Pedro Faria Gomes trabalha presentemente num
radores (pré-gravados) e electrónica, é apresentada a 1 de projecto de ópera encomendada pela Culturgest em co-
Outubro na Casa da Música e a 19 de Novembro no São -produção com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, para
Carlos, estando prevista para 2012 a sua programação em estreia em Dezembro de 2012. Além disso, está a compor
concerto no CCB. Fora do âmbito da celebração, vão ser uma peça para ensemble, que terá primeira audição a 15
estreadas outras obras do compositor: Quasi una sonata, de Novembro, em Londres, no Royal College of Music,
para violino e piano, a ser interpretada por Gareguin integrado no Festival Infernal Dance, da Philharmonia
Aroutiounian e Miguel Henriques no âmbito dos Con- Orchestra. Andreia Pinto-Correia encontra-se a es-
certos à Conversa, a 29 de Maio, no CCB; Árias de ópera, crever a ópera O Búfalo Mágico, com libretto de Ondjaki,
para Tuba e Grupo de Percussão, que Sérgio Carolino e
o Drumming - Grupo de Percussão deverão apresentar
em Junho; e Quatro Novos Fragmentos, para clarinete e pi-
ano, escrita para integrar um CD comemorativo dos 50
anos do clarinetista António Saiote. A mesma idade fes-
tejam os compositores Isabel Soveral, Pedro M. Rocha
e Virgílio Melo sem que, no entanto, a sua música nos
seja mais dada a ouvir em concertos ou novos registos.
E a mais jovem aniversariante, a OrchestrUtopica, marca
o ano do seu décimo aniversário com concertos no CCB
em que estreia obras de novas gerações de compositores
– além de ser a formação que Alexandre Delgado vai di-
rigir nas duas primeiras apresentações da sua nova ópera,
A Rainha Louca, a 9 e 10 de Julho, no Pequeno Auditório
do CCB. Andreia Pinto-Correia (fotografia de Daniel Blaufuks)

encomendas e estreias
uma encomenda da Ópera do Castelo e do Drumming GP,
com estreia prevista para a próxima temporada. Ao longo
Não é um ano muito fecundo no que se refere a
de todo este ano, a compositora, desde há anos residente
ópera contemporânea portuguesa. Depois de Banksters,
nos Estados Unidos, está a ter várias obras com primei-
de Nuno Côrte-Real, que em Março se estreou no São
ras apresentações, sendo as próximas em Boston (Jordan
Carlos, e d’A Rainha Louca (a segunda das importantes
Hall, 19 Maio), Colorado (Aspen Music Festival, entre
encomendas a Alexandre Delgado apresentadas este ano,
Junho e Julho, no âmbito de uma residência artística, para
depois de Cinco Sonetos Quinhentistas, estreada a 2 de Abril
a qual Pinto-Correia foi seleccionada por concurso in-
no Festival Terras Sem Sombra), chegará Deu-La-Deu, a
ternacional), Los Angeles (Conferência Internacional de
nova ópera de Jorge Salgueiro, com libreto de Jorge Vaz
Clarinetes, 5 Agosto), no Carnegie Hall (uma encomenda
Nande (uma encomenda da Câmara Municipal de Mon-
da American Composers Orchestra para o Festival de
ção), cuja apresentação integral terá lugar a 12 de Agosto,
Música Contemporânea de Nova Iorque, 14 de Outubro)

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e, em Portugal, no CCB, a 21 de Outubro, a estreia duma imbra), João Pedro Oliveira (Angel Rock, para clarinete
encomenda da OrchestrUtopica, de que é Compositora baixo e marimba - 29 Maio, Matrix Festival, em Frei-
em Residência em 2011. burg, na Alemanha), José Alberto Gomes (Vellut, para
clarinete e percussão – 29 de Março, na Casa da Música),
Luís Tinoco é outro compositor com obras a Eduardo Luís Patriarca (Ensō, encomenda do Harmos
serem estreadas em salas americanas, nos próximos me- Festival – 13 de Março, Casa da Música, pela Harmos
ses: a 21 de Maio, primeira audição absoluta de uma peça Festival Orchestra), António Chagas Rosa (Six mélodies
para erhu e orquestra (encomenda da Albany Symphony d’après Teiko, para mezzo soprano e ensemble - Grupo
Orchestra) e entre 3 e 7 de Agosto, em Los Angeles, a es- Síntese, estreia prevista para Novembro), Pedro Santos
treia americana de Três Poemas do Oriente, no Clarinetfest (encomenda, pela Academia de Música Fernandes Fão, de
2011. Para trás ficou a estreia francesa de Round Time, em peças obrigatórias do 8º Concurso Ibérico de Piano, Abril
Março, pela Orchestre National de Montpellier. Sérgio 2011, com posterior divulgação em instituições de ensino
Azevedo vai ter um concerto-conferência monográ- vocacional da música, em Portugal e Espanha) e Daniel
fico realizado em 26 de Maio em Washington DC, inte- Schvetz (Memoria, Preludio y Gesto, Concerto para clari-
grado no ciclo European Leading Composers da Phillips nete e cordas - 4 de Abril, Belgrado, JugoKonzert Festival,
Collection, no qual vão tocadas várias peças pelo violi- pela Belgrado Strings, com António Saiote como solista
nista Carlos Damas e a pianista Jill Lawson, algumas das e maestro; Ludic XVII, para Banda Sinfónica – Abril, pela
quais em estreia (Songs without words e a versão para violi- banda Sinfónica da PSP; Huudelf, para Violoncelo solo -
no e piano de In the mists...1912). A 21 de Junho, em Viena, 12 de Julho, Festival de Música de Caldas da Rainha, por
na Áustria, será estreada Rem.mb.r..g .r.nz Sch…rt, pela Carolina Matos; Concierto para Bandoneón y Orquestra -
E.C.C.O. Orchestra. Ao longo da temporada várias têm Setembro/Outubro, pela Orquestra Metropolitana).
sido as estreias em Portugal, como o Concerto para Pequena
Orquestra (Março, em Beja, pelo Evorensemble), 6 Peque- Alguns intérpretes têm dado também várias es-
nas Peças para Guitarra (Março, Porto, por Júlio Guerrei- treias de obras portuguesas ao longo deste ano. No âmbito
ro), From the top of the hill (3 de Maio, CCB, por solistas do do festival CriaSons, o Opus Ensemble, o Duo Contra-
Remix Ensemble), Missa Brevis (5 de Junho, Lisboa, pelo cello e o Quarteto Lopes-Graça apresentaram programas
organista António Esteireiro e o coro infantil do Instituto construídos unicamente com repertório nacional, em que
Gregoriano de Lisboa) e Uma Pequena Sere-nata Diurna (5 incluíram peças novas encomendadas a vários composi-
de Julho, Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras). tores para o festival e gravadas para edição em CD (cf.
Discos). A 22 de Março, na Casa da Música, a clarinetista
Também para Fernando Lapa este está a ser um Iva Barbosa e o pianista Paulo Oliveira tocaram Fanta-
ano produtivo: além de No coração do Porto, para coro e sia, de Vítor Faria (estreia mundial) e Movimento Dúbio,
orquestra, sobre poema de Vasco Graça Moura (enco- de Paulo Jorge Ferreira (estreia nacional). Em Lisboa, no
mendada para o concerto comemorativo do centenário mês de Março, a pianista Ana Telles apresentou novas
da Universidade do Porto, a 22 de Março, no Coliseu, e obras de Christopher Bochmann (Carrolling Bach: Two
estreada pelo Coral de Letras da UP e pela Orquestra do fantasies, para piano) e João Madureira (Com uma coroa
Norte), outras obras têm sido apresentadas – algumas em de água sobre os olhos, de que é dedicatária), e na segunda
estreia – em vários eventos no Norte do país e em Lisboa. quinzena de Maio deverá ser solista de concertos com a
Entre eles, destaca-se o concerto monográfico que teve Orquestra Filarmonia das Beiras, em que será interpre-
lugar a 30 de Abril, em Braga, do ciclo Saber Ouvir…, dedi- tada, em estreia mundial, com a pianista Ana Cláudia As-
cado a um compositor específico, em que vários intér- sis, uma nova obra de Jean-Sébastien Béreau, para piano a
pretes apresentaram obras suas. quatro mãos e orquestra. Também em Lisboa, em Abril, o
Grupo de Música Contemporânea de Lisboa apresen-
Outros compositores com peças estreadas em tou o programa Jovens Maestros | Jovens Compositores,
2011 são Luís Carvalho (Nise Lacrimosa, Romance para em que, sob direcção de Rui Carreira, deu a ouvir peças
orquestra, encomenda do Festival de Alcobaça 2011 - es- de Lino Guerreiro, Tomás Borralho, Fernando Lobo, Eli
treia a 4 de Junho, pela Orquestra de Câmara Portuguesa), Camargo e também de Jorge Peixinho. No mesmo mês,
João Madureira (nova obra com texto de José Luís Pei- mas na Guarda, o guitarrista José Mesquita Lopes estre-
xoto, encomenda da Arte das Musas para o ensemble ou, num programa com obras portuguesas (dele próprio,
Sete Lágrimas, estreia 20 de Julho, no Mosteiro de Santa de Christopher Bochmann e de Virgílio Melo), uma peça
Clara-a-Velha, inserido no 3.º Festival das Artes de Co- de Hugo Ribeiro, Página Esquecida. No dia 25 de Maio, o

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Performa Ensemble leva a Cosenza, em Itália, um pro- da Universidade de Lisboa (Dois Poemas de Eugénio de
grama de música portuguesa, de Evgueni Zoudilkine, Sara Andrade, de João Camacho, e Manta de Poemas, de Sílvia
Carvalho, Francisco Monteiro, Vianna da Motta, António Mendonça).
Victorino d’Almeida e Sérgio Azevedo, com várias obras
em estreia absoluta. E a 31 de Maio, no Porto, o Remix Em Abril, o cantor, maestro e musicólogo bra-
Ensemble dá a primeira audição de uma obra encomen- sileiro Luiz Alves da Silva, radicado na Suíça e um dos
dada a Daniel Moreira pela Casa da Música. directores artísticos do Ensemble Turicum (que em 2009
publicou um CD com as Matinas de Natal de Marcos Por-
Também o mpmp, para além da edição da glosas e tugal), foi agraciado com o Prémio Cultural Nikolaus
da realização de recitais de música portuguesa, tem vindo Harnoncourt do Cantão de Zurique, entre outras razões
a promover a criação musical, através do ciclo Viagens pelo seu trabalho de divulgação do repertório histórico
pelo Som e pela Imagem, cuja edição deste ano decorre a luso-brasileiro na Suíça. No mês anterior, Sérgio Azevedo
24 e 31 de Maio, na Fonoteca Municipal de Lisboa, com a recebeu o prémio Autor da SPA, que distinguiu o seu Con-
apresentação de obras de jovens artistas plásticos em com- certo para Piano, encomendado pelo CCB e estreado em
plemento às de compositores (Carlos Cruz, Duarte Pereira 2010 no âmbito dos Dias da Música em Belém.
Martins, E. L. Ayres d'Abreu, Lea Cardoso, Mário Chan,
Narae Chung, Patrício da Silva, Tiago Cabrita e Tomás encontros, simpósios
Borralho).
Março - na Université Paris 8, Guilherme Car-
prémios valho, Petra Bachrata, José Luís Ferreira e António de
Sousa Dias intervieram numa conferência, o último fa-
Além das encomendas, os vários concursos de zendo uma exposição sobre a electrónica em tempo real
composição continuam a ser os principais incentivos para na música, a partir do trabalho que realizou para Jorge
os jovens compositores, contribuindo para a ampliação Peixinho e Cândido Lima.
do repertório, especialmente para orquestra e geometrias
menos comuns. É o caso do Prémio Internacional de Com- 29 e 30 de Abril - Congresso "O Porto Român-
posição Machado e Cerveira (assim intitulado em home- tico", promovido e organizado pelo CITAR e pela Escola
nagem ao organeiro António Xavier Machado e Cerveira), das Artes da Universidade Católica Portuguesa, Centro
instituído pela primeira vez este ano, pelo Ministério da Regional do Porto.
Cultura e pelas Câmaras de Mafra e Cascais, com o objec-
tivo de ampliar o repertório para os seis órgãos da Basílica 17 a 20 de Maio - 1º Fórum de Jovens Composi-
de Mafra. O prazo de entrega das obras, 15 de Setem- tores. Organização: Sond'Ar-te Electric Ensemble e Goe-
bro, é o mesmo para o Prémio de Composição Fernando the Institut.
Lopes-Graça, este ano de âmbito internacional e dirigido
a novo repertório para cravo de dois teclados. A decorrer 19 a 21 de Maio - PERFORMA’11 - Conferên-
está também o 12º Concurso de Composição Electroacús- cia sobre investigação em performance, com momentos
tica Música Viva 2011, com prazo até 30 de Junho, e o de performance e apresentações de comunicações sobre
desafio para a composição de miniaturas electroacústicas música erudita portuguesa. Universidade de Aveiro.
para apresentação no âmbito da instalação sonora “Sound
Walk” durante a 17ª edição do Festival Música Viva, Julho - no âmbito da 15ª Conferência Mundial
de 9 a 17 de Setembro, no CCB (prazo até 31 de Maio). da World Association of Symphonic Bands and Ensem-
bles, em Taiwan, o saxofonista e maestro Alberto Roque
Em Julho, no Festival Internacional de Música realiza uma palestra sobre a ligação entre a tradição e a
da Póvoa de Varzim, serão apresentadas obras de Gonçalo erudição, tomando por exemplos as músicas de Fernando
Gato e Osvaldo Fernandes, seleccionadas no respectivo Lopes-Graça e Jorge Salgueiro, apresentando gravações
Concurso de Composição, nas categorias de música para de obras e partituras.
orquestra e música de câmara. E a 30 de Abril, no auditó-
rio da Escola Superior de Música de Lisboa, no concerto 29 de Setembro e 1 de Outubro - 2ª Edição do
de encerramento do festival Corolário, foram apresenta- Simpósio Internacional de Musicologia Histórica, sob o
das as duas obras distinguidas no Concurso de Composi- tema "Maria Bárbara de Bragança, Infanta de Portugal,
ção Dom Dinis, para música coral, organizado pelo Coro Rainha de Espanha", Convento dos Capuchos, Caparica.

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debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

25 a 27 Novembro - 1º Encontro Nacional de Luís Pacheco Cunha – Violino em Portugal.


Investigação em Música, na Casa da Música, Porto. Org. Com Eurico Rosado, piano. Obras de Fernando Lopes-
Associação Portuguesa de Ciências Musicais. -Graça, Joly Braga Santos, Amílcar Vasques Dias, Cláudio
Carneyro, José Vianna da Motta, Daniel Schvetz, Francisco
Em curso - trabalhos de investigação, pelo mu- de Sá Noronha, Luís Barbosa, César Viana, Pedro Lopes
sicólogo Luís Henriques, sobre música sacra dos Açores, Nogueira, Luís Tinoco. Ed. Numérica, Março 2011.
designadamente catalogação, estudo introdutório do
Acervo Musical da Sé de Angra do Heroísmo e edição de Orquestra Raízes Ibéricas – Geografia da Músi-
obras, a serem publicadas pela AvA Musical Editions, bem ca IV. Obras de Carlos Seixas, Fernando Lopes-Graça, José
como uma investigação sobre a prática de música religiosa Atalaya e outros. Ed. Numérica, Março 2011.
na ilha do Faial na segunda metade do séc. XIX.
Desnudo – Joana Machado e Amílcar Vasques
Dias. Canções sobre poesia feminina hispano-árabe. Ed.
discos Numérica, Março 2011.

Ao Vivo 2010 - caixa de 5 CDs (um, monográfico, Clotilde Rosa – Música para Poesia portuguesa.
de Jorge Peixinho; outro, Música Sinfónica Portuguesa Int. Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (Prémio
dos Séculos XX e XXI, inclui obras de Fernando Lopes- SPA/ Antena 2). Ed. La Mà de Guido, 2008 (só recente-
-Graça, Francisco de Lacerda, Luís de Freitas Branco, mente disponibilizado comercialmente)
Clotilde Rosa, Luiz Costa, Daniel Moreira, António Pi-
nho Vargas, António Chagas Rosa e Luís Tinoco). Ed. CriaSons – Tendências da Música de Câmara Por-
Casa da Música, Janeiro 2011. tuguesa Contemporânea. Obras de Amílcar Vasques-Dias,
Anne Victorino d’Almeida, António Victorino d’Almeida,
Frei Fernando de Almeida - Responsórios de César Viana, Jorge Costa Pinto, Paulo Jorge Ferreira e Sér-
Quinta-Feira Santa e Missa Ferial. Int. Capella Patriarchal, gio Azevedo. Int. Opus Ensemble, Quarteto Lopes-Graça,
dir. João Vaz. Ed. Althum, Abril 2011. Duo Contracello (lançamento no Teatro da Trindade, a 5
de Maio).
Sete Lágrimas - En tus brazos una noche. Música
do compositor seiscentista Manuel Machado. Ed. Arte Performa Ensemble – Momentum. Obras inédi-
das Musas, Maio/Junho 2011 (concertos de apresentação: tas de Carlos Marecos, Ângela Lopes, Petra Bachratá, Rui
29/04, Auditório Ruy de Carvalho, Oeiras; 12/06, Escola Penha e Evgueni Zoudilkine. Ed. Phonedition.
Superior de Música de Lisboa).
Solistas do Sond’Ar-te Electric Ensemble –
João Vaz - Obras do Livro de Órgão de Frei Roque Nuno Pinto. Obras para clarinete e electrónica, de Cândido
da Conceição, gravadas no órgão histórico de Longares Lima, Carlos Caires, João Pedro Oliveira, Miguel Azguime,
(Espanha). Ricardo Ribeiro, Virgílio Melo. Ed. Miso Records.

Fausto Neves (1890 - 1955) - Música dos cafés- Contos Contados Com Som - Teatro Elec-
-concerto de Espinho, na primeira metade do século XX. troacústico (2ª série). Obras de Ângela Lopes, Isabel So-
Int. Sofia Guedes (soprano) e Fausto Neves (piano). Ed. veral, José Luís Ferreira, Sérgio Pelágio e Simão Costa. Ed.
Numérica, Maio 2011. Miso Records.

Saber Ouvir - Eurico Thomaz de Lima. Obras Smith Quartet - Portuguese String Quartets with
para piano. Int. João Lima. Ed. Numérica, Abril 2011. Electronics. Obras de Carlos Caires, Miguel Azguime, Pe-
dro Amaral e Pedro Rebelo. Ed. Miso Records.
Victor Macedo Pinto - Obras para piano solo,
Sete Canções Antigas, Missa Litúrgica. Intérpretes: Rui Pi- em fase de preparação, gravação ou a aguardar publicação:
nheiro, piano. Ana Quintans, soprano; João Rodrigues,
tenor; Janete Santos, flauta transversal; José Manuel Fernando Lopes-Graça. Concertos para piano n.º 1 e 2. Int.
Brandão, piano. Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Eldar Nebolsin, Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Ed. Naxos.
Gutierrez Marques. Ed. Numérica, Abril 2011. Canções tradicionais portuguesas de Natal. Coro Gulben-

8 | glosas, #3
debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

AGENDA
kian, dir. Jorge Matta. Lançamento em Novembro, em simultâneo com dois concertos da tempo-
rada Gulbenkian.
Compositores Portugueses XX/XXI, 4º Volume. Coros Lisboa Cantat. Obras de
Fernando Lopes-Graça, Carlos Marecos, Sérgio Azevedo e Vasco Pearce de Azevedo.
Sete Lágrimas. Diáspora II (título provisório, continuação conceptual do projecto Di- MAIO
aspora.pt. Concertos de apresentação: Dez 2011/Jan 2012)
3/05, 19h30, Sala 2, Casa da Música, Porto:
Volúpia. Música de Câmara de N. Côrte-Real. Int. Ensemble Darcos. Solistas do Remix Ensemble. Jorge Peixinho
[Novos CDs também de Drumming GP, Coro Ricercare e Orquestra Filarmonia das (Solo), Sérgio Azevedo (nova obra).
Beiras, com Ana Telles.] 4/05, 20h00, Bruxelas, Bélgica: Musiques et
Recherches. Miso Ensemble. Itinerário do Sal.
livros 4/05, ZKM, Karlsruhe, Alemanha:
Drumming GP. Im Rauschen Rot for four drummers,
Fernando Lopes-Graça. Textos de Sérgio Azevedo, António Nuno bass, electronics, de L. Antunes Pena.

Barreiros, Patrícia Lopes Bastos, Teresa Cascudo, José Luís Borges Coelho, 5/05, 21h30, Teatro Constantino Nery, Mato-
Fernando Lopes-Graça, Cândido Lima e Jorge Peixinho. Ed. Atelier de Com- sinhos: Recital de Piano a 4 mãos. Joana Resende e
Fausto Neves, piano. Obras de Lopes-Graça (Melo-
posição, Jan. 2011. dias Rústicas Portuguesas - 3º caderno) e F. Lapa
(Storyboard - Seis Miniaturas para Piano a 4 mãos).

Eduardo Libório. Poesias, Desenhos e Correspondência. Prefácio, 6/05, El Corte Inglés, Lisboa:
introdução, organização e notas de Gil Miranda. Ed. INCM, Colecção Arte e Jovens Solistas da Metropolitana. Carlos Tomás,
clarinete. Eva Mendonça, flauta. Catherine Stock-
Artistas, Jan. 2011. well, fagote. / Carolina Patrício, flauta. Madalena
Melo, viola. Salomé Matos, harpa. Obras de
Sérgio Azevedo (Suite Campestre para Sopros, Pelos
Casas da Música no Porto, de Rui Pereira, Ana Liberal e Sérgio C. campos fora) e César Guerra Peixe
Andrade. Ed. Casa da Música (2.º vol., Jan. 2011; 3.º vol. Jul. 2011). (Trio n.º 2 para Sopros).

6/05, Teatro Cine de Torres Vedras:


Ópera & Caricatura: O Teatro de S. Carlos na obra de Rafael Bordalo Ensemble Darcos. Concerto com projecção de
Pinheiro, de Luzia Rocha. Ed. Colibri, Jan. 2011. imagens. Largo Intimíssimo, de Nuno Côrte-Real.

6/05, Águeda: Semana da Guitarra. Masterclass


Música e Poder - Para uma Sociologia da Ausência da Música Portu- e Recital por Júlio Guerreiro. Programa: A. V.
d’Almeida (Fantasia Op.70), Eli Camargo Jr.
guesa no Contexto Europeu, de António Pinho Vargas (tese de doutoramento (3 Texturas), Fernando Lobo (Apontamentos sobre
pela Universidade de Coimbra. Ed. Almedina, Abril 2011. as Folias), Sérgio Azevedo (6 Pequenas Peças para
guitarra – estreia absoluta). Entrada livre.

Emmanuel Nunes – Escritos. Ed. Casa da Música / CESEM, Out. 2011. 6/05, 21h00, Sala Suggia, Casa da Música:
Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música,
dir. Christian Lindberg. Sérgio Carolino, tuba.
Marcos Portugal - catálogo temático da música sacra, de António Programa inclui Concerto para tuba e orquestra, de
Paulo Perfeito. 20h15, Cibermúsica: Palestra
Jorge Marques. Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM, em preparação. pré-concerto por Paulo Perfeito.

Diários de Vianna da Motta. Organização de Elvira Archer. Ed. Bi- 7/05, 21h30, Centro Cultural do Cartaxo:
Jovens Solistas da Metropolitana. Quarteto de
blioteca Nacional de Portugal/ CESEM, em preparação. Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria Bykova,
violino. Paul Wakabayashi, viola. João Paes, vio-
loncelo. Trio de Madeiras. Susana Oliveira, oboé.
~ Marta Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Pro-
Entre as muitas notas de avanço que, mês após mês, a música por- grama inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira.

tuguesa vai registando, em pequenas conquistas, há também momentos de 7/05, 18h00, Clube Literário do Porto:
perda. Em Dezembro, o maestro Manuel Ivo Cruz. Em Março, o flautista Recital de guitarra por Rui Gama. Programa:
Paulo Bastos (17 Peças para Guitarra).
Carlos Franco – um ano após o desaparecimento de outro nome ligado ao
Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, a harpista Andreia Marques. 9/05, Escola Profissional de Música de Espinho:
Recital e Masterclass de guitarra por Júlio Guer-
Artistas com um trabalho notável em prol do nosso património musical. reiro. Programa: A. V. d’Almeida (Fantasia Op.70),
Estão guardados na nossa memória. Eli Camargo Jr. (3 Texturas), Fernando Lobo (Apon-
~ tamentos sobre as Folias), Sérgio Azevedo (6 Pequenas
Peças para guitarra). Entrada Livre.

Envie todas as informações que deseje ver publicadas no próximo número da glosas e que se 10/05, 20h00, Jordan Hall, Boston, EUA:
Estreia absoluta de ...e murmurem vossas bocas, para
enquadrem nesta crónica, bem como na agenda que se lhe segue, para Manuela Paraíso, solo oboé, de Andreia Pinto-Correia. Solista:
manuelaparaiso@gmail.com Amanda Hardy.

glosas, #3 | 9
debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

14/05, 16h00, Fundação Arpad Szenes - Vieira da


Silva, Lisboa: Jovens Solistas da Academia Supe-
Aarhus Sinfonietta, dir. J. Kullberg. Diurne: alter JUNHO
ego para 15 instrumentistas, de H. Ribeiro.
rior de Orquestra. Susana Oliveira, oboé. Marta
Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Programa Junho (dia e hora a confirmar), Teatro da Vila-
25/5, Cosenza, Itália: rinha, Porto: Solistas da Oficina Musical. António
inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira. Performa Ensemble (Jorge Correia, flauta; Helena Carrilho (flauta de bisel), Mafalda Nedjmedine
Marinho, piano). Obras de E. Zoudilkine (*), Sara (cravo). Programa: obras de Cândido Lima,
14/05, Casa da Música: Carvalho (*), Francisco Monteiro (*), Vianna da
Eldar Nebolsin, piano. Orquestra Sinfónica do Ângela Lopes, Pedro Junqueira Maia, e outras.
Motta, A. Victorino d’Almeida e Sérgio Azevedo.
Porto Casa da Música. Concerto para Piano e Orques- * estreia absoluta
tra nº 2 de Lopes-Graça (gravação para a Naxos). 2/06, 18h30, Sociedade Portuguesa de Autores,
Lisboa: Jovens Solistas da Metropolitana. Trio
26/05, Washington DC, EUA: de Madeiras. Carlos Tomás, clarinete. Eva Men-
14/05, 21h30, Igreja Paroquial de Vilar de Concerto monográfico/conferência integrado no
Andorinho, Vila Nova de Gaia: 1º Ciclo de Órgão donça, flauta. Catherine Stockwell, fagote. Quar-
ciclo “European Leading Composers” 2010-11 da teto de Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria
e Música de Câmara de Vilar de Andorinho. Phillips Colection, dedicado a Sérgio Azevedo.
4 séculos de música portuguesa para órgão. Bykova, violino. Paul Wakabayashi, viola. João
Carlos Damas, violino, Jill Lawson, piano. Estreia Paes, violoncelo. Programa inclui Suite Campestre
Sérgio Silva, órgão. Programa: obras de António de Seis Peças Breves**, Sonatina para Violino Solo nº
Carreira, Manuel Rodrigues Coelho, Diogo da para Sopros, Pelos campos fora, de Sérgio Azevedo, e
3*, Sonatina para Violino e Piano nº 1*, Piano-Borbo- Trio n.º 2 para Sopros, de César Guerra Peixe.
Conceição, Pedro de Araújo, Carlos de Seixas, Frei leta, Borboletas*, 12 Bagatelas: Omaggio a G. Ligeti
Jacinto do Sacramento e José Marques da Silva. (selecção de 3 peças), V Mhlách...1912* (versão 3/06, 19h00, El Corte Inglês, Lisboa:
para violino e piano). * E. absoluta. ** E.parcial. Jovens Solistas da Metropolitana. Quarteto de
15/05, 11h30, Sala Luís de Freitas Branco, CCB:
Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques. Cordas. Carlota Pimenta, violino. Maria Bykova,
27/05, 21h00, Convento de Jesus, Setúbal: violino. Paul Wakabayashi, viola. João Paes, vio-
Harpa Eólia, de C. Carneyro (I. Kuznyetsov, piano) 1.º Festival de Música de Setúbal. A música na
e Mirrors, de Pinho Vargas (I. Brazhnik, piano). loncelo. Trio de Madeiras. Susana Oliveira, oboé.
corte de d’el-rei D. Dinis, o rei trovador (1261- Marta Xavier, clarinete. Daniel Mota, fagote. Pro-
-1325). La Batalla, dir. Pedro Caldeira Cabral. grama inclui Cinco Miniaturas, de Miguel Oliveira.
19-22/05/2011, a confirmar, Locais a definir: Programa: Poemas e música de D. Dinis (1261-
Ana Telles, piano. Ana Cláudia Assis, piano. -1325), D. Afonso X (1221-1284), D. Sancho I
Orquestra Filarmonia das Beiras. Programa inclui 4/06, Alcobaça: Cistermúsica – Festival de Música.
(1154-1212), D. João Peres D’Avoim (1213-1285), Orquestra de Câmara Portuguesa, dir. Pedro
obras de João Pedro Oliveira (Abyssus ascendens ad Joam Zorro (fl.c.1240-1270), Estevam da Guarda
aeternum splendorem, para piano, orquestra e elec- Carneiro. Estreia de Nise Lacrimosa, Romance para
(c.1280-1364) e Pero de Viviães (século XIII). orquestra, de Luís Carvalho.
trónica) e Jean-Sébastien Béreau (Nova obra para
piano a quatro mãos e orquestra - estreia mundial). 28/05, 21h00, Igreja de São Julião, Setúbal:
   4/06, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:
1.º Festival de Música de Setúbal. Coro Gulben- Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir.
19 a 21/05, Universidade de Aveiro: kian, dir. Jorge Matta. António Carrilho (flauta),
“Performa”. Conferência em Painel (com Paulo Emilio Pomàrico. Anke Vondung, meio-soprano.
Helder Rodrigues (sacabuxa), Sofia Diniz (viola Herbert Lippert, tenor. Rud, de Emmanuel Nunes.
Vaz de Carvalho, João Moita, Augusto Pacheco da gamba), Nicholas MacNair (órgão). Programa:
e João Pedro Duarte). José Mesquita Lopes “A Música sacra brasileira (séculos XVIII e XIX),
Transcrição na Música Contemporânea Portuguesa 5/06, 11h30, Sala Luís de Freitas Branco, CCB:
Vilancicos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques.
para Guitarra”. com influências africanas (séc. XVII). Entrada Programa inclui Suite para violoncelo solo, de
livre mediante reserva. António Pinho Vargas (int. Marco Pereira) e
19/05, 20h00, Jordan Hall, Boston, EUA:
Ventus Woodwind Quintet. Inclui Três Poemas, Canto de amor e de morte para quarteto de arcos e
29/05, 11h30, Pequeno Auditório, CCB: piano, Op. 140, de Fernando Lopes-Graça (int.
de Andreia Pinto-Correia (estreia da versão para Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques.
quinteto de sopros - Prémio Honors Ensembles). Paulo Pacheco, piano; Quarteto de Matosinhos).
Allegro da Sonata Inacabada de António Fragoso
(int. Ana Pereira, violino; Paulo Pacheco, piano) 5/06, Igreja das Laranjeiras, Lisboa:
21/05, 16h, Museu da Música, Lisboa: Concerto e estreia de Quasi una sonata, de A. Pinho Vargas
mpmp. Piano para a infância e a juventude. Coro infantil do Instituto Gregoriano de Lisboa,
(int. Gareguine Aroutiounian, violino. dir. Filipa Palhares. António Esteireiro, órgão.
Miguel Henriques, piano). Missa Brevis (estreia), de Sérgio Azevedo.
21/05, Auditório Vita, Braga:
Mi contra Fa (Magna Ferreira, Canto. Hugo Soeiro 29/05, 19h30, Quinta das Torres, 5/06, Leiria: Concerto de Beneficiência para a
Sanches, alaúde e viola de mão. Pedro Sousa Vila Nogueira de Azeitão: Culture Unite Cultures for Humanity. Ensemble
Silva, flautas). Programa: música para as vésperas 1.º Festival de Música de Setúbal. (Re)descobertas. Concertante de Guitarras do OLCA, dir. José
da Beata Virgem inteiramente seleccionada de Pedro Carneiro (percussão), Natália Monteiro Mesquita Lopes. Programa inclui obra de Celso
manuscritos dos séculos XVI e XVII residentes na (flauta), Patricia Rozario (soprano). Programa Machado (arranjo de J. Mesquita Lopes).
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. inclui Canções Populares Portuguesas, de Fernando
Lopes-Graça (transcrição para soprano e 8/06, 21h30, Museu Nogueira da Silva, Braga:
21/05, Experimental Media and Performing Arts marimba/vibrafone, Pedro Carneiro). Concerto mpmp.
Center, Troy, EUA: Betti Xiang (Erhu), Albany
Symphony Orchestra, dir. David A. Miller. Inclui 29/05, Matrix Festival, Freiburg:
estreia de obra para erhu e orquestra de L. Tinoco. 10-11/06, Centro Cultural de Cascais:
Inclui estreia de Angel Rock, para clarinete baixo e
Concertos Sond’Ar-Te Electric Ensemble.
marimba, de João Pedro Oliveira.
22/05, 15h00, Pequeno Auditório, CCB:
Concertos à Conversa, dir. Miguel Henriques. 11/06, 21h30, Teatro Sá da Bandeira, Santarém:
30/05, 14h30, Escola Superior de Música de Concerto mpmp.
Camerata Musart, dir. Gareguine Aroutiounian. Lisboa: Concerto/Conferência “A Música Contem-
Programa inclui Concerto para cravo e orquestra em porânea Portuguesa para Guitarra” (Parte 1). José
Lá maior, de Carlos Seixas (int. Inês Heitor, piano). 12/06, Capela do Rato, Lisboa: Sete Lágrimas.
M. Lopes, guitarra. Obras de H. Ribeiro, José
Missa de Pentecostes de João Madureira.
Mesquita Lopes, C. Bochmann e V. Melo.
24 e 31/05, Fonoteca Municipal de Lisboa:  
Projecto mpmp : «Viagens pelo Som e pela Ima- 12/06, ESML, Lisboa:
31/05, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:
gem». Obras de Carlos Cruz, Duarte P. Martins, Sete Lágrimas. En tus brazos una noche.
Remix Ensemble Casa da Música, dir. Peter Run-
E. L. Ayres d’Abreu, Lea Cardoso, Mário Chan,  
del. Reinhard Latzko, violoncelo. Mário Teixeira,
Patrício da Silva e Tiago Cabrita. 14/06, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música, Porto:
percussão. Inclui nova obra em estreia mundial de
Remix Ensemble, dir. Emilio Pomàrico. Electrónica
Daniel Moreira (encomenda Casa da Música).
24/05, 19h00, St. Peter’s Methodist Church, Can- IRCAM. Wandlungen, para grande ensemble e
terbury, Reino Unido: Festival Sounds New 2011. electrónica, de Emmanuel Nunes.

10 | glosas, #3
debaixo de olho: o que está a acontecer na música portuguesa | manuela paraíso

16/06, IRCAM/Festival Agora, Paris: [idem] AGOSTO 21/10, Teatro Cine de Torres Vedras: Ensemble
Darcos. Programa inclui 9 Canções de Eugénio de
21/06, 20h00, sala a designar, Viena, Áustria: 3 a 7/08, Los Angeles, EUA: Andrade, de Nuno Côrte-Real.
E.C.C.O Orchestra, direcção Jürgen Bruns. Clarinetfest 2011. Divan Consort. Três Poemas do
Rem.mb.r..g .r.nz Sch…rt (estreia), de Sérgio Azevedo. Oriente (estreia americana), de Luís Tinoco. 21/10, Pequeno Auditório, CCB: OrchestrUtopica.
Estreia de obra de Andreia Pinto-Correia (Com-
22/06, Teatro Constantino Nery, Matosinhos: 5/08, Conferência Internacional de Clarinetes, positora em Residência da OU 2011)
Pedro Carneiro e Quarteto de Matosinhos. Los Angeles: Estreia de peça para clarinete, de
Ends Meet, de Luís Tinoco. Andreia Pinto-Correia 22 e 23/10, Teatro Gil Vicente, Coimbra:
(encomenda de Derek Bermel). Coro Sinfónico Lisboa Cantat. Dir. Jorge Alves.
25/06, 21h30, Festival Cistermúsica: Despontar   Trovas de Garcia de Resente pela morte de Inês de
do Barroco. Coro de Câmara da Universidade de 06/08, 21h00, Igreja Paroquial de Vilar de An- Castro de Paulo Bernardino e Pedro Janela.
Lisboa. Pedro Castro, Charamela. Duncan Fox, dorinho, Vila Nova de Gaia: 1º Ciclo de Órgão e
Violone. Hélder Rodrigues, Sacabuxa. Flávia Música de Câmara (Concerto de Encerramento). 22/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:
Almeida, Cravo. Obras de João Lourenço Rebelo. Capella Duriensis, direcção: Jonathan Ayerst. Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir.
Obras de Frei Manuel Cardoso. Entrada livre. Peter Rundel. Christoph Prégardien, tenor. Obras
26/06, 17h00, Mosteiro da Batalha: Ensemble de Emmanuel Nunes (Seuils – estreia mundial;
Concertante de Guitarras, dir. José Mesquita 20/08, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus Poly- Musivus - estreia portuguesa da versão completa).
Lopes. Orquestra de Flautas do OLCA. Inclui obra phoniae”. Capilla Flaminca (com Fernando Miguel
de Celso Machado (arr. de J. Mesquita Lopes). Jalôto, órgão). Programa dedicado ao 23/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:
casamento da Infanta Dona Isabel de Portugal com Coro Casa da Música, dir. Simon Carrington.
o Duque Filipe, o Bom da Borgonha, em 1430. Obras de Filipe de Magalhães, Duarte Lobo,
Carlos Seixas, Dias Melgás.
JULHO   
24/08, 13h00, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus
Polyphoniae”. Ludovice Ensemble. A fine consort 25/10, 19h30, Sala Suggia, Casa da Música:
1/07, 21h30, Auditório José Neto, Orfeão de Leiria:
and harmony for viols, virginals, and voices - Portuguese Remix Ensemble Casa da Música, dir. Emilio
Concerto Final do IV Encontro Nacional de
Consort Music. Obras de Leonora Duarte (ca.1610- Pomàrico. Sonia Wieder-Atherton, violoncelo.
Ensembles de Guitarra. Programa inclui obra de
1678), Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Manuel António Augusto Aguiar, contrabaixo. Programa
Celso Machado (arr. de J. Mesquita Lopes).
Cardoso, Estêvão de Brito e Estêvão Lopes Morago. inclui nova obra de Ângela Ponte.
2/07, Convento dos Capuchos, Almada:
25/08, Antuérpia, Bélgica: Festival “Laus Polypho-  
Sete Lágrimas. Diaspora.pt
niae”. Ensembles Oltremontano, dir. Wim Becu, NOVEMBRO
2/07, Porto: Coro Anonymus, dir. Fernando Lapa. e La Columbina, com Miguel Jalôto. Programa
Concerto de maestros compositores. recria as Vésperas de Natal no Mosteiro de Santa Novembro, Festival Hôtel des Deux Couronnes,
Cruz de Coimbra, no início do século XVII, com Vevey, Suíça: Inclui Six mélodies d’après Teiko -
5/07, local a designar. Orquestra de Cascais e obras de D. Pedro de Cristo. versão para piano e canto - de Chagas Rosa.
Oeiras, dir. Nikolai Lalov. Uma Pequena Serenata  
Diurna (estreia), de Sérgio Azevedo. 7/11, Palácio Foz, Lisboa e 12/11, Museu da Música:
Concerto mpmp:
SETEMBRO Lançamento da glosas #4.
8/07, 21h00, Sala Suggia, Casa da Música:
II Prémio Internacional Fundação Casa da Música 9 e 17/09, Centro Cultural de Belém, Mosteiro
Música / Suggia. Orquestra Sinfónica do Porto dos Jerónimos e outros, Festival Música Viva 2011 11/11, Praga: Festival Contemplus. Miso
Casa da Música, dir. M. Sanderling. Obra de Ânge- Ensemble: Itinerário do Sal de Miguel Azguime.
la Ponte * (estreia; encomenda da Casa da Mú- 29/09, 30/09, 1/10, Convento dos Capuchos,
sica). * Jovem Compositora em Residência 2011 Caparica: II Simpósio Internacional de Musicolo- 13/11, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:
gia Histórica. “Maria Bárbara de Bragança: Infanta Rinaldo Alessandrini, cravo.
9/07, 21h30, Teatro Sá da Bandeira, Santarém: de Portugal: Rainha de Espanha”. Prof. Dr. Gerhard Programa inclui duas sonatas de Carlos Seixas.
estreia de ainda não vi-te as mãos, ópera de câmara Doderer (Presidente) / Prof. Dr. Begoña Lolo
de E. L. Ayres d’Abreu. Solistas: Ariana Russo, (Universidade Autónoma de Madrid) / Prof. Dr. 19/11, Teatro Nacional de São Carlos:
Ana Atalaya, Luís Pereira e André Baleiro. Francesc Bonastre (Universidade Autónoma de Orquestra Sinfónica Portuguesa. Programa inclui
Barcelona). Direcção Artística: Jenny Silvestre. Onze Cartas, para orquestra, três narradores
10/07, Póvoa de Varzim: (pré-gravados) e electrónica, de António Pinho
Festival Internacional de Música. Vargas (estreia mundial; encomenda
Programa inclui Música Festiva nº 14 de Lopes- CdM/TNSC/CCB).
-Graça. Piano: Raúl Peixoto da Costa. OUTUBRO  
  20/11, Basílica de Nossa Senhora de Fátima:
12/07, Festival de Música de Caldas da Rainha. Out/Nov, Festivais de Outono, Aveiro: Coro Sinfónico Lisboa Cantat, dir. Jorge Carvalho
Carolina Matos, violoncelo. Programa inclui Inclui obra de A. Chagas Rosa (A boca para fagote, Alves. Programa inclui Cristo Rei, do Cónego
estreia de Huudelf, para violoncelo, de D. Schvetz. em versão multimédia). Ferreira dos Santos
(estreia mundial - a confirmar).
20/07, Mosteiro de Santa Clara-a-Velha: 1/10, 18h00, Sala Suggia, Casa da Música:
3.º Festival das Artes de Coimbra. Sete Lágrimas. Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, dir. 26/11, Idanha-a-Nova: Sete Lágrimas. Mediterrae:
As vozes e as lágrimas humanas (Silêncio e estreia Christoph König. Programa inclui Onze Cartas, Devoção e amor no eixo latino mediterrânico.
de Romance de Inês (título provisório), de João para orquestra, três narradores pré-gravados e
Madureira e José Luís Peixoto). electrónica, de António Pinho Vargas (estreia, 27/11, Theatro Circo, Braga:
encomenda CdM/TNSC/CCB). ExpressOriente Duo (Carlos Lima, guitarra; Gil
23/07/2011, 21h30, Póvoa de Varzim: Magalhães, flauta); Oxana Chvets, violoncelo;
Festival Internacional de Música. Sond’Ar-Te 7/10, Birgu, Malta: Sete Lágrimas. Mediterrae: Nuno Aroso, percussão. Programa inclui 04
Electric Ensemble. Transmutations, para piano e Devoção e amor no eixo latino mediterrânico. Linha Oriente, para flauta, guitarra, violoncelo,
electrónica, de Pedro Amaral.   percussão e electrónica, de Pedro Junqueira Maia
14/10, Carnegie Hall, Nova Iorque, EUA: (estreia absoluta) e Yinnay, para flauta, guitarra,
24/07, Ravenna, Itália: Sete Lágrimas. Sessão de abertura do Festival de Música Con- violoncelo, percussão e electrónica, de Rui Dias
Mediterrae: Devoção e amor no eixo latino temporânea de Nova Iorque. Estreia de Elegia a (estreia absoluta).
mediterrânico. Al-Mutamid, de Andreia Pinto-Correia.

glosas, #3 | 11
(1924-1988)
in memoriam
Joly Braga Santos ao piano acompanhando a sua mulher, em casa da sua amiga de juventude Carmélia Âmbar, em Milão
Joly Braga Santos: criar música
como as árvores dão frutos
Sérgio Azevedo

Prelúdio talento melódico extraordinário, que atingirá o seu pico


no hino final da 4.ª Sinfonia, um dos finais mais belos e
Joly Braga Santos foi um dos casos mais inequí- empolgantes de toda a música ocidental (pesei bem a
vocos de precocidade, originalidade e instinto musical de hipérbole), um final que só não é pertença de toda a hu-
que há memória na música portuguesa. Podemos pensar manidade porque, e aqui tocamos no ponto sensível de
que os restantes três compositores mais significativos da todos os compositores portugueses, a nossa música nunca
primeira metade do século XX português – Luís de Freitas logrou internacionalizar-se. O fascismo, por um lado, que
Branco, Fernando Lopes-Graça e Frederico de Freitas – isolou o país, a própria posição periférica de Portugal, por
revelaram proezas de precocidade musical desde muito outro, e ainda um atávico e incompreensível menosprezo
cedo, porém, exceptuando talvez Freitas Branco com o por tudo aquilo que é nacional, aliado a um snobismo en-
poema sinfónico Vathek, nenhum dos outros conseguiu tusiástico por tudo o que vem de fora – seja mau seja bom –,
com tamanha facilidade criar obras tão monumentais e impediram que Joly Braga Santos atingisse o lugar que
complexas como as primeiras quatro sinfonias que Joly é o seu na música europeia do século XX, um lugar que
Braga Santos escreveu entre os 22 e os 26 anos, para já poderia perfeitamente disputar com Walton, Vaughan
não mencionar as muitas outras obras significativas com- Williams ou Sibelius, para citar apenas três dos nomes
postas durante esse período fértil, como as primeiras duas com os quais a sua música mostra parentescos estilísticos.
Aberturas Sinfónicas (1946 e 1947), o 1.º Quarteto de Cordas
(1945), a cantata A Conquista de Lisboa (1947), ou a Ele- O caricato desta situação revela-se-nos no apreço
gia a Vianna da Motta (1948). Ainda antes de completar que nos últimos anos a crítica inglesa e norte-americana
30 anos, uma idade na qual muitos outros compositores tem mostrado para com as edições discográficas que têm
começam tão só a descobrir o seu estilo de maturidade, dado a conhecer, em versões muito mais favoráveis dos
Joly Braga Santos terá ainda tempo para escrever duas das que as versões da PortugalSom (imprescindíveis, ainda
suas obras mais populares e conseguidas, as Variações sobre assim, durante quase 30 anos, para o conhecimento bási-
um Tema Alentejano e o Concerto em Ré para Cordas (ambas co, mesmo que imperfeito, do compositor), – um apreço
de 1951), a primeira ópera, Viver ou Morrer (1952), e ainda que destoa completamente da atenção oficial e das pro-
a derradeira das Aberturas Sinfónicas, a nº3 (1954). Ou seja, gramações portuguesas, nomeadamente no que toca à
cerca de trinta obras nos primeiros dez anos de carreira música sinfónica e à ópera. Tal como todos os restantes
(o opus 1 data dos seus 18 anos), muitas das quais orques- compositores portugueses, a música de Joly Braga Santos
trais, e escritas nos mais diversos géneros, da sinfonia à nunca foi publicada, circulando em cópias manuscritas
ópera, das variações e do bailado ao concerto e à abertura feitas quer a partir dos originais do compositor quer dos
sinfónica, da música de câmara aos ciclos vocais e à música materiais dos copistas que realizaram os materiais orques-
de cena e de cinema. trais. A própria legibilidade de cópias feitas a partir de
outras cópias, de fotocópias gastas e rasuradas por ensaios
Se insisti tanto nestas primeiras linhas na preco- e outras provações chegou a um ponto tal que, muito re-
cidade, abundância e variedade do catálogo de Joly Braga centemente, os músicos da Orquestra Gulbenkian quase
Santos, foi porque estas características se revelam na se recusaram a tocar a 4.ª Sinfonia por causa da má quali-
sua música, que é de uma generosidade ímpar na nossa dade dos materiais.
história. Antes da década de 60, que trará a Joly, tal como
a Lopes-Graça, dúvidas existenciais relacionadas com Junto do público e dos intérpretes, Joly Braga
as novidades das vanguardas de Darmstadt, a música do Santos foi sempre, no entanto, o compositor português
compositor não mostra sinais nem de dúvidas nem de mais acarinhado e tocado, se exceptuarmos o Lopes-
grandes hesitações estéticas. Ela é apenas aquilo que tem -Graça das obras corais a cappella, como as Regionais, e
de ser: genuína, directa e verdadeira. Como uma árvore das obras para piano, o que também não admira, não só
dá frutos, Joly escreve sinfonias e concertos uns atrás devido à qualidade intrínseca dessas obras, mas também à
dos outros, sempre inspirado, e revela nessas obras um quantidade de pianistas e formações corais portuguesas,

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

e ainda ao facto de Joly Braga Santos pouco ou nada ter sário da Revolução fascista de 28 de Maio de 19261). Isto
contribuído para qualquer um desses géneros. O melhor possibilitou uma regularidade e um esforço direccionado
de Joly Braga Santos está na música orquestral, e essa para a música orquestral - género sempre pouco requi-
ainda é pouco tocada em Portugal, se exceptuarmos obras sitado - que teria sido praticamente impossível não fora
menores, como o Nocturno, ou na música para orquestra essa oportunidade que alijou o compositor de tempo per-
de cordas, como o Concerto em Ré, esse sim, bastante in- dido para aulas ou para outras ocupações nobres, mas não
terpretado. Somente nos últimos anos novas versões dis- criativas, e que só o iriam afastar da sua mesa de trabalho.
cográficas das obras orquestrais (levadas a cabo sobretudo
por Álvaro Cassuto) e uma nova geração de maestros (en- Fuga
tre os quais Pedro Neves, Cesário Costa, Luís Carvalho
e Joana Carneiro, entre outros) têm vindo aos poucos a Em geral, divide-se a sua vida criadora em, pelo
dar nova vida a estas obras. Está também no seu começo menos, duas fases: a primeira fase, mais lírica, mais modal
a publicação em partitura das obras mais significativas, e mais tradicional em termos de formas e géneros, cul-
em versões revistas e de boa qualidade gráfica, o que irá minaria na 4.ª Sinfonia, escrita em 1950 (a seguinte viria
possibilitar nos anos vindouros um aumento da procura somente quinze anos depois), mas prosseguiria pelos anos
junto da comunidade musical internacional, uma inicia- 50. O começo da década de 60, com obras mais densas,
tiva da editora AvA - Edições Musicais (até agora sem mais cromáticas e menos melódicas (no sentido tradicio-
apoio algum do Estado), em conjunto com os herdeiros nal), obras como a ópera Mérope (1958) ou o Concerto para
do compositor. Assim, dentro de pouco tempo, teremos à Viola e Orquestra (1960), representaria uma fase direccio-
disposição em CDs de boa qualidade interpretativa e em nada para a apreensão das novidades técnicas das vanguar-
excelentes gravações de etiquetas internacionais (Marco das, nomeadamente o uso de cromatismo extenso, clusters,
Polo, Naxos, Dux, etc.), bem como em partitura, pra- efeitos orquestrais específicos (glissandi, técnicas expan-
ticamente todas as obras relevantes de Joly Braga Santos, didas, etc.), resultando num compromisso nem sempre
à excepção da ópera e das obras corais-sinfónicas, um feliz entre a natureza lírica e expansiva do compositor e a
domínio onde ainda há muito por fazer, e que conta com secura e agressividade de muita da música inspirada pelos
três óperas (Viver ou Morrer, Mérope, Trilogia das Barcas), gurus de Darmstadt, como Nono, Boulez e Stockhausen.
várias cantatas e ainda um Requiem (1964).
Se partilho superficialmente desta divisão básica,
As novas tecnologias (de software musical, nomea- reconhecendo que existe claramente a partir dos anos 60
damente) e melhores e mais baratas oportunidades de uma progressiva inflexão no sentido da exploração e ex-
gravar CDs em boas condições técnicas e com boas or- pansão da harmonia e do cromatismo, a qual quase nunca
questras, condições que Joly (e os restantes compositores afasta por completo a tendência para o lirismo melódico,
portugueses) não podia desejar ter na altura, foram fun- já não concordo com a ideia de uma divisão estanque en-
damentais para esta mudança de paradigma, que abrange tre as duas “fases”. Pelo contrário, neste particular estou
também muitos outros compositores de todas as épocas, inteiramente do lado de Alexandre Delgado - aluno di-
e que me levam a pensar que, mesmo nestes tempos difí- lecto de Joly Braga Santos – que nos diz o seguinte: A obra
ceis, a composição em Portugal, passada e actual, vive um mais importante que Joly Braga Santos escreveu a seguir à 5.ª
momento de ouro, um momento que nunca viveu antes. Sinfonia foi a ópera Trilogia das Barcas, baseada em Gil
Vicente e estreada em 1970. Essas duas criações radicalmente
Não obstante todas as dificuldades da vida mu- diferentes, escritas tão próximo uma da outra, mostram como é
sical portuguesa da época, Joly Braga Santos conseguiu, inexacta a divisão estanque da produção de Joly em duas fases,
ainda assim, oportunidades únicas para trabalhar, vi-
vendo quase sempre em exclusivo da composição graças 1) Embora muito esteja ainda por estudar, e falte, como de costume,
uma biografia completa e abrangente de Joly Braga Santos que permita
às bandas sonoras para filmes e ao emprego na Emissora reflectir sobre as posições ideológicas e políticas do compositor, nada
Nacional (devido em parte a Pedro do Prado) que consistia indica que fosse um apoiante do Estado Novo. A própria 5.ª Sinfonia,
basicamente em compor obras orquestrais, oportunidade uma das suas obras mais dissonantes e radicais, está a léguas da estética
que, por razões óbvias, nunca foi concedida a Fernando acarinhada pelo Estado Novo, e pode até ser interpretada como uma
reflexão musical sobre a brutalidade dos tempos, não obstante o acorde
Lopes-Graça (e que colocou por vezes Joly Braga Santos de Mi maior com que termina, que dá ao final um tom aparentemente
em situações embaraçosas, quando foi literalmente força- “optimista”. Joly Braga Santos tomou inclusive algumas posições cora-
do a escrever a 5.ª Sinfonia - sob risco de perder o emprego, josas, como a de apoiar - sendo ainda um mero estudante - o seu pro-
fessor e mentor Luís de Freitas Branco, quando este foi afastado do
o único que tinha - para as comemorações do 40º aniver-
Conservatório.

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

uma primeira modal e uma segunda de livre cromatismo. A Do ponto de vista da orquestração, sempre eficaz,
versão operática dos autos vicentinos, escrita em plena fase embora numa linha menos brilhante e pormenorizada do
«atonal», é de um modalismo radioso, retoma o diatonismo das que a de Stravinsky ou Ravel, Joly Braga Santos revela-se
quatro primeiras sinfonias de uma forma que nada tem que ver um manipulador original de timbres, um sinfonista e or-
com a vanguardista explosão cromática da 5.ª Sinfonia.”2 questrador nato, cuja expressão mais natural é claramente
a grande orquestra sinfónica e a expansividade que esta
Muitas outras obras de carácter díspar poderão permite. A escrita para os metais é particularmente arro-
ser cotejadas nestas duas décadas, de 60 e 70, pares que jada (ouçam-se por exemplo as Variações sobre um Tema
provam, se tal fosse necessário, que Joly Braga Santos não Alentejano e o andamento final da 4.ª Sinfonia), enquanto
só nunca abandonou a sua primeira e verdadeira natureza, que as cordas têm em Joly alguém que as compreende e
como fez coexistir obras mais experimentais com outras sabe como as misturar e fazer sobressair, como demons-
de índole contrária, tais como os pares Divertimento n.º1 tram duas das obras mais belas que lhes dedicou, o Con-
/ Concerto para Viola e Orquestra (1960) ou Encruzilhada / certo em Ré e a Sinfonietta.
Variações Concertantes (1967). A 6.ª Sinfonia (1971), a úl-
tima de todas, mostra também, tal como já o Concerto para Do ponto de vista do lirismo, Joly Braga Santos é
Viola e Orquestra, que dentro da mesma peça são possíveis também um melodista nato, possuidor de um estilo muito
momentos cromáticos e momentos diatónicos, sem que próprio, caracterizado pelo uso de um grupetto de appog-
o aparente conflito entre ambas as técnicas não possa, giature, normalmente descendentes, no início das frases,
nas mãos de um mestre como Joly, resultar numa riqueza ou perto do fim destas. O uso de ostinati e de harmonias
estética eivada daquela ambiguidade e tensão que toda a por quartas e quintas, recusando sempre a banalidade
grande arte não pode deixar de conter para almejar ao tonal dos acordes de sétima e da sensível, e o modalismo
universal, porque nada é simples neste mundo. arcaizante concluem este apanhado de características es-
tilísticas, às quais se poderá ainda juntar uma facilidade
Para o grande público e para os intérpretes, não para o contraponto que, sem sufocar nem “academizar”
restam dúvidas, porém, que é para a primeira fase, a das demasiado as primeiras obras, lhes aumenta o travo neo-
primeiras quatro sinfonias, do Concerto em Ré e das Vari- -renascentista, como é o caso do final da 3.ª Sinfonia, com as
ações sobre um Tema Alentejano que vai a preferência. Neste suas duas fugas, ou o último andamento do Concerto em Ré,
aspecto, a obra de Joly sofre o mesmo destino que as obras para só mencionar estas duas obras. A fuga, uma técnica e
mais radicais dos grandes compositores do século XX, uma textura tornadas obsoletas pelas vanguardas, mas que
como Bartók, Britten ou Stravinsky, de quem o grande tinham tido uma ressurreição espantosa entre os anos 20
público continua a preferir o Concerto para Orquestra à e 40 devido ao neoclassicismo então adoptado por muitos
Música para Cordas, Peter Grimes a Morte em Veneza, O Pás- grandes compositores (basta lembrar as fugas da Música
saro de Fogo à Sinfonia de Salmos. para Cordas, Percussão e Celesta de Bartók, ou da Sinfonia de
Salmos de Stravinsky), caía agora, anos 50, no mais com-
As primeiras obras de Joly caracterizam-se, pois, pleto desprezo, incompatível como era com as novas preo-
por um modalismo muito português, que o jovem com- cupações técnicas e estéticas de Boulez ou Stockhausen.
positor herda não só do seu mestre Luís de Freitas Branco Não obstante, Joly consegue o milagre de, nas palavras
(nomeadamente de obras como a 2.ª Sinfonia, ou as Suites de Alexandre Delgado (uma referência incontornável no
Alentejanas), mas também da tradição gregoriana, do fol- que a este compositor concerne), tornar “fresco” um tipo
clore alentejano, da nossa música medieval e renascen- de composição já tão esgotado: Neste último andamento [3.ª
tista, e ainda de compositores como Sibelius (6.ª Sinfonia), Sinfonia], Joly escreveu uma dupla fuga com uma frescura
e dos ingleses Ralph Vaughan Williams, William Wal- que já não se julgaria possível nos anos 40 do século XX. A 6.ª
ton e Frederic Delius, dos quais herdará também a sua Sinfonia de Sibelius (1923), com os seus arcaísmos e subtilezas
tendência inicial para a monumentalidade expansiva (as renascentistas, é uma das influências prováveis. Mas a influên-
primeiras quatro sinfonias possuem uma duração média cia do Alentejo, onde esta obra foi escrita, é também evidente e
de quase cinquenta minutos, o que à época, e só por si, já produz uma simbiose invulgar.”3
se tornara pouco habitual). As formas e géneros são tam-
bém os tradicionais: forma-sonata, rondó, ABA, varia- Não obstante Delgado considerar a 3.ª Sinfonia
ções, abertura, fuga, sinfonia, quarteto de cordas... (1949) “a mais perfeita e equilibrada das sinfonias «modais»
de Joly Braga Santos”, e talvez no aspecto técnico assim seja,
2) A Sinfonia em Portugal, Caminho, 2002, 2ª ed., p.241 3) Idem, p.219

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

considero que é na 4.ª Sinfonia que coexistem todas as qua- a sua inesgotável veia melódica a empregar temas de ou-
lidades do seu autor a um nível até aí nunca atingido trem, mesmo que esse outrem fosse o tão apreciado corpo
(excepto talvez no final da 3.ª Sinfonia, final apoteótico que anónimo das melodias tradicionais russas. Prokofiev, não
a nova obra leva ainda mais longe). Não é por acaso, como obstante a sua relutância, não evitou por completo o uso
dissemos, que entre a 4.ª Sinfonia e a seguinte tenham pas- de melodias oriundas do folclore, mas em geral fê-lo por
sado quase 16 anos sem novas obras neste género tão caro pressão dos tempos (i.e. o Realismo Socialista então vi-
ao compositor, nem que a estreia da “Quarta” tenha sido gente na URSS) ou por encomenda (como na Abertura so-
feita pelo próprio Joly Braga Santos, à frente da Orquestra bre Temas Judeus). Obras como o 2.º Quarteto de Cordas ou o
Sinfónica Nacional, enquanto que o resto do programa bailado The Stone Flower são disso bons exemplos.
foi dirigido por Pedro de Freitas Branco. A 4.ª Sinfonia foi
ainda composta e estreada praticamente ao mesmo tempo No entanto, algumas obras de Braga Santos, até
que as duas obras mais populares do compositor e mais fre- por essa razão, são significativas, nomeadamente o belís-
quentemente executadas, o Concerto em Ré (1951) e as Va- simo Divertimento n.º1 (1960), para pequena orquestra,
riações sobre um Tema Alentejano (1951), e apenas um ano e uma das obras mais felizes do compositor, que usa quatro
meio antes da primeira ópera, Viver ou Morrer. Estes dois melodias tradicionais e as combina num trabalho polifó-
ou três anos, entre 1949 e 1951-52 são, pois, anos de ouro nico original e extremamente eficaz, em mais um daque-
numa carreira que já produzira um número significativo les momentos que provam, se necessário fosse, a con-
de obras de grande relevo, e estabelecem definitivamente sumada mestria contrapontística do seu autor (ver página
o estilo de Joly Braga Santos e a sua proeminência entre os seguinte). Contemporâneo deste Divertimento, composto
compositores do século XX português. no mesmo ano, 1960, e uma das melhores obras que se

Hino final da 4.ª Sinfonia

O hino final da 4.ª Sinfonia, mais tarde adaptado podem incluir entre aquelas que revelam o interesse cres-
a final coral (sobre um poema medíocre de Vasconcelos cente de Joly pelo cromatismo expandido, é o Concerto para
Sobral, verdade seja dita4), coroa e fecha esta fase gloriosa, Viola. De entre os três concertos escritos pelo compositor
da juventude de Joly. para instrumentos solistas (piano, viola, violoncelo), este
é claramente o mais conseguido, e um dos mais notáveis
Não obstante o interesse pelo Alentejo, pela (e não temo, novamente, a só aparente hipérbole) de todo
tradição renascentista e pelo gregoriano, Joly Braga San- o século XX. O piano nunca foi o instrumento favorito de
tos raras vezes recorreu ao folclore autêntico. A sua cria- Joly Braga Santos, que sempre se exprimiu melhor, como
tividade melódica não necessitava de ajudas externas, e afirmámos, no meio orquestral, e o Concerto para Piano
nesse campo ombreia com Prokofiev, que preferia usar (1973) sofre desse desinteresse e de um pianismo pouco
4) adequado. Já o Concerto para Violoncelo, uma das últimas
Juventude, pura juventude / A Manhã, o Amor / obras do compositor (1987), a cuja estreia tive a oportuni-
Tão do fundo Pátria vertical / A crescer em esplendor. // dade de assistir, na Fundação Calouste Gulbenkian, sofre
Levemente num caminho novo / Onde o cântico é dom /
Poderoso dom de ser-se leve, / Alva flor de som. //
um pouco dos problemas inerentes a este instrumento (o
Juventude pássaros no sangue, / Ó incêndios de luz! / equilíbrio solista/orquestra), mas mais ainda de uma at-
P’la distância ‘inda mais além / Que à distância conduz. // mosfera sombria e de um melodismo menos inspirado do
Labaredas no destino onde / Jovens ó por Amar! /
que o costume, um melodismo que “quebra” mal se inicia,
Destruindo o barro que vos esconde / Com um só vosso olhar. //
Amor, ó Dom, / Indestrutível Dom, mais além / só revelando os seus encantos depois de audições repeti-
/ Oh, no espaço Amar. // das (em particular os primeiros dois andamentos, menos

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

À maneira de um concerto grosso bar-


roco, alternando solistas com tutti, Joly combina
no segundo andamento os temas 2 e 3 do exemplo
à esquerda, dois temas muito distintos entre si, e
entrelaça-os numa teia de linhas contrapontísticas
que, não obstante a complexidade da textura, é sem-
pre clara, deixando cada voz perfeitamente audível,
uma preocupação que Joly nunca deixou de ter, e
que ajudará a sua música a tornar-se popular entre
o público e os intérpretes, que sentem que o composi-
tor não trabalha apenas para si próprio, mas tam-
bém para quem o ouve, e procura que a Música fale
sempre acima dos pormenores técnico-estruturais.

acima: excertos do Divertimento n.º1

acima: excerto do Concerto para Viola

líricos que o terceiro), e que dificilmente conquistará a eleição, sendo a interpretação da violetista a única exis-
afeição do público musicalmente menos informado. É, tente no mercado (em gravação de 1981). O Concerto
pois, uma obra que funciona melhor em disco do que ao para Viola equilibra, a meu ver, as tendências modais e
vivo, graças à possibilidade de a gravação equilibrar efi- cromáticas de Joly Braga Santos, num todo coerente e
cazmente o solista com a orquestra, embora não seja, de muito atraente, pese embora o tom grave que, de qualquer
todo, uma obra negligenciável5. Não obstante, e ao con- modo, costuma ser o atribuído ao mais melancólico dos
trário do Concerto para Viola, dificilmente o Concerto para instrumentos.
Violoncelo poderá ombrear com as melhores obras deste
género e deste período, nomeadamente com o 2.º Concerto O início da obra, um tema orquestral que sugere
de Shostakovich, ou mesmo, numa linha mais neoclássica um modalismo gregoriano cromaticamente expandido,
e folclorista, com o fácil Concierto como un Divertimento muito característico do autor nesta fase, é rapidamente
(1981), de Joaquín Rodrigo, a cuja estreia portuguesa desenvolvido, antes da entrada da viola (que, por uma
também tive a sorte de assistir algum tempo antes da es- vez, mostra alguns ecos de outro compositor especí-
treia do concerto de Joly Braga Santos. fico, neste caso Hindemith, o que não é de admirar) em
direcção a uma pequena explosão cromática, após o que
Mas voltemos ao Concerto para Viola, o ponto alto a viola pacifica as hostes e faz a música regressar a uma
da música concertante de Joly Braga Santos, e uma obra ambiência modalizante, também ela arrastada aos pou-
de charneira, que marca a passagem entre a década de 50 cos para harmonias mais densas e cromáticas. Para além
e os anos 60 e 70. Dedicada ao ilustre violetista François de Hindemith, ecos de Shostakovich e Holst podem ser
Broos, que a estreará no TNSC (com a Orquestra Sinfóni- descobertos, se para aí estivermos virados, mas trata-se
ca da Emissora Nacional dirigida pelo autor), o Concerto apenas disso, de meros ecos, que em nada prejudicam a
para Viola terá em Anabela Chaves a sua intérprete de extraordinária originalidade de Joly Braga Santos.

5) Questões que nada terão que ver, creio, com a idade e eventuais Tudo isso é, no entanto, feito com mestria, nunca
problemas de saúde do compositor, porquanto a derradeira obra or-
questral (e a penúltima) que escreveu, o Staccato Brilhante, é uma tendo nós, auditores, a impressão de incoerência ou de
pequena pérola de humor e musicalidade. E também não se depreenda falta de controlo do resultado. A secção central, rápida, do
das linhas acima que considero, pessoalmente, o Concerto para Violonce- 1.º andamento, é dominada por uma ideia quase popular,
lo uma obra de menor qualidade. Aliás, é uma das que eu mais aprecio,
com laivos de música renascentista de dança, uma carac-
na sua ambiência soturna e grave, mas reconheço que dificilmente se
tornará numa das obras mais tocadas e queridas de Joly Braga Santos terística do autor desde as primeiras obras, aqui levada a
junto do público melómano, com muita pena minha. um ponto de sofisticação e integração ímpar, e que voltará

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

a repetir-se mais tarde nessa secção, numa reprise que con- contrária: as vanguardas radicais dos anos 60 morreram,
duzirá ao fim deste massivo andamento, tão longo como e o público, que nunca abandonou os seus gostos tradi-
o terceiro (dez minutos) e que rodeia um frágil scherzo cionais, foi vingado, por vezes de forma injusta para com
(marcado Allegro energico) com metade desse tempo. Este grandes criadores da modernidade, como é característico
andamento central, embora escrito em 1960, é mais um de todas as revoluções.
daqueles momentos que, tal como afirmámos atrás, podia
perfeitamente pertencer à fase mais modal do compositor, Recorrendo novamente ao livro de Alexandre
só aqui e ali procurando uma maior dureza, mormente Delgado sobre a Sinfonia em Portugal, e a respeito da
nas poucas interrupções da orquestra, rapidamente des- 6.ª Sinfonia, subscrevo inteiramente a sua opinião sobre
mentidas pela viola, que impõe a sua ancestralidade mo- este assunto delicado: “Voltemos ao ano de 1972, em que Joly
dal/renascentista e a alegria da dança. Braga Santos escreveu a sua última sinfonia. Joly cumpriu esta
encomenda numa fase difícil do seu percurso, em que se exa-
O terceiro e último andamento é como que um cerbou o conflito entre ser moderno e ser sincero. A 6.ª Sinfonia
espelho do primeiro, fazendo ressoar logo de início, nas é uma obra que reúne essas duas pulsões de uma forma tão ex-
cordas graves, o motivo principal com que já abrira o con- trema que o resultado, na sua junção de estilos musicais incom-
certo. A indicação de Allegro lamentoso denota a ambigui- patíveis, pode ser visto como pós-moderno, numa altura em que
dade emocional que esta obra carrega, entre a tristeza e essa tendência ainda mal despertara internacionalmente.”6
uma certa alegria melancólica, ambiguidade que se presta
maravilhosamente a ser expressa pela viola e transforma Lamentavelmente, e os leitores compreenderão
este concerto numa das mais belas prendas concedidas aos porquê, deixarei de parte comentários mais específicos
violetistas, não se compreendendo porque é tão raramente sobre as óperas e outras obras coral-sinfónicas (como o
tocado. E se me demorei tanto tempo nele foi porque o já mencionado Requiem) nesta breve panorâmica da obra
considero, não obstante tantas mais que poderia citar, de Joly Braga Santos, dado que não existem por enquanto
uma das melhores obras não só de Joly Braga Santos como gravações comerciais disponíveis, e que algumas das que
de todo o século XX no que a concertos para viola diz res- existem nos arquivos da RDP não são de molde, quer pela
peito. Com uma geração de excelentes jovens violetistas qualidade da execução quer pelas condições das gravações,
e maestros portugueses, com boas orquestras nacionais e a lançarem uma luz favorável sobre as obras. Sendo tam-
com o auxílio das edições que estão a ser preparadas pela bém este um artigo breve e não exaustivo, absolutamente
AvA - Musical Editions, espero que a situação comece a nada académico (sou compositor e admirador da obra,
mudar e que o Concerto para Viola de Joly Braga Santos ob- não musicólogo), que pretende tão-só uma panorâmica
tenha o lugar de destaque que sempre mereceu no reper- do percurso de Joly Braga Santos, preferi incluir nos co-
tório nacional e - porque não? - internacional. mentários detalhados apenas aquelas obras a que o públi-
co tem fácil acesso.
As décadas de 60 e 70 serão dominadas (embora
não exclusivamente, como vimos) por obras mais experi- Sendo assim, terminarei esta breve panorâmica
mentais, mais cromáticas, algumas das quais sofrem, não considerando algumas obras escritas a partir dos anos 60
direi de uma falta de sinceridade, porque nunca ninguém que considero excepcionais, tirando as acima menciona-
obrigou naturalmente Joly Braga Santos a subscrever das pelas razões expostas, deixando também agora de lado
estéticas que não eram as suas, mas de uma tentativa de as sinfonias, dado que nesta edição da glosas estas obras já
compromisso entre o seu lirismo e modalismo atávi- são objecto de análise, e até pelo facto de, constituindo um
cos, e formas de expressão derivadas das várias linhas de ciclo, todas elas serem dignas de menção.
vanguarda que a partir dos anos 60 imperarão por todo
o mundo musical e artístico em geral. Joly Braga Santos As obras que considero, então, como das mais
ver-se-á um pouco na situação daqueles pintores figu- conseguidas nestas quase três décadas de labor criativo,
rativos que, subitamente, foram confrontados (não pelo desde o início dos anos 60 a 1988, ano da morte do com-
público, mas pelas galerias e “experts”) com o abstraccio- positor, são a Sinfonietta para cordas (1963), o bailado En-
nismo expressionista dominante. Adaptar-se ou morrer cruzilhada (1967), o Concerto para Violino, Violoncelo, Or-
foi para muitos a solução. Outros, que mantiveram intac- questra de Cordas e Harpa (1968), o Divertimento n.º2 (1978),
tas as suas estéticas, sofreram uma longa passagem por e o Staccato Brilhante (1988). Entre elas encontram-se três
um exílio espiritual que somente nos anos 80 se voltará obras para orquestra de cordas que continuam, agora de
novamente a seu favor. Actualmente estamos na situação
6) Ibid., pag.243

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joly braga santos: criar música como as árvores dão frutos | sérgio azevedo

forma mais complexa, a provar a mestria do compositor tudo apresentado aos ouvintes na forma de um estilo
neste meio difícil e tão frequentemente mal aproveitado. original e imediatamente reconhecível. Quanto ao bailado
A Sinfonietta é uma obra brilhante, cujo alucinante último Encruzilhada, escrito em 1967, e que teve coreografia de
andamento não deixa de provocar sempre o entusiasmo Francis Graça, é uma obra de trinta minutos para peque-
do público, com a sua mistura de modernidade e aces- na orquestra, uma orquestra clássica mas da qual Joly
sibilidade virtuosística. Tive a ocasião de a ouvir tocada Braga Santos extrai prodígios de sonoridade. O primeiro
ao vivo por excelentes músicos em Londres, em 1996, e quadro, uma endiabrada tarantela, contém uma das mais
é uma obra que pode ombrear com o que de melhor se memoráveis melodias do compositor, não por acaso afim
escreveu para orquestra de cordas no século XX. Já o Di- do estilo de William Walton (naquele que é, talvez, o mo-
vertimento n.º2, também para cordas, uma obra mais curta, mento de maior proximidade entre Joly Braga Santos e
possui um carácter mais abstracto. A ambiguidade entre outro compositor), que amava Itália a ponto de ter aban-
cromatismo e diatonicismo que já tive ocasião de relevar donado Inglaterra para ir viver num ilha do Mediterrâ-
a respeito de outras obras tem uma interessante fusão no neo, pertença desse país. A tarantela, uma dança que Wal-
curioso Concerto para Violino, Violoncelo, Orquestra de Cor- ton escreveu por diversas vezes, como que salta do meio
das e Harpa, uma formação rara, que hoje em dia se pode da orquestra após uma introdução rápida que estabelece
fruir num excelente CD da Naxos na série de obras de Joly uma atmosfera rítmica e moderadamente dissonante, com
Braga Santos que Álvaro Cassuto tem gravado nos últi- a qual a melodia dançante nos violinos vai estabelecer um
mos anos. Um primeiro andamento mais tenso e abstrac- contraste extremamente eficaz.
to liberta a sua energia num segundo andamento rápido
com algum sabor bartókiano, remetendo para obras como Poucas vezes, mesmo no “período modal”, terá
a Música para Cordas, Percussão e Celesta do ponto de vista Joly Braga Santos escrito uma música tão exuberante e
da formação instrumental. Mais um tipo de concerto grosso feliz, tão despreocupada e exaltante. Somente o Concerto
que denota o interesse de Joly Braga Santos pelo rico pas- em Ré, no último andamento, consegue esta felicidade
sado da música barroca, mesmo que, do ponto de vista solarenga. Não esqueçamos que as sinfonias, todas elas,
puramente musical, este período não seja tão audível no mantêm, em geral, uma ambiência solene, trágica ou
neoclassicismo do compositor como o renascimento em monumental, para a qual o modalismo contribuiu com
geral, ou o maneirismo seiscentista da Escola de Évora em a sua aura melancólica. Uma certa gravidade impera em
particular. Uma das razões que também impedem uma muitas das obras de concerto de Joly, gravidade que se tor-
maior difusão destas obras prende-se com a dificuldade nará ainda mais pesada a partir dos anos 60, como vimos,
crescente da música. Se o Concerto em Ré pode ser facil- pelo que estes raros momentos de felicidade completa são
mente interpretado por uma boa orquestra de alunos, já como que o tímido raio de sol que nos aquece o corpo, e a
qualquer outra das obras para cordas aqui citadas dificil- alma, num belo dia de Outono.
mente chegaria a um estado razoável de qualidade técnica,
quanto mais interpretativa. Somente executantes e or- Esta breve, necessariamente incompleta pano-
questras de topo podem tocar estas peças com qualidade, râmica, não podia ficar completa (passe a contradição) se
um problema comum a muita música escrita nos últimos não mencionasse a música de câmara, um corpo de obras
cem anos. não demasiado numeroso, mas que ainda assim conta com
algumas páginas importantes, nomeadamente os dois
Por fim, quer o bailado Encruzilhada, quer a der- quartetos de cordas (1945 e 1957), o Quarteto com Piano
radeira peça orquestral, Staccato Brilhante, se podem incluir (1957), a Aria a Tre con Variazioni (1984), a Suite de Danças
entre aquelas obras que qualquer público, seja ele muito (1984), o Trio para Piano, Violino e Violoncelo (1985), ou o
ou pouco informado, poderá apreciar. Pertencem àquela Sexteto (1986). Estas e outras obras do catálogo de câmara
categoria de peças felizes, inspiradas, cujos rasgos melódi- do compositor revelam uma outra faceta, mais intimista,
cos e ímpeto rítmico são contagiantes. O Staccato Brilhante mas que almeja quase sempre à monumentalidade e so-
impressiona também por ser a penúltima obra de Joly, em noridade da grande orquestra, meio privilegiado de Joly
plena posse das suas capacidades. Nos curtos quatro minu- Braga Santos. Como Prokofiev, que escreveu pouca músi-
tos que demora esta breve abertura (encomendada por ca de câmara mas de alta qualidade, a de Joly é escassa em
Álvaro Cassuto precisamente para essa função), o com- número mas notável do ponto de vista musical, sendo que
positor mostra pela última vez todas as características do tem ficado um pouco na sombra pelas mesmas razões que
seu génio: facilidade melódica, ritmos ostinato e fulgor or- a de Prokofiev ficou durante tantos anos: o brilho magní-
questral, fusão perfeita entre diatonicismo e cromatismo, fico, ofuscante, das obras para orquestra. •

glosas, #3 | 19
Permanecer fiel
à sua personalidade musical
entrevista de Alexandre Delgado a Piedade Braga Santos
transcrição de Duarte Pereira Martins e Philippe Marques

Podíamos talvez começar pelas origens fami- estabeleceu relações de casamento nomeadamente com a família
liares do teu pai... Batalha, dos ourives da Casa Batalha.
Primeiro do lado do pai, que talvez tenha tido mais A minha tia conta que o meu avô e a minha avó se
influência na vida dele, embora tenha falecido muito cedo. O terão conhecido num baile de Carnaval. Ele ficou apaixonado,
meu avô, António Braga Santos, vinha de uma família com pos- a minha avó em nova era muito bonita. Ela ofereceu alguma
ses: o seu pai, Manuel Joaquim dos Santos, tinha enriquecido resistência porque tinha tido um namorado que fora a grande
no Brasil. António e as duas as irmãs tiveram uma educação paixão da vida dela, mas tinha falecido na batalha de La Lys,
primorosa, tanto do ponto de vista literário como musical. As em 1918. Ficara, portanto, solteira aqueles anos todos, até ter
duas raparigas tocavam piano e o meu avô tocava violino. Se- mais de trinta anos. Na época não era uma idade casadoira…
gundo me disse a minha tia Leonor, irmã de meu pai, chegaram Pouco tempo depois de estarem casados nasce o meu
a colaborar com a Sociedade de Concertos e com a Academia de pai, em 1924, na moradia que tinham na Rua Pinheiro Chagas,
Amadores de Música. casa essa que já não existe. Sete anos depois, em 1931, nasce
uma filha, a minha tia Leonor.
De onde vinham os proventos da família? Mas o meu avô teve uma desgraça na vida: tornou-se
Esse avô brasileiro emigrou muito novo, com 14 anos, fiador de uma pessoa que não pagou a sua dívida e todos os
e fez fortuna na cidade de Santos, daí o ter mudado o nome de rendimentos e a pequena fortuna que lhe tinham cabido por
Baltazar para Santos. Voltou para Portugal nos anos 70-80 do herança foram para pagar isso (na altura 700 contos eram uma
século XIX, quando tinha uns 40 anos, para casar-se com uma fortuna – isto nos anos 20, mesmo a seguir ao casamento, ainda
rapariga que tinha conhecido por um retrato que um familiar antes de nascer o meu pai). Teve que vender a casa e o recheio
lhe tinha enviado. Ela vinha de uma família com algumas ter- todo para pagar a dívida e teve que, obviamente, arranjar um
ras na região de Santarém e foi na quinta da família que lhes emprego. Conseguiu um lugar na Rua das Escadinhas de São
nasceram os três filhos: o meu avô, António Braga Santos, e Cristovão, em plena Baixa, como guarda-livros e contabilista
duas irmãs. Uma delas, a tia Santana, casará mais tarde com o de uma empresa. Onde é que ele passava as tardes? Num sítio
famoso médico José Bénard Guedes, fundador do IPO e dos Hos- óbvio para tomar café, sobretudo um rapaz que era músico e que
pitais Universitários de Lisboa, e da Radiologia em Portugal também gostava de escrever os seus poemas nas horas vagas, ou
também. A outra, a tia Aurora, terá um casamento muito jovem seja, no Martinho da Arcada. Terá conhecido o Fernando Pes-
com um senhor inglês, também conhecido nos meios lisboetas, soa nessa época. Eu sempre suspeitei, pela maneira como o meu
um Shirley, do qual entretanto se divorcia porque ele, pelos vis- pai falava de Fernando Pessoa e do pai dele, e pela precocidade,
tos, era um doidivanas. A rapariga vai então como enfermeira apesar de tudo, das primeiras canções, que teria havido alguma
para a frente em 1917 e quando volta conhece o famoso médico relação familiar…
cirurgião José Paredes, de quem tem um filho, o actual cirur-
gião Fernando Paredes. Portanto, as duas irmãs do meu avô Que não é nada conhecida...
casaram e tiveram ligações com médicos de renome na época. Não, eu descobri isso há cerca de dois meses. Eles de
Entretanto o meu avô recebe a sua herança e casa-se, facto conheciam-se perfeitamente: o meu avô chegava a casa e
já tardiamente, por volta dos 37 anos, com a minha avó Vir- contava as suas conversas com o Pessoa e com os outros… Com
gínia Joly. Ela vinha de uma família de comerciantes da Baixa o Botto, e com toda a gente que frequentava o Martinho da Ar-
lisboeta, ourives de origem francesa que vieram para Portugal cada. Eu tentei, nos papéis que a minha tia conservou, verificar
em finais do século XVIII, no reinado de D. Maria I. Durante se havia alguma referência ou algum papel do Pessoa. Infeliz-
muito tempo, por causa das raízes do lado da minha avó e por mente, não. O que restou foram só poemas do meu avô, bonitos,
causa do nome do meu pai achei que eram de origem cristã-no- enfim, uma poesia amadora, mas bem feita, rimada. Nada de
va, mas não! Fui à Torre do Tombo verificar isso e nem de um especial, mas comovente porque se refere a muitos factos famili-
lado, nem do outro. O Joly é um nome comum no Sul da Bélgica ares e a outros da época, como, por exemplo, vitórias do Benfica
e no Norte da França. Essa família que se estabelece na Baixa e coisas muito engraçadas desse género. É um documento en-
de Lisboa em finais do século XVIII e que, felizmente, prospera, graçado sobre a época. E era realmente no Martinho da Arcada

20 | glosas, #3
permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

que ele escrevinhava os seus poemas, tal como os outros que o antes de adormecerem, e obrigava-os a decorar um poema. Daí
frequentavam. que toda a gente que conheceu o meu pai se lembra dele de-
Por coincidência, tanto pelo lado da mãe como pelo clamar estrofes d’Os Lusíadas, sonetos de Antero, vindos enfim
lado do pai os avôs do meu pai faleceram muito cedo. Deixa- daquele amor pela poesia que tinha.
ram, portanto, filhos menores. A minha avó Virgínia é póstu-
ma, o pai dela faleceu estava a mãe grávida; o meu avô António Isso veio então mais do lado do pai do que do
e as irmãs foram criados pela mãe viúva e tinham alguém para lado da mãe.
gerir a fortuna. É um milagre que duas senhoras viúvas, em- Completamente pelo lado do pai. A mãe também tinha
bora com alguns rendimentos, tenham conseguido criar de ma- tido uma boa educação mas era de facto o pai que se encarre-
neira capaz, e com sucesso, tanto de um lado como do outro, gava desta educação das crianças.
aquelas crianças.
A minha avó Virgínia tinha dois irmãos. Um deles
era muito conhecido em Lisboa nos anos 20 a 40: chamava-se
Augusto Joly e tornou-se falado por ter posto um processo à Câ-
mara de Alpiarça por causa da herança Relvas. Era corretor,
trabalhava na Bolsa e ele próprio conseguiu algum dinheiro.
Era uma personagem engraçada e que merecia, talvez, uma bio-
grafia.
Quando o meu avô António teve que vender a casa,
foi com a mulher e os dois filhos morar para casa da sogra, na
Rua Capitão Renato Baptista, entre os Anjos e o Campo dos
Mártires da Pátria; foi lá que o meu pai viveu até se casar em
1957.
Entretanto o meu avô sofria de dores de cabeça e de
alguns problemas de saúde e acabou por falecer precocemente
em Março de 1938. O meu pai já na altura andava no Con-
servatório, onde se inscreveu no ano lectivo de 36/37. Conta-me
a minha tia que nunca se pôs sequer a hipótese de o meu pai
continuar os estudos num sítio que não fosse o Conservatório,
porque desde muito pequeno o pai dele tinha percebido, tinha
entendido a vocação. Tinha-lhe dado aulas de violino e depois
tinha-o posto mesmo a ter aulas com um professor. Nunca se Joly Braga Santos com quatro anos, em Lisboa
pôs sequer a questão de ele seguir outra carreira que não fosse
a música e quando acabou a Escola Primária inscreveu-se ime- E a mãe tinha alguma ligação ao meio musical?
diatamente no Conservatório. Acabou a Primária um pouco Não, não. Era uma pessoa relativamente mais simples.
tardiamente, não sei exactamente porquê. É verdade que as cri-
anças, na época, entravam mais tarde para a escola e também é A morte do pai foi um grande choque.
verdade que o meu pai tinha recordações péssimas: ele detestou A morte do pai foi uma tragédia. Para já, o choque
a Escola Primária! Estamos a falar do princípio dos anos 30, emocional. E depois o choque financeiro. O tio Augusto Joly,
ou seja, da mudança para o Estado Novo. Portanto, uma escola irmão da minha avó, deu-lhes uma ajuda inicialmente: pôs a
duríssima do ponto de vista disciplinar. O meu pai era uma minha tia num colégio interno de freiras, onde ela fez o seu
criança irrequieta, distraída… curso e depois seguiu a carreira de assistente social. Mas o meu
pai, que já tinha 13 anos e estava no Conservatório, foi mais
Deve ter levado muitas reguadas… ou menos entregue à sua sorte, com imensos problemas de cons-
A personalidade que veio a adquirir mais tarde já es- ciência por ser ainda demasiado novo para poder trabalhar e
tava na infância, não é? A questão disciplinar deve ter sido para ajudar a mãe. A carreira dele no Conservatório foi extrema-
ele um sofrimento pavoroso. Mas a verdade é que lá concluiu a mente atribulada. Na época havia mais cadeiras de cultura ge-
Primária com louvor e distinção e entrou para o Conservatório ral do que há agora mas o que lhe interessava verdadeiramente
sem quaisquer problemas. Ele tinha o apoio do pai, que era um era aprender composição e cometeu talvez o erro, normal numa
homem culto e encorajava as crianças no amor pelas artes, pela criança de 13 anos que quer emular o pai, de se inscrever na
música e pela poesia. Todas as noites se sentava ao pé deles, cadeira de violino como instrumento.

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permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Que não era uma coisa muito natural para ele… Isso conduziu às aulas particulares com o Frei-
Não… O violino para ele foi um tormento. O professor tas Branco.
de violino idem, que era o velho Flaviano Rodrigues, enfim, A aulas particulares, porque ele queria andar para a
com aquela escola de violino antiga. Entretanto, inscreveu-se frente e o sistema do Conservatório arrastava-o, não encaixa-
também em piano porque se apercebe que o piano é igualmente va… Por insistência do próprio Luís, lá continua matriculado, lá
necessário para a composição, mas vai perdendo os anos, ou por vai fazendo uma cadeira ou outra, até que, em 45, surge aquela
faltas, ou por desistência. história estúpida, que eu não vou contar agora aqui porque já
foi contada várias vezes, do processo disciplinar, por parte do
Foi aluno de quem? Ivo Cruz…
Fez o primeiro ano de piano com Virgínia Vitorino.
Entretanto faz as cadeiras de Acústica e de História da Músi- Aquilo que o João de Freitas Branco conta no
ca com o Luís de Freitas Branco e é aí que eles se encontram artigo é exactamente o que aconteceu? O teu pai
pela primeira vez, logo em 1940: foi nessas duas cadeiras que terá dito que se recusava a levantar-se ‘porque
o Freitas Branco foi professor dele, no princípio dos anos 40. nenhum respeito lhe merecia um perseguidor
O primeiro professor de Composição que o meu pai teve foi o do seu mestre’ ?
Artur Santos. E eu suspeito que, além do João de Freitas Branco, Exactamente! E o meu pai achava que, estando em São
tenha sido este que tenha chamado a atenção do Luís para o Carlos, estava fora do domínio da autoridade do Ivo Cruz, com
talento particular do meu pai. O João de Freitas Branco con- toda a razão! E o Secretário-Geral dá razão ao meu pai! E diz
ta, no seu famoso artigo publicado na revista do São Carlos que a queixa do Ivo Cruz é improcedente. Só que o Ivo Cruz
(que ainda é, obviamente, um artigo de referência), que terá passa por cima do Secretário-Geral e apesar das cartas do Artur
chamado a atenção do pai para o caso do Joly que, de facto, Santos e de outros professores do Conservatório para o Secre-
andava a perder cadeiras e a perder um bocado o seu tempo tário-Geral da Educação dizendo que aquilo era um disparate
naquilo. Entretanto deu-se a reforma do Ivo Cruz, a chamada e que não se podia pôr na rua um aluno daqueles, que era uma
“contra-reforma”. O meu pai terminou as cadeiras do Luís com vergonha para o Conservatório, vai ao Ministro, ou ao Director
altas notas (16 e 18), portanto este já o conhecia como aluno mas Geral de Educação na época, que eram obviamente pessoas do
não o conheceria como compositor. E nessa altura ele já tinha regime, e pronto…
umas coisinhas escritas, que provavelmente terá mostrado ao
seu amigo João. O teu pai foi efectivamente expulso?
Foi efectivamente expulso.
Dessas tentativas prévias de composição, há
coisas anteriores à ida para o Conservatório? Pode dizer-se que o percurso académico dele fi-
Não, as primeiras coisas que aparecem são já do Con- cou concluído a partir daí, depois teve só aulas
servatório e são obviamente exercícios, no princípio dos anos particulares…
40. Há umas peças para piano que são obviamente exercícios Ficou concluído. Quer dizer, o percurso académico em
escolares e coisas de circunstância escritas para as primas, que Portugal. Mas quero só acrescentar que estamos a falar de 45.
também tocavam piano. A primeira coisa mais a sério para pia- Nessa altura já o meu pai tinha escrito as Cinco Canções sobre
no (instrumento para o qual o meu pai escreveu pouquíssimo) poemas de Fernando Pessoa, estava a escrever os Três Sonetos
são duas peças que fez para o Sequeira Costa, quando este ia es- de Camões, estava a iniciar a composição da 1.ª Sinfonia,
tudar para Paris: uma delas é uma adaptação duma peça coreo- que é terminada em 46, tinha escrito o Nocturno, que tinha
gráfica anterior, a outra é uma chamada Elegia Trágica, que sido tocado pelo Silva Pereira e pelo João de Freitas Branco no
seria instrumentada pelo João Paes muitos anos mais tarde. Conservatório. Tinha já 15 peças, portanto muita coisa escrita!
Mas o que eu presumo que tenha acontecido é que o É uma das razões pelas quais o Artur Santos escreve para o
João de Freitas Branco tenha chamado a atenção do pai e que Secretário-Geral a dizer que é um escândalo que um rapaz que
este, muito correctamente, tenha ido perguntar a opinião do seu vai estrear a sua primeira sinfonia em São Carlos dirigida pelo
ex-aluno e querido amigo Artur Santos, que tinha acabado de Pedro Freitas Branco seja expulso do Conservatório! Era uma
entrar como professor do Conservatório com uma altíssima mé- coisa um bocado escandalosa! Mas é o que realmente acontece.
dia. Sei disso por causa duma conversa a que assisti entre o meu E eu suspeito que ele até terá suspirado de alívio, por ter uma
pai e o Artur Santos num gabinete do Quelhas. Eles eram muito desculpa para se ver livre daquilo.
amigos, começaram a falar de outros tempos e às tantas o meu
pai agradeceu-lhe: “Eu nunca mais me esqueço que o Senhor Como passou a ser a rotina dele? A relação com
Professor deu as maiores referências ao meu querido Mestre!”, o Freitas Branco era praticamente diária...
“Mas também foi meu Mestre!” – dizia o Artur Santos. Sim. Sobretudo a partir da estreia da 2.ª Sinfonia,
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que é, digamos, a confirmação definitiva (se é que era precisa!) Carlos ao lado do Pedro de Freitas Branco. Uma estreia daque-
do talento do discípulo. Ele fica, então, comovidíssimo e escreve- las! E podemos dizer que foi mesmo um estrondo, um choque na
-lhe uma carta extraordinária! Desde essa altura, a conversa sociedade lisboeta da época, porque desde as estreias do próprio
entre eles começa a ser diária até no sentido de rotina que o pró- Luís que não aparecia um sinfonista comparável, é evidente.
prio Luís de Freitas Branco tinha estabelecido para si mesmo.
Portanto, o meu pai acompanhava-o nas temporadas que ele Nem comparável, nem sem ser comparável...
passava no Alentejo. Recorde-se que o Luís o convidara a es- Sim, embora as críticas sejam muito engraçadas,
crever na Arte Musical logo em 1942, quando o meu pai tinha porque quem as vai ler agora, à distância de décadas, vê que
18 anos; foi com essa idade que publicou o seu primeiro artigo, há alguns críticos (pelo menos um) que dizem que a música é
o que diz muito, apesar de tudo, do respeito que já tinha ganho. difícil de ouvir, e que é algo estranha, e que é algo dissonante, e
que é diferente do habitual, e que ele não gostou nada… O que
E as aulas particulares quando é que começa- é extraordinário, porque aquela primeira sinfonia do meu pai
ram, sabes exactamente? é do mais convencional que se pode fazer. Muito inventiva do
As aulas particulares devem ter começado logo em ponto de vista melódico, com todas as qualidades que ele reve-
42/43. São anteriores, são bastante anteriores à saída dele do laria mais tarde, mas muito ingénua e o mais convencional pos-
Conservatório. Mas ele era uma esponja!... sível! Do ponto de vista formal, acho…

Tudo isso coincidiu com o processo contra o Ainda que a linguagem não seja tão retrógrada
Freitas Branco, essa é a relação umbilical desta quanto isso para a época, um pouco na linha
história… dos sinfonistas ingleses…
Claro, evidentemente! No fundo, o Ivo Cruz armou Sim, sim. Se posso fazer aqui um parêntesis, a con-
aquela confusão por causa do meu pai ter sido testemunha vivência mais próxima com os papéis e com a obra que tenho
abonatória do Luís de Freitas Branco no processo do professor, tido nos últimos anos tem-me feito reflectir sobre algumas coi-
no processo do Mestre. E portanto aquilo foi uma desculpa que sas. Eu não sou musicóloga, só sou uma testemunha privilegia-
ele arranjou para pôr aquele aluno na rua. da de tudo o que aconteceu nas últimas quatro ou cinco décadas
no meio da música em Portugal. Não sou musicóloga, de ma-
O teu pai alguma vez sanou esse trauma em neira nenhuma! Mas isso não quer dizer que não possa reflectir
relação ao Ivo Cruz (pai)? sobre alguns aspectos da composição do meu pai, do seu modo
No fim da vida, sim. Em grande parte devido à in- de compor e das soluções que encontrou para exprimir a sua
fluência da minha mãe. Porque a minha mãe era muito amiga vontade criativa e o que ele queria dizer. E penso que, sobretudo
do maestro Manuel Ivo Cruz, filho dele. De infância, de ado- no início, o equilíbrio formal que tanta gente admira na obra
lescência, porque o Manuel Ivo Cruz e o meu tio João Falcão de Joly Braga Santos tem a ver por um lado com os ensinamen-
Trigoso tinham sido colegas no Liceu e a minha mãe gostava tos do Luís de Freitas Branco (parece-me evidente) e por outro
muito de música, o Manuel Ivo também, iam aos concertos, à lado com a necessidade de conter a explosão melódica e o jorro
ópera, encontravam-se, eram amigos de adolescência, desde melódico que saía daquela cabeça dentro duma ordem clara e
miúdos. Por isso juntos tentaram sanar aquilo e lá conseguiram! equilibrada. Essa necessidade de contenção duma criatividade
O meu pai, no final da vida, lá concedeu uma reconciliação. exacerbada pela juventude justifica o equilíbrio formal das
Ainda por cima eles tinham uma casa em Cascais, sítio onde primeiras obras. É evidente que depois esse equilíbrio formal
também nós passávamos as férias. Portanto encontrávamo-nos há-de manter-se, de outras maneiras e por outras formas, ao
ali naquele meio social, que na altura era minúsculo, e era um longo de toda a sua carreira. Independentemente das formas
bocadinho aborrecido o meu pai continuar a virar-lhe as costas. muito mais livres que passou a cultivar a partir de meados da
carreira, essa noção de fundações que nós temos em toda a obra
Mas voltando ainda ao impacto das primeiras do meu pai (sabemos sempre onde estamos!) é inerente à sua
obras orquestrais, começou com a Abertura Sin- escrita criativa.
fónica n.º 1, em 1946...
Sim. Mas, obviamente, a 1.ª Sinfonia teve maior im- Há reflexos clássicos de forma-sonata, mesmo
pacto, um grande impacto. As pessoas, segundo me contam teste- quando a linguagem se torna quase atonal.
munhas da época que presenciaram essa estreia (porque, como é Exactamente. Mas penso que no início isso foi a ten-
evidente, eu não assisti) nem queriam acreditar que o meu pai, tativa de contenção do jorro melódico. Basta ouvir a 3.ª e a 4.ª
que tinha 22 anos (ia fazer 23) e parecia um miúdo, magrinho, Sinfonias, aquilo são melodias, melodias e mais melodias. Ele
com aqueles óculos redondos, tinha escrito aquela obra. Há foto- de alguma maneira tinha de pôr ordem nelas, não é? Estava no
grafias da época que o comprovam, a aparecer no palco do São outro dia a pensar nisso e achei que tinha de dizer isso hoje, aqui.
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E quanto às peças para canto e piano do início Fernandes, o Croner de Vasconcellos... o único que não entrou
da carreira? foi o Graça, por razões que toda a gente conhece. A partir daí o
Se olharmos para o catálogo do meu pai, logo na meu pai tem um ordenado mensal, coisa que nunca tinha tido
primeira metade dos anos 40 encontramos uma extraordinária antes. Até então vivia de lições esporádicas de composição, que
quantidade de obras para canto e piano, nomeadamente para dava a quem lhe aparecia à frente: o João Paes foi aluno do meu
meio-soprano ou barítono e piano, algumas das quais foram pai durante anos, o António Victorino d’Almeida, o Atalaya…
orquestradas mais tarde. Há duas razões para isso. Uma delas alunos particulares que o Luís encaminhava para o meu pai
é a Carmélia [Âmbar], evidentemente. Outra é o facto de, na porque sabia das dificuldades que ele tinha.
época, o Luís de Freitas Branco, para além da 4.ª Sinfonia e de
outras obras, estar a trabalhar em motetes e muita coisa para O Freitas Branco também o ajudou financeira-
canto e piano; isso terá encorajado o meu pai a explorar esse mente...
meio. Por um lado era um tipo de obra que podia ser facilmente Sim. As temporadas que ele passava em Reguengos!
executado. Por outro, ele de facto tinha amigas cantoras no Con- Mas não foi só o Freitas Branco. Havia um amigo dele, médico,
servatório e teve uma paixão por uma meio-soprano muito co- que também o ajudava e que ele conheceu através do primo Fer-
nhecida chamada Carmélia Âmbar, que ainda hoje é viva e teve nando Paredes. É uma das razões pelas quais há tantos alunos
a enorme generosidade de me ceder a sua correspondência com de Medicina no início da Juventude Musical: com dois primos
o meu pai. Nela fui recolher imensos elementos da sua rotina direitos médicos ou a formarem-se para médicos, o que o meu
diária e do seu modo de composição, que agora conto nesta en- pai mais tinha era amigos na Faculdade de Medicina e ia lá
trevista. Para além de ter havido uma paixão, infelizmente não frequentemente fazer conferências, porque eles gostavam de
correspondida… música, através da Juventude Musical; ele recrutou dezenas de
estudantes de Medicina para a Juventude Musical Portuguesa
Foi a primeira grande paixão dele? através dos dois primos direitos. Outras pessoas que o ajuda-
Foi a primeira grande paixão dele, infelizmente não ram financeiramente foram o tio Augusto Joly, o José Carlos
correspondida porque a Carmélia, na época, estava apaixonada d’Almeida Gonçalves, em casa de quem ele passava uma parte
por outra pessoa. Mas ele escreveu realmente aquela quantidade do Verão, a tia Aurora Braga Santos, que morava a cinco minu-
enorme de canções que agora fazem as delícias das cantoras da tos da casa dele e onde ele ia almoçar todos os dias e ficava para
actualidade e que têm essa razão curiosa. trabalhar no piano, porque ele não tinha piano em casa.

Coincidiram também com a criação da Juven-


tude Musical Portuguesa...
Sim, de cujo núcleo fundador ele fez parte com o Luís
de Freitas Branco, o João de Freitas Branco, o Nuno Barreiros,
o Humberto de Ávila, todo aquele grupo a que depois se juntou
a Carmélia Âmbar, o José Carlos Gonçalves…

Uma coisa que o teu pai viveu intensamente...


Intensamente! E que lhe deu um trabalhão e cuja or-
ganização o ocupava todos os dias. Isso vê-se na correspondência
com a Carmélia: todos os dias ele ia lá, trabalhava, organizava,
fazia telefonemas, arranjava pianos… fazia tudo! (risos) Com
aquele entusiasmo da juventude.

Entretanto que é que fazia para ganhar a vida? Joly Braga Santos com senhora não identificada,
Nesta fase deu-se uma coisa muito importante, que foi Sequeira Costa, Grazi Barbosa e João Paes, em Reguengos
a sua entrada para o Gabinete de Estudos Musicais [da Emis-
sora Nacional]. Na altura já ele trabalhava na rádio, na parte Nessa altura ele vivia com a mãe.
clássica, com o João de Freitas Branco, a pôr discos de música A avó entretanto falecera e a mãe não tinha rendimen-
clássica, sentados numa sala com um gravador e um microfone. tos. Para sobreviver, como a filha tinha saído de casa para um
Foram os inícios da Antena 2: eles os dois sentados no chão, só colégio e a casa era grande, alugou o quarto a uns hóspedes e fa-
a pôr discos, sem locução! Mas a entrada para o Gabinete de Es- zia bordados e comida para fora. Era o meu pai que a ajudava,
tudos Musicais permitiu ao meu pai e aos outros ter um salário o tio Augusto Joly e pouco mais. O meu pai tentava tornar-se o
para compor. Os outros eram Artur Santos, o Armando José menos pesado possível indo almoçar ou jantar, à vez, a casa de
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um primo, de um tio ou de um amigo. O José Carlos Gonçalves Freitas Branco, que continuava a fazer todas as suas estreias; o
conta isso com alguma comoção ainda hoje porque ele de facto, meu pai ia assistir a praticamente todos os ensaios da orquestra
um dia, declarou aos amigos: “Não tenho dinheiro para comer, da Emissora Nacional e portanto muito aprendeu com o Pedro
não posso sobrecarregar a minha mãe, vamos combinar um dia de Freitas Branco. Mas esse curso do Scherchen foi para ele uma
para eu ir almoçar ou jantar.”. E eles combinaram, organiza- revelação.
ram-se e ele ia almoçar e jantar a casa de um amigo diferente
ou de um primo cada dia da semana. Andava a pé, logo não A Abertura Sinfónica n.º 3, de 1954, foi dedicada a
gastava em transportes, e o tio Augusto Joly dava-lhe roupa que Elisa de Sousa Pedroso.
a minha avó cuidadosamente costurava à medida dele. Sim, uma mecenas das artes que, durante décadas, fez
o papel que seria também o da Marquesa de Cadaval. Foi uma
grande apoiante e promotora do Círculo de Cultura Musical e
da Juventude Musical Portuguesa. O meu pai conheceu a Sr.ª
D.ª Elisa (como a tratavam na época) através do Luís de Freitas
Branco, passou a frequentar o círculo que ela tinha e que se
reunia periodicamente em sua casa. Ele acabou por lhe dedicar
essa Abertura Sinfónica, como gratidão pelo apoio da Elisa de
Sousa Pedroso ao 1.º Congresso da Juventude Musical, que pas-
sou por várias vicissitudes, incluindo as dificuldades em ter au-
torização do Governo (coisa que aliás se repetiria curiosamente
em 68 e terá sido a Marquesa de Cadaval a fazer a mesma
diligência...). A Elisa de Sousa Pedroso tinha obviamente con-
tactos junto do Governo, diz-se aliás que era amiga e visita de
casa de Salazar; e portanto conseguiu isso. Ainda por cima essa
Abertura Sinfónica toca-se imenso e é minha favorita das três.
Ela, com certeza, terá ficado grata. Eu não cheguei a conhecê-la,
infelizmente.

Entretanto em 1955 morre o Luís de Freitas


Branco...
Na altura o meu pai já estava director da Sinfónica do
Joly Braga Santos montando, em Santarém, 1949 Porto e foi para Lisboa disparado, foi uma tragédia. Mas pelo
meio deram-se coisas curiosas. Em 1951/52 é extinto o Gabinete
Em 1948 o teu pai foi estudar com Scherchen. de Estudos Musicais; o meu pai entra em pânico porque vai per-
Foi a primeira saída dele ao estrangeiro, com uma der o ordenado mensal que lhe permitia, evidentemente, pagar
bolsa do Instituto de Alta Cultura, no Verão de 48. Esteve três as suas despesas. O que lhe vale é que, entretanto (já agora conto
meses em Veneza a frequentar o curso do Herman Scherchen isto aqui pela primeira vez, é uma história que ninguém sabe),
e mais tarde teve aulas particulares com ele em Lugano. Esse nesse interregno do fim do Gabinete de Estudos Musicais, que
foi realmente o seu primeiro contacto com a música europeia acaba por se verificar só a partir de 1952/53 (eles já anunciam
e com um grande professor e grande maestro. E foi a primeira em 51, mas aquilo vai-se prolongando), ele tinha recebido uma
saída ao estrangeiro, considerando que ele tinha passado toda encomenda, através da Emissora Nacional, ligada ao Plano
a sua juventude e adolescência primeiro com a guerra de Es- Marshall. E o que era? O Plano Marshall tinha instituído uma
panha, depois com a 2.ª Guerra Mundial. Em 48 já havia com- organização cultural, sediada em Paris, chamada a Telecine
boios. As linhas tinham começado a ser reconstruídas e ele foi France, que estava encarregue, digamos assim, do restauro e
de comboio para Veneza, uma viagem longa e complicada, mas da reanimação da vida cultural europeia, e sobretudo da coope-
lá conseguiu chegar. E foi lá que conheceu uma personalidade ração europeia. Fazia tudo, desde filmes de propaganda, que
que se viria a tornar importante na sua vida que é o Bruno Ma- ainda hoje podemos ir ver na Cinemateca (encomendava-os
derna, para além do próprio Scherchen, com quem estabeleceu a realizadores europeus), até a encomendas directas a artis-
uma imediata empatia. Esse curso, para ele, foi uma abertura de tas, pintores, escultores, poetas, músicos, de toda a qualidade.
horizontes, muito profícuo e uma grande felicidade. Coincidiu, A Amália teve uma encomenda do plano Marshall! E quando
aliás, curiosamente, com a composição da 3.ª Sinfonia, que ele chega o pedido à Emissora Nacional, o Pedro do Prado indica
interrompeu para ir para Veneza e que só terminaria no Verão o nome do meu pai, que faz um contrato com esta organização,
seguinte, em 49. Antes disso tinha tido o magistério do Pedro de que lhe paga algo como 15 mil dólares.
glosas, #3 | 25
permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Era bastante para a altura. Guilhermina Suggia, que ele conheceu lá, e os compositores do
Era! Ele refere-se na sua correspondência a esse di- Porto, mais novos, que ele não conhecia. Foram anos, para ele,
nheiro como “os dólares da América”. Tinha perfeita noção que muito felizes.
se tratava de dinheiro americano, embora não tivesse sido pago
em dólares, presumo que deve ter sido em francos e que o con- Ele morava sozinho?
trato tivesse vindo em francês (está lá em casa, esse contrato Morava em casa de uns senhores, terá sido o Rebelo
sobreviveu). Bonito que lhe arranjou um quarto em casa de uns amigos que
tratavam dele. Entretanto, no âmbito das actividades da Juven-
E qual era a obra? tude Musical Portuguesa, vinha constantemente a Lisboa, tinha
A obra desapareceu! Desapareceu tal como os arquivos sempre cá trabalho. E é num desses concertos da Juventude Mu-
da dita organização. Eu procurei em todo o lado, incluindo o sical Portuguesa que conhece a minha mãe, que estava na altura
arquivo Marshall, a Biblioteca do Congresso, a Biblioteca Jean a estudar canto com o Tomás Alcaide e piano com o Lourenço
Monet e o arquivo Jean Monet, porque, como se sabe, o plano Varella Cid. Adorava música, não quis terminar o liceu, não
Marshall deu origem à Comunidade Económica Europeia e quis prosseguir os estudos na faculdade e o avô, José Falcão
podia ser que o arquivo Jean Monet tivesse ficado com estes Trigoso, que era um pintor conhecido em Lisboa e no Porto e
arquivos, visto que estavam sediados em Paris. A Biblioteca que foi quem a criou, tinha-a, de facto, encorajado a seguir essa
Nacional de França também não tem nada, foram eles que via dos estudos musicais. Nesse âmbito ia aos concertos, foi lá
mandaram para a Library of Congress. Do arquivo Marshall, conheceu o meu pai no princípio de 56 e apaixonaram-se.
sabem da organização mas não têm nada nos arquivos nem
sabem onde estão.

Até parece uma coisa portuguesa...


Pois! E imaginas o trabalhão que isto me deu. A obra
era uma abertura sinfónica para uma orquestra até relativa-
mente pequena, para ser executada (e terá sido) em Paris num
grande concerto em que foram executadas obras do Bruno Ma-
derna e de gente nova daquela época. Estamos a falar de 49, a en-
comenda é desse ano. E será esse dinheiro que ele recebe em finais
de 49 que lhe permite sobreviver ao susto do encerramento do
Gabinete de Estudos Musicais, antes de ir para o Porto em 54-55.

Como é que surgiu essa oportunidade?


O meu pai tinha já uma preparação muito boa quando
foi convidado, através dos bons ofícios de um senhor muito in-
fluente na altura, no Porto, chamado Rebelo Bonito, junto do
Ino Savini, para se tornar primeiro Maestro Assistente e depois,
com a saída do Savini, Maestro da Orquestra do Conservatório.
Durante esse anos no Porto, que para ele foram felizes e em
que ele se sentiu realizado, teve a oportunidade de dirigir não
só os clássicos (os compositores do cânone, como se diz agora),
mas também os contemporâneos e os colegas. Promove concertos
de música moderna (então não se dizia de vanguarda) mas de
música portuguesa, com obras do Graça, do Artur Santos, do
Croner de Vasconcellos e de todos os outros. Do Luís de Freitas
Branco também, evidentemente: dirige imenso Freitas Branco,
muitas coisas que o Pedro dirigia. Para ele foram anos, por um
lado, felizes e realizados e, por outro, de encomendas, muito
trabalho. Outro aspecto da ida para o Porto foram os contactos
com algumas personalidades da vida musical portuguesa que
eram influentes na época e que viriam a continuar a ser influ- Joly Braga Santos, cumprimentando o concertino Vasco
Barbosa e recebendo os aplausos do público, no final da
entes e com quem ele travou uma amizade até ao fim dos seus estreia da ópera Mérope, no Teatro Nacional de São Carlos
dias, nomeadamente as irmãs Helena e Madalena Sá e Costa, a em Lisboa, em Maio de 1959

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permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Em que ano nascera a tua mãe? anos de abertura, de aprendizagem, de descoberta de novas
Em 1935, portanto faziam uma diferença considerá- músicas. Conheceram Malipiero por causa do Festival de Siena,
vel, 11 anos. Casaram em Janeiro de 57, os dois de luto ainda, assim como conheceram o Luigi Nono, que o meu pai já tinha
porque entretanto aconteceu uma tragédia: o meu bisavô adoe- conhecido em Veneza, mas retomaram o contacto em Roma. O
ceu e acabou por falecer em Dezembro de 56. A minha mãe ficou meu pai continua a compor furiosamente. Compõe Viver ou
desesperada porque, para ela, o avô tinha tido exactamente a Morrer, o Divertimento I, o Concerto para Viola, digamos
mesma função, no fundo, de pai que o Luís de Freitas Branco que são as grandes obras desta fase. O Divertimento é estreado
tinha tido para Joly. Era essa realmente a relação que eles ti- num concerto de música portuguesa que o meu pai é convidado a
nham, a de pai e filho. Tudo aquilo foi uma tragédia e a minha dirigir em Nápoles, em 61. A Mérope é estreada em São Carlos
avó encorajou-os a casar o mais depressa possível. Alugaram com um sucesso estrondoso, em 1959. Logo a seguir vêm o Con-
uma casa em Gondomar e foram viver para o Porto. O meu certo para Viola e o Divertimento I, perto de 61. O Concerto
pai tinha reiteradamente solicitado ao Instituto de Alta Cultura, de Viola é estreado pelo François Broos, para quem o meu pai
após a viagem de 48, uma nova bolsa de estudo para voltar a o escreve, em 1960, em São Carlos, mais uma vez dirigido pelo
Itália, para estudar. Foi sempre recusada, por uma razão ou Pedro de Freitas Branco. O meu pai dirige a Mérope e depois
por outra, sempre com informações negativas da PIDE, pro- dirige este concerto em 61, já pouco antes de voltar para Portu-
vavelmente porque ele terá andado metido naquela história do gal definitivamente. Foi um concerto transmitido pela RAI, só
MUD juvenil na época. Alguns amigos da Juventude Musical de música portuguesa, em que se estreia uma obra do Peixinho,
Portuguesa tê-lo-ão incitado a assinar um papel ou outro. Ele outra do Cassuto e esta do meu Pai. Mais algumas obras de
detestava política e era a última pessoa a meter-se em coisas compositores portugueses dos séculos XVII e XVIII compõem o
políticas, mas enfim… resto do programa.

Assinou?
Assinou. Resumindo e concluindo, as bolsas foram-
-lhe constantemente negadas. Até que houve uma intervenção de
uma amiga da minha avó, muito amiga da irmã do Marcello
Caetano, que na altura era Ministro do Ultramar, acho eu. Para
grande surpresa dos meus pais, que não sabiam absolutamente
de nada, parece que o Marcello terá ido assistir a um concerto
com uma obra do meu pai e estava sentado ao lado do Direc-
tor do Instituto de Alta Cultura (isto foi contado posteriormente
pelo próprio Director), perguntando-lhe: “Mas afinal este ra-
paz está cá? Já o mandaram estudar para fora?” E o Director
do Instituto de Alta Cultura, que acabara de recusar mais um
pedido, ficou muito atrapalhado e resolveu mandar o meu pai
para fora rapidamente. Resultado: recebem um telefonema no
dia 1 de Abril de 57, julgando obviamente que era uma brinca-
deira de algum amigo mais brincalhão, a dizer que lhes tinha
sido concedida a bolsa. De facto, recebem a carta a 15 de Abril.
A minha mãe desmancha a casa rapidamente e viajam de barco
para Roma. O meu pai começa as aulas no Conservatório e a Com a sua mulher e Pedro de Freitas Branco durante a
“Semana de Música Portuguesa” em Wurtzburg, onde foram
minha mãe decide inscrever-se também, uma vez que estava ali executadas várias obras suas. Palácio dos Schönborn em
sem fazer nada… fez lá o exame de admissão ao Conservatório, Wisentheid, Alemanha, 1957
passou e entrou logo para o 4.º ou 5.º grau. Viveram aqueles
anos em Roma, com viagens. Aproveitaram para ir ao Festi- Dos vários professores que teve lá fora, qual foi
val de Siena, aos festivais todos, viajaram, foram a concertos. o que mais o marcou?
Em 57-58 estiveram em Lugano durante uns meses, enquanto O Scherchen, sem dúvida, tanto como professor de
o meu pai fez um curso com o Scherchen. Entretanto eu nasço Composição, quanto como Director de Orquestra.
em Outubro de 58, no intervalo entre duas bolsas; os meus pais
voltam a Itália em Março de 59 e levam-me com eles para Roma. Mais do que o Virgilio Mortari?
Em 1960 aparece lá o Peixinho, já com uma bolsa da Fundação Mais do que o Mortari, sim. O Mortari foi profes-
Gulbenkian (tinham acabado de abrir as primeiras bolsas); eles sor de Composição, mas a verdade é que, depois do Luís, tinha
conhecem-se através da Embaixada e travam amizade. Foram pouco para lhe ensinar.
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permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

Talvez em novas técnicas de composição… que faz sucesso, é isso que atrai as plateias». Eu fiquei um boca-
Ele sobretudo aprendeu muito ouvindo, indo a muitos do indignada com esta afirmação (risos), achei um pouco extre-
espectáculos, indo a muitos concertos, lendo muitas partituras, mista. E falei-lhe da 5.ª Sinfonia e de outras obras fabulosas…
comprando partituras assim que chegavam… Era como ele E da Sinfonietta que lhe é dedicada, que ele tem dirigido magis-
gastava o dinheiro da bolsa! tralmente e que é uma obra fantástica. O meu pai queria absor-
ver uma parte das novas linguagens mas queria permanecer
Daí nasceu a grande viragem de estilo, sendo fiel à sua personalidade musical. Há um episódio curioso que
talvez os Três Esboços Sinfónicos a obra que mar- é absolutamente demonstrativo dessa dualidade que se instala
ca essa viragem... na obra dele que é a composição da 6.ª Sinfonia. Depois da 5.ª
A viragem começou, curiosamente, com a Mérope e ele compôs coisas várias, entre elas a Trilogia das Barcas que
por influência da minha mãe. Quando ela ouviu pela primeira é uma obra que no fundo é uma espécie de súmula de todos os
vez a Mérope achou que aquilo não era música do seu tempo estilos porque é uma obra ultra-contemporânea, ultra-moderna,
e que o meu pai tinha de, pouco a pouco, libertar-se da influên- com música concreta inclusive, mas estão lá os modos medievais
cia do Luís de Freitas Branco. Portanto, foi ela que o empurrou todos porque o libreto isso pede e a isso obriga. Depois disso, en-
e encorajou, para além da curiosidade natural do meu pai, a tusiasmado com os modos medievais (que era uma coisa de que
dar uma volta ao estilo, a tornar-se mais contemporâneo e a ele falava desde novo e de que o próprio Luís de Freitas Branco
absorver tudo aquilo que eles estavam a ouvir todos os dias nos falava muito), escreveu o D. Garcia, com o poema da Natália
espectáculos a que iam. O Concerto para Viola foi mais um [Correia] baseado na poesia medieval e trovadoresca. Depois
passo, digamos que ele foi progredindo passo a passo. O Diver- quis escrever outra sinfonia mas chegou a meio, não sabia como
timento I é uma obra muito específica em que ele decide fazer, havia de descalçar a bota e parou durante largos meses. Eu lem-
exactamente, um divertimento e usar a sua linguagem habitual. bro-me dele correr o corredor da casa da Av. dos Estados Unidos
Os Três Esboços Sinfónicos foram realmente a primeira ten- da América de um lado para o outro, era um corredor enorme…
tativa. Ele não escrevia sinfonias desde a 4.ª, não imaginava
escrever outra sinfonia usando a mesma linguagem. Isso é reve- Nessa altura tinhas 13 ou 14 anos…
lador de que ele achava que já era uma linguagem esgotada, Sim, foi em 71-72. Lembro-me de vir da escola e ver o
pelo menos do ponto de vista da forma sinfonia. E a verdade é meu pai de um lado para o outro, numa angústia tremenda, sem
que só escreve uma nova sinfonia dezasseis anos depois, e é a saber o que fazer. E eu perguntava: «Ó pai, o que é que se pas-
5.ª, que é uma revolução. Ele quis ir aprendendo, a par e passo, sa?», «Não sei o que hei-de fazer com a 6.ª Sinfonia…», «Então
o que é que se coadunava melhor com as suas características se não sabe ponha-a lá num canto, deixe-a lá pousada em cima
intrínsecas, fala muito disso nas entrevistas que dá. Quer per- da secretária e daqui a uns meses!»... Mas o facto de não con-
manecer fiel à sua personalidade musical. seguir terminar uma obra provocava-lhe uma angústia criativa
muito grande. Entretanto houve duas ou três viagens a Espanha
Uma coisa que ele nunca perdeu é o élan meló- porque ele era júri do Prémio Manuel de Falla e convidavam-
dico, mesmo nas suas fases mais abstractas. -no regularmente para as conferências dos festivais, e quando
A prova disso é a 5.ª Sinfonia ou, por exemplo, uma veio de uma dessas viagens, talvez mais refrescado e com uma
obra como o Divertimento II, em que a melodia está lá - é colectânea de poemas em castelhano de Camões que não se en-
difícil, é dura, angustiada e pungente, mas está lá. E, mesmo na contravam em Portugal, ficou entusiasmadíssimo. Um dia chego
5.ª Sinfonia, há sempre melodia. a casa e ele está a tocar aquele final da 6.ª Sinfonia, com aque-
las redondilhas maravilhosas do “Irme quiero, madre...”. Per-
Mas é muito interessante que essa viragem guntei-lhe se era uma obra nova e ele volta-se para mim com um
tenha sido em grande parte por influência da sorriso maroto e diz-me: «Não, isto é o final da 6.ª Sinfonia».
tua mãe, é sinal de que não era para aí que ele Eu fiquei um bocado intrigada. E depois pediu à minha mãe
naturalmente pendia… para ir ao escritório: «Maria José, vem cá e experimenta cantar
Não, e os amigos reconhecem. O Cassuto, por exem- isto», que era uma coisa que ele fazia sempre que escrevia para
plo, que assistiu a todas as conversas e discussões (das quais, voz, pedia à minha mãe para cantar. E a minha mãe, claro, fi-
aliás, era parte integrante porque foi aluno do meu pai e além cou deliciada com aquela maravilhosa música. O que aconteceu
disso aparecia lá em casa para lhe mostrar as partituras de tudo foi que a segunda parte da 6.ª Sinfonia ficou pronta. Entre as
o que escrevia), foi testemunha privilegiada de todos os anos 60. duas há aquela transição que é muito bem feita porque (e aí vê-
Hoje, olhando para trás, tornou-se muito conservador (as pes- -se a mestria orquestral do meu pai), embora sendo um bocado
soas quando envelhecem, se calhar acontece-lhes isso) e disse-me incómoda, está tão bem escrita que, se for bem dirigida, nem se
no outro dia, com um ar um bocado indignado: «o teu pai nunca dá por ela. E eu pedi-lhe para ele me dedicar a sinfonia porque
devia ter deixado de escrever à maneira antiga, porque é isso fiquei absolutamente encantada com aquele maravilhoso tema.
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permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

lher e as filhas o resto do mês. Portanto, em primeiro lugar,


ele precisava do dinheiro das encomendas, não podia viver sem
ele, e em segundo lugar não podia ficar sem o lugar na rádio.
A alternativa era emigrar, pura e simplesmente. Coisa que ele
não queria fazer porque desde miúdo que era um patriota, ele
admirava o Pedro de Freitas Branco por ter voltado e fundado a
orquestra da Emissora Nacional e não ter aceitado naturalizar-
-se francês. Fosse qual fosse o regime, ele nunca viraria as costas
à Pátria. É uma coisa que ainda há pouco tempo a minha tia me
confirmou, ele gostava verdadeiramente do seu país num sen-
tido antigo, num sentido de amor à Pátria que nós agora já não
sabemos muito bem o que é, a verdade é essa. E, portanto, não
queria emigrar. E dizia que se era músico e se era artista tinha
No restaurante “Cozinha Velha”, em Queluz, com o compo-
sitor brasileiro Camargo Guarnieri. No sentido dos pontei-
direito de o ser na sua terra, fosse de que maneira fosse. Toda a
ros do relógio, Maria de Freitas Branco (mulher de João de gente passou dificuldades naquela época, a verdade é essa.
Freitas Branco), Maria José Braga Santos, João de Freitas
Branco Paes e Helena de Freitas Branco Paes, Joly Braga
Santos e Camargo Guarnieri. Meados dos anos sessenta. E acabou por aceitar a encomenda…
Acabou por aceitar porque o Pedro do Prado disse-lhe
Mas é verdade que passou de um mundo para muito claramente: «Se você não aceita, amanhã está na rua».
outro completamente diferente; de tal modo Ele tinha ido ao Brasil no ano anterior. A minha mãe ainda
que depois já não voltou a escrever sinfonias… telefonou para dois ou três amigos brasileiros através até do
Não, aquela foi onde pôs o ponto final. Ele viu que Manuel Ivo Cruz, que era um grande amigo, mas o meu pai
esta nova linguagem que ele tinha criado resultava muito bem, recusou-se terminantemente a ser obrigado a fugir daqui por
por exemplo, em obras corais-sinfónicas. Se formos ver o ca- causa de uma encomenda, dizia ele que «daqui a 50 anos nin-
tálogo há o Babel e Sião e a obra sobre os poemas de Teixeira guém quer saber da encomenda e a obra está cá».
de Pascoaes, As Sombras. Para obras corais-sinfónicas, que ele
adorava escrever, resultava muito bem. Aliás escreve também E teve razão. Mas ‘passou as passas do Algarve’
em 74-75 muito para coro. Nessa época escreve as Composições por causa dessa sinfonia...
Corais sobre Clássicos Castelhanos para coro a capella, que Sim, porque, como se sabe, a crítica musical, sendo um
é uma obra maravilhosa. Desse ciclo, há uma parte que está dos poucos domínios em que o regime não interferia, estava nas
gravada em disco, as Quatro Canciones. mãos de gente de esquerda e, nomeadamente, gente do Partido
Comunista. E mesmo gente de esquerda ficou indignadíssima
Voltando atrás, como surgiu a 5.ª Sinfonia? por um homem com a integridade do meu pai ter aceitado aque-
A 5.ª Sinfonia foi um drama. Foi uma encomenda do la encomenda infame. Portanto, toda a crítica lhe caiu em cima.
governo, através da Emissora Nacional, para a comemoração Havia pateadas sempre que se tocava uma obra dele, fosse ela
do 40.º aniversário da Revolução Nacional. Quando o Pedro do qual fosse, até a 4.ª Sinfonia foi pateada no Tivoli.
Prado falou pela primeira vez ao meu pai, falou-lhe na hipótese
de ir a África, a Angola e Moçambique, fazer uma espécie de Tudo isso antes do 25 de Abril, numa altura
viagem de estudo para incluir temas africanos na referida sin- que coincidia já com a fase da vanguarda.
fonia. O meu pai ficou entusiasmado com essa hipótese mas não Sim, estamos a falar em 66-68. Portanto ele tinha sido
ficou entusiasmado com a origem do pedido. E, de facto, quando chantageado pelo regime e levava pateadas da oposição. Não era
chegou a casa e contou à minha mãe com um ar algo atrapa- que ele se preocupasse demasiado com isso, aquilo a ele não o
lhado, ela ia tendo um ataque, e teve mesmo um ataque de fúria. incomodava particularmente, mas como é evidente incomodava
Tentou demovê-lo de todas as maneiras e feitios de aceitar a en- a família.
comenda. O problema é que a Emissora Nacional pô-lo entre a
espada e a parede, pura e simplesmente chantageou-o. E não lhe criou dificuldades a nível de enco-
mendas?
Joly também não estaria à larga de dinheiro… Não, não. Na altura a Gulbenkian encomendava-lhe
Não, ele precisava daquele ordenado, como é evidente. praticamente uma obra por ano, portanto ninguém ligou a isso,
Ele tinha um ordenado na altura como Maestro Assistente de excepto, obviamente, a oposição. O que, aliás, me parece uma
Captação, que era uma coisa ridícula, simbólica, mas dava para coisa natural. Um tipo que escreve uma sinfonia a comemorar o
pagar a renda, a água e luz, e depois tinha de sustentar a mu- 40.º aniversário da Revolução Nacional deve estar à espera que
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permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

o pessoal de esquerda lhe caia em cima, que foi exactamente porque ele estava lá desde o início, não da SPA propriamente
o que aconteceu. O meu pai não se preocupava com isso, mas dita, mas de toda a formulação dos anos 40. A partir do momen-
para a família era um bocado desagradável. Para a minha mãe, to em que ele se inscreve, no princípio dos anos 50 (ele e o Luís
coitada, que era uma pessoa liberal e democrata, e que detestava Francisco Rebello, que eram muito amigos, conheciam-se da
o regime, aquela contemporização foi uma coisa que lhe custou Juventude Musical, imagino eu), o meu pai apoiou-o sempre na
a engolir, quase se divorciaram por causa disso. Mas a verdade defesa do Direito de Autor, porque era das pessoas que achava
é que a obra ficou e é das mais importantes. que os autores tinham o direito de viver do seu trabalho. Ele
lutou por isso desde os anos 40. Teve um conflito grave com o
É marcante e foi premiada… Lopes-Graça, porque este recusava-se a cobrar direitos de autor
Não recebeu o prémio mas ficou entre as 10 melhores ou bens materiais por qualquer peça que fizesse. Achava que
classificadas dos prémios da UNESCO desse ano, ficou em era do povo, portanto se era do povo ele não tinha que cobrar
quinto ou sexto lugar. Os jornais puseram isso em parangonas nada, mas enfim, ele tinha outros apoios e alguém o sustentava,
e fizeram-nos entrevistas aos quatro, tiraram-nos fotografias, e porque senão não seria possível. Além disso sempre dava aulas
a minha mãe cada vez mais furiosa com o chinfrim. aqui e acolá com grandes dificuldades, como é evidente, mas
isso todos eles. Portanto teve um grande conflito com o Graça e
Quando é que foi a classificação pela UNESCO? chatearam-se; eles até se respeitavam e tinham uma esplêndida
Foi logo em 66, porque o Pedro do Prado, sem o meu relação, mas tiveram um grande conflito por causa disso. De-
pai saber, enviou para o concurso. E de repente aparecem aque- pois aquilo lá passou, até porque o próprio Luís Freitas Branco
las parangonas nos jornais e o meu pai chega à Emissora e diz: ainda era vivo e resolveu a disputa. Mas pronto, o meu pai es-
«Mas o que é que aconteceu? Eu não percebo nada. Eu não entrei tava na SPA desde o início e era uma personagem respeitadís-
neste concurso…», «Ah, eu mandei a obra!». (risos) sima, mesmo pelos compositores da música ligeira. É curioso
que, quando ele decidiu por razões financeiras compor umas
E se passássemos ao 25 de Abril? cançonetas (teria os seus 20 anos) foi mostrá-las ao José Ga-
O 25 de Abril foi uma grande alegria para todos, in- lhardo e ao Frederico Valério, que acharam que ele não tinha
cluindo para o meu pai. Levou algum tempo para que todos nós jeito nenhum e disseram-lhe: «Ó Joly, vá lá compor sinfonias
percebêssemos se aquilo era um movimento que teria algum fu- que para cançonetas temos jeito nós!». Portanto, era uma pessoa
turo em termos de construção do estado democrático (estou a respeitada, lá organizou um grupo e fez com que todos aqueles
falar do PREC), portanto, toda a gente sofreu e teve angústias e conflitos, felizmente, acabassem.
não sabia como aquilo ia acabar. Houve lutas e conflitos, no caso Foi um período difícil, ele na altura ficou só com o
do meu pai na Sociedade de Autores, na Emissora, saneamentos, ordenado da rádio e as encomendas, eu estava a entrar para a
enfim, situações de conflito normais nestes períodos de insta- faculdade e a minha irmã foi para a Alemanha estudar violino
bilidade e revolucionários, mas que foram todos ultrapassados. logo em 78. A coisa estava complicada porque havia menos en-
comendas e eu tentei até arranjar um emprego mas os meus pais
Ele não foi propriamente perseguido? chegaram à conclusão de que se eu arranjasse um emprego nun-
Não. Foi alvo de mais críticas do que o habitual porque, ca mais acabava o curso e obrigaram-me a acabá-lo. As coisas
como o país era livre, o Partido Comunista podia-lhe bater à lá correram o seu curso normal, com as dificuldades habituais
vontade, mas não foi uma coisa que o incomodasse particular- em famílias daquela época: prescindimos das coisas acessórias,
mente. Excepto a situação da Sociedade de Autores, que de facto concentrámo-nos no essencial e passámos perfeitamente aqueles
foi complicada, mas que se resolveu porque houve um grupo anos conturbados, que foram anos também muito excitantes.
de democratas, no verdadeiro sentido do termo: o meu pai, a O meu pai continuava a viajar muito e a ter muitas
Natália Correia, o David Mourão-Ferreira e até o Urbano Ta- solicitações, nomeadamente por causa do Prémio UNESCO. Às
vares Rodrigues (de quem aliás o meu pai era muito amigo) tantas é convidado, por esta altura, a seguir ao 25 de Abril, para
que acabaram por pôr termo àquele disparate. E no próprio Luís integrar o júri do Prémio UNESCO, passa a ir a Paris todas as
Francisco Rebello, às tantas, o bom senso acabou por imperar. Primaveras. Os festivais de Espanha continuam a acontecer.
Ela vai aceitando cada vez menos encomendas por
Que tipo de coisas eram? razões de saúde. No final dos anos 70 passou por tudo, teve um
Sanearam funcionários, houve lutas entre eles, expul- esgotamento grave, é-lhe detectado um problema de circulação
saram a Direcção. cerebral no lobo esquerdo do cérebro (faz uma das primeiras
TACs em Portugal, no Porto) e começa a ser medicado mas está,
O teu pai exercia alguma função? de facto, dois ou três anos sem compor nada de novo, pratica-
Pertencia ao concelho fiscal ou a uma coisa qualquer mente a acabar obras de encomendas já feitas em anos ante-
na Direcção. E além disso era uma personalidade respeitável riores.
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Isso coincide com a altura em que comecei a ter ideias, as mentalidades e os hábitos no domínio da cultura são
aulas com ele, que foi em Abril de 81. Lembro- muito lentos a mudar, quando mudam! Portanto, ele talvez não
-me que sofria horrivelmente dos olhos. tivesse visto as mudanças que antecipava, nomeadamente em
Exactamente. E porque a vista lhe começa a falhar, relação ao ensino, ao Conservatório, às escolas… Continuava a
toma uma decisão drástica que é não compor praticamente mais batalhar pelas mesmas coisas, continuava a ter que exigir que
obras sinfónicas, que exigem partituras de 35 pautas, portanto lhe pagassem os direitos de autor, continuavam as orquestras
exigem muito mais da vista, e passa a compor obras de câmara. a fazer fotocópias e a aldrabar. Continuava tudo na mesma! E
Nos últimos anos da vida, praticamente o que faz é compor em 88, com 14 anos de Democracia, ele se calhar desencantou-se
obras de câmara. mais cedo do que nós.

Lembro-me de ele estar a compor os Cantares Continuava a não haver edição musical, e ele
Gallegos e a cantata As Sombras, de que me ia conheceu muito poucos discos com a obra
mostrando acordes. dele...
Os Cantares Gallegos são de 83, mas se vires a or- Não conheceu! Quer dizer, só conheceu o da 5.ª Sinfo-
questração, não é uma grande orquestra e ele quis realmente nia e o dos Três Esboços Sinfónicos dirigido pelo Cassuto.
fazer isso. Ainda bem que escreveu a obra, apesar da atribu-
lação que foi a estreia. Só a conhecemos agora, mas ainda bem Foi inesperada a sua morte?
que a conhecemos, que está aí e que está gravada! Entretanto Foi, porque ele estava a recuperar. Aliás, em 85 e 86
ele recuperou e até retomou o seu lugar de professor no Con- fartou-se de escrever. Em 88 recebeu um prémio pelo maior
servatório, que tinha iniciado em 71 e mantivera até 76, ano em número de obras estreadas, um prémio do Festival do Estoril,
que houve uma alteração da lei que dificultava as acumulações daquelas galas que o Estoril fazia em que davam prémios aos
e ele foi obrigado a sair, porque o ordenado não cobria sequer o artistas portugueses. Isto antes da SIC e dessas coisas, o Casino
passe! Em 82 retoma o lugar de professor do Conservatório, que Estoril tinha uns mecenas.
mantém até Julho de 88, até ao dia da morte. Portanto, as coisas
estavam a correr francamente melhor. Compôs bastante. Tinha- Em 88 há Aquella tarde, poema dramático estrea-
-lhe sido encomendada uma ópera para o Lisboa 94 [Capital do nos Encontros de Música Contemporânea,
Europeia da Cultura]. o Staccato Brilhante, o Improviso para Clarinete e
Piano, que é a última obra...
Uma ópera? Sim, tudo isso em 88. Ele escreve muito nos últimos
Uma ópera, sim senhor, sobre a “Ilha dos Amores”. Foi anos. São é obras mais do tipo música de câmara. Mas estava
ele que sugeriu o tema. perfeitamente. Foi um embolismo cerebral, daqueles que pode
acontecer a qualquer um de nós, em qualquer altura.
Para Lisboa 94? Com tanta antecedência?
Sim, eles estavam na altura a preparar… Na altura a Um embolismo rebentou uma veia no cérebro.
Câmara era gerida como deve ser. Não sei quem lá estava, se era Exactamente, um coágulo que rebentou com a veia. Foi
o Sampaio ou o Abecassis, mas ele assinou o contrato em Abril fulminante. Foi a dormir, aliás. Tomou um comprimido para
de 88. Porque disse logo que precisava de dois ou três anos para as dores de cabeça, foi-se deitar e não acordou. Só quando lhe le-
compor uma ópera. vantámos a cabeça é que percebemos o que lhe tinha acontecido,
porque estava toda negra atrás. Mas não sofreu, coitadinho. O
E não existe nada disso? meu pai era uma ternura não era? A bondade em pessoa.
Não, porque o meu pai faleceu em Julho. Ele propôs o
tema e propôs o libretista, que era o Vasco Graça Moura; sobre O melhor do Joly vinha ao de cima na sua
a “Ilha dos Amores” era uma escolha evidente. Mas acabou por relação com as filhas.
falecer em Julho, de repente. Nós adorávamos o meu pai. Era uma coisa mesmo es-
pecial. Um misto de amor filial com amor maternal, porque
E quanto ao reencontro tonal dessa fase final… tínhamos um sentido de protecção muito grande que nos tinha
Digamos que ele sofre um desencanto com a Democra- sido incutido pela minha mãe quando éramos pequenas, porque
cia que é um pouco mais precoce que o nosso. Não sei se o PREC o meu pai era muito distraído. E portanto, cada vez que saí-
o marcou um pouco mais porque era mais velho, nós somos de mos com ele a minha mãe ficava um bocado assustada e dizia:
outra geração. Não sei o que terá acontecido, mas ele deve ter ima- «Tomem bem conta do pai!». Portanto, para além de tomarmos
ginado que a Democracia, do ponto de vista cultural, ia trazer conta de nós próprias, tínhamos de tomar conta do pai. E isso
muita coisa que não trouxe e muita abertura que não trouxe. As deu-nos um sentido de carinho e de protecção muito especial.
glosas, #3 | 31
permanecer fiel à sua personalidade musical | entrevista de alexandre delgado a piedade braga santos

E como é que vocês lidavam com a proverbial amendoins. Era muito divertido, adorávamos sair com ele. A
distracção? minha mãe, coitada, é que ficava um bocado assustada.
Ríamos também! Ele era o primeiro a rir-se de si pró-
prio, não tinha importância nenhuma. Contava-nos imensas Havia idas ao cinema?
histórias, brincava connosco, escrevia coisas para nós. Fartou-se Imensas. Íamos muito, adorávamos cinema e desde que
de escrever pecinhas para nós e para os amigos, quando está- começámos a ficar mais cresciditas e a poder entrar, a minha
vamos a estudar os vários instrumentos. Depois, estudávamos mãe até nos fazia penteados especiais que nos punham mais ve-
em conjunto, a minha mãe fazia uns lanches e nós tocávamos lhas porque havia aquela história dos maiores de doze. E havia
para os amigos ouvirem. Ajudava-nos a fazer os trabalhos de cinemas que tinham porteiros que faziam uma perninha mas
Composição, por vezes com resultados hilariantes porque o que que eram porteiros do S. Carlos ou do Trindade e que, portanto,
ele escrevia nem sempre estava conforme as regras (as regras eram conhecidos e nos deixavam passar.
do Vincent d’Indy, que ainda era o que se dava no Conser-
vatório, na época). E, portanto, as professoras, que conheciam
muito bem a obra do meu pai e eram amigas dele, por exemplo a
Constança Capdeville, que foi minha professora de composição,
ou a Maria de Lurdes Martins, que foi professora da minha
irmã, davam imediatamente por ela que aquilo não tinha sido
feito por nós, porque quando perguntavam como é que tínhamos
resolvido tal acorde, nós, que tínhamos copiado aquilo à pressa
no metro para ir para o Conservatório ficávamos sem saber o
que responder. E uma vez a Maria de Lurdes Martins zangou-
-se muito com a Leonor porque ela usou quintas paralelas, que
era uma coisa que era um pecado capital em composição. Disse-
-lhe que aquilo estava errado, ela tinha-se fartado de explicar
que aquilo estava errado. E a minha irmã, sem pensar no que
estava a dizer nem onde estava: «Errado? Isso não pode estar
Passeando com a família em Sevilha, durante o
errado porque foi o meu pai que fez!» (risos). No dia seguinte, Festival de Música de Sevilha, em Outubro de 1973
quando o meu pai chegou ao Conservatório, os colegas olhavam
para ele e riam a bandeiras despregadas e o meu pai não perce- De que tipo de cinema é que ele gostava mais?
bia (não era Carnaval, não tinha a cara farruscada...). Até que Luis Buñuel. De todos os italianos – Fellini, Ettore Sco-
houve uma boa alma que lá lhe contou da saída da minha irmã la, o Vittorio De Sica (adorava o Milagre de Milão e os Ladrões
na aula de Composição porque as pessoas choravam a rir em de Bicicletas); era um apaixonado do Lucchino Visconti; e tam-
todo o Conservatório. bém cinema francês – o Claude Chabrol; também algum cinema
espanhol que aparecia muito cá na época (agora praticamente
Uma história fantástica… não aparece, tirando o Almodóvar) – o Carlos Saura, o Buñuel,
E levava-nos a passear ao jardim zoológico todos os todos esses. Ele adorava cinema e íamos ver tudo e mais alguma
fins-de-semana, adorava os animais. Os animais vinham ter coisa, nos antigos cinemas de reprise que agora já não exis-
com ele. Os tratadores ficavam doidos porque os cães, crianças e tem mas que passavam aquelas cópias muito antigas dos anos
animais eram atraídos pelo meu pai. 40 e 50. Às vezes íamos a pedido nosso, meu e da minha irmã
- eu lembro-me que a minha irmã, quando estreou o Música
O teu pai tinha qualquer coisa de criança den- no Coração, foi ver duas ou três vezes e depois no verão era
tro dele... sistematicamente reposto. Pois ela, como já não tinha ninguém
Exactamente. E os tratadores ficavam desesperados: os que tivesse cabeça para a acompanhar ao Música no Coração,
elefantes viam-no a aproximar-se da porta, começavam logo a pediu ao meu pai. A minha mãe ficou assim um bocadinho in-
puxar aquela corrente e vinham-lhe enrolar a tromba à volta da dignada mas o meu pai disse logo que sim, claro. E adorou o
cintura. Cumprimentavam-no sempre, a Rita e já não me lem- filme! Os meninos a cantar muito afinadinhos aquela música
bro do nome do outro. Os macacos ficavam doidos. Ele ia para que é muito bem feita, que aqueles americanos sabem compor –
a aldeia dos macacos e os tratadores ficavam malucos, para já ficou encantado! Chegaram a casa os dois todos contentes depois
porque ele fazia uma coisa que não se deve fazer, que é dar- de ver o espectáculo. E dizia a minha irmã para a minha mãe:
-lhes amendoins, e às tantas tinha 50 macacos ao pé dele a pedir «Está a ver que o pai gostou, eu disse que o pai ia gostar!»... •

32 | glosas, #3
em torno de Joly Braga Santos
entrevista de E. L. Ayres d’Abreu a Henrique da Luz Fernandes
transcrição de Gustavo Cruz e Ana Salazar

Quando e como conheceu Joly Braga Santos? meia-dúzia de anos, em 46, já estava a escrever uma sinfonia...
Conheci o Joly nos anos de 36, 37. Éramos alunos do Entretanto, estudou com o professor Luís de Freitas Branco com
Conservatório. Ele andava um ou dois anos mais avançado do quem teve uma relação excelente, não só em termos de absorção
que eu. Já nessa altura era um elemento que não passava desper- de conhecimentos, mas também no sentido em que houve algo
cebido no corpo discente, pela sua maneira de estar. Mas para da personalidade criativa do Luís de Freitas Branco que o in-
além das suas singularidades e de um certo desalinhamento, fluenciou, o que é natural...
que era próprio do comportamento dele, o Joly era uma pessoa Joly assistia também aos ensaios da Orquestra da
intelectualmente interessante e estudiosa. Emissora Nacional, mesmo que não estivessem a ser tocadas
obras dele, porque tinha gosto de estar, e assistindo aos ensaios
Antes de o conhecer pessoalmente já sabia tomava contacto com o processo técnico de orquestração dos
quem era o Joly? compositores. Era dirigida pelo Pedro de Freitas Branco, irmão
Não, quando eu fui para o conservatório, em 36, 37, do Luís, que também encontrava no Joly condições de criativi-
tinha dez anos e o Joly tinha treze. Ele nasceu em 24, eu nasci em dade e de interesse para que ele lhe fizesse as obras, não só nas
27. Ele já andava uns anos à minha frente, mas depois fomo- estreias, mas programando-as ao longo da temporada. Há que
-nos encontrar com mais regularidade e mais proximidade na ressalvar que o Pedro de Freitas Branco era um maestro que
aula de Violino do professor Flaviano Rodrigues, onde ele es- tinha como preocupação fundamental dar a ouvir música con-
tava colocado à mesma hora que eu. Era meia hora para cada temporânea. A Orquestra da Emissora tocava os ingleses, como
um, como era próprio do tempo, sobretudo no caso daqueles Vaughan Williams e o Britten, os franceses contemporâneos, e
que estavam a principiar, como era o nosso. E o Joly também outros.
fez com alguma irregularidade os anos de estudo de violino e, E o Flaviano Rodrigues era primeiro-violino da Or-
mais tarde, acabou por desistir. E foi aí que nos aproximámos questra. Aliás, quando eu entrei para a Orquestra, ele ainda era
mais. O professor interessou-se em particular pelo Joly, porque frequentemente o concertino, mas soube retirar-se a tempo ocu-
ele na altura já escrevia umas coisas, e o professor, que tinha pando outras estantes, e cedendo o lugar de concertino a músicos
uma formação pianística, acompanhava-nos ao piano, coisa que mais novos.
não é vulgar para alunos dos níveis iniciais, improvisando os
acompanhamentos, se as peças estivessem suficientemente bem O Sr. Henrique contactou com Luís de Freitas
estudadas para isso – ajudava-o muito. O professor dominava Branco?
bem não só o piano, mas também a harmonia e o contraponto. Conheci-o nos tempos do lançamento da Juventude
Musical Portuguesa, porque ele foi um dos elementos que muito
Terão essas improvisações despertado em Joly contribuiu para que esse projecto se tornasse uma realidade.
o desejo de compor? Não só pela sua presença e influência artística, pessoal e cívica,
É provável que sim, era interessante, nós gostávamos e mas porque acompanhava muito as primeiras reuniões, dando
esforçávamo-nos por levar os estudos o melhor possível para que conselhos, e depois interessando-se por esta efabulação de uma
ele se sentasse ao piano e fizesse o acompanhamento. Portanto, sociedade de jovens que se pretendia federar nas juventudes in-
foi aí que uma vez o Joly apareceu com uma pequena peça que ternacionais, interessando também a Srª D. Elisa Sousa Pedroso,
tinha um ritmo obsessivo - eu nunca me esqueci disso porque o que era uma outra personalidade importante no meio musical.
professor disse “Isto tem alguma coisa a ver com o Bolero de
Ravel”, coisa que o Joly tomou como uma acusação de plágio, e Conheceu-a?
o professor esclareceu que não o estava a acusar de ter copiado, Conheci-a também… Havia as reuniões da comissão,
mas apenas a dizer que o ritmo teria ficado no seu subconsci- que não era uma direcção ainda, era um grupo, que tinha a
ente e, subsequentemente, transparecido para a peça. O que é comissão já formada e depois outra gente que se interessava e
certo é que, passada uma ou duas aulas, ele apareceu com aquele que se juntava. Foi um movimento que dinamizou gente nova
reflexo do Bolero transformado já noutra coisa. O professor não só do Conservatório, mas talvez principalmente gente nova
Flaviano Rodrigues encorajava-o muito, e a relação entre eles das escolas superiores, do ensino liceal. Quando a Juventude
continuou mesmo depois do Joly abandonar as aulas de Violino Musical começou, já com os seus estatutos aprovados - porque a
para fazer estudos mais aprofundados de Composição. Passada dificuldade foi a aprovação dos estatutos…

glosas, #3 | 33
em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

Albino André, Humberto de Ávila, Emílio Guerra, Joly Braga Santos, Filipe de Sousa, Nuno Barreiros, Manuela Taveira,
Carmélia Âmbar, Alice Gentil Martins. Um grupo de fundadores da Juventude Musical Portuguesa. Lisboa, 1949

Havia ideias divergentes? Dr. Oliveira Salazar. E, portanto, em vez de pedir aos anjos,
Não havia muitas divergências, a questão era com foi pedir a Deus. Procurou-o, e explicou-lhe que os fins eram os
os organismos oficiais. Porque depois de os estatutos estarem mais apolíticos que se pudesse imaginar, que as juventudes mu-
elaborados, era necessária a aprovação do Ministério da Edu- sicais se tinham desenvolvido no final da guerra como forma
cação, e também do Ministério do Interior, por causa da questão de fazer os jovens esquecer aquele cortejo terrível de atrocidades
política. E aquilo andava de Herodes para Pilatos, a Direcção que se tinha passado…
Geral do Ministério da Educação mandava não se sabe para
onde, e outros para outro sítio, porque também não queriam E então Salazar acabou por facilitar?
rejeitar abertamente, e aquilo estava num impasse. Sim, isso depois soube-se pela boca da Sr.ª D. Elisa.
Ele perguntou-lhe “V. Exa. fica como fiadora?” ao que ela res-
Como acontece ainda hoje com muitos outros pondeu que sim. “Então muito bem, amanhã vou dar ordens
assuntos… para que sejam aprovados os estatutos.” E assim foi, em 49 já
Sim, mas não era uma mera questão burocrática. Na estava a funcionar a Juventude Musical Portuguesa.
altura as motivações para o impasse eram políticas, porque uma
federação internacional de jovens era uma coisa que perturbava E Joly Braga Santos foi um dos fundadores…
o conceito de dar à juventude meios de entretenimento, ou de Sim, o Joly foi quem trouxe a ideia de Itália, veio com-
dar à juventude meios para se associar em questões que inicial- pletamente deslumbrado; tinha ouvido um concerto com as ju-
mente seriam culturais mas, depois, podiam passar a ser tam- ventudes italianas... E falou do projecto a um grupo que se reu-
bém outra coisa… nia num café da Av. de Roma, de que faziam parte o Humberto
Adiante, a Sr.ª D. Elisa Sousa Pedroso, que era vis- de Ávila, o Joly Braga Santos, às vezes o João Freitas Branco...
condessa, aristocrata por parte do pai, era uma pessoa de es- O Ávila, que era um homem muito organizado, que quando
pírito aberto, e teve uma influência importante na vida musical metia ombros a uma coisa a levava por diante, foi talvez o prin-
portuguesa. Foi fundadora e presidente, até à morte, do Círculo cipal elemento motor. E a Juventude mobilizou muitos jovens,
de Cultura Musical, que era uma sociedade de concertos com faziam-se concertos em vários lugares, sessões de divulgação
largas centenas de sócios, que promovia concertos mensais ou fonográfica, primeiro na casa da Itália, na Rua do Salitre, e
bimensais com excelentes músicos portugueses e estrelas de nível depois na sede, na Rua Rosa Araújo. O Joly fez muitas destas
internacional como o Kempff e outros. apresentações, e o Luís de Freitas Branco também chegou a fazer
Mas como eu estava a dizer, as reuniões faziam-se algumas e, portanto, o meu conhecimento com o Luís de Freitas
em casa da D. Elisa Pedroso, e ela venceu todas as dificulda- Branco vem daí e, posteriormente, de ele vir assistir aos ensaios
des, porque, segundo se dizia, tinha alguma intimidade com o das suas obras com a orquestra. Ele era uma pessoa deliciosa.

34 | glosas, #3
em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

Que impressão tem de Luís de Freitas Branco? era a música que estava dentro da sua própria personalidade,
Para já era uma pessoa que tinha uma cultura vastís- dos seus genes. E vou-lhe dizer mais uma coisa: quando o Joly
sima. E depois era um comunicador, como é próprio das pessoas sai disso, ele sai porque tem um desejo de se alinhar com outras
que têm muito para dizer. Qualquer conversa que se começasse, correntes estéticas mais vanguardistas, mas essa não é a na-
ele começava a desenvolvê-la e depois modulava para outras e tureza do Joly. Ele fá-lo e sabe fazer, mas não tem a mesma
outras e outras, com toda a naturalidade. Aprendia-se, a ver- espontaneidade que têm as obras anteriores, onde as coisas jor-
dade é essa, aprendia-se muito com ele. Eu tinha muito gosto ram, caminham, têm soluções. O que eu julgo que é natural.
em ouvi-lo. Nesse tempo - estamos a falar de 48, 49 - o jor- Cada pessoa tem a sua sensibilidade e age de acordo com ela,
nal O Século promovia umas conferências no salão que tinha há pessoas que têm um processo criativo mais cerebral. O Joly
na Rua do Século, quinzenais ou semanais, com um enorme tinha a sua idiossincrasia e isso era muito nítido e resultava
estatuto cultural, pedagógico e intelectual, e com uma muito em música muito agradável de tocar. Ah, mas estava a falar da
grande afluência. Acolhiam nomes como Jaime Cortesão, Ma- aceitação... Não havia um concerto anunciado para fazer uma
nuel Mendes... primeira audição do Joly. A Orquestra tinha uma vida regular,
um calendário feito ao longo do ano, por exemplo de Outubro
E Joly Braga Santos, como orador? a Dezembro estava no Tivoli aos Sábados à tarde a fazer os
O Joly era um despistado, evidentemente, mas no que concertos de Outono, durante três meses.
se refere às sessões de divulgação da Juventude Musical, levava
as suas coisas preparadas e desembaraçava-se muito bem, com E as pessoas iam, independentemente do pro-
interesse também, sobretudo se estava a falar de coisas sobre as grama...
quais tinha bom conhecimento e das quais gostava. As pessoas iam assistir ao concerto, e se estava uma
sinfonia de Joly, estava uma sinfonia de Joly, pronto. Estava
Como eram recebidas as obras dele pelo públi- integrada no programa, a obra fazia-se e era bem acolhida. De-
co da altura? pois havia, por exemplo, os concertos promovidos pela Juven-
Eram muito bem recebidas. A sua música é intui- tude Musical Portuguesa, e aí sim poderia haver várias obras
tiva na sua génese e é pela sua própria natureza rapidamente suas incluídas no programa, faziam-se inclusivamente concer-
apreensível, apreende-se com facilidade. tos só com compositores contemporâneos, como Artur Santos,
Jorge Croner de Vasconcellos, Cláudio Carneyro, Frederico de
Mesmo a 5.ª Sinfonia, por exemplo? Freitas, que é uma grande figura - também merecia que lhe
Mesmo a 5.ª Sinfonia. Aquele andamento dos ma- dedicassem uma revista - ...
rimbeiros de Zavala é um achado. É um comunicativo, a música
dele é muito comunicativa. A mim dava-me muito gosto execu- Depois havia também o Lopes-Graça...
tar música dele porque tem conteúdo, tem sentido, tem lógica. Ah, claro, o Lopes-Graça. Não citei agora o nome
É um compositor que veio contribuir para que houvesse sinfo- Lopes-Graça porque é incontornável. Eu também tive a oportu-
nismo em Portugal, que era algo já praticamente perdido. É o nidade de lidar com o Graça com alguma regularidade, primei-
Luís de Freitas Branco que inicia essa recuperação, após o caso ro porque nos conhecíamos do meio musical, e segundo porque
singular do Mestre Vianna da Motta, que escreveu uma sinfo- frequentávamos a mesma linha de eléctrico, o 28, às mesmas
nia em 1894. horas. Depois deixámos de ter o mesmo percurso, mas continuá-
vamos a encontrar-nos quase todos os dias porque eu tinha um
Também Frederico de Freitas... irmão que, na altura, era chefe de relações públicas da Valentim
Sim, escreveu uma que se chama Jerónimos. de Carvalho, na Rua Nova do Almada. Ia geralmente dar dois
dedos de conversa com o meu irmão lá na Valentim. E também
Como é que reagia o meio musical da altura? havia um grupo de pessoas com as quais era agradável passar
Com que curiosidade se viviam essas estreias? ali um bocadinho do fim-de-tarde.
Pergunto isto porque sabemos que hoje em dia
a maior parte dos músicos não tem interesse Tem alguma obra preferida de Braga Santos?
pela produção contemporânea. Tenho várias. Por exemplo, as Variações Sobre um
O Joly é um compositor que tem uma linguagem, uma Tema Alentejano, que eu acho que é uma obra excelentíssima,
sonoridade, um vocabulário artístico ao qual se adere com faci- a Abertura n.º 3. Em todas as sinfonias reconheço grande qua-
lidade, dadas as suas características e tendência estética. Pode- lidade. O Concerto para Viola e, enfim, outras obras que ago-
mos ouvir obras de compositores contemporâneos de Joly que ra não me ocorrem. Eu fiz praticamente as primeiras audições
eram acolhidas com indiferença e algumas até com resistência. de todas as obras dele… A Trilogia das Barcas também é uma
Não é o caso do Joly. A sua maneira de se manifestar era aquela, boa obra. O Joly tinha, para além de um sentido de equilíbrio
glosas, #3 | 35
em torno de joly braga santos | entrevista de e. l. ayres d’abreu a henrique da luz fernandes

espantoso na escrita, a característica de ser um excelente or- saiba nunca se ouviram. O Armando não, o Armando teve uma
questrador. Utilizava muito bem quer os efeitos tímbricos, quer carreira, embora depois com uma produção um tanto reduzida.
as alternâncias de ritmo. Do campo modal também já falámos. Tal como o Croner. Ambos se dedicaram principalmente ao en-
Uma certa tendência para um revivalismo da polifonia dos mes- sino. Era uma época um bocado complicada, um e outro estive-
tres das escolas claustrais, que se encontra, por exemplo, nal- ram em França em simultâneo, com a Nadia Boulanger, com
guns andamentos lentos. É uma identidade importante no nosso Stravinsky. Receberam várias influências, algumas delas con-
meio musical, sem dúvida nenhuma. traditórias, num meio musical riquíssimo e efervescente, onde
Evidentemente que havia coisas no Joly que eram havia o “Grupo dos Seis”, de onde eles inclusivamente tiraram o
completamente desconcertantes. Às vezes, saíamos do Con- nome “Grupo dos Quatro”.
servatório, ainda alunos, e ele descia pela Av. da Liberdade. Há quem diga, eu não gosto de fazer juízos destes, que
Atravessávamos o Bairro Alto e descíamos para o Rossio. Ele, Vasconcellos era um pouco indolente. No fundo, eu acho que o
de repente, começava a olhar para o ar, virava costas e ia- artista, o criador, se tem dento de si uma força criadora, deve
-se embora a correr sem dizer nada. Atravessava as ruas sem ter necessidade de a expressar. Portanto, eles eram “composi-
olhar para os lados, foi atropelado várias vezes. Uma vez suce- tores” porque dominavam a maneira de fazer música, mas não
deu que estávamos nos Restauradores, ali ao pé do Éden, e ele é o caso do Graça. O Graça escrevia, pelo menos, duas obras por
resolveu atravessar sem dizer nada, com os automóveis e tudo, dia. (risos)
e foi-se pôr a cantar com os braços no ar ao pé do monumento.
E porque razão foi um desastre quando Pedro
E que cantou? do Prado o colocou como segundo maestro?
Não sei o que cantou, eu fiquei do outro lado, não fui Pela falta de capacidade técnica para dirigir?
atravessar. Passou-lhe uma coisa qualquer pela cabeça, pronto, O Joly, quando dirigia sabia o que fazia, chegou a
era assim. Por fim, essas reacções atenuaram-se. Depois casou fazer alguns concertos. Não lhe vou dizer que era um maestro
e a mulher foi uma influência benéfica na vida dele. Aliás, a excepcional, mas sabia pôr-se em frente a uma orquestra, ler a
mulher e as filhas. Ele tinha uma adoração pelas filhas. As suas partitura, e fazer os gestos correspondentes àquilo que lá estava
meninas, como ele dizia. escrito. Só que, evidentemente, depois havia a sua maneira de
Depois esteve durante uns anos a trabalhar para aqui- ser e de estar, a maneira de falar com as pessoas, de impor o tra-
lo a que se chamava o Gabinete dos Estudos Musicais, para onde balho que está a fazer, de convencer as pessoas de que a opinião
ele escreveu as primeiras sinfonias. Tinha sido uma iniciati- que está a dar deve ser aceite. Afinal de contas, era um maes-
va do Pedro do Prado, com o apoio do Director da Emissora. tro, não era só passar a música e marcar o compasso. Há uma
Quando o Gabinete acabou, o Joly já se tinha casado, passou a história do Joly que revela bem a sua maneira de ser. Ele estava
viver com algumas dificuldades. O Pedro do Prado, e muito bem, a ensaiar e deu por falta do segundo clarinete. Parou o ensaio
entendeu que tinha condições de o poder ajudar, e colocou-o no e perguntou “Então o Sr. Não-sei-quantos não está cá?”, ao que
Porto como segundo maestro. Foi um desastre. Depois acabou o outro clarinetista respondeu: “Ainda bem!”, “Então você está-
por o tirar de lá e criou um lugar que era “maestro de captação”. -me a dizer que ainda bem!?”, “Ó Maestro, ainda bem!” - e o Joly
reagiu de forma intempestiva, começou a gritar com o homem:
O Pedro do Prado era também um dos compo- “Então ele não está cá e está-me a dizer ainda bem?! Isso é forma
sitores do Grupo dos Quatro... de falar com um maestro?”, sem entender que este lhe estava a
Os “Quatro de Portugal”... Que eram Pedro do Prado, falar com pronúncia do Norte, repetindo a frase na esperança
Lopes-Graça, Croner de Vasconcellos e Armando José Fer- de que o maestro entendesse que queria dizer “Ainda vem!”...
nandes… Mantiveram uma polémica com o Ruy Coelho. Nessa altura, o Joly descarrilou, foi um escândalo. Fazia coisas
do arco da velha... Começava os ensaios, ele usava o relógio de
Curiosamente, hoje não se conhecem obras e bolso, punha o relógio em cima da estante. E se se virava para a
acho que não há gravação alguma de obras do esquerda para fazer alguma observação, o que estava à direita
Pedro do Prado. pegava no relógio e adiantava-lho. Continuavam a ensaiar e
Eu acho que o Pedro estaria alinhado com eles mais alguém lhe dizia “Ó Maestro, está na hora do intervalo!”... E ele
pelo seu intelecto que pela sua capacidade de escrever música. não dava pelo tempo passar e assumia que era, de facto, hora do
Em todo o caso, acho que o Pedro não concluiu o curso de piano, intervalo.
mas tinha estado a estudar piano e composição no curso normal. De maneira que depois se tornou maestro de captação.
Não sei se foi no Conservatório, se foi em Coimbra. Ele tinha bom ouvido, portanto, sabia ver se o que estava a ser
captado estava com boa qualidade de som. Agora também não
Mas não terá deixado algumas partituras? sei como eram os diálogos dele com os técnicos… (risos) mas é
Não, eu acho que ele escreveu umas coisas, mas que eu provável que corressem melhor. •
36 | glosas, #3
Memórias e Evocações
de Tomás Marco
e Maria José Borges

mento do que ali se passava e encontrávamo-nos por esse


motivo. Naturalmente, ambos conhecíamos a condição
de compositor do outro, mas no princípio, na verdade,
desconhecíamos por completo as respectivas obras, ain-
da que pouco a pouco as fôssemos conhecendo até com
bastante profundidade. De qualquer modo, os festivais de
música e o trabalho crítico não impediam que falássemos
muito de música e, desde logo, de composição.

Creio que, para além de admirar o músico, a


primeira coisa que aprendi a admirar foi o ser humano.
Joly Braga Santos era uma pessoa calorosa e afectuosa, de
uma grande bondade e, para além disso, um homem mui-
to culto, com o qual se podia conversar e reflectir sobre
os mais variados assuntos. Recordo muitas noitadas de
conversa animada no final dos concertos, especialmente
nas Semanas de Música Religiosa de Cuenca, a que assistia
Joly Braga Santos no Lago di Garda (fotografia não datada) todos os anos e onde, à parte os concertos, o tempo livre
era abundante. Ainda assim, desde logo, não nos víamos
A convite da glosas, memórias e somente nos festivais, mas também, outras vezes, em Lis-
evocações de personalidades próximas boa ou noutra cidade europeia em que coincidisse estar-
mos ambos, devido aos nossos respectivos compromissos
de Joly Braga Santos. As palavras de musicais. E não foi apenas de música que falámos.
Tomás Marco, distinto compositor
espanhol, e de Maria José Borges, Também conheci e apreciei no seu grande valor
a sua esposa, Maria José, uma mulher culta, discreta, ele-
musicóloga e professora no gante e bela, que foi a pessoa que melhor soube entender
Conservatório Nacional. e conduzir Joly. Porque, seguramente, conviver com Joly
não era nada fácil. Não porque não fosse uma óptima pes-
~ soa, que o era, mas sim porque vivia absorto na sua músi-
ca e vida interior e, por vezes, se desligava do mundo real
Se a memória não me engana, conheci Joly Braga em que vivia. Era muito capaz de batalhar diariamente
Santos em inícios dos anos sessenta e desde logo se esta- com mil trabalhos musicais para sustentar a sua família,
beleceu uma ligação de simpatia e amizade que se desen- mas vivia o resto do tempo imerso no seu mundo cria-
volveria durante um quarto de século, até ao momento da tivo e não estava nada dotado para a vida prática diária. A
sua súbita morte. Eu era então um compositor principi- sua mulher tratava dessas coisas, cuidava dele, e creio que
ante e ele uma figura reconhecida que se encontrava na foram um dos casais mais unidos e mais complementares
consolidação da sua maturidade criativa, uma vez que a que conheci.
nossa diferença de idades era de vinte e dois anos.
Como compositor, Joly Braga Santos era um
Curiosamente, os nossos primeiros encontros homem da sua geração, que nunca traiu os princípios es-
realizaram-se enquanto críticos, pois eu já então escrevia téticos em que se formou, mas que soube evoluir de uma
crónicas para diversas publicações musicais ou generalis- forma muito clara. Conhecia muito bem a música e o am-
tas e ele era, sem dúvida, naquele momento, o mais emi- plo reportório do passado e a criação das pessoas da sua
nente crítico português. E realmente a crítica era a razão geração, mas estava igualmente muito bem informado de
de muitos dos nossos encontros, pois ele frequentava tudo o que faziam as vanguardas da sua época e apreciava-
pontualmente os festivais espanhóis para tomar conheci- -o independentemente de o praticar ou não. Um caso claro

glosas, #3 | 37
memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

era a sua amizade e colaboração com aquele que era então Na altura do falecimento de Joly Braga Santos,
o máximo representante da vanguarda portuguesa, Jorge eu dirigia o Festival Internacional de Música Contem-
Peixinho, e com quem se entendia muito bem. O mesmo porânea de Alicante, onde se lhe dedicou uma sessão
apreço mútuo que eu e ele sentíamos um pelo outro. Joly de homenagem. Interpretou-se o seu Concerto para vio-
Braga Santos conhecia a fundo a música portuguesa e esta loncelo e orquestra, que tinha sido estreado pouco tempo
interessava-lhe desde Freitas Branco, de quem foi aluno, antes em Lisboa. Foi um momento de grande emoção.
até ao último jovem que surgisse ao seu redor. Contudo, Não só porque recordávamos o amigo que acabáramos
isto não o impedia de percorrer o seu caminho musical de perder, mas também porque a nova obra se impu-
a partir das suas próprias ideias e na sua própria linha. nha pela sua própria magnitude, pela sua própria beleza e
O seu pensamento sobre a teoria da composição e o es- pela sua importância. Era o Joly de sempre e, ao mesmo
tudo da mesma era muito rigoroso. Tive oportunidade de tempo, um Joly novo, um passo à frente numa evolução
a ouvir detalhadamente numas Jornadas Musicais Luso- que se desenvolvia tranquila, segura, sem correr mas tam-
-Espanholas que tiveram lugar em Lisboa nos anos se- bém sem se deter. Este concerto é seguramente uma das
tenta, baseando-se nalgumas premissas do pensamento maiores obras que nos deixou o compositor. Joly Braga
de um compositor da vanguarda espanhola, Cristóbal Santos deixou-nos num grande momento de maturidade
Halffter, o qual Joly admirava incondicionalmente. da sua carreira. Deixou-nos, para além disso, e consi-
derando as estatísticas de hoje em dia, cedo, pois tinha
A música de Joly Braga Santos é, dentro das co- apenas sessenta e quatro anos, quatro a menos do que te-
ordenadas estéticas em que se insere, bastante pessoal e nho eu próprio, no momento em que redijo estas linhas.
original. Mais interessado numa posição neo-clássica Creio que se encontrava num momento criativo cheio
que num nacionalismo radical, ainda que os motivos de de plenitude e pode-se especular sobre o que poderia ter
inspiração portugueses não tenham faltado na sua obra, composto se tivesse continuado vivo. Estou certo de que
a maior parte da sua produção de um primeiro e am- teria escrito grandes obras, mas trata-se de pura conjectu-
plo período preocupa-se sobretudo com uma linguagem ra, uma vez que as coisas aconteceram de outra maneira.
modal na qual a arquitectura formal é importante e está Devemos concentrar-nos no Joly Braga Santos que existiu
solidamente construída. Esta é a linguagem da Abertura e que conhecemos: um homem bom, um ser humano de
Sinfónica ou da Sinfonietta; mais tarde, porém, o material grande cultura, um professor valioso e um compositor de
expressivo do autor evolui até lugares onde o cromatismo elevada categoria. Não choremos pelas obras que poderia
tem uma importância maior e as técnicas se abrem a ou- ter escrito, antes usufruamos das que realmente escreveu.
tras perspectivas, num trabalho que poderíamos chamar Ao longo da sua carreira, o nosso compositor deixou-nos
de síntese. Talvez o ponto culminante de tudo isto, e a uma série de obras valiosas. Recordemo-las e desfrutemos
obra de maior esforço sintético da sua carreira, seja a Sin- delas.
fonia n.º 5, Virtus Lusitaniæ, que foi igualmente uma das
obras mais bem recebidas do Maestro, pois não só foi dis- Diz-se que o ser humano só morre quando é es-
tinguida pela UNESCO na sua Tribuna Internacional de quecido. Joly Braga Santos não será nunca esquecido e
Compositores, mas também se constituiu como uma das viverá sempre entre nós. Nós que o conhecemos, porque
obras mais comentadas e apreciadas do compositor. conservamos a sua recordação valiosa; aqueles que vieram
depois e não o conheceram, porque possuem o legado das
Joly Braga Santos soube também cultivar a música suas obras, obras essas que pertencerão para sempre ao
vocal, na qual procurou a nobreza da linha melódica e a in- acervo musical e cultural de Portugal e do Mundo. •
teligibilidade dos textos. A linguagem era importante para
o discurso musical, como o demonstra o tratamento dos Tomás Marco
distintos poetas que abordou tanto em português (Camões, Tradução do castelhano
por Raquel Camarinha
Pessoa), como em espanhol (Garcilaso de la Vega), e isto
nota-se particularmente nas suas óperas. Compôs três, mas
~
a mais notória de todas foi sem dúvida a Trilogia das Bar-
cas, uma obra muito original, já que assume musicalmente
No tempo em que eu privei com o compositor
a particular estrutura dramática da obra de Gil Vicente,
e maestro José Manuel (Joly) Braga Santos, por ser mui-
que pouco tem a ver com os libretos operáticos habituais.
to jovem, não tinha uma verdadeira consciência da im-
Graças a este facto, a obra distancia-se tanto da ópera
portância da sua obra, ou da sua envergadura enquanto
tradicional como dos modelos operáticos habituais do séc.
compositor, maestro, pedagogo e musicógrafo, como te-
XX, convertendo-se numa interessante singularidade.
nho hoje. Consequentemente, as minhas memórias e evo-
38 | glosas, #3
memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

cações são fundamentalmente da pessoa e não tanto do inclusive a tocar juntas (ela ao violino, eu ao piano), e
profissional da música. E, passados já bastos anos, poderá mesmo depois já na idade adulta. Recordo essa amizade
o tempo as ter já atraiçoado um pouco… mas pretendo com saudade, pois, apesar de não estarmos longe (ela é
mantê-las tal como as recordo, sem recorrer aos estudos e hoje violetista da orquestra Gulbenkian), não nos temos
biografias entretanto feitos sobre ele. encontrado muito nestes últimos anos, mas revemo-nos
sempre com prazer.
O meu conhecimento com o maestro e composi-
tor Joly Braga Santos fez-se em de 1975, era eu adoles- Presente na medida do possível, e embora tenha
cente, recentemente chegada, como aluna interna, ao deixado pouco tempo depois de ser docente no Con-
Conservatório Nacional. Nessa altura ele era simples- servatório, o maestro ia acompanhando como figura tute-
mente o “pai da Leonor”, sua filha mais nova, que era lar, não apenas como músico, mas sobretudo como pai, as
minha colega de turma no 3.º Ano de Educação Musical nossas incursões conjuntas pelo mundo da música. De tal
(actual Formação Musical) na Classe da Prof. Maria Amé- forma, que não poucas vezes dava algumas “mãozinhas”
lia Abreu. Com efeito, como já referi atrás, só algum tem- nos trabalhos-de-casa de Educação Musical que exigiam
po mais tarde soube que se tratava não apenas de outro alguma criação, como vim a saber anos mais tarde pela
Professor do Conservatório Nacional, mas de um vulto já própria Leonor. Com efeito, entre outras, recordo certa
então importante da nossa música. vez que nos apresentámos numa audição de finalistas de
Educação Musical (1979) na F.I.L (na altura à Junqueira),
E o nosso relacionamento começou por ser mui- da Classe, novamente, da Prof. Maria Amélia Abreu, em
to curioso porque, por qualquer inexplicável motivo, (ou que, entre alguns exercícios feitos por nós, se destacou
por alguma razão de que me não lembro agora), entre sobremaneira um muito interessante, da Leonor…(!). E,
vários outros colegas da filha que, à saída das aulas tam- segundo sei, esse hábito continuou, um pouco, inocente-
bém faziam o percurso do Conservatório para o “Metro” mente, pelas aulas de Harmonia. Era, com efeito, quase
(na altura, para a estação dos Restauradores), foi a mim impossível não recorrer a pequenas ajudas caseiras quan-
que ele incumbiu de “tomar conta da Leonorzinha”. De- do se tinha um compositor em casa…
verão aqui ser feitos dois importantes reparos: por um
lado, o facto de o percurso para o referido Metro ser um O meu contacto com o referido maestro iria
pouco complexo para duas jovens adolescentes de 14 e 13 intensificar-se, novamente como figura paterna, quando
anos (eu e ela, respectivamente), recentemente saídas das fui colega da sua outra filha mais velha, Piedade (Piúcha,
“saias da mãe”, pois constava de um percurso a pé desde como era chamada), na Licenciatura em História da Uni-
o Conservatório até à Rua da Rosa, daí descendo-se a versidade Nova. Fizemos um trabalho em conjunto (a
Travessa da Boa Hora em direcção ao elevador da Glória, transcrição paleográfica da Crónica de D. Duarte, do Rui
que seria tomado até à Praça dos Restauradores, onde de Pina), para o também saudoso Prof. Doutor Oliveira
apanharíamos o Metro até casa, saindo eu na Alameda Marques, trabalho que, na fase final, nos levou muitas
e ela, depois de mim, em Roma. Por bastante pueril que horas de sessões de conjunto em casa dela. Foi assim que
possa parecer, nesses tempos quase “pré-históricos” de pude privar mais intimamente com o maestro Joly Braga
70, e para duas jovens da nossa idade, era algo temerário, Santos, conhecendo-o no seu ambiente familiar. Recordo
de facto, um percurso por aquelas bandas do Bairro Alto, o homem íntegro, carinhoso, solícito e simples, e as con-
bairro não propriamente “recomendável” pelos motivos versas com ele e sua mulher (D. Maria José) que, fora dos
sabidos de todos. Feito este reparo, deverá ser acrescen- momentos de trabalho, vinham por vezes ter connosco,
tado que a Leonorzinha era nessa altura tímida em dema- contando às vezes episódios familiares ou da sua vivência
sia, o que fazia sentir no pai uma necessidade de protecção artística e profissional. Recordo muito o que contavam:
que ele decidiu delegar, de certa forma, em mim. Lembro- a forma como ambos se conheceram, como passaram
-me nitidamente das primeiras vezes em que ele vinha ter algumas vicissitudes nas suas vidas artísticas (a D. Ma-
comigo, entregando-me solenemente o bilhete de Metro ria José fora cantora), e como algumas vezes, sobretudo
da Leonor, dizendo-me “Aqui está o bilhete da Leonor, em Itália, se me não falha a memória, o maestro se viu
tome conta dela, está bem?” ao que eu, também solene- na necessidade de fazer algumas composições “a metro”,
mente, respondia que sim. Comecei, então, a sentir-me, como eles diziam (ora, quem as não tem?), para satisfazer
de certa forma, algo responsável por ela, eu que só tinha encomendas prementes e necessárias em momentos mais
apenas mais um ano do que ela… E, por “inerência de car- atribulados da sua vida no estrangeiro; recordo episódios
go” fomos fomentando uma amizade, que continuou pe- acerca da criação de algumas peças para puro entreteni-
los anos fora em que nos mantivemos colegas, chegando mento doméstico, como algumas obras singelas e, even-
glosas, #3 | 39
Do que foi
memórias e evocações | tomás marco e maria josé borges

publicado sobre
tualmente, menos conhecidas, que escreveu para conjun-
tos instrumentais que envolvessem violino, viola e flauta

as Sinfonias
transversal, para condizerem com os instrumentos toca-
dos por suas filhas e um amigo delas (o Diogo Paes, creio,
que seria flautista), e assim poderem brincar um pouco
com a música. Pedro Neves

Desses momentos domésticos recordo, também,
divertida, a odisseia da compra de um frango assado para Joly Braga Santos destaca-se no panorama musical
o jantar inesperado, face ao adiantado da hora de uma das português pela diversidade e profundidade da sua obra.
tais sessões de trabalho, que o maestro foi incumbido de A característica que melhor o descreve como compositor
ir comprar à Pastelaria “Suprema”, creio, mesmo ali ao é revelada pelas suas palavras: “...desde sempre entendi que
lado, com mil recomendações para não se esquecer “disto tinha de criar o meu próprio estilo e a minha música devia ser
e daquilo”… Era, aliás, proverbial a distracção frequente o resultado dessa criação”.
do maestro para as coisas mais comezinhas (que não
para as importantes), sendo por isso natural tantas reco- Como sinfonista, foi o compositor português que
mendações; mas, apesar de tudo, ele lá se desenvencilhou mais longe levou a linguagem orquestral, tanto a nível de
muito bem com o dito frango e demais compras. Recordo, dimensão como do tratamento que dá aos vários naipes,
também, a propósito, diversas histórias familiares acerca na orquestração da sua obra. Trabalhou intensamente a
de alguns seus acidentes, felizmente não fatais, por vezes forma (como por exemplo a forma sonata, a forma-canção
no atravessar de uma rua, por ir distraído com alguma ABA, a forma Scherzo, etc.), a textura e as diferenças
composição sua na cabeça, só voltando à realidade para tímbricas para dar o carácter pretendido às suas compo-
acenar aflito ao carro, antes de ser atropelado… E, recor- sições, de forma a que o resultado final fosse ao mesmo
do, ainda, o facto de ter visto “ao vivo” as capas dos discos tempo organizado e surpreendente.
das suas obras, na sua maioria ilustrados com quadros do
pintor Falcão Trigoso (avô paterno de sua mulher), que Viveu numa época em que proliferaram por toda a
amplamente adornavam as paredes de sua casa… Europa várias correntes artísticas e estéticas como o ponti-
lhismo, o abstraccionismo, o dodecafonismo e o serialismo,
Finalmente, mais tarde, no ano lectivo de às quais não foi indiferente, mas nunca se restringindo
1987/1988, viríamos ambos a ser colegas, pese embora cegamente a nenhuma linguagem específica. Segundo as
por pouco tempo, quando ele regressou ao Conservatório suas palavras, o seu ideal foi sempre a construção de obras
como docente, já eu aí sendo professora de Instrumento de que, “não desdenhando as conquistas do século XX, falassem
Tecla. Lembro-me do caloroso reencontro e de alguns mo- ao homem comum com simplicidade e clareza”. A sua obra
mentos de conversa que então estabelecíamos por vezes. demonstra que, como artista, absorveu as ideias vigentes
na época sobre as várias opções estéticas, construindo a
E aproximo-me do momento mais doloroso de sua própria linguagem. No seu percurso como composi-
recordar, que foi a sua demasiado inesperada e prematura tor, as influências mais relevantes para a sua evolução são
morte, em finais desse ano lectivo. São, pois, o espanto e predominantemente as de compositores sinfonistas como
o sofrimento causados pelo seu desaparecimento físico, e Luís de Freitas Branco (seu mestre), que foi sobretudo res-
os inevitáveis e tristes cerimoniais fúnebres, que natural- ponsável pelos ideais neo-clássicos cultivados por Braga
mente acompanhei junto da família, as últimas memórias Santos na sua primeira fase de criação, William Walton
que tenho deste excelente músico e compositor que, no e Vaughan Williams, que foram na altura uma grande
final de contas, não tive oportunidade de, então, apreciar revelação para o jovem compositor, e outros autores que
cabalmente. E, ao rebuscar no baú das recordações estas referia como apelativos à sua sensibilidade, tais como Si-
memórias um tanto adormecidas, sinto-me a um tempo belius (duplicação da pulsação - 2.ª Sinfonia), Dvořák (Trio
dolorida e saudosa, mas também grata e orgulhosa por ter do Scherzo - 1.ª Sinfonia), ou César Franck (forma cíclica).
privado bastante de perto com este grande músico que
não tem sido tão divulgado quanto merecia. • Na sua formação profissional, a audição e o es-
tudo de partituras de grandes autores desempenharam um
Maria José Borges
papel não menos importante que as lições directamente
recebidas dos seus professores, permitindo-lhe estabelecer
contacto com realidades musicais passadas e actuais. É de
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do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

notar que foi JBS que introduziu a disciplina de Análise tralmente modernizada, opondo à expressão dum sentimento
Musical no Conservatório Nacional de Lisboa, nos anos alegre da vida, um sentimento trágico da vida, como diria Una-
70, por acreditar ser vital o contacto com partituras de muno. Considerávamos, sim, esta atitude mais própria para in-
grandes compositores na aprendizagem de um músico, terpretar o drama que a humanidade então vivia”.
principalmente na de um compositor.
As seis sinfonias de JBS representam, pois, a
A todas estas influências junta-se a natureza parte mais importante e substancial da sua obra e através
psíquica e moral do compositor: “Natureza nervosa, facil- delas pode-se acompanhar a evolução do seu estilo musi-
mente excitável, aberta a muito do que se dizia e fazia na sua cal durante toda a sua vida. Dividem-se em dois grupos
circunstância cultural, mas alheando-se por vezes dela, ne- que se distinguem pela evolução da linguagem estilística.
cessitada de afectividade e ansiosa de a retribuir, propensa a No primeiro grupo incluem-se as quatro primeiras.
enamorar-se e portanto, atreita a padecimentos sentimentais Neste período o compositor assume uma linguagem neo-
que confidenciava aos amigos íntimos. Por outro lado, era o -clássica, dando particular ênfase à forma, à harmonia
impor-se de uma ética artística sem mácula, cultora da elevação baseada no tonalismo e no modalismo e à melodia. No
de ideias e sentimentos, incompatível com práticas tendentes a segundo grupo reúnem-se as duas últimas, que se carac-
baixar o nível mental do auditório destinatário ou a satisfazer- terizam pela utilização de elementos estéticos como o
-lhe os seus gostos rotineiros.”, in entrevista a O País em 1984. atonalismo, o livre cromatismo e mesmo o dodecafonis-
mo, assim como as alterações aos instrumentos usados na
JBS dizia que “a partir dos 38 anos a evolução do seu orquestração, com especial destaque para as percussões.
estilo se deu no sentido de um livre cromatismo, até à aceitação A transição entre estas duas fases não é repentina nem
da completa dissolução tonal”, sendo a 5.ª Sinfonia a obra em exacta. Obras como Mérope (1959) e o Concerto para Viola
que essa evolução toma mais corpo. e Orquestra de 1960 reflectem uma mudança progressiva,
sendo Três Esboços Sinfónicos (1962) considerada a peça de
Na altura em que JBS terminou a sua 1.ª Sinfonia, “viragem”. No entanto, a coexistência estilística das duas
a sua linguagem identificava-se com algumas das mais po- fases é-nos demonstrada, por exemplo, pela Trilogia das
derosas correntes da música europeia (neo-classicismo), Barcas, estreada em 1970.
mas bastaram poucos anos para o dodecafonismo serial e o
pontilhismo se generalizarem por toda a parte, com as ino- De seguida são apresentados alguns excertos e re-
vações de Boulez, Stockausen, Luigi Nono (colega de JBS flexões, retirados de artigos de crítica musical, entrevistas
na bienal de Veneza em 1948), entre outros. A linguagem e cartas recebidas por Joly Braga Santos, principalmente
de JBS, não estando ligada à linguagem dos três composi- relacionados com as suas Sinfonias:
tores atrás referidos, teve, contudo, uma evolução natural
(a sua 5.ª Sinfonia é realmente muito distante da primeira), ~
mas mais ao nível da diferenciação de grupos rítmicos, se-
quências melódicas e tratamento harmónico, sem perder Carta de Luís Freitas Branco de 15/02/1948
a “fórmula” das estruturas grandes. Esta carta foi escrita após a estreia da 2.ª Sinfo-
nia em Lisboa, no Teatro de S. Carlos, pela Orquestra da
Leia-se uma citação de JBS, presente nas notas de Emissora Nacional e direcção de Pedro de Freitas Bran-
programa do concerto de 22 de Outubro de 1966 pela Or- co. O caminho do compositor é aqui elogiado pelo seu
questra Sinfónica da Emissora Nacional: “Há muitos anos crescimento: “num caminho que tem saída, ao contrário da
que em Portugal o domínio da cultura francesa é uma reali- maioria dos compositores portugueses contemporâneos que an-
dade. O facto em si não chegaria a ser um mal, se não fossem os dam à roda num estilo sem possibilidades de futuro.” Refere
excessos. São estes que o prejudicam, porque importamos tudo ainda que a música de JBS tem um estilo próprio, “apoia-
de França: os aspectos tanto positivos como negativos das suas do no conhecimento vivo da história da evolução da música”.
manifestações culturais. Ora precisamente no citado período Na carta, Freitas Branco refere que o Till de Strauss to-
histórico entre as duas guerras a França ocupou um lugar rele- cado a seguir à sinfonia de Joly não fez diferença, subli-
vante no panorama musical europeu. Assim, a música francesa nhando que “já não há entre a música dos meus jovens colegas
da época predominava em Portugal e uma das suas caracterís- portugueses e a grande música mundial aquele abismo que se
ticas foi a tendência para a miniatura assim como um certo notava nas produções de Freitas Gazul ou Keil e a verdadeira
aligeiramento de estilo. A esta concepção reagimos nós [Luís de música.” É referido ainda, que a sinfonia teve muito suces-
Freitas Branco e JBS] com a adopção das grandes formas sin- so, sendo o compositor alvo “das mais apoteóticas ovações
fónicas e da clássica construção sonática, harmónica e orques- que jamais acolheram uma estreia sinfónica em Portugal.”
glosas, #3 | 41
do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

Homenagem a JBS, pelos Amigos do S. Carlos em 1989 A 07/02/1947 no Diário de Notícias, por A. Joyce:
Dizem as notas de programa de João de Freitas O autor do artigo escreve que a data da estreia da
Branco: “Nos seus mais de 45 anos de carreira de compositor, 1.ª Sinfonia ficará gravada na história, no que respeita à
José Manuel Joly Braga Santos ganhou fama principalmente contribuição desta para o florescimento da música portu-
nos domínios da música sinfónica. (...) Com efeito, não só a guesa: “obra luminosa e dramática, concisa e opulenta de idei-
secção da música sinfónica é, no catálogo das obras, a de maior as, nascida de astro que vai dar que falar... Vê-se que o autor
envergadura, como avultam nela seis sinfonias, mais do que pretende oferecer visão do mundo actual, no seu aspecto trágico,
as de qualquer dos outros, poucos, sinfonistas portugueses do sentimental, não nos pormenores narrativos, anedóticos ou
sec XX. Seis partituras marcantes, já com lugar destacado na pitorescos. Como particular curiosidade nota-se a utilização do
história do nosso sinfonismo, as duas últimas, op. 39 e 45, no- silêncio na sua função de elemento expressivo.”
tavelmente representativas da estatura de quem as concebeu e Nesta crítica descreve-se o 1.º Andamento da
realizou”. João de Freitas Branco compara JBS a Strauss, seguinte forma: “de assombrosa felicidade, bem conseguido
Berlioz, Mahler e Wagner, por também ele ser composi- em termos de construção, com linhas amplas e modernas.” O 2.º
tor e maestro e por ser “próprio do autor-maestro, a estu- andamento, Andante é aqui descrito como o apogeu dramá-
penda arte de instrumentar.” tico da obra, “atingindo o paroxismo nos torturados acordes
dissonantes que soam como pungente interrogação, a calma
~ resposta do regresso do coral marca um dos melhores momen-
tos da partitura, prenhe de comovidas intenções.” Quanto ao
1.ª Sinfonia Allegro final diz-se que “domina a esperança redentora”.

Artigo publicado a 06/02/1947 por Rui Medina Artigo publicado a 29/11/1956, no Porto, depois da 1.ª
A 1.ª Sinfonia (1945-46) foi estreada em Lisboa audição nesta cidade da 1.ª Sinfonia, pela Orquestra Sin-
pela Orquestra da Emissora Nacional, dirigida por Pedro fónica do Porto, dirigida pelo compositor:
de Freitas Branco. É dedicada aos “Heróis e Mártires da A obra é muito elogiada e descrita como “obra
última Guerra Mundial”. O autor do artigo refere a sua de juventude, em que já está impresso o critério artístico que
estreia como um acontecimento de grande importân- sempre presidiu à sua mensagem, na concepção particular em
cia no meio cultural lisboeta. O ambiente da sinfonia é que as suas construções se têm levantado, com a base sólida e a
assim descrito: “a poderosa entrada de violoncelos, a que se atmosfera de grandiosidade que as envolve.”
juntam as violas, os violinos e os contrabaixos, numa súplica
plena de poder dramático, acentuada por dois pizzicatti vigo- Artigo publicado por altura dos 20 anos da 1.ª Sinfonia:
rosos que abrem a continuação dos instrumentos de sopro e de A 1.º Sinfonia é considerada um bom exemplo da
viola. (...) depois, numa entrada grandiosa, em que há todo o obra de juventude do autor e é sugerida pelo crítico uma
pungente e solene de uma marcha fúnebre, que cresce em apote- revisão da mesma de modo a “evitar a repetição um pouco
ose, esmorece e morre, ecoando nos violoncelos e clarinete, até demasiada de certos efeitos de sentido dramático, obtidos em
ficar tremulada, sustentada apenas nos violinos. Finalmente o grande parte através de silêncio e surgindo várias vezes ao lon-
Allegro, um ritmo triunfal de vida num crescendo vigoroso que go de toda a sinfonia, como se fosse um leitmotiv... Por outro
se ergue, esmorece e cai para surgir em crescendos lancinantes lado o andamento final ganharia certamente com maior con-
de luta.” cisão no seu discurso musical, aligeirado por ventura de certas
reexposições um pouco fatigantes.”
JBS disse a respeito da sua 1.ª Sinfonia: “Quero que
esta obra seja a expressão dramatizada e interior do mundo 2.ª Sinfonia
moderno, do nosso mundo.”
A Sinfonia n.º 2 foi estreada no Teatro de S. Car-
Artigo publicado a 08/02/1947 por T.: los pela Orquestra da Emissora Nacional, com direcção de
O autor deste artigo é de opinião de que a 1.ª Sin- Pedro de Freitas Branco a 15 de Fevereiro de 1948. Foi
fonia não é motivo de louvor nem de aplauso, pois trata-se muito aplaudida, na sua estreia, como se testemunha pela
de “um conjunto de dissonâncias acrobáticas de um modernismo análise de vários artigos.
musical epiléptico, de uma fuga alucinante para extremismos
doentios, que pareceu apenas revelar carência de sólida e lím- Artigo publicado a 16/02/1948 após a estreia:
pida inspiração, e pretendeu fazer escala por entre coros de hos- “no final da execução, o público rendeu a Braga Santos
sanas que tantas vezes só não têm a coragem de expressar aquilo uma homenagem como nunca vimos em Portugal ser prestada a
que os comparsas desses coros ou seus dirigentes pensam a sós.” um compositor. O autor viu-se obrigado a ir ao palco agradecer
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do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

as intermináveis palmas e chamadas a que também a orquestra questra Sinfónica Nacional, dirigida por Pedro de Freitas
e o maestro se associaram (...) Em nossa opinião, o mais impor- Branco, num concerto do Gabinete de Estudos Musicais
tante progresso desta sinfonia , em relação à anterior, reside no da Emissora Nacional.
desenvolvimento construtivo. (...) a forma não é menos sólida
e introduz inovações felizes, como a estrutura do último anda- Notas de programa do concerto de 15/10/1958 pela Or-
mento (...). Como realização o primeiro andamento pareceu- questra do Conservatório do Porto, dirigida por Silva
-nos superior. O pequeno Allegretto Pastorale, um rondó mui- Pereira:
to simples, desempenha admiravelmente o papel do scherzo. “A 3.ª Sinfonia (...) constitui uma evocação sinfónica
da paisagem alentejana, mas o seu material temático é todo
Artigo publicado a 16/02/1948 no Diário Popular: original, embora composto segundo os modelos melódico-
“A sinfonia (...) obteve enorme êxito; (...) a avaliar -harmónicos das canções populares daquela região do sul de
pelas manifestações do público, da orquestra e do maestro Portugal (na opinião de Bartok, a que melhor conserva um fol-
- o seu autor, jovem ainda, mostrou já ser um compositor de clore inteiramente original).”
grande futuro e fecundo labor. Poucas vezes temos presencia-
do tanto entusiasmo por uma sinfonia. (...) Pessoalmente, se Artigo publicado em 12/12/1949, por João de Freitas
exceptuarmos o 3.º Andamento, que julgamos o mais equili- Branco (J.F.B.):
brado, não nos interessou grandemente a linguagem musical “A 3.ª Sinfonia de JBS marca um nítido progresso so-
(...). Mas não queremos parecer derrotistas e portanto escreva- bre as anteriores, aliás já de mui notável qualidade. (...) a mais
-se claramente: para o público de ontem do S. Carlos, para a justa adaptação dos meios técnicos à intenção expressiva acusa
orquestra e para o maestro, [JBS] obteve um grande triunfo.” o amadurecimento da personalidade do jovem artista. O equilí-
brio da forma é tão perfeito como nas obras anteriores, pois que
Artigo por Fernanda Cidrais (1.ª audição no Porto, pela este aspecto da criação musical tem merecido desde sempre ao
Orquestra Sinfónica do Conservatório do Porto): autor um cuidado muito particular. O carácter dominante da
“uma obra prima, não da música portuguesa, o que sinfonia inclina-se mais para o dramático do que para o lírico.
já seria bastante, mas da Música com letra grande, da Música- A deliciosa sugestão medieval que nos dá o Trio do Scherzo
-arte, independentemente da nacionalidade, de época e de es- estabelece um contraste felicíssimo, que de forma alguma preju-
tilo. Nesta sinfonia (...) não se encontram amadorismos nem dica a unidade da obra, antes a põe em evidência. A execução
lugares-comuns, nem sequer promessas. Ela afirma-se como foi coroada de um êxito triunfal, [JBS] teve que vir ao palco
uma realidade, pujante de vida e de paixão, umas vezes som- agradecer os aplausos, que pareciam não mais acabar.”
bria, outras cheia de luz, rica em ritmos, em ideias melódicas e
recheios harmónicos, elementos estes brotando vigorosa e espon- Artigo publicado no jornal O Século, por J.F.B.:
taneamente impelidos pela força da sua vida interior.” “O empolgante final desta obra admirável desencade-
ou uma verdadeira tempestade de aplausos e chamadas, com o
Publicado por ocasião de um concerto na Estufa Fria público de pé a reclamar o autor. A vibração da plateia pareceu
pela Orquestra da Emissora Nacional, dirigida por Joly ainda aumentar quando o Maestro Pedro de Freitas Branco fez
Braga Santos, em Agosto de 1950: Joly Braga Santos subir ao estrado para receber a justíssima ho-
“A 2.ª Sinfonia [de JBS] é uma das suas mais signifi- menagem que assim era prestada ao seu talento e ao seu saber.”
cativas produções (...). O processo empregado na mudança de
planos tonais dá resultados surpreendentes, como no final do 1.º 4.ª Sinfonia
Andamento, uma das melhores e mais grandiosas terminações
que conhecemos. Impossível esquecer também essa bela melodia A 4.ª Sinfonia é dedicada à Juventude Musical Por-
de estribilho do Allegretto inicial, e a maneira espontânea e tuguesa. Foi composta, na sua maior parte, no Alentejo, no
natural como decorre esse andamento. Há muitas passagens, Monte dos Perdigões, em casa de Luís de Freitas Branco,
sobretudo no Allegro inicial que são autênticas novidades de onde JBS permanecia largas temporadas. Assim como
ambiente e processos na música de hoje indicam bem muitos na 3ª Sinfonia (também escrita no Monte dos Perdigões)
caminhos que a arte dos sons deve trilhar no futuro.” é notória a influência das canções alentejanas entoadas
por trabalhadores, impregnando assim um certo “sabor”
3.ª Sinfonia popular à sua obra. Contudo, não se trata de uma obra
folclórica, até porque os temas são todos originais. Tem
A 3ª Sinfonia é dedicada a Luís de Freitas Branco. uma construção cíclica e divide-se em quatro andamentos
Foi escrita entre a Primavera de 1948 e o Outono de 1949, terminando com o Hino à Juventude (inicialmente apenas
e estreada a 11 de Dezembro de 1949 no S. Carlos, pela Or- com orquestra, mais tarde, após uma revisão, com coro).
glosas, #3 | 43
do que foi publicado sobre as sinfonias de joly braga santos | pedro neves

Diz o próprio compositor a respeito da sinfonia: primeiros momentos se sentiu a forma como iria ser modelada,
“Esta sinfonia fecha um ciclo na minha produção dominado erguida do interior para o exterior a sua construção linear e
principalmente por duas preocupações: a implementação de volumétrica e definidas e desenvolvidas as linhas mestras do
um sinfonismo moderno na música portuguesa continuando o seu ideário estético e musical. Segura artisticamente, a obra foi
exemplo dado por Luís de Freitas Branco, tentativa de construir surgindo, caminhando até atingir o clímax final onde se situa
uma música que, visando o geral, mas não desdenhando as con- a juventude e se amalgamam forças e intensidades, conteúdo
quistas do sec. XX, pudesse falar ao Homem comum com simpli- musical e poético, grandiosidade.”
cidade e clareza. (...) a Sinfonia n.º 4 não é propriamente uma
obra de expressão folclórica e a influência da canção alenteja- 5.ª Sinfonia (Virtus Lusitanæ)
na reflecte-se aqui numa certa maneira de tratar a construção
modal e os recortes melódicos, que tal como na música popular A 5.ª Sinfonia foi composta durante o ano de 1966
do Alentejo se desenvolvem independentemente da quadratura e estreada a 28 de Dezembro do mesmo ano, no S. Carlos,
rítmica. (...) O Hino à Juventude simboliza a união dos jovens pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, dirigida
de todo o mundo, através da música.” pelo próprio compositor. Surge quinze anos depois da 4ª
Sinfonia. A palavras de JBS sobre a sua 5ª Sinfonia são es-
Artigo publicado a 09(02/1951 na revista Flama, redigi- clarecedoras sobre esta questão: “a forma afasta-se da sonata
do por M. Duarte Alves, sobre o concerto de estreia, a ditemática, embora não se verifique o sistema do atematismo,
28/01/1951 pela Orquestra da Emisora Nacional dirigi- tão caro à maioria dos compositores que partiram de Webern
da pelo compositor. para a conquista de um novo mundo musical”. Diz ainda: “A
“Esta sinfonia, com 4 andamentos e bastante extensa, obra não é dodecafónica, nem pontilhística, antes livremente
demonstra grande e aturado trabalho do autor. Se é certo que cromática em todos os andamentos”.
o compositor quis fazer uma obra de volume e grandiosidade,
usou para tal meios que resultaram, principalmente, num abuso Artigo publicado no Diário de Lisboa por ocasião da reu-
dos metais, tanto mais prejudicado pela má execução nos ins- nião do Conselho Internacional da Música (UNESCO)
trumentos de sopro. A parte temática pareceu-nos bem cuidada em Paris1:
e de real valor. O desenvolvimento dos temas (...) está muito “dado que as dez obras mais votadas beneficiam nos
prejudicado (...) pelo abuso dos metais. A escrita para os instru- termos regulamentares, de uma larga difusão através de deze-
mentos de arco demonstra muito mais cuidado e tem inegável nas de países, considera-se que este êxito da representação por-
valor. O segundo andamento, Andante, destoa da composição tuguesa confiada à Emissora Nacional, assegurará ao composi-
e mais nos pareceu uma marcha fúnebre. Parece-nos que este tor uma imediata e muito ampla projecção mundial. Entre os
andamento deveria ser modificado ou mesmo suprimido. (...) países que mais se interessaram pela próxima audição pública
Gostaríamos de ver [JBS] trabalhar sozinho, sem as influências da 5ª Sinfonia figuram a França, Itália, Polónia e Rússia. (...)”.
ideológicas de determinados compositores e de sua música mo-
derna.” Artigo publicado a 11/12/1970 em Espanha depois da
apresentação da 5ª Sinfonia de JBS interpretada pela
Em artigo publicado a 15 de Novembro de 1978, Orquestra Nacional de Espanha dirigida pelo maestro
por ocasião da “Quinzena da Música Portuguesa em cinco Silva Pereira, por ocasião das I Jornadas Hispano-Portu-
cidades da Roménia”, sobre o concerto em Bucareste com guesas de Música Contemporânea:
a Orquestra e coro da Radiodifusão Romena e direcção de “A Sinfonia nº 5 mostra um compositor feito, conhe-
Silva Pereira, este refere-se à partitura da 4.ª Sinfonia de cedor dos segredos sinfónicos, dos quais se serve para desen-
JBS como uma “página” de grande importância na história volver as suas ideias definidas. (...) O público aplaudiu o autor,
da música portuguesa: “Embora esta obra esteja construída que se encontrava entre o público”.
com base no espírito português - e esse espírito é verdadeira-
mente superior - significa que o nacionalismo posto neste nível Publicado a 11/12/1970 em Espanha, no jornal Arriba:
o transcende para entrar no campo do internacionalismo. O que “Longe de ser sistemática, seja tradicional, neo-clássi-
significa a verdadeira concepção da obra de arte”. ca, popularista ou serial, a 5ª Sinfonia tem efectivos orquestrais
de grande amplitude, onde as percussões estão representadas em
Por ocasião da interpretação da 4.ª Sinfonia no Tivoli 1) Estiveram representados trinta países que apresentaram 81 obras
pela Orquestra da Emissora Nacional e o Coro Gulben- de várias tendências estéticas. A 5ª Sinfonia de JBS ficou classificada
kian, com o maestro Piero Bellugi: em 8º lugar, o que garantiu a sua projecção internacional, assim como
a sua gravação para a etiqueta Decca em colaboração com a Valentim
“Abriu o programa a 4.ª Sinfonia, e logo nos seus
de Carvalho.

44 | glosas, #3
contextualização estética das seis sinfonias | pedro neves

grande quantidade. Se é verdade que a dialéctica se apega a percurso - em que se exacerbou o conflito entre ser moderno
princípios tradicionais, não é menos certo que ao longo dos qua- e ser sincero. A 6.ª Sinfonia é uma obra que reúne essas duas
tro andamentos, violentos às vezes, líricos em algumas ocasiões, pulsões de uma forma tão extrema que o resultado, na sua jun-
sugestivos e plásticos outras vezes, Braga Santos sabe cami- ção de estilos musicais “incompatíveis”, pode ser visto como pós-
nhar por trilhos pessoais. Neste seu caminho acolhe inovações -moderno - numa altura em que esse movimento ainda mal se
de qualquer época, mesmo quando o factor dominante é um cro- esboçara no estrangeiro. Mas a interpretação agora ouvida mos-
matismo vigoroso que dá à obra um sentido único e expressão trou a coerência do percurso psicológico da obra. Esta sinfonia,
dramática. (...) Eu diria que a 5ª Sinfonia é uma criação na- que dura cerca de meia hora e decorre de um só fôlego, divide-
cionalista, não por qualquer detalhe, mas pela tipificação da -se claramente em duas partes: na primeira, Joly deu vazão a
ideologia como um aceso cano das virtudes da raça. Na linha um cromatismo e uma acumulação de dissonâncias que são um
de alguma corrente europeia que conta com alguns valores posi- caso extremo no contexto da sua fase atonal, que nessa altura se
tivos actuais, é o caso de um Dutilleux na França, a 5ª Sinfonia aproximava do fim. Há uma acumulação gradual e maciça de
incorpora a música portuguesa num grande sinfonismo, aquele linhas, em que até o melodismo que nunca abandonava o com-
que sobre os seus projectos cheios de coerência, firmes de textura, positor se dissolve numa congestionada massa orquestral. Como
possui capacidade de mensagem para os auditórios normais.” que exprimindo até “onde” se pode ir. Depois de uma última
contorção, a atmosfera torna-se subitamente mais límpida: a en-
6.ª Sinfonia trada do coro prenuncia um novo diatonismo com os versos de
Camões “ Ondas que por el mundo caminando...”. Quando o so-
A 6.ª Sinfonia de JBS foi composta em 1972 em prano entoa a redondilha “ Irme quiero, madre, aquella galera,
resposta a uma encomenda do Gabinete de Estudos da con el marinero, à ser marinera”, é como se entrássemos num
Emissora Nacional, e foi estreada em Lisboa a 25 de No- mundo ao mesmo tempo novo e ancestral. É como se o composi-
vembro de 1972 pela Orquestra Sinfónica da Emissora tor se libertasse de quaisquer pruridos e escrevesse exactamente
Nacional dirigida pelo maestro Álvaro Cassuto. o que mais lhe apetecia escrever: o anseio expresso nos versos é
o mesmo anseio da música.” •
Diz o próprio compositor: “A 6.ª Sinfonia foi con-
cebida e estruturada num todo indivisível. Episódios musicais Bibliografia
sucedem-se, ininterruptamente, em movimentos, ora lentos,
ora rápidos. Uma constante da obra é a renovação temática; ~DELGADO, Alexandre, Sinfonia em Portugal, Lisboa, Editorial Caminho.
~FREITAS BRANCO, João de, Carta a JBS, 1947, Setembro.
outra, a variação amplificadora, afastando-se, pouco a pouco, ~FREITAS BRANCO, João de, História da Música Portuguesa, Publicações Europa – América.
das clássicas reexposições e desenvolvimentos, pelo que a forma ~SIMÕES, Anabela de Sousa Bravo, Joly Braga Santos (1924-1988): Estudos analíticos e estilís-
sonata, apenas esboçada, é diluída. A sinfonia é constituida por ticos a partir das principais obras instrumentais, Aveiro, Universidade de Aveiro - Departa-
mento de Comunicação e Arte.
três células: uma rítmica, outra melódica e outra harmónica. As
primeiras duas (rítmica e melódica) têm origem nas primeiras
Artigos de imprensa consultados:
palavras do soneto “Ondas que por el mundo” e nas do mote ~AGUIAR, João, “Maestro Joly Braga Santos Louco? Não, distraído!”, in O País, 4 de Abril de 1982.
das redondilhas “Irme quiero”. Muitas variantes, progressões ~“Uma distinção internacional para a 5ª Sinfonia de Joly Braga Santos”, in Diário de Lisboa.
~ALVES, M. Duarte, “No Tivoli Concertos da Emissora Nacional”, in Flama, 9 de Fevereiro de 1951.
e sobreposições de elementos temáticos durante a larga parte ~“Quinzena da Música Portuguesa”, 15 de Novembro de 1978.
instrumental, que precede a entrada do coro, correspondem ~CIDRAIS, Fernanda. A Semana Musical, 1950.

ritmicamente às palavras do texto. O acorde por sobreposição ~DELGADO, Alexandre, “A magna surpresa”, in Público, 21 de Setembro de 1997.
~F.B., “Concerto Sinfónico em S. Carlos”, 1948.
de quartas, que constitui a terceira célula, é utilizado tanto no ~FRANCO, Enrique, “Silva Pereira y la Orquesta Nacional en las jornadas Hispano-Portuguesas. Obras de Braga
sentido dodecafónico como no sentido modal. Santos, Alvaro Cassuto y Felipe Pires”, in Arriba, 11 de Dezembro de 1970.
~FRANCO, J. M., “La orquesta Nacional y los compositores portugueses contemporáneos”, 11 de Dezembro
A escolha dos belos textos castelhanos de Camões teve de 1979.
sobretudo como fim aproveitar sinfonisticamente as grandes ~FREITAS, Maria Helena, “O regresso de Joly Braga Santos”, 1978.

virtudes musicais do castelhano antigo, pondo também em re- ~FREITAS BRANCO, João, “Música”, in O Século, 1949.
~FREITAS BRANCO, João, “O concerto do Gabinete de Estudos Musicais”, 12 de Dezembro de 1949.
levo uma parte, embora pequena, da obra em língua estrangeira ~J.C.P., “Os vinte anos da 1ª Sinfonia de Joly Braga Santos”, 1956.
do maior poeta português.” 2 ~JOYCE, A., “Espectáculos”, in Diário de Notícias, 7 de Fevereiro de 1947.
~”Luís de Freitas Branco fala-nos do seu poema sinfónico que esta noite será executado no concerto da Estufa Fria”,
in Diário de Lisboa, 2 de Agosto de 1950.
Em 21/09/1997 no Público, por Alexandre Delgado: ~M.B., “Concerto da Orquestra Sinfónica do Porto, sob a direcção do maestro Joly Braga Santos, no Clube Fenianos

“(...) JBS escreveu esta obra, numa fase difícil do seu Portuenses”, in Diário do Norte, 29 de Novembro de 1956.
~MEDINA, Rui, “A 1ª Sinfonia de Braga Santos”, 6 de Fevereiro de 1947.
~N., “Tivoli - Concerto Coral - Sinfónico”.
2) in notas de programa redigidas por Nuno Barreiros para o concerto
~S.F., “Concerto pela Orquestra da Emissora”, in Diário Popular, 16 de Fevereiro de 1948.
da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional e do Coro do Teatro de ~T., “S.Carlos - Concerto pela Orquestra Sinfónica Nacional”, in Novidades, 8 de Fevereiro de 1947.
S. Carlos, realizado a 25 de Novembro de 1972.

glosas, #3 | 45
A transformação estilística
na obra orquestral de Joly Braga Santos
Manuel Durão

Allegro energico do primeiro andamento da 1.ª Sinfonia, em Ré, Op. 9

Parece ser unânime que a música orquestral é o tração monumental. Na sua 1.ª Sinfonia, em Ré, Op. 9
fulcro da produção de Joly Braga Santos. Rui Vieira Nery, (1947), dedicada às vítimas da 2.ª Guerra Mundial, as carac-
num artigo publicado aquando da morte do compositor terísticas da sua linguagem são já bem vincadas: depois
em 1988, considera-o “sem qualquer dúvida” o “maior or- de uma introdução lenta do primeiro andamento surge
questrador” da Música Portuguesa do século XX. Para além o tema principal, uma melodia incisiva e sincopada, que
dos conhecimentos que adquiriu do seu mestre Luís de se impõe sobre a malha obstinada do acompanhamento.
Freitas Branco, Joly Braga Santos confessava ter lido com
proveito os tratados de Orquestração dos grandes mes- A linguagem musical da primeira fase criativa do
tres. A sua formação e actividade profissional na área de compositor concilia princípios cromáticos com contextos
Direcção de Orquestra completaram a sensibilidade que modais. A estrutura musical comporta-se de forma modal
fez dele um grande orquestrador: o conhecimento da no interior de cada campo harmónico, mas os encadea-
prática de orquestra e das grandes obras do repertório mentos são frequentemente cromáticos e não funcionais.
sinfónico. Veja-se o exemplo dado do Allegro energetico da 1.ª Sinfo-
nia: a progressão por terceiras menores evita as funções
Na obra de Joly Braga Santos, a orquestração e do tonalismo clássico, tradicionalmente baseadas no ciclo
a estrutura musical distinguem-se claramente, consti- de quintas, e no interior de cada acorde é possível ouvir
tuindo dois níveis diferentes de criação: a orquestração a cor dórica do campo harmónico. Apesar do modalismo
adiciona pouco à estrutura musical primária e transmite-a apelar a referências ao folclore, Braga Santos só muito
de forma eficaz. A sua linguagem percorreu, a par da sua raramente parafraseou ou se inspirou em melodias tradi-
sólida técnica de orquestração, um caminho de buscas e cionais. Entre os poucos exemplos dessa prática estão as
convicções que pode ser divido em três fases. Variações sobre um Tema Aletejano, Op. 18 (1951) e a 3.ª
Sinfonia, em Dó Maior, Op. 15 (1949).
A primeira fase compreende os seus anos de estu-
do no Conservatório Nacional em Lisboa e os ensinamen- Na Elegia a Vianna da Motta, Op. 14 (1948), com-
tos que recebeu de Luís de Freitas Branco. Dele obteve os posta depois da sua primeira importante estada na Bienal
princípios fundamentais da sua linguagem: o eclectismo de Viena, onde, nesse ano, se ouviram obras de composi-
à partida, onde técnicas do modernismo convivem com tores como Schoenberg e Copland, o contraponto e o de-
possibilidades de um tonalismo expandido, com recurso a senvolvimento temático tendem a tornar-se mais livres
modos eclesiásticos e a outros modos sintéticos; no plano e densos e as melodias cromáticas mais expostas. O en-
formal, denota-se o neoclassicismo, fundado na obra cadeamento de trítono, neste caso Sib-Mi (compassos 57-
de Beethoven e Camões, onde, à semelhança do que se -58), toma a função de assinalar o clímax do plano formal.
observa na música de César Franck, o material temático é
deduzido por afinidade ou conflito. Joly conseguiu o seu Dois dos trabalhos mais importantes de análise
cunho pessoal através do uso frequente de ostinatos, das da obra de Joly Braga Santos são da autoria do seu aluno
extensas frases melódicas de amplo âmbito e da orques- Alexandre Delgado, no seu livro A Sinfonia em Portugal,

46 | glosas, #3
a transformação estilística na obra orquestral de joly braga santos | manuel durão

2002, e de João Paes (A transformação do Estilo de


Joly Braga Santos, 2005, incluído na antologia “Dez
Compositores Portugueses” sob coordenação de Ma-
nuel Pedro Faria). Ambos assinalam obras com-
postas no início da década de 60 – Três Esboços Sin-
fónicos, Op. 38 (1962) e Sinfonietta para Orquestra
de Arcos, Op. 39 (1963) – como ponto de viragem
do seu estilo musical. Nesta segunda fase criativa
de Joly Braga Santos nota-se uma preocupação em
repensar a interacção das relações cromáticas e das
relações acústicas no âmbito do pantonalismo. O
meio-tom e os intervalos aparentados, como a 7.ª
maior e a 9.ª menor, adquirem uma importância
crescente nos campos harmónicos e orientam a
proliferação das ideias musicais. Por outro lado,
as combinações sonoras oriundas da série dos
harmónicos – em que a quinta e a quarta perfeitas
têm o papel predominante – continuam a marcar a
cor modal de algumas passagens.

A 5.ª Sinfonia, Op. 45 (1966) foi o apogeu


da segunda fase criativa de Joly Braga Santos, mar-
cada pelas influências colhidas durante as suas via-
gens a Itália, onde estudou composição com Vir-
gilio Mortari (1902-1993) – co-autor com Alfredo
excerto da Elegia a Vianna da Motta, Op. 14
Casella do tratado A técnica de orquestração con-
temporânea (1950) – e direcção de orquestra com
Hermann Scherchen (1891-1966). A sinfonia,
composta dezasseis anos depois da 4.ª, surpreende
pela instrumentação megalómana, requerendo ao
todo um mínimo de 105 instrumentistas. O mate-
rial temático é completamente assimétrico e inde-
pendente de qualquer envolvente modal, naquilo
a que Joly Braga Santos chamou de “expandir ao
máximo o espaço físico em que o elemento musical se
insere”. O desenvolvimento é conseguido através
de decisões aparentemente intuitivas combinadas
com recursos técnicos típicos do dodecafonismo
(inversão, retrogradação e transposição). Clusters,
acordes de 12 sons, acordes simétricos passam a
fazer parte da paleta harmónica do compositor.
Em alguns momentos a influência do modernismo
não podia ser mais evidente: compare-se o iní-
cio do terceiro da andamento desta sinfonia com
início da sexta peça de Sechs kleine Klavierstücke de
Schoenberg (ver página seguinte).

Na orquestração, a percussão ganha uma


importância especial e a polifonia torna-se muito
Segundo tema do primeiro andamento de Três Esboços Sinfónicos Op. 38. mais densa: oiça-se o segundo andamento, um dos
poucos exemplos da influência africana na música
erudita portuguesa, onde se pode ouvir uma trans-

glosas, #3 | 47
a transformação estilística na obra orquestral de joly braga santos | manuel durão

figuração metálica das timbilas moçambicanas. A forma, Em toda a sua criação Joly Braga Santos soube
caracterizada pela evolução da massa sonora, parece ser conservar a autenticidade que se traduz no seu exacerbado
influenciada pela música electroacústica, numa época em lirismo e na sua inconfundível actividade rítmica. Com-
que compositores como Ligeti ou Stockhausen produziam positor contemporâneo de Jorge Peixinho ou de Emma-
algumas das suas obras mais emblemáticas. Em suma, a nuel Nunes, Braga Santos nunca olhou com desdém o ex-
5.ª Sinfonia, composta para as comemorações dos 40 anos perimentalismo, mas também nunca se atrelou cegamente
do Estado Novo, é uma obra de significado paradoxal: ao às novas tendências. A sua música espelha a tensão entre
mesmo tempo que serve a propaganda, apela ao progresso a música que queria compor e a música que a sua época
e à inovação, agita as almas. O último acorde da obra, um lhe exigia (DELGADO, 2002, p. 241). Foi a nova música para um
surpreendente e inaudito acorde de Fá Maior, explode país numa época em que o concerto sinfónico se instituía
como que anunciando uma mudança. Estaria Joly Braga progressivamente como parte da vida cultural das grandes
Santos a antever uma mudança radical na sua música e na cidades. Simultaneamente pode ser vista no panorama in-
sociedade? ternacional como uma música conservadora e passadista.

Na verdade, a terceira fase criativa de Joly Braga Grande parte da obra orquestral de Joly Braga
Santos foi mais uma busca de conciliação entre as lingua- Santos permanece desconhecida tanto do público meló-
gens antagónicas das duas fases anteriores do que uma mano como do meio musical. Para isso contribui a falta
verdadeira mudança ou revolução. Depois de compor a de edições de partituras e o difícil acesso ao espólio do
sua 6.ª Sinfonia, Op. 51 (1972) a sua produção orquestral compositor. A obra de Joly Braga Santos é, pela sua enver-
abrandou significativamente. A obra foi composta com gadura, sensibilidade e imponência, a legítima represen-
avanços e recuos no contexto de agravamento do seu tante da música orquestral portuguesa do séc. XX. Só falta
grande conflito interior: “ser moderno ou ser honesto”. levá-la às salas de concertos do mundo.







Comparação entre o início do 3.º andamento (Largo) da 5.ª Sinfonia de Joly Braga Santos

e a última das Sechs kleine Stücke para piano de Arnold Schönberg.

O resultado foi uma obra de cerca de meia hora em que Bibliografia


se tentam combinar as técnicas do modalismo da sua ju- ~BRANCO, João de Freitas, “A Ópera Mérope de Joly Braga Santos”,
ventude com o avant-garde dos anos sessenta: uma das in Colóquio, n.º 4, pp. 53-56, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1959.
primeiras obras do pós-modernismo na cena europeia e o ~DELGADO, Alexandre, A Sinfonia em Portugal, Lisboa, Caminho, 2002.
fim simbólico da sinfonia em Portugal. ~FERREIRA, Manuel Pedro, “Conhecer é preciso”, Prefácio do livro Dez Compositores
Portugueses (dir. Manuel Pedro Ferreira), pp. 13-21, Lisboa, Dom Quixote, 2005.

As Variações para Orquestra, Op. 55 (1976) foram ~LATINO, Adriana, “Santos, Joly Braga”, in The new Grove dictionary of music and musicians,
Vol. 22, pp. 263-264, Londres, Macmillan Publishers Limited, 2001.
compostas durante um período de grande instabilidade
~NERY, Rui Vieira, “Na Morte de Joly Braga Santos”, in Colóquio, n.º 78, Ano 30.º, p. 69,
política, que de alguma forma se espelha na natureza as-
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
sistemática da obra. Não é fácil reconhecer os elementos ~NERY, Rui Vieira, “Da Propaganda à Resistência”, in História da Música, pp. 165-176.
que são sujeitos a variação: as transformações parecem Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1991.
suceder-se sem critério em vários parâmetros. Acordes ~PAES, João, “A Transformação do Estilo de Joly Braga Santos, analisada a partir de duas com-
maiores e menores convivem com frases dodecafónicas; posições para orquestra de arcos”, in Dez Compositores Portugueses (dir. Manuel Pedro Ferreira),
o modalismo irrompe em progressões harmónicas pan- pp. 201-237, Lisboa, Dom Quixote, 2005.
tonais. A sensação de desorientação seria incomportável ~SANTOS, Joly Braga, “Luiz de Freitas Branco, o compositor e a sua mensagem renovadora”,

não fosse a clara estrutura formal lento-rápido-lento. in Colóquio, n.º 23, Ano 17.º. pp. 54-56, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1975.
O eclectismo desta última fase veio a atingir mais tarde re- ~SANTOS, Joly Braga, Nota de Programa no folheto do CD da 5.ª Sinfonia.

sultados mais consistentes como no Divertimento II, Op. 58 Paço d’Arcos, Portugalsom-Strauss, 1986.

(1978), para orquestra de cordas ou no Concerto para Vio- ~SANTOS, Joly Braga, in Die Musik in Geschichte und Gegenwart, dir. Andreas Jaschinsky,
Vol. 14, pp. 949, Kassel, Bärenreiter-Metzler, 2005.
loncelo, Op. 66. (1987).

48 | glosas, #3
Otonifonias
sobre a música para banda de Joly Braga Santos
por André Granjo

O que seria hoje a música portuguesa para sopros A interrogação que sempre se coloca a todos
se Joly Braga Santos tivesse conseguido terminar Otonifo- quantos estudam o fenómeno da música para sopros no
nias? O que seria das nossas bandas amadoras se tivessem nosso país é o porquê da quase absoluta negligência a
podido aproveitar o seu génio criativo em prol da implan- que os nossos mais importantes compositores do séc. XX
tação de um repertório de maior qualidade, nomeada- votaram as bandas (a mais disseminada forma de prática
mente através das versões para sopros de algumas das suas musical no nosso país). As respostas que emergem apon-
obras? tam sempre o carácter popular das bandas como um dos
principais obstáculos à sua utilização como veículo artís-
Mas voltemos ao princípio. Quando Joly nasceu tico ou então o carácter utilitário e amador das mesmas.
em 1924, as bandas portuguesas atravessavam um dos seus Outros referem a falta de uma instrumentação estável e
mais resplendorosos momentos desde o período das guer- universal como entrave ao desenvolvimento de um reper-
ras liberais no séc. XIX. Artigos publicados na Arte Musi- tório para banda em Portugal. Acrescentam-se aqui mais
cal entre 1931 e 1932 referem a existência no país de 3000 três: a falta de bandas nas nossas escolas oficiais de música
bandas ou “pelo menos 2500”. Embora haja a consciên- até à última década do séc. XX; o desconhecimento dos
cia de que estes números são demasiado elevados, dão- compositores sobre o real valor da banda; a falta de inte-
-nos todavia uma ideia de quão abrangente era esta prática resse da maioria das bandas pela música dos nossos mais
em Portugal durante o período da infância de Joly Braga respeitados compositores, seja por força dos espaços per-
Santos. A redução brutal do número de bandas militares formativos que a banda ocupa seja por ignorância ou falta
em Portugal operada em 1937, de 36 (32 do exército, 2 da de cultura musical dos regentes dessas bandas. Foi por
GNR, 1 da Marinha e uma não oficial na Escola Prática de uma feliz conjugação de elementos pessoais, culturais e
Infantaria de Mafra) para 12 (8 no exército, 2 na GNR, 1 políticos que hoje podemos falar em obras para conjuntos
na Marinha e a não oficial em Mafra), veio mudar com- instrumentais de sopros de Braga Santos.
pletamente o potencial musical instalado no país e obrigar
as bandas militares a circunscreverem muito mais a sua Quando, em 1946, Joly escreve a sua Abertura Sin-
acção a actividades oficiais do Exército e menos às apre- fónica, estaria porventura longe de pensar que Manuel da
sentações em concertos nos jardins e parques das cidades, Silva Dionísio (1912-2000), na época sargento-ajudante
para entretenimento da população. da banda da Guarda Nacional Republicana (GNR), viria a
fazer, três anos depois, uma transcrição para banda desta
Se, por um lado, esta diminuição de bandas mili- obra. Qual é a importância ou a relevância desta trans-
tares deixou um espaço de mercado para as bandas civis, crição para o repertório de banda português? Em que é
por outro lado, diminuiu o número de músicos disponíveis que esta ou outras que Silva Dionísio viria a fazer, não só
nas regiões interiores e que geralmente exerciam funções de obras de Joly mas de Frederico de Freitas, Fernando
vitais em muitas bandas civis do país. É de notar que é Lopes-Graça, Álvaro Cassuto, etc., diferem das tradicio-
exactamente no período em que Luís de Freitas Branco foi nais transcrições que as bandas sempre executaram?
director da Arte Musical que encontramos a maior quanti-
dade de notícias quer sobre a actividade das bandas mili- A diferença essencial está na atitude dos compo-
tares quer sobre a actividade das bandas civis. Este período sitores perante estas transcrições. As versões de uma obra
de grande actividade e mudança nas bandas em Portugal para uma instrumentação diferente, fosse para piano, dois
manter-se-ia, grosso modo, até ao final da década de 40. No pianos, piano a quatro mãos, pequenos agrupamentos
entanto, já em 1946 o musicógrafo Pedro de Freitas, no seu instrumentais, ou para banda, sempre tiveram um papel
livro História da Música Popular em Portugal, alertava para duplo do ponto de vista dos compositores: permitir uma
a quebra que se estava a verificar nas bandas portuguesas, maior difusão da sua música e/ou veicular o seu discurso
apontando como 735 o número de bandas existentes nes- artístico através de mais do que um meio. Do primeiro
sa época. O mesmo autor descreve, contudo, exemplos de exemplo temos as bem conhecidas versões para piano das
bandas amadoras com uma constituição instrumental que sinfonias de Beethoven; do segundo temos por exemplo
rivalizava com as bandas militares em termos de número An Outdoor Overture de Aaron Copland ou, no sentido in-
de instrumentistas e diversidade de instrumentos. verso, de banda para orquestra, Suite Française de Darius

glosas, #3 | 49
otonifonias | andré granjo

Milhaud. Não sabemos, infelizmente, quando começou a Coral Polifónico de Viana do Castelo e Banda da GNR.
relação de amizade e de parceria artística entre Silva Di- A obra não teve um nascimento fácil. Logo de princípio os
onísio e Joly Braga Santos, mas o facto inegável é que am- textos seriam fruto de uma parceria entre David Mourão
bos se relacionaram de forma muito construtiva e foi, sem Ferreira e Natália Correia mas, por razões não apuradas,
dúvida, desta relação que nasceu o interesse de Joly pelo Mourão Ferreira afastou-se do projecto, o que terá colo-
mundo das bandas. cado alguns problemas a Joly Braga Santos. Numa carta
de 31 de Maio desse ano dirigida a Silva Dionísio, é possí-
Data do dia 1 de Abril de 1963 a versão para ban- vel perceber que, a dois meses da estreia, a obra ainda não
da das Variações sobre um Tema Alentejano, Op.18 que ha- estava concluída1.
viam sido escritas em 1951. Silva Dionísio termina o seu
trabalho com o seguinte “desabafo” no final da partitura: Em termos estilísticos a obra encontra-se muito
“Dia de São Macário, 1 de Abril de 1963 e é verdade…acabei”. assente no modalismo, com um medievalismo melódico
Acontece que o seu trabalho ainda não estava acabado omnipresente. No entanto, a mudança para uma lingua-
pois o compositor, que aparecia com regularidade nos gem mais cromática é aqui evidente com exemplos de me-
ensaios matinais da Banda da GNR (hábito quase diário lodias que mais não são do que escalas cromáticas descen-
segundo as memórias dos familiares), viria a introduzir dentes, interrompidas por saltos de 7.ª maior ascendente,
algumas alterações à transcrição, a mais evidente das quais ou frases melódicas compostas por 11 notas diferentes.
foi o corte dos seis primeiros compassos da obra, que ele
já teria entretanto apagado da versão de orquestra. Silva A estreia da obra foi, no entanto, uma desilusão
Dionísio fará mais uma versão para banda, desta feita a para todos em termos da afluência de público ao primeiro
Sinfonia n.º 3 em Dó – cujo trabalho termina no “Domingo fim-de-semana do Festival. Contabilizaram-se cerca de
de Carnaval de 1970 (que alívio)”. 1500 espectadores, o que se traduziu num prejuízo para a
família Barge. Os principais jornais da época dão eco desse
Dado o estreito acompanhamento de Joly dos prejuízo e colocam imediatamente em causa a capacidade
trabalhos de transcrição, as 3 versões acima mencionadas do mecenas de garantir futuras edições do Festival. Numa
podem, em boa verdade, ser incluídas no repertório para pequena crónica intitulada “Música Séria”: Défice de 700
sopros de autores portugueses, uma vez que resultam de Contos, o Jornal de Notícias de 8 de Agosto de 1971 dá
uma vontade e parceria do compositor, da mesma forma conta da decisão de todos os autores e intérpretes envolvi-
que muitas versões de obras de Copland são tidas como dos nos concertos de 31 de Julho e de 1 de Agosto de pro-
obras de sopros ou a Rhapsody in Blue de Gershwin é tida moverem concertos em Lisboa e no Porto da obra D. Gar-
como obra orquestral quando, na realidade, foi escrita cia revertendo os proveitos “para aquilo que for julgado con-
para big band. veniente”. Não há, de facto, notícia que estes concertos se
tenham realizado, provavelmente porque os outros dois
A influência particular da Banda da GNR na fins-de-semana do Festival acabaram por equilibrar um
música em Portugal viria uma vez mais a ser decisiva na pouco as contas2.
produção da imponente cantata cénica D. Garcia, Op. 50,
para recitantes, dois sopranos, alto, tenor, baixo, coro e A outra obra original para banda escrita por Joly
banda, que é sem dúvida um marco histórico na música começou por chamar-se Música para Instrumentos de Sopro
de banda portuguesa. Desde 1965 que crescia em Vilar de e Percussão3. Foi terminada a 21 de Outubro de 1977, e
Mouros, pela mão do médico António Augusto Barge, resultou de uma encomenda da Secretaria de Estado da
um evento musical que hoje é conhecido como “Festival 1) Podemos também ver que Joly pretendia dedicar a sua primeira obra
de Vilar de Mouros”. A edição de 1968 do festival con- escrita originalmente para banda ao seu amigo Silva Dionísio.
tou com a participação da Banda da GNR. Terá sido por 2) D. Garcia viria, no entanto, a ser novamente interpretada no Minho,
na Praça da República de Viana do Castelo, pelo mesmo elenco, du-
indicação de Silva Dionísio que o Dr. Barge viria a enco- rante as festas em honra da Sra. da Agonia de 1973. Para tentar renta-
mendar a Joly Braga Santos e à escritora Natália Correia a bilizar a obra, Silva Dionísio faz um arranjo de partes da cantata por
cantata D. Garcia para celebrar o IX centenário da doação forma a poderem ser interpretadas unicamente pela banda, asseguran-
do, assim, a sua interpretação regular pela Banda da GNR.
de Vilar de Mouros por D. Garcia à Sé de Tuy. A estreia
3) A instrumentação espelha bem o que era frequente haver nas ban-
realizar-se-ia a 31 de Julho de 1971, sob a direcção de das amadoras portuguesas da década de 1970: flautim, flauta, requinta
Silva Dionísio e com a participação de Catarina Avelar, (clarinete sopranino em Mib), clarinetes em Sib 1, 2 e 3, saxofone so-
Elisa Lisboa, Maria Germana Tânger, Álvaro Benamor, prano em Sib, saxofone alto em Mib, saxofone tenor em Sib, saxofone
barítono em Mib, fliscornes em Sib 1 e 2, trompetes em Sib 1 e 2, sax-
Santos Manuel, Maria Manuel Lobo Silveira, Elisette trompas em Mib 1 e 2, trombones em Dó 1, 2 e 3, bombardinos 1 e 2
Bayan, Joana Silva, Maria Ramos, Fernando Serafim, em Dó, baixos em Mib, tuba em Sib e percussão.

50 | glosas, #3
otonifonias | andré granjo

Cultura. Esta suite em 4 andamentos (Prelúdio, Ronda In- pos de solistas. Esta delicadeza do tratamento instrumen-
fantil, Canção e Dança Popular) enquadra-se num conjunto tal não estava de acordo com os espaços performativos da
de encomendas feitas a vários compositores portugueses maioria das bandas portuguesas da época que actuavam
reconhecidos, para serem distribuídas pelas bandas ama- sobretudo ao ar livre. Por outro lado, a quase inexistência
doras, com o objectivo de melhorar a qualidade do reper- de duplicação de partes deixava expostas todas as deficiên-
tório destas formações e alargar os horizontes culturais e cias técnicas dos instrumentistas amadores. De facto, em-
artísticos dos seus públicos. O nome Otonifonias aparecerá bora nenhum dos andamentos de Otonifonias fosse, nem
pouco tempo depois para designar uma colecção de 6 de perto nem de longe, mais exigente tecnicamente do
suites de 4 andamentos cada, com graus de dificuldade que a maioria dos pasodoble ou aberturas de ópera inter-
técnica progressivos, que Joly se propõe realizar para a pretados pelas bandas amadoras, a forma como estavam
SEC. Menos de um mês depois termina um Nocturno para estruturados e orquestrados fazia com que cada músico da
banda cuja orquestração difere um pouco daquela usada banda fosse entendido como um solista. Infelizmente, Joly
em Música para Instrumentos de Sopro e Percussão4, tendo al- nunca terminaria as suas Otonifonias.
gumas particularidades que nos remetem para um maior
grau de elaboração: passagens melódicas cromáticas, pre- Comporia ainda, em 1985 e por encomenda da
sença de acordes com trítonos; uso mais regular de linhas Secretaria de Estado da Cultura, a Suite para Instrumentos
contrapontísticas resultando num aumento da densidade de Metal dedicada ao Grupo de Metais de Lisboa, sobre a
da escrita (embora estas nunca se imponham à hegemo- qual o próprio Joly escreveu: “Compõe-se de três breves an-
nia das melodias principais, asseguradas frequentemente damentos, Moderato, Allegro e Andante, de forma livre e
por um conjunto grande de instrumentos em uníssono). livremente cromáticos na sua construção essencialmente linear,
Ficamos com a impressão de que este Nocturno seria já um a qual procura, sobretudo, os timbres puros e uma grande sim-
andamento para uma segunda suite, de maior dificuldade plicidade e clareza de expressão”.
e elaboração técnica, sendo que a mudança de instrumen-
tação é o argumento mais forte que suporta essa tese, uma Fazem falta hoje as outras cinco suites que deve-
vez que seriam muito poucas as bandas amadoras da altu- riam compor o total de Otonifonias. Fazem falta porque
ra a dispor de oboés, fagotes e clarinete baixo. as nossas bandas amadoras estão hoje muitíssimo mais
desenvolvidas e “contaminadas” com alguns repertórios
Em termos gerais, todos os andamentos obe- que se aproximam muito mais da escrita musical usada
decem a uma forma ABA, em que B é uma nova secção por Joly. Persiste ainda um défice grande de música para
com temas novos e não um desenvolvimento de A. Toda sopros de qualidade escrita por autores portugueses. Num
a obra está escrita num estilo modal e alguns dos anda- país onde os professores de composição só agora, muitas
mentos remetem para um contexto de música popular. vezes por impulso dos seus alunos oriundos muitos deles
É ainda curioso o facto de três dos cinco andamentos se das bandas, começam a olhar a banda como um veículo
iniciarem com solos de saxofone alto, sendo que o Prelúdio artístico, é porventura útil pensar as versões para banda de
se inicia com um coral escrito apenas para o quarteto de obras de compositores portugueses, produzidas no seio da
saxofones, que é, sem dúvida, uma das mais interessantes Banda Sinfónica da GNR e de outras que eventualmente
intervenções do naipe de saxofones de toda a literatura existam, como repertório em que se pode cimentar uma
musical portuguesa! Esta insistência no uso do saxofone nova prática bandística enquanto aguardamos mais e me-
é apenas relevante uma vez que não é de todo um instru- lhor repertório. Para este efeito muito contribuirá certa-
mento usado regularmente por Joly Braga Santos. mente a nova chefia da Banda Sinfónica da GNR, na pes-
soa do seu Capitão João Afonso Cerqueira, ao promover a
Uma das razões que terá levado à pouca difusão edição de algumas destas versões como forma de celebrar
desta obra, e da totalidade das outras obras escritas por os 175 anos da Banda, que se festejarão em 2013, hon-
outros compositores para o projecto da SEC, entre as rando a memória e o trabalho de antigos chefes da Banda,
nossas bandas amadoras, é a forma como Joly aborda a dos quais Silva Dionísio, até pelo que representou para o
banda. Ao longo de Otonifonias percebemos que a banda é movimento das bandas amadoras, é um impressionante
entendida e trabalhada como conjuntos de instrumentos exemplo. Com esta oportunidade se pode antever uma
de câmara um pouco à maneira do uso dos sopros no seio nova vida para a música de Joly Braga Santos e de outros
da orquestra sinfónica que formam, frequentemente, gru- compositores portugueses, uma vez que as centenas de
bandas do nosso país nutrirão de certeza mais carinho pela
4) Acrescenta oboé, fagote, clarinete baixo em Sib, mais dois trompetes
e duas saxtrompas, divisi na parte de bombardino 1 e de baixo em Mib
sua música do que aquele que a maioria das nossas orques-
e instrumentos de percussão de altura definida (tímpanos e sistro). tras sinfónicas tem, por razões várias, demonstrado. •
glosas, #3 | 51
reprodução de original a cores, intitulado privilégio dos caminhos
Apolo e Dafne
a partir da música de Joly Braga Santos

imagem de Nadir Afonso


poema de Ruy Narval

desde o torso em torno


do teu ombro eu faço eu construo
o meu país o meu irmão de areia e ar
cercado perseguido pelos teus braços de âmbar
entre a terra e o perfume do mar
eu faço algo fluvial para os pássaros
algo de água pura para os teus lábios -
pela tua anca nacarada - eu faço os rios algo azul como este sangue
e as vertentes viradas expostas ao peso desta mão
dadas à clave do vento à melopeia das searas eu faço
porque nas veias tenho este país este sangue
cinzelando a raiz submersa das paisagens construindo as casas:
o cereal moído a orla marítima deste coração: eu escrevo sempre por cima
deste cárcere o declive lírico a raiz do sol dentro da pedra, e esta, a
a agrária paixão deste sangue revolto: e que timbre às mãos isto faz
a força a vergar a erguer os homens nos navios em meio da água
e nos aquedutos a tua fome a vergar o meu sangue luso
a vergar a minha mão fluvial diante do teu rosto
a vergar o que eu quero: este nome do meu sangue erguido
a dizer a pôr a mão o poema cor de ouro sobre o meu ombro
se só tu és este nascimento esta raiz de ouro que é como um esquecimento do espaço
BANKSTERS
Nuno Côrte-Real,
Vasco Graça Moura
à conversa com

entrevista conduzida por Mónica Brito


e João Botelho
reprodução de original a cores de Alfredo Rocha; gentilmente cedida pelo Teatro Nacional de São Carlos
BANKSTERS
entrevista conduzida por Mónica Brito
fotografias de José Pedro Cardeiro
a propósito da estreia mundial no
Teatro Nacional de São Carlos

Direcção Musical | Lawrence Renes


Encenador | João Botelho
Cenografia e Figurinos | Sílvia Grabowski
Vídeo | Edgar Alberto
Desenho de Luz | Pedro Martins

Orquestra Sinfónica Portuguesa


Coro do Teatro Nacional de São Carlos

Santiago Malpago | Jorge Vaz de Carvalho


Angelino Rigoletto | Musa Nkuna
Mimi Kitsch | Sara Braga Simões
Accionista | Diogo Oliveira
Porta Voz | Chelsey Schill
Presidente da AG | Nuno Dias
Magistrado | José Lourenço
Médico | Ana Ferro
Advogado | José Corvelo
Segurança 1 | Bruno Almeida
Segurança 2 | Christian Lujan

Março
de 2011

nuno côrte-real
Permita-me que comece por uma suave provo- musical. A música contemporânea geralmente tem uma lin-
cação. A ópera é tão elitista quanto se diz? guagem muito dura, inacessível. Em relação ao Vasco Graça
Se é elitista agora, é porque a fizeram elitista. Há Moura, para aquilo que eu queria, acho que não há melhor pes-
umas centenas de anos era muito popular, sobretudo em Itália soa no país para fazer esta linguagem vicentina, com rima.
e no século XIX. Tinha uma enorme infuência na vida social,
política e humana. Um peso fortíssimo. Depois começou a dete- Uma linguagem mais mordaz.
riorar-se. Mas é exactamente pela falta da produção contem- Sim, mas muito musical. A ópera, a meu ver, tem uma
porânea que a ópera perdeu peso. As coisas, para mim, só vivem linguagem muito intuitiva. Tem de o ser. ‘Sim’, ‘Não’, ‘Vamos’,
e sobrevivem quanto mais actuais, mais contemporâneas forem, ‘Deixa-me’, ‘Vai’. Não pode haver muito barroco, muita com-
em termos de produção. No século XIX, um grande aconteci- plexidade. Estou a falar do Português, de como se diz e não do
mento era a nova ópera do Verdi ou do Rossini. Hoje em dia, conteúdo. Falo de verso a verso, palavra a palavra, a maneira
um grande acontecimento em Portugal é a recriação da ópera como as coisas são ditas. Isso também tem muita importância.
Antígona. Para mim não tem interesse, peço desculpa... “Há coisas que ultrapassam a justiça, ó fraudulento gosto que se
atiça”, diz o magistrado para o banqueiro, no terceiro acto. Há
O que desperta o seu interesse numa ópera? aqui algo que depois se repete em toda a ópera.
Tem de ser forte, muito forte... Tem de ser inquietante.
Tem de me deixar mudo. O facto de se ter abordado temas tão actuais,
e de quase proliferarem estados de alma entre
O seu encontro com Vasco Graça Moura e João as personagens, tornou este desafio particular-
Botelho é a prova de uma certa versatilidade que mente difícil?
a ópera pode ter, de uma capacidade para atrair A peça do Régio passa-se numa corte, com um Rei.
novos públicos? Depois, houve a ideia da parte do Vasco Graça Moura de a
Sim, embora não pense muito nesses termos. (pausa) transpor para o mundo actual: a figura do Rei é a figura do
Não se recria o rock de há 50 anos, são apresentados trabalhos Banqueiro, que está tão na moda. E aí começou o processo. Ao
de agora. Aqui a mesma coisa. Tem que ver com a linguagem princípio hesitei um pouco... por uma questão técnica, de libreto,

56 | glosas, #3
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

de equivalência de personagens, do Anjo/Bobo. Mas hoje não a preço dos bilhetes, isso é um pouco falacioso. As pessoas vão ver
concebo sem ser neste mundo da alta finança. É muito mordaz. a Madonna e pagam cem euros ou mais para vê-la a quinhen-
O Vasco Graça Moura colocou aspectos actualíssimos. O proble- tos metros e num ecrã! Entendo que sejam caros, sobretudo se
ma com os recibos verdes, os offshores e o IRS estão cá. Se for- vai uma família, mas há que ter prioridades. Os bilhetes são 40
mos ver óperas antigas, como Mozart, estão cheias de menções à euros, mas há livros que custam 35.
época. O Don Giovanni refere um vinho que só havia na época.
Faria sentido que Banksters fosse beber ins-
O título Banksters foi escolhido por si. Por al- piração a outro texto que não o de José Régio?
gum motivo em particular? Banksters é Banksters por causa do Régio. Isso foi uma
É uma provocação. Ouvi isso uma vez. Beppe Grillo, escolha minha, por dois aspectos fundamentais e o primeiro é a
um comediante italiano, usou essa palavra ao mostrar quatro questão da morte. O problema da morte para mim é uma coisa
indivíduos mundialmente famosos. Disse que deviam chamar- recorrente. Para muitas pessoas é uma coisa tenebrosa. Para
-se Banksters. Até pensei que o termo era dele, mas não. É mim também, mas eu tento pelo menos fazer uma aprendi-
uma palavra que não existe, que junta bankers e gangsters, zagem, e isso só se faz quando nos confrontamos com a ideia,
mas que é usada na América. Acho que é um bom termo. não de fuga, mas de ir ao encontro. Portanto, há aqui uma ten-
tativa de “enternecer” a morte. No final da ópera, no epílogo,
Como se transpõe para a música a ironia das o desejo é de a tornar uma coisa bela. Depois outro aspecto é
palavras? a descoberta do ‘eu’, um percurso do Banqueiro em que ele se
Isso é o mais difícil... vai descobrindo, quem realmente é ou quem realmente não foi.
Isso é quase Pessoa. E é através do sofrimento - que é uma ideia
Há elementos específicos? bastante cristã, não católica, mas de Cristo ele próprio. No fim,
Sim, mas não há regras. Por exemplo, o Presidente há o que eu chamo de redenção, mas é mais uma descoberta:
da Assembleia Geral e o Magistrado têm ‘tratamentos’ diferen- finalmente, a paz surge. Para que entre aquilo que nós somos
tes. É muito difícil explicar. São coisas pequeninas. No caso do interiormente e exteriormente não haja intervalo nenhum. Às
primeiro, é uma música muito estúpida, bruta, com instrumen- vezes os conflitos existem porque não somos para fora aquilo
tos muito graves, como a tuba, os contrabaixos e o contra-fagote. que somos para dentro. E depois há esse conflito que ninguém
É uma caricatura grotesca, muito ridícula. ouve. O Banqueiro, no fim, liberta-se e essa libertação vem com
a morte. Nesse aspecto, para mim, isto é quase um Romeu e
Se for possível quantificar, quanto tempo de- Julieta ou um Tristão e Isolda.
morou a ser desenvolvido todo este trabalho?
Com certeza um ano. Com a maturação do projecto, Como uma desmistificação da ideia de perda.
antes ainda da fase do libreto, cerca de um ano e meio. É um A Vida é Morte e a Morte é Vida. Não podemos reti-
bom prazo. O Verdi fazia duas óperas por ano. E havia outros rar a morte, é absurdo pensar nisso. É impossível e é uma visão
que faziam mais, se calhar. Isso mete medo, mas... (risos) errada; nesse sentido temos de integrá-la. O Ocidente não a in-
tegra, acho que as outras culturas vão mais além.
A quem se dirige Banksters?
A todas as pessoas... (pausa) A música vale mais do Como me descreveria a noite da estreia?
que mil palavras. Eu sei que é música contemporânea. É muito Em termos de trabalho foi neutra porque estava muito
injusto falar de música contemporânea, porque é muita coisa, sereno. Aliás, na última semana disse à Orquestra e ao Coro
cada vez é mais plural, mais diversa. O público em geral pensa que, para mim, já tinha sido um sucesso. Acho que ficou bem
em música contemporânea, enfim, como um estigma. E o Teatro feito, modéstia à parte. O João Botelho fez um trabalho ex-
Nacional de São Carlos sofre desse estigma. Há três anos foi traordinário, o Maestro também. E portanto, desse ponto de
estreada uma ópera de Emmanuel Nunes. Ele faz música con- vista, estava muito sereno. A reacção que as pessoas tiveram,
temporânea, eu também, mas aquilo que faço está a anos-luz do isso sim, foi surpreendente. Sem exagero, estavam maravilha-
que Emmanuel Nunes faz. das, sobretudo com o Português. Foi o mais importante.

Será devido ao que algumas pessoas conside- Foi a primeira vez que se fez algo do género?
ram ser «preços proibitivos»? Se calhar. Não tenho a certeza disso, mas é raro. Mas
As sete récitas de Carmen, agora a seguir, já estão es- havia muita surpresa. Para mim o momento mais especial foi
gotadas... Não estou à espera que se compare, mas aquilo que nos agradecimentos, em que eu e Vasco Graça Moura entrámos.
eu disse é verdade: isto é para todas as pessoas. Em relação ao É inesquecível, porque achei que foi um triunfo não só da músi-

glosas, #3 | 57
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

ca portuguesa mas também da Língua Portuguesa na ópera. De mas, de facto, a ópera abarca tudo. Há, em Banksters, um entre-
facto, eu só poderia estar ali com ele. Era a celebração das duas -acto que é uma peça sinfónica, que dura quatro minutos, como
coisas: da Música e do Português. se fosse uma abertura. Há partes que são quartetos vocais. Há um
assassinato que é também um prelúdio orquestral. Abarca tudo.
O convite a João Botelho foi uma tentativa de Nesse aspecto, a ópera é mesmo a obra de arte total. É fascinante.
trazer alguma cinematografia a um espectácu-
lo deste género? Sempre soube que queria ser compositor?
Não... Eu na minha música busco muito a Poesia. Não (pausa) A partir de uma determinada altura sim... na
sei explicar isto melhor. Acho que, imageticamente, o João Bo- adolescência. Compositor de quê? Isso é preciso definir. Come-
telho também tenta fazer isso, é muito poético. Claro que foi cei com guitarra clássica, num grupo... não de rock, enfim, de
também pelo facto de ser um cineasta. É bom trabalhar com ou- baladas. Mais do que saber “Vou ser compositor”, houve sempre
tras pessoas doutros meios, trazem coisas novas. E acho que ele um desejo de criação. Isso é de sempre, não consigo estar quieto
trouxe. em termos criativos, mentais. É impossível, tenho de estar sem-
pre a fazer qualquer coisa. A certa altura do meu crescimento,
E o que é que esta ópera trouxe, daqui para a a música surgiu fortíssima. Comecei a fazer canções, coisas
frente, para o panorama nacional? pequenas, com letra, depois foi o percurso mais ou menos nor-
O primeiro aspecto, como já foi dito, é ser totalmente mal - ou mais ou menos anormal, não sei. Começou a ser tudo
portuguesa. Não sei se é bom ou mau, mas acho que “agarra” as mais técnico e chegou aqui à música contemporânea. (pausa)
pessoas à cadeira, sobretudo na segunda parte do terceiro acto. E Eu deveria arranjar outro nome... é absolutamente falacioso. Há
há coisas muito fortes. O prólogo acho que é assustador, mesmo! trinta anos não era, mas neste momento é uma mentira.
Assusta-me. (risos)

Pela linguagem que é usada?


Pela violência. Por tudo. O preto que é usado. A or-
questra, o coro, as luzes. O segundo acto é volúpia, é “sexo,
drogas e música contemporânea”. Há uma explosão de cor, de
sedução, sensualidade, intriga, Broadway. Depois a linguagem
geral desta ópera é simples, bastante acessível. Não é uma arte
conceptual. Há coisas no enredo que são estranhas, um pouco
transcendentes, mas são pormenores. O presidente da Assem-
bleia Geral diz: “Ai, parte-se este coração que eu tinha entregue
à finança para fugir ao IRS”. As pessoas entendem, é uma
história normal, que se percebe, e isso é muito importante. Há -
ou pelo menos na estreia houve - muitos sorrisos audíveis.

Que espaço a ópera ocupa na sua carreira? É susceptível de confundir as pessoas?


Um espaço muito importante. Acho que sou bastante Absolutamente. As pessoas pensam mesmo que é
privilegiado. Com estas dimensões é a minha primeira ópera, outra coisa. Que é insuportável, um “sofrimento”, porque já
mas é a terceira que faço, depois d’O Rapaz de Bronze e A tiveram essa experiência. E não é, é mesmo o contrário. Não
Montanha. É um espaço que me é muito querido. Sinto-me um estou a falar de qualidade, de valor. Não estou a dizer que a
“peixe na água”. Também gosto muito do Teatro, mas tenho outra música é má e esta é que é boa, não é isso. É diferente.
trabalhado sempre, desde 2001, noutras óperas, a fazer diver-
sas coisas: direcção de cena, assistência de encenação, traduções. Julga que tem a ver com a formação, académi-
Gostava de poder continuar, mas isso é sempre muito difícil. Até ca e não só, dos dias de hoje?
podia dizer, em jeito de conclusão, que nasci para fazer ópera. Isto é uma coisa mundial, universal, não é portuguesa.
Mas não sei se continuarei a fazê-la... Tem a ver com o coração dos compositores. Neste momento,
vivemos numa altura de liberdade, com toda a comunicação que
De todos os seus trabalhos qual destacaria? há. Os compositores, os criadores, têm que seguir o coração. E
Podia ser este. Mas O Rapaz de Bronze também foi se há uns que estão bem dentro de uma estética, dos anos 50,
muito importante. Porque são coisas que envolvem tudo. Faço mui- 60, 70 – que a mim já me “cheira a mofo” – então que a sigam,
ta música de câmara, alguma com orquestra, ensembles contem- tudo bem. Mas acabaram as legitimidades, já há bastante tempo.
porâneos, com 15, 16 instrumentos, alguma sinfónica, canções... Não estou a dizer mal de nenhum músico, só estou a dizer que
58 | glosas, #3
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

isso acabou, vivemos numa época em que o pluralismo reina. a posteriori. Antigamente, eu tinha duas sintonias mentais
Essa é a grande valia da música contemporânea neste momen- para ouvir música: a que é a minha, aquilo que eu quero ouvir;
to. Eu tenho seguido o meu coração. Sinceramente tenho. Esta e depois tinha outra que aprendi para a música contemporânea,
ópera é sinal disso. As questões técnicas e estéticas que estão na desenvolvi essa segunda sintonia, diferente. Eu tenho uma ad-
ópera posso defini-las todas: seguem um desejo de dramaturgia, miração por Beethoven e ouço-o na tal sintonia pura, na minha;
plural, de síntese. Não tenho pudor absolutamente nenhum em mas quando ouço Berio tenho de ouvir noutra. Numa determi-
ter muitas partes que são verdadeiras árias, por exemplo, com nada altura em que estava a estudar na Holanda, disse a mim
acompanhamento. Há uma melodia e há acompanhamento. Po- próprio que isto era injusto. Não é só injusto, é falso. É como
dia ser baixo de Alberti, mas é uma outra coisa. E outras partes gostar de pessoas, mas um “gostar de maneira diferente”, é um
que são cânones, polifonias. Portanto, nos dias de hoje, essa bocado hipócrita. E isso fez-me mudar muito, para perceber - ou
posição estética morreu. Mas há “fantasmas”... que infelizmente tentar perceber - o que é que eu realmente queria ouvir também
ainda têm bastante poder. do que faço. Os compositores também ouvem o que fazem e têm
de gostar. É absurdo, senão mesmo esquizofrénico, se fizermos
Uma espécie de Banksters? uma coisa de que não gostamos nada. Isto fez-me procurar
(risos) Tinha de arranjar outro nome. Esta ópera, por aquilo que eu quero e não tanto o que o público quer. Os Deo-
exemplo, tem inúmeras técnicas. No segundo acto, a parte central linda são muito engraçados mas eu não quero fazer “aquilo”.
da Habanera é dodecafónica. Deve ser a primeira Habanera do- Também escrevi um fado para esta ópera. Verdi, Beethoven,
decafónica que já se fez. Isto dá o exemplo daquilo que quero di- Mozart, escreviam canções, valsas, mazurcas... Porque é que os
zer. É preciso usar a imaginação, é infinito. Acho que hoje em dia compositores contemporâneos não podem fazer nada? Parece
é muito difícil, senão impossível, criar coisas novas, originais, que estamos com um “colete de forças”. Estou a dizer isto porque
apresento esta ópera, não estou a ser demagógico.

É um facto.
É um facto. Vejam, ouçam, “batam-me”, chamem-me
“vendido”, sei lá... (risos)

A música tradicional portuguesa também tem


um lugar de destaque no seu percurso. 
Para mim é um absurdo não olhar para a riqueza ab-
solutamente extraordinária da música tradicional portuguesa.
Muitos países não têm sequer um quarto. A última coisa que
fiz foi, em Novembro, a Oratória Popular, com gaita-de-foles.
Nesta ópera há elementos popularíssimos e que são absoluta-
mente estruturais. Há um tema rítmico que é explícito e que se
inspira nos Zés Pereiras, só que está vestido com a harmonia
nunca antes ouvidas. Nesse aspecto, a atitude do compositor tem do Banqueiro, que é das mais dissonantes da ópera. Também
de ser de opção e a opção, em arte, só pode vir do coração. Pelo o canto tradicional, que é muito português, tentei utilizar. Para
menos deveria vir. Não vem com racionalismos, porque tudo mim uma melodia é uma coisa que tem de ser cantada. Nós
é legítimo. Optar por uma estética serialista, ou pós-serialista, cantamos. O ser humano tem de cantar. Nunca cantará – isto é
não é “o novo”, se calhar pensam que é, mas já é antigo. Neste uma convicção minha - as melodias atonais do Schoenberg. Mas
aspecto, escolher música tonal ou escolher Debussy ou Bartok, o canto é uma coisa orgânica, do corpo.
ou Boulez, é indiferente. Mas não estou a desvalorizar! O novo
só pode surgir se houver esta síntese, este “cozinhado”. É o que A criação do Ensemble Darcos, do qual é tam-
pretendo fazer. bém director artístico, é fruto do seu empenho
para trazer novos caminhos para a música em
Quando compõe pensa em particular no músi- Portugal?
co que vai executar, no público que vai escutar É um desejo. O Ensemble toca sobretudo música clás-
ou em nenhum de ambos? sica, dos grandes compositores - Beethoven, Brahms, Shubert,
Penso em mim. (risos) Mozart -, a minha música, e às vezes novas obras que enco-
mendamos a compositores portugueses. Mas é mais um desejo
No seu coração, portanto. de poder trabalhar essas obras clássicas, de câmara. Porque eu
Sim. Penso em surpreender-me... O público é uma coisa aprendo muito e é importante nesse sentido. Não há um desejo
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banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

de o grupo ser um “pórtico” da nova música portuguesa, isso


não. Embora também o seja: Sérgio Azevedo, Eurico Carrapa-
toso, Pinho Vargas, Vitorino d’ Almeida... lentamente aumenta-
mos o nosso espólio, de uma forma muito humilde. É sobretudo
isso: a confrontação dos grandes clássicos com a nova música
portuguesa. Este ano vai ser importante porque vamos gravar o
primeiro disco. Não sei quando vai sair, mas vamos gravar só
com a minha música de câmara.

Imagina Banksters a seguir um caminho itine-


rante?
Isso era o que se devia fazer, mas não se faz. (pausa)
Não tenho palavras. É uma crítica muito negativa. Em Portu-
gal as coisas morrem à nascença. Eu já tenho muita sorte de
Banksters poder estar cinco vezes em cena, é uma excepção
vasco
graça moura
até. O Rapaz de Bronze, que apresentei no Porto, esteve uma.

É quase inglório depois de todo o processo de


criação. A Ópera não vive sem a Literatura?
É horrível. Nunca mais se falou de O Rapaz de Bronze, A ópera não vive sem o libreto. Não vive sem uma acção
e acho que merecia. É português. A música, o libreto (de José dramática que se polariza entre personagens. Embora haja pelo
Maria Vieira Mendes), o texto (de uma das maiores poetisas de menos uma ópera só com uma personagem, La Voix Humaine,
sempre, a Sophia). Fiz eu próprio uma edição não comercial em de Francis Poulenc. Em todo o caso, essa personagem é única em
DVD (a Casa da Música não me apoiou), pedi a umas pessoas, e cena, mas está a falar ao telefone durante todo o tempo com o
estou contente com o resultado. Mas agora é impossível eu fazer namorado, de algum modo presente. Mas a ópera implica uma
uma coisa semelhante. Faço uma crítica, por exemplo, à RTP. acção. Fundamentalmente implica sempre um texto com carac-
A Antena 2 vai transmitir em directo Banksters, mas a RTP terísticas para ser utilizado musicalmente, para ser cantado.
tinha a obrigação - não é o interesse, é a obrigação - de gravar
esta ópera e de tê-la nos seus arquivos. Posso dizer que houve Quando aceitou o convite de Nuno Côrte-Real
contactos e houve conhecimento, sobretudo da parte da RTP2, de e do São Carlos concebia a ideia de este ser um
que a ópera ia acontecer. Perante isto, a RTP resolveu apoiar a projecto inovador?
gravação da Antígono. Acho que Banksters é um milhão de ve- Nunca me tinha passado pela cabeça... (risos) Eu estava
zes mais importante, por todas as razões possíveis e imaginárias. nessa altura em Bruxelas, a terminar o meu segundo mandato
como deputado europeu, e um dia recebi um mail do director do São
Em jeito de síntese de tudo o que falámos, que Carlos a propor uma encomenda para escrever o libreto. Fiquei
mensagem pode transmitir ao mpmp? um pouco surpreendido. Em Lisboa, conversei com o Nuno Côrte-
Que continuem. É muito importante. E que sejam ver- -Real e assim as coisas começaram. Foi uma experiência curiosa
dadeiramente livres, que não escolham partidos, porque isso porque nunca me tinha ocorrido que viria a escrever um libreto.
acabou. Que tratem todos os estilos e todas as estéticas da mesma
maneira. Claro que há compositores que têm um peso histórico, Não era um sonho ou projecto?
mas hoje temos de viver no presente. Senão isto acaba. As coisas Não... nem sequer um projecto. Ouvir, ver ópera é uma
nascem, vivem e depois morrem, não há excepções. A ópera é prática a que há muitos anos me dedico. Daí a colocar-me na
uma coisa maravilhosa mas, se não seguir para a frente, morre situação de co-autor vai uma distância enorme. Por outro lado,
também; outras coisas nascerão, mas ela morrerá. Agora vive- as relações entre a palavra e a música têm-me preocupado a
mos muito, por exemplo, da ópera romântica. A ópera barroca, um nível completamente diferente, que é o do Fado. Escrevi
e há centenas ou milhares delas, cada vez se ouve menos nos bastantes letras para fados.
teatros de ópera. Podem tirar daqui as conclusões que quiserem,
mas a que eu tiro é exactamente que já tem 300 anos! Não sei se Cristina Branco, por exemplo.
vamos continuar a ouvir o Rigoletto daqui a 200 anos. Se não A Cristina, Mísia, Mariza, Carlos do Carmo, Cristina
houver outros “Rigolettos” diferentes, não haverá nenhum. • Nóbrega, Joana Amendoeira, uma série de cantores têm gra-

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vado coisas minhas. E aí é um pouco diferente. Põe-se o proble- A Língua Portuguesa pode e deve ser cantada?
ma de escrever uma letra de fado cujo autor seja chamado de Qualquer língua pode e deve ser cantada. É possível que
“poeta cultivado”, um poeta não popular; de respeitar um certo nem todos os resultados sejam os mais interessantes, mas isso de-
tipo de tradição e atmosfera ligados ao Fado. Não perder as pende muito também do tipo de música, do estilo de composição.
características da escrita “cultivada”, embora com “piscadelas de
olho” à tradição popular. E põe-se o problema de encontrar um No que a esta ópera diz respeito, o seu trabalho
certo tipo de conforto para o intérprete, ou seja, evitar cacófa- em Banksters teria sido completamente difer-
tos, frases um pouco rebuscadas ou difíceis, que podem não só ente noutra língua?
ser extremamente desconfortáveis no canto mas até tornarem Não sei. Estamos numa época em que essas relações
difícil a compreensão da letra. Portanto, esta experiência eu já entre a Língua e a Música são mais livres. A capacidade de pôr
a tinha feito. Tinha feito outra e, é muito curioso, só vim a con- em cena uma determinada ideia é muito mais livre hoje do que
hecer o resultado há dois dias. Pediram-me, para o Centenário era, com certeza, no tempo de Verdi ou de Donizetti. As con-
da Universidade do Porto, um poema para ser objecto de uma venções funcionavam com muito mais rigor e exigência. Por
composição. Eu estive na estreia mas aí foi uma experiência só exemplo, salvo erro, na ópera de Paris, no século XIX, não era
auditiva. Era uma peça com uma grande massa coral e sinfóni- concebível uma ópera sem bailado. Fazia parte daquele código
ca. Foi uma experiência quase simultânea na produção da sua operático. Hoje é relativamente indiferente. A liberdade é total
materialidade sonora, embora tivesse sido distante no tempo. nesse aspecto. Acho eu, que não sou compositor.

A relação da Música com os seus textos resume- Como apresentaria a história de Jacob e o Anjo
-se a essas experiências que mencionou? a alguém que a desconheça?
Não. Há uma enorme relação da Música com os meus Primeiro teria de dizer que se trata de um texto que se
textos, mas aí é na perspectiva do escritor, não de uma coisa que inspirou numa peça de José Régio, Jacob e o Anjo, que é extrema-
vai ser encenada. Acho que a relação da Música com a Literatu- mente expressionista, pesada, com uma grande violência verbal.
ra se pode situar, na perspectiva do escritor - e falo sobretudo da Provavelmente inspira-se no caso do rei D. Afonso VI, que foi
poesia mais do que da ficção - fundamentalmente em três planos: deposto pelo irmão, que além de lhe ter tirado o trono lhe tirou a
um plano descritivo, em que o autor tenta descrever o sentido do mulher e veio a casar com ela. Este núcleo da intriga é completa-
que está a escutar; um plano metafórico, em que se procuram mente transportado pelo Régio para a sua peça, embora com uma
equivalentes por metáforas; e um plano estrutural, em que cer- dimensão ligada ao remorso, à expiação. Um dimensão também
tos princípios de composição musical podem ser estruturantes de metafísica, que é importante na peça. Eu devo dizer que não pro-
um certo tipo de escrita. Para lhe dar um exemplo, há um capítu- curei manter nada disso, o que me interessou foi fazer uma coisa
lo de Ulisses, chamado “As Sereias”, que é, segundo James Joyce, tipo Dallas, a série de televisão em que membros de uma famí-
baseado na construção de uma fuga canónica. Também já tentei lia financeiramente muito poderosa se agridem uns aos outros.
nalguns poemas, sobretudo em aspectos contrapontísticos. Mas
tudo isto, evidentemente, são aproximações abusivas, porque, Uma abordagem novelística?
na verdade, não é bem a mesma coisa. Pode haver um elemento Para mim, a abordagem foi um pouco um episódio de
qualquer da escrita musical que suscite num autor um determi- loucura e de morte de um financeiro, passando por essas peripé-
nado tipo de reacção textual, e isso é importante. Pode haver, sem cias de traição da parte dos familiares mais chegados, o irmão
qualquer referência explícita, um papel indutor de atmosferas e a própria mulher. Para dar notas mais actuais, transformei o
e de registos de escrita numa composição musical. Mas relações Anjo num emissário de um paraíso fiscal e o Rei no presidente de
directas são sempre de entender com alguma reserva. Outra um banco. Claro que isso implicou a utilização de terminologia
pessoa estabeleceria essa relação em termos muito diferentes. ligada ao funcionamento da banca, que toda a gente hoje conhece
ou, pelo menos, ouviu. E implicou também passar do grotesto ex-
Mas defende que essa relação seja sempre sus- pressionista da peça do Régio para um grotesto caricatural, num
ceptível de existir? registo que chamaria mais vicentino. Os insultos são também da
Sim, acho que existiu sempre. Não só num aspecto an- peça do Régio, mas procurei que soassem mais a Gil Vicente.
tropológico da relação entre o canto e a palavra, como no as-
pecto da preocupação da Literatura em muitas vezes se modelar Não receou alguma censura?
a partir de paradigmas musicais. Ou da preocupação da Música Não. Recear hoje em dia? Dizem-se as maiores enor-
em utilizar a Literatura como material para a sua própria com- midades sem censura, porque é que havia de funcionar no plano
posição. Isso aconteceu desde sempre, desde o tempo dos Jograis, da Literatura? Não tinha nada que funcionar. A censura que
provavelmente desde os Gregos, até Bob Dylan. tem de existir é do próprio autor em relação àquilo que está a

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fazer, seja ele pintor, poeta, cineasta ou músico. É um disposi- deles o Anjo, o Angelino Rigoletto. Angelino é uma brincadeira
tivo de auto-exigência de qualidade, faz parte da estratégia do com a língua italiana. No fundo, é um problema de demência,
próprio autor. Procurei um vocabulário muito directo, que de embora grotesco com todo esse aspecto caricatural que procurei
algum modo pudesse dar mais vivacidade àquilo que se está a imprimir ao texto, mas a partir de um aspecto altamente ex-
passar em cena. A figura da mulher é uma figura com quem o pressionista e violento que já estava na peça do Régio.
marido ja não tem condições para ter relações, no plano sexual,
e ela di-lo em cena. Também o diz na peça do Régio, no meu Imprimir esse tom satírico é especialmente
libreto diz de uma maneira mais directa (risos). complexo?
Eu nunca tinha experimentado, assim, durante um li-
Foi imediato para si olhar para as palavras de breto inteiro. (risos) Não me dei mal com o processo porque me
Régio e ver a luta que o Homem trava hoje com deixei levar ao sabor de cada cena. Houve aspectos que foram
o poder? engendrados por esse processo de velocidade de escrita acom-
Não. Digamos que no Régio a questão tem a ver com panhado de remissões para outros textos. Quase automatica-
o poder político e com uma dimensão metafísica, mas numa mente apareceu na minha cabeça a hipótese de remissão. Aquela
relação muito especial com a intimidade dos poderosos. Aqui parte da Gertrude Stein, “a rose is a rose is a rose”, apareceu de
passei para o poder financeiro, pura e simplesmente, não me repente e entrou. Há um verso de Camões, do Velho do Restelo.
preocupei muito com o político. Os comparsas palacianos que Há um verso de António Nobre, um de Camilo Pessanha. Há
figuram na peça do Régio, que dão graxa ao Rei, que fazem várias coisas que ou são desmontadas no próprio texto ou são
vénias e muitos cumprimentos numa total hipocrisia, aqui essas tão evidentes que não precisam de desmontagem.
personagens foram reduzidas. Há duas ou três que sintetizam
esse conjunto de pessoas que estão sempre a dizer maravilhas do A música de Dante, no final, foi uma ideia sua?
seu interlocutor desde que seja poderoso. Houve simplificações Não, aí foi o Nuno Côrte-Real que resolveu ir a La
necessárias. O processo de escrita teve que ver, primeiro, com Vita Nuova, porque quis dar uma atmosfera de redenção. E
o que o Nuno Côrte-Real entendia que podia ser cortado na está no seu pleníssimo direito.
peça; sobre essa parte remanescente comecei a trabalhar e depois
ele ainda propôs mais alterações, quer no sentido de corte quer Mas não é a sua opinião.
no de acrescentamento. Mais uns elementos de que precisava Não é a minha opinião. Já aquela ideia do poema do
conforme o efeito dramático que pretendia obter. Depois foram imperador Adriano, Animula Vagula Blandula, fui eu que a
retoques, não foi um trabalho de exclusiva concentração. dei, achei que era interessante. Uma alma que está a abandonar
o corpo... Situava um pouco o prólogo, o que se iria passar. Foi
No cômputo geral, pode ser considerado um uma experiência conduzida com muito empenhamento mas sem
trabalho solitário? ideias feitas, sem preconceitos, sem esquemas antecipados. Foi
Completamente. As coisas não funcionaram na bidi- correndo naturalmente.
reccionalidade, eu não estive a ouvir música do Nuno Côrte-
-Real para trabalhar no que estava a escrever. Fui entregando Então presumo que não se tenha inspirado em
os vários materiais e, depois, conforme a reacção dele, alterava- alguém ou alguma situação em especial.
-se aqui e ali. Depois tratava-se de dar um nome às personagens, Não. Inspirei-me foi, muitas vezes, na chamada crise
que tinha de ser diferente. Santiago quer dizer Jacob. Convém do subprime porque isso dava-me um vocabulário divertido
notar este aspecto. Santiago deriva do latim Sancti e de Jacob. para ilustrar as situações. Dava-me uma maneira sugestiva de
o espectador – pelo menos o espectador de hoje – identificar
Assim como Rigoletto remete para o Bobo. coisas, achar que há ali um coeficiente de realidade.
Exactamente. O Anjo, na peça do Régio, é muito tra-
tado como o Bobo. Remete para o Bobo e por isso, aqui, para a Qual foi a sensação de subir ao palco na noite
tradição da ópera. de estreia para os agradecimentos?
Não tinha pensado nisso, nem tive tempo sequer de
Mas temos também expressões como recibos pensar em sensações... mas foi evidentemente agradável. Foi um
verdes e off-shores. momento de forte aplauso, mas partilhado com o compositor
Pareceu-me que seria uma maneira de dar algum e com os restantes intervenientes. Para mim foi uma sensação
realismo a uma situação ligada à presença do banco. Embora, diferente, nesse aspecto. Embora já tenha enfrentado públicos
para mim, aquilo não passe de uma espécie de um acesso de lou- em várias situações, aqui é a sensação de se fazer parte de uma
cura do próprio presidente do banco, tem os seus fantasmas, um equipa, que nos transcende em muitos aspectos.

62 | glosas, #3
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Há uma certa intencionalidade de trazer mais Gostaria de escrever um libreto exclusiva-


pessoas à ópera e de torná-la uma arte menos mente da sua autoria?
“minoritária”? Com certeza. Não estou a pensar nisso agora... (risos)
Penso que a ópera teve sempre um enorme público. Em mas podia ser uma experiência curiosa. Obrigaria a pensar nas
Lisboa tem a tradição do Coliseu. Os grandes conhecedores de peripécias de certo tipo de acção, de caracterização das perso-
ópera iam ouvir ao Coliseu, mais do que ao São Carlos. O pro- nagens. Aí teria de discutir com o compositor em termos com-
blema da ópera é que é um espectáculo caríssimo. Provavelmente pletamente diferentes. Falo de uma negociação artística. Seriam
hoje tem muito mais público do que jamais teve, mas dilui-se protocolos de criação que permitissem provavelmente outro tipo
quando vemos, por exemplo, um cantor encher um estádio. Em- de produto.
bora já tenha havido situações desse género, é mais complicado
levar a ópera à cena num espaço muito grande. E, portanto, há Nesta obra, ou noutras, como se ganha a sensi-
sempre essa dificuldade de promoção da ópera. Sobretudo pro- bilidade – sua ou das outras pessoas - para sepa-
moção com qualidade, porque se exige cada vez mais qualidade rar a sua veia literária da militância política?
nos intérpretes. Com as novas tecnologias de registo das inter- Acho que é completamente natural. Não tem a ver
pretações não há fífias admitidas, não pode haver falhas. Tudo uma coisa com a outra. A minha militância política procura uti-
isso requer uma grande sofisticação de meios. Mas é um espec- lizar a Língua Portuguesa em termos de eficácia. É natural que
táculo altamente popular, sobretudo quando entre a ópera e o a minha experiência literária tenha um papel, mas não há con-
melodrama há uma fronteira ambígua. Com todo o lado kitsch taminação do meu trabalho como escritor na minha actividade

e melodramático que tem - meninas que morriam tuberculosas, ligada à análise e intervenção política. Historicamente, as ou-
mas a cantar coisas lindíssimas - isso atraía as pessoas. Um bo- tras pessoas distinguiram sempre a minha produção poética do
cado como hoje a novela. Essa projecção das frustações do dia- meu comportamento político. Já não é tão nítido que o façam em
-a-dia no plano da arte foi muito importante, a partir de certa relação à minha obra de ficcionista. Não sei porquê... A nossa
altura, pelo menos na cultura europeia. A partir do século XIX imagem passa para o público com algumas marcas de origem.
foi importantíssimo, seja como divertimento seja como drama, Como comecei a escrever poesia há muitos anos, e a ficção veio
tragédia. E vemos isso, sobretudo na ópera italiana, com toda a mais tarde, a imagem que se fixou tem mais a ver com a do poeta.
evidência.
A crítica é-lhe indiferente?
De toda a execução do libreto, realça algum Não. Acho que devemos ter sempre uma certa humil-
momento? dade em relação às reacções e posições críticas. Como qualquer
Gostei bastante da parte da terminologia bancária. autor que se preze, se uma crítica diz bem de mim fico muito
Gostei também daquelas frustrações da Mimi Kitsch. Mas devo satisfeito; se diz mal depende dos termos em que o faça. Pode ha-
dizer que surgiu tudo muito naturalmente, à medida que a ver casos que não reconheça que tenha fundamento e discorde,
personagem se desenhava no meu espírito, as palavras acom- em que ache que as observações passaram ao lado. Faz parte do
panhavam esse desenho. Não “penei” para chegar lá. Tendo um trabalho do autor sujeitar-se à crítica, quer à genérica do públi-
texto de referência na frente, também havia um fio condutor, co quer à especializada. Tem de conviver com isso e aproveitar
essa relação não devia ser perdida. Mesmo que seja estabelecida essa situação. Desde que não seja uma prima donna com um
em termos discutíveis, a relação está lá. ego do tamanho da Torre dos Clérigos, isso é outra questão...

glosas, #3 | 63
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

Suponho que ainda tivesse algumas interro- ção. Promove uma obra de criação cultural que, em princípio,
gações sobre a simbiose entre o seu libreto, a aspira a um estatuto mais importante na condição humana do
música e a encenação. que o futebol ou os meniscos magoados dos jogadores... Uma dis-
Eu não fazia a mínima ideia nem do tipo de música tinção a um artista reforça a presença e a importância daquilo
que iria ser escrita nem do tipo de encenação. E resulta bem. que ele faz numa sociedade que está muito distorcida em maté-
Acho que o João Botelho pegou muito bem nas personagens e na ria de valores culturais; pelas novas tecnologias, pela comuni-
história e, por outro lado, a própria cenografia é sóbria, mas cação social, pela banalização das práticas quotidianas... Tudo
muito eficaz. Gostei bastante. Como não tenho grande experiên- o que possa ajudar a marcar essa diferença parece-me que é
cia de teatro – a que tive teve mais a ver com a tradução de importante.
grandes peças do teatro clássico francês – fiquei surpreendido
com a maneira como foi posto o texto em cena. A vivacidade Mas mostra algumas reservas quanto aos sub-
decorre muito desses processos a que o encenador recorreu. sídios, dizendo que a criação cultural tem que
se debater com algumas dificuldades.
É também isso que faz da ópera um espectáculo Eu não vivo de subsídios, não sou “subsídio-depen-
tão especial? dente”, nem de perto nem de longe. Penso que, de um modo geral,
Repare, na ópera tudo é esquemático e assegurado. Podemos os subsídios à criação têm tido como resultado a má qualidade
achar que certas obras, como as do Wagner e do Strauss, são da criação. Veja em França: há 40 ou 50 anos que a criação
mais analíticas mas, na tradição da ópera italiana, que está na francesa não tem nada de notável, a não ser que recebeu subsí-
origem das restantes, as cenas são esquemáticas, os sentimentos dios. O Estado tem de assegurar, por exemplo, que haja teatros
são extremos, as coisas sucedem-se com uma grande aceleração. nacionais onde se represente o património universal. Provavel-
E tudo isso tem que ser percebido pelo público nesses termos. Tem mente, tem de assegurar que haja um teatro de ópera, embora
que se perceber que a mulher que está a morrer, mas que canta possa ser discutível. Mas o Estado tem de assegurar, sobretudo, a
deslumbrantemente, é uma convenção. A ópera é o domínio por defesa do património que já é reconhecido como tal pela comu-
excelência das convenções. E às vezes essas convenções acabam nidade. O que eu escrevo hoje, ou o que você escreve, não sabe-
por ter uma dose de realismo muito grande. Aliás, o Verismo na mos se daqui a 20 ou 50 anos ainda lá está. Mas o que nós hoje
ópera tem a ver com isso. Quando a Traviata, que é no fundo a temos como reconhecido no património cultural e imaterial, na
Dama das Camélias do Alexandre Dumas, é posta em ópera é cultura e língua portuguesas, já tem uma parte consolidada ina-
a contemporaneidade que está ali em frente ao espectador. Em balável. E quem diz a cultura escrita pode falar em monumentos
vez de ser uma coisa passada na Idade Média, em frente aos e em muitos outros aspectos. Como o dinheiro não chega para
Romanos ou nas Cruzadas, é imediato. Aquilo está a acontecer, tudo, é evidente que há que fazer opções, que têm de ser feitas
é como uma notícia de jornal, passou-se ontem ou há bocado. para acorrer àquilo que é indiscutivelmente património, porque
Isso também criou hábitos diferentes da parte do público, o real a outra grande opção é o investimento na Educação. Ou seja, a
quotidiano tem sempre um aspecto forte. Agora, acho que hoje criação de públicos tem a ver com dar às pessoas a capacidade de
a questão da ópera tem a ver com a sua capacidade melódica. apreciarem e fruírem determinado tipo de criação cultural. Ora,
Quando eu canto “La donna è mobile” ou assobio “Va Pensiero” subsidiar uma companhia de teatro, um agrupamento musical
isso quer dizer que me ficou no ouvido. Há muita ópera em que ou um filme com dinheiro do Estado é completamente discutí-
isso é impossivel, as dodecafónicas e mesmo nalgumas tonais. vel. Não tenho nada contra o mecenato privado, acho óptimo, e
É dificil entoar ou trautear um bocado de Wagner, ou mesmo quanto mais existir melhor. De resto, penso que tem de haver
do Verdi do Falstaff. Essa relação com a musicalidade, essa ca- aí uma restrição muito grande por parte do Estado. Eu conheço
pacidade de uma peça ser retida no ouvido, foi extremamente bem essa área, estive à frente da Comissão para as Comemo-
importante para a ópera. Provavelmente hoje ainda é. rações dos Descobrimentos Portugueses. Recebi meios para uma
determinada incumbência. Simplesmente, nas políticas gerais
Felicito-o pela sua última distinção atribuída penso que as opções fundamentais não passam por subsidiar
pela Fundação Inês de Castro. Este ano volta todos os jovens génios que aparecem. Uma coisa é haver uma
ainda a presidir aos Prémios Literários Agusti- encomenda. Outra coisa é haver pessoas ou entidades que vivem
na Bessa-Luís e Fernando Namora. Estas acções a partir de subsídios e são sustentadas dessa maneira.
de reconhecimento são ainda importantes para
a vitalidade artística em Portugal? Alguma mensagem de optimismo para os jo-
Bom, é importante que um autor, ou artista, se sinta vens criadores?... (risos)
reconhecido, consagrado, sinta que o seu esforço é aplaudido, de Os jovens portugueses criarão tanto melhor quanto
alguma maneira. Por isso os prémios literários também são im- mais à margem dos subsídios do Estado se colocarem. Disso não
portantes. Por outro lado, há nisso tudo uma chamada de aten- tenha dúvida.
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banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

Ouve música enquanto escreve? sem discutidas a fundo e o eleitorado se movesse fundamen-
Posso ouvir... Trabalho com música ou sem ela, mas é talmente por um juízo sobre essas opções. O eleitorado tem-se
muito frequente ouvir. Enquanto conduzo também. Enquanto norteado por quem lhe promete mais sem perceber que estão a
faço os meus 6 km por dia na passadeira, também. Tenho um prometer puras fantasias, insusceptíveis de serem cumpridas. Se
ipod com 13 mil peças gravadas, tenho também uma razoável continuarmos assim então Portugal acabou como país. Se souber-
colecção de cd’s. Quando estou em casa a trabalhar, sim, ouço. mos dar um “golpe de rins”... talvez as coisas se possam compor. •

Quais os seus gostos musicais?


Sou muito cerebral quando ouço Bach… emotivo
quando ouço Beethoven e Schubert… e posiciono-me entre estes
dois quando ouço Mozart. Sobretudo tenho uma grande prefe-
rência por Bach, pela construção das suas peças, pela maneira
como a palavra se relaciona com a música, pelo lado especula-
tivo e contrapontístico das suas obras teóricas. A Arte da Fuga,
a Oferenda Musical, o Cravo Bem Temperado... são monu-
mentos do espírito humano que não me canso de ouvir.

Pode revelar alguns dos seus próximos projec-


joão
tos?
Posso. Tenho um livro de ensaios que sairá em Junho
botelho
- textos sobre literatura, ensaio, poesia - que se vai chamar Dis- “A Ópera morre
cursos Vários Poéticos. E tenho agora dois projectos: um de en- se a tratamos como um Museu“
saios sobre a Europa e outro o terceiro volume de uma trilogia.
Uma aventura com cunho nacional subiu ao
Queria aproveitar para informá-lo que este palco do Teatro Nacional de São Carlos. A ascensão e a
terceiro número da Glosas não vai aderir ao decadência do banqueiro Santiago Malpago desenharam
acordo ortográfico. Suponho que não esteja em a caricatura das convulsões sociais e financeiras do século
(des)acordo. XXI e trouxeram a este mundo lírico uma invulgar actua-
Não, estou completamente de acordo. Acho que é uma lidade.
barbaridade que descaracteriza a nossa língua. E não tem a ver
com o lado gráfico, é descaracterizar em aspectos que se vão O realizador João Botelho recebeu o convite e
pagar muito caro, porque vai alterar a pronúncia de inúmeras aceitou entrar nestas areias movediças com aquela ousadia
palavras portuguesas, de Portugal. No fim, as escolas não vão que a vida traz. “Há uns anos, quando fiz a adaptação de Frei
conseguir aplicar. Estamos a cair num plano em que a ortogra- Luís de Sousa, Quem És Tu, Paolo Pinamonti era ainda direc-
fia deixa de o ser para ser um conjunto de regras para a escrita. tor artístico do São Carlos e desafiou-me a encenar uma ópera.
Vamos entrar num plano de escrita selvagem. Mas achei que não estava preparado... Hoje já tenho idade para
não ter vergonha. Para ter muita lata.”
É irremediável?
Não sei se o é. Já viu o que é em África, em que o Portu- Em 1994, no âmbito da Lisboa - Capital da Cultu-
guês é menos sólido como língua, de repente alterarem-se os actos ra, já se tinha atrevido a filmar uma pequena ópera de
de escrita e os documentos passarem a ter uma grafia diferente? António Victorino d’Almeida. Ficou adormecida uma
É muito complicado. De qualquer maneira, o acordo ortográ- vontade de explorar. “No Filme do Desassossego, encomendei
fico não está em vigor, é um abuso das autoridades portugue- ao Eurico Carrapatoso uma ópera com cerca de dez minutos,
sas, um abuso criminoso. Não foi ratificado por todos os países. que filmei ao ar livre na Serra de Sintra. A Morte de Luís II
da Baviera é um texto maravilhoso, muito romântico. Queria
Ouvi-o há dias descrever o actual cenário provar que a língua portuguesa não é só fado, é também canto
político como uma opereta. lírico.” A construção de raíz de Banksters, tomando como
Repare, neste momento acho que já nem é uma opere- suporte o idioma de Camões, colocou-o ainda mais dis-
ta, é uma espécie de opera buffa. O problema português é que a ponível para o desafio. “Nós temos vogais fechadas e mui-
política se perverteu e degradou de tal maneira que os cidadãos tas consoantes, mas isso não é um problema, é uma grandeza.
acabaram a não acreditar nela. Quando devia ser uma activi- A língua portuguesa é muito melhor do que se pensa e pode ser
dade extremamente nobre, em que as opções, em presença, fos- cantada. Pode e deve.”
glosas, #3 | 65
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

A tela satírica foi inspirada em Jacob e o Anjo, pedisse perdão e que talvez tivesse direito ao céu. E hoje é sobre
texto dramático da autoria de José Régio. O libreto de os banqueiros, que deviam estar todos presos e não estão.” João
Vasco Graça Moura provoca e contagia. Nele cantam- Botelho não poupa elogios a todos os parceiros nesta odis-
-se fugas ao IRS, offshores pecaminosos e almas tributadas seia, incluindo o desempenho “extraordinário” do jovem
que gravitam em torno dos mistérios da Vida e da Morte. maestro Lawrence Renes. “É um miúdo com grande talento”.
Mergulhado na ironia, o que remanesce do texto são mais
interrogações do que certezas; convictos estaremos de que Esta cómica tragédia vive de um núcleo de prota-
tudo pode não passar de uma imensa ilusão. “Na ópera o gonistas eficazes na execução, com relevo para Sara Braga
artifício está instalado desde o início”, explica. “Podemos ver Simões, que veste com firmeza a voluptuosa mundivivên-
uma pessoa muito velha e gorda a fazer de uma criança de doze cia de Mimi Kitsch, mulher do presidente do banco. “É uma
anos. Se cantar e representar bem, as pessoas comovem-se. Não experiência muito exigente. Tenho umas centenas largas de
há desilusão, porque a ilusão já lá está.” É sabido que estamos marcações.” Todos vagueiam num movimento agitado,
perante o irreal mas, na sua óptica, a ópera tem uma au- dentro dos limites impostos numa ópera. Foi suplementar
tenticidade própria que emociona e totaliza. “O cinema a tarefa de dirigir actores que, ali, não podem deixar de ser
atira para o realismo, impõe a reprodução da vida. A ópera, por cantores. “Eles são julgados pelo canto, pela pose, só que isto
seu lado, é um espectáculo mais impressionante, mais global, tem muita acção e representação. Pude potenciar a grandeza
tem muitas variáveis. Os sentimentos são mais abstractos.” que têm para poderem estar à vontade. Mas eu sou pelo lema
dos fuzileiros: se fosse fácil estariam cá outros.”
O conceito de verdade vive, pois, mais do que se
sente do que propriamente do que se vê. Ainda assim, a
passagem de um membro da equipa interrompe a nossa
conversa. O pano estava quase a subir para a terceira ré-
cita e o encenador, com gentil pragmatismo, deixa im-
portantes recados à cenografia e figurinos. “Vejam-me lá
aquilo... arregaçaram as calças dos anjos, parecem pescadores...
É só subir um bocadinho, uma dobrinha, mais nada. Senão,
quando entra toda a luz, parece que estão de cuecas...” Perante
comprometedores detalhes para a glosas, não sobre o sexo
mas a indumentária dos anjos, regressa à superfície com
a mesma naturalidade, prossegue mais um cigarro e es-
clarece: “Estão à vontade, isto é trabalho.”

Um trabalho de três intensas semanas que teima Podia ser a história de um filme, mas não é. O
em não ter fim e que deixou uma ou duas borboletas no palco, com a sua finitude, transforma-se num espaço
estômago. “Já estou velho para nervos. Mas confesso que es- enorme, “sem rede”, como se de um plano geral se tratasse,
tava muito nervoso no ensaio geral. Havia ainda falhas, coisas em que não é possível repetir, fazer takes, voltar atrás, edi-
que não estavam bem conseguidas. Estava com algum receio.” tar. O encenador não se coibiu, contudo, de brincar com
Neste que talvez se afigure como o projecto mais difícil da toda esta coisa séria, trazendo a lume a sua própria e ine-
sua carreira, os dias de ensaios correram a uma velocidade vitável identidade. “O meu filho Francisco foi meu assistente
vertiginosa. Tecnicamente, o cineasta sentiu nos om- e, a certa altura, disse-me: «Isto parece um filme teu»... Se uma
bros o peso hierárquico de uma estrutura como a do São pessoa está cá é para fazer o que sabe.”
Carlos. “Tentei ‘baralhar’ um bocado as regras... mas é preciso
obedecer a algumas.” E contou com a preciosa assistência do A luz é direccionada. “O escuro no meio é uma ten-
compositor Nuno Côrte-Real, que, ao piano, já lhe tinha tativa de criar profundidade”. Em cima da secretária, uma
apresentado a música e convocado o espírito de Banksters. vigorosa abóbora simboliza o poder e universo do ban-
queiro. O sexo e a traição da mulher assumem a forma
Inicialmente surpreendido por algum vocabu- de uma melancia. Sombras chinesas que definem atmos-
lário, depressa viu a coerência das palavras de Graça feras de escritório dão lugar a centenas de pares de sapatos
Moura enquanto tudo se edificava. “A figura do Bobo, do femininos - construídos em papelão e coloridos individu-
Régio, também estava a brincar com a ditadura portuguesa. almente. “O cinema é uma arte de vampiros”, diz o cineasta
A ideia, acho eu, era a de que Salazar se fosse embora, que sobre uma certa impureza e falsidade da Sétima Arte, que

66 | glosas, #3
banksters | à conversa com nuno côrte-real, vasco graça moura e joão botelho

suga elementos a outras para poder existir. Para Banksters talvez toque levemente a utopia. “É um dos erros da ópera.
recorre ao seu Caravaggio, que tanto aprecia, e a vários ele- Neste momento, temos um grave problema em Portugal, que
mentos pictóricos. “Fui ‘roubar’ ao Goya o Voo das Bruxas, não tem a ver com a Cultura nem com as Artes mas sim com
ao Richter os vitrais de Colónia, brinquei com Méliès, com o iní- a Educação.” O realizador de O Fatalista defende que uma
cio do cinema, Darth Vader, Máscara-de-Ferro... A minha criança de seis anos pode e deve descobrir a música clássi-
ideia não é ilustrar, é criar situações em que aquilo possa ser ca, assim lhe seja dada a oportunidade. “Nos liceus de França,
possível.” tornaram obrigatório o visionamento de 50 filmes por ano,
para dizer aos miúdos que o Cinema não começou com Taran-
Assente na premissa do combate espiritual, tino. Há uma história da Música e há uma história do Cinema.”
Angelino Rigoletto é o Anjo, o enviado divino que despe Nesta e noutras áreas, os estímulos para a aquisição de
a ostentação e evidencia uma miséria rica. A complexi- competências assumem clara relevância nas camadas mais
dade da condição humana faz oscilar entre o absurdo e o jovens. “Eu noto, pelos meus filhos, que o ensino está cada vez
sublime, o que permitiu pincelar ao sabor da narrativa, do mais degradado. Houve um nivelamento por baixo, em nome
negro à candura. “Há pessoas que são maravilhosas mas que, da democracia. Mas, quando levei o Filme do Desassossego
em meia hora, são uns bandidos”, afirma. “E há pessoas que são aos cineteatros do país, encontrei turmas notáveis e descobri que
uns bandidos e que, depois, são de uma generosidade atroz... tudo dependia dos professores. Os professores são o mais impor-
E isto convenceu-me a acabar em branco e não em vermelho”. tante no mundo.”
Não significa que concorde com a ideia de redenção,
porque, se dependesse de si, não havia um final feliz. “Por O regresso de João Botelho ao universo operático
mim mandava o banqueiro para o inferno. Mas não pode haver está previsto para 2012 com As Meninas Exemplares, em
uma leitura única, têm de existir leituras abertas. Gosto que parceria com a Casa das Histórias – Paula Rego. “Quando
as pessoas se interessem pelo Angelino, outras pelo Santiago, faço uma adaptação, seja de que obra for, tento não a alterar,
outras pela Mimi, e outras ainda pelos anjos. Que leiam como mas sim dar-lhe uma nova interpretação”. O livro da Con-
lhes apetecer. Caso contrário, isto não é Arte, é propaganda”. O dessa de Ségur, recorda, foi o primeiro que leu. A partir
mestre universal do suspense é exemplo desta aplicação dele chegou a escrever um guião para cinema que talvez
de matizes. “Hitchcock é o cineasta mais abstracto que conheço. um dia ganhe voz(es). “A maneira de filmar, de encenar, de
Tem uma leitura muito primária para entreter as pessoas, tem compor; isso, sim, é que manda. Senão era tudo igual. Eu dou-
outra psicanalítica, depois outra por cima, e talvez ainda outra. -lhe um guião a si e teremos pontos de vista diferentes sobre esse
É o maior pintor no cinema.” mesmo guião, de certeza. A ópera, assim como o cinema, é um
ponto de vista.”
Entre a dissonância e a harmonia, Nuno Côrte-
-Real pulverizou a ópera com referências criativas e es- Esta inerente subjectividade deve chegar através
pecíficas que vão do Fado à Valsa, passando pela Haba- de uma nova e regular produção; não basta reciclar en-
nera e pelo Funk. O encenador respondeu ao repto com cenações e engrossar um repertório já existente, porque “a
recurso a casais de bailarinos que surpreendem visual- Ópera morre se a tratamos como um Museu”. E recusa os pre-
mente o espectador para evocar o que se ouve. Quando conceitos associados a esta arte. “Transformaram-na numa
questionado sobre a Música enquanto ampla expressão coisa de elites e de ricos. É caro, sim, mas duas horas antes do
artística, não encontra uma definição. “É qualquer coisa início custa um terço do preço. Há descontos para escolas. Acho
vinda de Deus ou do Diabo... não tem explicação.” E exempli- uma estupidez esta ideia de que somos todos iguais e de que to-
fica. “O Coro é formado por pessoas normais. Lêem jornais des- dos temos o mesmo acesso à cultura geral. Nas salas de cinema,
portivos, fazem barulho, falam uns com os outros. De repente, se eu ganhar 10 dos 200 mil espectadores é maravilhoso! Aqui é
quando começam a cantar, parecem anjos... É inacreditável o a mesma coisa.”
poder que a Música exerce sobre as pessoas. Não tem a ver com
o humano, são forças estranhas.” Gosta de Velvet Under- A simetria, essa, estará sempre patente. Apesar
ground e Lou Reed mas também é fã de Bach, de Mozart e de todas as diferenças, o Cinema e a Ópera coexistem e
muito de Schoenberg. “Quando ouço a Noite Transfigurada procuram algo em comum: tirar o espectador da sua zona
passo-me... já o ‘roubei’ umas três vezes. Gosto muito da de conforto. “Gostava que as pessoas saíssem do Banksters e
Gubaidulina, também a utilizei em alguns filmes.” fossem fazer qualquer coisa diferente do normal. Dançar, es-
crever, pintar um quadro... o que for. Que apele a algo que não
Seria um sonho que Banksters conhecesse a itine- tenha a ver com o rasteiro quotidiano. É essa a função da Arte:
rância nacional que teve a sua ode a Fernando Pessoa, mas inquietar.” •

glosas, #3 | 67
Romance do Grande Gatão
entrevista a Sérgio Azevedo e Lídia Jorge
por Lea Brooklyn Cardoso e Mónica Brito

Sei que o seu doutoramento trata da pro- claramente o compositor português que mais se dedicou às cri-
blemática da música para crianças no séc. XX. anças, quer a nível de qualidade, quer a nível de quantidade,
Gostaria que me falasse um pouco sobre isso. mas actualmente temos peças (sobretudo ao nível do conto musi-
O meu doutoramento veio na sequência da minha ac- cal) de Luís Tinoco, Fernando Lapa, Eurico Carrapatoso, Pedro
tividade com música para crianças, que já tem alguns anos. É, Faria Gomes... Ou seja, há uma série de jovens compositores - e
basicamente, uma reflexão sobre o que é a música para crianças de não tão jovens, entre os quais me incluo eu - que têm escrito
e o papel que ela tem desempenhado, nomeadamente no século muitos contos narrados. Há outros, como o Carlos Garcia ou o
XX, altura em que começa a ser encarada como um género es- António Victorino d’Almeida, que têm escrito canções. Começa,
pecífico. de facto, a criar-se um reportório mais interessante e há vários
Eu encaro a música para crianças como um género compositores que não mencionei, mas nos últimos dez anos tem
que está muito ligado a questões da política no século XX havido um crescimento.
porque, precisamente por serem crianças, houve uma tentativa
dos poderes totalitários e de algumas democracias em períodos Este seu interesse surgiu há muito tempo?
mais socialistas (como o caso dos EUA, de Roosevelt) no sentido Sim, já fazia música para crianças há muitos anos.
de criarem uma espécie de arte para as massas. Dentro dessa Não fazia era com a mesma quantidade. Lá está, depende dos
arte para as massas, que tinha alguns intuitos demagógicos e pedidos, depende da procura. Eu, por exemplo, comecei a es-
outros de formatação das pessoas, é evidente que a música para crever música para crianças para piano, que era o que se pedia
crianças teve um papel de relevo até do ponto de vista negativo. mais. Comecei a escrever em 1987 o Caleidoscópio, que é uma
As crianças eram encaradas como os “cidadãos de amanhã”. obra in progress… Vou juntando peças ao longo dos anos.
Reflicto sobre essa problemática porque a música para Depois escrevi umas canções que me pediram, para
crianças no séc. XX está longe de ser inocente. A maior parte dos coro, isto já em 1996, mas esse coro acabou e deixou de haver
compositores não compuseram música para crianças simples- pedidos; por isso, entretanto não escrevi mais nada. Ultima-
mente porque achavam que era importante criar reportório. Há, mente tem havido encomendas e pedidos e a procura é cada vez
digamos, intuitos políticos, quer positivos quer negativos. Por maior. Os organismos, os coros e as escolas começaram também
exemplo, no caso do Copland e do Roosevelt há uma intenção a ter uma acção activa. Ultimamente, independentemente dos
positiva de esclarecimento das massas, no caso da Rússia de Sta- pedidos, comecei a ter consciência de que era preciso começar a
line é evidente que há uma tentativa de formatação das mentes. escrever, porque é importante. É o nosso público de amanhã.
Lopes-Graça foi um compositor muito importante
nesse sentido. Apesar de ser comunista e politicamente empe- Falávamos de Lopes-Graça, há pouco, e no de-
nhado, na música para crianças é, talvez, no século XX, aquele senvolvimento que ele teve na música para
cujas músicas estão mais isentas de intuito político. Na escolha crianças. Não acha que o facto de ter estudado
dos textos e no tipo de música ele está muito longe dos outros com ele durante muitos anos o pode ter influ-
compositores que escreveram para crianças. A primeira parte enciado nesse sentido?
da minha tese reflecte sobre todas estas questões e a segunda Claro, é evidente. O Lopes-Graça influenciou-me em
parte é a minha conclusão e a minha resposta ao que eu aprendi muitos sentidos. Não tanto em termos musicais, não é uma
sobre isso. É a minha posição enquanto compositor em relação a grande referência enquanto compositor, mas sim enquanto
essa problemática, muitas vezes perigosa. ouvinte, pela sua ética, como compositor empenhado, no bom
sentido, e atento aos problemas da música na sociedade. Aliás,
A escassez de reportório musical para crianças eu já admirava Lopes-Graça, quer a sua música, quer os seus
continua a ser um problema. Tem noção do seu escritos (já tinha os livros dele antes de o conhecer), quer a sua
contributo positivo? posição no mundo.
Bom, esta situação tem vindo a mudar. Sim, tenho Eu não acredito na posição de um compositor que está
noção do meu contributo, pelo menos em termos de quantidade… numa torre de marfim e não quer saber nem de público, nem
A qualidade pode, é evidente, ser discutível, mas a quantidade de intérpretes, nem nada disso. E o Lopes-Graça não tinha essa
não. Felizmente não sou o único. Quer dizer, o Lopes-Graça é posição, ele preocupava-se com os músicos e com os intérpretes

68 | glosas, #3
romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

sem comprometer a sua própria linguagem. É que, na 2ª metade não se prestavam a ser tocados por orquestra pequena. Portanto,
do séc XX, sobretudo com algumas vanguardas, principalmente preferi escrever um novo conto narrado e ele sugeriu-me a Lídia
as pós-seriais, criou-se um bocado a ideia de que, se o composi- Jorge, porque este ano estavam a comemorar-se os trinta anos
tor se preocupar com o público e com os intérpretes, assume um do primeiro romance dela. Por sorte minha, ela tinha dois con-
compromisso estético inevitável e a sua música perde qualidade. tos para crianças, tendo-me interessado mais o segundo, porque
o primeiro já tinha alguma ligação com uma obra que eu já
Houve uma certa resistência, por parte dos tinha feito (em termos de história).
compositores, em escrever para crianças. Ago- A obra que escolhi, sobre um gato, é muito interes-
ra que têm surgido mais trabalhos isso tem sido sante porque lida com o racismo. Existe uma tensão entre uma
uma mais-valia para os professores de música e família africana e uma família portuguesa que depois se resolve
para os próprios alunos. em nome da tolerância. Foi um assunto que me interessou.
Não é fácil escrever para crianças, eu sei. Mas, aten-
ção, as minhas peças não são didácticas, pelo menos até agora. Como é que foi a adaptação do texto original,
Eu nunca escrevi um manual ou um conjunto de peças para de modo a que todo o conto musical fosse pas-
piano progressivas, a pensar nos graus, por exemplo, como o sível de ser imediatamente entendido?
Mikrokosmos de Bartok. A Lídia Jorge, que assistiu à estreia, é uma pessoa sim-
patiquíssima e deu-me autorização para adaptar e reduzir o
conto. Foi de uma generosidade impressionante. Eu acho que a
adaptação resulta bem e a Lídia teve muita consciência de que
uma coisa adaptada à música não funciona da mesma maneira
que uma coisa feita para ler. A música tem os seus imperativos
e as crianças têm de perceber tudo à primeira, não é possível
repetir. Tive mesmo de simplificar algumas expressões, porque
a linguagem da Lídia é muito rica e uma criança que leia pode
perguntar ao pai o significado de determinada palavra, mas
durante o espectáculo não há tempo nem capacidade para isso.

Como caracteriza a obra a nível instrumental?


É uma orquestra normal, clássica, mas com duas per-
cussões. Tem um percussionista que toca bateria e tem marimba.
O gato é um clarinete. Quando os dois gatos andam à luta no
meio da peça, são dois clarinetes que quase se digladiam na
Pretende dar continuidade a este tipo de com- orquestra: levantam-se e tocam de pé. A família africana é sim-
posição, para crianças? bolizada pela marimba. Não há propriamente temas, embora
Sim, sim. Fiz há pouco tempo mais dois ciclos de can- existam algumas ideias que se repetem. O gato não tem um
ções. Tenho trabalhado com a Joana Raposo, que estreou as mi- tema mas sim um timbre, que é o clarinete. Por exemplo, de vez
nhas cantatas de Natal, e com outros coros. E eu gosto de escre- em quando o gato tem valsas porque anda por lá a explorar o
ver para crianças. Até é bom para descansar de peças maiores. mundo e eu acho que este tipo de música tem uma certa leveza. É
Às vezes digo aos meus alunos que estar sem compor durante uma obra complexa mas que se adequa ao texto e a reacção das
muito tempo não é bom e escrever peças mais simples é, por ve- crianças foi boa. A música para crianças deve ser entendida por
zes, uma maneira de relaxar sem parar o mecanismo da criação. elas, mas não deve cair no simplismo da banalidade só porque
é para crianças. Enfim, pode é haver complexidade associada a
Estreou agora há pouco tempo o Romance do uma imagética. Eu não nego que há uma influência de música
Grande Gatão. Como é que nasceu esta ideia? para cinema nos meus contos narrados. Aliás, o meu primei-
Foi um pedido do maestro Osvaldo Ferreira, da Or- ro conto narrado é quase uma banda sonora, nesse sentido.
questra do Algarve. Pediu-me ajuda para programar cinco con-
tos narrados, que seriam feitos várias vezes durante dois ou três Gostaria que me falasse sobre o prémio SPA,
meses. Eu sugeri-lhe o que havia para orquestra pequena, um relativo ao Concerto para Piano e Orquestra.
conto do Eurico Carrapatoso, outro do Pedro Faria Gomes, ou- A peça foi escrita em 2010 por encomenda do CCB
tro do Lopes-Graça e um quarto conto de Prokofiev que é muito para os Dias da Música. Foi tocada pelo António Rosado e pela
pouco conhecido em Portugal. Finalmente, haveria um quinto Orquestra do Algarve. Escrevi a peça, foi estreada no Grande
conto, que seria o meu, mas os dois contos que eu tinha feito Auditório e tive a sorte de a RTP e a RDP gravarem o concerto.
glosas, #3 | 69
romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

Isso foi bom não só porque passou na televisão em diferido, mas que eram pequenos na altura em que escrevi o primeiro. Pus-me
porque foi certamente importante para as nomeações. Impor- ao nível deles. E resultou naturalmente.
tante porque é uma coisa que fica mais exposta publicamente.
Se não houvesse essa gravação, não sei se teria sido nomeado. É preciso conhecer bem as crianças para lhes
Este ano telefonaram-me da SPA a dizer que eu era escrever uma história?
nomeado e, de facto, qualquer um de nós podia ter sido vence- O conhecimento é sempre muito difícil, exige uma re-
dor. A obra de Pedro Amaral é excelente e o trabalho de Álvaro flexão. Talvez me interesse mais que nos deixemos contaminar
Cassuto também é fantástico, pois incide na gravação de Luís de com a sua linguagem, sobretudo com o seu estado de pré-ciência,
Freitas Branco (um trabalho que já devia estar feito há muitos em que têm a ideia de que “a Lua é a mãe do Sol”... As crianças
anos em Portugal). têm relações antropomórficas muito primitivas, em que todo
Fico contente por ter ganhado o prémio, mas ter sido o mundo é interpretado em termos de sentimentos, de afectos,
nomeado já é bom. Enfim, eu não ligo muito a prémios – os de relações à semelhança de uma família. O que é o mundo da
prémios são o que são, somos humanos, é saboroso – mas tenho Poesia? É isso mesmo, esse traço pueril. Há uma teoria bastante
consciência de que um prémio não faz a qualidade de uma obra. interessante que é a de que nós vamos deixando sempre activas
Felizmente, é evidente que abre algumas portas, há várias camadas sobrepostas: o espírito mágico da infância; o es-
pessoas que vieram falar comigo pela primeira vez porque me pírito romântico do adolescente; o espírito filosófico próprio do
viram na televisão… Infelizmente, isso também mostra o des- pré-adulto; e, finalmente, aquilo que faz o nosso mundo adulto,
prezo a que a música erudita é votada. Basta nós aparecermos em que criamos um envolvimento protector para não nos sentir-
um pouco na televisão, uma vez, e de repente temos quase mais mos penetrados pela dureza da realidade, não deixarmos que o
notoriedade do que em vinte anos de carreira. afecto nos destrua. Segundo essa teoria, quando queremos vol-
• Lea Cardoso
~
tar para trás, podemos fazê-lo e manter novamente esses vários
percursos. É como se pudéssemos escavar na nossa arqueologia.
Tenho pena de não ter mais tempo para escrever para crianças...

Mas está nos seus planos?


Sim, já escrevi várias pequenas histórias. Gosto
bastante de imaginar para as crianças.

Pelo que disse, concluo que aconselha esta


leitura a qualquer adulto.
Sim, acho que faz bem aos adultos lerem as histórias
infantis. Permite regressos e, ao mesmo tempo, permite vibrar
com a alegria perante as coisas. Podem ser situações muito pue-
ris, mas imaginá-las como que nos “lava” os olhos. Renascemos.

Esta não é a sua primeira incursão pelo uni- O concerto em sua homenagem assinalou os
verso infantil, já tinha escrito O Grande Voo do trinta anos da sua carreira literária e coinci-
Pardal. Teve de encontrar um código diferente? diu com o convite para colaborar com Sérgio
Eu sou espontânea nessa área, não tenho um saber Azevedo na adaptação d’O Romance do Grande
acumulado, mas devo dizer que não me pareceu difícil. A su- Gatão. Como surgiu esse convite?
posição de que se está a falar para crianças pressupõe que se Foi muito curioso. Encomendaram um Concerto de
regresse a um olhar primitivo que temos dentro de nós, como se Comemoração ao maestro Osvaldo Ferreira e ele fez uma coisa
descobríssemos a vida pela primeira vez. Acho que todos temos muito bonita. Escolheu o Concerto para Violino e Orquestra
essa capacidade de ficar desprevenidos perante a realidade, de em mi menor, do Mendelssohn - com interpretação do jovem vio-
dar valor a detalhes que se perdem, mais tarde, quando somos linista André Pereira. Por outro lado, utilizou uma peça muito
adultos. O adulto tem um mundo pragmático, em que as trocas importante de Lopes-Graça, a Sinfonietta, com a intenção de
têm bastante de comércio, fazem-se no domínio da utilidade, fazer uma homenagem ao Dia dos Prodígios, livro em que
sempre com uma finalidade própria. Se nos imaginarmos de fui buscar traços rurais ancestrais e fiz com eles uma espécie de
novo desprendidos dessa espécie de ciência sobre o mundo prag- canto, de louvor, àquelas figuras. O maestro escolheu este meu
mático do adulto, torna-se simples. Só escrevi dois livros para livro para mostrar que tudo “renascia”, tudo voltava ao início. O
crianças, mas o que fiz foi, pura e simplesmente, imaginar que Sérgio Azevedo fez uma peça muito curiosa e engraçada. Colo-
me sentava a contar uma história para os meus dois afilhados, cou muito bem aquele diálogo entre as duas etnias, os grupos
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romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

excerto da partitura de Romance do Grande Gatão, gentilmente cedido pelo compositor

glosas, #3 | 71
romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

humanos que estão em causa na história. O diálogo entre os étnicas e eruditas ao mesmo tempo. Por exemplo, a mistura do
clarinetes é lindíssimo. Estive na estreia e foi muito bonito. A tango com a música erudita, aquilo que o Yo-Yo Ma faz com
peça é muito bem feita, com muita alegria e entendimento do o violoncelo. Gosto da ligação da música africana com Bach, o
espírito do Gato. caso da Lambarena.

Acompanhou a adaptação musical da sua obra? Agrada-lhe a fusão entre a Palavra e a Música?
Só acompanhei a síntese do texto. O resto fui sabendo, Acho que há todo um campo de experimentalismo que
o Sérgio Azevedo foi explicando a sua intenção, quais os anda- se pode fazer, sobretudo neste momento em que os géneros se
mentos que ia usar e seus significados. confundem e que as palavras muitas vezes ocupam novos lugares
na nossa vida, ao longo do dia. Há um tempo atrás fiz uma ex-
Falamos de um pequeno grande”protagonista. periência dessas com o maestro Cesário Costa, sobre a perspec-
É mesmo. É um gato normal, mas chamam-lhe tiva feminina, chamada Palavras Cantadas. Escolhi árias com
“Grande Gatão”, porque foi capaz de fazer a Paz entre os ini- vozes de mulheres e pus em relevo as palavras, para fazer vibrar
migos. E essa tensão que havia entre as famílias está muito bem outra vez o poema, porque muitas vezes ele “desaparece”. Quando
na adaptação musical. Há um momento divino que é o da fuga se ouve, por exemplo, a ária de Carmen «L’amour est un oiseau
do gato para os telhados e o contacto com a Lua. É lindíssimo... rebelle... »nós conhecemos a música, mas a verdade é que não
Aparecem os violinos, há toda uma colocação do lado romântico temos bem a noção da letra, não absorvemos a sua mensagem.
e contemplativo do gato, a parte sensual... Está muitíssimo bem.
As referências musicais percorrem, de alguma
Viu a sua obra Costa dos Murmúrios recriada no maneira, as páginas dos seus livros?
cinema, em 2004. Na perspectiva que já tem Percorrem. Muitas vezes não são só as eruditas. No
hoje, a adaptação de uma obra literária para o meu último livro, A Noite das Mulheres Cantoras, Mahler
mundo musical tem algum paralelismo com a está muito mais presente do que aparece no livro. Eu gosto mui-
que é feita para o grande ecrã? to do Mahler, acho extraordinário. Talvez as pessoas da minha
O paralelismo é este: são objectos completamente dife- geração gostem muito daquela sua melancolia, e talvez também
rentes. É um erro querer que uma coisa coincida com a outra, o de toda a sua história, a situação de incompreensão que houve
que se pode pedir que coincida é o espírito. Nesse campo, tenho em torno dele. Mas este livro está cheio de referências ao Mahler,
tido sorte. Já tive também uma adaptação ao teatro – o Dia dos mesmo quando ele não está lá. Sobretudo determinados anda-
Prodígios, no Teatro da Trindade, pela Cucha Carvalheiro - e mentos d’A Canção da Terra estão muito presentes. Pelo menos
agora esta para o mundo da Música. Sempre me pareceu, fe- na minha cabeça, ainda que possa não estar muito claro no livro.
lizmente, que as pessoas que utilizaram os meus textos fossem
de grande nível, porque criaram outro objecto completamente Terão sido algumas personagens suas contami-
diferente, mas equivalente na intenção, na dramaticidade. E nadas pelos seus gostos musicais?
agora são objectos deles, com o seu cunho muito pessoal. Sempre Claro. Num outro livro, Combateremos a Sombra,
dei a todos liberdade absoluta, desde que não traíssem o espírito, tem muito a música da Diana Ross e do grupo inicial que ela
e resultou. Em relação ao Sérgio Azevedo, não o conhecia pro- formou. Para trás há um outro, O Vento Assobiando nas
priamente, mas achei que a proposta que fazia era tão sólida, Gruas, que tem muito de música pop contemporânea. E este
tão avançada, e o currículo dele tão bom, que seria ridículo estar último tem imenso da música dos anos 80. Porque eu gosto de
a fazer qualquer exigência. escrever sobre figuras arrancadas da sociedade comum. Gosto
de transfigurar o contemporâneo, as figuras comuns, do quo-
Já tinha tido alguma outra experiência com tidiano, acho encanto nessa proximidade. Gosto de escrever
compositores? em torno daquilo que é a alegria dos jovens, e a sua decepção
Não. Mas tenho assistido muitas vezes a adaptação de também. E, naturalmente, todo esse tipo de música acompanha
contos para teatro, a leituras acompanhadas de música. os sonhos destas gerações, que me são também contemporâneas.
Os Pink Floyd e os Rolling Stones estão muito presentes. Mui-
A música acompanha-a enquanto escreve? tas das minhas personagens ouvem a minha música, ouvem a
Não. Para escrever preciso de silêncio. Mas a música música que eu ouvi ou que estou ouvindo. Acho que acontece
esta cá dentro... um pouco com todos os escritores, que acabam por transferir
para as personagens aquilo que é a sua própria vida. Nós tam-
Quais as suas preferências musicais? bém escrevemos para... (pausa) ... para não nos contarmos a nós
Gosto de jazz. E gosto dos simbolistas, dos barrocos. próprios... Mas deixamos elementos, “gatos escondidos com os
A música é tão vasta... Gosto muito das experiências que são rabos de fora”...
72 | glosas, #3
romance do grande gatão | entrevista a sérgio azevedo e a lídia jorge

O Romance do Grande Gatão pode trazer-lhe O seu coração balança entre a poesia e a ficção?
novos e diferentes leitores? (risos) Balança. Só que tenho “vergonha” da poesia...
Traz jovens leitores. E que crescem muito rapidamente... (risos) De certa forma, quando escrevemos romances, há uma
parte que é poética nos livros, senão não existem como tal. Mas
E que irão ler outros livros seus. em Portugal existem grandes poetas, e grandes mulheres poetas.
A minha ideia é a de que este tipo de livros, para já, é Se, ou quando, eu tiver consciência de que vale a pena publicar
para um outro público. Mas é possível que depois ao crescerem - o que tenho escrito em poesia, de que há alguma coisa que tem
e crescem tão rápido... - pensem que podem ler outros livros. Mas uma voz própria, publicarei. Senão, ficarei pelas narrativas e
na vida do escritor nada é calculado, pelo menos para mim. O deixo o campo aos outros que são grandes poetas.
que acho curioso é que há adultos que leram pela primeira vez
os meus livros às crianças, aos seus filhos, e depois interessa- Está para breve um novo livro?
ram-se pelo que escrevo, por aquele que é, de facto, o meu cam- Está a aparecer agora um. Vou começar a escrever
po. E até há pessoas que acham que existe um fio condutor. outro, que já devia ter começado antes.

Não será de poesia...


Nunca se sabe... (risos) Eu acho que isto é muito im-
portante: não dissipar o que se ama. Nós amamos o livro so-
bretudo enquanto o estamos a construir. Nisso há um grande
paralelo com o Amor. A Rosa Montero diz que escrever é exac-
tamente como estar enamorado, fala da relação com o livro
como uma paixão. Eu concordo. Quando as pessoas se apaixo-
nam há um desejo muito grande de contar ao mundo mas,
ao mesmo tempo, há um movimento contraditório. A palavra
parece que desencanta. Assim que pronunciamos a palavra, o
amor fica finito e isso não queremos... Até que o tempo passa
e nos dá a certeza de que pode passar para o social. Já há uma
relação sólida, é suficientemente forte para enfrentar o público.
Com os livros é a mesma coisa. Se começamos a falar demasiado
O Doutoramento Honoris Causa, que lhe foi cedo como que se esvai a energia que lá está, esvai o sonho. E nós
atribuído em Dezembro pela Universidade escrevemos com sonho.
do Algarve, pode ser considerado o momento
mais marcante da sua carreira? Pelas suas palavras, o Romance do Grande Gatão
Foi um momento muito marcante. Por um lado, foi um não podia ser outra coisa que não fosse uma
reconhecimento que fizeram aos meus livros, atribuindo-lhes história de amor...
uma determinada importância que eu nunca lhes tinha dado, (risos) E é uma história de amor, de muitos por um
de repente fiquei a pensar se não será mesmo verdade... (risos) gato e de um gato por muitos... Sabe que essa história é inventada
Talvez, pela primeira vez, eu tenha feito uma espécie de balanço, a partir de um gato real, o mais lindo que vi na minha vida. O
talvez tenha sido o momento que me obrigou a tomar mais a sério meu vizinho, no Algarve, tinha um gato listado, cinzento e cor-
o meu próprio trabalho. Por outro lado, foi uma universidade do -de-laranja, com uma cara redonda, redonda, redonda, parecia
sítio onde nasci, que é sempre o mais difícil de conquistar. É pre- uma boneca, era lindíssimo! Mais tarde, fiquei a saber que o
ciso fazer uma grande volta para chegar à terra onde nascemos... gato tinha fugido e que tinham desaparecido todas as suas foto-
grafias. Foi um desgosto enorme. Mas reconstituí de memória.
Foi um gesto de gratidão da sua terra. Se está morto fi-lo ressuscitar; se foi para fora fi-lo regressar...
É verdade. Eu sinto isso e, portanto, veio com uma car- E depois coloquei-o naquela vizinhança conturbada - uma outra
ga emotiva adicional. Foi dos dias mais bonitos da minha vida. história que conhecia de duas famílias, uma africana e outra
Foi um dia maravilhoso. Foi um momento em que defendi a portuguesa. A isto tudo juntei as romanzeiras da minha mãe. E
ideia de que tudo isto aconteceu por mim, é verdade, mas tam- assim criei um espaço por inteiro. Com os desenhos da Danuta,
bém porque houve uma sucessão de bons acasos na minha vida. que são maravilhosos, há um território e uma atmosfera que, a
E expliquei-os. O primeiro foi o facto de ter nascido numa partir de agora, existem. Isso é que é bom nas histórias.
família de camponeses que amava livros, o que naqueles anos
não era assim tão natural. Tive essa sorte. • Mónica Brito

glosas, #3 | 73
Música e Poder: para uma sociologia da ausência
da música portuguesa no contexto europeu
introdução ao livro por António Pinho Vargas

Este livro decorre da dissertação de Doutora- como falsa evidência consiste, neste caso, num conjunto
mento em Sociologia da Cultura, apresentada na Univer- de ideias feitas, num discurso recorrente que, não obstante
sidade de Coimbra, e centra-se essencialmente na análise ter a sua base e o seu fundamento inscritos na realidade,
do carácter subalterno da música portuguesa de tradição não parecia capaz de fornecer uma análise nova, eventual-
erudita no contexto europeu. O facto empírico em si – a mente mais profunda, da problemática antiga. Para ten-
ausência, a subalternidade – não carecia de investigação. tar chegar a tal desígnio, o passo fundamental, de facto,
Faz parte daquilo que é geralmente aceite como verdadei- consistia na organização de um sistema conceptual muito
ro e, nesse sentido, não seria necessário levar a cabo uma diverso do usual na musicologia tradicional e mesmo nas
investigação para comprovar aquilo que já se sabe, embo- outras ciências sociais e humanas instituídas.
ra não seja propriamente do conhecimento comum nem a
extensão nem o grau que a ausência atinge. Pude verificar Esta temática está presente de várias formas nos
casos de grande desconhecimento sobre o assunto, dado textos dedicados à História da Música Portuguesa, em de-
o carácter de pequena tribo isolada que constitui o meio clarações de compositores, em entrevistas feitas a músi-
musical português. No entanto, as abordagens do pro- cos tanto portugueses como estrangeiros, em declarações
blema que existem circunscreveram-se, na maior parte programáticas de instituições e ainda nas intenções ins-
dos casos, à constatação do facto e a várias formas de critas nos programas dos sucessivos governos sob o lema
lamento ou protesto sobre a invisibilidade. Para além de da internacionalização da cultura portuguesa abarcando-
um estabelecimento documentado dos dados da ausên- -a no seu todo. No entanto, apesar e para além destes
cia, tratava-se antes de levantar novas hipóteses sobre os enunciados gerais, parecia-me que os discursos sobre essa
mecanismos que a produzem, sobre os discursos que a re- ausência, sobre essas dificuldades nunca vencidas, não
produzem e, acima de tudo, sobre as relações de poder de forneciam todas as respostas possíveis a uma problemáti-
âmbito trans-nacional que a sustentam. ca com algumas zonas de obscuridade que desafiavam o
desejo analítico.
Tendo em conta, de acordo com Quivy, a im-
portância da ruptura, que consiste precisamente em O objectivo era então ensaiar um estudo amplo
romper com os preconceitos e as falsas evidências, consi- do problema em articulação tanto com as visões inter-
dera-se, nesse sentido, e seguindo o mesmo autor, que “essa nas da questão, muitas vezes inseridas em visões globais
ruptura só pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual das relações de Portugal com a Europa, ou seja, com a
organizado, susceptível de exprimir a lógica que o investigador sua posição geocultural em relação aos países centrais da
supõe estar na base do fenómeno” (Quivy e Campenhoudt, Europa, como igualmente em articulação com o próprio
2003). Essa parte do trabalho, construir um sistema con- modo de funcionamento do campo musical da música eu-
ceptual, constitui os seis primeiros capítulos. ropeia de tradição erudita que interessava precisar. Uma
das maiores dificuldades da abordagem desta problemáti-
A problemática que nos propusemos investigar ca radicava na própria noção corrente da música como
e analisar – a ausência da música portuguesa erudita no “linguagem universal”, facto que, a ser verdadeiro, lançava
contexto europeu – transporta consigo todo um discurso uma maior perplexidade sobre o assunto. Seria a música
lamentoso, que, aliás, e como veremos, não é de modo ne- portuguesa, na verdade, uma expressão artística inferior?
nhum exclusivo do campo musical, mas comum às diver- Seria na sua falta de qualidade genérica que residiria a ex-
sas artes e, de certo modo, à cultura portuguesa no seu plicação para o facto de nenhuma peça portuguesa ter algu-
todo. Importava, por isso, em primeiro lugar, descrever ma vez integrado o cânone musical europeu ou, mais sim-
e interpretar esses discursos, detectar os seus vários mati- plesmente, ter sido alguma vez cooptada pelo reportório
zes, tentando avançar para uma outra espécie de questiona- corrente das salas de concertos do mundo ocidental, ou das
mento mais amplo, capaz de vir a produzir outro tipo de partes do mundo onde a tradição da música “clássica”, como
resposta. Aquilo que Quivy designa como preconceito e é vulgarmente designada, está presente regularmente?

74 | glosas, #3
música e poder: introdução ao livro | antónio pinho vargas

Esta hipótese, que creio ser perfilhada, à partida, nas acções e, por isso, ancoradas no real” (Boltanski e Chia-
por aqueles que exprimem quotidianamente o complexo pello, 1999) obrigava a um esforço teórico de problema-
de inferioridade dos portugueses ou defendem a existência tização muito para além dos recursos habituais usados na
de um atraso irrecuperável de Portugal de praticamente musicologia tradicional, ela própria, de resto, já debaixo
todos os pontos de vista não me parecia suficientemente de críticas, suspeições e revisões levadas a cabo especial-
afastada dos lugares-comuns aceites e não interrogados mente nos países de língua inglesa desde as últimas duas
para poder ser considerada – excepto igualmente como décadas do século findo.
objecto de análise – num trabalho de carácter científico.
Este tipo de discurso exprime-se muitas vezes de um Para além disso, parecia-me importante proceder
modo surdo e só por vezes assume a forma escrita tal a uma investigação empírica suficientemente exaustiva
como sucedeu em grande escala, por exemplo, no século que permitisse estabelecer qual era a real dimensão da au-
XIX e em certos momentos do século XX. sência nos textos considerados de referência no campo
musical, particularmente considerando que, a partir do
No entanto, talvez o facto de eu próprio ser músi- ano 2000, foram sendo publicadas várias Histórias da
co e compositor me impedisse de aceitar, de ânimo leve, Música do Século XX que pretendiam colocar-se num
uma explicação que atribuía, com a segurança antecipada ponto de observação já privilegiado pelo facto de o século
que as ideias feitas sempre conferem, o estatuto de infe- ter terminado.
rior ou subalterno não só a tudo aquilo que já foi feito,
como àquilo que ainda está por fazer. Nesse sentido, esta Qual era realmente a presença/ausência da música
explicação aproximava-se de uma condenação, de uma portuguesa nas Histórias da Música publicadas nas línguas
fatalidade, de um destino ao qual não seria possível es- da Europa central – inglês, francês, alemão1 – e de que
capar. Gradualmente foi-se tornando uma evidência que forma se colocavam, face a esta problemática, as próprias
os factores que eu tinha começado por sentir individual e narrativas sobre a História da Música Portuguesa? Que
subjectivamente como artista afectavam toda uma comu- tipo de discursos eram produzidos sobre música portu-
nidade de artistas e, assim sendo, era imperativo ir mais guesa e, em particular, qual era a abordagem dos musicó-
além no questionamento das suas razões profundas. logos portugueses e dos agentes activos na programação
das instituições culturais em relação à subalternidade da
Nesse sentido emergia uma pergunta fundamen- música que, supostamente, deveriam estudar, apoiar e
tal: quem declarava essa presumível falta de qualidade, programar?
essa inferioridade atávica, essa irrelevância insuperável?
Qual foi o Grande Júri que, ao longo dos séculos, decidiu A partir destas várias perguntas fui construindo o
o que incluir e o que excluir? Ou, ainda com mais pro- meu objecto de investigação e, simultaneamente, a teoria
priedade, qual é o Grande Juiz que, ainda hoje, continua a ou o conjunto de conceitos teóricos de várias proveniên-
deter o poder de o declarar? cias capazes de melhor fornecer hipóteses explicativas, in-
terpretações e respostas mais sólidas do que as ideias feitas
A procura de uma resposta plausível a estas que uma espécie de senso comum interiorizado e sobretu-
questões obrigava, por si só, a lançar vários tipos de sus- do naturalizado nos próprios agentes da vida musical foi
peitas e novas interrogações. Qual é a forma que reveste o fornecendo2. •
funcionamento do campo musical ocidental? De que for-
ma se constituiu historicamente o cânone musical? Que
estruturas institucionais, que conjuntos de valores inte- 1) Os textos publicados em língua alemã não têm impacto directo em
riorizados produzem e reproduzem determinadas formas Portugal excepto quando existem traduções. Por isso, neste trabalho
de regulação da vida musical na Europa, no mundo oci- só esses serão considerados, com excepção da mera verificação das en-
dental e em Portugal? tradas na enciclopédia Musik Geschiste und Gegenwart, dada a sua im-
portância simbólica.
2) Se me é permitido um conselho ao leitor, proponho que não se
O facto de se estar perante uma questão que en- deixe cair na tentação de passar por cima das páginas das duas primei-
volvia, com toda a probabilidade, relações de poder, tanto ras partes e avançar imediatamente para a Parte III que trata a pro-
blemática do campo musical português. Esse salto corresponde a “uma
no interior de campos nacionais como nas relações cul- nefasta e mórbida curiosidade” ligada à dificuldade para distinguir aquilo
turais transnacionais, mas também ideologias, no sentido que é uma análise e não uma crítica. A parte teórica, aliás com muitas
que Luc Boltanski dá ao termo, ou seja, “um conjunto de referências à temática central, não foi escrita apenas para preencher os
requisitos de cientificidade, mas constitui em si a chave para fazer uma
crenças partilhadas, inscritas nas instituições, comprometidas
tal distinção.

glosas, #3 | 75
A edição musical em Portugal no século XIX
Maria João Albuquerque

Surgem, deste modo, ao longo do século XIX,


várias empresas de edição de música, cuja produção já
visava um consumo mais alargado. Estas editoras, para
além de uma maior produção, comparativamente com
aquelas que as precederam no século anterior2, apresen-
tam também uma maior longevidade, passando algumas
por várias gerações, como é o caso da empresa Sassetti, ou
da Neuparth.

No entanto, verificamos que o repertório publi-


cado continua a ser o que se destina ao consumo doméstico
e não aquele que é procurado pelos músicos profissionais,
pois o predomínio das edições vai para as reduções para
piano, ou para canto e piano, de excertos de óperas ou
de teatro musicado3. Com menos frequência se encontra
a música para guitarra, para viola ou flauta. Continuam,
porém, a publicar-se inúmeros manuais destinados ao
ensino destes instrumentos, alguns deles dirigidos à
aprendizagem autodidáctica4. A partir da segunda metade
de oitocentos, predominam as edições de música popular
urbana, como o fado ou o fado canção, e também trans-
KEIL, Alfredo - A Portugueza. Ed. grátis.
crições de canções de teatro de revista em voga no final
[Lisboa : Neuparth & C.ª, 1890] do século. Encontramos, igualmente, uma produção
(Imagem retirada de BNP Biblioteca Digital)
abundante de hinos alusivos a monarcas ou a aconteci-
mentos históricos nacionais, destinados a agrupamentos
Pode dizer-se que a idade de ouro da edição musicais como as bandas, fenómeno que assume grande
musical em Portugal se situa no século XIX. Para este facto importância no último quartel do século XIX.
terá contribuído a consolidação da monarquia liberal e a
crescente importância da burguesia na sociedade portu- Para além desta produção de cunho nacional,
guesa. Este novo grupo em ascensão privilegia as novas verificamos o gosto pela música italiana, principalmente
práticas laicas de sociabilidade, onde domina o gosto pela pelas óperas de Rossini e de Verdi, nos inícios do século,
música e pela dança. Para além destes factores, também passando gradualmente as preferências para a música de
temos a considerar os aspectos tecnológicos, onde se
2) É nos finais de setecentos que se situa a génese da edição musical
inscreve o desenvolvimento da litografia1, processo especializada em Portugal, através de pequenas empresas de reduzidos
bastante mais económico e que permitia uma maior meios técnicos e financeiros, fundadas por um grupo de editores
produção. estrangeiros, apoiados pelo Estado Português. No entanto, todas elas
apresentam um carácter bastante efémero e uma produção com índices
1) A Litografia é um sistema inventado por Alois Senefelder em 1796, de quantidade e de qualidade muito inferiores aos das suas congéneres
que se baseia no princípio de que a gordura repele a água. Numa europeias. (ALBUQUERQUE, 2006)
primeira fase escrevia-se sobre uma pedra calcária utilizando uma tinta 3) A edição musical nos finais do Antigo Regime apresenta num
especial preparada com cera, sabão e tinta negra, à qual se aplicava primeiro momento um predomínio das edições de música litúr-
posteriormente água-forte. Este ácido corroía a pedra onde não estava gica, designadamente de repertórios de cantochão, mas a publicação
a tinta, ficando aquilo que se escrevera elevado cerca de 2 mm na pedra de música profana começa a desenvolver-se a partir do reinado de
que permitia depois a sua impressão. Numa segunda fase (depois de D. Maria I, na qual se destaca a música vocal como as modinhas e as
1798), deixou de se gravar em relevo e passou-se a modificar quimica- reduções de excertos de óperas, bem como a música de tecla, cujos
mente a superfície da pedra, de modo que a tinta de impressão cobrisse géneros principais são a música de dança. A partir de 1820 desenvolve-
umas partes e não cobrisse outras. Este segundo processo, considerado -se o gosto pelos hinos sobre temas patrióticos ou acontecimentos
o verdadeiro processo litográfico, permitia imprimir utilizando uma nacionais. (ALBUQUERQUE, 2006)
matriz plana. Desde o início da sua invenção foi imediatamente apli- 4) É frequente encontrarmos títulos como este: Methodo para aprender
cado à música devido à sociedade estabelecida entre o seu inventor guitarra sem auxílio de mestre offerecido à Mocidade Elegante da capital por
e o compositor Franz Gleissner que o utilizou para imprimir as suas um amador. Lisboa: Typ. de Christovão Augusto Rodrigues, 1875 - 28,
próprias composições. (KRUMMEL; SADIE 1990) [1] p. : il. ; 15 cm + 3 desdobr. (P-Ln M. 350//3 P.)

76 | glosas, #3
a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque

autores franceses e alemães, a partir da segunda metade de música pelo processo da litografia. É com este editor,
de oitocentos. Também os periódicos musicais atingem cuja actividade se vai prolongar na segunda metade do
o seu auge na segunda metade do século XIX, embora a século XIX, que a edição musical ganha outra dimensão, e
grande maioria apresente durações bastante efémeras, é produzida em maior escala. Após a sua morte, em 1848,
à excepção do periódico Amphion editado pela firma é o filho João Pedro Ziegler que fica à frente do negócio,
Neuparth, que publicou música e variadíssimos artigos associando-se a José Adrião Figueiredo. Procurando
sobre música e músicos, entre 1881 e 1898. novos mercados, desloca-se para o Brasil onde funda
novo estabelecimento editorial, nunca mais voltando a
Fazendo uma análise cronológica do movi- Portugal.
mento editorial de música em Portugal, verifica-se que,
até meados do século XIX, a produção continua ainda Outro editor da primeira metade do século XIX foi
muito pequena, quer em número de empresas, quer em Joaquim Inácio Canongia, neto de um fabricante de sedas
obras editadas. No entanto, a partir de 1850, esta activi- catalão que se estabeleceu em Oeiras, onde desenvolveu
dade ganha um crescente interesse, surgindo um número esta indústria. Começando como copista no teatro de
razoável de editores de música, que já apresentam uma ópera de São Carlos, estabeleceu em 1850 um armazém de
produção regular. Tal se deve, em parte, à estabilidade música e, mais tarde, uma litografia, associando-se a João
política e económica conseguida com a Regeneração, que Cyriaco Lence, que tinha um estabelecimento idêntico
só se irá alterar a partir de finais dos anos 80, devido às desde 1836. Após a morte de Joaquim Inácio Canongia,
sucessivas crises da monarquia, período em que se verifica em 1857, a firma continua em laboração com a designação
uma diminuição na produção editorial musical. «Lence e Viúva Canongia» e, mais tarde, «Serrano & Viúva
Canongia», que se manteve em actividade até 1887, data
Nos finais do século, surgem algumas edições em que a firma declara falência.
portuguesas impressas na Alemanha e muitos autores
portugueses prescindem das editoras nacionais, prefe- No Rio de Janeiro existiu uma firma que apre-
rindo editar no estrangeiro. No entanto, é nas últimas sentou uma razão social semelhante, fundada por Tiago
décadas do século XIX que as edições portuguesas apre- Canongia, que, segundo Mercedes Pequeno (2009, I: 355),
sentam índices de melhor qualidade técnica. teria chegado ao Rio de Janeiro em 1859 como profes-
sor de violino, fagote e piano, e que publicou prioritaria-
Graficamente as primeiras edições são ainda mente música de salão.
muito pobres, verificando-se a partir da segunda metade
do século um maior investimento na decoração, surgindo Encontrámos ainda mais duas editoras neste
partituras amplamente decoradas com gravuras a cores. período mas com menor produção; tratam-se da Livraria
de Plantier, que edita música a partir de 1838, embora não
Os editores ultrapasse os anos 1850, e da Lithographia da Imprensa
Nacional, que imprime algumas partituras pouco signifi-
Os principais editores de música portugueses cativas.
do século XIX estão estabelecidos em Lisboa e, de uma
maneira geral, são estrangeiros, oriundos principalmente A partir da segunda metade de oitocentos, assis-
da Alemanha. Na segunda metade do século XIX, alguns timos a um desenvolvimento da indústria editorial de
estendem o seu negócio ao Brasil, optando por este país música em Portugal, revelado pelo aumento do número
para exercer a sua actividade. de editores, que passa de 7 para 18, surgindo empresas na
cidade do Porto, até aqui arredada desta actividade.
Durante as três primeiras décadas do século XIX,
mantém-se a tendência do século anterior relativamente Só na cidade do Porto surgem sete estabeleci-
ao comércio e edição musical, ou seja, pequenas empresas mentos, alguns mantendo actividade até ao século XX.
com uma fraca produção. Assim, quando chegamos a Entre eles, conta-se a editora de Eduardo da Fonseca, a
1834, apenas encontramos duas editoras, Bartolomeu casa Moreira de Sá e o editor Costa Mesquita. No entanto,
José Gomes, cuja produção terminaria pouco tempo a empresa com maior expressão nesta cidade, foi, sem
depois (em 1836), e Valentim Ziegler, músico alemão, dúvida, a de Carmine Alario Villa Nova, continuada
que fundara um armazém de música em Lisboa em 1824, depois pela viúva até finais do século XIX. Mas o maior
e que passou, em 1828, a dedicar-se à impressão e edição centro produtor continua a ser Lisboa, cidade onde se

glosas, #3 | 77
a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque

localizam as duas editoras mais importantes do século: por artistas da época, decoradas geralmente por mo-
a editora Neuparth e a casa Sassetti. A casa Neuparth tivos figurativos e adornadas por elegantes caligrafias
fora fundada por Eduardo Neuparth, músico das Reaes de influência inglesa, sendo o interior musical gravado
Cavalhariças de D. João VI, que iniciara o negócio no Brasil pelo processo calcográfico em oficina da própria firma.
em sociedade com Valentim Ziegler, já aqui referido,
vindo depois para Lisboa após a independência deste país Das inúmeras colecções publicadas por esta
em 1822 (Vieira, II: 413-414). firma destacam-se as reduções para piano, ou para canto
e piano, de óperas em voga, algumas colectâneas de fados
Poucos anos depois, em 1825, desfaz a socie- e transcrições para piano, ou para banda, de hinos e de
dade com Ziegler e estabelece um armazém de música em marchas evocativas de acontecimentos históricos ou de-
nome individual, a partir de 1828. Após a sua morte em dicadas a monarcas.
1871, é o filho Augusto Neuparth que dará continuidade
à empresa, elevando-a a um nível de grande produção.
A grande maioria de partituras portuguesas encontradas
na Biblioteca do Rio Janeiro saiu do prelo deste editor,
prova de que a sua produção visava a exportação para o
Brasil. Mais tarde, o neto do fundador, Júlio Neuparth,
continuará o negócio, associando-se em 1891 a José da
Costa Carneiro, passando a firma a denominar-se “Neu-
parth, Carneiro e C.ª”.

Foi sob a direcção de Júlio Neuparth que a em-


presa editou, em 1890, a célebre marcha A Portugueza, im-
pressa na Alemanha, que conheceu várias tiragens «para
piano, piano e canto, grande e pequena orquestra, banda mar-
cial ou fanfarra e estudantina ou sol e dó»5. Sobre esta publi-
cação é o próprio editor que nos diz que «atingiu a meta da
sua gloria esta producção popular de Alfredo Keil […] no curto
espaço de três meses incompletos, executada por quasi todas a
philarmonicas do paiz e assobiada e cantarolada pelo rapazio
que percorre as ruas da capital.»6

Já no século XX, esta editora será adquirida pela


firma Valentim de Carvalho7, tomando a denominação
desta última (Borba; Lopes Graça, 1958: 657). DADDI, João Guilherme – Grande marcha
triumphal dedicada a S. M. El-Rei D. Pedro V.
No entanto, a casa mais importante do panorama Lisboa: Sassetti, [entre 1855 e 1858],
Litografia. Capa da partitura. Soares,
editorial português foi a editora fundada por João Baptista E. – Dic. icon., nº 2340 R
(Imagem retirada de BNP Biblioteca Digital)
Sassetti em 1848. Oriundo de uma família italiana insta-
lada em Sintra e excelente pianista, este editor investiu
na expansão do negócio, atingindo níveis de excelente Já nos finais do século XIX surgem algumas
produção. Ao contrário de Neuparth, que se socorreu de editoras como a Empresa Monteiro de Carvalho, a
empresas de litografia alemãs para produzir as matrizes Morais Editores, a de Raul Venâncio e a de Custódio
das partituras, a firma Sassetti utilizava o processo Cardoso Pereira, mas apenas esta última se mantém em
calcográfico, com matrizes gravadas por calcógrafos actividade nos nossos dias.
musicais portugueses. Nas partituras editadas por esta
firma verificamos que os rostos e as capas se realizavam De referir ainda que, nas últimas décadas de
em oficinas litográficas, algumas litografias elaboradas oitocentos, surgem algumas editoras de música utilizando
o método tipográfico, como a Empreza Musicotypo-
5) Amphion. N.º 11 (1 Junho 1890), p. 8
6) Amphion, N.º 9 (1 Maio 1890), p. 3 graphica em Lisboa e, na cidade do Porto, a Typographia
7) Outro editor de música, que fora funcionário da empresa Neuparth Musical e a Typographia Occidental, mas com uma pro-
e que fundara um estabelecimento de música em 1914.

78 | glosas, #3
a edição musical em portugal no século XIX | maria joão albuquerque
Do Coreto ao Auditório
dução muito reduzida, desaparecendo todas antes do fim
do século XIX.
(evolução do paradigma
estético e performativo das
Deste breve panorama que descrevemos, verifi- Bandas Filarmónicas Portuguesas)
camos que, embora numa escala mais reduzida, a edição
musical portuguesa do século XIX segue as tendências por Alexandre Andrade, André Granjo,
que se verificavam ao nível da Europa Ocidental. Aqui Carlos Martins Marques, Jonathan Costa
também se utilizou, tal como no resto da Europa, o
Projecto de Investigação,
número de chapa e também se fizeram tipos de edição NIEMUS UI2 do CIIERT, Instituto Piaget
característicos, como as colecções periódicas por subs-
crição, os suplementos musicais de revistas e as par-
tituras para banda filarmónica. Foram igualmente
É fundamental realizar uma breve incursão his-
constantes as peças de música para uso doméstico, de
toriográfica em torno das bandas militares para podermos
género lírico, religioso e didáctico e, principalmente,
compreender e contextualizar o surgimento das bandas
verifica-se o predomínio evidente da música para piano,
civis em Portugal, país em que a música como compo-
instrumento preferencial do século XIX.
nente militar parece-nos existir desde o início da nacio-
nalidade. Em 1147, na tomada de Lisboa aos mouros, são
Torna-se, deste modo, necessário o estudo apro-
convocados os guerreiros ao som das trombetas e chara-
fundado desta actividade, ao nível do repertório editado,
melas. Ao longo dos séculos, os instrumentos musicais de
das preferências por compositores, das características
sopros e percussão marcaram presença nas unidades mili-
físicas, para podermos elaborar uma caracterização deste
tares, intervindo nos mais diversos tipo de cerimónias e
movimento editorial, ainda tão desconhecido, mas que
acontecimentos.
pode contribuir para um melhor conhecimento da cultura
portuguesa do século XIX, nas suas principais práticas e
Em 1762, o antigo Terço da Junta do Comércio
representações teóricas. •
foi dividido em dois Regimentos, sendo um comandado
por D. José de Portugal e o outro pelo Visconde de Mes-
quitela, dotado este de uma Música Marcial composta
por: 2 trombetas, 1 corneta, 2 pífaros, 1 trombão e 2 ata-
bales. Na segunda metade de setecentos, com a utilização
de clarinetes, oboés, cornetas, clarins, trompas, fagotes,
serpentões, pífaros, flautas e tambores, apesar da diver-
sidade de instrumentos apresentada, segundo escritores
da época, não se consideravam «bandas, mas sim Fanfarras
Regimentais»1. Em 1793, é criada a figura de Mestre Direc-
tor de Música do exército, integrado na Divisão auxiliar
portuguesa à Campanha do Rossilhão2. Em 27 de Novem-
Distribuição cronológica dos principais editores de música do bro de 1807, D. João VI vai para o Brasil, levando consigo
século XIX em Portugal
a Banda da Brigada Real, juntamente com o corpo militar
que o acompanha. E, por decreto de 27 de Março de 1810,
Bibliografia no Rio de Janeiro, em Dezembro desse ano, sucedendo o
~ALBUQUERQUE, Maria João Durães, A Edição Musical em Portugal (1750-1834), Lisboa, mesmo em Portugal, o monarca aceitou que os músicos
F.C.G., I.N.- C.M., 2006 passassem a fazer parte dos quadros regimentais, sendo
~BORBA, Tomás, LOPES-GRAÇA, Fernando, Dicionário de Música: ilustrado. Lisboa, pagos pelo erário régio. A partir de 1814, com o regresso
Cosmos, 1958
das tropas portuguesas da guerra peninsular, as bandas
~GOSÁLVEZ LARA, Carlos José, La edición musical española hasta 1936: Guia para la
datación de partituras, Madrid, Asociación Española de Documentación Musical, 1995
militares começaram a ser organizadas em Portugal, à
~KRUMMEL, Donald William, SADIE, Stanley (ed.), Music Printing and Publishing. semelhança do que já acontecia noutros países, nomea-
London, Macmillan, 1990 damente em Inglaterra, França, Itália, Espanha e Ale-
~LENNEBERG, Hans, On the Publishing and Dissemination of Music: 1500-1850, manha. A 29 de Outubro de 1814, as bandas dos regimen-
Hillsdale, NY, Pendragon Press, 2003
1) LAPA, A., Subsídios para história das bandas militares portuguesas, Edi-
~VIEIRA, Ernesto, Diccionario biographico de musicos portuguezes: História e Bibliographia da
tora Revista Alma Nacional, Lisboa, 1941, p. 7.
Música em Portugal, Lisboa, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900. 2 vol.
2) Idem, pp. 7-8.

glosas, #3 | 79
do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

tos de infantaria passaram a ser compostas de mestre e Banda Amizade


oito músicos, sendo mesmo necessário recorrer a músi- Cronologicamente, a Banda Amizade é a mais
cos estrangeiros3. Assim, nas décadas seguintes, estavam antiga das três formações em estudo. No que respeita à
reunidas as condições para proporcionar um crescente sua história, vários autores consultados têm opiniões por
número de efectivos da banda militar de forma gradual. vezes contraditórias e, no entanto, complementares. O
principal investigador foi o Pe. João Gonçalves Gaspar,
Durante as primeiras décadas de oitocentos, im- que publicou em 1984, em Aveiro e seu Distrito, um ar-
pulsionada pelos ideais da Revolução Francesa, a música tigo intitulado “Nos 150 anos da Banda Amizade – Aveiro”.
democratiza-se através de formações musicais populares, A fundação da Banda Amizade está envolta de várias in-
surgindo assim, por toda a Europa, as BAC4, numa lógica certezas. Segundo João Calisto Grilo, citado por Gaspar,
da imitação das bandas militares, apesar das finalidades a Banda iniciou a sua marcha histórica em Novembro de
serem diferentes. A vulgar designação de Filarmónica 18348. Nesta altura a Banda era denominada “Filarmónica
vem definida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Bra- Amizade”, alterando-se o nome para “Banda Amizade”
sileira5 como um agrupamento instrumental, mais ou segundo a Alteração dos seus Estatutos de 1989. Se-
menos do tipo da banda militar, isto é, composta apenas gundo Gaspar, a Banda esteve incorporada na Associação
de instrumentos de sopro e percussão. As primeiras ban- Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro,
das filarmónicas amadoras formalmente organizadas “Bombeiros Velhos”, desde 1890 até 1918. Entre 1930 e
terão, assim, começado a surgir em Portugal a partir de 1940, a Banda atravessou um período complicado devido
1822, num contexto de lutas políticas e modificações só- à falta de verbas e de músicos. Para fazer face a esta situ-
cio-económicas reflexo dos ideais da Revolução Francesa ação, lançou-se um projecto denominado “Pró Banda Ami-
e do início da Industrialização, e na sequência do apareci- zade”, que contava com a colaboração de uma companhia
mento da Sociedade Filarmónica de Lisboa, fundada pelo de teatro de Lisboa e que consistiu na apresentação de es-
compositor J. Domingos Bomtempo (1755-1842), com pectáculos de ópera e de outras peças na cidade de Aveiro9.
características semelhantes à de Londres. Em 1838, ano
da I Exposição de Produtos da Indústria Portuguesa, em Inaugurada em 1961, a nova sede oferecia me-
Lisboa, onde surgem pela primeira vez em exposição os lhores condições de trabalho, reforçando o nível artístico
instrumentos de sopros das fábricas HAUPT e SILVA6, e associativo. Assim, a Banda começa a apresentar obras
são fundadas a Academia Filarmónica e a Assembleia com nível musical elevado e melhora a sua apresentação
Filarmónica sob a égide do Conde de Farrobo (1801- em público devido à aquisição de novo fardamento e ins-
-1869). As décadas seguintes foram de grande expansão trumentos. Com a entrada do maestro António Lima, a
para as bandas amadoras, impulsionadas pelas lutas políti- Banda sofreu melhorias graças sobretudo à entrada nos
cas, desenvolvimento industrial e pelo reforço do fabri- seus quadros de novos elementos oriundos da Banda Nova
co industrial de instrumentos de sopro com as fábricas de Aveiro, que entretanto havia cessado a sua actividade,
Custódio Cardoso Pereira & Castanheira e Casa Guima- e ao facto de começar a participar com maior frequência
rães. A conjugação de todos estes factores virá pois fo- em festivais e aniversários de outras associações similares.
mentar a multiplicação destas instituições por todo o país. De acordo com Silva, no período do 25 de Abril de 1974,
a Banda atravessa um momento de menor prosperidade.
Distrito de Aveiro: Banda Amizade, Banda de A revolução de Abril provocou um decréscimo na assi-
Música Flôr da Mocidade Junqueirense e Banda duidade dos músicos aos ensaios e as solicitações para as
Recreativa União Pinheirense. festividades tendiam a ser cada vez menos frequentes. Em
O distrito de Aveiro, tendo por sede de distrito a 1981, com a entrada do maestro António Duarte Neves,
cidade com o mesmo nome, a qual foi fundada em 1759, a Banda volta a reorganizar-se e recuperará a vitalidade
por D. José I, conta actualmente com 51 Bandas Amado- artística de outros tempos. Com Neves, a banda começou
ras Comunitárias registadas7. É, assim, um dos distritos do a ser requisitada pelas comissões de festas, muito aplau-
país com maior número de bandas em actividade. dida tanto em concertos como em festas do meio rural,
3) Ibidem, p. 11 bem como em actuações em vários países, tais como Es-
4) Bandas Amadoras Comunitárias, vulgo Filarmónicas. panha, França, Alemanha (1984), Dinamarca, Holanda e
5) CORREIA, A. Mendes, Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira,
Coordenação A. Correia, Editorial Enciclopédia, Lisboa, 1981, vol. 11. 8) GASPAR, João Gonçalves, “Nos 150 anos da Banda Amizade – Aveiro”
6) ANDRADE, Alexandre, A Presença da Flauta Traversa em Portugal in Aveiro e o seu Distrito, nº 33, 1984, pp. 13-26.
de 1750 a 1850, Tese de Doutoramento em Música, Departamento de
9) SILVA, Manuel Cerveira da, Curriculum ao serviço da Banda Amizade
Comunicação e Artes, Universidade de Aveiro, 2005, pp. 64-65.
- História da Banda Amizade, em 30-01-2011, http://www.bandasfilar-
7) Informação disponibilizada pela Federação de Associações Musicais
monicas.com/personalidades_cerveira_da_silva.pdf
do Distrito de Aveiro.
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do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

Suécia (1990). Depois da passagem de dois maestros por que passaram pela direcção artística da BFMJ, destacando-
esta instituição, António Campos e Armando Matos, -se Manuel Marques, Fernando Batista, Manuel Joaquim
tendo este último sido o responsável pela fundação da or- Almeida e, actualmente, Paulo Almeida13. Com mais de
questra ligeira, surge no ano de 2000 o maestro Carlos um século de existência, sempre foi e continuará a ser o
Martins Marques10, que permanece em funções até hoje. único baluarte do índice cultural de Junqueira, pequena
Com Carlos Marques verificou-se um crescimento da es- localidade do interior, mas com uma forte identidade
cola de música e um desenvolvimento colectivo da Banda, musical, associada à banda filarmónica e sua actividade.
que passou a integrar entre 55 a 60 elementos. A Banda Para além da gravação dos seus primeiros CDs em 2001,
tem vindo a participar, desde 2005, em vários concursos 2003 e em Julho de 2004, a BFMJ realizou mais recente-
e festivais a nível internacional, nomeadamente em Es- mente um concerto na Galiza, a Convite do Ministério da
panha e Itália. Cultura e da Junta da Galiza (Espanha). Actualmente, é
constituída por 64 elementos, na sua maioria jovens que
A Banda Amizade é uma instituição muito pres- fizeram a sua formação na própria Escola de Música.
tigiada não só na cidade e região de Aveiro, mas também
no norte do país, onde a actividade das bandas é mais Banda Recreativa União Pinheirense
intensa. Possui sede própria, escola de música, organiza Por último, surge a Banda Recreativa União Pi-
bailes, comemorações e outras actividades sociais. Possui nheirense, fundada em 1948. A Banda surgiu sob inicia-
ainda um coro e uma orquestra ligeira (big band). A ban- tiva de algumas pessoas do lugar de Pinheiro que deram
da de música, propriamente dita, tem um invejável cur- muito de si a esta colectividade para que ela desse os
rículo de actuações por todo o país e estrangeiro, e CDs primeiros passos. Inicialmente, foi composta por vários
gravados. Organiza, anualmente, um estágio para jovens elementos ensinados pelo Sr. Mário Correia de Miranda,
músicos (o “Verão Amizade”) que nos últimos anos se tem aos quais se juntaram outros elementos de outra Banda
expandido a nível internacional, contando com a presença existente na mesma freguesia. Apesar da colectividade já
de executantes estrangeiros11. existir há algum tempo e dos elementos já terem actuado
em arruada (ainda sem fardamento), a primeira actuação
Banda Flor da Mocidade Junqueirense de que temos conhecimento foi em Maio de 1948 nos fes-
A 11 de Setembro de 1898, é fundada a Banda tejos de N.ª Sr.ª de Fátima, no Lugar de Pinheiro. Em 26
Flor da Mocidade Junqueirense12 por escritura pública de Novembro desse mesmo ano, foram publicados os Es-
no cartório Notarial de Macieira de Cambra. Foi edifi- tatutos do Governo Civil de Aveiro ficando, nesta data,
cada a sua primeira sede no lugar da Calvela, freguesia de oficializada a constituição da Banda Recreativa União
Junqueira. Assim começou a sua actividade, com dúzia Pinheirense. Actualmente composta de um efectivo de
e meia de elementos, sabendo-se que fez a sua primeira cerca de 60 elementos, tem vindo a remodelar e a ampliar
actuação pública na Páscoa de 1899. Com o decorrer a sua sede com vista a uma maior expansão, cujo objectivo
dos anos, esta filarmónica foi progredindo em marcha prioritário é a dinamização da Escola de Música, não só no
lenta com as suas crises profundas, devendo-se isso, em sentido de garantir a continuidade da Banda mas também
parte, ao baixo nível de vida dos elementos que a cons- de oferecer aos jovens um meio de ocupação dos tempos
tituíam, provenientes na sua quase totalidade do meio livres. O seu primeiro Maestro foi o Professor Joaquim
rural. Em 1935, resolveu a sua direcção alterar a sua de- Marques Baeta, natural do lugar de Pinheiro, tendo-se se-
nominação para BFMJ, denominação essa que ainda hoje guido outros que se mantiveram no cargo durante muitos
utiliza e que foi oficializada através de escritura pública anos, sempre com o objectivo de elevar o nível artístico
outorgada no Cartório Notarial de Vale de Cambra. da Banda. A partir de 2002 é dirigida pelo Maestro Prof.
Durante 106 anos de existência, muitos foram os maestros Jonathan Costa14. A Banda União Pinheirense interpreta
10) Da sua vasta actividade profissional e artística, inclui a sua colabo- obras que abrangem vários estilos musicais, do erudito
ração no Instituto Piaget como docente e investigador no Núcleo de ao ligeiro, passando pelas marchas e as obras tradicio-
Investigação em Estudos Musicais da UI:2 do CIIERT. No ano lectivo nais de cariz mais popular. Realiza também concertos
de 2010-11, está a finalizar o seu mestrado em Direcção na Universi-
com cantores, coros e solistas de relevo, dando assim a
dade de Aveiro.
11) Espólio do Arquivo Histórico da Banda. conhecer outras formas de apresentação em Concertos
12) A informação recolhida, em torno desta banda de música, face à de Bandas Filarmónicas. Apresenta-se regularmente em
quase inexistência de registos documentais, foi essencialmente fruto do
trabalho de campo, metodologicamente implementado junto de ele- 13) No ano lectivo de 2010-11, é aluno finalista do Mestrado em Peda-
mentos da própria banda e seus arquivos. No entanto, destacamos, um gogia do Instrumento (Música) no ISEIT/Viseu do Instituto Piaget.
prospecto informativo elaborado por ocasião das comemorações do 14) Mestrando em Direcção de Orquestra de Sopros no ISEIT/Viseu
seu 1º centenário, em 1998. do Instituto Piaget de Viseu no ano lectivo de 2010-11.

glosas, #3 | 81
do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

actividades culturais como concertos, festas populares e perante formações de forte ligação a práticas populares).
religiosas, desfiles e comemorações, e gravou 4 CDs nos Imutável permanece a presença de repertório de índole
últimos 10 anos. Sob orientação e iniciativa do maestro religiosa nas bandas para dar resposta a uma das maiores
Jonathan Costa, a banda aposta também noutras vertentes atribuições destas formações musicais, a qual consiste em
musicais, nomeadamente numa Orquestra Juvenil, Or- acompanhar festas de carácter religioso.
questra Ligeira e, mais recentemente, num Coro Juvenil.
É ainda de referir que a convite da comissão organizadora Também a influência da música clássica marcou, e
das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das marca, os repertórios das filarmónicas, sobretudo através
Comunidades Portuguesas, na Cidade de Newark, nos de transcrições feitas para estas formações, mas igual-
Estados Unidos da América, esta teve a sua primeira actua- mente através da aquisição de obras específicas para banda,
ção no estrangeiro, em Junho de 200615. Em 2008, deslo- provenientes de uma nova geração de compositores que se
cou-se a Espanha e, em Junho de 2011, ao Luxemburgo. dedicam à escrita original para estas formações, remeten-
do as transcrições para um segundo plano performativo.
Indicadores da evolução performativa destes casos
Durante a primeira metade do século XIX, os pro- Actualmente, assiste-se a uma mudança no
gressos técnicos registados ao nível da construção dos ins- paradigma performativo no que concerne o repertório
trumentos de sopro, com a criação do sistema de válvulas praticado. As bandas abordam vários domínios musicais,
(pistões) nos instrumentos de metal e as chaves nos ins- desde arranjos de música tradicional, transcrições de
trumentos de madeira, vieram determinar uma nova fase música erudita, assim como arranjos de temas modernos
na organização e desenvolvimento da música na sua gene- provenientes da música pop-rock e até mesmo do jazz.
ralidade e, por conseguinte, neste tipo de agrupamentos
musicais, assistindo-se assim, em todos os países, a um au- Podemos dizer que se vai esbatendo, paulati-
mento do número de músicos e a uma grande variedade ins- namente, a diferença existente entre os repertórios das
trumental. Em Portugal, essa influência denota-se sobre- bandas portuguesas e as dos países vizinhos que, já desde
tudo nas bandas militares durante o século XIX que vão a segunda metade do séc. XX, vinham mantendo uma
registar uma contínua evolução ao nível do número de evolução de repertório. Factor importante, uma vez que
músicos e na diversidade de instrumentos. Assim, através reside em grande parte na escolha dos repertórios a acei-
dos tempos, a BAC foi sofrendo grandes alterações, de tação da banda filarmónica, nomeadamente por parte das
certa forma acompanhando as transformações ocorridas gerações mais novas. Trabalhos interessantes têm sido
na sociedade e no meio musical. As três bandas em estudo, feitos pela Europa fora, com resultados muito válidos
apesar de localizadas numa mesma área distrital, são ori- na recuperação de temas do folclore e sua adequação a
undas de meios diferenciados: a Banda Amizade, a mais formas musicais modernas. Assiste-se, pois, a uma certa
antiga, surge e desenvolve-se num meio urbano de grande reconversão da fórmula tradicional da Banda Filarmóni-
potencial cultural e social; a Banda Recreativa União Pi- ca, ainda que o fenómeno não seja universal e algumas
nheirense, apesar de localizada muito próximo do litoral filarmónicas não mostrem ensejo ou capacidade para en-
e circundada por grandes vias terrestres, surge num meio cetar essa conversão.  
rural, com menor capacidade de absorção cultural, menos
desenvolvido social e economicamente, quando compara- Tomando como exemplo o estudo implementado
da com a Banda Amizade. Quanto à BFMJ, esta situa-se junto da Banda Amizade, verifica-se uma opção clara no
numa região de interior, caracterizada pela sua ruralidade que concerne a escolha de um programa inteiramente vo-
social, economicamente dependente do sustento da terra, cacionado para concerto. Esta profunda alteração deve-
onde o tecido industrial é residual e onde a actividade cul- -se à entrada do Maestro Carlos Marques, em 2000, um
tural não é considerada relevante. músico com gosto e visão estética, implementando novos
desafios e objectivos para a actividade artística da banda.
Desde o início da sua actividade, as bandas têm Um exemplo da inovação que implementou é a execução
mantido um repertório rico em marchas e peças de de obras contemporâneas originais para banda, com re-
carácter marcial (hinos e obras adequadas a cerimóni- curso a uma paleta instrumental mais alargada, como, por
as e recepções a entidades oficiais), bem como obras de exemplo, The Seven Wonders of the Ancient World (1ª Sinfo-
carácter popular (não podemos esquecer que estamos nia) de Alex Poelman e The Divine Comedy de Robert W.
15) Fundação Bernardino Coutinho, Encontro Dia de Portugal, Ano Smith.
XII, Nº 12, 2006, p. 40.

82 | glosas, #3
do coreto ao auditório | alexandre andrade et al.

Mudança estética : Do Coreto ao Auditório Lisboa, da nau que trazia D. João VI, a 4 de Julho de 1821,
Em cidades, vilas e pequenas aldeias, é ainda fre- vindo do Brasil. O rei dirigiu-se para a Sé de Lisboa, sendo
quente encontrar um coreto16 nas suas praças. Associado recebido com música. O coreto para este efeito foi de ele-
directamente à performance das bandas de música, o vado investimento, como menciona Relvas e Braga19.
coreto foi um espaço privilegiado e central na actividade
da banda, chegando até nós através de uma importação No entanto, é no decorrer de oitocentos que
do modelo francês, por sua vez influenciado pelas formas surgem os coretos fixos desenhados e projectados por ilus-
e estruturas orientais (Turquia, China, Índia…) e o gosto tres desenhistas e arquitectos portugueses. O seu período
pelo exotismo. Tratava-se de uma estrutura adequada e de maior esplendor é em finais do séc. XIX, início do séc.
suficiente, em tempos, para albergar todos os elementos XX. O coreto passa a integrar com regularidade a paisa-
da banda e e instrumentos: a sua área coberta comportava gem urbana, sendo que a sua utilização é indispensável
de quinze a vinte músicos, mais instrumental (conside- em qualquer festa ao ar livre, como por exemplo as festi-
rando um diâmetro entre seis a nove metros). vidades do Casamento Real de D. Carlos I, a 22 de Maio
de 1886, que duraram uma semana. Para o efeito, foram
Ao longo da história da arquitectura urbana, e projectados e construídos dois coretos fixos, um deles na
para melhor enquadramento desta temática, devemos Praça do Comércio, e muitos outros coretos volantes, um
considerar duas tipologias de coretos: coreto volante, cuja pouco por toda a cidade de Lisboa.
utilização era esporádica, ocasional, sendo desmantelado
após o final do evento, e coreto fixo. Como constatamos, o coreto volante não deixa
de ser um recurso eficaz para determinadas ocasiões e
O coreto volante conhece três especificações: tosco, funções, face ao aparecimento do coreto fixo. Estes coa-
cuidado e de aparato. O primeiro estava associado, maiori- bitam e complementam-se no meio urbano e rural du-
tariamente, a festas religiosas, festas populares e feiras. rante o séc. XIX e XX.
Em Portugal, surgem as primeiras referências a estruturas
móveis que se armavam para determinada festividade nos Porém, as grandes mutações verificadas nas ban-
finais do século XVII. Como mencionam Relvas e Braga, das filarmónicas, em Portugal, partindo dos anos 90, são
foi construído um por ocasião da Procissão dos Senhor em parte responsáveis pela cada vez menor utilização do
dos Passos em Belém e quatro para o Torneio Real no coreto como palco para as suas performances artísticas,
Terreiro do Paço17. O cuidado era utilizado em aniversári- nomeadamente nas cidades. Os principais factores são o
os da República e exposições nacionais, e o de aparato era aumento do número de instrumentistas, passando para
utilizado em festejos militares, actos solenes, casamentos números médios entre 45 a 50 elementos, por vezes até
reais, visitas de estado. Em 1808, com o reconhecimento mais, o que inviabiliza a utilização destes coretos de re-
da derrota da França, na batalha do Vimieiro, parte do duzidas dimensões. Outro factor determinante é, como
Tejo o último contingente de tropas francesas, sendo tal consequência, a utilização de um instrumental cada vez
facto celebrado por todo o país. A estas festividades não mais numeroso, como verificamos nas bandas em estudo,
faltavam bandas de música, como referem Relvas e Braga e em particular uma secção de percussão mais completa e
citando Cabral: rompia logo uma grande banda de música diversificada. Esta mudança de paradigma performativo
tangida por mui destros tangedores, que accomodados em hum está também associada a um outro fenómeno sociológico
coreto armado com toda a aptencia, executavão de entervallo que é a menor referência às romarias, em prol do con-
em entrevallo bem ajustados, e muito melodiosos concertos18. certo. Como mencionamos no início deste artigo, a ban-
da filarmónica deixa gradualmente de se apresentar nos
Outra manifestação, em que foi erguido um core- coretos das localidades e passa agora a ocupar um espaço
to de aparato, foi por ocasião do acto solene da entrada, em na programação das grandes salas, quer em Portugal, quer
nos concursos e festivais estrangeiros. Merece destaque a
16) “Quiosques, pavilhões, palanques e coretos para festividades e paradas,
são pertences da família de móveis urbanos, efémeros ou fixos para sucessivos primeira actuação de uma banda civil na Casa da Música
e regulares utilizações. No que respeita ao coreto, “pequeno coro feito para no Porto, no seu principal espaço, a sala Guilhermina
alguma função” tende a fixar um uso e um gosto citadino não consequente Suggia, em 2007, pela Banda Marcial de Fermentelos.
da festa, mas sim motor desta”, citado em RELVAS, Eunice, BRAGA,
P. Bebiano, Coretos em Lisboa, Editorial Fragmento, 1991, p. 9 Mais recentemente, em 2010, a Banda Filarmónica de
17) RELVAS, Eunice, BRAGA, P. Bebiano, Coretos em Lisboa, Editorial Montemor-o-Novo associa-se à dança contemporânea,
Fragmento, 1991, p. 9 sob a direcção artística do coreógrafo Rui Horta. •
18) CABRAL, Bernardo. J. O. Teixeira, Descripção da celebre illuminação
feita no Largo do Poço Novo, Imprensa Régia, Lisboa, 1808. 19) RELVAS e BRAGA, p. 48.

glosas, #3 | 83
COMPOSITORES A DESCOBRIR
Fernando Costa
Nuno M. Cardoso

É uma música com alma, com uma autenticidade


que muitos compositores com o melhor dos apetrechos
técnicos não conseguem. Música sensível e intuitiva,
que define o artista e o homem sem o mais pequeno
vislumbre de pose, e por isso mesmo diz algo tão especial.
Alexandre Delgado, a propósito do Quarteto em Lá menor

Le mépris de la gloriole et du gain est la première


marche pour atteindre au Beau, la morale n’étant
qu’une partie de l’Esthétique, mais sa condition foncière.
Gustave Flaubert, in Lettres à sa nièce Caroline

Figura ímpar no panorama musical da Capital


Lusa, sobretudo dos segundo e terceiro quartéis do Século
XX, Fernando Costa pertence, a par de tantas outras per-
sonalidades marcantes – não só do domínio das Artes –, a
um grupo de, muito injustamente, olvidadas personagens.
É, pois, para de alguma forma tentar colmatar a iniquidade
que a memória – mais dos Homens do que muitas vezes
de uma Nação – não raras vezes comete, que nos pro-
pusemos trazer à luz da lembrança os passos-chave deste
Artista integral que tanto ilustrou a Música Portuguesa.
Fernando Costa em Paris, 1926/7
~

Acercava-se do seu final o ano de 1896 quando, Pelo Verão de 1903, Fernando é levado de volta à
a 10 de Novembro, nascia em Lisboa Fernando Avelino capital por seu pai, com o intuito de aí iniciar a frequência
Ferreira da Costa, terceiro filho de João A. da Costa (em- da escola primária. Nas suas Memórias, escritas em vários
pregado da contadoria do Hospital de São José, e antigo períodos da vida, anota a esse respeito: “No regresso a Lis-
trompista amador), e de Júlia Ferreira da Costa que, pou- boa, vida nova e os deveres que a vida nos impõe, principal-
cos anos volvidos, viria a falecer na sequência do parto do mente quando se é pobre como nós éramos.”. Esta evocação,
seu quinto filho (o qual, de resto, pouco lhe sobreviveria). em jeito de desabafo, é bem ilustrativa da inteireza moral
que seria, para toda a vida, traço marcante do seu carácter.
Assim, subitamente, vendo-se João da Costa a
braços com quatro rapazes a seu inteiro encargo, acedeu a Ainda a propósito destes primeiros tempos de
que os dois filhos do meio – Mário e Fernando – rumassem retorno à casa paterna, escreve: “Meu Pae, [além] do seu
à Beira, acompanhando a avó materna, com quem, desde extenuante trabalho profissional, [tinha] outro não menos es-
então, começaram a viver, bem como com seu marido, de gotante, [que era o de ser] mamã, cozinheiro, empregado de
um segundo consórcio, e padrinho de Fernando. limpeza, etc. Eu sei lá até onde terá chegado o amor paternal
deste Homem excepcional, João A. da Costa, meu chorado e que-
Foi, pois, em Canas de Senhorim, que Fernando rido Pae”. E prossegue: “Meus irmãos, três garotos traquinas,
desfrutou de tão benéfico período no alvorecer de sua três diabos – comigo passam a quatro… Meu Pae trabalhava de
vida, que, mercê do ambiente de carinhoso afecto, haveria manhã até às 17 horas, não podendo estar presente tomando
de marcar, de modo indelével, a sua personalidade. conta [de nós]. Dias inteiros sozinhos, inventando diabruras.”.

84 | glosas, #3
compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

Finalmente, a partir de Outubro de 1903, Fer- Decorria o ano de 1913 quando, em Lisboa,
nando passa a frequentar um colégio. Como as aulas apareceu uma figura cimeira do panorama epocal da
decorressem somente à tarde, e para que os tempos dos música portuguesa, e que viria a ter sobre Fernando Costa
filhos fossem sempre bem aplicados, João da Costa fez uma indizível, marcante e decisiva influência: o violon-
com que Mário e Fernando ingressassem na Sé Patriarcal celista e Chefe de Orquestra David de Souza, que em
de Lisboa como Meninos de Coro: “Na Sé, existia a Aula de Leipzig estudara Violoncelo com o eminentíssimo pe-
Canto Coral que era frequentada por todos os alunos do coro. dagogo Julius Klengel e, a essa data, jornadeara já pela
A Aula de Música destinava-se apenas àqueles que queriam Europa, nomeadamente pela Rússia. Logo em 1914, Fer-
aprender música. Logo, aprendiam todos a cantar (mesmo que nando é apresentado ao afamado Maestro que, vendo
fosse de ouvido) e a saber música aqueles que estavam na Aula neste jovem de cerca de dezoito anos um imenso talento,
de Música, como eu.” – sublinha. Desta maneira, foi, pois, de imediato o convida a integrar o naipe de violoncelos da
na Aula de Música da Sé Catedral que Fernando Costa ad- Orquestra que dirige no Teatro Politeama.
quiriu os primeiros rudimentos musicais, que tão provei-
tosos se revelariam, sob a égide de notáveis professores. Penosos serão, todavia, para o jovem violoncelis-
ta, os anos de 1917 e de 1918, por efeito das mortes de seu
Em 1907, é o aludido Coro Infantil convidado pai, de seu Mestre David de Souza (de quem, entrementes,
para integrar as récitas da Carmen e de La Bohème na tem- começara a receber preciosos ensinamentos de Música de
porada lírica do “Real Theatro de Sam Carlos”, sendo Câmara e de Violoncelo) e de seu amigo António Frago-
que o pequeno solo “Vo’la tromba, il cavalin”, da ópera so (que, à semelhança do referido Maestro, sucumbira
de Puccini, foi confiado ao pequeno Fernando, graças à à gripe pneumónica) e, ainda, do assassinato do “Presi-
facilidade musical que já então evidenciava. Acerca de tal dente-Rei”, Dr. Sidónio Pais, com cujo trágico desfecho
episódio, anotaria: “Esta foi a minha estreia como músico e viu soçobrar a concessão, a seu favor, de uma bolsa que
a minha entrada nesse fantástico S. Carlos, em Lisboa, onde lhe possibilitaria estudar em Leipzig, conforme o defun-
o meu violoncelo se fez ouvir nos principais solos das grandes to Chefe de Estado prometera ao Maestro D. de Souza.
óperas de Wagner, Verdi, Bellini, Puccini e tantos mais. Quem
me diria a mim, filho de um simples funcionário do Hospital Finalmente, em 1920, realizou no Conservatório
de S. José, que, de pequeno cantor, haveria de ocupar durante Nacional de Lisboa o exame final do Curso de Violoncelo,
décadas o lugar de 1º violoncelo dos vários naipes que, entre sob orientação do Prof. João Passos, obtendo a classifi-
1921 até, pelo menos, 1960, actuariam nesse fabuloso Teatro. cação máxima.
[…] S. Carlos, na época, era um verdadeiro templo do Bel Can-
to, requesitado pelos maiores artistas líricos e onde se faziam e Os anos seguintes passá-los-ia, pois, trabalhando
desfaziam reputações em matéria operática… Só me lembro que na Ópera em S. Carlos, no Porto e no Coliseu de Lisboa;
fiquei deslumbrado com o interior daquele templo de lumes e também continuará a colaborar na Sinfónica do Politea-
sons.”. ma – onde era 1º Violoncelo-Solista – e, nos Verões, no
Palace Hotel do Bussaco e nos Casinos da Figueira da
Entretanto, em Outubro desse mesmo ano, ini- Foz e de Sintra. Em virtude da sua uniforme e brilhante
ciou a frequência do curso secundário no Liceu de S. Do- prestação como executante, foi justamente o proprietário
mingos, paredes-meias com o Palácio da Independência, do Casino de Sintra, o Sr. Adriano Coelho, quem se dis-
para, no ano seguinte, encetar os seus estudos musicais no ponibilizou para financiar, integralmente, a Fernando
Real Conservatório de Lisboa, na classe de Rudimentos Costa, um curso de aperfeiçoamento violoncelístico no
– que, mais tardiamente, viria a designar-se por Solfejo. estrangeiro. Aconselhado por Guilhermina Suggia, com
O estudo de Violoncelo, iniciá-lo-ia sob orientação de quem viria a estabelecer uma duradoura amizade, op-
um violoncelista amador, amigo de seu pai. Todavia, em tou, então, por estudar com o Mestre Joseph Salmon, em
1910, com cerca de 14 anos, e visando um estudo mais Paris, para onde partiu em Janeiro de 1926.
sistematizado e metódico do instrumento, matriculou-se
na classe do Prof. Cunha e Silva. Durante os cerca de dezasseis meses que estudará
em Paris, além das aulas de instrumento com Salmon, re-
Porém, e tendo em vista auxiliar o orçamento fa- ceberá, em paralelo, lições de Música de Câmara de Paul
miliar, integrou, de início, um Trio que se apresentava com Bazelaire, professor na Schola Cantorum da capital fran-
regularidade no extinto Café Londres e, mais tarde, um cesa. Beneficiará, ainda, de inúmeros concertos, óperas
Quarteto, que actuava no Theatro Gymnasio, ao Chiado. e recitais a que terá oportunidade de assistir, todos eles

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compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

com intérpretes de excepção e da mais reputada craveira outras obras de grande plano da consagrada bibliografia
artística mundial – Cortot, Rubinstein, Thibaud, Ysaÿe, violoncelística, as seguintes: um dos ciclos de Variações
Enescu, Piatigorsky, Casals, d’Indy ou Koussevitsky, entre sobre um tema de Mozart de Beethoven, a Sonata, op.8, de
muitos outros. Dohnányi, a Elégie de Fauré, a virtuosística peça La Source
de Davidoff e ainda a Berceuse do seu querido e saudoso
Em Maio de 1927 apresentar-se-á na famosa Salle Mestre David de Souza, obra que, de resto, viria a consti-
Érard, repleta de críticos, jornalistas e diplomatas, acom- tuir-se como uma quase infalível rubrica dos seus recitais.
panhado ao Piano por Eugène Wagner, com um ecléctico
e variadíssimo programa, resultado do frutífero período A mero pretexto de curiosidade e ilustrando a ti-
de aperfeiçoamento com Mestre Salmon. A partir deste pificação do acúmulo de críticas que diariamente, à época,
ano, deparamo-nos com uma deplorável lacuna patentea- inseriam as páginas da especialidade dos jornais portu-
da pelo longo hiato de escassez de dados autobiográficos gueses, importa transcrever o excerto seguinte, referente
legados por Fernando Costa, dado todo o material de a um dos recitais efectuados no Conservatório Nacional
apoio e de consulta que nos chegou se estear em excer- de Lisboa, subscrita pela conceituada e “temida” crítica
tos de memórias que muito excepcionalmente se referem musical Francine Benoît: “Raro temperamento artístico,

O “Trio Vianna da Motta”, em 1929. Paulo Manso (ao Violino),


Mestre Vianna da Motta (ao Piano), Fernando Costa (ao Violoncelo).

ao ciclo do pós-regresso à capital. Eis a razão pela qual a qualidade de som, pureza de processos, jogo de mão do arco de
maioria dos registos que doravante biografaremos serão maravilhosa flexibilidade. Pertence à mais elevada categoria de
compulsados essencialmente a partir de nótulas de pro- artista, a emoção concentrada que confessa, magia da doçura
gramas e de textos críticos, atinentes a recitais e concertos feminina que acaricia e envolve, ritmos viris, raro condão de
realizados. Desta maneira, óbvio será inferir a febrici- poder ser sincero com riqueza.”1.
tante e preenchidíssima actividade artística que Fernando
Costa protagonizou nos anos que se seguiram ao seu re- No ano de 1929 é empreendida a criação do “Trio
gresso a Portugal, designadamente em Lisboa e no Porto. Vianna da Motta”, constituído pelo insigne pianista que
lhe origina a designação, pelo violinista Paulo Manso e
É, em Abril de 1928, distinguido na Invicta Ci- pelo violoncelista Fernando Costa. A este celebrado agru-
dade com o “Prémio Moreira de Sá”, que lhe é conferido pamento camerístico caberá, por inspiração do discípulo
pelo Orpheon Portuense, e para cujo acto simbólico foi de Liszt, levar a cabo uma brilhante e hercúlea empresa,
criteriosamente seleccionado um brilhante programa. jamais experimentada em Portugal – executar a integral
Desse memorável recital, em que foi acompanhado pelo de música de câmara para instrumentos de arco e piano
pianista e professor Campos Coelho, citaremos, entre
1) in Diário de Lisboa, 29-V-1928.

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compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

(trios e sonatas) do Mestre de Bona, inserida no Ciclo Quixote (para orquestra com violoncelo e viola solistas)
Beethoven. Assim, continuará este Trio a apresentar- de Richard Strauss. Assinala-se, a propósito, ter sido Fer-
-se regularmente por alguns anos, interpretando um di- nando Costa o primeiro violoncelista português a inter-
versificado reportório e privilegiando, ainda, Schubert, pretar esta última obra, a qual seria, sem margem de dú-
Smetana, Mendelssohn e Brahms. vida, o seu “cavalo de batalha”, chegando a apresentá-la
por cinco vezes com reconhecido sucesso. Ainda sobre
Em 1938, na sequência de um recital em parceria esta mesma obra, viria a elaborar um curioso “Estudo
com a pianista Regina Cascaes, e em que interpretaram Tematico-Literário”.
a Sonata para Violoncelo e Piano, op.117, de Fauré, sai, na
edição de 25 de Fevereiro, do Diário da Manhã, assinada Muito mais tarde, já nos finais de 1951, inter-
por Malhôa Miguéis, a seguinte crítica, na parte que con- pretará, também sob a direcção do Maestro Freitas Bran-
cerne o nosso biografado: “Fernando Costa, Violoncelista co, a Elégie de Fauré, por ocasião das solenes exéquias
de raça, e um dos primeiros de Portugal, foi o admirável criador, fúnebres da Rainha a Senhora Dona Amélia, na Igreja
entre nós, desta obra, executando-a com todas as modalidades de São Vicente de Fora – facto este, aliás, assaz curioso,
artísticas do seu talento, da sua Arte […]. É ter a convicção que parece fechar um elo criado com o ramo reinante da

No Bussaco, em 1924. Da esquerda: Regina Cascaes, Fernando Costa,


Guilhermina Suggia, Augusto Suggia, Carlos Quilez.

de estar na presença de um grande artista e de um “virtuose” Família de Bragança, uma vez que, cerca de quarenta e
do Violoncelo.”. três anos antes, em 1908, houvera participado igualmente
nas cerimónias fúnebres de El-Rei o Senhor D. Carlos I
A esta data, Fernando Costa assumira já a posição e do Príncipe Real D. Luiz Filipe, vítimas do Regicídio;
de 1º Violoncelo-Solista na recém-criada Orquestra Sin- dessa vez, porém, enquanto Menino de Coro da Sé Patri-
fónica da Emissora Nacional de Radiodifusão Portuguesa, arcal de Lisboa.
lugar de que seria titular ininterrupto por cerca de vinte e
dois anos. O final do Estio de 1948, passá-lo-á na Serra da
Estrela em companhia de sua noiva, a violoncelista e peda-
Em Dezembro de 1939 tem lugar em Lisboa um goga musical luso-italiana Adriana de Vecchi e de alguns
concerto da supracitada orquestra, sob a direcção do emi- amigos – um grupo a que apodava de “Os Serranos” e de
nente Maestro Pedro de Freitas Branco, no qual Fernando que faziam parte, entre outros, o Maestro Frederico de
Costa interpreta duas obras consideradas de elevado Freitas. Nessa “belíssima Beira-Alta dos” seus “amores”,
quilate do reportório violoncelístico concertante: o Con- como usava dizer, onde gozara felizes anos da sua meni-
certo em Lá menor de Schumann e o poema sinfónico Don nice, bebia agora toda a frescura dessas empolgantes

glosas, #3 | 87
compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

paisagens, ao mesmo tempo que procurava retemperar os incluía, entre outros, o violoncelista e afamado professor
seus pulmões combalidos pela bronquite asmática que o germano-americano Maurice Eisenberg – que constituía
atormentava. o júri do Concurso Internacional da Costa do Sol.

Em meados de 1953, Adriana de Vecchi, então já Por esse ano, o seu quadro de saúde experimenta
sua esposa, decide-se pela criação, com o apoio de várias um progressivo agravamento: dores intoleráveis, no rasto
personalidades ilustres do quadro intelectual e social de do reumatismo gotoso, e a bronquite asmática, a que se
Lisboa, de uma instituição que patrocinasse e difundisse associava, agora, um edema pulmonar. Todavia, malgrado
o ensino da arte dos sons aos mais pequenos, a partir esta situação de múltiplas patologias, registava, por chiste:
de novos conceitos pedagógicos. Desta maneira, nasceu “Nunca julguei chegar aos 75 anos que perfiz no passado dia 10
a FMAC – Fundação Musical dos Amigos das Crianças. de Novembro [1971], prestes a findar. […] Apesar de tudo, sou
Não tardou, contudo, que Fernando Costa se associasse o teimoso da família!”.
com todo o carinho e desvelo a este notabilíssimo projecto
sem paralelo em Portugal, emprestando-lhe entusiasmo e Fernando Costa viria a expirar a 5 de Março de
avisado conselho, contribuindo, deste modo, para que se 1973, ficando em câmara ardente na Capela do Senhor
corporizasse o sonho embrionariamente quase visionário dos Passos, na Basílica da Estrela. Para acompanhar a
de sua mulher. celebração da Missa de Corpo Presente – que precedeu o
préstito fúnebre para o Cemitério dos Prazeres, em Lis-
Indelével é, pois, a sua decisiva adesão a este pro- boa – foi organizada, pelo Maestro Leonardo de Barros e
jecto que tanto impacto gerou, sob o ponto de vista peda- pelo Violinista Carlos Passos, uma orquestra constituída
gógico, na vida musical portuguesa de há cerca de seis de- por antigos alunos, dirigida pelo Maestro Silva Pereira.
cénios. Não só das suas classes, como igualmente da idios-
sincrasia que lhe era subjacente e que soube impregnar FERNANDO COSTA, O COMPOSITOR
como um cabal Mestre, nasceu, afinal, desse alfobre, um
numeroso escol de artistas de inconcussa valia e indes- Uma advertência se impõe facultar, antecipada-
mentível talento que os habilitou a ocupar, por real mere- mente, ao leitor, como forma de precaver um juízo menos
cimento, as mais diversas estantes, desde a de regência até apurado sobre o quilate intrínseco de Fernando Costa
às de tutti, de arco e de sopro, em orquestras quer por- – compositor. Desta maneira, ter-se-á de interpretar o
tuguesas, quer estrangeiras, de reconhecido gabarito in- Mestre - Compositor como produto exclusivo da sua mu-
ternacional, não olvidando ainda os que fizeram percurso sicalidade espontânea, modelada pela perícia da praxis de
ascensional em piano. música de câmara – e de que não anda arredia, também,
a influência do seu círculo de amizades e a convivência
O mês de Outubro do ano de 1955 ficará, con- diária com renovadas figuras de cimeiro plano da música
tudo, marcado pela derradeira interpretação pública que europeia.
fará da já citada obra sinfónica Don Quixote, desta feita
com o Prof. François Broos na Viola-Solo e outra vez A primeira composição de que há registo está da-
ainda sob a batuta de Pedro de Freitas Branco. tada de Abril de 1915. É uma original obra para orquestra
de cordas, intitulada O Sonho de um Jovem Músico. Dedi-
Depois, os restantes anos da sua caminhada de cado à pianista Irene Gomes Teixeira, escreve, em 1917,
vida, consumi-los-á, Fernando Costa, votado, como sem- um comovido Andante Lamento para violoncelo e piano,
pre, ao ministério supremo da arte dos sons: dirigindo a obra que tudo deve à estética romântica.
Orquestra d’Arcos da FMAC e leccionando ainda, aí, a
classe de Música da Câmara. Em simultâneo com estas ac- Somente em 1948 volta a pegar na pena para
tividades, vinha exercendo, também, as que decorriam do compor, em Setembro, No Alto dos Hermínios – Rêverie –
vinculamento oficial do seu cargo na Sinfónica da Emisso- obra que, sem sombra de dúvida, encontrou inspiração
ra Nacional – onde começa a ver chegar, com júbilo, quais nos felizes dias passados, nesse Verão, na Serra da Estrela,
“promessas de renovação”, vários dos seus discípulos. na companhia da sua “querida Adriana”, a quem faz dedi-
catória.
Começará, então, a ser notório o gradual esba-
timento da sua aparição em recitais, quer em duo, quer Poderemos, com toda a segurança, asseverar que
em trio. Em Setembro de 1971 integraria a parceria – que a FMAC foi a motivação que emprestou novo fôlego à sua

88 | glosas, #3
compositores a descobrir: fernando costa | nuno m. cardoso

veia criativa. Assim nascerá, em 1954, a sua “Berceuse- Can- Também para a orquestra da FMAC realizou,
ção de Embalar”, obra de uma beleza e de uma simplicidade com irrefutável mestria e conhecimento, inúmeras trans-
quasi tocantes, que traz a seguinte nota num dos exem- crições para cordas de obras do grande reportório sin-
plares autografados: “Esta pequenina peça violoncelística foi fónico, de que se destacam, a título de curiosidade, Danças
composta para o Luizinho, mas, depois, tem servido para todos Romenas de Béla Bartók, a Romanza em Fá de Beethoven
os miúdos da Fundação.”. Duas outras obras para a Orques- ou ainda Rapsódia Eslava de David de Souza.
tra d’Arcos FMAC surgem: Conversa para Quatro ou Quem
Canta Seus Males Espanta (1955), e Estudo Melódico (1956). ~

Mas, se houver o propósito de eleger uma “obra- Impõe-se-nos, como indeclinável imperativo de
-prima” na sua reduzida produção musical, será, sem hesi- consciência, fazer público agradecimento, quer ao Maestro
tação nem receio, o Quarteto em Lá menor para Cordas, Leonardo de Barros, ao confiar-nos, para consulta, o grosso dos
dito Quarteto Miniatura, onde se inscreve a dedicatória elementos coligidos, fruto da pesquisa biográfica que vem
“À minha querida Adriana, alma e vida da Fundação Musi- empreendendo sobre o Professor Fernando Costa, quer ao
cal dos Amigos das Crianças”, e que data de 1957. Editado Prof. e Violinista Carlos Passos, Presidente da Direcção da FMAC,
em 1998 pela casa Real Musical, sediada em Madrid, que nos franqueou para análise, e sem restrições, todo o espólio
conta, nesta edição, com uma nota crítica do compositor bibliográfico do ilustre Mestre – incluindo todo o material
e violetista português Alexandre Delgado, da qual trans- documental ora inserto – e de que a instituição é depositária.
crevemos as seguintes passagens que permitirão, cremos,
Não obstante tais gestos de lhaneza e de estima revelarem
despertar a curiosidade certa no leitor: “Ao chamar ao seu
– para nós, desde sempre e sem surpresa – traços estruturantes
quarteto em lá menor Quarteto Miniatura, Fernando Costa
de generoso carácter, é imperioso, pois, nesta circunstância,
talvez não se referisse apenas à sua duração. A obra é uma mi-
que lhes patenteemos manifesta amizade e reconhecimento.
niatura no sentido mais intimista, em que se tomam os objectos
com um misto de intuição e de afecto capaz de inventar a sua

própria técnica de composição. Fernando Costa reflecte o idioma
romântico em que se movia como intérprete. […] Característica
insólita, nos antípodas dos esquemas básicos tanto do classicis-
mo como do romantismo, Fernando Costa usa o idioma tonal
prescindindo do seu principal eixo dramático, que é a deslo-
¶ na próxima rubrica
cação para outra tonalidade. As mesmas harmonias enredam-se
COMPOSITORES A DESCOBRIR
em huis clos, uma teia singela que nos embala pondo de parte
as regras do contraponto, da harmonia e da construção formal:
é uma utilização inesperada de um vocabulário tradicional, com
o mesmo tipo de encanto da pintura naïve. É uma música com
alma, com uma autenticidade que muitos compositores com o
melhor dos apetrechos técnicos não conseguem. Música sensível
e intuitiva, que define o artista e o homem sem o mais peque-
no vislumbre de pose, e por isso mesmo diz algo tão especial.”.

Facto natural na carreira de um conceituado ins-


trumentista, viu, também, serem-lhe reverentemente
dedicadas algumas obras, como por exemplo o Nocturno
sobre um Soneto de Antero de Quental do Maestro Frederico
de Freitas. Igualmente, no seu espólio, aparece um exem-
plar da Sonata para Violoncelo e Piano de Luiz de Freitas
Adivinhe quem é o compositor a descobrir da
Branco, obra de 1913, com a seguinte dedicatória, datada
de Janeiro de 1928: “Ao notável artista/ e querido discípulo próxima edição da glosas e ganhe um CD com
Fernando Costa/ Com admiração e estima Off.ce o autor”. Esta obras de Joly Braga Santos. Será premiada a
obra, incluída no seu reportório, foi interpretada múlti- primeira resposta correcta recebida.
plas vezes, em parceria quer com Vianna da Motta, quer Envie as suas sugestões para:
com Regina Cascaes. geral@mpmp.pt

glosas, #3 | 89
Glosando: a convite da glosas, uma peça inédita
O passeio da rã negra
O Passeio da Rã Negra | Amílcar Vasques-Dias
para a GLOSAS 3 Amílcar Vasques-Dias

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90 | glosas, #3
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O passeio da rã negra - Pg.2 - Amílcar Vasques-Dias

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glosas, #3 | 91
ALÉMFADO
Encomenda do pianista João Vasco,
com o apoio do Museu do Fado,
a oito músicos do universo do Jazz
e da música contemporânea.

O desafio lançado foi o de recriar um conjunto


de fados do grande repertório deste género e
duas obras para guitarra portuguesa de Carlos
Paredes. A Mário Laginha propôs-se ainda
a criação de uma obra original. Na génese
está presente o desejo de redescoberta de um
estilo bem como dos conceitos de metamorfose,
transversalidade e inovação estilística.

Imprescindível, portanto, mostrar aos leitores


da glosas um pouco da música de ALÉMFADO,
cujo CD já se encontra à venda nas lojas habituais.

92 | glosas, #3
alémfado | apresentação

O projecto ALÉMFADO surge no meu trajecto



como uma inevitabilidade. Por ter iniciado o meu percurso
musical precisamente pelo Fado, tocando viola acompa-
nhando o meu pai à guitarra portuguesa, e também pela
vontade sempre presente de interpretar música portuguesa,
idealmente inédita.

Para além do interesse e pertinência que este “olhar
contemporâneo” sobre o Fado proporciona, creio que a
(porventura) ousadia de recriar obras musicais de estilo
tão forte e vincado, dotando-as de um carácter conceptual,
processual e interpretativo próprio dos universos do jazz
e da música erudita contemporânea, poderá representar
mais um passo no sentido da transversalidade artística
plena em que acredito e que, a meu ver, é uma valência
maior no desenvolvimento cultural das próximas décadas.

João Vasco, Março de 2011

VASCO MENDONÇA | O desafio deste


projecto residiu sobretudo na procura do
equilíbrio entre uma dinâmica de criação
– o que me é pedido como compositor/
criador - e a manutenção do que considero
fig. 1 – Homem Na Cidade, cc. 11 a 15
ser o carácter essencial das canções. Quer
no caso de Homem na Cidade, quer no caso
de Tendinha, a solução foi sublinhar (e até
extremar) o desenho formal – harmónico,
numa delas, e de carácter, na outra. As-
sim, as primeiras partes de Homem Na
Cidade foram alvo de um tratamento
fig. 2 – Homem Na Cidade, cc. 32 e 33
harmónico particular: inicialmente, a utili-
zação de uma nota pedal e a migração do tema
no registo (fig. 1), seguidas de um dispositivo
de tipo quase mecânico, um mecanismo de
alturas do qual o tema vai sendo extraído (fig.
2). As últimas secções da canção tiveram uma
manipulação de natureza mais linear (com
fig. 3– Homem Na Cidade, cc. 54 e 55
apenas alguns pormenores de transformação
harmónica) (fig. 3). No caso de Tendinha, o
carácter melancólico dos versos originais
foi mantido, apesar da re-harmonização da
melodia original (fig. 4). O carácter enérgico
e lúdico do refrão serviu de inspiração à pas-
fig. 4– Fado da Tendinha, cc. 6 a 8
sagem menos reverencial de todo o trabalho:
aqui, numa espécie de estranho ‘scherzo’, o
intérprete vai, ao longo da sua interpretação,
aproximando-se progressivamente da músi-
ca original – como se estivesse a fazer uma
primeira leitura da mesma – só a alcançando,
helás, no acorde final (fig. 5).

fig. 5– Fado da Tendinha, cc. 32 a 36 glosas, #3 | 93


alémfado | apresentação

IAN MIKIRTOUMOV | Sinto o tema Gaivota como


o voo solitário de um pássaro livre sobre o mar.
Como o mar muda a sua aparência também a música
se transforma. Deste modo, na introdução, as ondas
acariciam pacificamente a praia, o mar é tranquilo.
O tema não é claramente reconhecível devido à
reconstruída harmonização e ao ritmo diferente do
original. De seguida, as águas agitam-se e o tema
transforma-se numa valsa ao estilo de Chopin.
Finalmente, o mar, bramindo, abraça o estilo de
Rachmaninov e a tempestade sonora faz surgir o
refrão, perto da sua versão original. Por fim, as excerto de Gaivota
ondas perdem a sua força e restará apenas o mo-
tivo do refrão evocando o Fado, imitando a guitarra
portuguesa. O mar volta ao seu estado inicial e os gritos
da gaivota desaparecem no sussurro das ondas.
 
JOÃO MADUREIRA | Escrevo uma breve nota
sobre os fados por mim arranjados ou… recompostos!
Dois fados – Verdes Anos e Barco Negro – que reflectem
duas atitudes distintas e complementares: Verdes
Anos, partindo do texto original e integrando a sua excerto de Barco Negro
presença na contemporaneidade; Barco Negro, num
movimento oposto, partindo dessa contemporanei-
dade para abraçar a tradição do Fado. Dois caminhos.
Dois irmãos!

PEDRO FARIA GOMES | O desafio principal em


Sede e Morte – peça de Carlos Paredes originalmente
instrumental, apenas para guitarra portuguesa –
consistiu na sua transposição para um universo
pianístico. Através das propriedades originais de
dança ternária, forma tripartida simples “ABA” e
referência a um contexto regional no timbre da
guitarra portuguesa, estabeleci uma ponte com o excerto de Sede e Morte
reportório de Chopin que partilha destas caracterís-
ticas, em particular as valsas e as mazurkas. Esta
relação é sobretudo notória nas secções principais
“A”; a secção central descola da versão original, numa
direcção divergente, não utilizando mesmo qualquer
material de Carlos Paredes; mantém, no entanto, a
função de contraste. Já em Talvez se Chame Saudade,
o contexto original de voz acompanhada levou-me a
optar por uma amplificação da distância entre versão
original e adaptação para piano solo, por oposição à
criação de pontes. Foi mantido o esqueleto formal,
melódico e de acontecimentos harmónicos-chave
(uma espécie de Ursatz Schenkeriano), mas modifi-
cando estes e outros aspectos a nível de superfície de
tal modo que a criação deste novo contexto se tor-
nasse o elemento mais definidor.
excerto de Os meus lindos olhos

94 | glosas, #1
alémfado | apresentação

EDUARDO JORDÃO | Na origem  do arranjo que


fiz de Os meus lindos olhos esteve a intenção de uti-
lizar dois movimentos melódicos proeminentes neste
fado, revestido-os de um ambiente que remete para
alguns dos estilos/compositores que mais aprecio.
A ideia foi compor “7 quadros sobre um fado” criando
alusões a Rachmaninov, Liszt, Tom Jobim, John Wil-
liams, entre outros, sem nunca me afastar muito da melo-
dia original. O último dos quadros, que fecha o arranjo, é
relativo a mim enquanto apreciador e pensador de música.
Foi um trabalho envolvente onde a escrita fluiu sem dúvi-
das. Uma experiência que repetiria de muito bom grado.
Quem sabe, um dia...
excerto de Meu amor, Meu amor
RUBEN ALVES | Ao compor Maria Lisboa procurei não
estabelecer uma conexão forte com a harmonia original e portuguesa. Assim se desenvolveu a minha recomposição
encontrar em alguns pontos uma ligação forte com a melo- do tema com o uso da milonga (mantendo basicamente o
dia. Desenvolvi também um novo motivo introdutório percurso original da harmonia e tonalidade), com ênfase
que penso adequar-se ao carácter do tema original. De for- no ritmo do baixo e vozes intermédias a acompanhar a
ma aleatória, alternei modos maiores e menores e utilizei voz superior, como se se tratasse de um acompanhamento
algumas referências da escala espânica. Acrescentei uma de guitarras a “seguir” a dicção do canto.
parte B e parte C que se desenvolvem de forma progressiva,
com um carácter de improviso. Em Meu amor, Meu amor, TIAGO FIGUEIREDO, realizador dos telediscos
procurei ser mais denso harmonicamente, devido promocionais Gaivota e Um Homem na Cidade |
à sonoridade intimista que este texto propõe.  Os videoclips do ALÉMFADO foram filmados, como
Da mesma forma, vou recitando excertos separa- sempre faço com o João Vasco, numa frutuosa colabo-
dos da melodia original.  Existe claramente uma parte ração e partilha de ideias. Quisemos evocar uma Lisboa
introdutória que se separa da estrutura da canção.  Pelo lúgubre, entre o boémio e o decadente, aproveitando os
mesmo processo, também a composição evolui de uma bastidores do Salão Nobre do Conservatório Nacional. Os
forma progressiva, mas,  em alguns momentos, como se jogos de luz, aumentados pelo contraste do preto e branco
congelasse a progressão num acorde, ficamos em com- dos filmes, aproximam ainda mais as estéticas sonoras e
posição modal. Procurei também evocar a ornamentação visuais dos videoclips e do fado lisboeta. •
vocal utilizada no fado. Em traços gerais, esta composição
utiliza acordes tensos, complexos e dissonantes (por-
ventura uma inspiração de Satie). ALINHAMENTO

UM HOMEM NA CIDADE
PAULO PACHECO | Ao debruçar-me sobre a letra do Vasco Mendonça (José Luís Tinoco/Ary dos Santos)
GAIVOTA
fado Alfama e, também, sobre o carácter da composição Ian Mikirtoumov (Alain Oulman/Alexandre O’Neill)
musical do Alain Oulman, uma ideia surgiu de forma pro- VERDES ANOS
João Madureira (Carlos Paredes)
gressiva: a de uma melancolia acentuada pelas palavras SEDE E MORTE
Pedro Faria (Carlos Paredes)
“solidão”, “desencanto”, “saudade” e “silêncio” e, ademais, QUASEUMFADO (obra original)
a de um passo lento no ritmo e na tonalidade menor que Mário Laginha
OS MEUS LINDOS OLHOS
enfatizavam este quadro de aparente tristeza em redor de Eduardo Jordão (Mafalda Arnauth)
A TENDINHA
um bairro lisboeta visto à noite. Neste sentido, o ambiente
www.alemfado.com

Vasco Mendonça (Raul Ferrão/Pedro Bandeira)


remeteu-me para um dos géneros musicais abordados de MARIA LISBOA
Ruben Alves (Alain Oulman/David Mourão-Ferreira)
forma genial por Astor Piazzolla: a milonga (dança tradi- ALFAMA
Paulo Pacheco (Alain Oulman/Ary dos Santos)
cional que deriva do tango). Este estilo musical, de carácter MEU AMOR, MEU AMOR
lento e melancólico, tão retratado por um compositor
BARCO NEGRO
Ruben Alves (Alain Oulman/Ary dos Santos)

que abraçou o tango como se de uma música nacional se João Madureira (David Mourão-Ferreira/Caco Velho/Piratini)
TALVEZ SE CHAME SAUDADE
tratasse - e, na verdade, era - assemelhava-se ao “quadro” Pedro Faria Gomes (Francisco Viana Filho/João Gil)
do fado “Alfama” e, quiçá, do Fado como música nacional

glosas, #1 | 95
Cantos da voz: vários entre a minha expressão musical e os materiais que
citei. Este cruzamento de linguagens tem dois sentidos: a
tradição é interrogada pelas técnicas contemporâneas nas
sobre a minha peças do Ordinário da missa, enquanto que nos outros
números são as práticas da música contemporânea que
Missa de Pentecostes são encaradas a partir da tradição medieval.

João Madureira A citação (presente no que Martha Hyde iden-


tifica como reverential, eclectic, heuristic e dialectical imita-
tion2) representa um aspecto fundamental desta obra. Mas
desenganem-se aqueles que vêem na presença de citações
um gesto conservador. O que guia a obra é, pelo con-
trário, a ousadia de juntar o diverso, de confrontar técni-
cas aparentemente pertencentes a mundos distintos. Não
há, por outro lado, qualquer limitação auto-imposta, que
implique o emprego de certos materiais tradicionais, mas
sim um gesto de expansão do espaço habitual da música
contemporânea, que é, aliás, prática comum a tantos au-
tores do nosso tempo, gesto que visa a criação de um lugar
musical que não tema interditos estéticos ou académicos.
E, ao mesmo tempo, o desejo de revelar a obra no todo
cultural em que se insere, por contraponto à constituição
de um todo isolado, coerente consigo mesmo e imediata-
mente classificável como música contemporânea.

os cantos da voz são duplos Esta missa não representa uma excepção na mi-
a escuta nha obra, mas uma face, talvez mais explícita, da minha
infinita: relação com a tradição. Encaro a música contemporânea
basta que o corpo tocado como parte integrante de toda uma evolução da música
seja outro ocidental, e penso que muito habitualmente é exagerada
ou que o mesmo se desloque a importância dos momentos de ruptura e diminuído o
papel dos momentos de integração dessas rupturas num
Paulo Sarmento1 todo mais vasto. É, assim, realçada a violência da eman-
cipação da dissonância verificada no início do século XX
nos compositores dodecafónicos ou o lado mais revolu-
A ideia de composição da Missa de Pentecostes cionário da música de Stravinsky. Como também é de-
surgiu de um convite do Pe. José Tolentino Mendonça para masiado enfatizada a importância do serialismo integral
compor uma missa integrada no projecto “Diálogo Arte dos anos 50. Ou do espectralismo nos anos 70. Estes são
contemporânea e Sagrado”, um projecto com intervenção momentos que emergem num todo fortemente marcado
de artistas de diferentes áreas, a decorrer na Capela do por linhas de continuidade com o passado e que são rapi-
Rato desde 2009. Em conjunto, pensámos imediatamente damente assimilados por compositores que nos vêm mais
em associar o Consort de Música Antiga e Contemporânea uma vez lembrar a pertença desses momentos, aparente-
Sete Lágrimas a este projecto e abraçámos, desde logo, a mente inusitados, a um contínuo histórico que os integra
possibilidade de inclusão de poesia portuguesa entre os e que, naturalmente, deles se alimenta e neles se reinventa.
textos em latim do Ordinário da missa. A partir deste todo A cada momento de ruptura corresponde, quase invaria-
vincadamente heterogéneo, o desafio que me coube foi velmente, um momento de reintegração: como contra-
o de garantir a unidade do mesmo e, simultaneamente, ponto a Webern, temos Alban Berg; ao Stravinsky da
não desvirtuar cada um dos seus elementos. Esta missa é, Sagração da Primavera, o próprio Stravinsky neoclássico;
portanto, um repositório de diferentes expressões e cita- em relação a Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen o
ções musicais e, mais do que isso, o fruto de cruzamentos contraponto seria Luciano Berio e György Ligeti; e em
relação a Gérard Grisey e Tristan Murail, podemos apon-
1) In vento.corpo.ressonâncias, a propósito do CD Vento, com a gravação
da Missa de Pentecostes pelos Sete Lágrimas (MU0108, MU Records 2) in Neoclassic and Anachronistic Impulses in Twentieth-Century Mu-
/ Arte das Musas). sic, Music Theory Spectrum, Vol. 18, No. 2 (Autumn, 1996), p.200.

96 | glosas, #3
cantos da voz: sobre a minha missa de pentecostes | joão madureira

tar Kaija Saariaho, Magnus Lindberg e Ivan Fedele. Dois que este gesto constitui. Um gesto que ousa juntar práti-
movimentos complementares, que não poderiam existir cas distintas que ganham na vivência da heterogeneidade
isoladamente. em que se inserem a força da revelação da sua identidade
mais íntima.
Acontece que, academicamente, os momentos de
ruptura são habitualmente valorizados, como se fossem Esta Missa de Pentecostes é feita de números fran-
os únicos responsáveis pela construção do devir musical. camente diversos entre si, mas é também feita da sobre-
Esta valorização é, por outro lado, fruto de uma visão ten- posição de linguagens que se ousam comentar. É uma
dencialmente algébrica da produção musical, que, numa Missa de contemporaneidade medieval e de tonalismo
espécie de fascínio por uma narrativa que se quer una atonal. É um lugar de encontro. E é uma obra que se as-
por vício académico, não pode compreender qualquer sume simultaneamente enquanto fragmento e todo uno.
obra onde duas ou mais lógicas distintas se confrontem Uma obra que assume a sua heterogeneidade "linguística"
ou complementem. E é esta visão puramente algébrica da ao mesmo tempo que reflecte um impulso criativo unifi-
produção musical que tende a encarar as novas técnicas cador. Uma missa em que a presença da citação permitiu
ignorando o que se poderia designar como elementos a constituição de uma obra aberta, não hierarquizável e
a priori do discurso musical, ou, mais grave ainda, es- de características multilineares, permitindo, desde logo,
quecendo a sua pertença ao devir histórico das artes e das a subversão de qualquer sequência cronológica. E assu-
mentalidades — e, portanto, idolatrando o compositor mindo a pluralidade do nosso presente estético.
cientista em detrimento do compositor artista, por mo-
tivos puramente académicos. Porque é também o com- Não poderia terminar sem realçar a enorme im-
positor cientista que é capaz de dar a resposta "certa" e portância que o Consort de Música Antiga e Contem-
única a qualquer dúvida que possa surgir na sua praxis porânea Sete Lágrimas teve na execução deste projecto,
musical. Como se a arte (e a sua história) não fosse um la- pela enorme qualidade dos seus intérpretes e pela atitude
birinto múltiplo de caminhos que se bifurcam! Um com- de grande colaboração desde o início do projecto. Final-
positor cientista que tantas vezes privilegia como superior mente, a propósito da edição da Missa em CD, o trabalho
a composição de obras unas, internamente coerentes, sem excepcional da produtora Arte das Musas é algo que não
momentos claramente distintos entre si. Como se não quero deixar de elogiar. •
fosse o princípio do contraste e da diferença interna o
grande catalizador de grandes obras da música ocidental.
Penso na enorme dualidade — feita por um lado de princí-
pios harmónicos e por outro de práticas contrapontísticas
— comum a Mozart, Monteverdi, Bach ou Beethoven e a
tantos outros nomes maiores da nossa História musical.
Como se essa uniformidade, tão ardentemente desejada,
fosse a única hipótese de garantir a coerência do todo.
E como se essa coerência tão duramente almejada fosse o
garante de qualidade e de pertinência culturais.

Neste contexto de hipervalorização dos mo-


mentos de ruptura que descrevi acima, todo e qualquer
procedimento intertextual é, naturalmente, olhado com
desconfiança. E, por mais que a presença da citação seja
abundante em obras tão frequentemente citadas pelo seu
carácter inovador, esta relação intertextual com a tradição
é sempre encarada como a outra face da moeda, cuida-
dosamente escondida por aqueles que duvidam que um
todo possa resultar da reunião do diverso. É assim que em
compositores como Alban Berg, Luciano Berio, György
Ligeti, Magnus Lindberg, realçamos sempre a inovação
de algumas técnicas e nunca "o encontro inesperado do
diverso"3 e o momento profundamente revolucionário
3) Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig. +info em www.setelagrimas.com

glosas, #3 | 97
apoios
espaço dedicado às entidades
colaboradoras do mpmp

Edições Numérica | novidades


www.numerica-multimedia.pt
NUM 1204 – Fernando Lopes-Graça - Música Coral a Cappella – Volume I / Coros Lisboa Cantat
Dando início à colecção que disponibilizará a obra integral para coro a cappella de Fernando Lopes-
-Graça, a Associação Musical Lisboa Cantat e os seus coros lançam este ano em parceria com a editora Numé-
rica o 1º Volume deste ambicioso projecto. A colecção será composta por 7 volumes duplos e contará no fu-
turo com colaborações de agrupamentos convidados para além dos coros da AMLC. Na vasta obra coral de
Fernando Lopes-Graça, destacam-se as mais de 230 Canções Regionais Portuguesas recolhidas por todo o ter-
ritório nacional e que o compositor harmonizou ao longo da sua vida. Este património importantíssimo e a
sua divulgação que agora se inicia, revelará ao grande público não só a mestria do maior vulto da composição
coral  nacional do séc. XX,  mas também a  diversidade e riqueza da  criação musical popular  portuguesa.

NUM 1208 – Geografia da Música IV – Maestro José Atalaya


Este é o quarto disco da série “Geografia da Música”, CDs comentados pelo Maestro José Ata-
laya. Acompanha o CD um livreto com os comentários do Maestro, andamento a andamento, sobre as
71 indexações incluídas, permitindo ao ouvinte ler os comentários ao mesmo tempo que segue a minuta-
gem. Interpretado pela Orquestra Raízes Ibéricas e com a participação dos solistas Bruno Belthoise (piano),
Christina Margotto (piano), Jed Barahal (violoncelo) e Marta Eufrázio (violino). A direção da Orquestra
está cargo do Maestro Piero Bellugi (na peça de Luigi Boccherini) e Paulo Martins (nas peças de Carlos
Seixas; Béla Bartók; W. A. Mozart). Um CD com caraterísticas únicas que permite ao ouvintes uma relação
mais próxima com a música.

NUM 1211 – DESNUDO - Amílcar Vasques-Dias – Joana Machado


Desnudo é a mais recente CD do compositor Amílcar Vasques-Dias, em que o compositor é tam-
bém intérprete, acompanhando ao piano a cantora Joana Machado. Amílcar Vasques Dias e Joana Machado
conseguem transcender barreiras com a música que apresentam neste CD. Há sonoridades profundamente
jazzísticas que se fundem com texturas contemporâneas e com improvisações de uma fascinante imprevisi-
bilidade harmónica, rítmica e melódica. É um disco de uma generosidade incrível - completamente despido
de artificialismos - é uma obra notável e inovadora que revela apenas um objectivo: a música na sua forma
mais pura. E esse objectivo é completamente cumprido.

NUM 1214 – Violino em Portugal - Luís Pacheco Cunha – Eurico Rosado – Pedro Wallenstein
A produção de música para violino é, em Portugal, esparsa e irregular, revelando da parte dos
criadores (e do público) uma relação difícil com um instrumento quase que “estrangeirado” (é revelador
o facto de, na nomenclatura oficial, ter permanecido, até meados do século XX, a “rabeca”). Ainda hoje
são o piano e a voz quem enchem as salas de concerto. Se já anteriormente encontramos algumas obras
interessantes, é, sem dúvida, no séc. XX, que se revela a grande viragem no terreno da criação musical.
As obras que preenchem este CD são exemplos de boa escrita para o instrumento ao nível das melhores
produções europeias. Um idiomatismo fluído que acompanha as tendências do seu tempo, no barroco,
romantismo, impressionismo, neo-classicismo ou na expressão da mais recente contemporaneidade.

AV. ALMIRANTE GAGO COUTINHO N.º28 B, 1000-017 LISBOA | TEL.: +351 217 277 214 | FAX: +351 217 277 213 | intermusica@intermusica.pt | www.intermusica.pt

98 | glosas, #3
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