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ATLÂNTICO DE DOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

REITOR
Paulo Gabriel Soledade Nacif
VICE-REITOR
Sílvio Luiz de Oliveira Soglia
PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO
Rosilda Santana dos Santos
PRÓ-REITORIA DE GESTÃO DE PESSOAL
Neilton Paixão de Jesus
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
Luciana Alaíde Alves Santana
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, CRIAÇÃO E INOVAÇÕES
Ana Cristina Firmino Soares
PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO
Juvenal de Carvalho Conceição
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
Ana Rita Santiago da Silva
PRÓ-REITORIA DE POLÍTICAS AFIRMATIVAS E AÇÕES ESTUDANTIS
Ronaldo Crispin Serra Barros

NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS DO


RECÔNCAVO DA BAHIA (NEAB-RECÔNCAVO)
Coordenador
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires
Vice-Coordenadora
Rosy de Oliveira
CONSELHO CONSULTIVO
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB-Presidente)
Carlos Eugênio Libano Soares (UFBA)
Carmen Alveal (UFRN)
Eduardo de Oliveira (UFBA)
Eurípides Funes (UFC)
Flavio dos Santos Gomes (UFRJ)
Geraldo da Silva (UFT)
Lívio Sansone (UFBA)
Luiz Felipe de Alencastro (SORBONNE IV – França)
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (UFPE)
Mary Del Priore (IHGB-RJ)
Nicolau Pares (UFBA)
Rafael de Bivar Marquese (USP)
Solange Pereira da Rocha (UFPB)
Suzana Matos Viegas (UNIVERSIDADE DE COIMBRA – PORTUGAL)
ATLÂNTICO DE DOR
FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS

Organizadores
João José Reis • Carlos Francisco da Silva Júnior
Volume 12

Organizador Coleção UNIAFRO • Antonio Liberac Cardoso Simões Pires

50 ANOS

Cruz das Almas, Belo Horizonte


2016
© 2015 João José Reis e Carlos da Silva Júnior.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, de qualquer forma ou por qualquer meio,
sem autorização do autor.

CONSELHO EDITORIAL Fino Traço Editora Ltda.


Av. do Contorno, 9317 A — 2.º andar
Titulares Prado. Belo Horizonte. MG. Brasil
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Alessandra Cristina Silva Valentim www.finotracoeditora.com.br
Ana Cristina Fermino Soares
Fábio Santos de Oliveira
Ana Georgina Peixoto Rocha
Robério Marcelo Ribeiro
Rosineide Pereira Mubarack Garcia

Suplentes
Ana Cristina Vello Loyola Dantas
Geovana da Paz Monteiro
Jeane Saskya Campos Tavares

Editora da UFRB.
Rua Rui Barbosa, 710, Centro
Cruz das Almas. Bahia. Brasil. CEP 44.380-000
Fone: +55 75 3621 2350
www.ufrb org.br/editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Nacional

A881
Atlântico de dor : faces do tráfico de escravos / Organizado por João
José Reis, Carlos da Silva Júnior. - Cruz das Almas : EDUFRB; Belo
Horizonte : Fino Traço, 2016.
509p. : il. (Coleção UNIAFRO; 12)

ISBN 978-85-67589-12-1(Coleção)
ISBN 978-85-67589-23-7(vol. 12)

1. Escravatura – Tráfico. 2. Tráfico de pessoas. I. Série. II. Reis, João


José. III. Silva Júnior, Carlos da.
CDU: 326”2”
SUMÁRIO

A p r es en tação da C ol eção Uni a f r o 2016........................................................................9

PREFÁC IO..............................................................................................................11
João José Reis • Carlos Silva Jr.

INTROD UÇÃO. DECOMPONDO O TRÁFICO............................................................13


João José Reis • Carlos Silva Jr.

PA RTE I
Através do Atlântico

Ca pít u lo 1. O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS.......39


Joseph C. Miller

Ca pít u lo 2. RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE


COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE ESCRAVOS
EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII).......................................69
Gustavo Acioli Lopes • Maximiliano M. Menz

Ca pít u lo 3. A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E


O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM ANGOLA
(1759-1775/80)................................................................................................. 95
Maximiliano M. Menz

PA RTE I I
O Tráfico Proibido

Ca pít u lo 4. 1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS,


NEGOCIANTES E OUTROS PARCEIROS.......................................................125
Ubiratan Castro de Araújo

Ca pít u lo 5. O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO


COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL,
1840-1858.....................................................................................................149
Dale T. Graden
Ca pít u lo 6. COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS
FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS DA FAMÍLIA SOUZA
BREVES E SEUS CATIVOS............................................................................173
Thiago Campos Pessoa

Ca pít u lo 7. O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO,


SEGURANÇA PÚBLICA E REFORMA CIVILIZADORA:
GRÃO-PARÁ, 1850-1860...............................................................................207
José Maia Bezerra Neto

P A RT E I II
Dilemas do Africano Livr e

Ca pít u lo 8. DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E


RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES...................................................249
Beatriz Gallotti Mamigonian

Ca pít u lo 9. REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS


AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX)..........................................273
Enidelce Bertin

Ca pít u lo 10. MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS


AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888.................................................305
Ricardo Tadeu Caires Silva

PA RTE IV
Tráfico Interno

Ca pít u lo 11. REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS


AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX)..........................................343
Enidelce Bertin

Ca pít u lo 12. SAMPAULEIROS TRAFICANTES: COMÉRCIO


DEESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE
CAFEEIRO PAULISTA.....................................................................................375
Erivaldo Fagundes Neves

PA RTE V
África do Tráfico

Ca pít u lo 13. A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E


PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: parcerias afro-
atlânticas na zona da Guiné Bissau (séculos XVII-XIX)...................403
Philip J. Havik
Ca pít u lo 14. O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO
EM BENGUELA DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO........445
Mariana P. Candido

Ca pít u lo 15. AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE


ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840..........471
Maria Cristina Cortez Wissenbach

Ca pít u lo 16. RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA:


O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS RECAPTURADOS EM
ANGOLA, 1846-1876.....................................................................................511
José C. Curto

Ca pít u lo 17. ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA


(1830 - 1860).................................................................................................533
Roquinaldo Ferreira

P A RT E V I
Diásporas daqui e de lá

ca pít u lo 18. QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”?


A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA.......................................................565
Maria Inês Côrtes de Oliveira

CA PIT U LO 19. NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA:


PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS............................................605
Renato da Silveira

Ca pít u lo 20. ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ........................................651


J. Michael Turner

Ca pít u lo 21. A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OS


ÚLTIMOS ANOS DO TRÁFICO TRANSATLÂNTICO
DE ESCRAVOS, 1850-1866...........................................................................673
Robin Law

Ca pít u lo 22. A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE)


INVENTADA: HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA
MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ...........................................................................705
Mario Rufer
COLEÇÃO UNIAFRO 2016
O Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia (NEAB – UFRB) surgiu a partir das ações do Grupo de Pesquisa
NEAB – UFRB/CNPq e do Núcleo de Diversidade, Educação e Cultura (NUDEC),
da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis, no ano de 2006.
A partir daí foram incrementadas as ações relativas à consolidação da infraes-
trutura, da adesão de novos pesquisadores e da elaboração de diversos projetos
voltados para o fortalecimento das linhas de pesquisa do Grupo-NEAB/UFRB.
Nessa perspectiva foram desenvolvidas pesquisas de campo vinculadas às linhas
de pesquisa: “Comunidades Negras Rurais”, “Educação e Relações Interétnicas”;
“Escravidão e Pós-Abolição”, “Saúde das Populações Negras”, “Gênero e Raça” e
“Cultura Negra”. Nessas linhas foram realizadas diversas atividades: de iniciação
científica, de trabalhos de conclusão de curso, eventos de ensino, pesquisa e de
extensão, voltados para o curso de Pós-Graduação Latu Sensu em História da
África, da Cultura Negra e do Negro no Brasil. O referido curso destina-se à for-
mação dos profissionais das instituições de ensino público, estadual e municipal
da Bahia (SECADI/MEC/FNDE), incluindo também o Programa de Pós-Graduação:
Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas
(UFRB/CAPES).
Esse processo de institucionalização e de produção acadêmica possibilitou
a participação do NEAB-UFRB no edital do Programa UNIAFRO da Secretaria
de Ensino Continuado, Alfabetização e Inclusão do Ministério da Educação
(MEC). O principal objetivo do Programa UNIAFRO é a implementação da Lei n.º
11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História da África, da
Cultura Afro-Brasileira e dos Povos Indígenas nos currículos da Educação Básica.
Esta Coleção UNIAFRO prioriza a publicação de Coletâneas envolvendo uma
significativa rede de pesquisadores brasileiros e estrangeiros filiados às várias
instituições de ensino superior e de fundações culturais, oferecendo vasto ma-
terial para professores e pesquisadores, em variadas abordagens disciplinares e
interdisciplinares, objetivando a implantação e difusão de produtos vinculados
à Lei n.º 11.645 de 2008.
Ressaltamos, também, a importância da coedição da Editora da UFRB com
a Fino Traço Editora, o que garante a posterior publicação comercial das obras.
Entretanto, a escolha dos caminhos para a editoração e revisão é nossa, isentan-
do a instituição parceira de qualquer responsabilidade nesta primeira tiragem
da Coleção. Com a aprovação do referido projeto pela Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação
para trazer a lume esta COLEÇÃO UNIAFRO 2016, do Núcleo de Estudos Afro
-Brasileiros do Recôncavo da Bahia, a publicação destas obras se tornou possível.
Esta Coleção é uma conquista dos movimentos negros e indígenas brasileiros
em suas lutas seculares.

9
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Abaixo o rol dos volumes que compõem a Coleção:


Volume 1: Entre Veredas e Arrabaldes: escravos e libertos na comarca de Nazaré das
Farinhas durante o oitocentos e no pós-abolição, por Edinelia Maria Oliveira Souza
(UNEB), Virginia Queiroz Barreto (UNEB) e Wellington Castellucci (UFRB); volume
2: Cenários da Saúde da População Negra no Brasil: diálogos e pesquisas, por Regina
Marques de Souza Oliveira (UFRB); volumes 3 e 4: Formação Cultural: sentidos
epistemológicos e políticos/Cultura e Negritude: linguagens do contemporâneo,
organizados por Rita de Cássia Dias Pereira Alves (UFRB) e Cláudio Orlando Costa
do Nascimento (UFRB); volume 5: Diáspora Africana nas Américas, organizado por
Isabel Cristina F. dos Reis (UFRB) e Solange P. Rocha (UFPB); volume 6: Reflexões
Sobre a África Contemporânea, organizado por Juvenal de Carvalho (UFRB); volume
7: Histórias da Escravidão e do Pós-Abolição nas Escolas, organizado por Giovana
Xavier (UFRJ); volume 8: Da Escravidão e da Liberdade: processos, biografias e
experiências da abolição em perspectiva transnacional, organizado por Antonio
Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB); Flávio dos Santos Gomes (UFRJ), Maria
Helena P. T. Machado (USP), Paulo Roberto Staudt Moreira (Unisinos), Petrônio
Domingues (UFS), Walter Fraga (UFRB) e Wlamyra Albuquerque (UFBA); volume 9:
Territorialidades Negras em Questão: conflitos, lutas por direito e reconhecimento,
organizado por Ana Paula Comin de Carvalho (UFRB), Cíntia Beatriz Müller (UFBA
e Rosy de Oliveira (UFRB); volume 10: Os Índios na História da Bahia, organizado
por Fabrício Lyrio (UFRB); volume 11: Pensadores Negros -Pensadoras Negras –
Brasil, Séculos XIX e XX, organizado por Ana Flávia Magalhães Pinto (Unicamp)
e Sidney Chalhoub ( Harvard University); volume 12: Atlântico de Dor: faces do
tráfico de escravos, organizado por João José Reis (UFBA) e Carlos da Silva Jr.
(University of Hull/Inglaterra); volume 13: Capoeira em Múltiplos Olhares: estudos
e pesquisas em jogo; organizado por Antonio Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB),
Franciane Simplício (Fundação Gregório de Mattos - BA), Paulo Magalhães (UFBA) e
Sara Abreu (UFBA); volume 14: Das Formações Negras Camponesas: estudos sobre
remanescentes de quilombos no Brasil, organizado por Rosy de Oliveira (UFRB) e
Flávio dos Santos Gomes (UFRJ); volume 15: Antinegritude: o impossível sujeito
negro, organizado por João H. Costa Vargas (University of Texas/Austin) e Osmundo
Pinho (UFRB); volume 16: Beleza Negra: representações sobre o cabelo, corpo e
identidade das mulheres negras, organizado por Ângela Figueiredo (UFRB) e Cíntia
Cruz (UFRB); volume 17: Territórios de Gente Negra: processos, transformações
e adaptações: ensaios sobre Colômbia e Brasil organizado por Antonio Liberac
Cardoso Simões Pires (UFRB), Axel Rojas (Universidad Del Cauca/Colômbia) e
Flávio dos Santos Gomes (UFRJ); volume 18: Tramas Negras, organizado por Ana
Paula Cruz (UEFS), Clíssio Santos Santana (UFBA), Fred Aganju Santiago Ferreira
(UFRB), Jôsy Barcelos Miranda (UFRB) e Lumara Cristina Martins Santos (UFRB);
volume 19: As Vinte e Uma Faces de Exu, por Emanoel Soares (UFRB); volume 20:
Africanos na Cidade da Bahia: escravidão e identidade Africana–século XVIII, por
Cândido Domingues (UNEB), Carlos da Silva Jr. (University of Hull/Inglaterra) e
Carlos Eugênio Líbano Soares (UFBA); volume 21: Caminhos para a Efetivação da Lei
n.º 11.645.2008, organizado por Leandro Antonio de Almeida (UFRB); volume 22:
O Recôncavo no Olhar de Jomar Lima: patrimônio, festas populares e religiosidade,
organizado por Antonio Liberac Cardoso Simões Pires e Rosy de Oliveira.
Aqui expressamos nossos agradecimentos!
COMISSÃO ORGANIZADORA DA COLEÇÃO
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires, Cláudio Orlando Costa do Nascimento,
Emanoel Luis Roque Soares, Rita de Cássia Dias Pereira Alves e Rosy de Oliveira.

10 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


PREFÁCIO

Os artigos reunidos nesta coletânea foram publicados na Afro-Ásia,


revista do Centro de Estudos Afro-Orientais – CEAO, da Universidade Fe-
deral da Bahia. A revista é a mais antiga na América Latina a se dedicar a
assuntos africanos e afro-brasileiros, e em menor escala a temas asiáticos.
Em 2015 ela alcançou o número 50 ao mesmo tempo em que completava
50 anos de vida, tendo sido fundada em 1965, quando era diretor do CEAO
o professor Waldir Freitas Oliveira, que foi também o primeiro editor da
revista. Este livro é uma peça de celebração dessa efeméride.
Poderíamos, no entanto, ter escolhido outros temas, que não o tráfico,
ou uma seleção de assuntos diferentes, para esta publicação. Quanto a
esta última alternativa, temíamos o excesso de dispersão temática. Há
uma explicação para a escolha do tema, o qual, conforme se verá, tem
diversas variantes. Um dos mais brutais atos de violência em massa na
história moderna, o tráfico representa bem um dos principais objetivos da
revista, desde que foi fundada, qual seja o de aproximar, sem romancear,
o Brasil da África. Tendo contribuído para tornar o país tão rico material e
culturalmente, os africanos aqui desembarcaram em decorrência da força
bruta, acorrentados e desesperançados, o que nunca deve ser esquecido. O
tráfico figura como um dos primeiros elos da cadeia cuja ponta, no outro
extremo, seria a desigualdade racial e o racismo nos tempos presentes.
Toda a coleção da Afro-Ásia está disponível online e, até a publicação
deste livro, ela continua editada também em versão impressa. Qualquer
pessoa ligada com a internet pode acessar a revista – então por que pu-
blicar esta coletânea? Para começar, somos adeptos do “amor táctil” na
relação com o livro, celebrado por Caetano Veloso.1 Considerem também
que sítios de internet podem sair do ar temporária ou permanentemente,
livros impressos são perenes, apesar de terem circulação tão mais limi-
tada. Além disso, reunimos num só volume textos que, embora oriundos
de uma só revista, se encontram dispersos em vários números. A revista
tem sido um fórum de debates para importantes temas da historiografia
da escravidão brasileira e esta coletânea é apenas um exemplo disso.
Uma visita cuidadosa aos números da Afro-Ásia constatará que
nem todos os textos referentes aos assuntos aqui tratados se encontram
adiante reproduzidos. Houve autores que preferiram não participar,
também não incluímos documentos publicados e comentados em suas
páginas, e também dispensamos um ou outro artigo muito antigo ou de

1 Ver a canção “Livros” de seu álbum Livro, de 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

natureza quantitativa cujos dados já estariam defasados. Neste último


caso se encaixa, por exemplo, o artigo de David Eltis, Stephen Behrendt
e David Richardson, “A participação dos países da Europa e das Améri-
cas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”, publicado
quinze anos atrás no número 24, e que não foi aqui reproduzido devido
à avalanche de ainda mais “novas evidências” descobertas desde então
quanto ao volume, a origem, o destino dos africanos vítimas do comércio
transatlântico de escravos, e a contribuição dos países envolvidos na
organização daquele lucrativo negócio.
Independentemente de novas evidências, há a questão de novas
interpretações e atualização bibliográfica nos capítulos aqui publicados.
Quanto mais recuado no tempo o artigo, menor a possibilidade de esta-
rem atualizados, o que não significa que interpretações, hipóteses de
trabalho e o impacto no campo de estudos tivessem desaparecido. Nossa
impressão é que, passados muitos anos em alguns casos, além de muitas
vezes pioneiros, as conclusões a que chegaram seus autores permanecem
em geral válidas. Além disso, a maioria dos autores se deu ao trabalho de
revisar, corrigir, atualizar e, em alguns casos, expandir moderadamente
seus textos, de maneira que estes saem mais aprimorados na versão aqui
publicada. Acrescente-se que na “Introdução” a seguir também buscamos
atualizar a literatura sobre os temas tratados, mas sem pretender nem
de longe esgotá-la.

***

Finalmente, gostaríamos de agradecer a Antonio Liberac Pires, que


nos convidou para organizar este livro como parte da coleção que dirige;
e aos atuais editores da Afro-Ásia, Jocélio Telles dos Santos, Florentina
Souza e Wlamyra Albuquerque, por abonar a reprodução dos artigos
originalmente publicados na revista. João Reis é pesquisador do CNPq,
ao qual agradece pelo decisivo apoio, e ao IGK International Research
Center, vinculado à Universidade Humboldt, em Berlim, do qual foi bolsista
durante a finalização deste livro. Carlos Silva Jr agradece ao EUROTAST
(Marie Curie Actions) pela bolsa de doutorado ao longo dos três últimos
anos e ao Wilberforce Institute for the Study of Slavery and Emancipation
(WISE), da Universidade de Hull, do qual é research fellow.

João José Reis


Carlos Silva Jr.

12 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


INTRODUÇÃO

deCoMpondo o trÁfiCo
João José Reis
Carlos Silva Jr.

A América portuguesa e na sequência o Brasil independente foram


o principal destino dos africanos na era do comércio transatlântico de
escravos. Sua participação nesse negócio representou papel fundamental
no sistema econômico que se formou em ambos os lados do Atlântico, e na
sua travessia, a partir do século XVI. Este é, portanto, um tema canônico
na perspectiva da denominada “história atlântica”, e mais ainda se esta
for pensada na chave de um “Atlântico negro”, que naturalmente não foi
só “negro” ou “branco”.1 Foi ambas as coisas e muito mais: foi “indígena”,
por exemplo, pensando nos povos americanos que viviam no litoral e nas
ilhas, e nos indivíduos dessas sociedades que atravessaram o oceano em
sentido contrário aos europeus e africanos, sem falar no amplo processo de
miscigenação que resultou no “mestiço atlântico” e em culturas mestiças
atlânticas.2 Para que todos esses fenômenos combinados emergissem foi
preciso a montagem de um sistema, de uma estrutura de dimensão, mais
que atlântica, global.
Num dos primeiros textos de síntese publicado no Brasil sobre a
formação da desse sistema (ou da história atlântica ao sul do Equador)
nos primórdios da idade moderna, Joseph Miller, cujo capítulo abre esta
coletânea, discute a montagem do complexo da plantation açucareira,
quando ainda não se tinha alcançado o apogeu do tráfico negreiro e da
escravidão africana nas Américas. O engenho de açúcar, segundo o autor,
só alcançaria todas as condições para seu pleno desenvolvimento (oferta
abundante de cativos, financiamento para a produção, incorporação de
grandes extensões de terra cultivável etc.) entre o final do século XVII e o
início do XVIII, e isso aconteceria primeiramente no Caribe, não no Brasil.

1 Paul Gilroy, O Atlântico negro, São Paulo: Editora 34, 2001.


2 Sobre esse assunto, vale consultar o livro recente de John K. Thornton, A Cultural History
of the Atlantic World, 1250-1820, Nova York: Cambridge University Press, 2012.

13
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A apresentação ampla de Miller sobre a formação desse novo mundo abre


caminho para os textos que, na sequência, e em geral, trazem enfoques
mais recortados em torno do tema central deste livro: o comércio tran-
satlântico escravos, suas diversas dimensões e seus desdobramentos nas
duas margens do oceano, bem como o tráfico interno feito, principalmente,
após a abolição do transatlântico.3
Perto de 50% dos cerca de 11 milhões de escravos desembarcados
na costa ocidental do Atlântico foram carregados a bordo de navios luso
-brasileiros, seguidos pelos britânicos, com 26%, num distante segundo
lugar. Além disso, os dois principais portos onde se organizaram as viagens
negreiras, Rio de Janeiro (18%) e Salvador (16,3%), localizavam-se no
Brasil, com o porto inglês de Liverpool (16%) posicionado em terceiro
lugar no ranking geral, quase na mesma dimensão de Salvador. Rio e
Bahia foram também os principais pontos de desembarque de africanos
nas Américas. O Sudeste (leia-se sobretudo o Rio) recebeu perto de dois
milhões e quinhentos mil (equivalente a 21,2% dos desembarcados
nas Américas e 48,2% dos desembarcados no Brasil) e a Bahia recebeu
cerca de um milhão e meio (equivalente a 14,5% dos desembarcados nas
Américas e 33,2% dos desembarcados no Brasil). Todos esses números, e
os que ainda virão, fazem parte das estimativas disponíveis no Voyages:
The Transatlantic Slave Trade Database - TSDT, um banco de dados on-
line que já contabilizou quase trinta e cinco mil viagens negreiras, mas
construído a partir de informações periodicamente revisadas, além de
incorporar estimativas feitas a partir de projeções numéricas, ou seja,
de manipulação (no bom sentido) estatística. Neste banco de dados, por
exemplo, Brasil e Caribe inglês constam como os maiores importadores de
africanos escravizados, mas este segundo lugar será brevemente ocupado
pela América espanhola, de acordo com uma estimativa recente.4
Sejam quais forem os resultados, os números, por si só, além de contar
uma imensa tragédia humana na origem do mundo moderno, dão uma
ideia da importância da escravidão africana para o desenvolvimento da

3 Sobre a formação anterior do Atlântico do açúcar, ver a coletânea de sugestivo título or-
ganizada por Stuart B. Schwartz (org.), Tropical Babylons: Sugar and the Making of the
Atlantic World, 1450-1680 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004).
4 Todos os números do tráfico transatlântico de escravos aqui apresentados foram obtidos
do website slavevoyages.org, já traduzido para o português. Ver David Eltis, Stephen Beh-
rendt, David Richardson e Manolo Florentino, Voyages: The Transatlantic Slave Trade Da-
tabase (doravante TSTD), www.slavevoyages.org; David Eltis e David Richardson (orgs.), Ex-
tending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database (New Haven:
Yale University Press, 2008); e David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic
Slave Trade, New Haven: Yale University Press, 2010. Para uma reavaliação do tráfico com
a América hispânica, ver Alex Borucki, David Eltis e David Wheat, “Atlantic History and the
Slave Trade to Spanish America”, American Historical Review, vol. 120, no. 2 (2015), pp. 433-
461. Esses novos dados serão incorporados na próxima atualização do TSTD.

14 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

América portuguesa e para o Brasil como nação independente, após 1822.


A região é o local mais próximo entre as Américas e a África, bem situada
em relação a corredores de ventos e correntes marítimas, e Portugal foi
pioneiro no tráfico transatlântico de escravos, tendo estabelecido vários
entrepostos comerciais, fortalezas e feitorias ao longo do litoral africano
desde meados do século XV. Até a proibição definitiva do comércio de
gente para o Brasil, em 1850, a força de trabalho cativo foi reproduzida
e ampliada, principalmente, embora não apenas, por meio da importação
de braços africanos.
Para a Bahia, por exemplo, o trabalho africano foi importante desde
os primeiros tempos da colonização. Inicialmente foram trazidos africanos
ladinos ou crioulos das ilhas atlânticas portuguesas, onde a produção
açucareira vigorava havia várias décadas, para trabalhar em ocupações
mais especializadas nos engenhos, enquanto os índios formavam a mão
de obra nos canaviais. Em outras palavras, enquanto estes limpavam
os campos, semeavam e colhiam a cana, aqueles fabricavam o açúcar
e faziam a manutenção do equipamento do engenho. Entre meados do
século XVI e meados do século XVII, os africanos gradualmente substi-
tuíram os escravos indígenas também nos canaviais. Esta transição tem
sido atribuída a diversos fatores: o declínio da população nativa devido
a doenças europeias (um fator epidemiológico), a inexperiência e resis-
tência dos índios ao sistema de trabalho metódico e coletivo exigido pela
agricultura de exportação (um fator cultural) e o interesse de Portugal
na promoção do comércio transatlântico de escravos, uma das atividades
mais lucrativas do sistema colonial (um fator econômico). Embora os
grupos indígenas ainda estivessem a ser escravizados em meados do sé-
culo XVIII na periferia da colônia portuguesa, como São Paulo e a região
amazônica, e até meados do século XIX em outras periferias do Império
do Brasil, os africanos se tornariam a força de trabalho hegemônica no
conjunto daquela vastíssima região das Américas. Ao mesmo tempo, uma
nova classe de negros e mestiços livres e libertos substituiríam gradual,
embora não completamente, os escravos nas posições mais especializadas
e na administração dos engenhos de açúcar.5
Entre o século XVI e o século XIX, estimados 5.848.265 africanos
foram embarcados para o Brasil, dos quais aqui desembarcaram 5.099.816.

5 Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-
1835, Cambridge: Cambridge University Press, 1985 (publicado em português como Se-
gredos internos pela Companhia das Letras, 1988). Ver ainda Luiz Felipe de Alencastro,
O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo:
Companhia das Letras, 2000; e John M. Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes
nas origens de São Paulo, São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Sobre o papel central do
tráfico na empresa colonial portuguesa, além do livro de Alencastro, confira Fernando A.
Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, São Paulo: Hucitec, 1979.

INTRODUÇÃO 15
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Ou seja, cerca de 750 mil morreram durante a travessia, sobretudo de


fome, sede e doenças geralmente contraídas a bordo, não poucos também
executados por rebeldia ou simplesmente assassinados quando, enfermos,
eram sacrificados para poupar comida e água para os sadios. Trocando em
miúdos, durante a montagem da indústria açucareira, no século XVI, foram
descarregados no Brasil 112.738 escravos africanos; no século seguinte,
quando o açúcar já reinava absoluto como o principal item produzido
por mão de obra africana, vieram 852.038 cativos; no século XVIII, época
em que o Brasil conheceu o auge da economia aurífera e a escravidão se
espalhava por toda a colônia, no campo e na cidade, desembarcaram quase
dois milhões de escravos; finalmente, foram importados 2.143.378 ao
longo da primeira metade do século XIX, o período de maior intensidade
do tráfico brasileiro. Essa intensificação na sua fase final se explicaria
pelo que alguns estudiosos passaram recentemente a denominar “segunda
escravidão” (destacando Cuba e o sul dos EUA, além do Brasil), para ex-
plicar a posição de economias escravistas americanas no reordenamento
de estruturas internacionais dos mercados de commodities e de trabalho,
num momento de expansão do uso da mão de obra livre que acompanhou
a abolição do tráfico e, pouco depois, da escravatura em diversos pontos
das Américas. Tal configuração sinalizaria uma nova era para o capi-
talismo atlântico e por ventura global. Se precisamos chamar a isso de
“segunda escravidão” – do mesmo modo que teria havido uma “segunda
servidão” na Europa moderna –, não temos certeza, mas decerto o século
XIX testemunhou uma ampliação regional e sociológica da escravidão
luso-brasileira, e a intensificação do comércio transatlântico de cativos
fez parte dessa história. 6
Os números dispostos no parágrafo anterior, embora tão precisos,
não significam a existência de fontes igualmente precisas, pois as fontes
brasileiras são das mais lacunares no conjunto das nações traficantes. 7

6 Sobre o conceito de "segunda escravidão", ver o texto inaugural de Dale Tomich, Through
the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy, Laham: Rowman & Littlefield,
2004 (publicado em português como Pelo prisma da escravidão, EDUSP, 2011). Ver ain-
da a resenha deste livro por Ricardo Salles, “A segunda escravidão”, Tempo, vol. 19, no. 35
(2013), pp. 249-254; e Márcia Berbel, Rafael Marquese e Tâmis Parron, Escravidão e polí-
tica: Brasil e Cuba, 1790-1850, São Paulo: Hucitec/Edusp, 2010; Rafael de Bivar Marquese
e Tâmis Peixoto Parron, “Internacional escravista: a política da Segunda Escravidão”, To-
poi, vol. 12, no. 23 (2011), pp. 97-117; um dossiê sobre o tema na revista Almanack, no. 5
(2013), pp. 5-60; e Tâmis Peixoto Parron, “A política da escravidão na era da liberdade: Es-
tados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo,
2015). Fora do Brasil, confira Javier Laviña e Michael Zeuske (orgs.), The Second Slavery:
Mass Slaveries and Modernity in the Americas and the Atlantic Basin (Zurique e Berlim:
Lit Verlag, 2014).
7 David Eltis, Stephen D. Behrendt e David Richardson, “A participação dos países da Eu-
ropa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”, Afro-Á-
sia, no. 24 (2000), pp. 9-50. Para uma análise mais atual desses dados, consultar Eltis e

16 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Sem mencionar que muitos escravos aqui chegavam como contrabando – o


que vale também para outras regiões importadoras nas Américas, umas
mais do que outras. Para o século XVIII, por exemplo, o comércio ilegal
de ouro em pó brasileiro com holandeses, ingleses e dinamarqueses ao
longo da Costa do Ouro (no litoral da atual Gana) resultou na introdução
de muitos africanos dessa região na América portuguesa.8 Os números,
repetimos, se baseiam em uma combinação de fontes históricas específicas
com projeções derivadas a partir delas. Para o periodo do tráfico ilegal
(1831-1850) os cálculos resultam quase inteiramente de estimativas feitas
por representantes diplomáticos da Inglaterra no Brasil interessados em
coletar informações para subsidiar a política antitráfico de seu governo.
Vejamos de mais perto o que se passou na primeira metade do século
XIX, o período de maior intensidade do tráfico brasileiro. Entre 1790 e
1830, somente no Rio de Janeiro foram desembarcados cerca de 700 mil
escravos, em torno de 20% dos quais apenas nos últimos três anos de tráfico
legal (1828-1830). Assim, aquela província importou em quarenta anos o
equivalente a mais de um terço da população escrava do Brasil em 1818,
que contava 1.930.000 almas, e o equivalente a quase 17% dos escravos
importados para o Brasil durante todo o periodo do tráfico transatlântico.
Para o conjunto do Brasil, insistimos, os cerca de dois milhões de africanos
importados ao longo da primeira metade do século XIX representavam
42% daqueles aqui desembarcados no curso de mais de trezentos anos
do trato transatlântico de escravos, a contar do século XVI.
Grande parte desse comércio ocorreu, conforme sugerido, quando ele
já tinha sido proibido como resultado da pressão britânica, consignada
em tratados bilaterais, convenções internacionais e leis unilaterais.
A primeira proibição brasileira resultou de acordos celebrados entre
Portugal e Inglaterra entre 1810 e 1817, que levaram à suspensão do
tráfico acima da linha do Equador, inclusive os portos situados no lito-
ral do golfo do Benim, a chamada Costa da Mina. Essa proibição parcial
afetava, sobretudo, os tráfico baiano que, àquela altura, praticamente
monopolizava o comércio de gente embarcada nessa região africana,
sobretudo depois que ingleses e franceses dali levantaram âncoras no

continuação 7

Richardson (orgs.), Extending the Frontiers e, dos mesmos autores, Atlas of the Transa-
tlantic Slave Trade.
8 Ver Robin Law, “Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significa-
dos do termo ‘mina’”, Tempo, n° 20 (2005), pp. 109-131; Roquinaldo Amaral Ferreira, “A
arte de furtar: redes de comércio ilegal no Império Português (ca. 1680-1750)”, in João
Fragoso e Maria de Fátima Silva Gouvêa (orgs.), Na trama das redes: política e Negócios
no Império Português, séculos XVI-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010), pp.
203-243; idem, “From Brazil to West Africa: Dutch-Portuguese Rivalry, Gold-Smuggling,
and African Politics in the Bight of Benin (ca. 1700-1730)”, in Michiel van Groesen (org.),
The Legacy of Dutch Brazil (Nova York: Cambridge University Press, 2014), pp. 59-77.

INTRODUÇÃO 17
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

início do século XIX. 9 Ao fazer suas contas, a historiografia geralmente


esquece esse ramo do tráfico ilegal e se limita ao período pós-1831, ano
da primeira proibição total. Não contabiliza, portanto, os mais de 60 mil
africanos contrabandeados para o Brasil entre 1815 e 1831. O tratado
de 1815, assinado durante o Congresso de Viena, complementado pela
convenção de 1817-18, marcam um primeiro passo em direção à proibição
total do tráfico, ocorrida apenas dezesseis anos depois. É lamentável que
a data não merecesse a atenção devida no calendário das efemérides de
2015, quando cumpriu duzentos anos.
Colocadas sob foco mais nítido, essas informações embaralham o
numbers game do utilíssimo banco de dados TSTD. O tráfico para a Bahia
é afetado de maneira mais particular, principalmente no que tange às
regiões africanas de embarque. O site computou como embarcados em
portos de Angola africanos oriundos da Costa da Mina porque considerou
como válidos os registros alfandegários da Bahia, nos quais os negreiros
sistematicamente declaravam seguir para portos subequatoriais – onde o
tráfico permanecia legal –, sobretudo Molembo, quando se dirigiam para
a Costa da Mina.10 O TSTD, portanto, subestima o número de escravos tra-
zidos dos portos do golfo do Benim para a Bahia entre 1817 e 1831, levas
que incluíam os numerosos jejes e nagôs que marcariam profundamente a
sociedade e a cultura locais, além de haussás e outros oriundos do Sudão
Central, região no norte da atual Nigéria, responsáveis, como os nagôs,
pelo conhecido ciclo de revoltas escravas baianas.11
Com a lei de 28 de setembro de 1831, votada durante a regência
de Feijó pelo parlamento imperial no rastro de um tratado celebrado
entre o Brasil e a Inglaterra cinco anos antes, o tráfico transatlântico de
escravos foi proibido a partir de qualquer lugar na África. Apesar disso,
após alguns anos de hesitação, o comércio de escravos ressurgiria quase
inabalável, devido à tolerância sistemática em todos os escalões dos
poderes imperial, provincial e municipal – das mais baixas às mais altas
autoridades do país, do inspetor de quarteirão ao ministro de Estado –,
favorecendo uma ampla rede de corrupção que o governo geralmente

9 Sobre essa primeira proibição e suas repercussões na Bahia, ver Paulo César Oliveira de
Jesus, “O fim do tráfico de escravos na imprensa baiana, 1811-1850” (Dissertação de Mes-
trado, Universidade Federal da Bahia, 2004).
10 Ver Alexandre Vieira Ribeiro, “The Transatlantic Slave Trade to Bahia, 1582-1851”, in El-
tis e Richardson (orgs.), Extending the Frontiers, pp. 130-54; idem, “Eram de Cabinda e
de Molembo? Uma análise sobre as viagens negreiras do norte de Angola para a Bahia
nas primeiras décadas do século XIX presentes no banco de dados The Transatlantic Sla-
ve Trade”, in Alexandre Ribeiro, Alexsander Gebara e Marcelo Bittencourt (orgs.), África
passado e presente: II Encontro de estudos africanos da UFF [recurso eletrônico] (Niterói:
PPGHISTÓRIA-UFF, 2010), pp. 65-73.
11 Ver, entre outros, João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos ma-
lês em 1835, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

18 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

tolerava. Cerca de 750 mil escravos (35% do total importado no século


XIX) foram desembarcados entre 1831 e 1850, quando, neste último
ano, uma lei mais severa foi aprovada, a qual, agora sim, interromperia
de fato o contrabando de africanos para o Brasil, apesar de uns poucos
desembarques clandestinos. Atente-se que, se somarmos a essa cifra o
contrabando de escravos da Costa da Mina e de regiões mais ao norte da
África Ocidental, traficados após 1817, teríamos, não 750 mil, mas perto
de um milhão de africanos ilegalmente introduzidos no Brasil ao longo
da primeira metade do Oitocentos, quase metade dos desembarcados
neste período.
Um grande número dos escravos de contrabando tinha sido transpor-
tado nesse período em navios de pequeno calado, velozes, bons de vela.
Construídos nos Estados Unidos, essas embarcações eram talhadas para
escapar da perseguição da marinha inglesa, cujos pesados navios patru-
lhavam os dois lados do oceano. Este e outros aspectos do envolvimento
norteamericano no tráfico brasileiro, sobretudo seu lado clandestino, é
aqui discutido por Dale Graden, um tema que seria retomado e ampliado
pelo autor em futuros estudos.12
Depois da proibição, os africanos desembarcariam principalmente em
praias e portos clandestinos de todo o Brasil, a maioria localizada no Rio de
Janeiro. O capítulo escrito por Thiago Campos Pessoa é um estudo de caso,
ancorado no Rio imperial, sobre a atuação de um dos clãs mais poderosos
dedicados ao tráfico humano, atividade responsável pela acumulação de
imensa fortuna familiar. A família Souza Breves contribuiu com muito
afinco para os números estratosféricos do contrabando negreiro no Brasil.
O Rio de Janeiro recebeu 574.023 africanos de contrabando, equivalente
a 77,7 % daqueles ilicitamente introduzidos no país. Em segundo lugar
vinha a Bahia, com 99.155, ou 13,4 % do total contrabandeado.
O governo regencial, apesar de inicialmente buscar fazer efetiva
a proibição do tráfico, sobretudo sob a regência de Diogo Feijó (1835-
1837), logo desistiria de fazê-la cumprir, especialmente depois de os
conservadores chegarem ao poder em 1837. Pelo contrário, durante
seus governos, membros da cúpula imperial passariam a recomendar às

12 Ver também o recente livro do mesmo autor, Disease, Resistance, and Lies: The Demise of
the Transatlantic Slave Trade to Brazil and Cuba, Baton Rouge: Louisiana State Universi-
ty Press, 2014, cap. 1. Acrescente-se, sobre outros aspectos da participação norteamerica-
na no tráfico ilegal para o Brasil, Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escra-
vos, São Paulo: Ática; Brasília: CNPq, 1988, esp. cap. 3; e Gerald Horne, The Deepest South:
The United States, Brazil, and the African Slave Trade: Nova York: New York University
Press, 2007 (edição brasileira sob título O sul mais distante, São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2007); Leonardo Marques, “A participação norte-americana no tráfico transatlânti-
co de escravos para os Estados Unidos, Cuba e Brasil”, História: Questões & Debates, no.
52 (2010), pp. 87-113; e idem, “The United States and the Transatlantic Slave Trade to the
Americas, 1776-1867” (Tese de Doutorado, Emory University, 2013).

INTRODUÇÃO 19
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

autoridades locais que não investigassem a fundo denúncias de africanos


ilegalmente escravizados, e instruía magistrados a indeferir ações de
liberdade baseadas naquela lei. O argumento esgrimido pelos governantes,
decerto verdadeiro, era que a escravidão e a própria economia nacional
entrariam em colapso se a lei fosse praticada com zelo, pois a força de
trabalho do país era em grande parte, e crescentemente, formada por
cativos contrabandeados, enfim por vítimas de um crime previsto em lei.
Houve, inclusive, tentativa malsucedida dos conservadores de revogar
no parlamento a lei de 1831, bem como anular seus efeitos, para assim
tornar de direito uma situação que já era de fato. Com os conservadores
o contrabando de africanos se tornaria uma política de Estado que visa-
va, sobretudo, abastecer os barões do café do Sudeste com mão de obra
escrava, embora terminasse por também beneficiar médios e pequenos
escravistas em todo o Brasil. Investir em escravos nesse período era um
ótimo negócio e, enquanto existisse o tráfico, estava ao alcance de pessoas
com recursos apenas medianos.13
A lei de 1831 estabelecia que os cativos confiscados de contraban-
do, a bordo de negreiros ou em terra firme, deviam ser considerados
“africanos livres” e mantidos sob tutela do governo imperial, aliás, uma
providência legal que vinha desde 1818, mas que somente agora ganharia
corpo. Comparados com o número de africanos importados e escravizados
ilegalmente, poucos foram os apreendidos que ganhariam o status de
“livres” – cerca de onze mil em todo o Brasil –, embora essa conta possa
aumentar a partir de novas pesquisas. O trabalho dos africanos livres era
concedido pelo governo a pessoas e empresas, ou utilizado pelo próprio
Estado, nos dois casos em troca de um pequeno salário que os africanos
sequer recebiam, vez que ia formar um fundo controlado pelo governo

13 O mais completo estudo sobre a lei de 1831 e seus desdobramentos ao longo do Oitocen-
tos é Beatriz Mamigonian, Africanos livres: uma história social da abolição do tráfico de
escravos para o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Diversos outros autores
também estudaram o assunto, e seguem apenas alguns exemplos: Tâmis Parron, A políti-
ca da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011; Tâmis Parron, Alain El Youssef e Bruno F. Estefanes, “Vale expandido: contrabando
negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil”, Alma-
nack, no. 7 (2014), pp. 137-159; Sidney Chalhoub, A força da escravidão: ilegalidade e cos-
tume no Brasil oitocentista, São Paulo: Companhia das Letras, 2012; Beatriz Mamigonian,
“O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava: a Lei de 1831 e a matrícula
dos escravos de 1872”, Almanack, no. 2 (2011), pp. 20-37; dossiê “‘Para inglês ver’? Revisi-
tando a Lei de 1831”, organizado por Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg. Sobre os trata-
dos e leis que proibiam o tráfico, ver Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e ex-
periências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas: Editora
da UNICAMP/CECULT, 2000; Robert Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Bra-
sil, São Paulo: Brasiliense, 1985; Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade:
Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 1807-1850, Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 1970 (edição brasileira de 1976 pela editora Expressão Cultural).

20 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

com o objetivo de um dia devolvê-los à África. Não estranha, por isso,


que muitos se empregassem no ganho de rua, com o consentimento ou
não de seus concessionários. Os estudos disponíveis mostram que esses
trabalhadores eram amiúde tratados como verdadeiros cativos, pois
cumpriam longas jornadas de trabalho, eram mal alimentados, vestidos e
agasalhados, vendidos para outros concessionários, punidos fisicamente
por seus empregadores, caçados e presos como escravos pela polícia
quando fugiam.
Segundo a lei, os africanos livres deviam servir aos concessionários
durante quatorze anos, tempo considerado necessário para “aprenderem”
a viver em liberdade, e depois receber cartas de emancipação que os
tornariam livres de fato. Esse tempo de aprendizado nem sempre era
obedecido, e no caso do serviço para o Estado, ele sequer existia. Assim,
um grande número de africanos ultrapassava-o em muito, especialmente
aqueles empregados pelos governos imperial, provinciais e municipais
na limpeza e manutenção de prisões e instalações militares, em fábricas
e outros estabelecimentos públicos, nos serviços e obras públicas, na
iluminação, limpeza e calçamento de ruas, no desmatamento e abertura
de estradas, entre outras atividades. Enquanto os africanos livres con-
tratados por empresas e indivíduos tinham esperança de se emancipar
após servir os fatídicos quatorze anos, os empregados no setor público
raramente o faziam antes de vinte anos. O governo era carente de mão de
obra e, contra princípios éticos e legais, decidiu subrepticiamente dispor
por tempo indeterminado de milhares de braços baratos, quase gratuitos.14
As condições a que estavam submetidos levaram muitos africanos
livres a resistir individual e coletivamente contra pessoas e instituições
que os empregavam em todo país. Eles faziam corpo mole no trabalho,
fugiam, agrediam patrões e seus prepostos, peticionavam às autoridades
com denúncias de maus tratos e cobrança de emancipação definitiva. Nos
embates que protagonizaram, seriam amiúde ajudados por curadores,
advogados, amigos e parentes, além de autoridades estrangeiras, com
destaque para o pessoal diplomático inglês, que consideravam ser a vida
daqueles homens e mulheres chamados de livres em tudo parecida com
a vida dos escravizados.
Temos neste livro dois capítulos que enfatizam a resistência dos
africanos livres aos métodos de controle e disposição de sua força de
trabalho, além de outros aspectos de suas experiências de vida. Enidelce
Bertin narra diversas histórias de fugas, reivindicações, ameaças, deso-
bediência, atrevimento, altanaria, envolvendo Maria, Felipe, Lourenço
e outros que serviam no interior e na capital da província de São Paulo.
Beatriz Mamigonian se dedica a acompanhar um grupo em deslocamentos

14 O trabalho mais amplo sobre o assunto no Brasil é o livro de Mamigonian, Africanos livres.

INTRODUÇÃO 21
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

através de três províncias. A identidade étnica deles, que pertenciam à


nação “mina”, torna-se uma chave para entender o repertório da resistência
diante de seus contratadores e autoridades do governo.
Mas a lei de 1831 não serviu de arena somente aos embates dos
considerados, legalmente, africanos livres. Muitos escravos contraban-
deados a usaram contra seus supostos proprietários, impetrando ações
de liberdade que levavam estes às barras do tribunal por escravização
ilegal, especialmente quando, a partir do final dos anos 1870 e até 1888,
abolicionistas militantes decidiram publicizar esses casos como parte de
sua agenda antiescravista. Assim o fez, por exemplo, o poeta Luiz Gama,
ativo abolicionista na cidade de São Paulo entre o final dos anos 1860 e
o início dos anos 1880, quando faleceu.15 Ao mesmo tempo, as ações de
liberdade baseadas na lei de 1831 permitem captar, através de depoimentos
dos africanos envolvidos, experiências guardadas na memória da época
em que haviam desembarcado no Brasil muitas décadas antes. Este é o
tema discutido no capítulo de Ricardo Tadeu Caires Silva, no qual analisa
ações de liberdade impetradas na Bahia na década de 1880. É possível
que muitos depoimentos fossem fabricações da memória em busca de
narrativas convincentes e adequadas à demanda legal em causa. De todo
modo, são histórias no mínimo verossímeis do que acontecera centenas
de milhares de vezes aos africanos ilegalmente introduzidos no país.
A lei de 4 de setembro de 1850 foi mais eficaz para sustar o tráfico
porque, desta vez, a proibição se tornaria, afinal, política de Estado. A
medida resultou de muita pressão da Inglaterra, sobretudo porque, com
o Bill Aberdeen, de 1846, aquele país decidira caçar navios negreiros no
litoral brasileiro. Outros fatores têm sido acrescentados a este pela re-
cente historiografia, entre os quais se destacam o temor da africanização
demográfica e cultural do país e as tensões daí decorrentes, em particular
na forma de rebeliões escravas. Um alerta neste sentido teria sido dado
por uma vasta conspiração escrava, com ramificações no Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais, as principais províncias cafeeiras.16 Certo é que,

15 Ver, por exemplo, Elciene Azevedo, Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na im-
perial cidade de São Paulo, Campinas: Editora da UNICAMP/CECULT, 1999; e idem, O di-
reito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo, Campinas:
Editora da UNICAMP/CECULT, 2010.
16 Robert Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongos de aflição e identida-
de escrava no Sudeste brasileiro (século XIX)”, in Douglas Libby e Júnia F. Furtado (orgs.),
Trabalho livre, trabalho escravo (São Paulo: Annablume, 2006), pp. 273-314; e Graden, Di-
sease, Resistance, and Lies, cap. 5. Na contramão dessa perspectiva, ver Jeffrey D. Need-
el, The Party of Order: The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monar-
chy, Stanford: Stanford University Press, 2006. Uma polêmica, sobre este e outros temas,
entre Jeffrey Needel e Sidney Chalhoub, chegou às páginas da Afro-Ásia. Ver resenha de
Sidney Chalhoub, “Os conservadores no Brasil império”, Afro-Ásia, no. 35 (2007), pp. 317-
326, e Jeffrey Needel, “Resposta a Sidney Chalhoub e à sua Resenha, ‘Os conservadores no

22 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

a partir de 1850, o governo imperial cuidou de informar periodicamente


os presidentes provinciais sobre rumores e indícios de viagens negreiras
organizadas dentro e fora do Brasil, instruindo-os para que se mantivessem
vigilantes a quaisquer tentativas de desembarque de cativos. José Maia
Bezerra Neto fornece em seu capítulo copiosa correspondência oriunda
da Corte que atesta a nova atitude, em estudo centrado na província do
Pará cujas conclusões podem, em geral, ser estendidas a outras regiões
do Império. Naquela província, além disso, a sombra da Revolta da Caba-
nagem (1835-1840), que teve sua dimensão racial, teria influenciado os
governantes a implementar medidas de combate ao tráfico por temor de
que o aumento da população africana contribuísse para o ressurgimento
da desordem social controlada havia pouco. Desta forma Bezerra Neto
se alinha àqueles que consideram o temor da revolta escrava como um
componente expressivo da decisão política em prol da extinção do tráfico.
A importação de africanos foi o meio mais comum de repor a força
de trabalho escravo no Brasil até 1850. Na sequência, a população escrava
brasileira em seu conjunto declinaria, apesar de ter crescido nas duas
décadas seguintes nas regiões cafeeiras mais prósperas como resultado do
tráfico interno para o sudeste cafeeiro, movimento que se fez sobretudo
a partir do norte-nordeste e, secundariamente, do sul, regiões economi-
camente declinantes. O tráfico interno é discutido no capítulo de Richard
Graham, que explora não apenas seus números e rotas, mas, imprindo
uma dimensão humana ao assunto, fala das experiências vividas pelos
traficados nas várias etapas da viagem. Em seguida, Erivaldo Fagundes
Neves se concentra no tráfico procedente do sertão baiano para o oeste
paulista, a última e mais agressiva fronteira de expansão da agricultura
cafeeira na segunda metade do século XIX. Neves descreve os métodos,
os agentes e a mercadoria humana deste não menos infame comércio.17
O tráfico interno não enxugava as escravarias dos senhores de engenhos
nordestinos ou dos grandes charqueadores e fazendeiros gaúchos, pois, na
sua maioria, os cativos envolvidos pertenciam a pequenos proprietários
atraídos pelos altos preços pagos no Sudeste. Mas o tráfico interno não
era somente interprovincial, pois também acontecia no interior de cada
província, entre municípios mais e menos distantes uns dos outros. 18 Hou-
ve, ainda, intenso deslocamento de escravos vendidos das áreas urbanas

continuação 16

Brasil império’”, Afro-Ásia, no. 37 (2008), pp. 291-301. Um balanço anterior do debate foi
feito por Parron, A política da escravidão, pp. 230-252.
17 Sobre o tráfico interno, com ponto de partida na mesma região baiana, ver Maria de Fáti-
ma Novaes Pires, Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos sertoins de sima – BA
(1860-1920), São Paulo: Fapesp/Annablume, 2009, cap. 1.
18 Ver por exemplo José Flávio Motta, Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno
de cativos na expansão cafeeira paulista, São Paulo: Alameda, 2012, que mostra a força do
tráfico intraprovincial em São Paulo.

INTRODUÇÃO 23
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

para os setores rurais mais dinâmicos. A cidade do Rio de Janeiro, por


exemplo, que contava com 110.602 escravos (41,4% de sua população)
em 1849, passaria a ter apenas 48.939 (18% da população) em 1872, um
declínio em grande parte decorrente de vendas para o interior cafeeiro. 19
O Brasil recebeu escravos de uma diversidade de povos e várias
regiões do continente africano. No entanto, cada região africana e seus
respectivos grupos étnicos contribuíram em diferentes graus para a
formação das populações locais brasileiras, dependendo do período e de
seu destino no Brasil, da dinâmica de competição e cooperação com outras
nações traficantes europeias e dos laços comerciais entre mercadores de
gente africanos e luso-brasileiros. A África Centro-Ocidental – onde os
portugueses tinham feito incursões territoriais mais profundas, desde o
século XVI, e criado uma estrutura político-administrativa no seu litoral
– foi de longe a principal fonte de mão de obra cativa para o Brasil. Angola
contribuiu com cerca de 70% dos escravos brasileiros e, visto sob outro
ângulo, o Brasil consumiu quase metade dos escravos que deixaram Angola
para as Américas.20 Importantes regiões importadoras, tais como Rio de
Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais (esta durante o boom aurífero no
século XVIII) compravam escravos principalmente dessa parte da África,
considerando todo o período do comércio transatlântico de gente. A África
Ocidental, em particular a Costa da Mina, aparece em distante segundo
lugar, tendo fornecido quase 20% dos cativos desembarcados no Brasil,
a imensa maioria destinada à Bahia.
Do golfo de Biafra chegaram 122.617 africanos, no Brasil conhecidos
como calabares, em alusão aos portos de Velho e Novo Calabar, na em-
bocadura do rio Níger. Poucos, se comparado aos 1.317.775 escravos ali
embarcados para o Caribe inglês e francês, e para a América espanhola.21

19 Luiz Carlos Soares, O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Ja-
neiro do século XIX, Rio de Janeiro: FAPERJ/7letras, 2007, p. 368, 373.
20 Sobre as conexões profundas entre Angola e Brasil na formação de uma sociedade, uma
economia e uma cultura no Atlântico Sul, ver, entre outros, Joseph Miller, Way of Death:
Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of
Wiscounsin Press, 1988; Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico de
escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), São Paulo: Companhia das
Letras, 1997; Jaime Rodrigues, De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários
do trafico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das
Letras, 2005; Alencastro, O trato dos viventes; idem, “Le versant brésilien de l’Atlantique-
Sud: 1550-1850”, Annales: Histoire, Sciences Sociales, vol. 61, no. 2 (2006), pp. 339-382; e
Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the Era of the Slave Trade, Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
21 Sobre tráfico e sociedade no golfo de Biafra, Ebiegberi Joe Alagoa, “Long-Distance Trade
and States in the Niger Delta”, Journal of African History, no. 11 (1970), pp. 319-329; idem,
A History of the Niger Delta, Ibadan: Ibadan University Press, 1972; idem, “The Slave
Trade in Niger Delta Oral Tradition and History”, in Paul E. Lovejoy (org.), Africans in Bond-
age: Studies in Slavery and Slave Trade (Madison: African Studies Program, University of

24 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Entre as regiões de menor vulto no comércio negreiro para o Brasil estava a


Costa do Ouro (equivalente ao litoral de Gana), que enviou 64.478 escravos
para os portos brasileiros, malgrado ter deportado mais de um milhão
de pessoas para as Américas. 22 Da África oriental – leia-se, sobretudo,
Moçambique – foram levados cerca de 6% dos africanos que foram dar
no Brasil, os quais, durante dois séculos, embarcaram a conta-gotas nas
naus que faziam a carreira das Índias, até que um fluxo mais volumoso e
regular se estabeleceu naquelas partes entre o final do século XVIII e a
primeira metade do XIX. 23
Outros portos de embarque se localizavam na região que os portugueses
chamavam de Alta Guiné e que os historiadores aglófonos e francófonos
preferem dar o nome de Senegâmbia, faixa que se estende entre a ilha
de Gorée (em Dakar, Senegal) e Bissau.24 Há algum consenso de que esta
região da África figura como a menos integrada ao tráfico de escravos para
as Américas, em parte pelo intenso uso local de cativos, os custos do trans-
porte de escravos do interior ao litoral e a influência local do Islã como fato
mitigador da escravização de seus adeptos. Deve-se ainda acrescentar que,
proporcionalmente, foram os cativos dessa região que mais se rebelaram a
bordo.25 De lá vieram apenas 2,4% dos escravos desembarcados no Brasil,

continuação 21

Wisconsin, 1986), pp. 127-136; Adiele Afigbo, The Igbo and Its Neighbours, Ibadan: Ibadan
University Press, 1987; Paul E. Lovejoy e David Richardson, “Trust, Pawnship, and Atlan-
tic History: The Institutional Foundations of the Old Calabar Slave Trade, The American
Historical Review, vol. 104, no. 2 (abril de 1999), pp. 333-355; idem, “The Horrid Hole: Roy-
al Authority, Commerce and Credit at Bonny, 1690-1840”, Journal of African History, no.
45 (2004), pp. 363-92; Randy J. Sparks, The Two Princes of Calabar: An Eighteenth-Centu-
ry Atlantic Odyssey, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2004; Ugo Nwokeji, The
Slave Trade and Culture in the Bight of Biafra: An African Society in the Atlantic Slave
Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2010; e Carolyn A. Brown e Paul E. Lovejoy
(orgs.), Repercussions of the Atlantic Slave Trade: The Interior of the Bight of Biafra and
the African Diaspora (Trenton: Africa World Press, 2011).
22 Sobre a Costa do Ouro, ver Rae A. Kea, Settlements, Trade, and Politics in the Seven-
teenth-Century Gold Coast, Baltimore: The John Hopkins University Press, 1982; Ivor
Wilks, Asante in the Nineteenth Century: The Structure and Evolution of a Political Or-
der, Cambridge: Cambridge University Press, 1975; Rebecca Shumway, The Fante and
the Transatlantic Slave Trade, Rochester: University of Rochester Press, 2011; Randy J.
Sparks, Where the Negroes Are Masters: An African Port in the Era of the Slave Trade,
Cambridge: Mass: Harvard University Press, 2014.
23 José Capela, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique, Lisboa: Edições Afronta-
mento, 2002.
24 Sobre o tráfico na Senegâmbia, ver Boubacar Barry, Senegambia and the Atlantic Slave
Trade, Nova York: Cambridge University Press, 1997.
25 Ver o resumo desses argumentos em Philip Morgan, “Africa and the Atlantic, c. 1450 to
c. 1820”, in Jack P. Green e Philip Morgan (orgs.), Atlantic History: A Critical Appraisal
(Oxford: Oxford University Press, 2009), pp. 230-231. Segundo Eltis e Richardson, Atlas
of the Transatlantic Slave Trade, p. 189, mapa 131, as revoltas na região da Senegâmbia
representam 22,6% do total de incidentes desse tipo. Se contabilizadas as de Serra Leoa

INTRODUÇÃO 25
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

segundo o TSTD, cifra, no entanto, contestada por alguns historiadores que


apontam para um intenso contrabando não contabilizado.26
Nessa região interessam principalmente Cabo Verde e Guiné Bis-
sau, onde foram embarcados os escravos que abasteceram a economia
açucareira do Brasil nos três primeiros quartos do século XVI, quando
substituídos pelo porto de Luanda, em Angola. Outras levas de cativos
importados desse território teriam de esperar a atuação, relativamente
efêmera, da Companhia do Grão-Pará e do Maranhão, em meados do Sete-
centos. As redes comerciais na Alta Guiné eram antigas e constituídas por
mercadores locais, portugueses desterrados (os lançados ou tangomaos)
e comunidades sefarditas. Estruturas matrilineares de parentesco ali
desempenharam papel importante no comércio de escravos. No caso da
costa da Alta Guiné, ou Guiné de Cabo Verde, os principais negociantes
tinham antepassados guineenses ou cabo-verdianos, além de vínculos
(familiares ou comerciais) com as comunidades sefarditas ali assentadas,
formando importantes clãs mercantis.27
O artigo de Philip Havik explora as dinâmicas interculturais nas
comunidades atlânticas do litoral da Guiné através de duas figuras-chave
no comércio afro-atlântico local: Ña Bibiana Vaz de França, no século
XVII, e Ña Rosa de Carvalho Alvarenga, no século XIX. Após a morte de
seus maridos, ambas se tornariam figuras de proa no comércio – inclusive
de escravos – na Guiné de Cabo Verde. Suas relações de cooperação (Ña
Rosa) e conflito (Ña Bibiana) com os europeus atestam os limites da au-
toridade portuguesa na região e, mais importante, revelam as estruturas

continuação 25

(9,9%), esse número sobe para quase um terço do total de insurreições registradas a bor-
do. É digno de nota que o peso dessas revoltas é bastante superior ao impacto demográfico
do tráfico transatlântico sobre a Senegâmbia e Serra Leoa (6% e 3,1%, respectivamente).
26 Ivana Elbl argumenta que o contrabando tinha peso importante nos primeiros tempos do
tráfico. Para a autora, qualquer estimativa baseada nos dados quantitativos disponíveis “é
necessariamente minimalista”. Toby Green usa o mesmo argumento, considerando subes-
timados os números do TSTD: 1.592 escravos anualmente exportados da Alta Guiné entre
1501-1590. Para Green, por meio de intenso contrabando, no primeiro século do tráfico
exportava-se pelo menos quatro ou cinco vezes mais escravos do que o registrado pela do-
cumentação oficial alfandegária. Ver Ivana Elbl, “The Volume of the Early Atlantic Slave
Trade, 1450-1521”, Journal of African History, no. 38 (1997), pp. 31-75; e Toby Green, The
Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2011, pp. 4-9. Para uma visão geral do tráfico ibérico nos primei-
ros dois séculos de sua existência, ver António de Almeida Mendes, “Esclavages et traites
ibériques entre la Méditerranée et l´Atlantique (XVe – XVIIe siècles): une histoire globa-
le” (Tese de Doutorado, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2007).
27 Ver, por exemplo, Francisco Aimara Carvalho Ribeiro, Terratenentes-mercadores: tráfico
e sociedade em Cabo Verde, séculos XV e XVI, Rio de Janeiro: Multifoco, 2012; Peter Mark
e José da Silva Horta, The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West Africa and
the Making of the Atlantic World, Cambridge: Cambridge University Press, 2011; e Green,
The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade.

26 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de parentesco enquanto mecanismo de obtenção de status, de criação e


ampliação de redes comerciais envolvendo atores variados (governadores
portugueses, chefes locais e comerciantes atlânticos, entre outros).
Cada região africana teve o seu produto preferido como moeda de
troca por escravos. Na África Centro-Ocidental predominava a aguardente
brasileira, ou jeribita, produzida nos engenhos e engenhocas do Rio de
Janeiro e de Pernambuco (mas também, em menor quantidade, nos da
Bahia); na Costa da Mina, o fumo oriundo da Bahia era grandemente
apreciado, dando vantagem aos traficantes ali sediados. No entanto, o
fumo baiano também viajou a bordo de navios que se dirigiam para a
costa angolana, bem como a aguardente a bordo de navios com destino à
Costa da Mina. Além dessas duas mercadorias principais, uma ampla gama
de outros produtos fazia parte da “cesta básica” do tráfico de escravos:
tecidos europeus e indianos, gado, louças e talheres, açúcar, búzios (cau-
ris), ferro, armas, pólvora e ouro em pó. Estes três últimos itens, apesar
de proibidos, eram levados a bordo dos tumbeiros para serem trocados
por escravos nos mercados africanos. O contraste entre as mercadorias
do tráfico em Angola e na Costa da Mina, e sua importância relativa, é
assunto do capítulo escrito por Gustavo Acioli e Maximiliano Menz. Os
autores sugerem que se alivie o peso da aguardente e do tabaco no circuito
do comércio negreiro luso-brasileiro, “mercadorias que movimentavam
uma parte importante do tráfico luso-brasileiro de escravos, mas que não
bastavam para fechar o circuito entre o Brasil e a África.”28
A segunda metade do século XVIII assistiu mudanças na economia
portuguesa. Com a ascensão de Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro
marquês de Pombal, como ministro de d. José I, no início da década de 1750,
tentou-se dinamizar e fortalecer a balança comercial da metrópole. Entre
as medidas mais importantes estava a criação de companhias de comércio,
constituídas de vultosos capitais e protegidas pelo monopólio do trato de
escravos e de outras mercadorias. No Brasil, foram criadas duas: a Companhia

28 Sobre o papel do fumo na economia local e no comércio transatlântico de escravos, ver


Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de
Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, São Paulo: Corrupio, 1987 [1968]; B. J. Barickman,
Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; e Jean Baptiste Nardi, O fumo brasileiro no
período colonial: lavoura, comércio e administração, São Paulo: Brasiliense, 1986. Sobre
a jeribita no comércio angolano, ver José C. Curto, Álcool e escravos: o comércio luso-bra-
sileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos
(c. 1480 – 1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental, Lisboa: Edi-
tora Vulgata, 2000 (edição inglesa, atualizada, Enslaving Spirits, Leiden: Brill, 2004). Um
interessante gráfico da distribuição por origem (Brasil, Portugal, Ásia, Europa do Norte)
do tipo de mercadorias vendidas em Luanda no final do século XVIII se encontra em Ma-
nolo Florentino, “The Slave Trade, Colonial Markets, and Slave Families in Rio de Janeiro,
Brazil, ca. 1790-ca. 1830”, in Eltis e Richardson (orgs.), Extending the Frontiers, p. 286. Do
Brasil iam 100% do fumo e 64% das bebidas alcoólicas.

INTRODUÇÃO 27
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

do Grão-Pará e do Maranhão, cujo tráfico concentrava-se na Alta Guiné, e a


pouco conhecida Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba.29 A Companhia
do Grão-Pará e Maranhão tem sido objeto de estudos mais sistemáticos,
em razão dos vínculos entre o Maranhão e a Alta Guiné; a Companhia de
Pernambuco e da Paraíba, por outro lado, malgrado os estudos pioneiros de
António Carreira e José Ribeiro Junior, ainda carece de maior apreciação.30
Através dos livros de demonstrações da Junta de Lisboa, Maximi-
liano Mentz estuda as operações da Companhia de Pernambuco na costa
centro-ocidental africana, seus lucros e perdas. Ele recupera a tese de
Joseph Miller sobre a preeminência dos negociantes baseados em Lisboa
no comércio negreiro em Luanda, questionando a tese do predomínio
daqueles sediados no Rio de Janeiro, mais comum na historiografia bra-
sileira. Os lusitanos controlariam a maior parte das mercadorias para o
resgate, dentre as quais destacavam-se os valiosos panos indianos, produto
essencial de negociações naquele porto, para onde o Índico e o Atlântico
convergiam numa só corrente comercial. 31 Os brasílicos controlavam o
“tráfego”, isto é, o transporte de mercadorias, mas o “tráfico” ficava nas
mãos dos portugueses, este, em resumo, o argumento de Mentz.
Quatro outros capítulos neste volume discutem o comércio negreiro e
seus efeitos na África Centro-Ocidental. No primeiro deles, Mariana Can-
dido revela flashes das vidas de indivíduos ilegalmente escravizados. Nos
últimos anos, e principalmente graças a ferramentas como o sítio do TSTD,
o debate sobre as estatísticas do tráfico de escravos tem predominado. O
número de africanos transportados, as taxas de mortalidade nas diferentes
carreiras, a duração das viagens, os portos de embarque e desembarque são
temas recorrentes. Se por um lado as análises demográficas demonstram
as tendências gerais no movimento do comércio transatlântico, por outro,
perdem de vista as experiências específicas de indivíduos reduzidos à

29 Para uma visão geral dessas companhias, ver António Carreira, As companhias pombali-
nas, Lisboa: Editorial Presença, 1983.
30 Reinaldo dos Santos Barroso Júnior, “Nas rotas do Atlântico equatorial: tráfico de escra-
vos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800)” (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal da Bahia, 2009); Walter Hawthorne, From Africa to Brazil: Cultu-
re, Identity, and an Atlantic Slave Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2010;
José Ribeiro Jr., Colonização e monopólio no nordeste brasileiro, 2a ed., São Paulo: Huci-
tec, 2004; e Leonor Freire Costa, “Pernambuco e a Companhia Geral de Comércio do Bra-
sil”, Penélope, nº 2 (2000), pp. 41-65.
31 Sobre a importância dos têxteis indianos, ver, por exemplo, Roquinaldo Ferreira, “Dinâmi-
cas do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de es-
cravos (século XVIII)”, in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa
(orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII)
(Rio de Janeiro: Civilizacão Brasileira, 2001), pp. 341-378; e Telma Gonçalves Santos, “Co-
mércio de tecidos europeus e asiáticos na África centro-ocidental: fraudes e contrabando no
terceiro quartel do século XVIII” (Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2014).

28 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

escravidão. Perdem a sua dimensão humana, argumenta Candido. Além


disso, a autora questiona a excessiva atenção dada às guerras como me-
canismo de obtenção de escravos. Para ela, razias, sequestros e tramoias
tinham papel relevante, mas têm sido negligenciados pela historiografia.
Não à toa os estudos biográficos indicam que numerosos africanos foram
raptados e vendidos para o tráfico transoceânico em toda parte da África.
A partir de exemplos de escravização ilegal no entorno de Benguela, entre
os séculos XVII e XIX, Candido demonstra que, apesar de leis que garanti-
riam liberdade aos súditos de sobas avassalados junto à Coroa portuguesa,
na prática poucos estavam de fato protegidos. As redes familiares eram
cruciais para evitar a deportação de seus membros escravizados para as
Américas, porém, na maioria das vezes, não conseguiam agir a tempo.32
Em 1836, a coroa portuguesa decidiu por termo ao tráfico negreiro
em Angola. Apesar disso o comércio de escravos prosseguiria até a década
de 1840. Um resultado óbvio da supressão do tráfico foi o aumento da
população de Luanda. Entre 1845 e 1850, ela cresceu de 5.605 para 12.656
almas, aqui incluídos os escravos, que antes eram 2.749 e passaram a
5.900, um aumento de mais de 100%. Entre 1830 e 1860, os portugueses
investiram na expansão de seus domínios sobre regiões como Ambriz –
ponto de embarque ilegal de escravos ao norte de Luanda –, áreas a leste
do rio Coango e Moçamedes, onde se produzia a urzela. A exploração desse
produto era feita por mão de obra escravizada, agora abundante. O aumento
da escravidão local, no entanto, favoreceu as fugas, os motins e as revoltas
escravas, episódios aqui analisados por Roquinaldo Ferreira e José Curto.
Segundo Ferreira, práticas e costumes tradicionais dos escravos do interior
foram assimilados pelos escravos do litoral, que amiúde buscavam novos
senhores, mais flexíveis no mando, ou simplesmente desapareciam nos
sertões angolanos. O “mau cativeiro” e as incertezas legais após a morte
dos antigos senhores – temor de separação das famílias ou de quebra de
acordos – respondiam pelo aumento das fugas. A multiplicação desses
episódios causava problemas à administração em Luanda, pois a forma-
ção de comunidades de escravos fugidos, os quilombos ou motolos, fazia
aumentar a insegurança nas rotas mercantis do interior em direção a
Luanda. Por fim, tentativas de manutenção do tráfico negreiro pós-1836
aumentavam o temor dos escravos, que recorriam à fuga – e em alguns
casos à revolta – para evitar o envio ilegal para o Brasil ou Cuba, os prin-
cipais mercados da época no lado ocidental do Atlântico.
A resistência ativa à escravidão não era exclusiva das Américas. Nas
duas margens do oceano, africanos escravizados utilizavam estratégias

32 Confira também o recente livro de Mariana P. Candido, An African Slaving Port and the
Atlantic World: Benguela and its Hinterland, Cambridge: Cambridge University Press,
2013, cap. 4, além de Ferreira, Cross-Cultural Exchange.

INTRODUÇÃO 29
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

semelhantes para resistir ao cativeiro. Entre as principais modalidades


de resistência destacavam-se as fugas, como acabamos de ver, que são
novamente abordadas no texto de José Curto. Usando como fonte o Bo-
letim Oficial de Angola – jornal do governo português que iniciou suas
atividades em 1845 –, ele analisa os anúncios de escravos recapturados
entre 1846 e 1876. Esta fonte permitiu mapear o perfil de 3.200 fugitivos
– idade, sexo, grupo étnico –, e amiúde dos seus proprietários (se peque-
nos ou grandes escravistas, por exemplo) e o impacto das fugas em suas
escravarias, entre outros aspectos. Ao mesmo tempo, sugere a existência
de tradições rebeldes que atravessariam o oceano para se disseminar por
toda a diáspora africana nas Américas.33
Nessa época, mais precisamente no início da década de 1840, Georg
Tams, naturalista alemão, registrou algumas das transformações na eco-
nomia de Angola. Apesar de atividade proibida por lei, o tráfico negreiro
ainda desempenhava papel importante em Angola. Mesmo após o Brasil
proibir o tráfico em 1831, o negócio continuaria, a despeito da presença
de cruzadores britânicos a patrulhar o grande oceano. O trato de gente
envolvia, na década de 1840, comerciantes de renome, como o lendário
Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo, e autoridades reinóis, como o cônsul
de Portugal em Hamburgo, José Ribeiro dos Santos. Ao mesmo tempo, pro-
gressivamente, os traficantes migravam para outros portos ao norte, como
Ambriz, e para o negócio “lícito” de urzela. O relato de George Tams sobre
esses assuntos é aqui analisado em detalhe por Maria Cristina Wissenbach.
Mistura de comércio negreiro ilegal com o chamado “comércio legítimo”
também se deu mais ao norte, na Costa da Mina. Ubiratan Castro de Araújo
analisa aqui um relatório feito em 1846 pelo consul francês na Bahia, no
qual ele identificava nominalmente muitos dos principais contrabandistas
de gente e seus navios, detalhando a organização e os meandros de seus
negócios nas duas margens do Atlântico. No lado de lá, se havia estabele-
cido meia dúzia de poderosos negociantes brasileiros – entre os quais se
destacavam o famoso Francisco Félix de Souza, o Chachá de Uidá, e seus
filhos, e Domingos José Martins –, que no século XIX ajudaram a construir o
apogeu do tráfico, conheceram a sua decadência e malmente se adaptaram
ao chamado “comércio legítimo”, envolvendo principalmente a exportação
do azeite de dendê. Esse tema é aqui tratado por Robin Law.34

33 Ainda sobre esses assuntos, ver Aida Freudenthal, “Os quilombos de Angola no século
XIX”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp. 109-134.
34 Sobre o Chachá, ver também, do próprio Robin Law, “A carreira de Francisco Félix de Sou-
za na África Ocidental (1800-1849)”, Topoi, no. 2 (2001), pp. 9-40; e, mais detalhado, Alber-
to da Costa e Silva, Francisco Félix de Souza, mercador de escravos, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira/EdUerj, 2004. Sobre Domingos José Martins, ver David Ross, “The Career of Do-
mingos Martinez in the Bight of Benin, 1833-64”, The Journal of African History, vol. 6,
no. 1 (1965), pp. 79-90.

30 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

A dinastia do Chachá de Souza prosperou e ampliou seu poder econô-


mico, mas também se projetou para muito além do tempo de seu fundado.
Ela representou (e ainda representa) uma poderosa força social e política
no golfo do Benim, junto com outros grupos de “brasileiros” lá estabeleci-
dos ao longo do século XIX, os chamados agudás. A partir de meados da
década de 1830, a até então modesta comunidade de retornados receberia
milhares de africanos libertos do Brasil. A grande onda de retornados
foi resultado da expulsão de muitos após a revolta dos malês na Bahia,
em 1835, e da fuga de outros tantos do clima antiafricano ali instalado,
nos anos seguintes. Muitas ondas ulteriores, menores do que esta, além
de um constante movimento de retorno a conta-gotas, caracterizaram a
segunda metade do século XIX.35
O golfo do Benim foi o principal destino da maioria dos retornados,
que se instalaram em cidades como Aguê, Popo Pequeno, Uidá, Porto Novo
(no antigo reino do Daomé, atual República do Benim) e em Lagos (atual
Nigéria). Numa boa combinação com o capítulo de Robin Law, J. Michael
Turner publica aqui um texto pioneiro (1970) de sistematização do tema,
a partir de fontes primárias e secundárias, entre estas com destaque para
a obra de Pierre Verger. Desde então, uma considerável bibliografia tem
abordado o assunto sob diferentes ângulos: as conexões religiosas entre
os que voltaram e os que ficaram; a demografia dessa migração, incluindo
outras áreas do Brasil; a cultura afro-brasileira transplantada para o
golfo do Benim; trajetórias pessoais das chamadas “famílias atlânticas”,
sobretudo as associadas com o candomblé baiano, e as relações entre os
retornados e as potências colonialistas instaladas na região a partir da
segunda metade do século XIX.36

35 Ver o recente artigo de Lisa Earl Castillo, “Mapping the Nineteenth-Century Brazilian Re-
turnees Movement: Demographics, Live Stories, and the Question of Slavery”, Atlantic
Studies: Global Currents, vol. 3, no. 1 (2016), pp. 25-52.
36 Para alguns títulos, ver J. Michael Turner, “Les Brésiliens: The Impact of Former Brazilian
Slaves upon Dahomey” (Tese de Doutorado, Boston University, 1974); Mariano Carneiro
da Cunha, Da senzala ao sobrado: arquitetura brasileira na Nigéria e na República Po-
pular do Benim, São Paulo: Nobel/EDUSP, 1985; Manuela Carneiro da Cunha, Negros, es-
trangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, 2a. ed. revista, São Paulo: Companhia
das Letras, 2012 [1985]; Verger, Fluxo e refluxo, pp. 631-668; idem, Os libertos: sete ca-
minhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX, São Paulo: Corrupio, 1992; Mil-
ton Guran, Agudás: os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Alcio-
ne Meira Amos, Os que voltaram: a história dos retornados afro-brasileiros na África Oci-
dental no século XIX, Belo Horizonte: Tradição Planalto, 2007; Monica Lima e Souza, “En-
tre margens: o retorno à África de libertos no Brasil (1830-1870)” (tese de doutorado, Uni-
versidade Federal Fluminense, 2008); Silke Strickrodt, “‘Afro-Brazilians’ of the Western
Slave Coast in the Nineteenth Century” in Paul E. Lovejoy e José C. Curto (orgs.), Ensla-
ving Connections: Changing Cultures of Africa and Brazil during the Era of Slavery (Nova
York: Humanities Books, 2004), pp. 213-244; Luís Nicolau Parés e Lisa Earl Castillo, “José
Pedro Autran e o retorno de Xangô”, Religião e Sociedade, vol. 35, no. 1 (2015), pp. 13-43;
Kristin Mann, “A Tale of Slavery and Beyond in a British Colonial Court: West Africa and

INTRODUÇÃO 31
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Os africanos traficados recebiam habitualmente novas identida-


des étnicas no circuito mercantil atlântico, assunto que neste livro é
coberto pelos capítulos de Maria Inês Côrtes de Oliveira e Renato da
Silveira. Usavam-se termos de identidade que raramente se referiam
a denominações êmicas, específicas de autoidentificação de um grupo,
mas representavam regiões culturais, portos de embarque ou expres-
sões cunhadas pelos próprios africanos para os grupos estrangeiros que
escravizavam, compravam e vendiam. Uma lógica africana não estava
ausente na formação da nomenclatura “étnica” do tráfico de escravos,
pois em geral as chamadas “nações” africanas referiam-se a, pelo menos,
grupos ou troncos linguísticos comuns, o que fez com que os escravos
eventualmente adotassem como suas essas identidades recém-descobertas
e amiúde impostas, um fenômeno encontrado em todas as sociedades
escravistas do Novo Mundo. 37 Naturalmente, na África havia povos que
compartilhavam uma gramática cultural comum – língua, história e visões
de mundo. Entretanto, os grupos étnicos reconstruídos na diáspora não
correspondiam, no mais das vezes, a unidades políticas vigentes na África.
Eles se tornariam “nações” africanas apenas nas Américas.
Identificar as origens dos escravos vindos da África é um aspecto
importante do estudo das nações africanas e da formação das culturas
afro-americanas em geral, embora não se deva reificar continuidades
africanas em detrimento do que mudou. Na entrada do século XX, em Os

continuação 36

Brazil”, in Alice Bellagamba, Sandra E. Greene e Martin A. Klein (orgs.), African Voices on
Slavery and the Slave Trade (Nova York: Cambridge University Press, 2013), pp. 378-385;
Angela Fileno da Silva, “Amanhã é dia de santo”: circularidades atlânticas e a comunidade
brasileira na Costa da Mina, São Paulo: Alameda, 2014.
37 A bibliografia sobre as identidades étnicas nas Américas é extensa. Seguem alguns títulos:
Michael A. Gomez, Exchanging our Country Marks: The Transformation of African Identi-
ties in the Colonial and Antebellum South, Chapel Hill: The University of North Carolina
Press, 1998; Gwendolyn Midlo Hall, Slavery and African Ethnicities in the Americas: Re-
storing the Links, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2005; e Paul Lovejoy
and David Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspo-
ra (Londres: Continuum Press, 2003). No caso do Brasil, ver, entre outros títulos, Mary Ka-
rasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850, Princeton: Princeton University Press, 1988,
cap. 1 (edição brasileira pela Companhia das Letras, 2000); Robert Slenes, “‘Malungu, Ngo-
ma Vem!’: África encoberta e descoberta no Brasil”, Revista USP, 12 (1991-2), 48-67; João
José Reis e Beatriz Mamiginian, “Nagô and Mina: The Yoruba Diaspora in Brazil”, in Toyin
Falola e Matt Childs (orgs.), The Yoruba Diaspora in the Atlantic World (Bloomington: India-
na University Press, 2004), pp. 77-110; Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identi-
dade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII, Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2000; idem, “A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de
inserção social de africanos no império português, século XVIII”, Estudos Afro-Asiáticos, no.
26 (2004), pp. 303-331; Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e ritual da
nação jeje na Bahia, Campinas: Editora da UNICAMP, 2006; Juliana B. Farias, Carlos Eugênio
L. Soares e Flávio Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro,
século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

32 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

africanos no Brasil, Nina Rodrigues já demonstrava interesse pelos locais


de procedência dos escravos da Bahia, seguido por Arthur Ramos e Luiz
Vianna Filho. Na mesma trilha, Maria Inês Côrtes Oliveira discute nesta
coletânea a origem dos “negros da guiné” na Bahia através da análise dos
nomes de nação. A autora explica que essas identidades (mina, angola,
jeje, nagô etc) foram criadas no circuito do tráfico e que os traficantes
das diferentes carreiras (Angola, Costa da Mina, Moçambique) disputa-
vam a preferência dos compradores através da criação de estereótipos
sobre cada grupo africano (inteligência, força, saúde, adaptabilidade,
habilidade para determinadas funções etc). Na parte final do capítulo,
Oliveira empreende uma análise cuidadosa dos nomes de nação e seus
significados na África e na Bahia.38
Desde a publicação do artigo de Oliveira, em 1997, a historiografia
da escravidão avançou bastante neste tema – inclusive com trabalhos da
mesma autora –, beneficiando-se da extensa literatura africanista sobre
o impacto do tráfico nas sociedades africanas.39 Dissertações de mestrado
e teses de doutorado produzidas em programas de pós-graduação das uni-
versidades brasileiras têm investigado o background étnico dos escravos
africanos em diferentes partes do Brasil nos séculos XVIII e XIX.40 Graças
a essas pesquisas, pode-se hoje identificar com mais precisão a origem
dos africanos desembarcados no Brasil pelo tráfico, melhor avaliar os
aportes culturais que consigo trouxeram e suas eventuais transformações.

38 Ver também, da mesma autora, “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades
africanas na Bahia do século XIX”, Revista USP, n° 28, (1995-96), pp. 175-93; e idem, “The
Reconstruction of Ethnicity in Bahia: The Case of the Nagô in the Nineteenth Century”, in
Lovejoy e Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspo-
ra, pp.158-180.
39 Para citar apenas um exemplo, ver Robin Law, The Slave Coast of West Africa 1550 –
1750: The Impact of the Atlantic Slave Trade on an African Society, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 1991.
40 Camilla Agostini, “Africanos no cativeiro e a construção de identidades no além-mar. Vale
do Paraíba, século XIX” (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas,
2002); Moacir Rodrigo de Castro Maia, “‘Quem tem padrinho não morre pagão’: as relações
de compadrio e apadrinhamento de escravos numa vila colonial (Mariana, 1715-1750)”
(Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2006); Fernanda Aparecida
Domingos Pinheiro, “Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em Maria-
na – Minas Gerais (1745-1820)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Flumi-
nense, 2006); Rodrigo Castro Resende, “As ‘nossas Áfricas’: população escrava e identida-
des africanas nas Minas Setecentistas” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
de Minas Gerais, 2006); Daniele Santos de Souza, “‘Entre o serviço da casa e o ganho’: escravi-
dão em Salvador na primeira metade do século XVIII” (Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal da Bahia, 2010); Carlos da Silva Júnior, “Identidades Afro-Atlânticas: Salvador, sé-
culo XVIII (1700-1750)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2011);
Moacir Rodrigo de Castro Maia, “De reino traficante a povo traficado: a diáspora dos Cou-
rás do Golfo do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa (1715-1760)” (Tese de
Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013).

INTRODUÇÃO 33
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O significado das nações era mais profundo do que apenas seu aspecto
étnico. Através da organização de pessoas de diferentes etnias em torno
de uma identidade ladina, recriada na diáspora, era possível organizar-se
coletivamente para as políticas de negociação ou de confronto no seio
da sociedade escravista. Este é um dos argumentos chave de Renato
da Silveira em seu capítulo para este livro. O autor passa em revista os
debates sobre o conceito de nação africana nos últimos quarenta anos,
seus significados e abordagens. Ele discute o sentido atribuído ao vocá-
bulo nação por autores nacionais e estrangeiros, e os problemas teóricos
e metodológicos de cada abordagem. Para este fim, Silveira adota uma
perspectiva de longue durée, que abarca desde a Roma antiga até o Brasil
escravista. Por fim, ele apresenta sua própria abordagem do tema, ana-
lisando a formação das nações africanas enquanto “instituições cívicas”
constituídas, politicamente, em meio ao turbilhão de uma história plural,
profunda e complexa.
Uma das nações de maior expressão na Bahia foi a jeje. Estima-se que
o Brasil recebeu 47% dos 626 mil africanos exportados do golfo do Benim
entre 1701 e 1740, na sua maioria pertencentes a grupos de linguas gbe.
Se trata de nossos jejes. Parcela significativa destes foram capturados
em decorrência da expansão do reino do Daomé nas primeiras décadas
do século XVIII. Na era do rei Agajá (c. 1716-1740), o reino ampliou suas
fronteiras quando conquistou Weme (1716), Alada (1724), Uidá (1727) e
Jakin (1732). O Daomé também transformaria o território do Mahi num
“campo de caça a escravos”, segundo sentenciou o historiador I. A. Akinjo-
gbin.41 A interpretação canônica – entre os observadores contemporâneos
e os historiadores atuais – enfatiza a relação íntima entre a ascensão do
Daomé e a venda de cativos para os negociantes europeus.42
Tal aspecto, no entanto, não parecia tão óbvio para os historiadores
nos anos imediatamente posteriores à independência do Daomé em 1960,

41 I. A. Akinjogbin, Dahomey and its Neighbours, 1708-1818, Londres: Cambridge University


Press, 1967, p. 81, 93.
42 A bibliografia sobre o Daomé é vasta. Alguns títulos inevitáveis: Auguste Le Herissé, L’An-
cièn Royaume du Dahomey: moeurs, religion, histoire, Paris: Emily Larose, 1911; Melville
J. Herskovits, Dahomey: An Ancient West African Kingdom, Evanston: Northwestern Uni-
versity Press, 1967 [orig. 1938], 2 volumes; Robert Cornevin, Histoire du Dahomey, Paris:
Éditions Berger-Levrault, 1962; Karl Polanyi, Dahomey and the Slave Trade: An Analysis
of an Archaic Economy, Seattle, University of Washington Press, 1966; Akinjogbin, Da-
homey and its Neighbours; Law, The Slave Coast of West Africa; idem, Ouidah: The Social
History of a West African Slaving ‘Port’, 1727-1892, Athens: Ohio University Press; Ox-
ford: James Currey, 2004; Edna Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics, and Culture
in the Kingdom of Dahomey, Charlottesville: University of Virginia Press, 1998; Elisée
Soumonni, Daomé e o mundo atlântico, Rio de Janeiro: CEAA/SEPHIS, 2001; e J. Camer-
on Monroe, The Precolonial State in West Africa: Building Power in Dahomey, Nova York:
Cambridge University Press, 2014.

34 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

quando a ex-colônia francesa se tornou o país hoje conhecido como República


do Benim. Akinjogbin, por exemplo, argumentou em 1967 que a conquista
de Uidá teria sido uma tentativa por parte do rei Agajá de frear o tráfico
negreiro.43 As políticas de memória em torno do Daomé e sua relação com
o tráfico é o tema do capítulo de Mario Rufer, que fecha esta coletânea. A
partir da análise de obras produzidas nos anos 1960 e 1970, o autor apre-
senta a visão da historiografia nacionalista sobre a participação do Daomé
no tráfico de escravos como antecipação das lutas pela independência face
o colonialismo europeu, “um projeto político de luta anti-colonial” avant la
lettre. Na segunda parte do texto, Ruffer explora a ideia, expressa nessa
historiografia, de uma nação cujas raízes remontam ao século XVII. Mas, ao
fim e ao cabo, só os fons, etnia dominante na região, deteriam a capacidade
política para aglutinar e organizar a pluralidade de povos que vieram a
compor o reino do Daomé no século seguinte.

***

Fica assim traçado o plano deste livro. Seus capítulos reforçam a ideia
de quão significativo foi o impacto do tráfico de escravos nas sociedades
localizadas nos dois lados do Atlântico. Da montagem do sistema econômico
que tinha no tráfico de africanos um de seus pilares, à recente política de
memória que busca acertar contas com o passado, os temas são variados,
densos, alguns inquietantes. Nem todos os tópicos relacionados com o
tráfico, aliás, estão aqui presentes, o que fica claro, em alguns casos, nos
comentários acima feitos pelos organizadores a respeito da historiografia
de um vasto campo de pesquisa que não para de crescer.
Atlântico da dor representa, assim, uma contribuição para os estudos
da história da África atlântica, do tráfico de escravos e da diáspora africana
nas Américas. Ao reunir artigos de diferentes períodos, o livro evidencia
os avanços historiográficos nos últimos cinquenta anos. Apesar do título,
a obra não fala apenas de sofrimento; fala também da resistência física
e cultural de milhões de homens e mulheres que atravessaram o oceano
nos porões de navios negreiros e refizeram no Novo Mundo suas vidas
nos planos material, institucional e simbólico a partir de uma mistura
do que trouxeram de experiências passadas e do que aqui encontraram
de experiências acumuladas por gerações anteriores de cativos e seus
descendentes. Uma história que, 166 anos depois do fim do tráfico e 128
anos após a abolição da escravidão, está longe de ter um ponto final.

43 Akinjogbin, Dahomey and its Neighbours, pp. 73-81. Esse argumento é contestado por vá-
rios autores, entre eles Law, The Slave Coast, pp. 300-308.

INTRODUÇÃO 35
PARTE I
Através do Atlântico
CAPÍTULO 1

o AtlântiCo esCrAvistA: AçúCAr, esCrAvos, enGenhos 1


Joseph C. Miller

Uma maneira convencional de entender a África no contexto histó-


rico do Atlântico é entendê-la como um complexo integrado de escravos
africanos trabalhando em plantações de cana de açúcar nas ilhas atlân-
ticas e nas Américas. O açúcar foi o produto dinamizador de uma amarga
economia que ligava três continentes, ao longo de mais de três séculos,
através de fluxos – ou, neste caso, também correntes – de povos, produtos
e minerais preciosos.
Na bibliografia histórica, este sistema é geralmente tratado como uma
“instituição”, ou parte de uma estrutura mais ou menos estática, de origens
remotas no mar Mediterrâneo oriental do século XIV, depois desenvolvida
de novo nas ilhas atlânticas nos séculos XV e XVI, e finalmente estendida
ao nordeste do Brasil e às Antilhas nos séculos XVII e XVIII – e assim um
complexo de trabalhadores, “fábricas rurais” (engenhos) e cana que mudava
de lugar e aumentava suas dimensões quantitativas, mas cuja natureza
não se alterava. Há numerosas interpretações da chamada “origem” desta
economia atlântica, de natureza estável – e não histórica –, entre elas
algumas interpretações por historiadores conhecidos.2

1 Uma versão deste trabalho foi apresentada na II Reunião Internacional: História da Áfri-
ca (Rio de Janeiro 30 de outubro de 1996). Agradeço aos organizadores deste evento a
oportunidade de dele participar. Agradeço também ao Prof. João José Reis, a seus colegas
e alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFBa pela oportunidade de discu-
tir estes assuntos num seminário animado e estimulante.
2 Em graus diversos: Sidney Greenfield, "Plantations, Sugar Cane and Slavery", Histori-
cal Reflections/Réflections historiques, no. 6 (1979), pp. 85-119; também "Madeira and
the Beginning of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: A Study
in lnstitution Building", in Vera Rubin e Arthur Tuden, (orgs.), Comparative Perspec-
tives on Slavery in New World Plantation Societies (Annals of the Nova York Acade-
my of Sciences, vol. 292) (Nova York: New York Academy of Sciences, 1977). pp. 536-
52; Michael M. Craton, "The Historical Roots of the Plantation Model", Slavery and Ab-
olition, 5, 3 (1984), pp.189-221; William D. Phillips, Jr., ''The Old World Background of
Slavery in the Americas", in Barbara L. Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlan-
tic System (Cambridge MA: W.E.B. DuBois lnstitute for Afro-American Research; Nova
York: Cambridge University Press, 1991), pp.43-61. Também a introdução em Stuart B.

39
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O objetivo desta contribuição ao tema da “invenção dos arquipéla-


gos do Atlântico” no contexto da história da África, é desobstruir esta
imagem generalizada e equilibrada de um tal “sistema”, para revelar
as dimensões cronológicas de um processo integralmente histórico de
desenvolvimento através dos anos, por etapas distintas, passo a passo, de
ilha para ilha. De fato, o chamado “complexo do engenho” maduro, como
apareceu finalmente nas Antilhas inglesas e francesas no século XVIII,
primeiramente na Jamaica e em Saint Domingue, foi o resultado de uma
lenta montagem, durante quatrocentos anos, de elementos diversos,
frequentemente integrados por razões inesperadas e até irônicas.
Para explorar a composição histórica deste “complexo do Atlântico
Sul”, formado por escravos, açúcar e engenhos, aponto o que me parecem
ser as suas fases históricas chaves e descrevo-as tal e qual eram: de
algum modo uma "estrutura", mas sobretudo um processo contínuo. De
outra maneira, perde-se de vista as contingências, as eventualidades,
os dilemas e os insuportáveis extremos para os quais as pessoas eram
constantemente empurradas, e não vemos todos os dramas humanos
e as tensões que isto implica, nem as construções mentais ou os mal
-entendidos que prevaleceram. Quero contrastar esse processo o mais
nitidamente que puder com o tipo limitado de mudança teleológico/
progressiva que está subjacente no outro tipo de "história" estrutural,

continuação 2

Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835,


Nova York: Cambridge University Press, 1986 (tradução: Segredos internos: engenhos
e escravos na sociedade colonial [Rio de Janeiro: Companhia das Letras/CNPq, 1988]).
As pesquisas foram recuadas por alguns autores até o próprio limiar das origens roma-
nas das leis de escravatura no Novo Mundo. Por exemplo, William D. Phillips, Jr., Slav-
ery from Roman Times to the Early Transatlantic Trade, Minneapolis: University of
Minnesota Press. 1985 (tradução: La esclavitud desde la época romana hasta los ini-
cios del comercio transatlánlico [trans. Elena Pérez Ruiz de Velasco] [Madrid: Siglo XXI
de España. 1989]). Phillips trata mais cuidadosamente as mudanças técnicas e as for-
mas de mão de obra em “Sugar Production and Trade in the Mediterranean at the Time
of the Crusades”, in Vladimir P. Goss e Christine Verzár Bornstein (orgs.), The Meet-
ing of' Two Worlds: Cultural Exchange during the Period of the Crusades (Kalamazoo:
Medieval Institute Publications, Western Michigan University, 1986), pp. 393-406. A
tradição acadêmica de remeter as origens do Novo Mundo a instituições europeias tem
raízes veneráveis: Charles Verlinden, “Esclavitud medieval en Europa y esclavitud co-
lonial en América", Revista de la Universidad Nacional de Córdoba: Homenaje a Mon-
señor P. Cabrera (1958), vol. 1, pp. 177-191 (tradução: "Esclavage médiéval en Europe et
esclavage colonial en Amérique," Cahiers de l’Institute des hautes études de l' Amérique
Latine, 6 [1964], pp. 27-45: também como "Medieval Slavery in Europe and Colonial Sla-
ver'y in America [trans. Yvonne Freccero]", in Verlinden, The Beginnings of Modern co-
lonization [lthaca: Cornell University Press, 1970], pp. 33-51 ); "Les origines coloniales
de la civilisation atlantique: antécédents et types de structure", Cahiers d’historie mon-
diale/Journal of World History, 1 , 2 (1953), pp. 378-98; "Précédents et parallèles euro-
péens de l’esclavage colonial", O lnstituto: Revista científica e literária (Coimbra), no.
113 (1949), pp. 113-53: “Le probleme de la continuité en histoire coloniale: de la coloni-
sation médiévale à la colonisation moderne”, Revista de lndias, vol. 11, no. 43-44 (1951
), pp. 219-236.

40 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

focado nas "origens", na identificação, teorização ou concretização e


reificação de “características institucionais” abstratas e até pré-orde-
nadas pela mente do historiador.
Debruço-me sobre os anos mais remotos deste processo, não porque
ando à procura de "origens" epifenomenais, mas porque os séculos mais
antigos contrastam mais nitidamente com o estereótipo, que é baseado
em condições históricas que emergiram somente no século XVIII. Começo
com este contraste temporal porque constitui uma base sobre a qual posso
traçar o processo que se seguiu. Esta "base" não deve ser entendida como
plataforma estável, o único ponto de partida, uma instituição essencial,
mas uma instituição antiga, concebida também como um momento tran-
sitório, embora remoto, destacada aqui só para fins hermenêuticos. Desta
forma, julgo que posso sugerir como foi que o inovador, o inadequado e
o imprevisto desafiaram um grande número de criadores a inventar o
sistema. Aliás sem querê-lo, como se veio a verificar – sob formas que
estavam em geral bastante desequilibradas, repletas de tensão e incom-
patibilidades, para manter as pessoas sempre em busca de outros meios,
para as reduzir e, deste modo, manter os acontecimentos em marcha. Do
contrário, perde-se este espírito de imprevisibilidade e, por conseguinte,
muito do significado histórico dos anos mais remotos da escravidão, do
comércio de escravos e desliza-se para além do que é característico de
suas fases mais remotas: as profundas alterações na organização da
terra, produção de commodities, mobilização de mão de obra e o comércio
de escravos, tudo efetivamente ocorrendo ao longo do século XV até o
século XVIII na Europa, África e nas Américas. O resultado deste longo
processo – as plantações extensas e integradas, trabalhadas pelos escravos
das Antilhas no século XVIII, apoiadas por um comércio negreiro bem
organizado e razoavelmente eficiente – estava muito longe de ser uma
realidade, ou até mesmo previsível, em tempos mais remotos. Tratar este
período formativo em termos das instituições maduras que emergiram
só mais tarde é, por conseguinte, um anacronismo, um teleologismo e
algo não-histórico.
Devo reconhecer que não me vejo desacompanhado nesta vertente
historiográfica, pois os bons trabalhos neste sentido agora começam a
aparecer sobre outros elementos deste complexo atlântico – inclusive a
recente obra sobre a história do açúcar, de autoria de John Galloway,3 e
a história econômica, numa escala Atlântica, de Barbara Solow e outros

3 Curiosamente, um geógrafo, antes que um historiador, embora com apetite pela história:
John H. Galloway. The Sugar Cane Industry: An Historical Geography from its Origins to
1914, Cambridge: Cambridge University Press. 1989; veja também o artigo anterior des-
te autor, "The Mediterranean Sugar Industry", Geographical Review, no. 67 (1977), pp.
177-94.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 41


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

colaboradores.4 Também são dignos de registo, no campo da escravidão


americana, o livro de Stuart Schwartz sobre a Bahia 5 e o artigo de Philip
Morgan sobre a América do Norte durante o período colonial.6

Atropelo para a moeda


Para assinalar a crescente, trabalhosa e sinuosa montagem dos
numerosos elementos dispersos por detrás de agregados aparentemente
estáticos do comércio de escravos no Atlântico e da escravidão nos enge-
nhos, concentro-me nos seus aspectos econômicos. O tráfico e a escravidão
representavam, afinal, emprego e negócio para as pessoas envolvidas, e
algumas delas tinham recursos econômicos significativos em jogo. Tam-
bém há, obviamente, questões éticas vitais levantadas pelo comércio de
gente. Há também a questão de que os africanos contribuíram contínua e
enormemente para os processos culturais no Novo Mundo.7 Mas os meus
propósitos exigem que comece por realçar os fatores financeiros, pois para
iniciar a escravidão como instituição comercial foram necessárias quantias
de dinheiro consideradas avultadas naquele período. Os construtores do
sistema não só tiveram que montar empresas comerciais caras e altamente
arriscadas na África, mas também tiveram que custear as despesas iniciais
relativas à compra e posse da massa de sua força de trabalho, abrir, defen-
der e manter vastos territórios espalhados sobre um mundo novo e – em
particular para os engenhos de açúcar – construir e operar grandes, caras
e complexas máquinas industriais, embora primitivas. E fizeram isso tudo
sem terem a mínima noção sobre que direção tomariam, a longo prazo,
sobre as taxas de crescimento que alcançariam com o empreendimento
e as futuras escalas de produção, sem precedentes na história mundial.

4 Barbara L. Solow, "Capitalism and Slavery in the Exceedingly Long Run", Journal of Ethnic
Studies, vol. 17, no. 4 (1987),pp. 711-37; Solow e Stanley L. Engerman, (orgs.), British Cap-
italism and Caribbean Slavery: The Legacy of Eric Williams, Nova York: Cambridge Uni-
versity Press. 1987; Solow (org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System.
5 Schwartz, Sugar Plantations.
6 Philip D. Morgan, “Whither the Comparative History of New World Slavery”, Jour-
nal of Ethnic Studies, vol. 8, no. l (1980), pp. 94-109. Há sínteses que mostram cada
vez maior sensibilidade histórica, como Peter Kolchin, American Slavery, 1619-1877,
Nova York: Hill and Wang, 1993; e sempre o trabalho de Ira Berlin, "From Creole to
African: Atlantic Creoles and tthe Origins of African-American Society in Mainland
North America", William and Mary Quarterly, vol. 53, no. 2 (1996), pp. 251-88.
7 Os muitos trabalhos de John K. Thornton, esp. Africa and Africans in the Making of the At-
lantic World, 1400-1680, Nova York: Cambridge University Press, 1992. Também Douglas
B. Chambers, “‘My Own Nation’: Igbo Exiles in the Diaspora”, Slavery and Abolition, vol.
18, no. 1 (1997), pp. 72-97. O argumento contrário foi recentemente reafirmado em Sid-
ney Mintz e Richard Price, The Birth of African-American Culture: An Anthropological
Perspective, Boston: Beacon Press, 1992 (originalmente An Anthropological Approach to
the Afro-American Past [Philadelphia: lnstitute for the Study of Human Issues, 1976]).

42 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Para tudo isto foi necessário dinheiro, isto é, metais preciosos e,


em particular, crédito, especialmente durante os primeiros anos que
me interessam, mas também mais tarde, durante outros períodos de
crescimento rápido. A clássica plantação de cana de açúcar do século
XVIII – grande, integrada, trabalhada por escravos e muito dispendiosa
–, digamos, na Jamaica ou em Saint Domingue, pode, por conseguinte,
ser vista (para os nossos objetivos aqui) como o produto de um moroso
e complexo processo de acumulação de capital e como uma entidade de
natureza completamente diferente dos seus precedentes. Nunca teria
ela se tomado a principal forma organizacional da escravidão no Novo
Mundo se o capitalismo mercantil europeu não se tivesse desenvolvido
para muito além de sua capacidade rudimentar no século XV, quando
os financiadores italianos iniciaram uma série de ações neste sentido.
Ou, para pôr a questão noutros termos, só quando os riscos reduziram
significativamente foi que os principais atores da economia da Europa
se dispuseram a investir nela. Deste modo, o aspecto econômico, princi-
palmente a criação de fatores de mudança de estilo capitalista, fornece o
principal índice através do qual assinalo os pontos básicos da narrativa.
Neste nível econômico, o fluxo de metais preciosos foi o fator deter-
minante para reforçar a capacidade dos emergentes mercados de capital
da Europa no financiamento do elevado custo da expansão Atlântica. O
ouro africano contribuiu para o crescimento inicial dos ativos monetá-
rios europeus durante o século XV e início do XVI, particularmente no
momento em que os portugueses avançaram ao longo da costa noroeste
do continente africano. Este metal fundamental tinha a tendência de
encaminhar-se para a Itália e mais tarde para os Países Baixos, na Eu-
ropa do Norte. Um breve fluxo de ouro do Caribe seguiu-se entre 1500 e
cerca de 1540, depois maciçamente suplementado pela prata mexicana
e peruana na segunda metade do século XVI e no século XVII, a maior
parte importada pelos espanhóis, mas depois recambiada para o norte,
sobretudo para a Inglaterra e a França. Depois de 1700 o ouro brasileiro
entrou na economia europeia em quantidades enormes, e aqui também
uma significativa parte apenas passou por Portugal a caminho do Banco
da Inglaterra. A chave do crescimento comercial consistia em concentrar
este dinheiro nos centros financeiros do norte da Europa, onde se tomou a
base monetária para as notas bancárias e ações negociáveis no comércio,
depois nas indústrias e em toda a estrutura de crédito, que eventualmente
transformou o comércio e o desenvolvimento colonial através das Amé-
ricas. Este mesmo dinheiro foi suficiente para ser enviado à Ásia para a
compra de especiarias e têxteis, os famosos panos de algodão do comércio
setecentista entre África e Brasil.
O tema monetário também lança luz sobre a questão do porquê
dos africanos como escravos. Devido aos desastres demográficos que
reduziram as populações indígenas da América em noventa por cento (ou

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 43


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

algo assim) no século XVI, a mão de obra para apoiar qualquer iniciativa
nas Américas teve de ser importada de fora. Mesmo assim, por que os
africanos? Os imigrantes provenientes da Península Ibérica não exis-
tiam necessariamente, e os da Inglaterra surgiam só em momentos de
recessão econômica. 8 Se tivessem chegado em números elevados, teriam
diminuído na Europa os mercados domésticos de consumo dos produtos
provenientes do Novo Mundo. E o pagamento de salários, ou de outros
incentivos monetários com que os colonos livres do velho continente
contavam, teriam àquela altura distribuído demasiadamente o dinheiro
disponível dos dois lados do Atlântico, prejudicando o crescimento revo-
lucionário da empresa capitalista, crescimento obtido na Europa através
da concentração de rendas. Conforme ocorreu, a maioria dos imigrantes
partiu sob condições em que não havia nenhum dinheiro em jogo, como
servos temporários – indentured servants, em inglês – ou atraídos pelas
terras praticamente gratuitas da América do Norte.
Mas a África não estava incluída no padrão monetário de ouro e prata
da Europa e da Ásia, o que levou os africanos a trocar mercadorias, e even-
tualmente pessoas, por produtos que os europeus não consideravam como
dinheiro.9 Para os europeus, trocar mão de obra na África por mercadorias
permitia-lhes conservar o escasso dinheiro, vital à emergente reorganização
capitalista da produção na Europa. Além disto, nas Américas, os africanos
escravizados, como propriedade que eram, adquiriram um valor monetário
e, como tal, representavam garantia financeira adicional nas fronteiras da
economia atlântica, onde os espaços vastos e abertos deixaram a terra com
tão pouco valor que os bens imobiliários sozinhos não garantiam o crédito
nos montantes necessários para ocupar territórios afastados, fazer com
que estes se tomassem produtivos, cobrir os custos elevados da sua conso-
lidação política e seu controle econômico. No contexto desta intensificação
do ritmo de crescimento econômico na Europa, e da prolongada atração
pela Ásia como fonte de especiarias e outras oportunidades comerciais, as
regiões do Atlântico sem minas de ouro ou prata – tanto na África como nas
Américas –durante muito tempo permaneceram lugares demasiadamente
incertos para atrair os mercadores-investidores já estabelecidos, que des-
frutavam de melhores oportunidades nas menos arriscadas economias da
Europa e do Oriente. Assim, as regiões não produtoras de prata ou ouro do
Novo Mundo e de quase toda a África, após fins do século XVI, ficaram sem

8 David W. Galenson, White Servitude in Colonial America: An Economic Analysis, Nova


York: Cambridge Universíty Press, 1981; David Eltis, “Europeans and the Rise and Fall of
African Slavery in the Americas: An Interpretation”, American Historical Review,vol. 98,
no. 5 (1993), pp. 1399-423.
9 Ponto elaborado para o século XVIII em Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Cap-
italism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of Wisconsin
Press, 1988.

44 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

capital financeiro. Sua contribuição chave para a economia do Atlântico


foi fornecer mão de obra para a agricultura e para as minas, sem receber
em troca escassos (e, por conseguinte, preciosos) metais – uma operação
não meramente de baixo custo nos termos conhecidos de contabilidade,
mas especificamente sem envolver ouro ou prata. Deste modo, abriu-se o
fosso entre as áreas ricas e pobres do mundo na economia global. No longo
prazo, o tráfico funcionou como um meio de valorizar a força de trabalho
da África como mercadoria.

Subsídios indiretos no Velho Mundo


Dada esta falta paradoxal de fundos, no meio de tanto ouro e prata, pelo
menos nos domínios portugueses, um subtema importante que reaparece na
complicada série de etapas que marcaram o desenvolvimento do “complexo
do açúcar” seria a diminuição dos custos da expansão europeia para novas
zonas, o que levou gente ainda superficialmente financiada a afluir para
lá e aproveitar, adicionando sempre um elemento ao que eventualmente
se tomou o complexo do engenho. Um exemplo que inclui a escravatura:
a mão de obra africana não era, de fato, particularmente barata, mas na
África as secas e conflitos afins ou as guerras empreendidas por fatores
locais – ocasionalmente criavam refugiados cuja esperança de vida se
tomava tão precária que podiam ser comprados pelos europeus por muito
menos que o valor da mão de obra das pessoas que ali sobreviveriam.10 As
inclemências climáticas e as calamidades na África efetivamente subsidia-
vam, deste modo, os custos iniciais ao adicionar os africanos como escravos
à mistura que se tomou o complexo do engenho. Mais tarde, obviamente,
muitos grupos africanos, com o intuito de vender outros como escravos,
estabeleceram-se com os lucros derivados dos altos preços do século XVIII11

10 Um tema estabelecido há anos para as Ilhas do Cabo Verde: Antônio Correia Silva, “Subsí-
dios para a história geral do Cabo Verde: as secas e fomes nos séculos XVII e XVIII”, Studia,
no. 54 (1994), pp. 365-82; e para a África Ocidental em geral, George E. Brooks, Jr. Land-
lords and Strangers: Ecology, Societv, and Trade in Western Africa, 1000-1630, Boulder
CO: Westview Press, 1993. Para Angola. Joseph C. Miller, “Drought, Disease, and Famine
in the Agriculturally Marginal Zones of West-Central Africa”, Journal of African History,
vol. 23, no. 1 (1982), pp.17-61.
11 Patrick Manning, “Contours of Slavery and Social Change in Africa”, American Histori-
cal Review, vol. 88, no. 4 (1983), pp. 835-57 (tradução: “Escravidão e mudança social na
África”, Novos Estudos CEBRAP, no. 21 [1988]. pp. 8-29). Para o tráfico angolano: Joseph C.
Miller, “Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic. c. 1600-1830”, in Paul E. Love-
joy (org.), Africans in Bondage: Studies in Slavery and the Slave Trade (Madison: Afri-
can Studies Program, University of Wisconsin – Madison; University of Wisconsin Press,
1986), pp. 43-77 (baseado emMiller, “Quantities and Currencies: Bargaining for Slaves on
the Fringes of the World Capitalist Economy” [Comunicação ao congresso “Escravidão –
Congresso Internacional” [São Paulo, Brasil, 7-11 de junho de 1988]). Indicações de cálcu-
los deste tipo em: David Richardson, “Prices of Slaves in West and West-Central Africa: To-
ward an Annual Series, 1698-1807”, Bulletin of Economic Research, vol. 43, no. 1 (1991),

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 45


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e mantiveram os elevados índices de exportação de escravos durante este


século através de iniciativas que tiveram, na origem, uma maior integração
com a economia atlântica.
A economia política portuguesa de transportes, resultante do “comércio”
esporádico de mão de obra cativa africana no início das viagens ao longo
da costa, também forneceu mais um subsídio implícito, e imprevisto, para
levar cativos para Portugal e Espanha, os únicos mercados de trabalho
da época. Os cativos transportados nas viagens de regresso a Portugal
representavam pouco mais do que lastro para preencher os porões dos
navios. Estes saíam para o ultramar carregados com grande volume de
mercadorias, mas regressavam com minúsculas quantidades de ouro e
espaço vazio que era usado para o transporte de barris de água e seres
humanos, que ocupavam bastante espaço, embora fossem de baixo valor,
além dos mantimentos necessários para manter vivos os cativos durante
as longas semanas em que os navios permaneciam no mar. 12 O transporte
de pessoas em número significativo em viagens de alto mar, e de tão longa
duração, era uma inovação da tecnologia marítima europeia, que ocorreu
no momento próprio e sob circunstâncias oportunas, considerando-se
particularmente as restrições financeiras sob as quais os portugueses,
normalmente, negociavam na África.
Voltando dessas considerações gerais à componente histórica: de
fato, durante os séculos XIII ao XVI, a cana de açúcar foi cultivada no
Mediterrâneo em quantidades relativamente pequenas e, por conse-
guinte, não deverá espantar que o caráter comercial e capitalista de
sua produção – isto é, a qualidade que mais tarde definiu o complexo
escravo/açúcar – foi claramente abafado por padrões posteriores. Havia
pouca tecnologia dispendiosa; a posse da terra utilizada por vezes não
estava consolidada; as propriedades onde a cana de açúcar era cultivada
também produziam outros bens; e os escravos não eram particularmente
continuação 11

pp. 21-56, e Paul E. Lovejoy e David Richardson, “British Abolition and Its Impact on Slave
Prices Along the Atlantic Coast of Africa, 1783-1850”, Journal of Economic History, vol.
55, no. 1 (1995), pp. 98-119.
12 Para o tráfico português do século XV: Ivana Elbl, “The Volume of the Early Atlantic Slave
Trade, 1450-1521”, Journal of African History, vol. 38, no. 1 (1997), pp. 31-75; Paul E. H.
Hair, The Founding: of the Castelo de São Jorge da Mina, Madison: African Studies Pro-
gram, University of Wisconsin, 1994; Hair, “The Early Sources on Guinea", History in Af-
rica, no. 21 (1994), pp. 87-126. Abastecimento suficiente era a condição mais importante
da viagem com escravos: Joseph C. Miller, “Overcrowded and Undernourished: The Tech-
niques and Consequences of Tight-Packing in the Portuguese Southern Atlantic Slave
Trade”, in Serge Daget (org.), De la traite à l'esclavage (Actes du Colloque international
sur la traite des Noirs, Nantes 1985) (Paris/Nantes: Société Française d'Histoire d'Outre-
Mer and Centre de Recherche sur l’Histoire du Monde Atlantique, 1988), vol. 2, pp. 395-
424; David Richardson, “The Costs of Survival: The Transport of Slaves in the Middle Pas-
sage and the Profitability of the 18th-Century British Slave Trade”, Explorations in Eco-
nomic History, vol. 24, no. 2 (1987), pp. 178-96 (reeditado em Daget (org.), De la traite à
l’esclavage, vol. 2, pp. 169 81).

46 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

importantes como mão de obra, que tinha uma composição completamente


mista. Tão rica e sofisticada era a capacidade dos negociantes e banqueiros
na Itália renascentista que os cativos comprados em território eslavo da
Europa do Leste e para além das bordas do mar Negro pelos venezianos e
outros traficantes da época, eram demasiadamente valiosos para serem
empregados maciçamente na agricultura nos mercados de trabalho de
elevado custo das cidades islâmicas ao sul e a leste do Mediterrâneo, ou
nas cidades cristãs da Itália e da Península Ibérica. Nem tampouco os
italianos compravam na época muitos escravos provenientes da África,
cujos proprietários muçulmanos do Sudão, do Saara, das vilas do norte da
África, das cidades da costa suaíli e de outras partes do mundo islâmico,
mantinham ocupados muito mais próximos de suas terras natais.13 O preço
relativamente elevado da mão de obra escrava – inclusive a africana – era
um importante obstáculo e um “problema” que teria de ser resolvido antes
de os escravos se tomarem presença frequente na agricultura europeia
no Atlântico.

Mapa 1: A cana de açúcar no Velho Mundo

Fonte: Philip D. Curtin, The Rise and Fall of the Plantation Complex: Essays on Atlantic History
(Nova York, Cambridge University Press, 1990), p. 19.

13 A. C. de C. M. Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen in Portugal, 1441-


1555, Nova York: Cambridge University Press, 1982; mais abrangente, William D. Phillips,
Slavery from Roman Times, e Historia de la esclavitud en España, Madrid: Editorial Play-
or, 1990.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 47


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Esse complexo econômico envolvendo posse da terra, tecnologia


rudimentar, força de trabalho mista, com uso apenas parcial e até
mesmo marginal de escravos, além da integração da cana de açúcar
com uma agricultura de gêneros alimentícios e outras colheitas tí-
picas do Mediterrâneo, representava, de fato, combinações que mais
lembravam (pelo menos em retrospectiva) a propriedade feudal da alta
Idade Média do que a plantação moderna. Ainda com alguns escravos
à mão, o dono da propriedade dependia principalmente de servos e
camponeses, que se bastavam a si próprios. Os produtores de açúcar
do Velho Mundo dependiam cada vez mais dos impostos que cobravam
dos moradores que moíam cereais nas suas propriedades para pagar a
tecnologia inovadora e cara que adotaram, incluindo a adaptação dos
engenhos de açúcar hidráulicos, originalmente destinados ao preparo
do trigo e azeite, às exigências específicas do preparo do açúcar. Além
disso, tipicamente, os donos dos engenhos refinavam eles próprios o
açúcar e o vendiam diretamente aos consumidores nos mercados ur-
banos vizinhos. Deste modo, a produção de açúcar do velho continente
não antecipou as principais características dos engenhos americanos
posteriores: especialização na produção de bens para exportação, até
mesmo a monocultura, processamento reduzido a uma primeira fase
de semi­a cabamento, com tecnologia muito especializada, mão de obra
exclusivamente escrava e uma posse de terra consolidada.
Em termos teóricos, é possível discutir se esta aplicação de técnicas
conhecidas a uma planta nova, no contexto da agricultura medieval, nas
ilhas e nas bordas do Mediterrâneo, constituiu ou não uma novidade
suficientemente distinta para caracterizar uma fase “originária” do que
depois passou a se desenvolver nas ilhas atlânticas e do outro lado do
oceano. Para o historiador, a distinção entre a extensão do velho e a origem
do novo não se encontra na esfera do abstrato, mas nas mentalidades e
estratégias concretas e conscientes, embora talvez ambíguas, dos proprie-
tários agrícolas; no nosso caso, o importante é a intenção de inovar e o
investimento de mais recursos para-alterar suas fazendas para sustentar
o novo. Esta mudança substancial ocorreu mais tarde, à medida em que
comerciantes especializados e agricultores cada vez mais dedicados ao
açúcar partiram para as ilhas e depois para o outro lado do Atlântico. É
de fato possível registrar e calcular o lento crescimento através do qual
eles consolidaram cada um dos elementos, já enumerados, da agricultura
açucareira desenvolvida e trabalhada por mão de obra escrava, entre
cerca de 1500 e 1700.
Uma vez que se tratava de uma questão de organizar recursos novos
para fins inovadores, estes investimentos se concretizaram apesar de
constantes e significativas restrições, sob a forma de falta do capital
necessário para assegurar os altos riscos e custos para estender o co-
mércio e a produção para além-mar, e a ritmos rápidos. Um obstáculo

48 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

comum subjacente ao ritmo e modo de integração econômica do Atlântico,


da escravidão e do comércio de escravos, foram certos acontecimentos
estranhos às intenções dos aventureiros, homens de negócio, proprie-
tários agrícolas ou dos capitães de navios que terminaram superando
dificuldades e facilitando etapas imprevistas através das quais todos,
em conjunto, passaram para mundos novos e inesperados.
Se inicialmente o recurso a africanos escravizados frequentemente
tinha como origem reações violentas a crises econômicas temporárias
ou a crises ecológicas e – mais significativamente – não implicava um
considerável investimento em dinheiro, os primeiros portugueses que
navegaram na costa africana foram arrastados para o comércio de
escravos sem planejamento ou financiamento. Os europeus tiveram
de enfrentar uma falta de capital relacionada ao desafio de competir
com redes de comércio muçulmanas florescentes na África Ocidental
e, por conseguinte, tiveram de enveredar pelo negócio sujo e arriscado
de negociar pessoas, por vezes violentamente, quando se viram impos-
sibilitados de comprar, a preços correntes, as quantidades de ouro e
outras mercadorias de que necessitavam para cobrir os custos de suas
expedições à África.
Essas circunstâncias, que ocorreram repetidamente neste pro-
cesso (como geralmente em toda a história), representam a “lei das
consequências não projetadas” e sublinham a natureza inadvertida
(ou oportunista) de muitas mudanças históricas ou de “decisões irre-
fletidas”, na famosa expressão de Winthrop Jordan, descrevendo como
os ingleses na América do Norte se viram amarrados à escravidão.14
A importância de potencialidades imprevistas deste teor é um outro
exemplo das perdas a que os historiadores estão sujeitos por focalizar
as “instituições” que se encontram no centro ideológico estável da vida
humana, a parte racionalizada, calculada, o segmento da experiência mais
resistente à mudança, por oposição às margens e às fronteiras onde a
inovação, o desafio e a mudança surgem, num processo análogo à célebre
caracterização que fez Marc Bloch dos tipos de dados mais importantes:
“evidências, apesar delas próprias” . 15

14 A expressão (“unthinking decision”) vem do livro seminal, no campo da história da


escravidão nos EUA, de Winthrop D. Jordan, White Over Black: American Attitudes
Toward the Negro, 1550 - 1812, Chapel Hill: University of North Carolina Press,
1968.
15 Marc Bloch, The Historian's Craft, Manchester: Manchester University Press, 1984.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 49


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Mapa 2: O mundo Atlântico

Fonte: Curtin, The Rise and Fall of the Plantation Complex, p. 20.

50 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Estes processos atestam a espontaneidade e a criatividade da


mente humana, a elasticidade humana em transpor obstáculos e – na
expressão atualmente em voga em estudos históricos – mostram a
possibilidade de o “agente” ser verdadeiramente efetivo, coletivamente
e até mesmo individualmente. São também processos sobretudo e
apenas detectáveis na longue durée, por definição não conscientes
e, de alguma forma, o resultado coletivo bem-sucedido de fracassos
individuais. Estes processos podem ser observados através da intuição
e dedução do historiador, mas não propriamente documentados no
sentido convencional da percepção direta, tipo “testemunha ocular”;
as suas provas são mais dignas de confiança quase porque não foram
observadas e, por esta razão, não poderiam ser apresentadas em re-
presentações distorcidas. Por acaso, este é o tipo de história wigwam 16
que os especialistas em estudos africanos – e agora em muitas outras
especialidades – desenvolveram em escala menor, embora inicialmente
com um toque de culpa, motivados pela incapacidade de documentar
a história através de documentos cônscios de seus próprios atos. A
implicação teórica é que isso tem validade metodológica e torna-se
significativo na escala supra individual da história mundial.

Os acasos do Atlântico Oriental


Apesar dos antecedentes do cultivo da cana de açúcar no Mediter-
râneo, os escravos africanos, e até o açúcar, só aos poucos se tornaram
notados entre as várias formas de exploração empregadas inicialmente
na maioria das ilhas do Atlântico oriental – Madeira, Canárias, São
Tomé –, no nordeste Brasileiro e mesmo nas Antilhas, inclusive Barba-
dos e Jamaica. Os africanos inicialmente escravizados pelos europeus
continuaram o antigo fluxo de mão de obra cativa para as cidades do
mundo Mediterrâneo, onde eram vendidos a preços vantajosos. A falta
de capital explica algumas das razões pelas quais o uso do açúcar e de
escravos (e de plantações) foi adiado. Olhando para trás, do ponto de
vista da importância subsequente da cana de açúcar, especialmente
no Brasil e no Caribe, é fácil omitir o fato de que a economia de cada
ilha, durante os seus anos de formação, passou por uma fase – às vezes
longa – de luta espantosamente semelhante a uma série de outras
estratégias de desenvolvimento de baixo investimento, antes de ini-
ciado um percurso vacilante rumo a uma eventual especialização de

16 Tenda de índios norte-americanos, com paus fixados em ângulos precários como se es-
tivessem isolados, mas amarrados juntos para estabelecer uma estrutura triangular
muito estável; frase de Robin Winks, (org.), Slavery: A Comparative Perspective: Rea-
dings on Slavery from Ancient Times to the Present, Nova York: New York University
Press, 1972.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 51


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alto investimento em açúcar e a uma escravidão africana de alto custo.


Cada ilha (e a costa brasileira, que não era detentora de ouro ou prata)
estreou no comércio atlântico como fonte de extração de madeiras
exóticas ou produtos naturais de tinturaria. Essas primeiras empresas
de extração eram métodos de exploração de territórios virgens que
não só tiravam proveito da abundância natural, mas que também, em
termos das restrições financeiras que operavam no crescimento da
economia atlântica, exigiam pouco mais investimento de capital do
que meros campos para forragem. Depois, normalmente, seguia-se
a caça de gado selvagem, descendentes de animais deixados para se
reproduzirem sem limites em terras ainda desocupadas. Esta era uma
estratégia que, mais uma vez, exigia pouco ou nenhum capital investido
em mão de obra ou equipamento.
Em seguida, os colonos que se financiaram a si próprios (ou foram
apoiados de alguma forma) tipicamente estabeleciam-se como pequenos
agricultores, a princípio servindo-se da mão de-obra da família, embora
mais tarde incluíssem servos temporários quando o financiamento
das passagens transoceânicas destas pessoas se tornou disponível,
se bem que limitado. Os colonos aumentaram as áreas desbravadas
e começaram a melhorar as terras desabitadas sem necessidade de
grandes investimentos. A irrelevância da experiência mediterrânea
do cultivo da cana de açúcar, em relação a estas alternativas de baixo
custo, verdadeiras estratégias de desenvolvimento desta atividade no
Atlântico, dificilmente seria demonstrada de forma mais convincente.
Ao mesmo tempo, os escravos comprados na África eram destinados
aos mercados mais ricos da Europa, mercados urbanos monetarizados,
onde geravam dinheiro já no momento da sua venda, sem a necessidade
de emprega-los em locais remotos – no sentido estrutural, além de
geográfico.

52 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Mapa 3: Rotas das caravanas de escravos

Fonte: Michael L. Conniff e Thomas J. Davis, Africans in the Americas: A History of the Black
Diaspora, Nova York: St. Martin’s Press, 1994, p. 18.

Somente após uma geração, ou às vezes duas, é que os investidores


europeus finalmente acumularam fundos suficientes para assegurar
o funcionamento dos engenhos e, nas ilhas áridas, os mecanismos de
irrigação de elevado custo, necessários à produção do açúcar. Até
então, já pelo século XVII adentro, a consolidação da posse da terra e a
produção retardaram-se. 0s engenhos nas ilhas atlânticas processavam
a cana cultivada em pequenas parcelas, por pequenos proprietários
de terra, e colhida por mão de obra de vários tipos, inclusive escrava.
Até mesmo os ricos negociantes genoveses de finais do século XV,
que apoiaram esta virada vacilante para a produção de açúcar e o uso
de escravos nas ilhas do Atlântico, ainda não dispunham de recursos
financeiros para fundar os engenhos integrados e trabalhados por
escravos, do tipo que posteriormente se tomou modelo no Caribe no
século XVIII.
Um passo significativo rumo ao engenho, à moderna “fábrica do
campo”, integrada e altamente especializada, trabalhada exclusivamente
por escravos, teve lugar na década de 1520 em São Tomé, a pequena e
remota ilha equatorial localizada no golfo da Guiné, que se tornou líder

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 53


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mundial na produção de açúcar entre 1530 e 1560. 17 Em São Tomé, mes-


mo sem um notório aumento no fornecimento de capital proveniente
da Europa, outros subsídios não monetários disponíveis fizeram com
que a produção de açúcar, a uma escala superior com força de trabalho
africana para lá levada em regime de cativeiro. A principal redução de
custos, que permitiu esta virada para a mão de obra africana escrava,
veio sob a forma de um rebaixamento puramente circunstancial do
preço das pessoas nos mercados disponíveis na África. O preço baixou
no litoral africano a partir do momento em que os portugueses viajaram
para o sul e estabeleceram contato, ao longo da década de 1490, com as
populações da foz do rio Congo, longe das economias mais comercializadas
da África Ocidental, com as suas florescentes trocas de excedentes entre
a floresta e a savana, e com o deserto e o Mediterrâneo, estas últimas
trocas financiadas pelos muçulmanos.
São Tomé também possuía um clima totalmente tropical, com
pluviosidade suficiente para pôr de lado a necessidade de irrigação
para a produção de açúcar, o que tinha caracterizado o Mediterrâneo
subtropical e as ilhas do Atlântico oriental, onde a ocorrência de chuvas
era notoriamente incerta. São Tomé, como ilha equatorial, também
tinha uma época de cultivo suficientemente longa para permitir o
emprego da força de trabalho nos campos de cana-de açúcar durante
todo o ano, desta forma cobrindo melhor a despesa para sustentar a
ainda cara (mesmo que menos cara) mão de obra escrava da África. A
proximidade geográfica entre São Tomé e as fontes de mão de obra na
parte central do continente Africano, também reduziu os custos do
transporte marítimo através da redução dos mantimentos e da água
necessários à alimentação das pessoas deslocadas e (presumivelmente)
diminuiu também a incidência de mortes. Desta maneira deu-se início
a uma especializada indústria de transporte de escravos em São Tomé,
embora localizada, dominada pelos cultivadores “tomistas” da ilha e não
pelos portugueses peninsulares ou pelos genoveses. Este tráfico ainda
era bastante rudimentar e com técnicas quase incapazes de suportar
quantidades grandes de escravos em prolongadas viagens no alto mar.
Mas estes subsídios circunstanciais foram suficientes para manter
o desenvolvimento de uma especialização em açúcar na pequena ilha.
Surgiu, portanto em São Tomé uma concentração num só produto, com
escravos trabalhando na produção e processamento de açúcar mascavado
semirrefinado, um tipo de açúcar estabilizado e concentrado exclusi-
vamente para poder ser transportado com segurança para mercados
mais distantes na Europa. O capital financeiro italiano foi, por sua vez,

17 Robert A. Garfield. History of São Tomé Island 1470-1655: The Key to Guinea, San Fran-
cisco: Mellon, 1992.

54 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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atraído pela oportunidade de ganhar com o refino do açúcar mascavado


em território europeu e em lá vendê-lo, o que fez com que os lucros
obtidos fossem desviados dos donos das plantações com escravos nos
trópicos para as mãos dos refinadores, mais próximos dos mercados
finais de consumo europeus. Mais tarde, obviamente, os portugueses
no Brasil, com apoio financeiro dos holandeses, e depois os franceses e
os ingleses nas Antilhas, aperfeiçoaram esta nascente especialização
funcional entre 18 o engenho e a economia industrial da metrópole a
níveis muito mais elevados e sob o estímulo do investimento de usi-
neiros sediados na Europa. Mas lá, em São Tomé, os colonos optaram
definitivamente por escravos como trabalhadores nas plantações de
cana e por um sistemático comércio local de escravos, principalmente da
região de Angola e do Sul do Congo, onde se abasteciam. Mesmo assim,
as plantações de cana em São Tomé ainda estavam aquém dos engenhos
totalmente integrados que surgiriam mais tarde no Caribe, pois lá os
escravos viviam em aldeias como camponeses, e não em senzalas, e se
responsabilizavam pelo próprio sustento, em vez de viverem das rações
fornecidas por seus senhores e compradas no estrangeiro. 19
A história do processo de formação da economia do Atlântico passou
posteriormente para o outro lado do oceano, para Hispañola (posterior-
mente São Domingos, a francesa Saint Domingue, depois chamada de
Haiti), onde os espanhóis experimentaram brevemente, e com pouco
êxito, o cultivo do açúcar durante praticamente os mesmos anos em que
São Tomé prosperava no golfo da Guiné. Já que o envolvimento espanhol
com açúcar e escravos no Caribe deu poucos resultados, este precoce
insucesso do açúcar sublinha claramente a influência retardadora da
problemática oferta de mão de obra e de falta de capital para a escra-
vidão e a economia atlântica nestes primeiros anos. Posteriormente,
no século XVIII, sob condições de relativamente grande abastecimento
de capital e escravos, Saint Domingue e mais tarde Cuba tomaram-se
os maiores produtores de açúcar no Caribe. No século XVI, nem o capi-
talismo europeu nem o fornecimento de escravos africanos tinham se
desenvolvido o suficiente para tomar viável o açúcar no Novo Mundo. A
possibilidade de pilhagem e a existência de prata na parte continental
das Américas também eram suficientemente amplas e correspondiam
aos interesses dos espanhóis, e assim eles não tiveram que investir em
setores de segundo plano, como o açúcar.

18 Esta narrativa existe no texto erudito e agradável de Alberto da Costa e Silva, A enxada e
a lança: a África antes dos portugueses, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, esp.
caps. 9, 11, 13, 16-18, 21-23.
19 Isabel de Castro Henriques, “Ser escravo em S. Tomé no século XVI: uma outra leitura
de um mesmo quotidiano”, Revista Internacional de Estudos Africanos, no. 6-7 (1987),
pp. 167-78.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 55


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Apesar dessas limitações, ou talvez motivadas por elas próprias,


Española e Cuba tomaram-se local do próximo passo significativo para
a gradual elaboração do complexo do engenho: consolidação e proteção
legal da posse da terra e da infraestrutura produtiva nelas construí-
da. Esta importante inovação na escala e na organização emergiu da
prática dos reis espanhóis de concederem vastas concessões de terras
americanas a seus súditos leais, de forma a incentivar a ocupação e a
defesa do território conquistado à custa do que restava dos impotentes
habitantes nativos espalhados por esses domínios. Por volta de 1529
se seguiu a promulgação de um decreto fundamental, que se tomaria
típico das economias de açúcar americanas, protegendo senhores de
engenhos e de escravos do Novo Mundo contra confisco e dispersão de
bens em caso de insolvência financeira. Os investidores europeus – em
Hispañola eram ainda os genoveses ou os alemães Welsers, banqueiros
de Carlos V – reconheciam o valor dos bens como garantia adicional. A
dívida, terceira componente econômica dos engenhos, tomou-se deste
modo notável muito mais do que fora em São Tomé.
O crédito que os banqueiros punham à disposição dos colonos e a
segurança legal dada a estes contra o confisco de bens fizeram com
que a consolidação da posse de engenhos caros e da força de trabalho
escrava, de custo elevado, fossem mais viáveis financeiramente. O
dono de uma propriedade estável, onde pudesse empregar escravos,
tinha para adquiri-los a garantia adicional de poder pedir dinheiro
emprestado. Esta proteção legal funcionou como as formas anteriores
de "subsídio" indireto ou, melhor dizendo, não-monetário. Mas aqui,
no contexto econômico da prata espanhola do Novo Mundo, entrava
na esfera financeira, permitindo àqueles que dispusessem de recur-
sos uma maior posse e controle de terras, bem como de escravos. A
partir daí o endividamento tomou-se uma característica estrutural
nos vários setores da agricultura escravista das economias ameri-
canas, e o meio através do qual posteriormente foram financiadas
as plantações, os engenhos e os navios carregados de escravos que
lhes traziam mão de obra.
Todavia, a combinação de características que daria origem a um
complexo canavieiro desenvolvido estava longe de acabada em His-
pañola. Pequenos engenhos trabalhados por animais, tais como os do
Mediterrâneo, ainda competiam aqui com os engenhos hidráulicos,
financiados por grandes investidores estrangeiros e capazes de moer
grandes quantidades de cana de açúcar. E quando se esgotaram os
filões de ouro das ilhas (São Domingos, Porto Rico, Cuba) e a prata do
continente americano atraiu os principais fluxos de capital para os
domínios espanhóis, longe da agricultura residual do Caribe, a organi-
zação da produção de açúcar nas ilhas espanholas voltou às pequenas
quintas trabalhadas pelos colonos em regime de mão de obra familiar e

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COLEÇÃO UNIAFRO

não por escravos, semelhante às anteriores fases de desenvolvimento


de baixo investimento nas ilhas orientais do Atlântico.

Passos pequenos nas Américas

Mapa 4: O Caribe escravista

Fonte: Conniff e Davis, Africans in the Americas, p. 72.

Foi no nordeste brasileiro, após cerca de 1570, como todos sabem,


onde finalmente se desenvolveu a monocultura do açúcar a uma escala
significativa e duradoura, e os portugueses aí radicados utilizaram es-
cravos africanos pela primeira vez em grande número no Novo Mundo.
Embora tivesse nascido assim o importante setor de comércio negreiro
– um passo fundamental rumo ao complexo americano canavieiro, com
escravos e engenhos, característico do século XVIII – ainda temos somente
um momento num processo contínuo. Durante cerca de meio século,
antes da década de 1570, o Brasil tinha as mesmas estratégias de baixo
investimento usadas nas ilhas orientais do Atlântico; no início abatendo
as árvores de pau-brasil que deram à região seu próprio nome, e mais
tarde tentando sem sucesso a exploração da cana, em competição com a

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 57


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

economia então florescente de São Tomé. Os aventureiros portugueses


ativos no Brasil nesses anos não dispunham do capital necessário para
esta tarefa, e os meios de transportar eficientemente grande número
de escravos através do Atlântico ainda não existiam. 20
Os colonos brasileiros voltaram-se, inicialmente, para a mão de obra
indígena capturada localmente ou comprada aos caçadores de escravos
paulistas, os bandeirantes, que se fixaram no Sudeste. Como escravos, os
índios eram notoriamente difíceis de controlar e inclinados a desertar
para as conhecidas florestas que os rodeavam. Embora trabalhassem
muito pouco, sofressem cruelmente e morressem devido ao contato com
as doenças europeias, eles, todavia, ofereciam uma vantagem crucial
neste período inicial: o fato de serem adquiridos por uma pequena fração
dos custos da mão de obra africana. Igualmente importante é o fato de
que podiam ser trocados por mercadorias, ou simplesmente capturados,
em vez de exigirem um dispêndio em moeda (ou notas), como o exigiam
os africanos vendidos pelos comerciantes europeus. O baixo custo dos
indígenas, por conseguinte, compensou as severas desvantagens que
tinham como escravos. O seu uso inicial nos engenhos brasileiros – e o
mesmo tipo de expediente também marcou os primeiros anos das colônias
espanholas mais pobres, das colônias holandesas no Caribe e até mesmo
de algumas das primeiras colônias na América do Norte 21 – resultou
da falta de capital e particularmente de dinheiro de fácil acesso. Isso
predominou no mundo atlântico do século XVI, e por muito tempo ainda
continuaria a caracterizar as colônias novas e periféricas, incapazes de
competir com as ilhas canavieiras mais ricas e estabelecidas.
A virada definitiva em favor do uso de escravos africanos, de custo
elevado, nas Américas ocorreu somente ao longo das últimas décadas
do século XVI, quando várias circunstâncias, mais uma vez aleatórias,
reduziram o preço da mão de obra na África. O açúcar de São Tomé se
arruinou na década de 1560, depois de uma revolta levada a cabo por
escravos para ali trazidos nas décadas anteriores. 22 E na África central
o preço dos escravos baixou subitamente. As terras ao sul do Congo,
conhecidas desde então por Angola, eram propensas a secas prolongadas
e, ao longo da década de 1570, entraram num período de grave estiagem,
instabilidade política e guerra. 23 Alguns aventureiros portugueses

20 Harold B. Johnson, “The Portuguese Settlement of Brazil”, in Leslie Bethell (org.), The
Cambridge History of Latin America (Nova York: Cambridge University Press, 1984), vol.
1, pp. 249-86.
21 Joseph C. Miller, “The Slave Trade”, in Jacob Ernest Cooke (org.), Encyclopedia of the North
American Colonies (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1993), vol. 2, pp. 45-66.
22 Jan Vansina, “Quilombos on São Tomé, or In Search of Original Sources”, History in Africa,
no. 23 (1996), pp. 453-59.
23 Miller, “Drought, Disease, and Famine”.

58 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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surgiram em cena por essa época numa quixotesca procura de metais


preciosos – haveriam montanhas de prata -, e ali estabeleceram uma
base militar. 24 Quando os filões de prata se revelaram ilusórios, os
portugueses se voltaram para as pessoas deixadas à deriva pela seca
e pelas guerras entre os africanos, e elas, vendidas a preços irrisórios,
foram transportadas como escravos para as Américas, tanto para os
domínios metalíferos dos espanhóis como para o Brasil, a preços que
até mesmo os colonos da Bahia e de Pernambuco, com suas dificuldades
econômicas, tinham possibilidade de adquirir.
O terceiro elemento crucial que, finalmente, possibilitou aos
brasileiros adquirir estes escravos foi o capital holandês, que teve
o seu primeiro prodigioso investimento nas Américas precisamente
no nordeste brasileiro. 25 Aproveitando-se dos precedentes legais do
império espanhol, que protegia os proprietários de terras e escravos,
os cristãos-novos portugueses, fugidos da inquisição espanhola em
Portugal para os Países Baixos, e os investidores holandeses, nova-
mente interessados nos lucros do refino e venda de açúcar mascavado
brasileiro na Europa, proporcionaram aos colonos de Pernambuco e da
Bahia o financiamento de escravos e a construção de grandes e caros
engenhos de açúcar, nas extensas terras que tinham obtido de monarcas
ansiosos por atrair imigrantes àquelas remotas possessões. Todos estes
fatores permitiram aos brasileiros do Nordeste combinar os elementos
estabelecidos anteriormente, embora em escala muito menor, em São
Tomé e São Domingos: escravos africanos a trabalhar em propriedades
altamente – e seguramente – financiadas e endividadas.
A economia política do tráfico atlântico de escravos tornou-se a
essa altura um significativo apoio para a concretização da escravidão no
Novo Mundo. Durante a união de Portugal com a Espanha, da década de
1580 até a de 1630, os mercadores portugueses, muitos deles também
de ascendência judaica, não só viram nos investimentos holandeses

24 Beatrix Heintze, Studien zur Geschichte Angolas in 16, und 17. Jahrhundert: ein Lese-
buch (Köln: Rüdiger Köppe Verlag, 1996); incluindo “Das Ende des unabhängigen Staates
Ndongo (Angola)”, Paideuma, no. 27 (1981), pp. 197-273; “Der portugiesische Besiedlungs-
und Wirtschaftspolitik in Angola, 1570-1607”, Aufsätze zur portugiesischen Kulturges-
chichte, no. 17 (1981-82), pp. 200-219; “Waren die Tage des Königreichs Ndongo nach
Ankunft der Portugiesen gezählt? Zum Handlungsspielraum des ngola 1575-1671”, Sae-
culum, vol. 34, no. 3-4 (1986), pp. 270-90; também “Unbekanntes Angola: der Staat Ndon-
go im 16. Jahrhundert”, Anthropos, no. 72 (1977), pp. 749-805; e Ilídio do Amaral, O Reino
do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), o Reino dos “Ngola”(ou de Angola) e a presença por-
tuguesa, de finais do século XV a meados do século XVI, Lisboa: Ministério de Ciência e da
Tecnologia, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1996.
25 Schwartz, Sugar Plantations; José Gonçalves Salvador, Cristãos-novos e o comércio no
Atlântico meridional (com enfoque nas capitanias do Sul 1530-1680), São Paulo: Pionei-
ra/Brasília, Instituto do Livro, 1978.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 59


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no Brasil um incentivo, como também obtiveram um outro tipo de


subsídio: o acesso que a união política lhes dava à prata espanhola.
Adaptaram-se através do desenvolvimento de técnicas de transporte
de grandes quantidades de africanos nas viagens transatlânticas. Seria
interessante analisar cuidadosamente o comércio do asiento espanhol
do século XVI, em termos da sua tecnologia de transporte, para calcular
quais os desenvolvimentos tecnológicos que converteram o tráfico
de escravos – um comércio subsidiário português para a Europa nos
primeiros anos do século XVI, e um comércio local e de curto alcance
do Congo e de Angola para São Tomé em meados desse século – num
negócio de grande escala, sediado na Europa e, após 1600, capaz de
transportar africanos aos milhares para as Américas.26 Os holandeses,
claro, aperfeiçoaram muito mais essas técnicas marítimas depois
de 1620 e encaminharam o comércio transatlântico para os níveis
de eficácia posteriores. 27 Cinquenta anos mais tarde, na altura das
últimas décadas do século XVII, os holandeses e os ingleses já tinham
aperfeiçoado a organização empresarial do comércio negreiro, quando
métodos mercantis de aquisição de escravos substituíram a pura rapina
em Angola e as firmas comerciais europeias substituíram as gerações
anteriores de piratas e senhores de escravos do Caribe.
Um outro componente essencial da clássica monocultura da cana, os
engenhos de alta eficiência, com três cilindros, o verdadeiro “engenho”

26 Um projeto ainda para o futuro neste ramo de pesquisas. Ver Alejandro de la Fuente Gar-
cía, “El mercado esclavista habanero, 1580-1699: las armazones de esclavos”, Revista de
Índias, vol. 50, no. 189 (1990), pp. 371- 395; Lutgardo Garcia Fuentes, “La introducción de
esclavos en Índias desde Sevilla en el siglo XVI”, in Andalucía y América en el siglo XVI
(Actas de las II Jornadas de Andalucía y América - Universidad de Santa María de la Rá-
bida, Março 1982) (Sevilha: Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilla, 1993).
vol. 1, pp. 249-274; Lorenzo E. López y Sebastián e Justo L. del Rio Moreno, “Comercio y
transporte en la economia del azucar antillano durante el siglo XVI”, Anuario de estudios
americanos, no. 49 (1992), pp. 55-87; Esteban Mira Caballos, “Las licencias de esclavos ne-
gros a Hispanoamérica (1544-1550)”, Revista de Índias, no. 201 (1994), pp. 273-99. Entre
estudos mais antigos: Carlos Sempat Assadourian, El tráfico de esclavos en Córdoba de
Angola a Potosi. siglos XVI-XVII, Córdoba: Dirección General de Publicaciones, 1966; Vi-
centa Cortés Alonso, “La trata de esclavos durante los primeros descubrimientos (1489-
1516)”, Anuario de Estudios Atlánticos, no. 9 (1963), pp. 23-50; Rozendo Sampaio Garcia,
“Contribuição ao estudo do aprovisionamento de escravos negros na América Espanhola
(1580 - 1640)”, Anais do Museu Paulista, no. 16 (1962), pp. 1-195; Enriqueta Vila Vilar, “Los
asientos portugueses y el contrabando de negros”, Anuario de Estudios Americanos, no.
30 (1973). pp. 557-609; idem, Hispanoamérica y el comercio de esclavos: los asientos por-
tugueses, Sevilha: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1977; e o clássico de Geor-
ges Scelle, La trarte négrière aux Indes de Castille, contrats et traités d’assiento: étude
de droit public et histoire diplomatique puisée aux sources originales et accompagnée de
plusíeurs documents inédits, Paris: L. Larose et L. Tenin, 1906.
27 Johannes Postma. The Dutch in the Atlantic Slave Trade 1600-1815, Nova York: Cam-
bridge University Press, 1990.

60 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

do Brasil, tornou-se uma importante contribuição à consolidação do


açúcar e da escravidão no nordeste brasileiro, por volta da década de
1620. Este tipo de engenho podia processar grandes colheitas, prove-
nientes de vastos campos de cana completamente cultivados, e foi tão
inovador e importante para a nova organização do cultivo da cana no
Brasil que o equivalente português para o termo espanhol (ingenio)
passaria a designar todo o complexo de dispositivos criados para ali-
mentar a capacidade voraz daquela engrenagem. Estimulou-se, deste
modo, a consolidação da agricultura de monocultura para exportação.
As terras em volta do engenho foram dedicadas exclusivamente à
cana, terras estas que foram desbravadas e suas florestas utilizadas
para ferver o caldo da planta. Também lá havia a criação de animais,
especialmente de bois que serviam como força motriz para mover os
engenhos, bem como para transportar a cana cortada. Mas os rebanhos
eram mantidos nas terras mais secas (do contrário inaproveitáveis)
do interior, em vez de criarem-se nos arredores dos campos de cana. 28
O cultivo de cana era tão especializado que a própria comida
dos escravos vinha de áreas tão remotas como o sul do Brasil – da
baía de Guanabara, ou do Rio de Janeiro – onde a mandioca era cul-
tivada, não por escravos africanos, demasiado caros para o cultivo
de gêneros alimentícios que não pudessem ser vendidos na Europa
a troco de moeda, mas ao contrário, pelos mais acessíveis escravos
indígenas capturados no interior. A escravização de nativos foi deste
modo estimulada, uma vez mais, devido à incapacidade de uma área
marginal, ainda em fase inicial de crescimento econômico, de competir
por mão de obra africana de preço elevado com as economias de ex-
portação mais velhas e já estabelecidas. E os escravos africanos – ao
contrário do que ocorreria posteriormente no Caribe e em particular
na América do Norte – eram demasiado escassos e valiosos para serem
desperdiçados no cultivo de gêneros alimentícios. 29
Mesmo assim, a organização do cultivo da cana em Pernambuco e na
Bahia não tinha chegado ao ponto do futuro modelo caribenho de plantação
completamente integrada. No Nordeste brasileiro, um resíduo de tempos
remotos e menos especializados ainda estava patente no tamanho médio
das propriedades, comparado com padrões posteriores, e numa divisão de
cultivo da cana entre certo número de lavradores, alguns dos quais com
posse de terras demasiado modesta. Dentro das grandes extensões de
terras necessárias à produção da cana para alimentar incessantemente
as rodas do engenho, os pequenos lavradores de cana punham os seus

28 Schwartz. Sugar Plantations.


29 Entre muitos: Jay Alan Coughtry, The Notorious Triangle: Rhode Island and African Slave
Trade, 1700-1807, Filadelfia: Temple University Press, 1981.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 61


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próprios escravos a trabalhar para produzir para o enorme engenho


central do dono das terras. Estes lavradores tinham uma qualidade
medieval, quase como se fossem servos, na forma como ocupavam a
terra e pagavam impostos ao seu dono (ou senhor) para que pudessem
processar a sua colheita, embora fossem completamente capitalistas no
que toca à especialização da cultura, no uso de escravos para cultivar
a cana e no destino que davam ao açúcar mascavado. Toda a riqueza e
perspicácia comercial dos credores holandeses que financiaram o açúcar
brasileiro, aparentemente, foram insuficientes – os riscos associados
com a posição tênue dos holandeses nos domínios portugueses dema-
siado elevados – para eliminar este último renascimento de contratos
pré-capitalistas, estimulados, contraditoriamente, pela expansão da
escala de processamento e colocação do açúcar no mercado.
O engenho capitalista completamente integrado – isto é, não só
trabalhado por escravos africanos, mas também consolidado em termos
de sua posse emergiu finalmente no Caribe, mas mesmo lá isto não se
deu no início. O cultivo do açúcar começou nas Antilhas com a retirada,
para Barbados, dos holandeses e seus investimentos no Brasil, nas dé-
cadas de 1640 e 1650. A plantation clássica ali tomou forma somente
através de mais alguns passos adicionais. Apoiando-se no capital holan-
dês, monarquistas exilados da Inglaterra revolucionária empregaram
uma população constituída por pequenos lavradores, embora com os
proprietários dos engenhos ainda processando a cana de açúcar de
pequenos proprietários, segundo o modelo brasileiro. 30 Com o tempo
(após 1672), os capitais comerciais ingleses, tendo como braço direito a
Royal African Company, uniram-se, entre outras coisas, para expulsar
os pequenos lavradores, providenciando o crédito significativamente
sob a forma de escravos para consolidar em Barbados os três elementos
clássicos de produção: a mão de obra escrava, a terra e a tecnologia.
Em termos da economia política de transportes no Atlântico, a Royal
African Company trouxe novo potencial de suprimento de escravos,
regularizando a oferta de trabalho e reduzindo a irregularidade de suas
viagens – se não reduzindo os próprios custos para baixar os riscos de

30 Entre os seus vários estudos: Hilary McD. Beckles, “’Black Men in White Skins’: The For-
mation of a White Proletariat in West Indian Slave Society”, Journal of Imperial and Com-
monwealth History, vol. 15, no. 1 (1986), pp. 5-21; “Black over White: The ‘Poor White’
Problem in Barbados Slave Society”, Immigrants and Minorities, vol. 7, no. 1 (1988), pp.
1-15; “The Economic Origins of Black Slavery in the West Indies, 1640-1680: A Tentative
Analysis of the Barbados Model”, Journal of Caribbean History, no. 16 (1982). pp 36-56;
White Servitude and Black Slavery in Barbados. 1627-1715, Knoxville: University of Ten-
nessee Press, 1989; em co-autoria com Andrew Downes, “An Econornic Fomalization of
the Origins of Black Slavery in the British West Indies, 1624-1645”, Social and Economic
Studies, vol. 34, no. 2 (1985). pp. 1-25.

62 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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investimento nos engenhos.31 A princípio, a companhia parece ter atuado


no fornecimento de escravos de uma forma tão eficiente que o número
transportado excedeu a capacidade de absorção das ainda jovens e mo-
netariamente indigentes plantações de Barbados. Naquela fase, ainda é
possível perceber-se a fragilidade econômica no transporte de escravos,
de forma que a companhia só atravessava o Atlântico sob proteção dos
direitos de monopólio e outros privilégios. Ela também teve de criar um
mercado para os seus próprios escravos, financiando os colonos barba-
dianos nas suas compras de cativos trazidos da África. O interesse da
companhia em investir nos escravos do Novo Mundo demonstra o quanto
a dívida comercial era fundamental para a expansão do açúcar em sua
fase inicial. E, mais uma vez, nos primórdios dessa era, uma estratégia
de crédito acarretava riscos sérios, já que muito deste investimento
gerava perdas para a empresa impossíveis de recuperação. Era mais um
“subsídio” à própria escravidão, mais uma vez não intencional e, neste
caso, de natureza diretamente financeira.

Mudanças na continuidade
Todos os elementos de um sistema agrícola maduro estavam, fi-
nalmente, nos seus devidos lugares no início do século XVIII, apoiados
a partir daí por uma rede de comércio de escravos eficiente, liderada
pelos chamados “comerciantes livres” atraídos pelos ganhos financeiros
que, por essa época, já estavam à disposição de indivíduos habilidosos e
afortunados, integrados às extensas propriedades canavieiras da Jamaica
e Saint Domingue. Esta combinação, todavia, permaneceu tão dispendiosa
que somente se difundiu pelas ilhas inglesas do Caribe através de uma
política de subsídios adicionais indiretos, por exemplo, a grande ferti-
lidade de terras virgens e gratuitas, a lenha barata da Jamaica e outras
ilhas do Caribe, as oportunidades que os traficantes de escravos tinham
de compensar o risco de vender a colonos endividados com a vantagem
de vender aos espanhóis em troca de prata, durante os anos em que
a South Seas Company deteve o asiento espanhol (1713-39) 32 e, mais
tarde, o contrabando de mercadorias para o Brasil em troca do ouro lá
existente. Também podiam importar gêneros alimentícios a preços mais
acessíveis dos agricultores livres da América do Norte, que empregavam
mão de obra familiar. O crescente grau de sofisticação do capitalismo
mercantil inglês, em finais do século XVII, aumentou estes subsídios,
assim como o apoio dos fornecedores africanos que, a esta altura, tinham

31 David W. Galenson, Traders, Planters and Slaves: Market Behavior in Earlv English Amer-
ica, Nova York: Cambridge University Press. 1986.
32 Colin A. Palmer, Human Cargoes: The British Slave Trade to Spanish America, 1700-1739.
Urbana IL: University of Illinois Press, 1981.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 63


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constatado que a venda de escravos aos europeus era tão proveitosa


para o avanço de seus interesses particulares que eles construíram e
mantiveram grandes regimes políticos, por vezes militarmente podero-
sos, para promover e cobrar impostos sobre as caravanas de cativos que
rumavam em direção à costa. E com o tempo – embora muito mais cedo
em áreas marginais do Novo Mundo, como o Chesapeake, na América do
Norte, do que nas prósperas ilhas açucareiras do Caribe – a escravidão
no Novo Mundo também foi subsidiada pela capacidade reprodutiva
tanto biológica como social e cultural – dos próprios escravos. 33 Tudo
isso funcionava como “subsídios” econômicos no sentido preciso de
que reduzia o custo monetário de integrar os vastos e vazios espaços
do Novo Mundo à produção de commodities – principalmente o açúcar,
mas também tabaco, cacau, anil, arroz, depois o café e o algodão – que
rendiam dinheiro na Europa e, evidentemente, o próprio ouro do Brasil,
da Colômbia e de outras partes da América. Os lucros na Europa eram
suficientes para que os mercadores pudessem comprar têxteis nas eco-
nomias movidas a prata da Ásia, e posteriormente vendê-los na África
em troca de escravos. E tudo isto se processou, evidentemente, quando
as forças que viriam destruir a escravidão (embora não os engenhos) já
estavam ganhando terreno na Europa.
Com uma persistente, embora aparentemente paradoxal, falta de
capital como pano de fundo, os comerciantes europeus integraram, deste
modo, a escravidão e o comércio de escravos com a plantação de cana de
açúcar, através de uma série de passos distintos, que acompanharam res-
postas funcionais e bastante específicas ao obstáculo econômico central
que tinha sido basear a consolidação dos primórdios da economia atlân-
tica na concentração de riqueza monetária na Europa. A falta de capital
toma-se visível, para fins analíticos, somente quando se encara o sistema
atlântico em termos de suas fases de crescimento, como um processo de
expansão rápida; a economia do equilíbrio não revela as suas tensões
dinâmicas, o motor da história. O comércio transatlântico de escravos,
embora dispendioso para os colonos, ajudou a suplementar os fundos
limitados disponíveis na Europa durante o período formativo do capita-
lismo comercial, ajudou a criar um "novo mundo Atlântico", largamente,
embora ainda não completamente integrado através de propriedades
capitalistas por volta do século XVII. Do ponto de vista das vantagens
de capitalizar rapidamente a Europa, o tráfico converteu a mão de obra
africana, adquirida com mercadorias de pouco valor monetário, em metais
preciosos das Américas, ou em especiarias ou drogas americanas – além

33 Douglas B. Chambers, “‘He Gwine Sing He Country’: Africans and Afro-Virginians in the
Development of a Slave Culture in Virginia, 1680-1810” (Tese de Doutorado, University
of Virgínia, 1996), tese revista e publicada como Murder at Montpelier: Igbo Africans in
Virgia, Jacksom, Miss.: The University Press of Mississipi, 2005.

64 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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de açúcar, tabaco, cacau e finalmente café – que valiam moeda corrente


ou notas que podiam ser trocadas por moeda.
A escravidão surgiu associada a uma situação de desgraça humana nas
franjas dessa economia transoceânica emergente. Surgiu com violência
na África, associada às secas, como já vinha acontecendo há muito tempo,
às pilhagens dos senhores da guerra, desde os corsários vikings da Europa
do norte aos guerreiros cavaleiros dos impérios sudaneses, aos bandei-
rantes de São Paulo, à agressiva Companhia das Índias Ocidentais dos
holandeses – que invadiu possessões portuguesas e espanholas na África
e nas Américas – ou mesmo, entre os ingleses, ao capitão John Hawkins e
a outros aventureiros isabelinos, com suas missões de pilhagem levadas a
cabo desde a fase inicial do envolvimento inglês no comércio de escravos. 34
Os corsários desse tipo vendiam como escravos as pessoas que capturavam
e assim asseguravam a sua entrada na florescente economia-mundo, à
medida em que esta se espalhava das zonas islâmicas, através da Europa
cristã, rumo à América e eventualmente à África.
Banqueiros mais próximos do centro, desde os italianos do início
do Renascimento aos genoveses que apoiaram os portugueses, depois
os holandeses e os ingleses nos séculos XVII e XVIII entesouraram e
investiram o ouro ou a prata que amealharam para se tomarem, eles
próprios, os capitalistas, estimulando todo o processo em benefício pró-
prio. À medida em que o volume do comércio de escravos ia crescendo,
sua organização tomou-se mais eficiente. Seus preços finais, que tinham
declinado, não só absorveram uma parte dos custos dos escravos na
África, que aumentavam continuamente, como também subsidiaram a
escravidão ligada ao açúcar na América, tomando possível financiar o
fornecimento de mão de obra em quantidade muito além da capacidade
que tinham os colonos de pagá-las. Os volumes elevados eram uma das
estratégias das grandes companhias para compensar os custos elevados.
Seguiram-se a fragilidade dos preços no Novo Mundo, assim como o
elevado endividamento e, pelo menos nos primeiros anos e nos setores
menos prósperos, as falências. Os caminhos através dos quais o comér-
cio de escravos e a escravidão gradualmente acabaram por sustentar o
açúcar e as plantações no Atlântico –, e na África, promover a formação
de estados e a exportação de mercadorias – revelam, por conseguinte,
os mecanismos de financiamento das periferias, numa economia mer-
cantil mundial em expansão, centrada na Europa e carente de grandes
investimentos em dinheiro no comércio ou na produção. A riqueza foi
deste modo, acumulada nos centros capitalistas do sistema.

34 Veja, por exemplo, Michael M. Craton, Sinews of Empire: A Short History of British Slav-
ery, Garden City: Anchor Press, 1974.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 65


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O desenvolvimento de uma economia capitalista agrícola totalmente


baseada na mão de obra escrava, apoiada por um volumoso comércio ne-
greiro, foi, por isso, um processo moroso e gradual, que progrediu neste
contexto de escassez de capital exclusivamente através do benefício
de uma série de “subsídios” diretos e indiretos: através de uma econo-
mia política de transportes, através do baixo custo de mão de obra na
África devido à violência e à miséria, através de condições tropicais de
cultivo que estenderam a atividade dos escravos ao longo do ano inteiro,
através das terras gratuitas nas Américas e estratégias de baixo inves-
timento empregadas para assegurá-las, através da proteção legal dos
proprietários de engenhos e escravos, e, por fim, através de progressos
tecnológicos na área de processamento. A integração de cada um desses
componentes normalmente criava tensões de várias ordens nos demais,
o que levou seus proprietários a superá-las através de outras inovações
que, por sua vez, deixaram as marcas de um obstáculo novo e diferente
(ou incentivos) a mudanças posteriores numa outra direção. A crescente
capacidade financeira da Europa e as novas formas de organização dos
negócios permitiram aos portugueses, com a assistência dos holandeses,
desenvolver o comércio de escravos a um elevado volume e a uma escala
transatlântica, em finais do século XVI. E levaram os holandeses a expan-
dir o seu envolvimento neste negócio cada vez mais rentável durante o
século XVII. Também ajudaram os ingleses a desenvolver seu comércio,
no mesmo período, para além de suas primeiras estratégias, subsidiadas
e violentas, na medida em que o “complexo da plantation”, lentamente
desenvolvido, se transformou na forma mais conhecida, mas por sua vez
insegura, que prevaleceu na Jamaica e em Saint Domingue, no século XVII,
um momento que muitos historiadores arbitrariamente cristalizaram no
tempo como sendo “clássico” do sistema de plantation.
Os anos de formação do complexo açucareiro e os da escravidão
no Atlântico foram, de fato, distintos no seu caráter e nos desafios que
apresentaram. 35 A narrativa destas mudanças graduais e adicionais
ilustra a importância de se colocar o passado, bem como o presente, em
perspectiva, em termos de processo, verdadeiramente como história. Isto
é evidente em toda a área de conhecimento sobre o Atlântico, como agora

35 Exatamente o contrário do que se encontra em obra recente: "Nem a escravidão, nem o sis-
tema da plantation eram novos quando emergiram nas Pequenas Antilhas e alhures nas
Américas. [...]. Os engenhos tinham se desenvolvido no Mediterrâneo e nas ilhas da costa
atlântica da África antes de ressurgirem com a redescoberta das Américas. Na verdade,
sua história anterior ajuda a explicar a rápida expansão da escravidão nas [...] colonias. [
...] [Mas] as condições de produção não eram baseadas num novo conjunto de inovações no
Novo Mundo [...]: Stanley L. Engerman, “Europe, the Lesser Antilles, and Economic Expan-
sion, 1600-1800”, in Robert L. Paquette e Stanley L. Engerman (orgs.), The Lesser Antilles
in the Age of European Expansion (Gainesville: University Press of Florida, 1996), p. 148.
Se nota que o sucesso do sistema é aqui atribuído a uma presumida estabilidade.

66 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

reconhecemos. O meu argumento é, por conseguinte, um realce do aspecto


cumulativo e processual da história, servindo-me de uma narrativa do
passado aparentemente conhecida para ilustrar a facilidade como, até
historiadores mestres no gênero, podem colocar de lado os conceitos
de tempo e mudança, porém a um custo muito elevado. Este argumento
pode ser estendido a toda a história da escravidão, onde quer que ela se
encontre, bem como a outros temas históricos.

Post-scriptum e atualidade deste ensaio


A história atlântica se desenvolveu enormemente nas últimas dé-
cadas e geralmente consoante as perpectivas históricas rigorosamente
indicadas neste ensaio, escrito em 1993, mas não publicado até 1997 na
Afro-Ásia, nunca o tendo sido no original em inglês. Seguem válidos os
argumentos históricos e mesmo o epistemológico, daí o ensaio merecer
nova edição nesta coletânea, apesar de desatualizada na bibliografia,
como é praxe nas notas historiográficas. Minha elaboracão posterior dos
múltiplos e variados componentes dos processos históricos do Atlântico
encontram-se, principalmente, nos seguintes trabalhos: “History and
Africa/Africa and History”, American Historical Review, vol. 104, no.
1 (1999), pp. 1-32, que foi meu discurso como presidente da American
Historical Association; “Central Africa During the Era of the Slave Trade,
c. 1490s-1850s”, in Linda Heywood (org.), Central Africans and Cultural
Transformations in the American Diaspora (Nova York: Cambridge Uni-
versity Press, 2002), pp. 21-69 (publicado no Brasil como “África Central
durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850”, in Linda
Heywood (org.), Diáspora negra no Brasil [São Paulo: Editora Contexto,
2008], pp. 29-80); e “Credit, Captives, Collateral, and Currencies: Debt,
Slavery, and the Financing of the Atlantic World”, in Gwyn C. Campbell
e Alessandro Stanziani (orgs.), Debt and Slavery in the Mediterranean
and Atlantic Worlds (Londres: Pickering and Chatto, 2013), pp. 105-121;
e dois ensaios que tentam implementar questão metodológica estão em
Joseph C. Miller (org.), Princeton Companion to Atlantic History (Princeton:
Princeton University Press, 2015): “Prologue: The Atlantic as History,”
pp. 3-12, e “The Sixteenth Century,” pp. 13-25.

O ATLÂNTICO ESCRAVISTA: AÇÚCAR, ESCRAVOS, ENGENHOS 67


CAPÍTULO 2

resGAte e MerCAdoriAs: UMA AnÁlise CoMpArAdA


do trÁfiCo lUso-brAsileiro de esCrAvos eM
AnGolA e nA CostA dA MinA (séCUlo xviii) 1
Gustavo Acioli Lopes
Maximiliano M. Menz

A produção em história econômica no Brasil tradicionalmente


enfocou o tráfico de escravos na sua relação com o processo mais geral
de colonização da América e com as vicissitudes da economia colonial
brasileira. Roberto Simonsen, por exemplo, relacionou a instalação da
escravidão no Brasil com as restrições demográficas europeias e com a
diferença climática entre os dois continentes; dada a incompatibilidade do
índio ao regime da plantation, o recurso ao trabalho africano tornava-se
um “imperativo econômico”. Celso Furtado, ainda que levasse em conta a
escassez populacional de Portugal, apontava para o aspecto antieconômico
de uma hipotética empresa colonizadora baseada em mão-de-obra livre:
a escravidão era, assim, uma “condição de sobrevivência” econômica para
o colono europeu.2,3

1 Texto escrito no âmbito do projeto temático FAPESP “Dimensões do Império Português”.


Pesquisa realizada com apoio do CEBRAP, da Capes e do CNPq. Os autores agradecem aos
editores e pareceristas da Afro-Ásia pelas críticas e sugestões. Esta é uma versão revista
e atualizada do artigo publicado naquela revista.
2 Roberto Simonsen, História econômica do Brasil, São Paulo: Editora Nacional, 1957, pp.
126-33; Celso Furtado, Formação econômica do Brasil, São Paulo: Editora Nacional, 1976.
3 Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo: Brasiliense, [1942] 1986,
p. 122; Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, São Paulo:
Hucitec, 1995, passim. Ver ainda Eric Williams, Capitalismo e escravidão, Rio de Janeiro:
Americana, [1942] 1975. Para uma discussão historiográfica a respeito do tráfico trian-
gular inglês, ver Walter Minchinton, “The Triangular Trade Revisited”, in Henry Gemery e
Jan S. Hogendorn (orgs.), The Uncommon Market. Essays in the Economic History of the
Atlantic Slave Trade (Nova York: Academic Press, 1979), pp. 331-352.

69
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Por sua vez, Caio Prado Jr., em sua obra clássica Formação do Brasil
contemporâneo, via o recurso ao trabalho africano como uma “exigência”
da colonização europeia nos trópicos, ao lado da grande propriedade
monocultora; o trabalho forçado e, por conseguinte, o tráfico enquadra-
vam-se no sentido da colonização. Aprofundando a análise de Caio Prado
Jr., Fernando Novais relacionou a escravidão e o tráfico de escravos ao
processo de acumulação primitiva de capitais na Europa. O tráfico de
africanos controlado pelo capital mercantil metropolitano era, ao lado
do exclusivo colonial, um dos elementos fundamentais da acumulação
exógena, já que garantia a transferência para a Metrópole do excedente
econômico produzido pelo braço cativo na América. Vale dizer ainda que
a obra de Fernando Novais era fortemente influenciada pelo livro de Eric
Williams, Capitalism and Slavery, que traçava uma linha genealógica
entre o desenvolvimento industrial inglês e o tráfico triangular entre
Grã-Bretanha, África e as Antilhas inglesas.
Esta historiografia apresentava dois problemas a respeito de sua
interpretação do tráfico de escravos: em primeiro lugar, era escasso o
interesse que tais historiadores demonstravam pelas particularidades
deste comércio, já que geralmente sua atenção se voltava para a ligação
econômica entre o Brasil e a Europa; a oferta de braços africanos era
pressuposta pela existência da demanda americana. Em segundo lugar,
era pequena a pesquisa original a respeito do tráfico, de maneira que estes
historiadores costumavam generalizar a partir das crônicas da época e
dos poucos relatos publicados a este respeito.
Trabalhos mais recentes têm lançado novas luzes sobre as parti-
cularidades do comércio de escravos e, ao mesmo tempo, têm tentado
reinterpretar a história do Brasil frente ao tráfico. Manolo Florentino,
por exemplo, vem afirmando que o tráfico de escravos era dominado pelo
“capital mercantil residente” no Brasil, de maneira que este comércio não
deveria ser entendido pela sua relação com o processo de industrialização
na Europa, mas sim pela função que exercia nas sociedades coloniais, pois
garantia a reprodução do escravismo e do capital mercantil no Brasil e
permitia a reposição das sociedades hierárquicas africanas vinculadas
a este tipo de comércio. A acumulação de riqueza no interior da colônia
(acumulação endógena), produzida pelo tráfico de escravos e pelo mercado
colonial, permitiria à economia colonial brasileira resistir às conjunturas
externas negativas.4

4 Manolo Florentino, Em costas negras, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
9-10, 210. Ver também João L. Fragoso e Manolo Florentino, O arcaísmo como negócio:
mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tar-
dia: Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840, 4ª ed. revista, Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2001.

70 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Da mesma vertente historiográfica é o trabalho de Roquinaldo Fer-


reira: em artigo de 2001, destaca o papel da jeribita e dos panos asiáticos
para o suposto controle dos comerciantes “brasileiros” sobre o comércio
de escravos em Angola.5 Já na sua tese de doutorado, defendida em 2003,
realça fundamentalmente os têxteis da Ásia, afirmando que, desde o final
do século XVII, o centro de gravidade deste ramo do comércio português
passaria de Lisboa para a Bahia. Note-se, porém, que o autor não apresenta
dados quantitativos ou estimativas razoáveis que permitam “testar” este
aspecto de suas hipóteses.6
Por sua vez, Luiz Felipe Alencastro escreveu recentemente um
engenhoso livro em que retoma o problema clássico da formação do
Brasil, ligando a constituição histórica do país com a costa da África e
com o Atlântico Sul. O tráfico negreiro português estava originalmente
vinculado às ilhas atlânticas e à importação de escravos por Portugal,
precedendo à produção escravista no Brasil. A captura mercantil de Angola
teria institucionalizado o comércio atlântico de cativos, atraindo esta
região para o mercado mundial. Sucedeu que, na metade do século XVI,
com a decisão da Coroa Portuguesa de colonizar o Brasil, foi incentivada
a exportação de cativos para a nova colônia, ao mesmo tempo em que foi
reprimido o cativeiro indígena.
Os colonos do Brasil passariam, assim, a depender da metrópole para
realizar suas mercadorias e para obter os seus fatores de produção. O
tráfico negreiro estabeleceria uma divisão colonial do trabalho, unindo
os dois lados do Atlântico Sul, amarrando África e Brasil ao mercado
mundial e permitindo a transferência do excedente econômico da colônia
para a metrópole. Entretanto, o próprio tráfico ia desenvolvendo circuitos
bilaterais autônomos entre a África Ocidental e o Brasil, sustentados
pela utilização de produtos americanos – especialmente a jeribita – no
resgate de cativos. Desta maneira, o controle do comércio gradualmente
escapava-se da metrópole, passando para as mãos dos traficantes “brasí-
licos”. Assim, apesar de reconhecer a relevância do tráfico na colonização
mercantilista portuguesa, na longa duração o comércio de escravos
revelaria uma espécie de “xenofagia” da economia brasileira, o apetite

5 “A chave do sucesso brasileiro estava nas mercadorias que financiavam seus investi-
mentos. Se no período formativo centraram suas estratégias em mercadorias com bai-
xo custo de produção, mais tarde financiaram suas atividades com as fazendas asiáti-
cas que tinham mais valor que o produto fundamental nos seus negócios nos sertões
angolanos, as cachaças brasileiras [...]”: Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio in-
tra-colonial. Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século
XVIII)”, in João Fragoso et. al., O antigo regime nos trópicos (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001), p. 345.
6 Roquinaldo Ferreira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Con-
trol in Angola, 1650-1800” (Tese de Doutorado, University of California, 2003), p. 5 e passim.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 71


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

para incorporar mão-de-obra de fora do seu território. A conclusão é


que a economia brasileira e, por extensão, o Brasil, se teriam formado a
partir do Atlântico-sul.7
Cabe destacar neste processo de renovação a influência de trabalhos
produzidos no mundo universitário anglo-saxão. É o caso da obra máxima
de Joseph Miller, Way of Death, que, já na década de 1980, apontava para
alguns destes fenômenos, como a importância do comércio de cachaça e da
navegação direta entre o Brasil e a África. Também o livro de José Curto,
em que é ressaltado o papel do álcool no comércio de escravos, marcou a
produção historiográfica brasileira dos últimos anos.8
Em todo o caso, os trabalhos de Manolo Florentino e Luiz Felipe de
Alencastro perpetuam o recurso ao passado escravista e colonial para
explicar a formação do Brasil contemporâneo. Não obstante, podemos
constatar um sensível deslocamento de perspectiva: nas análises clássicas,
o eixo explicativo principal está na relação entre o Brasil e a economia
europeia, enquanto nestas últimas obras se prefere realçar as dinâmicas
intracoloniais, daí o surgimento de conceitos como o de “bipolaridade do
tráfico”, em oposição à ideia de “tráfico triangular”, ou de “autonomia”,
em oposição à “dependência”.
Este deslocamento de perspectiva é positivo na medida em que o
tráfico de escravos é colocado no centro da discussão enquanto problema
historiográfico; além disto, a historiografia recente tem desvelado diver-
sas particularidades deste comércio que permitem entender melhor a
reprodução da economia colonial. Porém, é possível identificar ao menos
dois “desvios” de interpretação que estes trabalhos acabaram por suscitar.
Em primeiro lugar, esta historiografia, no empenho de realçaras
relações intracoloniais, acaba por sobrevalorizar a aguardente e o tabaco,
mercadorias que movimentavam uma parte importante do tráfico luso
-brasileiro de escravos, mas não bastavam para fechar o circuito entre
o Brasil e a África.

7 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, passim. Vale lembrar ainda que alguns trabalhos pio-
neiros, como os de Affonso de Taunay, Pierre Verger e Mauricio Goulart já haviam aponta-
do para o caráter bilateral do tráfico brasileiro, porém, como os seus livros não avançaram
muito na interpretação deste fenômeno, sua influência sobre a historiografia brasileira
foi relativamente pequena: Affonso Taunay, Subsídios para a história do tráfico africano
no Brasil, São Paulo: Imprensa Oficial, 1941; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, Sal-
vador: Corrupio, 1987; Mauricio Goulart, A escravidão africana no Brasil, São Paulo: Alfa
Omega, 1975.
8 Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-
1830, Madison, Wisc.: University of Wisconsin Press, 1988; José C. Curto, Álcool e escra-
vos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfi-
co atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África central e
ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002.

72 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Em segundo lugar, ao estabelecer conceitos como “bipolaridade do


tráfico” e “autonomia” como eixos explicativos da economia colonial, perde-
se a oportunidade de problematizar a relação entre o centro econômico
europeu e a periferia colonial e, portanto, pouco há o que dizer a respeito
da evolução divergente das sociedades que interagiam através do tráfico.
O presente artigo tem por objetivo analisar de modo comparativo
os dois principais circuitos de resgate luso-brasileiro de escravos no
século XVIII – na Costa da Mina e em Angola – estabelecendo o peso
relativo de cada região do globo na formação da oferta de bens troca-
dos por escravos através das carreiras escravistas luso-brasileiras. 9 A
classificação dos diferentes tipos de mercadorias ofertadas no tráfico
permitirá revelar os setores econômicos de cada continente que se
beneficiaram com o comércio de africanos, permitindo questionar o
modo de integração desigual promovido pelo mercado atlântico. Como
pretendemos argumentar ao final do artigo, o tráfico pode ser encarado
como um dos elementos que contribuíram para consolidar as relações
entre centro e periferia que caracterizaram a economia-mundo europeia
nos séculos XVIII e XIX. 10
O artigo é dividido em três partes: na primeira, abordamos o tráfico
angolano, fazendo uma breve narrativa, através de fontes indiretas, sobre
o processo de colonização e de consolidação do tráfico a partir de Luanda
para, em seguida, apresentar cálculos sobre as importações de produtos
utilizados no resgate. A segunda parte inicia-se pela caracterização da
presença portuguesa na Costa da Mina e apresentam-se estimativas sobre
a oferta de mercadorias “brasileiras” e de outras procedências naquela
região. Na terceira e conclusiva parte, enfocando a história do tráfico
pelo seu devir, procura-se discutir os diferentes setores econômicos de
cada continente que se beneficiaram com o comércio luso-brasileiro de
escravos.11 Por sua vez, a reflexão sobre a diferença da presença portuguesa
nas duas zonas de resgate permitirá compreender suas particularidades
na oferta de mercadorias.

9 Existiam ainda outras regiões no resgate luso-brasileiro de escravos, como as feitorias de


Benguela e de Bissau, que não serão discutidas aqui. Deste modo, quando nos referimos a
Angola é em seu significado mais restrito, o hinterland de Luanda, acompanhando nesta
classificação a documentação alfandegária de Lisboa e Luanda.
10 Sobre o conceito de economia-mundo: Fernand Braudel, El Mediterráneo y el mundo me-
diterráneo en la época de Felipe II, México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1997, vol. 1,
p. 514; Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial, México, D.F: Siglo XXI, 2003.
11 Acreditamos que este artigo pode ser colocado na mesma perspectiva do trabalho de Jose-
ph Inikori em questionar “who were gainers and who were losers”: Joseph Inikori e Stan-
ley Engerman, “Introduction: Gainers and Losers in the Atlantic Slave Trade”, in idem
(orgs.), The Atlantic Slave Trade: Effects on Economies, Societies, and Peoples in Africa,
the Americas, and Europe (Durham/Londres: Duke University Press, 1992), pp. 1-21.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 73


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O tráfico luso-brasileiro em Angola


O tráfico de escravos entre Angola e o Brasil tem raízes ainda no
século XVI, após a abertura do trato mercantil na barra do Congo e o desvio
das correntes negreiras de Portugal para o Atlântico. A autorização do
comércio de africanos para o Brasil, em 1549, aliada à gradual transição
nas fontes de resgate – da Senegâmbia para Angola – facilitaram a co-
nexão do litoral brasileiro com a África e a consolidação da plantation
açucareira no Brasil – na década de 1580 o Brasil já era o maior produtor
mundial de açúcar – ainda que uma boa parte dos escravos exportados
por Angola fosse parar na América Espanhola nesta época. 12
No mesmo período, a guerra entre as Províncias Unidas e a dinastia
Habsburgo, levando ao embargo espanhol do comércio ibérico com os
Países Baixos, acabou por propiciar as condições para a criação da Com-
panhia das Índias Ocidentais (WIC), cujos objetivos incluíam o controle
do nordeste brasileiro13.
Depois de uma tentativa fracassada de conquista da Bahia (16241625),
os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais capturaram Olinda e
o Recife e submeteram o litoral entre Sergipe e Rio Grande. Entretanto,
ultrapassado o período inicial de conquista e organização burocrática da
colônia (1630-1638), os invasores deram-se conta da necessidade de abaste-
cer os engenhos de escravos e, dado que o tráfico era negócio praticamente
exclusivo dos portugueses, obter feitorias na costa da África para organizar
o resgate. Uma vez que o resgate no Castelo de São Jorge da Mina – tomado
na mesma época da invasão da Bahia – não era suficiente para atender à
demanda nordestina, decidiu-se pela conquista da praça de Luanda.14

12 Simonsen, História econômica, p. 130; Stuart Schwartz, “O Brasil colonial, c. 1580-1750:


as grandes lavouras e as periferias”, in Leslie Bethell (org.), História da América Latina
(São Paulo: Edusp, 1999), vol. 2, pp. 527-529; sobre o predomínio do açúcar brasileiro em
Antuérpia na década de 1590, cf. Eddy Stols, “The Expansion of the Sugar Market in Wes-
tern Europe”, in Stuart Schwartz (org.), Tropical Babylons: Sugar and the Making of the
Atlantic World, 1450-1680 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004), p. 260;
e Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison, Wisc.: University of Wiscon-
sin Press, 1969, pp. 108-110. Uma fonte holandesa da época afirmava que 44% dos escra-
vos exportados de Angola iam parar na América Espanhola: Charles Boxer, Salvador de Sá
e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-86, São Paulo: Editora Nacional, 1973, p. 238.
13 O impacto dos embargos espanhóis sobre o comércio dos “súditos rebeldes” dos Países Bai-
xos é demonstrado por Christopher Ebert, “Dutch Trade with Brazil before the Dutch West
India Company, 1587-1621” in Johannes Postma e Victor Enthoven (orgs.) Riches from
Atlantic Commerce: Dutch Transatlantic Trade and Shipping, 1585-1817 (Leiden/Boston:
Brill, 2003), pp. 60-63.
14 Pedro Puntoni, A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil Holandês e as guerras do
tráfico no Atlântico-sul, 1641-1648, São Paulo: Hucitec, 1999, pp. 71-122. Ver ainda Char-
les Boxer, O império marítimo português, Lisboa: Edições 70, 2001, pp. 115-33. Para as dis-
putas no litoral africano, Ernst van den Bogart e Pieter C. Emmer, “The Dutch Participa-
tion in the Atlantic Slave Trade, 1596-1650”, in Gemery e Hogendorn (orgs.), The Uncom-
mon Market, pp. 353-375.

74 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

À insurreição de Pernambuco por iniciativa dos colonos luso-brasileiros


seguiu-se a reconquista de Angola (1648) por uma frota organizada no
Rio de Janeiro e liderada por Salvador Correia de Sá. Este episódio, nas
palavras de Charles Boxer, mostrava a interdependência entre Portugal,
Brasil e Angola.15
A reconquista foi consolidada com a dissolução do reino cristão do
Congo (1665) e o avanço da soberania portuguesa no interior angolano,
através da construção de uma rede de fortins. Deste modo, abria-se
a possibilidade de reforçar o exclusivo colonial a partir da cidade de
Luanda. O poder de Lisboa firmou-se no início do século XVIII, quando foi
interrompida a sucessão de governadores de Angola ligados aos interesses
“brasileiros”, sendo-lhes ainda interditada a prática do comércio.16
Escassas são as referências a respeito da participação relativa
entre os diferentes tipos de mercadorias utilizadas no resgate angolano
durante o século XVII. De acordo com Luiz Felipe de Alencastro, no início
do século XVII, “o produto brasileiro de escambo – afora a prata peruana
contrabandeada – era quase sempre a mandioca”: 40 mil alqueires anuais
de farinha eram embarcados no Rio de Janeiro por navios lisboetas que
demandavam a África na década de 1610.17
É possível que a importância da farinha neste período se explique
pelo próprio crescimento e pela consolidação do tráfico negreiro em
Angola; quantidades inusitadas de cativos eram amontoadas no litoral à
espera do embarque, excedendo a capacidade de produção de alimentos
local; além disto, a importância do comércio de farinha nesta década
deveu-se, muito provavelmente, a uma crise de abastecimento que se
abateu sobre Angola com a seca de 1614-1617. Finalmente, uma parte
expressiva – talvez 1/4 – destes alimentos era consumida na própria
viagem, pela equipagem e pelos escravos embarcados.18

15 Boxer, Salvador de Sá, p. 13.


16 David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and Their Neighbours Un-
der the Influence of the Portuguese, 1483-1790, Oxford: Clarendon Press, 1966, p. 111;
Alencastro, O trato dos viventes, pp. 290-300. Alencastro destaca a participação dos inte-
resses brasílicos nas expedições ao interior e a continuidade de governadores com carrei-
ras vinculadas ao Brasil até o final do século XVIII. No entanto, depois de Rodrigo César de
Menezes (1733-1738), nenhum deles veio de alguma “capitania traficante” (ver nota na p.
307). Ver ainda: Miller, Way of Death, passim.
17 Ainda segundo Luiz Felipe de Alencastro, o regime de ventos e das correntes do Atlântico-
sul aconselhava que as embarcações que partissem de Lisboa para a África tocassem pri-
meiro o Brasil, daí a possibilidade de carregar a farinha de mandioca: Alencastro, O trato
dos viventes, pp. 248-251.
18 Cálculo realizado sobre a estimativa de consumo diário de 1,8 litros de farinha de mandio-
ca, sugerida por Alencastro, Trato dos viventes, p. 252. Sobre as crises alimentares em An-
gola, ver Joseph Miller, “The Significance of Drought, Disease and Famine in the Agricul-
turally Marginal Zones of West-Central Africa”, Journal of African History, vol. 23, no. 1
(1982), p. 21, 41.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 75


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A demanda por mercadorias na costa da África era sortida. Para entrar


no negócio, os capitães de navios necessitavam oferecer uma cesta de
mercadorias, o banzo, composta por produtos de procedências diversas:
têxteis asiáticos, armas europeias e mesmo alguns produtos africanos.
Apesar de ser impossível estimar a proporção dos produtos na cons-
tituição do banzo, a participação de produtos asiáticos é confirmada pela
exportação de prata peruana para Luanda. Como a moeda de prata não era
utilizada no resgate de cativos, os agentes no litoral africano deveriam
adquirir com estas moedas as mercadorias asiáticas das frotas das Índias
que, no retorno, costumavam fazer escala em Luanda para vender os
apreciados artigos do oriente – especialmente têxteis – e carregar alguns
escravos para Portugal; aliás, o fato de a palavra “peça”, que se referia a
um corte de pano, ter virado sinônimo de escravo no início do XVII denota
a importância dos têxteis no tráfico angolano19.
A intensidade deste intercâmbio com a Ásia é confirmada pela sua
proibição, em 1630, quando o Regimento da Casa da Índia embargou a escala
pelo descaminho dos direitos alfandegários.20 Já entre os variados produtos
europeus destacavam-se, pelo volume, os vinhos e os licores peninsulares.
Na segunda metade do século, este padrão foi alterado: a mandioca
deixou de ser um produto importante no tráfico de escravos, graças à sua
naturalização na África, ao mesmo tempo que a proibição da escala em
Luanda e a dificuldade do acesso à prata desviaram de Angola a Carreira
da Índia.
Entretanto, a jeribita passou a ser exportada para a África com re-
gularidade a partir da década de 1660. Subproduto da moagem da cana,
o melaço era transformado em aguardente a baixos custos nos engenhos,
podendo concorrer com as bebidas alcoólicas metropolitanas em um
momento em que a redução nos preços do açúcar começava a afetar a
economia açucareira. Do mesmo modo, a escassez nas cargas de retorno
da Carreira da Índia levou estas embarcações a demandarem os portos
brasileiros para carregar açúcar e tabaco para Lisboa, vendendo no local
os tecidos asiáticos. 21 Por aí se compreende o desenvolvimento de um
tráfico bilateral entre o Brasil e Angola: a jeribita, produto de baixo valor
e maior volume, barateava o frete de retorno, enquanto os panos indianos
pagavam uma parte dos escravos resgatados.22

19 Beatrix Hentize, Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história,
Luanda: Kilombelombe, 2007), pp. 477-478.
20 Miller, Way of Death, pp. 66-67; Vitorino Magalhaes Godinho, Mito e mercadoria, utopia e
prática de navegar, séculos XIII-XVIII, Lisboa: Difel, 1990, p. 357.
21 18 Sobre a jeribita, ver Alencastro, O trato dos viventes, pp. 307-23. Sobre a Carreira da Ín-
dia, Godinho, “Os portugueses e a carreira da Índia”, p. 357.
22 19 Ver ainda: Ferreira, Transforming Atlantic Slaving, passim.

76 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

É possível fazer uma estimativa grosseira para calcular a partici-


pação relativa da jeribita no período: entre 1699 e 1703, foi exportada
uma média anual de 689,4 pipas de aguardente do Brasil para Angola.
Adotando os preços médios do ano de 1797 – 55 mil réis por pipa e 65.522
réis por escravos – tem-se que a jeribita permitiria pagar a compra de
579 escravos na costa da África, o equivalente a uns 13% do total ex-
portado por Angola (estimado em 4.619 escravos anuais). 23 O restante
dos escravos era comprado com produtos asiáticos e europeus, trazidos
pelas naves brasileiras e, em menor número, por embarcações portu-
guesas, uma vez que 15% dos tumbeiros que deram entrada no porto de
Luanda entre 1736 e 1750 eram originários de Lisboa. 24 Do número de
entradas não se deve, porém, deduzir a participação relativa das praças
no tráfico; afinal, os barcos metropolitanos eram geralmente maiores
e suas cargas tinham maior valor que as embarcações brasileiras (ver
ainda o apêndice 2). Ademais, não se deve ignorar que alguns capitães
lisboetas faziam a rota Lisboa-costa do Brasil-Angola e fretavam barcos
brasileiros para carregar escravos para o Brasil. 25
Assim, apesar do desenvolvimento de uma carreira bilateral entre
Luanda e os portos brasileiros (Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro),
constata-se um comércio que nos seus fluxos financeiros atlânticos era
triangular e que, no jogo de mercadorias, unificava as quatro partes do
império português. O próprio modo pelo qual se organizavam as diferentes
etapas do resgate no século XVIII facilitava este “condomínio” financeiro
entre os três continentes: desde Luanda, mercadores “luso-africanos”
tomavam mercadorias a crédito – geralmente de agentes lisboetas – para
serem enviadas às feiras do interior em troca de escravos. Como, na
maior parte das vezes, aos mercadores metropolitanos não interessava
tomar posse dos cativos, dado o grande risco de perdas durante a middle
passage, os luso-africanos acertavam as contas com seus fornecedores
com letras a serem pagas no Brasil, no momento da venda final da mer-
cadoria viva. A participação brasileira no negócio era principalmente
no mercado de fretes, ainda que os capitães de navios pudessem fazer

23 Para fontes e cálculos, ver Apêndice 1.


24 Corcino M. Santos, “Relações de Angola com o Rio de Janeiro (1736-1808)”, Estudos Histó-
ricos, no. 12 (1973), pp. 21-22, Tabela 2.
25 Miller, Way of Death, p. 317, e passim. Como se observa nos registros de entrada do por-
to de Luanda, mesmo durante o monopólio da Real Companhia de Pernambuco e Paraíba
(17591777), navios negreiros aportavam vindos diretamente de Pernambuco, o que in-
dica que a Companhia, apesar de ser controlada por capitais lisboetas, preferia utilizar
a rota Lisboa-Recife-Luanda: Santos, “Relações de Angola”, pp. 21-22, Tabela 2. Carreira
confirma a utilização desta rota pela Companhia de Pernambuco e da Paraíba: Antonio
Carreira, As companhias pombalinas do Grão-Pará e Maranhão e de Pernambuco e Paraí-
ba, Lisboa: Presença, 1982, pp. 225-227.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 77


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

algumas compras à vista, talvez com a carga de aguardente e alguns


têxteis indianos. 26
A partir da década de 1770 os homens de negócio estabelecidos na
colônia, especialmente no Rio de Janeiro, através do regime de comissões
e correspondências mercantis, passaram a controlar gradualmente o
financiamento do negócio de escravos em Luanda. É que, com a retração
da economia mineradora, a extinção do contrato de Angola e o fim das
Companhias pombalinas, parte dos capitais lisboetas se afastou do tráfico,
concentrando-se na intermediação mercantil entre o Brasil e a Europa.
Os mercadores da colônia também foram favorecidos pela crescente
penetração dos contrabandistas ingleses no Brasil que forneciam as
mercadorias europeias e asiáticas para formar o banzo.27
Para este período, aliás, existem registros da alfândega de Luanda
que permitem estabelecer o peso relativo dos diferentes continentes
no comércio africano de importações. Ressalte-se que estes dados não
acusam o porto de origem das cargas, mas sim os lugares da produção
das diferentes mercadorias; 28 desta forma, um chapéu de Braga, mesmo
se importado por intermédio do Brasil, estará registrado como produto
português. Ao não observar este problema na fonte, José C. Curto sobre
estimou a participação da jeribita no tráfico de escravos, calculando que a
aguardente brasileira teria pago em torno de 25% dos escravos angolanos
exportados para o Brasil entre 1710 e 1830, erro no qual é acompanhado
por Luiz Felipe de Alencastro que exagera ainda mais a importância dos
produtos americanos no comércio negreiro (ver apêndice 1).29

26 Miller, Way of Death, p. 253, 317 e passim; Joseph C. Miller, “Capitalism and Slaving: The
Financial and Commercial Organization of the Angolan Salve Trade, the Accounts of An-
tonio Coelho Guerreiro (1684-1692)”, International Journal of African Historical Studies,
vol. 17, no. 1 (1984), pp. 1-56.
27 Miller, Way of Death, pp. 296, 377, 457-58, 483-83. José Curto fala de uma primeira inves-
tida dos homens de negócio residentes em Pernambuco e na Bahia, através do regime de
correspondências, sobre o tráfico de Angola no final do século XVII. No entanto, a partici-
pação destas duas capitanias no tráfico angolano foi marginal durante o século XVIII, in-
dicando a retração destes elementos: Curto, Álcool e escravos, p. 148. Ver ainda Maximi-
liano Menz, “As geometrias do tráfico. O comércio metropolitano e o tráfico de escravos
em Angola”, Revista de História, no. 166 (2012), pp. 185-222.
28 As mercadorias estão divididas por quatro classes de origem, segundo reza o título do do-
cumento: Biblioteca Nacional (doravante BN), 15, 3, 33, Fazendas e gêneros da Cultura e
Indústria de Portugal que tiveram despacho na alfândega desta cidade, Fazendas e gêne-
ros da Cultura e Indústria da América Portuguesa, Fazendas e gêneros da cultura e indús-
tria da Ásia, Fazendas e gêneros da cultura e indústria das Nações da Europa que Sua Ma-
jestade Permite entrada nos seus domínios. Na Tabela 1, foram reunidos os produtos eu-
ropeus e portugueses no gênero “Europa”.
29 Curto, Álcool e escravos, p. 161, nota 30 e quadro XI; Alencastro, O trato dos viventes, p.
310. Ver o apêndice onde discutimos a estimativa de José Curto. Estes dados foram aborda-
dos de modo mais abrangente por Joseph Miller, “Imports at Luanda, Angola 1785-1823”,

78 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Tabela 1: Origem das mercadorias importadas por Luanda


1785-1794 1795-1797 1798-1799 1802-1803 1808-1809
Europa 44% 41% 40% 49% 33%
Brasil 22% 31% 18% 16% 28%
Ásia 34% 28% 42% 35% 39%
Fonte: Para 1785-1794, dados totais copilados por Corcino Santos, O Rio de Janeiro e a
conjuntura atlântica, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1993, p. 156. Para 1795-1797:
Biblioteca Nacional (BN), 15, 3, 33. Para 1798 e 1799: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
Angola, Avulsos, caixa 89, doc. 79; caixa 93A, doc. 48. Para 1802-1803: AHU, Angola, Avulsos,
caixa 106, doc. 5; caixa 109, doc. 54. Para 1808-1809: Arquivo Nacional (AN), Real Junta de
Comércio, caixa 448, pacote 1.

Além disto, os registros não são uniformes, pois dois deles estão agru-
pados nos originais em duas sequências de anos (1785-1794 e 1795-1797),
com preços médios que muito provavelmente representam os valores do
último ano registrado (respectivamente, 1794 e 1797). Tivemos acesso
ainda a outros anos (1798, 1799, 1802, 1803, 1808 e 1809) que foram
agrupados aqui de dois em dois para formar a Tabela 1.
Constata-se aí que, apesar da penetração dos capitais “brasileiros”,
Luanda geralmente importava mais mercadorias de origem europeia e
asiática do que produtos do Brasil. Em relação à jeribita, sua participação
nas importações angolanas ficou, neste período, entre 11% e 26% (ver
apêndice 1).
Os dados mostram ainda que da Europa eram importados produtos
manufaturados dos tipos mais diversos, destacando-se os têxteis portu-
gueses e ingleses, as ferragens e os armamentos do noroeste europeu.
Da Ásia, e por intermédio principalmente de Lisboa, vinham quase que
exclusivamente têxteis. 30 Já a aguardente era o principal produto ameri-
cano importado, mas outras mercadorias, como açúcar, zimbos e tabaco,
compunham a pauta.
Além disto, os números da alfândega de Luanda, se cruzados com
a balança comercial portuguesa, revelam que a evolução do comércio
português em Angola era positiva no período anterior à invasão francesa.

continuação 29

in G. Liesegang, H. Pasch e A. Jones (org.), Figuring African Trade (Berlin: Reimer, 1986),
pp. 163-225; Daniel Domingues da Silva, “Crossroads: Slave Frontiers of Angola, c. 1780-
1867” (Tese de Doutorado, Emory University, 2011); e Mentz, “As geometrias do tráfico”.
30 A maior parte das mercadorias asiáticas era trazida por embarcações saídas de Lisboa.
No período de 1802-1803, por exemplo, o valor declarado das exportações portuguesas
de produtos asiáticos equivale a 65% das importações deste tipo de produtos registradas
em Luanda: Instituto Nacional de Estatística, Lisboa (doravante INEL), Balanças gerais do
comércio do reino de Portugal com os seus domínios e nações estrangeiras (1796-1807);
Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), Angola, Avulsos, caixa 106, doc. 5; caixa
105, doc. 54.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 79


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Comparando as exportações portuguesas para Angola, registradas em


Lisboa pelas balanças de comércio portuguesas, com os valores totais
das importações em Luanda, como constam nos registros da alfândega
desta cidade, constata-se que no mínimo 56% das importações angola-
nas vieram diretamente da metrópole. Portanto, o ponto decisivo para
a consolidação do domínio “brasileiro” sobre o resgate em Luanda talvez
tenha sido o ano de 1808.31
Extrapolando estes números e fiados na retificação sobre os cálculos
de José Curto, podemos concluir que no tráfico angolano de escravos, du-
rante o século XVIII, a participação de mercadorias produzidas no Brasil
nas importações de Luanda girou entre os 20% e os 35% do total, ficando
atrás dos produtos asiáticos e europeus. Por sua vez, a jeribita deve ter
alcançado uma participação entre os 10% e os 30% do total do custo dos
escravos adquiridos na costa, com uma média secular mais próxima do
número mínimo do que do máximo (ver apêndice 1).

O tráfico luso-brasileiro na Costa da Mina


Apesar de mais próxima das rotas entre o Atlântico supra e sube-
quatorial, ponto intermédio entre a Senegâmbia e o Congo-Angola, a
Costa da Mina (Costa dos Escravos e Golfo de Benim, para os negreiros
da Europa setentrional) só foi atraída para o tráfico de escravos passadas
cerca de oito décadas após o início da exportação de cativos africanos
pelos portugueses.
Os contatos entre portugueses e mercadores da região da Costa da
Mina levaram quase cerca de um século até se converterem num comércio
escravista perene. Os poucos cativos comprados a leste da Mina (baía de
Benim) ainda nos séculos XV e XVI eram revendidos em troca de ouro
nas imediações do forte de São Jorge da Mina, de cujo nome derivou a
denominação dada pelos portugueses à região a sota-vento. Até então, os
portugueses, descobridores da região aos olhos ocidentais, mantinham
tráfico de escravos na “Guiné”, ou seja, na região da Senegâmbia, expor-
tando-os através de Cabo Verde. Um tráfico regular de cativos no golfo de
Benim só teve início por volta do segundo quarto do século XVII. Na década
de 1640, os portugueses passaram a dividir espaço com os holandeses
(para os quais perderam os fortes Arguim e São Jorge da Mina, na Costa
do Ouro) e os ingleses na aquisição de escravos africanos, destinados às
plantations açucareiras na América.32

31 Cálculo baseado em cinco anos (1799, 1802-1805): INEL, Balanças gerais do comércio, op.
cit.; Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352. Ver Apêndice 2.
32 Johannes Postma, The Dutch in the Atlantic Slave Trade, 1600-1815, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1990, pp. 10-13, 17-18; Bogart e Emmer, “The Dutch Participa-
tion”, pp. 357-359, 374.

80 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Paulatinamente, ao longo do século XVII, as exportações de es-


cravos deslocam-se do reino do Benim para os portos mais a ocidente,
concentrando-se em Aladá (ou Ardra) e Uidá (Whydah para os ingleses,
ou Ouidah, em francês), tornando-se este último o maior exportador de
escravos após 1670.33
Um sinal inequívoco do engajamento destas nações europeias no tráfico
atlântico desta região supra-equatorial é a proliferação de estabelecimentos
sob suas bandeiras na África ocidental. Em poucos anos, já havia 23 fortes
e/ou feitorias europeias desde a Senegâmbia até a Costa do Ouro.34
De fonte secundária de escravos para os traficantes ocidentais, a Costa
da Mina converte-se no maior manancial de cativos de toda a África nas
três primeiras décadas setecentistas. 35 O auge das exportações da Costa
da Mina está diretamente relacionado às guerras envolvendo os reinos
litorâneos de Aladá, Uidá e Oió, de um lado, e o reino de Daomé, de outro,
que conquistou os dois primeiros em 1724 e 1727, respectivamente.36
Fazendo tráfico numa região onde não detinham nenhum domínio
territorial e nem mesmo um forte (Portugal só veio a construir uma
modesta fortaleza em 1721, por iniciativa do governador-geral Vasco
Fernandes Cezar de Menezes), 37 ao contrário de sua posição em Luanda,
os portugueses viam-se às voltas com a concorrência aberta entre os
europeus pelas mercadorias vivas africanas. Em geral, os principais
produtos importados pelos portos escravistas da Costa da Mina eram
têxteis, armas, pólvora e búzios, cabendo um lugar modesto aos produtos
metalúrgicos e ao tabaco.38
Destarte, para obter êxito neste mercado, os negreiros deveriam
ofertar produtos com a qualidade e os preços requeridos pelos mercadores
de escravos locais.39 A Ásia era a principal fonte de têxteis de algodão,

33 Patrick Manning, Slavery, Colonialism and Economic Growth in Dahomey, 1640-1960,


Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 38.
34 David Eltis, The Rise of African Slavery in the Americas, Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 2000, p. 174. Os holandeses, antes de construírem os seus próprios, tomaram-
nos aos portugueses Arguim e o Castelo de São Jorge da Mina, com consequências de lon-
go prazo para o tráfico luso-brasileiro na região: Verger, Fluxo e Refluxo, p. 20 e passim.
35 Eltis, The Rise of African Slavery, p. 166, 181; Robin Law, “Dahomey and the Slave Trade:
Reflections on the Historiography of the Rise of Dahomey”, Journal of African History,
vol. 27, no 2 (1986), pp. 240-241.
36 Robin Law, “Royal Monopoly and Private Enterprise in the Atlantic Trade”, Journal of Afri-
can History, vol. 18, no. 4 (1977), pp. 558-59; idem, “Dahomey and the Slave Trade”, p. 242.
37 Verger, Fluxo e Refluxo, pp. 159-160.
38 Eltis, The Rise of African Slavery, pp. 175-177, 185; Manning, Colonialism and Economic
Growth, p. 44, nota 64.
39 David Richardson, “West African Consumption Patterns and Their Influence on the
Eighteenth-Century English Slave Trade”, in Gemery e Hogendorn (orgs.), The Uncommon
Market, p. 323.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 81


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

enquanto a Europa ocidental fornecia os lanifícios, as armas e os uten-


sílios metálicos. O tráfico da maior carreira escravista do século XVIII, a
inglesa,40 abastecia-se de têxteis por meio da East India Company e das
fontes europeias. No entanto, a parte das manufaturas importadas nas
reexportações inglesas para a África atlântica recuou continuamente desde
meados do Setecentos. Primeiramente, em lanifícios e, crescentemente,
nos algodões e nas armas, a Inglaterra passou a contar com fontes inter-
nas de manufaturados, substituindo as importações e as reexportações
paulatinamente ao longo do século.41
Os traficantes de Portugal tinham dificuldades crescentes na se-
gunda metade do século XVII para concorrer num mercado aberto da
costa africana, dado que sua fonte potencial de tecidos de algodão, o
comércio no Índico, havia declinado devido às perdas para holandeses e
ingleses de várias de suas feitorias e praças-fortes. 42 Apesar de uma leve
recuperação do fluxo Lisboa-Goa no último quartel do século XVII,43 o
número de embarcações portuguesas com este destino era insignificante
na primeira metade do século XVIII, quando comparado à quantidade de
naus dos Países Baixos na carreira do Oriente.44
O foco do tráfico português reinol e do Rio de Janeiro em Angola, e a
dificuldade de os mercadores de Pernambuco e da Bahia concorrerem com
aqueles, levou ao deslocamento do tráfico das capitanias açucareiras para a

40 Curtin, The Atlantic Slave Trade, pp. 210-211; David Richardson, “Slave Exports from
West and West-Central Africa, 1700-1810: New Estimates of Volume and Distribution”,
Journal of African History, vol. 30, no. 1 (1989), pp. 9-11.
41 Joseph Inikori, Africans and the Industrial Revolution: A Study in the International Trade
and Economic Development, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 58-60,
68-71, 758, 287-90, 407-11, 412-51 e 458-72. Sobre as exportações para a África atlânti-
ca pela carreira francesa: Robert L. Stein, The French Slave Trade in the Eighteenth Cen-
tury: An Old Regime Business, Madison, Wisc.: University of Wisconsin Press, 1979, pp.
71-2, 134-35; sobre a participação holandesa, ver Postma, The Dutch in the Atlantic Slave
Trade, pp. 103-105.
42 Sanjay Subrahmanian, O império asiático português, 1500-1700: uma história política e
econômica, Lisboa: DIFEL, 1995, pp. 207-224, 232-245.
43 Glenn J. Ames, “The Estado da Índia, 1663-1677: Priorities and Strategies in Europe and
the East”, Revista Portuguesa de História, no. 22 (1987), pp. 42-43.
44 A. Lopes, E. Frutuoso e P. Guinote, “O movimento da carreira da Índia nos séculos XVIX-
VIII: revisão e propostas”, Maré Liberum, no. 4 (1992), pp. 187-265. Por esta época, Portu-
gal despachava de duas a três naus por ano ao Oriente. Já em meados do século XVII, os ho-
landeses enviavam acima de 20 embarcações para o Índico, enquanto os ingleses, cerca de
10: Neels Steensgard, “The Growth and Composition of Long-Distance Trade of England
and the Dutch Republic Before 1750”, in James D. Tracy (org.), The Rise of Merchant Empi-
res (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), p. 109. Lapa chamara a atenção para a
concentração das arribadas e das escalas das naus da Índia na Bahia no século XVIII: José
Roberto do Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da Índia, São Paulo: Editora Nacional/Edusp,
1968, pp. 13, 229-30, 253, 268-69, 271 e ss. O autor (pp. 335-39, Quadro 2) contabilizou 84
escalas na Bahia por naus da Índia na primeira metade do século XVIII. Note-se, porém,
que 64 daquelas fizeram a escala na torna-viagem, ou seja, uma média pouco superior a
uma nau por ano entre 1700 e 1750.

82 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Costa da Mina,45 onde podiam ofertar um produto aceito pelos escravistas


locais e sem êmulo europeu: o tabaco. Durante a segunda metade do século
XVII, a produção açucareira do Brasil ressentiu-se da concorrência do
açúcar antilhano e do aumento do protecionismo nos mercados europeus. A
aquisição de mão-de-obra africana na Costa da Mina, em troca da oferta de
um subproduto tropical (o tabaco de terceira qualidade), deve ter ajudado
a diminuir os custos de produção dos engenhos do Recôncavo baiano e da
Zona da Mata pernambucana, sobretudo no caso de Pernambuco, às voltas
com a reconstrução de seu parque açucareiro após o domínio holandês.46
No entanto, o reconhecido papel que o tabaco cumpre nas cargas dos
negreiros coloniais destinadas ao comércio de escravos na Costa da Mina
não conta toda a história deste tráfico bipolar. Apesar de os manifestos
de carga das embarcações saídas da capital do Brasil ou do porto do
Recife registrarem apenas rolos de tabaco, alguns testemunhos coevos
atestam que não era possível aos traficantes adquirirem os escravos de
sua lotação munidos apenas do tabaco de terceira (o único permitido pela
Coroa naquela rota)47.
A carga efetiva das embarcações que desaferravam do porto do Re-
cife rumo à Costa da Mina era composta de uma miscelânea de produtos,
incluindo, “aguardente de cana, açúcar, ouro lavrado e em pó, couros de
onça, curtidos e em cabelo, redes, chapéus de sol de seda, rabos de boi,
facas de ponta com cabo de tartaruga, fazenda branca da Europa e da
Índia e […] alguma seda ligeira”. 48 Não obstante, tudo indica que o tabaco
e o ouro eram os itens mais relevantes em valor entre os produtos acima
arrolados. Os negreiros que partiam das capitanias de Pernambuco e da
Bahia rumo à Costa da Mina levavam em seus porões, além do tabaco,
beneficiado especialmente para aquele fim (com muito melaço e ervas
aromáticas), certa quantia de ouro em pó. Duas razões respondem pela
necessidade de completar a carga de ida com o metal amarelo: primeira-
mente, não era possível fazer negócios com os mercadores africanos de
escravos com base em um único produto. Os lotes de escravos deveriam
ser pagos com um conjunto de mercadorias que, normalmente, deveria

45 Joseph C. Miller, “A Marginal Institution on the Margin of the Atlantic System: the Por-
tuguese Southern Atlantic Slave Trade in the Eighteenth Century”, in Barbara L. Solow
(org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System (Cambridge: Cambridge University
Press, 1991), pp. 136-137.
46 J. H. Galloway, “Nordeste do Brasil, 1700-1750. Reexame de uma crise”, Revista Brasileira
de Geografia, vol. 36, no. 2 (1974), pp. 85-102; Luiz Felipe de Alencastro, “Engenho de Sem-
pre”, Novos Estudos Cebrap, no 24 (1989), p. 201.
47 Embora desde então se soubesse que tabaco de primeira qualidade era exportado ilegal-
mente para a Costa da Mina pelos negreiros.
48 “Informação Geral da Capitania de Pernambuco, 1749”, Annaes da Bibliotheca Nacional
do Rio de Janeiro, no. 28 (1908), pp. 482-483.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 83


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
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conter tecidos e armas de fogo europeias.49 Em segundo lugar, tudo


indica que mesmo a carga em tabaco de embarcações de menor porte
(menos de 200 escravos) não era suficiente para pagar pela totalidade
dos escravos que comportava sua arqueação. Para evitar fazer a viagem
de volta com capacidade ociosa, os negreiros da colônia deveriam lançar
mão das manufaturas do tráfico (de maior poder de compra que o tabaco)
que completariam o pagamento de suas cargas de torna-viagem.
Esta estratégia comercial é atestada na Bahia, onde uma testemu-
nha contemporânea assegurava que cerca de dois terços dos escravos
importados por Salvador eram pagos em ouro, seja pela compra direta
de escravos às feitorias das demais nações europeias, seja pela aquisição
dos manufaturados que seriam negociados em troca dos escravos com
os mercadores africanos. Este indivíduo assegurava que o mesmo se
verificava, ainda com maior intensidade, no tráfico do Rio e do Recife. 50
Outra testemunha contemporânea, com larga experiência no tráfico
do Brasil com a Costa da Mina, também caracterizava da mesma forma
o fluxo de bens das capitanias do Brasil para aquela costa. Segundo José
de Torres, a feitoria holandesa estabelecida em Jaquém (no reino de
Aladá) vendia escravos e fazendas aos negreiros do Brasil num montante
superior a um milhão de cruzados anuais. Todo este fornecimento era
saldado com ouro em pó, embarcado, evidentemente, de forma ilegal
no Brasil. 51
Portanto, ainda que se deva ponderar este relato, parece claro que
o ouro desempenhou um papel, no mínimo, igual ao do tabaco no tráfico
de escravos originado na Bahia e em Pernambuco, vinculado à Costa da
Mina. Não por acaso, os holandeses assentados no castelo de São Jorge,
acostumados a extorquirem 10% da carga em tabaco dos negreiros da-
quelas capitanias desde a virada do século XVIII, mudam a forma desta
exação. Como a descoberta do ouro no Brasil aumentou drasticamente o

49 Sobre o papel das armas de fogo no tráfico da região da Mina, incluindo a dificuldade por-
tuguesa de supri-las, ver R. A. Kea, “Firearms and Warfare in the Gold Coast and Slave
Coast from the Sixteenth to the Nineteenth Centuries”, Journal of African History, vol.
12, no. 2 (1971) pp. 185-187.
50 A testemunha é João Batista Rolhano, apud Edmundo Correia Lopes, A escravatura. Sub-
sídios para sua história, Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1944, p. 119.
51 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 4, doc. 85, Consulta do Conselho Ultramari-
no sobre a representação de José de Torres, Lisboa, posterior a 2/11/1721; idem, caixa 4,
doc. 118, Representação de José de Torres sobre os descaminhos do ouro, diamantes e ta-
baco fino na Costa da Mina e projeto de uma Companhia para a Bahia, Lisboa, posterior
a 1724. Ver as conclusões neste mesmo sentido de Roquinaldo Ferreira, "A arte de furtar:
redes de comércio ilegal no mercado imperial ultramarino português,(c. 1690–c. 1750)”,
in João Luís R. Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa (orgs.), Nas tramas da rede: política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010), pp. 203-241.

84 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

fluxo de negreiros na região, os holandeses, que antes se contentavam


com o tabaco, não o queriam mais. Passaram, então, a exigir o pagamento
do décimo da carga em ouro, embora também aceitassem couros e outras
fazendas, mas não apenas o tabaco.52
Os negreiros do Brasil também tratavam com as feitorias e as embar-
cações inglesas na Costa da Mina. Os navios ingleses que lá negociavam
levavam para os portos britânicos de cinco a sete arrobas de ouro “portu-
guês”, segundo apurou o capitão-mor de São Tomé, quando da passagem
destes negreiros pela ilha. Para isto, segundo os próprios capitães dos
negreiros britânicos, traziam duas carregações: uma para adquirir escravos
e vendê-los aos portugueses, por seis a nove onças de ouro, outra para
comprarem escravos e levá-los a Barbados e à Martinica.53 Os franceses,
por sua vez, adquiriam ouro nos negócios que faziam nas ilhas de São
Tomé e Príncipe, vendendo aos moradores fazendas para o tráfico.54
No caso do tráfico pernambucano, diante da sangria de ouro pelo des-
caminho africano, a Coroa proibiu que se embarcasse o metal amarelo nos
navios do tráfico para a Costa da Mina. O governador de Pernambuco procu-
rou minimizar as exportações de ouro por aquela rota, embora a admitindo,
argumentando:
Não duvido eu q’ algum ouro hira sem embargo de ser
prohibido, o q’ se não pode evitar, nem eu o avalio [a
proibição] conveniente ao serv.o de V. Mag.de antes m.to
prejudiçial o não hir [ouro], por q’ os Navios vão sobre
carregados com tabacos, e sahem alguns in capazes de
navegarem, levando a agoa no convés, mas esta tal carga
não basta p.a os Navios trazerem os Escravos da sua lotação;
assim, as fazenda q’ levão da Europa [...] a troco do mesmo
ouro, ou dinhr.o q’ levão, fica como servindo com sal em
tempero de hua panela.55

Muito embora o governador repute o ouro apenas como o tempero da


panela em que entram os ingredientes deste trato bipolar, dado que não

52 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 5, doc. 88, Rellação das tiranias e sem re-
zõens que usão os Olandeses na Costa da Mina com as embarcaçõens da América que a
ella vão fazer negocio, in Carta do governador de S. Tomé Serafim Teixeira Sarmento ao
rei D. João V. S. Tomé, anterior a 13/11/1731.
53 Ibid. Pode-se subtender que, embora estes relatos se refiram às embarcações do Brasil de
forma geral, os negreiros da Bahia deveriam ser os mais envolvidos nestas transações,
dado o volume muito superior do tráfico direto da Bahia com a Costa da Mina.
54 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 10, doc. 93, Relação de Gaspar Pinheiro da
Câmara Manoel sobre as Ilhas do Príncipe e São Tomé, Lisboa, 15/061766.
55 AHU, Conselho Ultramarino, caixa 43, doc. 3860, Carta do governador Duarte Sodré Perei-
ra Tibão, in Carta dos oficiais da Câmara de Recife ao rei [D. João V], pedindo deferimento
da conta que deu a dita Câmara e a proposta que fizeram os homens de negócio do Recife
sobre a proibição do comércio [de escravos] com a Costa da Mina, Recife, 23/04/1732.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 85


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

seria provável se admitisse um contrabando em larga escala, podemos


concluir que a carga em tabaco dos negreiros que zarpavam do Recife
(normalmente bem menores que os da Bahia) deveria necessariamente
ser suplementada – talvez, mesmo, completada – pelo ouro com o qual
se compravam as fazendas que giravam no tráfico.
Não dispomos de dados quantitativos detalhados das exportações
por meio das embarcações na rota da Bahia e de Pernambuco para a
Costa da Mina, mas podemos fazer algumas aproximações, de teor
hipotético, dado se basearem em informações qualitativas e, apenas
em menor medida, quantitativas. O mesmo governador da capitania
de Pernambuco, na missiva já citada, afirmava que, em média, a cada
ano seguia ouro no valor de 10 mil cruzados (quatro contos de réis)
nos negreiros daquele porto para a Costa da Mina. Sabemos que a
exportação média de tabaco com aquele mesmo destino foi de 16.474
arrobas na década de 1730. 56 Se atribuirmos a cada arroba o maior
preço atingido na década, 843 réis, 57 temos que o valor médio das ex-
portações de tabaco para compra de escravos minas por Pernambuco
foi de 13.887.552 réis no decênio. Portanto, a preços do Recife, o ouro,
embarcado juntamente com o tabaco, equivalia a 29% do valor deste
e a 22% do total das exportações. Ora, isto, na verdade, é um mínimo,
visto que é de se supor que os termos de troca na costa ocidental da
África, nas negociações entre os luso-brasileiros e os outros europeus,
eram bem mais favoráveis ao metal precioso que ao tabaco. 58 Outra
estimativa é possível de acordo com as contas de um negreiro de Per-
nambuco que carregou no Recife e fez tráfico na Costa da Mina. Sua
carga compunha-se, em valor, de metade de gêneros da terra (tabaco
e aguardente) e metade de têxteis (sedas). O tabaco (cerca de 45% do
valor da carga) e a aguardente (5%) pagaram aproximadamente um

56 A média foi calculada a partir de apenas três anos disponíveis: 1734, 1737 e 1739. Insti-
tuto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (IANTT), Junta do Tabaco, maço 100, Supe-
rintendente do tabaco de Pernambuco, Recife, 13/09/1734; idem, maço 101, Superinten-
dente do tabaco de Pernambuco, 26/02/1738; Superintendente do tabaco, 12/03/1738;
e Superintendente do tabaco, Pernambuco [Antonio Rebello Leite], 10/12/1739.
57 Jean Baptiste Nardi, O fumo brasileiro no período colonial: lavoura, comércio e adminis-
tração, São Paulo:Brasiliense, 1996, pp. 113-114.
58 Veja-se o interesse da Royal African Company, que administrava as feitorias inglesas na
África por fazer negócios com os traficantes do Brasil após a descoberta do ouro; sua jun-
ta administrativa informava aos diretores de Cape Coast Castle e da feitoria em Uidá, em
1707: “Havíamos-lhes proibido [aos diretores] que comerciasse com os portugueses […].
Mas agora vemos que existem possibilidades de obter lucros consideráveis, se eles pude-
rem ser levados a trazer ouro para a costa em lugar de outras mercadorias. Desejamos que
[…] encoraje o mais possível os portugueses, mas com a condição de não trazerem merca-
dorias europeias e que possam dispor, em troca de ouro, de mercadorias e negros”: Verger,
Fluxo e refluxo, pp. 57-62. A citação é da p. 61 (grifo nosso).

86 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

terço dos escravos comprados. Os outros dois terços foram pagos com
têxteis, ferro e búzios, adquiridos de um negreiro holandês e de um
outro, inglês. Embora o documento não mencione o embarque de ouro,
é provável que o mesmo fosse embuçado sob o nome de “seda”, com a
qual se pagou boa parte das manufaturas e dos búzios utilizados no
tráfico. 59
A conta da carregação foi apresentada junto com outros documentos
produzidos em Pernambuco e enviados ao reino com vistas a subsidiar
a formação da Companhia de Comércio, o que reforça a desconfiança
de que se omitiu o ouro. No entanto, num dos documentos, menciona-se
expressamente a necessidade de 3.343 oitavas para compor a carga de
um negreiro de lotação média.60
Portanto, numa primeira aproximação, é possível estimar que o
tabaco foi responsável pela aquisição de um terço à metade dos escravos
comprados diretamente pelas praças do norte do Brasil. A participação
relativa do ouro (equivale a dizer, de manufaturados) e do tabaco neste
ramo do tráfico transatlântico de escravos pode ter sido diretamente
proporcional à abundância do metal precioso em terras da América
portuguesa ao longo do século XVIII. Isto, no entanto, é um aspecto que
requer futuras investigações.

Considerações finais
A análise comparada do tráfico de escravos luso-brasileiro em suas duas
principais vertentes permite-nos chegar às seguintes conclusões:
a) Do ponto de vista dos produtos utilizados no resgate de cativos, existe
uma diferença fundamental entre o tráfico de Angola e o tráfico da
Costa da Mina: no primeiro caso, os produtos americanos, com um
relevo especial para a jeribita, não eram tão significantes, ocupando
algo em torno dos 20% e 35% das importações angolanas no século
XVIII. No segundo caso, as mercadorias tropicais, especialmente
o tabaco, equivaleram de 35% a 50%, pelas nossas estimativas,
do valor dos escravos importados da Costa da Mina pelo Brasil.
O restante foi, em grande medida, pago, direta ou indiretamente,
em ouro produzido no Brasil e com as manufaturas. Atente-se que
sua função na economia atlântica e no tráfico era, porém, muito

59 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 100, doc. 8, Entrada da carregaçam que no
Recife de Pernambuco o snr. Jozé de Freitas Sacotto na sua galera por invocação Aleluya
da Surreição e Almas, a mim Jozé Francisco Rocha, Recife, 1752. Este documento é ana-
lisado em Gustavo Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: tabaco,
açúcar, ouro e tráfico de escravos: capitania de Pernambuco (1654-1760) (Tese de Douto-
rado, Universidade de São Paulo, 2007), pp. 148-167.
60 AHU, Conselho Ultramarino, São Tomé, caixa 100, doc. 8, Relação no 5, s.d.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 87


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
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particular. Como o metal amarelo não era introduzido nos sertões


para o resgate, mas trocado na costa por mercadorias trazidas por
outras nações, seu efeito sobre a demanda de mercadorias europeias
na costa da África era positivo.61

Esta diferença reflete as especificidades dos dois mercados de


escravos: em Luanda, o regime de monopólio afastava a concorrência
de outras nações e garantia à economia metropolitana uma fração do
comércio de importações. O resultado era que os mercadores sediados
no Brasil, que enviavam cargas de jeribita, sofriam a concorrência das
bebidas alcoólicas europeias, mas, por outro lado, podiam completar
suas cargas com reexportações de manufaturas asiáticas ou produtos
contrabandeados de outras nações. Na Costa da Mina, o regime de con-
corrência entre as potências europeias excluía os produtos portugueses
e tornava proibitivo um comércio de reexportações a partir do Brasil. Em
compensação, o tabaco brasileiro não possuía rival, o que seguramente
explica a importância do fumo na compra de escravos.
b) Por outro lado, a comparação entre as duas regiões revela o modo
distinto pelo qual o tráfico de escravos integrava os diferentes
continentes na economia-mundo. Não há dúvida de que o resgate
luso-brasileiro de africanos enquanto negócio era mais importante
para a economia brasileira do que para a europeia em geral e para
a portuguesa em particular; não obstante, os produtos americanos
demandados pelos mercados africanos, alimentos e drogas, refor-
çavam o caráter agrário, colonial e a posição periférica do Brasil
na economia-mundo: salvo se os lucros com o comércio negreiro
fossem exportados para a Europa, a tendência era que eles fossem
reinvestidos em mais terras e escravos.

Já o “ramo europeu” do tráfico luso-brasileiro baseava-se principalmente


no negócio de manufaturados, alguns deles produzidos nos setores de ponta
da industrialização. Tanto em Angola como na Costa da Mina havia grande
demanda por armas, ferragens e tecidos, produzidos no noroeste europeu.
Independentemente da importância relativa do mercado africano para o
desenvolvimento industrial – os debates historiográficos a este respeito
não parecem ter fim – é inegável que o tráfico de escravos contribuiu para
o surgimento de certas indústrias na Europa,62 especialmente a produção

61 Em certa medida, o mesmo acontecia com o tabaco de primeira, que era ilegalmente
exportado para a Costa da Mina e trocado por manufaturas nas feitorias e negreiros
europeus.
62 A este respeito tendemos a concordar com Joseph Inikori que avalia a contribuição afri-
cana para a revolução industrial inglesa não apenas pelo tráfico de escravos, mas ainda

88 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de têxteis de algodão na Inglaterra, que passará a ser o setor mais dinâmico


da primeira revolução industrial.63
No final das contas, como muito bem expressou Barbara Solow, a escra-
vidão americana – e, por extensão, a produção de mercadorias americanas
para o tráfico – ao concentrar-se na agricultura permitiu que as vantagens
comparativas europeias passassem à produção de manufaturados. Assim, apesar
da penetração dos capitais “brasileiros” no tráfico, não existiam incentivos
econômicos para investimentos fora da agricultura.64
No caso da parcela “asiática” deste comércio, seus efeitos sobre as so-
ciedades produtoras ainda merecem ser estudados com mais cuidado. No en-
tanto, a revolução industrial, secundada pelo domínio colonial inglês sobre a
Índia, consolidado com a batalha de Plasey (1757), resultaram na destruição
da produção manufatureira indiana. No século XIX, a Ásia estava destinada
a tomar o lugar da América e da África enquanto mercado preferencial das
manufaturas europeias.
Por último, no lado africano, a pressão por cativos reforçou as ten-
dências centrífugas nos estados locais e estimulou a captura de homens
em detrimento da produção e da comercialização de outras mercadorias;
só com a abolição do tráfico atlântico, na primeira metade do século XIX, é
que se desenvolveu a exportação de commodities no continente africano.
É verdade que o tráfico promoveu modificações nas economias locais, que
levaram ao aumento da mercantilização e da monetarização das trocas, bem
como a um crescimento econômico além do que os recursos locais – sem o
influxo externo – permitiriam. No entanto, as transformações não foram

continuação 62

pelos mercados americanos e pelas matérias-primas produzidas no Novo Continente com


mão-de-obra escrava, ou seja, mais do que medir a participação relativa de um único ramo
do comércio colonial, é necessário levar em conta a contribuição do conjunto do sistema
colonial inglês, pois, como lembra Javier Cuenca Esteban, a vantagem britânica estava na
variedade de alternativas de seu comércio, que permitia compensar perdas em negócios
decadentes com ganhos em negócios em ascensão: Inikori, Africans and the Industrial Re-
volution, passim; Javier Cuenca Esteban, “El imperio y el carbón. Factores claves de la in-
dustrialización británica” (texto inédito).
63 Sobre a contribuição do tráfico para a indústria têxtil inglesa, ver Inikori, Africans and
the Industrial Revolution; e Joseph Inikori, “Slavery and the Revolution in Cotton Texti-
le Production in England”, in Inikori e Stanley Engerman (orgs.), The Atlantic Slave Trade,
pp. 145-181.
64 Barbara L. Solow, “Capitalism and Slavery in the Exceedingly Long Run”, Journal of Interdis-
ciplinary History, vol. 17, no. 4 (1987), p. 717. Os argumentos daqueles que, com as devidas
correções, se recusam a cantar um réquiem para Eric Williams, podem ser lidos em Barbara
L. Solow e Stanley L. Engerman, “Introduction”, in idem (orgs.), British Capitalism and Cari-
bbean Slavery: the Legacy of Eric Williams (Cambridge: Cambridge University Press, 1987),
pp. 8-10, 14-15. No mesmo volume, J. E. Inikori, “Slavery and the Development of Industrial
Capitalism in England”, pp. 79-101; D. Richardson, “The Slave Trade, Sugar and British Eco-
nomic Growth”, pp. 121-25, 131-32. Ver ainda Patrick O’Brien e S. Engermann, “Exports and
the Growth of British Economy from the Glorious Revolution to the Peace of Amiens”, in So-
low (org.), Slavery and the Rise of the Atlantic System, pp. 177-209.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 89


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
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de molde a promover uma transição para melhores níveis técnicos e para


formas de produção menos intensivas em trabalho, deixando a economia
no meio caminho entre o predomínio do valor de uso e o de troca.65
Sendo assim, se o tráfico luso-brasileiro de escravos não foi cer-
tamente a causa da divisão social do trabalho que se consolidou entre
os séculos XVIII e XIX, foi, parafraseando Immanuel Wallerstein, um
destes fenômenos de interação social pelo qual as diferenças econô-
micas continentais foram reforçadas, estabilizadas e definidas como
tradicionais. 66

65 Inikori, Africans and the Industrial Revolution, pp. 382-83; Miller, Way of Death, pp. 100-
103; Wallerstein, El moderno sistema mundial, p. 137. Sobre os efeitos negativos do co-
mércio escravista sobre a produção têxtil africana, cf. J. Inikori, “English Versus Indian
Cotton Textiles: The Impact of Imports on Cotton Textile Production in West Africa”, in
Giorgio Riello e Roy Tirthankar (orgs.), How India clothed the world: the world of South
Asian Textiles, 1500-1850 (Boston, MA: Brill, 2009), pp. 85-114.
66 Wallerstein, El moderno sistema mundial, vol. I, p. 137.

90 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Apêndice 1:
Nota sobre o cálculo da participação relativa da
jeribita no tráfico de escravos em Angola
Para o final do século XVIII existem os já analisados dados da al-
fândega de Luanda, que permitem estabelecer com alguma segurança
o peso relativo da jeribita nas importações angolana totais. José Curto
publicou uma série mais longa que reproduzimos aqui com a adição do
ano de 1808, segundo documento que consta no Arquivo Nacional. To-
mamos o cuidado ainda de checar os dados deste autor com os originais
a que tivemos acesso.
O problema maior são as estimativas de José Curto para o período
anterior, que se baseiam num testemunho segundo o qual Angola e
Benguela haviam importado diretamente do Brasil, durante a década
de 1760, um valor total de 1.600.000.000 réis. Deste total, a jeribita
equivaleria à metade 800.000.000 réis, ou a 3/4 deste valor sendo de
82% a participação de Luanda no mercado da cachaça suas importações
1.200.000.000 réis, deste produto ficariam entre um valor de 656.000.000
réis e 984.400.000 réis.
Com estes dois últimos valores, o autor conclui que, na década de
1760, as importações da cachaça teriam representado entre 21% e 32%
das exportações totais de Luanda e entre 27% e 40,5% dos 82.911 cativos
embarcados para o Brasil.
Ora, de onde o autor retirou a estimativa de que as importações de
jeribita seriam entre metade e 3/4 do total importado do Brasil? A única
fonte apresentada está na nota 30:
Durante o final da década de 1790 e o início do século
XIX, isto é, depois dos comerciantes coloniais no Brasil
começarem a reforçar o seu comércio de geribita [sic], tanto
em Luanda como em Benguela, com produtos comerciais
euroasiáticos, a cachaça ainda representava 45% do valor
de todas as importações da terra de Vera Cruz. Este número
é retirado dos valores combinados de Luanda-Benguela da
gerebita importada em 1798, 1802 e 1809.67

Pela fonte original, observa-se que, nos mapas de 1798, 1802 e 1809,
se repete a metodologia dos de 1785-1794 e 1795-1797, apresentando
os lugares de produção das diferentes mercadorias importadas e não o
porto onde elas foram embarcadas por último. 68 A distorção só não foi

67 Curto, Álcool e escravos, p. 161, nota 30.


68 Nos anos de 1798 e 1802, aparece um pequeno número de produtos exóticos, como ca-
misas, nas importações de produtos brasileiros que talvez tenha levado José Curto a

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 91


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
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pior porque os originais de Benguela eram organizados de modo distinto,


demonstrando a origem das cargas.69
Esta estimativa fortemente distorcida para a década de 1760 leva
José Curto a sobrelevar a importância da jeribita, afirmando que 40,5%
dos escravos embarcados para o Brasil na primeira metade do século XVIII
teriam sido comprados com a cachaça (em torno de 126.510 indivíduos);
este número seria contrabalançado pelo período entre 1760-1830, em
que a jeribita seria responsável pela aquisição de 16,7% dos escravos
(171.089). Chega-se, assim, à proporção aproximada de que 25% dos
1.181.500 escravos exportados haviam sido pagos com a cachaça.66

Tabela 2: Importações de jeribita e importações totais em Luanda (em mil réis)


Ano Jeribita importada Importações totais % jeribita
1785-1794 68.362 486.887 14%
1795-1797 140.749 591.002 24%
1798 57.067 355.566 16%
1799 61.287 581.280 11%
1802 125.984 998.802 13%
1803 117.512 995.372 12%
1804 140.846 998.522 14%
1805 177.487 1.063.413 17%
1808 211.133 825.227 26%
1809 155.028 588.992 26%
1810 102.520 879.954 12%
1812 118.440 862.265 14%
1813 154.594 845.140 18%
1815 138.074 986.898 14%
1816 115.456 1.077.541 11%
1817 155.292 1.571.976 10%
1818 199.083 1.549.691 13%
1819 174.102 1.771.209 10%
1823 194.860 819.004 24%
1830-1832 196.767 622.464 32%

Fonte: Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352; AN, Real Junta de Comércio, caixa 448, pacote
1. Os valores referentes a 1785-1794, 1795-1797 e 1830-1832 são médias anuais. O total de
1803 foi corrigido pelo original que consta no AHU.

continuação 68

interpretar de forma errônea a fonte. Em todo o caso, a inexistência de mercadorias asiá-


ticas entre os produtos referidos como brasileiros e portugueses não deixa margem a dú-
vida: a classificação em todos estes mapas foi pelo lugar de produção.
69 Curto, Álcool e escravos, p. 366, Quadro 33.
66 Ibid, p. 199.

92 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Tabela 3: Importações de jeribita e exportações de escravos (médias anuais)


Pipas de Quantidade %
Intervalos Valor em réis Valor em réis
jeribita de escravos jeribita
1699-1703 689 37.917.000 4.619 327.610.411 13%
1727-1728 2.481 136.471.500 8.089 529.975.362 26%
1756-1761 1.963 107.937.500 9.699 635.498.676 17%
1785-1794 1.487 81.757.500 10.364 679.057.756 12%
1795-1797 2.538 139.576.250 9.905 649.018.065 22%
1798-1799 1.511 83.118.750 9.469 620.428.597 13%
1802-1805 1.957 107.621.250 13.848 907.333.414 12%

Fontes: Para o número de pipas importadas, Curto, Álcool e escravos, quadros 3, 5, 6, 10.
Para o número de escravos exportados entre 1699-1703, utilizamos a média anual de
escravos oficialmente exportados por Luanda, entre 1710-1714, reproduzindo o método de
Eltis, Behrendt e Richardson para estimar as exportações entre 1701-1709. Cálculos sobre
outras fontes, como, por exemplo, as estimativas do The Trans-atlantic Slave Trade Database
sugerem uma média anual superior em mais de 1.000 cabeças. No entanto, optou-se pela
menor estimativa, porque ela vai contra o nosso argumento, sobrelevando o poder de compra
da cachaça no período: David Eltis, Stephen Behrendt e David Richardson, “A participação
dos países daEuropa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”,
Afro-Ásia, no. 24 (2000), p. 33; David Eltis et. al., “West Central Africa and St. Helena Estimates”,
http:// www.slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces, acessado em 24/02/2008. Os
demais números foram retirados de Curto, Álcool e escravos, quadros 4 e 8. Os preços de uma
pipa de aguardente e de um escravo em 1797 foram retirados de BN, 15, 3, 33. Optou-se por este
ano porque ele registra preços relativamente médios, especialmente para a pipa de aguardente,
que deveria flutuar muito em relação à oferta, daí os extremos de 36.000 réis em 1799 e 90.000
réis em 1802: Curto, Álcool e escravos, quadro 20.

Oferecemos um cálculo alternativo para se estimar a equivalência


em escravos das importações angolanas de jeribita, utilizando os núme-
ros publicados por José Curto. Assim, estabelecendo as médias anuais das
quantidades de pipas de jeribita importadas e de escravos exportados para
alguns intervalos e utilizando-se os preços dos dois produtos no ano de
1797 (55.000 réis por pipa e 65.522 réis para cada escravo), obtém-se o
seguinte resultado:
Observa-se que, nos diferentes intervalos, a jeribita importada fica-
ria entre 26% e 12% do valor dos escravos exportados. A utilização de um
preço-índice retira a dinâmica do mercado, em que situações de escassez
ou de abundância podiam mudar a relação entre cachaça e escravos; por
outro lado, parece-nos que este cálculo é mais confiável que as estimativas
de José Curto.

RESGATE E MERCADORIAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO TRÁFICO LUSO-BRASILEIRO DE 93


ESCRAVOS EM ANGOLA E NA COSTA DA MINA (SÉCULO XVIII)
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Apêndice 2:
Nota sobre a participação lisboeta nas importações
angolanas (17991805)
Simultaneamente à produção dos registros da alfândega de Luanda,
preparavam-se balanças de comércio de Portugal, utilizando-se os dados
das alfândegas dos portos do Reino. Estes dois tipos de registros não são
diretamente comparáveis em razão das diferenças de metodologia, da óbvia
assincronia entre as partidas do Reino e as chegadas em Luanda e da incerteza
entre a intenção do destino declarado no porto de origem e a efetivação do
negócio na África. Na média do período, porém, estas distorções devem-se
reduzir, como mostra a tabela 4:

Tabela 4: Exportações de Portugal para Luanda e


importações totais de Luanda (em mil réis)

Exportações de Importações de %
Ano
Portugal Luanda ExpPort
1799 427.829 581.280 74%
1802 531.446 998.802 53%
1803 480.789 996.372 48%
1804 586.978 998.522 59%
1805 548.620 1.063.413 52%
Total 2.575.662 4.638.389 56%

Fonte: INEL, Balanços gerais do comércio do reino de Portugal com os seus domínios e nações
estrangeiras (1796-1807); Curto, Álcool e escravos, quadro 27, p. 352. Optou-se por utilizar
os números de José Curto porque a sua série é mais completa do que a nossa; não foi possível
calcular o ano de 1798 porque a balança portuguesa do referido ano não se encontra na
coleção do INEL.

Por aí, constata-se que a participação portuguesa nas importações de


Luanda girava entre 48% e 74%. Estes números não levam em conta as varia-
ções de preços entre os dois mercados, tendo em vista que as diferenças entre
pesos, medidas, qualidades e classificações nos dois registros não permitiram
tirar uma conclusão definitiva a respeito dos preços. Neste sentido, o cálculo
de 56% pode ser encarado como um número aproximado e provisório70

70 Comparando os preços de Lisboa, em 1796, com os de Luanda, na média de 1795-1797,


constatou-se que os segundos eram entre 26% e 323% mais caros que os primeiros. De-
pois de 1799, os preços de Lisboa parecem aumentar bastante, muito provavelmente por
causa de uma mudança de metodologia na fonte, e assim não é raro encontrar produtos
mais baratos em Luanda, mas a base de comparação também diminui bastante, porque as
balanças em Portugal passam a ser mais sucintas na sua descrição dos produtos.

94 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


CAPÍTULO 3

A CoMpAnhiA de pernAMbUCo e pArAíbA e


o fUnCionAMento do trÁfiCo de esCrAvos
eM AnGolA (1759-1775/80)
Maximiliano M. Menz

As companhias de comércio criadas por iniciativa de Sebastião


José de Carvalho e Mello, no final da década de 1750, foram um dos
mais importantes capítulos da história econômica colonial portuguesa
da segunda metade do século XVIII. Seja pela introdução e estímulo à
produção mercantil do algodão, seja pela integração definitiva da região
do Grão Pará e Maranhão ao mercado atlântico, ou ainda pelas mudanças
institucionais e na organização dos grupos mercantis portugueses, estas
empresas foram um marco na transição entre a depressão aurífera e a
recuperação da agricultura de exportação no final do século. Não bastasse
sua importância, pela ligação com o Estado e a administração pública
portuguesa, produziram e guardaram uma imensa coleção de documentos
de cunho contábil que permitem deslindar a organização do comércio
atlântico em seus três ramos: o africano, o europeu e o americano.
Mesmo assim, foram poucos os estudos sobre elas. Até agora, apenas
a Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi devassada pelos trabalhos mais
abrangentes de Manuel Nunes Dias e de Antônio Carreira, enquanto que
a Companhia Geral de Pernambuco e da Paraíba (CGPP) foi estudada a
penas por José Ribeiro Jr., além do capítulo de menor fôlego de Antônio
Carreira sobre ela no livro As companhias pombalinas.1 Mais recente-
mente, monografias e artigos abordaram alguns temas relacionados às
companhias, por exemplo, a sua relação com as populações coloniais, mas
não chegaram a retornar aos seus dados contábeis.2

1 José Ribeiro Jr., Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro, São Paulo: Oscite 2004; e
Antônio Carreira, As companhias pombalinas, Lisboa: Presença, 1983.
2 Por exemplo, Érika S. A. Carlos, “O fim do monopólio: a extinção da Companhia Geral de Per-
nambuco e Paraíba” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 2001).

95
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Particularmente sobre a Companhia de Pernambuco e da Paraíba,


os estudos existentes não abrangem com o devido cuidado cada ramo do
negócio do Atlântico. No caso do tráfico de escravos operado pela Com-
panhia, o trabalho de Carreira levantou os números de almas exportadas,
abordou as rotas, tratou da origem étnica dos escravos, mas pouco disse
a respeito da organização do negócio do ponto de vista do financiamento
e da sua organização na costa da África. Já o livro de José Ribeiro Jr.
apresentou alguns dados, mas também não discutiu os temas que serão
explorados aqui.
O presente artigo limita-se, portanto, ao estudo das atividades
mercantis da Companhia de Pernambuco e da Paraíba no seu ramo
africano. Mais precisamente: pretende estudar o financiamento das
atividades no resgate de escravos em Angola, 3 apresentando para isto
um levantamento quantitativo das cargas importadas por Luanda e das
conjunturas do negócio, fazendo ainda algumas considerações sobre a
sua lucratividade. As operações da Companhia serão encaradas como
uma amostragem do comércio angolano em geral, pois, como pretendo
demonstrar, apesar das inovações na organização da Companhia (com-
panhia por ações, monopólio do comércio), há uma tendência a repetir
as experiências prévias no que diz respeito às rotas e carregações.
Nessa direção, desenvolvo uma hipótese, formulada originalmente
por Joseph Miller, de que eram os homens de negócio sediado sem Portugal
que financiavam o tráfico em Angola.4

3 Sigo a documentação da Companhia e boa parte dos registros alfandegários que desig-
nam por “Angola" o comércio feito através do porto de Luanda. Esta designação parece
ser comum no Império português durante o século XVIII, pois, de acordo com Miller, en-
quanto nas colônias das demais nações européias os escravos denominados Angola di-
ziam respeito a todos os indivíduos resgatados ao sul do Cabo Lopes, no Brasil eram de-
signados por “Angola” os escravos despachados por Luanda. Não pretendo generalizar
o “modelo” de funcionamento do tráfico discutido aqui para outras zonas como Loango,
Cabinda e Benguela. Joseph Miller, “África Central durante a era do comércio de escra-
vizados, de 1490 a 1850”, in Linda Heywood (org.), Diáspora negrano Brasil (São Paulo:
Contexto, 2010), pp. 38-42.
4 Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-
1830, Winscosin: The Universisty of Winsconsin Press, 1988. A historiografia tem avan-
çado bastante no debate a respeito das relações entre o comércio de escravos e as comu-
nidades africanas do interior, o impacto do tráfico sobre a demografia e as guerras no
interior de Angola e demais regiões da África Centro-Ocidental. Ver, por exemplo, John
Thornton, “Early Kongo Portuguese Relations: A New Interpretation”, History in Africa,
no. 8 (1981), pp. 183-204; idem, “As guerras civis no Congo e o tráfico de escravos: a histó-
ria e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp.
55-74; idem, “Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World”, The William
and Mary Quarterly, Third Series, vol. 60, no. 2 (2003), pp. 273- 294; Roquinaldo Fer-
reira, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare and Territorial Control in Ango-
la,1650-1800” (Tese de Doutorado, Universidade da Califórnia, 2003); José Curto e Ray-
mond Gervais, “A dinâmica demográfica de Luanda no contexto do tráfico de escravos do

96 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Uma das fontes principais do artigo são os livros de demonstrações


da Junta de Lisboa, verdadeiros balanços das suas operações entre
1759-1775. Trata-se de uma documentação bastante uniforme, ainda
que existam mudanças no modo de serem lançadas as operações no
decorrer do tempo. Todavia, tais registros possuem problemas graves,
como já havia notado Antônio Carreira, pois não cobrem todo o período de
atuação da Companhia, que se estendeu até 1787, e nem sequer abordam
os três últimos anos de monopólio. Não bastasse isto, existem lacunas
enormes nos livros, particularmente nas cargas enviadas de Pernambuco
para Angola e de Angola para Pernambuco, isto provavelmente explica a
distorção apontada por Carreira, que compulsou outras fontes, entre os
seus números e os dos trabalhos anteriores de Edmundo Correia Lopes
e Cunha Saraiva. 5
Além disso, os números reunidos por Antônio Carreira e os do le-
vantamento mais recente do The Transatlantic Slave Trade Database
(TSTD), são diferentes das listas de exportações de escravos fornecidas

continuação 4

Atlântico Sul, 1781-1844”, Topoi, no. 4 (2002), pp. 85-138. Ver também os trabalhos mais
gerais de John Thornton, “The Portuguese in Africa”, in Francisco Bethencourt e Diogo
Ramada Curto (org.), Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800 (Cambridge: Cambrid-
ge University Press, 2007), pp. 138-159; Jan Vansina, “O Reino do Congo e seus vizinhos”;
e Marian Malowist, “A luta pelo comércio internacional e suas implicações para a Áfri-
ca”, ambos in Allan Bethwell (org.), História da África, v. V (Brasília: UNESCO, 2010), pp.
647-695 e pp.1-27, respectivamente; David Birmingham, Trade and Conflict in Angola:
The Mbundu and their Neighbours under the Influence of the Portuguese 1483-1790,
Oxford: Clarendon Press, 1966. Paradoxalmente são poucas as contribuições recentes
sobre a organização financeira do negócio durante o século XVIII, especialmente se con-
siderarmos que existem muitas fontes contábeis e alfandegárias nos arquivos portu-
gueses. Os trabalhos mais abrangentes a este respeito e sobre o século XVIII permane-
cem sendo os de Joseph Miller, “Imports at Luanda, Angola 1785-1823”, in G. Pasch e A.
Jones (orgs.), Figuring African Trade (Berlin: Reimer, 1986), pp. 163-225; Joseph Miller,
“Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830”, in Paul Love joy (org.),
Africans in Bondage: Studies in Slavery and the Slave Trade (Madison: African Studies
Program, University of Winscousin, 1986), pp. 43-77; e Joseph Miller, “Capitalism and
Slaving: The Financial and Commercial Organization of the Angolan Slave Trade, Ac-
cording to the Accounts of Antonio Coelho Guerreiro (1684-1692)” The International
Journal of African Historical Studies, vol. 17, no.1 (1984), 1-56. Também José Curto tra-
balhou com o material alfandegário de Luanda em seu estudo sobre o papel das bebidas
alcoólicas no tráfico: José Curto, Álcool e escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool
em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c.1480-1830) e
o seu impacto nas sociedades da África Central e Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002. Exis-
tem ainda algumas obras mais recentes que tratam do século XVII: Linda Newson e Su-
sie Minchin, From Capture to Sale: The Portuguese Slave Trade to Spanish America in
the early Seventeenth Century, Leiden/Boston: Brill, 2007; e Filipa R. Silva, “Crossing
Empires: Portuguese, Sephardic, and Dutch Business Networks in the Atlantic Slave
Trade, 1580-1640”, The Americas, vol. 68, no. 1 (2011), pp. 7-32.
5 Cf. Carreira, As companhias pombalinas, p. 236. Sobre as lacunas nos livros de demons-
tração ver infra o comentário a respeito dos cálculos de importação e de lucratividade do
negócio.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 97


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

pelos administradores do contrato de Angola (ver Tabela 1, colunas B e C).6


Não está clara a origem da distorção, sonegação, sub-registro por parte
dos administradores do contrato, e diferenças entre as datas da viagem
e a do registro contábil podem estar entre as razões. Mesmo assim, vale
à pena apresentar as diferenças.
Somando os anos sem que existam dados para as três fontes chega-se
ao seguinte resultado A: 22.678, B: 22.552, C: 24.222. Uma quarta fonte no
que diz respeito ao comércio de escravos é a alfândega de Pernambuco,
que registrou a importação de 30.202 cabeças de Angola entre 1760 e
1777, contra as 32.481 levantadas pelo TSTD durante o mesmo período. 7
As diferenças entre as fontes são em torno de 10% e, ainda que não in-
viabilizem a análise quantitativa, revelam a dificuldade em se trabalhar
com os dados da Companhia.

Tabela I: Escravos exportados de Angola pela


Companhia de Pernambuco, 1761-1787

A B C
1761 1.765 2.308
1762 1.666 1.652 1.694
1763 2.698 2.685 3.349
1764 1.834 1.824 1.834
1765 3.217 3.151 3.217
1766 2.380 2.376 1.973
1767 2.649 2.636 2.445
1768 2.538
1769 758 754 788
1770 1.685 2.119
1771 1.704 1.704 1.227
1772 1.580 1.580 2.366
1773 1.266

6 David Eltis et. al. “Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database” (2008), www.sla-
vevoyages. Ressalte-se que o TSTD não é uma fonte totalmente independente e que uma
boa parte de seus dados referentes a Pernambuco no período baseia-se nas mesmas fon-
tes do artigo.
7 OTSTD não registra exportações no ano de 1760, pois o filtro utilizado foi o proprietário
das embarcações (a Companhia) e no ano de 1760 ela pode ter fretado embarcações para
carregar os escravos para Pernambuco. Em todo o caso, no livro de demonstrações cons-
ta uma carga enviada de Lisboa para Angola em 1759 que certamente deve ter produzi-
do uma exportação de escravos no ano seguinte: ANTT, CGPP, Livros de demonstrações,
L-394. Os números da alfândega de Pernambuco estão em certidões, inclusas em AHU, cx.
130, doc. 9823, 13/07/1778, José César de Meneses.

98 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

1774 2.082 2.080 2.496


1775 2.110 2.110 2.833
1776 2.263
1777 1.381
1778 977
1779 1.175
1780 1.118
1781 1.033
1782 1.744
1783 2.920
1784 1.094
1785 357
1786 703
1787 353
Coluna A: exportações segundo Miller, Way of Death, table 1, pp. 91-92.
Coluna B: exportações segundo os mapas preparados pelos administradores de Angola8 (AHU,
cx.45, doc. 34 cx.46, doc. um cx.48, doc. seis cx.50, doc. dois cx.51, doc. 18 cx.52, doc. cinco
cx.53, doc. 84 cx.56, doc. oito cx.60, doc. 23 cx.61, doc. dois). Coluna C: exportações segundo o
TSTD, consultado em 25/05/2011.

Ou seja, ainda é necessário um estudo que levante todas as operações


relacionadas ao tráfico, dispersas na imensa coleção de livros e documentos
avulsos da Companhia, que, como sugeria Carreira em 1982, organize “fichas
individualizadas para cada mercadoria e por ano, por carregações e respectivos
preços, consoantes os destinos”.9
Mesmo assim, penso que os dados da Companhia, ainda que in-
completos, estão entre as fontes mais importantes para o estudo do
funcionamento do tráfico em Angola, pois é o conjunto mais abrangente
de operações no negócio de escravos que se conhece até o momento. Mas,
para utilizar estes dados, foi necessário desmembrar o trato quantitativo:
no cálculo sobre as importações de Angola, visando discutir as operações
de financiamento do tráfico de escravos e as suas flutuações durante o
período, foram utilizados os já referidos Livros de Demonstração, pro-
curando completar as lacunas com o Livro Mestre da Companhia, com o

8 Miller utilizou, provavelmente, as mesmas fontes e a diferença deve ser resultado de


eu não ter contabilizado “as crias”, mas apenas os escravos adultos. Cf. Joseph Miller,
“The Numbers, Origins, and Destinations of Slaves in the Eighteenth-Century Angolan
Slave-Trade”, in Joseph Inikori e Stanley L. Engerman (orgs.), The Atlantic Slave Trade:
Efects on Economies, Societies and Peoples in Africa (Durham: Duke University Press,
1992), pp. 77-116.
9 Carreira, As companhias pombalinas, p. 8.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 99


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

registro do enfardamento de mercadorias em Lisboa e com o copiador de


cartas da Junta de Lisboa com a administração de Angola.10 Para controle
destes dados e para completar as lacunas referentes aos anos de 1760-
1761, quando não foi possível levantar o número de cargas enviadas de
Pernambuco para Angola, utilizei os números de Corcino Santos sobre a
entrada de embarcações no porto de Luanda com origem em Pernambuco.
Cheguei assim a um número muito próximo ao de Carreira, que reuniu
125 viagens de Angola para Pernambuco “e outras tantas de retorno”
entre 1759 e 1787, ao passo que, em minha pesquisa, foi possível levan-
tar 105 cargas para Angola entre 1759 e 1780. Considerando que entre
1781 e 1787 foram enviadas mais algumas carregações, acredito que os
resultados alcançados aqui são bastantes seguros. 11 Do mesmo modo, o
número assemelha-se aos do TSTD que registra 102 viagens entre 1761
e 1780, incluindo duas em que foram desembarcados escravos no Rio de
Janeiro, ligeiramente inferior aos meus resultados por causa das dife-
renças no recorte (as balizas temporais do TSTD são o ano de descarga
dos escravos) e da inexistência de viagens naquele registro no que se
refere ao ano de 1760 (ver nota 7). 12
Para estimar a lucratividade e calcular a “balança comercial” da admi-
nistração de Angola, relacionei exclusivamente os Livros das Demonstrações.
Esta documentação cobre um pouco mais da metade das negociações totais
da Companhia e se encerra antes mesmo do fim do monopólio; mesmo assim,
pode ser vista como uma amostra relativamente equilibrada, pois ao todo
registra 72 operações de importação — incluindo cargas originadas em Lisboa
(24) e Pernambuco (48) — e 71 operações de exportação, para Pernambuco
(69) e para o Rio (2).
Do copiador e de alguns documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultra-
marino procurei retirar as informações qualitativas sobre o negócio.
***

10 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, doravante ANTT, Companhia Geral de Pernambuco


e Paraíba (CGPP), Junta de Lisboa, Livros de Demonstrações (394,395), ANTT, CGPP, Junta
de Lisboa, Livros Mestre (470, 471), ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livro de Enfardamentos,
484, ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, 290.
11 Pelo copiador de cartas da Junta sabemos que foram enviadas mais três cargas de Lis-
boa depois de 1781, além disso, a administração de Pernambuco enviava entre duas
a três embarcações anuais no período imediatamente anterior ao fim do monopólio.
Considerando uma possível redução no negócio da Companhia, é provável que Per-
nambuco tenha enviado algo entre sete ou quatorze cargas entre 1781-1787. Note-se
ainda que uma parte dos registros com os quais trabalhei refere-se apenas às cargas e
não às embarcações, portanto, não creio que exista uma correspondência total, como
sugere Carreira, entre o número de viagens com escravos e o número de carregações
para Angola.
12 Também pode ter pesado o fato de que nem todo registro de carga no livro de demonstra-
ções diz respeito a uma viagem ou embarcação.

100 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Criada pelo Alvará de 13 de agosto de 1759, a Companhia de Pernam-


buco e da Paraíba fez parte da reorganização institucional promovida pelo
Marquês de Pombal no comércio português. Foi precedida pela criação das
companhias do Maranhão e do Grão-Pará, da Agricultura e Vinhas do Alto
Douro, e da menos bem sucedida Companhia da Ásia Portuguesa; estando
associada ainda à criação da Junta de Comércio e à expulsão dos comissários
volantes do Brasil. Fundamentalmente, as medidas favoreciam os grandes
capitalistas da praça de Lisboa, demarcando o que K. Maxwell chamou de
“nacionalização da economia luso-brasileira”.13
Entre os privilégios obtidos pela Companhia estava o “exclusivo para
ela só fazer o comércio, que até agora se fez, vaga e exclusivamente das
referidas Capitanias de Pernambuco e Paraíba para a Costa da África
e portos dela”, 14 basicamente Costa da Mina e Angola, locais de onde
tradicionalmente resgatavam-se escravos para Pernambuco. À junta de
administração em Lisboa e às duas direções subordinadas em Pernambuco
e no Porto, submetiam-se mais duas administrações: na Paraíba, ligada à
direção de Pernambuco, e em Angola, controlada pela Junta de Lisboa.15
É notável que a forma de organização dos negócios, no que diz respeito
ao tráfico de escravos, reproduzia padrões anteriores: em Angola, onde a
presença lusitana era mais do que secular e onde já existia uma praça mer-
cantil, articulada com a praça de Lisboa, era estabelecida uma administração
diretamente ligada à Junta Central; na Costa da Mina, onde o resgate era feito
principalmente pelos capitães de navios das praças da América portuguesa,
nem procurador havia, e o negócio naquela costa era operado exclusivamente
pela direção de Pernambuco.16

13 Kenneth Maxwell, Chocolate, piratas e outros malandros, São Paulo: Paz e Terra, 1999. Ver
também José A. França, “Burguesia pombalina, nobreza mariana, fidalguia liberal”, in Ma-
ria H. C. Santos (org.), Pombal revisitado, (Lisboa: Estampa, 1984), vol. I, pp. 19-33.
14 Estatuto da Companhia de Pernambuco e Paraíba, artigo 26, apud: Carreira, As compa-
nhias pombalinas, p. 223
15 Ribeiro Jr., Colonização e monopólio, p. 85.
16 Os portugueses possuíam feitorias em Jakin e Ouidah, mas comerciavam também com
as feitorias das outras nações europeias: cf. Robin Law e Kristin Mann, “West África in
the Atlantic Community: The Case of the Slave Coast”, The William and Mary Quarterly,
Third Series, vol. 56, no. 2 (1999), pp. 307-34; Robin Law, “The gold trade of Whydah in the
seventeen and eighteenth centuries”, in David Henige e D. McCaskie (orgs.), West African
Economic and Social History: Studies in Memory of Marion Johnson (Madison: Univer-
sity of Wisconsin, 1990), pp. 105-18. Sobre as diferenças do tráfico em Angola e na Costa
da Mina, cf. Gustavo Acioli Lopes e Maximiliano Menz nesta coletânea. Ver também Gus-
tavo Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico-tabaco, açúcar, ouro
e tráfico de escravos: Pernambuco (1654-1760)” (Tese de Doutorado, USP, 2008); Miller,
Way of Death. Daniel Domingues da Silva afirma que as companhias pombalinas foram
parte de uma tentativa do governo português de “limitar o controle dos mercadores bra-
sileiros sobre o tráfico de Angola”, mas desconheço qualquer documento que comprove
esta ideia. Ver Daniel Domingues da Silva, “Crossroads: Slave Frontiers of Angola, c. 1780-
1867” (Tese de Doutorado Emory University, 2011), p. 53.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 101


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A administração de Angola, estabelecida em Luanda por volta de


1760, possuía dois administradores: nos primeiros anos, Raymundo
Jalamá e Francisco Bruno de Lemos. Os administradores recebiam car-
gas de Lisboa e Pernambuco com as quais deveriam operar o resgate,
comprando escravos dos comerciantes e pumbeiros de Luanda, também
eram responsáveis pelas expedições dos escravos que partiam para
Pernambuco; recebiam salários, além de comissões sobre as cargas, que
deveriam ser de 5% a venda, 1,5% de cobrança e 1,5% de remessa. Na
essência, como dizia a Junta de Lisboa “o projeto do negócio de Angola
é trocar fazendas por escravos e que as mesmas fazendas que desta se
remetem hajam de suprir as expedições que as foram de Pernambuco”.17
Deste modo, o tráfico era plenamente verticalizado e a maior parte dos
lucros contabilizados com as cargas de Angola era realizada apenas em
Pernambuco com a venda final dos escravos.
No entanto, os balanços e a correspondência da Companhia mostram
que as operações foram ligeiramente mais complexas. Nos primeiros
anos a administração em Angola necessitou tomar crédito em letras,
provavelmente para comprar alguns produtos de origem americana. 18
Também durante cinco ocasiões os administradores compraram mer-
cadorias asiáticas diretamente das Naus da Índia, aproveitando-se da
autorização do comércio com estas embarcações entre 1761 e 1772. Por
último, como será demonstrado em seguida, a Companhia realizou parte
de seus lucros com letras.
Além disso, os administradores de Angola não se furtavam a fazer
negócios por conta própria, como mostram as queixas da Junta durante a
década de 1770. 19 Em compensação, em duas ocasiões, a Junta de Lisboa
enviou cargas a comerciantes de Angola, Manoel Bessa Teixeira e João
Alves Ferreira, que não estavam diretamente engajados na administração.20
Antes de prosseguirmos na análise dos dados e tendo em vista o
objetivo deste artigo, é importante verificar a representatividade da
Companhia no conjunto das negociações angolanas. Para tanto, basta cal-
cular a proporção das suas compras no total das exportações angolanas de
escravos. Entre 1761 e 1778, enquanto durou o exclusivo, a administração
de Angola foi responsável pela exportação de 26% dos escravos enviados

17 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/08/1762.


18 Não é possível quantificar o quanto foi utilizado em letras nestas primeiras operações,
pois é provável que este valor tenha sido lançado na contabilidade junto com outras somas
em dinheiro tomado em empréstimo. Mas, segundo a Junta, uma das primeiras cargas de
escravos enviadas ao Brasil “[...] foi quase toda comprada a dinheiro, de que sacaram letras
[...]”. ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 06/11/1761.
19 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 19/06/1772 e 21/05/1773.
20 Cf. ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Enfardamentos, L-484

102 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de Luanda, com a sua participação girando anualmente entre 14 e 44%


do total.21 No momento em que foi encerrado o exclusivo, as exportações
da Companhia caíram em números absolutos e relativos (apenas 13% do
total), como era de se esperar; mas ainda ocorreram dois anos de grandes
exportações (1782-1783). Creio que isto permite concluir que a Companhia
de Pernambuco foi, provavelmente, a maior exportadora individual de
escravos em Luanda no período, enquanto durou o monopólio, daí que as
suas operações sejam um retrato ligeiramente fiel do negócio naquela
região.22
Vejamos agora o conjunto das negociações da administração de Angola
entre 1759-1775, segundo os balanços gerais da Companhia. Vale lembrar
que estes balanços representam pouco mais da metade das operações da
Companhia em Angola.
Os números do Gráfico 1 apresentam um contraste muito claro entre
as exportações feitas pela administração de Angola que superam em
mais de 331 contos as suas importações. Há de se considerar ainda que
o já referido sub-registro do livro de demonstrações incide mais sobre
as exportações, pois as ausências nas importações são principalmente de
cargas de Pernambuco que mal ultrapassavam o valor de 2,7 contos por
navio, enquanto as cargas enviadas de Angola eram de 16 contos em média.
Retificando as importações pelos dados levantados em outras fontes (ver
nota 10) chega-se a um valor de 993 contos (ver Tabela 2); procurando
completar o valor das exportações de escravos pela estimativa da carga
média de cada navio negreiro, chega-se ao valor de 1.683 contos, ou seja,
as exportações ultrapassaram as importações em aproximadamente 69%
entre 1759 e 1780.23

21 Curto, Álcool e escravos, quadros IV e VIII; e The Transatlantic Slave Trade Database
(http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, consulta do em 25/05/2011).
22 Outro grande operador no tráfico era o contrato Angola. Como, durante a década de 1760,
os contratadores estavam sediados sem Portugal (Estevam José de Almeida e Domingos
Dias da Silva), é muito provável que suas operações repetissem o padrão da CGPP, reme-
tendo grandes cargas de Lisboa. No momento preparo um estudo sobre os contratadores.
Ver ainda Miller, Way of Death, pp. 535-569.
23 Para se chegar a este valor presumiu-se que o número de operações de exportação te-
ria sido igual ao de importação (105), segundo a já referida interpolação dos dados dos
Livros de Demonstrações com outras fontes (ver a introdução do artigo). Daí multipli-
cou-se a diferença (34) entre este valor (105) e o número de operações de exportação
registradas nas demonstrações (71) pela carga média das embarcações que faziam a
rota Angola-Pernambuco (16.801.164 réis), para com isto completar o total exportado
pela administração de Angola entre 1759 e 1780.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 103


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Gráfico1: Exportações e importações da administração de Angola, 1759-1775

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), CGPP,


Livros de Demonstrações (394, 395).

A razão desta aparente distorção é muito simples, os valores das


cargas eram calculados pelos seus preços nos portos de origem, como
fica claro pelo livro de enfardamentos da Companhia, de maneira que
aos valores das importações devem ser somados os custos e os lucros
das operações. 24
Praticamente todas as exportações destinavam-se a Pernambuco, mas
constam dois envios para o Rio de Janeiro. Não está clara a razão destas
carregações, todavia, é possível que não tenham passado de experiências
mal-sucedidas visando diversificar as operações da Companhia, uma vez que
as cargas de escravos enviadas para Pernambuco resultavam em prejuízos
ou em lucros muito pequenos (ver adiante). As operações no Rio estavam sob
o cuidado de um procurador que também era responsável pelo pagamento
de algumas letras sacadas pelos administradores.25
O estudo das importações pode ser mais abrangente graças ao levanta-
mento mais completo.

24 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livro de Enfardamentos, L-484.


25 Cf. ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290.

104 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Tabela 2: Importações da administração de Angola (em réis)


Pernambuco Lisboa Nau da India Total
1759 0 18.826.314 0 18.826.314
1760 16.206.408 0 0 16.206.408
1761 13.505.340 52.713.9930 0 66.219.333
1762 8.531.585 70.117.021 0 78.648.606
1763 11.157.212 70.693.119 0 81.850.331
1764 21.870.331 45.424.987 0 67.295.318
1765 7.641.443 14.421.681 0 22.063.124
1766 4.567.559 23.453.401 26.933.570 54.954.530
1767 12.678.941 50.104.757 17.587.452 80.371.150
1768 19.764.789 40.958.391 3.364.674 64.087.854
1769 4.720.552 41.558.224 0 46.278.776
1770 8.459.150 2.014.050 0 10.473.200
1771 13.457.344 30.556.476 7.354.200 51.368.020
1772 8.687.735 0 0 8.687.735
1773 2.396.657 0 0 2.396.657
1774 8.106.071 143.882.929 0 151.989.000
1775 7.665.956 0 0 7.665.956
1776 3.731.521 60.770.963 0 64.502.484
1777 6.070.535 47.411.747 0 53.482.282
1778 4.441.810 9.551.542 0 13.993.352
1779 6.917.609 15.482.664 0 22.400.273
1780 9.300.489 0 0 9.300.489
Total 199.879.038 737.942.259 55.239.896 993.061.193
% 20% 74% 6%
Fontes: ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros 394, 395, 470, 471, 290.

Primeiro, uma conclusão óbvia: há um domínio completo de cargas


originadas em Lisboa (74%), em seguida estão as cargas enviadas pela
administração de Pernambuco (20%) e, por último, as compras feitas
pelos administradores de mercadorias das Naus da Índia (6%) (ver a úl-
tima coluna da Tabela 2). Ainda que seja possível um viés nas operações
da Companhia pelo seu caráter eminentemente reinol, estas proporções
reforçam estimativas referentes ao período de 1796-1807 e demonstram

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 105


ANGOLA (1759-1775/80)
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que era através da Metrópole que era fornecida a maior parte das mer-
cadorias para o resgate angolano.26
Aliás, se fosse mais rentável enviar produtos preferencialmente
por Pernambuco ou comprá-los em Angola, a Companhia o faria. 27 Isto
fica bastante claro nas instruções da Junta de Lisboa sobre a compra de
fazendas das naus da Índia:
esta junta presume que a esse porto [Luanda] hão de ir
as Naus vindas de Goa, conforme as ordens de S. Maj.,
ordena a V. Mce. que das fazendas que elas trouxerem
podem comprar as que bem lhe bastam para o sortimento
anual do negócio que essa administração aí fizer e de sua
importância sacar letras sobre esta junta com a maior
extensão de tempo em que se puder em ajustar com os
vendedores delas.28

Pretendendo liquidar os negócios em 1785, a Junta determinou que


os navios que faziam o trajeto Luanda-Pernambuco deveriam carregar
em Recife produtos para obterem em Angola 1/3 de sua lotação e, com-
pletando o resto com escravos dos particulares, vender carga e casco no
Rio de Janeiro. Todavia, alguns meses depois, a Junta de Lisboa retificava:
“refletindo depois esta junta que aqueles administradores não podiam
fomentar com gêneros do país e próprios do consumo desse Reino aquela
terceira parte da lotação de cada uma das embarcações [...] por não haver
naquela Capitania [de Pernambuco] [...].”29 Apesar do predomínio reinol
no fornecimento de mercadorias, o mesmo não ocorria no número de
embarcações que fazia o resgate. Ao todo, levantei 31 cargas enviadas
de Lisboa para Luanda e 74 cargas de Pernambuco para Luanda, deste
modo, a carga média originada em Portugal era de 23 contos, enquanto

26 Entre 1796 e 1807 a participação metropolitana no fornecimento de mercadorias para


Angola teria ficado entre 54% e 60%, e as cargas médias com origem em Portugal seriam
de 73 contos de réis e as com origem na Bahia de apenas 12 contos de réis. Maximiliano
M. Menz, “As ‘Geometrias’ do tráfico. O comércio metropolitano e o tráfico de escravos em
Angola”, Revista de História, no. 166 (2012), pp. 185-222. Ver ainda Lopes e Menz,“Resga-
te e mercadorias”.
27 Na verdade, apenas a compra de produtos das Naus da Índia era rentável em Angola, pois
ao comprar produtos europeus ou americanos na região era necessário pagar os lucros e
os custos dos fornecedores de Lisboa e do Brasil. Como dizia a Junta, “faz uma tão gran-
de diferença o expedir os navios com os produtos das carregações da Companhia a expe-
di-los com dinheiro de letras, que por este último modo quase que não faz conta alguma”.
ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 13/01/1764. Como demonstrarei
adiante a lucratividade da Companhia concentrava-se no fornecimento de fazendas e não
na venda dos escravos.
28 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 25/02/1763.
29 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 14/06/1785, ver as instruções
originais na correspondência de 08/02/1785.

106 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

que a carga média do Brasil era de 2,7 contos. Estes valores, porém, não
representam a média das cargas por embarcação de modo exato, pois os
registros contábeis eram sobre as carregações e nem sempre constava
o nome do navio.
Este problema é mais grave para os seis primeiros anos de existência
da Companhia, quando não foram registrados os nomes das embarcações
e, ademais, o aluguel de espaços nas embarcações de outros proprietários
parece ter sido mais comum. Foi o caso de uma carga de 1.413.774 réis em
um navio da Companhia do Grão-Pará e do Maranhão em 1765.30 Por outro
lado, também a Companhia de Pernambuco deveria tomar fretes nas três
pontas do negócio; apesar de não ser possível verificar isto por causa do modo
como eram registrados os fretes na contabilidade da empresa, mas é certo
que depois de 1780 a Junta de Lisboa instruiu os administradores a tomar e
a oferecer fretes em Angola.31
Seja como for, os números da Companhia confirmam uma caracte-
rística geral do negócio de Angola: as naves reinóis carregavam valores
muito maiores que os barcos com origem no Brasil. Portanto, é ilusório
concluir pelo domínio “brasílico” sobre o tráfico baseado na frequência
de embarcações no porto de Luanda.32
As diferenças no valor das cargas e suas consequências sobre a periodici-
dade do negócio revelam-se de modo mais claro se analisarmos graficamente
a entrada de mercadorias ano a ano:

30 ANTT, CGPP, Livro de Demonstrações, L-394.


31 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 10/11/1781 e 31/12/1784. Car-
reira afirma que entre 1782 e 1783 a Companhia carregou 2.436 escravos e 7 crias de par-
ticulares. Cf. Carreira, As companhias pombalinas, p. 234. Voltarei a tratar do negócio de
fretes.
32 Vale acrescentar que em 1770, ao ser encerrado o contrato de Angola, a Junta de Fazen-
da do governo de Angola, preocupada com a diminuição no fornecimento de mercadorias
para o resgate, elaborou um cálculo sobre a quantidade de importações necessárias para
financiar as exportações de escravos. Segundo os membros da Junta, o produto anual das
embarcações com origem nos portos brasileiros era de 160 contos (28%), restando 404
contos que deveriam ser completados por embarcações vindas de Lisboa. AHU, cx. 54,
doc. 28, Avulsos, Angola, 03/06/1770, anexada à correspondência de D. Francisco de Sou-
za Coutinho. Luiz Felipe Alencastro é um dos que argumentam pelo domínio brasílico a
partir da maior frequência de embarcações com origem no Brasil: O trato dos viventes:
formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 323-24.
Também Mariana Candido conclui que os mercadores do Brasil dominavam o negócio em
Benguela pelo mesmo argumento: “Merchants and the Business of the Slave Trade at Ben-
guela, 1750-1850”, African Economic History, no. 35 (2007), p. 8. Já Acioli Lopes demons-
tra que as poucas naus metropolitanas que frequentavam a Costa da Mina também leva-
vam cargas mais valiosas do que as embarcações com origem no Brasil: “Negócio da Costa
da Mina”, pp. 44-45.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 107


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Gráfico 2: Origem das importações da administração em Angola (réis)

Fontes: ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros 394, 395, 470, 471, 290.

A ligação entre Pernambuco e Angola era direta e anualmente entravam


embarcações com jeribita para surtir as grandes cargas que a Companhia
enviava desde Lisboa, sendo assim, as naves que faziam a rota Pernambu-
co-Angola deveriam carregar a maior parte dos escravos. Por sua vez, os
navios da capital eram em menor número e, em alguns anos, chegou-se a
interromper a ligação entre Luanda e Lisboa. Essa forma de organização
do resgate, com grande separação no tempo entre o fornecimento de
mercadorias no litoral e a realização em escravos, era típica do negócio
de Angola. À baixa frequência de embarcações reinóis correspondia o uso
regular do crédito; como retrucavam os administradores às críticas da
Junta de Lisboa “sem cabedal empatado em dívidas é impossível que essa
administração possa manear-se”.33
Isto só era possível como gerenciamento de estoques em Luanda,
operação que era viável aos grandes monopolistas, fosse a Companhia,
fossem os contratadores de Angola que dominaram boa parte do finan-
ciamento do negócio até 1770.34 Ao mesmo tempo, a irregularidade dos

33 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. As palavras são de au-
toria da Junta de Lisboa que comentava uma resposta da administração de Angola. Sobre o
uso do crédito em Benguela, ver Mariana Candido, “Merchants and the Business”, pp. 13-17.
34 Cf. Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Coleção Lamego, Códice 82, Francisco Inocencio
Coutinho, 03/02/1770; e Joseph Miller, Way of Death.

108 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

navios com origem em Portugal era possível pela natureza da carga,


basicamente produtos manufaturados não perecíveis de alto valor e de
maior facilidade para transporte e armazenamento, enquanto as cargas
com origem no Brasil eram mais perecíveis e precisavam ser liquidadas
rapidamente; esta é uma das razões porque as taxas de lucro das carregações
com origem em Pernambuco eram tão inferiores (voltarei a este ponto).35
Vale dizer, porém, que, ao contrário do que sugere parte da historio-
grafia sobre o tráfico, dívidas avultadas eram consideradas um problema
pelos credores, como revela a correspondência da Junta de Lisboa:
o interesse da Companhia não consiste tanto em fazer um
negócio muito avultado, quanto em fazê-lo com segurança
e de modo que a todo tempo possa retirar seu cabedal e
lucros [...] que procurem seguir de comum acordo as regras
mais sólidas e mais comuns da melhor segurança [...] não
aumentando as dívidas, nem demorando as cobranças
e procurando quanto lhe for possível vender a troco de
dinheiro, letras e cera e não confiando fazendas, nem
contraindo dívidas com os negociantes dos moradores do
sertão.36

O tema certamente merece ser mais bem investigado, mas acredito que
uma das explicações para o uso generalizado de crédito é um reflexo do caráter
particular da presença lusitana em África, frente às nações européias. Sem
uma manufatura competitiva e com pequena penetração no mercado asiático,
Portugal conseguia controlar o tráfico em Angola graças a sua presença com
fortalezas no hinterland de Luanda e o exclusivo metropolitano. No entanto,
nas feiras do interior a concorrência com as outras nações, ainda que indireta,
fazia-se presente graças à ação dos pumbeiros que iam buscar mercadorias
nos portos do norte, frequentados por franceses e ingleses. Sendo assim, o
fornecimento de crédito seria um dos atrativos dos mercadores portugueses,
mas este mercado funcionava, ainda que imperfeitamente, com a presença
das instituições portuguesas (governador, ouvidor, juiz de fora) que garantiam,
mesmo que de modo precário, a arrecadação das dívidas.37

35 A outra razão era que a concorrência no fornecimento de produtos americanos era muito
maior, dada a maior frequência dos navios do Brasil.
36 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 21/05/1773. Ver, por exemplo,
Manolo Florentino, Em costas negras. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1997. Uma dis-
cussão mais ampla sobre parte da historiografia brasileira está em Menz, “As ‘geome-
trias’do tráfico”.
37 Miller tem uma opinião parecida sobre o crédito: Miller, “The Numbers, Origins”, pp.
85-86. Naturalmente, as outras nações também faziam uso do crédito, por exemplo, as
grandes firmas traficantes inglesas mantinham feitorias na costa da África que forne-
ciam, mas creio que a baixa frequência de embarcações metropolitanas no tráfico an-
golano tornava mais com um o uso do crédito em Angola. Sobre o uso do crédito pelos
ingleses, cf. Joseph Inikori, African and the Industrial Revolution in England: A study

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 109


ANGOLA (1759-1775/80)
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No tocante às oscilações das importações durante o período estudado,


é visível que elas acompanham a baixa nas exportações de escravos (Ta-
bela 1). Naturalmente que não existe uma correspondência imediata no
tempo entre importações e exportações, tendo em vista a estocagem de
mercadorias nos armazéns em Luanda e o uso do crédito, é preciso lembrar
que os administradores em Angola necessitavam ajustar a constituição
dos banzos a serem enviados ao interior pelos pumbeiros com o forneci-
mento de mercadorias de resgate pelos navios da Companhia que, como
se observa no gráfico dois, era bem irregular. Mesmo assim, podemos ver
três períodos muito bem destacados: 1759-1769, com grandes importações
de mercadorias e exportações de escravos, 1770-1778, em que se reduziu
o movimento comercial da administração de Angola e depois de 1779,
em que as operações da Companhia foram vagarosamente paralisadas.

Lucros e prejuízos
Um dos problemas fundamentais na análise das operações da
Companhia de Pernambuco é a estimativa dos lucros. Como já foi dito,
as demonstrações registram pouco mais da metade das operações no
tráfico e a estimativa aqui terá de se basear unicamente nas negociações
reunidas nestes livros.
Além disto, o modo como eram lançados os lucros refletia a morosidade
entre os envios das cargas e a chegada da notícia da realização. Assim, na
maioria das vezes, era lançada uma estimativa dos ganhos no ano em que
era registrada a carregação e apenas nos balanços seguintes era retificada a
estimativa sob o registro “diferença entre o que se orçou e o que realmente
rendeu” em uma carga.38 Deste modo, o cálculo ideal seria separar cada carga
e identificar os lucros reais por cada operação e, depois disto, fazer as somas
e as decorrentes análises. No entanto, há uma dificuldade incontornável, pois
nem sempre as retificações posteriores permitem uma identificação exata
da carga nos balanços anteriores. Para tanto, seria necessário retornar aos
livros originais e construir as fichas individualizadas sugeridas por Carreira,
o que atualmente é impossível.
Sendo assim, o modo para avaliar os lucros foi somar o conjunto de
estimativas de lucros e as retificações posteriores para, com isto, obter
os lucros globais no agregado e nas três rotas do tráfico: Lisboa-Angola, Per-
nambuco-Angola, Angola-Pernambuco. Este cálculo é imperfeito, pois nem
todas as estimativas foram depois corrigidas nos livros, de modo que para
148 cargas possuímos apenas 127 correções; a contabilidade é interrompida

continuação 37

in International Trade and Economic Development, Cambridge: Cambridge University


Press, 2002, pp. 323-324
38 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros de Demonstrações, L-394.

110 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

antes de ser esclarecida a totalidade de vendas entre 1759 e 1775. A maior


incongruência, porém, são 26 cargas de Angola para Pernambuco em que o
lucro foi lançado diretamente, sem estimativa, de modo que o número de
cargas com estimativas de lucro é de apenas 122. A única explicação para
tamanha discrepância é que também para os casos em que o lucro foi lançado
diretamente ocorreram correções posteriores. Seja como for, tendo em vista
que a maior parte das correções era para baixo, este modo de calcular os
tende a sobrelevar ligeiramente os lucros porque nem todas as operações
registradas e estimadas foram efetivamente retificadas.
A terceira tabela resume os lucros no conjunto entre 1759-1775, sepa-
rando-os por rotas, as taxas foram calculadas apenas sobre o valor das cargas.

Tabela 3: Lucro (réis) e taxas de lucro sobre a venda de mercadoria sem Angola e
escravos Pernambuco, 1759-1775 (pelos livros de demonstrações da CGPP)

Rota Cargas Lucro Taxa


1 1.109.600.301 12.414.745 1%
2 604.725.343 285.609.197 47%
3 120.706.302 18.197.431 15%
4 55.239.896 27.442.018 50%
5 2.638.492 -1.148.655 -44%
Total 1.892.910.334 42.514.736 18%

Rota1: Angola-Pernambuco; rota 2: Lisboa-Angola; rota 3: Pernambuco-Angola; rota 4: naus da


Índia; rota 5: Angola-Rio. Fonte: ANTT, CGPP, Livros de Demonstrações (394 395).

Estes cálculos confirmam as instruções do copiador de cartas da Junta


de Lisboa (ver nota 36), enquanto a venda de mercadorias em Angola produzia
receitas chorudas, o comércio de escravos propriamente dito era pouco lucra-
tivo; tampouco o negócio de jeribitas produzia muita coisa. Aliás, o que é mais
surpreendente é que a venda de mercadorias da Índia, onde foram investidos
apenas 55 contos, tenha gerado uma receita superior ao conjunto de expor-
tações de Pernambuco para Angola que movimentou 120 contos e 49 navios
(Tabela 3, rota 4).39
No entanto, apenas uma dimensão do negócio é avaliada por estes
cálculos, pois não constam aqui os fretes e tampouco são considerados
diversos custos. A contabilidade da Companhia calculava os ganhos com
fretes separadamente da venda de mercadorias, assim, e apenas até 1769,

39 Não custa lembrar que o livro de demonstrações subestima as exportações de Pernambu-


co para Angola, mesmo assim se aplicarmos a taxa de 15% sobre o conjunto das exporta-
ções de Pernambuco (ver Tabela 2), chega-se a um valor (em torno de 30 contos) apenas le-
vemente superior ao dos lucros levantados pelas 5 cargas das Naus da Índia.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 111


ANGOLA (1759-1775/80)
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eram lançados nos lucros ou nos prejuízos as operações referentes ao


transporte descontando-se os gastos como custeamento de cada navio
dos ganhos com fretes em cada trajeto (a saber, Lisboa-Angola, Angola
-Pernambuco, Pernambuco-Lisboa, Pernambuco-Angola). A partir de 1770
passou-se a registrar, de modo agregado, os lucros e prejuízos líquidos
obtidos com a totalidade de operações de frete, incluindo os trajetos do
tráfico de escravos e do transporte de açúcar.
À primeira vista, os ganhos com fretes parecem ter origem em
negócios autônomos, de operações em que a Companhia tivesse apenas
carregado mercadorias para terceiros. Ademais, os estatutos definiam uma
diferença no que diz respeito à cobrança de fretes sobre as mercadorias
da Companhia:
Nas fazendas secas [...] não poderá a Companhia vender
por mais de quarenta e cinco por cento, em cima de seu
primeiro custo em Lisboa [...] e isto em atenção a que os
fretes, seguros, comboios, direitos de entrada e saída,
empacamentos, carretos, comissões e mais despesas com
as ditas fazendas, hão de ser por conta da Companhia [...]
Nas fazendas molhadas, farinhas, e mais comestíveis
[...] não poderá também vender por mais de dezesseis
por cento, livres para a Companhia de despesas, fretes,
direitos e mais gastos de compras, embarques, entradas
e saídas [...].40

Os estatutos, portanto, permitiam a cobrança de fretes apenas nos


comestíveis e molhados, enquanto nas fazendas o lucro de 45% deveria
absorver os custos. Há uma lacuna na lei no que se refere a os escravos, pois
não podiam ser classificados por nenhuma destas categorias.
Mas calculando os valores levantados com fretes no trajeto Angola
-Pernambuco entre 1761 e 1769, chega-se à conclusão que eles permitiriam
carregar 78% dos escravos efetivamente carregados para Pernambuco
no mesmo período, segundo o TSTD. Como há uma sub-representação dos
negócios de escravos nos livros de demonstração, a conclusão é que os
valores dos fretes eram obtidos sobre a venda dos escravos da própria
Companhia em Pernambuco. Ou melhor, os lucros com fretes eram repas-
sados na venda dos escravos aos compradores de Pernambuco.
A análise dos fretes obtidos entre 1761 e 1769 permite outra conclusão:
as maiores rendas com este negócio eram obtidas na rota Angola-Pernambuco
e em segundo lugar entre Pernambuco e Angola, como mostra o gráfico 3:

40 Estatuto da Companhia de Pernambuco e Paraíba, artigo 27, apud: Carreira, As compa-


nhias pombalinas, p. 291.

112 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Gráfico 3: Lucros brutos apurados com fretes de acordo com o trecho da viagem
entre 1761 e 1769 pela CGPP.

Fonte: ANTT, CGPP, Livros de Demonstrações (394 395).

Ou seja, apesar do baixo volume dos lucros no negócio de mer-


cadorias no conjunto do comércio entre Pernambuco e Angola e da
pequena movimentação de mercadorias, particularmente na exportação
de produtos americanos para Luanda, os ganhos com fretes acabavam
por compensarem parte à manutenção do negócio direto entre África
e Brasil. Uma comparação permite visualizar a importância do negócio
de fretes: segundo os livros de demonstrações, os valores levantados no
trajeto Pernambuco-Angola entre 1761-1769 (73.706.23 réis) superam
o valor das mercadorias exportadas por esta rota no mesmo período
(73.505.222 réis).
Ao mesmo tempo, vale considerar a pequena importância dos fretes
entre Lisboa e Angola: é verdade que, na média por embarcação, os ganhos
com o transporte na rota Lisboa-Angola (3.723.244 réis) eram maiores que
os do trajeto Pernambuco-Angola (2.541.597 réis). Porém, basta compa-
rar os valores das cargas médias nas duas rotas (respectivamente, 23 e
2,7 contos) para constatar como os fretes eram um negócio secundário
na rota do Reino. A explicação está na natureza do negócio: as fazendas
trazidas de Portugal possuíam um alto valor e um volume muito baixo, já
os molhados exportados por Pernambuco eram de baixo valor e volume
muito alto. Os já citados estatutos da Companhia refletiam esta diferença
entre um e outro negócio.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 113


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Passemos agora ao cálculo geral da taxa de lucro das operações da


Companhia com o tráfico de Angola entre 1759 e 1775, baseado nos livros
de demonstrações (Tabela 4). Para tanto, na coluna “Investimentos” serão
somados os valores das cargas (linha 1), os salários dos administradores
(linha 4), os preços dos navios utilizados (linha 2) e os custeios das em-
barcações (linha3). Na coluna “lucros líquidos” serão lançados os ganhos
líquidos sobre as vendas com as mercadorias (linha 5) e os lucros líquidos
com os fretes (linha 6), deste valor serão deduzidas algumas perdas com
mortes de escravos em Angola (linha 7), coluna “custos extraordinários”.
Penso que o valor dos navios não pode ser considerado um custo a ser
deduzido do lucro líquido, pois faziam parte do “capital fixo” da empresa;
o correto seria considerar uma taxa de depreciação, mas creio que esta
operação já era abarcada pelos custeamentos (ver adiante).41
Mesmo assim, fiz um segundo cálculo inserindo o valor das embar-
cações como custos de modo a compensar uma possível depreciação e
eventuais custos não contabilizados.
Note-se ainda que os valores dos fretes e do custeio das embarcações
só foram discriminados até 1769, por isto extrapolei a média anual do
período 1759-1769 para os anos seguintes (ou seja, até 1775).
Esta conta tem defeitos diversos: nem todo o valor dos navios poderia
ser lançado como capital investido no tráfico, pois alguns deles eram utili-
zados na rota do açúcar. Do mesmo modo, não considerei os fretes ganhos
no último trajeto da rota triangular (Pernambuco-Lisboa), pois estavam
associados ao negócio do açúcar.42 Tal consideração comprime bastante
os ganhos com fretes, pois não foi possível descontar os custeamentos
especificamente do trajeto entre Pernambuco e Lisboa; ademais a rota
triangular, com o retorno a Portugal, era um ganho de escala do tráfico de
escravos.43 Por último, como já foi dito, uma parte pequena dos ganhos com
fretes foi registrada, mesmo para o contexto do livro de demonstrações.
Tudo isto leva a concluir que os ganhos no negócio do transporte foram
subestimados nesta conta, o que não deixa de ser uma compensação às
superestimações dos lucros como comércio de mercadorias.

41 O fato é que os tumbeiros não eram contabilizados com os custos nos livros de demonstra-
ção e as suas avaliações mantiveram-se as mesmas entre 1763 e 1775.
42 Por outro lado, levantei apenas 16 embarcações e para duas delas não encontrei os seus
respectivos preços.
43 Também retirei desta conta uma operação que estava relacionada a Angola e Costa da
Mina e, portanto, poderia distorcer ainda mais as médias.

114 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Tabela 4: Lucratividade das operações de tráfico da Companhia, 1759-1775

Lucros Custos
Investimentos
líquidos extraordinários
1) Mercadorias 1.892.910.334

2) Navios 93.931.409

3) Custeio dos navios 312.483.743

4) Salários 1.846.348

5) Venda de mercadorias 342.514.736

6) Fretes 26.336.212

7) Mortes em Angola 2.413.780

Totais 2.301.171.834 368.850.948 2.413.780

Lucros Líquidos-custos 366.437.168

Taxa de lucro 16%

Fontes: ANTT, CGPP, Livros de Demonstrações (394 395).

Sendo assim, chega-se a uma taxa de lucro de 16% no conjunto das


operações do tráfico (Tabela 4, última linha), se desconsiderado o valor dos
navios como um custo, e 12% se considerados. São, portanto, taxas superiores
às calculadas por Robert Stein sobre o tráfico francês (10%) e Roger Anstey
para o inglês (9,5%); também superam em muito uma das taxas estimadas
por Gustavo Acioli Lopes para a Costa da Mina (3%). Fica, porém, abaixo de
um dos cálculos de Manolo Florentino (19,2%), mas esta última estimativa
possui o defeito de uma clara superestimação nos preços dos escravos no
Brasil.44 Aproxima-se, contudo, dos números de Acioli Lopes quando este
considera os lucros obtidos como fretamento (14%).45
Ao comparar os resultados da Companhia com os cálculos de Acioli
Lopes, três considerações se impõem: em primeiro lugar, o cálculo do autor
sobre a armação é bem mais complexo, incluindo soldadas, mantimentos e
a amortização das embarcações. Creio que estes três itens eram cobertos
pelo valor do “custeamento” que a contabilidade da empresa lançava junto

44 Cf. Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, pp. 163-168. O autor sumaria as diversas es-
timativas da lucratividade do tráfico e apresenta os cálculos mais completos que conheço
para o tráfico do Brasil, ainda que baseados em apenas uma embarcação; esta, porém, tra-
tava-se de uma viagem “típica”, pois a documentação reunida sobre a embarcação visava
informar a Coroa sobre os gastos no tráfico da Costa da Mina. Além disso, o autor retifica
os números de Florentino, alcançando uma taxa de 10%.
45 Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 169

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 115


ANGOLA (1759-1775/80)
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aos fretes. 46 Em segundo lugar, Acioli Lopes lança como custo as perdas
de vidas na viagem; como não existem registros destas perdas nos livros
de demonstrações, presumo que este valor era deduzido dos lucros com a
venda dos escravos em Pernambuco.47 Tampouco os gastos com impostos
eram registrados, mais um custo que seguramente era deduzido direta-
mente da realização final da mercadoria humana na América.
A taxa de lucro elevada da Companhia pode ser facilmente explicada
como uma renda de monopólio. Não obstante, como já foi dito, o monopólio
da empresa era sobre o fornecimento de escravos em Pernambuco, onde
os lucros foram estreitos, e não sobre a venda de mercadorias em Angola,
onde se concentrava a maior parte dos lucros. A explicação para este pro-
blema está na própria organização do negócio que refletia as condições
do transporte e a estrutura fiscal do tráfico. Perdas de vidas na viagem do
Atlântico e o pagamento de impostos eram um custo importante do negócio:
o TSTD registra uma mortalidade de 4,2% para os navios da Companhia
entre 1759 e 1775; mais importante era o peso dos impostos, o valor pago
em direitos sobre a exportação de escravos em Angola entre 1759 e 1775
foi de aproximadamente 11% do total do capital investido no tráfico.48 Vale
dizer, que o peso fiscal em Angola era bem maior do que na Costa da Mina
segundo os cálculos de Acioli Lopes (6%). 49 Como já foi dito, todos estes
custos eram lançados sobre o valor de venda do escravo em Pernambuco,
comprimindo a taxa de lucro sobre esta parte do negócio em particular.
Mais uma vez, a prática da Companhia reproduzia o modo de se
negociarem Angola: os capitães dos navios costumavam pagar os direitos
dos escravos com letras que eram descontadas sobre as vendas destes no
Brasil. Apesar de os administradores da Companhia desejarem pagar os
direitos de exportação com moedas de cobre, tiveram de se submeter à

46 Pela “Conta da despesa que se fez com o custeamento da Fragata de Sua Majesta de
Nossa Senhora da Graça”: AHU, Pernambuco, cx. 130, doc. 9.832 Joé Cesar de Menezes,
05/09/1778, constata-se que por “custeamento” entendia-se gastos com soldadas, ali-
mentação e hospedagem da tripulação no porto, carpintaria, calafete, mastrearia, repa-
ros em geral, curativos aos doentes e taxas portuárias.
47 É possível, porém, que as perdas de escravos em Angola tenham sido subestimadas na con-
tabilidade da empresa.
48 Valor obtido apartir de duas estimativas (259 contos e 242 contos), por não existirem re-
gistros sobre os gastos efetivamente feitos nesta operação; as duas estimativas multipli-
cam um número de escravos exportados pela Companhia pelo direito de 8.700 reis. Mas
como há divergência nas fontes sobre o número de escravos, procurei estabelecer um cál-
culo de controle. Assim, a primeira estimativa foi baseada nos registros dos administrado-
res do contrato de Angola, interpolando as lacunas com os números de Miller (1770) e do
TSTD (1768 e 1773) (cf. Tabela 1). A segunda operação foi baseada nos números do TSTD,
mas o número de escravos foi descontado em 14% levando em consideração que o Livro de
Demonstrações registra apenas 69 viagens entre Angola e Pernambuco, enquanto que no
TSTD constam 80 viagens.
49 Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 166.

116 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

prática da terra.50 Prática, aliás, que era um resultado da separação entre as


propriedades das cargas que financiavam o resgate, geralmente de homens
de negócio reinóis, e dos escravos que pertenciam à comunidade mercantil
de Luanda.51 Atuando principalmente no fornecimento de fazendas de
resgate, os capitalistas de Lisboa se evadiam dos riscos e dos altos custos
do trajeto Angola-Brasil, reproduzindo um tipo de hierarquia econômica
e territorial em que o domínio sobre o crédito e sobre a ligação entre a
Europa e Angola eram a chave para obter uma lucratividade superior.
De fato, a própria Junta de Lisboa estava consciente deste problema
do tráfico em Angola, como mostram as suas queixas sobre a lucratividade
da venda com escravos. Em 1768, preocupada com a quantidade de capitais
imobilizados em Luanda e com o acúmulo de escravos invendáveis em
Pernambuco, escrevia que tinha.
resolvido proporcionar o fundo desta negociação com a
saída de gêneros que exporta desse continente, de sorte
que não haja excesso na extração, pois que não há uma
competente saída. Para este efeito pretende não mandar
para essa administração mais fazenda que a que basta para
surtir e promover a venda da que lá se acha até chegar ao
ponto de existir nessa administração um fundo competente
ao negócio que a Companhia deve fazer e das cabeças que
aquelas capitanias podem comprar. Neste sistema novo
regularão V.Mcê. as suas receitas e igualmente as suas
expedições, conferindo com a Direção de Pernambuco o
número de cabeças que aquelas capitanias podem comprar.
A respeito, porém, da cera V.Mcês. poderão mandar toda
a que puderem adquirir por ser este gênero de melhor
saída e não ter o risco de se arruinar. Não é a tensão desta
Junta diminuir o negócio desse Reino [de Angola] todas
as vezes que V.Mcês. se esforçarem em tirar os cabedais,
produto das fazendas que remetemos, da mesma sorte que
praticavam sempre os negociantes particulares por letras.
Isto se entendendo naquele cabedal que exceder o número
de cabeças com que se fornecer Pernambuco [...].52

Além de procurar reduzir as exportações de escravos para melhorar os


preços em Pernambuco, a Junta pretendia realizar os capitais envolvidos
no tráfico em cera e letras, de modo a evitar em parte os referidos custos
(mortalidade e impostos) com a venda de escravos. Mas a verdade é que
a Companhia não podia furtar-se de fornecer escravos e, portanto, tinha de

50 Sobre as letras, cf. AHU, Angola, cx. 52, doc. 58 (consta como sendo posterior a 1768, mas
na verdade é do reinado de D.Maria I). Sobre a tentativa dos administradores da Compa-
nhia em pagar os direitos com moeda, ver AHU, Angola, cx. 48, doc. 31, Francisco Inocen-
cio Coutinho, 04/08/1764
51 Cf. Miller, Way of Death, passim.
52 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290, 04/07/1768.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 117


ANGOLA (1759-1775/80)
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absorver as perdas do Atlântico Sul e as operações com letras e cera, ao que


tudo indica foram secundárias.
Ademais, o monopólio sobre o fornecimento de Pernambuco e Paraíba
pode ter aumentado de modo indireto os lucros obtidos com as vendas
em Angola. Como o lucro em Angola era essencialmente contábil, ou seja,
não se transformava em dinheiro líquido, mas apenas em escravos que
deveriam ainda ser vendidos em Pernambuco, é possível que fazendas
de resgate mais caras comprassem escravos de pior qualidade. 53 Assim,
o alto lucro na venda das fazendas era compensado, no outro lado do
Atlântico, por ganhos insignificantes ou até mesmo em prejuízos (que
seriam ainda maiores na ausência do monopólio). De qualquer modo, o fato
é que a Companhia estava ganhando dinheiro com o resgate de escravos
angolanos em uma época em que quase todo mundo estava perdendo.54
Sendo assim, a CGPP reproduzia alguns dos esquemas de financia-
mento “típicos” do negócio de Angola, com uma relativa separação entre
o fornecimento de mercadorias para o resgate e o transporte de escravos,
e um decorrente contraste entre os valores das cargas enviadas de Lisboa
e as remetidas do Brasil e de Angola. No entanto, o caráter monopolístico
da empresa e a obrigação de fornecer escravos para Pernambuco fazia com
que os lucros obtidos em Luanda tivessem de ser realizados em escravos e
não preferencialmente em letras, como parece ter sido o caso dos negócios
operados pelos negociantes reinóis particulares que enviavam cargas para
a praça africana. 55 Esta particularidade obrigava a Companhia a assumir
os riscos com as perdas de escravos na passagem Atlântica e os custos
com impostos. Os problemas poderiam ser parcialmente dirimidos graças
a uma política de estrangulamento do mercado de Pernambuco visando a
manter altos os preços de venda final dos escravos, como parece ter sido
a deliberação da Junta de Lisboa em 1768, repassando parte dos custos
ao produtor estabelecido no Brasil. Havia, portanto, um aspecto político
nos lucros registrados pelos livros de demonstração, dimensionando
ganhos altíssimos às cargas originadas em Lisboa e jogando às possessões
coloniais os custos da realização das mercadorias.

53 No borrador da Junta (ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Copiador de Cartas, L-290) encontra-
mos queixas sobre a qualidade dos escravos nas cartas de 06/11/1761 e 09/04/1783, mas
não é possível constatar se isto foi uma constante em todo o período.
54 São muitas as reclamações sobre as condições do negócio de escravos no Brasil durante
as décadas de 1760 e 1770, por exemplo, AHU, Angola, cx. 54, doc. 20, Francisco Inocencio
Coutinho, 15/03/1770 e, de fato, as exportações de escravos para o Brasil caíram bastan-
te durante a década de 1770. Ver Manolo Florentino, Alexandre Vieira Ribeiro e Daniel
Domingues da Silva. “Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (sécu-
los XVIII e XIX)”, Afro-Ásia, no. 31 (2004), pp. 83–126, Gráfico 1; e Curto, Álcool e escravos,
Quadros IV e VIII
55 Miller, Way of Death.

118 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Cabe abordar um último aspecto da contabilidade da Companhia que


permite qualificar a lucratividade e pensar o outro lado dos “lucros políticos”
da CGPP: as dívidas. Apesar da Junta de Lisboa instruir a administração
de Angola a não vender a crédito, o fato é que isto era impossível e ao que
tudo indica a venda a fiado foi amplamente praticada. Estas operações
eram por conta dos administradores em Luanda e, portanto, os livros de
demonstração registram dívidas exclusivamente da “administração de
Angola” e não de particulares como era o caso de Pernambuco. É que, como
havia avisado a Junta, eram os administradores que deveriam “responder
sobre si" no caso de dívidas.
Nas “Correntes que se acham existir nos balanços demonstrativos desde
o princípio da Companhia até 31/12/1775” constavam os seguintes valores
em haver:
Cargas de Angola para Pernambuco.............97.342.501 réis.

Cargas de Lisboa para Angola....................225.365.879 réis.

Cargas de Pernambuco para Angola.............32.321.742 réis.

Trata-se de cargas enviadas sobre as quais não existia o registro da


venda e que totalizavam mais de 335 contos de réis, valor comparável ao
conjunto dos ganhos com o tráfico. Mas isto não pode ser encarado como
uma dívida em seu sentido estrito, tendo em vista que elas iam sendo
liquidadas à medida que as notícias das vendas chegavam a Lisboa. Tanto
é assim que em 1785, ano em que a Junta de Liquidação da Companhia
pretendeu encerrar as negociações, as correntes relacionadas ao tráfico
em Angola somavam apenas 70 contos de réis. O fechamento das operações
certamente teve reflexos sobre a cobrança da venda de mercadorias, pois
em 1793 a Companhia ainda tinha em haver mais de 65 contos de réis em
Angola, valor que certamente estava perdido e que poderia ser lançado
como prejuízo.56
Sendo assim, a presença de mercadorias sem o devido registro de
venda em 1785, após sete anos de operações que visavam essencialmente
liquidar os negócios, mostra que apesar da lucratividade razoável, o tempo
de rotação do capital era extremante alto.

Considerações finais
Penso que este estudo de caso permite relativizar parte da pro-
dução historiográfica dos últimos 20 anos, particularmente no que diz
respeito à tese do domínio dos mercadores coloniais sobre o tráfico: a

56 ANTT, CGPP, Junta de Lisboa, Livros de demonstrações, L-395. O valor não foi lançado
como prejuízo no cálculo da lucratividade, pois envolve operações posteriores a 1775.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 119


ANGOLA (1759-1775/80)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

contabilidade da Companhia mostra uma presença avassaladora de cargas


de origem reinol no tráfico em Angola, apesar da baixa frequência de
embarcações. Os números apresentados comprovam a interpretação de
Joseph Miller sobre o tráfico, que vem sendo sistematicamente ignorada
pela historiografia brasileira, e os números das balanças de comércio
portuguesas e mapas de importação e exportação de Angola entre 1796
e 1807. 57
Ao mesmo tempo, a importância do mercado de fretes na ligação
entre Angola e Pernambuco, aspecto que já havia sido ressaltado por
Miller, fica demonstrada quantitativamente. No conjunto, portanto,
a participação “brasílica” na balança de pagamentos do tráfico de
Angola foi bem maior do que sugere a análise pura dos dados de
importação e exportação, mas se fôssemos calcular uma balança de
pagamentos seria necessário incluir a diferença na lucratividade
das mercadorias que, como foi visto, favorecia a metrópole. Penso
que aqui é possível uma aproximação com a historiografia recente,
desde que devidamente qualificada: o domínio brasileiro era sobre
o “tráfego” de Angola e não sobre o “tráfico” de Angola, para utilizar
uma importante distinção conceitual sugerida por Leonor da Freire
Costa. 58 O negócio do transporte era uma atividade importantíssima,
como mostram os expressivos ganhos com fretes da CGPP; caberia um
estudo dos efeitos de encadeamento deste sobre a construção naval
e a produção de alimentos para a matalotagem no Brasil, seguindo
aqui uma via de análise explorada por Amaral Lapa em seu estudo
sobre a Carreira da Índia. 59
Outra aproximação, mas aqui se trata mais dos trabalhos da histo-
riografia anglo-saxã, diz respeito ao cálculo da lucratividade do tráfico.
Ao contrário do que presumia Eric Wiiliams, a lucratividade do tráfico
era “normal”, mesmo para uma companhia monopolista.
O resultado entre 12 e 16% aproxima-se dos cálculos rigorosos de
Acioli Lopes para o Atlântico lusitano, Anstey para o Atlântico inglês e
Stein para o Atlântico francês. Mas vale lembrar que esta lucratividade
merece ser comparada com outras alternativas de investimentos numa
economia de Antigo Regime. Stuart Schwartz estimou uma taxa de retorno
entre 5 e 10% para os engenhos baianos durante o século XVIII; já Helen
Osório calculou taxas de lucro entre 61,6%, 75% e 110,6% de alguns
contratos do Rio Grande do Sul no final do século XVIII, no conjunto das

57 Cf. Menz, “As ‘geometrias’ do tráfico”.


58 Leonor Costa, O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil,
1580-1663, Lisboa: CNCDP, 2002.
59 José R. Lapa, A Bahia e Carreira da Índia, São Paulo / Campinas: Hucitec / Editora da UNI-
CAMP, 2000.

120 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

operações, por sua vez, Acioli Lopes encontrou taxas bem menos signi-
ficativas para o dízimo do açúcar na primeira metade do século XVIII,
entre 1 e 4,6% anual.60
As receitas obtidas pela Companhia com o tráfico são menores apenas
do que os lucros obtidos com os contratos do Rio Grande no final do século
XVIII, mas são conjunturas distintas, considerando que a Companhia
operou durante uma depressão comercial, sua taxa de lucro parece ser
ainda mais formidável. O tráfico em Angola era, no final das contas um
interessante vent for profit para o capital mercantil metropolitano.

60 Cf. Stwart Schwartz, Segredos internos, p. 204; e Helen Osório, “Estancieiros, lavradores e
comerciantes na constituição da extremadura portuguesa na América: Rio Grande de São
Pedro, 1737-1822” (Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 1999), pp. 223-
6; e Acioli Lopes, “Negócio da Costa da Mina”, p. 26.

A COMPANHIA DE PERNAMBUCO E PARAÍBA E O FUNCIONAMENTO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM 121


ANGOLA (1759-1775/80)
PARTE II
o tráfico proibido
CAPÍTULO 4

1846: UM Ano nA rotA bAhiA-lAGos neGÓCios,


neGoCiAntes e oUtros pArCeiros
Ubiratan Castro de Araújo

O réveillon do cônsul
É o primeiro dia do ano de 1486. O jovem élève consul Pierre Victor
Mauboussin, responsável pelo Consulado Francês na Bahia, assiste da
janela de um sobrado da Rua da Praia, que interliga os vários ancoradouros
do porto da Bahia, a procissão marítima do Senhor dos Navegantes, que
conduz a imagem do Cristo Crucificado da Igreja de Nossa Senhora da
Conceição até a Igreja da Boa Viagem, situada a quatro milhas, no interior
da Baía de Todos-os-Santos.
A cena da partida comove até um coração agnóstico como o do
jovem aprendiz de diplomata, conhecido por suas ideias republicanas. A
imagem da Virgem Mãe acompanha a imagem do Filho Crucificado até
o ancoradouro. O passo ritmado é a dor da separação; a ligeira oscilação
do andor sugere a benção de uma mãe saudosa. Carregado por brancos
senhores vestidos de festa, o Filho embarca em uma galeota1 enfeitada.
Sem os panos, a embarcação segue ao ritmo das vigorosas remadas de
negros escolhidos.
No ponto de chegada, uma grande festa aguarda o Divino Viajante.
Dentro da igreja, ouvem-se cânticos e músicas dos senhores da cidade; do
lado de fora, na praça e nas ruas adjacentes, a algazarra do povo. Uma mul-
tidão de negros, mulatos, mestiços, livres, libertos, escravos, marinheiros,
embarcadiços, estivadores, pescadores de baleia, todos, gente do mar que
dançam, batucam e pedem graças por mais um ano de navegação que se inicia.2

1 Pequena embarcação de passeio movida por vários pares de remos, muito usada no trans-
porte de autoridades e pessoas ricas no interior da Baía de Todos-os-Santos.
2 A tradição popular baiana associa esta procissão à iniciativa dos navegadores da costa
d’África: “...segundo o historiador Silva Campos esta manifestação religiosa teria sido ini-
ciativa dos capitães e pilotos que faziam o tráfego negro nas costas da África”. Salvador de
Ávila, Procissões de Salvador, Salvador: SMEC/Empresa Gráfica da Bahia, 1984.

125
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O jovem cônsul ainda não entende muito bem estas coisas da Bahia.
Sua cabeça está voltada para a oposição à Santa Aliança que humilha a sua
pátria, para a reforma eleitoral em França e para a abolição da escravidão
nas Antilhas. Pergunta-se em voz alta:
– Afinal, por que tanto fervor deste povo a pedir boa navegação, se
a Baía de Todos-os-Santos é tão segura, se a pesca é tão farta e as linhas
costeiras tão intensamente navegadas?
O movimento firme e lento da mão de um velho nagô, seu criado,
conduz a visão do francês para o outro lado do cortejo marítimo, para a
saída da baía. Uma outra embarcação, bem mais comprida, recolhia os
remos e levantava os seus panos.
– É a Amélia e vai para a Costa! Exclamou o africano.
Um outro presente, empregado na alfândega e amigo do jovem cônsul,
não somente confirmou como deu mais detalhes do navio negreiro. Era
a goeleta3 Amélia, de 169 toneladas, tripulada por 13 homens. O capitão
era o Freitas e viajava com um passaporte de passageiro. O “farol” ou falso
capitão era um embarcadiço de nome José de Sousa Pinto. A armadora era
a viúva Lopes e o grande financiador era o Tomás Pedreira Jeremoabo.
Como destino declarado figurava nos papéis oficiais o Ceará, no Norte
do Brasil, mas o seu destino verdadeiro era a Costa d’África, mais preci-
samente Lagos.
– Onim!4, resmungou o Tio da Costa.
O francês ficou de queixo caído. O Jeremoabo, quem diria! Era um dos
mais prestigiados nomes na praça de Salvador, proprietário de muitas
terras e homem de ideias progressistas... Havia mesmo se metido em uma
aventura de instalação de máquinas a vapor em seu engenho de açúcar.
Soube ainda pelo fu ncionário da alfândega que o Sr. Tomás Jeremoabo
havia comprado recentemente, na Costa d’África, a goeleta “Agajá Dossu”
aos italianos da Sardenha, bem como mantinha um porto clandestino
para o desembarque de escravos em s e u engenho situado na Ilha dos
Frades, no interior da Baía de Todos- os- Santos.
Diante de todas estas revelações, o jovem cônsul-aprendiz pergun-
tou ao funcionário por que ele e outras autoridades navais da capitania
dos portos não reprimiam aquela navegação tão ilícita e tão ostensiva.
Soube estarrecido que todos os responsáveis civis e militares pelo con-
trole da navegação recebiam uma '”taxa” pela importação de escravos.

3 Tradução do francês goelette, adotada por Pierre Verger para distinguir da pequena
galeota. Trata-se de uma embarcação à vela da família das galeras, muito usadas no
tráfico africano. Sua característica é a utilização de remos, o que permite a manobra
em águas rasas.
4 Denominação de Lagos, atual capital da Nigéria, muito corrente na documentação baiana
sobre o tráfico. Corresponde, de fato, ao núcleo inicial desta cidade, localizado na restinga
da grande laguna que lhe dá o nome.

126 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Cada navio negreiro que partia para a Costa d’África pagava ao oficial
responsável pela visita do navio uma propina (para fechar os olhos)
tabelada em 500.000 réis por brigue e 250.000 réis por goeleta. Quando
um negreiro voltava, o oficial de polícia do porto ou o subdelegado do
local de desembarque recebiam entre 2 a 3 contos de réis, a depender
da quantidade de escravos desembarcados. Compreendeu, enfim, o ar
de satisfação com que o seu interlocutor assistia à partida de mais uma
goeleta negreira, pois
se as expedições à Costa d’África não tivessem mais
sucesso, os administradores de alfândega, o capitão do
porto, o chefe de polícia e seus delegados não poderiam
mais ser gratificados como atualmente pela sua
conivência culposa. Se não recebessem mais, em cada
chegada de um navio negreiro, negros ou seu valor em
dinheiro segundo a sua escolha, não poderiam mais com
os seus módicos proventos construir as casas mais belas e
levar eles mesmos o modo de vida de pródigos e opulentos
mercadores de escravos.5

O ano novo de 1846 trazia para o cônsul Mauboussin a revelação de


que ele representava seu país em um porto de piratas. Sua juventude e
fervor republicano o impeliram, então, a fazer, por conta própria, uma
investigação sobre o tráfico de escravos na Bahia,6 de modo a contribuir
com a campanha no seu país pela abolição da escravidão nas colônias. 7

A viagem
Decidido a obter o máximo de informações possíveis sobre as ativi-
dades dos negreiros, o cônsul francês mobilizou todos os seus amigos. No
dia 5 de janeiro deixou o porto de Salvador o brigue Três Amigos, de 406
toneladas. Era o maior transportador de escravos em operação, construído
na cidade portuguesa do Porto especialmente para este fim. Em algumas
viagens trazia mais de 1.300 homens da Costa d’África. O traficante era
também o maior de todos: Joaquim Pereira Marinho.8

5 Archives du Ministère des Afaires Étrangéres, Quai d’Orsay (doravante AMAE), Corres-
pondance Consulaire et Commerciale, Consulat Bahia, vol. 5, fol. 20.
6 Os resultados desta investigação estão contidos no relatório de 25 de março de 1847, en-
viado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, intitulado “Rapport sur la traite
de noirs à Bahia en 1846”, AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat
Bahia, vol. 5.
7 Desde 1839 se desenvolvia o debate parlamentar, a partir do projeto Tracy e a campanha
abolicionista liderada por Victor Schoelcher.
8 Trata-se do mais famoso traficante de escravos na Bahia, citado por toda a historiografia
baiana, inclusive por Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de
Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, São Paulo: Corrupio, 1987.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 127


E OUTROS PARCEIROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O primeiro resultado da investigação consular foi conseguir inter-


ceptar e copiar um manifesto de carga de mercadorias enviadas pelo
traficante português radicado na Bahia, Pereira Marinho, para o traficante
brasileiro, seu associado, o mulato Domingos José Martins, estabelecido
em Porto Novo:
Manifesto de um carregamento de mercadorias enviadas
ao Sr. Domingo José Martins de Porto Novo perto de Uidá,
Costa da África, para instalar uma feitoria e pelo valor de
1.200 escravos que deverão ser expedidos para a Bahia
pelo brigue negreiro “Três Amigos”,

160 barris de búzios9


544 fuzis
600 fuzis (com a marca inglesa, mas feitos na Alemanha)
600 dúzias de copos de licor
300 dúzias de garrafas (de fabricação alemã)
1.200 peças de indianas (tecidos estampados) inglesas
22 peças de 24 jardas de lona crua da Alemanha
110 barris de pólvora de 12 libras
1 caixa de pedras de fuzil.

Estas mercadorias foram carregadas em um navio que


partiu de um porto alemão e que antes de dirigir-se à
Costa d’África passou pela Bahia para completar o seu
carregamento, embarcando

4.000 mangotes de fumo


150 pipas de cachaça
Este carregamento valia em dinheiro 96 contos de réis ou
em francos 288.000, formando uma soma necessária para
as despesas de instalação de uma feitoria e para a compra
de 1.200 negros.10

Com estas provisões, o Dominguinhos da Costa d’África já tinha feito


a compra dos fardos11 em Onim, que já estavam devidamente aprisionados
nos armazéns, à espera do transporte para a Bahia.

9 Os búzios ou cauris, como eram chamados na Costa d’África, eram tradicionalmente uti-
lizados como moeda, tanto na África Ocidental como no Reino do Congo. George Dalton,
Primitive, archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi, Garden City/New York:
Anchor Books, 1968.
10 AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat Bahia, vol. 5, fl. 28.
11 Expressão usada correntemente nas correspondências entre traficantes em lugar da
palavra escravo, para dissimular o tráfico.

128 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

A saída do porto da Bahia transcorreu como de hábito. Os oficiais


do porto fizeram o controle dos passaportes dos tripulantes, entre os
quais um tal José Pereira da Fonseca, o falso capitão, e do passaporte do
único passageiro, o verdadeiro capitão negreiro Francisco José Nunes. A
inspeção do barco foi igualmente para inglês ver.12 O destino indicado
eram os Açores, mais uma falsidade nesta operação em que tudo era
formalmente dissimulado.
O Três Amigos fez a travessia do Atlântico rápida e tranquilamente.
Nos primeiros dias de fevereiro, protegido pela escuridão da noite, subia
sorrateiramente Lagos. Para avisar aos agentes da feitoria sua chegada,
lançou foguetes coloridos: a operação de embarque acabara de ser desenca-
deada. Sem lançar âncora e ainda com as velas içadas, o brigue foi abordado
por vagas sucessivas de canoas a remo, transportando cada uma 25 a 30
cativos. Em três horas 1.400 homens tinham sido embarcados. Fez meia-volta
e ganhou o alto-mar o mais rápido possível, para escapar à caça inglesa.
No dia 5 de março de 1 846, o cônsul francês soube da chegada do
Três Amigos. Evitando a barra do porto de Salvador, o brigue entrou na
Baía de Todos-os-Santos pelo Estreito do Funil, por trás da Ilha de Ita-
parica, e descarregou os cativos no engenho de propriedade de Hygino
Pires Gomes, na foz do Rio Jequiriçá, onde realizou-se, após o sucesso da
operação, um grande festim.
Mais uma vez, o jovem francês ficou estupefato! O que ele sabia era
que este mesmo Hygino, dez anos atrás, havia sido o chefe militar de um
movimento de caráter federalista chamado de Sabinada, que contou com
apoio popular e mesmo com a participação militar de tropas de escravos
crioulos. Diante do seu espanto, seu informante apenas sugeriu que ele
refletisse um pouco sobre as circunstâncias em que ocorreu a repressão
àquela revolta. Em 1838, quando a Cidade do Salvador foi reconquistada
pelas tropas imperiais, os oficiais negros, como o coronel Bigode e o major
Santa Eufrásia, foram sumariamente fuzilados 13 e os soldados negros
jogados vivo nos casarões em chamas. Outros líderes como o dr. Francisco
Sabino e o maior Sérgio Veloso foram aprisionados, julgados e deportados
para a fronteira do Mato Grosso com a Bolívia. O Hygino, comandante
de uma coluna rebelde, que havia furado o cerco à cidade imposto pelos
imperiais, simplesmente sumiu depois da derrota da rebelião. O manto
protetor dos traficantes o poupou da ação da Justiça até ser anistiado e
poder voltar a traficar como antes.

12 Expressão corrente até hoje no Brasil para indicar uma ação simulada apenas para
cumprir uma formalidade. Ela vem do tempo do tráfico clandestino, quando o gover-
no brasileiro adotava atitudes formais apenas para burlar uma fiscalização inglesa
antitráfico.
13 Ubiratan Castro de Araújo, “Le politique et l’économique dans une societé esclavagiste,
Bahia, 1820-1889” (Tese de Doutorado, Universidade de Paris IV-Sorbonne, 1992).

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 129


E OUTROS PARCEIROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O dossiê do tráfico: a armação negreira


Convencido de que a rede dos traficantes tinha ramificações em todos
os segmentos da sociedade local, inclusive com presença expressiva no mo-
vimento democrático baiano, Pierre Victor Mauboussin lançou-se à tarefa
de uma investigação global do tráfico de escravos africanos para a Bahia.
A navegação para a Costa d’África já era uma antiga tradição no
porto da Bahia. Desde o século XVII, uma parte importante da bur-
guesia traficante portuguesa havia se transferido para a Bahia para
daqui melhor controlar o tráfico no Golfo do Benin e a distribuição e
escravos para o interior do Brasil. Esta corporação portuguesa na Bahia,
de grande visibilidade social como “os armadores”, gozava de muito
prestígio, e os seus membros mais ricos estavam presente nas mais
importantes irmandades religiosas e na Santa Casa de Misericórdia.14 O
tráfico negreiro era então legal, regulamentado pela coroa portuguesa,
e, portanto, uma vicissitude da própria navegação e uma alternativa de
negócios para os armadores.
A partir de 1815, a pressão inglesa e a condenação da opinião
pública internacional combinam-se, então, com o processo de indepen-
dência do Brasil de Portugal , o que coloca em posição muito frágil o
novo estado brasileiro, solidamente fundado sobre uma base social e
política formada por proprietários de escravos e, portanto, comprome-
tido com a causa do tráfico africano, mas igualmente necessitado do
reconhecimento inglês, condição fundamental para sua aceitação como
nação soberana em um cenário político internacional dominado pela
Santa Aliança. A primeira grande missão deste estado independente
foi precisamente unificar a representação de todos os escravocratas,
proprietários rurais e traficantes, para negociar com os ingleses uma
prorrogação do tráfico de africanos para o Brasil, ao tempo em que,
internamente, reprimia as revoltas populares e africanas e as propostas
abolicionistas, corno a que José Bonifácio apresentou à Assembleia
Nacional Constituinte em 1823.
Diante da pressão crescente dos ingleses, desenvolve-se, então,
uma política de dissimulação e de sabotagem por parte das autoridades
brasileiras que assinam tratados para não serem cumpridos, que fingem
aplicar as leis e que fecham os olhos às atividades agora ilícitas dos
traficantes. Por ironia, os senhores de escravos do Brasil adotam uma
política de resistência em relação aos ingleses, que bem pode ter sido
inspirada na resistência escrava contra eles movida por crioulos e afri-
canos. É nesse contexto que a armação negreira se transforma em uma

14 Ver série de oito artigos publicados na Revista de História, entre 1966 e 1971, da autoria
de Marieta Alves, intitulados: “O comércio marítimo e alguns armadores do século XVIII,
na Bahia”.

130 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

atividade clandestina protegida: ilegal para efeitos externos e legítima


para um consenso interno de beneficiários da escravidão. Outro diplomata
francês, simpático à causa dos traficantes, assim retratou esta situação:
A abolição do tráfico no Brasil tornou-se ilusória não
somente pela impossibilidade de substituir os Negros,
mais ainda, pelo modo desajeitado pelo qual esta
negociação foi concluída. Os ingleses foram muito
violentos e os brasileiros foram muito pusilânimes: os
primeiros exigiram demais e os outros tudo prometeram
para nada cumprirem.15

Nestes novos tempos, a armação negreira tornou-se uma atividade de


alto risco, exigindo novas práticas operacionais, tanto no que diz respeito
à navegação quanto ao empreendimento comercial. A primeira grande
adaptação operou-se no navio negreiro, cada vez mais diferenciado dos
demais navios que faziam a navegação da Costa d’África. O navio negreiro
tinha que ser extremamente manobrável, para entrar em águas mais rasas
dos ancoradouros africanos; tinha que ser muito veloz, para escapar da
caça inglesa; tinha que ser muito barato, para amenizar as perdas em
caso de naufrágio ou captura. O investigador francês aprendeu logo a
distinguir um negreiro à distância: baixo calado, casco mais arredondado,
alta mastreação.
Para o ano de 1846, foram apuradas 23 saídas e 22 entradas, mobili-
zando um total de 3.583 toneladas para as saídas e 3.393 toneladas para as
chegadas. Somente neste ano foram importados 9.403 cativos pelo porto
da Bahia, dos quais 6.825 eram originários de Onim (Lagos), 1.928 de Uidá,
180 do Cabo Lobo e 470 de Ambriz. A maioria dos 25 navios em operação
era composta de velhos navios adaptados para o tráfico em estaleiros
locais. Alguns deles, no entanto, tinham uma história mais conhecida. Os
brigues Três Amigos, lsabelle e a goeleta Andorinha foram construídos
na cidade do Porto com as especificações particulares para o tráfico. Os
faluchos Baiano e Especulador foram construídos em Barcelona com as
mesmas especificações.16 A goeleta Taglioni era um velho navio francês
vendido pela casa E. Vaudry a Domingo Gomes Bello, um traficante por-
tuguês estabelecido na Bahia. A goeleta Agaja Dossu e o brigue Sylphide
eram navios sardos comprados na Costa d’África.

15 AMAE, Note interne du Département condamnant l’abolition de la traite de noirs au Bré-


sil. Mémoires et Documents. Brésil, vol. 8, fl. 258.
16 Falucho era um navio à vela estreito e comprido, de origem árabe, muito usado na navega-
ção do Tejo.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 131


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Navios negreiros identificados pelo cônsul em operação em 1846


Tipo Nome Armador/Consignatário
Goeleta Amélia 169 ton. Viúva Francisco Lopes
Joaquim A. da Cruz Rios
Idem Andorinha 80 ton.
Alberto dos Santos
Idem Audaz 152 ton. Lopes Vianna

Idem Agaja Dossu 122 ton. Thomas Jeremoabo

Idem Bella Angela 169 ton. Joaquim A. da Cruz Rios

Idem Gaio 43 ton. Cypriano de Mello

Idem Guero 218 ton. Viúva Francisco Lopes

Idem Maria 51 ton. Gantois e Paillet

Idem Maria Angelina 23 ton. Thomas Jeremoabo (?)

Idem Mariquinha 45 ton. Gantois e Paillet

Idem Martin Van Buren 50 ton. Gantois e Paillet

Idem Taglione 122 ton. Domingo Gomes Bello

Idem Não identificado Pedroso de Albuquerque

Falucho Bahiano 113 ton. Joaquim Pereira Marinho

Idem Especulador 130 ton. Não identificado

Brigue Ana E Constância 162 ton. Ferraz e Correia

Idem Andono VI Não identificado

Idem Bom Sucesso 199 ton. Não identificado

Idem Brasiliense 218 ton. Joaquim A. da Cruz Rios

Idem Eolo 83 ton. José Joaquim Machado

Idem Gabriel 297 ton. Joaquim Pereira Marinho

Idem Galgo 310 ton. Não identificado

Idem lsabelle 141 ton. Joaquim A. da Cruz Rios

Idem Sylphide 322 ton. Pedroso de Albuquerque

Idem Três amigos 406 ton. Joaquim Pereira Marinho

Fonte: AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia, vol. 5, fl. 20.

Estiveram especialmente ativos, neste ano de 1846, os seguintes


capitães negreiros: os espanhóis Pablo Reyes, Bonaventura Rieira, Benito
Derizans e Don Isidoro; os portugueses e brasileiros J. Gomes de Vascon-
celos Barriga, Francisco José Nunes, José Luís Vieira, D. da Costa Laje,

132 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Alberto dos Santos, Freitas (de prenome não identificado), José Rosello,
Pedro Francisco dos Santos.17 Segundo apurou Mauboussin, eram todos
muito experimentados no tráfico, com muitas passagens e inculpações
no tribunal inglês de Serra Leoa. O relato do cônsul enfatiza os elogios
que todos os capitães traficantes faziam aos bons tratos que receberam
a bordo dos navios de caça ingleses. Mesmo sendo o tráfico considerado
como crime de pirataria, jamais suas vidas ou suas liberdades estiveram
em risco. Para eles, a grande perda era o fracasso da expedição que os
privava da participação no butim.
Mauboussin registrou em seu dossiê o orgulho com que os traficantes
falavam da sua frota pirata. Ao tempo em que ridicularizavam a eficácia
dos cruzeiros ingleses, vangloriavam-se de seus navios negreiros, finos
veleiros que permitiam aos navegadores experientes escapar de toda
vigilância. Em caso de captura de um ou outro navio, diziam que nenhuma
perda séria seria infligida ao negócio do tráfico, porque, pelo novo modo
de armação adotado, compravam-se sempre navios velhos e baratos, para
os quais encontravam-se sempre capitães, aventureiros perseguidos na
Espanha e em Portugal (piratas), ou mesmo brasileiros muito corajosos
que sabiam muito bem que o passaporte de passageiro a bordo os tornava
invioláveis, e também tripulantes habituados, pela experiência, aos casos
de captura, quando eles eram desembarcados e perdiam apenas as suas
roupas. Ele nos relata que, nestes casos, o grumete, o capitão do navio
(geralmente o falso) e o cozinheiro eram levados perante o almirante
comandante do cruzeiro e o resto da equipagem desembarcada no ponto
mais próximo da costa. Os navios negreiros que ostentassem o pavilhão
espanhol tinham os mastros serrados. Os demais eram vendidos a preços
aviltados e comprados pelos comerciantes de Serra Leoa, reconduzidos
ao Brasil, onde eram vendidos com grande lucro e armados de novo para
o tráfico. Há casos de navios que foram aprisionados até três vezes,
revendidos e reutilizados no tráfico.
As perdas de 1846 confirmam esta tranquilidade dos traficantes.
Neste ano foram capturados pelos cruzadores ingleses seis negreiros:
os brigues Gabriel, Galgo e Isabelle; as goeletas Gaio, Maria e Amélia,
representando 24 % da frota em operação. Este resultado era bastante
animador em relação ao ano anterior, quando foram aprisionados 13
negreiros, dos quais dois já estavam em operação: o brigue Isabelle e a
goeleta Mariquinha. Além do mais, nenhum verdadeiro capitão negreiro
foi inculpado no tribunal do almirantado britânico em Santa Helena. Sabe-
se apenas que o falso capitão da Amélia, José de Sousa Pinto respondeu
a processo por tráfico ilegal.

17 Todos os nomes de navios e capitães citados no relatório do cônsul Pierre Victor Maubou-
ssin conferem com os citados por Verger, Fluxo e refluxo, pp. 645-647.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 133


E OUTROS PARCEIROS
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O investigador francês também descobriu que estas expedições eram


apenas parte de uma rede bem mais complexa de operações necessárias
ao sucesso do tráfico, pois estes negreiros saíam do porto da Bahia vazios,
como o Três Amigos no dia 5 de janeiro, com a única missão de trazer da
Costa d’África o seu carregamento humano, e muito antes já se havia
desencadeado a expedição das mercadorias necessárias à compra dos
escravos em África. O sistema utilizado até então, no período do tráfico
clandestino, era muito conhecido. Os navios mercantes europeus e ame-
ricanos passavam pela Bahia transportando mercadorias manufaturadas,
às quais se juntavam a cachaça e o fumo da Bahia. Com a sua carga com-
pleta, seguiam viagem para a África, onde a sua carga era depositada nas
feitorias brasileiras.
Por volta de 1845, o sistema aperfeiçoou-se mais ainda. De um lado,
as exportações legais de fumo e cachaça para a Costa d’África eram feitas
diretamente do porto da Bahia através de barcos mercantes que não
faziam o tráfico e, portanto, não tinham as características estruturais de
um navio negreiro, nem transportavam apetrechos ou sinais do tráfico,
como correntes, cadeados etc... Neste mesmo ano de 1846, partiram da
Bahia para esta destinação 4.896 pipas de cachaça18 e 50.198 mangotes de
fumo.19 Por outro lado, os produtos manufaturados eram entregues dire-
tamente nas feitorias brasileiras na Costa d’África por navios mercantes
americanos ou europeus. Para estas operações, os traficantes da Bahia
se beneficiavam de créditos generosos fornecidos pelos comerciantes
ingleses para pagamento a termo, em prazos muito mais dilatados do que
os concedidos aos senhores de engenhos, os grandes consumidores finais
do produto deste tráfico: o escravo.
Cada grande traficante da Bahia operava através de uma feitoria na
Costa d’África, onde um representante-traficante associado se encarregava
do armazenamento das mercadorias e da realização das compras. Segundo
Mauboussin, a rede de traficantes estava assim constituída em 1846:
Onim (Lagos), Uidá e Ambriz são os pontos para onde
são expedidas as mercadorias. Em Onim, o Sr. Ferrugem,
português, é o agente feitor dos Srs. Alves da Cruz Rios,
da viúva Lopes e do Sr. Joaquim Pereira Marinho; o
Sr. Syrès Português (e antes dele o Sr. Jean Noël Sala,
francês, atualmente residente na França) representa a
casa belgo-francesa Gantois e Pailhet, estabelecida na
Bahia; o Sr. Dalvi, um sardo, é o agente da casa Manoel
Pinto da Fonseca, do Rio de Janeiro e da maior parte
das companhias formadas recentemente. Em Uidá
o correspondente principal de todos os traficantes

18 A pipa de cachaça correspondia a 800 litros.


19 O mangote de fumo pesava de 29 a 58 kg.

134 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

negreiros é o Sr. Francisco de Souza, conhecido pelo


vulgo de Chachá, tributário do rei d’Haomey. Em
Ambriz, um Sr. Jauffret, antigo capitão de longo curso
do porto de Marselha, instalou-se por conta da mesma
casa belgo-francesa Gantois e Pailhet para enviar-lhe
Negros. Um mulato chamado Domingo José Martins,
brasileiro, está estabelecido em Porto Novo e recebe os
seus aprovisionamentos em mercadorias de uma casa de
Hamburgo. Hoje, ele é o maior instigador do comércio de
escravos.20

O negócio de escravos
Enquanto cada negreiro fazia a travessia do Atlântico, uma operação
muito complicada se desenrolava na Costa d’África: a compra do escravo.
Segundo apurou o cônsul francês, os termos de troca eram muito instáveis.
Habitualmente, a regra fundamental para os responsáveis pelas feitorias
era manter esse negócio sempre na base da troca de mercadorias por
escravos e, ao mesmo tempo, manter a oferta dessas mercadorias em
um nível mínimo. As mercadorias mais procuradas eram o fumo de
corda, para fumar e para mascar, e a cachaça. As outras mercadorias
correntes eram as espingardas, a pólvora e os tecidos. Quando essas
mercadorias escasseavam na Costa d’África, era possível comprar mais
escravos, posto que o preço deles baixava sensivelmente.
Mauboussin nos dá um exemplo dessa operação: quando faltava
fumo e cachaça, era possível comprar um escravo por apenas um rolo de
fumo, pesando duas arrobas e valendo 5 mil réis (15 francos aproxima-
damente). A arte do traficante era a de saber manejar com a raridade
relativa de cada mercadoria, propondo sempre na troca um “pacote”
equilibrado de mercadorias por um escravo.21 Em 1846, o pacote mais
correntemente utilizado era: um barril de pólvora, uma espingarda, um
rolo de fumo e uma ou duas peças de tecido, valendo aproximadamente
55,75 francos por cabeça de escravo. Se o agente da feitoria quisesse
operar em moeda, seriam necessárias 5 onças de ouro (aproximadamente
400 francos) por cabeça, pelos mesmos negros, ou seja, cerca de oito
vezes o preço obtido no escambo.
Para atribuir um valor nominal a cada mercadoria, era corrente na
Costa d’África a unidade “onça”, que, segundo Mauboussin, não correspon-
dia à “onça de ouro”, mas a um valor nominal inteiramente convencional.

20 AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia, vol. 5, fol. 23.


21 Esse sistema de “pacotes” foi largamente utilizado para a compra de outros produtos da
África, como o marfim e o sândalo. Elikia M’Bokolo, Afrique noire. Histoire et civilisations,
Paris: Hatier, 1992, p. 117.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 135


E OUTROS PARCEIROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A investigação continua. O cônsul conseguiu, então, receptar e copiar


um documento original contendo instruções e indicando as despesas para
montar uma feitoria de negros em Onim, pelo qual se pode ler referência
do valor desta onça do tráfico:
Valor das mercadorias que são importadas na Costa:
Um fuzil representa 1 onça
Uma peça de tecido de 28 a 30 jardas, 1 onça
Um garrafão de 20-50 litros vazio, 1 onça
Um garrafão cheio, 1 onça
Uma pipa de cachaça do Brasil, 24 onças
Idem de Havana, 20 onças
Um mangote de fumo, 1 onça
Um barril de búzios (com 17.500 búzios cada), 1 onça22

Preço atual dos Negros na Costa d’África:


Comprado em mão do rei, 17 onças
Comprado aos “cabeceiros” do rei, 17 onças
Comprado em mãos de populares, 13 onças
Todos os Negros comprados e vendidos entre feitorias, 15 onças
As mulheres valem uma onça a menos
Os jovens Negros valem quase o mesmo que os outros.23

Atualmente as despesas são as seguintes:


Taxa pelo desembarque de cada navio paga ao Rei de Onim, 60 onças
Taxa para a casa e domésticos do Rei, 36 onças
Taxa para chapéu e guarda-chuva do Rei, 20 onças
Três pipas de cachaça de presente ao Rei, 60 onças
Pagamento nos carpinteiros, serralheiros e toneleiros empregados
nos armazéns de Negros, 130 onças
Despesas com 4 canoas e 4 companhias de 214 homens cada, 325 onças
(Estas canoas e estes homens vêm da possessão holandesa de Elmina)
Pagamento ao homem encarregado do desembarque das mercadorias,
35 onças
Pagamento ao vigia de terra, 12 onças
Ração diária de cachaça para os canoeiros (uma garrafa cada vez que
passam a barra), 1 onça
Despesa e alimentação dos Negros de correntes, 1onça
Transporte dos Negros da cidade até a embocadura do rio, 2 onças
Por cada embarcação que transporta escravos, 10 onças.24

22 AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consulat de Bahia, vol. 5, fl. 24.


23 Idem, fl. 25.
24 Idem, fl. 24.

136 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

A partir deste relatório, pode-se encontrar uma correspondência


entre esta onça do tráfico e as moedas cotadas no mercado internacio-
nal. O preço do escravo foi adotado como a referência mais geral deste
comércio, verdadeira mercadoria-moeda dos africanos neste tipo de
troca. Na lista de preços de escravos apresentada, o preço praticado
entre as feitorias parece estar mais próximo à relação indicada como
corrente entre um “pacote” de mercadorias (55,75 francos) e um escravo.
Assim, se pode chegar a um valor estimativo de 3,71 francos por onça do
tráfico. No relatório Mauboussin tamhém está indicada uma cotação de
331 réis por franco, o que nos permite estimar a seguinte equivalência
para o ano de 1846:
1 onça do tráfico = 3,71 francos = 1.228 réis
e nos permite estimar os seguintes valores unitários para
um escravo comprado em Onim, 1846:
15 onças = 55.65 francos = 18.420 réis

Somando-se as taxas e serviços pagos em Onim, obtém-se um valor


estimado de 2.259 réis por escravo embarcado, o que nos indica um valor
unitário de 20.679 réis. Seguindo a investigação contábil, o cônsul indica
que se deve acrescer o valor unitário do frete do navio da Costa d’África
à Bahia de 120.000 réis por escravo e também pagar 20.000 réis por cada
negro ao consignatário, para serem distribuídos com as autoridades
brasileiras e mais 25.000 réis por cada cativo ao proprietário do ponto
de desembarque na Bahia, para que cada um recebesse uma camisa, um
calção e alimentos durante o tempo em que estivessem armazenados.
Esse conjunto de elementos permite a seguinte composição de valor
dos 6.825 escravos importados do país de Onim para a Bahia em 1 846,
calculados em moeda brasileira (réis):

Elemento Valores unitários Valores globais %


Preço de compra 18$420 125:716$500 9.92
Taxas e serviços (Onim) 2$259 15:417$675 1.21
Frete do navio 120$000 819 :000$000 64.62
Propinas (Bahia) 20$000 136:500$000 10.77
Desembarque (Bahia) 25$000 170:625$000 13.46
Totais 185$679 1.267:259$175 100.00

Segundo valores indicados no mesmo relatório, o primeiro preço de


um destes escravos recém-importados variava entre 450$000 e 480$000.
Segundo os hábitos do mercado de escravos baiano, o preço destes escravos
novos era menos elevado do que o preço de um africano residente no país,

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 137


E OUTROS PARCEIROS
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porque eles ainda não estavam adaptados às condições de trabalho no


Brasil e apresentavam grande risco de doenças na chegada, fosse pelas
condições subumanas da travessia ou pela aquisição de doenças do país.

Variações dos preços dos escravos, segundo a origem nacional


Bahia, 1846 (em réis)
Mínimo Máximo
Africano desembarcado 450$000 480$000
Africano residente jovem 428$750 529$677
Africano residente ainda jovem 400$000 470$000
Brasileiro jovem 478$000 496$428
Brasileiro ainda jovem 430$000 -
Fonte: Foram utilizados os dados constantes do relatório do cônsul Mauboussin e os dados
levantados por Maria José de Souza Andrade, A mão-de-obra escrava em Salvador, 1811-1860,
São Paulo: Corrupio, 1988.

Estes preços podiam variar ainda mais para cima, pois era hábito
de alguns traficantes fazerem um pequeno investimento ensinando
algumas palavras em português ao africano, tanto para enganar uma
fiscalização eventual contra o tráfico, quanto para aumentar o valor
de venda do escravo. 25
A grande diferença entre o preço de compra do escravo na Costa
d’África, 18 mil réis por cabeça, e o preço de venda no mercado de Salva-
dor, 480 mil réis, indicada por Mauboussin em seu relatório, é compatível
com a notícia encontrada em manuscrito atribuído ao Lord John Hay:
“Que o risco é válido torna-se evidente, quando se conhece a diferença
dos preços dos escravos na África e no Brasil: no primeiro país eles podem
ser comprados por 10 dólares a cabeça e vendidos no último por 500”.26

25 Anedota contada por Maximiliano de Habsburgo pela qual os traficantes ensinavam uma
só palavra ao africano – Minas –, para demonstrar aos juízes que este escravo era antigo
residente no país. ‘Como você se chama?’ Resposta: Minas, um nome muito comum entre
escravos. ‘Onde você nasceu?’ Resposta: Minas, uma das províncias do Brasil, mas também
uma tribo muito importante de negros africanos fornece aos brasileiros a melhor carne
humana. ‘Onde você trabalha?’ Resposta: Minas. Minas são as minas de ouro e diamante
que constituem uma importante riqueza do país. O juiz que naturalmente também possui
escravos, anota as três Minas, arquiva os autos e a questão está resolvida, para a satisfa-
ção das partes’. Maximiliano de Habsburgo, Bahia 1860. Esboços de viagem, Rio de Janei-
ro: Tempo Brasileiro, 1982, p. 154.
26 Rosemarie Erika Horch, “On the slave trade” (transcrição e tradução), Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros, no. 28 (1988), p. 147.

138 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Ganhos do tráfico
Neste ramo de comércio em que a regra fundamental era a esper-
teza aplicada em cada operação, foi muito difícil para o investigador
francês estabelecer claramente as margens de ganho. Admitindo como
preço médio final de importação 185$679 réis e os preços mínimos de
mercado na Bahia, na faixa de 450$000, obteremos uma margem de
ganho de 264$321 por escravo vendido, o que representa uma expec-
tativa de lucros na ordem de 142%, em um prazo de três meses, o que
perfaz 473% ao mês. Este simples exercício especulativo nos dá uma
medida de quão atraente era o investimento no tráfico de escravos em
uma praça comercial em que as oportunidades de investimento eram
ilimitadas aos negócios de exportação do açúcar, aliás um produto mal
colocado no mercado internacional, e em outras economias de exportação
alternativas, de maturação bem mais demorada.
Não é difícil, pois, compreender que a participação nas armações
negreiras fosse o investimento de curto prazo mais atraente, apesar
do alto risco, o que aliás tornava sua remuneração mais alta. Os efeitos
desta atração exercida pelo tráfico sobre os capitais disponíveis na pra-
ça se fazem logo sentir pela escassez e pelo consequente alto custo do
dinheiro em Salvador, expresso pelas altas taxas de juros ali praticadas.
Estas estimativas para o ano de 1846 revelam a gravidade e a extensão
da falta crônica de recursos financeiros na Bahia durante o período de
importação clandestina de escravos.
A sede de recursos financeiros justificou a criação, em 1845, do Banco
Comercial da Bahia, que se transformou, em 1846, no segundo banco
comercial brasileiro. Ele tinha sido criado como um banco de depósitos e
de descontos, com a faculdade de emissão de letras de câmbio e de bônus,
cujo valor não podia ser inferior a 100$000 réis, resgatáveis em dez dias.
Estimulados pela escassez de dinheiro, seus diretores tomaram a decisão
de exceder os limites previstos no estatuto da sociedade para lançar no
mercado bônus pagáveis à vista, ou seja, verdadeira moeda-papel. No
ano de 1846, foram lançados no mercado financeiro local 532 contos
de réis destes papéis. Neste mesmo ano o banco descontou um total de
2.673:800$000 réis em letras de câmbio, o que representava uma cifra
muito próxima de 2.467:421$522 réis, expectativa de ganhos totais com
a importação de 9.403 escravos neste ano de 1846. O sucesso deste em-
preendimento, legal e seguro, era medido pela distribuição de dividendos
aos acionistas na ordem de 12,22% ao fim do ano, percentual muito mais
modesto do que os ganhos no tráfico.27
Como alternativa incomparável de investimento a curto prazo, o

27 Araújo, “Le politique et l’economique”, p. 405.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 139


E OUTROS PARCEIROS
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negócio do tráfico mobilizava os mais ricos e ativos comerciantes da praça


de Salvador, em uma quantidade e variedade de agentes que ultrapassavam
em muito os notórios traficantes baianos, os armadores e proprietários
de navio, como Joaquim Pereira Marinho, Joaquim Alves da Cruz Rios,
a família da viúva Lopes, Thomas Jeremoabo, Pedroso de Albuquerque,
Domingo Gomes Bello, Hygino Pires Gomes. Mauboussin demonstra
grande indignação com a presença ativa de comerciantes estrangeiros
como armadores e proprietários de navio, muito especialmente com o
francês Guillaume Pailhet, sobre quem faz referências inflamadas em
outro relatório enviado a seu ministério. Este francês chegou à Bahia
em 1837, logo associou-se a um belga de nome Gantois, para formar uma
sociedade exclusivamente dedicada ao tráfico de escravos cuja razão social
era Gantois & Pailhet, que depois incorporaria, como sócio, o Sr. Marback,
um judeu inglês estabelecido em Liverpool. Outras personalidades de
destaque na comunidade de comerciantes estrangeiros na Bahia estavam
associadas nas armações negreiras, e Mauboussin indica os cônsules da
Santa Sé, da Espanha e do Uruguai. A grande maioria, no entanto, dos
associados no tráfico não pode ser nominada pelo cônsul. Eram todos os
investidores que aplicavam dinheiro na armação de cada expedição sob
a liderança dos armadores e consignatários.
Atento a esta relação íntima entre o gosto pela especulação financeira
e a habitualidade do tráfico de escravos, Mauboussin registrou, em 1846,
uma situação em que uma importante atividade econômica é prejudicada
pela falta dos capitais aplicados massivamente no tráfico. A exploração
de diamantes no centro da Província da Bahia tornou-se uma atividade
importante desde 1844, quando foram descobertas grandes jazidas de
diamantes na localidade de Mucugê. Em 1846, a exploração diamantífera
acelera-se na Serra do Sincorá, gerando uma importante concentração de
população, o que foi um fator de aumento de importações baianas. Neste
contexto de verdadeira corrida ao diamante, o cônsul francês registra
com indignação:
Este infame tráfico (negreiro), é triste reconhecer, é o
único comércio para o qual estão aptos os capitalistas da
Bahia e a prova disso é convincente pois não há um só deles
que tenha querido aplicar seus capitais na exploração das
minas de diamante descobertas nesta província. Por gosto
e por especialidade, preferiram todos explorar o Negro e
empreender expedições à Costa, ao invés de experimentar
especulações sobre as quais poderiam obter nobremente
lucros com toda garantia.28

28 P. V. Mauboussin, “Mémoire adjoint aux états genéraux de commerce et de navigation du


port de Bahia, année 1846”, AMAE, Correspondance Consulaire et Commerciale, Consu-
lat de Bahia, vol. 5, fl. 48.

140 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Não apenas no mundo do comércio e da agricultura podiam ser


encontrados os beneficiários do negócio do tráfico. Havia todo um ramo
de atividades ligadas ao mar que estavam tecnicamente no centro da
atividade traficante. Eram os donos de estaleiros, os proprietários de
navios, os capitães e imediatos, eram os marinheiros.
Maboussin não conseguiu detalhar os gastos específicos com a
reparação dos navios velhos nem as despesas de armação dos navios
com cordas, velas e outros equipamentos. Ele apenas indica que estes
gastos eram consideráveis em relação à armação dos navios, pois tudo
era comprado da melhor qualidade. Sabe-se também que dois navios, a
goeleta Mariquinha e o brigue Isabelle, sofreram reparos sérios depois
de terem sido capturados em Santa Helena pelos ingleses, que certa-
mente, como de hábito, danificaram os navios para prejudicar o tráfico.
Também os ganhos dos capitães e imediatos não foram especificados.
Mauboussin apenas descobriu que os capitães e imediatos recebiam um
adiantamento em dinheiro de 200$000 e 100$000 réis, respectivamente,
ficando o restante condicionado ao sucesso da expedição. Falta também
no relatório Mauboussin a indicação dos gastos de frete e seguro das
mercadorias transportadas diretamente da Europa para as feitorias na
Costa d’África. Ele nos revela, no entanto, um montante global destinado
à economia naval em 1846, através do pagamento de 120$000 réis por
escravo transportado para um total de 9.403 escravos transportados,
estimado em 1.128:360$000 réis.
Outros grandes beneficiários e cúmplices do tráfico, desde o primeiro
momento, eram os funcionários do estado. Na verdade, os funcionários
civis e militares do porto embolsavam propinas como se fossem um ver-
dadeiro imposto, com a pequena diferença que o faziam privadamente
e não para os cofres públicos. Estima-se que, à razão de 500$000 por
brigue e 250$000 por goeleta, foram embolsados 6:500$000 réis, o que
equivalia a 4,5 salários do tenente-coronel, comandante-geral do Corpo
de Polícia da Província da Bahia. Para os grandes funcionários, chefes
de polícia e subdelegados, a parte no butim era bem mais importante.
Para o ano de 1846, foram distribuídos 188:060$000 réis de propinas
e agrados, correspondentes a um pouco mais de 1.000 escravos novos a
preço de desembarque.
Há também, na Bahia, os beneficiários menores, para quem a par-
ticipação no tráfico torna distintos de outras pessoas do seu mesmo
estatuto social: os marinheiros do tráfico. As tripulações eram recrutadas
na Bahia entre a gente de cor habituada a esta navegação. A estimativa
dos contingentes de tripulação é muito prejudicada pelo hábito, como
tudo no tráfico, de não declarar o total da tripulação no momento da
saída do porto de Salvador. As próprias informações constantes neste
relatório permitem estimar que, no conjunto de 19 expedições de sucesso,
foram pagos 622 salários de marinheiros pela travessia do Atlântico, o

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 141


E OUTROS PARCEIROS
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que forma um total de 124:400$000 réis. Esta massa de salários paga a


pessoas simples do povo metidas no negócio do tráfico de escravos não
representa quase nada (2,9%) em relação ao movimento anual de dinheiro
girando no tráfico. No entanto, em uma sociedade tão hierarquizada
como a baiana do tempo da escravidão, uma boa referência para avaliar
o impacto desses salários pagos sobre a renda da população urbana pobre
de Salvador é a comparação com os salários pagos a profissionais que
se situavam no mesmo nível social dos marinheiros do tráfico.
Em uma atividade de alto risco como esta, a remuneração dos marinhei-
ros estava subordinada aos números de expedições bem-sucedidas por ano.
A maioria das embarcações fez uma viagem por ano, o que correspondia,
em média, a 70 dias de trabalho. Nestes casos, cada marinheiro recebeu
bem mais que um soldado de polícia engajado no serviço um ano inteiro
e somente 50$000 réis a menos do que um artesão livre, carpinteiro ou
pedreiro, trabalhando estes um ano inteiro. Um marinheiro do brigue
Três Amigos, que fez a travessia por duas vezes em 1846, por 140 dias
de trabalho recebeu muito mais do que qualquer trabalhador manual da
cidade durante um ano de trabalho. Cada marinheiro do brigue Brasiliense,
que fez quatro viagens, percebeu uma renda anual quase igual ao de um
capitão de polícia, que pertencia a um escalão social bem mais elevado
que o deles. 29 Com esta renda anual, cada um destes marinheiros podia
comprar para si um escravo africano novo, um daqueles que ele ajudou a
transportar para o cativeiro. Essa capacidade de capitalização por parte
de gente livre de cor ajuda muito a compreender um dinamismo desta
pequena economia do mar, onde se empregavam escravos de pequenos
proprietários nos serviços portuários como remadores e carregadores, na
navegação interna da Baía de Todos-os-Santos, bem como em uma ativi-
dade muito intensa e lucrativa como a pesca da baleia. Somente assim,
o jovem cônsul investigador entendeu os batuques e o fervor religioso
desta gente do mar na festa do Bom Jesus dos Navegantes.
Hoje, como ler corretamente o relatório de Pierre Victor Mauboussin?
Certamente que o objetivo perseguido pelo autor era sensibi-
lizar, de alguma forma, as autoridades do seu ministério em favor
da campanha abolicionista na França que culminaria, em 1848,
com a vitória de Vítor Schoelcher e seus seguidores. Na Bahia, um
posicionamento tão nítido contra os mercadores e senhores de
escravos animava o sentimento de rejeição ao conservadorismo
dominante, não somente n o tocante à escravidão como também
no que dizia respeito à liberdade dos povos, causa mobilizadora

29 Os dados de salários pagos a profissionais artesãos e funcionários públicos para efeito


de comparação com os salários de marinheiros do tráfico foram extraídos de Katia M. de
Queirós Mattoso, “Au Nouveau Monde: une province d’un nouvel empire: Bahia au XIX”
siècle” (Tese de Doutorado de Estado, Universidade de Paris IV-Sorbonne. 1986).

142 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

em um tempo de rebelião europeia contra a Santa Aliança. Com o


advento da onda revolucionária de 1848, Mouboussin se destacaria
na agitação revolucionária entre os estrangeiros na Bahia, fosse
e nd ereçando calorosa correspondência a Lamartine, ministro
dos negócios estrangeiros do governo provisório, ou mobilizando
a comunidade de cerca de 300 residentes franceses e mais os bra-
sileiros simpáticos à ideia da República para a coleta de fundos
para as vítimas daquela revolução na França. Termina a sua estada
encabeçando petição em favor da promoç ão de um funcionário do
consulado, o que lhe custa uma repreensão e a perda do posto. 30
Cento e cinquenta anos depois, este relatório perde inteiramente a
sua eficácia como documento ativo e se sobressai como testemunho. O
ardor republicano espanta do seu texto qualquer traço de hipocrisia ou
dissimulação, muito próprios à cultura da escravidão. A militância política
aguça os seus sentidos para ver, no sentido micheletiano tão em voga
entre os jovens republicanos da época, o clarão da História. Mais do que
o desvendamento de nomes e fatos isolados, Pierre Victor Mauboussin
pretendeu apresentar a rede do tráfico em funcionamento durante um
ano na praça comercial da Bahia. É exatamente na representação deste
conjunto em movimento que reside a importância do seu testemunho.

A conexão africana
Como olhar hoje esta máquina mercante negreira?
Grande é a tentação de integrar o tráfico negreiro como periferia de
um sistema capitalista mundializado tendo como metrópole a Europa e,
mais precisamente, a Inglaterra. Conectado com os mercados europeus
e americanos como circuito complementar, foi capaz de fazer chegar a
economias não monetizadas e não exportadoras de produtos agrícolas,
como era o caso da Costa d’África, as manufaturas europeias. Operacio-
nal no seu tempo, seus resultados projetados para o futuro na forma de
acumulação primitiva de capital completariam a sua integração perfeita
no processo de desenvolvimento do capitalismo.
Há também verdade em tudo isso. O que dizer da intensa circulação
de mercadorias que nos revela Mauboussin? São manufaturas alemãs e
inglesas que passam pela Bahia, que se juntam a mercadorias baianas
e vão para a Costa d’África. São escravos que vêm para os engenhos
produzir o açúcar que comprará manufaturados europeus, contribuindo,
pois, para o processo de reprodução ampliada do capital na metrópole.
No entanto, emerge do relatório a evidência de uma articulação bem

30 Araújo, “Le politique et l’économique”.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 143


E OUTROS PARCEIROS
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mais complexa entre mercados diferentes. Às mesmas mercadorias


europeias e ao mesmo escravo atribuíam-se valores reais e nominais
diferentes de cada lado do Atlântico, todos eles desvinculados dos
respectivos custos de produção.
Olhando pelo lado do traficante Pereira Marinho, era um grande
negócio comprar um escravo na Costa por um pouco mais de 20 mil réis
e poder vendê-lo por 480 mil réis, mesmo com altos riscos da travessia,
alto custo de transporte e uma importante taxa de propina às autorida-
des brasileiras. Poderíamos dizer, então, que o rei de Onim era lesado
ao vender os cativos do hinterland nigeriano a 17 onças por cabeça? Se
atentarmos para a produção do escravo na própria África, veremos que o
seu custo era muito baixo, mesmo considerando as despesas de captura
feitas pelo rei-mercador, na medida em que eram as próprias sociedades
interioranas vítimas de capturas que produziam o alimento suficiente
para a criação de seus próprios filhos.31 Até mesmo o transporte do
interior para a costa era pago pelo trabalho dos próprios escravos como
carregadores das mercadorias que alimentavam o comércio interno na
África. Não poderíamos dizer que também era um grande negócio para o
rei de Onim vender o que nada lhe custou e poder comprar 17 onças em
fuzis, tecidos e mais presentes adicionais?
Outra grande tentação é fazer uma leitura muito particularista,
seja da corporação brasileira dos traficantes, seja da relação comercial
negreira entre Brasil e África vista como uma “sociedade negreira”,32 ou
mesmo falar em um amplo e indefinido, “mundo do tráfico”. Há também
verdade nisso. O relatório Mauboussin, no entanto, ao tempo em que
descreve a natureza particular do negócio negreiro, não negligência a
integração paradoxal dos negociantes do tráfico como líderes de uma
praça mercantil, suficientemente integrada no império informal britânico
na condição de importadora de manufaturas,33 e perfeitamente marginais
como armadores e consignatários negreiros.
Pensar o tráfico Bahia-Lagos é também buscar formas de represen-
tação lógica desta complexidade histórica. Tomando cada uma das partes
neste negócio negreiro como um conjunto matemático, no sentido da
metáfora braudeliana da representação das estruturas como conjuntos de
conjuntos,34 pode-se representar o negócio negreiro como interseção entre

31 Claude Meillassoux, Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro, Rio de Ja-


neiro: Jorge Zahar, 1995.
32 Pierre Pluchon, La route des esclaves: négriers et bons d’ébène au XVIIe siècle, Paris: Ha-
chette, 1980.
33 François Crouzet, “Angleterre et Brésil, 1697/1850. Un siécle et demi d’échanges
commerciaux”, Histoire, économie et societé, vol. 9, no. 2 (1990), pp. 287-317.
34 Fernand Braudel, Os jogos das trocas, Lisboa/Rio de Janeiro: Cosmos, 1985.

144 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

elas, com efeitos diferenciados em cada uma. Esse exercício simples pode
ajudar-nos a compreender melhor o testemunho do jovem cônsul francês.
A interseção negreira
Essa interseção entre a Bahia escravista e a Costa d’África exportadora
de escravos pode ser assim formalizada:

B Ca
Neste espaço de intersecção estão contidos alguns elementos que
dão ao tráfico negreiro uma grande capacidade de resistência diante
das ações hostis oriundas destas mesmas sociedades como também do
sistema mundializado de mercados tendo como metrópole a Inglaterra
antitraficante.
O primeiro elemento que salta aos olhos é a sobrevivência, pela
adoção de práticas e pelo aperfeiçoamento de tradições comerciais,
de uma economia do tráfico coordenada por convenções específicas, 35
construídas historicamente e reafirmadas quotidianamente por todos
os agentes do tráfico, do lado da Costa d’África e do lado da Bahia. O
relatório de Mauboussin ilustra muito bem as conclusões de historia-
dores africanistas que representam esse comércio de escravos como um
negócio organizado, baseado no reconhecimento de regras comerciais
consensuais e na confiança mútua entre parceiros, mesmo quando essas
regras contrariavam as normas do free trade inglês hegemônico. 36
O segundo elemento de reflexão é a constituição, nesta economia
do tráfico, de um espaço econômico não regulamentado por qualquer
autoridade estatal. Como bem mostra Mauboussin, o estado brasileiro,
tendo aceito a pressão inglesa de proscrição do tráfico, tornou-se incapaz
de cobrar taxas e impostos sobre essa atividade, resignando-se a aceitar
a propina como forma corrompida de remuneração de seus funcionários
civis e militares. Para tanto, dependia dos resultados das expedições
negreiras, dos costumes estabelecidos por este negócio, subordinando-
se, finalmente, à vontade dos traficantes. Esse império brasileiro não
dispunha de qualquer jurisdição na Costa d’África, nem dispunha de
qualquer possibilidade de intervenção política ou militar para dirimir
conflitos ou impor condições mais favoráveis aos seus súditos. Do lado

35 Usamos o conceito de “convenção” tal como é trabalhado pelos economistas que buscam
a análise da coordenação econômica não apenas através da auto-regulação de mercado,
mas também através de convenções sociais. André Orléan (org.), Analyse économique des
conventions, Paris: PUF, 1994.
36 Christopher Fyfe, “West african trade A. D. 1.000 – 1.800”, in J. F. Ade Ajayi e Ian Espie
(orgs.), A Thousand Years of West African History, Ibadan: Ibadan University and Nelson,
1977, pp. 237-252.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 145


E OUTROS PARCEIROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

africano, o rei de Onim não tinha qualquer soberania para além da feitoria,
assegurando apenas as condições de segurança das operações na Costa
em troca igualmente de propinas e taxas disfarçadas em presentes. Para
completar o quadro de ausência de regulamentação estatal, a decretação
da ilegalidade deste comércio pela Inglaterra e sua imposição ao fraco
estado brasileiro, impediam o estabelecimento de qualquer acordo bi-
lateral entre o Império do Brasil e o Reino de Onim.37 Tudo realmente
dependia, inclusive a moeda de referência, dos consensos estabelecidos
entre os parceiros do negócio. Os conflitos entre eles certamente existiam,
mas não há notícias de afrontamentos ou rupturas graves. Predominava
principalmente o que registrou Pierre Pluchon: “Todos, que só pensam
em enganar-se mutuamente no acessório – tirar o máximo desvantagens
possíveis do interlocutor – manifestam uma estrita solidariedade sobre
o essencial: o comércio dos cativos.”38
Um terceiro elemento a ser considerado é a reprodução, nos dois
lados do Atlântico, de grupos sociais que viviam do tráfico e que se
constituíam em agentes do intercâmbio social, econômico e cultural
para além da compra e venda de escravos. Quando se extingue o tráfico
transatlântico e, portanto, os comerciantes brasileiros viram as costas
para a Costa d’África, esses grupos de “brasileiros” na África e “africanos”
na Bahia permanecem como elo de comunicação entre os povos da Costa
e da diáspora na Bahia.39
Um último elemento que uma leitura contemporânea desta interseção
negreira não pode desconsiderar, é a produção de uma territorialidade
do tráfico. Diferentemente da equação historicamente construída das
economias nacionais localizadas em territórios contínuos delimitados,
ocupados por populações vivendo em situação de contiguidade e submetidas
a um sistema de poder unificado nacionalmente, a interseção negreira
construiu um espaço em rede40 interligando, pela navegação aventureira

37 A posição de distanciamento da África adotada pelo Império Brasileiro é bem demons-


trada pela história diplomática brasileira: Alberto da Costa e Silva, As relações entre o
Brasil e a África Negra, de 1822 à 1ª Guerra Mundial, Luanda: Museu Nacional da Es-
cravatura/Instituto Nacional do Patrimônio Cultural, 1996; Alberto da Costa e Silva, “O
Brasil, a África e o Atlântico no século XIX”, STVDIA, no. 52 (1994), pp. 195-220.
38 Pluchon, La route des esclaves, p. 125.
39 O fenômeno dos “brasileiros” na África já foi bastante estudado: Verger, Fluxo e refluxo,
pp. 599-632; Jerry Michael Turner, “Les brésiliens. The impact of former Brazilian slaves
upon Dahomey” (Tese de Doutorado, Boston University, 1975); Bellarmin Coffi Codo, “Les
brésiliens en Afrique de l’Quest: hier et aujourd’hui”, UNESCO/SSHRC Summer Institute:
La route des esclaves – The slave route, Toronto: York University, 1997; e Manuela Car-
neiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África, São Paulo:
Brasiliense, 1985.
40 Milton Santos et alii, Território, globalização e fragmentação, São Paulo: Hucitec/
ANPUR, 1996.

146 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

e perseguida, portos de tráfico, articulando poderes diferentes e criando


referências de trocas culturais para povos extremamente diferentes.
Olhar para a territorialidade do tráfico é como antever formas precoces
da globalização contemporânea, onde, no lugar do Atlântico, navega-se
o ciberespaço.

A diferença negreira
A interseção negreira provoca também a sua negação em ambas as
partes.
Ca – B
B – Ca
No lado africano, a revolta contra a deportação para uma escravidão
mercantil do outro lado do Atlântico constitui uma das mais emocionantes
sagas de luta pela liberdade escritas na história dos povos. As constan-
tes revoltas no interior africano, nos portos da Costa, nos navios e no
porto de desembarque. Essa reação africana ao tráfico deve ser também
considerada nos processos de desestabilização dos reinos soberanos
traficantes e de facilitação da ocupação colonial posterior à abolição do
tráfico atlântico, que trazia como bandeira o fim da escravidão, como,
por exemplo, a resistência do povo do reino de Ketu à escravidão que lhes
havia imposto o reino do Daomé.41
No lado baiano, a reação ao tráfico se dá tanto pela resistência
à escravidão, manifestada pelas revoltas africanas nas plantações de
açúcar e nas armações de peixe da Bahia, pela participação crioula em
revoltas populares, pelos quilombos e pelas fugas. Manifesta-se também
a oposição ao tráfico que resulta da rejeição à presença africana no Brasil
sustentada por liberais, alguns dos mais radicais, do fim do século XVIII
aos fins do século XIX, que defendiam a reexportação dos filhos do tráfico
para a África ou, no pior dos casos, uma “civilização” tão radical do negro
no Brasil que apagasse da memória dos restantes a “'barbaria” africana.
Um exemplo eloquente desse tipo de oposição ao tráfico é a defesa que
fez Miguel Calmon da colonização europeia, em 1835, ainda traumatizado
pela insurreição dos malês: a colonização tinha o objetivo
de prevenir, com efficácia e evidente utilidade, a funesta
necessidade de africanos, ou os efeitos ainda mais funestos
da existencia de tantos barbaros neste abençoado Paiz.

41 Elisée Soumonni, “From the Interior to the Coast: Bridging the Gap in the Study of the Sla-
ve Trade and Slavery in Dahomey”, Unesco/SSHRC Summer Institute: La route des escla-
ves – The slave route, Toronto: York University, 1997.

1846: UM ANO NA ROTA BAHIA-LAGOS NEGÓCIOS, NEGOCIANTES 147


E OUTROS PARCEIROS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

[...] Reconheço que a Colonisação nesta Província, tem que


encontrar não pequenas difficuldades. [...]. A 2ª consiste
na solapada e arteira opposição, que á entrada de colonos
livres devem fazer os immorais traficantes de Carne-
humana, esses Contrabandistas cruéis, e seos numerosos
asseclas e comparces, que continuam à importar
Africanos, á facilitar o seo desembarque em nossas
Costas, e a promovêr a sua venda em nossos Mercados.42

A reunião afro-baiana
A interseção negreira é também responsável pela reunião dos dois
lados do Atlântico, no que se poderia formalizar como:

B Ca
Expressão mesmo de uma cultura afro-brasileira resultante da vivência
dos filhos da diáspora africana no Brasil, civilizando africanamente uma
sociedade brasileira e estabelecendo as referências que tornam possíveis
as navegações contemporâneas que reatam contato com aqueles outros
que abrasileiraram a Costa d’África.

42 Miguel Calmon du Pin e Almeida, Memória sobre o estabelecimento d’uma companhia de


colonização nesta Província, Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 1985, pp. 3, 6-7.

148 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


CAPÍTULO 5

o envolviMento dos estAdos Unidos no


CoMérCio trAnsAtlântiCo de esCrAvos
pArA o brAsil, 1840-1858
1

Dale T. Graden

Navios construídos nos Estados Unidos desempenharam um papel


importante no comércio transatlântico de escravos da África para as
Américas. Com o fim da Guerra de 1812 entre os Estados Unidos e a Ingla-
terra (1812-15), comerciantes e armadores norte-americanos procuraram
novas oportunidades de negócios na economia atlântica em expansão.
Uma delas foi o transporte de escravos para o trabalho em propriedades
agrícolas no Caribe e no Brasil. Apesar da existência de uma lei federal
nos Estados Unidos, de 1807, proibindo o comércio de escravos para aquele
país e declarando a participação no comércio negreiro um crime federal a
partir de 1 de janeiro de 1808, empresários norte-americanos investiram
consideravelmente neste negócio ultramarino. O transporte de africanos
para o Brasil e Cuba em navios dos Estados Unidos, do começo da década
de 1830 até o final da década de 1860, se mostrou altamente lucrativo.
Os principais centros desta rede de comércio negreiro nos Estados Unidos
eram Baltimore, Nova York, Boston, Salem, Massachusetts e Portland,
Maine. Estes portos estavam estreitamente conectados com os de Salvador
e Rio de Janeiro, no Brasil, e os de Havana e Matanzas, em Cuba.
Durante a década de 1840, houve um incremento nas importações de
escravos africanos para o Brasil, devido a um aumento na quantidade de
terra destinada ao cultivo de café e açúcar no Brasil, consequentemente,
gerando aumento da demanda de mão de obra para a produção desses
gêneros. Outro motivo para o aumento das importações negreiras para
o Brasil se deve a eventos ocorridos em Cuba. Rebeliões de escravos em

1 Traduzido por Laura Guedes. Agradeço a leitura e os comentários de David Sheinin, Hen-
drik Kraay e Walter LaFaber.

149
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

1840 e 1843, uma conspiração de escravos em 1844 e muitos furacões


provocaram uma queda acentuada na produção de café entre 1844 e
1850, na ilha. 2
Empresários norte-americanos aproveitaram as oportunidades
oferecidas pela demanda de escravos no Brasil. Tornaram-se conhe-
cidos por venderem e alugarem navios a comerciantes de escravos
brasileiros e portugueses nos portos de Salvador e Rio de Janeiro. Estes
empresários mantinham estreito contato com seus aliados no litoral
africano. Comerciantes norte-americanos, brasileiros e portugueses
muitas vezes recrutavam tripulantes norte-americanos para os navios
negreiros. As embarcações construídas nos Estados Unidos abasteciam
os entrepostos escravistas na costa africana, forneciam decisivo apoio
às expedições escravistas e transportavam milhares de africanos para
a costa brasileira. Um cônsul dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, na
década de 1840, avaliou entre 70 a 100 por cento a rentabilidade destas
expedições negreiras entre a África e o Brasil, em navios negreiros
construídos nos Estados Unidos. 3
No final do século XVIII, a capacidade média das embarcações dos
Estados Unidos, usadas no comércio negreiro, era de menos de 100 to-
neladas. Tais embarcações eram mais apropriadas para viagens ao longo
da costa leste dos Estados Unidos e, de lá, para as cidades portuárias das
ilhas caribenhas. Em meados do século XIX, a capacidade média de um
navio negreiro norte-americano aumentou para mais de 200 toneladas.4
Este incremento foi um reflexo da determinação dos comerciantes e dos
armadores norte-americanos de competirem com os europeus por lucros
e supremacia. Os navios dos Estados Unidos, construídos após 1815, par-
ticularmente as escunas fabricadas próximo a Baltimore, em Maryland,
ganharam fama por sua alta qualidade, baixo custo e velocidade.
Nem todos os navios norte-americanos que passavam pelos portos
brasileiros estavam em condições de navegar, devido ao desgaste natural
sofrido pela ação do tempo e à falta de manutenção. Além disto, os navios
enfrentavam condições adversas, uma vez ancorados, e o severo calor
tropical tornava difícil a sua manutenção. Comandantes e tripulações
norte-americanos se queixavam da facilidade com que as minhocas no

2 Louis A. Pérez, Jr., Winds of Change: Hurricanes and the Transformation of Nineteenth-
Century Cuba, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001; Robert L. Paquette,
Sugar is Made With Blood: The Conspiracy of La Escalera and the Conflict Between Empi-
res Over Slavery in Cuba, Middletown: Wesleyan University Press, 1990.
3 United States National Archives (doravante USNA), Record Group (doravante RG) 59,
Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T172:11, U.S. Consul George W. Gordon to Se-
cretary of State James Buchanan, Rio de Janeiro, 18/09/1845.
4 Jay Coughtry, The Notorious Triangle: Rhode Island and the African Slave Trade, 1700-
1807, Filadelfia: Temple University Press, 1981.

150 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

porto do Rio de Janeiro podiam destruir os cascos dos navios. 5 Apesar


destes problemas, os navios norte-americanos encontraram no Brasil um
mercado promissor durante a década de 1840. Um dos motivos se deve
ao fato de os comerciantes de escravos terem acesso fácil, no porto, à
mão de obra especializada. Os carpinteiros baianos no porto de Salvador
eram conhecidos por sua habilidade em reparar navios de madeira e
preparar embarcações para viagens escravistas (por exemplo, instalando
deques temporários para receber os escravos). 6 Outro motivo era que
o governo dos Estados Unidos não permitia (até 1862) que a esquadra
britânica (em operação de 1808 a 1864) revistasse – como parte do
seu esforço para acabar com o tráfico de escravos – uma embarcação
navegando sob a bandeira daquele país, e os investidores se sentiram
motivados a comprar navios norte-americanos como uma manobra para
conseguir documentos oficiais dos Estados Unidos e, com isto, burlar
as autoridades britânicas.
A aprovação da Lei Euzébio de Queiroz pela Assembleia Geral do
Brasil, em novembro de 1850, proibindo o tráfico de escravos, provocou
uma acentuada queda nas importações de escravos para o país. Os mo-
tivos que levaram à aprovação da Lei foram a apreensão britânica de
navios negreiros no oceano Atlântico e ao longo da costa brasileira, o
empenho de D. Pedro II e dos ministros do Império do Brasil para acabar
com o tráfico, os protestos religiosos e de trabalhadores na Inglaterra, a
propagação dos valores capitalistas, apoiados na ideologia do trabalho
livre e a resistência escrava nos portos de Salvador e Rio de Janeiro. 7

5 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, Maxwell Wright to U.S. Con-
sul R.K. Meade, Rio de Janeiro, 19/01/1859; idem, Deposition of William Applegarth, mer-
chant of city of Baltimore, before Notary Public H. Ballard Johnson, Baltimore, Maryland,
25/04/1854.
6 An Exposition of the African Slave Trade, Published by the Direction of the Representa-
tives of the Religious Society of Friends in Pennsylvania, New Jersey, and Delaware, Fil-
adelfia: J. Rakestraw Printer, 1851, pp. 37-47.
7 Leslie Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade; Britain, Brazil, and the Slave
Trade Question, 1807-1869, Cambridge: Cambridge University Press, 1970; Jeffrey D.
Needell, “The Abolition of the Brazilian Slave Trade, in 1850: Historiography, Slave Agen-
cy, and Statesmanship”, Journal of Latin American Studies, no. 33 (2001), pp. 681-711;
Dale T. Graden, “Slave Resistance and the Abolition of the Tran-Atlantic Slave Trade to
Brazil in 1850,” História Unisinos, vol. 14, no. 3 (2010), pp. 283-294; idem, “A resistência
escrava e a abolição do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil em 1850,” Revista
Internacional de Estudos Africanos no. 15 (2010), pp. 151-68; Seymour Drescher, Capital-
ism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective, Nova York: Oxford
University Press, 1987; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlan-
tic Slave Trade, Nova York: Oxford University Press, 1987; David Brion Davis, Inhuman
Bondage: The Rise and Fall of Slavery in the New World, Nova York: Oxford University
Press, 2006; Dale Torston Graden, From Slavery to Freedom in Brazil: Bahia, 1835-1900,
Albuquerque: University of New Mexico Press, 2006.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 151


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Apesar da Lei e da vigilância ao longo da costa, diversos navios tiveram


êxito em desembarcar escravos após 1851. Um deles foi o Mary E. Smith,
de Boston, capturado na costa brasileira no início de 1856 e forçado a
entrar no porto de Salvador, escoltado por um cruzeiro brasileiro.
Este ensaio descreve alguns episódios relevantes, onde navios
dos Estados Unidos viabilizaram o comércio internacional de escravos
para o Brasil ou transportaram escravos para o país. Dezenas de navios
construídos nos Estados Unidos, inclusive as famosas escunas de Balti-
more, foram vendidas ou arrendadas nos portos do Rio de Janeiro e de
Salvador a conhecidos traficantes durante a década de 1840. Diversos
diplomatas norte-americanos demonstraram um empenho genuíno na
suspensão das importações de escravos para o Brasil em embarcações
dos Estados Unidos. Outros, contudo, dado seu interesse financeiro no
tráfico de escravos, demonstraram menos interesse.

Um comércio com muitos tentáculos


Para efetuar a venda e o embarque de escravos africanos, centenas
de indivíduos trabalhavam nos entrepostos escravistas ao longo do
litoral da África e nas praias interioranas. Tais locais são considerados
empresas escravistas pelo fato de terem “produzido” escravos para o
tráfico internacional e serem administradas por agentes comerciais.
Cidadãos dos Estados Unidos, do Brasil e de Portugal exerceram um
papel importante nas empresas escravistas visitadas pelos navios
negreiros norte-americanos durante o século XIX. Os proprietários
das empresas construíam barracões para abrigar temporariamente
os escravos, alojamento para os empregados e armazéns para guardar
as mercadorias. Após serem capturados e forçados a caminhar até a
costa, os africanos mantidos nesses entrepostos muitas vezes eram
submetidos a condições insalubres e maus tratos. O historiador Eric
Anderson descreveu tais entrepostos como “campos de prisioneiros
de palha e bambu”. 8
Comerciantes dos Estados Unidos vendiam diversos produtos nos
entrepostos, tais como alimentos secos, louça, tabaco, tecidos de algodão,
álcool, mosquetes, pólvora e ferro. Os agentes comerciais, por sua vez,
além de mercadorias como ouro, cera, marfim, couro, azeite-de-dendê e
especiarias, vendiam escravos africanos aos compradores que visitavam
os entrepostos que, em alguns casos, abasteciam os navios negreiros com
água potável e grilhões. Os agentes se comunicavam com os negreiros

8 Em inglês, “thatch and bamboo prison camps”: Eric Anderson, “Yankee Blackbirds: North-
ern Entrepreneurs and the Illegal International Slave Trade, 1815-1865” (Dissertação de
Mestrado, Universidade de Idaho, 1999), p. 176.

152 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

ancorados ao longo do litoral, para informá-los do momento mais propício


para embarcar os escravos. Nas palavras de um membro da tripulação
do navio negreiro norte-americano Sea Eagle, “era comum os negros
irem aos navios negreiros para vender peixe e frutas, e era comum os
negros trabalharem nos pequenos barcos que carregavam os escravos
para os navios negreiros”. 9 Os entrepostos permitiam que o complexo e
rotativo negócio do comércio escravista operasse com certa estabilidade.
Depoimentos de comandantes e marinheiros aos cônsules dos Esta-
dos Unidos em Salvador e no Rio de Janeiro oferecem valiosa descrição
do trabalho realizado nestes entrepostos. Em um depoimento de 9 de
maio de 1845, o comandante Gilbert Smith, do navio norte-americano
Sea Eagle, narrou suas viagens ao longo da costa da África Ocidental
(atual República do Togo e Benin). Smith descreveu o modo como uma
casa de comércio de propriedade de Robert Brookhouse, de Salem,
Massachusetts, abastecia os entrepostos escravistas ao longo da costa
da África com bens produzidos na Nova Inglaterra, como rum, pólvora
e outros artigos. Os agentes comerciais compartilhavam informações
com outros entrepostos ao longo da costa sobre a disponibilidade de
escravos, sobre a presença de navios de abastecimento, de navios ne-
greiros, ou da esquadra britânica. De acordo com o comandante Smith,
“as partes têm que estar a par dos negócios umas das outras, assim como
um fazendeiro da Nova Inglaterra sabe quantos acres de milho o seu
vizinho tem plantado”. 10
A comunicação entre os entrepostos era feita por corredores africanos,
capazes de correr de cinquenta a sessenta milhas em um dia, numa média
de cinco a sete milhas por hora. Estes homens ficavam estacionados em
diferentes pontos do litoral africano. “À chegada de uma embarcação no
rio Congo, os corredores partiam imediatamente para Cabinda, a cerca
de 35 a 40 milhas distante, ou para Obama, a cerca de 50 milhas acima
do mesmo rio, para comunicar o fato”.11 O comandante Smith notou que
um conhecido traficante do litoral, um francês de nome Don Alphonso,
distraiu oficiais da esquadra britânica na sua empresa, enquanto se
comunicava com um negreiro a doze milhas da costa, esperando para
embarcar escravos.
Além de abastecer e fazer comércio com os entrepostos no litoral da
África, as embarcações dos Estados Unidos transportaram milhares de

9 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:8, Deposition of Zebomar
H. Small, Jr. [from Harwich Mass] before U.S. consul George W. Gordon, Rio de Janeiro,
30/11/1844.
10 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:11, Deposition of Gilbert
Smith before U.S. Consul George William Gordon, Rio de Janeiro, 9/05/1845.
11 Ibid.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 153


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

escravos da África para o Brasil durante a década de 1840. Em um depoi-


mento ao cônsul dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, em 11 de junho
de 1851, William E. Anderson forneceu uma descrição detalhada de uma
expedição negreira. Anderson, nascido e criado no estado de Maryland,
tinha quarenta anos quando deu este depoimento.12 Era casado, tinha um
filho e vivia no Rio de Janeiro desde 1841.
Contou que, frequentando as docas do Rio de Janeiro, conheceu dois
conterrâneos chamados Joshua M. Clapp e Frank Smith. Ambos tinham
muita experiência no transporte e na venda de escravos africanos no
litoral brasileiro. Anderson aceitou mastrear alguns navios supostamente
de propriedade de Clapp. Em 1849, Clapp e Smith convidaram Anderson a
tomar parte em uma viagem negreira à África no navio Quinsey, de Boston,
um navio construído nos Estados Unidos. Dizendo-se proprietários do
navio, Clapp e Smith ofereceram a Anderson cinquenta dólares por mês,
além de garantia de um pagamento maior (a soma não foi revelada) se a
viagem fosse bem-sucedida. Anderson concordou com os termos do acordo
e viajou como passageiro. O comandante era um cidadão norte-americano,
chamado Thomas Myers.
William Anderson embarcou no Quinsey no dia 17 de março de 1849.
Pensou que o destino do navio fosse Paranaguá, ao sul do Rio de Janeiro.
Ao invés disto, o comandante seguiu para o norte, para o porto do Espírito
Santo, onde o Quinsey aportou no dia 21 ou 22 de março. A tripulação
pintou o navio, fez reparos e estocou grande quantidade de lenha. O navio
partiu, então, para o Rio de Janeiro, onde chegou no dia 4 ou 5 de abril. Lá,
a tripulação preparou o navio para transportar escravos, inclusive provi-
denciando madeira para a construção de deques para os escravos, 300 pipas
de água, grande quantidade de feijão, farinha, carne-seca, além de louças,
dois baús de mercadorias, sessenta grilhões e barras de ferro. O Quinsey
partiu para a África no dia 16 de abril. Durante a viagem, a tripulação
construiu os deques para receber os escravos. Pesando 213 toneladas, o
Quinsey teoricamente possuía capacidade para transportar 1.400 escravos
da África para o Brasil.
No dia 4 de junho, a tripulação enviou um sinal aos observadores de
plantão próximos ao porto de Ambriz, na costa de Angola. Um homem abor-
dou o navio e disse que os 1.400 escravos se encontravam a poucas milhas
no interior, e que eles estariam prontos para serem embarcados dentro
de poucos dias. Anderson notou que o comandante possuía documentos
do cônsul norte-americano no Rio de Janeiro e estava navegando sob a
bandeira dos Estados Unidos.

12 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:20, Deposition of William E.


Anderson before U.S. consul Edward Kent, Rio de Janeiro, 11/06/1851.

154 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Às quatro da tarde do dia 8 de junho, a tripulação do Quinsey deu


início ao embarque dos escravos. Depois de embarcar cerca de oito-
centos africanos, um vapor de guerra inglês apareceu, forçando-os a
desembarcar imediatamente todos os africanos. Um oficial britânico
visitou o navio na manhã seguinte, examinou os documentos dos Es-
tados Unidos, apresentados pelo comandante, e foi embora. O Quinsey
permaneceu próximo a Ambriz por alguns dias, esperando para receber
os escravos a sessenta milhas ao sul, oito dias mais tarde. Navegando
ao longo da costa, o Quinsey recebeu ainda a visita de um outro vapor
britânico e de um cruzador francês, ambos querendo saber por que o
Quinsey permaneceu ao longo da costa. De volta a Ambriz, o Quinsey
foi abordado mais uma vez pelo oficial britânico, perguntando sobre
sua viagem e seus documentos. Em nenhuma destas visitas o oficial
britânico ou o francês requisitou uma inspeção do porão do Quinsey. Do
final de junho até o quatro de julho, o Quinsey permaneceu ancorado
próximo a Ambriz.
Finalmente, as condições se tornaram favoráveis para embarcar os
escravos. Nas palavras de William Anderson,
durante todo o dia quatro [quatro de julho, dia da
Independência dos Estados Unidos] nós decoramos o
nosso navio para celebrar a data e disparamos uma
saudação do four pounder [canhão] que tínhamos a bordo.
Às quatro horas [da tarde] daquele dia nós recomeçamos
o embarque da nossa carga e uma hora mais tarde
tínhamos embarcado 746 negros, quando levantamos
âncora e zarpamos.13

Neste intervalo de uma hora, os africanos foram transportados ra-


pidamente da praia para o navio, em canoas. A tripulação abriu buracos
nas laterais do navio, por onde lançaram escadas de corda para acelerar
o carregamento dos escravos.
Os africanos eram de todas as idades, de um a trinta anos;
do total, de 90 a 100 eram mulheres, cerca de 150 eram
garotos pequenos e o resto eram homens ou rapazes.
Do que eu pude entender, na costa [africana] esta
carga valia cerca de $18.00 por cabeça. No seu destino
final, foi vendida a $480.00 por cabeça. Eles foram
considerados um lote extrafino. Durante a viagem,
os homens permaneceram embaixo e as mulheres e
crianças foram autorizados a subir ao convés. Como
nós embarcamos somente pouco mais da metade do que

13 Ibid. Em inglês, “During the entire day of the fourth we decorated our ship in honor of the
day and fired a salute from a four pounder which we had on board. At four o’clock on this
day we again commenced taking on our cargo and within an hour we took on board 746
negros, when we slipped our anchor and put to sea”.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 155


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

havíamos planejado [746 para uma capacidade de 1400],


nós pudemos dar-lhes bastante água e por isso chegaram
em muito boas condições.14

O Quinsey retornou ao Brasil e chegou a uma fazenda a cerca de


quarenta milhas ao norte de Campos, em 1 de agosto de 1849, onde
os africanos foram desembarcados. A tripulação se desfez de todo o
equipamento no mesmo local, com exceção dos barris de água, para não
serem pegos com evidência associada ao comércio negreiro.
Logo depois, Anderson voltou para sua família, no Rio de Janeiro.
Incrivelmente, a história não termina aí.
Em novembro de 1849, Clapp e Smith convidaram Anderson a parti-
cipar de outra viagem escravista, desta vez no navio France. Construído
nos Estados Unidos, o France tinha feito recentemente uma viagem com
êxito à África. A embarcação tinha saído do porto do Rio de Janeiro sob
a bandeira dos Estados Unidos e retornado sob a bandeira do Brasil.
Anderson aceitou a oferta e partiu do Rio de Janeiro em 17 de dezembro
de 1849. A tripulação do France contava com diversos cidadãos norte-a-
mericanos. O comandante do navio possuía documentos assinados pelo
cônsul dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, o qual, acredita Anderson,
seria ou o recibo de compra da embarcação, quando foi vendida a um
comprador brasileiro, ou o registro original, fornecido à embarcação
antes de sua primeira viagem à costa da África.
O France se dirigiu a Quelimane, Moçambique, na costa sudeste da
África, onde chegou no dia 29 de janeiro de 1850. Logo após sua chegada,
o navio foi abordado por um cruzeiro britânico. O oficial britânico pediu
para ver os documentos do navio. Na manhã do dia seguinte, o oficial
voltou e pediu que as escotilhas do navio fossem abertas. Sendo evidente
que o France estava “todo equipado para uma viagem escravista”, os ma-
rinheiros britânicos apreenderam o navio. O depoente William Anderson
imediatamente atirou ao mar todos os documentos oficiais fornecidos pelo
consulado americano. Anderson acompanhou o France até o Cabo da Boa
Esperança, onde foi acusado de cumplicidade no comércio negreiro diante
da Corte para Supressão do Comércio Escravista. Declarado culpado, o
navio foi destruído.
William Anderson voltou ao Rio de Janeiro no dia 17 de junho de
1850. Ali, ficou sabendo que Joshua Clapp havia permanecido na cidade e
que Frank Smith havia ido para a Califórnia. Na época do depoimento, em
junho de 1851, Anderson declarou que Clapp também havia voltado para
os Estados Unidos.15 O depoimento de Anderson é um entre as dezenas
feitos a cônsules norte-americanos na década de 1840, descrevendo as

14 USNA, Deposition of William E Anderson, op. cit.


15 Ibid

156 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

viagens dos navios negreiros norte-americanos pelo litoral da África, as


estratégias para embarcar escravos rapidamente e evitar os cruzadores
britânicos, a travessia para o Brasil e o desembarque de africanos na
costa brasileira.
Nem todos os comandantes norte-americanos tinham interesse
em transportar grandes quantidades de africanos. Em alguns casos,
os navios norte-americanos levavam de seis a dez escravos a bordo.
Os africanos recebiam passaportes falsos na costa africana, que os
identificavam como “homens livres” ou “passageiros”. Em duas situa-
ções, o cônsul dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, George Slacum,
reuniu informações que o levaram a acreditar que os “passageiros”
eram, de fato, escravos. Quando tentou comunicar-se com os africanos
recém desembarcados, Slacum descobriu que eles falavam somente
seus dialetos africanos. Durante um depoimento, o comandante Ezra
Foster, de Beverly, Massachusetts, informou a Slacum que compradores
ávidos pagavam até cem dólares por cada africano trazido por ele ao
Rio de Janeiro. 16
Os navios e os comerciantes dos Estados Unidos abasteciam os
entrepostos escravistas ao longo do litoral africano durante o século
XIX. Cidadãos dos Estados Unidos vendiam e alugavam navios nor-
te-americanos a partes interessadas nos portos de Salvador e Rio de
Janeiro, tais como os famosos traficantes brasileiros Manuel Pinto da
Fonseca e José Bernardino de Sá. Na avaliação de Eric Anderson, pelo
menos 430 navios norte-americanos teriam feito 545 viagens escra-
vistas às Américas, no período de 1815-1850 (a maioria para o Brasil
e Cuba). 17 O ápice destas viagens se deu entre 1835 e 1850, com 276
viagens norte-americanas, ou uma média de 17.25 viagens anuais. 18
A construção de navios nos Estados Unidos, a venda e o aluguel das
embarcações norte-americanas em Salvador e no Rio de Janeiro, a
venda de bens produzidos nos Estados Unidos aos entrepostos escra-
vistas localizados no litoral da África e cada expedição escravista
bem-sucedida representavam um grande retorno, às vezes enormes
fortunas, aos muitos indivíduos nelas envolvidos.

16 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:8, US consul George Slacum
to Secretary of State Daniel Webster, Rio de Janeiro, 1/07/1843.
17 Anderson, “Yankee Blackbirds”, pp. 49, 281.
18 Ibid., p. 34.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 157


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Os esforços dos cônsules norte-americanos


para sufocar o tráfico
A contribuição dos diplomatas dos Estados Unidos ao fim do co-
mércio transatlântico de escravos para o Brasil merece consideração.
Diversos cônsules dos Estados Unidos no Rio de Janeiro e em Salvador,
durante a década de 1840, tentaram acabar com o tráfico de escravos.
Estes oficiais reconheceram a participação de comerciantes e navios
norte-americanos no comércio transatlântico de escravos para o Brasil.
Nas palavras de Henry A. Wise, ministro norte-americano para o Brasil
(1844-47),
Eu arriscaria afirmar [escrevendo em 1844] que nenhuma
embarcação dos Estados Unidos é vendida no Brasil para
ser destinada a um porto na África, sem que o comandante
e a tripulação dos Estados Unidos, se não os proprietários
e consignatários, de livre e espontânea vontade e em sã
consciência viabilizem e contribuam para perpetuar o
tráfico.19

Cônsules dos Estados Unidos muitas vezes impediram que o compra-


dor de um navio, o comandante ou um membro da tripulação recebesse
documentos que confirmassem ser a embarcação de propriedade de um
cidadão dos Estados Unidos. Tais documentos eram necessários para
deixar o porto, evitar inspeção e apreensão pela esquadra britânica, em
alto-mar, e para voltar ao porto. Infelizmente, em muitos casos, estes
esforços foram em vão.
Os cônsules dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, durante a dé-
cada de 1840, mantinham registros detalhados de partidas e chegadas
dos navios. Nascido em Exeter, New Hampshire, George W. Gordon
trabalhara em uma firma de importação em Boston e ocupara cargos
públicos (1830-43) antes de ser apontado cônsul no Brasil (1843-46).
Em setembro de 1845, Gordon notou que sessenta e quatro embarcações
dos Estados Unidos haviam sido vendidas no porto do Rio de Janeiro
desde janeiro de 1840, das quais trinta e quatro foram identificadas
como negreiras. 20
Ex-advogado para o Estado de Maine (1843-45), Gorham Parks co-
nhecia bem a arquitetura dos negreiros construídos na Nova Inglaterra e
as manobras usadas pelos comerciantes, comandantes e tripulantes para
dissimular o envolvimento destes navios com o tráfico. Apontado cônsul
dos Estados Unidos para o Rio de Janeiro (1845-49) durante o pique das

19 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:15, Henry Wise to Secretary of
State George Calhoun, Rio de Janeiro, 1/11/1844.
20 State Executive Committee of the National American Party, The Record of George W. M.
Gordon, Boston, J.E. Farwell and. Company, 1856, p. 5.

158 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

importações de escravos para o Brasil, Parks condenou a participação de


navios norte-americanos no tráfico de escravos. No final do documento
abaixo, Parks escreveu: “Desses navios [um total de 93], todos, exceto
cinco, foram vendidos ou despachados para as costas da África com
a finalidade de trazer escravos e muitos deles foram capturados com
escravos a bordo”.21
Com base nos cálculos de Gordon e Parks, pelo menos 110 navios dos
Estados Unidos, que partiram do porto do Rio de Janeiro entre janeiro de
1840 e setembro de 1849, transportaram escravos africanos para o Brasil.
Dezenas de outras embarcações norte-americanas partiram do Rio de
Janeiro durante este período como navios de apoio ou navios auxiliares
(‘tender’ ships). Supostamente empregados no comércio legal na costa
africana sob registro dos Estados Unidos, estes navios auxiliares, de fato,
forneciam apoio aos navios que transportavam escravos. Era prática co-
mum para os navios de apoio transportarem de volta ao Brasil tripulantes
norte-americanos desembarcados de negreiros em costas da África.

Tabela1: Lista das embarcações dos Estados Unidos despachadas do porto do Rio
de Janeiro para a costa da África, de 1/07/1844 a 30/09/1849
Datas Tipo Nome do navio Comandante Procedência
Beverly,
17/11/1844 Brigue Sterling Gallop
Massachusetts
21/11/1844 Brigue Susan & Mary B. Connor Baltimore
04/12/1844 Brigue Sea Eagle Smith Boston
24/01/1845 Brigue Arctic Pascal Baltimore
18/02/1845 Barca Herschell Adams Nova York
28/02/1845 Brigue Janet Burk N.R.
22/03/1845 Barca Pons Graham Filadélfia
19/04/1845 Barca Pilot Swift Boston
17/05/1845 Barca Madeline Shanklaw N.R.
19/07/1845 Barca Pons Graham Filadélfia
04/08/1845 Navio Panther Clapp Providence, R.I.
11/08/1845 Barca Pilot Swift Boston
11/10/1845 Escuna Enterprise Nicholson Boston
30/10/1845 Brigue Harriet Jarvis Baltimore
?/11/1845 Barca L.D. Bascett Boston

21 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:20, Former US consul Gorham
Parks to David Tod, Rio de Janeiro, 29/01/1850.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 159


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

18/11/1845 Barca Cuba? Blanchard Boston


03/12/1845 Brigue Benlak Merrill Portland, Maine
13/12/1845 Brigue Roaver Auchinslost Nova York
20/12/1845 Barca Lucy Penniman Reddell Nova York
31/12/1845 Barca Pilot Swift Boston
13/02/1846 Barca Laida Chapman Wiscasset, Mass.
07/03/1846 Brigue Vintago Flory Salem, Mass.
11/03/1846 Brigue Francis Ann Tate Nova York
20/05/1846 Brigue Casket Woodberry Beverly, Mass.
28/07/1846 Brigue Chipola Neuman ? Baltimore
11/08/1846 Brigue Francis Ann Tate Nova York
24/08/1846 Brigue Benlak Merrill Portland, Maine
29/08/1846 Brigue Vintage Edwards Salem, Mass.
15/09/1846 Brigue Forest Altridge Nova York
30/09/1846 Escuna Dover Ilegível Nova York
26/11/1846 Brigue Francis Ann Tate Nova York
?/12/846 Brigue Sterling Gallop Beverly, Mass.
19/12/1846 Brigue Frederica Ranier ? Key West, Florida
31/12/1846 Brigue Senator Kelley Boston
31/12/1846 Barca Fame Marks New London, Conn.

Datas Tipo Nome do navio Comandante Procedência


27/02/1847 Barca Josephine Jones Nova York
23/03/1847 Brigue Casket Woodberry Beverly, Mass.
27/03/1847 Brigue Forest Altridge Nova York
24/04/1847 Brigue Malaga Lovett N.R.
10/07/1847 Brigue Don Juan Maris N.R.
16/07/1847 Brigue Ilegível Russell Providence, R.I.
04/08/1847 Brigue Casket Woodberry Beverly, Mass.
30/09/1847 Brigue Malaga Lovett N.R.
28/10/1847 Escuna Alicia Jones N.R.
06/11/1847 Barca Canes Harvis N.R.
08/11/1847 Barca Camilla N.R. N.R.
29/12/1847 Brigue W. Huntington Ilegível N.R.
05/01/1848 Brigue Whig Brand N.R.
21/01/1848 Brigue Brasil ? Bevans N.R.
03/03/1848 Barca California Pednick N.R.

160 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

18/03/1848 Brigue Caracas Littlefield N.R.


18/03/1848 Escuna Morris Curvier N.R.
23/03/1848 Escuna M.L. Smith Smith N.R.
01/04/1848 Brigue Frederica Faulkner N.R.
12/04/1848 Brigue C.K. Rogers Rauch N.R.
06/05/1848 Navio Herald ? Barken N.R.
23/05/1848 Brigue Gregory Ayres N.R.
27/5/1848 Barca Louisa Sonder N.R.
08/06/1848 Escuna Juliet Gordon, Jr. N.R.
15/07/1848 Escuna Morris Jones N.R.
17/07/1848 Escuna Lenovia Belton N.R.
16/08/1848 Brigue J.W.Huntington Roberts N.R.
28/08/1848 Barca Globe Bevans N.R.
15/09/1848 Escuna Mary Catherine W.Griffin Baltimore
25/09/1848 Escuna Marion W.J. Rogers Sag Harbor, N.Y.
26/09/1848 Brigue Venus ? Adams Gloucester, Mass.
31/10/1848 Escuna Henrietta Otis Rinco ? N.R.
04/11/1848 Barca Camilla Forsyth N.R.
08/11/1848 Brigue Caracas Shavis ? N.R.
10/11/1848 Brigue Albertina Montgomery Nova York

Datas Tipo Nome do navio Comandante Procedência


14/11/1848 Escuna Morris Jones N.R.
14/11/1848 Barca Ilegível Appleton Salem, Mass.
18/11/1848 Navio France Corning N.R.
28/11/1848 Brigue Snow Washburn N.R.
30/11/1848 Barca Louisa Rauch N.R.
11/12/1848 Barca A.D.Richardson Stoner N.R.
13/12/1848 Brigue Independence Burns N.R.
19/12/1848 Brigue Flora Clapp N.R.
16/01/1849 Escuna Lenovia Belton N.R.
07/02/1849 Brigue Ilegível Nickols Filadélfia
12/02/1849 Brigue Whig Wrippy Nova York
27/02/1849 Brigue Depolet ? Clark Boston
?/03/1849 Barca Quincy Myers Boston
24/03/1849 Escuna Morris Jones N.R.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 161


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

11/06/1849 Brigue Rowena ? N.R. N.R.


30/06/1849 Brigue W. Thomas N.R. N.R.
07/07/1849 Brigue Caracas N.R. N.R.
03/08/1849 Brigue Ras Laras ? N.R. N.R.
06/08/1849 Navio Ilegível Belton N.R.
25/08/1849 Barca Christie ? Nickols N.R.
01/09/1849 Brigue Snow Washburn N.R.
30/09/1849 Brigue Casco Kinney N.R.
30/09/1849 Brigue Swan Walford N.R.

N.R.= Não registrado.


? = Há dúvida sobre o nome ou data.
Fonte: USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:20, Former U.S. consul Gorham
Parks to David Tod, Rio de Janeiro, 29/01/1850.

Gordon foi um dos mais tenazes e eficientes cônsules americanos no


mundo Atlântico. Durante sua estada no Rio de Janeiro, conseguiu a prisão
de quatro comandantes de navios norte-americanos, junto com outras
trinta pessoas (oficiais e tripulantes), acusando-os de envolvimento no
comércio negreiro. Dois dos comandantes, J.S. Pendleton e Cyrus Libby,
dos brigues norte-americanos Montevideo e Porpoise, respectivamente,
foram levados às cortes nos Estados Unidos, mas escaparam da con-
denação. A atitude de Gordon provocou a ira de indivíduos poderosos
na cidade do Rio de Janeiro ligados ao comércio negreiro. Acreditando
que sua correspondência estivesse sendo violada, Gordon escreveu que
os maiores esforços estão sendo feitos pelas partes
comprometidas, tentando me expulsar das minhas
funções; quaisquer que sejam os interesses que eles
representam, são pessoas ligadas às embarcações norte-
americanas envolvidas no tráfico de escravos africanos,
e estão descontentes com a maneira como eu tenho
desempenhado minha função com relação ao tráfico”.22

Outro sincero crítico norte-americano do envolvimento dos Estados


Unidos no comércio transatlântico de escravos foi o ministro dos Estados

22 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:10, George Gordon to Sec-
retary of State John Calhoun [James Buchanan], Rio de Janeiro, 22/04/1845. Ver tam-
bém Dale T. Graden, Disease, Resistance, and Lies: The Demise of the Transatlantic Slave
Trade to Brazil and Cuba, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 2014; Leonardo
Marques, The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas, New Hav-
en: Yale University Press, 2015.

162 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Unidos para o Brasil, Henry A. Wise. Nascido em Accomack County, na


Virgínia, foi três vezes eleito para a Casa dos Representantes dos Estados
Unidos como delegado de Virgínia (1833-44). Defensor dos direitos do
Estado e da escravidão, apoiou a secessão do Sul e foi apontado General
do Exército Confederado do Sul durante a Guerra Civil dos Estados
Unidos (1861-65).
A correspondência diplomática de Wise fornece uma fonte relevante
para a análise dos obstáculos à supressão do comércio negreiro para o
Brasil. Ele não tinha muita confiança na esquadra britânica, dizendo
que os escravos apreendidos nos navios negreiros interceptados eram
enviados às ilhas caribenhas britânicas como “aprendizes” (deixando
transparecer que estes africanos eram, em verdade, escravos). Visitou
navios suspeitos de serem negreiros, interrogou comandantes e tripu-
lantes, examinou meticulosamente os livros e os documentos dos navios
e investigou comerciantes norte-americanos que acreditava terem
investido ou, de alguma maneira, viabilizado as expedições negreiras.
Wise exigiu que o governo imperial do Brasil autorizasse a extradição
de cidadãos norte-americanos para serem julgados nos Estados Unidos
por atividades ilegais associadas com o comércio negreiro. Em fins de
1844, queixou-se ao Secretário de Estado John Calhoun:
O Congresso tem que mudar as leis norte-americanas para
a supressão do comércio negreiro, para [não permitir]
a aberração de punir ignorantes oficiais e tripulantes
de navios de comércio de má conduta ou delitos,
quando os donos dos navios nos Estados Unidos e seus
consignatários, agentes comerciais e representantes
norte-americanos pelo mundo são deixados impunes
das acusações de enviar os marinheiros em viagens com
o propósito notório de traficar escravos.23

O que teria motivado estes três diplomatas norte-americanos no Rio


de Janeiro? No caso de Gordon e Parks, parece que seus antecedentes na
Nova Inglaterra influíram muito em suas perspectivas de mundo. Gor-
don testemunhou a turbulenta década de 1830 em Boston, anos em que
aferrados abolicionistas, como William Lloyd Garrison, apareceram em
cena, condenando a escravidão como uma maldição sobre a humanidade,
que precisava acabar imediatamente.24 Gordon também passou um ano no
final da década de 1820 em Virgínia e nas Carolinas, recuperando-se de

23 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:15, Henry Wise to John Calhoun,
Rio de Janeiro, 14/12/1844. Sublinhado no original. Ver também Craig M. Simpson, A
Good Southerner: The Life of Henry A. Wise of Virginia, Chapel Hill, University of North
Carolina Press, 1985, pp. 61-69.
24 William E. Cain (org.), William Lloyd Garrison and the Fight Against Slavery: Selections
from “The Liberator”, Boston, St. Martin’s Press, 1995.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 163


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

problemas de saúde. Provavelmente, esta experiência o levou a refletir


sobre a imoralidade da escravidão. Gorham Parks teve menos contato
com abolicionistas devido à localização do Maine e sua baixa população
de afro-americanos. Apesar disto, sua formação jurídica e suas obser-
vações o tornaram alerta à reputação negativa que o comércio negreiro
infligia a centenas de concidadãos em seu estado natal.
Henry Wise é uma figura um pouco mais complexa do que seus dois
colegas. Por que um sulista pró-escravidão estaria tão empenhado na
supressão das importações de escravos em navios norte-americanos para
o Rio de Janeiro? Uma das hipóteses teria a ver com sua experiência
com o movimento abolicionista nos Estados Unidos. Como represen-
tante do estado de Virgínia, Wise não gostava das atitudes agressivas
e das críticas abertas dos abolicionistas do norte. Logo depois da sua
chegada ao Rio de Janeiro, percebeu que a maioria dos navios negreiros
eram procedentes do norte dos Estados Unidos. Dizia que os quakers
de Delaware e os abolicionistas do Maine eram proprietários de navios
negreiros: “Esses são alguns exemplos de dezenas e vintenas de casos
mostrando que o interesse do Norte na navegação está fazendo no Brasil
o mesmo que fez na Virgínia e em outros estados do sul da América do
Norte — transportando cargas de escravos da África sob a proteção da
bandeira dos Estados Unidos.” 25
Outra hipótese é a de que Wise não queria ver a “africanização” de
nenhuma região das Américas. Para ele, a chegada de mais africanos
significava a continuação da resistência escrava e a reação violenta por
parte dos proprietários, como ele testemunhou em seu estado natal,
Virgínia. Uma terceira hipótese tem a ver com ex-escravos nos Estados
Unidos. Desde a década de 1820, políticos e intelectuais norte-americanos
discutiam para onde enviar os libertos. Libéria, na África ocidental, era
um dos destinos. Em meados do século XIX, o Brasil foi apontado como
outra possibilidade.26
Wise causou agitação em Salvador. Acusou o cônsul norte-americano
na Bahia, Alexander H. Tyler (1840-48), de não cumprimento de suas
responsabilidades, falhando em investigar navios construídos nos Estados
Unidos envolvidos no tráfico de escravos. Em setembro de 1843, o brigue
norte-americano Sooy foi conduzido ao porto do Rio de Janeiro pelo
navio britânico Racer. Henry Wise imediatamente investigou e apurou
evidências de que o Sooy havia transportado escravos africanos para o
Brasil. Posteriormente, recebeu informação de que havia sido vendido em
Salvador, em maio prévio, e desembarcado 580 escravos nas proximidades

25 Simpson, A Good Southerner, p. 66.


26 Ver USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:29, J. Watson Webb to Secre-
tary of State William Seward, Petropolis, 5/04/1862.

164 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de Salvador poucos dias antes de sua captura. Wise criticou Tyler por
desconhecer a venda do barco, os propósitos da viagem e o desembarque
dos africanos.27
Em resposta às críticas de Wise, Tyler investigou a procedência e a
viagem do Sooy. A casa mercantil de nome Ganthois e Pailhet, em Salva-
dor, comprou o barco de Nicholas Troy, de Burlington County, e de N. T.
Thompson, de Atlantic County, ambos em Nova Jérsei. Na avaliação de
Tyler, cerca de vinte a cinquenta pessoas teriam investido na viagem do
Sooy, inclusive mulheres. Ele apurou que o barco transportou 630 afri-
canos, dos quais vinte morreram durante a viagem. Diversos tripulantes
conseguiram escapar da prisão um pouco antes da captura do Sooy pelo
barco britânico Racer.28
Apesar de toda a evidência, Tyler duvidava que navios e tripulantes
norte-americanos em Salvador exercessem um papel importante no
comércio negreiro. Em resposta à acusação feita pelo cônsul norte-ameri-
cano no Rio de Janeiro, de que o cidadão norte-americano Mark H. Leeds,
da Bahia, era o comandante do Sooy, Tyler defendeu o acusado, dizendo
que Leeds era uma figura muito conhecida em Salvador como professor
de religião e membro devoto da igreja metodista. Tal pessoa, na opinião
de Tyler, “nunca em sã consciência participaria do comércio negreiro”. 29
Nos meses que se seguiram, Alexander Tyler acompanhou mais
de perto as atividades no porto de Salvador. Imediatamente percebeu
as ligações de comerciantes, navios e tripulação norte-americanos no
comércio de escravos africanos.
No dia 4 de maio de 1845, uma correspondência diplomática, en-
viada pelo cônsul norte-americano no Rio de Janeiro, chegou a Salvador
a bordo do vapor Imperatriz. O documento dirigido a Tyler acusava os
cidadãos norte-americanos Jacob Woodbury e Thomas Duling de serem
os comandantes dos navios Albert, de Boston, e Washington’s Barge, da
Filadélfia, em uma viagem à África para buscar escravos. O Washington’s
Barge teria sido vendido na costa africana, e Duling e a tripulação do
navio retornado a Salvador a bordo do Albert. O plano era que o Washin-
gton’s Barge transportasse centenas de escravos de volta à Bahia. Com
base nestas informações, Tyler pediu a prisão de Woodbury e Duling. 30
No dia seguinte, Duling embarcou no Imperatriz. Planejava viajar a
Recife, Pernambuco, onde tomaria outro navio que o levaria à Filadélfia.

27 USNA, Henry Wise to John Calhoun, op. cit.


28 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:15, Alexander Tyler to George
Gordon, Salvador, 11/12/1844.
29 Ibid
30 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:11, George Gordon to Sec-
retary of State Buchanan, Rio de Janeiro, 27/08/1845.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 165


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Momentos antes da partida, a polícia baiana abordou o navio e obrigou


Duling a desembarcar: “Eles [o] conduziram como prisioneiro pela ci-
dade; primeiro para a residência do cônsul, que estava ausente, depois
para a casa do oficial que o prendeu, e então para a polícia, onde ele foi
informado de que não estava preso, mas somente impedido de deixar a
Bahia, a pedido pessoal do cônsul norte-americano [Alexander Tyler].”
31
Logo depois, o comandante Woodbury também foi detido, assim como
toda a tripulação do Albert. Nas palavras de John Gilmer, um empresário
norte-americano residente em Salvador, “dessa maneira humilhante
foram dois respeitáveis cidadãos norte-americanos, ao arbítrio e capricho
do Sr. Tyler, conduzidos pelas ruas mais movimentadas desta cidade em
pleno dia, e na presença de grande número de espectadores, nativos e
estrangeiros, à prisão comum cerca do porto, para onde normalmente
só os vagabundos são enviados.” 32 Não demorou muito para que os dois
comandantes norte-americanos e a tripulação do Albert deixassem
a cadeia. No dia 7 de maio, o chefe de polícia, João Joaquim da Silva,
ordenou a liberação do grupo.
Duling deixou Salvador no dia 11 de maio, enquanto, ao que parece,
Woodbury permaneceu na cidade, sem medo de ser preso. Gilmer e seus
amigos (cidadãos norte-americanos George Carey, W.T. Harris, George
Dunham e Joseph Ray) queixaram-se de Tyler a oficiais superiores em
Washington, D.C., Gilmer escreveu, em nome do grupo:
ao fazer essas observações [críticas a Tyler] nós pedimos
observar que as consideramos devido ao caráter de nossos
concidadãos e não pelo desejo de defender a continuação
do comércio negreiro, o que sinceramente abominamos
e lamentamos que poderes mais amplos não sejam
garantidos pelas leis de nosso governo para a sua efetiva
supressão, tanto quanto diz respeito à honra de nossa
bandeira.33

Homem com passado obscuro, Gilmer manteve estreitas ligações


com conhecidos traficantes de Salvador e com casas comerciais no Rio
de Janeiro ligadas ao tráfico negreiro, tais como Maxwell Wright e Com-
panhia. De acordo com o depoimento do marinheiro norte-americano
Charles Bigelow, feito no final de 1844, no consulado dos Estados Unidos
no Rio de Janeiro, John Gilmer vendeu o brigue norte-americano Gloria
em Salvador, sabendo que seria usado no comércio negreiro. Henry Wise
reportou o depoimento de Bigelow ao Secretário de Estado dos Estados

31 USNA, RG 59, Consular Dispatches from São Salvador, T-432:4, John Gilmer to Secretary
of State James Buchanan, Salvador, 10/05/1845.
32 Ibid.
33 Ibid.

166 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Unidos. Para surpresa de Gilmer, o Boston Daily Atlas publicou as acusa-


ções em um artigo de 20 de abril de 1845. Em resposta, Gilmer criticou os
representantes norte-americanos no Rio de Janeiro, negando quaisquer
ligações com atividades ilegais. Na última metade da década de 1840,
parece que Gilmer continuou a apoiar o comércio negreiro para Salvador,
ao mesmo tempo em que negava seu envolvimento nele. As manobras de
Gilmer sem dúvida contribuíram para a destituição de Alexander Tyler
da função de cônsul em Salvador, em 1848. Dois anos mais tarde, John
S. Gilmer foi apontado cônsul norte-americano em Salvador, cargo que
ocupou até o começo de 1862.
Num episódio exemplar, em 1852, Gilmer se viu envolvido em uma
controvérsia relacionada à herança deixada por um falecido cidadão
norte-americano. W. J. Harris que atuara no comércio negreiro por
“muitos anos”.
Suas atividades lhe permitiram juntar uma fortuna de sessenta mil
dólares. Gilmer esperava ser o administrador desta fortuna, mas oficiais
da Bahia tomaram controle dos bens de Harris. Numa tentativa de impedir
qualquer interferência, Gilmer colocou um selo do consulado dos Estados
Unidos em diversos itens. A polícia ordenou que ele removesse os selos,
o que fez sob protesto. Os bens de Harris foram vendidos, nas palavras
de um oficial norte-americano, “num tipo de leilão de fachada, com um
sacrifício vergonhoso. De fato, toda a transação foi uma completa farsa”.
Gilmer tentou desesperadamente manter uma jovem escrava que havia
pertencido a Harris, mas os oficiais de polícia a levaram e a incluíram
no leilão. Os herdeiros da fortuna de Harris, residentes na cidade de
Nova York, não receberam nada. Gilmer protestou junto ao consulado
no Rio de Janeiro e ao Departamento de Estado em Washington, D.C. de
ter sido tratado injustamente. Parece que nenhum oficial respondeu
a suas cartas e o assunto foi esquecido. 34 O comportamento de Gilmer
contrasta visivelmente com o de Alexander Tyler e o dos três cônsules
norte-americanos no Rio de Janeiro.

“Um jeito estranho de fazer justiça”: a captura do Mary E. Smith


Diversos navios norte-americanos transportaram escravos africanos
para o Brasil após a aprovação da Lei Euzébio de Queiroz, em novembro
de 1850. Um deles foi o Camargo, comandado por Nathaniel Gordon, do
Maine. Partindo do Rio de Janeiro em abril de 1852, o navio seguiu para
a costa leste da África, onde foram embarcados cerca de 500 africanos.
Perseguido por um cruzeiro britânico, a tripulação desembarcou os

34 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Bahia, T-331:2, Consul Thomas Wilson to Secre-
tary of State William Seward, Salvador, 14/07/1862.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 167


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

africanos às pressas a cerca de duzentas milhas ao sul do Rio de Janeiro


e queimou o navio. As autoridades brasileiras recolheram os africanos
e capturaram diversos marinheiros do Camargo. 35
O último navio norte-americano conhecido a transportar afri-
canos para o Brasil foi a escuna Mary E. Smith. Antes da sua partida
de Boston, no dia 25 de agosto de 1855, o navio levantou suspeitas
das autoridades norte-americanas e britânicas por causa dos tipos
de materiais levados a bordo, sabido serem usados em negreiros (por
exemplo, madeira para a construção de deques, grilhões, grande quan-
tidade de barris de água). Em vias de ser apreendido por um oficial
dos Estados Unidos e seus subordinados, os quais abordaram o Mary
E. Smith quando era conduzido do porto de Boston por um rebocador,
o comandante Vincent D. Cranotick expulsou os intrusos do navio e
se dirigiu para o leste, com destino à África. 36
Após a viagem à região do Congo, na África, onde foram embarcados
aproximadamente 400 a 450 africanos de idades variando entre quinze e
vinte anos, o Mary E. Smith chegou a São Mateus (costa norte da província
do Espírito Santo) em janeiro de 1856. Informado sobre a possibilidade
de desembarque de escravos africanos na costa, o vapor brasileiro Olinda
alcançou o Mary E. Smith e o escoltou a Salvador. Autoridades portuárias
da cidade avaliaram em pelo menos setenta e um o número de africanos
mortos de doença contraída a bordo do navio entre o momento da inter-
ceptação na costa brasileira, em 20 de janeiro, e a chegada a Salvador,
em 31 de janeiro.
Os oficiais baianos condenaram o Mary E. Smith e desembarcaram
os africanos sobreviventes. Esta atitude “causou terror entre a popu-
lação da cidade”, tomada pela crença de que a presença de africanos
doentes fosse agravar a epidemia de cólera que devastava a Bahia
desde agosto prévio. Médicos e agentes de saúde baianos forneceram
cuidados médicos e alimentos aos africanos, o que supostamente
melhorou a saúde deles. Apesar de tais medidas, outros cem africanos
que chegaram no navio morreram nas duas semanas seguintes. No
dia 14 de fevereiro, dos duzentos e treze africanos que sobreviveram,
oitenta e oito permaneciam gravemente enfermos, sofrendo de várias
doenças, inclusive cólera. Os casos de contaminação aumentaram con-
sideravelmente na cidade, em fevereiro. Os seus habitantes atribuíram

35 USNA, RG 59, Consular Dispatches from Rio de Janeiro, T-172:15, Edward Kent to Sec-
retary of State Edward Everett, Rio de Janeiro, 22/01/1853. Ver também Ron Soodalter,
Hanging Captain Gordon: The Life and Trial of an American Slave Trader, Nova York,
Atria Publishers, 2006.
36 Warren S. Howard, American Slavers and the Federal Law, 1837-1862, Los Angeles,
University of California Press, 1963, pp. 124-26; USNA, RG 59, Consular Dispatches
from Bahia, T331:1, Gilmer to Secretary of State William Marcy, Salvador, 1/02/1856.

168 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

a proliferação da cólera naquele mês aos africanos do Mary E. Smith


e à decisão de desembarcá-los.
Acusados de tráfico ilegal de escravos, com base nas leis brasileiras
de 1831 e 1850, dez tripulantes do Mary E. Smith foram julgados em
30 de junho de 1856 (o comandante morreu logo depois da chegada
do navio a Salvador). Dos dez, cinco eram cidadãos norte-americanos.
Seus esforços para provar sua inocência foram em vão. “Nós não temos
ninguém para nos defender. A Polícia concluiu que sabíamos de tudo
e não queríamos dizer”. Nathaniel Stanton, Joseph Sisson e William
Blake (nascido na Inglaterra) foram sentenciados a três anos de prisão,
além de ter que pagar a exorbitante multa de duzentos mil-réis (U.S.
$112.00) por cada africano trazido ao Brasil. O juiz também ordenou que
pagassem as despesas da reexportação dos africanos. Por alguma razão,
Dumblemont Eugene (nascido na França) e William Bussley receberam
penas de prisão reduzidas, dois anos, além das mesmas multas.
Quase dois anos depois de entrarem na prisão, no Forte de Santo
Antônio, em Salvador, os cinco norte-americanos escreveram ao cônsul
dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, Richard K. Meade. Lamentaram
terem sido presos, afirmando desconhecer, quando partiram de Boston,
que o comandante do Mary E. Smith planejava buscar um carregamento
de escravos no litoral da África. Uma vez no mar, indivíduos desco-
nhecidos teriam abordado o navio, homens que “nos ameaçaram e que
acreditamos sabiam de tudo [do plano para pegar escravos africanos]
desde que saímos de Boston”. Uma vez no litoral da África, avaliaram
que em duas horas 526 africanos foram embarcados no Mary E. Smith.
O comandante Cranotick sugeriu que os cinco deixassem o navio e
permanecessem em terra, uma oferta que eles recusaram. “A viagem de
volta ao Brasil foi cheia de sofrimento e miséria para nós e de horrível
crueldade para com os escravos”.
Várias pessoas visitaram os cinco norte-americanos na prisão. Um
capelão britânico, chamado Sr. Edge, e um comerciante britânico, chamado
Sr. Hogg, foram oferecer consolo. Sabendo da situação dos prisioneiros
pelo cônsul norte-americano John Gilmer, o presidente da província da
Bahia (o equivalente a governador) João Lins Vieira Cansação de Sinimbú
havia visitado os prisioneiros um ano antes, na primavera de 1857. Capaz
de conversar com os prisioneiros em inglês, o presidente lhes assegurara
que seriam perdoados. Contudo, nada mudou entre o tempo da sua visita
e a redação da carta. Os cinco descreveram seus aprisionamentos e tra-
tamento como um “jeito estranho de fazer justiça”.37

37 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, William Blake et. al. to U.S.
Consul R. K. Meade, Salvador, 27/05/1858. Ênfase do autor. Em inglês, “A queer way of do-
ing justice”.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 169


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Depois de diversas cartas do cônsul dos Estados Unidos em nome dos


cinco norte-americanos ao Ministro de Negócios Estrangeiros do Brasil,
além de um encontro pessoal com D. Pedro II, o mais velho deles, Nathaniel
Stanton, recebeu um perdão oficial em 29 de setembro de 1858. 38 Isto
abreviou a pena de Stanton em nove meses. Para decepção deles, o outro
norte-americano não conseguiu perdão semelhante. Por esta época, no
final de setembro, Eugene e Bussley já haviam permanecido na prisão três
meses além da sentença de dois anos, enquanto Sisson e Blake esperavam
ser soltos nove meses mais tarde, em junho de 1859. Na verdade, a situação
dos quatros permaneceu indefinida. Os documentos não dizem quando
nem se eles foram libertados da prisão de Santo Antônio.

Uma reflexão final


O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlântico de
escravos no século XIX é um bom exemplo de negócio que beneficia a
muitos (trickle down economics). Milhares de cidadãos norte-americanos
enriqueceram com o comércio negreiro. Empresários bem-sucedidos obti-
veram enorme rentabilidade nos seus investimentos, entre os quais Charles
Drake, de Baltimore, John Clark, de Boston, Nathaniel Frye, de Nova York,
Putnam Farnham, de Salem, e a família DeWolf, de Providence, Rhode Island.
Casas comerciais empregaram centenas de cidadãos norte-americanos para
o transporte de escravos da África para o Brasil e Cuba. Apesar do risco
de rebeliões de escravos e de doenças, os comandantes e suas tripulações
muitas vezes tiraram grandes lucros destas expedições negreiras.
A construção de navios ao longo da costa leste dos Estados Unidos
foi um negócio importante no século XIX. Contruir um navio podia durar
meses ou anos. Uma planta de sua construção empregava muitos traba-
lhadores, tais como carpinteiros, artífices e mastreadores. Lenhadores
derrubavam enormes árvores. Vários homens transportavam os troncos
para serem cortados em pranchas nas serrarias próximas ao local de fabri-
cação dos navios. Destilarias de rum, companhias produtoras de pólvora
e plantadores de tabaco vendiam suas mercadorias a empresários que as
enviavam de navio para os entrepostos na costa da África. Traficantes
mantinham contatos por todo o Atlântico. Foi um negócio multinacional
de primeira ordem.
Leis aprovadas nos Estados Unidos em 1794, 1800, 1808, 1819 e
1820 pouco serviram para desestimular o comércio transatlântico de
escravos ao longo de sua costa leste. Empresários bem-sucedidos assim
como pessoas comuns participaram do comércio negreiro com interesse.

38 USNA, RG 59, Diplomatic Dispatches from Brazil, M-121:27, Richard Meade to Minister
of Foreign Affairs Viscount de Maranguape, Rio de Janeiro, 14/06/1858; idem, Meade to
Maranguape, Rio de Janeiro, 30/09/1858.

170 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Como em outros momentos na história dos Estados Unidos, eles tiraram


vantagens das oportunidades econômicas pouco importando seus custos
sociais. O tráfico negreiro também proporcionou aos comerciantes uma
oportunidade de competir com os europeus pela supremacia no Caribe e
na América do Sul. Quando, finalmente, as importações de escravos para
o Brasil e Cuba cessaram, em 1856 e 1870 respectivamente, todo o conhe-
cimento adquirido com o “comércio ilícito” de escravos foi aproveitado no
“comércio legítimo”. Os navios, a tecnologia, os contatos, os conhecimentos
de geografia e comércio e um profundo senso de superioridade dos brancos
sobre os negros alimentaram a atuação imperial dos Estados Unidos na
segunda metade do século XIX no Atlântico.39

39 Ver Walter LaFeber, The New Empire: An Interpretation of American Expansion, 1860-
1898, Ithaca: Cornell University Press, 1998.

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO COMÉRCIO 171


TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA O BRASIL, 1840-1858
CAPÍTULO 6

CoMérCio neGreiro nA ClAndestinidAde: As fAzendAs


de reCepção de AfriCAnos dA fAMíliA soUzA breves e
seUs CAtivos
1

Thiago Campos Pessoa

José e Joaquim Breves, irmãos em uma extensa família luso-brasileira,


vivenciaram praticamente todo o século XIX. A infância de ambos, no início
dos oitocentos, coincidiu temporalmente com a afirmação do império luso
-brasileiro; a maturidade com a construção do Império do Brasil; e a velhice
com a derrocada do sistema escravista, e consequentemente do Império
que ajudaram a construir. O início, o apogeu e a decadência do Vale cafeeiro
também cortaram as suas histórias. Por isso, participaram de importantes
momentos da política imperial, embora em lados opostos. Adversários polí-
ticos, com perfis de pensamento diferentes, se aproximaram em relação a
um aspecto da sociedade oitocentista: o tráfico ilegal de africanos. Ambos
investiram nesse comércio até quando puderam, inclusive defendendo
politicamente a manutenção do ilícito trato e mantendo fazendas desti-
nadas à recepção de africanos recém-chegados. A defesa do tráfico talvez
tenha sido o maior ponto de convergência entre os comendadores. Ela unia
liberais e conservadores, que embora utilizassem estratégias diferentes,
mostravam-se lado a lado ao insistirem em sua continuidade. Os dois irmãos
vivenciaram um mesmo tempo de forma bastante diferente, mas estiveram
juntos, pelo menos até 1850, ao apostarem, equivocadamente, na desmo-
ralização da nova lei antitráfico decretada em setembro daquele ano. Ao
lado da insistência no comércio negreiro, os Souza Breves são conhecidos
por construírem, ao longo do século XIX, uma imensa fortuna, alicerçada
basicamente em terras e escravos.
A conformação de uma das maiores fortunas do Brasil imperial,
exemplificada pelos imensos domínios territoriais e humanos espalhados
pela província do Rio de Janeiro, não se explicaria apenas pelas toneladas

1 Pesquisa financiada pela CAPES, CNPq e FAPERJ.

173
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de café exportadas das fazendas da família Breves.2 Apesar de, no início


da década de 1860, os Breves produzirem, sozinhos, mais de 1,5 % de todo
o café exportado pelo Brasil,3 as maiores fortunas do período não foram
construídas nas plantações brasileiras. Como mostraram Fragoso e Rios, o
capital financeiro representava a mola mestra na construção das grandes
fortunas imperiais, revertidas, quase sempre, em escravos e terras. 4 No caso
dos Breves, uma atividade em especial alicerçou, durante a primeira metade
do século XIX, a fortuna dos comendadores: o tráfico ilegal de africanos.
O comércio negreiro, quando ainda permitido pelas leis brasileiras e
internacionais, já era atividade de alto risco. As perdas de capitais investidos
poderiam ser totais. Entretanto, apesar dos riscos, a alta lucratividade do
negócio motivava o empreendimento em escala atlântica.5 Com a ilegalidade
do comércio de africanos em terras do Império do Brasil, a partir de 7 de
novembro de 1831, e a concomitante atuação do abolicionismo britânico
no Atlântico, os riscos, que já eram elevados, aumentaram. Na década
de 1850, apesar de todo o empenho das autoridades brasileiras em pôr
um ponto final no comércio de almas entre a África e o Brasil, o tráfico
continuava motivado, especialmente, pelo enriquecimento atrelado ao
sucesso do empreendimento negreiro. Durante a ilegalidade, a repressão,
posta em prática pelas autoridades, e a necessidade de agenciar capitais
e redes de relações atlânticas afastavam os pequenos comerciantes do
lucrativo trato, garantindo o mercado aberto apenas para aqueles que
possuíssem capitais suficientes para investir no comércio clandestino.6
No Brasil os irmãos Breves representaram com exemplaridade a face dos
novos agentes envolvidos no tráfico de africanos durante a ilegalidade.
Como veremos, a família Breves esteve atrelada aos negócios negreiros
desde pelo menos meados dos anos de 1830.

2 Para uma análise dos domínios dos irmãos Breves e do perfil de suas fortunas, ver Thiago
Campos Pessoa, “A indiscrição como ofício: o complexo cafeeiro revisitado” (Tese de Dou-
torado em História Social, Universidade Federal Fluminense, 2015).
3 Afonso de E. Taunay, “No Brasil imperial, 1872-1889”, in História do café no Brasil, Rio de
Janeiro: Editora do Departamento Nacional do Café, 1939, tomo VI, pp. 269-283.
4 Segundo João Fragoso e Ana Rios, “num ciclo que se iniciava com os lucros gerados do café,
investidos em empréstimos, que retornavam sob a forma de mais escravos e terras, ou
seja, mais café. Tanto é assim que os inventários característicos desse tipo de fazendeiro
[se refere aos fazendeiros-capitalistas] representavam invariavelmente cerca de 80 % do
valor total da riqueza deixada em escravos e terras”. João Fragoso e Ana Rios “Um empre-
sário brasileiro dos Oitocentos”, in Hebe Mattos e Eduardo Schnoor (orgs.), Resgate: uma
janela para os oitocentos (Rio de Janeiro: Top Books, 1995), p. 199.
5 Sobre os riscos e a lucratividade da travessia atlântica, ver Manolo Florentino, Em costas
negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
6 Roquinaldo Ferreira. “Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em
Angola, 1830-1860” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996).

174 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Pesquisas sobre o tráfico são categóricas em afirmar que durante a


segunda metade da década de 1830 o comércio negreiro entre o Brasil e
a África voltou a tomar força.7 Foi justamente nessa época que os Souza
Breves passaram a atuar no tráfico de africanos, a partir do litoral de
Mangaratiba e Angra dos Reis. Interessante notar que não estavam no
comércio negreiro antes da ilegalidade, pelo menos não os encontramos
nas listagens de traficantes atuantes na Praça do Rio de Janeiro até o
início da década de 1830. 8 Caso estivessem envolvidos nos negócios do
tráfico antes dessa data, certamente ainda não gerenciavam o empreendi-
mento no lado brasileiro do Atlântico. Assim, os irmãos Breves pareciam
inaugurar e bem representar o rol dos novos personagens e das novas
estruturas montadas para receber os cativos vindos da África durante a
ilegalidade desse comércio.
Outros estudos demonstram como a ilegalidade, produzida no lastro
da repressão inglesa, fez mudar o infame comércio nas duas margens do
Atlântico.9 Na África, o deslocamento dos embarques de escravos, do litoral
de Luanda para o norte/sul de Angola ou para a Costa Oriental, se tornara
frequente, principalmente após a abolição do tráfico nas colônias portugue-
sas em 1836. No Brasil os desembarques também foram reordenados para
escamotear o acinte à lei. As praias litorâneas, mais afastadas do controle do
Estado, passaram a acoitar os indivíduos traficados. Nelas, novas estruturas
foram edificadas para receber os africanos que continuavam chegando
em números crescentes na década de 1840. Novamente os comendadores
Breves exemplificam e dão sentindo a reordenação do tráfico. Eram nas
suas propriedades do litoral sul fluminense que parte dessa estrutura
funcionava, pelo menos até os primeiros anos da década de 1850.
Não acreditamos que todo esse sistema surgiria sem o emprego de
grandes capitais gerenciados em uma ampla rede comercial. Da mesma
maneira, não era apenas um novo dispositivo jurídico que transformaria
o tráfico em uma atividade ilegal aos olhos dos fazendeiros e da própria
sociedade brasileira. Sabemos que as leis são construídas nos embates
políticos e sociais de uma época, quase sempre exemplificando interesses

7 Ver Robert Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, São Paulo: Brasiliense,
1985; Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850), São Paulo: Editora da Unicamp / CECULT, 2000; Tâ-
mis Parron. A politica da escravidão no império do Brasil, 1826-1865, Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2011.
8 Para a listagem dos traficantes atuantes na praça carioca entre 1811 e 1830, ver o Apên-
dice 26 de Florentino, Em costas negras, pp. 254-256. Entretanto, é possível que os irmãos
Breves atuassem no fornecimento de cachaça para o comércio negreiro nas suas fazendas
do litoral, antes de investirem diretamente no empreendimento traficante, após a segun-
da metade da década de 1830.
9 Ferreira, “Dos sertões”. Ana Flávia Chicelli, “Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que le-
vam a Cabinda” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2006).

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 175


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e perspectivas conflitantes. Nesse sentido, em uma escala ampliada, a


ilegalidade do tráfico não estava dada na década de 1830, pois os inte-
resses e as perspectivas estavam dispostos nas discussões no Parlamento
brasileiro e na sociedade de época.
Iniciaremos nossa análise evidenciando mais detidamente o envolvi-
mento dos Souza Breves com o tráfico de africanos. Acompanharemos os
casos de desembarques de “negros novos” nas margens das suas fazendas
litorâneas, no mar de Mangaratiba e de Angra dos Reis. Paralelamente,
investigaremos as estruturas das fazendas de Santa Rita do Bracuhy e da
Marambaia. Embora tenhamos uma avaliação tardia dessas propriedades,
poderemos perceber os resquícios daquelas estruturas construídas para
receber os africanos traficados na ilegalidade. Certamente teremos uma
imagem um pouco distante do fim do tráfico nessas fazendas. Entretanto,
observaremos como estavam organizadas, ou mesmo desorganizadas, as
propriedades litorâneas dos Breves no pós 1850. Acreditamos que, entre
a década de 1830 e o início dos anos de 1850, elas passaram a suprir o
mercado depois da desarticulação do Valongo e das demais estruturas de
recepção dos negreiros que ancoravam na margem brasileira do Atlântico.
Conciliando os negócios do tráfico a seu resultado mais evidente ― a
redução de indivíduos livres africanos à condição de cativos no terri-
tório brasileiro, encerramos esta narrativa analisando a conformação
da escravaria de Joaquim Breves no que tange a presença dos últimos
africanos vinculados às suas propriedades. Para isso, analisaremos os
perfis dos escravos falecidos nas fazendas do comendador entre 1865-
1875. Destacaremos o grau de africanidade desses indivíduos, assim como
seus grupos de procedência. A análise dos óbitos nos permite traçar um
panorama dos últimos africanos de Breves, suas trajetórias marcadas pelo
contrabando internacional de escravos e pelo cativeiro ilegal no pós 1831.

O infame comércio ao sul da província do


Rio de Janeiro e os irmãos Breves
Mas aqui era o ponto de embarque e desembarque do
comendador Sousa Breves [...], além de ser de desembarque,
era de engorda também. A história que eu sei [...] que
proibiram a venda dos escravos [...] mas, não sei como é que
fizeram, que ainda arrumaram uns escravos para trazer
para cá, para vender novamente. 10

10 Entrevista com Manoel Moraes, morador de Santa Rita do Bracuí, 27/10/2006, Acervo Pe-
trobrás Cultural Memória e Música Negra, Laboratório de História Oral e Imagem (LA-
BHOI), < www.historia.uff.br/jongos>, acessado em março de 2009. Sobre pesquisas ar-
queológicas recentes evidenciando o naufrágio de negreiros exatamente na região apon-
tada por Manoel Moraes ver o trabalho de Gilson Rambelli, “Arqueologia de naufrágios e a
proposta de estudo de um navio negreiro”, Revista de História da Arte e Arqueologia, no. 6
(2006), pp. 97-106.

176 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Manoel Moraes há mais de 80 anos vive nas antigas terras da fa-


zenda de Santa Rita do Bracuhy, em Angra dos Reis. Seus avós maternos
e paternos foram escravos do comendador José de Souza Breves. “Preto
Forro”, o avô paterno, e Antonio Joaquim da Silva, pai de sua mãe, vive-
ram os últimos anos da escravidão na fazenda. Ambos receberam suas
alforrias ainda na década de 1870 e foram citados como legatários da
antiga fazenda no testamento do comendador, escrito em 1877 e aberto
no ano de 1879. Muito provavelmente foram seus avôs que perpetuaram
as histórias do tráfico e da escravidão ao longo dos anos, transmitidas de
geração a geração, em um processo de rememoração em que o histórico
da fazenda se confunde com as próprias trajetórias familiares dos seus
moradores. No caso do senhor Manoel Moraes, as histórias da escravidão
e do tráfico narram também lembranças de família muito vívidas e com
referenciais muito fortes nas últimas décadas do século XIX.
Certamente, Antonio Joaquim da Silva, escravo de Breves, encarregado
do engenho de cana de açúcar, vivenciou ou ouviu falar dos inúmeros
desembarques de africanos que ocorreram no Bracuhy a partir da década
de 1830.11 O engenho no qual trabalhava produzia essencialmente aguar-
dente, mercadoria chave no comércio de escravos na costa atlântica da
África.12 Ao analisarmos a fazenda de Santa Rita no final da década de
1870, encontraremos uma área em decadência, praticamente abandonada
à própria sorte de seus habitantes. No entanto, antes de nos determos na
relação entre a antiga fazenda do Bracuhy e o comércio de africanos, cabe
esclarecer alguns pontos importantes sobre esse comércio clandestino:
Como se reorganizara após a ilegalidade? Qual o papel dos Souza Breves
no tráfico? E as suas fazendas do litoral, que funções representavam na
reordenação do comércio negreiro após a Lei de 1831?
No litoral africano, os padrões de abastecimento do tráfico atlântico
de escravos se alteraram significativamente a partir da segunda década
do século XIX. A repressão inglesa na África fez com que os traficantes
do litoral mudassem suas estratégias de comércio. O embarque no conti-
nente africano deslocou-se de Luanda e dos demais portos centrais para
locais mais afastados do litoral, ao norte e ao sul de Angola e as ilhas da
África Oriental. Os embarques dos portos de Moçambique, Inhambane e
Quelimane cresceram significativamente naquele momento, seguindo a
tendência de reestruturação do comércio de africanos na década de 1830.13

11 O mais famoso dele foi objeto de estudo de Martha Abreu, “O caso do Bracuhy”, in Mattos e
Schnoor (orgs.), Resgate: uma janela para o Oitocentos, pp. 167-195.
12 José Curto. Álcool e escravos: o comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e
Benguela durante o tráfico atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas socie-
dades da África Central Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002.
13 Ferreira, “Dos Sertões”; Chichelli, “Tráfico ilegal de escravos”.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 177


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

No Brasil, a partir da Lei de 1831, o tráfico também se modificou,


principalmente em termos estruturais. Com o comércio negreiro consi-
derado uma atividade ilegal, consequentemente, o mercado do Valongo,
responsável por receber e redistribuir os escravos pelas fazendas flumi-
nenses, foi fechado, pairando durante poucos anos um vazio sobre onde e
como seriam recebidos os escravos que continuariam a vir da África após
1831. No entanto, rapidamente novos agentes entrariam no ilícito trato.
E com eles novas estratégias para burlar a lei e redefinir os mecanismos
de um comércio juridicamente condenado. Ao que tudo indica, rapida-
mente foram articulados novos portos de desembarque. No caso do Rio
de Janeiro, as praias afastadas ao norte e ao sul da Corte foram os locais
escolhidos para receber os africanos reduzidos ilegalmente à escravidão.
Provavelmente os irmãos Breves despontaram nesse comércio ainda na
década de 1830, sendo nisto pioneiros. Nos litorais das diversas praias afas-
tadas, os desembarques recomeçavam e passavam a contar com a ingerência
dos antigos senhores de escravos e fazendeiros de café, sedentos pela mão
de obra africana e pelos altos lucros desse tipo de comércio.
Em 1830, no comprovante de concessão e registro da Ordem da Rosa
atribuído a Joaquim Breves, encontramos, além do nome completo do
fazendeiro, uma referência bastante importante: comerciante de escra-
vos.14 A Ordem lhe foi atribuída em um momento conjuntural no qual o
envolvimento com o tráfico não mancharia a trajetória de Joaquim, nem
de outros sujeitos atrelados ao comércio negreiro, alguns deles, inclu-
sive, se tornariam políticos proeminentes durante o Segundo Reinado.
Entretanto, não podemos afirmar que Breves gerenciasse a finalização do
comércio atlântico de africanos naquele ano. O futuro comendador poderia
ser apenas mais um dos agentes envolvidos nos últimos desembarques,
antes da Lei de 7 de novembro de 1831, como também era possível que
estivesse reorientando os negócios negreiros interprovinciais no Brasil.
O que podemos afirmar com precisão é que os negócios negreiros, legais
ou não, marcaram logo de início a trajetória dos Souza Breves, assim como
tiveram uma importância singular na conformação das suas fortunas.15
Em 1837, os investimentos da família Breves passavam a se relacionar
diretamente aos negócios do tráfico. Conjuntamente com o crescimento
das plantações de café no Vale do Paraíba fluminense, os comendadores
começavam a investir no lucrativo comércio de africanos. Nesse mesmo
ano, o presidente da Câmara de Mangaratiba, em Ofício ao Governo do
Império, evidenciava que:

14 Biblioteca Nacional (BN), Projeto escravos no Brasil, Documentos Biográficos c. 1052, 44.
15 Segundo Luis Henrique Tavares, Breves estaria ao lado de grandes traficantes, como Manoel
Pinto da Fonseca e José Bernardino de Sá “grandes negreiros no Rio de Janeiro dessa época”.
Luis Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988, p. 29

178 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Em 10 de Janeiro [de 1837] [...], por aqui apreendido pelo


Juiz de Paz deste distrito o patacho que se diz ser portuguez
e que se denomina União Feliz ter-se empregado desde
1835 no ilícito, imoral, e desumano trafico da escravatura,
e que acabava de verificar um desembarque de africanos
no lugar onde fora apreendido e porque tivesse ingerência
nessa embarcação Joaquim José de Souza Breves [...]. 16

Segundo a Câmara de Mangaratiba, o então comendador não era apenas


um exímio comprador de indivíduos reduzidos ilegalmente à escravidão.
Mais do que isso, possuía ingerência sobre a embarcação negreira que cru-
zava o Atlântico nas rotas da ilegalidade. Certamente o empreendimento
traficante contava com um apoio logístico para o embarque na África e
o desembarque no Brasil. Os negócios da família Breves movimentavam
uma ampla rede comercial nas duas margens do Atlântico, envolvendo
outros indivíduos de destaque na sociedade oitocentista. Entretanto, a
gerência desse empreendimento, no lado brasileiro da costa, estava nas
mãos de Joaquim Breves. E não foi pequeno o seu investimento nessa
empreitada. Prova disso é que Joaquim levou até as últimas consequências
a viabilidade dos seus negócios, enfrentando, inclusive, o Estado imperial.
Certamente o presidente da Câmara de Mangaratiba não estava entre
seus pares, tanto que continuou sua denúncia sobre a audácia do futuro
comendador, de continuar no ilícito trato a qualquer custo:
e conhecendo este [Joaquim Breves] não poder corromper o
juiz de paz então em exercício [...] de viva força a senhorear-
se [sic] do mesmo Patacho e do [...] que por cautela estaria
depositado no Forte da Guia, e fazê-lo de novo navegar afim
de transportar talvez outro carregamento de infelizes,
e para esse fim mandou engajar em serra acima gente
mercenária da mais ínfima classe, a maior parte seus
dependentes os quais armados de diversos modos descerão
efetivamente e em sua casa e na de seus protegidos se
acoitarão subindo o seu número a 100 ou mais como se
manifesta no documento junto marcado em [...] e porque
este indivíduo reconhecesse a dificuldade da empreza vista
da vigilância a parte na autoridade a quem diretamente
pertencia aconselhar e precaver este atentado, dissuadiu-
se por então da empreza, e mandou retirar esse indivíduo
esperando ocasião mais oportuna para por em execução
o seu intento, quando com certeza de bom êxito pudesse
efetuar o que premeditará [...] Por espírito [de] rivalidade
e mesmo por vingança Joaquim José de Souza Breves,
Exmo. Sr., ameaça a huma povoação inteira, espalhou o
terror entre os habitantes do município e o que mais [...]

16 Fundação Mario Peixoto (FMP), Ofícios da Câmara ao Governo do Império, 1832-1846,


Ofício n. 6.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 179


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

disso se vangloria, e impune e audaz, passe entre nós. O


Ilmo. Homem que se abalança a mandar vir de Serra Acima
huma quantidade de gente armada para cometer um
atentado de tal natureza, é capaz de praticar outros mais
[...] e a vista de hum tal procedimento authorizado está para
cometer quantas desvarias conceber em sua escaldada
imaginação.17

Não imaginaria o presidente da Câmara que a imaginação de Joaquim


fosse tão longe. Tampouco suporíamos que sua audácia fosse tão grande.
Para organizar uma incursão ao Forte da Guia a fim de retomar o patacho,
era possível que além de possuir ingerência sobre o tumbeiro, fosse o pró-
prio Breves o dono da embarcação. Era comum, durante a ilegalidade, as
embarcações usarem bandeiras falsas para fugir dos cruzadores britânicos.18
Breves poderia manter um navio com documentação portuguesa como forma
de burlar a repressão. Ou simplesmente, apenas agenciava o contrabando,
sendo responsável pelo desembarque na costa brasileira. Nessa hipótese,
todo o malogro do empreendimento cairia sobre suas costas e seu bolso.
Talvez isso ajude a entender a atitude impulsiva e audaciosa do então fa-
zendeiro ao organizar uma empreitada, com mais de cem homens armados,
com a finalidade de resgatar o patacho negreiro. É bastante improvável que
Breves estivesse sozinho nessa iniciativa, certamente o prejuízo da travessia
negreira implicaria em perdas econômicas e uma possível desarticulação de
uma cadeia de relações sociais e econômicas estruturada no espaço Atlântico.
Quase quinze anos após a denúncia da Câmara de Mangaratiba,
Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, traficante redimido, era contratado
pela legação inglesa no Rio de Janeiro com a finalidade de elaborar um
detalhado relatório sobre os meandros do comércio ilegal de africanos
entre 1831 e 1853. O Relatório Alcoforado, como ficou conhecido, rati-
fica os nossos indícios de que os Breves foram pioneiros na retomada
do tráfico em meados da década de 1830. Além disso, Alcoforado, que
também estava a serviço da Polícia da Corte do Rio de Janeiro, desvenda
novos nomes, desvelando um comércio em família em escala atlântica.
“Infelizmente”, escreveu ele, “o primeiro ambicioso brasileiro que tratou
desse tão infame como repugnante tráfico foi Joaquim Breves, seu sogro
e irmão, lançando mão do aventureiro e degenerado português João Hen-
rique Ulrich (hoje de grande notabilidade), a quem mandavam à África
com grandes negociações.”19

17 Fundação Mario Peixoto (FMP), Ofícios da Câmara ao Governo do Império, 1832-1846,


Ofício n. 6.
18 Conrad, Tumbeiros.
19 Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, “História sobre o infame negócio de africanos da
África Oriental e Ocidental, com todas as ocorrências desde 1831 a 1853”. Transcrito por
Roquinaldo Ferreira, Revista Estudos Afro-Asiáticos, n. 28 (1995), pp. 219-29.

180 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Joaquim Breves, seu irmão e o sogro deles, José Gonçalves de Moraes,


Barão de Pirahy, empreenderam um negócio que funcionava nas duas
margens do Atlântico, gerando altíssima lucratividade. Além deles, João
dos Santos Breves, sobrinho dos referidos comendadores, também parti-
cipava das atividades traficantes. João atuava politicamente na câmara de
Mangaratiba, além de administrar armazéns e entrepostos comerciais de
propriedade da família na praia do Saco.20 Poucos sabemos sobre o sobrinho
de José e Joaquim Breves, no entanto, podemos inferir que João exercia
importante função nos negócios familiares com a costa africana, atuando
na organização dos desembarques em Mangaratiba. Na África contavam
com o agente João Henrique Ulrich para intermediar as negociações no
litoral. Desconhecemos a trajetória de João Ulrich, mas acreditamos ser um
negociante, como informa Alcoforado, fez fortuna no Brasil com o tráfico
e regressou a Portugal, onde se enobreceu, a exemplo de seus pares.21
Mas se contavam com os barracões para armazenar os cativos até o
embarque nos tumbeiros, com africanos para abastecer os navios e via-
bilizar o empreendimento do tráfico, e com Ulrich para fechar os últimos
detalhes comerciais da viagem, como era a estrutura do desembarque?
Quem os esperava? Onde deveriam desembarcar e aguardar instruções
antes de irem para as fazendas? Novamente, Alcoforado nos auxilia na
construção das respostas:
Em fins de 1835, o tráfico era grande. Em muitos pontos
de nossa costa se estabeleceram barracões e fazendas
apropriadas para se darem este desembarques de
africanos; as autoridades de terra que tinham ingerência
neste negócio eram os Juízes de Paz que no termo aonde
eram feitas estas especulações tinham como paga 10,8%

20 João José dos Santos Breves era homônimo do pai, irmão dos comendadores. Atuava na po-
lítica e nos negócios do tráfico em Mangaratiba, através das casas comissárias João José
dos Santos Breves & C.; Santos Breves & C.; Breves & Irmão C. Emblematicamente, em fe-
vereiro de 1851, quando o delegado de polícia do Rio de Janeiro, Bernardo de Azambuja,
apreendeu 199 africanos novos na Marambaia, além de Joaquim encontrava-se na restin-
ga João dos Santos Breves. Segundo os depoimentos colhidos por Azambuja, João era ne-
gociante em Mangaratiba. Juízo de Auditoria de Marinha, 1856, Arquivo Nacional (AN),
nº 478, M: 2259, Gl. A. Armando de Moraes Breves, em suas memórias familiares recorda
que: “A ruga mais séria deu-se na ocasião em que alguns barcos ingleses entraram em An-
gra dos Reis, perseguindo dois navios negreiros [...] os tumbeiros chamavam-se Leopoldi-
na e Januária. O contrabando vinha despachado para João dos Santos Breves, irmão do tio
Joáca [Joaquim Breves]”. Equivoca-se Armando em relação às pessoas, uma vez que a essa
altura o João, irmão dos comendadores, já havia falecido. Armando de Moraes Breves, O
reino da Marambaia, Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora, 1966, p. 96
21 Ulrich recebeu carta de comendador e foro de fidalgo da Casa Real em Portugal no ano
de 1866. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). João Henrique Ulrich. Documen-
tos simples. Código: pt\tt\rgm\j\186664. Data de produção: 1866-9-13. Sobre traficantes
portugueses atuantes no Brasil durante a ilegalidade, ver José Capela, Conde de Ferreira
& Cia, traficante de escravos, Porto: Afrontamento, 2012.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 181


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

por cento de cada negro desembarcado [...] Um Joaquim


Thomaz de Farias, patrão-mor da Barra de Campos e um
marinheiro por nome André Gonçalves da Graça (hoje
ambos Comendadores) trataram de fazer um ponto
de desembarque um pouco mais ao Norte da Barra de
Campos lugar denominado Manguinhos; José Bernardino
de Sá e um tal de Veiga estabeleceram próximo a São
Sebastião, lugar denominado Itabatinga; [...] José Breves
em Mangaratiba mais adiante na Ilha da Marambaia [...].22

As fazendas da Marambaia e de Santa Rita do Bracuhy estavam entre


aquelas propriedades organizadas para receber os africanos recém-chegados
da travessia atlântica no período do tráfico ilegal. Após 1830, barracões e
fazendas do litoral recriavam as estruturas outrora destruídas pela lei de 7
de novembro de 1831. Canoas, barracões para quarentena e locais de “engor-
da” conformavam as estruturas de recepção. Indivíduos especializados em
se comunicarem com as diferentes nações africanas, os chamados línguas,
em sua maioria escravos ou ex-escravos, vinham nos tumbeiros ou espera-
vam em terra a carga humana. Além deles, outros homens transportavam
os “negros novos” para quarentena ou os redistribuíam pelas fazendas da
região. São esses sujeitos, ainda pouco conhecidos pela historiografia, que
faziam funcionar o tráfico de africanos na clandestinidade, dinamizando o
funcionamento das fazendas receptoras de escravos no litoral brasileiro. 23
O complexo de fazendas da restinga da Marambaia, de propriedade do
comendador Joaquim Breves, no litoral de Mangaratiba, abrigava algumas
daquelas fazendas destinadas à recepção de africanos.24 Desde o final dos
anos de 1830, a restinga funciona como porto seguro para a recepção de
escravos. Em 1837 a embarcação bergantim Leão desembarcou 572 afri-
canos, procedente do Quelimane.25 Quase 15 anos depois, em apenas três

22 Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, História sobre o infame negócio de africanos da


África Oriental e Ocidental, com todas as ocorrências desde 1831 a 1853. Agradecemos
ao professor Carlos Gabriel Guimarães do Departamento de História da UFF por ceder
gentilmente a transcrição do referido documento. O trecho cedido por Carlos Gabriel não
consta no texto transcrito por Roquinaldo Ferreira. Grifos meus.
23 Para uma análise de alguns desses sujeitos, ver: Jaime Rodrigues, De costa a costa. Escra-
vos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-
1860), São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
24 Sobre a Marambaia, ver Daniela Paiva de Moraes, “Marambaia: história, memória e di-
reito na luta pela titulação de um território quilombola no Rio de Janeiro (c.1850-tempo
presente)” (Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2014). Ver
também: Márcia Motta, “Ilha da Marambaia: história e memória de um lugar”, in Márcia
Motta e Elione Guimarães (orgs.), Campos em disputas: história agrária e companhia (São
Paulo: Annablume, 2007), vol.1. p. 295-317; José Maurício Arruti (coord.), Laudo antropo-
lógico da comunidade remanescente de quilombo da ilha da Marambaia, Rio de Janeiro:
Koinonia / Projeto EGBÉ -Territórios Negros, 2003.
25 Cichelli, “Dos caminhos”. Segundo a autora, em África embarcaram 855 escravos, e destes,
283 morreram ou foram lançados vivos ao mar durante a viagem.

182 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

meses, entre dezembro de 1850 e fevereiro de 1851, foram apreendidos


940 africanos ilegalmente trazidos para o Brasil e desembarcados nas
águas da Marambaia. 26
Em uma dessas apreensões, realizadas entre os dias 1 e 2 de fevereiro
de 1851, em incursão à Marambaia, o delegado de Polícia da Corte, Bernardo
de Azambuja, após notificar o comendador, apreendeu espalhados pela
restinga 199 africanos, que estavam escondidos por um escravo ladino
pertencente a Joaquim Breves. Certamente esse cativo era um dos sujeitos
que faziam a estrutura da Marambaia funcionar como um exímio porto
de desembarque de “negros novos”. Nessa mesma época, 450 africanos
foram encontrados em um navio encalhado nas margens da fazenda
da Armação, também na Marambaia em fevereiro de 1851. Três meses
antes, o tumbeiro Jovem Maria tinha sido flagrado nas águas da restinga
com 291 africanos a bordo. Entre os documentos trazidos pelo navio, as
autoridades encontraram instruções para que os africanos se dirigissem
à fazenda Bom Retiro, na província da Bahia. Coincidentemente, uma das
fazendas de Joaquim Breves tinha o mesmo nome na década de 1860.
Não foram poucos os casos de contrabando de africanos que envol-
veram, direta ou indiretamente, os irmãos Souza Breves. Com exceção do
desembarque realizado em 1837 na Marambaia, todos os demais incluíram
os comendadores nos autos de investigação. Destacamos abaixo apenas
aqueles que se confirmaram, deixando de fora as suspeitas e demais
acusações de tráfico ilegal.
Entre 1837 e 1852, tivemos a confirmação de onze desembarques
envolvendo os Breves ou suas propriedades, a grande maioria nas proximi-
dades da Marambaia. Como vimos, os comendadores foram dos primeiros
indivíduos a retomarem o comércio de africanos, e os últimos a abandoná-lo.
Nesse período de 15 anos, desembarcaram nas proximidades de suas fa-
zendas 4388 africanos. Considerando que só uma ínfima minoria dos casos
era averiguada e investigada, podemos supor que esses números fossem
muito maiores. Não é exagero afirmar que os irmãos Breves ajudaram a
trazer para o Brasil milhares de africanos durante a clandestinidade do
comércio negreiro, e que boa parte desses sujeitos foi reduzida ilegalmente
ao cativeiro nas escravarias espalhadas pelas fazendas do Vale do Paraíba.
Chama a nossa atenção que a maioria das viagens começasse no
Rio de Janeiro. Do bergantim Leão, que atuava no tráfico em 1837, ao
brigue Camargo, último desembarque confirmado nas propriedades
dos Breves, o caminho era semelhante: Rio de Janeiro – África – Rio de

26 Daniela Paiva de Moraes, “A capital marítima do comendador: a atuação da Auditoria Ge-


ral da Marinha no julgamento sobre a liberdade dos africanos apreendidos na ilha da Ma-
rambaia (1851)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro, 2009).

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 183


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Janeiro. Na maioria das vezes a finalização se dava na Marambaia. Nos


dois casos citados, ambos os navios partiram do Rio de Janeiro rumo a
Quelimane. Retornaram com mais de 500 cativos cada um. Além deles,
os brigues D. João de Castro e Edelmando fizeram trajetórias muito
semelhantes, o primeiro saindo por duas vezes do Rio de Janeiro para
Moçambique, e o segundo para Ibo, na África Ocidental. 27 Em outras
palavras, boa parte dos traficantes do período ilegal do comércio
negreiro movimentavam suas redes transoceânicas a partir do litoral
do Rio de Janeiro.
Também nos impressiona que das seis procedências registradas,
cinco delas relacionavam-se ao litoral de Moçambique. A importância
da África Oriental no período do tráfico ilegal é reconhecida por vários
historiadores, no entanto, ela parece ter sido muito maior do que se
tem imaginado. Entre os onze navios registrados, quase a metade deles
saíra dos portos de Moçambique e Quelimane. Estranhamente, uma das
embarcações catalogadas teve em Ibo, próximo à atual Nigéria, sua prin-
cipal praça de aquisição de cativos. 28 Os 683 africanos ali embarcados
chegaram ao litoral sul fluminense em 1850. Em relação aos demais,
não temos informações precisas sobre a procedência. Entretanto, pelos
escravos apreendidos no iate Jovem Maria, no patacho Atividade, e
na embarcação que trouxe 199 africanos para a Marambaia em 1850,
acreditamos que estes embarques tenham se dado na costa central
-atlântica africana, provavelmente nos portos ao norte de Luanda. 29
Entre as bandeiras dos navios, a maior parte era portuguesa ou bra-
sileira. Sobre as tripulações temos poucas informações, com exceção do
iate Jovem Maria e do brigue Camargo. Nessas embarcações a composição
da tripulação variava, em sua maioria, entre portugueses, espanhóis,
norte-americanos e ingleses, embora também encontrássemos a presença
de brasileiros e de indivíduos de diferentes partes da África. O comércio
negreiro mantinha seu caráter transoceânico, tanto para aqueles que o
financiavam, como para os indivíduos que o executavam.
Oito, entre os onze desembarques ocorreram na Marambaia. A restinga
concentrava a finalização do empreendimento traficante desde pelo menos
1837. Duas embarcações atracaram nesse mesmo litoral, uma também
em 1837, em Mangaratiba, e a outra em Angra dos Reis, na fazenda de
Santa Rita do Bracuhy, quinze anos depois. Nos dois casos encontramos
o envolvimento direto dos comendadores Joaquim e José Breves.

27 É importante destacar que o tráfico ao norte da linha do equador era ilegal desde 1815, se-
gundo acordo traçado entre a Coroa Portuguesa e a Inglaterra.
28 “The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages” Voyage 4640 <http:// www.slavevoya-
ges.org/tast/index.faces>, acessado em setembro de 2009.
29 Sobre essas apreensões, ver: Moraes, “A capital marítima do comendador”

184 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Em mais um dos desembarques ocorridos fora da Marambaia, nos


deparamos com a presença ilustre de Joaquim Breves. Em 1851 era ele
o proprietário do brigue Destro, que desembarcou 457 africanos no Rio
de Janeiro. Nesse caso, com seu próprio tumbeiro, Breves não utilizou
suas fazendas litorâneas para finalização do empreendimento. Optou por
atracar o brigue em outra parte do litoral fluminense, fugindo da visada
restinga de sua propriedade.
Outros senhores também figuraram como proprietários de tumbeiros
atracados na Marambaia de Breves. Entre eles, Antônio Brás dos Réis, Vitor
Manoel Paneto e Francisco da Costa Ramos. Aquele dono do brigue D. João
de Castro, capturado duas vezes pelos britânicos em 1839. No primeiro
caso, o tumbeiro desembarcou 450 cativos no litoral da Marambaia, já na
segunda viagem 444 africanos foram levados da restinga do comendador
para as fazendas do Vale do Paraíba. 30 Vitor Panedo e Francisco Ramos
eram proprietários do Jovem Maria e do Edelmando, apreendidos na
mesma restinga em 1850.
Joaquim Breves centralizava na Marambaia a última fase do em-
preendimento traficante. Mais da metade dos desembarques registrados
ocorreram após 1850. Os demais se deram nos anos de 1837 e 1839.
Não há nenhuma evidência de navios capturados na década de 1840. 31
A Marambaia, o Bracuhy, e outras regiões do litoral fluminense não
deixaram de receber africanos ilegalmente importados naquela década.
O silêncio refletia um pacto de escala nacional, resultante da ascensão
do gabinete conservador no final dos anos de 1830 e de sua hegemonia
na década seguinte, que, nesse tempo, costurou em cada localidade lito-
rânea a desmoralização da lei. O domínio político conservador, evidente
nos anos de 1840, ao transformar o estatuto de 1831 em “lei para inglês
ver”, adiava para o início da década seguinte a perseguição aos tumbeiros
e aos desembarques ilegais realizados ao longo da costa brasileira. 32
Em meio a esse silêncio aterrador, muitos africanos ficavam pelo
caminho. Os avanços tecnológicos dos negreiros nem sempre garan-
tiam uma redução significativa da taxa de mortalidade. Por exemplo,
o tumbeiro bergantim Leão, perdeu 33,1% dos seus cativos em 1837.
Quatorze anos depois, o brigue Destro, de propriedade de Joaquim
Breves, amargou um prejuízo significativo, com a morte de 30,4% dos

30 A coincidência no nome do navio, assim como do seu capitão, Vicente de Freitas Serpa, que
comandou ambas as viagens, nos deu certeza de estarmos diante do mesmo brigue. Ver
“The Trans-Atlantic Slave Trade Database”, Voyages 1948 e 900153.
31 Entre os desembarques registrados no banco de dados do projeto Voyages, apenas o ber-
gantim Leão não foi apreendido.
32 Parron, A politica da escravidão no império do Brasil. Em relação à ascensão do gabinete
conservador e a reabertura do tráfico na Província do Rio de Janeiro, ver também Pessoa.
“A indiscrição como ofício”, pp. 90-140.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 185


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

escravos a bordo. Embora essas taxas sejam bastante altas, elas não
correspondem à totalidade dos desembarques. Nos casos analisados, as
taxas oscilam bastante. Exemplo disso é que em 1839, nas duas viagens
do brigue D. João de Castro, a taxa de mortalidade girava em torno de
10%, praticamente a mesma do brigue americano Camargo, que registrou
mortalidade em torno 9,1% em 1852. Essas variáveis não eram fixas,
e se relacionavam tanto com o itinerário das viagens e seus portos de
origem, quanto com a finalização do empreendimento. A própria lógica
de maximização dos lucros de alguns traficantes, que abarrotavam os
tumbeiros com centenas de africanos, aumentava significativamente
esses índices. Emblemático, nesse sentido, é o caso do bergantim Leão
que embarcou 855 africanos em 1837 e, ao mesmo tempo, amargou a
maior taxa de mortalidade entre as embarcações registradas.

Os novos portos de chegada: a fazenda de Santa


Rita do Brachuy e o complexo da Marambaia
Nos vinte anos que separam 1830 e 1850, os irmãos Breves mantive-
ram intensa presença no litoral sul fluminense. Capitaneados por Joaquim,
a família Breves articulou-se à política e aos negócios de Mangaratiba. Seus
membros ocuparam cargos no legislativo municipal, arremataram obras pú-
blicas e ergueram casas de negócio à beira da praia do Saco.33 Mais adian-
te, em Angra dos Reis, com uma atuação ainda pouco evidente, José Breves
ocuparia ilhas e praias da região, fincando seu domínio às margens do rio
Bracuhy. Na integração entre o vale do café e a serra do mar estabeleceram
duas propriedades basilares para seus negócios até meados dos oitocentos:
os complexos negreiros do Bracuhy e da Marambaia.
A análise desses espaços parece não deixar dúvidas: as fazendas lito-
râneas dos comendadores eram estruturadas para recepção de africanos
recém-chegados da travessia atlântica. Algumas delas, além de possuírem
uma estrutura para o desembarque de africanos, tinham se organizado para o
empreendimento negreiro. É o caso da fazenda de Santa Rita do Bracuhy, de
propriedade de José Breves, adquirida por compra em 30 de maio de 1829.34
A fazenda de Santa Rita do Bracuhy, situada no município de An-
gra dos Reis, foi comprada no contexto de implementação da cultura
cafeeira no médio Vale do Paraíba. Assim, sua aquisição coincidia com
o projeto de constituição e montagem do complexo cafeeiro brasileiro,
dependente do escoamento da produção e do abastecimento de suas

33 Sobre o protagonismo político-comercial dos Breves no litoral de Mangaratiba no período


do tráfico ilegal, ver Pessoa “A indiscrição como ofício”, pp. 90-140.
34 Carlos Eduardo de Almeida Barata, “Os Breves abastados proprietários”, <www.hegallery.
com.br/genealogia>, acessado em 30/03/2009.

186 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

unidades pelo comércio de cabotagem organizado no litoral. Nesse


espaço, as propriedades do comendador José Breves iam além da sede
e benfeitorias da fazenda de Santa Rita. A elas se somavam as ilhas
Francisca e Comprida, em Mambucaba, a do Pasto e da Barra, ligadas à
pequena propriedade denominada Jurumirim, no lugar de mesmo nome,
na baía da Ribeira. No final da década de 1820, esses espaços serviam
de base para exportação do café que descia do vale e seguia para a
praça do Rio de Janeiro. Segundo Affonso Taunay, o antigo Caminho
Velho das Minas, que passava por Parati, Cunha e Guaratinguetá, deu
lugar, no início do Oitocentos, a novas vias condutoras de café ao litoral,
englobando “vários pontos do golfo angrense, tais as estradas de Ariró,
Itanema, Mambucaba e Bracuhy. Naquela zona do litoral fluminense
ativo comércio se notava em vários pontos, como fossem Jurumirim,
Angra dos Reis e Mangaratiba”. 35 No contexto de reabertura do tráfico
em escala atlântica, em meados da década de 1830, a fazenda litorânea
do Bracuhy seria reestruturada a fim de atender, em termos logístico e
produtivo, às demandas do comércio ilegal de africanos.
No início da década de 1880, a avaliação do espólio do comendador José
de Souza Breves demarcava a propriedade de nove fazendas, entre as quais
uma no litoral: Santa Rita do Bracuhy, intergrada ao porto de Jurumirim,
na extinta freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Ribeira, em Angra
dos Reis. Em 1881, ambos os espaços foram avaliados e o que nos chama
atenção é o estado de abandono em que se encontravam. Enquanto nas
outras oito propriedades cerca de 700 cativos estavam no eito, diversos
bens foram avaliados, entre imóveis e semoventes; as terras e demais
benfeitorias do litoral parecem abandonadas à sorte dos cativos que anos
depois receberiam em testamento a posse e o usufruto daquelas terras.36
Naquele ano, a fazenda do Bracuhy contava com dois mil seiscentos e
quarenta metros de terras de frente, e fundos “até a mais alta serra do mar”,
avaliados em dois mil réis cada metro, totalizando cinco contos e duzentos
mil réis. Entre as benfeitorias da fazenda, encontramos uma casa de vivenda
bastante estragada, dois lances de casas que serviam como paiol, além de
uma casa com rancho para guardar canoas. As edificações, que estavam
em ruínas no início dos anos de 1880, já apareciam “estragadas” desde pelo
menos 1868, quando o Bracuhy foi devassado pelos avaliadores do espólio
de Rita de Moraes Breves, viúva do comendador José, falecida naquele ano.37
Ao que nos parece, há tempos não se produzia em larga escala em Santa

35 Affonso de E. Taunay, História do café no Brasil, Rio de Janeiro: Departamento Nacional


do Café, 1939, tomo VI, vol. 8, p. 100.
36 Sobre a doação do Bracuhy e seu funcionamento no imediato pós-abolição, ver Pessoa, “A
indiscrição como ofício”, pp. 378-426.
37 Arquivo Municipal de Piraí. Inventário de Rita de Moraes Breves, 1868.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 187


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
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Rita. No início da década da abolição, encontramos na fazenda apenas vinte


enxadas, dez foices e dois machados de serviço de roça, tudo avaliado em
míseros oito mil réis. Além disso, havia um pequeno canavial, um pomar e
alguns cafezais, que somados não chegavam a meio conto de réis.
O que realmente encarecia a fazenda era sua antiga estrutura de
produção de aguardente, que igualmente estava deteriorada pelo menos
desde 1868. Na avaliação seguinte, feita pouco mais de doze anos depois,
dessas benfeitorias existiam quatro carros de bois, próprios para condução
de cana, que somado aos semoventes, trinta e seis bois de carro, chegavam
a um conto cento e sessenta mil réis. Isoladamente, o bem mais valioso
da antiga fazenda era uma casa de telha, com engenho, moendas, alambi-
que, tonéis e outros elementos para a produção de cachaça, tudo visto e
avaliado em um conto de reis. Somando o engenho, com os carros de bois
e seus respectivos semoventes, destinados ao transporte da cana e seus
derivados, chegamos a quase 50% do valor de referência da propriedade.
Isso demonstra que, nas décadas anteriores, a estrutura produtiva de
Santa Rita estava voltada para produção de aguardente.
Como demonstrou Roquinaldo Ferreira, a geribita, conhecida popu-
larmente como cachaça, era uma das mercadorias mais valorizadas no
comércio de escravos no interior do continente africano.38 Nesse sentido,
a família Breves mostrava-se bastante conectada com as preferências
dos mercadores africanos. Produzindo geribita atendiam às demandas do
tráfico, multiplicando os desembarques de africanos no litoral brasileiro.
Provavelmente João Henrique Ulrich, agente dos Souza Breves em África,
comercializava a aguardente do Bracuhy e de outras fazendas litorâneas
dos Breves na margem africana do Atlântico.
Somado a decadência da fazenda analisada, encontramos uma pequena
propriedade denominada Jurumirim, no lugar de mesmo nome, formada em
sua maior parte por 528 metros de terras na Ilha da Barra, também na fre-
guesia da Ribeira. A descrição no inventário é muito sucinta, demonstrando
que havia apenas terras e poucas construções, praticamente abandonadas. A
essa época, José ainda mantinha uma faixa de terra denominada Ilha Com-
prida, próxima a Mambucaba. O comendador deixara a ilha para usufruto
dos pescadores que nela viviam e dos próprios moradores de Santa Rita. 39

38 Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio intracolonial: geribita, panos asiáticos e guer-


ra no tráfico angolano de escravos”, in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria Fáti-
ma Gouvêa (orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (Séculos
XVI-XVIII) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), pp. 339-378. Segundo Ferreira, “Em
1850, o consulado português no Rio de Janeiro dizia: ‘uma grande parte dos gêneros de im-
portação nesta África são produtos do solo brasileiro principalmente aguardente, açúcar,
farinha de mandioca’”: Ofício do Consulado Português no Rio de Janeiro em 27 de dezembro
de 1850, apud Ferreira, “Dos sertões”, p.16. Ver também Curto, Álcool e escravos.
39 Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (MJERJ), Inventário de José de Souza Breves,
vol.1, fl.164.

188 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Na segunda metade do século XIX, enquanto o Vale do Paraíba ain-


da arrecadava os altíssimos lucros do comércio de café, o litoral sul da
província parecia padecer em um crescente abandono. Certamente o fim
do tráfico de africanos, nos primeiros anos da década de 1850, afetou em
curto prazo a região que se especializara, no período imediatamente ante-
rior, na recepção de negros vindos das mais diferentes regiões da África.
Entre os domínios litorâneos dos comendadores, a Marambaia con-
figurava-se como a principal porta de entrada de milhares de africanos
reduzidos ilegalmente à escravidão. Ligação entre o litoral de Mangaratiba
e a imensidão do Atlântico, a restinga se tornara um porto seguro para o
desembarque de africanos desde o final da década de 1830. No entanto,
em meados do século XIX, o comércio clandestino passaria a ser tão
frequente que mesmo o proprietário da restinga admitia as ocorrências
dos desembarques.
Embora não tenhamos um retrato específico desse amplo porto
negreiro durante o funcionamento do tráfico, a incursão realizada nos
dois primeiros dias de fevereiro de 1851, sob o comando da chefatura de
polícia da Corte na pessoa de Bernardo Nascentes de Azambuja, nos fornece
importantes indícios sobre seu funcionamento nos últimos anos do tráfico
atlântico de alma.40 Naqueles dias, atendendo à denúncia das autoridades
inglesas, a força de permanentes da Corte, acompanhada dos imperiais
marinheiros e do vapor de guerra Golfinho, desembarcou na Marambaia
em busca dos africanos recém-chegados. Não foi preciso muito tempo para
encontrá-los, e depois de inspecionados, 199 foram considerados “boçais”
e encaminhados à Casa de Correção da Corte. 41 A apreensão realizada por
Azambuja e o desenvolvimento do processo instaurado na Auditoria Geral
da Marinha apresentam uma imensa riqueza de detalhes especialmente
importantes para a caracterização da Marambaia como uma fazenda des-
tinada à recepção de negros novos e de seu proprietário como cúmplice no
contrabando de africanos.
As testemunhas no processo instaurado pelo auditor Lisboa figuram
como protagonistas na caracterização daquele espaço. Nas falas dos

40 Não retomaremos os detalhes da incursão e apreensão realizada por Azambuja. Para uma
análise minuciosa sobre o desenrolar dos fatos, a origem dos africanos contrabandeados
e o processo instaurado na Auditoria da Marinha, ver Daniela Paiva de Moraes, “A capi-
tal marítima do comendador” e “Da comunidade remanescente de quilombo ao tráfico de
africanos livres: os processos da Auditoria Geral da Marinha sobre apreensões de recém-
desembarcados na ilha da Marambaia (RJ) – 1850-51”, in Hebe Mattos (org.), Diáspora ne-
gra e lugares de memória: a história oculta das propriedades voltadas para o tráfico clan-
destino de escravos no Brasil Imperial (Niterói: UFF, 2013), pp. 35-60.
41 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço 184,
galeria C. A análise que segue terá como referência os documentos arrolados nos autos
desse recurso impetrado por Breves em julho de 1851. Sobre os conflitos envolvendo os
africanos e a condenação de Breves, em primeira instância, por cumplicidade no tráfico,
ver Pessoa, “A indiscrição como ofício”, pp. 264-299.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 189


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
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agentes da repressão, do administrador da fazenda, dos sitiantes locais


e dos próprios africanos emergem ricos indícios do funcionamento da
Marambaia na clandestinidade. Nesse sentido, o relato de João José de
Farias, alferes do Corpo de Permanentes da Corte que acompanhou a
diligência à fazenda da Armação, parece revelador. Lá chegando,
foram cercando as senzalas e casas, e revistando-as logo a
ver se continham alguns africanos, apreenderam em duas
casas delas, que lhes disse uma rapariga da fazenda serem
enfermarias, uns poucos de negros, que não sabiam falar
o português, e conduzindo-os à casa do acusado, que fica
em frente a praia da Armação, ali encontrou já o tenente
Hermenegildo com parte da força, a qual encarregou de
ficar guardando e vigiando a esta casa, não permitindo
a saída de pessoa alguma até que chegasse o chefe de
polícia, achando-se presente na dita casa o réu, o Doutor
Martins e mais dois indivíduos que não conhecia [...].42

Os dois indivíduos desconhecidos pelo alferes eram os negociantes


das casas comissárias de Mangaratiba, João José dos Santos Breves e
Antônio Lourenço Torres, ambos parentes do comendador e diretamente
envolvidos no “empório da carne humana” estabelecido em Mangaratiba
a partir de meados dos anos 1830.43 O relato de João deixara entrever a
existência de um barracão enfermaria destinado aos recém-chegados,
sendo emblemática a presença do médico dr. Martins, justamente no
contexto do desembarque. Breves, em correspondência publicada no Jor-
nal do Commercio de 14 de fevereiro de 1851, refere-se ao local como
“enfermaria dos escravos bobentos que estavam em uso de remédio (em
número de 19) [...] [e] outra de doentes de diferentes moléstias.” 44 Possi-
velmente, esses eram os espaços destinados à quarentena e à recuperação
dos recém-chegados da grande viagem, entre os quais aqueles “doentes
dos olhos” 45 que se encontravam no sítio do Sertão Alegre, nas para-
gens onde a diligência de Azambuja fez a apreensão da maior parte dos

42 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço
184, galeria C.
43 Segundo Moraes, “João dos Santos Breves, junto com Antonio Dias Pavão, era proprietá-
rio do brigue Fluminense, comandado por Bento José de Almeida, apreendido pelo navio
francês Le Leger e levado para julgamento da comissão mista em 1841.” Daniela Paiva de
Moraes “A capital marítima do comendador”, p. 74. A expressão “empório da carne huma-
na” foi utilizada pela câmara de Mangaratiba, em denúncia ao governo provincial, ao rela-
tar os escusos negócios dos Breves na região do Saco no final da década de 1830.
44 Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio, 14 de fevereiro de 1851.
45 Ao que tudo indica a tal “doenças dos olhos” relatada pelo administrador da Marambaia
correspondia à oftalmia, moléstia típica do tráfico negreiro. Segundo Clóvis Moura, era
“uma das mais temidas no tráfico de escravos, pois causava cegueira total ou parcial e po-
dia alastrar-se por toda a carga do navio negreiro.” Clóvis Moura, Dicionário da escravidão
negra no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004. p. 137.

190 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

africanos novos. Lá, a estrutura dos barracões e os agentes do tráfico em


ação ficaram expostos às armas e à pena da chefatura de polícia:
Os africanos boçais assim desembarcados foram
passados para uma casa e sítio próximos também em
pouca distância da praia de fora, e logo em seguimento
entranhados nas matas em companhia de pessoas
brancas, das quais uma deixou cair um relógio; que entre
elas havia gente do mar, segundo indicam os sacos com
roupas achados na referida mata, e que por um momento
procuraram resistir de longe dando alguns tiros.46

Esses homens brancos que conduziam os africanos no sítio Serra d’Água


compunham parte da estrutura de recepção. Eram eles que operavam o
desembarque nas diversas canoas vistas na Armação, assim como condu-
ziam os africanos aos barracões e enfermarias antes de seguirem serra
acima. Entre os agentes que operavam a finalização do empreendimento
traficante, figurava em destaque o prático, responsável pela segurança
do desembarque. Em outro episódio, em 29 de fevereiro de 1853, a Polícia
da Corte comunicava ao Ministério dos Negócios da Justiça que acabara
de receber cópia de uma carta supostamente escrita por Joaquim Breves
aos seus agentes do tráfico no litoral. A missiva tratava de dar instruções
aos agentes de recepção para bem finalizarem a operação com a máxima
segurança possível:
Sr. João Ferreira P. de Miranda – Escreve ao Machado
que esteja alerta, e com toda a vigilância para que
avistando o nosso brigue ou então um palhabote com a
alcaixa toda encarnada com uma cruz branca que ocupa
todo o meio da bandeira de uma extremidade a outra,
na popa um escalar todo pintado de preto, e por dentro
de amarelo, logo que avistar, vá a bordo, procure avistá-
lo, lá bem longe, digo, bem a largo, para o que deve ir na
canoa meia voga que he muito segura e boa, e falando
com o Capitão quer do brigue, quer do palhabote, o leve
para o ponto que o Machado muito bem sabe, pois se
por acaso ou descuido ele chega ao ponto onde se tinha
ajustado, faça, digo, então faça-se o que o [...] der em todo
o caso que não haja comprometimento; caso se efetue
isso com felicidade e segredo, mande logo levar a carga
que qualquer dos dous trouxer para o rancho já feito na
lagoa velha que lá estão seguros, e muito seguros, se
eles lá chegarem estão seguros, e as mais informações o
Vieira já lá as deve ter e por mar se deve guiar.47

46 Arquivo Nacional. Recurso criminal. Fundo: Relação do Rio de Janeiro, no 1.744, maço 184,
galeria C.
47 Aperj. Fundo: Presidência da Província. Notação 0028.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 191


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O documento trazia ainda um desenho com a bandeira com a dita cruz


branca mencionada como referência ao reconhecimento do tumbeiro. A riqueza
da descrição visava reduzir os riscos do desembarque em praia alheia, situação
que poderia causar perdas totais ou parciais da “carga” transportada.48 Ao
prático, a quem aparentemente a correspondência se destinava, era impor-
tante manter informado de todas as características do tumbeiro, para que,
ao avistá-lo, conduzisse a embarcação ao destino esperado. Qualquer dúvida
dever-se-ia recorrer ao dito Vieira, muito provavelmente ninguém menos
que Manoel Vieira de Aguiar, subdelegado de N. S. de Itacuruçá, freguesia
de Mangaratiba, à qual a Marambaia estava subordinada.
Retornando ao desembarque de 1851, seus interrogados atrelaram
ainda mais a Marambaia e seu proprietário ao infame comércio. Joaquim
Antônio Silva, morador de Itacuruçá, foi interrogado em 10 de fevereiro
na Secretaria de Polícia da Corte e informou que segundo seus colegas,
os pescadores João Pedro da Silva e Francisco Correa, em fins de janeiro,
“viram primeiro três grandes canoas com africanos passarem para o lado
da fazenda da Marambaia, e que ao amanhecer do dia 28 do referido mês
também viu no porto da Fazenda da Armação, 12 ou 14 canoas, e que su-
punha terem conduzidos africanos.” 49
Parece patente que as canoas, os barracões, as enfermarias, os
marinheiros e os práticos eram todos partes integrantes de uma mesma
engrenagem que fazia funcionar o comércio de africanos naquela costa.
Embora a Restinga da Marambaia tivesse sido comprada de Guedes e
Irmão por Joaquim Breves em 17 de Abril de 1847, só encontramos uma
descrição detalhada dela na última década do oitocentos. Apesar da
distancia, a avaliação, ainda assim, é reveladora.
Em 1890, o auto de devassa da Marambaia demonstra que aquela
propriedade estava abandonada e improdutiva havia tempos. Entre os
três primeiros dias do mês de setembro, os avaliadores juramentados
no processo descreveram minuciosamente a restinga.50 Logo de início,
observamos que o complexo da Marambaia era bem mais estruturado do
que o de Santa Rita, principalmente pelo número de construções, móveis
e canoas. No entanto, ao analisarmos mais detidamente a documentação,
percebemos que o abandono na Marambaia era muito semelhante ao do

48 Nesse sentido, ver Marcus de Carvalho, “O desembarque nas praias: o funcionamento do


tráfico de escravos depois de 1831”, Revista de História, no. 167 (2012), pp. 223-260.
49 Cabe enfatizar que após os primeiros depoimentos, Joaquim Breves decidira acompa-
nhar os interrogatórios. A partir de então, os moradores de Itacuruçá intimados pelo au-
ditor, entre eles Joaquim Antonio Ferreira, Joaquim Francisco Correa e Manoel José de
Souza Jr., não comparecem àquele juízo, sendo a autoridade obrigada a concluir a pro-
núncia sem ouvi-los.
50 Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro (MJERJ), Inventário de Joaquim José de Sou-
za Breves, Volume 2, pp. 291- 9.

192 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Bracuhy, inventariado dez anos antes no espólio de José Breves. Na des-


crição das casas e de alguns móveis observarmos o uso, com frequência,
de expressões que denotam esse abandono. Construções em mau estado,
ou em ruínas, reincidentemente aparecem nas falas dos avaliadores.
Outra particularidade da Marambaia era o complexo de propriedades
que a compunha. A fazenda da Armação parecia ser a principal delas. Lá
estava o bem mais valioso inventariado: “uma casa de vivenda, comprida
com varanda, na frente envidraçado, na fazenda denominada Armação,
assoalhada e forrada, com diversos quartos e salas e cozinha e outras de-
pendências, parte em bom estado e parte em mau estado, visto e avaliada
por dois Contos de Réis – 2:000$000”. 51
Até mesmo o bem mais valioso da Marambaia estava se deteriorando,
aparentemente abandonado no final do século XIX. Era na Armação que se
encontravam importantes construções do recente passado escravista, como
a casa de vivenda que servira outrora de hospital avaliada em 250$000
réis. Além dela, mais outras cinco construções pareciam seguir o mesmo
caminho, servindo de abrigo para gado bovino, cavalos e porcos. Segundo
consta no auto de avaliação da propriedade, os chiqueiros estavam ao lado
da antiga enfermaria, evidenciando uma reestruturação do espaço após a
abolição da escravidão. Reorganização semelhante deve ter ocorrido com
o fim do tráfico de africanos, finalidade específica das propriedades da
restinga da Marambaia.
A cerca de uma légua da Armação encontramos a fazenda da Serra d’Água,
composta de duas casas erguidas sobre pilares de pedra, e uma capela de
Nossa Senhora da Conceição construída em 1851. As duas casas, assim como
as anteriores, se encontravam em ruína. Além das fazendas, Joaquim Breves
mantinha três ilhas em frente à restinga: Saracura, Bernarda e Papagaio
fechavam o complexo da Marambaia. Certamente a ilha do Papagaio era a
menor delas, apreçada em um terço (50$000 réis) do valor das demais. No
entanto, o que enriquecia o espólio deixado pelo comendador era a imensa
restinga, descrita como ilha da Marambaia, avaliada em duzentos e noventa
e cinco contos de réis (295:000$000) em 3 de setembro de 1890. O valor
do complexo de Joaquim Breves na Marambaia era 59 vezes maior do que
aquele mantido por seu falecido irmão no mesmo litoral.
Apesar de toda a vastidão da restinga, o abandono socioprodutivo era
a marca das antigas propriedades do litoral sul fluminense, não só no final
da década de 1880, mas a partir do início da segunda metade do século XIX.
Esse processo ficou evidente a partir da avaliação da antiga fazenda de
Santa Rita, mas se torna muito mais claro ao analisarmos as benfeitorias
da Marambaia. Em 1890, tanto na fazenda da Armação, quanto na Serra
d’Água, as únicas plantações existentes eram os mil pés de coqueiros da

51 Inventário de Joaquim José de Souza Breves, fl. 294.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 193


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Bahia, espalhados pelas referidas propriedades e avaliados em mil réis


cada um. Ao longo de toda avaliação, há apenas uma referência indireta
às antigas culturas agrícolas, exatamente no momento em que se avaliava
um antigo engenho para secagem dos grãos de café na praia da Armação.
Pela quantidade de coqueiros, e inexistência de qualquer outra cultura
que ao menos valesse a pena ser inventariada, supomos que há tempos a
Marambaia fosse uma daquelas propriedades sem finalidade específica
após o fim do tráfico de africanos.
Restaram aos herdeiros da Marambaia, além das construções em ruínas,
alguns animais, móveis e canoas. Da antiga casa do comendador, sobraram
apenas mesas e cadeiras em mau estado, dois pianos e uma canoa grande de
Jequitibá, certamente usada no transporte entre Mangaratiba e a restinga.
No dia 4 de setembro, o juiz do caso e os avaliadores juramentados deixaram
a Marambaia, seguindo para o Saco de Mangaratiba, onde em apenas um
dia inventariaram as construções em ruína e uma chácara nessa mesma
praia, local de atuação das casas comissárias da família até meados de 1850.
Reminiscências de uma época marcada pelos altos lucros da exportação do
café e pela ilegalidade do tráfico internacional de africanos.
É intrigante perceber o abandono e a decadência dessas fazendas do
litoral sul fluminense, em contraponto à opulência das demais propriedades
da família Breves no Vale do Paraíba no final da década de 1870. Em que
pese a reestruturação do sistema de transporte que escoava o café do vale,
com a gradativa substituição da cabotagem pelos trilhos do café, a famosa
Lei Eusébio de Queirós, que ratificava a ilegalidade do tráfico e estendia
as responsabilidades sobre o ilícito comércio, 52 parece ter mudado, no
curto prazo, a paisagem social de algumas fazendas do litoral. O fim do
tráfico de africanos, gradativamente construído na primeira metade da
década de 1850, alterou profundamente a rotina das fazendas do sul da
província do Rio de Janeiro. As estruturas do tráfico clandestino deveriam
ser desmontadas, ou simplesmente abandonadas, e as fazendas que as en-
globavam, reestruturadas, ou deixadas a cargo dos seus moradores, em sua
maioria escravos e libertos. Esse parece ter sido o destino dos complexos
negreiros de Santa Rita do Bracuhy e da Marambaia, logo após o fim do
tráfico transatlântico de escravos.
Talvez, por isso, os que permaneceram na restinga tenham suas iden-
tidades relacionadas diretamente às antigas histórias dos últimos desem-
barques de africanos, possivelmente vivenciadas, direta ou indiretamente,

52 Em seu artigo 3º a Lei estabelece que: “são autores do crime de importação, ou de tentativa
dessa importação, o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e
o sobrecarga. São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escra-
vos no território brasileiro de que concorrerem para ocultar ao conhecimento da autori-
dade, ou para os subtrair à apreensão no mar, ou em ato de desembarque sendo persegui-
da”. Colleção das Leis do Império do Brasil, Biblioteca Nacional (BN).

194 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

por seus pais e avós. Ao encontrar os que permaneceram na Marambaia,


Assis Chateaubriand, registrou o que disseram os últimos ex-escravos do
comendador em 1927. Chateaubriand conversou com Adriano Júnior e
Gustavo Victor. Adriano havia trabalhado na fazenda S. Joaquim da Grama,
e tinha aproximadamente 75 anos. Chateaubriand não precisara a idade de
Gustavo, no entanto, disse aparentar ser mais velho que Adriano. Ao perguntar
àquele sobre seu antigo senhor, Gustavo foi direto ao relacionar a restinga
ao comércio de africanos: “Gente vinha de bahia d´Angola premero pra qui.
Engordava, e depois ia pra roça, trabaiá no cafezá”. Sobre seu antigo senhor,
lembrava o seguinte: “Era um veio bão. Quando via nego assentado, depois
do serviço, apreguntava se nego tava triste, e mandava reunir a senzala
para dançar o cateretê e o batuque, fazendo tocar o bumba de barriga”. 53
O tráfico na Marambaia se confundia com a própria trajetória dos
antigos escravos. Da conformação das fazendas, aos indivíduos que lá
permaneceram, o infame comércio parecia atribuir sentido para a história
daquela restinga, na interseção entre passado e presente. Certamente
Gustavo e Adriano teriam muito mais a contar a Chateaubriand, faltou-lhe
apenas o registro, ou um pouco do espírito do historiador.

Um retrato da ilegalidade: os últimos africanos do


comendador através dos registros de óbitos
Não há consenso na discussão do quantitativo de escravos sob domínio
de Joaquim Breves. Nos trabalhos historiográficos seus números giram em
torno de 4.000 a 6.000 cativos.54 Relatos de época diziam serem 3.000 os
escravos do comendador.55 Ao certo, nunca saberemos o número exato de
homens e mulheres que conformavam suas fazendas. No entanto, parece
bastante evidente que uma das maiores, senão a maior, escravaria do Brasil
Império tenha sido construída na ilegalidade, após a Lei de 7 de novembro
de 1831. Não será nosso objetivo aqui analisar sobre o viés demográfico
tal afirmação, trataremos apenas de estabelecer uma breve relação entre
os escravos de Joaquim Breves e o tráfico ilegal de africanos. Para isso,
nos basearemos nos óbitos dos cativos de Joaquim, ocorridos entre 1865
e 1875, e registrados por um de seus funcionários.

53 Assis Chateaubriand, Um viveiro morto de mão de obra negra para o cafezal, apud Padre
Reynato Breves, A saga dos Breves. Sua família, genealogia, história e tradições, Rio de Ja-
neiro: Editora Valença S.A, s/d., pp.749-50.
54 Ver: Alberto Lamego, O homem e a restinga, Rio de Janeiro: IBGE - Conselho Nacional de
Geografia, 1946. José Murilo de Carvalho, Teatro das sombras. A política imperial, São
Paulo: Vértice, 1988, p.16; e Richard Graham, Patronage and Politics in Nineteenth-cen-
tury Brazil, Stanford: Stanford University Press, 1889, pp.125-7.
55 Arquivo Nacional. Apelação crime, 1874. Fundo: Tribunal da Relação (84) no 3.368, maço.
97, galeria A.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 195


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
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Devemos enfatizar que o livro citado não se refere à típica docu-


mentação eclesiástica analisada em outros trabalhos acadêmicos. Os
registros, de nascimento ao óbito, embora fossem de responsabilidade da
Igreja, passavam também pelo controle senhorial. Stanley Stein, citando
o inventário do Barão de Tinguá, enfatizou que, entre “os fazendeiros
diligentes era uma prática catalogar [...] num livro de registros os nomes
de escravos homens e mulheres, assim como seus filhos [...] e os nomes
daqueles que morreram e daqueles [...] libertados quando batizados.”
56
Segundo a visão do Barão, Joaquim estaria no rol dos diligentes
fazendeiros, já que construiu um registro interno de suas fazendas
com os nascimentos, batismos, casamentos e óbitos de seus escravos e
agregados livres, dispostos ao longo de suas propriedades. Além desse
livro, encontramos também algumas folhas soltas organizadas em um
fichário com nascimentos, casamentos e batismos de cativos, libertos
e livres das antigas fazendas de Joaquim Breves entre 1876 e 1901.
Chama-nos a atenção o fato de que o fichário se diferencie bastan-
te do livro citado. Enquanto este parece ter sido organizado por uma
única pessoa que dispôs as informações de maneira muito objetiva,
agrupando os dados em tabelas, quase sempre num tom quantitativo,
aquele se assemelha mais aos tradicionais assentos eclesiásticos.
Embora os documentos não apareçam em ordem, e não tenham sido
escritos pela mesma pessoa, trazem ainda o nome do padre e o local de
registro, quase sempre a fazenda de São Joaquim da Grama. Os registros
que compõe o fichário, organizado posteriormente, foram produzidos
naquela fazenda. É bastante provável que o livro analisado também
tenha sido construído na propriedade sede de Joaquim Breves. Ambos
compunham o rol dos documentos da administração das fazendas da
família Breves. É importante destacar o perfil das fontes citadas,
sobretudo, por se tratarem de documentos praticamente inexistentes
nos arquivos brasileiros. 57
Os registros de óbitos presentes no livro citado, embora aparen-
temente escritos por uma única pessoa, apresentam também algumas
nuances. Em geral o nome, a idade, a nação e a moléstia, indicando a
causa da morte, aparecem com regularidade. Só em 1875, encontramos
o campo cor nos óbitos, nesses casos referem-se a 13 inocentes pretos,
falecidos na fazenda de São Joaquim da Grama. Em decorrência da Lei de
28 de setembro de 1871, a partir do ano seguinte, os cativos já começam
a aparecer com seu número de matrícula. Além disso, a referência ao

56 Stanley Stein, Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900, Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1990, p, 102, nota 56.
57 Robert Slenes, “O que Rui Barbosa não queimou. Novas fontes para o estudo da escravidão
no século XIX”, Revista Estudos Econômicos, v. 13, n. 1 (1983), pp. 117-49.

196 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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estado civil, se casado, solteiro ou viúvo, surge ao lado de uma observação


que geralmente se remete à filiação. Em poucos casos encontramos mais
informações sobre a profissão dos escravos. Os de roça nunca aparecem
com a profissão declarada, destaca-se apenas, muito raramente, a ativi-
dade de alguns cativos.
Entre 1865 e 1875, setecentos e cinquenta indivíduos, registrados
nas listagens de óbitos de cativos, faleceram nas propriedades de Joa-
quim Breves. Entre eles, encontramos certo equilíbrio entre o número
de africanos (48%) e de nascidos no Brasil (52%). 58 Caso desconside-
rássemos os óbitos de inocentes, na medida em que boa parte deles ou
eram ventre-livres, ou faleceram ainda recém-nascidos antes da Lei
de 28 de setembro 1871, esses números mudariam significativamente,
especialmente porque entre as 372 mortes de indivíduos registrados
como cativos nascidos no Brasil, 219 eram de crianças com menos de
12 anos. Sendo assim, entre os escravos adultos a proporção seria de
sete africanos para três crioulos, ou pardos. Em outras palavras, 70 %
dos escravos adultos que faleceram, entre 1865 e 1875, nas fazendas
de Joaquim Breves eram africanos.
Interessante notar que entre os ingênuos muitos deles foram re-
gistrados nos óbitos no mesmo espaço e da mesma forma que os demais
cativos, mesmo que fossem à época ventre-livres. Entre eles, alguns,
inclusive, possuíam matrícula da relação, mas nunca matrícula geral. É
fato também que diversos deles não chegariam nem a receber um número
de ordenação, sobretudo por conta da alta taxa de mortalidade entre os
recém-nascidos. Somente as crianças não atingidas pela Lei de 1871 pos-
suíam ambas as matrículas. Em nenhum momento o termo ventre-livre ou
ingênuo aparece nos óbitos analisados. Só em 1875, na fazenda da Grama,
ele é subentendido a partir da descrição dos registros de falecimentos
dos ingênuos daquela propriedade. É importante destacar que os óbitos
dos homens livres diferiam bastante dos registros dos cativos. Aqueles se
assemelhavam aos tradicionais assentos eclesiásticos, principalmente em
relação ao texto. Na percepção senhorial, representada pela produção do
documento, os “ventre-livres” estavam muito mais próximos ao universo
escravista, do que ao mundo dos livres. 59

58 Cabe ressaltar que para cerca de 7% dos óbitos arrolados não foi possível identificar o lo-
cal de nascimento dos cativos falecidos.
59 Para o século XVIII, Mariza Soares destaca que “na passagem de escravo a forro deve-se
não apenas conseguir a alforria, mas também passar de um livro a outro. A alforria na
pia batismal só é completa quando o assento é feito no livro dos brancos”. Mariza Soares,
Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro do século
XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 101. Embora os nossos dados não se
refiram a alforrias, tampouco à documentação eclesiástica, é importante destacar as per-
cepções sociais extraídas da documentação trabalhada.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 197


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Entre os escravos nascidos no Brasil, incluindo os inocentes citados


acima, na faixa de 0-12 anos, a maior parte dos óbitos era de cativos
crioulos. Entre 1865 e 1875, morreram 46 pardos e 31 pretos. A reduzida
taxa de mortalidade entre pardos e pretos, no universo em análise, re-
laciona-se à representatividade desses grupos nas fazendas de Joaquim
Breves. Entretanto, é bastante curioso que todos os indivíduos declarados
como pretos fossem inocentes. Já o termo crioulo aparece praticamente
generalizado entre os escravos nascidos no Brasil,60 como vemos abaixo:

Gráfico 1: Cativos nascidos no Brasil listados nos óbitos das fazendas


de Joaquim Breves (1865-1875)

Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 372 cativos
brasileiros falecidos nas fazendas de Joaquim Breves.

Entre os africanos, o termo nação, difundido a partir da segunda


metade do século XVIII, em substituição a ideia de gentio da Guiné,
predomina na documentação, organizando os grupos de procedências
das fazendas de Joaquim Breves. Entretanto, como afirma Soares, não
há qualquer homogeneidade entre os nomes de procedência, “vão desde
nomes de ilhas, portos de embarques, vilas e pequenos reinos, a pequenos
grupos étnicos, em nenhum deles é possível afirmar, com certeza, que a
nação corresponde a um grupo étnico”.61

60 Para primeira metade do século XVIII, Mariza Soares destaca que o termo crioulo era usa-
do como sinônimo da primeira geração de filhos de mãe gentia. Soares, Devotos da cor, p.
97 e 100.
61 Soares, Devotos da cor”, p. 109.

198 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Entre os 329 africanos falecidos entre 1865-1875, a grande maioria


pertencia a grupos de procedência comuns nos negócios do tráfico entre a
África e o Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Na costa Cen-
tral-Atlântica da África embarcava a maioria dos cativos, já que a região do
Congo/Angola era responsável por boa parte dos escravos enviados para o
Brasil durante o século XIX.62 No entanto, era grande a presença de africanos
da costa oriental, principalmente dos portos de Moçambique e Inhambane.
A partir de meados da década de 1870, os registros de procedência
passaram a ser substituídos por definições genéricas, como “africanos” e “de
nação”. Embora a organização por grupos de procedência não garantisse uma
homogeneidade étnica entre os povos da África, denotava, ao menos, aspectos
de uma trajetória compartilhada. A generalidade dos termos nação e africano
inviabiliza a difícil tarefa de reconstituir as trajetórias dos últimos africanos
sob o domínio dos Souza Breves. Vejamos agora, através dos óbitos, as nações
daqueles indivíduos reduzidos à escravidão nas fazendas de Joaquim Breves:

Gráfico 2: escravos africanos falecidos nas fazendas de Joaquim Breves


entre 1865-1875

Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 329 cativos
africanos falecidos nas fazendas de Joaquim Breves.

62 Sobre as nações africanas na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, e
a predominância dos grupos da região de Angola e do Congo Norte na demografia escrava
da cidade na mesma época, ver Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-
1850), São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 199


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Alguns grupos são pouco representativos entre os cativos do co-


mendador. Dos mais de 300 africanos falecidos, encontramos apenas
1 macua, 1 marave, 1 buí e 1 luisamam, grupos incomuns no sudeste
escravista. 63 O livro das fazendas registra também poucos angolas,
monjolos e cassanjes, escravos que eram comercializados em larga es-
cala, principalmente pelo porto de Luanda antes de 1836. Encontramos
mais escravos minas, do que angolas, aqueles enviados para o Brasil,
provavelmente de forma ilegal, após a proibição do tráfico ao norte do
equador em 1815.
O comércio de almas, considerado ilegal nas colônias portuguesas em
1836, deslocou os embarques de escravos para as praias mais afastadas
ao norte e ao sul de Luanda, ou mesmo para a desembocadura de rios
que faziam ligação com o interior do continente, como a região do rio
Zaire. 64 Nesse contexto, ganhava destaque o porto de Cabinda ao norte
de Angola. A autonomia em relação ao controle português, fez com que
boa parte dos escravos daquela região passasse pelo porto ligado ao reino
do Ngoyo. 65 Isso explica a baixa incidência de escravos angolas entre a
escravaria de Joaquim na década de 1870. Ao mesmo tempo, os portos
de Moçambique e Inhambane adquiriam grande importância durante
a ilegalidade. A primeira metade do século XIX maximizou o comércio
negreiro entre o Brasil e a costa oriental da África, resultando no aumento
do número de moçambiques entre os escravos africanos. 66 Após 1836,
o aumento da repressão na costa Atlântica fez com que o comércio de
almas crescesse vertiginosamente nos portos de Moçambique, Quelimane
e Inhambane. Isso fica bastante evidente quando conjugamos o gráfico
anterior, com o quantitativo de africanos que nasceram após a Lei de 7
de novembro de 1831, e mesmo assim, foram reduzidos ilegalmente à
escravidão nas fazendas do comendador Joaquim Breves.

63 Entre os quatro grupos, apenas os macuas, procedentes do interior da Ilha de Moçambi-


que, eram mais comuns na província do Rio de Janeiro. Acreditamos que os luisaman vis-
sem do norte de Angola, próximo ao rio Cuanza. Ver: “Apêndice A – Origens africanas do
tráfico de escravos para o Rio de Janeiro, 1830-1852”, in Mary Karasch, A vida dos escra-
vos. Desconhecemos as procedências dos grupos marave e buí.
64 Ferreira, “Dos sertões”.
65 Cichelli, “Dos caminhos”.
66 Manolo Florentino, “Aspectos sociodemográficos da presença dos escravos moçambica-
nos no Rio de Janeiro (1790-1850)”, in João Fragoso, Manolo Florentino, Antônio Carlos
Jucá e Adriana Campos (orgs.), Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações
sociais no mundo contemporâneo (Vitória / Lisboa: Edufes / IICT, 2006), pp.196-244. De-
vemos destacar que entre os moçambiques, era comum encontrarmos africanos de diver-
sas etnias da costa leste da África.

200 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Gráfico 3: Africanos livres falecidos nas fazendas


de Joaquim Breves, 1865-187567

Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Os dados acima representam números absolutos na amostragem de 49 africanos
falecidos nas fazendas de Joaquim Breves e reduzidos ilegalmente à escravidão.

Entre os africanos livres escravizados, grande parte deles continuava


vindo do litoral Central-Atlântico da África. No entanto, não encontramos
mais cativos embarcados pelo porto de Luanda. Cassanjes, rebolos, angolas
e moanjes tornam-se menos frequentes nas rotas do tráfico após 1836. A
região do Congo se destacava no envio de cativos para as fazendas de Joaquim
Breves, assim como o porto de Cabinda. A área do Congo Norte, incluindo
os cativos monjolos, representava a procedência da maioria dos africanos
mais jovens de Joaquim Breves. Ao mesmo tempo, o número de escravos
embarcados pela costa oriental da África ganhava uma nova dimensão. Entre
eles, os embarques nos portos de Moçambique e Quelimane, correspondiam
praticamente ao mesmo número de escravos enviados por Benguela.68 Os

67 Diferentemente da perspectiva do Estado imperial, que geralmente considerou livre os


africanos desembarcados após a segunda lei antitráfico, estamos considerando “africa-
nos livres” os indivíduos que nasceram na África depois de 1831 e entraram ilegalmente
no Brasil como escravos. A partir da idade evidenciada no ano do óbito, conseguimos en-
contrar os sujeitos nascidos na África após a ilegalidade da entrada de africanos no Impé-
rio do Brasil. Sobre as diferentes apropriações dessa categoria, ver Beatriz G Mamigonian,
“Revisitando a transição para o trabalho livre: a experiência dos africanos livres”, in Ma-
nolo Florentino (org.), Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), pp.389-417.
68 Segundo Karasch, “os Benguelas tinham inundado a cidade [do Rio de Janeiro] na déca-
da de 1840 [...] À medida que os britânicos pressionavam Luanda nessa década, muitos co-
merciantes com base no Rio transferiam suas operações para o sul e negociavam com Ben-
guela”. Karasch, A vida dos escravos, p. 57.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 201


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próprios benguelas, que eram a maioria dos africanos entre os escravos do


comendador, deixaram de ser preponderantes entre os africanos nascidos
após 1831.
Dos africanos falecidos entre 1865 e 1875, em percentuais bastante
subestimados, no mínimo 15% tinham sido reduzidos ilegalmente à
escravidão. Metade deles faleceu nos dois primeiros anos da década de
1870, entre os 36 e os 38 anos de idade, em diversas propriedades do
comendador, destacando-se as fazendas da Floresta em Itaguaí, e de São
Joaquim da Grama em Passa Três.

Quadro 1: Africanos livres falecidos nas fazendas de Joaquim Breves

Ano do Óbito Numero de Óbitos Idade


1865 2 31
1866 3 33
1869 3 33
1870 10 38
1871 14 36
1872 5 41
1873 4 ***
1874 3 42
1875 5 41

Fonte: Livro de controle interno das fazendas de Joaquim Breves, 1865-1889. Arquivo Municipal
de Piraí (AMP). Obs.: A terceira coluna corresponde à média de idade entre os africanos livres
falecidos em determinado ano.

É bastante provável que as idades de muitos cativos tenham sido


alteradas nos registros do final da década de 1860, com o objetivo de
burlar a Lei de 1831, que evidenciava a ilegalidade da propriedade
escrava. A apropriação da lei atrelada à reivindicação da liberdade
aparecerá em alguns tribunais do Império durante a década de 1860.
Apesar disso, foi possível perceber o descuido senhorial ao evidenciarmos
a propriedade ilegal registrada na documentação interna das antigas
fazendas do complexo Breves.

Concluindo: o comércio negreiro e seus


protagonistas no processo de ilegalização do tráfico
As lembranças sobre o comércio de escravos, as fazendas de engorda
e os antigos portos de desembarques conformaram o ponto de partida da
pesquisa exposta nesse texto. Os depoimentos de Manoel Moraes e de ou-
tros moradores das antigas fazendas litorâneas dos comendadores Breves
foram os nossos cicerones para adentrarmos nos últimos anos do tráfico

202 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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ao sul da província do Rio de Janeiro. As memórias dos descendentes dos


últimos escravos dos comendadores ao serem acionadas, para além das
disputas políticas e territoriais que demarcam seu campo de produção,69
reascendem velhas questões, e colocam novos problemas para a história
social da escravidão e do tráfico de africanos nos oitocentos.
A rearticulação do comércio negreiro nas duas margens do Atlântico,
após a proibição do tráfico na costa brasileira, em 1831, e cinco anos depois
nas colônias portuguesas, em 1836, demandou a construção de novas redes
comerciais, assim como reordenou os espaços litorâneos destinados ao
comércio de escravos. Seja em águas brasileiras, ou nas praias da costa
da África, novos agentes despontaram no trato ilegal da carne humana,
e para tanto se utilizavam da conivência das autoridades e da própria
sociedade local. O imperativo da propriedade, atrelado ao governo da casa,
garantiam até certo momento, no caso brasileiro até setembro de 1850,
a proteção necessária aos empreendimentos traficantes. A última fase
dos negócios atlânticos, ou seja, o desembarque dos africanos reduzidos
ilegalmente à escravidão contava com novas estruturas organizadas em
fazendas litorâneas destinadas, quase que exclusivamente, à recepção
dos novos cativos. O desaparecimento do Valongo no Rio de Janeiro, e
dos demais mercados de escravos nas outras províncias, foi compensado
por essas novas propriedades que além de receberem os negros da costa,
montavam seus próprios mercados de escravos:
tenho de participar a V. Ex.a, que fui informado, que os
dois irmãos Joaquim José de Sousa Breves, e José de Sousa
Breves convidaram diversos fazendeiros dos Municípios
de S. João do Príncipe, e Pirahy a [...] a comprar uma
porção d’Africanos, que mandaram vir de Costa Leste em
seu navio, que deve aportar à Província do Rio de Janeiro,
demandando especialmente a parte dela compreendida
entre a Guaratiba, e Angra dos Reis, e que aquele navio
deve chegar em dias deste mês, ou do próximo futuro.70

A dinâmica do tráfico, durante a clandestinidade, demandou, além


de uma reordenação espacial dos novos desembarques, a construção de
novas estruturas que viabilizassem a finalização do empreendimento
traficante. Elas iam desde canoas que faziam a ponte entre os tumbeiros
e a terra firme; passando pelos barracões para recepção dos negros novos,
consagrados na memória local como locais de engorda; e como última etapa
estava a comercialização e a redistribuição desses indivíduos reduzidos

69 Vale enfatizar que as antigas fazendas litorâneas dos comendadores emergem no início
do século XXI como comunidades remanescentes de quilombo, nos termos do artigo 68 do
ADCT da Constituição Brasileira de 1988.
70 Arquivo Nacional (AN), Secretaria de Polícia da Corte, Reservado, fevereiro de 1854, Série
Justiça (IJ6 468). Grifos meus.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 203


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ilegalmente à escravidão. As propriedades destinadas à última fase do


comércio negreiro funcionavam ativamente até o início dos anos de 1850,
mas logo em seguida aparecem abandonadas nos autos de avaliação de
bens dos inventários da época. Nos primeiros anos da década de 1850,
perderam sua principal função: abastecer a mão de obra no próspero Vale
do Paraíba fluminense.
Os Breves representaram a face ainda pouco conhecida dos homens
de negócios que atuaram no ilícito trato a partir de meados da década de
1830, e que nele permaneceram até o início dos anos de 1850. Nesse período
solidificaram redes transatlânticas que faziam funcionar os empreendi-
mentos traficantes através de agentes na África, como no caso de João
Henrique Ulrich. Quando necessário poderiam acionar os laços pessoais
e comerciais com influentes negreiros, e assim possivelmente o fizeram
com o famoso traficante espanhol Francisco Ruviroza y Urzellas, ou com o
comerciante português José Bernardino de Sá, com quem os comendadores
nutriam relações de amizade e lucrativos negócios.71
O amplo envolvimento das fazendas dos irmãos Breves com o tráfico
internacional de africanos, durante a clandestinidade, se refletia claramente
na conformação das suas escravarias. No caso das comunidades escravas
das fazendas de Joaquim Breves, encontramos forte presença de africanos
procedentes das regiões menos expressivas no tráfico no início do século
XIX e que ganharam representatividade no período da ilegalidade, como
o caso de Cabinda e Moçambique.
Até o final da década de 1840, benguelas, cabindas e moçambiques
continuavam a chegar nas fazendas do litoral fluminense. Somente nos
primeiros anos da década de 1850 o Estado imperial transformou o trá-
fico em um comércio infame, fazendo incursões às fazendas litorâneas,
interrogando os recém-chegados e responsabilizando criminalmente os
negociantes atrelados ao negócio negreiro em escala atlântica. Vale lembrar
que, em 1851, as fazendas da Marambaia e do Bracuhy foram ocupadas pela
Polícia da Corte e seus escravos inquiridos. Nesse ano, Joaquim Breves era
condenado em primeira instância pelo crime de pirataria.72
Paralelamente, o Estado imperial ratificara o cativeiro ilegal de
milhares de africanos espalhados pelas fazendas fluminenses e comercia-
lizados até a Lei de setembro de 1850. Assim, os africanos das fazendas dos
Breves que desembarcaram antes da nova lei permaneceriam no cativeiro,
garantindo a tranquilidade da propriedade ilegal dos seus senhores. Em
carta ao dono do Bracuhy, em fevereiro de 1853, Eusébio de Queirós,
Ministro da Justiça em 1850, esclarece a posição do Estado em relação

71 Sobre o vínculo dos Breves às redes internacionais de traficantes transatlânticos, ver Pes-
soa, “A indiscrição como ofício”, pp. 90-140.
72 Idem, pp. 264-299.

204 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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à matéria. Ao mesmo tempo garante a paz dos senhores que formaram


suas extensas escravarias na clandestinidade. Paramos por aqui, com as
palavras do ex-Ministro que sintetiza a cumplicidade do Estado brasileiro
com a violação da Lei de 7 de novembro de 1831 e consequentemente com
o cativeiro ilegal de quase um milhão de indivíduos:73
é o que disse até no Parlamento, isto é, quando o governo
não iria dar buscas nas fazendas para resolver o passado
[...] Pode ser que a audácia das especulações o leve a
proceder com mais algum rigor ou outra vez, mais creio
que nem se ultrapassarão os limites da necessidade, nem
se resolvem o passado [...] Qualquer busca que se dê é para
procurar os negros agora importados, e nunca para [se]
entender com o passado.74

73 Sobre os números do tráfico e sua revisão em caráter crescente, ver Maurício Goulart, A
escravidão africana no Brasil (Das origens à extinção do tráfico), São Paulo: Livraria Mar-
tins Editora, 1949; Leslie Bethell, A abolição do tráfico de escravos no Brasil, Rio de Janei-
ro: Editora Expressão e Cultura, 1976; David Eltis, Economic Growth and the Ending of the
Transatlantic Slave Trade, Nova York: New York University Press, 1987; David Eltis e Da-
vid Richardson. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven: Yale University Press,
2010; e dados disponíveis online em www.slavevoyages.org.
74 Minuta de Resposta. 1853, Museu Histórico Nacional (MHN), Coleção Euzébio de Queiróz,
EQcr 79/1. Grifo do autor.

COMÉRCIO NEGREIRO NA CLANDESTINIDADE: AS FAZENDAS DE RECEPÇÃO DE AFRICANOS 205


DA FAMÍLIA SOUZA BREVES E SEUS CATIVOS
CAPÍTULO 7

o AfriCAno indeseJAdo: CoMbAte Ao trÁfiCo,


seGUrAnçA públiCA e reforMA CivilizAdorA:
Grão-pArÁ, 1850-1860
José Maia Bezerra Neto

Em 13 de janeiro de 1852, o inspetor do Tesouro Público do Pará,


Manoel D’Almeida Pinto, oficiou ao presidente da província sobre a
necessidade de uma tabela de vencimentos dos operários artífices e
serventes do Arsenal de Guerra, convindo que os jornais pagos aos livres
fossem superiores aos dos escravos, pois achava importante “animar
aquelles a concorrerem ao trabalho e procurar se acabar com a acquisi-
ção dos escravos nas Repartições Públicas, conforme as Disposições dos
Decretos de 25 de junho e 20 de setembro de 1831”; julgando ser “o mais
conveniente ao serviço ter bons operários, pagar-lhes bem e conforme
as suas habilitações de que ter escravos com diminutos vencimentos”.1
O inspetor revivia a legislação da década de 1830, que excluía os es-
cravos dos serviços dos estabelecimentos públicos, havendo trabalhadores
livres, perfilhando o espírito da época da abolição do tráfico de incentivo
ao trabalho livre, expresso por legisladores e autoridades públicas, que,
por meio de “atos legislativos, executivos e administrativos”, tratavam
da “exclusão dos escravos de certos serviços, principalmente públicos, e
também até do serviço agrícola, v. g., nas colônias”. Tanto que, no ano em
que Almeida Pinto fez seu ofício ao presidente do Pará, aprovou-se a Lei
Geral de 26 de junho de 1852, proibindo o uso de escravos na construção
e na conservação da estrada de ferro D. Pedro II.2

1 APEP, Secretaria da Presidência da Província (doravante SPP), Ofícios da Thezouraria do


Pará (doravante OTP), ano 1852, cx. 166, Ofício n. 9, do Inspetor Manoel Antonio D’Almei-
da Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 13/01/1852.
2 Cf. Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídi-
co, social, Petrópolis: Vozes / Brasília: INL, 1976, vol. 2, p. 90. Ver também notas 343 e 344.

207
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O inspetor era um confiante partidário do trabalho livre, pois dizia


ter “intervindo para que se levasse a effeito a creação da Companhia
dos Menores, que a ser bem administrada, poderá vir a ser de grande
utilidade”. Referia-se à Companhia de Aprendizes Menores do Arsenal
de Guerra, instalada em 2 de setembro de 1842, com o engajamento de
até 50 meninos livres pobres, de 8 a 12 anos. Almeida Pinto também
sugeriu a criação de um “Corpo de Operários artífices” no Arsenal de
Guerra, tal qual na Corte, pois, só assim, se teria de verdade um arsenal
na província, convindo “que se dêem garantias aos operários livres, a
quem se deve proteger mais do que aos escravos”. 3
Em 13 de fevereiro de 1852, Almeida Pinto comunicou ao presidente
a dificuldade da Tesouraria da Fazenda, adjunta ao Tesouro Público Pro-
vincial, de fazer pagar os jornais dos operários, os soldos dos soldados
e dos marinheiros, os proventos dos funcionários públicos, bem como
aos fornecedores, porque dirigentes de vários órgãos descumpriam as
formalidades e os prazos previstos pela Tesouraria, que, desde a sua
recente criação, centralizava os pagamentos. O inspetor dizia que, dentre
as várias conveniências de manter os pagamentos em dia, “principalmente
quando há dinheiro em cofre”, havia a de reter no serviço a classe dos
operários livres, “na mor parte composta de homens pobres que vivem
do seu jornal”, que não pagos em dia “desgostar-se-hão e despedir-se-hão
dos serviços dos Arsenaes, preferindo as obras particulares, e ahi se
continua com o reprovado systema de chamar-se os escravos”. 4
O trabalho escravo não tinha as simpatias do inspetor, tanto que,
propondo um “projecto de Instruções provisórias para regularisar
o serviço das obras públicas”, estabelecera que “Serão preferidos os
Mestres, Operários e Serventes livres aos escravos para que se prece-
derão annuncios nos jornaes”. Mas, ele parecia sensível à condição dos
escravos. Em 8 de maio de 1852, sugeriu ao presidente uma gratificação
de 29 réis diários ao “escravo da Nação Antonio Ferreira, empregado
no Arsenal de Guerra como servente dos Aprendizes menores”, que
recebia a “mesquinha gratificação” de 6 réis diários, “não se lhe dando
nem ao menos roupas para vestir-se”, dizendo ser “isso uma injustiça”,

3 Sobre a Companhia de Menores, ver APEP, SPP, Ofícios do Arsenal de Guerra do Pará,
ano: 1852-1853, cx. 168, Relatório do Arsenal de Guerra ao Presidente da Província,
Conselheiro Sebastião do Rêgo Barros, assinado pelo bacharel Joaquim Jerônimo Bar-
rão, Capitão Director interino, de 15/11/1853. Sobre as propostas APEP, SPP, OTP, ano
1852, cx. 166, Ofício n. 9 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida Pinto ao Presidente da
Província.
4 APEP, SPP, OTP, ano 1852, cx. 166, Ofício n. 28 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida
Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 13/02/1852. Sobre
a criação da Thezouraria da Fazenda, ver Ofício do Inspetor Manoel Antonio D’Almei-
da Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 24/01/1852.

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que, corrigida, permitiria ao cativo “vestir-se, e aplicar o mais no que


lhe parecer mais útil a suavizar sua triste condição”. 5
Vejo nesse graduado servidor público, nas suas preferências pelo
trabalho e pelo trabalhador livre, ao menos nas obras e nos serviços
públicos, um exemplo de como, particularmente na segunda metade do
século XIX, uma nova mentalidade associando a escravidão ao atraso
material e moral aos poucos galgava simpatias, sendo o fim do tráfico
parte dessa mudança da opinião pública; 6 pois se, na época colonial, o
escravo era visto como meio para o desenvolvimento e a prosperidade
da colônia lusa na Amazônia, tal qual no Estado do Brasil, 7 no século
XIX já seria diferente, tornando-se o dito “problema servil”, incluindo
aí o tráfico negreiro.
Nesse sentido, focando a província do Pará, discuto o fim do tráfico
de escravos africanos na década de 1850, vendo a possível ação dos
traficantes no litoral paraense e a necessidade de sua repressão como
reveladores de outros eixos para se entender o combate ao tráfico, tais
como a preocupação com a manutenção da ordem e da segurança públicas,
bem como a adoção de reformas de caráter civilizador, sendo o fim do
tráfico a mais importante delas. Assim, compartilho, em larga medida,
com o que a historiografia mais recente tem escrito sobre o tráfico e as
razões de seu término, lembrando que “há um longo debate historiográfico
sobre o final do tráfico, enfatizando desde o debate parlamentar, a pressão
inglesa, a convergência de interesses das elites agrárias e políticas até
as perspectivas mais recentes que destacam o papel do controle sobre os
escravos, temores de revolta e africanização.” 8

5 APEP, SPP, OTP, ano 1852, cx. 166, Ofício n. 87 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida
Pinto ao Presidente da Província, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, de 17/04/1852; e Ofício
n. 110 do Inspetor Manoel Antonio D’Almeida Pinto ao Presidente da Província, Dr. Faus-
to Augusto de Aguiar, de 08/05/1852.
6 Sobre a opinião pública no Império, ver Ângela Alonso, Idéias em movimento: a geração de
1870 na crise do Brasil-Império, São Paulo: Paz e Terra, 2002. Segundo Alonso, a opinião
pública era a expressão dos anseios e os sentimentos, a voz das classes proprietárias, res-
trita ao universo social dos cidadãos portadores de direitos políticos como votantes e po-
tenciais candidatos.
7 Cf. Colin M. Maclachlan, “African Slave Trade and Economic Development in Amazônia,
1700-1800”, in Robert Brent Toplin (org.), Slavery and Race Relations in Latin America
(Westport, Conn.; Londres: Greenwood Press, 1974), pp. 112-145; Rafael Chambouleyron,
“Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o estado do Maranhão e Pará (sé-
culo XVII e início do século XVIII)”, Revista Brasileira de História, vol. 26, no. 52 (2006), pp.
79-114.
8 Cf. Flávio Gomes e Mariana Blanco Rincón, “Escravidão, Nação e Abolição no Brasil e Ve-
nezuela: notas sobre perspectivas comparadas”, Cadernos do CHDD, ano IV, no. especial
(2005), pp. 107-132, citação da p. 129. Ver também, Roquinaldo Ferreira, “Abolicionis-
mo e fim do tráfico de escravos em Angola, séc. XIX”, Cadernos CHDD, ano iv, no. especial
(2005), pp. 159-176, em especial a p. 159.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 209


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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Também lembrando, contudo, que a historiografia sobre o tema


fora iniciada ainda no calor da repressão ao tráfico, como o livro do
conselheiro, político liberal e advogado Tito Franco de Almeida, O Brazil
e a Inglaterra ou o tráfico de africanos, de 1868, cuja tese defendia que,
apesar das pressões inglesas, coube ao Brasil o mérito da abolição do
tráfico, opondo-se àqueles que viam o fim desse comércio ilegal apenas
como resultado do ato de força inglês, através do Bill Aberdeen de 1845,
sendo esta a versão britânica da história. Por sua vez, Aureliano Cândido
Tavares Bastos, político liberal e advogado, em Cartas do Solitário, de 1863,
mesmo reconhecendo a importância inglesa para a abolição do tráfico,
diante, muitas vezes, da fraqueza dos governos brasileiros, demonstrou
que não coubera aos ingleses o início dessa luta, mas aos norte-america-
nos e aos franceses durante seus governos revolucionários, em fins do
século XVIII, ainda que a Inglaterra, na condição de grande potência da
época, tenha dado o tom e feito toda a diferença na solução da questão;
mas, ainda assim, para Tavares Bastos, coube ao Brasil, reabilitando-se
junto às nações civilizadas, contribuir, nos idos de 1850, para dar fim a
esse “infame comércio”, que tanto maculava a sociedade brasileira. Já
o advogado, ex-curador dos africanos livres, procurador dos feitos da
Fazenda Nacional e político conservador, Agostinho Marques Perdigão
Malheiro, em A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social,
de 1867, tratou da participação inglesa no tráfico de escravos africanos
até o início do século XIX, quando passou a combatê-lo como parte de
seu jogo político, visando ser senhora dos mares, avocando para si o
direito de policiamento dos mares e dos portos. Crítico da prepotência
inglesa a pretexto de combater o tráfico, desrespeitando os princípios dos
Direitos das Gentes e a soberania brasileira, enfim, os próprios tratados
com o Brasil, Perdigão Malheiro demonstrou que o tráfico feito “quase
que exclusivamente por estrangeiros” continuou, apesar da repressão
britânica, sendo justamente a mudança da opinião pública brasileira
e internacional o fator importante para o combate ao comércio ilegal
de africanos, cabendo ao parlamento e ao governo brasileiros decisivo
papel na sua extinção. 9
Quando Tito Franco, Tavares Bastos e Perdigão Malheiro publicaram
seus livros na década de 1860, a questão do tráfico ainda estava em aberto,
apesar de já extinto o comércio ilegal de africanos para o Brasil, pois,
além do Bill Aberdeen ainda não ter sido revogado pelo governo inglês,

9 Cf. Tito Franco de Almeida, O Brazil e a Inglaterra ou tráfico de africanos, Rio de Janeiro:
Typographia Perseverança, 1868; Aureliano Candido Tavares Bastos, Cartas do solitário.
Rio de Janeiro: 1863, 2ª ed., pp. 108-109, 112, 126-129; Malheiro, A escravidão, pp. 41, 43-
44, 49, 51, 52-57. Sobre esse debate, ver Leslie Bethell, A abolição do comércio brasileiro
de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos 1807-1869, Bra-
sília: Senado Federal, 2002, pp. 383, 405, 408-409.

210 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

“dois outros aspectos da questão do comércio de escravos continuaram


a azedar as relações entre a Grã-Bretanha e o Brasil por mais de uma
década depois que o próprio comércio tinha sido suprimido”; 10 ou seja, as
demandas relativas às indenizações reclamadas contra a Inglaterra por
sua ação naval e policial de combate ao tráfico contra a marinha mercante
brasileira; e o destino dos africanos livres introduzidos no Brasil, desde
a década de 1830, e ilegalmente escravizados. Segundo Bethell, o ápice
da tensão nas relações entre Inglaterra e Brasil deu-se com a Questão
Christie, fato relacionado com os problemas em aberto do combate ao
tráfico de escravos africanos.11 Daí a crítica de Perdigão Malheiro à recusa
da Inglaterra em pagar as indenizações “por apreensão de navios julgados
más presas pela própria comissão mista [anglo-brasileira] em Serra Leoa,
pretextando que, não obstante tais decisões, o Governo Inglês tinha a
convicção de que esses navios se destinavam a uma empresa ilegal.” 12
Mas se o direito ou não às indenizações não se resolvia, Malheiro,
pelo menos, se satisfazia com o fato de que a Inglaterra, em novembro de
1865, quando do restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil
e Grã-Bretanha, não mais renovou sua questão em torno dos africanos
livres face ao Decreto de 24 de novembro de 1864, declarando emancipados
todos os africanos livres existentes no Império, ainda que o alcance desta
legislação se tivesse se demonstrado bastante limitado. Restava, então,
a revogação do Bill Aberdeen, segundo Malheiro, “uma questão, ainda de
honra e dignidade da Nação [brasileira]”, ato só revogado pelo governo
inglês em abril de 1869.13
No século XX, a perspectiva historiográfica anterior acerca da extinção
do tráfico, postulando um papel importante para o governo monárquico,
apesar das pressões fiscais e diplomáticas e das ações navais inglesas, parecia
não caber mais na memória e na história escrita pelos republicanos, eclip-
sando-a. A historiografia novecentista buscou razões econômicas e políticas,
associadas aos interesses das elites agrárias e políticas brasileiras, como
eixo para se pensar a abolição do tráfico sob peso diplomático do “tacape”
da Grã-Bretanha, que assim agiria em defesa dos interesses do capitalismo
industrial e de suas colônias produtoras de açúcar do Caribe.14 Razões essas,
todavia, que estudos mais recentes sobre a escravidão, o tráfico e o seu fim
no Brasil e em outras partes do Atlântico têm posto em questão, atentando

10 Bethell, A abolição, p. 427.


11 Bethell, A abolição, pp. 427-428; 430-431.
12 Malheiro, A escravidão, p. 49 (destaques do autor).
13 Malheiro, A escravidão, p. 65. Sobre o Bill Aberdeen, ver Bethell, A Abolição, pp. 433-434.
14 Sobre o debate historiográfico da incompatibilidade do tráfico e da escravidão com o capi-
talismo industrial, ver Ferreira, “Abolicionismo”, pp. 159-160. Consultar também Bethell,
A abolição.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 211


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

para outras possibilidades cognitivas, tal como o “papel dos escravos, como
força de ruptura – real ou imaginada – da ordem social escravista (que)
aparece como um elemento-chave do contexto que desencadeou o fim do
tráfico”.15 Diversos historiadores vêm chamando a atenção em seus estudos
sobre os mundos da escravidão, nos quais se inseria o tráfico, para a situação
de medo das elites diante da possibilidade de revoltas escravas sob o espec-
tro do haitianismo, bem como o temor de uma irreversível africanização
do Brasil, que comprometesse seu potencial como civilização, como razões
suficientemente fortes para se acabar com o tráfico de cativos africanos,
questões, aliás, já indicadas antes por Leslie Bethell.16 Além do mais, o
próprio estudo do tráfico no Brasil, já faz alguns anos, deixou de ser quase
sempre um capítulo dos trabalhos sobre a escravidão, à exceção de alguns
importantes estudos,17 tornando-se tema de investigações específicas de uma
historiografia econômica, social e política, renovada pelos avanços metodo-
lógicos e teóricos da pesquisa histórica desde ao menos a década de 1980. 18

15 Ferreira, “Abolicionismo”, p. 159.


16 Cf., por exemplo, Robert Slenes, “Malungu Ngoma vem: África coberta e descoberta no Bra-
sil”, in Nelson Aguilar (org.), Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma (São Paulo:
Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000), pp. 212-233; Sidney Chalhoub, A cidade fe-
brila; cortiços e epidemias na Corte imperial, São Paulo: Companhia das Letras, 1996; Flávio
Gomes, Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas – Rio de Janeiro,
século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1994; Flávio Gomes, “Experiências transatlân-
ticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravis-
ta”, Tempo, vol. 7, no. 13 (2002), pp. 209-246; Dale T. Graden, “‘Uma lei ... até de segurança pú-
blica’: resistência escrava, tensões sociais e o fim do tráfico internacional de escravos para
o Brasil (1835-1856)”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 30 (1986), pp. 113-150; Bethell, A aboli-
ção. Ainda sobre a síndrome do haitianismo, ver Luiz Mott, “A revolução dos negros do Hai-
ti e o Brasil”, História: Questões & Debates, vol.3, no. 4 (1982), pp. 55-63 e José Maia Bezer-
ra Neto, “Ousados e insubordinados. Protesto e fugas de escravos na Província do Grão-Pará
(18401860)”, Topoi, no. 2 (2001), pp. 73-112. Para uma crítica dessa historiografia recente,
ver Jeffrey Needell, “The Abolition of the Brazilian Slave Trade in 1850: Historiography, Slave
Agency and Statesmanship”, Journal of Latin American Studies, no. 33 (2001), pp. 681-711.
17 Ver, por exemplo, Bethell, A abolição; Robert Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos
para o Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1985; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de es-
cravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII ao XIX, Salva-
dor: Corrupio, 1987; Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Pau-
lo: Ática, 1988.
18 Ver, por exemplo, Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico de escra-
vos entre a África e o Rio de Janeiro (Séculos XVIII-XIX), São Paulo: Companhia das Letras,
1997; Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850), São Paulo: Unicamp, 2000; Jaime Rodrigues, De cos-
ta a costa. Escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola-Rio de Janeiro, 1780-1860),
São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Roquinaldo Ferreira, “Transforming Atlantic Sla-
ving: Trade, Warfare and Territorial Control in Angola, 1650-1800” (Tese de Doutorado,
Universidade da Califórnia, 2003). Ver, ainda, José Curto. “Alcohol and Slaves: The Luso
-Brazilian Alcohol Commerce at Mpinda, Luanda, and Benguela During the Atlantic Slave
Trade c. 1480-1830 and its Impact on the Societies of West Central África” (Tese de Douto-
rado, Universidade da Califórnia, 1996); bem como, Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos

212 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Nessa perspectiva, o combate ao tráfico assumia importância como


questão social e política, que afetava também o Grão-Pará, ainda que o
último carregamento direto de escravos da África para Belém tenha sido
em 1841, não sendo então uma atividade econômica importante para a
província paraense, tanto que a população cativa africana era bastante
pequena, sobressaindo-se a crioula, desde ao menos a década de 1850. 19
Entendo, todavia, que se a ausência desse tráfico revela a incapacidade
da província em disputar escravos africanos com outras áreas brasileiras
junto ao continente africano,20 incapacidade que parece definitiva com
o estouro da Cabanagem (1835-1840), não quer dizer que o estudo da
repressão a esse “infame negócio” no contexto do Grão-Pará, ainda mais
sendo uma província marítima, seja por si só desimportante e nada nos
possa dizer; reduzir a presença do tráfico só ao seu sentido estritamente
econômico leva-nos a perder de vista outras histórias em torno não só
de sua ausência, mas, principalmente, das razões que o levaram a ser
extinto. Nesse sentido, questão pendente desde as primeiras décadas
do século XIX, a extinção do tráfico atlântico de escravos africanos, a
partir de 1850, se insere no processo de desconstrução da escravidão,
marcado por suas idas e recuos ou descontinuidades. Compreensão essa
que compartilho com parte da historiografia, lembrando Maurílio de
Gouveia, quando disse ter sido a “lei de 1850 [Lei Eusébio de Queiroz] a
primeira e decisiva etapa na história da extinção do cativeiro no Brasil”;21
o que, aliás, já diziam os sujeitos à época, quando, por exemplo, D. Pedro
II respondeu aos emancipadores franceses “du Comité pour l’Abolition de
l’Esclavage”, em 1867, que: “A emancipação dos escravos, conseqüência

continuação 18

viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo: Companhia das Letras, 2000;
e Alberto da Costa e Silva, “O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX”, in Aguilar (org.),
Mostra do redescobrimento, pp. 74-96.
19 Vicente Salles, O negro no Pará, sob o regime da escravidão, Belém: Fundação Cultural
Tancredo Neves, 1988, traz a informação de que o último carregamento direto de afri-
canos escravizados para Belém foi em 1834, data considerada por muito tempo pela his-
toriografia da região como exata, mas, segundo dados do The Transatlantic Slave Trade
Database (www.slavevoyags.org), o último carregamento se deu em 1841. Ver a respeito
José Maia Bezerra Neto, Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX), 2ª ed. revista
e ampliada. Belém: Editora Paka-Tatu, 2012, p. 67. Sobre o pequeno percentual de africa-
nos, na primeira metade da década de 1850, Luciana Batista demonstra que nos inventá-
rios da região de Belém analisados só 6% dos escravos eram africanos. Cf. Luciana Mari-
nho Batista, “Demografia, família e resistência escrava no Grão-Pará (1850-1855)”, in José
Maia Bezerra Neto e Décio Guzmán (orgs.), Terra matura. Historiografia e História Social
na Amazônia (Belém: Editora Paka-Tatu, 2002), pp. 201-230, particularmente a p. 215.
20 Ver Maclachlan, “African Slave Trade”. Ainda sobre o tráfico para a Amazônia até as primei-
ras décadas do século XIX, Anaíza Vergolino e Silva, “O negro no Pará – A notícia histórica”,
in Carlos Rocque (org.), Antologia da cultura Amazônica (Belém: Amazônia Edições Culturais
Ltda./AMADA, 1971), pp. 17-33. Ver também Bezerra Neto, Escravidão negra no Grão-Pará.
21 Cf. Maurílio de Gouveia, História da escravidão, Rio de Janeiro: Gráfica Tupy LTDA Edito-
ra, 1955, p. 126.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 213


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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necessária da extincção do tráfico, era uma questão de oportunidade”.22


Impasse que Perdigão Malheiro, definiu bem: “O fio de Ariadne era este:
extinção do tráfico e depois a abolição da própria escravidão”.23

Todo zelo na repressão ao tráfico


Em circular reservada aos presidentes de província, em 14 de abril
de 1852, o ministro da Justiça Eusébio de Queiroz ponderou que se
criando “a maior somma de interesses contrários ao tráfico”, deviam ser
aplicados “em favor dos habitantes do litoral os mesmos prêmios” pagos
aos “apprehensores no mar”. Assim, devia fazer o presidente do Pará,
“especialmente n’aquelles pontos da costa em que os desembarques se
possam mais facilmente verificar”, sendo necessário, porém, fazer “sentir
muito claramente” que os “prêmios serão dados unicamente no caso de ser
feita a apprehensão no acto do desembarque, ou immediatamente depois,
e antes que [os africanos] possam ser-se confundidos com os escravos
anteriormente existentes, pois da supposição contrária resultariam
graves inconvenientes.”24 Isso demonstra os limites impostos à repressão
do tráfico ou seja, o respeito à propriedade escrava, particularmente em
relação aos africanos importados e escravizados ilegalmente, após 7 de
novembro de 1831, e antes de 4 de setembro de 1850. É possível apreender
essa disposição no discurso de Eusébio de Queiroz na Câmara dos Deputa-
dos, em 16 de julho de 1852, quando justificou a manutenção da Lei de 7
de novembro de 1831, apesar da aprovação da Lei de 1850. Ele dizia que
caberia à primeira combater o tráfico antes de 1850, e defendia “deixar
que a respeito do passado continue sem a menor alteração a legislação
existente. [...] Assim deixar subsistir essa legislação para o passado, é
anistiá-lo; revogá-la para o futuro só no ato da introdução [dos africanos],
é criar o perigo só para os introdutores”.25
Em sua circular reservada, Eusébio de Queiroz determinou, ainda,
que havendo qualquer apreensão deviam os presidentes de província
informar-se das circunstâncias e decidir se era o caso de se pagar o
prêmio, nomeando as pessoas que o merecessem junto ao Ministério da

22 Apud Evaristo de Moraes, A escravidão africana no Brasil (Das origens á extincção), São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933, p. 107. Ver também Francisco Luiz Teixeira Vi-
nhosa, “A emancipação dos escravos. A pedra que poderia esmagar D. Pedro II”, Revista do
IHGB, v. 149, n. 358 (1988), pp. 1-15.
23 Cf. Perdigão Malheiro, A escravidão, p. 45.
24 APEP, SPP, Ofícios do Ministério dos Negócios da Justiça (daqui adiante OMNJ), ano: 1850-
1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presi-
dente da Província do Pará, de 14/04/1852.
25 Cf. Discurso de Eusébio de Queiroz de 16/07/1852, apud Perdigão Malheiro, A escravidão,
p. 213.

214 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Justiça.26 Ainda em abril de 1852, Queiroz confidenciou aos presidentes


de províncias que lhe constava estar “organizada ou deve organizar-se
brevemente uma associação para fazer o tráfico de Africanos nos Portos do
Brasil, tendo ramificações em Lisboa, Ilhas dos Açores, Havana, Montevideo
e no Império, e que muito provavelmente se servirá em suas especulações
criminosas das bandeiras Americana e Sarda”. Daí recomendar “muito
particularmente” aos presidentes que dessem “todas as providências,
com o fim de evitar que tal associação tenha bom êxito em seus intentos,
quer se sirva d’aquellas bandeiras, quer de qualquer outra”; prevenindo-os
igualmente das suspeitas de que o brigue Pedro II, construído por conta
de Thomaz da Costa Ramos, “já foi comprado, ou sel-o-há por essa mesma
associação”, sendo necessária redobrada vigilância a respeito desse navio,
“como suspeito de destinar-se ao tráfico de Africanos”. 27 Thomaz da Costa
Ramos, ao lado de Manoel Pinto da Fonseca e de José Ferraz Corrêa, era um
dos “principais abastecedores de negros das províncias do Rio de Janeiro,
Bahia e Pernambuco”.28
Sobre o brigue Pedro II, em 9 de novembro de 1851, Eusébio de
Queiroz já dissera ao presidente do Pará ter-se iniciado sua construção
em 1849, entrando em junho de 1851 no porto de Gênova, rebocado por
um vapor. Disse, ainda, que o dono do navio, construído, “evidentemente
para empregar-se no tráfico de Africanos, como que mudou de destino
e tratou de dar-lhe outra direcção na construcção, espalhando que era
para a Marinha Imperial, preparou-o para receber artilharia e pondo-lhe
na popa as armas Brasileiras, deu-lhe o nome de ‘D. Pedro II’.” Contou
também que, desconfiando ser uma dissimulação, mandara o cônsul do
Brasil em Gênova examinar o navio, mas seu dono não permitira. Assim,
era possível que “esse navio ainda se destine ao tráfico de Africanos”,
sendo necessária “a maior vigilância a respeito d’elle, embaraçando a sua
viagem para qualquer parte sem que seu destino lícito seja muito patente
e corroborado por uma fiança efficaz”, caso tocasse o litoral paraense,
sendo descritas as suas “dimensões principaes”. Em 12 de dezembro,
Eusébio de Queiroz alertava que o brigue Pedro II tinha deixado Genova,
tocando em Marselha, com destino ao Rio de Janeiro.29

26 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 14/04/1852.
27 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 19/04/1852.
28 Cf. Gouveia, História da escravidão, p. 129. Sobre o poder desses traficantes, ver Bethell,
A Abolição, p. 325, 328, 330, 387, 388 e 400.
29 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 9/11/1851; e Circular reser-
vada do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará,
de 12/12/1851.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 215


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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O uso de bandeiras de certas nações por navios negreiros era parte


das estratégias dos traficantes, pois ficavam sob a proteção das leis de
países sem acordos com a Inglaterra que permitissem a esta o direito de
inspeção, busca e apreensão mútua de navios suspeitos de tráfico. Além
disso, podia ser uma forma de despiste dos traficantes que, fazendo uso de
bandeiras de outras nacionalidades, também podiam nutrir esperanças de
constranger ou embaraçar as ações contra o tráfico por parte da marinha
brasileira. O uso de bandeiras estrangeiras por traficantes brasileiros
ou residentes no Brasil vinha desde quando o governo imperial proibiu
o tráfico, no início da década de 1830, sendo a primeira opção o uso do
pavilhão português.30 Exemplo disto é a correspondência reservada de José
Ildefonso de Sousa Ramos, ministro da Justiça de 22 de junho de 1852,
comunicando ter o patacho português Paquete de Luanda zarpado do porto
do Rio de Janeiro com escalas para a Costa da África, já que demonstrara
empregar-se no comércio lícito, ainda que houvesse “fundadas suspeitas
de que na Costa d’África se arme para o tráfico, e traga africanos para
algum de nossos portos”; daí Sousa Ramos informar os sinais do patacho,
recomendando ao presidente do Pará “sobre elle a maior vigilância, pre-
venindo-o de que se entrar nos portos dessa Província dentro destes seis
mezes o dito pataxo, deverá logo ser detido para sobre elle proceder-se
aos exames necessários.” 31
Ainda sobre suspeitas envolvendo navios de bandeira portuguesa, em sua
circular reservada de 17 de maio de 1856, o ministro José Thomaz Nabuco
de Araújo relatou ao presidente da província paraense notícias de que, em
9 de março, saiu do porto de São Martinho, na costa norte de Portugal, o
patacho Roberto, de propriedade de Miranda Magno Fernandes, suspeito
de empregar-se no tráfico de africanos, “não só pela grande quantidade
de mantimentos e aguada”, mas “também por ter deixado furtivamente
as águas do referido porto, evitando assim as averiguações e pesquizas
das autoridades locaes, que desconfiavão do verdadeiro destino desse
navio”; pelo que convinha ao presidente dar as suas ordens às autoridades
litorâneas, “a fim de que ficassem advertidas e vigilantes sobre o destino
e o projeto do patacho ‘Roberto’, providenciando sobre sua aprehenção e
perseguição dos criminozos”. Anos antes, em 29 de setembro de 1852, o
ministro Sousa Ramos informara aos presidentes das províncias litorâneas
que vários navios de bandeira portuguesa e sarda, “sobre os quaes pesão
suspeitas de se destinarem ao tráfico de Africanos”, deixaram o porto
da capital da Bahia, uma vez que se despacharam legitimamente; mas,
navegando sob suspeição, cumpria ao presidente do Pará dar as “ordens

30 Bethell, A abolição pp. 121-123, 221 e 326.


31 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 22/06/1852.

216 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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mais terminantes”, para que se algum desses navios aí chegasse fosse com
rigor examinado “a respeito da sua viagem, carregamento, passageiros,
signaes que indicão o emprego no tráfico, devendo qualquer suspeita ser
motivo para sua aprehensão e processo”.32
Sobre o uso de bandeira sarda ou romana, em 15 de abril de 1853,
Sousa Ramos informou ao presidente do Pará o ofício reservado da Le-
gação Imperial em Montevideo ao ministro dos Negócios Estrangeiros
de 23 de março, sobre “suspeitas fundadas de ter sahido daquelle porto
[Montevideo] para o tráfico na Costa d’África, o Brigue Romano Maria,
antes Sardo, com o nome de Prudência”. O ministro da Justiça, então,
ordenou ao presidente que desse “as mais terminantes ordens para que
se não consinta o desembarque de Africanos nessa Província, se por ven-
tura o dito Brigue for ter a algum porto della, procedendo-se nesse caso
á minuciosas indagações para a sua aprehensão, e prisão dos indivíduos
que se tornarem suspeitos.” 33
No caso do uso do pavilhão norte-americano por navios que foram
ou fingiam ser daquele país e envolvidos no tráfico para o Brasil, esse
uso vinha principalmente desde 1838, mas aumentou consideravelmente
na segunda metade da década de 1840, sendo em 1848, 20%; e em 1850,
50% dos navios negreiros.34 Em 9 de fevereiro de 1856, Nabuco de Araújo,
ministro da Justiça, oficiou ao presidente do Pará, Rego Barros, que o
governo soubera que duas naves norte-americanas viajaram à costa afri-
cana, “entre o Cabo Lopes e o Congo para carregar escravos, com destino
à Costa do Brasil”; ordenando, então, o uso de todos os meios à disposição
para impedir “qualquer desembarque, que se tente n’essa Província”,
mandando ainda fazer as “mais rigorosas pesquisas para saber” se, no
Pará, se achava D. Francisco Rivarosa, que deveria ser preso e remetido
para a Corte “ à disposição do Chefe de Polícia”. Algum tempo depois, em
17 de outubro de 1857, o ministro da Justiça, Francisco Diogo Pereira de
Vasconcellos, disse que foi informado pelo vice-cônsul brasileiro na Ilha
da Madeira que, em 2 de setembro, se despachou para o Rio de Janeiro o
patacho americano W. H. Stuart, “de 26 tonelladas e 9 pessoas de tripola-
ção, do qual é mestre Dujant”. No entanto, dizia Pereira de Vasconcellos,
circulara o boato de que antes de ir para o Rio de Janeiro, o W. H. Stuart

32 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 17/05/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
29/09/1852.
33 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 15/04/1853. Destaques meus.
34 Cf. Bethell, A abolição p. 46, 47, 221 e 224. Ver também Dale T. Graden, “O envolvimento
dos Estados Unidos no comércio transatlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858”, nes-
ta coletânea, bem como Gerald Horne, O Sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o
tráfico de escravos africanos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 217


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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“iria à Costa d’África carregar Africanos”; daí recomendava ao presidente


do Pará que alertasse as autoridades provinciais, “ordenando-lhes toda
a vigilância no caso de que o referido Patacho procure as águas d’essa
Província para tentar qualquer desembarque de Africanos”.35
Os traficantes eram de fato astuciosos e cheios de engenhosidade,
tanto que não se limitavam a usar apenas as bandeiras de outras nações,
seja sarda, portuguesa, norte-americana ou uruguaia, além da brasileira.
Trocavam de bandeiras e os nomes dos navios, bem como de capitães,
proprietários e consignatários, despachando legalmente seus navios com
cargas lícitas e legais, ainda que visassem ao comércio negreiro. Assim
é que, em 19 de setembro de 1853, Nabuco de Araújo alertou que no Rio
da Prata se preparavam dois navios para o tráfico, “sendo hum o ‘Enrico’,
outr’ora ‘General Garron’, Capitão Antônio dos Santos, que navega com
bandeira Oriental, e hoje traz a Brazileira, de que he consignatário em
Montevideo Francisco Surini, e agente no Rio de Janeiro Pinto Coimbra”;
e o “outro, o ‘Colonizador’, Capitão Manoel Nunes Barboza, antigamente
com bandeira dos Estados Unidos, e agora com a Oriental”, que de Mon-
tevideo zarpou rumo para os Portos do Sul e Pernambuco “com cargas
de animaes”. Nabuco de Araújo suspeitava que tais navios viessem ter
seus negócios ilícitos no Brasil, daí determinava ao presidente do Pará
suas “precisas providências para que taes navios sejão observados caso
demandem qualquer porto dessa Província, empregando a maior vigilância
para que não realizem seus intentos”, agindo com rigor contra os culpados
se “infelizmente” houvesse “algum desembarque de Africanos.” 36
Os diversos ministros da Justiça preocupavam-se, de fato, com prováveis
desembarques ilegais de escravos africanos na costa brasileira, sendo o
teor de diversas correspondências secretas aos presidentes provinciais
a necessidade de rigoroso combate aos traficantes. Era o caso de Pereira
de Vasconcellos que, na circular reservada de 26 de outubro de 1857 ao
presidente do Pará, recomendava que, escutando o chefe de polícia, ou
outras pessoas que possam “inspirar confiança”, fossem empregados nas
“localidades dessa Província, onde se deva recear qualquer desembarque
de Africanos” agentes que informassem “de tudo quanto a esse respeito
ocorrer”, cabendo ao presidente lhe arbitrar “uma gratificação rasoavel,

35 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 09/02/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
17/10/1857.
36 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 19/09/1852. Sobre o tráfico
de escravos africanos para a região do Prata, notadamente o Uruguai, ver a respeito Greg
Grandin, O império da necessidade: escravatura, liberdade e ilusão no Novo Mundo, Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.

218 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

e dando mensalmente conta ao Governo Imperial das informações, que


lhe forem prestadas”.37
A princípio, pode parecer inusual o teor da circular reservada do
ministro Pereira de Vasconcellos ao presidente do Pará, tal como o das
outras enviadas pelos demais ocupantes desse ministério, quando se
pensa que o esperado seria não haver qualquer possibilidade de tráfico
atlântico de escravos africanos nas costas do Pará na década de 1850,
até porque, desde o inicio dos anos 1840, nessa província não havia mais
tráfico direto da África, além da distância entre o litoral paraense e o
sudeste do país. O esperado seriam desembarques no litoral fluminense,
capixaba ou paulista, quando muito em Santa Catarina e no Rio Grande
do Sul, áreas bem mais próximas; ou, então, em Alagoas, região próxima
à Bahia e a Pernambuco, províncias ainda importadoras de escravos em
razão da economia açucareira. Pelo menos não esperava encontrar esse
tipo de documentação, pensando ser o combate ao tráfico, ainda que tema
presente na história brasileira, realidade alheia aos negócios da província
paraense. Mas não era, sendo até mesmo as tentativas de desembarques
noutras províncias, como Alagoas ou Pernambuco, assunto nos documentos
reservados do Ministério da Justiça ao governo da província do Pará.38
Sobre a tentativa de desembarque de africanos na costa pernam-
bucana, em Serinhaém, em 13 de outubro de 1855, com a conivência de
autoridades locais, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, em corres-
pondência reservada de 6 de novembro ao presidente do Pará demonstrou
apreensão por suspeitar não ser um fato isolado, o que exigia “da parte das
autoridades do littoral todo zelo na repressão do tráfico”, recomendando
ao presidente que despertasse “toda a vigilância das ditas autoridades a
este respeito, devendo substituir aquellas que não inspirassem confiança
e forem suspeitas de conivência ou negligência”. O presidente devia
também propor “quaisquer meios, que se devão empregar para effetiva
repressão d’esse crime e dependão do Governo Imperial”. Em seu des-
pacho à margem do ofício do ministro, o presidente Rego Barros o dava
a conhecer ao chefe de polícia, juízes de direito, promotores públicos e
comandantes, inclusive da Guarda Nacional. 39

37 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 26/10/1857.
38 Sobre tentativa de desembarque em Alagoas e sua pronta repressão, ver APEP, SPP,
OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de Esta-
do da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 02/07/1856. Sobre desembarque
em Serinhaém, ver: APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do
Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
06/11/1855.
39 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 06/11/1855. Destaques meus.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 219


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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A repressão ao desembarque de africanos em Serinhaém ainda levou


Nabuco de Araújo a escrever reservadamente ao presidente da província
Henrique Beaurepaire Rohan, em 4 de fevereiro de 1856, sobre a certeza
do governo de que Augusto Cezar de Mesquita, sobrinho de Wandelcok,
chefe da Estação Naval do Norte, era o capitão do palhabote apresado com
africanos no litoral pernambucano. Suspeitava o ministro que Mesquita
estivesse refugiado no Pará, então ordenando que fosse “infallivelmente
capturado”, se aí aparecesse, autorizando a polícia a “prometter um prêmio
vantajoso por essa prisão”, que era para o governo da “maior importância”.
Em 9 de junho de 1856, novamente o ministro recomendou ao presidente
do Pará seus esforços para a prisão de Mesquita, enviando os sinais deste:
altura regular, bela presença, olhos castanhos e vivos, barba cheia, com
idade de 28 a 30 anos, sabendo falar inglês.40
O comércio de escravos para Cuba também inquietava as autoridades
brasileiras, já que traficantes norte-americanos envolvidos nele podiam,
associados ou não a outros contrabandistas, desembarcar africanos na
costa brasileira. 41 A proximidade do litoral paraense da região caribe-
nha podia também ajudar os intentos desses traficantes, até porque os
mundos do Caribe, das Guianas e do Pará não se desconheciam, estando
conectados de alguma forma. Em 17 de maio de 1854, o ministro Nabuco
de Araújo, em circular reservada ao presidente da província, achava
possível que os navios Guerra e Trajano, armados em grande parte por
“hum dos principaes Agentes do contrabando de Africanos”, tentassem
desembarcar africanos no Brasil. Tais navios, disse o ministro baseado
no agente consular brasileiro, deixaram a cidade do Porto para conduzir
escravos africanos para Havana, segundo se dizia, mas se sabia ser “isso
hum estratagema para distrahir as vistas do Governo Imperial”, sendo
seu destino o Brasil. Em face disto, devia o presidente ordenar que as
autoridades provinciais ficassem alertas, o que de fato foi feito. 42
Em 30 de abril de 1859, em circular reservada, o barão de Muritiba
dava outras razões conjunturais que deviam deixar alertas as autoridades
brasileiras, ao considerar “possível e até provável que os traficantes de
negros os queirão importar de novo no Brasil, aproveitando as presentes
circumnstancias em que se attribui à falta de braços a carestia dos gê-
neros alimentícios, que a pequena lavoura costuma fornecer e mesmo o

40 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 04/02/1856; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
09/06/ 1856.
41 Sobre o assunto, ver Graden, “O envolvimento dos Estados Unidos no comércio transatlân-
tico de escravos”; bem como Horne, O Sul mais distante.
42 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Sr. Presidente da Província do Pará, de 17/05/1854.

220 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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deperecimento que se vae sentindo na grande”. Segundo o barão, devia-se


“tudo recear-se do gênio emprehendedor e aventureiro de alguns Norte-A-
mericanos, que se dedicarão ao Tráfico de Africanos para a Ilha de Cuba”, já
que esses fatores conjunturais haviam de “acoroçoar e mesmo provocar os
antigos traficantes que ainda não perderão as esperanças de renovar suas
criminosas especulações e auferir lucros que de algum modo compensão os
perigos que assentão”. Assim, recomendava que o presidente ordenasse toda
vigilância das autoridades do litoral, e, se necessário, “estabeleça agentes
que vigiem pontos importantes, para que dêem informações immediatas
sobre qualquer facto que possa indicar tentativa de armamento para o
tráfico ou desembarque próximo”, exortando o “patriotismo” do presidente
e a confiança nele posta no combate ao tráfico, “para de uma vez acabar a
obra que a Religião, a civilização e o dever exigem e o Governo Brasileiro
tão franca e lealmente incitou em 1850”.43
A 11 de maio de 1859, baseado no ministro dos Negócios Estrangeiros,
o barão de Muritiba dizia que a marinha britânica apreendera dois navios
“que se empregavão no Tráfico de Africanos”, reiterando ao presidente
a recomendação já feita na circular de 30 de abril; pois, se os cruzeiros
ingleses ainda combatiam tumbeiros em 1859, o governo imperial devia
redobrar sua vigilância e seu ânimo no combate ao tráfico e aos traficantes
reincidentes, não havendo, aos olhos do Império, lugares insuspeitos ou
infensos à ação desses contrabandistas na costa brasileira. Em 8 de outu-
bro 1856, o ministro da Justiça Nabuco de Araújo, em missiva reservada,
informou a notícia de que no rio Zaire, na África Centro-Ocidental, se
estava “construindo um palhabote, que deve conduzir Africanos para o
Brasil” e, embora tivesse como destino os portos de Ilhéus ou Canavieiras
na província da Bahia, alertou que podia buscar algum porto paraense,
sendo preciso tomar as “cautellas necessárias para que o crime se não
effectue ahi, e pelo contrário sejão seus autores capturados para serem
punidos na conformidade da lei”.44

“Toda a vigilância [nas] águas d’essa Província”


Em correspondência reservada de 1º de maio de 1857, em francês, a
Henrique Beaurepaire Rohan, presidente do Pará, o cônsul inglês Samuel
Vines tratou do boato (bruit) sobre desembarque de africanos próximo
ao Oiapoque, na costa amapaense, ou aí existir depósito clandestino

43 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Sr. Presidente da Província do Pará, de 30/04/1859.
44 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 11/05/1859; e Ofício reserva-
do do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
08/10/ 1856.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 221


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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de estrangeiros de cor, sem ciência do poder público brasileiro. Nessa


carta, o cônsul solicitava saber se havia alguma verdade nesse boato, a
fim de fornecer informações exatas em seu relatório ao governo inglês,
considerando ser essa uma das atribuições de seu consulado, bem como
ser do interesse do governo brasileiro averiguar tais fatos.45
Apesar da tensão nas relações entre Inglaterra e Brasil por conta da
questão do tráfico negreiro, inclusive afetando o relacionamento entre
os agentes consulares britânicos e as autoridades provinciais brasileiras,
também tencionadas por questões político-diplomáticas de coloração local,
como no caso de mister Vines, cônsul britânico no Pará,46 a apreensão desse
não era infundada, pois já vinha de alguns anos rumores ou notícias de
que “ao norte d’essa Província (do Pará) existe um depósito de africanos
boçaes, a fim de serem d’ahi levados para differentes pontos do Império”,
conforme missiva reservada do Ministério da Justiça à Presidência da
Província de 30 de agosto de 1851, na qual se ordenava em nome de “Sua
Magestade O Imperador proceder às necessárias indagações a tal respeito”,
dando contas ao Ministério. 47 Afinal, mesmo não havendo mais tráfico
direto da África para o Pará, como em todas as demais províncias maríti-
mas, o litoral paraense não estava livre de desembarques clandestinos de
africanos por negreiros, com os “traficados” muitas vezes recolhidos em
depósitos ocultos, como parte da estratégia dos traficantes em despistar
as autoridades brasileiras e a marinha inglesa, atuantes na repressão
antitráfico, pois, ainda que distante dos principais e mais importantes
mercados importadores de mão de obra escrava africana do centro-sul
cafeeiro do Império, ainda que não tão distante assim das áreas açuca-
reiras nordestinas importadoras de escravos africanos, o desembarque
ilegal de cativos em outros pontos da costa brasileira, como o Pará, podia
ter algum êxito, por ser esperada uma menor vigilância, que seria mais
forte próxima ao litoral das principais regiões importadoras de escravos.
O bruit de desembarques clandestinos de africanos na década de
1850 na costa amapaense, então parte da província paraense, ainda que
não confirmado, podia ter fundamento, porque muito provavelmente os
traficantes sabiam que, construindo depósitos clandestinos para acomo-
dar africanos após seu desembarque ilegal na área do Oiapoque, visando

45 APEP, SPP, Ofícios dos Cônsules, ano: 1851-1859, cx. 162, Ofício particular do Consulado
Britânico no Pará ao Presidente da Província do Pará, de 1º/05/1857.
46 Sobre os conflitos com o cônsul Vines, em 17/04/1857, o ministro José Maria da Silva
Paranhos comunicou ao presidente provincial a expectativa de que o governo britânico
mandasse “retirar, como espero, esse seo agente”; concluindo que seria melhor assim “do
que despedido por nós”. APEP, SPP, Ofícios do Ministério dos Negócios Estrangeiros (da-
qui adiante OMNE), ano: 1850-1859, cx. 147, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
Estrangeiros ao Presidente da Província do Pará, de 17/04/1857.
47 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 30/08/185.

222 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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posterior transporte para outros pontos da província ou do Império,


podiam contar a seu favor com a situação de disputa diplomática e de
tensão política entre o governo brasileiro e o francês em torno dessa
região, conhecida como Contestado, que, desde meados do século XIX, se
tornou por acordo zona neutra. Zona aberta a todo sorte de aventureiros
e fugitivos livres ou escravos,48 servia de refúgio também aos trafican-
tes que, agindo na sombra do Estado brasileiro, talvez esperassem ter a
vantagem de ficarem imunes à ação da marinha brasileira e, quem sabe,
da inglesa, pois a atuação dessas na costa da região do Contestado podia
causar uma reação francesa em defesa da neutralidade dessa área. Mas,
se essa era a esperança dos traficantes, os agentes britânicos, tal como
o cônsul Vines, e as autoridades brasileiras não estavam dispostos a ali-
mentá-la. Nesse caso, aliás, a repressão ao tráfico pelo governo imperial,
enquanto medida de segurança pública, ganhava coloração local, ainda
que de interesse nacional, pois a repressão à ação dos traficantes na
região do Contestado se somava a outras ações de combate ao mundo da
desordem nessa região de fronteira e litígio.
Nesse contexto, ainda foi que, em 20 e 24 de dezembro de 1858, Manuel
de Frias e Vasconcellos, presidente do Pará, em dois ofícios a José Maria
da Silva Paranhos, ministro dos Negócios Estrangeiros, comunicou “sobre
o supposto desembarque de africanos na Guyana Francesa com destino a
essa Província [do Pará]”. Em resposta reservada de 11 de novembro de
1859, Silva Paranhos informou ter dado conhecimento naquela mesma
data ao ministro da Justiça sobre o que lhe comunicou o governante
provincial; afinal, embora assunto da pasta ministerial dos Negócios
Estrangeiros, também seria do Ministério da Justiça por ser questão
relativa ao tráfico de escravos africanos e à sua repressão. 49 Dessa vez,
os traficantes preferiam desembarcar os africanos em território francês,
fazendo-os passar para o lado da fronteira brasileira, mas buscando tirar
vantagens das disputas territoriais entre as nações francesa e brasileira
em torno do Contestado.

48 Sobre o Contestado, ver Francinete do S. Santos Cardoso. “O Contestado Franco-Brasi-


leiro: conflitos e representações”, in Fernando Arthur de Freitas Neves e Maria Rosea-
ne Pinto Lima (orgs.), Faces da história da Amazônia (Belém: Editora Paka-Tatu, 2006),
pp. 573-626. Ver, com ênfase nas fugas escravas, José Maia Bezerra Neto, “Nas terras do
Cabo Norte: fugas escravas e histórias de liberdade nas fronteiras da Amazônia Seten-
trional (século XIX)”, in Rafael Chambouleyron e José Luis Ruiz-Peinado Alonso (orgs.),
T(r)ópicos de História: gente, espaço e tempo na Amazônia (séculos XVII a XXI), Belém:
Editora Açaí/ Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/Cen-
tro de Memória da Amazônia (UFPA), 2010, pp. 163-182.
49 APEP, SPP, OMNE, ano: 1850-1859, cx. 147, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
Estrangeiros a S. Exa. o Snr. Manuel Frias de Vasconcellos [Presidente da Província do
Pará], de 11/01/1859). Neste documento, a referência e o resumo dos ofícios da presidên-
cia do Pará.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 223


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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A região do Contestado não seria a única área da costa paraense a


ter visita dos tumbeiros, segundo denúncias e suspeitas ditas na corres-
pondência reservada da presidência da província para o Ministério da
Justiça. A costa atlântica do nordeste paraense parece também ter sido
visitada pelos negreiros. Em 6 de setembro de 1859, João Lisboa Paranaguá,
ministro da Justiça, acusou o recebimento do ofício reservado do presi-
dente do Pará, de 7 de agosto, “communicando a denúncia que lhe dera o
subdelegado de Polícia de Cintra relativamente a um barco, suspeito de
empregar-se no tráfico, que bordejava em frente à aquella Villa, bem como
as providências dadas [...] para verificar essa notícia”. Esperava o ministro
que o presidente “attentando à importância que o Governo Imperial liga
aos factos que respeitão ao Tráfico de Africanos” lhe desse sem delongas
“o resultado dos esforços louváveis que tem empregado no empenho de
conhecer se houve fundamento para aquella denuncia”.50 Cabia mesmo todo
zelo das autoridades policiais na vigilância do litoral atlântico paraense,
face à ousadia e à teimosia dos traficantes. Esse foi o sentido da circular
reservada do chefe de Polícia do Pará, João Baptista Gonçalves Campos, ao
delegado de polícia de Bragança, no nordeste paraense, em 18 de julho de
1856, quando informou que, em 2 de maio, o brigue Pensamento saiu de
Tenerife para Benguela, na África Centro-Ocidental, e, presumivelmente,
destinava-se ao “tráfico de Africanos”. Daí suas ordens para que o delegado
tivesse “sob sua vigilância esse Navio se demandar algum porto de seo
districto; previna o desembarque e persiga os criminosos se lograrem
effetua-lo”. 51 O chefe de polícia cumpria o que lhe fora mandado fazer
pelo presidente provincial, que agiu conforme ordens do ministro da
Justiça, Nabuco de Araújo, ditada em missiva reservada de 25 de junho
de 1856. Lendo essa e comparando-a com aquela do chefe de Polícia do
Pará, percebe-se que a segunda reproduz quase que literalmente todo
documento do Ministério da Justiça, usando os mesmos termos em suas
ordens às autoridades policiais. Disse então o ministro ao recomendar
ao presidente suas ordens às autoridades locais: “[que elas] tenhão sob
vigilância esse navio se demandar algum porto do respectivo districto, e
previna o desembarque ou persiga os criminosos se lograrem effetual-o”.52
Na repetição quase literal das palavras do ministro, o chefe de polícia
não deixou dúvidas de que não podia haver outras interpretações, falta

50 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício do Ministério dos Negócios da Justiça
ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 06/09/1859.
51 APEP, Segurança Pública/Secretaria de Polícia do Pará (daqui adiante SP/SPPA), Ofícios
das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51, 1855-57, 1859, Circular reservada do Che-
fe de Polícia do Pará, João Baptista Gonçalves Campos, ao Snr. Delegado de Polícia de Bra-
gança, de 18/07/1856.
52 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Correspondência reservada do Ministério dos
Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 25/06/1856.

224 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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de clareza ou tibieza na execução de suas ordens, funcionando, assim, a


cadeia de comando em tom unissonante.
Noutra ocasião, é possível ver que a chefatura de polícia da província
estava de fato vigilante na repressão ao tráfico. Em 8 de agosto de 1856,
o ministro dos Negócios Estrangeiros, Silva Paranhos, em documento
reservado ao presidente do Pará, acusou o recebimento de seu ofício
confidencial privado, de 16 de julho, que trazia anexa cópia do ofício do
“Chefe de Polícia dessa Província e [do] auto de exame á que se procedeu
no Hiate baleeiro Americano – Eliza Janes – do qual havião suspeitas de
empregar-se no tráfico de Africanos”. Desse fato, o presidente inteirava o
ministro dos Negócios Estrangeiros por envolver navio norte-americano
com a investigação de combate ao comércio ilegal de africanos escravi-
zados, concluindo pelo seu emprego no “tráfico lícito”, 53 pois nem todo
tráfico seria ilegal ou ilícito.54
A prevenção acerca dos navios norte-americanos, sabe-se, não era
à toa. Aliás, em 9 de fevereiro de 1856, o ministro da Justiça, Nabuco de
Araújo, em documento reservado, disse ao presidente do Pará que duas
naves norte-americanas “entrarão em um dos portos da Costa d’África
entre o Cabo Lopes e Loango para carregar escravos com destino à
Costa do Brasil.” Portanto, cumpria ao presidente, por todos os meios
à sua disposição, “impedir qualquer desembarque, que se tente n’essa
Província, e que outro sim mande fazer as mais rigorosas pesquisas
para saber se se acha ahi D. Francisco Rivarosa, ao qual deverá mandar
prender e remetter para esta Corte á disposição do Chefe de Polícia.” Já
o ofício reservado do Ministério da Justiça ao presidente do Pará, de 17
de outubro de 1857, sobre o tráfico por navios de pavilhão americano, era
diferente por não ser uma circular reservada aos presidentes de todas
as províncias litorâneas, o que pode ser visto como uma suposição vaga
em relação ao Pará, antes era dirigida a essa província, indicando como
possibilidade real a tentativa de desembarque de escravos africanos
novos na costa paraense. Disse, então, o ministro Pereira de Vascon-
cellos saber, pelo vice-cônsul brasileiro na Ilha da Madeira, que, a 2 de
setembro de 1856, se despachara rumo ao porto de Belém “o Patacho
Americano W. H. Stuard, de 26 tonnelladas e 9 pessôas de tripolação,
do qual é mestre Dujant, tendo circulado dias depois da sahida o boato
de que antes de vir para aqui [Brasil], iria à Costa d’África carregar
Africanos.” Daí, devia o presidente do Pará dar “conhecimento d’esta
communicação ás autoridades, ordenando-lhes toda a vigilância no

53 APEP, SPP, OMNE, ano: 1850-1859, cx. 147, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
Estrangeiros a S. Exa. o Sr. Presidente da Província do Pará, de 08/08/1856). Neste docu-
mento, a referência e o resumo dos ofícios da presidência do Pará.
54 Acerca dos navios norte-americanos e a caça de baleias ver Grandin, O império da
necessidade.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 225


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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caso de que o referido Patacho procure as águas d’essa Província para


tentar qualquer desembarque de Africanos”. 55
Nos ofícios da Secretaria de Polícia ao presidente de província, era
praxe o chefe de polícia relatar o movimento do porto, em especial a en-
trada e a saída de embarcações estrangeiras. Afinal, essas eram proibidas
de navegar pelo rio Amazonas, só aberto à navegação estrangeira em 7
de setembro de 1867, sendo ainda o controle sobre os navios questão
de saúde e segurança pública, por conta das epidemias que atingiam o
Império. Com a suspeita de envolvimento de navios de outras bandeiras
no tráfico de africanos, embora por razões óbvias agissem na sombra,
aumentou a preocupação policial com a entrada de naves cujos pavilhões
eram identificados usualmente com o tráfico, tal como os norte-ame-
ricanos ou os portugueses. Para tanto, era necessário ter a polícia os
recursos para fazer suas investigações, sendo essa a razão do aviso do
Ministério da Justiça ao chefe de polícia do Pará, de 22 de outubro de
1853, quando informou ter o ministério da fazenda autorizado a compra
de um escaler para a polícia do porto realizar visitas às embarcações,
dizendo ainda ter à disposição da chefatura de polícia na Tesouraria da
Província “a quantia de 1:500$000 [um conto e quinhentos mil réis], que
será aplicada ao pagamento das despesas extra ordinárias e secretas
da polícia”. 56 Havia para repressão ao tráfico verba própria na receita
da polícia secreta, objeto de correspondência reservada do Ministério
da Justiça, a quem prestavam contas de sua aplicação os presidentes
de província. Através dessas prestações de contas da polícia secreta,
percebe-se que ela tinha entre as suas tarefas a repressão ao crime
de moeda falsa e ao tráfico de escravos africanos, as duas principais
atividades criminosas que afligiam o Império na década de 1850. 57
No combate ao tráfico, uma rede policial e de agentes secretos,
agindo na sombra em oposição à dos traficantes era ponto de apoio
importante na vigilância e na prevenção de possíveis desembarques de

55 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negó-
cios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 09/02/1856; e Ofício reser-
vado do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de
07/10/1857. Destaques meus.
56 APEP, SPP, Ofícios da Secretaria de Polícia da Província do Pará (daqui adiante SPPP), ano:
1852-1853, cx. 167, Ofício do Chefe de Polícia José Joaquim Pimenta de Magalhães ao Ill-
mo. Exmo. Snr. Conselheiro Sebastião do Rego Barros, Presidente da Província [do Pará],
de 23/12/1853. Em anexo, cópia do Aviso do Ministério da Justiça ao Chefe de Polícia da
Província do Pará, de 22/10/1853.
57 Sobre o assunto ver APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Mi-
nistério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 25/09/1858;
e Ofício reservado do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província
do Pará, de 1º/10/1859; e Circular reservada do Ministério dos Negócios da Justiça ao Sr.
Presidente da Província do Pará, de 12/05/1852.

226 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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africanos na costa paraense. Era esse o sentido da circular reservada


do ministro da Justiça, Pereira de Vasconcellos, ao presidente do Pará,
de 26 de outubro de 1857, quando lhe ordenou que, “ouvindo o Chefe de
Polícia, ou quaesquer outras pessoas, que lhe possão inspirar confiança,
empregue nas localidades dessa Província, onde se deva recear qualquer
desembarque de Africanos, agentes seus, que informem à V. Exa. de tudo
quanto a este respeito ocorrer”, arbitrando-lhes “por esse serviço uma
gratificação rasoavel e dando mensalmente conta ao Governo Imperial
das informações, que lhe forem prestadas”.58
Os traficantes desembarcariam africanos boçais no litoral paraense,
porque os poderiam despachar legalmente, através da navegação de cabo-
tagem, entre as províncias brasileiras por conta do tráfico interprovincial,
como se fossem escravos dessa ou daquela província, ou como cativos e
africanos livres membros da tripulação desses navios, portando passaportes
falsos. Daí a razão do documento reservado, de 14 de abril de 1852, do
ministro da Justiça Euzébio de Queiroz que, tratando do crescido número
de escravos vindos das províncias do norte para a do Rio de Janeiro, face
ao alto preço deles nesta província, 59 dizia existir quem “possa explicar
este facto por um modo indirecto de fazer o tráfico”, lembrando não ser
“incerto que os traficantes não esquecerão de mandar seus carregamentos
para qualquer ponto em que se lhes offereça occasião, com a esperança de
encaminha-los em navios de cabotagem de uma para outra província.” Até
porque, segundo Euzébio de Queiroz, os traficantes eram homens que não
atendiam “às conseqüências de seo crime e só tratam de enriquecer”. Daí,
recomendava ao presidente provincial, visando obstar as maquinações
desses homens infames, “usar da maior severidade no exame dos pretos
que se tiverem de mandar de uma província para outra”, considerando
que “a menor suspeita mesmo insufficiente para determinar um processo
criminal deve ser motivo para se negar passaporte e para no acto da visita
impedir-se a continuação da viagem”, devendo ele dar “suas ordens mais
terminantes”, para que se “impeça o desembarque de pretos, que não se
mostrarem muito regularmente despachados” e debaixo “de qualquer
suspeita de serem introduzidos illegalmente.”60

58 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Snr. Presidente da Província do Pará, de 26/10/1857.
59 Sobre a alta dos preços dos escravos, baseado na realidade da província do Rio de Janeiro,
Goldsmith diz: “Entre 1850 e 1858 os preços subiram em 260%, ou a uma taxa média anual
de mais de 17%. A partir daí e até o final dos anos 70, os preços flutuaram irregularmen-
te, dentro de uma faixa de 67 a 95% do pico de 1858, permanecendo a 90% do mesmo em
1879.” Cf. Raymond W. Goldsmith, Brasil 1850-1984. Desenvolvimento Financeiro sob um
Século de Inflação, São Paulo: Ed. Harper & Row do Brasil Ltda/Bamerindus, 1986, p. 34.
60 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 14/04/1851.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 227


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Em 2 de julho de 1852, o Ministério da Justiça, reservadamente,


outra vez alertava ao presidente da província que, sob o tráfico inter-
provincial de escravos, se podia “acobertar[-se] o tráfico de africanos
livres”, cabendo-lhe ordenar ao chefe de polícia que não concedesse
“passaportes a negros escravos sem que por documento” se “prove de
modo incontestável que os mesmos escravos, ou são nascidos no Brasil,
ou foram importados antes da lei de 7 de novembro de 1831”, devendo
antes, através de “exame individual, reconhecer a identidade do escra-
vo para quem se requer passaporte”. No tocante ao desembarque de
escravos originários de outras partes da província paraense, o ministro
recomendava que a polícia só permitisse o seu livre trânsito após ter
verificado serem tais cativos os mesmos de que tratam os passaportes,
sem “a menor suspeita de terem sido illicitamente importados”. Tais
cuidados eram relativos aos escravos comercializados através da nave-
gação de cabotagem. No caso dos que acompanhavam seus senhores em
viagens para o seu serviço particular, dizia o ministro que deviam ser
adotadas as medidas de praxe, até então aplicadas “para verificação de
sua identidade e exame do passaporte”, 61 até porque a necessidade de
coibir os traficantes através da vigilância nos portos, revista dos navios,
conferência dos passaportes e exame físico dos escravos em trânsito não
devia criar embaraços ao direito de propriedade senhorial de usufruto de
seus escravos, sendo o comércio interprovincial de escravos legal, já que
o combate ao tráfico negreiro atlântico não implicava necessariamente
combater a escravidão que existia como instituição, apesar de lhe ter
cortado as raízes.
Um maior rigor na fiscalização do tráfico interprovincial de escravos,
inclusive dos que viajavam na companhia de seus proprietários, não se
dava só por conta do significativo crescimento do comércio nacional de
cativos desde a Lei Euzébio de Queiroz, de 1850; 62 mas tinha sua razão
na necessidade de o governo dar uma resposta política às pressões diplo-
máticas e, principalmente, às ações navais da Inglaterra no litoral e até
mesmo em portos e locais do território do Brasil, salvaguardando que o
comércio de cabotagem brasileiro, inclusive envolvendo escravos desde que
não africanos livres, fosse respeitado pela marinha inglesa, que, de fato,
deixou de interferir em navios envolvidos com “a transferência legítima
de escravos de uma parte do Brasil para outra”, apesar dos frequentes

61APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério dos Negócios
da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 02/07/ 1852.
62 Só para o Rio de Janeiro, província e Corte, entre 1852-1859, vieram do Maranhão, Cea-
rá e Pernambuco, a “nova costa africana”, 26.622 escravos, embora o ministro britânico no
Brasil W. D. Christie informasse ao seu governo que só para a cidade do Rio de Janeiro, en-
tre 1852 e 1862, foram 34.688 escravos vindos das regiões do Norte do Brasil. Cf. Bethell,
A abolição, p. 423.

228 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

protestos do governo inglês contra “a desumanidade do comércio costeiro


de escravos no Brasil”.63
O Ministério da Justiça zeloso dos direitos do Brasil na aplicação da
legislação antitráfico nas águas e no solo nacionais, não só coibia o trá-
fico ilegal, travestido de interprovincial, mas dificultava aos traficantes
outros expedientes, como passar os africanos livres escravizados como
tripulantes das embarcações. Daí o aviso reservado de 20 de agosto de
1851, determinando ao presidente do Pará “as convenientes ordens, para
que na Capitania do Porto dessa Província não se matriculassem como
marinheiros, africanos, que tiverem menos de trinta e cinco annos de
idade, ou foram evidentemente importados antes da cessação do tráfico”,
se recomendando “nisto os maiores cuidados e vigilância”; bem como
não dessem “despachos de sahida às embarcações em que se encontre
qualquer dos signaes de que tratam os differentes parágraphos do art.
32 do Decreto nº 706, de 14 de outubro do anno próximo pretérito, e se
verifique alguma das circunstâncias das do art. 33 do mesmo Decreto”. Este
aviso, entretanto, em 27 de agosto de 1851, foi aditado pelo Ministério da
Justiça, corrigindo-o ao enfatizar como referência a Lei de 1850, ao invés
da legislação antitráfico de 1831, recomendando ainda que o presidente
fizesse “executar o referido Aviso com a maior circunspecção, a fim de
não causar sérios embaraços à navegação de cabotagem”.64

Uma questão de honra e de dever


A defesa da soberania e dos direitos da marinha mercante brasileira,
face à agressiva política britânica antitráfico na costa do Brasil, já não
podia ser mais só retórica do governo brasileiro em seus jogos diplomá-
ticos com os ingleses, era preciso ser uma posição política legitimada no
combate aos traficantes de escravos e à extinção do comércio negreiro
atlântico para o Brasil, como se vê em circular reservada, de 17 de junho
de 1852 , do ministro da Justiça, Sousa Ramos, ao presidente do Pará,
quando informou que o governo inglês suspendera “as ordens que havia
dado aos seus cruseiros para a visita e a aprehensão de barcos brasileiros
em nossa vista no caso de tráfico de africanos”, justo porque o governo
brasileiro combatia efetivamente o tráfico, tanto que, graças às “medidas
adoptadas” e “com tanta firmeza executadas pelo governo imperial”, se
devia “essencialmente o lisongeiro estado de progressiva dimminuição
e hoje da quase completa extincção do tráfico”, apesar dos esforços no

63 Bethell, A abolição, pp. 400-401, 422-424.


64 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Aviso reservado do Ministério e Secretaria de
Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 20/08/1851; e Circular reserva-
da do Ministério e Secretaria de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de
27/08/1851.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 229


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

parlamento inglês em atribuir o fim do tráfico aos “meios violentos em-


pregados pelo governo britânnico, aos seus cruseiros”.
Nesse contexto, Sousa Ramos dizia ao presidente que todo o rigor
era necessário para impedir a volta do tráfico, dada “a necessidade de
restabelecer e confirmar a verdade [...] que o Governo do Brasil tem força
bastante [...] para executar as suas leis.” Sousa Ramos preocupava-se com
o possível retorno do tráfico porque os “contrabandistas, dominados pela
ambição [...], talvez encherguem na cessação das violências do cruseiro
inglês um embaraço de menos”, animando-se a desembarcar africanos
no Brasil, “interrompendo-se d’esta maneira a marcha progressiva da
extincção do contrabando.” E, assim feito, “quanto este sucesso será
desagradável ao Governo Imperial, e quanto terá de prejudicial à honra
e aos interesses nacionais.” Dizia, pois: “os inimigos de nossa dignidade
acharão pretexto para justificar a violência com que a estrangeiros têm
pretendido arrogar a si o direito de fazer a polícia de nossos portos”. Toda
vigilância era recomendada ao presidente do Pará, enviando ao Ministério
da Justiça, em correspondência reservada, “minuciosa exposição de tudo
quanto n’essa província houver ocorrido e chegar ao conhecimento” da
presidência, “quer a respeito da effetiva importação de africanos e sua
distribuição pelo interior, quer mesmo sobre as suspeitas de que ella
se tentasse, ou a intente individuo certo e determinado”, e as medidas
tomadas; sendo o presidente avisado de que “ainda quando nada tenha
ocorrido que mereça relatar-se”, devia mesmo assim “periodicamente
communicar”.65
O teor da missiva de Sousa Ramos revela ser a repressão ao tráfico
transatlântico de escravos uma política de Estado do Império, não sendo
seu teor distinto de diversos documentos reservados de outros ministros
da Justiça aos presidentes provinciais. O próprio Sousa Ramos, nomeado
ministro da Justiça em 11 de maio de 1852, em aviso circular reservado,
de 12 do mesmo mês, comunicava que a mudança de ministro não signi-
ficava alteração alguma na “direcção desta Repartição”, determinando ao
presidente do Pará continuar na “mais rigorosa observância das ordens e
instruções expedidas”, antes esforçando-se “na perseguição dos criminosos
e principalmente dos moedeiros falsos e dos traficantes de africanos”, em-
pregando “se possível maiores esforços para a completa extincção do tráfico,
pois para o Governo Imperial é esta uma questão de honra e de dever”.66
A efetiva repressão ao tráfico, desde a Lei Eusébio de Queiroz, não quer
dizer que o governo brasileiro não o tentou reprimir após a de 7 de novembro

65 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 17/06/1852.
66 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 12/05/1852. Destaques meus.

230 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

1831, primeira antitráfico, como se ela fosse só para inglês ver. Lembremos,
nesse sentido, acerca do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro, que houve
um aumento no volume de escravos importados no período imediatamente
anterior à aprovação da Lei de 7 de novembro de 1831, face à possibilidade
de término do tráfico, afinal não estava dado de antemão que ela não seria
executada;67 não esquecendo que, na década de 1830, o governo regencial
fez algumas tentativas para coibir o tráfico, inclusive com a captura de 6
navios no litoral fluminense, nos anos de 1834 e 1835. Mas, só com a Lei de
1850, que não suprimiu a de 1831,68 a perseguição e a extinção do tráfico
tornaram-se parte da agenda política do governo brasileiro, ainda que hou-
vesse mudanças ministeriais ou até substituições de gabinetes.
Na década de 1850, se o combate ao tráfico se fez imperioso por parte
da monarquia em face das ações de busca e apreensão de navios brasileiros,
até mesmo em portos do Império pelos cruzeiros ingleses, em virtude do
Bill Aberdeen de 1845, o foi também face à mudança da opinião pública
brasileira no momento em que “o tráfico era universalmente condenado”.69
Afinal, a ação militar britânica, além das dificuldades encontradas no litoral
brasileiro para cumprir o Bill Aberdeen, não foi por si só suficiente para
dar cabo do tráfico, segundo Bethell, quando diz que apesar do “número
recorde de navios capturados pela marinha britânica e subsequentemente
condenados em tribunais marítimos (...), o tráfico de escravos para o Brasil
não foi absolutamente esmagado. Ao contrário, durante a segunda metade
dos anos quarenta ele efetivamente excedeu todos os níveis anteriores.” 70
No ápice da repressão inglesa ao tráfico, entre 1845 e 1849, o comér-
cio de escravos tornou-se mais lucrativo em face do aumento da demanda
por cativos, com o maior volume das exportações de café e açúcar, tanto
que 50.000 a 60.000 escravos africanos foram importados, sendo a maior
parte (2/3) desembarcada no litoral, ao norte e ao sul do Rio de Janeiro, e
outra parte no próprio Rio de Janeiro; ao sul de Santos, em Paranaguá; e na
Bahia, “cujo comércio aumentou regularmente durante a segunda metade
dos anos quarenta”. Daí por que o ministro Sousa Ramos dissera que o fim
das “violências” dos cruzadores ingleses seria “um embaraço de menos”
aos traficantes, já que, segundo Bethell, “para eludir o sistema preventivo
britânico, o comércio [de escravos] tornou-se mais altamente organizado
do que nunca”.71 E para combater a capacidade organizativa desses nego-
ciantes que passavam a ser vistos como “contrabandistas”, “criminosos” e

67 Florentino, Em costas negras.


68 Bethell, A abolição, pp. 100-101, 103 e 384-385.
69 Idem, p. 378. Ver ainda pp. 355, 374-375, 379 e 383.
70 Idem, p. 323.
71 Idem, pp. 323-324. Ver também p. 325 e 326.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 231


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

traiçoeiros inimigos da honra e da dignidade nacional, só fazendo do seu


combate “uma questão de honra e dever”, segundo Sousa Ramos.
Daí a repressão ao tráfico ser um ato de vontade política do governo
imperial, como resposta à crescente pressão inglesa e à mudança da
opinião pública brasileira em particular, sendo importante uma nova lei
antitráfico face às imperfeições e ao descrédito da primeira, ainda que
a de 7 de novembro de 1831 fosse base para a de 4 de setembro de 1850,
sendo inclusive citada pelas autoridades, quando do combate ao tráfico,
tanto que já vimos como o Ministério da Justiça instruíra o presidente do
Pará a ordenar ao chefe de polícia que não se concedessem “passaportes a
negros escravos sem que por documento” fosse provado “de modo incon-
testável que [...] foram importados antes da lei de 7 de novembro de 1831”,
apesar do cuidado em não afrontar o direito de propriedade senhorial. 72
A repressão ao tráfico, como ato de vontade política, era uma de-
monstração de força do governo imperial, que se traduzia tanto no uso
da Marinha de Guerra contra os negreiros, havendo uma estação naval no
Norte, compreendendo o Pará e o Maranhão, e a instalação de “tribunais
no Rio de Janeiro, em Belém (Pará), São Luís (Maranhão), Recife, Salvador
e Porto Alegre para julgar as embarcações (envolvidas no tráfico) captura-
das”;73 quanto no enquadramento de todo o governo, destacadamente dos
presidentes, chefes de polícia e magistrados das províncias marítimas. O
caso do desembarque de africanos em Serinhaém, em Pernambuco, em 13
de outubro de 1855, com a conivência das autoridades locais e de famílias
importantes, inclusive o presidente e o chefe de polícia,74 deixou ainda
mais alerta o governo imperial. Lembre-se de que, em 6 de novembro de
1855, o ministro Nabuco de Araújo tratando desse caso considerou existir
“fundadas apprehensões de que esse facto não é isolado”, o que exigia
“da parte das autoridades do litoral todo zelo na repressão do tráfico”,
cobrando ao presidente do Pará “toda a vigilância das ditas autoridades a
este respeito, devendo substituir aquellas que não inspirarem confiança,
e forem suspeitas de connivência ou negligência”; devendo ainda propor
“quaesquer meios, que se devão empregar para effectiva repressão d’esse

72 Idem, p. 430, quando trata da ação do ministro da Justiça Nabuco de Araújo, em 1854,
junto a certo juiz para não cumprir ao pé da letra a Lei de 7/11/1831, visto que o gover-
no não estaria disposto a mexer com essa questão, ainda que decidido a fazer cumprir a
lei Eusébio de Queiroz de 4/09/1850.
73 Cf. Bethell, A abolição, pp. 386-387. Com a derrota do caudilho argentino Rosas, em feve-
reiro de 1852, navios de guerra brasileiros deixaram o Rio da Prata e somaram na patru-
lha do comércio atlântico de escravos africanos, sendo 16 navios, 8 a vapor, posicionados
entre Campos, Rio de Janeiro, e o Rio Grande do Sul; 3 na Bahia; 3 em Pernambuco e 5 no
Maranhão. Estes fariam parte da Estação Naval do Norte. Idem, p. 415.
74 Ver idem, p. 420 e 421; e Gouveia, História da escravidão, pp. 130-131, que trata do envol-
vimento de magistrados no caso de Serinhaém, das punições adotadas e do controle da
magistratura pelo governo imperial.

232 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

crime e dependão do Governo Imperial”.75 Antes de Serinhaém, aliás, o


governo sancionara a Lei de 5 de junho de 1854, “que ampliava os poderes
dos tribunais marítimos especiais criados de conformidade com a lei contra
o comércio de escravos de 1850”, saindo o julgamento dos traficantes e
seus cúmplices dos júris locais para os tribunais marítimos.76

Leis, segurança pública, e repressão do tráfico de africanos


Não estando mais no governo, Eusébio de Queiroz, em discurso no
parlamento brasileiro, em 16 de julho de 1852, afirmou que o combate ao
tráfico não devia ser considerado uma questão de partido, mas “uma questão
que é inteiramente nacional”. Como tal, disse Queiroz, foi que os conserva-
dores no governo extinguiram o tráfico, ao reconhecer “a revolução que se
havia operado nas ideias, na opinião pública do país”, sendo o combate ao
contrabando de africanos uma aspiração nacional e não de governo de um
partido. Disse, ainda, que a razão fundamental para se extinguir o tráfico
foi o medo das revoltas escravas africanas, principalmente no Centro-Sul,
citando os casos de Campos, Valença e Vassouras, sendo o seu fim uma
questão pertinente à ordem e à segurança pública, pois sua continuidade
representava “um grave perigo contra a nossa segurança interna”, sendo
o “conhecimento do perigo que o excesso de africanos trazia ao país a
causa principal da modificação que se ia operando na opinião [pública]”.77
Quando Eusébio de Queiroz deixou o ministério, seu sucessor,
Sousa Ramos, em ofício reservado, de 17 de maio de 1852, informou ao
presidente do Pará que nada mudaria no firme e exato cumprimento das
ordens de seu antecessor, visando à “fiel execução das Leis, segurança
pública, e repressão do Tráfico de Africanos.” Esperava que o presi-
dente, “especialmente neste último ponto”, empregasse “ainda maior
empenho”, “para que de huma vez por todas cesse esse contrabando, que
tanto nos acabrunha e vexa perante a civilização do mundo”. Sendo o
combate ao tráfico visto como ato de vontade de uma nação soberana
e civilizada, Sousa Ramos deixou mais claro ainda a associação entre
esse e a segurança pública, em circular reservada de 17 de junho de
1852. Nesta, mesmo informando que o governo britânico suspendera
“as ordens que havia dado aos seus cruseiros para a visita e aprehensão
de barcos brasileiros em nossas vistas no caso do tráfico de escravos”,
ordenou a contínua perseguição aos traficantes, visando “effetuar a
completa extincção do tráfico, como medida de conveniência social, de

75 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Circular reservada do Ministério e Secretaria
de Estado da Justiça ao Presidente da Província do Pará, de 06/11/1855.
76 Bethell, A abolição, p. 419.
77 Apud Malheiro, A escravidão. As citações estão nas p. 201 e 216.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 233


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

civilização, de honra nacional e até de segurança pública”, já que maiores


deviam “ser os esforços empregados, quando acresce a necessidade de
restabelecer e confirmar a verdade de sua parte de muito alcance, que
o Governo do Brasil tem força bastante para desempenhar suas vistas
[buscas navais] e fazer executar as suas leis.” 78
Uma variação dessa circular de Sousa Ramos, com a mesma data, ao
presidente do Rio de Janeiro, foi citada por Dale Graden, quando argu-
mentou que a rebeldia escrava e o seu medo por parte da elite brasileira,
configurando um problema de segurança pública de ordem interna,
“influenciaram os funcionários imperiais a tomarem a decisão de apoiar
a abolição completa do tráfico de escravos entre a África e o Brasil”. 79
Bethell também demonstra que o medo da africanização da sociedade e,
mais ainda, de revoltas escravas havia, de certa forma, minado as bases
de sustentação do tráfico e de seus agentes, contribuindo para a sua
condenação pela opinião pública brasileira.80 Como já visto, Eusébio de
Queiroz apontou razões assemelhadas, com as quais Perdigão Malheiro
concordava, ao analisar, em 1867, o contexto que levou ao fim do tráfico,
pois reproduziu a fala de Queiroz em anexo à sua obra, A escravidão no
Brasil. 81 No caso da província paraense, é possível não só seguir essa tri-
lha, mas alargar esse caminho, vendo de que forma a repressão ao tráfico
no Pará também constituía uma questão de segurança pública, caso se
considere o contexto da província à época, quando o combate ao comércio
ilegal de cativos, associado à repulsa pelo escravo africano, imbricava-se
com a preservação da ordem e da segurança pública no pós-Cabanagem,
a partir de 1840.

“Se quizesse fazer revoluções não lhe faltaria gente”


Nos primeiros meses de 1840, os últimos grupos cabanos renderam-se
ao governo imperial em Luzea, no atual Amazonas, quando “novecentos e
oitenta Rebeldes, com as competentes armas, capitaneados por Gonçalo
Jorge do Magalhaens”, entregaram-se às autoridades, conforme ofício
da Câmara Municipal de Belém, em resposta ao presidente da província,
que noticiara esse fato aos vereadores, em ofício de 7 de maio de 1840.82

78 APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do Ministério dos Negócios
da Justiça ao [Presidente da Província do Pará], de 17/05/1852. Destaques meus; e Circu-
lar reservada do Ministério dos Negócios da Justiça ao Snr. Presidente da Província do
Pará, de 17/06/1852. Destaques meus.
79 Graden, “‘Uma lei... até de segurança pública’”, p. 114.
80 Bethell, A abolição, pp. 95, 329-330.
81 Malheiro, A escravidão, pp. 201-222, Anexo 7.
82 Cf. ofício da Câmara Municipal do Pará ao presidente da Província, Treze de Maio, 03/06/
1840, n. 7, p. 27.

234 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Bem antes, no entanto, a Cabanagem já havia iniciado o seu fim, quando


o último presidente cabano, Eduardo Angelim, com seus companheiros
“rebeldes” deixaram Belém, que então voltou ao domínio do governo da
legalidade, em 13 de maio de 1836. A partir daí, com a prisão de Angelim
algum tempo depois, a Cabanagem continuou, até 1840, resistindo nos
sertões amazônicos, mas, sem condições dos cabanos reverterem a sua
derrota, foi iniciado o processo de restauração da ordem e da segurança
públicas, enfim a pacificação da província.83
Finda a Cabanagem, com cerca de 30 mil mortos, o seu espectro
não se esmaeceu ao longo da década de 1840 e nas seguintes; o medo
de novas cabanagens continuaria rondando as mentes e os corações dos
partidários da ordem e da legalidade, assombrando-os. Uma das razões
desse medo estava no imaginário acerca da Cabanagem, como tempo da
“anarquia”, da “desordem” e da “malvadeza”, o chamado “tempo cabanal”,
bem como a identificação dos cabanos como “bichos-papões”, “assassinos”
ou “malvados”, sendo inclusive o termo “cabano” considerado por muitos,
e não somente pelas elites, como ofensivo. Em Belém, em novembro de
1877, o sapateiro e inspetor de quarteirão Hilário Bruno de Almeida e
o taberneiro português Antonio Marinho da Moia “processaram um ao
outro por crime de injúria”, sendo a primeira queixa dada por Hilário
que, na discussão com o taberneiro, se sentira ofendido por este lhe ter
chamado, dentre outros insultos, de “Cabano”.84
Se, na década de 1870, o termo cabano era visto como ofensa, nas
anteriores não devia ser diferente. Ter sido cabano não era bem visto,
sendo o seu contrário, partidário da ordem e da legalidade, sinôni-
mo de pessoa honrada e bom cidadão. Daí a folha de serviço dos que

83 Sobre a Cabanagem há significativa historiografia. Entre outros, ver Domingos Antônio


Raiol, Motins políticos ou história dos principais acontecimentos políticos da província
do Pará desde o ano de 1821 até 1835, Belém: Editora da UFPA, 1970, 2ª edição, original-
mente publicado na segunda metade do século XIX. Além desse e de outros, ver uma bre-
ve contextualização histórica e discussão historiográfica em José Maia Bezerra Neto,
“A Cabanagem: a revolução no Pará”, in Armando Alves Filho, José Alves Sousa Júnior,
José Maia Bezerra Neto (orgs), Pontos de história da Amazônia, 3ª ed. revista e amplia-
da (Belém: Editora Paka-Tatu, 2001,), vol. 1, pp. 73-102; Eliana Ferreira, “Em tempo ca-
banal: cidade e mulheres no Pará Imperial, primeira metade do século XIX” (Dissertação
de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999); Luís Balkar Pinhei-
ro, Visões da Cabanagem: uma revolta popular e suas representações na historiografia,
Manaus: Editora Valer, 2001; Magda Ricci, “Do sentido aos significados da Cabanagem:
percursos historiográficos”, Anais do Arquivo Público do Pará, no. 4 (2001), pp. 241-271;
idem, “O fim do Grão-Pará e o nascimento do Brasil: movimentos sociais, levantes e de-
serções no alvorecer do novo Império (1808-1840)”, in Mary Del Priori e Flávio Gomes
(orgs.). Senhores dos rios: Amazônia, margens e história (Rio de Janeiro: Elsevier, 2003),
pp. 165-193.
84 Conceição Almeida, “O termo insultuoso: ofensas verbais, história e sensibilidades na Be-
lém do Grão-Pará (1850-1900)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pará,
2006), pp. 31-32.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 235


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

estiveram ao lado da ordem contra a Cabanagem ser algo lembrado nas


solicitações ao poder público. Outras vezes, suspeitos de envolvimento
com os cabanos e sua rebelião tinham, em declarações de terceiros,
documentos comprobatórios de seu bom caráter, inclusive político.
Assim se deu com Manoel Nogueira, ninguém menos que irmão de um
dos líderes, terceiro e último presidente cabano Eduardo Nogueira, o
Angelim. Manoel Nogueira tinha a seu favor declarações dadas pelo
capitão do 4º Regimento da 2ª Linha extinta, Manoel José, por dona
Magdalena Marques e pelo comendador da Ordem de Christo e coronel
de Infantaria da 2ª Linha extinta Giraldo José de Abreu, atestando suas
atitudes honradas e dignas para com eles, inclusive salvaguardando-lhes
a vida, quando da Cabanagem. Declarou, então, o capitão Manoel José
que Manoel Antonio Nogueira “sempre teve regular conduta, dando
ordem à sua vida, e retirando-se de partidos muito obediente as Leys e
as authoridades” e que “na infeliz época da Rebellião, que soffreo esta
Província”, estando Manoel José “refugiado na caza de José Agostinho de
Oliveira, no Itapicurú”, ali conheceu Manoel Nogueira que foi “sempre
em favor da ordem, e opposição aos malvadosos, prestando socôrro ás
famílias contra a sanha dos escravos insubordinados, e impedindo o
aniquilamento das cazas e lavouras”, conforme declaração datada de
21 de junho de 1839.
Em 26 de fevereiro de 1838, Dona Magadalena declarou que, “na
ocasião da retirada das Authoridades e forças legaes” de Belém, em agosto
de 1835, sua casa fora invadida e saqueada pelos “Cabanos”. Mas, ficando
sob a proteção de Manoel Nogueira, novos saques foram impedidos, sendo
conservado em sua casa o que lhe restou, pelo que ficou muito grata. O
coronel Giraldo José de Abreu prestou testemunho mais significativo:
Attesto, que na Revolução de 7 de Janeiro de 1835 [data
da primeira tomada de Belém pelos cabanos], não me
consta entrasse [nela o] Sr. Manoel Antonio Nogueira,
nem cometesse actos criminosos em todo tempo [dos]
governos intrusos de Malcher e Vinagre [primeiro e
segundo presidentes cabanos, respectivamente]: depois
de tomada a cidade pelos R[evolucionários] em 23 de
Agosto do mesmo anno [data da segunda tomada de
Belém pelos cabanos], achando-me azilado em caza de
S. Exa. o [Bispo ?] vi algumas vezes aparecer ali o dito
Sr. Nogueira, e tratar a todos os que ali se acha[vam]
azilados com urbanidade, e dizer-se delle que protegia
as pessôas que os rebeldes pretendiam atacar, e que
socorria quanto podia as Famílias desgraçadas, para
não serem [vítimas] da fome; constando-me mais que
elle era inimigo declarado contra os Negros [pela]
pretensão que tinhão de extinguir os Brancos. Elle e
seos irmãos [Eduardo Angelim e Geraldo Gavião ?] me
[prestaram] auxílio para effectuar a minha retirada para
a Tatuoca [ilha que servia de sede do governo legal] com

236 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

minha Família; [e] m’acompanharão, a fim de não ser


embarassado pelos Pontos fortificados [rebeldes]. E por
ser verdade o refferido, passei a presente por me ser
pedida. 23 de janeiro de 1840. 85

Essas declarações escritas em datas distintas (26 de fevereiro de


1838, 21 de junho de 1839 e 23 de janeiro de 1840) e registradas em 28
de fevereiro de 1840 pela necessidade de Manoel Nogueira reconhecer
e garantir a validade legal desses testemunhos eram papéis que, bem
guardados, podiam ser úteis, pois, até uma inconfiável e suspeitíssima
liderança cabana precisava provar que, mesmo rebelde, fora amiga da
ordem e zelosa protetora, não só de vidas alheias, mas também de suas
propriedades.
A Cabanagem foi então associada à “malvadeza”, à “anarquia” e à
“desordem”, por ter sido movimento marcado pela participação das classes
subalternas, principalmente a negra e a escrava, como visto nos atestados
supracitados, sendo essa a razão de ser sua lembrança tão amarga. Sobre
o assunto, Domingos Raiol, Barão de Guajará, conta que: “Na estrada de
Nazaré, no chamado Largo da Memória, numa casa antiga de Tenreiro
Aranha [a revelia dele], o crioulo liberto, geralmente conhecido pelo nome
de Patriota, reunia a plebe e a predispunha para a revolta”. Vicente Salles
também nomeou vários líderes negros “muito ativos em Belém”: Manuel
Barbeiro, o já citado liberto Patriota e o escravo Joaquim Antônio. Na zona
rural, o cafuz Hilário do Itapicuru, o tapuio Vicente, os irmãos mulatos
Eusébio e Benedito do Acará “deram grande apoio ao comando geral da
rebelião”.86 O medo de novas cabanagens passava por aí, era o temor de que,
em novas sublevações, tomassem parte negros livres, libertos e cativos,
senão revoltas e insurreições escravas propriamente ditas.
Associado ao receio do retorno da “infeliz época da Rebellião”, havia
outro aspecto igualmente assustador para uma sociedade escravocrata:
o temor de que aqui pudesse acontecer uma revolução escrava seme-
lhante à do Haiti.87 Tais medos eram bem reais e não apenas imaginários,
ainda que a imaginação social seja também parte da realidade, receios
forjados pelas lembranças materiais e imateriais do “tempo cabanal”,
assunto de segurança pública no Pará nas décadas de 1840 e 1850.

85 Cf. declarações em APEP, SP/SPPA, Atestados, Ano: 1839, 1866-69, 1889 (destaques meus).
86 Raiol apud Vicente Salles, Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento políticorevo-
lucionário no Grão-Pará, Belém: Cejup, 1992, p. 128. Citações de Salles na p. 132. Ver tam-
bém a p. 136. Ver ainda Salles, O negro no Pará; Vicente Salles, O negro na formação da so-
ciedade paraense, Belém: Editora Paka-Tatu, 2004; Luís Balkar Pinheiro, “De mocambeiro
a cabano: notas sobre a presença negra na Amazônia na primeira metade do século XIX”,
Terra das Águas: Revista de Estudos Amazônicos, vol. 1, no. 1 (1999), pp. 148-172.
87 Sobre o haitianismo no Pará no pós-Cabanagem, ver Bezerra Neto, “Ousados e
insubordinados”.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 237


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Medos reais porque, finda a Cabanagem, não cessou a insubordina-


ção escrava: as fugas eram incessantes e a níveis preocupantes, bem
como os quilombos persistiam e pareciam multiplicar-se, ainda que
combatidos e muitas vezes destruídos. Até parece que os escravos não
haviam ainda tomado conhecimento do restabelecimento da ordem e
da legalidade, mas sabiam, só não haviam desistido de resistir, para
desassossego dos senhores. 88
Nesse contexto, se algumas vezes os “facínoras” eram de fato ban-
didos e homicidas, também eram tidos como tais os escravos e os pobres
livres. Entre os primeiros, aqueles que estavam fugidos, como se pode
ver no pedido do subdelegado de Breves, na Ilha de Marajó, ao chefe
de polícia Pimenta de Magalhães, de 2 de janeiro de 1851, solicitando
que o efetivo policial de sua freguesia fosse suprido de armamentos
“para com prompto socorro e maior segurança se fazerem as precizas
diligências para capturação de criminosos, escravos fugidos, desertores
e mais pessoas que repugnão obedecer á Ley”; ou, então, aquilombados,
conforme relato ao vice-presidente da província pelo subdelegado de
Itapicurú, em 6 de setembro de 1853. Ele contou que, na madrugada de
6 de setembro, a esposa de Luis de Albuquerque Monteiro lhe dissera
que, “seguindo viagem para a capital d’esta Província, a tratar de sua
saúde, fôra nos limites d’este districto acommetida por nove pretos,
todos armados”, que avançaram sobre a sua canoa, sendo feitas “muitas
fuziladas de espingardas”, que não “pegaram” fogo, e “que de susto seus
escravos [da senhora atacada] a defendião”, ficando livres com a fuga
dos atacantes. O subdelegado informou ainda sua pronta reação, pois
acreditava que tal fato “precisava ser reprimido com a mesma promptidão
com que havia sido feito”, e “sem perda de tempo”, reunindo 15 guardas
nacionais com os quais se achava nas “margens do meu districto, para ver
se capturo esses criminozos que julgo serem do mocambo de Mocajuba,
que saem de noite a encontrar as canoas que saem de Acará e Mojú,
para roubarem.” Tudo isto contou, pedindo apoio, achando necessária a
captura dos “ditos criminozos porque, do contrário qualquer dia veremos
casos mais funestos, e assim os lavradores desses dous rios privados
de irem a capital”. O apoio seria “ao menos 10 armas, alguma munição
e mantimentos para ração dos guardas”, pois além do mantimento,

88 Ver José Maia Bezerra Neto, “Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e
fugitivos no Grão-Pará (1840-1888)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Esta-
dual de Campinas, 2000). Sobre os quilombos, entre outros, ver os trabalhos de Vicen-
te Salles já citado e Flávio dos Santos Gomes, A Hidra e os pântanos: mocambos, qui-
lombos e comunidades de fugitivos no Brasil escravista (séculos XVII-XIX), São Pau-
lo: Polis/Editora Unesp, 2005; e Eurípedes Funes, “Nasci nas matas, nunca tive senhor:
história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas” (Tese de Doutorado, Universi-
dade de São Paulo, 1995).

238 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

explicou que “o armamento é indispensável porque tenho os referidos


guardas muito mal armados”. 89
O subdelegado de Itapicurú teve sua resposta. Em ofício de 20 de
setembro de 1853, disse ter recebido apoio do governo provincial, “a
fim de evitar os factos que se tem dado da parte dos pretos fugidos
contra a segurança individual”, recebendo “quinze espingardas e mil
cartuchos”, embora só vindo “15@ ½ de peixe, faltando a farinha” para
ração da tropa. Disse ainda que, fazendo as suas rondas, recebeu ordem
do vice-presidente para “coadjuvar a força que havia marchado para o
quilombo de Mocajuba”, o que fez com uma força de 20 guardas nacionais
e 3 praças da polícia, depois acrescida com mais 32 guardas nacionais.
Assim esteve “empregado no serviço das operações e diligências próprias
para destruição do quilombo” até 18 de setembro 1853, nada dizendo do
desfecho dessa operação, mas relatando que sua força “se portou sempre
com zelo, sobriedade e muita promptidão”.90 Esse documento, tal como
as correspondências entre a presidência da província e as autoridades
policiais, militares e judiciárias, permite ver o quanto a década de 1850
foi um “tempo quente” da história da Amazônia, quando o governo imperial
buscava consolidar o Estado Nacional.91 Enfim, anos duros e tensos por
conta das recentes experiências de convulsões sociais como a Cabana-
gem; e, também, pelos enfrentamentos vividos pelas elites proprietárias
e políticas com as classes subalternas livres e escravas, que, em suas
resistências ao governo dos senhores, eram aos olhos do Império graves
problemas de ordem e segurança pública.
A resistência escrava e de pobres livres ao enquadramento nos
mundos da ordem e do trabalho, conforme as regras das elites pro-
prietárias e políticas, incluindo aí as formas de controle do governo
senhorial sobre os escravos e as diversas formas de recrutamento dos
livres pelas autoridades públicas, tinha a seu favor dois pontos. Um,
a possibilidade de essas classes subalternas se inserirem nas ativi-
dades extrativistas, muito particularmente na extração da borracha,

89 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1850-1853, cx. 139, Ofício do Subdelegado de Polícia da Freguesia
de Breves, Manoel Pereira Lima, ao Illmo. Snr. Dr. José Joaquim Pimenta de Magalhães,
Chefe de Polícia desta Província, de 02/01/1851, anexo ao Ofício do Chefe de Polícia, José
Joaquim Pimenta de Magalhães ao Illmo. Exmo. Senr. Dr. Fausto Augusto de Aguiar, Pre-
sidente da Província, de 14/01/1851; e Ofício do Subdelegado de Polícia de Itapicurú, José
Joaquim de Lima, ao Ilmo. Exmo. Snr. Vice-Presidente da Província, de 06/09/1853.
90 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1850-1853, cx. 139, Ofício do Subdelegado de Polícia de Itapicurú,
José Joaquim de Lima, ao Ilmo. Exmo. Snr. Coronel Miguel Antonio Pinto Guimarães, Vice
-Presidente da Província [do Pará], de 20/09/1853.
91 Sobre a formação do Estado nacional sob a égide imperial, ver Maria Odila Leite Dias da
Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos, São Paulo: Alameda Casa Editorial,
2005. Ver ainda Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, , 4ª ed., Rio de Janeiro: Ac-
cess, 1999.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 239


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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opondo-se ao trabalho agrícola e urbano, sob controle de seus senhores


e patrões; o outro, a própria incapacidade do Estado dispor dos recursos
necessários à repressão desses sujeitos recalcitrantes em sua resis-
tência. Quanto ao primeiro, desde a década de 1850, o extrativismo
da borracha, apesar das riquezas e receitas públicas que gerava, em
larga medida era visto como atividade associada à desordem social
e à ausência de vida civilizada, sendo por isso própria daqueles que,
embrenhados nos sertões amazônicos, viviam à margem da sociedade.
Até porque os seringais eram vistos como valhacoutos para toda sorte
de sujeitos “que repugnão obedecer à Ley”: o chefe de polícia oficiou
ao presidente, em 16 de maio de 1851, que o subdelegado de Itapicurú
comunicou o aparecimento de dois cadáveres, um deles um homem
branco sem a cabeça e os braços, com a cabeça encontrada depois. O
subdelegado supunha tais crimes obras dos “seringueiros, que costu-
mão ter consigo escravos e criminosos”, deixando “em sobressalto” os
moradores, pedindo providências. 92
Noutra ocasião, em princípios do mês de julho de 1854, Campbell &
Pombo, proprietários da ilha de Mexiana, haviam informado o presidente
da província que a sua propriedade, no caso a ilha, havia sido invadida
por “uma multidão de cerca de mil indivíduos, a testa dos quaes alguns
de máo nome na Província”, visando “se utilizarem dos seus seringaes”,
cometendo então vários atentados e premeditando outros, bem como
recusando a reconhecer direitos de propriedade, fazendo pouco caso
das advertências do administrador. De imediato, o presidente provincial
mandou seguir para Mexiana “o Vapor de Guerra – Paraense – com cento
e sessenta e tantas praças de primeira linha, e o Doutor Chefe de Polícia
interino”, com instruções de “fazer respeitar a propriedade d’aquelles
cidadãos, a vida dos ameaçados, e a tranquilidade pública”, bem como
investigar acerca do “procedimento de algumas autoridades policiaes dos
districtos d’aquelle lado”. Embora a diligência realizada tivesse apurado
a inexatidão dos fatos relatados por Campbell & Pombo, não resta dúvida
de que a autoridade pública considerava como crível a associação entre
extrativismo e quebra da ordem e segurança pública, ainda mais sendo
os possíveis cabeças dessa multidão amotinada pessoas de mau nome na
província, no caso membros da família Vinagre, cujo clã era associado
à Cabanagem, havendo Francisco Pedro Vinagre sido comandante de
armas e depois o segundo presidente cabano nos primeiros meses do
ano de 1835. Apuração dos fatos, por sua vez, tornou-se do interesse
dos ministérios da Justiça e do Império, considerando o tamanho de

92 APEP, SPP, OSPPP, ano: 1851, cx. 149, Ofício do Chefe de Polícia ao Illmo. Exmo. Snr. Dr.
Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província [do Pará], de 16/05/1851. Destaques
meus.

240 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

gente reunida sob a liderança dos Vinagre, segundo a denúncia feita,


que sendo verdade podia muito bem abalar a paz pública. 93
A vida sem controle dos seringueiros, entre eles escravos fugidos,
era então mais um ponto relativo à segurança pública na província, sendo
outro a carência de recursos humanos e materiais para o efetivo exercício
do controle social e da imposição da ordem. Ao menos é essa a impressão
que fica pela leitura dos ofícios entre as autoridades policiais e dessas
com a presidência da província, reclamando de armamentos velhos ou
da falta deles e de munição, sem falar dos mantimentos nem sempre
suficientes para as rações das tropas em diligências; bem como da falta
de um maior efetivo policial, que parecia ser inferior às necessidades de
diligência nos sertões, ao policiamento dos núcleos urbanos e à guarda
da cadeia. A falta de infraestrutura material era também tamanha,
não havendo quase sempre prédios públicos próprios e adequados ao
funcionamento de cadeias e delegacias. Além de tudo, o próprio efetivo
dos corpos policiais e dos destacamentos militares na região, recrutados
compulsoriamente entre os pobres livres, em grande medida tidos por
vadios e turbulentos, nem sempre era de muita valia, a crer nas denún-
cias de indisciplina, deserções e até de seu envolvimento em atividades
ilícitas com escravos e outros pobres livres. Enfim, mesmo havendo a
Guarda Nacional reestruturada na província, esta nem sempre conseguia
impor respeito aos escravos e aos livres pobres, particularmente aos
primeiros, que pareciam estar mais impossíveis em sua rebeldia do que
normalmente esperado pelos senhores e pelas autoridades.
Tal qual foi a queixa oficiada em 18 de agosto de 1852 pelo coman-
dante superior da Guarda Nacional ao presidente provincial, “versando
sobre o insólito procedimento d’alguns indivíduos, pela maior parte
escravos, canalha, gentes vis e despresiveis á respeito dos Guardas Na-
cionaes, que ajudão a fazer a guarnição da Cidade [de Belém]”, segundo
lhe contara o tenente coronel comandante de Artilharia da Guarda
Nacional, compartilhando do “mesmo modo de sentir” deste sobre o fato,
solicitando ao presidente providências para que não se reiterassem
essas “assuadas” e fosse “respeitada a farda nacional”, que se achava
“prestando um serviço ao paiz, fazendo punir os diligentes”, pois era
possível que cometessem novamente tais “desacatos”. O que fizeram
os escravos? Segundo o tenente-coronel, por determinação do governo
provincial face “circunstância de falta de força regular”, fora convocada
a Guarda Nacional, ainda que não estivesse “fardada”, para patrulhar a

93 Cf. Governo da Província do Pará, Falla com que o Exm. Snr. Conselheiro Sebastião do Rego
Barros, Presidente desta Província, dirigiu à Assemblea Legislativa Provincial, na aber-
tura da mesma Assemblea, no dia 15 de agosto de 1854, Belém: Typ. da Aurora Paraense,
1854, p. 4. Ver também: APEP, SPP, OMNJ, ano: 1850-1859, cx. 146, Ofício reservado do
Ministério dos Negócios da Justiça ao [Presidente da Província do Pará], de 05/08/1854.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 241


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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capital. Ainda não fardada porque há pouco fora reestruturada. Mesmo


assim, os guardas não tiveram vergonha de por “o correame sobre os seus
hábitos ordinários” e prestar o serviço ordenado. Aconteceu que, disse
o tenente-coronel: “Vestidos por esta forma, elles tem sido o objecto de
apupadas, e dictos pouco decentes, e que se convertem em insolência
por partirem de escravos, pela maior parte”. 94
Para além da insolência escrava, fugas e mocambos, havia o perigo
dessa resistência tornar-se efetivamente criminosa. Na década quente
de 1850, apesar da ocorrência em outras épocas, houve vários casos de
senhores ou feitores mortos por cativos depois condenados à morte. Em 14
de setembro de 1852, em Santarém, foi executado o escravo Antonio dos
Santos, “appellidado o Grande, maior de 60 annos pelo que mostra de seus
cabelos brancos”, por ter matado “seu feitor Felix José Soares Pinto”, um
português de 19 a 22 anos. Outros casos foram os dos escravos Belchior,
assassino do senhor João Pedro Côrrea, na freguesia de Abaité, executado
em 30 de outubro de 1850; Francisco Reginaldo, executado em Cametá
a 3 de junho de 1852, pela morte de sobrinha e primo de seu senhor; o
escravo João, preso em fins de junho de 1852, que matou “barbaramente a
sua senhora moça D. Luiza Severina dos Santos no terreno da Fazenda São
João de Deus, perto da casa de vivenda, onde deixou o cadáver insepulto,
pelo que foi pasto dos burros”. Um tempo antes, em 22 de julho de 1851,
o chefe de polícia relatou que o escravo Antônio matara seu senhor, José
Bernardo Santarém.95
Há evidências, então, de que o medo de novas cabanagens ou levantes
de pobres livres e libertos, e particularmente de escravos, tivesse razão de
ser; lembrando que tal temor transparecia em documentos das autoridades

94 APEP, SPP, Ofícios da Guarda Nacional, ano: 1851-1853, cx. 156, Ofício do Comandante
Superior da Guarda Nacional, Marcos Antonio Brício, ao Illmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Au-
gusto Aguiar, Presidente de Província, de 18/08/1852.
95 Sobre os casos citados ver: APEP, SPP, Ofícios das Autoridades Judiciárias (daqui adiante
OAJ), ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício de Agostinho Pedro Aguiar, Juiz Municipal Supplen-
te de Santarém, ao Illmo. Exmo. Dr. Fausto Augusto Aguiar, D. Presidente d’esta Provín-
cia, de 09/06/1852; e Ofício de Agostinho Pedro Aguiar, Juiz Municipal Supplente de San-
tarém, ao Illmo. Exmo. Snr. José Joaquim da Cunha, digníssimo Presidente da Província do
Pará, de 19/09/1852. APEP, SPP, OAJ, ano: 1850, cx. 133, Ofício de João Baptista Gonçalves
Campos, Juiz de Direito da Comarca de Santarém, ao Illmo. Excmo. Snr. Conselheiro Jerô-
nimo Francisco Coelho, Digno Presidente desta Província do Pará, de 16/06/1850. APEP,
SPP, OAJ, ano: 1850, cx. 133, Ofício do Juiz Municipal Supplente em exercício da Fregue-
sia de Abaité ao Illmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, de 02/11/1850; APEP, SPP,
OAJ, ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício de José Raimundo Furtado, Juiz Municipal Supplente
da Comarca de Cametá ao Ilmo. Exmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, Digno Presidente
da Província do Pará, de 03/06/1852; APEP, SPP, Ofícios dos Comandantes Militares, ano:
1850-1852, cx. 137, Ofício de José Olimpio Pereira, Major Comandante Militar do Distric-
to de Chaves ao Ilmo. Excmo. Snr. Dr. Fausto Augusto Aguiar, de 02/07/1852; APEP, SPP,
OAJ, ano: 1851-1852, cx. 154, Ofício do Chefe de Polícia interino ao Illmo. Exmo. Snr. Dr.
Fausto Augusto Aguiar, Presidente da Província, de 22/07/1851.

242 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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policiais e militares. Sobre isto há, por exemplo, o ofício do major Diogo
Vaz de Moya, comandante geral e militar de Cametá, ao presidente do Pará,
Dr. José Joaquim da Cunha, em 16 de agosto de 1853. Tratava da insubordi-
nação e indisciplina da força policial e militar, cujos membros se evadiam
a pretexto de que a Guarda Nacional já estava estruturada, deixando
aos cidadãos zelar pela ordem pública. O major lembrava que a falta de
autoridade representada pela força pública podia causar desassossego. E
escreveu em tom de alerta: “Ainda temos em recordação as scenas horro-
rozas que tiveram lugar nesta cidade [Cametá] em Abril de 1836 e mesmo
ao de 1824, cujos dias forão de dor, consternação, que enlutarão todos os
pacíficos habitantes: esta Cidade não pode existir sem guarnição, por que
periga a segurança pública, e individual, e o socego que hora desfrutamos.”96
Não sendo de menos que o retorno do líder cabano Eduardo Angelim,
no início da década de 1850, após cumprimento de seu exílio em Fernando
de Noronha (Pernambuco), fosse motivo de preocupação por parte das
autoridades e daqueles que faziam oposição à sua volta, no caso seus
antigos inimigos partidários da legalidade, tais como os redatores do
jornal Correio dos Pobres, que, ao longo de 1851, fizeram beligerantes
ataques à pessoa de Angelim.
Em 23 de dezembro de 1851, o Subdelegado de Barcarena, em ofício
reservado ao chefe de Polícia, contou que, face aos boatos de que Angelim
estivesse preparando uma nova rebelião, “resolveu observar pessoalmente
o referido Angelim em seu engenho denominado – Madre de Deus –”; lá
chegando de súbito e sem aviso, porém, nada encontrou “que pudesse
cauzar suspeitas”, achando Angelim “solitário com sua família”, sendo
recebido, aliás, “com todo o afago”. Depois da visita, contou o subdele-
gado, chamou e inquiriu Estevão Alves, que lhe havia dado conta desses
boatos. Este testemunhou que Angelim “dissera que se quizesse fazer
revoluçoens não lhe faltaria gente, pois que, quando da primeira vez lhe
não faltou, mormente agora que não faltariam filhos que desejassem
vingar as mortes de seus pais”. Pelo que investigou nas terras de Angelim,
no entanto, o subdelegado concluiu que “claro está que elle disse que se
quizesse, mas não disse que hia fazela”, asseverando de qualquer forma
que não ia dormir “a sonno solto sobre a couza do que se trata”, já que
conhecia “perfeitamente que no cazo de elles fazerem motim eu serei a
primeira vítima, por que elles me não podem ser affectos pela prizão que
fiz a Geraldo Francisco Nogueira [irmão de Angelim]”. Geraldo Nogueira
foi preso pela referida autoridade policial em fevereiro de 1851 por ter
espancado outro homem e depois por ser constatado que não cumprira os

96 APEP, SPP, Ofícios dos Comandantes Militares, ano: 1853-1854, cx. 169, Ofício do Major
Diogo Vaz de Moya, Comandante Geral e Militar de Cametá, ao Presidente da Província do
Pará, Dr. José Joaquim da Cunha, de 16/08/1853.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 243


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
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termos de sua anistia, voltando antes do fim de seu exílio em Pernambuco.


Após quase um ano preso, foi solto por ordem do Ministério da Justiça,
que o considerou anistiado.97
No Pará da década de 1850, portanto, mesmo após a derrota definitiva
dos cabanos em 1840, o perigo ainda rondava sob o espectro de uma nova
Cabanagem, em face de uma sempre possível rebeldia escrava, associada
ou não a distúrbios sociais e políticos envolvendo sujeitos livres, apesar
dos limites impostos pelas políticas de contenção e controle sociais.
Isto, somado ao impacto de epidemias, como o cólera e a febre amarela,
igualmente assuntos de segurança pública.98Havia ainda as tensões entre
o Império do Brasil e o britânico, ou com o francês, em torno do combate
ao tráfico e disputa territorial da região do Contestado, respectivamente,
que ressoavam na província, inquietando os espíritos, entre eles o espírito
dos escravos. Pois a França abolira a escravidão em 1848 em suas colô-
nias, entre elas a vizinha Guiana Francesa; e a Inglaterra tomava para
si o papel de extinguir o tráfico e assumia uma postura antiescravista.
As tensões entre França e Brasil, na década de 1850, ajudaram a azedar
as relações com monsieur Eivellard, cônsul francês em Belém, removido
pelo governo francês a pedido brasileiro. No caso da Inglaterra, o cônsul
Vines se indispôs na província com as ações dos cruzeiros ingleses no
litoral brasileiro, tornando impopular o governo britânico, sendo os
atos de sua marinha criticados pelo jornal Voz do Guajará em artigos
nominados “Piratas Ingleses”, acusatórios do desejo dos ingleses serem
senhores não só dos mares, mas do Rio Amazonas.99 Dadas tais questões,

97 APEP, SP/SPPA, Ofícios das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51, 1855-57, 1859,
Ofício reservado do Subdelegado de Polícia de Barcarena, Faustino Gomes Alves Cam-
pos, ao Imo. Snr. Dr. José Joaquim Pimenta de Magalhães, Chefe de Polícia da Provín-
cia, de 23/12/ 1851. Sobre a prisão e soltura de Geraldo Nogueira, ver diversos ofícios
constantes em APEP, SP/SPPA, Ofícios das Delegacias e Subdelegacias, ano: 1850-51,
1855-57, 1859.
98 Cf. Documentos de diversas autoridades policiais, judiciárias e militares ao Chefe de Po-
lícia ou ao Presidente da Província, sobre o estado de calamidade e insegurança públicas
ou de (in)tranquilidade em função ou não de epidemias, e os ofícios da Junta de Higiene
ao Presidente, no APEP, Secretaria da Presidência da Província e Segurança Pública/Se-
cretaria de Polícia da Província. Sobre as epidemias, segurança pública e o fim do tráfi-
co, ver Graden, “‘Uma lei ... até de segurança pública’”; e Sidney Chalhoub, A cidade febril:
cortiços e epidemias na Corte Imperial, São Paulo: Companhia das Letras, 1996; no Pará,
associando algumas delas como a varíola ao tráfico, ver Arhtur Vianna, As epidemias no
Pará, Belém: Edufpa, 1975, 1ª edição 1906. Sobre o Cólera na década de 1850, Jane Bel-
trão, Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará, Belém: MPEG/Edufpa, 2004; sobre a febre
amarela, Iraci Riztman, “Cidade miasmática: experiências populares e epidemias” (Dis-
sertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997).
99 Sobre as relações do governo provincial com os cônsules francês e inglês, ver APEP, SPP, Sé-
ries: Ofícios dos Cônsules; Ofícios do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Ofícios da Se-
cretaria de Polícia da Província. Sobre as críticas aos ingleses pela imprensa paraense, ver
“Piratas Ingleses”, Voz de Guajará, Anno I, 5/12/1851, no. 4, p. 1; e 30/12/1851, no. 8, p. 1.

244 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

entende-se como na província paraense a repressão ao tráfico se imbri-


cava com a segurança pública, com o medo de revoltas escravas, tornando
o africano indesejado, bastando os escravos que já existiam, apesar de
tudo uma condição necessária e uma instituição legal, que devia ser em
algum momento reformada por razões de segurança pública e em nome
da civilização.

A “causa da humanidade e da civilização”:


término de uma história, pensando noutras
Findo o tráfico, as políticas de vigilância, prevenção e combate ao
mesmo perduraram até a década de 1860, mesmo não havendo mais seu
retorno. O fim do tráfico foi a primeira grande reforma civilizadora sob
a ótica da opinião pública, isto é das elites proprietárias e políticas do
Império; “importante serviço prestado pelo Brasil à causa da humanidade”,
segundo Eusébio de Queiroz, reconciliando a nação brasileira com “o pro-
gresso das idéias”, “os princípios da humanidade e religião” e o “progresso
humanitário e cristão”, cortando pela raiz a “nociva influência que a
introdução de escravos africanos exerce em nossos costumes, civilização
e liberdade”, no juízo de Perdigão Malheiro.100
Para além do fim do tráfico, no seu rastro começavam a ter forma
algumas propostas e práticas emancipadoras, pois o tráfico e a escravi-
dão, antes aceitos, já não o seriam ao longo da segunda metade do século
XIX, mesmo deixando de sê-lo em tempos distintos. O tráfico ruiu sob o
peso da opinião pública; opinião contra a escravidão ainda caminharia
lenta e sinuosa, já que era possível ser inimigo do tráfico e partidário da
escravidão. 101 Enfim, a “causa da humanidade e da civilização”, 101 para
além do fim do tráfico, tinha um percurso e tanto no tocante à emanci-
pação e/ou à abolição da escravidão. Este percurso já é outra história.

100 Malheiro, A escravidão, p. 223. As citações de Malheiro nas p. 53 e 80.


101 Ver o caso de Henry A. Wise em Bethell, A abolição, p. 225. No Brasil, políticos atuantes
na repressão ao tráfico não tiveram a mesma vontade com a emancipação dos escravos,
bastando ver o posicionamento de alguns deles no Conselho de Estado em 1867 duran-
te debate do projeto emancipador de Pimenta Bueno. Ver Evaristo Moraes, A escravi-
dão africana no Brasil.Ver também Osório Duque-Estrada, A abolição (esboço histórico),
1831-1888, Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro & Maurílio, 1918, pp. 71-73.

O AFRICANO INDESEJADO: COMBATE AO TRÁFICO, SEGURANÇA PÚBLICA 245


E REFORMA CIVILIZADORA: GRÃO-PARÁ, 1850-1860
PARTE III
dilemas do Africano livre
CAPÍTULO 8

do qUe “o preto MinA” é CApAz:


etniA e resistênCiA entre AfriCAnos livres 1
Beatriz Gallotti Mamigonian

Senhor,
Felix Africano livre de nação mina, vem com todo devido
respeito e submissão prostrar-se aos pés do Augusto
Thronno de V.M.I. representar que tendo ele sido
apreendido na Província da Bahia em 1835, e prestado
serviços no Arsenal de Marinha da Bahia, e depois sendo
remetido para esta Corte foi mandado para fábrica de ferro
de epanema aonde esteve por algum tempo, e quando voltou
foi mandado para a Fortaleza da Lago [sic] aonde se acha até
hoje, e tendo prestado serviços por espaço de mais de vinte
anos em repartições públicas, que por isso mesmo deve ser
mais atendives [sic] os serviços por ele prestados, e não
devendo continuar a presta-los a vista do Alvará de 26 de
janeiro de 1818 §5º., e do Decreto de 28 de Dezembro de
1853, que marcou o prazo de 14 annos para obterem suas
cartas de emancipação, além disso obriga-se o suplicante a
fazer as despesas a sua custa com a reexportação para Costa
de África, circunstância esta que sempre foi atendida pelo
Governo de V.M.I. sem consideração ao tempo de serviço que
tivesse o Africano prestado, por isso implora o suplicante
a Alta Proteção de V.M.I. a fim de fazer valer as Leis a
favor da liberdade dos Africanos que são apreendidos por
contrabando, se Digne V.M.I. mandar expedir ordem para
que se entregue ao suplicante a sua carta de emancipação
Graça que submissamente implora. E R.M.
Rio de Janeiro, 20 de Março de 1857.
A rogo do Africano livre Felix, José Fernandes Monteiro2

1 Versão modificada do artigo publicado na Afro-Ásia 24 (2000), 71-95, por sua vez baseado
numa comunicação apresentado na conferência “Enslaving Connections: Africa and Bra-
zil during the era of the slave trade”, realizada em Toronto, em outubro de 2000.
2 Arquivo Nacional - Rio de Janeiro (AN), GIFI 60-136, Félix Mina, Petição de emancipação,
20/3/1857.

249
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

As centenas de petições de africanos livres dispersas na documentação


do ministério da Justiça imperial são testemunhos de um capítulo pouco
conhecido da história da abolição no Brasil. Assim como esta transcrita
acima, feita por um procurador em nome de Félix Mina, numerosas pe-
tições de emancipação de africanos livres foram dirigidas ao imperador
Dom Pedro II e processadas pelos funcionários do ministério da Justiça
nas décadas de 1850 e 1860. As petições foram motivadas pelo anúncio do
decreto no. 1.303, de 28 de dezembro de 1853, que ordenava a emancipa-
ção dos africanos livres que tivessem servido a particulares por quatorze
anos. Tomadas em conjunto, elas revelam a história de um processo de
emancipação controlado pelo governo imperial que precedeu a Lei do
Ventre Livre de 1871 e o processo de abolição da escravidão no Brasil.
Isoladamente, tais documentos registram a vida de africanos livres que
sobreviveram ao período de trabalho compulsório e que lutaram por sua
emancipação. Alguns casos bem documentados, como os que são apresen-
tados neste artigo, revelam ações coletivas e demonstram a influência da
identidade étnica na resistência travada por africanos livres à sua condição.
Os homens cujas trajetórias são discutidas neste artigo faziam parte
de uma categoria jurídica criada no início do século XIX por convenções
internacionais destinadas a abolir o tráfico de escravos no Atlântico. Eram
liberated Africans (no império britânico), emancipados (no império espa-
nhol), noirs de traite (nas colônias francesas), africanos livres (no Brasil)
e libertos (em Angola) os que haviam sido emancipados por estarem a
bordo de navios capturados e condenados por tráfico ilegal, ou ainda por
terem sido apreendidos em terra logo após o desembarque. Seu estatuto
implicava que ficassem sob a guarda dos governos locais por um período
de tempo que correspondia a um “aprendizado”. A existência de africanos
emancipados nessas condições especiais em lugares tão diversos quanto
Serra Leoa, Colônia do Cabo da Boa Esperança, Cuba, Bahamas, Jamaica,
Angola e Brasil liga, portanto, as várias histórias dos esforços para a
abolição do tráfico de escravos por um ângulo até há pouco esquecido: a
experiência das pessoas que foram objeto das medidas abolicionistas.3

3 Segundo David Eltis, foram resgatados e emancipados 177 mil africanos, 6% do total da-
queles traficados entre 1807 e 1867; ver David Eltis, “O significado da investigação sobre os
africanos escapados de navios negreiros no século XIX”, História: Questões e Debates (Curi-
tiba), n. 52 (Jan-Jun 2010), pp. 13-39. A literatura sobre os africanos resgatados do tráfico
cresceu bastante nas últimas duas décadas e as principais referências são: Robert E. Con-
rad, “Neither slave nor free: the emancipados of Brazil”, The Hispanic American Historical
Review, v. 53, n. 1 (1973), pp. 50-70, traduzido em “Os emancipados: nem escravos nem liber-
tos”, In: Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1985, 171-186;
David R. Murray, “A New Class of Slaves,” in Odious Commerce: Britain, Spain and the abo-
lition of the Cuban slave trade, Cambridge: Cambridge University Press, 1980, 271-97; Inés
Roldan de Montaud, “En los borrosos confines de la libertad: el caso de los negros emanci-
pados en Cuba, 1817-1870”, Revista de Indias, v. 71, n. 251 (2011), 159-192; Rosanne Ad-
derley, ‘New Negroes from Africa’: Slave Trade Abolition and the Free African Settlement

250 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Os africanos livres que entraram com petições de emancipação junto


ao governo imperial brasileiro nas décadas de 1850 e 1860 foram eman-
cipados pela primeira vez pela Comissão Mista anglo-brasileira sediada
no Rio de Janeiro entre 1830 e 1845, por aplicação do tratado bilateral
assinado em 1826; ou então por autoridades judiciais brasileiras ou pela
Auditoria da Marinha, que aplicavam as leis de abolição do tráfico de 7 de
4
novembro de 1831 e 4 de setembro de 1850. A administração dos africanos

continuação 5

in the Nineteenth-Century Caribbean. Bloomington: Indiana University Press, 2006; Moni-


ca Schuler, “Liberated Central Africans in Nineteenth-Century Guyana”, in Linda Heywood
(ed.), Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora, Cambridge:
Cambridge University Press, 2002, pp. 319-352; Pieter C. Emmer, “Abolition of the abol-
ished: the illegal Dutch slave trade and the mixed courts”, in D. Eltis e J. Walvin (eds.), The
Abolition of the Atlantic Slave Trade: Origins and Effects in Europe, Africa and the Ameri-
ca, Madison: University of Wisconsin Press, 1981, pp. 177-192; Samuel Coghe, “The Problem
of Freedom in a Mid-Nineteenth-Century Atlantic Slave Society: The Liberated Africans of
the Anglo-Portuguese Mixed Commission of Luanda (1844-1870)”, Slavery & Abolition, v.
33, n. 3 (2012), pp. 479-500; Françoise Thesée, Les Ibos de l’Amélie: destinée d’une cargaison
de traite clandestine à la Martinique (1822-1838), Paris: Editions Caribéennes, 1986; Kar-
en F. Younger, “Liberia and the Last Slave Ships”, Civil War History, v. 54, n. 4 (2008), pp. 424-
442; Sylviane Diouf, Dreams of Africa in Alabama: The Slave Ship Clotilda and the Story of
the Last Africans Brought to America, New York: Oxford University Press, 2007; Sharla M.
Fett, “Middle Passages and Forced Migrations: Liberated Africans in Nineteenth-Century
US Camps and Ships”, Slavery & Abolition, v. 31, n. 1 (2010), 75-98; Christopher Saunders,
“Liberated Africans in Cape Colony in the First Half of the Nineteenth Century”, Interna-
tional Journal of African Historical Studies v. 18, n. 2 (1985), pp. 223-239; Alvin O. Thomp-
son, “African ‘Recaptives’ Under Apprenticeship in the British West Indies, 1807-1828”, Im-
migrants & Minorities, v. 9, n. 2 (1990), pp. 123-144; Michael Craton e Gail Saunders, “Tran-
sition, Not Transformation: Apprentices, Liberated Africans, and the Reconstructed Oligar-
chy, 1834-1860”, Islanders in the Stream: A History of the Bahamian People, v. 2, Athens:
University of Georgia Press, 1998, p. 3; Marina Carter, V. Govinden, Satyendra Peerthum,
The Last Slaves: Liberated Africans in 19th Century Mauritius, Cassis: Crios, 2003; Alexan-
der Hugo Schulenburg, “Aspects of the Lives of the ‘Liberated Africans’ on St. Helena” Wire-
bird 26 (2003), p. 18-27.
4 O número total de africanos livres no Brasil foi calculado em 11 mil; pelo menos 5 mil fo-
ram emancipados até 1850, pela Comissão Mista ou juízes locais. Relatório do Ministério
da Justiça apresentado pelo… Ministro e Secretário de Estado Joaquim Octavio Nebias,
Rio de Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1870, p. 8. Sobre os africanos li-
vres no Brasil, ver, entre outros, Afonso Bandeira Florence, “Nem escravos, nem libertos:
os 'africanos livres' na Bahia”, Cadernos do CEAS, 121 (1989), pp. 58-69; Jaime Rodrigues,
“Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na Fábrica de Ipanema”, História Social, 4-5
(1998), pp. 29-42; Luciano Raposo Figueiredo, “Uma jóia perversa”, in Marcas de escravos:
listas de escravos emancipados vindos a bordo de navios negreiros, 1839-1841, Rio de Ja-
neiro, Arquivo Nacional, 1989, pp. 1-28; Jorge Luiz Prata de Sousa, “Africano livre fican-
do livre: trabalho, cotidiano e luta”, Tese de Doutorado em História, Universidade de São
Paulo, 1999; Beatriz G. Mamigonian, “To be a liberated African in Brazil: labour and citi-
zenship”, Tese de Doutorado em História, University of Waterloo (Canadá), 2002; Afon-
so Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no Brasil
(1818-1864), Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2002;
Alinnie Silvestre Moreira, “Liberdade tutelada: os africanos livres e as relações de traba-
lho na Fábrica de Pólvora da Estrela. Serra da Estrela/RJ (c. 1831 - c. 1870)”, Dissertação
de Mestrado em História Social, Universidade Estadual de Campinas, 2005; Enidelce Ber-
tin, “Os meia-cara: africanos livres em São Paulo no Século XIX”, Tese de Doutorado em
História Social, Universidade de São Paulo, 2006.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 251
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

livres havia ficado sob a responsabilidade do governo imperial brasileiro,


através do ministério da Justiça e dos presidentes de província. Com
base no regulamento da comissão mista e em um alvará régio de janeiro
de 1818, os africanos deveriam servir por um período de quatorze anos
como “criados” ou “trabalhadores livres”. 5 Na prática, o grupo distribuído
por arrematação ou concessão dos serviços a particulares e instituições
públicas com base em instruções de 1834 e 1835 teve experiências de
vida e de trabalho semelhantes às de escravos e não teve o prazo do
tempo de serviço respeitado, apesar de todos saberem do seu direito à
emancipação plena. 6
Este artigo discute a trajetória de africanos livres emancipados pela
primeira vez na Bahia em meados dos anos 1830, que serviram no Arsenal
de Marinha durante anos, tendo sido posteriormente remetidos ao Rio
de Janeiro, onde continuaram servindo além do tempo prescrito, até
entrarem com suas petições na década de 1850. A repetição de histórias
e petições similares e a menção feita à Fábrica de Ferro de Ipanema em
algumas delas (começando pela de Félix) chamaram minha atenção para
a existência desse grupo.
O caso mais extraordinário de resistência coletiva por parte de
africanos livres já documentado ocorreu na Fábrica de Ferro de Ipa-
nema, em 1849, quando um grupo de africanos livres foi a Sorocaba
entregar ao juiz municipal uma petição. Com um palavreado bastante
truncado mas enfático, diziam ter vindo da Bahia, onde haviam sido
capturados no “Engenho Cabrito”. Argumentavam que o tempo de serviço
que eles tinham que prestar já havia transcorrido e que tinham sido
transferidos do Arsenal de Marinha da Bahia para o Rio de Janeiro
como prisioneiros. Tal ato de resistência organizada assustou tanto

5 Carta de Lei de 8 de novembro de 1817. Ratifica a convenção adicional ao tratado de


22 de janeiro de 1815 entre este Reino e o da Grã-Bretanha assinada em Londres em
28 de julho deste ano sobre o comércio ilícito da escravatura, Coleção das Leis do Bra-
sil de 1817, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, pp. 74-101; “Alvará com força de
lei de 26 de janeiro de 1818”, Coleção das leis do Brasil de 1818, pp. 7-10. Sobre a dis-
puta diplomática para a abolição do tráfico para o Brasil e discussões dos tratados e
convenções que criaram a categoria de africanos livres, ver Leslie Bethell , A abolição
do tráfico de escravos no Brasil, São Paulo, Expressão e Cultura/Edusp, 1976 e Conrad,
Tumbeiros.
6 Tratei do processo de emancipação dos africanos livres em Beatriz G. Mamigonian, “Con-
flicts Over the Meanings of Freedom: the Liberated Africans' Struggle for Emancipation
in Brazil, 1840s-1860s” in: Rosemary Brana-Shute and Randy Sparks (eds.) From Slav-
ery to Freedom: Manumission in the Atlantic World. University of South Carolina Press,
2009, 235-264. A distinção no tratamento entre os grupos de africanos livres chegados
antes de 1831, até 1834, de 1834 a 1850 e depois de 1850 está no livro que está no prelo,
Beatriz G. Mamigonian, “Para inglês ver?: Africanos livres e a abolição do tráfico de escra-
vos” (título provisório)

252 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

o juiz como o diretor da Fábrica de Ferro, pois ameaçava “a ordem e a


subordinação” que deveriam reinar entre os trabalhadores da fábrica. 7
Esse caso de “insubordinação” dos africanos livres em Ipanema me
parecia excepcional, porque os africanos em questão não só demonstra-
ram que conheciam a peculiaridade de seu estatuto como escolheram
lutar pela emancipação por meios legais. Além do mais, fizeram-no
coletivamente, convencidos de seus direitos iguais, pois partilhavam
a mesma trajetória. Os registros da Fábrica de Ferro revelam que sete
africanos foram encaminhados para São Paulo depois desse episódio:
Félix, Damião, Agostinho, João, Luiz, Silvério e Desidério. Não se sabia
mais nada sobre seu destino até que, quando achei a petição de Félix
entre outras petições de africanos livres na documentação do ministério
da Justiça, rapidamente o associei ao episódio de Ipanema.
Félix, que se identificava como mina, entrou com uma petição junto ao
ministério da Justiça, em março de 1857, na qual dizia ter sido apreendido
na Bahia, em 1835, ter servido no Arsenal de Marinha da Bahia e de lá
ter sido removido para o Rio de Janeiro. Declarava ter prestado serviços
na Fábrica de Ferro de Ipanema e dali ter sido transferido de volta para o
Rio de Janeiro. Quando entrou com essa petição, Félix servia na Fortaleza
da Lage, no Rio de Janeiro, e comprometia-se a voltar para a África se
fosse emancipado. A petição não tinha anexos nem registro da decisão
final do ministério.
Em outro maço de documentos, descobri mais detalhes sobre a luta
de Félix por sua emancipação. Ele tinha entrado com petições duas vezes
no ano anterior. Seu primeiro pedido, datado de 2 de junho de 1856, talvez
escrito de próprio punho, foi indeferido porque o juiz de órfãos não tinha
registro da data de sua apreensão e não podia atestar que Félix havia
completado seu tempo de serviço. Seu segundo pedido, de outubro do
mesmo ano, provocou o pedido de informações, por parte do ministério da
Justiça ao ministério da Marinha. Na segunda petição, ele dizia ter servido
na Fortaleza de Villegaignon, na Fábrica de Ferro de Ipanema, no Quartel
do Campo na Praia Vermelha e na Fortaleza de São João. Em nenhuma
das duas primeiras petições ele mencionou a intenção de voltar à África
quando emancipado.8
No mesmo maço, outros documentos revelaram que Félix não
estava sozinho. Encontrei petições de doze outros africanos em con-
dições semelhantes: Felipe, Benedito, André, Luiz, Silvestre, Evaristo,

7 A petição dos africanos foi transcrita e esse episódio foi discutido por Jaime Rodrigues em
“Ferro, trabalho e conflito”.
8 AN. Diversos SDH-caixa 782 pc. 2. Félix Mina, Petição de emancipação, 2/6/1856; e AN,
Diversos SDH-caixa 782 pc. 2, Félix Africano Livre atualmente servindo na Fortaleza da
Lage, extrato de petição de emancipação, 18/10/1856.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 253
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Agostinho, Braz, Bernadino, Desidério, João e Cyro. Todos se identifi-


cavam como minas ou nagôs e declaravam ter servido no Arsenal de
Marinha da Bahia, de onde foram transferidos para o Rio de Janeiro.
Alguns deles também estiveram envolvidos no episódio de Ipanema.
Ao juntar as peças da história contada nas petições, percebi que ha-
via descoberto o caso de um grupo de africanos livres cuja trajetória
podia ser reconstituída de forma mais ou menos detalhada desde seu
resgate da escravidão por volta de 1835, na Bahia, até seu pedido de
emancipação no Rio de Janeiro, em meados dos anos 1850. 9 Esse caso,
além de possibilitar a reconstituição da trajetória de um grupo, ainda
revela episódios de resistência em que a afirmação de identidade
étnica é usada como instrumento de articulação e persuasão na luta
dos africanos pelo direito à emancipação. 10
Todos os africanos livres desse grupo serviram no Arsenal de
Marinha da Bahia desde sua emancipação, nos anos 1830, até serem
remetidos para o Rio de Janeiro. Muito pouco se sabe sobre suas origens
na África e sobre as circunstâncias de suas capturas ou ainda sobre sua
apreensão na Bahia. Pelo menos alguns dos africanos livres desse grupo
estiveram juntos durante a travessia do Atlântico. Dois ex-intendentes
do Arsenal de Marinha da Bahia testemunharam que o Arsenal recebeu
35 africanos livres entre 1832 e setembro de 1835, e um número não
especificado de africanos livres entre o fim de 1835 e o fim da década
de 1840.11 No mínimo dez dos que foram recebidos no Arsenal antes de

9 A historiografia das últimas décadas do século XX registrava poucas histórias de vida


de africanos na diáspora. De lá para cá, tornaram-se um sub-gênero na área. Sobre o
potencial e os limites da reconstituição de trajetórias no tempo do tráfico ilegal, ver
Beatriz G. Mamigonian, “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das ro-
tas atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da abolição.” Topói
11 (2010), 75-91. Ver ainda João José Reis, Domingos Sodré: Um Sacerdote Africano.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008; João Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus
J. M. de Carvalho, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.
1822-c. 1853). São Paulo: Cia. das Letras, 2010); Randy Sparks, The Two Princes of Cal-
abar: An Eighteenth-Century Atlantic Odyssey. Cambridge: Harvard University Press,
2009; Rebecca Scott e Jean Hébrard, Freedom Papers: an Atlantic Odyssey in the Age
of Emancipation. Cambridge: Harvard University Press, 2012. Ainda são raras as re-
constituições de histórias de grupos.
10 Os africanos da escuna Emília demonstraram coesão semelhante entre companheiros
de travessia. Ver Hawthorne, Walter, “‘Sendo agora, como se fôssemos, uma família’: la-
ços entre companheiros de viagem no navio negreiro Emília, no Rio de Janeiro e através
do Mundo Atlântico”, Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6 (2011), pp. 7-29.
11 Ainda que se desconheça o número exato de africanos livres apreendidos na campa-
nha de repressão ao tráfico ilegal na Bahia, foi certamente apenas uma fração do trá-
fico total para a Bahia, que somente na década de 1830 desembarcou aproximadamen-
te 32.000 escravos aproximadamente; David Eltis, Economic Growth and the Ending
of the Transatlantic Slave Trade, Oxford, Oxford University Press, 1987, apêndice A,
p. 244 e Transatlantic Slave Trade Database, Estimates, http://slavevoyages.org. Uma

254 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

setembro de 1835 foram registrados como tendo sido apreendidos num


engenho pertencente a José Raposo Ferreira. Trata-se de uma apreensão
de 159 africanos nas proximidades de Salvador feita em julho de 1834. É
provavelmente o “Engenho Cabrito” mencionado na petição de Ipanema
e em quatro das petições individuais de emancipação. 12
Os africanos livres que trabalhavam no Arsenal de Marinha da Bahia
sabiam que eram legalmente livres e detinham seus próprios documentos
para provar sua condição. Cada um deles recebera da administração do
Arsenal uma latinha que lhes pendia ao pescoço e que continha sua carta
de emancipação. Essa medida foi ordenada pelas instruções emitidas pelo
governo imperial em 29 de outubro de 1834, que regulavam a distribuição
dos africanos livres entre arrematantes e instituições públicas, mas
parece não ter sido seguida à risca no Rio de Janeiro. 13 Pedro Ferreira
de Oliveira, intendente do Arsenal de Marinha da Bahia em 1835, ates-
tou que essa prática foi adotada durante sua administração e a do seu
antecessor, Antônio Pedro de Carvalho, isto é, entre o início dos anos
1830 e o fim dos anos 1840. Ele descobriu através dos africanos livres
que encontrou no Rio de Janeiro que seus sucessores haviam recolhido
os documentos das mãos dos africanos livres do Arsenal de Marinha. 14

continuação 11

discussão preliminar do tema pode ser encontrada em Florence, “Nem escravos, nem
libertos”. Sobre o tráfico ilegal para a Bahia, ver Pierre Verger, Flux et refiux de la
traite des negres entre le golfe de Bénin et Bahia de Todos os Santos du XVIIe au XIXe
siecle, Paris the Hague, Mouton, 1968; Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido
de escravos, São Paulo, Ática, 1988, Ubiratan Castro de Araújo, “Le Politique et l'Eco-
nomique dans uns Société Esclavagiste: Bahia, 1820 a 1889”, Tese de Doutorado em
História, Université de Paris IV (Sorbonne), 1992; e, mais recentemente, Reis, Gomes
e Carvalho, O alufá Rufino; Paulo C. Oliveira de Jesus, “O fim do tráfico de escravos
na imprensa baiana (1811-1850)”, Dissertação de Mestrado em História, Universidade
Federal da Bahia, 2004; e Paulo C. Oliveira de Jesus, "Notícias de um pequeno trafican-
te ilegal na Bahia (1837-1855)", trabalho apresentado no XXVI Simpósio Nacional de
História, São Paulo, 2011.
12 Florence, “Nem escravos, nem libertos”, p. 63; Adriana Santana, “Africanos livres na Bah-
ia, 1831-1864”, Dissertação de Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos, CEAO/UFBA,
2007, 40.
13 Instruções anexas ao Aviso do ministério da Justiça de 29/10/1834, mais tarde modifi-
cadas pelo Decreto Imperial de 24/12/1835, ordenaram a entrega das latinhas de iden-
tificação. O uso das latinhas foi mencionado em Evaristo de Moraes, A escravidão afri-
cana no Brasil: das origens à extinção, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933,
pp. 86-88; Mello Moraes Filho, Festas e tradições populares do Brasil, São Paulo, Editora
da USP/Itatiaia, l 979, p. 222 e somente encontrado uma vez na documentação relativa
ao Rio de Janeiro: AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.2, Joana Maria das Candeias, Pedido de
exoneração de responsabilidade sobre o africano livre Leão Benguela, outubro de 1856.
14 Essa informação veio à tona na petição de emancipação do africano livre André Mina, que
usou o testemunho do ex-intendente para provar sua condição jurídica e data de captura.
AN, Diversos SDH – cx. 782 pc. 3, André Mina, Petição de emancipação, 17/03/1856.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 255
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Arsenal da Marinha na Bahia em1873, foto da expedição do HMS Challenger.

Levando em consideração que os africanos livres que foram


apreendidos e emancipados pela primeira vez em 1834 completavam
seu tempo de serviço de quatorze anos em 1848, o recolhimento das
latinhas justamente naquela época deve ter causado apreensão de que
seus direitos à “plena liberdade”, depois de cumprido o tempo de serviço,
estariam ameaçados. Ora, não sabemos se o recolhimento das latinhas
foi a causa da agitação dos africanos livres do Arsenal ou consequência
dela. Na petição que os de Ipanema levaram ao juiz de Sorocaba em 1849,
eles disseram que quando estavam na Bahia reclamaram do fato de já
terem completado seu tempo de serviço e pediram explicações para o
“presidente Martins” [Francisco Gonçalves Martins], que os remeteu
como prisioneiros para o Rio de Janeiro. O caso pode ser ainda mais
complicado do que eles contaram se levarmos em conta outras fontes.
Nos meses anteriores a esse episódio, a transferência de africanos livres
do Arsenal de Marinha da Bahia para o Rio de Janeiro foi recomendada
por um delegado de polícia que os acusou de incitar desordem na cidade.
Africanos livres do Arsenal de Marinha (infelizmente não sabemos seus
nomes) aparentemente incitaram escravos a praticar cultos e os incenti-
varam a buscar a liberdade. 15 O chefe de polícia, preocupado com o clima
turbulento entre escravos na cidade e na província da Bahia, sugeriu
expulsar aqueles africanos livres nagôs porque a história mostrava que os
nagôs estiveram envolvidos nas principais revoltas de escravos na Bahia
nas décadas anteriores. O presidente da província recém-empossado,

15 O registro do episódio está em Dale Graden, “An Act 'Even of Public Security': Slave Resis-
tance, Social Tensions, and the End of the lnternational Slave Trade to Brazil, 1835-1856”,
Hispanic American Historical Review, vol. 76, no. 2 (1996), p. 268.

256 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Francisco Gonçalves Martins, havia sido o chefe de polícia em Salvador


na época da revolta dos malês, quando a perseguição aos africanos foi
implacável e seguida por medidas que buscavam expulsar os africanos
libertos da Bahia. Dessa vez, empossado presidente da província, Martins
retomaria a política visando à expulsão de escravos e particularmente
de africanos libertos da cidade de Salvador. 16
Nesse contexto, a transferência do grupo de africanos livres do Arsenal
de Marinha da Bahia para o Rio de Janeiro representou uma tentativa de
aliviar sua pressão pela emancipação e de romper os vínculos que eles haviam
criado em Salvador, como para “removê-los do teatro dos seus vícios”.17 O
raciocínio era procedente, já que os nagôs representavam a maioria entre
os escravos e libertos.18 Isso significava que eles não só tinham boa chance
de formar laços com familiares ou com pessoas de seus locais de origem
na África como tinham a oportunidade de tecer relações com pessoas
de outros grupos, como os aussás e os tapas, através de sua experiência
comum como escravos ou de sua filiação religiosa. Identificar-se como
nagô na Bahia significava pertencer a um grupo cultural forte, formado
sob a escravidão, que era mais abrangente do que a comunidade de língua
iorubá.19 Os africanos livres nagôs foram removidos desse ambiente, mas
levaram consigo sua reputação de “escravos baianos” e acharam no Rio de
Janeiro uma outra comunidade de gente familiar.
Não pude confirmar o número de africanos livres remetidos do Arsenal
de Marinha da Bahia para a cidade do Rio de Janeiro, mas aparentemente
foram enviados em várias remessas. Ao chegarem ao Rio, eles foram
distribuídos entre várias instituições sob a administração do ministério
da Marinha, como a Fortaleza de Santa Cruz e a Fortaleza Villegaignon.
Vinte e oito deles foram remetidos para a Fábrica de Ferro de Ipanema,
no interior de São Paulo, em janeiro de 1849. Eles estavam lá há menos
de um mês quando o grupo de seis africanos livres apresentou sua petição
ao juiz em Sorocaba. Eles já haviam decidido que não ficariam lá.

16 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2003, Parte IV, e Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangei-
ros: os escravos libertos e sua volta à África, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 78-80.
17 A expressão, já discutida por Sidney Chalhoub, foi usada pelo diretor da Casa de Corre-
ção do Rio de Janeiro com relação conveniência de remover um grupo de africanos livres
“pouco morigerados” da cidade do Rio para a província do Espírito Santo: AN, IJ6, 468, ane-
xa a J. J. Siqueira (juiz de órfãos) para ministério da Justiça, 17/10/1857: Sidney Chalhoub,
Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, São Paulo,
Companhia das Letras, 1990. p. 198
18 João José Reis, “‘The Revolution of the Ganhadores’: Urban Labour, Ethnicity and the Af-
rican Strike of 1857 in Bahia, Brazil”, Journal of Latin American Studies, vol. 29, no. 2
(1997), p. 359.
19 Maria Inês Cortês de Oliveira, “Retrouver une Identité: jeux sociaux des africans de Bah-
ia (v. 1750-v. 1890)” (Tese de Doutorado em História, Université de Paris IV – Sorbonne,
1992).

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 257
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A Imperial Fábrica de Ferro São João de Ipanema era administrada


pelo ministério da Guerra e empregava escravos desde a sua fundação em
1811. A partir de 1835, começou a receber africanos livres emancipados
pela comissão mista sediada no Rio de Janeiro. Em 1846, os africanos
livres formavam o grupo mais numeroso da força de trabalho da fábrica,
que também era composta de escravos e presos. Havia 196 homens, 23
mulheres e 21 crianças listados como africanos livres na fábrica naquele
ano, além dos 166 escravos.20 Quando os nagôs ali chegaram, eles perce-
beram que o prazo do tempo de serviço não seria obedecido, uma vez que
encontraram outros africanos que também tinham sido emancipados pela
primeira vez em 1835 e não tinham perspectiva de receber a emancipação
definitiva. Além disso, eles encontraram uma comunidade de escravos e
africanos livres que reproduzia a composição étnica da população escrava
do Sudeste brasileiro, isto é, a grande maioria deles havia nascido ou tinha
pais nascidos na África Centro-Ocidental.21
Entre os trabalhadores ativos, mais escravos eram ocupados em
funções especializadas do que africanos livres, enquanto todas as mu-
lheres se dedicavam a tarefas não especializadas. Como recém-chegados,
os africanos livres da Bahia foram colocados predominantemente em
posições não especializadas: serviços de mineração, de carvoaria, de
transporte, de cuidado com animais ou na roça. 22 Essas tarefas eram
normalmente deixadas para os boçais, mas os que vieram da Bahia já
eram ladinos, como o diretor da fábrica logo reconheceu. Ele detectou
a dificuldade deles em se adaptar e antecipou no seu relatório do início
de fevereiro de 1849 que os recém-chegados “morosa e dificilmente se
poderão ajeitar e acomodar com o serviço do estabelecimento”, atribuindo
a dificuldade ao fato de “serem quase todos marinheiros, exigentes e
mal-acostumados”. 23 A visita dos africanos livres ao juiz de Sorocaba
revelou que eles não estavam dispostos a se adaptar ao trabalho nem a
fazer parte daquela comunidade de trabalhadores. Além disso, a petição

20 Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito”, p. 38.


21 Em 1849, havia 38 africanos livres entregues à Fábrica de Ferro em 1835 e 1836, além de
outros 91 que tinham chegado entre 1839 e 1847. Os escravos e africanos livres da fábri-
ca eram todos crioulos ou provenientes da África Centro-Ocidental ou Oriental; Arquivo
do Estado de São Paulo (AESP), lata 5216, “Relação nominal dos africanos livres, maiores e
menores, extraída do livro de matrícula dos mesmos, organizada em julho de 1849, decla-
rando os que atualmente existem nesta Fábrica, os que tiveram destinos e os que falece-
ram”, 27/10/1851.
22 Sobre a distribuição das ocupações na Fábrica de Ferro, ver AESP, lata 5216, “Relação
nominal dos africanos livres”, 27/10/1851; além de “Mapa dos escravos e Africanos li-
vres existentes na Fábrica d'Ypanema” e “Quadro da actual distribuição do serviço,”
30/10/1854, anexos a AESP, lata 5216, Francisco Antonio Raposo para José Antonio Sa-
raiva, 30/10/1854.
23 AESP, lata 5216, Ricardo Gomes Jardim para Vicente Pires da Motta, 1/2/1849.

258 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

apresentada ao juiz e a atitude tomada diante dele destacam esse caso


dos atos de resistência conduzidos pelos outros africanos livres da
fábrica até então. 24
Os seis homens que estiveram diante do juiz municipal e de órfãos
de Sorocaba, Vicente Eufrásio da Silva e Abreu, no domingo 10 de março
de 1849, explicaram que eles haviam sido contratados para trabalhar por
dez anos, mas já estavam trabalhando há mais de dezesseis como escravos,
apesar de serem livres. Os africanos insistiram que não estavam dispostos
a tolerar aquela situação e exigiram que a autoridade defendesse seus
direitos. O juiz certamente compreendeu a gravidade da situação, mas,
embora as instruções assim ordenassem, resolveu não agir como protetor
dos africanos livres. Ele relatou o ocorrido dizendo que havia despachado
os africanos para que se entendessem com o diretor da fábrica, mas sugeriu
providências para que fossem removidos de lá, porque o estado em que
se achavam demonstrava estarem dispostos a uma insurreição.25 Os sete
africanos livres minas considerados perigosos foram remetidos para o
Rio de Janeiro em maio de 1849, depois de consulta feita ao presidente
da província de São Paulo. Os outros do grupo de vinte e oito africanos
livres minas que haviam vindo para Ipanema em janeiro daquele ano
ficaram na fábrica e foram incorporados nos projetos de colonização do
governo imperial.26
De volta ao Rio de Janeiro depois de sua breve passagem por Ipanema,
esses combativos africanos livres minas foram distribuídos por oficiais

24 Os escravos da fábrica tinham uma história de resistência que incluía, além de fugas indivi-
duais e coletivas, uma petição ao presidente da província de São Paulo em 1828 reclamando
das condições de trabalho e da falta de comida. Nos anos 1830 houve notícia da existência de
quilombos nas proximidades que atraíam escravos da fábrica e possivelmente também afri-
canos livres; Afonso Bandeira Florence, “Resistência escrava em São Paulo: A luta dos escra-
vos da Fábrica de Ferro São João de Ipanema, 1828-1842”, Afro-Ásia, 18 (1996), pp. 7-32.
25 AESP, lata 5216, Vicente Eufrásio da Silva e Abreu para Ricardo Gomes Jardim, 18/03/1849.
26 Um feitor, a quem o diretor havia recomendado toda vigilância sobre os africanos, reco-
mendou a remoção de nove dos africanos livres; AESP, lata 5216, João Pedro de Lima e
Fonseca Gutierrez para Vicente Pires da Motta, 9/5/1849; AESP, lata 5216, João Pedro
de Lima e Fonseca Gutierrez para Vicente Pires da Motta, 7/4/1849. Pelo menos mais um
africano livre mina foi removido da Fábrica de Ferro em agosto daquele ano. Em 1850,
ainda estavam lá 19 africanos do grupo das 28 minas que chegaram na Fábrica de Ferro
de Ipanema em janeiro de 1849. Sete deles foram transferidos para a província do Para-
ná no início dos anos 1850, a cargo do Barão de Antonina, que estava envolvido em pro-
jetos de colonização com índios; oito foram enviados para a Colônia Militar de Itapura,
no Mato Grosso, no início dos anos 1860 (a maioria deles já casados com filhos); dos qua-
tro restantes, um havia fugido e estava preso em São Paulo, e dois outros não têm destino
conhecido depois daquela data. AESP, lata 5216, “Relação nominal dos africanos livres”,
27/10/1851; AESP, lata 5216, Feliciano Nepomuceno Prates para Francisco Ignácio Mar-
condes Homem de Mello, 6/6/1864; AESP, lata 5216, “Relação dos escravos e africanos li-
vres escolhidos em Ipanema, os quais já se acham em Santos e que tem de seguirem para
Mato Grosso”, 24/7/1860; AN, IJ6 16, “Relação de Africanos livres a serem emancipados
em Itapura”, anexa a Zacharias Góes e Vasconcellos para juiz de órfãos, junho de 1864.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 259
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

do ministério da Marinha para servir em instituições públicas e a parti-


culares. O grupo foi mais uma vez dividido, mas eles não só mantiveram
contato como restabeleceram seus laços com os outros companheiros que
haviam ficado na cidade. A sua articulação aparece de novo nos registros
em meados da década de 1850, quando entraram com pedidos de emanci-
pação. Naquele momento, a insistência deles por direito à emancipação
foi formulada em novos termos: tanto continuavam a insistir que eram
livres e não deveriam mais servir como es­cravos, quanto passaram a usar
a identidade étnica para reforçar sua diferença em relação aos outros
africanos livres. Eles exploraram de diferentes maneiras a reputação
dos africanos minas no Rio.
Todos os africanos da Costa Ocidental eram identificados como
“minas” no Rio de Janeiro. Esse termo veio da expressão “Costa da Mina”,
que designava a costa a leste do Castelo de Elmina, onde os negociantes
portugueses conduziam o tráfico de escravos. Os “minas” no Rio de Janeiro
oitocentista haviam sido embarcados no Golfo do Benin e incluíam iorubás,
aussás, tapas e outros grupos. Muitos foram para lá através da Bahia, num
fluxo migratório importante entre as duas regiões que cresceu depois
de 1835. 27 De denominação produzida pelo tráfico de escravos, o termo
“mina” foi adotado pelos africanos como identidade que reunia todos os
africanos da Costa Ocidental, ainda que por vezes eles se identificassem
publicamente pelas denominações dos seus subgrupos.28 Apesar de serem
minoria entre a população africana do Rio de Janeiro, evidências espar-
sas sugerem que a resposta cultural dos minas à vida na cidade exerceu
influência importante sobre o resto da população africana.29

27 A rota de comércio da Costa da Mina para Minas Gerais foi identificada como abastecendo
a região Sudeste de escravos da Costa Ocidental africana desde o início do século XVIII. A
presença de africanos minas no Rio de Janeiro provém desse tráfico, assim como do tráfico
interno proveniente da Bahia, que se acentuou depois de 1835, quando os senhores baianos
procuraram vender seus escravos africanos para fora da província com medo da articulação
de outra revolta. Ver Maria Inês Côrtes Oliveira, “Quem eram os 'negros da Guiné'? A origem
dos africanos na Bahia”, Afro-Ásia, no. 19/20 (1997), pp. 37-73; Mariza de Carvalho Soares,
“Mina, Angola e Guiné: nomes d'África no Rio de Janeiro setecentista”, Tempo. Revista do
Departamento de História da UFF, v. 6, p. 73-93, 1998; e Mary C. Karasch, A vida dos escra-
vos no Rio de Janeiro, 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 63-66.
28 Era esse o caso entre os mina-mahis da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia que
expressaram sua identidade distinta no compromisso da irmandade, para se diferencia-
rem dos africanos de Angola. Ver Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor. Identida-
de étnica, religiosidade e escravidão, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000; João José Reis, “Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo
da escravidão”, Tempo, 3 (1997), pp. 7-33. Ver ainda Mariza de Carvalho Soares, org. Rotas
Atlânticas da Diáspora Africana: da baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: Editora da
Universidade Federal Fluminense, 2007.
29 De acordo com Mary Karasch, os africanos da Costa Ocidental representavam menos de
7% da população de escravos africanos de diferentes amostras antes de 1850. Karasch, A
vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 63. Outros trabalhos sobre a presença de africanos
minas no Rio incluem Carlos Eugênio Líbano Soares, Zungu: rumor de muitas vozes, Rio
de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998; Roberto Moura, Tia Ciata e

260 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Talvez em desproporção relativamente ao seu peso na população, os


minas eram frequentemente encontrados nos registros policiais, possi-
velmente pelo fato de que sua reputação de escravos e libertos rebeldes
atraía as atenções do sistema repressivo.30 A polícia do Rio de Janeiro
tinha os minas sob estreita vigilância, buscando sinais de sua organi-
zação, particularmente da prática do Islã, tendo em vista o ocorrido em
1835. Segundo Mary Karasch, no Rio de Janeiro dos anos 1840, “mina”
tinha adquirido um significado adicional que os caracterizava como “or-
gulhosos, indômitos e corajosos muçulmanos de língua árabe que eram
escravos alfabetizados, inteligentes, capacitados e cheios de energia - e
que trabalhavam duro para comprar sua liberdade”.31 Apesar de a filiação
desses africanos livres minas ao islamismo não ficar comprovada, o resto
da descrição certamente coincide com as atitudes dos membros do grupo.
Além disso, eles também usaram essa reputação em seu favor.
As petições mostram que no Rio de Janeiro os africanos livres que
já haviam cumprido seu tempo de serviço no Arsenal de Marinha da
Bahia continuaram no trabalho compulsório: a maioria deles prestava
serviços em estações navais ou militares ou servia pessoalmente a altos
funcionários do ministério da Marinha. As petições não dão detalhes
sobre as condições de trabalho nas instituições públicas, mas provavel-
mente eles trabalhavam sob disciplina militar e eram empregados em
trabalhos pesados. 32 Os que serviam a particulares eram empregados
continuação 29

a pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal da Cultura, 1995;
Juliana Barreto Farias, Flávio Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares, No labirinto das na-
ções: africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005; Ju-
liana Barreto Farias, Mercados minas: Africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio
de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Ci-
dade, 2015.
30 Holloway revelou que os minas representavam 17% dos escravos africanos e 8,9% do to-
tal dos escravos presos no distrito central do Rio de Janeiro pela polícia. Thomas H. Hollo-
way, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, Rio de
Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 268. De acordo com Carlos Eugênio
Soares, os minas eram maioria entre os africanos (escravos ou libertos) presos em zungus
e levados para a Casa de Detenção do Rio de Janeiro entre 1868 e 1886. Ver Soares, Zungu:
rumor de muitas vozes, pp.77 e 98. Os minas representavam 12% dos escravos presos por
capoeira em 1863, segundo Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os ca-
poeiras na Corte imperial, 1850-1890, Rio de Janeiro, Access, 1999, p.153.
31 Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 64. A autora também discute as taxas de
alfabetização em árabe e as evidências descobertas pela polícia da prática do islã no Rio de
Janeiro. (p. 298-299).
32 Sobre o regime de trabalho dos africanos livres em instituições públicas, além das referên-
cias já feitas à Fábrica de Ferro de Ipanema, ver a parte 2 da tese de Jorge Prata de Sousa,
“Africano livre ficando livre”, Moreira, “Liberdade tutelada”; Bertin, “Os meia-cara”; Carlos
Eduardo Moreira de Araújo, “Cárceres imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. seus
detentos e o sistema prisional do Império, 1830-1861”, Tese de Doutorado em História So-
cial, Universidade Estadual de Campinas, 2009; Gustavo Pinto de Sousa, “Os africanos livres
na Casa de Correção: política e direito como disciplinarização, 1831-1850”, Dissertação de
Mestrado em História, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2011.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 261
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

no serviço doméstico ou postos ao ganho na cidade para trazer uma


quantia fixa aos seus concessionários a cada semana, como se fossem
escravos. Eles partilhavam da ocupação de grande parte dos africanos
livres distribuídos nas décadas anteriores.33 Era uma concessão valiosa,
já que os concessionários pagavam ao Fundo dos Africanos Livres a
soma de 12$000 réis por ano como “salário” (na realidade, aluguel) pelos
serviços dos africanos, mas podiam ganhar a mesma quantia em apenas
um mês se trabalhassem ao ganho. 34 Dois casos se destacam entre os
de africanos livres da Bahia que trabalhavam para concessionários: o
de Luiz e o de Cyro. Luiz, que se identificou como nagô em sua petição,
disse haver prestado serviço no Arsenal de Marinha da Bahia e em
várias repartições, entre elas a Fortaleza de Villegaignon, de onde foi
mandado para a casa de Manoel Montenegro em Botafogo. Chamado a
testemunhar, o concessionário explicou o arranjo que fizeram: Luiz havia
pedido uma licença por escrito para residir longe de Montenegro e lhe
pagar uma soma mensal de 14$000 réis. Depois de concedida a licença,
Montenegro não mais viu Luiz nem o dinheiro e contou à polícia que
este havia se envolvido “em comprar uma escrava e libertar”, o que lhe
rendeu um processo e prisão. Ao que parece, Luiz Nagô chegou da Bahia
e rapidamente arranjou uma maneira de se livrar do serviço obrigatório,
ao se fundir com a população de escravos e libertos da cidade do Rio.
Não podia, no entanto, evitar ser perseguido pelo concessionário dos
seus serviços, que acreditava ter direito sobre ele.
O outro caso, o do africano livre Cyro, é extraordinário. O processo de
emancipação de Cyro gerou uma documentação riquíssima, já que o conces-
sionário dos seus serviços, Dionísio Peçanha, fez de tudo para obstruí-lo e
evitar que o africano obtivesse sua emancipação. Cyro foi registrado como
sendo nagô e tendo 32 anos de idade quando seus serviços foram concedidos
a Antônio Carlos de Azevedo Coutinho, em novembro de 1849. Meses depois
seus serviços foram transferidos para Dionísio Peçanha, que tinha um cargo
de oficial na secretaria de estado dos negócios da Marinha.35 Cyro também

33 Sobre a distribuição dos africanos livres para o serviço compulsório e suas experiências
com concessionários particulares e em instituições públicas, ver “Revisitando o problema
da 'transição para o trabalho livre' no Brasil: a experiência dos africanos livres”, In: Tráfi-
co, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX), organizado por Manolo Flo-
rentino. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. 389-417.
34 Um “jornal” de 480 réis diários era um acerto comum entre africanos livres e seus conces-
sionários. Os africanos podiam acumular o excedente que viessem a obter. AN, Diversos
SDH – cx. 782 pc.3, Luiz Nagô, Petição de emancipação, setembro de 1856.
35 Na época do processo, em meados dos anos 1850, Peçanha disse ser oficial aposentado da
repartição da Marinha; seu nome estava listado entre os oficiais da secretaria da Mari-
nha no relatório anual do ministro. Ver Relatório do Ministro da Marinha, 1849. A trans-
ferência de africanos livres entre concessionários tinha que ser aprovada pelo ministé-
rio da Justiça e/ou pelo juiz de órfãos. Apesar da falta de provas atestando uma transação

262 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

pediu e conseguiu permissão para morar longe do concessionário e pagar-


lhe 480 réis por dia. Ele trabalhava como carregador de café, a exemplo de
tantos outros africanos minas, e constituiu família no Rio de Janeiro: quando
começou seu processo de emancipação, era casado com uma africana mina
liberta chamada Luzia e tinha dois filhos.36
O processo de emancipação dos africanos livres que vieram da
Bahia começou em 1854 com a ação de liberdade impetrada por Cyro
e seu companheiro João na Primeira Vara Cível do Rio de Janeiro. João
havia sido um dos líderes do grupo que se apresentou ao juiz de Sorocaba
em 1849, quando estava em Ipanema. Ele estava servindo ao Primeiro
Regimento de Cavalaria com outro companheiro, Desidério, que tam-
bém havia estado em Ipanema. Tão logo Cyro e João tiveram notícia do
decreto de dezembro de 1853, os dois conseguiram um curador para
representá-los, José Fernandes Monteiro. 37 Eles também conseguiram
o testemunho de dois ex-intendentes do Arsenal de Marinha da Bahia
e do ex-diretor da Fábrica de Ferro de Ipanema, Ricardo Gomes Jardim,
que confirmaram detalhes de suas trajetórias para as quais não havia
provas documentais. A intenção dos africanos era provar seu status de
africanos livres e a data de sua primeira emancipação, já que no livro de
matrícula dos africanos livres no Rio de Janeiro não havia registro de
suas chegadas ao Brasil. Eles também queriam provar que eram nagôs,
demonstrando terem vindo de área ao norte do Equador, onde o tráfico
português estava proibido desde a convenção adicional ao tratado entre
a Grã-Bretanha e Portugal, assinada em 1817.
Cyro e João buscavam basear seu direito à emancipação no alvará
português de 18 de janeiro de 1818, que limitava o tempo de serviço
obrigatório a quatorze anos e prometia emancipação depois desse prazo,
independentemente de terem servido a particulares ou a instituições.
Assim, eles queriam se diferenciar dos outros africanos livres que pediam
emancipação. Era senso comum entre concessionários e africanos livres
que a legislação de 1834 e 1835 havia mudado os termos da distribuição
destes e não havia fixado limite para o tempo de serviço. Além disso, o
decreto de 1853 só beneficiava aqueles que tivessem servido a particulares,
excluindo todos os que haviam trabalhado para as instituições públicas.
Os africanos livres que vieram da Bahia viram na sua origem distinta dos

continuação 35

monetária entre concessionários para a transferência, há indícios de que constituíam


vendas escamoteadas do direito de explorar o serviço do africano livre em questão.
36 Os carregadores de café faziam parte de uma elite entre os ganhadores e eram predomi-
nantemente africanos minas. Ver Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 264-
265, e Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros, p. 9 .
37 José Fernandes Monteiro anunciava seus serviços como procurador de causas no Alma-
nak Laemmert, logo abaixo dos advogados e escritórios de advocacia. Almanak Laem-
mert, 1855, p. 394.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 263
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

demais uma justificativa para esperar que seus casos fossem regulados
pela legislação antiga.38
Dos testemunhos obtidos na ação de liberdade, eles extraíram a
informação necessária para entrar com uma petição junto ao ministério
da Justiça. Apesar do argumento baseado em um direito diferenciado, a
petição seguiu o mesmo caminho das outras na burocracia imperial: os
funcionários verificavam a cópia do registro de matrícula fornecida para
conferir a identidade e o cumprimento do tempo de serviço, e buscavam
elementos que comprovassem a habilidade da pessoa para sustentar-se
através de trabalho regular, assim como testemunhos idôneos de seu
“bom comportamento” e “obediência”.39 Foi assim que as expectativas de
Cyro foram inicialmente frustradas. O concessionário dos seus serviços,
Dionísio Peçanha, usou sua influência junto ao ministério para obstruir a
sua petição porque tinha outros africanos livres a seu serviço e não queria
que os outros seguissem o mau exemplo. Ele estava enfurecido com as
tentativas de emancipação de Cyro e queria do africano uma compensação
de 400$000 réis por não servir o tempo ao qual ele acreditava ter direito.
Esse pedido reforça a suposição de que Peçanha teria pago pela concessão
dos serviços de Cyro e esperava um retomo de seu investimento. Cyro
estava a par disso, assim como sabia que Peçanha iria negociá-lo com
outra pessoa quando ele entrou com o pedido de emancipação. Era essa
parte do tratamento conferido normalmente a escravos que os africanos
livres procuravam evitar ao reclamar seu status jurídico diferente.
O pedido tendo sido indeferido, João e Cyro entraram novamente com
uma petição de emancipação meses depois, refutando os argumentos que
levaram ao indeferimento. João insistiu no seu direito à emancipação,
mesmo tendo ele servido a uma instituição pública, e ofereceu-se a ir
para a África se fosse emancipado. Cyro explicou as razões de Peçanha
para interferir no seu caso e mentir sobre seu caráter. Na petição, os
africanos renovaram suas reclamações com relação ao tratamento bárbaro
conferido aos africanos livres no Rio, que na primeira petição eles haviam
associado ao cativeiro.40 Ambos tiveram avisos de emancipação emitidos

38 A petição deles era justificada da seguinte maneira: “(...) pelas leis antigas sendo eles da
Costa da Mina não deviam servir senão por quatorze anos, e pelos regulamentos e leis mo-
dernos a todos os Africanos foi tareado esse tempo de serviço”. AN, Diversos SDH – cx. 782
pc. 3, João Nagô e Cyro Mina, Petição de emancipação, 22/3/1855.
39 Sobre a tramitação das petições e as armadilhas do processo, ver Mamigonian, “Conflicts
Over the Meanings of Freedom”.
40 João e Cyro argumentavam que “muitos de seus companheiros já receberam, quer na pro-
víncia da Bahia, quer na de São Paulo suas competentes cartas de emancipação e gozam de
suas liberdades, enquanto os suplicantes [sofrem?] ainda no cativeiro; porque cativeiro “é
o que eles têm sofrido e estão sofrendo” (Grifo da autora). Sobre as condições dos africanos
livres a serviço de instituições públicas, ver Beatriz G. Mamigonian, “A Harsh and Gloomy
Fate : Liberated Africans in the Service of the Brazilian State, 1830s 1860s.” In: Dawne Y.

264 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

pelo ministério da Justiça, mas ainda tinham que obter as respectivas


cartas, que seriam emitidas pelo juiz de órfãos e remetidas ao chefe de
polícia, que lhes faria entrega.
A primeira petição de Desidério, que também havia estado em Ipane-
ma e trabalhava com João no Primeiro Regimento de Cavalaria da Corte,
havia sido igualmente indeferida, porque seus serviços pertenciam a
estabelecimento público, e, portanto, ele não teria direito à emancipação
pelo decreto de 1853. Ele foi orientado por membros da legação britânica
no Rio de Janeiro a formular uma nova petição, mais incisiva. Nela, não só
usava o argumento de sua etnia para sustentar seu direito à emancipação
como também defendia todos os africanos livres que trabalhavam em
instituições públicas. Assim como Cyro e João, Desidério disse que foi
apreendido na Bahia, em 1835, vindo de portos do norte do Equador onde
o tráfico de escravos estava proibido por convenções internacionais. É
interessante ressaltar que ele se identificou como mina-nagô, revelando
aos funcionários no Rio sua identidade nagô sob a identificação genérica
de mina. Desidério declarou ter completado “dezenove anos dos mais
descomedidos serviços e injustos castigos” e que alguns de seus com-
panheiros na Bahia já haviam sido emancipados, enquanto ele e outros
companheiros que vieram para o Rio de Janeiro e estavam a serviço do
governo continuavam “sendo oprimidos na escravidão”. Ele reclamava da
injustiça cometida por funcionários do ministério da Justiça ao indeferir
sua primeira petição e pedia a interferência pessoal do imperador no seu
caso, prevendo que sem sua assistência todos os africanos livres a serviço
do governo imperial morreriam como escravos. 41 Desidério só obteve
emancipação através de sua terceira petição, esta baseada no precedente
da emancipação do seu companheiro João, e também se comprometeu a
voltar à África quando emancipado.42

continuação 40

Curry; Eric D. Duke; Marshanda Smith. (eds). Extending the Diaspora: New Scholarship on
the History of Black Peoples. Champaign, IL: University of Illinois Press, 2009, 24-45.
41 Seu apelo em nome dos africanos livres que serviam em instituições era enfáti-
co: “se V. Exa. não se dignar intervir para que sejam fiel mente executados os tra-
tados e mais convenções e leis estabelecidas para a completa liberdade e emanci-
pação dos africanos livres em geral, de certo que, o suplicante e os mais africanos li-
vres que se acham ao serviço do Governo Imperial serão para sempre verdadeiros es-
cravos do mesmo governo a seu mero arbítrio; e assim exaustos de mais recurso al-
gum sucumbirão ao rigor de uma tão negra sorte”. AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.3,
Desidério, Mina, Petição de emancipação, 4/6/1855. O encarregado de negócios da
legação britânica no Rio de Janeiro, William G. Jerningham, admitiu ter intercedi-
do em favor de Desidério junto ao governo brasileiro. A construção da petição e a fal-
ta de assinatura sugerem que ela pode ter sido escrita ou formulada por funcioná-
rios do Foreign Office britânico. Jerningham para Clarendon, 9/4/1856, publicada
em W. D. Christie, Notes on Brazilian Questions, London, Macmillan, 1865, pp. 223-4.
42 AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.3, Desidério, Mina, Petição de emancipação, 8/2/1856.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 265
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A promessa de retomo à África após a emancipação é mais comum


nas petições dos africanos desse grupo do que nas petições dos outros
africanos livres. Comprometer-se a voltar à África passou a ser parte
da estratégia do processo de petição, com o objetivo de convencer os
funcionários do ministério de que, uma vez emancipados, os africanos
se juntariam ao fluxo de libertos que deixavam o Brasil para a Costa
Ocidental africana, fugindo às pressões e perseguições que vinham
sofrendo. 43 Ainda assim, as promessas talvez não refletissem o desejo
sincero dos africanos livres: em minha pesquisa, encontrei mais pedidos
de anulação da cláusula de reexportação do que pedidos de passaportes
para africanos emancipados. 44
O uso mais incisivo do argumento da identidade étnica veio do afri-
cano livre Cyro, em sua disputa com o concessionário de seus serviços,
Dionísio Peçanha, que procurava evitar que Cyro recebesse sua carta de
emancipação mesmo depois do aviso emitido pelo ministério. Peçanha
conseguiu que Cyro fosse preso e colocado em trabalhos pesados na
construção da Fragata Príncipe Imperial, enquanto negociava no minis-
tério da Justiça a remessa do africano para o alto Amazonas. Enquanto
isso, tendo perdido a mãe, os dois filhos menores de Cyro haviam ficado
sozinhos na Casa de Correção. Cyro enviou um bilhete a Peçanha, tudo
indica que escrito de próprio punho:
Snr. Pisanjes de Oliveira
Rio de Janeiro 5 de Marco de 1856
Muinto estimarei que estas duas letras os vão achar em
perfeita saude em compª de quem vmce mais estima da toda
a fami-milia da Casa do Senhor,

43 A deportação para a África era uma forma de punição para os que cometiam crimes gra-
ves. Era também parte do tratamento a ser conferido aos africanos livres recém-importa-
dos de acordo com a lei de 7 de novembro de 1831. Ainda que não tenha sido aplicado cole-
tivamente, o retorno à África dos africanos livres era incentivado pelo governo imperial.
Os que decidiram voltar se juntaram ao fluxo discutido em Verger, Flux et Reflux, Carnei-
ro da Cunha, Negros, estrangeiros e Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 423-
424. Ver, mais recentemente, Mônica Lima e Souza, “Entre margens: o retorno à África de
libertos no Brasil, 1830-1870” Tese de Doutorado em História, Universidade Federal Flu-
minense, 2008.
44 O caso de Felipe Mina é emblemático: através de José Fernandes Monteiro, o mesmo pro-
curador que ajudou João e Cyro, ele obteve sua emancipação em dezembro de 1856 com-
prometendo-se a voltar à África. Um mês depois, outra petição baseada no argumento de
que era casado, tinha filhos e uma conduta regular pedia a remoção da cláusula com que
o aviso de emancipação tinha sido emitido. A petição foi deferida, e meses depois che-
gou a escrever novamente pedindo nova cópia da carta de emancipação porque havia per-
dido a primeira. AN, Diversos SDH – cx.782 pc.2, Felipe Mina, Petição de emancipação,
13/12/1856; AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.2, Felipe Mina, Petição para remoção de cláu-
sula de reexportação, janeiro de 1857; AN, G1Fl 6D-136, Felipe Mina, Pedido de segunda
via de carta de emancipação, 9/5/1857.

266 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Quero que Vm.ce bá tirrar o meu filho athe amanhão não


quero o meu filho lá quero que me mande dizer que meu
filho está solto; e com esta faz tres cartas que tenho
escrebido ainda não tive resposta sobre a minha soltura
sabado já se foi eu ainda estou a espera para sahir solto
senão quer metirar eu faz uma cumunhão [?] que o snr. ade
saber que he o preto mina quero que isto se fassa athe tres
dias todo o que pesso
deste seu escravo
Chiro Pisanjes Africano livre 45

A fórmula da ameaça – que exigia que os filhos fossem soltos até o dia
seguinte e que ele fosse solto em até três dias, do contrário armaria uma
armadilha para Peçanha digna de “preto mina” – usa de forma contundente
a reputação dos africanos minas. Peçanha tinha motivos para acreditar
no ultimato e sentiu-se realmente ameaçado. Ele anexou o bilhete a uma
carta para os funcionários do ministério da Justiça que tratavam do caso
de Cyro para mostrar que ele não merecia ser emancipado, explicando:
Este africano é rancoroso, e vingativo, como em geral os
de sua raça, e molestado por haver perdido o pleito, por
injusto que contra o suplicante intentou, nutre terríveis
pensamentos contra o suplicante, que não cessa de
manifestar em ameaças como o fez do lugar onde se achava
recluso, e se vê da carta inclusa, além de mais duas, que lhe
havia dirigido em tom arrogante e ameaçador, e assim o
suplicante antigo servidor do Estado, chefe de numerosa
família, com perto de 50 anos de bons serviços ao país, vê
sua existência ameaçada e exposta ao traiçoeiro estilete
de um bárbaro Africano, feroz e selvagem sem moral, nem
religião, analfabeto, que só respira vingança.

Mesmo apelando para todos os preconceitos correntes a respeito


de africanos, Peçanha não convenceu os funcionários, que, ao contrário,
ficaram impressionados com a correção de Cyro. 46 Esse caso expôs

45 O bilhete está anexado à carta de Peçanha para o ministério da Justiça, 26/3/1856 em


AN, Diversos SDH – cx. 782 pc.2-3, Cyro Mina, Petição de emancipação, 22/3/1855. Fiz
uma introdução ao documento publicada em Beatriz G. Mamigonian, “Bilhete do afri-
cano Cyro”, In: História Social da Língua Nacional, v. 2 Diáspora Africana, organiza-
do por Ivana Stolze Lima e Laura do Carmo. Rio de Janeiro: NAU/Faperj, 2014, pp. 379-
385. O bilhete também foi analisado por Sandra L. Graham, “Writing from the Margins:
Brazilian slaves and written culture”, Comparative Studies in Society and History 49:3
(2007), pp. 611–636.
46 O Chefe de Polícia Cansansão de Sinimbu, que na década seguinte seria ministro da Jus-
tiça ficou convencido de que “quaisquer que fossem o motivo de desinteligência entre
esse africano e o concessionário de seus serviços, tudo estava concluído pelo gozo da li-
berdade e a aquisição dos filhos”, explicando para o ministro Nabuco de Araújo que Cyro
tinha dois filhos pequenos, um dos quais ele imediatamente colocou na escola. A mulher
de Cyro havia falecido durante o processo de emancipação, possivelmente em setembro

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 267
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

claramente as armadilhas do processo de emancipação e a tenacidade


necessária por parte dos africanos livres para enfrentá-las. Além disso,
revelou mais uma instância do uso da identidade étnica como argumento
e arma nesse processo.
Ao observar o processo de construção da identidade do grupo, dois
momentos se destacam: os primeiros anos na Bahia e a adaptação no Su-
deste. Seus primeiros quatorze anos no Brasil foram passados na Bahia,
onde apesar da grande pressão sofrida pelos africanos depois da revolta
dos malês, um complexo processo de recriação de identidades étnicas
ocorria sob o controle da maioria nagô. Falantes de iorubá, com traços cul-
turais comuns, vieram a se identificar como nagôs na Bahia e tomaram-se
articuladores de manifestações culturais que reuniam pessoas de grupos
étnicos distintos, como os jejes, os aussás e os tapas.47 Não tenho detalhes
acerca da origem africana específica de membros desse grupo de africanos
livres, a não ser identificações de possíveis locais de embarque.48 Ao invés
de declinar suas origens específicas, eles sempre se identificaram como
“nagôs” ou “minas” para as autoridades no Rio de Janeiro. É razoável supor
que, independentemente de suas origens específicas, eles adotaram a
identificação genérica de nagôs assim como tinham feito outros indivíduos
falantes de iorubá durante seus primeiros anos na Bahia.
Uma vez no Rio de Janeiro, eles encontraram uma comunidade flo-
rescente de africanos da Costa Ocidental, muitos dos quais vindos para o
Sudeste através da Bahia e, como todos os africanos da Costa Ocidental,
identificaram-se como “minas”.49 Os membros do grupo de africanos livres
adotaram essa identicidade, que servia de rótulo com vários significados,
incluindo potencial para resistência. Quando consideravam importante,
insistiam na sua identidade “nagô” distinta, reforçando seus laços com
a Bahia. É possível presumir que eles se consideravam duplamente es-
trangeiros no Rio de Janeiro: não só não eram brasileiros como tinham

continuação 46

de 1854. Seus filhos Gregório, de 6 ou 7 anos, e Pedro, de 2 ou 3 anos, ficaram quase um


ano na Casa de Correção. Sinimbu para Nabuco de Araújo, 11/4/1856 em AN, Diversos
SDH – cx.782 pc.2-3, Cyro Mina, Petição de emancipação, 22/3/1855.
47 Ver Oliveira, “Retrouver une identité”.
48 Quando interrogado durante o processo de emancipação, Benedito Nagô disse que era na-
tural “da Costa da Mina”, e a certidão de casamento de Felipe e Josefa registrava-os como
“Africanos livres naturais da Costa de Leste de nação Mina”. Ver: AN, Diversos SDH – cx.
782 pc. 2, Benedito Nagô, Petição de emancipação, outubro de 1856; AN, Diversos SDH –
cx. 782 pc. 2, Felipe Mina, Petição de emancipação, 13/12/1856.
49 Todos os africanos livres do grupo que indicaram ser casados tinham casado com africa-
nas minas. Sobre a comunidade mina no Rio de Janeiro, ver Karasch, A vida dos escravos
no Rio de Janeiro, 1808-1850; Soares, Zungu: rumor de muitas vozes; Juliana Barreto
Farias, Flávio Gomes, Carlos Eugênio Líbano Soares, e Carlos Eduardo Moreira de Araú-
jo, Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista.São Paulo:
Alameda, 2006.

268 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

origem diferente da origem da maioria dos africanos na cidade, onde


predominavam os africanos da região Centro­O cidental. Além do mais,
sua identidade distinta era reforçada dentro da comunidade mina do Rio
de Janeiro pelo fato de serem africanos livres e se sentirem diferentes
dos escravos, tendo formado laços fortes durante seu tempo de serviço
no Arsenal de Marinha da Bahia, que foram estreitados quando da trans-
ferência do grupo para o Rio.
A articulação entre os africanos livres do grupo é revelada por de-
talhes nas petições. Tudo indica que Cyro, João e Desidério eram compa-
nheiros muito próximos: os dois primeiros passaram por todo o processo
de emancipação juntos, com a ajuda de seu procurador, José Fernandes
Monteiro, e colaboraram para obter testemunhos-chave de seus antigos
superiores. Além disso, João e Desidério estiveram juntos em Ipanema e
ainda eram companheiros de serviço no Quartel do Primeiro Regimento
de Cavalaria, tendo Desidério obtido sua emancipação com base no
precedente aberto pela emancipação de João. Evidências mais esparsas
sugerem ligações entre os dez outros homens do grupo da Bahia cujos
casos foram achados. Muitos eram companheiros de trabalho, seja em
instituições ou em casa de concessionários; outros tinham mobilidade na
cidade para encontrar com seus companheiros. Pelo menos cinco dos dez
africanos também usaram os serviços de José Fernandes Monteiro para
redigir e acompanhar suas petições através da burocracia do ministério,
enquanto André Mina, que também servia a Dionísio Peçanha, usou o
testemunho de um dos ex-intendentes do Arsenal de Marinha da Bahia
em seu processo de emancipação, assim como Cyro e João haviam feito.
Parece-me evidente que esses africanos colaboraram entre si para obter
suas emancipações, mesmo que dessa vez eles tivessem pulverizado seus
esforços em petições individuais ao invés de uma demanda coletiva.50 Eles
obtiveram sucesso em esconder sua articulação das autoridades, em uma
jogada estratégica que prova que aprenderam códigos sociais importantes
durante o período no Rio de Janeiro.
Infelizmente, as lacunas na documentação não permitem esclarecer
o que aconteceu a todos os africanos do grupo. Além de Felipe, se sabe que
cinco outros (Cyro, Luiz, Evaristo, Bernardino e Benedito) efetivamente
receberam suas cartas de emancipação porque as registraram em cartó-
rio, o que pode ser considerado mais uma demonstração da recorrente
preocupação com o reconhecimento legal da liberdade.51 Pelas anotações

50 Essa articulação é ainda mais importante se comparada com o universo das petições de
africanos livres, onde raramente se percebe a ação coletiva na busca pela emancipação.
Há petições de casais, ou de africanos livres do mesmo concessionário, mas a maioria en-
frentou o processo de emancipação sozinho.
51 AN, Livros de Registros de Notas do Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Ofícios do Rio de
Janeiro. De um total de 7 .028 registros relativos ao período 1850-1859, apenas dezessete

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 269
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

nas petições, quatro africanos livres que trabalhavam em instituições


públicas (João, Desidério, Braz e Félix) obtiveram avisos de emancipação,
porém não há registro da entrega das cartas. Os três restantes (Silvestre,
Agostinho e André) não obtiveram deferimento nas petições consultadas
e provavelmente tentaram de novo mais tarde.
O destino de Félix, cuja petição está transcrita no início do artigo,
foi o de muitos outros africanos livres. Ainda que a petição de março de
1857 não tenha registro de resposta, sabemos que não foi sua primeira
petição e possivelmente nem a última. Em maio de 1861, ele finalmente
obteve seu aviso de emancipação do ministério da Justiça, com a condição
de que se fosse para a África à sua custa. Um ano depois ele ainda servia no
Arsenal de Guerra da Corte, não tinha recebido sua carta de emancipação
e entrou com nova petição para cancelar a cláusula de reexportação com
que seu aviso havia sido expedido. Seu pedido foi deferido:
S[ua]Majestade] O Imperador Atendendo ao que lhe
representou o Africano livre de nome Félix, nação Mina,
que se acha ao serviço do Arsenal de Guerra da Corte; –
Houve por bem dispensar-lhe a cláusula de reexportar-se
à sua custa para a Costa d' África, com que foi ordenada, em
data de 14 de maio do ano próximo passado, a expedição de
sua carta de emancipação: O que comunico a V.Sa. para sua
inteligência e execução, devendo entregar ao suplicante
a referida Carta livre de qualquer ônus. Deus Guarde a
V.Exa. João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu.52

Este estudo, ao seguir a trajetória de um grupo de africanos livres nagôs


da Bahia para o Rio de Janeiro e São Paulo, e detalhar sua resistência e luta
pela emancipação, pretendeu contribuir para a história da resistência entre
os africanos no Brasil. Neste caso, africanos livres usaram sua identidade
étnica para pressionar os funcionários do governo imperial e os conces-
sionários de seus serviços a reconhecerem seu status jurídico distinto.
A maneira como esses homens se uniram e escolheram buscar cole-
tivamente a emancipação através dos meios legais merece ser destacada.
Histórias de resistência reveladas até então mostravam grupos em conflito
aberto ou em negociação. Este estudo buscou contribuir para a historio-
grafia que explora a luta jurídica dos escravos pela emancipação e incitar
novos estudos sobre a postura dos africanos diante do sistema jurídico.
Além disso, este artigo discutiu as condições que favoreceram a
solidariedade dos africanos no Brasil, através de laços que combinavam
status jurídico, condições de trabalho e identidade étnica. A articulação

continuação 51

são com certeza de africanos livres, e cinco deles são de africanos minas desse grupo.
Agradeço a Manolo Florentino por ter cedido os registros de africanos livres.
52 AN, IJ6 15, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu para Agostinho Luiz da Gama, 9/6/1862.

270 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

dos africanos livres durante a luta pela emancipação estava baseada em


laços que tinham sido estabelecidos durante sua trajetória comum (como
companheiros de travessia e como companheiros de trabalho no Arsenal
de Marinha da Bahia) e que haviam sido reforçados pela transferência do
grupo para o Rio de Janeiro, onde eram duplamente estrangeiros.
A construção da identidade étnica nagô na Bahia e sua tradução para
mina no Rio demonstra a fluidez da identidade nas condições da diáspora,
enquanto o uso contundente por parte do grupo de sua identidade durante
a resistência demonstra que ela era um argumento válido e forte.
Ao revelar as perspectivas de vida de um grupo de africanos que não
compartilhava o status jurídico de escravos com a grande maioria dos
africanos na diáspora, este artigo buscou contribuir para a compreensão
da experiência dos africanos livres no mundo atlântico. A história pecu-
liar desse grupo, que tinha status legal semelhante e estava espalhado
por territórios atlânticos de diversas configurações sociais, precisa ser
devidamente explorada em termos comparativos.

DO QUE “O PRETO MINA” É CAPAZ: ETNIA E RESISTÊNCIA ENTRE AFRICANOS LIVRES 271
CAPÍTULO 9

reivindiCAçÕes e resistênCiA: o não dos AfriCAnos


livres (são pAUlo, séCUlo xix)1
Enidelce Bertin

Apresentação
Resultado da ação britânica contra o tráfico de escravos no século
XIX, os africanos livres viveram as contradições e as tensões daquele
momento. Embora resgatados do tráfico de escravos, tiveram em sua
experiência cotidiana estreita relação com a escravidão, não apenas
porque os lugares de trabalho e a sociabilidade nas cidades muitas vezes
eram comuns a escravos e libertos, mas também porque, frequentemente,
eram vistos como desprovidos sequer de uma porção de liberdade pelos
administradores públicos e pelas pessoas que arrematavam os seus ser-
viços. Entretanto, acreditando na singularidade de sua condição, esses
africanos colocaram-se diante das autoridades como indivíduos livres, o
que se chocava frontalmente com a prática dos seus tutores.
Cabe considerar que apenas estavam enquadrados no perfil de africanos
livres aqueles cuja embarcação houvesse sido apreendida e julgada ilegal
pela comissão mista instalada no Rio de Janeiro, além dos considerados
pelas autoridades judiciais ilegalmente introduzidos no país. A população
de africanos livres no Brasil foi estimada em cerca de 11 mil indivíduos,
o que representa ínfima porção quando considerados os cerca de 500 mil
escravos importados após a proibição do tráfico em 1831.2
Atendendo ao acordo luso-britânico de 1815 para o fim do tráfico,
cujos pontos foram ratificados na Convenção de 1817, o Alvará de 26 de
janeiro de 1818 estabelecia “penas para os que fizerem comércio proibido
de escravos” e encaminhamento dos africanos importados ilegalmente,

1 Esta é uma versão revista e atualizada do capítulo 4 do meu livro Os meias-caras. Afri-
canos livres em São Paulo no século XIX , Salto, SP: Editora Schoba, 2013, ainda inédito
quando este texto foi publicado pela revista Afro-Ásia.
2 Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, in Silvia H. Lara e Joseli M. N. Men-
donça (orgs.), Direitos e justiças no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), p. 131.

273
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

“por não ser justo que fiquem abandonados”, ao Juízo da Ouvidoria, que os
repassaria para o serviço público ou para aluguel por particulares, servindo
como libertos por quatorze anos.3 Cumprido esse prazo, os africanos livres
podiam receber a ressalva de serviços, ficando, porém, em depósito, sob
os cuidados do Estado, até que fossem novamente arrematados, de acordo
com as novas determinações legais do Império (Lei de 1831, Avisos de
1834 e 1835). Portanto, desde 1818 os africanos livres passaram a ser
“protegidos” contra abusos através da tutela e, tal como para os menores
e órfãos, através da educação para e pelo trabalho.
Não obstante a intenção de amparo aos africanos livres, o que foi
verificado é que a proteção oferecida estava relacionada à perspectiva
de manutenção da escravidão e não o contrário. Porém, para uma parte
dos africanos tutelados, foi possível identificar a resistência cotidiana
ao domínio representado pela custódia, bem como a incessante busca
pela liberdade efetiva, ainda que fosse através da simples ênfase de que
não eram escravos, tampouco libertos. Na realização dessa tarefa de
recuperar uma luta insistente, foram desvendados os intensos laços de
solidariedade mantidos entre eles, bem como a preservação da memória
de uma experiência histórica comum, muitas vezes alinhavada desde a
travessia atlântica.
Portanto, a abordagem deste artigo está centrada no entendimento
dos africanos livres como sujeitos históricos, inseridos nas relações es-
cravistas e atuantes no sentido da resistência à escravização latente. O
conceito de resistência aqui utilizado considera as diferentes formas de
ação escrava, seja o enfrentamento direto, sejam as negociações, visando
não somente ao rompimento das relações de dominação, mas também a
espaços para melhor sobrevivência no interior mesmo da escravidão. Ou
seja, o entendimento da agência de escravos, nas diversas formas pelas
quais eles elaboraram e efetivaram suas ações na vida cotidiana, promo-
veu a ampliação na compreensão dessa resistência dos africanos livres. 4

Maria e a busca incessante da liberdade


Em meio às pilhas de ofícios guardados no Arquivo do Estado de São
Paulo, foi possível encontrar os africanos livres nas correspondências
mantidas entre os administradores de estabelecimentos públicos e a

3 Collecção das Leis do Brazil de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, pp. 7-10.
4 Silvia H. Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: tra-
balho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888, São Paulo: Brasiliense, 1987; João
José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; e Carlos Eugênio L. Soares, A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

274 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

presidência provincial, e entre esta e a autoridade judicial. Assim, nessa


diversificada documentação, localizamos partes da trajetória de vida de
muitos africanos livres de São Paulo. Dentre elas, destacamos primeira-
mente a história de Maria, por ser reveladora das condições de opressão
enfrentadas ao longo de mais de vinte anos de serviços prestados em
estabelecimentos públicos, e igualmente impressionante pela resistência
incansável dessa africana livre, mãe de quatro filhos.5
Como em um quebra-cabeça, recuperamos a história de Maria
juntando ofícios dos administradores públicos enviados à Presidência
da Província de São Paulo no período 1835-1864. Embora sejam muitas
as lacunas, a ausência de algumas peças não impediu a configuração do
viver dessa africana na luta para permanecer junto de seus filhos e pela
sua liberdade. O seu caso é emblemático das condições a que estavam
submetidos os africanos livres nos estabelecimentos públicos, porém
revela, apenas em parte, o drama de quem, sabendo-se livre, lutava para
provar a liberdade, os bons costumes e a capacidade de autonomia.
A necessidade de provar a liberdade existia em função da grande
desorganização administrativa a respeito dos africanos livres. Após terem
sido resgatados do tráfico ilegal, eram informados da nova condição e
colocados sob os cuidados do governo, que os usava nas obras públicas,
ou os arrematava a particulares por determinados períodos de tempo.
Além de serem informados oralmente, os africanos livres recebiam um
pingente, a ser usado no pescoço, no qual constava a nova condição.
Contudo, ao longo do tempo, com a retirada ou a perda desses registros
escritos, os africanos livres tiveram que encontrar outros meios para
provar sua condição.
O controle das distribuições de africanos livres pelas províncias era
muito falho, o que facilitava os abusos e as irregularidades. Também os
diversos dispositivos legais não lhes eram favoráveis porque impunham
diferentes condicionamentos para a efetivação da emancipação, entre
eles o conhecimento de um ofício e os bons costumes. Somente em 1853,
com o Decreto de 28 de dezembro, a emancipação foi garantida a quem
provasse o cumprimento de pelo menos quatorze anos de trabalho para
arrematantes particulares.6 Antes disso, a emancipação era parte da re-
tórica, já que a tutela e o trabalho compulsório freavam as expectativas
de plena liberdade e autonomia dos africanos livres. Conforme estudo

5 O caso da africana livre Maria também foi abordado no artigo “Uma ‘preta de caráter fe-
roz’ e a resistência ao projeto de emancipação”, in Maria Helena P. T. Machado e Celso T.
Castilho (orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de aboli-
ção (São Paulo: Edusp, 2015), pp. 129-141.
6 Os africanos que serviram em estabelecimentos públicos tiveram o direito à emancipação
apenas em 1864, com o Decreto no. 3.310 de 24/09/1964.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 275
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de Beatriz Mamigonian sobre o Rio de Janeiro, 7 cerca de 44% dos que


serviram a particulares morreram antes de serem emancipados, muitos
com mais do que os quatorze anos de serviços exigidos, enquanto cerca
de 30%, distribuídos a instituições públicas, receberam sua emancipação
depois de 20 a 30 anos de serviços. Mesmo após cumpridos os termos dos
contratos, a emancipação efetiva foi protelada e muitos foram transfe-
ridos para localidades distantes do Império, ou colocados sob novos e
desvantajosos contratos de trabalho.
Contudo, embora a condição de africano livre fosse envolvida em
grande precariedade, milhares de homens e mulheres se mobilizaram em
busca da efetiva liberdade. Maria é apenas um desses casos.
Foi remetida pelo Juízo de Órfãos de Santos à Fazenda Normal, localizada
em São Paulo, em março de 1837.8 Três meses após a sua chegada àquele
estabelecimento agrícola, o nome de Maria já constava em ofício do admi-
nistrador, solicitando sua entrega ao Juízo de Órfãos da Capital, juntamente
com outra, de nome Joaquina, com a justificativa de que, tendo elas “fugido
duas vezes e não querendo trabalhar [...], só servem de prejuízo e estando
avisadas a fugir, corre-se o risco de alguma vez não tornarem a aparecer”.9
Aqui já se delineava a marca da africana livre Maria, que a acompanharia
por muitos anos: a resistência através da fuga e da insubordinação.
Entregue ao Juízo de Órfãos, Maria foi arrematada, em agosto de
1838, por Ana Francisca da Anunciação, com um contrato anual para
serviços particulares, por 4 mil réis. O baixo valor oferecido fora justifi-
cado pelo fato de Maria possuir dois filhos pequenos. Seis meses depois,
porém, a arrematante solicitava a rescisão do contrato, alegando “[...]
não tirar lucro algum de semelhante arrematação e nem jamais suportar
a altivez e bem pouca obediência com que de dia em dia se ia portando
a dita africana [...]”. 10 Enquanto aguardava nova arrematação, Maria
empreendeu outra fuga, agora para a Fazenda de Santa Ana, de onde já
havia fugido anteriormente, “[...] dizendo às pessoas que a interdiam que
se assim procedia era só por se livrar outra vez de serem arrematados
os seus serviços, quando devia ser antes deixada para cuidar da criação
de seus dois filhos [...]”. 11

7 Beatriz G. Mamigonian, “To Be a Liberated Africans in Brazil: Labour and Citizenship in


the Nineteenth Century” (Tese de Doutorado, University of Waterloo, 2002), cap. 5.
8 Também chamada de Fazenda Santa Ana, era um estabelecimento agrícola, localizado à
margem direita do rio Tietê, distante do centro urbano. Em 1838, passou a ser sede do Semi-
nário dos Educandos, outra instituição pública que utilizava os serviços de africanos livres.
9 Arquivo do Estado de São Paulo (doravante AESP), CO 875, Ofício de Alexandre Vandelli ao
Presidente da Província, Bernardo José Pinto, 10/06/1837.
10 AESP, CO 878, Ofício do Juiz de Órfãos interino ao Presidente Venâncio José Lisboa,
17/06/1839.
11 AESP, CO 878.

276 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

A arrematação de africanos livres por particulares era feita mediante


contrato, conforme as Instruções de 29 de outubro de 1834, que estabe-
leciam as obrigações de sustentar, cuidar e pagar um módico salário aos
arrematados. Este, contudo, não era pago diretamente ao africano livre,
mas ao seu curador, que deveria depositar as quantias no Juízo de Órfãos.
Porém, o não recolhimento dos salários foi irregularidade comum. Nas
obras públicas os africanos livres podiam receber pequenas gratificações,
embora os informes de despesas dos estabelecimentos não comprovem
que o dinheiro efetivamente chegasse às mãos dos serventes.12
Notamos na transcrição acima uma importante oposição: Maria,
sabendo-se africana livre, resiste à escravidão disfarçada e à possibi-
lidade de separação de seus filhos; 13 a arrematante, por sua vez, não
aceita a insubordinação e a altivez da africana, porque não a vê senão
como escrava. Na documentação analisada, em diferentes momentos, os
africanos livres foram chamados de escravos pelas autoridades, num ato
falho muito significativo.
Cumprindo ordem do governo, Maria passou a servir no Seminário
de Santa Ana a partir de março de 1840. Chegou com seus dois filhos
pequenos, mas, na semana seguinte, o mais novo faleceu. Duas semanas
depois de sua chegada, Maria empreendeu a primeira fuga do Seminário,
carregando o filho mais velho. Recapturada, foi reenviada ao seminário, de
onde voltou a fugir outras vezes.14 Contrariado com a ordem do presidente
para aceitar Maria no seminário, o diretor Candido Caetano Moreira não
poupou virulência nas palavras, quando se referia a ela, delineando as
agruras cotidianas enfrentadas pelas africanas livres. Observemos o que
o diretor oficiou ao presidente:
Esta negra, Exmo Sr, muito incômodo deu no tempo da
extinta Fazenda Normal ao administrador Vandelli,
segundo me informam dois negros que cá existem e [que]
foram desse tempo; estava quase a maior parte do tempo
fugida, tem já esse rico dote por hábito, é má negra na
extensão da palavra, atrevida, de má língua, possuída da
liberdade, um precipício, não tem por onde se lhe pegue, é
só para dar trabalho e inquietação de espírito para o que
serve, eu por ser súdito a mandei recolher. V.Exa querendo
pode informar-se do sr. dr. juiz de órfãos, que ele dirá a
V.Exa a mesma verdade: eu não necessito dela para cousa
alguma, com três africanos que cá estão servindo vindo

12 Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.


13 A expressão “escravidão disfarçada” é de Suely Robles R. de Queiroz, Escravidão negra em
São Paulo. Um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX, Rio de Janei-
ro: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 63.
14 AESP, CO 879, 17/03/1840. Sobre o cotidiano de trabalho no interior dos estabelecimen-
tos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 277
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

contente com eles, e me parece, que eles andam comigo,


porque cumprem seus deveres e são negros de vergonha
e sem maus vícios presentemente, a africana nada quer
fazer, só o que quer é comer o feito e estar com o filho nos
braços e se apertar por ela alguma coisa fazer, foge, ela
já está bem conhecida e por isso ninguém quer arrematar
seus serviços, acha-se grávida de seis para sete meses,
que é para o que, segundo me parece tem serventia,
daqui a dois ou três meses deve esperar-se por mais este
aborrecimento, incômodo, despesa e estorvo. É o quanto
se me oferece levar ao conhecimento de V. Exa. quem
Deus guarde.15

Desabafo, eloquência ou preocupação com o potencial risco à ordem


escravista? Como é que, em tão pouco tempo, Maria pôde produzir ta-
manha repugnância no diretor? Interessante notar que parte da opinião
do diretor foi influenciada por dizeres dos dois negros que já haviam
convivido com Maria. Ainda assim, para ele o problema dela estava em
ser atrevida, “de má língua, possuída da liberdade”, além da preferência
por trazer seu filho ao colo, ou seja, sua capacidade para não acatar
ordens foi decisiva para o parecer do administrador. Mas o que signifi-
caria ter má língua? Talvez porque Maria reclamasse melhor condição,
talvez porque acusasse o estabelecimento pela morte de seu filho caçula,
talvez porque sempre lembrasse ao administrador que não era uma
escrava. Essa parece ser a questão central, considerando a comparação
que foi feita com outros africanos do estabelecimento, os quais seriam
“negros de vergonha e sem maus vícios”, ou seja, submissos, voltados ao
trabalho e à obediência. Nesse sentido, a expressão do diretor revela
muito do significado da tutela imposta aos africanos livres. Inserida
no contexto de questionamento internacional do tráfico de escravos e
da escravidão, a tutela do Estado sobre os africanos livres funcionava
como meio de controle do acesso à liberdade ou à emancipação e atendia
ao encaminhamento lento e gradual da abolição.
E o que dizer da referência à gravidez de Maria? Sugestiva a opi-
nião de que o rebento que estava por nascer representaria estorvo e
despesa porque afastaria a mãe do trabalho, deixando de sê-lo quando
ele próprio já pudesse ser usado nos serviços. O irônico desconten-
tamento com a gravidez da africana, que, segundo ele, era para o que
tinha “serventia”, sugere uma aproximação com o ideal do domínio
escravista patriarcal, que definia as escravas como lascivas. Maria
não era casada, mas os quatro filhos que gerou nos informam sobre a
existência de uma relação afetiva que, provavelmente, era mantida

15 AESP, CO 879, p. 1, doc. 37A, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente
Manoel Machado Nunes, 04/04/1840.

278 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

fora do seminário. Contudo, é intrigante que, em nenhum momento,


tenha sido feito qualquer referência ao pai dos filhos da africana.
Na diversidade dos papéis avulsos analisados, um deles nos chamou
a atenção e pode iluminar um pouco os encontros mantidos por Maria. Na
lista de serventes do seminário, de março de 1855, constam os africanos
livres José, Sebastião, Antonio e Joaquina. Em abril desse mesmo ano, José
faleceu, sendo o fato informado ao presidente da província pelo diretor
Caetano Moreira. Em meio ao texto, o diretor reportava a descoberta de
uma “caixinha velha, que estava fechada debaixo da cama do falecido”. 16
Após convocar um vizinho para testemunha, empreendeu a abertura do
pequeno cofre, cuja chave era guardada pelo africano Sebastião, compa-
nheiro de José. Para surpresa dele,
achou-se 13$220 rs, 8$000 rs em moeda papel e 5$220 rs
em cobre, tudo em um embrulho, dizendo-nos o africano
Sebastião pertencer este dinheiro ao falecido, achando-se
mais 15$176 rs em cobre em dois embrulhos, esta soma
declarou o mesmo Sebastião que pertencia a uma africana
de nome Maria que se acha empregada na Casa de Correção
desta cidade.

Sebastião teria declarado que sabia a quem pertencia cada um


dos valores, “com certeza pela grande amizade que tinha ao falecido
que tudo lhe contava de sua vida”. Tornou-se o elo que procurávamos
ao declarar “que a dita africana quando foi removida deste estabele-
cimento para outro destino, deixara o dinheiro acima mencionado no
poder do falecido para quando carecesse então vir por ele, mas que
até o presente nunca procurou”.
Maria havia saído do seminário em 1851 e deixado com José suas eco-
nomias. Mas por que com José? Este fato, juntamente com a escolha desse
nome para um de seus filhos, indicaria que José fosse seu companheiro,
o pai de seus meninos? Se fosse isso, por que Maria não permaneceu no
seminário? As dúvidas persistem, mas nos dão uma outra inserção para
aquela africana, diferentemente do que nos sugeriram os administradores
em seus virulentos relatos sobre a “má negra”. A localização do dinheiro
de Maria também sugere que a africana livre tinha meios de ganhar seus
trocados, como se verá mais adiante.
A historiografia social já confirmou que a organização familiar
dos escravos e dos libertos não se pautava necessariamente pelas
normas convencionais, nas quais, por exemplo, as uniões deveriam
ser estáveis, com o casal dividindo o mesmo teto. Pelo contrário, as
relações familiares foram marcadas pelos papéis informais de homens

16 AESP, CO 901, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Antonio Sa-
raiva, 04/04/1855. As citações seguintes são parte desse mesmo documento.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 279
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e mulheres, os quais delinearam sociabilidades e meios de sustento.


Contudo, os poderes públicos interpretaram como sinais de desordem
a mobilidade gerada no desempenho de tais papéis. 17
A documentação analisada traz uma lacuna de 1840 até 1851, quando
Maria reapareceu nos ofícios reclamando sua emancipação e tratando
da guarda dos filhos, que já eram três: Antonio, José e Benedito. Naquele
momento, continuava servindo no seminário, quando o diretor Candido
Caetano Moreira enviou ofício ao presidente Nabuco de Araújo, comentando
um requerimento feito pela africana. Embora esse documento não tenha
sido localizado, percebe-se, pelas entrelinhas do ofício, que Maria havia
fugido e, por intermédio do bacharel Antonio Joaquim Xavier da Costa,
reivindicava sua emancipação. O diretor foi enfático ao qualificar Maria:
Sendo a suplicante naturalmente vadia e preguiçosa e
ainda mais pela certeza de não estar sujeita a castigos,
forçoso me tem sido de usar de todos os meios brandos,
que adequados sejam a conseguir que preste ela os
serviços a que é destinada, doendo-me profundamente
que pessoas mal intencionadas julguem-se autorizadas,
sem legítimo fundamento alcançar pérfidas insinuações
sobremaneira com que me hei portado para com a
suplicante, que não tem absolutamente motivo algum
de queixa e antes deve-me e a minha família o melhor
tratamento possível.18

Ainda que se desconheça de que insinuações o diretor se defendia,


ele deixou claro que coagia Maria ao trabalho e que considerava que o
bom tratamento oferecido à africana não dava motivo para as queixas
que ela fazia. A posição dele é condizente com o significado do paterna-
lismo nas relações escravistas, segundo o qual a gratidão do escravo era
importante recurso de autoridade senhorial, na medida em que, por meio
dele, o escravo e o liberto eram mantidos em submissão, fortalecendo a
condição do senhor ou, nesse caso, do administrador. 19
A queixa do diretor era também dirigida ao bacharel defensor de
Maria, que, anteriormente, havia atuado em favor de João, outro africano
do Seminário. Para o diretor, a ajuda daquele advogado estimulava a in-
subordinação, que era sempre “origem de sérios e perigosos resultados."20

17 Maria Cristina C. Wissenbach, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em


São Paulo (1850-1880), São Paulo: Hucitec, 1998; E Maria Odila Leite da Silva Dias, Quoti-
diano e poder em São Paulo no século XIX, São Paulo: Brasiliense, 1995.
18 AESP, CO 894, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Na-
buco de Araújo, 20/09/1851.
19 Enidelce Bertin, Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação, São Paulo:
Humanitas, 2004, pp.138-139.
20 AESP, CO 894, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz

280 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Portanto, a sua preocupação com a desobediência de Maria possuía uma


explicação política, calcada no controle sobre os demais africanos. “Este
exemplo influi muito nos ânimos dos outros africanos e em virtude dele é
que a suplicante repentinamente evadiu-se deste Seminário e foi procurar
apoio do mesmo indivíduo, que favorecera aquele João, e que parece dis-
posto, perfaz e pernefaz a tirar dali todos os africanos e pô-los isentos de
qualquer ônus.”21 O diretor desqualifica a capacidade de Maria ao sugerir
que havia sido o exemplo de outros africanos e a influência do advogado
que fizeram com que ela requeresse sua liberdade e não a sua intenção
e disposição. Naquele mesmo dia Maria foi recapturada e devolvida ao
seminário pela polícia.22
Alguns dias depois o curador dos africanos livres emitiu parecer
ao juiz de órfãos sobre o caso e negou que já houvesse queixa da
africana durante os anos em que estava à frente da curadoria. 23 A
ausência de ocorrências nos oito anos de sua administração coincide
com a lacuna encontrada nos ofícios, que compreendem os anos da
década de 1840. Poderíamos questionar se isso corresponderia a
um período de acomodação de Maria, de falta de apoio de terceiros,
ou, então, simplesmente ao extravio dos registros de possíveis
queixas envolvendo essa africana livre.
Em outubro de 1851, ofícios de diferentes autoridades citaram um
requerimento de Maria, mas, infelizmente, também esse pedido não foi
localizado, e nem foi possível confirmar se era o mesmo documento apre-
sentado no mês de setembro, comentado acima. Contudo, há indícios de
que se tratava de uma nova solicitação da africana, a considerar que, em
9 de outubro de 1851, depois de servir por onze anos no seminário, sob
as ordens do mesmo diretor, Maria foi transferida para a Santa Casa, em
cumprimento a ordem do presidente Nabuco de Araújo. 23 Tão marcante
quanto a disposição de enfrentamento de Maria era sua insistência em
agir pela via institucional, reclamando por direitos que julgava possuir
enquanto tutelada. Sem dúvida a participação do advogado, apontando
irregularidades, foi importante nessa empreitada de Maria, contudo, isso
não deve minimizar a condição da africana como sujeito de sua história
que quer mudanças e age para isso.

continuação 20

Nabuco de Araújo, 20/09/1851. A preocupação do administrador com a atuação do advo-


gado de Maria é uma importante pista a ser seguida por novos estudos sobre a ação des-
ses “protetores” em São Paulo muito antes de Luiz Gama.
21 AESP, CO 894.
22 AESP, CO 894, doc. 20R, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José
Thomaz Nabuco de Araújo, 22/09/1851.
23 AESP, CO 893, doc. 3E, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azeve-
do Marques ao Juiz de Órfãos da Capital, 30/09/1851. 23 AESP, CO 904, Inventário do Semi-
nário, 24/07/1856.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 281
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O diretor do Seminário dos Educandos, em ofício ao presidente da provín-


cia, em 7 de outubro de 1851, nos dá dicas sobre o conteúdo desse requerimento
e apresenta sua visão (ou versão) sobre a vida da africana no seminário:
Avançando a suplicante em seu dito requerimento,
proposições absolutamente falsas e que de algum
modo podem ofender minha reputação, permita V.Exa
que repelindo-as com toda a energia, faça algumas
considerações a respeito. A suplicante jamais teve
necessidade de tirar esmolas para si ou para seus
filhos, porquanto, além de ser a cozinheira deste
estabelecimento, e por isso com a possibilidade de viver
em fartura, era socorrida a custa da Fazenda Provincial
com o vestuário necessário tanto para os dias de serviço,
como para os dias santos, tendo de mais a faculdade de
fazer suas plantações nas horas vagas e licença para ir
vender a colheita nos domingos e dias santos. Os filhos da
suplicante sempre foram abundantemente alimentados
e vestidos regularmente. Parece-me, pois que o único
feito de molestar-me é que impeliu a suplicante, ou antes
seu protetor, para fazer observações tão descomedidas,
que seguramente serão, por inverossímeis, desprezadas
por V.Exa. Não sei qual a utilidade que resultará a
suplicante de ter consigo seus filhos, podendo asseverar
que esses rapazes, hoje bem educados e tratados, irão
ser vítimas da miséria se forem entregues a uma preta
de caráter feroz e absolutamente incapaz de dar-lhes o
desejável tratamento [...].24

Maria reclamava, através de seu advogado, das condições a que


estavam submetidas ela e sua família, reivindicando a transferência do
estabelecimento. Não deixa de ser contraditório, se não irônico, o parecer
do diretor dizendo que a reclamante e seus filhos tinham a possibilidade
de viver em fartura e que estes, educados e bem tratados, seriam vítimas
da miséria se fossem entregues à mãe. Aparentemente, Maria possuía
espaços de autonomia na mobilidade espacial e nas vendas de suas
quitandas – que podem ser a explicação para o dinheiro que havia sido
localizado com Sebastião, conforme visto anteriormente – mas o que
incomodava o diretor era sua insubmissão, sua indisposição constante
para o trabalho e para a obediência.
Há aqui, portanto, novamente, uma desqualificação da capacidade da
africana. Primeiramente, ela foi considerada incapaz de reivindicar por
si mesma, depois, incapaz de sustentar os filhos. Para o diretor, as roupas
e a horta própria se convertem em incentivos com vistas à subordinação
e deveriam ser valorizados pela africana. Porém, parece que o artifício,

24 AESP, CO 894, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 07/10/1851.

282 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

tão largamente usado na sociedade escravista de conceder espaços de


autonomia visando ao controle, não funcionou com Maria.
A historiografia da escravidão evidenciou que, como parte atuante
nas suas relações internas, o escravo interpretava as concessões como
produto de sua agência e resistência. O senhor, por sua vez, as reinterpre-
tava como estratégia para a ordem.25 Isso não vale apenas para o escravo,
mas para o subalterno em geral naquela sociedade. Nesse sentido, a ação
cotidiana de desobediência por parte de Maria resultava dos significados
que ela dava à sua condição de africana livre, assim como da solidariedade
construída no seu grupo de convívio.
Em parecer sobre o caso, o curador dos africanos defendeu que,
independentemente do destino que fosse dado à mãe, para os filhos
deveria ser nomeado um tutor. Não obstante a citação da legislação
portuguesa (doutrina de Correia Teles, Digesto Português, Tomo 2, art.
609), que definia a mãe como tutora dos filhos naturais ou espúrios que
não estivessem debaixo da obediência de pai, o curador entendeu que
“neste caso especial não é ela aplicável”.26 Além de o curador dos africanos
livres não justificar por que Maria não poderia ser tutora de seus filhos,
ainda alertava o juiz de órfãos para que não nomeasse “certos oficiosos
advogados de africanos que sob a capa de filantropia os iludem e seduzem
para aproveitar-lhes os serviços”.27
No dia seguinte, o juiz de órfãos confirmava ao presidente o envio
de Maria à Santa Casa, porém justificava a não autorização para que
seus filhos a acompanhassem, conforme havia sido ordenado. Alegava
que seus filhos eram brasileiros, o mais velho com 14 anos de idade, os
quais estavam sujeitos à legislação nacional sobre os aqui nascidos. Nesse
sentido, o juiz era favorável à nomeação de tutor para os menores, defen-
dendo também “mandar ensinar ofícios lucrativos que para o futuro os
pusesse em estado de não serem [pesados] ou perigosos para a sociedade
em que tem de viver”.28 Com esse argumento, o juiz explicitava aquilo
que o curador não havia feito. Maria não poderia ficar com seus filhos
porque, como potenciais fontes de problemas futuros para a sociedade,
deveriam ser controlados através do aprendizado de ofícios e da separação
da mãe. Porém, ainda assim, restou-nos a dúvida sobre a origem desse
risco em potencial, oferecido pelos menores: o problema estava no fato

25 Reis e Silva, Negociação e conflito; Stuart B. Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bau-
ru: Edusc, 2001.
26 AESP, CO 894, 25C, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azevedo
Marques, ao Juiz de Órfãos da Capital, 10/10/1851.
27 AESP, CO 894, 25C.
28 AESP, CO 894 25B, Ofício do Juiz de Órfãos José Antonio Vaz de Carvalho ao Presidente
José Thomaz Nabuco de Araújo, 11/10/1851.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 283
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de viverem sem o pai ou de serem filhos de uma “preta de caráter feroz”?


Ironia à parte, as autoridades acabaram expondo que a questão da tutela
dos menores pobres estava tomada pela ideologia do controle social.
Ao terminar seu ofício ao presidente, o juiz de órfãos pedia que
se protegessem os menores de uma “sorte pior que a dos verdadeiros
escravos”. Não obstante tais argumentos, alguns dias depois o diretor do
seminário informava a transferência de Maria, juntamente com os filhos,
para a Santa Casa, segundo ordem presidencial. 29 Não há dúvida de que
essa autorização do presidente fora uma vitória de Maria; afinal, ela pôde
livrar-se do domínio exercido pelo diretor do Seminário dos Educandos
e aindamanter a família reunida.
Em 1852, agora a serviço da Santa Casa, Maria e seus filhos continua-
ram resistindo à coerção. Em 22 de abril daquele ano, o provedor, barão
de Iguape, informou ao presidente Nabuco de Araújo a morte de Antonio,
um dos filhos de Maria, e aproveitou para pedir a troca da africana livre
por outra, “visto que além de não prestar ali serviço algum, é de péssima
qualidade tanto a mãe como os filhos, que com seus maus exemplos,
principiam a corromper escravos do Hospital até aqui sofríveis servidores
[...].”30 A resposta da Presidência foi positiva quanto à troca, mandando
Maria para a Casa de Correção.
Quatro anos mais tarde, Maria insistia em resistir e, confiante de
que sua condição de africana livre lhe reservava melhor sorte, e que
seus dois filhos estavam ameaçados, apelou para o escrivão, que, por
sua vez, apresentou o caso ao juiz de órfãos, reforçando que “esta infeliz
tem prestado serviços por mais de vinte anos e seus filhos, que não são
africanos, têm acompanhado a infeliz mãe nos rigorosos serviços daquela
casa, sem aprenderem ao menos um ofício. Ela veio ontem ter comigo e
pedir a proteção do perigo.”31
A estratégia parece ter surtido efeito, uma vez que foi questionada a
ausência de tutores para Benedito e José, que, sendo brasileiros, tinham
a seu favor as leis sobre menores órfãos. 32 Confirmada a nacionalidade
brasileira dos menores, foram eles entregues a um tutor, ainda naquele
ano de 1856, sob contratos de soldada.33 Contudo, pudemos constatar que

29 AESP, CO 894 20G, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabu-
co de Araújo, 14/10/1851.
30 AESP, CO 896, Ofício do Provedor Barão de Iguape ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 22/04/1851.
31 AESP, CO 903, Relato do Escrivão de Órfãos Joaquim Florindo de Castro ao Juiz de Órfãos,
14/08/1856.
32 AESP, CO 903, 03/10/1856.
33 AESP, CO 903, Ofício do Juiz de Órfãos, Francisco da Costa Carvalho, ao Presidente Fran-
cisco Pereira de Vasconcelos, 18/12/1856.

284 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

os contratos foram seguidamente rompidos pelos menores porque seus


tutores os tratavam como escravos, confirmando a preocupação de Maria.34
Retomando a trajetória de Maria, em janeiro de 1857, agora empre-
gada na Casa de Correção, ela entrou com um processo de justificação
para emancipação, ou seja, apresentou testemunhas para provar que
tinha condições de se reger e de se emancipar.35 Curiosamente, a primeira
testemunha foi Candido Caetano Moreira, ex-diretor do seminário, que
declarou que a africana possuía “costumes laboriosos e não tem vícios”,
e que, além disso, sabia “cozinhar porque era cozinheira efetiva do Se-
minário de Santa Ana e bem do que lavava roupa dos escravos e tinha
tempo para fazer suas quitandas particulares”.36 Note-se que a opinião de
Caetano Moreira sobre Maria mudara radicalmente depois de dezessete
anos. Não sabemos o porquê.
Apesar de justificar suas qualidades para viver por si, Maria não
conseguiu apresentar a principal exigência do Decreto de 1853, qual seja,
a prova de serviços a particulares por quatorze anos. Dessa forma, o juiz
considerou improcedente a justificação apresentada e Maria continuou
a prestar serviços como tutelada na Casa de Correção.
Mostrando-se determinada a resistir às condições que lhe foram
reservadas, Maria persistiu buscando a emancipação. Assim, em 1858,
novamente a reclamou. O juiz reapresentou ao presidente seu pedido e
cobrou ampliação na cobertura dos direitos aos africanos livres. A resposta,
anotada na margem do documento, era a última esperança da africana: o
presidente da província levaria o assunto ao imperador.36
Sem sabermos o desfecho de sua história, Maria desaparece de nossos
olhos. Apesar disso, pudemos perceber o quanto era difícil a situação dos
africanos livres, principalmente daqueles que, como ocorria com ela, só
haviam prestado serviços em estabelecimentos públicos. Sem um substrato
legal que defendesse sua liberdade (pelo menos até 1864), Maria acabou
por depender da vontade do imperador para alcançar sua emancipação.
Incansável, resistiu como pôde, fugindo, não trabalhando a contento do
administrador e mantendo os filhos junto de si.

34 AESP, CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria 1806-1866, José e Benedito; AESP, CO
5453, Juízo de Órfãos, Autos Cíveis de Curatela e Soldada, 1856, Benedito; AESP, CO 5443
Cx. 113, doc. 36, Autos Cíveis de Justificação, Benedito, 1860. Sobre a atuação dos juízes de
órfãos em relação ao trabalho compulsório infantil, ver Gislane Campos Azevedo, “A tute-
la e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil”, História Social,
no. 3 (1996), pp. 11-36.
35 AESP, CO 5367, Autos cíveis de justificação para emancipação, Maria, 1857. O direito à
emancipação dos africanos livres estava previsto pelo decreto n. 1303, de 28/12/ 1853. Po-
rém, restringia-se àqueles que tivessem cumprido 14 anos de serviços exclusivamente para
particulares. Os africanos livres que haviam servido em estabelecimentos públicos apenas
obtiveram esse direito através do decreto no. 3310 de 24/09/1864. 36 AESP, CO 5367.
36 AESP, CO 907, Ofício do Juiz de Órfãos ao Presidente da Província, 05/03/1858.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 285
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Pelos documentos percebemos que ela possuía um advogado para


apoiá-la nas queixas. Isso era fundamental e, de certo modo, a presença da
Faculdade de Direito em São Paulo pode ter favorecido seu encontro com os
bacharéis. Contudo, apenas o advogado não explica a resistência cotidiana
que Maria empreendeu. Além de sua determinação, também foi muito
importante a amizade com outros africanos que, como vimos, lhe permitia,
inclusive, guardar o dinheiro poupado com a venda de suas quitandas.
Através da trajetória de vida de Maria pudemos recuperar os
diferentes lados da opressão e da luta na história dos africanos
livres trabalhadores em estabelecimentos públicos de São Paulo no
século XIX. Os depoimentos dos administradores, revelando a frágil
condição dos tutelados, os argumentos dos juízes, ora defendendo o
uso da coerção, ora apontando a precariedade da liberdade, além das
ações dos próprios africanos, resistindo da maneira que podiam, são
parte da burocrática atenção dispensada aos africanos livres e que,
a despeito dos abusos, permitiu uma riqueza documental raramente
disponível para a história da escravidão no Brasil.
Se os embates cotidianos dos africanos livres foram pequenos para
abalar o controle social, foram suficientemente frequentes para nos
mostrar que eles não abriram mão da liberdade que acreditavam poder
gozar. Persistindo nessa busca, não desanimaram diante da rudeza do
tratamento que recebiam, e esta tampouco afrouxava os laços de solida-
riedade que mantinham entre si. Mas que liberdade eles reivindicavam?
Essa questão está na perspectiva da recente historiografia social,
que, ao se debruçar sobre as inúmeras formas intermediárias de trabalho,
tem identificado intensa precariedade na liberdade.37 A pergunta ganha
sentido quando verificamos que o significado de liberdade era diferente
para os africanos livres e seus tutores, bem como para escravos e se-
nhores. Maria era africana livre, tinha algum espaço para exercício de
uma autonomia, mas era contida pela exigência de subordinação e pela
coação ao trabalho compulsório, como todos os africanos de igual condi-
ção. Tendo perdido seu rastro, não pudemos saber quando Maria obteve
a emancipação. Podemos, contudo, lembrar que a maioria dos africanos
livres precisou esperar até 1864 para ser efetivamente emancipada.
Ainda assim, a carta de emancipação não os livrou dos desvantajosos
contratos de trabalho, nem do controle a que continuaram submetidos.38

37 Henrique E. Lima, “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberda-


de de trabalho no século XIX”, Topoi, vol. 6, no. 11 (2005), pp. 289-326; e Ana M. Rios e Hebe
M. Mattos, “O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas”, Topoi, vol.
5, no. 8 (2004), pp. 170-198; e Sidney Chalhoub, A força da escravidão: ilegalidade e costu-
me no Brasil oitocentista, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
38 Sobre o período pós-emancipação dos africanos livres, ver Bertin, Os meias-caras, pp.
181-247.

286 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Na cidade à procura de proteção


Sem o efetivo combate ao tráfico de escravos até 1850, a Lei de 1831
tornou-se quase uma formalidade diplomática, não fossem os africanos
livres e alguns poucos elementos da sociedade livre buscarem o seu cum-
primento. Não obstante a confiança na aplicação da lei por pequena parte
da sociedade, a atuação do Estado nessa direção foi imprecisa, insegura e,
por consequência, falha. Contudo, essa lei serviu de respaldo a diversos
africanos que procuraram as autoridades para proteger-se da escravidão,
como se vê nos exemplos a seguir.
Em janeiro de 1841, Candido chegou a São Paulo, vindo de
Itu, e foi procurar o juiz de Paz da Freguesia da Sé para denunciar
que havia sido ilegalmente importado. Visando protegê-lo, o juiz o
mandou para depósito até o interrogatório. A apresentação de um
homem que alegava ser o proprietário de Candido motivou o juiz a
fazer novas inquirições, uma vez que não considerava justo “nem
mesmo de humanidade que com facilidade se entregue a um senhor
uma pessoa que se diz livre, que é fraca e por isso deve achar todo o
apoio e proteção da parte das autoridades”.39 Diante da dificuldade
em provar se o africano era ou não escravo, o juiz de Paz decidiu
mandá-lo ao juiz de Direito de Itu, mas antes submeteu o assunto
à aprovação do presidente da província. A resposta deste, anotada
à margem do documento, expressava a ambiguidade da posição do
Estado: “Que não julgo conveniente a remessa tanto pela matéria ser
mui delicada como por confiar na Presidência que lhe é própria, pois
estou convencido que procedera de uma maneira tal que não tirara
o direito ao senhor quando tenha direito ao escravo e ao mesmo
tempo não dava motivo para que outros fujam de captura (julgada
achar quando no ferro).”40
A ambiguidade está justamente nessa indecisão entre proteger o
direito à propriedade e evitar o encorajamento de novas fugas. A manu-
tenção da ordem escravista superava a preocupação com uma eventual
ilegalidade, ou seja, mais relevante do que a ameaça à liberdade de um
africano era o cuidado em não dar margem para novos requerimentos,
acompanhados de outras fugas.
O interrogatório feito pelo juiz na capital é esclarecedor da forma
como o tráfico ilegal continuava a alimentar as fazendas da província
na década de 1840: desembarque no litoral de São Sebastião de homens,
mulheres e crianças, subida da serra a cavalo ou a pé, esconderijo nos
matos durante o dia, vendas em Jacareí e distribuição para Mogi, Itu e

39 AESP, CO 882, Ofício do Juiz de Paz Manoel José Chaves ao Presidente Rafael Tobias de
Aguiar, 30/01/1841.
40 AESP, CO 882.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 287
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

região.41 Em seu depoimento, Candido não apenas deu detalhes de como


aconteciam os desembarques de escravos e como estes eram transportados
até os compradores, mas também como o incentivo de companheiros ou de
caipiras foi importante para sua decisão de procurar um juiz: “respondeu
que todos lhe diziam, não só em sua casa, como os caipiras com quem
encontrava que ele era meia cara e que viesse para a cidade, que ficava
inteiramente livre apresentando-se aos Juízes”.42
A fala de Candido imprime de significados tanto a comunidade
de onde fugiu quanto a cidade para onde se dirigiu. O “ouvir dizer” dos
africanos livres nos remete às redes de convívio estabelecidas entre
eles, os escravos, os libertos e os livres pobres nas propriedades rurais
da província, as quais promoveram solidariedades fundamentais.
A história protagonizada por Felipe também é reveladora. Tão logo
chegou a São Paulo, em dezembro de 1855, vindo do Vale do Paraíba, foi
imediatamente procurar o curador dos africanos livres, João Feliciano
da Costa Ferreira, dizendo que era africano livre e “que lhe diziam que
neste Juízo lhe dariam a carta [de liberdade]”. 43 Felipe foi levado a depó-
sito na cadeia para as averiguações e, no mês seguinte, mandado para o
calabouço como escravo. Esse africano havia fugido das mãos do alemão
Guilherme Laudemaus, depois de este ter-lhe dado “umas pancadas com
um rabicho de couro e atirado-lhe com o prato”. A ira do proprietário fora
justificada pela ausência, no jantar daquele dia, de caldo no seu feijão. Em
seu depoimento dado no Juizado de Órfãos, Felipe declarou que, diante
daquela agressão, “ainda que não tenha dado motivo para ser maltratado,
e que não era escravo, resolveu fugir, e efetivou a fuga”.
Interrogado, declarou-se de nação Cabinda, com idade de 33 anos,
“sendo sua condição de africano livre”. Ao ser questionado por que se
considerava africano livre, disse que isso havia sido dito por um tal de
João Janson, o mesmo que o trouxera à província de São Paulo, mais
exatamente a Estiva, uma localidade entre Areias e Silveiras, no Vale
do Paraíba, juntamente com mais seis africanos trazidos do depósito
do Valongo, no Rio de Janeiro, até sua casa, para “ensinar-lhes a rezar e
contar.” Felipe não soube dizer qual era a sua idade ao chegar à província,

41 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841; AESP, EO 1496, fls. 132-6, Corres-
pondência reservada do Chefe de Polícia, 1851. Sobre o tema do tráfico ilegal em São Pau-
lo, ver Priscila Alonso, “O Vale do nefando comércio: o tráfico de escravos no Vale do Paraí-
ba (1850-1860)” (Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2006); Jaime Rodrigues, O infame
comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850), Campinas: Editora Unicamp-Cecult, 2000.
42 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841.
43 AESP, CO 903, Ofício do Administrador Francisco Antonio de Oliveira ao Presidente Fran-
cisco Diogo Pereira de Vasconcelos, 17/05/1856. As citações sobre o caso de Felipe, a se-
guir, referem-se a este documento.

288 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

apenas que era muito pequeno, e “que em sua língua se chamava Paque,
que corresponde a quatro, fazendo numa ocasião (correspondente) a conta
pelos dedos da mão parando no quarto e principiando no mínimo.” Ao ser
perguntado sobre como se recordava tão bem de tudo, embora fosse muito
novo, respondeu que era muito vivo e que nunca se esquecera do ocorrido.
Relatou também que, durante a viagem para a província de São Paulo, o
grupo foi preso, inclusive o intermediário Janson, que, mediante “dádivas
e agrados”, conseguiu que todos declarassem terem sido comprados por
ele, resultando na liberação de todos. Em Estiva, Felipe permaneceu por
muito tempo, inicialmente com os companheiros e depois sozinho com o
proprietário, uma vez que os “outros eram grandes e como mais ladinos,
fugiram”.
Já crescido, Felipe foi vendido a um proprietário de Queluz, para quem
trabalhava como pajem, mas fugiu em seguida. Preso, fora reconduzido ao
proprietário, que o vendeu para Mariano de Quadros, sócio do barão de An-
tonina, em pagamento de algumas bestas que lhe foram compradas. Levado
até Curitiba, dali foi entregue a Luiz Vergueiro, genro do famoso barão,
para que o acompanhasse até o Rio Grande do Sul a fim de trabalhar em
fazenda de gado. Ao retornar a São Paulo, Vergueiro o levou para a fazenda
de Ibicaba, em Limeira, de onde fugira novamente. Declarou também que,
após ser preso, pediu para Laudemaus o comprar, uma vez que era muito
castigado por Vergueiro. Foi vendido ao alemão cerca de seis meses antes
da última fuga, quando se dirigira para São Paulo.
Ao responder ao auto de perguntas, apresentou detalhes da sua
trajetória, informando nomes das pessoas que o compraram, os lugares
pelos quais havia passado, bem como os acontecimentos a que assistira
ainda no Rio de Janeiro, como a renúncia do imperador, em 7 de abril
de 1831, e a reunião da multidão no Campo de Santana. O advogado do
proprietário, contudo, não se deixou impressionar pela boa memória
de Felipe e passou a apontar os erros cometidos pelo africano sem
negar, ironicamente, “alguma habilidade no arranjo do romance que
expôs”. O principal erro cometido havia sido com as datas, uma vez
que, tendo sido testemunha ocular da saída do imperador em abril,
provava que já se encontrava no Rio de Janeiro quando a lei antitráfico
de 7 de novembro de 1831 entrou em vigor. Sem compaixão, o advo-
gado utilizou os vários erros e contradições de Felipe “para destruir
a sonhada condição de africano livre”. Implacável, asseverava: “Mas
o certo é que ele é crioulo, pelo traquejo que tem tido com africanos
aprendeu algumas palavras; e por ser muito esperto quer aproveitar-se
dessa circunstância ilusória para armar um romance absurdo com o
fim impossível de ser declarado livre”. Diante desses argumentos, em
fevereiro, o juiz considerou improcedente a reclamação do curador
e Felipe permaneceu escravo, sendo devolvido ao seu proprietário,
Guilherme Laudemaus.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 289
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Felipe não teve sorte: fugira várias vezes, mas sempre fora recaptu-
rado; acreditando que poderia provar ser africano livre, veio a São Paulo
mas cometeu erros que o atento advogado adversário não deixou passar.
Recolhido à Casa de Correção durante a investigação, foi transferido
para o Calabouço após a decisão judicial, até ser entregue ao seu senhor.
Chamam a atenção no caso de Felipe o esforço para chegar à cidade, a
boa articulação verbal diante do juiz e a esperança de ter a liberdade
declarando-se africano livre.
Em 1860, a busca da proteção contra a escravização ilegal foi também
o que motivou Tibúrcio Manoel a fugir das mãos de um proprietário e
procurar as autoridades no intuito de se afirmar como livre. Natural
de Luanda, havia chegado ao Rio de Janeiro em 1831 e, logo depois,
recolhido à Casa de Correção, de onde saiu para servir a Pedro de Araújo
Lima. Depois do falecimento deste, passou para o domínio de outros, até
ser levado à província do Mato Grosso para servir ao capitão Garcia por
nove anos. Passados quatorze anos, decidiu requerer sua emancipação,
mas fugiu com outros companheiros depois que seus papéis foram pro-
positalmente queimados e ele se perdeu do grupo por cerca de um mês,
adoeceu, mas ainda assim conseguiu chegar ao acampamento militar
de Avanhandava, em dezembro de 1860, onde pediu proteção e contou
sua história. 44
A escravização de Tibúrcio aponta para um problema comum, agra-
vado após a definitiva proibição do tráfico em 1850. Por um lado, estavam
os contrabandistas alimentando o comércio de escravos e, por outro, os
africanos que conseguiram escapar tentando provar a ilegalidade de sua
condição. A posição do Estado diante disso era ambígua, uma vez que, no
combate ao tráfico, se mostrava ineficaz, ou mesmo ausente, principal-
mente até 1850, ao mesmo tempo em que se colocava como protetor dos
africanos que provassem na Justiça que haviam sido contrabandeados.
Sem que o uso dessa mão de obra contrabandeada fosse eficientemente
fiscalizado pelo Estado, o papel de defensor da liberdade dos africanos
apenas se fazia notar quando a Justiça era procurada pelo próprio africano
livre.45 Contudo, provar ter sido ilegalmente importado não era garantia
suficiente para a liberdade. Era preciso que o africano provasse ser boçal
e com vínculos recentes com a África. Nesse sentido, a ação protetora do
Estado era uma reação à atitude do africano, isto é, não era preventiva,
uma vez que se dava apenas após verificado o abuso.

44 AESP, CO 916, Ofício de Manoel do Carmo Barros, Diretor da Colônia Militar ao Presiden-
te da Província. 01/12/1860. Esse acampamento estava instalado próximo à colônia mili-
tar de Itapura, na divisa com a província de São Paulo, e tinha por objetivo a construção de
uma estrada ligando a colônia até o Mato Grosso.
45 Afonso B. Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no
Brasil (1818-1864)” (Dissertação de Mestrado, UFBA, 2002).

290 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Em abril de 1850, depois de ser apreendido em Mogi das Cruzes, Lourenço


foi enviado à delegacia de polícia da capital, onde foi ouvido e submetido à
perícia. Na ânsia para encontrar indícios que o definissem como boçal ou
ladino, foi constatado que ele possuía os dois dentes superiores cortados
em forma de meia lua, além de um sinal marcado acima do umbigo, cons-
tando de três losangos pontilhados colocados um acima do outro, além de
cicatrizes.46 Trazia também “sinais nas palmas das mãos de ter trabalhado
com enxada”, o que, para os peritos, seria condizente com a condição de
escravo. Incapaz de comunicar-se na língua portuguesa, Lourenço declarou,
através de intérprete, que era de nação congo, que havia sido “lavrador na
sua terra” e que tinha sido tirado de lá havia apenas “duas luas.” Perguntado,
declarou que depois de ter chegado ainda não trabalhava e que “o nome de
seu senhor era só senhor.”
O desconhecimento do idioma e o pouco tempo de chegada ao Brasil
foram elementos determinantes para que os peritos concluíssem que
Lourenço era africano boçal. Contudo, vale registrar o deslize dos peritos
que, ao tomarem os calos nas mãos como indício de escravidão no Brasil,
não consideraram a condição de trabalhador do africano ainda no seu
continente. Como recém-chegado, importado após novembro de 1831,
Lourenço foi recolhido e enviado ao serviço do Jardim Público, de onde
fugiria menos de um mês depois. 47
A nova fuga de Lourenço indica que estar a serviço de estabelecimentos
públicos como africano livre não era garantia de melhor tratamento do
que o oferecido aos escravos. Mostra ainda como a proteção presumida
na tutela foi reiteradamente rejeitada por muitos, inclusive por aqueles
que eram novos na cidade, porque implicava em subordinação e trabalho
compulsório, elementos que tornavam frágil a liberdade buscada por
africanos como Lourenço.
Esses ricos fragmentos de histórias de vida são exemplos do pro-
tagonismo dos africanos ilegalmente escravizados, que apostaram na
proteção oficial representada pelo juiz de órfãos mas encontraram uma
resposta vacilante e pouca disposição das autoridades em enfrentarem
os proprietários. Lembremos da resignada resposta de Lourenço sobre
o nome de seu senhor. Se para a polícia o nome do proprietário era algo
importante, porque facilitava o processo de averiguação de escravização
ilegal, para aquele recém-chegado bastava saber a condição de senhor,
não importando o seu nome.

46 AESP, CO 892, Ofício do Delegado Francisco Maria Furtado de Mendonça ao Presidente


Vicente Pires da Motta, 26/04/1850.
47 AESP, CO 892, p. 2, doc. 22, Ofício de Antonio Bernardo Quartin ao Presidente Vicente Pi-
res da Motta, 13/05/1850.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 291
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A partir do conceito de agency (agência, protagonismo) a resistência


cotidiana de Candido, Felipe, Tibúrcio e Lourenço assume outros contor-
nos, quando se verifica que a intenção de liberdade e a solidariedade por
eles articulada redefiniram suas ações.48 As trajetórias desses africanos
revelam que eles acreditavam que, se provassem ser africanos livres
estariam protegidos da escravidão; mostram também que a informação
sobre a ilegalidade do tráfico circulava entre a arraia miúda e que foram
incentivados a procurar as autoridades. Contudo, a coerção das autoridades
evidencia que o direito positivo não coincidia com o direito na compreen-
são dos africanos. 49 Essa diferença acabou motivando diversas ações de
insubordinação que atingiram todos os postos de trabalho.
Candido, Felipe, Tibúrcio e Lourenço podiam ser classificados como
africanos ilegalmente escravizados, ou seja, trazidos após 1831, mas que
não haviam passado pelo crivo da comissão mista para serem considerados
africanos livres. Beatriz Mamigonian aponta, na pressão abolicionista
britânica da década de 1840, uma tentativa de ressignificação da liberdade,
de modo que ambos os grupos passassem a ser alvo da emancipação. Isso
gerou intenso desconforto diplomático, uma vez que, se levado ao fim e ao
cabo, atingiria boa parte de todos os escravos do país, ameaçando seria-
mente a ordem escravista.50 Ainda que o fim do tráfico, em 1850, tivesse
aliviado a pressão estrangeira, a Lei de 1831 continuou como espectro
da liberdade, seja na atuação através dos tribunais, seja na reivindicação
direta como fizeram os africanos aqui retratados.51

Quando o prato, o fumo e o sabão fazem a diferença


Embora a tutela oferecida aos africanos fosse defendida pelo curador
e pelos juízes de órfãos como meio de proteção real, para os administra-
dores dos estabelecimentos públicos a permanência dos africanos livres
como serventes resumia-se à prestação de bons serviços. Isso explica, em
parte, as constantes queixas sobre a conduta e a qualidade do trabalho
dos serventes africanos. Para os administradores, a lógica era a mesma
da escravidão. Entretanto, os africanos não entendiam da mesma forma,
por isso resistiram, não trabalhando no ritmo esperado, embriagando-se,

48 Walter Johnson, “Agency”, Journal of Social History, no. 37, (2003), pp. 113-124.
49 Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, p. 141.
50 Beatriz G. Mamigonian, “A Grã-Bretanha, o Brasil e as ‘complicações no estado atual da
nossa população’: revisitando a abolição do tráfico atlântico de escravos (1848-1851)”.
Texto apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curiti-
ba, 2009, http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos4/beatrizmami-
gonian.pdf , acesso em 12/10/2015.
51 Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo, Campinas: Editora Unicamp, 2010.

292 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

reclamando dos maus tratos e fugindo. A mesma tutela que respaldava


os abusos dos administradores públicos era reivindicada pelos africanos
para reclamar das autoridades, como se pretendessem buscar uma pro-
teção de fato.
Sem que jamais tivesse ocorrido, de fato, uma sublevação dos
africanos livres em São Paulo, o governo provincial e seus adminis-
tradores mostraram-se bastante preocupados com a preservação
da ordem, o que resultava em especial atenção ao grupo e àqueles
que cooperavam com suas causas. Assim, por exemplo, a fuga de
Aniceto, da Casa de Correção, foi relacionada à sua “decidida negação
que há certo tempo manifestou para o serviço ou as sugestões de
pessoas gratuitamente predispostas em desmoralizar os africanos
da casa”. 52 Do mesmo modo, o diretor do Jardim Público reclamava
da saída de Tomé, dizendo que “não faltam pessoas que constante-
mente promovam a liberdade deles insubordinando os africanos”.53
A queixa recorrente contra “pessoas mal-intencionadas” que insuflavam
os africanos livres era, quase sempre, uma referência aos bacharéis que os
defendiam na luta pela emancipação. Embora a tutela pretendesse ser um
mecanismo para a preparação para a vida autônoma através do trabalho e
da disciplina, no caso dos africanos livres a perspectiva de emancipação
foi paulatinamente ignorada pelos tutores. Porque a premissa não era a
defesa da liberdade, todo e qualquer movimento dos tutelados em direção
à autonomia foi tratado como insubordinação, como risco à ordem.
Não obstante as leis emancipacionistas, o Império era escravista,
resultando que todas as tentativas de enquadramento dos africanos
livres na ordem e na submissão tinham como horizonte a manutenção
e o fortalecimento da escravidão. Nesse sentido, a insubordinação dos
africanos livres era interpretada como ameaça ao controle dos escravos
e, no limite, à manutenção da própria escravidão, e portanto devia ser
controlada. O dilema no qual se colocava o Estado brasileiro era justa-
mente o de ter de acatar a categoria de africano livre como resultado da
política internacional de combate ao tráfico e, ao mesmo tempo, manter
a escravidão. Assim, sob a justificativa de prepará-los para a autonomia,
a tutela representava um meio para o disciplinamento que possibilitava
extrapolar o domínio para além da escravidão. Segundo Ilmar de Mattos,
a manutenção da ordem era essencial para a construção do Estado e a
constituição da classe senhorial, daí que a vigilância do primeiro sobre
todos deveria ser contínua e efetiva, por exemplo, através do controle

52 AESP, CO 3276, Ofício do Diretor da Casa de Correção, 15/09/1862.


53 AESP, CO 911, Ofício do Diretor do Jardim Público Antonio Bernardo Quartin, 19/10/
1859.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 293
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

da circulação de escravos, libertos e africanos livres. 54 Havia, contudo,


grandes dificuldades para manter os africanos tutelados no lugar de não
livres, uma vez que sua condição legal singular, por si só, era interpretada
por eles como próxima da liberdade.
Comum entre as histórias de vida de africanos livres está o fato de as
autoridades responsáveis não defender a emancipação a que eles tinham
direito e de não os diferenciar, na prática, dos escravos. As acusações de
insubordinação e de vícios foram constantes nas falas das autoridades, que,
preocupadas com a manutenção da ordem entre os serventes, dificultaram
o acesso deles à liberdade usando o argumento da proteção. Não há, porém,
nada estranho na atitude dos administradores quando se considera que
a defesa da ordem era fundamental para o Estado escravista e que, ao
contrário do que os serventes desejavam, as relações de trabalho estariam
sempre acompanhadas de coerção.
Da mesma forma que os diferentes significados conferidos pelos
escravos à liberdade definiam suas diversas estratégias de atuação e
de reivindicação, poderíamos assim considerar o caráter das fugas,
das insubordinações e demandas dos africanos livres. 55 Vale observar,
primeiramente, que esses africanos não fugiam exatamente do trabalho
ou dos estabelecimentos, mas da compulsoriedade e do tipo de controle
a que eram submetidos. No caso de serventes em estabelecimentos
urbanos, não havia ruptura com o empregador, nem distanciamento
da cidade, seja porque soubessem ser necessário manter o vínculo
empregatício, ou porque, no meio urbano, as chances de escravização
eram menores.
Muitas das fugas de estabelecimentos públicos duravam o tempo
necessário para reunir provas da emancipação, como por exemplo a
procura de testemunhas. Nesses casos as fugas não representavam o
rompimento com o estabelecimento, mas a afirmação do protagonismo
dos africanos livres. Nesse sentido, a busca da emancipação, da proteção
contra a escravização, de espaços de autonomia ou de melhor tratamento
compõe um quadro de resistência dos africanos livres cujas matizes
variaram conforme o local e o momento mais adequados.

54 Ilmar R. de Mattos, O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial, Rio de Janeiro:


Access, 1994, pp. 212-224.
55 Hebe M Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravis-
ta. Brasil, séc. XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ao investigar as diversas for-
mas de aproximação com a liberdade, a autora permitiu o alargamento das interpreta-
ções sobre a agência escrava. Flávio dos S. Gomes, Histórias de quilombola: mocambos
e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2006, estuda os significados da formação de quilombos de resistência no Rio de Ja-
neiro, definindo o conceito de “campo negro” ao constatar uma extensa rede estabeleci-
da entre escravos fugidos, livres e cativos das propriedades rurais e escravos urbanos,
que incluía também o comércio.

294 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Destaco aqui dois importantes momentos de insubordinação dos


africanos livres a serviço na Serra de Cubatão, no litoral paulista. Ocor-
ridos em 1853 e 1856, período de maior adensamento da presença de
africanos livres entre os serventes de obras públicas naquela região, os
episódios foram marcados pela denúncia de irregularidades, queixas con-
tra o domínio e a reivindicação por melhorias nas condições cotidianas
de vida. Eles confirmam que a resistência e a negociação faziam parte
das relações entre os africanos livres e os administradores públicos.56
No primeiro caso, os africanos livres Ambrósio, Francisco, Albino,
Thomé, Antonio, Messias e Caio fugiram dos trabalhos na Serra e, ao serem
presos em Jacareí, explicaram ao chefe de polícia que se dirigiam à Corte
para reclamar com o monarca dos abusos que sofriam. No documento, assi-
nado por C. Costa Ribeiro, a rogo dos africanos, há queixas contra castigo,
alimentação, vestuário, descaso com os enfermos e a reclamação por uma
ração de fumo. Vale aqui a citação completa do requerimento:
Ilmo sr dr chefe de polícia. Dizem os africanos livres
Ambrósio, Francisco, Albino, Thomé, Antonio, Messias
e Caio, que não sendo de seu costume ausentarem-se
de qualquer administrador que os rege ou de qualquer
serviço em que tem estado empregados, porque sempre
e por espaço de muitos anos que estão no Império, nunca
tiveram tal nota, todavia, sendo eles remetidos da Corte
para esta Capital, em tempo do ex-presidente Nabuco;
por ordem do mesmo, foram trabalhar na Serra de Santos,
onde se conservaram até princípio de fevereiro p.p. e
tendo eles suplicantes sido tratados com o maior [ras.]
possível, tanto de trato subsistencial, como de vestuário,
como rigorosamente os tratava dando imensas surras,
como alguns mostram certidão em seus corpos e nem
ao menos a triste roupa consentia que eles lavassem ou
mandassem lavar, faltando-se com a ração de fumo a
ponto de que alguns tem morrido ao desamparo, porque
na enfermidade não tem o menor trato; e com receio
que os suplicantes tiveram de morrer da mesma forma,
retiraram (se) com direção ao Rio, para queixarem-se ao
Monarca, tanto que em caminho foram pegados, isto é,
passando na cidade de Jacareí e como se acham presos
na Cadeia desta cidade, imploram a VS se digne dar suas
altas providências a tal respeito, mandando-os seguir ou
para o Jardim ou para a Fábrica, ou para qualquer outro
ponto, à exceção de estarem debaixo do domínio do dito
administrador Anselmo de tal, cujo acompanhou os

56 A resistência e a negociação na escravidão são temas discutidos, por exemplo, nos seguin-
tes trabalhos: Reis e Silva, Negociação e conflito; Soares, A capoeira escrava; João José
Reis e Flávio dos S. Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Sandra L. Graham, Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 295
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

suplicantes quando seguiram para o referido serviço da


Serra, durante o qual tratou aos suplicantes não como
cristãos, mas como bárbaros. Os suplicantes, senhor,
não se eximem de qualquer serviço, porém desejam ser
tratados com a humanidade de que VS é dotado, e na
mesma [esperam] os suplicantes a reta justiça de VS
porquanto e com o mui profundo respeito e acatamento
P.P. a VS se digne deferir e tendo em consideração o
exposto, origem tão somente da circunstância. A rogo dos
suplicantes C. Costa Ribeiro. R.S.57

Chama a atenção a ênfase em dizer que não fugiam do trabalho, mas do


tratamento recebido, assim como a súplica para não retornarem ao poder
do antigo administrador e a solicitação de transferência para a Fábrica de
Ferro São João do Ipanema, ou para o Jardim Público, na capital. Intrigante
que tivessem desejado ir para aqueles estabelecimentos, de disciplina
reconhecidamente rígida e trabalho pesado.58 Estariam eles querendo jun-
tar-se a outros africanos servindo naqueles locais, ou apenas pretendiam
demonstrar coragem para o trabalho e disposição para a disciplina? Claro
que a transferência não era o objetivo da fuga, afinal, dirigiam-se à Corte
quando foram surpreendidos pela polícia, mas, diante da possibilidade de
devolução à Serra e dos consequentes castigos, sugeriram como alternativa
a transferência para a fábrica, que a despeito de também ter disciplina
rigorosa os colocaria na companhia de muitos outros africanos livres.
O delegado de Jacareí informou o caso ao curador dos africanos, e
este, por sua vez, levou ao conhecimento do juiz de órfãos o requerimento,
esclarecendo que eles não estavam subordinados à administração do juiz
de órfãos da capital. O juiz relatou o acontecido ao presidente da província,
que mandou informar o fato ao administrador dos africanos na Serra. Em
sua resposta José Joaquim de Lacerda procurou defender-se das acusações
dos africanos, declarando que fornecia roupa e comida, que os serviços a
que estavam obrigados eram moderados, e que os castigos aplicados eram
os autorizados pelo regulamento de 31 de dezembro de 1851,
sem os quais não é possível que se obtenha serviço algum da
maior parte dos ditos africanos, que com a consciência de
serem livres, e de mais com o exemplo de verem ganhando

57 AESP, CO 1230, Ofício do Delegado Francisco Maria de Mendonça ao Curador dos Africa-
nos Livres, 03/04/1853.
58 Sobre o cotidiano de trabalho dos africanos livres na fábrica de ferro e nos demais es-
tabelecimentos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras; especificamente so-
bre a fábrica de ferro, Afonso B. Florence, “Resistência escrava em São Paulo: a luta dos
escravos da fábrica de ferro São João do Ipanema 1828-1842”, Afro-Ásia, no. 18 (1996),
pp.7-32; Jaime Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na fábrica de
Ipanema”, História Social, no. 4-5 (1997-1998), pp. 29-42; e Jorge Prata de Sousa, “Afri-
cano livre ficando livre: trabalho, cotidiano e luta” (Tese de Doutorado, Universidade de
São Paulo, 1999).

296 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

jornal outros africanos que há em Santos e mesmo no


Cubatão, e que está [sic.] em idênticas circunstâncias, só
forçadamente se dão ao trabalho: ainda mais tendo entre
eles muitos de péssima conduta, como sejam além de
outros os dois primeiros suplicantes de nomes Ambrósio
e Francisco. Além disso, costumo mandar para Santos aos
domingos acompanhados de um feitor para venderem as
tranças de palha que costumam fazer, para vender por sua
conta, nas horas de descanso [...].59

Na pretensão de negar os maus tratos, Lacerda confirmou a prática


de castigos. Entretanto, nem os castigos, nem a permissão para produ-
ção e venda de palha trançada surtiam os efeitos esperados, porque os
africanos livres entendiam que sua condição diferenciada respaldava a
desobediência para o trabalho, e porque o contato com africanos traba-
lhando a jornal intensificava o desejo de autonomia.
Importante observar que o comércio realizado pelos africanos livres
não é mencionado no requerimento de Ambrósio, Francisco, Albino,
Thomé, Antonio, Messias e Caio. 60 Da mesma forma, conforme visto
no início deste artigo, as referências à produção e à comercialização
de quitandas por Maria apenas são informadas pelos administrado-
res e não pela africana ou por seu preposto. Quais os significados da
ocultação dessa relativa autonomia? Seria porque não a entendiam
como autonomia, ou ainda por que tentavam expor uma imagem mais
deletéria do domínio? Ou, ainda, porque, como tivessem, segundo o
administrador Lacerda, péssima conduta, talvez não pudessem gozar
de tais ganhos? Ou, talvez, porque esse comércio só existia como um
argumento do administrador?
Essas perguntas nos remetem à análise de Stuart Schwartz, segundo a
qual os espaços de autonomia, que resultavam em ganhos para os escravos,
faziam parte da política de domínio e escondiam a lógica da concessão
visando maior controle, bem como os esforços de negociação dos escravos.61
Contudo, os africanos livres tinham ciência de que o tempo de subordina-
ção era limitado, acreditavam que a liberdade não era inatingível e isso
tornava infrutíferas as estratégias paternalistas dos administradores de
controle mais efetivo. Ainda que houvesse distinção entre eles quanto ao

59 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
60 No Rio de Janeiro, os quilombolas produziam tranças de palha para confecção de chapéus
para serem comercializados. Ver Flavio S. Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século
XIX”, in Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, pp. 263-90.
61 Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, pp. 89-123. O tema da brecha camponesa, nome
dado aos espaços agrícolas de autonomia dos escravos, foi também analisado em Ciro F.
Cardoso, Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas, São Paulo: Bra-
siliense, 1987; e Reis e Silva, Negociação e Conflito, pp. 22-31.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 297
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

gozo de mais ou menos autonomia, todos se aproximavam na condição de


africano livre em busca da emancipação e na negação da escravidão, por
isso não aceitavam castigos e reivindicavam melhorias.
Voltando aos argumentos de Lacerda, quanto à acusação de má ali-
mentação dos serventes, ele se defendeu nos seguintes termos:
Para a alimentação recebi uma tabela pela qual se ordenava
que eles fossem sustentados com feijão, toucinho, farinha
e canjica, e como não querem comer esta, mando dar-lhes
ao almoço e jantar feijão com toucinho e a ceia feijão
simplesmente e destes alimentos comem quanto querem.
Há pouco pedi e obtive permissão de dar-lhes uma vez
por semana carne fresca de vaca, o que tenho feito. Devo
prevenir V. Exa o fornecimento destes alimentos é feito por
conta da Fazenda, dando eu conta do que para isso compro,
não podendo, portanto, ser taxado de poupar para ganhar.
Não tive ordem de dar-lhes fumo: contudo tenho dado
desde que os recebi em todas as semanas sem interrupção,
como se vê da féria que apresento mensalmente e bem
assim sabão para a lavagem de roupa.62

As lacunas deixadas pelo administrador referem-se, justamente,


às conquistas dos africanos por melhor alimentação, ou seja, que o
fornecimento de carne fresca, assim como a concessão de fumo foram
resultado da reivindicação dos africanos e não de decisão unilateral do
administrador. Além da alimentação, Lacerda declarou o fornecimento de
duas mudas de roupas grossas para o serviço, que “ainda existe em bom
estado”, apesar da entrega ter sido feita havia um ano. Informava também
que já solicitara uma “roupa fina para com ela irem à igreja satisfazer o
preceito da confissão.”63 Lacerda dava ao presidente da província a sua
versão de bom administrador, que punha à disposição dos africanos o
pacote completo: roupa, alimentação, castigo e religião. Nem a concessão
de um pouco de autonomia ficou de lado, como vimos, ao informar sobre
a permissão para vendas de palha trançada em Santos.
Três anos depois desse episódio, o relatório de outro administrador
das obras da estrada, o engenheiro Carlos Rath, 64 comprovaria que as
reivindicações dos africanos livres foram mais comuns do que parecem,

62 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
63 AESP, CO 1230.
64 Carlos Daniel Rath nasceu na Alemanha, em 1801. Formado engenharia, chegou ao Bra-
sil em 1830 contratado pela Inspetoria de Obras Públicas, órgão do governo provincial
de São Paulo. Silvia C. Siriani, Uma São Paulo alemã: vida quotidiana dos imigrantes
germânicos na região da Capital (1827-1889), São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, pp.
133-135.

298 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

principalmente nos momentos de transição na administração. 65 Ao


assumir a administração das obras na estrada de Santos, o engenheiro
começou a receber várias denúncias contra seu antecessor Antonio José
Rodrigues a respeito de maus tratos contra africanos livres doentes e
desvio de alimentos.
Quatro dias depois de assumir seu posto, Carlos Rath foi avisado,
pelo “patrão” de uma lancha, sobre a insubordinação de africanos livres
que se negavam a trabalhar noturnamente porque queriam poder dormir
a noite toda, “como seus companheiros do Zanzalá”, e que, além disso,
esperavam não serem castigados pela recusa. Diante disso o administra-
dor chamou os descontentes para lhes perguntar como eram tratados, ao
que responderam “não ter queixa contra o patrão da lancha, porém que
querem ser tratados como gentes livres, não querem morrer de fome, não
querem comer como porcos, em um cocho e querem receber fumo como
se usava dantes [...]”.66
Aqui a principal reivindicação era a quantidade de alimentos e a forma
de consumi-los. Querer ser tratado como gente livre, naquele momento,
era não ter que comer como porcos em cocho, sugerindo que desejavam
pratos, como depois outros reclamantes explicitaram. O utensílio assumia
a função de distingui-los dos escravos e de (re)aproximá-los da condição
de livres. Carlos Rath declarou ao presidente que os repreendera pela
ousadia, reafirmara a ordem de trabalho noturno e prometera atender
aos pedidos. Dessa forma o administrador tentava manter sua autoridade,
mas, ao prometer atendê-los, reconhecia a pressão dos africanos.
Aproveitando a chegada do novo administrador, outro grupo de
africanos livres apresentou, naquele mesmo dia, novas reivindicações:
chegaram outros africanos com o feitor Florisbelo
Francisco do Couto, que trabalhavam na Serra fazendo
consertos, exigindo mais comidas e roupas que eles em
partes não tinham recebido o ano passado e sabão para
lavarem suas roupas, também pediram a demissão do
feitor deles e pratos para eles comerem; prometi tudo que
me for possível dar-lhes [...].”67

As reclamações, aqui, são mais diretas e profundas, porque não só


cobravam alimento e roupa, como também a demissão do feitor, que era
a autoridade que os submetia mais diretamente à condição de escravos. O

65 AESP, CO 1227, Relatório da administração da estrada da Capital e Santos e comparação


dos serviços e gastos feitos na Serra da Maioridade dos anos 1850 e 1852 com os de 1856
até 01/01/1857 debaixo da administração do Dr. Carlos Rath.
66 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão por Carlos Rath desde 12
até 21/07/1856.
67 AESP, CO 1236, Diário da Administração.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 299
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

administrador decidiu não demitir o feitor para não fortalecer os africa-


nos, mas acabou aceitando quando ele próprio pediu demissão alegando
doença. Em seguida, demitiram-se o feitor geral e um rancheiro, num
indício de que o clima havia ficado muito tenso.68
As reivindicações desse grupo engrossaram o coro dos queixosos da
lancha que não queriam “comer como porcos”. Não foi possível comprovar
se havia uma convergência de lideranças nesse, digamos, movimento rei-
vindicatório. Ao que parece, a chegada do novo administrador estimulou
as turmas de africanos livres a reclamar mudanças, porque sabiam que
aquele era o melhor momento para fazê-lo.
Em ambos os casos relatados (1853 e 1856), as reclamações são por
melhorias das condições de vida, sem referência direta à emancipação,
embora enfatizassem que não eram escravos. Os documentos são claros
quanto à recusa dos africanos livres a serem tratados como escravos,
e que, por isso, reclamavam por mais comida, pelo direito de usarem
pratos, por melhor tratamento aos enfermos, por sabão e fumo. O sabão,
necessário para a lavagem da própria (e única) roupa; quanto ao fumo,
era a cobrança de uma concessão anteriormente feita e depois revogada,
mas que os africanos a tomavam como direito. Não há, contudo, negação
da tutela a que estavam submetidos. Novamente, aqui vemos um paralelo
com as reivindicações escravas por espaços de autonomia, bem como a
tentativa de conveter concessões em direitos.
Reafirmando sua tática de não atiçar os ânimos, o administrador
acenou com a promessa de atendimento às reivindicações, não sem antes
reiterar a obediência e a subordinação esperadas dos africanos livres.
É preciso lembrar que Carlos Rath relatava o acontecido ao presidente
da província, e que, portanto, não deixaria de enfatizar sua capacidade
de controle dos insatisfeitos, muito embora tivesse deixado indícios
de que sofreu efetivamente uma pressão. Em seu diário, confirmou o
desvio de mantimentos e deixou indícios de que o responsável por essa
irregularidade era um dos feitores, que repassava os produtos para os
trabalhadores portugueses e para sua própria família. Desse modo, o
administrador confirmava a reclamação dos africanos de que os alimentos

68 Difícil não estabelecer paralelo entre as reivindicações dos africanos livres e aquelas
apresentadas pelos escravos fugidos do engenho Santana, em Ilhéus, no ano de 1789.
Depois de fugirem, eles redigiram um tratado de paz, submetido ao proprietário do en-
genho, estabelecendo as condições para o retorno ao trabalho. Entre as condições míni-
mas ali definidas estavam a redução das tarefas, o fornecimento de roupas e a conces-
são de dias livres para o trabalho em roça própria. Além disso, exigiam a mudança dos
feitores: “Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa apro-
vação”. Sobre esse engenho e a reprodução do documento, ver Stuart Schwartz, “Resis-
tance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil: the Slaves’ View of ”, The His-
panic American Historical Review, vol. 57, no. 1 (1977), pp. 69-79. Ou ainda, Reis e Silva,
Negociação e conflito, apêndice 1.

300 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

eram insuficientes. Como resposta à crise, Rath substituiu os acusados


de desvios e nomeou para feitor geral seu sobrinho, Jacques Hestle, que
passou a informá-lo de frequentes abusos, entre eles o fato de feitores
e rancheiros possuírem carroças particulares para serviço público, com
as quais lucravam com os fretes, além da apropriação indevida de ferro,
aço e carvão das obras. Ficaram confirmados também os maus tratos aos
serventes da Serra, conforme as queixas de 1853 e de 1856. Diante da
denúncia de que uma africana enferma morrera sem atendimento, assim
como sua filha de dez meses de vida, em vistoria o diretor se deparou com
outros africanos doentes e sem medicação, além de trabalhadores livres,
contratados a jornal, em idêntica situação.69
No mesmo mês de julho de 1856, quando assumiu a direção dos
trabalhos, Carlos Rath entregou a cada um dos africanos livres o utensílio
reivindicado, e tomou providências para conter os desvios de mantimentos,
segundo seu relato ao presidente:
Mandei entregar a cada um dos africanos um prato de folha
de flandres que se contentaram muito com isso, regulei
os mantimentos para cada um três quartos de toucinho,
um prato regular de farinha e meio de feijão e o mesmo
de canjica e suficiente sal; recomendei a economia sem
haver experdiçação e mais limpeza na maneira de cozinhar,
também tenho mandado acompanhar os mantimentos que
se quer desta administração para o Zanzalá; o mesmo que
conduz traz-me o recibo do feitor geral ou do rancheiro da
porção de mantimentos que recebe.70

Tanto o fumo quanto o sabão passaram a constar das despesas men-


sais dos relatórios dos anos de 1856 a 1860, o que pode significar que o
pedido dos africanos tenha sido atendido e se tornado parte do pacote
recebido rotineiramente.71
Em sua tese sobre a colônia de Itapura, Maria Aparecida da Silva
indica um movimento reivindicatório dos africanos livres daquele esta-
belecimento, no ano de 1861. 72 Influenciados pelas ideias abolicionistas
dos médicos da colônia, os africanos apresentaram-se em grupo diante do
diretor para reivindicar a emancipação. Ao relatar o caso ao presidente
da província, o diretor Victor San Tiago Subrá apresentou uma sugestão
de salário aos africanos livres, numa evidente estratégia para o controle.

69 AESP, CO 1236, Diário da Administração. Além dos africanos livres e escravos, trabalha-
vam nas obras da estrada portugueses e alemães.
70 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão.
71 AESP, CO 5152, 1856; CO 5153, p. 1 docs. 53-5, 61-3, 1858; CO 5154, p. 1 docs. 14, 17, 20,
28-33, 1859; CO 5154, p. 2, docs. 4-7, 1860.
72 Maria A. Silva, “Itapura: estabelecimento naval e colônia militar (1858-1870)”, (Tese de
Doutorado, Universidade de São Paulo, 1972), p. 103.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 301
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Para os objetivos deste artigo, focaremos o impacto da resistência dos


africanos e o esforço de negociação do administrador. Dizia ele:
Eu nunca partilhei as idéias de certos filantropos acerca
da raça preta, mas penso que é de equidade e justiça que os
africanos do Itapura tenham um pequeno salário. Em todo
o caso é urgente tomar algumas providências a respeito.
Aqui não há revoltas nem insurreição, há apenas uma
reclamação pacífica fundada em justiça, a qual com minhas
economias e administração fiscalizadora, pode ser satisfeita
sem sair da cifra consignada para as despesas do Itapura.73

Os reclamantes pressionaram o diretor e este, sentindo-se ameaçado,


apontava para um canal de negociação como a melhor solução para o caso:
Fiz-lhe uma pequena fala estranhando que se apresentassem
todos, quando um só era bastante, e prometi-lhes que ia
levar sua reclamação ao conhecimento de V. Exa, e que na
primeira monção que descer o rio Tietê no ano de 1862, isto
é em maio, tinha fé que seriam atendidos. Retiraram-se
satisfeitos, confiando que eu os não posso enganar. Creio
que houvera sido altamente imprudente senão perigoso
empregar o ameaço ou a força para impedir uma reclamação
que nada tinha de hostil, nem falta de respeito, e que era
simplesmente a invocação de um direito fundado em lei.74

Sabendo da força política que os movimentos reivindicatórios possuíam


e da ameaça representada pelas fugas e pelas reclamações coletivas, os
administradores não ficaram passivos nem alheios aos acontecimentos,
como mostra a disposição do diretor de Itapura para não reprimir e aceitar
uma negociação mínima com os queixosos (oferecendo apenas o aceno de
um pequeno salário, porque a emancipação teve que esperar até 1864).
A alternativa à repressão pura e simples, diante de insubordinações de
africanos livres, também pode ser verificada na atitude do administrador
das obras da estrada de Santos, José Joaquim de Lacerda. Ao ser informa-
do da captura dos escravos que haviam fugido, Lacerda enviou ofício ao
presidente com uma proposta para o controle das fugas, que consistia na
promoção de casamentos entre os africanos livres batizados, justificando
que “o amor da mulher e dos filhos deve influir muito para contê-los
aqui”.75 Além disso, solicitava maior presença de um sacerdote junto aos
trabalhadores para oferecer o sacramento da comunhão.
A fábrica também utilizava a religião como instrumento disciplinar,
tanto que, em maio de 1840, o diretor solicitou a permanência de um

73 AESP, CO 5247, Ministério dos Negócios da Marinha, 20/12/1861.


74 AESP, CO 5247.
75 AESP, CO 1254, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador da Estrada do Cubatão
ao Presidente da Província, 20/02/1853.

302 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

sacerdote efetivo em lugar do capelão, por considerar mais vantajoso “para


administrar os socorros espirituais, confissão, batizados, casamentos e,
sobretudo, as instruções primárias dos filhos de empregados e aprendizes”.76
Importante notar que o casamento e a religião como instrumentos de
controle social, assim como pequenas concessões (como o sabão, o fumo
e o prato), também aparecem em manuais de agricultores escravistas
do século XIX, o que aponta para um alinhamento da administração dos
africanos livres com as propostas de governo dos escravos. 77 A proposta
de Lacerda de promover o casamento de africanos livres foi acatada pela
presidência e o que parecia ter sido uma saída favorável ao administrador,
a considerar o controle obtido sobre as fugas, alguns anos depois revelou-
se um ganho para os africanos livres. Isso porque, em Aviso do Ministério
dos Negócios da Justiça de 14 de novembro de 1859, ficava estabelecida
a emancipação dos africanos livres cujos cônjuges já estivessem eman-
cipados. Portanto, se o casamento foi entendido pelos administradores
públicos como instrumento da política de controle, para os africanos
livres foi um meio eficaz de abreviação do tempo para a emancipação.78
A historiografia da escravidão tem mostrado que a resistência es-
crava no Brasil não se deu necessariamente pela rebelião declarada, mas
ocorreu constante e sorrateiramente ao longo de todo o período em que
durou o escravismo, inclusive através de movimentos reivindicatórios.
Nesse sentido, as reuniões noturnas de escravos e africanos livres, na
cidade do Rio de Janeiro, para a prática da capoeira, geraram tanto temor
de desordem quanto as fugas e a formação de quilombos. 79 Foi também
pelo temor de desordens que um grupo de africanos livres nagôs foi
transferido do Arsenal da Marinha da Bahia para o Rio de Janeiro, e de
lá para a Fábrica de Ferro, onde protestaram, de forma aberta e direta,
pela emancipação.80
Os casos de reivindicação dos africanos livres apresentados neste
artigo confirmam que a resistência e a negociação eram inerentes não
somente às relações escravistas, ou seja, a busca pela autonomia, pela
emancipação e a resistência ao trabalho compulsório eram campos de
uma mesma luta dos africanos livres e dos escravos, sendo que, para os

76 AESP, CO 5215, folder 2 A, 02/05/1840.


77 Ver Rafael de Bivar Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letra-
dos e o controle dos escravos nas Américas 1660-1860, São Paulo: Companhia das Letras,
2004, pp. 259-298.
78 Sobre os efeitos desse Aviso nos processos de emancipação de africanos livres, ver Bertin,
Os meias-caras, pp. 181-247.
79 Soares, A capoeira escrava; Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século XIX”.
80 Beatriz G. Mamigonian, “Do que o ‘preto mina’ é capaz: etnia e resistência entre os africa-
nos livres”, Afro-Ásia, no. 24 (2000), pp.71-95.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 303
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

primeiros, a condição oficial de não escravos era usada como premissa


das suas reivindicações. Dessa forma, em que medida aquelas ações e
reivindicações dos africanos das obras na Serra ou da colônia de Itapura
representavam uma ameaça? As solicitações de devolução aos postos
de trabalho de africanos fugidos e apreendidos na capital, a título de
exemplo para os demais, são indícios de que a ameaça representada
pelos fugitivos residia na possibilidade de abalo do controle do conjunto
dos trabalhadores, afetando, portanto, diretamente, a autoridade do
administrador público e, por conseguinte, o Estado, e, indiretamente, os
proprietários de escravos. 81 Nesse sentido, a força representada pelas
ameaças veladas ou diretas dos africanos livres acabou por configurar
uma resistência.
Na experiência histórica dos africanos livres – a captura na África,
seu transporte para o Brasil como escravos, a apreensão e o julgamento
como “livres”, o trabalho compulsório, a subordinação à tutela – a posição
do Estado frente a eles foi de bastante proximidade, dada a assumida res-
ponsabilidade governamental pelo seu destino. Contudo, essa experiência
mostrou também que, mais do que proteção, a tutela assumia o caráter
de dominação, o que fez com que o não dos africanos livres fosse uma
constante, marcando, na resistência cotidiana, a negação à subordinação
imposta pelo Estado. Se a situação diferenciada de africanos livres não
foi suficiente para lhes garantir a emancipação, assim como esta não
resultou em liberdade plena, como pretendiam, eles foram obrigados a
uma busca cotidiana de elementos que pudessem favorecer o exercício
da liberdade possível.

81 Por exemplo, AESP, CO 1231, Ofício do Administrador Lacerda ao Presidente Joaquim


Otávio Nébias, 29/11/1852.

304 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


CAPÍTULO 10

MeMÓriAs do trÁfiCo ileGAl de esCrAvos nAs


AçÕes de liberdAde: bAhiA, 1885-1888 1
Ricardo Tadeu Caires Silva

Os escravos vão à Justiça


No dia 30 de novembro de 1885, a africana Angélica e seu filho
Bernardo moveram uma ação de liberdade contra o capitão Domingos
Francisco do Nascimento, proprietário da Fazenda Esperança, localizada
na vila de Maraú, no Sul da Bahia. Em favor de sua liberdade os cativos
tinham por alegação o fato de que ela, Angélica, “fora importada depois
do ano de 1831, desembarcando ocultamente de um navio negreiro em um
dos pontos de desembarque de africanos que havia na Barra Grande de
Camamú e daí vendida ao pai do suplicado, pretenso senhor do suplicante”.2
Elaborada para atender às pressões britânicas, que desde os tempos
coloniais exigiam que Portugal pusesse fim ao tráfico de africanos, a lei
de 7 de novembro de 1831 declarava, em seu artigo primeiro, serem livres
os africanos importados pelo Brasil a partir daquela data. Entretanto,
logo após o início de sua vigência, o que se viu foi a desobediência gene-
ralizada, fato que lhe rendeu o título de lei “para inglês ver”. Contudo,
sua não-revogação possibilitou que, décadas mais tarde, os abolicionistas
a utilizassem como importante arma na sua campanha, como no caso

1 A pesquisa para este capítulo foi financiada com recursos do CNPq.


2 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/22, Ação de liberdade de Angélica
e seu filho Bernardo contra o capitão Domingos Francisco do Nascimento, Maraú, 1885;
idem, 23/0817/02 Ação de liberdade de Bernardo contra o capitão Domingos Francisco do
Nascimento, Maraú, 1886. Assim que a ação fosse aceita pelo juiz, os escravos eram retira-
dos do poder de seus senhores e entregues a pessoa idônea, geralmente o próprio curador.
Tal fato tinha por objetivo garantir que eles não sofressem retaliação ou castigo por parte
de seus proprietários, enquanto a causa não fosse julgada. Ver Ricardo Tadeu Caíres Silva,
“Os escravos vão à Justiça: a resistência escrava através das ações de liberdade” (Disserta-
ção de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2000).

305
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

presente.3 Aqui, cabe ressaltar que a revogação da lei em anos posteriores


à sua aprovação só não aconteceu por insistência do governo britânico.
Segundo James Hudson, encarregado dos negócios britânicos no Rio de
Janeiro no período de 1846 a 1850, mesmo sabendo que “era impossível
e absurdo esperar que ‘um bárbaro falando uma espécie de dialeto de
macaco’ pudesse mandar vir da África provas de que não nasceu escravo,
mas sempre havia uma chance, embora pequena, de que, num futuro dis-
tante, ele pudesse estabelecer que fora ilegalmente trazido para o Brasil.”4
As esperanças de Hudson e do governo britânico não eram de todo
descabidas, pois os escravos tinham bem próximo de si os meios para
comprovar a ilegalidade do cativeiro a que foram submetidos. E eles sou-
beram aproveitar muito bem esta chance. Vejamos como isto foi possível.
Para provar o que alegava na petição inicial, o curador dos escravos
se apoiou no fato de Angélica haver sido matriculada em 23 de agosto
de 1872, com apenas 23 anos de idade, sendo que do mesmo documento
constava ser ela africana, ou seja, bastava fazer uma simples subtração
entre a data da matrícula (1872) e a idade apresentada nesta (23) para
perceber que ela havia nascido no continente africano no ano de 1849,
portanto, muito tempo depois de proibido o tráfico de escravos africanos.
Parece, porém, como veremos em breve, que Angélica era bem mais velha
do que alegava em juízo. Teria vindo para o Brasil muito antes de 1849,
mas, ainda assim, após a proibição do tráfico.
Em todo o caso, a idade constante na certidão de matrícula era uma
prova material consistente, porque evidenciava a ilegalidade do seu cati-
veiro e, por isto, foi a primeira das provas apresentadas nos autos. Além
desta prova, seu curador também apresentou quatro testemunhas, que
confirmaram os fatos alegados, dando detalhes da chegada da cativa ao
Brasil. A primeira delas, Manoel José de Moraes Vieira, de 69 anos, casado,
confirmou: “a mãe do autor foi importada depois do ano de 1831, tendo
até certeza que fora no ano de 1836, e que viera em um navio negreiro
de Miguel Gahagem Champloni e que desembarcou nas proximidades da
Barra Grande de Camamú onde estivera com outros escondida, e daí fora

3 Sobre as condições de elaboração e aplicação da lei de 7 de novembro de 1831, ver Leslie


Bethell, A abolição do tráfico de escravos no Brasil, Rio de Janeiro/São Paulo: Expressão e
Cultura/EDUSP, 1976, pp. 70-94. Já para a validade jurídica da mesma lei e sua utilização
por advogados e abolicionistas, ver Lenine Nequete, Escravos e magistrados no segundo
reinado, Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988, pp. 175-242. Sobre a sorte dos “afri-
canos livres”, ver Afonso Bandeira Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberda-
de dos africanos livres no Brasil (1818-1864)” (Dissertação de Mestrado, Universidade Fe-
deral da Bahia, 2002); e também Beatriz Mamigonian, “O direito de ser africano livre: os
escravos e as interpretações de 1831”, in Silvia H. Lara e Joseli M. Nunes Mendonça (orgs.),
Direitos e Justiças no Brasil, Campinas: Editora da UNICAMP, 2006, pp. 129-160.
4 Bethell, A abolição, p. 279. Este e os demais grifos em futuras citações são de minha autoria.

306 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

vendida nesta vila ao pai do suplicado.”5 Manoel Vieira disse ainda que
conhecia Bernardo desde pequeno e que julgava que sua mãe tinha “de 45
a 50 anos”, pois viera moça para o Brasil. Tio do curador do escravo, Vieira
esmerou-se em confirmar a versão de Bernardo, pois fez questão de afirmar
que “o suplicado ou mesmo seu pai não tinham ou não deviam ter título
algum de domínio [sobre Angélica], visto como não só chegaram como todos
os outros que vieram com ela na mesma ocasião, como foram vendidos
como contrabando, tanto assim que estiveram ocultos por algum tempo.”6
Já o cavaleiro da Ordem da Rosa, Nicolau de Vasconcelos, de 66 anos,
lavrador, afirmou ter
“certeza que no ano de 1835 veio Miguel Gahagem Champloni para o
Taipús, que é nas imediações da Barra Grande do Camamú, trazendo uma
galeria, onde fez sua residência, em 1836, recebeu o dito Champloni, uma
porção de africanos ocultos ou escondidos em uma mata que lá existe no
mesmo lugar Taipús, e que falecendo o mesmo Champloni no dito ano foram
transportados para esta vila esses africanos.” 7 Vasconcelos acrescentou que
não sabia se Angélica estava no meio destes africanos, “todavia lhe parece
ter sido importada nessa mesma ocasião, visto como depois desse desem-
barque nenhum mais houve”. Também reforçou a versão de que “o Capitão
Domingos Francisco ou seu pai não deviam ter tido título de domínio de
Angélica, visto como naquele tempo os africanos se vendiam ocultamente,
como um fato que era, e ainda mais porque o fato de vender-se africanos
depois de 1831 era considerado em contrabando por ter sido proibido por lei.” 8
O terceiro a testemunhar favoravelmente ao cativo foi o oficial de
justiça Ladislau Fortunato dos Santos. Casado, com 64 anos de idade, For-
tunato também confirmou que a africana Angélica foi vendida ao alferes
Manoel Antônio do Nascimento pelo Miguel Gahagem Champloni, que
residia nos Taipús e recebia africanos que eram importados, assim como
tem lembrança de que o desembarque deles a consignação de Champloni
foi no ano de 1835, sabendo mais que estes africanos estiveram ocultos por
algum tempo e depois partes deles foram vendidos nesta vila a diversos,
como fosse ao alferes Miguel do Nascimento.9
Suas afirmações foram reforçadas de forma ainda mais contundente
pelo sapateiro Florêncio dos Santos. Solteiro, com 68 anos de idade e vivendo
de suas agências, disse que “Angélica mãe do autor fora desembarcada
nos Taipús no tempo que o tráfico de africanos já era por lei proibido,
mas que não tem certeza do ano, porque não deitou sentido a esta data

5 APEB, Ação de liberdade de Bernardo.


6 Ibid.
7 Ibid.
8 Ibid.
9 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 307
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

[...] e que sabe que todos os africanos aí desembarcados estiveram por


algum tempo escondidos por Miguel Gahagem Champloni, que residia
nos Taipús, que é nas proximidades de Barra Grande de Camamú.” 10 A
testemunha também contou que “depois da morte do dito Champloni
parte desses africanos foram nesta vila vendidos escondidamente, em
cujo número veio Angélica, porque nesse tempo ele testemunha foi pelo
Alferes Nascimento chamado para ver uma outra africana mais ladina
para ir ensinar a mãe do autor a falar, e consolá-la porque se conservava
chorando, isto devido a sua idade e separação dos seus.”11
Além de indicar de forma precisa o desembarque ilegal e o agente
de tal operação, Florêncio dos Santos ainda enfatizou o trauma que o
tráfico causava em suas vítimas, especialmente as mais jovens, duramente
arrancadas de sua terra natal e separadas dos seus.
Em sua defesa, o capitão Domingos Francisco do Nascimento procu-
rou desacreditar todas as razões apresentadas por Angélica e Bernardo,
os quais, na sua opinião, queriam a liberdade “a todo transe”. Segundo o
professor Thiago Manoel Escolástico, procurador de Domingos Nasci-
mento, a africana Angélica e seu filho possuíam idades muito maiores
que as declaradas em suas matrículas. Por isto, a africana havia entrado
legalmente no Brasil bem antes da lei de 1831, quando o tráfico era lícito.
Prova disto era a certidão de batismo da mesma, efetuada por seu finado
pai, o Alferes Manoel Antônio do Nascimento, em 9 de setembro de 1847,
na Vila de Barcelos, na qual constava ser ela adulta e com 18 anos. Para
ele, o que houve foi um equívoco do escrivão ao anotar a idade da escrava
na matrícula especial, pois bastava olhar para Angélica para perceber
que “seu aspecto físico denuncia a toda evidência ser maior de 60 anos”.12
Confirmaram estes fatos cinco testemunhas. Dentre elas, merece
destaque o depoimento de José Gonçalves da Silva Ribeiro, de 38 anos,
solteiro, que desde muitos anos trabalhava como feitor na fazenda do
capitão Domingos Nascimento. Segundo José Gonçalves, vinte anos antes,
quando conhecera Angélica, esta “já era velha, já tinha cabelos brancos,
e que assim não podia ter menos de 60 anos de idade”.13
Além disto, Thiago Escolástico também ponderou que o fato de
Angélica e seu filho terem vivido durante longos anos sem questionar o
cativeiro, reconhecendo, portanto, a autoridade senhorial, era a evidên-
cia explícita de que aceitavam a condição de escravos. Como se isto não
bastasse, também pôs em descrédito as testemunhas apresentadas pelos
escravos, por considerar que “nada valem, nenhum conceito merecem”,

10 Ibid.
11 Ibid.
12 APEB, Ação de liberdade de Angélica.
13 Ibid.

308 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

dado que “seus depoimentos insinuados pelo procurador do autor de quem


é tio a primeira testemunha, são a prova lamentável do quanto pode o
dinheiro, quando se trata em relação a homens sem dignidade”. 14 Por
fim, o professor ainda contestou a causa, apontando falhas nos trâmites
legais do processo, como a não-citação de seu cliente para ouvir os fun-
damentos da ação e a falta de um curador nomeado para o cativo, já que
Abdon Vieira havia sido recusado como tal por residir fora do termo de
Maraú e atuava apenas como procurador.
Foi em nome destas últimas irregularidades que, no dia 17 de setem-
bro de 1887, o juiz municipal Aristides José de Leão anulou o processo e
determinou a propositura de uma nova ação. Contudo, o procurador do
cativo apelou da sentença, o que fez com que o processo fosse remetido
para o Tribunal da Relação da Bahia, em Salvador, em 3 de maio de 1888,
portanto, às vésperas da abolição. Felizmente para Angélica e Bernardo,
suas liberdades seriam conquistadas em poucos dias.
Esta ação de liberdade foi a primeira de muitas outras, impetra-
das naqueles anos finais da escravidão, pelos escravos residentes nas
propriedades das vilas vizinhas de Maraú, Barra do Rio de Contas, San-
tarém e Camamu, localizadas no sul da província da Bahia. Para tanto,
os cativos contavam com o auxílio do abolicionista Abdon Ivo de Moraes
Vieira e com as posturas emancipacionistas do 3° suplente do cargo de
juiz municipal, Rogério Damasceno D’Assumpção, além de outros cola-
boradores. 15 Contrariando as afirmativas do médico abolicionista Luís
Anselmo da Fonseca, que, em 1887, escreveu importante obra sobre o
movimento abolicionista na Bahia, a presença destes indivíduos atuando
em favor dos escravos indica que o movimento abolicionista no interior
da província não era tão fraco ou insignificante — embora não houvesse
necessariamente uma vinculação ou unidade entre as diferentes “redes
da liberdade” espalhadas pelo território baiano.16

14 APEB, Ação de liberdade de Bernardo.


15 Entre os anos de 1885 a 1888, foram impetradas pelo menos 32 ações de liberdade nas vilas
acima mencionadas, envolvendo cerca de 50 cativos. A imensa maioria teve como curador e/
ou procurador o abolicionista Abdon Ivo de Moraes Vieira e, como juiz, Dionísio Damasceno
D’Assumpção. Também atuaram como eventuais depositários os cidadãos Belmiro Nunes de
Lemos, Manoel de Moraes Vieira, João Freitas da Rocha e Felizberto José de Mello; além de
alguns escravos e libertos que, na qualidade de informantes e testemunhas, estavam muitas
vezes ligados por laços familiares aos autores e defensores dos escravos nas ações.
16 Luís Anselmo da Fonseca, A escravidão, o clero e o abolicionismo, Recife: Fundaj/Editora
Massangana, 1988 (orig. 1887), p. 331. Sobre o movimento abolicionista na Bahia em seu
viés político, ver o trabalho de Jailton Lima Brito, A abolição na Bahia (1870/1888), Salva-
dor: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 2003. Utilizo a expressão “redes da liberdade” no
sentido de uma ação articulada entre alguns indivíduos, declaradamente abolicionistas
ou não, que auxiliavam os escravos na consecução de sua liberdade na justiça, em diversas
vilas da província baiana: Silva, “Os escravos vão à Justiça”.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 309
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A julgar pelos relatos contidos nos processos, a escravaria existente na


região não só transitava muito pelas vilas acima citadas como também possuía
relações de parentesco e sociabilidade com cativos de diferentes proprie-
dades, fato que facilitava a circulação de informações acerca da atuação de
abolicionistas naquelas paragens. Tal fato, sem dúvida, foi importante para
que os escravos reconhecessem em Abdon Ivo de Moraes Vieira um possível
aliado na consecução de suas liberdades. O próprio Bernardo menciona em sua
petição inicial que o queria como curador porque este era “de sua confiança”.
Morador na vila de Barra do Rio de Contas, localizada a quatro léguas da
vila Maraú, Abdon Ivo era fazendeiro. Infelizmente, a documentação disponí-
vel não permitiu aprofundar o conhecimento acerca de suas demais posses
e ideias, embora aponte para o fato de que conhecia os meandros da justiça
local, inclusive nas questões de escravidão, porquanto já havia atuado como
escrivão substituto. Certo mesmo é que ele defendia com vigor a causa dos
escravos e era tenazmente acusado por seus inimigos de fazer isto em troca
dos serviços destes em sua propriedade — fato que lhe rendeu o título de “abo-
licionista por dinheiro”. Aliás, com o aumento das ações judiciais nos últimos
anos da década de 1880, muitos senhores passaram a acusar os abolicionistas
de serem charlatões, mercenários e usurpadores das economias dos escravos
— ignorando o fato de estes não terem a astúcia de medir as vantagens e as
desvantagens em aliar-se a estes indivíduos.17
Na verdade, os protestos senhoriais faziam sentido sobretudo pelo fato de
que muitas das estratégias utilizadas pelos abolicionistas eram subversivas e
ilegais, contrariando o encaminhamento legal feito pelo governo para regular
a transição para o trabalho livre.18 Como se pode notar das insinuações feitas
pelas partes em contenda, sobretudo nas disputas judiciais, era comum o
recurso a expedientes fraudulentos ou inverídicos. Entretanto, mesmo nestes
casos, era preciso que tais estratégias fossem dotadas de verossimilhança e
consistência jurídica, adquirindo plausibilidade diante das autoridades judi-
ciais. No caso das ações de liberdade, era fundamental que sua propositura se
fundamentasse em fatos concretos ou ao menos possíveis de terem aconteci-
do, como no caso do desembarque ilegal de africanos acima mencionado. Só
assim, acredito, é que os escravos teriam condições de disputar suas causas
em situação de convencer as autoridades judiciais de que estavam agindo
corretamente, ao questionarem a autoridade de seus senhores.

17 Sobre a composição e as estratégias de ação do movimento abolicionista, ver o excelente


estudo de Maria Helena P. Machado, O plano e o pânico: os movimentos sociais na década
da abolição, São Paulo: EDUSP/UFRJ, 1994.
18 Este encaminhamento previa que os cativos deveriam indenizar seus senhores por meio
de pecúlio e também manter vivos os vínculos de submissão e obediência, típicos do siste-
ma escravista. A este respeito, ver Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil,
São Paulo: Brasiliense, 1986; e Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das úl-
timas décadas na escravidão na Corte, São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

310 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Na luta pela sorte dos escravos, o abolicionista Abdon Vieira fez uso
dos seguintes argumentos: a falta de matrícula, a filiação desconhecida, o
abandono por parte do senhor e, como já vimos, a importação ilegal para
o Brasil. O conhecimento destas possibilidades indica que Vieira estava a
par dos principais argumentos utilizados pelos abolicionistas brasileiros
naqueles anos finais da escravidão. Destes, alguns encontravam respaldo
na própria documentação oficial — como, por exemplo, nos registros
da matrícula geral de escravos — o que facilitava a reunião de provas
e, consequentemente, a libertação dos cativos. No caso específico da
utilização do argumento da importação ilegal de africanos, a reunião de
provas mais contundentes levou Abdon Ivo de Moraes Vieira a recorrer
aos próprios cativos e a suas redes de sociabilidade, na hora de comprovar
a ilegalidade do cativeiro. O resgate destas “memórias subterrâneas”, na
expressão de Michael Pollak, 19 suscitadas a partir das falas dos escravos
e de suas testemunhas, constitui, a meu ver, um importante elemento
para a compreensão das vicissitudes do tráfico de escravos para o Brasil,
mais especificamente na província da Bahia.
Nas histórias que se seguem, procurarei problematizar a construção
destas memórias em relação ao desembarque ilegal de africanos ocorrido
na baía de Camamu.

O cenário da desova:20 a baía de Camamu e as vilas de Maraú,


Barra do Rio de Contas, Santarém e Camamu
A baía de Camamu está localizada ao sul da cidade de Salvador, distando
desta, cerca de 178 quilômetros pela via marítima. Banhada por inúmeros
rios, abriga, numa de suas extremidades, a vila de igual nome, criada por carta
régia de 22 de maio de 1693. Em 1888, seu termo possuía duas freguesias:
“a da vila sob invocação de Nossa Senhora da Assunção, criada em 1570,
contendo uma população de 7.233 habitantes e a de Nossa Senhora das Dores
de Igrapiúna, um pouco ao sul, criada em 1801, contendo uma população de
1.806 almas”.21 Ainda segundo Durval Viera de Aguiar, a economia da vila
era pouco expressiva, “produzindo de mais importante uma pequena safra

19 Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos Históricos, vol. 2, no. 3, (1989),
pp. 3-15
20 O termo “desova” era uma expressão comum àquela época e estava associado ao contra-
bando ilegal como atividade condenável, fortemente ligada à ideia de ocultação de corpos.
Por sua vez, na África, o cativo era visto como socialmente morto, de quem se tirou toda e
qualquer autonomia. Por isto, o tráfico e a escravidão eram tidos como o seu caminho na-
tural. Ver Orlando Patterson, Slavery and Social Death, Cambridge: Harvard University
Press, 1982; e Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave
Trade (17301830), Madison: University of Wisconsin Press, 1988.
21 Durval Vieira de Aguiar, Descrições práticas da Província da Bahia, Rio de Janeiro/Brasí-
lia: Cátedra/INL, 1979, [1888], p. 260.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 311
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de cacau, que se exporta, e uma ruim farinha de mandioca, conhecida por


farinha de lancha, com que carregam os barcos solta em lastro no porão”.22
Visão mais otimista é dada por Vilhena, cujo relato, produzido no começo
do século XIX, assinala que a população estava abrigada “em 900 fogos com
4.060 habitantes, que no seu contorno fazem hoje útil colheita de café, ramo
de comércio muito útil para aquela vila, e para o Estado”.23
Mais ao sul de Camamu estava a vila de São Sebastião de Maraú,
edificada às margens do rio de igual nome. Criada em 23 de julho de 1761,
quando possuía cerca de 360 fogos (casas) e 1.600 habitantes, em fins da
década de 1880 a vila contava com 3.761 moradores. Até então, quando
a atividade de extração de querosene começou a ganhar importância,
devido à atuação da firma John Grant e Cia., a economia manteve-se es-
sencialmente agrícola, tendo o cultivo da mandioca e da cana-de-açúcar,
esta utilizada, sobretudo no fabrico de aguardente, figurando entre as
atividades principais.
Um pouco abaixo de Maraú, mais precisamente a quatro léguas,
estava Barra do Rio de Contas. Em 1887, estimava-se que 3.612 indiví-
duos habitassem a vila, que contava com “escolas para ambos os sexos,
matriz, casa da câmara e um quartel-cadeia”. Cortada pelo rio que lhe dá
nome, justamente por ser uma das mais importantes artérias do sertão
sul, Barra do Rio de Contas especializara-se, desde o século XVIII, na
produção da farinha de mandioca, exportada para a capital baiana e o
Recôncavo.24 Segundo João José Reis, “a monocultura em Barra e algumas
áreas vizinhas era em grande parte devida a imposições periódicas do
governo colonial, que obrigava seus lavradores a produzir mandioca com
o objetivo de corrigir o problema crônico de abastecimento da crescente
população, sobretudo de Salvador e do Recôncavo.”25
A produção deste tubérculo requeria muita mão-de-obra e, por isto,
a presença de cativos sempre foi importante na região. Prova disto era
a existência de quilombos desde pelo menos o século XVII, sendo o mais
famoso o do Oitizeiro, dispersado no início do século XIX.26

22 Ibid.
23 Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII, Salvador: Ed. Itapuã, 1969, vol. 2, livro 2, p. 497.
24 Aguiar, Descrições práticas, p. 262.
25 Ver João José Reis, “Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro. Bahia-1806”, in João
José Reis e Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: história dos quilombos
no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 337-338. Reis (p. 339) ressalta ain-
da que “dentro da própria região, o transporte de gente e gêneros se fazia em canoas, que
subiam e desciam a costa e penetravam seus muitos rios, lição aprendida dos numerosos
grupos indígenas que ali ainda habitavam no alvorecer do século XIX.”
26 Reis, “Escravos e coiteiros”, pp. 332-372. Mesmo depois da destruição do Oitizeiro, em 1806,
foram frequentes as queixas das autoridades locais sobre os quilombos na região. Entretan-
to, na década de 1830, os quilombolas não mais pareciam viver “amistosamente”, como fa-
ziam os moradores do Oitizeiro, pois, segundo a correspondência dos juízes de paz de Cama-
mu, os agricultores da região estavam abandonando suas propriedades para viver na sede

312 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Durante a primeira metade do século XIX, este cenário privilegiado


pela natureza foi o palco em que algumas centenas de cativos enfrenta-
ram a dura experiência da escravidão, sem, contudo, poderem fazer uso
de suas amargas lembranças em benefício de sua liberdade. Porém, nas
últimas décadas do referido século, estas mesmas experiências puderam
ser resgatadas por alguns africanos e seus descendentes, em nome não
só da tão sonhada alforria, mas também da destruição do próprio sistema
escravista, na medida em que a expressiva moção de ações de liberdade,
não só em Maraú e Barra do Rio de Contas, mas em toda a província, ajudou
a acelerar o processo de derrocada do escravismo na Bahia.27

Baía de Camamu e arredores

.
Fonte: Mapa 1: SESI, Evolução territorial e do Estado da Bahia: um breve histórico, Salvador:
SESI 2003; Mapa 2: www. itacare.com, acessado em 12/10/2005.

continuação 26

da vila, por temer os “insultos, roubos e mortes” praticados pelos aquilombados. Em dezem-
bro de 1833, por exemplo, foi formada uma expedição com 69 homens para tentar debelar
um grande quilombo nas proximidades da Fazenda Limeira. Na ocasião, três cativos foram
capturados com vida e um, possivelmente o cabeça do grupo, morreu após resistir às investi-
das da tropa: APEB, Seção Colonial e Provincial, Presidência da Província, Juízes, Maço 2298
(as queixas concentram-se nos anos de 1830, 1833, 1835, 1836 e 1837).
27 Silva, “Os escravos vão à Justiça”, especialmente o cap. 3.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 313
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

As lembranças do desembarque
Foi apelando para as lembranças da travessia que a escrava Maria,
de 50 anos, e seus filhos Jerônimo, de 17, e Mônica, de 31, ousaram
questionar a legitimidade do cativeiro do fazendeiro Rogério Damasceno
D’Assumpção, residente em Maraú, no início do mês de outubro de 1887.
Na petição, em que expunha os motivos do injusto cativeiro, o curador
Abdon Ivo de Moraes Vieira alegava que Maria havia chegado à região
ainda no ventre de sua mãe, a africana Bernarda, tendo nascido nas
matas dos Taipus, local onde fora desembarcada juntamente com outros
africanos do navio negreiro do traficante Miguel Champloni e, depois,
adquirida pelo pai do réu. Em vista desta ilegalidade, o abolicionista
Abdon Vieira requeria que o pretenso senhor reconhecesse “os autores
como pessoas livres”, além de “indenizá-los das perdas e danos que lhes
tem causado e mais nas custas.” 28
Atendidos em suas reivindicações iniciais pelo juiz em exercício,
Dionísio Damasceno D’Asssumpção, os escravos foram depositados em
poder de Manoel José de Moraes Vieira. Observe-se a familiaridade dos
personagens envolvidos na disputa judicial. O juiz Dionísio Damasceno
era parente do réu, Rogério Damasceno, e o curador Abdon Ivo Moraes
Vieira era sobrinho do depositário dos escravos, Manoel Moraes Vieira,
que, na ação anterior, já havia atuado como testemunha da escrava
Angélica e de seu filho Bernardo. E as coincidências não param por aí.
Como veremos nos casos trabalhados mais adiante, outras testemunhas
estavam envolvidas nesta teia de relações — o que indica que em tais
disputas judiciais entrava em jogo uma gama de interesses pessoais,
tais como o sentimento de gratidão, a amizade e a lealdade, a expec-
tativa de receber algo em troca do depoimento, etc.; interesses que,
muitas vezes, ultrapassavam a ideia de ser simplesmente contra ou a
favor da escravidão.
Para comprovar sua versão dos fatos, Abdon Ivo de Moraes Vieira
e os escravos novamente apostaram na solidariedade das testemunhas
apresentadas, cujas trajetórias, aliás, em muitos casos também conhe-
ciam as marcas da escravidão. A primeira delas foi Jacinta Monteiro da
Conceição, de 60 anos, solteira, que vivia de suas agências. Contradizendo
a informação de que Bernarda dera à luz no Taipus, ela disse que “Maria
veio em um navio negreiro de Miguel Champloni ainda molezinha, ma-
mando em sua mãe Bernarda africana, e que desembarcou nos Taipús

28 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/11, Ação de liberdade da africana


Maria e seus filhos Jerônimo e Mônica, Maraú, 1887. Além destes três cativos, Rogério Da-
masceno D’Assumpção possuía o escravo Raimundo, de 30 anos, avaliado em 800 mil réis.
Segundo a tabela de classificação adotada pelo governo imperial a partir de 1885, sua pe-
quena escravaria valia cerca de dois contos e 600 mil réis.

314 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

onde esteve por algum tempo oculta, e daí vieram para os Algodões
trazidas pelo pai do réu, Plácido Damasceno.” 29
Já o escravo Aprígio Freire, de “sessenta e tantos anos de idade”,
solteiro, também atestou que Bernarda havia dado à luz a Maria quando
vinha no navio negreiro de Miguel Champloni para a Costa do Taipus.
Testemunha informante, dada a sua condição cativa, ele confirmou
que ambas haviam sido adquiridas pelo pai do réu e levadas para o
lugar chamado Algodões, “onde estiveram por algum tempo enquanto
Bernarda aprendia a falar a língua brasileira com o preto Agostinho, e
que aí já ela não esteve mais oculta”. 30 Aqui, as lembranças de Aprígio
nos revelam uma das primeiras dificuldades de adaptação dos africanos
recém-chegados ao Brasil, porquanto o conhecimento da língua era
essencial para a aquisição de novas sociabilidades, tais como as ordens
de serviço. Por isto, e também para recuperar a saúde das “peças” impor-
tadas para vendê-las por maiores preços, é que os traficantes montavam
entrepostos nas praias, como possivelmente fez Miguel Champloni na
Costa do Taipus. Disfarçar o contrabando fazia parte das estratégias do
tráfico, pois, quanto mais depressa os africanos fossem ladinizados, mais
rapidamente poderiam ser encaminhados ao trabalho, ou mesmo para a
venda, deixando para trás a impressão de que haviam sido ilegalmente
contrabandeados. 31
As alegações dos cativos foram confirmadas em mais dois depoi-
mentos. A testemunha Narcisa Pereira de Jesus, conhecida por Narcisa
Vieira, solteira, maior de sessenta anos, natural de Maraú, que vivia de
suas agências, também atestou que “Bernarda mãe da crioula Maria
veio no barco de Champloni trazendo pequenina essa sua filha Maria,
e desembarcando no lugar Taipús onde estiveram por algum tempo [...]
e que daí foram levadas por Placido Damasceno pai do réu para o lugar
conhecido como Quitengo.”32
Por sua vez, Benedito Caianna, crioulo, maior de 70 anos, sustentou
a versão de que Bernarda “veio da costa no barco de Champloni trazendo
sua filha pequenina Maria e que desembarcaram nos Taipús”. Questionado
pelo procurador do réu se sabia em que ano Bernarda desembarcara nos
Taipus, Benedito respondeu que não sabia ao certo, mas tinha certeza do
desembarque naquele local “porque nessa ocasião ele testemunha estava
pescando com outros”.33

29 APEB, Ação de liberdade da africana Maria. A localidade dos Algodões ficava nas proximi-
dades da Vila de Maraú. Ver mapa.
30 APEB, Ação de liberdade da africana Maria.
31 Robert E. Conrad, Tumbeiros, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 111.
32 APEB, Ação de liberdade da africana Maria.
33 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 315
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O depoimento do africano João de Souza, também maior de 70 anos, foi


ainda mais contundente. Testemunha ocular e vítima do suposto desem-
barque, disse que “Bernarda veio com ele testemunha no barco de Miguel
Champloni trazendo sua filha Maria pequenina, e que desembarcaram
no lugar Taipús onde estiveram com muitos outros africanos ocultos e
que fora levada com sua filha Maria do lugar Taipús por um homem, não
lembrando qual esse homem, nem para que lugar foram, porque nessa
mesma ocasião ele testemunha foi trazido para o Rio de Contas.”34 Embora
não lembrasse ao certo a data em que haviam desembarcado, João de
Souza recordava que “Maria era criança de peito e que depois disto não
lhe consta que veio mais barco algum d’África”.35
Como se pode notar, as testemunhas pareciam estar afiadas em
torno de uma mesma versão que corroborasse as pretensões de Maria e
seus filhos. Mas o defensor de Rogério João Damasceno D’Assumpção não
deixou de refutar os argumentos apresentados pelos escravos, fazendo
vários questionamentos às testemunhas durante os seus respectivos
depoimentos. Indignado, ele começou a protestar mesmo antes de estas
serem ouvidas, ao criticar a intervenção do curador Abdon Ivo de Moraes
Vieira por ter retirado os referidos escravos do poder de seu curatelado
no dia 11 de outubro de 1886 e até o dia 17 de janeiro de 1887 não ter
proposto a referida ação, “parecendo, porém, que és eu fim subtraírem-se
por este meio aos serviços que devem a seu legítimo senhor, visto que há
quatro meses depositados ainda não propôs a referida ação”.36 O professor
Thiago Manoel Escolástico, o mesmo defensor do capitão Domingos, há
pouco visto, alegou que os cativos não tinham qualquer motivo para re-
querer sua liberdade, já que a africana Bernarda, mãe da autora da ação,
havia vindo para o Brasil muito antes da lei de 7 de novembro de 1831.
Segundo ele, Bernarda havia sido comprada pelo pai do réu das mãos do
“português Francisco de Abreu, honrado lavrador existente no Quitengo
deste termo [Maraú] por escritura pública e no domínio e posse deste
viveu até morrer como cativa”.37 Foi nesta condição que Bernarda deu à
luz a crioula Maria, que, por sua vez, foi doada ao réu pelos seus pais no
ano de 1846.
Para provar estas razões, ele também apresentou testemunhas. Curio-
samente, Ladislau Fortunato dos Santos e Florêncio dos Santos, duas das
três testemunhas arroladas, já haviam deposto favoravelmente na ação
de Angélica e de seu filho Bernardo (ver acima). Agora, eles e o lavrador
Antônio Benedito José de Souza, de 80 anos, sustentavam a versão de que

34 Ibid.
35 Ibid.
36 Ibid.
37 Ibid.

316 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

a africana Bernarda havia entrado no Brasil muito antes da lei de 1831 e


que havia dado à luz a crioula Maria com 14 anos de idade, quando já se
encontrava em poder de Plácido Damasceno, pai do réu.
Estes depoimentos pareciam contradizer de forma contundente a
versão das cativas. Aliás, uma das testemunhas apresentadas pelas próprias
escravas, a viúva Sebastiana da Luz, de 88 anos de idade, afirmou ignorar
que Bernarda tivesse dado à luz nos Taipus, porquanto a conhecera “desde
menina em casa de seu senhor Plácido Damasceno”. Outro fato que podia
ser usado para desqualificar a versão dada pelo curador diz respeito às
circunstâncias da chegada de Bernarda e sua filha Maria ao Brasil. Neste
caso, entretanto, a literatura pertinente às condições da travessia atlântica
afirma que era difícil, mas não impossível, que uma gestante, em vias
de dar à luz, ou ainda com uma criança de peito, suportasse a viagem.38
Não obstante, como no caso anterior, as razões das partes em con-
tenda nem sequer foram objeto de apreciação por parte do juiz municipal,
visto que a ação deixou de ser julgada em razão da abolição da escravidão.
Novamente aqui, os escravos acabaram por sair vencedores, pois o recurso
à justiça lhes garantiu a proteção contra o cativeiro a partir do momento
em impetraram a ação e foram depositados.
Quem também apostou todas as esperanças na versão da importação
ilegal foi a família da crioula Faustina, de 48 anos, residente em Maraú.
Ela e seus filhos Benedito, de 30 anos, Idelfonso, de 23, e o ingênuo Se-
bastião, de 9, contestaram o cativeiro do tenente João Martins Ferreira,
alegando serem filha e netos da africana Constância, que “vive liberta
juntamente com seus outros filhos na Villa da Barra do Rio de Contas
também libertos”. A ação teve início no final do mês outubro de 1887.39
Segundo a petição inicial, apresentada ao juiz municipal suplente,
Dionísio Damasceno D’Assumpção, Constância tinha vindo para o Brasil
depois de proibido o tráfico de africanos, “desembarcando de noite e
ocultamente em um dos portos mais ocultos da Capital”. Novamente aqui
a estratégia para comprovar suas razões apoiava-se na solidariedade
das testemunhas arroladas, algumas das quais curiosamente também

38 Robert Conrad assinala que eram vários os riscos que os cativos enfrentavam desde a cap-
tura em solo africano até chegarem ao Brasil, sendo a pior provação a viagem por mar, vis-
to que o espaço e as provisões eram limitados e caros, e sempre havia traficantes que, es-
perando os lucros, levavam um excesso de pessoas a bordo e supriam essa multidão com
alimentação e água insuficientes. Conrad, Tumbeiros, p. 52. Por sua vez, Herbert S. Klein
apontou vários casos em que houve a importação de crianças, classificadas pelos trafican-
tes de “crias do peito”: Herbert S. Klein, “A demografia do tráfico atlântico de escravos para
o Brasil”, Estudos Econômicos, vol. 17, no. 2 (1987), pp. 137-139.
39 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/01, Ação de liberdade da crioula
Faustina e seus filhos Benedito, Idelfonso e Sebastião contra o Tenente João Martins Fer-
reira, Maraú, 1887. Constância havia sido libertada em testamento de sua senhora, D. Ma-
ria Joaquina de Santa Ana.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 317
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

aparecem no processo anterior e em outros casos em que Abdon Ivo


de Moraes Vieira atuou como curador ou procurador, o que evidencia a
construção de uma “rede” de solidariedade entre este abolicionista e os
escravos daquela região. Afirmo isto porque o próprio réu acusou o juiz
Dionísio Damasceno D’Assumpção de estar tramando com o curador dos
escravos para favorecê-los. Em diversas petições, João Martins Ferreira
queixou-se do fato de o juiz ter determinado o depósito dos cativos “de
surpresa”, e também de ter nomeado irregularmente Abdon Ivo de Moraes
Vieira como curador: “Vossa Senhoria sabe bem que os curadores e tutores
não podem ser pessoas fora do termo [Maraú], mas nomeou e continuará
a nomear”. Tal oposição ao nome de Abdon Vieira tinha suas razões, pois
este insistia em protelar a propositura da ação, alegando estar doente,
“parecendo ser isto um capricho ou vingança para retirar do poder do
suplicante seus escravos”. Além do mais, Ferreira possuía 23 escravos,
e o prolongamento desta contenda certamente repercutiria nos demais
cativos, causando-lhe transtornos que seguramente afetariam as relações
produtivas em sua propriedade.40
Após tantos protestos, a ação seguiu seu curso normal, com os de-
poimentos das testemunhas dos cativos. De acordo com o depoente Paulo
Victoriano da Assumpção, 60 anos, casado, que vivia de lavoura,
a africana Constança, mãe e avó dos autores, foi uma das
que vieram no barco que desovou na Costa dos Taipús e que
daí foi conduzida por um mascate francês de nome Luiz
Zetê, e vendida na Vila de Santarém41 a José Gonçalves
Ribeiro, e que isto sabe não só por ter lhe dito sua avó, que
muitas relações tinha na casa de José Gonçalves Ribeiro,
como ainda porque a própria Constança sempre lhe
contava de que maneira veio para a casa de José Gonçalves
Ribeiro.42

Aqui, Paulo Victoriano nos fornece uma ideia de como estas “me-
mórias subterrâneas” circulavam no interior da família escrava, fazendo
a recordar-se da difícil ruptura que o tráfico provocara em suas vidas.
Por sua vez, o africano Florêncio dos Santos, que já havia servido de
testemunha nos casos de Angélica e Bernardo e também no da africana
Maria e seus filhos, confirmou: “A mãe e avó dos autores foram importadas
depois da proibição do tráfico de africanos, porque veio em um barco de
Miguel Gahagem Champloni, do qual desembarcaram muitos africanos
na Costa dos Taipús, e daí foi conduzida ocultamente por um mascate

40 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina.


41 A vila de Santarém estava localizada ao norte de Camamu e, em 1887, contava com 4.096
almas: Aguiar, Descrições práticas, p. 260.
42 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina.

318 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

chamado Luiz Zetê, e vendida em Santarém a José Gonçalves da Silva


Ribeiro.”43 Inquirido pelo procurador do réu sobre em qual embarcação
a africana viera para o Brasil, Florêncio respondeu que Constança viera
para o Brasil no barco de Champloni, “e que o mestre do barco era Antô-
nio Joaquim da Luz”. Ao fornecer maiores detalhes da desova, Florêncio
procurava rebater as insinuações do defensor do senhor, que o acusara
de “ter dito a alguém que não podia ser testemunha nesta ação por nada
saber deste negócio”.44
A terceira testemunha a depor foi o africano Victoriano Ferreira,
mais conhecido por “Bitu Andá”, de 60 anos, solteiro, que vivia de suas
lavouras. Mostrando-se partidário dos escravos, disse conhecer bem a
africana Constança e saber que esta “veio roubada para o Brasil trazida
no barco de Champloni que desembarcou na Costa dos Taipús e daí seguiu
ocultamente para Santarém, e de Santarém para esta vila, ignorando,
porém a quem fôra ela vendida e que isto sabe por lhe ter dito a irmã de
Antônio Joaquim, mestre do dito barco e Felicidade que foi companheira,
isto é, que veio junto com a dita Constança”. 45 Como se pode notar, as
fortes palavras empregadas pelo depoente — “veio roubada” — denotam
que, naquele contexto, a escravidão era uma instituição socialmente
desacreditada, e os que dela tomavam parte estavam com sua autoridade
socialmente combalida.
Bitu Andá foi a última das testemunhas residentes em Maraú. Não
obstante, o curador dos escravos ainda apresentou mais cinco testemu-
nhas, todas residentes em Barra do Rio de Contas, local onde a liberta
Constança vivia, em companhia de outros filhos e que, como vimos, distava
apenas quatro léguas dali. Destas, entretanto, só uma testemunha foi
ouvida. Como veremos, o depoimento de João Nagô é ainda mais incisivo
e revelador que os anteriores.
Natural da Costa da África, de mais ou menos 60 anos, solteiro, João
Nagô era pescador, ofício bastante comum na região, já que as vilas em
questão eram banhadas por diversos rios que desaguavam na baía de
Camamu. João declarou tratar “por parente a mãe dos autores por serem
naturais de terras vizinhas”, e disse que
Constança veio da Costa da África juntamente com
ele testemunha em um navio que conduzia africanos
de Miguel Champloni, e desembarcaram nos Taipús à
noite, e que aí estiveram escondidos dentro do mato com
muitos outros africanos, e que daí veio ele testemunha e
mais quatro africanos conduzidos por Bernardo Teixeira

43 Ibid.
44 Ibid.
45 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 319
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e um homem de nome Chiquinho, ficando ele e uma


preta nesta Vila [Barra do Rio de Contas], e os outros
três africanos seguiram para Ilhéus para casa do Capitão
Balaio.46

Questionado pelo procurador do réu sobre sua “nação”, bem como a de


Constança, o africano afirmou que “ele era nagô, mas que Constança não era
nagô direito, não sabendo ao certo a nação dela”, e que ainda a reconhecia
mesmo após ter sido deixado no lugar do desembarque porque “tendo andado
com Constança lá no mato depois veio a conhecê-la nesta Vila do mesmo
modo que a conheceu lá no mato, onde estiveram escondidos”; e que “esse
lugar se chama Taipús, onde tem bastante coqueiros”.47
João Nagô se lembrou também de que, “nessa ocasião que acabando-se
a guerra de Sabino na Bahia, veio o navio da Bahia buscar estes africanos,
e nessa ocasião correram todos pelo mato adentro, sendo ele testemunha
pegado por um soldado já dentro d’água trepado no mangue, e foi daí que
veio para esta Vila.” 48 Quando lhe indagaram ainda se, quando estava no
Taipu, “já falava língua de branco”, disse que “estivera nesse lugar dois,
três ou quatro meses, não se lembrando bem ao certo, e que a língua de
branco veio aprender nesta Vila que lhe ensinara a crioula Narcisa, seu
senhor José Antônio em cuja casa esteve trancado dois ou três meses logo
quando chegou.” 49 Por fim, relatou que ele e Constança “mutuamente se
conheceram [na Vila de Barra do Rio de Contas] e que lá na África também
se conversavam.” 50
As informações fornecidas por João Nagô são reveladoras em vários
aspectos. O primeiro é que fez questão de declarar que tinha a africana
Constança por parente, apesar de não pertencerem à mesma “nação”.
Mas ela pertencia a um grupo vizinho dele, falando línguas parecidas,
que permitiram que conversassem desde a África, provavelmente no
período de cativeiro antes de serem embarcados. Nagô era como aqui
foram chamados os negros de língua iorubá, mas, se estes foram na Bahia
chamados assim, não quer dizer que todos se considerassem oriundos da

46 Ibid.
47 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina. Vale lembrar que uma das estratégias utili-
zadas pelos mercadores e traficantes de escravos, ainda em solo africano, era o desmem-
bramento das etnias e das famílias dos cativos capturados. Sobre as peculiaridades da
captura de escravos na África e a logística do tráfico para o Brasil, ver Jaime Rodrigues, De
costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio
de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp.75-127.
48 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina. Não encontrei informações sobre a vinda de
soldados com vistas a capturar os escravos desembarcados por Champloni, mas creio que
a ocorrência deste episódio pode estar diretamente relacionada à sua morte, conforme
discutirei mais adiante.
49 Ibid.
50 Ibid.

320 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

mesma terra. 51 Assim, João e Constança podiam ser falantes de iorubá


sem serem do mesmo grupo iorubá: um podia ser egba e o outro, ijebu, por
exemplo. Porém o fato de João declarar explicitamente ”que Constança
não era nagô direito” questiona esta hipótese. Outra possibilidade é que
a vizinhança mencionada por João se referisse a grupos não-falantes de
iorubá e, neste caso, Constança podia ser oriunda de diversos lugares:
do Daomé (onde se falam várias línguas da família gbe), de Haussá, de
Nupe (ou Tapa), de Bariba (ou Borgu), entre outros. Pode-se, neste caso,
imaginar algo semelhante ao que Slenes sugere para a África bantu: que
os escravos aprendiam a se comunicar na viagem para a costa, nos bar-
racões, enquanto aguardavam o embarque e a bordo do navio, durante a
travessia. Embora em menor grau que as línguas bantus, as línguas kwa
da África ocidental (evé, fon, ashante, iorubá, nupe, ibo, etc.) têm algumas
semelhanças de vocabulário e outras. Estas semelhanças linguísticas
seriam adensadas durante a experiência da travessia, o momento mais
intenso, mais traumático e profundo, aquele que possibilitou o surgimento
de laços definitivos de parentesco simbólico em torno da instituição do
malungo, que unia os que tinham juntos vivido tal experiência.52
O segundo aspecto é que João Nagô faz uma descrição bastante plau-
sível do modus operandi dos traficantes naquela conjuntura de ilegalidade
do tráfico: desembarque em praia afastada, à noite, para despistar as
autoridades; ocultação das “peças” para um período de restabelecimento,
adaptação e aprendizado de algumas palavras da nova língua. 53 Por fim,
Nagô ainda nos traz dados relativos à ocorrência da Sabinada, em 1837-38,
o que denota uma fluidez na circulação das informações entre a capital
e o interior da província.

51 As designações dos grupos de africanos importados para o Brasil nem sempre correspon-
diam às suas identidades étnicas originais. Embora não fosse desconhecida dos portugue-
ses e brasileiros, a multiplicidade cultural dos povos africanos passou a ser ignorada à me-
dida que o tráfico de escravos adquiria foros de empresa mercantil, o que deu margem ao
advento de generalizações e imprecisões até hoje adotadas. Ver Maria Inês C. de Oliveira,
“Quem eram os ‘negros da Guiné’”? A origem dos africanos na Bahia”, nesta coletânea.
52 Ver Robert Slenes, “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil”, Revista
USP, no. 12, (1992), pp. 48-67. O autor acentua que a continuidade ou o rompimento deste
processo, contudo, teria dependido da experiência dos escravos no Novo Mundo e das suas
possibilidades de encontrar outras afinidades entre si, para além da comunidade da pala-
vra. Slenes, “Malungu”, p. 58. Vale lembrar ainda que a instituição do malungo não aconte-
cia apenas entre os escravos linguisticamente aparentados. Ela foi comum a todos os gru-
pos que, de alguma forma, foram transportados juntos como cativos no tráfico, pois era a
dura experiência da travessia que estava na base da construção deste parentesco simbó-
lico. Ver também, neste sentido, o ensaio de Sidney Mintz e Richard Price, O nascimento
da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica, Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
Agradeço a Luis Nicolau Parés e João José Reis pelas informações acerca das etnias afri-
canas e suas variantes linguísticas.
53 Ver Conrad, Tumbeiros, pp. 130-131; Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e ex-
periências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas, Editora
da UNICAMP/Cecult, 2000, pp. 135-137.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 321
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Não obstante, para o professor Thiago Escolástico, estes depoimentos


não passavam de “uma história mal-arranjada”. No seu entendimento,
os cativos em questão haviam sido “seduzidos pelo vil interesse de maus
conselheiros”, estando “esquecidos constantes benefícios que de seus
senhores têm recebido desde o berço até a atual idade”. Mostrando certo
ressentimento com a atitude dos escravos para com seu senhor, o procurador
do réu buscou desacreditar as testemunhas pelo fato de elas reproduzirem
um depoimento forjado. Isto porque a maioria dos depoentes possuía idades
próximas dos 60 anos, portanto, na época do suposto desembarque ilegal
eram crianças e, por isto, não deveriam ter maturidade para discernir os
fatos. Informado sobre a jurisprudência acerca desta questão, ele chegou
mesmo a mencionar uma sentença proferida pelo Supremo Tribunal de
Justiça, em que as testemunhas apresentadas pelos defensores dos cativos
haviam sido consideradas “incapazes de crédito em juízo”.54
Além disto, Thiago Escolástico também apresentou várias teste-
munhas que atestaram conhecer a africana Constança como escrava
antes da proibição da importação de africanos, portanto, muito antes de
esta passar ao domínio do réu por herança de sua mulher. Dentre estas,
merece destaque o depoimento da ex-escrava Efigênia, de 60 anos, que
disse “que quando ela testemunha se entendeu no poder de seu senhor
José Gonçalves já encontrou Constança em seu poder como escrava deste,
e que foi ela Constança quem lhe criou como mãe”.55
A oitiva de testemunhas de ambas as partes fez com que o processo
se arrastasse por vários meses, o que impediu fosse caso julgado, em
razão da abolição da escravatura no Brasil. Mais uma vez, embora por
seus argumentos as contendas judiciais denotassem uma suposta vitória
dos senhores, na prática, a postergação dos julgamentos representou o
triunfo dos cativos.
A repercussão destas contestações judiciais também estimulou os
filhos e netos da africana Luzia a procurar as barras dos tribunais para
se libertarem do poder de Manoel Rodrigues de Oliveira, proprietário da
Fazenda Tejo, em Maraú.56 A ação de liberdade teve início em 25 de maio
de 1887, tendo sido os escravos retirados do poder do senhor no mesmo
dia, por despacho do juiz Dionísio Damasceno D’Assumpção. Entretanto,
devido à recorrente estratégia do curador Abdon Ivo de Moraes Vieira de
postergar o andamento da causa, a propositura da ação só veio a ocorrer
em 13 de julho, quase dois meses depois de efetuado o depósito e após

54 APEB, Ação de liberdade da crioula Faustina.


55 Ibid.
56 APEB, Seção, Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/30, Ação de liberdade de Félix, Leo-
nardo, Izabel e filhos, Benta e seus filhos, filhos e netos da africana Luzia contra Manoel
Rodrigues de Oliveira, Maraú, 1887.

322 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

o veemente protesto do advogado Pedro E. de Oliveira Porto, defensor


do fazendeiro, que ponderou ao juiz que “este estado de coisas não pode
continuar, porquanto a ser isto tolerado, todo escravo, que por insinuação
quiser ver-se livre do domínio de seu senhor só terá que requerer para ser
depositado, ficando o senhor indefinidamente privado de seus serviços
o que não pode ser permitido em face da lei.”57
A queixa de Pedro Oliveira tocava num ponto crucial da estratégia
abolicionista, que era a retirada dos cativos do poder de seus senhores e
da sujeição pessoal a eles, causando-lhes prejuízos financeiros, com os
dias de serviço não trabalhados, e, sobretudo, morais, com o descrédito
da autoridade senhorial diante dos demais escravizados.58
Segundo alegou o curador Abdon Vieira, a africana Luzia havia de-
sembarcado em lugar retirado da vila de Maraú, “onde esteve por algum
tempo oculta e ali foi batizada”. O curador também fez questão de deixar
claro que a africana era a Luzia que “ainda existe, já liberta, e não a que se
diz ter vindo vendida por José Ferreira da Silva”, e que a mesma escrava
“pela sua fisionomia e boa disposição para o trabalho é ainda moça e cal-
cula-se ter a idade de 50 a 55 anos”.59 Com estas ressalvas, pretendia-se
certamente asseverar que seu senhor não argumentasse que Luzia havia
sido importada antes de 1831, portanto, havia entrado legalmente no país.
As testemunhas arroladas pelos filhos e netos de Luzia confirmaram
as alegações constantes da petição, dando possíveis detalhes de sua im-
portação. Manoel Zacarias, de mais ou menos 60 anos, solteiro, natural
de Santarém, que vivia de lavoura, afirmou saber que Luzia havia entrado
ilegalmente no Brasil, porque “era ele da fazenda donde ela foi comprada
que era de José Gonçalves da Silva, o qual trouxe da Bahia diretamente
para sua fazenda Noviciado” e “aí foi batizada pelo Padre Manoel, por não
ter querido o da freguesia batizar africanos”. Questionado, respondeu
lembrar-se bem de que, quando Luzia foi trazida para a vila, o tráfico
de africanos já era proibido, e que ela era menina e “pelo tamanho dado
calcula-se 6 a 8 anos”, e que isto ocorrera “depois que Champloni desovou
na Barra”. 60
O segundo a depor foi Rufino Mendes, de 70 anos, casado, que também
vivia de lavoura. Rufino disse que
tinha certeza que a africana Luzia mãe dos autores foi
importada muito depois que foi proibido o tráfico africano,
tanto assim que sendo trazida pelo Champloni que era
importador de africanos que deixou parte dos africanos

57 Ibid.
58 Silva, “Os escravos vão à Justiça”, pp. 115-148; Chalhoub, Visões da liberdade, pp. 161-174.
59 APEB, Ação de liberdade de Félix, Leonardo, Izabel e filhos.
60 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 323
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

em Taipús termo desta vila, e outros tantos levou para a


Bahia, em cujo número foi a africana Luzia e uma outra que
se acha no Rio de Contas, e que sendo Luzia juntamente
com uma outra de nome Leocádia trazida para a fazenda
Noviciado por José Gonçalves, aí estiveram por muito
tempo escondidas.61

O crioulo também confirmou as circunstâncias do batismo de Luzia,


esclarecendo ainda que esta não era a Luzia que “se diz ter sido vendida a
José Gonçalves por José Francisco, e que a Luzia que foi de José Francisco
foi a mãe dele testemunha, e não a mãe dos autores”. Indagado pelo advo-
gado do réu sobre como sabia ter Luzia vindo no navio que deixara parte
dos escravos no Taipus, respondeu que “estava no Campinho 62 quando
Champloni desembarcou parte dos escravos, não tendo visto a referida
Luzia, sabendo depois pela mesma quando já estava ladina que tinha
vindo no referido navio”. Contudo, Rufino entrou em contradição com o
depoimento anterior, ao afirmar que, na ocasião do desembarque, Luzia
tinha aproximadamente 34 a 36 anos, fato que levou à contestação de seu
depoimento por parte do defensor do réu.63
Tão solidário quanto o depoimento anterior foi o testemunho da
africana Angélica, de 64 anos, solteira, que vivia da lavoura e era escrava
do capitão Domingos Francisco do Nascimento, a quem, inclusive, estava
acionando na justiça, conforme mostramos no início deste trabalho. Agora,
ela se passava por pessoa livre para auxiliar os filhos e netos da também
africana Luiza a conseguir a liberdade destes. Por meio de suas declarações,
pudemos finalmente confirmar que ela mentira em juízo, ao dizer que
contava apenas 36 anos de idade e que o procurador de seu senhor estava
certo ao afirmar que ela já era uma pessoa idosa. De fato, esta constatação
é um indício muito forte de que a ação estava estrategicamente orientada
pelo curador Abdon Ivo de Moraes Vieira, que se estava cercando de todas
as provas possíveis para ganhar a causa. Indica, também, que o fato de
Angélica estar depondo em outro caso, ao mesmo tempo em que sua ação
corria na justiça, pode estar relacionado ao acordo realizado com o seu

61 Ibid.
62 Campinho é uma praia localizada nas imediações da Barra Grande, na entrada da baía de
Camamu, região contígua aos Taipus. A menção a este local, em nenhum momento con-
testada pelo defensor do réu, indica a possibilidade da ocorrência de desembarques de
africanos ali, ainda mais porque “fica a barra Grande de Camamú na altura de 14 graus
com 18 braças de fundo, e tem toda a capacidade para nela ancorarem sem o menor ris-
co embarcações de alto bordo, a tempo que abrigada dos ventos Sul, e Leste. Da mencio-
nada ponta até o Campinho, que distará dela uma légua podem fundear muitas, e gran-
des embarcações, por ser limpa a costa até o quebrar das ondas na praia, havendo unica-
mente no meio da enseada, junto à terra um pequeno recife na boca do rio Carapitangui,
chamado Taipaba, o qual por estar quase seco não obsta à amarração”. Vilhena, A Bahia
no século XVIII, p. 500.
63 APEB, Ação de liberdade de Félix, Leonardo, Izabel e filhos.

324 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

defensor, que, como vimos, é o mesmo em todas as ações até aqui trabalhadas.
Neste sentido, a solidariedade prestada entre algumas testemunhas pode
ter motivações que não necessariamente indiquem ligações afetivas ou de
parentesco, mas sim, o interesse comum em libertar-se.
Voltemos ao caso. Indagada sobre o que sabia da vinda de Luzia para
o Brasil, Angélica afirmou
que a africana Luzia veio depois que já era proibido o
tráfico de africanos, pois que lembrou que veio no barco do
Champloni importador de africanos, que deixando parte
de africanos no engenho Santo Antônio na Bahia trouxe
parte para os Taipús, e que já estando ela testemunha uns
2 meses no termo desta vila em um sítio distante desta vila
soube que José Gonçalves havia trazido para sua fazenda
Noviciado duas africanas, as quais ela testemunha pôde
saber que eram Luzia mãe dos autores e Leocádia que mora
no Rio de Contas.64

A africana garantia que tais fatos haviam ocorrido porque “tendo ela
vindo por esta forma, Luzia também devia ter vindo” — o que também nos
permite pensar na ocorrência de outros desembarques naquela época. Ela
também certificou que esta “foi trazida para a fazenda Noviciado por José
Gonçalves ocultamente, tanto assim que tendo de batizar procurou um
padre de nome Manoel conhecido por Padre da Pancada, por a isto se ter
negado o vigário da Freguesia”.65
Ao que tudo indica, a força destes depoimentos e os possíveis gastos
com as custas processuais desmotivaram o senhor Manoel Rodrigues de
Oliveira de continuar brigando judicialmente pela posse dos escravos,
pois, no dia 27 de julho de 1887, passou carta de liberdade a Benta e seus
filhos Eleutério e Severiano, bem como a Félix, Leonardo e Isabel, filhos
e netos da africana Luzia.
De fato, as coisas pareciam estar bastante complicadas para os
proprietários de escravos da região. A ocorrência de tantas contestações
judiciais colocava os senhores na defensiva, ainda mais que a demanda
provocada pelas ações coletivas, como as aqui mencionadas, causava
enormes prejuízos financeiros.
Apostando cada vez mais na derrocada do poder senhorial, os crioulos
Felizardo, Elisiária e Cândida também foram à justiça contra seus senho-
res, tendo por base o fato de que sua mãe, a africana Angelina, havia sido
ilegalmente importada. Como nos casos anteriores, os autores da ação
apegaram-se ao fato de que sua mãe fora “desembarcada de um navio ne-
greiro em um dos portos da costa dos Taipús, de propriedade ou consignado

64 Ibid.
65 Ibid. Pancada é uma localidade da vila de Barra do Rio de Contas.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 325
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ao traficante de africanos Miguel Gahagem Champloni”.66 Novamente


aqui, os testemunhos em favor dos cativos indicam a existência de laços
de solidariedade e também as possíveis alianças que emergiam naquele
contexto abolicionista. Como exemplo, cito o caso de Aprígio Freire do
Espírito Santo, de cerca de 60 anos, que já havia atuado como testemunha
informante na ação movida por Maria e seus filhos Jerônimo e Mônica.
Neste novo caso, Aprígio tentou passar-se por livre para depor, quando
foi obstado pelo defensor dos réus, que fez ver ao juiz que o mesmo ainda
era escravo de Martinho Freire do Espírito Santo. Inconformado com tal
ousadia, o professor Thiago Manoel Escolástico contestou o depoimento
do informante, visto que o mesmo estava “na diligência de propor a seu
senhor ação de liberdade, e já tendo sido nomeado seu curador o mesmo
advogado dos autores, e que há razões para crer-se que na deficiência de
testemunhas, fosse obrigado pelo mesmo seu curador para prestar o seu
depoimento em favor de outros que se acham em idênticas condições.”67
Porém, Aprígio não se intimidou com este fato e, na condição de teste-
munha informante, confirmou as alegações dos cativos.
Quem também voltou a prestar solidariedade aos escravos foi Angéli-
ca, que passara a se apresentar como Angélica Maria das Candeias, de 60
anos, solteira, escrava empregada na lavoura, natural da Costa d’África,
de propriedade do capitão Domingos Francisco do Nascimento.
Segundo ela,
Angelina foi trazida dos Taipús onde estavam muitos
africanos à toa ou escondidos, e daí conduzida por
Francisco de Abreu para a casa de Domingos Marôto na
Santa Cruz, e aí comprou o alferes Manoel Antônio do
Nascimento a dita Angelina e levou-a para sua fazenda, e
que isto ela testemunha sabe porque era escrava da casa
do dito Manoel Antônio e viu quando Angelina chegou e
nessa ocasião perguntando a mulher do dito Nascimento
onde tinha comprado aquela pretinha, ele respondeu-lhe
que tinha comprado na casa de Domingos Marôto e que
tinha muitos negros da Costa na Barra Grande.68

66 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 23/0808/12, Ação de liberdade dos crioulos
Felizardo, Elisiária e Cândida, Maraú, 1887. Os cativos em questão pertenciam a diver-
sos senhores de uma mesma família, residente em Maraú. Felisardo era propriedade de D.
Maria Joana de Souza Coutinho; Elisiaria pertencia a D. Sophia Coutinho D’Eça; e Cândida
estava em poder de Antônio Augusto de Souza.
67 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida. De fato, o escravo
Aprígio havia impetrado a ação contra seu referido senhor no dia 27 de outubro de 1887,
tendo por curador o abolicionista Abdon Ivo de Moraes Vieira: APEB, Seção Judiciária,
Ação de Liberdade, 23/0808/02, Ação de liberdade de Aprígio contra Martinho Freire do
Espírito Santo, Maraú, 1887.
68 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.

326 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Angélica também disse que “Angelina veio em um navio de Miguel


Champloni que descarregou muitos africanos no Taipús e que isto sabe
não porque visse, mas porque Angelina foi para a casa de Manoel Antônio
do Nascimento justamente no tempo em que tinha chegado o navio do
Champloni nos Taipús ou Barra Grande e descarregado aí muito africanos
que ficaram aí à toa.” 69 E ainda afirmou que “o alferes Manoel Antônio
não tinha escritura de Angelina porque naquele tempo os africanos se
vendiam ocultamente, tanto assim que o padre desta Vila não tinha mais
ordem de batizar africanos, tanto que para Angelina ser batizada foi
preciso muito empenho com o Padre Coutinho, e que ela testemunha veio
muito antes de Angelina, não quiseram batizar nesta vila.”70
Outro velho conhecido a depor foi o sapateiro Florêncio dos Santos.
Contudo, sua fala nada acrescentaria às razões dos cativos, porquanto se
limitou a reconhecer que Angelina era africana. De igual brevidade foi
a fala da viúva Sebastiana de Jesus, de 70 anos, que se ateve a dizer que
Angelina “veio no comboio dos que vieram no barco de Champloni com
Maria de Rogério Damasceno e outros”.71
Quem de fato acrescentou novos dados ao caso foi o africano Bitu Andá,
que, momentos atrás, também havia prestado sua solidariedade ao depor
em favor da africana Constança. Segundo ele, Angelina “foi trazida para o
termo desta vila por um indivíduo de nome Pedro Galego e por este vendido
a Francisco de Abreu”. Ainda de acordo com sua versão, a africana “veio na
última viagem do navio negreiro de Miguel Champloni que descarregou
na Costa dos Taipús, [...] que poucos dias depois da chegada deste navio o
Champloni envenenou se por lhe chegar a notícia que o governo ia man-
dar ir ao encalce dele, e nessa ocasião ficaram os africanos que estavam
ocultos abandonados e daí foram buscados por diversas pessoas.”72 Em
sua fala, Bitu Andá nos dá detalhes não só do desembarque, mas também
do trágico fim que teria levado o traficante Miguel Champloni — fato que
será explorado mais adiante.
Como nas oitivas anteriores, o procurador dos senhores contestou o
depoimento da testemunha, alegando “ser ela suspeita de parcialidade,
visto como além de manter esta íntima amizade com a mãe dos autores
desde o tempo em que foram ambos escravos do alferes Manoel Antônio
ainda conservava as mesmas relações”.73

69 Ibid.
70 Ibid. A menção ao batismo em terras brasileiras mostra que nem todos os africanos rece-
biam este sacramento no porto de embarque, em solo africano. O fato de o padre ter-se re-
cusado a realizar o batismo também demonstra que a ilegalidade do tráfico era socialmen-
te reconhecida, ainda que a lei não fosse respeitada por todos.
71 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.
72 Ibid.
73 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 327
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Para combater tão consistentes afirmações, Thiago Manoel Escolástico


apresentou três testemunhas, duas das quais declararam contar 80 anos.
A longevidade e o prestígio dos lavradores Antônio Benedito de Souza e
João Gualberto de Sant’Ana casavam perfeitamente com o tradicional
argumento da defesa de que a mãe dos cativos viera para o Brasil muito
antes de 1831, sendo escrava de outro senhor antes de passar ao domí-
nio da família dos réus. A terceira testemunha a depor favoravelmente
aos senhores foi o oficial de justiça Ladislau Fortunato dos Santos, que
anteriormente havia deposto favoravelmente ao crioulo Bernardo e sua
mãe Angélica. Mas, como nos demais casos, estes depoimentos de nada
valeram, porque a causa deixou de ser julgada em razão da abolição.74
Não foram somente os descendentes dos africanos desembarcados por
Champloni na praia do Taipus, em Maraú, que recorreram às memórias da
travessia — transmitidas oralmente por seus pais e avós — para conquistar
suas liberdades. Alguns escravizados residentes na vizinha vila de Barra
do Rio de Contas também depositaram suas esperanças e — por que não o
dizer? — suas modestas economias nas mãos de Abdon Ivo Moraes Vieira
e partiram para a ofensiva contra seus senhores, afirmando a ilegalidade
de seu cativeiro.75
Segundo alegou o referido curador nas duas ações impetradas pelas
irmãs Úrsula e Romana, a africana Joaquina, mãe das autoras, fora mandada
àquela vila em companhia de outros africanos, para ser vendida por um
traficante conhecido por Francisco Trovão. Comprada por Francisco de
Azevedo, Joaquina permaneceu no cativeiro até ser libertada condicional-
mente por ocasião da morte de seu senhor. Pela documentação analisada,
não é possível saber se esta africana se casou, mas é certo que suas filhas
foram vendidas ainda muito pequenas a diferentes proprietários. Romana
havia sido comprada pelo alferes José Bonifácio de Magalhães, que não
compareceu à Justiça para contestar as alegações da escrava, deixando
a causa correr à revelia. Este fato, altamente benéfico para Romana, em
parte empobreceu as informações sobre ela, pois não ficamos sabendo sua
idade, estado civil, ocupação, se possuía ou não filhos, etc. Já Úrsula, de 32
anos, passou a ser propriedade de dona Ursulina de Magalhães Seturval,

74 Assim como o escravo Aprígio, o sapateiro Florêncio dos Santos e o africano Bitu Andá, La-
dislau Fortunato dos Santos parecia ter assumido o compromisso de irem à justiça falar o
que sabiam dos fatos motivados por interesses que nem sempre coadunavam com a repul-
sa ou o apego à escravidão – o que evidencia a complexidade dessas relações.
75 Por mais que os escravos fossem beneficiados com a isenção de taxas processuais, dado
o favorecimento da lei nos casos envolvendo a liberdade, toda contenda judicial importa-
va em custos adicionais que, muitas vezes, eram assumidos por eles. Com base neste fato,
muitos senhores dirigiram recorrentes acusações aos abolicionistas, classificando-os de
usurpadores das economias dos escravos. Embora não possamos negar tal hipótese, dada a
ocorrência de oportunistas de plantão, também não podemos esquecer que as críticas se-
nhoriais eram feitas desconsiderando a capacidade dos escravos em avaliar os riscos que
corriam ao aceitar tal auxílio. Chalhoub, Visões da liberdade, p. 170.

328 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

em 1877, mediante o pagamento de um conto de réis a Manoel Marins


de Lima Reboto. Com a compra de Úrsula, a senhora ainda se tornava
responsável pelos direitos dos dois filhos ingênuos da escrava, chamados
Selvina e Raimundo, de 13 e 11 anos, respectivamente.76
Como nos processos anteriores, para Joaquina, suas filhas e netos,
o recurso judicial representava a chance de ter a família reunida sob o
mesmo teto e, quem sabe, em melhores condições. A defesa de Romana e
Úrsula apoiou-se no fato de que o senhor de sua mãe não tinha nenhum
documento que atestasse a sua posse e, principalmente, na certeza de
que as testemunhas comprovariam que ela havia sido importada após a
proibição do tráfico. Neste caso, o relacionamento da família das criou-
las com os depoentes mostrou-se fundamental para a credibilidade dos
fatos, pois todas as testemunhas haviam passado pela dura experiência
do cativeiro. Sua coragem em depor neste caso também revela que os
laços de solidariedade entre escravos e libertos estavam-se tornando
cada vez mais fortes nas últimas décadas da escravidão. Através dos três
depoimentos que se seguem, tomamos conhecimento de mais algumas das
facetas dos senhores e dos contrabandistas no tráfico ilegal de africanos.
O primeiro a testemunhar foi o crioulo Raimundo José Bento D’Azevedo,
maior de 70 anos, solteiro, que vivia de suas lavouras. Além de confirmar
o que alegara o curador, este liberto contou que Francisco de Azevedo
lhe havia dito que, com “o produto da venda de Rita, uma escrava que já
havia vendido, ele havia comprado duas na Bahia, sendo Joaquina a mãe
da autora e uma outra de nome Antônia, as quais trouxeram escondidas
por ser contrabando”.77 Já o africano João José Antônio de Souza, maior de
sessenta anos, solteiro e pescador, também confirmou que, assim como
ele, a mãe de Romana viera para aquela vila depois de proibido o tráfico
de africanos. João contou que tinha vindo “muito antes desta e ao chegar
na vila levou muito tempo escondido em uma casa, porque já era proibido
a vinda d’África, donde só saiu depois de muito tempo e quando já sabia
falar”. 78 Como vimos anteriormente, esta tática, além de despistar possíveis
diligências das autoridades, servia para reabilitar os desgastes físicos
sofridos na travessia, ao mesmo tempo em que se procurava familiarizar
os cativos com a nova língua, com vista a incrementar seu preço de venda.
Por último, a africana Maria da Conceição, casada, vendedora de
peixes, de mais ou menos 50 anos, ratificou os depoimentos anteriores,
demonstrando também estar solidária com a causa de Romana. “Maria

76 APEB, Seção Judiciária, Ação de Liberdade, 12/426/07, Ação de liberdade da crioula Ro-
mana contra o alferes José Bonifácio de Magalhães, Barra do Rio de Contas, 1887; idem,
12/ 426/08, Ação de liberdade da crioula Úrsula contra Ursulina Gomes de Magalhães Se-
turval, Barra do Rio de Contas, 1887.
77 APEB, Ação de liberdade da crioula Romana.
78 Ibid.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 329
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de Cristo”, como era conhecida, contou ter vindo para o Brasil na mesma
embarcação que trouxera a mãe de Romana, e que num dos trechos da
viagem “veio um navio inglês a apreendê-los e nessa ocasião fizeram içar
uma bandeira vermelha fazendo ser um carregamento de azeite de dendê”,
o que despistou o patrulhamento britânico e permitiu que a embarcação
negreira seguisse em frente.79
Segundo Pierre Verger, todo navio brasileiro que transportasse
escravos da África para o Brasil e tivesse iniciado sua viagem de volta
depois do dia 13 de março de 1830 podia ser apresado pelos ingleses, e
seu proprietário, o capitão e os membros da tripulação eram passíveis de
processos por atos de pirataria. Desta forma, a partir de então, a utiliza-
ção da bandeira brasileira tornava-se muito arriscada para aqueles que
iriam continuar a fazer o tráfico clandestino. Para reduzir a gravidade
da falta e fazê-la passar de crime para delito, era preciso navegar com
papéis e bandeira de outra nacionalidade, como a espanhola, a francesa,
a americana e a portuguesa. 80 Também por aquela época alguns países
incrementaram o comércio de azeite com a África, com vista a substituir
o tráfico, embora muitos se tenham aproveitado desta permissão para,
assim que pudessem, substituir as barricas de azeite por escravos. 81 Cabe
ressaltar ainda que o azeite de dendê ou “azeite de palmas”, palmácea
natural da região que vai da Gâmbia até Angola, era, desde longa data, um
produto muito apreciado pelos traficantes de escravos, sendo, juntamente
com os negros, comercializado em proporções consideráveis. Segundo
sugere Edison Carneiro, foram os próprios traficantes que trouxeram
a planta da África para o litoral brasileiro, onde se teria disseminado.
Coincidentemente, a região que se estende do Morro de São Paulo até a
Barra do Rio de Contas é, ainda hoje, denominada Costa do Dendê.82
Maria contou ainda que, tão logo o navio chegou à Bahia, os escravos
foram “desembarcados em um lugar oculto, onde estiveram por algum
tempo, e aí se separaram, vindo depois para esta vila onde se encontram”.83
Além de indicar uma possível estratégia utilizada pelos traficantes para
despistar o policiamento inglês, o depoimento de Maria de Cristo evi-
dencia a existência de uma conexão que ligava os magnatas do tráfico,
os detentores de grande capital, com outros traficantes de fortuna mais

79 Ibid.
80 Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, São Paulo: Corrupio, 1987, p. 420. Ver também
Conrad, Tumbeiros, pp. 139-170.
81 Verger, Fluxo e refluxo, pp. 560-564. Contudo, do processo não dá para saber se a bandei-
ra em questão era de algum dos países acima mencionados ou se havia uma identificação
típica que distinguisse os navios que faziam o transporte de azeite de dendê.
82 Edison Carneiro, “O azeite de dendê”, O jornal, Rio de Janeiro, 27/03/1955.
83 APEB, Ação de liberdade da crioula Romana.

330 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

modesta, sendo estes responsáveis pela distribuição das “peças” por outros
recantos da província.
As provas apresentadas pelas escravas eram realmente muito fortes.
Primeiro, porque Joaquina não havia sido matriculada nem averbada, pois
seu nome não constava em nenhum título de propriedade; segundo, porque
as testemunhas foram unânimes em comprovar e detalhar a importação
ilegal da cativa. Diante destas evidências e da “onda abolicionista”, o
senhor de Romana nem sequer compareceu aos tribunais para contestar
as alegações, e o processo só não foi julgado à sua revelia por causa da
abolição. Já dona Ursulina Seturval até que tentou evitar os prejuízos
com a perda de Úrsula e seus filhos. Desesperada, ela chegou mesmo a
mandar intimar o antigo dono da cativa para responder à ação em seu
lugar, o que protelou ainda mais o andamento da causa, mas, depois de
muitos protestos pelas perdas sofridas com o depósito da cativa e dos
filhos, restou-lhe apenas conformar-se com a liberdade destes e dos
demais cativos do Império.84
Como se pode notar nos processos até aqui discutidos, os relatos dos
escravos e suas testemunhas visam prioritariamente atender às suas
pretensões de liberdade. Produzidos a partir do apelo à memória, estes
depoimentos contêm muitos elementos verossímeis, mas também estão
permeados de imprecisões e até mesmo de algumas contradições, conforme
apontou em diversas ocasiões o defensor de alguns senhores, o professor
Thiago Escolástico. Não obstante, alguns fatos e informações em nenhum
momento são postos em dúvida por ele, nem pelos senhores, e até encontram
respaldo na literatura disponível sobre as localidades onde supostamente
ocorreram. São estes indícios que me levam a apostar na sua veracidade
— ainda que tenham sido manipulados ou colocados fora de contexto pelo
curador dos cativos, o abolicionista Abdon Ivo de Moraes Vieira.
A principal destas informações diz respeito à existência de Miguel
Champloni, suposto traficante e proprietário do navio negreiro que
desovou na praia do rio Taipus. A recorrência ao nome Miguel Gahagem
Champloni, comum à maioria das ações impetradas pelos escravos, levou-
me a pensar na possibilidade de seguir sua trajetória a partir de outras
fontes documentais. É o que tento fazer a seguir.85

Miguel Gahagem Champloni


Pai de três filhos menores de idade, Miguel Gahagem Champloni faleceu
em 16 de março de 1838, sem deixar testamento de suas últimas vontades.

84 APEB, Ação de liberdade da crioula Úrsula.


85 Inspirado em Jacques Revel, “Micro-história e construção do social”, in Jacques Revel
(org.), Jogos de escalas: a experiência da microanálise (Rio de Janeiro: FGV, 1998), pp. 15-
38; e Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes, São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 331
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Contudo, pelos bens arrolados e mencionados em seu inventário, podemos


ter uma dimensão de suas posses.86
Ao que tudo indica, Miguel Gahagem Champloni e Leolinda Rodrigues
Gahagem casaram-se em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, de onde esta
última era natural, e ali residiram até o final do ano de 1834, quando se
transferiram para a Bahia.87 Não sabemos as razões pelas quais o casal deixou
Porto Alegre, mas o não-pagamento de uma dívida no valor de um conto e
cem mil réis, fruto de uma letra passada em 23 de agosto daquele ano ao
Sr. Manoel Vicente Vieira Ramos, pode estar relacionado à sua saída do
Rio Grande do Sul. Afirmo isto porque o título foi protestado em janeiro de
1835 e o fiador, Antônio Augusto Guimarães, teve que responder pela dívida,
já que Champloni não foi comunicado, por estar ausente, possivelmente
já morando na Bahia.88 Outra hipótese bastante plausível para a referida
transferência seriam as ligações comerciais de Miguel Champloni com
alguns “negociantes de almas” residentes na capital baiana, como sugere
Paulo Roberto Staudt Moreira.89
Em Salvador, Champloni estabeleceu-se em um sobrado na Rua da
Piedade, na Cidade Alta, adquirido por cinco contos de réis em agosto de
1835. Ali passou então a viver com sua esposa e os filhos Lupércio, de seis
anos de idade, Miguel, de cinco anos e Leolinda, de apenas seis meses.90
Também integravam a família as jovens escravas Joaquina e Lucrécia,
ambas da nação angola, do serviço de lavar, engomar e cozinhar, avaliadas
em 450 mil réis cada, e o crioulinho Alonso, de dois anos de idade, filho
da mencionada Lucrécia, avaliado em 50 mil réis.

86 APEB, Seção Judiciária, Inventário, maço 2210, 5/1740/2, Inventário de Miguel Gahagem
Champloni falecido sem testamento, Salvador,1838.
87 Em correspondência expedida ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, com data
de 26/ 05/1834, o Chefe de Polícia José Maria Peçanha anexou um relatório do Juiz de Paz
do 2° Distrito de Porto Alegre, no qual consta que Miguel Gahagem Champloni, casado,
brasileiro, se havia mudado para o 3° quarteirão. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
(AHRGS), Polícia, maço 60, Secretaria da Polícia, Correspondência expedida, Chefe de Po-
lícia José Maria Peçanha ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, 26/05/1834.
Agradeço esta e outras informações sobre a passagem de Miguel Champloni pelo Rio
Grande do Sul a João José Reis. Quem também viveu nesse período no Rio Grande do Sul,
tendo, inclusive, aí começado a fazer sua fortuna, foi o famoso traficante de escravos Joa-
quim Pereira Marinho. Ver, a este respeito, Cristiana Ferreira Lyrio, “Joaquim Pereira Ma-
rinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia (1827-1887)” (Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal da Bahia, 1998).
88 AHRGS, Livro de Registros diversos, 1° Tabelionato de Porto Alegre, 1830-1835.
89 Ver Paulo Roberto Staudt Moreira, “Escravidão, família e compadrio: a comunidade escra-
va no processo de ilegalidade do tráfico internacional de escravos (1831-1850)”, História
Unisinos, no. 18 (2014), pp. 322-324.
90 APEB, Seção Judiciária, Livro de Notas da Capital, n° 254, Tabelião Francisco Ribeiro Ne-
ves, fls. 6 e 7. Curiosamente, Champloni pagou um conto de réis no ato da escritura, fican-
do de acertar a soma restante no prazo de quatro meses.

332 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

As ditas escravas trabalhavam numa casa, cujos principais móveis


eram um “sofá de jacarandá com assento e encosto de palhinha em bom
uso, avaliado em 40 mil réis” e “doze cadeiras de jacarandá com assentos
de palhinha” em igual estado, avaliadas em 24 mil réis. Somados, estes
móveis valiam mais que o escravinho Alonso e nos dão uma ideia dos preços
dos escravos naquela conjuntura de pujança do tráfico. Ainda compunham
o mobiliário da residência “duas camas de jacarandá de abrir com um só
pé ordinárias”, ambas avaliadas em 16 mil réis e “duas mangas de vidro
lisas” avaliadas em 3 mil e duzentos réis.
A estes bens aparentemente modestos somam-se outros mais valiosos,
que, intencionalmente ou não, deixaram de ser inicialmente arrolados e
descritos no referido inventário, mas vêm à tona no processo à medida
que a viúva Leolinda Rodrigues é acionada judicialmente pelos credores
do casal. Destes, o de maior valor de uso era o patacho Novo Destino,91
utilizado para transportar mercadorias de diversas origens, inclusive
seres humanos, como nos indicam os testemunhos acima. Assim como os
bergantins, os brigues, as escunas e sumacas, o patacho era uma embarca-
ção pequena, de dois mastros, “o de vante, que comportava velas redondas
e o de ré, bem maior que o primeiro, que comportava uma imensa vela
latina”. Em razão de sua velocidade, esta embarcação foi muito utilizada
pelos traficantes no comércio de africanos, sobretudo nos anos de intensa
repressão ao tráfico pela marinha britânica.92
A omissão inicial deste barco no inventário indica que dona Leolinda
não estava disposta a revelar todas as posses da família. Afirmo isto
porque, no mesmo documento em que menciona a embarcação, solicita
o sequestro do navio junto a Joaquim Pereira de Arouca Júnior, a quem
acusa de ter passado carta de ordem e procuração para que o vendesse
“por certa quantia", no Rio de Janeiro. Segundo ela, Arouca teria ido para
o Rio com a embarcação, mas retornara para Salvador, trazendo fretes e
alegando ser o dono do patacho. O juiz atendeu prontamente à solicitação
e depositou o barco em nome de José Rodrigues Lopes, irmão da viúva.
Porém José Rodrigues também tentou ludibriar a irmã, dado que esta
entrou com outro pedido ao juiz, alegando ter ficado sabendo que este
“homem volante e costumado a embarcar, sem possuir bens de raiz, nem
ter fortuna conhecida” pretendia “evadir no dito patacho e seguir para o
Rio Grande do Sul”, donde era natural.93 A viagem para o Rio de Janeiro e

91 Analisando as listas de navios negreiros citadas por Pierre Verger, encontrei somente
duas embarcações com tal denominação. A primeira é a goeleta Novo Destino, que seguiu
para a África em 5/05/1833, e a outra uma embarcação de André Pinto da Silveira, que
chegou à Bahia em 18/04/1846. Verger, Fluxo e refluxo, p. 459 e 479.
92 Ver Luiz Geraldo Silva, A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do
mar, Campinas: Papirus, 2001, p. 170; e também Rodrigues, De costa a costa, pp. 131-158.
93 APEB, Inventário de Miguel Gahagem Champloni.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 333
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

esta suposta tentativa de fuga atestam a capacidade da embarcação em


fazer viagens longas, como a travessia para a costa africana — o que con-
firma as afirmações dos africanos acerca do envolvimento de Champloni
no tráfico ilegal de escravos para a região de Camamu.
Além disto, a viúva deste também revelou que o casal possuía uma
propriedade, a Fazenda Nacional, localizada no termo da vila de Camamu
e, ao que tudo indica, justamente no lugar conhecido como Taipus, local dos
desembarques dos cativos. Por fim, dona Leolinda mencionou que Cham-
ploni também era dono de um lanchão, que se achava atracado no porto da
mencionada vila. Esta embarcação, possivelmente “um barco velho já todo
danificado e um batel do mesmo”, foi vendida na vila de Camamu, em 10 de
abril de 1840, para Antônio da Silva Pereira, pela quantia de 100 mil réis.94
Na verdade, dona Leolinda queria esconder da Justiça, e sobretudo
dos credores do casal, as verdadeiras posses de seu marido. Isto porque,
em 13 de setembro de 1838, ela tentou vender ilegalmente outra embar-
cação, o lanchão Triunfante.95 Tal ilegalidade motivou a ação de sequestro
por parte de José Pereira dos Santos, que havia comprado a embarcação
das mãos de Joaquim dos Santos Pinto, em 16 de junho do mesmo ano,
“pelo preço de um conto de réis”.96 Segundo esclareceu posteriormente
em depoimento a própria viúva de Champloni, Joaquim Pinto havia
alugado o lanchão para seu marido, mas teria tomado conta do barco
novamente, assim que este faleceu. Esta versão dos fatos foi confirmada
por José Maria Camalier, que comprovou que tal arrendamento se dera
“em consequência de se achar arruinado o Lanchão Santo Antônio de
possessório dele testemunha, que antes disso estava arrendado ao dito
Champloni”. 97 Também atestaram estes fatos Antônio da Costa Torres,
caixeiro de Miguel Champloni, e Manuel dos Santos Correia. O primeiro
disse que “no tempo da revolta que aconteceu nesta cidade [Sabinada],
estando ele testemunha e o seu dito amo na Vila de Camamú, aí o finado
Champloni fretara o Lanchão Triunfante de que era dono Joaquim dos
Santos Pinto para levar carregamento para São Matheus.”98
O segundo, irmão de Joaquim dos Santos Pinto, afirmou que este
ofertara algumas vezes barcos a Champloni, “sendo a última no princípio

94 APEB, Seção Judiciária, Livro de notas dos municípios (Camamú), Livro n° 10, Tabelião
João Ferreira Borges, 1839-1842.
95 APEB, Seção Judiciária, Cível 2, 14/470/04, Sequestro de bens de José Pereira dos Santos
e Miguel Gahagem Champloni (falecido), Salvador, 1838.
96 APEB, Sequestro de bens de José Pereira dos Santos. De acordo com o que consta na escritu-
ra de compra e venda anexada ao processo, após ter sido sequestrado pela justiça, o lanchão
foi avaliado da seguinte maneira: “o casco, sua mastreação, dois camarotes volantes e hum
fogão [vale] a quantia de 400 mil réis, e quanto ao aparelho, o velame a de 50 mil réis”.
97 Ibid.
98 Ibid.

334 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

do presente ano, quando fez uma viagem a São Matheus”.99 Outra embar-
cação associada aos bens do casal de Miguel Gahagem Champloni era o
patacho Vigilante, que se achava perigosamente a pique na Baía de Todos
os Santos, “ameaçando de causar funestos estragos” a outras embarcações
ali ancoradas, conforme denunciou o Correio Mercantil.100
A posse das embarcações acima mencionadas acena para o seu uso
no transporte e na comercialização de mercadorias vindas da capital ou
para lá exportadas, como a farinha, naturalmente fazendo parte destas
transações também escravos, fossem africanos ilegalmente importados
ou não. Neste último caso, Miguel Champloni parecia atuar como uma
espécie de subsidiário do tráfico, visto que naquelas paragens veio a
fixar residência, justamente no local do desembarque, a costa do Taipus,
possivelmente no final do ano de 1835.101
Outro indício bastante forte de um possível engajamento de Miguel
Gahagem Champloni no comércio negreiro nos é fornecido pelos anúncios
por ele publicados no ano de 1836, no já mencionado Correio Mercantil,
na seção “Navios à Carga”, onde se lê: “O Brigue Barca Gentil Americana,
que deve sair até o dia 29 de fevereiro para Lisboa com escala pela Costa
d’África, recebe carga e passageiros para qualquer dos portos, Consigna-
tário Miguel Gahagem Champloni”.102
Os relatos contidos nas ações de liberdade sugerem que Champlo-
ni — assim como faziam outros traficantes — poderia ter adquirido tal
propriedade para montar um entreposto de cativos trazidos ilegalmente
para o Brasil. Os próprios africanos disseram ter ficado por algum tempo
no local do desembarque para daí serem vendidos a fazendeiros da região
e até mesmo da capital, como mencionou a africana Angélica (ver acima),
ao dizer que parte dos que tinham vindo com ela da África haviam ido de
Maraú para o Engenho Santo Antônio, no Recôncavo da Bahia.103
A documentação analisada até aqui ainda não nos permite afirmar
qual o grau de participação de Miguel Champloni no tráfico de africanos

99 Ibid.
100 Correio Mercantil, no. 74, Bahia, sábado, 6 de abril de 1839, e também o no. 98, terça-feira,
7 de maio de 1839.
101 Vale salientar que a essa época, especialmente nos anos de 1837, 1838 e 1839, o tráfico
africano para o Brasil alcançou seus maiores picos. Ver Bethell, A abolição, p. 368; e Luiz
Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988, p. 121.
102 Correio Mercantil, números 655 e 656, respectivamente terça e quarta-feira, dias 23 e 24
de fevereiro de 1836, p. 4.
103 De acordo com o estudo realizado por Barickman, existiam três engenhos com esta de-
nominação. São eles: o de Santo Antônio da Guaíba, o de Santo Antônio do Pastinho, na
Freguesia de Nossa Senhora da Purificação (Santo Amaro), matriculado em 1831, que, em
1852, empregava 95 escravos; e o de Santo Antônio da Patativa, de propriedade de Antô-
nio Calmon Du Pin e Almeida: Bert Barickman, Um contraponto baiano, Rio de Janeiro, Ci-
vilização Brasileira, 2003, p. 432.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 335
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

para a Bahia, mas certamente ele não estava incluído dentre os magnatas
do “comércio de almas”. 104 A julgar pelas informações fornecidas pelos
depoentes nas ações de liberdade, a atuação de Champloni restringiu-se a
um único desembarque, no qual os cativos teriam sido vendidos a diferentes
compradores da região. As circunstâncias trágicas de sua morte parecem
ter ficado na “memória coletiva” dos escravos residentes nas vilas de
Maraú e Barra do Rio de Contas, sendo posteriormente úteis ao curador
dos escravos, naquele contexto de efervescência abolicionista. Assim, ao
que tudo indica, Champloni pode ter sido um especulador, um daqueles
traficantes de ocasião, dado que “sendo o tráfico um negócio altamente
rendoso e especulativo, muitos foram os traficantes de última hora, homens
que, diante de uma conjuntura excepcionalmente favorável, canalizavam
boa parte de seus recursos para a aventura do comércio de homens.”105
A morte de Champloni deixou dona Leolinda em sérias dificuldades.
Além da perda do cônjuge e pai de seus filhos, ficaria responsável por hon-
rar os compromissos financeiros do marido, os quais, segundo sugerem os
autos, não eram poucos. Na verdade, as várias execuções sobre os bens e as
cobranças de muitas outras dívidas puseram-na em maus lençóis, sobretudo
porque não podia “continuar a defender-se e a seus filhos de tais coisas, já
porque levaram descaminhos os papéis comerciais e livros existentes no
escritório de seu dito marido, incendiado durante a passada rebelião dessa
Capital [Sabinada], já por lhe faltarem absolutamente os meios de poder fazer
face às graves despesas que demandam tantos são numerosos processos.” 106
Em face destas razões, e cansada de ser, a todo o instante, moles-
tada pelos credores, dona Leolinda abriu mão de todos os direitos sobre
a meação do casal. Contudo, esta estratégia não a livrou das cobranças,
pois vários estabelecimentos, como a casa de negócios Le Grusne e Cia., a
acionaram judicialmente.107 Com isto, o processo do inventário arrastou-se

104 Segundo Pierre Verger, entre os maiores comerciantes baianos envolvidos no tráfico clan-
destino estavam: Inocêncio Marques de Santa Anna, João Cardozo dos Santos, Manoel
Cardozo dos Santos, Vicente Paulo e Silva, José de Cerqueira Lima, Joaquim Pereira Mari-
nho, Manoel Joaquim D’Almeida, entre outros. Verger, Fluxo e refluxo, pp. 445-483.
105 Manolo Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e
o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX), São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 149. O au-
tor salienta que “em termos gerais a participação destes comerciantes não especializados
e aventureiros se pautava pela intensificação dos investimentos em momentos de maior
demanda e, portanto, de maior cotação dos escravos no mercado brasileiro. Era quando
eles assumiam o papel estrutural antes mencionado, que os tornava imprescindíveis ao
bom funcionamento das importações de mão de obra e da própria economia escravista”:
Florentino, Em costas negras, p. 153.
106 APEB, Inventário de Miguel Gahagem Champloni.
107 Os credores do casal chegaram a publicar conjuntamente uma advertência ao público e,
sobretudo, à praça comercial, no sentido de não fazer qualquer espécie de transação fi-
nanceira com a viúva de Miguel Champloni. Ver, por exemplo, o Correio Mercantil, no.
585, de 22 de outubro de 1838, p. 4.

336 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

até 1846, sendo a viúva chamada por diversas vezes a nomear procura-
dores, bem como a oferecer tutor a seus filhos menores, tendo em vista
que ninguém aceitava tal encargo, como atestou o bacharel Fernando
Antônio Rodrigues Navarro de Siqueira, ao solicitar a destituição de tal
encargo, “não podendo cumprir os seus deveres a favor de seus tutelados
por falta absoluta de informações sobre o estado, em que se acha aquele
casal, demandando por mil credores, visto que a viúva mãe dos menores,
em cujo poder eles se acham a elas se nega, ocultando se e não querendo
falar com quem lhe procura.”108
A desistência do tutor acena novamente para o fato de dona Leolinda
querer preservar as posses da família. Infelizmente, a documentação até
aqui analisada não nos permitiu averiguar como se deram estas execuções
judiciais. Contudo, no ano de 1878 ela ainda respondia a um processo de
sequestro de bens, devido ao não-pagamento da quantia de 45$792 réis,
referentes ao imposto da décima do sobrado velho que estava em seu
nome, localizado em Salvador, na Rua de São Pedro n° 9.109
Dona Leolinda veio a falecer, viúva, em 21 de novembro de 1887,
em sua casa, na Rua dos Barris, na freguesia de São Pedro, em Salvador.
Contava então 70 anos de idade incompletos. Após a morte de Miguel
Champloni, havia-se casado novamente com o bacharel Francisco José
Pereira de Albuquerque e, além dos filhos que já possuía com o primeiro
marido, deu à luz a Lídia, Rozentina, Arnóbio e Euthymio. Dos filhos
que tivera com Champloni, somente Leolinda havia morrido, mas, assim
como seus irmãos Lupércio e Miguel, ela havia-se casado e tido filhos.110
Apesar da ruína do pai, Miguel teve uma vida módica e exerceu o cargo de
escrivão de polícia na capital baiana, tendo-se até associado ao adivinho
Domingos Sodré, africano liberto líder de junta de alforria.111

A morte de Champloni: suicídio ou fatalidade?


Além de oferecer elementos para entendermos as estratégias abo-
licionistas adotadas nos anos finais da escravidão, os depoimentos das
testemunhas dos escravos que brigavam na justiça por sua liberdade nos
ajudam a compreender as vicissitudes de uma pequena parcela do tráfico
de escravos para a região do sul da Bahia. Como vimos, estas revelações
nos são dadas a “conta-gotas”, o que, ao invés de nos fornecer certezas

108 Ibid.
109 APEB, Seção Judiciária, Cível 2, 14/493/18, Sequestro de bens de Leolinda Rodrigues Gah-
agem, Salvador, 1875.
110 APEB, Seção Judiciária, Testamento, 07/3245/38, Testamento de Leolinda Rodrigues Pe-
reira de Albuquerque, Salvador, 1887.
111 Ver João José Reis. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e can-
domblé na Bahia do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 286-287.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 337
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

imediatas, provocam mais e mais indagações. É o que ocorre em relação


à repentina morte de Miguel Gahagem Champloni. Teria ele morrido de
morte natural, de uma fatalidade? Será que foi assassinado? Ou teria
cometido suicídio?
A documentação consultada não fornece pistas de que as duas pri-
meiras possibilidades tenham acontecido; entretanto, o fato de Champloni
não ter deixado suas últimas vontades expressas em testamento aponta
para a última hipótese. Seguindo esta premissa, podemos pensar que o
suicídio de Champloni teria sido motivado pela perseguição das autori-
dades encarregadas de reprimir o tráfico, as quais, nos últimos anos da
década de 1830, começavam a endurecer a vida dos traficantes. Conforme
assinala Luiz Viana Filho, “na Bahia, tida como um dos pontos cardeais
do tráfico, a fiscalização inglesa foi rigorosa e pertinaz. De 1830 até ao
desaparecimento completo dos tumbeiros não descansou”.112
Outra hipótese bastante provável para a inesperada morte de Champloni
seria seu endividamento junto aos comerciantes baianos que financiavam o
transporte de cargas na Baía de Todos os Santos e o embarque dos negreiros
para a África, como fazia a firma Le Grusne e Cia. Sobre esta última operação,
Manolo Florentino salienta que “uma das principais características dos negócios
negreiros era o risco. Todas as etapas de circulação dos escravos, desde as trocas
realizadas na esfera africana até aquelas que, efetuadas no Brasil, ensejavam o
consumo final da mercadoria humana, enfrentavam enormes perigos, visto ter
sido o cativo um bem altamente requerido e constantemente exposto à morte.”113
As sérias dificuldades financeiras enfrentadas por sua viúva sugerem
que Miguel devia a muitos credores e talvez tenha encontrado no suicídio
uma saída honrosa para a situação. Mas existe ainda outra motivação
possível para tal desfecho. É que, durante os desdobramentos da Sabinada,
a Cidade de Salvador foi palco de vários conflitos, que atingiram o centro
e a zona portuária. Estes espaços eram cruciais na vida de Champloni.
Primeiro, porque sua morada oficial estava na Rua da Piedade, região
castigada durante os motins, quando, segundo sua própria esposa, os papéis
de seu escritório “haviam sido incendiados”. Em segundo lugar, porque a
zona portuária, mais precisamente a Ribeira, abrigava pelo menos uma de
suas embarcações e, durante a retomada da capital pelas forças oficiais,
situadas no Recôncavo, houve uma dura interdição à circulação dos navios
na Baía de Todos os Santos, em razão do plano de sitiar os rebelados e
vencê-los pela fome. Segundo Paulo César Souza, “para bem implementar

112 Luiz Vianna Filho, O negro na Bahia, São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1976, p. 72.
113 Florentino, Em costas negras, p. 140. Sobre as múltiplas facetas do tráfico de escra-
vos, desde sua armação e financiamento até os vínculos com a complexa rede de indiví-
duos nela envolvidos no Brasil, na Europa e na África, ver o fascinante artigo de Ubira-
tan Castro de Araújo, “1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes e outros
parceiros”, reproduzido nesta coletânea.

338 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

o bloqueio, os legalistas procuraram controlar a destinação dos barcos que


transportavam farinha. Os donos eram obrigados a preencher formulários
e pagar fiança correspondente ao triplo do valor da carga. Mas haveria
sempre barcos tentando escapar ao controle, como atestam as apreensões
de lanchas com farinha.”114
Vale a pena lembrar que a farinha era um componente essencial da
dieta dos baianos e que a região em volta da baía de Camamu era a grande
fornecedora do tubérculo para Salvador e o Recôncavo; farinha que era
transportada em barcos como os de Miguel Champloni. Não obstante, não
encontrei nenhum documento que ateste a participação de Champloni
nos eventos da Sabinada. Mas o fato é que, coincidentemente ou não, seu
falecimento se deu justamente no dia 16 de março de 1838, dois dias de-
pois que a cidade de Salvador, em chamas, foi finalmente retomada pelas
forças oficiais; ocasião em que, segundo o depoimento do africano Bitu
Andá, o traficante “envenenou-se por lhe chegar a notícia que o governo
ia mandar ir ao encalce dele.” 115
Teria Miguel Gahagem Champloni atuado em favor dos revoltosos,
furando o bloqueio de Salvador para levar mantimentos para a cidade
sitiada? Teria ele ligação com algum de seus líderes? Estas são questões
a que por ora a documentação não nos permite responder. 116 Mas, seja
qual for o motivo, o certo é que a morte de Miguel Gahagem Champloni
não representou um abalo significativo no “infame comércio”, visto que
os traficantes de maior cabedal continuaram a atividade por mais de
uma década. A fluidez e até mesmo o incremento do tráfico continuavam
a reforçar a escravidão, na medida em que garantiam a vigência de uma
política de dominação, lastreada na alforria, como válvula de escape
para as tensões inerentes à exploração de novas “peças”, vindas da
África para o Brasil.

Considerações finais
Os depoimentos contidos nas ações de liberdade aqui discutidas
fizeram parte das estratégias empreendidas pelo curador Abdon Ivo de
Moraes Vieira, visando à libertação de seus curatelados. Entremeados de
verdades e contradições, estes depoimentos foram duramente criticados
pelos senhores e seus defensores legais, que afirmavam que estavam
assentados em acontecimentos inexistentes e falsamente articulados.

114 Paulo César Souza, A Sabinada. A revolta separatista da Bahia, São Paulo: Círculo do Li-
vro, 1987, p. 66.
115 APEB, Ação de liberdade dos crioulos Felizardo, Elisiária e Cândida.
116 Vale lembrar que Hygino Pires Gomes, um dos chefes militares da Sabinada, era homem
ligado ao comércio de escravos, porquanto “havia muitas vezes transportado pela Costa
escravos e dinheiro falso”. Souza, A Sabinada, p. 98.

MEMÓRIAS DO TRÁFICO ILEGAL DE ESCRAVOS NAS AÇÕES DE LIBERDADE: BAHIA, 1885-1888 339
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Nestas falas, além dos ressentimentos quanto à tática empreendida pelos


escravos e seus curadores, nos são reveladas as alianças travadas pelos
escravos e abolicionistas, visando ao fim do cativeiro.
Não obstante, é possível perceber a riqueza subjacente a tais rela-
tos. Em muitas situações, os depoimentos corroboravam experiências
realmente vividas e relações longamente construídas, que, como no caso
da escrava Constança e do africano João Nagô, tinham sua origem ainda
em solo africano, no momento de sua captura pelos traficantes. Noutras
ocasiões, a confirmação das versões elaboradas pelos advogados e cura-
dores representava a possibilidade de conseguir o número suficiente de
testemunhas para uma futura ação de liberdade para si ou para um ente
querido, tal como fizeram o escravo Aprígio e a africana Angélica.
Conforme sugere Pollak, podemos pensar que, nos casos aqui dis-
cutidos, os escravos e suas testemunhas recordaram suas experiências,
atendo-se sobretudo àquilo que podia favorecer suas pretensões de
liberdade. Ao apoiarem-se na lei de 7 de novembro de 1831, ainda que
décadas depois de sua aprovação, os escravos continuavam a lutar para
voltar a viver “sob o sol da liberdade”117 em que um dia haviam nascido,
na Costa africana. Ainda que tardiamente aplicada, esta lei foi para estes
e outros indivíduos escravizados a real possibilidade de justiça. Nestes
casos, as duras memórias da travessia, cultivadas e transmitidas no
interior da família escrava, encontraram o lugar e o “momento propício
para serem expressas”. 118 Naqueles conturbados anos da década 1880,
elas efetivamente tinham por que serem reavivadas...

117 Expressão usada na petição inicial da ação de liberdade movida pela africana Angélica e
seu filho Bernardo. APEB, Ação de liberdade de Angélica.
118 Pollak, “Memória”, p. 5.

340 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


PARTE IV
tráfico interno
CAPÍTULO 11

reivindiCAçÕes e resistênCiA: o não dos AfriCAnos


livres (são pAUlo, séCUlo xix) 1
Enidelce Bertin

ApresentAção
Resultado da ação britânica contra o tráfico de escravos no século
XIX, os africanos livres viveram as contradições e as tensões daquele
momento. Embora resgatados do tráfico de escravos, tiveram em sua
experiência cotidiana estreita relação com a escravidão, não apenas
porque os lugares de trabalho e a sociabilidade nas cidades muitas vezes
eram comuns a escravos e libertos, mas também porque, frequentemente,
eram vistos como desprovidos sequer de uma porção de liberdade pelos
administradores públicos e pelas pessoas que arrematavam os seus ser-
viços. Entretanto, acreditando na singularidade de sua condição, esses
africanos colocaram-se diante das autoridades como indivíduos livres, o
que se chocava frontalmente com a prática dos seus tutores.
Cabe considerar que apenas estavam enquadrados no perfil de africanos
livres aqueles cuja embarcação houvesse sido apreendida e julgada ilegal
pela comissão mista instalada no Rio de Janeiro, além dos considerados
pelas autoridades judiciais ilegalmente introduzidos no país. A população
de africanos livres no Brasil foi estimada em cerca de 11 mil indivíduos,
o que representa ínfima porção quando considerados os cerca de 500 mil
escravos importados após a proibição do tráfico em 1831.2
Atendendo ao acordo luso-britânico de 1815 para o fim do tráfico,
cujos pontos foram ratificados na Convenção de 1817, o Alvará de 26 de
janeiro de 1818 estabelecia “penas para os que fizerem comércio proibido

1 Esta é uma versão revista e atualizada do capítulo 4 do meu livro Os meias-caras. Afri-
canos livres em São Paulo no século XIX , Salto, SP: Editora Schoba, 2013, ainda inédito
quando este texto foi publicado pela revista Afro-Ásia.
2 Beatriz G. Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, in Silvia H. Lara e Joseli M. N. Men-
donça (orgs.), Direitos e justiças no Brasil (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), p. 131. 3

343
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de escravos” e encaminhamento dos africanos importados ilegalmente,


“por não ser justo que fiquem abandonados”, ao Juízo da Ouvidoria, que os
repassaria para o serviço público ou para aluguel por particulares, servindo
como libertos por quatorze anos.3 Cumprido esse prazo, os africanos livres
podiam receber a ressalva de serviços, ficando, porém, em depósito, sob
os cuidados do Estado, até que fossem novamente arrematados, de acordo
com as novas determinações legais do Império (Lei de 1831, Avisos de
1834 e 1835). Portanto, desde 1818 os africanos livres passaram a ser
“protegidos” contra abusos através da tutela e, tal como para os menores
e órfãos, através da educação para e pelo trabalho.
Não obstante a intenção de amparo aos africanos livres, o que foi
verificado é que a proteção oferecida estava relacionada à perspectiva
de manutenção da escravidão e não o contrário. Porém, para uma parte
dos africanos tutelados, foi possível identificar a resistência cotidiana ao
domínio representado pela custódia, bem como a incessante busca pela
liberdade efetiva, ainda que fosse através da simples ênfase de que não
eram escravos, tampouco libertos. Na realização dessa tarefa de recuperar
uma luta insistente, foram desvendados os intensos laços de solidariedade
mantidos entre eles, bem como a preservação da memória de uma experiên-
cia histórica comum, muitas vezes alinhavada desde a travessia atlântica.
Portanto, a abordagem deste capítulo está centrada no entendimento
dos africanos livres como sujeitos históricos, inseridos nas relações es-
cravistas e atuantes no sentido da resistência à escravização latente. O
conceito de resistência aqui utilizado considera as diferentes formas de
ação escrava, seja o enfrentamento direto, sejam as negociações, visando
não somente ao rompimento das relações de dominação, mas também a
espaços para melhor sobrevivência no interior mesmo da escravidão. Ou
seja, o entendimento do protagonismo dos escravos – nas diversas formas
pelas quais eles elaboraram e efetivaram suas ações na vida cotidiana –
amplia a compreensão da resistência dos africanos livres.4

Maria e a busca incessante da liberdade


Em meio às pilhas de ofícios guardados no Arquivo do Estado de São
Paulo, foi possível encontrar os africanos livres nas correspondências
mantidas entre os administradores de estabelecimentos públicos e a

3 Collecção das Leis do Brazil de 1818. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, pp. 7-10.
4 Silvia H. Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750-
1808), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão: tra-
balho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888, São Paulo: Brasiliense, 1987; João
José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; e Carlos Eugênio L. Soares, A capoeira escrava e outras
tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Campinas: Ed. Unicamp, 2004.

344 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

presidência provincial, e entre esta e a autoridade judicial. Assim, nessa


diversificada documentação, localizamos partes da trajetória de vida de
muitos africanos livres de São Paulo. Dentre elas, destacamos primeira-
mente a história de Maria, por ser reveladora das condições de opressão
enfrentadas ao longo de mais de vinte anos de serviços prestados em
estabelecimentos públicos, e igualmente impressionante pela resistência
incansável dessa africana livre, mãe de quatro filhos.5
Como em um quebra-cabeça, recuperamos a história de Maria
juntando ofícios dos administradores públicos enviados à Presidência
da Província de São Paulo no período 1835-1864. Embora sejam muitas
as lacunas, a ausência de algumas peças não impediu a configuração do
viver dessa africana na luta para permanecer junto de seus filhos e pela
sua liberdade. O seu caso é emblemático das condições a que estavam
submetidos os africanos livres nos estabelecimentos públicos, porém
revela, apenas em parte, o drama de quem, sabendo-se livre, lutava para
provar a liberdade, os bons costumes e a capacidade de autonomia.
A necessidade de provar a liberdade existia em função da grande
desorganização administrativa a respeito dos africanos livres. Após terem
sido resgatados do tráfico ilegal, eram informados da nova condição e
colocados sob os cuidados do governo, que os usava nas obras públicas,
ou os arrematava a particulares por determinados períodos de tempo.
Além de serem informados oralmente, os africanos livres recebiam um
pingente, a ser usado no pescoço, no qual constava a nova condição.
Contudo, ao longo do tempo, com a retirada ou a perda desses registros
escritos, os africanos livres tiveram que encontrar outros meios para
provar sua condição.
O controle das distribuições de africanos livres pelas províncias era
muito falho, o que facilitava os abusos e as irregularidades. Também os
diversos dispositivos legais não lhes eram favoráveis porque impunham
diferentes condicionamentos para a efetivação da emancipação, entre
eles o conhecimento de um ofício e os bons costumes. Somente em 1853,
com o Decreto de 28 de dezembro, a emancipação foi garantida a quem
provasse o cumprimento de pelo menos quatorze anos de trabalho para
arrematantes particulares.6 Antes disso, a emancipação era parte da re-
tórica, já que a tutela e o trabalho compulsório freavam as expectativas
de plena liberdade e autonomia dos africanos livres. Conforme estudo

5 O caso da africana livre Maria também foi abordado no artigo “Uma ‘preta de caráter fe-
roz’ e a resistência ao projeto de emancipação”, in Maria Helena P. T. Machado e Celso T.
Castilho (orgs). Tornando-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de aboli-
ção (São Paulo: Edusp, 2015), pp. 129-141.
6 Os africanos que serviram em estabelecimentos públicos tiveram o direito à emancipação
apenas em 1864, com o Decreto no. 3.310 de 24/09/1964.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 345
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de Beatriz Mamigonian sobre o Rio de Janeiro, 7 cerca de 44% dos que


serviram a particulares morreram antes de serem emancipados, muitos
com mais do que os quatorze anos de serviços exigidos, enquanto cerca
de 30%, distribuídos a instituições públicas, receberam sua emancipação
depois de 20 a 30 anos de serviços. Mesmo após cumpridos os termos dos
contratos, a emancipação efetiva foi protelada e muitos foram transfe-
ridos para localidades distantes do Império, ou colocados sob novos e
desvantajosos contratos de trabalho.
Contudo, embora a condição de africano livre fosse envolvida em
grande precariedade, milhares de homens e mulheres se mobilizaram em
busca da efetiva liberdade. Maria é apenas um desses casos.
Foi remetida pelo Juízo de Órfãos de Santos à Fazenda Normal,
localizada em São Paulo, em março de 1837. 8 Três meses após a sua
chegada àquele estabelecimento agrícola, o nome de Maria já constava
em ofício do administrador, solicitando sua entrega ao Juízo de Órfãos
da Capital, juntamente com outra, de nome Joaquina, com a justificativa
de que, tendo elas “fugido duas vezes e não querendo trabalhar [...], só
servem de prejuízo e estando avisadas a fugir, corre-se o risco de alguma
vez não tornarem a aparecer”.9 Aqui já se delineava a marca da africana
livre Maria, que a acompanharia por muitos anos: a resistência através
da fuga e da insubordinação.
Entregue ao Juízo de Órfãos, Maria foi arrematada, em agosto de 1838,
por Ana Francisca da Anunciação, com um contrato anual para serviços
particulares, por 4 mil réis. O baixo valor oferecido fora justificado pelo
fato de Maria possuir dois filhos pequenos. Seis meses depois, porém, a
arrematante solicitava a rescisão do contrato, alegando “[...] não tirar lucro
algum de semelhante arrematação e nem jamais suportar a altivez e bem
pouca obediência com que de dia em dia se ia portando a dita africana
[...]”.10 Enquanto aguardava nova arrematação, Maria empreendeu outra
fuga, agora para a Fazenda de Santa Ana, de onde já havia fugido anterior-
mente, “[...] dizendo às pessoas que a interdiam que se assim procedia era
só por se livrar outra vez de serem arrematados os seus serviços, quando

7 Beatriz G. Mamigonian, “To Be a Liberated Africans in Brazil: Labour and Citizenship in


the Nineteenth Century” (Tese de Doutorado, University of Waterloo, 2002), cap. 5.
8 Também chamada de Fazenda Santa Ana, era um estabelecimento agrícola, localizado à
margem direita do rio Tietê, distante do centro urbano. Em 1838, passou a ser sede do Se-
minário dos Educandos, outra instituição pública que utilizava os serviços de africanos
livres.
9 Arquivo do Estado de São Paulo (doravante AESP), CO 875, Ofício de Alexandre Vandelli ao
Presidente da Província, Bernardo José Pinto, 10/06/1837.
10 AESP, CO 878, Ofício do Juiz de Órfãos interino ao Presidente Venâncio José Lisboa,
17/06/1839.

346 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

devia ser antes deixada para cuidar da criação de seus dois filhos [...]”.11
A arrematação de africanos livres por particulares era feita mediante
contrato, conforme as Instruções de 29 de outubro de 1834, que estabe-
leciam as obrigações de sustentar, cuidar e pagar um módico salário aos
arrematados. Este, contudo, não era pago diretamente ao africano livre,
mas ao seu curador, que deveria depositar as quantias no Juízo de Órfãos.
Porém, o não recolhimento dos salários foi irregularidade comum. Nas
obras públicas os africanos livres podiam receber pequenas gratificações,
embora os informes de despesas dos estabelecimentos não comprovem
que o dinheiro efetivamente chegasse às mãos dos serventes.12
Notamos na transcrição acima uma importante oposição: Maria,
sabendo-se africana livre, resiste à escravidão disfarçada e à possibi-
lidade de separação de seus filhos; 13 a arrematante, por sua vez, não
aceita a insubordinação e a altivez da africana, porque não a vê senão
como escrava. Na documentação analisada, em diferentes momentos, os
africanos livres foram chamados de escravos pelas autoridades, num ato
falho muito significativo.
Cumprindo ordem do governo, Maria passou a servir no Seminário
de Santa Ana a partir de março de 1840. Chegou com seus dois filhos
pequenos, mas, na semana seguinte, o mais novo faleceu. Duas semanas
depois de sua chegada, Maria empreendeu a primeira fuga do Seminário,
carregando o filho mais velho. Recapturada, foi reenviada ao seminário, de
onde voltou a fugir outras vezes.14 Contrariado com a ordem do presidente
para aceitar Maria no seminário, o diretor Candido Caetano Moreira não
poupou virulência nas palavras, quando se referia a ela, delineando as
agruras cotidianas enfrentadas pelas africanas livres. Observemos o que
o diretor oficiou ao presidente:
Esta negra, Exmo Sr, muito incômodo deu no tempo da
extinta Fazenda Normal ao administrador Vandelli,
segundo me informam dois negros que cá existem e [que]
foram desse tempo; estava quase a maior parte do tempo
fugida, tem já esse rico dote por hábito, é má negra na
extensão da palavra, atrevida, de má língua, possuída da
liberdade, um precipício, não tem por onde se lhe pegue, é
só para dar trabalho e inquietação de espírito para o que
serve, eu por ser súdito a mandei recolher. V.Exa querendo

11 AESP, CO 878.
12 Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.
13 A expressão “escravidão disfarçada” é de Suely Robles R. de Queiroz, Escravidão negra em
São Paulo. Um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX, Rio de Ja-
neiro: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 63.
14 AESP, CO 879, 17/03/1840. Sobre o cotidiano de trabalho no interior dos estabelecimen-
tos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras, pp. 51-104.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 347
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

pode informar-se do sr. dr. juiz de órfãos, que ele dirá a


V.Exa a mesma verdade: eu não necessito dela para cousa
alguma, com três africanos que cá estão servindo vindo
contente com eles, e me parece, que eles andam comigo,
porque cumprem seus deveres e são negros de vergonha
e sem maus vícios presentemente, a africana nada quer
fazer, só o que quer é comer o feito e estar com o filho nos
braços e se apertar por ela alguma coisa fazer, foge, ela já
está bem conhecida e por isso ninguém quer arrematar
seus serviços, acha-se grávida de seis para sete meses,
que é para o que, segundo me parece tem serventia,
daqui a dois ou três meses deve esperar-se por mais este
aborrecimento, incômodo, despesa e estorvo. É o quanto se
me oferece levar ao conhecimento de V. Exa. quem Deus
guarde.15

Desabafo, eloquência ou preocupação com o potencial risco à ordem


escravista? Como é que, em tão pouco tempo, Maria pôde produzir tamanha
repugnância no diretor? Interessante notar que parte da opinião do diretor
foi influenciada por dizeres dos dois negros que já haviam convivido com
Maria. Ainda assim, para ele o problema dela estava em ser atrevida, “de
má língua, possuída da liberdade”, além da preferência por trazer seu
filho ao colo, ou seja, sua capacidade para não acatar ordens foi decisiva
para o parecer do administrador. Mas o que significaria ter má língua?
Talvez porque Maria reclamasse melhor condição, talvez porque acusasse
o estabelecimento pela morte de seu filho caçula, talvez porque sempre
lembrasse ao administrador que não era uma escrava. Essa parece ser
a questão central, considerando a comparação que foi feita com outros
africanos do estabelecimento, os quais seriam “negros de vergonha e
sem maus vícios”, ou seja, submissos, voltados ao trabalho e à obediência.
Nesse sentido, a expressão do diretor revela muito do significado da tutela
imposta aos africanos livres. Inserida no contexto de questionamento
internacional do tráfico de escravos e da escravidão, a tutela do Estado
sobre os africanos livres funcionava como meio de controle do acesso à
liberdade ou à emancipação e atendia ao encaminhamento lento e gradual
da abolição.
E o que dizer da referência à gravidez de Maria? Sugestiva a opinião
de que o rebento que estava por nascer representaria estorvo e despesa
porque afastaria a mãe do trabalho, deixando de sê-lo quando ele próprio
já pudesse ser usado nos serviços. O irônico descontentamento com a
gravidez da africana, que, segundo ele, era para o que tinha “serventia”,
sugere uma aproximação com o ideal do domínio escravista patriarcal, que
definia as escravas como lascivas. Maria não era casada, mas os quatro

15 AESP, CO 879, p. 1, doc. 37A, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente
Manoel Machado Nunes, 04/04/1840.

348 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

filhos que gerou nos informam sobre a existência de uma relação afetiva
que, provavelmente, era mantida fora do seminário. Contudo, é intrigante
que, em nenhum momento, tenha sido feito qualquer referência ao pai
dos filhos da africana.
Na diversidade dos papéis avulsos analisados, um deles nos chamou
a atenção e pode iluminar um pouco os encontros mantidos por Maria. Na
lista de serventes do seminário, de março de 1855, constam os africanos
livres José, Sebastião, Antonio e Joaquina. Em abril desse mesmo ano, José
faleceu, sendo o fato informado ao presidente da província pelo diretor
Caetano Moreira. Em meio ao texto, o diretor reportava a descoberta de
uma “caixinha velha, que estava fechada debaixo da cama do falecido”. 16
Após convocar um vizinho para testemunha, empreendeu a abertura do
pequeno cofre, cuja chave era guardada pelo africano Sebastião, compa-
nheiro de José. Para surpresa dele,
achou-se 13$220 rs, 8$000 rs em moeda papel e 5$220 rs
em cobre, tudo em um embrulho, dizendo-nos o africano
Sebastião pertencer este dinheiro ao falecido, achando-se
mais 15$176 rs em cobre em dois embrulhos, esta soma
declarou o mesmo Sebastião que pertencia a uma africana
de nome Maria que se acha empregada na Casa de Correção
desta cidade.

Sebastião teria declarado que sabia a quem pertencia cada um dos


valores, “com certeza pela grande amizade que tinha ao falecido que tudo
lhe contava de sua vida”. Tornou-se o elo que procurávamos ao declarar
“que a dita africana quando foi removida deste estabelecimento para
outro destino, deixara o dinheiro acima mencionado no poder do falecido
para quando carecesse então vir por ele, mas que até o presente nunca
procurou”.
Maria havia saído do seminário em 1851 e deixado com José suas eco-
nomias. Mas por que com José? Este fato, juntamente com a escolha desse
nome para um de seus filhos, indicaria que José fosse seu companheiro,
o pai de seus meninos? Se fosse isso, por que Maria não permaneceu no
seminário? As dúvidas persistem, mas nos dão uma outra inserção para
aquela africana, diferentemente do que nos sugeriram os administradores
em seus virulentos relatos sobre a “má negra”. A localização do dinheiro
de Maria também sugere que a africana livre tinha meios de ganhar seus
trocados, como se verá mais adiante.
A historiografia social já confirmou que a organização familiar dos
escravos e dos libertos não se pautava necessariamente pelas normas
convencionais, nas quais, por exemplo, as uniões deveriam ser estáveis,

16 AESP, CO 901, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Antonio Sa-
raiva, 04/04/1855. As citações seguintes são parte desse mesmo documento.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 349
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

com o casal dividindo o mesmo teto. Pelo contrário, as relações familiares


foram marcadas pelos papéis informais de homens e mulheres, os quais
delinearam sociabilidades e meios de sustento. Contudo, os poderes
públicos interpretaram como sinais de desordem a mobilidade gerada
no desempenho de tais papéis.17
A documentação analisada traz uma lacuna de 1840 até 1851, quando
Maria reapareceu nos ofícios reclamando sua emancipação e tratando
da guarda dos filhos, que já eram três: Antonio, José e Benedito. Naquele
momento, continuava servindo no seminário, quando o diretor Candido
Caetano Moreira enviou ofício ao presidente Nabuco de Araújo, comentando
um requerimento feito pela africana. Embora esse documento não tenha
sido localizado, percebe-se, pelas entrelinhas do ofício, que Maria havia
fugido e, por intermédio do bacharel Antonio Joaquim Xavier da Costa,
reivindicava sua emancipação. O diretor foi enfático ao qualificar Maria:
Sendo a suplicante naturalmente vadia e preguiçosa e
ainda mais pela certeza de não estar sujeita a castigos,
forçoso me tem sido de usar de todos os meios brandos, que
adequados sejam a conseguir que preste ela os serviços a
que é destinada, doendo-me profundamente que pessoas
mal intencionadas julguem-se autorizadas, sem legítimo
fundamento alcançar pérfidas insinuações sobremaneira
com que me hei portado para com a suplicante, que não tem
absolutamente motivo algum de queixa e antes deve-me e
a minha família o melhor tratamento possível.18

Ainda que se desconheça de que insinuações o diretor se defendia,


ele deixou claro que coagia Maria ao trabalho e que considerava que o
bom tratamento oferecido à africana não dava motivo para as queixas
que ela fazia. A posição dele é condizente com o significado do paterna-
lismo nas relações escravistas, segundo o qual a gratidão do escravo era
importante recurso de autoridade senhorial, na medida em que, por meio
dele, o escravo e o liberto eram mantidos em submissão, fortalecendo a
condição do senhor ou, nesse caso, do administrador.19
A queixa do diretor era também dirigida ao bacharel defensor de
Maria, que, anteriormente, havia atuado em favor de João, outro africano
do Seminário. Para o diretor, a ajuda daquele advogado estimulava a in-
subordinação, que era sempre “origem de sérios e perigosos resultados.”

17 Maria Cristina C. Wissenbach, Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em


São Paulo (1850-1880), São Paulo: Hucitec, 1998; E Maria Odila Leite da Silva Dias, Quoti-
diano e poder em São Paulo no século XIX, São Paulo: Brasiliense, 1995.
18 AESP, CO 894, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Na-
buco de Araújo, 20/09/1851.
19 Enidelce Bertin, Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação, São Paulo:
Humanitas, 2004, pp.138-139.

350 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

20
Portanto, a sua preocupação com a desobediência de Maria possuía
uma explicação política, calcada no controle sobre os demais africanos.
“Este exemplo influi muito nos ânimos dos outros africanos e em virtude
dele é que a suplicante repentinamente evadiu-se deste Seminário e foi
procurar apoio do mesmo indivíduo, que favorecera aquele João, e que
parece disposto, perfaz e pernefaz a tirar dali todos os africanos e pô-los
isentos de qualquer ônus.” 21 O diretor desqualifica a capacidade de Maria
ao sugerir que havia sido o exemplo de outros africanos e a influência
do advogado que fizeram com que ela requeresse sua liberdade e não a
sua intenção e disposição. Naquele mesmo dia Maria foi recapturada e
devolvida ao seminário pela polícia.22
Alguns dias depois o curador dos africanos livres emitiu parecer ao
juiz de órfãos sobre o caso e negou que já houvesse queixa da africana
durante os anos em que estava à frente da curadoria. 23 A ausência de
ocorrências nos oito anos de sua administração coincide com a lacuna
encontrada nos ofícios, que compreendem os anos da década de 1840.
Poderíamos questionar se isso corresponderia a um período de acomoda-
ção de Maria, de falta de apoio de terceiros, ou, então, simplesmente ao
extravio dos registros de possíveis queixas envolvendo essa africana livre.
Em outubro de 1851, ofícios de diferentes autoridades citaram um
requerimento de Maria, mas, infelizmente, também esse pedido não foi
localizado, e nem foi possível confirmar se era o mesmo documento apre-
sentado no mês de setembro, comentado acima. Contudo, há indícios de
que se tratava de uma nova solicitação da africana, a considerar que, em
9 de outubro de 1851, depois de servir por onze anos no seminário, sob
as ordens do mesmo diretor, Maria foi transferida para a Santa Casa, em
cumprimento a ordem do presidente Nabuco de Araújo. 23 Tão marcante
quanto a disposição de enfrentamento de Maria era sua insistência em
agir pela via institucional, reclamando por direitos que julgava possuir
enquanto tutelada. Sem dúvida a participação do advogado, apontando
irregularidades, foi importante nessa empreitada de Maria, contudo, isso
não deve minimizar a condição da africana como sujeito de sua história
que quer mudanças e age para isso.

20 AESP, CO 894, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Na-
buco de Araújo, 20/09/1851. A preocupação do administrador com a atuação do advogado
de Maria é uma importante pista a ser seguida por novos estudos sobre a ação desses “pro-
tetores” em São Paulo muito antes de Luiz Gama.
21 AESP, CO 894.
22 AESP, CO 894, doc. 20R, Ofício do Diretor Candido Caetano Moreira ao Presidente José
Thomaz Nabuco de Araújo, 22/09/1851.
23 AESP, CO 893, doc. 3E, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azeve-
do Marques ao Juiz de Órfãos da Capital, 30/09/1851. 23 AESP, CO 904, Inventário do Semi-
nário, 24/07/1856.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 351
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O diretor do Seminário dos Educandos, em ofício ao presidente da


província, em 7 de outubro de 1851, nos dá dicas sobre o conteúdo desse
requerimento e apresenta sua visão (ou versão) sobre a vida da africana
no seminário:
Avançando a suplicante em seu dito requerimento,
proposições absolutamente falsas e que de algum
modo podem ofender minha reputação, permita V.Exa
que repelindo-as com toda a energia, faça algumas
considerações a respeito. A suplicante jamais teve
necessidade de tirar esmolas para si ou para seus
filhos, porquanto, além de ser a cozinheira deste
estabelecimento, e por isso com a possibilidade de viver
em fartura, era socorrida a custa da Fazenda Provincial
com o vestuário necessário tanto para os dias de serviço,
como para os dias santos, tendo de mais a faculdade de
fazer suas plantações nas horas vagas e licença para ir
vender a colheita nos domingos e dias santos. Os filhos da
suplicante sempre foram abundantemente alimentados e
vestidos regularmente. Parece-me, pois que o único feito
de molestar-me é que impeliu a suplicante, ou antes seu
protetor, para fazer observações tão descomedidas, que
seguramente serão, por inverossímeis, desprezadas por
V.Exa. Não sei qual a utilidade que resultará a suplicante
de ter consigo seus filhos, podendo asseverar que esses
rapazes, hoje bem educados e tratados, irão ser vítimas
da miséria se forem entregues a uma preta de caráter
feroz e absolutamente incapaz de dar-lhes o desejável
tratamento [...].24

Maria reclamava, através de seu advogado, das condições a que


estavam submetidas ela e sua família, reivindicando a transferência do
estabelecimento. Não deixa de ser contraditório, se não irônico, o parecer
do diretor dizendo que a reclamante e seus filhos tinham a possibilidade
de viver em fartura e que estes, educados e bem tratados, seriam vítimas
da miséria se fossem entregues à mãe. Aparentemente, Maria possuía
espaços de autonomia na mobilidade espacial e nas vendas de suas
quitandas – que podem ser a explicação para o dinheiro que havia sido
localizado com Sebastião, conforme visto anteriormente – mas o que
incomodava o diretor era sua insubmissão, sua indisposição constante
para o trabalho e para a obediência.
Há aqui, portanto, novamente, uma desqualificação da capacidade da
africana. Primeiramente, ela foi considerada incapaz de reivindicar por
si mesma, depois, incapaz de sustentar os filhos. Para o diretor, as roupas
e a horta própria se convertem em incentivos com vistas à subordinação

24 AESP, CO 894, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 07/10/1851.

352 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

e deveriam ser valorizados pela africana. Porém, parece que o artifício,


tão largamente usado na sociedade escravista de conceder espaços de
autonomia visando ao controle, não funcionou com Maria.
A historiografia da escravidão evidenciou que, como parte atuante
nas suas relações internas, o escravo interpretava as concessões como
produto de sua agência e resistência. O senhor, por sua vez, as reinterpre-
tava como estratégia para a ordem.25 Isso não vale apenas para o escravo,
mas para o subalterno em geral naquela sociedade. Nesse sentido, a ação
cotidiana de desobediência por parte de Maria resultava dos significados
que ela dava à sua condição de africana livre, assim como da solidariedade
construída no seu grupo de convívio.
Em parecer sobre o caso, o curador dos africanos defendeu que,
independentemente do destino que fosse dado à mãe, para os filhos
deveria ser nomeado um tutor. Não obstante a citação da legislação
portuguesa (doutrina de Correia Teles, Digesto Português, Tomo 2, art.
609), que definia a mãe como tutora dos filhos naturais ou espúrios que
não estivessem debaixo da obediência de pai, o curador entendeu que
“neste caso especial não é ela aplicável”.26 Além de o curador dos africanos
livres não justificar por que Maria não poderia ser tutora de seus filhos,
ainda alertava o juiz de órfãos para que não nomeasse “certos oficiosos
advogados de africanos que sob a capa de filantropia os iludem e seduzem
para aproveitar-lhes os serviços”.27
No dia seguinte, o juiz de órfãos confirmava ao presidente o envio
de Maria à Santa Casa, porém justificava a não autorização para que
seus filhos a acompanhassem, conforme havia sido ordenado. Alegava
que seus filhos eram brasileiros, o mais velho com 14 anos de idade, os
quais estavam sujeitos à legislação nacional sobre os aqui nascidos. Nesse
sentido, o juiz era favorável à nomeação de tutor para os menores, defen-
dendo também “mandar ensinar ofícios lucrativos que para o futuro os
pusesse em estado de não serem [pesados] ou perigosos para a sociedade
em que tem de viver”.28 Com esse argumento, o juiz explicitava aquilo
que o curador não havia feito. Maria não poderia ficar com seus filhos
porque, como potenciais fontes de problemas futuros para a sociedade,
deveriam ser controlados através do aprendizado de ofícios e da separação
da mãe. Porém, ainda assim, restou-nos a dúvida sobre a origem desse

25 Reis e Silva, Negociação e conflito; Stuart B. Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bau-
ru: Edusc, 2001.
26 AESP, CO 894, 25C, Ofício do Curador dos Africanos Livres, Manoel Eufrázio de Azevedo
Marques, ao Juiz de Órfãos da Capital, 10/10/1851.
27 AESP, CO 894, 25C.
28 AESP, CO 894 25B, Ofício do Juiz de Órfãos José Antonio Vaz de Carvalho ao Presidente
José Thomaz Nabuco de Araújo, 11/10/1851.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 353
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

risco em potencial, oferecido pelos menores: o problema estava no fato


de viverem sem o pai ou de serem filhos de uma “preta de caráter feroz”?
Ironia à parte, as autoridades acabaram expondo que a questão da tutela
dos menores pobres estava tomada pela ideologia do controle social.
Ao terminar seu ofício ao presidente, o juiz de órfãos pedia que
se protegessem os menores de uma “sorte pior que a dos verdadeiros
escravos”. Não obstante tais argumentos, alguns dias depois o diretor do
seminário informava a transferência de Maria, juntamente com os filhos,
para a Santa Casa, segundo ordem presidencial.29 Não há dúvida de que
essa autorização do presidente fora uma vitória de Maria; afinal, ela pôde
livrar-se do domínio exercido pelo diretor do Seminário dos Educandos
e aindamanter a família reunida.
Em 1852, agora a serviço da Santa Casa, Maria e seus filhos continua-
ram resistindo à coerção. Em 22 de abril daquele ano, o provedor, barão
de Iguape, informou ao presidente Nabuco de Araújo a morte de Antonio,
um dos filhos de Maria, e aproveitou para pedir a troca da africana livre
por outra, “visto que além de não prestar ali serviço algum, é de péssima
qualidade tanto a mãe como os filhos, que com seus maus exemplos,
principiam a corromper escravos do Hospital até aqui sofríveis servidores
[...].”30 A resposta da Presidência foi positiva quanto à troca, mandando
Maria para a Casa de Correção.
Quatro anos mais tarde, Maria insistia em resistir e, confiante de
que sua condição de africana livre lhe reservava melhor sorte, e que
seus dois filhos estavam ameaçados, apelou para o escrivão, que, por
sua vez, apresentou o caso ao juiz de órfãos, reforçando que “esta infeliz
tem prestado serviços por mais de vinte anos e seus filhos, que não são
africanos, têm acompanhado a infeliz mãe nos rigorosos serviços daquela
casa, sem aprenderem ao menos um ofício. Ela veio ontem ter comigo e
pedir a proteção do perigo.”31
A estratégia parece ter surtido efeito, uma vez que foi questionada a
ausência de tutores para Benedito e José, que, sendo brasileiros, tinham
a seu favor as leis sobre menores órfãos. 32 Confirmada a nacionalidade
brasileira dos menores, foram eles entregues a um tutor, ainda naquele
ano de 1856, sob contratos de soldada. 33 Contudo, pudemos constatar

29 AESP, CO 894 20G, Ofício de Candido Caetano Moreira ao Presidente José Thomaz Nabuco
de Araújo, 14/10/1851.
30 AESP, CO 896, Ofício do Provedor Barão de Iguape ao Presidente José Thomaz Nabuco de
Araújo, 22/04/1851.
31 AESP, CO 903, Relato do Escrivão de Órfãos Joaquim Florindo de Castro ao Juiz de Órfãos,
14/08/1856.
32 AESP, CO 903, 03/10/1856.
33 AESP, CO 903, Ofício do Juiz de Órfãos, Francisco da Costa Carvalho, ao Presidente Fran-
cisco Pereira de Vasconcelos, 18/12/1856.

354 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

que os contratos foram seguidamente rompidos pelos menores porque


seus tutores os tratavam como escravos, confirmando a preocupação
de Maria. 34
Retomando a trajetória de Maria, em janeiro de 1857, agora empre-
gada na Casa de Correção, ela entrou com um processo de justificação
para emancipação, ou seja, apresentou testemunhas para provar que
tinha condições de se reger e de se emancipar.35 Curiosamente, a primeira
testemunha foi Candido Caetano Moreira, ex-diretor do seminário, que
declarou que a africana possuía “costumes laboriosos e não tem vícios”,
e que, além disso, sabia “cozinhar porque era cozinheira efetiva do Se-
minário de Santa Ana e bem do que lavava roupa dos escravos e tinha
tempo para fazer suas quitandas particulares”.36 Note-se que a opinião de
Caetano Moreira sobre Maria mudara radicalmente depois de dezessete
anos. Não sabemos o porquê.
Apesar de justificar suas qualidades para viver por si, Maria não
conseguiu apresentar a principal exigência do Decreto de 1853, qual seja,
a prova de serviços a particulares por quatorze anos. Dessa forma, o juiz
considerou improcedente a justificação apresentada e Maria continuou
a prestar serviços como tutelada na Casa de Correção.
Mostrando-se determinada a resistir às condições que lhe foram
reservadas, Maria persistiu buscando a emancipação. Assim, em 1858,
novamente a reclamou. O juiz reapresentou ao presidente seu pedido e
cobrou ampliação na cobertura dos direitos aos africanos livres. A resposta,
anotada na margem do documento, era a última esperança da africana: o
presidente da província levaria o assunto ao imperador.36
Sem sabermos o desfecho de sua história, Maria desaparece de nossos
olhos. Apesar disso, pudemos perceber o quanto era difícil a situação
dos africanos livres, principalmente daqueles que, como ocorria com
ela, só haviam prestado serviços em estabelecimentos públicos. Sem
um substrato legal que defendesse sua liberdade (pelo menos até 1864),
Maria acabou por depender da vontade do imperador para alcançar sua

34 AESP, CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos de Tutoria 1806-1866, José e Benedito; AESP,
CO 5453, Juízo de Órfãos, Autos Cíveis de Curatela e Soldada, 1856, Benedito; AESP, CO
5443 Cx. 113, doc. 36, Autos Cíveis de Justificação, Benedito, 1860. Sobre a atuação dos
juízes de órfãos em relação ao trabalho compulsório infantil, ver Gislane Campos Azeve-
do, “A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil”, His-
tória Social, no. 3 (1996), pp. 11-36.
35 AESP, CO 5367, Autos cíveis de justificação para emancipação, Maria, 1857. O direi-
to à emancipação dos africanos livres estava previsto pelo decreto n. 1303, de 28/12/
1853. Porém, restringia-se àqueles que tivessem cumprido 14 anos de serviços ex-
clusivamente para particulares. Os africanos livres que haviam servido em estabe-
lecimentos públicos apenas obtiveram esse direito através do decreto no. 3310 de
24/09/1864. 36 AESP, CO 5367.
36 AESP, CO 907, Ofício do Juiz de Órfãos ao Presidente da Província, 05/03/1858.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 355
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

emancipação. Incansável, resistiu como pôde, fugindo, não trabalhando


a contento do administrador e mantendo os filhos junto de si.
Pelos documentos percebemos que ela possuía um advogado para
apoiá-la nas queixas. Isso era fundamental e, de certo modo, a presença
da Faculdade de Direito em São Paulo pode ter favorecido seu encontro
com os bacharéis. Contudo, apenas o advogado não explica a resistência
cotidiana que Maria empreendeu. Além de sua determinação, também
foi muito importante a amizade com outros africanos que, como vimos,
lhe permitia, inclusive, guardar o dinheiro poupado com a venda de suas
quitandas.
Através da trajetória de vida de Maria pudemos recuperar os
diferentes lados da opressão e da luta na história dos africanos livres
trabalhadores em estabelecimentos públicos de São Paulo no século XIX.
Os depoimentos dos administradores, revelando a frágil condição dos
tutelados, os argumentos dos juízes, ora defendendo o uso da coerção,
ora apontando a precariedade da liberdade, além das ações dos próprios
africanos, resistindo da maneira que podiam, são parte da burocrática
atenção dispensada aos africanos livres e que, a despeito dos abusos,
permitiu uma riqueza documental raramente disponível para a história
da escravidão no Brasil.
Se os embates cotidianos dos africanos livres foram pequenos
para abalar o controle social, foram suficientemente frequentes para
nos mostrar que eles não abriram mão da liberdade que acreditavam
poder gozar. Persistindo nessa busca, não desanimaram diante da
rudeza do tratamento que recebiam, e esta tampouco afrouxava os
laços de solidariedade que mantinham entre si. Mas que liberdade eles
reivindicavam?
Essa questão está na perspectiva da recente historiografia social,
que, ao se debruçar sobre as inúmeras formas intermediárias de trabalho,
tem identificado intensa precariedade na liberdade.37 A pergunta ganha
sentido quando verificamos que o significado de liberdade era diferente
para os africanos livres e seus tutores, bem como para escravos e se-
nhores. Maria era africana livre, tinha algum espaço para exercício de
uma autonomia, mas era contida pela exigência de subordinação e pela
coação ao trabalho compulsório, como todos os africanos de igual condi-
ção. Tendo perdido seu rastro, não pudemos saber quando Maria obteve
a emancipação. Podemos, contudo, lembrar que a maioria dos africanos
livres precisou esperar até 1864 para ser efetivamente emancipada.

37 Henrique E. Lima, “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da li-


berdade de trabalho no século XIX”, Topoi, vol. 6, no. 11 (2005), pp. 289-326; e Ana M.
Rios e Hebe M. Mattos, “O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspecti-
vas”, Topoi, vol. 5, no. 8 (2004), pp. 170-198; e Sidney Chalhoub, A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

356 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Ainda assim, a carta de emancipação não os livrou dos desvantajosos


contratos de trabalho, nem do controle a que continuaram submetidos.38

Na cidade à procura de proteção


Sem o efetivo combate ao tráfico de escravos até 1850, a Lei de 1831
tornou-se quase uma formalidade diplomática, não fossem os africanos
livres e alguns poucos elementos da sociedade livre buscarem o seu
cumprimento. Não obstante a confiança na aplicação da lei por pequena
parte da sociedade, a atuação do Estado nessa direção foi imprecisa,
insegura e, por consequência, falha. Contudo, essa lei serviu de respaldo
a diversos africanos que procuraram as autoridades para proteger-se da
escravidão, como se vê nos exemplos a seguir.
Em janeiro de 1841, Candido chegou a São Paulo, vindo de Itu, e
foi procurar o juiz de Paz da Freguesia da Sé para denunciar que havia
sido ilegalmente importado. Visando protegê-lo, o juiz o mandou para
depósito até o interrogatório. A apresentação de um homem que alegava
ser o proprietário de Candido motivou o juiz a fazer novas inquirições,
uma vez que não considerava justo “nem mesmo de humanidade que
com facilidade se entregue a um senhor uma pessoa que se diz livre,
que é fraca e por isso deve achar todo o apoio e proteção da parte das
autoridades”. 39 Diante da dificuldade em provar se o africano era ou
não escravo, o juiz de Paz decidiu mandá-lo ao juiz de Direito de Itu,
mas antes submeteu o assunto à aprovação do presidente da província.
A resposta deste, anotada à margem do documento, expressava a am-
biguidade da posição do Estado: “Que não julgo conveniente a remessa
tanto pela matéria ser mui delicada como por confiar na Presidência
que lhe é própria, pois estou convencido que procedera de uma maneira
tal que não tirara o direito ao senhor quando tenha direito ao escravo
e ao mesmo tempo não dava motivo para que outros fujam de captura
(julgada achar quando no ferro).” 40
A ambiguidade está justamente nessa indecisão entre proteger o
direito à propriedade e evitar o encorajamento de novas fugas. A manu-
tenção da ordem escravista superava a preocupação com uma eventual
ilegalidade, ou seja, mais relevante do que a ameaça à liberdade de um
africano era o cuidado em não dar margem para novos requerimentos,
acompanhados de outras fugas.

38 Sobre o período pós-emancipação dos africanos livres, ver Bertin, Os meias-caras, pp.
181-247.
39 AESP, CO 882, Ofício do Juiz de Paz Manoel José Chaves ao Presidente Rafael Tobias de
Aguiar, 30/01/1841.
40 AESP, CO 882.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 357
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O interrogatório feito pelo juiz na capital é esclarecedor da forma


como o tráfico ilegal continuava a alimentar as fazendas da província
na década de 1840: desembarque no litoral de São Sebastião de homens,
mulheres e crianças, subida da serra a cavalo ou a pé, esconderijo nos
matos durante o dia, vendas em Jacareí e distribuição para Mogi, Itu e
região.41 Em seu depoimento, Candido não apenas deu detalhes de como
aconteciam os desembarques de escravos e como estes eram transportados
até os compradores, mas também como o incentivo de companheiros ou de
caipiras foi importante para sua decisão de procurar um juiz: “respondeu
que todos lhe diziam, não só em sua casa, como os caipiras com quem
encontrava que ele era meia cara e que viesse para a cidade, que ficava
inteiramente livre apresentando-se aos Juízes”.42
A fala de Candido imprime de significados tanto a comunidade
de onde fugiu quanto a cidade para onde se dirigiu. O “ouvir dizer” dos
africanos livres nos remete às redes de convívio estabelecidas entre
eles, os escravos, os libertos e os livres pobres nas propriedades rurais
da província, as quais promoveram solidariedades fundamentais.
A história protagonizada por Felipe também é reveladora. Tão logo
chegou a São Paulo, em dezembro de 1855, vindo do Vale do Paraíba, foi
imediatamente procurar o curador dos africanos livres, João Feliciano
da Costa Ferreira, dizendo que era africano livre e “que lhe diziam que
neste Juízo lhe dariam a carta [de liberdade]”. 43 Felipe foi levado a depó-
sito na cadeia para as averiguações e, no mês seguinte, mandado para o
calabouço como escravo. Esse africano havia fugido das mãos do alemão
Guilherme Laudemaus, depois de este ter-lhe dado “umas pancadas com
um rabicho de couro e atirado-lhe com o prato”. A ira do proprietário fora
justificada pela ausência, no jantar daquele dia, de caldo no seu feijão. Em
seu depoimento dado no Juizado de Órfãos, Felipe declarou que, diante
daquela agressão, “ainda que não tenha dado motivo para ser maltratado,
e que não era escravo, resolveu fugir, e efetivou a fuga”.
Interrogado, declarou-se de nação Cabinda, com idade de 33 anos,
“sendo sua condição de africano livre”. Ao ser questionado por que se
considerava africano livre, disse que isso havia sido dito por um tal de

41 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841; AESP, EO 1496, fls. 132-6, Corres-
pondência reservada do Chefe de Polícia, 1851. Sobre o tema do tráfico ilegal em São Pau-
lo, ver Priscila Alonso, “O Vale do nefando comércio: o tráfico de escravos no Vale do Paraí-
ba (1850-1860)” (Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, 2006); Jaime Rodrigues, O infame
comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850), Campinas: Editora Unicamp-Cecult, 2000.
42 AESP, CO 882, Depoimento de Candido, 30/01/1841.
43 AESP, CO 903, Ofício do Administrador Francisco Antonio de Oliveira ao Presidente Fran-
cisco Diogo Pereira de Vasconcelos, 17/05/1856. As citações sobre o caso de Felipe, a se-
guir, referem-se a este documento.

358 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

João Janson, o mesmo que o trouxera à província de São Paulo, mais


exatamente a Estiva, uma localidade entre Areias e Silveiras, no Vale
do Paraíba, juntamente com mais seis africanos trazidos do depósito
do Valongo, no Rio de Janeiro, até sua casa, para “ensinar-lhes a rezar e
contar.” Felipe não soube dizer qual era a sua idade ao chegar à província,
apenas que era muito pequeno, e “que em sua língua se chamava Paque,
que corresponde a quatro, fazendo numa ocasião (correspondente) a
conta pelos dedos da mão parando no quarto e principiando no mínimo.”
Ao ser perguntado sobre como se recordava tão bem de tudo, embora
fosse muito novo, respondeu que era muito vivo e que nunca se esquecera
do ocorrido. Relatou também que, durante a viagem para a província
de São Paulo, o grupo foi preso, inclusive o intermediário Janson, que,
mediante “dádivas e agrados”, conseguiu que todos declarassem terem
sido comprados por ele, resultando na liberação de todos. Em Estiva,
Felipe permaneceu por muito tempo, inicialmente com os companhei-
ros e depois sozinho com o proprietário, uma vez que os “outros eram
grandes e como mais ladinos, fugiram”.
Já crescido, Felipe foi vendido a um proprietário de Queluz, para quem
trabalhava como pajem, mas fugiu em seguida. Preso, fora reconduzido
ao proprietário, que o vendeu para Mariano de Quadros, sócio do barão
de Antonina, em pagamento de algumas bestas que lhe foram compradas.
Levado até Curitiba, dali foi entregue a Luiz Vergueiro, genro do famoso
barão, para que o acompanhasse até o Rio Grande do Sul a fim de traba-
lhar em fazenda de gado. Ao retornar a São Paulo, Vergueiro o levou para
a fazenda de Ibicaba, em Limeira, de onde fugira novamente. Declarou
também que, após ser preso, pediu para Laudemaus o comprar, uma vez
que era muito castigado por Vergueiro. Foi vendido ao alemão cerca de
seis meses antes da última fuga, quando se dirigira para São Paulo.
Ao responder ao auto de perguntas, apresentou detalhes da sua
trajetória, informando nomes das pessoas que o compraram, os lugares
pelos quais havia passado, bem como os acontecimentos a que assistira
ainda no Rio de Janeiro, como a renúncia do imperador, em 7 de abril
de 1831, e a reunião da multidão no Campo de Santana. O advogado do
proprietário, contudo, não se deixou impressionar pela boa memória de
Felipe e passou a apontar os erros cometidos pelo africano sem negar,
ironicamente, “alguma habilidade no arranjo do romance que expôs”. O
principal erro cometido havia sido com as datas, uma vez que, tendo sido
testemunha ocular da saída do imperador em abril, provava que já se
encontrava no Rio de Janeiro quando a lei antitráfico de 7 de novembro
de 1831 entrou em vigor. Sem compaixão, o advogado utilizou os vários
erros e contradições de Felipe “para destruir a sonhada condição de afri-
cano livre”. Implacável, asseverava: “Mas o certo é que ele é crioulo, pelo
traquejo que tem tido com africanos aprendeu algumas palavras; e por
ser muito esperto quer aproveitar-se dessa circunstância ilusória para

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 359
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

armar um romance absurdo com o fim impossível de ser declarado livre”.


Diante desses argumentos, em fevereiro, o juiz considerou improcedente
a reclamação do curador e Felipe permaneceu escravo, sendo devolvido
ao seu proprietário, Guilherme Laudemaus.
Felipe não teve sorte: fugira várias vezes, mas sempre fora recaptu-
rado; acreditando que poderia provar ser africano livre, veio a São Paulo
mas cometeu erros que o atento advogado adversário não deixou passar.
Recolhido à Casa de Correção durante a investigação, foi transferido
para o Calabouço após a decisão judicial, até ser entregue ao seu senhor.
Chamam a atenção no caso de Felipe o esforço para chegar à cidade, a
boa articulação verbal diante do juiz e a esperança de ter a liberdade
declarando-se africano livre.
Em 1860, a busca da proteção contra a escravização ilegal foi também
o que motivou Tibúrcio Manoel a fugir das mãos de um proprietário e
procurar as autoridades no intuito de se afirmar como livre. Natural de
Luanda, havia chegado ao Rio de Janeiro em 1831 e, logo depois, recolhido
à Casa de Correção, de onde saiu para servir a Pedro de Araújo Lima. Depois
do falecimento deste, passou para o domínio de outros, até ser levado à
província do Mato Grosso para servir ao capitão Garcia por nove anos.
Passados quatorze anos, decidiu requerer sua emancipação, mas fugiu
com outros companheiros depois que seus papéis foram propositalmente
queimados e ele se perdeu do grupo por cerca de um mês, adoeceu, mas
ainda assim conseguiu chegar ao acampamento militar de Avanhandava,
em dezembro de 1860, onde pediu proteção e contou sua história.44
A escravização de Tibúrcio aponta para um problema comum, agra-
vado após a definitiva proibição do tráfico em 1850. Por um lado, estavam
os contrabandistas alimentando o comércio de escravos e, por outro, os
africanos que conseguiram escapar tentando provar a ilegalidade de sua
condição. A posição do Estado diante disso era ambígua, uma vez que, no
combate ao tráfico, se mostrava ineficaz, ou mesmo ausente, principal-
mente até 1850, ao mesmo tempo em que se colocava como protetor dos
africanos que provassem na Justiça que haviam sido contrabandeados.
Sem que o uso dessa mão de obra contrabandeada fosse eficientemente
fiscalizado pelo Estado, o papel de defensor da liberdade dos africanos
apenas se fazia notar quando a Justiça era procurada pelo próprio africano
livre.45 Contudo, provar ter sido ilegalmente importado não era garantia
suficiente para a liberdade. Era preciso que o africano provasse ser boçal

44 AESP, CO 916, Ofício de Manoel do Carmo Barros, Diretor da Colônia Militar ao Presiden-
te da Província. 01/12/1860. Esse acampamento estava instalado próximo à colônia mili-
tar de Itapura, na divisa com a província de São Paulo, e tinha por objetivo a construção de
uma estrada ligando a colônia até o Mato Grosso.
45 Afonso B. Florence, “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no
Brasil (1818-1864)” (Dissertação de Mestrado, UFBA, 2002).

360 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

e com vínculos recentes com a África. Nesse sentido, a ação protetora do


Estado era uma reação à atitude do africano, isto é, não era preventiva,
uma vez que se dava apenas após verificado o abuso.
Em abril de 1850, depois de ser apreendido em Mogi das Cruzes,
Lourenço foi enviado à delegacia de polícia da capital, onde foi ouvido e
submetido à perícia. Na ânsia para encontrar indícios que o definissem
como boçal ou ladino, foi constatado que ele possuía os dois dentes
superiores cortados em forma de meia lua, além de um sinal marcado
acima do umbigo, constando de três losangos pontilhados colocados um
acima do outro, além de cicatrizes. 46 Trazia também “sinais nas palmas
das mãos de ter trabalhado com enxada”, o que, para os peritos, seria
condizente com a condição de escravo. Incapaz de comunicar-se na língua
portuguesa, Lourenço declarou, através de intérprete, que era de nação
congo, que havia sido “lavrador na sua terra” e que tinha sido tirado de lá
havia apenas “duas luas.” Perguntado, declarou que depois de ter chegado
ainda não trabalhava e que “o nome de seu senhor era só senhor.”
O desconhecimento do idioma e o pouco tempo de chegada ao Brasil
foram elementos determinantes para que os peritos concluíssem que
Lourenço era africano boçal. Contudo, vale registrar o deslize dos peritos
que, ao tomarem os calos nas mãos como indício de escravidão no Brasil,
não consideraram a condição de trabalhador do africano ainda no seu
continente. Como recém-chegado, importado após novembro de 1831,
Lourenço foi recolhido e enviado ao serviço do Jardim Público, de onde
fugiria menos de um mês depois.47
A nova fuga de Lourenço indica que estar a serviço de estabelecimentos
públicos como africano livre não era garantia de melhor tratamento do
que o oferecido aos escravos. Mostra ainda como a proteção presumida
na tutela foi reiteradamente rejeitada por muitos, inclusive por aqueles
que eram novos na cidade, porque implicava em subordinação e trabalho
compulsório, elementos que tornavam frágil a liberdade buscada por
africanos como Lourenço.
Esses ricos fragmentos de histórias de vida são exemplos do pro-
tagonismo dos africanos ilegalmente escravizados, que apostaram na
proteção oficial representada pelo juiz de órfãos mas encontraram uma
resposta vacilante e pouca disposição das autoridades em enfrentarem
os proprietários. Lembremos da resignada resposta de Lourenço sobre
o nome de seu senhor. Se para a polícia o nome do proprietário era algo
importante, porque facilitava o processo de averiguação de escravização

46 AESP, CO 892, Ofício do Delegado Francisco Maria Furtado de Mendonça ao Presidente


Vicente Pires da Motta, 26/04/1850.
47 AESP, CO 892, p. 2, doc. 22, Ofício de Antonio Bernardo Quartin ao Presidente Vicente Pi-
res da Motta, 13/05/1850.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 361
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ilegal, para aquele recém-chegado bastava saber a condição de senhor,


não importando o seu nome.
A partir do conceito de agency (agência, protagonismo) a resistência
cotidiana de Candido, Felipe, Tibúrcio e Lourenço assume outros contor-
nos, quando se verifica que a intenção de liberdade e a solidariedade por
eles articulada redefiniram suas ações.48 As trajetórias desses africanos
revelam que eles acreditavam que, se provassem ser africanos livres
estariam protegidos da escravidão; mostram também que a informação
sobre a ilegalidade do tráfico circulava entre a arraia miúda e que foram
incentivados a procurar as autoridades. Contudo, a coerção das autoridades
evidencia que o direito positivo não coincidia com o direito na compreen-
são dos africanos. 49 Essa diferença acabou motivando diversas ações de
insubordinação que atingiram todos os postos de trabalho.
Candido, Felipe, Tibúrcio e Lourenço podiam ser classificados como
africanos ilegalmente escravizados, ou seja, trazidos após 1831, mas que
não haviam passado pelo crivo da comissão mista para serem considerados
africanos livres. Beatriz Mamigonian aponta, na pressão abolicionista
britânica da década de 1840, uma tentativa de ressignificação da liberdade,
de modo que ambos os grupos passassem a ser alvo da emancipação. Isso
gerou intenso desconforto diplomático, uma vez que, se levado ao fim e ao
cabo, atingiria boa parte de todos os escravos do país, ameaçando seria-
mente a ordem escravista.50 Ainda que o fim do tráfico, em 1850, tivesse
aliviado a pressão estrangeira, a Lei de 1831 continuou como espectro
da liberdade, seja na atuação através dos tribunais, seja na reivindicação
direta como fizeram os africanos aqui retratados.51

Quando o prato, o fumo e o sabão fazem a diferença


Embora a tutela oferecida aos africanos fosse defendida pelo curador
e pelos juízes de órfãos como meio de proteção real, para os administra-
dores dos estabelecimentos públicos a permanência dos africanos livres
como serventes resumia-se à prestação de bons serviços. Isso explica, em
parte, as constantes queixas sobre a conduta e a qualidade do trabalho
dos serventes africanos. Para os administradores, a lógica era a mesma

48 Walter Johnson, “Agency”, Journal of Social History, no. 37, (2003), pp. 113-124.
49 Mamigonian, “O direito de ser africano livre”, p. 141.
50 Beatriz G. Mamigonian, “A Grã-Bretanha, o Brasil e as ‘complicações no estado atual da
nossa população’: revisitando a abolição do tráfico atlântico de escravos (1848-1851)”.
Texto apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curiti-
ba, 2009, http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos4/beatrizmami-
gonian.pdf , acesso em 12/10/2015.
51 Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo, Campinas: Editora Unicamp, 2010.

362 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

da escravidão. Entretanto, os africanos não entendiam da mesma forma,


por isso resistiram, não trabalhando no ritmo esperado, embriagando-se,
reclamando dos maus tratos e fugindo. A mesma tutela que respaldava
os abusos dos administradores públicos era reivindicada pelos africanos
para reclamar das autoridades, como se pretendessem buscar uma pro-
teção de fato.
Sem que jamais tivesse ocorrido, de fato, uma sublevação dos afri-
canos livres em São Paulo, o governo provincial e seus administradores
mostraram-se bastante preocupados com a preservação da ordem, o que
resultava em especial atenção ao grupo e àqueles que cooperavam com
suas causas. Assim, por exemplo, a fuga de Aniceto, da Casa de Correção,
foi relacionada à sua “decidida negação que há certo tempo manifestou
para o serviço ou as sugestões de pessoas gratuitamente predispostas
em desmoralizar os africanos da casa”.52 Do mesmo modo, o diretor do
Jardim Público reclamava da saída de Tomé, dizendo que “não faltam
pessoas que constantemente promovam a liberdade deles insubordinando
os africanos”.53
A queixa recorrente contra “pessoas mal-intencionadas” que insuflavam
os africanos livres era, quase sempre, uma referência aos bacharéis que os
defendiam na luta pela emancipação. Embora a tutela pretendesse ser um
mecanismo para a preparação para a vida autônoma através do trabalho e
da disciplina, no caso dos africanos livres a perspectiva de emancipação
foi paulatinamente ignorada pelos tutores. Porque a premissa não era a
defesa da liberdade, todo e qualquer movimento dos tutelados em direção
à autonomia foi tratado como insubordinação, como risco à ordem.
Não obstante as leis emancipacionistas, o Império era escravista,
resultando que todas as tentativas de enquadramento dos africanos
livres na ordem e na submissão tinham como horizonte a manutenção
e o fortalecimento da escravidão. Nesse sentido, a insubordinação dos
africanos livres era interpretada como ameaça ao controle dos escravos
e, no limite, à manutenção da própria escravidão, e portanto devia ser
controlada. O dilema no qual se colocava o Estado brasileiro era justa-
mente o de ter de acatar a categoria de africano livre como resultado da
política internacional de combate ao tráfico e, ao mesmo tempo, manter
a escravidão. Assim, sob a justificativa de prepará-los para a autonomia,
a tutela representava um meio para o disciplinamento que possibilitava
extrapolar o domínio para além da escravidão. Segundo Ilmar de Mattos,
a manutenção da ordem era essencial para a construção do Estado e a
constituição da classe senhorial, daí que a vigilância do primeiro sobre

52 AESP, CO 3276, Ofício do Diretor da Casa de Correção, 15/09/1862.


53 AESP, CO 911, Ofício do Diretor do Jardim Público Antonio Bernardo Quartin, 19/10/
1859.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 363
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

todos deveria ser contínua e efetiva, por exemplo, através do controle


da circulação de escravos, libertos e africanos livres. 54 Havia, contudo,
grandes dificuldades para manter os africanos tutelados no lugar de não
livres, uma vez que sua condição legal singular, por si só, era interpretada
por eles como próxima da liberdade.
Comum entre as histórias de vida de africanos livres está o fato de as
autoridades responsáveis não defender a emancipação a que eles tinham
direito e de não os diferenciar, na prática, dos escravos. As acusações de
insubordinação e de vícios foram constantes nas falas das autoridades,
que, preocupadas com a manutenção da ordem entre os serventes, difi-
cultaram o acesso deles à liberdade usando o argumento da proteção.
Não há, porém, nada estranho na atitude dos administradores quando se
considera que a defesa da ordem era fundamental para o Estado escravista
e que, ao contrário do que os serventes desejavam, as relações de trabalho
estariam sempre acompanhadas de coerção.
Da mesma forma que os diferentes significados conferidos pelos
escravos à liberdade definiam suas diversas estratégias de atuação e
de reivindicação, poderíamos assim considerar o caráter das fugas, das
insubordinações e demandas dos africanos livres. 55 Vale observar, primei-
ramente, que esses africanos não fugiam exatamente do trabalho ou dos
estabelecimentos, mas da compulsoriedade e do tipo de controle a que
eram submetidos. No caso de serventes em estabelecimentos urbanos,
não havia ruptura com o empregador, nem distanciamento da cidade,
seja porque soubessem ser necessário manter o vínculo empregatício,
ou porque, no meio urbano, as chances de escravização eram menores.
Muitas das fugas de estabelecimentos públicos duravam o tempo
necessário para reunir provas da emancipação, como por exemplo a
procura de testemunhas. Nesses casos as fugas não representavam o
rompimento com o estabelecimento, mas a afirmação do protagonismo
dos africanos livres. Nesse sentido, a busca da emancipação, da proteção
contra a escravização, de espaços de autonomia ou de melhor tratamento
compõe um quadro de resistência dos africanos livres cujas matizes
variaram conforme o local e o momento mais adequados.

54 Ilmar R. de Mattos, O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial, Rio de Janeiro:


Access, 1994, pp. 212-224.
55 Hebe M Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista.
Brasil, séc. XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Ao investigar as diversas formas de
aproximação com a liberdade, a autora permitiu o alargamento das interpretações sobre
a agência escrava. Flávio dos S. Gomes, Histórias de quilombola: mocambos e comunida-
des de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, es-
tuda os significados da formação de quilombos de resistência no Rio de Janeiro, definindo
o conceito de “campo negro” ao constatar uma extensa rede estabelecida entre escravos
fugidos, livres e cativos das propriedades rurais e escravos urbanos, que incluía também o
comércio.

364 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Destaco aqui dois importantes momentos de insubordinação dos


africanos livres a serviço na Serra de Cubatão, no litoral paulista. Ocor-
ridos em 1853 e 1856, período de maior adensamento da presença de
africanos livres entre os serventes de obras públicas naquela região, os
episódios foram marcados pela denúncia de irregularidades, queixas
contra o domínio e a reivindicação por melhorias nas condições cotidianas
de vida. Eles confirmam que a resistência e a negociação faziam parte
das relações entre os africanos livres e os administradores públicos.56
No primeiro caso, os africanos livres Ambrósio, Francisco, Albino,
Thomé, Antonio, Messias e Caio fugiram dos trabalhos na Serra e, ao serem
presos em Jacareí, explicaram ao chefe de polícia que se dirigiam à Corte
para reclamar com o monarca dos abusos que sofriam. No documento,
assinado por C. Costa Ribeiro, a rogo dos africanos, há queixas contra
castigo, alimentação, vestuário, descaso com os enfermos e a reclamação
por uma ração de fumo. Vale aqui a citação completa do requerimento:
Ilmo sr dr chefe de polícia. Dizem os africanos livres
Ambrósio, Francisco, Albino, Thomé, Antonio, Messias
e Caio, que não sendo de seu costume ausentarem-se
de qualquer administrador que os rege ou de qualquer
serviço em que tem estado empregados, porque sempre
e por espaço de muitos anos que estão no Império, nunca
tiveram tal nota, todavia, sendo eles remetidos da Corte
para esta Capital, em tempo do ex-presidente Nabuco;
por ordem do mesmo, foram trabalhar na Serra de Santos,
onde se conservaram até princípio de fevereiro p.p. e
tendo eles suplicantes sido tratados com o maior [ras.]
possível, tanto de trato subsistencial, como de vestuário,
como rigorosamente os tratava dando imensas surras,
como alguns mostram certidão em seus corpos e nem
ao menos a triste roupa consentia que eles lavassem ou
mandassem lavar, faltando-se com a ração de fumo a
ponto de que alguns tem morrido ao desamparo, porque
na enfermidade não tem o menor trato; e com receio
que os suplicantes tiveram de morrer da mesma forma,
retiraram (se) com direção ao Rio, para queixarem-se ao
Monarca, tanto que em caminho foram pegados, isto é,
passando na cidade de Jacareí e como se acham presos
na Cadeia desta cidade, imploram a VS se digne dar suas
altas providências a tal respeito, mandando-os seguir ou
para o Jardim ou para a Fábrica, ou para qualquer outro
ponto, à exceção de estarem debaixo do domínio do dito
administrador Anselmo de tal, cujo acompanhou os

56 A resistência e a negociação na escravidão são temas discutidos, por exemplo, nos seguin-
tes trabalhos: Reis e Silva, Negociação e conflito; Soares, A capoeira escrava; João José
Reis e Flávio dos S. Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: histórias dos quilombos no Brasil,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Sandra L. Graham, Caetana diz não: histórias de
mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 365
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

suplicantes quando seguiram para o referido serviço da


Serra, durante o qual tratou aos suplicantes não como
cristãos, mas como bárbaros. Os suplicantes, senhor,
não se eximem de qualquer serviço, porém desejam ser
tratados com a humanidade de que VS é dotado, e na
mesma [esperam] os suplicantes a reta justiça de VS
porquanto e com o mui profundo respeito e acatamento
P.P. a VS se digne deferir e tendo em consideração o
exposto, origem tão somente da circunstância. A rogo dos
suplicantes C. Costa Ribeiro. R.S.57

Chama a atenção a ênfase em dizer que não fugiam do trabalho,


mas do tratamento recebido, assim como a súplica para não retornarem
ao poder do antigo administrador e a solicitação de transferência para a
Fábrica de Ferro São João do Ipanema, ou para o Jardim Público, na capi-
tal. Intrigante que tivessem desejado ir para aqueles estabelecimentos,
de disciplina reconhecidamente rígida e trabalho pesado. 58 Estariam
eles querendo juntar-se a outros africanos servindo naqueles locais, ou
apenas pretendiam demonstrar coragem para o trabalho e disposição
para a disciplina? Claro que a transferência não era o objetivo da fuga,
afinal, dirigiam-se à Corte quando foram surpreendidos pela polícia, mas,
diante da possibilidade de devolução à Serra e dos consequentes castigos,
sugeriram como alternativa a transferência para a fábrica, que a despeito
de também ter disciplina rigorosa os colocaria na companhia de muitos
outros africanos livres.
O delegado de Jacareí informou o caso ao curador dos africanos, e
este, por sua vez, levou ao conhecimento do juiz de órfãos o requerimento,
esclarecendo que eles não estavam subordinados à administração do juiz
de órfãos da capital. O juiz relatou o acontecido ao presidente da província,
que mandou informar o fato ao administrador dos africanos na Serra. Em
sua resposta José Joaquim de Lacerda procurou defender-se das acusações
dos africanos, declarando que fornecia roupa e comida, que os serviços a
que estavam obrigados eram moderados, e que os castigos aplicados eram
os autorizados pelo regulamento de 31 de dezembro de 1851,
sem os quais não é possível que se obtenha serviço algum da
maior parte dos ditos africanos, que com a consciência de

57 AESP, CO 1230, Ofício do Delegado Francisco Maria de Mendonça ao Curador dos Africa-
nos Livres, 03/04/1853.
58 Sobre o cotidiano de trabalho dos africanos livres na fábrica de ferro e nos demais estabe-
lecimentos públicos de São Paulo, ver Bertin, Os meias-caras; especificamente sobre a fá-
brica de ferro, Afonso B. Florence, “Resistência escrava em São Paulo: a luta dos escravos
da fábrica de ferro São João do Ipanema 1828-1842”, Afro-Ásia, no. 18 (1996), pp.7-32; Jai-
me Rodrigues, “Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na fábrica de Ipanema”, His-
tória Social, no. 4-5 (1997-1998), pp. 29-42; e Jorge Prata de Sousa, “Africano livre ficando
livre: trabalho, cotidiano e luta” (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1999).

366 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

serem livres, e de mais com o exemplo de verem ganhando


jornal outros africanos que há em Santos e mesmo no
Cubatão, e que está [sic.] em idênticas circunstâncias, só
forçadamente se dão ao trabalho: ainda mais tendo entre
eles muitos de péssima conduta, como sejam além de
outros os dois primeiros suplicantes de nomes Ambrósio
e Francisco. Além disso, costumo mandar para Santos aos
domingos acompanhados de um feitor para venderem as
tranças de palha que costumam fazer, para vender por sua
conta, nas horas de descanso [...].59

Na pretensão de negar os maus tratos, Lacerda confirmou a prática


de castigos. Entretanto, nem os castigos, nem a permissão para produção e
venda de palha trançada surtiam os efeitos esperados, porque os africanos
livres entendiam que sua condição diferenciada respaldava a desobediência
para o trabalho, e porque o contato com africanos trabalhando a jornal
intensificava o desejo de autonomia.
Importante observar que o comércio realizado pelos africanos livres
não é mencionado no requerimento de Ambrósio, Francisco, Albino, Thomé,
Antonio, Messias e Caio.60 Da mesma forma, conforme visto no início deste
artigo, as referências à produção e à comercialização de quitandas por
Maria apenas são informadas pelos administradores e não pela africana
ou por seu preposto. Quais os significados da ocultação dessa relativa
autonomia? Seria porque não a entendiam como autonomia, ou ainda
por que tentavam expor uma imagem mais deletéria do domínio? Ou,
ainda, porque, como tivessem, segundo o administrador Lacerda, péssima
conduta, talvez não pudessem gozar de tais ganhos? Ou, talvez, porque
esse comércio só existia como um argumento do administrador?
Essas perguntas nos remetem à análise de Stuart Schwartz, segundo a
qual os espaços de autonomia, que resultavam em ganhos para os escravos,
faziam parte da política de domínio e escondiam a lógica da concessão
visando maior controle, bem como os esforços de negociação dos escravos.61
Contudo, os africanos livres tinham ciência de que o tempo de subordina-
ção era limitado, acreditavam que a liberdade não era inatingível e isso
tornava infrutíferas as estratégias paternalistas dos administradores de
controle mais efetivo. Ainda que houvesse distinção entre eles quanto ao

59 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
60 No Rio de Janeiro, os quilombolas produziam tranças de palha para confecção de chapéus
para serem comercializados. Ver Flavio S. Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século
XIX”, in Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, pp. 263-90.
61 Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, pp. 89-123. O tema da brecha camponesa, nome
dado aos espaços agrícolas de autonomia dos escravos, foi também analisado em Ciro F.
Cardoso, Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas, São Paulo: Bra-
siliense, 1987; e Reis e Silva, Negociação e Conflito, pp. 22-31.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 367
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

gozo de mais ou menos autonomia, todos se aproximavam na condição de


africano livre em busca da emancipação e na negação da escravidão, por
isso não aceitavam castigos e reivindicavam melhorias.
Voltando aos argumentos de Lacerda, quanto à acusação de má ali-
mentação dos serventes, ele se defendeu nos seguintes termos:
Para a alimentação recebi uma tabela pela qual se ordenava
que eles fossem sustentados com feijão, toucinho, farinha
e canjica, e como não querem comer esta, mando dar-lhes
ao almoço e jantar feijão com toucinho e a ceia feijão
simplesmente e destes alimentos comem quanto querem.
Há pouco pedi e obtive permissão de dar-lhes uma vez
por semana carne fresca de vaca, o que tenho feito. Devo
prevenir V. Exa o fornecimento destes alimentos é feito por
conta da Fazenda, dando eu conta do que para isso compro,
não podendo, portanto, ser taxado de poupar para ganhar.
Não tive ordem de dar-lhes fumo: contudo tenho dado
desde que os recebi em todas as semanas sem interrupção,
como se vê da féria que apresento mensalmente e bem
assim sabão para a lavagem de roupa.62
As lacunas deixadas pelo administrador referem-se,
justamente, às conquistas dos africanos por melhor
alimentação, ou seja, que o fornecimento de carne fresca,
assim como a concessão de fumo foram resultado da
reivindicação dos africanos e não de decisão unilateral do
administrador. Além da alimentação, Lacerda declarou
o fornecimento de duas mudas de roupas grossas para
o serviço, que “ainda existe em bom estado”, apesar da
entrega ter sido feita havia um ano. Informava também
que já solicitara uma “roupa fina para com ela irem à igreja
satisfazer o preceito da confissão.” 63 Lacerda dava ao
presidente da província a sua versão de bom administrador,
que punha à disposição dos africanos o pacote completo:
roupa, alimentação, castigo e religião. Nem a concessão
de um pouco de autonomia ficou de lado, como vimos, ao
informar sobre a permissão para vendas de palha trançada
em Santos.
Três anos depois desse episódio, o relatório de outro
administrador das obras da estrada, o engenheiro Carlos
Rath,64 comprovaria que as reivindicações dos africanos
livres foram mais comuns do que parecem, principalmente

62 AESP, CO 1230, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador dos Africanos Livres, ao
Presidente Josino do Nascimento Silva, 11/04/1853.
63 AESP, CO 1230.
64 Carlos Daniel Rath nasceu na Alemanha, em 1801. Formado engenharia, chegou ao Brasil
em 1830 contratado pela Inspetoria de Obras Públicas, órgão do governo provincial de São
Paulo. Silvia C. Siriani, Uma São Paulo alemã: vida quotidiana dos imigrantes germânicos
na região da Capital (1827-1889), São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, pp. 133-135.

368 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

nos momentos de transição na administração.65 Ao


assumir a administração das obras na estrada de Santos,
o engenheiro começou a receber várias denúncias contra
seu antecessor Antonio José Rodrigues a respeito de
maus tratos contra africanos livres doentes e desvio de
alimentos.
Quatro dias depois de assumir seu posto, Carlos Rath
foi avisado, pelo “patrão” de uma lancha, sobre a
insubordinação de africanos livres que se negavam a
trabalhar noturnamente porque queriam poder dormir a
noite toda, “como seus companheiros do Zanzalá”, e que,
além disso, esperavam não serem castigados pela recusa.
Diante disso o administrador chamou os descontentes para
lhes perguntar como eram tratados, ao que responderam
“não ter queixa contra o patrão da lancha, porém que
querem ser tratados como gentes livres, não querem
morrer de fome, não querem comer como porcos, em um
cocho e querem receber fumo como se usava dantes [...]”.66
Aqui a principal reivindicação era a quantidade de
alimentos e a forma de consumi-los. Querer ser tratado
como gente livre, naquele momento, era não ter que comer
como porcos em cocho, sugerindo que desejavam pratos,
como depois outros reclamantes explicitaram. O utensílio
assumia a função de distingui-los dos escravos e de (re)
aproximá-los da condição de livres. Carlos Rath declarou
ao presidente que os repreendera pela ousadia, reafirmara
a ordem de trabalho noturno e prometera atender aos
pedidos. Dessa forma o administrador tentava manter
sua autoridade, mas, ao prometer atendê-los, reconhecia a
pressão dos africanos.

Aproveitando a chegada do novo administrador, outro grupo de


africanos livres apresentou, naquele mesmo dia, novas reivindicações:
chegaram outros africanos com o feitor Florisbelo
Francisco do Couto, que trabalhavam na Serra fazendo
consertos, exigindo mais comidas e roupas que eles em
partes não tinham recebido o ano passado e sabão para
lavarem suas roupas, também pediram a demissão do
feitor deles e pratos para eles comerem; prometi tudo que
me for possível dar-lhes [...].”67

65 AESP, CO 1227, Relatório da administração da estrada da Capital e Santos e comparação


dos serviços e gastos feitos na Serra da Maioridade dos anos 1850 e 1852 com os de 1856
até 01/01/1857 debaixo da administração do Dr. Carlos Rath.
66 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão por Carlos Rath desde 12
até 21/07/1856.
67 AESP, CO 1236, Diário da Administração.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 369
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

As reclamações, aqui, são mais diretas e profundas, porque não só


cobravam alimento e roupa, como também a demissão do feitor, que era
a autoridade que os submetia mais diretamente à condição de escravos.
O administrador decidiu não demitir o feitor para não fortalecer os
africanos, mas acabou aceitando quando ele próprio pediu demissão
alegando doença. Em seguida, demitiram-se o feitor geral e um rancheiro,
num indício de que o clima havia ficado muito tenso.68
As reivindicações desse grupo engrossaram o coro dos queixosos da
lancha que não queriam “comer como porcos”. Não foi possível comprovar
se havia uma convergência de lideranças nesse, digamos, movimento rei-
vindicatório. Ao que parece, a chegada do novo administrador estimulou
as turmas de africanos livres a reclamar mudanças, porque sabiam que
aquele era o melhor momento para fazê-lo.
Em ambos os casos relatados (1853 e 1856), as reclamações são por
melhorias das condições de vida, sem referência direta à emancipação,
embora enfatizassem que não eram escravos. Os documentos são claros
quanto à recusa dos africanos livres a serem tratados como escravos,
e que, por isso, reclamavam por mais comida, pelo direito de usarem
pratos, por melhor tratamento aos enfermos, por sabão e fumo. O sabão,
necessário para a lavagem da própria (e única) roupa; quanto ao fumo,
era a cobrança de uma concessão anteriormente feita e depois revogada,
mas que os africanos a tomavam como direito. Não há, contudo, negação
da tutela a que estavam submetidos. Novamente, aqui vemos um paralelo
com as reivindicações escravas por espaços de autonomia, bem como a
tentativa de conveter concessões em direitos.
Reafirmando sua tática de não atiçar os ânimos, o administrador
acenou com a promessa de atendimento às reivindicações, não sem antes
reiterar a obediência e a subordinação esperadas dos africanos livres.
É preciso lembrar que Carlos Rath relatava o acontecido ao presidente
da província, e que, portanto, não deixaria de enfatizar sua capacidade
de controle dos insatisfeitos, muito embora tivesse deixado indícios
de que sofreu efetivamente uma pressão. Em seu diário, confirmou o

68 Difícil não estabelecer paralelo entre as reivindicações dos africanos livres e aquelas
apresentadas pelos escravos fugidos do engenho Santana, em Ilhéus, no ano de 1789.
Depois de fugirem, eles redigiram um tratado de paz, submetido ao proprietário do en-
genho, estabelecendo as condições para o retorno ao trabalho. Entre as condições míni-
mas ali definidas estavam a redução das tarefas, o fornecimento de roupas e a conces-
são de dias livres para o trabalho em roça própria. Além disso, exigiam a mudança dos
feitores: “Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa apro-
vação”. Sobre esse engenho e a reprodução do documento, ver Stuart Schwartz, “Resis-
tance and Accommodation in Eighteenth-Century Brazil: the Slaves’ View of ”, The His-
panic American Historical Review, vol. 57, no. 1 (1977), pp. 69-79. Ou ainda, Reis e Silva,
Negociação e conflito, apêndice 1.

370 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

desvio de mantimentos e deixou indícios de que o responsável por essa


irregularidade era um dos feitores, que repassava os produtos para os
trabalhadores portugueses e para sua própria família. Desse modo, o
administrador confirmava a reclamação dos africanos de que os alimentos
eram insuficientes. Como resposta à crise, Rath substituiu os acusados
de desvios e nomeou para feitor geral seu sobrinho, Jacques Hestle, que
passou a informá-lo de frequentes abusos, entre eles o fato de feitores
e rancheiros possuírem carroças particulares para serviço público, com
as quais lucravam com os fretes, além da apropriação indevida de ferro,
aço e carvão das obras. Ficaram confirmados também os maus tratos aos
serventes da Serra, conforme as queixas de 1853 e de 1856. Diante da
denúncia de que uma africana enferma morrera sem atendimento, assim
como sua filha de dez meses de vida, em vistoria o diretor se deparou com
outros africanos doentes e sem medicação, além de trabalhadores livres,
contratados a jornal, em idêntica situação.69
No mesmo mês de julho de 1856, quando assumiu a direção dos
trabalhos, Carlos Rath entregou a cada um dos africanos livres o utensílio
reivindicado, e tomou providências para conter os desvios de mantimentos,
segundo seu relato ao presidente:
Mandei entregar a cada um dos africanos um prato de folha
de flandres que se contentaram muito com isso, regulei os
mantimentos para cada um três quartos de toucinho, um
prato regular de farinha e meio de feijão e o mesmo de
canjica e suficiente sal; recomendei a economia sem haver
experdiçação e mais limpeza na maneira de cozinhar,
também tenho mandado acompanhar os mantimentos que
se quer desta administração para o Zanzalá; o mesmo que
conduz traz-me o recibo do feitor geral ou do rancheiro da
porção de mantimentos que recebe.70

Tanto o fumo quanto o sabão passaram a constar das despesas men-


sais dos relatórios dos anos de 1856 a 1860, o que pode significar que o
pedido dos africanos tenha sido atendido e se tornado parte do pacote
recebido rotineiramente.71
Em sua tese sobre a colônia de Itapura, Maria Aparecida da Silva
indica um movimento reivindicatório dos africanos livres daquele esta-
belecimento, no ano de 1861. 72 Influenciados pelas ideias abolicionistas

69 AESP, CO 1236, Diário da Administração. Além dos africanos livres e escravos, trabalha-
vam nas obras da estrada portugueses e alemães.
70 AESP, CO 1236, Diário da Administração da Estrada do Cubatão.
71 AESP, CO 5152, 1856; CO 5153, p. 1 docs. 53-5, 61-3, 1858; CO 5154, p. 1 docs. 14, 17, 20,
28-33, 1859; CO 5154, p. 2, docs. 4-7, 1860.
72 Maria A. Silva, “Itapura: estabelecimento naval e colônia militar (1858-1870)”, (Tese de
Doutorado, Universidade de São Paulo, 1972), p. 103.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 371
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

dos médicos da colônia, os africanos apresentaram-se em grupo diante do


diretor para reivindicar a emancipação. Ao relatar o caso ao presidente
da província, o diretor Victor San Tiago Subrá apresentou uma sugestão
de salário aos africanos livres, numa evidente estratégia para o controle.
Para os objetivos deste artigo, focaremos o impacto da resistência dos
africanos e o esforço de negociação do administrador. Dizia ele:
Eu nunca partilhei as idéias de certos filantropos acerca
da raça preta, mas penso que é de equidade e justiça que
os africanos do Itapura tenham um pequeno salário.
Em todo o caso é urgente tomar algumas providências a
respeito. Aqui não há revoltas nem insurreição, há apenas
uma reclamação pacífica fundada em justiça, a qual
com minhas economias e administração fiscalizadora,
pode ser satisfeita sem sair da cifra consignada para as
despesas do Itapura.73

Os reclamantes pressionaram o diretor e este, sentindo-se ameaçado,


apontava para um canal de negociação como a melhor solução para o caso:
Fiz-lhe uma pequena fala estranhando que se
apresentassem todos, quando um só era bastante, e
prometi-lhes que ia levar sua reclamação ao conhecimento
de V. Exa, e que na primeira monção que descer o rio
Tietê no ano de 1862, isto é em maio, tinha fé que seriam
atendidos. Retiraram-se satisfeitos, confiando que eu
os não posso enganar. Creio que houvera sido altamente
imprudente senão perigoso empregar o ameaço ou a força
para impedir uma reclamação que nada tinha de hostil,
nem falta de respeito, e que era simplesmente a invocação
de um direito fundado em lei.74

Sabendo da força política que os movimentos reivindicatórios


possuíam e da ameaça representada pelas fugas e pelas reclamações
coletivas, os administradores não ficaram passivos nem alheios aos
acontecimentos, como mostra a disposição do diretor de Itapura para não
reprimir e aceitar uma negociação mínima com os queixosos (oferecendo
apenas o aceno de um pequeno salário, porque a emancipação teve que
esperar até 1864). A alternativa à repressão pura e simples, diante de
insubordinações de africanos livres, também pode ser verificada na
atitude do administrador das obras da estrada de Santos, José Joaquim
de Lacerda. Ao ser informado da captura dos escravos que haviam
fugido, Lacerda enviou ofício ao presidente com uma proposta para o
controle das fugas, que consistia na promoção de casamentos entre os

73 AESP, CO 5247, Ministério dos Negócios da Marinha, 20/12/1861.


74 AESP, CO 5247.

372 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

africanos livres batizados, justificando que “o amor da mulher e dos


filhos deve influir muito para contê-los aqui”. 75 Além disso, solicitava
maior presença de um sacerdote junto aos trabalhadores para oferecer
o sacramento da comunhão.
A fábrica também utilizava a religião como instrumento disciplinar,
tanto que, em maio de 1840, o diretor solicitou a permanência de um
sacerdote efetivo em lugar do capelão, por considerar mais vantajoso
“para administrar os socorros espirituais, confissão, batizados, casamentos
e, sobretudo, as instruções primárias dos filhos de empregados e
aprendizes”. 76
Importante notar que o casamento e a religião como instrumentos de
controle social, assim como pequenas concessões (como o sabão, o fumo
e o prato), também aparecem em manuais de agricultores escravistas
do século XIX, o que aponta para um alinhamento da administração
dos africanos livres com as propostas de governo dos escravos. 77 A
proposta de Lacerda de promover o casamento de africanos livres foi
acatada pela presidência e o que parecia ter sido uma saída favorável
ao administrador, a considerar o controle obtido sobre as fugas, alguns
anos depois revelou-se um ganho para os africanos livres. Isso porque,
em Aviso do Ministério dos Negócios da Justiça de 14 de novembro de
1859, ficava estabelecida a emancipação dos africanos livres cujos
cônjuges já estivessem emancipados. Portanto, se o casamento foi en-
tendido pelos administradores públicos como instrumento da política
de controle, para os africanos livres foi um meio eficaz de abreviação
do tempo para a emancipação. 78
A historiografia da escravidão tem mostrado que a resistência es-
crava no Brasil não se deu necessariamente pela rebelião declarada, mas
ocorreu constante e sorrateiramente ao longo de todo o período em que
durou o escravismo, inclusive através de movimentos reivindicatórios.
Nesse sentido, as reuniões noturnas de escravos e africanos livres, na
cidade do Rio de Janeiro, para a prática da capoeira, geraram tanto temor
de desordem quanto as fugas e a formação de quilombos. 79 Foi também
pelo temor de desordens que um grupo de africanos livres nagôs foi

75 AESP, CO 1254, Ofício de José Joaquim de Lacerda, Administrador da Estrada do Cubatão


ao Presidente da Província, 20/02/1853.
76 AESP, CO 5215, folder 2 A, 02/05/1840.
77 Ver Rafael de Bivar Marquese, Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letra-
dos e o controle dos escravos nas Américas 1660-1860, São Paulo: Companhia das Letras,
2004, pp. 259-298.
78 Sobre os efeitos desse Aviso nos processos de emancipação de africanos livres, ver Bertin,
Os meias-caras, pp. 181-247.
79 Soares, A capoeira escrava; Gomes, “Quilombos no Rio de Janeiro no século XIX”.

REIVINDICAÇÕES E RESISTÊNCIA: O NÃO DOS AFRICANOS LIVRES (SÃO PAULO, SÉCULO XIX) 373
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

transferido do Arsenal da Marinha da Bahia para o Rio de Janeiro, e de


lá para a Fábrica de Ferro, onde protestaram, de forma aberta e direta,
pela emancipação.80
Os casos de reivindicação dos africanos livres apresentados neste
artigo confirmam que a resistência e a negociação eram inerentes não
somente às relações escravistas, ou seja, a busca pela autonomia, pela
emancipação e a resistência ao trabalho compulsório eram campos de
uma mesma luta dos africanos livres e dos escravos, sendo que, para os
primeiros, a condição oficial de não escravos era usada como premissa
das suas reivindicações. Dessa forma, em que medida aquelas ações e
reivindicações dos africanos das obras na Serra ou da colônia de Itapura
representavam uma ameaça? As solicitações de devolução aos postos
de trabalho de africanos fugidos e apreendidos na capital, a título de
exemplo para os demais, são indícios de que a ameaça representada
pelos fugitivos residia na possibilidade de abalo do controle do conjunto
dos trabalhadores, afetando, portanto, diretamente, a autoridade do
administrador público e, por conseguinte, o Estado, e, indiretamente, os
proprietários de escravos. 81 Nesse sentido, a força representada pelas
ameaças veladas ou diretas dos africanos livres acabou por configurar
uma resistência.
Na experiência histórica dos africanos livres – a captura na África,
seu transporte para o Brasil como escravos, a apreensão e o julgamen-
to como “livres”, o trabalho compulsório, a subordinação à tutela – a
posição do Estado frente a eles foi de bastante proximidade, dada a
assumida responsabilidade governamental pelo seu destino. Contudo,
essa experiência mostrou também que, mais do que proteção, a tutela
assumia o caráter de dominação, o que fez com que o não dos africanos
livres fosse uma constante, marcando, na resistência cotidiana, a ne-
gação à subordinação imposta pelo Estado. Se a situação diferenciada
de africanos livres não foi suficiente para lhes garantir a emancipação,
assim como esta não resultou em liberdade plena, como pretendiam,
eles foram obrigados a uma busca cotidiana de elementos que pudessem
favorecer o exercício da liberdade possível.

80 Beatriz G. Mamigonian, “Do que o ‘preto mina’ é capaz: etnia e resistência entre os africa-
nos livres”, Afro-Ásia, no. 24 (2000), pp.71-95.
81 Por exemplo, AESP, CO 1231, Ofício do Administrador Lacerda ao Presidente Joaquim
Otávio Nébias, 29/11/1852.

374 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


CAPÍTULO 12

sAMpAUleiros trAfiCAntes:
CoMérCio de esCrAvos do Alto sertão dA bAhiA
pArA o oeste CAfeeiro pAUlistA
Erivaldo Fagundes Neves1

Este texto resultou de recorte de um projeto mais amplo sobre


escravidão sertaneja, que destacou procurações de senhores para venda,
alhures, de escravos, com indicações de transferências de mão de obra
cativa da policultura e da pecuária de Caetité para a monocultura do café
na fronteira agrícola do Oeste Paulista, 2 onde o trabalho compulsório
era ainda predominante até meados da década de 1880. Esse comércio,
principalmente com São Carlos do Pinhal, foi empreendimento de sam-
pauleiros 3 – baianos retornados de São Paulo – associados a parentes

1 Agradecimentos a Mércia de Souza Barbosa, bolsista do Programa Institucional de


Bolsas de Iniciação Científica - PROBIC da UEFS, que participou da coleta e sistemati-
zação dos dados aqui utilizados e à linha de pesquisa Escravidão e Invenção da Liber-
dade, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFBA, cujos integran-
tes discutiram este texto e ofereceram valiosas sugestões. Além de publicado na Afro
-Ásia, versão anterior deste texto foi reproduzida em meu livro Escravidão, pecuária e po-
licultura: Alto Sertão da Bahia, século XIX, Feira de Santana: Editora da UEFS, 2012, pp.
195-238. Esta é uma versão revista pelo autor e pelos organizadores da coletânea.
2 A designação regional de Oeste Cafeeiro Paulista não corresponde ao ponto cardeal em
relação à província de São Paulo, nem à sua capital, mas, relativamente ao Vale do Pa-
raíba fluminense, de onde se expandiu a cafeicultura para o oeste, que ocupou o territó-
rio paulista. Emília Viotti da Costa identifica como zonas relativamente novas do Oes-
te Cafeeiro Paulista, municípios como Rio Claro, Araras, Jabuticabal, Araraquara, Des-
calvado, Limeira, São Carlos, cujo desenvolvimento fora posterior a 1850. Esses muni-
cípios mantinham, em 1886, elevado índice de população escrava: 12,9%, compatível ao
das zonas mais antigas, como o Vale do Paraíba e o Oeste Paulista mais antigo que, nes-
sa época, apresentavam, respectivamente 8,5e 10,5%. Emília Viotti da Costa, Da senza-
la à colônia, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1982, p. 195.
3 Antiga expressão sertaneja para designar o emigrante que retornava de São Paulo, nem
sempre bem-sucedido, mas que festejava o regresso, geralmente com foguetório, ao cruzar
o rio Verde, divisor entre Minas e Bahia, para anunciar aos vizinhos o retorno ao convívio
familiar. Um caetiteense autodidata escreveu e publicou, em prelo próprio, peças teatrais,

375
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e conterrâneos, fazendeiros no sertão da Bahia. Escrito há quase duas


décadas, outras publicações sobre o tema lhe sucederam.4
O município de Caetité, no Alto Sertão da Bahia ou Serra Geral da
Bahia, emancipou-se de Rio de Contas em 1810 e se tornou, em pouco
tempo, expressivo centro econômico regional, principalmente por situar-se
na porta de saída baiana para Minas Gerais, por conectar-se com Goiás e
articular-se, portanto, com o Sudeste e o Centro-Oeste do Brasil. No final
do século XIX, projetava-se na Bahia pela dimensão territorial, densidade
populacional e atividades agropecuárias.
Livros de notas dos tabeliães constituem a principal fonte para o
estudo desse comércio interprovincial. O tráfico de escravos dos sertões da
Bahia, no início da década de 1850, quase imperceptível na documentação
cartorial indispensável nesse tipo de transação, evoluiu lentamente. A
elevada incidência de compra e venda de cativos por comerciantes serta-
nejos a exemplo de Valentim Albino da Cunha Bessa5, fazendeiros como
Timóteo de Souza Spínola, no decênio seguinte e empresas semelhantes à
Padre Manoel José Gonçalves Fraga & Cia., ou sua sucessora Padre Manoel
José Gonçalves Fraga & Cardoso, nos dois períodos, indica crescimento
do comércio intrarregional e evidencia que não se adquiriam escravos
apenas para exploração da mão de obra.
Os 26 livros de notas de Caetité, de 1840 a 1879, disponíveis no Ar-
quivo Público do Estado da Bahia, registram 1.233 escrituras de escravos
e 686 cartas de liberdade, série documental adequada à metodologia de
estudos demográficos. 6 A distribuição desses registros comerciais por
décadas – até sem se considerar o número de escravos comercializados e
alforriados, muito superior, porque várias escrituras e cartas de liberdade
correspondem a diversos cativos, havendo casos de dezenas – indica
a dimensão desse intercâmbio e o declínio da escravidão no sertão da

continuação 3

memórias históricas e romances, entre os quais um que aborda o intenso fenômeno socio-
lógico regional do fluxo e refluxo dessa migração. Ver João [Antônio dos Santos] Gumes, O
sampauleiro: romance de costumes sertanejos, Caetité: Typ. d’A Penna, 1927, 2v.
4 Por exemplo, Maria de Fátima Novais Pires, Fios da vida: tráfico interprovincial e alfor-
rias nos Seretoins de Sima - BA (1880-1920), São Paulo: Annablume, 2009.
5 Cunha Bessa fazia constar nas escrituras o seu título e cargo de "cavaleiro da antigamente
nobre Ordem da Torre, Espada de Valor, Lealdade e Mérito, e vice-cônsul da nação da na-
ção portuguesa.
6 Os livros de 1880 a 1888 registram apenas 46 procurações para comercializar escra-
vos, e escrituras de compra e venda, que indicam a quase convicção social da exaustão
do trabalho escravo. Não foi consultado o livro nº 31, com 292 folhas, do escrivão Ma-
riano Severino César, período 1877-1891, em restauração na época da pesquisa. Ao se
considerar a abrangência de 14 anos, que extrapola os limites da escravidão e, mais
ainda, o auge do tráfico regional para o Oeste Cafeeiro Paulista, seus eventuais dados
não modificariam estes resultados. Entre as escrituras foram excluídas as de doação,
permuta ou venda de apenas parte do escravo por um herdeiro.

376 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Bahia, entre 1870 e 1879, quando se extinguia gradualmente o trabalho


compulsório no Brasil.
O comércio intrarregional de cativos e a demanda crescente da expan-
são cafeeira no sudeste brasileiro despertaram o tráfico interprovincial,
que revelou o seu potencial mercantil e dinamizou essa atividade em
Caetité e no sertão, como em toda a região posteriormente denominada
de Nordeste brasileiro. No decênio 1850-1859, sob efeito do fim do tráfico
externo, o número de escrituras de compra e venda de escravos declinou
23% em relação aos dez anos anteriores, enquanto nas duas décadas
seguintes, estimulado pelo tráfico interno, expandiu, respectivamente,
40% e 52% em relação aos períodos precedentes. Entretanto, em meados
da década de 1870, para burlar o pagamento da meia sisa das transações
comerciais, determinada pela legislação, os traficantes transferiram
escravos apenas com procurações dos vendedores, e lhes outorgavam
procurações para comercializá-los, com poderes de substabelecê-las em
sucessivos negócios.7

Tabela I: Escrituras de compra e venda de escravos e cartas de alforria:


Caetité, 1840-1879
Décadas Escrituras Alforrias
Nº % Nº %
1840-1849 276 22,4 177 25,8
1850-1859 212 17,2 155 22,6
1860-1869 296 24,0 180 26,2
1870-1879 449 36,4 174 25,4

Fonte: APEB, Judiciária, Livros de Notas de Caetité.

A documentação e a historiografia registram várias transações co-


merciais com os mesmos escravos. Um estudo do interesse por famílias
no mercado de escravos narra a trajetória de um mancípio negociado no
interior da Bahia, em Salvador, no tráfico litorâneo para o Rio de Janeiro,
com passagem pela polícia portuária e pela Casa de Comissão da Corte,
tudo numa cadeia de procurações sub-estabelecidas, em um processo
concluído na escritura de compra e venda passada para um cafeicultor
no interior fluminense.8 Uma pesquisa em Juiz de Fora e Muriaé, Zona da

7 A sisa, imposto de transmissão de propriedade, correspondia a 10% do valor da operação


comercial. No caso do escravo, pagava-se 5% do seu preço.
8 Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 44.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 377


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Mata mineira, constatou que, nessa época, na maioria dos negócios haveria
a figura do intermediário – pessoa física ou jurídica – que representaria
legalmente o proprietário, como seu procurador, do mesmo que ocorrera
com outro estudo sobre o Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro.9
Este subterfúgio, generalizado em todo o Império pelos comercian-
tes interprovinciais, foi também usado nas transações intrarregionais
de pessoas escravizadas. Entre 1874 e 1884, intercambiaram-se com
procurações 346 escravos, dos quais 37,4% em 1875 e 29,1% em 1876.
Contudo, esse montante não corresponde à quantidade de escravos
traficados nesse período, que foi muito superior. Paralelamente, muitos
compradores, talvez por exigência dos vendedores, emitiam escrituras de
compra e venda dos escravos que adquiriam. E como antes, nesses casos,
raramente deixavam indícios dessa emigração involuntária. Nesse lapso
de 11 anos comercializaram-se em Caetité 499 escravos, dos quais 30,1%
em 1875 e 26,9% em 1876, 66,9% deles situados na faixa etária de 11 a
30 anos, com maior concentração entre 21 e 30 anos de idade.10

Tabela II: Distribuição anual dos escravos traficados com procurações


Caetité, 1874-1880
Ano Frequência
1874 3
1875 127
1876 96
1877 36
1878 8
1879 12
1880 5
TOTAL 287

Fonte: APEB, Judiciária, Livros de Notas de Caetité.

Embasado nesses fatores, este estudo selecionou apenas 229 procurações


para venda de 287 escravos em outra província, onde e a quem conviesse
aos procuradores/traficantes, com a exclusão das que determinavam a
venda nesta província ou continham indicações que não caracterizassem
transferência para fora do seu território. Nesse processo, concluíam-se
negócios também noutras províncias que não integravam o circuito ca-
feeiro. Em1869, por exemplo, Aureliano da Rocha Bastos, residente em
Rio de Contas, vendeu em Caetité o crioulo Bento, de 30 anos, casado,

9 Rômulo Andrade, “Havia um mercado de famílias escravas? (A propósito de uma hipó-


tese recente na historiografia da escravidão)”, Locus: Revista de História, nº 4 (1998),
pp. 93-104.
10 Excluindo-se eventuais escrituras do livro nº 91, citado na nota 4.

378 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

sem o cônjuge, por 800 mil-réis, para João de Almeida Queirós, residente
na província do Paraná.11 Havia ainda intercâmbio de cativos com Goiás
e Minas Gerais, constatado nas indicações de escravos comercializados
em Caetité. A Tabela III indica intenso comércio de escravos entre 1874
e 1877, período que mais se traficou, como se vê na Tabela II.
Os municípios mineiros de Juiz de Fora e Muriaé, importadores
de escravos, tinham como maiores fornecedores a província do Rio de
Janeiro, seguida pela da Bahia. 12 A proximidade geográfica sugere que
os procedentes da Bahia chegassem ao sul de Minas pelo porto do Rio de
Janeiro. Um estudo dos negócios da escravidão na Província do Rio de
Janeiro descreve uma sublevação numa casa de comissões em 1872, onde
escravos aguardavam, sob tensão, o momento de serem revendidos para
o Vale do Paraíba ou interior de Minas Gerais. Um total de 24 escravos
prestaram depoimento no subsequente inquérito policial. Destes, 21
originavam-se de províncias do Norte, inclusive das que constituíram
depois o Nordeste, dos quais 14 eram baianos e os demais do Maranhão,
Ceará e Piauí. Apenas dois eram naturais do Rio de Janeiro e um de
Minas Gerais. 13

Tabela III: Escravos Comercializados por faixa etária:


ANOS

IDADE TOTAL 1874 1875 1876 1877 1878 1879 1880 1881 1882 1883 1884
Menos
de 1
ano
01 – 02 1
03 – 05 15 7 3 2 3
06 – 10 75 7 26 21 9 8 2 2
11 – 15 113 10 36 28 23 8 4 4
16 – 20 92 12 24 28 3 6 8 9 1 1
21 – 30 129 14 45 36 14 8 8 2 2
31 – 40 52 12 12 12 5 6 1 1 3
41 – 50 18 3 3 4 3 2 1 1 1
51 – 60 5 1 1 3
61 – 70
TOTAL 499 66 150 134 61 38 24 18 3 1 3 1

Caetité, 1874-1884Fonte: APEB, Judiciária, Livros de Notas de Caetité.

11 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/23, f. 169, Escritura de compra
e venda, 28 nov., 1869.
12 Andrade, “Havia um mercado”, p. 95.
13 Chalhoub, Visões da liberdade, p. 43.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 379


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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Foi significativo o tráfico de escravos baianos para Minas Gerais. Dos


8.578 cativos nascidos em outras províncias e recenseados na de Minas
Gerais em 1872, 24,41% procediam da Bahia.14 Grande parte concentrava-
se no sul da província, de economia mais ativa, que os importava através
do Rio de Janeiro. Muitos desses escravos acompanharam os senhores na
emigração para Minas ou no serviço temporário em fazendas da mesma
propriedade de um lado e outro da divisa entre as duas províncias.
As fontes da pesquisa não oferecem dados suficientes para explicar
a concentração das transferências com procurações em três anos, princi-
palmente em 1877, quando prolongada seca provocou o desabastecimento
regional, presumível fator desse comércio. A extensão de estudo semelhante
aos municípios vizinhos esclareceria a questão, talvez com indicações de
semelhante fenômeno em anos diferentes na região, como resultado da
busca de mercados alternativos pelos comerciantes.
Esse auge do comércio inter-regional na década de 1870 resultou,
fundamentalmente, de dois fatores: a crise da agricultura nordestina e a
prolongada estiagem de 1877-1879. Nesse decênio, o Nordeste brasileiro
vivenciou o aniquilamento da lavoura algodoeira e a redução dos preços
do açúcar no mercado internacional, que a elevação da taxa cambial du-
rante o ministério Rio Branco tornara ainda mais insuportável. 15 Depois
da catastrófica crise hídrica de 1857-1861, que despovoou os sertões
nordestinos, novo período de escassez de chuva disseminou de pronto
o pânico social. Esse pânico, por sua vez, provocou a emigração descon-
trolada e a venda da escravaria para regiões de prosperidade econômica.

O tráfico
Com o fim do tráfico atlântico de africanos em 1850, desenvolveu-
se no Brasil o comércio interprovincial de escravos, que os transferia de
áreas com economias débeis ou decadentes para as mais promissoras e
resolvia a carência de mão-de-obra do Sudeste cafeeiro, com o seu agrava-
mento no Nordeste açucareiro, principalmente nos sertões. Nessa região
a escravidão, submetida às especificidades da pecuária e da policultura
agrícola, era menos expressiva devido também ao amplo emprego da
meação e do trabalho familiar autônomo (campesinato), que coexistia
com o trabalho assalariado diarista.
O comércio inter-regional de cativos não se constituiu uma exclusividade
da escravidão brasileira. Entre 1830 e 1850, em circunstâncias semelhantes,

14 Roberto Borges Martins,“Minas Gerais no século XIX: tráfico e apego à escravidão numa
economia não-exportadora”, Estudos Econômicos, nº 13 (1), jan./abr. (1983), pp. 181-209.
15 Evaldo Cabral de Mello, O Norte agrário e o Império:1871-1889, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Brasília: INL, 1984, p. 39.

380 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

quando expandia a cotonicultura nos estados norte-americanos de Alabama,


Missippi, Louisiânia e Texas, desenvolveu-se o comércio de escravos da Vir-
gínia e da Carolina do Sul, onde a prosperidade agrícola não era a mesma.16
No Brasil, antes do tráfico especulativo, transportavam-se escravos
de uma para outra região ou província sempre que o fluxo econômico
exigisse, sem caracterizar negócio exclusivamente escravista. Eventual-
mente encontram-se em Caetité escrituras de escravos naturais de Minas
Gerais e Goiás. Além do comércio ocasional, fazendeiros e mineradores
transferiam temporariamente seus escravos para outras unidades pro-
dutivas ou migravam com eles. Este fenômeno foi comum em Caetité,
município fronteiriço de Minas Gerais. Sempre se negociou cativos intra
e inter-regionalmente, entretanto, este intercâmbio interno da segunda
metade do século XIX teve caráter específico e não se configurou um mero
substituto do tráfico atlântico, mas a sua continuidade.17
A grande crise hídrica de 1857-1860, suas trágicas consequências e
o tráfico interno deixaram o Nordeste com maioria de escravos idosos e
crianças para proporcionar sobrevida à escravidão no Sudeste cafeeiro,
de modo a postergar a gradual extinção com mancípios jovens, sadios e
em pleno vigor físico. A morosa agonia escravista associada à estagnação
econômica nordestina, relativamente à sua movimentação anterior e à
expansão agrícola do Sudeste, deprimia drasticamente os preços locais
dos escravos na região Nordeste. A migração compulsória reverteu esse
processo, que gerou demanda ao transferir consideráveis contingentes
de cativos para os cafezais do Sudeste.
A documentação cartorial indica que a transferência de mão-de-obra
escrava do Alto Sertão da Bahia para o interior paulista, em transações
comerciais ou, simplesmente, por acompanhar os seus senhores quando
migravam, antecedeu o fim do tráfico atlântico. Em 1835, por exemplo, o
senhor Manoel José Leal libertou, sob a condição de servi-lo enquanto vivesse,
a africana Maria, de 15 anos, no município de Franca, extremo nordeste de
São Paulo. Dez anos depois, presumivelmente após a morte do senhor, Maria
registrou o traslado da sua carta de liberdade no tabelião de Caetité.18
O senhor Leal, de Franca, libertara Maria em Caetité? A escrava
acompanhava-o em Franca? Acompanhara o senhor migrante da Bahia
para São Paulo? Fora traficada do sertão baiano e vendida ainda criança no
interior paulista? Condicionar a libertação de uma jovem à permanência

16 Robert E. Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888, Rio de Janeiro: Ci-
vilização Brasileira, 1978, p. 63.
17 Robert E. Conrad, Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil, São Paulo: Brasi-
liense, 1985, p. 205.
18 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25.11, f. 35, Registro, 6 nov., 1845,
do primeiro traslado da Carta de Liberdade, 24 jul.,1835, do Livro 3º de Notas, fls. 96v. a
97, da Vila Franca do Imperador, 3ª Comarca da Província de São Paulo.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 381


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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no cativeiro enquanto vivesse – costume de pequenos proprietários –


sugere escravidão doméstica e convívio senhor-escravo. Portanto, Maria
acompanhara o seu senhor e após a sua morte retomara para Caetité,
onde, talvez, passara sua infância e deixara compatriotas ou familiares.
Pode-se também especular a possibilidade de casamento de Maria com
um liberto traficado de Caetité, que regressara pela mesma razão, ou
homem livre migrante que voltara às suas origens.
O declínio da escravidão sertaneja antecede a intensificação do
intercâmbio escravista com o Oeste Paulista. A Tabela I indica que na
década de 1850, logo após o fim do tráfico externo, o número de cartas
de liberdade de Caetité declinou 12,4%, comparativamente aos 10 anos
anteriores e aumentou 13,3% no período seguinte, para novamente dimi-
nuir 3,3% no decênio de 1870, quando se intensificou o tráfico interno.
Os valores quantitativos são pouco expressivos, mas revelam dinâmica
semelhante à que coincide com o período do tráfico.

Tabela IV: Escravos comercializados por anos e faixas etárias – Caetité, 1874-1884
População
Freguesias e distritos
Total Livre Escrava
Caetité 17.836 16.778 1.058
Bom Jesus dos Meiras 9.080 7.935 1.145
Rosário do Gentio 7.722 6.633 1.089
Boa Viagem e Almas 19.984 18.870 1.114
TOTAL 54.622 50.2 16 4.406
Fonte: Manoel Jesuíno Ferreira, A Província da Bahia: apontamentos, Rio de Janeiro: Typ.
Nacional, 1875, p.36.

A precariedade das estatísticas dificulta comparações, sobretudo


quando se referem a universos diferentes. Neste caso apenas dimensiona
os universos sociais. Em 1862, por exemplo, a freguesia de Santana, cor-
respondente ao primeiro distrito ou distrito-sede do Município de Caetité,
tinha população de 8.272 habitantes, dos quais 1.575 escravos, 19,0%
do total.19 Uma década depois, o primeiro Censo Demográfico brasileiro

19 Nessa época o termo de Caetité compunha-se de três freguesias: Santa Anna de Caeti-
té, Nossa Senhora do Rosário do Gentio (Ceraíma, distrito de Guanambi) e Santíssimo Sa-
cramento de Santo Antônio da Barra (Condeúba). Esta última emancipou-se em 1860. A
freguesia de Santa Anna subdividia-se em três distritos de paz: Vila de Caetité (distri-
to-sede), Canabrava e Bonito (Caldeiras e lgaporã) e Bom Jesus (Brumado),cf. Erivaldo Fa-
gundes Neves, Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de his-
tória regional e local), Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 1998, p. 35. Sobre os
dados populacionais: APEB, Seção Colonial e Provincial. Presidência da Província, Maço
5.219, Correspondência do Vigário Polycarpo de Brito Gondim e do Subdelegado e Juiz de
Paz Cândido Pereira Guedes ao Presidente da Província, 31 dez., 1862, que apresentava o
“Censo do 1º Distrito desta Vila”.

382 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

registrou, na mesma freguesia, 17.836 habitantes, com 1.058 escravos ou


apenas 5,9% da população. Um declínio de 32,8% dos escravos, enquanto
a população total crescera 115,6%, uma taxa excessivamente elevada.20
Esse confronto do Censo Paroquial de 1862 com o Censo Demográfico de
1872 evidencia imprecisão de dados.
Município com alto índice de emigração, Caetité não teria um in-
cremento populacional dessa magnitude sem fatores especiais, princi-
palmente quando se considera que nessa época desenvolvia-se a emi-
gração compulsória da mão-de-obra escravizada e multiplicavam-se
as liberdades condicionadas. Geralmente alforriavam-se cativos pelos
bons serviços, para gozar sua liberdade após a morte do senhor ou de
quem ele indicasse. Desse modo, os senhores se resguardavam contra
eventual extinção súbita da escravidão, por se suporem no direito de
cobrar fidelidade do ex-escravo pela gratidão de terem-se comprometido
com a sua liberdade antes que fosse emancipado por lei. A partir de
meados da década de 1880, quando declinou a emigração compulsória,
intensificou-se a saída espontânea de jovens sertanejos, atraídos pela
expansão cafeeira. O Governo de São Paulo estimulava a imigração –
“amigação”, na corruptela de sertanejos incultos – com o custeio do
transporte ferroviário a partir de Monte Azul-MG, final dos trilhos
que se conectavam à malha de ferrovias do Centro-Sul, até as fazen-
das de café. Essas circunstâncias – agravadas pela falta de iniciativa
governamental, tanto provincial quanto imperial e a impotência das
municipalidades – reduziram drasticamente a densidade demográfica
regional, sobretudo nos períodos de secas prolongadas.
O tráfico interior de escravos nessa época sofria restrições até de
governos provinciais, interessados na imigração europeia e na mão-de-o-
bra livre nacional. Desde 1862 a Bahia já taxava em 200 mil-réis a saída
de escravos para outras províncias. Contudo, esse tributo não estancou
a comercialização de escravos. Somente em cinco meses, de outubro de
1873 a fevereiro do ano seguinte, saíram da província 702 cativos. 21 Já São
Paulo passou a tributar, em 1871, a entrada de cativos com o mesmo valor,
aumentado para 500 mil-réis logo após e para um conto de réis sete anos
mais tarde. Essa última taxação não vigorou porque o Executivo vetou a lei
aprovada pela Assembleia Legislativa Provincial, que no início da década
seguinte tentou nova elevação do tributo sobre a importação de escravos

20 Censo Demográfico de 1872 in: Manoel Jesuíno Ferreira, A Província da Bahia: apon-
tamentos. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1875, p. 36.
21 “Herança Cabocla I”. Diário da Bahia. Salvador, 5 mar., 1874. Seção Correspondência, f. 1.
Por ser uma informação de período muito próximo do fato noticiado, talvez o jornal tenha
computado somente os escravos exportados pelo porto de Salvador, e omitido os trafica-
dos pelos caminhos do sertão.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 383


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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de outras províncias, dessa vez para dois contos de réis.22 Nove anos depois,
a Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais também aprovou uma
lei – de nº 2.716 – restritiva das importações de cativos, que determinava
a cobrança de uma taxa de dois contos de réis – valor muito superior ao
de um jovem, sadio e forte – sobre cada escravo masculino traficado de
outra província.23 Finalmente, em 1885, a Lei Saraiva­Cotegipe, conhecida
também como Lei dos Sexagenários, definiu o domicílio do escravo como
intransferível para província diversa da que fosse matriculado, com exceção
dos casos em que cativos acompanhassem os seus senhores.24

22 Costa, Da senzala, pp. 192 e 193.


23 Andrade, “Havia um mercado”, p., 95.
24 Brasil, Collecção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro: Typ.Nacional, 1886, tomo
XXXII, parte 1, Lei Imperial nº 3.270, 28 set., 1885, Art . 4º, Parag. 19º. Sobre o debate na
Câmara e no Senado em torno desse prolixo texto legal, ver: Fábio Vieira Bruno (Org .e
Sel.), O parlamento e a evolação nacional, 1871- 1889 , Brasília: Senado Federal, 1979, (3ª
série), v.1. pp. 291-360.

384 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Os traficantes de escravos deslocavam-se com suas mercadorias do


sertão da Bahia, pelo interior, desde Caetité pelo distrito de Duas Barras
(Urandi) e transpunham a fronteira de Minas Gerais em território da
jurisdição de Boa Vista do Tremedal (Monte Azul), de onde alcançavam
Montes Claros e Bocaiúva, ainda no norte mineiro e seguiam até Corinto
ou Curvelo para, possivelmente, marcharem por Divinópolis, Formiga,
Guaxupé ou Poços de Caldas e chegarem ao destino final através de
Araras. Poderiam também, de Corinto ou Curvelo, contornar a serra da
Mantiqueira e dirigirem-se para Araxá, onde atravessariam a serra da
Canastra, para chegarem a Franca, em São Paulo e deslocarem-se até
Batatais, Ribeirão Preto e, finalmente, São Carlos e adjacências.

TABELA V: PREÇOS MÉDIOS EM MIL-RÉIS DE ESCRAVOS MASCULINOS,


DE 15 A 29 ANOS: CAETITÉ – BA E RIO CLARO – SP, 1848-1886
CAETITÉ RIO CLARO LUCRO BRUTO
ANOS PREÇOS PREÇOS
FREQUÊNCIAS FREQUÊNCIAS %
MÉDIOS MÉDIOS
1848 5 400 5 460 15,0
1849 4 488
1850 1 300 6 650 116,7
1851 5 516 4 610 18,2
1852 10 680 5 870 27,9
1853 1 540 5 960 43,8
1854 6 571 3 980 71,6
1855 10 678 3 1.200 177,0
1856 7 967 1 1.700 76,4
1857 4 1.125 4 1.450 28,9
1858 2 1.400 4 2.000 42,9
1859 1 550 6 1.800 227,3
1860 2 1.075 3 2.030 88,8
1861 4 763 13 1.750 129,4
1862 3 1.167 10 1.860 59,4
1863 4 1.023 8 1.920 87,7
1864 2 900 4 1.970 118,9
1865 6 930 1 2.000 115,1
1866 4 1.500
1867 4 925 3 1.700 91,9
1868 3 867
1869 2 800
1870
1871 4 1.050 17 1.770 53,9
1872 4 775 3 1.920 147,7
1873 2 725 8 1.600 120,7
1874 2 900 1 1.000 11,1

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 385


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1875 3 767 16 2.200 186,8


1876 5 920 11 2.270 146,7
1877 2 1.050 15 2.130 102,9
1878 2 1.050 20 2.070 97,1
1879 2 1.450 78 2.080 43,4
1880 3 1.210 3 2.300 90,1
1881 1 2.000
1882 1 1.400
1883 8 1.080
1884 1 1.000
1885 1 600 16 870 45,0
1886 1 876

Fontes: APEB, Judiciária, Livros de Notas de Caetité; e Warren Dean, Rio Claro, um sistema
brasileiro de grande lavoura, 1820-1920, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 66.

A participação de empresa de Salvador – Brandão & Irmãos – nesse


negócio indica a possibilidade de uso da navegação costeira, através do
Recôncavo, ainda que em menor escala, para o Rio de Janeiro, principal
porto de desembarque de escravos transportados do Nordeste, para supri-
rem o vale do Paraíba e sul de Minas Gerais. Pelo interior, os comboios de
cativos dos dois gêneros e de diversas idades marchavam pelos tórridos
caminhos dos sertões baianos e mineiros, acorrentados, com gargalheiras
ao pescoço para se evitarem fugas e sob a ameaça de chicotes para se
impor a disciplina.25
Os documentos analisados, por conveniência dos comboieiros, não
revelam preços dos escravos comercializados. Contudo, outras fontes
permitem estabelecerem-se comparações, ainda que não absolutamente
precisas. A Tabela V indica a ascensão e declínio dos preços de escravos
masculinos na faixa etária de maior vigor físico, nos dois extremos do
negócio escravista, com auges em Caetité, entre 1857 e 1867 e Rio Claro,
entre 1875 e 1880. O confronto dos preços médios anuais indica, com ra-
zoável aproximação, o fantástico lucro bruto proporcionado pelo negócio.
Um estudo do comércio interno de escravos nos Estados Unidos calculou as
taxas de lucro anuais dessa atividade, entre 1817 e 1860, oscilante entre
14,5%, em 1852-1853 e 91,8%, em 1817-1818 (esse último indicador se
distancia muito do imediatamente inferior – 69,9% - e faz supor alguma
distorção). Nesse meio século de tráfico interno os norte-americanos
envolvidos nesse negócio alcançaram um lucro bruto médio de 37,5%.26

25 Conrad, Tumbeiros,p. 1 91; e Neves, Uma comunidade, p. 34.


26 Michael Tadman, Speculatores and slaves: masters, traders and slaves in the Old South,
Madison: The University of Wisconsin Press, 1989, p. 205.

386 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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O intercâmbio entre o Alto Sertão algodoeiro da Bahia e o Oeste


Cafeeiro Paulista foi muito mais rentável para os traficantes de negros
escravizados. O menor índice de lucro bruto, 11,1% em 1874, corresponde
apenas a um escravo de Rio Claro e dois de Caetité, frequências insig-
nificantes para caracterizarem a realidade dos preços. Pode-se supor
distorção também na mais elevada taxa de vantagem comercial – 227,3%
em 1859 – porque dizem respeito a apenas um cativo da fonte fornecedora
contra seis do mercado comprador. Entretanto, ao se considerar somente
o período de maior intensidade do tráfico entre as duas regiões – 1875-
1880, com frequências de dois ou mais escravos – o lucro bruto médio
atingiu o índice de 111,1%, uma exorbitância para os padrões comerciais
da segunda metade do século XIX.
Somente a província do Rio de Janeiro, cujos cafezais se expandiam
pelo Vale do Paraíba acima, recebeu, entre 1852 e 1859, 26.622 cativos
procedentes de outras províncias, principalmente do Nordeste. Em 1877,
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentravam 776.444 escravos,
mais do que a metade do total das demais unidades administrativas do
Império. Em 1880, enquanto nas 11 províncias ao norte da Bahia a popu-
lação escrava se limitava a 498.268 habitantes, nas 10 províncias ao sul
do Espírito Santo alcançava 920.921 cativos.27
Também no Vale do Paraíba fluminense a cotação da mão-de-obra
escrava obedeceu à mesma lógica. Em Vassouras o preço médio de homens
e mulheres entre 20 e 25 anos evoluiu de 630 mil-réis para um conto e
350 mil-réis em três anos, com o fim do tráfico africano em 1850. Inver-
samente, na década que antecedeu a extinção do trabalho cativo, declinou
de um conto e 925 mil-réis, em 1877, auge do tráfico interno, para 850
mil-réis, em 1887.28
Os indicadores do incremento da população escravizada dos mu-
nicípios do Novo Oeste Paulista, receptadores de escravos de Caetité,
revelam grande elasticidade da demanda. São Carlos, por exemplo,
principal mercado de cativos caetiteenses, alcançou 121% de aumento
entre 1874 e 1882, época que inclui o curto período das procurações para
venda de escravos estudadas. 29 As estatísticas disponíveis (Tabela VI),
embora pouco confiáveis, indicam acentuado crescimento da população
escrava nas províncias do Sudeste cafeeiro e contínuo declínio nas do
Nordeste açucareiro, entre 1819 e 1887. Suas visíveis distorções difi-
cultam avaliações das transferências intra-regionais e interprovinciais
da força de trabalho escrava. Na Bahia esse contingente declinou 49,5%

27 Stanley Julian Stein, Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900, trad. Vera
Bloch Wrobel, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 95.
28 Stein, Vassouras,p. 270.
29 Conrad, Os últimos anos, p. 356.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 387


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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entre 1823 e 1882, enquanto em São Paulo expandira 464,5%. Nas quatro
províncias cafeeiras – Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito
Santo – a população escravizada crescera 49,3% e, inversamente, nas seis
açucareiras –Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraíba e Rio Grande
do Norte – reduzira 44,2%.

TABELA VI: DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO ESCRAVA NO BRASIL, 1819-1887


PROVÍNCIA 1819 1823 1872 1882 1887
% % % % %
Minas Gerais 15,22 18,74 24,52 22,09 30,00
Rio de Janeiro e Corte 13,19 13,12 22,60 24,11 25,47
São Paulo 7,01 1,83 10,37 10,33 16,91
Espírito Santo 1,83 5,23 1,50 1,64
Bahia 13,30 20,69 11,11 10,47
Pernambuco 8,82 13,07 5,89 6,71
Sergipe 2,37 2,79 1,50 2,07
Alagoas 6,24 3,49 2,37 2,33
Paraíba 1,51 1,74 1,42 1,65
Rio Grande do Norte 0,82 1,25 0,86 0,80
Amazonas 0,54 - 0,06 1,14
Pará 2,98 3,49 1,82 2,01
Maranhão 12,04 8,47 4,96 4,76
Piauí 1,12 0,87 1,58 1,43
Ceará 5,01 1,74 2,11 1,55
Paraná 0,92 - 0,70 0,61
Santa Catarina 0,83 0,22 0,99 0,87
Rio Grande do Sul 2,55 0,65 4,49 5,44
Goiás 2,42 2,09 0,71 0,55
Mato Grosso 1,28 0,52 0,44 0,44
TOTAL 100,00 100,00 100,00 100,00
BRASIL (1.107.389) (1.147.515) (1.510.806) (1.262.801)

Fontes: F. J. Oliveira Vianna, "Resumo histórico dos inquéritos censitários realizados no Brasil";
e Ciro T. de Pádua,"Um capítulo da história econômica do Brasil", citados em Stanley Stein,
Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900, trad. Vera Bloch Wrobel, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990, p. 341.

388 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Os Traficados
A amostra de 287 escravos apresenta apenas dois identificados como
africanos: Pedro, de 43 e Benedito, de 50 anos de idade, ambos solteiros
e sem informações sobre suas etnias; dos brasileiros declarados, apenas
139 – 48,4% do total – trazem referências raciais, dos quais, 16,7% crioulos
e 31,7% mestiços (25 cabras, dois mulatos e 64 pardos, designações indi-
cativas apenas de gradação da pigmentação da pele). Encontram-se ainda
127 escravos simplesmente identificados como pretos, presumivelmente
brasileiros, porque assim o Censo Demográfico de 1872 denominou os
negros nascidos no Brasil, antes identificados como crioulos.
Apenas nove escravos aparecem na condição de casados e um
viúvo. Os traficantes internos mantiveram a integridade de algumas
famílias no ato da compra, embora não se saiba como se comportaram
na consumação do negócio no destino final. Em 1875 a senhora Joana
Tereza de Jesus constituiu, no arraial de Bonito -(Igaporã), ainda inte-
grante do distrito de Canabrava e Bonito, em Caetité - os procuradores
Clemente de Quadros Bittencourt, José Ferreira de Figueiredo, Leolino
Xavier Cotrim, Leolino Rodrigues de Figueiredo, Dr. João José de Faria
e Joaquim Manoel de Brito Gondim para venderem, onde e a quem lhes
conviessem, os escravos Bruno e Rita, pretos, casados, de idades de
30 e 29 anos respectivamente, com um ingênuo masculino ainda por
batizar. 30 Os ingênuos, filhos de escrava nascidos sob a vigência da Lei
Imperial nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 – Lei Rio Branco ou Lei
do Ventre Livre – ficariam em poderes e sob as autoridades dos senho-
res de suas mães. No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos
livres, menores de 12 anos lhe acompanhariam e ficaria o novo senhor
sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor. 31 A lei omitiu a
condição de menores escravos, elevado número na amostra estudada
(Tabela VI), mas, por analogia, deveriam manter-se na companhia ma-
terna. Domingos Gonçalves Fraga, de família com tradição no comércio
regional de escravos, concedeu todos os seus poderes ao Dr. João José de
Faria, Joaquim José de Faria, Lauro Gonçalves Fraga, Joaquim Manoel de
Brito Gondim e Filipe Garcia Leal, ou aos por eles substabelecidos, para
venderem onde e a quem lhes conviesse, 14 pretos, mulatos e cabras,
entre os quais o casal Manoel, de 48 anos e Florinda, de 40, sem filhos
declarados e a solteira Antônia, 45 anos, com as filhas Clara e Rita, de
10 e 15 anos. Quanto às filhas de Antônia, prováveis companheiras de

30 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/25, f. 41, Procuração, 4


dez., 1875.
31 Brasil. Collecção das Leis do Império (1871), Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1871, XXXI,
Parte 1, pp. 146-151. O longo debate parlamentar que antecedeu essa lei pode ser visto em
Bruno (Org. e Sel.), O parlamento, pp. 229-295.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 389


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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infortúnio na longa marcha por Minas Gerais até São Paulo, talvez não
tenham permanecido unidas depois da migração compulsória. 32
Antônio Francisco de Brito, da fazenda Umbaúba, distrito de São
Sebastião (Ibiassucê) designou, em 1876, José Ferreira de Figueiredo,
Clemente Quadros Bittencourt, Leolino Rodrigues de Figueiredo, coro-
nel José Justino Gomes de Azevedo, João Manoel Joaquim Guimarães
Louzada, procuradores para venderem o casal João, preto e Escolástica,
parda, ambos de 33 anos, com o filho Josafá, de sete anos. 33 Também
José Antônio Rodrigues constituiu, em 1877, na cidade de Caetité, o
alferes Manoel Rodrigues Ladeia Lobo, Pedro Teixeira de Lacerda e
o tenente-coronel João Antero Ladeia Lima como seus procuradores
para venderem, em qualquer lugar da Província ou de outra, a família
composta por Antônio e Isabel, pardos e os filhos Pedro, de 14 e Maria,
de 13 anos. Dificilmente esses jovens e crianças permaneceriam unidos
aos pais. Os cafeicultores procuravam trabalhadores fortes e sadios para
trabalharem, não famílias e casais unidos pelo casamento. 34 Também no
sertão encontram-se indícios dessa conduta: o senhor Bento Marques
das Neves nomeou, no distrito de Canabrava (Caldeiras), em Caetité,
seu procurador, o Dr. João José de Faria, para vender ao alferes Joaquim
José de Faria, irmão do mediador e seu sócio no tráfico de escravos,
talvez já residente em São Paulo, Umbelina, preta, 25 anos, casada. 35
A procuração nada informa sobre o cônjuge nem há nos livros de notas
qualquer escritura de escravo que indique alguém nessa condição. Por-
tanto, comercializaram Umbelina sem o marido. Seria ele livre? Nessa
hipótese, acompanhara a esposa? O casal tinha filhos? Se os tinha,
ficaram com o pai ou integraram outra caravana de acorrentados para
o Sudeste cafeeiro? Pode-se ainda supor que o traficante procurador
não a traficara para os cafezais paulistas. Comprara-a para trabalhar em
fazenda que talvez ainda possuísse em Caetité e, nessas circunstâncias,
seu destino seria menos cruel, por permanecer no convívio familiar,
embora no cativeiro. O único viúvo da amostra, Simão, preto, 45 anos,
do distrito de Canabrava, foi objeto de procuração, em 1877, do senhor
Ambrósio Batista de Souza para Licínio Turus Magalhães, Francisco
Antônio da Silva, Francisco de Paula Batista e Augusto Joaquim de Ma-
galhães, para venda em qualquer parte do Império. Nada mais acrescenta
a procuração sobre ele nem eventuais filhos.

32 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/25, f. l97v, Procuração, 8


fev., 1876.
33 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/26,f.205, Procuração, 12
fev., 1876.
34 Conrad, Tumbeiros ,p. 191.
35 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/25, f. 42v., Procuração, 24
dez., 1875.

390 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Quanto ao gênero, o universo dos escravos listados nas procurações


estudadas compunha-se 53,7% de homens e 46,3% de mulheres. Alguns
fatores explicam o elevado percentual feminino: seria reflexo do perfil
demográfico de Caetité e uma certa preferência pela mulher escrava na
colheita do café, mas, também poderia ser consequência da Lei do Ventre
Livre, ao impedir a separação de jovens escravos, cobiçados pelo mercado
paulista, de suas mães e isto incentivara sua comercialização conjunta,
sempre que não fosse possível alegar sua orfandade.
A Tabela VII demonstra relativo equilíbrio de gêneros, com o predomínio
de mulheres nas faixas etárias de 23 a 27 e de 28 a 32 anos, precisamente
as de grande fertilidade feminina e muito vigor físico para o trabalho.
As idades dos escravos estudados variaram de 03 a 50 anos. Distribuídos
por faixas etárias, 22,3% tinham entre 03 e 12 anos; 40,8%, entre 08 e
17 anos; 50,5%, entre 13 e 27 anos; e 84,0%, entre 08 e 37 anos. Indica-
dores que revelam preferência por jovens saudáveis – não há registro de
deficiência física ou qualquer doença – em pleno vigor físico ou na faixa
economicamente ativa, e elevado interesse por crianças e adolescentes.
Pode-se explicar parcialmente essa escolha da mão-de-obra infanto-
juvenil também por consequência da Lei do Ventre Livre, que mantinha
o filho menor unido à sua mãe, menor preço das mulheres e de cativos
nessas faixas etárias, devido ao emprego nas colheitas de café e até pela
perspectiva de se postergar a extinção gradual da escravidão.

TABELA VII: DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS EM PROCURAÇÕES PARA


PRESUMÍVEL VENDA FORA DA PROVÍNCIA DA BAHIA, POR IDADE E GÊNERO:
CAETITÉ,1874-1880

TOTAL GÊNERO
IDADE
Nº % M % F %
03 - 07 7 2,4 3 1,1 4 1,3
08 - 12 57 19,9 35 12,2 22 7,7
13 - 17 60 20,9 33 11,5 27 9,4
18 - 22 46 16,0 25 8,7 21 7,3
23 - 27 39 13,6 15 5,2 24 8,4
28 - 32 24 8,4 11 3,9 13 4,5
33 - 37 15 5,2 8 2,8 7 2,4
38 - 42 4 1,4 3 1,1 1 0,3
43 - 47 3 1,0 2 0,7 1 0,3
48 - 50 4 1,4 3 1,1 1 0,3
SEM INF. 28 9,8 16 5,6 12 4,2
TOTAL 287 100,0 154 53,9 133 46,1

Fonte: APEB, Seção Judiciária, Série Livros de Notas de Caetité

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 391


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Fenômeno também demonstrado nas escrituras de compra e venda


de Rio Claro, mercado de meninos e jovens caetiteenses, onde 29% dos
escravos não naturais da província de São Paulo, em 1872, provinham
da Bahia. A partir desse ano, quando se intensificou o tráfico sertanejo,
as vendas de escravos registradas nessa cidade paulista consistiam, na
maior parte, de meninos de 10 a 15 anos, raramente acompanhados dos
pais, que eram declarados – quase sempre, é possível, falsamente – de
mães desconhecidas ou mortas.36 As procurações quase nada informam
sobre os escravos que autorizavam comercializar, menos que as escrituras
de compra e venda. Sobre as profissões, por exemplo, dos 287 escravos
estudados, apenas três trazem indicações que, pouco ou absolutamente
nada, se relacionam com agricultura: garimpeiro, ferreiro e cozinheira;
nenhuma informação sobre preços ou morbidade. A ausência deste último
indicador explica-se pelo pouco ou nenhum interesse que um escravo
doente ou deficiente físico despertaria aos compradores.

Os Traficantes
Os traficantes internos se revelaram astuciosos na burla das leis,
particularmente do fisco. Negociavam menores de 12 anos sem a compa-
nhia materna, como determinava a Lei do Ventre Livre, de 1871. Alega-
vam orfandade ou filiação desconhecida; informavam preços inferiores,
sob o argumento dos escravos serem doentes; comercializavam cativos
matriculados em outras províncias após a Lei dos Sexagenários, com a
justificativa de adquiri-los para venda antes desse dispositivo legal. 37 Os
negociantes de escravos de Caetité para outra província, quase sempre
naturais do próprio município, pertenciam à mesma rede familiar, por
consanguinidade ou casamentos. Aparecem relacionados nas procura-
ções, individualmente ou em grupos de até nove procuradores, entre os
quais algumas empresas: Alexandre Alves Bello & Cia.; Antônio Gomes
dos Santos & Cia.; Brandão & Irmãos (de Salvador); e Campos & Castro
(de Minas Gerais).
Não se pode identificar todos os 94 procuradores constituídos nos
229 documentos selecionados em Caetité para negociarem escravos fora
da província da Bahia. 38 Alguns dos seus sobrenomes são de famílias do
município ou nele residentes na segunda metade do século XIX: Costa
Negrais, Oliveira Guimarães, Teixeira Lacerda, Vasconcelos Bittencourt. 39

36 Warren Dean, Rio Claro, um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920, trad. Waldí-
via Portinho, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 69.
37 Andrade, “Havia um mercado”, p. 95
38 Ver lista de nomes anexa.
39 Ver listagem de inventários de Caetité no Arquivo Púbico do Estado da Bahia.

392 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

A identificação de alguns dos mais frequentes procuradores revela, so-


bretudo, naturalidade caetiteense, vínculo familiar e liderança do coronel
Leolino Xavier Cotrim.

Tabela VIII: Incidências dos traficantes nas procurações Caetité 1874-1880


Procurações Incidências
Uma vez 31
2-4 23
5-10 17
11-20 8
21-50 6
51-100 6
Mais de 100 3
Fonte: APEB. Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité.

Adrião Dizão Ribeiro Guimarães era filho de Clemente José Ribeiro


Guimarães e Benta Rosa Leal, abastado casal residente no sítio Ara-
çás – então no Arraial de Boa Viagem e Almas, depois no município de
Ibiassucê – cujos domínios se estendiam às fazendas Boa Vista, Jacaré
e Campo Largo. 40 Seu avô materno, o português, capitão-mor Bento
Garcia Leal, casado com Nazária Borges de Carvalho, foi um dos maiores
fazendeiros e comerciantes do sertão, na transição do século XVIII ao
XIX – proprietário das fazendas Barrocas, Riacho, Canabrava, Vargens,
Lagoa Clara, em amplo território – exportava algodão para a Inglaterra
através da casa exportadora de Pedro Rodrigues Bandeira, de Salvador.41
Dizão recebera do pai, em legado testamental, metade do sítio Araçás, que
vendeu por 400 mil­r éis, em 1869, para Antônio Pinheiro de Azevedo.42
Deve ter fracassado nos negócios, porque morreu em 1879, ainda solteiro,
no auge do tráfico de escravos para São Paulo, endividado. Seus poucos
bens não foram suficientes para quitar os débitos.43
Antônio José Ladeia Lobo era filho do pernambucano Antônio de
Souza Lobo Júnior e da caetiteense Maria Clemência Ladeia Lobo, e
também nascera em Caetité. Seu irmão, Manoel Rodrigues Ladeia Lobo
destacou-se entre os comerciantes de escravos do sertão. Já Ernesto
Fagundes Cotrim nascera de Antônio Joaquim de Carvalho Cotrim e Rita

40 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 02/589/1041/14; Neves, Uma comuni-
dade. p. l90
41 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/23, f. 138, Escritura públicade-
24dejulho de 1869.
42 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço. 02/865/1334/05.
43 Idem, ibidem.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 393


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Antônia de Brito Gondim, fazendeiros em Umbuzeiro, e Cachoeira, em


Caetité. Primo do coronel Leolino Xavier Cotrim, faleceu em São Carlos
do Pinhal, São Paulo, em 1879, aos 39 anos, 44 enquanto Filipe Garcia
Leal também descendia do capitão-mor Bento Garcia Leal; sua mulher,
Guilhermina Maria de Jesus, era filha de Antônio Ribeiro Guimarães
e Bernardina de Sena Soares e neta de Domingos Soares dos Santos
Barbalho e Ana Joaquina de Jesus Soares, titulares de grandes fazendas
em toda a Serra Geral da Bahia, 45 e Jerônimo Pereira da Costa Neto era
filho do capitão Manoel Pereira da Costa e Emiliana Ribeiro da Costa e
cunhado do coronel Leolino Xavier Cotrim. 46
João Antero Ladeia Lima era filho de Manoel Rodrigues Ladeia, ca-
sado com Mariana de Albuquerque Ladeia Lima, filha do comendador
João Caetano Xavier da Silva Pereira.47 Agiota e proprietário de muitas
fazendas, inclusive Malhada e Vereda, compradas em 1872 de José Porfírio
de Magalhães. Pagou pela primeira dois contos de réis e pela segunda,
200 mil-réis. 48 E adquiriu Formoso, em 1874, por oito contos de réis do
tenente-coronel Manoel Rodrigues Ladeia e sua mulher Maria Justina
Rodrigues Ladeia. 49 Todas na margem direita do rio São Francisco, então
município de Carinhanha. João Antero residia na fazenda Escadinha, em
Caetité.
João José de Faria era filho do major Constantino José de Faria e
Bernardina Ladeia Faria e neto paterno do português Manoel José de
Faria, fazendeiro temporariamente em Canabrava do Caires, depois do
Faria, em Igaporã, na transição para o século XIX. Médico, casou-se com
Elvira, filha de Leolino Xavier Cotrim, de famí1ia radicada em Caetité no
início do século XVIII.50 Depois de enviuvar-se, João José de Faria casou
se novamente com uma filha de Manoel Xavier de Carvalho Cotrim. 51
Migrou para São Paulo, depois de envolver-se em conflitos políticos em
Caetité na passagem da monarquia para o sistema republicano, do qual
fora partidário. 52 Entretanto, seus vínculos paulistas eram anteriores;

44 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 08/3391/04.


45 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 02/879/1348/12.
46 Helena Lima Santos, Caetité, “pequenina e ilustre”, 2a. ed., Brumado: Gráfica e Editora Tri-
buna do Sertão, 1997, p. 177.
47 APEB. Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/24f.40. Escritura públi-
ca,13 jan.,1872.
48 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/21, f. 210, Escritura pública, 9
jan., 1874
49 Santos, Caetité, “Pequenina e...”, p. 128
50 Domingos Antônio Teixeira, Respingos históricos, Salvador: Arembepe, 1991, p.124
51 Santos, Caetité, “Pequenina e...”, p. 128; Teixeira, Respingos ,p. 128.
52 APEB, Seção Judiciário, Livros de Notas de Caetité, SRJ/25/03, f.76, Escritura de 5 de maio
de 1869.

394 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

traficara intensamente escravos sertanejos para os cafezais. Sua filha


Maria Amélia de Faria Fraga casou-se com o juiz de direito de Caetité,
Manoel José Gonçalves Fraga, sobrinho e homônimo do padre agiota e
negociante de escravos.
O alferes Joaquim José de Faria, da milícia imperial, era irmão
de João José de Faria, Manoel José de Faria e Lauro Gonçalves Fraga.
Casou-se com Amélia Maria Ladeia de Faria, filha do tenente-coronel
Filipe Rodrigues Ladeia e Joana Maria Ladeia. Em 1863, Joaquim vendeu
metade do sítio das Umburanas, com todas as fazendas, Retiro, Mato
Grosso e Santa Rosa da Pedra, que herdara do pai, o tenente-coronel
Filipe Rodrigues Ladeia, para o capitão José Justino Gomes de Azevedo,
por dois contos de réis. 53 Emigrou para São Carlos do Pinhal, São Paulo.
Joaquim Manoel de Brito Gondim era filho do capitão Manoel Francisco
de Brito Gondim e Rita Esmeria de Carvalho Cotrim,54 e irmão do padre
Policarpo de Brito Gondim, vigário por três décadas em Caetité e líder
do Partido Conservador, pelo qual se elegeu deputado provincial para
a legislatura de 1866-1867. 55
José Justino Gomes de Azevedo descendia do capitão da milícia colonial
Domingos Gomes de Azevedo e Ana Joaquina Sofia de Jesus, fazendeiros
no século XVIII em Rio Grande, (Pindaí). Algumas procurações lhe foram
dirigidas de Caetité para São Paulo; entretanto, em 1873, ocupava o posto
de comandante superior da Guarda Nacional de Caetité. 54 Justino Gomes
de Azevedo também descendia do capitão Domingos Gomes de Azevedo,
de família com tradição política em Caetité.
Lauro Gonçalves Fraga era filho do português Domingos José Gon-
çalves Fraga e Bemardina de Jesus Ladeia, família radicada em Caetité
desde o século XVIII. Irmão materno de João, Joaquim e Manoel José de
Faria e sobrinho do padre Manoel José Gonçalves Fraga, que constituiu
sucessivas empresas comerciais em Caetité entre as décadas de 1830 e
1850, através das quais praticava agiotagem em larga escala e negociava
intensamente com terras e escravos, em grande parte adquirido sem
execuções de empréstimos hipotecários. Fragas e Farias estabeleceram-
se em Bauru, São Carlos e São Paulo, mas permaneceu parte da família
em Caetité.56
O principal líder do empreendimento escravista sertanejo, Leolino
Xavier Cotrim era coronel da Guarda Nacional, filho de Manoel Xavier
de Carvalho Cotrim e Joaquina de Brito Gondim. Deixou Caetité com a
esposa Ludgéria Pereira Cotrim, filha do capitão Manoel Pereira da Costa

53 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 03/1196/1665/17.


54 Neves, Uma comunidade, p. 34.
55 Neves, Uma comunidade, p. 236.
56 Santos, Caetité, “Pequenina e...”, pp. 126-133.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 395


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e Emiliana Ribeiro da Costa, fazendeiros de muitas terras, seis filhos,


genros, noras, um neto (o futuro desembargador Júlio de Faria) e mais
parentes, agregados e escravos, em 7 de fevereiro de 1878, de pois de
longa estiagem que dizimara lavouras e criações.57 Partiu de sua fazenda
Lagoa da Pedra e chegou a São Carlos do Pinhal em 10 de abril do mesmo
ano, depois de viajar a cavalo e em carro-de-boi, os escravos a pé e per-
correr aproximadamente mil quilômetros. Estabeleceu-se, inicialmente,
na fazenda Nossa Senhora da Conceição da Babilônia. Por volta de 1890
comprou, na região de Pitangueiras, próxima de Ribeirão Preto, dois mil
alqueires de terras. Posteriormente, incorporou novas fazendas ao seu
patrimônio. Faleceu com 90 anos, em São Carlos do Pinhal - SP, em 18 de
agosto de 1924. Sua filha Elvira Cotrim de Faria casou-se com o médico
negociante de escravos João José de Faria.58
Manoel José de Faria era irmão de João José de Faria, Joaquim José
de Faria e Lauro Gonçalves Fraga, casado com Florentina Maria de Faria,
fazendeiro em Santa Luzia, em Caetité; Manoel Rodrigues Ladeia Lobo,
irmão de Antônio José Ladeia Lobo. Tobias de Souza Lima, juiz de Direito de
Caetité no final do século XIX migrou para São Paulo depois de aposentado.

Considerações últimas
A falta de estudos da emigração compulsória da Bahia ou qualquer de
suas regiões nesse período não permite estimativas seguras do comércio
inter-provincial de escravos. Contudo, pode-se afirmar que, relativamente
à população regional, foi grande o fluxo de mão-de-obra escravizada do
sertão baiano para São Paulo. Somente do município de Caetité saíram
algumas centenas, que causaram impacto socioeconômico. Considerada
regionalmente essa proporção multiplica-se, especialmente se levar-se
em conta os efeitos da seca de 1857-1862, que despovoou o Alto Sertão
da Bahia, com milhares de mortes por inanição e de fuga coletivas da
população.59 Ao senhoriato, sem condições de plantar roças ou desenvolver
qualquer outra atividade econômica, vender parte de seus escravos foi a
alternativa mais conveniente para se desonerar da manutenção de cativos
ociosos ou pouco produtivos.
O fato de cada procuração delegar poderes para vender escravos fora
da Bahia, onde e a quem conviesse a vários procuradores e, principalmente,
a faculdade de substabelecerem os seus mandatos, suscita a hipótese de
rede de interesses comerciais com ramificações ao longo do trajeto dos

57 APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maços 02/880/1349/13 e 02/879/1348/12.


58 Carlos A. C. Lemos, Casa Paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido
pelo café, São Paulo: Editora da USP, 1999.
59 Neves, Uma comunidade, pp. 192-202.

396 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

comboios de Minas Gerais até São Paulo, além da enorme articulação


familiar que empreendia o tráfico de Caetité, não comprovada nesta
pesquisa de pequeno alcance.
A intensidade desse comércio de gente e seus efeitos sobre a eco-
nomia regional, cuja policultura perdia também mão-de-obra livre para
os cafezais, contribuíram para seu próprio declínio, antes que a Lei dos
Sexagenários, em 1885, proibisse o comércio interprovincial de cativos.
Fora um negócio rendoso. Contudo, a acumulação gerada pelo tráfico de
Caetité para outra província, ainda que empreendimento de sertanejos,
transferiu-se, como os escravos, para São Paulo. A maioria dos traficantes
também migrou para a capital paulista, Jaú, Bauru e, principalmente, para
as cidades com as quais traficavam. Poucos permaneceram no sertão da
Serra Geral, onde o saldo do negócio não teve expressão econômica.
O tráfico interno de escravos no Brasil, ainda pouco estudado, é
apresentado com estimativas globais e genéricas, que não refletem
peculiaridades regionais e locais desse comércio. Faltam dados e compa-
rações entre mercados exportadores e regiões importadoras. Tanto para o
comércio com a África, quanto para os circuitos interiores, são precárias
as estatísticas. Geralmente elaboram-se complexas projeções numéricas
a partir de informações nem tão confiáveis.
Depois de oscilações entre três e oito milhões, avaliam-se em cinco
milhões e 800 mil o número de negros traficados através do Atlântico
para o Brasil, o que representa 46% dos escravos transportados da África
para a América. 60 O tráfico interprovincial, somente no auge, entre 1873
e 1881, transportou 90 mil negros para o sudeste, através dos portos de
Santos e, principalmente, do Rio de Janeiro. Pelas estimativas de Robert
Slenes, entre 1850 e 1881 essa imigração compulsória teria atingido algo
em torno de 200 mil escravos ou 209 mil desde a proibição do tráfico
externo em 1850 à extinção do trabalho escravo no Brasil em 1888.61
A Lei dos Sexagenários libertou mil e um idosos do cativeiro na Bahia,
alforriou 508 – mais de 50% deles em Caetité, 62 o que indica elevado ín-
dice de escravos idosos no município. Ficaram poucos para o ato final da
extinção gradual do trabalho compulsório, quando fecharam as cortinas
da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888.

60 David Eltis, Stephen Behrendt, David Richardson e Manolo Florentino, Voyages: The
Transatlantic Slave Trade Database. Disponível em: < http://www.slavevoyages.org/
assessment/estimates>.
61 Citado por Chalhoub, Visões da liberdade, p. 43; Katia M. De Queirós Mattoso, Ser escravo
no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 63.
62 Neves, Uma comunidade, p. 286.

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 397


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
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Anexo

Relação nominal de traficantes e respectivas incidências em procurações


Nomes Incidências
Adrião Dizão Ribeiro Guimarães 14
Alexandre Alves Belo & Cia. 4
Antônio Alves de Carvalho 1
Antônio Alves de Carvalho Primo 1
Antônio Feliciano de Souza 1
Antônio Gomes dos Santos & Cia 1
Antônio Joaquim de Lima 1
Antônio Joaquim Gomes 1
Antônio José Ladeia Lobo 20
Antônio Martiniano de Moura e Albuquerque 3
Antônio Alves de Carvalho 1
Augusto de Vasconcelos Bittencourt 1
Augusto Joaquim de Magalhães 1
Benedito de Paulo 3
Benvindo de Souza Moura 5
Brandão & Irmãos 6
Campos & Castro(MG) 1
Cândido de Oliveira Figueiredo 3
Cândido Spínola Castro 1
Cassimiro Tavares Soares 2
Clemente Alves de Carvalho 1
Clemente de Quadros Bittencourt 58
Constantino da Silva Reis 1
Domingos Gomes de Azevedo 1
Dorphino Lopes Garcia 1
Dr. João José de Faria 83
Dr. Tobias de Souza Lima 4
Elias Augusto do Amara1 Souza 2
Ernesto Fagundes Cotrim 10
Fidelis Nepomuceno Prates (SP) 2
Filipe Garcia Leal 110
Francisco Antônio da Silva 1
Francisco da Costa Carvalho 2
Francisco de Oliveira Guimarães 2
Francisco de Paula Batista 5
Francisco Lopes de Oliveira 3
Francisco Lopes Garcia 2

398 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Francisco Teixeira 5
Francisco Xavier de Almeida 1
Gorgônio Ferreira de Souza Barros 2
Hilário Gonçalves Pinheiro 2
Inácio Antônio da Silva 1
Januário Lamay 1
Jerônimo Pereira da Costa Neto 10
João Antero Ladeia Lima 27
João Francisco de Morais Otávio 3
João Manoel 24
Joaquim Alves de Almeida Sales Júnior 12
Joaquim Guimarães Louzada 25
Joaquim José de Faria 115
Joaquim José Machado 3
Joaquim Manoel de Azevedo Antunes 7
Joaquim Manoel de Brito Gondim 71
Joaquim Pereira Coutinho 12
José Antônio Ladeia Lima 1
José Antônio Rodrigues Lima 8
José Campos Negrais 2
José de Vasconcelos Bittencourt Júnior 9
José Ferreira de Figueiredo 129
José Joaquim da Silva 1
José Justino Gomes de Azevedo (SP) 60
José Pires de Carvalho Albuquerque 5
José Rodrigues Ladeia 4
Justino Gomes de Azevedo 25
Lauro Gonçalves Fraga 47
Leolino Rodrigues de Figueiredo 42
Leolino Xavier Cotrim 66
Licínio Tums Magalhães 1
Luís Diogo Leite 2
Manoel Alves de Carvalho 5
Manoel Cândido de Oliveira Guimarães 68
Manoel José da Costa Negrais 6
Manoel José de Faria 11
Manoel Rodrigues Ladeia Lobo 15
Martiniano de Santana 1
Martiniano Saturnino Meira 1
Miguel Francisco de Souza 1
Olímpio Barros Silva 6
Otaviano Xavier Cotrim 1
Pedro de Andrada e Silva 8
Pedro José Ribeiro 1

SAMPAULEIROS TRAFICANTES: 399


COMÉRCIO DE ESCRAVOS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA PARA O OESTE CAFEEIRO PAULISTA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Pedro Teixeira de Lacerda 12


Porfírio José da Silva 2
Rodrigo de Vasconcelos Bittencourt 1
Rodrigo Ribeiro Guimarães 15
Salvador José Ramos 1
Sebastião Fialho 1
Severino Rodrigues de Brito 1
Teotônio Alexandrino de Carvalho 2
Thomás de Aquino Caldeira 3
Tiburtino da Silveira Tibo 1
Tristão Aarão Ferreira dos Santos 7
Urbano José da Costa 1
Veríssimo do Carmo Vieira 2
Virgílio de Magalhães Silva 5
Fonte: APEB, Seção Judiciário, Autos de Inventário, Maço 02/577/1029/05

400 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


PARTE 5
África do tráfico
CAPÍTULO 13

A dinâMiCA dAs relAçÕes de Gênero e pArentesCo nUM


Contexto CoMerCiAl: pArCeriAs Afro-AtlântiCAs nA
zonA dA GUiné bissAU (séCUlos xvii-xix) 1
Philip J. Havik2

introdUção
A historiografia e a antropologia da Costa da Guiné, também conhe-
cido como ‘Os Rios da Guiné de Cabo Verde’ ou Upper Guinea Coast (Costa
da Alta Guiné), conheceu desde os anos setenta do século passado um
notável crescimento, afirmando-se como um “nicho” de especialização
na área geográfica da África Ocidental. Guiando-se por uma análise das
relações entre africanos e europeus no quadro geopolítico da região,
pesquisadores africanos, europeus e americanos (no sentido amplo do
termo) contribuíram para este efeito com o estudo de redes comerciais
e de parentesco num contexto mais alargado do espaço atlântico. Regra
geral, com algumas exceções, os estudos sobre a região atribuíram pouca
relevância à questão de gênero, apesar da região, inserido na África Oci-
dental, se caracterizar pelo papel notável das mulheres nas comunidades,
tanto nas zonas rurais como urbanas. O tema da influência delas na
sociedade em geral, e particularmente no que diz respeito ao comércio,
já foi largamente difundido, merecendo uma atenção crescente desde a
década de 1970. Em termos geográficos, o golfo e a costa da Guiné cons-
tituem as áreas mais destacadas na historiografia da África subsaariana
quanto ao estudo dos entrepostos comerciais costeiros e a sua posição de
intermediário nas rotas entre o interior e o mar. Dado que as mudanças
de paradigma nas ciências sociais enfatizam cada vez mais a importância
das conexões interculturais numa óptica transdisciplinar, as relações de

1 Esta é uma versão consideravelmente revista e atualizada, pelo autor, daquela publicada
na revista Afro-Ásia e traduzida por Valdemir Zamparoni. O texto final foi também revi-
sado pelos organizadores desta coletânea.
2 Philip J. Havik, Female Entrepreneurship in West Africa: Trends and Trajectories”, Early
Modern Women: an Interdisciplinary Journal, vol. 10, no. 1 (2015), pp. 164-177.

403
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

gênero ocuparam de forma definitiva o seu lugar no quadro da historio-


grafia e da antropologia africanas.3
Busca-se aqui melhor entender o papel das mulheres africanas nas
mudanças ocorridas na região no quadro do comércio transatlântico entre
o século XVII e XIX. O presente texto examina a produção historiográfica
sobre a Costa da Guiné pela óptica do gênero e parentesco, ancorado na
antropologia cultural e dos estudos de gênero e estabelecendo compara-
ções temporais ao nível da interação e do intercâmbio complexo entre
sociedades atlânticas. Para tal, se centra em certas figuras chaves para
documentar a participação ativa (agency) 4 de grupos sociais e atores
femininos em povoações e portos costeiros e indicar o seu papel de inter-
mediários (brokers) nas relações afro-atlânticas. A questão da mediação
cultural (cultural brokerage) e mediação de poder (power brokerage) é
particularmente relevante para perceber os percursos destas mulheres
e dos grupos sociais em que estavam inseridas.5 Os estudos de casos aqui
discutidos sublinham a autonomia notável que mulheres africanas livres
conseguiram engendrar e manter durante vários séculos, tanto perante os
seus pares masculinos, como na promoção de seus interesses mercantis
atlânticos, apesar da instabilidade e insegurança gerada pelo tráfico de
escravos. Por outro lado, as fortes pressões vindas do interior do continente,
controlado por formações políticas com grande poder económico, a que as
sociedades costeiras estavam sujeitas, figuram como condicionantes do
espaço de manobra dessas mulheres. Estas, bem relacionadas com linhagens
e chefias africanas e com agentes comerciais atlânticos, conseguiram criar
pontes e sinergias nas zonas de contato afro-atlânticas que beneficiaram
suas aspirações sociais, econômicas e políticas, criando elas próprias novas
linhagens, além de estabelecer alianças estratégicas com atores africanos
e atlânticos.

3 Ayesha Imam, “The Presentation of African Women in Historical Writing,” in S. Jay Klein-
berg (org.), Retrieving Women’s History (Oxford: Berg Publishers, 1988), pp. 30–40; Hen-
rietta Moore, Feminism and Anthropology, Londres: Polity Press, 1988.
4 Sobre o conceito de agency e estruturas sociais, ver Pierre Bourdieu, Outline of a Theory
of Practice, Cambridge e Nova York: Cambridge University Press, 1977, e também Sherry
B. Ortner, Anthropology and Social Theory: Culture, Power, and the Acting Subject, Dur-
ham: Duke University Press, 2006.
5 Sobre o conceito de cultural brokerage, ver Eric Wolf, “Aspects of Group Relations in a
Complex Society: Mexico”, American Anthropologist, 5no. 8 (1956), pp. 1065-1678; e Clif-
ford Geertz, “The Javanese Kijaji: The Changing Role of a Cultural Broker”, Comparative
Studies in Societies and History, vol. 2, no. 2 (1960), pp. 228-249. Sobre a mediação cultur-
al no contexto afro-atlântico, ver Philip J. Havik e Toby Green, “Brokerage and the Role
of Western Africa in the Atlantic World”, in Toby Green (org.) Brokers of Change: Atlantic
Commerce and Cultures in Pre-Colonial Western Africa (Londres/Oxford: British Acad-
emy/Oxford University Press, 2012), pp. 1-26; e Philip J. Havik, “The Colonial Encounter
Revisited: Anthropological and Historical Perspectives on Brokerage”, in Maria Cardeira
da Silva (org.), The Jill Dias Lessons (Lisboa: CRIA, 2013), pp. 97-111.

404 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O surgimento do comércio transatlântico de cativos foi uma tragédia


para milhões de africanos e africanas retirados à força de suas comunidades
e transportados para destinos desconhecidos. Mas, ao mesmo tempo, esse
tráfico obrou grandes mudanças no seio dessas comunidades, engendrando
novos locais de contato cultural entre grupos e atores sociais das mais
variadas origens. Nessas “zonas de contato”6, sobretudo de mediação das
relações mercantis entre zonas costeiras interioranas, o conhecimento
da natureza, dos povos, de suas tradições e línguas locais era uma van-
tagem, um meio de sobrevivência e capital cultural. Portos costeiros
que constituíram o destino de rotas comerciais vindas do interior, e ao
mesmo tempo funcionaram como plataformas para as trocas comerciais
marítimas, eram lugares chaves para se participar nestes negócios. O
fato de a demografia de muitos desses portos marítimos e fluviais ter
se caracterizado por um notável excedente feminino sugere que estes
lugares eram e foram vistos como uma oportunidade para mulheres livres
se estabelecerem e usar como base para seus negócios.
Nas seções que seguem, a epistemologia sobre gênero e parentesco
é aplicada à análise do papel de mulheres africanas livres nas relações
de poder e nas redes comerciais que surgiram no quadro da interação
afro-atlântica. Particular destaque é dado às parcerias que desenvolveram
com homens africanos, também oriundos dos mesmos portos atlânticos,
e lhes permitiram alargar o seu raio de ação de forma notável em termos
de espaços geográficos e sociais. Foi, aliás, sua notoriedade que as levou
a serem notadas por funcionários e cronistas, ficando elas registadas
em fontes coevas. O modo marcadamente diferente com que as ações
destas mulheres foram descritas e apreciadas nas fontes escritas alerta-
nos também para as mudanças ocorridas nas relações entre africanos e
europeus no espaço de tempo entre os séculos XVII e XIX.

Perspectivas sobre gênero, parentesco e comércio


Como alguns estudiosos afirmaram com pertinência, os conceitos
de parentesco e gênero não podem estar separados quando se estudam
relações sociais. 7 Eles são mutuamente construídos e fundados numa
visão específica — andro e viricêntrica — da sociedade, assim como na
reprodução biológica. Gênero e parentesco não podem ser considerados
como algo apartado dos conceitos de cultura e de mudança histórica e das

6 Sobre este conceito, ver Mary Louise Pratt, Imperial Eyes: Travel Writing and Transcul-
turation (Londres: Routledge, 1992), pp. 6-7.
7 Jane F. Collier e Sylvia J. Yanaganisako, “Toward a unified analysis of gender and kinship”,
in Collier e Yanaganisako (orgs), Gender and Kinship: Essays toward a Unified Analysis
(Stanford: Stanford University Press, 1987), pp. 14-50.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 405


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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desigualdades existentes na sociedade.8 Esta observação é de particular


importância para um entendimento das representações das interações
interculturais entre diferentes sociedades e de sua evolução histórica.
Ao assumir que gênero e parentesco são socialmente construídos, pre-
tende-se demonstrar a natureza dinâmica de tais categorias, para além
das divisões geográficas e culturais, e ao longo do tempo. As noções de
diferença e de desigualdade sociais variam através das fronteiras naturais
e políticas. Quando observamos diferentes sociedades, e os seus membros
individualmente considerados, ao longo dos séculos, verificamos que
as fontes suscitam algumas questões importantes. Entender relações
conjugais e de descendência torna-se um exercício problemático, uma
vez que as fontes escritas contêm numerosas lacunas e preconceitos. Ao
tratar do passado distante, o uso de relatos de viagem e de documentação
de arquivo é essencial, para que se possam obter informações acerca das
tradições e práticas das sociedades em questão. Entretanto, a maioria
dessas fontes primárias escritas foi produzida com o objetivo de satisfazer
as ambições e compromissos de seus autores. Elas expressam uma relação
triangular entre o autor, o receptor e o sujeito, mediada pelo primeiro.
Portanto, ao usar este tipo de informação como a fonte principal para o
estudo sobre relações de parentesco e gênero, deve ser sempre levada
em conta a importância das relações hierárquicas que determinaram as
concepções presentes. Quando o assunto tratado se encontra além do
horizonte cultural do autor da fonte, emerge a questão da alteridade, do
relacionamento entre o autor e o “outro”. A necessidade de desconstrução
das categorias e referentes torna-se, então, imperativa.
Quando estudadas num contexto comparativo, as relações de gênero
e de parentesco revelam o papel desempenhado pelos fatores temporais
na configuração das representações, sobretudo se considerarmos que a
maioria das fontes escritas foi produzida por homens de determinadas
camadas sociais, que davam importância fundamental às linhas consan-
guíneas patrilineares e aos ideais de honra masculina e subserviência
feminina. Neste paradigma transcultural, as descrições retóricas da
África e dos africanos são associadas ao corpo feminino e a noções de
feminilidade. Uma vez combinadas com ideais de “embranquecimento”,
essas representações relacionaram diferença e desordem com um gênero
feminino africano imaginado. 9 No caso da África Ocidental, essas ideias
preconcebidas chocaram-se com as práticas matrilineares e matrifocais,
que foram vistas como desviantes da norma patriarcal. A confusão de
categorias associada ao “desnorteamento” dos forasteiros com relação
ao “outro”, culturalmente diferente, foi intensificada por processos

8 Idem, pp. 39-48.


9 Moore, Feminism and Anthropology, pp. 12-41. .

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de miscigenação, de casamentos mistos, de coabitação entre (homens)


europeus e (mulheres) africanas. Estes modos de interação social foram
eufemisticamente resumidos no conceito lusófono de “convivência”. 10
Devido à sua natureza sensível, a questão das relações interculturais
tornou-se um tema altamente controverso, tanto na antropologia
quanto na historiografia portuguesas, sobretudo durante o Estado Novo
(1926-1974).11 Naquela época, temas afins como gênero foram também
abordados no que diz respeito ao “império” português, mas somente de
maneira incidental e por poucos autores.12 Somente em tempos recentes
é que esta temática tem sido focada numa perspectiva histórica, por
exemplo, no caso de Angola.13 Esta situação contrasta com os numerosos
estudos sobre as questões de gênero e de contatos culturais em contextos
imperiais disponíveis na literatura anglófona.14
O foco, entretanto, voltou-se inexoravelmente para o estudo do
impacto do colonialismo nas representações, e resultou na proliferação
da bibliografia sobre as noções androcêntricas na África, sobretudo nos
“impérios” britânico e francês.15 Como consequência, alguns estudiosos
começaram a defender uma completa revisão da análise das mudanças
culturais por meio da migração e da miscigenação. Eles contestaram as

10 A. J. R. Russel-Wood, The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move, Baltimore:


John Hopkins Press, 1998, p. xxi.
11 Vide Ralph C. Boxer, Relações raciais no império colonial português, 1415-1825, Porto:
Afrontamento, 1977; e Francisco Bethencourt e Adrian Pearce (orgs.), Racism and Ethnic
Relations in the Portuguese-Speaking World, Londres: The British Academy, 2012.
12 Alfredo Margarido, “Algumas formas da hegemonia africana nas relações com os euro-
peus”, in Relações Europa-África no 3º Quartel do século XIX (Seminário do Instituto de
Ciência Tropical, Lisboa, 1989), pp. 383-406; Ralph C. Boxer, A mulher na expansão ultra-
marina ibérica, 1415 -1815, Lisboa: Livros Horizonte, 1977.
13 Mariana P. Cândido, “Concubinage and Slavery in Benguela, 1750-1850”, in Olatunji Ojo e
Nadine Hunt (orgs.) Slavery in Africa and the Caribbean: A History of Slavery and Iden-
tity since the 18th Century (Londres/Nova York: I. B. Tauris, 2012), pp. 65-84, e da mesma
autora, “Strategies for Social Mobility: Liaisons Between Foreign Men and Slave Women
in Benguela, 1770-1850”, in Gwyn Campbell e Elizabeth Elbourne (orgs.), Sex, Power and
Slavery (Athens: Ohio University Press, 2014), pp. 272-288.
14 Vide por exemplo Ronald Hyam, Empire and Sexuality: The British Experience, Manches-
ter/Nova York: Manchester University Press, 1990; Anne McClintock, Imperial Leath-
er: Race, Gender, and Sexuality in the Colonial Conquest Nova York/Londres: Routledge,
1995; Nancy Rose Hunt, Tessie R. Liu e Jean H. Quataert (orgs.), Gendered Colonialisms in
African History, Oxford: Blackwell, 1997; Philippa Levine (org.), Gender and Empire, Ox-
ford: Oxford University Press, 2007; Dorothy Hodgson e Sheryl McCurdy (orgs.), Wicked
Women and the Reconfiguration of Gender in Africa, Martleham: James Currey, 2001; e
Jean Allman, Susan Geiger e Nakanyike Musisi (orgs.), Women in Colonial African Histo-
ries, Bloomington: Indiana University Press, 2002.
15 Vide por exemplo Philip D. Curtin, Image of Africa, Madison: University of Wisconsin
Press, 1964; Christopher L.Miller, Blank Darkness; Africanist discourse in French, Chica-
go: University of Chicago Press, 1985; Valentim Mudimbe, The Invention of Africa: Gno-
sis, Philosophy, and the Order of Knowledge, Bloomington/Londres: Indiana University
Press/James Currey, 1988.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 407


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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ideias de pureza profundamente incrustadas no pensamento etnológico,


fortemente influenciado pelo contexto do colonialismo e pela combinação
de noções eugênicas e administrativas de parentenco.16 Enquanto a pesquisa
de campo levou ao desmantelamento dos preconceitos formulados nos
gabinetes, as pesquisas realizadas nas últimas décadas com fontes escritas
também contribuíram para desafiar os conceitos de diferença cultural
até então profundamente arraigados. O reconhecimento da pluralidade
de culturas muito contribuiu para a compreensão do significado daqueles
indivíduos que alguns, inadequadamente, chamavam de “mediadores” e
que, no passado, tinham servido como informantes para os europeus.17 Ao
se centrar nessas categorias sociais híbridas, que desafiavam a dicotomia
negro/branco ou “indígena/civilizado”, foram reveladas tanto a tensão
entre expansão e aculturação, quanto a importância da reciprocidade
cultural. 18 Na verdade, os próprios autores das fontes, na sua maioria
funcionários, missionários ou comerciantes, criaram eles próprios laços
de proximidade com as comunidades que emergiram no contexto da
interação e comércio afro-atlânticos. Contudo, essas comunidades locais
que mediaram as trocas comerciais eram muitas vezes descritas de for-
ma pejorativa por esses autores como uma “casta difícil”, dominada por
lealdades divididas, que se colocava no caminho da expansão comercial e
da conversão religiosa. A convivência de homens europeus com mulhers
africanas está no centro dessas polêmicas por, alegadamente, subverter
os valores morais coloniais.19Então, quando essa convivência se transfor-
mava numa parceria comercial, a invectiva subia de tom, condenando-a
por minar os interesses econômicos, financeiros e políticos imperiais.
Na África atlântica pré-colonial, os forasteiros foram obrigados a se
adequar aos valores locais, do casamento à escravidão doméstica. Os avanços
da ciência e da exploração, no século XVIII, e a transição do comércio de
escravos para o de produtos agrícolas, no século XIX, mudaram o foco das
atenções para as sociedades no continente africano. O medo que a libertação
dos escravos instilou nos círculos atlânticos, que controlavam o “Atlântico
negro”, e a corrida para África deu alento às teorias social-darwinistas que

16 Jean-Loup Amselle, Mestizo Logics: Anthropology of Identity in Africa and Elsewhere,


Stanford: Stanford University Press, 1998, pp. 5-24.
17 Adam Jones e Beatrix Heintze, “Introduction”, in Heintze e Jones (orgs.), “European Sourc-
es for Sub-Saharan Africa before 1900: Use and Abuse”, Paideuma, no. 33 (1987), pp. 1-17.
18 Sobre as tensões e conflitos nos contextos imperiais, vide Frederick Cooper e Ann Laura
Stoler (orgs.), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World, Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1997.
19 Sobre culturas híbridas em espaços coloniais, ver Robert Young, Colonial Desire: Hybridity
in Theory, Culture, and Race, Londres/Nova York: Routledge, 1995, pp. 142-158; e também
Ann Laura Stoler, “Sexual Affronts and Racial Frontiers: Cultural Competence and the Dan-
gers of métissage”, in Ann Laura Stoler (org.), Carnal Knowledge and Imperial Power: Race
and the Intimate of Colonial Rule (Berkeley: California University Press, 2002), pp. 79-111.

408 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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dividiam os povos consoante linhas raciais, culminando na distinção entre


indígenas e civilizados. Mas, uma vez que o controle sobre o continente
ainda lhes escapava, os europeus tinham de contar com os tais interme-
diários que, anteriormente, haviam sido condenados por sua ambivalência
e deslealdade. Sob esta nova ótica, os vínculos interculturais seriam
bem-vindos somente se contribuíssem para a consolidação dos objetivos
nacionais nas colônias, isto é, se facilitassem o acesso à terra e à mão de
obra. A mudança na valoração das relações de parentesco e gênero é patente
na emergência das “grandes mulheres” e “grandes homens”, terminologia
que foi empregada para as sociedades da África Ocidental no século XIX.20
Estas mulheres e homens “grandes”, na sua condição de membros e chefes
de linhagens “nobres”, têm, desde então, servido como paradigmas para
distintos conceitos de poder e autoridade.21 Não obstante um olhar forte-
mente patriarcal, o realce dado às parcerias entre mulheres africanas de
origem “nobre” e homens atlânticos mercadores permitia emprestar-lhes
uma cunha de respeitabilidade na perspectiva do Oitocentos. Como a corrida
para a África parecia anunciar a sua iminente colonização e ocupação (e
não o comércio), parcerias desse tipo podiam ser vistas como canais de
civilização e como um meio para, de forma mediada, explorar as riquezas
africanas. Na virada do século XX, quando os poderes coloniais ocuparam
territórios africanos, a miscigenação e o casamento misto ficaram, mais
uma vez, sob suspeição de um estado colonial determinado a regular a
desordem e a impor a diferença.22
É, sobretudo, a ambiguidade dessas relações que constitui um de-
safio para discursos, dominantes em épocas diferentes, sobre incluí-las
ou excluí-las da órbita dos principais valores sociais e culturais abran-
gidos. Os casos aqui debatidos mostram que estes valores e ideias não
eram lineares nem estáticos, estando sempre sujeitos a mudanças. Além

20 Ver um balanço da literatura sobre a África Ocidental em Frances E. White, “Women in


West and West-Central Africa”, in Frances E. White e Íris Berger (orgs.), Women in Sub-Sa-
haran Africa: Restoring Women to History, (Bloomington: Indiana University Press,
1999), pp. 63-129.
21 Enquanto a antropologia cultural se afirmava como uma nova disciplina científica na se-
gunda metade do século XIX, Bachofen propôs a ideia de sociedades matriarcais na anti-
guidade e a sua inexorável transformação ao longo do tempo em comunidades patriarcais.
A importância da linhagem feminina como fio condutor de estudos históricos de sistemas
de parentesco é notória em estudos sobre o papel das rainhas-mães, com ênfase nas socie-
dades matrilineares oeste africanas. Vide Flora Edouwaye Kaplan, Queens, Queen Mothers
Priestesses and Power: Case Studies in African Gender, Nova York: The New York Academy
of Sciences, 1997; e também Edna G. Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture
in the Kingdom of Dahomey, Charlottesville: University of Virginia Press, 1998.
22 Vide Philip J. Havik, “Les Noirs et les ‘Blancs’ de l’ethnographie coloniale: discours sur le
genre en Guinée Portugaise (1915-1935)”, Lusotopie, vol. 12, no. 1-2 (2005), pp. 55-76;
Rosa Williams, “Migration and Miscegenation: Maintaining Boundaries of Whiteness in
the Narratives of the Angolan Colonial State, 1875-1912”, in: Havik e Newitt, Creole Soci-
eties, pp. 127-141.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 409


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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disso, uma vez confrontado com uma realidade muitas vezes contrária aos
princípios evocados, optou-se geralmente por camuflar ou omitir aspec-
tos menos congruentes e sublinhar outros mais vantajosos. As “zonas de
contato”23 que constituem o foco deste capítulo, revelam um dualismo no
que diz respeito às representações acerca das comunidades afro-atlân-
ticas e alguns dos seus protagonistas em épocas distintas, tendo como
pano de fundo a expansão política e econômica europeia, de um lado, e
processos de imersão social e cultural, do outro. Mas no caso da área em
estudo, a “Costa da Alta Guiné”, que se estendia do Senegal ao rio Sherbro
(atualmente em Serra Leoa), se incluía também as ilhas de Cabo Verde. A
circunstância de ao longo dos séculos ter ocorrido um intenso processo
de crioulização nestas ilhas, fez com que os atores estrangeiros que se
dirigiram a Costa, tanto comerciantes como funcionários, muitas vezes
não fossem Europeus. Além disso, houve um processo de entrelaçamento
entre pessoas livres e escravisadas vindas de diferentes grupos étnicos
nos entrepostos costeiros e fluviais, um intercâmbio que o presente en-
saio pretende resgatar. Numerosos exemplos de parcerias entre mulheres
“locais” e homens “atlânticos” citados na literatura ilustram a necessida-
de de se olhar de forma crítica para a dualidade implícita das zonas de
contacto como palcos de interação ‘afro-europeus’. No caso da região da
Guiné-Bissau (vide mapa)24, muitos dos empreendedores locais tinham
antepassados guineenses e cabo-verdianos, mas foram todos agrupados
como “portugueses”, “moradores” ou “cristãos”. Estabelecidos em entrepostos
comerciais, mas demonstrando uma notável mobilidade espacial e social
num ambiente extremamente competitivo, as competências e eficácia de
mulheres comerciantes nos portos costeiros impressionaram fortemente
visitantes europeus e anfitriões africanos. Os estudos de caso apresentados
a seguir, que examinam algumas das parcerias entre mulheres e homens,
ilustram a osmose entre contexto e representação e a continuidade do es-
pectro do intercâmbio transcultural no contexto afro-atlântico. O primeiro
exemplo é do século XVII, quando um grupo de poderosos comerciantes
locais desafiou, com sucesso, a política da Coroa portuguesa numa área
em que o tráfico de escravos constituía uma importante fonte de renda.
O segundo situa-se no século XIX, quando o tráfico de escravos foi dando
lugar às exportações de produtos agrícolas, levando clãs mercantis locais
a transformar o usufruto da terra em agriculturas comerciais. Em ambos
os casos, os dois parceiros masculinos são africanos. Os referidos períodos
têm sido objeto de vários estudos de historiadores desde os anos setenta

23 Ver Pratt, Imperial Eyes.


24 A região da Guiné-Bissau é aqui definida de forma alargada como a área entre o rio Gâm-
bia e o rio Nuñez na África Ocidental.

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do século passado até o presente.25 Todavia, a despeito de seus esforços e


do escrutínio das evidências documentais, ainda persistem muitas lacunas
que requerem esclarecimento, sobretudo no que diz respeito às relações
de gênero, parentesco e comércio nas zonas de contato na região.
Por meio de uma perspectiva comparativa, a discussão dos dois
casos aqui apresentados pretende demonstrar a natureza dinâmica das
representações e das práticas no que diz respeito ao gênero e parentesco
num ambiente fortemente impregnado pelas trocas comerciais. Esta
dinâmica está relacionada com instituições africanas e sobretudo com as
linhagens mercantis ou gan (povoado ou clã em kriol ou crioulo da Guiné)
operando nos entrepostos da região. Ao centrar o estudo nas parcerias
empresariais, pretendo sublinhar o papel central que mulheres africanas
desempenharam nas redes comerciais e na interação afro-atlântica.26

25 Walter Rodney, A History of the Upper Guinea Coast, 1545 to 1800, Oxford: The Claren-
don Press, 1970; Avelino Teixeira da Mota, “Contactos culturais luso-africanos na Guiné
do Cabo Verde”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, no. 11-12 (1951), pp. 5-13;
Mamadou Mané, “Contribution à l’histoire du Kaabu, des origines au XIXe siècle”, Bulle-
tin de l’Institut Fondamentale de l’Afrique Noire (BIFAN), vol. 40, B, no. 1 (1978), pp. 87–
159; António Carreira, Os portugueses nos rios de Guiné (1500-1900), Lisboa: ed. do au-
tor, 1984; Djibril Tamsir Niané, Histoire des Mandingues de l’Ouest, Paris: Karthala/AR-
SAN, 1989; Jean Boulègue, Les Luso-Africains de Sénégambie, XVIe XIXe siècles, Lisboa:
Instituto de Investigação Científica Tropical, 1989; George E. Brooks, Landlords and
Strangers: Ecology, Society, and Trade in Western Africa, Athens: Ohio University Press,
1993; e do mesmo autor Eurafricans in Western Africa: Commerce, Social Status, Gen-
der, and Religious Observance from the Sixteenth to the Eighteenth Century, Athens:
Ohio University Press, 2003; e também Western Africa and Cabo Verde, 1790s-1830s:
Symbiosis of Slave and Legitimate Trades, Bloomington: Author House 2010; Boubacar
Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Cambridge: Cambridge University
Press, 1998; Carlos Lopes, Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâm-
bia e Casamance pré-coloniais, Lisboa: CNCDP, 1999; Peter Mark, “The Evolution of
'Portuguese' Identity: Luso-Africans on the Upper Guinea Coast from the Sixteenth to
the Early Nineteenth Century”, Journal of African History, vol. 40, no. 2 (1999), pp. 173-
191; José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African identity in ‘Portuguese’ Accounts
on ‘Guinea of Cape Verde’ (Sixteenth to Seventeenth Centuries)”, History in Africa, no.
27 (2000), pp. 99-130; Filipa Ribeiro da Silva, Dutch and Portuguese in Western Africa:
Empires, Merchants and the Atlantic System, 1580-1674, Leiden/Boston: Brill, 2011;
Toby Green, The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589,
Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
26 Este autor discutiu estas e outras parcerias em várias publicações, por exemplo: Philip J.
Havik, “Comerciantes e concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na Costa da
Guiné”, in Fernando Albuquerque Mourão (org.) A dimensão atlântica de África (Actas da
II Reunião Internacional de História de África, São Paulo, CEA-USP/ SDG-Marinha/CAPES,
1997), pp. 161-179; “Matronas e mandonas: parentesco e poder no feminino nos Rios de Gui-
né (século XVII)”, in Selma Pantoja (org.), Entre Áfricas e Brasis (Brasília: Paralelo 15, 2001),
pp. 13-34; e também Silences and Soundbites: the Gendered Dynamics of Trade and Broke-
rage in the Guinea Bissau Region, Muenster/New Brunswick: LIT, 2004; “From Pariahs to
Patriots: Women Slavers in Nineteenth Century ‘Portuguese’ Guinea”, in Gwyn Campbell,
Susan Myers e Joseph C. Miller (orgs.), Women and Slavery. Vol. I: Africa, the Indian Ocean
World and the Medieval North Atlantic (Athens: Ohio University Press, 2007), pp. 309-334.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 411


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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Detalhe da região da Guiné. Baseado em Antonio Carreira,


“A etnonimia dos povos de entre o Gâmbia e o estuário do Geba”,
Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. xix, no. 75 (1964), pp. 233-275.

Ña Bibiana e Ambrósio Vaz


Fortes imagens emanam de documentos do século XVII sobre uma
mulher comerciante “de armas” chamada Bibiana Vaz de França, coloquial-
mente conhecida como Ña Bibiana (Ña se traduz como senhora no crioulo
da Guiné e também de Cabo Verde). Guineense de nascimento e membro
de um influente gan mercantil, estabelecida num desses entrepostos
“portugueses” de comércio costeiro, ela ocupa um lugar especial nos
escritos do último quarto do século XVII. Cacheu, situada numa posição
estratégica na foz do rio do mesmo nome, naquela que hoje é chamada
de Guiné-Bissau, mas então conhecida como “Guiné de Cabo Verde”, era
um importante ponto de atração para traficantes de escravos, do qual

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estima-se que três mil eram exportados anualmente. O lugar, onde


anteriormente existia uma tabanka, ou seja, uma aldeia no território
controlado pelos Pepel matrilineares, foi fortificado na década de 1580
por comerciantes “forasteiros”, os chamados lançados com os negros e
tangomaos. Eles geralmente tinham um ancestral cabo-verdiano na linha
masculina, mas eram guineenses pela linha feminina, embora alguns
tivessem ascendência portuguesa. A permissão para a fixação fora dada
pelos papeis, dunus di tchon em kriol (derivado do português, “donos do
chão”), aos ditos tangomaos, que viram a construção de uma fortificação
como medida de proteção. 27 Os dunus di tchon da comunidade Bañun,
noutro lugar ao longo do rio Cacheu, supostamente os tinham tratado mal
e, além disso, eles também precisavam se proteger contra os ataques dos
rivais europeus. Os produtores locais forneciam gêneros alimentícios, tais
como arroz, milhete, milho, carne, laticínios e sal para o sustento de seus
habitantes. Após receber os “direitos de cidade” da Coroa portuguesa (em
1605) e ter se convertido numa “capitania”, o porto de Cacheu logo se tornaria
o principal entreposto “português” para o tráfico de escravos, mas também
exportava cera de abelha, marfim, panos de algodão e peles de animais.
Todavia, durante séculos, o reconhecimento do valor deste distrito
militar (capitania) e fortaleza (presídio) por parte da monarquia portuguesa
foi dificultado devido à objeção desta à presença desses comerciantes
forasteiros sem obrigações à ou contratos com a Coroa, pois negociavam
com nações europeias rivais sem pagarem impostos. O controle que
os “tangomaos” e seus descendentes, muitos com raízes sefaraditas e
perseguidos pela Inquisição e pela Coroa, exerceram sobre grande parte
das trocas atlânticas na região, contrariava os interesses portugueses ali
estabelecidos, que reclamavam direitos de monopólio sobre tal comércio. 28
A administração dessas cidades-fortalezas foi exercida, alternadamente,
por oficiais portugueses e cabo-verdianos, além de africanos da Costa

27 Os papeis desempenharam um importante papel na história das relações afro-atlânticas,


uma vez que seu território sediava os dois mais importantes presídios da região, ou seja,
Cacheu e Bissau, que ficava um pouco mais ao sul, no rio Geba. Por séculos, eles resistiriam
à penetração Atlântica, até que a ocupação militar de 1915 pôs fim à sua autonomia. So-
bre os papéis da Ilha de Bissau, ver Carlos Franco Liberato de Sousa, “La construcción so-
cial del espacio urbano de Bissau (1765–1846)” (dissertação de Mestrado, Centro de Estu-
dios de África y Asia, Universidad de México, 2001).
28 Sobre os lançados e tangomaos, veja Mark, The Evolution of 'Portuguese' Identity; Philip
J. Havik, “Missionários e moradores na Costa da Guiné: os padres da Companhia de Jesus
e os ‘portugueses’ no princípio do século XVII”, Studia, no. 56/57 (2000), pp. 223-262; Ma-
ria João Soares, “Para uma compreensão dos lançados nos rios da Guiné”, Studia, no. 56-
57 (2000), pp.147-222; Green, The Trans-Atlantic Slave Trade, pp. 149-174; Peter Mark e
José da Silva Horta, The Forgotten Diaspora: Jewish Communities in West Africa and the
Making of the Atlantic World, Nova York: Cambridge University Press, 2011; e José da Sil-
va Horta, “’Nações’, marcadores identitários e complexidades da representação étnica nas
escritas portuguesas de viagem: Guiné do Cabo Verde (séculos XVI e XVII)”, Vária História,
vol. 29, no. 51 (2013), pp. 649-675.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 413


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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recrutados entre os clãs mercantis locais. Ao mesmo tempo, comunidades


de africanos cristianizados, os então chamados “cristãos por cerimônia”
ou kriston – que incluía uma população heterogênea, desde escravos
domésticos até profissionais e comerciantes livres que se estabeleceram
em áreas localizadas em torno dos portos costeiros e fluviais – tinham
o seu próprio governo independente, dirigido pelos “juízes do povo.” 29
No início do século XVII, Cacheu possuía vinte ou trinta “vizinhos”, mas,
nas últimas décadas do mesmo século, estimou-se um total de 400 a
500 “vizinhos”, um estatuto limitado aos que viviam como “portugueses
livres”, isto é, que excluía os escravos. 30 Documentos contemporâneos,
entretanto, não deixam dúvidas sobre o seu alegado lastimável estado
financeiro, sugerindo que os habitantes ricos eram aqueles que viviam
e comerciavam no interior.31 A presença de residentes brancos, nascidos
na Europa, era ainda mais ínfima, indicando que os que se intitulavam
“brancos” eram nascidos localmente e simulavam sua brancura calçando
sapatos. 32 A taxa de mortalidade entre os residentes era apontada como
alta, de tal modo que, no início do segundo quartel do século XVIII só
seis “moradores” estavam ainda registrados. 33 Realçavam-se, assim, os
problemas de aclimatização e das doenças tropicais, sobretudo malária,
numa zona desprovida de qualquer apoio médico externo.34
Este estrato social afro-atlântico, direcionado para a troca mercantil
e a administração pública, efetivamente ganhou o controle do comércio
regional costeiro e fluvial entre o final do século XVI e o início do XVII.

29 Havik, Silences and Soundbites, pp. 135-136. Nos documentos do século XVI a XIX, os
kriston foram também chamados grumetes.
30 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 2, 26-9-1670. O
termo “vizinhos”, mais do que simplesmente designar aqueles que vivem próximos uns
dos outros, traz o significado de fogos ou unidades familiares. Nos estudos demográficos
estes dados geralmente têm sido multiplicados por quatro, quando se trata de Portugal;
tomando em conta padrões africanos, isto podia resultar numa população entre 2000 e
3000 habitantes.
31 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 2, 30-6-1671; 24-4-1673; 18-6-1674.
32 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 5, 10-6-1728.
33 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 5, 10-5-1727.
34 Estas questões, geralmente ainda pouco referidas na correspondência oficial no século
XVII, começaram a ser abordadas de forma mais consistente nos fins do século XVIII e
início XIX, com os avanços da medicina; ver Curtin The Image of Africa, pp. 58-87. Sobre a
questão da prática médica no Atlântico, ver Maria Cristina C. Wissenbach, “Ares e azares
da aventura ultramarina: matéria médica, saberes endógenos e transmissão nos circui-
tos luso-afro-brasileiros”,  in Leila M. Algranti e Ana Paula Torres Megiani (orgs.), O Impé-
rio por escrito. Formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI
-XVIII) (São Paulo: Editora Alameda, 2009), vol. 1, pp. 389-406. Sobre as práticas médicas
na Costa da Guiné, ver Philip J. Havik, “Hybridising Medicine: Illness, Healing and the Dy-
namics of Reciprocal Exchange on the Upper Guinea Coast (West Africa)”, Medical Histo-
ry (no prelo).

414 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Nas primeiras décadas do século XVII, as autoridades cabo-verdianas


protestaram contra a presença de “muita gente da nação”, isto é, judeus
sefarditas que negociavam com os holandeses, ingleses e franceses, e
tinham seus próprios exércitos de escravos.35 Na época, a concorrência
entre as nações europeias – incluindo Portugal, França, Grã-Bretanha e
Holanda – pelos lucros do tráfico foi ainda mais intensa, após quase um
século e meio em que traficantes “portugueses” exerceram o monopólio do
comércio atlântico. As redes de tangomaos eram baseadas no parentesco e
na coabitação com as linhagens governantes que controlavam os recursos
humanos e materiais entre os grupos litorâneos, permitindo-lhes monopo-
lizar o comércio fluvial com acesso por terra. Por volta da segunda metade
do século XVII, tinham emergido alguns gan que combinavam o acesso
às rotas para o comércio atlântico com vínculos fortes com autoridades
africanas. Os mais poderosos gan de Cacheu foram os Gomes, mantinham
laços de parentesco com grupos étnicos costeiros como os papeis e bijagós,
enquanto os Vaz de França se relacionavam com as comunidades bañuns e
papeis, todas matrilineares. O gan Vaz controlava as áreas ribeirinhas do
rio Cacheu e tinha em Farim sua principal fonte de comércio. Situado no
limite da maré alta, o porto de Farim encontrava-se no perímetro ocidental
da confederação Kaabú. Controlada pelos soninkés, esta confederação
se desvinculou do império do Mali no século XV, exercendo um domínio
incontestado sobre as rotas comerciais com a região do Alto Níger, no
interior, até o século XIX.36 Redes comerciais marítimas eram, sobretudo,
articuladas para a compra de noz de cola na região de Serra Leoa, mais
ao sul, e a sua troca, juntamente com barras de ferro e sal, por escravos
e ouro na área de Farim.37 A criação, por decreto real, mas com fundos
privados, da Companhia de Cacheu, em 1676, tinha como intenção tomar
conta deste lucrativo comércio. Protestos de várias partes de Cabo Verde
e da Guiné sugeriam que a companhia não era particularmente bem-vista
pelos interesses mercantis locais. 38 O principal obstáculo foi a proibição,
por parte da companhia, aos “moradores” de Cabo Verde e das terras

35 “Requerimento da Câmara de Santiago”, 1614, apud António Brásio, Monumenta Missio-


nária Africana, vol. IV: África Ocidental (1600-1622), 2ª série (Lisboa: Agência Geral do
Ultramar, 1968), p. 563. Ver também Toby Green, “Masters of Difference: Creolization and
the Jewish Presence in Cabo Verde, 1497-1672” (tese de Doutorado, Universidade de Bir-
mingham 2007).
36 Sobre a história de Kaabu, ver Mané, Contribution à l’histoire du Kaabu; Niané, Histoire
des Mandingues de l’Ouest; e Lopes, Kaabunké.
37 George E. Brooks, Kola Trade and State Building: Upper Guinea Coast and Senegambia,
15th to 17th Centuries, Boston: African Studies Center Working Papers, 1980.
38 Daniel A. Pereira, “A Fundação da Companhia de Cacheu (1671-1676)”, in Carlos Lopes
(org.), Mansas, escravos, grumetes e gentio: Cacheu na encruzilhada de civilizações, Bis-
sau: INEP, 1993, pp. 201-247, 212-217

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 415


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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firmes, de comerciarem com “os estrangeiros”, nomeadamente franceses,


ingleses e holandeses.39 Isto a despeito dos apelos dos comerciantes de
Cacheu no sentido de que o rei d. João IV devesse se “lembrar deste povo”
e garantir-lhe a liberdade para participar do comércio transatlântico,
como faziam seus congêneres em Cabo Verde. Por fim, afirmaram: “como
o nosso comércio é somente o resgate de escravos e senão tivermos saída
para elles pela mesma via será impossível senhor podermos sustentar as
nossas famílias.” 40
Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da companhia
foi Ambrózio Gomes, marido de Ña Bibiana, um rico traficante de escra-
vos, com raízes africanas e sefarditas, que já tinha ocupado o posto de
capitão-mor e era visto como futuro diretor da companhia.41 Nascido em
Cacheu em 1621, suas raízes paternas apontam para a vila de Arroiolos,
no Alentejo, onde passou uma parte de sua infância numa família de ori-
gem sefardita. Sua mãe era originária das Ilhas Bijagó, situadas defronte
à costa da atual Guiné-Bissau, que durante séculos foram importante
fornecedoras de escravos. 42 Ele era tido como alguém capaz de inspirar
mais medo e respeito do que o então governador de Cacheu, um morgado
em Cabo Verde encarregado da companhia. Desde os anos 1640, Ambrózio
Gomes regularmente fez ouvir a sua voz em Lisboa, reclamando do trata-
mento desigual dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação
com os cabo-verdianos. Uma fonte francesa descreveu a ele e a seu filho
Lourenço como “negros, mas civilizados e respeitados em seu país.” 43
Embora os dados biográficos de Bibiana sejam muito sumários, sabemos
que nasceu no início do século XVII. As primeiras referências ao apelido
Vaz, de origem cabo-verdiana, remontam ao século XVI e sempre estive-
ram associadas ao rio Gâmbia, conforme atesta uma menção ao primo de
Ña Bibiana, Francisco Vaz de França, em carta ao rei escrita pelo então
capitão-mor de Cacheu, em 1647.44 Muito pouco se sabe de Ña Bibiana

39 Idem.
40 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1, Doc. 71, 19-5-1655. Por falta de capital, a Com-
panhia de Cacheu foi absorvida pela Companhia Geral do Comércio do Brasil em 1680;
Brooks, Eurafricans, p. 147.
41 Pereira, “A fundação da Companhia de Cacheu”, p. 246.
42 Veja Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, processo contra
Crispina Peres, de Cacheu, no. 2079 (1668). O pai de Ambrozio pode ter sido Manuel Go-
mes da Costa, natural de Lisboa, que tinha 36 anos em 1622, e comerciava escravos nas
Ilhas Bijagó, enquanto “Teodosia Gomes que nunca casou, hé mãe do capitão Ambrozio Go-
mes [...] e hé negra Bujagó, bautizada e moradora na povoação de Cacheu.”
43 Nize Isabel de Moraes, “La Campagne de Sto. António das Almas (1670)”, Bulletin de L’Ins-
titut Fondamentale de l’Afrique Noire, vol. 40, no. 4 (1978), pp. 708-717.
44 Veja, por exemplo, a menção a Francisco Vaz, um alfaiate, que tinha um escravo chamado
Gaspar Vaz no porto de Cassão (Kassan) no rio Gambia, em André Donelha, Descrição da
Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625), (coord. de A. Teixeira da Mota e P. E.

416 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

antes da morte do seu marido Ambrozio Gomes, além do fato de já estar


casada nos anos 1660.45
Embora faltem dados conclusivos acerca de seu casamento com
Ambrózio Gomes, a aliança entre os dois gan foi significativa. Logo após a
morte de seu marido, em 1679, uma disputa com o recém-indicado capitão-
mor ou comandante militar de Cacheu, José de Oliveira, catapultou-a, já
em idade avançada, para os livros de História. Ao fazer cumprir a “regra
da exclusão”, que proibia todo comércio com os “estrangeiros” – holan-
deses, ingleses e franceses –, ignorando, assim, a recusa da comunidade
mercantil local em reconhecer o contrato da companhia, o comandante
precipitou a sua própria queda. Bibiana, seu irmão Ambrósio Vaz e seu
primo Francisco armaram uma emboscada e o fizeram prisioneiro, em 25
de março de 1684, assim que saiu da missa celebrada no hospício católico
local. Algemado como um escravo e humilhado diante da comunidade de
Cacheu, Ña Bibiana, assumindo-se líder dos contestatários e porta-voz do
povo de Cacheu, declarou-o publicamente culpado de abuso de poder. A
seguir foi mandado rio acima, para Farim, onde ficou preso durante mais
de um ano num “apertado e escuro corredor” de uma casa que Bibiana lá
possuía. Pouco antes do “golpe”, os comerciantes de Cacheu tinham feito
uma petição contra o capitão-mor acusando-o de “injustiças, desonras,
tiranias, roubos e aleivosias”, além de deslealdade e furto.46
Relatos posteriores claramente identificam Bibiana como cabeça da
conspiração. Dizia-se que todos os encontros dos rebeldes tiveram lugar
em sua casa, em Cacheu, e que foi ela quem, efetivamente, recebera os
assessores do comandante após sua prisão. Apesar disso, a declaração
que se seguiu à prisão, num tom marcadamente “republicano”, trazia a
assinatura de seu irmão, na época um dos mais ricos comerciantes afro
-atlânticos da região. Apesar de Ña Bibiana ser a mais respeitada anciã do
clã, ela não exerceu nenhuma função administrativa e não sabia escrever
o português, mas era certamente bem instruída no crioulo e nas línguas
étnicas como o papel e o bañun. Em vez de ser uma figura secundária,

continuação 44

H. Hair), Lisboa: Junta de Investigações Científicas de Ultramar, 1977, p. 148. Veja ainda
AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1, Doc. 52, Carta de Gonçalo Gamboa de Ayala ao
Rei, Cacheu, 25 de fevereiro de 1647. Mas existem referências anteriores em documen-
tos da Inquisição de Lisboa, o primeiro sendo a Balthasar Vaz, em 1548. ver Havik, Silen-
ces and Soundbites, p. 162.
45 Veja ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo contra Crispina Peres de Cacheu, no. 2079
(1668). O réu se refere a “Ambrózio Gomes, capitão da terra cazada com Bibiana Vaz.” Ver
sobre este processo, Philip J. Havik, “Walking the Tightrope: Female Agency, Religious Prac-
tice and the Portuguese Inquisition on the Upper Guinea Coast”, in Caroline Williams (org.),
Bridging the Early Modern Atlantic World: People, Products and Practices on the Move, Lon-
dres: Ashgate 2009, pp. 173-202.
46 AHU, Conselho Ultramarino , Guiné, Cx. 3, Doc. 53, 20-3-1684. Sobre a revolta de Bibiana,
ver também Brooks, Eurafricans, p. 148-50.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 417


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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que permaneceu nos bastidores como muitas de suas congêneres, ela,


por causa de sua extensa clientela, que era tanto africana como atlântica,
desempenhou um papel-chave nos acontecimentos. Os eventos que se
seguiram demonstram o estreito relacionamento entre ela, seu irmão e
seu sobrinho, que apoiaram seus atos, mostrando a força e ajuda mútuas
associadas aos laços de parentesco.
Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o comandante
militar, mas também diretor local do monopólio da Coroa portuguesa repre-
sentado pela companhia comercial, a revolta revelou o profundo e enraizado
conflito entre os interesses portugueses na região e os dos gan mercantis
locais. Ao reclamar poder político, os revoltosos declararam:
1. não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas [de
Cabo Verde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e
esperar que saia ‘resolução’;
2. nenhum Português negociará com os gentios, mas só
com os moradores da praça com pena do perdimento das
fazendas;
3. não queriam nem haviam de aceitar como não aceitaram
o contrato da Companhia, instituído por especiais ordens
da VM, nem tão pouco admitir na praça, nem ainda como
particulares, os administradores della.47

No dia seguinte aos eventos acima narrados, Ambrósio, junto com


outros notáveis de Cacheu, assumiu o poder sob a forma de triunvirato,
apreendendo todos os bens do comandante e a propriedade da companhia.
A “república de Cacheu” tinha sido declarada, segundo os termos usados na
sindicância que a Coroa mandara a seguir instaurar. Contudo, os rebeldes
não se esqueceram, ao menos formalmente, de reiterar sua fidelidade
ao rei. Apesar de uma multidão, incluindo escravos, ter participado na
prisão do comandante, a sindicância afirmou que “o povo”, em nome do
qual decerto tinha sido elaborada, não tinha tomado parte nem apoiado
genuinamente a revolta, porém, supostamente, conduzida mais pelo medo
e pela ignorância do que pelo entusiasmo.
Quando a notícia chegou a Lisboa, causou grande embaraço e preo-
cupação às autoridades portuguesas, temerosas de perder o seu principal
porto continental na costa da Alta Guiné. O conflito deve ser visto de fato
como reflexo do acentuado declínio dos negócios portugueses, sobre o
qual conselheiros e funcionários bem informados vinham alertando desde
o final do século XVI. Desde então, a crescente competição por parte de
outras nações europeias, tais como a França, a Holanda e a Inglaterra,
tinha enfraquecido o putativo monopólio português na Costa. Capitães-
mores e moradores de Cacheu reclamaram repetidamente à Coroa o

47 AHU, Conselho Ultramarino , Cabo Verde, Cx.7-A, Doc. 133, 18-8-1691.

418 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

direito de exportar escravos diretamente para o Brasil, sem passar por


Cabo Verde – o que de fato já estavam a fazer –, deste modo afirmando
a sua autonomia.48 O fato de os rebeldes de Cacheu estarem negociando
com comerciantes ingleses e franceses, que eram vistos como inimigos
pela Coroa, sublinha o contexto “euro-atlântico” do conflito. Se tivesse
sucesso, o “golpe” de Cacheu implicaria no abandono de qualquer espe-
rança portuguesa de competir com os rivais europeus, além de acarretar
a perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no interior. E o fato de que,
dentre todas as pessoas, uma mulher, e ainda por cima africana e idosa,
estava frustrando os planos portugueses na região, era outra grande cruz
a ser carregada pelos estrategistas políticos de Lisboa. A curta vida da
companhia, que foi seguida de outros esforços monopolistas igualmente
fracassados na década de 1690, só serviu para acentuar esta situação. O
seu falhanço evidenciou não só a fragilidade da presença portuguesa na
Costa, mas também a crescente autonomia dos interesses locais. Forçadas
a intervir, as autoridades portuguesas provaram, sem sombra de dúvida,
que os operadores afro-atlânticos, incluindo os crioulos cabo-verdianos,
os kriston e as linhagens dirigentes africanas, estavam claramente em
vantagem, e assim permaneceriam pelos próximos duzentos anos.
A parceria entre Ña Bibiana, viúva, e seu irmão, então com seus
cinquenta e tantos anos, é crucial para melhor entender a natureza do
espaço social local no qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços
colaterais, estabelecidos por meio da coabitação e dos casamentos mis-
tos com linhagens africanas governantes, reproduziram um padrão de
interação afro-atlântica que facilitou a tessitura de redes interculturais
altamente fluidas pelas quais a região era conhecida. Estas encarnavam a
efetiva combinação entre mobilidade geográfica e social, que lhes permitiu
assumir o controle do comércio regional. A formação do estrato social dos
kriston através de laços de kriason (criação), kuñadundadi (relação entre
os sogros) e kamaradia (relações de camaradagem, por exemplo, entre
compradores e fornecedores), criou uma base duradoura em que ficou
inscrito o parentesco bilateral, num contexto matrilinear característico
dos gan mercantis da região. Foi precisamente esta configuração que deu
a mulheres como Ña Bibiana uma base de poder sociocultural e capital
cultural que elas transformariam em riqueza material e influência política.
Seu controle partilhado dos recursos e o apoio recebido dos dignitários
africanos locais também ilustram a existência de uma divisão flexível
de responsabilidades, que provou ser fator decisivo em sua capacidade
de iludir as autoridades portuguesas. Uma série de eventos serve para

48 Ver, por exemplo, a petição dos moradores de Cacheu à Coroa, Cacheu, 9-12-1641; a pe-
tição do capitaõ-mor Fernão Lopes de Mesquita, Cacheu, 27-9-1644, e também o Alvará
Real que concede o direito dos moradores na Costa de negociar diretamente com o Brasil,
Lisboa, 22-11-1644; AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 1.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 419


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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elucidar o contexto local, por exemplo, a petição de Lourenço Gomes,


filho do casamento anterior de Ambrózio Gomes, para obter a herança
do pai; a sindicância entre os moradores de Cacheu acerca do papel de
Bibiana no “golpe”; a localização de sua propriedade e as suas relações
com as linhagens dirigentes de Bañun; sua ida a Cabo Verde e a questão
de seu analfabetismo.
Os documentos mostram que Lourenço Matos Gomes tentou em vão
obter a herança a que ele, pela lei patriarcal portuguesa, teria direito.
Endereçou uma petição ao rei português afirmando que, imediatamente
após a morte de seu pai, tinha tentado fazer uma distribuição equitativa
(ou que ele via como tal) do espólio com sua madrasta, o que resultara em
fracasso. Isto é revelador, e particularmente ilustrativo, das tradições de
parentesco bilateral da Costa. Na petição, afirmou que
por morte do seu Pay, Ambrosio Gomez, capitão mor
que foi daquelle praça, ficara elle supplente habilitado
por seu herdeiro de muyta quantidade de fazenda, e em
razão o ditto seu Pay estar cazado com Viviana Vás, se
metera de posse della como Cabeça de Cazal, fazendose
tão poderosa com dadivas e que desde o anno de 1679
em que seu Pay falecera athe o prezente, elle não fora
possivel fazer lhe fazer inventario, e partilha que hia
decipando, e consumindo de maneira que não viria elle
depois a herdar couza alguma.49

E acrescentou, significativamente, que “a falta de justiça que mal


naquellas partes, sem poder, se podia administrar, ou por razão de muito
que grangear a indústria de quem sabia negociar em terras tão faltas de
letrados que só vencia as couzas, que melhor com a intelligencia propria
as meneiava”. 50 A despeito de suas repetidas tentativas e do apoio de
Lisboa, ele nunca conseguiu obter o que pedira.
A sindicância sobre a revolta entre os moradores de Cacheu (ocorrida
em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e acusada por agentes
da Coroa de comerciar livremente com os africanos e outros europeus,
como os ingleses, especialmente na calada da noite, sem recolher qualquer
imposto aos cofres de Cacheu. Usando estes argumentos como pretexto
porque, afinal de contas, todos negociavam com os comerciantes rivais
operando na região e que pagavam mais, pedia que “aquela mulher” ‒ tam-
bém referida como “a viúva” fosse mantida sob custódia e submetida a
julgamento, e que fosse feito um inventário de suas posses. Os sindicantes
acrescentaram que seria também aconselhável colocar atrás das grades

49 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 3, Doc. 3, 2-9-1682.


38 Idem.
50 Idem.

420 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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o seu irmão e o seu primo, pois, do contrário eles poderiam esconder a


riqueza da família obtida ilegalmente. Enfatizaram que ela deveria ser
julgada em Cabo Verde, não só sugerindo que o então comandante não
tinha nenhuma influência significativa sobre a administração, mas que
queriam remover o gan Vaz do poder.51
Quando Bibiana foi, finalmente, aprisionada, ela se beneficiou da
hospitalidade de um chefe linhageiro de Bañun, ou udjagar (djagra, em
kriol), em cuja casa ficou. O relato de sua captura dá-nos alguma ideia dos
problemas encontrados pelos enviados para realizar esta tarefa:
Grandemente me fez Deos em me livrar de Guiné sem que
me enchessem a barriga de pssonha, que foy la muito mal
aceito no interior, mas como eu me vir dessa banda com
o favor de Deos fallarey, e tudo ha de ser verdade; o que
direy athé he que se a minha lealdade não fora tanta ficara
Bibiana Vas em Guiné metida no gentio porque atirei de
caza de hum Rey para onde fugio, fazendo a vir a praça com
minhas industrias.52

O oficial foi obrigado a investir em presentes largas somas de seus


próprios recursos, a fim de convencer os parentes e anfitriões a entregá-la.
Mas pouco conseguiu ter de volta, uma vez que as posses de Ña Bibiana
não puderam ser encontradas, pois “os bens desta mulher estão todos em
terras de gentios, e por isso se lhe não achou quasi nada no sequestro
que se lhe fez.” 53 Embora seu primo Francisco Vaz de França estivesse
fora, negociando na costa, não seria possível persegui-lo “porque os que
andam ausentes, não é fácil acolhelos a mão”, demonstrando mais uma
vez a debilidade do poder português na região. O oficial ainda acrescentou
que “de Gambia sahiam dois navios a esperarme na barra de Cacheu” o
que conseguiu evitar para “tirarme a Bibiana Vaz, e neste caso é certo
havia de pelejar até morrer.”54
Na verdade, durante a ausência de Ña Bibiana, toda a sua riqueza
foi guardada por seu primo, convenientemente ausente. Portanto, só seus
escravos poderiam ser confiscados, porém todas as tentativas de fazê-lo
levaram-nos, imediatamente, a fugir para o “gentio”. Numa petição feita
por Bibiana quando estava detida em Cabo Verde, ela afirmou que levá-la
para Portugal, para ser julgada, não só a mataria, velha e doente como
estava, atacada pela malária, mas que sua contínua ausência da Guiné
poderia levá-la a perder todas as suas posses para seus rivais. 55 Neste

51 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 133, 18-8-1791.
52 AHU, Conselho Ultramarino , Cabo Verde, Cx. 7A, Doc. 85, 17-6-1687.
53 Idem.
54 Idem.
55 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 75, 12-6-1687.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 421


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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meio tempo, ela obteve o apoio dos mais ricos e influentes comerciantes
cabo-verdianos, que garantiram sua segurança e sustento enquanto es-
teve no arquipélago. Isto demonstra a dimensão atlântica de seu status
africano no contexto regional, sua influência e autoridade. Quando a Ña
Bibiana foi, finalmente, concedido o perdão real, após ter pagado uma
soma simbólica como indenização pelas perdas sofridas pela Coroa, ela
retornou à Guiné e moveu uma vigorosa campanha para libertar seu
irmão que, afinal de contas, fora o seu principal parceiro nos eventos.
No final, tanto seu irmão quanto seu primo foram perdoados. A lógica
por trás desta mudança de procedimento é significativa. Nem o fato de o
pagamento de indenização por parte do primo ter se mostrado impossível
de ser efetuado, nem o perdão ao primo e irmão, por cuja soltura ela tinha
insistentemente lutado, aconselhavam as autoridades portuguesas a
cometer imprudências: “se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz e
aos mais outros maiores subsidios, creio que tudo se perderá.”56
O mesmo sindicante admitiu que “todo aquelle povo está reduzido a
excessiva pobreza, assim por occazião do comércio com os extrangeiros,
que lhe esgotarão o mais preciozo, como pela esterilidade do negócio com
os Portuguezes, e remeças destas Ilhas [de Cabo Verde].” 57 Esta sua crítica
estava claramente dirigida aos comerciantes portugueses em geral, às
autoridades em Cabo Verde e, sobretudo, ao governador que, obsessiva-
mente, tinha perseguido Ña Bibiana.58 A fim de resolver este impasse sem
perder completamente a influência na região, os sindicantes decidiram
obter uma declaração escrita, uma “promessa e obrigação”, mas que não
foi assinada diretamente por ela, já que se declarara “analfabeta”.59 Este
documento formalizou o acordo entre a coroa portuguesa e Ña Bibiana,
que prometeu construir uma fortaleza de pedra em Bolor, defronte a
Cacheu, na barra do mesmo rio, numa posição estratégica que controlava
o acesso ao rio. Mas ela somente o faria em troca da soltura e do perdão
a seu irmão e primo. Entretanto, afirmou, com certa ironia, habilmente
jogando a cartada do “sexo frágil”, que, por ser mulher, não poderia levar
a cabo a construção do forte. Além disto, na região não havia pedra con-
siderada boa para construção, a qual teria de ser trazida de Cabo Verde.
Todavia, ela se declarou pronta para, “voluntária e livremente”, pagar
pela construção. Levando-se em conta a perda de bens sofrida durante e
devido à sua ausência – ela disse que tinha sido deixada somente com a
posse de alguns escravos –, e como seu primo estivesse na posse de todos

56 AHU, Conselho Ultramarino, Cabo Verde, Cx. 7-A, Doc. 133, 18-8-1691.
57 Idem.
58 “Como pelo falecimento do governador Diogo Ramires Esquivel se dilatava o ajuste com
Bebianna Vaz.” Idem.
59 Idem, 20-4-1691.

422 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

os seus bens, teve de contar consigo própria para honrar o pagamento.


A primeira parcela, com a metade do valor, deveria ser paga quando seu
primo chegasse a Cacheu, para o que não foi fixada uma data, e a segunda
deveria ser efetuada um ano depois. Ela acrescentou que se devia “mandar-
lhe restituição ao dito seu irmão a esta praça soltando-se da prizão em
que está porque com a sua pessoa continuara o negocio que não se pode
perder por ser molher.” 60 E, como forma de assegurar o cumprimento de
seu lado na barganha, ela deu em garantia “todos os seus bens materiais”.
Depois de tudo o que foi dito e feito, pode-se imaginar o que, na prática,
realmente significava esta garantia, já que nenhum desses bens podia
ser acessado por estrangeiros.
Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo Francisco torna-
ram-se alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné. Francisco,
referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de crueldades, tais como
ter matado brutalmente alguns de seus escravos e “causado terror a
todos e ao gentio” na área do rio Nuñez mais ao sul. 61 Um inquérito foi
ordenado para que se pudesse dar-lhe um “exemplar castigo.” 62 Ambrósio
tornar-se-ia um dos críticos mais abertos das políticas e do apoio – ou da
falta de ambos – de Lisboa, durante os trinta anos seguintes, incluindo a
falta de ajuda para lidar com as ameaças dos africanos, que com alguma
frequência ameaçaram a praça ou cortaram o acesso às fontes de água,
localizados fora da tabanka (kriol: povoação ou perímetro cercado). Quase
todas as petições formuladas pelos comerciantes de Cacheu, nesse período,
traziam sua assinatura. Nada se encontra sobre Bibiana nos documentos
após 1694, o que não surpreende, levando-se em conta a sua idade já
avançada e o seu estado de saúde.

Rosa de Carvalho Alvarenga e Honório Pereira Barreto


A história de outra parceria, desta vez entre mãe e filho, serve para
analisar o empreendimento afro-atlântico numa perspectiva comparativa
e cronológica. Claras distinções entre a condição e a iniciativa feminina
e masculina podem ser feitas no seio dos gan mercantis de Cacheu e de
Ziguinchor – ao norte, na região de Casamance, no vale do rio do mesmo
nome –, no século XIX. Também neste caso, sabemos mais sobre o homem
do que sobre a mulher aqui referidos, mas há pouca dúvida sobre a auto-
ridade de um e de outra. Tal como ocorreu com sua ilustre antecessora,
Ña Bibiana, os dados biográficos sobre Rosa de Carvalho e Alvarenga
são poucos e esparsos: enquanto muito se sabe sobre seu marido e filho,

60 Idem.
61 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 3, Doc. 22-6-1694.
62 AHU, Conselho Ultramarino , Guiné, Cx. 3, Doc. 97, 30-10-1694.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 423


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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nenhum dado concreto sobre seu nascimento e morte foi encontrado.


Presumimos que ela tenha nascido em algum momento do último quar-
tel do século XVIII, e falecido em meados dos anos 1850. Em termos de
status social, Dona Rosa de Cacheu, como era também chamada, ou, mais
afetuosamente, Ña Rosa, descendia do mais preeminente gan do presídio
de Ziguinchor. O uso do termo “dona”, nas fontes portuguesas, indica sua
inclusão na classe dos “notáveis” locais, intimamente associados com a
administração e o comércio. A povoação em questão tinha sido erigida,
em meados do século XVII, por uma administração desejosa de estender
o seu raio de ação para o lucrativo comércio do rio Casamance.
O clã Alvarenga, originário das ilhas de Cabo Verde pela linha
masculina, praticamente controlava a administração da cidade militar
desde meados do século XVIII. Seu pai, Manuel de Carvalho Alvarenga,
era o comandante de Ziguinchor na virada para o século XVIII. Tal como
todos os altos funcionários, ele também atuava no comércio de escravos,
cera de abelha, arroz, sal e marfim, que eram trocados por ferro, armas,
pólvora e aguardente. Na linha feminina, a autoridade do clã se baseava
em laços de parentesco e clientelismo com as comunidades de Bañun/
Kasanga e Felupe/Djola, localizadas na região de Casamance. Estes eram,
respectivamente, os principais fornecedores de escravos, cera de abelha
e arroz da região. Junto com os escravos obtidos dos soninkés e mandin-
gas, no interior, e dos bijagós, nas ilhas da costa, o gan Alvarenga tinha
acumulado considerável experiência, influência e riqueza.
Ña Rosa ficou viúva em 1829. Seu marido, João Pereira Barreto, tinha
sido oficial militar cabo-verdiano. Filho de um padre cabo-verdiano e uma
escrava guineense, possivelmente de origem felupe, comandara postos nas
administrações de Ziguinchor e Cacheu, e estabeleceu uma rede de relações
de kamaradia com as comunidades africanas vizinhas, incluindo Felupe/
Djola e Pepel. Em 1814, liderou uma revolta contra o então comandante
de Cacheu, que foi deposto em nome do povo deste lugar sob acusação de
insanidade.63 O “golpe”, que colocou um triunvirato no controle da cidade,
ao contrário da intervenção de Bibiana, foi posteriormente justificado
numa investigação oficial. Os relatórios reconheceram a autoridade de João
Pereira Barreto, que era “bem merecida e [que tinha] hereditária influência
com as nações gentias.” 64 Na época, ele era o rico proprietário da maior
casa comercial de Cacheu. Quando viajou para as ilhas de Cabo Verde por
razões de saúde, foi acompanhado por “sua mulher, a família constante
de trezentas pessoas”, na sua maioria escravos e serviçais domésticos.65
Ao morrer, deixou terras na Guiné, Cabo Verde e Brasil, além de uma casa

63 AHU, Conselho Ultramarino , Guiné, Cx. 21, Doc. 42, 22-10-1814.


64 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 22, Doc. 23, 4-5-1819. É significativo o
65 Arquivo Histórico Nacional (AHN), Praia, Secretaria Geral do Governo, A6/4, 24-1-1824.

424 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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em Lisboa para sua esposa, que se tornaria a mais poderosa comerciante


das regiões de Cacheu e Ziguinchor. Sua irmã, Josefina, nascida em Cabo
Verde, casou-se duas vezes, em ambas com oficiais militares que detinham
postos chaves na Fazenda Real.66
O filho de Ña Rosa, Honório Pereira Barreto, nasceu em Cacheu em
1813 e, quando da morte do pai, foi chamado de volta à Guiné de Portugal,
onde estava estudando, a fim de ocupar o lugar daquele nos negócios
da família. Juntos, mãe e filho determinaram o destino da companhia
comercial criada pelo marido e pai, e desempenharam um papel domi-
nante nos assuntos administrativos da região. Tal como no século XVII,
o controle do governador português estabelecido em Cabo Verde, cuja
jurisdição incluía as cidades e guarnições guineenses, era fraco ou quase
inexistente. Assim, a combinação entre o poder e a fama inquestionáveis
de Ña Rosa, baseada numa sólida associação de parentesco e empreendi-
mento, e o papel de seu filho na débil administração guineense, emergiu
com força na primeira metade do século XIX. Elementos centrais para
indicar o estado das relações de poder na época são o envolvimento de
Ña Rosa na produção agrícola para exportação na Guiné e Cabo Verde;
sua influência sobre os governantes africanos e comunidades kriston; sua
ação como mediadora de conflitos; o seu pedido para obter a custódia legal
de seus dois filhos; a meteórica carreira de seu filho na administração do
entreposto; e, finalmente, o envolvimento de seu filho, e dela própria, no
tráfico de escravos. As fontes deixam claro que as operações comerciais
de Ña Rosa incluíam uma fazenda, tipo de propriedade então chamada
ponta, a primeira na região, onde escravos eram empregados no cultivo
de arroz: “A fazenda de D. Rosa de Cacheu, no Poilão de Leão, é a única
que existe no limite da Guiné Portuguesa.”67
A importância do arroz pode ser ilustrada pelo fato de que Cacheu,
assim como Ziguinchor, dependiam inteiramente da importação deste
produto da região circunvizinha, e que Gâmbia (isto é, Bathurst), recém
tornada colônia britânica, estava, entrementes, atraindo o grosso do co-
mércio da região, criando assim novos mercados e incentivando o cultivo
do arroz como cultura mercantil. Embora sua localização seja conhecida,
pouca informação é fornecida sobre a própria ponta. Informações baseadas
em rumores dão conta de que era “uma grande fazenda que diziam estar
bem cultivada.”68 A área era conhecida pela existência de “habitações e

66 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 22, Doc. 55, ant. a 31-10-1823.
67 José Conrad Carlos de Chelmicki e Francisco Adolfo de Varnhagen, Corografia cabo ver-
diana ou descripção geographica histórica da provincia das Ilhas de Cabo e Verde e Gui-
né, Lisboa: Typografia de L.C. da Cunha, 1841, vol I, p. 184, pp. 175-196.
68 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a Estatística das Ilhas de Cabo Verde no
Mar Atlântico e suas dependências na Guiné Portuguesa, Lisboa: Imprensa Nacional,
1844, p. 95.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 425


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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campos de arroz” de comerciantes de Cacheu.69 Muitas fontes falam sobre


localização e a produtividade da plantação de Ña Rosa, embora ninguém,
aparentemente, a tivesse visitado pessoalmente. Há, na verdade, boas
pistas neste silêncio 70. Ilustra sua importância estratégica o fato de que
a dita ponta, que ela presumivelmente “comprara” aos de Bañun, estava
localizada num riacho (o Saral) que liga os rios Cacheu e Casamance,
numa área que escapava ao controle da administração portuguesa, e que
era insistentemente rotulada como rota de contrabando. A mesma área
tinha sido, na verdade, ocupada por povoados comerciais como São Felipe
e Buguendo, importantes centros do comércio afro-atlântico nos séculos
XVI e XVII. Localizada em território de Bañun, com o qual certamente
negociou os direitos de usufruto, seus caminhos eram trilhados e bem
conhecidos de muitos comerciantes baseados em Cacheu, tais como Ña
Bibiana. No século XIX, a reputação da área revela a importância das
relações de parentesco com as comunidades locais, que controlavam o
acesso à mesma. Como pontuou um contemporâneo, “apesar de ser este
caminho mais comum e cômodo, por ser mais perto, não se pode ir sem
algum perigo das perseguições dos pretos, de modo que é preciso pagar-
lhes para atravessar as suas terras, como também para carregarem as
fazendas, fato e tudo o que qualquer quer levar.”71
Significativamente, o acordo era feito com os bañuns, cujo poder e
controle territorial estavam, na época, muito reduzidos, já que o seu auge
tinha ocorrido em época anterior ao contato afro-atlântico. O pai de Ña Rosa
mantivera excelentes relações com o “rei” bañun de Jame (ou Jami), situado
num riacho que vinha de Ziguinchor e que era, então, assim como no tempo
de Ña Bibiana, uma importante fonte de escravos e cera de abelha na região,
aonde Bibiana chegou a morar. Os paralelos com os episódios do passado são
certamente notáveis também em relação aos frequentes casamentos mis-
tos entre oficiais-comerciantes vindos de fora e mulheres de descendência
bañun. Tais laços ofereciam vantagens para ambos os lados, assegurando um
fluxo contínuo de mercadorias baseado no acesso privilegiado às provisões e
reforçando a confiança e as obrigações mútuas que determinavam o sucesso
comercial. Mobilidade social e espacial eram importantes na região, conhecida
por sua duvidosa segurança por causa dos ataques dos nativos, ou “gentios”,
sobre as embarcações e o rapto de suas tripulações.
Devido aos avanços franceses sobre a região na tentativa de esta-
belecer uma posição segura e tomar parte no comércio, estas alianças

69 Bertrand Bocandé, “Sur la Guinée Portugaise ou Sénégambie Meridionale”, Bulletin de la


Societé de Geographie de Paris, 3e serie, no. 2 (1849), p. 315.
70 Sobre a recusa de comerciantes locais partilharem informação sobre seus negócios, ver
Brooks, Symbiosis, pp. 189-190.
71 Chelmicki e Varnhagen, Corografia, vol. I, p. 109.

426 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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eram, então, encaradas pelas autoridades portuguesas numa perspectiva


nacional: “A conservação d’este ponto se deve realmente ao Sr. Honório
e a sua mãe D. Rosa, senhora muito rica, natural d’aqui, que exerce
grande influência sobre os pretos.” 72 Por “pretos”, esta fonte entendia
não somente os governantes africanos, mas também as comunidades
kriston vivendo no povoamento e ao seu redor, que formavam a espinha
dorsal do comércio litorâneo e conduziam as transações com o interior.
A comunidade de Cacheu era vista como mais ‘bem-comportada’ do que
sua contraparte mais rebelde, a cidade comercial de Bissau, e relações
pacíficas eram mantidas com os papeis, em cujo tchon Cacheu estava
localizada, tudo isto atribuída à presença de Ña Rosa. Como resultado
disto, ela e seu filho, Honório Pereira Barreto, capturaram a imaginação
dos cronistas e historiadores portugueses e cabo-verdianos, em busca
de ícones dos centenários e míticos elos “luso-africanos” para reforçar
as reivindicações territoriais portuguesas. Este aspecto foi, mais tarde,
explorado durante a ditadura nacionalista do Estado Novo (1926-1974),
quando alguns cronistas começaram a descrevê-la como a chefe do gan
Alvarenga: “A preponderância dos Alvarenga transmitia-se de tal modo,
que Rosa de Carvalho era conhecida pela designação de Rosa de Cacheu,
e cegamente acatada a sua autoridade pelos indígenas.”73
Imbuído de fortes tons nacionalistas, seu grande prestígio entre os
africanos, tanto “gentios” como “cristãos”, foi exaltado, sendo ela, ainda,
descrita como uma “senhora de cor, de grandes virtudes” com “qualidades de
honradês”. Suas ações e as de seu filho foram sistematicamente colocadas
numa perspectiva “lusocêntrica”, a fim de contrastar com as investidas
francesas e inglesas na região da Senegâmbia na época. Curiosamente,
estes elogios emularam aqueles contidos no enciclopédico estudo publicado
pelo historiador cabo-verdiano Senna Barcelos, escrito na virada para o
século XX, quando se desenrolavam as campanhas militares portuguesas
que levariam à criação do estado colonial na Guiné, conforme demonstra
o trecho: “Esta senhora, de côr, dominava as tribus da Guiné, os régulos
eram seus vassalos e por isso nos nossos domínios de Cacheu, Zeguinchor
e Farim os gentios prestavam a mais cega obediência às autoridades”.74
Isto demonstra claramente a mudança de atitude em relação a gênero,
parentesco e cor, impelida pela necessidade de aliados na região e pelo
crescente sentido de preocupação na metrópole acerca dos desígnios es-
trangeiros sobre as suas possessões. As operações comerciais de Ña Rosa

72 Idem, p.107
73 Jaime Walter, Honório Pereira Barreto, Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa,
1947, p. 12.
74 Cristiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a história de Cabo Verde e Guiné, 5 vols.,
Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1899-1913, II, Parte 3, p. 159.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 427


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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iam além da Guiné e se estendiam para a ilha de Santiago, no arquipélago


de Cabo Verde, que, afinal de contas, era a terra natal da linha masculina
de sua ascendência, que lá possuía “morgadios”. Pedidos de passaporte
para viajar às ilhas de Cabo Verde, feitos ao governador português baseado
no arquipélago, eram imediatamente atendidos, sem hesitação. Suas afi-
nidades com as ilhas assoladas pela fome são, também, evocadas quando
subscreve, junto com outros membros do gan Barreto, um pedido de auxílio
em meados dos anos 1850.75 Ña Rosa negociava diretamente em escravos,
arroz e cera de abelha, mas também com importantes mercadorias de
troca, tais como os panos de algodão, chamados “bandas”, produzidos nas
ilhas, além de tabaco e pólvora, que circulavam como moeda de troca local.
Sua influência estendia-se ao universo político em razão das posições
administrativas ocupadas por seu marido e seu filho, mas também como
decorrência dos laços que mantinha com as comunidades estrategicamente
localizadas no litoral, tais como Bañun/Kasanga, Felupe/Djola e Pepel.
Muitas vezes foi chamada, tanto pelas autoridades portuguesas quanto
guineenses, para mediar conflitos nas praças de Ziguinchor, Cacheu e
Farim, e não hesitou, sempre que necessário, em usar o seu exército de
escravos. Um dos exemplos deste tipo de intervenção foi a sua mediação
entre as aldeias papeis da área de Cacheu e as autoridades da cidade, a
pedido destas, em 1825. 76
Ao eliminar os impedimentos ao livre exercício do comércio na
região ela, naturalmente, era uma das principais beneficiárias de tais
apaziguamentos. Que sua influência política fosse sentida através da
região norte da Guiné-Bissau e Senegâmbia, incluindo Casamance, é
algo que também fica patente nas fontes francesas.77 Mas, é de se notar,
a prioridade nas fontes coevas é dada à carreira meteórica de seu filho,
Honório Pereira Barreto, que Ña Rosa promoveu de forma determinada.
Ele pôde gozar largamente da influência de sua linhagem paterna, mas
sobretudo da materna; pois a própria posição proeminente de sua mãe
como comerciante afro-atlântica foi decisiva para o sucesso de suas
aventuras comerciais. Ao mesmo tempo, os serviços prestados por seu pai
na administração local muito o ajudaram na sua carreira política, além de
ter crescido numa época fortemente politizada pela revolução liberal78.

75 Boletim Oficial de Cabo Verde, no. 2, 23-3-1855.


76 Idem, p. 348
77 Veja Christian Roche, “Ziguinchor et son passé (1645-1920)”, Boletim Cultural da Guiné
Portuguesa, vol. XXVIII, no. 109 (1973), pp. 35-59.
78 Sobre o impacto da revolução liberal de 1820 em Portugal sobre Cabo Verde e Guiné, ver
Victor M. E. Semedo, “Implementação dos ideais das revoluções de 1820 e 1910 no Ul-
tramar Português – Cabo Verde” (Tese de doutorado, Porto: Universidade Portucalense,
2011); e sobre a Guiné, Brooks, Symbiosis, p. 179-180.

428 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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No que tange ao universo privado, os dados também indicam o


aproveitamento da quadro legislativo português em sua vantagem para
apoiar e afirmar sua autoridade no seio da família. Com a morte de seu
marido, Ña Rosa enviou um pedido formal a Lisboa para obter a guarda
de seus dois filhos, Honório e Maria, que foi provisoriamente garantida.
Os documentos incluem testemunhos de moradores de Cacheu, que con-
firmam a sua capacidade para educar os filhos. Aqueles que atestaram
sua responsabilidade moral e civil declararam, inequivocamente, “pela a
conhecer ha muitos anos, ser ela muito capaz e suficiente para a boa e fiel
administração dos bens de seus filhos, porquanto é assas público e notório
a actividade, zelo e intelligência com que tem portado nos negócios do seu
cazal e na boa educação dos seus filhos”. 79 Inquirida sobre o assunto, Ña
Rosa declarou que não só renunciava a todos os direitos e privilégios que
a viuvez podia assegurar pela lei portuguesa, mas “que obrigava todos os
seus bens presentes e futuros pela boa e zelosa administração dos seus
filhos, e para o que hipotecava os seus mesmos bens.”80 Este foi um dos
primeiros casos nos quais tais direitos foram formalmente garantidos
para um cidadão nascido na Guiné, e é particularmente significativo o
recurso à lei portuguesa por uma viúva para assegurar direitos paternais,
não só demonstrando o seu controle sobre os negócios da família como a
extensão dos seus recursos materiais.
A parceria estratégica entre mãe e filho, no âmbito comercial e
político, permitiu a Ña Rosa e seus sucessores obterem contratos es-
senciais da administração. Um dos grandes prêmios foi o contrato para
“arrematação” das alfândegas de Cacheu, Bissau e Bolama em 1845. O
contrato tinha sido, previamente, entregue a uma das principais casas
comerciais guineenses, dirigida por uma sociedade rival, estabelecida
em Bissau, formada por outra mulher guineense, Aurélia Correia, e
um oficial cabo-verdiano, Caetano José Nozolini. Todavia, este último
tinha, segundo as autoridades, oferecido “condições inaceitáveis” a uma
proposta alternativa. A doação que Honório Pereira Barreto tinha feito,
no mês anterior, à coroa portuguesa, dos contratos para o direito de
estabelecimento que ele próprio celebrou com vários chefes africanos
no rio Casamance, provavelmente também teve influência na decisão
da Coroa de lhes outorgar a mencionada “arrematação.” No contrato, Ña
Rosa e seu filho são designados como “moradores proprietários” de casa
comercial estabelecida em Cacheu.
Nas fontes contemporâneas, são elogiadas as habilidades de barganha
que seu filho empregava nas negociações com vários chefes locais, de
diversas comunidades nativas da região, bem como a sua capacidade para

79 AHU, Conselho Ultramarino, Guiné, Cx. 23, Doc. 115, 18-12-1828.


80 Idem.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 429


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atrair investidores estrangeiros. É indicativo de seu status o fato de que


comerciantes ingleses, belgas e franceses tenham-no escolhido “como o
único árbitro em todas as questões que podiam surgir com o governador
geral de Cabo Verde”, isto é, com Joaquim Pereira Marinho, com quem ele
mantinha relações cordiais.81 Os tratados assinados com as tabankas dos
bañuns do rio Casamance, perto de Ziguinchor, e com os régulos papeis
na vizinhança de Cacheu, assim como os negociados com os biafadas e
bijagós, mostram o quanto a rede de parentesco e clientelismo que ele
cultivou se devia à sua ascendência materna e educação, como era então
reconhecido: “Este senhor, um filho do país, exerce sobre os povos gentios
uma extraordinária influência conhecendo os seus usos e costumes, e
até a própria linguagem, acatando diplomaticamente os seus prejuízos.
Distribuindo com largueza seus haveres, e estudando com extrema finura
seus caprichos e interesses pode, ao seu bel prazer, entre aqueles povos
atear a guerra, ou conseguir a paz.” 82
Sua reputação de “patriota português”, que ele mesmo, “um escuro e
obscuro Africano”, cultivou, era, todavia, acompanhada por uma dura ati-
tude crítica acerca da estreiteza de visão da política portuguesa diante da
expansão francesa na região.83 Obviamente, a opinião franca de um oficial
e comerciante guineense em relação aos seus superiores em Cabo Verde
e Lisboa, que reclamavam a soberania sobre a região, provocou reações
díspares. Visto como “a pessoa mais instruída de toda a nossa Guiné”84,
ele foi o primeiro governador a publicar suas opiniões e queixas num
ensaio muito citado. É uma devastadora acusação, feita por um guineense
que enxerga a lastimável condição das poucas “possessões portuguesas”
em meados do século XIX: “Desgraçadamente, se pode dizer que nestas
possessões há um governador, e comandante, mas que não há governo.
O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o
primeiro até o último, ignoram quais são seus deveres; só tratam de seus
negócios, pois são negociantes”.85 Embora ele reconheça claramente as
relações desiguais de poder na região, mostra pouco respeito pelo modo
de vida de seus moradores:

81 É relevante referir, nesse contexto, que o mesmo governador Marinho teve uma postura
muito dura acerca do casamento misto e da miscigenação entre “pretos e mulatos”, subli-
nhando a necessidade de “branquear” a população de Cabo Verde a fim de evitar que “as fa-
mílias desta Província retrogradem para a raça Africana”. AHU, CV, Pasta 3, 11-12-1838.
82 Januário Correia de Almeida, Um Mez na Guiné, Lisboa: Typ. Universal, 1859, p. 23
83 As suas críticas faziam eco àquelas feitas pelo então deputado Alexandre Herculano nas
Cortes poucos anos antes; vide Luciano Cordeiro, “A questão da Guiné num discurso de
Alexandre Herculano”, in Obras de Luciano Cordeiro (Coimbra: Imprensa da Universida-
de, 1934), vol. I, pp. 633-662.
84 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 3, 5-4-1837.
85 Barreto, Memória, p. 9

430 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Os estabelecimentos são cercados por gentios mais


ou menos insolentes, mas que geralmente dominam
os Portugueses [...] Dos gentios vizinhos aos nossos
estabelecimentos vem os sustentos [...] Os habitantes, à
excepção dos poucos notáveis, seguem os costumes dos
gentios, de que descendem [...] São preguiçosos, indolentes,
inertes, e a nada se querem aplicar; podendo, se quizessem,
levar a grande escala a agricultura, pois o terreno é
fecundo [...] Não tem idéia alguma de moral, nem de virtude
sociais; mamam o leite da devassidão, vivem brutalmente e
morrem quase sempre cheios de moléstias venéreas.86

Quanto mais fala do papel de Lisboa, mais claro o documento se torna:


Nomeado um governador, não por suas virtudes e talentos,
mas pelo partido que segue, é logo julgado infallível e santo
[...] o governador é agraciado, antes de exercer seu cargo
pelos serviços que há de fazer, e é agraciado depois pelas
participações que deu, sem o governo procurar saber se são
ou não verídicas” e vai além, ao afirmar que a “má qualidade
de gente que da Europa vem para estas Possessões, é uma
das causas do atraso da civilisação delas. Degradados por
crimes infames, e homens da mais baixa classe do povo,
e que apenas aqui chegados passam a ser notáveis e até
oficiais, não podem introduzir bons costumes; antes,
pelo contrário, adoptam os de cá, porque favorecem a sua
immoralidade.87

Apesar dessas críticas, as fontes portuguesas o elogiam por seu


alegado patriotismo e filantropismo. Honório Pereira Barreto, segundo
elas, era dono de “uma das casas comerciais desta província; a que possui
talvez mais numerário e a que tem mais crédito nas suas transacções e
que o mesmo coronel é o único cidadão desta província que faz sacrifícios
pecuniários ao governo sem interesse algum próprio”.88 Outros elogia-
vam sua “real inteligência e patriotismo”,89 assim como seu “acrisolado
patriotismo [ao qual] se deve a conservação de alguns dos nossos esta-
belecimentos da Guiné”.90
As razões para tais elogios são patentes: sem nenhum controle efetivo
sobre a região, a Coroa portuguesa tinha de confiar na iniciativa daqueles
que estavam preparados para ocupar postos na administração local e podiam

86 A despeito de sua origem, ele sempre aconselhou Lisboa a nunca indicar um residente lo-
cal, pois isto poderia facilitar abusos: “todos, sem excepcçao, são negociantes; e de tal lu-
gar só servirá para o exercerem em seu proveito”. Idem, pp. 47-48.
87 Idem, pp. 37-38 e 41-42.
88 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 3, 11-3-1838.
89 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 21, 11-5-1856.
90 Almeida, Um mez na Guiné, p. 24.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 431


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reivindicar certa autoridade diante das populações do lugar. Honório Pereira


Barreto – chamado Ño Nô pelos seus conterrâneos – atribui, enfaticamente,
a um preconceito de cor o fato de seus repetidos apelos não serem levados
a sério em Lisboa. Amargamente, reclamava que “parece que a minha cor
tem sido o único motivo de não serem atendidas minhas participações, com
quanto eu julgue que a verdade e o patriotismo não têm cor.”91 Negocian-
do intensamente com dignitários africanos acerca de direitos de terra e
tratados de paz, ele criticava aqueles que condenavam sua política, pois
“julgam que o negro é igual ao macaco.”92 A despeito de que os habitantes
da região estivessem a ser seduzidos por nações rivais, os portugueses só
os viam como “pretos.” 93 Em seus prolíficos escritos como oficial militar ele
fez algumas referências diretas a sua mãe, que respeitosamente chamava
de “Dona Rosa Carvalho d’Alvarenga.” 94 Nestes escritos, mostrou grande
admiração por ela e pelo gan Alvarenga: “Pela Guiné hei sacrificado minha
fortuna, minha saúde, e o que mais é o bem-estar da minha família, que
idolatro.” 95
Mas alguns dos aspectos menos palatáveis por exemplo, aqueles
associados ao tráfico de escravos, cuja proibição era regulada nos trata-
dos entre as nações europeias da época da Conferência de Viena foram
convenientemente omitidos pela historiografia oficial. Os contratos
privados de mãe e filho como comerciantes de escravos foram comple-
tamente obscurecidos por sua carreira política. A evidência de que eram
traficantes está contida nos relatórios da comissão anglo-portuguesa
encarregada de supervisionar o cumprimento dos tratados que visavam
abolir a exportação de escravos da África Ocidental. Eles mostram que, a
despeito de Honório Pereira Barreto, no final de sua carreira, ter tomado
medidas favorecendo a alforria e a abolição do tráfico de escravos, ele
e sua mãe tinham traficado gente em Cacheu nos anos 1830 e ainda na
década seguinte. 96 Uma escuna capturada pelas autoridades inglesas
que transportava escravos para as Bahamas era de propriedade de Ña
Rosa, e a maioria dos escravos estava registrada em seu nome e em nome
de seu filho. 97 Na verdade, ela tinha deixado instruções escritas para

91 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar , Cabo Verde, Pasta 23, 27-2-1857.


92 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar , Cabo Verde, Pasta 23, 5-5-1857.
93 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar , Cabo Verde, Pasta 23, 27-2-1857.
94 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 22, 28-7-1856.
95 AHU, Secretária da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, Pasta 23, 29-5-1857.
96 ANTT, Fundo do Ministério de Negócios Estrangeiros, Cx. 224, Comissão Mista de Serra
Leoa (1819-1857), Comissão de Cabo Verde, Of. 12, Boa Vista, 17-2-1844.
97 National Archives of Great Britain (NAGB), London, FO 84/117. Dados gentilmente for-
necidos por João Pedro Marques. Para uma perspectiva histórica da abolição no contexto
português, vide João Marques, Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a abolição do
tráfico de escravos, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 1999.

432 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

o comandante do navio sobre o que fazer com sua carga. Uma vez que
os escravos foram embarcados na calada da noite, e consignados a um
traficante norte-americano operando na costa, a tentativa de enganar os
oficiais britânicos tornou-se clara. Por isso, a correspondência britânica
sobre o assunto afirma que a sede da empresa comercial da família em
Cacheu “tem sido frequentemente indicada [...] como um bem notório
mercado de escravos.” 98
A despeito do declínio de Cacheu como entreposto do tráfico durante
a primeira metade do século XIX, a casa comercial Alvarenga-Barreto era,
de longe, a maior proprietária de escravos da área na década de 1850. Na
ocasião do primeiro censo de escravos, realizado em 1857, a casa comercial
possuía 147, sendo 77 mulheres e 70 homens. O clã Alvarenga tinha 290
escravos em Cacheu e Ziguinchor, o que representava mais de um quarto
de todos os registrados (1.085) nestas localidades. 99 Honório Pereira
Barreto possuía 61 escravos (47 mulheres e 14 homens), enquanto seus
parentes pela linha paterna (os Barreto) tinham 19. Assim, juntos, eles
detinham 14% da população cativa. Os dois clãs controlavam mais de um
terço de todos os escravos de Ziguinchor e Cacheu. 100 Enquanto isso, a
criação de um conselho municipal em Cacheu. em 1850, tinha finalmente
implementado um decreto real de 1605 que lhe conferia os direitos de
“cidade” e, portanto, uma aura de “respeitabilidade” após ter servido por
mais de três séculos como porto negreiro.
Em contraste com sua mãe, não há evidências de que Honório
Pereira Barreto tivesse se casado, 101 uma circunstância interessante,
convenientemente ignorada por seus biógrafos, que se abstêm de qual-
quer referência à sua vida privada. 102 Uma fonte chega a admitir que “ele

98 Idem.
99 AHU, Fundo do Governo da Guiné, Livro 35.
100 Os Alvarengas estabelecidos na ilha de Santiago, em Cabo Verde, também possuíam escra-
vos, embora em número muito menor; ver os dados do censo de escravos de 1856 em An-
tónio Carreira, Cabo Verde; formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-
1878), Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972, pp. 512-520. Honório Perei-
ra Barreto também possuía dois escravos na ilha de Santiago (Carreira, Cabo Verde, p. 519)
e parentes dos dois clãs possuíam cerca de trinta escravos. Na época, o maior proprietá-
rio de escravos do arquipélago tinha pouco mais de 50, enquanto os ricos comerciantes da
Guiné podiam possuir centenas. O número total de escravos registrados no arquipélago
era de 5.182, três quartos dos quais em Santiago e Fogo.
101 Sobre a origem dos clãs guineenses, veja George E. Brooks, “Notas genealógicas de proemi-
nentes famílias luso-africanas no século XIX na Guiné”, Soronda, no. 9 (1990), pp. 53-71.
102 Só os filhos de sua irmã, Maria Pereira Barreto, casada com o funcionário e comercian-
te guineense Cleto José da Costa, foram considerados seus únicos sucessores legais; AHN,
Praia, Secretaria Geral do Governo, A6/9, Guiné: 21-8-1878. Honório Pereira Barreto dei-
xou 17 filhos, herdeiros órfãos, de quatro mulheres; vide Inventário Orfanológico por óbi-
to de Honório Pereira Barreto, Cacheu, 26 de Abril 1860, maço 2, doc. No. 6, Arquivo da Co-
marca da Guiné, Bissau. Agradecemos ao Pe. Henrique Pinto Rema e George E. Brooks a
disponibilização de uma cópia do documento original.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 433


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

morreu solteiro, mas deixou descendência.” 103 Contudo, um autor, por


sinal guineense, realça que ele foi “de grandes liberdades, com o governo
português, com os potentados indígenas e com as mulheres formosas.” 104
Após o seu desaparecimento de cena, em 1859, a influência e prestígio
que tinha granjeado junto às sociedades africanas – que apareceram em
grande número no seu choro ou enterro – e que em parte derivavam da
mater familias Ña Rosa, foram aparentemente ignorados pelas autori-
dades de Lisboa e Cabo Verde durante a “corrida para a África.” Aliás,
como reconhece um autor: “Por morte de Dona Rosa passou esse grande
prestígio para o filho e depois para os descendentes. O que têm perdido,
por culpa das autoridades locais, que decidiram resolver os conflitos à
força de balas, de preferência à intervenção diplomática dessa família,
o que seria muito mais útil à prosperidade da colônia para o aumento do
comércio e desenvolvimento da agricultura”. 105 Curiosamente, é um erro a
informação de que o filho herdasse o prestígio da mãe após a morte desta,
porque ela lhe sobreviveu, embora por pouco tempo. Aliás, ela assumiu a
tutela de seus filhos órfãos, em 1860, junto com três outros moradores
de Cacheu, entre os quais duas mulheres. 106 Na convocação dos tutores
pelo Juiz Ordinário de Cacheu, no ano seguinte, constataram que a Nã
Rosa tinha entretanto falecida.107

Considerações finais
Uma das mais complexas tarefas com que se defronta o pesquisador
que tenta reconstruir o papel de mulheres africanas nas povoações e
portos costeiros, e nas redes comerciais afro-atlânticas, é precisamente
a desconstrução de discursos e categorias. Apesar de serem de autoria
quase exclusivamente masculina e europeia, premiando a hierarquização
de categorias como gênero, parentesco, classe e cor, fica patente que as
fontes escritas, tanto arquivísticas como as publicadas, permitem fazê-lo.
Além disso, estas mesmas fontes demonstram claramente as mudanças
marcantes de perspectiva das representações ao longo dos três séculos
do contato afro-atlântico aqui focado. Se bem que a interpretação das
categorias socioculturais mudasse em função de alterações políticas e

103 Barreto, História da Guiné, p. 241. Seus descendentes diretos, embora “ilegítimos” (todos
homens), foram Rufino António Barreto, Pedro Pereira Barreto, Ludgero Pereira Barreto,
Ernesto Pereira Barreto e Heitor Pereira Barreto; eram caixeiros e “nenhum deles possuía
qualquer meio de riqueza.” AHU, Secretaria da Marinha e Ultramar, Cabo Verde, pasta 51,
30-9-1871.
104 Marcelino Marques de Barros, “Honório Barreto: traços da sua phisionomia phisica e mo-
ral”, in As Colónias Portuguezas, no. 13-14 (1887) , pp. 78-79.
105 Senna Barcellos, Subsídios para a história, vol. II, 3ª parte, p. 159.
106 Inventário Orfanológico por óbito de Honório Pereira Barreto, op. cit., Cacheu, 26-4-1860.
107 Inventário Orfanológico por óbito de Honório Pereira Barreto, op. cit. Cacheu, 18-3-1861.

434 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

econômicas ocorridas na metrópole, é de sublinhar que a sua aplicação


nas “possessões” portuguesas em África foi tudo menos linear, e que o
desfecho das políticas tinha muitas vezes um caráter negociado.
Na ausência de um controle externo, processos contínuos de nego-
ciação entre os grupos e atores envolvidos eram fatores essenciais na
construção de redes de parentesco e clientelismo e no estabelecimento
de direitos e obrigações recíprocas. Ao mesmo tempo, o comércio era
uma fonte de profunda desordem e conflitos resultantes do tráfico
transatlântico de escravos. Ainda que a troca comercial, sempre em par-
ceria com a conversão religiosa, tenha se tornado o padrão para julgar
o “outro” num contexto imperial, aqueles a ele associados eram vistos,
de modo diferente, em consonância com a cambiante configuração das
relações afro-atlânticas. Os comerciantes tanto podiam ser vistos de-
preciativamente, como inferiores, pela camada aristocrática da Europa
pré-industrial, quanto, dos fins do século XVIII em diante, como agentes
civilizadores dos povos africanos, numa ótica liberal. Estas variadas
visões de atores e grupos locais estavam diretamente relacionadas com
mudanças nas políticas europeias no que diz respeito à costa africana e
ao espaço atlântico. A transição do tráfico de escravos para a comércio
dito legítimo que ocorreu no espaço de tempo em destaque, fez com que
as sociedades africanas fossem vistas em moldes diferentes. Engen-
drando projetos de fixação de europeus que mais tarde culminaram na
ocupação do território africano, o domínio que as sociedades africanas
ainda tinham obrigou à negociação de interesses políticos e econômicos.
Se bem que o surgimento do Estado nação no século XIX fizesse com que
nacionalismos e conceitos de cidadania se tornassem partes integrantes
das ideologias imperiais, os condicionantes locais obrigaram à procura
de aliados locais para garantir o acesso à terra com o fim de exploração
económica e futura colonização europeia.
A existência nas sociedades africanas de estratos sociais, com laços
estreitos de parentesco, que se dedicaram à mediação do comércio afro
-atlântico, colocou-os numa posição vantajosa. Assumiu-se, no entanto,
que as comunidades africanas e as povoações à beira-mar eram, tal como
as sociedades europeias, dominados por homens.108 Enquanto os homens
atlânticos atuavam como fornecedores de mercadorias tais como ferro,
pólvora e álcool, as mulheres eram, sobretudo, vistas como mercadorias
integradas aos agregados dos comerciantes como escravas e concubinas.
O fato de haver mulheres livres, agindo como cabeça da família, que
possuíam e dirigiam linhagens mercantis e casas comerciais, não se

108 Philip J. Havik, “Misogyny Revisited: Gendering the Afro-Atlantic Connection”, in Philip
J. Havik e Malyn Newitt (orgs.), Creole Societies in the Portuguese Colonial Empire (New-
castle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2015), pp. 30-48.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 435


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

encaixava nas noções patriarcais vigentes de família e de negócio, nem


nos padrões de relações hierárquicas baseadas na escravidão. Ainda que
inseridas num espaço africano amplo, elas, quando viúvas residentes em
povoações e portos afro-atlânticos, escolhiam livremente seus parceiros
masculinos e constituíam as suas próprias linhagens sem intervenção das
autoridades portuguesas. Atuando como comerciantes e como indivíduos
por conta própria, e extraindo grande autoridade de suas relações de
parentesco com linhagens governantes, elas emergem das fontes como
poderosas atrizes num mundo aparentemente dominado pelos homens.
Tidas, primeiramente, como ameaça aos poderes estabelecidos, as mu-
lheres livres nos entrepostos comerciais, as tangomás e as ñaras com o
tempo passaram a ser vistas como uma benção.109 No momento em que os
produtos agrícolas se apresentaram como alternativa viável ao tráfico de
escravos, a situação mudou: as mulheres africanas comerciantes tinham
agora acesso à terra e ao seu usufruto, exercendo, então, elas próprias, o
controle sobre a gestão das propriedades e a produção de culturas comer-
ciais como o amendoim, ou mankara, assim ganhando “legitimidade” no
processo. O fato de que tivessem se aliado a influentes homens atlânticos
estrangeiros, ou a homens africanos, com o fim de alargar o alcance dos
interesses portugueses na região – por exemplo contra a expansão fran-
cesa ou inglesa, foi crucial para a sua recém adquirida “respeitabilidade.”
Nessa encruzilhada de “nação” com “raça, o fato destes actores terem sido
quase exclusivamente de origem africana não impediu que fossem vistos
como fazendo parte integral da órbita lusa. Claramente, os nacionalismos
emergentes no contexto colonial – note-se a patente conotação feminina
de nacionalidade, em contraste com a ideologia masculina construída
em torno da noção de cidadania – ampliaram a importância da conexão
“luso-africana”, a ponto de, nesta, serem aceitos grupos sociais e indivíduos
que, até então, tinham sido excluídos.
O pouco que tem sido escrito sobre as relações interculturais na
região lança alguma luz sobre as diferentes valorações acerca das par-
cerias acima descritas e sobre o seu significado para a história social da
interação e troca afro-atlânticas. As abordagens extrapoladas a partir das
fontes escritas diferem, claramente, entre si, de acordo com o período
considerado: enquanto Bibiana e seu irmão foram acusados de auxiliar
a expansão de interesses não-portugueses na região, Ña Rosa e seu filho

109 Aliás, é relevante notar aqui que o termo tangoma ou tungumá, associado a tangomão, se
perpetuou no crioulo da Guiné, exclusivamente no género feminino, para designar mu-
lheres livres pertencentes ao estrato kriston ou grumete; ver Marcelino Marques de Bar-
ros, “O guineense: vocabulário português-guineense”, in Revista Lusitana, no. 7 (1902), p.
278. Contudo, outras interpretações, dando um significado nitidamente patriarcal, man-
tinham que se tratava da “mulher nativa que vivia em mancebia com o branco transgres-
sor ou aquela que se dispunha a acompanhar livremente os negociantes e viajantes, ou a
servi-los nos trabalho domésticos.” Carreira, Cabo Verde, p. 61.

436 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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foram elogiados por fazerem exatamente o inverso. Enquanto a oposição


à interação entre governantes africanos e comerciantes atlânticos marca
fortemente as fontes do século XVII, a cooperação entre as duas partes
foi advogada no século XVIII. Enquanto as ações de Ña Bibiana e seus
parentes foram vistas como fomentadoras de transtornos, a atuação de
Ña Rosa e seu filho foi tida como preventiva e pacificadora de rebeliões,
além de mediadora de conflitos. Enquanto o tráfico do gan Vaz foi conde-
nado, o do Alvarenga foi tolerado, ou simplesmente ignorado. Enquanto as
propriedades de Ña Bibiana, que ficavam fora do alcance das autoridades
portuguesas, levaram estas a vê-las com grande suspeita, a fazenda perten-
cente a Ña Rosa, localizada numa rota de contrabando, foi tida como um
empreendimento elogiável. Enquanto o papel de Ña Bibiana, considerada
uma madrasta ruim, foi vituperado, a reputação maternal de Ña Rosa
foi positivamente avaliada. Enquanto a longa carreira administrativa
e comercial (bem-sucedida até os anos 1730) de Ambrósio Vaz, o irmão
mais novo de Ña Bibiana, recebeu escassas menções devido à sua atitude
crítica às políticas portuguesa, a de Honório Pereira Barreto, filho de Ña
Rosa, foi saudada como um grande exercício patriótico, a despeito de ele
ter, publicamente, denunciado a séria falência de tais políticas.
Todavia, num outro nível da análise, certos denominadores comuns
também se fazem notar. O perdão que as autoridades portuguesas es-
tenderam a Ña Bibiana, seu irmão e seu primo evidencia um sentido de
“força maior” frente às relações de poder na região, da mesma forma que
os esforços para reconhecer e valorizar os contatos de Ña Rosa e seu filho.
O reconhecimento implícito do poder e da influência do gan Vaz, que
estava bem entranhado nas comunidades africanas, tornou-se explícito
no reconhecimento da autoridade derivada da descendência africana por
parte do gan Alvarenga, e sobretudo a de Ña Rosa e seu filho. Em ambos
os casos, fatores externos ditaram as atitudes. Ao mesmo tempo, as tra-
dições orais da região sugerem que, entre as comunidades kriston, estas
mulheres eram no passado veneradas como “mindjeres garandis” (em kriol:
mulheres grandes) e matriarcas de um poder hegemônico. A crescente
influência de outras nações europeias na região, no século XVII, que pôs
fim ao efetivo monopólio de Portugal sobre o comércio de mercadorias e
escravos no âmbito regional e atlântico, e a sua renovada penetração no
século XIX, foram determinantes para a aquiescência mostrada diante
dos clãs locais e de seus negócios. O conturbado período durante e após a
dominação de Castela (1580-1640), a independência do Brasil e a revolução
liberal nas primeiras décadas do século XIX também desempenharam um
papel importante na (in)definição de atitudes e políticas.
As perspectivas contidas nas fontes localmente produzidas, tais como
os relatórios de capitães-mores e governadores, e as petições das comuni-
dades mercantis, ilustram claramente esta ambivalência que caracterizou
as representações no período pré-colonial. A despeito de lacunas na

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 437


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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produção históriográfica sobre a região, as atividades dos “luso-africanos”


e as suas relações com as sociedades africanas produziram, nas últimas
décadas, uma crescente literatura sobre as áreas de presença lusófona
na África. Aqueles grupos que têm sido caracterizados como produtos
híbridos do império foram caracterizados de diferentes formas. O fato de
que viviam em casas retangulares avarandadas, muitas vezes pintadas com
cal (feito com conchas de ostras), construídas junto às margens dos rios,
enquanto seus vizinhos moravam em cabanas circulares feitas de barro,
foi tomado como um indicador de sua identidade específica de grupo. 110
A categoria “luso-africano” foi também extrapolada dos viajantes a fim de
lhes dar uma aura de coesão social e cultural semelhante a “etnicidade”,
mas transcendendo a dualidade de categorias culturais como português
ou africano, no sentido pluri ou metaétnico, sem no entanto perder uma
suposta pertença lusa.111 Eles foram também descritos como “hóspedes”,
residindo em lugares indicados para este propósito pelos senhores da
terra, isto é, pelas linhagens governantes, às quais deviam fidelidade em
troca de proteção. A este respeito, a afirmação de sua condição liminar no
contexto atlântico foi a precondição para o sucesso comercial em costas
africanas, mas ao mesmo tempo a razão da sua condenação como forastei-
ros.112 Outros, entretanto, deram grande ênfase à sua notável mobilidade
social e capacidade de assimilação, reforçando a sua diversidade cultural
enquanto criaram laços com homens europeus, e movendo-se com grande
a vontade entre rios e riachos na Senegambia e na Costa da Guiné. 113 As
descrições das relações entre atores masculinos, de diferentes naciona-
lidades associados as companhias de comércio que atuaram na Costa, e
mulheres “luso-africanas” livres nos portos da região, terão realçado a
suposta preferência daqueles pelas últimas.114 Com a introdução de um
modelo bipolar europeu com o iluminismo do século XVIII, o discurso
identitário dos “luso-africanos” se terá afastado da noção de assmilação
para abraçar a exlusividade.115 “Luso-africanos” que aparecem primeiro na
literatura como agentes de colonização portuguesa no fim do século XIX,

110 Peter Mark, “Constructing Identity: Sixteenth and Seventeenth Century Architecture in
the Gambia-Geba Region and the Articulation of Luso-African identity”, History in Africa,
no. 22 (1995), pp. 307-327; e do mesmo autor, “The Evolution of Portuguese Identity”.
111 José da Silva Horta, “Evidence for a Luso-African Identity”, p. 673; e Green, The Rise of the
Trans-Atlantic Slave Trade, p. 283.
112 Carlos Alberto Zerón, “Pombeiros e tangomãos: intermediários de escravos na África”, in
Rui Manuel Loureiro e Serge Gruzinski (orgs.), Passar as fronteiras (Lagos: Centro de Es-
tudo Gil Eanes, 1999), pp. 15-38.
113 Ver Boulègue, Les luso-africains de Sénégambie, pp. 61-70; e Brooks, Eurafricans, pp.
68-101.
114 Brooks, Eurafricans, p. 125.
115 Mark, “The evolution of ‘Portuguese’ cultural identity”, p. 191.

438 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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são também resgatados por alguns autores nos anos 50 do Novecentos para
destacar sua proeza a serviço de interesses portugueses no continente
africano. A ideia de estas figuras pertencerem a “uma pequena comunidade
que não quer abandonar as suas raízes luso-tropicais”, fez com que fossem
identificados como defensores da “lusitanidade” em terras africanas.116
Nessas diferentes abordagens e representações em mudança é
importante acentuar o papel das mulheres nas comunidades africanas
nas quais emergiam e em cujo tchon (chão, território) coabitavam com
aqueles homens. O fato de serem estes comerciantes, e não agricultores,
é fundamental. Tal como qualquer outro comerciante local, eles tinham
de pagar um tributo, ou daxa, aos seus anfitriões e parentes por cada
transação e travessia em território indígena. Eram obrigados a receber
e a servir aos seus anfitriões e parentela, caso os primeiros assim o
quisessem. Embora se beneficiassem da proteção (também ao nível
espiritual) fornecida pelas linhagens dirigentes, estavam sujeitos às
mesmas leis aplicadas a outros hóspedes e camadas profissionais. Laços
entre eles e seus vizinhos e clientes eram reforçados pela kriason, ou
seja, a adoção temporária para criar e educar filhos alheios, e a kuña-
dundadi, ou relações entre parentes colaterais. Menos do que integrar
uma categoria “luso-africana” abstrata, eles pertenciam às comunidades
kriston, que constituíam o verdadeiro núcleo dos estabelecimentos
afro-atlânticos 117 . Diferentemente do principal escol dos gan, que
falava crioulo cabo-verdiano, a sua língua nativa era o kriol, ou crioulo
guineense. Era usada como a língua franca das transações comerciais,
tal como o mandé, embora eles também falassem línguas “étnicas”; sendo
poliglotas, tinham raízes sociais e culturais profundamente ligadas
aos povoados comerciais e às sociedades africanas ao seu redor. Um
membro da comunidade kriston de Cacheu podia ter ancestrais papeis,
e um seu equivalente de Ziguinchor podia, invariavelmente, reclamar
seu parentesco com os bañuns ou felupes (djolas). Dependendo das rela-
ções com as linhagens que detinham direitos ancestrais sobre a área do
assentamento, eles podiam reivindicar privilégios e posições, consoante
a sua pertença a uma linhagem fundadora e/ou governante. O fato de
serem predominantemente matrilineares os padrões de descendência
nas comunidades africanas com as quais estavam relacionados, e de que
eles próprios aderiram a práticas linhageiras bilaterais, implicou em
contradições com as tradições patrilineares comuns no Atlântico Norte.
Um dos principais obstáculos à interação afro-atlântica foi, precisamente,

116 Avelino Teixeira da Mota, Um Luso-Africano: Honório Pereira Barreto, separata do Bole-
tim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1959, p. 415.
117 Sobre os kriston, ver Philip J. Havik, “Traders, Planters and Go-betweens: The Kriston in
Portuguese Guinea”, Portuguese Studies Review, vol. 19, no. 1-2 (2011), pp. 197-226.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 439


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
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a questão do controle sobre as redes comerciais e, sobretudo, os privi-


légios concedidos ao parentesco colateral matrilinear, em detrimento
da linhagem patrilinear. A (am)bilinearidade no tocante às relações de
parentesco e de gênero num contexto comercial que gera um grau de
ambivalência acerca da questão da propriedade e do controle dos bens
e negócios assume, nesse contexto, um significado muito particular.
O fato de que a transferência e o controle dos recursos se deram
segundo o padrão matrilinear, no caso de Ña Bibiana, e aparentemente
em conformidade com o costume patrilinear, no caso de Ña Rosa, é
fundamental para compreender o tratamento diferenciado dado a cada
uma delas nos documentos escritos. No século XIX, os gan gradualmente
evoluíram para unidades crescentemente autônomas, aparentemente
autossuficientes, embora fortemente entrelaçadas entre si. 118 Como
consequência da imigração cabo-verdiana, os novos gan, que cresceram
sobretudo em Bissau, privilegiaram os laços com o arquipélago à custa de
suas raízes entre os povos do litoral. 119 Suas estratégias de acumulação,
aceleradas pelo crescimento das pontas, também contribuíram para isso,
assumindo eles contornos de latifundiários, enquanto se endividaram,
ficando deste modo à mercê de capitais europeus, nomeadamente fran-
ceses. No seguimento da crise dos anos oitenta do século XIX, provocada
pela descida dos preços nos mercados da principal cultura de exportação,
o amendoim, e os conflitos interétnicos na região, estas dívidas levaram
ao abandono das pontas e à falência de casas comerciais locais.120
As grandes mudanças ocorridas a partir da década de 1830 provo-
caram fluxos migratórios entre as comunidades africanas, dentre as
quais Balanta, Fula, Manjaku e Mankañe, especializadas em culturas
de exportação: mankara ou amendoim, coconote ou caroço de palmeira,
algodão, borracha e arroz. Porém, as comunidades que estiveram profun-
damente envolvidas no tráfico de escravos, tais como Bañun, Biafada e
Mandinga, perderam terreno. Como consequência, os padrões de aliança
e as alianças de parentesco transformaram-se durante o século XIX,
visto que os dois povos mais numerosos, isto é, os balantas e os fulas,

118 Um autor situa esta mudança nos anos sessenta do século XIX; vide Wilson Trajano Filho,
“Polymorphic Creoledom: the Creole Society of Guinea Bissau” (Tese de Doutorado, Uni-
versity of Pennsylvania, 1998).
119 As subscrições para o auxílio aos habitantes de Cabo Verde, em que Trajano Filho se apoia
como indicadores para o crescente entrelaçamento e homogeneidade dos gan, ilustram
claramente esta kambansa (kriol: viragem) e reorientação para o exterior. Só um século
mais tarde, os gan se viram obrigados a reatar os laços com as sociedades guineenses no
litoral, durante a campanha de mobilização e a luta pela libertação liderada pelo PAIGC
(Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
120 Sobre a crise e seu impacto no comércio da região, vide Joye Bowman, Ominous Transition:
Commerce and Colonial Expansion in the Senegambia and Guinea, 1857-1919, Alderhsot:
Avebury, 1997, pp. 102-40; e Havik, Silences and Soundbites, pp. 311-344.

440 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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eram patrilineares.121 A ocupação da região da África Ocidental pela ação


militar europeia reforçou ainda mais a redefinição das relações entre
os gan, os kriston e os povos do litoral. Em vez de mediação, os poderes
europeus confiaram na força armada para criar estados coloniais. Esta
estratégia teve o efeito de quebrar a autonomia não só das sociedades
africanas, mas também dos gan e dos kriston das praças. As medidas
baseadas na segregação segundo linhas raciais e na nacionalização (ou
“lusitanização”) do comércio, visavam reduzir ou excluir estes grupos
das receitas geradas pela economia de extração e plantação. A crise
econômica provocada pelos conflitos armados na região e pelo quase
desaparecimento das pontas, na década de 1880, que deixou o tecido
empresarial muito enfraquecido, facilitou grandemente esta tarefa. Os
inúmeros impedimentos à mobilidade espacial e social a “marca regis-
trada” das comunidades afro-atlânticas, que daí resultaram, tiveram
um forte impacto sobre as relações de gênero. A imposição de conceitos
raciais e patriarcais na legislação marginalizou, efetivamente, as mu-
lheres africanas, limitando suas opções a estratégias de sobrevivência,
e pondo fim às parcerias de acumulação como aquelas acima referidas.
Mas estas mudanças vão além do escopo deste ensaio. 122
Hierarquias de poder e autoridade baseadas em gênero, parentesco,
classe, cor e raça desempenharam um papel chave no discurso dominante
sobre espaços imperiais e coloniais. Enquanto os dignitários africanos
aparecem como atores estratégicos nas representações, o mesmo não
ocorre com os seus súditos. Enquanto os representantes do estado e da
igreja, eles próprios autores da maioria das fontes, são destacados, a
maioria dos habitantes dos povoamentos comerciais, ou seja, os escravos,
é geralmente ignorada. Como consequência, viúvas vivazes e aventureiros
astutos parecem dominar a cena, quer como “bodes expiatórios”, quer
como aliados, dependendo da época.123 E aquelas e aqueles que possuíam
escravos, ou seja, os comerciantes, funcionários e clérigos, garantiram o seu
lugar na historiografia afro-atlântica. Não deixa de ser significativo que

121 No caso dos fulas, eram os fula-djiábes, cativos originários dos soninkés e biafadas, que,
progressivamente islamizados pelos futa-fulas ou fula-ribes, vindos de Futa Djallon, ado-
taram tradições partilineares; ver Bowman, Ominous Transition.
122 Para uma análise destas mudanças, vide Philip J. Havik, “Dinâmicas e assimetrias afro
-atlânticas: a agência feminina e representações em mudança na Guiné (séculos XIX e
XX)”, in Selma Pantoja (org.) Identidades, memórias e histórias em terras africanas (Bra-
sília/Luanda: LGE/Nzila, 2006, pp. 59-78; e também do mesmo autor, “Gender, Land and
Trade: Women’s Agency and Colonial Change in Portuguese Guinea (West Africa)”, African
Economic History, no. 43 (no prelo).
123 Sobre a viuvez na África sub-Saaraiana, ver Betty Potash (org.) Widows in African Socie-
ties: Choices and Constraints, Stanford: Stanford University Press, 1986; sobre o papel
das viúvas nos entrepostos comerciais na Costa da Guiné, ver Havik, Silences and Sound-
bites, 230-237.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 441


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

enquanto as fontes do século XVII identificam todos os atores, incluindo


o marido de Ña Bibiana, como “pretos”, Ña Rosa, seu marido e seu filho
são todos descritos como “de cor” ou “mestiços”.
Com o tempo, a “paleta de cores” usada para descrever o “outro” torna-se
cada vez mais diversificada. Tanto a prática como o significado do padrão
de miscigenação iria mudar nos séculos XVIII e XIX como resultado da
classificação biológica, fenotípica e frenológica. Além disso, o “outro” (aqui
formado pela camada de crioulos vindos de Cabo Verde) tinha passado a
ocupar posições de poder político, capacitando-se, consequentemente, a
também produzir fontes “oficiais.” Do ponto de vista atlântico, o “outro”
muda consoante os tempos. O constante vai-e-vem entre Cabo Verde e as
terras continentais guineenses e não o influxo, sempre mínimo, de europeus,
nem mesmo o de africanos, na sua maioria cativos é que foi tomado como
referência fundamental para a historiografia dos povoamentos comerciais.
Só assim pode-se explicar a tese de que os impulsos de mudança viriam
exclusivamente do exterior, sobretudo de Cabo Verde. 124 Como vimos,
questões de gênero, parentesco e classe estão intimamente relacionadas a
isto: o prestígio atribuída a estas mulheres teria alegadamente origem na
ascendência dos seus parceiros em Cabo Verde, a sede do governo portu-
guês na África Ocidental, onde eles e seus parentes detinham importantes
cargos públicos. E se as próprias mulheres, como foi o caso de Ña Rosa,
mantinham laços de parentesco com os morgados no arquipélago e com
sucessivas gerações de militares no serviço da Coroa no continente, a sua
“respeitabilidade” não seria posta em dúvida; afinal “a mãe de Honório
Barreto pertencia a uma família civilizada.”125
As parcerias discutidas acima ilustram as variadas configurações
dessas relações, que tinham implicações tanto no âmbito do empreen-
dimento mercantil, quanto pessoais. Elas abrangiam desde relações de
parentesco com as linhagens matrilineares dirigentes até alianças bila-
terais entre clãs mercantis. Esses laços interculturais incluíam extensas
redes de clientelismo que garantiam a acumulação de riqueza e influência
política. Aqueles sem acesso a estes privilégios estavam, claramente, em
desvantagem; na verdade, a maioria deles nunca chegou às fontes escritas.
Aqui então repousa, provavelmente, a mais importante distinção entre os
membros dos clãs Vaz e Alvarenga, de um lado, e a maioria dos habitantes
dos povoamentos mercantis e aldeias africanas, de outro: enquanto os
primeiros, uma pequena minoria, controlavam uma parte significativa
do comércio afro-atlântico e obtiveram uma mobilidade espacial e social

124 Fausto Duarte, “Os caboverdianos na colonização da Guiné”, Boletim Geral das Colônias,
no. 295 (1950), pp. 209-211; ver também António Carreira, “A Guiné e as Ilhas de Cabo Ver-
de: a sua unidade histórica e populacional”, Ultramar, vol. XIII, no. 4 (1968), pp. 70-98.
125 Mota, Um Luso-africano, p. 394.

442 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

invejável, a maioria dos seus compatriotas, nos entrepostos comerciais ou


fora deles, tiveram de se contentar com papeis bastante menores. O fato de
que os líderes dos clãs em questão tivessem sido mulheres e viúvas é outro
elemento que merece destaque por demonstrar a correlação direta entre
descendência matrilinear, famílias matrifocais e comércio afro-atlântico.
Ao desafiar as concepções androcêntricas vigentes acerca de relações
sociais, tais mulheres contribuíram decisivamente para a existência de
um “Atlântico no feminino” na historiografia sobre a região. 126 Finalmen-
te, em termos demográficos, os povoamentos comerciais foram desde a
sua criação caracterizados por ampla predominância feminina, mesmo
que este fenômeno só se tenha comprovado no século XVIII, devido aos
avanços da estatística. Isto, não obstante ter sido somente após a morte
de seus maridos que tais mulheres emergiram das sombras destes para se
tornarem visíveis na cena atlântica e assim assumir um papel autônomo
nas fontes escritas. Estes fenômenos obrigam a repensar a vida e a carreira
dessas mulheres em função do seu status como pessoa (personhood)127,
na sua condição de mulheres livres no sentido lato do termo, e o caráter
negociado deste status.
A fim de entender as mudanças acima discutidas é imperativo que a
história social de tais encontros afro-atlânticos seja estudada com mais
detalhes. Para suprimir lacunas nos escritos históricos, a documentação
dos arquivos e os relatos de viagem têm de ser relidos e recuperados.
Além disso, tais fontes devem ser analisadas a partir de uma perspectiva
transdisciplinar, que combine abordagens históricas e antropológicas.
Só então os vetores da expansão política e econômica metropolitana,
que governaram as fontes, poderão ser contrabalançados por processos
de socialização e aculturação locais. Os dois estudos de caso discutidos
acima mostram que, com certos limites impostos pela natureza das fontes,
tal análise pode alterar de maneira significativa as configurações eco-
nomicistas associadas à historiografia atlântica e ir além dos localismos
restritos da Antropologia, ao esboçar uma dinâmica intercultural até
então desconsiderada ou ignorada.

126 Ver Selma Pantoja, “O Atlântico no feminino”, in Cléria Botêlho da Costa (org.), Um passeio
com Clio (Brasília: Paralelo 15, 2002), pp. 163-176.
127 Sobre o tema personhood e gênero, ver Signe Howell e Marit Melhuus, “The Study of Kin-
ship; the Study of Person; a Study of Gender?”, in Teresa del Valle (org.) Gendered Anthro-
pology (Londres: Routledge, 1993), pp. 38-53.

A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: 443


PARCERIAS AFRO-ATLÂNTICAS NA ZONA DA GUINÉ BISSAU (SÉCULOS XVII-XIX)
CAPÍTULO 14

o liMite tênUe entre liberdAde e esCrAvidão eM


benGUelA dUrAnte A erA do CoMérCio trAnsAtlântiCo1
Mariana P. Candido2

Nas últimas décadas foram publicados vários estudos sobre a organiza-


ção do tráfico de escravos e seu impacto nas sociedades africanas. Desde o
clássico estudo de Philip Curtin (The Atlantic Slave Trade: A Census, 1969)
historiadores preocupam-se com o volume do tráfico transatlântico. Com
a disponibilização da nova versão da Transatlantic Slave Trade Database e
a publicação do Atlas of the Transatlantic Slave Trade, podemos estimar
quantos escravos deixaram cada porto ao longo do litoral ocidental da
África e seus portos de desembarque nas Américas. 3 Os números, entre-
tanto, não revelam como essas pessoas foram capturadas e reduzidas à
escravidão; além disso, estudos quantitativos priorizam a experiência
coletiva e não casos individuais. O resultado é que a historiografia tende

1 A pesquisa para esse artigo foi financiada pelo Research Grant University Committee e o
Program of Latin American Studies da Universidade de Princeton, e por bolsas de pesqui-
sa da Fundação Luso-Americana e da John Carter Brown Library. Agradeço a Mariza de
Carvalho Soares, Carlos da Silva Jr, Vanessa de Oliveira, Nielson Bezerra e aos dois pare-
ceristas anônimos da Afro-Ásia pela leitura e sugestões. Esta é uma versão revista e atua-
lizada do artigo originalmente publicado nessa revista.
2 A base de dados está disponível no site http://www.slavevoyages.org/tast/database/
search.faces; e David Eltis e David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade,
New Haven: Yale University Press, 2010.
3 Para autores que privilegiam o papel das guerras nos processos de escravização, ver
Jean Bazin, “War and Servitude in Segou”, Economy and Society, no. 3 (1974), pp. 107-
144; Philip Curtin, Economic Change in Precolonial Africa: Senegambia in the Era of
the Slave Trade, Madison: University of Wisconsin Press, 1975; Joseph Miller, “The Par-
adoxes of Impoverishment in the Atlantic Zone”, in David Birmingham e Phyllis Martin
(orgs.), History of Central Africa (Londres: Longman, 1983), pp. 118-159; John Thorn-
ton, Warfare in Atlantic Africa, 1500-1800, Londres: UCL Press, 1999; Robin Law,
“Slave-raiders and Middlemen, Monopolist and Free Traders: The Supply of Slaves for
the Atlantic Trade in Dahomey, c.1715-1850”, Journal of African History, no. 30 (1989),
pp. 45-68; e Boubacar Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Cambridge:
Cambridge University Press, 1998.

445
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

a tratar os chamados “prisioneiros de guerra” como exemplos do modelo


africano de escravização por excelência, negligenciando outras formas
de captura que também resultaram em escravização. Fontes primárias
sobre a colônia de Benguela permitem analisar como alguns indivíduos
foram enganados, sequestrados, e escravizados, indicando que o limite
entre liberdade e cativeiro era tênue. 4 Este estudo prioriza casos em que,
ainda que através de intermediários, os relatos dos cativos puderam ser
ouvidos. Examino os traços que eles deixaram na documentação, revelando
seus processos de captura. Os relatos permitem ao historiador entender
a captura e a escravização como um processo singular e individual, uma
alternativa à abordagem das experiências coletivas e anônimas que as
análises demográficas priorizam.5

4 O uso do termo colônia não é gratuito. Ver Mariana Candido, An African Slaving Port
on the Atlantic World: Benguela and its Hinterland, Nova York: Cambridge Universi-
ty Press, 2013, pp. 30-87; John Comaroff, “Images of Empire, Contests of Conscience:
Models of Colonial Domination in South Africa”, in Frederick Cooper e Ann Laura Stol-
er (orgs.), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World (Berkeley: Uni-
versity of California Press, 1997), pp. 1-56; Frederick Cooper, Colonialism in Question:
Theory, Knowledge, History, Berkeley: University of California Press, 2005; e Immanu-
el Wallerstein, World-Systems Analysis: An Introduction, Durham, NC: Duke University
Press, 2004. Para outras colônias portuguesas ver Eugénia Rodrigues, “Cipaios da Índia
ou soldados da terra? Dilemas da naturalização do exército português em Moçambique
no século XVIII”, História: Questões & Debates, no. 45 (2006), pp. 57-95.
5 Para a importância de estudos biográficos de africanos escravizados ver Paul Lovejoy,
“Identifying Enslaved Africans in the African Diaspora”, in Paul E. Lovejoy (org.), Identity
in the Shadow of Slavery, Londres: Cassell Academic, 2000), pp. 3-5; Luiz Mott, Rosa egip-
cíaca, uma santa africana no Brasil, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993; Randy Sparks,
The Two Princes of Calabar: An Eighteenth-Century Atlantic Odyssey, Cambridge: Har-
vard University Press, 2004; Flávio dos Santos Gomes, Marcus Joaquim de Carvalho e João
José Reis, O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822- c.
1853), São Paulo: Companhia das Letras, 2010; Karen Racine e Beatriz G. Mamigonian
(orgs.), The Human Tradition in the Atlantic World, 1500-1850, Lanham: Rowman & Lit-
tlefield, 2010; James Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual His-
tory of the Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011; Roqui-
naldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during
the Era of the Slave Trade, Nova York: Cambridge University Press, 2012. Estudos sobre
a vida de europeus na África são muitos. Ver, por exemplo, Maria Emília Madeira Santos
(org.), Viagens e apontamentos de um portuense em África. O Diário de Silva Porto, Coim-
bra: Biblioteca Geral, 1986; Zsófia Vajkai Gulyas, “Um húngaro em Angola: viagens de La-
dislau Magyar: 1818-1864: através do AHU”, in Actas do Seminário: Encontro de Povos e
Culturas em Angola, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimen-
tos Portugueses, 1997, 361–374; Ilídio do Amaral, O consulado de Paulo Dias de Novais:
Angola no último quartel do século XVI e primeiro do século XVII, Lisboa: Ministério da
Ciências e da Tecnologia, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000; Éve Sebest-
yeìn, Magyar László, Budapeste: Balassi Kiadoì, 2008; e Andrew C. Ross, David Livingsto-
ne: Mission and Empire, Londres: Continuum, 2006. Para biografias de africanos livres
ver, entre outros, Carlos Pacheco, Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo: uma vida de luta
contra as prepotências do poder colonial em Angola, Lisboa : Instituto de Investigação
Científica Tropical, 1992; John K. Thornton, The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz
Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706, Cambridge: Cambridge University

446 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Os casos explorados neste estudo, assim como tantos outros disponíveis


em diferentes fundos documentais, indicam que na região de Benguela a
escravidão era uma ameaça a todos. A ideia defendida por Joseph Miller e
outros, de que a fronteira da escravidão moveu-se cronológica e progres-
sivamente para o interior do continente africano, criando proteção para
os habitantes do litoral, não se aplica a Benguela.6 Os relatos de indivíduos
capturados próximos a esta costa e em regiões sob controle português, em
locais supostamente protegidos pela fronteira escravista, demonstram
como a escravidão tornou-se ameaçadora para os habitantes da região,
e como eles buscavam meios de proteger-se e poupar seus familiares do
risco de captura e venda para comerciantes transatlânticos. Entre várias
estratégias, estava a possibilidade de utilizar o sistema legal colonial
que deveria proteger os súditos de potentados que haviam declarado
vassalagem à Coroa portuguesa.7 Tais casos demonstram que algumas das
pessoas capturadas, e que possivelmente seriam vendidas como escravas
para comerciantes transatlânticos, vieram de localidades próximas à
costa ou eram residentes em Benguela. Algumas delas falavam português,
ainda que de forma limitada, e haviam sido expostas ao catolicismo. Para

continuação 5

Press, 1998; Carlos Alberto Lopes Cardoso, “Ana Joaquina dos Santos Silva, industrial
angolana da segunda metade do século XIX”, Boletim Cultural da Câmara Municipal de
Luanda, no. 3 (1972), pp. 5-14; Douglas Wheeler, “Angolan Woman of Means: D. Ana Joa-
quina dos Santos e Silva, Mid-Nineteenth-Century Luso-African Merchant-Capitalist of
Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies Review, no. 3 (1996), pp. 284–297.
6 Ver Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade,
1730–1830, Madison: University of Wisconsin Press, 1988, pp. 140–169; David Birming-
ham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and Their Neighbours under the Influence
of the Portuguese, 1483–1790, Oxford: Clarendon Press, 1966; Dennis Cordell, “The Myth of
Inevitability and Invincibility: Resistance to Slavery and the Slave Trade in Central Africa,
1850–1910”, in Sylviane A. Diouf (org.), Fighting the Slave Trade: West African Strategies
(Athens: Ohio University Press, 2003), pp. 31–34; Paul Lovejoy e David Richardson, “‘Pawns
Will Live When Slaves Is Apt to Dye’: Credit, Slaving and Pawnship at Old Calabar in the Era
of the Slave Trade”, Working Papers in Economic History, vol. 38 (1997), pp. 1–34; e Jan Van-
sina, Kingdoms of the Savanna, Madison: University of Wisconsin Press, 1966. Para uma ex-
tensa crítica ao modelo organizado e progressivo do movimento da fronteira da escraviza-
ção, ver Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización. Esclavitud, comercio e identidad
em Benguela, 1780-1850, México, DF: El Colegio de México, 2011.
7 Para maior discussão sobre como teoricamente a vassalagem deveria proteger os súditos
da Coroa portuguesa, ver Ferreira, Cross-Cultural Exchanges in the Atlantic World, pp.
52-87; José C. Curto, “The Story of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement and the Con-
cept of ‘Original Freedom’ in Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans
-Atlantic Dimensions of Ethnicity in the African Diaspora (Londres: Continuum, 2003),
pp. 44–64; Candido, Fronteras de Esclavización, pp. 155-190. Para os direitos dos vassalos,
ver Beatriz Heintze, “Luso-African Feudalism in Angola? The Vassal Treaties of the 16th
to the 18th Century”, Revista Portuguesa de História, no. 18 (1980), pp. 111–131; e Ana
Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, “Uma leitura africana das estratégias políticas
e jurídicas. Textos dos e para os Dembos”, in Africae Monumenta. A apropriação da escrita
pelos africanos, Lisboa: IICT, 2002.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 447


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

as pessoas capturadas próximas à costa, a escravidão não começou nas


Américas nem nos portos de embarque, mas no momento de sua captura,
quando foram separadas de seus familiares e comunidades.8
Usando casos de indivíduos que resistiram à sua escravização, este
estudo dialoga com a historiografia sobre o tráfico de escravos e a ex-
pansão da escravidão no continente africano no contexto do comércio
atlântico. Na maioria dos casos não sabemos o final do processo legal,
mas a documentação sugere um esforço coletivo para resgatar familiares
e amigos próximos. Os processos judiciais hoje disponíveis no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e no Arquivo Nacional de Ango-
la, em Luanda, revelam também o debate jurídico sobre a legalidade da
escravidão; ao invés de minimizar o impacto do tráfico de escravos, eles
permitem compreender quem deveria ser protegido das garras dessa
instituição. 9 Baseada nesses documentos, procuro enfatizar o poder
destruidor da presença portuguesa e da expansão do comércio atlântico
na região de Benguela.
Na era do tráfico transatlântico, mais de 760.000 escravos foram
embarcados em Benguela, o terceiro maior porto escravagista na costa
africana. 10 O comércio de escravos era antigo e provavelmente precedia
a chegada dos portugueses, mas a presença dos navios transatlânticos e
das forças coloniais alterou a dimensão desse comércio. Já em 1618, um
ano após a fundação da conquista portuguesa, o primeiro governador
de Benguela, Manoel Cerveira Pereira, despachou navios com escravos
para Luanda. 11 Inicialmente, os escravos eram enviados a Luanda por
mar, onde pagavam impostos e eram reembarcados para as Américas.
Um comércio paralelo também devia existir, devido à atuação dos co-
merciantes portugueses nos asientos das colônias da América espanhola,
o que explica a existência de escravos identificados como “benguelas”
em Havana, Lima e Cartagena ainda no século XVII, antes da abertura

8 Para uma posição contrária, ver Stephanie E. Smallwood, Saltwater Slavery: A Middle
Passage from Africa to American Diaspora, Cambridge: Harvard University Press, 2007.
9 Para estudos que minimizam os efeitos do tráfico transatlântico na África Centro-Oci-
dental, ver John Thornton, “The Slave Trade in Eighteenth Century Angola: Effects on
Demographic Structure”, Canadian Journal of African Studies, vol. 14, no. 3 (1980), pp.
417–427; e Joseph C. Miller, “The Significance of Drought, Disease and Famine in the
Agriculturally Marginal Zones of West-Central Africa”, Journal of African History, vol.
23, no. 1 (1982), pp. 17–61.
10 Somente os portos de Luanda e Uidá viram um número maior de pessoas serem vendi-
das e embarcadas como escravos. Ver Eltis e Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave
Trade; e Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery, 3a ed, Nova York: Cambridge Univer-
sity Press, 2012, p. 19.
11 Adriano Parreira, “A primeira ‘conquista’ de Benguela (Século XVII)”, História, no. 28
(1990), p. 67. Para maiores detalhes sobre a autonomia de Benguela, ver Candido, Fronte-
ras de esclavización, pp. 44-57.

448 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de uma alfândega para a cobrança de imposto naquele porto. 12 A maior


parte dos escravos exportados de Benguela no século XVII era adquirida
em “guerras de conquista”. Desde então, a população local, conhecida
pelas forças portuguesas como mundombes, ou ndombes, foi alvo dos
comerciantes locais e a principal fonte de escravos para revenda em
Benguela. Esse comércio era regulado por leis locais, às quais temos
acesso limitado. As razias e sequestros predominaram nos primeiros anos
de contato, mas muito cedo a Coroa portuguesa percebeu a importância
de atuar com a colaboração e consentimento dos estados e potentados
locais, priorizando o comércio. 13 Nesse contexto surgiram debates so-
bre a legalidade dos processos de escravização no primeiro século de
ocupação. No século XVIII, a criação de novos cargos para controle do
comércio, como o inquiridor das liberdades, demonstra que o processo
de escravização incluía casos de pessoas capturadas em circunstâncias
que não eram de “guerra justa”, como as guerras de conquista também
ficaram conhecidas. 14
Apesar de um decreto de 1612 ter instituído Benguela como reino
independente de Angola, com governador próprio inclusive, após a
expulsão dos holandeses, em 1648, a região passou a ser governada por
um capitão mor, apontado pelo governador de Angola e aprovado pelo
Conselho Ultramarino em Lisboa. 15 Entre outras responsabilidades, o
capitão-mor governava a cidade de Benguela, supervisionava e autorizava
despachos de navios negreiros, aprovava a circulação dos comerciantes

12 No entanto, não há registro de exportação de escravos desde o porto de Benguela no


século XVII na documentação portuguesa. Candido, An African Slaving Port, pp. 142-
190. Ver também, Roquinaldo Ferreira, “Slaving and Resistance to Slaving in West
Central Africa”, in David Eltis e Stanley L. Engerman (orgs.), The Cambridge World His-
tory of Slavery, AD 1420-AD 1804, (Nova York: Cambridge University Press, 2011),
vol. 3, p. 116.
13 Para a atuação da Coroa portuguesa em outras partes da costa da África, ver Toby Green,
The Rise of the Trans-Atlantic Slave Trade in Western Africa, 1300-1589, Nova York:
Cambridge University Press, 2011. Eu uso o conceito de estado para indicar organizações
políticas com um governo centralizado, que mantêm o monopólio do uso legítimo da for-
ça dentro de seu território, conta com uma burocracia e um sistema legal (na maioria das
vezes oral). Para definição de estado, ver Peter Lassman e Ronald Speirs, Weber: Political
Writings, Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
14 Sobre o conceito de guerra justa, ver Beatriz Perrone-Moisés, “A guerra justa em Portugal
no século XVI”, Revista da SBPH: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, no. 5 (1990),
pp. 5-10; Lauren Benton, “The Legal Regime of the South Atlantic World, 1400-1750: Ju-
risdictional Complexity as Institutional Order”, Journal of World History, vol. 11, no. 1
(2000), pp. 27–56; e Angela Domingues, “Os conceitos de guerra justa e resgate e os ame-
ríndios do Norte do Brasil”, in Maria B. N. Silva (org.), Brasil: colonização, escravidão (Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000), pp. 45-56.
15 Para o decreto do rei Felipe II de Portugal (III da Espanha) ver, AHU, Conselho Ultramari-
no, Angola, caixa 1, doc. 20, 11 de março de 1612. A separação dos reinos foi baseado na
sugestão de Domingo de Abreu e Brito, Inquérito da Vida Administrativa e Económica de
Angola, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1931, p. 3.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 449


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ambulantes, controlava a venda de alimentos no porto e as atividades dos


comerciantes de escravos de um modo geral. Desse modo, centralizava as
atividades mercantis em suas mãos, em especial o comércio de escravos.16
Após alguns anos, a Coroa portuguesa resolveu retornar ao sistema de
governador em Benguela. O primeiro a retomar o cargo foi Antônio José
Pimental de Castro e Mesquita, nomeado em 1779. Mesmo tendo o título
de governador continuava subordinado ao de Angola. Entretanto, devido
à distância e ao fato da ligação com Luanda ser exclusivamente maríti-
ma, as autoridades de Benguela desfrutavam de relativa autonomia.17 O
governante de Benguela também administrava os presídios da conquista,
ou seja, as fortalezas portuguesas estabelecidas em pontos importantes
para o controle das caravanas que traziam produtos para o comércio de
longa distância, geralmente em terras de sobas avassalados. Assim, an-
tes de 1779, o capitão-mor e posteriormente o governador de Benguela
fiscalizavam a função de capitães-mores que administravam os presídios
no sertão. Os presídios representavam o avanço colonial português no
território e funcionavam como centros administrativos e militares, com
uma pequena força armada responsável pela segurança, coleta de impos-
tos, controle e proteção das rotas comerciais e das caravanas. O presídio
de Caconda, o mais importante e distante, ficava a 240 quilômetros da
cidade de Benguela, enquanto Quilengues, a cerca de 220 quilômetros.
O território entre Benguela e os presídios no interior não estavam sob
controle das forças portuguesas, e sim de sobados que poderiam ser, ou
não, vassalos do reino de Portugal. Assim sendo, os presídios funcionavam
como espaços “portugueses” em regiões onde a maioria da população não
estava sob domínio colonial. No interior dos muros das fortalezas, geral-
mente feitos de pau-a-pique, havia um quartel, a casa da administração,
uma igreja, a casa da câmara, habitações dos soldados e uma horta. Vários
africanos livres que viviam aí frequentavam a igreja e batizavam seus
filhos.18 Faziam parte, ainda que de forma temporária e superficial, de

16 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Conde de Linhares, mç. 42, doc. 2, 3 de feve-
reiro de 1775. Ver também Ralph Delgado, Reino de Benguela. Do descobrimento à cria-
ção do governo subalterno, Lisboa: Imprensa Beleza, 1945, p. 383; e Miller, Way of Death,
pp. 264-268.
17 A área da Quissama era uma região de constantes conflitos entre tropas portugueses e
autoridades africanas. Ver Beatrix Heintze, “Historical Notes on the Kisama of Angola”,
Journal of African History, vol. 13, no. 3 (1972), pp. 407-418.
18 Roquinaldo Ferreira, “‘Ilhas Crioulas’: o significado plural da mestiçagem cultural na Áfri-
ca Atlântica”, História, vol. 155, no. 2 (2006), pp. 17-41; Mariana P. Candido, “Benguela et
l’espace atlantique sud au XVIIIe siècle”, Cahiers des Anneux de la Mémoire, no. 14 (2011),
pp. 223-243; José Curto, “‘As If From a Free Womb’: Baptismal Manumissions in the Con-
ceição Parish, Luanda, 1778-1807", Portuguese Studies Review, vol.10, no. 1 (2002), pp.
26-57; e Selma Pantoja, “Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVII”, Re-
vista Lusófona de Ciência das Religiões, vol. 3, no. 5/6 (2004), pp. 117-136.

450 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

uma comunidade luso-africana, como definiu a historiadora Beatrix He-


intze. 19 No entanto, vassalagem não significa aculturação ou subjugação
completa. Apesar de a autonomia política ter sido comprometida com o
afastamento de líderes que resistiam aos avanços portugueses, os sobas
que haviam assinado os tratados de vassalagem continuavam a exercer
hegemonia comercial em seus territórios, exigindo pagamento de tributos
na forma de produtos trazidos do Atlântico e acordos comerciais que
reforçavam o poderio militar dessas lideranças africanas nos territórios
fora das fortificações portuguesas.20
Discuto aqui os casos de indivíduos capturados e escravizados na
região entre o porto de Benguela e os presídios de Caconda e Quilengues.
Desde o século XVII, um número desconhecido de escravos do que se con-
vencionou chamar Benguela desembarcou em vários portos das Américas.21
Além de prisioneiros de guerra, muitos foram sequestrados ou enganados,
e alguns deles residiam em Benguela ou nos presídios portugueses. Ao
chegar ao Brasil, muitos provavelmente foram considerados crioulos de
Benguela, ou ladinos, por já terem algum conhecimento do português e já
estarem familiarizados com o colonialismo. A experiência em Benguela
deve ter provocado um efeito profundo na forma como eles entendiam
a escravidão nas Américas. Alguns desses indivíduos foram capazes de
questionar a sua escravidão, alegando, entre outras coisas, serem vassalos
da Coroa portuguesa, assunto esse já por mim tratado anteriormente.22

19 Beatrix Heintze, “A lusofonia no interior da África Central na era pré-colonial. Um contri-


buto para a sua história e compreensão na actualidade”, Cadernos de Estudos Africanos,
no. 6–7 (2005), pp. 179–207.
20 Beatrix Heintze e Catarina Madeira Santos têm escrito sobre vassalagem em Angola. Ver
Beatrix Heintze, “The Angolan Vassal Tributes of the 17th Century”, Revista de História
Económica e Social, no. 6 (1980), pp. 57–78; idem, “Ngingi a Mwiza: um sobado angola-
no sob domino português no século XVII”, Revista Internacional de Estudos Africanos,
no. 8–9 (1988), pp. 221–234; idem, “Luso-African Feudalism in Angola?”, pp. 111–131; Ca-
tarina Madeira Santos, “Administrative Knowledge in a Colonial Context: Angola in the
Eighteenth Century”, The British Journal for the History of Science, vol. 43, no. 4 (2010),
pp. 539–556; idem, “Escrever o poder: os autos de vassalagem e a vulgarização da escri-
ta entre as elites africanas Ndembu”, Revista de História, no. 155 (2006), pp. 81–95; Ta-
vares e Madeira Santos, “Uma leitura africana das estratégias políticas e jurídicas”, pp.
243–260.
21 Ver Frederick P. Bowser, The African Slave in Colonial Peru, Stanford: Stanford Univer-
sity Press, 1974; Alejandro de la Fuente, “Introducción al estudio de la trata en Cuba, siglos
XVI y XVII,” Santiago, no. 61 (1986), 206-207; Candido, An African Slaving Port, 156-159.
22 Mariana P. Candido, “African Freedom Suits and Portuguese Vassal Status: Legal Mecha-
nisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800–1830”, Slavery & Abolition,
vol. 32, no. 3 (2011), pp. 447–459.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 451


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Fontes e como recuperar a voz dos escravos africanos


Os estudos sobre o tráfico transatlântico de escravos tendem a dar
ênfase ao volume e aos mecanismos de crédito e poucos são aqueles que
enfatizam os processos de escravização.23 Muito do que sabemos sobre
captura e escravidão vem de relatos de africanos que sobreviveram à
travessia atlântica e aos anos de escravidão nas Américas. Alguns deles
deixaram relatos que foram editados por abolicionistas e missionários
protestantes. Quase todos esses relatos tratam do final do século XVIII
e do começo do século XIX, época do apogeu do tráfico. Geralmente são
lidos como exemplos quase ahistóricos da escravidão e utilizados para
explicar processos de captura do século XVII, ou de regiões do continente
africano distantes dos locais dos fatos narrados. Por fim, tendem a enfa-
tizar os maus-tratos e as condições de vida nas Américas, na sua maior
parte relativos ao que hoje constitui os Estados Unidos. Poucos falam
de outras partes das Américas e, por fim, quase todos negligenciam ou
tratam muito superficialmente dos processos de captura e escravização
no continente africano.
Narrativas de captura, processos de escravização, transporte em caravanas
até a chegada aos portos marítimos, assim como a venda para comerciantes
europeus e a travessia do Atlântico estão disponíveis nas autobiografias de
Olaudah Equiano, ou Gustavus Vassa, Quobna Ottobah Cugoano e Mahommah
Gardo Baquaqua, escravos africanos que deixaram registros. As três narrativas
têm em comum o fato de seus atores terem escrito suas próprias memórias
depois de sequestrados e vendidos como escravos ainda jovens (Cugoano e Vassa
eram crianças, Baquaqua tinha aproximadamente 20 anos).24 Autobiografias

23 José C. Curto, “The Legal Portuguese Slave Trade from Benguela, Angola, 1730-1828: A
Quantative Re-appraisal”, África, vol. 17, no. 1 (1993/1994), pp. 101-116; Joseph C. Mil-
ler, “Some Aspects of the Commercial Organization of Slaving at Luanda, Angola – 1760-
1830”, in Henry Gemery e Jan Hogendorn (orgs.), The Uncommon Market: Essays in the
Economic History of the Atlantic Slave Trade (Nova York: Academic Press, 1979), pp. 77-
106; Roquinaldo Ferreira, “Dinâmica do comércio intra-colonial: geribitas, panos asiáti-
cos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII)” in João Fragoso, Maria de Fáti-
ma Silva Gouvêa e Maria Fernanda Baptista Bicalho (orgs.), O antigo regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) (Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2001), pp. 339-378; e Daniel B. Domingues da Silva, “The Supply of Slaves from Luanda,
1768-1806: Records of Anselmo da Fonseca Coutinho”, African Economic History, no. 38
(2010), pp. 53-76.
24 Robin Law e Paul E. Lovejoy (orgs.), The Biography of Mahommah Gardo Baquaqua: His
Passage from Slavery to Freedom in Africa and America (Princeton: Markus Wiener Pub-
lishers, 2001), pp. 136-138; Olaudah Equiano, The Interesting Narrative of the Life of
Olaudah Equiano or Gustavus Vassa, the African, Londres: Edição do autor, 1794; e Quob-
na Ottobah Cugoano, Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery, Nova York: Pen-
guin, 1999. Sobre o debate a respeito do uso do nome Olaudah Equiano ou Gustavus Vassa,
como o próprio autor preferia, ver Vincent Carretta, Equiano, the African: Biography of
a Self-Made Man, Athens: University of Georgia Press, 2005; e Paul E. Lovejoy, “Issues of
Motivation—Vassa/Equiano and Carretta’s Critique of the Evidence”, Slavery & Abolition,
vol. 28, no. 1 (2007), pp. 121-125.

452 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

não são a única forma de analisar como as pessoas foram escravizadas. Randy
Sparks recriou a saga de Little Ephraim Robin John e Ancona Robin Robin
John, ambos parte da elite comercial e política de Velho Calabar que foram
ilegalmente transportados para a ilha de Dominica, no Caribe, e vendidos
como escravos depois de empenhados a comerciantes atlânticos como fiança
para o pagamento de créditos. Recentemente, usando fontes inquisitoriais e
registros policiais, James Sweet publicou a biografia de Domingos Álvares,
um escravo africano capturado no Daomé e vendido em Jakin a comerciantes
negreiros que cruzaram o Atlântico passando por Pernambuco, Rio de Janeiro,
Lisboa e por fim Castro Marim, no Algarve.25 Ou ainda, João José Reis e a
saga de outro Domingos, este Sodré, de Onim, um reino de língua iorubá, que
atuava como adivinho na Bahia no século XIX.26 Mariza de Carvalho Soares
investiga a importância do passado africano do casal Victória Coura e Ignácio
Mina na organização de irmandades católicas no Rio de Janeiro durante o
século XVIII, cujas fontes não permitem reconstituir processos de captura
no continente africano.27
As poucas autobiografias existentes – a maior parte disponível somente
em inglês – tem representado o relato modelo dos processos de captura.
Em sua totalidade se referem a indivíduos oriundos da região entre o rio
Senegal e a baía de Biafra, conhecida como a África Ocidental, e não da região
centro-ocidental de onde veio a maioria dos escravizados desembarcados
nas Américas, oriundos em especial do antigo reino do Congo e das colônias
portuguesas de Angola e Benguela. Apesar de a historiografia não mostrar
ainda nenhuma documentação que forneça autobiografias de escravos cen-
tro-africanos, alguns estudos começam a ser publicados, explorando esse
segmento dos mais de cinco milhões de africanos capturados e deportados
dessa região.28
Este capítulo dialoga com os estudos disponíveis, buscando encon-
trar padrões de violência e analisar como, quando e onde pessoas livres
tiveram sua liberdade usurpada e se, na sequência, foram escravizadas.

25 James H. Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the
Atlantic World, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
26 João José Reis, Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candom-
blé na Bahia do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
27 Mariza de Carvalho Soares, “Can Women Guide and Govern Men? Gendering Politcs
among African Catholics in Colonial Brazil”, in Gwyn Campbell, Suzanne Miers, e Joseph
Miller (orgs.), Women and Slavery, The Modern Atlantic (Athens: Ohio University Press,
2008), pp. 79-99; e idem, “Africain, esclave et roi: Ignacio Monte et sa cour à Rio de Janeiro
au XVIIIe siècle”, Brésil(s:) Sciences Humaines et Sociales, no. 1 (2012), pp. 13-32.
28 Curto, “The Story of Nbena”; Candido, Fronteras de esclavización, pp. 155-203; Ferreira,
“Slaving and Resistance to Slaving”; e Mariana Candido, “The Transatlantic Slave Trade
and the Vulnerability of Free Blacks in Benguela, Angola, 1780-1830,” in Jeffrey A. For-
tin e Mark Meuwese (orgs.), Atlantic Biographies: Individuals and Peoples in the Atlantic
World (Leiden: Brill, 2014), pp. 193- 209.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 453


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
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A reconstrução dessas histórias é possível através do uso das fontes


coloniais portuguesas, principalmente a correspondência oficial, que
relata debates sobre a legalidade da escravidão sob a ótica portuguesa.
Assim, é possível afirmar que a escravidão era uma instituição altamen-
te ordenada, com claros limites entre aqueles que estavam protegidos
pela lei e não podiam ser escravizados e aqueles que se encontravam
em posição vulnerável. Apesar de a voz do escravo estar ausente ou ter
sido filtrada em muitos desses casos, a documentação colonial revela as
histórias desses indivíduos, as circunstâncias da captura e os mecanis-
mos empregados por familiares para reverter a condição escrava de seus
parentes. Numa clara indicação de que em Benguela a escravidão tinha
um fundo comercial, familiares, autoridades e seus representantes agiam
rápido para proteger seus dependentes e evitar que fossem escravizados.
Fica claro que a escravidão africana não era considerada benigna ou uma
extensão de laços de dependência econômica e política, como Suzanne
Miers e Igor Kopytoff caracterizaram-na.29
A documentação colonial é limitada e se restringe a casos que cha-
maram a atenção das autoridades. É particularmente silenciosa quanto a
processos de captura em estados independentes, fora da alçada da Coroa
portuguesa. As autoridades portuguesas reconheciam as leis locais como
válidas no caso de pessoas escravizadas no interior, em regiões fora do
controle da Coroa portuguesa.30 Por esse motivo os pombeiros, agentes
comerciais e autoridades africanas chegados do sertão, não precisavam
justificar ou explicar as circunstâncias em que seus escravos vindos nas
caravanas eram adquiridos.31 Reconhecendo o número limitado de casos
que atraíram a atenção e deliberação de autoridades coloniais, enfati-
zamos as informações sobre o método de captura e a discussão sobre a
legalidade da escravidão. Esses casos não são a exceção, são a ponta do
iceberg. Revelam a vulnerabilidade dos africanos no entorno de Benguela
e como suas vidas foram profundamente alteradas pela presença dos
comerciantes transatlânticos e do estado colonial. Depois de décadas

29 Para um estudo clássico que defende a escravidão africana como distinta e mais cordial
que em outros lugares, ver Suzanne Miers e Igor Kopytoff, “African ‘Slavery’ as an Institu-
tion of Marginality”, in Miers e Kopytoff (orgs), Slavery in Africa: Historical and Anthro-
pological Perspectives (Madison: University of Wisconsin Press, 1975), pp. 3-81.
30 Para mais detalhes, ver Candido, Fronteras de esclavización, pp. 161-162.
31 Os pombeiros eram agentes comerciais que atuavam no interior como comerciantes vo-
lantes. Geralmente escravos, alguns eram livres. Ver Willy Bal, “Portugais Pombeiro:
‘Commerçant Ambulant du ‘Sertão”, Annali: Istituto Universitario Orientale, vol. 7, no. 2
(1965), pp. 123-161; Isabel Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Di-
nâmicas comercias e transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investi-
gação Científica Tropical, 1997, p. 765; e Mariana Candido, “Merchants and the Business
of the Slave Trade at Benguela, 1750-1850”, African Economic History, no. 35 (2007), pp.
1-30 , pp. 3-4.

454 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de domínio dos estudos quantitativos sobre o tráfico, o esforço deste


texto é dialogar com os estudos recentes que priorizam as pessoas e suas
estratégias individuais. Hoje temos mais informação sobre as condições
de transporte durante a travessia atlântica e sobre os laços de solidarie-
dade que permaneceram durante a escravidão no Brasil. 32 Devemos olhar
também com mais atenção para os processos de captura e escravização e
como eles marcaram os africanos que chegaram às Américas.

A legalidade da escravidão
A legitimidade de submeter povos considerados gentios à escravidão
ganhou destaque com a expansão portuguesa. Estimulada pela expulsão
dos muçulmanos e judeus, e autorizada pela aprovação do resgate, ou
sequestro, dos povos da Guiné, a Coroa portuguesa estava comprometida
com a captura e escravização dos povos não cristãos, justificando assim
a expansão portuguesa, com o apoio da Igreja católica. Influenciada pela
tradição das cruzadas dos séculos anteriores, a bula papal Dum Diversas
de 1452, por exemplo, autorizava o rei de Portugal a atacar, conquistar
e submeter povos pagãos, sarracenos e supostos inimigos de Cristo.33 A
disposição papal também reconhecia o direito da Coroa portuguesa de
apreender bens materiais e ocupar territórios habitados por esses povos e
escravizá-los permanentemente. Assim, a expansão portuguesa pela costa
da África deve ser entendida no contexto do conflito religioso na Penín-
sula Ibérica e no Mediterrâneo, principalmente quando os portugueses
encontraram muçulmanos na costa da Senegâmbia e utilizaram a lógica
dos conflitos entre cristãos e muçulmanos para legitimar a sua captura e
escravização.34
Com o estabelecimento da feitoria de Arguim na costa da Mauritânia
em meados do século XV, as razias e conflitos bélicos deram lugar ao
comércio, o que exigia uma nova bula papal determinando como as trocas
comerciais entre povos africanos gentios e portugueses católicos deveriam
ser justificadas nessa lógica de expansão comercial e religiosa. Aliada ao
plano de conversão das populações locais, ao reconhecer o direito portu-
guês sobre o monopólio do comércio com o Marrocos e as Índias, a bula

32 Jaime Rodrigues, O infame comércio: proposta e experiências no final do tráfico de africa-


nos para o Brasil, Campinas: Editora da Unicamp, 2000; e idem, De costa a costa: escravos,
marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (17801860),
São Paulo: Companhia das Letras, 2005; Walter Walthorne, “‘Being Now as it Were One Fa-
mily’: Shipmate Bonding on the Slave Vessel Emilia in Rio de Janeiro and throughout the
Atlantic World”, Luso-Brazilian Review, vol. 45, no.1 (2008), pp. 53-76.
33 António Brásio, Monumenta Missionária Africana. África Ocidental (1342-1499), Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1958, vol. i, pp. 269-273.
34 Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, pp. 27-49; e Green, Rise of the Trans-At-
lantic Slave Trade, pp. 177-296.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 455


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
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papal Romanus Pontifex, de 1455, reforçava a ação da Coroa portuguesa


na costa africana. Com o beneplácito da Igreja católica, Portugal viu suas
ações de sequestro e comércio de escravos reconhecidas como legítimas
e essenciais para a expansão do cristianismo. 35 A legalidade das bulas
Dum Diversas e Romanus Pontifex foi posteriormente reforçada com a
promulgação de bulas semelhantes pelo papa Alexandre VI, em 1503, que
conferiam aos espanhóis poderes sobre a população indígena do continente
americano. Essas ideias ganharam maior substância e justificativa com o
processo de colonização no Brasil, caracterizado pela violenta expulsão
da população indígena e sua captura. A mesma lógica que justificava
o resgate de africanos na Senegâmbia no século XV fundamentava a
escravidão dos chamados povos gentios das Américas.36
O cronista português quinhentista Gomes Eanes de Zurara descre-
veu como no norte da África e na chamada Guiné os capitães de navios
e marinheiros invocavam santos católicos e o rei de Portugal em seus
ataques para captura de negros, fossem eles muçulmanos ou não. 37 Seu
relato deixa claro como o resgate era visto por um prisma religioso: ao
invocar a Bíblia e o pecado de Ham, Zurara argumentava que os africanos
deveriam ser escravizados pelo pecado ancestral. O mesmo argumento
era usado para os povos chamados “canibais” que, por violarem as leis
de Deus, estavam sujeitos à escravidão. Assim, povos “sem fé, rei ou lei”
eram passíveis de viver em cativeiro.38

35 A. J. R. Russell-Wood, “Iberian Expansion and the Issue of Black Slavery: Changing Portu-
guese Attitudes, 1440-1770”, American Historical Review, vol. 83, no. 1 (1978), pp.16-42;
Ângela Domingues, Quando os índios eram vassalos: a colonização e relações de poder no
norte do Brasil na segunda metade do século XVIII, Lisboa: Comissão Nacional para as Co-
memorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; e Alida Metcalf, Go-Betweens and
the Colonization of Brazil, 1500-1600, Austin: University of Texas Press, 2005, p. 168.
36 Charles R. Boxer, O Império marítimo português (1415-1825), São Paulo: Companhia das
Letras, 2002; Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlân-
tico Sul, séculos XVI e XVII, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
37 Gomes Eanes de Zurara, Chronicas do descobrimento da Guiné, Paris: J.P. Aillaud, 1841,
pp. 70-76; 93-97; 120-122; 157-160; 200-201; 212-5, entre outras passagens.
38 A. C. Saunders, História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555),
Lisboa: Imprensa Nacional, 1994, pp. 38-39; e António Manuel Hespanha e Catarina Ma-
deira Santos, “Os poderes num império oceânico”, in António Manuel Hespanha (org.), His-
tória de Portugal - O Antigo Regime (1620-1807) (Lisboa: Estampa, 1993), vol. 4, p. 396.
Sobre canibalismo e escravidão, ver Beatrix Heintze, “Contra as teorias simplificadoras.
O ‘canibalismo’ na Antropologia e História da Angola”, in Manuela Ribeiro Sanches (org.),
Portugal não é um país pequeno. Contar o “Império” na pós-colonialidade (Lisboa: Coto-
via, 2006), pp. 215-228. Sobre a ideia de liberdade original, ver Curto, “The Story of Nbe-
na, pp. 43-64. Para o uso da legislação portuguesa em Angola, ver Catarina Madeira San-
tos, “Entre deux droits: les lumières en Angola (1750–v. 1800)”, Annales – Histoire, Scien-
ces Sociales, vol. 60, no. 4 (2005), pp. 817–848. Sobre como a escravidão era definida em
alguns sobados no interior de Benguela, ver Candido, Fronteras de esclavización, pp. 163-
178. Para semelhanças com a legislação referente à população indígena nas Américas, ver

456 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Não sabemos, entretanto, como autoridades africanas que ocupavam


Benguela e seu sertão definiam a escravidão nos séculos XVII e XVIII. A
pouca informação relativa às leis locais disponível tende a concentrar-
se ao século XIX e revela que portugueses e africanos concordavam
na existência de meios legítimos e ilegítimos de capturar e escravizar
alguém. A ideia de guerra justa contra os que resistiam ao cristianismo
promovia a legalidade da escravidão daqueles que não eram vassalos e
aliados da Coroa portuguesa. Conceitos como guerra justa e liberdade
original eram empregados por funcionários coloniais portugueses e au-
toridades religiosas para decidir o destino dos africanos que chegavam
a contestar sua captura.
Essa justificativa religiosa da escravidão desencadeou um novo
debate sobre a possibilidade de escravizar africanos convertidos ao
cristianismo, como no caso da conversão do rei do Congo e sua corte,
em 1491. Juristas e administradores se perguntavam se era legítimo e
correto vender africanos que viviam como cristãos. 39 No século XVII, por
exemplo, padres jesuítas se questionavam sobre a legitimidade do tráfico
de escravos em Luanda. Em 1610, Luís Brandão, reitor do Colégio da Com-
panhia de Jesus, em Luanda, respondia às indagações sobre se todos os
cativos que se encontravam no porto haviam sido capturados legalmente,
ou seja, em conflitos com as forças portuguesas. Brandão argumentou
que seria impossível averiguar as circunstâncias de cada captura e que
os comerciantes os compravam e embarcavam de boa-fé, acreditando
nos intermediários que os enviavam aos mercados no interior e depois
os traziam até a costa. Assim, segundo ele, o comércio devia continuar,
pois mais valia salvar almas do que deixar a população sem conhecer a fé
cristã.40 E a escravidão passou a ser justificada como parte do processo
de conversão dos povos gentios.
Outros teólogos, entre eles Tomás de Mercado, Martín de Ledesma e
Domingos de Souto continuavam a questionar a legitimidade da escravidão
dos africanos e a ideia de que todos eram cativos de guerras justas ou
santas. Apesar das críticas, a Coroa portuguesa, em parte pelo apoio que
recebia dos jesuítas, continuou a autorizar a comercialização dos africanos
escravizados e seu envio às Américas com a justificativa da expansão do

continuação 38

John Manuel Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo,
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
39 Saunders, História social, pp. 43-44; Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Afri-
cans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660, Nova York: Cam-
bridge University Press, 2007, pp. 70–72; José C. Curto, “Experiences of Enslavement in
West Central Africa”, Histoire Sociale/Social History, vol. 41, no. 82 (2008), pp. 381–415.
40 Elizabeth Donnan (org.), Documents Illustrative of the History of the Slave Trade, Wash-
ington, D.C.: Carnegie Institute, 1930, vol. 1, pp. 123-124. Para mais sobre o assunto, ver
Alencastro, O trato dos viventes.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 457


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cristianismo. Em 1623, um decreto do rei Filipe III de Espanha tornou


obrigatória a presença de um padre a bordo dos navios negreiros para
atender às demandas espirituais dos escravos.41 A escravidão estaria assim
restrita aos africanos não cristãos, mas ainda que estes se convertessem
posteriormente não teriam direito à liberdade. Essa lógica é a mesma que
se aplica à escravidão no mundo muçulmano. Não muçulmanos poderiam
ser apreendidos em jihads, “guerras santas”, e postos em cativeiro. Assim
como no mundo cristão, caberia ao proprietário, então, converter o cativo,
que permaneceria assim escravo, dispondo inclusive do controle sobre a
sua descendência.42 A legislação portuguesa se aplicava assim àqueles
que viviam ou que se sentiam pertencentes a uma noção, ainda que in-
cipiente de comunidade portuguesa. Entre estes estariam incluídos não
só as autoridades coloniais e seus familiares, inclusive esposas e filhos
nascidos localmente, como degredados do império, comerciantes e mari-
nheiros, dependentes e vassalos, escravos e todos aqueles reconhecidos
como cristãos.
Os funcionários coloniais portugueses reconheciam a limitação de
suas ações em Benguela e as motivações dos seus pares. Em 1652, Bento
Teixeira, ouvidor e provedor da fazenda de Angola, denunciou as guerras
de expansão colonial que serviam de pretexto para escravizar populações
vizinhas. Segundo ele, “tomam os governadores honestos pretextos para
fazer guerra aos gentios sem na realidade haver outra causa mais que a
cobiça de cativá-los e vendê-los, atropelando as leis da natureza.”43 Assim,
o estado colonial reconhecia que as guerras de expansão, classificadas
como guerras justas, eram motivadas pela perspectiva de lucro e ganhos
pessoais. Entretanto, essas autoridades coloniais eram incapazes de garan-
tir militarmente o controle territorial, por isso, através da assinatura de
tratados de vassalagem e alianças com as autoridades africanas, criavam

41 Saunders, História social, p. 44.


42 A historiografia sobre escravidão islâmica é extensa. Entre outros, ver Chouki El-Hamel,
“The Register of the Slaves of Sultan Mawlay Isma’il of Morocco at the Turn of the 18th
Century”, Journal of African History, vol. 51, no. 1 (2010), pp. 89-98; Ahmad Alawad Sika-
inga, “Slavery and Muslim Jurisprudence in Morocco”, Slavery & Abolition, vol. 19, no. 2
(1998), pp. 57-72; Paul E. Lovejoy, “Islam, Slavery, and Political Transformation in West
Africa: Constrains on the Trans-Atlantic Slave Trade”, Outre-Mers, Revue d’Histoire, vol.
89, no. 2 (2002), pp. 247-282; Ghislaine Lydon, “Islamic Legal Culture and Slave-Owner-
ship Contests in 19th-Century Sahara”, International Journal of African Historical Stud-
ies, vol. 40, no. 3 (2007), 391-435; e Bruce S. Hall, A History of Race in Muslim West Africa,
1600-1960, Nova York: Cambridge University Press, 2011, entre outros. Para a semelhan-
ça entre o sistema jurídico com respeito à escravidão, ver Mariza de Carvalho Soares, “A
conversão dos escravos africanos e a questão do gentilismo nas Constituições Primeiras
da Bahia”, in Bruno Feitler e Evergton Sales Souza (orgs.), A Igreja no Brasil: normas e prá-
ticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (São Paulo:
Unifesp, 2011), pp. 303-321.
43 AHU, Angola, cx. 5, doc. 101, 14 de dezembro de 1652.

458 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

um discurso de direito, dependência militar e reconhecimento de seu


controle sobre os territórios e os súditos da Coroa portuguesa. Tratados
de vassalagem reconheciam demandas políticas e geográficas de aliados
políticos e comerciais e distinguiam os protegidos ou não pela lei colonial,
criando dicotomias entre povos rebeldes e vassalos, cristãos e gentios,
aliados e inimigos.44
Se por um lado o estado colonial dependia da cooptação e da co-
laboração dos sobas, por outro as autoridades locais viam seu poder
legitimado e apoiado pela colônia que fornecia bebidas alcoólicas, tabaco,
armas de fogo e fazendas aos sobas avassalados.45 A Coroa portuguesa
não considerava essas transações como pagamento de tributo e sim
como oferta de presentes. É importante destacar que o envio de pólvora,
vinho, cachaça, chapéus, cintos, entre outros objetos, permitia a entrada
de oficiais e comerciantes portugueses nos sobados não avassalados que
ficavam fora do controle português, compondo os acordos para o uso do
território por um período limitado de tempo. Ou seja, esses “presentes”,
como são chamados na documentação, selavam acordos diplomáticos
entre os sobas e os representantes da Coroa portuguesa e inauguravam
relações comerciais, abrindo caminho para a cobrança de impostos na
forma de escravos e criando como contrapartida a obrigatoriedade do envio
regular de pagamentos, ou “presentes.”46 Ao receber essas armas de fogo
e bebidas alcoólicas, as autoridades locais africanas tanto aumentavam
seu poder bélico para captura de povos vizinhos e expansão territorial,
quanto ampliavam a sua rede de dependentes, adquirindo mais escravos
e acolhendo população livre empobrecida em busca de proteção.
O tratado de vassalagem estabelecia, entre outras coisas, que a es-
cravização de vassalos e aliados da Coroa portuguesa deveria ser evitada
a todo custo. Em 1769, sob a responsabilidade do padre local, foi criado
em Benguela o posto do inquiridor das liberdades, com a finalidade de
regular a proteção dos vassalos e distingui-los dos escravos. A tarefa
daquele religioso era “examinar os negros que vêm do negócio do sertão

44 AHU, Angola, cx. 9, doc. 25, 10 de abril de 1666. Sobre classificação e a linguagem de direi-
tos, ver Pamela Scully, Liberating the Family? Gender and British Slave Emancipation in
the Rural Western Cape, South Africa, 1823-1853, Portsmouth: Heineman, 1997, pp. 34-
46; e Karen B. Graubart, “Indecent Living: Indigenous Women and the Politics of Repre-
sentation in Early Colonial Peru”, Colonial Latin American Review, vol. 9, no. 2 (2000), pp.
223-224.
45 Sobre a vassalagem, ver Heintze, “Luso-African Feudalism in Angola?”; e Santos, “Escrever
o poder”, pp. 81-95.
46 Para casos semelhantes ao norte do rio Cuanza, ver Joseph C. Miller, Kings and Kinsmen:
Early Mbundu States in Angola, Oxford: Clarendon Press, 1976, pp.177-179. Sobre o direi-
to das autoridades de oferecer acesso à terra e o processo de interação com estrangeiros
e comerciantes, ver Mahmood Mamdani, Citizen and Subject, Princeton: Princeton Uni-
versity Press, 1996, pp. 44–47; e Jeff Guy, “Analyzing Pre-Capitalist Societies in Southern
Africa”, Journal of Southern African Studies, vol. 14, no. 1 (1987), pp. 18–37.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 459


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

a serem vendidos e embarcados para o Brasil”, para que “não suceda que
entre os escravos se meta um livre.” 47 O pároco Manoel Gonçalves, o
primeiro inquisidor das liberdades em Benguela, estava encarregado de
inquirir todos os escravos e marcá-los com a marca do rei na
minha presença, não antes do batizado, mas sim depois de o
serem, e que a Igreja os mostre capaz de embarcarem para
esta [Luanda] lhe ficar servindo como último despacho,
servindo igualmente de inquiridor de todas as causas
das liberdade que se moverem nesse juízo, assinando as
perguntas e respostas que se fizerem aos ditos pretos e
procurando por eles todos os termos da sua liberdade.48

A criação desse cargo na segunda metade do século XVIII mostra


não só como a incidência da escravidão era comum, mas também como
ameaçava a todos, vassalos ou não, e juristas, assim como autoridades
coloniais, discutiam as noções de escravidão, direito e proteção.
A nomeação do catequizador e inquiridor das liberdades dava con-
tinuidade ao bando de 1765, no qual o governador Francisco Inocêncio
de Sousa Coutinho promulgou uma série de decretos proibindo o envol-
vimento, direto ou não, de autoridades coloniais no tráfico de escravos.
Esses bandos e decretos eram tentativas de controlar a escravidão e
proteger os direitos dos vassalos da Coroa portuguesa. Sem embargo
foram todos letra morta, nunca respeitados em Benguela. As autoridades
coloniais em Benguela estavam mais interessadas em garantir o seu
próprio enriquecimento do que em obedecer às limitações impostas
pelo governador geral, em Luanda. Capitães, governadores e soldados
continuavam a atacar tanto povos gentios quanto vassalos. A captura e
venda de vassalos, como será analisado a seguir, indica essa arbitrarie-
dade. Assim, podemos afirmar que o lucro do tráfico se alastrou não só
entre autoridades africanas locais, mas também entre os portugueses
que ali estavam, supostamente, para organizar e legalizar o comércio
de seres humanos. 49

47 ANTT, Conde de Linhares, maço 52, doc. 14, 24 de outubro 1769, “Provisão a Manoel
Gonçalves para servir como inquiridor e catequizador em Benguela”. Em Luanda esse
posto foi criado anteriormente. Ver Ferreira, Cross-Cultural Exchanges, p. 54.
48 ANTT, Conde de Linhares, maço 52, doc. 14, 24 de outubro 1769, fl. 1.
49 Arquivo Nacional de Angola (ANA), Cod. 443, fl. 117, 17 de fevereiro de 1803. Ver tam-
bém Carlos Couto, “Regimento de Governo Subalterno de Benguela”, Studia, no. 45
(1981), pp. 288-289; idem, Os Capitães-Mores em Angola, Lisboa: Instituto de Investiga-
ção Científica e Tropical, 1972, pp. 323-333; Rosa da Cruz Silva, “Saga of Kakonda and
Kilengues: Relations between Benguela and Its Interior, 1791-1796”, in José C. Curto e
Paul E. Lovejoy (orgs.), Enslaving Connections: Changing Cultures of Africa and Brazil
During the Era of Slavery (Amherst, N.Y.: Humanity Books, 2003), pp. 245-246; e José
C. Curto, Enslaving Spirits: The Portuguese-Brazilian Alcohol Trade at Luanda and Its
Hinterland, c. 1550-1830, Leiden: Brill, 2004, p. 94.

460 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Autoridades coloniais e juristas continuavam a debater quem podia


ou não ser capturado e legalmente vendido para às Américas. Em 1770,
Sousa Coutinho publicou um bando proibindo a escravidão por dívida,
com a intenção de proteger aqueles devedores que viviam sob a auto-
ridade da Coroa portuguesa.50 Vários casos, no entanto, indicam que a
lei continuava sendo violada no sertão de Benguela. 51 Esses processos
revelam como as pessoas eram capturadas, oferecendo um lado humano
para um comércio geralmente tratado com frieza nas fontes coloniais. É
através dessa documentação oficial que os procedimentos de captura e
escravização são revelados.
A ênfase na literatura sobre o tráfico associado às guerras enquanto
mecanismo de aquisição de escravos obscurece o fato de que nem todos os
africanos que chegaram às Américas como escravizados foram capturados
em conflitos bélicos.52 Não resta dúvida que as guerras, razias e conflitos
políticos resultaram em grande número de cativos, avidamente consumidos
pelos comerciantes transatlânticos. Num ciclo vicioso, a comercialização
ao longo da costa levava à ocorrência de mais guerras e conflitos armados.
Especialistas em história da África, há décadas, enfatizam como alguns
líderes e comerciantes africanos participaram no tráfico de escravos.
Quanto à África centro-ocidental, Jan Vansina, Beatrix Heintze, Joseph
Miller, John Thornton, José Curto, Linda Heywood, Catarina Madeira
Santos e Roquinaldo Ferreira demonstraram como sobas, sobetas e ou-
tras autoridades políticas estavam involucrados no comércio atlântico e

50 ANA, Cod. 80, fl. 1-1v, 12 de novembro de 1771; Candido, Fronteras de esclavización,
pp.163-164. Escravidão por dívida era comum em outras partes do continente africa-
no. Ver, por exemplo, Jan Vansina, “Ambaca Society and the Slave Trade C. 1760-1845”,
The Journal of African History, vol. 46, no. 1 (2005), pp. 1–27; Olatunji Ojo, “‘Èmú’
(Àmúyá): The Yoruba Institution of Panyarring or Seizure for Debt”, African Economic
History, no. 35 (2007), pp. 31–58; Jennifer Lofkrantz e Olatunji Ojo, “Slavery, Freedom,
and Failed Ransom Negotiations in West Africa, 1730–1900”, The Journal of African
History, vol. 53, no. 1 (2012): 25–44; Paul E. Lovejoy e Toyin Falola (orgs.), Pawnship in
Africa: Debt Bondage in Historical Perspective, Boulder: Westview Press, 1994; e Paul
E. Lovejoy e David Richardson, “Trust, Pawnship, and Atlantic History: The Institution-
al Foundations of the Old Calabar Slave Trade”, The American Historical Review, vol.
104, no. 2 (1999), pp. 333–355.
51 Ver os vários casos listados por Candido, Fronteras de esclavización, pp. 155-203.
52 Thornton, Warfare in Atlantic Africa; Walter Rodney, “Jihad and Social Revolution
in Futa Djalon in the Eighteenth Century”, Historical Society of Nigeria, no. 4 (1968),
pp. 269–284; Lovejoy, Transformations in Slavery, pp. 68–90; Patrick Manning, Slav-
ery and African Life: Occidental, Oriental, and African Slave Trades, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1990; Robin Law, The Oyo Empire, c.1600-c.1836: A West Af-
rican Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade, Oxford: Clarendon Press,
1977; Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade; e Martin A. Klein, “Social and
Economic Factors in the Muslim Revolution in Senegambia”, The Journal of African
History, vol. 13, no. 3 (1972), pp. 419–441.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 461


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

dependentes dos seus lucros e mercadorias. 53 Em alguns casos, pessoas


foram escravizadas em outras situações, como o caso dos condenados por
crime, dívida, ou aqueles simplesmente sequestrados ou enganados por
conhecidos ou autoridades coloniais, que se aproveitaram da instabilidade
política para capturar pessoas livres em situações vulneráveis.54 Apesar
dessa instabilidade que caracterizou o período do comércio atlântico,
leis locais e coloniais surgiram para regulamentar quem era passível de
captura. A escravidão, assim, podia ser questionada e até revertida de
modo a garantir que a liberdade original do indivíduo fosse preservada.55

Os vulneráveis: mulheres e estrangeiros


No dia 21 de junho de 1765, dom Francisco Inocêncio de Sousa Cou-
tinho, governador de Angola, publicou uma portaria ordenando a José dos
Santos Ferreira, então capitão-mor do presídio de Caconda, que libertasse
imediatamente a jovem de nome Juliana. Segundo Sousa Coutinho, Juliana
não podia servi-lo como escrava porque tinha em seu poder uma carta
de alforria. Servir como escrava e ter carta de alforria eram para ele
“qualidades entre si contrárias e repugnantes”, pois ninguém pode “ser
livre e viver como escrava.”56 Segundo o relato, o capitão José dos Santos
Ferreira comprara Juliana em praça pública no presídio de Caconda, no
início de 1765. Passados alguns dias, em nome da família de Juliana, chegou
a Benguela um embaixador do potentado de Kissange, em Quilengues,
chamado Xaucuri. Ele vinha encarregado de negociar com o capitão o
resgate de Juliana, oferecendo em troca de sua liberdade um escravo
(“peça da Índia”) e dez cabeças de gado. O capitão aceitou a proposta de
resgate, mas pediu dois escravos, além das dez cabeças de gado. Xaucuri
retornou a Kissange para conseguir os recursos para o segundo escravo
e passou meses sem dar notícias. Nesse meio tempo o capitão José dos

53 Vansina, “Ambaca Society”, pp.1-27; Heintze, “Ngingi a Mwiza”; “Miller, Way of Death; John
K. Thornton, “African Political Ethics and the Slave Trade”, in Derek R. Peterson (org.), Ab-
olitionism and Imperialism in Britain, Africa, and the Atlantic (Athens: Ohio University
Press, 2010), pp. 38-62; Curto, Enslaving Spirits; Linda Heywood, “Slavery and its Trans-
formation in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, Journal of African History, vol. 50 , no.
1 (2009), pp. 1-22; Santos, “Administrative Knowledge in a Colonial Context”; e Ferreira,
“Slaving and Resistance”, pp. 111-130.
54 José C. Curto, “Struggling Against Enslavement: The Case of José Manuel in Benguela,
1816-20”, Canadian Journal of African Studies, vol. 39, no. 1 (2005), pp. 96–122; Curto,
“The Story of Nbena”, pp. 44–64; Roquinaldo Ferreira, “O Brasil e a arte da guerra em An-
gola (sécs. XVII e XVIII)”, Estudos Históricos, vol. 1, no. 39 (2007), pp. 3–23; Candido, Fron-
teras de esclavización, pp.178-190.
55 Ferreira, “Slaving and Resistance”, pp. 96-122; e Candido, “African Freedom Suits”, pp.
447-459.
56 ANTT, Conde de Linhares, Livro 50, v. 1, fl. 142 v-144, São Paulo de Assunção de Luanda,
21 de junho de 1765.

462 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Santos Ferreira concedeu a Juliana uma alforria condicional, vinculando


sua liberdade ao pagamento da peça da Índia restante. O silêncio de
Xaucuri estava provavelmente relacionado à destruição do potentado de
Kissange pelo exército do soba Kibanda em meados da década de 1760.
Assim como Juliana, outras pessoas já portadoras de nomes portu-
gueses, expostas à cultura e, de certa forma, ao colonialismo português,
foram violentamente capturadas e escravizadas em regiões próximas
ao litoral da África centro-ocidental. Não sabemos se Xaucuri chegou a
Kissange antes, durante ou logo depois do ataque, nem como ele e a família
de Juliana foram afetados pelo conflito. Mas sem a ajuda da família, a
jovem corria o risco de continuar escravizada pelo resto da vida, ou ainda
ser vendida a comerciantes transatlânticos e enviada às Américas. Sua
salvação parece ter sido o entendimento do governador de Angola que, por
portaria, lhe deu a liberdade. As fontes não revelam o final da história:
se ela foi efetivamente libertada, se retornou a Kissange e, se lá chegou,
em que condições teria voltado ao convívio de seus familiares. Esse caso
demonstra como escravidão e liberdade eram assuntos que preocupavam
as autoridades coloniais estabelecidas em Benguela, assim como a popu-
lação local; também demonstra a existência de um debate a respeito da
escravidão em Angola em meados do século XVIII; e por fim, aponta para
a disputa de autoridade entre os representantes coloniais portugueses
em Luanda (o governador) e no interior de Benguela (o capitão). Quando
o governador Francisco de Sousa Coutinho questionou a escravidão de
Juliana, o debate jurídico a respeito da legalidade da escravidão não era
uma novidade. Como foi destacado anteriormente, a polêmica era tão antiga
quanto a expansão portuguesa e era marcada não só pelas experiências
anteriores na Senegâmbia e no Congo, como também pelo debate sobre
a escravidão indígena nas Américas.
O caso de Juliana, capturada nos arredores do presídio de Quilengues
e vendida como escrava no presídio de Caconda, não é único. Só sabemos
seu nome católico, indicando que ela provavelmente foi batizada ou
vivia em contato com a cultura portuguesa. Não sabemos os nomes de
seus pais ou a sua idade, e a documentação existente revela que o tempo
entre sua captura, venda e transporte até Benguela foi relativamente
curto. Em casos semelhantes, quando as autoridades coloniais tinham
que arbitrar sobre liberdades, os escrivães detinham-se em explicar
o processo de captura. No caso de Juliana não há qualquer menção às
razões que levaram à sua escravização. Apesar de desconhecer as cir-
cunstâncias da captura, Sousa Coutinho indignou-se com o fato de ela
continuar a viver como escrava após o seu proprietário – um membro da
força colonial portuguesa – concordar com o seu resgate e lhe oferecer
uma carta de alforria condicional.
Outro caso chamou a atenção das autoridades e foi arbitrado pelo
governador de Benguela. Em 1789, o inquiridor das liberdades descreveu

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 463


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

a captura ilegal de carregadores livres do sobado do Bailundu quando


estavam no porto de Benguela. Ao contrário do caso de Juliana, sabemos
em que circunstâncias esses carregadores foram enganados e capturados
por um sertanejo. Depois da caravana em que trabalhavam chegar ao porto,
o sertanejo Antônio José da Costa resolveu vender o marfim, a cera, os
escravos que trazia do interior e também os carregadores. Talvez o con-
trato de trabalho estabelecido se tivesse consumado sob coerção do soba
do Bailundu, mas usualmente os carregadores, que eram trabalhadores
livres, recebiam pagamento e retornavam em segurança ao planalto de
Benguela. O caso foi levado ao governador, que garantiu aos carregadores
seu regresso a Bailundu.57 O episódio mostra a vulnerabilidade das pessoas
que se encontravam distantes de suas terras, estrangeiros, privados da
proteção de seus governantes e familiares, e por isso vulneráveis a se-
questros, com o risco de serem vendidos a terceiros sem o conhecimento
de seus protetores.
Em 1811, outro caso chamou a atenção das autoridades coloniais
em Luanda. Mais uma vez oficiais de Benguela, ao invés de protegerem
os súditos portugueses, aproveitaram-se de sua vulnerabilidade. No
começo da década de 1810, dona Leonor de Carvalho Fonseca, uma
comerciante mulata residente em Benguela, foi ao sobado do Bailundu
com o objetivo de cobrar as dívidas que o soba e outros comerciantes
do sobado haviam contraído com seu falecido marido. Mulher livre,
dona Leonor viajou na companhia de duas filhas ainda pequenas. A
viagem deveria transcorrer sem maiores consequências, mas ao chegar
a Bailundu dona Leonor foi apanhada e escravizada. No mesmo ano que
declarou vassalagem à Coroa portuguesa, concordando em proteger os
pombeiros e comerciantes itinerantes que viajassem por suas terras,
o soba do Bailundu ordenou a captura de dona Leonor e suas filhas.
A violação do tratado por parte do soba pode ser entendida como um
ato político contra uma comerciante luso-africana e, ao mesmo tempo,
representava uma afronta ao Estado colonial. 58 A decisão de escravizar
uma comerciante deve ser vista como uma disputa política com as forças
coloniais sobre as obrigações da vassalagem, entre elas a proteção de
comerciantes e o pagamento de tributos em escravos. Depois de sua
captura e escravização, dona Leonor e as duas filhas foram vendidas a
um sertanejo que as transportou de volta à cidade de Benguela. Dona
Leonor foi vendida ao capitão do navio Grão Penedo e levada a bordo
para ser enviada ao Rio de Janeiro, depois de uma parada em Luanda.
Provavelmente dona Leonor comercializava diversas mercadorias e

57 AHU, Angola, cx. 74, doc. 15, 21 de abril de 1789.


58 ANA, Cod. 323, fl. 28 v-29, 19 de agosto de 1811; ANA, Cod. 323, fl. 30v-31, 20 de agosto de
1811. Para maiores detalhes, ver Candido, “African Freedom Suits”.

464 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

também escravos. Ironicamente, foi escravizada, e forçada a regressar


a Benguela presa a um libambo numa caravana que trazia escravos do
interior, exatamente como ela e seu marido devem ter feito com seus
cativos outras vezes. 59
Por motivos não esclarecidos, talvez porque estivesse mais interes-
sado em seu lucro pessoal, o governador de Benguela preferiu ignorar
o fato de que dona Leonor falava português, residia em Benguela e era
comerciante de escravos. Ao invés de proteger a viúva do comerciante,
apreendeu suas duas filhas e as manteve em cativeiro, empregando-as
como escravas domésticas em sua residência oficial. Em uma pequena
cidade de menos de três mil moradores é difícil imaginar que o gover-
nador não conhecesse dona Leonor. Quando o Grão Penedo chegou a
Luanda, a história de dona Leonor foi relatada ao então governador de
Angola, José de Oliveira Barbosa. A informação pode ter vindo do padre
que cumpria as funções de inquiridor das liberdades e visitara o navio.
Em sua defesa dona Leonor alegou ser vassala e mulata (indicando ser
descendente de portugueses e protegida pela legislação portuguesa) e
ter sido ilegalmente capturada e vendida no Bailundu. A saga de dona
Leonor chamou a atenção das autoridades de Angola, que intervieram,
libertando-a e ordenando o seu regresso imediato a Benguela e ao
reencontro com suas filhas. Ainda que o caso tivesse sido resolvido em
benefício de dona Leonor, o mesmo revela a expansão da instabilidade,
a força penetrante e ameaçadora da escravidão e o envolvimento ativo
de autoridades coloniais nos processos de escravização. O governador
de Benguela estava mais interessado em ganhos pessoais do que na pro-
teção de súditos e na garantia do respeito às leis da Coroa portuguesa.
Negros livres, especialmente os sertanejos e pombeiros, eram
particularmente vulneráveis ao cruzar fronteiras políticas e atuar em
distintos mercados e estados. O lucro do comércio de escravos provavel-
mente era atrativo o suficiente para justificar os riscos que corriam. Suas
atividades econômicas não os protegiam da escravidão e o transporte de
bens considerados valiosos, como os tecidos, armas, pólvoras e bebidas
alcoólicas, os tornavam presas cobiçadas. Os chamados luso-africanos,
que viviam dentro ou fora de regiões sob controle português, tinham
uma situação bastante precária ao transitar por estados em conflito com
as forças coloniais ou mercados controlados por sobas que resistiam ao
poderio militar e comercial português. Como os casos aqui analisados

59 Sobre o funcionamento das caravanas no interior de Benguela ver Maria Emília Madei-
ra Santos, Nos caminhos de África: serventia e posse, Angola século XIX, Lisboa: Institu-
to de Investigação Científica Tropical, 1998; Linda M. Heywood, “Production, Trade and
Power: The Political Economy of Central Angola, 1850-1930” (Tese de Doutorado, Co-
lumbia University, 1984), pp. 190-208; Candido, “Merchants and the Business of the Sla-
ve Trade”, pp. 1-30.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 465


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

indicam, os comerciantes itinerantes eram frequentemente atacados,


indicando que os sobas viam com desconfiança a presença dos agentes
comercias associados à economia atlântica.
Aos casos dos carregadores de Bailundu e de dona Leonor se juntam
ao episódio de Quitéria, “filha de Antônio Pilarte já falecido e de Maria
Francisca assistente no sertão de Caconda”. 60 Quitéria era originalmente
de Caconda, mas se encontrava em Benguela na década de 1830 como
aprendiz de costureira. Sabemos sobre a captura de Quitéria porque
dona Maria José de Barros, residente livre naquele porto, pediu o auxílio
do governador para punir o culpado pelo sequestro da jovem. Quitéria,
uma “rapariga livre”, morava na casa de dona Maria José de Barros,
de quem era “discípula” porque lhe havia sido entregue “para educar
com o ofício de costureira e outros que lhe são relativos”. Natural de
Benguela, dona Maria José era casada com o capitão do exército de Ben-
guela, José Joaquim Domingues, natural de Braga. 61 Num determinado
dia, sem motivo aparente, este levou a jovem Quitéria até o porto e a
vendeu a quem lhe ofereceu mais por uma suposta escrava que falava
português. Quando dona Maria José percebeu o que havia acontecido,
teve uma discussão com o marido, tendo sido “espancada e maltratada
por motivos casarios, entre os quais o de haver esse antes encaminhado,
vendido e já embarcado a bordo uma rapariga livre de nome Quitéria,
sua discípula”. 62 Depois da agressão, dona Maria José foi rapidamente
ao porto para localizar Quitéria e lá a encontrou dentro de um navio, já
marcada a ferro. Ela resgatou Quitéria do cativeiro oferecendo outro
escravo em seu lugar. O governador de Benguela, Justiniano José dos
Reis, interveio no caso pedindo ao juiz de paz e órfãos que investigasse
o capitão “pelo procedimento de usurpador da liberdade e marcador de
pessoas livres com marca de ferro quente.” 63 O juiz ordenou a prisão
domiciliar do capitão por seis meses, por considerar que o crime não
fora sério, afinal “a dita preta a bordo, foi finalmente por requisições
e queixumes da consorte do réu, outra vez desembarcada para terra,
ficando deste modo sem efeito a venda que dessa tinha feito.” 64 Assim,
como nos casos anteriores, a ação de familiares e conhecidos salvou
Quitéria do embarque e envio ao Brasil, mas não impediu o embarque do
outro cativo posto em seu lugar que não teve ninguém que intercedesse

60 ANA, Cod. 450, fl. 49 v-50, 20 de fevereiro de 1837.


61 O assento do casamento entre dona Mariana José de Barros e o capitão Domingues foi re-
gistrado no Arquivo do Arcebispado de Luanda (AAL), Benguela, Casamentos, 1806-1853,
fl. 36, 7 de junho de 1830.
62 ANA, Cod. 450, fls. 49v-50, 20 de fevereiro de 1837.
63 Idem.
64 ANA, Cod. 509, fl. 211V, 17 de março de 1837.

466 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

por ele. Ou seja, ao validar a venda de uns para a proteção de outros, o


pagamento de resgate reforçava a instituição da escravidão e do tráfico.
Neste episódio a atitude do capitão demonstra mais uma vez que, apesar
das constantes proibições, diversas autoridades coloniais participaram
ativamente do comércio de escravos. 65
Tanto em Benguela como no interior, o uso de violência era comum e
até essencial para manutenção do tráfico de escravos. Lamentavelmente,
a não ser em casos pontuais, a informação hoje disponível é limitada às
fontes coloniais portuguesas e oferecem poucos detalhes sobre os meca-
nismos de escravização em regiões fora do controle português. Pode-se
apenas imaginar que as pressões do mundo atlântico desempenhassem
um papel vital na forma como os sobas e seus auxiliares puniam crimes
e vendiam como escravos aqueles considerados perigosos por questões
políticas ou sociais. A gama de crimes punidos com a escravidão deve ter
aumentado nos sobados do sertão de Benguela para atender à demanda
constante por escravos, assim como aconteceu em outras regiões do
continente africano. 66 Pessoas livres, ainda que vassalas e cristãs, eram
escravizadas na esteira da expansão do comércio transatlântico, como
os casos de Juliana, dona Leonor e suas filhas e Quitéria demonstram.
Pelos exemplos disponíveis, fica claro que o sequestro tornou-se uma
estratégia frequente para escravizar pessoas em situação vulnerável:
era o caso dos comerciantes volantes e das mulheres que se encontravam
distantes da proteção de familiares e figuras politicamente mais podero-
sas. Ainda que os parentes tentassem acudir e resgatar familiares, como
no caso de Juliana e Quitéria, as liberdades não estavam garantidas e
ficavam sujeitas aos desejos e vontades dos proprietários (ou supostos
proprietários). A intervenção da autoridade colonial ou dos familiares
geralmente era tardia e não prevenia o cativeiro; quando muito prevenia
o envio para as Américas, provavelmente para o Brasil. Em casos de
pagamento de resgate, é evidente que a escravidão das ditas “peças da
Índia” não era questionada, pois eram oferecidas como cativos legítimos
em troca de liberdade de pessoas melhor posicionadas. A linha entre a
liberdade e escravidão era tênue para todos, mas os mais distantes do
mundo colonial português, ou seja, aqueles que desconheciam as leis, a
língua portuguesa ou pessoas que os pudessem proteger, estavam em
situação mais vulnerável. 67

65 Mais sobre o assunto em Candido, Fronteras de esclavización, pp. 190-202; Selma Panto-
ja, “Gênero e comércio: as traficantes de escravos na região de Angola”, Travessias, no. 4/5
(2004), pp. 79-97; José C. Curto, “Struggling Against Enslavement, pp. 96–122; Ferreira, “O
Brasil e a arte da guerra em Angola”, pp. 3–23.
66 Candido, Fronteras de esclavización, pp. 175-77; e Lovejoy, Transformations in Slavery,
pp. 66-85.
67 Ver Keila Grinberg, Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 467


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O pagamento do resgate, assim como o uso das autoridades portuguesas


para decidir o destino de africanos capturados, legitimava a instituição
da escravidão. A escravidão foi normatizada através dos códigos, com a
pressuposição de que algumas pessoas eram “legalmente” escravizadas.
A violência inerente à expansão do comércio transatlântico de escravos
transformou as noções de legalidade e teve um efeito devastador na
região de Benguela, reforçando o papel dos colonizadores como árbitros
de conflitos que ocorriam entre segmentos da população local.

Conclusão
A ausência de relatos autobiográficos de escravos oriundos da África
centro-ocidental não significa a impossibilidade de saber como as pessoas
eram escravizadas nessa região. A documentação colonial portuguesa
revela casos de centro-africanos que foram enganados e capturados, às
vezes em localidades próximas a Benguela. Além dos cativos de guerra,
há casos de pessoas sequestradas na cidade de Benguela, como os car-
regadores; em sobados no interior, como dona Leonor e os pombeiros; e
nos presídios portugueses, como Juliana. Em todos eles, a participação
de funcionários coloniais determinou a captura e perda da liberdade.
Esses casos tratam a escravidão como uma experiência individual e
não anônima, como tende a ser o caso dos estudos demográficos. Ainda
que os cativos não tivessem registrado suas memórias, a documentação
colonial revela a vulnerabilidade da população local que, embora livre,
era constantemente ameaçada pela violência do tráfico de escravos.
O tráfico afetou não só aqueles que foram enviados às Américas, mas
também os que ficaram no continente africano sob ameaça do cativeiro.
Guerras, razias e sequestros levaram à instabilidade política, ao colapso,
à emergência de estados e à legitimação da instituição da escravidão.
Já temos estimativas do número de escravos embarcados nos portos
de Loango, Luanda e Benguela, mas ainda não entendemos a complexidade
dos processos pelos quais as pessoas foram escravizadas. Outros estudos
precisam ser feitos para melhor entendermos a dimensão do impacto
social do tráfico de escravos nas sociedades da África centro-ocidental.
Ao generalizar as experiências da captura como “cativos de guerra”,
invisibilizamos todas as demais formas de escravização, negando-lhes
um lugar na história. Para evitar generalizações sobre as populações que

continuação 66

apelação do Rio de Janeiro no século XIX, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; Sid-
ney Chalhoub, A força da escravidão, São Paulo: Companhia das Letras, 2012; e Rebecca
J Scott, “Paper Thin”: Freedom and Re-Enslavement in the Diaspora of the Haitian Revo-
lution”, Law and History Review, vol. 29, no. 4 (2011), pp. 1061–1087; e Rebecca J. Scott e
Jean M. Hébrard, Freedom Papers: An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation, Cam-
bridge: Harvard University Press, 2012.

468 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

chegaram ao Brasil durante o tráfico transatlântico de escravos, é preciso


saber quem eram essas pessoas capturadas, de onde vinham e que língua
falavam. Nem todos os escravos exportados da África centro-ocidental
foram capturados e vendidos da mesma forma e certamente as condições
de sua escravização influenciaram o modo como entendiam a instituição
e as expectativas que vieram a ter nas Américas.
Ainda que a informação disponível seja limitada e pontual, ela
permite várias conclusões: primeiro, a escravização contou com a parti-
cipação direta de autoridades coloniais portuguesas; segundo, ainda que
seja difícil estimar o seu número, algumas das pessoas escravizadas e
provavelmente exportadas a partir de Benguela estavam familiarizadas
com o colonialismo, a legislação e a língua portuguesa; terceiro, com a
expansão do comércio atlântico, o sequestro tornou-se constante no
sertão de Benguela; quarto, sem poupar nem mesmo os vassalos do rei
de Portugal, a escravidão tornou-se difusa e universal na região; e quin-
to, através da expansão da violência e da insegurança, as autoridades
portugueses transformaram-se em árbitros de episódios de captura
ilegal, favorecendo a legitimação da escravidão aos olhos de todos os
envolvidos. Noções como “liberdade original,” “legalmente ou ilegalmente
capturados”, tornaram-se expressões correntes na documentação colo-
nial. O impacto do tráfico transatlântico foi profundo, ameaçando tanto
a população que vivia próxima à costa quanto no interior, participantes
ou não do comércio transatlântico. Ainda que os efeitos sociais sejam
mais difíceis de medir do que os demográficos, os casos narrados revelam
a expansão da violência, a instabilidade política e a força destruidora
das razias e guerras no contexto do tráfico negreiro.

O LIMITE TÊNUE ENTRE LIBERDADE E ESCRAVIDÃO EM BENGUELA 469


DURANTE A ERA DO COMÉRCIO TRANSATLÂNTICO
CAPÍTULO 15

As feitoriAs de UrzelA e o trÁfiCo de esCrAvos:


GeorG tAMs, José ribeiro dos sAntos e os neGÓCios
dA ÁfriCA Centro-oCidentAl nA déCAdA de 1840 1
Maria Cristina Cortez Wissenbach

Na obra Visita às possessões portuguezas na costa occidental


d’África, de 1850, 2 o médico alemão Georg Tams relata as viagens que
realizou às partes meridionais da África, entre os anos de 1841 e 1842,
assistindo a uma expedição comercial arquitetada por um negociante
português estabelecido em Hamburgo. Animado pelo desejo de registrar
as potencialidades do comércio africano, Tams descreveu pormenoriza-
damente a vida econômica e social de cidades como Benguela, Luanda e
Novo Redondo e outros vilarejos luso-africanos, bem como territórios
africanos fora do domínio português, como o reino de Ambriz. Atento às
dinâmicas do tráfico de escravos, nos trajetos pela costa deparou-se com
situações características de um comércio considerado ilegal, marcado por
uma dinâmica imposta pela presença do esquadrão marítimo britânico e
pelas leis europeias antitráfico. Ao longo do livro descreveu as hierarquias
sociais comprometidas com esses negócios – os grandes mercadores
europeus, brasileiros e luso-africanos, as autoridades metropolitanas
e os fiscais alfandegários, chegando aos canoeiros africanos e demais
trabalhadores dos portos; localizou feitorias de várias nacionalidades e
barracões improvisados que se espalhavam por praias ermas e pequenos

1 Estudo realizado com apoio da Fundação Biblioteca Nacional, PNP – Programa Nacional
de Apoio à Pesquisa, da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
e bolsa produtividade em pesquisa do CNPq.
2 Georg Tams, Visita às possessões portuguezas na costa occidental d´Africa, por George
Tams, doutor em medicina, com uma introducção e annotações, em dous volumes. Ver-
tida do inglês por M. G. C. L. Porto: Typographia da Revista, 1850. Esta a edição utilizada
no presente capítulo, a partir do exemplar localizado na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.

471
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ancoradouros em zonas quase despovoadas, “essas bellas solidões” que,


segundo Tams, só eram atravessadas quando os apanhadores de escravos
as atingiam.3
Envolvido num empreendimento cuja natureza não fica essen-
cialmente clara e que teve como principal articulador o Cônsul Geral
de Portugal nas cidades hanseáticas, José Ribeiro dos Santos, Tams
acompanhava uma expedição comercial de “extraordinárias dimensões
emprehendida às custas de um só particular”.4 Composta por seis navios
fundeados nos portos do rio Elba – Hamburgo e Altona – fora preparada
ao longo dos anos de 1840 e 1841 e abundantemente provida de produ-
tos adequados às necessidades dos mercados africanos e ao gosto dos
residentes europeus. Além disso, certa sofisticação marcava a viagem:
entre a tripulação contava com um profissional médico – o próprio Tams
– e um secretário, versado em línguas, que atendiam diretamente às
demandas do cônsul, dois jovens naturalistas encarregados de realizar
investigações de campo, um cozinheiro italiano e uma pequena banda
de músicos, entre eles, “um jovem italiano que tocava admiravelmente
uma harmônica de vidro”. Os navios eram abastecidos por provisões
da melhor qualidade, e dispunham de livros em quantidade suficiente
para uma pequena biblioteca de viagem. Por fim, adicionando um tom
dramático à expedição, depois de uma longa preparação e de cerca de
seis meses de viagem e de negociações em diversos pontos da costa,
em janeiro de 1842, ela foi abalada com a morte de seu chefe em terras
africanas, comunicada com pesar às autoridades metropolitanas. Além
de José Ribeiro dos Santos, os “ares corrompidos” da costa africana já
haviam vitimado, anteriormente, três dos colaboradores europeus: os
dois jovens botânicos e o secretário particular do cônsul.
Dispõe-se de poucas notícias sobre o autor da obra. Médico, esta-
belecido em Hamburgo – Altona, aparece nos inventários de tratados
médicos como autor de uma tese defendida num hospital de Kiel, norte
da Alemanha, em 1838.5 Beatrix Heintze menciona-o em trechos de seu
estudo sobre os viajantes alemães que percorreram as regiões subsaarianas
no século XIX e que produziram material etnográfico.6 Na obra, fornece

3 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 98.


4 Idem, p. 43.
5 Georg Tams, “Conspectus luxationum et fracturarum, quae a mense octobr. a. 1837 ad eu-
den usque a. 1838 in nosocomio region Fredericiano Kiliensi tractatae sunt” (Dissertatio
inauguralis: Kiliae, Mohr, 1839). Além deste, e possivelmente como resultado da viagem a
Angola, seu nome aparece mencionado num arrolamento científico de autoria de Wilhelm
B. R. H. Dunker, Index molluscorum quae in itinere ad Guineam inferiorem collegit Geor-
gis Tams, Cassel: T. Fisher, 1853.
6 Beatrix Heintze, Ethnographic Appropriations: German Exploration and Fieldwork in
West-Central Africa, Lisboa: II CT, Série Separata, 2002, p. 5.

472 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

alguns dados biográficos sobre Tams, destaca o pioneirismo de sua viagem,


ocorrida ainda na primeira metade do século, e o fato dele compor o grupo
mais amplo de médicos que se dirigiam à África a serviço das tripulações
navais: entre outros, Adolph Bastian – o fundador da etnologia alemã;
Brun, Buchner, Falkenstein, Wolf e ele próprio. 7 Numa obra mais recente,
Heintze dá ênfase ao cariz ideológico do relato, transcrevendo preleções
do autor nas quais se evidenciam sua sensibilidade diante da condição
dos escravos e a firme posição abolicionista.8
Apesar das informações escassas sobre o autor, a menção à obra de
Tams aparece de forma recorrente na produção historiográfica que tratou
das realidades africanas em contato com o mundo atlântico do século XIX.
Partes do seu relato foram usadas como fonte histórica nos estudos que
procuraram reconstituir as sociedades da África centro-ocidental, como
também naqueles que focalizaram os movimentos do tráfico de escravos
numa fase significativa de sua história. 9 No primeiro grupo, situam-se
os trabalhos que destacaram a fisionomia diversificada da sociedade
da Angola portuguesa e a importância de uma classe de negociantes
diretamente relacionada tanto ao tráfico de escravos, quanto aos novos
projetos capazes de reanimar o comércio africano; entre outros autores,
Mário António Fernandes de Oliveira, Anne Stamm e, mais recentemente,
Joseph Miller, Jill Dias e Isabel de Castro Henriques.109 No segundo grupo,
mencionam-se os que avaliaram as dinâmicas do comércio de escravos
no período em que o ápice da exportação de cativos para o Brasil e para
Cuba coincidiu com tentativas cada vez maiores de conter o movimento
dos negreiros. Em foco os expressivos anos de 1840, caracterizados pela

7 Heintze, Ethnographic Appropriations, p. 24.


8 Beatrix Heintze, Exploradores alemães em Angola (1611-1954). Apropriações etnográ-
ficas entre comércio de escravos, colonialismo e ciência, tradução do alemão por Rita
Coelho-Brandes e Marina Santos, Berlin, 2010, www.frobenius-institut.de, acesso em
29/08/2010, biografia de Tams pp. 391-394. O texto foi consultado ainda no original, cujo
acesso foi generosamente permitido pela autora, a quem agradeço por isso e também por
seus comentários e correções.
9 Além dos estudos históricos mencionados a seguir, a narrativa de Tams foi fonte de inspi-
ração do romance de José Eduardo Agualusa, Nação crioula: a correspondência secreta de
Fradique Mendes, Rio de Janeiro: Gryphus, 2001.
10 Mário Antônio Fernandes de Oliveira, Alguns aspectos da administração de Angola em
época de reforma (1834-1851), Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, FCSH, 1981; Anne
Stamm, “La societé creole à Saint-Paulo de Loanda dans les années 1838-1848”, Revue
Française d´Histoire d´Outre Mer, vol. LIX, no. 217 (1972), pp. 578-610. A utilização de
Tams aparece também nos estudos de Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capitalism
and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of Wisconsin Press, 1986;
Jill Dias, “Angola”, in Jill Dias e Valentim Alexandre (orgs.), O império africano, 1825-1890
(Lisboa: Editorial Estampa, 1998), pp. 319-378; Isabel de Castro Henriques, Percursos da
modernidade. Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa: IICT
– ICP, 1997.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 473
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

presença do esquadrão britânico vigiando os espaços atlânticos, a elaboração


dos tratados e a implantação das comissões mistas luso-britânicas e dos
tribunais de presas, de um lado, e, de outro, a conivência das autoridades
portuguesas – metropolitanas e provinciais – comprometidas com a so-
brevida de um trato altamente lucrativo. Estudos pioneiros, tais como o
de Mary Karash, Leslie Bethell, Luís Henrique Tavares, 11 são enriquecidos
por pesquisas sobre a realidade histórica centro-africana: entre outros,
Roquinaldo Ferreira, Mariana Cândido, Ana Flávia Cicchelli Pires e, mais
recentemente, João José Reis, Flávio Gomes e Marcus Carvalho. 12 Obras
que confluem entre si no acento dado às figuras de alguns dos grandes
negociantes e, na linha indicada por Pierre Verger, em 1968, no destaque
à astúcia dos negreiros, aos subterfúgios e às estratégias adotadas por
eles na primeira metade do século XIX.13
Nos inícios da década de 1840, o relato de Tams acompanha o exato
roteiro da expedição comercial, descrevendo inicialmente os domínios

11 Situam-se aqui os trabalhos de Mary Karash, “The Brazilian Slavers and the Illegal Sla-
ve Trade, 1836-1851” (Tese de Doutorado, Wisconsin University, 1976); Leslie Bethell, A
abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfi-
co de escravos 1807-1869, Rio de Janeiro: Expressão e Cultura/São Paulo: Edusp, 1976;
Luís Henrique Dias Tavares, Comércio proibido de escravos, São Paulo: Ática, 1988.
12 Roquinaldo Amaral Ferreira, “O significado e os métodos do tráfico ilegal de africanos na
Costa Ocidental da África, 1830-1860”, Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pes-
quisa em História Social, no. 2 (1995); idem, “Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de
escravos e comércio lícito em Angola, 1830-1860” (Dissertação de Mestrado, Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, 1996); idem, “Transforming Atlantic Slaving: Trade, Warfare
and Territorial Control in Angola, 1650-1800” (Tese de Doutorado, University of Califór-
nia, 2003); Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización. Esclavitud, comercio e iden-
tidade en Benguela 1780-1850, México (DF): Centro de Estudios de Asia y Africa, El Cole-
gio de México, 2011; idem, An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and
its Hinterland, Nova York: Cambridge University Press, 2013; Ana Flávia Cicchelli Pires,
“Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que levam a Cabinda” (Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 2006). Por fim, as descrições de Tams serviram de guia
para a reconstituição de parte da trajetória atlântica de Rufino José Maria, o alufá estuda-
do na obra de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. Carvalho, O alufá Ru-
fino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822- c.1853), São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010.
13 Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, Salvador: Corrupio, 2002, particularmente o cap.
XI. Sobre o assunto, ver também Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e expe-
riências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas: Editora da
Unicamp/CECULT, 2000; idem, De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários
do tráfico negreiros de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860), São Paulo: Companhia das
Letras, 2005. Segundo Roquinaldo Ferreira, a razão da permanência do tráfico a partir
de 1830 até 1860 deve-se em grande parte às estratégias dos rápidos deslocamentos e
das mudanças constantes. Ferreira, “Brasil e Angola no tráfico ilegal de escravos”, in Sel-
ma Pantoja e José Flávio Sobra Saraiva (orgs.), Angola e Brasil nas rotas do Atlântico sul
(Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 1999), pp. 143-194. No mesmo sentido, Tavares, Comér-
cio proibido de escravos, p. 64.

474 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

portugueses na ilha da Madeira e no arquipélago de Cabo Verde e, de-


pois, na África centro-ocidental, as cidades luso-africanas de Benguela,
Luanda e Moçamedes, as pequenas localidades de Novo Redondo, Inan-
danha e Quicombo, e, bem mais ao norte, o porto africano de Ambriz,
onde se finda, de certa forma, a viagem de negócios. No percurso da
volta, relata ainda aspectos da ilha de Ano Bom e de localidades nos
Açores, chegando por fim a Altona, em 31 de maio de 1842. Em linhas
gerais, na leitura de seu relato dois aspectos chamaram a atenção: uma
espécie de intimidade, embora mesclada com um tom de aguda crítica
social, com os mais importantes comerciantes que atuavam na África
centro-oeste, e uma reiterada coincidência entre suas descrições e os
pontos de maior frequência do tráfico de escravos desta época. Essas
coincidências fizeram-me considerar a necessidade de uma compreensão
mais geral do contexto no qual a narrativa estava inserida, direcionando
a investigação para a explicitação das circunstâncias relativamente sui
generis do empreendimento relatadas em parte na introdução de Tams, e
as inferências disso na produção da obra. 14 Em especial, indagava, desde
o início da investigação, qual a razão, ou quais as motivações de uma
expedição de tão grandes dimensões, promovida por uma firma comercial
luso-hamburguesa ou luso-dinamarquesa de certo renome, partindo dos
portos hanseáticos com seis navios repletos de mercadorias, em direção
aos mercados da África centro-ocidental?

A obra e suas traduções


Visita às possessões portuguezas teve uma primeira edição publicada
na cidade de Hamburgo, em 1845, três anos após o retorno do médico da
costa da África. 15 Feita em um único volume, sua estrutura era simples:
constava, inicialmente, de uma apresentação realizada pelo conhecido
geógrafo Carl Ritter, figura destacada da Sociedade de Geografia de Ber-
lim e da de Londres; uma introdução de Georg Tams na qual ele discorria
sobre os objetivos do livro e oferecia uma sinopse da expedição Ribeiro
dos Santos, seguindo-se capítulos estruturados a partir de fases, locais e
alguns temas da viagem, perfazendo ao final 235 páginas.16 O preâmbulo
de Carl Ritter deve ser salientado uma vez que, junto a Alexander von
Humboldt, foi um dos responsáveis pela introdução da Geografia Física

14 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, pp. 37-46.


15 Georg Tams, Die Portugiesischen Besitzungen in Süd-West-Afrika.Ein Reisenbericht von
G. Tams. Mit einen Vorwort von C. Ritter, Hambourg: Berlag von Robert Rittler, 1845.
16 Os capítulos são sete: “A partida da Europa”, “Em direção a Santo Antão”; “Benguela”, “Des-
locamento a Novo Redondo”, “Luanda de Angola”, “Ambriz” e “Annabom”, entre os que se-
riam o quinto e o sexto capítulos uma parte referente às riquezas naturais de Angola (co-
locado como item).

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 475
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e Humana nas universidades europeias e investigador que acompanhava


atentamente as viagens realizadas na África.17
No mesmo ano de 1845, a obra teve uma tradução inglesa e se
transformou em dois volumes, com a inclusão de vários adendos feitos
pelo tradutor, Hannibal Evans Lloyd. 18 Tendo como base esta versão au-
mentada, foi vertida para o português e impressa na cidade do Porto, em
1850.19 Surge assim, a partir das traduções, outra obra na qual permanece
o conteúdo central de autoria de Georg Tams, mas complementado com
apêndices e notas de rodapé do tradutor e mantidas na edição portuguesa.
Além do interesse das informações de Tams para o reconhecimento da
África, como destaca Carl Ritter, numa época em que os olhares europeus
dirigiam-se cada vez mais para as remotas regiões e sociedades africanas,
as razões da divulgação do livro podem ser equacionadas a partir do gosto
do público europeu pelas narrativas das grandes viagens, bem como pelas
descrições de povos tidos como exóticos. Mais particularmente, “sobre o
quase desconhecido reino de Ambriz”, na expressão de Ritter, autor de um
grande trabalho sobre as relações entre o meio e as sociedades humanas
e cujo primeiro volume, editado nos anos de 1810, versava exatamente
sobre o continente africano. 20 “Nada temos de recente data que se possa

17 Tams, Visita às possessões portuguezas, “Preâmbulo do Professor Ritter”, vol. I, pp. 29-31.
Ritter manteve uma relação muito próxima das viagens empreendidas nos anos de 1850
por Heinrich Barth, financiadas pelo governo britânico. Sobre o tema, ver Cornélia Essner,
“Some Aspects of German Travellers’Accounts from the Second Half of the 19th Century”,
in Beatrix Heintze e A. Jones (orgs.), “European Sources for Sub-Saharan Africa before
1900: Use and Abuse”, Paideuma – Mitteilungen zur Kulturkunde, no. 33 (1987), p. 197. O
mesmo aspecto é salientado na coletânea sobre o viajante: Mamadou Diawara, P. F. de Mo-
raes Farias e Gerd Spittler (orgs.), Heinrich Barth et l’Afrique (Köln: Rüdiger Köppe Verlag
Köln, 2006).
18 Georg Tams, Visit to the Portuguese Possessions in South-Western Africa, by [...]. Tr. from
the German, with an introduction and annotations by Hannibal Evans Lloyd and Carl Rit-
ter, 2 vols, London: T. C. Newby, 1845. Ao final de cada um dos volumes, na versão ingle-
sa, seguem-se anexos ou apêndices que chamam a atenção sobre a riqueza das possessões
portuguesas na África (a exploração do vinho de palma e do anil), a importância de se re-
cuperar parte de sua história (Apêndices A e B, informações sobre Benguela e os Jagas), de
fornecer dados sobre o tráfico de escravos (Apêndice D, “Mortandade occasionada pela de-
tensão [sic] dos negros na costa do mar”); de combater a missionação católica (Apêndice G,
a ineficácia da ação missionária de jesuítas). Ao final do segundo volume, foi acrescentada
ainda uma descrição da Ilha do Príncipe, feita por um capitão da esquadra britânica, numa
viagem de 1834.
19 Tams, Visita às possessões portuguezas. A obra traduzida, tal como a edição inglesa, passa
a ser composta por dois volumes: o primeiro, com 251 páginas, e o segundo, 210, totalizan-
do dez capítulos.
20 Carl Ritter, Geographie Génerale Comparée ou Étude de la Terre dans les rapports avec la
nature et avec l’Histoire de l’Homme, Bruxelas: Société Typographique Belge, 1838 (obra
em 19 volumes, iniciada em 1817). “Nous avons commencé cette publication par l’Afri-
que” – segundo ele a escolha da África deu-se por várias razões: lá, onde é mais translúcida
a verificação das relações homem-meio; “terra ardente”, onde são menos perceptíveis os

476 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

comparar a isso”, escrevia ele no preâmbulo de Visita às possessões, ao


sublinhar a importância do livro. 21 Junto a isso, acrescente-se o interesse
pelos temas imbricados às causas abolicionistas, em especial na Grã-Bre-
tanha, uma vez que a narrativa dava provas da concretude daquilo que
se argumentava na Europa, como insistia a introdução, feita por Evans
Lloyd, para a edição em inglês. 22
Entre os objetivos declarados por Tams, em sua introdução, arro-
lavam-se desde a luta contra o tráfico de homens e a propagação do
movimento abolicionista, até o destaque às riquezas naturais de uma
região potencialmente muito fértil, mas inadequadamente explorada
pelos portugueses.23 Aspectos que confluíam e eram repetidamente pon-
tuados pelo autor em extensas passagens ao longo do livro e que foram
ampliados por Hannibal Lloyd. De fato, a simples leitura dos títulos dos
apêndices adicionados pelo tradutor já deixa clara a intenção de usar
o texto como motivação para a propaganda britânica. A insistência na
potencialidade de uma natureza pouco explorada e o comprometimento
dos portugueses com o comércio de escravos, “sua indolência e ignorân-
cia”, foram argumentos de Tams reaproveitados pelo inglês, sobretudo
quando tentava justificar a proposta de que fosse considerada a pos-
sibilidade da cessão ou venda, por Portugal, “daquele país” africano à
Grã-Bretanha: “Com tudo, nas suas actuaes circunstancias, melhor lhe
seria ceder ou vender à Grã-Bretanha todo aquelle paíz, reservando
para si certas e determinadas vantagens commerciaes, as quaes em
breve sobrepujariam a todas as que elle presentemente colhe de tão,
comparativamente, inutil possessão”. 24

continuação 20

movimentos das diferentes estações e, por fim, “sem o contraste desta marcha ascenden-
te e descendente do passado e do futuro”. Na obra de Ritter, enquanto para a África oci-
dental as referências foram abundantes (informações providas pelas narrativas dos via-
jantes Labat, Dalzel, Mungo Park, Winterbotton, Beaver, Clarkson, Wilberforce, Isert, Bo-
wdich etc.), para a África centro-ocidental, de presença portuguesa, o autor usa de fontes
mais antigas: crônicas do XVI e do XVII, João de Barros, Cavazzi da Montecuccolo, Andrew
Battel, João dos Santos; para o XIX, contava tão somente com a carta geográfica de D’An-
ville e os relatos da viagem do Capitão Tuckey à bacia do Zaire, financiada pelos britâni-
cos: J. K. Tuckey, Narration of an Expedition to Explore the River Zaire,1818. Portanto, é
de se supor que seriam bem vindas as informações em detalhes de Tams sobre a Angola
portuguesa e sobre o reino de Ambriz.
21 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 30.
22 Idem, pp. 13- 28.
23 Ao longo do texto, Tams cita com desenvoltura obras mais antigas, como as do missioná-
rio Cannecattim, Cavazzi da Montecuccolo, Andrew Battel, bem como dos viajantes dos
séculos XVIII e XIX, Cook, Forbes, Buxton, Owen, Tuckey, entre outros. Além disso, tem
em mãos as memórias de João da Silva Feijó, feitas para a Academia de Ciências de Lis-
boa, sobre o cultivo de anil e a recolha da urzela no arquipélago do Cabo Verde, do século
XVIII.
24 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 27.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 477
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

As rivalidades entre as duas nações europeias e a cobiça dos britâ-


nicos pelas posses portuguesas na África encontram-se inscritas na obra,
insinuando-se de forma velada na narrativa de Tams e de maneira muito
clara nas partes incluídas pelo tradutor inglês.25 Em outras palavras, a
convicção antitráfico do médico alemão, a denúncia que faz à incúria das
autoridades lusitanas e à dominância da chamada “ordem dos negreiros”
nas sociedades luso-africanas convertem-se em argumentos usados pelo
tradutor para divulgar o movimento abolicionista e para alimentar as
intenções expansionistas britânicas na África. A inclusão de uma descri-
ção sobre a Ilha do Príncipe, na parte final do segundo volume, feita em
1834 por um capitão da esquadra britânica, reafirma a fórmula da venda
de algumas das posses insulares como maneira de amortizar as enormes
dívidas que Portugal mantinha com seus credores britânicos. 26
Diante dessa situação, restava ao tradutor português – M. G. C.
L. – ironizar esse “philantrópico conselho inglez”, amenizar os ataques
e direcionar a leitura da obra para a tomada de consciência dos portu-
gueses sobre a enorme riqueza que tinham em mãos e o imperativo de
sua revalorização. Segundo ele, as informações contidas na obra de Tams
permitiam reconsiderar a imagem que se tinha das partes africanas,
corrigindo a ideia de que eram, simplesmente,
terras destinadas quase exclusivamente para desterro de
criminozos e malfeitores, medonhos paizes, cujas inóspitas
praias se não poderiam impunemente abordar; – que os
homens arrastariam alli uma penosa e afflictiva existência,
privados dos necessários recursos para a sustentação da
vida, que o solo se negaria a presta-lhes [...] Quanto porém
eram errados os nossos juízos!27

Nesse sentido, se a divulgação do livro na Grã-Bretanha se coadunava


com as pretensões deste país, em Portugal, mais especificamente no Porto,

25 Essas rivalidades já existiam no continente africano, sendo o ano de 1838 o início da ques-
tão Bolama, em que ambas as nações discutiam os direitos à posse da ilha, localizada na
costa de Serra Leoa. Sobre o assunto, ver René Pélissier, História da Guiné – portugueses
e africanos na Senegâmbia (1841-1936), Lisboa: Ed. Estampa, 1989, p. 81.
26 No anexo final, “Descripção da Ilha do Príncipe, pelo Capitão ‘Alexander’ do exercito inglez,
continuação das suas viagens em 1834" (vol. II, pp. 183-208), encontram-se, nesse sentido,
trechos significativos: “Eu invejei aos portuguezes a posse d’uma ilha tão fértil, onde era evi-
dente, que no meio de tão pitoresco exterior produziram os ricos thesouros da terra tais
como – grãos, legumes e fructas” (p. 193); mais adiante, a referência ao desejo expresso de
seus habitantes de “ver o dia em que nos achemos dominados pela bandeira ingleza” (p. 201);
e sobre as circunstâncias da dívida e da venda: “Ella [a Grã-Bretanha] mesma reconhece lhe
será difícil paga-la actualmente. Depois da contenda entre os irmãos (o senhor) d. Pedro, e (o
senhor) d. Miguel, concordou-se que Portugal poderia offerecer aos inglezes em pagamento
della esta ilha do príncipe, a de S. Thomé e a d’Anno Bom” (p. 202).
27 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, prefácio do tradutor, p. 7.

478 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

era a maneira de enaltecer os feitos de um prestigioso filho da terra,


Ribeiro dos Santos, tragicamente desaparecido, bem como de estimular os
planos de setores interessados em renovar a política colonial, recuperar o
comércio africano e estender suas fronteiras, intentos caros a expoentes
da Corte, entre outros aos Viscondes de Sá da Bandeira e ao de Santarém.

De Hamburgo a Benguela: a expedição mercantil e o


conselheiro José Ribeiro dos Santos
A par dos objetivos ditados pelo autor e por aqueles que investiram
na divulgação da Visita às possessões portuguezas, uma investigação
mais atenta sobre as circunstâncias da expedição à qual se encontrava
imbricado o relato de Georg Tams, revelou uma intenção a mais que
permaneceu quase sub-reptícia, dando um sentido adicional ao texto:
uma intransigente defesa do caráter da empresa e o de seu mandatário,
particularmente o não envolvimento de ambos – empreendimento e
proprietário – com o comércio de escravos. De fato, atacado pelas febres
mortíferas do litoral africano, em seu leito de morte na cidade de Ben-
guela, em janeiro de 1842,28 José Ribeiro dos Santos havia recomendado
aos seus amigos e mais leais servidores o compromisso de que limpassem
seu nome das acusações que vinha sofrendo, sobretudo na imprensa in-
glesa. Embora Tams se refira ligeiramente a isso,29 num artigo intitulado
Another Step in the Portuguese Slave-Trade, publicado num periódico
londrino logo após a saída dos navios do Elba, José Ribeiro dos Santos era
tido como um dos maiores empresários do comércio da escravatura, e a
viagem destinada a realizar uma transação numa escala nunca vista até
então. Informava o vice-cônsul em Hamburgo ao Ministério dos Negócios
de Exterior, de Lisboa:
É meu dever informar que uma folha de Londres, The
London Journal of Commerce, inseriu um longo e violento
artigo contra o Snr. Conselheiro Santos (cuja função exerço)
por ocasião da Expedição que com tão louváveis fins acaba
de empreender: incluo copia do furibundo aranzel. A Casa

28 Arquivo Histórico Diplomático do Ministério de Negócios Exteriores (doravante AHD-M-


NE), Lisboa, Consulado em Hamburgo, Caixa 487, 1833-1859, Pasta 1842, Ofício no. 14, 17
de maio de 1842, parágrafo 4º, do cônsul interino André van Randvyk Schut: “Tenho o do-
loroso dever de levar ao conhecimento de V. Exa. [o ministro dos Negócios Exteriores] que
por notícias vindas de Angola pela escuna Sultana, capitão Faria, chegada na Inglaterra,
consta que o Ilmo. Snr. Conselheiro José Ribeiro dos Santos, Cônsul Geral de Portugal n’es-
te porto faleceu n’aquella cidade no dia 15 de fevereiro, do corrente ano em consequência
da febre do pais. Esta notícia ainda que indireta não deixa contudo duvida alguma de ser
verdadeira”. De fato, a morte ocorreu em 15 de janeiro, conforme corrigiria mais tarde o
mesmo informante.
29 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 44.

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NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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Santos & Monteiro escreveu imediatamente a todos os


principais jornais d’esta cidade uma carta, anunciando que
em nome de seu chefe ausente expediu logo as suas ordens
a Londres “para que o author do artigo calumioso fosse
pronta e vigorosamente perseguido perante os tribunais”.30

Por conta das questões enunciadas, a natureza da expedição passou


a prevalecer, no entendimento da obra, como aspecto capaz de esclarecer
as razões do relato e elucidar a enorme familiaridade de Georg Tams com
situações características desse tipo de negócio na África centro-ocidental
da época. O pressuposto adotado seria de que, ao invés de um uso esporá-
dico e fragmentado das observações de um “viajante”, a qualidade da obra
como fonte histórica poderia ser reavaliada num esforço metodológico
pelo qual se buscaria o entendimento contextualizado da viagem e de
seus participantes, e as intenções que a presidiram.
Na direção proposta, a primeira figura que se destacou foi certamente
José Ribeiro dos Santos que, à época do empreendimento, nos inícios da
década de 1840, era Cônsul Geral de Portugal nos reinos da Dinamarca e
de Hanover, nos Grãos-Ducados de Oldemburgo, Mecklenburgo e Schwe-
rin e nas cidades livres de Hamburgo, Lübeck e Bremen, pertencentes à
secular Liga Hanseática.31 Além de representar os interesses comerciais e
políticos portugueses nesses portos, as atribuições consulares de Ribeiro
dos Santos nunca se desvincularam de sua atuação mercantil, à testa de
uma das mais importantes firmas de Altona e de Hamburgo, Santos &
Monteiro, em sociedade com José Gomes Monteiro.32
A trajetória de vida de Ribeiro dos Santos é igualmente reveladora
e similar a outras de tantos jovens portugueses, relativamente pobres,
que migraram e circularam por diversos pontos do Atlântico em busca de
fortuna. Nascido em 1798 em Vila Nova de Gaia, subúrbio da cidade do

30 AHD-MNE, Consulado em Hamburgo, Caixa 487, 1833-1859, Pasta 1841, Ofício no. 10,
de agosto de 1841, parágrafo 4º, do cônsul interino André van Randvyk Schut. O artigo
transcrito em sua correspondência foi publicado no The London Journal of Commerce, 7
de agosto de 1841, e contém trechos significativos sobre a percepção que os ingleses ti-
nham do cônsul e de seus negócios, considerados altamente escusos.
31 Referências biográficas em Inocêncio Francisco da Silva, Diccionário bibliográphico por-
tuguez julgado pela imprensa contemporânea e estrangeira, Lisboa: Imprensa Nacional,
1860, Tomo V, p. 110, e no obituário publicado em Lisboa de José Feliciano de Castilho,
“Notícia necrológica”, Diário de Governo, no. 128, 2 de junho de 1842, p. 591. Com as indi-
cações de ambos, fases da vida do biografado puderam ser acompanhadas vis-à-vis a con-
sulta da documentação manuscrita, localizada em diferentes arquivos de Lisboa.
32 Castilho, “Notícia necrológica”, p. 591: “Mas deveras se applicou então ao commercio, e
este homem, que havia começado sem fundos, sem proteções, sem credito, sem corres-
pondentes, viu a poder de honra, intelligencia e actividade, prosperar a sua casa a ponto
que, em despeito das mil difficuldades locaes veio a ser a segunda ou terceira em respeito
e vulto, e talvez a primeira em tráfego, na commercialissima cidade de Altona, cujas por-
tas tocam com as de Hamburgo”.

480 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Porto, principal base mercantil do norte português, era oriundo de uma


família de comerciantes remediados e veio ainda jovem para o nordeste
brasileiro como caixeiro, estabelecendo-se em Recife, em 1818.33 No Brasil,
criou um vínculo com a comunidade de negociantes portugueses e seus
representantes, que se manteria até o final de sua vida. Paralelamente
a isso, trilhou os caminhos da carreira militar, aparecendo na documen-
tação como Tenente da Cavalaria de Milícias de Pernambuco e Ajudante
do Escrivão da Intendência da Marinha, na Bahia. Nas duas províncias,
participou das lutas da Independência ao lado das tropas portuguesas
(Expedição Madeira), exilando-se e licenciando-se, após isso, nos Açores.34
Entre 1826 e 1828, manteve-se ligado à Coroa brasileira, uma vez que se
tornou Cônsul Geral do Brasil na Dinamarca. Com residência em Altona,
Dinamarca, porto irmão de Hamburgo, no rio Elba, foi destituído do cargo
em 1828, em razão de sua nacionalidade portuguesa.
A partir de 1836, foi escolhido como representante consular de Por-
tugal em vários reinos e repúblicas da região. Ostentando já os títulos de
Comendador da Ordem de Cristo,35 Cavaleiro da Ordem de Nossa Senhora
da Conceição da Vila de Viçosa36 e, posteriormente, o de Cavaleiro da Casa
Real, obtido em 1841, 37 foi sucessivamente credenciado por D. Maria II,
rainha de Portugal, para os diferentes postos diplomáticos na região. 38
Figura importante no exterior pelo acúmulo de funções, pela proximidade
com as autoridades metropolitanas, inclusive com a rainha, autor de um
tratado que sistematizava os deveres dos agentes consulares de Portugal
no exterior, 39 durante o tempo de exercício diplomático manteve seus

33 Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), ACL, CU, 015, Caixa 279, Documento
18860, “Requerimento de José Ribeiro dos Santos ao rei (d. João VI), pedindo passaporte
para fazer viagem a Pernambuco, datado de 18 de janeiro de 1818.
34 Entre dezembro de 1823 e agosto de 1826, são numerosos os requerimentos dirigidos às
autoridades metropolitanas por José Ribeiro dos Santos, Tenente da Cavalaria e Ajudan-
te do Escrivão da Intendência da Marinha; com o ordenado de duzentos mil réis mês. Nes-
ses ofícios, ora justificava seu afastamento do Brasil, ora solicitava licença médica (com
remuneração) nos Açores, em São Miguel e na ilha de Fayal, para onde se dirigiu, em exí-
lio, com a família. AHU, ACL, CU, cxs. 288, 278, 46 (entre outras). Os requerimentos param
em 1826, quando Ribeiro dos Santos aparece já como cônsul do Brasil na Dinamarca, pos-
to que ocuparia até 1828.
35 Instituto dos Arquivos Nacionais, Torre do Tombo, doravante IAN-TT, Livro Geral das
Mercês, VI, p. 214; Decreto de 30 de novembro de 1836, de nomeação “em razão dos socor-
ros pecuniários que prestou por ocasião do cerco da cidade do Porto”.
36 IAN-TT, Livro Geral das Mercês, VIII, p. 64: nomeado cavaleiro desta ordem em razão “do
desinteresse com que presta a servir gratuitamente o lugar de Cônsul Geral”.
37 IAN-TT, Livro Geral das Mercês, XIII, 2 junho de 1841, Alvará como Fidalgo Cavaleiro da
Casa Real.
38 IAN-TT, Livro Índice das Mercês, D. Maria II, v. A-J, nomeações sucessivas.
39 José Ribeiro dos Santos e José Feliciano de Castilho Barreto, Traité du Consulat, par le
commandeur J. R. S., Consul-Générale et docteur J. F. C. B. Vice-Consul, Hamburgo:

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 481
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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negócios, licenciando-se, sobretudo nos meses de inverno e, enquanto os


portos do norte da Europa permaneciam fechados, viajava em direção à
Inglaterra, às Américas e às ilhas do Atlântico, possivelmente tratando
de assuntos particulares.
Sediada em Altona, além dos negócios com Porto e com Lisboa, a
rede mercantil da firma Santos & Monteiro ramificava-se em direção aos
interesses que mantinha em Pernambuco, nas bases estabelecidas nos
Açores, nas propriedades localizadas no Cabo Verde,40 em seus vínculos
com a Inglaterra e, por fim, na África central, para onde o mercador
mandou previamente agentes com o intuito de sondar possibilidades
– alguns deles nomeados no relato de Tams. Num sentido mais geral, a
amplitude de atuação indica a participação de navios hamburgueses e
dinamarqueses, ou melhor, luso-hamburgo-dinamarqueses no comércio
atlântico da época, em transações dirigidas a vários mercados.
Nas embarcações saídas de Hamburgo, a 28 de julho de 1841, seguiam
fazendas “adequadas”, no dizer de Tams, “às preferências das tribos de negros
e objetos apropriados aos gostos dos residentes europeus”,41 vindas possivel-
mente dos estados alemães, da Inglaterra e de Portugal em direção à África,
em busca de produtos como marfim, goma, óleos, urzela e, talvez, escravos.
Era longa a lista feita por ele dos produtos a bordo das naus Vasco da Gama,
Camões, Sultana, Georgiana, Mary Hedwiges e Esperanza: pólvora e armas
de todas as qualidades, baionetas, sabres e adagas; vestimentas, camisas,
saias, cobertores, sapatos e chapéus de feltro; bebidas, vinhos portugueses,
carregados na cidade do Porto, tabaco, cigarros, “objetos de louça branca da
China, muito estimados e tidos em grande apreço pelos negros d’Ambriz, e
do interior”; harmônicas e “birimbaos”; “ornatos de todas as diversidades”,
contas brancas ou azuis, de porcelana da China também estimadas pelos
negros.42 Entre as fazendas de algodão e chita leve, a preferência pelas
azuis, “a cor mais predominante entre os negros”. Tecidos talvez similares
àqueles que eram fabricados na Holanda, em Manchester e em Liverpool,
destinados aos mercados da África e da Melanésia: “fortemente engomados,

continuação 39

Imprimerie de Langhoff, 1839, 2 vols. Obra dedicada por Ribeiro dos Santos “a mon ami le
Vicomte Sá da Bandeira”. Entre as atribuições estipuladas aos cônsules, em suas funções
administrativas e judiciárias, colocava-se a oposição (“com todas as suas forças”) ao tráfi-
co de negros sob bandeira portuguesa. Função explicitada na nota 47, vol. II, pp. 328-329.
40 João Pedro Marques assinala a importância da casa mercantil de Ribeiro dos Santos na len-
ta retomada dos negócios africanos dirigidos a Lisboa; assinala igualmente, as ambições
“de índole agrícola” da casa e, nesse sentido, a concessão de terrenos baldios em Cabo Ver-
de para a criação de estabelecimentos rurais que, segundo Tams, estariam em abandono na
ocasião da viagem. João Pedro Marques, Os sons do silêncio: o Portugal de Oitocentos e a
abolição do tráfico de escravos, Lisboa: ICS, Universidade de Lisboa, 1999, p.416-417.
41 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 41.
42 Idem, p. 41.

482 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

fraca qualidade, predominantemente azuis, por vezes azuis e vermelhos”,


chamados por vezes de “teias de aranhas” e feitos à imitação dos indianos,
abundantemente enviados às colônias portuguesas.43
“A mercadoria escrava puxava manufaturados da Inglaterra para o
Brasil, Cuba, Porto Rico, Honduras, Trinidad e para a própria costa ocidental
da África ocidental”,44 apontou Luís Henrique Dias Tavares, revelando a com-
plexidade e a diversidade do comércio africano, em sua feição oitocentista:
Foi então que o comércio proibido de escravos africanos
se encontrou como comércio legal de produtos africanos.
Navegou oleosamente para o comércio do azeite de palma,
resinas, madeiras de lei, ouro em pó, marfim, café, cacau,
algodão, amendoim e outros produtos da lavoura tropical
que os países capitalistas terminaram aprendendo que
também podiam ser produzidos – e muito bem! – na África.45

Em troca dos produtos em demanda pelas indústrias europeias, as


importações que alimentavam o comércio africano vinham, a partir do final
do século XVIII, não só da Grã-Bretanha – principal potência industrial da
época –, dos portos Liverpool e de Bristol, como também de outros portos
que passavam a figurar com intensidade na dinâmica transoceânica: entre
outros, Bordeaux, Marselha e Hamburgo, por onde, segundo Aida Freu-
denthal, transitava a quase totalidade do comércio europeu em direção à
África.46 Este último, Hamburgo, localizado no rio Elba, constituía a saída
preferencial dos artigos vindos dos pequenos estados alemães que não
dispunham de portos de mar. Porto livre até a década de 1880, quando só
então adere ao Zollverein, república governada por um senado e cidade-
membro da secular liga hanseática, sua importância cresceu a partir das
primeiras décadas do século XIX, em razão do advento da navegação a
vapor, junto a Bremen e a Marselha, na França, do desenvolvimento das
indústrias manufatureiras e do comércio de grãos nos estados alemães.
Além disso, em Hamburgo e nas demais cidades do Elba e do Báltico, as
décadas de 1830 e 1840 foram marcadas pela intenção de aumentar as

43 Maria Emília Madeira Santos, A carreira da Índia e o comércio intercontinental de manu-


faturas, Atas do VIII Seminário Internacional de História Indo-portuguesa, Angra do He-
roísmo, 1998, pp. 236-237. Maria Emília comenta a importação de tecidos indianos e uma
longa série de outros tidos como preferidos dos africanos: baiés, borralhos, chitas, choro-
mandeis, garrazes, zuarte; este último tecido fino já se imitava em Lisboa.
44 Numa outra situação documental, é possível ver o rol de produtos estruturado a partir de
relatos de viagens dos séculos XVII ao XIX, associados ao comércio de escravos: Stanley B.
Alpern, “What Africans Got for their Slaves: A Master List of European Trade Goods”, His-
tory in Africa, no. 22 (1995), pp. 5-43.
45 Tavares, Comércio proibido, pp. 34-5.
46 Aida Freudenthal, Arimos e fazendas – a transição agrária em Angola, Luanda: Edições
Chá de Caxinde, 2005, p. 52.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 483
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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atividades mercantis com Portugal, atingindo, a partir daí, suas áreas de


conquista na África – política está claramente defendida pelos cônsules,
entre eles, Ribeiro dos Santos.47
Assim, voltando à figura de nosso comendador-cônsul-mercador,
sediado em Hamburgo-Altona e com interesses na costa africana, mesmo
que se considerem tendenciosas e exageradas as denúncias da imprensa
inglesa feitas a ele e a seus empreendimentos, possivelmente arquiteta-
das para dirimir as iniciativas portuguesas, é quase impossível deixar de
pensar sobre os nexos entre os dois tipos de comércio – de escravos e de
produtos considerados legítimos, na época – que se imbricavam nos portos
e nos mercados da África ocidental. A compatibilidade entre esses ramos
de negócios vem sendo progressivamente apontada pela historiografia
que tratou da primeira metade do século XIX, seja focalizando a movi-
mentação do Golfo da Guiné, seja acompanhando a ida e a vinda dos navios
ao sul do Equador.48 Associada a isso, ganha força a crítica ao conceito
de transição e, numa mesma direção, ao uso costumeiro e indistinto dos
qualificativos legítimo e ilegítimo; no limite porque, como bem aponta
Alfredo Margarido, “o trato de homens é também e sempre um trato de
mercadorias”; 49 ou, numa outra direção, como observa Jean-Luc Vellut
sobre a compartimentação dos ramos do comércio africano,
A definição de comercio legítimo para designar todas as

47 Para a história dos portos livres do norte europeu: Marcos Viera da Silva, Portos fran-
cos (contendo os planos dos portos-francos de Hamburgo, Bremem, Copenhagem, Geno-
va e Trieste), Lisboa: Livraria Ferin, 1906; J. P. T. Bury (org.), The Zenith of European Po-
wer, 1830-1870, Cambridge: Cambridge University Press, 1960. Sobre as relações entre
a cidade livre de Hamburgo e o império luso-brasileiro: Adelir Weber, “Relações comer-
ciais e acumulação mercantil: Portugal, Hamburgo e Brasil entre a colônia e a nação” (Tese
de Doutorado, Universidade Estadual de São Paulo, 2008). A importância do comércio de
Hamburgo com Portugal aparece expressa na correspondência diplomática gerada tam-
bém em Portugal: AHD-MNE, Lisboa, caixa Consulado das Cidades Hanseáticas em Portu-
gal, ofício do Vice-Cônsul C. D. Lindenberg, 14 de janeiro de 1835, p. 4, entre outros.
48 Robin Law, “The Transition from the Slave Trade to the Legitimate Commerce”, Studies
in the World History of Slavery, Abolition and Emancipation, vol. 1, no. 1 (1996), pp. 1-12,
disponível em http:www2.h-net.msu.edu/~slavery/essays/esy9601law.html, último aces-
so em maio de 2010; Paul Lovejoy, A escravidão na África: uma história de suas transfor-
mações, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; David Northrup, “The Compatibility
of the Slave Trade and Palm Oil Trade in the Bight of Biafra”, Journal of African History,
vol. 17, no. 3 (1976), pp. 353-364; Elisée Soumonni, “A compatibilidade entre o tráfico de
escravos e o comércio de dendê no Daomé, 1818-1858”, Daomé e o mundo atlântico, Rio de
Janeiro/Amsterdã: CEAA; SEPHIS, 2001, pp. 61-79. Entre os estudiosos angolistas, apon-
taram para a questão, além de Margarido e Vellut, abaixo citados, Isabel de Castro Henri-
ques e Jill Dias, nos trabalhos referidos, bem como Maria Emília Madeira Santos, “Abolição
do tráfico de escravos e reconversão da economia de Angola – um confronto participado
por brasileiros”, Studia, no. 52 (1994), pp. 221-224.
49 Alfredo Margarido, “Les porteurs: forme de domination et agents de changement en An-
gola (XVII-XIXe siècles)”, Revue Française de Histoire d´Outre-mer, vol. LXV, no. 240
(1978), p. 377.

484 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

transações da economia do trato excluídas do comercio


de homens não é menos equivocada. Ela nos traz antes de
tudo a visão mesma que os comerciantes, os militares, os
religiosos de origem européia e norte-americana deram ao
seu papel, destinada, sobretudo à opinião pública. Quanto
a elucidar o funcionamento da economia internacional
da África, a distinção legítimo e ilegítimo interpõe ao
contrário uma via que dissimula o funcionamento real
das trocas. Com efeito, na prática desde seus primórdios
no século XVI até pelo menos o fim do XIX, o comércio
internacional dos grandes produtos africanos e dos bens
de importação permanece inseparável da escravidão.50

De outra parte, a historiografia vem enfatizando também as novas


feições que o comércio de escravos passa a apresentar a partir da primeira
metade do século XIX e às quais muitos autores atribuem uma espécie de
modernização: a renovação dos transportes marítimos com a introdução dos
navios a vapor, alguns deles, tumbeiros capazes de transportar de 1.000 a
1.500 cativos, e, principalmente, a presença de grandes casas comerciais,
firmas de várias nacionalidades, mas notadamente norte-americanas,
inglesas, cubanas e brasileiras, com interesses nos negócios do tráfico.
Suas sedes espalhavam-se pelas capitais americanas (Havana, Recife,
Rio de Janeiro), de um lado e, de outro, em feitorias, barracões e agentes
em vários pontos da costa africana, sobretudo nas partes ao norte de
Luanda, preferidas na época em razão do livre comércio que ali vigorava:
Mayombe, Loango, Cabinda e Ambriz, e outros portos localizados na em-
bocadura do rio Zaire / Congo.51 Nesse contexto histórico, as informações
de Tams revestem-se de renovada importância, uma vez que testemunham
a participação de firmas luso-hamburguesas nos trâmites atlânticos, a
presença de agentes e feitorias da casa Santos & Monteiro em partes

50 ean-Luc Vellut, “L´économie internationnale des côtes de Guinée Inférieur au XIXème


siècle”, in Maria Emília Madeira Santos (org.), Atas da I Reunião Internacional de História
de África (Lisboa: IICT, 1989), p. 136.
51 Karash, “The Brazilian Slavers”; Robert Edgar Conrad, Tumbeiros – o tráfico de escravos
para o Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1985; David Eltis, Economic Growth and the Ending
of the Transatlantic Slave Trade, Nova York: Oxford University Press, 1987; Eder da Sil-
va Ribeiro, “Rediscutindo a presença inglesa no Império brasileiro: o caso da firma inglesa
Carruthers & Co, 1822-1854”, Comunicação apresentada no XII Encontro Regional de His-
tória, ANPUH, Rio de Janeiro, http://www.rj.anpuh.org/Anais/2006/ic/Eder%20da%20
Silva%20Ribeiro.pdf;,acessado em maio 2009; Ana Flávia C. Pires, “Tráfico ilegal de escra-
vos”. Também sobre a presença de companhias por ações nos trâmites do comércio atlânti-
cos dessa época e o processo de concentração de investimentos nos empreendimentos ne-
greiros: João Pedro Marques, “Tráfico e supressão no século XIX: o caso do brigue Veloz”,
Africana Studia, no. 5 (2002), pp. 155-179. Especificamente sobre Ambriz e os portos afri-
canos na embocadura do rio Congo: Maria Cristina Cortez Wissenbach, “Dinâmicas histó-
ricas de um porto centro-africano: Ambriz e o Baixo Congo nos finais do tráfico atlântico
de escravos”, Revista de História, no. 172 (2015), pp. 163-195.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 485
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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do litoral centro-africano, e suas bases em Cabo Verde, Ambriz, Luanda


e Benguela, e, nessas localidades, os negócios com os comerciantes de
escravos estabelecidos na Angola portuguesa e nos territórios adjacentes.

“A ordem dos negreiros”: os mercadores de escravos no


relato de Tams e nas relações com Ribeiro dos Santos
Embora sempre muito preocupado em não deixar transparecer intimidade,
os negreiros aparecem de forma recorrentes e nominalmente no texto de Tams
e muito próximos às atuações de Ribeiro dos Santos: em especial, mercadores
bastante conhecidos como Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo, Ana Francisca
Ferreira Ubertaly, Ana Joaquina dos Santos Silva e, talvez, Manoel ou Joaquim
Pinto da Fonseca, ao lado de outros mais obscuros, mas tão expressivos quanto
os demais, como Nicolau Tabana, o negreiro de Novo Redondo. A princípio, estas
referências poderiam ser vistas como corriqueiras, uma vez que, segundo o
próprio Tams, a sociedade de Angola se encontrava imersa no trato da escra-
vatura e em seus altíssimos lucros, valendo-se deles quase todos os habitantes
de Luanda, de Benguela e dos demais núcleos luso-africanos:
E, contudo, de certa forma, todos eram iguais; porque
duvido que houvesse um só que não fosse negociante de
escravatura, e que recusasse entrar em qualquer transação
criminosa, contanto que por meio dela pudesse aumentar
os seus lucros. Tais eram os elementos de que se compunha
a sociedade em Luanda; e nem por momentos um
estrangeiro se poderá esquecer da companhia porque se há
visto rodeado. [...] A dança durava geralmente até as onze
horas da noite, e neste decurso, serviam chá e limonadas
conforme o estilo da terra, com simples doces de farinha de
trigo, fabricados por padeiros portugueses estabelecidos
na cidade. Os negros condutores, no entanto, deitavam-
se junto às suas tipóias defronte do palácio, esperando
o momento em que a reunião terminasse. Despediam-
se então aqueles indivíduos com ridículas formalidades
uns dos outros, e os que queriam afetar importância, se
deitavam em suas tipóias, fazendo-se assim conduzir até
casa, rodeados por uma comitiva de negros, uns como
portadores de tochas, outros como criados.52

Mas, entre todos, seria sobre Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo que
recaíam as observações mais expressivas de Tams, escolhendo-o para ilus-
trar tanto a arrogância dos mercadores de escravos, como as estratégias que
usavam. Além de se referir ao escravo branco que o acompanhava ostensiva-
mente em suas caminhadas pelas ruas da cidade53 ou sua rica morada urbana,

52 Tams, Visita às possessões portuguezas, v. I, p. 227.


53 Idem, p. 212.

486 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Tams sinalizava a dose de audácia com que Arsênio enfrentava as autoridades


britânicas ligadas aos tratados luso-britânicos e em passagem pela cidade
de Luanda, entabulando com elas ora cortesias, ora desafios.54 Uma grande
agilidade era a característica central de sua atuação:
O costume de viajar com rapidez era indispensável ao
senhor Arsênio, porque elle se via freqüentemente
obrigado a fazer jornadas mui cumpridas a cavalo, durante
a noite, quando no sitio de desembarque de seus escravos se
tornava precisa a sua prompta assistência. Consideráveis e
repetidos prejuízos, o haviam induzido a adoptar o plano
de os embarcar no decurso da noite, a alguma distância de
Loanda. Uma manhã, por ocasião de fazer-lhe uma visita
medicinal, em conseqüência de um padecimento crônico no
fígado, que lhe tinha sobrevindo em razão de prolongadas
residências em diferentes partes do Brasil, me disse ele que
não obstante achar-se assim doente, havia andado a noite
anterior dezesseis léguas a cavalo, para poder assistir ao
embarque de escravos seus no sul do rio Dande.55

A partir de documentos alfandegários da ex-colônia brasileira, é


possível levantar a hipótese de que os contatos de Ribeiro dos Santos com
Arsênio de Carpo tenham precedido a expedição de 1841, e tiveram lugar
em Pernambuco, grande reduto de negociantes portugueses e seus agentes
vindos de Luanda e de Benguela e de outras partes da costa centro-oeste
africana. Entre os mapas do ano de 1838 que controlavam a entrada e a
saída das embarcações com bandeira lusa no porto, o nome do cônsul (ou
eventualmente de um homônimo) aparecia assinalado como consignatário
de uma embarcação de propriedade de Arsênio de Carpo, dois anos antes
da expedição africana. 56 Numa época em que a carreira de Arsênio se

54 Idem, p. 194.
55 Idem, p. 212.
56 IAN-TT, MNE, Consulado de Portugal em Pernambuco, Cx. 2, 1839-1841, “Mapa das em-
barcações nacionais e estrangeiras entradas no porto de Pernambuco vindas das costas da
África, no mês de dezembro de 1838”: na listagem aparece o bergantim Governador Vidal,
de 187 toneladas, vindo de Loanda, “sob as ordens do capitão Nicolau Mario Passalaqua,
sendo o proprietário Arcenio Pompilio Pompeu de Carpo e o consignatário, [João] Joze Ri-
beiro dos Santos”. Indicação retirada do artigo de Carlos Pacheco, “Arsenio Pompílio Pom-
peu de Carpo – uma vida de luta contra as prepotências do poder colonial em Angola”, Re-
vista Internacional de Estudos Africanos, no. 16-17 (1992-1994), p. 154. Apesar de o pre-
nome não coincidir exatamente, é possível tratar-se do cônsul. Nota-se que o navio rece-
bera de Carpo o mesmo nome do governador de Angola na época – Manoel Bernardo Vi-
dal – que, apesar das ordens expressas sobre a supressão do tráfico vindas de Lisboa, fora
convencido pelos negreiros (entre eles, Arsênio) a fechar os olhos e converter-se ele pró-
prio aos negócios da escravatura. Sobre as posições do governador e suas relações com Ar-
sênio de Carpo, bem como sobre a projeção social deste último: Valentim Alexandre, “Por-
tugal e a abolição do tráfico de escravos (1834-51)”, Análise Social, vol. XXVI, no. 3 (1991),
pp. 309-310; sobre o comprometimento dos governadores e outras autoridades: Joaquim
de Carvalho, “L’interdiction de la traite en Angola”, Lusíada, no. 1 (1989), pp. 169-217.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 487
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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encontrava no apogeu: havia saído do anonimato e depois dos tempos em


que transitara por diversos pontos do Atlântico e por várias profissões,
finalmente enriquecera, tendo como principal negócio o da escravatura
e, como base, sua própria atuação política, bem como as alianças com os
dirigentes de Angola.57 De outra parte, era também esse o momento em
que Ribeiro dos Santos planejava sua virada africana, concebida quando
se encontrava afastado dos assuntos consulares, e segundo a trajetória
levantada por seu biógrafo, em “digressão pelo Brasil”, na antevéspera do
empreendimento: “Recolhendo-se de uma digressão ao Brasil, em 1839,
e miudamente informado das circunstâncias do mercado da África Occi-
dental portugueza, concebeu um projeto que logo tratou de por em obra,
empregando consideráveis cabedaes em compra de urzela, despachando
alguns navios com carga sua, própria para aqueles povos, e estabelecendo
feitorias nos portos importantes da costa.”58
As mulheres comerciantes de Luanda também são frequentes no relato
do médico alemão, ao se referir preferencialmente a Ana Francisca Ferreira
Ubertaly, por quem não consegue disfarçar sua predileção. Africana, viúva
do médico natural da Sardenha, Carlos Ubertaly, degredado estabelecido
em Luanda, negociante que exercia as funções de almoxarife do governo
angolano, e de quem, por certo, ela havia herdado navios e o comércio de
escravos em direção a Cuba e a Pernambuco.59 “D. Anna tinha nascido no

57 Arsênio de Carpo tinha plena consciência dos enormes lucros trazidos pelo comércio da
escravatura; num texto escrito em Londres, em 1848, apresentando um projeto de sua au-
toria, que veremos a seguir, sustentava a opinião sobre a inoperância das leis antitráfico
a partir da experiência própria de um grande investidor: “Depois que as mais fortes me-
didas [de controle do tráfico] que como acabamos de mostrar se tem tomado, chegaram os
pretos no Brasil a valerem cada um 700 mil réis, sendo o custo destes na África de 15 a 20
mil réis: com o fundo de 12 a 14 contos de réis se habilita qualquer especulador a passar
para o Brazil 600 escravos, onde vão achar por elles (se é que podem escapar) tanto quanto
é preciso para tentarem novas especulações da mesma naturesa”: Carpo, Projecto d´uma
companhia para o melhoramento do commercio, agricultura e indústria na Província de
Angola que se deve estabelecer na cidade de S. Paulo d´Assumpção de LOANDA, e da qual
são fundadores Silvano F. L. Pereira, de Londres, Arcenio P. P. de Carpo, de Loanda; A. V.
R. Schut, d’Hamburgo; e Eduardo Possolo, Lisboa: Typographia da Revolução de Setembro,
1848, p. 5. Entre seus sócios, no projeto de 1848, mencionaremos mais adiante a figura de
A. V. R. Schut, de Hamburgo.
58 Castilho, “Notícia Necrológica”, p. 591.
59 Sobre o médico Carlos Ubertaly e o embarque de seus navios de Luanda em direção a Cuba,
nitidamente num percurso negreiro,ver IANTT, MNE, Ordem 968, Consulado de Portugal
nos portos da ilha de Cuba. Matrícula de navios, “Matricula da Bª Triunfo da Liberdade, de
que é mestre Manoel Francisco Cardoso e proprietário Carlos Ubertaly, que segue viagem
para Havana com escala em Ambriz, Zaire e Cabinda. Secretario de o Governo Militar, e Ci-
vil do Reino de Angola, em 21 de janeiro de 1837”. A informação de sua função como almo-
fariz vem de Dias, “Angola”, p. 350; moreu nos finais do ano de 1839, segundo ofício solici-
tado pelo Cônsul Geral da Sardenha, em Lisboa, AHU, SEMU, DG, Correspondência, Ango-
la, Ordem 595.

488 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

interior da África e havia sido trazida como escrava para Loanda, onde
vivia então com pompa, manejando um prospero negócio d’escravatura;
mas eu farei justiça ao seu procedimento, pois que ella nunca praticava
crueldades, antes tratava seus subordinados com grande humanidade.” 60
Descrevia Tams também a aparição da dama africana numa festa da
sociedade luandense, da qual participava, destacando-a em meio a uma
multidão de pretos, brancos e mulatos: “Por entre os caracteres deste
matizado grupo, divisava-se uma mulher ricamente adornada d’ouro e
jóias, que tendo vindo para este paiz, havia poucos annos, d’uma província
do interior como miserável escrava, por sua belleza e astucia tinha obtido
a liberdade e riquezas.”61 E ilustrava, por meio de sua viva inteligência, a
“propensão intelectual dos africanos”:
Freqüentes vezes encontrei negros, que havendo apenas
quatro semanas que existiam na costa, podiam neste
incrível pequeno espaço de tempo, não só entender o
portuguez, como fazerem-se entender neste idioma. Uma
das pessoas que maior negocio tinha d’escravatura em
Loanda, era uma mulher que primeiro havia sido escrava
igualmente; a qual depois de ter obtido a liberdade, havia
estudado a língua portugueza de per si mesmo com tal
energia, que não só a fallava correctamente, mas até por
sua propria mão fazia a correspondência commercial neste
dialecto.62

As relações comerciais que Ribeiro dos Santos manteve com dona


Ana Francisca foram em parte sinalizadas na noticia da venda que lhe fez
da pequena escuna Esperanza, de sua propriedade, e que, segundo Tams,
seria empregada no comércio de “produtos autorizados” e na “condução
de fazendas para os seus estabelecimentos de Moçamedes e na ilha de
S. Tomé”.63
Também é matéria a ser referida o encontro de Ribeiro dos Santos
com o obscuro Nicolau Tabana – ou Nicolau Tavama como aparece mencio-
nado na correspondência provincial dirigida à metrópole. 64 Estabelecido
numa aldeia fortificada em Novo Redondo, atual Sumbe, chamada pelos
africanos, na época, de Quisala, Nicolau era napolitano de nascimento e
degradado por crimes para as costas da África pelas autoridades portu-
guesas havia 25 anos. Segundo Tams, instruído nos usos e nos costumes
dos povos da região, aclimatado aos ares e às doenças do lugar, casado
com uma mulata e com muitos filhos, dispunha de uma fortuna de cerca

60 Georg Tams, Visita às possessões portuguezas, vol.I, p. 215.


61 Idem, vol. II, p. 226.
62 Idem, p. 98.
63 Idem, p. 52 e 112.
64 AHU, SEMU, DG, Correspondência, Angola, Ordem 597, Ofício de 2 de fevereiro de 1843.

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NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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de 20:000.000 de piastras, o que equivaleria, segundo o tradutor inglês


da obra de Tams, em “pouco mais ou menos de 40 milhões de cruzados”. 65
Verdadeiro potentado branco, monopolizava o comércio e a vida política
desse trecho da costa, possuía feitorias espalhadas pelas enseadas próxi-
mas a Novo Redondo, em Inandanha e Quicombo, onde mantinha agentes
e comercializava escravos, mas também marfim e cera que vinham nas
caravanas do interior, bem como óleo de palma obtido nas proximidades
da pequena fortaleza em que vivia. Era servido por uma milícia composta
por 25 soldados escravos, constantemente em armas e nos negócios, por
comissários, alguns deles cativos mas extremamente leais a ele e que
faziam demoradas incursões em direção ao interior, comprando marfim
e escravos. 66 No que diz respeito às suas relações com o comendador,
após a morte deste, elas haviam perdido a razão de ser: [a morte] “havia
transtornado todas as esperanças de transações commerciais para as
quais Nicolau Tabana havia feito disposições”. 67
Outro nome de mercador referido por Tams é o de um senhor Fonseca,
que ocupava o posto de agente da casa de Ribeiro dos Santos, na ilha de
Santo Antão, arquipélago do Cabo Verde, em 1841, e que, estabelecido
junto à sua mulher inglesa nesse local, “estava próximo a remover-se
para Benguela em utilidade da casa”. 68 Embarcando junto à expedição,
uma vez no continente, escreveria Tams, converter-se-ia definitivamente
aos negócios escusos de tráfico, devido a seu intento de “uma prompta
aquisição de riqueza”. As palavras de desaprovação mais contundentes
usadas por Tams são dirigidas a ele:
Enquanto a mulher receava o clima da costa, o marido
não prestava attenção com seus rogos; porque o seu único
intento era o de uma prompta acquisição de riqueza; e
enlevado só neste desejo, de boa vontade se sujeitava a
todos os inconvenientes. O thema que absorvia todas as
suas conversações durante nossa subseqüente viagem, era
riqueza, unicamente a riqueza [...] Logo que desembarcamos
naquelle reino, o seu vil, abjecto e avarento espírito o fez
instantaneamente adoptar o meio mais efficaz de alcançar
aquillo que elle somente ambicionava; e sem hesitar
um momento se profanou, empregando-se no tráfico da
escravatura.69

Segundo o médico, a notícia da morte de Fonseca chegou-lhe anos após,


quando ele já se encontrava de volta à Europa.

65 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 176.


66 Idem, vol. I, p. 187.
67 Idem, vol.. II, p. 59.
68 Idem, vol. I, p. 82.
69 Idem, p. 83.

490 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Os irmãos Fonseca (Manoel Pinto da Fonseca, Joaquim e possivel-


mente Antônio), da mesma forma que todos os demais negreiros acima
referidos, são constantes na documentação produzida pelas autoridades
que controlavam o tráfico a partir das décadas de 1830 e 1840. Na base
de dados sobre as viagens dos tumbeiros, na primeira referência a ele,
Manoel Pinto da Fonseca é proprietário do brigue Especulador, de bandeira
portuguesa, agindo a partir das ilhas do Cabo Verde e comercializando
cerca de 490 escravos, provenientes da Senegâmbia, em direção ao Rio de
Janeiro, em 1837.70 Coincidentemente, a mesma região e o mesmo local
onde Tams o encontrara como um dos agentes da casa Santos & Monteiro.
Embora lidando no terreno movediço das suposições, essas informações
podem trazer luz à trajetória de enriquecimento dos traficantes uma
vez que não tem sido possível localizar exatamente as origens da família
Fonseca. Como quer Conrad, talvez vinda de algumas das ilhas do Atlân-
tico, tendo sido Manuel, segundo ele, caixeiro de uma casa mercantil, até
pelo menos os finais dos anos de 1830. 71 No texto de Tams, a referência
a ele reaparece quando da morte de Ribeiro dos Santos, sendo Fonseca o
consignatário de grande parte das mercadorias pertencentes à sua casa
mercantil num momento em que, não se sabe exatamente por que, eram
cobiçadas pelas autoridades alfandegárias de Luanda, que procuravam
confiscá-las:
A nossa casa de Loanda, depois de ter estado fechada e
sellada, foi igualmente alliviada do seqüestro, por uma
porção de tempo, pela authentica prova que deu o senhor
Fonseca, de ser o verdadeiro dono de tudo o que havia sido

70 Eltis, David et alii., Voyages. The Trans-Atlantic Slave Trade DataBase, disponível em:
http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces, acessado em agosto de 2009,
viagem n. 46260, de 26-09-1837, segundo dados recolhidos no Archivo General de la Na-
tion, Montevidéo, Uruguai. Trata-se da primeira viagem de “Fonseca” identificada pela
amostra. Computando-se o total de viagens realizadas sob esse sobrenome, entre os anos
de 1837 e 1851, foram identificadas 43, provenientes da costa norte de Angola (sobretu-
do Ambriz e Cabinda) e também da África oriental, do Golfo de Biafra e da Alta Guiné, com
destino ao Brasil, em navios de bandeira portuguesa, mas também norte-americana; no
período de 1837 a 1851. No total, os irmãos Fonseca desembarcaram nas praias brasilei-
ras quase 18.000 escravos, dos 20.000 obtidos na África. Assim, mesmo no terreno das su-
posições, não se pode deixar de lado qualquer tipo de informação sobre eles.
71 Conrad, Os tumbeiros, p. 121. “Manoel Pinto da Fonseca iniciou sua carreira como ‘um
criado subalterno em um estabelecimento mercantil, dispondo de recursos muito limita-
dos’; ‘em 1837, contudo, junto com seus irmãos e um grupo de seguidores, ele entrou para o
tráfico crescente, e em sete ou oito anos era um dos homens mais ricos do Brasil’”. O nome
de Manuel Fonseca aparece mencionado no ofício de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado
(1854) e em obras sobre o tráfico no século XIX, atuando em diversos portos da costa an-
golana e em Moçambique; Roquinaldo Amaral Ferreira, “O relatório Alcoforado”, Estudos
Afro-Asiáticos, no. 28 (1995), pp. 219-229; José Capela, O tráfico de escravos nos portos de
Moçambique, Porto: Edições Afrontamento, 2002, pp. 160-161; e agindo em Angola e nas
regiões próximas a Cabinda, em longos trechos da obra de Pires, “Tráfico ilegal de escra-
vos”, pp. 109-112.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 491
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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confiado ao seu cuidado; e desde então, pode elle continuar


com o seu negócio sem estorvos, por sua própria conta.
Immediatamente levantamos ancora [...] 72

Embora de forma discreta, os testemunhos de Georg Tams vinculam


as mercadorias trazidas por Ribeiro dos Santos ao contexto das transa-
ções desenvolvidas pela casa mercantil de Manoel Pinto Fonseca, cuja
importância no comando de uma rede de fornecedores e de receptores no
mundo atlântico foi estudada por Mary Karash.73 Segundo ela, apesar da
ilegalidade de seus negócios e, portanto, de uma relativa discrição sobre
eles nas fontes, relatórios feitos pelo cônsul norte-americano na Ingla-
terra, dirigidos a Washington, permitiram-na reconstituir em detalhes as
transações e as artimanhas usadas pelo grande mercador, sobretudo na
década de 1840. Entre elas, o aporte a pequenos e médios fornecedores de
escravos, a consignação de mercadorias, vindas sobretudo da Inglaterra,
a propriedade ou o aluguel de navios que portavam bandeiras de diferen-
tes nacionalidades, sobretudo os rápidos veleiros construídos em Nova
York, Baltimore e Filadélfia, de bandeira norte-americana, ainda livre
de ser abordada pelo esquadrão inglês.74 Embarcações que transitavam
carregadas ora de produtos legítimos, ora de escravos, exatamente com
o intuito de burlar e confundir a fiscalização nos mares. Além da sede no
Rio de Janeiro, os negócios de Fonseca espalhavam-se por entre feitorias
montadas principalmente em Cabinda, mas também em Ambriz, e se es-
tendiam em direção aos territórios africanos da costa oriental, sobretudo
em Quelimane e Moçambique. Nesse contexto, não é leviano identificar
Ribeiro dos Santos como um dos seus fornecedores, trazendo mercadorias
a ele consignadas, principalmente produtos ingleses comumente vistos
nos mercados africanos.
De outra parte, nos textos de época, os mercadores de escravos
aparecem próximos a outros ramos de negócios e interesses. As relações
que esses grupos mantêm entre si, bem como as indicações feitas sobre
eles, denotam o processo de diversificação dos negócios africanos talvez
como a resposta mais imediata às tentativas de conter o tráfico, desde
a medida de Sá da Bandeira, de 1836, mas que não implicou em sua
desarticulação imediata. De Arsênio a Ana Francisca, passando por Ana
Joaquina ou mesmo pelo obscuro e solitário Nicolau Tabana, encontramos
historicamente configuradas as situações de investimento de parte dos

72 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 63.


73 Karash, “The Brazilian Slavers”, pp. 29-30.
74 Gerald Horne, O sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico de escravos afri-
canos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 55. Sobre o mesmo tema: Leonardo Mar-
ques, “A participação norte-americana no tráfico transatlântico de escravos para os Es-
tados Unidos, Cuba e Brasil”, História: Questões & Debates, no. 52 (2010), pp. 87-113. Ver
também o capítulo de Dale Graden nesta coletânea.

492 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

lucros altíssimos do tráfico de escravo em outros empreendimentos, ou


pensados em projetos futuros. Tanto Ana Joaquina, quanto Ana Francisca
possuíam plantações de açúcar na região do rio Bengo, ao norte de Luanda
e em Moçamedes, e tanto uma como outra subscreviam novos projetos.
Ambas haviam participado da fundação da colônia de Moçamedes, onde
mantinham agentes de suas firmas luandenses para administrarem
propriedades, mas também para gerenciarem a mercadoria recebida em
barracões, escondidos longe do mar.75 As Anas comerciantes de escravos
eram também senhoras de roças em São Tomé.
Por sua vez, embora não diretamente ligado à sociedade luandense,
mas um agente dos portugueses, Nicolau Tabana e seus interesses pre-
nunciam a transformação das posses comunais sob a tutela tradicional
dos sobas, em terras e palmares privativos dos europeus em territórios
africanos. “Nunca eu havia visto tão bellas florestas de palmeiras”, diria
Tams sobre as áreas pertencentes ao napolitano:76
Na margem direita do rio [o Novo Redondo], havia uma
interminável floresta de palmeiras, a qual vista d’uma altura
que a dominava, parecia communicar ao vale, que se estendia
do lado do norte parallelo com a costa, uma extraordinária
belleza. Nicolau tinha comprado aos negros visinhos, uma
considerável porção desta floresta por uma insignificante
pensão annual, para della extrahir o vinho que formava o ramo
mais importante do seu negocio. Os seus grandes rebanhos e
manadas de gado se alimentavam também nesta extensa
floresta; ao passo que um grande número de pequenos hortos
ou plantações, abundantemente o suppriam de tudo o que
mais necessitava para o sustento da vida.7776

Tratava-se de movimento similar ao que ocorria com a implantação dos


arimos europeus existentes desde o século XVII e instalados às margens do
Bengo, mas também em Cazengo, nos meados dos oitocentos. Distrito habitado
por cerca de 17 chefes africanos, com relações de vassalagem com Portugal, que
se mantinham em “ilhas de posses africanas” em meio às concessões fornecidas
pela Coroa aos chamados “barões do café”, alguns deles brasileiros, onde se
estruturava uma sociedade baseada no trabalho escravo, “proto-colonial”, na
expressão de David Birmingham.78

75 Dias, “Angola”, p. 372. Um dos sócios ou agentes de dona Ana Francisca em Moçamedes
era Bernardino José Brochado, autor de uma memória sobre a região: Brochado, “Notícia
de alguns territórios e dos povos que os habitam, situados na parte meridional da provín-
cia de Angola”, Annaes do Conselho Ultramarino, parte não oficial, Lisboa, 1ª série, no. 1
(1855), pp. 203-208. 75 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 178.
76 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 178.
77 Idem, p. 182.
78 David Birmingham, “The Coffee Barons of Cazengo”, Journal of African History, vol. 19,
no. 4 (1978), pp. 523-538.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 493
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O poder dos mercadores de escravos era digno de nota e por esse


motivo apareceu registrado em quase todos os relatos produzidos nas
décadas de 1840 e naqueles que, décadas depois, procuraram traçar a
história das sociedades da região. Enquanto a fama de Ana Francisca e sua
história quase romanceada foram a tônica do texto de Tams, a figura mais
notável nos demais relatos é a de Ana Joaquina, mencionada raramente
pelo autor.79 Escritores da época, entre eles o comissário Francisco Valdez,
ligado à comissão mista instaurada em Luanda em 1844, referiam-se aos
atributos da dama, chamada pelos oficiais franceses que se hospedaram
junto à sua casa de A Rainha do Bengo.80 Não se tratava da única dona de
arimos, de escravos e de navios com projeção junto à sociedade angolana;
segundo Aida Freudenthal:
Entre as numerosas centenas de proprietários revelados
pela documentação sobressaem varias ‘donas’ de arimos e de
escravos pertencentes à sociedade luandense e benguelense
de meados do século como Ana Ubertali, Apolinária Mattoso
e Ana Joaquina dos Santos Silva. Os dados obtidos permitem
afirmar que a acumulação de riqueza em suas mãos resultou
não apenas dos benefícios alcançados através do tráfico, como
da prática do comércio licito e da exploração das terras que
lhes pertenciam por herança ou por doação, recorrendo ao
trabalho escravo. Destes casos o mais eloqüente no domínio
da iniciativa empresarial, materializada em investimentos
no tráfico, no comércio e na agricultura e transformação da
cana, é o de D. Ana Joaquina, eminente figura da sociedade
luandense, traficante e proprietária de arimos no Bengo,
curiosa personagem de compromisso entre a economia
mercantil, a agricultura ‘tradicional’ e as novas estratégias
empresariais. Sendo proprietária de vários prédios urbanos
e de numerosos e extensos arimos.81

79 A proeminência das mulheres no comércio de escravos foi notada também por José Cape-
la, entre os armadores da década de 1840, que agiam em Moçambique, sendo elas igual-
mente donas de prazos na região. Capela, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique,
p. 152.
80 Francisco Valdez, em visita à região do rio Bengo, em 1858, onde, além das propriedades
em Golungo Alto e Guifandonfo, Ana Joaquina possuía uma plantação de açúcar, com cer-
ca de 1.400 escravos, notou: “a grande atração, no entanto, era na querida dama que pre-
sidia esta casa e à qual os galantes oficiais franceses haviam dado o nome de A Rainha
do Bengo [...] um titulo que ela merecia em consequência de suas maneiras amáveis, e sua
grande hospitalidade que ela dava a todos os que eram afortunados em ser seus convida-
dos. Todos os arranjos domésticos eram de uma grande elegância, tudo sendo ordenado da
mesma forma que nos estratos mais superiores de Portugal, país do qual ela era nativa.
Ela também caiu vitima daquela tirânica e implacável e fatal febre, que não olhava nem
para idade, riqueza, beleza nem sexo.” Apud Douglas Wheeler, “Angolan Woman of Means:
Dona Ana Joaquina dos Santos e Silva, mid-19th Century Luso-African Merchant Capita-
list of Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies, no. 3 (1996), p. 287.
81 Freudenthal, Arimos e fazendas, pp. 154-155.

494 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

De outra parte, o poder de que dispunha essa classe de mercadores deve


ser entendido também a partir da proeminência entre os grupos africanos,
principalmente com seus parceiros de negócio dos quais dependiam para
a obtenção de mercadorias, para o livre trânsito das caravanas ou ainda
com os que formavam suas clientelas. Entre os habitantes da cidade de
Novo Redondo que haviam construído suas cabanas em torno da moradia
fortificada de Nicolau Tabana, Georg Tams nota, além da extrema fidelidade
e devoção a ele, o fato de comporem seus comissários nas negociações
com o interior e sua guarda particular. Um poder inconteste emanava
das aparições econômicas e pontuais do grande senhor:
No dia em que ali chegamos, celebrava-se nella uma
festividade, em honra da qual o senhor Nicolau apresentou
um refresco que se prolongou por toda a noite. Uma porção
de mesas cobertas de abundante mantimento estava
collocada em frente da igreja, às quaes tinham livre acesso
todos os habitantes. [...] O senhor Nicolau não tomou parte
alguma neste entretenimento, e apparecendo somente por
acaso à sua porta, era sempre nessas occasiões saudado
como príncipe por toda aquella gente com altas aclamações.
Já se aproximava a madrugada, quando a multidão se foi
pouco a pouco retirando. 82

Também a fama de dona Ana Joaquina atravessava os sertões e


atingia o longínquo reino dos lundas com o qual procurava fazer acordos
comerciais, enviando seus intermediários, entre eles o sertanejo brasileiro
Rodrigues Graça que realizaria, entre os anos de 1843-46, a seu mando, uma
expedição ou missão diplomática à capital (mussumba) do reino Lunda.83
Anos mais tarde, percorrendo as mesmas regiões, Henrique de Carvalho
ouvia falar de Ná-Andêmbo, ou Andembo-iá-Lala, senhora considerada
muito poderosa em razão de sua proximidade com o Muatiânvua Noéji

82 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, pp. 179-180.


83 É extensa a bibliografia sobre a mercadora. Citada tanto nas interpretações atuais, quan-
to nos relatos dos viajantes que passaram por Luanda e Angola, Ana Joaquina aparece nas
obras já citadas de Anne Stamm, Mário António Fernandes de Oliveira, Jill Dias, Isabel de
Castro Henriques. Entre os estudos específicos: Júlio de Castro Lopo “Uma rica dona de
Luanda”, Portucale, no. 3 (1948), pp. 129-138; Wheeler, “Angolan Woman of Means”; José
Curto, “Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em
Angola, 1846-1876”, Afro-Ásia, no. 33 (2005), pp. 67-86. É de surpreender que, enquanto a
figura do traficante Arsênio é marcada por avaliações depreciativas, as narrativas de épo-
ca e mesmo a historiografia mais recente foram complacentes em relação a ela. Na docu-
mentação das comissões mistas e na base de dados sobre as viagens transatlânticas re-
lacionadas ao tráfico, seu nome é uma impressionante constância; seu navio, por exem-
plo, o bergantim Maria Segunda, aparece registrado em pelo menos dez ocasiões, entre
1835 e 1846, carregando comprovadamente escravos para diferentes regiões das Améri-
cas: Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, baia de Sepetiba, Ilha Grande, Havana e Montevi-
déu; a barca saía com frequência de Luanda, mas também de Ambriz, de Benguela, com es-
calas em S. Thomé. Ver http://www.slavevoyages.org, acesso em 31/05/2009.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 495
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e da riqueza de seus armazéns. 84 Também expressivo é o testemunho de


Antonio Gil:
Vi pretos da Lunda em Loanda na casa de uma senhora que
ao tempo era das que mais negociava para o sertão. Tinham
vindo atrahidos pela fama de seu negócio e suppunham-a
talvez uma das grandes princezas do Moeniputo. Contou-
me que quando chegaram se haviam prostrado diante
della ao costume da terra, tributando-lhe uma espécie de
adoração. Accrescentou que todos se reputavam escravos
de seu dinasta, cujo poder é tão grande que não pode jamais
sair do âmbito da casa em que habita, e que provavelmente
não passa de vasta galeria de casas ou cubatas de palha,
fechadas em torno.85

É preciso considerar, como demonstra Vellut, que as dinâmicas comer-


ciais africanas eram distintas das que aconteciam nas áreas dos portos entre
os negociantes atlânticos e os das cidades costeiras. Suas regras de trato
com os mercadores estrangeiros e intermediários passavam por negociações
marcadas por dispositivos da diplomacia, entre eles embaixadas, presentes
e acordos imprescindíveis para o livre trânsito das caravanas e para o fluxo
das mercadorias, em suas diferentes naturezas – homens e produtos.8685
Isso não pressupõe, no entanto, afirma o mesmo autor, que as sociedades do
interior não estivessem sujeitas às flutuações do comercio mundial.87
Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo foi um dos mais controversos per-
sonagens da história da sociedade luandense do século XIX; nem mesmo a
historiografia atual se mostrou unânime na avaliação de sua figura histórica,
sendo possível observar, entre os estudiosos, os seus partidários e os seus
críticos, bem como aqueles que o consideram expoente de um protonacio-
nalismo angolano.88 Na época, sua trajetória foi marcada por altos e baixos.

84 Henrique de Carvalho, apud Lopo, “Uma rica dona de Luanda”, p. 136; Henrique de Carva-
lho, apud Beatrix Heintze, Pioneiros africanos: caravanas de carregadores na África cen-
tro-ocidental (entre 1850 e 1890), Lisboa: Caminho, 2004, pp. 138-139. Sobre a importân-
cia dos relatos desse expedicionário português, sobretudo no que concerne a história dos
povos da região e dos trabalhadores africanos, ver Elaine Ribeiro, Barganhando sobrevi-
vências: os trabalhadores da expedição de Henrique de Carvalho à Lunda, 1884-1888, São
Paulo: Alameda, 2013.
85 Antonio Gil, Considerações sobre alguns pontos mais importantes da moral religiosa e
systema de jurisprudência dos pretos do continente da África Occidental Portugueza
alem do Equador [...], Lisboa: Typographia da Academia, 1854, p. 14.
86 J. L. Vellut, “Le royaume de Cassange et les réseaux luso-africaines (ca. 1750-1810)”, Ca-
hiers d´Études Africaines,vol. 15, no. 57 (1975), pp. 117-136.
87 Idem, p. 133.
88 É também extensa a bibliografia sobre Arsênio; entre outros: Pacheco, “Arsênio Pompílio
Pompeu de Carpo”; Henriques, Percursos da modernidade, pp. 526-32; João Pedro Mar-
ques, “Arsênio Pompílio Pompeu de Carpo: um percurso negreiro no século XIX”, Análise
Social, no. 160 (2001), pp. 609-38; Oliveira, Alguns aspectos da administração de Angola,
pp. 167-196. Sobre as relações dos mercadores de Angola, particularmente Arsênio, com
os negociantes de Pernambuco, ver Reis, Gomes e Carvalho, O alufá Rufino, pp. 146-178.

496 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Depois de uma fase de grande proeminência política e econômica, Major das


Ilhas Adjacentes à cidade de Luanda, na Província de Angola (1840),89 Coronel
Comandante das Províncias de Bié, Bailundo e Embo (1842)90 e Comendador
da Ordem de Cristo (1843) 91 e da Ordem da Conceição (1844),92 cargos e hon-
rarias outorgados pela rainha d. Maria II, Arsênio de Carpo transformar-se-ia
em inimigo número um do bem público, descrito como o grande traficante
de escravos nos numerosos relatórios às autoridades metropolitanas, sobre-
tudo os endereçados ao ministro Sá da Bandeira que demonstrava sinais de
execrar aquele que se dizia seu aliado.93 Em 1845, foi preso e depois expulso
de Luanda por conta dos vínculos com o comércio dito ilícito, sendo este o
primeiro ato do recém-empossado Governador, Pedro Alexandrino da Cunha.94
No entanto, muito próximo a esses fatos, em 1848, o mercador reapareceria
pronto a executar planos destinados a viabilizar e reativar economicamente
Angola por meio da proposta de criação de uma companhia para explorar
“um caminho de ferro com carros movidos a vapor” da cidade de Loanda até
o distrito de Calumbo, bem como de “levantar nas matas do rio Quanza uma
Serraria de madeira também a vapor”.95
Para o presente estudo, é significativo notar que entre os parceiros de
Arsênio mencionados em seus projetos encontravam-se negociantes ingleses
e portugueses como também o então cônsul português em Hamburgo, André
van Randvyk Schut, velho conhecido dos ofícios produzidos pelo mesmo con-
sulado à época de Ribeiro dos Santos. Além disso, foi possível comprovar a

89 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XIII, p. 178, “Carta Patente de 18 de novembro de
1840”.
90 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XVII, pp. 203-4, “Carta Patente de 10 de dezembro
de 1842”.
91 IAN-TT, Livro das Mercês D. Maria II, v. XIX, pp. 108-9, “Título outorgado em 16 de março
de 1843”.
92 Indicado pelo governador Lourenço Possolo, cf. Alexandre, “Portugal e a abolição do tráfi-
co”, p. 329.
93 AHU, Sá da Bandeira, Documentos, Ordem 825; entre eles, cartas de Arsênio de Carpo ao
ministro português, advertindo-o sobre várias questões: o contrabando de escravos e o
de urzela, os territórios do norte de Angola, fora de controle e, finalmente, em 1851, o
oferecimento de sua ajuda para o combate ao tráfico. Na fórmula de despedida, “Loan-
da 20-5-51. Amigo muito obrigado e criado fiel Arcenio P. P. de Carpo”, a palavra “amigo”
encontra-se riscada, possivelmente pelo ministro.
94 Alexandre, “Portugal e a abolição do tráfico”, p. 330.
95 Carpo, Projecto d’uma companhia; observe-se que são fundadores e sócios da companhia
Silvano F. L. Pereira, de Londres, Arcenio de Carpo, de Loanda, A. V. R. Schut, de Hambur-
go e Eduardo Possolo. Segundo ainda a documentação consular, quando das discussões em
torno do reconhecimento de Schut como cônsul português em Hamburgo, no ofício de 17
de janeiro de 1843, ao ministro dos Negócios Estrangeiros, constava que “o Chevalier A.
van Randvyk Schut que depois do falecimento do Me. dos Santos se apresenta como o úni-
co chefe da casa de comercio deste nome, mas foi obrigado a ceder a administração aos co-
missários e a lhes confiar um acordo com os credores”; com cópia de um ofício da mesma
legação, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, de dezembro de 1842, AHD-MNE, Lisboa,
Legação de Portugal em Copenhagem, pasta 1843.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 497
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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estreita relação entre Schut e Ribeiro dos Santos, sendo ele um dos sócios da
casa comercial Santos & Monteiro, de Altona, aparecendo, em 1842, como o
responsável pelo processo de acertos da firma com os credores antes de ser
oficializado como Cônsul português no reino da Dinamarca junto ao cargo
que já ocupava, em Hamburgo, desde a morte de Ribeiro dos Santos.96
É de supor que o poder de Arsênio se estendesse em direção ao interior.
Embora no relato de Tams não fiquem evidenciadas as redes mercantis e
sociais articuladas por ele com as populações africanas, depois de sua ex-
pulsão de Luanda, em 1851, transferiu a base de seus negócios para as feiras
existentes na hinterlândia de Luanda ou um pouco além dela. Isabel de Castro
Henriques, seguindo as indicações feitas nas obras de Henrique de Carvalho,
localiza-o ali, aguardando as caravanas imbangalas de marfim, cera e bor-
racha, em Cassange, e também em Malange, um dos principais centros de
trocas do interior angolano, a partir da metade do século.97 Em outro trecho,
a mesma historiadora utiliza-se de um oficio do chefe da feira de Cassange
ao Governador Geral, citado também por Henrique de Carvalho, em que se
noticia a passagem de uma caravana conduzida pelo “senhor comendador
Arsênio Pompílio Pompeu”, composta por cerca de 800 serviçais, carregados
de mercadorias – fazendas, pólvora e miçangas, estimadas em 86 contos de
réis.98 Por fim, no mesmo período, é destacada a participação de Arsênio na
recuperação da feira de Cassange e na pacificação do comércio do interior,
aparecendo ora como emissário do poder português em embaixadas, ora con-
duzindo presentes e realizando acordos com os jagas e os imbangalas da região.
O estado do commercio aqui é o mais lisonjeiro possível em
todo o sentido, porque os pretos estão muito submissos,
não usando já das impertinências que d’antes esgotavam
a paciência ao comprador: de maneira que o negociante
Carvalho, que em menos de dois dias depois da sua
chegada comprou sem grandes esforços para mais de mil e
quinhentas libras de cêra e algum marfim, ficou admirado
de assim o ter conseguido, pela experiência que tinha do
modo extremamente moroso como antigamente se fazia
aqui o negocio.99

Nessa linha de raciocínio, é preciso acrescentar um elemento a mais


reiterado na interpretação de Jill Dias: o de que, após a proibição e o efetivo

96 AHD-MNE, Lisboa, Legação de Portugal em Copenhagem, pasta 1843.


97 Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola, p. 528.
98 Henrique Dias de Carvalho, O jagado de Cassange, “Ofício de Ventura José, em Malange,16
de fevereiro de 1864”. Apud Henriques, Percursos da modernidade em Angola, p. 529.
99 Henrique Dias de Carvalho, O jagado de Cassange, Lisboa: Typographia de Cristovão Au-
gusto Rodrigues, 1898, “Ofício de José Libório, Chefe da Feira de Malange, em 1864”, pp.
252-253. Esse documento encontra-se também indicado em Henriques, Percursos da mo-
dernidade em Angola, p. 530.

498 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

estancamento do tráfico em direção ao Brasil, e pouco depois a Cuba, parte


da “elite crioula” de Angola se havia movimentado em direção ao interior,
agindo uma vez mais como intermediária no comércio de escravos, direcio-
nado agora para os setores das grandes plantações africanas, entre elas as
de cacau em São Tomé.100
Relativo ainda à ordem social dominada pelos negreiros, outros perso-
nagens aparecem descritos em minúcias no relato de Tams, reafirmando a
qualidade da narrativa como fonte para o estudo da história social de Angola
daquela época, bem como sua expressividade na radiografia de uma sociedade
inserida direta ou indiretamente nos movimentos do tráfico quase ilícito e em
outros negócios. Entre os luso-africanos, ou portugueses que tinham escolhido
o interior da África central como lugar de moradia já há muito tempo, envol-
vidos nos negócios das caravanas de marfim e de cera, destaca-se o encontro
de Tams, em Benguela, com os que eram denominados sertanejos.101 Em sua
observação, sublinha a pressa que esses homens tinham em voltar para seus
redutos do interior:
Quando os seus negócios os obrigavam a vir à costa, eles os
concluíam com a maior brevidade, e se apressavam a voltar
para o interior; o qual eles nunca cessavam de engrandecer
pela sua extrema beleza e saudável clima [...] e os europeus
que como acabei de dizer viviam em perfeito retiro no
interior, me certificaram de que gozavam de uma tranquila
e completa segurança, nas suas isoladas posições.102

Por fim, e ainda no que diz respeito à história social vinculada às ambiên-
cias urbanas da Angola portuguesa, tanto em Luanda como principalmente
em Benguela, Tams testemunha a chegada das caravanas vindas do interior,
com os libambos de cativos e estes com suas marcas identitárias, penteados
característicos e alguns com vestes e adereços. Além disso, com sensibilidade,
é capaz de perceber e fazer longas digressões sobre os pequenos habitantes
das cidades: canoeiros, empacaceiros, prostitutas, quitandeiras e quitandei-
ros. Nas movimentações dos portos, observa ainda os canoeiros cabindas ou
“cabindanos”, como os denominou, considerados, segundo ele, os melhores
de todos os que eram recrutados. Flagrou assim aspectos da comunidade
cabinda de Luanda, que se tornou historicamente significativa em razão de
sua competência no transporte marítimo, sua errância e em decorrência uma

100 Jill Dias, “Relações econômicas e de poder no interior de Luanda, c. 1850-1875”, in Ma-
ria Emília Madeira Santos, Atas da I Reunião Internacional de História de África (Lisboa:
IICT, 1989), p. 70.
101 Sobre os sertanejos do Bihé e a mais importante figura dessa época, Silva Porto, ver os vá-
rios ensaios reunidos por Maria Emília Madeira Santos, Nos caminhos de África. Serven-
tia e posse, Angola, século XIX, Lisboa: IITT, 1998. Sobre as caravanas do Bihé, Heintze,
Pioneiros africanos, pp. 299-350.
102 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, pp. 121-122.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 499
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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tradição diaspórica similar à dos krus da África Ocidental que remontava ao


século XVII.103 Em sua narrativa, descreve-os dominando a movimentação do
cais de Luanda também com suas rodas de adivinhação.
Apenas tínhamos aportado do navio, quando os nossos
quatro robustos remadores cabindanos, que não obstante
eram escravos, romperam a sua desharmoniosa e célebre
cantinela. Parecia ella uma palestra continua entre duas
partes, principiando pelo mais velho dos remadores, que
dava começo a cada uma das estrófes, a qual respondiam
os outros como uma antistrofe. O rompimento desta
desagradável monotonia era – Abu 0 bu – bu – bu, a
que os coros respondiam, Abia. O entoador articulava
em português, Quem virô o mundo? Ao que os outros
respondiam, Maria Segunda. Elles concluíam depois em
linguagem cabindense [...]104

O sentido da estrofe da cantinela dos cabindas é expressivo para os lei-


tores acostumados com as figuras de Luanda: – Quem virô o mundo – Maria
Segunda. A estrofe pode ser referida a aspectos da movimentação histórica
apreendidos pelos cabindanos: referência ao nome da soberana reinante em
Portugal que, por sua vez, batizava o de uma das embarcações mais prestigiosas
do porto, o barco Maria Segunda, pertencente a Ana Joaquina. Pode-se também,
numa outra direção, seguir as pistas deixadas por J. L. Vellut: segundo ele,
entre as miçangas comercializadas nesta época na África central, trazidas do
Oriente, existia uma chamada kampakala ou Maria Segunda, grandes pérolas
vermelhas, rajadas de branco, que eram as mais cobiçadas e prestigiadas no
comércio do interior e na corte do império Lunda.

103 Sobre os canoeiros cabindas, o processo de sua diáspora mercantil, suas grandes embar-
cações e participação no comércio de escravos, ver Phyllis M. Martin, “Cabinda e os seus
naturais: alguns aspectos de uma sociedade marítima africana”, Revista Internacional de
Estudos Africanos, no. 3 (1985), pp. 41-61; Phyllis M. Martin, “The Cabinda Connection: An
Historical Perspective”, African Affairs, vol. 76, no. 302 (1977), pp. 47-59. Sobre os rótulos
dados a eles como cabindas nas fontes portuguesas, Jill Dias, “Novas identidades africanas
em Angola no contexto do comércio atlântico” in Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almei-
da e Bela Feldman-Bianco (orgs.), Trânsitos coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros
(Campinas: Editora da Unicamp, 2007), pp. 315-43. Também as referências João de Mat-
tos E. Silva, Contribuição para o estudo da região de Cabinda, Lisboa: Typographia Univer-
sal1904; sobre a tradição que permanece no século XIX, “entre as fontes do século XIX é
difícil encontrar um homem [de Cabinda] de idade de 20 anos que não tenha estado no ex-
terior (fora de casa)”, p. 14. Sobre os canoeiros krus e sua diáspora, Elaine Ribeiro da Sil-
va dos Santos, “Nas engrenagens do tráfico: grupos africanos e sua atuação nos portos do
Golfo do Benin”, Anais do XIX Encontro Regional de História, ANPUH (2008). Vale ressal-
tar a presença de tripulantes cabindas e muxiloandas nas viagens negreiras entre Angola
e Cabo Frio, RJ, conforme inquérito que investigou a remessa de cativos em 1847, em “pal-
botes de Luanda”, embarcados em Cabo Lombo. Boletim do Governo Geral da Provincia de
Angola, vol. 85, 24 de abril de 1847, pp. 3-5.
104 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. I, p. 201.

500 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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No reino africano de Ambriz: as dinâmicas de um porto livre e a


continuidade dos negócios da firma Santos & Monteiro
Entre outros aspectos, a importância da narrativa de Tams como
fonte histórica deve-se ao registro de flagrantes do comércio semiclan-
destino de escravos tanto nas áreas sob a tutela e a administração dos
portugueses em torno de Luanda, ou nas cercanias de Benguela, Novo
Redondo e Moçamedes, como nas zonas consideradas de livre trânsito
e de livre comércio sob a autoridade das sociedades africanas. Ambriz,
para onde a expedição partiu depois dos entreveros em Luanda, era ponto
privilegiado da movimentação do comércio na primeira metade do XIX:
Nenhum domínio tinham os governos europêos neste
território; e, por consequência, não havia a mais pequena
restricção naquele infame trafico, tratando cada um do
negócio d’escravos franca e abertamente como lhe aprazia.
Estes desgraçados eram conservados nos “Kraals” dos
seus possuidores até a occasião do embarque; os quaes
os mandavam para bordo de dia e de noite conforme lhes
fosse mais conveniente.105

A historiografia tem apontado a importância crescente do tráfico


de escravos nas porções norte da África centro-ocidental, áreas tribu-
tárias aos mercados e às rotas que se abriam em direção ao estuário
e à bacia do rio Congo. Nessa região, os reinos de Ngoyo (e seu porto,
Cabinda), Kakongo (e seu porto, Malembo) e Loango (e o porto do mesmo
nome), bem como outros ancoradouros no rio Banana, Ponta da Lenha e
principalmente Boma, constituíam os terminais de importantes rotas
africanas que se desenvolveriam ainda mais em resposta às exigências
europeias e atlânticas. Zona em grande parte fora da influência direta
dos portugueses, foi frequentada por navios de todas as bandeiras, eu-
ropeus e americanos, que participavam do comércio atlântico desde o
século XVII. Ao lado disso, as restrições impostas em razão do controle
cada vez maior tanto da esquadra inglesa que policiava os mares, como
da efetivação das leis antitráfico da metrópole portuguesa, faziam com
que o centro das atividades dos tumbeiros se deslocasse das áreas ao
sul para o norte, uma região onde eram maiores as possibilidades de
negócios. 106 A dinâmica existente nessa fração da costa norte, entre os
finais do século XVIII e a primeira metade do XIX, o aumento do trato
de escravos, bem como o de mercadorias como o marfim, carregadas
nos ombros dos escravos, constituíam provas irrefutáveis de que as
restrições impostas eram ações unilaterais de europeus que obliteravam

105 Tams,Visita às possessões portuguezas, vol. I, pp. 111-2.


106 Susan Broadhead, “Trade and Politics on the Congo Coast (1770-1870)” (Tese de Doutora-
do, Boston University, 1971), p. iv.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 501
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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o fato de que as sociedades africanas eram parceiras indispensáveis e,


portanto, que a cessação dos negócios da escravatura dependia de seu
convencimento. 107
Nessa região, a praça mercantil de Ambriz encontrava-se articu-
lada a um intenso fluxo orientado pelo vale do rio Loje, chamado pelos
historiadores de o “corredor Ambriz”. Se ao longo da década de 1770 era
ancoradouro onde os grandes navios passavam ocasionalmente e que
atraía os pequenos sloopers das embarcações fundeadas em Cabinda
e em Loango, no decorrer do tempo a importância de Ambriz cresceu,
sobretudo com a intensificação da presença francesa e inglesa a partir
dos finais do século XVIII, 108 convertendo-se com isso em palco das ri-
validades das diferentes nacionalidades e das firmas ali estabelecidas.
Trata-se também, após a independência do Brasil, de ponto preferencial
de mercadores brasileiros que fugiam dos controles das autoridades de
Luanda.109 Anos mais tarde, o porto seria visitado por outros estrangeiros
que o descreveram como escala importante das rotas do norte de Angola
para o escoamento da produção de borracha.110
Politicamente, até a década de 1850 Ambriz constituía território
sob a soberania africana, tendo sobrevivido aos ataques portugueses dos
finais do século XVIII, com a vitória, em 1790, do Marquês de Mossul
sobre as tropas estrangeiras. Reino que manteve sua independência até
a conquista pelos portugueses em 1855, 111 foi cenário de disputas entre

107 Entre outros autores, posição manifesta por Catherine Coquery-Vidrovitch, “L’esclava-
ge en Afrique et l´Atlantique au XIXème siècle”, texto apresentado para discussão no Se-
minário Internacional O século 19 e as novas fronteiras da escravidão e da liberdade,
Unirio, UFRJ, USP e Universidade Severino Sombra, Rio de Janeiro, agosto de 2009, p. 8.
108 Broadhead, Trade and Politics, p. 52; Phyllis Martin, “The Trade of Loango in the 17th and
18th Centuries”, in David Birmingham e Richard Gray (orgs), Pre-colonial Trade: Essays
on Trade on Central and Eastern Africa before 1900 (Oxford: Oxford University Press,
1970), pp. 139-161. A historiadora destaca ser esta uma região de intensas rivalidades
entre portugueses, franceses, ingleses e norte-americanos, o que ocorria também mais ao
norte nos reinos de Loango, Kakongo e Ngoyo.
109 Douglas Wheeler, “The Portuguese in Angola, 1836-1891: a Study in Expansion and Ad-
ministration” (Tese de Doutorado, Boston University, 1963), pp. 79-82. Utilizando-se do
testemunho de William Owen, em Narrative of voyages, de 1832, nota que os brasileiros,
após a independência, não estando mais sujeitos às leis de navegação de Portugal, fre-
quentavam com assiduidade os portos do norte.
110 Heintze, Pioneiros africanos, p. 308; Jelmer Vos, “The Economics of the Kwango Rub-
ber Trade, c. 1900”, in Beatrix Heintze e Achim von Oppen (orgs.), Angola on the Move:
Transport Routes, Communications and History (Frankfurt am Main: Otto Lembeck
Verlag, 2008), pp. 85-98. Sobre as dinâmicas e as rotas comerciais que confluíam
para Ambriz, ver Wissenbach, “Dinâmicas históricas de um porto centro-africano’, já
mencionado.
111 Sobre a ocupação de Ambriz, René Pélissier, História das campanhas de Angola: resistên-
cia e revolta (1845-1914), Porto: Editora Estampa, 1986, pp. 126-128.

502 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

estes e os britânicos e para as quais seria mobilizado o argumento do


direito histórico dos portugueses nas áreas africanas em que sua presença
havia sido secular, sobretudo a partir das argumentações dos Viscondes
de Sá da Bandeira e de Santarém. 112 Diante do quadro de disputas, não
é de se estranhar o fato da referência a Ambriz ter sido destacada na
divulgação da obra de Tams, exatamente pelas descrições sobre o “quase
desconhecido reino de Ambriz”, e observada por homens como Ritter e
Evans Lloyd, vinculados ambos às sociedades de geografia europeias.
Ao se aproximar da costa, foi nesse trecho da viagem que Tams avis-
tou a esquadra britânica antitráfico e entrou em contato com as grandes
lanchas de guerra que, saídas do brigue Water Witch (A Feiticeira das
Águas), faziam suas incursões em terra muitas vezes destruindo não só
os barracões dos negreiros como também as habitações dos africanos e
matando os escravos neles guardados.113 Muito bem armadas com pesada
munição, essas lanchas eram temidas pela ação contra os “traficantes
d’escravatura” e pelos excessos cometidos por suas tripulações que
“surpreendiam amiudadas vezes os habitantes que viviam espalhados
pela costa, apoderando-se por vontade ou por força, das provisões de
que careciam”: “logo depois da visita que nos fizemos, lançaram fogo a
differentes cabanas de negros; e alguns dos escravos que nelas haviam
sido alojadas se escapuliram effectivamente, mas, também o marfim que
nellas existiam veio parar a bordo dos navios, talvez fosse a que os induzia
mais frequentemente a tais semelhantes surprezas [...].”114
Uma vez em terra, Tams descreveu a animação do porto africanomo-
vimentado pela chegada de caravanas vindas do sertão remoto, carregadas
de mercadorias que abarrotavam os armazéns: dentes de elefante e de
hipopótamo, gomas e ceras em quantidade que o surpreenderam. Na re-
gião portuária ele identificou os armazéns dos mercadores estrangeiros,
chamados de kraals, sendo três deles de portugueses, três de norte-ame-
ricanos e um de brasileiro, servidos por cerca de 150 a 200 pessoas, na
maioria africanos livres – bases de grandes casas comerciais da Europa,

112 Visconde de Sá da Bandeira, Factos e considerações relativas aos direitos de Portugal


sobre os territórios de Molembo, Cabinda e Ambriz e mais logares na costa occidental
d´Africa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1855; Manuel Francisco de Barros (2º Visconde de
Santarém), Demonstração dos direitos que tem a coroa de Portugal sobre os territórios
situados na costa occidental d’Africa entre o 5º grau e 12’’ e o 8º de latitude meridional e
por conseguinte aos territórios de Molembo, Cabinda e Ambriz, Lisboa: Imprensa Nacio-
nal, 1855. Sobre a questão dos direitos históricos e sobre os viscondes, ver Henriques, Per-
cursos da modernidade, pp. 34-35.
113 Na historiografia sobre o tema, a narrativa de Tams é largamente utilizada para docu-
mentar a atuação do esquadrão africano e do brigue britânico Water Witch, bem como as
ações de suas tripulações em terra e os incêndios indistintos dos barracões: Pires, “Tráfico
ilegal de escravos”, pp. 89-91; Reis, Gomes e Carvalho, O alufá Rufino, especialmente pp.
180-189.
114 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 104.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 503
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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da América ou mesmo de Luanda. 115 Seu relato enfatizou de forma clara


a dominância do comércio de escravos nessa região – “o commercio da
escravatura era o único de que aqui se tratava” 116 – embora se verifiquem
algumas exceções. Entre elas, é certo que “se achava incluída a casa do
senhor Ribeiro dos Santos, que havia ali estabelecida há alguns mezes; e
em que só o escambo com o marfim lhes produzia grandes resultados”. 117
Considerando os acordos que a comitiva realizou com o dirigente do reino
de Ambriz, a visita de Tams sugere a continuidade da expedição e dos
negócios que a firma Ribeiro Santos & Monteiro, mesmo com a morte de
seu chefe, fez questão de manter.
No que diz respeito à viagem, foi essa uma das raras ocasiões em que
o médico se deslocou da costa para visitar o interior, tendo oportunidade
de descrever com minúcias a corte do reino de Ambriz e a recepção dada
aos europeus em Quibanza, a cerca de três léguas da costa. Nessa excur-
são, Tams avaliou os usos e costumes de seus habitantes, as formas de
moradia e recolheu apetrechos e imagens que, segundo Beatriz Heintze,
seriam levados por ele para a Europa – cestos, pentes, peças de vestuário,
adornos e feitiços – e mais tarde depositados no Museu de Etnologia de
Lipsia, na Saxônia.118 “Obtive, pois, bastantes arcos, setas, e algumas aza-
gaias de ferro, ornadas na parte inferior com cabello de cabra, algumas
cacheiras de pão pesado, bastantes lanças de sete pés de comprido, pouco
mais ou menos, duas adagas, e um sabre muito bem acabado, dum negro
de S. Salvador”.119
O viajante considerou “os negros de Ambriz de inteligência superior”,
em comparação com outros grupos africanos e, da mesma forma que com
os de Cabinda, atribuía isso ao estado político e moral desses povos, como
também de estarem afastados dos missionários portugueses. Segundo

115 Broadhead, Trade and Politics on the Congo Coast, p. 144. Também num ofício datado de
1840, feito a mando do governador geral de Angola, encontram-se listadas algumas des-
sas “barracas”: de Luís Antônio de Carvalho Castro, Francisco Teixeira de Miranda, José
Francisco Roxa (todos eles portugueses) e dois norte-americanos, Charles Chuttz (ou
Schutz?, como cita Tams) e Francisco Sexton. A maioria deles condicionava em seus depó-
sitos mercadorias como pólvora, armas, pontas de marfim, vinho, aguardente e uma gran-
de diversidade de fazendas. AHU, Correspondência dos governadores de Angola, Inventá-
rio das barracas do Ambriz em 1841, pasta 4, ofício 165, doc. 4, “Exame que se procedeo
nas fazendas, e mais gêneros, existentes nas barracas do Ambriz”, Ambriz, 6 de novembro
de 1840. Agradeço a Aldair Carlos Rodrigues a ajuda na localização deste documento. So-
bre os barracões africanos, ver Rodrigues, De costa a costa, particularmente pp. 67-73;
Marques, “Tráfico e supressão no século XIX”, p. 157: “traço típico destes estabelecimen-
tos permanentes criados pelos agentes das casas brasileiras e cubanas espalhados pelos
portos e rios africanos”.
116 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 111.
117 Idem, p. 113.
118 Heintze, Exploradores alemães em Angola, p. 391.
119 Tams, Visita às possessões portuguezas, vol. II, p. 130.

504 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

ele, uma prova dessa superioridade era o fato de não serem observadas
nos seus corpos as incisões características dos demais africanos que
encontrara em sua viagem.
Na oportunidade da visita, Tams observou a corte de d. André, o dig-
nitário do reino, não economizando ironias e desqualificações; descreveu
atentamente suas vestimentas, algumas delas de origem nitidamente
europeia, e suas insígnias: “um bastão de cana cravejado de reluzentes
cabecinhas de pregos de cobre” e um barrete, segundo o médico, a parte
mais jocosa de seu equipamento de poder: feito de esteira, cheio de pregas
e que se acomodava mal à sua cabeça. Em torno do rei, encontravam-se
seus principais colaboradores, chamados de mafooks, intermediários nas
negociações com os mercadores no porto, uma vez que ao rei era interdi-
tada a visão do mar. 120 Enumerou ainda alguns dos presentes que haviam
sido trazidos de Hamburgo, entre eles “botas russianas pomposamente
bordadas” que, calçadas e combinadas com certa nudez, davam-lhe uma
fisionomia ridícula. No entanto, em que pesem tais observações, tudo
indica que as relações eram amistosas e prevalecia o reconhecimento
mútuo de autoridades. Em determinado momento do encontro, o rei
indagou sobre a doença que havia tirado a vida de Ribeiro dos Santos e
lamentou sua morte.
Subjacente a todo o cerimonial de recepção na corte de d. André,
descrito por Tams, fica clara a intenção dos visitantes em estabelecer um
acordo político que reconhecesse o direito da casa de Santos & Monteiro
em comercializar no porto de Ambriz. Nas conversações, os agentes da
firma hamburguesa prometiam observar restritamente as leis e os cos-
tumes do país, em troca de proteção, comprometendo-se a pagar multas
no caso de infrações, dando, portanto, continuidade aos negócios da firma
na África centro-ocidental.

Epílogo: José Ribeiro dos Santos, os desafios à Coroa e


as feitorias da urzela
Nas considerações feitas neste artigo tem sido possível reavaliar
o empreendimento e as intenções de negócio de Ribeiro dos Santos,
informados somente em parte pelo texto de Georg Tams. A princípio, é

120 Tal como ocorria em outros reinos, sobretudo quando as capitais se localizavam no inte-
rior; a interdição foi verificada no Congo e entre os costumes do reino de Abomey, cf. Co-
query-Vidrovitch, “L’esclavage en Afrique et l’Atlantique”, p. 5. Antonio Gil refere-se tam-
bém a isso: “É uma coisa notável que quanto maior é o poder destes régulos, que se cha-
mam Sobas, Dembos, Jagas etc. mais coartada tem a liberdade. O Rei do Congo, como é sa-
bido, não pode chegar às suas praias nem vêr o mar. E o Matianvo não pode sair de casa. É
uma espécie de veto à moda deles, tendente ao que parece, a limitar-lhes o poder. Mas a
base ou a sanção de tudo são os agoiro.” Gil, Considerações sobre alguns pontos mais im-
portantes da moral religiosa, p. 14.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 505
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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possível concluir que a intensificação do comércio entre a costa da África


e as cidades do norte europeu, bem como as relações entre Lisboa e os
portos hanseáticos foram metas do consulado de José Ribeiro dos Santos,
reveladas na documentação diplomática e na correspondência assídua
que o cônsul manteve com os Ministros dos Negócios Estrangeiros, entre
eles o Visconde de Sá da Bandeira. Em outra direção, a obra de autoria
de Ribeiro dos Santos, Traité du Consulat, publicada em Hamburgo em
1839, sistematizava, além das regras que ele considerava substantivas
para os emissários portugueses no exterior, as funções destes como porta-
vozes dos interesses mercantis da Coroa, como representantes judiciais
nas querelas que envolviam os portugueses residentes nos locais em
que serviam e, na época em questão, como responsáveis por promover o
combate ao tráfico de escravos.
Assim, em vários sentidos, a atuação de Ribeiro dos Santos era
exemplar. Durante sua gestão diplomática, preocupava-se com a situação
política dos países da Europa e com a de Portugal, envolvia-se nas lutas
travadas na metrópole, representava os direitos de Portugal em conver-
sações com a diplomacia britânica, lutava em prol dos direitos comerciais
preferenciais que seu país natal, do qual era fiel servidor, poderia obter.121
Controlava o movimento dos navios de bandeira portuguesa, assistia a
náufragos portugueses e também acompanhava processos ruidosos nos
tribunais locais sobre a suspeição de tráfico de escravos, uma vez que as
cidades hanseáticas haviam igualmente assinado tratados antitráfico
com a Grã-Bretanha. 122 E, após esses embates, abrigava os tripulantes
portugueses envolvidos nesses processos em suas próprias embarcações.
Quanto ao comércio africano, a grande meta dos últimos anos de sua
vida, pode-se afirmar que seus horizontes eram sem dúvida mais amplos
do que o trato da escravatura, contra o qual por vezes se manifestara. As
mercadorias que seus navios portavam eram escolhidas ao gosto das socie-
dades africanas, mas também atendiam às necessidades das populações de
origem europeia estabelecidas nas cidades luso-africanas. Isso explicava
em parte suas ligações com os negociantes mencionados por Tams, uma
vez que, com tecidos, miçangas, bebidas e armas e outros produtos vindos
do norte da Europa e de Portugal se compravam indistintamente marfim,
escravos, cera, urzela e óleos. Além disso, dependendo do produto que se
pretendia negociar, os locais de obtenção poderiam ser os mesmos. No
contexto dessa íntima correspondência, Valentim Alexandre colocou as

121 AHD-MNE, Lisboa, Consulado em Hamburgo, Caixa 487, 1833-1859, onde se concentra a
documentação referente a seu consulado.
122 Harral Laudry, “Slavery and the Slave Trade in Atlantic Diplomacy, 1850-1861”, The Jour-
nal of Southern History, vol. 27, no. 2 (1961), pp. 184-207; Lawrence Hill, “The Abolition of
the African Slave Trade to Brazil”, The Hispanic American Historical Review, vol. 11, no. 2
(1931), p. 165.

506 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

chamadas “feitorias da urzela” – “pontos de apanha do musgo, em que se


utilizava a mão-de-obra cativa, situados em locais que permitiam o acesso
dos navios”, mas, de certo, segundo ele, igualmente portos de exportação
de escravos vindos do interior e utilizados numa atividade produtiva
enquanto aguardavam o embarque.123 Não resta dúvida que Ribeiro dos
Santos mantinha muitos desses estabelecimentos, sobretudo em pontos
do litoral ao sul de Benguela.
Para além das transações com os mercadores negreiros, a razão da
semiclandestinidade que o empreendimento de Ribeiro dos Santos deixava
transparecer tornou-se relativamente mais clara quando ficou patente a
intenção firme do comendador em comercializar uma matéria-prima cuja
importância era crescente nas indústrias têxteis da época: a urzela. Em
ofício dirigido por ele a d. Maria II, como também ao Conselho de Governo
sediado em Luanda, nos inícios de novembro de 1841, Ribeiro dos Santos
requeria com energia a liberação de seus navios, parados no porto e carre-
gados desse produto que pretendia transportar para Londres.124
Entre outras mercadorias do escambo africano, a urzela125 utilizada
na tintura de tecidos, sobretudo nas indústrias inglesas e holandesas
constituía-se exclusivo da coroa desde cerca de finais do século XVIII.126
Ao contrário de outros gêneros, como o marfim e a cera, cuja comercia-
lização já havia sido liberada, ainda eram mantidas interdições ao seu
comércio, sendo somente autorizada sua exportação a partir de 1837,
em navios portugueses, para portos portugueses.127

123 Valentim Alexandre, Origens do colonialismo português moderno, Lisboa: Sá da Costa


Editora, 1979, p. 52.
124 AHU, SEMU, DG, Correspondência de Angola, Ordem 594. “Ofício do Comendador José Ri-
beiro dos Santos, em 2 de novembro de 1841”.
125 “O que vulgar e mercantilmente se chama urzela, é a fécula roxa que se prepara de duas
espécies de líquenes, a qual dissolvida em água quente,dá na tinturaria grande número
de cores de mais ou menos estimações [...] a melhor e mais estimada é a que se prepara em
Inglaterra, Itália, e ainda na mesma França, e Holanda, com a verdadeira erva urzela das
ilhas do arquipélago, Canárias, Cabo Verde etc. e por isso conhecida por esses nomes”. E,
mais adiante, “conhecida com o sistema de Lineu com o nome de LICHEN ROCCELLA [...],
cresce pelos rochedos, os mais áridos e expostos de ordinário aos vapores do mar, em mui-
tas ilhas, como são as do arquipélago do Levante, as das Canárias, Madeira, Porto Santo,
Açores, e as de Cabo Verde, onde se acha em abundância”: João da Silva Feijó, “Memória so-
bre a urzela de Cabo Verde”, in Ensaio e memórias econômicas sobre as ilhas de Cabo Ver-
de (século XVIII). Apresentação e comentários de António Carreira, Lisboa: Academia de
Ciências de Lisboa, 1986, p. 35.
126 Feijó, “Memória sobre a urzela de Cabo Verde”, p. 40.
127 Segundo Valentim Alexandre, o Decreto de 17 de janeiro de 1837, que manteve o exclu-
sivismo da metrópole na comercialização da urzela, ficou sendo este o único; o mono-
pólio, segundo o autor, atendia aos desejos da burguesia mercantil lisboeta na manu-
tenção de preços inferiores e na obtenção de lucro suplementar na comercialização do
musgo com outros países da Europa. Cf. Alexandre, Origens do colonialismo português
moderno, p. 46.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 507
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
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A importância do produto vinha sendo apontada desde a época


pombalina, como um dos que poderiam dinamizar as relações econômicas
entre Portugal e suas conquistas.128 Mais tarde, em Angola, parece ter sido
redescoberta como produto comercialmente viável, em torno de 1838,
quando um relatório do governo colonial observava a enorme disponi-
bilidade do musgo em toda a província.129 Tempos depois, seria também
matéria destacada por Arsênio de Carpo quando, em correspondência
com o Visconde de Sá da Bandeira, datada de maio de 1851, propagava a
necessidade de uma rápida anexação de Ambriz, em razão dos depósitos
do produto que poderiam ser lá encontrados. Segundo ele, seria essa a
forma mais adequada de coibir a presença constante de navios estrangeiros
empenhados na comercialização da urzela, como também de contornar
a resistência dos habitantes dessa região em explorar o produto, uma
vez que “os pretos daquelle lugar dizião que aquele musgo era feitiço
que sendo tirado das árvores, nunca mais desembarcavão escravos”, e
completava: “Já que Francezes e Hamburguezes ali vem direitos tomar
a nossa urzella a frete e levao a Londres [...] O movimento é grande, e
seguro, tudo trabalha por ter urzella, marfim, azeite, gomas, café, tabaco,
e mil outros gêneros do país, já [que] a 7 meses que não se fala de hum
embarque de escravos” 130
Voltando ao cônsul, o que se conclui desse episódio é que, embora
representante de Portugal nas cidades do Elba e do Báltico, amigo de Sá
da Bandeira e mantendo relações estreitas com a rainha, encontrava-se
constrangido pela Coroa em seus objetivos maiores e, exatamente por
isso, mostrava-se disposto a atuar fora de suas determinações. Contando
com o beneplácito do governo de Luanda, infringiu regras e compartilhou
com os negreiros a habilidade na burla e nos subterfúgios, bem como a
preferência por locais em que a ingerência fiscal portuguesa não se fazia
presente. É quase certo que as longas estadias em Benguela, bem como a
projeção da expedição em direção à Ambriz – que ocorreu depois de sua
morte em 1842 – estariam relacionadas a isso. Em oficio dirigido à rainha,
em novembro de 1841, chegava a intimar a figura real:
Por sua justiça e amor pelo bem do paiz, a que tanto
serviços há feito, não houver por bem suspender o embargo
da urzella, terei de dar a vella para Ambriz e outros lugares
independentes vizinhos, para alli vender e trocar os
carregamentos de meus navios – Vasco da Gama, Camões,

128 Antonio Carreira, As companhias pombalinas do Pará e do Maranhão, e Pernambuco e Pa-


raíba, Lisboa: Editorial Presença, s.d., p. 201.
129 Henriques, Percursos da modernidade, p. 558, fornece informações sobre o produto ex-
traído em Kissama e ao longo do litoral sul de Benguela.
130 AHU, Sá da Bandeira, Documentos, Ordem 825, Pasta sem número, “Carta dirigida ao vis-
conde de Sá da Bandeira, 20 de maio de 1851, por Arsênio Pompeu Pompílio”.

508 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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Sultana, Georgina, Esperança e Marianna Hedwiges, e


perderá assim o Erario o direito que eu teria a pagar como
acima deixo dito, alem d´elle mais o da sahida da urzella. V.
Excia ordenará o que em sua sabedoria julgar conveniente.
Assinado: o Consº José Ribeiro dos Santos. 131

Alguns dias depois desse ofício, contrariando as determinações


da Coroa, e em troca dos direitos relativos à exportação, o Conselho de
Governo de Angola, dirigido pelo então governador Manuel Eleutério
Malheiro, liberou os navios carregados de urzela em direção a Londres. A
condenação desse ato veio a seguir: em oficio de S.M., d. Maria II, datado
de 12 de junho de 1842, a rainha condenava o flagrante desrespeito ao
decreto de 17 de janeiro de 1837, exigindo a retratação dos envolvidos e o
depósito nos cofres da Coroa dos valores recebidos pelo ato de desacato.132
No entanto, em data posterior, mas muito próxima à do incidente,
cairiam também por terra tais interdições, motivadas substancialmente
pela crescente importância das exportações de urzela entre os anos de
1838 a 1841. Como porta-vozes desses interesses, os mercadores de
Luanda, entre eles d. Ana Joaquina dos Santos Silva, foram signatários de
um requerimento, pedindo que lhes fosse concedido o direito de “exportar
para portos estrangeiros [...] até 30 mil arrobas de urzella”, evitando o
empate e o estrago do produto que então ocorria com frequência. 133 Por
volta de 1860, já eram significativas a recolha e a exportação do produto
na região de Moçamedes, utilizando-se predominantemente escravos. 134
Assim, numa realidade marcada por intensas transformações, a liberação
do comércio africano nas áreas de presença lusa coadunava-se com os
interesses dos mercadores de Luanda e de Benguela e com a pressão
indiscutível das sociedades africanas envolvidas com o comércio da cera,
do marfim e da urzela e a ressonância disso nas ações dos mercadores
atlânticos, europeus e americanos.

131 AHU, SEMU, DG, Correspondência de Angola, “Oficio do comendador José Ribeiro dos San-
tos, em 2 de novembro de 1841”; e cópia da “Acta da Sessão do Conselho de Governo, de 8
de novembro de 1841 e 15 de novembro de 1841”.
132 AHU, SEMU, DG, Correspondência de Angola, Ordem 597, “Ofício de S. M. ao Conselho, em
12 de julho de 1842, reprovando o desrespeito ao Decreto de 17 de janeiro de 1837”, que
permitia somente aos navios portugueses a exportação da urzela a portos portugueses.
133 Requerimento dirigido pelos negociantes de Loanda, “pedindo a Exportação da Urzella
para portos estrangeiros, em navios estrangeiros e nacionaes”, Luanda 1 de outubro de
1848, apud José de Almeida Santos, “Reflexos do decreto de Sá da Bandeira proibitivo do
tráfico da escravatura”, Trabalho – Boletim do Instituto do Trabalho, Previdência e Acção
Social, no. 38, (1972), 105-107.
134 Ferreira, “O significado e os métodos do tráfico ilegal”, pp. 138-139. O autor discute e
transcreve trechos da petição de 13 de abril de 1861 dos produtores de urzela na região
de Moçamedes, entre eles Ladislau Américo Magyar, contra comerciantes que ainda rea-
lizavam o tráfico de escravos.

AS FEITORIAS DE URZELA E O TRÁFICO DE ESCRAVOS: GEORG TAMS, JOSÉ RIBEIRO DOS SANTOS E OS 509
NEGÓCIOS DA ÁFRICA CENTRO-OCIDENTAL NA DÉCADA DE 1840
CAPÍTULO 16

resistênCiA À esCrAvidão nA ÁfriCA:


o CAso dos esCrAvos fUGitivos reCAptUrAdos
eM AnGolA, 1846-1876 1
José C. Curto

Este ensaio trata de dois problemas que, embora distintos para


alguns, fazem parte de um único processo histórico. O primeiro é o da
resistência à escravidão. Este tema tem recebido grande atenção acadê-
mica nas Américas, onde o fenômeno é apresentado essencialmente como
endógeno. Em terras africanas, a fonte dos milhões de cativos deportados
para as Américas, a resistência à escravidão não era menos significativa.
Todavia este fenômeno tem recebido comparativamente pouca atenção por
parte de africanistas. Entre os casos relativos às terras africanas sobre
as quais existe alguma literatura, o de Angola mostra claramente que a
resistência à escravidão, especialmente a fuga, possui um passado tão
longo quanto agudo. A segunda parte deste ensaio enfoca mais de três mil
casos de escravos fugitivos recapturados em Angola entre 1846 e 1876.
A informação quantitativa aqui apresentada é meramente preliminar.2
Mesmo assim, articulados com a historiografia existente, os números
indicam uma cultura de resistência à escravidão que se prolongou até

1 Versões anteriores deste artigo, originalmente escrito em inglês, foram apresentadas


ao Workshop on Database Construction and the African Diaspora, York University, To-
ronto, 2-12/07/2002; às conferências Escravidão Africana e Tráfico Atlântico nas Amé-
ricas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 02-04/06/2003 e Rompiendo el Silen-
cio: Identidades, Racismo y Exclusión, Universidad de Costa Rica, 06/02/2004; e ao Pro-
grama de Mestrado em História de África, Universidade de Lisboa, 29/06/2004. Meus
agradecimentos a Mariana P. Candido pela revisão da tradução em português e a Jeremy
R. Ball, Paul E. Lovejoy, Joseph C. Miller, Isabel Castro Henriques, Mariza de Carvalho
Soares e Rina Cáceres pelos comentários construtivos. O texto foi revisado pelo autor e
pelos organizadores desta coletânea.
2 Esta informação faz parte de uma base da dados que corrobora a minha pesquisa em anda-
mento, “Resistance to Slavery: Recaptured Slaves in Angola, 1846-1876”, generosamente
financiada pela Faculdade de Letras da Universidade de York, Toronto.

511
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os últimos dias da instituição. Em suma, o fenômeno da resistência à


escravidão não tem suas origens nas Américas, mas em terras africanas,
dando assim início a um processo histórico que transcendeu as partes
constituintes do mundo atlântico.
Quando, em 1969, Philip Curtin publicou sua avaliação do tráfico
atlântico de escravos, ele nos deixou muito mais do que uma correção
na história das estimativas então correntes sobre a maior migração no
mundo antes do princípio do século XIX. 3 Este trabalho deu origem a
uma verdadeira indústria de publicações sobre o tráfico de escravos e
a escravidão na África.4 Esta literatura, por sua vez, tornou-se um dos
temas principais da nova historiografia africana. Mas nem todos os as-
pectos do tráfico de escravos ou da escravidão na África têm recebido a
mesma atenção acadêmica. Entre os temas negligenciados está a questão
da resistência, uma problemática por cuja investigação os historiadores
da África têm mostrado pouco interesse. Até hoje, a literatura publicada
especificamente sobre esta questão permanece comparativamente peque-
na, com uma única coletânea de ensaios5 e uns quarenta trabalhos entre
artigos em periódicos e capítulos de livros. 6 Além destes trabalhos, existe
um pequeno número de monografias que enfocam esta problemática, 7 e
outras que tratam o tema ainda que em breves passagens.8

3 Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison: University of Wisconsin
Press, 1969.
4 A literatura é vasta demais para ser citada aqui. Entretanto, ver a bibliografia das fontes
secundárias em Paul E. Lovejoy, Transformations in Slavery: A History of Slavery in Afri-
ca, 2a ed., Cambridge: Cambridge University Press, 2000. Desde então, essa bibliografia
cresceu ainda mais, naturalmente.
5 Sylviane A. Diouf (org.), Fighting the Slave Trade: West African Strategies, Athens, OH:
Ohio University Press, 2003.
6 Ver as notas 18 até 21.
7 Robert Ross, Cape of Torments: Slavery and Resistance in South Africa, Londres: Routledge
& Kegan Paul, 1983; Nigel Worden, Slavery in Dutch South Africa, Cambridge: Cambridge
University Press, 1985; Fred Morton, Children of Ham: Freed Slaves and Fugitive Slaves on
the Kenya Coast, 1873-1907, Boulder: Westview Press, 1990; Paul E. Lovejoy e Jan S. Ho-
gendorn, Slow Death for Slavery: The Course of Abolition in Northern Nigeria, 1897-1936,
Cambridge: Cambridge University Press, 1993; Robert C. Shell, Children of Bondage: A So-
cial History of the Slave Society at the Cape of Good Hope 1652-1838, Hanover, NH: Univer-
sity Press of New England, 1994; John Edwin Mason, Social Death and Resurrection: Slav-
ery and Emancipation in South Africa, Charlottesville: University of Virginia Press, 2003.
8 Richard Roberts, Warriors, Merchants and Slaves: the State and the Economy in the Mid-
dle Niger Valley, 1700-1914, Stanford: Stanford University Press, 1987; Ann OʼHear, Pow-
er Relations in Nigeria: Ilorin Slaves and their Successors, Rochester: University of Roch-
ester Press, 1997; Martin Klein, Slavery and Colonial Rule in French West Africa, Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1998; Peter Haenger (editado por J. J. Shaffer e Paul
E. Lovejoy), Slaves and Slave Holders on the Gold Coast: Towards an Understanding of So-
cial Bondage in West Africa, Basel: P. Schlettwein Publishing, 2000. Segue no final deste
capítulo uma amostra da produção sobre o tema da resistência escrava na África desde a
publicação deste capítulo na Afro-Ásia.

512 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O número reduzido de estudos sobre a resistência ao tráfico de


escravos e à escravidão na África tem produzido uma série de anomalias
historiográficas. A resistência escrava é um fenômeno que especialistas
do tráfico de escravos e da escravidão nas Américas têm pesquisado in-
tensivamente desde as primeiras décadas do século XX. 9 Uma estimativa
recente desta produção acadêmica mostra que existem cerca de oitenta
trabalhos, somente em termos de estudos principais.10 Visto o número
reduzido de historiadores da África que têm tratado esta temática, não
surpreende que a resistência à escravidão tenha sido quase exclusiva-
mente associada às experiências de africanos e seus descendentes no
lado ocidental do Atlântico, particularmente no contexto da escravidão
rural.11 Em outras palavras, a historiografia existente sobre a resistência
à escravidão indica ser este um fenômeno próprio das Américas.
Assim, uma oportunidade importante de ilustrar a história africana
como parte integrante dos desenvolvimentos globais tem sido negligen-
ciada.12 Tal já havia sido percebido em 1986, quando Richard Rathbone
alertou para “uma compreensão mais profunda da cultura de resistência
evidenciada pelos documentos e firmemente enraizada em terra africa-
na”, que subsequentemente se tornou “parte da bagagem cultural que os
emigrantes forçados levaram consigo para as Américas”. Sendo assim,

9 Particularmente, nos Estados Unidos. Joseph C. Carroll, Slave Insurrections in the United
States, 1800-1865, Boston: Chapman & Grimes, 1938, e Herbert Aptheker, American Ne-
gro Slave Revolts, Nova York: International Publishers, 1943, são reconhecidos como os
pioneiros neste campo de estudos. Todavia, historioradores norte-americanos não “inven-
taram” os estudos sobre a resistência à escravidão. Ver, por exemplo: C. L. R. James, The
Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution, Nova York: Dial
Press, 1938; Raimundo Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1932 [1906], capítulos sobre o quilombo de Palmares e as revoltas baianas
do século XIX.
10 Aida Freudenthal, “Os quilombos de Angola no século XIX: A recusa da escravidão”, Estu-
dos Afro-Asiáticos, no. 32 (1997), pp. 109-134.
11 Uma historiadora norte-americana, especialista em história da África, admitiu com gran-
de franqueza que a “historiografia sobre a África ainda não capturou o horror e o terror
que acompanharam a dimensão africana do tráfico de escravos. Dentro da história mun-
dial é à narrativa daqueles que vieram a ser escravos nos Estados Unidos que foi dado lu-
gar de honra e que representou uma crônica universal de sofrimento, angústia e triunfo
eventual. Mas a agenda política contemporânea dos descendentes de africanos tem pro-
vocado o desvio da atenção dos historiadores das abordagens complexas e das narrati-
vas contraditórias das circunstâncias sob as quais estas pessoas foram escravizadas, as-
sim como da história dos africanos escravizados que não foram enviados às Américas, ao
além-Saara e oceano Indico, mas que permaneceram no continente africano. Em outras
palavras, este silêncio assustador cria um vazio onde as vozes e experiências dos africa-
nos no continente deveriam ser articuladas”. Ver Carolyn A. Brown, “Epilogue: Memory
as Resistance: Identity and the Contested History of Slavery in Southeastern Nigeria, an
Oral History Project”, in Diouf (org.), Fighting the Slave Trade, p. 219.
12 Um apelo potente para a reintegração do passado africano em correntes mais amplas
da história mundial encontra-se em Joseph C. Miller, “Presidential Address: History and
Africa/Africa and History”, American Historical Review, vol. 104, no. 1 (1999), pp. 1-32.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 513


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

afirmou Rathbone, “um conhecimento profundo dos elementos africanos


no mundo criado pelos escravos” permanecia uma ilusão.13 Mais recente-
mente, em 2001, David Richardson se colocou na obrigação de levantar o
mesmo ponto. Lamentando o fato de a “literatura acadêmica estar dema-
siadamente concentrada sobre a resistência nas Américas”, ele também
insistiu em que as “revoltas baseadas nas plantações eram somente um
elemento no aspecto da resistência que transcendia a África, a passagem
pelo Atlântico e as Américas.”14 Sem um conhecimento profundo das ori-
gens deste processo, ele reafirmou ser impossível apreciar plenamente “o
impacto da África e dos africanos na organização e ampliação do tráfico
atlântico de escravos, assim como a importância do tráfico de africanos
escravizados no desenvolvimento da história atlântica.”15
Outra anomalia historiográfica relacionada à reticência dos historia-
dores da África em investigar a resistência escrava é a maneira singular
com que a escravidão no continente africano, em termos de instituição,
tem sido representada. Quando, em 1977, Suzanne Miers e Igor Kopytoff
publicaram sua síntese sobre a escravidão na África, pintaram um fenô-
meno muito diferente da escravidão no resto do mundo, incluindo aquela
existente no Sul dos Estados Unidos. Miers e Kopytoff apresentaram uma
instituição que era marginal nas sociedades africanas, por natureza benigna
e, consequentemente, mais aceitável para os próprios escravos. O fato de
que os historiadores da África tenham documentado poucas revoltas de
escravos, confrontos armados e atos de sabotagem (iniciativas dramáticas
que certos pesquisadores têm utilizado na tentativa de avaliar a dureza
da instituição) somente confirmaria esta narrativa. Estudos contrários
à tese de Miers e Kopytoff foram quase imediatamente apresentados.16
Contudo, a ideia de uma instituição essencialmente marginal e benigna,
aceita largamente por escravos na África, continua viva. Tentando explicar
o que pensa ser a pouca “evidência documental de resistência escrava

13 Richard Rathbone, “Some Thoughts on Resistance to Enslavement in West Africa”, in Gad


Heuman (org.), Out of the House of Bondage: Runaways, Resistance and Marronage in Af-
rica and the New World, Londres: F. Cass, 1986, p. 11.
14 David Richardson, “Shipboard Revolts, African Authority and the Atlantic Slave Trade”,
William and Mary Quarterly, 3a série, no. 58 (2001), p. 69.
15 Idem.
16 Além dos trabalhos citados nas notas 6 e 7, ver, por exemplo: Frederick Cooper, “Review
Article: The Problem of Slavery in African Studies”, Journal of African History, no. 20
(1979), pp. 103-125; Lovejoy, Transformations in Slavery; Claire C. Robertson e Martin
A. Klein (orgs.), Women and Slavery in Africa, Madison: University of Wisconsin Press,
1983; Patrick Manning, Slavery and African Life: Occidental, Oriental, and African Slave
Trades, Nova York: Cambridge University Press, 1990; Claude Meillassoux, The Anthro-
pology of Slavery: The Womb of Iron and Gold, Chicago: University of Chicago Press, 1991;
James Searing, West African Slavery and Atlantic Commerce, Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1993.

514 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

na África Ocidental durante o período do tráfico atlântico se comparado


com o observado no Novo Mundo”, um historiador sugeriu recentemente
que o fenômeno só pode ser visto como “um reflexo de diferenças funda-
mentais nos regimes laborais e nas experiências dos escravos nas duas
margens do Atlântico.” Para este historiador, “a mistura das lutas e das
oportunidades relativas de alguma mobilidade dentro das sociedades
tradicionais da África Ocidental explicam a resignação aparente dos
escravos à sua condição e a falta concomitante de grande resistência
ativa na documentação existente.” Na África, os escravos gozavam “de
uma medida considerável de confiança, latitude e mobilidade social.” 17
Sendo assim, era impossível que tal instituição, tão singular e benigna,
produzisse “grande resistência ativa” do mesmo modo que aconteceu no
Novo Mundo.
Todavia, a falta de levantes, confrontações armadas e atos de sabo-
tagem não deveria levar-nos apressadamente a rotular como benigna a
escravidão na África Ocidental ou em qualquer outra parte deste continente.
Há mais de trinta anos, Paul E. Lovejoy afirmou que, se “relativamente
poucos levantes escravos foram registrados” no continente africano, “a
importância da fuga tem sido largamente negligenciada”. Baseando-se
no caso do Califato de Sokoto no século XIX, uma verdadeira sociedade
escravocrata com 2 a 2,5 milhões de escravos, Lovejoy mostrou que a
fuga era certamente um problema importante. Um grande número de
indivíduos escravizados tentava escapar constantemente do controle
dos seus proprietários, assim como diminuir o controle destes sobre seu
trabalho. Embora largamente divorciada da luta armada, a incidência de
fugas representava uma forma significativa de resistência à escravidão
na África. Consequentemente, Lovejoy alertou que “o estudo da fuga de
escravos contraria — e, na verdade, oferece — uma revisão importante
de interpretações da escravidão por estudiosos africanistas.” E as impli-
cações não eram menos significativas para pesquisadores da escravidão
nas Américas, servindo “como sinal de alarme para que a investigação da
escravidão na África seja apreciada seriamente pela possibilidade que os
elementos comparativos oferecem.”18
Somente durante os últimos anos é que historiadores da África
tentaram confrontar seriamente estas anomalias históricas. Junto à
historiografia anterior sobre o tema, os novos trabalhos apontam cada vez

17 Femi J. Kolapo, “Documentary ‘Silences’ and Slave Resistance in West Africa during the
Era of the Atlantic Slave Trade”, texto apresentado ao Tubman Seminar, York University,
Toronto, 09/10/2002, e à conferência da African Studies Association (UEA) e da Canadian
Association of African Studies, Nova Orleans, 11-14/11/2004.
18 Paul E. Lovejoy, “Fugitive Slaves: Resistance to Slavery in the Sokoto Caliphate,” in Gary
Y. Okohiro (org.), In Resistance: Studies in African, Caribbean, and Afro-American Histo-
ry, Amherst, MA: University of Massachusetts Press, 1986, p. 73.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 515


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

mais para um fenômeno de resistência constante em toda parte onde a


captura de escravos se tornou endêmica e a escravidão floresceu. Este foi
o caso, por exemplo, na África Ocidental, 19 na África Centro-Ocidental, 20

19 Darold D. Wax, “Negro Resistance to the Early American Slave Trade”, Journal of Negro
History, no. 51 (1966), pp. 1-15; E. A. Oroge, “The Fugitive Slave Crisis of 1859: A Factor
in the Growth of Anti-British Feelings among the Yoruba”, Odu, no. 12 (1975), pp. 40-53;
Idem, “The Fugitive Slave Question in Anglo-Egba Relations, 1861-1886”, Journal of the
Historical Society of Nigeria, no. 8 (1975), pp. 61-80; P. A. Igbafe, “Slavery and Emanci-
pation in Benin, 1897-1945,” Journal of African History, no. 16 (1975), pp. 417-424; Oru-
no D. Lara, “Traite négrière et résistance africaine”, Présence africaine, no. 94 (1975), pp.
140-170; Richard Roberts e Martin Klein, “The Banamba Slave Exodus of 1905 and the
Decline of Slavery in the Western Sudan”, Journal of African History, vol. 21, no. 3 (1980),
pp. 375-394; José Maianga, “A luta dos escravos em S. Tomé no século XVI”, África: litera-
tura, arte, cultura, no. 2 (1980), pp. 437-443; G. M. McSheffrey, “Slavery, indentured servi-
tude, legitimate trade and the impact of abolition in the Gold Coast, 1874-1901”, Journal
of African History, vol. 24, no. 3 (1983), pp. 375-394; Paul E. Lovejoy, “Problems in Slave
Control in the Sokoto Caliphate”, in Paul E. Lovejoy (org.), Africans in Bondage: Studies in
Slavery and the Slave Trade, Madison: University of Wisconsin Press, 1986, pp. 235-272;
Idem, “Fugitive Slaves”; Martin Klein, “Slave Resistance and Slave Emancipation in Coast-
al Guinea”, in Suzanne Miers e Richard Roberts (orgs.), The End of Slavery in Africa (Mad-
ison: University of Wisconsin Press, 1988), pp. 203-219; Bronislaw Nowak, “The Mandin-
go Slave Revolt of 1785-1796”, Hemispheres, no. 3 (1986), pp. 150-169; Isabel Figueiredo
de Barros e Maria Arlete Cruz, “Revoltas de escravos em São Tomé no século XVI”, in Ar-
queologia e história pre-colonial (Actas da reunião, 23-26 Outubro, 1989), Lisboa: Insti-
tuto de Investigação Científica Tropical, 1989, pp. 373-388; Winston McGowan, “African
Resistance to the Atlantic Slave Trade in West Africa”, Slavery and Abolition, vol. 11, no. 1
(1990), pp. 5-29; Bernard Moitt, “Slavery, Flight and Redemption in Senegal, 1819-1905”,
Slavery and Abolition, vol. 14, no. 2 (1993), pp. 70-86; Harris Memel Foté, “La résistance à
la traite dans les comptoirs d'Afrique,” in Marcel Dorigny (org.), Les Abolitions de l’Escla-
vage de L. F. Sonthonax à V. Schoelcher 1793, 1794, 1848, Paris: Presses Universitaires
de Vincennes/Éditions UNESCO, 1995, pp. 73-76; Jan Vansina, “Quilombos on S. Tomé, or
in Search of Original Sources”, History in Africa, no. 23 (1996), pp. 453-59; Ismail Rashid,
“Escape, Revolt and Marronage in 18th and 19th Century Sierra Leone Hinterland”, Cana-
dian Journal of African Studies, no. 34 (2000), pp. 656-683.
20 William G. Clarence-Smith, “Runaway Slaves and Social Bandits in Southern Angola,
1875-1913”, in Heuman (org), Out of the House of Bondage, pp. 23-33; Freudenthal, “Os
quilombos de Angola no século XIX”; Beatrix Heintze, “Asiles toujours menacés: fuites
d'esclaves en Angola au XVIIe siècle”, in Katia de Queiros Mattoso (org), Esclavages: His-
toire d'une diversité de l'océan Indien à l'Atlantique sud, Paris: L'Harmattan, 1997, pp.
101-122; José C. Curto, “Struggling Against Enslavement: José Manuel in Benguela, 1816-
1820”, Canadian Journal of African Studies, vol. 39, no. 1 (2005), 96-122; Idem, “The Sto-
ry of Nbena, 1817-1820: Unlawful Enslavement and the Concept of 'Original Freedom' in
Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans-Atlantic Dimensions of Eth-
nicity in the African Diaspora, Londres: Continuum, 2003, pp. 44-64; Idem, “A restituição
de 10.000 súbditos ndongo ‘roubados’ na Angola de meados do século XVII: uma análise
preliminar”, in Isabel C. Henriques (org.), Escravatura e Transformações Culturais: Áfri-
ca-Brasil-Caraíbas, Lisboa: Editora Vulgata, 2002, pp. 185-208; Idem, “Un Butin Ilégi-
time: Razzias d'esclaves et relations luso-africaines dans la région des fleuves Kwanza et
Kwango en 1805”, in Isabel C. Henriques e Louis Sala-Molins (orgs.), Déraison, Esclavage
et Droit: Les fondements idéologiques et juridiques de la traite négrière et de l'esclavage,
Paris: Éditions UNESCO, 2002, pp. 315-327. Ver também capítulo de Roquinaldo Ferreira
neste livro.

516 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

na África Oriental,21 e mesmo na África do Sul.22 Além disso, em terras


africanas, a resistência à escravidão ocorreu sob contextos tão múltiplos
como variados: culturas ou influências culturais africanas, euro-africanas,
europeias e árabes; sistemas de crenças como o islamismo e o cristianismo,
entre outros; assim como em espaços urbanos e rurais; e em sociedades
com e sem Estado.
Entre exemplos de resistência à escravidão dentro de contextos
complexos temos o caso, particularmente agudo, da colônia que os por-
tugueses estabeleceram em Angola depois de terem fundado, em 1575, a
cidade portuária de Luanda como base de apoio para dominarem o interior.
Neste território colonial, cercado por numerosas sociedades africanas em
que a escravidão de linhagem era bem conhecida, alguns portugueses e
(depois de 1648) brasileiros, aliados a uma camada intermediária de luso
-africanos e a uma maioria esmagadora de africanos livres, dominavam
milhares de escravos, incluindo entre estes uma minoria classificada
como pardos ou mulatos. Quase logo após a fundação de Luanda, como
argumentou Beatrix Heintze, muitos dos escravos, cujo trabalho era
utilizado no interior desta cidade e nos sítios de sua vizinhança para
trabalhar na economia angolana de exportação de cativos, fugiam de seus
proprietários.23 E a busca pela liberdade através da fuga não era carac-
terística exclusiva da população escrava na capital colonial de Angola e
nas propriedades rurais que seus moradores mais abastados possuíam

21 G. A. Akinola, “Slavery and Slave Revolts in the Sultanate of Zanzibar in the Nineteenth
Century”, Journal of the Historical Society of Nigeria, no. 6 (1972), pp. 215-228; Jean Bar-
assin, “La révolte des esclaves à l’Île Bourbon (Réunion) au XVIIIe siècle”, in Mouvement
de Populations dans l’Océan Indien, Paris: Librarie Honoré Champion, 1979, pp. 357-391;
Dennis. D. Cordell, “The Delicate Balance of Force and Flight: The End of Slavery in East-
ern Ubangi-Shari”, in Miers e Roberts, (orgs.), End of Slavery in Africa, pp. 150-171; Lee
Cassanelli, “Social Construction of the Somali Frontier: Bantu Former Slave Communi-
ties in the Nineteenth Century”, in Igor Kopytoff (org.), The African Frontier: The Repro-
duction of Traditional African Societies, Bloomington: Indiana University Press, 1987,
pp. 216-238; Jonathan Glassman, “The Bondman's New Clothes: The Contradictory Con-
sciousness of Slave Resistance on the Swahili Coast”, Journal of African History, no. 32
(1991), pp. 277-312; Prosper Ève, “Les formes de résistance à Bourbon de 1750 à 1789”, in
Dorigny (org.), Les Abolitions de l’Esclavage, pp. 49-72; Richard B. Allen, “Marronage and
the Maintenance of Public Order in Mauritius, 1721-1835”, Slavery and Abolition, vol. 4,
no. 3 (1983), pp. 214-232; L. Sylvio Michel, Esclaves Résistants, Mauritius: Quad Printers,
1998; Edward A. Alpers, “Flight to Freedom: Escape from Slavery among Bonded African
in the Indian Ocean World, c. 1750-1962”, Slavery and Abolition, vol. 24 (2003), pp. 51-68;
Idem, “The Idea of Marronage: Reflections on Literature and Politics in Réunion”, Slavery
and Abolition, vol. 25, no. 2 (2004), pp. 18-29.
22 Karen Harris, “The Slave Rebellion’ of 1808”, Kleio, vol. 20 (1988), pp. 54-65; Patricia Van
der Spuy, “Making Himself Master’: Galant’s Rebellion Revisited”, South African Histori-
cal Journal, vol. 34 (1996), pp. 1-28. Ver também os trabalhos de Ross, Worden, Shell e Ma-
son citados na nota 6.
23 Heintze, “Asiles toujours menacés”.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 517


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

nos arredores. Como salientou Roquinaldo A. Ferreira para os meados do


século XIX, mas certamente com origem bastante anterior, os escravos
controlados pelas sociedades africanas no entorno de Luanda também
resistiam através da fuga.24 Oriundos da sociedade colonial angolana ou
das sociedades africanas que a cercavam, não eram poucos os escravos
que procuravam refúgio em comunidades de fugitivos bem enraizadas,
como demonstrou Aida Freudenthal para o século XIX.25 A origem destes
kilombos, ocilombos, mutolos, coutos ou valhacoutos e quilombos, como
essas comunidades eram conhecidas em Angola, é remota. 26 Finalmente,
nos finais do século XIX, a abolição legal da escravidão não resultou neces-
sariamente na liberdade de todos os escravos em Angola, como evidenciou
William Gervase Clarence-Smith, o que fez com que a luta pela liberdade
por meio da fuga continuasse.27 Os fugitivos, tanto em Angola como nas
sociedades africanas circunvizinhas, constituíram parte de uma longa e
complexa tradição de resistência à escravidão.
Seguindo as investigações de Heintze, Ferreira, Freudental, e Claren-
ce-Smith, entre outros, a problemática da resistência à escravidão pode
agora ser analisada de modo muito mais detalhado através de uma fonte
conhecida por todos os pesquisadores que têm trabalhado sobre Angola,
mas pouco utilizada para este fim. Ao contrário do que aconteceu no Brasil,
a imprensa chegou a Angola somente nos meados de 1845. Durante os
vinte anos seguintes, uma única publicação foi impressa em Luanda: o
Boletim Oficial de Angola, gazeta semanal que o governo colonial começou
a publicar em 13 de setembro de 1845. 28 Mas a informação lá encontrada
não se refere meramente à matéria governamental. Em 22 de agosto de
1846, encontramos o seguinte anúncio: “Existe em depósito na cadeia
pública, um escravo fugido de nome Ngunga, capturado em Cambambe,
o qual que diz pertencer ao morador de Ambaca, o Quinginge”.29 A inten-
ção de tal notícia era obviamente facilitar a recuperação de um fugitivo
capturado em um presídio no qual seu proprietário não residia, então sob
controle das autoridades coloniais em Luanda. Este, o primeiro anúncio

24 Ferreira, “Escravidão e Revoltas de Escravos”, neste livro.


25 Frendenthal, “Os quilombos de Angola no século XIX”.
26 Comparar, por exemplo, a reconstrução histórica desta instituição em Joseph C. Mil-
ler, Kings and Kinsmen: Early Mbundu States in Angola, Oxford: Clarendon Press, 1976, e
Kabengele Munanga, “Origem e histórico do quilombo na África”, Revista da USP, no. 28
(1995-1996), pp. 56-63, com Maria da Conceição Neto, “Kilombo, Quilombos, Ocilombo”,
Mensagem – Revista Angolana de Cultura, no. 4 (1989), pp. 5-19, e especialmente Freu-
denthal, “Os quilombos de Angola no século XIX”.
27 Clarence-Smith, “Runaway Slaves and Social Bandits in Southern Angola”.
28 O título original desta publicação, Boletim do Governo Geral da Provincia de Angola, so-
freu posterioremente uma série de alterações. Para evitar qualquer confusão, citarei
como Boletim Official de Angola (BOA).
29 BOA, no 50, 22/08/1846, p. 2.

518 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de um fugitivo recapturado, não seria o último. Anúncios semelhantes


eram publicados quase que semanalmente no Boletim Oficial de Angola
até 15 de abril de 1876, listando um total de 3.195 fugitivos.
A informação publicada sobre Ngunga, nosso primeiro caso de
fugitivo recapturado, é relativamente esparsa. Todavia, depois do final
da década de 1840, aumentou a informação publicada pelas autoridades
coloniais sobre outros recapturados, para que seus donos pudessem me-
lhor reclamá-los. Em 5 de maio de 1857, por exemplo, podemos ler que
a fugitiva Felizarda tinha sido recapturada com sua cria no distrito de
Zenza e estava no depósito dos Trabalhos Públicos, onde seu proprietário,
Lourenço Alves Roque, poderia recuperá-la no prazo de trinta dias. 30 Em
26 de setembro de 1863, o Boletim Oficial de Angola informava que as
fugitivas Izabel Luquenhe e Marianna Calunga tinham sido recapturadas
em Calumbo e encontravam-se no forte de São Miguel, em Luanda. A
primeira era da nação congo e a segunda libolo. Recapturadas ao mesmo
tempo e no mesmo lugar, essas escravas diziam não saber precisamente
a quem pertenciam: ou era a Josepha do bairro Samgadombe, Luanda, ou
a um certo Vianna. 31 Em 8 de agosto de 1874, outro anúncio diz: Vulola,
escravo de trinta anos nascido em Libolo e com o carimbo S, tinha sido
recapturado no distrito de Icollo e Bengo, e encontrava-se no forte de
São Miguel; à sua dona, a viúva de Ricardo da Silva Rego, foram dados
trinta dias para recuperar sua propriedade.32 Em suma, o que temos é uma
série de detalhes riquíssimos disponíveis para os quase 3.200 casos de
fugitivos recapturados. Informação semanal, mensal e anual, que pode
ser quantificada para melhor ser analisada e compreendida.
Ao registrar todas as informações disponíveis em uma base de dados,
temos um máximo de quatorze campos para cada fugitivo recapturado.
Seguindo a data de recaptura, seus nomes estão quase sempre listados. Estes
nomes obviamente nos dão muito mais do que a identidade do indivíduo.33
Um grande número está listado sob nomes portugueses; visto estes serem
específicos de gênero, nomes como Maria ou Antônio também designam
as pessoas como mulheres ou homens. Outros estão listados sob nomes
africanos, que não possuem especificidade de gênero: por exemplo, Nguma
ou Cabanga. Todavia, na maioria dos casos, o gênero destes indivíduos é

30 ____, no 609, 30/05/1857, p. 1.


31 BOA, no 39, 26/09/1863, p. 324.
32 ____, no 34, 08/08/1874, p. 407.
33 Para a metodologia, consultar John K. Thornton, “Central African Names and Afri-
can-American Naming Practices”, William and Mary Quarterly, 3a série, vol. 50 (1993),
pp. 727-742; José C. Curto, “ʽAs If From a Free Womb’: Baptismal Manumissions in the Con-
ceição Parish, Luanda, 1778-1807”, Portuguese Studies Review, vol. 10, no. 1 (2002), pp.
26-57; David Eltis e Ugo Nwokeji, “The Roots of The African Diaspora: Methodological
Considerations in the Analysis of Names in the Liberated African Registers of Sierra Le-
one and Havana”, History in Africa, no. 29 (2002), pp. 365-379.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 519


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
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revelado porque seu estado jurídico na língua portuguesa é especifico de


gênero: escravo Nguma ou escrava Cabanga. Além disso, os nomes nos dão
um detalhe adicional importante: o nível de "aculturação" dos escravos.34
No caso de Catharina Sebastião, uma mulher com primeiro e último nomes
portugueses, recapturada em 28 de março de 1863 no Icollo e Bengo, onde
esperava para ser reivindicada por Dona Maxima Leonor Botelho de Vas-
concellos, sua proprietária residente em Luanda, 35 podemos avançar com
alguma certeza de que era bem culturalmente adaptada a esta sociedade
colonial: se não era nativa de Luanda, lá teria certamente trabalhado
durante a maior parte de sua vida e, portanto, seria ladina. Uma jovem
de quinze anos nascida em Malange, de nome Muhongo, recapturada em
24 de maio de 1873, em Calumbo, e aprisionada no forte de São Miguel,
de onde seu proprietário, José, poderia retirá-la, 36 era certamente uma
escrava do interior recentemente introduzida na sociedade escravocrata
da capital colonial de Angola. Temos, além disso, aqueles listados com
nomes portugueses e africanos, ou vice-versa. Indivíduos como Antônio
Uangambelle ou Gonga Sebastião (mulher) estavam provavelmente no
meio: isto é, em processo de se tornarem aculturados a esta sociedade.
Os nomes, em outras palavras, nos permitem mais do que trazer estes
indivíduos do anonimato imposto pela maioria das análises agregadas
ou quantitativas da resistência à escravidão, seja através da fuga, seja de
outros meios. Também nos abrem uma janela importante para investigar o
gênero e o nível de "aculturação" de centenas de escravos que arriscaram
fugir de seus donos, mas foram recapturados subsequentemente.
Em 25% dos casos, a idade real ou descritiva (cria de peito, cria,
moleque ou menor) dos fugitivos recapturados também aparece nestes
anúncios. Isto nos permite perceber se, dentro desta massa de fugitivos
recapturados, a idade era ou não um fator na decisão de escapar à escravi-
dão. Seria possível que, em Angola, os homens adultos predominassem na
população escrava fugitiva, como era o caso em outras partes do Atlântico?
Na mesma porcentagem, temos ainda outra importante informação: a
nação ou o local de nascimento dos fugitivos recapturados. Abrangendo
cerca de 800 indivíduos, estes dados nos possibilitam, pela primeira vez,
determinar a etnicidade ou origem geográfica de alguns dos escravizados
no terceiro quartel do século XIX. O local de origem dos escravos – se
oriundos do interior, como alguns historiadores têm clamado hipotetica-
mente,37 ou de áreas muito mais próximas da costa – é uma questão que

34 Curto, “ʽAs If from a Free Womb’”.


35 BOA, no 13, 28/03/1863, p. 98.
36 ____, no 21, 24/05/1873, p. 223.
37 Ver, por exemplo: Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan
Slave Trade 1730-1830, Madison: University of Wisconsin Press, 1988, e os numerosos

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pode ser agora abordada a partir das fontes. 38 Os mesmos dados também
podem ser utilizados para melhor perceber o deslocamento, tanto físico
como cultural, destas pessoas para trabalharem para seus donos: de qual
maneira teria a experiência de Julio Nhuanhanha, um homem de 30 anos
da nação ngola e propriedade de Dom João Cacullo Cavuinge, um soba
dos dembos, 39 sido diferente ou similar à de André Francisco Luiz, 40 um
homem cuja proprietária era Dona Ana Joaquina dos Santos e Silva, a
mais importante mercadora comerciante e proprietária de escravos em
Luanda em meados do século XIX?41
Outros dados relativos aos fugitivos recapturados não são menos
significativos. Um destes é o lugar da recaptura, quase sempre listado. Este
se nos apresenta como um indicador geral de para onde estes fugitivos
em particular tentavam refugiar-se: famílias em aldeias que tentavam
reintegrar-se, o que por vezes pode ser correlacionado com dados sobre o
lugar de nascimento; espaços ocupados por suas formações sociopolíticas,
que também pode ser correlacionado com dados sobre etnicidade; ou até o
santuário relativo oferecido pelos quilombos então estabelecidos no inte-
rior de Luanda e conhecidos de todos. Outra informação potencialmente
importante é o lugar em que os fugitivos recapturados esperavam para
serem reivindicados por seus donos. Isto pode dar-nos preciosas pistas
sobre os espaços geográficos, culturais e econômicos do destino para o
qual os fugitivos tentavam escapar, visto que não deveriam ficar muito
longe dos locais de sua escravidão ou de seus donos.
Não menos importante é o tipo de fuga através da qual os recapturados
tentavam escapar de seus amos. Na maioria dos casos, os fugitivos eram

continuação 37

trabalhos do autor listados na bibliografia desta obra principal; Achim von Oppen, Terms
of Trade and Terms of Trust: The History and Contexts of Pre-colonial Market Production
around the Upper Zambezi and Kasai, Hamburg: Lit Verlag, 1994.
38 Comparar os trabalhos de Joseph C. Miller e de von Oppen citados na nota anterior com:
Luciano Raposo, Marcas de escravos: listas de escravos emancipados vindos a bordo de
navios negreiros (1839-1841), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/CNPq, 1990; Roquinaldo
A. Ferreira, “Fontes para o estudo da escravidão em Angola: Luanda e Icolo e Bengo no pós-
tráfico de escravos”, in Construindo o passado Angolano: As fontes e a sua interpretação.
Actas do II Seminário internacional sobre a história de Angola, Luanda, 4 a 9 de Agosto de
1997, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue-
ses, 2000, pp. 667-680.
39 BOA, no 4, 23/01/1875, p. 50.
40 ____, no 632, 07/11/1857, p. 5.
41 Sobre Dona Ana, ver: Julio de Castro Lopo, “Uma Rica Dona de Luanda”, Portucale, no. 3
(1948), pp. 129-138; Carlos Alberto Lopes Cardoso, “Dona Ana Joaquina dos Santos Silva
Industrial Angolana da Segunda metade do Século XIX. Luanda”, Boletim Cultural da Câ-
mara Municipal de Luanda, vol. 37 (1972), pp. 5-14; Mário A. Fernandes de Oliveira, Al-
guns Aspectos da Administração de Angola em Época de Reformas (1834-1851), Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 1981, pp. 36-64; Douglas L. Wheeler, “Angolan Woman of
Means: D. Ana Joaquina dos Santos e Silva, Mid-Nineteenth Century Luso-African Mer-
chant Capital of Luanda”, Santa Barbara Portuguese Studies, vol. 3 (1996), pp. 284-297.

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RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
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recapturados individualmente: um aqui, propriedade de um morador naquele


presídio, distrito ou concelho; outro além, propriedade de um morador
de Luanda. Em certos casos, como naquele já mencionado de Felizarda e
sua cria, os fugitivos foram recapturados em unidades mono-familiares,
na maioria dos casos mãe com seus filhos. E em outros, os fugitivos eram
apreendidos em grupos que pertenciam ao mesmo dono. Em 24 de setembro
de 1859, vinte e três fugitivos, todos propriedade do casal Victoriano de
Faria, foram recapturados pelas autoridades coloniais em Ambaca: oito
homens e onze mulheres, sendo que duas delas estavam acompanhadas de
uma cria, e uma outra com dois filhos menores.42 Em outro caso, um grupo de
quinze fugitivos, propriedade de João Baptista Cucula, foi recapturado em
Novo Redondo: eram oito mulheres, dois homens e os demais não tiveram o
gênero listado.43 Nem todos os escravos preferiam escapar sozinhos: alguns
metiam-se em fuga com familiares, especialmente filhos e filhas; outros
preferiam a segurança oferecida por um grupo de pessoas que, embora de
origem diferente, conheciam-se bem depois de tantos anos escravizados
no mesmo local.
Igualmente reveladores são os dados sobre os proprietários dos fugi-
tivos recapturados. Na maioria dos casos, seus nomes são sempre listados.
Esta informação oferece uma oportunidade para analisar os padrões da
propriedade escrava, assim como identificar os donos mais afetados pelo
problema da fuga. Os nomes dos proprietários, como no caso dos fugitivos
recapturados, permitem determinar seu gênero. Desta informação podemos
nos perguntar se o gênero dos donos exercia algum impacto nos padrões da
propriedade escrava e/ou na decisão dos escravos de tentar a fuga. Talvez
ainda mais significativos sejam os proprietários cujos nomes não aparecem
listados. Embora houvesse casos em que estes pudessem ter sido simples-
mente omitidos, noutros os fugitivos recapturados passam por não saber a
identidade de seus senhores. Esta última situação não era necessariamente
impossível. Escravos podiam ser propriedade de mais de um indivíduo e até
de entidades corporativas. Em tais circunstâncias, nem sempre era claro
quem possuía quem, como já ilustrado pelo caso de Izabel Luquenhe e de
Marianna Calunga. Mas isto poderia também ser um método utilizado pelos
fugitivos recapturados para tornar sua identificação por seus donos muito
mais difícil. Assim sendo, estamos diante do caso de fugitivos recapturados
que, ao esconder o nome de seus donos, continuavam a lutar pela liberdade.
Se não fossem reivindicados por seus proprietários dentro de um prazo de
tinta dias após a publicação dos anúncios, os fugitivos recapturados podiam
efetivamente obter sua liberdade por parte das autoridades coloniais. A

42 BOA, no 749, 24/09/1859, p. 3. Dos fugitivos pertencentes a Victoriano, pelos menos 32 fo-
ram recapturados entre 1852 e 1872.
43 ____, no 18, 05/05/1866, p. 118.

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recaptura, tão traumática como deveria ser, não diminuía necessariamente


o desejo de liberdade.
Temos também dados sobre a cultura, etnicidade e cor dos proprie-
tários de escravos. Entre eles: portugueses – alguns nascidos em Angola,
outros oriundos da metrópole –, assim como outros europeus, brasileiros
e americanos; luso-africanos que ainda dominavam a sociedade colonial; e
africanos de todos os níveis sociais, de gente simples em Luanda até sobas
no hinterland. Em meados da segunda metade do século XIX quase todos
os livres e forros em Angola, qualquer que fosse a sua cultura, etnicidade,
cor, gênero ou ocupação, ainda possuíam escravos. Ali, a escravidão era
uma instituição complexa que transcendia tudo. Até escravos possuíam
outros escravos. Consequentemente, tais dados nos permitem dar alguma
luz sobre a maneira pela qual estes elementos socioeconômicos distintos
interagiam uns com os outros.
O status dos proprietários constitui outro campo de grande impor-
tância, visto que esclarece, entre outros aspectos, os padrões de proprie-
dade escrava. Nem todos os fugitivos recapturados eram propriedade de
indivíduos. Uma porcentagem relativamente grande pertencia a grupos
familiares ou corporativos, sociedades que controlavam bens ou casas de
comércio, esposas que possuíam escravos juntamente com seus maridos,
múltiplos indivíduos que eram donos de um só escravo e herdeiros de
proprietários mortos. Como salientado por Paul E. Lovejoy, tempos de
crise eram particularmente determinantes para a fuga de escravos.44
No caso de propriedade familiar ou corporativa, numerosos problemas
podiam surgir entre os membros, o que frequentemente resultava em
litígios sobre a propriedade. A incerteza assim criada instalava ainda
mais o medo entre os escravos, alguns dos quais viam nestes conflitos
tanto uma causa como uma oportunidade para arriscarem a fuga. Foi
precisamente isto que aconteceu, por exemplo, quando Dona Ana Joaquina
dos Santos e Silva morreu em 1859. Enquanto seus herdeiros lutavam
por seus bens no tribunal de Luanda, não poucos dos numerosos escravos
nas fazendas, pertencentes a Dona Ana Joaquina, decidiram fugir. 45 Por
trás de muitos dos fugitivos subsequentemente recapturados existem
exemplos semelhantes de conflitos familiares e corporativos.
A informação sobre a residência dos proprietários de escravos,
oferecida em 66% dos casos, também é significativa. Ela nos permite
estabelecer não só a distribuição no espaço, o que nos dá um melhor

44 Lovejoy, “Problems in Slave Control in the Sokoto Caliphate”; Idem, “Fugitive Slaves”.
45 Para os litigíos sobre a herança de Dona Ana Joaquina, ver Cardoso, “Dona Ana Joaquina
dos Santos Silva”. Sobre as fugas ocorridas quando seus escravos souberam da sua mor-
te, ver Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Angola, Correspondência dos Governadores,
Pasta 26, Oficio de José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador Geral de Angola, para
Secretario e Ministro d’Estado dos Negocios da Marinha e do Ultramar, 04/06/1860.

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RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
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conhecimento dos padrões da propriedade escrava, mas também pode


ser correlacionada com os dados sobre o lugar de recaptura. Ora, em que
direção fugia o escravo e quanto tempo permanecia em fuga antes de ser
recapturado? Haverá alguma relação entre a distância/direção da fuga e
a recaptura? Mas talvez ainda mais importantes sejam os dados que nos
faltam; em um terço dos casos a residência dos proprietários não está
listada: seria esta outra maneira de o fugitivo recapturado minimizar a
possibilidade de seu proprietário identificá-lo através dos anúncios e,
assim, conseguir que as autoridades coloniais o colocasse em liberdade
depois do prazo de trinta dias?
Finalmente, o último campo nos apresenta uma série de informações
diversas. Uma delas é a ocupação dos proprietários: carpinteiros, pedrei-
ros etc. Em Luanda, estas ocupações eram dominadas por mestres que
“empregavam” seus escravos como “oficiais” ou “aprendizes”.46 Isto nos
oferece ainda mais detalhes sobre a distribuição espacial dos proprietários,
assim como sobre o local do cativeiro, e ainda alguma informação sobre
as ocupações dos fugitivos recapturados. Também incluídas nos anúncios
temos as marcas dos escravos, como o S no corpo de Vulola, o libolo referido
anteriormente, propriedade de Ricardo da Silva Rego. Ao contrário da
documentação existente sobre escravos de outras terras africanas,47 os
anúncios de fugitivos recapturados em Angola não oferecem informação
sobre escarificações étnicas. O que temos são as marcas dos proprietários
ou suas iniciais ferreteadas no corpo dos escravos. Consequentemente,
identificar os senhores cujos nomes não estão listados se torna mais fácil,
especialmente se mais de um de seus fugitivos recapturados se encontram
anunciados no Boletim Oficial de Angola.
Os quase 3.200 fugitivos recapturados em Angola representam um
verdadeiro microcosmo do mundo dos escravos e de seus proprietários
no terceiro quartel do século XIX. Em uma população de 386.000 pessoas,
em 1844, as estatísticas oficiais apresentam 22,5% como escravas.48 Em
1873, em uma população de 435.000, 13% ainda permaneciam na condição

46 José C. Curto, “The Anatomy of a Demographic Explosion: Luanda, 1844-1850”, Interna-


tional Journal of African Historical Studies, vol. 32, no. 2-3 (1999), pp. 381-405.
47 Ver, por exemplo: Johann M. Rugendas, Malerische Reise in Brasilien, Paris: Engelmann
& Cie., 1835; Raposo, Marcas de escravos; Michael A. Gomez, Exchanging our Country
Marks: The Transformation of African Identities in the Colonial and Antebellum South,
Chapel Hill: University of North Carolina, 1998.
48 “Mappa da População de Angola [1845]”, in José J. Lopes de Lima, Ensaios Sobre a Statis-
tica das Possessões Portuguezas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1846, vol. 3, parte 1, p. 4-A.
Este recenseamento, levado a cabo no princípio de 1845, refere-se, entretanto, ao ano an-
terior (1844). A mesma porcentagem de escravos encontra-se dentro de 498,722 pessoas
recenseadas em 1850-1851: ver o “Mappa Statistico da População…, referido ao anno de
1850 a 1851”, in Almanak Statistico da Provincia d'Angola e Suas Dependencias para o
Anno de 1852, Luanda: Imprensa do Governo, 1851, pp. 8-9.

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de escravos e 7% na de libertos (ex-escravos). 49 Os escravos/libertos


representavam assim um quinto da população colonial/colonizada. Em
Luanda, a proporção era ainda maior: 49% de escravos entre os 5.605
residentes em 1844; 50 48% dos 12.565 habitantes em 1850; 51 56,5% em
13.412 indivíduos em 1861; 52 e 53% entre 11.555 pessoas em 1866. 53 Os
anúncios de escravos recapturados indicam que a resistência através da
fuga era efetivamente um problema importante nesta parte da África.
E isto durante um período em que o governo português já tinha iniciado
o processo de abolição da instituição. Depois da Lei de 1836, que tornou
ilegal a exportação de escravos de Angola, o Ministro Liberal responsável
pelas colônias, Sá da Bandeira, ordenou, em 1854, a libertação de todos os
escravos pertencentes ao Estado colonial. No ano seguinte, ele decretou
a alforria automática de todos os escravos não registrados no Estado
colonial angolano. 54 Em 1869, o governo central em Lisboa declarou que
os escravos estavam oficialmente “libertos” com a condição de continuar
trabalhando para os seus donos por um período de dez anos, estatuto
consequentemente abolido em 1876, com a emancipação completa an-
tecipada para os meados de 1878.55 A contínua fuga de muitos escravos
em Angola até 1876, quando a abolição completa estava quase à vista,
demonstra que eles não acreditavam no processo. Neste contexto de
abolição progressiva, os fugitivos, mesmo que recapturados, atingem um
significado ainda maior. Teriam as fugas contínuas aumentado o custo
de manter e de controlar os escravos, como aconteceu em outras partes
do Atlântico e, assim, pressionado os proprietários e o Estado colonial a
aumentar o ritmo do processo para a abolição completa?
Nem todas as perguntas aqui levantadas são particularmente novas.
Algumas já foram o foco de atenção de outros investigadores. Todavia
parte da originalidade dos dados sobre os fugitivos recapturados em

49 João de Andrade Corvo, Relatorios do Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios da Ma-
rinha e Ultramar apresentados A Camara dos Senhores Deputados na Sessão Legislativa
de 1875, Lisboa: Imprensa Nacional, 1875, pp. 58-59; Gerardo A. Pery, Geografia e Estatis-
tica Geral de Portugal e Colonias, Lisboa: Imprensa Nacional, 1875, p. 357. Sobre os liber-
tos, ver nota 53.
50 José C. Curto e Raymond R. Gervais, “A História da População de Luanda Durante a Últi-
ma Etapa do Tráfico Atlântico de Escravos, 1781-1844”, Africana Studia, no. 5 (2002), pp.
75-130.
51 Curto, “The Anatomy of a Demographic Explosion”.
52 “Mappa Estatistico da População de Angola, 1861,” BOA, no 27, 04/07/1863, entre as pp.
212-213.
53 “Mappa Estatistico da População da Provincia d'Angola Referido ao Dia 30 de Junho de
1866,” AHU, Sala dos Códices, Conselho Ultramarino, Pasta 2 (1855-1866 Angola, Moçam-
bique, India).
54 Museu Nacional da Escravatura, A abolição do tráfico e da escravatura em Angola: docu-
mentos, Luanda: Ministério da Cultura, 1997, pp. 9-45.
55 Ibid, p. 7.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 525


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Angola entre 1846 e 1876 está no fato de que se torna agora possível
individualizar casos e ir além das estruturas abstratas e despersonalizadas
que têm caracterizado a historiografia sobre a resistência à escravidão
na África, tarefa ainda por concluir em qualquer parte do continente.
Ao mesmo tempo, quando, em 22 de julho de 1854, Lourença Bernarda,
escrava de Dona Anna Ferreira dos Santos e bem aculturada à sociedade
escravocrata de Luanda, foi anunciada como recapturada em Massangano
com suas três crias, o que nos diz este acontecimento sobre a natureza da
escravidão, assim como sobre a resistência a esta instituição em Angola?56
O fato de que a resistência tenha aumentado dentro do contexto de uma
“morte lenta para a escravidão”57 é importante efetivamente.
Os dados encontrados no Boletim Oficial de Angola sobre esta pro-
blemática, obviamente, não são perfeitos. Serão eles representativos
de todos os fugitivos que permaneceram em liberdade ou até de toda
a população escrava? Os arquivos cartoriais em Angola, recentemente
localizados, podem oferecer mais informação para que possamos com-
preender melhor a relação entre o número total de escravos e aqueles em
fuga; estes, porém, permanecem por inventariar, o que torna a pesquisa
bastante difícil e laboriosa.58 Visto que muitos dos fugitivos recapturados
nasceram em Luanda ou estavam bem aculturados neste espaço urbano,
os preciosos registros de batismos, casamentos e óbitos existentes no
Arquivo do Bispado de Luanda poderiam ajudar na reconstrução de
biografias históricas de alguns destes indivíduos: todavia, por motivo de
reformas, esta instituição continua fechada por período indeterminado.59
Consequentemente, estamos diante de uma situação que não é inusitada
para os historiadores: trabalhar com fontes incompletas.
Mesmo assim, a falta de acervos documentais como estes não significa
que os anúncios dos fugitivos recapturados sejam a única fonte de que
dispomos. Efetivamente, existem outras fontes para melhor compreen-
der o problema da resistência à escravidão através da fuga de escravos.
Temos, por exemplo, um número razoável de anúncios particulares sobre
escravos em fuga publicados por seus proprietários no Boletim Oficial

56 BOA, no 460, 22/07/1854, p. 2.


57 Esta expressão vem de Lovejoy e Jan S. Hogendorn, Slow Death for Slavery.
58 São eles o Arquivo Judicial da Comarca de Luanda e o Arquivo Judicial da Comarca de Ben-
guela: Carlos Pacheco, José da Silva Maia Ferreira: o homem e a sua época, Luanda: União
dos Escritores Angolanos, 1990; Roquinaldo A. Ferreira, “Transforming Atlantic Slaving:
Trade, Warfare and Territorial Control in Angola (1650-1800)” (Tese de Doutorado, Uni-
versidade da California, Los Angeles, 2003). Meus agradecimentos a Mariana P. Candido
pelas informações sobre estes arquivos.
59 Ver, em particular: Curto, “ʽAs If from a Free Womb’”; Pacheco, José da Silva Maia Ferreira;
Ferreira, “Transforming Atlantic Slaving”.

526 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de Angola dentro do período aqui em foco.60 Possuímos também outros


dados sobre um número impressionante de fugitivos recapturados
quando depositados nas prisões de Luanda para efeito de castigo. 61 Não
menos importantes são os relatórios de pessoas, viajantes e outros, que
permaneceram em Luanda e no seu sertão: estes quase sempre contêm
informações sobre vários aspectos da escravidão, inclusive sobre os
proprietários mais importantes de escravos. 62 E, finalmente, existe
uma documentação oficial volumosa para o terceiro quartel do século

60 Os anúncios particulares no BOA, desde o no 533, 08/12/1855 até o no 31, 31/07/1875,


descrevem com pormenores perto de 300 entre quase 400 escravos dados em fuga. Para
análises preliminares de anúncions particulares no BOA, ver: Mário António Fernandes
de Oliveira, “Para a história do trabalho em Angola: a escravatura luandense do terceiro
quartel do século XIX”, Boletim do Instituto do Trabalho, Previdência e Acção Social, no. 2
(1963), pp. 45-60; Idem, “Aspectos sociais de Luanda inferidos dos anúncios publicados na
sua imprensa: análise preliminar ao ano de 1851”, in Actas do V Colóquio Internacional de
Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1966, vol. 3, pp. 127-139.
61 Na secção “Parte da Policia: occurencias”, publicadas semanalmente no BOA, entre o no
621, 22/08/1857 e o no 41, 02/10/1875, há cerca de 2,600 casos de escravos detidos na pri-
são por motivo de fuga.
62 Alguns dos quais: Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, Relatório do Governador Ge-
ral da Provincia de Angola: referido ao anno de 1861, Lisboa: Imprensa Nacional, 1867;
Vernon L. Cameron, Across Africa, Londres: Dalby, Isbister & Co., 1877, 2 vols; H. Capello e
Roberto Ivens, De Benguella ás terras de Iácca: descripção de uma viagem na Àfrica Cen-
tral e Occidental, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, 2 vols.; Joaquim Antonio de Carvalho
e Menezes, Demonstração geographica e politica do territorio portuguez na Guiné Infe-
rior, que abrange o Reino de Angola, Benguela e suas dependencias, Rio de Janeiro: Typo-
graphia Classica de F. A. de Almeida, 1848; Mons. L. A. Keiling, Quarenta anos de Africa,
Fraião-Braga: Edição das Missões de Angola e Congo, s. d.; N. de Kun, “La vie et le voyage de
Ladislas Magyar dans l'interieur du Congo en 1850-1852”, Bulletin des Sceances de l'Aca-
démie Royale des Sciences d'Outre-Mer, Nova Série, no. 4 (1960), pp. 605-636; António A.
de Lima, Quarenta e cinco dias em Angola: apontamentos de viagem, Porto: Typografia
de Sebastião José Pereira, 1862; David Livingstone, Missionary Travels and Researches
in South Africa, Nova York: Harper & Brothers, 1858; Maria Emília Madeira Santos (org.),
Diário de Silva Porto: viagens e apontamentos de um portuense em África, Coimbra: Bi-
blioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1986; J. de Miranda e A. Brochado (orgs.), Via-
gens e Apontamentos de um Portuense em Africa: Excerptos do Diario de Antonio Fran-
cisco da Silva Porto, (Lisboa: Agencia Geral das Colonias, 1942); Joaquim John Monteiro,
Angola and the River Congo, Londres: MacMillan & Co., 1875, 2 vols.; Tito Omboni, Viag-
gi nell'Africa Occidentale: Già medico di Consiglio Nel Regno d'Angola e eue dipenden-
ze membro della R. Accademia Peloritana di Messina, Milano: Civelli, 1845; Serpa Pin-
to, How I Crossed Africa: From the Atlantic to the Indian Ocean, through Unknown Coun-
tries; discovery of the Great Zambezi Affluents, Londres: Sampson Low, Marston, Sear-
le & Rivington, 1881, 2 vols.; Alfredo de Sarmento, Os Sertões d'Africa: apontamentos de
viagem, Lisboa: Editor Francisco A. da Silva, 1880; I. Schapera, (org), Livingstone's African
Journal, 1853-1856, Londres: Chatto & Windus, 1963, 2 vols.; Idem (org.), Livingstone's
Private Journals, 1851-1853, Londres: Chatto & Windus, 1960; Antonio Francisco da Sil-
va Porto, “Novas Jornadas”, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, vol. 5 (1885), pp.
3-36, 145-172, 569-586, 603-642 e vol. 6 (1886), pp. 56-62, 189-194, 255-258, 307-322,
441-452, 537-540; Saturnino Sousa e Oliveira, Relatorio historico da epidemia de varíola
que grassou em Luanda em 1864, Lisboa: Typographia Universal, 1866; G[ustav] Tams, Vi-
sita às possessões portuguezas na costa Occidental d'Africa, Porto: Typografia da Revista,
1850; Francisco Travassos Valdez, Africa Occidental: noticias e considerações, Lisboa: Im-
prensa Nacional, 1864.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 527


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

XIX, onde os problemas inter-relacionados da escravidão e da fuga de


escravos são periodicamente abordados.63 No caso de Angola, longe de
uma carência documentária de resistência escrava, estamos diante de
situação contrária: abundância de fontes.
Utilizando todas as fontes ao nosso alcance, é agora possível responder
ao desafio lançado recentemente por Paul E. Lovejoy para identificar e
resgatar do anonimato imposto pelo jogo dos números parte dos milhões
de africanos escravizados através do mundo. 64 Dentro desta ótica, os
3.200 indivíduos recapturados em Angola entre 1846 e 1876 evidenciam
claramente que a resistência à escravidão não era um fenômeno exclusivo
das Américas. Em Angola, de onde se originava a maior parte dos escravos
utilizados no mundo atlântico, a longa tradição de resistência através da
fuga continuou viva, mesmo depois de o Estado colonial português ter
iniciado uma “morte lenta para a escravidão”. Falta-nos agora perceber
os pormenores, tanto no contexto específico de Angola, como no contexto
mais amplo do mundo atlântico, desta resistência que envolveu, ano a
ano, centenas de escravos lutando pela liberdade.

63 Sobre o AHU, onde está depositada uma coleção importantissíma de documentos sobre
Angola, ver José C. Curto, “A colecção de manuscritos angolanos do Arquivo Histórico Ul-
tramarino de Lisboa: para um guia de trabalho”, Revista Internacional de Estudos Africa-
nos, no. 6-7 (1987), pp. 275-306. Para os arquivos em Angola, ver: Joseph C. Miller, “The Ar-
chives of Luanda, Angola”, International Journal of African Historical Studies, vol. 7, no. 4
(1974), pp. 551-590; David Birmingham, “Themes and Resources of Angolan History”, Af-
rican Affairs, vol. 73 (1974), pp. 188-203.
64 Paul E. Lovejoy, “Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive of En-
slaved Africans”, in Robin Law (org.), Source Material for Studying the Slave Trade and
the African Diaspora, Stirling: Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling,
1997, pp. 119-140; Idem, “Identifying Enslaved Africans in the African Diaspora”, in Paul
E. Lovejoy (org.), Identity in the Shadow of Slavery, Londres: Continuum, 2000, pp. 1-29.

528 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Post-Scriptum

(Toronto, Canadá, 08 fevereiro, 2016)


Originalmente publicada em 2005, esta contribuição foi aqui reproduzida
quase textualmente, com leve revisão aqui e ali. Desde então, estudos exclusi-
vamente ou em grande parte dedicados à questão da resistência à escravidão
na África permanecem escassos. Os títulos essenciais estão listados abaixo.
Alpers, Edward A., e Gwynn Campbell, Resisting Bondage in Indian Ocean Africa
and Asia (Nova York: Routledge, 2006). 
Caldeira, Arlindo. “Rebelião e outras formas de resistência à escravatura na ilha
de São Tomé (sécs. XVI-XVIII)”, Africana Studia, no. 7 (2004), pp. 101-136.
Candido, Mariana P. “African Freedom Suits and Portuguese Vassal Status: Legal
Mechanisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800-1830”, Slavery
and Abolition, vol. 32, no. 3 (2011), pp. 447-458.
Curto, José C. “José Manuel and Nbena in Benguela in the late 1810s: Encounters
with Enslavement”, in Dennis Cordell (org.), The Human Tradition in Africa (Lanham,
MD: Rowman e Littlefield, 2011), pp. 13-30.
Deutsch, Jan-Georg, Emancipation without Abolition in German East Africa, c.
1884-1914 (Athens, OH: Ohio University Press, 2006).
Ferreira, Roquinaldo A. “Slave Flights and Runaway Communities in Angola (17th-
19th Centuries)”, Anos 90, vol. 21, no. 40 (2014), pp. 65-90.
Ferreira, Roquinaldo A. “Slaving and Resistance to Slaving in Angola”, in David Eltis
e Stanley Engerman (orgs.), Cambridge History of Slavery (Nova York: Cambridge
University Press, 2011), pp. 111-132.
Getz, Trevor e Liz Clarke, Abina and the Important Men: A Graphic History (Nova
York: Oxford University Press, 2012). 
Gomes, Raquel G. A. “Códice 3256, Governo Geral de Luanda, 1854-1858, Registo
de Escravos Fugidos: Problems and Possibilities”, Portuguese Studies Review, vol.
23, no. 2 (2015), no prelo.
Jones, Hilary. “The Testimony of Lamine Filalou: A Young Man's Experience of
Enslavement and His Struggle for Freedom in French West Africa”, in Bellagambia,
Klein e Greene (orgs.), African Voices on Slavery and the Slave Trade , pp. 239-248
e 437-444.
Misevich, Philip. “Freetown and Freedom? Colonialism and Slavery in Sierra Leone,
1790's to 1860”, in Paul E. Lovejoy e Suzanne Schwarz (orgs.), Slavery, Abolition,
and the Transition to Colonialism in Sierra Leone (Trenton, NJ: Africa World Press,
2014), pp. 189-216.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 529


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Montana, Ismael. “The Ordeal of Slave Flights in Tunis”, in Alice Bellagambia, Martin
Klein e Sandra E. Greene (orgs.), African Voices on Slavery and the Slave Trade
(Nova York: Cambridge University Press, 2013), pp. 239-248.
Mouser, Bruce. “Rebellion, Marronage and Jihad: Strategies of Resistance to Slavery
on the Sierra Leone Coast, c.1783–1796”, Journal of African History, 48 (2007),
pp. 27-44.
Perbi, Akosua Adoma. “Enslavement, Rebellion and Emancipation in Africa:
The Ghanaian Experience”, in A. R. Highfield e G. F. Tyson (orgs.), Negotiating
Enslavement: Perspectives on Slavery in the Danish West Indies (St. Croix: Antilles
Press, 2009), pp. 15-29.
Roschenthaler, Ute. “The Blood Men of Old Calabar - A Slave Revolt of the Nineteenth
Century?”, in Bellagambia, Klein, e Greene (orgs.), African Voices on Slavery and
the Slave Trade, pp. 445-465.  
Seibert, Gerhard. “São Tomés Great Slave Revolt of 1595: Background, Consequences
and Misperceptions of One of the Largest Slave Uprisings in Atlantic History”,
Portuguese Studies Review, 18/2 (2010), pp. 29–50.
Ulrich, Nicole. “Abolition from Below: The 1808 Revolt in the Cape Colony”, in
Marcel van der Linden (org.), Humanitarian Intervention and Changing Labor
Relations: The Long-Term Implications of the Abolition of the Slave Trade (Leiden:
Brill, 2011), pp. 193-222.
Worden, Nigel. “Armed with Swords and Ostrich Feathers: Militarism and Cultural
Revolution in the Cape Slave Uprising of 1808”, in Richard Bessel, Nicholas Guyatt,
e Jane Rendall (orgs.), War, Empire and Slavery, 1770-1830 (New York, Palgrave
Macmillan, 2010), pp.121-38.

530 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Mapa de Angola

1 Foram várias investidas para aumentar a presença portuguesa em Angola entre 1836 e
1860. Três destas iniciativas tiveram grande visibilidade. O Ambriz, uma região sem so-
berania definida, foi ocupado em 1855. Fundou-se, em 1848, uma colônia, Mossamedes,
com portugueses que saíram de Pernambuco fugindo do clima de antilusitanismo durante
a Revolução Praieira. Além destas iniciativas, a partir de 1836, desencadeou-se um ciclo
de investidas militares para submeter as regiões a leste do Rio Kwango. Não se trata aqui
de aferir o quanto tais iniciativas tiveram êxito. Mossamedes, por exemplo, não teve êxi-
to imediato. Apesar disto, é claro o esforço reordenador português em Angola a partir de
1836. E o fim do tráfico ilegal, é preciso dizer, ao afastar os riscos à soberania portuguesa,
também fez parte desta reordenação.

RESISTÊNCIA À ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA: O CASO DOS ESCRAVOS FUGITIVOS 531


RECAPTURADOS EM ANGOLA, 1846-1876
CAPÍTULO 17

esCrAvidão e revoltAs de esCrAvos eM AnGolA (1830 - 1860)


Roquinaldo Ferreira1

Tráfico, escravidão e reformas


O fim do tráfico ilegal significou igualmente transformações imediatas
no perfil demográfico de Luanda. Entre 1845 e 1850, a população total
de Luanda aumentou de 5.605 para 12.656; um aumento anual de cerca
de 1.392 habitantes. Dois grupos em particular foram responsáveis por
tal crescimento: os escravos e os pretos e mulatos livres. Só os escravos
aumentaram de 2.749 para 5.900. Por esta razão, quase metade da população
total de Luanda era formada por escravos, em 1850. Já os pretos e mulatos
livres aumentaram de 1.255 para 5.305, conforme indica a Tabela 1: 2

População de Luanda em 1850


Status Social Homens Mulheres Total
Brancos 820 420 1.240
Pardos Livres 1.185 750 1.935
Pardos Escravos 50 70 120
Pretos Livres 1.220 2.150 3.370
Pretos Escravos 2.150 3.750 5.900
Total 5.425 7.140 12.656
Fonte: BOGGPA, nº 303, de 19 de julho de 1851.

1 Este texto foi originalmente o terceiro capítulo da dissertação de Mestrado "Dos sertões
ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola (l830-1860)", defen-
dida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996. Algumas mudanças foram fei-
tas por acréscimo de dados coletados durante pesquisa em Luanda e Lisboa entre julho e
setembro de 1998. Agradeço às seguintes instituições pela série de pequenos financia-
mentos que tornaram possível esta pesquisa: Centro de Estudos Latino-Americanos e
Centro de Estudos Africanos, Programa de Estudos Internacionais e do Ultramar e o De-
partamento de História, todos da Universidade da Califórnia, Centro de Estudos Afro-A-
siáticos da Universidade Cândido Mendes, Fundação Tinker. Agradeço a João Reis pelo
minucioso trabalho de revisão.
2 Os dados populacionais de Luanda para l845 estão em José Joaquim Lopes de Lima. En-
saios sobre a statistica das possessões portuguezas na África Occidental e Oriental;
na Asia Occidental; na China e na Oceania, Parte 1. pág. 4-A, citado por René Pélissier,
Les guerres grises: résistances et revoltes em Angola (1845-1941), Paris: Montamets,
1977, p. 32

533
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

São claros os indícios da relação entre explosão demográfica e fim


do tráfico ilegal em Luanda. Até os anos 1840, era comum que fossem
mantidos nos quintais dos casarões dos traficantes de escravos até 300
ou 400 escravos. Dali estes eram encaminhados para embarque ilegal a
vários pontos da costa de Angola, como Ambriz e Ambrizete. Milhares
de cativos afluíam anualmente a Luanda nas caravanas chegadas dos
sertões e só depois eram levados para os pontos de embarque. Este foi
um padrão no tráfico de escravos específico do período ilegal. É preciso
dizer que, ao mesmo tempo em que existiam caravanas levando escravos
para Luanda, várias outras rotas levavam escravos diretamente para os
locais de embarque no norte e sul de Angola.
George Tams, o naturalista que esteve em Angola em 1841, testemunhou
a chegada de caravanas com escravos em Luanda.
Não era fácil distinguir sempre à primeira vista os
poucos escravos que vinham destinados a venderem-
se na cidade; porque eles entravam frequentemente
misturados na caravana, caminhando com os outros na
mesma fileira, e como eles, acarretando mercadorias;
mas algumas vezes vinham com as mãos atadas atrás
da costa, ou com cordas ao pescoço acompanhando
a cáfila. Se a caravana se compunha de uma grande
porção de escravos escoltados por poucos condutores,
estes se viam então obrigados a adotar medidas de
segurança e defesa própria, prevenindo-se contra o
risco de serem assassinados quando dormindo. Em tais
casos, os condutores se provinham de uma comprida
vara, com uma espécie de garfo numa das extremidades
dentro do qual encaixavam os pescoços dos escravos,
prendendo a si a outra extremidade; e desta forma eles
se conservavam sempre a mesma distância, podendo sem
receio adormecer, depois de terem tomado a precaução
de lhes ligar as mãos atrás das costas durante aquele
tempo, para evitar que eles pudessem tirar os pescoços
dos garfos.33

Dois aspectos se destacam no relato de Tams. Primeiro, a óbvia preo-


cupação com a segurança. Tal preocupação era diretamente proporcional
ao número de escravos nas caravanas. Cuidados especiais eram, então,
necessários para excluir qualquer chance de fuga ou revolta dos escra-
vos. Tantos cuidados sugerem, porém, algo a respeito do comportamento
dos cativos. Em condições degradantes, fazia-se uma longa caminhada
desde o interior, o que, no entanto, não impedia fugas e revoltas entre

3 George Tams, Visita as possessões portuguesas na Costa Ocidental da África, Porto: Typo-
graphia da Revista, 1861. pp. 218-219. Na transcrição de fontes impressas e manuscritas
da época, mantive a grafia original, mas em alguns casos interferi na pontuação para me-
lhor compreensão do texto.

534 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

os cativos levados nas caravanas. Um outro ponto se destaca no relato


de Tams: o sigilo no tráfico ilegal em Luanda. Para escapar da repressão,
as caravanas evitavam a luz do dia quando entravam em Luanda. Esta foi
uma situação bastante diferente da dos anos trinta, quando era livre a
entrada de caravanas com escravos em Luanda. A partir do início dos anos
quarenta, contudo, os traficantes buscavam a noite para consumar seus
negócios. Tams, na verdade, testemunhou uma situação que precedeu a
repressão maior, a partir de 1845, que provocou um colapso na entrada
de escravos em Luanda.
Além disso, quando os escravos eram em grande
número, eles os prendiam uns aos outros com cadeas,
ou cordas pelo pescoço, e lhes amarravam as mãos,
não obstante virem estes condutores sempre bem
armados: ao mais pequeno indício de perigo, salvavam
eles as suas vidas sacrificando as dos escravos. Como
já mencionei era muito raro entrar na cidade alto
dia qualquer porção avultada deles com destino de
serem ali vendidos: usualmente faziam estas entradas
acobertados com a escuridão e silêncio da noite,
ocultando estas infelizes criaturas, roubadas quando
dormindo e trocadas por qualquer bagiaria, em várias
partes da cidade, e nas vizinhanças, até aumentarem
seu número suficientemente; e muitas vezes o fato de
estarem escondidos só se divulgava após a partida do
navio.44

As dificuldades para transportá-los para fora de Luanda parecem


ter ditado um brutal aumento no número de escravos que compunham a
população de Luanda entre 1845 e 1850. Estas dificuldades, por sua vez,
surgiram com o interesse português em terminar com o tráfico ilegal
e criar novas opções econômicas para Angola. Para os administradores
portugueses, através da abolição do tráfico de escravos e a manutenção
da escravidão se garantiria a viabilidade das atividades lícitas em Angola.
Estas ações antitráfico foram consoantes com o pensamento defendido
por alguns publicistas da época. Principalmente depois da independência
do Brasil, Portugal foi cada vez mais refratário aos estreitos laços entre
Brasil e Angola. No discurso dos administradores, o Brasil sugava as
riquezas de Angola e o tráfico ilegal era o principal mecanismo dessa
espoliação. Dizia-se então que, através do tráfico, trazia-se para o Brasil
a mão de obra que poderia ser empregada em Angola.
Segundo esse discurso oficial, o tráfico ilegal só favorecia os trafi-
cantes "brasileiros" e luso-africanos de Luanda. Desta forma, o verdadeiro
"pano de fundo" do abolicionismo português da época foi incrementar

4 Idem, pp. 218-219.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 535


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

as atividades lícitas de Angola através da escravidão. Para tanto, desen-


volveu-se uma verdadeira retórica de oposição entre o tráfico ilegal de
escravos e o comércio lícito.
A abolição da escravatura ao mesmo tempo que fez
[baixar] entre nós o preço dos escravos que podemos
desde já adquirir por quarenta ou quarenta e cinco
mil réis e em breve por menos, fez subir no Brasil a
trezentos mil réis o preço de cada um, e esta causa de
per se basta para fazer ver que as nossas produções
poderão dar-se a menor preço, que estabeleceremos
ligações diretas com a metrópole, deixando o
intermédio até agora usado do Rio de Janeiro e que
daqui se seguirão não só a utilidade da colônia,
reduzida quase a zero pela suspensão do comercio de
escravos [...] 55

A rigor, no entanto, não havia como dar concretude em Angola ao


liberalismo vigente em Lisboa. Em Angola, os interesses dos colonos
eram bem diferentes daqueles manifestados pela metrópole. Várias
medidas contra a escravidão e o trabalho forçado foram decretadas por
Portugal entre 1830 e 1850. Só uma, no entanto, foi implementada: o
fim do tráfico de escravos. E isto só deu certo, é preciso dizer, além do
interesse português, pela mobilização de navios de guerra das marinhas
de vários países na costa de Angola. Embora a abolição do tráfico tenha
sido vista como vital para manter a soberania portuguesa sobre as
colônias africanas, Portugal só conseguiu agir efetivamente contra o
tráfico a partir de 1841. Em 1836, por exemplo, quando Portugal baniu
oficialmente o tráfico ilegal, o governador-geral de Angola foi obrigado,
diante da pressão local, a atenuar o decreto abolicionista. 66

5 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), 2ª Seção - Correspondência dos Governadores


de Angola, Pasta 2, 1836- l837. Primeira comunicação, em 21 de março de 1836, do
Conselho de Direção da Companhia de Agricultura de Indústria de Angola e Benguela
com Lisboa. Podemos ver os primórdios desta retórica no pronunciamento de despedi-
da de Nicolau de Abreu Castello Branco, quando foi substituído por Santa Comba Dão
no posto de governador-geral de Angola, em 15 de fevereiro de 1830. AHU. cx. 164. An-
gola 1830, doc nº 75. Ver também a carta enviada por Manuel da Cruz para Manoel Ri-
beiro Guimarães, membro da Associação Mercantil, em 20 de outubro de 1837, acerca
do comércio de africanos, carta que revela uma visão extremamente crítica em rela-
ção ao tráfico e onde o autor afirma que Portugal poderia recuperar a perda do Brasil
cultivando a África. Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 600.
6 Sá da Bandeira tentou introduzir no projeto que tramitou no Legislativo português, no
início de 1 8 3 6 , um item que libertava todos os escravos nascidos após a promulgação da
lei antitráfico. Este item foi retirado pelo próprio Sá da Bandeira no momento da promul-
gação do decreto antiabolicionista português, em 10 de dezembro de 1836. Ver Maria do
Rosário Pimentel, Viagem ao fundo das consciencias: a escravatura na época moderna,
Lisboa: Colibri, 1995, p. 340.

536 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O abolicionismo português foi sistematizado pelo publicista Lopes


Lima em 1846. Segundo ele, Portugal deveria adotar uma colonização
de novo tipo em Angola. Lopes Lima encampava a idéia, plenamente
difundida entre os administradores portugueses, de que o Brasil crescia
a partir dos "braços" escravos "roubados" de Angola. Publicado em plena
campanha contra o tráfico ilegal, o texto de Lopes Lima, na verdade,
fazia propaganda das riquezas potenciais de Angola. E, para ele, tais
riquezas só seriam plenamente exploradas com o fim do tráfico ilegal, o
que, na visão do publicista, daria a Angola a abundância de mão-de-obra
indispensável para a tão almejada prosperidade econômica.
A abolição da escravatura ocasionou um grave
paroxismo mercantil como devia esperar-se em
praças de comércio cujos mercadores quase que não
sabiam dar outro emprego a seus capitais: aterrados
por este golpe – para o qual alias deviam estar
preparados – uns retiraram-se da terra, levando
consigo as suas grandes riquezas, enquanto que
outros quiseram ainda teimar na antiga carreira,
arrostando os bloqueios e as severas penas que a
legislação novíssima impõe aos contrabandistas
negreiros: o desengano porém já vai produzindo o
seu salutar efeito desde que o governo português
tem dado provas de querer acabar de uma vez com
um tráfego tão infame como nocivo aos verdadeiros
interesses das nossas possessões africanas, a cuja
cultura se roubavam os braços, que iam fertilizar
terras estranhas. 77

Antes mesmo de Lopes Lima, em 1840, numa obra póstuma, Sebas-


tião Xavier Botelho também pregava contra o tráfico ilegal. Botelho
também sintetizou a visão dos administradores portugueses em relação
à África Portuguesa. Abolir o tráfico ilegal para dar lugar ao uso, em
larga escala, da escravidão nos domínios portugueses. Por esta razão,
Botelho frisava: abolir o tráfico ilegal não implicava o fim da escravi-
dão. Tratava­s e unicamente da oferta de novas opções na colonização
portuguesa, a partir de idéias, aliás, bastante avançadas para a época.
Botelho defendia, por exemplo, a criação de companhias de comércio,
além da adoção da brandura na escravidão a ser praticada nos domínios
portugueses. “Não admira que o comercio da escravatura ainda hoje tenha
apologistas porque a avareza é a última paixão que morre no coração do
homem; mas admira os argumentos de que se valem para sustentar sua
opinião, confundindo o comércio dos negros com o acabamento total e
repentino da escravidão: coisas entre si mui distintas e separadas, se

7 Lima, Ensaios sobre a statistica, p. xxxviii.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 537


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

bem que pareçam estreitamente unidas pelo muito que se tem lidado
em as baralhar.” 88
Até mesmo argumentos de higiene pública foram usados contra o
tráfico ilegal. Alguns administradores viam nele a causa principal das
doenças que se alastravam por Luanda. Milhares de escravos reunidos
em Luanda não tinham condições adequadas de acomodação. Assim, ao
tráfico ilegal de escravos eram dirigidos vários ataques, como o de deixar
de atrair capitais que poderiam se destinar à agricultura, à indústria e
às "artes". Além disto, o tráfico de escravos ofendia a religião cristã e
diminuía a população indígena ao levar os "braços para fora da província"
para o Brasil e, já então, para Cuba. Na visão de alguns administradores,
higienizar Luanda, algo vital do ponto de vista da saúde pública, significava
limpá-la dos quintais de escravos, onde, imaginava-se, se originavam as
doenças que afligiam a cidade.
O tráfico que atraía os capitais, que impedia o
desenvolvimento da agricultura, da indústria e das
artes, que desprezava a cidade que não era sua, que
ofendia pela base a existência sincera da religião
cristã, que diminuía a população indígena levando
os braços para fora da província, que amontoava o
ouro como um depósito para o levar a outras terras
sem deixar vestígios, e que estabelecia a moralidade
do acampamento militar como fundamento da vida
social de Luanda, era fatal para a saúde pública.
Aglomeravam-se nos quintais dos moradores grandes
porções de escravos duzentos, às vezes trezentos e
quatrocentos em cada quintal ali estavam, comiam,
dormiam e satisfaziam todas as necessidades
humanas, e dali infectavam as casas e a cidade com
os mais pútridos miasmas; e porque o peixe seco é
comida estimada e usual deles, era sobre o muro
destes quintais, e sobre os tetos das casas de palha,
vulgarmente chamadas cubatas, que tais preparações
se faziam, com manifesto dano para a saúde pública. 9

8 Sebastião Xavier Botelho, Escravatura: beneficios que podem provir as nossas posses-
sões d'África da proibição daquele tráfico, Lisboa: Typographia de José B. Morando,
1840. p. 1.
9 Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos (presidente da Câmara Municipal da Ci-
dade de São Paulo de Assunção de Luanda), Carta acerca do tráfico de escravos na
província de Angola, Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1853. É claro que não foi pos-
ta de lado a estratégia de abolir o tráfico para que os escravos fossem empregados
na própria Angola: "A nosso ver a única tábua de salvação é a abertura de estradas
da cidade para as diferentes direções do interior, aproveitando os braços disponíveis
que o tratado de supressão nos deixou no país, com os quais bastante recursos pode-
remos tirar das muitas produções quase espontâneas deste vastíssimo solo." Ver o
Almanak statistico da provincia d'Angola e suas dependencias para o ano de 1852,

538 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Medidas contra o trabalho forçado dos carregadores e a própria es-


cravidão coadjuvaram o movimento antitráfico português. Em 1839, uma
portaria impediu o trabalho forçado. Mas só em 1856, contudo, Portugal
conseguiu interferir para abolir o serviço gratuito dos carregadores. Esta
foi uma medida especialmente delicada porque todo o comércio entre
Luanda e os sertões de Angola dependia dos carregadores negros, que eram
recrutados através das chefias africanas "avassaladas". Na verdade, na
abolição do serviço dos carregadores, tem-se um quadro de transformações
mais amplas no comércio de Angola. Havia uma resistência ao recruta-
mento de carregadores cada vez maior entre os chefes africanos, algo
que prejudicava diretamente os negociantes de Luanda, que dependiam
daqueles para o comércio com os sertões. A partir do comércio lícito, os
próprios africanos cada vez mais praticaram o comércio ele longa distância
através das caravanas. Com isso, os negros, até então contratados como
carregadores pelos negociantes luandenses, se tornaram integrantes das
grandes caravanas organizadas pelos chefes africanos.
Quanto à escravidão, uma primeira legislação foi criada em 1854,
sem na prática alterar o dia-a-dia dos escravos angolanos. Foi criada uma
categoria intermediária entre o homem livre e o escravo: o liberto. Aos
libertos cabia trabalhar para os antigos senhores durante dez anos, a
fim de ressarci-los. Mas não houve como levar a termo a legislação de
1854. O viajante John Monteiro, que esteve em Angola naquela altura,
previu que o fim da escravidão em Angola seria uma "letra morta", visto
que os negociantes e produtores dependiam da mão de obra escrava
para levar adiante seus negócios: “At near date, the total abolition of
slavery in Angola has been decreed, and will come into force; with the
inevitable result of the ruin of the plantations, or of it becoming a dead
letter in the province.” 10
De fato, a escravidão acabou por só ser abolida por Portugal em
1868. Os libertos, na prática, nada mais eram que escravos. Tem-se aqui
o limite do liberalismo português. Foi possível acabar com o tráfico, mas
a escravidão manteve-se intacta. Segundo alguns autores, isto foi uma
continuação 9

Luanda: Imprensa do Governo, 1851, p. 22. A partir de Carlos José Caldeira, que este-
ve em Luanda em 1852, tem-se mais um exemplo do argumento antitráfico baseado
na higienização de Luanda: "Assegurava-se que era mui sensível o melhoramento do
clima nestes últimos dias, devido em parte a reforma de maus habitos, de comesanas,
de ceias lautas e a cessação do comércio da escravatura que obrigava a ter amontoa-
das porções de negros nos pátios das casas, como nos currais de brutos sem asseio al-
gum, e donde se axalavam pestilentos miasmas." Carlos José Caldeira, Apontamen-
tos d'uma viagem de Lisboa à China, Lisboa: Typographia de Castro & Irmão, 1853, p.
200. O argumento científico também esteve presente na abolição do tráfico ilegal no
Brasil. Ver Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial,
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 72-76
10 John Monteiro, Angola and the River Congo, Londres: Mac Millan & Co., 1875, pp. 75-76.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 539


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

estratégia deliberada do Estado português. Como já se viu, foi algo tam-


bém pregado por alguns publicistas da época: acabar com o tráfico ilegal
exatamente para manter e fortalecer a escravidão.11 “There are at present
in Angola several sugar and cotton plantations worked by slaves, called at
present ‘libertos’, who are meant by the portuguese government to work
ten years, as a compensation to their owners for the capital expended in
their clothing, education and medical treatment.”12
Fortalecer a escravidão em Angola não foi uma tarefa das mais difíceis,
levando em conta o declínio no preço dos escravos com o fim do tráfico
transatlântico para as Américas. A relação entre preço e fim do tráfico de
escravos é clara. Ao diminuírem os embarques, a partir de 1850, os preços
dos escravos em Angola caíram. Entre 1846 e 1850, foram embarcados de
Angola 113.000 escravos; já entre 1851 e 1855, apenas 7.600 escravos o
foram. Com isto, em 1854, o preço de um escravo jovem em Luanda sofreu
uma queda de 70 a 80 dólares para apenas 10 a 20 dólares, segundo Ro-
bert Harms. No interior de Angola, segundo Ladislau Magyar, o húngaro
que morou e viajou pela região, o fim do tráfico ilegal fez desabar em 1/3
os preços dos escravos. “Atualmente o preço dos escravos é muito baixo;
desde que se vem impedindo o seu embarque, o preço baixou até um terço.
Já se pode comprar um jovem escravo adulto ou uma jovem escrava por
35-40 côvados de diversos tecidos europeus. Um boi possante custa quase
a mesma coisa [...].”13
Números relativos a 260 escravos vendidos na região de Icollo e Ben-
go, entre junho de 1858 e maio de 1859, confirmam a queda no preço dos
cativos em Angola. Nos anos 1850, aquela região era conhecida como um
dos mais procurados refúgios por escravos fugidos de Luanda. Distando

11 Pimentel analisa desta forma o contexto que cercou o decreto português de 1836: "Es-
tas exceções [que permitiam que os portugueses transportassem escravos de uma colônia
para outra de Portugal mesmo depois do decreto antitráfico de 1836] vinham ao encon-
tro das pretensões da política de Sá da Bandeira de desenvolver as possessões portugue-
sas em África e de criar alternativas econômicas ao tráfico negreiro, o que pressupunha
a existência de uma mão-de-obra abundante, a sua concentração em território nacional
e a proibição da exportação de não-de-obra para o estrangeiro." Ver Pimentel, Viagem ao
fundo das consciências, p. 341 . Adelino Torres, O Império Português: entre o real e o ima-
ginario, Lisboa: Escher, 1994. Ver também Richard Roberts e Suzanne Miers, "The end of
slavery in Africa", in Suzanne Miers e Richard Roberts (orgs.), The end of slavery in Africa
(Madison: University of Wisconsin Press, 1988), p. 15.
12 Ao mencionar a cultura do algodão e do açúcar, John Monteiro se refere mais propriamen-
te aos anos 1860. Ver Monteiro, Angola and River Congo, pp. 75-76.
13 Para os embarques de escravos ver David Eltis, Economic Growth and the Ending of the
Transatlantic Slave trade, Nova York: Oxford University Press, 1987, p. 256, e o banco de
dados www.slavevoyages.org. A queda no preço dos escravos em Luanda pode ser vista em
Robert Harms, River of Wealth, River of Sorrow: The Central Zaire Bassin in the Era of
the Slave and Ivory Trade, 1500-1891, Londres: Yale University Press, 1981, p. 29. Ladis-
lau Magyar, Viagens no interior da Africa Austral nos anos de 1849 a 1857, edição ainda
em preparação em Luanda, cap. 7, pp. 14-17.

540 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

cerca de quarenta léguas desta, em 1859 a população total do Icollo e


Bengo somava 10.193 pessoas e 1.903 fogos. Os números referentes aos
preços de escravos naquela região mostram um decréscimo médio em torno
de 20% entre junho de 1858 e maio de 1859. Embora mais baixo que os
70% que podem ser calculados a partir dos dados de Harms, tal declínio
se encontra numa faixa parecida com aquele sugerida por Magyar. 14

Gráfico 1: Preços de escravos no lcollo e Bengo entre 1858 e 1859 (em réis)

Fonte: Arquivo Nacional de Angola, Registros de Escravos (lcollo


e Bengo), Códice nº 2782, cota 9/c-2-2.

Assim como as mudanças no que diz respeito aos escravos, a variação


no número de libertos obriga a uma conclusão: foi cada vez maior o peso
das formas de trabalho forçado na economia de Angola entre 1845 e 1863.
Quanto ao libertos, os números mostram um aumento brutal entre 1859
e 1863. Um aumento que não esteve concentrado apenas em Luanda, mas
generalizado por várias regiões de Angola. Tais cifras, de certa forma,
refletem as mudanças então operadas na economia de Angola. Antes de
1855, conforme é mostrado pelo movimento de navios no porto de Luan-
dana época, o eixo econômico de Angola voltava-se quase exclusivamente
para o centro-sul, englobando Luanda e Benguela. Os números relativos
aos libertos nos anos de 1859 e 1863, no entanto, sugerem mudanças no
peso econômico das diversas regiões de Angola. Através deles, nota-se

14 A população total do lcollo e Bengo está num relatório da administração portuguesa para
o ano de 1859. Ver AHU, Correspondência dos Governadores de Angola, 2ª Seção. Pasta
25.1 (1859). Para os registros sobre os 269 escravos que foram vendidos no lcollo e Bengo
em 1859, ver Arquivo Histórico de Angola (daqui para frente AHA), códice no. 2782, cota
9/c-2-2. Para o número de fogos no lcollo e Bengo, ver AHU. “Resumo e comparação no pa-
gamento do dizimo, em 23 de fevereiro de 1860”, na Pasta 26.1 (1860).

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 541


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

que Benguela experimentava um relativo declínio econômico em fins


dos anos cinquenta. Em Benguela, o número de libertos simplesmente
diminuiu entre 1859 e 1863, conforme aponta a Tabela 2.

Tabela 2: Libertos em Angola 15


Distritos 1859 1863
Ambriz 24 422
Luanda 2.328 6.781
Benguela 1.792 1.583
Mossamendes 47 291
Golungo Alto 9.483 21.182
Total 13.674 30.259

No Ambriz, empregaram-se somente 24 libertos em 1859, bem longe dos


422 empregados em 1863. Este aumento da presença de libertos na região
podia refletir as mudanças que aí aconteceram após 1855, quando a região
foi militarmente ocupada por Portugal. A partir de então, os laços entre o
Ambriz e Luanda foram estreitados, o que criou um novo eixo econômico no
norte de Angola. Tal inflexão torna-se também visível através da movimen-
tação de navios de cabotagem no porto de Luanda, entre 1845 e 1860.16 No
total, saíram de Luanda para os "portos do norte" e Ambriz 185 navios entre
1845 e 1860. Por outro lado, destas mesmas regiões, entraram 166 navios
em Luanda no mesmo período. O movimento de navios pelo porto de Luanda
mostra que o ano de 1855, quando o Ambriz foi ocupado por Portugal, seria
um verdadeiro divisor de águas. Entre 1846 e 1854, entraram em Luanda
apenas 33 navios dos "portos do norte" e Ambriz. A partir de 1855, contudo,
nota-se um aumento sensível em tais entradas. Cerca de 80% (133) dos navios
que entraram em Luanda procedentes dos "portos do norte" e Ambriz entre
1846 e 1860, o fizeram a partir de 1855. 17
O mesmo movimento de expansão em relação ao eixo norte da eco-
nomia de Angola é notável a partir das saídas de navios em viagens de
cabotagem por Luanda. Entre 1846 e 1854, foram apenas 46 saídas para
os "portos do norte" e o Ambriz. Já em relação ao período posterior, entre
1855 e 1860, tem-se cifras bem mais expressivas, com 139 saindo para

15 AHU, Correspondência dos Governadores, Angola, Pasta 26, "Relação dos libertos registra-
dos na Provincia d'Angola desde que existem indivíduos (1854) com tal condição até o fim
do ano de 1859"; e pasta 34, "Nota do numero de libertos que têm sido registrados na Pro-
vincia de Angola depois do decreto de 14 de dezembro de 1854 até 31 de dezembro de 1863".
Os dados para a montagem desta tabela me foram gentilmente cedidos por José C. Curto.
16 Na linguagem da época, "portos do norte" era uma designação genérica aplicada ao Rio
Zaire, a Ambriz, Cabinda e outros pontos ao norte de Luanda.
17 Para o movimento do porto de Luanda, ver Boletim Oficial do Governo-Geral da Provincia
de Angola (BOGGPA) entre 1845 e 1860.

542 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

estas regiões. Já o aumento sensível no número de libertos em Mossame-


des também se justifica pelo crescimento econômico da região nos anos
sessenta. Em fins da década anterior, Benguela ainda tinha a primazia
como origem ou destino dos navios que passavam por Luanda em dire-
ção ao sul de Angola. No geral, Benguela respondeu por 38%, enquanto
Mossamendes por 8% do movimento de cabotagem entre 1845 e 1860.
Com a guerra civil americana (1861-1865), no entanto, Angola passou
por um boom da cultura do algodão. Ao que tudo indica, Mossamedes
beneficiou-se diretamente deste surto algodoeiro.18
A maior parte dos libertos estava concentrada em duas regiões: Luan-
da e o Golungo-Alto. Em Luanda, os números se justificam pela condição
privilegiada da cidade, capital da província e porto principal da região.
Os números relativos aos libertos no Golungo-Alto, uma região não-cos-
teira, são preciosos. Além da expansão econômica para o norte, a partir
da criação do eixo econômico no Ambriz, houve também um aumento nas
atividades econômicas no interior. No Golungo-Alto, se concentravam as
rotas do comércio com os sertões. De certa forma, o número de libertos
ilustra a importância estratégica da região.

A rebeldia escrava
Mas, se garantiu uma força de trabalho gratuita, o fim do tráfico ilegal
produziu também efeitos menos elogiados entre produtores e negociantes
luandenses. Luanda sofreu cada vez mais com as fugas e revoltas dos es-
cravos concentrados na cidade. Valores próprios da escravidão praticada no
interior, muitas vezes uma escravidão de tipo doméstica, influenciavam os
escravos das áreas dominadas pelos portugueses. Tudo indica que costumes
e práticas tradicionais nas sociedades do interior incentivavam a fuga dos
africanos escravizados na costa. Uma faixa de terra pequena e cercada por
povos independentes, que mantinham com os portugueses relações instáveis,
constituía a área sob domínio português em Angola. Por si só, isto criou um
quadro bastante favorável à rebeldia escrava. 19
Nas sociedades africanas a instituição da escravidão guardava grandes
diferenças em relação à escravidão mercantil praticada no espaço controlado
pelos portugueses em Angola. Ladislau Magyar esteve nos sertões de Angola
e identificou uma escravidão doméstica no "país de fala quimbundo". Segundo
Magyar, existiam os fuká e os dongo, duas classes diferentes de escravos. Os
fuká eram mantidos sob a posse de alguém como um "penhor", segundo diz

18 Idem. Para o boom algodoeiro, ver W. G. Clarence-Smith, Slaves, Peasants and Capitalists
in Southern Angola, 1840-1926, Londres: Cambridge University Press, 1979, p. 15.
19 Manning menciona a eclosão de várias revoltas escravas em vários pontos da África em
meados do século XIX. Ver Patrick Manning, Slavery and African life: Occidental, Orien-
tal and African Slave trades, Nova York: Cambridge University Press, 1990, p. 144.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 543


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Magyar. Podiam ser resgatados pelos antigos donos mediante pagamento.


Por outro lado, os dongo, capturados nas guerras ou comprados, padeciam
da escravidão absoluta. “Bem vistas as coisas, aqui não há criados; o lugar
deles é ocupado pelos escravos que, como já mencionei, formam duas classes
especiais. Os fuká ou háfuká são, como penhor, propriedade do credor apenas
até ao seu resgate. Mas os dongo, ou seja, os escravos capturados na guerra
ou comprados, são propriedade absoluta dos seus donos.”20
Magyar afirma que a escravidão era uma instituição amplamente prati-
cada no interior de Angola. Leis consuetudinárias aplicadas de acordo com o
interesse dos mais fortes, guerras endêmicas entre os africanos e a aplicação
de pesadas multas ao menor delito, que forçavam o devedor a se oferecer
como escravo, eram os motivos que podiam fazer um homem livre se tornar
escravo. Magyar diz que talvez a metade da população do "país quimbundo"
fosse formada por escravos. E entre a população escrava, os homens eram
majoritários, respondendo por 2/3 do total.
O número dos dongo é muito grande, não só porque
muitos são os adquiridos por compra no estrangeiro,
como também porque há muitos da terra que acabam na
escravatura. Na verdade, entre estes povos gananciosos,
invejosos e eternamente em conflito uns com os outros, o
mínimo delito, mesmo uma palavra dita inadvertidamente
que contrarie os seus estúpidos usos, é considerado
um crime "kezila" e como não há lei escrita e o direito
consuetudinário, na maior parte dos casos, é interpretado
e aplicado arbitrariamente pelos poderosos e em
desvantagem dos mais fracos e, finalmente, porque não
existe a devida proporção entre a gravidade do delito e o
castigo, constando o castigo sempre de pesada multa: é
por tudo isso que não nos devemos admirar de que quase
metade da nação esteja vendida como escrava à outra
metade.21

Entre o húngaro Ladislau Magyar e John Monteiro, o inglês que também


foi ao interior de Angola, quase não há diferenças na análise da escravidão
ali praticada. Os dois viajantes viam naquela escravidão uma instituição com
características domésticas: benigna e não hereditária.
Como já mencionei, os donos exercem um poder mais
paternal do que autoritário sobre os seus escravos, tratam-
nos amavelmente e deixam-lhes o tempo suficiente para
que possam executar as suas próprias tarefas domésticas.
Além disso, os escravos casam-se sempre com mulheres
livres, levam portanto uma vida razoavelmente cômoda

20 Magyar, Viagens no interior da África Austral, cap. 7, p. 11. Sobre as peculiaridades da es-
cravidão africana, ver Manning, Slavery and African Life, p. 113.
21 Magyar, Viagens no interior da África Austral, p. 11.

544 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

e os seus filhos, como propriedade da mãe, são pessoas


livres. Mas as escravas são, na maior parte das vezes,
concubinas dos seus donos e, com o tal, fazem parte dos
membros da família. 22

Mas o tratamento benigno dispensado aos escravos não era fruto


da bonomia dos proprietários. Tratá-los bem era a maneira de evitar as
fugas.23 Os costumes africanos facultavam aos escravos o direito de fugir
para encontrar outros donos. Bastava sentir algum tipo de "descontenta-
mento" e os escravos poderiam fugir para buscar novos senhores. E eram
dois os tipos de fugas. Na modalidade conhecida como vátira o escravo
simplesmente abandonava tudo e fugia. Esta fuga não era sancionada
pelos costumes africanos e levava o escravo para o ponto o mais longe
possível. Mas o verdadeiro perigo para os senhores era a chimbika ou
tombika. Por este tipo de fuga o escravo poderia procurar qualquer chefe
africano e se oferecer para ser seu escravo. Cometia-se algum delito por
exemplo, matar algum animal do dono pretendido contra alguém e, para
ressarcir o prejuízo causado, o ofensor, já escravizado, se oferecia como
escravo a este alguém. 24
A chimbika (ou tombika) era também usada pelos escravos criminosos
que, ao fugir, causavam algum dano ao patrimônio de outra pessoa para, então,
poderem se oferecer como escravo. Sendo um potentado, o antigo senhor
poderia tentar reaver seu escravo pagandopelo dano que o escravo causara.
Mas os escravos podiam impedir que tal estratégia fosse consumada por seus
antigos senhores. Era só causar um grande dano ao patrimônio do futuro
dono. Assim, o antigo dono acabaria por não achar interessante pagar para
ter o escravo de volta.
Mas se o escravo tiver cometido qualquer crime de vulto,
fugindo por isso do seu dono, que devido à sua fortuna ou
à sua posição exerça uma influência bastante grande na
sociedade e possa, portanto, reaver o fugitivo por meio de
um resgate considerável, nessa altura o escravo fugitivo
causa um dano maior para poder ficar, em consequência
disso, junto do novo dono. Nesse caso tenta, geralmente,
infiltrar-se na manada de bois de um qualquer senhor

22 Idem, p. 12.
23 As informações de Magyar foram confirmadas pelo depoimento de Henrique de Carvalho,
de 1890, conforme aponta Isabel Castro Henriques, Commerce et changement en Ango-
la: Imbagala et Tshokwe face à la modernité, Paris: L'Harmattan, 1995, p. 211. Há edição
em portugues sob o titulo Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e
transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropi-
cal e Instituto da Cooperação Portuguesa, 1997.
24 "Este tipo de fuga é, na maior parte das vezes, levado a cabo somente pelas escravas; num
homem seria considerado um sinal de especial covardia". Cf. Magyar, Viagens no interior
da África Austral, p. 13.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 545


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

nobre; ali mata uma rês, corta um bocado da carne, assa-o


num lume que esteja mais à mão e come-o. Depois grita em
voz alta que, em face do prejuízo causado, se oferece como
escravo eterno ao dono do bovino e evoca como prova da
veracidade da sua palavra o bocado de carne de vaca que
tinha assado e comido na fogueira do curral.25

Famílias inteiras de escravos poderiam fugir através da chimbika ou


tombika, todos, então, se tornando escravos do novo dono. Também pessoas
livres, certamente em situações de risco, como guerras, fomes ou mesmo
dívidas, se valiam da chimbika ou tombika. Nenhum dos eventuais delitos dos
escravos pesava sobre os donos que os aceitassem. O escravo ou um africano
livre podia até matar e roubar antes de se oferecer como escravo a alguém,
mas nada disso pesava sobre o novo dono.
A fuga tombika é levada a cabo, geralmente, só por escravos
que têm família, tendo assim a convicção de que serão
aceites de bom grado pelo novo dono. Pois não só o escravo
que se escapa desta maneira passa à posse do novo dono,
como também as suas mulheres e filhos podem segui-lo
sem estorvo. Não só os escravos costumam mudar de dono
desta maneira, mas também pessoas livres, quando são
pobres e perseguidas por causa de um delito ou de uma
dívida, se tornam, de livre vontade, escravos de um senhor
poderoso para escapar ao perigo certo. Pois a partir do
momento em que se tornam escravos, desistindo da sua
liberdade, são considerados mortos em relação a tudo o que
acontecera antes e lança-se um véu de esquecimento sobre
todos os seus delitos anteriores e o seu dono só pode pagar
a multa por delitos de que se tenham tornado culpados
quando já eram seus escravos. 26

Tais prejuízos aos proprietários de escravos eram plenamente


sancionados e reconhecidos pelos costumes africanos. Muitas vezes os
antigos donos eram obrigados até a entregar os objetos pessoais de seus
ex-escravos. Em geral, os escravos procuravam por donos poderosos, que
almejavam sempre por mais escravos. Um novo dono sentia-se compelido
a aceitar os escravos. Caso não procedesse assim, o novo dono poderia não
ser mais procurado por mais nenhum escravo se oferecendo para trocar
de dono. Um escravo novo e um boi tinham o mesmo preço. Por esta razão,
não era interessante reclamar, ou melhor, pagar, por um escravo que se
valia da estratégia de matar um boi do dono pretendido.27

25 Idem, p. 13.
26 Idem, p. 13.
27 Isabel Castro Henriques mostra que um prestígio diretamente proporcional à quantidade
de escravos fazia os proprietários temerem pelas fugas de escravos: "il faut bien que les
propriétaires ne malménent pas les dépendants, sous peine de les voir déguerpir pour

546 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O resgate dos escravos perdidos desta maneira é


extremamente difícil ou mesmo impossível. O novo
dono só se mostra disposto a entregá-los ou por especial
amizade ou em troca de um grande sacrifício. Pois quem
assim proceda é condenado na opinião dos escravos
que pensam em fugir; já não têm confiança nele e não é
provável que procurem refúgio junto dele. Por outro lado,
matar um boi inclui-se entre os maiores crimes, e por isso
evita-se mencionar sequer o resgate de um escravo que
matou um bovino.28

Não é descabido que os africanos que viviam sob um tipo de escravi-


dão de base mercantil, nos territórios controlados pelos portugueses, se
guiassem pelo conceito de fuga chimbika ou tombika. Pode­s e redarguir
tal suposição argumentando que o relato do húngaro Ladislau Magyar
não basta para se tirar conclusões definitivas sobre esta questão. Mas o
fato é que também no relato de outro viajante, o inglês John Monteiro,
encontram-se evidências reforçando que os escravos se guiavam pelos
valores nativos africanos quando fugiam. Apesar de ter conhecido
também o sul de Angola, Monteiro descreve principalmente os costumes
dos povos do centro-norte.
Monteiro visitou locais onde os portugueses mantinham culturas
de café e algodão. Regiões localizadas na costa, com escravos comprados
no interior. Quando fugiam para o interior, relata Monteiro, os escravos
dos portugueses eram considerados homens livres. Segundo Magyar, na
tradição de alguns povos, admitia-se que os escravos do interior fugissem,
se colocando sob o jugo de outro senhor. Ou seja, o africano que optava
pela fuga chimbika não deixava de ser escravo. No relato de Monteiro, é
diferente, pois escravos fugitivos conquistavam a liberdade. De qualquer
forma, Monteiro deixou bem claro que os escravos se guiavam pelas "native

continuação 27

aller s'installer chez le voisin, risque qu'aucun propriétaire ne peut courir, sous peine de
voir partir les hommes qui assurent son prestige". Henriques, Commerce et changement
en Angola, p. 205.
28 O abate de um boi que pertence a outra pessoa é considerado, nas crenças religiosas, como
crime grave; além disso, o preço de um boi é quase equivalente ao de um escravo, por isso
não é de admirar que não seja fácil resgatar um escravo fugido desta maneira. Aconte-
ceu uma vez que um dos meus escravos, depois de me ter causado graves danos por sede
de vingança, fugiu da maneira descrita, refugiando-se junto de um outro dono. Falei com
o soberano sobre o resgate deste escravo, não propriamente por vingança, mas para esta-
belecer um exemplo para os outros escravos. O soberano mandou então amarrar o escra-
vo fugitivo e também o seu novo dono, entregando-os a mim com as palavras: 'Este bran-
co aqui não goza das vantagens ligadas aos nossos hábitos rapaces, pois seria para ele uma
vergonha: por isso deve estar também livre das desvantagens dos mesmos'. Eu libertei
logo o dono amarrado, mandando-o em liberdade; com isso, o soberano ficou muito irrita-
do e pela minha desobediência tive que lhe pagar uma multa considerável, pois ele queria
a todo transe que aquele que acolhera o fugitivo ficasse também como escravo." Cf. Mag-
yar, Viagens no interior da África Austral, pp. 11-13.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 547


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

laws" quando fugiam. Os produtores tinham que fazer um novo pagamento


para ter seus escravos de volta. Em geral, pagamentos que superavam o
que havia sido pago na primeira compra do escravo. Ou seja, algo bem
próximo do costume relatado por Ladislau Magyar. “By the native laws,
a black once sold as slave, and scaping back to his tribe, is considered a
free m an, so that a planter at present has no hold on h is slave; if they
scape into the neighbouring tows, the natives will only deliver them up
on the payment of a certain amount very often more than he had cost in
the first instance.”29
Além de fugirem, os escravos se associavam aos africanos que ha-
bitavam regiões fora da jurisdição de Portugal. Existe pelo menos um
caso registrado de ameaça de ataque a presídios portugueses do interior
reunindo escravos e africanos ''não-avassalados". Foi no presídio português
de Novo Redondo, em 1842. Os escravos pertenciam aos habitantes do
presídio e haviam fugido ''seduzidos pelos gentios". O episódio se relacio-
na aos confrontos entre negociantes portugueses e sobas africanos. E é
certo que disputas comerciais estavam por trás do episódio. Pagamentos
de direitos comerciais, por exemplo, ou então a pura pilhagem, estavam
muitas vezes na origem destes confrontos. Importa ressaltar aqui que
os escravos fugitivos do presídio de Novo Redondo receberam acolhida,
e talvez a liberdade, entre os povos africanos que habitavam ao redor do
estabelecimento. “Tenho a honra e desgosto de participar a V. Exa. que o
presídio de Novo Redondo se acha ameaçado de ser invadido pelo gentio
combinado com muitos escravos que da povoação fugiram seduzidos pelo
mesmo gentio, que tem tomado atitude hostil.”30
Com as revoltas e fugas de escravos, os fazendeiros angolanos foram
colocados diante da alternativa de adquirir escravos em Moçambique. Isto
aconteceu, não se sabe em que escala, antes mesmo do fim dos grandes
embarques de escravos de Angola. Produtores angolanos do comércio
lícito pregavam a importação de escravos de Moçambique, o único recurso,
dizia-se, para evitar a aquisição dos escravos "angolanos, que eram muito
mais sujeitos a fuga. Reconhecia-se a abundância de escravos em Angola.
Mas era lembrado que tais escravos conheciam muito bem a região e
fugiam com facilidade. Daí a sugestão extrema: a importação de escravos
de Moçambique. Para adquirir escravos em Moçambique, apresentava-se

29 Monteiro, Angola and the River Congo, pp. 75-76.


30 AHU, Pasta 5B, 1842, Correspondência do Governador-Geral José Xavier Bressane Leite,
em 24 de dezembro de 1842. O episódio foi relatado mais tarde também: "Tenho a honra
de participar a V Exa. que no dia 23 de dezembro último chegou a este porto uma lancha
vinda de Novo Redondo com a notícia de se achar aquele presídio ameaçado de uma inva-
são dos sobas vizinhos a quem se tinha unido a maior parte dos escravos pertencentes aos
habitantes do presidio". Ver correspondência do Governador-Geral José Xavier Bressane
Leite. 9 de fevereiro de 1843. AHU, Pasta 6A. 1843.

548 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

uma sugestão também insólita: simplesmente trocar escravos de Angola


por escravos "moçambicanos".
Restam os escravos, e estes podem ser obrigados a
trabalhar; há deles em abundância, têm-se por diminutos
preços, e até muito mais baratos do que os importados
de Moçambique; mas, senhora, conhecedores do país,
só em ferro se podem conservar: o trabalho em ferros é
estéril, e soltos estão logo nos matos. Não resta portanto
à companhia outro meio de obter braços para agricultura
senão o de os importar de Moçambique, ou comprando­lhe
ali ou permutando-lhe pelos daqui. 31

Quem mais sofreu com as fugas e revoltas de escravos foi Luanda.


E não há nenhuma surpresa nisto. Já foi visto o quanto cresceu a po-
pulação escrava da cidade entre 1845 e 1850. Benguela, por exemplo,
tinha uma população pequena, se comparada a Luanda, com um número
bem menor de escravos. Segundo Magyar, eram l.200 escravos em
Benguela, em 1849, bem longe dos 6.000 escravos de Luanda em 1850.
Cerca de metade da população luandense era formada por escravos. Daí
o porquê da alta incidência de fugas na cidade. Entre 1849 e 1855, as
fugas e revoltas de escravos foram os problemas que mais afligiram os
negociantes e proprietários de Luanda. Por esta época, e certamente
como efeito do fim dos embarques de escravos, se multiplicaram os
motolos ou quilombos nas adjacências de Luanda. 32 Os quilombos, que
amedrontaram os luandenses entre 1850 e 1855, ficavam "a um dia de
jornada de Luanda, em mata virgem que se estende até a margem direita

31 A H U. Pasta 2C. 1839. Petição defendendo a aquisição de escravos de Moçambique fei-


ta pelos membros da Associação Comercial e Agricultura de Angola, em 30 de outubro de
1839. Nos anos sessenta, o ex-governador-geral Calheiro e Menezes apontou como um
dos itens de um grande projeto para reordenar Angola "a troca de recrutamento de pretos
entre Angola, São Tomé, Cabo Verde e mesmo Moçambique, [como] único meio de ter bons
soldados de 1ª linha nesta provincia, visto a propensão dos nativos para a deserção, a faci-
lidade de a realizar e a dificuldade de a punir [...]". Cf. Sebastião Lopes de Calheiros e Me-
nezes, Relatório do Governo Geral da Provincia de Angola para o ano de 1861, Lisboa: Im-
prensa Nacional, 1867, p. 77.
32 É preciso dizer que quilombo era uma denominação usada em Angola sem a conotação que
se tinha no Brasil escravista. Um quilombo poderia ser formado por brancos negociantes,
por exemplo. Quilombo era simplesmente um acampamento, não importa de que tipo, se
militar ou para fazer comércio. Já o termo motollo era associado aos escravos fugidos. Mo-
tollo era a denominação que se dava ao "lugar dos fugidos". Levando em conta que motollo
era usado como sinônimo de quilombo, não se deve excluir a hipótese de que quilombo ti-
vesse adquirido, nos anos cinquenta, o sentido de um acampamento de escravos fugidos.
Ver Arquivo da Biblioteca Municipal de Luanda (ABML), Livro nº 319, Copiador de Oficios
Expedidos, 1859-1862, fl. 112v: "Representação que a Câmara Municipal de Luanda diri-
giu a S. Exª o Governador-Geral em 3 de outubro de 1860." Documento transcrito por José
de Almeida Santos, Vinte anos decisivos na vida de uma cidade, 1845-1864, Luanda: Câ-
mara Municipal de Luanda, 1970, p. 445.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 549


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

do Quanza e lhes dá passagem a caminhos só deles conhecidos para a


Quissama." Milhares de escravos habitavam nestes quilombos, que esta-
vam próximos de Luanda, na região do Icollo. Os escravos se armavam e
ameaçam diretamente a segurança da cidade. Diante das reclamações,
fez-se uma "pequena expedição" militar, em 1849. Com financiamento
particular, uma tropa foi organizada pelo Governo Provincial de Angola
para combater os quilombos do Icollo.
Por diversas vezes têm chegado ao meu conhecimento
representações dos habitantes desta cidade (Luanda)
pela fuga ele seus escravos para um dos quilombos nas
proximidades do distrito de Icollo. Reputo este objeto
de bastante consideração pelo prejuízo que devem
experimentar os mesmos habitantes por aquela fuga,
e gravidade pela aglomeração de gente, a maior parte
armada, que ali vai tendo lugar. Tenciono no próximo
tempo fresco mandar ao lugar, que me tem designado
como ponto de reunião de escravos fugidos, uma força que
os possa capturar para serem entregues a seus donos que
pagarão e de bom grado a despesa que se houver de fazer
com esta pequena expedição.33

As fugas levavam aquilo "que a muitos constitui a única e principal


riqueza'': os escravos. Além disso, os quilombos representavam um sério
perigo para a realização do comércio a partir de Luanda. As caravanas que
saíam da cidade eram atacadas pelos escravos fugitivos, causando sérios
prejuízos para os negociantes luandenses. Conhecedores da região, os
escravos atacavam os viajantes nas estradas que conduziam ao interior
de Angola. Os negociantes de Luanda tinham grande dependência em
relação ao comércio com os sertões. Já se tinha uma alta taxa de risco na
realização deste comércio. Desta forma, os escravos fugidos aumentavam
ainda mais os riscos do comércio com os sertões.
Na primeira parte do meu já citado relatório [de 20-01-
1850] prevenia eu a V. E. do que tencionava fazer, a fim
de evitar a fuga dos escravos dos habitantes de Luanda e
distritos para diferentes pontos pouco distantes desta
cidade, entre Icollo e Calumbo. Esta fuga prejudicava os
mesmos habitantes, e fazia-os a todo momento recear
pela conservação daquela sua propriedade, que a muitos
constitui a principal e única riqueza.
Mas não era só esse que ofereciam as continuadas
deserções de escravos. Os ataques incessantes por eles

33 AHU, Pasta l6A, 1850: Relatório do Governador-Geral referente ao período entre 17-08-
1848 e 31-12-1849. Aída Freudenthal encontrou registros que mostram que o quilombo
do lcollo já estava ativo em 1831. Aída Freudenthal, "Os quilombos de Angola no século
XIX: a recusa da escravidão”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 32, (1997), pp. 109-134.

550 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

praticados nas estradas próximas aos seus quilombos


contra os viandantes era objeto grave, e não devia nem
podia ser por mais tempo tolerado.34

Na verdade, a expedição contra os quilombos do Icollo mobilizou


uma grande tropa. Foram usados os ''empacasseiros'', a guarda negra que
policiava a Cidade de Luanda, além de um batalhão da tropa de 1inha
de Luanda. Com peças de artilharia, as tropas do governo venceram a
resistência dos quilombos, que estavam localizados numa uma área de
difícil acesso. Foi guardado segredo em relação ao ataque para evitar a
fuga dos escravos para o interior. E para ter o necessário sigilo, evitando
que a operação que estava sendo montada não se tornasse conhecida,
criou-se um ardil. Muitos soldados eram necessários para garantir a
segurança quando o governador-geral se deslocava pelo interior. Assim,
foi simulada uma visita do governador-geral ao interior para acobertar
a grande movimentação de tropas que precedeu o ataque aos quilombos.
Tornava-se pois forçoso aplicar todos os meios possíveis
para evitar semelhante mal, que cada dia ia crescendo,
e não desprezar as representações que a tal respeito
me haviam feito alguns indivíduos. Era melindrosa e
árdua reputava eu a empresa, que igualmente requeria
grande segredo, e por isso, servindo-me do pretexto
de inspecionar os distritos, fiz no mês de junho dispor
a força de empacasseiros necessária para se efetuar o
ataque com bom resultado, incumbindo a sua direção a um
experimentado capitão de guerra preta, que também foi
ajudado por gente da polícia de Luanda.
A densidade e a espessura das matas e brenhas fez durar
por muitos dias o ataque, para que serviu de muito auxílio
e vantagem uma peça de artilharia, que ali mandei com
a completa guarnição, e um forte destacamento do
batalhão de linha; indo eu mesmo em pessoa examinar o
destacamento. 35

Houve uma grande resistência dos quilombolas. Os combates duraram


vários dias e muitos escravos foram capturados. Não são mencionadas
as muitas baixas entre os escravos, mas dois homens morreram e 14 se
feriram entre as forças do governo. E não apenas escravos, mas também
libertos estavam no Icollo. Não se tratava aqui, é óbvio, de libertos como
aqueles que existiram a partir de 1854. Em Angola, dava­s e o nome de
libertos aos escravos libertados dos navios negreiros aprisionados na
costa. Na prática, eram tratados como escravos.

34 AHU, Pasta 17, 1850: Relatório da administração da Província de Angola para o ano de 1850.
35 Idem.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 551


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Sucedeu pois com este auxílio o que eu já esperava. Os


trânsfugas abandonaram as primeiras posições em que
resistiram fortemente. E os empacasseiros puderam
penetrar em seus campos e começar com mais segurança
a sua perseguição. Passados dois dias foram alguns logo
capturados e os restantes mais tarde vieram às mãos da
força que eu ali havia mandado.
Não foi diminuto o número dos escravos de particulares
e libertos empregados nas repartições de governo que
se conseguiu segurar; e como se tornava indispensável
um severo e público castigo, assim o determinei, fazendo
depois entregar os pretos a quem pertenciam.36

Fez-se um ataque surpresa aos escravos aquilombados. Foram


destruídas as cubatas, casas construídas nos quilombos. Como as forças
do governo tinham uma peça de artilharia, conseguiram dispersar os
escravos. Estes foram então obrigados a partir para o combate direto.
Grandes conhecedores da região, muitos se refugiaram ainda mais para
dentro das matas cerradas da região do Icollo. Aí é que foi, pela segunda
vez, importante a peça de artilharia levada pelas tropas do governo. Sob
fogo do canhão, os escravos refugiados na mata não resistiram. Mantidos
vários dias cercados, se renderam porque não tinham nem comida nem
água. Após o grande ataque, restava prender somente vinte escravos. “Mal
ouviram os primeiros tiros, apossaram-se, como eu esperava, de grande
susto e, retirando-se mais para o interior, abandonaram o primeiro lugar
em que se tinham estabelecido, e onde penetrou a força que os perseguia
e lhes arrasou as suas cubatas. No fim de poucos dias capturaram-se
alguns que desciam a buscar água por não haver nos lugares em que se
refugiavam [...]. Segundo notícias e informações que tenho apenas há
vinte por agarrar.”37
Todas as evidências indicam que, apesar da mobilização do governo
provincial em 1850, os quilombos próximos de Luanda reapareceram
durante essa década. E reapareceram na mesma região do Icollo, o que
sugere duas hipóteses. Ou o ataque de 1850 não foi tão eficaz como regis-
trou a versão oficial, ou mobilizar tantas tropas militares teve um efeito
apenas paliativo. A segunda hipótese é a mais plausível. Forças militares
destruíam um, dois ou mais quilombos. No entanto, eram incapazes de
deter por completo um dos efeitos principais do fim do tráfico ilegal: o
aumento da presença escrava em Luanda. E o efeito correlato disso foi
praticamente inevitável: as fugas e a formação de quilombos nas regiões
próximas da cidade.

36 Idem.
37 AHU. Pasta 16A. 1850. Correspondência do Governador-Geral Adrião Accacio da Silveira
Pinto, em 15 de outubro de 1850.

552 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Por trás das fugas, sabiam as autoridades do governo provincial,


estava o "inchaço" provocado em Luanda pelo fim do tráfico ilegal. Con-
tudo, tinha-se que conviver com tal efeito indesejado para viabilizar as
atividades lícitas. Por outro lado, tantos escravos faziam da segurança
pública uma questão especialmente preocupante em Luanda. Para remediar
a situação, aumentaram-se várias vezes a tropa que policiava a cidade,
formada pelos chamados empacasseiros. Em apenas três anos, entre 1848
e 1851, o número destes aumentou de 45 para 80 em Luanda.38
A quase completa extinção do tráfico da escravatura tem
feito passar esta província por uma transição um pouco
rápida, e que forçosamente devia trazer consigo a criação
de novos interesses colhidos do comércio lícito, no qual
não era possível empregar desde logo o grande número de
escravos que possuía cada um dos habitantes desta cidade,
que todos mais ou menos com ele traficavam noutra época.
Desta reunião forçada de muitos negros em Luanda, que
as exigências do comércio hoje tornam absolutamente
indispensáveis, num país onde não havia ninguém que se
preste a trabalhos braçais, o que os mesmos pretos livres
se negam, porque não tem necessidades algumas, ou mui
pequenas, a satisfazer, provem a necessidade de conservar
sempre no estado completo e bem pago, uma força os possa
conter na devida linha de respeito.39

Apesar do policiamento reforçado, as fugas de escravos em Luanda


continuaram numa escala crescente. Era uma "tendência natural" dos
escravos. Em 1853, não raro fugiam vários por dia, levando armas e mu-
nição dos seus senhores. A maioria fugia para os quilombos ou motolos
que existiam na região do Icollo. Exatamente onde estavam instalados os
mesmos quilombos atacados em 1850. Falava-se, em 1853, num único no
Icollo, o que dá margem a uma suposição: que os vários agrupamentos que
já existiam no Icollo em 1850 tivessem se unificado num só quilombo. Uma

38 Os casos de escravos que assassinavam seus donos se tornaram mais frequentes em fins
dos anos cinquenta e inícios dos sessenta. Ver as cartas de 1º e 20 de outubro de 1861 do
procurador régio Carlos Botelho de Vasconcellos para Lisboa. Um foi o assassinato do ne-
gociante holandês Ernesto Lipelt: "Ferrabraz e Manoel Carvalho apertaram e oprimiam-
lhe o pescoço e o peito, e a preta Eugênia calou-lhe o ventre e torceu-lhe os genitais [...]".
AHU, Correspondências dos Governadores de Angola, Pasta 16 (A). Ao mencionar apenas
30 empacasseiros em Luanda, Anne Stamm deve se remeter ao inicio dos anos quarenta.
Ver Anne Stamm, "La societé créole à Saint-Paul de Loanda dans les années 1838-1848",
Revue Française d'Histoire d'Outre Mer, no. 217 (1972), p. 581. Em 1851,eram 80 empa-
casseiros no policiamento de Luanda. Ver Almanak statistico da Provincia de Angola e
suas dependencias para o ano de 1852, p. 5. Tams, Visitas as possessões portuguesas, p.
207. Os empacasseiros são ainda mencionados por Carlos José Caldeira, Apontamentos
d'uma viagem de Lisboa à China, pp. 208-209.
39 AHU, Correspondências dos governadores, Pasta 19-1, 1853. Correspondência do Gover-
nador-Geral de Angola, Visconde do Pinheiro, para Lisboa, 12 de outubro de 1853.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 553


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

certeza se tem: se não se unificaram, os quilombos aumentaram bastante


de tamanho. Só vinte escravos eram mencionados como fugitivos após o
grande ataque de 1850. Um número bem inferior aos 2.000 escravos que
estavam no "país" do Icollo em 1853. Um número tão grande levou ao
temor de um ataque dos quilombos do Icollo à cidade de Luanda.
Acresce mais a este motivo bastante atendível, outro
muito mais poderoso, e que igualmente se deriva da causa
acima apontada, e vem a ser que a tendência natural, e até
certo ponto desculpável, que tem os negros de se isentarem
da escravidão, se há nestes últimos tempos pronunciado
tão descomedidamente, e em tamanha escala, que é raro
o dia em que não foge a seus senhores grande número de
escravos, tendo a prévia cautela de se armarem e proverem
de pólvora para, assim municiados, poderem ser recebidos
num asilo neste país denominado motolo ou quilombo que
estabeleceram, a um dia de jornada de Luanda, numa mata
virgem que se estende até a margem direita do Quanza,
e lhes dá passagem a caminhos só deles conhecidos para
a Quissama. Neste motolo, segundo informações que
tenho colhido, existem hoje mais de dois mil pretos e bem
armados, que de momento para outro, tendo consciência
de sua força. podem acometer a cidade e por em risco as
fortunas dos negociantes desta praça, e em grande perigo
a vida de todos.40

Diante da constatação de que atacá-los não resolveria por completo


o ''problema", foi que, certamente, se chegou a um novo recurso para
combater os quilombos próximos de Luanda. Seria uma mudança de
estratégia por parte das autoridades provinciais de Angola. Um recurso
para impedir as fugas de, o que afinal dava vida aos quilombos: "fechar" a
cidade. Isto foi feito através da construção de uma linha de ''circunvalação,
que tivesse, em certas e determinadas distâncias, as competentes casas

40 Idem. Os negociantes de Luanda mencionaram, em 1855, que os quilombos do Icollo eram


três e reuniam mais de 20.000 escravos. Este número, que parece ser fruto do exagero dos
negociantes, foi mencionado numa representação em que eles se queixavam da lei portu-
guesa de 1854 que aboliu a escravidão e criou o estatuto dos libertos. Os negociantes diziam
que os escravos se inspirariam na lei para fugirem e se revoltarem. Foi neste contexto que o
número de 20.000 escravos foi citado. Os negociantes diziam que eram tantos escravos que
Luanda poderia ser invadida: "a mui pequena distâncias da cidade se acham reunidos em
três quilombos, escravos fugidos em numero para mais de vinte mil. Se a excitação que ora
se manifesta nos escravos que ainda estão sob domínio senhorial os levar a um pronuncia-
mento, é por sem duvida que aqueles outros virão apoia-los. Então seremos nós todos, eu-
ropeus, vitimas dos seus furores e da sua brutalidade: e teremos uma cena de luto como a
de São Domingos, do Pará e da Bahia" (ABML, Livro nº 318, Copiador de Oficios Expedidos,
1854-1859, fl. 70. . Outros casos de atentados e assassinatos de senhores por escravos den-
tro de Luanda foram citados numa representação dos negociantes da cidade de 1º de outu-
bro de 1860,ABML, Livro nº 319, Copiador de Oficios Expedidos, 1859-1862, fl. 116. Ambos
transcritos por Santos, Vinte anos decisivos, pp. 294 e 445-446, respectivamente.

554 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

fiscais." ''Fechar" a cidade, diga-se, era uma medida que se voltava não só
contra a fuga de escravos. Luanda era "aberta para os sertões por todos os
lados", facilidade aproveitada por alguns para contrabandear produtos sem
pagar os devidos impostos. Quanto aos escravos, só poderiam passar pelas
barreiras se tivessem todos os documentos expedidos pelo proprietário,
em conformidade com os regulamentos do governo provincial.
Tendo-me merecido a mais séria atenção os gravíssimos
desfalques que sofriam os cofres públicos com a introdução
clandestina e escandalosa de mantimentos, assim
como as perdas diárias que os habitantes desta cidade
experimentam com a fuga dos escravos; sendo insuficiente
para evitar tais danos a constante vigilância da polícia
por não ser possível, numa capital por esta aberta para o
sertão por todos os lados, prevenir completamente, nem
a entrada de uns, nem a entrada de outros, verificando-
se aquela, um manifesto prejuizo dos bons e verdadeiros
negociantes, que pagando exatamente os direitos devidos,
não podem concorrer no mercado com os contrabandistas
[...] entendi dever apresentar em sessão da Junta de
Fazenda o projeto de fechar a cidade por uma linha de
circunvalação, que tivesse, em certas e determinadas
distancias, as competentes casas fiscais e sendo este meu
pensamento aprovado achei por conveniente determinar
que do primeiro de janeiro de 1855 em diante, não possam
entrar pelas barreiras que se estabeleceram generos
de qualidade alguma para consumo, sem que venham
legalizados na conformidade da portaria deste governo nº
173 de 2-05-1850 [...] e mais disposições fiscais em vigor,
nem pelas mesmas barreiras possam sair escravos que se
não achem munidos dos competentes passaportes, guias,
ou bilhetes de seus senhores pela maneira determinada
nas circulares de (5-03-1853 e 6-09-1853 ... publicadas nos
boletins oficiais).41

Além dos episódios com os quilombos do Icollo, outros episódios dão


conta de fugas e revoltas de escravos no interior de Angola. Um desses
episódios aconteceu no Golungo-Alto, a região com maior número de
libertos em 1859. Fugidos dos plantéis dos grandes comerciantes da
região, os escravos se tornavam ameaça direta para quem queria fazer o
comércio no interior. O Golungo-Alto, não custa lembrar, era estratégico
nas rotas de comércio entre Luanda e os sertões. Não é dito, mas pode ser
que tais escravos estivessem organizados em quilombos. Pelo menos uma
grande operação militar foi feita, em 1861, para capturar os escravos que
"roubavam e matavam" naquela região.

41 AHU, Pasta 20, 1854, Governador-Geral Visconde do Pinheiro para Portugal, 24 de janeiro
de 1854.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 555


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Afora isto não houve ali [Golungo-Alto] outra novidade de


segurança nos conselhos que formam a linha de Cassange
ao Dondo, de que já tenho dado conta tornando-se mais
notável a audácia dos escravos insubordinados das casas
de Pires e de Costa de Pungo-Andongo, que se pode dizer
que assolam aquele conselho, roubando e assassinando, e
ameaçando mesmo a vila.
Tenho tomado as medidas naquele conselho, e na linha
até Cassange, mandando reunir força em Pungo-Andongo,
onde devem começar as operações, que se acham confiadas
ao major [...] João Francisco do Cazal.
Não me pouparei a esforços para que durante a boa estação
que começa se conclua essa importante empresa de
pacificações.42

Apesar das fugas recorrentes, escravos e senhores tinham relações


mediadas também por acordos. Não era apenas a partir da coerção física
que os senhores tratavam os escravos. Costumes e hábitos dos escravos
mantidos nas áreas sob domínio português eram respeitados. Pode-se
perguntar que razão teriam os proprietários para tal procedimento. Trata-
se aqui somente de relembrar. Primeiro, a facilidade dos escravos para
fugir para o interior. Segundo, o aumento brutal no número de escravos
a partir do fim do tráfico, o que recomendava o pacto em detrimento da
força bruta. Terceiro, costumes entre os próprios africanos que, ao lhes
garantirem a condição de pessoas livres, incentivavam a fuga. Tais fatores
concorriam para um quadro de relações escravistas pautadas em alguma
medida por acordos entre senhores e cativos.
Um momento em especial deixava patente os acordos nas relações
escravistas em Angola: a morte dos senhores. Para os escravos, era um
momento de apreensão. Novos donos traziam novos hábitos e a quebra de
velhos costumes. Por esta razão, temerosos da perda de "direitos", escravos
com freqüência se amotinavam diante da morte de seus proprietários.
Foi o que aconteceu, em 1860, com os de Ana Joaquina dos Santos Silva, a
grande negociante luandense. Seus escravos temiam o que poderia advir:
perda de direitos conquistados, talvez até pela dispersão por venda dos
cativos. Nunca era possível rebaixar os escravos ''inteiramente ao nível
dos brutos".

42 AHU, Pasta 28, 1861, Correspondência do Governador-Geral de Angola, Calheiros e Mene-


zes, para Portugal, 27 de maio de 1861. O próprio Calheiros e Menezes menciona que, em
1866, o maior produtor de café do Cazengo havia perdido todos os seus 411 escravos, que
haviam fugido para a Quissama. Ver nota 1, p. 19, in Menezes, Relatório do Governo Geral da
Provincia de Angola para o ano de 1861. Freudenthal analisa mais dois quilombos em Ango-
la: o "couto da Sanga" (entre 1860 e 1894) e o "couto do Caholo" (entre 1860 e 1901). Segun-
do a autora, couto foi uma designação aplicada em Novo Redondo e em Mossamendes às for-
mações criadas pelos escravos fugidos, mencionando ainda que o quilombo do Icollo sobre-
viveu até pelo menos 1872.

556 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Se os escravos [estão] em número diminuto, e em lugares


onde há logo bastante força pública, o remédio usual
contra aquela sua disposição é fácil. São presos, até
que, disseminados pela venda, lá vão acostumar-se ao
novo jugo que a sorte lhe depara. É o caso mais sério, em
circunstâncias contrárias. Sendo numerosos os escravos,
em pontos mal guarnecidos de força, como são quase
todos do interior, e a dois passos dos sertões em que não
temos nenhuma autoridade, concebe-se bem, que já não
é fácil recorrer ao expediente da prisão dos escravos.
Conhecem eles isto, porque, por mais que alguém o
queira, não é possível rebaixá-los inteiramente ao nível
dos brutos; e então, a sua repugnância a passarem a novo
domínio traduz-se em manifestações de resistência mais
ou menos formal.43

43 AHU, Angola, Pasta 26, 1860, Comunicado do Governador-Geral de Angola, José Rodrigues
Coelho do Amaral, em 4 de junho de 1860, sobre os distúrbios ocorridos quando os escra-
vos de Ana Joaquina dos Santos Silva souberam da morte dela e tentaram fugir. Antes
disto, o mesmo governador, em 15 de janeiro 1859, mencionou que era comum que os es-
cravos se revoltassem quando morriam seus donos: "em Ambaca, havendo falecido o mo-
rador abastardo, Victoriano de Faria, parece que os seus numerosos escravos fizeram al-
guma desordem, querendo ausentar-se em massa. Isto é coisa ordinária em semelhantes
circunstancias pela repugnancia dos pretos a passarem para novos senhores" (AHU, Pas-
ta 25-3. Correspondencia dos Governadores de Angola). O episódio foi registrado desta
forma no relatório mensal do conselho de Ambaca de dezembro de 1858: "Tendo falecido
o abastado morador Victoriano de Faria, no 1º de janeiro, seus numerosos escravos se ar-
maram, tomando as armas e munições nos armazéns do finado, e acataram a pequena es-
colta que fora mandada para guardar a casa. A escolta cedeu ao número, sendo no conflito
ferido um oficial da companhia móvel. Em seguida, os escravos se ausentaram, tomando
a direção do sertão de Ginga. Fora do roubo de armas e pólvora, nenhum outro [crime] co-
meteram os mesmos escravos. Ficavam tomadas as providencias para impedir a repetição
de tais desordens se os escravos voltassem, e para estes serem capturados" (ver relatório
mensal do conselho de Ambaca de dezembro de 1858 no BOGGPA, nº 696, de 29 de janeiro
de 1859. Documento transcrito por José de Almeida Santos, Apenas um punhado de bra-
vos, 1845-1864, Luanda: Camara Municipal de Luanda, 1970, p. 272). Mais um ano se pas-
sou e os escravos de Victoriano de Faria continuavam fugidos. Aqui se confirma por que
os escravos fugiram quando Victoriano de Faria faleceu. Na verdade ele lhes havia pro-
metido cartas de alforria e os escravos sabiam que, a partir de sua morte, não teriam ga-
rantias do cumprimento da promessa, razão pela qual preferiram a fuga: "No dia 4 do mês
apareceram 25 escravos do falecido Victoriano de Faria, vindo do mato armados, diziam
que queriam suas cartas de alforria, pois que seu senhor lhes havia prometido em vida.
Foi contra eles a força, que eles não esperaram, mas na retirada roubaram nove barris de
pólvora de 10 Libras pertencentes ao feirante Motta, que iam para Cassange. A força pode
aprender outros 15 escravos do dito falecido que andavam foragidos" (BOGGPA, nº 704, 26
de março de 1859). Documento transcrito também por José de Almeida Santos, A Alma de
uma Cidade, Luanda: Camara Municipal de Luanda, 1973, p. 460. Victoriano de Faria atua-
va em Luanda, em 1846. Neste ano o investidor recebeu autorização da Junta de Fazenda e
se tornou um dos negociantes a emitir letras que circularam como numerário na praça de
Luanda. Pelo menos desde 1854, Victoriano de Faria atuava em Ambaca. Sua pujança mer-
cantil ficou patente quando se deu a arrecadação de "ofertas" para a construção da igreja
do distrito de Ambaca. Ele contribuiu com 40.000 réis, mais que os 30.000 réis oferecidos
pelo chefe do distrito. Ver BOGGPA, nº 466, 2 de setembro de 1854, p. 2.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 557


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Em 1860, num manifesto endereçado ao governador de Benguela,


vários produtores de urzela de Mossamedes, a colônia fundada em 1848,
manifestaram indignação com os prejuízos gerados pelas tentativas de
tráfico ilegal perpetradas por um potentado local, Manuel José Correa.
Este é um caso, à primeira vista, absolutamente insólito. Primeiro, uma
manifestação formal de produtores angolanos contra o tráfico ilegal. Algo
que seria simplesmente impensável dez ou vinte anos antes. Na verdade,
tem-se aqui nada mais que a aplicação prática do princípio de preservar a
escravidão em detrimento do tráfico ilegal. Exatamente como era pregado
vinte anos antes por publicistas como Lopes e Xavier Botelho.
Vamos falar dos grandes, digo, dos graves danos e perigos
que desde já ameaçam os moradores e donos das feitorias
que ao longo desta costa se dedicam com seus escravos
ao valioso ramo de indústria da apanha da urzela. Danos
e perigos estes tanto mais a lamentar que, por longe de
serem provenientes de algum acaso imprevisto, ou vaivém
da sorte, são pelo contrário expressamente causados
pela vontade e criminosos manejos de um só indivíduo,
que no menoscabo das leis e conveniências sociais, com
todo descaramento, exerce nesta costa o ilícito e nefando
tráfico da escravatura, com o qual ameaça de total ruína a
maior parte dos estabelecimentos de apanha da urzela e
pescaria.44

A manifestação antitráfico dos produtores de urzela deu-se, na ver-


dade, quando a economia de Angola já transitara quase completamente
para o comércio lícito. A urzela era um musgo com aplicação tintorial
muito procurado pelas indústrias têxteis européias. Em Mossamedes,
existiam feitorias destinadas exclusivamente à colheita da urzela. Os
escravos constituíam a mão de obra fundamental desta atividade. Segundo
os proprietários de feitorias de urzela, um barco espanhol teria tentado
embarcar escravos para Cuba. Em fins dos anos cinquenta, o tráfico ilegal
se revigorou na região do Congo-Angola, contudo, fazê-lo a partir do sul
de Angola era uma verdadeira anomalia. Em geral, os embarques ilegais
aconteciam entre Ambriz e Rio Zaire, através de traficantes que operavam
na clandestinidade.
O perfil das operações de Manuel José Correa, o responsável pelos
embarques ilegais em Mossamedes, não revela nenhum tipo de organiza-
ção estruturada. Correa atuava sozinho, e não em rede, como faziam os
traficantes que atuavam a partir do Rio Zaire. Na verdade, ele também era
dono de uma propriedade em Mossamedes. Correa não tinha barracões de
escravos, nem agentes espalhados pelo sul de Angola. Antes de retomar o

44 AHU, Angola, Pasta 28-1861, Representação dos produtores de urzela de Mossamendes


contra o tráfico ilegal de escravos, 24 de março de 1860.

558 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

tráfico ilegal, é provável que ele se dedicasse à coleta da urzela. Ou seja,


era mais um dos produtores da região. Exatamente como aqueles que iriam
se indignar diante do embarque de mais de 200 escravos, organizado por
ele, em setembro de 1859.
Ano passado no mês de setembro o senhor Manoel José
Correa, morador e proprietário do sítio denominado
Carumjaba, valendo-se da sua posição isolada e sobretudo
contando com a total ausência dos cruzeiros nestas
paragens teve a criminosa audácia de receber em seu porto
um barco espanhol que por ele Correa expressamente
convidado – vinha embarcar negros, como de fato os
embarcou acima de duzentos e com eles seguiu [para] o
reino de Havana.45

Visto por escravos de outras feitorias, o embarque ilegal perpetrado


por Correa teve sérias conseqüências. Entre os escravos, temia-se pelo
retorno do tráfico ilegal. Por esta razão, aconteceram várias fugas de
escravos das feitorias. Isto era o que mais afligia os produtores de ur-
zela: perder sua mão de obra. No fundo, talvez, o tráfico ilegal não fosse
propriamente a raiz das reclamações dos produtores de urzela. Tinha-se
uma preocupação maior com os efeitos indiretos a partir dos embarques
ilegais na região, as fugas de escravos.
É sabido que por muito bem tomadas que sejam as
precauções dos interessados em semelhantes embarques
de negros, nunca se podem efetuá-los sem que isso desse
nos olhos aos que mais ou menos longe estanciam do local
onde neles se efetuam, motivo por que os escravos das
vizinhas feitorias viram com seus olhos o dito embarque
dos negros que o senhor Manoel José da Correia fazia
a bordo dito barco espanhol, por ser feito de dia claro,
por conseguinte todos das mais feitorias logo tiveram
conhecimento dele e quanto bastou para se manifestar o
espanto e alvoroço entre estes vendo ter chegado outra vez
o tempo dos embarques dos escravos, e que a eles também
em breve tocaria a sua vez. Logo cm seguida disso tiveram
princípio nas diversas feitorias as grandes deserções em
massa. Foi então quando ao senhor Narcizo Francisco de
Souza, que estava apanhando urzela em S. Nicolau fugiram
de uma só vez, para mais de trinta escravos. De Ladislau A.
Magyar, na Lucira, [fugiram] sete.46

Correa, segundo os produtores de Mossamedes, roubava escravos


para vender aos navios negreiros espanhóis. Não se sabe se tal crime foi
a ele atribuído como um artifício para chamar a atenção das autoridades.

45 Idem.
46 Idem.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 559


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Afinal, dizia-se, era seu "costume antigo" o de "roubar e sonegar'' escravos


fugidos. Apesar disto, no entanto, nenhuma petição fora antes escrita pe-
los produtores de urzela. Escravos que se julgavam réus de algum delito
procuravam por Correa para pedir "padrinho". Mais uma vez, tem-se na
costa a aplicação de um costume típico da escravidão. Como já visto, no
interior, através da fuga chimbika, escravos insatisfeitos buscavam outros
donos. Aparentemente, algo parecido acontecia em Mossamedes, através
dos escravos que buscavam Correa para pedir "padrinho".
Temos que notar ilustríssimo sr. que entre os desgraçados
escravos que o tal sr. Correa levava para embarcar iam
alguns roubados também porque pelo que se sabe, há
muito tempo, é costume antigo deste sr. roubar e sonegar
parte dos escravos que nas suas fugas são capturadas pela
sua gente no sítio de Carumjaba, e mesmo parte daqueles
que das feitorias vizinhas para lá acodem, a título de
lhe pedirem padrinho por algum delicto de que os ditos
julgam serem réus [...] não falando dos muitos moradores
de Mossamedes que para sempre têm perdido os seus
escravos, sendo embarcados nos navios negreiros, dos
quais este homem imoral é agente especial.47

O ápice do ciclo de revoltas escravas deu-se na propriedade de Manoel


de Paula Barboza. Sua feitoria tinha mais de 100 escravos que desempe-
nhavam várias tarefas: coleta da urzela, pescaria, além da agricultura. O
temor dos embarques ilegais também atingiu os escravos de Barboza. Assim,
uma grande revolta escrava aconteceu em sua feitoria. E a violência extre-
ma marcaria este "holocausto''. Após aguardarem o anoitecer, os escravos
saquearam e incendiaram a casa do proprietário. Não o encontrando, em
grande algazarra assassinaram o caixeiro de Barboza, fugindo depois para
a liberdade nas terras do interior.
Porém, o mais calamitoso de todos estes desastres, e até
horroroso no seu efeito, foi aquela fuga que o senhor
Manoel de Paula Barboza sofreu no Inamangando
onde se achava estabelecido há um par de anos, tendo
empregados em diferentes misteres, como agricultura,
apanha de urzela e pescaria mais de cem escravos,
gente adulta, e de muitos anos de serviço. Estes então
que, por cúmulo da infelicidade, tiveram ocasião de
ver com seus próprios olhos o embarque dos negros
que se fazia a bordo do barco espanhol, no porto de
Carumjaba, juraram desertar todos e até vingaram-se
de seu próprio senhor, pois supunham e mesmo diziam
que já não lhes restava dúvida alguma, em como depois
de longos anos de serviço, com que com mais certeza

47 Idem.

560 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

deviam contar, é de serem embarcados para além-mar


o dito juramento eles cumpriram-no à risca: pois de
repente armam-se, sublevam-se, e invadem boca da
noite a casa de seu senhor, saqueiam, e incendeiam-na
procurando entre gritos de furor o seu senhor Paulo
Barboza, que por felicidade achando-se ausente salvou-
se; porém em lugar dele o seu infeliz caixeiro Borges
foi vítima expiatória do furor dos amotinados entre
mil torturas expirou aos golpes de azagaia e ainda com
isso não contentes os furiosos escravos separaram-
lhe a cabeça do tronco, o mutilado cadáver entregam-
no às chamas da casa incendiada, e qual demônios do
inferno entoaram cantigas e danças a roda do terrível
holocausto da infeliz vítima. Saciado desta maneira o
furor canibalesco, todos, grandes e pequenos, de ambos
os sexos, levantaram e tomaram caminho para as
terras gentílicas. Foi por esta forma que o Sr. Manoel
de Paula Barboza, por fazerem os outros embarques de
escravatura na sua vizinhança, teve que sofrer valiosa
perda de uns poucos centos de reis além da cruel e
dolorosa lembrança que lhe resta e restará da sorte
infeliz de seu caixeiro, no que deveras nós também
todos sinceramente acompanhamos!48

O caso da revolta de Mossamedes demonstra que as relações entre


escravos e senhores eram reguladas por compromissos segundo os quais
os escravos tinham condições de conquistar certos espaços. A quebra de
tais acordos trazia resultados desastrosos para os proprietários, como
no caso de Mossamedes. As relações escravistas eram provavelmente
negociadas a partir de referências que os escravos mantinham de suas
sociedades de origem no interior da África Central. Dados estatísticos
têm indicado que a procedência dos africanos escravizados em Angola
variava dentro de certos limites. Por exemplo, 75% da população escrava
de Luanda era originária de apenas dez macrorregiões situadas no centro
e no norte de Angola em 1855: Benguela (4%), Ambaca (5%), Bie (5%),
Ginga (5%), Quissama (5%), Libolo (9%), Cassanje (12%), Ngola (13%),
Luanda (19%) e Congo (23%). Além de oferecer um quadro diferente das
teses hoje aceitas, que apontam o sul de Angola como principal região
de procedência dos escravos no século XIX, tal fato pode ter ditado
uma certa coerência na construção de sociabilidades. Vindos majori-
tariamente do centro e do norte de Angola, como fica claro através de
informações obtidas a partir de registros oficiais de escravos compilados
pela administração portuguesa em 1855 e registros de enterramentos
de indivíduos no cemitério de Luanda entre 1850 e 1855, esses escravos

48 Idem.

ESCRAVIDÃO E REVOLTAS DE ESCRAVOS EM ANGOLA (1830 - 1860) 561


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

podem ter sido capazes de manter valores próprios de suas sociedades


originárias. Levando em conta os diferentes tipos de escravidão prati-
cados no interior, isto pode tê-los feito ter uma idéia bastante definida
de "direitos" e limites na escravidão praticada nos espaços controlados
pelos portugueses. 49

49 Para as teses segundo as quais a procedência de escravos angolanos no século XIX era so-
bretudo do centro e do sul de Angola, ver Joseph Miller, Way of Death: Merchant Capi-
talism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, Madison: University of Wisconsin Press,
1988, p. 148 e 233; Achim von Oppen, Terms of Trade and Terms of Trust: The History and
Contexts of Pre-Colonial Market Production around the Upper Zambezi and Kasai, Ham-
burg: Lit Verlag, 1993, p. 59. Quanto ao registro de escravos e de enterramento de indiví-
duos no cemitério de Luanda, ver Roquinaldo Ferreira, "Fontes para o estudo da escravi-
dão em Angola: Luanda e Icollo e Bengo no pós-tráfico de escravos", Construindo o passa-
do angolano: as fontes e a sua interpretação. Atas do 2o Seminário Internacional sobre a
História de Angola, Luanda, 4 a 9 de agosto de 1997, Lisboa: Comissão Nacional para as Co-
memorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, pp. 667-680.

562 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


PARTE 6
diásporas daqui e de lá
CAPÍTULO 18

qUeM erAM os “neGros dA GUiné”?


A oriGeM dos AfriCAnos nA bAhiA
Maria Inês Côrtes de Oliveira

O presente capítulo discute a construção dos “nomes de nação” atri-


buídos aos africanos na Bahia, desde os primeiros registros conhecidos
até meados do século XVIII. Inicialmente pretende-se demonstrar que a
diversidade cultural dos povos africanos não passou desapercebida aos
portugueses quando dos seus primeiros contatos na África, mas que essa
visão se transformou na medida em que o tráfico assumiu as proporções
de uma grande empresa comercial. O objetivo central, contudo, é discutir
o significado de alguns etnônimos tal como são atualmente percebidos,
analisando as duas matrizes que reputamos responsáveis pela sua elabora-
ção: a rede do tráfico e alguns dos estudos sobre a escravidão, que criaram
certos equívocos acerca da procedência de alguns grupos africanos que
viveram na Bahia. Essa tentativa de desconstrução de certos significados
dos “nomes de nação”, não se apoia em base empírica e sim numa leitura
crítica da bibliografia que discute os “ciclos” do tráfico baiano.1
Negro da Guiné e gentio da Guiné foram as primeiras designações
utilizadas para marcar a origem dos escravos africanos chegados à Bahia
no século XVI.2 Mais do que um registro de procedência, estas expressões
queriam significar a condição mesma de escravo, na linguagem corrente

1 Para o período que vai de meados do século XVIII a 1890, analisamos os “nomes de na-
ção” a partir de 27 séries documentais, englobando 8.155 escravos, 2.128 africanos li-
bertos e 358 africanos livres, num total de 10.641 registros. O resultado deste trabalho
compõe a minha tese de Nouveau Doctorat, apresentada à Université de Paris Sorbonne
(Paris IV), intitulada “Retrouver une identité: Jeux sociaux des Africans de Bahia: vers
1750 - vers 1890.”
2 Gentio (s.m. ou adj.) é termo utilizado na língua portuguesa do período com o significa-
do de bárbaro, idólatra, pagão que não é civilizado, selvagem. Da acepção latina (genti-
vos por genitivus), manteve o significado de natural, nativo; da acepção bíblica, o signi-
ficado de pagão, idólatra, “não circunciso”. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasilei-
ra, Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, s.d., vol. XII, p. 298.

565
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

da época. Seu uso se generalizara em Portugal, desde o final do século


anterior, quando o tráfico de escravos começou a se transformar na mais
potente empresa comercial daquele país. A multiplicidade cultural da
África passava a ser ignorada pelos portugueses na razão direta em que
o caráter de mercadoria se incorporava ao conjunto de sua população.
Mas não tinha sido sempre assim.
Se levarmos em conta os relatos que os navegadores portugueses, ou
mesmo estrangeiros a serviço de Portugal, nos deixaram sobre a Costa da
África, no século XV e parte do XVI, perceberemos que o território não
lhes despertava apenas a cobiça, mas também uma viva curiosidade face
às especificidades de sua população.
Em suas primeiras incursões em território africano, quando ainda
alimentavam o sonho das Índias, mas não se descuidavam de encontrar
riquezas que pudessem ampliar suas vantagens comerciais, os portugueses
não deixaram de revelar um olhar atento à multiplicidade e às diferenças
físicas e culturais entre as populações da então chamada “Etiópia de Gui-
né”. Os relatos de viajantes ou de funcionários encarregados de informar
aos governos e aos contratadores sobre as novas terras “descobertas”
demonstram a existência não apenas de um agudo senso de observação
sobre a maneira de viver de cada povo, mas também da consciência de que
um melhor conhecimento da região permitiria a Portugal estabelecer, com
vantagens, seu comércio na área.3
A Cadamosto deve-se a informação de terem sido de origem Azanaga,
Gilofe (Wolof), Tuchulor (Tucolor) e de Gambra (Gâmbia), os primeiros
escravos introduzidos em Portugal, no século XV, mas seu relato iria
muito além. Descreveria tudo o que então lhe parecera “muito estranho
e admirável” entre aquelas populações, como as diferenças na cor da
pele, no tipo de cabelo, na maneira de vestir, nas práticas religiosas e nos
costumes.4 O mesmo comportamento está presente nos relatos de Duarte
Pacheco Pereira, Pigafetta e Duarte Lopes.
Esta atitude, à qual devemos o pouco conhecimento que temos
hoje das populações africanas daquele período, transformar-se-ia por

3 Sobre estes primeiros relatos, ver entre outros: Gomes Eanes de Zurara, Crônica da Gui-
né, Barcelos: Livraria Civilização, 1973; Alvisi da Cadamosto, 1455-1457: Relations des
Voyages à la côte occidentale d’Afrique (1455-1457), trad. fr. de Ch. Schefer, Paris: Erne-
se Leroux Éditeur, 1895; Diogo Gomes, De Prima Inventione Guynee, Bissau: Centro de
Estudos da Guiné Portuguesa, nº 21, 1959; Valentim Fernandes, Description de la côte
occidentale d’Afrique (1506-1507), Bissau: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Pu-
blicação nº 11, 1951; Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa: Socieda-
de de Geografia de Lisboa, 1975; João de Barros, 1552: Ásia... I Década. Lisboa: Editorial
Ática; Agência Geral das Colónias, 1945; Filipo Pigafetta e Duarte Lopes, Relação do Rei-
no do Congo, região de África (1578), trad. de Rosa Capeans, Lisboa: Agência Geral do Ul-
tramar, 1951.
4 Cadamosto, 1455-1457: Relation de voyages, pp. 49-51.

566 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

completo a partir do momento em que os informes sobre os africanos


começam a depender dos registros dos traficantes.5 Como já dissemos,
desde que começou a crescer a demanda europeia de escravos, todos os
africanos foram reduzidos a uma única categoria: a de negros de Guiné,
“assemelhados todos como se fossem de uma só procedência”, como
constata Maurício Goulart.6
E o que era a Guiné, nos primeiros tempos do tráfico? No início, para
os portugueses, a Guiné teria se restringido ao litoral da costa ocidental
africana, que tinha como centro comercial a feitoria de Cachéu, subor-
dinada às ilhas de Cabo Verde. Esta era a área descrita nos contratos de
arrendamento do século XV. Entretanto, à medida em que a expansão
do comércio português avançou para o sul, o termo passou a ser também
utilizado para designar as partes do litoral então conhecidas como Costa
da Pimenta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos Escravos. Assim,
toda a África Ocidental ao norte do Equador, do Rio Senegal ao Gabão,
era conhecida então como a Guiné.7
João de Barros já utilizava o termo extensivo a todo este território,
tanto que, descrevendo o comércio português na costa ocidental ao sul
de Arguim, diz que naquele tempo, “o negócio de Guiné andava já muito
corrente entre os nossos e os moradores daquelas partes”, todavia situa
também nas “partes de Guiné” o Castelo de São Jorge da Mina mandado
construir por D. João, em 1482, na Costa do Ouro.8
Luiz Viana Filho e Mauricio Goulart concordam que o termo chegou
a ser aplicado também às populações subequatoriais. O primeiro sustenta
este ponto de vista baseado nas Denunciações da Bahia (1591-1593), onde
o escravo Duarte, acusado por crime de sodomia, aparece como “negro da
Guiné, do gentio de Angola”.9 De fato, parece que tal denominação teve
seu uso. Encontramos dois mapas da África registrando a expressão Baixa
Guiné para designar os territórios que se estendiam até o Cabo Negro: o
primeiro da autoria de Guillaume de Lisle, datado de 1700, e o segundo
de E. Bowen, de 1766, onde fica claro que a expressão “Low Guinea” era

5 Os relatos de missionários ainda conservariam o espírito “etnográfico” das primeiras nar-


rativas, mas estes pouca ou nenhuma influência teriam sobre os conhecimentos que pou-
co a pouco se generalizavam sobre a África e os africanos.
6 Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico, São
Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 185
7 Este é o limite reconhecido por Nina Rodrigues e Pierre Verger. Raimundo Nina Rodri-
gues, Os africanos no Brasil, São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977, p. 26; Pierre Verger, Flux
et reflux de la traite des nègres entre le golfe du Bénin et Bahia de todos os santos, Paris:
Mouton, 1968, p. 8.
8 Barros. Ásia... I Década, tomo I, liv. 2, cap. 2.
9 Luiz Viana Filho, O negro na Bahia, 3ª ed., São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 73; e
Goulart, A escravidão africana, pp. 185-186.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 567


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

empregada como correspondendo à região do Congo e Angola, ainda na


segunda metade do século XVIII.10
Ocupada a costa africana por outras nações europeias, o termo foi
em Portugal pouco a pouco retomando seu sentido original para voltar
a designar apenas as possessões portuguesas entre Casamansa e o rio
Camponi. 11 Entretanto, na colônia do Brasil, seu uso se firmara para
designar toda a costa da África, de onde vinham os escravos.
Em outras palavras, sob a denominação de “gentio da Guiné” e “negro da
Guiné”, entraram no Brasil escravos procedentes de toda a costa ocidental
africana, da Gâmbia ao Congo, durante a segunda metade do século XVI,
sendo que as principais bases portuguesas para o tráfico na África eram
então Cachéu, São Jorge da Mina, São Tomé e Príncipe e o reino do Congo.
Os especialistas no estudo do tráfico para a Bahia convencionaram chamar
de Ciclo da Guiné ao primeiro período desta atividade, mesmo cientes da
imprecisão de ordem geográfica e cultural do termo, tendo em vista seu
uso generalizado nos documentos da época.12
O primeiro autor a propor uma divisão do estudo do comércio negreiro
baseado em “ciclos” foi Luiz Viana Filho, seguido por Pierre Verger. A pe-
riodização de Viana Filho concebe quatro fases para o tráfico na Bahia: o
Ciclo da Guiné (segunda metade do século XVI), o Ciclo de Angola (século
XVII), o Ciclo da Costa da Mina e do Golfo do Benin (do século XVIII até
1815) e uma última fase: a ilegalidade (1816 a 1851). Verger mantém
inalterados os dois primeiros períodos, mas desmembra o terceiro em dois
ciclos distintos, o da Costa da Mina (nos três primeiros quartos do século
XVIII) e o da baía de Benin (entre 1770 e 1850), aí incluindo o período
do tráfico clandestino.13 Esta última foi a periodização que escolhemos
para orientar nossa exposição sobre o tráfico. Contudo, o exemplo do
Ciclo da Guiné parece-nos suficiente para demonstrar que a utilização
de divisões deste tipo atende apenas a uma necessidade de sistematizar
o estudo do tráfico, tomando como base as zonas mais atuantes em cada
período. Isto não deve de forma alguma deixar subentender a exclusão
do tráfico proveniente de outras regiões. Durante toda a vigência da
atividade negreira, africanos das mais diversas procedências conviveram
lado a lado nas lavouras, minas e cidades brasileiras.

10 Ambos os mapas fazem parte de “A Facsimile Collection of Early African Maps”, pertencen-
te à Fundação Calouste Gulbenkian de Paris. Esta coleção não está registrada sob nenhum
códice. Consta apenas seu nome na relação dos mapas da referida fundação
11 Reclus, Tratado de Geografia, v. XIII, p. 306. ed. 1887, apud Viana Filho, O negro na Bahia, pp.
32-33.
12 Pudemos constatar, nas fontes primárias que analisamos para o período de 1750-1890, que
as expressões “negro da Guiné” e “gentio da Guiné” continuavam a ser empregadas na Bahia
até o início do século XIX.
13 Viana Filho, O negro na Bahia, p. 38; Verger, Flux et reflux, p. 7.

568 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Os períodos subsequentes ao Ciclo da Guiné não forneceriam infor-


mações muito mais detalhadas sobre a origem dos escravos. Mesmo que
os termos utilizados para nominar as nações africanas passassem a ser,
ao menos aparentemente, mais precisos, por se referirem a reinos e áreas
geográficas melhor delimitados, a questão de fundo permaneceu, isto é, a
impossibilidade de sabermos a que culturas africanas pertencia a maior
parte dos escravos listados nos registros do tráfico.
É certo que o conhecimento sobre o território africano foi um
processo de construção lenta para os europeus. Todavia custa-nos crer
que, transcorrido mais de um século da presença portuguesa naquele
continente, período no qual Portugal estabelecera influências decisivas,
especialmente sobre o reino do Congo, os traficantes continuassem a
ignorar a nomenclatura utilizada pelos povos africanos para se referirem
uns aos outros.
Pelo que se conhece sobre os mecanismos do tráfico, parece-nos lógico
que os arrendatários dos contratos e toda a complexa rede de indivíduos a
eles subordinada tivessem condições de identificar os cativos através dos
etnônimos pelos quais estes se reconheciam ou eram reconhecidos pelos
outros povos.14 Através das informações fornecidas pelos “línguas” e pelas
populações nativas que participavam direta ou indiretamente naquela
empresa,15 teriam aprendido a identificar os cativos que pertenciam as
nações mais numerosas, mais próximas da costa ou que estivessem em
guerra com seus aliados.16 Talvez não pudessem identificar alguns que
vinham do interior em pequenos grupos, portando diferentes marcas
étnicas ou falando línguas desconhecidas. Mesmo assim, seus agentes,
que se internavam no território, geralmente conheciam a região e sabiam
bem onde tinham ido buscá-los.
Expressões de conteúdo tão genérico, como as que eram utilizadas
à época, devem-se à pouca ou nenhuma importância que se atribuía às
especificidades culturais dos africanos para o exercício dos trabalhos a

14 A rede do tráfico na África e nas colônias, desde a época em que predominaram os arrenda-
mentos, era formada por uma alta administração que gozava de certas prerrogativas: pelos
feitores, escrivães, guardas e servidores das feitorias; pelos armadores, que punham seus
navios a serviço do tráfico; pelos avençadores, que recebiam licenças especiais (avenças)
para “resgatarem” cativos: e pelos olheiros, que exerciam as funções de vigias e espiões. Ha-
via ainda os “caçadores de escravos”, que tanto podiam ser originários de populações nati-
vas, quanto mestiços a serviço dos traficantes; os tangomaos da Guiné e os pumbeiros da re-
gião do Congo e de Angola. José Gonçalves Salvador, Os magnatas do tráfico, São Paulo: Pio-
neira/EDUSP, 1981, pp. 69-82.
15 Intérpretes existentes em cada feitoria europeia na África.
16 Uma prova de que esta rede de informantes funcionava encontra-se no fato de que, em ou-
tras regiões da América ou mesmo no Brasil, existiam registros de procedência muito mais
detalhados.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 569


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

que seriam destinados.17 O que vale dizer que este dado não era compu-
tado no valor da “peça de Guiné”, medida de trabalho potencial, que era
calculada com base na idade, no sexo e na força física.

Angola ou Costa da Mina?: opções do tráfico para a Bahia


A ocupação do reino de Ndongo (Angola), efetivada no último quartel do
século XVI, permitiu aos portugueses livrarem-se do controle que o rei do
Congo ainda conseguia exercer sobre o comércio de escravos na região, ao
mesmo tempo que lhes assegurou uma base de operações para a expansão
das atividades do tráfico. Em menos de vinte anos, a região passaria de
base de feitoria a território ocupado,18 após uma série de conflitos entre os
Ngolas (chefes Ambundos) e o rei do Congo pela soberania sobre o território
do Ndongo e, posteriormente, entre os Ambundos e os portugueses, até o
controle definitivo destes últimos. Angola passaria a ser um dos mais ricos
mananciais de cativos para a América portuguesa e espanhola, liderando
o tráfico na África meridional, à custa do despovoamento de toda a área
onde os tentáculos desta atividade conseguiram alcançar.
Escravos provenientes das regiões subequatoriais, embarcados através
de Luanda, Cabinda e Benguela, chegariam à Bahia até o final da vigência
do tráfico (1850). Entretanto, a proporção deste contingente foi bem mais
significativa durante o século XVII do que nos períodos subsequentes,
porquanto, a partir da segunda metade do século, a abertura do comércio
direto com a Costa da Mina transformaria alguns portos desta região em
importantes entrepostos para o abastecimento de escravos à Bahia. As
nações da Costa da Mina, a partir de então, suplantariam, em muito, os
contingentes que saíam de Angola.19
Alguns fatores se conjugaram para determinar a alteração nos rumos
do tráfico baiano. Como necessitaremos fazer constantes referências ao
processo que engendrou esta mudança, abriremos aqui um breve parêntese

17 Esta sofisticação os traficantes só iriam adquirir algum tempo mais tarde, quando já se ge-
neralizara na sociedade brasileira algumas preferências sobre qual tipo de escravo para o
exercício de certas tarefas. Percebe-se então, através dos registros, uma preocupação de de-
talhar melhor a origem dos cativos.
18 Em 1575, os portugueses criaram a primeira feitoria em Angola e no ano seguinte construí-
ram a fortaleza de Luanda; em 1560 entregaram a conquista do território ao donatário Pau-
lo Dias de Novais e, finalmente, em 1592, criavam na região um Governo Geral.
19 Mais adiante discutiremos sobre a abrangência do termo Costa da Mina em relação ao trá-
fico baiano. O certo é que, a partir de 1780, a proporção de escravos da Costa da Mina e do
Golfo do Benim importados pela Bahia suplantou a dos escravos subequatoriais na razão de
3 para 1. Esta foi a proporção encontrada por Stuart B. Schwartz, Segredos internos: enge-
nhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo: Companhia das Letras, 1988,
p. 282, tendência que se confirmou, em linhas gerais, também nas séries documentais que
analisamos para o período.

570 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

para ordenar alguns de seus principais fatos, antes de analisarmos os


chamados Ciclos de Angola, no século XVII e o da Costa da Mina, que o
seguiu no século XVIII.
O que nos interessa abordar, de início, diz respeito ao conflito entre
colonos brasileiros e negociantes portugueses quanto ao abastecimento de
escravos às lavouras do Brasil. Os senhores do tráfico, que se beneficiavam
do sistema de monopólio, eram frequentemente acusados de desviarem
para as Índias de Castela os cativos destinados à colônia portuguesa. 20
Foi apenas com o fim do monopólio português do tráfico, imposto pelos
revezes sofridos pela Metrópole na primeira metade do século XVII, que
tal situação começaria a mudar, abrindo à Bahia perspectivas para atuar
no mercado negreiro.
Desde 1518, quando Carlos V adotou o sistema de venda de licenças para
o aprovisionamento de escravos para as Índias Ocidentais, os traficantes
portugueses passaram a disputá-las aos mercadores genoveses, flamengos
e germânicos, junto à praça de Castela. Os excelentes preços em que eram
cotados os cativos africanos naquela região transformavam a compra destas
licenças num negócio extremamente lucrativo. Como eram os portugueses
que controlavam as fontes de suprimento de escravos na África, quase
sempre conseguiam assegurar vantagens sobre seus concorrentes.21
Em 1580, sob o reinado de Felipe II, efetivava-se o domínio espanhol
sobre Portugal e suas colônias, o que permitiu aos negociantes lusos ex-
pandirem seus negócios também sobre os territórios das Índias de Castela.
Alguns anos mais tarde, o mesmo soberano determinava a substituição
definitiva das licenças pelo regime dos “asientos”.22 Esta decisão permitiu
aos portugueses assenhorarem-se, por algum tempo, do abastecimento
de escravos para as colônias espanholas. Os novos contratos garantiam
aos “assentistas” o privilégio de levar, diretamente para a América
espanhola, até um terço dos escravos que fossem “resgatados”. Todavia,
tudo indica que esta proporção era frequentemente ultrapassada e que

20 Desde o final do século XVI eram frequentes as denúncias do desvio de cativos para os ter-
ritórios das Índias Ocidentais. No relatório de Abreu e Brito ao rei Felipe II, publicado por
Felner, encontra-se um relato pormenorizado dos expedientes de que se valiam os trafican-
tes para burlar o fisco, fazendo passar para as colônias espanholas os escravos que eram
destinados ao Brasil. Também o Conselho Ultramarino denunciava ao rei que “a escravaria
dos rios ia para as Índias e nenhuma para o Brasil”. Em 1613, segundo informação recolhida
por Scelle, Duarte Dias, contratador de Angola, despachava navios para Buenos Aires, regis-
trando-lhes a carga de negros como destinadas ao Brasil. Goulart, A escravidão africana, p.
104, 114 e 119.
21 A este respeito, e também sobre o papel representado neste comércio pelos “cristãos novos”,
ver Salvador, Os magnatas, pp. 38-41 e pp.128-141.
22 Os asientos eram contratos que autorizavam o tráfico de negros nas colônias espanholas. O
sistema dos asientos já havia sido inaugurado, em 1532, sob Carlos V, mas foi anulado logo a
seguir, voltando-se ao regime das “licenças”.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 571


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

os portugueses introduziram na região, via contrabando, um número de


escravos bastante superior ao convencionado.23
Este quadro bastante favorável aos senhores do tráfico opunha-se,
entretanto, aos interesses dos proprietários de engenhos-de-cana no
nordeste do Brasil, que se queixavam, desde os primeiros tempos, quer
dos altos preços, quer da escassez de escravos destinados à colônia.24 Os
pequenos lucros da empresa açucareira, nos anos iniciais de sua implan-
tação, não permitiam aos seus proprietários enfrentarem a competição
dos preços internacionais. Solução paliativa fora a utilização majoritária
do trabalho escravo dos indígenas – os “negros da terra” –, 25 reforçada
apenas por um pequeno número de “negros da Guiné”.
Mas a mão-de-obra indígena começou a se tornar escassa. De um
lado, a política da Companhia de Jesus pressionava o governo português
contra a escravização das populações nativas pelos colonos; de outro, os
ameríndios desapareciam do litoral, exterminados pelas guerras, pela
escravidão e pelas doenças.26 Muitos preferiam internar-se no território,
fugindo do contato com o “colonizador”.
A expansão da atividade açucareira dependia cada vez mais de
mão-de-obra, quer para os novos engenhos, quer para atender as exi-
gências da renovação continuada da força de trabalho dos já existentes.
A necessidade de assegurar este abastecimento passou a ser uma das
preocupações centrais dos senhores-de-engenho. Assim, em todas as
capitanias onde a cultura da cana-de-açúcar florescia, os proprietários
clamavam por escravos.
A correspondência administrativa e religiosa faz chegar à Metrópole
as queixas dos lavradores que, insistentemente, solicitam se lhes sejam
enviados “negros da Guiné”. Em 1559, um Alvará da regente Dona Catarina

23 De acordo com Goulart, a maior parte dos escravos registrada no fisco como destinados à co-
lônia portuguesa era em realidade desviada para as Antilhas. Goulart, A escravidão africa-
na, pp. 104-106.
24 Exatamente à mesma época em que se iniciava o domínio espanhol sobre Portugal, a agroin-
dústria do açúcar começava a adquirir fôlego na região nordestina, especialmente em Per-
nambuco e no Recôncavo da Bahia.
25 O uso da expressão “negros da terra”, em oposição a “negros de Guiné”, é um exemplo eviden-
te de como o termo “negro” tornara-se equivalente a “escravo”. Para Schwartz, desde a Idade
Média, “em Portugal, a palavra ‘negro’ tornara-se quase sinônimo de escravo, e, com certe-
za no século XVI, ainda tinha implicações de servilismo.” Schwartz, Segredos Internos, p. 58.
Uma lei de Pombal, em 1775, abolia oficialmente a aplicação do termo aos indígenas, “pela
infâmia e vileza que isto lhes trazia por equipará-los aos da Costa d’África como destinados
para escravos de branco”. Cf. Thales de Azevedo, “O ‘crioulo’ entre os escravos e o cidadão”,
Cadernos Brasileiros - 80 Anos de Abolição, n. 47 (1968), vol. 10, p.27. Ainda sobre o assunto
ver John Manuel Monteiro, Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo,
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
26 Sobre o impacto do contato entre o europeu e as culturas indígenas e a consequente dizima-
ção destas últimas, ver Schwartz, Segredos Internos, pp. 40-56.

572 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

ao Capitão da Ilha de São Tomé autorizava a cada senhor-de-engenho


fazer o resgate anual de até 120 escravos no Congo, até que o sistema
foi extinto com a criação do “contrato de São Tomé”, monopólio arren-
dado a particulares e ao qual ficara submetido todo o comércio da área.
Esta situação, por sua vez, perdurou até o momento em que o monopólio
português na costa da África começou a sofrer seus primeiros revezes
efetivos, ao mesmo tempo em que a ocupação holandesa no Brasil punha
em risco toda a zona de produção açucareira do Nordeste.
Em 1637 a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais tomou de
assalto o Castelo de São Jorge da Mina, na costa africana, assumindo o
controle daquele território. Decidiram então os holandeses proibir aos
navios portugueses qualquer tipo de comércio na área. Bem cedo, entre-
tanto, os holandeses seriam obrigados a reconsiderar sua decisão, haja
visto que, há algum tempo, o fumo produzido na Bahia transformara-se na
mercadoria preferida dos africanos para o escambo de escravos no Golfo
do Benim e, premidos pelas circunstâncias, os holandeses dispuseram-se
a fazer algumas concessões à presença portuguesa na Costa a Sotavento
da Mina em troca daquela mercadoria.27
Este arranjo, entretanto, só pôde ser concluído após a assinatura
da trégua de dez anos entre Portugal e as Províncias Unidas, em 1641. O
tratado firmado entre os dois governos liberou a Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais para negociar as bases do comércio que seria per-
mitido aos portugueses realizar em alguns portos daquela região, e uma
das condições previa que os navios portugueses só poderiam frequentar
aqueles portos com carregação de mercadorias de suas colônias na Amé-
rica, como açúcar, aguardente e, evidentemente, o fumo da Bahia.28 Cada
navio pagaria, por este direito, dez por cento do valor de sua carga em
rolos de tabaco, no Castelo de São Jorge da Mina.
Em 1640 eclode a guerra entre Espanha e Portugal, que procurava
reaver sua independência. 29 No ano seguinte a Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais decidia ocupar Luanda, agravando o problema do
abastecimento de escravos para o Brasil e atingindo em cheio os interesses

27 O tabaco de terceira categoria exportado pela Bahia tinha a preferência dos africanos,
pela maneira especial como era preparado. As folhas rejeitadas na primeira e segunda es-
colhas eram molhadas em melado de cana enquanto torcidas. Esta técnica tornava o taba-
co baiano insubstituível na preferência dos africanos, na região do Golfo de Benim. Na fal-
ta de sucedâneos, holandeses, franceses e ingleses procuravam consegui-lo através dos
navios portugueses e, posteriormente, brasileiros que iam a região em busca de escravos.
Sobre o assunto, ver Verger, Flux et reflux, pp. 27-46.
28 Qualquer outra mercadoria proveniente da Europa, transportada pelos navios portugue-
ses para aquela área seria considerada contrabando. Verger, Flux et reflux, pp. 42-44.
29 Este conflito, que consumiu o restante das energias daquele reino só terminou em 1668
com a assinatura do tratado em que a Espanha reconhecia a independência de Portugal.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 573


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

dos negociantes portugueses na África. 30 Impossibilitado de abrir uma


nova frente de luta, o governo português, pela provisão de 1644, decidiu
permitir a seus comerciantes levarem diretamente o tabaco da Bahia
para a Costa da Mina, sem terem de passar pela Metrópole. Esta decisão
beneficiaria especialmente os comerciantes da Bahia que, controlando o
comércio do tabaco, passaram a realizar diretamente seus negócios com
os mercados africanos.
O tráfico a partir de Angola ainda conseguiria se recuperar na segunda
metade do século XVII, após a expulsão dos holandeses daquela costa pelas
tropas brasileiras enviadas do Rio de Janeiro, sob o comando de Salvador
de Sá e Benevides. No entanto, a descoberta das jazidas auríferas na região
das Minas Gerais, em 1698, fez crescer a demanda de escravos abrindo
novas perspectivas para o tráfico através do porto do Rio de Janeiro, o
mais próximo da zona de mineração. Os traficantes baianos não ficaram
alheios a este novo mercado, mas tiveram de enfrentar a oposição de
seus concorrentes. Os portugueses que controlavam o tráfico a partir de
Angola, através dos portos de Luanda, Cabinda e Benguela, abastecendo
Pernambuco e Rio de Janeiro, procuraram, através da política metropoli-
tana, intervir no sentido de fechar a via aberta ao comércio de escravos
realizado por seus rivais baianos na Costa da Mina.31
A luta entre estes dois setores concorrentes do tráfico na Colônia
perdurou por quase todo o século XVIII. Durante este período as duas
facções fizeram valer seus trunfos: o poder coercitivo da Metrópole,
na defesa dos interesses dos negociantes portugueses; o controle sobre
a produção de tabaco, garantindo a presença dos baianos na Costa da
Mina. É no seio deste conflito que aparece pela primeira vez a “propa-
ganda” de cada um dos setores do tráfico (e seus aliados), divulgando a
vantagem de sua “mercadoria” sobre a do rival. Os baianos exaltavam as
qualidades dos “negros minas” para os trabalhos da mineração, por serem

30 Mesmo após a trégua assinada com Portugal, os holandeses não sustaram sua política de
ocupação dos territórios daquele reino em África. Por sugestão de Maurício de Nassau, en-
tão governador do Estado Holandês do Brasil, foi dada a ordem aos navios da Companhia das
Índias para ocuparem Luanda e a seguir a faixa litorânea de Angola, onde os holandeses per-
maneceriam de 1641 a 1648. Um dos objetivos daquele governador era assegurar o forneci-
mento de escravos para Pernambuco. Herman Wätijen, O domínio colonial holandês no Bra-
sil, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1938, apud Goulart, A escravidão africana, p. 109.
31 Quando Portugal concluiu a paz com a Espanha (1668), este comércio era ainda relativa-
mente reduzido. A Metrópole procurou então, através da criação de Companhias de Comér-
cio, recuperar o terreno perdido aos brasileiros, submetendo o tráfico na Costa da Mina ao
controle da 1ª Companhia de Comércio de Cachéu e Cabo Verde (1676-1680) e posterior-
mente à Companhia Geral do Comércio do Brasil. Esta, apesar de não haver recebido, à época
de sua criação, o privilégio sobre o comércio de escravos, passou, em 1680, a poder cobrar di-
reitos sobre aquele comércio e a conceder os alvarás aos navios destinados à Costa da Mina.
Sobre o assunto, ver Verger, Flux et reflux, pp. 65-67.

574 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

mais fortes e resistentes do que os angolas. 32 Os portugueses, por seu


turno, interessados no fim do tráfico com a Costa da Mina, divulgavam
a excelência dos cativos de Angola e do Congo especialmente pela maior
facilidade de serem controlados.33 A rebeldia dos “negros minas” era uma
das razões mais proclamadas a favor da interrupção do comércio na Costa
do Leste.34 A Metrópole escamoteava seus argumentos, alegando a insegu-
rança que cercava o tráfico no Golfo da Guiné, onde as embarcações eram
constantemente vítimas de agressões e confisco da carga por parte dos
holandeses. Procurava desta maneira convencer os negociantes baianos a
transferirem seus negócios, incluindo o precioso tabaco, para os portos sob
o controle português: Cachéu, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola,
Madagascar e Moçambique. Seu objetivo era, de posse do fumo da Bahia,
negociar diretamente com a Companhia Holandesa das Índias os escravos
provenientes da Costa da Mina.35
Mas os baianos resistiram a todas as investidas da Metrópole neste
sentido e o tráfico pela Costa da Mina foi mantido durante os três primei-
ros quartos do século XVIII. Começaram a buscar novas paragens apenas
quando a intervenção de Pombal na política do tráfico, em 1756, criou
atritos com o rei do Daomé, colocando em risco os negócios na região.36
A partir de então, os comerciantes baianos passaram a buscar escravos
em outros portos fora da influência portuguesa. Após 1770, seriam os
portos de Onim (Lagos), Badagri e Porto Novo, na baía do Golfo do Benim,
os principais fornecedores de cativos ao tráfico baiano.

32 Já em 1718 o então Vice-rei do Brasil, D. Sancho Faro, Conde de Vimieyro, fazia saber à
Lisboa que “os negros da costa da Mina são mais procurados para as minas e os engenhos
que os de Angola, pela facilidade com que estes morrem e se suicidam”. Verger, Flux et
reflux, p. 71.
33 Em 1725, o Conselho Ultramarino, valendo-se de uma tentativa de revolta dos escravos pro-
venientes da Costa da Mina na região das Gerais, instruía ao Vice-Rei do Brasil para que to-
masse as providências necessárias a evitar as sublevações de escravos contra os brancos e
constatava que o levante só tinha sido evitado pelo conflito existente entre os angolas e os
minas, a respeito do chefe que deveria guiá-los. Concluía que devessem ser enviados para as
Gerais, preferencialmente os negros de Angola, pois “se tem visto que estes são mais confi-
dentes, mais sujeitos e obedientes do que os Minas, a quem o seu furor e valentia pode ani-
mar a entrarem em alguma deliberação de se oporem contra os brancos [...]”. Verger, Flux et
reflux, p. 325.
34 Costa do Leste é uma das denominações utilizadas àquela época para a Costa a Sotavento
da Mina, à leste do Castelo de São Jorge. Este termo seria também utilizado como etnônimo
para alguns africanos.
35 A análise detalhada de todo este conflito encontra-se em Verger. Flux et reflux, pp. 61-126.
36 Em 30 de março de 1756, uma lei do futuro Marquês de Pombal concedia liberdade de co-
mércio a todos os negociantes na Costa da Mina, estabelecendo que a feitoria de Ajudá cui-
daria para que não houvesse mais de um navio por vez naquele porto. Esta decisão desagra-
dou em cheio aos comerciantes que atuavam na área e acabou por levá-los a procurar escra-
vos em outros portos à leste, fora do controle das determinações daquela lei.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 575


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Século XVII: o tráfico de Angola para a Bahia


Segundo os historiadores que abordaram o tema do tráfico, os dados
sobre o número de escravos exportados de cada região da África para o
Brasil, no século XVII, são pouco numerosos e pairam dúvidas sobre a
confiabilidade dos registros até então disponíveis.37 Contudo, existe um
consenso entre esses historiadores, quanto ao primado de Angola nas
exportações de cativos das regiões centro meridionais da África naquele
período. Evidentemente não é nosso propósito refutar tal assertiva, nem
aprofundar a discussão sobre o tráfico de escravos em geral, tendo em
vista que tal tema foge de nossa especialidade e de nosso assunto. Entre-
tanto, para tratarmos da afiliação étnica dos africanos transferidos neste
período para a Bahia, torna-se necessário refletir um pouco sobre certas
questões que tangenciam o tema do tráfico. Abordaremos a dificuldade
em mensurar o peso numérico dos escravos na Bahia seiscentista, ao
lado de algumas afirmações elaboradas pela historiografia baiana sobre
o período, que atingem congos, angolas, benguelas, cabindas e outros
povos das regiões subequatoriais. Nem sempre os elementos utilizados
na construção de certos argumentos (e nem mesmo certos argumentos)
foram a nosso ver os mais apropriados aos fatos e à época.
No capítulo de sua obra dedicada ao que classifica como “Ciclo de
Angola”, Viana Filho defende o primado cultural e numérico das populações
“banto” na Bahia, durante todo o século XVII.38 No que se refere à quanti-
dade das importações de escravos provenientes de Angola, o autor faz uso
de documentação claramente insuficiente para lastrear suas conclusões
quanto ao peso numérico representado pelos “bantos” na Bahia naquele
período. Partindo de um único documento referente ao aprisionamento
pelos holandeses, em 1624, de sete embarcações fundeadas no porto de
Salvador, carregadas de escravos em sua grande maioria procedentes

37 Cf. Schwartz: “A despeito do louvável trabalho de muitos estudiosos, a história do tráfico ne-
greiro baiano ainda está por ser escrita, carecendo de documentação especialmente para o
período anterior a 1700”. Schwartz, Segredos Internos, p. 280. Por outro lado, grande parte
dos registros disponíveis sobre o tráfico para este período não é confiável por se tratar de
documentação fiscal. Todo especialista que tenha percorrido tal documentação sabe os ris-
cos que a mesma contém, tantos eram os artifícios empregados para fugir ao controle do Es-
tado. Segundo Fréderic Mauro, “Para estimar o volume do tráfico é muito importante consi-
derar o papel da fraude, que falseia todas as cifras oficiais”. Fréderic Mauro, Le Portugal et
l'Atlantique au XVIIe siècle, Paris: S.E.V.P.E.N., 1960, p. 179.
38 “Desapercebida de muitos, contestada por alguns, a superioridade da importação de negros
bantos, na Bahia, no século XVII, é incontestável. A sua importância foi extraordinária e os
seus marcos conservam-se ainda hoje. Representando a primeira entrada, em massa, de es-
cravos africanos para a Bahia, a sua cultura disseminou-se em todos os sentidos (...). Trazida
por negros mais dóceis, loquazes, preferidos para os serviços domésticos, dominou imper-
ceptivelmente, como veremos.” Viana Filho, O negro na Bahia, p. 81.

576 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de Angola,39 permite-se concluir que o tráfico não poderia negligenciar


as oportunidades de lucro oferecidas pelo rico mercado baiano, donde
“haver despejado na Bahia, por todo o século XVII, os negros de que se
abarrotava em Angola”.40
Ora, Viana Filho parte de um exemplo que por si só é um indicador
da série de problemas que enfrentaram o comércio e a lavoura da Bahia
na primeira metade do século XVII, e que criaram uma conjuntura extre-
mamente desfavorável ao tráfico de escravos em geral e ao de Angola,
em particular. Referimo-nos à presença holandesa no Brasil, na África
e no Atlântico.
O primeiro ataque holandês à Bahia, ocorrido em 1624, efetivou-se
no momento mesmo em que a atividade açucareira no Brasil enfrentava
sua primeira crise conjuntural. 41 Após um período de expansão, iniciado
no último quartel do século XVI, os preços do açúcar sofreram sua pri-
meira forte oscilação em 1620. A arroba do produto, que se mantivera
durante alguns anos acima de 1$000, foi negociada em 1623 apenas
pela metade do preço. Durante o período de quase um ano em que os
holandeses ocuparam a capital, a resistência organizada pelos baianos
concentrou-se na região do Recôncavo, área onde se situava a maior parte
dos engenhos. A luta atingiu diretamente a organização da produção,
pois os escravos foram requisitados pelo governo para dar combate aos
invasores, juntamente com as embarcações utilizadas no transporte do
açúcar entre o Recôncavo e o porto de Salvador. O comércio na Baía de
Todos-os-Santos ficou completamente paralisado durante todo o período.
Expulsos os holandeses com a chegada da armada luso-espanhola, os
engenhos voltaram a operar, mas de modo precário. A maior parte dos
escravos tinha morrido na luta ou fugido e tudo indica que a situação
dos proprietários, após os anos de baixos preços e a perda de duas sa-
fras, não era das melhores para fazer frente à rápida recuperação dos
plantéis como exigia a situação. No ano de 1627, a cidade do Salvador
foi, por duas vezes, atacada por novas incursões holandesas. Em 1638,
Nassau ocupou a ilha de Itaparica, situada diante da sede da capital da
colônia, onde permaneceu por quase um ano. Durante sua permanência
na ilha, os holandeses destruíram 27 engenhos e tentaram interromper
o comércio que se dirigia a Salvador.

39 Trata-se de uma citação extraída da obra de Joanes de Laet, “História ou Anais da Compa-
nhia das Índias Ocidentais”, onde encontram-se inventariados: “Huma barca com 250 ne-
gros de Angola, hum navio de Angola com negros; hum navio de Angola com 200 negros;
hum navio de Angola com 280 negros; hum navio de Angola com 450 negros; hum navio de
Angola com 230 negros [...] e um patacho da Guiné, com 28 negros”. Viana Filho, O negro na
Bahia, p. 85.
40 Viana Filho, O negro na Bahia, p. 86.
41 Guio-me neste relato pelo texto de Schwartz, Segredos Internos, pp. 153-158.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 577


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

A ocupação de Pernambuco (1630-1654) assegurou um período de


prosperidade aos engenhos da Bahia, favorecidos com a alta de preços
ocasionada pelo declínio da produção pernambucana e pela diminuição
dos estoques europeus. Mas sabe-se que a carência de mão-de-obra foi a
constante maior desta fase de prosperidade. A maior parte dos escravos
então incorporados aos engenhos baianos ou eram indígenas ou africanos
provenientes de Pernambuco, trazidos pelos proprietários em fuga que
os revendiam ao mercado da Bahia e do Rio de Janeiro. Quando começou
a guerra dos brasileiros e portugueses pela expulsão dos holandeses de
Pernambuco (1645-54), o Recôncavo voltou a ser atacado (1648-49). Ao
lado de todas estas incursões em terra, os navios da Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais não cessavam de apreender em alto mar os navios
mercantes portugueses carregados com escravos, açúcar ou produtos
vindos da Europa.42
Na África, a situação não era mais tranquilizadora. A expansão ho-
landesa sobre as zonas de tráfico de escravos limitava as áreas onde os
portugueses aprovisionavam-se de cativos. O problema agravou-se com a
ocupação de Luanda e da região costeira de Angola (1641-48), onde o tráfico
português foi não apenas interrompido durante este período, mas ficou
sensivelmente desorganizado mesmo após a expulsão dos holandeses.43
Na segunda metade do século, Angola conseguiu recuperar seus
índices de exportação, mas então foram a concorrência das plantações
antilhanas e a recessão geral dos anos 80 que atuaram como agentes
complicadores do tráfico. Por outro lado, o comércio baiano de escravos
na Costa da Mina, apesar de não estar ainda implantado em larga escala,
já era suficiente para abalar o predomínio do tráfico angolano, especial-
mente após a eclosão, em 1685, da epidemia de bexigas em Angola, que fez
com que o mercado consumidor brasileiro procurasse adquirir escravos
provenientes de outras regiões.44 Em síntese, para a economia baiana o

42 Estes ataques vinham acontecendo desde a década de 1620-1630. Em 1649, Portugal deci-
diu-se finalmente pela criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, formada com ca-
pitais dos “cristãos-novos”, destinada a proteger os navios mercantes portugueses em troca
do monopólio sobre alguns produtos da Colônia.
43 Tal desorganização é constatada pelo próprio Viana Filho que transcreve uma representa-
ção dos oficiais da Câmara de Angola ao rei de Portugal, datada de 1650, onde queixam-se
das “guerras dos Sobas e Reis rebeldes [que] despovoaram as províncias de Glamba, Lurubo,
zaire, dongo, zenga, lubolo e as jagas e Rainha ginga desbaratarão os Reinos da umba gangel-
la matumba”, que tiveram como efeito reduzir o número das “peças” e impedir o acesso aos
“pumbos”. Viana Filho, O negro na Bahia, pp. 86-87.
44 O comércio entre a Bahia e a Costa da Mina conheceu uma progressão contínua. No quin-
quênio 1681-1685, 32 navios partiram de Salvador para aquele território. Este número já
atingia 114 navios no quinquênio 1706-1710. Cf. Verger, Flux et reflux, p. 11. Sobre a epi-
demia, é o próprio Viana Filho quem transcreve a Provisão de 22/06/1685, do Marquês das
Minas a Antonio de Andrade, para que fosse buscar escravos na Costa da Mina, pagando

578 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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século XVII apresentou-se, pois, como um período difícil, repleto de altos


e baixos e, por este motivo, torna-se importante relativizar um pouco a
visão passada por Viana Filho de uma fase de prosperidade e de riqueza,
onde os traficantes portugueses de Angola se aproveitavam para “abar-
rotar” o porto de Salvador com os escravos que traziam daquela região.
Outra argumentação desenvolvida por Viana Filho, com o intuito
de demonstrar a presença em massa dos “bantos” na Bahia, baseia-se na
preferência que afirma terem estes gozado, entre os proprietários de
escravos, em virtude de sua docilidade e seus dotes para os serviços da
casa e da lavoura. Para tanto nosso autor vale-se dos informes de alguns
viajantes estrangeiros e de cronistas nacionais.45 Temos, entretanto, a
registrar a infelicidade na escolha dos depoimentos que utilizou para
alicerçar esta opinião, tendo em vista a maior parte destes não se referir
ao período que pretendeu retratar. Encontramos apenas duas exceções:
Gaspar Barleus, que escreveu durante o domínio holandês em Pernambu-
co, e André João Antonil, pseudônimo do jesuíta João Antonio Andreoni,
cuja obra publicada em 1711 poderia conter observações válidas para
o final do século XVII. 46 Todos os demais cronistas utilizados por Viana
Filho, em sua grande maioria estrangeiros de passagem pelo Brasil,
fizeram seus registros no século XIX e, o que é mais importante, após
a eclosão das revoltas lideradas por africanos “sudaneses” na Bahia.47

continuação 44

direitos na Bahia, “pela notícia que veio dos Reinos de Angola de haver conhecido nele o mal
de bexigas de tal maneira que se pode temer que em muitos anos se não refaça a perda de
muitos negros que morreram dele [...]”. Viana Filho, O negro na Bahia, p. 100.
45 Viana Filho baseia-se nas notícias repertoriadas nos escritos de Gaspar Barleus (1660), An-
tonil (1711), Luis dos Santos Vilhena (1798), Henry Koster (1816), Louis-François de Tollena-
re (1816-18), James Gardner (1836-41), Luís Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz (1865-1866).
46 Gaspar Barleus, autor da História dos feitos praticados no Brasil, afirma que os escravos na-
turais de Angola, sendo os mais trabalhadores de todos, gozavam de particular preferência
dos holandeses, motivo pelo qual, estes últimos, ao tempo de Nassau, conquistaram aque-
le reino. A. J. Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, considerando
as virtudes de cada nação africana para os trabalhos nos engenhos, anotou o seguinte: “Os
que vêm para o Brasil são ardas, minas, congos, de São Tomé, de Angola, de Cabo Verde e al-
guns de Moçambique [...] Os ardas e os minas são robustos. Os de Cabo Verde e de São Tomé
são mais fracos. Os de Angola, criados em Loanda, são mais capazes de aprender ofícios me-
cânicos que os das outras partes já nomeadas. Entre os congos, há também alguns, bastante
industriosos e bons não somente para o serviço da cana, mas para as oficinas e o meneio da
casa”. Como se pode perceber pelo texto, o jesuíta observa certas facilidades para o exercí-
cio de algumas tarefas, que atribui às nações de origem, mas leva também em conta algumas
diferenças individuais, tais como a força física, o grau de adaptação à nova sociedade (boçais
ou ladinos), o fato de serem originários de áreas já ocupadas há muito pelos europeus (re-
ferindo-se aos que vinham de Luanda). A. J. Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas
drogas e minas apud Viana Filho, O negro na Bahia, pp. 87-88.
47 Na Bahia algumas revoltas escravas antecederam ao relato de Koster (1816), o primeiro dos
informantes de Viana Filho a escrever sobre o século XIX: foram as revoltas de 1807, 1809,
1814 e 1816, envolvendo especialmente os haussás, nagôs e jejes.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 579


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Este dado é relevante, pois, como já vimos, existiam certas ideias que
haviam sido produzidas entre os setores que competiam no tráfico e que,
ao se generalizarem, foram também colocadas a serviço dos que temiam
a concentração de africanos de uma mesma região, como era o caso do
Conde da Ponte, Governador da Bahia.48
Atente-se ainda para fato de que Viana Filho, ao exigir que se desse aos
“bantos” o lugar que mereciam na formação da cultura de origem africana
na Bahia, acentuou naqueles povos exatamente a dominância dos traços que
eram mais apreciados pela sociedade escravista, tais como a docilidade, a
obediência aos senhores e a aptidão para o trabalho.49 Estas ideias o autor
vai buscar principalmente nos mesmos cronistas e viajantes do século XIX.
Vilhena, que escreveu em 1798, desfez-se primeiramente da reputação de
bons trabalhadores, que começavam a gozar, já à sua época, na Bahia, os
africanos provenientes da Costa da Mina, os quais considerava ‘ásperos e
traidores”. Quanto aos escravos de Benguela, considerava-os “mais amoráveis
e dóceis e percebem e falam a nossa língua melhor, e com mais facilidade
[...].”50 Koster, que passou por Salvador em 1816, época em que uma das
preocupações locais eram as revoltas de escravos, procurava explicar a
intranquilidade da Bahia pelo fato de receber muitos negros da Costa do
Ouro (sic). Sobre os angolas diria serem os melhores escravos, dedicados,
fiéis e honrados. Os congos, próprios para o campo, eram também dóceis,
embora não tão inteligentes ou corajosos.51 Tollenare, que permaneceu
no Brasil de 1816 a 1818, observaria, por seu turno, que entre os escravos
“os mais hábeis e convenientes para o serviço nas cidades são os negros
d’Angola; os Cabindas e Benguelas são dóceis e excelentes para o trabalho

48 Em correspondência datada de 1807, dirigida ao Visconde de Anadia, o Conde da Ponte di-


zia: “Esta colônia, pela produção de tabaco que lhe é própria, tem o privilégio exclusivo do
comércio com a Costa da Mina; importarão no anno passado as embarcações deste tráfico
8.037 escravos Gêges, Usás, Nagôs, etc. Naçoens as mais guerreiras da costa de Leste, e nos
mais anos ha com pouca diferença igual importação [...]”. Arquivo Histórico Ultramarino, Có-
dice 29.893.
49 Este equívoco, de atribuir a uma etnia propensão inata à obediência (e a outras, à rebelião)
é uma simplificação da realidade, que é explicável em se tratando da opinião de contem-
porâneos da escravidão, mas que deve ser devidamente filtrada quando se pretende utilizá
-la como interpretação histórica. Nenhum povo resistiu em bloco, nenhum se submeteu em
bloco. Os “bantos” resistiram tanto à escravidão quanto os escravos provenientes da Costa
da Mina ou de qualquer outra região da África, tanto quanto os ameríndios em todo o con-
tinente. Submeteram-se também na mesma proporção, quando não possuíam alternativas
possíveis, de ordem pessoal ou grupal. Variaram as estratégias aplicadas à luta e, às vezes, a
forma escolhida podia ser confundida com rendição. Uma das principais estratégias de re-
sistência dos povos ditos “bantos” foi a fuga para a formação de “quilombos”. Os estudos so-
bre o assunto estão a constatar, cada vez mais, a presença de estruturas organizacionais
pertencentes as sociedades africanas subequatoriais, na formação dos quilombos no Brasil.
50 Vilhena, Cartas Soteropolitanas, apud Viana Filho,. O negro na Bahia,. p. 90.
51 Koster, apud Viana Filho, O negro na Bahia, p. 90.

580 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

agrícola”.52 No texto dos Agassiz, já da segunda metade do século XIX


(1865- 66), Angolas e Congos, e “em geral os de língua banto”, eram classi-
ficados como “menos inteligentes e mais dóceis”, servindo “às maravilhas
para a lavoura”.53 Note-se que, por duas vezes – entre os Agassiz e Koster
–, docilidade e pouca inteligência vão em par. Uma leitura às avessas per-
mite concluir que, mesmo aos contemporâneos, não escapava o fato de ser
a rebeldia uma afirmação de inteligência e, logo, de presença de um “ato
humano” entre os escravos. Humanidade subliminarmente negada pela
ideologia da escravidão.
Estas opiniões (e algumas outras) seriam decisivas na elaboração da
ideia da inferioridade cultural dos povos “bantos” frente aos “sudaneses”
em algumas regiões do Brasil, entre as quais a Bahia. Durante anos,
sutilmente transmitida, tal ideia foi adquirindo com o passar do tempo
foros de verdade histórica, assumida por historiadores e antropólogos
(além do próprio Viana Filho, Brás do Amaral, Roger Bastide e outros) e
acatada até mesmo por uma parte da elite negra. 54 Partindo-se da “com-
paração” entre as atitudes de “sudaneses” e “bantos” frente à capacidade
de resistir organizadamente à escravidão, buscou-se explicar a diferença
no “grau de desenvolvimento” de suas sociedades de origem que, diga-se
de passagem, não eram sequer bem conhecidas. E assim, o caráter urbano
(leia-se avançado) das sociedades “sudanesas” foi a chave esclarecedora
do comportamento insubmisso e rebelde (leia-se capaz de resistência)
de seus membros, sempre prontos a articularem revoltas. Portadores de
uma religião complexa, organizaram-se em torno de seus sacerdotes para
resistir, desta vez culturalmente, à imposição dos deuses e valores dos
“brancos”. Por outro lado, o estágio agrícola (leia-se atrasado) das socie-
dades “bantas” e sua religião “pouco evoluída” (arcaica), baseada no culto
aos antepassados, teriam impedido aos congos e angolas articularem-se
com a mesma eficiência. Não resistindo ao contato cultural com o branco
ou com as nações africanas “mais evoluídas”, sucumbiram ao processo da
“aculturação”. Em outras palavras, ignorou-se a diferença cultural, fonte
da pluralidade de soluções frente aos problemas concretos da existência,
e buscou-se, a partir de pouquíssimas referências sobre o acervo cultural
dos povos “banto”, construir explicações que afastam cada vez mais a
possibilidade de compreensão dos mecanismos de resistência próprios
aos indivíduos pertencentes àquelas culturas.

52 Tollenare, Notas dominicais, apud Viana Filho, O negro na Bahia, p. 88.


53 Agassiz, Viagem ao Brasil, apud Viana Filho, O negro na Bahia, p. 87.
54 Brás do Amaral, “As tribos importadas: os grandes mercados de escravos africanos”, Revis-
ta do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, vol. 10 (1915), pp. 675-676; Roger Basti-
de, As Américas negras, São Paulo: DIFEL/Editora da Universidade de São Paulo, 1974, pp.
101-102.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 581


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Voltando à questão do tráfico entre Angola e Bahia, no século XVII,


não podemos deixar de chamar atenção sobre a posição de Goulart. Este
historiador alinha-se entre os que aceitam o predomínio de Luanda nas
exportações de escravos para todo o Brasil naquele período. Contudo,
diferentemente de Viana Filho, é bastante comedido quanto ao número
de africanos que teriam sido importados. Parte de sua obra A escravidão
africana no Brasil foi dedicada a uma revisão das avaliações até então
realizadas sobre os números do tráfico nos primeiros tempos da colônia,
onde discorda especialmente “das delirantes conjeturas” de Rocha Pombo
e Calógeras, “seguidos de multidão”.55
Suas fontes, especialmente para os dois primeiros séculos do tráfico,
foram relatos de contemporâneos que, não raro, informam muito mais
sobre a mentalidade dos mesmos do que sobre a realidade que procuram
retratar e continham informações bastante variáveis quanto ao número de
cativos existentes nos engenhos de açúcar de Pernambuco e da Bahia. Na
escolha dos dados, Goulart optou sempre pelos que continham as menores
cifras, pois, partindo da “produtividade média” por engenho, considerava
os números mais altos como um “esbanjamento de negros”. Malgrado
todas as críticas que possam ser feitas ao seu trabalho, quer quanto aos
critérios selecionados, quer quanto às fontes utilizadas, seus cálculos
aproximam-se dos resultados alcançados por outros especialistas, para
o resto da América e mesmo para outras regiões, valendo-se de outras
fontes documentais. Sua projeção, para todo o século XVII, não ultrapassa
a cifra de 500 a 550 mil africanos importados.56
De onde vinham os escravos embarcados na África durante o Ciclo
de Angola?
No século XVII, a população da Bahia acostumou-se a chamá-los
congos e angolas e mais raramente, porque em menor número, cabindas
e benguelas como se tais termos reportassem realmente a seus locais
de origem. 57 Contudo, sabemos que entre estes povos misturavam-se

55 João Pandiá Calógeras, baseando seus cálculos na taxa negativa de sobrevivência, aplicada
sobre a população negra existente no país às vésperas da Independência, chegou ao resulta-
do de uma importação de 5 a 6 milhões de escravos por século, totalizando 15.000.000 para
todo o período do tráfico. Rocha Pombo seguiu-lhe as pegadas, alcançando cifras mais ou
menos idênticas. Goulart, A escravidão africana, pp. 96-108.
56 Os critérios que nortearam seus cálculos basearam-se nas seguintes variáveis: o número de
engenhos em funcionamento em cada região, a proporção de africanos sobre o total da es-
cravaria, a média anual de produção de açúcar por engenho, a produção anual média dos es-
cravos nesta atividade, o número de escravos empregados em outras tarefas, a taxa de so-
brevivência sob regime de cativeiro e o número de cativos exportados pelo continente afri-
cano. Goulart, A escravidão africana, pp. 122-123
57 Enquanto na Bahia esses quatro etnônimos davam conta da classificação de origem dos es-
cravos da região subequatorial africana, em outras cidades brasileiras a situação era diver-
sa. No Rio de Janeiro, Mary Karasch encontrou, para o século XIX, 116 etnônimos utilizados

582 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

muitos outros porque, malgrado a sangria que o tráfico representou


para as populações daquelas regiões da Costa, o certo é que os negreiros
alimentavam seus negócios com contingentes numerosos vindos também
de outros reinos do interior.58
Para a Bahia, como não existe grande variedade nos etnônimos
aplicados pelo tráfico durante o Ciclo de Angola, o que se deduz é que
uma boa parte dos cativos classificados como sendo de origem congo ou
angola, não pertencia sequer a povos que viviam em áreas de influência
destes reinos, mas sim a outros reinos e “nações” do interior da África
subequatorial. Isto significa que muitos comportamentos, observados
e atribuídos a congos ou angolas, podiam perfeitamente fazer parte de
outras matrizes culturais. Até mesmo os próprios congos e angolas podiam
ter, por vezes, suas origens trocadas, a depender da região onde eram
capturados ou embarcados.59 O que dizer então dos cabindas, denominação
atribuída aos habitantes do Reino de Ngoyo, antigo território submetido
ao Reino de Congo, transformado pelos negreiros em porto exportador
de escravos? Seriam cabindas apenas os cativos originários do Ngoyo ou
todos que eram embarcados através daquele porto?
Novas dificuldades somaram-se à compreensão das especificidades
destes povos, a partir do momento que, em nome de um maior entendi-
mento sobre suas origens, os estudos sobre as populações africanas no
Brasil passaram a reuni-los, indistintamente, sob a denominação de “povos
bantos”, atribuindo ao conjunto destes, características que pertenciam às
partes. Desde que Bleck criou, em 1860, o termo “banto” para classificar
um conjunto de aproximadamente 2.000 línguas africanas, este termo
serviu, não raro, para designar outras realidades bem distantes daquela
proposta pelo seu criador.60 No Brasil, em todas as acepções que o termo
foi utilizado, sua noção esteve sempre associada à ideia de uma certa

continuação 57

para classificar os africanos provenientes daquela região, enquanto que para os da África
Ocidental não foram encontradas senão as apelações Mina, Calabar e Cabo Verde. Mary C.
Karasch, “Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850” (tese de doutorado, University of Wiscon-
sin, 1972), pp. 72-97.
58 Este era o papel dos pumbeiros, que se embrenhavam no território africano, trocando as
mercadorias europeias por escravos. Este sistema já era utilizado desde os primeiros tem-
pos do tráfico na região, quando o centro das operações ainda se concentrava no Reino
do Congo, transferindo-se para Angola quando o tráfico, após a conquista portuguesa, em
1575, para lá se deslocou.
59 Esta confusão é visível, ao menos na documentação referente ao século XIX que manusea-
mos. Um mesmo escravo aparecia ora sob a denominação de congo, ora sob a de angola.
60 O termo “banto” já esteve associado à noção de raça e de etnia, além de grupo linguístico. Se
bem que tais equívocos tenham ocorrido em diversos países, no Brasil encontramos tam-
bém alguns exemplos: Carlos Ott, considera banto “a raça negra propriamente dita”. Carlos
Ott, Formação e evolução étnica da cidade do Salvador, Salvador: Prefeitura de Salvador,
1955, vol. I, p. 56.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 583


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

homogeneidade, mais ou menos como se todos os “bantos”, possivelmente


originários de uma mesma zona de dispersão, ao se espalharem lenta-
mente por toda a África ao sul do equador, por um período não inferior
a mil anos, tivessem guardado, além da língua, traços físicos e culturais
também comuns.61
Assim, diversas populações que podiam descender, quer de bakongos,
quer de ambundos, yagas e ovibundos (estes últimos apenas tocados pelo
tráfico), guardariam certa similitude, independentemente das diferenças
culturais e dos conflitos que os levavam a se oporem. Isto para falar apenas
dos grandes grupos que certamente viviam na região subequatorial africana
no período do tráfico. Se, porém, levarmos em conta que cada um destes
grupos se dividia, por sua vez, em reinos ou nações que podiam ser aliados,
mas também inimigos, que alguns pertenciam a culturas matrilineares
enquanto outros eram patrilineares – o que influi substancialmente na
compreensão de suas estruturas econômicas, sociais e religiosas – pode-
mos perceber o quanto era vária a realidade cultural daqueles povos. E,
no entanto, fala-se do grau de desenvolvimento das sociedades “bantos”,
de sua religião, de suas manifestações culturais, como se se tratasse de
um conjunto homogêneo.
Spix e Martius, que passaram pela Bahia em 1817 e cuja obra é
considerada uma das primeiras tentativas de registro etnográfico sobre
os negros no Brasil, perceberam muito bem essa realidade, ou seja, a
multiplicidade de “tribos” que os traficantes “camuflavam” sob algumas
das denominações que escolhiam para marcar a procedência dos escravos.
Suas informações basearam-se nos informes que recolheram entre os
traficantes e os empregados na rede do tráfico no Sul da África. Se bem
que seu relato sobre as regiões abarcadas pelo tráfico não se refira ao
período que estamos analisando, seu conteúdo dá conta de uma realida-
de que era recorrente desde os primeiros tempos daquela atividade na
África. Eis alguns excertos do seu texto, traduzidos do alemão na obra
de Nina Rodrigues.62
[...] Esses sertanejos são obrigados algumas vezes a
estender as suas correrias até o centro da África, através
do continente, até Moçambique. Os escravos por eles
aprisionados pertencem às tribos dos cazimbas, schéschés e

61 A visão deste processo reflete, em parte, o caráter sincrônico e a-histórico dos estudos an-
tropológicos, onde os grupos linguísticos se espalham pelo espaço físico através da segmen-
tação de linhagens, base mesma da concepção de etnia como foi concebida pela antropolo-
gia de origem colonial. Uma nova concepção sobre os “bantos” no Brasil encontra-se em Ro-
bert W. Slenes, “Malungu, ngoma vem’: África coberta e descoberta no Brasil”, Revista USP,
no 12 (1991-92), pp. 48-67
62 Optamos pela tradução da obra de Nina Rodrigues porque foi a partir dela que este autor re-
gistrou alguns dos equívocos sobre “sudaneses” e “bantos”.

584 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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schinga [...] São embarcados em São Felipe de Benguela e em


Novo Redondo.
[...] Os escravos embarcados em Angola e de originário
denominados somente angolas, descendem das tribos dos
ausazes, pimbas, shingas, tembas [...]. Ao norte dessas regiões
o denominado Reino do Congo é muito frequentado pelos
traficantes de escravos, os portugueses, porém, não têm aí
nem domínio nem colônias próprias, mas ancoram os seus
navios na baia de Cabinda. Aí recebem eles os escravos que
lhes são trazidos das províncias do norte, Loango e Cacongo,
e vão buscar outros dos portos do rio Zaire ou Congo, onde os
negociam com os chefes do lugar.
“Os negros que são enviados daí para o Brasil chamam-se
comumente cabindas ou congos. [...].
Da costa oriental da África (Contracosta) trazem os
portugueses, sobretudo desde a restrição do tráfico na parte
norte da Guinéia, muitos negros para o Brasil. São arrastados
do profundo centro da África para Moçambique e pertencem
principalmente às nações macuas e anjicos. [...]63

Nina Rodrigues estranhou o fato de que os autores não tivessem


percebido a presença de “sudaneses” na Bahia àquela época e atribuiu
a dificuldade em identificar as “denominações etnográficas”, por eles
utilizadas (“à exceção dos Macuas”), ao fato de provavelmente terem sido
tiradas de trabalhos alemães. O que Nina não percebeu é que Spix e Martius
misturaram “sudaneses’ e “bantos”, fato que não passou desapercebido a
Verger que, comentando sobre o mesmo texto, aí identifica os haussás
(ausazes) e os jejes (schéschés).64 Os jingas (yagas) provavelmente seriam
os “schingas” e os anjicos, dados como provenientes da Contracosta, de
quem Nina Rodrigues disse não encontrar vestígios na Bahia, eram os
anzicos do reino mukoko Betekés, região situada não na Contracosta,
mas à leste do reino do Congo que, como dizem os autores, teriam sido
“arrastados do mais profundo centro da África para Moçambique”. Segundo
Mary Karasch, os anzicos eram no Brasil os monjolos.65

O ciclo da Costa da Mina


Eliminado o monopólio português sobre o tráfico de escravos,
rapidamente esta atividade transformou-se em empresa de caráter
internacional. O progresso da indústria açucareira implantada pelos
holandeses, ingleses e franceses nas Antilhas, ao mesmo tempo que fez
baixar os preços do açúcar no mercado europeu, puxou para cima o preço

63 Spix e Martius, apud Rodrigues, Os africanos no Brasil, pp. 115-116.


64 Verger, Flux et reflux, p. 351, nota 16,.
65 Karasch, “Slave Life in Rio de Janeiro”, p. 56.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 585


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dos escravos em função do aumento da demanda. As últimas décadas do


século XVII já não seriam muito fáceis para os proprietários de engenho
na Bahia. A eclosão da guerra na Europa (1689-1713) trouxe um novo
alento para a atividade, mas o deslocamento populacional ocasionado
pelo boom da mineração já começava a produzir seus efeitos sobre a
lavoura açucareira, fazendo disparar os preços de todos os produtos na
colônia. A partir de 1720, a tendência geral da economia açucareira na
Bahia foi de estagnação, conhecendo apenas alguns breves períodos de
desenvolvimento, quando das guerras entre as metrópoles europeias dos
concorrentes brasileiros nas Antilhas.66 Esta situação perdurou até o
último quartel do século XVIII, quando a atividade mineira já apresentava
sinais de esgotamento e o açúcar conheceu um novo período de expansão
que durou aproximadamente até a independência em 1822.

O golfo de Benim e seu interior

Fonte: João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

É neste quadro que se situa o Ciclo da Costa da Mina, controlado pelos


negociantes baianos. Na periodização proposta por Pierre Verger, este ciclo
ocuparia os três primeiros quartos do século XVIII. Se bem que durante

66 Schwartz, Segredos internos, pp. 146- 147.

586 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

este período a economia açucareira na Bahia atravessasse períodos de


crise alternados com fases de recuperação, o tráfico pela Costa da Mina
conseguiu assegurar seus rendimentos devido à reexportação de escravos
para a região da mineração nas Minas Gerais, na região Centro-Oeste e
no interior da Bahia.67 Preferidos para o trabalho nas minas, os escravos
trazidos pela Bahia alcançavam cotação bastante superior aos escravos que
vinham da região de Angola. Assim, na Bahia, na região das Minas Gerais
e no Rio de Janeiro, as principais áreas de influência do tráfico baiano,
um novo termo, mina, transformava-se em mais um etnônimo africano.
A afiliação africana dos “negros minas”, no Brasil, surgiu de uma
dedução equivocada. A tendência dominante nos estudos afro-brasileiros,
como veremos a seguir, foi de relacioná-la às nações fanti e achanti, devido
à associação do etnônimo ao Castelo de São Jorge da Mina, na Costa do
Ouro, mesmo que, paralelamente, se constatasse a ausência de vestígios
significativos da cultura akan no Brasil. 68 Considerando-se o número
de africanos que entraram pela via do tráfico baiano portando aquele
nome de origem, é quando muito de se estranhar que tal ausência tenha
sido possível, especialmente quando se sabe que, nas diversas regiões da
América onde os akans foram mais numerosos, sua cultura deixou traços
bastante definidos.69
Este equívoco só começou a ser desfeito com a obra de Pierre Verger
que, detendo-se sobre a análise do tráfico a partir do Golfo do Benim,
lançou luz sobre a questão. Segundo Verger, chamavam-se minas, no Brasil
do século XVIII, os africanos que eram embarcados na Costa do Leste ou
Costa a Sotavento do Castelo de São Jorge da Mina. Esta fortaleza estava
localizada na Costa do Ouro, atual Gana, mas a região na qual portugueses
e baianos realizavam o tráfico era bem demarcada, limitando-se aos portos
que os holandeses haviam liberado em troca de parte do carregamento de
tabaco da Bahia. Estes portos situavam-se em territórios controlados pelos
reinos de Ardra (Alada) e Uidá, posteriormente ocupados pelo Daomé, e
eram: Jaquin, Ajudá (Uidá), Popo e Apá.70 Os escravos embarcados nesta
região não pertenciam, portanto, às nações fanti e achanti, que viviam
mais a oeste, onde o tráfico escapava ao acesso dos navios portugueses e

67 A atividade de mineração estendeu-se também para o interior da Bahia, atingindo as re-


giões de Minas Novas, Arassuaí, Jacobina, Sertão e Rio de Contas, desviando para estas
regiões não apenas os caçadores de ouro, mas também uma quantidade considerável de
escravos.
68 A origem do equívoco encontra-se em Rodrigues, Os africanos no Brasil. Artur Ramos segue
o mestre, mas busca explicações para a ausência de traços significativos daquela cultura no
Brasil. Artur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo, São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1979.
69 Foi o caso dos Estados Unidos, Jamaica, Barbados e dos chamados bush negros das Guianas
inglesa e francesa. Bastide, As Américas negras, pp. 16, 51-61, 97-99, 154-156.
70 Verger, Flux et reflux, p. 207.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 587


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

baianos. Eram especialmente os jejes (daomeanos) e os nagôs (iorubás) e


outros de algumas nações cujos cativos chegavam até àqueles portos para
serem embarcados com destino à Bahia, como os guruncis ou grunches
(aqui conhecidos como galinhas), os mahis, os modumbis, os cotocolis.71
A obra de Nina Rodrigues é um exemplo de como se construiu o mal
-entendido sobre a procedência dos minas, além de que, sua notoriedade
nos estudos sobre os africanos no Brasil foi uma das razões para que tal
ideia se propagasse. Falando sobre os minas, no início do século XX, diz
esse autor: “De todos os negros da Costa do Ouro e dos Escravos, são estes
os que se acham agora mais reduzidos em número. Até hoje consegui ver
uns cinco. O número deles devia, no entanto, ter sido muito avultado há um
ou dois séculos atrás. O forte de El-Mina, ou da Mina, por que estrearam
os portugueses no comércio de escravos em grosso, foi empório de tal
ordem desse comércio que chegou a tornar sinônimo os africano e mina”.72
Partindo, portanto, da premissa de serem os minas os escravos trazidos da
Costa do Ouro, Nina Rodrigues associou-os aos fantis e achantis, se bem
que chegasse a perceber que a “denominação popular” aplicava o termo “a
quase todos os escravos da África superequatorial, neles compreendendo
não só os de língua guineana: nagôs, achantis e fantis, mas ainda muitos
outros povos sudaneses”.73 E constata ainda que o fenômeno não ocorria
apenas na Bahia. No Rio de Janeiro, ao enumerar as nações negras mais
presentes naquela cidade, Debret referira-se aos minas, minas-nejôs,
minas-maís e minas-cavalos. Os dois primeiros, na interpretação de Nina
Rodrigues, equivaleriam possivelmente aos nagôs e aos jeje-maís,74 o que
sem dúvida é bastante plausível. Quanto aos mina-cavalos, em realidade,
Debret chamou-os mina-callava, fazendo provavelmente referência a
escravos provenientes de Abomé-Calavi, às margens do lago Nokué, ao
sul do Daomé (atual República do Benim).75
Mas Nina Rodrigues dispunha de uma fonte preciosa: os últimos
africanos libertos que ainda viviam, à sua época, em Salvador e dos quais

71 Esta afirmação de Verger, tem validade inclusive para o período posterior ao Ciclo da Mina.
Pudemos constatar, em documentos baianos do final do século XVIII e século XIX que a de-
nominação Costa da Mina continuava a ser aplicada extensivamente aos jejes, nagôs, haus-
sás e mesmo a alguns africanos referidos como “da Guiné”.
72 Rodrigues, Os africanos no Brasil. p. 107.
73 Idem, p. 147. O próprio autor, em outra parte da obra, narrando uma visita que realizou ao
Maranhão, em 1896, onde foi visitar os últimos negros africanos conhecidos por “negros mi-
nas” na cidade de São Luís, diz haver encontrado duas velhas “uma jeje hemiplégica [...] e a
outra, uma nagô de Abeokutá [...]". Idem, p. 107.
74 Idem, p. 108.
75 Jean B. Debret, Voyage Pittoresque et Historique au Brésil..., Paris: Ed. Firmin-Didot Frères,
1834, vol. 2, p. 76. Sobre Abomé-Calavi, ver: Christian Merlo e Pierre Vidaud, “Dangbé et le
peuplement Houéda”, in François Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin (Aja-Ewé) (Pa-
ris: Karthala/Centre de Recherches Africaines, 1984), pp. 271-272

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extraiu diversas informações. Inquirindo-os sobre os minas, verificou


que “os africanos distinguem perfeitamente duas espécies de minas:
minas-ashantis, que em geral chamam minas-santés, e minas popos. 76 De
posse deste importante indício, Nina Rodrigues concluiu então que, “na
acepção restrita que lhe dão, com razão os negros africanos da Bahia”, o
nome mina deveria ser reservado “para as duas últimas línguas do grupo
guineano ou ewe, isto é, o tishi ou odji e o ga”.77 No confronto entre a “de-
nominação popular”, que incluía diversas outras nações sob aquele termo,
e o testemunho dos africanos, que associava os minas aos achantis e popos,
Nina Rodrigues optou pela precisão de seus informantes africanos. Visou
saber quem eram os minas no Brasil, descobriu quem eles eram na África.
O autor de Os Africanos no Brasil não se apercebeu que, sob a ótica
de seus entrevistados, o termo mina reportava a outros referenciais que
não eram os mesmos da “denominação popular” (que consideramos como
procedente do tráfico), simplesmente porque, para aqueles libertos que
chegaram à Bahia no século XIX, mina correspondia a duas realidades
distintas na África: em primeiro lugar, ao reino Achanti, da Costa do Ouro,
onde ficava situado o Castelo da Mina (seriam estes os minas-achanti,
de seus informantes); em segundo lugar, o nome dado à população de
Anécho (Pequeno Popo),78 formada em parte pelos ghen e pelos fantis-ane,
populações que migraram da Costa do Ouro entre o final do século XVII e
o século XVIII e que eram desde então conhecidas como minas (seriam os
minas-popo). O termo era igualmente utilizado para denominar a língua
veicular, falada em Anécho e utilizada pela rede do tráfico na região
do Golfo do Benim. O que se pode perceber é que nenhuma dessas duas
referências correspondia ao que Nina Rodrigues queria saber: de onde
provinham os minas da Bahia. A denominação do tráfico não tinha a
mesma precisão do sistema de classificação dos informantes africanos.
Para estes, os minas não eram confundidos com os nagôs, nem com os
jejes, ou qualquer outra nação. Mina era mina. Podiam ser reconhecidos
por alguns africanos da Bahia por sua língua e seus costumes. Sobre este
povo os últimos africanos precisaram a Nina ainda se recordarem da “re-
putação de crueldade sanguinária dos achantis, [e da] fama de Cumassi,
sua capital [...]”.79 Estes minas (de origem achanti e popo) chegaram à Bahia
em pequena quantidade, visto não serem os grupos mais significativos

76 Rodrigues. Os africanos no Brasil, p. 107.


77 Idem, p. 147.
78 Sobre o assunto, ver S. Wilson, “Aperçu historique sur les peuples et cultures dans de Gol-
fe du Bénin: le cas des ‘Mina’ d’Anécho”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp.
127-150; e Robin Law, The Slave Coast of West Africa, 1550-1750, Oxford: Clarendon
Press, 1991, p. 189.
79 Rodrigues, Os africanos no Brasil, pp. 107-108.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 589


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

do tráfico na Costa a Sotavento de São Jorge da Mina. Isto não significa


terem sido achantis e fantis todos os minas que vieram para o Brasil. Pelo
contrário, vários indícios apontam noutra direção.
Artur Ramos seguiu Nina Rodrigues e também incluiu os fantis-achantis
entre os povos pertencentes às culturas sudanesas no Brasil. Interpretando
a ausência de vestígios daquelas culturas pelo viés da “aculturação”, Ramos
explicava o desaparecimento dos traços fantis-achantis face sua “absorção”,
pela cultura nagô.80 Mas, felizmente, manteve aberto o debate da questão
ao constatar que sua opinião não gozava de unanimidade entre os autores.
Em nota ao capítulo em que trata das culturas daomeana e fanti-achanti no
Brasil,81 Artur Ramos faz uma retrospectiva crítica das opiniões que lhe eram
divergentes, entre estas a de Braz do Amaral que, segundo ele, “descreve em
capítulos separados os negros minas e os achantis”, confessando aquele autor
que sobre os últimos “lhe falta[va]m informes especiais”. No mesmo engano
teria incorrido Oliveira Viana, enumerando separadamente aquelas duas
nações. Em Manoel Querino, constatou Ramos o erro de haver escrito que
“o vocábulo nagô, abrange as tribos seguintes: Mina, Iorubá, Igechá, Ige-bu,
Efon, Otá, Egbá”, o que classifica de “salada de povos pertencentes à Costa
do Ouro e Costa dos Escravos”. Demonstrando seu espanto, constata que
“até Gilberto Freyre julgou que Minas fossem os mesmos escravos nagôs”
e conclui essa nota atribuindo toda a confusão “à denominação genérica
que alguns autores antigos deram, no Rio de Janeiro, aos escravos de pro-
cedência sudanesa”. Entre estes encontra-se Debret, cujo texto analisado
por Nina Rodrigues foi retomado por Ramos como indicativo de que no
Rio de Janeiro a denominação mina “compreendia todos os negros não
pertencentes ao grupo banto, incluindo escravos procedentes da Costa do
Marfim, do Ouro e dos Escravos”.82
Se nos detivermos um pouco no conteúdo dos textos de Nina Rodrigues,
Artur Ramos e dos autores por este último enumerados, perceberemos
claramente duas abordagens para a questão: a primeira, oriunda da obra
de Nina Rodrigues, que tomando como ponto de partida a associação do
termo mina à fortaleza de São Jorge, ideia que teria sido reforçada pelos
depoimentos dos libertos de origem africana, deduziu que de El-Mina
teriam vindo escravos pertencentes às nações fanti e achanti; a segunda
abordagem, mais empírica, constatava serem os minas diferenciados dos
achantis e dos fantis, se bem que alguns autores não excluissem a hipótese

80 “A cultura Fanti-Ashanti quase não deixou vestígios no Brasil. Apenas algumas sobrevivên-
cias linguísticas na Bahia, absorvidas, porém, logo completamente pelo nagô. Foram os es-
cravos que falavam as línguas Tshi e Ga, da Costa do Ouro. Seriam os negros a que comumen-
te se dava a denominação de Minas.” Ramos, As culturas negras, p. 207.
81 Idem, p. 208, nota 15.
82 Idem, p. 208.

590 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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da presença destes últimos no Brasil. Mas teriam realmente esses grupos


feito parte dos contingentes transportados por portugueses e brasileiros
no século XVIII? Teria razão Nina Rodrigues, à sua época, em afirmar que
o número dos escravos importados da Costa do Ouro devia ter sido muito
avultado nos dois séculos anteriores? 83 Tudo leva a crer que não e que
a presença dos achantis e fantis, na colônia, sob o nome de minas, teria
ocorrido apenas até o início do século XVII. Após a ocupação holandesa
na Costa do Ouro, o embarque destes escravos para o Brasil teria sido
quando muito eventual.
Uma das referências acerca dos minas naquele primeiro período
encontra-se numa correspondência assinada por Henrique Dias, “gover-
nador dos negros”, aos chefes holandeses, na qual fazia saber ao inimigo
o espírito que dominava sua tropa e informava sobre as quatro nações
que compunham seu regimento: “minas, ardras, angolas e crioulos [...]; os
minas, tão bravos que onde não podem chegar com o braço, chegam com
o nome; os ardras tão fogosos que tudo querem cortar de um só golpe; os
angolas tão robustos que nenhum trabalho os cansa [...]”. 84 Este depoi-
mento do chefe do Regimento dos Homens Pretos, em armas durante
a luta de resistência contra os holandeses em Pernambuco, refere-se
evidentemente aos minas que entraram no Brasil antes da ocupação do
Castelo de São Jorge pelos mesmos holandeses. E provavelmente também
antes da decisão dos portugueses de suspenderem o tráfico de escravos
naquela região, para assegurarem a continuidade do comércio do ouro.
Segundo Luciano Cordeiro, citado por Frederic Mauro, desde o início
do século XVII, quando ainda eram os senhores absolutos da região de
El-Mina, os portugueses, considerando o declínio do comércio do ouro,
decidiram “qu’aucun des Noirs à dix lieues dans l’intérieur et le long de
la côte ne sera ni capturé ni vendu”. 85 Como posteriormente a Costa do
Ouro passou sucessivamente para o controle de holandeses e ingleses, a
importação de cativos de origem fanti e achanti ficou fora do raio de ação
do tráfico português e brasileiro que continuava a ser feito nos portos da
Costa a Sotavento da Mina. Estes fatos mostram que, pelo menos desde o
início do século XVII e durante o século XVIII, havia razões de sobra para
que as populações da Costa do Ouro não fizessem parte dos contingentes

83 Se bem que a obra de Nina Rodrigues só tenha conhecido sua primeira edição em 1933, sua
elaboração situa-se entre a última década do século XIX e os primeiros anos do século XX.
Isto permite melhor situar a datação pretendida pelo autor quando se referia aos dois sécu-
los anteriores.
84 Henrique Dias, “Um cartel de desafio (Resposta às propostas de rendição dos holandeses”, in
Edison Carneiro (org.), Antologia do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro: Ediouro, 1967), p. 82.
85 “[Q]ue nenhum negro, numa distância de dez léguas para o interior e ao longo da costa, se-
ria capturado ou vendido”. Mauro, Le Portugal, p. 166.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 591


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africanos transferidos para o Brasil. O que podemos concluir é que o


embarque de cativos desta procedência, nos portos da Costa do Leste, se
existiu, foi em tão pequena quantidade que neste fato residiria a expli-
cação dos pequenos vestígios que ficaram de sua passagem.86
Portanto, se para o Ciclo da Mina afastarmos a hipótese da origem
fanti e achanti para os escravos provenientes daquela região, construída
por associação ao Castelo de São Jorge da Mina, e colocarmos em seu lugar
os portos da Costa do Leste do Castelo, veremos que sob este enfoque
adquirem novo sentido tanto o depoimento de Debret, quanto as pesquisas
de Nina Rodrigues e as constatações a que chegaram os autores criticados
por Artur Ramos. No Rio de Janeiro de Debret, os minas podiam ser nagôs
(nejôs), jejes (minas-maís ou jeje-mahís), ou minas-callava (Abomé-Calavi).
No Maranhão, as duas sobreviventes da “nação mina” encontradas por
Nina Rodrigues eram jeje e nagô. Manoel Querino, ao associar ao vocábulo
nagô às “tribos” mina, iorubá, ijebu e egbá, confirmava apenas a existência
entre os nagôs de indivíduos que recebiam o nome de minas. Sua “salada
de povos”, no dizer de Artur Ramos, ficaria por conta não da inclusão
dos minas entre os nagôs, mas sim dos efon (fons), que eram daomeanos.
Mas à época de Querino a associação entre nagôs e jejes era frequente na
Bahia, especialmente no culto afro-brasileiro, como nos “candomblés da
nação Ketu”, o que não justifica, mas explica a confusão que fez. Também
a constatação feita por Gilberto Freyre para Pernambuco, ao assinalar a
utilização do termo mina referindo-se aos nagôs, pode ser compreendida
sob este novo enfoque. Isto também significa que Oliveira Viana e Braz
do Amaral não estavam equivocados ao optarem por classificar separa-
damente minas e achantis.
Resta-nos tecer algumas considerações sobre os nagôs e os jejes, na
medida em que estas designações contêm algumas especificidades em
relação aos escravos que chegaram ao Brasil. Nagô foi o nome escolhido
no circuito do tráfico que se organizou em direção à Bahia para denominar
os povos de língua iorubá. 87 Este termo, sob a forma joruba, apesar de

86 Conforme a afirmação de Artur Ramos na nota 80.


87 Iorubá, enquanto etnônimo é termo de uso recente. Originalmente o nome era aplicado ex-
clusivamente aos habitantes de Oyó e Samuel Johnson designaria seus habitantes Yoruba.
Ver Georges Edouard Bourgoignie, Les hommes de l'eau. Ethno-écologie du Dahomev lacus-
tre, Paris: Ed. Universitaires, 1972, p. 46. Mesmo na África, Fadipe concluiu que “a etiqueta
Yoruba, designando um grupo étnico, não deve ter estado há muito tempo em voga antes de
1856”, e que “até hoje, as pessoas têm tendência a distinguir seus próprios grupos locais da-
queles que eles chamam coletivamente de Yoruba”. L.A. Fadipe, The Sociology of the Yoru-
ba, apud J. Elbein dos Santos, Os Nagô e a morte, Petrópolis: Vozes. 1976, nota 7, p. 29. Costa
Lima associa a generalização do termo ao curso do movimento nacionalista de independên-
cia da Nigéria, que buscava a valorização de uma cultura nacional. Vivaldo da Costa Lima,
“Nações-de-Candomblé”, Anais do Encontro de Nações-de-Candomblé, Salvador: lanamá/
CEAO- UFBa, 1984, p. 17.

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pouco frequente, chega a aparecer algumas vezes entre os registros de


escravos, como se se tratasse de uma subdivisão dos nagôs. Lucumy, termo
aplicado aos iorubás em Cuba e em outras regiões da América Central, não
foi utilizado no Brasil, entretanto era denominação corrente entre outras
nações europeias para se referir ao reino de Oyó (Lucumy ou Ulcumy).88
Nagô, anagô ou anagonu são formas pelas quais os povos que falam o
iorubá são ainda conhecidos atualmente no Benim, antigo reino do Daomé,
e também em Egbado, na Nigéria, região fronteiriça àquele território. A
origem do termo é controversa, admitindo-se quer sua origem fon, quer
a existência de um antigo etnônimo proveniente do próprio iorubá. De
acordo com Costa Lima,89 a palavra nagô teria se originado de um antigo
apelido pejorativo que os iorubás da fronteira do Daomé receberam dos
fons. Em pesquisa realizada no Benim, em 1963, sobre a etimologia popular
do termo, o autor recolheu uma interessante versão, segundo a qual, em
língua fon, “nagô” (ou “anagô”) queria significar sujo, piolhento, remeten-
do-se ao fato de que quando os nagôs chegaram ao Daomé, fugindo das
guerras inter-tribais, vinham esfarrapados, cheios de piolhos, famintos
e doentes. 90 Esta versão é partilhada por outros autores africanos. En-
tretanto, conclui Costa Lima, “a palavra modificou-se semanticamente a
ponto de perder essa suposta conotação, pois que é usada, atualmente,
no Daomé e mesmo na Nigéria [...] pelos próprios iorubas e ao chegar no
Brasil com os jejes, já perdera o suposto significado ofensivo, vez que os
iorubás da Bahia eram chamados e se chamavam a si mesmos de nagôs”.91
A possibilidade de o termo ter-se formado a partir do contato entre
os daomeanos e os iorubás é bastante plausível. A ocorrência de casos
semelhantes, na África e em outras regiões do globo, demonstra que
algumas denominações étnicas, que acabaram por se impor, provinham
não da auto-adscrição do grupo, mas do nome que lhe era aplicado por
povos vizinhos ou mesmo por inimigos, donde muitas vezes seu caráter
restritivo ou pejorativo. O único ponto em que discordamos de Costa Lima

88 O termo foi utilizado por Dapper, apud Verger, Flux et reflux, p. 128. Encontra-se também
na mesma obra, no Mapa da Guiné de Sanson d’Abbeville, de 1656; na Carte de la Barbarie,
de la Negritie et de la Guinée, de 1707, feita por Guillaume de l’Isle; no mapa da Guiné, feito
por Bonne, em Paris (1730), nas ilustrações de nº 6, 8 e 10.
89 Vivaldo da Costa Lima, “Conceito de Nação nos candomblés da Bahia”, Afro-Ásia, no 12
(1976), pp. 73-74.
90 Costa Lima, “Conceito de Nação”, p. 74. Com o mesmo significado, mas reportando-o a ou-
tra origem, Robert Cornevin remete a origem do termo ao reinado de Agaja, rei de Agbomé,
obrigado ao pagamento de um tributo anual ao Alafin de Oyó. Para se vingarem de seus ini-
migos, os daomeanos os apelidaram inagonu, quer dizer “piolhentos”, que se transformou
em anagonu e depois em nagô. Robert Cornevin, Histoire du Dahomey, Paris: Berger-La-
vrault, 1962, p. 104.
91 Costa Lima, “O conceito de Nação”, p. 74.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 593


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é quanto ao fato da palavra nagô ter chegado no Brasil com os jejes. Tudo
leva a crer que o termo se generalizou, no século XVIII, quando o tráfico,
fazendo-se na região sob o controle do Daomé, adotou a designação local,
aplicada pelos daomeanos na identificação dos iorubás das regiões fron-
teiriças, estendo-a todos os demais grupos da área que possuíam traços
culturais comuns e consideravam-se originários de Ifé. Como, a princípio,
as guerras daomeanas fizeram a maior parte de seus cativos entre povos
anagôs, vizinhos do Daomé, é possível que tal fato tenha contribuído para
a aceitação do nome nagô entre os iorubás da Bahia, considerando-se que
aquele termo correspondia, de alguma forma, a uma das maneiras pela
qual eram identificados na África. A aceitação do apelido pelos demais
grupos iorubás pode ter-se operado a partir do contato entre os nagôs
“ladinos” e os recém-chegados, no momento em que as guerras entre o
Daomé e Oyó geraram a captura de prisioneiros provenientes das cidades
iorubás situadas mais a leste, onde o termo nagô não era usual.
Elbein dos Santos não aceita a origem fon para o termo nagô. Basean-
do-se em Abraham, considera anagonu ou nagô um ramo dos descendentes
iorubás de Ifé que teriam fundado diversos povoados na província de
Abeokutá, e também em Ofónyin e Ilaré. Portanto, o termo nagô seria
de origem iorubá e teria sido simplesmente incorporado pelos fons. O
termo, em seguida, seria aplicado de maneira extensiva a todos os povos
considerados como sendo da mesma origem. A autora leva em conta a
anterioridade do povoamento iorubá no centro do Daomé, especialmente
em Ketu, onde a lista tradicional dos Alaketu (reis de Ketu) permitiria
situar a implantação da realeza de origem nagô no século XII, dado que
estaria respaldado no informe de Dalzel que estimou em 1780 o reino do
quadragésimo Alaketu.
Interpretações deste tipo correm o risco de se deixarem envolver
pelas disputas de primazia cultural e de anterioridade sobre o território
tão frequentes nas tradições orais africanas quanto o são na historiografia
ocidental. 92 Este não nos parece o critério mais adequado para procurar
compreender o processo que teria presidido a algumas interpenetrações
culturais, constatadas na região onde o contato entre os nagôs e os fons
foi particularmente intenso. A presença dos nagôs em Ketu, desde o século
XII, poderia simplesmente procurar assegurar, a partir da tradição deste

92 Concordamos com François de Medeiros, ao abordar o problema Aja-Ewé, quanto ao ris-


co que representa para o conhecimento dos povos africanos, o tomar como base tradições
orais isoladas ou autores que basearam suas conclusões em coletas igualmente exclusivas.
As respostas às questões que colocam acerca do deslocamento dos diversos grupos na Áfri-
ca e do consequente povoamento de algumas regiões devem ser buscadas ao lado do conhe-
cimento das diversas tradições locais, pelas contribuições que poderiam ser fornecidas por
outras ciências, como a arqueologia e a linguística. François de Medeiros, “Le couple Ajá-E-
wé en question”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp. 35-46.

594 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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povo, a anterioridade do deslocamento dos iorubás a partir de Ifé, sobre


o dos ajas que se dirigiram para Tado, visto que a tradição aja reporta-se
a uma etapa vivida pelo grupo em Ketu, antes de chegarem a Tado. Ora,
Tado é considerada “cidade mãe” por diversos reinos que se atribuem uma
origem aja, entre eles o reino fon do Daomé. Neste caso, a presença dos
iorubás em Ketu, no momento em que os ajas viveram por algum tempo
neste território, asseguraria aos nagôs a antecedência e mesmo a primazia
cultural sobre os fons. Primazia esta que a autora não esconde quando
defende a origem nagô de alguns panteões e entidades divinas dos fons.93
Contudo, independente do termo nagô ser ou não de origem fon, a
autora concorda que os daomeanos, juntamente com a administração
francesa no período colonial, foram responsáveis pela extensão do nome a
todos os povos iorubás, e que foi esta a denominação herdada pelos iorubás
da Bahia, qualquer que fosse sua origem geográfica, onde “os diversos
grupos nagôs não tardaram a estabelecer contatos, ligados como eram
pela semelhança de seus costumes e sobretudo por sua comum origem
mítica e sua prática religiosa”.94
Na África, os grupos que então compunham o que mais tarde se conven-
cionou chamar iorubás tinham um modo próprio de adscrição, referindo-se
aos nomes de suas cidades de origem. Assim, diferiam-se entre si os oyós, os
ijexás, os ketos, os egbas, os ijebus etc.95 Esta diferenciação pode ser ainda
percebida na Bahia, quando os próprios nagôs eram chamados a declinar
suas origens,96 valendo-se de expressões como nagô-bá (egbá), nagô-jebú
(ijebu), nagô-gexá (ijexá) e outras. O interessante neste processo é o fato
de aceitarem a pretensa unidade expressa pelo termo nagô, enquanto

93 Elbein dos Santos, referindo-se à extensão do termo anagonu, no Daomé, aos iniciados e sa-
cerdotes dos cultos de origem nagô, diz textualmente: “Esta designação é muito útil para
ajudar na determinação, no Daomé, da origem de alguns panteões e de suas entidades divi-
nas. Assim, por exemplo, os daomeanos, que adoram Mawu, Lisa, Sapata, Gu, revelam as ori-
gens estrangeiras desses, por chamar suas sacerdotisas Nagonu, gente nagô, independen-
temente, é claro, da origem étnica da própria sacerdotisa”. Santos, Os nagô e a morte, p. 30,
nota 8. Uma visão diferente sobre as similitudes religiosas entre nagôs e daomeanos encon-
tra-se em Honorat Aguessy, “Convergences religieuses dans les sociétés aja, éwé et yoruba
sur la côte du Bénin”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp. 235-240.
94 Santos, Os nagô e a morte, pp. 31 e 32.
95 Sobre a forma de adscrição étnica na África e a construção da identidade iorubá no século
XIX, ver Michel R. Doortmont, “The invention of the Yorubas: Regional and Pan-African Na-
tionalism Versus Ethnic Provincialism”, in Paulo F. de Moraes Farias e Karin Barber (orgs.),
Self-Assertion and Brokerage (Birmingham: University of Birmingham Centre of West
African Studies, 1990), pp. 101-108.
96 Esta atitude é particularmente evidenciada nos “testamentos dos libertos” e nos “autos pro-
cessuais” das revoltas africanas na Bahia, nos quais os africanos davam alguns detalhes so-
bre sua autoadscrição, dados que não constavam dos demais registros oficiais tais como
as “cartas de alforria”, os “inventários post-mortem” dos proprietários ou as “escrituras de
compra e venda de escravos”.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 595


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mantinham para “uso doméstico”, se assim podemos dizer, os nomes que


consideravam como suas verdadeiras marcas de origem. A consciência
da diferença existente entre os diversos grupos, diante da aceitação do
apelido imposto, foi claramente expressa por Antônio, nagô, uma das tes-
temunhas inquiridas durante a revolta dos malês, de 1835. Referindo-se
aos objetos islâmicos encontrados entre os pertences dos escravos de seu
senhor, disse desconfiar serem de seu parceiro Joaquim, também nagô,
que “fazia comida de carneiro e os matava em casa do Pai Ignácio, onde
se juntavam vários negros da terra do mesmo Joaquim por que ainda que
todos são nagôs, cada hum tem sua terra”.97 É evidente que a testemunha
procurava taticamente isentar-se de um possível envolvimento na revolta,
explicando que nem todos os nagôs eram muçulmanos, que tudo dependia
da “terra” de onde vinham e é bem provável que não comungasse da crença
de seu parceiro. Mas nos dois termos finais de seu depoimento, a revela-
ção de Antônio ultrapassa sua intenção. Primeiramente, patenteava uma
aceitação do novo nome pela comunidade de seus “parentes” ao afirmar
“ainda que todos são nagôs”, mas, secundava ressalvando a diferença e,
por vezes, a distância existente entre os grupos ao concluir que “cada um
tem sua terra”. E a partir de exemplos como este que consideramos haver
existido na Bahia uma forma “reconstruída” de identificação “étnica”, em
torno da qual os diversos grupos africanos se organizaram para enfrentar
de um modo muito próprio as novas condições de vida que se lhes impunha
sob o regime de escravidão.
Exemplo idêntico ocorreu com os ajas-fons, da região do Daomé,
Porto Novo e áreas circunvizinhas, que terminariam todos na Bahia
conhecidos pelo nome de jejes. Este termo, que aparece sob a forma
gege na documentação brasileira dos séculos XVIII e XIX, era utilizado
na África para se referir aos “gun”, do reino de Hogbonu (Porto Novo),
que se impuseram sobre grupos nagôs que ocupavam de forma disper-
sa a região. Os “gun” (ou “gounou”) eram chamados também de “djedj”,
conforme informação de Cornevin. 98 Esta denominação não consta

97 Respostas do negro Antonio, nagô, escravo do Brigadeiro Manoel Gonçalves da Cunha, in: A
Justiça de Joaquim, nagô, escravo do Brigadeiro Manoel Gonçalves da Cunha e Roque, nagô,
escravo de Francisco Lopes, Maço 50, “Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador
em 1835”, Anais do Arquivo do Estado da Bahia, vol. 38, p. 7. Citado por João José Reis, Rebe-
lião escrava no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 169. O grifo é meu.
98 Encontramos uma referência da aplicação deste termo na África, sob a forma Gège, na obra
de R. Verneau, Les races humaines, Paris: Librairie J.B. Baillière et Fils, 1891, p. 251. O autor,
cujas opiniões sobre as culturas negro-africanas não serão objeto de nossa consideração, in-
sere no Grupo Foy (Fon) os Daomeanos, Gèges e Nagos, de Porto Novo e os “negros do Bénin”.
Sobre os Gèges, informa terem vindo do Daomé no final do século XVIII, conquistado o terri-
tório de Porto Novo, então ocupado pelos nagôs, e reduzido a maior parte de seus habitantes
à escravidão. Yves Person, “Chronologie du royaume gun de Hogbonu (Porto Novo)”, Cahiers
d'études africaines, no 58 (1975), p. 233, nota 55; refere-se também aos Agège, presentes na
região, mas não dá maiores detalhes.

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entretanto das tradições orais de Porto Novo, 99 o que torna plausível


considerar o termo como de origem estranha ao grupo. A extensão do
nome jeje ao conjunto dos povos fons e “guns”, como foi prática no Brasil,
estaria ligada ao reconhecimento de alguns traços culturais comuns a
diversas nações que povoavam a região da savana compreendida entre
o rio Amugan (Volta) e o vale do Weme.
Os séculos XVI e XVII foram época de grande movimentação de povos
nessa região.100 Diversos reinos aí se formaram e tiveram sua história
marcada pelas relações com o tráfico de escravos. Três dos mais famosos
referem-se em suas tradições a uma origem Aja-Tado comum,101 prove-
niente da expulsão dos Agasuvi, membros da linhagem materna de Tado,
derrotados após uma tentativa fracassada de tomada do poder. Foram
eles os reinos de Alada (chamado pelos europeus de Ardra ou Ardres); o
reino do Daomé, cuja tradição remete-se à expansão dos fons, a partir
de Ardres; e o reino de Hogbonu (Porto Novo), originado da conquista
legendária de Tê Agbalin sobre os anagô, de Aklo.102
Entretanto, uma confusão parecer ter se estabelecido na classifi-
cação dos povos que habitam os atuais territórios do Togo e do Benim,
envolvendo os ewés e os ajas. Um dos primeiros ensaios de classificação

99 J. Geay fala apenas dos reinos de raça Djebou-Aja, termo que Cornevin grafa como Dje-
gou, ao se referir às chefias de origem ioruba das cercanias de Porto Novo. J. Geay, “Origi-
ne, formation e histoire du royayme de Porto-Novo d'après une légende orale des Porto-
Noviens”, Bulletin du Comité d’Etudes Historiques et Scientifiques de l'Afrique Occiden-
tale Française, vol. VII, no 4, (1924), p. 619; e Cornevin, Histoire du Dahømey, p. 48. A obra
de Akindélé e Aguessy, que contém uma ampla resenha das tradições regionais, não faz
nenhuma referência aos Djedj ou Gège. A. Akindé]é e C. Aguessy, “Contribuition à l’étude
de l’histoire de l’ancien royaume de Porto Novo”, IFAN, Mémoires, no 25, (Dakar: IFAN,
1953). As tradições recolhidas entre os Tofinnu da região lacustre do sul do Daomé, con-
siderados como os aliados dos Guns na conquista do território de Hogbonu (Porto Novo),
também não contém nenhuma menção aos Djedj. Bourgoignie, Les hommes de l’eau, pp.
45-63.
100 Sobre o tema, ver Person, “Chronologie du royaune gun”, pp. 217-238 e os artigos Roberto
Pazzi, Nicoué Lojou Gayibor, François de Medeiros e Honorat Aguessy, in Medeiros (org.),
Peuples du Golfe du Bénin.
101 Uma das versões da tradição Aja remete suas origens à leste, em Ayo (território do rei-
no Bariba, posteriormente a Oyo dos iorubás), ou do rio Kwara (Níger). Teriam chegado a
Tado, vila habitada pelos Azanus, após uma estadia na vila de Ké, que viria a ser o futuro
reino anagô de Ketu. Os Azanus, por sua vez, consideram-se parentes do fundador do an-
tigo reino de Kumasi, anterior aquele fundado pelos achantis, o que leva alguns a associa-
rem suas origens à área cultural Sonraï. Deste modo, o reino de Tado, considerado por al-
gumas tradições como cidade de origem dos povos aja-ewe-fon, teria se formado a partir
do contato da cultura aja com culturas sudanesas mais antigas ali estabelecidas. Roberto
Pazzi, “Aperçu sur l’implantation actuelle et les migrations anciennes des peuples de l'ai-
re culturelle Aja-Tado”, in Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin, p. 18.
102 Uma das tradições mais difundidas na área afirma que a partir da conquista, os anagô te-
riam passado a chamar a cidade de Hogbonu (que mais tarde viria a ser Porto Novo), de
Ajâcé, que significa “os Aja estabeleceram-se aqui”.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 597


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

linguística destes povos, que foi o trabalho de Westermann, partindo de


observações feitas em território de maioria ewé, sob controle colonial
alemão, classificou os fons como pertencendo ao grupo dos ewés do les-
te, juntamente com os “gun”, de Allada. Nenhuma referência aos ajas é
registrada neste trabalho.103 Como a obra de Westermann serviu de base
para diversos estudos posteriores, tornou-se comum a inclusão dos fons
e dos “guns” entre os povos de língua e cultura ewé.
Esta confusão movimenta ainda hoje o debate entre os setores ajas
e ewés na historiografia do Togo e do Benim onde, não raro, as tradições
orais ajas e ewés têm sido postas a serviço de interpretações etnocên-
tricas. Uma das vertentes pretende serem os ewés uma fração do grupo
aja. Outra, liderada pelos ewés, mais radical, simplesmente desconsidera
a existência dos ajas e para tanto encontra apoio na obra de Westermann.
Entre ambas, uma terceira via, interpreta que ajas e ewés constituíam
grupos distintos desde o momento de seu deslocamento a partir de Oyó,
ou das margens do Níger. De acordo com esta última corrente, Tado teria
sido para os ewés apenas um estágio em seu deslocamento, situando-
se o centro de dispersão deste povo em Notsé (Nuaja). A partir daí, os
ewés estabeleceram-se em diversos centros de povoamento situados a
oeste, em territórios atualmente pertencentes ao Togo e ao Gana.104 Não
desenvolveram qualquer organização estatal de grande envergadura,
mantendo um sistema político fortemente enraizado nas linhagens. 105
Essa polêmica entre ajas e ewés incide indiretamente sobre a revisão
da origem dos jejes no Brasil, tendo em vista que a classificação deste
povo, nos estudos afro-brasileiros, pautou-se quase sempre sobre sua
associação ao grupo ewe.106
No Brasil, os primeiros escravos provenientes desta área cultural
receberam o nome de ardas ou ardras, 107 relacionados que eram, por
origem ou por zona de embarque, ao reino de Alada (Ardra), que desde o

103 H. Baumann e Diedrich Westermann, Les peuples et les civilisations de l’Afrique, Paris:
Payot, 1957, pp. 346-347.
104 A este respeito, ver François de Medeiros, “Le couple Aja-Ewé en question”, in Medeiros
(org.), Peuples du Golfe du Bénin, pp. 35-46.
105 Joseph Ki-Zerbo, História da África Negra, Viseu: Publicações Europa-América, 1972, pp.
352-353.
106 Entre alguns dos autores mais importantes que relacionaram os jejes aos ewés, nos estu-
dos do negro no Brasil, encontram-se: Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 105; Ramos, As
culturas negras no Novo Mundo, p. 202; Edison Carneiro, Ladinos e Crioulos, p. 43; Basti-
de, As Américas negras, p. 124.
107 Era este o nome de um dos batalhões formados por escravos, na época da guerra contra os
holandeses em Pernambuco, que compunham o Regimento dos Homens Pretos de Henri-
que Dias. Cf. nota 84. Ainda no início do século XVIII, Antonil cita os Ardras entre as na-
ções africanas que vinham para o Brasil. Antonil, Cultura e opulência, p. 123.

598 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

último quartel do século XVI mantinha contatos com os portugueses.108


Em 1724, Allada caiu sob o domínio do reino do Daomé, que começava
então sua escalada na região. Pouco tempo depois, os “guns” estabeleciam-
se no território que viria a ser Porto Novo e, de acordo com os cálculos
de Person, a fundação deste reino deve ter ocorrido entre a terceira e a
quarta décadas do século XVIII.109 Para estas décadas iniciais do século,
não encontramos nenhuma referência ao nome jeje no Brasil. Os cativos
que chegavam à região das Minas Gerais e à Bahia, vindos da Costa dos
Escravos, eram ainda chamados genericamente de minas, embarcados
nos quatro portos à leste de São Jorge da Mina, especialmente em Ajuda
(Uidá), mesmo depois que este reino, em 1727, passou também a ser
controlado pelo Daomé.
Para a Bahia, o registro mais antigo de que temos notícia contendo o
nome jeje para designar escravos africanos é o Compromisso da Irmandade
do Senhor dos Martírios, da cidade de Cachoeira, criada pelos “homens
pretos” daquela nação e datado de 1765. 110 É prudente, no entanto,
concedermos um prazo necessário à adaptação cultural e à integração
social destes africanos para se organizarem em torno da criação de uma
irmandade religiosa, especialmente se levarmos em conta o fato de que,
no referido Compromisso, os africanos deixam patenteado o conflito
existente entre eles e “os homens pretos nacionais desta terra a que
vulgarmente chamão crioullos [...] pellas controvérsias que custumão
ter semilhantes homens com os de nasção Gege e que estabelecem esta
Irmandade”.111 Para que existisse um conflito tão pronunciado, a ponto
dos jejes se sentirem no direito de excluir os crioulos de sua associação,
é evidente que os dois grupos deviam ter alimentado suas idiossincrasias
durante alguns anos de convivência. Isto nos permitiria, no mínimo, recuar
à chegada destes africanos em Cachoeira, por volta de meados do século
XVIII. 112 Se o termo jeje, sob suas formas gege, djedj ou agege, deve sua
origem aos “guns” de Hogbonu (Porto Novo), antes de se generalizar sobre

108 Conforme a descrição de Garcia Mendes Castello Branco (1574 e 1565), citada por Luciano
Cordeiro, apud Verger, Flux et reflux, nota l, p. 159.
109 Person, “Chronologie du royaume gun”, pp. 227 e 232-233.
110 Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus com o soberano título de Senhor dos
Martírios, erecta pelos homens pretos de nasção Gege, neste Convento da Villa de Nossa
Senhora do Monte do Carmo da Villa de Nossa Senhora do Rozario da Cachoeira, este anno
de 1765”, AHU, Códice 1666. Agradecemos ao Prof. Júlio Braga, da UFBA, pela indicação
deste documento.
111 Capítulo II, do Compromisso da irmandade – “Da entrada dos Irmãos”.
112 Esta avaliação coincide com a constatada por Schwartz para a documentação que anali-
sou referente ao século XVIII: “As “nações” jeje e nagô começaram a chegar à Bahia em cer-
tas quantidades por volta de meados do século XVIII, e em grande número após 1790”. Sch-
wartz, Segredos internos, , p. 441, nota 41.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 599


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

todos os cativos culturalmente a eles aparentados, é interessante notar


que a chegada dos primeiros escravos portando este nome, no Brasil,
coincide aproximativamente com os cálculos de Person que citamos acima.
Por outro lado, se a denominação foi aplicada pelo tráfico aos escravos
embarcados em Porto Novo, independentemente de suas culturas de
origem, a história registra que este comércio teve início na laguna, no
reinado de Dê Houyi (1757-1761).113
Costa Lima concorda que o nome jeje referia-se aos povos que
viviam ao sul do reino do Daomé, “especialmente os fõ e os gun”. 114
Quanto à etimologia do termo, o autor prefere aceitar a versão se-
gundo a qual jeje seria um termo de origem iorubá, àjéji, que significa
estrangeiro. 115 Os habitantes de origem iorubá de Hogbonu utilizavam
o termo, também na sua forma apocopada “jeji”, para se referirem aos
invasores fons vindos do leste. Conforme o autor, os habitantes de
origem fon, de Porto Novo, reconhecem-se a si mesmos pelo nome de
gun (ou goun ou gounou, na transcrição francesa), mas ainda atualmente
aceitam o apelido de “ajeji”, termo para eles desprovido da conotação
restritiva que teria tido à princípio. 116 Parece-nos bastante provável
uma origem alienígena para o nome, pois, pelo que pudemos constatar,
as tradições locais não fornecem nenhum indício de que o termo fosse
utilizado pelos “guns”.
Para Verger, jeje seria uma deformação da palavra adja (aja). 117 Entre-
tanto, em sua obra principal, Verger utiliza jeje sempre como equivalente
a daomeano.118 Aliás, não faz senão seguir a tendência da documentação
que utilizou referente ao tráfico para a Bahia, onde o termo era aplicado
indistintamente não apenas aos fons de Agbomé, mas aos mahis de Savalu,
aos “guns” de Porto Novo, aos “huedas” de Ajudá (Uidá ou Ouidah), aos

113 Cornevin, Histoire du Dahomey, p.86.


114 Costa Lima, “O conceito de Nação”, p. 72.
115 O autor cita como referência: R. C. Abraham, Dictionary of Modern Yoruba, Londres: Univer-
sity of London Press, 1958, p. 38: “ajeji, stranger (= alejô)”; A Dictionary of the Yoruba Lan-
guage, 6ª ed., Oxford: Oxford University Press, 1959, p. 12: “Ajeji, a stranger, a foreigner”; S.
Crowther, A Vocabulary of lhe Yoruba Language, Londres: Seebys, 1852, p. 21: “Ajeji, stran-
ger, foreigner”. O vocabulário de Crowther, o mais antigo que se conhece na sua dimensão,
anota muitos arcaísmos do iorubá ainda hoje conhecidos na Bahia pelo povo de santo”. Cos-
ta Lima, “O conceito de Nação”, p. 72.
116 O nome Ajeji estaria associado à mesma raiz do nome que os nagôs deram a Hogbonu, após a
conquista dos “gun”, isto é, Ajase (Adjaxé). Costa Lima, “O conceito de Nação”. p. 72.
117 Pierre Verger, “Note sur le culte des Oricha et vodum à Bahia: la Baie de tous les saints au
Brésil et l’ancienne Côte des Esclaves en Afrique”. Memoire de l’IFAN, nº 51. (Dakar: IFAN,
1957), p. 19. Costa Lima discorda desta interpretação por considerar que adja dificilmente
poderia se transformar em jeje. Costa Lima “O conceito de Nação”. p. 73.
118 Verger, no índice dos nomes geográficos e étnicos de sua obra Flux et reflux, p. 694, remete
de um para o outro, os vocábulos jeje e daomeano.

600 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

minas de Anécho e ainda a outros grupos que estiveram sob a dominação


do reino do Daomé.
Tal como ocorria entre os nagôs, parece que os jejes também manti-
nham suas distinções grupais e, às vezes, até mesmo suas rivalidades e
antigas mágoas. Ao tempo de Nina Rodrigues, por exemplo, alguns jejes
que recebiam na Bahia o apelido de “caras queimadas” se diziam efons,
mas “se [consideravam] distintos dos daomeanos”.119
Foi ainda na obra de Nina Rodrigues que encontramos outro sinal da
multiplicidade de grupos que se achavam reunidos sob o nome de jejes
e da dificuldade por ele vivenciada para identificar a possível unidade
do grupo. Comentando sobre o papel que teria desempenhado na Bahia
a língua falada pelos jejes – que evidentemente considerou como per-
tencente ao ewes –, constatou que alguns “não [reconheciam] como sua”
a língua registrada em alguns cantos populares que ele havia recolhido
e nos quais estava certo existirem “palavras jejes indiscutíveis”. 120
Atribuiu seu fracasso à possível alteração de forma e de pronúncia dos
cantos e à existência de cinco dialetos diferentes entre os jejes: o mahi,
o dahomê ou effon, o aufueh, o awunã ou aulô e o whydah ou weta. Em
tese, considerando-se o parentesco linguístico entre as populações do
grupo Aja, seria possível aos jejes da Bahia compreenderem-se uns aos
outros. Entretanto, existia entre eles outras diferenças que podiam, de
certa forma, fechar os canais da comunicação. O que dizer, por exemplo,
dos mahis, que durante anos enfrentaram duros ataques dos daomea-
nos? Sem falar dos grupos que culturalmente estavam mais próximos
de seus vizinhos nagôs. Temos alguns exemplos, na Bahia, referentes
ao século XIX, que tanto demonstram a aliança dos jejes com os nagôs,
quanto depoimentos que nos levam a crer no ódio quase mortal que um
povo nutria pelo outro. Não seria isto um sinal de que os jejes não se
reconheciam enquanto unidade cultural?

119 Conforme Nina Rodrigues, os Efon tinham “por tatuagem característica uma queimadura
na fronte”, donde o apelido. Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 106. Também Verneau, na
descrição que fez dos habitantes de Porto Novo, registrou que “les Gèges et les Nagos ne con-
tractent jamais d’alliances. Pour se distinguer les uns des autres, les premiers. c'est-à-dire
les conquerants, les Dahomiens, portent sur le front une cicatrice en forme de 7, tandis que
les seconds portent sur les joues trois cicatrices transversales (“os Geges e os Nagôs não ce-
lebram nunca alianças. Para distinguirem-se uns dos outros, os primeiros, isto é, os conquis-
tadores, os Daomeanos, têm sobre a testa uma cicatriz em forma de 7, enquanto os segun-
dos têm nas faces três cicatrizes transversais”). Verneau, Les races humaines, p. 253. A par-
tir destas duas citações, podemos supor que os “cara queimadas” procurassem se distinguir
dos daomeanos por pertencerem a outro setor dos fons, rival ou inimigo do Daomé, ou por
ser tal grupo equivalente aos Gège de Porto Novo a que se refere Verneau, também de ori-
gem fon, mas classificados simplesmente como daomeanos pelo referido autor. Pelo menos
a mesma cicatriz na fronte permite que aventemos esta hipótese.
120 Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 138.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 601


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Como o interesse deste trabalho é o de analisar os etnônimos que não


correspondem à auto-adscrição africana, deixaremos de lado os haussás,
grupo étnico de grande expressão na Bahia, especialmente no século XIX,
mas sobre o qual nunca pairaram dúvidas quanto à origem. Os haussás
sempre foram reconhecidos como tais, quer pela rede do tráfico, quer pelos
diversos grupos de africanos e de brasileiros com os quais mantiveram
contato. Em princípio, isto se devia ao próprio reconhecimento, na África,
da procedência daqueles africanos, tendo em vista a importância de seu
comércio e sua língua num vasto território, do qual faziam parte os rei-
nos negreiros da baía do Benim, através dos quais os haussás chegaram
ao Brasil. O Islã era também um elemento decisivo para sua adscrição,
mormente pelos signos externos que tornavam possível sua identificação
pelos demais grupos, mesmo na Bahia.

Conclusão
É hora de darmos um balanço das principais constatações que
pretendíamos fazer quanto as denominações aplicadas à origem dos
africanos na Bahia, no período que antecedeu à época em que se situa
nosso estudo.
Desde o início da implantação do comércio de escravos no Brasil,
os registros sobre a procedência dos africanos estiveram sujeitos à
terminologia utilizada na rede do tráfico português, constituída não
apenas pelos administradores e escrivães das feitorias, encarregados
desta função, mas também por populações africanas e mestiças que se
dedicavam às diferentes tarefas de captura, manutenção, vigilância e
transporte dos cativos. Deste modo, os termos que foram utilizados para
designar as origens dos escravos provinham tanto do repertório das
denominações empregadas pelos europeus, quanto dos termos utilizados
pelas populações locais para classificar os indivíduos que pertenciam
a grupos que lhes eram conhecidos. Daí encontrarmos nos registros
designações de conteúdo extremamente generalizante, como “negro
da Guiné” e “Costa da Mina”, ou apenas simples referências aos portos
de embarque, como “Luanda” e “Cabinda”, todos estes evidentemente
extraídos do repertório europeu, ao lado de etnônimos locais, utilizados
pelas populações, direta ou indiretamente ligadas aos traficantes, para
nominar os cativos aprisionados nas vizinhanças, como vimos no exemplo
dos nagôs capturados pelos fons.
Por outro lado, é preciso não esquecer do que foi acumulado como
conhecimento “científico”, construído a partir destes “nomes de nação”
impostos de maneira tão aleatória. A literatura histórica e sociológica sobre
o negro no Brasil elaborou alguns conceitos acerca das características
culturais e da índole de alguns povos africanos que, malgrado carecerem
de fundamentos, encontram-se hoje amplamente disseminados. Falamos

602 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

especificamente do conteúdo evolucionista que se depreende dos argu-


mentos a favor da superioridade dos povos “sudaneses” em relação aos
“bantos” e da classificação da língua falada pelos jejes como pertencente
ao grupo ewé.
E, para finalizar, a imprecisão terminológica herdada do tráfico
também abriu caminho a outros equívocos, como a atribuição a todos os
minas de uma afiliação akan, mesmo que, à guisa de justificar a ausência
de seus vestígios culturais na Bahia, fosse preciso apelar para o passe de
mágica da “aculturação”.

QUEM ERAM OS “NEGROS DA GUINÉ”? A ORIGEM DOS AFRICANOS NA BAHIA 603


CAPITULO 19

nAção AfriCAnA no brAsil esCrAvistA:


probleMAs teÓriCos e MetodolÓGiCos 1
Renato da Silveira2

Sujeito muito lógico,


o senhor sabe: cega qualquer nó.
Guimarães Rosa

Até aonde minha vista alcança, a primeira tentativa mais sistema-


tizada de abordagem do tema da “nação” africana na sociedade colonial
brasileira foi realizada por Roger Bastide no livro Les Amériques noires,
publicado na França em 1967, com primeira edição brasileira em 1974.
No capítulo introdutório, “Les données de base”, Bastide descortinaria
o vasto panorama dos contextos coloniais americanos em movimento,
exibindo a artilharia conceitual com a qual iria enfrentar a gigantesca
tarefa de decifrar as Américas negras. Um quarto de século depois,
agindo no ambiente universitário norte-americano e desconhecendo as
pesquisas de Bastide, John Thornton publicaria Africa and Africans in the

1 Este ensaio é um capítulo do livro, ainda inédito, Irmandade negra e poder político no Bra-
sil escravista: história e teoria, adaptado para esta publicação. Agradeço calorosamente
aos colegas da linha de pesquisa Escravidão e invenção da liberdade, do Programa de Pós-
Graduação em História, os quais fizeram várias observações críticas úteis e indicaram bi-
bliografias pertinentes que foram incorporadas à presente versão.
2 Roger Bastide, Les Amériques noires: les civilisations africaines dans le nouveau mon-
de, Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1973 (edição brasileira: As Américas negras: as civi-
lizações africanas no Novo Mundo, São Paulo: Difel/Edusp, 1974); e John Thornton, edi-
ção brasileira A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800, Rio de
Janeiro: Campus/ Elsevier, [1992] 2004. Ah! já ia me esquecendo: a epígrafe de Guimarães
Rosa é endereçada a mim próprio.

605
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Making of the Atlantic World, no qual as nações afro-americanas seriam


interpretadas de modo igualmente inovador, com idênticas conclusões.
Foram precisos mais alguns anos para que novas abordagens do tema
começassem a aparecer na imprensa acadêmica e no mercado editorial
brasileiro: a primeira delas, pelo que pude apurar, foi o artigo de Maria Inês
Côrtes de Oliveira “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades
africanas na Bahia do século XIX”, publicado em 1995, seguido pelo ensaio
“Jeje: repensando nações e transnacionalismo”, de J. Lorand Matory, publi-
cado em 1999; tivemos em seguida um artigo de Mary Karasch intitulado
“‘Minha nação’: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, o verbete
Nação, do Dicionário do Brasil colonial, de Ronaldo Vainfas, e o capítulo
3, “Nações e grupos de procedência”, do livro Devotos da cor, de Mariza de
Carvalho Soares, todos publicados no ano de 2000; logo seguidos de “Nação,
etnia e composição de identidades”, e “Novo Mundo, novas identidades”,
partes do capítulo III do livro Reis negros no Brasil escravista, de Marina
de Mello e Souza, publicado em 2002. Mais recentemente, em 2005, a obra
coletiva assinada por Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares
e Flávio dos Santos Gomes, No labirinto das nações, bem como Luis Nicolau
Parés com “Nações ‘africanas’ e denominações ‘metaétnicas’”, abertura do
primeiro capítulo do seu livro A formação do candomblé, publicado no ano
seguinte, trariam muitas contribuições ao debate.3
Esses trabalhos tiveram o mérito de recolocar em pauta esta importante
questão, lançaram mão de uma grande variedade de fontes, ampliaram
consideravelmente a base de dados empíricos, experimentaram novas teo-
rias... Por causa deles, hoje sabemos muito mais sobre nosso passado, mas,

3 J. Lorand Matory, “Jeje: repensando nações e transnacionalismos”, Mana, vol. 5, no. 1,


(1999), pp. 57-80; Mary Karasch, “‘Minha nação’: identidades escravas no fim do Brasil co-
lonial”, in Maria Beatriz Nizza da Silva (org.), Brasil: colonização e escravidão (Rio de Ja-
neiro: Nova Fronteira, 2000), pp. 127-141; Ronaldo Vainfas (org.), Dicionário do Brasil co-
lonial 1500-1808, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000; Mariza de Carvalho Soares, De-
votos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Bra-
sil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo, Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002; Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio dos Santos Gomes, No
labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX, Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2005; Luis Nicolau Parés, A formação do candomblé: história e ritual da
nação jeje na Bahia, Campinas: Editora da Unicamp, 2006. No importante artigo “‘Malun-
gu, ngoma vem! ’: África coberta e descoberta do Brasil”, Revista USP, no. 12, (1991-1992),
pp. 48-73, Robert Slenes forjou a expressão “protonação bantu no Brasil”, porém, como fi-
cará mais claro na sequência, não tratou especificamente da formação das nações africa-
nas no Brasil escravista, ocupando-se principalmente do aspecto linguístico da questão;
será, portanto, levado em consideração quando abordado um subtema do presente artigo,
a formação das línguas gerais africanas no Brasil colonial. De qualquer maneira, não pre-
tendo oferecer uma lista exaustiva dos autores que trataram do tema, apenas aqueles que
exerceram maior influência nos estudos acadêmicos brasileiros e cujos textos são mais
característicos dos enfoques atuais.

606 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

no momento crucial da interpretação deste rico material, sob influência


das problemáticas dominantes na Academia, seus autores parecem ter
enveredado pelas trilhas mais evidentes, negligenciando ou deixando de
lado o legado de Bastide e Thornton, como teremos o prazer de verificar em
seguida. O presente texto é um reaproveitamento dos seus bons resultados,
porém voltando à inspiração dos fundadores da problemática.
Bastide começa argumentando que as denominações étnicas ado-
tadas nos registros de procedência e inventários escravistas, por mais
interessantes que possam ser para o historiador, nenhum valor têm para
o etnólogo, porquanto categorias excessivamente gerais, pouco atentas
aos fatos culturais. Esses elencos teriam sido feitos apressadamente,
registrando apenas o necessário para a administração dos negócios dos
traficantes. Porém a movimentação humana foi intensa e contínua, os
africanos foram importados aos milhões, sem se saber ao certo qual a
sua origem étnica e aqui foram deixando suas marcas, permanente-
mente renovadas, antigas tradições que desapareceram com o tempo,
ou tradições mais recentes que permaneceram até os nossos dias. Para
superar o problema da identificação dessas “sobrevivências”, a tarefa
metodológica correta, anunciava Bastide logo no início do seu livro,
“consistiria não em partir da África para ver o que sobrou na América,
mas estudar as culturas afro-americanas existentes, para, a partir delas,
recuar progressivamente até a África”.
Entrando no mérito da questão, Bastide logo ensaiaria uma interpretação
global do fenômeno:
Sem dúvida, no princípio os escravos urbanos e os negros
livres eram divididos em ‘nações’, com seus Reis e seus
Governadores. Trata-se de uma política deliberada da parte
dos representantes do poder, para evitar entre os escravos a
formação de uma consciência de classe explorada (segundo
a velha fórmula, dividir para reinar) [...] como também de um
processo espontâneo de associação, particularmente entre
os negros artesãos, para reencontrar-se entre compatriotas,
celebrar conjuntamente suas festas costumeiras e
continuar, dissimulando-as sob uma máscara católica, suas
tradições religiosas.4

Bastide informa em seguida que esse fenômeno se deu em toda a Amé-


rica escravista, desde a do Norte até a Argentina, passando por Cuba, pelo
Haiti, pelo Peru e pelo Uruguai. Essas nações teriam sido “admiravelmente
bem organizadas”, eram proprietárias de imóveis onde edificavam suas
confrarias, tinham suas próprias orquestras que desfilavam soberbamente
nos dias de festa. “No Brasil – continua o autor – a divisão em nações

4 Bastide, Les Amériques noires, p. 15. A edição brasileira só chegou às minhas mãos quando
este artigo já estava em fase de revisão, por isso mantive minha própria tradução.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 607


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

podia ser encontrada em vários níveis institucionais”: no Exército, onde


os soldados de cor formavam seus batalhões separados, nas confrarias
católicas e, enfim, “nas associações de festas, de assistência mútua, com
suas casas nas periferias das cidades, onde se escondiam as cerimônias
religiosas propriamente africanas e onde se preparavam as revoltas”.
Entretanto, a partir do momento em que o tráfico foi suprimido –
prossegue – essas nações desapareceram enquanto organizações étnicas,
mas se preservaram como tradições culturais, sob a forma de santerías,
candomblés etc. Assim, na medida em que as misturas étnicas se foram
tornando a regra, a civilização foi extraída da etnia portadora. As “nações”
viraram pura cultura sem base étnica e começaram a enfrentar-se umas
às outras, provocando o fenômeno da dominação de tal ou tal cultura,
a depender da região, iorubá na Bahia e em Cuba, daomé no Haiti e no
Maranhão etc. Neste sentido Bastide propõe o tema da “dupla diáspora”:
“a dos traços culturais africanos”, que se expandiram além das etnias,
na medida em que os próprios brancos passaram a ser portadores dessas
tradições; e “a dos homens de cor”, que perderam suas heranças africanas
e foram assimilados pelas civilizações envolventes.
Quatro décadas depois a interpretação de Bastide, embora baseada
em rica bibliografia americanista, parece ter envelhecido em alguns
aspectos: ressente-se da escassez de dados empíricos, ainda usa certos
termos comprometidos com o eurocentrismo, mantém um certo linea-
rismo em algumas análises do movimento histórico, atribui um caráter
“deliberado” às iniciativas do colonizador e um caráter “espontâneo” às
iniciativas do colonizado, porém nos legou importantes contribuições
teórico-metodológicas: influenciado pelo materialismo histórico, rejeitou
os predominantes modelos estáticos de sociedade para adotar um núcleo
de concepções culturais e históricas processualistas, diríamos hoje, ao
colocar o foco na diversidade de interesses e nas tomadas de posição
contraditórias dos agentes envolvidos no movimento da realidade, ao
romper com a concepção mecanicista da historiografia conservadora,
que via na nação africana apenas o instrumento de dominação de uma
massa apática, ao conceber uma cultura diaspórica africana que, embora
mantendo seus fundamentos, renovadamente se rearticulava; legou-nos
em seguida o fundamental conceito de nação africana como organização
da base social colonial, instituição urbana, complexa, tentacular, flexível,
plurifuncional, cobrindo toda a imensidão das Américas escravistas. A
nação africana passava desde então a constituir uma problemática própria,
distinta do “complexo do engenho” ou da “casa-grande & senzala”, tendo
Bastide como Pai Fundador.5

5 Este verdadeiro monumento que é Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre, publicado


em 1936, apresenta um riquíssimo material de arquivo para se pensar a nação africana e

608 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Lamentavelmente, sua importante contribuição foi ignorada pela


geração seguinte de pesquisadores brasileiros que se debruçou sobre o
problema, por quem algumas vezes ele foi tratado com desdém, a influência
das problemáticas prestigiosas do momento terminando por obstruir o
aproveitamento do que ele havia trazido de melhor.
Thornton, 1992: surge uma abordagem da constituição das culturas
afro-americanas baseada no trabalho fundador dos antropólogos Mintz
& Price, então dominante na historiografia norte-americana, porém com
uma postura crítica, corrigindo certas generalizações apressadas e refun-
dando toda a problemática em bases empíricas, teóricas e bibliográficas
muito mais consistentes.
O problema da nação colonial em Africa and Africans vem à tona
justamente quando Thornton questiona o postulado de Mintz & Price, de
que o tráfico teria sido um processo de dispersão de populações, tendo os
africanos das colônias de reconstruir sua cultura nas piores condições.
Thornton, afinado com as teses que Bastide havia desenvolvido desde a
década de 1950, demonstra que, muito pelo contrário, houve um meio
social propício ao compartilhamento de costumes africanos no ambiente
americano, o efeito destrutivo sobre sua cultura tendo sido menor do que
o apregoado; defende então que a concentração de escravos da mesma
etnia em uma área colonial, ao lado dos casamentos e “da associação
natural, com base na linguagem comum e na herança”, facilitou o de-
senvolvimento das nações africanas nas Américas, as quais se tornaram

continuação 4

a irmandade negra, porém é muito confuso no momento da interpretação. Será analisado


mais detidamente em outro capítulo do livro de onde provém o presente artigo.
A preocupação de Joseph C. Miller, num texto divulgado em 1996, em excluir o concei-
to de instituição de uma teoria processualista da história é precipitada, pois ele a com-
preende necessariamente como uma organização social estável, resistente às mudan-
ças, aos desafios e às inovações, o que corresponde apenas à concepção funcionalista
de instituição, não justificando, portanto, a exclusão do conceito das interpretações
antropológicas e historiográficas em geral. Cf. “O Atlântico escravista: açúcar, escra-
vos e engenhos”, nesta coletânea. Apesar de a importante contribuição teórico-meto-
dológica de Mintz & Price ter sido prejudicada pelo desconhecimento sistemático do
aspecto urbano do escravismo colonial e suas generalizações, só levando em conside-
ração a plantation e a comunidade quilombola, eles trouxeram uma concepção de ins-
tituição mais flexível e generalizável: “Definimos ‘instituição’ como qualquer intera-
ção social regular ou ordenada que adquira um caráter normativo e, por conseguinte,
possa ser empregada para atender a necessidades recorrentes”. Contudo, exatamente
por ignorarem as realidades urbanas, os autores não levaram em consideração a nação
africana como instituição da sociedade colonial, não a incluindo no rol das criadas pe-
los escravos, nem no “ideal institucional dos senhores europeus”. Cf. Sidney W. Mintz e
Richard Price, O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropoló-
gica, Rio de Janeiro: Pallas, 2003, pp. 23-24 e 43 e segs. Misturei a tradução de Vera Ri-
beiro com a citação que Luis Nicolau Parés faz da mesma definição, que me parece em
certos pontos mais adequada e foi a que conheci primeiro. Cf. A formação do candom-
blé, p. 104.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 609


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

centros importantes de manutenção, transmissão e desenvolvimento


das culturas africanas, com dois detalhes que nos interessam bem de
perto: a descoberta de nações africanas constituídas no Caribe, enquanto
“organizações formais” desde meados do século XVI, e particularmente
fortes “nas áreas urbanas”.
Baseado em crônicas jesuíticas, documentos cartoriais e farta biblio-
grafia, Thornton afirma então que as nações “não eram apenas assembleias
informais, pois tinham capitoli ou ‘capítulos’, como se formassem uma
irmandade, como era comum nos países latinos”, ou ainda com outra
formulação, mais prudente: “Como existe pouca informação nas fontes
do século XVII, parece que as instituições tinham uma certa organização
formal, em que os festivais anuais, o reconhecimento de dias santos, a
eleição de reis e rainhas, e diversas ajudas mútuas (como os funerais)
prevaleciam.” Afirma ainda que tais organizações estavam instituídas em
uma área continental, pois foram encontradas em atividade na América do
Norte, no Caribe, no México, na Colômbia e no Brasil, tanto nas colônias
espanholas e portuguesas, como nas inglesas, francesas e dinamarquesas.
Entrando no detalhe, esclarece ainda que essas “congregações nacionais”,
além de elegerem anualmente reis e rainhas, organizavam outras eleições,
para capitães e funcionários, e que certamente “preexistiram às irman-
dades laicas mais conhecidas”, as quais com o tempo teriam assumido o
papel de líderes formais das nações, mesmo que a composição dos seus
membros não coincidisse exatamente. Thornton também cita o Brasil
colonial, particularmente Pernambuco, onde as eleições de reis e rainhas
eram realizadas nas irmandades do Rosário.6
Pelo fato de Africa and Africans ser um trabalho de síntese, com inten-
ção panorâmica, falta-lhe por vezes uma contextualização mais detalhada
que o especialista poderia exigir. Por exemplo, não estou convencido de
que as irmandades tenham assumido a liderança formal das nações, ou que
estas últimas tenham precedido aquelas em toda parte, o movimento não
parece ter sido tão linear, uma vez que irmandades reunindo indígenas e
“negros da Guiné” foram fundadas no Brasil desde 1552, segundo relatórios
jesuíticos.7 Porém o importante mesmo é que o autor esclarece de uma vez
por todas que nações e irmandades eram instituições distintas, embora
relacionadas, que as nações eram organizações urbanas, com corpos de
funcionários particulares e funções sociais variadas.
As interpretações de Bastide e Thornton convergem, portanto, para a
definição de nação africana como uma organização de base da sociedade

6 Thornton, A África e os africanos, pp. 274-278 e 412-430.


7 Cf. a carta de Antonio Pires, escrita em Pernambuco em 5 de junho de 1552, in Azpilcueta
Navarro e outros, Cartas jesuíticas 2 – Cartas avulsas (Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
Edusp, 1988), p. 149.

610 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

colonial, importantíssima contribuição teórica negligenciada ou ignorada


pelos pesquisadores que trabalharam sobre o tema em seguida. Vamos
verificar, nos textos publicados entre 1995 e 2002, como se deu este
desvio de rumo.
Na virada de 1995 para 1996, Maria Inês Côrtes de Oliveira traria
uma importante contribuição à nossa problemática, embora desviando-se
parcialmente da conceituação traçada pelos fundadores. Em um texto
baseado em farto material empírico, coletado em testamentos de afri-
canos, censos, títulos de residência, registros de batismo e documentos
policiais, a autora chega muito perto da vida cotidiana dos escravos e dos
libertos do mundo urbano colonial, tomando posição como interlocutora
indispensável ao aprofundamento da questão.
Sua narrativa começa com algo que se tornou quase que obrigatório
nesses estudos, apresentado como o “argumento central” da sua tese de
doutorado, defendida em 1992 na Universidade de Paris IV:
A reunião dos escravos e dos libertos de origem africana
em torno de grupos constituídos com base nos “laços de
nação” foi sem dúvida um dos traços característicos da
organização de suas comunidades em toda a América. Não
obstante, essas “nações” africanas, tal como ficaram sendo
conhecidas no Novo Mundo, não guardavam, nem no nome
nem em sua composição social, uma correlação com as
formas de autoadscrição correntes na África. Com relação
à Bahia, o que pudemos constatar foi que alguns “nomes
de nação”, atribuídos aos africanos no circuito do tráfico
negreiro, terminaram por ser assumidos por aqueles como
verdadeiros etnônimos no processo de organização de suas
comunidades.8

A realidade observada é, portanto, a cidade da Bahia e regiões cir-


cunvizinhas, ao longo do século XIX. O foco vai para a reconstrução das
comunidades afro-baianas, suas relações familiares, espaciais e rituais,
demonstrando a autora, com riqueza de detalhes, a complexidade do
ambiente urbano do escravismo colonial e confirmando a necessidade de
uma caracterização diferenciada da nação africana nesse contexto. Tal
como Bastide, Oliveira reserva aos africanos um papel ativo no processo
histórico ao afirmar que, mesmo se o período de vigência do tráfico ne-
greiro foi de renovação constante da classificação imposta, esta sempre
foi seguida de “uma etapa importante” de adequação entre os critérios
estabelecidos e as formas de autodenominação dos diversos grupos. Essas
nomenclaturas teriam com o tempo ganho sentidos africanos próprios
no embate da convivência social, tornando-se paulatinamente “formas
autoadscritivas introjetadas”.

8 Oliveira, “Viver e morrer no meio dos seus”, p. 175.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 611


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Algumas nações mais numerosas, continua Oliveira, por serem


conhecidas de boa parte da população, puderam manter as formas de
auto-identificação usadas na África, mantendo-as como categorias ope-
racionais no novo contexto. Em alguns casos, como o dos nagôs, o novo
apelido genérico não eclipsou, contudo, as particularidades étnicas de
origem, mantendo-se na diáspora os etnônimos dos diversos subgrupos,
entre outros, ijexá, ijebu, oyó e keto. Enquanto os haussás puderam manter
seu nome original, algumas denominações de uso mais restrito terminaram
caindo em desuso, sendo englobadas por categorias mais vastas, como
angola, congo, benguela e cabinda. Sob a égide dessas nomenclaturas é que
teriam sido feitas diversas alianças, religiosas, matrimoniais, residenciais
e comerciais, redefinindo as relações que os africanos mantinham entre si
e afirmando-os diante dos demais segmentos, brancos, mestiços, crioulos
e africanos de outras nações.
Entrando no detalhe, Oliveira demonstra então que várias famílias
africanas foram reconstituídas na terra do cativeiro, estimando, sobre
uma amostragem de centenas de testamentos de africanos libertos, que
11% da população escrava urbana conseguiu reconstituir uma família
africana:
No meio dos seus, cada africano continuava a ser uma
pessoa detentora de um nome que continuava fazendo
sentido para o grupo, pertencente a uma família africana,
possuidor de uma história que incluía sua captura e
sua condução até a Bahia, onde podia ser identificado
pelos demais como alguém que veio de tal cidade e era
filho, irmão, companheiro ou pai de outros membros da
comunidade.9

Famílias reconstituídas ou recomeçadas, pois a autora também


chama a atenção para a ampliação das relações sociais pela construção
de novos vínculos, a identidade de nação selecionando parceiros não
só de casamento, como também de trabalho e moradia. Oliveira aponta
ainda diversos parentescos por afinidade, afetivos e espirituais, além
do parentesco básico “de nação”: no âmbito da religiosidade africana, as
“famílias-de-santo” ou comunidades de terreiro de candomblé, organiza-
das por membros da mesma origem étnica e seus aliados; no âmbito da
religiosidade europeia, uma relação mais individualizada, o compadrio,
que ajudava “a fortalecer os laços que os ligavam aos membros de sua
comunidade e tecer uma rede de proteção e apoio para os seus filhos”. As
nações africanas teriam contado também com a participação dos crioulos,
apesar de considerados inimigos figadais dos africanos pela historiografia
afro-brasileira, os quais “participavam da comunidade dos seus pais”; essas

9 Idem, p. 177.

612 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

nações teriam mesmo articulado acordos com elementos de outros grupos


étnicos próximos, com os pardos e até com os mais distantes brancos.10
Acrescentemos que nessa época a cidade da Bahia já era toda ela
cercada de bairros africanos, chamados então de arraiais, onde se de-
senvolvia uma rica vida comunitária, relativamente autônoma, tendo
sempre instalados no seu âmbito um ou mais terreiros de candomblé, que
preenchiam funções as mais variadas, espirituais, políticas, assistenciais,
lúdicas, didáticas e terapêuticas. Por exemplo, na Quinta das Beatas, atual
bairro de Cosme de Farias, a Polícia encontrou em uma casa de candomblé
uma espécie de posto médico alternativo bem organizado e asseado, com
seis leitos e um bom estoque de ervas medicinais.
A Quinta das Beatas era uma colina populosa existente na periferia
norte de Salvador, localidade de antigas tradições africanas, onde funcionara
um cemitério angolano, nas proximidades do qual estava organizado um
culto ao inkisse Tempo; mais tarde, em meados do século XIX, ali também
foi fundado o culto iorubano de Orixá Okô, assentado em um iroko, uma
das duas árvores sagradas plantadas na praça central. Segundo as tradi-
ções orais do bairro, a Quinta das Beatas “era a séde dos africanos”. Numa
baixada adjacente, durante várias décadas foi realizado o popular festival
de Babá Bonokô, cujo templo, o Sanabá, era uma casa grande, construída
numa área de 500 m2, totalmente cercada por um bambuzal, onde também
estava assentada uma divindade étnica chamada Dankô. Este culto era
organizado pelos tapás, vizinhos africanos dos iorubás, no local onde hoje
se encontra, justamente, a Avenida Bonocô. Ao norte, a colina vizinha ainda
hoje abriga o célebre Candomblé do Alaketo, fundado nos primeiros anos do
século XIX por uma descendente da linhagem real Arô, de Ketu, escravizada
e alforriada na Bahia, onde reconstituiu sua família.11
Até aqui estamos de acordo – eu e Oliveira. O problema começa quando
a nação, justamente vista como importante elemento de identificação, de
agregação na vida social, jamais é considerada parte da estrutura oficial
do regime escravista. Ao deixar de lado a contribuição dos fundadores da
problemática, Oliveira volta-se para Fredrik Barth, considerando que a
definição de grupo-étnico-e-suas-fronteiras era perfeitamente adaptável

10 Ver também a respeito do caráter ativo dos africanos na reconstituição da família escrava,
entre outros: Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade co-
lonial, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, particularmente o cap. 14; Katia de Queirós
Mattoso, Família e sociedade na Bahia do século XIX, São Paulo: Corrupio, 1988, pp. 111-
117; e Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da
família escrava – Brasil sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
11 Para maiores detalhes, cf. Renato da Silveira, O candomblé da Barroquinha: processo de
constituição do primeiro terreiro baiano de keto, Salvador: Maianga, 2006, particular-
mente o cap. 3, pp. 241-252, e o cap. 10. Ver também “Sobre a fundação do Terreiro do Ala-
keto”, Afro-Ásia, no. 29-30 (2003), pp. 345-379.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 613


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

à nação africana recriada na América, observando-se a mesma demarcação


permanente de limites, as mesmas relações de oposição e de contraste, a
mesma relação flexível com o passado. Porém tal leitura de Barth é uma
boa referência até certo ponto, porque não permite considerar a posição
dessa organização certamente dinâmica, a nação, no arcabouço político
da sociedade colonial.
Oliveira leu Bastide, cita Les Amériques noires a respeito dos “cabildos
e de outras instituições organizadas com base nas nações”, mas não se dá
conta de que a nação, ela própria, era uma instituição específica. Dá como
certo que os nomes de nação teriam sido “compulsoriamente empresta-
dos” e responderiam à necessidade do grupo dominante de discriminar
o africano duplamente, como negro e como estrangeiro, porém pondera
que posteriormente os africanos também tiraram vantagem da situação,
ao recuar para a marginalidade: “Talvez o fato mesmo de os novos nomes
de ‘nação’ não equivalerem aos etnônimos africanos tivesse contribuído
para que os primeiros fossem aceitos como ponto de partida para o novo
processo de identificação”, a documentação disponível confirmando o
interesse das comunidades africanas no fortalecimento dos “laços de
nação”, ou de sua reconstituição a partir de elementos identitários co-
muns, procurando “de preferência viver entre os seus a integrarem-se
à sociedade baiana, que por seu turno nunca lhes facilitara esta tarefa,
protegida pelos preconceitos que alimentavam a hostilidade em relação
àqueles ‘estrangeiros’”. 12 Ou seja, o texto de Oliveira afiança algumas
das interpretações que iriam virar moeda corrente nas problemáticas
subsequentes, adversárias declaradas da problemática inaugurada por
Bastide: basicamente uma concepção linear do movimento histórico, que
ignora a estruturação dos poderes no interior da sociedade colonial e a
natureza das denominações cívicas assumidas em tal processo de cons-
tituição. Assim teríamos, na origem, uma manipulação que prejudicaria
as identidades originais, nomes de nação impostos, porque não seriam
etnônimos propriamente ditos; só posteriormente, no processo de organi-
zação das novas comunidades, essas denominações teriam sido assumidas
pelos africanos como verdadeiras. Esta gênese teria sido seguida de uma
“etapa” de adaptação e de um depois, quando os africanos teriam criado,
“por sobre as perdas, novos meios de organização coletiva” a serviço de
interesses próprios, porém à margem da sociedade.
Ora, os nomes de nação não precisavam ser etnicamente “verdadei-
ros”, podiam até sê-lo, como no caso da honrosa exceção dos haussás, mas
mesmo sua nação devia contar com aliados e agregados alienígenas; isto
é, a nação, pela sua composição, era uma mistura de grupos e subgrupos

12 Maria Inês Côrtes Oliveira, “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades afri-
canas na Bahia do século XIX”, Revista USP, no. 28 (1995-1996), pp. 174-193, cit. p. 176.

614 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

étnicos, com um ou mais grupos dominantes, isso não causava nenhum


espanto, era a regra. Nagô na África era a designação dos iorubás do oeste,
na Bahia era nome-de-nação, designando todos os iorubás; ijexá, keto,
além de dezenas de outros, eram etnônimos de subgrupos que a nação
nagô baiana englobava. Assim, o desvio de rumo está em considerar a
nação como uma etnia “pretensa”, inautêntica, causadora de uma “perda”,
embora os dados disponíveis indiquem que ela era uma instituição de outra
natureza, mais especializada, cuja função principal era político-eleitoral,
um misto de poder executivo subalterno e partido antigo que só impres-
sionisticamente, mas não conceitualmente, poderia ser confundido com
um grupo étnico.
Desse equívoco decorre o postulado da incompatibilidade entre o for-
talecimento da nação e a integração social, devido ao caráter impermeável
da sociedade baiana “protegida pelos preconceitos”, e a ideia correlata
de que foi a hostilidade escravista quem criou a nação, o fortalecimento
desta só podendo consequentemente dar-se fora do sistema. Claro, os
preconceitos estavam sempre presentes, agindo, discriminando, inclusive
juridicamente; os privilégios eram protegidos pelos preconceitos, porém a
segregação era o modo da integração no Antigo Regime, a nação africana
era a organização política atribuída aos negros-estrangeiros, como cidadãos
da última classe, ali eles tinham o direito de eleger seus representantes,
de delegar e assumir poderes, naturalmente dentro dos limites do seu
“estado”. Se a dominação fosse um simples truque, não teria muitas chances
de durar, para obter estabilidade precisaria existir positivamente, pela
construção de um sistema com suas estruturas e suas regras de funciona-
mento, ao qual os africanos, como classe oprimida, tinham de se submeter.
Se nos descartarmos da concepção mecanicista clássica, a nação
como um objeto teórico simplório, instrumento usado oportunisticamente
pelos poderosos de plantão, poderemos mais fecundamente considerá-la
um espaço oficial de enquadramento dos comportamentos coletivos,
mas também de atuação, reivindicação e contestação. A história tem
demonstrado que todo grupo social constituído, mesmo oprimido, pode
adquirir uma dinâmica própria, relativamente autônoma, em todo caso
seu movimento jamais é mecânico, totalmente previsível. Nesta perspec-
tiva, do ponto de vista do africano como agente, quanto mais integrada
a nação, mais visível, dotada de maior poder de barganha. Minorias ét-
nicas heterogêneas agregadas não fragilizavam a nação, pelo contrário,
tornavam na mais numerosa, mais forte, propiciando, inclusive, que, nas
redes sociais estabelecidas, elas pudessem tomar as mais contraditórias
iniciativas, tramar tanto alianças com elementos da elite social branca
quanto conspirações armadas para derrubar o regime.
O objetivo dos colonialistas promotores da nação africana era a esta-
bilidade da dominação, por isso a lógica não era de marginalização, era de
integração. O moderado rei Teopompo de Esparta – conta-nos Aristóteles

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 615


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

– à sua ambiciosa mulher, que o recriminara por entregar uma realeza


menos poderosa ao herdeiro, retrucou: “Porém melhor, porque a deixo mais
duradoura”.13 Esta era uma das máximas fundamentais do pensamento
político moderado no Antigo Regime: os sistemas mais sustentáveis são
aqueles que abdicam de certos aspectos do seu poder, abrindo espaços
de representatividade, mesmo às ordens inferiores e discriminadas da
sociedade. No Brasil a hostilidade seguramente existia, mas vinha das
correntes colonialistas tirânicas, seculares e eclesiásticas, partidárias
do regime disciplinar duro e da política social excludente, adversárias da
integração, como veremos com mais detalhes na sequência. Não houve,
portanto, uma “origem” manipulatória, passando a nação a defender in-
teresses africanos em uma “etapa” posterior, seria mais preciso dizer que
o termo começou sendo usado entre nós como denominação de origem,
porém enquanto instituição surgiu como instância de representação,
criada desde o início para defender interesses particulares.
Nesses termos, penso que a opção teórico-metodológica mais fecunda
seria voltar à inspiração de Bastide e de Thornton, não ignorando o antigo
caráter polissêmico do vocábulo nação, mas enfatizando o seu sentido
fundamental de elemento estrutural específico das diásporas, instituição
política urbana da sociedade colonial com características próprias, do
contrário o foco termina deslocando-se para o equívoco linguístico, içado
a causa determinante.
Enquanto o texto de Inês Oliveira é rico de informações e pru-
dente nas interpretações, o ensaio de J. Lorand Matory, “Jeje: repen-
sando nações e transnacionalismos”, é pobre de informações e afoito
nas interpretações. Matory começa entrando na polêmica das últimas
décadas sobre a oposição entre nacionalidade e globalização, com o
objetivo de desconstruir as teses vitoriosas. Como exemplo de valor
pretensamente comprobatório o autor vem armado com sua versão da
história atlântica, particularmente a afro-brasileira. É que na década de
1970, quando os movimentos sociais étnicos voltaram à ribalta, muitos
autores os consideraram um fenômeno novo que prognosticava a morte
do Estado-nação. Matory rejeita esta “excepcionalidade pós-colonial”
ao chamar a atenção para a intervenção dos africanos desde o final do
século XVIII na constituição das “nações territoriais” modernas, quer
demonstrar que a formação dos Estados nacionais não foi tão homogê-
nea quanto se pretende, que as “nações supraterritoriais” da diáspora
africana emergiram em um movimento simultâneo, tendo havido um
diálogo “mutuamente transformativo” entre elas. 14

13 Aristóteles, A política, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 245.


14 O uso da expressão “nação territorial” para designar o Estado-nação moderno é impre-
ciso. Muitas das atuais minorias nacionais, absorvidas pelo processo de constituição do

616 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Em defesa desta nobre causa o autor toma, entretanto, certas liberdades


investigativas e conceituais dignas de nota. Por exemplo, permite-se igno-
rar que, no contexto escravista, a tão estratégica palavra “nação” não tinha
exatamente seu significado atual, que o termo era mais flexível e também
designava outras realidades correlatas. Vejamos como ele, logo no princípio
do seu artigo, coloca o problema:
Desde muitos séculos, “nação” e seus cognatos nas
línguas europeias têm o sentido de um grupo de pessoas
ligadas nitidamente pela ascendência, língua ou história
compartilhadas a ponto de formarem um povo distinto.
O que nos interessa especificamente neste artigo é a
emergência em paralelo de dois usos rivais do termo, os dois
coincidindo com a colonização europeia das Américas.15

Matory reconhece que “a história do termo ‘nação’ não começou com


o tráfico de escravos nem sequer com a formação da nação territorial”,
mas não suspeita que um dos significados antigos tinha tudo a ver com a
colonização do Brasil, pela simples razão de ter sido operacional naquele
contexto político, designando a organização das comunidades estrangei-
ras nas cidades latinas antigas, medievais, renascentistas e mesmo mais
recentes: a nação, como bem pressentiram Bastide e Thornton, como
instituição urbana do Antigo Regime, a qual, como vimos, não precisava
ser exclusivamente integrada por um “povo distinto”.16
É esta tremenda pista que é mais uma vez deixada de lado quando se
prefere a concepção mecanicista clássica, isto é, a nação como agrupamen-
to culturalmente descaracterizador, imposto para favorecer o esquema
comercial dos traficantes, o controle da massa trabalhadora escravizada,
a evangelização eclesiástica, posteriormente o propósito nacionalista das
burguesias americanas. Tudo bem, todos esses interesses estavam em jogo,
mas o que precisaria ser demonstrado é, primeiro, que o ingresso dos afri-
canos nessas organizações era forçado, e, segundo, que tal vida associativa
provocou uma descaracterização geral da cultura africana na América.
A tese da adesão forçada cai por terra quando nos aproximamos dessas
organizações flexíveis nas suas políticas de recrutamento e constatamos
que o sistema escravista jamais projetou algum dispositivo rigoroso de

continuação 14

Estado-nação, sempre estiveram estabelecidas em território próprio. Lembremos dos bre-


tões, normandos, alsacianos e provençais naquilo que se convencionou chamar de França;
e dos bascos, catalães, galegos e andaluzes naquilo que se convencionou chamar de Espa-
nha, só para citar alguns exemplos.
15 Matory, “Jeje: repensando nações”, p. 60.
16 Não se ocupa da nossa questão o capítulo de Pedro Cardim “‘Administração’ e ‘governo’:
uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime”, in Maria Fernanda Bicalho e Vera
Lúcia Amaral Ferlini (orgs.), Modos de governar: ideias e práticas políticas no império por-
tuguês, séculos XVI a XIX (São Paulo: Alameda, 2005), pp. 45-68.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 617


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admissão às nações africanas. Nunca foi necessário um “grande trabalho”


nem tampouco violência moral ou coação física direta para convencer
alguém a integrar uma delas, conhecemos hoje alguns casos de escravos
que assumiram identidades variadas, sem maiores problemas, pois no
contexto da nação urbana colonial o que contava realmente não era tanto a
às-vezes-vaga identidade africana de origem, era a nova identidade cívica
com a qual o escravo ou o liberto se comprometia, o objetivo visado era o
reconhecimento público: assumir uma condição em um rito de passagem,
um ato voluntário pelo qual doravante seria reconhecido pelos pares e
pelas autoridades superiores.
Bastide já havia tocado no tema da manipulação política quando
escreveu que os escravos foram deliberadamente divididos em nações
para prevenir a constituição de uma classe explorada, porém não as-
sociou tal manipulação à descaracterização cultural, preferiu seguir a
conhecida orientação do Conde dos Arcos, governador da Bahia colonial
no princípio do século XIX, que designava a preservação das diversas
tradições étnicas como sendo a boa receita de dominação, só isto, a seu
ver, poderia lembrar aos africanos que eram diferentes uns dos outros e
impedir a sua união contra o sistema. “Grandessíssimo e inevitável perigo
desde então assombrará e desolará o Brasil” – exclamava o permissivo
governador, diante da possibilidade de um desenraizamento cultural dos
“desgraçados”, promovido pela política da linha dura.17
Para não unilateralizar o caráter coercitivo da medida, Bastide fala
num “processo espontâneo de associação” da parte do africano, que teria
tido a oportunidade de celebrar suas festas costumeiras e não se dissolver
culturalmente em um ambiente urbano estranho e hostil. Isso significa
que o projeto do colonizador, para ser politicamente eficiente, foi cultu-
ralmente permissivo, mas a ênfase atribuída por Bastide à oposição entre
a deliberação dos opressores e a espontaneidade dos oprimidos omite
dois pontos fundamentais. Primeiro: devido ao caráter marcadamente
político-representativo da instituição, é lógico deduzir que o africano
também agiu deliberadamente, aderiu para eleger e ser eleito, para ser
representado e representar os seus diante das autoridades constituídas.
Segundo: o estabelecimento de nações africanas não foi uma iniciativa das
classes governantes como um todo, senão de uma corrente de pensamento
muito influente e bem caracterizada: a tese de uma deliberação da classe
opressora em peso é, portanto, imprecisa, seria necessário acrescentar
ao conceito a existência, no universo sociopolítico colonial português, de
programas diferenciados de política social e de enfrentamento constante
entre as duas facções.

17 Vários autores já citaram esta carta do Conde dos Arcos, a começar por Nina Rodrigues.
Ver, a respeito, Silveira, O candomblé da Barroquinha, pp. 256-257.

618 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

As nações foram favorecidas pela linha branda do colonialismo,


exemplificada pela ação do Conde dos Arcos, uma vez que as correntes
despóticas eram contra sua instituição e, quando elas já existiam, lutaram
pela sua destituição, exemplificada pela ação do Conde de Sabugosa, que
proibiu na Bahia a eleição dos seus representantes em 1729. Do ponto de
vista metodológico, apostar na complexidade do contexto sociopolítico leva
à compreensão de que grupos contraditórios eventualmente apresentam
facetas comuns e fecham contratos sociais. Para uma forte corrente da
ideologia colonialista portuguesa, a preservação de tradições africanas
era uma questão de vida ou morte, e isso abria aos africanos interessantes
espaços de manifestação. Em uma correlação de forças tão desfavorável,
para eles isso era uma conquista.
No Brasil, ao longo do século XVII uma sociedade estava sendo
constituída e, para ser duradoura, tinha de se legitimar ao organizar
toda a população em instituições representativas. Como tal sociedade
durou três séculos, ficamos na obrigação metodológica de considerá-la,
para os padrões da época, relativamente bem organizada. Este é, a meu
ver, o erro da interpretação clássica: a instituição da nação africana não
foi uma medida repressiva, seguiu uma política mais sutil ao tomar uma
iniciativa moderada que, é claro, visava a estabilidade da dominação,
porém abria uma brecha para a participação, para a atuação organizada
dos estratos subalternos e lhes permitia expressar uma identidade cívica.
Assim raciocinado, fica claro que havia interesse de parte a parte, que
a nação-instituição teve origem em um pacto entre desiguais, em uma
manipulação simultânea, um aperto de mãos.
Mas esta instituição foi concretizada, sacramentada nas formas do
costume de cada um, segundo diversos fatores e modalidades. Questão
pendente: a nação, no seu processo de constituição, nascendo do vínculo
dos africanos com a América, poderia preservar tradições genuínas, ou
estava condenada a inventá-las, amalgamando legados diversos e desca-
racterizando culturas?
Bastide traçou um vínculo muito direto entre a manipulação política
e a caracterização cultural, mas os dados empíricos hoje disponíveis
indicam que, no âmbito das nações, tradições africanas tanto foram
preservadas quanto inventadas, em graus de variação infinitos. Parafra-
seando Geschiere, eu diria que a enorme variedade de situações sugere
que não há definições inequívocas nem classificações estritas, neste caso
as circunstâncias é que ditam o caminho da interpretação.18
Se, por outro lado, considerarmos que a nação não foi o único espaço
possível de preservação de tradições africanas, escapamos da redução

18 Peter Geschiere, “Feitiçaria e modernidade nos Camarões: alguns pensamentos sobre


uma estranha cumplicidade”, Afro-Ásia, no. 34 (2006), pp. 9-38.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 619


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

institucionalista, deixando a problemática mais abrangente, dedicando


mais atenção às diversas práxis culturais, colocando foco no papel da
cultura na manifestação da identidade cívica.
A nação colonial nunca precisou nem pretendeu ser um “povo distinto”,
os casos mais frequentes revelam a existência de grupos dominantes que
as governavam e adotavam, sem maiores controvérsias, a denominação
mais utilizada por ali; mas pelas convenções políticas antigas admitia-se
como algo natural a dominação de certos grupos no interior das nações. A
expressão, a vida dessa dominação era cultural. No Brasil colonial esses
grupos monopolizavam o poder ao controlar eleições realizadas segundo
padrões estabelecidos pelo costume europeu, mas o exercício do poder
dependia diretamente da produção e direção dos rituais da instituição,
reproduzindo muitas tradições cívicas africanas.
O caráter festivo desses eventos tem desorientado muitos pesqui-
sadores, que desconhecem a cultura política dos reinos africanos e do
Antigo Regime, atribuindo a essas festividades um caráter meramente
jocoso e politicamente inócuo; porém a festa pública era um dos modos
de legitimação das autoridades constituídas, na África como na Europa.
Naqueles ambientes, festa nunca foi sinônimo de desmobilização, muito
pelo contrário, a política estava impregnada de cultura, melhor ainda,
política e cultura eram termos indissociáveis: saber e poder produzir um
aparato impressionante ou um impactante desfile público eram nítidas
demonstrações de capacidade cívica, de liderança inconteste, de gestão
competente, moedas fortes naqueles negócios políticos. E os africanos
sempre foram grandes mestres nas artes da produção festiva.
Matory reconhece que esses agrupamentos diaspóricos tinham
afinidades culturais potencialmente políticas, que identidades compar-
tilhadas eram ingredientes estimuladores da ação social, que as nações
geraram até mesmo grupos de conspiradores, mas seu conceito de nação
diaspórica supraterritorial, além de esvaziar a mobilização do seu conteúdo
cultural, ignora a mudança radical de contexto sociopolítico no meio do
movimento, com o declínio do antigo regime colonial e a emergência do
regime republicano. É por isso que, quando ele parte para a crítica do
“modelo convencional” de Bastide, Herskovits, Nina Rodrigues e outros,
os quais, a seu ver, ainda consideravam as nações coloniais como povos
distintos, “grupos étnicos africanos que foram levados para o Novo Mundo
e, até certo ponto, lá ‘sobreviveram’”, não distingue as nações coloniais
das nações-de-candomblé, estas últimas situadas em um contexto socio-
político mais tardio, no qual perderam o status de instituição oficial. O
diálogo “mutuamente transformativo” de que fala Matory, entre a nação
diaspórica desterritorializada e o Estado-nação moderno, caracteriza
uma conjuntura posterior e omite o terceiro termo, a nação instituição de
um regime político específico, levando-o a uma definição geral de nação
africana inconsistente, como realidade emergente sem passado palpável,

620 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

construção descaracterizada, “seletiva e criativa”, “forma de imaginação”


tanto quanto a nação atual.19
Ora, sabemos hoje que o processo foi bem mais antigo, que graus
variados de deturpação e de fidelidade coexistiram através dos séculos,
dependendo dos contextos e do tipo de vínculo associativo, como veremos
com detalhes na continuação do presente artigo. Neste sentido, a crítica
de Thornton a Mintz & Price, defendendo nas Américas a existência de
meios sociais propícios à reprodução de costumes africanos, poderia ser
acrescida de algo que me parece teoricamente relevante: a reprodução de
padrões africanos tradicionais com adaptações e misturas recaracteriza-
doras pode ter sido mais frequente na nação, instituição bem visível da
sociedade oficial que os setores mais autoritários do aparelho de Estado
e as correntes de pensamento intolerante mantinham sob pressão. Po-
rém na clandestinidade e na liberdade de movimento que o meio urbano
propiciava, nos inúmeros guetos étnicos ou crioulos que cercavam nossas
cidades coloniais, em um conjunto de práticas ligadas, porém distintas
da participação oficial, as tradições africanas puderam ser reproduzidas
com maior fidelidade, sofrendo naturalmente adaptações pela urgência
no complemento de certos ritos e outras atribulações devidas à informa-
lidade, à clandestinidade e a todo tipo de carência.
Na hora da interpretação não devemos, por conseguinte, passar
rapidamente por cima da complexidade dos diversos contextos, das
eventuais divergências entre as classes dominantes, não desconhecer a
base institucional específica que gerou as novas culturas miscigenadas
particulares nem reduzir a construção da identidade do africano no novo
ambiente social à sua identidade oficial. Cabe reconhecer que sua consti-
tuição como sujeito do regime escravista lhe abria algumas possibilidades
de representação, sem bloquear as possibilidades de ação política por outros
meios nem impedir a reconstrução de sua cultura nativa, pois em muitos,
muitíssimos outros ambientes extra-oficiais, vários modos de continui-
dade entre a África e a América, continuidade linguística, política, ritual
e produtiva, foram organizados e estabilizados, e naturalmente também
contaminados, como já foi detalhadamente comprovado por uma etnografia
consistente. Assim, a ideia de que o ingresso dos africanos nas nações era

19 Matory está polemizando com Benedict Anderson, para quem os Estados-nações moder-
nos é que seriam “comunidades imaginadas”. Fiquei com a sensação de que Matory não en-
tendeu Anderson muito bem porque, para este, a nação enquanto comunidade política é
imaginada, pois “mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão,
encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros, embora todos te-
nham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. Anderson, Comunidades imagi-
nadas, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 32. Matory não distingue o caráter glo-
bal do Estado-nação do caráter local da nação colonial, erro de apreciação cometido por
outros autores, como veremos quando voltarmos a Anderson mais adiante.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 621


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

forçado, e que tal vida associativa teria provocado uma descaracterização


geral da cultura africana na América, não resiste à menor pressão.
Estes são os limites da interpretação global de Matory. Vejamos agora
as facilidades que ele se permite quando desenvolve sua argumentação.
Por exemplo, quando retoma a afirmação de Nina Rodrigues de que a
nação jeje estava quase extinta no final do século XIX, conclui que
algo aconteceu para ressuscitar essa nação, naquele
estado, ainda antes dos anos 30, quando numerosos
terreiros jejes floresceram. A minha hipótese é que a
posição de destaque simbólico dada à identidade étnica
“djedji” pelos franceses no Daomé colonial no começo
do século XX, desempenhou um papel importante na
ressurreição e renovação da nação jeje baiana.20

Acrescenta ainda que a suposta ressurreição dos terreiros jejes


baianos teria sido alavancada quando Edison Carneiro, na década de
1930, divulgou entre “os seus amigos jejes” o Esboço da crença religiosa
daomeana, de Frances e Melville Herskovits.
Muito bem, mas entrementes a publicação da monografia de Luis
Nicolau Parés sobre a formação dos candomblés jejes baianos revelou
detalhes de um ativo processo de constituição, clandestino ou semiclan-
destino, justamente no período em que Matory havia decretado a morte
da nação jeje na Bahia: os terreiros do Bogum, em Salvador, e a Roça de
Cima, na vizinha cidade de Cachoeira, estavam colocando em prática uma
estratégia de longa duração, consolidando seus alicerces e preparando a
expansão dos anos 30. Ao abordar o processo de constituição das nações-
de-candomblé baianas, Matory prefere jogar suas fichas em eventos exte-
riores e posteriores, ou seja, em dois hiperdimensionamentos artificiais:
a influência da ideologia imperialista francesa e a influência de Edison
Carneiro, as quais teriam introduzido no processo efeitos impactantes e
duradouros, altamente improváveis.21
A mesma coisa pode ser dita a respeito do surgimento da nação
iorubana, segundo Matory. As causas de mais esta “imaginação” atlântica
teriam sido a dispersão pelo tráfico de boa parte da população iorubana,
as articulações dos milhares de retornados do exílio escravista durante
a vigência do colonialismo britânico, além dos ressentimentos contra o
racismo inglês em Lagos e o registro escrito da língua iorubá pelos mis-
sionários batistas. Esses fatos, pelo final do século XIX, teriam provocado
uma “reação auto-afirmativa” da parte dos iorubanos, repercutindo no
Brasil, em Cuba, Miami etc.

20 Matory, “Jeje: repensando nações”, p. 66.


21 Cf. Parés, A formação do candomblé, particularmente o cap. 5.

622 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O autor dá notas bem baixas à milenar coesão cultural e linguística


da região iorubana, à antiguidade da sua civilização, deixa de lado as
múltiplas articulações rituais entre os seus diversos reinos durante
um longo período histórico, ignora dados cruciais como a fundação
das cidades de Ibadan e Abeokutá entre 1829 e 1830, em meio a uma
devastadora guerra civil que sacudiu toda a região, quando mais de
cento e cinquenta subgrupos iorubá-falantes, povoando historicamente
territórios dispersos, foram reunidos em espaços urbanos restritos,
criando um sentimento de coesão nacional até então inexistente ou
atenuado. Isso, note-se bem, quase meio século antes que os missio-
nários britânicos oficializassem um registro escrito de sua língua. O
autor tampouco atribui algum peso à bem documentada coesão das
comunidades iorubanas nas colônias escravistas, como acabamos de
ver com Inês Oliveira, abarcando vários subgrupos daquela etnia,
que seguramente devem ter desempenhado um papel importante no
desenvolvimento do novo sentimento cívico. 22
Fica então claro que a opção teórico-metodológica de Matory é
sempre a mesma: o triunfo da categoria da imaginação e a superesti-
mação do discurso colonialista implicam a depreciação sistemática da
própria realidade da sociedade colonial, da trajetória histórica efetiva e
da contribuição cultural específica dos protagonistas africanos, abrindo
espaço para que dados ocasionais, secundários ou anacrônicos adquiram
todo um peso explicativo.
Diante de tais tomadas de posição, sua conclusão sobre o tema da
nação africana na diáspora não poderia ser mais decepcionante. Por mais
que ele critique os partidários acadêmicos da invenção de tradições, que
brade no atacado a favor da agency dos oprimidos, de sua “sabedoria
cosmopolita”, sua narrativa não passa de mais uma variedade mal dige-
rida da teoria da invenção de tradições, pois no varejo ele subestima o
papel daqueles que pretende defender, ao representar igualmente seus
líderes como indivíduos manipulados pelos estrategistas europeus ou
pelas elites burguesas locais, desprovidos de história e de conteúdos

22 É, a meu ver, a correta interpretação de João José Reis em Rebelião escrava no Brasil: a
história do levante dos malês em 1835, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 415-
417. Para a formação de um sentimento nacional iorubano simultaneamente na África e
na Bahia, cf. Silveira, O candomblé da Barroquinha, particularmente o capítulo 14, “A que-
da do Império de Oyó e o novo pacto nagô-iorubá”. A primeira gramática e o primeiro di-
cionário iorubás foram publicados em 1858 pelo pastor batista T. J. Bowen, porém o iorubá
como língua escrita só foi sistematizado durante a Yoruba Orthography Conference, rea-
lizada em Lagos, em 1875. Cf. a este respeito Samuel Johnson, The History of the Yorubas,
from the Earliest Times to the Beginning of the British Protectorate, Lagos: Bookshop,
1921, p. xxx; e Kathleen Marie Stasik, “A Decisive Acquisition: The Development of Is-
lam in Nineteenth Century Iwo, Southeast Ìwí” (Dissertação de Mestrado, Universidade
de Minnesota, 1975), p. 206.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 623


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culturais próprios, sem motivações políticas legítimas, agitando estan-


dartes espalhafatosos e semifraudulentos. 23
Dentre os textos publicados entre 2000 e 2002, comecemos com o de
Marina de Mello e Souza, porque é uma tentativa de síntese que reúne as
contribuições dos demais. A autora aborda o problema das nações africanas
inicialmente relembrando as denúncias unânimes a respeito da falta de
precisão dos colonizadores nas denominações atribuídas aos escravos
traficados para o Brasil, apresentando uma lista enriquecida com novos
itens, com a contribuição de vários autores: os registros de procedência
indicariam não só os portos de embarque, como aleatoriamente os principais
mercados africanos, as rotas do tráfico, às vezes as regiões e os reinos
de onde os escravos vinham, eventualmente até as línguas que falavam,
daí sendo traçado “um complicado sistema de classificação”, suficiente
para as operações de oferta do produto no mercado. Utilizado desde cedo
na América escravista – prossegue – o termo nação teria surgido para
identificar todos esses agrupamentos arbitrários, tratando-se, portanto,
de um conceito, apesar de seu uso generalizado, mais genérico e impreciso
ainda do que as denominações “nacionais” impostas.
Nesta passagem vê-se claramente que a autora, ao ignorar as melho-
res contribuições de Bastide e Thornton, considera a nação apenas uma
vaga denominação de origem, que é sem dúvida um dos seus significados
recorrentes na época (por exemplo, na expressão “escravo de nação”),
porém teoricamente não leva em consideração o fundamental, ou seja,
a organização de base que o termo também designava. Isso dito, passa a
bola para Mariza de Carvalho Soares, em virtude deum estudo “importante
para a compreensão dos processos de constituição de uma nomenclatura
referente à costa africana, pouco a pouco explorada pelos portugueses e
vinculada ao tráfico de escravos”, publicado em Devotos da cor. Vamos,
então, consultá-lo diretamente.24

23 No âmbito acadêmico brasileiro várias interpretações da problemática da invenção de


tradições foram aplicadas apressadamente ao contexto político-cultural afro-baiano,
sem que se levasse em consideração o movimento histórico de tal contexto. Hobsbawm:
“Por sinal, o estudo das tradições inventadas não pode ser separado do contexto mais am-
plo da história da sociedade, e só avançará além da simples descoberta destas práticas se
estiver integrado a um estudo mais amplo”. “A força e a adaptabilidade das tradições ge-
nuínas não deve ser confundida com a ‘invenção de tradições’ Não é necessário recuperar
nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam [...] Com o auxílio da an-
tropologia poderemos elucidar as diferenças que porventura existam entre as práticas in-
ventadas e os velhos costumes tradicionais”. (grifo meu). Cf. “Introdução: a invenção das
tradições”, in Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), A invenção das tradições (Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2008), pp. 16-21.
24 Entretanto, excelentes trabalhos foram realizados anteriormente neste sentido, por
Mary Karasch, no primeiro capítulo do seu livro A vida dos escravos no Rio de Janeiro
(1808-1850), publicado nos EUA em 1987 e em 2000 no Brasil, pela Companhia das Letras;
e por Maria Inês Côrtes de Oliveira, “Retrouver une identité: jeux sociaux des Africains de

624 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Soares reconhece que, para um melhor esclarecimento da questão,


ainda seria necessário um estudo detalhado sobre a diferença entre as
palavras “gentio” e “nação”, e que ela própria, não tendo feito tal estudo,
não poderia senão recorrer a obras de referência para tentar obter alguma
luz; faz, então, algumas considerações apenas satisfatórias sobre o termo
gentio, porém estabelece uma certa confusão ao tentar definir a nação
africana no contexto colonial brasileiro, porque, a exemplo de Matory,
revela pouca sensibilidade para a historicidade dos conceitos, não se dando
conta de que os sentidos antigos de nação pouco têm a ver com o sentido
moderno, o qual tem como pano de fundo, segundo os especialistas da área,
as revoluções americana e francesa, o advento das primeiras estratégias
de homogeneização cultural empreendidas durante a revolução industrial
pelos Estados-nações centralizados, e as tecnologias de comunicação de
massa desenvolvidas no curso do século XIX.25
Soares tenta uma nova explicação ao constatar que, na documentação
histórica, ao longo do tempo, “nação” foi substituindo “gentio”, caindo
este último termo em desuso no século XVIII. Supõe então que “gentio”
designava, sobretudo, a população escrava proveniente da Costa da Guiné,
na África Central, imensa área de difícil delimitação, enquanto “nação”
designava o contingente escravo proveniente da Costa da Mina, região
que “possui limites bem recortados e de fácil identificação”.
Entretanto, esta interpretação não se sustenta porque os dois termos
não são homogêneos, um denota particularidade, o outro, universalidade;
“gentio” é um substantivo mais genérico, não delimita, mesmo que vaga-
mente, uma população determinada, designa o estrangeiro, o “idólatra”,
a alteridade maldita; foi na origem um epíteto bíblico depreciativo que
manteve por motivos evidentes sua funcionalidade no vocabulário político

continuação 24

Bahia” (Tese de Doutorado, Universidade Paris IV, 1992), e “Quem eram os ‘negros da Gui-
né’? A origem dos africanos na Bahia” (1997), reproduzido nesta coletânea. Porém estes
dois trabalhos tratam apenas de aperfeiçoar as denominações de nação, procurando cor-
respondências no território africano, não se preocupando com a definição de nação en-
quanto instituição da sociedade colonial brasileira. A abordagem de Marina de Mello e
Souza sobre os reis africanos no Brasil escravista é detidamente analisada em outro capí-
tulo do livro do qual este artigo foi extraído.
25 Maria Inês Oliveira, baseada na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, usa o ter-
mo latino que deu origem a gentio como sendo gentivus ou genitivus (cf. Oliveira, “Quem
eram os ‘negros da Guiné’?”, nota 2). Antônio Geraldo da Cunha (org.), Dicionário etimoló-
gico Nova Fronteira da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996),
p. 384, prefere genetivus. Em todo caso, de um ou do outro decorreu “genitivo” no portu-
guês, ou seja, complemento possessivo, pertinência de geração. Também consultados Er-
nest Gellner, Nações e nacionalismo, Lisboa: Gradiva, 1993; Guy Hermet, História das na-
ções e do nacionalismo na Europa, Lisboa: Editorial Estampa, 1996; e Anderson, Comuni-
dades imaginadas. Ver também Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro, São
Paulo: Editora Ática, 1992, especialmente pp. 23-29.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 625


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do escravismo moderno.26 Já o termo “nação”, este, sim, determina grupos


particulares, mesmo que sua composição seja variável, sendo no passar dos
séculos cada vez mais usado no Brasil, na medida em que uma sociedade
se ia constituindo e a nova organização ganhando importância.27
Eis aqui a proposta final da autora a respeito da diferença entre os
dois termos:
Dessa forma pode-se supor que, em termos estatísticos, o
contingente de escravos antes designado como gentio da
Guiné vai aos poucos sendo redistribuído entre as nações
emergentes no universo do tráfico colonial. A categoria
genérica “gentio” aplicada inicialmente aos povos a serem
convertidos e apenas eventualmente escravizados é
substituída pela categoria “nação”, não menos genérica,
mas que atende melhor às novas exigências do tráfico,
cada vez mais volumoso e diversificado. Num discurso
mais secularizado, o indivíduo passa a ser identificado não
por sua contribuição ao projeto de expansão cristã, mas
por sua importância no quadro dos conflitos intertribais e
das rotas e portos de embarque do tráfico negreiro. Nesse
sentido, a alteração no uso dos termos decorre da mudança
nas próprias relações que os portugueses estabelecem com
as populações africanas.28

Uma questão prévia: expressões como “conflitos intertribais” ou


“passado tribal”, também usada pela autora, tão marcadas pelo etnocen-
trismo e já suficientemente criticadas na literatura científica, não podem
mais ser usadas com tanta desenvoltura. John Illife mostrou que, após
a I Guerra Mundial, os antropólogos ingleses, nas suas generalizações,
substituíram a palavra mais agressiva, “selvagem”, pela mais aceitável,

26 “Gentio” é uma designação usada pelos judeus e cristãos da Antiguidade, abundantemente


recorrente na Bíblia (por exemplo na “Epístola aos efésios”, de São Paulo, “o apóstolo dos
gentios”). Cf. A Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 1985, pp. 2196-2204.
27 Consultados Nicole Lemaître, Marie-Thérèse Quinson e Véronique Sot, Dicionário cultu-
ral do Cristianismo, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, verbete gentios, p. 127; Mi-
chel Panoff e Michel Perrin, Dictionnaire de l’ethnologie, Paris: Payot, 1973, verbete gens,
p. 118; Nicola Zingarelli, Vocabolario della lingua italiana, Bolonha: Zanichelli, 1965, ver-
bete gentile, p. 359; Paul Robert, Le petit Robert, dictionnaire alphabétique et analogique
de la langue française, Paris: Le Robert, 1983, verbete gentil, p. 861; Michaelis: moder-
no dicionário inglês-português português-inglês, São Paulo: Companhia Melhoramentos,
2000, verbete gentile, p. 297; Cunha, Dicionário etimológico Nova Fronteira, verbete gen-
tio, p. 384; Fustel de Coulanges, A cidade antiga, São Paulo: Martins Fontes, 1981, cap. 10;
Claudio Moreschini e Enrico Norelli, História da literatura cristã antiga grega e latina,
São Paulo: Edições Loyola, 1996, vol. I, cap. XVII, especialmente as pp. 425-437; e Michel
Sennellart, Les arts de gouverner: du regimen médiéval au concept de gouvernement, Pa-
ris: Éditions du Seuil, 1995, especialmente pp. 100-103.
28 Soares, Devotos da cor, pp. 102-108 (citação em destaque na p. 108). Como termo de com-
paração, cf. o artigo citado de Maria Inês Oliveira, particularmente as pp. 37-41, muito
mais circunstanciado e consistente.

626 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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porém não menos discriminatória, “tribal”, daí provindo a ideia de que,


como todo europeu pertencia a uma nação, todo africano pertencia a
uma “tribo”. Os dois termos pretendiam na verdade designar o avanço de
um e o atraso do outro. Assim, os colonizadores britânicos do Tanganica
utilizaram a ideia só aparentemente valorativa de tribo para consolidar
sua dominação e estruturar um governo indireto, o qual foi estabelecido
através da “unidade tribal”, embora eles estivessem perfeitamente cons-
cientes de que este estereótipo pouco tinha a ver com a história efetiva
do país. Mais recentemente “conflito intertribal” passou a ser a expressão
utilizada pela grande mídia ocidental para desqualificar os movimentos
sociais africanos da atualidade, e “tribo”, um conceito de combate usado
para desqualificar a organização política do outro. Hoje os dicionários de
antropologia esclarecem que o termo tribo só se justifica para designar
uma organização sociopolítica específica, que reúne um certo número
de clãs em um contexto rural, ocupando um território delimitado. Ora,
muitos africanos deportados para o Brasil vieram de regiões fortemente
urbanizadas ou eram súditos de Estados bem estruturados, membros de
federações de reinos e cidades-estado... A generalização apressada tende,
inconscientemente, a reproduzir estereótipos.29
Por outro lado, quando a substituição da categoria “gentio” por
“nação” é considerada algo interno ao tráfico como negócio, privilegia-se
indevidamente o aspecto quantitativo, estatístico, e um certo número de
transformações qualitativas, institucionais, internas à sociedade colonial
brasileira, deixam de ser levadas em consideração. A subestimação desses
aspectos fundamentais é que leva a considerar-se como aspecto teorica-
mente mais relevante a passagem de um universo linguístico impreciso,
decorrente dos imperativos da evangelização, a um mais secularizado,
menos impreciso, decorrente dos imperativos da mercantilização. Como
consequência prática o observador fica numa posição privilegiada, a de
executante da versão final, corrigida e ampliada.
Como essas novas identidades coletivas teriam sido impostas aos
escravos pelos agentes colonizadores, primeiro descaracterizadas cul-
turalmente e só então adotadas pelo grupo, Soares pensa que melhor
seria escolher uma expressão enfatizando que houve reorganização no
ponto de chegada, as formas adotadas tendo “tanto ou mais a ver com as
condições do cativeiro do que com seu passado tribal” (sic). Seguindo pela
trilha de Matory, a autora repete que “mais do que etnias (no sentido de

29 John Illife, apud Terence Ranger, “A invenção da tradição na África colonial”, p. 257. Ver
também Philippe Poutignat e Joceline Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade, São Paulo:
Unesp, 1997, p. 81 e 114, e Renato da Silveira, “Sobre o exclusivismo e outros ismos das
irmandades negras na Bahia colonial”, in Ligia Bellini, Evergton Sales Souza e Gabriela
dos Reis Sampaio (orgs.), Formas de crer: ensaios de história religiosa do mundo luso-afro
-brasileiro, séculos XIV-XXI (Salvador: Corrupio/Edufba, 2006), p. 169.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 627


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grupos originais)”, teríamos arranjos grupais profundamente marcados


pela violência, “configurações étnicas em permanente processo de re-
definição”. Mesmo as línguas faladas pelos africanos no Brasil, continua
a autora, não seriam necessariamente elementos étnicos nítidos, pois
eram misturas de vários dialetos sobre a base de uma língua de maior
abrangência, como foi o caso da “língua geral da Mina” no Rio de Janeiro.30
Há neste argumento uma confusão fatal que exige uma explanação
sobre esta outra noção não muito bem esclarecida entre nós: a “língua
geral”, também chamada de “língua franca”.
Existe pouca reflexão sobre o tema da língua geral africana na colônia
brasileira, normalmente se usa a expressão como se fosse algo evidente
em si. Vejamos o que dizem os especialistas, começando pelos lugares
mais óbvios, o verbete Língua geral do Dicionário do Brasil Colonial, de
Ronaldo Vainfas, e o artigo “O que se fala e o que se lê: língua, instrução
e leitura”, de Luiz Carlos Villalta. Os dois autores remetem a expressão
“língua geral” à codificação da língua tupinambá pelos jesuítas, os quais
redigiram gramáticas que passaram a ser as cartilhas da aprendizagem
da língua falada nas costas brasileiras. Tal língua geral, apesar de “oci-
dentalizada”, terminou sendo um poderoso instrumento de catequese,
inclusive na evangelização dos falantes de outras línguas nativas, virando,
sobretudo a partir do século XVIII, a língua franca dos diferentes grupos
étnicos indígenas, como também a língua do comércio e da política, das
alianças entre os chefes colonos e os chefes nativos.
Essa “língua brasílica”, ou “língua do mar”, espraiou-se não só pelo
litoral, como também pelas rotas das bacias dos rios Paraná e Paraguai, e
por todo o sul do território brasileiro. Outras línguas gerais indígenas tam-
bém foram implantadas nas demais regiões, como a “língua geral guarani”,
falada a oeste do atual estado do Paraná entre os séculos XVI e XVII, e o
nheengatu, a “língua geral da Amazônia”, surgida no século XVII, quando
os missionários levaram o tupinambá para a região, consequentemente
misturado com as línguas locais. Em certas regiões, particularmente em
São Paulo, a língua brasílica passou a ser o idioma principal dos próprios
colonos branco-mestiços, a ponto de o bandeirante Domingos Jorge Velho,
conquistador de Palmares, saber apenas balbuciar algumas palavras no
português. Todas essas línguas gerais indígenas começaram a desaparecer
quando o Brasil foi integrado ao ciclo mercantil europeu, aumentando
progressivamente os contingentes populacionais reinóis e africanos, e
quando os indígenas passaram a ser massacrados e escorraçados para
além das regiões controladas pelas autoridades coloniais.31

30 Cf. Soares, Devotos da cor, pp. 117-118.


31 Vainfas, Dicionário do Brasil colonial, pp. 346-348; e Luis Villalta, “O que se fala e o que
se lê: língua, instrução e leitura”, in Fernando Novais (dir.) e Laura de Mello e Souza (org.),

628 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Charles Boxer, convocado, nos informa sobre a performance da língua


portuguesa nos territórios controlados pelos outros, ao virar “a língua
franca da maioria das regiões costeiras que [se] abriram ao comércio e
aos empreendimentos europeus em ambos os lados do globo”. No Congo
e em Angola, na região do Cabo da Boa Esperança, no Ceilão, nas Molu-
cas, na baía de Bengala, vários dialetos crioulos derivados do português
mantiveram-se por muito tempo como língua geral, chegando a vencer
a batalha contra a língua holandesa, mesmo depois que o Império Portu-
guês perdeu várias possessões para os Países Baixos e a legislação oficial
holandesa passou a proibi-los. Em Batávia, a capital holandesa dos mares
do sul, o português crioulo era falado pelos holandeses e pelas mulheres
da casta mestiça, “por vezes com exclusão da sua própria língua”. Milton
Guran acrescenta que o português era a língua franca na Costa da Mina
pelo menos desde o século XVIII, era uma “língua de expressão universal”
à disposição dos africanos daquela região, até o final do século XIX. No
momento da implantação da administração colonial francesa, “a língua
portuguesa era de tal forma disseminada na Costa, que a escola da Missão
Católica de Lyon, a primeira missão francesa a se estabelecer no Benim
– em Uidá em 1862 – ensinava em português”.32
Recapitulando: a língua geral era o principal meio de comunicação em
regiões onde o dinamismo das trocas mercantis e das conquistas militares
colocava em contato direto várias comunidades linguísticas diferentes.
O exemplo brasileiro mostra que ela também era o meio de comunicação
privilegiado dos grandes doutrinamentos coloniais. A língua geral era
indispensável à cidade mercantilista, ao território da grande produção
escravista, era a língua da rua, do porto, da encruzilhada, das rotas
comerciais, terrestres, marítimas e fluviais, a língua comum das torres
de Babel. Normalmente tinha como base a língua dos mais numerosos
ou dos mais poderosos, porém contaminada pelas línguas minoritárias
em atividade na área. Poderia também ser a língua de uma minoria mais
prática nas atividades comerciais, como o português no Oriente ou na
costa ocidental da África.
A existência de uma língua geral pressupõe a convivência de várias
línguas particulares, mas ela também pode ser exportada para regiões de
colonização, sendo, por conseguinte, naturalizada quando estabelecida
estavelmente, criando uma nova geração que já nasce expressando-se
dentro do seu campo de ação. Neste caso podemos também tomar por

continuação 31

História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa (São
Paulo: Companhia das Letras, 1997), vol. 1, pp. 331-385, especialmente pp. 332-341.
32 Charles R. Boxer, O império marítimo português, Lisboa: Edições 70, 1992, pp. 132-133; e
Milton Guran, Agudás, os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp.
1-17.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 629


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

exemplo a língua crioula de base inglesa, misturada a várias línguas afri-


canas, o sranam, que terminou estabelecendo-se como a língua nacional
do Suriname.33
E as línguas gerais afro-brasileiras, que dizem nossos autores sobre
elas? Não muito; uma vez que o Dicionário do Brasil colonial se omite,
vejamos o que afirma Villalta sobre o assunto. Logo de saída ele salienta
a diferença de tratamento, a seu ver muito mais repressivo, dispensado
pelas autoridades coloniais às línguas africanas. Os portugueses evitavam
a concentração de escravos da mesma etnia nas diversas regiões, estimu-
lavam a multiplicidade linguística e as hostilidades que eles traziam da
África, para dificultarem “a formação de grupos solidários que retivessem
o patrimônio cultural africano, incluindo-se aí a preservação das línguas”
(versão mais atenuada da interpretação de Bastide, ou seja, dificultar a
formação de uma consciência de classe).
Do seu lado – continua o autor – os negros resistiam “juntando
fragmentos” na medida do possível, com os quais formaram quilombos e
organizaram rituais, ou constituíram “domicílios matrifocais” que fun-
cionaram como núcleos solidários, sustentáculo de identidades étnicas
de onde “as línguas africanas emergiam”. Por outro lado, alguns senhores
tolerantes aceitavam as manifestações africanas como “um mal necessário
à manutenção dos escravos”, enquanto certos portugueses, por viverem
na África ou se envolverem com o tráfico, bem como alguns membros do
clero, “pelo imperativo de convertê-los ao catolicismo”, chegaram mesmo
a aprender as línguas dos africanos.34
É compreensível que a explanação de Villalta, um especialista em
linguística, tenha absorvido os estereótipos da historiografia conser-
vadora, porém fica mais difícil aceitar a ausência no seu texto de uma
reflexão sobre as línguas gerais africanas. 35 Entretanto, Nina Rodrigues,
que conheceu pessoalmente vários grupos africanos no final do século
XIX baiano, havia deixado a seguinte observação, muito útil para um
início de abordagem:
Cessado este [o tráfico], as línguas africanas faladas no Brasil sofre-
ram para logo grandes alterações, já com a aprendizagem do português
por parte dos escravos, já com o da língua africana adotada como língua
geral pelos negros aclimatados ou ladinos. De fato, ninguém iria supor
que falassem a mesma língua todos os escravos pretos. Antes, no número

33 Sobre o sranam, cf. Jan Voorhoeve, apud Mintz e Price, O nascimento da cultura afro-ame-
ricana, pp. 72-73.
34 Villalta, “O que se fala e o que se lê”, pp. 341-342.
35 Crítica também feita por Soares, Devotos da cor, p. 257, nota 53. Os estereótipos da his-
tória oficial são abordados criticamente em várias passagens do livro do qual este arti-
go foi extraído. Para uma primeira aproximação, ver Silveira, “Sobre o exclusivismo”, pp.
161-196.

630 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

das importadas, na infinita multiplicidade e matizes dos seus dialetos,


elas eram tantas que, num exagero quase desculpável, se poderiam dizer
equivalentes em número ao dos carregamentos de escravos lançados no
país. Em tais condições, tornou-se uma necessidade imperiosa para os
escravos negros adotar uma língua africana como língua geral, em que
todos se entendessem. Destarte, ao desembarcar no Brasil, o negro novo
era obrigado a aprender o português para falar com os senhores brancos,
com os mestiços e os negros crioulos, e a língua geral para se entender
com os parceiros ou companheiros de escravidão.36
O filólogo português Edmundo Correia Lopes, ao comentar a Obra nova
de língua geral de Mina, vocabulário publicado em 1741 por António da
Costa Peixoto, confirma a observação de Nina Rodrigues quando escreve:
“Os contemporâneos de Costa Peixoto sabiam perfeitamente que o gu não
era a língua materna de todos os escravos que o falavam no Brasil, por
isso mesmo o autor das obras de língua mina lhe chama de língua geral”.
Esta “língua geral de Mina” tinha, segundo o comentarista, uma base fon,
porém contando também com um vocabulário composto por outras línguas
próximas, o evê (evoe, ewe, évé), o ogunu, gunu, gu ou alada. Independen-
temente da correção, ou não, desses termos, fica evidente que, em meados
do século XVIII, o principal meio de comunicação da massa escrava nas
Minas Gerais era esta língua geral da Mina, provavelmente também na
Bahia e em outras regiões de predominância demográfica jeje.37
Mary Karasch, por sua vez, chegou à conclusão de que algumas
línguas africanas centrais e ocidentais serviam de “idioma comum” ou
ainda “meios importantes de comunicação entre os escravos cariocas”.
Já Slenes, trabalhando na zona cafeeira do Brasil colonial, uma área
onde predominaram largamente os contingentes escravos provenientes
da África Central, argumentou que, pelo menos desde o final do século
XVIII, os escravos dessa região começaram a entender-se entre si através
de uma língua pidgin, um linguajar simplificado, baseado no quimbundo
e no umbundo, e em menor grau no quicongo, línguas de estruturas e
vocabulários bastante semelhantes, assentadas em complexos culturais
e religiosos análogos. Essa língua franca, continua o autor, deve ter
sofrido variações conforme os ciclos do tráfico, com a predominância
do quimbundo antes de 1810, do quicongo até 1830, desde quando se
tornaram majoritários os falantes do umbundo e de outras línguas cen-
tro-africanas não conhecidas até então entre nós, tornando a situação
mais complexa.

36 Raimundo Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, São Paulo/Brasília: Editora Nacional/


Ed. Universidade de Brasília, 1988, pp. 122-123.
37 António da Costa Peixoto, Obra nova de língua geral de mina, Lisboa: Agência Geral das
Colônias, 1945, p. 46.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 631


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Na segunda metade do século XIX Slenes supõe que se estabeleceu


uma língua geral baseada no quimbundo-umbundu-quicongo, por causa
do seu enraizamento anterior, porém não descarta que tenham surgido
novas línguas francas de origem banto, acreditando que, com o passar do
tempo e a morte dos últimos africanos, a tendência foi a criação de uma
língua crioula, baseada no português e contaminada por empréstimos de
vários idiomas centro-africanos.38
Voltando à Bahia, as tradições orais dos angoleiros lembram da “milon-
ga”, mistura de línguas que a pesquisa identificou como sendo o quicongo,
o quimbundo e o umbundo, na formação do seu vocabulário litúrgico; a
milonga certamente também era a base da língua geral africana da região
do Recôncavo, durante o século XVII, e de outras regiões de população
escrava análoga. Ao longo do século seguinte, com a predominância dos
contingentes escravos da Costa da Mina, a “língua geral da Mina” foi-se
tornando predominante, porém contaminada com falares antes existentes.
Com o crescimento impressionante da população iorubana, em meados
do século XIX uma mistura de algumas variantes regionais do iorubá,
enriquecida de vocabulários das línguas gerais anteriores, era a língua
geral escrava da Bahia.
Diante desse quadro, podemos supor que cada período, ou cada
região, com suas irregularidades, superposições e lacunas, tenha tido
pelo menos uma língua geral escrava predominante, bem de acordo com
as supremacias demográficas, todas elas contaminadas por vocábulos
portugueses e indígenas. Em todo caso, essa trajetória deixou seus traços
no vocabulário-de-santo da Bahia. O nagô, cronologicamente nossa última
língua sagrada africana, que é a base do vocabulário dos candomblés de
keto, é na verdade uma mistura de linguagens sagradas provenientes de
várias regiões iorubá- falantes; no processo de constituição dos novos
terreiros, absorveu várias expressões do hungbe, a língua sagrada dos
jejes, que encontrou funcionando por aqui; o hungbe, por sua vez, já tinha
absorvido outras expressões do vocabulário sagrado anterior, a milonga
dos bantos. Esta evidência, relativa ao vocabulário-de-santo da Bahia,
deve muito provavelmente ter sido análoga no vocabulário do comércio
e da vida cotidiana.39
Entrementes, muitos daqueles que falavam a língua geral nas ruas,
nos portos e nos mercados, se seus grupos fossem suficientemente nume-
rosos, ou coesos, poderiam manter suas línguas particulares, bem como

38 Karasch, A vida dos escravos, p. 294; e Robert Slenes, “‘Malungu, ngoma vem!’, pp. 51-60.
39 Cf. também Yeda Pessoa de Castro, Falares africanos na Bahia (um vocabulário afro-bra-
sileiro), Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, p. 75. Sobre a milonga angolana, ver Esmeraldo
Emetério de Santana, “Nação-Angola”, in Encontro de nações-de-candomblé (Salvador, Ia-
namá/Centro de Estudos Afro-Orientais, 1984), pp. 35-47.

632 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

muitas práticas e preceitos da sua tradição, como foi frequentemente


o caso. Então, se as línguas gerais “juntavam fragmentos”, misturavam
“vários dialetos sobre a base de uma língua de maior abrangência”, não
constituindo “elementos étnicos nítidos”, algumas línguas africanas
particulares de caráter étnico nítido, embora naturalmente sofrendo as
pressões do meio, foram praticadas por um bom tempo até que o fim do
tráfico e a sucessão das gerações forçou o seu declínio.
A iyalorixá Olga do Alaketo, quando falecida aos oitenta anos em
2005, ainda falava fluentemente o iorubá do oeste, ou anagô, que aprendeu
aqui mesmo na Bahia, no seio da própria família, que veio daquela região
africana. É certamente um exemplo extremo, uma exceção na atualidade,
porém demonstra que, um século e meio antes, tal exemplo não teria sido
tão excepcional. Karasch escreveu que o Rio de Janeiro, antes de 1850, “era
um rico ‘museu’ de línguas faladas em toda a África” e algo de semelhante
devia existir em todas as regiões brasileiras densamente povoadas por
escravos africanos. Vilhena, por sua vez, testemunhou que os escravos da
Bahia que dançavam “desonestamente” e cantavam “canções gentílicas”,
falavam “línguas diversas”. 40 Com efeito, várias línguas africanas eram
faladas na Bahia do século XIX, o haussá, o iorubá, o grunci, além das já
citadas evê-fon e a milonga dos angoleiros, que passaram de línguas gerais
a particulares, e provavelmente outras, das quais nunca teremos notícias.
No arraial da Quinta das Beatas, na periferia da cidade da Bahia,
uma comunidade de africanos tapás, fundadores do extinto culto de
Babá Bonokô, ainda se reconhecia como tal, e até as primeiras décadas
do século XX falava sua língua nativa, pertencente ao “grupo nupê”, se-
gundo a classificação de Greenberg. Sobre eles, escreveu Nina Rodrigues,
testemunha ocular da história: “Hoje os homens estão muito reduzidos de
número, mas existem ainda algumas mulheres. Conservam a sua língua,
embora, como todos os outros africanos, conheçam e falem o nagô”. O
nupê, portanto, a língua particular, e o nagô (iorubá), a língua geral.41
Um exemplo atual da hegemonia linguística entre as diversas tra-
dições religiosas afro-baianas mostra como se poderia dar no passado a
relação entre as línguas particulares africanas e a língua geral: a uma
certa altura os angolas da Bahia passaram a denominar os seus inkisses,
ou seja, suas divindades, com os nomes dos orixás, mas só em situações
abertas, em público, porque o nagô passou a ser a língua geral, mas em

40 Karasch, A vida dos escravos, p. 293; e Vilhena, A Bahia no século XVIII, Salvador: Editora
Itapuã, 1969, vol. 1, p. 134.
41 Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 109; e J. H. Greenberg, “Classification des langues
d’Afrique”, in J. Ki-Zerbo (org.), Histoire Générale de l’Afrique I – Métodologie et préhis-
toire africaine (Paris: Unesco, 1980-1984), pp. 321-338; referência ao groupe noupé: p.
334. Sobre os tapás na Bahia oitocentista, ver Silveira, O Candomblé da Barroquinha, pp.
491-494.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 633


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situações mais restritas eles continuaram usando os nomes próprios de


suas divindades. 42 Por conseguinte, a língua franca, enquanto código
majoritário, passou a ser na atualidade o idioma por intermédio do qual
se estabelece o entendimento entre as diversas nações-de-candomblé,
pressupondo a existência dos subcódigos das nações particulares, que
declinaram, mas não se extinguiram. 43
O combate apressado às teorias culturalistas, os postulados pós-
modernos de tempo encurtado, o caráter raso dos fenômenos sociais,
a ênfase excessiva na imaginação e o circunstancialismo têm levado à
depreciação da cultura enquanto tal, embora seja proveitoso como fonte
para nossa problemática integrar não só a historiografia como a etnografia
dos diversos grupos africanos escravizados. Neste sentido, causa surpresa
a ausência de bibliografia africanista quando Mariza de Carvalho Soares
estuda a reconstrução da identidade maki no Rio de Janeiro, utilizando
como única referência uma narrativa sobre a Costa da Mina, de segunda
mão além do mais, escrita por Francisco Alves de Souza, um africano liberto,
mesário de alma branca da confraria maki carioca, que a escutou de um
piloto conhecedor daquela região africana. Assim, os títulos africanos
dos dirigentes da confraria maki, que se ofereciam a uma investigação,
foram registrados apenas com as traduções coevas, marquês, conde, etc.,
quando é sabido que aggau, traduzido por “general”, era efetivamente o
título do comandante-em-chefe, mas não do exército maki, do daomeano;
e que aeolu cocoti de daçâ, o “duque”, era certamente o título do chefe da
cidade de Dassá, no país maki. Esses títulos poderiam ser um poderoso
recurso de identificação dos confrades, visto que outros títulos parecem
também indicar chefes de cidades do país maki.44
Ora, por que um dos dois “generais” da confraria tinha um título do
Exército Daomeano, que invadiu várias vezes o território maki à caça de

42 Este fato, por desconhecimento etnográfico, já foi entendido como uma prova da inexis-
tência de divindades nas tradições angolanas e a consequente apropriação das divindades
iorubanas para preencher uma suposta pobreza mítica. Cf., por exemplo, Edison Carneiro,
Negros bantus, notas de ethnographia religiosa e de folk-lore, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1937, pp. 28-30; e Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil: contribui-
ção a uma sociologia das interpenetrações de civilizações, São Paulo: Livraria Pioneira/
Edusp, 1971, vol. 1, p. 88, vol. 2, pp. 271-272.
43 Ordep Serra, Águas do rei, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 80.
44 Soares, Devotos da cor, pp. 224-230. Estou usando a grafia “maki” para acompanhar a
transcrição mais comum na documentação utilizada por Soares. Na verdade, essas trans-
crições, marri, maki ou mahi, tentam suprir uma dificuldade fonêmica, que é a transcrição
de uma consoante da língua fon semelhante a um H fortemente aspirado. Sobre a história
da federação mahi, cf. Félix Iroko, Mosaïques d’histoire béninoise, Tulle: Éditions Corrèze
Buissonnière, 1998, pp. 97-107 Antonia Aparecida Quintão também analisou a irmandade
dos “mina-makii” do Rio de Janeiro, apresentando inclusive, na íntegra, seu compromisso
de 1767. Cf. Quintão, Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de
Janeiro e em Pernambuco (século XVIII), São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002, pp. 39-48.

634 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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escravos – os mesmos que eram traficados para o Brasil na época em que


se estavam dando os acontecimentos na confraria maki carioca – que
alianças estavam por trás deste emparelhamento? Sabemos que, depois
de conquistadas, muitas tropas militares makis passaram a fazer parte
do Exército Daomeano, uma magnífica pista que, na pior das hipóteses,
revela que a política africana, e não apenas a manipulação senhorial, es-
tava articulando alianças, influenciando as tomadas de posição no Brasil.
Metodologicamente, uma comparação dos dois contextos em movimento e
sua interpenetração poderia oferecer ao pesquisador informações novas,
possibilitando uma interpretação mais abrangente.
Soares percebe que as nações, essas aglomerações etnicamente ilógicas
que abrigavam confrarias mais ou menos étnicas, assim o eram porque
regidas por uma lógica de aglomeração que não dependia de definição
muito precisa, um processo de constituição de algo novo, pois
passam a constituir não apenas grupos, no sentido
demográfico, mas grupos sociais compostos por
integrantes que se reconhecem enquanto tais e interagem
em várias esferas da vida urbana, criando formas de
sociabilidade que – com base numa procedência comum –
lhes possibilitam compartilhar diversas modalidades de
organização, entre elas a irmandade.45

Aqui, seguindo a trilha aberta por Bastide, Soares está descrevendo a


gênese urbana daquilo que se chamava nação africana no contexto colonial,
identificando um dado fundamental do universo escravista moderno, de-
limitando um esplêndido objeto para o intelecto, porém negligenciando-o
na hora da generalização como mero arranjo grupal instável. Em vez de
desqualificar o objeto, creio que a opção metodológica mais proveitosa
seria aproximar-se mais dele, investigá-lo, tentar situá-lo no movimento
do contexto, identificar suas significações e funções, o momento e as
circunstâncias em que foi instituído, e combatido, em que modalidades
de organização anteriormente existentes se baseou, em que correntes de
pensamento sociopolítico seus líderes se integravam, quando, e por que,
a organização entrou em declínio e virou outra coisa. Em resumo, fazer
sobre ele um verdadeiro plano de estudos.46
Mas passemos às contribuições de Mary Karasch e de Ronaldo
Vainfas, que nos vão trazer outras merencórias luzes e outros limites

45 Soares, Devotos da cor, p. 113.


46 O argumento completo de Soares está desenvolvido entre as pp. 102 e 127. A autora tem
feito entrementes um grande progresso em termos de estudos africanistas, dominando
uma bibliografia bastante satisfatória. Cf. Mariza Soares, “Histórias cruzadas: os mahi
setecentistas no Brasil e no Daomé”, in Manolo Florentino (org.), Tráfico, cativeiro e li-
berdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005),
pp. 127-167.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 635


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ao conceito de nação africana colonial. Vainfas concorda que a ideia de


nação foi usada pelos escravistas para classificar e diferenciar, sendo
que, no caso dos africanos, “a precisão etnográfica era ainda mais frágil
que no caso indígena”, porém está consciente de que “a ideia de nação
no período colonial não guarda a mais remota relação com o fenômeno
do nacionalismo ou de uma consciência nacional na colônia”. Acrescenta
que, “no Antigo Regime, a palavra nação possuía significados variados,
oscilando entre comunidade de origem, território de naturalidade e
pertencimento a certo grupo religioso ou linguístico”.
Muitas vezes, prossegue Vainfas, usava-se a expressão aproximando-a
do sentido atual, como “inglês de nação”, mas, nesse caso, antes de tudo
para designar a origem estrangeira de um indivíduo. O termo também era
usado para indicar a cidade natal de alguém, como “florentino de nação”,
de modo que, conclui, “nação era uma palavra que exprimia a diferença”,
em um sentido excludente, “e não a identidade, ao menos nos séculos XVI
e XVII”. Porém adiante reconhece que “outra importante acepção de nação
na época era a que identificava [friso meu] minorias étnico-religiosas, a
exemplo de ‘nação de cristãos-novos’, ou ‘nação de mouros ou mouriscos’”,
mas sempre como designação externa, dotada de uma carga estigmati-
zante. Só em finais do século XVIII, quando da eclosão da independência
americana e da revolução francesa, começou a “circular um sentido de
nação mais ligado à identidade de uma comunidade nacional”. No Brasil,
a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana chegaram a esboçar a
ideia de nação na sua acepção atual, “mas a ideia do Brasil-nação esteve
totalmente ausente desses movimentos”.47
Assim, nosso problema ganha com Vainfas nova contribuição, porém
não inteiramente satisfatória, pois, apesar do seu dicionário ser dedicado
ao Brasil colonial, sua conclusão limita-se a constatar que a ideia moderna
de nação não chegou até nós nesse período. Como a “ideia” antiga, exa-
tamente a que nos interessa, a seu ver teria tido no passado conotação
meramente negativa, estigmatizando, exprimindo a diferença, ele não
leva em consideração que o termo, no período colonial, também tinha um
sentido positivo, que representava publicamente a organização da massa
plebeia, que abrigava instituições mais restritas dentro de si, que tinha
um estatuto jurídico determinado e várias funções sociais importantes.
Não surpreende, portanto, que, para o autor, nação seja apenas uma
“ideia”, uma “palavra”, uma “expressão”, uma “fórmula”, um “termo”, um
“vocábulo diferenciador”.
Mary Karasch é uma pesquisadora de grande fôlego, reuniu um farto
material empírico, publicou o livro importantíssimo que todos conhecem e
trouxe algo novo ao nosso debate, mas seguiu a mesma linha de prioridades

47 Vainfas, Dicionário do Brasil colonial, pp. 420-421.

636 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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dos demais na hora da teorização e enveredou pelo mesmo tipo de confusão.


Entrementes, sua investigação deixou um bom saldo: ao consultar alguns
estudos sobre o tema do nacionalismo, esclareceu a origem etimológica da
palavra nação, a qual teria derivado de natio, particípio passado do verbo
latino nascer, usado naquela época em vários sentidos, casta, raça, gente
de cultura e religião comum, mas também para designar comunidades de
estudantes e de comerciantes estrangeiros, bem como “o povo de um país”.
Além disso, mais importante foi a pesquisa comparativa que fez
entre várias regiões do Brasil colonial, quando então constatou que as
nações africanas eram mais ou menos as mesmas nas diversas capita-
nias, todas com suas irmandades e regimentos de milícias, que crioulos
e pardos também tinham suas nações separadas, que os indígenas tam-
bém construíram nações nos moldes das africanas e que elas tiveram a
mesma importância para a definição da identidade grupal da plebe mais
ínfima nas cidades brasileiras. Ou seja, Karash encontrou um quadro
institucional fantasticamente generalizado e em certa medida estável,
descobriu, mergulhando em uma floresta de dados empíricos, aquilo que
Bastide e Thornton, baseados em vasta bibliografia, haviam descoberto
em um contexto mais vasto, mas não tirou disso nenhuma consequência
teórica. Sua conclusão:
Parece-me que é imperativo que examinemos de perto, em
várias partes do Brasil, as vias pelas quais os africanos se
apoderaram de uma identidade construída pelos europeus
para a tornar na sua [sic]. O conceito de nação pode conter
a resposta para o entendimento do papel que os africanos
desempenharam como atores na moldagem de novas
‘comunidades imaginadas’ no Brasil e na diáspora.48

A autora confessa francamente que, ao final do percurso, pouco


aprendeu sobre o conceito de nação, embora sua pesquisa comparativa
lhe tenha fornecido o necessário para desvendar o enigma. Entretanto,
se ela confessadamente não aprendeu grande coisa, já tem uma etiqueta
pronta: “comunidade imaginada”, recuperada do título do clássico de
Benedict Anderson, Imagined Communities, como informa em nota.49

48 Karasch, “Minha nação”, pp. 127-141; cit. em destaque na p. 139. Ao aproximar-se do final
o artigo de Mary Karasch vai-se tornando mais confuso, com um entrecruzamento atrapa-
lhado de dados empíricos que não condizem com sua reconhecida competência. Por exem-
plo, os haussás, os fulanis e os iorubás muçulmanos falariam uma língua “arábica”, e os io-
rubás, juntamente com os de nação congo, falariam o kikongo. No entanto, como o texto
citado foi originalmente redigido em inglês e traduzido de uma maneira desleixada (na ci-
tação acima deixei o erro de revisão de propósito), o crítico, em função do largo crédito de
que ela dispõe, não pode ser muito severo.
49 Edição brasileira, já citada: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difu-
são do nacionalismo.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 637


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

No entanto, a apropriação não poderia ser mais indébita, pois que,


como vimos anteriormente na nota 19, para Anderson a nação enquanto
comunidade política precisa ser imaginada porque mesmo os membros
da mais minúscula delas precisarão ter em mente a imagem viva da
comunhão coletiva, uma vez que jamais terão a possibilidade de ver o
conjunto dos cidadãos reunidos. Evidentemente que o autor se refere à
nação no seu sentido moderno, observação totalmente inadequada no caso
das nações coloniais. Estas, embora instituídas analogamente em todas as
capitanias brasileiras, congregavam populações localizadas, tratavam de
questões rigorosamente locais, não havia nenhuma possibilidade efetiva
de federação entre as várias congêneres brasileiras. Isso significa que
todos os membros das nações africanas das diversas cidades coloniais se
conheciam entre si, pelo menos de vista, e que, portanto, não precisavam
recorrer à imaginação para visualizar o todo. Além do mais, para Ander-
son a nação moderna, além de “imaginada”, é soberana, coisa que a nação
colonial não era, muito pelo contrário. Assim Mary Karasch nos oferece
outro flagrante exemplo de falta de vínculo entre uma coleta eficiente de
dados empíricos e o momento da interpretação, arbitrário e fantasioso.
Chegamos enfim aos enfoques dos autores dos livros No labirinto das
nações e A formação do candomblé, os quais trariam novas e palpitantes
contribuições. Comecemos pelo texto de Luis Nicolau, que forneceu ao
debate uma revisão cuidadosa dos enfoques estabelecidos. Ao criticar
algumas das generalizações apressadas da bibliografia passada em revista,
Nicolau retomaria dados conhecidos, propondo, entretanto, situações
mais detalhadas e etnograficamente bem fundamentadas, mas, tal como
Matory, adotaria apenas um dos conceitos antigos de nação como sendo
o apropriado para a situação colonial: “O uso inicial do termo “nação”
pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da
África ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva
que prevalecia nos estados monárquicos europeus dessa época, e que se
projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da
Mina. “50 Como vimos, e como veremos mais detalhadamente em seguida,
este senso de identidade não prevalecia, era apenas um dos vários sentidos
de nação disponíveis nos vocabulários políticos de então; embora não
passe de um problema secundário, esta opção iria influenciar na hora da
interpretação, como veremos adiante.
Vamos em frente. Os europeus encontraram na África Ocidental,
continua Nicolau, um forte sentido de identidade coletiva que designaram
com o termo de nação. Entretanto, essas identidades coletivas africanas
eram multifacetadas, pois estavam articuladas em vários níveis, familiares,
étnicos, religiosos, territoriais, linguísticos e políticos. Além do mais, elas

50 Parés, A formação do candomblé, p. 23.

638 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

teriam sofrido diversas pressões de elementos desestabilizadores, tais


como guerras, migrações, apropriações e desapropriações rituais, alianças
matrimoniais, de modo que, dependendo do contexto, poderiam ser muito
instáveis e mutantes. Em certos casos as denominações étnicas eram
criadas por vizinhos, eventualmente de modo calunioso, e, em seguida,
por uma razão ou por outra, adotadas pelo grupo designado. Muitas vezes
o grupo designado por um único étimo era um aglomerado heterogêneo,
reunido pelos acasos da história, como, por exemplo, o “maki”. Não podemos
deixar de levar em consideração estas perspectivas – adverte Nicolau
– se quisermos entender a formação das nações africanas no contexto
brasileiro. Em uma palavra, a “nação africana” na África poderia ser algo
tão complexo quanto a “nação africana” no Brasil.
No segundo ponto, bem conhecido, Nicolau passa para o lado de cá
do Atlântico: os nomes de nação adotados no Brasil, como vimos, não
seriam homogêneos, podendo referir-se a uma série de itens díspares,
servindo apenas aos interesses administrativos dos traficantes e senho-
res, tratando-se, portanto, “de denominações que não correspondiam
necessariamente às autodenominações étnicas utilizadas pelos africanos
em suas regiões de origem”. Porém, acrescenta, isso não pode ser tomado
como uma regra geral,
[...] existiram casos em que as denominações utilizadas
pelos traficantes correspondiam efetivamente a
denominações étnicas ou de identidade coletiva vigentes
na África, mas que, aos poucos, foram expandindo a sua
abrangência semântica para designar uma pluralidade de
grupos anteriormente diferenciados. Este parece ter sido o
caso de denominações como jeje e nagô, entre outras.51

Diante disso, continua o autor, seria de bom alvitre distinguir entre


as denominações “internas”, usadas como auto-identificação, para as quais
poderíamos utilizar as expressões “etnômio” ou “denominação étnica”;
e as denominações “externas”, utilizadas tanto pelos africanos quanto
pelos escravocratas europeus para designar uma aglomeração de grupos
heterogêneos. Neste último caso Nicolau propõe a adoção do termo criado
pelo historiador cubano Jesús Guanche Pérez: “denominação metaétnica”,
pertinente no caso da aglomeração de grupos diversos, porém aparentados
linguística e culturalmente, ocupando territórios contíguos e embarcados
para a América nos mesmos portos. Além do mais, ao adotar uma concepção
dinâmica, Nicolau considera o movimento das contradições:
Cabe notar que as denominações metaétnicas (externas),
impostas a grupos relativamente heterogêneos, podem,
com o tempo, transformar-se em denominações étnicas

51 Idem, p. 25.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 639


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

(internas), quando apropriadas por esses grupos e


utilizadas como forma de auto-identificação. O conceito
de denominação metaétnica é útil apenas para descrever
o processo pelo qual novas identidades coletivas são
geradas a partir da inclusão, sob uma denominação de
caráter abrangente, de identidades inicialmente discretas
e diferenciadas. Utilizando essa terminologia, poderíamos
dizer que os traficantes e senhores do Brasil colonial
foram responsáveis pela elaboração de uma série de
denominações metaétnicas [...] enquanto outras, como
o caso nagô, já operativas no contexto africano, foram
apropriadas e gradualmente modificadas no Brasil.52

Assim, os africanos aqui desembarcados encontravam uma variedade


de denominações “metaétnicas” às quais se adaptavam por comodidade,
pois eram operacionais na sociedade envolvente, ou porque apresenta-
vam uma certa homogeneidade cultural. Foi esse senso prático e essa
identidade mais vasta que favoreceram certas adesões a tal ou tal nação,
ou orientaram tais e tais preferências matrimoniais. Porém Nicolau
também chama a atenção para algo que já tinha sido assinalado por Bas-
tide e Thornton, mas escapou aos outros observadores, ou seja, que não
é raro que africanos deportados para o Brasil tenham preservado suas
identidades étnicas específicas em ambientes mais restritos da comu-
nidade negra aqui estabelecidos. Dá, assim, um tratamento mais firme
à tematização explorada pelos autores passados em revista, e o faz com
maior conhecimento de causa, esclarecendo vários pontos importantes.
Contra grandes declarações desvinculadas da fundamentação empírica,
ele prefere uma interpretação mais matizada e etnograficamente mais
bem circunstanciada.53
Resta uma restrição que poderia ser feita à sua interpretação no que
tange a nação africana colonial: como vimos, ao falar da ruptura entre
etnia e cultura, Bastide chamou a atenção para o fato de que as nações,
enquanto organizações étnicas africanas, desapareceram no Brasil por
causa dos casamentos mistos e das misturas interétnicas no contingente
africano, permanecendo, entretanto, como tradições culturais. Em seguida,
Vivaldo da Costa Lima deu a este fato a formulação seguinte: a nação dos
antigos africanos “foi aos poucos perdendo sua conotação política para
se transformar num conceito quase exclusivamente teológico. Nação

52 Idem, p. 26. Katia Mattoso já havia anteriormente feito algumas observações neste senti-
do. Cf. Mattoso, “Os escravos na Bahia no alvorecer do século XIX: estudo de um grupo so-
cial”, publicado inicialmente em 1973 e republicado no livro Da revolução dos alfaiates
à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora, Salvador: Corrupio,
2004, particularmente as pp. 142-143.
53 Parés, A formação do candomblé, pp. 23-29 e 76-95. A confraria maki carioca é um bom
exemplo desses “ambientes mais restritos da comunidade negra”.

640 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de


candomblé da Bahia”.54
Nicolau, ao atribuir à “nação” o senso de identidade coletiva que su-
postamente prevalecia nos Estados monárquicos europeus, coloca o foco
na dissolução desta identidade, por isso sua ênfase também vai para as
denominações assumidas no processo de formação das nações africanas
no Brasil atual e para o fato de que “numa sociedade cada vez mais crioula
e miscigenada, a identificação a partir de nomes de nação foi perdendo
aos poucos a sua significação”. Nicolau explica muito bem o processo de
constituição de algo novo que emergia das cinzas da sociedade colonial, mas,
tal como Matory, não leva em consideração algo que funcionava naquela
formação social, entrando em declínio com o desaparecimento paulatino
da sua base demográfica e a perda da sua importância institucional. Neste
sentido, a proposta de substituição do termo “nação” por “denominação
metaétnica”, mesmo que a utilidade deste último seja declaradamente
descritiva, enquanto ferramenta do observador, implica a dispensa da
designação própria da instituição naquele contexto sociopolítico, para
a adoção de uma outra, criada pelo pesquisador, estranha ao contexto.
Assim, a indispensável tarefa epistemológica de denominação termina
ofuscando a denominação empírica, tornando o objeto, a instituição,
teoricamente invisível.
Já em O labirinto das nações, gostaria de destacar um dos capítulos
sob a responsabilidade de Flávio dos Santos Gomes, intitulado “Reinven-
tando as ‘nações’: africanos e grupos de procedência no Rio de Janeiro,
1810-1888", que traz ao nosso problema uma boa contribuição. Como o
título sugere, a ênfase volta-se para o tema dominante nos estudos acadê-
micos: reinvenção de identidades culturais africanas em um emaranhado
de grupos étnicos, “num contexto essencialmente urbano, cosmopolita,
comercial e atlântico, ligando (e transformando) permanentemente as
Áfricas, as Europas e as Américas”. A uma certa altura Gomes mostra-
se insatisfeito com as denominações de “nação”, encontradas na vasta
documentação que consultou, reafirmando, como de costume, que elas
seriam “construções do tráfico negreiro, das lógicas senhoriais e também
das invenções africanas as mais diversas”.55
Nesta perspectiva sua atenção volta-se para os novos espaços urbanos
conquistados pelos africanos do Rio de Janeiro, locais tanto de associação
quanto de conflito, para a demarcação de áreas comerciais, a organização

54 Vivaldo da Costa Lima, “O conceito de ‘nação’ nos candomblés da Bahia”, Afro-Ásia, no. 12
(1976), pp. 65-90, cit. p. 77, reproduzida integralmente em A família-de-santo nos can-
domblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais, Salvador: Pós-Gradua-
ção em Ciências Humanas da UFBA, 1977, p. 21.
55 Cf. Farias, Soares e Gomes, No labirinto das nações, pp. 50-53.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 641


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de grupos de moradia, de práticas religiosas, para a reinvenção de sinais


étnicos “de origem”, tatuagens, cortes de cabelo e penteados, toda uma
riqueza da cultura cotidiana parcialmente criada ou recriada aqui no
Brasil. Gomes também chama a atenção para outro tipo de desleixo com
as denominações étnicas e para outras irregularidades registradas na
documentação: escravos fazendo-se passar por libertos, africanos por
crioulos, pessoas de um grupo étnico por pessoas de um outro, casos de
identidade dupla e assim por diante. Na confusão das participações, das
assimilações e na flexibilidade do recrutamento, as identidades nunca
seriam fixas ou definitivas, com “corpos, línguas e mentes [...] remarcados
permanentemente em termos sociais e étnicos”.56
A narrativa de Gomes é empolgante, mas o final do capítulo citado
é que nos reservaria uma surpresa mais agradável ainda. Através de
uma documentação oficial, datada de 1813 a 1822, ficamos sabendo que
“a importância política das ‘realezas africanas’ era reconhecida pelas
autoridades”, bem como seus “brinquedos” (suas manifestações, no caso
específico da nação cassange, conhecidas por “bangalez”) e seus “bens”
(livros, bandeiras, tambores e outros instrumentos). O principal redator de
tais documentos é o intendente de polícia da Corte, Paulo Fernandes Viana,
o qual afirma que “todas as nações de Guiné que aqui vivem nos cativeiros
de seus senhores têm reis e rainhas anualmente eleitos”. Interpelado para
resolver um conflito de legitimidade entre “os pretos da nação cassange”,
considera prudente, segundo a narrativa de Gomes, “que tudo deveria ser
resolvido por meio dos ‘juizados de irmandades’, lembrando que ‘reger
os negros da nação’ citada, ‘só consiste em regular os tais bangalés, e na
irmandade [regular] os sufrágios’. Esse era seu parecer”.57
Além do mais, o rei cassange é tratado por esta autoridade policial
como uma “dignidade”, tendo “direitos de honra, e regalias”. Viana sabe
perfeitamente quais são as atribuições dos reis e das rainhas, ao indeferir
uma “representação”, e logo em seguida um “requerimento” da rainha
cassange, porquanto só aos reis “toca entender sobre estas coisas”. Gomes
assim conclui o seu capítulo:
Pode ser desvelada aqui uma face subterrânea das
reinvenções – entre solidariedades e conflitos – das
identidades africanas organizadas em ‘nações’. Africanos
de grupos étnicos diversos podiam ser identificados (e
identificarem-se) em grupos de procedências mais gerais,

56 Idem, pp. 50-56.


57 Idem, p. 55. A nação cassange, segundo Mello Moraes Filho, era uma das sete nações afri-
canas do Rio de Janeiro. Cf. Festas e tradições populares no Brasil, Belo Horizonte/S.Pau-
lo: Itatiaia/Edusp, 1979, p. 226. Esta documentação já havia sido examinada por Leila Me-
zan Algranti em O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro,
1808-1822, Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 145-6.

642 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

acontecendo o mesmo com os grupos de procedência


minoritários. Diferenças não seriam necessariamente
apagadas, mas semelhanças podiam estar sendo
construídas e redefinidas. Eleições ritualizadas, disputas
nas irmandades pela mesa diretora e controle de recursos,
e, posteriormente, a formação de ‘sociedades’ ampliadas
tinham sentidos resignificados [sic] no labirinto das
‘nações’.58

A “face subterrânea”, isto é, a instituição, é tocada, porém desse


toque não são tiradas as conclusões que se impõem, “a formação de
‘sociedades’ ampliadas” não recebe a atenção devida, preferindo o autor
enveredar mais uma vez pelas batidas trilhas da invenção de tradições. Ao
pretender que as nações “se reinventavam constantemente”, termina-se
deixando de lado precisamente o que elas tinham de constante, embora a
documentação levantada seja uma contundente confirmação de que, no
início do século XIX, as nações africanas eram instituições da sociedade
colonial carioca, distintas das irmandades porque tinham suas festas
próprias, livros de registro de suas atividades, suas insígnias com as quais
desfilavam nos dias festivos, marcando sua identidade política; porque
tinham seus dirigentes (reis e rainhas) legítimos, eleitos segundo meto-
dologias oficialmente estabelecidas, em um espaço institucionalmente
definido; porque a esses dirigentes era atribuída uma “dignidade” – termo
inequívoco do vocabulário político do Antigo Regime, vindo do latim dig-
nitas, título ou função que confere ao personagem um status eminente,
oficialmente estabelecido – tendo, portanto, prerrogativas reconhecidas
pelas autoridades estatais, dispondo, inclusive, de um espaço jurídico de
atuação, os “juizados de irmandades”, sob a supervisão geral do juiz de
resíduos e capelas do Tribunal da Relação. Diante disso, e dos demais dados
arrecadados, pode-se legitimamente pretender que a “nação” africana
era uma parte da estrutura política dos sistemas coloniais das Américas.
Seguindo a trilha de Roger Bastide e John Thornton, hoje é possível
aprofundar a teoria da nação colonial como instituição, não só a recolo-
cando no contexto local como também inserindo-a no contexto global,
investigando se houve alguma continuidade na passagem do mundo antigo
ao mundo moderno, procurando esclarecer quando e em que circunstâncias
ela foi instituída no Brasil, por quem foi apoiada ou combatida.
Léo Moulin, no seu livro sobre os estudantes na Idade Média eu-
ropéia, nos oferece uma introdução bastante útil a uma tentativa de
aprofundamento. Os primeiros registros escritos do termo “nação” que
ele encontrou estão em duas bulas do Papa Honório III, datadas de 1219 e
1222, mas só em 1249 existe menção expressa às “nações” da Universidade

58 Farias, Soares e Gomes, No labirinto das nações, pp. 53-56.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 643


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

de Paris. Como as grandes universidades europeias eram cosmopolitas,


seus estudantes eram organizados não em faculdades, mas justamente
em “nações”. O sistema parisiense das quatro nações estudantis foi ampla-
mente adotado na Europa, entre outras, pelas universidades de Bolonha,
Oxford, Praga, Viena, Lípsia, Lovaina e Aberdeen, uma vez que o número
quatro representava a categoria do universal na numerologia medieval.
Temos, portanto, um critério mais voltado para a teologia e a doutrina,
do que para as realidades linguísticas e culturais dos diversos grupos de
estudantes. Porém cada universidade tinha seus critérios particulares de
segregação e aglomeração; por exemplo, diferentemente de Paris, cujas
quatro nações eram a gálica, a inglesa, a picarda e a normanda, as quatro
nações de Bolonha eram a lombarda, a toscana, a emiliana e a ultramontana,
as de Viena eram a austríaca, a tcheca, a saxônica e a húngara, enquanto
a Universidade de Pádua instituiu não quatro, mas vinte e duas nações.
Por outro lado, a composição das próprias nações variava muito. A Ho-
noranda Gallorum Natio parisiense incluía naturalmente os estudantes de
Paris, mas também os das dioceses de Sens, Reims e Tours na atual França,
Bruges na atual Bélgica, bem como os estudantes de Portugal, da Espanha,
da Itália e da Sabóia. Portugal e Espanha, aliás, partes do território da His-
pania, antiga e prestigiosa província romana, eram geralmente considerados
uma só “nação” (a natio hispanica). Na Universidade de Bolonha a “nação”
germânica incluía, em 1202, os noruegueses, os morávios, os lituanos e
os dinamarqueses, agregando-se a ela os frísios em 1292 e os lorenos em
1296. Acrescente-se que esses grêmios corporativos eram legalmente
regulamentados, os estudantes tinham suas padroeiras, estatutos que
previam eleições livres e regulares pela assembleia geral, constituíam uma
mesa dirigente com procurador e tesoureiro, tendo os delegados estudantis
inclusive o direito de eleger os professores e o reitor do ano seguinte. 59 Ou
seja, a “nação” podia ser não só um agrupamento etnicamente heterogê-
neo, como um amálgama de critérios heterogêneos, uma composição em
que a origem territorial e linguística era mais ou menos levada em conta,
porém considerando-se também, a depender dos contextos, diversos outros
fatores, como a religiosidade e os rituais da tradição, a pertença a deter-
minadas paróquias, os contingentes populacionais, as comunidades locais,
os costumes, as vassalagens, a condição social e até mesmo as corporações
profissionais. “Nação” podia ser também uma comunidade expatriada,
como os judeus em Portugal ou os armênios no Império Otomano, grupos
estrangeiros, como os mercadores de fala alemã ou inglesa em Antuérpia,
Veneza ou Lisboa, e assim por diante.

59 Cf. Léo Moulin, A vida quotidiana dos estudantes na Idade Média, Lisboa: Editora Livros
do Brasil, 1994, cap. 4; e Franco Cambi, História da pedagogia, São Paulo: Editora Unesp,
1999, especialmente pp. 182-186.

644 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Ao iniciar-se a era dos “descobrimentos”, em Portugal a expressão


“gente de nação” (ou “da nação”) designava mais habitualmente os judeus
habitantes nas cidades portuguesas, a segunda maior minoria do Reino,
depois da “nação” africana. Outras nações estrangeiras menores esta-
belecidas em Portugal eram os flamengos, os ingleses, os castelhanos,
os granadinos, os genoveses, os venezianos, etc. A nação judaica, como
as demais, não fazia parte do “povo”, mas tinha sua organização social
própria, o seu “comum”, vivia em suas judiarias, seus bairros privativos
onde podia exercer legalmente o culto tradicional, regendo-se pelo seu
direito costumeiro e tendo seus magistrados eleitos pela própria comu-
nidade, subordinados diretamente a um funcionário real, o Arraby Moor
dos Judeos, assessorado por procuradores e ouvidores especiais.
Por intermédio de uma série de leis promulgadas a partir de 1440,
registradas no Livro II das Ordenações Afonsinas, tomamos conhecimento
dessas “comunas” judaicas, bem como das “comunas dos Mouros forros”
portuguesas, que também tinham as suas mourarias e um Arraby Moor
dos Mouros. Neste primeiro momento a comunidade judaica estava bem
integrada à sociedade portuguesa, detinha um poder econômico considerá-
vel, controlava as atividades financeiras do reino, ocupava altas posições
na administração financeira da Coroa, muitos judeus eram intelectuais
respeitados, astrônomos, astrólogos e médicos a serviço da administração
pública. Eram também artesãos qualificados em vários mesteres, situação
que foi mantida até a conversão forçada em 1512.60
Esta política tolerante, na verdade, integrava à arquitetura social
portuguesa uma instituição herdada das cidades gregas helenísticas,
posteriormente das cidades controladas pelo Império Romano às margens
do Mediterrâneo oriental, nas quais não só os judeus, bem como todas as
minorias imigrantes importantes, designadas pelo termo grego politeu-
ma, possuíam suas organizações comunitárias próprias. Por exemplo,
em Delos estabeleceram-se os sírios e os itálicos, e em Alexandria, os
frígios, os beócios e os licianos. Essa instituição, é claro, foi um resultado
da prosperidade e da abertura das cidades, do aumento do comércio e do
intercâmbio, digamos, internacional, naquela área do planeta.
Essas politeumata mantinham relações oficiais com o demos, o corpo
constituído dos cidadãos de pleno direito. No seu âmbito os estrangeiros

60 As Ordenações Afonsinas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998 (reprodução fa-


c-símile da edição de 1792), no seu livro II, apresentam uma série de leis relativas aos
judeus a partir do título LXIIII, p. 445 e segs.; e relativas aos mouros a partir do título
LXXXXVIIII, p. 529 e segs. A respeito do contexto histórico, ver António José Saraiva,
Inquisição e cristãos novos, Lisboa: Editorial Estampa, 1985, “Introdução” e caps. 1, 2 e 7;
e Joaquim Romero Magalhães, “O enquadramento do espaço nacional”, in José Mattoso
(dir.) e J. R. Magalhães (org.), História de Portugal (Lisboa: Editorial Estampa, 1993), vol.
3, pp. 13-59.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 645


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podiam eleger seus representantes legítimos diante da autoridade local e


fundar agremiações inspiradas nas irmandades populares urbanas; embora
proibidos de participar dos cultos cívicos oficiais, podiam cultuar suas
religiões tradicionais e construir suas sinagogas e templos particulares.
A expansão do Cristianismo começou quando as primeiras irmandades
cristãs foram fundadas a partir de cisões nas irmandades judaicas, logo
após a era apostólica.
Em 49 a.C. Lúcio Antônio, administrador imperial da província da
Ásia escreveu aos magistrados da cidade de Sardes:
Cidadãos judeus dos nossos vieram a mim e destacaram o
fato de que desde os tempos mais antigos eles tinham uma
associação [synodos], instruída com sua própria anuência,
que usava suas lei nativas [katatous patrious nomous] e
um lugar [topos] de sua propriedade, em que decidem seus
problemas, negócios e controvérsias uns com os outros.

Wayne A. Meeks, de quem tomo esta citação, comenta que as auto-


ridades de Sardes estavam ameaçando esses direitos adquiridos, que o
oficial romano “agora providencia para que sejam mantidos como o eram
antigamente”.61
Reis negros no Brasil escravista, livro recheado de informações in-
teressantes, também nos traz outra ilustração desta instituição europeia,
ao citar Fernando Ortiz e os famosos cabildos afro-cubanos. Baseando-se
nas crônicas de Zuñiga, Ortiz afirma que essas associações americanas
foram inspiradas em outras semelhantes que funcionavam em Sevilha
desde o século XIV, na verdade uma instituição espanhola de integração
dos imigrantes estrangeiros nos moldes da politeuma greco-romana,
os quais podiam eleger seus chefes e juízes, “embaixadores” diante das
autoridades locais, oficialmente reconhecidos. 62 Ou seja, a “nação”, a
“comuna”, a politeuma, enquanto comunidade estrangeira, constituía uma
cidadania de segunda categoria integrada às sociedades grega, romana,
europeia medieval, espanhola e portuguesa, uma inclusão sem dúvida
desigual, cheia de restrições, mas que assegurava certos direitos, visando
a paz social e a prosperidade dos negócios. Fazia, portanto, parte de uma

61 Cf. Wayne A. Meeks, Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo,
São Paulo: Edições Paulinas, 1992, caps. 1 e 3. Sobre a fundação das primeiras irmanda-
des cristãs, cf. Wayne A. Meeks, O mundo moral dos primeiros cristãos, São Paulo: Paulus,
1996, pp. 99-100; Lewis Mumford, A cidade na história, suas origens, transformações e
perspectivas, São Paulo: Martins Fontes, 1991, cap. VII; Robin Lane Fox, Pagans and Chris-
tians in the Mediterranean world from the second century AD to the conversion of Cons-
tantine, Londres: Penguin Books, 1986, cap. 6, particularmente as pp. 318-335; e Paul Pe-
tit, A paz romana, São Paulo: Livraria Pioneira, 1989, pp. 165-173. Também consultado
Moses I. Finley, Política no mundo antigo, Lisboa: Edições 70, 1997.
62 Souza, Reis negros, p. 171.

646 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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pragmática de política moderada, vinda da Grécia antiga, instituída pelo


Império Romano e herdada pelo resto da Europa.
Na mesma passagem Marina de Mello e Souza argumenta que o fato
de estarem estabelecidas nas metrópoles “não explica a imensa disse-
minação de tais associações entre os africanos e seus descendentes do
Novo Mundo, mas mostra a amplitude de circuitos culturais que uniam
a Península Ibérica, a África e a América”. Ora, estavam instaladas nas
metrópoles justamente porque eram uma instituição tipicamente urbana,
porque nas cidades é que se aglomeravam as comunidades imigrantes, sua
“imensa disseminação” entre os escravos dando-se exatamente nas cidades
do mundo colonial. Por isso é importante reconhecer a vastidão desta
área cultural, mas seria preciso sair da generalidade e pensar em termos
de cultura política e empréstimo de estruturas políticas: as sociedades
coloniais americanas, sendo variações das sociedades do Antigo Regime,
suas instituições urbanas tendiam a ser, se não as mesmas, análogas, com
todas as inevitáveis adaptações.
Mas a reação do demos de Sardes também revela outro dado determi-
nante, a saber que esta prudência política nem sempre era bem seguida,
pois toda vez que uma dessas comunidades estrangeiras prosperava e
enriquecia, podia ser objeto de perseguições e reações xenofóbicas, ou
servir de bode expiatório em conjunturas complicadas. Foi justamente o
que aconteceu mais uma vez em Portugal com relação aos judeus, onde
esses direitos foram contestados, suprimidos. A religião hebraica que
era, em Portugal, um culto público e notório nos períodos “liberais” de
Dom João II, Dom João III e Dom Manuel, foi reduzida à clandestinidade,
sendo a comunidade obrigada pela força a filiar-se ao Cristianismo. Em
função das fortes alianças no mundo oficial, os cristãos-novos puderam
preservar seu patrimônio, até que a instituição da Inquisição portuguesa
em 1536 veio interromper este processo de integração e iniciar novo
ciclo de perseguições. 63
Este panorama, embora esquemático, é suficientemente revelador de
que a nação institucionalizada entre nós não pode ser considerada apenas
uma arbitrariedade do tráfico negreiro ou um produto da imaginação dos
senhores e dos seus escravos. Se levarmos seriamente em consideração o
movimento do contexto ocidental como um todo, o problema fundamental
se desloca: interessante para nós não é apenas a heterogeneidade ou a

63 Saraiva, Inquisição e cristãos-novos, pp. 26 e 135-136; e António Borges Coelho, “Minorias


étnicas e religiosas em Portugal no século XVI”, in Maria da Graça M. Ventura, Viagens e
viajantes no Atlântico quinhentista (Lisboa: Edições Colibri, 1996), pp. 155-182. Também
consultados Ana Cristina Nogueira da Silva e António Manuel Hespanha, “A identidade
portuguesa”, in Mattoso (dir.) e A. M. Hespanha (org.), História de Portugal, vol. 4, pp. 22-
24; e Joaquim Romero Magalhães, “Os cristãos-novos: da integração à segregação”, in Mat-
toso (dir.) e J. R. Magalhães (org.), História de Portugal, vol. 3, pp. 475-482.

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 647


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

instabilidade desses agrupamentos, nem tampouco o nome, a “palavra


favorita”; existe algo mais fundamental a ser salientado, a natureza da
organização que a denominação designa, sua estrutura e suas funções,
ou seja, defini-la como organização da base social antiga, àquela altura
com pelo menos 2000 anos de idade no espaço político europeu, herdada
pelos colonialistas e integrada à ordem escravista moderna; ou, em termos
mais abstratos, como um modo convencional de segmentar a população,
de caracterizar certos grupos, tornando enquadráveis e previsíveis os
comportamentos coletivos.
Assim, tanto as nações estudantis medievais quanto as nações afri-
canas coloniais, enquanto entidades urbanas mantidas na passagem da
Antiguidade ao Antigo Regime, não consideravam inconveniente algum
aglomerar um público heterogêneo, proveniente de vastas regiões com
fronteiras incertas, falando línguas diferentes, porém com algum fundo
cultural ou linguístico comum; podiam também aglomerar um pequeno
grupo mais específico, falando língua própria, ou arranjar composições
mais variadas, de acordo com as circunstâncias demográficas; além do
mais, tinham o direito de manter espaços próprios na urbe, organizar
irmandades para cultuar suas divindades e eleger representantes
oficialmente reconhecidos, segundo enquadramentos jurídicos ou
convencionais.
No contexto colonial americano é fácil perceber por que os africanos,
duplamente estigmatizados, como escravos e como estrangeiros, “aderiram
com entusiasmo” à instituição. Ser considerado membro de uma nação
africana na sociedade colonial brasileira era ingressar no nível mais
elementar da cidadania, ter o direito de participar de irmandade leiga ou
regimento de ordenanças, estabelecer alianças em um ambiente relativa-
mente seguro, ganhar visibilidade pública ao desfilar nas procissões cívicas
e nas festas costumeiras, administrar um espaço próprio, vislumbrar uma
mobilidade social, mesmo que limitada. Adquirir, em resumo, o estatuto
de pessoa política em um ambiente social hostil. Nesse contexto, pouco
importava que um escravo benguela se assumisse como congo, porque
ele poderia manter-se benguela no seu reduto: o que estava em jogo não
era sua identidade étnica real, era a relação que ele estabelecia naquele
novo ambiente de convivência cívica, a nova identidade pública assumida
e consentida pelas autoridades e pelos pares. A coexistência de uma diver-
sidade de subgrupos nas nações não deve, portanto, ser denunciada como
desmanteladora cultural, considerada uma espécie de defeito histórico,
deve ser teoricamente considerada uma das características das nações
urbanas antigas, aspecto da estrutura política estamental montada em
um ambiente demográfico complexo.
Além do mais, na prática, esta política de aglomeração/segregação
também oferecia aos africanos algumas vantagens. Para os grupos ou
subgrupos étnicos mais numerosos representava a possibilidade real de

648 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

legitimar sua liderança e ampliar sua esfera de influência, ao congregar


uma grande quantidade de pequenos grupos ou indivíduos afins; para
estes últimos era aberta a possibilidade de participar de uma organização
que tinha algumas prerrogativas legais, algumas funções importantes,
preenchendo o anonimato político com uma nova identidade que, além
do mais, não traía completamente a sua origem.
Por outro lado, quando se afirma que “o conceito de nação era uma
categoria imposta pelo colonizador escravista”, cabe perguntar: qual
colonizador, quando? Os exemplos históricos mostram que a instituição
nação foi apoiada ou contestada, dependendo da linha política predomi-
nante, e que, através dos tempos, os políticos moderados e as políticas de
abertura é que as promoviam. Embora as referências a elas, como grupos
mais informais, possam ser anteriores, isto explica por que as nações
africanas foram institucionalizadas no Brasil precisamente na segunda
metade do século XVII.
A nação africana não foi inventada um belo dia para denominar
o escravo como produto no mercado, ou para controlar uma massa
trabalhadora explorada, foi instituída em um momento determinado,
o contexto da Restauração: Portugal recuperava a independência
política, fundava uma nova dinastia, mas era acossado pela Espanha
e pela Holanda, perdia importantes colônias no Oceano Índico, seu
império encontrava-se econômica, política, social e militarmente
fragilizado. O Brasil passa, então, a ser a principal colônia portuguesa,
mas a participação dos crioulos e de uma parte da população africana
na luta contra os invasores holandeses exige retribuição, quilombos
ameaçadores grassam por toda parte...Nesse momento um novo pacto
colonial foi fundado pelos emissários especiais do imperador. Ao lado da
reorganização do Estado, da demarcação mais rigorosa das fronteiras,
da reestruturação da administração pública, instaurou-se então uma
política mais democrática, diríamos hoje, uma redistribuição dos poderes
no âmbito da qual o Brasil ganhava direito de representação nas Cortes
portuguesas, fundavam-se na colônia instituições judiciais, eclesiásti-
cas, políticas e administrativas metropolitanas, como o arcebispado, os
conselhos municipais, os juízes do povo, o padroado, ao tempo em que
eram convocados todos os segmentos da população para participar do
novo pacto, inclusive os libertos, africanos e crioulos.
Este programa tinha sem dúvida um caráter centralizador, mas pre-
cisava também estimular o sentimento de lealdade dos vassalos, por isso
era aberto algum espaço de participação à majoritária população negra,
com uma melhor organização e visibilidade pública das nações africanas, a
refundação das irmandades negras nos moldes das irmandades populares
europeias, a construção das suas primeiras igrejas confrariais próprias, a
oficialização, devido ao seu sucesso na luta contra o invasor, dos regimentos
de ordenanças crioulos, e até mesmo africanos, a instituição dos “reis do

NAÇÃO AFRICANA NO BRASIL ESCRAVISTA: PROBLEMAS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 649


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Congo”, dos “governadores da gente preta”, como representantes máximos


da população afro-brasileira, e a instituição de toda uma hierarquia de
representantes civis e militares eleitos na sua base social.64
As nações não eram, portanto, mecanismos econômicos de controle
da massa trabalhadora instaurados pelos senhores de escravos, pois
escapam do “complexo do engenho” ou da problemática da “casa grande
& senzala”; eram instituições cívicas, só ganhariam significação plena
em uma cidade mercantilista de população diversificada, ou em uma
região de produção densamente povoada, onde a negociação econômica
e a parlamentação política, facilitadas pelas representações instituídas,
eram cotidianas, permanentes.
Essa tradicional instituição da política de integração/segregação das
minorias estrangeiras surgiu, portanto, no Brasil colonial em momento
propício a um estabelecimento duradouro, jamais deixando, contudo, de ser
contestada pelas correntes de opinião intolerantes que viam nela grande
perigo para a ordem estabelecida, até sua folclorização definitiva com o
declínio da sociedade colonial ou sua mutação nas nações-de-candomblé
da atualidade.65

64 Panorama traçado com a ajuda de alguns textos indispensáveis: Rodolfo Garcia, Ensaio
sobre a história política e administrativa do Brasil, 1500-1810, Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1975, cap. XVII; João Alfredo Libânio Guedes, História administra-
tiva do Brasil/4: da restauração a D. João V, Brasília: Fundação Centro de Formação do
Servidor Público, 1984; Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes da formação administra-
tiva do Brasil/2, Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Conselho Fe-
deral de Cultura, 1972; Luiz Geraldo Silva, “Da festa à sedição: sociabilidades, etnia e con-
trole social na América portuguesa (17761814)”, in István Jancsó e Iris Kantor (orgs.), Fes-
ta: cultura e sociabilidade na América portuguesa (São Paulo: Hucitec/Edusp/Fapesp/Im-
prensa Oficial do Estado, 2001), vol. I, pp. 313-335; Marcelo Mac Cord O Rosário de D. An-
tônio: irmandades negras, alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872,
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2005; Maria de Fátima Silva Gouvêa, “Poder políti-
co e administração na formação do complexo atlântico português (16451808)”, e António
Manuel Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamen-
tos correntes”, ambos in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa
(orgs.), O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVIXVIII)
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), respectivamente pp. 163-188 e 285-315. E,
com algumas restrições: Eduardo d’Oliveira França, Portugal na época da Restauração,
São Paulo: Editora Hucitec, 1997, particularmente a terceira parte, cap. 2.
65 Todos esses temas receberão tratamento mais detalhado ao longo do livro inédito de onde
o presente artigo foi extraído.

650 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


CAPÍTULO 20

esCrAvos brAsileiros no dAoMé


J. Michael Turner1

Este ensaio tem por objetivo investigar e analisar um exemplo de


interpenetração, com a respectiva troca de valores de duas culturas. Os
afro-brasileiros, que constituem a base deste estudo, são, eles próprios,
uma combinação de estilos de vida, religiões e atitudes contrastantes.
Pois enquanto o instituto variado e complicado da escravidão (como foi
praticado no Brasil) serviu de experiência comum à grande maioria de
pretos que procuraram emigrar para a África Ocidental, houve também
negros livres que viviam na Cidade do Salvador e que tomaram a decisão
de deixar o Brasil. O que estava sendo, então, levado para o Daomé era,
pois, uma cultura em grande parte baseada na experiência brasileira
ou ocidental, mas com um fundamento essencialmente derivado de um
background afro-ocidental, uma herança preservada mesmo através da
experiência da escravidão.
Embora o impulso maior da emigração proviesse de acontecimen-
tos ocorrentes no Estado da Bahia durante o século dezenove, existem,
também, informações, acerca de afro-brasileiros que retornaram para
a África Ocidental no século dezoito. Antônio Vaz Coelho, por exemplo,
nascido de pais escravos na Bahia, chegou a Porto Novo cerca de 1775 e
tornou-se, ele próprio, traficante de negros durante os primeiros anos
do século dezenove.2 Este não constitui um exemplo isolado ou único, o
que fica demonstrado pelo estudo do tráfico de negros efetuado por C.
W. Newbury, e no qual se indica que os brasileiros começaram a chegar à
Costa antes do fim do século dezoito. 3 Existia, realmente, uma tradição
de emigração para a África Ocidental pelo número crescente de afro-bra-
sileiros que começaram a sair do Brasil na segunda e terceira décadas do
século dezenove.

1 Bolsista do Foreign Area Fellowship Program (American Council of 1-æarned Societes,


Social Science Research Council, Ford Foundation, EUA).
2 DUNGLAS, Edouard. Contribution à l'Histoire du Moyen-Dahomey, Etudes Dahoméennes.
Dahomey, (19): 1957, 39.
3 NEWBURY, C. W. The Western Slave Coast and Its Rulers. London,1961, pp. 36-37.

651
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Ao analisar as razões de tal emigração torna-se importante deter-


minar a natureza e caráter da escravatura conforme existiu no Estado da
Bahia durante o século dezenove. A escravidão no Brasil e alhures pode
ser vista através de uma perspectiva tanto de distância espacial como
sociológica.4 (3). Senhores e escravos muitas vezes ocupavam a mesma
casa e orientavam as suas vidas, muito próximos uns dos outros.
Dentro desse contexto íntimo, um código de etiqueta complexo era
seguido, tanto pelo senhor como pelo escravo, no empenho de reforçar a
distância sociológica entre eles. 5 O escravo que vivia e trabalhava numa
aproximação íntima com o senhor, começou, lentamente, a aceitar e
adotar a cultura e os costumes da sociedade dominante e tal assimilação
evidenciava-se particularmente nos escravos que trabalhavam nas grandes
fazendas. Como, porém, a fazenda formasse uma sociedade independente,
todos os membros da mesma eram influenciados pela cultura do senhor.
A implantação direta de traços culturais e de um conjunto particular de
valores era assim facilmente evitada pelos escravos que podiam viver
na Cidade do Salvador. Pode-se enxergar uma certa correlação entre a
residência urbana e a aderência professada pelos escravos ao islamismo.
Os observadores do século dezenove, Kidder e Fletcher, escreveram que
os escravos muçulmanos eram tidos como péssimos serventes domésticos
e por isso tinham licença de viver em Salvador e pagar uma quota fixa
do que ganhavam aos seus senhores. 6 O escravo urbano era conhecido
como negro de ganho, e ordinariamente trabalhavam como carregador
ou vendedor ambulante.7
As comunicações entre a população escrava da cidade e a sociedade
brasileira dominante limitavam-se a relações funcionais específicas.
Verger apresenta uma série de argumentos de observadores do século
dezenove num esforço de determinar se a vida do escravo urbano era mais
difícil do que a do escravo rural.8 Pareceria importante considerar-se que
o escravo urbano, em certo sentido, permanecia como seu próprio dono; sua
responsabilidade em relação a um outro indivíduo era principalmente de
fundo econômico.9 O escravo urbano podia conservar com mais facilidade
as tradições africanas do que o escravo do campo e, no caso dos muçulma-
nos, a própria religião. A rua tornara-se importante meio de comunicação

4 VAN DER BERGHE, Pierre L. Race and Racism a Comparative Perspective. New York,
1967, p. 65.
5 VERGER, Pierre. Flua et reflux de Za traite des nègres entre te Golfe de Bénin et Bahia de
Todos os Santos, du XVII au XIX siècle. Paris, Mouton, 1968, p. 488.
6 RIDDER, D. P., FLETCHER, J. C. BraziZ and the BraziZians. Philadeiphia, 1857, p. 135.
7 VERGER, Pierre. op. cit., p. 488; MARTIN, A. Slavery and Abolition in Brazil. Hispanic
American Historical Review. North Caroline, 13 (2): 165, May, 1933.
8 VERGER, Pierre. op. cit., pp. 497-498.
9 PIERSON, Donald. Negroes in Brazil. Chicago, 1942, p. 40.

652 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

entre os escravos da cidade; servia-lhes de sala de encontros. Certas ruas


de Salvador eram consideradas pelos brancos arriscadas e por isso eram
evitadas.10 A preocupação influenciou a legislação, e desse modo, uma lei
decretada em 1807, após uma rebelião de escravos, proibia os mesmos de
passearem pelas ruas da cidade depois das nove horas da noite.11
O escravo urbano podia formular planos de revolta mais facilmente,
pois era capaz de manter uma distância maior entre ele próprio e a so-
ciedade branca. O fato do "negro de ganho" ser bem-sucedido no seio de
uma economia monetária e poder ganhar um salário semanal deu-lhe uma
perspectiva diferente da do escravo rural. Em certo sentido, o escravo ur-
bano experimentava uma semiliberdade; e é perfeitamente compreensível
que seu objetivo fosse o de conseguir a liberdade total, comprando-a ou
conquistando-a. Sociedades eram então formadas por escravos urbanos,
num esforço de arrecadar recursos econômicos coletivos os quais seriam
empregados na compra da liberdade dos seus sócios. 12 E seria nas ruas
que os líderes mais ativos das insurreições poderiam formular e tramar
os planos rebeldes.
Em 1807 os incitadores da revolta parecem ter sido escravos da Nigé-
ria setentrional.13 O fator principal da rebelião fracassada foi o desejo de
retornar à África. Como tática de dissimulação os escravos conseguiram
atear fogo à Alfândega de Salvador.14 Entre 1807 e 1809 parece que os
escravos muçulmanos puderam exercer uma influência considerável
sobre os que não eram muçulmanos e os converteram ao islamismo.
Tanto os escravos iorubás como os do norte da Nigéria participaram das
rebeliões de 1808 e 1809; o islamismo foi o laço comum entre os diversos
grupos tribais. 15 Os atritos ocorridos em 1808 e 1809 foram planejados
em Salvador, embora o foco se achasse na região rural, nas fazendas do
Recôncavo. Embora o plano da revolta de 1808 não fosse prematuramente
revelado às autoridades, aparentemente sofreu de falta de organização
e foi ela rapidamente sufocada pelo governo baiano.16
Essas primeiras revoltas, instigadas, em grande parte, pelos escravos
muçulmanos, foram uma fonte real e constante de temor para os brancos
que viviam em Salvador e em todo o Estado. O desejo dos muçulmanos de
conseguirem a liberdade, e sua grande influência, por meio do exemplo,

10 VERGER, Pierre. op. cit., p. 500


11 VERGER, Pierre. op. cit., p. 329
12 MARTIN, A. op. cit., p. 165; PIERSON, Donald. op. cit., p. 39
13 VERGER, Pierre. op. cit., p. 328.
14 VERGER, Pierre. op. cit., p. 328.
15 VERGER, Pierre. op. cit., p. 329. FREYRE, Gilberto. The Masters and the Slaves. New York,
1956, p. 315.
16 VERGER, Pierre. p. 329

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 653


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

sobre grande número de escravos não-muçulmanos, serviu de fonte de


ansiedade para os brancos que eram numericamente muito inferiores
à população de escravos. Os acontecimentos do Haiti também serviram
para reforçar o temor dos donos das fazendas de uma revolta geral dos
escravos e do que poderia vir a ser uma sublevação social no Brasil. Esses
proprietários estavam convencidos de que uma vez iniciada a revolta,
sua meta final seria a eliminação de todos os brancos do Brasil. 17 As
tramas políticas internacionais foram também consideradas fatores que
contribuíram para a falta de tranquilidade social na Bahia; os fazendeiros
acreditavam que os britânicos não considerariam desfavoravelmente uma
revolta em massa de escravos no nordeste brasileiro.18
Tal fato perturbador da ordem permitiria, provavelmente, aos ingle-
ses, se tornarem politicamente dominantes no Brasil. Embora cada uma
dessas insurreições fosse sumariamente supressa pelas autoridades, a
apreensão geral da população branca continuamente aumentava.
Insurreições menores ocorreram em 1814 e 1816. Os incitadores
eram novamente tidos como escravos do norte da Nigéria; e os donos de
fazendas exigiram que se fizessem restrições às atividades dos escravos da
Cidade do Salvador. Os batuques ou reuniões de escravos foram proibidos
pelas autoridades locais.19 Essa tentativa legal de controlar tal conduta
apenas serviu contudo, para mudar as áreas de reunião, das ruas para o
interior das choupanas dos escravos. Novas revoltas ocorreram em 1816
e 1826, e o papel de líderes coube aos escravos urbanos, com os escravos
muçulmanos tendo neles um papel de destaque.20
A rebelião ocorrida em 1835 é considerada a mais séria insurreição
de escravos da Bahia durante o século dezenove; foi a melhor planejada
e teve uma associação direta com o islamismo. Uma correspondência
substancial mantida entre os chefes da rebelião foi encontrada pelas
autoridades investigadoras; e tal correspondência era escrita em ára-
be. O Padre Etienne Ignace, que estudou a rebelião de 1835, afirma
que a caligrafia dos muçulmanos do século dezenove assemelhava-se
muitíssimo ao estilo dos berberes norte-africanos. 21 Acreditava ele
que era intenção dos muçulmanos promoverem uma guerra religiosa
contra os infiéis da Bahia. Amuletos semelhantes aos fabricados pelos
marabus africanos do Oeste eram usados por todos os participantes
da insurreição. Esses amuletos (gris-gris) continham tantos versos do

17 VERGER, Pierre. op. cit., p. 328


18 VERGER, Pierre. op. cit., p. 329.
19 VERGER, Pierre. op. cit., p. 330.
20 VERGER, Pierre. op. cit., pp. 332-3.
21 ETIENNE, Ignace. La secte musulmane des malés du Brésil et leur revolte eu 1835. An-
thropos. Wien, 1909. V. 4, p. 100.

654 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Corão como declarações violentamente anticristãs, todas escritas em


árabe. 22 Enquanto muitos dos escravos muçulmanos e todos os marabus
sabiam escrever em árabe, os muçulmanos da Bahia conheciam versos
ou suratas do Corão. 23 Tal conhecimento provinha das escolas islâmicas
fundadas em Salvador, escolas que serviam para "politizar" os escravos
muçulmanos. Os marabus instruíram seus discípulos para fazer a guerra
santa contra os brancos, mulatos livres e outros escravos aos quais
deram a oportunidade de se tornarem muçulmanos, mas que se tinham
recusado. 24 Os participantes da rebelião deviam usar vestes brancas e
turbantes. Os marabus afirmavam que a salvação pessoal seria obtida
apenas pela participação na guerra santa. 25
A tática da rebelião de 1835 encerrava uma série de atividades
diversionistas que foram planejadas para ocorrer oito dias após a festa
do Bonfim (rito religioso que foi introduzido na África Ocidental pelos
antigos escravos, em fins de janeiro. Como as autoridades houvessem sido
avisadas por um escravo iorubá de que se esperava alguma espécie de
tumulto da comunidade muçulmana, a eficácia da rebelião foi um tanto
abalada. Porém a Cidade do Salvador e a região agrícola circunvizinha foram
foco de vários ataques organizados, que ocorreram simultaneamente. 26
A milícia provinciana foi usada tentando dominar os tumultos e durante
um dos choques ocorridos as tropas sofreram uma séria derrota por parte
dos insurgentes. Nas prisões em massa que se seguiram à rebelião, os
relatórios policiais indicam que os iorubás presos entre os escravos do
norte da Nigéria — os nagôs — sabiam também ler em árabe ou recitar
orações islâmicas.27 Mais de cento e sessenta escravos foram acusados
pelas autoridades baianas; dos processados, cinquenta eram escravos de
estrangeiros residentes na Bahia e desses cinquenta constatou-se que
quarenta e cinco pertenciam a ingleses. 28 O temor tradicional que inspira-
vam os escravos apoderou-se da população da Bahia e parecia confirmado
como procedente, pelos acontecimentos de 1835. A conspiração parece
ter-se dirigido contra o Estado e contra a classe de proprietários rurais.
Para os participantes da rebelião de 1835, o ataque visara o fim de
sua submissão à comunidade de infiéis. Na África Ocidental e no Brasil

22 ETIENNE, Ignace. op. cit., p. 407.


23 WILKES, Charles. Narrative oj the U.S. Exploring Expedition, During the Years 1838, 39,
40, 41, 42. Philadelphia, 1849, p. 55
24 VERGER, Pierre. op. cit., p. 339.
25 VERGER, Pierre. op. cit., P. 340.
26 VERGER, Pierre. op. cit., p. 335; FREYRE, Gilberto. op. cit., p. 299; ETIENNE, Ignace. Op. cit.,
p. 408.
27 VERGER, Pierre. op. cit., p, 342.
28 VERGER, Pierre. op. 345.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 655


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

o ulama achava-se rodeado de infiéis e governado por pessoas conside-


radas pagãs. Os marabus, que nutriam ódio por todos os infiéis, brancos
ou não, estavam agindo de acordo com a tradição do profeta e de seus
companheiros. Na sua avaliação final da rebelião de 1835, Ignace declara
que se a comunidade muçulmana tivesse sido bem-sucedida, teria tentado
fundar um estado teocrático ao norte da Bahia.29
A apreensão dos fazendeiros e dos que viviam na Cidade do Salvador
rapidamente evoluiu no sentido da supressão de todos os escravos "negros
de ganho" e de homens livres que fossem muçulmanos ou suspeitos de o ser.
Foi então como resultado direto dessa opressão crescente que se formaram
sociedades com o fim de fretar navios que levassem os afro-brasileiros de
volta à costa ocidental africana. Kidder e Fletcher descrevem um grupo
de escravos "Mina" que retornaram a Badagry após fretar um vapor pela
soma de quatro mil dólares.30 Os primeiros emigrantes afro-brasileiros
devem ter-se concentrado em Lagos; e escreve Newbury que os primeiros
escravos que voltaram nos fins do século dezoito, serviram de agentes
incentivadores do tráfico de escravos naquela parte da costa, enquanto os
chegados posteriormente se instalaram em Anecho, por detrás da lagoa
de Lagos. 31 As pressões externas deveriam forçar os afro-brasileiros a
mudarem suas localizações de Lagos e Badagry para Agiiê e Porto-Novo.
A vigilância crescente da marinha britânica que se seguiu ao Ato da
Abolição de 1807, o policiamento dos portos de Lagos e Badagry, serviram
para forçar os afro-brasileiros no princípio do século dezenove a trans-
ferir suas operações para portos mais neutros; escreve Verger que vários
negociantes de escravos foram, então, deportados de Lagos e escaparam
para Ouidah, Porto Novo e Agüê.32 O fato dos emigrantes poderem ser
identificados ou identificarem-se como inimigos dos ingleses serviu
para reforçar-lhes a posição com os negociantes de escravos nativos;
os emigrantes de Sierra Leone ou Saros achavam-se em posição muito
menos vantajosa, sendo indiretamente identificados como anglicanos
e por isso simpáticos à política antiescravocrata dos ingleses.33 (32) . Os
antigos escravos brasileiros logo compreenderam sua posição singular
de revendedores e tiravam lucro substancial de tal fato
A aldeia costeira de Agüê foi fundada em 1821 pelo escravo brasi-
leiro Felix de Souza; e após a rebelião de 1835 da Bahia várias centenas
de afro-brasileiros emigraram para lá.34 Agüê continuava aumentar de

29 ETINNE, Ignace. op. cit., p. 415.


30 KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. op. cit., p. 36 30 — NEWBURY, C. W. op. cit., pp. 36-7.
31 NEWBURY, C. W. Op. cit., pp. 36-7.
32 VERGER, Pierre. op. cit., p. 604.
33 VERGER, Pierre. op. cit., p. 604.
34 BOUCHE, P. La Côte des Esclaves et le Dahomey. Paris, 1885, pp.301-2.

656 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

população, de modo que em 1873, antes de uma epidemia de varíola, mais


de seis mil pessoas ali residiam.35 Os afro-brasileiros formavam a força
predominante política e social de Agüê. John Duncan a visitou em 1845 e
escreveu que todos os que residiam nessa cidade achavam-se ocupados no
tráfico de escravos.36 Que o tráfico era lucrativo tanto para os habitantes
afro-brasileiros quanto para a cidade, acha-se provado pelo fato revelado
pelo missionário E. Desribes: em 1831 os lucros com o tráfico de escravos
foram suficientemente grandes para provocar hostilidade entre Agüê e a
aldeia de Pequeno Popo e os afro-brasileiros chegaram então a construir
fortificações em volta da cidade e nelas instalar canhões. 37 Essa rivali-
dade comercial entre "Pequeno Popo" e Agüê aumentou durante o século
dezenove; e em 1860 uma espécie de guerra não-declarada existia entre
as duas cidades. A situação complicou-se com o fato dos afro-brasileiros
viverem em ambas as cidades; e a ação que serviu para precipitar as
hostilidades foi iniciada por um afro-brasileiro recém-chegado, Pedro
Codjo, que vivia em Pequeno Popo. Codjo tentou impedir a ascensão ao
poder do "cabocer" Aguidi, em Agüê; ou Codjo queria a posição do "cabo-
cer" para si mesmo, ou controlar o cargo e torná-lo subserviente às suas
próprias ambições comerciais. 38 Codjo iniciou uma série de múltiplos
ataques contra Agüê com forças compostas principalmente de escravos
pessoais. A "guerra" continuou durante mais de três anos. O missionário
Pierre Bouche foi convidado para servir de mediador na disputa, e ele e
o missionário M. Borghero conseguiram efetuar uma reconciliação entre
Agüê e "Pequeno Popo".39
Uma razão importante para que os brasileiros pudessem tornar-se
uma força dominante na costa oeste africana foi terem eles trazido para
a África Ocidental artes específicas e ofícios que haviam aprendido
no Brasil durante os anos de escravatura. Codjo havia sido calafate no
Brasil. 40 Muitos dos afro-brasileiros que compravam pequenas lojas em
Ouidah e Porto-Novo tinham-se entregue ao comércio, ou sido "negros
de ganho" na Bahia. Pedro Damião de Oliveira, o mais importante
traficante de escravos em Ouidah nos meados de 1860, foi, também,
chefe de pedreiros e construtor, utilizando um ofício que aprendera na
Bahia. 41 Um colega de profissão, Pedro Pinto da Silveira, foi também

35 BOUCHE, P. op. cit., p. 302.


36 DUNCAN, J. Traves in Western Africa in 1845 and 1846. London, 1968. V. 1, p. 91.
37 DESCRIBES, M. L'Evangize au Dahomey et à Côte des Esclaves. Lyon, 1877, p. 449.
38 BOUCHE, P. op. cit., p. 303.
39 BOUCHE, P. op. cit., p. 301.
40 BOUCHE, P. op. cit., p. 303.
41 PRADO, J. F. de Almeida. Les Relations de Bahia (Brèsil) avec le Dahomey. Revue d'Histoi-
re des Colonies. (S. l.. P.), 41:215, 1954.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 657


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

um artesão experimentado que abandonara eventualmente o tráfico de


escravos e tornara-se exportador de azeite de dendê. Travou relações
comerciais com a firma Manchester de Swansea e importava artigos
têxteis que trocava por azeite. 42 (.As habilidades específicas serviam
de complemento a uma renda baseada no tráfico de escravos e também
como meio para adquirirem capital a fim de iniciar operações comer-
ciais, fosse com base em escravos ou em azeite de dendê. Muitas vezes
o capital usado pelos afro-brasileiros com o fim de iniciar um negócio
na costa havia sido ganho no Brasil, economizado durante o tempo em
que fora "negro de. Ganho". 43
Enquanto a maior parte de afro-brasileiros que retornaram à África
Ocidental procuraram estabelecer-se em pequenos negócios ou opera-
ções comerciais nas cidades e aldeias costeiras, alguns deles tomaram a
resolução de se dedicarem à agricultura. Duncan, na sua descrição geral
da cidade de Ouvida e áreas adjacentes, especificamente se refere às fa-
zendas dos afro-brasileiros. A maior parte das descritas por Duncan eram
pequenas; eram cultivadas por meio de técnicas europeias ocidentais e os
fertilizantes eram usados pelos fazendeiros afro-brasileiros. 44 Acreditava
Duncan que as fazendas e métodos dos fazendeiros recém-emigrados
eram mais higiênicos e produtivos do que os das fazendas dos habitantes
de Ouidah. Escreveu ele que os antigos escravos cujas fazendas descre-
via ou eram fula ou eya (iorubá de Oyo?);45 as casas das fazendas eram
construídas em estilo europeu ou brasileiro, com mobiliário importado
da Europa. Duncan considerava-os mais trabalhadores e prósperos do
que os emigrantes de Saro.46
Em 1850, Frederick Forbes descreve uma visita a uma fazenda de
propriedade de um homem chamado Souza que havia sido escravo na
Bahia. O principal produto da plantação era o azeite de dendê, e as árvores
misturavam-se com as plantações de milho, algodão e mandioca. Forbes foi
convidado por Souza a um almoço no campo que incluía vinhos provenientes
de três países europeus, comidas brasileiras e europeias, tudo servido em
travessas de prata.47 Ao comentar Forbes as técnicas agrícolas usadas na
plantação e nas fazendas em redor de Ouidah, ressalta a questão de terem
os afro-brasileiros introduzido métodos de adubação europeus. 48Em seu
artigo, Prado também focaliza as fazendas afro-brasileiras, sua produtivi-

42 PRADO, J. F. de Almeida. op. cit., p. 215.


43 PRADO, J. F. de Almeida. op. cit., p. 216.
44 DUNCAN, J, op. cit., P. 185.
45 DUNCAN, J. op. cit., P. 185.
46 DUNCAN, J. op. cit., p. 186
47 FORBES, F. E. Dahomey and the Dahomans. London, 1851, p. 124, V. 1.
48 FORBES, F. E. Dahomey and the Dahomans. London, 1851, p. 126.

658 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

dade, e o fato de, durante as guerras de Glele (especialmente nos últimos


anos do seu reinado), as forças invasoras haverem marchado através dos
terrenos cultivados dos brasileiros, destruindo-lhes a maior parte dessas
terras.49 Os ataques de tropas eram mais provavelmente dirigidos contra
Ketu; e declara Prado que as fortunas feitas pelos afro-brasileiros foram
perdidas, o que aparentemente foi uma falha administrativa da parte de
Glele. Um novo influxo de emigrantes afro-brasileiros que tinham deixado
o Brasil imediatamente depois da abolição da escravatura chegou a Oui-
dah e Porto-Novo.50 A presença dos mesmos e as economias que haviam
juntado durante os anos de escravidão serviram para amparar a posição
dos antigos escravos durante o ano de 1890.51
Uma das características mais importantes dos afro-brasileiros e de
seu modo particular de vida era a sua atitude face à religião. É interessante
notar-se que os antigos escravos exerceram um papel de impacto sobre
a religião escolhida, fosse o cristianismo ou o islamismo. A adesão ao
islamismo que havia caracterizado muitos dos participantes nas rebeliões
da Bahia e que os separara dos outros escravos no Estado, 52 continuou
a influenciar os afro-brasileiros, ao retornarem à África Ocidental. Em
Porto-Novo, os negócios da comunidade muçulmana que repercutiam na
política da cidade costeira foram diretamente afetados com a presença dos
afro-brasileiros. As famílias de Marcos Moreira da Souza, e Paraíso forma-
vam os pilares da comunidade islâmica de Porto-Novo53 Indiscutivelmente
o personagem principal da comunidade era Paraíso. José Paraíso tinha-se
estabelecido como negociante em Porto-Novo, antes de 1850; tornou-se
conselheiro do rei Sodji e ajudou-o a redigir um Tratado de Protetorado
para a cidade em 1863. 54 Paraíso, por causa de sua ligação íntima com
as autoridades nativas de Porto-Novo e de suas relações vantajosas com
os europeus, veio a ser o chefe da comunidade muçulmana da cidade.55
Em 1883 houve pretendentes rivais ao cargo de "imame". Em razão de
sua influência junto a Sodji e as relações cordiais com o protetorado
francês, Paraíso pôde ver nomeado seu candidato.56 Vê-se, pois, um clã ou

49 PRADO, J. F. de Almeida. op. cit., p. 225.


50 PRADO, J. F. de Almeida. op. cit., p. 225.
51 PRADO, J. F. de Almeida. op. cit., p. 225; RAMIN, J. C., KOUBETTI, V.; GUILHEM, M. Histoire
du Dahomey — L'Afrique — Le Monde. Paris, 1964, p. 176.
52 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1932, pp. 160,
166-7. RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo, 1946, pp. 317-8.
53 MARTY, Paul. Etudes sur l’Islam au Dahomey. Paris, 1926, p. 18.
54 MARTY, Paul. op. cit , p. 52.
55 MARTY, Paul. op. cit., pp. 59 e 65.
56 BALLARD, J. A. The Porto-Novo "Incidents" 1923: Politics in the Colonial Era. Ibadan,
1965, pp. 8-9.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 659


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

patriarcal, os Paraíso, desenvolver-se durante o século dezenove em Porto


Novo. Paraíso e as outras famílias muçulmanas afro-brasileiras liderando
a comunidade muçulmana podem ser considerados um grupo distinto;
eram afro-brasileiros com uma herança brasileira aparente, na linguagem
falada, o português, e na escolha de roupas — ternos brancos e chapéus
panamá.57A mesquita que foi construída sob a direção de Paraíso possuía
um estilo arquitetônico europeu; e é interessante considerar-se a relação
entre capital e trabalho na construção dessa mesquita, pois Paraíso e seus
companheiros afro brasileiros forneceram o capital, enquanto o trabalho
foi efetuado pelos muçulmanos locais.58 Uma distinção ou diferença cul-
tural existia entre as duas comunidades muçulmanas no momento de seu
contato inicial, em meados do século dezenove; as diferenças realmente
não diminuíram, pois, mais afro-brasileiros muçulmanos continuaram a
emigrar para Porto Novo durante as últimas décadas do século dezenove.
Cerca de 1906, a população muçulmana de Porto Novo foi avaliada
em mais de três mil pessoas; centenas de crianças eram educadas nas
escolas corânicas. 59 A comunidade islâmica nativa de Porto-Novo cuidou,
durante as duas primeiras décadas do século vinte, de purificar a religião;
esse movimento foi iniciado pelo "al-hadj Monteirou Soule e um grupo
de muçulmanos recém-vindos do "hadj". Um ataque doutrinal direto foi
efetuado contra o clã dos Paraíso e seus defensores afro-brasileiros;
consideravam-nos europeus demais, em boas relações de amizade com
europeus e cristãos (especialmente afro-brasileiros cristãos)60. As relações
de Paraíso com os franceses, o fato da Primeira Guerra Mundial haver
começado e os outros brasileiros muçulmanos provarem ser leais aos
franceses, serviram para mantê-los firmes como força política dominante
dentro de Porto-Novo.61
Em Ouidah as relações dos afro-brasileiros frente à comunidade
muçulmana nativa, eram semelhantes à situação em Porto-Novo. Em
1883, iniciou-se a construção do que seria a maior mesquita da cidade;
o construtor, o "imame" Abdullahi Alechou, era filho de um ex-escravo
brasileiro. Nascera em Sierra Leone e servira ao "imame" em Ouidah,
até 1914.62 Marty calcula que mais de metade da comunidade islâmica
de Ouidah compunha-se de antigos escravos brasileiros ou de filhos de
afro-brasileiros. Toda a comunidade muçulmana "crioula" vivia em um

57 VERGER, Pierre. op. cit., p. 605.


58 MARTY, Paul. op. cit., pp. 53-54.
59 MARTY, Paul. op. cit., p. 75.
60 BAILARD, J. A. op. cit., pp. 8-9; VERGER, Pierre. op. cit., p 605; MARTY, Paul. op. cit., p. 59.
61 BALLARD, J. A. op. cit., p. 9. 61 — MARTY, Paul. op. cit., P. 109.
62 MARTY, Paul. op. cit., p. 109.

660 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

setor especial da cidade.63 Agüê, conhecida como baluarte dos afro-bra-


sileiros católicos 64 teve como primeiro imame, por volta de 1850, um
ex-escravo brasileiro conhecido por Saidon, que iniciou a construção de
uma mesquita. 65 As críticas feitas pela comunidade muçulmana nativa
de Porto-Novo sobre a profundidade e sinceridade da conversão dos afro
-brasileiros ao islamismo poderiam ser feitas acerca dos antigos escravos
que viviam em Ouidah ou Agüê. Dizem que Paraíso tinha relações pessoais
com a casa de fetiches de Toffa.66 No Brasil, os chefes muçulmanos da
rebelião haviam manifestado pouca tolerância pelos escravos, negros
livres e mulatos que se declararam leais às religiões particulares do
oeste africano ou ao catolicismo. Uma vez retornados à África Oeste, tal
atitude mudara sensivelmente. Dentro de uma mesma família brasileira
era possível acharem-se membros que se consideravam muçulmanos,
cristãos e animistas.67 A atitude doutrinal aparentemente negligente dos
afro-brasileiros pode, em parte, ser explicada pelas diferenças culturais e
problemas decorrentes da emigração para outro continente. Afirma Verger
que alguns escravos se haviam tornado muçulmanos na Bahia, como prova
de estarem insatisfeitos com a sua vida e como ato de desafio contra a
igreja católica dos brancos.68 Os fatores que motivaram a sua conversão e
talvez a sustentassem, não se mantiveram, ao emigrarem os afro-brasileiros
para a África Ocidental. O que representava o mais importante ponto de
referência para os muçulmanos não era a população nativa encontrada
na costa, mas sim os companheiros afro-brasileiros, que eram cristãos. O
importante sentimento compartilhado não era a religião, mas um estilo de
vida sujeito a um conjunto de estímulos e pressões que não podiam ser
reproduzidos pelos muçulmanos que nunca haviam deixado o continente
africano. A experiência de vida na cultura brasileira (seja como escravo
ou como homem livre), transcendeu a religião quando tal experiência foi
removida da América Latina para a África.
Enquanto os muçulmanos procuravam estabelecer relações com as
sociedades muçulmanas nativas da costa, os afro-brasileiros que eram
católicos romanos e continuavam a professar a sua religião, tiveram uma
área imediata de cooperação com missionários e outros europeus que
negociavam na costa. Em princípios de 1835, um ex-escravo, Joaquim
d'Almeida, começou a construção de uma capela em Agüê, dedicada, em

63 MARTY, Paul. op. cit., p. 112.


64 DESCRIBES, M. op. cit., p. 439
65 MARTY, Paul. op. cit., p. 119.
66 BALLARD, J. A. op. cit., p. 8.
67 VERGER, Pierre. op. cit., p. 603; CORNEVIN, Robert, Histoire du Dahomev, Paris,
1962, p. 65.
68 VERGER, Pierre. op. cit., p. 603.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 661


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1845, ao Senhor Bom Jesus da Redempção em memória de uma igreja da


Bahia.69Agüê era considerado pelos missionários franceses o centro mais
importante da cristandade na costa daomeana.70 O grande campanário
de Almeida impressionara os missionários, assim como a profusão de
ornamentos da capela. Era plano seu (que a morte interrompeu), construir
uma grande igreja na praça central da cidade. 71 O fato dos brasileiros
terem uma capela em Agüê e haverem planejado uma igreja maior era
de grande importância para eles e sua convicção de serem cristãos. Os
sinais visíveis ou símbolos de piedade muitas vezes eram tão importantes
para os cristãos que regressavam à África quanto o seu compromisso
individual ou pessoal com o catolicismo. Forbes escreveu, em 1850, que os
afro-brasileiros manifestavam grande orgulho pela religião professada; o
domingo, em Ouidah, caracterizava-se pelas roupas mais cuidadas que os
afro-brasileiros usavam, em seus passeios após os ofícios divinos, numa
demonstração do que consideravam ser cultura e civilização.72 Os antigos
baianos, narra Forbes, faziam pouco caso dos emigrantes de Sierra Leone,
pois os protestantes não tinham igreja própria. Os afro-brasileiros tinham
acesso à igreja católica do forte português. 73 Havia uma relação direta
entre a religião, o "status" social e o prestígio dentro da sociedade local.
O missionário Borghero, em artigo de 1864, declara que ser cristão
quase equivalia a ser branco no Daomé. 74 Acreditava ele ou desejava crer
que se tratavam, com certa deferência, cristãos da sociedade daomeana. 75
Borghero e o missionário Laffite ficaram impressionados com a piedade
dos afro-brasileiros assim como sua generosidade. O forte português de
Ouidah abrigava a capela católica; esta foi reconstruída e restaurada
por um ex-escravo brasileiro. 76 Parece que esses sinais sensíveis de
religião obtiveram respeito ou deferência dos afro-brasileiros por parte
da sociedade local.
Outro importante serviço prestado pelos missionários era a educação.
Os afro-brasileiros, desde a sua chegada à costa, demonstravam usufruir
as facilidades providas pela educação, oferecidas pelas missões. O estudo
social de Porto Novo de Claude Tardits traz uma breve parte histórica que

69 VERGER, Pierre. op. cit., p. 600.


70 BORGHERO, Mr. Missions du Dahomey. Annales de Propagation de Propagation de 1a Foi.
Lyon, (36) :442, 1864.
71 BORGHERO, M. op. cit., p. 442.
72 FORBES, F. E., op. cit., p. 117.
73 FORBES, F. E., op. cit., p. 117.
74 BORGHERO, M. op. cit., p. 440.
75 LAFFITTE, M. Le Dahomé. Tours, 1876, p. 182.
76 BORGHE RO, M. p. 440.

662 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

trata especificamente dos afro-brasileiros.77 Julgando serem os antigos


escravos elementos de modernização, Tardits traça a sua influência na
cidade pela formação de uma distinta "intelligentsia" no século dezenove,
proveniente das escolas missionárias.78 O fato da língua usada para a
instrução das escolas da missão durante o século dezenove ser a portu-
guesa indica a resistência dos afro-brasileiros à estrutura educacional
vigente na costa. 79 Escreveu Borghero que os emigrantes originários
da África Ocidental falavam dialetos iorubás e outras línguas do oeste
africano; seus filhos não falavam línguas africanas, mas aprenderam a
falar português, a língua que se havia tornado uma espécie de língua
franca na costa daomeana . 80
A atenção dada pelos afro-brasileiros à educação primária de seus
filhos prosseguia quando os mesmos atingiam a idade de entrar para uma
escola secundária ou universidade. José Rodrigues declara que muitos
dos afro-brasileiros mandavam os filhos de volta à Bahia para aí se edu-
carem.81 Outros estudantes, por causa da influência direta das escolas
missionárias, eram enviados para a França a fim de prosseguirem sua
educação.82 Esse interesse pela educação deu aos ex-escravos possibilidade
de se tornarem auxiliares dos negociantes europeus e representantes
de grandes companhias mercantes europeias.83 Relatou-se que o chefe
de um grande mercado alemão de munições em Porto-Novo, em 1891,
fora o afro-brasileiro Julio Medeiros.84 Funções análogas tinham outros
brasileiros na costa.
O papel de intermediário que os afro-brasileiros assumiram durante
o meio século do tráfico de escravos prosseguiu e estendeu-se até as
décadas finais do século dezenove. Tornaram-se agentes representantes
de produtores de azeite de dendê e negociavam com comerciantes da
costa europeia; ao mesmo tempo procuravam importar diversas mer-
cadorias europeias para consumidores africanos.85 Um relatório oficial
do governo sobre o comércio da costa daomeana publicado em Paris em
1882, declarara que, de vinte e cinco "agentes" estabelecidos na costa,
sete eram afro-brasileiros; de um total de cento e cinquenta e quatro

77 TARDITS, Claude. Porto-Novo. Paris, 1958, pp. 28-9.


78 TARDITS, Claude. op. cit., p. 29.
79 DESCRIBES, M. op. at., p. 279.
80 BORGHERO, M. op. cit., p. 441.
81 RODRIGUES, J. Honório. Brasil and Africa. Berkeley, 1965, p. 178.
82 BALLARD, J. A. op. cit., p. 11.
83 DUNGLAS, E. op. cit., p. 130; BALLARD, J. A. op. cit., p. 11.
84 DUNGLAS, E. op. cit., p. 130.
85 BAILARD, J. A. op. cit., p. 11; VERGER, Pierre. op. cit., p. 611.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 663


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registrados como "negociantes", setenta e oito eram afro-brasileiros.86


Como grande parte do comércio de noz de cola feito entre o Daomé e o
Brasil e o índice de emigração entre a Bahia e o golfo de Benim fosse firme
após 1889, foi aberta uma linha de navegação em 1891, entre a Bahia e
Lagos.87 A posição ímpar dos negociantes afro-brasileiros e a dupla cultura
que manifestavam foi reconhecida em outro documento oficial francês,
que distinguia grupos étnicos; havia categorias de "nativos", brancos
(europeus) e "crioulos" brasileiros.88 A distinção de ser uma classe visível
e identificável, fundamentalmente uma insignificante burguesia, logo
tornou-se motivo de orgulho para os afro-brasileiros e foi usada como
vantagem política durante os anos do protetorado francês.
Tornaram-se os afro-brasileiros uma unidade política significativa
na costa durante os primeiros anos que procederam à emigração de
Coelho, no século dezoito. Sua experiência de cultura ocidental, seu co-
nhecimento do português e as relações comerciais com a América Latina
e Europa tornaram-nos fontes importante de informações políticas e de
conselho para os chefes nativos. Duncan, em 1846, relata acharem-se
presentes inúmeros afro-brasileiros durante a cerimônia aduaneira anual
de Abomey.89 Afirma Marty que alguns dos antigos escravos brasileiros
ofereceram membros de sua família para serem sacrificados durante as
cerimônias fúnebres que se seguiam à morte de um rei.90 A identificação
política com a autoridade nativa era importante para os afro-brasileiros
por duas razões; como emigrantes, estrangeiros dentro de uma nova
sociedade, era importante aceitar e adotar instituições locais a fim de
provar ser a sociedade hospitaleira.
Tendo os afro-brasileiros deixado uma sociedade (seja por gosto ou
à forca), quiseram identificar-se com uma cultura ou sociedade; a sua
odisseia foi feita, em grande parte, com o fim de encontrar essa cultura
compatível.
Forbes assistiu um festival em Abomey, em 1850. Depois de um grupo
de marabus apresentar-se ao rei, ele escreveu que quatorze ex-escravos
baianos se adiantaram e saudaram o rei com a frase: “Viva el rey de Dah-
omey”. 91 O missionário Describes sustentou o fato dos afro-brasileiros
serem cristãos e serem considerados pela população nativa como “brancos”,

86 VERGER, Pierre. Retour des Brasiliens au Golfe du Bénin au XIX siècle. Etudes Da-
homéennes. Dahomey, Nouvelle Série, (8): 12-3, octobre, 1966.
87 VERGER, Pierre. op. cit., p. 20; CHAUDOIN, E. Trois Mois de Captivité au Dahomey. Paris,
1891, p. 71.
88 VERGER, Pierre. Flux et reflux de la traite des nègres entre de golfe de Bénin et Bahia de
Todos os Santos; du XVII au XIX siècle. Paris, Mouton, 1968, P. 605.
89 DUNCAN, J. op. cit., p. 228.
90 MARTY, Paul. op. cit., p. 22.
91 FORBES, F. E. p. 214. V. 11.

664 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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o que lhes permitia cumprimentar e saudar o rei à moda europeia e não


serem obrigados a curvar-se até o chão quando se achavam em presença
do mesmo. 92 Foram os afro-brasileiros de Abomey conselheiros do rei
durante o século dezenove. 93 Como a sua perícia política e econômica
tornassem gradativamente importantes para os chefes nativos, os altos
impostos e taxas de matrícula a que foram obrigados no meado do século
dezenove foram reduzidos e finalmente abolidos.94
Os interesses comerciais dos afro-brasileiros muitas vezes davam mo-
tivo a que solicitassem decretos políticos particulares da Corte de Abomey,
ou eram causa de seu apoio em certas campanhas reais. O seu empenho
no tráfico de escravos no meio do século fê-los ávidos colaboradores das
guerras contra Abeokuta. 95 Quando os franceses anunciaram um prote-
torado sobre Porto-Novo, impuseram sanções contra muitos negociantes
afro-brasileiros que haviam apoiado o rei Behanzin. 96É interessante
ver-se que os afro-brasileiros enquanto provassem ser leais ao rei, agiam
primeiramente como negociantes e depois como daomeanos nacionais.
Tinham conseguido usar toda sua influência política e econômica a fim
de obter uma solução pacificadora entre os franceses e Behanzin, solução
esta que não comprometesse o tráfico. 97 Tendo fracassado em achar uma
solução, apoiaram-se em Behanzin. Uma vez decretado o protetorado, os
afro-brasileiros lentamente procuraram áreas que lhes possibilitassem
assumir cargos na nova administração.98
A íntima relação entre os afro-brasileiros e a Corte de Abomey
pode ser vista no ato final que pôs fim à existência do Daomé como país
independente, em 1894. Ignacio De alagas serviu de intérprete ao filho
de Glele, o príncipe Goutchili, durante a assinatura dos documentos
que tornaram o Daomé um protetorado francês, em janeiro de 1894.99
A capacidade de adaptação possibilitou aos afro-brasileiros deixarem a
América Latina e viajar para a África Ocidental, manter negócios e fazen-
das, envolver-se na vida política da costa, e novamente dela participar
durante a administração francesa.

92 DESCRIBES, M. op. cit., p. 206.


93 VERGER, Pierre. Retour des Brésilens ao Golfe de Bénin au XIX siècle. Etudes Dahoméen-
nes. Dahomey. Nouvelle série, (8): 12, octobre, 1966. DUNGLAS, E. op. cit., p. 107.
94 VERGER, Pierre. op. cit., p. 16.
95 DUNGLAS, E. op. cit., p. 90.
96 DUNGLAS, E. L'Histoire Dahoméenne de la fin du XIX Siècle atravers les Textes. Etudes
Dahoméennes. Dahomey, (9) : 99, 1953.
97 DUNGLAS, E. op. cit., p. 99.
98 DUNGLAS, E. Contribution à l'Histoire du Moyen-Dahomey. Etudes Dahoméennes. Da-
homey. 1 (96): 39, 1957
99 DUNGLAS, E. p. 107.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 665


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Muitos dos afro-brasileiros que haviam aconselhado os funcionários


Fon, antes da declaração do protetorado, tiveram as propriedades confis-
cadas pelos franceses;100 porém essas medidas iniciais terminaram nos
fins do século dezenove. Os afro-brasileiros puderam então ingressar nas
fileiras mais baixas do serviço civil como escreventes.101 Sua educação e o
monopólio virtual do sistema educacional missionário do século dezenove
permitiram que os seus filhos se tornassem os novos líderes da "intelli-
gentsia" nacional. 102A mais importante área de influência afro-brasileira
permaneceu Porto Novo; a rápida assimilação dos afro-brasileiros aos
costumes e cultura franceses causaram alguma apreensão aos adminis-
tradores europeus. Primordialmente interessados no desenvolvimento
lento e gradual na evolução da colônia e seu povo, os franceses viam
os afro-brasileiros descontrolarem esse equilíbrio. Uma casta especial
da elite parecia desenvolver-se 103 e poderia causar ressentimentos na
população. Outro temor, que não foi expresso pela administração, era de
a nova “intelligentsia” poder tornar-se anti-francesa e enfraquecer-lhe
a autoridade.
Esse último receio de subversão ou oposição provou ser mais real fora
de Porto-Novo do que a incidência de hostilidades entre os afro-brasileiros
e os daomeanos. A primeira tentativa de um semanário foi iniciada em
Porto-Novo por um grupo de jovens afro-brasileiros, em 1920. Chamava-
se tal periódico “Le Guide du Dahomey” e continuou a ser publicado até
1922. 104 O jornal trazia uma crítica dura e constante da orientação do
administrador francês, Fourn, e não hesitava em tornar público o que
considerava serem abusos administrativos. 105 Os membros mais velhos e
mais bem firmados da comunidade afro-brasileira em Porto-Novo (mais
exatamente o clã muçulmano Paraíso), continuaram a identificar-se com
o poder policial.106
Usando Le Guide como modelo, um novo jornal anticolonialista foi
instalado em 1936. Os afro-brasileiros serviram novamente de instrumento
ajudando a fundação de The Voice of Daomey.107 E novamente interessante
notar-se que as forças que haviam protestado não eram tão políticas quanto
econômicas. Ao terminar o período entre as guerras, os franceses come-
çaram a impor mais restrições e repressões à vida econômica da colônia;

100 NEWBURY, C. W. op. cit., p. 133.


101 NEWBURY, C. W. op. cit., p. 133; BALLARD, J. A. op. cit., p. 11
102 TARDITS, Claude. op. cit., p. 29.
103 BALLARD, J. A. op. cit., p. 11
104 BALLARD, J. A. op. cit., p. 16.
105 BALLARD, J. A. op. cit., p. 16.
106 BALLARD, J. A. op. cit., p. 16; MARTY, p. op. cit.,p. 65.
107 TARDITS, Claude. p. 39.

666 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

os afro-brasileiros que tinham continuado a empenhar-se no comércio


internacional foram afetados mais diretamente por tais restrições.108
Irritados com as mesmas, os patrocinadores de The Voice iniciaram uma
campanha contra os franceses e sua orientação de restringir o tráfico.
O estudo sociológico de Tardits sobre Porto-Novo interessa-nos por
fornecer dados recentes relativos a atitudes e por subdividir as categorias
por grupos étnicos. Desse modo, colocadas numa categoria separada, as
respostas dos brasileiros, uma impressão contemporânea (embora limi-
tada) se pode obter através deste estudo. Em 1958, mais de oitenta e dois
por cento dos afro-brasileiros interrogados praticavam a monogamia. Na
amostragem, que incluía respostas de “gun” e “iorubas”, os afro-brasilei-
ros alcançaram o maior número de pontos em uma pergunta sobre se a
herança deveria ser igualmente repartida, sem consideração ao sexo dos
herdeiros. Contudo, na pergunta concernente à universalidade do direito
de voto, os afro-brasileiros tiveram menos pontos do que os iorubá e gun.
Também foram mais a favor da centralização do governo do que os iorubá e
gun.109 Ainda que a amostragem de Tardits contasse aproximadamente com
cento e cinquenta pessoas, podem-se tirar algumas conclusões baseadas
nos dados obtidos. Os afro-brasileiros ainda parecem estar aferrados a
aspectos importantes da cultura e civilização ocidentais. A sua atitude
cautelosa em relação à política, quando ligada a interesses comerciais,
(seus esforços de mediação frente ao protetorado de Porto-Novo, sua
insatisfação com a orientação econômica francesa antes da Segunda
Guerra Mundial) parecem evidentes no estudo. Tendo-se identificado com
a cultura francesa, mas não com todas as medidas tomadas pelos franceses
durante os anos do regime colonial, os afro-brasileiros demonstram ter
um interesse substancial em manter o status quo político. A relutância
dos afro-brasileiros, no exemplo de Tardits, em estender privilégios
demonstra tal conservadorismo; essa atitude torna-se compreensível
pois vê-se que os afro-brasileiros na época de sua chegada à costa eram
considerados, se não um grupo privilegiado, ao menos especial. Esse
autorretrato tornou-se institucionalizado no processo da capacidade de
ser identificado como afro-brasileiro resultar em significativo prestígio
social e oportunidades no desenvolvimento econômico.
Robert Cornevin, ao debater sobre os afro-brasileiros, tanto católicos
como muçulmanos, salienta que um esforço consciente fora feito para reter
os nomes brasileiros e portugueses.110 O fato da maioria de muçulmanos
afro-brasileiros preferirem conservar nomes brasileiros (Paraíso sendo
o exemplo mais notável), indica a importância e o desejo de um símbolo

108 TARDITS, Claude. op. cit., p. 39.


109 TARDITS, Claude. op. cit., pp. 70, pp. 100-101.
110 CORNEVIN, Robert. op. cit., p. 65.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 667


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

global. Nomes tais como: da Silva, que tinham uma relação direta com a
instituição da escravatura foram supressos pelos afro-brasileiros111 e não
mais são usados. A seleção dos afro-brasileiros em reter certos aspectos
de sua cultura é importante. A imagem que desejavam e o símbolo global
que conseguiram apresentar, visaram completar os papéis que represen-
taram na sociedade.
Nesse ponto da investigação apenas pareceria possível uma tentativa
de avaliação dos afro-brasileiros. A reação dos daomeanos aos emigrantes
só pode ser obtida por meio de fontes secundárias. Os missionários eu-
ropeus e os funcionários franceses com exceções tais como a de Fourn),
aparentemente se impressionavam com os afro-brasileiros. Notava-os
como aplicados, inteligentes, trabalhadores — quase europeus, justificando
assim a imagem favorável. O fato de muitos dos afro-brasileiros terem
sido escravizados, enviados para o Brasil, sobrevivido à escravidão no
Brasil, e terem economizado dinheiro para voltar para a África Ocidental
demonstra serem eles um grupo de indivíduos de notável força pessoal e
psicológica. Os seus empreendimentos políticos e econômicos nos séculos
dezenove e vinte no Daomé revelam a conclusão bem-sucedida da odisseia
que teve início na Bahia durante o século dezoito.

111 CORNEVIN, Robert. p. 65.

668 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

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BRAZILIAN SLAVES IN DAHOMEY


The aim of this essay is to analyse the value interchange between two cultures.
The Author inform us about the return of Afro-Brazilians to West Africa during
the 18th century, specially to Dahomey. It is necessary to note that the majority
of scholars concentrate on the 19th century when discussing this subject.
It is well known that Afro-Brazilians chose small trade business as their main
activity in coastal towns and villages when they settled down in Dahomeg. The
Author discloses another option, agriculture. Some former slaves settled in small
farms around Ouidah, and the Author emphasizes that they used European
fertilizing techniques.

670 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

The return of ex-slaves from Brazil influenced Dahomevan religion as well. One
of those men, named José Paraíso, had a mosque built in Porto Novo, donating
money but leaving the work to local Moslems. In politics the Afro-Brazilians
contributed to the hegemony of the French in that part 01 Africa, by giving
them their support.
However, when European rule was consolidated, the former slaves were regarded
with suspicion, due to the possibility of becoming an opposition group.

ESCRAVOS BRASILEIROS NO DAOMÉ 671


CAPÍTULO 21

A CoMUnidAde brAsileirA de UidÁ e os


últiMos Anos do trÁfiCo trAnsAtlântiCo
de esCrAvos, 1850-1866 1
Robin Law2

A despeito da proibição legal do tráfico transatlântico de escravos


no início do século XIX, o tráfico ilegal floresceu no Golfo do Benim entre
as décadas de 1820 e 1840. Inicialmente, esse tráfico ilegal foi dirigido
majoritariamente para o Brasil, sobretudo para a província da Bahia, mas
as exportações para Cuba também cresceram substancialmente neste
período e, por volta da década de 1830, eram provavelmente maiores
do que aquelas para o Brasil. Uidá, o principal “porto” costeiro do reino
do Daomé, que historicamente tinha sido o principal local de embarque
de escravos nesta região, continuou como um importante centro deste
tráfico ilegal, embora sua predominância comercial tivesse sido erodida
pela crescente importância de Lagos, a leste, que, por volta do final dos
anos 1830, havia substituído Uidá como o principal porto na região.
Embora a proibição legal do tráfico tivesse, inicialmente, pouco impacto
no volume de exportações de escravos por Uidá, ela ocasionou mudanças
significativas no modo pelo qual o comércio era realizado. A mais óbvia
foi o abandono dos fortes que tinham sido mantidos na cidade pelas três
principais nações europeias envolvidas no tráfico: França, Inglaterra e
Portugal. Ao mesmo tempo em parte para assumir as funções anteriormente
desempenhadas por esses fortes, de organizar o suprimento de escravos
e de prover serviços aos traficantes visitantes, o período de comércio

1 Versão revista e atualizada do artigo publicado na Afro-Ásia. Agradeço a Silke Strickrodt


por sua ajuda para encontrar e verificar as referências. Tradução de Valdemir Zamparoni,
com revisão dos organizadores desta coletânea.
2 Robin Law, “The Evolution of the Brazilian Community in Ouidah”, Slavery & Abolition, no.
22 (2001), pp. 22-41.

673
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

ilegal de escravos foi marcado pelo crescimento de uma significativa


comunidade brasileira em Uidá. Em suas origens, ela esteve associada ao
traficante de escravos brasileiro Francisco Félix de Souza (†1849), que
originalmente tinha chegado a Uidá como funcionário do forte português
local (c.1803), mas depois se estabeleceu como comerciante independente.
Após um período de residência em Pequeno Popó (Aného), no oeste, ele
retornou a Uidá para servir como agente comercial para o rei Guezo do
Daomé (com o título de “Chachá”), provavelmente em 1820.3 Em Uidá, Souza
fundou um novo bairro no sudoeste da cidade, depois chamado de “Brasil
[Blézin]”, habitado por sua numerosa família, escravos e agregados livres.
O bairro “brasileiro” foi também reforçado pela chegada de libertos de
origem africana (principalmente iorubá) que retornaram do Brasil para
se fixar em Uidá a partir de 1835, criando, sob o patrocínio de Souza, o
bairro chamado Maro, adjacente, a oeste, ao bairro “Brasil”.4 O presente
artigo trata da experiência desta comunidade durante os últimos anos do
tráfico atlântico de escravos e, mais particularmente, dos efeitos que teve
sobre ela o término do comércio de escravos para o Brasil em 1850-1852.
Deve ser enfatizado que a referência usual a esta comunidade como
“brasileira” constitui uma simplificação exagerada, uma vez que ela
incluía pessoas oriundas de outros territórios portugueses em torno do
Atlântico, tais como Ilha da Madeira, São Tomé e Angola. Além disso, ela
também incorporou alguns espanhóis, notadamente Juan José Zangronis
(†1843), um traficante de escravos de Cuba que se estabeleceu na cidade
na década 1830 e exerceu o comércio em associação com Souza. Após a
independência do Brasil, em 1822, a comunidade também ficou dividida
em sua fidelidade política, e mesmo alguns daqueles que eram originários
do Brasil continuaram a se identificar como portugueses, incluindo, sur-
preendentemente, o próprio Souza. A ligação com Portugal, em oposição
ao Brasil, foi fortalecida em 1844 quando o então abandonado forte
português foi reocupado por um governador e uma guarnição enviados
de São Tomé. Durante a maior parte do século XIX, muitas das famílias
de Uidá, que atualmente se identificam como “brasileiras”, eram mais

3 Ver especialmente David Ross, “The First Chachá of Whydah: Francisco Félix de Souza”,
Odu, new series, no. 2 (1969), pp. 19-28; vide também tradições familiares, em Simone de
Souza, La Famille de Souza du Bénin-Togo, Cotonou: Éditions du Bénin, 1992. Para algu-
mas revisões, cf. Robin Law, “Francisco Félix de Souza in West Africa, 1800-1849”, in José
C. Curto e Paul Lovejoy (orgs.), Enslaving Connections: Changing Cultures of Africa and
Brazil during the Era of Slavery (Nova York: Humanity Books, 2004), pp. 187-211.
4 Sobre tradições das famílias do bairro Maro, ver “Ouidah: organisation du commande-
ment [memorandum do administrador colonial francês Reynier, 1917]”, Mémoire du Bé-
nin, no. 2 (1993), pp. 44-45. Sobre o estabelecimento dos ex-escravos brasileiros na re-
gião, ver especialmente Jerry Michael Turner, “Les Brésiliens: The Impact of Former Bra-
zilian Slaves upon Dahomey” (Tese de Doutorado, Boston University, 1975); e Milton Gu-
ran, Agudás: os “brasileiros” do Benim, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

674 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

comumente descritas, nos relatos da época, como “portuguesas”, e este


costume provavelmente reflete a autoidentificação dos envolvidos. Do
mesmo modo, o termo nativo “Agudá” significava “portugueses” (incluindo
brasileiros) e não “brasileiros” (distintos dos portugueses).5
A comunidade “brasileira” definia-se, claramente, menos pela identi-
ficação com o Brasil do que pelo uso da língua portuguesa, e também por
sua fidelidade à Igreja Católica Romana. Um fator crítico na integração
da comunidade em Uidá foi a reocupação do forte português em 1844,
uma vez que o contingente enviado de São Tomé incluía um capelão para
a capela do forte, que manteve serviços religiosos regulares a partir de
então. O batismo, em particular, tornou-se uma característica importante
da identidade “brasileira.” Apenas uma minoria dentre os ex-escravos do
Brasil que se estabeleceram em Uidá era composta por muçulmanos – e
eles construíram a primeira mesquita da cidade, no bairro Maro –, mas
mesmo eles frequentemente batizavam seus filhos.6 Inicialmente, um fator
de coesão da comunidade foi, também, a influência suprema de Francisco
Félix de Souza, a quem praticamente todos os membros estavam ligados
por laços de parentesco, parceria comercial ou clientelismo. Isto, entre-
tanto, mudou por volta do final da década de 1840, quando a comunidade
brasileira de Uidá tornou-se fragmentada devido ao estabelecimento de
comerciantes rivais, negociando em concorrência com os Souza.

A comunidade brasileira no início dos anos 1850


A entrada de novos negociantes no comércio de escravos em Uidá, na
década de 1840, foi em parte o simples resultado de um desgaste natural,
à medida que os membros da velha geração iam morrendo ou passando à
inatividade. Das duas principais figuras dos anos 1830, Zangronis morreu
em 1843, enquanto Souza, embora tivesse vivido até 1849, já não estava
mais na ativa. A liderança efetiva da família Souza estava passando para a
segunda geração. Em 1849, após a morte do fundador, três de seus filhos,
em particular, eram tidos como “ricos comerciantes de escravos”: seu
filho mais velho, Isidoro (nascido em 1802); Ignácio (nascido em 1812);
e Antônio, chamado “Kokou” (nascido em 1814). 7 A tradição da família
indica que estes e outros filhos de Souza, nos anos 1840, comerciavam

5 Como observou Richard Burton, A Mission to Gelele, King of Dahomé, Londres: Tinsley
Brothers, 1864, vol. i, p. 65 n.
6 Como o missionário católico francês observou nos anos 1860: Francesco Borghero, “Rela-
tion sur l’établissement des missions dans le Vicariat Apostolique de Dahomé” (3 de de-
zembro de 1863), in Journal de Francesco Borghero, premier missionnaire du Dahomey,
1861-1865, ed. Renzo Mandirola eYves Morel, Paris: Karthala, 1997, p. 285.
7 UK Parliamentary Papers [doravante PP], Correspondence relating to the Slave Trade,
1849-50, Class B, aenxo no 9, Lieutenant Forbes, 5 de novembro de 1849.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 675


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

“cada um por conta própria”, e não coletivamente, iniciando-se, assim, a


fragmentação da família em segmentos competidores.8
Um segundo fator que afetou a organização da comunidade mercantil
de Uidá nessa época foi a crescente dispersão do embarque de escravos
desta cidade para outros portos vizinhos, para os quais os escravos eram
enviados em canoas, através da laguna costeira, especialmente para Gran-
de Popó, Agoué e Pequeno Popó, no oeste, e Godomey, Cotonou e Porto
Novo, no leste. Essa tática foi adotada como um meio de evitar a captura
pelos barcos do esquadrão antitráfico da marinha britânica, cuja eficácia
tinha aumentado substancialmente graças ao Equipment Act, de 1839,
que autorizou a apreensão de navios portugueses mesmo que, na ocasião,
eles não tivessem escravos a bordo, bastando estar equipado para fazer o
transporte de cativos. O pioneiro nesse processo de dispersão foi Isidoro de
Souza, que restabeleceu a feitoria em Pequeno Popó, ocupada por seu pai
em 1840. De forma crescente, a partir de então, os principais traficantes
da região, mesmo quando obtinham seus suprimentos de escravos em
Uidá, tendiam a ter suas bases principais em algum outro lugar na costa.
Entretanto, outros fatores foram responsáveis pelo declínio de Souza,
além do seu afastamento devido à idade avançada ou a descentralização
geográfica do comércio de escravos, necessária diante da pressão naval
britânica. Nos anos 1840 suas operações comerciais entraram numa fase
difícil, resultante da combinação das perdas decorrentes da captura de
navios pela marinha britânica e de sua própria má administração na ve-
lhice. Ele acumulou débitos substanciais junto a comerciantes no Brasil
e em Cuba; e após reclamações de seus credores, o rei Guezo interveio,
restringindo seus privilégios em Uidá e, em particular, decretando que
outros “agentes de Havana e do Brasil poderiam estabelecer-se em Uidá.”9
Um dos novos traficantes de escravos que puderam estabelecer ne-
gócios em Uidá, sob estas novas condições, foi o brasileiro José Francisco
dos Santos (†1871), cujas atividades estão documentadas em sua própria
correspondência, que se conservou relativamente aos anos 1844-1847
e 1862-1871.10 Entre 1844 e 1847, ele forneceu escravos para o Brasil,
principalmente para a Bahia, mas também para o Rio de Janeiro (embora
não para Cuba), embarcando-os, às vezes, em Agoué e Pequeno Popó a
oeste, assim como na própria Uidá. De acordo com a tradição, Santos ori-
ginalmente veio para Uidá a serviço da família Souza e, de fato, casou-se

8 Norberto Francisco de Souza, “Contribution à l’histoire de la famille de Souza”, Études Da-


homéennes, no. 13 (1955), p. 20.
9 PP, Papers relative to the Reduction of Lagos (1852),anexo no 8, Thomas Hutton, Cape
Coast, 7 de agosto de 1850.
10 Publicado na tradução francesa por Pierre Verger, em Les afro-américains, Dakar: Mé-
moires de l’Institute d’Afrique Noire, 1952, pp. 53-100.

676 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

com Francisca, a filha mais velha dele. 11 Isto, entretanto, deve ter ocor-
rido num período anterior a 1844, uma vez que sua correspondência não
contém nenhum indicativo de qualquer relacionamento próximo com a
família Souza, e sugere que seus negócios eram, essencialmente, tocados
de maneira independente. Em suas operações ao longo da laguna, para
oeste, ele cooperou, ao menos ocasionalmente, com Isidoro de Souza em
Pequeno Popó; e na própria Uidá, comprou escravos de Antonio “Kokou”
de Souza, mas também diretamente do rei.
Duas outras pessoas indicadas em 1849 entre “os muitos negociantes
brasileiros e portugueses” em Uidá, estavam Jacinto e Jozé Joaquim, o
primeiro descrito como nativo da Ilha da Madeira, e o último como um
antigo soldado no Brasil. 12 O primeiro pode ser identificado como sendo
Jacinto Joaquim Rodrigues (†1882). 13 O próprio Rodrigues afirmou, mais
tarde, que tinha vindo para a África em 1844. 14
De acordo com a tradição, ele também se estabelecera, originalmen-
te, em Uidá “com o apoio” do primeiro Souza,15 mas também se tornaria,
claramente, um operador independente. Como Santos, Rodrigues tinha
conexões para além de Uidá, ao longo da laguna, mas, no seu caso, para
leste e não para oeste de Uidá: de seus dois filhos, um nasceu em Lagos
(Américo, 1847) e outro em Porto Novo (Cândido, 1850).16 A segunda pessoa
indicada é menos facilmente identificável, mas um candidato provável é
José Joaquim das Neves, um dos ex-escravos do Brasil nascidos na África
que se estabeleceram no bairro Maro de Uidá.17
Mais importante do que qualquer um desses, todavia, foi Joaquim
d’Almeida (†1857), que também havia sido escravo liberto da Bahia e
retornara à África como traficante de escravos.18 A tradição local associa a
quebra do “monopólio” de Souza em Uidá à entrada no negócio de Almeida,
para o qual o rei Guezo fornecia escravos através do comerciante nativo
Azanmado Houénou (Quénum), e não através de Souza. 19 A principal
residência de Almeida, no fim da vida, era na realidade em Agoué e não
em Uidá. A tradição em Agoué afirma que lá se estabeleceu em 1835,

11 Souza, La Famille de Souza, pp. 51-3.


12 PP, Slave Trade 1849-50, Class B, anexo10 do doc. no 9, Forbes, 5 de novembro de 1849.
13 Turner, “Les Brésiliens”, pp. 128-129; Reynier, “Ouidah”, p. 45.
14 Wesleyan Methodist Missionary Society Archives, School of Oriental & African Studies,
University of London [hereafter WMMS], William West, Cape Coast, 6 de junho de 1859.
15 Reynier, “Ouidah”, p. 45.
16 Turner, “Les Brésiliens”, p. 129.
17 Reynier, “Ouidah”, p. 45.
18 Pierre Verger, Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século
XIX, Salvador: Corrupio, 1992, pp. 43-48.
19 Edouard Foà, Le Dahomey, Paris: Hennuier, 1895, p. 23; e Reynier, “Ouidah”, p. 63.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 677


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

mas isto é duvidoso; decerto se fixou definitivamente na África somente


em torno do começo de 1845, após viagem ao Brasil,. 20 É possível que
inicialmente ele tivesse se fixado em Uidá e não em Agoué. Mas é certo
que estabeleceu negócios em Uidá em torno de 1847, quando se envolveu,
juntamente com Santos, numa disputa com as autoridades daomeanas
acerca do pagamento de direitos alfandegários.21 Em 1849, era descrito
como o “mais rico morador de Uidá.”22
Ainda mais importante na nova geração de comerciantes de escravos
era José Martins, apelidado de Domingo Martinez (†1864).23 Martins fizera
fortuna com o tráfico de escravos em Lagos, mas quando retornou para a
África, após um breve retorno à sua Bahia natal, no começo de 1846, se
fixou em Porto Novo, de onde comprava escravos do rei Guezo. 24 Martins
foi o mais importante traficante neste período, descrito, em 1849, como
o “mais rico comerciante das Baías.” Embora sua principal base tivesse
permanecido em Porto Novo, também fazia negócios em Uidá e, por volta
de 1849, tinha nesta última um estabelecimento. 25
Francisco Félix de Souza faleceu em 8 de maio de 1849. Embora sua
influência em Uidá se reduzira durante os seus últimos anos de vida, a
sucessão de seu cargo de Chachá permaneceu um assunto importante.
Na ausência de Isidoro seu filho mais velho, residente em Pequeno Popó
a liderança interina da família parece ter recaído sobre o filho seguinte,
Ignácio; em setembro de 1849, foi este que se encarregou das cerimônias
fúnebres do pai. 26 A suposição inicial, em Uidá, era de que ele também
sucederia ao pai na posição de Chachá.27 Na realidade, entretanto, o rei
Guezo primeiro ofereceu o posto ao então principal negociante, Domin-
gos Martins, mas este não desejava mudar-se de Porto Novo para Uidá. 28
Além disso, o filho mais velho, Isidoro de Souza, também estava, agora,
reclamando o título, decisão que talvez fosse motivada pela destruição
pelo fogo de sua propriedade de Pequeno Popó em maio de 1849, logo

20 Ele fez seu testamento na Bahia, antes de embarcar para se estabelecer na África, em de-
zembro de 1844: publicado em Verger, Os libertos, pp. 116-121.
21 Santos correspondence, no 52 [19 de fev. de 1847].
22 PP, Slave Trade 1849-50, Class B,anexo 10 do doc. no 9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
23 Ver especialmente David Ross, “The Career of Domingo Martinez in the Bight of Benin,
1833-64”, Journal of African History, no. 6 (1965), pp. 79-90.
24 National Archives of Great Britain (doravante NAGB), Londres, CO 96/12, Thomas Hutton,
Cape Coast, 17 de março de 1847.
25 PP, Slave Trade 1849-50, Class B,anexo10 do doc. no 9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
26 PP, Slave Trade 1840-50, Class B, doc. no 7, vice-cônsul Duncan, Ouidah, 22 de set. de 1849.
27 PP, Slave Trade 1849-50, Class B, doc. no 6, Duncan, 22 de set. de 1849 (referindo-se ao “se-
gundo filho”, não identificado).
28 PP, Slave Trade 1840-50, Class B, doc. no. 7, vice-cônsul Duncan, Uidá, 22 de setembro
de 1849.

678 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

após a morte de seu pai.29 Em outubro de 1849, Isidoro havia se mudado


de Pequeno Popó, de volta para Uidá, e a crença geral, nesta cidade, era
de que, diante da recusa de Martins, o posto deveria ir para ele. 30 No
início de 1850, Isidoro parece ter sido de fato reconhecido em Uidá como
Chachá.31 Mas a indicação não tinha ainda recebido a confirmação real
oficial. Em março de 1850, Guezo convocou a família Souza a Abomé
para escolher o novo Chachá. Embora Isidoro fosse o mais rico dos três
irmãos, Ignácio era apoiado por Martins, e Antônio era o “favorito do rei”;
portanto, a questão estava em aberto. Na ocasião, Isidoro foi confirmado
como Chachá, enquanto Ignácio foi feito “cabeceira [chefe]”, e Antônio
ganhou o título honorífico de “amigo del Rey.” Foi acertado que os três
deveriam pagar, separadamente, um “tributo” ao rei (isto é, um imposto
sobre a renda), formalizando-se, assim, a dissolução da família Souza em
segmentos autônomos. 32 De fato, de acordo com tradição posterior, as
propriedades dos Souza em Uidá foram também divididas entre os três
irmãos, Isidoro ocupando a casa principal em Singbome, enquanto Ignácio
tomou o prédio vizinho de Kendji, e Antônio ocupou a propriedade de
Zomayi, no lado oeste de Uidá.33
O cargo para o qual Isidoro tinha ascendido gozava, é claro, de con-
sideravelmente menos prestígio e poder do que seu pai desfrutara em
seu apogeu. O novo Chachá continuou a usufruir os privilégios oriundos
de sua posição como agente comercial do rei, incluindo os direitos reais
da precedência na compra, pelo menos em Uidá. Como foi mencionado
em 1850, ele permaneceu sendo “o principal agente do rei em todos os
assuntos relativos ao comércio; e a ele deviam ser submetidos todos os
negócios, fossem com escravos, fossem com azeite de dendê, nos quais ele
poderia exercer o direito de opção”.34 Mas Guezo já não negociava somente
através do Chachá. Em 1850, ele mencionava quatro pessoas, além do
Chachá, que estavam servindo como seus agentes: seus irmãos Ignácio e
Antônio de Souza; Domingos Martins em Porto Novo; e um comerciante
espanhol chamado Joaquim Antônio, que estava estabelecido em Grande

29 Registrado no Grand Livre Lolamè (em posse da família Lawson de Aného), Lawson a Mar-
mon, 10 de maio de 1849. Este incêndio é também relembrado na tradição da família Sou-
za: Foà, Le Dahomey, p. 27; Simone de Souza, La Famille de Souza, p. 43.
30 F.E. Forbes, Dahomey & the Dahomans, Londres: Longman, Brown, Green, and Longmans,
1851, vol. i, p. 52 [11 de out. de 1849]; PP, Slave Trade 1849-50, Class B, anexo. 10 ao doc. no
9, Forbes, 5 de nov. de 1849.
31 Cf. Forbes, Dahomey, i, p. 106 [8 de março de 1850], referindo-se a ele como “o novo Cha-
chá”. Forbes, Dahomey, vol. i, p. 125; vol. ii, p. 3.
32 Forbes, Dahomey, vol. i, p. 125; vol. ii, p. 3.
33 Foà, Le Dahomey, pp. 26-27; “Note historique sur Ouidah par l’Administrateur Gavoy
(1913)”, Études Dahoméennes, no. 13 (1955), pp. 68-69.
34 Forbes, Dahomey, i, p. 111.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 679


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Popó, a oeste.35 Uma ausência notável nesta lista dos agentes de Guezo
é a de Joaquim d’Almeida. Isto provavelmente reflete o fato de que ele,
recentemente, tinha se mudado de Uidá. Em abril de 1850 foi relatado
que d’Almeida estava “agora” residindo em Agoué.36 Ele permaneceu em
Agoué, desde então, até sua morte em 1857. A razão para este deslocamento
não foi registrada, mas parece provável que estivesse ligada à mudança
de Isidoro para Uidá.
Embora a mudança de d’Almeida para Agoué tendesse a fortalecer
a posição de Isidoro de Souza em Uidá, ela foi, por outro lado, minada
quando Domingos Martins, logo a seguir, transferiu o foco principal de
suas atividades de Porto Novo para Uidá. Em agosto de 1851, foi relatado
que a hostilidade do rei de Porto Novo tinha obrigado Martins a aban-
donar seu estabelecimento e que ele, logo depois, “foi feito cabeceira, de
seu próprio lugar, em Uidá.” 37 Esta expulsão de Martins de Porto-Novo
foi, aparentemente, apenas temporária, uma vez que ele é novamente
mencionado negociando por lá no final da década 1850. Todavia, o centro
de gravidade de suas operações parece então ter-se deslocado definiti-
vamente para Uidá.
A composição da comunidade mercantil em Uidá foi também indire-
tamente afetada pela intervenção britânica em Lagos no final de 1851,
que pôs fim ao tráfico de escravos naquele porto e o transformou quase
em um protetorado da Grã-Bretanha. Isto forçou a transferência de vários
traficantes de escravos brasileiros anteriormente ali residentes, alguns
dos quais acabaram em Uidá. O mais importante destes foi Carlos José de
Souza Nobre, um dos principais traficantes de Lagos, que se antecipou
ao ataque britânico na cidade, retirando-se para Uidá, inicialmente na
esperança de assegurar uma contra intervenção da França ou dos Estados
Unidos.38 Ele permaneceu em Uidá daí em diante, até a sua morte em 1858.39
Nestas circunstâncias, a relativa riqueza e a posição dos Souza
continuaram a declinar durante a década de 1850. Em 1852, ainda era
mencionado que, embora o comércio em Uidá estivesse aberto para todos,
em Godomé e Cotonou, a leste, ele era monopolizado por dois dos irmãos
Souza, na primeira por Isidoro e na segunda por Antônio. 40 Por volta de
1856, no entanto, as feitorias em Godomé e Cotonou tinham passado para

35 PP, Slave Trade 1850-1, Class A,anexo 2ao doc. no 220, Journal of Forbes, 4 de julho de
1850.
36 PP, Slave Trade 1850-1, Class A,anexo 3 ao doc. no 198, Forbes, 6 de abril de 1850.
37 PRO, FO 84/886, Louis Frazer, cópia das notas de rascunho do Journal, 2 & 14 de agosto
de 1851.
38 Pierre Verger, Flux et reflux de la traite des nègres entre le Golfe de Bénin et Bahia de To-
dos os Santos du XVII e au XIXe siècle, Paris: Mouton, 1968, p. 578.
39 Burton, Mission to Gelele, vol. i, p. 111.
40 NAGB, FO2/27, Louis Frazer, Commercial Report,anexo a Frazer, 15 de maio de 1852.

680 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

a posse de Nobre e Martins, respectivamente.41 Após a morte de Nobre em


1858, Godomé passaria para o controle de Jacinto Rodrigues, que tinha
ali uma casa por volta de 1859.42 Cotonou, por outro lado, continuou como
um monopólio de Martins até pouco antes de sua morte em 1864, quando
o rei Glele autorizou ali um estabelecimento francês.43
Deve-se ter em mente esse caráter altamente fragmentado da co-
munidade brasileira no início dos anos 1850, ao se considerar a reação
desta comunidade ao término do tráfico de escravos brasileiro. Tendo
em vista as rivalidades comerciais e pessoais dentro dela, assim como
a heterogeneidade de origens, não era provável que houvesse qualquer
unanimidade de propósitos ou política.

O fim do tráfico de escravos brasileiro, 1850-1852


No final de 1851, frustrada pela continuidade do tráfico de escravos
de Uidá e outros portos na região, a marinha britânica impôs um bloqueio
de toda a costa do Golfo do Benim. Sob tal pressão, Guezo aceitou firmar
um tratado para a abolição do tráfico de escravos em 13 de janeiro de 1852.
Na verdade, em relação ao tráfico especificamente para o Brasil, o
bloqueio de 1851-1852 e o consequente tratado anglo-daomeano eram,
em grande medida, irrelevantes, exceto como símbolo, uma vez que,
àquela altura, o tráfico para o Brasil já tinha, efetivamente, chegado ao
fim. Os desdobramentos mais graves já tinham ocorrido no próprio Brasil,
e não na África, com a adoção pela marinha britânica de uma política
mais agressiva de perseguição e captura dos navios negreiros em águas
territoriais brasileiras a partir de junho de 1850: sob tal pressão, o go-
verno brasileiro finalmente pôs em vigor uma legislação efetiva para a
supressão do tráfico de escravos em setembro de 1850.44
Os efeitos logo se tornaram evidentes na própria África. Em feve-
reiro de 1851, um oficial naval britânico, em visita a Uidá, ouviu que
“o comércio de escravos tinha se reduzido enormemente, não havendo
nenhum embarque já há muitos meses”, e que “os traficantes, vendo
frustrados todos os esforços para exportar escravos” estavam, em vez
disto, negociando com azeite de dendê. Ao vice-cônsul britânico em Uidá,
em agosto de 1851, foi igualmente asseverado que durante aquele ano os
portugueses “não tinham comprado um escravo sequer.”45 Essa falta de

41 WMMS,T.B. Freeman, “West Africa” (manuscritos para o livro), cap. XXXIV.


42 WMMS, William West, Cape Coast, 6 de junho de 1859.
43 Burton, Mission, i, p. 73.
44 Ver Leslie M. Bethell, The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the
Slave Trade Question, 1807-1869, Cambridge: Cambridge University Press, 1970, cap. 12.
45 PP, Lagos, incl. 2 no no 35: Lieutenant Drew, 27 de fev. de 1851; PRO, FO 84/886, Frazer,
Journal, 22 de agosto de 1851.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 681


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

demanda evidentemente produziu um certo excesso na oferta de escravos


no Daomé, que se refletiu numa queda de preços. Enquanto na década de
1840 o preço dos escravos em Uidá era de $80 (80 dólares) por cabeça,
em 1851 eram vendidos por apenas $40; em Porto Novo, no começo do
mesmo ano, dizia-se que escravos haviam sido oferecidos a Domingos
Martins por somente $7-8.46
A reação da comunidade brasileira de Uidá à pressão britânica pela
abolição do tráfico de escravos é controversa. A análise de John Yoder,
focada principalmente nas negociações anglo-daomeanas de 1850, afirma
que os “comerciantes crioulos brasileiros” eram “os mais intransigentes
inimigos dos britânicos”, desejando não só continuar o tráfico de escravos,
mas também evitar o desenvolvimento de qualquer comércio alternativo.47
Mas na verdade, como se verá mais adiante neste artigo, os principais
comerciantes brasileiros já estavam, por volta de 1850, extensamente
engajados no comércio “legítimo” de azeite de dendê, bem como no
tráfico de escravos; e sua atitude diante da iminente abolição, tal como
documentado em afirmações registradas por observadores britânicos,
era pragmaticamente flexível, ao invés de dogmaticamente contrária.
Em 1850, antes do colapso final das negociações, Domingos Martins
disse à missão britânica que, se a Grã-Bretanha lhe pagasse compensações
para cobrir o custo de seus impostos para com o rei, “ele pararia com o
comércio de escravos nas baías; e iria também incrementar o comércio
de azeite de dendê, para torná-lo indispensável ao Rei”. No começo de
1851, foi noticiado que ele tinha se recusado a comprar escravos em Porto
Novo, embora lhe tivessem sido oferecidos a preços muito baixos, e havia
declarado que “tinha tomado a decisão de não ter mais nada a ver com
eles, devido às dificuldades da travessia para o Brasil”48 Em julho de 1851,
o vice-cônsul britânico em Uidá informou que Martins tinha outra vez se
mostrado “bastante disposto a assinar um tratado, por iniciativa própria,
contra o tráfico de escravos e também a auxiliar o governo inglês a acabar
com ele”, ao passo que Antônio de Souza disse que se os britânicos lhe
permitissem um embarque final de 2.000 escravos, “ele de boa vontade
daria garantias de nunca mais ajudar ou instigar o mesmo tráfico, e daria
toda a ajuda que estivesse ao seu alcance para suprimi-lo.”49 Embora essas

46 Jean-Claude Nardin, “La reprise des relations franco-dahoméennes au XIX e siècle: la


mission d’Auguste Bouet à la cour d’Abomey”, Cahiers d’Études Africaines, vol. 7, no. 25
(1967), p. 118; PP, Slave Trade 1850-1, Class A, anexo 4 ao doc. no 35, Lagos Captain Adams,
24 de março de 1851.
47 John C. Yoder, “Fly and Elephant Parties: Political Polarization in Dahomey, 1840-1870”,
Journal of African History, no. 15 (1974), pp. 417-432.
48 PP, Slave Trade 1850-1, Class A, anexo 3 doc. no 198, Lieutenant Forbes, 6 de abril de
1850;, anexo 4 ao doc. no 35, Captain Adams, Lagos, 24 de março de 1851.
49 NAGB, FO 84/886, Frazer, Journal, 22 de julho de 1851.

682 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

afirmações representassem, claramente, mais um reconhecimento da


realidade do que uma conversão moral, isto implicava que a comunidade
mercantil de Uidá podia vislumbrar um futuro viável para si após o fim
do tráfico de escravos e via-o com resignação, como algo inevitável, ainda
que indesejável, a ocorrer num futuro próximo.
Quando o bloqueio naval britânico foi implantado, em dezembro de 1851,
os principais comerciantes brasileiros estavam intimamente envolvidos
nas negociações em curso, como conselheiros e intérpretes do rei Guezo;
todos os irmãos Souza, Isidoro, Antônio e Ignácio, foram testemunhas no
tratado, assinado em janeiro de 1852. O vice-cônsul britânico soube que
os principais comerciantes de Uidá queriam muito que o rei atendesse às
exigências britânicas, mas também tinham medo de provocar represálias
por parte das autoridades daomeanas. Ele afirmou, genericamente, que
“os brancos” de Uidá estavam “apavorados, eles, individualmente e em
conjunto, querem levar o Rei a fazer um tratado incondicional, mas não
há um só dentre eles corajoso o suficiente para lhe dizer isto”, embora
Martins tivesse de fato “prometido persuadir o Rei a assinar o tratado”.
Falando com Antônio de Souza e Jacinto Rodrigues, o vice-cônsul teve a
impressão de que ambos estavam “apavorados e temiam que os nativos
pudessem matá-los.” O Chachá Isidoro também admitiu que “teme dizer
ao rei o que pensa deste bloqueio, como ele diz, pois se tudo correr bem,
o Rei irá chamá-lo de ‘querido amigo’; mas se ocorrer o inverso ele irá
tirar sua vida.”50
Tais posições provavelmente refletiam, de novo, um desejo de pôr
fim ao bloqueio, que era ruinoso para os interesses comerciais brasileiros,
mais do que qualquer oposição por princípio ao tráfico de escravos. Mas
também implicava que os brasileiros estavam dispostos a se adaptar ao
fim do tráfico.

A continuidade do comércio para o Brasil


Diante do fim do tráfico de escravos para o Brasil, de que estratégias
de acomodação dispunham, realmente, os comerciantes brasileiros de Uidá?
Primeiro, deve ser enfatizado que o término do tráfico brasileiro não
acarretou o encerramento total das ligações comerciais com o Brasil. A
demanda por mercadorias brasileiras, especialmente tabaco e cachaça,
permaneceu alta na costa africana. Em 1856, foi mencionado que “grandes
quantidades” das duas mercadorias ainda estavam sendo importadas do
Brasil para o Golfo do Benim, principalmente em navios sardos e por-
tugueses. Embora algumas destas mercadorias brasileiras estivessem
sendo levadas para a costa africana por comerciantes europeus, a maior

50 PRO, Frazer, 23 de dezembro de 1851; fragmentos do memorando diário, 26 de dezembro


de 1851.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 683


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

parte permanecia nas mãos dos brasileiros: em 1854 foi estimado que
pelo menos 80% do tabaco e da aguardente embarcados na Bahia eram
consignados a ou comprados por Martins.51
Naturalmente, essa importação de mercadorias brasileiras já não
podia mais ser paga diretamente com o suprimento de escravos. Havia
também, entretanto, alguma oportunidade de fornecer mercadorias afri-
canas para o mercado brasileiro. A longa história do tráfico de escravos,
e o consequente crescimento, no Brasil, de uma população de origem ou
ascendência africana, tinha criado uma demanda por produtos da África
Ocidental, principalmente iorubás, incluindo panos da costa, azeite de dendê
e nozes de cola. Alguns dos brasileiros na África Ocidental puderam, assim,
continuar comerciando com o Brasil, ainda que não mais com escravos. A
correspondência de José Francisco dos Santos que se conservou, relativa
ao segundo período 1862-1871, mostra-o ainda comerciando com a Bahia,
mas agora a embarcar azeite de dendê e nozes de cola em vez de escravos.
Mais tarde, outro dos proeminentes membros da segunda geração da
família Souza, Julião Félix de Souza, antes de assumir o título de Chachá
em 1883, é lembrado como tendo vendido azeite de dendê para o Brasil
e mesmo feito várias viagens para lá relacionadas com seus negócios.52
Todavia, o tamanho do mercado brasileiro para produtos africanos
era, evidentemente, limitado e insuficiente para cobrir o custo da contínua
importação de mercadorias brasileiras para a África Ocidental. Na verdade,
as importações brasileiras eram provavelmente pagas principalmente
em espécie (dólares de prata e dobrões de ouro), e este numerário tinha
de ser obtido no comércio com outras regiões, tanto com escravos para
Cuba como com produtos “legítimos” para a Europa.

O tráfico de escravos para Cuba, 1852-1866


Com o fim do tráfico de escravos para o Brasil, a alternativa óbvia
era o tráfico para Cuba, onde as autoridades espanholas ainda estavam
resistindo às pressões britânicas para a abolição efetiva. Embora alguns
dos comerciantes de Uidá (tal como Santos) pareçam ter tido conexões
mercantis somente com o Brasil, outros (incluindo Souza e Martins) tinham
fornecido escravos para Cuba, bem como para o Brasil. Os brasileiros
estabelecidos na costa estavam, então, bem situados para explorar a
continuação das oportunidades oferecidas pelo mercado negreiro cubano.
Ainda que o comércio cubano de escravos também fosse interrompido
pelo bloqueio de 1851-1852, ele reviveu logo depois. E mais: a posição de

51 PP, Slave Trade 1856-7, Class B,anexo ao doc. no 43, Lagos, Consul Campbell, “Report on
the Trade of the Bight of Benin for the year 1856.”
52 Souza, La Famille de Souza, p. 55.

684 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Uidá em relação ao comércio cubano se fortaleceu com o estabelecimento


da influência britânica em Lagos, que efetivamente impediu o embarque
de escravos a partir deste porto. O tratado que o rei Guezo havia assinado
em 1852 aplicava-se, evidentemente, a todas as exportações de escravos,
incluindo aquelas para Cuba, como também para o Brasil, mas permaneceu
incerto se ele poderia ou seria efetivamente cumprido.
Durante o ano de 1853, embora não tenham sido noticiados embarques
de escravos a partir da própria Uidá, alguns foram feitos nas proximida-
des de Agoué, a oeste. O cônsul britânico em Lagos soube que, embora o
rei Guezo tivesse “proibido estritamente” o embarque de escravos Uidá
mesmo, os traficantes de escravos de lá estavam simplesmente enviando
seus escravos ao longo da laguna para efetuar o embarque mais a oeste. 53
Em 1854, entretanto, alguns embarques foram feitos em Uidá: em maio,
três navios foram de lá despachados, com cerca de 1.700 escravos, 54 e
mais tarde, neste mesmo ano, um brigue francês chamado Caesar foi
comprado em conjunto pelos fornecedores de escravos de Uidá e Agoué,
com a finalidade de embarcar escravos de Uidá para Cuba, embora os
britânicos considerassem este ato como “uma aventura imprudente”, uma
vez que o barco estava “sem condições de navegabilidade e num estado
perigoso.” 55 Todavia, todas quatro embarcações foram posteriormente
capturadas pelas autoridades em Cuba, três delas antes de desembarcarem
escravos.56 Outras tentativas de embarcar escravos, em 1855 e 1856, foram
frustradas pelo esquadrão antitráfico britânico: em agosto de 1855, um
navio espanhol, o Fernando Pó, supostamente tencionava abastecer-se de
escravos em Uidá, mas foi capturado pelos britânicos antes de lá chegar; e
em janeiro de 1856 outro tumbeiro suspeito, o Chatsworth, de Nova York,
foi levado à terra e destruído em Cotonou (“Appi Vista”), a leste de Uidá.57
É incerto até que ponto os comerciantes brasileiros ali estabeleci-
dos, tal como Domingos Martins, estavam envolvidos nessas aventuras.
Embora os britânicos soubessem que Martins estava entre aqueles que
tinham comprado e embarcado escravos no Caesar em 1854, havia, por
outro lado, pouca evidência circunstancial a sustentar suas alegações
de que continuasse envolvido no tráfico de escravos. Na verdade, parece
que o tráfico para Cuba foi predominantemente conduzido, ao menos em

53 PP, Slave Trade 1853-4, Class B, doc, no 47, Campbell, 31 de outubro de 1853.
54 PP, Slave Trade 1854-5, Class B, doc, no 6, Campbell, 30 de maio de 1854; Class A, doc. no
109, Commander Miller, 3 de junho de 1854.
55 PP, Slave Trade 1854-5, Class B, docs. nos 17, 26, Campbell, 12 de agosto e 1º de dezembro
de 1854.
56 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, doc. no 25, Campbell, 2 de junho de 1855.
57 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, docs. nos 9, 28, Campbell, 28 de agosto de 1855, e 6 de ja-
neiro de 1856.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 685


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

meados da década de 1850, pelos recém-chegados no comércio.58 Estes


eram geralmente portugueses ou espanhóis, e não brasileiros, e tinham
negócios e vínculos pessoais com Cuba e Estados Unidos, e não com a Bahia;
e muitos deles tinham suas bases principais em Agoué e outros portos a
oeste, e não na própria Uidá. Vários dos navios enviados ao Golfo do Benim
para comprar escravos para Cuba em 1855-1856 foram despachados por
João Antonio Machado, um comerciante português residente em Nova
York, que era naturalizado cidadão norte-americano.59 Na própria costa
africana, a principal figura no tráfico de escravos fora de Uidá, em 1856,
era um espanhol chamado Domingo Mustich, cujos estabelecimentos
principais ficavam em Agoué e Pequeno Popó, a oeste.60 Em 1854, ele
viajou como comissário comercial do Caesar para Cuba, e foi de lá para
Barcelona a fim de organizar o despacho de outros navios (incluindo o
Fernando Pó), antes de retornar para Uidá por volta do início de 1856.61
Em todo caso, as perdas sofridas, de navios e cargas, rapidamente
minaram o entusiasmo pela tentativa de continuar com o tráfico. No final
de 1854, os fornecedores de escravos em Uidá tinham “ficado alarmados”
diante desses reveses e estavam “agora retomando o comércio de azeite
de dendê”, e no ano seguinte eles estavam “em estado de grande desânimo”
diante da perda do Fernando Pó.62 Embora tivesse havido rumores de em-
barques subsequentes, estes não estão documentados, e o comandante do
esquadrão antiescravista britânico, em maio de 1857, afirmou “não crer que
qualquer escravo tivesse sido embarcado a barlavento [oeste] de Lagos nos
últimos dois anos.”63 O colapso da exportação de escravos por esta época
é confirmado por evidência relacionada aos preços, que permaneceram
em baixa. Quando a França negociou com Guezo o suprimento de escravos
(sob a aparência de “emigrantes livres”), em 1857, o preço acertado foi de
somente $50 por cabeça.64
Entretanto, o tráfico de escravos em Uidá experimentou uma re-
vitalização a partir de 1857. Por volta de março, notícias chegaram ao
cônsul britânico em Lagos, a leste, de que “fornecedores de escravos em

58 Cf. Ross, “Career of Domingo Martinez”,p. 87.


59 PP, Slave Trade 1855-6, Class B, docs. no 30, 31, 46, Campbell, 1 de fevereiro e 18 de agosto
de 1856, 4 de fevereiro de 1857.
60 Mustich esteve engajado no tráfico ilegal em Popó já nos anos 1840, mas não, anterior-
mente, em Uidá: Silke Strickrodt, “’Afro Brazilians’ on the Western Slave Coast in the Ni-
neteenth Century”, Curto e Lovejoy, Enslaving Connections, pp. 220-221.
61 PP, Slave Trade, 1854-5, Class B, doc. no 17, Campbell, 12 de agosto de 1854; Class B, 1855-
6, docs. nos 9, 30, id., 28 de agosto de 1855, e 1º de fevereiro de 1856.
62 PP, Slave Trade 1854-5, Class B, doc. no 26, Campbell, 1º de dezembro de 1854; Class B,
1855-6, doc. no 9, id., 28 de agosto de 1855.
63 PP, Slave Trade 1857-8, Class A, doc. no 155, Commander Hope, 25 de maio de 1857.
64 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 25, Campbell, 10 de agosto de 1857.

686 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Uidá tinham começado a comprar escravos em larga escala e estavam


pagando um preço cada vez mais alto por eles”; dizia-se até que escravos
estavam sendo enviados de Lagos para Porto Novo, para serem vendidos
para Uidá. 65 Os britânicos, inicialmente, acreditaram que o principal
fator para este novo impulso ao tráfico fosse o projeto francês para o
suposto recrutamento de “emigrantes livres” na África, a fim de serem
enviados para as Índias Ocidentais francesas através da firma M. Régis,
o que era, na realidade, o renascimento do tráfico sob um falso pretexto
legal, que apresentava a compra dos escravos como o seu “resgate” para
a liberdade, antes que ingressassem nos contratos de trabalho supos-
tamente voluntários. Mas, no caso, os efeitos práticos deste esquema,
no que tange especificamente a Uidá, foram insignificantes, uma vez
que ele foi rapidamente suplantado pela revitalização do tráfico para
Cuba, que empurrou os preços dos escravos para níveis que os agentes
de Régis não podiam competir. Quando um vapor pertencente à M. Régis
chegou à costa, em agosto de 1857, ele na verdade só compraria entre 40
e 50 escravos em Uidá, e preferiu seguir para o Congo, onde os escravos
podiam ser adquiridos a preços mais baixos. Em março de 1858, o cônsul
britânico informou que “a tentativa de comprar escravos em Uidá como
se fossem emigrantes livres não tinha ainda sido retomada por M. Régis
e, enquanto o valor corrente dos escravos entre os nativos desta parte
da África continuar alto como está, não é provável que isto aconteça.”66
O tráfico para Cuba, revigorado a partir de 1857, estava, por outro
lado, associado, não aos comerciantes brasileiros estabelecidos na costa,
como Martins, mas a uma nova companhia formada em Havana, chamada
Expedición por África, cujos barcos eram equipados nos Estados Unidos
e navegavam sob as cores norte-americanas.67 Ao longo de 1857, esta
companhia mandou cinco navios para o Golfo do Benim para buscar es-
cravos. No entanto, o primeiro a chegar, o Adams Gray, em abril de 1857,
fracassou na tentativa de obter escravos tanto em Cotonou (“Appi Vista”),
quanto em Uidá, e por esta razão foi para o Congo, mas foi capturado pela
marinha britânica antes que pudesse embarcar qualquer escravo. A reação
dos comerciantes estabelecidos no Daomé não foi, evidentemente nem um
pouco entusiástica. Em Cotonou, Martins negou-se a fazer negócio com o
Adams Gray, aconselhando-o a tentar em outros lugares, pois “o Golfo do
Benim estava agora sendo fiscalizado de forma muito rígida.” O fracasso
dos comerciantes de Uidá em fornecer escravos para este navio é explicado,

65 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 26, Campbell, 31 de agosto de 1857.
66 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, docs. nos 25, 35, Campbell, 10 de agosto, e 12 de outubro de
1857; Class B, 1858-9,, doc. no 5, id., 8 de março de 1858.
67 PP Slave Trade 1858-9, Class A, doc. no 142, Rear-Admiral Sir F. Grey, 11 de fevereiro de
1858.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 687


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

em diferentes informes, como sendo devido à esperança que nutriam de


fazer o carregamento por sua própria conta, para obter maiores lucros,
ou mais simplesmente porque eles “não estavam prontos.” 68 Mas um fator
mais crítico pode ter sido a dúvida sobre a lucratividade do comércio de
escravos: dois antigos traficantes não identificados, que estavam visitando
Lagos nesta época, opinaram que, dado o Adams Gray estar oferecendo
somente $60-70 por escravo, “tal comércio [...] não merece sua atenção:
o comércio de azeite de dendê é infinitamente melhor.”69
Entretanto, navios da mesma companhia, que vieram em seguida
tiveram sucesso na obtenção de escravos: em junho de 1857, o Jupiter
embarcou escravos em “Praya Nova”, um novo ponto de embarque, recém
-aberto, cinco milhas a oeste de Uidá, mas conseguiu embarcar somente
70 escravos antes de ser capturado pela marinha britânica; e, no final de
agosto, o Abbot Devereux embarcou entre 250 e 270 escravos na praia de
Uidá, mas foi também capturado pelos britânicos.70 Outros embarques de
Uidá foram relatados em setembro de 1857, por navios aparentemente
sem conexão com a companhia de Havana: 109 escravos numa escuna es-
panhola e 300 na escuna norte-americana James Buchanan, tendo as duas,
aparentemente, conseguido escapar da captura.71 Em 1858, foi relatado que
um navio norte-americano, o Lydia Gibbs, tinha desembarcado $25.000 em
espécie em Agoué como adiantamento por uma carga de escravos, mas foi
capturado em maio antes que pudesse colocar qualquer cativo a bordo.72
Em janeiro de 1859, um navio destinado a embarcar escravos em Uidá foi
capturado pela marinha britânica, mas outro, o brigue norte-americano
Tyrant, conseguiu embarcar 400, sendo 200 de Agoué e 200 de Uidá.73 Em
setembro do mesmo ano, três diferentes embarques, totalizando entre
1.300 e 1.400 escravos, foram feitos em Agoué e Porto Seguro, embora um
destes fosse capturado pelos britânicos.74 Em 1860, registraram-se quatro
embarques de escravos em Uidá, num total de mais de 2.500 escravos.
Um desses embarques, em agosto, representou significativa inovação

68 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 8, Campbell, 11 de maio de 1857; Class A,anexo 2
ao doc.no 166, Commander Burgess, 12 de agosto de 1857.
69 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 9, Campbell, 11 de maio de 1857.
70 PP, Slave Trade 1857-8, Class A, incl. 1 no no 159, Lieutenant Pike, 2 de julho de 1857; incl.
2 no no 166, Burgess, 12 ago. de 1857; Class B, no 22, Campbell, 5 de agosto de 1857.
71 PP, Slave Trade 1857-8, Class B no 44, Campbell, 3 de novembro de 1857.
72 PP, Slave Trade 1858-9, Class A. no 133, Wise, 6 de agosto de 1858.
73 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, anexos no 4(recorte do West African Herald de 10 de fe-
vereiro de 1859) ; no 95 e 110, Wise, 15 de março e 16 de maio de 1859.
74 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, doc. no 150, Wise, 23 de novembro de 1859. Os navios
eram o Cygnet (USA), setembro, com 400 escravos, de Agoué e mais a leste (capturado);
o Glória (português), setembro, 400 cativos, de Agoué; navio não identificado, setembro,
400-500 cativos, de Porto Seguro.

688 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

técnica no tráfico ilegal: o emprego de um navio a vapor, que embarcou


nada menos que 1.300 escravos numa única carga.75 Nos primeiros dez
meses de 1861, somente um único embarque de escravos foi registrado,
a oeste de Keta; 76 mas houve, depois, outros embarques, em dezembro de
1861 e fevereiro de 1862, este último diretamente de Uidá.77
Embora muitos desses embarques tivessem lugar em portos a oeste
de Uidá, muitos, senão todos os cativos, eram considerados como oriundos
de lá. Como o cônsul britânico em Lagos observou, no começo de 1862,
“somente Uidá deve agora ser vista como um ponto de exportação de
escravos: embarques podem ocasionalmente ser feitos em outros lugares,
mas os escravos, na maioria dos casos, foram coletados lá.”78
O reingresso de Uidá e do Daomé no tráfico de escravos não reflete
simplesmente o retorno dos navios que chegavam em busca de escravos,
mas também o fato de que essa demanda revigorada teve o efeito de elevar
os preços a níveis que tornaram o tráfico novamente atrativo. Em agosto
de 1857, escravos estavam novamente sendo vendidos em Uidá a $80 por
cabeça, um preço com o qual os agentes da firma M. Régis, que queriam
comprar “emigrantes livres”, não podiam competir.79
Contudo, não parece que esses preços fossem suficientes para tentar
os antigos negociantes, como Domingos Martins, a retornarem ao tráfico.
Embora Martins fosse, de tempos em tempos, acusado pelos britânicos de
envolvimento no revitalizado tráfico de escravos, e sua morte, em janeiro
de 1864, tivesse sido vista como “um severo golpe [...] nos interesses
escravistas de Uidá”,80 nunca foi citada nenhuma evidência clara a esse
respeito; o próprio Martins insistiu, em 1862, que “tinha abandonado o
tráfico de escravos.” 81 Como se depreende de registros detalhados, as
figuras dominantes no renovado tráfico de escravos, a partir de 1857,

75 PP, Slave Trade 1860, Class A, doc. no 23, Acting Consul Hand, Lagos, 10 de setembro de
1853; doc. no 57, Commodore Edmonstone, 2 de outubro de 1860; Class B, doc. no 24, Hand,
9 de outubro de 1860. Os navios eram: um barco espanhol (mas com bandeira francesa), 9
ou 10 de abril (com 570 escravos); uma escuna com bandeira norteamericana, 11 de maio
(101 escravos); um “grande vapor”, agosto (1.300 escravos); a barca norteamericano Buck
Eye, setembro (450 escravos). O comandante do esquadrão naval britânico afirmou mais
tarde que “nada menos que 2.500 escravos tinham sido embarcados somente em Uidá num
curto período de seis semanas [talvez um erro para 6 meses]”: PP, Slave Trade 1861, Class
A, doc. no 62, Edmonstone, 4 de janeiro de 1861.
76 PP, Slave Trade, 1862, Class A,anexo 1 ao doc. no 82, Edmonstone, 7 de novembro de 1861:
o navio African.
77 PP, Slave Trade 1862, Class A, doc. no 93, e anexo, Commander Bedingfield, 12 de março de
1862: os navios Thomas Acorn e Seaview.
78 PP, Slave Trade 1862, Class B, no 7, Acting Consul McCoskry, Lagos, 7 de janeiro de 1862.
79 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 25, Campbell, 10 de agosto de 1857.
80 PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no 19, Consul Burton, Bonny River, 23 de março de 1864.
81 PP, Slave Trade 1863, Class A, doc. no 91, Commodore Wilmot, novembro de 1862.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 689


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
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parecem ter sido, mais uma vez, aquelas recém-chegadas à costa, ou que,
pelo menos, não haviam se destacado anteriormente no tráfico em Uidá.
Em 1857, a principal figura, descrita como “agente geral para o tráfico
de escravos em Uidá e portos de embarque adjacentes”, era Samuel da
Costa Soares, que, embora descrito como “um dos [...] antigos traficantes
de escravos”, até então não tivera importância suficiente para ser mencio-
nado nos documentos. Ele era oriundo de Portugal, e não do Brasil, tinha
vínculos com comerciantes portugueses residentes em Nova York, e era,
ele próprio, naturalizado cidadão norte-americano; sua base principal era
Agoué e não Uidá.82 Em 1859, navios negreiros enviados para Uidá foram
considerados como sendo consignados a J. M. Carvalho e “Mr. Baeta”.83 O
primeiro deles é, presumivelmente, M. D. Joaquim Carvalho, chamado de
“Breca”, cuja morte na costa foi relatada por volta do começo de 1864,84
e que tivera sua base em Grande-Popó anteriormente, nos anos 1850. 85 O
segundo era João Gonçalves Baeta, de comprovado envolvimento no tráfico
ilegal de escravos em Agoué já no início da mesma década. Ele parece ter
se retirado do negócio depois e retornado para a Bahia, onde foi um dos
correspondentes de José Francisco dos Santos a partir de 1862.86
No final de 1859, Agoué foi apontada como a base de dois trafican-
tes de escravos chamados “Maderes” e “Swarey”. 87 O primeiro deles era
Francisco José de Medeiros, que também tinha nacionalidade portuguesa,
sendo originário da Ilha da Madeira, mas tendo residido por vários anos
em Cuba. Nos anos 1840 tinha comandado o comércio ilegal com navios
negreiros em Uidá, mas sua presença não é confirmada em Agoué antes
de 1859. 88 O segundo, aparentemente, não é o Samuel da Costa Soares
de 1857, mas uma outra pessoa, João Pereira Soares. Este Soares tinha
bases em Uidá assim como em Agoué; foi descrito, em 1864, como “o prin-
cipal fornecedor [de escravos] de Uidá”.89 Em 1867, depois que o tráfico

82 PP, Slave Trade 1857-8, Class B, doc. no 19, Campbell, 27 de julho de 1857; cf. também Tur-
ner, “Les Brésiliens”, pp. 125-126.
83 PP, Slave Trade 1859-60, Class B, anexo ao doc. no 4, (recorte do West African Herald), 10
de fevereiro de 1859; Class A, docs. nos 95, 115, Wise, 15 de março e 9 de junho de 1859.
84 PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no 19, Burton, 23 de março de 1864.
85 Strickrodt, “Afro-Brazilians”, pp. 222-223. Mas havia um outro Carvalho ativo neste pe-
ríodo, Manoel Joaquim de Carvalho, cujas atividade estavam principalmente centradas
em Porto Novo.
86 Strickrodt, “Afro-Brazilians”, p. 223.
87 PP, Slave Trade 1859-60, Class A, doc. no 158, Elphinstone, 21 de janeiro 1860, e anexo,
Commander Bowen, 21 de novembro de 1859.
88 Sobre Medeiros, ver Turner, “Les Brésiliens”, pp. 126-127; Reynier, “Ouidah”, p. 67. Ele co-
mandou o navio Fortuna de Havana, chegando à Baía de Benin em março de 1842: PP, Sla-
ve Trade 1842, Class A, doc. no 54, caso do Fortuna.
89 Cf. Burton, Mission, vol. i, pp. 74-75 n.; PP, Slave Trade 1864; PP, 1864, Class A, doc. no 151,
Wilmot, 1º de dezembro de 1864.

690 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

de escravos para Cuba tinha chegado ao fim, Soares Pereira e Medeiros


foram descritos como “os últimos dos ricos fornecedores de escravos.”90
O renascimento do tráfico de escravos para Cuba, entretanto, teve vida
curta. As patrulhas navais britânicas tiveram uma certa participação em sua
extinção, especialmente depois que a eficácia de suas ações foi fortalecida
pelo tratado anglo-americano de 1862, que finalmente concedeu aos ingle-
ses o direito de busca em navios norteamericanos, pondo fim desta forma
ao uso abusivo de sua bandeira por navios negreiros ilegais.91 A região de
Uidá mereceu uma atenção especial, tendo o comandante naval britânico
no local emitido instruções, em 1863, para que ela “nunca deixasse de ser
vigiada.”92 Mas, como no caso do término do tráfico brasileiro ocorrido
anteriormente, o fator decisivo foi o fechamento do mercado cubano. Isto
deveu-se, em parte, a uma questão puramente econômica, pois o declínio
do preço dos escravos em Cuba, nos anos 1860, fez com que a importação
da África deixasse de ser lucrativa. Qualquer perspectiva de um revigora-
mento posterior do tráfico foi eliminada pela tardia edição, por parte das
autoridades espanholas em Cuba, em 1867, de uma legislação mais efetiva
para prevenir as importações ilegais.93
Provavelmente, o último embarque transatlântico de escravos
diretamente da praia de Uidá ocorreu em 25 de março de 1862, quando
o vapor espanhol Noc d’Acqui, segundo informações, partiu para Cuba
com 1.600 escravos. 94 Em outubro de 1862, o mesmo navio voltou para a
costa e recolheu uma carga de cerca de 1.000 escravos, mas encontrou
Uidá tão estritamente vigiada pela marinha britânica que foi impossível
embarcar escravos e, por isso, estes foram enviados ao longo da laguna
para embarque em Agoué. 95 Em seguida a uma missão britânica para o
Daomé, no começo de 1863, o rei Glele novamente emitiu instruções de
que “escravos, tanto comprados dele quanto de outros, não deveriam ser
embarcados na costa de seu território”; mas, como acontecera nos anos
1850, isto evidentemente não impediu o envio de cativos de Uidá, ao

90 PP, Slave Trade 1867, Class A, doc. no 65, Commodore Hornby, 7 de junho de 1867.
91 A importância do tratado de 1862 é questionada por David Eltis, Economic Growth and
the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Nova York: Oxford University Press, 1987, p.
210, que afirma que, na verdade, nenhum navio foi condenado com base neste acordo; to-
davia, ele presumivelmente funcionou como um fator desencorajador.
92 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863.
93 Sobre o argumento de que o comércio cubano “foi vitimado por uma morte mercadológi-
ca”, e que a legislação de 1867 teve importância somente como “símbolo”, ver Eltis, Econo-
mic Growth, pp. 218-219.
94 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 14, Consul Freeman, Lagos, 9 de maio de 1862;
WMMS, Henry Wharton, Cape Coast, 14 de abril de 1862.
95 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 25, Freeman, 29 de outubro de 1862; também apon-
tado por Borghero, Journal, pp. 116-117 [20-21 de outubro de 1862].

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 691


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

longo da laguna, para serem embarcados alhures. 96 A última exportação


de escravos para um mercado transatlântico no qual Uidá esteve envol-
vida ocorreu em 10 de outubro de 1863, quando outro vapor espanhol,
o Ciceron, embarcou em Godomé uma carga de 960, embora esta fosse
confiscada pelas autoridades espanholas após sua entrega em Cuba.97 Os
escravos destinados a este embarque tinham marchado por terra de Uidá
para Godomé; sua passagem em direção a leste, sob guarda armada, foi
testemunhada pelo missionário católico francês Francesco Borghero, que
casualmente vinha, em direção oposta, de uma visita a Lagos e Badagri.98
De acordo com o cônsul britânico Richard Burton, que chegaria a Uidá
algumas semanas depois, o bem-sucedido embarque foi comemorado
pelos responsáveis pelo carregamento com um banquete que durou dez
horas, ao qual compareceram os comerciantes “legítimos” assim como os
traficantes de escravos, que se juntaram em “brindes pró-escravidão”. 99
Na verdade, esta celebração terminou sendo o canto do cisne do
tráfico de escravos em Uidá, uma vez que este, aparentemente, foi
o último embarque de escravos para Cuba de todo o Golfo do Benim.
Embora o rei Glele, em negociações com os britânicos em 1863-1864,
ainda insistisse que continuaria a vender escravos, sua determinação
foi irrelevante na ausência de navios aos quais vender. Em 1864, o co-
mandante naval britânico informou que, no Golfo do Benim, “até onde
eu sei, não houve um único embarque este ano”, fato que ele sustentava
ser “inteiramente atribuível ao estrito bloqueio que foi estabelecido”;
embora o vapor Ciceron tivesse reaparecido na costa oeste de Uidá,
perto de Porto Seguro, em maio, e uma carga de 2.000 escravos tivesse
sido preparada, foi impossível embarcá-la. 100 No ano seguinte, 1865, o
comandante novamente informou que o tráfico de escravos nas baías,
“em razão do estrito bloqueio estabelecido e mantido, está virtualmente
no fim. Não houve embarques de escravos desde o ano passado”, e outro
observador relatou que “os comerciantes de escravos que os tinham
reunido para embarque estavam agora vendendo-os de volta para os
nativos, para trabalharem em suas plantações.” 101
Os traficantes de escravos locais talvez ainda não tivessem perdido
a esperança, pois, em julho de 1864, João Soares Pereira viajou de Uidá
para Londres, pelo serviço de vapor de Lagos, a fim de comprar navios e,

96 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 119, Wilmot, 31 de dezembro de 1863.
97 Idem.
98 Borghero, Journal, p. 139 [9 de outubro de 1863].
99 Burton, Mission, vol. i, p. 115.
100 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864.
101 PP, Slave Trade 1865, Class A, doc. no 83, Wilmot, 19 de dezembro de 1865; African Times,
23 de setembro de 1865, carta datada de Grande Popó, 29 de julho de 1865.

692 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

se não obtivesse sucesso lá, tencionava prosseguir até Nova York com o
mesmo propósito. Os britânicos souberam (ou supuseram) que esses navios
teriam como destino o seu emprego no tráfico de escravos. 102 Presumivel-
mente como resultado desta missão, no ano seguinte, um navio chamado
Dahomey, de propriedade de Pereira e Medeiros, navegou de Nova York,
via Lisboa, para a África Ocidental, chegando em Uidá em dezembro de
1865. Após alguns meses negociando entre Uidá e localidades a oeste, foi
capturado pela marinha britânica em Agoué, em março de 1866. Embora
os britânicos alegassem que mais de 600 escravos haviam sido reunidos
em Agoué para embarque no Dahomey, não havia evidências conclusivas
desta intenção e o navio foi, afinal, liberado.103
Depois disso, as esperanças locais de um renascimento do tráfico
evidentemente se evaporaram. No ano seguinte, 1867, o comandante naval
britânico do lugar informou que a “demanda por escravos por parte de
Cuba aparentemente cessou”; desde a dispersão dos cativos supostamente
reunidos para embarque no Dahomey no ano anterior, “nenhuma carga,
até onde sabemos, foi preparada para embarque naquela parte da costa”.
Soares Pereira e Medeiros começaram a desmontar seu estabelecimento
em Agoué e transferiram seus negócios para leste da costa. Como Medeiros
explicou para um capitão naval britânico, “agora, o tráfico de escravos
está encerrado, então eu estou indo para o comércio legal; seus cruzadores
não o impediram, mas não há demanda por parte de Cuba.” 104 Medeiros
mudou-se para Uidá, onde morreria em 1875.105

Os brasileiros e o crescimento do comércio


“legítimo” para a Europa
Uma estratégia alternativa de adaptação ao término do tráfico de
escravos para o Brasil foi o desenvolvimento de formas “legítimas” de
comércio, isto é, empregando mercadorias outras que não cativos, o que,
no Golfo do Benim, significava principalmente azeite de dendê e, a partir
de meados da década de 1860, a castanha do coco do dendezeiro. De mais
a mais, bem depois, quando o tráfico de escravos para Cuba também che-
gasse ao fim, este seria o único recurso para os comerciantes brasileiros
de Uidá, se quisessem evitar a marginalização comercial.

102 PP, Slave Trade 1864, Class A, doc. no 151, Wilmot, 1º de dezembro de 1864.
103 PP, Slave Trade 1866, Class A, docs. nos 37, 39, 43, o caso d Dahomey; ver também doc. nº
60, Hornby, 11 de março de 1866; Class A, 1867, doc. nº 48, id., 12 de fevereiro de 1867.
104 PP, Slave Trade 1867, Class A, doc. no 65, Hornby, 7 de junho de 1867.
105 Reynier, “Ouidah”, p. 67. Este relato afirma que Medeiros se mudou para Uidá em 1863,
mas segundo as fontes contemporâneas isto deve se ter dado alguns anos mais tarde. Um
relatório de 1871 apontou sua presença em Uidá, onde estava construindo uma casa: J. A.
Skertchly, Dahomey as It Is, Londres: Chapman and Hall, 1874, p. 67.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 693


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Embora, como apontado acima, algum comércio de azeite de dendê


fosse feito para o Brasil, os principais mercados para o produto estavam
na Europa Ocidental, principalmente Inglaterra e França. A opção por
concentrar os negócios no azeite de dendê implicou numa reorientação
comercial em direção à Europa. Isto não era algo inteiramente novo, uma
vez que os brasileiros de Uidá tinham começado a vender azeite de dendê
para comerciantes europeus numa escala considerável antes mesmo do
fim do tráfico de escravos para o Brasil. O comerciante britânico que
iniciou esse negócio em 1846 na região, Thomas Hutton, comentou com
surpresa que o próprio Souza tinha entrado no comércio legítimo, tendo
carregado cinco navios com azeite de dendê no curso de um ano; e no
ano seguinte ele chegou a reclamar da competição que “os portugueses”
estavam proporcionando no comércio de azeite. 106 Brasileiros, tal como
os mercadores nativos daomeanos, também entraram na produção de
azeite de dendê, empregando trabalho escravo nas fazendas perto de Uidá.
Os comerciantes brasileiros inicialmente tomaram o comércio de
azeite mais como um suplemento ao tráfico de escravos do que como
um substituto a este: como foi dito em 1849, “no momento, ninguém é
comerciante de escravos em Uidá, mas trabalha com os dois comércios.”107
Domingos Martins, em particular, estava profundamente envolvido no
comércio de azeite, dizendo ter obtido com ele nada menos que $80.000
durante o ano 1849-1850. Em 1851, seu secretário em Uidá sustentava
que seus negócios com azeite de dendê tinham ultrapassado o montante
de $200.000 (a preços correntes, cerca de 2.000 toneladas) anuais. 108
Esses comerciantes foram para o comércio de azeite em parte a fim de
se garantirem contra a crescente incerteza no tráfico de escravos; mas
eles também usaram-no para apoiar suas atividades escravistas. Um dos
problemas centrais para os traficantes no comércio ilegal era a obtenção
das mercadorias que seriam utilizadas para a compra de escravos. Em-
bora tivessem fácil acesso ao tabaco e o aguardente brasileiros, também
precisavam de um suprimento maior de mercadorias manufaturadas,
especialmente britânicas. Anteriormente, eles tinham dependido da com-
pra de bens britânicos na África Ocidental, com pagamento em dinheiro,
mas agora consideravam mais conveniente obtê-los vendendo azeite de
dendê. Como Hutton explicitamente apontou em 1847, “eles praticam o
comércio de azeite para induzir navios a lhes trazer carregamentos”; e
como Martins explicou em 1850, “os comércios de escravos e de azeite
ajudam-se um ao outro.”109

106 NAGB, CO 96/12, Hutton, 7 de dezembro de 1846, e 17 de março de 1847.


107 PP, Slave Trade 1849-50, Class B,anexo 10 ao doc. nº 9, Forbes, 5 de novembro de 1849.
108 Forbes, Dahomey,vol. ii, p. 85; NAGB, FO 84/886, Frazer, Journal, 22 de julho de 1851.
109 NAGB, CO 96/12, Hutton, 17 de março de 1847; Forbes, Dahomey, vol. ii, p. 85.

694 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Parte da reação do Daomé ao término do tráfico de escravos brasi-


leiro foi o incremento das exportações de azeite de dendê: uma missão
francesa que visitou o Daomé em 1856 afirmou que “as exportações de
azeite de dendê estão crescendo a cada ano”, e um missionário inglês,
naquele mesmo ano, teve igualmente a impressão de que “uma grande
mudança comercial está atingindo todo o Daomé, a manufatura do azeite
de dendê está crescendo enormemente.” 110 Os comerciantes brasileiros
claramente desempenharam um papel proeminente nesta expansão do
comércio do azeite: em 1856, por exemplo, foi observado que Nobre e
Martins, com suas fábricas em Godomé e Cotonou, eram “grandes comer-
ciantes de azeite.”111 Neste período, na verdade, os brasileiros foram muito
bem-sucedidos em inserir-se como intermediários entre os produtores
africanos e os compradores europeus de azeite. Um capitão britânico que
negociava em Uidá e Badagri entre 1851 e 1863 observou que a principal
mudança na operação do comércio durante este período foi que, “em vez
de comerciar com os nativos, nós frequentemente temos de comerciar com
os portugueses estabelecidos no negócio do azeite, agora que o tráfico de
escravos está à beira da ruína.”112
Esta mudança para o azeite de dendê, todavia, acabou por enfrentar
dificuldades devido à queda dos lucros. O preço do azeite de dendê no
Reino Unido atingiu um pico de £48 por tonelada em 1854, mas depois
declinou, girando em média em torno de £43 durante o restante da década
de 1850, e caindo abaixo das £40 na de 1860.113 Os preços na costa da África
Ocidental não seguiram o mesmo padrão, mas no geral também caíram. A
expansão das exportações de azeite de dendê de Uidá no final da década
de 1840 tinha sido estimulada por uma alta nos preços, de $4 (dólares)
por medida (18 galões), em 1844, para $7 por medida, em 1850, e £8 por
medida ($133 por tonelada) em 1851; e em janeiro de 1852, em seguida
à sua aceitação do tratado para a abolição das exportações de escravos,
Guezo decretou um aumento do preço para $12 por medida ($200 por
tonelada). 114 Mas este nível artificial (que era, na verdade, mais alto do
que os preços correntes na Inglaterra) era obviamente insustentável. Em

110 A. Vallon, “Le royaume de Dahomey”, Revue Maritime et Coloniale, no. 1 (1860), p. 357;
WMMS, T.B. Freeman, Porto Novo, 2 de abril de 1856.
111 WMMS, Freeman, 2 de abril de 1856.
112 PP, Select Committee on the State of the British Settlements on the Western Coast of Af-
rica (1865), Minutes of Evidence, pp. 5449-5450 (Captain James Croft).
113 Martin Lynn, Commerce & Economic Change: The Palm Oil Trade in the Nineteenth Cen-
tury, Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 29, 112 (Tabelas 1.9 e 5.2).
114 PP, Slave Trade 1850-1, Class A, anexo 3 ao doc. no 198, Forbes, 6 de abril de 1850; NAGB,
FO2/7, Frazer, Commercial Report, 1852; FO 84/886, Louis Frazer, Occurrences, gossip
&c. at Whydah, 20 de janeiro de 1852.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 695


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

1854 o preço tinha caído de volta para $6 por medida ($100 por tonela-
da).115 Deve se presumir que esta queda de preços minou a lucratividade
dos negociantes de Uidá e da monarquia daomeana; além disso, os ganhos
dos primeiros foram ainda mais reduzidos pelo acréscimo na taxação
do comércio de azeite que a monarquia instituiu nos anos 1850 para
compensar a perda da renda oriunda do tráfico de escravos. A redução
na lucratividade do comércio do azeite talvez explique as informações
de que, por volta de 1859, o principal comerciante de Uidá, Domingos
Martins, estava “à beira da bancarrota.”116
No longo prazo, na verdade, os comerciantes brasileiros não foram
capazes de competir efetivamente com as firmas europeias e francesas,
que dispunham de maiores recursos de capital, e sobreviveram somente
tornando-se agentes destas. Um dos primeiros exemplos foi Manoel
Joaquim de Carvalho, que estava servindo como agente da firma francesa
Régis, em Porto Novo em 1862-1863, quando desempenhou importante
papel na negociação do primeiro protetorado francês sobre Porto Novo,
que teria vida curta. 117 Na própria Uidá, o brasileiro J. C. Muniz formou,
claramente, uma parceria similar com o agente local da M. Régis, Jules
Lartigue; quando este retornou para a França, deixou Muniz para tocar
seus negócios ainda assim, quando Muniz morreu, em fevereiro de 1863,
deixando seus negócios numa confusão, José Francisco dos Santos, que
era um de seus credores, teve de escrever para Lartigue, na França, para
garantir o recebimento do que lhe era devido.118 Na geração seguinte, os
filhos dos principais comerciantes brasileiros serão encontrados, não
mais como negociantes independentes, mas como agentes subordinados
de firmas europeias. n Na década de 1870, por exemplo, o filho de Santos,
Jacinto da Costa Santos, estava atuando como agente da firma inglesa
Swanzy.119 Mais tarde, nos anos 1880, após esta firma ter se retirado do
comércio de Uidá e vendido suas propriedades ali para a firma alemã
Goedelt, de Hamburgo, um filho de Medeiros, Julio Medeiros, serviu
igualmente como agente desta última.120
Estes processos de ajuste comercial também interagiram com o
contexto político em transformação, tanto em termos da política africana

115 Em 1854 Martins prometeu fornecer azeite aos britânicos ao preço de 4½ galões por dó-
lar (i.e. $4 por medida de 18 galões), mas então subiu o preço para 3 galões por dólar ($6
por medida): PP, Slave Trade 1854-5, Class B, doc. no 32, Campbell, 7 de dezembro de 1854.
116 PP, Slave Trade 1858-9, Class B, doc. no 17, Campbell, 7 de fevereiro de 1859.
117 C.W. Newbury, The Western Slave Coast & its Rulers, Oxford: Clarendon Press, 1961, p. 64.
118 Correspondência de Santos, no 88 [31 de jan. 1863]; também nos 97, 103 [26 de julho de
1863, 3 de maio de 1864, endereçada a Lartigue].
119 Foà, Le Dahomey , p. 33.
120 Turner, “Les Brésiliens”, p. 303.

696 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

local – especialmente com as relações cada vez mais problemáticas da


comunidade brasileira em Uidá com a monarquia daomeana – quanto em
termos da diplomacia internacional, com o crescimento da intervenção
imperialista da Grã-Bretanha, França e Portugal.

Política local: os brasileiros e a monarquia daomeana


Embora a revitalização do tráfico de escravos no final dos anos 1850
tivesse sido, inicialmente, uma reação a mudanças de oportunidades no
mercado pelo aquecimento da demanda por parte de Cuba, ela também
refletia divisões políticas internas ao Daomé, mais abertamente expres-
sas na disputa pela sucessão real que se seguiu à morte do rei Guezo em
1858. A promoção do comércio de azeite de dendê por parte de Guezo, nos
anos 1850, tinha sido acompanhada por uma minimização consciente da
importância do tradicional militarismo daomeano, o que tinha provocado
a oposição dos elementos tradicionalistas da elite dirigente, com a qual o
herdeiro presuntivo Badahun (que subiu ao trono como rei Glele em 1858)
estava associado.121 Esta interpretação da divisão facionária no Daomé
foi recentemente questionada por Edna Bay, que afirma que o conflito
sobre a acessão de Badahun/Glele refletiu uma luta interna pelo poder
e não divergências sobre a política comercial ou externa.122 Mas essas
interpretações não são contraditórias, na medida em que diferenças po-
líticas iriam inevitavelmente tender a se cristalizar em torno de pontos
da tensão estrutural da classe dirigente.
Até que ponto os brasileiros, ou de forma mais ampla, a comunidade
mercantil de Uidá, estava envolvida nessas divisões é algo que permanece
incerto. Não há evidências explícitas de que os brasileiros ou os comer-
ciantes nativos tivessem desempenhado qualquer papel direto na disputa
pela sucessão de 1858. Todavia, há evidências do descontentamento em
Uidá nos primeiros anos do reinado de Glele. Em 1860, por exemplo, o
cônsul britânico em Lagos informou que o novo rei do Daomé era “mal-
quisto em Uidá, seu governo sendo mais intolerável que o de seu pai”,
e chegou a sugerir que, “no presente momento, pouco estaria faltando
para uma revolta contra a autoridade de Glele.” Embora tal afirmação
possa ter sido a expressão do desejo do próprio cônsul, ela tem suporte

121 Robin Law, “The Politics of Commercial Transition: Factional Conflict in Dahomey in the
Context of the Ending of the Atlantic Slave Trade”, Journal of African History, no. 38
(1997), pp. 213-233.
122 Edna G. Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahom-
ey, Charlottesville: University Press of Virginia, 1998, pp. 263-273. Bay rejeita as infor-
mações contemporâneas de uma ruptura entre Guezo e Badahun, e argumenta que a opo-
sição à ascensão deste último refletiu a luta pelo controle da sucessão real no seio da fa-
mília real e principalmente da organização feminina palaciana.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 697


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
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no próximo testemunho. A Missão Metodista inglesa em Uidá, em 1861,


também achava que Glele estava “agora se tornando odioso para muitos de
seu povo”, por isso “inúmeros dentre eles estão deixando seu território no
litoral.” Da mesma maneira, o cônsul Burton, em 1863-1864, informou: “O
povo de Uidá está cansado de guerras e impostos, e muitos estão fugindo,
com suas esposas e suas famílias, para as províncias adjacentes”; ele se
referia, especificamente, a quarenta famílias que tinham recentemente
fugido de Uidá para Porto Novo, a leste, colocado há pouco sob protetorado
francês, “como uma terra de liberdade.”123
O êxodo de Uidá, relatado nestas fontes, envolveu em parte escravos
empregados localmente, que agora temiam ser exportados para Cuba
(e também, talvez, capturados para sacrifício nas cerimônias fúnebres
para o falecido rei Guezo). Mas o descontentamento em Uidá estendia-se,
claramente, para além dali, incluindo a população, de forma mais geral,
e certamente a rica classe mercantil em particular.
Na verdade, a ascensão de Glele foi marcada por uma espetacular
ruptura com uma das principais famílias mercantis de Uidá, os Souza. O
segundo Chachá, Isidoro de Souza, havia morrido em 1858, pouco antes
do próprio Guezo. Guezo, inicialmente, tinha indicado um dos irmãos mais
novos de Isidoro, Antônio “Kokou”, para sucedê-lo, mas Antônio provocou
o descontentamento real. De acordo com o registro feito por Burton
alguns anos depois, Antônio era “um homem dissoluto, rico, esbanjador,
intolerante; possuía milhares de escravos armados e treinados; construíra
um palacete misturando aguardente, e não água, na argamassa, desejando
imitar o Rei, que, para tal finalidade, usa sangue, e ameaçava compelir
Guezo a tornar-se cristão à força.” A tradição familiar também relembra
a ruptura com a autoridade real, recordando que Antonio empregou seus
servidores armados para defender os membros da família contra a expro-
priação e aprisionamento pelos agentes do rei.124 Burton comenta que “sua
carreira foi curta”; isto, provavelmente, significa que ele foi demitido, e não
assassinado, uma vez que a tradição familiar insiste em que, ao contrário
de muitos de seus irmãos, ele morreu de causas naturais. Todavia, é certo
que faleceu logo em seguida.125 O título de Chachá foi, então, conferido ao
terceiro dos filhos proeminentes de Souza, Ignácio, mas ele também não
durou muito: de acordo com Burton, por volta de 1859-1860 (portanto,
após a ascensão de Glele) ele foi acusado de fornecer informações para

123 PP, Slave Trade 1860, Class B, doc. no 8, Consul Brand, Lagos, 18 de abril de 1860; WMMS,
Henry Wharton, Cape Coast, 13 de agosto de 1861; PP, Slave Trade 1864, Class B, doc. no
19: Burton, 23 de março de 1864; Burton, Mission, vol. ii, p. 85, n.
124 Burton, Mission, vol. i pp. 105-156; evidência oral, Balbina de Souza, vila residencial Antô-
nio Kokou de Souza, Ouidah, 12 de dezembro de 2001.
125 Souza, La Famille de Souza, p. 60, sugere que Antônio Kokou viveu até cerca de 1883; mas
não há referências claras a ele nas fontes da época, após os anos 1850.

698 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

o esquadrão antitráfico britânico, e “desapareceu misteriosamente”; sua


propriedade de Kendji, em Uidá, foi “invadida.” Burton a viu, em 1864,
ainda em ruínas.126
A maneira precisa de como a remoção de Antônio e o assassinato
de Ignácio de Souza possam estar conectados com as disputas na capital
acerca da reativação do tráfico de escravos, é algo que permanece obs-
curo. A acusação contra Antônio sugere um desafio direto à autoridade
real, uma reivindicação de independência e não divergências acerca
de política. Todavia, a acusação contra Ignácio, identificando-o com a
campanha antiescravista britânica, quer tenha sido isto uma verdade
factual, quer não, é algo que o liga efetivamente, por implicação, a esta
luta política mais ampla.
De acordo com um relato posterior, na crise que se seguiu à morte
de Isidoro, o Glele indicou, inicialmente, outro dos irmãos Souza, um
segundo Antônio, este apelidado “Agbakoun”, para o cargo de Chachá,
mas a indicação foi anulada após protestos de outros comerciantes de
Uidá.127 Presumivelmente, esta fracassada indicação seguiu-se à derro-
cada de Antônio e Ignácio. Ao contrário deste último, no entanto, Antônio
“Agbakoun” não foi assassinado, mas viveu até os anos 1880.128 O título
de Chachá foi, finalmente, concedido a outro irmão, que tinha o mesmo
nome do pai, Francisco, mas distinguia-se pelo apelido de “Chico”. Ele
não tinha se destacado anteriormente em Uidá, e consta que vivera como
comerciante em Agoué, a oeste, antes de sua indicação.129
A família Souza, naquele momento, estava evidentemente atravessando
uma fase de considerável desordem interna. Um membro mais jovem da
família, Jerônimo Félix de Souza, que em 1861 se apresentou em Elmina,
o quartel general holandês na Costa do Ouro, para se alistar a serviço do
exército colonial holandês em Java, explicou que fez isto para escapar
de “maus-tratos” por parte de sua própria família após a morte de seus
pais.130 Presumivelmente, este Jerônimo era filho de Isidoro, Antônio ou
Ignácio. Embora o posto de Chachá tivesse sobrevivido, era agora de pouca
importância política ou comercial, significando nada mais que a liderança
da família Souza: em 1860, dizia-se que o cargo significava “pouco mais

126 Burton, Mission, vol. i, pp. 91-2 (datando de “quatro anos atrás”). A tradição familiar
informa a data da morte de Ignácio como sendo 1860: Souza, La Famille de Souza, p. 150.
127 Foà, Le Dahomey, p. 30-1.
128 Ele morreu, segundo se afirmou, envenenado, logo depois da prisão e assassinato de seu ir-
mão, o Chachá Julião de Souza, em 1887: Foà, Le Dahomey, p. 44.
129 Foà, Le Dahomey p. 31.
130 Larry Yarak, “New Sources for the Study of Akan Slavery and Slave Trade: Dutch Military
Recruitment in the Gold Coast and Asante, 1831-72”, in Robin Law (org.), Source Material
for Studying the Slave Trade and the African Diaspora, Stirling: Centre of Commonwealth
Studies, University of Stirling, 1997, p. 59, doc. no 70.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 699


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

que um nome”, e em 1864 que o Chachá tinha “pouco poder.” 131 Por esta
mesma época, de fato, o posto de Chachá fora efetivamente suplantado
como cabeça da hierarquia comercial em Uidá, com a indicação de um
comerciante nativo, Azanmado Houénou, um inimigo figadal dos Souza,
como “chefe dos comerciantes.”132
Outros importantes comerciantes brasileiros de Uidá abandonaram
a cidade nesse período. O mais proeminente deles foi Jacinto José Rodri-
gues, que deixou Uidá nos anos 1860 e foi para Porto Novo, a leste, onde
veio a falecer em 1882. 133 Um outro, Pedro Félix d’Almeida, fugiu para
Pequeno Popó, a oeste, depois de disputa sobre o pagamento de taxas.134
Provavelmente, a principal razão para o descontentamento em Uidá
na década de 1860, como sugere o caso de Pedro Félix d’Almeida, foi a
indignação com os impostos, que aumentara sensivelmente nesta época. A
comunidade mercantil de Uidá também sofreu com a rigorosa aplicação do
imposto real sobre a herança. Entre os principais comerciantes brasileiros,
por exemplo, a propriedade de Martins foi confiscada para o rei quando
da sua morte em janeiro de 1864, sendo a chave de sua casa apropriada
pelas autoridades locais.135 Quando Francisco José de Medeiros morreu, em
1875, a tradição da família relembra, igualmente, que sua propriedade foi
“saqueada pelos daomeano.”136 O incremento na taxação, na década de 1860,
foi, provavelmente, em parte uma consequência do custo das cerimônias
fúnebres para o rei Guezo, e das expedições militares de Glele. Mas elas
também refletiam as dificuldades financeiras causadas à monarquia pela
transição do tráfico de escravos para o comércio de azeite de dendê. Em
1866 um observador francês tornou a conexão explícita: “O rei está se
tornando cada dia mais pobre desde o término do tráfico de escravos; ele
considera aceitáveis quaisquer métodos para obter dinheiro.”137
Além dos aspectos fiscais, também há evidências de que o revigora-
mento do tráfico de escravos e do militarismo daomeano, a partir de 1857,

131 PP, Slave Trade 1860, Class B, doc. no 8, Brand, 18 de abril de 1860; Burton, Mission, vol. i,
p. 106.
132 Para maiores detalhes e contexto, ver Robin Law, “The Origins and Evolution of the Mer-
chant Communiy in Ouidah”, em Robin Law e Silke Strickrodt (orgs.), Ports of the Slave
Trade (Bights of Benin and Biafra) (Centre of Commonwealth Studies, University of Stir-
ling, 1999), pp. 55-70.
133 Reynier, “Ouidah”, p. 45: este informa como data de sua mudança para Porto Novo 1862,
mas Burton, em 1864, ainda o considerava como residente em Uidá e Porto Novo.
134 Turner, “Les Brésiliens”, pp. 109-110. Este D’Almeida não era “brasileiro” de nascimento,
mas um africano nativo (de Pequeno Popó), trazido para a casa dos Souza.
135 Burton, Mission, vol. i, p. 73.
136 Idem.
137 Fleuriot de Langle, 7 de outubro de 1866, citado em Bernard Schnapper, La politique et le
commerce français dans le Golfe de Guinée de 1838 à 1871, Paris: Mouton, 1961, p. 192, n.1.

700 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

teve como efeito a desestruturação do comércio de azeite de dendê, uma


vez que a mobilização da população para o serviço militar drenava força
de trabalho necessária para a produção agrícola. Em 1862, por exemplo,
foi relatado que “no Reino do Daomé, a agricultura está paralisada e o
comércio legítimo próximo do nada”, porque “a população das aldeias está
[...] sujeita a ser convocada a qualquer momento para partir em alguma
expedição de caça a escravos.” E, novamente em 1866, foi dito que “o
atual rei, devido às suas guerras e contínuas cerimônias, está irritando
as pessoas, que estão sendo obrigadas a passar grande parte do ano na
capital, arruinando o comércio ao tornar a exploração dos dendezeiros
quase impossível.”138 Embora relatado em termos gerais, parece que estas
reclamações refletem, principalmente, a opinião da comunidade mercantil
de Uidá, incluindo aqueles brasileiros que tinham passado a se dedicar
ao comércio de azeite de dendê.
Essas dificuldades com que se deparavam os comerciantes “legítimos”
nos primeiros anos do reinado de Glele são ilustradas pelo que se conservou
da correspondência de José Francisco dos Santos. No final de 1864, Glele
proibiu a venda de azeite de dendê para europeus, uma proibição mantida
por pelo menos 50 dias, a fim de que ele próprio pudesse comprar todo o
azeite (presumivelmente, a preços baixos), a fim de financiar o resgate
de guerreiros capturados numa recente derrota do exército daomeano
em Abeokuta. Santos também reclamou, de forma mais genérica, da
incapacidade do rei em honrar seus débitos: “o Rei do Daomé também
está se revelando um ladrão! Ele compra e não paga.” Ele devia a Santos
pelo tabaco de três diferentes embarques, e também alguns milhares de
dólares”, correspondentes aos búzios que tinha emprestado ao rei para
resgatar os prisioneiros “e que agora ele se recusa a me pagar.”139
De fato, parece claro que o término do tráfico de escravos tendeu a
multiplicar as tensões entre os comerciantes brasileiros e a monarquia
daomeana.140 Enquanto que no tráfico de escravos havia uma complemen-
taridade essencial de interesses entre ambos – com a monarquia suprindo
os cativos que os brasileiros vendiam –, no comércio de azeite de dendê a
monarquia e os brasileiros se tornaram competidores, uma vez que tanto
a primeira quanto os segundos podiam e entraram na produção do azeite
para exportação, como indicado acima. Esse antagonismo foi acentuado
pelo aumento das exigências fiscais sobre a comunidade mercantil de Uidá,
o que também refletia as dificuldades financeiras causadas à monarquia
pela transição comercial.

138 PP, Slave Trade 1862, Class B, doc. no 21, Freeman, 1 de julho de 1862; M. Béraud, “Note sur
le Dahomé”, Bulletin de la Sociéte de la Géographie, 5th series, no. 12 (1866), pp. 375-376.
139 Correspondência de Santos, no 105 [19 de jan. 1865].
140 Cf. Bay, Wives of the Leopard, pp. 280-281.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 701


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Política internacional: os brasileiros e o


proto-imperialismo europeu
A era da transição comercial, com a supressão do tráfico de escravos
brasileiro e cubano, foi também marcada pelo começo da intervenção
imperialista nos assuntos daomeanos. A reação dos brasileiros de Uidá
ao declínio do tráfico de escravos também deve ser relacionada com as
ameaças e as oportunidades que esta crescente intromissão europeia
trazia consigo.
A posição de liderança, neste proto-imperialismo, foi assumida pela
Grã-Bretanha no curso de sua campanha para suprimir o tráfico atlântico
de escravos. A pressão britânica sobre o Daomé para a assinatura de um
tratado ☺também incluiu a permanência de um vice-consulado em Uidá,
instalado no antigo forte britânico, entre 1849 e 1852.141 O confronto da
Grã-Bretanha com o Daomé pareceu, num primeiro momento, oferecer aos
brasileiros a possibilidade de uma aliança externa alternativa. Quando
o bloqueio naval foi imposto, em dezembro de 1851, pelo menos alguns
membros da comunidade brasileira pensaram que, na disputa, poderiam
optar por ficar do lado dos britânicos. O vice-cônsul britânico informou
que Antônio de Souza “deseja colocar-se sob a proteção britânica” e tam-
bém que “os libertos da Bahia” o tinham abordado para pedir “proteção
britânica.” Todavia, isto não deu em nada, pois o vice-cônsul não se sentiu
capaz de estender sua proteção a cidadãos não britânicos. 142 E, após 1852,
os interesses britânicos no Daomé minguaram, tendo o vice-consulado
sido abandonado e transferido, naquele ano, para Lagos.
Das outras duas potências europeias com interesses no Daomé, a
França, embora viesse mais tarde a se tornar um conquistador colonialista,
estava de fato pouco engajada nos assuntos daomeanos antes da década
de 1860, e mesmo depois sua atenção foi dirigida principalmente para
Porto Novo e não para o Daomé. Para a comunidade brasileira na década
de 1860, a mais importante conexão europeia alternativa era com os
portugueses. Os Souza, em particular, tinham sempre conservado sua
nacionalidade portuguesa, ao invés da brasileira; e no contexto do fim
do tráfico para o Brasil, esta aliança portuguesa ofereceu as bases para
uma identidade alternativa e orientação externa. Em outubro de 1851,
o segundo Chachá, Isidoro de Souza, contatou o governador português
de São Tomé, assegurando para si a indicação formal de comandante do
forte português e, em abril de 1852, o governador visitou pessoalmente

141 Para um relato completo, ver Robin Law, “An African Response to Abolition: Anglo-Da-
homian Negotiations on Ending the Slave Trade, 1838-77”, Slavery & Abolition, no. 16
(1995), pp. 281-310.
142 NAGB, FO 84/886, Frazer, Occurrences, 27 de dezembro de 1851.

702 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Uidá para confirmar a indicação.143 Na crise interna da família Souza que


se seguiu à morte de Isidoro em 1858, a reivindicação para comandar o
forte português parece ter desaparecido.
Em 1861, a ocupação do forte foi usurpada pelos missionários da
Sociedade Francesa das Missões Africanas, tendo sido expulso, no pro-
cesso, o padre português de São Tomé que eles encontraram ocupando o
local. Mas, em 1865, o Chachá Francisco “Chico” restabeleceu a conexão,
recebendo novamente o governador de São Tomé em Uidá e garantindo sua
indicação como comandante do forte português, do qual os missionários
franceses foram então despejados. 144 Esta política foi também seguida
por seu sucessor, Julião de Souza, através de sua malfadada promoção de
um protetorado português sobre o Daomé em 1885-1887.
A conexão portuguesa pode ter sido buscada pelos Souza em parte
como um contrapeso à ameaça da influência britânica (e, mais tarde,
francesa): em 1851-1852, Isidoro certamente tentou usar seu recém-ad-
quirido status oficial para desafiar o bloqueio britânico sobre Uidá, embora
suas credenciais fossem desconsideradas pelo vice-cônsul britânico.145
No entanto, tendo em vista o relacionamento cada vez mais desgastado
da comunidade brasileira com a monarquia daomeana a partir dos anos
1850, parece provável que, nessa busca por reconhecimento e suporte
externo, houvesse um elemento de busca de proteção contra a autoridade
nativa. No médio prazo, contudo, como o destino de Julião de Souza veio
provar, esta foi uma estratégia inútil, uma vez que, a não ser no caso de
uma real conquista militar, a monarquia daomeana não era sensível a
pressões externas.

143 Carlos Eugenio Corrêa da Silva, Uma viagem ao estabelecimento portuguez S. João Bap-
tista de Ajudá da Costa da Mina em 1865, Lisboa: Imprensa Nacional, 1865, p. 81, 130.
144 Silva, Viagem.
145 NAGB, FO 84/886, Isidoro de Souza to Frazer, 22 de dezembro de 1851; também Frazer,
Occurrences, 15, 25 & 27 de dezembro de 1851.

A COMUNIDADE BRASILEIRA DE UIDÁ E OSÚLTIMOS ANOS DO 703


TRÁFICO TRANSATLÂNTICO DE ESCRAVOS, 1850-1866
CAPÍTULO 22

A diÁsporA exorCizAdA, A etniCidAde (re)


inventAdA: historioGrAfiA pÓs-ColoniAle
polítiCAs dA MeMÓriA sobre dAoMé 1
Mario Rufer

O excesso que pretendemos pôr em evidência radica na


intenção de apagar o presente e na espera de um futuro
indescritível, através da exibição do que será como algo já
realizado.2

introdUção
Evocar a historiografia africana da “era independente” implica trazer
à baila a emergência dos passados gloriosos, as “histórias monumentais”
da nação que subsumiram num metarrelato único os movimentos de
“resistência” dos anos 1950 e seus reclamos, bastante divergentes na sua
natureza discursiva. Por sua vez, pensar no reino pré-colonial do Daomé —
cujo território ocupa hoje a maior parte da República do Benim – implica
quase automaticamente “imaginar” um episódio do tráfico escravista. Com
poucas exceções, o seu estudo está centrado na importância do comércio
atlântico de escravos, no excesso da sua magnitude, nos mecanismos

1 Quero agradecer os comentários e as sugestões estimulantes de Ramon Grosfoguel


e Chanzo Greenidge em uma primeira discussão sobre as linhas principais deste tra-
balho, realizada no marco da VII Fábrica de Ideias, em Salvador, Bahia, em agosto de
2004; assim como a Luis Nicolau Parés, que deu parecer ao trabalho para esta revista,
pela sua leitura minuciosa e suas críticas muito valiosas. Texto traduzido do espanhol
por Monica Santos.
2 Héctor Schmuckler, “Entre historia y memoria”, Estudios, no. 10 (1998), p. 8.

705
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

internos do seu funcionamento. Os temas principais da historiografia


daomeana têm versado sobre a constituição e o desenvolvimento do
reino a expensas das organizações políticas vizinhas e sobre o porto de
Uidá, como centro principal de ações comerciais, ou as dificuldades que
o Daomé teve que sofrer com a abolição do tráfico atlântico no início do
século XIX. Sobre estes temas contamos com uma ampla bibliografia.3 No
entanto, as preocupações deste trabalho são de uma outra índole.
Como foi que o sentido nacional do Daomé se apropriou de um
significado singular de modernidade que opera junto com o reconheci-
mento histórico dos estragos continentais da venda de seres humanos?
Como operou epistemologicamente o discurso histórico acadêmico para
engrenar no metarrelato da nação a pluralidade étnica do Daomé, fruto
dos acidenteshistóricos do próprio comércio escravista? Tomarei alguns
textos históricos, escritos nas décadas de 1960 e 1970, como fontes
para visualizar os pontos de transferência do discurso histórico. 4 Que
ressonâncias políticas estão implicadas na recorrência quase unânime
de “reescrever” a história do Daomé? Que problemas epistemológicos
e políticos medeiam a utilização dos distintos repositórios? Quais
“seduções” 5 coloniais re-significadas persistem na narrativa do estado
nacional referente a estes dois tópicos: a escravidão capitalista e a
pluralidade étnica? 6

3 Para um estudo específico sobre o comércio de escravos no Daomé, entre os numerosos


trabalhos, e só como amostra: Karl Polanyi, Dahomey and the Slave Trade, Washington:
University of Washington Press, 1967; Robin Law, The Slave Coast of West Africa. The
Impact of the Atlantic Slave Trade on na African Society (1550-1750), Oxford: Claren-
don, 1991; Idem, “Dahomey and the Slave Trade: Reflections on the Historiography of the
Rise of Dahomey”, Journal of African History, vol. 27, no 2 (1986), pp. 237-67; Elisée Sou-
monni, “Ouidah dentro de lared de comercio transatlántico de esclavos”, in Rina Cáceres
(org.), Rutas de la esclavitud en África y América Latina (San José: Ed. Universidad de Cos-
ta Rica, 2001); Elisée Soumonni, Dahomey y el mundo atlántico, Amsterdã/Rio de Janeiro:
SEPHIS/Centro de Estudos AfroAsiáticos, UCAM, 2001.
4 No título do trabalho, o conceito pós-colonial refere-se só a uma faixa temporal, diferen-
te de quando utilizo a expressão pós-colonialismo, pós-colonialidade ou “crítica pós-co-
lonial”, nas quais aludo a uma orientação analítica de vertente teórica. Os textos histo-
riográficos que se analisarão são os seguintes: I. A. Akinjogbin, Dahomey and its Neigh-
bors (1708-1818), Cambridge: Cambridge University Press, 1967; Dov Ronen, “On the Af-
rican Role in Trans-Atlantic Slave Trade in Dahomey”, Cahiers d´Etudes Africaines, 41
(1971), pp. 5-13; Maurice Glelé, Le Danxomé. Du pouvoir Aja à la nation Fon, Paris: Nu-
bia, 1974; John Yoder, “Fly and Elephant Parties: Political Polarization in Dahomey, 1840-
1870”, Journal of African History, vol. 15, no 3 (1974), pp. 417-32.
5 No sentido que o usa Frederick Cooper, “Conflictand Connection: Rethinking Colonial Af-
rican History”, American Historical Review, vol. 99, no 5 (1994), pp. 1517-1518.
6 É importante ressaltar que em nenhum momento estou pensando em escritos históri-
cos unívocos, em escolas de pensamento ou no estabelecimento hipotético de uma sé-
rie programática de textos em conivência direta com os programas “culturais” do Esta-
do, como geralmente se analisam na África pós-independente os escritos “nacionalistas”.

706 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

O clima intelectual africano dos anos 1960 e 1970 esteve marcado


pelo imperativo da necessidade de dotar a África de uma história “aca-
dêmica”, de demonstrar a capacidade das civilizações do continente de
gerar una “consciência histórica” endógena, própria, mas, ao mesmo
tempo, “transferível” ao status acadêmico. 7 Neste sentido, a posição dos
historiadores africanos foi importante na hora de reverter as imagens
que a colônia havia imposto como fundamentação básica do “atraso”
africano, assim como a capacidade performativa de certa antropologia
que havia situado a África no terreno perene do “presente etnográfico”.8
O desenvolvimento dos grandes projetos sobre a história africana, suas
fontes, metodologias e epistemologias próprias deram ao debate o cará-
ter de legitimidade internacional, como demonstra a Historia General
de África, editada pela UNESCO, cujo primeiro volume, dos oito que
compõem a coleção, apareceu em 1982. 9 Naqueles anos, uma geração
de intelectuais formada nas metrópoles voltava à África não só para
repensar sua história em uma explicação que poderia expressar-se em
uma linguagem acessível para a comunidade acadêmica internacional,
mas, além disto, para expressar – talvez involuntariamente – as tensões
inevitáveis que o império e a colonização, a metrópole e sua própria
origem haviam impresso neles. 10
A isto se soma a profunda mobilização para instalar uma política
simbólica perdurável nos novos estados nacionais surgidos no período
independentista, que, na maioria dos países, se desenvolveu na déca-
da de 1960. Esta política contou com o desenvolvimento de projetos
historiográficos ambiciosos que trataram de dotar de uma projeção
comemorativa os novos estados nacionais. As políticas da memória, in-
cluídas as políticas públicas que não analisarei neste texto, constituem
aspecto-chave para o forjamento identitário de qualquer comunidade. A
historiografia pós-independentista representou um papel-chave neste

continuação 6

Os fundamentos de minha seleção de textos se baseiam exclusivamente na produtivida-


de significativa que projetam, na capacidade explicativa de seus argumentos e no desafio
que apresentam a qualquer intento de visualizar um cânone.
7 B. Jewsiewicki, “Introduction: One Historiography or Several? A Requiem for Africanism”,
in B. Jewsiewicki, C. Newbury (orgs.), African Historiographies. What History for Which
Africa? (California: Sage, 1986), pp. 10 e ss.
8 Refiro-me basicamente às analises clássicas do estrutural-funcionalismo: i.e., Mamadou
Diouf, “Des historiens et des histoires, pour quoi faire? L’histoire africaine entre l’état et
les communautés”, Canadian Journal of African Studies, vol. 34, no. 2 (2000), pp. 330 e ss.
9 Historia General de África, Paris: UNESCO, 8 vols., 1982-1998.
10 Frederick Cooper, “Between Metropole and Colony: Rethinking a Research Agenda”, in
Frederick Cooper e Ann Stoler (orgs.), Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeo
isWorld (Berkeley: University of California Press, 1997), pp. 1-56.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 707


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

sentido.11 Esta mesma historiografia, ao mesmo tempo em que reforçou


certos aspectos da endogeneidade africana, silenciou outros, reformulou
e deslocou categorias ocidentais, construindo um passado limítrofe: não o
que esboçaram as histórias coloniais, tampouco os passados divergentes
que narram as historiologias orais endógenas. 12 É certo que o pretexto
metodológico da utilização dos arquivos orais, não tomados em conta pela
historiografia colonial, foi uma das explicações epistêmicas da arena
historiográfica. Mas alguns destes arquivos endógenos também foram
silenciados nesta historiografia. Que fronteiras do imaginário histórico
produziu este fenômeno?
As histórias escritas que analisarei se centram quase sem exceção
na necessidade de desvincular os africanos – daomeanos neste caso – da
responsabilidade no tráfico de escravos, ao mesmo tempo em que se ad-
verte uma (re)valorização da monarquia africana do século XIX, anterior à
colônia. Isto não resulta novo nem surpreendente. O que merece atenção,
sim, são as categorias com as quais esta desresponsabilização se promove
e os processos de construção analítica com que se valorizam os monarcas
daomeanos do século XIX, para situar nesse espaço a invenção de uma
continuidade africana, política e cultural. Ao mesmo tempo, era imperioso
modernizar o imaginário político sobre a África anterior à invasão colonial
e, ali, as categorias e as análises historiográficas não necessariamente
respondem a um substrato “africano” – se existisse algo como tal. Sobre
estes processos de imbricação, tradução e invenção versará este artigo.
Em primeiro lugar, analisarei as formas como se “exorcizou” a figura
fantasmagórica do comércio atlântico de escravos na historiografia in-
dependentista do Daomé, como se ligou produtivamente o comércio de
escravos com o nascimento límpido da nação daomeana e como se encadeou
historicamente a crítica conjuntural do final do tráfico de escravos com

11 Em outros trabalhos (Mario Rufer, “Memoria y política: anacronismos, montajes y usos


de la temporalidad en las producciones de historia” in Mario Magaña Mancillas (org), Ma-
gistrales. Historia, memoria y sus lugares (Mexicali: Universidad Autónoma de Baja Cali-
fornia, 2014), pp. 89-118), fiz notar uma distinção entre “política da memória” e “ o políti-
co da memória”. Por política da memória entende-se a formas de gerir o passado através
de medidas de justiça e estabelecimento de comemorações. Tomam uma posição contra
a temporalidade: gerenciar eventos, expor e destacar alguns, deixar os outros na escuri-
dão, construir um arquivo do que é digno de lembrança. Neste sentido, nenhuma política
de memória é neutra. Por o político na memória compreendo uma dimensão onde a me-
mória é eficaz em atos que quebram a ordem de repetição cotidiana. Esta conceitualização
bebe na distinção pós fundacionalista entre a política e o político, tendo este último con-
ceito como o poder de uma fundação que institui a contingência, o inesperado e perturba-
dor dentro do instituído. A memória, neste sentido, é uma ação de ocasião que emerge na
construção do comum e torna-se produtiva, como o trabalho de resistência contra as for-
ças estabilizadoras da política. A este respeito, a memória atua a contrapelo do arquivo.
12 O conceito de historiologia oral para substituir o de historiografia foi tornado célebre por Jan
Vansina: Oral Tradition as History, Madison: University of Wisconsin Press, 1985, p. 195.

708 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

uma ideia singular de modernidade endógena e de resistência anticolonial


unilateral. O segundo ponto do artigo é uma exploração do modo como a
“invenção” colonial da etnia foi reapropriada pela historiografia indepen-
dentista. Neste sentido, trata-se de marcar uma diferença com respeito à
parte da teoria que propõe que a historiografia africana reprimiu e silenciou
a diferença étnica. Ao menos no caso do Daomé, o discurso histórico se
mostra extremamente produtivo: silencia fragmentos, exacerba outros,
apresenta a diferença identitária já como inexistente, já como exaltação
definidora dos limites do espaço nacional. Por sua vez, neste discurso sobre
o “amálgama étnico”, a diversidade populacional e o choque com a Europa,
a mulher ocupa um espaço de articulação contraditório, silenciado e, às
vezes, exacerbado, que também tratarei de analisar. Tanto no tocante
ao gênero como à etnia, a ausência ou o excesso são menos importantes
em si mesmos que o que suas operações epistêmicas deixam entrever.

Daomé exorcizado: a diáspora como botim da nação


Nas histórias acadêmicas da África Ocidental que floresceram nos
anos imediatamente posteriores à independência, o ponto tocante à
escravidão se converteu no tropo fantasmagórico que foi exorcizado
de maneiras radicalmente diferentes. Não só estava em jogo a estreia
imaculada da experiência histórico-política africana, mas a pertinência
política dos reclamos históricos à Europa pelo “genocídio” continental
e sua “sangria demográfica”, assim como a radicalidade potencial das
políticas contemporâneas da memória, representadas fundamentalmente
pela promoção do “turismo de raízes”, que agências de reconhecimento
internacional, como a UNESCO, ainda patrocinam. 13 As histórias que
pretendo analisar se enquadram neste debate que entrecruza a análise
estritamente econômica com as implicações políticas e epistemológicas
de um tema que durante muitos anos foi visto como tabu dentro da nar-
rativa histórica africana.
Neste ponto, tratarei de explicar que essa noção de tabu é um pre-
conceito historiográfico; que a narrativa africana – ao menos no que se
refere ao Daomé – não silenciou o papel africano no comércio de escravos,
mas o inseriu em duas perspectivas pontuais do discurso histórico: a que

13 Refiro-me às viagens organizadas para comunidades de afrodescendentes que retornam


à “mãe terra” e “revivem” o processo de escravização de seus antepassados em performan-
ces organizadas para tal efeito. Para análises sugestivas sobre este ponto, ver Edward M.
Bruner, “Tourism in Ghana. The Representation of Slavery and the Return of the Black
Diaspora”, American Anthropologist, vol. 98, no 2 (1996), pp. 290-304; Theresa Singleton,
“The Slave Trade Remembered on the Former Gold and Slave Coasts”, Slavery and Aboli-
tion, vol. 20, no 1 (1999), pp. 150-69; Saidiya Hartman, “The Time of Slavery”, in Saurabh
Dube (org.), Enduring Enchantments, edição especial de South Atlantic Quarterly, vol.
101, no 4 (2002), pp. 757-777.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 709


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

o vincula diretamente com a origem do Estado e o ponto de partida da


conformação nacional, e a que liga o esgotamento deste circuito econômico
a fatores exclusivamente internos de “modernização”.
Quanto às narrativas sobre “as origens” do Daomé, todos os grupos
adjas se reconhecem como pertencentes a um mesmo tronco linguístico e
se atribuem uma origem comum, localizada num ponto geográfico preciso
que, segundo as tradições míticas, seria a aldeia de Tado (a noroeste do
que mais tarde foi o Daomé), de onde irradiaram essas populações e seus
padrões culturais.14 Segundo as tradições orais, uma disputa por sucessão
dinástica produziu sendas migratórias desde Tado, uma em direção ao oeste,
que fundou a aldeia de Notse, e outra em direção ao sudeste, que fundou
a aldeia de Alada, em finais do século XVI. A linhagem que fundou Alada
conseguiu um poder importante na área desde princípios do século XVII,
visto que bem cedo alcançou o domínio sobre alguns povos do leste da área
adja e a submissão de Uidá, aldeia portuária que terá grande importância
nos séculos subsequentes. Alada também tinha conseguido dominar os
portos de Ofra e Jakin,15 onde se evidenciou sua capacidade de negociação
com os portugueses e mais tarde com os holandeses, a partir de 1625. Aqui
começou a etapa de sua verdadeira consolidação. Contudo, quando a con-
corrência comercial entre os europeus (holandeses, franceses e ingleses)
se fez mais forte, na segunda metade do século XVII, e Alada não pôde
controlar facilmente a estrutura comercial de seus portos, foi perdendo
poder, sobretudo, domínio efetivo sobre os portos de Ofra, Jakin e Uidá.16
Os adventícios fundadores de Abomé se identificam em grande parte
da historiografia como pertencentes à etnia fon, mesmo que isto tenha
suscitado alguns problemas de definição na historiografia póscolonial, como
veremos. O certo é que, a partir do século XVIII, houve uma incorporação
paulatina de população iorubá, bariba e mahi. O Daomé aparece, na maioria
das histórias orais anteriores à colônia, como a força política dominante na
região do que hoje é a República de Benim, ocupando grande parte desse
território atual entre começos do século XVIII e 1894, quando o último
rei, Behanzin, foi capturado pela armada francesa e exilado na Martinica.
Mas Daomé, como reino consolidado, organização de liderança
ou complexo cultural, não se conhece na historiografia acadêmica por
sua desagregação burocrática ou sua monarquia de longa duração. Ao
contrário, afirmações ao estilo de: “Daomé é um subproduto político do

14 Neste sentido, os autores coincidem em afirmar que Tado cumpriu para o Daomé o papel
que Ifé teve entre os iorubás. R. Pietek, “The Development and the Structure of the State
of Dahomey until 1724”, Africana Bulletin, 38 (1991), pp. 26-27.
15 Anthony I. Asiwaju e Robin Law, “From the Volta to Niger”, in J. F. Ajayi e Michael Crowder
(orgs.), History of West Africa (Londres: Longman, 1985 [2 vols., 1971, 1974]), p. 432.
16 Ibid.

710 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

comércio escravista”, 17 ou posturas que sustentam que o Daomé foi um


estado absoluto e militarizado para levar a cabo exitosamente o comércio
de escravos, 18 parecem firmar o motivo existencial da organização polí-
tica e sua raison d’état. Mas o envolvimento direto dos agentes locais do
reino no comércio atlântico de seres humanos e sua inserção no circuito
capitalista internacional, questão que aparece como indubitável em
grande parte da historiografia colonial e na mais recente, não o é para as
historiografias africanas dos anos 1960 e 1970. Como adiantávamos, esta
problemática se enraíza especificamente nas hipóteses sobre a origem
do estado daomeano e nos argumentos que elucidam as formas quase
misteriosas com que o Daomé conseguiu expandir-se.
A pergunta historiográfica acerca do porquê Agaja decidiu atacar
Alada e Uidá faz parte do questionamento mais amplo que tentamos
tratar neste ponto. Enquanto as hipóteses mais recorrentes propõem a
necessidade que tinha o estado nascente de possuir um acesso direto à
rota de comércio atlântico de escravos e às armas europeias para defesa
contra o império vizinho de Oyó, coisa impossível de ocorrer senão pela
conquista, visto que o rei de Alada, Huffon, havia proibido a Agaja o
comércio direto na costa, 19 uma linha historiográfica africana propõe
outro argumento.
A hipótese mais debatida por sua implicação, e sobre a qual me deterei
por sua projeção política, propõe que Agaja atacou Alada e, em seguida,
Uidá, para impedir a continuação do tráfico escravista que ia em franco
crescimento naquela época. Este argumento foi esgrimido em primeiro
lugar por John Atkins, um viajante abolicionista do século XVIII, que
sustentava a existência de uma suposta carta que Agaja havia enviado
ao rei da Inglaterra por um intermediário, no ano de 1731. Nesta carta,
Agaja propôs ao monarca europeu o cessar do tráfico transatlântico e a
introdução de plantações no território africano com força de trabalho
local.20 Esta hipótese é defendida pelo historiador nigeriano I. A. Akin-

17 Edna Bay, Wives of the Leopard: Gender, Politics and Culture in the Kingdom of Dahomey,
Charlotesville: Virginia University Press, 1998, p. 312.
18 David Ross, “Mid-XIX Century Dahomey: Recent Views vs. Contemporary Evidence”, His-
tory in Africa, 12 (1985), pp. 311-313.
19 A bibliografia neste sentido é amplíssima. Para citar um trabalho relativamente recente
e com uma visão esclarecedora do estado da questão, ver Robin Law, The Slave Coast.
20 Esta carta foi trabalhada em diferentes oportunidades por historiadores africanistas e
ainda não há consenso acerca de sua autenticidade, veracidade nem ainda sobre o sig-
nificado real de suas palavras. Robin Law, por exemplo, afirma que é muito improvável
que Agaja tenha querido suprimir o tráfico, por suas ações contínuas até sua morte em
1740. De fato, para Law, ainda se a carta não fora um plágio de Bulfinch Lambe (o inter-
mediário enviado à Inglaterra), provavelmente se tratou de uma proposição de Agaja de
substituir o tráfico de escravos por mão-de-obra daomeana. Isto é, que os ingleses não
desarticularam a economia doméstica do reino, mas que só comerciaram com cativos

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 711


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

jogbin,21 propondo que Agaja tinha necessidade de suspender o comércio


escravista para defender a estrutura social e política do império, e não
incentivá-lo, como grande parte da historiografia sustenta. 22 Akinjogbin
é um dos expoentes mais claros da escola historiográfica nacionalista
pós-colonial sobre o Daomé, e David Ross demonstrou como sua obra está
repleta de um uso enviesado das fontes da época, não só para evidenciar a
oposição dos africanos à empresa da escravidão capitalista, mas também,
e sobretudo, para ressaltar a gênese do reino de Daomé com um sentido
de “nação fon” historicamente enraizado; proveniente de uma comunidade
compacta, que existia muito antes da chegada dos europeus e da imposição
de seus termos comerciais. 23
Deter-me-ei nas imposições de sentido e nas implicações epistemo-
lógicas do trabalho de Akinjogbin, Dahomey and its neighbours, sobre o
tópico da escravidão. Em primeiro lugar, há um ponto importante que se
costuma confundir nas leituras historiográficas desta obra, tese doutoral
apresentada na School of Oriental and African Studies (SOAS), em 1966,
e publicada em 1967: Akinjogbin não nega o impacto histórico europeu
sobre a costa Adja; tampouco sugere que Daomé nunca tenha sido um
estado propulsor do tráfico escravista. O que pretende afirmar com força
é a tese da origem estatal do Daomé como um projeto político, que havia
buscado deter a erosão cultural e econômica que o tráfico escravista e a
ingerência europeia estavam provocando na região, em princípios do século
XVIII. Um projeto que, de alguma maneira, fracassou com a instauração
do comércio de escravos como a razão econômica do reino.
Sabemos que Abomé se fundou quando um grupo dissidente do reino
de Alada se estabeleceu no norte do planalto Adja. Akinjogbin argumenta
que o motivo real dessa dissidência foi a reação de um subgrupo adja

continuação 20

de guerra e pessoas judicialmente penalizadas com a escravidão, em processos politica-


mente controlados pelas autoridades locais: Robin Law, “Further Light on Bulfinch Lam-
be and the ‘Emperor of Pawpaw’: King Agaja of Dahomey’s Letter to King George I of En-
gland, 1726”, History in Africa, 17 (1990), p. 212.
21 Akinjogbin, Dahomey, pp. 23-25. Akinjogbin argumenta que a autenticidade e o propósi-
to da carta de Lambe são reais. Também é esta a postura de Basil Davidson, Black Mother.
The Years of the African Slave Trade, Boston: Little Brown and Company, 1961; apud. Law,
“Dahomey and the Slave Trade”, p. 246.
22 O ponto é que se supõe que nesta época de conquista de Agaja, o volume de comércio atlân-
tico teve uma baixa importante. No entanto, esta baixa não teve relação com uma vonta-
de política de suprimir o tráfico, mas sim com os transtornos e os distúrbios internos pro-
vocados pelas campanhas militares que colapsaram as rotas comerciais, inclusive as de
comunicação com o poderoso Oyó: Law, “Dahomey and the Slave Trade”, p. 249; Asiwaju
e Law, “From the Volta”, p. 440. Para uma visão mais generalizada destes pontos na costa
ocidental, ver a introdução em: Law, The Slave Coast.
23 David Ross, “European Models and West African History. Further Comments on Recent
Historiography of Dahomey”, History in Africa, 10 (1983), p. 299 e ss.

712 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

às atividades que os holandeses estavam levando a cabo na costa. E o


historiador vai mais longe: a sua hipótese o leva até a contradizer as
historiografias da “origem” destes reinos, como desprendimento da mítica
aldeia de Tado. Segundo Akinjogbin, o traslado em massa de populações
desde Tado para Alada se produziu para “buscar segurança no caos do
oeste”.24 Por outra parte, a diferença que expulsou um grupo adja para
Abomé se deu, segundo o autor, pela oposição entre duas facções, uma
“pró-europeia” – Alada – e outra “resistente”, a de Abomé. A chegada deste
subgrupo adja ao território nordeste do Daomé é registrada em muitas
historiologias orais mahis, como um ato avassalador e coercitivo destes
foragidos militarizados que impuseram, com o consentimento de alguns
chefes locais, sua vontade política de ocupação e expansão.25 A operação
epistêmica é clara – embora as evidências históricas não o sejam tanto
como pretende Akinjogbin: o Daomé aparece no seio da história como o
espaço político que irrompe, logo cedo, para impedir a obra corrosiva da
ingerência europeia. Além da disputa historiográfica entre a “facção pró
-europeia” e a “facção anticolonial” em Daomé – tão cara à historiografia,
especialmente à do século XIX, que abordaremos mais adiante – Akin-
jogbin dá um passo à frente e coloca no espaço da origem o leitmotiv do
estado: o Daomé é um projeto político da resistência anticolonial, desde
seu nascimento no século XVII.
As hipóteses relacionadas com a fundação do Daomé como uma forma
de contra-arrestar a hegemonia que estava adquirindo o império iorubá
de Oyó como força regional também são rebatidas por Akinjogbin. As
historiografias que sustentam que o grupo dissidente foi motivado pela
necessidade de obter uma rota para o mar e que falam do “aperfeiçoa-
mento” político do Daomé para armar um complexo militar que lograra
“conquistar” o território, na terceira década do século XVIII, são negadas
pelo historiador nigeriano.26 Em sua visão, a empresa escravista era uma
iniciativa puramente individual, sancionada pelo estado, primeiro isolada

24 Akinjogbin, Dahomey, p. 23. As narrativas orais consultadas por outros historiadores são
unânimes em argumentar uma disputa sucessória como motivo direto do exílio de Tado:
Robert Cornevin, Histoire du Dahomey, Paris, Berger-Levrault, 1962; Robin Law, “History
and Legitimacy: Aspects of the Use of the Past in Precolonial Dahomey”, History in Africa,
15 (1988), pp. 321-28; Bay, Wives, p. 55 e ss.
25 Bay, Wives, p. 312. Akinjogbin argumenta, ao contrário, que a chegada deste subgrupo
fundador foi um processo revolucionário de mudança estrutural em relação às formações
políticas anteriores dos povos adjas, fundamentalmente pela ruptura política total que
implicou pôr fim ao princípio soberano de Alada, com base na “família estendida” e na li-
nhagem patriarcal, para um modelo de integração com outras linhagens e outros povos, já
não com base na legitimidade dinástica, mas na força: Akinjogbin, Dahomey, pp. 25 e ss.
26 Podemos citar entre esses trabalhos John Fage, “Slavery and the Slave Trade in the Con-
text of West African History”, Journal of African History, 10 (1969), pp. 393-404; Philip
Curtin, The Atlantic Slave Trade. A Census, Madison: University of Wisconsin Press, 1969.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 713


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e depois incrementada. Estas atividades de “pilhagem” foram levadas a


cabo no planalto, durante as primeiras décadas do século XVIII, como
resultado não do aperfeiçoamento das engrenagens organizativas, mas
do vazio político provocado pela desestruturação das antigas relações
de lealdade e da “teoria social tradicional”.27 Akinjogbin faz uma leitura
diferente dos textos de Robert Norris e William Snelgrave, dois viajantes
que se converteram em históricos informantes-chave para compreender
a dinâmica do comércio de escravos nesta época.28 Norris apresenta um
importante relato em que plasma sua ideia do Daomé como um estado
despótico e brutal, onde os assassinatos rituais à vontade do rei eram
moeda comum e onde todos os cativos de guerra eram decapitados pu-
blicamente. Para o historiador nigeriano, as narrativas destes autores,
inspiradas em contrapor os argumentos antiabolicionistas do século XVIII,
os levaram a retratar o Daomé como um reino militarizado e despótico,
cuja engrenagem de coesão era o tráfico atlântico de seres humanos,
distorções a serem “provadas” por Akinjogbin.29
Há outro ponto original nesta obra: o autor propõe que a mudança
radical em direção à institucionalização do comércio escravista no Daomé
se deu nos últimos anos do reinado de Agaja e durante o de Tegbesu (1740-
1774). Neste sentido, quando Agaja, depois da conquista dos territórios
do litoral para deter o tráfico, observa que isto, em sentido estrito, é

27 A metáfora do “vazio” político é uma recorrência no trabalho de Akinjogbin. Na sua narra-


tiva, a guerra entre Alada e Uidá (c. 1712-1720) só agravou as condições do poder vacuum
no país Adja. Este conceito de poder vacuum é importante no discurso do historiador, não
só porque será o Daomé que, a partir dos ataques a Alada e Uidá, conferirá legitimidade à
organização política da zona, mas também porque nesta conjuntura de indecisão política
e de fragmentação dos fundamentos constitutivos da “teoria social tradicional”, aos po-
vos adjas de Alada e Uidá “lhes era impossível [...] unir-se para reconhecer, e muito menos
opor-se, a um perigo comum”, que só o Daomé reconhecia. A impossibilidade de definir um
inimigo externo era a base da fragmentação, coisa que só a emergência do Daomé solucio-
nará: Akinjogbin, Dahomey, p. 57.
28 Robert Norris, Memoirs of the Reign of Bossa Ahadee King of Dahomy and Inland Coun-
try of Guiney, to Which are Added the Author’s Journey to Abomey the Capital and Short
Account of the African Slave Trade, Londres: Frank Cass, 1968 [1789]; William Snelgrave,
A New Account of Some Parts of Guinea and the Slave Trade, Londres: Frank Cass, 1971
[1734].
29 Por momentos, é difícil seguir os argumentos “forçados” de Akinjogbin, sobretudo no que
se refere a estes pontos, quando pretende inferir dos relatos de Norris e Snelgrave, que
falam da voracidade de Agaja e de sua visão econômica de ocupar e monopolizar os por-
tos de Jakin (Alada) e Ouidah (Uidá), um sentido “emancipador” e ao mesmo tempo uma ca-
pacidade de enganar os traficantes europeus. Se bem que os textos de Snelgrave falam de
um posicionamento do rei Agaja como o “enviado religioso” para acabar com a tirania e a
desordem imposta por Huffon (rei de Uidá), Akinjogbin vê a vaga alusão desta “tirania” no
texto de Snelgrave, como uma “clara” referência ao tráfico escravista e ao seu poder erosi-
vo. Ao contrário, outros historiadores, como David Ross, o interpretam como uma maneira
de posicionar-se como o expoente comercialmente mais viável para os europeus que qui-
sessem continuar com o tráfico escravista: Akinjogbin, Dahomey, pp. 73 e ss.

714 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

impossível, dada a penetração europeia na formação de um mercado


interno consolidado e o envolvimento dos portos costeiros nele, se vê
“forçado” a adotar o “mal menor” para o estado: a fixação do tráfico só
em alguns portos e como monopólio exclusivo do rei. Tegbesu, por sua
vez, institucionaliza esta prática como razão econômica do estado do
Daomé. 30 Agaja se apresenta então como um estadista previdente, que
consegue sufocar as “revoltas” que se originaram entre os comerciantes
locais pela presumida vontade de suspender o comércio de escravos. 31
Por outro lado, na narrativa histórica, Agaja é o expoente político de
uma consciência “modernizante”, em termos econômicos. Por um lado,
termina por romper com a “teoria social tradicional” para buscar outros
fundamentos políticos para o reino; por outro, tenta interromper o tráfico
escravista para impor o “comércio legítimo” entre a Europa e o Daomé. 32
Neste ponto da narrativa de Akinjogbin, entremesclam-se argumentos
anacrônicos sobre as implicações morais do comércio escravista, dado que
a distinção entre um comércio legítimo e um outro que se transformou
em “ilegal” foi um argumento criado pela Inglaterra, em fins do século
XVIII. Também se invertem os atores da mudança: foi Agaja quem pre-
viu a necessidade de “legitimar” o comércio entre a Europa e a África e
quem tentou – precocemente, em uma ação demasiado “revolucionária”
para uma época que nem os atores políticos exteriores ao Daomé nem
os próprios europeus “compreendiam” – estabelecer um estado fundado
politicamente em concepções radicalmente novas e, economicamente, em
termos modernos, nos quais não entrava em absoluto o tráfico escravista.
Dov Ronen também insiste na existência de sentidos comunitários
prévios ao tráfico escravista que fazem do Daomé um estado que cresceu
com – e não a partir de – este comércio. E argumenta que a obtenção de
cativos em grande escala tinha uma função puramente ritual, destinada
ao sacrifício humano para o culto aos ancestrais. O historiador argumen-
ta que: a) a motivação do lucro no tráfico escravista por parte dos reis
africanos era mínima, se não inexistente; b) as razias para o interior não
se realizavam com o propósito de vender os capturados para os brancos;
c) além do rei, poucos africanos comuns estavam envolvidos neste “co-
mércio”. Este historiador atribui ao âmbito exclusivamente ritual o uso
de “cativos” no Daomé, e utiliza os esquemas básicos da Teoria Geral dos
Sistemas – conhecida como TGS e em voga nos anos 1970 – para explicar
que os escravos percorriam um “circuito” definido: eram prisioneiros
de guerra no estado — uma guerra com funções puramente religiosas
— para serem sacrificados como mensageiros aos ancestrais reais. Os

30 Akinjogbin, Dahomey, p. 75.


31 Idem, p. 105.
32 Idem, p. 77.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 715


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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“excedentes” deste ritual tinham dois destinos unicamente definidos pelo


rei: ou eram reabsorvidos dentro das estruturas familiares do estado, a
partir de alianças matrimoniais, ou alguns poucos eram “presenteados”
aos intermediários europeus, que os vendiam como escravos.33
De maneira similar, o historiador beninense Maurice Glelé pretende
restabelecer a história “real” dos escravos no Daomé, argumentando que
“os prisioneiros de guerra e os escravos eram destinados fundamental-
mente ao engrandecimento do reino, e alguns, como corolário, tinham uma
função sagrada, religiosa. Outros escravos tinham por missão essencial
ser destinados aos voduns”. 34 Por outra parte, para Glelé, a escravidão
no interior do Daomé, proporcionada pelo comércio atlântico, foi o que
permitiu a aliança social de povos mahis, akans e iorubás com os fons,
promovendo laços inter-étnicos que haviam consolidado desde cedo um
sentido identitário comum. Em outras palavras, o cativeiro e o comércio
interno, além de não estarem programados para vender seres humanos
para o ultramar, fortaleceram o sentido de unidade nacional que reemer-
giria nos anos 60 do século XX.
As operações epistemológicas não se limitam a inculcar um sentido
claro do horror coletivizado a partir de uma “culpa histórica” claramente
situada “nos europeus” como categoria totalizante. Além disto, Ronen e
Glelé cristalizam a visão da “inocência tradicional” da África anterior
à colônia: distante, “outra”, oculta em um sentido “imaculado” do valor
religioso e do ethos guerreiro. O comércio de escravos, ao invés de repre-
sentar a negação histórica ou o vazio na narração, é antes a fissura que
permite compreender a irrupção da nação daomeana no tempo; depois,
é o empenho que perpetua a noção de África “ingênua” no meio de uma
tradução conceitual distorcida. Analisar o papel dos agentes africanos no
comércio de homens e mulheres não implica necessariamente apagar o
sentido alienante da escravidão capitalista. Tampouco se trata de fazer uma
operação intelectual de relativização de responsabilidades, cuja revelação
recaiu e segue recaindo na disciplina histórica. O que trato de fazer é pôr
em evidência as operações de “uso” dos passados negociados, mostrando
também que, se se desmantelou a História da utopia de subverter a ordem
a partir de suas revelações, nos recusamos a perder a esperança de que
em seu próprio relato, em sua própria trama, se construa uma imagem
fantasmagórica, e persistente, do telos progresso.35

33 Ronen, “On the African Role”, pp. 11-12.


34 Glelé, Le Danxomé, p. 160. Denominam-se “voduns” as divindades das diferentes práticas
de culto que configuram a religião popular fon, cujos adeptos são geralmente mulheres.
Voltaremos às implicâncias de gênero neste sentido.
35 Um desenvolvimento sugestivo sobre estas “perdurabilidades” na crítica pós-colonial em
Saurabh Dube, Genealogías del presente. Conversión, colonialismo, cultura, México: El
Colegio de México, 2004, pp. 22 e ss.

716 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

Se me detenho nestes pontos é porque o argumento da responsa-


bilização não é só um problema de forjar a “pureza” legítima da nação
por parte de um grupo de intelectuais, ou a necessidade de posicionar a
África mais uma vez no domínio do continente “saqueado”. Como alguns
intelectuais mencionaram recentemente, trata-se também de uma marca
que está presente no imaginário social sobre a exploração neocolonial e
sua representação na continuidade do espectro histórico. Portanto, não
é por acaso que narrativas pós-coloniais, como a de Ngugiwa Thiong’o,
apresentem as elites locais africanas “colaboracionistas” com a colônia,
como as descendentes sanguíneas dos principais traficantes africanos de
escravos, ou como as reencarnações espirituais, ou os zumbis daqueles
comerciantes.36
O certo é que, nas primeiras décadas do século XIX, quando o comércio
escravista era a única força geradora de cauris e de moeda no reino, o rei
Adandozan começou a receber claras pressões por parte da Inglaterra para
abandonar o tráfico de escravos, oficialmente abolido pela Grã-Bretanha
em 1807. Os interesses da coroa britânica – que paulatinamente passarão
a assemelhar-se com os do resto das potências europeias – era converter
a África em um espaço de exportação de produtos agrícolas dentro das
economias “periféricas” da nova conjuntura do capitalismo industrial nas-
cente.37 Para o Daomé, isto significou a transição de sua atividade central
de venda de escravos para a exportação de azeite-de-dendê. A conjuntura
política de incentivo a este novo comércio se deu em princípios da década
de 1820; dois anos depois da ascensão de Guezo, em 1818, que governou
até sua morte, em 1858. Este rei, que assumiu destronando Adandonzan,
foi um marco de inflexão na política do reino.38 Para além das disputas
sobre a razão da ascensão irregular de Guezo ao poder político, o certo
é que, com sua chegada ao trono, o principal aliado do rei começou a ser
o Chachá de Uidá, Francisco Félix de Souza, na prática o governador da
província de Uidá.39

36 Okunoye Oyeniyi, “Dramatizing Postcoloniality: Nationalism and the Rewriting of Histo-


ry in Ngugi and Mugo’s ‘The Trial of Dedan Kimathi’”, History in Africa, 28 (2001), p. 232.
37 Samir Amin, Impérialisme et sous-développement en Afrique, Paris: Anthropos, 1988.
38 Para uma análise interpretativa sobre as posições historiográficas em relação à as-
censão de Guezo ao poder, ver Mario Rufer, “Pasados repasados. Esclavitud, nación y
destino em el imaginario histórico postcolonial de África Occidental. El caso de Daho-
mey” (Tese de Mestrado, Centro de Estudos de Ásia e África, Colégio do México, 2004),
pp. 56 e ss.
39 Antes de Guezo, o título de yovogan era ostentado por um oficial imposto pelo rei, que li-
teralmente se convertia em “governador dos brancos” em Uidá. A partir da existência do
Chachá, praticamente todo o comércio atlântico se centrou em suas mãos. Este título foi
obtido pela família De Souza. O primeiro Chachá foi Francisco Félix, até sua morte em
1849. Guezo selou seu compromisso político com ele através do pacto de sangue, um ritual
de irmandade vitalícia no Daomé.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 717


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

Para a historiografia independente, esta etapa de transição, a as-


censão de Guezo e seu desempenho como o rei, que geralmente lhe valeu
o qualificativo de “europeizante”, são outros pontos de transferência
significativa. Como se plasmou no debate historiográfico a “transição”
entre estas duas formas de economia? Que elementos da história-pro-
gresso se puseram em jogo neste debate e que projeções condicionaram
essa evidência?
Não me deterei na análise histórico-econômica específica sobre a
coexistência ou a contraposição destas duas formas, exceto para as refe-
rências que me permitam explicar os pontos de negociação significativa
na narrativa histórica. Nas discussões historiográficas em torno da “novi-
dade” desta forma moderna de produção, introduzida pelos europeus, ou
da existência prévia do cultivo de dendê e seu efeito drástico ou apenas
perceptível na economia do reino, parece emergir uma série de perguntas
subjacentes: como, sob quais mecanismos, e quem modernizou o Daomé?
O primeiro a se inserir neste debate, e a ser refutado com especial
afinco pelas historiografias africanas, foi o sociólogo Karl Polanyi, que
estudou o Daomé como uma “economia natural” convertida em “economia
monetária” com o começo do tráfico atlântico.40 Para Polanyi, o reino teria
uma economia “dual”, com sistemas paralelos. Um, arcaico (localizado,
camponês, periférico), e outro, monetário, “moderno” (de monopólio
real, orientado para o atlântico, a grande escala). Robin Law demonstra,
ao contrário, que a necessidade constante dos europeus em obter cauris
para poder comercializar traduz a solidez de uma economia monetária
já antiga na região, com circuitos internos historicamente consolidados,
sobretudo para as rotas do Sudão interior.41 Al Asiwayu e Robin Law, mais
recentemente, sustentam que é necessário revisar o argumento clássico
de que a economia do comércio atlântico e a escravista, combinadas,
desarticularam as indústrias nascentes de produção local. Novos estudos

40 Polanyi, Dahomey, passim.


41 Law, “Dahomey and the Slave Trade”, p. 237. Isto também é sustentado pelo historiador
Flint como uma característica generalizável a toda a África ocidental: J. E. Flint e E.
McDougall, “Economic Change in West Africa in the Nineteenth Century”, in J. F. Ajayi
e Michael Crowder (orgs.), Historyof West Africa (Londres: Longman, 1974), vol. 2. Pa-
trick Manning faz uma análise muito precisa do funcionamento econômico do Daomé,
empregando documentos escritos e estatísticos de traficantes, etc., junto com tradi-
ções orais periféricas aos pontos de comércio atlântico. Isto também lhe permite re-
chaçar a ideia clássica de Polanyi e propõe que essas duas economias estavam justa-
postas em circuitos regionais de longa duração e de comércio antiquíssimo de produ-
tos têxteis, mandioca, pescado, sorgo e cerâmica, sobretudo com as terras iorubás do
leste e as mahis do norte. Neste sentido, o que Manning pretende argumentar é a coe-
xistência de mercados locais, regionais e inter-regionais ativos na longa duração afri-
cana: Parick Manning, Slavery, Colonialism and Economic Growth in Dahomey, 1640-
1960, Cambridge: Cambridge University Press, 1982, pp. 78-83.40 Asiwaju e Law, “From
the Volta”, pp. 462-63.

718 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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demonstram que, ao menos até o momento da queda do império iorubá


de Oyó (1831), o comércio atlântico repercutiu numa entrada massiva de
dinheiro (cauris), que permitiu impulsionar o consumo local e os investi-
mentos internos, por exemplo, na indústria têxtil.42
O certo é que, nos anos 1970, novos estudos começaram a transmitir
a noção de “transformação interna”, produzida no Daomé por causa do
impacto econômico europeu, seja o comércio atlântico de escravos ou a
imposição prematura de economias monoprodutoras de exportação. Para
o historiador Dov Ronen, por exemplo, o tipo de relação comercial que
implicou o tráfico escravista firmou também a que viria com o comércio
de azeite-de-dendê. Este historiador vê no comércio escravista uma
relação econômica puramente individual entre os agentes do comércio
atlântico e o rei do Daomé. As mudanças que resultaram deste comércio
se produziram em esferas completamente separadas do entorno social.
Da mesma forma, para Ronen a passagem para o comércio “legítimo”
de azeite-de-dendê foi controlada pelo rei e não implicou mudanças
importantes nas relações sociais.43 Além de ser um argumento difícil de
sustentar de qualquer ângulo da história social, o que está em jogo no
texto de Ronen, intitulado chamativamente Dahomey Between Tradition
and Modernity, é justamente a demonstração epistemológica de que os
elementos coesivos do Daomé, e definidores de seu potencial político,
nada tinham a ver com a instauração de demandas externas e economias
atlânticas. O texto de Ronen, que começa com o início do tráfico escravista
e culmina com a instauração de fato do unipartidarismo político no Benim,
instala a coesão política do Daomé numa profundidade histórica; não se
trata somente de incentivar a teoria de uma economia dual, mas também,
e sobretudo, de documentar que qualquer inovação estrutural deveria
vir do interior da sociedade daomeana. Esse interior se conserva em sua
mais original condição, imaculado das influências corrosivas do contato
externo do qual o akohosu – Guezo, neste caso, estadista e pai da nação
– logra salvaguardar, protegendo o espírito intacto da “comunidade”.44
Em relação direta com as teses de Ronen, em 1974 o historiador John
Yoder publicou um artigo analisando a confrontação política ao redor da
transição econômica no Daomé, que produziu um debate historiográfico
importante.45 Neste trabalho, o historiador afirma que os que se ocuparam
do problema, entre eles Coquery-Vidrovitch, esqueceram de dar peso à

42 Asiwaju e Law, “From the Volta”, pp. 462-63.


43 Dov Ronen, Dahomey: Between Tradition and Modernity, Ithaca: Cornell University
Press, 1975, p. 36.
44 Ibid. Numa tradução livre, akohosu (akòxósú) significa “rei ou chefe da nação” (N. T.).
45 Referimo-nos ao artigo “Fly and Elephant Parties: Political Polarization in Dahomey,
1840-1870”.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 719


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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problemática política que esteve presente nesta transição econômica,


sobretudo depois do reinado de Guezo. Yoder sustenta a existência de
dois “partidos políticos” que ostentavam posições opostas a respeito da
especialização econômica do Daomé e a sua relação com as imposições
da política europeia. Assim, teria existido o Partido dos Elefantes, com
uma política de confrontação à vontade britânica de extinguir o tráfico
atlântico e com o firme objetivo de continuar com as razias no interior e
seguir com o tráfico de escravos em novos mercados. Este partido incluía
o rei (Guezo nos anos de 1850, e Glelé em 1860 e 1870), o Chachá de Souza
e os comerciantes crioulos brasileiros, os comerciantes portugueses e os
militares masculinos. Seu objetivo teria sido continuar com os ataques
a Abeokutá, reduto iorubá após a queda de Oyó, a quem os daomeanos
chamavam “o elefante”. Para Yoder, a política do Partido dos Elefantes
era uma maneira clara de provocar a confrontação com essa potência
europeia, dado que Abeokuta era uma zona que contava com o apoio e a
proteção dos britânicos.
Por outro lado, o Partido dos Mosquitos estava representado pelo
exército real de amazonas, os líderes religiosos do Daomé, funcionários
subalternos e comerciantes não imiscuídos no negócio escravista, que
teriam visto os perigos de uma possível confrontação com os britânicos.
Este partido teria buscado uma política de conciliação com os interesses
britânicos: acomodar-se à situação e não atacar as zonas de esferas de
influência britânica, mas centrar-se nas regiões “satélites”, desmembradas
e sem integração regional, as quais chamavam “os Mosquitos”.46
O importante a considerar é que Yoder toma o período entre 1840
e 1870 como um espaço de polarização política em torno de concepções
econômicas divergentes. 47 Há muitos indícios de que, efetivamente, a
política de pressão dos ingleses para abandonar o tráfico de escravos
(que inclui dois bloqueios a Uidá, em 1852 e 1871, quando os daomeanos
seguiam comercializando com franceses e portugueses) provocou sérias
controvérsias no plano político. Daí a se falar de dois “partidos políticos”
polarizados, com esferas de interesses próprias e frentes públicas de
apoio divididas, parece haver uma considerável distância.
No entanto, as projeções não são poucas no âmbito historiográfico.
Neste artigo, Yoder pretende demonstrar um ponto central na discussão

46 Yoder, “Fly and Elephant Parties”, pp. 426-427.


47 A existência de dois partidos políticos com ideologias opostas é uma escusa analítica para
o que me parece que verdadeiramente preocupa Yoder: mostrar que no Daomé anterior à
colonização existia uma sociedade política consolidada, com partidos políticos coesos e
com uma organização institucional que dividia poderes e atribuições. A translação de um
imaginário de “modernidade política” com uma epistemologia de herança colonial é im-
portante no contexto de produção destas obras. Para uma análise mais detalhada destes
problemas, ver Rufer, “Pasados repasados”, pp. 52-53.

720 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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contemporânea: que eram os agentes brasileiros, comerciantes e retor-


nados, ligados à família do Chachá de Souza, os que incentivavam o rei a
continuar com o tráfico e a enfrentar os ingleses e sua política de pressão,
enquanto os que estavam de acordo com o ímpeto “modernizador” de
transformar o Daomé em uma economia agroindustrial eram as próprias
forças internas ligadas às estruturas locais e a circuitos antigos, junto
com uma parte do estado e das milícias (a feminina).48
Em termos estritamente históricos, esta visão é esquemática demais
e é preciso problematizá-la. Por um lado, o Chachá de Souza já havia con-
siderado importante a comercialização do dendê e o tinha informado ao
antigo rei Guezo.49 Por outro lado, Law reconhece, seguindo David Ross, que
foi justamente a importante ajuda de agentes externos, como o Chachá,
primeiro, e os britânicos, depois, que permitiram a Guezo e Glelé uma
política de diminuição do tráfico atlântico de escravos, dada a profunda
oposição política no interior do reino. O certo é que se tratou, sobretudo,
de uma política de vai-e-vem. 50 Em 1852 os britânicos bloqueiam Uidá

48 Robin Law, “The Politics of Commercial Transition: Factional Conflict in Dahomey in the
Context of the End of the Atlantic Slave Trade”, Journal of African History, vol. 38, no 2
(1997), pp. 214-216.
49 Aqui, Law contradiz o argumento de Coquery-Vidrovitch, similar ao de Yoder, de que de
Souza e os interesses lusitanos e brasileiros impulsionavam Guezo a rejeitar a imposição
de uma economia agrícola devido às pressões inglesas: Law, “The Politics”, pp. 214-216;
Catherine Coquery-Vidrovitch, “De la traite des esclaves à l’exportation d’huile de palme
et des palmistesau Dahomey: XIX èmesiècle”, in Claude Meillassoux (org.), The Develop-
ment of Indigenous Trade and Markets in West Africa (Oxford/Londres: Oxford Univer-
sity Press/International African Institute, 1971), pp. 107-123. Também foi importante a
participação dos retornados brasileiros na “revitalização” agrícola nessa época: Frederick
E. Forbes, Dahomey and the Dahomans, Londres: Longman, Brown, Green, and Longmans,
2 vols., 1851, pp. 78 e ss.
50 Law, “The Politics”, pp. 214-216, insiste em ler os conflitos deste momento como dinâmi-
cas de transição e controvérsias que não necessariamente estavam representadas por
grupos coesos identificados. O problema estaria delineado em termos das implicações
ideológicas que teve esta transição para o reino, posto que diferentemente da centrali-
zação relativa que implicava a economia escravista; no caso da economia agrícola havia a
possibilidade de que grupos próximos aos portos ou às rotas do comercio se beneficiassem
da descentralização econômica ao escapar do controle real. Por outro lado, o ethos políti-
co daomeano estava profundamente ligado à militarização, segundo Law, com um desdém
particular para com a agricultura, o que, inclusive, tornou necessária uma formação alter-
nativa da identidade do rei. Neste ponto, é preciso compreender vários aspectos. Em pri-
meiro lugar, a estas alturas do debate historiográfico, dificilmente se pode concordar com
Law quanto a esse “desdém” para com a agricultura. O que existia era a concepção de que
a monarquia devia permanecer afastada das atividades comerciais mais diretas, e parti-
cularmente das que tivessem a ver com a terra, recebendo apenas os tributos que os cam-
poneses deveriam oferecer nos Costumes anuais (cerimônias em honra dos reis mortos).
Edna Bay propõe que estes argumentos surgem de uma leitura demasiado literal de al-
guns relatos da época. Por exemplo, quando uma missão inglesa foi a Abomé para ordenar
o fim do comércio escravista em 1851 e o rei Guezo, provavelmente consciente da visão
europeia do reino, lhe respondeu com uma ironia em sintonia com o imaginário “moderno”

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 721


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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ante a negativa do rei de suspender o tráfico. Ainda que em 1856 Guezo


assine um tratado com os britânicos e concorde em cessar o tráfico, nos
anos 1860 a demanda de escravos proveniente de Cuba faz reflorescer
o comércio escravista, que funcionava paralelamente à exportação de
azeite-de-dendê e ao lado das casas europeias instaladas nos portos.
Contudo, nos textos de Yoder e de Ronen, são de particular interesse
as transferências historiográficas. O tema da “elite modernizadora” do
Daomé está latente neste debate. A figura dos retornados fica no meio deste
telos, como espectro a ser re-situado. Estas populações de ex-escravos ou
descendentes de escravos, provenientes diretamente da Bahia de Todos
os Santos, no Brasil, ou transferidos de Serra Leoa, e que começaram a
chegar desde a segunda metade do século XIX ao Daomé, o transformaram
no distintivo quartier latin da África Ocidental. Uma população liminar,
figura simbólica da restituição populacional na África, estes retornados
não conseguiam considerar-se totalmente africanos, nem os africanos os
assimilavam completamente nas estruturas locais. Sua instalação e seu
desempenho no território do reino estiveram desde o começo estimulados
pelos europeus instalados na costa e, depois, diretamente promovidos
pela colônia francesa que via nestes “regressados”, grande parte deles
alfabetizados e cristianizados, um núcleo difusor de “civilidade” que, por
sua vez, poderia ser mais facilmente aceito pelas populações locais. Estas
pessoas que tinham regressado à “mãe terra” rapidamente ocuparam
lugares centrais na administração colonial em dois enclaves: na educação
e na nascente “opinião pública”, através da criação dos primeiros órgãos
de imprensa escrita nos anos 1930.51
A transferência é muito mais clara se tomamos em conta este ponto.
A análise proposta por Ronen para entender a transição comercial radica
em demonstrar que as inovações econômicas foram competências só
do poder político e em nenhum momento afetaram a coesa estrutura
da sociedade daomeana. Em primeiro lugar, porque os escravos eram
“presentes” oferecidos pelo rei, e o comércio atlântico estava controlado
só por uma elite local, real e masculina.52 Em segundo lugar, porque os
continuação 50

europeu: “meu povo é um povo militar, homens e mulheres [...] Não posso mandar minhas
mulheres a cultivar a terra, as mataria”. Ironia que, evidentemente, não foi compreendida
como tal pelo esquadrão inglês, sobressaltado ante a ideia de uma comunidade cujas mu-
lheres não sabiam cultivar: Bay, Wives, p. 204.
51 Para um estudo detalhado deste ponto, com fragmentos de documentos transcritos de
primeira mão, ver Dov Ronen, “The Colonial Elite in Dahomey”, African Studies Review,
vol. 17, no 1 (1974), pp. 61-76.
52 Este é um ponto importante, porque o “silêncio” da historiografia independente se trans-
fere ao âmbito das políticas de gênero. Em um texto não tão recente, Catherine Coquery-
Vidrovitch falava não só da força e do dinamismo dos mercados internos e dos circuitos re-
gionais que permitiram a transição para a exportação de azeite-de-dendê, mas que foram
as mulheres o ponto-chave desta transformação econômica, já que eram as encarregadas

722 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

“retornados”, que poderiam ter tido interesse neste processo de mudan-


ça social, se converteram, a partir de finais do século XIX, numa elite
chamada “colonial” que, apoiada pela administração francesa, rechaçava
a “barbárie” dos chefes locais e detinha lugares de poder político. Por
outro lado, Yoder trata de demonstrar não só a existência de partidos
políticos na África anterior à invasão colonial, que não tiveram que
esperar nenhum grupo “modernizador” para constituir-se como tal, mas
sua narrativa busca transferir ao âmbito puramente local, endógeno,
os ímpetos de “modernização” da nação. Nem os retornados brasileiros,
nem sua conivência com os europeus, nem o Chachá de Souza tiveram
ingerência nesta epifania interna, que era a necessidade de reverter as
estruturas econômicas da nação.
Os textos analisados, mostrando uma unilateralidade endógena dos
processos sociais, não só “silenciaram” as memórias locais periféricas a
Abomé e à corte, que davam lugar a argumentações rizomáticas sobre
o poder e a legitimidade política do reino. Eles também dificultaram a
análise das transformações simbólicas ocorridas no interior do reino no
século XIX, que prepararam o terreno para uma sedimentação social da
transição econômica. Edna Bay analisa com atenção estas historiografias
locais, focando-se prioritariamente na voz das mulheres camponesas de
grupos étnicos diferentes do fon e distantes da antiga capital. A histo-
riadora sustenta que, neste momento de inflexão política e econômica,
o rei Guezo levou a cabo um programa-chave de “expansão do ciclo ceri-
monial”.53 O dendezeiro foi declarado sagrado e teve seu corte proibido
em 1840; e foi estipulado que um imposto sobre a produção agrícola (o
kouzou) seria pagável exclusivamente em azeite-de-dendê. Os Costu-
mes anuais (xwetànu, cerimônias em honra dos reis mortos), clássicos
rituais de redistribuição de bens e demonstração simbólica do poder
real desde o século XVIII, ampliaram-se em magnificência e em tempo
de duração até a década de 1850. Além disto, agregaram-se cerimônias
em Cana, comemorando a “libertação” da tutela de Oyó. O que pode ter
causado estas extensões dos rituais reais em um momento-chave como
os decênios entre 1840 e 1860, épocas de declínio econômico e mudança
conjuntural? Por um lado, a necessidade de aglutinar a população com
mais força em torno de sentidos “simbólicos” de pertencimento, de criar
ciclos cerimoniais que incluíssem elementos étnicos iorubás, akans, ou
mahis devido à importância desta população no reino no século XIX; e
de manter o grosso da população nas atividades planejadas pela corte.
No entanto, Edna Bay agrega um ponto importante a respeito destas

continuação 52

de processar o dendê, destilar o produto e comercializá-lo em espaços locais e regionais:


Coquery-Vidrovitch, “De la traite des esclaves”, p. 118.
53 Bay, Wives, pp. 213-22.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 723


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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reformas, que merece atenção. Nesta época, uma das cerimônias que
mais se populariza é a dedicada a Gakpe. Este era o nome de nascimento
de Guezo, antes de ser nomeado vidaho, ou sucessor real com um nome
propício, de acordo com o costume local.
Gakpe é tomado nos relatos do século XIX, às vezes, como mais um
“fetiche”, outras vezes, como um símbolo que aglutinava a população.
No entanto, podemos tentar decifrar a importância desta identidade
alternativa do rei lendo as palavras de Thomas Birch Freeman, um inglês
que visitou Daomé em 1856:
Garuapay [Gakpe] [...] é uma espécie de ideal representativo
do gênio da nação. Ele leva os créditos de todas as obras
que não podem ser atribuídas com propriedade à pessoa
do rei. [...] durante uma larga entrevista com o rei, este
me mostrou um mosquete fabricado com muita destreza,
que declarou ser manufatura local, e estava tão bem feito
que eu mesmo mostrei grande surpresa e curiosidade. [...]
lhe perguntei quem tinha a habilidade para produzir esse
tipo de artigo, e a resposta do rei foi “Gakpe o fez”. Pela
forma que a resposta me foi dada, soube que havia algo
de mistério ao redor de Gakpe [...] indaguei mais e soube
que [...] o rei não podia dizer, sem perder sua dignidade,
“eu o fiz”.54

No momento do reinado de Guezo, e provavelmente devido às influên-


cias culturais dos reis iorubás ou dos próprios reis europeus (sobretudo
da rainha da Inglaterra), a figura do rei devia permanecer separada de
qualquer atividade econômica ou diretamente ligada à produção.55 No
entanto, a partir das tradições orais, é sabido que o palácio de Abomé
tinha os monopólios da produção têxtil e cerâmica e, além disto, possuía
três grandes plantações ad hoc de dendê nos arredores da capital. Quando,
em 1852, o rei Guezo firma o tratado para abolir a escravidão, tratado
que jamais se cumpriu, ele mesmo declara que só podia responsabilizar-
se pela mercadoria que saísse de Uidá para o Atlântico, mas não com
relação a Gakpe.56
Gakpe, como identidade paralela do rei, era ao mesmo tempo uma
cosmovisão alternativa e coexistente do reino. Era o conceito coletivamente
assumido que permitia ao rei afastar-se simbolicamente das atividades
econômicas tal como as concepções locais o requeriam, mas ao mesmo
tempo deixava o palácio como agente indispensável no controle das novas

54 Londres, Methodist Missionary Society (MMS), Biog. West Africa 5, maço QI, Thomas Bir-
ch Freeman, mimeografia de livro sem título, s.d., p. 306, apud Bay, Wives, pp. 217-18.
55 Bay, Wives, pp. 218-20. Este tipo de argumentos a autora extrai dos relatórios do oficial de
ultramar Auguste Bouët e de Richard Burton.
56 Ibidem.

724 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

formas de produção. Foi um símbolo-chave que permitiu ao rei assinar um


tratado de término do tráfico atlântico de escravos e, ao mesmo tempo,
resguardar a utilização de cativos no interior do reino, nas plantações
ou nos Costumes anuais. A ambivalência deste personagem foi então um
símbolo ritual indispensável para frear o colapso de uma economia de
transição, tanto frente aos agentes de pressão externa como frente ao
grosso da população.57
É necessário notar um ponto a partir da perspectiva de gênero. O
conhecido exército de amazonas que o rei do Daomé tinha desde meados
do século XVIII, e que foi motivo de assombro e exotismo para todos os
viajantes, ganhou nova função sob Guezo, a tal ponto que este exército
real ascendia a quatro ou seis mil mulheres, segundo as diversas fontes.
Era a vanguarda estratégica militar do reino e constituiu o ponto cen-
tral da resistência contra os franceses entre 1892 e 1894. 58 Além das
amazonas, deve-se destacar que no século XIX as mulheres se haviam
transformado em importantes atores sociais a serem cooptados pela
monarquia. Não apenas pela importância da kpojito, “mãe” do reino ligada
aos ancestrais fundadores, ao povo e a deidades particulares, mas também
pelas mulheres independentes que haviam conseguido riqueza e que era
necessário “neutralizar”. Enquanto os relatos das mulheres da região
de Abomé falam da importância e da riqueza das ahosi ou princesas, as
narrativas recolhidas na região costeira de Uidá destacam a importância
das mulheres de origem geralmente exógena, iorubás ou minas, mulheres
independentes que tinham adquirido sua riqueza a partir do comércio de
azeite-de-dendê. Por outro lado, as mesmas tradições orais mostram que,
no século XIX, embora um monopólio real, a produção cerâmica e têxtil
era comercializada por mulheres empresárias.59
Até aqui quis trabalhar com os “usos” dos passados daomeanos, que
fizeram certa historiografia, sobretudo a partir de um debate acadêmico
já constituído: o comércio atlântico de escravos e seu esgotamento. É
importante destacar que tanto Akinjogbin como Ronen ou Glelé enrique-
ceram amplamente as noções que se tinham sobre o funcionamento da
escravidão e do cativeiro no interior da África, da mesma maneira que

57 Idem, p. 222. O “personagem” de Gakpe nos remete a Komfo Anokyo do vizinho reino
ashante, o símbolo personificado, transtemporal, dono das leis ancestrais do estado. A fi-
gura de Anokyo está documentada desde o final do século XIX e aparece nos momentos
de conflito político e enfrentamento entre o Ashantehene e os europeus. Da mesma ma-
neira, Gakpe aparece como símbolo ritual em um momento de transição, é o médium em
um “ritual de passagem” para novas formas de produção e de vida material e política: T. C.
McCaskie, “Komfo Anokye of Asante: Meaning, History and Philosophy in an African So-
ciety”, Journal of African History, vol. 27, no 2 (1986), pp. 315-339.
58 Bay, Wives, p. 201.
59 Idem, pp. 198-213.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 725


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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deram a conhecer registros orais inacessíveis que ampliaram as possibi-


lidades interpretativas. Ao mesmo tempo, o comércio de seres humanos,
a diáspora e o retorno de ex-escravos ao Daomé foram pontos de forte
tensão que serviram para conferir um novo sentido e “imacular” o estado
nacional nascente. Este processo deslocou o foco analítico para outras
“responsabilidades” e transferiu à história-palimpsesto a possibilidade
de restaurar um sentido experiencial africano, único e verdadeiro. Neste
“sentido”, a(s) diferença(s) étnica(s), o espaço político do gênero, ou as
historiografias periféricas à corte e aos núcleos “modernos” do estado
parecem ter representado uma ameaça epistemológica à narrativa uni-
forme ou ao imperativo político da história redentora, e foram excluídas
do discurso histórico, deslocadas parcialmente, ou ao menos subsumidas
fragmentariamente nos relatos totalizantes da nação.

Silêncios performativos: diferença étnica e gênero


como ausência e como exaltação
Como as próprias historiografias locais periféricas a Abomé registra,
Daomé foi um estado predador e, de alguma maneira, sua formação esteve
a cargo de um “bando de estrangeiros adventícios” nas terras Adja. 60 Da
mesma maneira, o lugar das etnias mahi, iguede, baribá e egba-iorubá,
entre as principais que faziam parte do planalto territorial e hoje fazem
parte da República do Benim, é um ponto de deslocamento historiográfico,
de incômoda narrativa visível nas historiografias consultadas. Esta tensão
vai desde a narração da existência de um “grande país adja-iorubá”, que
o Daomé e a força que ganhou o etnônimo fon foram capazes de agluti-
nar, devido à sua potência teleológica, até o silenciamento dos conflitos
históricos e das políticas sociais e contra-hegemônicas da memória que
alguns grupos representam no Benim contemporâneo ou, o que é pior,
a representação da dicotomia imperial barbárie-civilização dentro das
historiografias pós-coloniais locais.61 Enquanto as historiologias orais se
proclamavam como a nova “bandeira” metodológica para deslocar o colo-
nialismo da ciência social, nos atos performativos da narrativa histórica,
produziram-se indubitavelmente deslocamentos, distorções e “traduções”

60 Idem, p. 312.
61 Alguns autores, como Felix Iroko, e tradições orais recolhidas na região afirmam que os
fons eram um dos grupos originais do planalto antes que chegassem os agassuvis ao lu-
gar. Esta tese propõe que teria sido depois de sua usurpação do poder local autóctone
que o etnônimo fon adquiriu um caráter mais genérico e inclusivo: Felix Iroko, Mosai-
ques d’Histoire Beninoise, Benim: Éditions Corrèze Buissonnière, 1998, p. 59. Sobre os
mitos fundacionais de Daomé, ver Robin Law, The Kingdom of Allada, Leiden: Research
School CNWS-CNWS publications, 1997; Suzanne Preston Blier, “The Path of the Leop-
ard: Motherhood and Majesty in Early Danhomé”, Journal of African History, vol. 36, nº
3 (1995), pp. 391-417.

726 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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das experiências coloniais. No entanto, as memórias orais periféricas


ao estado nacional liberado, aquelas nas quais as mulheres camponesas
desafiam a ideologia da “unidade” a partir da proclamação da diferença
identitária, ou as periféricas aos núcleos de poder político e econômico
que tratam dos circuitos de relação social alternativos, na maioria dos
casos não aparecem nos grandes relatos da “era” independentista. Estes
silêncios não são só repressivos, senão produtivos, fundamentalmente
porque foi mister “disciplinar” as temporalidades étnicas (o que não só
significou excluí-las da narrativa, mas também, às vezes, exaltá-las),
subsumi-las em um metarrelato que prefigurava, em um passado de
experiência monolítica, a singularidade preanunciada em uma origem
destinada a um fim político exitoso. 62 Nestes processos de ocultação de
atores, de silenciamento narrativo de passados dissidentes, de coexistência
de memórias marginais e re-criação contingente dos passados sociais, a
historiografia é um – e só um – dos espaços de contenda e de tensão no
qual a nação, o povo, a comunidade e a etnia se criam e se recriam cons-
tantemente, alimentados pelo espaço da realidade social e lhe devolvendo
uma imagem digerida, mas nunca acabada, do “sentido” histórico.
O “disciplinamento” das temporalidades étnicas, em sentido foucaul-
tiano, se apresenta muitas vezes como uma tarefa básica da historiografia
nacionalista. No entanto, a criação destas “histórias-monumento” produz
discursos que não são nem tão monolíticos, nem tão “repressores” da
diferença étnica. Ao contrário, a exacerbação da diferença é um recurso
persistente para criar uma geografia particular nas margens da nação.
Este é um ponto que ressalta nas historiografias nacionais sobre o Daomé.
Na biografia que o historiador Adrien Dijvo escreve sobre Guezo
– o rei que, como dissemos, se apresenta como o “modernizador” pré-
colonial do reino – o governante aparece como o herói que conduziu em
pessoa as campanhas militares, cujos resultados, contudo, não fizeram
“nem menos turbulentos nem menos arrogantes a essas ‘bestas pesti-
lentas das montanhas do norte’”. 63 Os mahis e os iguedes são excluídos
da história-progresso que o Daomé encarnava, apresentados como a
alteridade dentro do próprio planalto e como uma forma de conceber a
“necessidade” da conquista territorial dos agassuvis.64 Por um lado, este
é um dos exemplos mais contundentes sobre como as contranarrativas
da independência, em alguns casos, reproduziram as formas modelares

62 Diouf, “Des historiens”, p. 337


63 Joseph Adrien Djivo, Guezo: la renovation du Dahomey, Paris: ABC, 1977, p. 22.
64 Os agassuvis foram a linhagem invasora que conquistou as populações autóctones do pla-
nalto e fundou o reino do Daomé. Nas narrativas historiográficas nacionalistas, a exclusão
dos agentes “estranhos” ao Sujeito Nacional da experiência temporal e social é um efeito
recorrente: Prasenjit Duara, Rescuing History from the Nation: Questioning Narratives
on Modern China, Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1995, pp. 26 e ss.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 727


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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imperiais de registrar a experiência histórica, porém, ao mesmo tempo,


constituíram uma operação epistemológica de localizar o pertencimento
e a diferença pré-coloniais nos termos de uma nova linguagem memorial.
Djivo trata de destacar a evolução dos limites geográficos do Daomé em
uma história linear de expansão territorial que é, por sua vez, a expansão
da cultura fon. 65 Nesta conquista territorial descrita com cuidado nas
páginas iniciais de Djivo, a ocupação dos vales dos rios Ouemé e Koufo e
dos planaltos de Abomé, Akplahoué e Ketu é ao mesmo tempo a difusão de
uma história particular. O mundus latino é transladado para a África, com
uma diferença: se a geografia como tal generalizou certo conhecimento
sobre o continente, que, em épocas do Império Romano não se tinha,
entretanto, para o discurso histórico, as margens do espaço daomeano
são por sua vez os limites do mundo, cuja história é possível narrar.
Paralelamente, poucos trabalhos falam do componente iorubá neste
período do Daomé, período-chave pela afluência de contingentes cativos ou
refugiados depois da queda de Oyó em 1832. Poucos historiadores resga-
tam o componente ambivalente e contraditório que os iorubás aportaram
ao reino já no século XVIII. As historiografias nacionalistas, assim como
as coloniais – por razões diversas – negaram a influência iorubá que se
projetou na zona daomeana durante a tutela e depois da queda de Oyó.
Contudo, Robert Cornevin se anima a fazer uma afirmação contundente:
que as estruturas políticas dos fons são herdeiras diretas do contato
histórico que tiveram com os elementos iorubás provenientes do leste.66
No entanto, Adrien Djivo, em sua biografia sobre Guezo, se encarrega de
impugnar esta afirmação, ressaltando a origem adja da etnia fon, cuja
instalação no planalto não se pode entender como o “impacto cultural e
político” iorubá.67
Tomarei por um momento as implicações do texto de Akinjogbin
sobre este ponto. Mais próximo ao argumento de Cornevin, Akinjogbin
estabelece que o empréstimo de línguas e instituições religiosas dos
iorubás é parte da realidade daomeana. Mas Akinjogbin agrega mais
um ponto clarificador para sua análise: é este amálgama de religiões e
linguagens comuns o que faz da “unidade do grande país adja-iorubá uma
realidade”.68 Este grande país existe, para o historiador nigeriano, como
uma realidade histórica desde começos do século XV. É importante que se
destaque a operação epistemológica de Akinjogbin, que situa a “unidade
cultural adja-iorubá” no âmbito “escorregadiço” – pela dificuldade de

65 Ibidem.
66 Cornevin, Histoire, pp. 63 e ss.
67 Djivo, Guezo, p. 41.
68 Akinjogbin, Dahomey, p. 14.

728 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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definir referentes precisos – da tradição.69 Esta “unidade cultural” estaria


baseada na existência daquela “teoria social tradicional”, o ebi, que se
evidenciaria em “atos específicos do estado”, tais como as cerimônias de
coroação, as declarações de guerra e a celebração de festivais. Esta “teoria
social tradicional” é o que forma, para Akinjogbin, a “base subjacente da
organização política tradicional dos reinos adja-iorubás”.70 O ápice que
comprovaria a existência desta teoria pan-adja-iorubá é a existência de
“um só grande ancestral” para ambas as culturas. Interessa-me destacar
este ponto não só porque é difícil encontrar referências a esta “teoria
social tradicional” e muito mais ainda visualizar algum ponto de união
nos mitos de origem entre os adjas e os iorubás, senão porque é na “tra-
dição” – distante e indefinível historicamente – que Akinjogbin subsume
a diferença étnica.71
O historiador nigeriano não silencia a presença iorubá em sua narrativa
histórica – como o fazem, por exemplo, Augustus Adeyinka ou Dov Ronen
–,72 mas a situa numa metanarrativa de “unidade cultural” prefigurada na
tradição que, por sua vez, é o substrato essencial da nação daomeana. Em
sua narrativa, o conflito histórico é um erro contingente, redimido pela
História que o historiador resgata, como redentor, das “obscuridades” da
memória “tradicional”. Assim se ilumina uma nova – e definitiva – versão
événementielle: as guerras com Oyó e Abeokuta, a escravidão iorubá no
Daomé, o apoio iorubá à campanha militar francesa no começo de 1890
são meros “acidentes históricos”, vontades emergentes, individuais e

69 De fato, Akinjogbin não proporciona outros elementos que permitam compreender por
que localiza “aproximadamente” no século XV a conformação desta “unidade cultural”.
70 Ibidem, p. 14.
71 Apesar da descrição em termos teóricos que faz Akinjogbin desta teoria social, ebi, com-
partilhada entre os numerosos povos iorubás e os povos adjas, vários historiadores – e
nem todos de forma recente – especificaram as diferentes tradições originárias egba
-iorubá, iguede, ewe-fon e adja-fon. Inclusive, uma análise “genealógica” e diacrônica
das tradições orais permitiu visualizar a invenção relativamente recente – incentiva-
da pela administração colonial e depois pelo estado independente – de concepções de
“homogeneidade” cultural que se apresentam, no entanto, como “tradicionais”, “originá-
rias”. O caso adja-iorubá é um deles. Para as divergentes mitologias fundadoras iorubás
e adja/fon em uma análise diacrônica, ver Cornevin, Histoire, pp. 148 e ss. Para os pro-
cessos de apropriação e redesenho colonial e póscolonial destas tradições, ver Law, “His-
tory and legitimacy”; Sandra E. Greene, “Notsie Narratives. History, Memory and Mean-
ing in West Africa”, in Dube (org.), Enduring Enchantments, South Atlantic Quartely,
vol. 101, no. 4 (2002), pp. 1015-1041. Ver também Roberto Pazzi, “Aperçu sur l’implan-
tation actuelle et les migration sanciennes des peuples de l’aire culturelle Aja-Tado”, in
François de Medeiros (org.), Peuples du Golfe du Bénin (Aja-Ewé) (Paris: Éditions Kar-
thala, 1984), pp. 11-20.
72 Ronen, “On the African Role”; Augustus Adeyinka, “King Ghezo of Dahomey (1818-1858).
A Reassessment of a West African Monarch in the XIX Century”, African Studies Review,
vol. 17, no 3 (1974), pp. 543-548.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 729


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
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efêmeras, incapazes de quebrar o telos originário da nação, “re-emergida”


no momento em que Akinjogbin escreve sua história.73
A “liberdade” obtida em relação a Oyó em 1827, o impacto dos
povos de língua iorubá tomados como escravos após a queda de Oyó e a
mudança econômica que implicou na passagem de um sistema centrado
na exportação de escravos e na importação de produtos “de luxo” a um
outro, centrado na exportação de azeite-de-dendê, foram fatores cruciais
na época de Guezo.74
Qual é a importância de retomar a análise das relações entre Oyó
e Daomé no momento de desintegração do primeiro? Por que há certos
aspectos conflitivos nesta historiografia?75
As historiologias orais indicam que, durante o reinado de Tegbesu
(1740-1774), foram impostas nas políticas do estado algumas reformas
administrativas e organizacionais que provinham das estruturas políticas
de Oyó. A isto se soma que, com as guerras entre os dois reinos e o colapso
final de Oyó, foi levada para o Daomé uma quantidade importante de
escravos que de fato o Daomé já não podia vender ao tráfico atlântico, em
franca diminuição; por isto, um grande número teve que ser absorvido
nas estruturas da sociedade fon. 76 As fontes europeias contemporâneas
são pouco precisas a este respeito. Os relatos de viajantes do século
XVIII, como os de Norris ou Dalzel, estavam demasiado comprometidos
com o funcionamento das relações econômicas e a geração de relações
interatlânticas para se deterem na análise das relações culturais entre
os povos. 77 Ao contrário, os do século XIX viviam na Europa mudanças
fundamentais ligadas ao surgimento das disciplinas “modernas”. Via-
jantes como Burton ou Forbes se detiveram no estudo sistemático dos

73 Diouf, “Des historiens”, p. 338.


74 Bay, Wives, p. 184.
75 O império iorubá de Oyó, que ocupava grande parte do que hoje é o oeste da Nigéria e o les-
te do Benim, tinha começado uma etapa de enfraquecimento no final do século XVIII. Na
última década, tinha sido deposto um alafin (maior autoridade política de Oyó) por causa
do descontentamento popular e, com isto, começou uma série de rebeliões internas que
foram exacerbadas pela revolta muçulmana de 1817, parte de uma jihad inspirada pelos
fulanis do norte: J. F. A. Ajayi, “The After math of the Fall of Old Oyo”, in Ajayi e Crowder
(orgs.), History of West Africa, vol. 2, pp. 136 e ss. A resistência do Daomé a submeter-se
como reino tributário foi constante durante toda a época de supremacia de Oyó, com dife-
rentes intentos de revolta e rebeldia fiscal reprimidos pelo exército de Oyó. As primeiras
duas décadas do reinado de Guezo coincidiram, com efeito, com as guerras internas mais
intensas na terra iorubá. Quando, em 1837, a capital do império de Oyó finalmente caiu, as
possibilidades geoestratégicas para o Daomé mudaram: Bay, Wives, p. 185.
76 Bay, Wives, p. 187.
77 Norris, Memoirs; Archibald Dalzel, The History of Dahomey, an Inland Kingdom of Africa,
Londres: Frank Cass, 1967 [1793]. Não tivemos acesso a esta última fonte senão por refe-
rências indiretas.

730 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


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“sistemas” culturais e na composição administrativa do reino do Daomé.78


Mas não empreenderam um estudo que facilitasse a compreensão das
relações interculturais. Como expressa Elisée Soumonni, esta carência se
projetou até a historiografia dos tempos contemporâneos.79 Uma destas
razões foi, como disse, a necessidade da historiografia independentista
de levar a cabo uma invenção intelectual da nação que situasse em
um momento específico a “origem” da nação moderna do que hoje é a
República do Benim. 80
A influência da cultura iorubá na terra daomeana, reconhecida ou
negada nas historiografias, é um elemento crucial para compreender a
diversidade no espaço beninense atual. Neste sentido, antes da década
de 1840, os iorubás, que tinham sido re-situados no Daomé se encontra-
vam principalmente no litoral, encarregados da produção e também da
comercialização do azeite-de-dendê (alguns prosseguiam como escravos
nas novas plantações, outros, na fase de intercâmbio). Já por volta de
1840, tinham chegado à zona central do reino, Abomé. Muitos destes
falantes iorubás faziam parte do contingente de refugiados que chega-
ram à terra daomeana ao fim das guerras com Oyó, e não eram só cativos
escravizados. Os que alcançaram as terras centrais da capital foram os
dedicados principalmente à produção artesanal, criando verdadeiros
bairros de população iorubá que reclamam genealogias diferentes até os
dias atuais e se caracterizam por uma produção artística particular. No
entanto, esta presença não foi suficientemente reconhecida nos estudos
historiográficos, em parte pelo problema político contemporâneo que
representa esta divergência.
Adrian Djivo destaca a política “conciliatória” que Guezo soube levar
a cabo em relação a estas outras populações – diferentes das “bárbaras”
do norte – dado que “a extensão das regiões fora de Abomé, o sentido e
a antiguidade de seus laços com o rei, determinam o nível de integração
das populações que habitam no seio da jurisdição de Abomé”. 81 Este his-
toriador realça os laços que os governantes de Ketu e Sabe estabeleceram
com Guezo durante seu reinado (inclusive o pacto de sangue), como uma
forma de demonstrar a capacidade de aglutinação social e – não menos
importante – a antiguidade do sentido territorial inclusivo do estado
nacional. O problema aqui não é só a rápida assimilação dos laços “polí-
ticos” com os sentidos “sociais” de pertencimento que lhes confere Djivo,
mas, sobretudo, o silenciamento dos profundos sentidos de diferença que

78 Forbes, Dahomey; Richard Burton, A Mission to Gelélé King of Dahomey, Londres: Rout-
ledge & Kegan Paul, 1966 [1864].
79 Soumonni, Daomé, p. 20.
80 Ibidem.
81 Djivo, Guezo, pp. 56-57.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 731


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ainda hoje projetam as populações dos ex-reinos de Ketu e Sabe, assim


como outras populações iorubás, em relação ao Daomé.
Os iorubás daomeanos que hoje habitam o Benim reservam parte da
memória coletiva para recordar as sucessivas expedições militares do
Daomé a seus territórios originários. Por sua vez, estes agentes iorubás
e mahis foram usados pelos franceses para seus serviços de inteligência
e para aqueles povos; os franceses representam – mesmo um século
depois – o símbolo da libertação de um reino opressor, o Daomé. 82 Em
outro sentido, um dos fatores que a historiografia colonial e nacionalista
perdeu de vista é a importância de uma política simbólica que Guezo levou
a cabo com esta diversidade populacional, vinculada em grande medida
com políticas de gênero. Guezo usou a simbologia do matrimônio para
cooptar o apoio do novo setor populacional. O rei chamou de ahosi os novos
setores exógenos que ocupavam o reino, que, literalmente, na língua fon,
significa “esposas do rei”.83 O Daomé incorporou, além disto, numerosos
rituais de relação com os ancestrais provenientes de Oyó, que passaram a
integrar o sistema cultural fon. Isto se deu a partir da inclusão de mulheres
escravas/esposas nas famílias, cuja simbiose com os rituais “legítimos” da
cultura fon – isto é, patrocinados e representados publicamente – se deu,
sobretudo, a partir do reinado de Glelé. 84 Inclusive, famílias de origem
afro-brasileira que se encontravam em Uidá começaram a apresentar
traços importantes de sincretismo católico com deidades iorubás, a partir
da inclusão de escravas/esposas nas estruturas familiares. O papel destas
novas mulheres integrantes do Daomé é importante no momento em
que se considera a negação que fez a historiografia colonial da agência
feminina de que, para o imaginário europeu, só podiam ter o lugar de
escrava “moderna” nas estruturas produtivas; ao mesmo tempo, a negação
deste fator na historiografia pós-colonial nacionalista se complementa

82 Soummoni, Daomé, p. 32. Soumonni – a propósito, de origem iorubá – destaca a importân-


cia de analisar a história dos povos iorubás por dentro e por fora das fronteiras atuais do
estado nacional. Em primeiro lugar, porque foram as elites nacionalistas que, em parte, si-
lenciaram a diferença cultural, levando a cabo políticas de isolamento e neutralização da
ingerência política e cultural dos grupos iorubás no Benim.
83 Paul Hazoume, Le pact de sang au Dahomey, Paris: Institute d´Ethnologie, 1957, pp. 6-10;
Blier, “The Path”, p.398. Isto lhe deu um sentido de identidade que, contudo, é ambivalente
– é um sentido de pertencimento, mas também de subalternidade genericamente falan-
do – que impediu (entre outros fatores) o desmembramento do reino. Além deste sentido
simbólico de integração, Guezo incorporou outro: o religioso. O deus iorubá do ferro, Ogun,
foi crucial para incluir os ferreiros iorubás nas estruturas da cultura fon. Renomeado Gu
no Daomé, esta divindade esteve amplamente relacionada com o militarismo da época de
Guezo, mas poucas vezes se deu atenção à importância da política assimilacionista que
implicou sua inclusão no panteão fon: Bay, Wives, p. 178. Contudo, a transformação de di-
vindades iorubás em cultos voduns não é exclusiva do reino de Guezo, em absoluto, e re-
monta pelo menos ao século XVII. Agradeço a observação de Luis Nicolau Parés.
84 Bay, Wives, p. 178.

732 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

com a necessidade de criar uma ideia de homogeneidade nacional que


descansasse em uma premissa-base: um ponto de origem comum, situado
em um imaginário seminal que, além disto, seguiria sendo masculino.
No entanto, a historiografia independentista se apropriou de maneira
particular desta política. Para Maurice Glelé, os matrimônios de iorubás
com fons e de fons com mahis, viabilizados pela disposição do rei de re-
crutar prisioneiras mulheres para casá-las em Abomé, representaram um
propósito de conquista (de reinos limítrofes, como Ketu) com um objetivo
preciso de aliança étnica. 85 Todavia, a evidência da venda de escravos
que o Daomé fazia a alguns reinos fronteiriços, como sabe, é, para Glelé,
uma mostra histórica dos laços de fusão étnica (brassages ethniques) na
região. 86 Esta análise apresenta alguns problemas. Em primeiro lugar,
porque não contextualiza as relações de gênero. Assimilar o matrimônio
à aliança étnica é desconhecer a política que Guezo tinha imposto de se-
parar as mulheres da política e tirar-lhes toda influência na vida religiosa
do reino, representada pelo culto vodum, fundamentalmente feminino,
ainda que não no âmbito da liderança. Na língua fon, kpojito significa
“esposa do leopardo” (o totem originário do reino) e, se no passado as
mulheres investidas com este título representavam o lado feminino das
políticas do estado, em tempos de Guezo estas figuras femininas estavam
perdendo poder político nas decisões do estado, sendo relegadas a um
plano simbólico e privado de conexão com a população. Neste contexto,
chamar “esposas do rei” (ahosi) aos contingentes de povos exógenos pode
implicar vários pontos: em primeiro lugar, a subordinação à autoridade
masculina da monarquia; em segundo, a diferença entre o lugar destinado
aos filhos do reino – o comum do povo fon – e os cooptados pela assimi-
lação ritual. Na realidade, os matrimônios fons com mulheres de outras
etnias implicavam uma espécie de subordinação política coletiva dessas
etnias, subalternidade deslocada para o campo de gênero. Por outro lado,
as políticas de “aliança” matrimonial permitiam um controle político mais
direto das populações conquistadas.
Nos diversos episódios nos quais a mulher é parte formadora da
narrativa historiográfica, sua figura aparece para aglutinar o sentido
nacional através de sua capacidade reprodutiva – como argumenta Glelé
– ou como o contrapoder que “colaborou” para a instalação dos europeus
na zona – como sustentam Yoder e Ronen. O interessante a destacar é
que o gênero é uma categoria silenciada produtivamente: não é que ja-
mais esteja presente, mas quando se recorre à figura da mulher, esta é o
contrapeso explicativo, o sujeito de tensão no desenvolvimento histórico.
Aparece como o elemento conflituoso ou manipulado e como o espaço de

85 Glelé, Le Danxomé, p. 161.


86 Idem, p. 163.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 733


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

articulação no qual se condensam as possibilidades da modernidade (o


amálgama étnico e a união nacional) e as reminiscências de sua impos-
sibilidade (a traição à causa histórica).
Quanto à proliferação de narrativas sobre a dissidência, poderíamos
dizer que Akinjogbin subsume as diferenças nos tempos obscuros do
“grande país adja-iorubá”. Por sua vez, Adrien Djivo delimita o espaço da
dissidência e traça uma geografia das margens a partir da definição da
política “imperial” de Guezo, a mesma que desde Roma configurava os
territórios do limitado como o dominado, e o ilimitado como “bárbaro”. 87
Finalmente, a construção que faz Glelé da “ideia” étnica é talvez a mais
chamativa; ele é o primeiro autor a utilizar a retórica da mestiçagem na
consolidação da nação fon.88 O povo e a civilização do Daomé são para este
historiador o produto histórico de uma fusão de etnias, viabilizada pela
língua fon, eleita pelos conquistadores adja para aglutinar a população.89
O povo fon é então um povo mestiço, “pluriétnico”, composto de várias
identidades, resultado da política expansionista e integracionista do
Daomé, mas cujos pais forjaram a identidade fon.90
O interessante a este respeito é que certas populações que hoje
habitam a República do Benin (e que foram parte do Daomé em seu afã
expansivo) não se reconhecem como fon e vêem o Daomé como um reino
“colonizador” e a penetração francesa, como parte da “libertação” do jugo
daomeano. 91 Por outro lado, o argumento de Glelé mostra novamente
como, através de uma retórica de elasticidade conceitual baseada na
etnia enquanto definição identitária, a nação está arraigada no mesmo
grupo – adja – que “elege” um veículo – a língua fon – para transportar
e expandir uma noção predestinada de trajetória. O subtítulo do livro
de Glelé antecipa isto com claridade: “do poder adja à nação fon” (du
pouvoir aja à la nation fon). A fusão é um produto não das contingências

87 Valentin Mudimbe, The Idea of Africa, Bloomington: Indiana University Press, 1994, pp.
72-78.
88 Glelé, Le Danxomé, p. 180.
89 Glelé é o único historiador que faz esta afirmação como uma separação entre o sentido
“linguístico” fon e sua configuração mais tardia como um produto de fusão cultural.
90 O conceito “pluriétnico” é utilizado por Glelé: Le Danxomé, p. 168.
91 Soumonni, Daomé, pp. 53-54. É interessante a cena reproduzida no romance histórico Do-
guicimi, do etnólogo e político beninense Paul Hazoumé, na qual um escravo mahi vai ser
sacrificado. Antes de ser decapitado, consegue pronunciar um discurso “que mal se ouve
entre a multidão”, no qual declara que os daomeanos são cruéis e que seu argumento re-
ligioso acerca dos motivos dos sacrifícios como oferenda aos antepassados era uma falá-
cia conhecida por todos. O discurso que “mal se ouve” é o do escravo, mas simbolicamente
é também o de Hazoumé; originariamente um gunde Porto Novo: Paul Hazoumé, Doguici-
mi, Washington: Three Continent Press, 1990 [1938], pp. 111-112. Para uma análise teóri-
ca, ver: Eleni Coundouriotis, Claiming History. Colonialism, Ethnography, and the Novel,
Nova York: Columbia University Press, 1999, p. 100.

734 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


COLEÇÃO UNIAFRO

históricas, mas da realização programática do estado encarnado nestes


anônimos “conquistadores adjas”, os mesmos que, na obra de Akinjogbin,
Dahomey and its Neighbours, irrompiam da História para regularizá-la.
Neste item, tratei de mostrar os atributos polissêmicos na intersecção
de etnia e nação nestes discursos históricos. Talvez seja neste ponto que
as distâncias discursivas se fazem mais palpáveis nas narrativas analisa-
das. Nelas, a diferença étnica é polissêmica: por um lado, pode ser parte
da submissão de qualquer vontade identitária à potência amalgamante
da tradição imemorial, a mesma que define quem pertence à “grande
família” e quem são “vizinhos”, como no caso de Akinjogbin. Por outro
lado, pode ser parte da tarefa “domesticadora” da nação, como em Glelé,
ou “delimitante” da mesma, como em Djivo. Trago isto à colação não só
para demonstrar a inexistência de um sentido “programático” ou canônico
nestes discursos historiográficos, mas também para chamar a atenção
sobre o poder performativo destes discursos acadêmicos, o poder de
fazer coisas com palavras. A adaptação do texto de Djivo como manual
escolar e a força política de Glelé como “historiador de estado” são parte
importante desta transferência de categorias, realidades discursivas,
ao mundo social.

Conclusões
“Cronófagos”, denomina o cineasta senegalês Ousmane Sembène os
historiadores, particularmente da África: deglutem o tempo disciplinando-o,
ocultam a multiplicidade dos discursos e matizam o metarrelato em um
ziguezigue de feitos reduzidos à sua mínima importância.92 Talvez seja
mais acertado pensar estes historiadores analisados como “ruminantes”.
Não que devorem as temporalidades múltiplas em um ato repressor, e sim
devolvem ao discurso uma imagem complexa e produtiva, poliforme, sobre
os sentidos da temporalidade da experiência, a conformação histórica da
identidade e a polissemia do acontecimento. Ao fazê-lo, propõem uma
“ontologia política do passado”,93 que requer um esforço de desconstrução:
o reconhecimento permanente da supressão, o esquecimento e o exage-
ro, como partes integrantes – e não simplesmente como patologia – da
operação historiográfica; e também como fazedores de sentidos diversos
de modernidade local.
Tem-se escrito muito, muitíssimo, sobre o Daomé, a Costa dos
Escravos e a “sangria demográfica” que o tráfico escravista produziu
na África. Porém, pouco se refletiu sobre que elementos situacionais

92 Apud Diouf, “Des historiens”, p. 339.


93 Richards Roberts, “History and Memory: the Power of Statist Narratives”, International
Journal of African Historical Studies, vol. 33, no 3 (2000), p. 515.

A DIÁSPORA EXORCIZADA, A ETNICIDADE (RE) INVENTADA: 735


HISTORIOGRAFIA PÓS-COLONIALE POLÍTICAS DA MEMÓRIA SOBRE DAOMÉ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

e contingentes, que relações de poder – políticas e acadêmicas – e que


urgências epistemológicas – historicamente cambiantes – condicionaram,
coadjuvaram e produziram estes discursos. Neles, o tráfico escravista
é a história tergiversada de uma cruzada incompreendida e falida. Ao
mesmo tempo, é o nó conflituoso a partir do qual se explica a moderni-
dade econômica, interna e “puramente” africana. Para além das claras
reminiscências coloniais deste tropo histórico, e sem esquecer a profunda
cautela política de que se necessita para “revisar” as historiografias
africanas sobre a escravidão capitalista, o que interessa resgatar é como
as argúcias da historiografia foram re-adaptadas, “domesticadas” em um
idioma particular de conivências com a colônia, com o estado nacional
recente e com os imperativos categóricos da disciplina. Seguindo esta
linha, parece-me relevante refletir sobre como a nascente historiografia
na África Ocidental, focada em legitimar o caráter endógeno de suas
próprias narrativas, converteu o “local” um assunto de estado, uma tropo-
logia para explicar o destino previsto da nação. Deste modo, administrou
seu passado (enquanto política da memória) fazendo mimeses com uma
noção de processo e temporalidade profundamente ilustradas. O político
na memória, no entanto, é uma tarefa pendente de leitura a contrapelo.
Evidentemente, uma historiografia sobre o Daomé, diferente da aqui
analisada, crítica, diversificada e de acordo com os tópicos de discussão
acadêmica atuais, impera no clima intelectual dos últimos anos. Trabalhos
como os de Robin Law, Elisée Soummoni, Edna Bay, entre outros, assim o
demonstram claramente. De fato, nos textos que quis tomar como prisma
de análise – por vezes qualificados muito facilmente de “nacionalistas” – o
tráfico escravista, a pluralidade étnica e a organização política pré-colo-
nial do Daomé não são “histórias equivocadas” ou simples instrumentos
políticos que testemunham a “vulgaridade do poder” estatal na África
pós-independência e sua conivência com as instituições produtoras de
conhecimento. Pelo contrário, são amostras claras da profunda com-
plexidade de um imaginário que traduz experiências de colonização e
descolonização, reivindicação política e apropriação epistemológica. Com
esta perspectiva quis analisá-las neste trabalho.

736 ATLÂNTICO DE DOR: FACES DO TRÁFICO DE ESCRAVOS


AUTORES

Carlos da Silva Jr. é mestre em História pela UFBA e doutorando em História no


Wilberforce Institute for the study of Slavery and Emancipation, da Universidade
de Hull, no Reino Unido. Escreveu com Cândido Domingues e Carlos E. Líbano Soares
Africanos na Cidade da Bahia: tráfico negreiro, escravidão e identidade africana – século
XVIII (Rio de Janeiro: Fino Traço, 2016); e de “Tráfico, escravidão e comércio: a vida de
Francisco Gonçalves Dantas (1699-1738)”, in João José Reis e Elciene Azevedo (orgs.),
Escravidão e suas sombras (Salvador: Edufba, 2012).

Dale Graden é professor da Universidade de Idaho (Moscow), EUA, autor de numerosos


artigos e dos livros From Slavery to Freedom in Brazil: Bahia, 1835-1900 (University of
New Mexico Press, 2006); e Disease, Resistance, and Lies: The Demise of the Transatlantic
Slave Trade to Brazil and Cuba (Louisiana State University Press, 2014).

Enidelce Bertiné professora da Universidade Nove de Julho (Uninove), São Paulo Capital,
e autora dos livros Os meias-caras. Africanos livres em São Paulo no século XIX (Ed.
Schoba, São Paulo, 2013); e Alforrias em São Paulo do século XIX: liberdade e dominação
(Ed.Humanitas, São Paulo, 2004). 

Erivaldo Fagundes Neves é professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e


autor, entre outros livros, de Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio
(um estudo de história regional e local), 2ª ed. revista e ampliada (Salvador: EDUFBA;
Feira de Santana: UEFS, 2008); Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão
da Bahia, séculos XVIII-XIX (Feira de Santana: Editora da UEFS; Salvador: EDUFBA,
2005); e Escravidão, pecuária e policultura: Alto Sertão da Bahia, século XIX (Feira de
Santana: Editora da UEFS, 2012).

Gustavo Acioli Lopes  é professor do Departamento de História da Universidade Federal


Rural de Pernambuco, e é autor de “Brazil’s Colonial Economy and the Atlantic Slave
Trade: Supply and Demand”, in David Richardson e Filipa R. da Silva (orgs.), Networks
and Trans-Cultural Exchange: Slave Trading in the South Atlantic (1590-1867) (Leiden
e Boston: Brill, 2014), pp. 31-70; e "A Fênix e a conjuntura atlântica: açúcar e tráfico
de escravos em Pernambuco na segunda metade do século XVII", Portuguese Studies
Review, vol. 20, no. 1 (2012), pp. 1-35.

João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros,
de A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São
Paulo: Companhia das Letras, 1991); Rebelião escrava no Brasil: a história do levante
dos malês em 1835 (São Paulo: Companhia das Letras, 2003); e Domingos Sodré, um
sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (São
Paulo: Companhia das letras, 2008).

J. Michel Turner é Professor Associado aposentado da City University of New York


(Hunter College), onde dirigiu o Global Afro Latino &amp; Caribbean Initiative - GALCI
e foi diretor do Latin American and Caribbean Studies, entre outros cargos. No Brasil,
foi professor visitante da UNB (1977) e assessor da Fundação Ford (1979-85); no Togo,
assessorou o Banco Mundial (1986-87); e em Moçambique trabalhou para o Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas e a USAID (1992-94). É autor da tese &quot;Les
Brésiliens: The Impact of Former Brazilian Slaves upon Dahomey&quot;, PhD, Boston
University, 1975.

José C. Curto  é professor da York University (Toronto) e autor de Álcool e escravos: o


comércio luso-brasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico
atlântico de escravos (c. 1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da África Central
Ocidental, Lisboa: Vulgata, 2002. Suas publicações mais recentes incluem: “The Donas of
Benguela, 1797: A Preliminary Analysis of a Colonial Female Elite”, in Edvaldo Bergamo,
Selma Pantoja, e Ana Claudia Silva (orgs.), Mulheres Angolanas (São Paulo: Intermeios,
2016), no prelo; “Another Look at the Slave Trade from Benguela: What we know and what
we do not know”, Portuguese Studies Review, vol. 23, no. 2 ( 2015), pp. 225-247; “Whitening
the ‘White’ Population: An Analysis of the 1850 Censuses of Luanda”, in Selma Pantoja
e Estevam C. Thompson (orgs.), Em Torno de Angola: Narrativas, Identidades, Conexões
Atlânticas (São Paulo: Intermeios, 2014), pp. 225-247; “Geribita in the Relations Between
the Colony of Angola and the Kingdom of Kasanje”, Anais de História de Além-Mar, no.
XIV (2013), pp. 301-325; “Alcohol in the Context of the Atlantic Slave Trade: The Case
of Benguela and its Hinterland (Angola)”, Cahiers d'études africaines, vol. LI, no. 201
(2011), pp. 51-85.

José Maia Bezerra Neto é professor do Departamento de História da Universidade


Federal do Pará. Pesquisador do CNPq, e autor de Escravidão negra no Grão-Pará (sé-
culos XVII-XIX), 2ª ed. (Belém: Editora Paka-Tatu, 2012); “Se bom cativo, liberto melhor
ainda: escravos, senhores e visões emancipadoras (1850-1888)”, in Maria Helena P. T.
Machado e Celso Thomas Castilho (orgs. ), “Tornando-se livre: agentes históricos e lutas
sociais no processo de abolição” (São Paulo: EDUSP, 2015), pp. 257-276; e “Retratos de
corpos & almas: uma leitura da escravidão a partir e através dos anúncios de fugas
(jornais paraenses - século XIX)”, in Rafael Chamboyleyron (org.), Anais do II Simpósio
de Historia em Estudos Amazônicos, vol. 8: Trabalho e Movimentos Sociais (Belém:
Editora Açaí, 2015), pp. 69-75.

Joseph C. Miller é professor emérito da Universidade de Virginia, EUA, autor e organizador


de numerosos livros, entre os quais Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan
Slave Trade, 1730-1830 (Madison: University of Wisconsin Press, 1988); Slavery and
Slaving in World History: A Bibliography, 1900-1991 (Millwood, NY: Kraus International
Publications, 1991); Poder politico e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola
(Luanda: Arquivo Histórico Nacional, 1995); e The Problem of Slavery as History: A
Global Approach (New Haven: Yale University Press, 2012).

Maria Cristina Cortez Wissenbach é professora do Departamento de História da


Universidade de São Paulo, autora de Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e
forros em São Paulo (São Paulo: Hucitec/História Social USP, 1998 e 2009); “Da escra-
vidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível”, in Nicolau Sevcenko (org.),
História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio (São Paulo:
Companhia das Letras, 1998); “Teodora Dias da Cunha: construindo um lugar para si no
munda da escrita e da escravidão”, in Giovana Xavier, Juliana Barreto Farias e Flávio
Gomes (orgs.), Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação (São Paulo:
Selo Negro, 2012), pp. 228-243, entre outros títulos.

Maria Inês Côrtes de Oliveira é professora aposentada da Universidade Federal da


Bahia, autora, entre outros títulos, de Os libertos: seu mundo e os outros (Salvador:
Corrupio, 1988); “Retrouver une identité: jeux sociaux des africains de Bahia (vers
1750 – vers 1890).” tese de doutorado, Université de Paris IV (Sorbonne), 1992; e “Viver
e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX.”
Revista USP, no. 28 (1995-96), pp. 174-193.

Mariana P. Candido é professora do Departamento de História da Universidade de Notre


Dame (EUA) e autora de An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its
Hinterland (Nova York: Cambridge University Press, 2013);  Fronteras de Esclavización:
esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780–1850 (Mexico, DF: Colegio de Mexico
Press, 2011); e “Engendering West Central African History: The Role of Urban Women
in Benguela in the 19th Century,” History in Africa, no. 42 (2015), pp. 7-36; “Women,
Family, and Landed Property: The Case of Benguela, c. 19th century,” African Economic
History, no. 43 (2015), pp. 136-161; e “African Women in Ecclesiastical Documents,
Benguela, 1760-1860,” Social Sciences and Missions, no. 28 (2015), pp. 235-260.

Mario Rufer é professor titular da Universidade Autónoma Metropolitana, na Cidade


do México, autor de Historias negadas. Esclavitud, violencia y relaciones de poder en
Córdoba a finales del siglo XVIII (Córdoba: Ferreyra Editor, 2005); Reinscripciones
del pasado (México, DF: El Colegio de México, 2006); e La Nación en escenas. Memoria
pública y usos del pasado en contextos poscoloniales (México, DF: El Colegio de Mé-
xico, 2010). É também organizador de Nación y diferencia: procesos de identificación
y producciones de otredad en contextos (pos)coloniales (ITACA-CONACyT, 2012); e,
com Frida Gorbach, El Archivo y el campo. Interdisciplina y producción de la evidencia
(México, DF: Siglo XXI, no prelo).

Maximiliano Menz é professor do Departamento de História da UNIFESP, autor de Entre


Impérios: formação do Rio Grande na crise do sistema colonial (1777-1822) (São Paulo:
Alameda, 2009); “Reflexões sobre duas crises econômicas no Império Português (1688
e 1770)”, Varia hist., vol. 29, no. 49 (2013), pp. 35-54; e  "’As geometrias do tráfico’": o
comércio metropolitano e o tráfico de escravos em Angola (1796-1807)”, Revista de
História, no. 166 (2012), pp.185-222; entre outros artigos.

Philip J. Havik é investigador principal e docente no Instituto de Higiene e Medicina


Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa. Entre outros livros, é autor (co-autoria
com Malyn Newitt), de Creole Societies in the Portuguese Colonial Empire (Newcastle
upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2015); em co-autoria com Alexander Keese
e Maciel Santos, de Administration and Taxation in the Former Portuguese Empire,
1900-1945 (Cambridge Scholars Publishing, 2015); e de “Female Entrepreneurship
in West Africa: Trends and Trajectories”, Early Modern Women: An interdisciplinary
Journal, vol. 10, no. 1 (2015), pp. 164-177.

Renato da Silveira é artista gráfico e professor da Universidade Federal da Bahia, autor


de O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de
keto (Salvador: Maianga, 2006); “Sobre a fundação do Terreiro do Alaketo”, Afro-Ásia, no.
29-30 (2003), pp. 345-379; “Sobre o exclusivismo e outros ismos das irmandades negras
na Bahia colonial”, in Ligia Bellini, Evergton Sales Souza e Gabriela dos Reis Sampaio
(orgs.), Formas de crer: ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro,
séculos XIV-XXI (Salvador: Corrupio/Edufba, 2006), pp. 161-196; entre outros artigos
e capítulos de livro.

Ricardo Tadeu Caires Silva é professor da Universidade Estadual do Paraná – Unespar,


Campus de Paranavaí, e autor da tese “Caminhos e descaminhos da abolição: escravos,
senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888)” (Universidade
Federal do Paraná, 2007); “O resgate da Lei de 7 de novembro de 1831 no contexto do
abolicionismo baiano”, Estudos Afro-Asiáticos, no. 29 (2007), pp. 301-340; e “A Sociedade
Libertadora Sete de Setembro e o encaminhamento da questão servil na província da
Bahia (1869-1878)”, in Maria Helena. P. T. Machado e Celso T. Castilho (orgs.), Tornando-
se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição (São Paulo: EDUSP,
2015), pp. 293-314; entre outros artigos e capítulos.

Richard Graham é professor emérito da Universidade do Texas (Austin), autor e orga-


nizador de numerosos livros, entre os quais A Grã-Bretanha e o início da modernização
no Brasil, 1850-1914 (São Paulo: Brasiliense, 1973); Clientelismo e política no Brasil do
século XIX (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997); e Alimentar a cidade: das vendedoras
de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860) (São Paulo: Companhia das Letras, 2013).

Robin Law é professor emérito de História da África da Universidade de Stirling, Escócia,


e professor visitante na Universidade de Liverpool. Autor e organizador de numerosos
livros, entre os quais The Oyo Empire (Oxford: Oxford University Press, 1977); The Slave
Coast of West Africa, 1550-1750 (Oxford: Oxford University Press, 1991), Ouidah: A
Social History of a West African Slaving ‘Port’ (Ohio University Press, 2004). Organizou a
coletânea From Slave Trade to ‘Legitimate’ Commerce (Cambridge: Cambridge University
Press, 1995); e Commercial Agriculture, the Slave Trade & Slavery in Atlantic Africa
(Oxford: James Currey, 2013), com Suzanne Schwarz e Silke Strickrodt.

Roquinaldo Ferreira é professor do Departamento de História da Universidade de


Brown, EUA, e autor de Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and
Brazil during the Era of the Slave Trade (Nova York: Cambridge University Press, 2012);
e Dos Sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830-
1860 (Luanda: Kilombelombe, 2012).

Thiago Campos Pessoa é pesquisador de pós-doutoramento no Programa de Pós Graduação


em História da Universidade Federal Fluminense com bolsa da FAPERJ, e autor de “O
Império da Escravidão: O Complexo Breves no Vale do Café, Rio de Janeiro c.1850-c.1888”
(tese vendedora dos Prêmios Arquivo Nacional de Pesquisa e Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro nas edições de 2015 – no prelo). Atualmente desenvolve pesquisa
sobre a organização do tráfico de africanos no período ilegal na antiga província do
Rio de Janeiro.

Ubiratan Castro de Araújo, falecido em 2013, foi professor da Universidade Federal


da Bahia, presidente da Fundação Palmares e da Fundação Pedro Calmon, e autor de
“Le politique et l´économique dans une société esclavagiste: Bahia, 1820-1889 (Tese
de Doutorado, Université Paris IV – Sorbonne, 1992), além de vários artigos, entre os
quais “A política dos homens de cor no tempo da Independência”, Estudos Avançados,
vol. 18, no. 50 (2004), pp. 253-269; “A Baía de Todos os Santos, um sistema geo-histórico
resistente”, Mare Liberum, no. 21/22 (2001), pp. 165-183; e do livro de contos Histórias
de negro, 2ª ed. (Salvador: EDUFBA, 2009).
ORGANIZADORES

João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros,
de A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São
Paulo: Companhia das Letras, 1991); Rebelião escrava no Brasil: a história do levante
dos malês em 1835 (São Paulo: Companhia das Letras, 2003); e Domingos Sodré, um
sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (São
Paulo: Companhia das letras, 2008).

Carlos da Silva Jr. é mestre em História pela UFBA e doutorando em História no


Wilberforce Institute for the study of Slavery and Emancipation, da Universidade
de Hull, no Reino Unido. Escreveu com Cândido Domingues e Carlos E. Líbano Soares
Africanos na Cidade da Bahia: tráfico negreiro, escravidão e identidade africana – século
XVIII (Rio de Janeiro: Fino Traço, 2016); e de “Tráfico, escravidão e comércio: a vida de
Francisco Gonçalves Dantas (1699-1738)”, in João José Reis e Elciene Azevedo (orgs.),
Escravidão e suas sombras (Salvador: Edufba, 2012).
Imagem de capa
Africans in Hold of Slave Ship, mid-19th cent.
Richard Drake, Revelations of a Slave Smuggler (New York, 1860), p.28.

Revisão Ortográfica (português)


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Cartão Supremo 250g/m2 capa • Pólen soft 80g/m2 miolo
744 p.
Tiragem: 500 exemplares
Ano: 2016

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