Você está na página 1de 167

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS


ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO
SALMO 49

São Bernardo do Campo

2018
TIAGO ABDALLA TEIXEIRA NETO

“UM SER HUMANO EM ESPLENDOR É SEMELHANTE AOS


ANIMAIS QUE PERECEM”: UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DO
SALMO 49

Dissertação apresentada em cumprimento dos


requisitos do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da Universidade Metodista de
São Paulo, para obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Dr. José Ademar Kaefer

São Bernardo do Campo

2018
FICHA CATALOGRÁFICA

Teixeira Neto, Tiago Abdalla


T235q “Um ser humano em esplendor é semelhante aos animais que perecem”: uma
análise exegética do Salmo 49/ Tiago Abdalla Teixeira Neto -- São Bernardo
do Campo, 2018.
165fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de


São Paulo - Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo.
Bibliografia.

Orientação de: José Ademar Kaefer

1. Bíblia – A.T. – Salmos – Período pós-exilio 2. Bíblia – A.T. –


Salmos – Critica e interpretação 3. Bíblia – A.T. – Literatura
sapiencial (Tradição) I. Título
CDD 223.206
A dissertação de mestrado intitulada: “Um ser humano em esplendor é semelhante aos
animais que perecem”: uma análise exegética do Salmo 49, elaborada por Tiago Abdalla
Teixeira Neto, foi apresentada e aprovada com louvor (summa cum laude) em 3 de abril de
2018, perante banca examinadora composta por José Ademar Kaefer (Presidente/UMESP),
Edson de Faria Francisco (Titular/UMESP) e Matthias Grenzer (Titular/PUC-São Paulo).

__________________________________________
Prof. Dr. José Ademar Kaefer
Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião


Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Literatura e Religião do Mundo Bíblico
Esta pesquisa foi realizada com o apoio da CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
durante os anos de 2016 e 2017.
AGRADECIMENTOS

A Deus, o Doador da vida e do sustento nesta breve jornada terrena.

À minha esposa Fabi, ‫ ַר ְעי ָתִי יָפָה‬, que me deu suporte e incentivou durante todo o meu
tempo de pesquisa, proporcionando todas as condições necessárias para o estudo em um lar
que se aproxima do céu.

À Katharina, minha pequenina filha, “herança de YHWH”, que sempre aparece em


meu escritório para alegrar os momentos de estudo.

A meus pais, pelo carinho, apoio e por me ensinarem desde cedo as “Sagradas Letras”.

Ao Dr. José Ademar Kaefer, por me orientar pacientemente ao longo desta jornada de
pesquisa no Salmo 49, trazendo sempre contribuições, correções e me encorajando a seguir
adiante nas descobertas do texto bíblico.

Ao Dr. Edson de Faria Francisco, que tem sido sempre muito solícito em conversar
sobre aspectos do texto hebraico e de crítica textual e esclarecer minhas dúvidas.

Ao Dr. Matthias Grenzer, por suas preciosas contribuições e correções na leitura de


minha dissertação e na avaliação em minha banca de defesa.

Ao Dr. Tércio Siqueira Machado, que tem contribuído para minha formação na área
exegética, compartilhando suas descobertas na pesquisa do livro de Salmos.

À CAPES e à UMESP, que tornaram o sonho da pesquisa de mestrado uma realidade.


RESUMO

O foco desta pesquisa concentra-se em uma antiga poesia sapiencial de Israel: o Salmo 49. No
capítulo 1, foram examinados aspectos de crítica textual e a integridade do TM, observando
que as variantes textuais das versões, como a LXX e a Héxapla, e de alguns manuscritos
hebraicos ocorreram por tentativas de tornar o texto mais claro e compreensível. Em seguida,
foram analisados os elementos literários e de coesão do salmo, observando vocábulos que se
repetem e uma estrutura literária bem desenvolvida. No capítulo 2, o conteúdo do Salmo 49
foi estudado mediante análise semântica e sintática. Constataram-se alguns temas dominantes:
o problema da confiança nas riquezas e a exploração social; a perspectiva de que a morte dará
fim à maldade dos ímpios, sem uma visão clara do além-túmulo; e a natureza sapiencial do
poema, revelando um salmista estudioso e apreciador da tradição de sabedoria do antigo Israel
ligado ao templo e aos levitas descendentes de Corá. Por fim, no capítulo 3, analisou-se o
chamado “consenso” de que o salmo é pós-exílico, observando que não há nada que torne
esse consenso irrefutável, sendo mais provável que o salmo tenha sido composto ainda na
época do primeiro templo, durante o reinado de Jeohaquim, momento em que imperava a
injustiça promovida pela elite palaciana, sacerdotal e de senhores de terra. O levita pobre
anuncia sua mensagem contra esse contexto em que impiedade e crises sociais dominavam o
cenário do Israel pré-exílico.

Palavras-chave: Salmo 49; Sheol; morte; conflito socioeconômico; tradição sapiencial.


ABSTRACT

This research is focused on an ancient Israel’s sapiential poetry: the Psalm 49. In chapter 1,
aspects of textual criticism and integrity of the TM were investigated, noting that textual
variants from other versions, such as LXX and Hexapla, and from some Hebrew manuscripts,
occurred for attempts to make the text clearer and more comprehensible. Next, the literary and
cohesive aspects of the psalm were analyzed, observing repeated words and a well-developed
literary structure. In chapter 2, the researcher analyzed the content of Psalm 49 through
semantic and syntactic analysis. Some dominant themes were identified: the problem of trust
in wealth and social exploitation; the prospect that death will bring an end to the wickedness
of the evil ones, without a clear vision of the beyond-grave; and the sapiential nature of the
poem, revealing a scholar and appreciator of the ancient Israel’s wisdom connected with the
temple and a levite descending from Korah. Finally, in Chapter 3, we analyzed the so-called
“consensus” that the psalm is post-exilic, noting that there is nothing that makes this
irrefutable, and it is more likely that the psalm was composed even at the first temple period,
during the reign of Jehoaquim, when the injustice were promoted by the palace, priesthood
and land lords. The poor Levite announces his message against this context in which
wickedness and social crises dominated the scene of pre-exilic Israel.

Keywords: Psalm 49; Sheol; death; socioeconomic conflict; wisdom tradition.


ABREVIATURAS DE OBRAS E PERIÓDICOS

Versões Bíblicas e Obras e Séries de Referência

ABC – Anchor Bible Commentary


ARA - Versão Almeida Revista e Atualizada
ARC – Versão Almeida Revista e Corrigida
A21 – Versão Almeida do Século 21
Ave Maria – Bíblia Ave Maria
BCBO - Biblioteca de Ciencias Biblicas e Orientales
BCOT - Baker Commentary on the Old Testament
BDB - The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English lexicon
BRENTON - The Septuagint version of the Old Testament: English translation
BHK – Biblia Hebraica de Kittel
BHS - Biblia Hebraica Stuttgartensia
BJ – Bíblia de Jerusalém
CC – A Continental Commentary
ESV – English Standard Version
FOTL – Forms of the Old Testament Literature
HALOT - The Hebrew and Aramaic lexicon of the Old Testament
HCSB – The Holman Christian Standard Bible
JSOTS – Journal for the Study of the Old Testament Supplements
LEXHAM LXX - The Lexham English Septuagint
LXX – Septuaginta
LXXApp - The Old Testament in Greek: according to the Septuagint (Apparatus)
NA27 - Nestle-Aland 27th edition
NAC – New American Commentary
NEB – The New English Bible
NET Bible - The NET Bible
NIBC – New International Biblical Commentary
NICOT – The New International Commentary on the Old Testament
NVI – Nova Versão Internacional
NVT – Nova Versão Transformadora
OTL – The Old Testament Library
OTG – Old Testament Guides
RSV – The Revised Standard Version
SVOTE - The Septuagint Version of the Old Testament: English translation
SVT – Supplements to Vetus Testamentum
THOTC – The Two Horizons Old Testament Commentary
TLOT - Theological lexicon of the Old Testament
TM – Texto Massorético
UBS4 - The Greek New Testament 4th edition
WBC – Word Biblical Commentary

Periódicos

AUSS - Andrews University Seminary Studies


BAR – Biblical Archaeology Review
BASOR - Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BBR - Bulletin for Biblical Research
BI – Biblical Interpretation
BR - Bible Review
BS - Bibliotheca Sacra
CBR - Currents in Biblical Research
IBS - Irish Biblical Studies
JBL - Journal of Biblical Literature
JBQ - Jewish Bible Quarterly
NEAS – Journal of Near Eastern Studies
JSBLE - Journal of the Society of Biblical Literature and Exegesis
JSOT – Journal for the Study of the Old Testament
RE – Review & Expositor
RIBLA – Revista de Interpretación Bíblica LatinoAmericana
TB - Tyndale Bulletin
TBT - The Bible Translator
VE - Verbum et Ecclesia
VT – Vetus Testamentum
ZAW - Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft
SUMÁRIO
Páginas
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49 ............................................... ..15
1.1. Tradução Interlinear e Proposta de Tradução do Salmo 49.......................................15
1.1.1. Tradução Interlinear do Salmo 49 ............................................................. .......15
1.1.2. Proposta de Tradução do Salmo 49 .................................................................. 18
1.2. Análise de Crítica Textual do Salmo 49 .................................................................... 21
1.3. Análise Literária do Salmo 49 ................................................................................... 42
1.3.1. A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria ........................................... 43
1.3.2. Estrutura do Salmo 49 ...................................................................................... 46
1.3.3. Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49 ...................................................... 52
2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49 ................................................................ 57
2.1. Epígrafe do salmo (v. 1) ............................................................................................ 57
2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5) ............................................................... 61
2.3. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas
riquezas (v. 6-12) .................................................................................................................. 80
2.4. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13) ........................ 102
2.5. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor
de alguém que se enriquece (v. 14-20) .................................................................... ...........106
2.6. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais (v.
21).......................................................................................................................................123
3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO
SALMO 49 ............................................................................................................................. 125
3.1. O “consenso” da datação pós-exílica do Salmo 49: uma exposição
crítica...................................................................................................................................125
3.2. Salmo 49 como poesia sapiencial pré-exílica: redesenhando o processo
histórico...............................................................................................................................134
3.3. A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico..........................................143

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 149


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................................ 152
10

INTRODUÇÃO
Um antigo ditado latino, presente em relógios solares de várias igrejas barrocas
brasileiras, diz: “Vulnerant omnes, ultima necat” (“toda hora fere, a última mata”),1
lembrando que o ser humano é incapaz de fugir ou evitar a morte. Uma mensagem semelhante
também está presente na entrada da capela de ossos em Évora, Portugal, em que os restos
mortais dizem: “Os nossos ossos esperam pelos vossos”.
A morte é um tema de bastante reflexão em todas as culturas de todas as épocas. Não
há sociedade humana que não reflita a respeito da morte ou expresse reações de medo e temor
ou alegria e expectativa perante ela.2
A morte e a limitação que ela impõe a esta vida têm sido o foco de reflexão literária e
filosófica. O filósofo Sêneca dedicou um livro sobre a brevidade da vida, 3 em que começa seu
ensaio com uma citação de Hipócrates, o pai da medicina:4 “Ars longa, vita brevis” (“A arte é
longa, a vida é breve”). A ideia central do que desejava comunicar é que a maioria dos
mortais demora muito tempo para adquirir e aperfeiçoar o conhecimento ou a habilidade, e
nós temos apenas pouco tempo para fazê-lo.5 Para Sêneca, o verdadeiro desafio do ser
humano não é somente a brevidade do tempo, mas também nossa tendência em desperdiçá-lo:
“Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se
bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a
realização de importantes tarefas”.6
Entretanto, a reflexão sobre a morte e a brevidade da vida não é uma característica
exclusiva da cultura greco-romana, ela também foi parte integrante da cultura do Antigo
Oriente Próximo: egípcios, mesopotâmicos, arameus, cananeus e israelitas pensaram acerca
da morte e o além.
No antigo Egito, o tema da morte como a partida, em que “a pessoa tem de deixar
para trás tudo o que possui” sem uma perspectiva pós-túmulo,7 é bastante enfatizado nas

1
MIRANDA, 1999, p. 161.
2Ver MARTIN-ACHARD, 2015, p. 32ss.
3
SÊNECA, 2006.
4
SÊNECA, 2006, p. 25 (cf. nota 14).
5
VANHOOZER, 2016, p. 89-90.
6
SÊNECA, 2006, p. 26.
7
ZANDEE, 1960, p. 55-6.
11

canções dos harpistas, embora não representasse a visão religiosa tradicional:8 “Veja!
Ninguém tem a permissão de levar seus bens consigo. Veja! Não há ninguém que tenha ido e
retornado!”.9 Outro texto egípcio antigo, do segundo milênio A.E.C., chamado “Debate sobre
o suicídio”, um homem inicia um diálogo com sua alma e diz que as misérias desta vida
tornam o suicídio uma opção atrativa. No entanto, sua alma tem uma visão bem pessimista da
morte e não considera o suicídio uma solução razoável.10 O texto não tem seu fim preservado
e, por isso, não sabemos qual foi o resultado do diálogo.
Em uma das três tabuletas de Ras Shamra (coleção de textos do noroeste da Síria-
Canaã) que narram a história de Aqhat, o filho prometido pelo deus El a um homem chamado
Danel,11 ocorre a cena em que Anat (deusa da guerra e da caça), desejosa em obter as armas
de Aqhat, oferece ao herói o maior de todos os presentes: a imortalidade. No entanto, a
resposta do herói é surpreendente: ele rejeita a oferta da deusa, afirmando que, apesar de suas
promessas, “a morte o aguardava, assim como o faz com todo o mortal”.12
Esses exemplos revelam como a questão da morte fazia parte da reflexão literária e
filosófica do homem e da mulher do Antigo Oriente Próximo. Como parte de tal contexto
cultural, os antigos israelitas também pensaram bastante acerca da morte e de seu significado.
Segundo observou Gerhard von Rad, para Israel “o âmbito de morte atingia muito mais
profundamente a área dos vivos. Fraqueza, doença, prisão e emergência criada por inimigos já
constituíam em si uma espécie de morte”.13
O autor do Salmo 49, vivendo sob a opressão de ricos injustos e que não temiam a
YHWH, usou a temática da morte e da impossibilidade de o ser humano comprar a vida
eterna para confrontar a maldade dos poderosos e confortar os justos sofredores com a
proteção da vida deles por YHWH. Como “o homem é mestre em fazer-se ilusões, em fátuas
‘confianças’”,14 o salmista adverte os ímpios de seu tempo de que “o rico não é mais forte por
sua riqueza, o pobre não é mais fraco por sua pobreza. O túmulo é a casa comum de todos”,
onde os seres humanos se encontram na reta final de suas vidas.15

8
FISCHER, 2002, p. 106-8.
9
LICHTHEIM, 1945, p. 193.
10
CRAIGIE, 1983, p. 329.
11
COOGAN; SMITH, 2012, p. 27-8
12
COOGAN; SMITH, 2012, p. 28-9.
13
VON RAD, 2006, 376.
14
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672.
15BORTOLINI, 2000, p. 207.
12

O intuito desta dissertação é investigar a mensagem do Salmo 49 e o contexto em


que ela foi composta. Na análise hermenêutica do salmo, adota-se como abordagem básica o
modelo da exegese clássica, que envolve uma combinação eclética dos métodos diacrônico e
sincrônico.16 A abordagem diacrônica focaliza a origem e o desenvolvimento de um texto,
examinando os seguintes elementos: crítica textual, estudos sintáticos e semânticos e estudo
do ambiente histórico-cultural da produção do texto.17 Por outro lado, a abordagem
sincrônica se preocupa com a forma final do texto bíblico e investiga os elementos
relacionados à análise de seu gênero literário, à estrutura e coesão literária da passagem
bíblica e à crítica retórica do texto, bem como a relação da passagem com o contexto mais
amplo.18
Todos esses aspectos serão examinados ao longo dos capítulos 1 a 3 deste trabalho.
Em cada capítulo, este pesquisador buscará lidar com um/uma problema/pergunta central e
respondê-lo/a de forma exegética.
No primeiro capítulo, a pergunta que o norteará será a seguinte: Qual é o texto do
Salmo 49 e de que modo funcionam sua estrutura, aspectos retóricos e coesão?
Antes de perguntar: “O que o texto significa?”, é necessário indagar: “Qual é o
texto?”. Isso demanda uma análise da passagem usando os critérios da crítica textual. A
ciência da crítica textual é fundamental para a interpretação da passagem bíblica desta
dissertação, em especial para que se consiga discernir o texto produzido antes que o processo
de cópia e preservação dele gerasse alterações.19
Além disso, o Salmo 49 deve ser estudado conforme a identificação de sua
Gattung,20 uma forma de classificação literária21 que agrupa unidades poéticas identificadas e
associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo.22 A Gattung possibilita
observar características literárias, temas e aspectos em comum do Salmo 49 com outros

16
GORMAN, 2001, p. 7-31.
17
SIMIAN-YOFRE et al., 2015, p. 77-114; GORMAN, 2001, p. 15-7.
18
GORMAN, 2001, p. 12-3.
19TOV, 2017, p.
20Por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que é identificado por “características

formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p.
v). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário, salmo de lamento do
indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do indivíduo, salmo de
louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8).
21Ver GUNKEL, 1967.
22BARTH, 1966, p. 13.
13

salmos que pertencem ao mesmo “tipo literário”, bem como auxilia na identificação do
ambiente de vida em que o texto foi produzido.23
O texto do Salmo 49 também apresenta estrutura, coesão e aspectos retóricos que
precisam ser examinados antes da análise de seu/sua conteúdo/mensagem. O estudo da
estrutura e da coesão literária contribuirá na percepção de como o discurso está construído
como uma unidade e de que modo as partes interagem entre si e esclarecem umas as outras.24
A crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e estratégias literárias
empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o texto, bem como dos
objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.25
A questão central que guiará o capítulo 2 é: O que a análise de conteúdo do Salmo
49 (especialmente a análise sintática e semântica) revela sobre a mensagem desse hino a
respeito da morte e dos conflitos sociais em que o autor vivia? Para compreender a
perspectiva do salmista, é necessário investigar o salmo como um todo, visto que “qualquer
interpretação feita de uma parte do mesmo texto poderá ser aceita se for confirmada por outra
parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser”.26
Como bem observou Osborne, a sintaxe contribui para “elucidar o desenvolvimento
e significado” do enunciado como um todo, não apenas de uma de suas partes.27 O estudo
sintático analisa o relacionamento das palavras em uma locução, oração ou período,
observando a ordem em que foram organizadas e suas prováveis funções em uma passagem,28
tendo em mente a cadeia textual em que estão inseridas.
...sintaxe é a disposição de palavras de maneira a formarem locuções, orações ou
períodos. É um ramo da gramática.
Dificilmente uma palavra isolada transmite uma ideia completa. Como os tijolos de
uma construção, as palavras são elementos isolados que juntos formam frases, que
são unidades elementares do pensamento.29
Associado ao aspecto estrutural da sintaxe poética está o recurso literário do
paralelismo, em que duas ou três declarações são justapostas.30 Entender a dinâmica do

23BELLINGER, 2012, p. 18
24Embora Zenger e Hossfeld vejam duas camadas em tensão no Salmo 49 (ZENGER; HOSSFELD, 1993, p. 299-
301), a hipótese inicial é de uma coesão mais clara no salmo e sua produção por um único autor. A “Análise
Literária do Salmo 49” avaliará melhor a hipótese deste pesquisador.
25
GORMAN, 2001, p. 13.
26
ECO, 2012, p. 76.
27OSBORNE, 2009, p. 140-1.
28
WILLIAMS, 1976, p. 3.
29
ZUCK, 1994, p. 135.
30
CHISHOLM, 2016, p. 176.
14

paralelismo hebraico na poesia do Salmo 49 contribuirá bastante para o entendimento da


intentio operis a ser analisada.31
A análise semântica envolverá o exame de palavras-chave do Salmo 49, observando
as ocorrências delas — sua distribuição (e.g., usos na literatura de sabedoria ou hínica) e os
grupos sintáticos relacionados a ela (e.g., preferência por uma determinada preposição ou
verbo) —, organizando os dados e classificando-os conforme os sentidos primários,
secundários e metafóricos.32 Léxicos de referência33 e concordâncias são as fontes primárias
dessa pesquisa.
Por fim, a pergunta principal do capítulo 3 será: Qual é o contexto histórico do
Salmo 49 à luz dos dados coletados na investigação textual, na análise literária e no
estudo do conteúdo do salmo? Ou seja, em que ambiente do antigo Israel o texto do Salmo
49, com seu conteúdo e modo de refletir a respeito da vida, poderia ter sido produzido?
Como a religião bíblica se desenrola ao longo da história, é fundamental que o
intérprete investigue a sociedade e a cultura em que o texto foi produzido para ter condições
de “entendê-lo”, não apenas “usá-lo”; isso implica pesquisar os aspectos geográficos,
políticos, econômicos, religiosos entre outros do antigo Israel. 34 O estudo do ambiente
histórico-cultural do Salmo 49 será o foco de parte do capítulo 3, em que se avaliará o
chamado “consenso” de que esse Salmo 49 é pós-exílico. Além disso, será desenvolvida uma
investigação sobre a possibilidade de ele pertencer ao contexto de vida do Israel pré-exílico.
Com essas perguntas e observações em mente, dá-se início à pesquisa exegética do
Salmo 49 delineada nesta introdução.

31
Ver ALTER, 2011.
32
OSBORNE, 2009, p. 125.
33
Léxicos de referência para o hebraico bíblico são: BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977; KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000; CLINES, 1993-2011; ALONSO SCHÖKEL, 2004.
34
OSBORNE, 2009, p. 198-209.
15

1. ANÁLISE TEXTUAL E LITERÁRIA DO SALMO 49


Neste primeiro capítulo, será desenvolvida uma análise textual do Salmo 49 com
base no aparato crítico da BHS e no estudo realizado por eruditos textuais. Essa análise servirá
de fundamento, juntamente com o estudo sintático mais adiante, para a tradução do texto
hebraico do Salmo 49 apresentada no início deste capítulo. Não há como saber “o que o texto
significa”, sem antes definir “qual é o texto” a ser analisado. Por isso, a crítica textual é
importante. Em seguida, serão analisados aspectos literários centrais: a Gattung35 do salmo,
sua estrutura e coesão e os aspectos retóricos do texto.
1.1. Tradução Interlinear e Proposta de Tradução do Salmo 49
A seguir, elabora-se uma tradução interlinear do Texto Massorético (TM) do Salmo
49 e, com base nela, bem como em aspectos sintáticos e em reconstruções textuais, o autor
apresentará uma proposta de tradução por equivalência formal da mesma passagem.

1.1.1. Tradução Interlinear do Salmo 49

‫מִ זְמֹור‬ ‫ִל ְבנֵי־ק ַֹרח‬ ‫לַמְ נַ ֵצ ַַח‬ 1

um salmo36 concernente aos filhos de Corá ao dirigente37

‫ָחלֶד‬ ‫כָל־י ֹשְ בֵי‬ ‫הַאֲ זִינּו‬ ‫כָל־ ָהעַמִים‬ ‫שמְעּו־ז ֹאת‬
ִ 2

mundo todos os habitantes de dai ouvidos todos os povos escutai isto

35
Conforme explicado na introdução, por Gattung entende-se a classificação do “tipo literário” de um salmo, que
é identificado por “características formais, estilo, modo de composição, [e] terminologia” (MUILENBURG,
James, Introduction, in: GUNKEL, 1967, p. v). Outa definição útil de é a de Cristoph Barth: “Por ‘categoria
formal’ (Gattung) os eruditos bíblicos [...] se referem a um grupo de passagens inteiras de poesia ou prosa que
podem ser identificadas como estando associadas por características distintivas de forma, estilo e conteúdo”
(BARTH, 1966, p. 13). Claus Westermann identifica sete principais Gattungen: salmo de lamento comunitário,
salmo de lamento do indivíduo, salmo de louvor declarativo da comunidade, salmo de louvor declarativo do
indivíduo, salmo de louvor descritivo, salmo litúrgico e salmo de sabedoria (WESTERMANN, 1980, p. 25-8).
36
Para essa tradução do termo ‫ ִמזְמֹור‬, ver KIRST, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189;
SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição eletrônica).
37
‫ נָצַח‬- verbo, particípio, piel, masculino, singular. Para a tradução deste verbo no particípio por “dirigente”, ver
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664 (itálico acrescentado): “ַ‫ ַל ְמנַ ֵּצ ַח‬nos títulos de salmos tem,
provavelmente, um sentido semelhante de dirigente musical ou regente de coro”. Ver apoio para essa
compreensão do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 2003.
p. 562.
16

‫ְו ֶאבְיֹון‬ ‫עָשִיר‬ ‫יַחַד‬ ‫גַם־ ְבנֵי־אִ יש‬ ‫ָאדָ ם‬ ‫גַם־בְני‬ 3

e pobre rico juntos também filhos de homem ser humano também filhos de

‫תְ בּונֹות‬ ‫ִלבִי‬ ‫ְוהָגּות‬ ‫ָחכְמֹות‬ ‫י ְדַ בֵר‬ ַ‫פִי‬ 4

entendimento38 do meu coração e a meditação sabedoria39 falará a minha boca

‫חִידָ תִ י‬ ‫ְבכִּנֹור‬ ‫אֶ פְתַ ח‬ ‫ָאזְנִי‬ ‫לְמָ שָל‬ ‫ַאטֶה‬ 5

o meu enigma com cítara exporei o meu ouvido a um provérbio inclinarei

‫י ְסּו ֵבנִי‬ ‫עֲקֵ בַי‬ ‫עֲֹון‬ ‫ָרע‬ ‫בִימֵ י‬ ‫אִירא‬


ָ ‫לָמָה‬ 6

me cercará os meus calcanhares maldade de mau dias de temerei por que

‫י ִתְ ַהלָלּו‬ ‫ָשְרם‬


ָ ‫ע‬ ַ‫ּובְר ֹב‬ ‫עַל־חֵילָם‬ ‫הַב ֹ ְטחִים‬ 7

gloriam-se a riquezas deles e na abundância de na40 posse deles os que confiam

‫לֵאֹלהִים‬ ‫ֹלא־י ִתֵ ן‬ ‫אִיש‬ ‫יִפְדֶ ה‬ ‫ֹלא־פָד ֹה‬ ַ‫ָאח‬ 8

para ’ não dará homem redimirá não redimir irmão

‫ָכפְר ֹו‬
o pagamento expiatório41 dele

‫לְעֹולָם‬ ‫ְוחָדַ ל‬ ‫נַפְשָם‬ ‫פִדְ יֹון‬ ‫ְוי ֵקַר‬ 9

para sempre e cessará a vida deles o resgate de e é valioso42

38
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma
singular do termo. Ver PINTO, 1998. p. 14; ROSS, 2009, p. 399; GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910,
p. 397, §124.d, e.
39
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos, cujo equivalente na tradução em português é a forma
singular do termo. Ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397, §124.d, e; PINTO, 1998, p. 14;
ROSS, 2009, p. 399.
40
Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 752-3, uso II.1.
41
Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”.
42
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 431-2.
17

‫הַשָ חַת‬ ‫י ְִראֶ ה‬ ‫ֹלא‬ ‫ָלנֶצַח‬ ‫וִיחִי־עֹוד‬ 10

a sepultura43 verá não para sempre para que44 viva ainda

‫ָו ַבעַר‬ ‫ְכסִיל‬ ‫יַחַד‬ ‫י ָמּותּו‬ ‫ֲחכָמִים‬ ‫י ְִראֶ ה‬ ‫כִי‬ 11

e bruto insensato juntos morrerão os sábios verá certamente

‫חֵילָם‬ ‫לַאֲ ח ִֵרים‬ ‫ְו ָעזְבּו‬ ‫י ֹאבֵדּו‬


a posse deles para outros e deixarão perecerão

‫לְד ֹר וָד ֹר‬ ‫מִ שְ כְנ ֹתָם‬ ‫לְעֹולָם‬ ‫בָתֵ ימֹו‬ ‫קִרבָם‬
ְ 12

de geração e geração as suas habitações para sempre as suas casas seu pensamento íntimo45

‫אֲ דָ מֹות‬ ‫ֲעלֵי‬ ‫בִשְ מֹותָם‬ ‫ק ְָראּו‬


terras sobre com seus nomes invocaram

‫נִדְ מּו‬ ‫ַכ ְבהֵמֹות‬ ‫נִמְ שַל‬ ‫בַל־יָלִין‬ ‫בִיקָ ר‬ ‫וְָאדָ ם‬ 13

perecerão aos animais é semelhante não permanece46 em esplendor mas ser humano

‫ֶסלָה‬ ‫י ְִרצּו‬ ‫ְבפִיהֶם‬ ‫וְַאח ֲֵריהֶם‬ ‫לָמֹו‬ ‫ֵכסֶל‬ ַ‫דַ ְרכָם‬ ‫זֶה‬ 14

selá têm prazer na sua boca e seus seguidores para eles tolice o caminho deles este

‫בָם‬ ‫ַַוי ְִרדּו‬ ‫י ְִרעֵם‬ ‫מָ וֶת‬ ‫שַתּו‬ ‫לִשְ אֹול‬ ‫כַצ ֹאן‬ 15

sobre47 eles e dominarão os pastoreará morte dirigem-se48 para sheol como rebanho

43
KIRST et al, 2004. p. 249; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1473.
44
Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração
com verbo no imperfeito, ver MITCHELL, 1915, p. 87-90; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351; GESENIUS;
KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14.
45
KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324 (cf. Gn 18.12; Sl 5.10[9];
62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14).
46
BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 533.
47
Ver esse uso da preposição ‫ ְַב‬com o verbo ‫ ָרדה‬em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os seguintes
texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28).
48
Ver GOLDINGAY, 2006, v. 1, Psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição kindle).
18

‫לֹו‬ ‫מִ זְבֻל‬ ‫שְאֹול‬ ‫ְלבַלֹות‬ ‫ִירם‬


ָ ‫ְוצ‬ ‫לַב ֹקֶר‬ ‫יְש ִָרים‬
para ele de mansão o sheol para engolir e a forma deles na manhã justos

‫ֶסלָה‬ ‫י ִקָ ֵּחנִי‬ ‫כִי‬ ‫מִ י ַד־שְאֹול‬ ‫נַפְשִי‬ ‫יִפְדֶ ה‬ ‫אְַַך־אֱ ֹלהִים‬ 16

selá me tomará certamente da mão do sheol minha vida redimirá mas49 ’

‫בֵית ֹו‬ ‫כְבֹוד‬ ‫ִַכי־י ְִרבֶה‬ ‫אִיש‬ ‫כִי־יַעֲשִר‬ ‫ירא‬


ָ ִ‫ַאל־ת‬ 17

a casa dele glória de se aumentar homem se multiplicar as riquezas não temas

‫כְבֹוד ֹו‬ ‫ַאח ֲָריו‬ ‫ֹלא־י ֵֵרד‬ ‫הַכ ֹל‬ ‫י ִקַ ח‬ ‫ְַבמֹות ֹו‬ ‫ֹלא‬ ַ‫כִי‬ 18

a glória dele atrás dele não descerá o todo tomará na morte dele não certamente

‫לְָך‬ ‫כִי־תֵ יטִיב‬ ‫וְיֹודָֻך‬ ‫יְב ֵָרְך‬ ‫ְב ַחי ָיו‬ ‫כִי־נַפְשֹו‬ 19

para ti pois vai bem e te louvam [ele] congratulasse: em suas vidas embora50 sua alma

‫י ְִראּו־אֹור‬ ‫ֹלא‬ ‫עַד־נֵצַח‬ ‫אֲבֹותָ יו‬ ‫עַד־דֹור‬ ‫תָ בֹוא‬ 20

verão luz não para sempre os pais dele até a geração de ela irá

‫נִדְ מּו‬ ‫ַכ ְבהֵמֹות‬ ‫נִמְ שַל‬ ‫וְֹלאַיָבִין‬ ‫בִיקָ ר‬ ‫וְָאדָ ם‬ 21

perecerão aos animais é semelhante e não entende em esplendor e ser humano

1.1.2. Proposta de Tradução do Salmo 49

Apresentamos a seguir uma tradução por equivalência formal de Salmo 49:51

49. 1Para o dirigente de música,52 um salmo53 concernente aos coraítas.

49
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45.
50
Para o uso concessivo de ‫כִי‬, ver a discussão da análise do conteúdo de Salmo 49.19. Cf. também WILLIAMS,
1976, p. 73, 88, §448, 530; PINTO, 1998, p. 144, 19.64.
51
Várias decisões de tradução aqui são fruto da discussão ao longo da exegese contida nos dois primeiros
capítulos.
52
Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664: “ַ‫ ַל ְמנַ ֵּצ ַח‬nos títulos de salmos tem, provavelmente, um sentido
semelhante de dirigente de música ou regente de coro” (itálico acrescentado). Ver apoio para essa compreensão
do termo em HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562.
19

2
Escutai isto, todos os povos!
Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!
3
Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;54
seja55 rico, seja pobre.
4
Minha boca falará sabedoria,56
e a meditação do meu coração [transmitirá] 57 entendimento.58
5
Inclinarei59 a um provérbio o meu ouvido,
exporei60 com a cítara61 meu enigma.
6
Por que temerei os dias maus,
[quando] a maldade dos que me atacam por trás62 me cercar?
7
Os que confiam em suas posses
E na abundância de seus bens se gloriam.
8
Um ser humano63 não redimirá de modo algum [seu] irmão.
Não dará a Deus um substituto expiatório64 por ele
9
(Pois é valioso65 o resgate66 da vida deles;
E cessará67 para sempre.)
10
Para que68 viva continuamente para sempre69

53
KIRST et al, 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição
eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51.
54
Para a tradução desse verseto, ver a análise de conteúdo do versículo 3.
55
Para essa tradução de ‫יַחַד‬, ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 403.
56
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399.
57
O verbo aqui é pressuposto por elipse; ver comentário do versículo 4.
58
Esse é um uso do plural para substantivos abstratos; ver PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399.
59
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 693.
60
Para essa tradução de ‫פָתַ ח‬, ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 552; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p.
835. O verbo pode ter o sentido de “falar” ou “declarar”, especialmente quando é acompanhado do substantivo
‫“( פֶה‬boca”; cf. Ez 21.27; Jó 3.1; Dn 10.16; Sl 38.14). Cf. KIDNER, 1980, p. 203.
61
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 484.
62
Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6.
63
Ver esse sentido amplo de ‫ ִאיש‬em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 48.
64
Sobre a tradução, ver discussão sobre o sentido do termo em “Análise do conteúdo do Salmo 49”.
65
O uso do verbo ‫ יקר‬no pretérito (wayyiqtol) tem função parentética (insere uma nota explicativa ou um
comentário), como ocorre em outras passagens da Bíblia Hebraica (1Rs 13.4; 1Cr 11.6; cf. CHISHOLM, 2016,
p. 151-2).
66
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 913.
67
O perfeito com waw consecutivo tem aspecto futuro (ver MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 168, §21.3
[edição eletrônica]). Merwe, Naudé e Kroeze observam que a acentuação na última sílaba indica um perfeito + ‫ו‬
consecutivo (ver também ROSS, 2009, p. 143-4).
68
Para esse uso final (indicando propósito) do verbo no jussivo + waw consecutivo subordinado a uma oração
com verbo no imperfeito, ver EWALD, 1870, p. 231, §347; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351;
20

E não veja a sepultura.


11
Certamente, verá que os sábios morrem,70
Insensato e bruto juntos são destruídos71
E deixam para outros suas posses.
12
Seu pensamento íntimo72 [é que] suas casas são eternas,
E suas habitações, de geração em geração.
Aclamam seus nomes sobre as terras.
13
Mas um ser humano em esplendor73 não permanece,
É semelhante aos animais [que] perecem.
14
Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si,
Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem. Selá.
15
Como rebanho dirigem-se74 para o Sheol,
Morte os pastoreará.
De manhã, os justos dominarão sobre75 eles.
O Sheol engolirá suas formas,76
Longe da77 mansão dele.
16
Mas78 Deus redimirá minha vida do poder79 do Sheol,

GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm 49.9, translator note 14.
Cf. também a discussão no capítulo 2 sobre o versículo 9.
69
O termo hebraico ‫ עֹוד‬indica continuidade, por isso, nossa tradução: “continuamente” (cf. ALONSO
SCHÖKEL, 2004, p. 481; KEIL; DELITZSCH, 1996. v. 5. p. 351; ver o único outro exemplo da Bíblia Hebraica
em que ‫ עֹוד‬e ‫“[ ָלנֶצַח‬para sempre”] são empregados juntos em Jr 50.39, mas ali são precedidos pelo advérbio ‫)ֹלא‬.
70
O imperfeito do verbo ‫ מות‬aqui tem a função de indicar uma ação que pode ocorrer repetidamente em qualquer
momento e que é conhecida pela experiência humana (GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6,
§107.g).
71
Para essa tradução do imperfeito de ‫אבד‬, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 315-6, §107.g e
nota anterior.
72
Para a tradução de ‫ ק ְִרבָם‬por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de ‫ ק ֶֶרב‬em Gn 18.12; Sl 5.10[9];
62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca”
dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (‫)ק ְִרבָם‬, que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no ‫ק ֶֶרב‬
que estão presentes os “maus pensamentos” (‫) ַמ ְחשְבֹותַאֹונְֵך‬. Cf. COPPES, Leonard J., ‫ק ֶֶרב‬, in: HARRIS; ARCHER
Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2.
73
Ver o uso do termo com esse sentido em Jr 20.5; Ez 22.25 (cf. PLEINS, 1996, p. 20-1).
74
Ver esse sentido de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição
kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1485, exemplo 7c.
75
Ver esse uso de da preposição ‫ ב‬com o verbo ‫ ָרדה‬em BDB, p. 922 (cf. os seguintes texto bíblicos: Gn 1.26,28;
Ne 9.28).
76Ver também ALTER, 2007, p. 174.
77A preposição ‫ מִין‬em ‫מזְבֻל‬ ִ é plenamente compreensível em sua nuance privativa: “longe de”, “fora de” (NET
Bible, 2005, Psalm 49.14, translator note 32; BRIGGS, 1906, p. 414).
78
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45.
79
Para o sentido abstrato de “poder” do termo, ver DAHOOD, 1965, p. 301.
21

Certamente me tomará. Selá.


17
Não temas se um homem alcançar riquezas,80
Se aumentar a glória de sua casa.
18
Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte,
Não descerá atrás dele sua glória.
19
Embora em sua vida ele se81 congratulasse:
“E es te ouva , pois as coisas vão be contigo”.
20
Ele82 irá até a geração de seus pais;
Não verão a luz para sempre.
21
Pois um ser humano em esplendor83 não entende,
É semelhante aos animais que perecem.

1.2. Análise de Crítica Textual do Salmo 49

A ciência da crítica textual é fundamental para a interpretação da passagem bíblica


em análise nesta dissertação, em especial para que se consiga discernir o texto produzido
antes que o processo de cópia e preservação dele gerasse alterações. Antes de perguntarmos:
“O que significa este texto”, devemos perguntar: “Qual é o texto?”, o que demanda a
investigação da história de transmissão da Bíblia Hebraica, ler e avaliar as várias testemunhas
textuais (TM, LXX, Vulgata Latina, Peshitta, etc.)84 e orientar-se segundo os cânones de
crítica textual que esclarecem as práticas dos antigos escribas.85
A BHS indica em seu aparato crítico 43 problemas textuais no Salmo 49,86 muitos
deles envolvem diferenças entre as versões, e poucos problemas consistem em tentativas de
mera reconstrução de H. Bardtke, editor do livro de Salmos da BHS. Segundo Leo G. Perdue,
o “estabelecimento do texto hebraico” do Salmo 49 é “um difícil problema devido ao grande

80
Ver esse sentido do verbo ‫ עשר‬no grau hifil em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 897.
81
Para essa tradução de ‫ נֶפֶש‬com o sentido de pronome pessoal ou pronome reflexivo, ver WOLFF, 2008, p. 52-5.
Quanto à defesa de ‫ נֶפֶש‬como sujeito deste verbo, ver a seção de análise de crítica textual mais adiante.
82
O sujeito aqui é entendido como o substantivo feminino ‫ נֶפֶש‬do versículo 19 (ver NET Bible, 2005, Psalm
49.19, translator note 42).
83
Ver o uso do termo com esse sentido em Jr 20.5; Ez 22.25 (cf. PLEINS, 1996, p. 20-1)
84
Uma ferramenta bibliográfica fundamental para a compreensão do processo de transmissão textual das versões
e para a leitura do aparato crítico usada neste trabalho é FRANCISCO, 2008.
85
TOV, 2017, p. 1-2; CHISHOLM, 2016, p. 23-5. Ver STUART, 2009, p. 6-7, 35-8.
86
ELLIGER; RUDOLPH (eds.), 1997, p. 1130-1.
22

número de variantes nas principais tradições textuais”.87 Assim, dedicamos a análise a seguir
à grande maioria desses problemas em busca da leitura mais próxima do texto hebraico
original do Salmo 49.
No versículo 2, o aparato indica que um manuscrito [Ms] traz ‫( חדל‬forma vocalizada
‫חֶדֶ ל‬, “cessação”,88 “região/domínio dos mortos”89) em vez do termo ‫“( ֶחלֶד‬mundo”; “tempo de
vida”).90 O fato de a L trazer (“terra habitada”; “mundo”),91 e a Vulgata, orbis
(“território”, “região”;92 “mundo”93), ambas apoiando a leitura do TM, sugere que a diferença
em um único manuscrito ocorreu por metátese, um erro de cópia que consiste na troca da
posição de fonemas ou sílabas de um vocábulo — ou seja, por descuido, o copista inverteu a
ordem das letras ‫ ד‬e ‫ל‬.94
No versículo 4, há dois problemas textuais relacionados ao texto hebraico da
Héxapla de Orígenes ( εβρʹ).95 A segunda coluna da Héxapla com a transliteração do
hebraico em caracteres gregos,96 cujo propósito era auxiliar o leitor na pronúncia do texto
hebraico,97 traz αχα ωθ, o equivalente a ‫ ֲחכָמֹות‬, em vez de ‫ ָחכְמֹות‬do TM. A distinção é
pequena e não afeta significativamente a leitura do termo, que em ambos os casos teria o
sentido de “sabedoria”. A vocalização proposta por Orígenes (‫ ) ֲחכָמֹות‬seria, segundo Dahood, a
forma plural do substantivo (“sabedoria”).98 Quanto à pontuação do TM (‫) ָחכְמֹות‬, Dahood
entende ser uma forma fenícia singular equivalente ao termo do hebraico clássico.99
Entretanto, é provável que ‫ ָחכְמֹות‬seja uma forma plural posterior de no hebraico bíblico
(cf. Pv 1.20; 9.; Eclo 4.11),100 funcionando como um plural de intensidade101 ou um plural
para substantivos abstratos.102

87
PERDUE, 1974, p. 533. Ver também a mesma observação em DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON;
TANNER, 2014. p. 441.
88
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 293.
89
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 96.
90
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 316.
91
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 699.
92
WHITAKER, 2012, verbete orbis.
93
HARDEN, 1921, p. 83.
94
Ver mais informações e exemplos relacionados à metátese em BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 (edição
kindle). Tov resume a metátese como “a transposição de duas letras adjecentes” (TOV, 2017, p. 236).
95
Quanto à abreviatura da Héxapla no aparato crítico, ver FRANCISCO, 2008, p. 73.
96
BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 4 (edição kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;
STAMM, 1994-2001, p. 314.
97
WÜRTHWEIN, 1995, p. 57, nota 25.
98
DAHOOD, 1965. p. 297.
99
DAHOOD, 1965, p. 296-7. Essa leitura singular de um termo cujo final se parece com o sufixo plural de
substantivos femininos lembra a forma singular do termo hebraico (“irmã”).
100
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 314-5.
23

Também na segunda coluna da Héxapla, há uma variante textual relacionada ao


hapax legomenon103 ‫“( הָגּות‬meditação”) do TM. O texto hebraico transliterado em grego na
obra de Orígenes consta αγιθ, que, segundo a BHK,104 implica a reconstrução ‫ ְַו ָהגִית‬, pois o
antigo sistema de transliteração grega da Héxapla usava omicron-upsilon ( ) para representar
o ‫ ו‬em início de palavras.105 No entanto, essa variante não tem correspondente em hebraico ou
aramaico bíblicos, sendo extremamente improvável como leitura do texto original.
Dahood106 também apresenta uma proposta de leitura, que implica mudança sutil na
pontuação massorética, alterando a vogal longa: ‫“( ְוהָגּות‬meditação”), um substantivo, passa a
ser lido como ‫“( ְוהָגֹות‬falar”),107 uma raiz verbal hebraica no modo infinitivo absoluto. Em vez
de “e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento”, ele lê “e meu coração
proclamará entendimento”. O problema com essa repontuação das vogais é que ela não tem o
apoio do TM nem das principais versões, como a L ( ε , “meditação”, “estudo”)108 e a
Vulgata (meditatio, “meditação”, “contemplação”).109 O próprio Dahood admite que a forma
infinitiva da raiz verbal com ‫ ת‬no final é incomum, pois o normal seria ‫ הָגֹו‬ou ‫הָג ֹה‬. Assim, não
há razão alguma para seguir essa reconstrução e deve-se manter a leitura massorética.

101
GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 1; KEIL; DELITZSCH, , 1996, v. 5. p. 349; ALONSO ALONSO
SCHÖKEL; CARNITI, 1996, v. 1. p. 666. Embora Gesenius defenda que a forma ‫ ָחכְמֹות‬é singular, ele apresenta
uma série de exemplos úteis para a compreensão do plural de intensidade em GESENIUS; KAUTZSCH;
COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e.
102
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 315. Ver outros exemplos do uso do plural para substantivos abstratos
em PINTO, 1998, p. 14; ROSS, 2009, p. 399.
103
Tanto o BDB quanto o HALOT confirmam a única ocorrência do termo na Bíblia Hebraica (ver KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 238; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 212)
104
KITTEL, Rudolph (ed.). Biblia Hebraica. Leipzig: J.C. Hinrichs, 1906. v. 2. p. 944.
105
Aqui sou devedor do auxílio do Prof. Edson de Faria Francisco, que, em uma mensagem pessoal, esclareceu a
reconstrução da transliteração grega para o hebraico e chamou a atenção para a ajuda fornecida no aparato da
BHK (FRANCISCO, 2017). Em relação à correspondência entre ‫ ו‬e , Prof. Edson F. Francisco observa:
“Joüon-Muraoka [...] estabelecem que a pronúncia da letra ‫ ו‬é como w (como em inglês) (JOÜON; MURAOKA,
2009. p. 20).
ַGesenius estabelece também que a pronúncia da letra ‫ ו‬é como w (u) (p. 26). Ele diz, ainda, que a letra ‫ ו‬é de
natureza vocálica, podendo ser transcrita como u (GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 26, n. 1).
Sáenz-Badillos menciona que a letraַ‫ו‬, em início de palavra, é transcrita em inscrições gregas, como a Héxapla,
como omicron-upsilon ( ) (SÁENZ-BADILLOS, 1996,ַp. 85).
Então, na época da Héxapla, a transcrição da variante hipotética ‫ והגות‬do Salmo 49.4 seria algo como αγιθ. Isto
é, a conjunção waw era transcrita em letras gregas como . Isto indicaria que a primitiva pronúncia da letra ‫ ו‬da
época da Héxapla seria algo como o som de w (inglês) e não como v.”
106
DAHOOD, 1965, p. 297.
107
Observe-se que essa proposta não é original de Dahood, pois Briggs já mencionava a possibilidade de leitura
do infinitivo construto do mesmo verbo (ver BRIGGS, 1906, p. 412).
108
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 625. Ver também a tradução inglesa de Salmo 48[49].3[4] da LXX de
BRENTON: “and the meditation of my heart…” [e a meditação de meu coração] (itálico acrescentado).
109
WHITAKER, 2012, verbete meditatio.
24

No versículo 6, há, novamente, dois problemas textuais relacionados com a


transliteração grega do texto hebraico na Héxapla de Orígenes ( εβρʹ). No primeiro problema
indicado pelo aparato da BHS, em vez de ‫( ֲע ֵקבַי‬lit. “os meus calcanhares” = “os que me
atacam por trás”),110 a segunda coluna da Héxapla traz ββαε ,111 que, de acordo com
Bardtke, resultaria na forma hebraica ‫( ֲע ֻקבַי‬lit. “os meus enganosos”112 = “os meus
enganadores”). Em seguida, o editor de Salmos da BHS propõe (prp) a leitura ‫“( ע ֹ ְקבַי‬meus
traidores”; ou “os caluniadores”) e tem o apoio de alguns comentaristas.113
Na primeira opção, ‫ ֲע ֻקבַי‬significaria “os meus enganadores”, ou seja, “aqueles que
me enganam”, uma junção do adjetivo ‫“( עָק ֹב‬enganoso”, “astuto”, traiçoeiro; “tortuoso” [Is
40.4])114 + o sufixo pronominal da 1ª. pessoa do singular (‫)ַַ י‬. Jeremias 17.9 chama o
“coração” (‫ )לֵּב‬de ‫“( עָק ֹב‬enganoso, ardiloso”). Pessoas falsas ou traiçoeiras seriam o tipo de
gente que perseguiria o justo sofredor.
Na opção de Bardtke, ‫ ע ֹ ְקבַי‬significaria “os que me enganam/traem”, um particípio
ativo ‫“( ע ֹקְ בִים‬os que traem”, “enganam”; “os que pegam o calcanhar” [Os 12.4])115 + o sufixo
pronominal da 1ª. pessoa do singular (‫)ַַ י‬. Essa raiz verbal descreve a atitude característica de
Jacó, como alguém que “enganou” (‫ ) ַוי ַ ְע ְק ֵבנִי‬Esaú duas vezes (Gn 27.36), bem como a postura
geral entre parentes na época de Jeremias, em que “todo irmão só age deslealmente” (‫כָל־ָאח‬
‫( )עָקֹובַיַעְק ֹב‬Jr 9.3[4]). Dahood propôs essa última opção de leitura do hebraico, mas traduzindo
o particípio por “os difamadores”/“os caluniadores”, com base no ugarítico.116 Entretanto,
essa interpretação tem sido contestada por não se basear em um exemplo claro do sentido da
raiz verbal ‘qb em ugarítico, que tem o significado mais comum de “impedir”, “segurar”.117
Embora a revocalização proposta por Bardtke na BHS não demande alteração das
consoantes do texto do TM e faça bastante sentido aqui, 118 é melhor propor uma tradução que
mantenha o texto hebraico majoritário ‫( ֲע ֵקבַי‬dos meus calcanhares [relação genitiva]), que é

110
Ver a tradução interlinear e a discussão na análise de conteúdo do versículo 6.
111
FIELD, 1875, v. 2, p. 170.
112
Na tradução proposta aqui, lê-se o termo como plural de ‫“( עָק ֹב‬enganoso”, “tortuoso”), cuja forma feminina
demanda uma redução idêntica à do plural com SPP nas vogais do radical (cp. ‫ ֲע ֻקבַי‬e ‫ ; ֲע ֻקבָה‬ver ALONSO
SCHÖKEL, 2004, p. 514; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 873).
113
E.g., CRAIGIE, 1983, p. 357; DAHOOD, 1965, p. 297. A segunda opção de tradução do mesmo termo
hebraico é uma opção apresentada por Dahood com base no ugarítico e entendendo que o SPP da 1ª. Pessoa do
singular tem ênfase de artigo ou de pronome demonstrativo.
114
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 873.
115
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 281; GESENIUS, 2003, 649.
116
DAHOOD, 1965, p. 297.
117
CRAIGIE, 1983, p. 319.
118
É a opção de VanGemeren e de Craigie (ver VANGEMEREN, 1991, p. 368; CRAIGIE, 1983, p. 356-7).
25

basicamente seguido tanto pela LXX ( ῆς π ρ ς , “do meu calcanhar”) quanto pela
Vulgata (calcanei mei, “meu calcanhar”), embora ambas traduzam o termo no singular, em
vez de no plural (como no TM).119
Há dois problemas textuais e algumas questões sintáticas na primeira parte do dístico
do versículo 8 que têm levado estudiosos a debaterem sobre a reconstituição do texto e sua
tradução. Bardtke observa que poucos manuscritos hebraicos (pc Mss — entre 3 a 10)120
trazem ‫“( אְַך‬certamente”, “de fato”; “entretanto”, “porém”), em vez de ‫“( ָאח‬irmão”;
“companheiro”; “compatriota”), e propõe que se leia conforme a variante textual, bem como
se repontue ‫[( יִפְדֶה‬ele] redimirá [3ª. pessoa masculino singular do qal]) para ‫[( י ִ ַָפדֶה‬ele] se
redimirá121 [3ª. pessoa masculino singular do nifal]).122 Muitos estudiosos têm seguido essa
proposta.123
Na primeira questão textual, o argumento para se modificar ‫ ָאח‬para ‫ אְַך‬é que a
estrutura comum não é ‫[ אִ יש‬...] ‫“( ָאח‬irmão [...] homem”), mas ‫[ ָאח‬...] ‫“( ָאח‬irmão [...] irmão”)
ou ‫[ אִ יש‬...] ‫“( ִאיש‬homem [...] homem”),124 além de não ser comum ter ‫ ָאח‬no começo do
verso.125 Ademais, embora o uso do infinitivo absoluto com função enfática já esteja presente
no verseto, há evidência do uso de ‫ ַַאְך‬precedendo verbos infinitivos absolutos com função
adverbial (Gn 44.28; cf. 27.30).126 Em tese, a razão para a modificação inserida no TM e
seguida pela LXX e Vulgata se deveria a um erro de audição ou homofonia, visto que ambas
as palavras têm pronúncia bem semelhante.127
Quanto à modificação de ‫( יִפְדֶ ה‬qal) para ‫( יִפָדֶ ה‬nifal) com sentido reflexivo, ela
demanda uma pequena alteração vocálica em uma língua escrita apenas com consoantes,128 e

119
KRAUS, 1993. p. 730; GOULDER, 1982, p. 185-6. Ver a tentativa de tradução de Alonso Schökel e Carniti:
“quando me cercam para derrubar-me criminosos” (ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666).
120
FRANCISCO, 2008, p. 86. Segundo Kraus, o número exato aqui são oito manuscritos (KRAUS, 1993, p. 730)
121
Para esse sentido reflexivo do nifal, ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-
2001, p. 912.
122
ELLIGER; RUDOLPH, 1997. p. 1131.
123
Ver KRAUS, 1993, p. 729-30; TESH, 1999, p. 354; CRAIGIE, 1983, p. 357; VANGEMEREN, 1991, p. 369-
70; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666.
124
CRAIGIE, 1983, p. 357.
125
VANGEMEREN, 1991, p. 369.
126
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 342, §113.n.
127
Para explicação e exemplos desse tipo de erro, ver SIMIAN-YOFRE et al., 2015; ARCHER, 1994.
BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 [edição kindle] afirmam: “... há [...] alguns erros na transmissão do texto do
Antigo Testamento que são, evidentemente, originados não em problemas de visão e cópia, mas de audição e
cópia. Ao que tudo indica, ao menos em algumas ocasiões, os escribas hebreus produziam suas cópias com base
na leitura em voz alta de um manuscrito feita por outra pessoa”.
128
Sobre esse tipo de erro com vogais, ver ARCHER, 1994, p. 63.
26

é uma decorrência lógica da ausência de objeto direto no caso da reconstrução de ‫ ָאח‬para


‫אְַך‬.129
Alguns propõem a manutenção de ‫ָאח‬, mas o interpretam como uma exclamação:
“Meu Deus!”130 ou “Hum!”.131 Enquanto Dahood segue a mudança na raiz verbal ‫ פדה‬para o
nifal com sentido reflexivo, Goldingay prefere mantê-la de acordo com o TM, interpretando
‫ אִ יש‬como objeto do verbo e “riqueza” como sujeito implícito, conforme o contexto do
versículo 7.
Apesar dessas possibilidades de leitura, deve-se observar que as evidências externas
favorecem, antes de tudo, a leitura do Texto Massorético (talvez com emenda em ‫ ;)פדה‬a
leitura da LXX diz (às vezes confusa):132 δε φὸς ὐ ρ ῦ αι· ρώσε αι ἄ θρωπ ς (“um
133
irmão não redime; um homem redimirá?”). A Vulgata apresenta a seguinte tradução do
hebraico: frater non redimit redimet homo (“um irmão não redime, um homem redimirá?”).
Ambas as versões entendem que o primeiro termo hebraico é ‫ ( ָאח‬δε φὸς; frater),134 não o
advérbio ‫“( ַאְך‬certamente”) da emenda textual que segue poucos manuscritos hebraicos. A
Vulgata segue a leitura do TM ao manter os dois verbos ativos,135 e a L usa um verbo
( ρ ω) que só aparece na voz média e passiva na literatura clássica, na LXX e no Novo
Testamento,136 tendo força ativa em várias ocorrências da LXX.
A evidência interna também corrobora a leitura do TM. Conforme Goulder observou
acertadamente:
Contudo, ‫ ַאְך‬é a leitura mais fácil; Kraus apenas diz que ela deve ser lida, sem dar
explicação alguma sobre como uma leitura ‫ אח‬passou a existir. É essa ‘facilidade’
que pode explicar a vario lectio: os oito manuscritos poderiam não ver também
sentido em ‫אח‬. A história da interpretação do salmo é uma lição objetiva dos perigos

129
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666; KRAUS, 1993, p. 729-30; VANGEMEREN, 1991, p.
369.
130
DAHOOD, 1965, p. 298: “A inclinação moderna em formar interjeições com base em palavras expressando
relacionamento de sangue (e.g., o italiano mamma mia, literalmente ‘Minha mãe!’, uma exclamação de surpresa
ou medo) tem análogos bíblicos em ’ , ‘meu Deus’, que ocorre em Ezequiel vi 11, xxi 20”.
131
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ele fundamenta sua escolha na interjeição indicada em
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 25.
132
Compare, por exemplo, duas versões de tradução da LXX para o inglês: (1) “A brother is not redeemed. Will
a person redeem?” [“Um irmão não é redimido. Uma pessoa será redimida?] (BRANNAN, 2012); (2) “A brother
does not redeem, shall a man redeem?” [Um irmão não redime, deve um homem redimir?] (tradução da LXX de
BRENTON).
133
Para a tradução na voz ativa do verbo grego na voz média seguimos o léxico de LUST; EYNIKEL;
HAUSPIE, 2003, verbete ρ ω (edição eletrônica): “regatar por um pagamento de resgate, redimir [...];
libertar (vida, alma)”.
134
KIDNER, 1980, p. 204, nota 15.
135
Ver análise morfológica em WHITAKER, 2012, verbetes redimit, redimet.
136
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 482.
27

da preferência por leituras convenientes e do tratamento dos pontos vocálicos


tradicionais como uma questão sem importância.137
As regras ou cânones de crítica textual são muito claros e amplamente aceitos: lectio
difficilior praestat facilior — uma leitura mais difícil prevalece sobre uma mais fácil.
“Sempre é mais explicável que o escriba ou tradutor tenha procurado simplificar um texto que
causava dificuldade, visando fazê-lo mais compreensível ou mais claro aos leitores”.138
Portanto, quando estudiosos argumentam, sem apoio da evidência externa, contra a leitura do
TM porque ela é “problemática”139 ou porque não é uma “expressão idiomática comum”,140
na verdade, revelam a “mente de um escriba” na confecção da emenda textual: “a tendência
dos escribas em simplificar e esclarecer os textos que estavam copiando com muito mais
frequência do que os teriam tornado mais difíceis”.141
Portanto, seguimos a lectio difficilior do TM, que tem o apoio da LXX e da Vulgata,
considerando o objeto do verbo o primeiro termo do verseto: ‫“ — ָאחַֹלא־פָד ֹהַיִפְדֶ הַ ִאיש‬um ser
humano142 não redimirá de modo algum [seu] irmão” (v. 8a).143
Na segunda parte do versículo 8, há uma variante textual na BHS que não parece
trazer alterações significativas nem recebe menção na BHK.144 Bardtke observa que muitos
manuscritos hebraicos medievais (mlt Mss — entre 21 e 60 manuscritos)145 acrescentam o ‫ו‬
(“e”) antes de ‫“( ֹלא‬não”) formando ‫“( וְֹלא‬e não”).146 O acréscimo da conjunção hebraica
apenas tornaria o texto mais fluente, porém, não alteraria em nada seu sentido.147 Tanto a
LXX ( ὐ δώσει, “não dará”) quanto a Vulgata (non dabit, “não dará”)148 apoiam o texto do
TM ao não inserir conjunção antes do advérbio de negação.
Em seguida, H. Bardtke, editor do livro de Salmos da BHS, sugere que todo o texto
do versículo 9 é, provavelmente, uma glosa (prb gl),149 uma nota explicativa acrescentada por

137
GOULDER, 1982, p. 187.
138
SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67.
139
VANGEMEREN, 1991, p. 369.
140
CRAIGIE, 1983, 357.
141
BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição kindle).
142
Ver esse sentido mais abrangente de ‫ אִיש‬em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;
STAMM, 1994-2001, p. 48.
143
Ver também a opção da NET Bible: “Certainly a man cannot rescue his brother” [Certamente um homem não
pode resgatar seu irmão].
144
Ver KITTEL, 1906, v. 2, p. 944.
145
FRANCISCO, 2008, p. 87.
146
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
147
Ver a proposta de tradução de Craigie que tem por base a leitura alternativa (CRAIGIE, 1983, p. 356-7).
148
WHITAKER, 2012, verbetes non, dabit.
149
FRANCISCO, 2008, p. 36, 51.
28

um escriba posterior.150 Embora o versículo 9 tenha natureza explicativa e sua remoção dê


mais fluência ao texto,151 o caso aqui implicaria um conflito entre dois cânones de crítica
textual: o da lectio difficilior, em que a leitura mais difícil deve ser mantida, tendo em vista a
tendência dos escribas em esclarecer e simplificar;152 e o da lectio brevior (“leitura mais
breve”) devido à inclinação dos copistas a ampliarem os textos visando esclarecimento ou
melhor fluência.153 O primeiro cânone favoreceria a permanência do versículo 9, ao passo que
o segundo demandaria sua exclusão. Optamos por manter o versículo 9 devido ao apoio que o
TM tem de outras versões importantes, como o Targum (que traz acréscimos ao texto e tem
suas próprias variantes),154 a LXX (ver também a Héxapla de Orígenes) e a Vulgata, e pelo
fato de que a remoção do texto é apenas fruto de hipótese dos estudos bíblicos modernos, sem
apoio algum da evidência externa antiga.
Logo no início do versículo 9, há uma variante textual relacionada ao termo ‫ ְויֵקַר‬,
uma forma da 3ª. pessoa do singular do pretérito155 do grau qal da raiz verbal ‫“( יקר‬ser
precioso”; “ser estimado”; “ser raro”; “ser digno”).156 A LXX lê o início do versículo 9 como
uma continuação do versículo anterior, indicando a segunda parte do objeto da oração,
conforme indicado pelo caso acusativo do substantivo (em vez da raiz verbal usada pelo TM):
α ὴ ι ὴ (“e/nem o preço”). De acordo com a LXX, não há uma interrupção entre os
versículos 8 e 9: ὐ δώσει ῷ θεῷ ἐξί ασ α αὐ ῦ, α ὴ ι ὴ ῆς ρώσεως ῆς ψ χῆς
αὐ ῦ (“8bnão dará a Deus oferta propiciatória157 dele 9a
nem o preço158 da redenção da alma
dele”) (grifo e itálico acrescentados). De acordo com Bardtke, a expressão da LXX ( α ὴ
ι ὴ ) implicaria a reconstrução ‫“[ ו( וִיקָר‬e”] + ‫“[ יְקָר‬preciosidade”, “preço”, “honra”])159 no
hebraico, o que não demandaria mudança no texto consonantal, mas apenas na pontuação
massorética.

150
Briggs, Craigie e Kraus defendem o mesmo entendimento de que o versículo 9 é uma glosa (ver BRIGGS,
1906, p. 413; CRAIGIE, 1983, p. 357; KRAUS, 1993, p. 731). Na BHK, sugere-se que o primeiro verseto seja
eliminado (ver KITTEL, 1906, v. 2. p. 945, nota a do v. 9 no aparato crítico).
151
GOULDER, 1982, p. 188; KRAUS, 1993, p. 731.
152
SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67; ARCHER, 1994, p. 65; BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição
kindle).
153
ARCHER, 1994, p. 65; BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 7 (edição kindle).
154
Ver o texto de Salmos 49.9 da edição do Targum de KAUFMAN, 2005.
155
Classificamos como “pretérito” usando a designação indicada por ROSS, 2009, p. 142-3: “Alguns professores
preferem chamar essa construção de tempo imperfeito + w w consecutivo, mas ‘pretérito’ descreve como mais
exatidão a forma como um tempo passado”.
156
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 431-2.
157
LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete ἐξί ασ α.
158
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 1005.
159
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 430.
29

Essa continuidade entre os versículos 8 e 9 não consta apenas no Pasalterium


Gallicanum (o texto de Salmos da antiga Vetus Latina traduzido da LXX e revisado por
Jerônimo), mas também no Psalterium iuxta Hebraeos,160 a tradução do texto hebraico de
Salmos para o latim feita por Jerônimo.161 O Psalterium iuxta Hebraeos traz a leitura: 8b
nec
9a
dabit Deo propitiationem pro eo neque pretium redemptionis animae eorum (“nem dará a
Deus propiciação por ele nem o preço de redenção da alma deles”). Com exceção do pronome
final (singular no grego: αὐ ῦ; plural no latim: eorum), o primeiro verseto do v. 9 no
Psalterium iuxta Hebraeos é idêntico ao da LXX.
A tradução do Salmo 49.9 de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) e a da LXX
parecem seguir o mesmo texto (vocálico e consonantal) hebraico básico, que mantém as
mesmas consoantes do TM, porém difere da pontuação vocálica dos massoretas. Essa
dificuldade no entendimento de ‫ ויקר‬também se reflete no texto da Peshitta, cuja leitura
( ) implicaria a reconstrução ‫) ְוְ(יָקָר‬,162 um adjetivo (“precioso”, “glorioso”; “caro”), em
vez da raiz verbal ‫( יקר‬TM) ou do substantivo ‫( יְקָר‬Jerônimo e LXX).
A diversidade de leituras no texto vocálico do hebraico torna muito difícil uma
decisão, embora nos pareça que o TM com sua interrupção brusca, ao contrário da melhor
fluência da LXX e da Vulgata (com uma ligação mais natural entre os v. 8 e 9), nos ofereça a
lectio difficilior a ser seguida. Além disso, outras variantes nos versículos 9 e 10 da LXX e do
Psalterium iuxta Hebraeos possibilitam um texto perspícuo, mas a leitura do TM se distingue
dessas versões na continuidade do Salmo 49, de modo que seria impossível compreendê-lo
caso adotássemos aqui a variante de Jerônimo e LXX.163
Ainda na primeira parte do versículo 9, H. Bardtke indica uma leitura variante do
TM: em vez de ‫שם‬
ָ ‫“( נַ ְפ‬vida deles”), a L apresenta ψ χῆς αὐ ῦ (“vida dele”). Tendo em
vista que a tradução do hebraico de Jerônimo (“animae eorum”) apoia o TM e que este traz a
variante de leitura mais difícil, pois o contexto anterior usa o singular (‫ ָכפְרֹו‬e ‫ ָאח‬no v. 8), a
leitura da LXX provavelmente sofreu alteração por escribas que tentaram harmonizar o objeto
do v. 9 com o do v. 8. O ‫ ם‬final (em ‫שם‬
ָ ‫ )נַ ְפ‬pode ser enclítico (como ‫ שְ מָם‬em Sl 109.13) ou ser

160
WEBER; GRYSON (eds.), 1969 (edição eletrônica).
161
Sobre a história das duas versões de Salmos da Vulgata, ver FRANCISCO, 2008, p. 523-4.
162
Ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
163
Este não seria um caso de lectio difficilior, mas de uma leitura “sem sentido” que impediria um texto
“razoável e adequado” (ver WALTKE, Bruce, The textual criticism of the Old Testament, in: GAEBELEIN,
1991, v. 1, p. 226).
30

uma referência tanto ao sujeito (‫ )אִ יש‬quanto ao objeto (‫ )ָאח‬do versículo 8.164 Por fim, a
transliteração do texto hebraico em grego na Héxapla propõe a leitura ‫( יֶחְדַ ל‬3ms imperfeito do
qal) em vez de ‫( ְוחָדַ ל‬3ms perfeito do qal + waw consecutivo) (TM), o que não resulta em
mudança significativa, pois o perfeito + waw consecutivo também tem aspecto futuro.165
No versículo 10, o aparato da BHS observa que muitos manuscritos hebraicos
medievais (mlt Mss — entre 21 e 60 manuscritos)166 acrescentam o ‫“( ו‬e”) antes de ‫ֹלא‬
(“não”), formando ‫“( וְֹלא‬e não”). A tradução de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) apoia o
acréscimo da conjunção (et non videbit interitum, “e não veja tendo sido perecido167”) (grifo e
itálico acrescentados). A LXX não traz em seu texto um termo de correspondência literal
exata ao sentido de ‫( ו‬e.g, αί), mas usa a conjunção ι (“porque”), que pode ser uma
tradução interpretativa do ‫ ו‬presente na leitura variante dos manuscritos hebraicos. À luz da
grande quantidade de manuscritos, além do apoio de Jerônimo e (possivelmente) da LXX, que
apresenta o acréscimo da conjunção antes do advérbio de negação, esta leitura (‫ )וְֹלא‬parece
corresponder ao texto original.
No início do versículo 12, o aparato crítico da BHS indica leituras variantes em
relação ao sintagma ‫“( ק ְִרבָם‬interior/entranhas deles”) do TM. Segundo Bardtke (mantendo a
proposta da BHK),168 deve “ser lido” (l) ‫ ִקב ְָרם‬, (“sepultura deles”)169 com o apoio, em parte, da
LXX, da Peshitta e do Targum dos Salmos, “ou” (vel)170 ‫ ְקב ִָרים‬, preservando as mesmas
consoantes, porém com o acréscimo de uma mater lectionis171 (‫ )י‬para formar o plural.172 As
leituras variantes (‫ ) ִקב ְָרם‬sugerem que a diferença central ocorreu por metátese,173 ou seja, uma
troca na posição das consoantes — por descuido, copistas inverteram a ordem das letras ‫ ב‬e
‫ר‬.174 A LXX lê o primeiro verseto: α ἱ άφ ι αὐ ῶ ίαι αὐ ῶ ε ς ὸ α ῶ α (“e as suas

164
Ver essas possibilidades em DAHOOD, 1965, p. 298; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667.
165
MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999. p. 168, §21.3 (edição eletrônica). Merwe, Naudé e Kroeze observam que
a acentuação na última sílaba indica um perfeito + consecutivo, por isso, o aspecto futuro (ver também ROSS,
2009, p. 143-4).
166
FRANCISCO, 2008, p. 87.
167
WHITAKER, 2012, verbete interitum. A tradução “tendo sido perecido” é o correspondente literal desse
verbo latino em sua forma no particípio passivo do tempo perfeito.
168
Ver KITTEL, 1906, v. 2, p. 945.
169
Essa leitura é adotada por DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 441.
170
FRANCISCO, 2008, p. 62.
171
Sobre as matres lectionis, ver ROSS, 2009, p. 137-8; FRANCISCO, 2008, p. 631-2; TOV, 2017, p. 239-40.
172
Essa opção, que acrescenta uma mater lectionis ao texto consonantal do TM e não tem apoio textual sólido, é
seguida por CRAIGIE, 1983, p. 356-7.
173
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667.
174
Ver mais informações e exemplos relacionados à metátese em ARCHER, 1994, p. 61; BROTZMAN; TULLY,
2016, cap. 6 (edição kindle); TOV, 2017, p. 236-7.
31

sepulturas175 [serão] as casas deles para sempre” [itálico acrescentado]). O Targum de


Salmos176 apresenta uma leitura semelhante: ‫“( בבית ַקבורתהון ַישרון ַלעלם‬Na casa dos seus
sepulcros177 habitarão para sempre”).
Como Goldingay e Goulder observam, a leitura variante (especificamente a da LXX)
é a mais fácil,178 portanto o TM apresenta a lectio difficilior, que tem o apoio do Psalterium
iuxta Hebraeos (Jerônimo), cuja leitura é a seguinte: interiora sua domus suas in saeculo
(“interiores deles [são?] suas casas em [uma] geração 179”). Assim, opta-se aqui pela leitura do
TM.180
Uma segunda variante textual está relacionada à expressão ‫שמֹותָ ם‬
ְ ‫ ִב‬, com Bardtke
afirmando que a expressão deve “ser lida” (l) sem a presença da preposição ‫ ְַב‬, conforme as
Versões (que de fato não trazem uma preposição equivalente — ver ἐπε α σα ὰ
ὀ α α [LXX]; vocaverunt nominibus suis [Jerônimo]).181 Entretanto, essa rejeição do TM
parece ser apressada, visto que outras passagens da Bíblia Hebraica (cf. Is 44.5: ַ ‫י ִקְ ָרא‬
‫ )בְשֵ ם־יַעֲק ֹב‬usam uma construção semelhante (verbo ‫ קרא‬+ preposição ‫ ְַב‬+ substantivo ‫שם‬
ֵ ) para
indicar revindicação de pertença ou de propriedade.182 Portanto, não parece haver aqui
variação de leitura, mas somente formas distintas das versões traduzirem a construção
hebraica em seu próprio idioma.183
O aparato crítico da BHS indica mais um problema no versículo 12, em que a LXX e
a versão grega de Teodocião (versão produzida no final do século II E.C.)184 trazem o
equivalente a ‫“( ַאדְ מֹותָ ם‬suas terras”), em vez de ‫“( אֲדָ מֹות‬terras”) do TM. O Psalterium iuxta
Hebraeos (Jerônimo) também apresenta o acréscimo do pronome pessoal (terras suas). O
termo ‫ אֲדָ מָה‬do TM no plural ocorre somente aqui em toda a Bíblia Hebraica. 185 Como a lectio
brevior deve ser preferida, tendo em vista a tendência das versões de usarem mais palavras

175
LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete άφ ς; ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 992; LIDDELL,
H. G. A lexicon: abridged from Liddell and Scott’s Greek-English lexicon. Oak Harbor: Logos Research
Systems, 1996. p. 794.
176
Primeiro verseto de Salmos 49.12 na edição de KAUFMAN, 2005.
177
Entende-se ‫ בית קבורה‬como um único termo, conforme KAUFMAN, 2004, verbete ‫ביתַקבורה‬.
178
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 5 (edição kindle); GOULDER, 1982, p. 189.
179
A tradução “em [uma] geração” se baseia na opção apresentada em LEWIS, 1890, verbete saeculum;
HARDEM, 1921, p. 105.
180
Ver também KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351.
181
Kraus segue a proposta de Bardtke (ver KRAUS, 1993, p. 730-1).
182
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351.
183
Observe-se que a BHK não identifica essa suposta variante indicada pela BHS (ver KITTEL, 1906, v. 2, p.
945).
184
FRANCISCO, 2008, p. 73, 464-6.
185
DAHOOD, 1965, p. 299; GOULDER, 1982, p. 189.
32

para esclarecer o texto hebraico que elas traduzem,186 o TM apresenta, provavelmente, a


leitura original.187
No versículo 13, há uma variante textual relacionada à raiz verbal ‫( יָלִין‬3ª. pessoa do
singular imperfeito do qal do verbo ‫לין‬, “pernoitar”; “permanecer”, “habitar”) do TM, que se
deve a uma tentativa da LXX (a Peshitta a segue em parte) de padronizar o refrão que ocorre
também no versículo 21.188 A leitura das duas versões189 usa o mesmo verbo no primeiro
verseto tanto em 49.13 quanto em 49.21. Entretanto, essa leitura discordante do TM, que
busca manter o refrão idêntico nos dois versículos, não é imprescindível, pois a “variação é
normal nos refrões dos salmos (cf. 42.5,11; 43.5)”.190 Há certo complemento no emprego de
verbos distintos, em que o uso de duas descrições com som semelhante torna ainda mais
trágica a situação do “ser humano em esplendor” (‫ָאדָ םַבִיקָר‬, v. 13,21).
Em relação à homogeneidade dos refrões, é verdade que as antigas versões — e os
intérpretes modernos — tendem a adaptar um verbo ao outro. As expressões
relevantes no Salmo 49, ba - n, “ele não permanecerá” (v. 13), e ’ b n, “ele
não entenderá” (v. 21), realmente são muito semelhantes em som e na escrita.
Portanto, é mais difícil explicar as diferenças [observe, aqui, a lectio difficilior] no
vocabulário, e podemos considerar essas diferenças como sendo mais provavelmente
originais. Ademais, a poesia não é tão rigidamente fixa a ponto de proibir pequenas
variações nos refrões, especialmente se um cântico é apresentado por um cantor
como no caso do Salmo 49 [...].191
A outra variante textual no versículo 13 ocorre com a raiz verbal ‫“( נִדְ מּו‬são
destruídos”, “deixam de existir” [3ª. pessoa do masculino plural do perfeito do nifal]),192 em
que a reconstrução com base nas versões LXX, Peshitta193 e Psalterium iuxta Hebraeos
(Jerônimo), apoiadas por poucos manuscritos hebraicos medievais (pc Mss — entre 3-10),
implica uma raiz verbal formada pelas mesmas consoantes, mas na forma singular ‫( נִדְ ָמה‬3ª.
pessoa do masculino singular do perfeito do nifal). Embora as versões ofereçam a leitura de
um verbo com as mesmas consoantes, a raiz verbal é distinta, conforme indicado por BDB e

186
SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67-8; CHISHOLM, 2016, p. 25; ARCHER, 1994, p. 65.
187
Outros comentaristas, que em outras partes preferem a leitura da LXX, aqui escolhem o texto apresentado
pelos massoretas (ver DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p.
356).
188
Quanto ao reconhecimento de que os versículos 13 e 21 são o refrão do Salmo 49, ver, e.g., ZUCKER, 2005,
p. 145; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672;
KIDNER, 1980, p. 203.
189
L traz uma forma conjugada do verbo σ ί ι, “entender”, “compreender” (ver ARNDT; DANKER;
BAUER, 2000, p. 972).
190
GOULDER, 1982, p. 190.
191
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); cf. BRIGGS, 1906, p. 409.
192
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 198.
193
OLIVER, 1861, p. 94, tradução e nota crítica do v. 12.
33

HALOT.194 Tanto a LXX ( α ὡ ιώθ αὐ ῖς, “é semelhante a eles”) quanto o Psalterium


iuxta Hebraeos (et exaequatus est, “e é feito semelhante [a]”) leem ‫“( דמה‬ser como”,
“assemelhar-se”) no singular, portanto, como uma referência a ‫“( ָאדָ ם‬ser humano”), não aos
‫“( ְבהֵמֹות‬animais”, “gados”), como faz o TM com o verbo no plural.
Briggs parece estar correto ao ler o verbo ‫ נִדְ מּו‬como uma oração relativa195 (“que
perecem”) que apresenta uma característica dos animais. A leitura do TM parece explicar
melhor196 a variante das versões por usar um verbo cujas consoantes são iguais às de outra
raiz verbal que tem um sentido semelhante ao do verbo imediatamente anterior (‫נִ ְמשַל‬, “é
semelhante [a]”, “torna-se semelhante”). Assim, as versões leram ‫ דמה‬como uma repetição
enfática do refrão cujo sujeito é ‫ָאדָ ם‬, sem perceber o paralelismo entre ‫“( נִדְ מּו‬que serão
destruídos”) e a última expressão do verseto anterior ‫“( בַל־יָלִין‬não permanece”), exatamente o
ponto de semelhança entre ‫ ָאדָ ם‬e os ‫ ְבהֵמֹות‬.197
No versículo 14, o aparato da BHS apresenta quatro questões de crítica textual. A
primeira leitura variante ocorre com o termo ‫ ֵכסֶל‬do TM, que é traduzido por σ ά δα
(“armadilha”, “cilada”)198 na LXX, leitura seguida, em parte, pela Peshitta.199 Embora a BHK
não houvesse indicado essa leitura alternativa,200 Briggs, em seu comentário de Salmos,201 já a
havia assinalado e feito a retroversão para a leitura correspondente da LXX em hebraico: uma
forma nominal da raiz verbal ‫“( כשל‬tropeçar”, “cambalear”). Como o texto de Salmos da
Peshitta tende a seguir a LXX,202 não há apoio significativo da evidência externa para a leitura
variante (Jerônimo apresenta uma leitura igual à do TM: insipientiae eorum, “insensatez
deles”), que quase não é discutida pelos comentaristas.203 Portanto, o texto da tradição
massorética deve ser mantido aqui.

194
Os dois dicionários fazem diferença entre ‫“( דמה‬ser como”, “assemelhar-se”) e ‫“( דמה‬destruir”; nifa : “ser
destruído”). Ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 197-8; KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 225-6.
195
Em português chamaríamos de oração subordinada/transposta adjetiva (ver BECHARA, 2009, p. 463-4, 486-
9).
196
Ver a preferência pela leitura que melhor explica as demais como um cânon da crítica textual em ARCHER,
1994, p. 65.
197
Keil e Delitzch também apoiam essa leitura do TM (ver KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352).
198
LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete σ ά δα .
199
OLIVER, 1861, p. 94, nota crítica do v. 13.
200
KITTEL, 1906, v. 2, p. 945.
201
BRIGGS, 1906, p. 413. O próprio Briggs indica que essa leitura da L é “improvável”.
202
Segundo Edson de Faria Francisco, a tese de que a Peshitta segue a LXX em Salmos e nos Doze Profetas é
defendida por F. E. Deist e Emanuel Tov (FRANCISCO, 2008, p. 499).
203
E.g., não mencionam esse problema os seguintes comentários: DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON;
TANNER, 2014; KRAUS, 1993; CRAIGIE, 1983.
34

O segundo problema textual do versículo 14 tem sido objeto de bastante debate entre
exegetas, envolvendo a tradição massorética (‫וְַאח ֲֵריהֶם‬, “e depois deles”) e o Targum (‫ובסופהון‬,
“o fim204 deles”). Ainda que vários estudiosos defendam a mudança no texto consonantal para
que faça mais sentido — alguns seguindo a leitura do Targum (em retroversão para o
hebraico: ‫ַאח ֲִריתָ ם‬, “o fim deles”),205 outros propondo uma emenda textual que estabeleça um
ְ “suas veredas”)206 —, não há razão substancial para
termo paralelo a ‫( דַ ְרכָם‬neste caso: ‫ָארחֹותָ ם‬,
rejeitar a forte evidência externa.ְְ
A leitura ‫“( ַאח ֲֵריהֶם‬depois deles”) tem o apoio de outras versões, como a LXX ( ε ὰ
αῦ α, “depois dessas coisas”), a Vulgata (postea, “depois disso”, “posteriormente”)207 e o
Psalterium iuxta Hebraeos (post eos, “depois deles”), que entendem o texto hebraico de
forma semelhante à tradição massorética e o traduzem de forma quase literal. Visto que o TM
faz sentido (embora seja a lectio difficilior) e sua locução ‫ ַאח ֲֵריהֶם‬pode ser traduzida de várias
formas,208 além do grande amparo da evidência externa, não há razão alguma para seguir o
Targum.209
Nas outras duas questões levantadas no aparato crítico do versículo 14, a primeira
tem pouca importância por dizer respeito a uma variação de preposição hebraica: enquanto o
TM traz ‫“( ְבפִיהֶם‬nas bocas deles”), dois manuscritos hebraicos medievais (2Mss) trazem
‫ ְַכפִיהֶם‬. Segundo Bardtke,210 Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos) apoia a leitura dos dois
manuscritos ao usar a expressão iuxta os eorum (“como211 a boca deles...”). Entretanto, esta
não é a primeira vez que a preposição ‫ ְְב‬é usada para indicar o objeto da raiz verbal ‫( רצה‬cf. Sl
147.10; 149.4),212 o que torna difícil fazer uma retroversão da tradução de Jerônimo para
afirmar seu apoio a uma ou a outra variante textual. A leitura do TM certamente deve ser
seguida aqui.

204
KAUFMAN, 2004, verbete ‫ ;סוף‬KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, v. 5,
p. 1938.
205
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 666, 667; DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER,
2014, p. 442 (ver, em especial, a nota 6); BRIGGS, 1906, p. 413;
206
Esta é a proposta de KRAUS, 1993, p. 730-1 e a que o próprio editor da BHS, H. Bardtke, acha mais provável
(frt l) e cita Jó 8.13 (Hi 8,13), que traz o plural ‫ָארחֹות‬
ְ (“veredas”) com o sentido de “destino” dos ímpios, como
apoio a essa hipótese, (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131).
207
HARDEM, 1921, p. 90; WHITAKER, 2012, verbete postea.
208
Ver, e.g., as tradução de DAHOOD, 1965, p. 296, 299-300 (“o final definitivo daqueles...”) e CRAIGIE, 1983,
p. 356 (“daqueles depois deles...”).
209
Ver também a análise em KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.
210
Ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
211
WHITAKER, 2012, verbete iuxta.
212
NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note 27.
35

O problema textual seguinte diz respeito ao verbo ‫( י ְִרצּו‬3ª. pessoa do masculino


plural do imperfeito do qal de ‫רצה‬, “ter prazer [em]”, “ser favorável a”), que é traduzido na
versão grega de Áquila (α´)213 por δρα ῦ αι214 (2 . aoristo do verbo ρ χω, “propagar”;
“progredir livremente”; “correr”),215 cuja leitura aparece na tradução de Jerônimo (Psalterium
iuxta Hebraeos) como current (“fluirá rapidamente”; “prosseguirá”; “correrá”). Essa leitura
variante teria o correspondente na forma ‫( י ָֻרצּו‬3ª. pessoa do masculino plural do imperfeito do
qal de ‫רּוץ‬, “correr”( do hebraico, que parece ser apoiada pela transliteração ιαρ σ da
segunda coluna da Héxapla de Orígenes ( εβρʹ). Portanto, a variante textual surgiu de uma
pontuação vocálica diferente,216 em nada alterando o texto consonantal. A LXX
(εὐ γήσ σι , “falarão bem”, “louvarão”; “bendirão”)217 apoia a leitura do TM, que
apresenta a provável leitura original.218
No aparato crítico da BHS há dez questões textuais indicadas no versículo 15,219
cinco a mais do que a edição mais antiga (BHK).220 Portanto, nossa análise desse versículo se
limitará aos problemas de crítica textual que estejam relacionados às versões e testemunhas
antigas, não às sugestões de emendas de Bardtke sem evidência externa que as apoie.221
A letra g do aparato crítico indica que muitos manuscritos (mlt Mss) e o qerê (Q)
222
[texto lido] apresentam a variante ‫ְצּורם‬
ָ ‫“( ו‬e a forma deles”; “e o modelo deles”; “e os
ornamentos talhados deles”223); o ketîv (K) [texto escrito] tem a leitura ‫ִירם‬
ָ ‫“( ְוצ‬e a forma
deles”, “e a imagem deles”);224 na tradução da LXX consta α ἡ β ήθεια αὐ ῶ (“e a ajuda/o
suporte225 deles”); a Peshitta traz t n,226 que é correspondente a ‫צּורתָ ם‬
ָ ‫“( ְְו‬e a forma

213
FRANCISCO, 2008, p. 73.
214
Mais especificamente: δρα ῦ αι εί (ver FIELD, 1875, v. 2, p. 171).
215
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 826-7.
216
Sobre esse tipo de erro de cópia, ver ARCHER, 1994, p. 63.
217
BAUER; ARNDT; GINGRICH; DANKER, , 1979, p. 322; LIDDELL, 1996, p. 327.
218
A grande maioria dos comentaristas segue a leitura do TM aqui. Ver DAHOOD, 1965, p. 296, 300;
DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; KRAUS, 1993, p. 730; CRAIGIE, 1983, p.
356.
219
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131. Embora as variantes de leitura sejam listadas até a letra k, a BHS omite
a letra j das variantes, o que resulta em dez problemas analisados, não onze.
220
KITTEL, 1906, v. 2, p. 945. As variantes de leitura são listadas até a letra e.
221
Na edição da BHS, as discussões que não envolvem a evidência externa de testemunhas e versões antigas são:
a, b—b, c, d, e—e, f.
222
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 849. Para a ausência do ‫ ת‬na ligação do substantivo com o SPP 3MP,
que aparece na reconstrução da Peshitta, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 255-6, §91.e.
223
GOULDER, 1982, p. 191.
224
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1024.
225
LOUW; NIDA, 1996. v. 1. p. 458.; ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 180.
226
Oliver traduz por “beleza”, mas reconhece que a Peshitta traz o mesmo termo do TM (ver OLIVER, 1861, p.
95, nota crítica do v. 14.).
36

deles”, “e a imagem deles”; “e os ornamentos talhados deles”), o mesmo termo do qerê, mas
com o ‫ ת‬para o acréscimo do sufixo pronominal possessivo (‫)ָָ ם‬.227ְ Bardtke propõe (prp)
‫ יֵצֶר( ְוַי ִצ ְָרם‬+ ‫ָָ ם‬, “obra talhada deles”, “obra de artífice deles”,228 “forma de imagem esculpida
deles”229) ou (vel) ‫ יָצּור( ַי ְצּורַָם‬+ ‫]?[ ָָ ם‬, “o membro deles”).230
De acordo com John E. Hartley, ambas as formas do ketîv (‫ )צִיר‬e do qerê (‫)צּורה‬
ָ
estão associadas a ‫צּור‬, que é uma provável derivação de ‫“( יצר‬formar”, “moldar”) e teriam
quase o mesmo sentido.231 Devido ao apoio de muitos manuscritos e da indicação de leitura
da tradição massorética, a leitura original mais provável é ‫ְצּורם‬
ָ ‫ו‬, o que explicaria a confusão
na tradução da LXX com um termo composto com as mesmas consoantes no hebraico
(β ήθεια [“ajuda”, “socorro”] = ‫צּור‬, “segurança”, “refúgio” [sentido figurado]).232
No problema textual seguinte, Bardtke afirma que poucos manuscritos hebraico
medievais (pc Mss – de 3 a 10 manuscritos) trazem ‫( ְלכַלֹות‬preposição ‫ ְְל‬+ infinitivo construto
do grau piel de ‫ ָכלָה‬, “para” + “esgotar”, “consumir”, “destruir”, exterminar), 233 em vez de
‫( ְלבַלֹות‬preposição ‫ ְְל‬+ infinitivo construto do grau piel de ‫בלה‬, “para” + “gastar”, “consumir”,
“desfrutar plenamente”)234 da BHS. A proposta de Bardtke é uma revocalização do próprio
TM: ‫( ִלבְלֹות‬preposição ‫ ְְל‬+ infinitivo construto do grau qal de ‫בלה‬, “para” + “gastar-se”,
“desgastar-se”; “envelhecer”).235 Não há razão para seguirmos a revocalização do editor de
Salmos da BHS, tanto pela falta de apoio da evidência externa quanto pelo claro sentido que o
TM transmite, em especial com o Sheol como sujeito da ação. A explicação para a leitura
diferente de alguns manuscritos hebraicos é a confusão natural que escribas poderiam fazer
entre as letras ‫ ב‬e ‫ כ‬por sua semelhança na forma quadrática (ou “escrita aramaica”; cf.
também 1Cr 17.20).236
Na letra i do aparato do versículo 15, Bardtke informa que há leituras variantes em
relação à expressão ֹ‫[“( ִמזְבֻלַלו‬longe] da mansão dele”) do TM: a L (e a Peshita, mas em
parte) apresenta o sintagma ἐ ῆς δ ξ ς αὐ ῶ (“de glória deles”), o Códice Alexandrino da

227
BRIGGS, 1906, p. 413-4.
228
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 429;
229
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 428.
230
Sobre a suposta construção do singular do termo hebraico ‫ יְצ ִֻרים‬que só ocorre no plural em outras partes da
Bíblia Hebraica, ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 429.
231
HARTLEY, John H. ‫צּור‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 761-2.
232
GESENIUS, 2003, p. 706; cf. ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668.
233
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 158; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 478.
234
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 104; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001,
p. 132.
235
Para o significado do verbo no grau qal, ver SWANSON, 1997, verbete 1162.
236
BROTZMAN; TULLY, 2016, cap. 6 (edição kindle).
37

LXX (séc. V) e o texto grego da LXX segundo a recensão de Luciano de Antioquia (séc.
III)237 trazem a leitura do TM mais o verbo ἐξώσθ σα (3ª. pessoa do plural do aoristo
passivo de ἐξωθ ω — “são lançados fora/são expulsos [de sua mansão]”).238 A Peshitta está
relacionada com as duas leituras porque ela traz o que seria o equivalente a ἐ ῆς δ ξ ς (“da
glória”) da primeira variante, e ἐξωθ ω (“são lançados fora”) da segunda variante.239 A
proposta (prp) do editor de Salmos da BHS é que se leia ֹ‫“( זְבּולַלָמו‬mansão para eles/deles240”).
Não há razão para mudar ‫ ִמזְבֻל‬, visto que essa expressão hebraica do TM pode ter
estado presente na tradição textual que serviu de base para a tradução ἐ ῆς δ ξ ς da LXX,
revelando uma interpretação da versão grega, não uma tradução literal.241 Ademais, Jerônimo
(Psalterium iuxta Hebraeos) entende ‫ זְבֻל‬como habitaculum (“habitação”). A preposição ‫מִ ין‬
em ‫ מִ זְבֻל‬é plenamente compreensível em sua nuance privativa: “longe de”, “fora de”,242
portanto, não há razão para eliminá-la como propõe Bardtke. No entanto, é provável que ele
tenha razão em sua reconstrução ‫לָמֹו‬, em vez de ‫ לֹו‬do TM (uma provável omissão não
intencional do copista), que tem o apoio de αὐ ῶ na leitura da LXX.243
O último problema textual indicado no versículo 15 (k) apenas esclarece que muitos
manuscritos (mlt Mss) não têm o dagesh forte na letra ‫ ז‬da palavra ‫“( ִמזְבֻל‬da habitação
elevada”), algo que é plenamente compreensível, pois, quando a preposição ‫ ִמין‬ocorre em seu
modo inseparável com um substantivo, o “ fo te pode estar ausente de uma letra
e
pontuada com ’”.244 A questão do versículo 16 apontada no aparato crítico somente
declara que o acento disjuntivo de cantilação ’atna (ְ֑) deve ser transposto (huc tr)245 para a
última sílaba.
No versículo 18, vários manuscritos hebraicos medievais (nonn Mss — entre 11 e
246
20) e a LXX acrescentam o ‫“( ו‬e”) antes de ‫“( ֹלא‬não”) formando ‫“( וְֹלא‬e não”). A indicação
de que a LXX apoia a leitura ‫ וְֹלא‬é uma suposição com base no termo grego ὐδ (“nem”, “e

237
Ver FRANCISCO, 2008, p. 71, 77-8.
238
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 355; LIDDELL, 1996, p. 277. Nossa tradução entende o tempo aoristo
em seu aspecto pontilear.
239
Ver a tradução para o inglês desse versículo da Pehitta em OLIVER, 1861, p. 95.
240
Quanto ao entendimento do SPP como plural, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 301,
§103.f.
241
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668.
242
NET Bible, 2005, Psalm 49.14, translator note 32; BRIGGS, 1906, p. 414.
243
A preposição ‫ ְַל‬é usada no sentido de posse (ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 206-7 [exemplos 13-16]).
244
ROSS, 2009, p. 82.
245
FRANCISCO, 2008, p. 38.
246
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. LXVI.
38

não”, “nem sequer”),247 porém não há conjunção αί (“e”) para tornar evidente esse apoio da
versão grega à leitura variante dos manuscritos hebraicos. Portanto, não existe razão
suficiente para ler o texto hebraico diferente do TM.
No final da primeira parte do versículo 19, Bardtke declara que dois manuscritos
hebraicos medievais (2 Mss) leem ‫( י ְב ַֹרְך‬3ª. pessoa do masculino singular do imperfeito do
grau pual da raiz verbal ‫)ברך‬248 em vez de ‫( יְב ֵָרְך‬3ª. pessoa do masculino singular do
imperfeito do grau piel da raiz verbal ‫ )ברך‬do TM. A LXX traz como leitura εὐ γ θήσε αι
(“será louvada”, “será abençoada”249 — ἡ ψ χὴ αὐ ῦ = ‫ נַפְשֹו‬como sujeito do verbo) que
corresponderia a ‫( תְ ב ַֹרְך‬3ª. pessoa do feminino singular do imperfeito do grau pual da raiz
verbal ‫)ברך‬.250
Na leitura do TM, o indivíduo é quem “bendiz” ou, conforme nossa tradução,
“congratula”251 sua ‫“( נֶפֶש‬vida”).252 Na tradução da LXX, a alma/vida é “louvada” ou
“felicitada”, sem ter o próprio indivíduo como sujeito da ação. Na leitura de dois manuscritos
hebraicos medievais, o indivíduo é “congratulado” ou “felicitado” (passivo, masculino),
pressupondo o sujeito mencionado no versículo 18. A última leitura produziria um sentido
estranho à frase, pois não leva em conta a presença de ‫“( נַפְׁשֹו‬sua vida”).253 Como o
Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo) traz o verbo na voz ativa (benedicet — diferente da
LXX) e a Peshitta lê da mesma forma que o TM (o indivíduo como sujeito da oração que
abençoa a própria alma),254 a evidência externa indica que a tradição massorética preserva a
provável leitura original.
Na letra b do versículo 19 do aparato crítico, Bardtke afirma que ‫“( וְיֹודֻ ָך‬e eles te
louvam”)255ַ deve ser lido (l) “com” (c) um manuscrito hebraico medieval (Ms) que traz ‫וְיֹודְ ָך‬

247
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 734-5.
248
KELLEY, 1998. p. 398.
249
BAUER; ARNDT; GINGRICH; DANKER, 1979, p. 322; LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete
εὐ γ ω.
250
KELLEY, 1998, p. 398.
251
Para o sentido de “congratular” do verbo ‫ברך‬, ver 2Sm 8.10; KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 160.
252
Em nossa tradução por equivalência formal, ‫ נֶפֶש‬é entendida com o sentido de pronome reflexivo (WOLFF,
2008, p. 52-5).
253
Quanto à leitura “sem sentido” que impediria um texto “razoável e adequado” (ver WALTKE, Bruce, The
textual criticism of the Old Testament, in: GAEBELEIN, 1991, v. 1, p. 226).
254
Ver tradução da Peshitta para o inglês em OLIVER, 1861, p. 95.
255
3ª. pessoa, masculino, plural, pretérito, hifil do verbo ‫ ידה‬+ sufixo pronominal possessivo da 2ª. pessoa do
masculino singular.
39

(“e ele te louva”),256 orientando a “comparar” (cf) com a L e a Peshitta. Ambas de fato
pressupõem um sujeito do verbo na terceira pessoa do singular,257 o que apoiaria a leitura
proposta pelo editor da BHS. Entretanto, o Targum (‫ויודונך‬, “confessarão”, “louvarão”)258 e o
Psalterium iuxta Hebraeos (laudabunt, “[eles] louvarão”, “[eles] recomendarão”)259 ratificam
a leitura do TM com seus verbos na 3ª. pessoa do plural.
O último problema textual do versículo 19 assinalado no aparato da BHS diz que o
sintagma ‫“( לְָך‬contigo”, “para ti”) do TM deve “ser lido” (l) de modo diferente, adotando
(“com” [c]) a locução apresentada em “poucos manuscritos” (pc Mss), na L (αὐ ῷ, “com
ele”) e na Peshitta,260 o que corresponderia a ‫“( לֹו‬com ele”, “para ele”). Entretanto, como o
texto de Salmos da Peshitta tende a seguir a LXX,261 não há apoio significativo da evidência
externa para a leitura variante, visto que a tradução de Jerônimo (Psalterium iuxta Hebraeos)
apresenta uma leitura igual à do TM (tibi, “contigo”). A grande maioria dos comentaristas
segue a leitura do TM como a original,262 assim como fazemos aqui.
No versículo 20, o aparato indica no problema textual a que a Peshitta tem o
sintagma wtmtjwhj, traduzido pelo editor por et perduces eum (“e tu o levarás”),263 em lugar
de ‫“( תָ בֹוא‬tu irás” ou “ela irá”) do TM. Bardtke, então, propõe a leitura na 3ª. pessoa: ‫יָבֹוא‬
(“ele irá”). Tanto Jerônimo (intrabit, “[ele/a] entrará”) quanto a LXX (ε σε εύσε αι, “[ele/a]
irá para dentro”, “entrará”) apoiam a leitura na 3ª. pessoa (masculino [Bardtke] ou feminino
[TM]). Embora Kraus ache ilógica a leitura do TM,264 e Craigie siga a reconstrução de
Bardtke afirmando que a LXX apoia essa leitura265 (o que não é seguro, pois a leitura do TM
pode ser a 3ª. pessoa do feminino), Goulder propõe ‫ נֶ ֶַפש‬como o sujeito da construção do TM
(“ela [a ‫ ]נֶפֶש‬irá”), o que é plausível à luz de outro trecho do Saltério em que a ‫ נֶפֶש‬corre o

256
3ª. pessoa, masculino, singular, pretérito, hifil do verbo ‫ ידה‬+ sufixo pronominal possessivo da 2ª. pessoa do
masculino singular.
257
A LXX traz ἐξ γήσε αί (“ele louvará”, “dará graças”, “professará”). Quanto ao verbo usado na Peshitta,
ver OLIVER, 1861, p. 95, espec. nota crítica do v. 18.
258
WHITAKER, 2012, verbete laudabunt.
259
KAUFMAN, 2004, verbete ‫ידי‬.
260
OLIVER, 1861, p. 95, versículo 18.
261
Segundo Edson de Faria Francisco, a tese de que a Peshitta segue a LXX em Salmos e nos Doze Profetas é
defendida por F. E. Deist e Emanuel Tov (FRANCISCO, 2008, p. 499).
262
DAHOOD, 1965, p. 296, 302; GOULDER, 1982, p. 194; DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER,
2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p. 357; GOLDINGAY, 2006, psalm 49.
263
Ver também a tradução de OLIVER, 1861, p. 95, versículo 19.
264
KRAUS, 1993, p. 730,732.
265
CRAIGIE, 1983, p. 357.
40

ִ ‫“( ֹלא־תַ עֲז ֹב ְנַ ְפ‬não abandonarás minha ‫ נֶפֶש‬no Sheol”).266


risco de ser lançada ao Sheol: ‫שיַ ִלשְאֹול‬
Portanto, não há razão segura para descartar a leitura do TM, em especial porque o texto dos
versículos 19 e 20 (TM) tem uma grande variação de pessoa nas raízes verbais e nos sufixos.
Naturalmente, essa variação explica a tentativa de Bardtke (e também da LXX) de formular
um texto mais padronizado com sufixos e raízes verbais conjugados na terceira pessoa do
masculino singular.267 Nesse caso, a leitura que melhor explica as demais deve ser
preferida,268 ou seja, a do TM.
No segundo problema textual do versículo 20, o editor de Salmos da BHS indica
uma variante de leitura relacionada a ‫( י ְִראּו‬verão), em que dois manuscritos hebraicos
medievais (2 Mss) trazem ‫( י ְִראֶה‬verá) com o apoio da LXX (ὄψε αι, “verá”) e da Peshitta
(“verá”).269 Como já assinalado no parágrafo anterior, há claramente uma tentativa de
padronização dos verbos e sufixos da LXX na terceira pessoa do singular, o que é visto mais
uma vez aqui.270
Um escriba era mais capaz de simplificar ou esclarecer o fraseado de seu original do
que de torná-lo mais difícil para a compreensão em sua leitura pública. Se ele deixou
uma palavra rara, uma expressão difícil ou uma forma gramatical irregular, isso deve
ter ocorrido porque ele a encontrou dessa forma em seu texto padrão. 271
O Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo) usa o verbo na terceira pessoa do plural em
sua tradução: videbunt, “verão”.272 É interessante notar que o próprio Kraus, cuja preferência
em problemas textuais anteriores foi pela L , decide seguir o TM neste caso: “que no ven la
273
luz” [que não veem a luz]. A variação de pessoas, em vez da padronização, é uma evidência
interna que favorece a leitura do TM.
No versículo 21, os problemas textuais a e c são tentativas de estabelecer uma forma
idêntica à do refrão no versículo 13, que é repetido aqui. No versículo 13, o texto do TM
começa com ‫( וְָאדָ ם‬a conjunção ‫ ְְו‬+ o substantivo), ao passo que o versículo 21 (TM) traz
apenas o substantivo: ‫ָאדָ ם‬. Então, Bardtke assinala que poucos manuscritos hebraicos
medievais (pc Mss), os Códices Veronense (séc. VI) e Sinaítico (séc. IV) da LXX, bem como

266
GOULDER, 1982, p. 194. Observe-se que Goldingay também pensa ser absolutamente possível a leitura de
‫ נֶפֶש‬como sujeito de ‫( תָ בֹוא‬GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 17).
267
Ver essa tentativa de padronização na próxima questão textual e nas anteriores.
268
CHISHOLM, 2016, p. 24-5.
269
A tradução da Peshitta se baseia na tradução para o inglês de OLIVER, 1861, p. 95, versículo 19.
270
O texto de Salmos da Peshitta tende a seguir a LXX, o que explica sua conjugação no singular. Ver a
discussão anterior nesta seção e a análise em FRANCISCO, 2008, p. 499.
271
ARCHER, 1994, p. 65.
272
WHITAKER, 2012, verbete videbunt.
273
KRAUS, 1993, p. 730. Ver também ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 665.
41

o texto da recensão da LXX feita por Luciano de Antioquia (séc. III), 274 trazem a leitura ‫וְָאדָ ם‬,
igual ao texto do versículo 13. A maioria dos manuscritos da LXX (ἄ θρωπ ς), a Peshitta275 e
o Psalterium iuxta Hebraeos (homo) apoiam a leitura do TM. A forte evidência externa
favorece a tradição massorética, que também apresenta a lectio difficilior.
Outra tentativa de manter uma forma idêntica dos refrões (problema textual c do
versículo 21) ocorre com o verbo ‫“( יָבִין‬entende”), que é substituído em poucos manuscritos
hebraicos medievais (pc Mss) por ‫“( יָלִין‬permanece”), formando um texto hebraico idêntico ao
do versículo 13. Esse fato é reconhecido pelo próprio editor de Salmos da BHS (ut [“como”]
13).276 Não há apoio externo algum para essa variante textual,277 que deve ser descartada pela
razão apresentada por Gestenberger: “... as antigas versões — e os intérpretes modernos —
tendem a adaptar um verbo ao outro. [...] Portanto, é mais difícil explicar as diferenças no
vocabulário, e podemos considerar essas diferenças como mais provavelmente originais.”278
O problema textual d do versículo 21 é semelhante ao problema textual b do
versículo 13, e já foi discutido em detalhes em nossa análise crítica acima. Por fim, a questão
c do versículo 21 no aparato da BHS indica leituras variantes para o sintagma ‫( וְֹלא‬conjunção ‫ְְו‬
+ advérbio de negação) do TM: dois manuscritos hebraicos medievais (2 Mss) e as versões
(Vrs) trazem ‫( ֹלא‬sem a conjunção ‫ ;)ְַו‬poucos manuscritos hebraicos medievais (pc Mss — de
3 a 10)279 apresentam a leitura ‫( בַל‬advérbio: “não”).
A segunda variante é, evidentemente, mais uma tentativa de padronização de refrão
(v. 13, 21), que foi analisada e rejeitada nos dois parágrafos anteriores. Além disso, ela carece
de evidência externa que a apoie claramente e não oferece, de modo significativo, mudança de
sentido em relação à primeira variante de leitura (versões). Quanto à ausência ou presença da
conjunção ‫ ְְו‬, as versões parecem oferecer uma leitura razoável e que deve remontar ao texto
hebraico original, pois formam um único testemunho textual em favor da ausência da

274
Para a leitura do aparato apresentada aqui, ver FRANCISCO, 2008, p. 78, 80.
275
OLIVER, 1861, p. 95, versículo 20.
276
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
277
Ver LXX (σ ῆ ε ); Psalterium iuxta Hebraeos (intellexit); Peshitta (OLIVER, 1861, p. 95, versículo 20).
278
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).
279
FRANCISCO, 2008, p. 86-7.
42

conjunção280 e estabelecem um princípio geral como qualificativo para o ‫“( ָאדָ ם ַבִיקָר‬ser
humano em esplendor”): ele “não tem entendimento” (‫)ֹלאַיָבִין‬.281
Depois de examinar a grande maioria dos problemas listados pelo aparato crítico da
BHS, ficou constatado que o TM reflete com mais probabilidade o texto em sua época de
produção, antes que começasse a ser copiado e preservado. A LXX segue o TM em grande
parte do Salmo 49, mas diverge dele em alguns trechos (muitas vezes acompanhada da
Peshitta), geralmente buscando uma leitura mais fluente e mais clara (e.g., v. 9a, 12a, 19ac,
20). A Segunda Coluna da Héxapla de Orígenes diverge em diversos aspectos do TM,
apresentando leituras variantes bastante peculiares em alguns momentos (v. 4, 6). O
Psalterium iuxta Hebraeos apoia em grande parte o TM e confirma a antiguidade da leitura
massorética. As variantes textuais normalmente são causadas por metátese (inversão de
sílabas em uma palavra), confusão de grafias semelhantes e de tentativas de deixar o texto
mais claro ou menos truncado. Em geral, o TM deve ser seguido, ora por forte apoio da
evidência externa, ora por apresentar a lectio difficilior ou lectio brevior.

1.3. Análise Literária do Salmo 49

“A poesia lírica se distingue de outras formas literárias no fato de ela ser uma forma
mais concentrada de discurso com uso mais intencional de elementos artísticos”.282 Portanto,
não observar a forma artística usada pelos poetas bíblicos para comunicar sua mensagem de
modo vívido e claro a seus leitores implica, certamente, deixar de apreciar parte do sentido
que o texto pode nos transmitir.
Nesta subseção, pretende-se lidar com os aspectos literários do Salmo 49. A princípio,
o objetivo é investigar sua relação com a chamada literatura de sabedoria: é possível
classificá-lo como poesia sapiencial, distinta, por exemplo, de outras composições cultuais,
como os lamentos e os hinos de louvor? Em seguida, será analisada a estrutura do salmo,
examinando propostas e sugerindo uma maneira de compreender o arcabouço literário que
contribua para uma apreciação mais ampla de sua beleza retórica. Por fim, serão destacados

280
LXX ( ὐ σ ῆ ε σ ῆ ε ); Psalterium iuxta Hebraeos (non intellexit); Peshitta (OLIVER, 1861, p. 95,
versículo 20: “Man in his honour hath no understanding…”).
281
Ver apoio à leitura variante das versões em ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 665; DECLAISSÉ-
WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 442; CRAIGIE, 1983, p. 357; KRAUS, 1993, p. 730; NET
Bible, 2005, Psalm 49.21.
282
ROSS, Allen P., Psalms, in: WALVOORD; ZUCK, 1985, v. 1, p. 780.
43

elementos artísticos que reforçam e tornam mais vívida a mensagem do texto bíblico que é
objeto do presente estudo.283

1.3.1. A Gattung do Salmo 49: Um Salmo de Sabedoria

Em geral, há o reconhecimento de que alguns salmos da Bíblia Hebraica devem ser


classificados como “salmos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 73; 112),284 relacionados aos mestres
do antigo Israel, que estavam, de certa forma, ligados ao movimento mais amplo da sabedoria
no Antigo Oriente Próximo.285 Alguns temas centrais da sabedoria em Israel eram pobreza
versus riqueza e a retribuição divina,286 devido à sua preocupação com o ensino de uma
conduta prática, fornecendo regras para uma filosofia de vida.287 O salmos sapienciais
também lidam com problemas que ameaçavam a vida dos fiéis no antigo Israel,
desenvolvendo reflexões e propondo soluções.288

Segundo Westermann, devemos distinguir entre “ditados de sabedoria”, breves


sentenças sapienciais encontradas, por exemplo, nos Salmos de Peregrinação (‫ ;ׁשִ ירַ ַה ַמעֲלֹות‬Sl
127.1,2,3-5; 133), e os “poemas/cânticos de sabedoria” (e.g., Sl 37; 49; 73; et al.), que eram
composições maiores e tinham uma profunda relação com o culto no antigo Israel. 289 À
medida que os antigos mestres dominaram os gêneros dos salmos começaram a usá-los como
meios para expressar suas reflexões,290 havendo, consequentemente, uma influência recíproca
de temas entre a literatura sapiencial e a tradição do culto a YHWH.291
Os salmos sapienciais estão relacionados entre si não por um gênero literário
específico, mas por temas e linguagem comuns.292 Essas características têm sido identificadas
por estudiosos a fim de auxiliar na classificação dos textos de sabedoria da tradição cultual
hebraica. Apesar da relutância de poucos estudiosos em classificar o Salmo 49 como “salmo

283
Para uma análise mais breve do Salmo 49 publicada por este autor, ver NETO, 2017, p. 146-155.
284PLEINS, 2001, p. 430-8; SAUR, 2015, p. 181-201.
285
BERRY, 1995, cap. 2 (edição kindle); KRAUS, 1993, p. 89-90; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 485-7.
286
SABOURIN, 1974, p. 370; PINTO, 2014, p. 478.
287
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, v. 1. p. 59; BELLINGER, 2012, p. 129.
288
VON RAD, 1973, p. 72.
289
WESTERMANN, 1980, p. 111.
290
VON RAD, 1973, p. 72.
291
WEISER, 1994, p. 59.
292
KRAUS, 1993, p. 90; SABOURIN, 1974, p. 369-71.
44

de sabedoria”,293 há um consenso de que esta seja a designação mais adequada para o texto de
nossa análise.294
Diversos elementos indicam que o Salmo 49 é sapiencial (cf. Sl 37; 73, 112). Em
primeiro lugar, salmos sapienciais apresentam um chamado inicial feito pelo mestre (cf. Sl
78.1; Pv 2.1; 7.24: “E agora, filhos, dai-me ouvidos...”).295 “Essa é uma exortação transmitida
entre um mestre humano e alunos humanos, com o mestre convocando os alunos a receberem
a sabedoria declarada a eles por meio do ato de ouvir”, o que ecoa “um tipo específico de
discurso encontrado na literatura bíblica de sabedoria”.296 O início do texto do Salmo 49 traz
esse chamado que se dirige não apenas a Israel, mas a todos os povos (v. 2):
‫ׁשמְעּו־ז ֹאתַ ַָכל־ ָה ַע ִמים‬
ִ
“Escutai isto todos os povos!”
‫שבֵיַ ָחלֶד‬
ְ ֹ ‫ַה ֲאזִינּוַכָל־י‬
“Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!”

Além do chamado inicial, um aspecto literário significativo dos salmos sapienciais é


que eles “não são dirigidos a YHWH em oração e louvor, mas aos homens, especialmente aos
menos instruídos”.297 O salmo 37, por exemplo, começa com uma exortação com diversos
verbos no imperativo da segunda pessoa do singular: “Não te ires [...] Não tenhas invejas [...]
Faze [...] Confia [...] Habita...” (37.1ss.),298 e depois refere-se a YHWH ou ’ n , na
terceira pessoa do singular, como a divindade que pune os ímpios e abençoa os justos: “O

293
Gerstenberger, por exemplo, demonstra essa relutância e afirma que o salmo é uma “comunicação cultual
divina” composta para ser cantada por um solista em um contexto de culto religioso em Israel. No entanto, ele
mesmo reconhece que a linguagem do salmo revela “a influência da reflexão de sabedoria na adoração posterior
ao Exílio” e o classifica como “Meditação e Instrução” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]).
294
MURPHY, 1977, p. 34-5; SAUR, 2015, p. 192-5; BROYLES, 2009, p. 98; CRAIGIE, 1983, p. 358; SMITH,
2011, p. 107-8; RENDTORFF, 1998, p. 39; DAHOOD, 1965, p. 296; ZUCKER, 2005, p. 147; WEISER, 1994,
p. 285; KRAUS, 1993, p. 732-3; GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 400; SABOURIN, 1974, p. 374-5; LONGMAN III,
2014, Psalm 49 (edição kindle); SILVA, 2003, p. 21.
295
BUSS, 1963, p. 383. BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; O salmo 78 tem uma introdução
semelhante, em que há um apelo imperativo a “dar ouvidos” (‫ ) ַה ֲא ִזִ֣ינָה‬v. 1; cf. 49.2), uma referência à “boca”
como o veículo do discurso de sabedoria (v. 2; cf. 49.4) que profere “parábola” e “enigmas” (78.1-3; cf. 49.5)
(ver DUNN, 2009 [Tese de Doutorado], p. 203).
296
PETRANY, 2014, p. 87.
297SCOTT, 1971, p. 197. Cf. CROFT, 1984, p. 58: “Claramente, o Salmo 49 é um sermão, não uma oração —

dirigido a homem, a todos homens, não a Deus”.


298
‫ׁשכָן‬
ְ ַ[...] ‫שה‬
ֵּ ‫[ַַאל־תְ ַקנֵּא ]…[ ְבטַח ]…[ ַו ֲע‬...] ‫ַאל־תִ תְ חַר‬
45

Senhor rirá dele299 [...] mas YHWH sustenta os justos300 [...] os passos do homem são
preparados por YHWH”301 (v. 13,17,23).302
Com o Salmo 49 não é diferente. Além do chamado inicial na segunda pessoa do
plural (v. 2-5; ver análise acima), o salmista apresenta uma reflexão sobre as riquezas e a
morte introduzida pela primeira pessoa do singular: “Por que temerei os dias maus...?”303 (v.
6-16), em que há referências a “Deus” (‫ )אֱֹלהִים‬na terceira pessoa do singular (v. 8,16), e
depois, apresenta uma exortação a seu público na segunda pessoa do singular: “Não
temas...”304 (v. 17-20). Portanto, não há súplica ou ação de graças dirigida a YHWH.
Outra característica importante dos salmos sapienciais é a tentativa de responder à
evidente ausência de retribuição à maldade dos ímpios e à justiça dos fiéis nesta vida, pois os
ímpios parecem prosperar enquanto os justos padecem.305 O Salmo 49 busca lidar com essa
questão debatida pelos sábios. A pergunta inicial, logo na primeira parte do salmo, indica esse
foco do autor: “6Por que temerei [...] [quando] a maldade dos que me atacam por trás306 me
cercar? 7Os que confiam em suas posses e na abundância de seus bens se gloriam?”307 (Sl
49.6,7]). Claramente, os ricos são identificados como traidores maldosos que perseguem o
justo.
A resposta/advertência segura no versículo 17 realça, novamente, essa questão e
mostra que o justo não precisa temer o ímpio que se enriquece: “Não temas se um homem
alcançar riquezas,308 se aumentar a glória de sua casa”,309 pois a morte é a grande niveladora
e demonstrará, de forma, definitiva o caráter efêmero das riquezas, cancelando as diferenças
entre ricos e pobres:310 “Pois não tomará tudo [consigo] em sua morte, não descerá atrás dele
sua glória” (v. 18). Enquanto o autor do salmo manifesta sua certeza de que será redimido

299
‫שחַק־לֹו‬ ְ ִ ‫אֲדֹנָיַי‬
300
‫וְסֹו ֵַּמְךַצַדִ י ִַקיםַי ְהוָ ָֽה‬
301
‫ֵַּמי ְהוָהַ ִמ ְצעֲדֵּ י־גֶבֶרַכֹו ָָ֗ננּו‬
302No Salmo 73, que também é classificado como sapiencial por vários estudiosos (e.g., PLEINS, 2001, p. 434-

5), há uma descrição da situação passada do salmista de questionamento acerca da prosperidade dos ímpios (v. 3-
16) e da resolução de seu dilema ao entrar no santuário de ’ e ver o “fim deles” (‫ )לְַאח ֲִריתָ ם‬como resultado do
juízo divino, em contraste com justo que é guiado e “recebido em glória” por Deus (v. 17-24). O louvor ocorre
apenas em uma pequena parte no final do salmo (v. 25-28). Ver também o Salmo 128.
303‫יַרע‬ ָ ֵ‫ִיראַבִימ‬ ָ ‫ָלמָהַא‬
304‫ירא‬ ָ ִ‫ַאל־ת‬
305
LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); SABOURIN, 1974, p. 370.
306
Ver discussão sobre essa opção de tradução na análise exegética do versículo 6.
307
‫[ַעֲֹוןַ ֲע ֵּקבַיַי ְסּו ֵּבנִי הַבֹט ְִחִ֥יםַעַל־חֵּילָםַּובְר ֹבַ ָעׁש ְָרםַי ִתְ ַהלָלּו‬...]ַ‫ִירא‬
ָ ‫ָלמָהַא‬
308
Ver esse sentido do verbo ‫ עשר‬no grau hifil em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 897.
309
‫ִרַאיׁשַכִ ָֽי־ ִ֝י ִ ְרבֶהַכְב֣ ֹודַבֵּית ֹו‬
ִ֑ ִ ‫יראַכִי־י ַ ֲעׁש‬
ָ ִַ‫ַאל־ת‬
310
GOULDER, 1982, p. 181; BERRY, 1995, cap. 5 (edição kindle).
46

(‫ )פָדָ ה‬da morte por YHWH (v. 16 [15]), os que confiam nas riquezas, em vez de em YHWH,
“como rebanho dirigem-se311 para o Sheol, Morte os pastoreará...”312 (v. 15 [14]).
Termos do salmo como ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), ‫תְ בּונָה‬
(“entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1), ‫“( ָמשָל‬provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9),
‫“( חִידָה‬enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2) são característicos da literatura de sabedoria do antigo
Israel.313 A estilização autobiográfica também faz parte da poesia sapiencial (cf. Sl 73; Pv
24.30-34).314 No Salmo 49, a declaração do autor de que falará de “sabedoria” e exporá um
“enigma” ocorrem na primeira pessoa (v. 4-5), bem como a descrição da situação inicial em
que o salmista se vê cercado por ímpios traiçoeiros e ricos (v. 6,7).
Diante dos vários aspectos aqui destacados, parece seguro afirmar que o Salmo 49 é
uma poesia de sabedoria, escrita por um mestre que reflete sobre as incoerências da vida e
busca respondê-las com os elementos da morte e do cuidado de YHWH com aqueles que nele
confiam ao livrá-los do Sheol.

1.3.2. Estrutura do Salmo 49

Dentre as propostas mais ousadas para entender a estrutura do Salmo 49 está a de


David Zucker, que propõe uma reordenação dos versículos, seguindo uma estrutura de
degrau315 e perguntas-respostas, em que parte de um verseto é repetida e se torna o ponto de
partida para um novo movimento na poesia do salmo.316 O problema com a proposta é que ela
demanda uma mudança radical na sequência do texto, sem apoio textual para isso, como se
observa a seguir:317
Introdução (v. 2,4,3,5)
A. Por que devo temer o mal?
A morte é o destino dos que confiam em si (v. 6,14)
B. Pessoas que confiam na riqueza
A morte será o pastor delas (v. 7,15)
C. O dinheiro não pode redimir
Deus redime da morte (v. 8,16)

311
Ver esse sentido de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 da tradução do Salmo 49 (edição
kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 3c.
312
‫תּוַמוֶתַי ְִרעֵּם‬
ָ֤ ָ ‫ׁש‬
ַ ַ‫כַצ ֹאןַ ִלׁש ְ֣אֹול‬
313
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).
314
KRAUS, 1993, p. 90.
315
Embora ele cite Briggs para apoiar sua proposta de estrutura, o paralelismo de degraus explicado por Briggs
demanda repetição dos mesmos termos hebraicos, o que não ocorre na reestruturação de Zucker (ver BRIGGS,
1906, p. xxxvii).
316
ZUCKER, 2005, p. 145-7.
317
ZUCKER, 2005, p. 145-50.
47

D. O preço do resgate é muito alto


Por isso, não tenha medo da riqueza (v. 9,17)
E. Acaso um indivíduo viverá para sempre?
A riqueza não descerá atrás de nós (v. 10,18)
F. Todos morrem
Embora em vida o indivíduo se abençoe (v. 11,19)
G. Mesmo os ancestrais famosos morreram
Ele se reunirá a seus ancestrais (v. 12,20)
Refrão: Como animais perecemos
Como animais perecemos (v. 13,21)

A falta de correspondência em algumas perguntas-respostas também revela a fraqueza


do esquema de Zucker, reconhecida pelo próprio autor, mas justificada como sendo causada
pelas alterações que o salmo sofreu no processo de transmissão.318 Fica evidente o argumento
circular aqui: algumas perguntas-respostas não têm correspondência porque sofreram
corrupção, e a suposta corrupção é vista na falta de correspondências entre as perguntas-
respostas.
Em vez de uma estrutura em degraus, alguns estudiosos têm observado uma estrutura
no Salmo 49 em forma de quiasmo relevante para o entendimento de sua mensagem central.
David Pleins, em um de seus artigos, desenvolve uma proposta de estrutura que ajuda
a ver essa natureza quiasmática do salmo, embora seja fragmentada demais para formar uma
estrutura geral. Ele observa que tanto no centro quanto no início/fim do salmo a ênfase do
texto está no fato de que os bens do rico tolo não o acompanharão em sua morte, servindo de
testemunho de sua tolice e da natureza humana passageira.319 Pleins elabora o seguinte
quiasmo no Salmo 49 com base em repetição de termos semelhantes no hebraico e em
paralelos temáticos:320
A. Ouvir: a primeira forma adequada de receber sabedoria (v. 2)
B. Todas as pessoas são chamadas a um entendimento mais profundo sobre a condição humana (v. 3-
4)
C. Uma pessoa cresce em entendimento à medida que dá ouvidos à sabedoria do salmo (v. 5)
D. O temor dos dias maus e os que confiam em suas riquezas (v. 6-7)
E. Um homem não pode redimir sua vida da morte (v. 8-9a)
F. O rico vê o sábio e o tolo morrendo, porém não atenta para a
sepultura (v. 9b-11a)
G. Os ricos e seus bens não são permanentes (v. 11b)
H. As construções dos ricos testemunham de que eles
não são eternos (v. 12-13)

318
ZUCKER, 2005, p. 151.
319
PLEINS, 1996, p. 19-20, 25-6.
320
PLEINS, 1996, p. 19-27.
48

G’. A reputação dos ricos permanece como testemunho de sua


tolice (v. 14)
F’. O rico também está destinado à sepultura sobre a qual os justos
pisarão (v. 15)
E’. Deus pode redimir a vida do homem da morte (v. 16)
D’. Os dias maus são definidos pelo enriquecimento de um indivíduo, em que os bens de
sua casa aumentam (v. 17,18)
C’. Uma pessoa perde discernimento à medida que dá ouvidos às falsas visões sobre si mesmo (v.
19)
B’. Deixar de dar ouvidos à sabedoria e ao entendimento liga poeticamente a humanidade à geração
de seus pais (v. 20-21a)
A’. Silêncio: a segunda forma adequada de receber sabedoria (v. 21b)

A estrutura de Pleins, embora chame a atenção para ideias paralelas significativas do


Salmo 49, apresenta fraquezas que a tornam inviável. Em primeiro lugar, as partes A e A’ não
parecem enfatizar a mesma atitude positiva na recepção da sabedoria (segundo Pleins, ouvir e
ficar em silêncio).321 Enquanto o versículo 2 enfatiza o “ouvir” e o “dar ouvidos” para receber
a sabedoria, o versículo 21b não trata de uma recepção correta dela, mas do fim lastimoso do
“ser humano em esplendor” que “não entende”, ou seja, que rejeita a sabedoria, em vez de
recebê-la de modo apropriado. Ao “deixar de entender plenamente as dimensões da morte, é
inevitável que também deixem de entender plenamente as dimensões da vida”. 322 São atitudes
opostas, não complementares, no trato da sabedoria.
Em segundo lugar, a ligação entre C (v. 5) e C’ (v. 19) é muito frágil. O foco do
versículo 5 não está tanto na audiência dando ouvidos à sabedoria,323 mas no autor do salmo
atuando como mediador de revelação divina;324 portanto, não há um claro contraste com o
indivíduo autoconfiante que “não verá a luz para sempre” (v. 19,20a). Por fim, a conexão
entre F (v. 9b,10,11a) e F’ (v. 15) é bastante tênue, pois o v. 10 tem uma forte
correspondência verbal com o v. 20 (não com o v.15), como o uso em ambos os versículos de
‫“( ָלנֶצַח‬para sempre”) e de ‫ֹלאַי ְִראֶה‬/‫“( ַֹלאַי ְִראּו‬não verá”/“não verão”), tornando pouco provável
uma ligação paralela entre v. 10 e v. 15 proposta por Pleins, que não apresenta associação
verbal alguma.
J. Spangenberg propõe uma divisão em que a introdução (v. 2-5) é seguida por quatro
estrofes (v. 6-10, 11-12, 14-16, 17-20), com os refrões (v. 13, 21) separando a primeira dupla

321
PLEINS, 1996, p. 20.
322
CRAIGIE, 1983, p. 360.
323
PLEINS, 1996, p. 21.
324
GOULDER, 1982, p. 185; WEISER, 1994, p. 286.
49

de estrofes da segunda.325 Para Spangenberg, o salmo tem uma estrutura quiasmática e


concêntrica, em que há uma relação entre as estrofes A. 6-10 e A’. 17-10 e as estrofes B. 11-
12 e B’. 14-16, bem como entre os refrões C. 13 e C’. 21.326
Introdução (v. 2-5)
A. Estrofe I (v. 6-10)
B. Estrofe II (v. 11-12)
C. Refrão (v. 13)
C’. Refrão (v. 21)
B’. Estrofe III (v. 14-16)
A’. Estrofe IV (v. 17-20)

John Goldingay propõe uma divisão semelhante à de Spangenberg, mas, assim como
Derek Kidner,327 liga os refrões à segunda (v. 11-13) e à quarta (v. 17-21) estrofes,328
produzindo a seguinte estrutura quiasmática:
Introdução (v. 2-5)
A. Estrofe I (v. 6-10)
B. Estrofe II (v. 11-13)
B’. Estrofe III (v. 14-16)
A’. Estrofe IV (v. 17-21)

A justificativa dos autores para essa divisão quádrupla, distinta da estrutura tradicional
de duas estrofes, é a relação quiasmática paralela entre as estrofes tanto em temas quanto em
vocabulário. Há paralelos entre os v. 6 e v. 17 (a questão do temor) e entre o v. 10 e o v. 20
(uso do verbo - “não veja a sepultura”/ “não verá a luz”), ligações que, no esquema de
Spangenberg, iniciam e fecham as estrofes.329 Goldingay observa, ainda, que as estrofes A (6-
10) e A’ (17-21) focalizam o tema de que a riqueza não consegue livrar os ricos da morte.330
No segundo paralelo de estrofes B (v. 11-12) e B’ (v. 14-16), Spangenberg destaca que
os v. 11 e v. 16 contêm, respectivamente, o ‫“( ָמשָל‬provérbio”) e o ‫“( חִידָ ה‬enigma”) (v. 5). O
provérbio do v. 11 afirma que a morte é o único estado do qual rico e pobre, sábio e
insensato/bruto não podem ser redimidos. Assim, o enigma está no fato de que o fiel afirma
que ele será redimido (v. 16).331 Já Goldingay defende que a ligação está no fato de ambas as

325
SPANGENBERG, 1997, p. 329-30.
326
SPANGENBERG, 1997, p. 330-1.
327
KIDNER, 1980, p. 203-6.
328
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
329
SPANGENBERG, 1997, p. 331-2.
330
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
331
SPANGENBERG, 1997, p. 332.
50

estrofes B e B’ declararem que a morte atinge a todos, inclusive sábios e ricos, a menos que
Deus os redima.332
Apesar dessas ligações temáticas relevantes, a divisão em quatro estrofes deixa de
notar outros links temáticos e verbais que poderiam ser identificados caso se preservassem
apenas duas estrofes com dois refrões no final de cada uma. Por exemplo, a estrofe A (6-10)
tem fortes relações temáticas/verbais com a estrofe B’ (14-16), como a ideia da redenção
indicada pelos termos ‫“( פִדְ יֹון‬resgate”) e ‫“( פָדָ ה‬redimir”) em v. 8-9 (A) e v. 16 (B’) ou o termo
‫“( ֶֶ֫נפֶש‬vida”) em v. 9 (A) e v. 16 (B). A mesma relação pode ser traçada entre B (v. 11-12,
Spangenberg) e A’ (17-20, Spangenberg): o túmulo como ‫“( ַבי ִת‬casa”) do rico (v. 12) é
contraposto à ‫“( ַבי ִת‬casa”) atual dele (v. 17). A ideia de deixar os bens para trás (v. 11 e v. 18)
também é uma ligação entre ambas as partes.
Portanto, a melhor estrutura para interpretar o salmo e apreciar sua arte retórica e
unidade, observando as relações paralelas entre as estrofes e refrões, é mantê-lo com uma
introdução (v. 2-5),333 seguida por duas estrofes principais (v. 6-12 e 14-20) com dois refrões
semelhantes, mas não idênticos, ao final de cada uma delas (v. 13, 21).334 “As duas partes têm
o mesmo tema e algumas relações significativas, sem ser duplicação”.335
Na introdução do salmo (v. 2-5), há um “chamado sapiencial/didático” a “ouvir”/“dar
ִ /‫ ) ַה ֲאזִינּו‬feito pelo mestre (cf. Sl 78.1; Pv 2.1; 7.24),336 que se dirige a todos os
ouvidos” (‫שמְעּו‬
povos (‫)כָל־ ָה ַע ִמים‬, isto é, todos os habitantes deste mundo transitório (‫“ – ָחלֶד‬mundo”;
“existência”) (v. 2).337 Não há distinção de classe social no chamado (“seja rico, seja pobre”,
v. 3), pois todos os seres humanos (‫ )גַם־ ְבנֵי־ ִאיש גַם־ ְבנֵיַָאדָ ם‬carecem da essência do conteúdo a
ser anunciado, que consiste em “sabedoria” (‫ ) ָחכְמֹות‬e “entendimento” (‫( )תְ בּונֹות‬v. 4), em forma
de “provérbio” (‫ ) ָמשָל‬e “enigma” (‫( )חִידָה‬v. 5).
A primeira estrofe do Salmo 49 (v. 6-12) é introduzida por uma problemática que
surge da experiência do autor (‫ירא ַבִימֵי ַָרע‬
ָ ‫“ — ָלמָה ַ ִא‬Por que temerei os dias maus [...]?”)

332
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
333
GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 401.
334
BORTOLINI, 2000, p. 206; BORTOLINI, 2002, p. 243; CRAIGIE, 1983, p. 358; GERSTENBERGER, 1988,
Psalm 49 (edição kindle); MAYS, 2011, p. 191. WEISER, 1994, p. 285; LONGMAN III, 2014, Psalm 49
(edição kindle). Raabe propõe algo semelhante, reconhecendo um prelúdio/introdução (v. 2-5), duas estâncias (v.
6-12, 14-20), seguidas cada uma por um refrão (ver RAABE, 1990, p. 84-5; cf. tb. SIQUEIRA, Comentário de
Salmos [no prelo]); entretanto Raabe distingue estância (seções maiores) de refrão (subseções) (p. 83-4).
335
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672.
336
BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91. O chamado inicial feito pelo mestre (cf. Sl 49.1; 78.1; cf.
Pv 2.1; 5.1 7.24) também é conhecido por sua designação Lehreröffnungsruf (“exortações inaugurais do mestre”)
(ver NETO, 2016, p. 370).
337
Ver análise do versículo 2 no cap. 2.
51

diante da oposição dos “que confiam em suas posses” (v. 6,7).338 Nos versículos 8-12, o
salmista apresenta sua primeira resposta à questão com uma nuance negativa: 339 ninguém é
capaz de pagar “resgate” (‫ )כֹפֶר‬a Deus para não ver a “cova” (‫שחַת‬
ַ ) (v. 8-10); portanto, todas
as diferenças entre os homens são niveladas pela morte, que atinge todos, não importando
suas aquisições e construções nesta vida (v. 11,12).340
No primeiro refrão (v. 13), o salmista lembra que o “ser humano em esplendor” “não
permanece” (‫)בַל־יָלִין‬, por isso, é semelhante aos “animais” (‫ ) ְבהֵמֹות‬que “perecem”.
A segunda estrofe (v. 13-20) tem uma nuance positiva ao contrapor o destino (lit.:
“caminho”) dos tolos autoconfiantes — o Sheol, onde a Morte os pastoreará (v. 13-15) — ao
do salmista,341 em que Deus fará o que homem algum é capaz de fazer: redimir sua vida da
morte (v. 16).342 Então há uma exortação343 a seus ouvintes para que não temam (‫ירא‬
ָ ִ‫ ַאל־ת‬-
“Não temas...”) o enriquecimento de um homem que se congratula (‫ )כִי־נַפְשֹוַ ְב ַחי ָיוַיְב ֵָרְך‬achando
que “as coisas vão bem”, porque ele não levará consigo seus bens para a sepultura e sua
condição ali será permanente: “Não verão a luz para sempre” (v. 17-20).344
No segundo refrão (v. 21), há uma nova qualificação do “ser humano em esplendor”:
ele “não entende” ‫ֹלא ַיָבִין‬, enfatizando a autoilusão do rico tolo que, por não adquirir o
“entendimento” (‫ )תְ בּונֹות‬oferecido no início (v. 4), pensou que viveria em suas casas “para
sempre” ou dizia a si mesmo que tudo ia bem, sem perceber que ele é “igual aos animais que
perecem” (cf. v. 12,19).345
Portanto, podemos propor a seguinte estrutura quiasmática, mas não concêntrica, para
o Salmo 49:

Epígrafe: Identificação do destinatário e da coleção do salmo (v. 1)


Introdução: Convocação sapiencial (v. 2-5)
a. chamado universal para ouvir (v. 2-3)
b. essência da mensagem: sabedoria e entendimento (v. 4)
c. forma da mensagem: parábola e enigma (v. 5)

338
TESH; ZORN, 1999. p. 353; WEISER, 1994, p. 285.
339
DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 439.
340
WEISER, 1994, p. 285; LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle).
341
WEISER, 1994, p. 285.
342
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle).
343
James L. Mays também identifica essa última parte como uma exortação feita pelo mestre do salmo (ver
MAYS, 2011, p. 191).
344
RAABE, 1990, p. 88.
345
ESTES, 2004, p. 70.
52

A. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que confiam em suas riquezas
(v. 6-12)
a. problemática: por que temer a oposição dos que confiam em suas riquezas? (v. 6-7)
b. resposta inicial: nenhum ser humano é capaz de se redimir da morte, que elimina todas as
diferenças entre os mortais (v. 8-12)
B. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13)
A’. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o temor de
alguém que se enriquece (v. 14-20)
a. resposta completa (parte 1): o destino dos ricos tolos é o Sheol, onde a Morte os pastoreará (v.
14-15)
b. resposta completa (parte 2): YHWH redimirá do Sheol a vida de quem nele confia (v. 16)
c. exortação decorrente das respostas: não temas quando alguém se enriquece porque a morte o
destituirá de seus bens terrenos (v. 17-20)
B’. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais (v. 21)

1.3.3. Coesão e Aspectos Retóricos do Salmo 49

Nesta última parte, pretendemos analisar o estilo e a arte retórica do autor do Salmo
49 destacando aspectos literários na construção de seu texto que o tornam mais claro e vívido
para o leitor. Northrop Frye ajuda na compreensão do que esta pesquisa entender por arte
retórica:
A retórica, desde o início, significou duas coisas: discurso ornamental e discurso
persuasivo. Essas duas coisas parecem psicologicamente opostas uma à outra, como
o desejo por ornamento é essencialmente desinteressado e o desejo por persuadir
essencialmente o oposto. De fato, a retórica ornamental é inseparável da literatura,
ou o que chamamos de estrutura verbal poética, cuja existência é autojustificada. A
retórica persuasiva é literatura aplicada, ou o uso da arte literária para reforçar o
poder de argumentação. A retórica ornamental atua sobre seus ouvintes
estaticamente, levando-os a admirar sua própria beleza ou engenho; a retórica
persuasiva procura levá-los cineticamente a um percurso de ação.346
Portanto, a crítica retórica implica a busca pelo entendimento dos recursos e
estratégias literárias empregados no texto para persuadir ou influenciar o leitor e embelezar o
texto, bem como a investigação dos objetivos ou efeitos gerais desses elementos retóricos.347
O fato de que os salmos são obras artísticas significa que eles revelam em plena
medida e com maior frequência os elementos da forma artística, incluindo arranjos,
esquema, unidade, harmonia e variação. Os salmistas eram imaginativos e criativos;
eles consideravam seu trabalho artístico tão fundamental quanto seu conteúdo. 348
Um dos elementos retóricos usados pelo salmista é a repetição, que serve para
unificar as várias partes das duas estrofes.349 Alonso Schökel e Carniti350 notam o uso

346
FRYE, 2014, p. 391-2.
347
GORMAN, 2001, p. 13.
348
ROSS, 1985, v. 1, p. 780.
349
RAABE, 1990, p. 86.
53

reiterado da raiz ‫משל‬, que ocorre tanto na introdução quanto nos refrões do meio e do fim do
salmo. O autor diz que inclinará seu ouvido “a uma parábola/comparação” (‫( ) ְל ָמׁשָל‬v. 5),
então, afirma que o “ser humano em esplendor” (‫)בִיקָר‬351 “é semelhante a” (‫ )נִ ְמׁשַל‬aos animais
em dois aspectos: não “permanece” (‫( )יָלִין‬v. 13) nem “entende” (‫( )יָבִין‬v. 21). “Como se
dissesse: vou propor uma comparação ou semelhança [...]: A que se assemelha o homem rico?
— Parece-se com os animais que perecem”352 e não têm entendimento.
Chama a atenção a repetição da raiz verbal ‫“( י ֵָרא‬temer”), que aparece na pergunta
retórica do versículo 6: “Por que temerei...”, a qual é respondida em tom parenético no v. 17:
“Não temas...”.353 A repetição também ocorre com a raiz verbal ‫רָאה‬.
ָ Afirma-se que o homem
é inefetivo em sua tentativa de dar a Deus o “substituto expiatório” (v. 8) para que “não veja a
sepultura” (‫שחַת‬
ָ ‫( )ֹלאַי ְִראֶהַ ַה‬v. 10). De forma irônica, os ímpios ricos “não verão a luz” (ַ‫ֹלא‬
‫( )י ְִראּו־אֹור‬v. 20), uma imagem para o cadáver dentro da sepultura.
O uso de “geração” (‫ )דֹור‬é muito significativo, pois o rico pensa que suas mansões
permanecerão “de geração em geração” (‫( )לְד ֹרַוָד ֹר‬v. 12) até descobrir que suas posses não o
poderão acompanhar quando for ter “com a geração de seus pais” (‫( )עַד־דֹורַ ֲאבֹותָ יו‬v. 20). “Em
vez de desfrutar de prosperidade perpétua, eles serão enviados para o mesmo destino não
invejável de seus predecessores”.354
Outro uso proposital de repetição ocorre entre os versículos 8 e 16, em que ambos
apresentam duas declarações básicas sobre a redenção com a mesma raiz verbal ‫פדה‬: “Um ser
humano não redimirá de modo algum [‫[ ]ֹלא־פָד ֹהַי ִ ְפדֶה‬seu] irmão” (v. 8), “mas Deus redimirá
[‫ ]יִפְדֶ ה‬minha vida do poder do Sheol” (v. 16).355
O Salmo 49 também apresenta vários campos semânticos que estão
356
interrelacionados para costurar a coesão e transmitir a ênfase da mensagem do autor. Os
substantivos para designar os conceitos de riqueza e morte ocorrem quatorze vezes ao longo
da parte principal do salmo (v. 6-21), sete ocorrências dos termos do primeiro campo
semântico, e seis ocorrências do segundo. As formas nominais para indicar riqueza são: ‫ע ֹשֶ ר‬
(v. 7b), ‫( ַחי ִל‬v. 7a, 11c), ‫( כָבֹוד‬v. 17b, 18b), ‫( יְקָר‬v. 13a, 21a). Os substantivos que descrevem a

350
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669-70.
351
Ver o uso de ‫ י ְ ָקר‬em Ester 1.4; 6.3 (cf. GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]).
352
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 670.
353
ESTES, 2004, p. 59-60.
354
ESTES, 2004, p. 60.
355
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49.
356
GIMÉNEZ-RICO, 2014, p. 401.
54

morte são: ‫( ָמוֶת‬v. 15b), ‫( שְאֹול‬v. 15a, d, 16b), ‫שחַת‬


ַ (v. 10b) e a cadeia de construto ‫דֹורַאֲ בֹותָ יו‬
(v. 20a).357
Outro campo semântico que também é bastante ressaltado em Salmo 49 é o da
sabedoria, fazendo uso também do contraste com termos relacionados a seu oposto, a tolice.
Logo na convocação de abertura do cântico (v. 2-5), quatro termos relacionados à sabedoria
são empregados: ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”),358 ‫“( תְ בּונָה‬entendimento”),359 ‫“( ָמשָל‬provérbio”),360 ‫חִידָה‬
(“enigma”).361 “Minha boca falará sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá]
entendimento. Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos, exporei com a cítara meu enigma.”
(v. 4-5). No versículo 11, os dois grupos que representam os polos opostos da sabedoria e da
insensatez, ‫“( ֲח ָכ ִַמים‬sábios”) versus ‫“( ְכסִילַ ָו ַַבעַר‬insensato e bruto”), vivenciam uma realidade
comum à humanidade: “morrem ... são destruídos”.362 Por fim, o indivíduo que “não entende”
(‫ )וְֹלאַיָבִין‬e “é semelhante aos animais” (v. 21) estabelece um contraste com aqueles que dão
ouvidos ao “entendimento” (‫( )תְ בּונֹות‬v. 4) proclamado no início do salmo e exposto ao longo
do cântico.363
Outro elemento retórico bem empregado pelo autor do Salmo 49 é a assonância.
Ocorre um jogo de palavras com assonância entre ‫“( ָאדָ ם‬ser humano”) e ‫“( אֲדָ מָה‬terra”). O
primeiro termo é usado nos versículos 3, 13, 21 associando todas as pessoas por sua
humanidade em comum. Os ricos dão “seus nomes às terras [‫ ”]אֲדָ מֹות‬com a esperança de que
durarão “para sempre” (v. 12), mas o “ser humano [‫ ]ָאדָ ם‬em esplendor não permanece” (v.
13).
A assonância também é vista entre o início do v. 8 e o do v. 16. No versículo 16, o
autor começa com uma partícula de ênfase ‫( ַאְך‬a , “mas [certamente]”)364 que remete ao som
da palavra inicial ‫ ( ָאח‬, “irmão”) do versículo 8, ambas introduzindo duas linhas que fazem
declarações com o termo ‫ פדה‬e tratam, respectivamente, da impossibilidade ou possibilidade
de redenção do Sheol (ver acima).365

357
RAABE, 1990, p. 87.
358
Cf. o uso comum de ‫ ָח ְכ ָמה‬em textos sapienciais, e.g., Pv 1.20; 9.1; 24.7.
359
Cf. as ocorrências de ‫ תְ בּו ַנָה‬em Jó 12.12; 26.12; Pv 5.1.
360
Cf. ‫ ָמשָל‬em Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9.
361
Cf. ‫ חִידָ ה‬em Pv 1.6; Sl 78.2
362
ESTES, 2004, p. 61-2.
363
Observe-se o comentário de CRAIGIE, 1983, p. 360.
364
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH, 1996, v.
5, p. 353.
365
RAABE, 1990, p. 87.
55

Alguns autores tentaram reconstruir o texto do versículo 21, como fizeram escribas
de alguns manuscritos de textos hebraicos,366 alterando ‫“( יָבִין‬entende”) para ‫יָלִין‬
(“permanece”), a fim de torná-lo idêntico ao versículo 13. No entanto, essa reconstrução
destrói a assonância pretendida pelo autor entre ‫ יָבִין‬e ‫יָלִין‬, que fornece as características
complementares “[d]os que confiam em suas riquezas”:367 tal “ser humano” [‫“ ]ָאדָ ם‬não
permanece” (‫ )בַל־יָלִין‬e “não entende” (‫ ;)וְֹלאַיָבִין‬nesses dois aspectos descritos por assonância,
o tolo “é como os animais que perecem” (v. 13, 21).
Por ser um texto poético antigo, o Salmo 49 está repleto de imagens. Como Leland
Ryken observou, “o princípio mais simples da linguagem poética é, talvez, o mais importante:
poetas pensam em imagem”, pois enquanto “a prosa expositiva usa a sentença ou parágrafo
como sua unidade básica, e a narrativa, o episódio ou a cena, a unidade básica da poesia é a
imagem individual ou figura de linguagem”.368
O uso de símile369 está presente nos dois refrões do Salmo 49 (v. 13,21), em que o
“ser humano em esplendor” (‫ )וְָאדָ ם ַבִיקָר‬é comparado explicitamente “aos animais” (ַ ‫נִמְשַל‬
‫) ַכ ְבהֵמֹות‬, cujo termo hebraico pode indicar tanto “animais selvagens” quanto “animais
domésticos”,370 mas neste hino é definido especificamente como um “rebanho” (‫ )צ ֹאן‬de
ovelhas em outra símile que ocorre no versículo 15: “Como rebanho dirigem-se para o Sheol,
Morte os pastoreará” (‫שתּו ָמוֶת ַי ְִר ֵַעם‬
ַַ ַ ‫)כַצ ֹאן ַלִשְ אֹול‬. Os símiles estabelecem uma coesão e
esclarecem o tipo de animal a que o salmista se refere.
Outra maneira figurada de falar das condições de indivíduos e do próprio ’E ao
lidarem com a morte dos humanos ocorre pelo uso de termos cúltico-comerciais como a raiz
verbal ‫“( פדה‬redimir”, “resgatar”) e o substantivo ‫“( פִדְ יֹון‬resgate”, “preço de redenção”) (v. 8-
9,16), empregados geralmente para se referir ao resgate cultual tanto de animais quanto dos
filhos mais velhos dos israelitas (Êx 13.13,15; 34.20; Nm 18.15), em que um valor monetário
poderia ser usado para esse fim (Lv 27.27; Nm 18.15b).371 O emprego de ‫“( ַכֹפֶר‬substituto
expiatório”, v. 8), que provém do contexto judicial das leis civis para indicar uma reparação

366
Ver a nota do aparato crítico do versículo 21 na Biblia Hebraica Stuttgartensia (ELLIGER; RUDOLPH, 1997,
p. 1131)
367
ESTES, 2004, p. 69-70.
368
RYKEN, 1992, p. 159-62.
369
Entende-se por símile uma figura de comparação explícita, que usa expressões “como”, “é semelhante a”, etc.
Ver CORLEY; LEMKE; LOVEJOY, 2002. p. 26.
370
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 111-2.
371
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 672-3; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON;
STAMM, 1994-2001, p. 912.
56

(Êx 21.30; Nm 35.31),372 também é usado como imagem para tratar da relação dos seres
humanos com a morte.
Bortolini também observa o uso de “imagens e palavras fortes do âmbito do campo e
da terra” para comunicar a mensagem do autor, listando uma série de termos: “cova (10), [...]
a besta que morre (13,21), caminho (14), rebanho [...], a figura da nobreza que murcha como
erva (15)...”.373
Em conclusão de nossa análise, podemos afirmar que o Salmo 49 fez parte da
produção literária dos mestres do antigo Israel, tanto por sua linguagem sapiencial
(“sabedoria”, “entendimento”, “parábola”, etc.), quanto por elementos formais da literatura
(e.g., o chamado inicial; trechos em primeira pessoa) e por temas que aparecem nele
(retribuição e riqueza e pobreza).
A melhor estrutura para estudar o salmo é aquela que mantém duas principais
estrofes, que seguem a introdução e são seguidas por dois refrões semelhantes, mas não
idênticos. Por fim, percebe-se uma ênfase na repetição de certos termos com o propósito de
chamar a atenção para sentimentos (temor), comparações (“como os animais”) e para retratar,
com certa ironia, a infeliz sina dos que confiam em riquezas transitórias ao serem incapazes
de alterar o curso final da vida humana: a morte.

372
MAAS, F., ‫כפר‬, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 626.
373
BORTOLINI, 2002, p. 245; BORTOLINI, 2000, p. 208.
57

2. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO SALMO 49

No presente capítulo, será desenvolvida uma análise exegética dos aspectos


sintáticos, semânticos e literários do Salmo 49, que examinará o texto conforme os blocos da
divisão literária proposta no capítulo anterior. Na sintaxe, o foco estará na interrelação das
palavras nas frases e orações dos versetos ou de grupos de versetos. No estudo semântico, será
dada atenção ao sentido de palavras centrais à luz do contexto literário específico do próprio
salmo e da Bíblia Hebraica em geral. Embora o cerne da análise literária esteja no capítulo
anterior, os tipos de paralelismos no conjunto de dois ou três versetos (bicólons ou ticólons)
também será objeto da pesquisa exegética deste capítulo.

2.1. Epígrafe do salmo (v. 1)

49.1Para o dirigente de música, um salmo concernente aos coraítas.


O Salmo 49 inicia com a informação de que foi composto ‫“( ַל ְמנַ ֵצ ַַח‬para o dirigente de
música”; “para o mestre de música” [NVI]; ou “ao regente do coro” [A21]). Segundo o BDB,
“[a expressão] ‫ ַל ְמנַ ֵּצ ַַח‬, em títulos de salmos, tem, provavelmente, o sentido semelhante a
dirigente de música ou regente de coro”.374
O último vocábulo (‫ ) ִמז ְמֹור‬é uma designação bastante comum nos títulos da salmódia
israelita e também aparece ao final da epígrafe em outros salmos dos filhos de Corá (Sl 47.1;
84.1; 85.1; 87.1).375 O sentido básico de ‫ ִמזְמֹור‬é o de “salmo”,376 mas parece indicar “uma
música cantada com o acompanhamento de um instrumento musical” (cf. Sl 33.2; 71.22; Sl
98.5; 147.7; 149.3).377 Geralmente, a LXX traduz essa palavra hebraica por ψα ς (“cântico
de louvor”, “salmo”, “música tocada com um instrumento”).378 Hans-Joachim Kraus explica
que a diferença básica entre ‫ ִמזְמֹור‬e ‫שיר‬
ִ (“canção”;379 outro termo bastante comum nos títulos
dos salmos) é que o segundo “designava provavelmente de modo original e dominante a

374
Ver BROWN.; DRIVER.; BRIGGS, 1977, p. 664. Ver apoio para essa compreensão do termo em
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 244; GESENIUS, 2003, p. 562.
375CLINES, 1998, v. 4 p. 209.
376KIRST et al., 2004, p. 121; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 189; SWANSON, 1997, verbete 4660 (edição

eletrônica); KIDNER, 1980, p. 51.


377
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, p. 566.
378
LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003, verbete ψα ς (edição eletrônica).
379BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 1010.
58

execução vocal e recitada de um salmo”, ao passo que o primeiro indicava, “antes de tudo, o
canto com acompanhamento de instrumentos”.380
A expressão hebraica ‫ֵי־ק ֹ ַרח‬
ַ ‫ ִל ְבנ‬pode ser entendida tanto como uma indicação de que o
salmo foi escrito por um dos descendentes de Corá quanto que ele foi escrito para ser cantado
por esses levitas.381 A grande problemática repousa na definição do uso semântico da
preposição ַ‫ ְל‬,382 que pode ser traduzida de diversos modos, como “para”, “de”, “concernente
a”, “em relação a” ou “dedicado a”.383
Wilhelm Gesenius entendia o uso do ‫ ְַל‬nos títulos dos salmos como um lamed
auctoris, ou seja, um indicativo de autoria, por exemplo, em Salmo 3.1: ‫“ ִמזְמור ַלְדָ וִד‬salmo
pertencente a Davi como o autor”, com base em línguas semíticas (em especial, o árabe).384
No entanto, o uso da preposição le em ugarítico, como nos ciclos de Baal, por exemplo, na
expressão b‘ , não indica autoria, mas a tabuleta “pertencente a[os textos] de Baal” ou o texto
que fala “a respeito de Baal”.385 Clines classifica o uso dessa preposição nos salmos com o
sentido de posse, com as traduções “de”, “pertencente a”, “concernente a”, em vez de definir
se a ideia é de origem ou destinatário (e.g., “de Davi” ou “para o mestre de música”).386
Em usos específicos em títulos de cânticos ou poemas da Bíblia Hebraica, a
preposição ‫ ְַל‬parece ter o sentido de origem ou autoria (Hc 3.1: “oração de Habacuque” em
resposta à revelação divina dos caps. 1—2; cf. Is 38.9; Sl 18.1). Em outros casos pode indicar
a quem o salmo se destina ou de qual coleção faz parte (“para o / da coleção do mestre de
música” em Sl 4.1; 11.1), bem como o momento em que deveria ser cantado ou lido (“para [o
uso n]o dia de sábado” (Sl 92.1).
Na verdade, é muito provável que os coraítas não apenas fossem responsáveis pelo
louvor em Israel (“para os coraítas”) (2Cr 20.19), mas também compusessem músicas (“dos
coraítas”), como os Salmos 42—49; 84—85; 87—88.387 Hemã talvez seja representativo
dessa situação: ele era líder dos coraítas, dirigindo o canto no santuário de YHWH (1Cr 6.31-

380KRAUS, 1993, p. 29.


381
Ver a discussão sobre o lamed auctoris em CRAIGIE, 1983, p. 33-35.
382
ALTER, Robert, Salmos, in: ALTER; KERMODE, 1997, p. 264; GOULDER, 1982, p. 2.
383
FRANCISCO, Edson F. Antigo Testamento Interlinear: os Escritos, v. 4, Salmo 3.1: preposição lamed (no
prelo); BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 510-517; VANGEMEREN, 1991. v. 5., p. 19. KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2000, p. 507-510.
384GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 419-20, §129.c.
385CRAIGIE, 1983, p. 34; ver WEISER, 1994, p. 64
386CLINES,1998, v. 4, p. 479-80, sentido 1.
387BUSS, 1963, p. 382-92.
59

38, esp. v. 33,37; 15.17,19) ao mesmo tempo que aparece como autor do Salmo 88388 (ַ‫ְלהֵימָן‬
‫ – הָאֶ ז ְָר ִַחי‬de [lamed auctoris] Hemã, o ezraíta), que tem a indicação ‫“( ִל ְבנֵי־ק ַֹרח‬concernente aos
filhos de Corá”).
Embora seja provável que canções pertencentes aos coraítas fossem compostas por
levitas relacionados ao templo e à adoração,389 como parece ser o caso do Salmo 49,390 talvez
a questão central não seja definir o sentido exato de ‫ ְַל‬, mas vê-lo como indicador de que cada
salmo com o título ‫“( ִל ְבנֵי־ק ַֹרח‬concernente aos filhos de Corá”) pertencia a uma coleção
atribuída aos “coraítas” antes de ser inserida no Saltério mais amplo.391 “Mais do que
qualquer outro grupo, o pessoal ligado ao serviço do culto [...] tinha o maior interesse na
coleção, conservação [...] do antigo patrimônio dos cânticos”.392
Quem eram os coraítas? A tradição bíblica os retrata como descendentes de Corá,
antigo líder de uma família levítica que teria se revoltado contra a liderança de Israel no
deserto.393 Corá ben Isar era um homem rico, primo de Moisés e fazia parte do clã dos
Coatitas (Êx 6.18-21; Nm 27.58-59; 1Cr 6.18-22[33-37]; 32.12-13). Ele se rebelou contra
Moisés e Arão com alguns rubenitas (Datã, Abirão e Om) e mais 250 levitas. Datã e Abirão
foram tragados vivos com suas famílias pela terra que se abriu e desceram ao Sheol (Nm
16.30-33). Isso também ocorreu com Corá, seus bens e os homens que o serviam.
No entanto, o texto de Números afirma que os filhos de Corá foram poupados394 por
YHWH e redimidos do Sheol: “... Mas os filhos de Corá não morreram” (Nm 26.10,11).395 O
evento foi tão marcante na vida dessa família que ela o guardou na memória ao atribuir nomes
a seus descendentes que recordavam o evento, conforme indicado por David C. Mitchell:

Elcana (“Aquele a quem Deus redimiu”, ou mesmo “Deus Zeloso”, Êx 6.24; 1Cr
6.8-12[23-27]; cf. v. 19-22[34-37]), Abiasafe (“Pai do Ajuntamento” ou mesmo
paronomasticamente: “Ele recolheu meu pai", Êx. 6.24; 1Cr 6.22 [37]). E os seus
descendentes eram Naate (“Afundado” [...] 1Cr 6.11[26],19[34]); Zufe
(“Submergido”, 1Cr 6.20 [35]); Aimote (“Irmão da morte”, 1Cr 6.10[25],20 [35] ); e
Taate (“Mundo inferior”, 1Cr 6.9[24],22[37]).396

388KIDNER, 1980, p. 48-9; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 77; LONGMAN III, 2014, Introduction
2a (edição kindle).
389GOULDER, 1982, p. 2; BUSS, 1963, p. 382-92.
390Ver análise no cap. 3 sobre a relação entre o templo e os sábios no antigo Israel.
391
MITCHELL, 2006, p. 368.
392WEISER, 1994, p. 65.
393
SARNA, 1993b, p. 37.
394KIDNER, 1980, p. 48.
395
MENDONÇA, 2012, p. 26-8.
396MITCHELL, 2006, p. 369-70, 372-3.
60

A importância do Sheol e os horrores da morte assumiram grande ênfase em vários


salmos dos coraítas:397 “e a minha vida se aproxima do Sheol” (Sl 88.4[3]); “atirado entre os
mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura” (88.6[5], ARA); “e me livraste a
vida do mais profundo poder do Sheol” (86.13); “para nos esmagares onde vivem os chacais;
e nos envolveres com as sombras da morte” (44.20[19]).398 O Salmo 49, que é o foco desta
pesquisa, enfatiza ainda mais o tema da morte, do Sheol e do livramento deste:

Certamente, verá que os sábios morrem, insensato e bruto juntos são destruídos. (v.11)
Mas um ser humano em esplendor não permanece, é semelhante aos animais [que] perecem. (v. 13)
Como rebanho dirigem-se para o Sheol, Morte os pastoreará. De manhã, os justos dominarão sobre eles. O Sheol
engolirá suas formas. (v. 15)
Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol; certamente me tomará. (v. 16)

O cronista apresenta informações importantes sobre esse grupo de levitas. Eles são
retratados como porteiros do santuário (1Cr 9.19; 26.19), responsáveis pelo preparo de bolos
das ofertas de sacrifício (1Cr 9.31) e por entoar louvores na casa de Deus, conduzindo o
louvor da congregação de Israel sob a liderança de Hemã (1Cr 6.31-38; 2Cr 20.19).399
Embora se questione o quadro histórico apresentado pelo autor bíblico como uma
projeção da época do segundo templo sobre um período anterior, os dados parecem confirmar
a atuação desse grupo no período pré-exílico. Em primeiro lugar, o livro de Esdras-Neemias,
ao relatar os grupos levíticos que voltaram do cativeiro, menciona apenas os asafitas (Ed 2.41;
Ne 7.44; ), que também atuaram na cerimônia de fundação do templo pós-exílico (Ed 3.10).
No entanto, Hemã, Etã e os coraítas, personagens e grupos levíticos que aparecem em
Crônicas (1Cr 6.31-38; 9.19,31; 15.17,19; 26.19; 2Cr 20.19) não recebem menção alguma. Se
eles eram levitas atuantes no segundo templo, por que não existe referência alguma a eles em
outros textos pós-exílicos? Por que o cronista teria inventado grupos leviticos que nunca
existiram?400
O segundo fator que corrobora a atuação do coraítas na Judá pré-exílica foi a
descoberta do templo em uma fortaleza em Tel-Arad, no sul de Judá, com estrutura
arquitetônica semelhante à de Jerusalém.401 No estrato VIII, que remonta ao século VIII
A.E.C. e apresenta indícios da destruição causada por Senaqueribe, rei da Assíria, foram

397MENDONÇA, 2012, p. 28-9.


398MITCHELL, 2006, p. 374-6.
399KRAUS, 1993; KIDNER, 1980, p. 48.
400SARNA, 1993a, p. 21-2.
401
SIQUEIRA, 2012, p. 44-51.
61

encontrados oito óstracos, um deles fazendo referência a Pasur, personagem sacerdotal


referido em 1Crônicas 9.11. Nesse mesmo nível da escavação, descobriu-se na base de um
vaso polido referência aos pagamentos ou às porções de alguns grupos, dentre eles os “filhos
de Corá”.402 Segundo o relato arqueológico, o templo desse estrato continha também um altar
demolido, que pode remontar à reforma de Ezequias — destruição de todos os altares
concorrentes em Judá (2Cr 32.11-12; 2Rs 18.22; Is 36.7) e a eventual transposição de levitas e
sacerdotes para o templo de Jerusalém (2Cr 29.1-17).403
Vários estudiosos têm reconhecido a antiguidade dos salmos dos filhos de Corá,404
em especial os capítulos 42—49, por ser uma coleção menor dentro de outra coleção do livro
de Salmos, a coleção Elohista.405 Se os coraítas já estavam em Arad, no sul do Judá no século
VIII A.E.C., a tese de que eles serviam no santuário de Dã, ao norte, e depois migraram para o
sul após a destruição de Samaria é bastante improvável. 406 A lista antiga de Números 26.58
que cita os coraítas juntamente com outros grupos da região de Judá parece reforçar a tese de
que eles atuavam no Reino do Sul.407 A importância de Jerusalém e do culto nos salmos dos
coraítas (46.5,6; 48.3,4,9; 87.5) e a saudade do templo sentida pelo levita exilado (Sl 42.1-4)
reforçam essa tese.408 Portanto, parece adequado propor a origem do Salmo 49 nesse ambiente
cultual do sul de Judá

2.2. Introdução: convocação sapiencial (v. 2-5)

49.2Escutai isto, todos os povos!


Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo!
3
Sim, seres humanos, [todas as] pessoas;
seja rico, seja pobre.
4
Minha boca falará sabedoria,
e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento.
5
Inclinarei a um provérbio os meus ouvidos,
Exporei com a cítara meu enigma.

402
SARNA, 1993a, p. 21-2; AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 34-5. Esse achado desmonta a antiga tese
de C. H. Toy de uma data pós-exílica para os salmos dos coraítas e defende uma data final para a formação dessa
coleção no período dos macabeus (ver TOY, 1884, p. 80-92).
403
AHARONI; HERZOG; RAINEY, 1987, p. 23-6, 34-5.
404GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle); SARNA, 1993b, p. 37.
405CRAIGIE, 1983, p. 28-30.
406MILLER, 1970, p. 62-64. Contra GOULDER, 1982, p. 1-84; MENDONÇA, 2012, p. 40-1).
407BUSS, 1963, p. 388.
408KRAUS, 1993.
62

O versículo 2 dá início ao salmo com dois versetos409 estruturados em um


paralelismo sinônimo direto410 da seguinte forma: A. verbo (“Ouvi”) / A’. verbo (“Dai
ouvidos”); B. pronome demonstrativo (“isto”) / B’. elipse (“—”); C. vocativo (“todos os
povos”) / C’. vocativo (“todos os habitantes do mundo”).
‫ כָל־ ָה ַע ִמים‬/ ‫ ז ֹאת‬/ ‫שמְעּו‬
ִ
‫שבֵיַ ָחלֶד‬
ְ ֹ ‫ כָל־י‬/ ---- / ‫ַה ֲאזִינּו‬
Apesar de estar ausente por elipse no segundo verseto, o pronome demonstrativo ‫ז ֹאת‬
é pressuposto411 na segunda linha e funciona como objeto dos dois verbos. 412 Ele é usado
como um pronome neutro (“isto”), sem definir o que os ouvintes devem “ouvir”,413 pois o
conteúdo é determinado pelo texto a seguir (v. 6-21).
Os verbos paralelos (‫שמְעּו‬
ִ e ‫ ) ַה ֲאזִינּו‬são recorrentes em textos da tradição sapiencial,
como um chamado a amigos (‫שמַע‬
ָ em Jó 5.27; 13.6,17; 15.17; 21.2; 32.10; 33.1; ‫ ָאזַן‬em Jó
33.1; 34.16; 37.14), a sábios (‫שמַע‬
ָ em Pv 1.5), a esposas (‫שמַע‬
ָ e ‫ ָאזַן‬em Gn 4.23), ao povo (‫ָאזַן‬
em Sl 78.1) ao filho/discípulo (‫שמַע‬
ָ em Pv 1.8; Pv 4.1; 5.7; 7.24 et alli), aos céus e à terra
(‫ שָ מַע‬e ‫ ָאזַן‬em Dt 32.1) para ouvirem o ditado, o conselho ou a argumentação do falante (um
amigo, sábio, pai, marido, líder da nação), que supostamente tem algo sábio a dizer.414
Observa-se, neste versículo, um chamado universal do sábio dirigido a “todos os
ְ ֹ ‫( )כָל־י‬v. 2).415 Os imperativos
povos” (‫ )כָל־ ָה ַע ִמים‬e a “todos os habitantes do mundo” (‫ׁשבֵּיַ ָחלֶד‬
ִ (“ouvi”) são usados com o sentido de convite416 para que todos
‫“( הַאֲ זִינּו‬dai ouvidos”) e ‫שמְעּו‬
ouçam ou prestem a atenção à resolução do enigma que o salmista apresentará.417 Essa

409
Seguimos a preferência de Robert Alter por “verseto”, em vez de usarmos hemistíquio ou colon (plural cola),
porque “ambos têm associações equivocadas com a versificação grega, o último termo também evoca, de forma
inadvertida, associações com órgãos intestinais ou refrigerantes” (ALTER, 2011, p. 8 [edição kindle]).
410
Ver RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-1; CHISHOLM, 1998. cap.
6 (edição kindle).
411
Köstenberger e Patterson explicam o fenômeno da elipse na estrutura de versetos paralelos da poesia hebraica:
“a supressão de uma palavra presente apenas em um verso paralelo, embora se deva compreendê-lo nos dois”,
assim, o termo “do primeiro verso paralelo está ausente no segundo verso, porém, subentendido nos dois”
(KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262). Ver também MILLER, 2003, p. 251-270.
412
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
413
WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 312, 17.4.3.a.
414
Ver também BELLINGER, 2012, p. 130; KRAUS, 1993, p. 91.
415
O uso de ‫ כָל‬duas vezes (‫ כָל־ ָה ַעמִים‬e ‫שבֵיַ ָחלֶד‬
ְ ֹ ‫ )כָל־י‬ressalta o caráter universal do público ao qual o salmista se
dirige
416
MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 151, §19.4.2.1.d (edição eletrônica); WALTKE; O’CONNOR, 2006,
p. 571-2 (exemplos 9-11).
417
Cf. o uso do imperativo com a mesma função em Rt 2.14; Is 5.3 (na segunda passagem, há um chamado
coletivo, mas aos homens de Judá).
63

mensagem universal era uma característica da literatura de sabedoria,418 uma tradição


“abrangente e internacional em substância e escopo”.419 Os próprios temas centrais do salmo,
a morte que atinge a todos (v. 8-13) e o problema da prosperidade dos ímpios (v. 6-7, 17-20),
afetam os seres humanos em geral, o que também dá sentido ao apelo transcultural do
salmista.420
O contexto literário mais amplo também apresenta um foco universal. No salmo 46, a
“voz” (‫ )קֹול‬de YHWH faz as “nações” se agitarem e se abalarem (46.7), por isso, são
chamadas a aquietar-se e reconhecer que o “Deus de Jacó” (‫ )אֱֹלהֵיַיַעֲק ֹב‬é “Deus, exaltado nas
nações, exaltado na terra” (‫ָָארץ‬
ֶ ‫( )ָארּום ַבַגֹוי ִם ַָארּום ַב‬46.11). Neste salmo, predomina o
substantivo ‫“( גֹוי‬nação”) no plural para se referir aos habitantes da “terra” (cf. 46.7,11). Já o
salmo 47 começa com o vocativo ‫“( כָל־הָע ִמים‬todos os povos”, 47.2), que é idêntico ao de 49.2
(“Escutai isto, todos os povos [‫)”]כָל־הָע ִַמים‬,421 chamando os povos a darem gritos de alegria
(‫ )ה ִָריעּו‬em honra a Deus (47.2).
No paralelismo dos vocativos, o segundo (“todos os habitantes do mundo”) parece
complementar o primeiro (“todos os povos”), “apontando para o aspecto cronológico, em vez
de simplesmente geográfico ou étnico. O quadro de todos nós como pessoas de uma era que
está passando ( e e ) nos dá uma dica sobre a direção para a qual o salmo está
caminhando”.422 Essa observação de Goldingay é pertinente, pois, de fato, o substantivo ‫ֶֶ֫חלֶד‬
pode indicar “mundo”,423 “vida” ou “existência”424 e “tempo de vida”.425
Esse sentido temporal — e com uma limitação implícita — de ‫ ֶֶ֫חלֶד‬é visto em suas
outras ocorrências na Bíblia Hebraica. Salmos 17.14 fala dos homens “do mundo” (‫) ֶֶ֫חלֶד‬426
cuja “porção” está nesta “vida”. Em Jó 11.17, o sentido é de “vida”,427 a existência de um ser
humano neste mundo. Em Salmos 39.6[5], ‫ ֶֶ֫חלֶד‬designa a “vida/existência” do salmista que é
“como nada diante de ti” e, em Salmos 89.48[47], o termo aparece na pergunta do fiel a Deus:
“O que é a vida/existência [minha]?”. Percebe-se nesses textos a concepção de que a vida é

418
ALTER, 2007.
170-1; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669; KIDNER, 1980, p. 203.
419
CRAIGIE, 1983, p. 358.
420
WEISER, 1994, p. 286; CHARRY, 2015, Psalm 49 (edição kindle).
421
GOULDER, 1982, p. 184.
422
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
423
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 317; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 316.
424
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 221.
425
GESENIUS, 2003, p. 279; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 104.
426
AL usa πὸ γῆς (“da terra”).
427
A LXX traduz por ζωή (“vida”).
64

breve e de que o “mundo” é o mundo da vida ou existência humana, ambas passageiras; “o


substantivo e e tem a conotação do que é limitado e restrito ao tempo [...] um mundo
passageiro”.428 Nesse sentido, podemos concordar com BDB de que ‫ ֶֶ֫חלֶד‬seria sinônimo do
termo grego α ώ (“era”, “século”; “mundo”), não de σ ς (“mundo”, “universo”).429
Assim, a mensagem do salmista se dirige a todos os seres humanos e os lembra de que são
mortais.
No versículo 3, há um problema de tradução que merece atenção especial. A maioria
das versões costuma entender a sentença ‫ גַם־ ְבנֵיַָא ָדםַגַם־ ְבנֵי־ ִאיש‬como indicadora de dois grupos
opostos socialmente. O grupo de classe social baixa seria ‫( ְבנֵי ַָאדָ ם‬lit., “filhos de ’ ”),
expressão traduzida por “gente do povo” (NVI, BJ), “humildes” (A21, ARC, Ave Maria),
“plebeus” (ARA), e o de classe mais alta seria ‫( ְבנֵי־ ִאיש‬lit., “filhos de ’ s ”), traduzido por
“homens importantes” (NVI), “nobres” (A21), “os de fina estirpe” (ARA), “grandes” (ARC),
“homens de condição” (BJ), “poderosos” (Ave Maria).
Essa hipótese tem recebido apoio de comentaristas, como Hans-Joachim Kraus: “O
paralelismo, com seu efeito de quiasmo, mostra que a combinação em estado construto ‫בניַאדם‬
pode ter o sentido de ‘gente simples’, enquanto ‫ בְני־איש‬designa os ‘filhos de senhores’, a
‘gente importante’”.430 Em um comentário mais recente, Goldingay defende a mesma ideia e a
propõe em sua tradução:
O versículo 2 [v. 3, TM] leva essa ideia adiante, se ‘filhos de um ser humano’ (ben
’ ) e ‘filhos de um indivíduo’ (ben ’ ) denotarem pessoas de status e pessoas
sem importância [em ordem inversa no texto da tradução de Goldingay] — e, de
qualquer modo, o segundo cólon apresenta uma ideia semelhante com sua referência
tanto a ricos quanto a pobres. A questão do salmo é importante para todas as
pessoas do mundo, independente de sua posição social ou de seus recursos.431
Em um comentário de Salmos, Alonso Schökel oferece a mesma proposta de seu
dicionário432 e vê nessas duas expressões “merisma ou expressão polar”, um “recurso
ordinário de amplificação”,433 assim, “por polarização”,434 ele apresenta a tradução “tanto
plebeus como nobres”. Essa tradução/interpretação do primeiro verseto de Salmos 49.3 tem

428
RAABE, 1990, p. 70.
429
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 317.
430
KRAUS, 1993, p. 734.
431
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle, itálico acrescentado). Como a parte em destaque deixa claro,
para Goldingay, o primeiro verseto (que apresenta o problema de tradução) trataria de classes sociais opostas, ao
passo que o segundo faria referência à distinção econômica. Essa também parece ser a posição de Craigie e
Longman III (ver CRAIGIE, 1983, p. 358; LONGMAN III, 2014, Psalm 49).
432
Ver ALONSO SCHÖKEL, 2004. p. 27-8.
433
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.
434
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 666.
65

sido seguida por vários comentaristas.435 De acordo com as teses de Kraus e Alonso Schökel,
os dois versetos formariam um paralelismo sinônimo invertido ou quiasmático436 estruturado
da seguinte maneira: A. “pessoas comuns” / A’. “pobre”; B. “nobres” (“isto”) / B’. “rico”.
‫ גַם־ ְבנֵּי־ ִאיׁש‬/ ‫גַם־ ְבנֵּיַָאדָ ם‬
‫ ְו ֶאבְיֹון‬/ ‫ׁשיר‬
ִ ‫יַחַדַ ָע‬

Entretanto, essa compreensão tradicional de ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬e ‫ ְבנֵי־ ִאיש‬tem uma série de
problemas. Em primeiro lugar, há propostas que defendem uma tradução inversa das duas
expressões, ou seja, ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬como “nobres”, e ‫ ְבנֵי־ ִאיש‬como “pessoas comuns”.437 Ainda no
contexto da literatura sapiencial (do qual o Salmo 49 faz parte), J. Ademar Kaefer, em uma
análise semântica detalhada de ‫ ָאדָ ם‬em Eclesiastes, chega à conclusão de que o termo significa
“o amante do ‘dinheiro’, o rico [...] o comerciante, uma categoria comercial emergente
alinhada com o setor opressor: proprietários, administradores e rei”.438
Se compararmos a proposta tradicional dos comentaristas e versões com a proposta
recém-citada, a pergunta central é: Como um termo (‫ )ָאדָ ם‬e uma expressão (‫) ְבנֵי ַָאדָ ם‬
praticamente iguais podem significar ideias tão opostas (“rico opressor”439 e “gente
simples/pessoas comuns”440) em textos que fazem parte da mesma tradição sapiencial? Essa
pergunta nos leva à hipótese de que ‫ ָאדָ ם‬e ‫ ְב ַנֵי ַָאדָ ם‬têm um sentido mais amplo a ponto de
abranger ambos os conceitos.
Em segundo lugar, as expressões ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬e ‫ ְבנֵי־ ִאיש‬não parecem ser opostas, mas
paralelas, semelhantes, não indicando classes sociais distintas, mas a humanidade em sua
fragilidade e em contraste com Deus.441 Essa foi a conclusão de J. van der Ploeg em uma
análise semântica das duas expressões no Antigo Testamento e na literatura sapiencial:
Todos esses textos (com a possível exceção de 2Sm 17.25), dão uma ideia muito
clara de que ben ’ é usado como uma expressão paralela de ben ’ , não tendo
um sentido especial. Como é a regra nesses casos, o salmista usa, primeiramente, a

435
DAHOOD, 1965, p. 295-6; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); TESH, 1999. p. 353;
CRAIGIE, 1983, p. 358; LONGMAN III, 2014, Psalm 49.
436
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; ZUCK, 1994, p. 160-1;
437
BRUEGGEMANN, 1984, p. 107.
438
KAEFER, 2016, p. 146 (ver o estudo semântico nas p. 145-147). Kaefer defende a mesma tese em outro texto,
a de que ’ são os comerciantes, ávidos por dinheiro, uma categoria socioeconômica pertencente ao terceiro
plano da pirâmide social no contexto dos ptolomeus, abaixo do rei e de seus administradores (ver KAEFER,
2007, p. 271-298).
439
KAEFER, 2016, p. 146. Kaefer, ao analisar Eclesiastes 3.18,19, identifica os ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬como os “filhos” do
“’a a opressor” (p. 145).
440
KRAUS, 1993, p. 734; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
441
GOULDER, 1982, p. 184.
66

expressão que é a mais comum para ele, isto é, ben ’ , e, na sequência, uma
expressão menos comum.442
Depois de observar a natureza geral de e individual de ’ , Derek Kidner
também defende uma leitura distinta da tradicional, vendo ambos os termos como
semelhantes, não opostos, e segue a proposta de tradução da NEB: “A dupla frase é
interpretada por NEB de modo convincente: ‘toda a humanidade, todo homem vivo’”.443 A
nota da NET Bible, cuja tradução também difere da tradicional,444 apoia a conclusão de Ploeg
sobre as duas expressões paralelas, afirmando:
A rara expressão ‫“( ְבנֵי־אִיש‬filhos de um homem”) parece se referir aos seres
humanos em geral em seus outros usos (Sl 4.2; 62.9; Lm 3.33). É melhor entender
‘mesmos os filhos da humanidade’ e ‘mesmo os filhos de um homem’ como
expressões sinônimas [...] A repetição enfatiza a necessidade de todas as pessoas
prestarem a atenção, pois a mensagem do salmista é relevante para todos.445
Qual é a evidência do estudo semântico para essa conclusão? A primeira expressão
ocorre com mais frequência do que a segunda no Pentateuco. Os ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬são os habitantes da
terra que acabam sendo espalhados por YHWH (Gn 11.5, cf. v. 1). Na estrutura paralela do
ditado de Números 23.19, ‫“( בֶן־ָאדָ ם‬filhos de ’ ”) é sinônimo de ‫“( ִאיש‬homem”, aqui em
446
seu sentido mais amplo de “ser humano” ), que são contrapostos, como criaturas, à natureza
do próprio “Deus” (‫)אֵל‬. Em Deuteronômio 32.8, ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬é uma indicação dos seres humanos
que foram divididos entre as várias “nações” ou estabelecidos nos diversos “povos” da terra
(Dt 32.8).447
Nos Profetas Anteriores, os ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬estão em oposição a YHWH: ou YHWH ou os
“filhos de ” (seres humanos) estavam incitando Saul a perseguir Davi (1Sm 26.19). Ou
seja, o jovem belemita indica que a perseguição de Saul poderia ter sido provocada por uma
de duas fontes: divina ou humana;448 ele presume que seja a segunda opção: “pois, hoje, me
expulsaram...” (cf. o plural “filhos de ’ ”). Em 2Samuel 7.14, há uma estrutura poética
ִ ָ‫“( ֲאנ‬homens/seres humanos”, plural de ‫) ִאיש‬449 forma um paralelismo
em que vara de ‫שים‬

442
PLOEG, 1963. p. 142 (ver a análise semântica nas p. 141-2).
443
KIDNER, 1980, p. 203.
444
Uma versão em português que se destaca por se distinguir das demais é a NVT: “Toda a humanidade, sem
exceção”.
445
NET Bible, 2005. Psalm 49.2, translator note.
446
KÜHLEWEIN, J. ‫אִיש‬, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 101.
447
A expressão “filhos de Israel” neste versículo é uma clara referência aos israelitas, consequentemente, os
“filhos da humanidade” (‫ ) ְבנֵיַָאדָ ם‬são os “seres humanos”.
448
KLEIN, 1983, p. 255, 258-9; SMITH, 2000, p. 308-9.
449
GESENIUS, 2003, p. 40; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43.
67

sinônimo ou reiterativo450 com golpes de ‫“( ְבנֵי ַָאדָ ם‬filhos de ’ ”). Em 1Reis 8.39, a
memória cultural do antigo Israel registra a oração de Salomão a Deus para que ouça, perdoe
e faça ‫“( ָל ִאיש ַ ְככָל־דְ ָר ַָכיו‬ao homem conforme todas as suas obras”) porque só ele conhece o
coração de ‫“( כָל־ ְבנֵיַהָָאדָ ם‬todos os filhos de ’ ”). Claramente, a oração pede a YHWH que
aja com cada indivíduo (‫ ) ִאיש‬conforme seu profundo conhecimento da humanidade em geral
(‫) ְבנֵיַהָָאדָ ם‬. Há um progresso do individual para o coletivo, em que ‫ ִאיש‬e ‫ ְבנֵיַהָָאדָ ם‬são termos
semelhantes, não opostos, o primeiro (indivíduo) fazendo parte do conjunto do segundo
(humanidade).
Isaías usa a expressão ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬de forma paralela a ‫ אֱנֹוש‬e a ‫ ִאיש‬. Em Isaías 51.12, a
expressão ‫“( ֵמאֱנֹושַי ָמּות‬da raça humana/ser humano [que] morrerá”) é paralela a ַ‫ּומִ בֶן־ָאדָ םַחָציר‬
‫“( יִּנָתֵ ן‬do filho de d m, [que] será entregue [como] erva”), ambas indicando que o ser humano
tem uma existência frágil e passageira.451 Um paralelismo semelhante ocorre em Isaías 56.2,
em que ‫“( אֱנֹוש‬ser humano/raça humana”) é paralelo a ‫“( בֶן־ָאדָ ם‬filho de ”) e definem um
conjunto de seres humanos que é mais amplo que o Israel étnico ou puro (cf. “estrangeiro”,
“eunuco” e “todos os povos” nos v. 3-7). Em Isaías 52.14, ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬está em paralelismo com
‫ אִ יש‬em seu sentido amplo (“ser humano”),452 descrevendo alguém cujo aspecto/aparência
físico/a se distingue de toda a humanidade.453
Em Salmos, ‫ בֶן־ָאדָ ם‬é paralelo de ‫אֱנֹוש‬, indicando a pequenez do ser humano diante da
grandeza das obras divinas (Sl 8.5[4]) e sua experiência efêmera e passageira que é atingida
pela morte (Sl 90.3; cf. v. 3-6). Os ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬em Salmos 66.5 parecem ser o mesmo grupo de
pessoas chamado de “toda a terra” e que é convidado a adorar a Deus (v. 1,4). O “filho de
‘ d m que fortaleceste para ti” (‫ )בֶן־ָאדָ ם ַ ִא ַמצְתָ ַלְָך‬forma um paralelo com o “homem de tua
destra” (‫( ) ִאיש ַיְמִינֶָך‬Sl 80.18[17]). Aqui, ‫ ִאיש‬e ‫ בֶן־ָאדָ ם‬parecem ser termos sinônimos
acompanhados por qualificativos que indicam a relação especial que esse “ser humano” tem
com YHWH.

450
CHISHOLM, 2016.
451
“Se o Deus do êxodo está do lado deles [israelitas], eles não precisam temer os homens frágeis e transitórios
deste mundo” (SMITH, 2009, p. 406; cf. GOLDINGAY, 2001, p. 296.
452
Ver essa compreensão na proposta de tradução em D. Vetter. ‫ראה‬. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p.
1183.
453
Embora a expressão no singular ‫ בֶן־ָאדָ ם‬tenha um uso bastante particular e específico em Ezequiel, nenhum
livro dos profetas bíblicos exemplifica melhor a ideia de ‫בֶן־ָאדָ ם‬, utilizando-o 93 vezes em referência ao profeta
(e.g., Ez 2.1,3,8; 3.1,4,10;4.1,16;7.2; 12.2; 13.17 et al.). Ao explicar o termo em Ezequiel, L. E. Cooper
apresenta seu sentido básico no livro: “Portanto, ‘filho do homem’ pode significar simplesmente ‘membro da
humanidade’. Mas a característica da humanidade, e talvez o foco em seu uso em Ezequiel, é a fragilidade e
mortalidade, em contraste com a eternidade e tremenda majestade de Deus (cf. 31.14).” (COOPER, 1994, p. 74.)
68

No salmo 62.10[9], o texto faz referência a ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬, que é uma expressão paralela a
‫ ְבנֵי־אִ יש‬e ambos são qualificados por “vaidade” ou “falsidade”; não há clara distinção entre os
dois grupos, ao contrário, são vistos da mesma perspectiva:454 como seres humanos falíveis e
limitados, eles não são dignos de confiança, da confiança que, em contraste, só o Deus de
Israel é merecedor (cf. v. 9,11[8,10]).
Na literatura de sabedoria, observa-se uma continuidade no paralelismo sinônimo
entre os termos ‫ בֶן־ָאדָ ם‬e ‫ ִאיש‬. Em Jó 35.8, os termos são paralelos para indicar o ser humano
que pode ser prejudicado com a maldade ou beneficiado com a justiça. Em Provérbios 8.4,
‫“( אִ ישִ ים‬homens”) está em paralelo a ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬não de forma oposta, mas sinônima, ressaltando o
aspecto universal da convocação feita pela Sabedoria — ela se dirige a todos os seres
humanos.455 A sabedoria encontra suas delícias entre os ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬, que parece ser uma referência
a todos os habitantes do ‫“( תֵ בֵל‬mundo”; “mundo habitável”) (Pv 8.31).
O uso da expressão ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬em Eclesiastes 3.18,19 não parece indicar um grupo
especial de descendentes de pessoas ricas, mas ser, como enfatizam Norbert Lohfink e outros
exegetas, uma referência a todos os seres humanos em sua individualidade e mortalidade em
comparação com os animais.456
Em síntese, podemos dizer que ‫ בֶן־ָאדָ ם‬é, basicamente, (1) sinônimo e paralelo de ‫אִ יש‬
em textos em que ambos ocorrem juntos, fazendo referência aos seres humanos como um
grupo universal (ao qual o ‫ ִאיש‬, “indivíduo”, pertence) ou em oposição à natureza confiável e
eterna da divindade (Nm 23.19; 1Rs 8.39; Is 52.14; Sl 62.10[9]; Pv 8.4); (2) esse conceito de
ser humano mortal e distinto de YHWH (embora semelhante aos animais) também está
presente quando ‫ ֶַבן־ָאדָ ם‬aparece sozinho em outras passagens bíblicas (1Sm 26.19; Ec
3.18,19). Os ‫ ְבנֵיַהָָאדָ ם‬também representam (3) aqueles que habitam o mundo ou a terra como
um todo (Gn 11.5; Dt 32.8; Pv 8.31). Por fim,ַ‫ בֶן־ָאדָ ם‬pode ser (4) paralelo de ‫ אֱנֹוש‬com a ideia
de ser humano ou humanidade (Is 56.2) cuja existência é efêmera e passageira (Is 51.12; Sl
8.5[4]; 90.3).
Essa análise demonstra que, embora haja alguns textos discutíveis (e.g., Jl 1.12; Sl
14.2; Sl 31.20; Sl 57.5[4]; 89.48[47]), os textos mais claros indicam que ‫ בֶן־ָאדָ ם‬deve ser
entendido como “ser humano” ou “humanidade”, um sentido que seria perfeitamente
454
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43.
455
HUBBARD, 1989. p. 118.
456
LOHFINK, 2003, p. 63,67. Douglas B. Miller também apoia essa interpretação de Lohfink, entendendo ‫ְבנֵיַָאדָ ם‬
como uma referência aos seres humanos em geral em sua comparação com os animais (ver MILLER, 2010, p.
75-6). Ver também HUWILER; MURPHY, 1999.
69

adequado mesmo em ocorrências sujeitas a debates. O fato de que o termo pode abranger
tanto os pobres justos sujeitos à maldade e aos caprichos dos ímpios (“leões”) (Sl 57.5[4])
quanto um grupo de pessoas ricas, que “devoravam” o povo de YHWH como pão e
ridicularizavam o conselho dos “aflitos” ou pobres (14.2,4-6; cf. 53.3), é uma advertência
contra a tentativa de determinar um sentido social ou/e econômico específico para ‫בֶן־ָאדָם‬,457
que retrata as atitudes ambivalentes dos seres humanos em geral e em sua individualidade.
A segunda expressão é usada em Gênesis 42.11,13, em que os ַ‫ ְבנֵי ִאיש‬são os “filhos”
do es o “ o e ”, ou seja, filhos do mesmo pai, Jacó,458 que mora em Canaã — sem
nuance socioeconômica. No livro de Samuel, em que a maior parte das ocorrências estão
concentradas, a expressão pode indicar o descendente de um homem que recebe algum
qualificativo — ‫“( בֶן־ ִאישַי ְ ִמינִי‬filho de um homem benjamita”, 1Sm 9.1); ‫“( בֶן־ ִאישַגֵר‬filho de
um homem estrangeiro”, 2Sm 1.13). Em 2Samuel 23.20 significa, simplesmente, “homem”,
em que Benaia é descrito como ‫“( בֶן־ ִאיש־חַיל‬homem de valor/valente”; cf. também o texto
paralelo de 1Cr 11.22).
Lamentações 3.33 afirma que Deus não aflige nem entristece os ‫ ְבנֵי־אִיש‬de bom
grado, uma provável referência às pessoas em geral,459 que recebem tanto bênçãos quanto
maldições das mãos de YHWH. Em Salmos 4.3[2], o termo poderia ter o sentido de “nobres”,
pessoas da elite,460 porém, ele está em claro contraste com YHWH, que aparece no versículo
4: enquanto os ‫ ְבנֵי־ ִאיש‬buscam o vexame do salmista devoto (v. 3), YHWH trata de forma
distinta e especial quem lhe é fiel (v. 4). Novamente, a referência aqui pode ser vista como um
simples contraste entre a divindade e os perseguidores do salmista, que não passavam de seres
humanos mortais (veja o uso semelhante ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬em 1Sm 26.19 e a análise acima).461
Em resumo, quando está no singular, o termo ‫ בֶן־ ִאיש‬indica o descendente de um
indivíduo ou o próprio indivíduo, geralmente com alguma qualificação, como local de origem,
característica pessoal ou nome (1Sm 9.1; 2Sm 1.13; 2Sm 17.25). No plural, ‫ ְבנֵי־ ִאיש‬indica,
basicamente, pessoas, em contraste com Deus (Lm 3.33; Sl 4.3[2]).
O HALOT admite as duas possibilidades para a tradução de ‫ — ְבנֵי־ ִאיש‬tanto a ideia
de “indicação de posição”, como “pessoas importantes” ou “governantes de baixo escalão”,

457
GOULDER, 1982, p. 184-5.
458
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 49.
459
KÜHLEWEIN, 1997, p. 101.
460
Ver GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); CRAIGIE, 1983, p. 80; VANGEMEREN, 1991, p.
82.
461
Ver PLOEG, 1963, p. 142. Esse também é o sentido apresentado por KÜHLEWEIN, 1997, p. 101.
70

quanto o sentido de “ser humano”, “filhos de homem”, “mortais” —, embora defenda o


primeiro sentido para o Salmo 49.3[2]. Chama a atenção o fato de que no único outro texto
em que ‫ ְבנֵי ַָאדָ ם‬é uma expressão paralela de ‫( ְבנֵי־ ִאיש‬Sl 62.10[9]) o próprio HALOT não
identifica uma distinção entre posições, mas um uso paralelo em que ambas as construções
designam o “ser humano” em sua mortalidade.462 Não fica clara a razão para ver um contraste
no Salmo 49.3[2] e um paralelismo sinônimo em 62.10[9].
Embora BDB e Alonso Schökel, ao tratar de ‫ָאדָ ם‬, definam as expressões ‫ בֶן־ָאדָ ם‬e
‫ בֶן־אִַיש‬como antônimas nos dois salmos (49.3; 62.10), eles o fazem sem dar explicações
satisfatórias para essa oposição,463 ao mesmo tempo que reconhecem a semelhança de
significado entre ‫ בֶן־ָאדָ ם‬e ‫ ִאיש‬.464 O pesquisador fica a perguntar como dois termos que são
tratados como sinônimos e sem uma conotação socioeconômica clara nos exemplos
apresentados se tornam, de repente, tão específicos e opostos.
Parece que a necessidade de tornar essas duas expressões paralelas aos dois termos
do verseto seguinte (‫שירְַַו ֶאבְיֹון‬
ִ ‫“[ ָע‬rico e pobre”]) é que levou os dicionários a padronizarem
essa tradução de ‫ ְבנֵי ַָא ָדם‬e ‫“( ְבנֵי־ ִאיש‬pessoas comuns” e “nobres”),465 mesmo que alguns
tenham sido reticentes em dar como certo tal interpretação no Salmo 49.3[2].466 Entretanto, a
poesia hebraica é dinâmica, podendo haver uma relação especificadora entre os dois
versetos,467 em que “ricos e pobres” revelam, de modo mais específico, quem são os “seres
humanos”, ou as “pessoas”, aos quais o salmista se dirige no versículo 3a.468

462
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 43.
463
Para sermos justos, BDB menciona que esse uso é frequente no fenício e sabeu e cita como base a pesquisa de
David H. Müller na página 680 do periódico Zeitschrift der Deutschen Morgenländischen Gesellschaft de 1875.
A dificuldade é que este autor encontrou o artigo de Müller, intitulado “Himjarische Inschriften” (que analisa
uma inscrição dos sabeus), porém, as páginas do artigo são 591-628, não há p. 680 nem p. 686 (ver MÜLLER,
1875, p. 591-628; cf. BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 9). Também chama a atenção o fato de que
Dahood não faça menção alguma ao ugarítico-fenício em sua proposta de tradução de Salmo 49.3, justamente ele
que tanta vezes recorre a esse idioma para suas propostas de leitura e tradução (ver DAHOOD, 1965, p. 296).
464
Alonso Schökel, por exemplo, diz que o sentido básico de ‫ בֶן־ָאדָ ם‬é “homem, ser humano, indivíduo, pessoa;
homens; cada um” e reconhece que o termo é sinônimo de ‫ אִיש‬em Jeremias 49.18 e que designa o “ser humano,
mortal” em Isaías 51.12 e 56.2. Contudo, no último dos sentidos, Schökel simplesmente indica os dois salmos
citados acima e diz que ambos são opostos, significando “plebeu oposto a nobre” (ALONSO SCHÖKEL, 2004,
p. 27-8, itálico do original). BDB faz o mesmo, reconhecendo várias ocorrências em que ‫ ָאדָ ם‬e ‫ אִיש‬são sinônimos
(Is 2.9,11,17; 5.15; 2Sm 7.14; Pv 8.4), mas indicando que ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬e ‫ ְבנֵי־אִיש‬são opostos com o sentido respectivo
de “homens de baixa condição social opostos a homens de elevada condição social”, porém, não indicam algum
outro texto da Bíblia Hebraica que justificaria o uso antônimo de termos que, nas demais ocorrências, são
sinônimos (ver BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 9).
465
Ver, e.g., KRAUS, 1993, p. 734.
466
Ver KÜHLEWEIN, 1997, p. 101.
467
CHISHOLM, 2016, p. 176.
468
Talvez possa haver também uma estrutura de paralelismo sintético, em que a segunda linha expande ou
completa a primeira (RYKEN, 1992, p. 182).
71

Sem um precedente claro da Bíblia Hebraica para designar ambos os termos como
opostos (“gente do povo” e “nobres”), o natural é entender ‫ ְבנֵיַָאדָ ם‬e ‫ ְבנֵי־אִיש‬como sinônimos,
indicando os seres humanos, as pessoas em geral, como fazem a NET Bible (“all you people”
[todas as pessoas]), a NVT (“todos os seres humanos, sem exceção”) e as traduções de Robert
Alter (“You human creatures, you sons of man”)469 e de Matthias Grenzer (“tanto os filhos da
humanidade quanto os filhos do homem”).470 “O contraste não é necessário para fazer sentido
aqui: ‘todos os habitantes do mundo’ ainda são considerados juntamente no v. 2a [3a, TM],
sua fragilidade sendo enfatizada com o poder de Deus de enviá-lo ao Sheol (v. 7ss.)”.471
Essa leitura também conta com o apoio da LXX, que traduz os termos
respectivamente por γ γε εῖς (“habitantes da terra”)472 e ἱ ῶ θρώπω (“filhos dos
homens”), mantendo o paralelismo sinônimo entre os termos, sem uma oposição de classes
socioeconômicas. Por fim, tanto ‫ ִאיש‬quanto ‫ ָאדָ ם‬são usados no Salmo 49 para descrever o
homem de posses (‫ ִאיש‬, v. 8,17[7,16]; ‫ָאדָ ם‬, v. 13,21[12,20]).
Essas partes do poema conclamam todas as pessoas, de forma coletiva (’ ), a se
empenharem para obter um entendimento mais profundo em relação à condição
humana. Deixar de dar ouvidos à sabedoria, à percepção e ao entendimento do
poema serve, poeticamente, para ligar todos os ‘filhos da humanidade’ (v. 3) à
‘geração dos seus pais’ (v. 20) — uma unidade que é, como veremos, fisicamente
produzida pela sepultura.473
A segunda linha poética do versículo 3 deixa mais claro que toda a humanidade a
quem o salmista se dirige envolve o “rico” (‫שיר‬
ִ ‫ ) ָע‬e o “pobre” (‫) ֶאבְיֹון‬. Ambos devem ouvir a
mensagem que ele está prestes a anunciar, “pois a sabedoria se aplica a todos, independente
de sua posição na vida, sua riqueza ou pobreza”.474 “Ao rico é feita uma advertência, e ao
pobre é oferecido consolo”.475
ִ ‫ ָע‬é uma referência ao “rico” ou “abastado”,476 alguém que, segundo a
O termo ‫שיר‬
tradição sapiencial do antigo Israel, tem grandes chances de fazer de seus “bens” ou
“riquezas” (‫ )הֹון‬a sua “cidade forte” (‫ )ק ְִרי ַת ַעֻז ֹו‬ou de considerar-se sábio aos próprios olhos

469Ver a tradução e o comentário de Salmos 49.3 em ALTER, 2007, p. 171.


470Ver tradução de Salmo 49.3 em GRENZER, 2017, p. 114.
471
GOULDER, 1982, p. 185.
472
ARNDT; DANKER; BAUER, 2000, p. 196. Ver o uso desse termo em FILO DE ALEXANDRIA, Leis
especiais 2.124 (cf. FILO DE ALEXANDRIA,The Special Laws, in: YONGE, 1995, p. 580. Ver também o
sentido primário do termo apresentado em LUST; EYNIKEL; HAUSPIE, 2003 (edição eletrônica). verbete
γ γε ής.
473
PLEINS, 1996, p. 20.
474
CRAIGIE, 1983, p. 358.
475
KRAUS, 1993, p. 734.
476
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 896; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 799; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 524.
72

(Pv 28.11). Por ter poder econômico, ele corre o risco de oprimir o mais pobre, tomando à
força o que não lhe pertence, como ilustra a estória contada por Natã a Davi (2Sm 12.1,4), que
nada mais era que uma expressão do próprio pecado pelo qual o rei é confrontado. O profeta
Miqueias já denunciava os ricos por sua “violência”, uma expressão que descreve várias
formas de exploração daqueles que estão em condição social inferior, efetuadas por meio da
violência física e psicológica (Mq 6.12).477
O profeta Jeremias adverte os “ricos” a não se gloriarem em suas riquezas (Jr 9.22),
mas em conhecer YHWH, o Deus de Israel (9.23-24), visto que a sabedoria hebraica já
ensinava que a riqueza é passageira como um sono: depois de dormir, o “rico” abre os olhos e
já não vê suas riquezas (Jó 27.19). A advertência do salmista em 49.3[2] e de Jeremias 9.22-
24 revelam que é possível ao rico não permitir que os bens se tornem o “deus” em quem ele
confia (cf. Sl 49.7[6]). A passagem de Jeremias “tem a forma de uma exortação positiva que
desafia a estima social por sabedoria, poder e riqueza e recomenda uma diferente tríade de
prioridades, as virtudes da aliança, que são a lealdade (cf. 2.2), a justiça e a conduta
correta”.478
No entanto, embora admita a possibilidade de um rico não ser norteado pelo
pensamento hegemônico da elite de opressão e desprezo pelos pobres, o Salmo 49 tem, em
geral, uma perspectiva negativa dos que acumulam riquezas: “os que confiam em suas posses”
são os “os que me atacam por trás” (v. 6,7); o “homem em esplendor” que “não entende” é
“como os animais que perecem” (v. 21[20]; cf. v. 13[12]); e são aqueles que habitam em
“mansões” que terão sua aparência consumida pelo Sheol, enquanto o salmista piedoso terá
sua vida redimida por YHWH (15,16[14,15]).479 Assim, podemos concordar com
Gestenberger que “no Salmo 49 a raça humana é dividida em ricos e pobres, aqueles que
dominam outros e aqueles que são dependentes de outros (v. 3)”.480

477
PATTERSON, 2008, p. 339.
478
ALLEN, 2008, p. 120.
479
Nossa proposta, portanto, é oposta à perspectiva de Spangenberg. Com base na tese desenvolvida por Albertz
de que havia dois grupos de classe alta no período pós-exílico — o primeiro tipo desfrutava de sua posição e era
indiferente ao pobre e o segundo era compassivo com os pobres e buscava aliviar o sofrimento deles, mesmo que
isso afetasse suas condições financeiras pessoais —, Spangenberg afirma que o compositor do Salmo 49 fazia
parte do segundo grupo e utilizou o provérbio do v. 11[12] para mostrar que a riqueza é passageira e a morte é
inevitável (ver SPANGENBERG, 1997, p. 339). Aqui, não rejeitamos de imediato a tese de Albertz de que o
salmo era pós-exílico (ver cap. 3), porém, entendemos que o salmista era alguém oprimido pelos ricos, não um
rico compassivo, como o restante da exegese demonstrará.
480
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).
73

O segundo tipo de pessoa que o salmista menciona, o ‫“( ֶאבְיֹון‬pobre”), são os “pobres”
ou “carentes”,481 aqueles que são necessitados no espectro socioeconômico (Êx 23.11; Dt
15.7; Et 9.22; Jó 31.19, et al). Em 1Samuel 2.8, eles estão no “monturo” ou “lixão” (‫)אַשְפ ֹת‬,
um termo que indica o lugar na parte externa de uma cidade, onde os mendigos se assentavam
durante o dia para pedir esmolas e à noite para dormir.482
Por se encontrarem nessa condição, estavam “sujeitos à opressão e ao abuso” (Am
2.6; 5.12; Sl 109.16).483 Eles eram vítimas da opressão e “esmagados” pelos ricos, bem como
tratados com indiferença por estes (Am 4.1).484 A cultura de opressão, muito comum em todo
o Antigo Oriente Próximo, foi intensamente criticada pelo deuteronomista, que aconselhava
os israelitas a “abrir a mão” ao pobre e necessitado que houvesse na terra, não deixando de
ajudá-lo quando este precisasse (Dt 15.4,7,11). Esse quadro do cuidado e preocupação com o
pobre é retratado pela tradição de sabedoria na figura de Jó, que era “pai” dos pobres e se
angustiava com a condição dos necessitados (Jó 29.16; 30.25).
Por não ter a quem recorrer senão o próprio YHWH, o termo “pobre” passou a ser
usado em um sentido religioso485 para descrever aqueles que eram perseguidos e clamavam
pela ajuda do Deus de Israel, praticamente um sinônimo para o justo sofredor (Sl 40.18[17];
86.1). Assim eles são objeto especial do cuidado de YHWH, que se levanta para libertar os
“necessitados” (Sl 12.6[5]) das mãos dos malfeitores (Jr 20.13). Os próprios israelitas no
exílio serão descritos como ‫“( ָה ֶאבְיֹונִים‬os necessitados”),486 a quem YHWH suprirá a água pela
qual anseiam e não os desamparará (Is 41.17).
No versículo 4, o salmista apresenta a razão para que os “seres humanos”, “todos os
habitantes do mundo”, “seja rico, seja pobre”, deem ouvidos ao que ele tem a dizer. Os dois
versetos estão em uma relação de paralelismo direto,487 com a elipse do verbo que ocorre na
primeira linha, um fenômeno muito comum na poesia hebraica, em que “uma palavra,
geralmente um verbo, rege também a oração paralela do segundo verseto”, caracterizando

481
KIRST et al., 2004, p. 2.
482
KLEIN, 1983. p. 18; GORDON, 1988, p. 80.
483
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 2.
484
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 2.
485
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 5.
486
GESENIUS, 2003, p. 5.
487
Ver RYKEN, 1992, p. 180-1; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; CHISHOLM, 1998, cap. 6
(edição kindle).
74

uma espécie de “repetição ‘oculta’”.488 Assim, propomos a seguinte estrutura do paralelismo


no versículo 4: A. “minha boca” / A’. “a meditação do meu coração”; B. “falará” / B’. elipse
do verbo (“—”); C. “sabedoria” / C’. “entendimento”.
‫ ָחכְמֹות‬/ ‫ י ְדַ בֵר‬/ ‫פִי‬
‫ תְ בּונֹות‬/ ---- / ‫ְוהָגּותַ ִלבִי‬

A princípio, chama a atenção a relação entre ‫“( פִי‬minha boca”) e ‫“( הָגּותַ ִלבִי‬meditação
do meu coração”), pois a tradição sapiencial relaciona, de forma recorrente, “boca” (‫ )פֶה‬e
“coração” (‫)לֵב‬. Em Provérbios 15.14, o ‫“( לֵב ַנָבֹון‬coração do entendido”), que “busca” o
conhecimento, é contraposto à ‫“( ְפנֵי ַ ְכסִילִים‬boca dos insensatos”), que “se apascenta” de
insensatez. Enquanto o ‫“( לֵב ַצַדִ יק‬coração do justo”) reflete antes de responder, a ‫פִי ְַרשָ עִים‬
(“boca dos ímpios”) “jorra”489 maldades (Pv 15.28). Qohelet aconselha sua audiência a não se
precipitar com “a tua boca” (‫ )פִיָך‬nem a permitir que “o teu coração” (‫ ) ִלבְָך‬se apresse em
“fazer sair palavra” (‫ )לְהֹוצִיא ַדָ בָר‬na presença de Deus (Ec 5.1). Por isso, o “sábio” (‫ ) ָחכָם‬é
ְ ַ ‫)י‬490 “sua boca” (‫( )פִיהּו‬Pv
aquele cujo “coração” (‫“ )לֵּב‬dá entendimento” ou “ensina” (‫שכִיל‬
16.23).
Por ter um coração que medita (cf. ‫)הָגּות‬491 e transmite “entendimento” (‫)תְ בּונֹות‬, é
natural que a boca do salmista fale “sabedoria”, visto que o “coração” é visto como “fontes”
(‫)תֹוצְאֹות‬492 de vida (Pv 4.23). Na tradição sapiencial, bem como na Bíblia Hebraica,
predomina o sentido de “boca” como “órgão da fala”.493 A “boca” de uma mulher adúltera
pode ser como uma “adaga de dois gumes” afiada, que traz um amargo fim aos que dão
ouvidos ao discurso dela (Pv 5.4);494 da mesma forma, a “boca” do insensato é “ruína

488
ALTER, 2011, p. 25. Alter continua sua explicação: “Eu sugeriria que é útil identificar esse recurso como uma
repetição oculta ou implícita porque, apesar de sua diferença de métrica em relação à repetição com o
incremento, ela está intimamente relacionada à última no sentido de que é usada para introduzir um incremento
de sentido” (p. 25). A classificação de Alter parece representar melhor a ideia de elipse do que a de Grant
Osborne que chama esse tipo de paralelismo de “paralelismo incompleto” (ver OSBORNE, 2009, p. 294).
489
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 665.
490
SWANSON, 1997, verbete 8505 [edição eletrônica])
491
O substantivo ‫ הָגּות‬é uma hapax legomena derivado do verbo ‫( ָהגָה‬BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p.
211-2; WOLF, Hebert. ‫ ָהגָה‬, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 205), que é usado na Bíblia Hebraica
em referência à responsabilidade de Josué de “meditar” na lei de YHWH dia e noite (Js 1.8), assim como o faz
aquele que é “bem-aventurado” no salmo 1.2.
492
GESENIUS, 2003, p. 859.
493
LABUSCHAGNE, C. J. ‫פֶה‬, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 977-8; BROWN; DRIVER; BRIGGS,
1977, p. 804-5.
494
BERMAN, 2002, p. 293. Como Berman argumenta, há nesta passagem um jogo de palavras entre as “bocas”
(‫ )פִיֹות‬da espada e as “bocas”, ou conversa persuasiva e bajuladora, da mulher adúltera.
75

iminente” (‫( ) ְמחִתָ הַקְרֹבָה‬Pv 10.14). Por outro lado, a “boca” do justo é “fonte de vida” (ַ‫מְקֹור‬
‫ ) ַחי ִים‬e produz495 “sabedoria” (‫( ) ָח ְכמָה‬Pv 10.11,38), como faz a “boca” do salmista aqui.
O termo ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”) aparece como um conceito amplo nos textos da Bíblia
Hebraica, podendo indicar, assim como na antiga Mesopotâmia,496 certas habilidades, como a
técnica de processar metais (1Rs 7.14), de trabalhar com ouro (Êx 31.3), de confeccionar
tecidos (Êx 35.25), de navegar (Ez 27.8; Sl 107.27) e de comandar um exército vencedor (Is
10.13).497 Entretanto, a “sabedoria” também podia indicar pessoas capazes de aconselhar
outros a tomar decisões difíceis ou de fornecer decisões/auxílio para dirigir suas ações (2Sm
14.2-20; 16.23; 1Rs 3.28; 10.24; Pv 10.14).498
Para a tradição sapiencial, a sabedoria está na presença de Deus desde a criação do
mundo (Pv 9.22-31) e encontrá-la implica alcançar o favor de YHWH (Pv 9.35). O texto de Jó
28, ao descrever o paradeiro da Sabedoria, também mostra o íntimo relacionamento dela com
Deus, o único que conhece onde a Sabedoria habita (Jó 28.23-24). “O desejo de relacionar
Deus com a humanidade de forma mais direta deu origem à reflexão [...] sobre a Sabedoria.
Deus manifesta sua presença nas vidas de suas criaturas por meio dela...”.499
Um aspecto importante enfatizado pelos sábios no antigo Israel diz respeito à
conduta individual — a ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”) e o ‫“( דֶ ֶרְך‬caminho”; “procedimento”) aparecem
juntos: “A sabedoria do prudente é entender o seu próprio caminho, mas a estultícia dos
insensatos é enganadora” (Pv 14.8, ARA, grifo acrescentado).500 Como característica
individual, há sábios e insensatos em todas as classes sociais. Em geral, sabedoria de vida tem
mais a ver com caráter do que com o intelecto, visto que os sábios, em geral, se identificam
com a justiça, e os insensatos, com a maldade/impiedade: “O sábio é cauteloso e desvia-se do
mal, mas o insensato encoleriza-se e dá-se por seguro” (Pv 14.16, ARA). “Para o insensato,
praticar a maldade é divertimento; para o homem inteligente, o ser sábio” (Pv 10.23, ARA,
grifo acrescentado).501
A ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”) estava intimamente relacionada com o ‫“( י ְִרַאת ַי ְהוָה‬temor de
YHWH”). Para o verdadeiro israelita, “toda sabedoria tinha raízes em Deus e só estava à

495
‫( י ָנּוב‬ver HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 230; SWANSON, 1997, verbete 5649).
496
Ver HARRISON, 2004. p. 1004.
497
WOLFF, 2008. p. 311.
498
LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 497; BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).
499
CRENSHAW, 1977, p. 365.
500
WOLFF, 2008, p. 313 (cf. PINTO, 2014, p. 507).
501
VON RAD, 1973, p. 91-2; WOLFF, 2008, p. 313-4.
76

disposição dos homens porque estes eram criaturas de Deus, capazes de receber a revelação
divina”.502 Como observou G. von Rad, a ideia de “temor de YHWH” como princípio da
sabedoria “aparece cinco vezes — com pequenas variantes — na literatura didática, algo que
não ocorre com nenhuma outra frase e que indica, portanto, a importância que deve ter
tido”.503 As passagens didáticas em que ela ocorre são as seguintes:
O temor do SENHOR é o princípio do saber,
mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino. (Pv 1.7, ARA)

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria,


e o conhecimento do Santo é prudência. (Pv 9.10, ARA)

O temor do SENHOR é a instrução da sabedoria,


e a humildade precede a honra. (Pv 15.33, ARA)

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria;


revelam prudência todos os que o praticam. (Sl 111.10, ARA)
Eis que o temor do Senhor é a sabedoria,
e o apartar-se do mal é o entendimento. (Jó 28.28, ARA)

A concepção de “temor de YHWH” como princípio do saber parece indicar tanto a


devoção a YHWH como parte principal do desenvolvimento da sabedoria quanto um modo de
vida cujas escolhas acertadas refletem a reverência a Deus.504 Ao comentar essas passagens,
G. von Rad diz que o temor de Deus é o ponto de partida do saber, o elemento que nos conduz
à sabedoria, capacita-nos a adquiri-la e nos educa nela.505
O versículo 5 aponta, no primeiro verseto, para a fonte externa do ensinamento do
salmo, pois o autor precisa inclinar seus ouvidos à mensagem de outro: “Inclinarei 506 a um
provérbio os meus ouvidos” (‫( ) ַאטֶהַ ְל ָמשָלַָאזְנִי‬cf. Pv 2.1; 4.1; 5.1). “O autor inclina seu ouvido,
abre-se ao outro mundo, para escutar a sentença decisiva que servirá para aterrorizar os ricos e
consolar os pobres”.507 Chama a atenção a ausência de um mestre que lhe transmita o
“provérbio” (‫ ) ָמשָל‬a fim de que o comunique às pessoas a quem convoca. “‘Inclinar o ouvido
a’ um texto ou dito [...] é fórmula conhecida (p. ex., Sl 78.1; 88.3; Pv 4.20; 5.1,13); só que

502
LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 498.
503
VON RAD, 1973, p. 92.
504
BERRY, 1995 (edição kindle).
505
VON RAD, 1973, p. 94.
506
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 693.
507
KRAUS, 1993, p. 735.
77

nesses casos o texto é pronunciado por terceiro, ao passo que no salmo fala o mestre
sozinho.”508
David Pleins observa que “em nenhum outro salmo se diz que o poeta inclina seu
ouvido. O padrão retórico normal é clamar a Deus, no início do poema, para que ele incline
seu ouvido [...] (cf. e.g. Sl 71.2,22; 86.1,12; 88.3,11).”509 Surge, então, a pergunta: A quem o
salmista inclina seus ouvidos? “Escuta a si próprio? Ouve mentalmente um ensinamento
tradicional? Supõe-se um terceiro que pronuncia o provérbio para que seja comentado?”.510
Dahood, ao comentar o primeiro verseto, relaciona-o com o segundo e diz: “Para captar a
inspiração, ele sussurrará ao acompanhamento da lira. Cf. Jó 4.12: ‘Agora, uma palavra veio a
mim silenciosamente / Há pouco um sussurro chegou ao meu ouvido’”.511
No segundo verseto, o salmista acrescenta uma ideia que parece ter função
complementar,512 não necessariamente sinônima ou antitética — o que constituiria um
ַ
paralelismo sintético.513 Ele diz: “Exporei com a cítara meu enigma” (‫)חִידָ תִ י ֶאפְתַ ח ְבכִּנֹור‬. Sob
uma perspectiva complementar do dístico do versículo 5, é possível afirmar que o ato de
“inclinar o ouvido” é concomitante ao de “expor o enigma” enquanto a cítara é dedilhada. “O
dedilhar da cítara e o paralelismo das expressões lhe dizem que está transcendendo a si
mesmo, a verdade divina está se fazendo ouvir assim como ocorreu quando o tangedor tocou
para Eliseu (1Rs 3.15)”.514
A única cena bíblica em que alguém fala ao som de um instrumento é aquela em que
o profeta Eliseu traz uma mensagem de YHWH para Jorão e Josafá quando os dois saíram à
guerra contra o rei de Moabe (2Rs 3.14-16), o que poderia indicar que, para o salmista, o
discurso seguinte é fruto da inspiração divina.515 Embora nesse trecho não se mencione a
“cítara” (‫ )כִּנֹור‬propriamente dita nem o ato de inclinar os ouvidos (‫[ ַאטֶה‬...] ‫)ָאזְנִי‬, muito menos
se use a raiz verbal ‫“( פתח‬abrir”; “expor”) para descrever o ato de revelação, é interessante
508
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.
509
PLEINS, 1996, p. 21. Cf. DUNN, 2009, p. 206.
510
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.
511
DAHOOD, 1965, p. 297.
512
CHISHOLM, 2016, p. 176-7.
513
Em que a segunda linha expande ou completa a primeira (RYKEN, 1992, p. 182). Essa relação entre as duas
partes do dístico também é chamada de “paralelismo progressivo” (ver OSBORNE, 2009, p. 290).
514
GOULDER, 1982, p. 185.
515
WEISER, 1994, p. 286. Contra Gerstenberger, que diz que a expressão ‫ ַאטֶהַ ְל ָמשָלַָאזְנִי‬é equivalente a “Vamos
escutar” e nada tem a ver com um relato da revelação (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]; cf.
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle), que apoia a ideia de que a expressão é um convite a ouvir à
mensagem, não um processo de inspiração). Tesh apoia a ideia de que o autor inclina os ouvidos à mensagem
divina, mas não associa a cítara com o processo de revelação, pois entende que o enigma, com a solução, “será
recitado em uma canção, com o acompanhamento de instrumentos de corda” (TESH, 1999, p. 353)
78

notar o seguinte: enquanto o instrumento era dedilhado pelo “tangedor” (‫) ַה ְמנַגֵן‬, “a mão de
YHWH esteve sobre ele, e ele disse: ‘Assim diz YHWH...’”516 (2Rs 3.15). A execução do
instrumento é concomitante à revelação de YHWH e à transmissão dessa revelação às pessoas
presentes, algo que o hebraico deixa claro pelo uso da preposição ‫ ְַכ‬+ a raiz verbal no
infinitivo ‫ נגן‬no grau piel (‫) ְכנַגֵּן‬, cuja sintaxe implica a ideia de “quando tocou”, “enquanto
tocava” (cf. Gn 4.8; 1Rs 15.29).517
Essa semelhança entre o Salmo 49 e 2Reis 3 na descrição do processo de inspiração e
transmissão da mensagem divina acompanhadas por um instrumento musical parece favorecer
a ideia de que Salmos 49.5[4] remete a uma mensagem externa ao salmista, concedida por
revelação divina e que ele transmitirá a seus ouvintes.518 O que reforça essa ideia de
inspiração é o uso da raiz verbal ‫“( פתח‬expor”) no salmo, pois esse termo também é usado em
referência à capacitação divina de Ezequiel para que anunciasse a mensagem de YHWH:
“Abrirei [‫ ] ֶאפְתַ ח‬a tua boca e lhes dirá: Assim diz o Senhor...” (Ez 3.27; cf. 33.22). 519
O salmista define a mensagem a ser exposta como ‫“( חִידָ ה‬enigma”) (Sl 49.5b),
palavra que tem sido calorosamente discutida entre os estudiosos. Leo G. Perdue, em “The
riddles of Psalm 49”, propõe que o salmo é a resolução de um enigma (‫ )חִידָה‬apresentado pelo
próprio salmista. Inicialmente, o autor desenvolve uma definição abrangente de “enigma”,
tendo em mente suas diversas formas: “um enigma é uma proposição misteriosa em que uma
criatura, um objeto ou um evento é descrito de forma obscura ou paradoxal conforme um ou
mais de seus aspectos característicos”.520

516
‫וַתְ הִיַ ָעלָיוַי ַד־י ְהוָה וַי ֹאמֶרַכ ֹהַָאמַרַי ְהוָה‬
517
Ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 604; PINTO, 1998, p. 82, 123-4; CHISHOLM, 2016, 95; (cf.
KELLEY, 1998, p. 217-8).
518
Esse também é o entendimento de Roger N. Whybray: “A explicação provavelmente deva ser encontrada no
entendimento de que a referência à música está relacionada com a inspiração do salmista, em vez de com seu ato
de cantar. O salmista fala de ouvir (v. 5a), talvez para captar o eco de uma lembrança de um ensino sapiencial
antigo com o qual estava familiarizado em sua juventude, mas é mais provável que ele se refira a uma palavra da
parte de Deus, isto é, uma instrução divina que ele deveria transmitir. Portanto, ele não está se referindo ao
acompanhamento musical de uma canção: ele havia mencionado no v. 4 que o que ele estava prestes a falar
( ibb — ele nada diz sobre cantar) era resultado de uma meditação interna anterior” (WHYBRAY, 1996, p.
65).
519
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 835.
520
PERDUE, 1974, p. 534 (itálico acrescentado). Ele também entende que o conteúdo dos enigmas varia de
cultura para cultura. Os temas típicos nas resoluções dos enigmas podem ser comuns e claros quando revelados
ou extremamente esotéricos, relacionados apenas com o conhecimento de sábios e sacerdotes. Por fim, há
variação na natureza da linguagem com que um enigma é elaborado. Há vários artifícios literários que são
empregados, como paronomásia, metáfora, aliteração, símile, assonância, rima, métrica, paralelismo, etc. Perdue
desenvolve a tese de A. Jolles (Einfache Formen) de que a fórmula do enigma é o ponto central de um debate ou
disputa que resulta, de forma figurada ou literal, em “vida” ou “morte” para os participantes, em morte para o
proponente do enigma se este for decifrado ou para quem o enigma é proposto caso não consiga resolvê-lo. Da
79

Como o salmista propôs o enigma no início do salmo, que irá “expor” (‫פתח‬, v. 2-5), o
autor do artigo entende que a charada e sua resposta devem estar no próprio texto, ou seja, nos
versículos 13 (TM) [resposta] e 21 (TM) [pergunta]. A pergunta (reconstruída pelo autor do
artigo) seria: “Qual é a semelhança entre o homem sem entendimento e o animal ‘mudo’ (v.
21)”? A resposta (no v. 13) é: a morte, não a estupidez; os ricos não “entendem” que eles,
assim como os demais seres humanos, estão destinados à morte, ou ao Sheol.521 Ele identifica,
então, mais um enigma presente nos versículos 8 e 16 (TM), que não é formulado com
pergunta e resposta, mas com duas afirmações paradoxais: o salmista reconhece que a morte é
um estado do qual nem rico nem pobre nem tolo nem sábio podem ser redimidos (vv. 7-10),
mas declara que ele será objeto da redenção divina.522
Perdue parece estar correto ao menos em relacionar o “enigma” com o refrão do
salmo nos versículos 13 e 21 e expor a questão central da mensagem do sábio: um homem
com todas as riquezas (“um ser humano em esplendor” — ‫)וְָאדם ְ ְִביקָר‬523 que “não entende”
(‫ )וְֹלאְיָ ְִבין‬em nada difere de um animal ao deparar-se com a morte: todos “perecem” (‫( )נִדְ מּו‬Sl
49.13,21). No entanto, deve-se observar que ‫“( חִידָ ה‬enigma”) está em paralelo com ‫מָ שָ ל‬

perspectiva de quem tenta responder ao enigma, a reação inicial é de tensão e ansiedade, pois se não responder
corretamente isso lhe resultará em “morte”, porém, se for capaz de resolver o enigma, ele demonstra seu
conhecimento e sua habilidade aguçados para encontrar ordem e sentido naquilo que parece ser obscuro e
contraditório. Quem descobre o enigma é o verdadeiro homem sábio. (PERDUE, 1974, p. 534, 535-6).
521
PERDUE, 1974, p. 538-540.
522
PERDUE, 1974, p. 540-1. Como base para essa ideia, Perdue menciona outras histórias do Antigo Oriente
Próximo, inclusive do AT, o pano de fundo para o Salmo 49: heróis que conquistam ou perdem a imortalidade
em sua busca por alcançar vida eterna ou status divino ao descobrirem o segredo da sabedoria dos deuses.
Assim, no Salmo 49, “um homem sábio, valendo-se de um tema comum no Antigo Oriente Próximo, está
confiante de que será salvo da morte [...] não por causa de sua moralidade ou piedade, mas porque somente ele
possui a sabedoria secreta relacionada aos mistérios de vida e morte” (PERDUE, 1974, p. 541-2). Outra proposta
de entendimento de ‫ חִידָ ה‬é feita por ZUCKER, 2005, p. 143-152, mas não é muito esclarecedora e demanda uma
série de intervenções e alterações no TM. Ele propõe uma reestruturação e reconsideração do salmo, em que o
segundo conjunto de sete versículos (v. 14-20) responde ao primeiro conjunto de sete versículos (v. 6-12), sendo
os versículos 2-5 uma introdução que chama os ouvintes a dar atenção ao que o autor tem a dizer (ZUCKER,
2005, p. 145-8). Os versículos 13 e 21 seriam o refrão do salmo. A proposta demanda uma mudança radical na
sequência do texto, sem apoio textual para isso: v. 2 e v. 4, v. 3 e v. 5 / v. 6 e v. 14, v. 7 e v. 15, v. 8 e v. 16, v. 9
e v. 17, v. 10 e v. 18, v. 11 e v. 19 / v. 12 e v. 20 (ZUCKER, 2005, p. 145-7). A falta de correspondência em
algumas perguntas-respostas e a ausência de apoio textual para essa reconstrução revelam a fraqueza do esquema
de Zucker, reconhecida pelo próprio autor, mas justificada como sendo causada pelas alterações que o salmo
sofreu no processo de transmissão. Fica evidente o argumento circular aqui: algumas perguntas-respostas não
têm correspondência porque sofreram corrupção, e a suposta corrupção é vista na falta de correspondências entre
as perguntas-respostas.
523Em Jeremias 20.5, ‫קר‬ ָ ְ ‫ י‬está relacionado a termos como ‫“( חֹסֶן‬tesouro”, “suprimentos”)523 e ‫אֹוצְרֹות ַ ַמ ְלכֵי ַי ְהּודָ ה‬
(“tesouros dos reis de Judá”). Nos textos sapienciais (mesmo gênero que o Salmo 49), ‫ י ְ ָקר‬é usado para se referir
à busca do homem por “tudo [o que é] precioso” (‫ )כָל־יְקָר‬ao escavar nas rochas (Jó 28.10), em uma alusão aos
metais preciosos. Em Provérbios 20.15, ‫ י ְ ָקר‬funciona como qualificativo e indica “objeto de valor” (‫ ) ְכלִיַי ְ ָקר‬em
paralelo a “ouro” (‫ )זָהָב‬e “pérolas de coral” (‫) ְפנִינִים‬. Ver HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 112. KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 946.
80

(“parábola”) do segundo verseto, algo que ocorre quando se faz referência a uma máxima
sapiencial (Pv 1.6; Hc 2.6)524 ou a uma fábula que é contada para fazer a audiência refletir
sobre uma mensagem (Ez 17.2ss.). Portanto, Hamp parece estar correto em dizer que ‫חִידָ ה‬
tornou-se praticamente um sinônimo de máxima sapiencial: “declarações simbólicas e símiles,
salmos paradoxais e profundos poderiam ser chamados de enigmas”, pois “a linguagem
enigmática da sabedoria sempre tem de ser decifrada por alguém com conhecimento”.525 No
caso do Salmo 49, a questão da teodiceia e a vaidade das riquezas é o tema tanto expresso
quanto implícito na comparação (observe-se que o verbo ‫“[ נִ ְמשְַל‬é semelhante”] é de mesma
raiz que ‫[ ָמשָ ל‬parábola], o termo paralelo a ‫)חִידָ ה‬.

2.3. Estrofe I: A realidade da morte elimina o temor dos opositores que


confiam em suas riquezas (v. 6-12)

49.6Por que temerei os dias maus,


[quando]a maldade dos que me atacam por trás me cercar?
7
Os que confiam em suas posses
E na abundância de seus bens se gloriam.
8
Um ser humano não redimirá de modo algum [seu] irmão.
Nem dará a Deus um pagamento expiatório por ele.
9
(Pois é valioso o resgate da vida deles;
E cessará para sempre.)
10
Para que viva continuamente para sempre
E não veja a sepultura.
11
Certamente, verá que os sábios morrem
Insensato e bruto juntos são destruídos
E deixam para outros suas posses.
12
Seu pensamento íntimo526 [é que] suas casas são eternas,
E suas habitações, de geração em geração.

524
YAMAUCHI, E., ‫חּוד‬. , in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 616.
525HAMP, ‫חִידָ ה‬, In: BOTTERWECK, 1997, v. 4, p. 321-2.
526
Para a tradução de ‫ ק ְִרבָם‬por “seu pensamento íntimo”, veja as ocorrências de ‫ ק ֶֶרב‬em Gn 18.12; Sl 5.10[9];
62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14. Na antepenúltima referência (Sl 62.5), há claramente um contraste entre o ato da “boca”
dos homens falsos de “abençoar” e o “pensamento interior deles” (‫)ק ְִרבָם‬, que “amaldiçoa”. Em Jr 4.14, é no ‫ק ֶֶרב‬
que estão presentes os “maus pensamentos” (‫) ַמ ְחשְבֹותַאֹונְֵך‬. Cf. COPPES, Leonard J. ‫ק ֶֶרב‬, in: HARRIS; ARCHER
Jr.; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY; KÖHLER, 2000. p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135, sentido 2.
81

Aclamam seus nomes sobre as terras.

O dístico do versículo 6 é composto por dois versetos complementares, formando


um paralelismo sintético527 ou progressivo.528 O segundo verseto, “[quando] a maldade dos
que me atacam por trás me cercar?” (‫)עֲֹוןַ ֲע ֵקבַיַי ְסּו ֵבנִי‬, complementa e aprofunda o sentido de
“dias maus” (‫ֵיַרע‬
ָ ‫)בִימ‬, a última expressão da primeira parte. Além disso, é possível identificar
um paralelismo rítmico ou métrico de 3 + 3 neste dístico,529 além da clara assonância nas
sílabas que recebem ênfase no primeiro verseto, que transliteramos e destacamos (negrito)
para clareza: ’ b (‫יַרע‬
ָ ‫יראַבִי ֵמ‬
ָ ‫) ָלמָהַ ִא‬.
A raiz verbal ‫ י ֵָרא‬da pergunta inicial do versículo ocorre tanto na literatura hebraica
quanto na ugarítica530 e tem uma ampla gama de nuances de sentido no grau qal, como
“temer, assustar-se, alarmar-se”; “tremer, estremecer, levar um susto”; “ser tímido, covarde”;
“ter medo, temor, receio, apreensão”; “ter respeito, reverência, respeitar, venerar”. 531 Quando
se trata de objetos, seres e pessoas, o temor pode ser uma reação psíquica às ameaças: temor
de animais e eventos naturais, como o leão (Am 3.8) ou a neve e abalos sísmicos (Pv 31.21;
Sl 46.3); temor de guerras e fome (Jr 42.16; Ez 11.8); temor da morte causada por pessoas
(Gn 32.12; 1Rs 1.50ss.; Jr 26.21) ou por eventos da natureza, como uma tempestade em alto
mar (Jn 1.5); temor de um povo ou exército inimigo (Êx 14.10; Js 9.24; 1Sm 7.7; 2Rs
10.14).532
Além desses medos ou temores, o indivíduo pode “temer” (‫ )י ֵָרא‬inimigos pessoais.
Na obra de Neemias, um homem chamado Semaías havia sido subornado pelos inimigos do
líder judaíta “para que eu temesse” (‫ירא‬
ָ ‫( ) ְל ַמעַן־ ִא‬Ne 6.13). Embora tenha cumprido a ordem de
YHWH para destruir o altar de Baal, Gideão realiza essa tarefa de noite porque “temeu” (‫)י ֵָרא‬
represálias contra si de sua família e dos homens de sua cidade (Jz 6.27). O quadro paranoico
de Saul retratado em 1-2Samuel envolveu seu temor (‫ ) ַוי ִָרא‬a Davi (1Sm 18.12). A confiança
em YHWH livra o fiel do temor a outros humanos (Sl 27.1,2),533 de “muitas” (‫)רבִים‬
ַ pessoas

527
RYKEN, 1992, p. 182.
528
Essa é a classificação de KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3. Ver a análise de Osborne: “O
paralelismo progressivo também é chamado ‘paralelismo sintético’ e se refere a um desenvolvimento do
pensamento no qual o segundo verso [sic] acrescenta ideias ao primeiro” (OSBORNE, 2009, p. 290).
529
CRAIGIE, 1983, p. 356. Isso implica ler os termos ‫ בִימֵי ַָרע‬juntos e com acentuação ou ênfase no adjetivo
monossilábico (‫;)רע‬ָ todos o demais termos dos versetos recebem ênfase em sua última sílaba.
530
STÄHLI, H. -P. ‫ירא‬. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 568.
531
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 292.
532
STÄHLI, 1997, p. 570.
533
Observe-se o uso de ‫“( ִמי‬quem?”; cf. GESENIUS, 2003, p. 468-9) indicando que o objeto do temor seriam
pessoas, não tendo em vista outros seres vivos, desastres naturais ou objetos inanimados.
82

(‫אֱנֹוש‬, “ser humano”; ‫ ָבשָר‬, “carne; mortal”; ‫ָאדָ ם‬, “ser humano”) que o perturbam e se opõem a
ele (Sl 56.2-5,12[1-4,11]; Sl 118.6).
No Salmo 49, o objeto do temor é esclarecido tanto pelo outro uso do verbo ‫ י ֵָרא‬no v.
16[17], em que o salmista exorta sua audiência: “Não temas...” (‫ירא‬
ָ ִ‫ )ַאל־ת‬se “um homem
alcançar riquezas” (‫)י ַ ֲעשִרַ ִאיש‬, quanto pela definição no v. 7[6] de quem são os inimigos do
salmista: “Os que confiam em suas posses” (‫)הַב ֹ ְטחִים ַעַל־חֵילָם‬. O texto parece indicar que
pessoas com poder econômico ameaçam a integridade do fiel, e este se encontra do outro lado
do espectro, em um nível socioeconômico mais baixo.534
Em oposição ao temor dos seres humanos mortais (cf. Sl 49.7-11[6-10]), a mesma
raiz verbal é usada para indicar o temor a YHWH. O conceito do “homem que teme YHWH”
(cf. ‫ ָה ִאישַי ְֵראַי ְהוָה‬em Sl 25.12) é comum na religiosidade hebraica e expressa uma atitude que
pode ser descrita tanto pelo verbo ‫“( י ֵָרא‬temer”, “reverenciar”)535 quanto pelo substantivo ‫י ְִרָאה‬
(“temor”, “medo”, “terror”).536 Ela envolve especialmente um sentimento de reverente
consideração por Deus,537 combinado com assombro e temor do juízo divino contra a
desobediência (cf. Êx 18.21; Dt 4.10; 25.18; Js 24.14 Sl 112.1; Jr 5.22).538
O temor de YHWH, o Deus de Israel, é exigido por ele mesmo (Êx 20.20; Dt 6.13; Js
4.24; 1Sm 12.24; Jó 6.14; Sl 33.8; 34.9; Pv 23.17; Ec 5.7) como elemento essencial da
religião javista (Sl 34.11; Jr 2.19; cf. Ec 12.13). De forma prática, temer YHWH implica
obediência e prazer nos mandamentos divinos (Dt 31.11-12; Sl 112.1; Ec 12.13), aborrecendo
e evitando o mal (Pv 8.13; Pv 16.6), afastando-se da idolatria (Dt 6.13-14) e praticando o que

534
“O mestre adverte sua audiência a não ficar com medo por não ter riqueza alguma enquanto outros se tornam
ricos” (CRAIGIE, 1983, p. 360); assim, o salmista se dirige a pessoas que viviam “em épocas difíceis”;
“ameaçadas pela morte, era difícil não temer os inimigos poderosos, cujas riqueza e posição parecia torná-los tão
vulneráveis a ameaças semelhantes [v. 6-7]” (p. 359). “Essa é uma composição literária didática dirigida não a
Deus, mas aos homens, em que o moralista adverte os ricos da vaidade de seus valores, e tranquiliza a si mesmo
e aos fiéis a Deus pobres, que são seus companheiros. Talvez eles estejam sendo oprimidos pelos ricos no
presente, mas a morte será o grande nivelador...” (GOULDER, 1982, p. 181; contra SPANGENBERG, 1997, p.
339). “Embora se dirija tanto a ricos quanto a pobres (v. 3), ele está falando em favor daqueles que sofrem
ostracismo” (GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 [edição kindle]; ver também VANGEMEREN, 1991, p. 366;
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle]; WEISER, 1994, p. 285).
535
Ver ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 293. Ele classifica esse uso do verbo como “específico” e o atribui ao
“campo religioso”.
536
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 433-4; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 432.
537
BOWLING, Andrew. ‫י ֵָרא‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 399-400.
538
WALKER, 1939 (versão eletrônica).
83

é justo diante de YHWH (2 Sm 23.3).539 O temor de YHWH é o “segredo” para uma vida
sábia e bem-sucedida na Terra Prometida (Pv 1.7; 9.7; 14.27; Sl 110.10; 128.1,4).540
A segunda parte do verseto diz: “[quando] a maldade dos ‫ ֲע ֵקבַי‬me cercar” (v. 6b).
Em primeiro lugar, o texto hebraico deixa muito claro que é a maldade dos inimigos
traiçoeiros/perseguidores que cercam o salmista ou sua audiência, trazendo tribulação e
angústia.541 A maldade é personificada, assume vida e cerca o justo como um inimigo feroz
que o persegue, colocando-o em uma situação de dificuldade.542
Há muito debate sobre o termo ‫( ֲע ֵקבַי‬lit., “meus calcanhares”), bem como várias
propostas de tradução por razões hermenêuticas e de crítica textual, o que fica muito evidente
nas diferenças entre as versões A21 (“perseguidores”), NVI (“inimigos traiçoeiros”) e BJ (“a
maldade me persegue”). O texto hebraico transliterado na segunda coluna da Héxapla de
Orígenes ( εβρ)543 traz o termo ββαε , que é entendido pela BHS como ‫ ֲע ֻקבַי‬, mas o editor
H. Bardtke de Salmos propõe a leitura ‫ע ֹ ְקבַי‬.544
Conforme observado na análise de crítica textual, deve-se escolher uma tradução que
mantenha o texto hebraico majoritário ‫“( ֲע ֵקבַי‬dos meus calcanhares” [relação genitiva]), que é
basicamente seguido tanto pela LXX ( ῆς π ρ ς ) quanto pela Vulgata (calcanei mei).545
Afinal, esse termo pode ser traduzido por “retaguarda” de um exército (Gn 49.19; Js 8.13).546
A palavra é originária de uma raiz verbal que pode indicar tanto “segurar no calcanhar” (Gn
25.26) quanto “enganar” (Jr 9.4). A ideia de um amigo íntimo e de confiança que “faz crescer
o calcanhar contra mim” (Sl 41.10[9]) indica traição e deslealdade. 547 Os “meus calcanhares”
seriam uma figura de linguagem para os inimigos do salmista que o atacam por trás, pelo
calcanhar. “A agressividade exerce-se com fraude e embuste: pelo calcanhar, pelas costas”.548
Por isso, nossa tradução: “... [quando] a maldade dos que me atacam por trás me cercar”.

539
BOWLING, 1999, p. 399-400; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 431.
540
LIMBURG, 2000. p. 81; WEISER, 1994, p. 240-241.
541
O verbo na 3ª. pessoa do masculino singular (‫[ )י ְסּו ֵבנִי‬com o sufixo que indica o objeto – “me”] demanda um
sujeito que seja masculino singular, neste caso, ‫“( עֲֹון‬maldade”, “impiedade”).
542
“Poetas, autores e oradores recorrem à personificação por várias razões (e.g., o pecado deixa de ser uma
abstração quando ele é personificado como um animal predador rastejando pela porta)” (RYKEN, 2014. verbete
personification [edição kindle]).
543
FRANCISCO, 2008. p. 73; NET Bible, 2005, Psalm 49.5, text-critical note.
544
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
545
KRAUS, 1993, p. 730; GOULDER, 1982, p. 185-6. Ver a tentativa de tradução de Alonso Schökel e Carniti:
“quando me cercam para derrubar-me criminosos” (ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664, 666).
546
GESENIUS, 2003, p. 649.
547
Brown, Driver, Briggs propõem: “aqueles que tomariam alguma vantagem traiçoeira de mim” (BROWN;
DRIVER; BRIGGS, 1977. p. 784; cf. SWANSON, 1997, ‫[ ָעקֵב‬edição eletrônica])
548
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.
84

Quem são os inimigos do salmista, que o atacam por trás? “Os que confiam em suas
posses e na abundância de seus bens se gloriam” (v. 7).549 Este versículo forma um
paralelismo sinônimo invertido ou quiasmático550 estruturado da seguinte maneira: A. “Os
que confiam” / A’. “se gloriam”; B. “em suas posses” (“isto”) / B’. “na abundância de sua
riqueza”.551
‫ עַל־חֵילָם‬/ ‫הַב ֹ ְטחִים‬
‫ י ִתְ ַהלָלּו‬/ ‫ּובְר ֹבַ ָעש ְָָ֗רם‬

A primeira característica dos opositores em foco neste salmo é que eles “confiam em
suas posses” (‫)הַב ֹ ְטחִיםַעַל־חֵילָם‬. O uso do particípio relativo,552 isto é, como componente verbal
em uma oração adjetiva553 (lit. “os que confiam...”, ‫)הַב ֹ ְטחִים‬, ocorre com uma raiz verbal (‫בטח‬,
“confiar”; “ser confiante”)554 bastante significativa no hebraico, que qualifica quem são “os
que me atacam por trás”.
A raiz verbal ‫ בטח‬pode ser usada com o sentido de apoiar-se no aspecto físico, por
exemplo, em um bastão de cana (Is 36.6).555 Também significa “estar seguro” ou “estar
tranquilo”, descrevendo um povo que “está confiante/seguro” (ַ‫ )ב ֹ ֵט ַח‬em sua terra, livre de
preocupações (Jz 18.27).556 É possível “estar seguro” em uma situação ou estratégia de guerra
(Jz 20.36). O salmista diz “eu estou seguro” (ַ‫ ) ֲאנִי ַבֹו ֵּט ַח‬porque YHWH é a fortaleza de sua
vida (Sl 27.3; cf. v. 1). Há pessoas que estão confiantes porque vivem de modo
complacente,557 despreocupadas com o juízo divino, que lhes sobrevirá de modo iminente (Is
32.9; Am 6.1).
Entretanto, a nuance de Salmo 49.7 é a de “confiar em algo” ou “confiar em
alguém”. O profeta Jeremias afirma ser maldito o homem “que confia em [outro] ser humano”
(‫( ) ֲאשֶרַי ִ ְבטַחַבָָאדָ ם‬Jr 17.5); também é tolice confiar no próprio coração (Pv 28.26). Condena-se
“os que confiam em imagens talhadas” (‫ )הַב ֹ ְטחִיםַ ַב ָפסֶל‬e anuncia-se sua confusão vergonhosa
(Is 42.17), pois, da perspectiva do profetismo do antigo Israel, os ídolos são inúteis (Hc 2.18).

549
“O versículo 7 esclarece a identidade daqueles que são mencionados no v. 6b” (RAABE, 1990, p. 71).
550
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 240-1; ZUCK, 1994. p. 160-1; RYKEN, 1992, p. 327.
551
Ver também DAHOOD, 1965, p. 298.
552
WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 621-2.
553
WILLIAMS, 1976, p. 40; PINTO, 1998, p. 85.
554
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120.
555
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 97.
556
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 120.
557
OSVALT, John N. ‫ ָבטַח‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 102.
85

O profeta Jeremias condena Moabe por confiar em seus tesouros (Jr 48.7). E o
salmista coloca o ímpio sob a mesma perspectiva, mas no âmbito individual: os inimigos do
fiel “confiam” em suas “posses” (‫( )חֵילָם‬Sl 49.7), ao passo que tanto a tradição profética
quanto a hínica e sapiencial afirmam que somente os que confiam em YHWH é que são
felizes, experimentam salvação e estão seguros (Jr 17.7; Sl 28.7; Pv 29.25). Aliás, quem
confia “na abundância de seus bens” (‫ ;בְר ֹב ַ ָעשְר ֹו‬cf. expressão bastante semelhante em Sl
49.7b: ‫ )ּובְר ֹבַ ָעש ְָרם‬o faz porque “não estabeleceu Deus [como] sua fortaleza” (ַ‫ֹלאַי ָשִ יםַאֱֹלהִים‬
‫ מָעּוז ֹו‬- Sl 52.9[7]). Segundo o livro de Jó, “confiar” (‫ )בטח‬no “ouro” (‫ )כֶתֶ ם‬implica negar o
Deus que habita as alturas (‫( )כִי־ ִכ ַחשְתִ יַ ָלאֵלַ ִמ ָמעַל‬Jó 31.24,28). Afinal, “a base de sua confiança
define o proceder e o destino do homem”.558
A consequência de escolher a riqueza (‫ )עֹשֶר‬como objeto da confiança será a queda:
“O que confia em seus bens cairá” (‫שרֹוַהּואַי ִפ ֹל‬
ְ ‫ בֹו ֵט ַח ַ ְַב ָע‬- Pv 11.28), pois “... as riquezas são
notoriamente instáveis (Pv 23.5). Agora surge o pleno absurdo disto, viver em prol daquilo
que sempre acaba falhando, e que faz assim justamente no ponto em que o fracasso
desmancha tudo.”559
O segundo verseto diz: “e na abundância de seus bens se gloriam” (‫)עָשְ ָרםַי ִתְ ַהלָלּו ּובְר ֹב‬.
Em outras passagens da Bíblia Hebraica, ter riqueza (‫שר‬
ֶ ֹ ‫ )ע‬em “abundância” (‫ בְר ֹב‬ou ‫ )לָר ֹב‬não
é necessariamente um mal e pode ser visto como sinal do favor e da bênção de YHWH (2Cr
17.5; 18.1; cf. 1Rs 3.13).560 Entretanto, as riquezas podem levar a uma confiança indevida em
sua grande quantidade561 e revelar falta de confiança em Deus (Sl 52.9[7]).
O uso da raiz verbal ‫ )י ִתְ ַהלָלּו( הלל‬no imperfeito, aqui, tem função habitual, indicando
uma prática, ações habituais, de ricos da época do salmista.562 Em geral, a raiz verbal ‫ הלל‬no
grau hitpael refere-se ao gloriar-se em YHWH: o fiel comum563 (Sl 4.3[2]) e o rei da nação
(Sl 63.12[11]) se gloriam em YHWH, pois essa é a atitude esperada dos que são “retos de
coração” (‫יִש ְֵרי־לֵב‬, Sl 64.11[10]).564 Jeremias exorta cada cidadão de Judá a “gloriar-se”
(‫ )י ִתְ ַהלֵל‬em YHWH, não na própria força, sabedoria ou riqueza (Jr 9.22,23[23,24]). A segunda

558
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 674.
559
KIDNER, 1980, p. 204.
560
ALLEN, Ronald B. ‫ ָעשַר‬, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 706.
561
ESTES, 2004, p. 61.
562
MERWE; NAUDÉ; KROEZE, 1999, p. 148; PINTO, 1998, p. 63; ROSS, 2009, p. 137.
563
Para o uso de ‫ נֶפֶש‬como circunlocução para “eu” ou “me”, ver WOLFF, 2008, p. 52-3.
564
É interessante notar que sempre que o livro de Salmos faz referência a “gloriar-se” (‫ )הלל‬em YHWH, o verbo
paralelo que o acompanha no dístico é “alegrar-se” (‫)שמח‬, indicando que a glória do fiel é sua fonte de alegria
(cf. Sl 34.3; 63.12; 64.11; 105.3; 106.5; cf. 1Cr 16.1). Ver também as observações sobre o uso de ‫ הלל‬no hitpael
em Salmos feitas por WESTERMANN, Claus, ‫הלל‬, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 374
86

parte do livro de Isaías anuncia um momento em que “toda descendência de Israel se


gloriará” (‫ ) ְוי ִתְ ַהלְלּוַכָל־זֶרעַיִש ְָראֵל‬em YHWH (Is 45.25).
Por isso, a atitude de “gloriar-se” em qualquer outro ser ou objeto que não YHWH,
como fazem os ricos opositores do salmista, é retratada de maneira negativa em outros textos:
os que se gloriam em ídolos serão envergonhados (Sl 97.7); gabar-se da vitória de uma
batalha que nem começou é perigoso (1Rs 20.11), assim como não é recomendável gloriar-se
no dia que virá porque não se sabe o que ele trará à luz (Pv 27.1). Comentando o uso de ‫ בטח‬e
‫ הלל‬no Salmo 49.7, Goldingay observa:
O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado nos verbos do salmo.
Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter
Yhwh como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os
recursos e a riqueza.565
O versículo 8 é formado por dois versetos complementares, em um paralelismo
sintético566 ou progressivo.567 A primeira parte do dístico mostra a incapacidade de um ser
humano de redimir um companheiro (‫ )ָאח ַֹלא־פָד ֹה ַיִפְדֶ ה ַ ִאיש‬enquanto a segunda completa a
ideia, mostrando que tal resgate é impossível de ser dado a Deus (‫)ֹלא־י ִתֵ ןַלֵאֹלהִיםַ ָכפְר ֹו‬.
Na primeira parte de Salmo 49.8, uma construção sintática incomum é a presença do
advérbio de negação antes do verbo no infinitivo, quando a regra é o advérbio precedendo o
verbo finito, não o infinitivo.568

[verbo finito no imperf.] ‫ יִפְדֶ ה‬+ [verbo infinitivo] ‫ פָד ֹה‬+ [adv. negação] ‫ֹלא־‬

A raiz verbal ‫( פדה‬v. 8a) contém o sentido básico de “conseguir a transferência de


propriedade de uma pessoa para outra mediante pagamento de uma quantia ou de um
substituto equivalente”.569 O conceito de resgate estava muito presente na sociedade do antigo
Israel. Pessoas que se endividavam e acabavam tornando-se escravas para quitar uma dívida
poderiam ser “resgatadas” dessa condição por um parente ou um amigo próximo que tivesse
condições de pagar a dívida ao credor (e.g., ‫ ְו ֶהפְדָ ּה‬em Êx 21.8; cf. talvez Jó 6.23).570
Mantendo a ideia básica de “resgatar”/“redimir”, ‫ פדה‬foi um termo que marcou a
libertação de Israel do Egito, da terra da escravidão, como se Deus estivesse comprando a

565
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
566
RYKEN, 1992, p. 182; CHISHOLM, 2016, p. 176-7.
567
OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3.
568JOÜON; MURAOKA, 2011, p. 395. Ver outras exceções em Amós 9.8 e Gênesis 3.4. Ver o texto de Levítico

7.24: [verbo finito imperf.] ‫ ת ֹא ְכלֻהּו‬+ [adv. negação] ‫ ֹלא‬+ [verbo infinitivo] ‫וְָאכ ֹל‬
569
COKER, William B. ‫פדה‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716.
570
LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle); KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 912; SWANSON, 1997, verbete 7009 [edição eletrônica])
87

nação do faraó para si (cf. Dt 7.8; 13.6[5]; 1Cr 17.21; Mq 6.4).571 Um salmista pediu a Deus
que fizesse no presente como havia feito no passado, rogando-lhe que resgatasse (‫ )פדה‬a nação
de seu estado de sofrimento (Sl 25.22),572 pois cria que “YHWH resgata [‫ ]פדה‬a vida [‫]נֶפֶש‬
dos seus servos, e dos que nele confiam nenhum será condenado” (Sl 34.22). Em outras partes
da Bíblia Hebraica, a raiz verbal descreve a salvação/redenção de Deus da “vida” (‫ )נֶפֶש‬do fiel
ou da nação de Israel de alguma opressão ou perseguição (Sl 55.18; Sl 69.18-19 [17-18];
78.42; Jr 15.21) ou de sofrimentos/tribulações (Sl 25.22; 44.23-26[24-27]).573
Entretanto, o versículo 8a afirma que o “ser humano”574 (‫ ) ִאיש‬é incapaz de realizar
essa redenção (‫)ֹלא־פָד ֹה ַיִפְדֶ ה‬. A repetição da raiz verbal ‫ פדה‬com o infinitivo absoluto (‫)פָד ֹה‬
antes do imperfeito (‫ )יִפְדֶ ה‬serve para acrescentar ênfase575 e seria adequadamente traduzida
por: “não redimirá de modo algum...”. Como declarou A. Weiser:
Pela morte ergue-se ao homem um limite que por si mesmo não pode ultrapassar. O
poder e as riquezas humanas não são suficientes para resgatar da morte. Pois na
morte o homem enfrenta inexoravelmente o poder de Deus, por mais que de outras
vezes tenha procurado evitá-lo e afirmar-se. E por se tratar de poder de Deus, todo
poder humano que se levanta contra ele necessariamente fracassa. O poder de Deus
e o poder humano situam-se em níveis diferentes. Sua diferença não é quantitativa,
mas qualitativa.576
Na segunda parte do versículo 8, o autor do salmo desenvolve ainda mais a ideia de
impossibilidade de resgate ao declarar: “Não dará a Deus ‫” ָכפְרֹו‬. O termo hebraico é o
substantivo ‫ כֹפֶר‬acompanhado do sufixo ‫( ֹו‬sufixo pronominal possessivo da 3ª. pessoa do
singular: “dele”). A palavra ‫ כֹפֶר‬não ocorre muitas vezes na Bíblia Hebraica577 e traz uma
nuance um pouco mais restrita que o termo do verseto anterior.
Enquanto a raiz verbal ‫ פדה‬está especialmente relacionada ao ato de resgatar alguém
do poder de outra pessoa ou do lugar em que se é mantido sob um determinado poder (Êx

571
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 804.
572
O uso da preposição ‫ מִן‬indica o movimento para fora de um estado de existência, no caso de Sl 25.22, o
sofrimento (cf. GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 275. 2.a).
573
COKER, William B. ‫פדה‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 716.
574
Ver esse sentido amplo de ‫ אִיש‬em Jó 38.26; cf. KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM,
1994-2001, p. 48.
575
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 122-3, 342: “O infinitivo absoluto ocorre com mais
frequência em relação imediata com o verbo finito da mesma raiz para, de várias maneiras, definir de modo mais
acurado ou reforçar a ideia do verbo [...] O infinitivo usado antes do verbo para reforçar a ideia verbal, i.e.,
enfatizar dessa forma ou a certeza (especialmente no caso de ameaças) ou a eficácia e natureza completa de um
evento” (p. 342, itálico do original). No Salmo 49.8a, o infinitivo absoluto enfatiza a certeza de que o homem é
incapaz de redimir outra pessoa (cf. também PINTO, 1998, p. 79). CHISHOLM, 2016, p. 93 confirma esse uso
enfático do infinitivo absoluto exposto por Gesenius e a presença dele antes do verbo finito.
576
WEISER, 1994, p. 287.
577
O HALOT alista todas as ocorrências em um total de 13 versículos (ver KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 495)
88

21.8; Lv 19.20; Dt 7.8; Sl 119.134; Is 35.10),578 o substantivo ‫ כֹפֶר‬envolve o pagamento de


algo com o propósito de propiciação ou expiação a fim de evitar um juízo ou morte iminentes
(Êx 21.30; 30.12 com 2Sm 24; Nm 35.31,32).579 Como Goldingay ressaltou, “um discurso
sobre redenção muitas vezes perde suas conotações monetárias, mas aqui elas são
importantes. Os que atacam o salmista acham que podem comprar o futuro na vida e uma
velhice feliz.”580
A lei hebraica previa casos em que a vida humana poderia ser resgatada da morte;
uma delas era quando um homem, por descuido, deixava seu boi solto e este feria
mortalmente uma pessoa que não era o proprietário do animal (Êx 21.28-32).581 Caso o dono
soubesse do histórico violento de seu boi e não tivesse sido cuidadoso o suficiente para
prendê-lo, tanto o animal quanto seu possuidor deveriam ser mortos (v. 28,29). No entanto, se
um parente exigisse um resgate (‫ )כֹפֶר‬pela vítima fatal da agressão,582 o dono do boi pagaria
essa indenização e não receberia a execução de morte (v. 30-32).583 O ‫ כ ֶַֹפר‬substituía a “vida”
(‫ )נֶפֶש‬do proprietário, funcionando como solução alternativa e atenuante para a pena capital.
Em Êxodo 21.30, o substantivo pe significa a quantia que substitui a punição
violenta da pena de morte em um contexto de procedimento legal. [...] [a passagem
apresenta] a suavização de uma punição severa.584
Entretanto, nem sempre havia a possibilidade do ‫כֹפֶר‬, como em um homicídio
premeditado (Nm 35.31).585 O texto ordena aos israelitas: “Não tomeis ‫ כֹפֶר‬pela vida [‫ ]נֶפֶש‬do
assassino”. Portanto, em Números 35.31, ‫ כֹפֶר‬basicamente tem o sentido de um substituto
sacrificial ou monetário que expia a culpa pela vida humana cujo sangue foi derramado. 586 O
código legal proibia o uso de ‫ כֹפֶר‬em homicídio doloso, distinguindo esse tipo de crime
daquele descrito em Êxodo 21; a única solução para o problema apresentado em Números

578
YARON, 1960, p. 84-5.
579
SPEISER, 1958, p. 21-2.
580
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 [edição kindle].
581
STUART, 2006. p. 495-6.
582
Deve-se ressaltar aqui que o “resgate” (‫ )כֹפֶר‬era uma possível solução para o problema do assassinato
cometido pelo animal, não era automática nem compulsória: “[o resgate] era uma possibilidade se a família da
vítima livremente consentisse com ele. A família ofendida poderia preferir essa solução não sangrenta a solução
da pena de morte” (SCHENKER, 1982, p. 33).
583
NORMAN, Stan. Redeem, redemption, redeemer, in: BRAND, p. 1370; ver GOLDINGAY, 2006, Psalm 49
[edição kindle]; KRAUS, 1993, p. 736.
584
SCHENKER, 1982, p. 37.
585
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675. Walter Kaiser observa que o único crime merecedor de pena
de morte que não poderia ser atenuado por uma pena de morte era o assassinato doloso (KAISER, 2016, p. 168).
586
COLE, 2000. p. 555.
89

35.31 era a execução sumária do assassino: “mas certamente morrerá”.587 A pena capital para
assassinos intencionais era uma demanda da antiga lei do talião, que é refletida em Gênesis
9.6: “O que derrama sangue do ser humano por meio do588 ser humano o sangue dele [do
assassino] será derramado”.589 Portanto, ao seguir o mesmo princípio de Gênesis 9.6, a
passagem de Números 35.31 declara que “só a morte de um homem podia fazer expiação pela
morte”590 causada intencionalmente por ele.
Isto posto, a comparação entre os dois textos da legislação israelita revela que a
“morte” de todo ser humano não tem um “pagamento expiatório” (‫( )כֹפֶר‬cf. Nm 35.31), como
no caso de Êxodo 21.30, para ser dado “a Deus” (‫( )לֵאֹלהִים‬v. 8);591 ao contrário, todos, tanto o
“sábio” quanto o “insolente”, “morrerão” (Sl 49.11).592 O versículo 8b, portanto, parece tratar
a morte de todos os seres humanos como punição capital pela culpa que a humanidade carrega
perante ’E .593 É provável que haja uma relação deste trecho com o relato de Gênesis 2 e
3, que descreve a morte como a punição contra os seres humanos ao comerem do fruto
proibido. Existe semelhança entre a construção sintática da descrição da punição de Gênesis
2.17: “certamente morrerás” (‫)מֹותַתָ מּות‬, e a da sentença de Números 35.31: “certamente será
morto” (‫)מֹותַיּומָת‬. A morte é a sentença que todo ser humano experimentará um dia, e não é
possível dar a Deus (‫ )ֹלא־י ִתֵּ ן ַלֵּאֹלהִים‬um “pagamento expiatório” (‫( )כֹפֶר‬Sl 49.8b), pois “não
existe uma taxa ao alcance do homem”.594
O versículo 9 realça ainda mais o contexto legal como pano de fundo para este
trecho do Salmo 49 por seu uso do vocábulo ‫“( פִדְ יֹון‬resgate”), que ocorre apenas aqui e em
Êxodo 21.30, o mesmo versículo que emprega o termo ‫“( כֹפֶר‬pagamento expiatório”): “Se um

587
O uso reiterado do mesmo verbo no infinitive absoluto e no imperfeito (‫ )מֹות ַיּו ָמת‬serve para enfatizar a
necessidade de executar o assassino como única solução para o caso específico (ver PINTO, 1998, p. 79).
588
O ‫ ְַב‬tem sentido instrumental (ver WALTKE; O’CONNOR, 2006, p. 197, 11.2.5d, ex. 17).
589
‫שפְֵּך‬
ָ ִ ‫ׁשֹפְֵּךַדַַםַהָָאדָ םַבָָאדָ םַדָ מ ֹוַי‬
590
WENHAM, 1985, p. 248.
591
Para essa conexão com a questão da pena de morte, ver também SIQUEIRA, Comentário de Salmos, Salmo
49 (no prelo).
592
Alonso Schökel e Carniti observam essa ligação entre a ideia de Números 35.31 e Salmos 49.8: “Segundo a
legislação (Nm 35.31), não se admite resgate em caso de homicídio. O salmo transfere a proposição à condição
radical do homem, ao ponto em que o resgate teria de ser pago ao senhor da vida e da morte, a Deus” (ALONSO
SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675). Hans-Joachim Kaus também reconhece uma ligação com Êxodo 21 e vê
um elemento judicial no salmo em que “Deus pronuncia, por meio da morte, um juízo”, mas o aplica não a todos
os seres humanos (conforme nossa interpretação), e sim, aos ricos (KRAUS, 1993, p. 735-6). Propomos aqui
uma aplicação mais universal, como Alonso Schökel e Carniti.
593
Schenker observa esse mesmo aspecto punitivo ao interpretar ‫ כֹפֶר‬em Salmo 49.8 como “a substituição da
penalidade máxima pelo pagamento de uma quantia” (SCHENKER, 1982, p. 45).
594
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 673.
90

pagamento expiatório [‫ ]כֹפֶר‬lhe for imposto,595 dará o resgate [‫ ]פִדְ י ֹן‬de sua vida [‫]נַפְשֹו‬
conforme tudo o que lhe foi imposto”.596 Chama a atenção também a mesma construção frasal
de Êxodo 21.30, o “resgate da vida dele” (‫)פִדְ י ֹן נַפְש ֹו‬, aparecendo em Salmo 49.9: o “resgate
da vida deles” (‫ׁשם‬
ָ ‫)פִדְ יֹון נַ ְפ‬. O autor do salmo deseja comunicar com clareza a impossibilidade
de redenção da morte por meio de recursos meramente humanos. Não há um recurso de
resgate judicial como o de Êxodo 21.28-32 em que o ser humano seja capaz de dar algo a
“Deus” (Sl 49.8,9).597 “A fonte da vida é Deus, portanto, é a ele que o preço da redenção, o
resgate, deve ser pago, e Deus não está empenhado em deixar que esse tipo de processo
decida se as pessoas viverão ou morrerão”.598
Embora o versículo 9 seja, muito provavelmente, um comentário ou uma observação
parentética,599 ele realça a linguagem legal do versículo anterior e estabelece um contraste
entre a condição do homem perante Deus, que não é passível de redenção da morte por
recursos humanos (v. 8,9), e a condição do homem diante de outros homens, em que há a
possibilidade de redenção (Êx 21.28-32).600
O “resgate da vida deles”601 (‫ׁשם‬
ָ ‫)פִדְ יֹון ַנַ ְפ‬, isto é, do “ser humano” e de seu “irmão” (v.
8),602 não pode ser pago a Deus porque ele “é valioso” (‫( ) ְויֵקַר‬v. 9).603 Há certamente uma
ironia aqui por meio de um jogo de palavras da mesma raiz destacado anteriormente: o resgate
da vida de uma pessoa é tão valioso (‫( )יקר‬v. 9) que mesmo um ser humano em esplendor
(‫( )יְקָר‬v. 13) é incapaz de pagar, por isso, ele “é semelhante aos animais [que] perecem” (v.
13). Todos os recursos humanos são insuficientes quando se trata de escapar da morte.604

595
Ver a tradução do grau hofal de ‫ שית‬em KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-
2001, p. 1486.
596
‫ׁשתַ ָעלָיו‬
ַ ‫ׁשתַ ָעלָיוַ ְונָתַ ןַפִדְ י ֹןַנַפְׁש ֹוַכְכ ֹלַ ֲאׁשֶר־יּו‬
ַ ‫אִם־כֹפֶרַיּו‬
597
Ver LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle).
598
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
599
VANGEMEREN, 1991, p. 370; CRAIGIE, 1983, p. 357, 359; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351;
GOULDER, 1982, p. 188. Alguns comentaristas chegam a propor que o v. 9 é uma glosa posterior (ver
BRIGGS, 1906, p. 405, 413; KRAUS, 1993, p. 732).
600
Ver BRIGGS, 1906, p. 408.
601
Embora Horace Hummel defenda o uso do ‫ ם‬enclítico neste trecho do v. 9 e defenda uma compreensão do
sufixo como singular, não como plural (ver HUMMEL, 1957, p. 102), essa hipótese provavelmente demandaria
uma reconstrução com o acréscimo de uma matter lectionis (DAHOOD, 1965, p. 298), que não tem o apoio do
TM. Ela também deixa de levar em conta que ‫ פִדְ יֹון נֶפֶש‬pode ser uma referência tanto a ‫ ָאח‬quanto a ‫אִיש‬, ou seja, o
ser humano não consegue resgatar a si mesmo nem ao seu próximo.
602
Para a possibilidade de interpretação desses dois termos como os antecedentes aos quais o sufixo pronominal
se refere, ver ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 667.
603
Observe-se que o verbo ‫ יקר‬na 3ª. pessoa do masculino singular é uma referência a ‫“( פִדְ יֹון‬resgate”), que é o
substantivo masculino (BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 431-2), não a ‫“( נֶפֶש‬vida”), que é substantivo
feminino (HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 242).
604
CHARRY, 2015, Psalm 49 (edição kindle); DECLAISSÉ-WALFORD; JACOBSON; TANNER, 2014, p. 444.
91

Na segunda parte do versículo 9, há um debate sobre o sentido exato de “e cessará


para sempre” (‫) ְוחָדַ ל ַלְעֹולָם‬. Quem seria o sujeito do verbo: (1) O “resgate” (‫ )פִדְ יֹון‬é que
“cessará para sempre”, isto é, será insuficiente?605 (2) Ou o “ser humano” “cessará para
sempre”, isto é, deixará de existir?606 Em seu artigo sobre ambiguidades deliberadas em
Salmos, Paul Raabe afirma que o Salmo 49.9b é um caso de ambiguidade de sujeito, em que o
texto é propositalmente ambíguo para acomodar as duas possibilidades: tanto o “resgate”
faltará quanto o homem rico deixará de existir.607
O problema da interpretação de Raabe é que ela considera leituras prováveis dois
sujeitos que estão em relação distinta com a raiz verbal ‫“( חדל‬cessar”): o termo ‫ פִדְ יֹון‬do
versículo 9, e o homem rico arrogante (sujeito oculto) do versículo 12. 608 É evidente que o
antecedente imediato e mais provável é ‫“( פִדְ יֹון‬resgate”) por ser o único termo masculino
singular que ocorre no primeiro verseto de Salmo 49.9. O sufixo pronominal possessivo ‫ָָ ם‬
que acompanha ‫“( נֶפֶש‬vida deles”) é plural e, portanto, não é um antecedente provável para
‫“( ְוחָדַ ל‬e cessará”),609 um verbo conjugado no singular. Além disso, Goldingay observa que
não há paralelo para o uso da raiz verbal ‫ חדל‬com o sentido de “deixar de existir”.610
Alonso Schökel observa que a análise de ‫ חדל‬deve distinguir entre seu uso transitivo
e intransitivo.611 Dos textos que alista como exemplos do uso intransitivo de ‫ — חדל‬o caso de
Salmo 49.9 — chama a atenção o fato de a raiz verbal ser utilizada para uma mudança de
condição fisiológica (Sara “cessou” de menstruar, Gn 18.11) ou climática (os trovões
“cessaram”, Êx 9.29,33), e em referência à ausência de uma atividade (“cessaram” as
caravanas, Jz 5.6) ou da geração/produção de algo (a planta cujo rebento/broto não “cessará”
de nascer, Jó 14.7). O termo pode indicar a decisão de “desistir” ou “deixar” de realizar algo:
Ismael “desiste” de matar homens que vinham de algumas cidades de Judá (Jr 41.8); os
israelitas ou seu rei perguntam a YHWH se devem “desistir” de lutar contra um inimigo

605
Cf. A21; ESV; ARC; NVT; RSV; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle); WEISER, 1994, p. 284,
287; BORTOLINI, 2000, p. 206-7; BORTOLINI, 2002, p. 244. Uma leitura alternativa entende que o ‫אִיש‬
“cessará” ou desistirá da ideia/tentativa de dar a Deus um “resgate” (‫)פִדְ יֹון‬, pois este nunca seria o bastante (ver
ARA; KRAUS, 1993, p. 729, 736; CRAIGIE, 1983, p. 356, 359; GOULDER, 1982, p. 186, 188; BRIGGS,
1906, p. 408; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351). O problema da leitura alternative é que o hebraico não
traz o suposto objeto, pois é intransitivo.
606
Cf. NET Bible; DAHOOD, 1965, p. 295, 298.
607
RAABE, 1991, p. 219-20.
608
RAABE, 1991, p. 220.
609
Para a leitura no tempo futuro do tempo perfeito com waw consecutivo, ver MERWE; NAUDÉ; KROEZE,
1999, p. 168, §21.3; ROSS, 2009, p. 143-4.
610
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 4 (edição kindle).
611
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 204.
92

específico (Jz 20.28; 1Rs 22.6); algumas pessoas do povo talvez “deixariam de” ouvir a
mensagem profética (Ez 3.27). Por fim, o verbo pode indicar o ato de “repousar” (Jó 14.6) ou
de “abandonar” alguém próximo (Jó 19.14).
Em Salmo 49.9, o verbo ‫“( ְוחָדַל‬e cessará”) indica que seu antecedente ‫פִדְ יֹון‬
(“resgate”) cessará ou se esgotará “para sempre” — os recursos de um ser humano para
alcançar a vida eterna acabariam e não atingiriam seu objetivo de evitar a morte, pois são
insuficientes como pagamento a ’E pela “vida” (‫ )נֶפֶש‬humana.
O versículo 10 retoma o fluxo do versículo 8, depois do comentário parentético do v.
9:612 “Não dará a Deus um pagamento expiatório por ele [...] para que viva continuamente
para sempre e não veja a sepultura” (v. 8,10).
H. G. Mitchell, em um artigo sobre construções finais (i.e., indicando propósito),
afirma: “Quando o verbo da oração subordinada é um volitivo, isto é, um jussivo, um
coortativo ou um imperativo, a forma em si mesma sugere propósito, especialmente se o
verbo da oração principal também for um volitivo”.613 Em seguida, ele cita vários exemplos
de “formas volitivas” ligadas diretamente com o conectivo (waw), entre eles orações
subordinadas com formas verbais no jussivo + waw consecutivo ligadas a uma oração
principal com a raiz verbal no imperfeito, como ocorre aqui no Salmo 49.10.614 Portanto, o
verbo inicial ‫( וִיחִי‬lit.: “e viva [ele]”) do versículo 10 deve ser entendido como um jussivo que
expressa intenção ou propósito em relação de subordinação com o verbo imperfeito
precedente (‫ )י ִתֵ ן‬por meio de um waw consecutivo:615 ‫[ וִיחִי־עֹוד‬...] ‫[ ָכפְר ֹו‬...] ‫“( ֹלא־י ִתֵ ן‬Não dará
[...] um pagamento expiatório por ele [...] para que viva continuamente...”).
O propósito de pagar o “resgate” seria obter vida imortal (“viva continuamente para
sempre”),616 um tema bastante recorrente na literatura do antigo Oriente Próximo, que relata
heróis alcançando a vida eterna ou falhando em seus esforços para obtê-la.617
A última expressão hebraica do primeiro verseto de Salmo 49.10, “para sempre”
(‫ ַ ְל ַ[ ָלנֶצַח‬+ ‫ )]נֵצַח‬comunica uma condição interminável, sem fim, que aparece também no

612
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351; VANGEMEREN, 1991, p. 370; GOULDER, 1982, p. 188.
613
MITCHELL, 1915, p. 87.
614
MITCHELL, 1915, p. 89-90, 4.a.(4),(5).
615
Ver apoio também em GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 322, §109.f; NET Bible, 2005, Psalm
49.9, translator note 14; EWALD, 1870, p. 231, §347. Cf. esse mesmo uso final do jussivo com waw consecutivo
seguido de um imperfeito em 1Rs 13.33: ‫“( ֶה ָחפֵץַיְ ַמלֵא ַ ֶאת־י ָדֹוַוִיהִי ַכ ֹ ֲהנֵי‬quem lhe agradava, [ele] consagrava [lit.:
enchia a sua mão] para que fosse sacerdote…”).
616
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675; CRAIGIE, 1983, p. 359
617
PERDUE, 1974, p. 542-3. Um exemplo que Perdue menciona é o de Utnapshitim, no Épico de Gilgamesh,
que obteve vida imortal após o dilúvio.
93

pequeno apocalipse de Isaías (Is 25.8) como uma esperança de que YHWH do Exércitos
“tragará a morte para sempre” (‫) ָלנֶצַח ִבלַעַ ַה ָמוֶת‬.618A literatura sapiencial, por outro lado, usa o
termo ‫ ָלנֶצַח‬para afirmar que “os perversos” apodrecerão “para sempre” como o próprio
esterco (Jó 20.5,7; cf. 14.20). Portanto, Salmo 49.10 apresenta a vida eterna como
humanamente impossível, um conceito que está em harmonia com outros textos sapienciais e
de Isaías, pois, conforme o profeta, só YHWH é capaz de conferi-la, ecoando alguns hinos da
Bíblia Hebraica: “YHWH é o que tira a vida e a dá, faz descer à sepultura e faz subir” (1Sm
2.6, ARA; cf. Dt 32.39).
O segundo verseto do versículo 10 usa uma imagem concreta para tornar mais
específica a ideia geral declarada no primeiro, estabelecendo um “paralelismo de
especificação” conforme a classificação de Robert Alter: “o termo geral é transformado em
um exemplo específico ou uma imagem concreta, a ideia se torna mais penetrante, mais
enfática”.619 A ideia geral de “viver continuamente para sempre” se torna mais específica pela
imagem de “não ver a cova” (lit.): A. “para que viva continuamente” / A’. “não veja”; B.
“para sempre” / B’. “a sepultura”.
‫ ָלנֶצַח‬/ ‫וִיחִי־עֹוד‬
‫שחַת‬
ָ ‫ ַה‬/ ‫ֹלאַי ְִראֶה‬

O contraste irônico a ser revelado mais à frente no salmo é que “não ver” (‫)ֹלאַי ְִר ֶאה‬,
embora com o sentido de imortalidade aqui, indica ausência de vida mais adiante no versículo
20: “Ele irá até a geração de seus pais; não verão a luz para sempre [‫”]ֹלאַי ְִראּו־אֹור‬,620 e isso é
reforçado pelo mesmo termo “para sempre” (‫ )עַד־נֵצַח‬no v. 20, ainda que seja antecedido por
uma preposição distinta.
O termo traduzido por “sepultura” (‫שחַת‬
ַ ) também ocorre em outra passagem dos
Salmos acompanhado do verbo “ver” (‫)ראה‬:621 “Pois não abandonarás minha vida no Sheol,
não permitirás a teu fiel622 ver a sepultura” (Sl 16.10).623 Embora o termo ‫שחַת‬
ַ tenha o sentido
de “cova” usada como armadilha para caçar animais (Ez 19.3,4) ou, em sentido figurado, para

618
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 664.
619
ALTER, 2011, p. 21. Segundo a classificação de Köstenberger e Patterson, a relação entre os versetos de
Salmo 49.10 seria um paralelismo progressivo, em que o segundo complementa a ideia do primeiro (ver
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014. p. 242-3; cf. OSBORNE, 2009, p. 290-1).
620
ESTES, 2004, p. 68.
621
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1473; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 1001.
622
Para essa tradução de ‫ ָחסִיד‬, ver MARTIN-ACHARD, 2015. p. 235.
623
‫ׁשחַת‬
ָ ַ‫כִיַֹלא־תַ עֲז ֹבַנַ ְפׁשִיַ ִלׁשְאֹולַֹלא־תִ תֵּ ןַ ֲחסִידְ ָךַל ְִראֹות‬
94

prejudicar outras pessoas (Sl 7.16[15]; 9.16[15]; 35.7; Pv 26.27),624 tanto em Salmo 49.10
quanto em Salmo 16.10, “ver a sepultura” implica experimentar a morte, 625 pois a expressão
está em contraste a viver para sempre e em paralelo à ideia de ser abandonado no Sheol, que
é “o lugar aonde todas as pessoas vão quando morrem”.626 No caso desses dois salmos, ‫שַ חַת‬
parece indicar a “sepultura”, a cova em que o morto é colocado.627
É provável que a palavra “cova” passou a significar “a sepultura” — as sepulturas
naquela época eram geralmente cavadas na rocha — e então foi ampliada para se
referir à corrupção da sepultura [...] A tradução “sepultura” ou “decomposição da
sepultura” corresponde muito bem a essas passagens que não se referem à “cova”
como uma armadilha.628
ַ e a morte.629 O rei Ezequias
Outros doze versículos reforçam essa ligação entre ‫שחַת‬
ora com gratidão a YHWH por ter livrado sua vida (‫ )נֶפֶש‬da “cova/sepultura de
decomposição” (‫שחַת ַ ְבלִי‬
ַ ‫) ִמ‬, pois no Sheol (‫ )שְאֹול‬ou na “morte” (‫ ) ָמוֶת‬não há mais louvor a
YHWH (Is 38.17,18). A “sepultura” (‫שחַת‬
ַ ) forma um paralelismo com “verme” (‫)רמָה‬
ִ nos dois
versetos de Jó 17.14, ambos relacionados ao Sheol (cf. v. 13). Em Salmo 30.10[9], a
“sepultura” (‫שחַת‬
ַ ) envolve um estado de morte (“meu sangue” [‫ )]בְדָ מִי‬em que o homem se
decompõe e se torna “pó” (‫) ָעפָר‬. Nesses três exemplos, é possível entender ‫שחַת‬
ַ como uma
referência ao local em que o corpo se decompõe (Is 38.17)630 até tornar-se pó (Sl 30.10) e ser
comido pelos vermes (Jó 17.14).
631
O Salmo 49.11 começa com uma conjunção enfática ou asseverativa (‫)כִי‬ que
reforça o que foi declarado nos versículos anteriores, ou seja, que os seres humanos são

624
GESENIUS, 2003, p. 816; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 1001.
625
TROMP, 1969. p. 69-70.
626
SMITH, 2001. p. 366; cf. a análise em MARTIN-ACHARD, 2015, p. 54-63.
627
Embora Tromp proponha inicialmente que ‫שחַת‬ ַ se refere ao “mundo inferior”, ele reconhece que o sentido em
Isaías 38.17 é “evidentemente” uma referência “ao destino do corpo na sepultura” e acrescenta: “aqui, os limites
entre a sepultura e o mundo inferior não podem ser traçados” (TROMP, 1969, p. 69-70). O fato de ‫שחַת‬ ַ ser
paralelo a ‫( שְאֹול‬e.g. Sl 16.10) não implica que os dois têm exatamente o mesmo sentido, mas sim, que ambos
fazem referência à condição de um morto ou ao âmbito da morte (ver observação semelhante em TRULL, 2004,
p. 319).
628
HARRIS, R. Laird. ‫שחַת‬ ַ . In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 911.
629
Ver Jó 17.14; 33.18,22,24,28,30; Sl 30.10[9]; 55.24[23]; 103.4; Is 38.17; Ez 28.8; Jn 2.6.
630
Ver uma perspectiva semelhante defendida por Janet K. Smith: “A palavra hebraica para ‘Cova’ reforça a
impressão de que a sepultura é um lugar temível e negativo para ir. Uma cova não é nada mais que um enorme
buraco em que os animais mortos eram lançados. Quando o salmista aflito queria retratar o temor ou medo da
morte prematura, ele com frequência usava essa palavra para se referir ao sheol (e.g., 88.4,6)” (SMITH, 2011, p.
120)
631
Sobre esse uso enfático ou asseverativo de ‫כִי‬, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 498,
§159.ee; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 470; PINTO, 1998, p. 145,
19.67; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 312.
95

incapazes de evitar a morte com os próprios recursos:632 “Certamente [...] morrerão [...] serão
destruídos”.
O versículo 11 parece ter uma estrutura de três versetos (trístico ou tricola),633 em
que os dois primeiros versetos formam um paralelismo sinônimo634 por meio de merisma, isto
é, uma forma retórica em que o autor menciona dois extremos ou grupos de pessoas opostos
(os ‫ ֲחכָמִ ים‬de um lado, o ‫ ְכסִיל‬e o ‫ ַבעַר‬do outro) para indicar a totalidade da espécie humana.635
O último verseto do trístico estabelece um paralelismo progressivo ou sintético636 com o
segundo verseto, acrescentando ideias a este e revelando o resultado da destruição de ‫ְכסִיל‬
(“insensato”) e ‫“( ַבעַר‬bruto”).637 Podemos descrever a relação entre os três versetos da
seguinte maneira:
‫ י ָמּותּו‬/ ‫ ֲח ָכ ִמים‬/ ‫כִיַי ְִראֶה‬
‫ י ֹאבֵדּו‬/ ‫יַחַדַ ְכסִילַ ָו ַבעַר‬
‫ְו ָעזְבּוַ ַל ֲאח ִֵריםַחֵילָם‬

O elemento A do primeiro verseto está presente por elipse no segundo;638 o merisma


entre o primeiro e o segundo verseto formam os paralelos da parte B, e os verbos, os paralelos
da parte C: A. “Certamente, verá” / A’ [elipse verbal: ele verá]; B. Os sábios / B’. insensato e
bruto juntos C. morrem / C’. são destruídos.
Entre o segundo e o terceiro versetos há complemento de ideias, revelando a
consequência da morte do insensato e do bruto: “os tesouros que acumularam em vida
deixarão aos outros quando morrerem”.639 Ou seja, A. “insensato e bruto” (‫ ) ָו ַבעַר ְכסִיל‬B. “são

632
VANGEMEREN, 1991, p. 369; GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); GOULDER, 1982, p.
188.
633
TERRIEN, Samuel. The Psalms: strophic structure and theological commentary. Grand Rapids: Eerdmans,
2003. p. 388; RAABE, 1990, p. 80.
634
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-2.
635
Sobre o merisma, ver RYKEN, 2014, verbete merism (edição kindle); ZUCK, 1994, p. 177.
636
OSBORNE, 2009, p. 290-2.
637
Aqui, concordamos com Raabe que o terceiro verseto, bem como o dístico do versículo 12 é uma referência a
esses dois grupos (‫ ְכסִיל‬e ‫ ) ַבעַר‬opostos aos ‫( ֲח ָכמִים‬RAABE, 1990, p. 73,80; cf. GOLDINGAY, 2006, Psalm 49
[edição kindle]).
638
Alter chama esse tipo de paralelismo de “paralelismo elíptico” e dá diversos exemplos, entre eles uma oração
principal em Provérbios 2.16 que é pressuposta, ainda que esteja oculta, nos versículos 17-19 (ALTER, 2011, p.
25-8). Este exemplo se assemelha bastante ao de Salmo 49.11, pois ‫ כִיַי ְִר ֶאה‬também é a oração principal, seguida
por duas orações subordinadas. Ver também a discussão sobre elipse verbal em MILLER, 2003, p. 251-270. A
proposta do elemento A (“Certamente ele vê”) desta análise discorda da ideia de Briggs de que esse elemento A
teria sido um acréscimo posterior de um escriba (BRIGGS, 1906, p. 408). Não há qualquer base textual para a
conjectura de Briggs.
639
WEISER, 1994, p. 287. Embora Weiser entenda que o último verseto esteja relacionado aos dois anteriores,
em contraste com a tese defendida aqui de que ele se aplica somente aos dois personagens do segundo verseto.
96

destruídos” (‫ )י ֹאבֵדּו‬/ B.’ “e [, consequentemente,] deixarão para outros suas posses” (ַ ‫ְו ָעזְבּו‬
‫) ַל ֲאח ִֵריםַחֵילָם‬.
A referência aos ‫“( ֲח ָכ ִמים‬sábios”) como indivíduos que ‫“( י ָמּותּו‬morrem”) pode
surpreender o intérprete por colocá-los na mesma condição do grupo oposto (o “bruto” e o
“insensato” do segundo verseto).640 Entretanto, conforme indicado anteriormente, o autor faz
uso de merisma para mostrar que “todos os homens, sem distinção, sucumbem à morte”.641 O
que está em questão é a “radical condição humana, ’a a ”, desses grupos, pois os “mestres
são lição para os ricos, mais com seu destino do que com seus ensinamentos”, e revelam que
“se os doutos morrem, quanto mais os ricos”, visto que “dos sábios [o autor] não predica
delito nem vã confiança, como fez dos ricos”.642
O fato é que a literatura sapiencial, em especial o Qoheleth, enfatiza esse elemento
universal que atinge tanto sábios quanto tolos: “Pelo que disse eu comigo: como acontece ao
estulto, assim me sucede a mim; por que, pois, busquei eu mais a sabedoria? [...] Ah! Morre o
sábio, e da mesma sorte, o estulto!” (Ec 2.15,16, ARA, itálico acrescentado).643 Embora isso
deixe o Qoheleth inquieto e deprimido, aqui o salmista e seu público são encorajados pelo
fato de que os ricos orgulhosos não escaparão do destino final: a morte.644
Embora a ‫“( ָח ְכמָה‬sabedoria”), característica central dos ‫“( ֲח ָכ ִמים‬sábios”), já tenha
sido estudada em detalhes na análise exegética do versículo 4, os dois termos que qualificam
o grupo oposto (‫ ) ְכסִיל ָו ַבעַר‬merecem uma investigação mais detida.
Os léxicos de referência definem o substantivo ‫ ְכסִיל‬como “estúpido (em aspectos
práticos)” ou “insolente (na religião)”,645 “néscio”, “tonto”, “idiota”, “ignorante”, “insensato”,
“imprudente”.646 M. Saebø analisa o termo em detalhes, afirmando que seu sentido básico é
“insensato” ou “insensatez” e indicando que é notoriamente um vocábulo sapiencial, que
ocorre setenta vezes na Bíblia Hebraica, em sua esmagadora maioria nos textos de

640
Von Rad expressa essa perplexidade ao afirmar que ninguém ainda resolveu as dificuldades textuais que o
versículo 11 apresenta (VON RAD, 1973, p. 263, nota 16). Kraus também declara: “Apesar de tudo, o
significado do v. 11 continua sendo difícil dentro do contexto” (KRAUS, 1993, p. 736)
641
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351 (itálico acrescentado).
642
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 675.
643
Ver também Eclesiastes 9.2: “Tudo sucede igualmente a todos: o mesmo sucede ao justo e ao perverso; ao
bom, ao puro e ao impuro; tanto ao que sacrifica como ao que não sacrifica; ao bom como ao pecador; ao que
jura como ao que teme o juramento [...] Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem
coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento” (Ec 9.2,5,
itálico acrescentado)
644
LONGMAN III, 2014, Psalm 49 (edição kindle).
645
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 489.
646
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 322; BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 493.
97

sabedoria.647 “kesîl se tornou gradualmente uma personalidade específica, em particular o


oposto de , o “sábio”, do qual kesîl aparece como o antônimo mais importante”.648
Há diversos textos que revelam essa oposição entre ‫“( ָחכָם‬sábio”) e ‫ ְכסִיל‬, o que torna
“insensato” a melhor tradução para o termo ‫( ְכסִיל‬Pv 3.35; 10.1; 13.20; 14.16,24; 15.2,7,20;
21.20; 26.5; 29.11; cf. 10.23; 17.16; 28.26; Ec 2.14-16; 4.13; 6.8; 7.4s.; 9.17; 10.2,12).
Algumas passagens em que o paralelismo antitético utiliza opostos entre os dois versetos649
são suficientes como exemplos desse contraste entre ‫ ָחכָם‬e ‫ ְכסִיל‬. “Os sábios [‫ ] ֲח ָכמִים‬herdarão
honra, mas [ele] exalta os insensatos [‫ ] ְכסִילִים‬à vergonha pública” (Pv 3.35). “Quem anda com
os sábios [‫ ] ֲח ָכ ִמים‬será sábio, mas o companheiro dos insensatos [‫ ] ְכסִילִים‬se tornará mau” (Pv
13.20, ARA). “Os olhos do sábio [‫[ ] ֶה ָחכָם‬estão] na sua cabeça, mas o insensato [‫ ] ַה ְכסִיל‬anda
em trevas” (Ec 2.14).
O substantivo ‫ ְכסִיל‬pode também funcionar como adjetivo, o que ocorre em vários
textos sapienciais em que representa o oposto do sábio e daquele que tem conhecimento (Pv
10.1; 14.7; 15.20; 17.25; 19.13; 21.20; Ec 4.13). “O filho sábio [‫ ]בֵּןַ ָחכָם‬alegra o pai, mas o
filho insensato [‫ ] ְכסִיל בֵּן‬é a tristeza de sua mãe” (Pv 10.1; cf. Pv 15.1, um texto muito
semelhante). “Tesouro desejável e azeite na habitação do sábio, mas o ser humano insensato
[‫ ] ְכסִיל‬os desperdiça650” (Pv 21.20). “Melhor é o jovem pobre e sábio [‫ ] ָחכָם‬do que o rei velho
e insensato [‫( ”] ְכסִיל‬Ec 4.13)
Assim como a sabedoria na Bíblia Hebraica têm fortes contornos morais, a
insensatez, representada pelo ‫ ְכסִיל‬, é essencialmente negativa da perspectiva moral e
religiosa:651 o “insensato” é equiparado ao “perverso de lábios” (‫שפָתָ יו‬
ְ ַ ‫( ) ֵמ ִעקֵש‬Pv 19.1), ele
provoca “contendas” (Pv 18.6), espalha “difamação” sobre os outros (Pv 10.18), despreza sua
mãe (Pv 15.20) e tem prazer em praticar a “perversidade” (Pv 10.23).652
O segundo termo do versículo 11 para representar o grupo de pessoas oposto ao dos
sábios é ‫ ַבעַר‬. Ele ocorre somente cinco vezes em toda a Bíblia Hebraica e apenas em textos
poéticos (Sl 49.11; 73.22; 92.7[6]; Pv 12.1; Pv 30.2).653

647
SAEBØ, M. ‫ ְכסִיל‬. In: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 620-1.
648
SAEBØ, 1997, p. 621.
649
Sobre o paralelismo antitético como um modo de declarar a mesma ideia por meio de um contraste entre os
versetos, ver KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242; RYKEN, 1992, p. 181.
650
Para essa tradução de ‫ בלע‬no grau piel, ver BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 118.
651
Ver a exposição sobre vários aspectos morais e religiosos negativos do ‫ ְכסִיל‬em GOLDBERG, Louis. ‫ ָכסַל‬. In:
HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 449-50.
652
SAEBØ, 1997, p. 621.
653
BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 129.
98

Em Salmo 73.22, ‫ ַבעַר‬parece estar em uma relação de hendíadis654 com a expressão


que o acompanha no mesmo verseto, “e não tinha conhecimento” (‫)וְֹלא ַאֵּדָ ע‬, comunicando
juntos um único conceito cujo paralelo no verseto seguinte ajuda a entendê-los: “eu era um
animal diante de ti” (‫) ְבהֵמֹותַ ָהי ִי ִתיַ ִעמְָך‬. Em salmo 92.7[6], ‫ ַבעַר‬está em paralelo com o termo
‫“( ְכסִיל‬insensato”) do segundo verseto, o mesmo termo que o acompanha em Salmo 49.11. É
interessante que, mais uma vez, ‫ ַבעַר‬é retratado como alguém sem conhecimento: ַ‫אִ יש־ ַבעַרַֹלא‬
‫“( י ֵדָ ע‬homem ‫ ַבעַר‬não conhece”).
A oposição entre o “ter/amar o conhecimento” e a pessoa que é descrita como ‫ַבעַר‬
também está presente em Provérbios 12.1 em um paralelismo antitético direto:
A. ‫“( אֹהֵבַמּוסָר‬o que ama a disciplina”)
B. ‫“( ִ֣א ֹהֵבַדָ עַת‬ama o conhecimento”)
A’. ‫“( וְשֹנֵאַתֹו ַכחַת‬mas que odeia a repreensão”)
B’. ‫[“( ָבעַר‬é] ‫)” ַבעַר‬

Não há como deixar de perceber essa associação entre ‫ ַבעַר‬e a falta de conhecimento.
Embora Provérbios 30.2 não use a raiz verbal ‫“( י ָדַ ע‬conhecer”) nem o substantivo ‫דָ עַת‬
(“conhecimento”), nele ocorre outro termo que também diz respeito ao aspecto
intelectual/moral: ‫ ַבעַר‬é alguém que “não [tem] entendimento de ser humano” (‫)וְֹלא־בִינַתַָאדָ ם‬.
Portanto, os termos “bruto” ou “estúpido”655 definem bem o segundo termo do segundo
verseto de Salmo 49.11, alguém que carece de conhecimento e age de modo irracional, à
semelhança de um “animal” (‫ ְב ֵהמָה‬, Sl 73.22).656 “A raiz [de ‫ ] ַבעַר‬parece estabelecer um
contraste entre a capacidade do homem de raciocinar e entender e a incapacidade do animal
de fazer isso (Pv 30.2)”.657
Outra questão também presente no versículo 11 é se o terceiro verseto (“e deixam
para outros suas posses” [‫ )] ְו ָעזְבּוַ ַל ֲאח ִֵריםַחֵילָם‬diz respeito somente ao anterior ou também ao
grupo dos sábios que aparece no primeiro verseto. Keil e Delitzsch entendem que “certamente
não é a intenção do poeta” ter os sábios como “sujeito” do último verseto, que “deixam [...]

654
Entende-se hendíadis como um conceito que é comunicado “por dois termos coordenados (ligados por ‘e’) em
que um dos elementos define o outro” (ZUCK, 1994, p. 177).
655
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 146.
656
GESENIUS, 2003, p. 133.
657
OSWALT, John N. ‫ ַבעַר‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 121.
99

suas posses”.658 Paul Raabe também destaca que o “sujeito do verbo e o antecedente do sufixo
pronominal é o ‘insensato e o bruto’ do versículo 11b, pois o foco está na riqueza”.659
De fato, é significativa a repetição de ‫“( חֵילָם‬suas posses”) no versículo 11c, pois,
anteriormente, essa construção foi usada para designar “os que confiam em suas posses
[‫( ”]חֵילָם‬v. 7). O uso do mesmo termo acompanhado do mesmo sufixo pronominal possessivo
é, muito provavelmente, estratégia retórica do autor para criticar “os que confiam em suas
posses” como “insensato[s]” e “bruto[s]”, o que implica ausência de uma vida moral correta
(‫ ) ְכסִיל‬ou de uma forma de agir sensata e lúcida (‫) ַבעַר‬. O “pensamento íntimo”660 dessas
pessoas de que suas casas serão eternas (v. 12) só reforça o argumento de que o sujeito dos
verbos nos v. 11c e 12 são o “insensato” e o “bruto” do v. 11b, não os sábios do primeiro
verseto. E o mais trágico do destino de “bruto” e “insensato” é que “deixarão para outros suas
posses”, ou seja, qualquer pessoa que venha a tornar-se o novo proprietário desses bens, “que
nem sequer é definida por um sufixo [...] para indicar seus próprios sucessores, seus
descendentes”.661
Assim como o anterior, o versículo 12 apresenta uma estrutura de três versetos
(trístico ou tricola),662 em que os dois primeiros versetos formam um paralelismo sinônimo,663
e a terceira linha do trístico estabelece um paralelismo progressivo ou sintético com o
segundo verseto,664 expandido a ideia anterior665 sobre a expectativa dos ricos de que “suas
habitações” permanecerão “de geração em geração” (‫)לְד ֹר ַוָד ֹר‬: eles “aclamam seus nomes
sobre as terras” (‫שמֹותָ םַ ֲעלֵיַאֲדָ מֹות‬
ְ ‫)ק ְָראּוַ ִב‬. No paralelismo sinônimo das duas primeiras linhas,
observa-se o paralelismo entre B. ‫“( בָתֵ ימֹו‬suas casas”) e B’. ‫שכְנ ֹתָ ם‬
ְ ‫“( ִמ‬suas habitações”), e C.
‫“( לְעֹולָם‬eternas”) C’. ‫“( לְד ֹר ַוָד ֹר‬de geração em geração”), com o elemento A. ‫“( ק ְִרבָם‬seu
pensamento íntimo”) do primeiro verseto presente por elipse no segundo.666 Assim a estrutura
tripla do versículo 12 pode ser descrita seguinte forma:
‫ לְעֹולָם‬/ ‫ בָתֵַימֹו‬/ ‫ק ְִרבָם‬
‫ לְד ֹרַוָד ֹר‬/ ‫שכְנ ֹתָ ם‬
ְ ‫ִמ‬

658
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351.
659
RAABE, 1990, p. 73.
660
Para a escolha da leitura do TM (‫)ק ְִרבָם‬, ver a análise de crítica textual no cap. 1 (cf. GOULDER, 1982, p.
189).
661
BRIGGS, 1906, p. 409.
662
RAABE, 1990, p. 80; cf. a divisão poética do trístico em ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 664.
663
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 240-2.
664
OSBORNE, 2009, p. 290-2.
665
RYKEN, 1992, p. 182.
666
Cf. o “paralelismo elíptico” em ALTER, 2011, p. 25-8.
100

‫שמֹותָ םַ ֲעלֵיַאֲדָ מֹות‬


ְ ‫ק ְָראּוַ ִב‬

Conforme discutido na seção de Crítica Textual do capítulo 1, o versículo 12


começa, provavelmente, com a leitura do TM: ‫ ֶֶ֫ק ֶרב( ק ְִרבָם‬, lit.: “interior [de uma região]”;
“partes internas”; “sede do pensamento e da emoção”; “entranhas”667 + ‫[ ָָ ם‬sufixo pronominal
possessivo da 3ª. pessoa do masculino singular], “seu”, “deles”), que é preferível tanto por ser
a lectio difficilior668 quanto por ter o apoio do Psalterium iuxta Hebraeos (Jerônimo).669
O sentido provável de ‫ ֶֶ֫ק ֶרב‬neste versículo é “pensamento íntimo”.670 Conforme
atestado por seu uso em outras passagens da Bíblia Hebraica,671 o termo pode ser uma
referência à “faculdade” ou à “sede do pensamento e da emoção”. 672 Em Salmo 62.5[4], há
claramente um contraste entre o ato da “boca” dos homens falsos de “abençoar” alguém e o
“pensamento interior deles” (‫ )ק ְִרבָם‬que “amaldiçoa” a mesma pessoa. Em 64.7[6], o salmista
usa ‫ קֶֶ֫ ֶרב‬e ‫“( לֵב‬coração”) juntos para indicar o locus em que os malfeitores “tramam/planejam”
(‫ )י ַ ְחפְשּו‬a maldade. Em Jeremias 4.14, é no ‫ ק ֶֶרב‬que estão presentes os “maus pensamentos”
(‫ ) ַמחְשְ בֹות ַאֹונְֵך‬dos habitantes de Jerusalém. Portanto, o salmista expõe o que há oculto no
pensamento do “insensato” e do “bruto”, uma expectativa equivocada e contrária ao que a
reflexão sapiencial dos versículos 8-11 demonstrou.
O uso plural dos dois termos paralelos B. ‫ בָתֵ ימֹו‬e B’. ‫שכְנ ֹתָ ם‬
ְ ‫ ִמ‬deve ser entendidos
como um plural de intensidade (v. 12),673 em vez de quantidade, enfatizando a rica condição
dos “insensatos” e “brutos”. As casas são mencionadas aqui por ser o lugar em que o homem
estabelece suas raízes: “Qual ave que vagueia longe do seu ninho, tal é o homem que anda
vagueando longe do seu lar” (Pv 27.8, ARA), e pelo fato de que a sabedoria hebraica fala
sobre a importância de edificar a “casa” com entendimento (Pv 14.1; 24.3).674
Como o salmo deixará evidente logo a seguir no refrão: a esperança de que suas
casas/habitações serão eternas (“eternas” ou “de geração em geração”) não passa de

667
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 591; BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 899; KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135.
668
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49, nota 5 (edição kindle); GOULDER, 1982, p. 189.
669
A leitura do Psalterium iuxta Hebraeos é a seguinte: interiora sua domus suas in saeculo (“interiores deles
[são?] suas casas em [uma] geração”).
670
Ver as análises de COPPES, Leonard J. ‫ק ֶֶרב‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 813; HOLLADAY;
KÖHLER, 2000, p. 324; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1135,
sentido 2.
671
Cf. as ocorrências de ‫ ק ֶֶרב‬em Gn 18.12; Sl 5.10[9]; 62.5[4]; 64.7[6]; Jr 4.14.
672
BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1977, p. 899.
673
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição
kindle).
674
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676.
101

autoilusão, pois “o ser humano em esplendor não permanece” (v. 13).675 “As casas terrenas
que o rico tinha possuído, chamando-as por seu nome na vã esperança de um tipo
perpetuidade, passariam para as mãos de outros”.676 Como acontece com todos, “também a
vida daqueles que, como proprietários ou detentores de poder, consideraram extensas terras
como suas, acabará entre as estreitas paredes do túmulo. Este é o fim da glória humana”. 677
Todas as casas de um homem neste mundo são interinas e provisórias, somente o sepulcro é a
morada que perdura,678 como a tradição sapiencial faz questão de enfatizar: a “morte” (‫ )מָ וֶת‬é
a “casa” (‫ )בֵית‬para onde vão “todos os viventes” (Jó 30.23; cf. 17.13).
Mark Smith vê na estrutura sintática ‫שמֹותָ ם ַ ֲעלֵי ַאֲדָ מֹות‬
ְַ ‫( ק ְָראּו ַ ִב‬v. 12c) um foco
religioso/cultual e apresenta um estudo de vocábulo (e.g., Gn 12.8; 26.25; Êx 34.5; 1Rs 18.24;
Sl 116.4) para demonstrar que há linguagem religiosa quando o substantivo ‫“( שֵם‬nome”) é o
objeto do verbo e é governado pela preposição ‫“( ְַב‬em”; “por”) referindo-se à prática de
invocar os nomes dos ancestrais.679 Ele conclui que a expressão hebraica do versículo 12 não
indica a prática de dar o nome da família ou do ancestral dela à terra (cf. Nm 32.42; Dt 3.14),
mas é uma crítica ao rico, que, de modo errado, conforta a si mesmo ao praticar a invocação
de seus ancestrais falecidos.680
Entretanto, há alguns problemas críticos na proposta de M. Smith. Em primeiro
lugar, a pessoa ou ser que é invocado como objeto de adoração aparece explicitamente
relacionado ao substantivo “nome” (‫ )שֵם‬nas passagens em que a construção ‫ קרא‬+ ‫ ְַב‬+ ‫ שֵם‬tem
conotação religiosa. Por exemplo, em Gênesis 13.4, o nome de YHWH é claramente indicado
como objeto de culto de Abrão: “E invocou ali o nome de YHWH” (‫שםַַאב ְָרםַבְשֵ םְיְהוָ ָֽה‬
ָ ַ‫) ַויִק ְָרא‬.
No texto de 1Reis 18.26, Baal é claramente identificado como o objeto da invocação: “E
invocaram o nome de Baal” (‫) ַויִק ְְראּו ַבְשֵ ם־ ַה ַבעַל‬. No Salmo 49.12, são os próprios ricos
(“insensato” e “bruto”) que funcionam como sujeito e objeto da invocação por formarem o
antecedente plural da raiz verbal ‫קרא‬, literalmente: “Invocam os nomes deles...” (ַ ‫קָ ְראּו‬

675
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351-2.
676
CRAIGIE, 1983, p. 359.
677
WEISER, 1994, p. 287; cf. TESH, 1999, p. 354; VANGEMEREN, 1991, p. 369.
678
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676.
679
SMITH, 1993, p. 105-7.
680
SMITH, 1993, p. 106-7.
102

‫)בִשְ מֹותָ ם‬, ou seja, são os ricos, não seus antepassados que funcionam como objeto de
autoadoração.681
Em segundo lugar, a mesma construção ‫ קרא‬+ ‫ ְַב‬+ ‫שם‬
ֵַ pode ter outras conotações
além de cultuais: separação para uma tarefa — “Chamei Bezalel pelo nome [...] para
elaborar projetos...” (‫ׁשב ֹת‬
ָ ‫[ ַלחְש ֹׁב ַ ַמ ֲח‬...] ‫( )ק ָָראתִ יְבְשֵ ם ַ ְב ַצ ְלאֵל‬Êx 31.2; cf. 35.30ss.); e separação
para pertencer a YHWH como resultado da redenção divina — “Pois eu te redimi / eu te
chamei pelo nome, para mim [és] tu” (‫( )כִי ַגְַאלְתִ יָך ַק ָָראתִ י ַבְשִ ְמָך ַלִי־אָתָ ה‬Is 43.1; cf. 45.4).
Portanto, embora a linguagem religiosa esteja presente na construção de Salmo 49.12, ela não
é exclusiva e pode indicar posse, como é o caso do último exemplo bíblico mencionado.
Além disso, o uso de ‫ קרא‬+ ‫[ ֲעלֵיַאֲדָ מֹות( עַל‬...] ‫ )ק ְָראּו‬também confirma esse sentido de
posse ou reivindicação de propriedade, como a conquista de Rabá por Joabe deixa claro: ַ‫ְונִק ְָרא‬
ִָ ‫“( שְ מִִי ַ ָעלֶי‬seja aclamado o meu nome sobre ela”).682 “No v. 12 descreve-se a atividade
‫ה‬
poderosa dos ricos, que como reis proclamam seus nomes sobre as terras (2Sm 12.26ss.). ַ‫קרא‬
‫ שם‬designa um ato jurídico por meio do qual ocorre uma transmissão de domínio.”683
Portanto, é possível entender a existência de ambiguidade no versículo 12c, em que
o verseto indica tanto a autoadoração dos ricos insensatos quanto sua reivindicação de
propriedade sobre as terras que conquistaram ou adquiriram. Os ricos buscam a imortalidade,
distinguindo-se de outros mortais, ao dar “seus nomes às terras [‫( ”]אֲדָ מֹות‬v. 12), mas seus
planos fracassam, pois o “ser humano [‫ ]ָאדָ ם‬em esplendor não permanece” (v. 13).
A princípio, o leitor pensa na expressão idiomática comum ‫“( קרא ַבשם‬invocar o
nome de”), que geralmente é usada para a invocação do nome de Yahweh. Em vez
de invocar o nome de Yahweh, os ricos arrogantes “invocam os seus próprios
nomes”; eles deificam a si mesmos (cf. v. 7). Mas a expressão seguinte ‫עלי ַאדמות‬
(“sobre as terras”), traz à mente outra expressão idiomática comum ‫נקראַשמַ ַַעל‬
ָ (“o
nome de alguém ter sido aclamado sobre” algo). Este idiomatismo denota posse de
uma propriedade. [...] Isso parece ser uma combinação deliberada das duas
expressões idiomáticas.684

2.4. Refrão: O homem em esplendor perecerá como os animais (v. 13)

Mas um ser humano em esplendor não permanece,

681
Embora M. Smith defenda a leitura mais fácil da LXX e Peshitta, o termo ‫“( ִקב ְָרם‬a sepultura deles”) é singular
e não poderia funcionar como antecedente do sufixo pronominal possessivo da 3a. pessoa do masculino plural
‫ָָ ם‬, portanto, não pode ser usado como justificativa aos ancestrais falecidos.
682
GOULDER, 1982, p. 189: “Eles têm chamado (‫ )קראו‬as terras segundo eles mesmos, como Davi fez em
Rabat-Amon…”. Paul Raabe cita outras passagens além de 2Samuel 12 (1Rs 8.34; Is 4.1; Am 9.12) e diz: “O
idiomatismo se refere à posse. Portanto, a frase significa que o rico reivindica posse de muitas terras” (RAABE,
1990, p. 73).
683
KRAUS, 1993, p. 737.
684
RAABE, 1991, p. 221-2.
103

É semelhante aos animais [que] perecem.

O refrão do salmo, na forma do versículo 13, começa com um ‫ ו‬adversativo685 para


indicar o contraste entre as expectativas internas do rico “insensato”. Ele pensa que “suas
casas” e “suas habitações” durarão “para sempre” ou “de geração em geração” (v. 12), mas,
na verdade, o “ser humano em esplendor não permanece”, pois “é semelhante aos animais
[que] perecem” (v. 13). Como Goulder assinalou, há uma ligação entre o último termo do
versículo 12, ‫“( אֲדָ מֹות‬terras”), e o primeiro substantivo do versículo 13, ‫“( ָאדָ ם‬ser humano”):
A palavra para terra é encontrada no plural somente aqui [v. 12]. Com frequência,
ela significa terra arável, mas é usada para a terra de Israel (Ez 11.17), a terra do
Egito (Gn 47.20,26), etc. O uso aqui deve-se provavelmente a ‫ אדם‬no versículo
seguinte [v. 13] (cf. v. 2, 20), como em Gênesis 2.7, “o SENHOR Deus formou ‫אדם‬
do pó da ‫”אדמה‬.686
A ironia está no fato de que a tradição preservada em Gênesis 3.17-19 relata a
condenação de ’E contra ‫“( ָאדָ ם‬Adão”): ele deverá retornar à “terra” (‫ ;אֲדָ מֹות‬cf. “até
retornares à terra”, ‫)עַדַשּֽׁו ְַבָךַאֶל־ ָהאֲדָ מָה‬, isto é, experimentar a morte retornando ao “pó da terra”
(“ao pó tornarás”, ‫ ) ְואֶל־ ָעפָר ַתָ שּֽׁוב‬como consequência de sua desobediência ao mandamento
divino. Ao invocar/aclamar seu nome sobre as ‫אֲדָ מֹות‬, o rico insensato se esqueceu de que ele é
‫ ָאדָ ם‬e de que a ‫ אדמה‬é que reivindicará posse sobre ele.
Outra ligação entre os versículos 12 e 13 ocorre por meio da raiz verbal ‫לין‬
(“pernoitar”; “alojar-se”; “permanecer”)687 (v. 13) e o substantivo ‫“( ַבי ִת‬casa”) (v. 12),688 visto
que diversos trechos da Bíblia Hebraica falam sobre “pernoitar/alojar” (‫ )לין‬em uma “casa”
(‫( ) ַבי ִת‬Gn 19.2; 24.23; Jz 18.2; 19.15; 1Cr 9.27). A grande ironia é que o ‫“ ָאדָ ם‬em esplendor”
(v. 13) passa boa parte de sua vida investindo em “suas casas” (‫)בָתֵ ימֹו‬, pensando que elas
durariam “eternamente” (‫( )לְעֹולָם‬v. 12), porém, logo descobrirá que nela não
pernoitará/permanecerá (‫)בַל־יָלִין‬,689 mas, assim como os animais, ‫ ָאדָ ם‬perecerá (cf. ‫( )נִדְ מּו‬v.
13).

685
PINTO, 1998, p. 138, 18.32; WILLIAMS, 1976, p. 71, §432; NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note
23: “A construção vav (‫ )ו‬+ substantivo no início do versículo pode ser interpretado como contrastivo em relação
ao que o precede” (cf. Gn 6.8; 1Rs 2.26; Pv 10.4).
686
GOULDER, 1982, p. 189.
687
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 529; BROWN, DRIVER,
BRIGGS, 1977, p. 533; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 343. Contra a proposta de Judah J. Slotki de que o verbo
aqui é ‫“( לון‬murmurar”, “queixar-se”), indicando que o ser humano fica “mudo” (‫בַל־יָלִין‬, “não se queixa”) diante
das injustiças evidentes (SLOTKI, v. 28, n. 3, p. 361-2). Ver também a crítica à proposta de Slotki em SMITH,
2011, p. 123-4.
688
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 676.
689
CRAIGIE, 1993, p. 360.
104

O versículo 13 está estruturado em um paralelismo progressivo,690 que corresponde


bem à categoria de paralelismo de especificação ou intensificação, em que a ideia geral é
transformada em uma imagem concreta, mais penetrante e enfática: 691 a afirmação de que o
ser humano não permanece é reforçada e enfatizada com a imagem dos animais “que
perecem”.
Aqui, há uma alusão à introdução do salmo pelo uso reiterado da raiz ‫משל‬. No
versículo 5, o autor diz que inclinará seu ouvido “a uma parábola/comparação” (‫) ְַל ָמשָ ל‬, e, no
refrão do versículo 13, afirma que o homem “em esplendor” (‫“ )בִיקָר‬é semelhante” (‫ ) ַנִ ְמשַ ל‬aos
animais em sua mortalidade.692
A conclusão inevitável é apresentada na forma de um ‘provérbio’. O homem, quem
quer que ele seja (rico ou pobre), não pode usar a riqueza para sua vantagem diante
da morte. Um único fim atinge toda a humanidade e os animais da mesma forma,
isto é, a morte (cf. Ec 3.19). A própria natureza da ‘vida’ (animal e humana) é tal
que ela está inserida na obsolescência.693
Keil e Delitzsch observam o uso da raiz verbal ‫ משל‬+ a preposição ‫ ְַכ‬para estabelecer
comparação dos seres humanos com elementos da natureza: por exemplo, em sua aflição, o
ser humano “é semelhante” (‫“ )משל‬ao pó e à cinza” (‫( ) ֶכ ָעפָרַ ָו ֵּאפֶר‬Jó 30.19).694 No grau qal, o
termo ‫ משל‬pode ter o sentido de “formular ou propor uma parábola” (cf. Ez 18.2ss; 24.3),695
mas no nifal, como é o caso de Salmo 49.13, o sentido é de “representar”, “ser semelhante a”
(cf. Is 14.10; 143.7).696 Portanto a relação do v. 13 com o v. 5 ocorre pelo uso de termos com
a mesma raiz, em que o versículo 13 explicita a “parábola” do salmo por meio do ato de
“representar” ou comparar.697
Mitchell Dahood propõe a leitura “Mansão”698 para ‫ יְקָר‬com base em um artigo de R.
P. Joüon, em que este autor analisa uma estátua honorária bilíngue e propõe que o substantivo

690
OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3.
691
ALTER, 2011, p. 21. Cf. também a análise desse mesmo tipo de paralelismo no v. 10.
692
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 669-70. Observe-se esse mesmo entendimento de que o verbo ‫משל‬
está relacionado ao substantivo ‫( ָמשָל‬v. 5) em DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 444.
693
VANGEMEREN, 1991, p. 369.
694
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.
695
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 647.
696
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 605.
697
Neste sentido, o v. 13 é tanto a comparação da “parábola” mencionada anteriormente quanto o é o v. 21. Não
há uma relação em que o primeiro refrão seria um enigma, e o segundo uma solução para ele, como propõe
McDaniel (MCDANIEL, 2001, p. 49), menos ainda o inverso, como defende Perdue (PERDUE, 1974, p. 538-
540).
698
DAHOOD, 1965, p. 295, 299.
105

palmirense ‫ יקרא‬tem seu correspondente no termo grego ι ή (“honra”), cujo sentido em


algumas inscrições funerárias seria “monumento de honra”.699 Em seguida, Joüon afirma:
Como ocorre com frequência em nossas línguas, a palavra com o sentido de “honra”,
ι ή, é usada também no sentido concreto de ‘uma honra’ dada a alguém, “o que
constitui sinal de honra” [...] Descobrimos ele sendo usado com um significado
concreto de ‘marca, sinal ou monumento de honra’ em uma inscrição bilíngue [...]:
“Este [memorial] que é um monumento de honra da sepultura”. 700
Entretanto, essa tradução é muito pouco provável à luz do contexto próximo do
Salmo 49 e de seu uso ao longo da Bíblia Hebraica. O HALOT reconhece dois sentidos
básicos para ‫יְקָר‬: “preciosidade” e “honra”, atribuindo o uso em Salmo 49.13 ao primeiro
sentido associado a itens preciosos (em que também são alistadas as seguintes passagens: Jr
20.5; Ez 22.25; Jó 28.10; Sl 49.13,21).701 O BDB também reconhece esses dois sentidos
básicos, mas entende o Salmo 49.13 no segundo sentindo de ‫יְקָר‬: “honra” (com Et 1.4; 6.3;
8.16).702 O que chama a atenção é que não há uma associação, em nenhum dos léxicos, com o
sentido de “monumento de honra” funerário como propõe Dahood.703
Ao contrário da proposta de BDB, o termo ‫ יְקָר‬parece ser melhor traduzido por “a
riqueza/pompa do esplendor de sua grandeza” (‫ )יְקָרַתִ ְפא ֶֶרתַגְדּולָתֹו‬no texto de Ester 1.4, pois o
sentido básico de ‫ יְקָר‬pode ser identificado pela expressão paralela anterior, que faz referência
à “riqueza da glória de seu reinado” (‫)עֹשֶרַכְבֹודַ ַמלְכּותֹו‬.
Chama a atenção o uso de sufixo pronominal possessivo ao final de ‫“( ַגְדּולָתֹו‬sua
grandeza”) e de ‫“( ַמלְכּותֹו‬seu reino”), estabelecendo-os como duas expressões paralelas na
cadeia de construto, que são imediatamente precedidas por dois sinônimos no hebraico ‫תִ פְאֶ ֶרת‬
(“esplendor”) e ‫“( כְבֹוד‬glória”).704 Portanto, é provável que o texto de Ester 1.4 empregue ‫יְקָר‬
com o sentido semelhante a ‫שר‬
ֶ ֹ ‫“( ע‬riqueza”) para se referir à riqueza e objetos de valor que o
rei Assuero ostentava e revelou a seus vassalos.
Em Jeremias 20.5, ‫ יְקָר‬está relacionado a termos como ‫“( חֹסֶן‬tesouro”,
“suprimentos”)705 e ‫“( אֹוצְרֹות ַ ַמ ְלכֵי ַי ְהּודָ ה‬tesouros dos reis de Judá”). Nos textos sapienciais
(mesmo gênero que o Salmo 49), ‫ יְקָר‬é usado para se referir à busca do homem por “tudo [o

699
JOÜON, R. P. Glanes palmyréniennes. Syria, v. 19, n. 1, 1938, p. 100. Cf. SABOURIN, 1974, p. 375.
700
JOÜON, 1938, p. 100.
701
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 432.
702
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 430. Cf. também GESENIUS, 2003, p. 363.
703
Isso é surpreendente em relação ao HALOT, que não considera o sentido descoberto na pesquisa de R. P.
Joüon uma possibilidade a ser aplicada ao Salmo 49 como faz Dahood. Paul Raabe nota os dois sentidos básicos
dos léxicos mencionados aqui e diz ser improvável a reconstrução de Dahood à luz do segundo refrão (RAABE,
1990, p. 73)
704
Ver em ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 707, como ‫ תִ ְפא ֶֶרת‬pode funcionar como substituto
705
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 112.
106

que é] precioso” (‫ )כָל־יְקָר‬ao escavar nas rochas (Jó 28.10), em uma alusão aos metais
preciosos. Em Provérbios 20.15, ‫ יְקָר‬funciona como qualificativo e indica “objeto de valor”
(‫ ) ְכלִיַי ְקָ ר‬em paralelo a “ouro” (‫ )זָהָב‬e “pérolas de coral” (‫) ְפנִינִים‬.706 Não resta dúvida de que, à
luz da discussão sobre as riquezas e sua insuficiência para redimir um ser humano porque o
resgate da vida dele “é valioso” demais (v. 7-12, esp. v. 9), que ‫ יְקָר‬tem o sentido de
“esplendor” ou “pompa”, indicando um “ser humano” (‫ )ָאדָ ם‬que adquiriu muitos “objetos de
valor”.707
Como já enfatizado anteriormente, há uma ironia aqui por meio de jogo de palavras:
o resgate da vida de uma pessoa é tão valioso (‫( )יקר‬v. 9) que mesmo um ser humano em
esplendor (‫( )יְקָר‬v. 13) é incapaz de pagar, por isso, ele “é semelhante aos animais [que]
perecem” (v. 13). Isso produz um importante impacto retórico, pois um grupo específico de
pessoas ricas e poderosas é comparado aos animais irracionais.708

2.5. Estrofe II: A realidade da morte e a confiança na redenção divina eliminam o


temor de alguém que se enriquece (v. 14-20)
14
Este é o caminho daqueles [cuja] tola confiança [é] para si
Mas seus seguidores têm prazer no que eles dizem.
15
Como rebanho dirigem-se para o Sheol,
Morte os pastoreará.
De manhã, os justos dominarão sobre eles.
O Sheol engolirá suas formas,
Longe da mansão dele.
16
Mas Deus redimirá minha vida do poder do Sheol,
Certamente me tomará. Selá.
17
Não temas se um homem alcançar riquezas,
Se aumentar a glória de sua casa.
18
Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte,
Não descerá atrás dele sua glória.
19
Embora em sua vida ele se congratulasse:
“E es te ouva , pois as coisas vão be contigo”.

706
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 946.
707
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352; GOULDER, 1982, p. 189-90.
708
SMITH, 2011, p. 124.
107

20
Ele irá até a geração de seus pais;
Não verão a luz para sempre.

O versículo 14 está repleto de discussões textuais,709 que foram analisadas no


capítulo 1 desta dissertação e cujo estudo demonstrou que o TM deve ser mantido sem
alterações por emendas textuais ou leituras das versões. Esta nova estrofe (v. 14-20) apresenta
em detalhes o destino “daqueles [cuja] tola confiança [é] para si” (v. 14; cf. v. 6). Como o
versículo 13 é o refrão que conclui a seção precedente, deve-se ler ‫“( זֶהַדַ ְרכָם‬este é o caminho
daqueles”) (v. 14) como uma indicação do que o texto está prestes a descrever. 710 O
substantivo ‫“( דֶ ֶרְך‬caminho”) aqui não tem seu sentido figurado mais comum, o de “conduta”
ou “modo de vida” (1Rs 2.3; Jó 34.21,21; Sl 1.1; Pv 14.8),711 mas implica destino (cf. Sl 35.6:
“Seja o caminho deles trevas”; 37.5),712 como o versículo 15 com sua descrição do fim dessas
pessoas no Sheol deixará claro.713
O termo hebraico ‫ ֶכסֶל‬no Salmo 49.14 é identificado como o substantivo abstrato da
raiz II em HALOT714 e Holladay,715 equivalente ao da raiz I de Alonso Schökel.716 Tanto o
BDB quanto Gesenius não fazem essa distinção da raiz verbal e analisam o substantivo como
de uma só raiz com vários sentidos.717 Na raiz I (HALOT e Holladay), o substantivo ‫ ֶכסֶל‬tem
o sentido concreto de “lombo” ou “lado” e se refere aos “lombos” (‫ ) ְכ ָסלִים‬dos animais cuja
gordura era queimada nos holocaustos do povo de Israel (Lv 3.4,10,15; 4.9; 7.4). Também
descreve o lombo humano cheio de gordura (‫ )פִימָהַ ֲעלֵי־ ָכסֶל‬como figura para alguém próspero
(Jó 15.27).718
Na raiz II (HALOT e Holladay), ‫ ֶכסֶל‬é um substantivo abstrato e pode ter mais de um
sentido. O mais comum é “confiança”/“segurança”: a “confiança” que uma pessoa tem em um
ser ou em algum objeto de valor ou a “segurança” que se garante a alguém. Pode ser uma

709
GOULDER, 1982, p. 190. Ver os quatro problemas textuais (a, b, c, d) no texto e aparato crítico de
ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 1131.
710
KRAUS, 1993, p. 730-1; NET Bible, 2005, Psalm 49.13, translator note 26.
711
WOLF, Herbert. ‫דֶ ֶרך‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 196-7; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p.
162.
712
DAHOOD, 1965, p. 299; cf. a tradução de ZUCKER, 2005, p. 144 (também p. 148): “Such is the fate…”
[“Tal é o destino”].
713
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle); GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).
714
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 489.
715
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 161.
716
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 322.
717
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 492; GESENIUS, 2003, p. 408.
718
Robert Alden observa: “Na antiguidade, a prosperidade era evidente na obesidade, ao passo que a magreza
revelava penúria (cf. Pv 11.25; 13.4). Naturalmente, o ímpio rico era obeso, com faces gordas e cintura
protuberante” (ALDEN, R. L. Job. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 1993, p. 179)
108

referência à “confiança” (‫ ) ֶכסֶל‬posta no ouro (‫)זָהָב‬, isto é, em suas riquezas e prosperidade (Jó
31.24).719 Aqueles que “se esquecem de Deus” (‫ )ׁש ֹ ְכחֵּי ַאֵּל‬terão sua “confiança” (‫ ִכסְלֹו‬, i.e.,
objeto/ser em que confiam) frustrada (Jó 8.13,14). Em contraste, Provérbios 3.25,26, diz que
o justo não precisa temer o ataque dos perversos porque Deus é a “segurança” (‫ ) ֶכסֶל‬dele.
Assim como em Jó 8.13,14, Salmos 78.7 estabelece um contraste entre a confiança em Deus
(‫ )בֵאֹלהִיםַ ִכ ְסלָם‬e o esquecer-se de seus feitos (‫שכְחּוַ ַמ ַע ְללֵי־אֵל‬
ְ ִ ‫)י‬. O único caso em que ‫ ֶכסֶל‬da raiz
II tem o claro sentido de “insensatez” ocorre em Eclesiastes 7.25 por sua associação com o
termo “tolice”720 (‫) ִסכְלּות‬.721
No entanto, parece haver um jogo de palavras por meio da assonância entre ‫ ְכסִיל‬e
‫ ֶכסֶל‬. No versículo 11b, há a informação de que “insensato [‫ ] ְכסִיל‬e bruto juntos são destruídos”
e “deixam para outros suas posses”. Ao utilizar ‫“( ֶכסֶל‬confiança”) no versículo 14, o texto
enfatiza, mais uma vez que, a confiança (‫ ) ֶכסֶל‬em si (ou nas riquezas, v. 7) é a atitude do
insensato (‫) ְכסִיל‬, não do sábio. Nesse sentido, Paul Raabe define bem a ideia do termo ‫ֶכסֶל‬
(em associação a ‫ ) ְכסִיל‬como tola confiança,722 por isso, a tradução aqui proposta: “[cuja] tola
confiança [é] para si”.
A expressão hebraica do TM ‫( וְַאח ֲֵריהֶם‬lit.: “e depois deles”), que deve ser mantida,
pode ser traduzida tanto por “o fim definitivo deles...”723 quanto por “aqueles depois
deles...”.724 Embora a primeira leitura seja possível sem alteração do TM e com base em um
cognato ugarítico cujo sentido é “destino”, “destino final” (u t),725 o sentido mais natural é
entender a expressão ‫ ַאח ֲֵריהֶם‬como “aqueles depois deles”, ou seja, seus seguidores,726 que
imitam o estilo de vida727 do indivíduos cuja tola confiança está em si mesmo e que “têm
prazer” (‫ )י ְִרצּו‬no que sai da “boca” dos insensatos autoconfiantes (v. 14b).728 “Aqueles que

719
“Os salmos e a literatura sapiencial estão cheios de censura àqueles que colocam sua confiança (kesel, mi t )
em sua riqueza, em vez de em Deus (Sl 49.7-8 [6-7]; 52.9 [7] etc.; cf. Jó 22.25)” (GRAY, John. The Book of Job.
Sheffield: Sheffield Phoenix, 2010. p. 387)
720
HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 256.
721
OGDEN, 2007. p. 129.
722
RAABE, 1990, p. 74.
723
DAHOOD, 1965, p. 296, 299-300.
724
CRAIGIE, 1983, p. 356.
725
LETE; SANMARTÍN, 2003. p. 41. Kraus, porém, propõe uma reconstrução do texto (cf. KRAUS, 1993, p.
730-1).
726
Ver tradução de GOULDER, 1982, p. 190; NET Bible, 2005, Psalm 49.13;
727
BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 30; RAABE, 1990, p. 74.
728
Cf. a discussão sobre essa possibilidade em GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
109

concordam com suas palavras, muitas vezes se beneficiando de seu poder e prestígio, também
morrerão e não mais existirão”.729
Como o ensinamento já foi apresentado de que os homens pomposos são como
animais, o salmista talvez esteja dizendo que aqueles que seguem um tolo em seu
caminho tornam-se tolos eles mesmos. Pode-se pensar em uma vaca ou cabra com
um sino que atrai os outros animais do rebanho. 730
O texto do Salmo 49.15 é bastante complexo tanto em sua reconstrução textual731
quanto na interpretação de sua estrutura sintática e de aspectos semânticos.732 Embora Raabe
entenda a estrutura do v. 15 como formado por dois versos de um dístico cada,733 o texto
hebraico parece fazer mais sentido se for dividido em dois versos, o primeiro com um dístico
associado por paralelismo sinônimo734 (em que o primeiro termo é presumido no segundo
veserto por elipse735), e o segundo com um trístico de paralelismo progressivo de
intensificação (em que a situação dos ímpios no Sheol é descrita de forma cada vez mais
trágica),736 mantendo ‫“( ִמזְבֻל ַלֹו‬longe da mansão dele”) na linha final, e ‫ִירם ַ ְלבַלֹות‬
ָ ‫( ְוצ‬lit.: “e
suas formas para ele engolir”) na anterior (segundo verseto do trístico).737
Verso 1: Dístico
‫כַצ ֹאןַ ִלשְאֹולַשַתּו‬
‫ָמוֶתַי ְִרעֵם‬
Verso 2: Trístico
‫ַוי ְִרדּוַבָםַיְש ִָרים לַבֹקֶר‬
‫ִירםַ ְלבַלֹותַשְאֹול‬ָ ‫ְוצ‬
‫ִמזְבֻלַלֹו‬

729
VANGEMEREN, 1991, p. 370.
730
SMITH, 2011, p. 125.
731
A BHS alista cerca de dez problemas textuais analisados no aparato crítico, embora só quatro representem
variantes de versões ou manuscritos antigos (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997. p. 1131.) Kraus chega a afirmar
que “o texto no v. 15 está corrompido de modo irreparável” (KRAUS, 1993, p. 731). Entretanto, em nossa
análise de crítica textual buscamos propor uma solução para os quatro problemas principais. “A hipótese que
busca entender o TM é melhor do que essas conjecturas e esse desespero” (GOULDER, 1982, p. 191)
732
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352-3 discute mais detidamente vários aspectos sintáticos e semânticos
deste trecho. Cf. também as boas análises de ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 668; DAHOOD, 1965,
p. 300-1.
733
RAABE, 1990, p. 69-70, 79. Outros comentaristas também dividem em dois dísticos: GOULDER, 1982, p.
190; CRAIGIE, 1983, p. 356.
734
RYKEN, 1992, p. 180-181; KÖSTENBERGER, 2014, p. 240-1.
735
KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 262; MILLER, 2003, p. 251-270.
736
OSBORNE, 2009, p. 290; ALTER, 2011, p. 21ss.
737
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ver as traduções nas análises de comentários e artigos que
também identificam um segundo com três versetos, em vez de dois: DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER;
JACOBSON, 2014, p. 442; DAHOOD, 1965, 296; ZUCKER, 2005, p. 146 (cf. ALONSO SCHÖKEL;
CARNITI, 1996, p. 665, que invertem: um trístico e, depois, um dístico).
110

O versículo 15 segue descrevendo o “destino” (lit. “caminho”) “daqueles cuja tola


confiança [é] para si” (v. 14). Como um “rebanho” de ovelhas (‫)כַצ ֹאן‬738 incapazes de definir
seu destino ou de ter controle sobre a própria vida, os ímpios “dirigem-se”739 (‫שַתּו‬, uma forma
variante de ‫שָתּו‬,740 3ª. pessoa masculino plural de ‫שית‬
ִ ) para o Sheol, que funciona no texto
como o curral dessas ovelhas (v. 14).741 No contexto dos salmos dos coraítas, um dos poetas
havia se lamentado diante de YHWH: “Entregaste-nos como ovelhas para o corte, e nos
espalhaste entre as nações” (Sl 44.12[11]), agora a situação se inverte, em que os ímpios são
ovelhas submetidas a outro pastor em um redil nada atraente.742
Pois tudo aquilo sobre o que está constituída a vida desses homens seguros de si
desvanece na morte. Sem vontade própria como um rebanho, privados de qualquer
esperança apresentam-se ao mundo inferior, onde, como numa imagem grandiosa,
diz o poeta, a morte os apascentará e será o seu senhor.743
Há muita discussão sobre o sentido de “Sheol” (‫ )שְאֹול‬da Bíblia Hebraica, um termo
hebraico recorrente (65 vezes) relacionado à morte e a post mortem, mas que não aparece em
ugarítico, fenício ou púnico.744 Uma possível alusão a esse termo foi descoberta em uma
maldição em acádico nos textos de Ras Shamra.745 O sentido básico de ‫ שְאֹול‬é o “além”,746 a
morada dos mortos, geralmente localizado nas profundezas da terra (Gn. 37.35; 1Rs 2.6; Sl
86.13; Pv 9.18; Is 38.10).747
O ‫ שְאֹול‬representava uma condição de semivida, desconhecida, sombria e obscura em
sua essência, sem a plenitude que tornava possível o relacionamento com Deus.748 Em
Ezequiel, o Sheol é retratado como um lugar a ser habitado pelos mortos de todas as classes,
poderosos e oprimidos (Ez 31.15-17; 32.21,27). Todos irão para o Sheol um dia (Sl 89.48).

738
O verbo no plural (‫שתּו‬ ַ ) nos leva a traduzir ‫ צ ֹאן‬como um singular coletivo: “rebanho” (ver KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 993).
739
Ver esse sentido reflexivo de direção em GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 10 (edição kindle); KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1485, exemplo 7c.
740
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 183, §67.ee.
741
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.
742
GOULDER, 1982, p. 191.
743
WEISER, 1994, p. 288.
744
TROMP, 1969, p. 21. Este autor oferece uma excelente discussão sobre a provável etimoglogia do termo ‫שְאֹול‬
nas p. 21-23 de seu livro.
745
DAHOOD, 1965, p. 212.
746
TROMP, 1969, p. 21.
747
DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 440.
748
CRAIGIE, 1983, p. 93, 95-6.
111

Nas fontes mesopotâmicas, todas as pessoas, sem distinção, também iam para o
mundo inferior, e ali viviam em trevas e tristeza, comiam barro e sofriam de diversas
formas.749 Na descrição vívida de Martin-Achard:
De modo geral, o Sheol é uma região da qual não se sai, “uma país sem retorno”, a
semelhança do Aralu babilônio. “Porque, decorridos poucos anos, eu seguirei o
caminho por onde não tornarei”, afirma Jó (Jó 16.22), que sabia também que o reino
das sombras era semelhante a uma cidade ou a uma casa que tem suas portas, suas
fechaduras [...] neste lugar, no qual reina uma obscuridade fúnebre. Por isso, as
trevas são frequentemente sinônimas de Sheol: “Saber-se-ão as tuas maravilhas nas
trevas, e a tua justiça?” (isto é, no mundo dos mortos), pergunta o salmista.
[...] Uma das particularidades do Sheol é ser um lugar onde reina um profundo
silêncio. [...] (Sl 88.10-12). O morto não pode invocar e louvar a Yahweh: “Porque
não pode louvar-te o Sheol, / Nem a morte glorificar-te; / Nem esperarão em tua
verdade os que descem à cova”, clama Isaías [sic: Ezequias] (Isaías 38.18).750
Entretanto, a morte não era vista como a não existência, mas sim, como uma forma
bastante débil de vida. O hebreus falavam de “sombras” que viviam em lugar dos mortos,
ainda que sua existência não fosse verdadeira como a da vida sobre a terra (p. 127).751
Sabe-se, ao menos, que a ideia de sepultura também está contemplada na definição
mais ampla do ‫( שְאֹול‬Sl 88.12; Jr 38.6ss.; Lm 3.55).752 Jacó, triste pela suposta morte de José,
disse que desceria à “sepultura” (‫ )שְאֹול‬chorando (Jó 37.35). O texto de Jó 17.13-16 ilustra
bem a ideia do Sheol como a sepultura, o lugar em que o corpo de alguém é enterrado e
simboliza o fim de sua vida.
Assim como hoje, as pessoas eram sepultadas abaixo da terra, geralmente em
buracos feitos em rochas. As tumbas reais de Ur, na Mesopotâmia, chegavam a ter mais de
nove metros de altura, o que deve ter originado o conceito de Sheol como oposto a céu (Sl
139.8; Jó 11.8; Am 9.2) e à visão dos homens da Antiguidade do mundo dos mortos como o
submundo.753 Em Salmos, o Sheol torna-se o lugar de onde o justo precisa ser liberto, e o
ímpio, emudecido (Sl 16.10; 30.4; 31.17; 55.15). Diferente dos cananeus, que acreditavam no
deus Môt, os israelitas viam o Sheol como uma triste realidade, mas que não fugia do controle
ou autoridade de YHWH (Sl 139.8).
Os ímpios, que em sua prosperidade ameaçavam de morte os justos, agora se veem
diante da ameaça da Morte como seu supremo pastor: “Morte os pastoreará” (‫)מָ וֶת ַי ְִרעֵּם‬. A
Morte é personificada neste versículo como um pastor que mantém o rebanho em seu redil, o

749
HARRIS, R. Laird. ‫שְאֹול‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 892.
750
MARTIN-ACHARD, 2015, p. 57-8.
751
CATE, 1989. p. 127.
752
MARTIN-ACHARD, 2015, p. 55.
753
HARRIS, R. Laird. ‫שְאֹול‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 892-3.
112

Sheol, em contraste com YHWH, que é o pastor dos fiéis no livro de Salmos e cuja pastagem
está na terra dos vivos (Sl 23.1; 28.9; 100.3).754 “A imagem da morte como pastor é,
evidentemente, uma perversão sarcástica do belo pensamento de que o rei e Deus estão
cuidando de seu povo (v. 15[14]; cf. Sl 23; Ez 34)”.755
Em Jeremias 9.20[21] a Morte também é personificada, mas como intrusa que entra
pelas janelas das casas, carregando as pessoas consigo e eliminando a população de uma
cidade.756 “A Morte da fome e da peste obtém fácil acesso às casas, mesmo as mais seguras,
saqueia o capital de duas gerações e deixa em seu rastro uma multidão de cadáveres não
sepultados”.757
No Salmo 49.15, “Morte” é o pastor, e o “Sheol”, o curral em que os ricos pastarão.
O supremo pastor dos “que confiam em si” é a Morte. “Morrer é como deixar o domínio em
que Deus o pastoreia [...] para um domínio em que a Morte o pastoreia”. 758 Tanto na estrutura
sintática do uso da raiz verbal ‫ רעה‬nesta oração do versículo 15 quanto nos paralelos da Bíblia
Hebraica, a melhor interpretação de ‫ ָמוֶתַי ְִרעֵּם‬é a de que a Morte terá o papel de pastor dos
ricos ímpios (“Morte os pastoreará”), não de uma besta que os devora (“Morte apascenta-se
deles”).759
Os dois últimos versetos de Salmo 49.15 dizem que a “forma” (‫)צִיר‬760 dos ricos —
isto é, seu corpo físico761 — será para o Sheol consumir, longe de suas belas casas (ַ‫ִירםַ ְלבַלֹות‬
ָ ‫ְוצ‬
‫( )שְאֹולַמִ זְבֻלַלֹו‬v. 15). O fim dessas pessoas será distante de suas majestosas mansões (v. 15),762
pois descerão ao Sheol, onde seu belo corpo será consumido. “Seu destino não são as

754
RAABE, 1990, p. 74; KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352.
755
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49.
756
KIDNER, 1980, p. 205.
757
ALLEN, 2008, p. 120.
758
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
759
COLLINS, C. John. “Death will be their shepherd” or “death will feed on them”? a et i ‘e in Psalm
49.15 (EVV v. 14)”. TBT, vol. 46, n. 3, 1995, p. 320-6. Este autor apresenta as duas possibilidades de
interpretação (“a morte os apascentará” ou “a morte os devorará”). Então, descreve a razão dada por exegetas
para a segunda tradução, especialmente a ideia de que a morte é descrita nas imagens do AOP e do AT como um
monstro que devora as pessoas. Depois disso, mostra três opções de construção sintática com o verbo ‫ רעה‬que
implicam três possibilidades semânticas, que incluem tanto a ideia de “pastorear/apascentar” quanto de
“alimentar-se”. Refutando a ideia de que a morte se alimenta dos ricos, Collins mostra como a construção
sintática juntamente com a imagem precedente dos ricos como um rebanho de ovelhas requer que a leitura seja a
de que os ricos são “apascentados” pela morte. Caso o salmista desejasse retratar a morte se alimentando dos
ricos teria de usar outro verbo hebraico, não ‫רעה‬. “No Salmo 49 [ET, v. 14] mawet é uma personificação
demitizada da morte. E, em contraste com os piedosos, que têm o Senhor como seu pastor (Sl 23.1), o rico
despreocupado tem apenas a triste perspectiva de ser pastoreado pela morte” (p. 324).
760
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, 1024; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 849
761
KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 352. Contra BRIGGS, 1906, 410-11.
762
WOLF, Herbert. ‫זְבֻל‬. In: HARRIS, R. Laird. ‫שְאֹול‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 235.
113

‘residências grandiosas’ para as quais todo o foco de suas vidas foi direcionado, mas seus
corpos (‘formas’, v. 15) estão destinados a serem consumidos no Sheol”.763
Deus vindicará os justos oprimidos pelos ímpios. Por isso, “de manhã, os justos
dominarão sobre764 eles” (v. 14). A “manhã” (‫ )בֹקֶר‬é, em geral, uma figura para se referir a um
momento de salvação trazido por Deus após a “noite” ou as “trevas” da perseguição e
dificuldades (Sl 30.5ss.). A manhã descreve também a salvação que Deus trará a Jerusalém ou
a Israel diante de todas as nações (Sl 46.5-7; 59.6-17; 90.13-16). Portanto, “manhã” no v. 15
indica “mais uma inversão nesta vida para pessoas que experimentam tribulação e
instabilidade (v. 5). A manhã é o momento em que Deus age nesta vida para libertar [...] e os
justos então experimentarão a libertação de Deus.”765
O propósito do versículo 16 é claramente estabelecer um contraste entre o indivíduo
cuja “tola confiança [é] para si” (v. 14), conduzido para o redil do Sheol (v. 15), e o indivíduo
cuja confiança está em YHWH e experimenta sua redenção (v. 16).
O autor começa com uma partícula de ênfase ‫אְַך‬, com função adversativa (“mas
[certamente]”)766 nesta passagem e que remete por assonância ao v. 8. Embora este versículo
comece com um substantivo, ‫( ָאח‬ , “irmão”), ele tem o mesmo som que a particula enfática
com uso adversativo ‫( אְַך‬a ) no v. 16a. Ambos fazem duas afirmações básicas sobre a
redenção usando a mesma raiz verbal ‫פדה‬: “Um ser humano não redimirá de modo algum
[‫[ ]ֹלא־פָד ֹה ַיִפְדֶ ה‬seu] irmão”, “mas Deus redimirá [‫ ]יִפְדֶ ה‬minha vida do poder do Sheol”.767
Como observou Gestenberger: “A palavras de conforto do v. 16[15] formam um paralelo com
o v. 8[7]: pessoas não podem resgatar a si mesmas da morte, mas Deus de fato liberta o
fiel.”768
Este versículo do Salmo 49 (v. 16) talvez seja o que mais atrai a discussão
hermenêutica sobre a possibilidade de vida além-túmulo. Muitos estudiosos interpretam a
linha “Deus redimirá minha vida do poder do Sheol” à luz do verseto seguinte: “Certamente

763
CRAIGIE, 1983, p. 360
764
Ver esse uso de da preposição ‫ ְַב‬com o verbo ‫ ָרדה‬em BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 922 (cf. os
seguintes texto bíblicos: Gn 1.26,28; Ne 9.28).
765
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
766
Ver KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 45; KEIL; DELITZSCH,
1996, v. 5, p. 353.
767
Leo Perdue chama a atenção para a ligação entre esses dois versículos e identifica neles um segundo “enigma”
referido pelo autor na introdução (v. 5), que não é formulado com pergunta e resposta, mas com duas afirmações
paradoxais: o salmista reconhece que a morte é um estado do qual nem rico nem pobre nem tolo nem sábio
podem ser redimidos (v. 7-10), mas declara que ele será (v. 16).
768
GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle).
114

me tomará!”. A observação feita com frequência é que “o verbo recorda as tradições acerca
de Enoque e Elias (Gn 5.24; 2Rs 2.3,5)” e que “seu significado básico aqui é
“arrebatar’”.769Hans Walter Wolff confirma a mesma interpretação:
A superação da aflição da morte não se manifesta na forma de alguma esperança
elaborada do além, mas na certeza tranquila de que a comunhão com Javé, por causa
de sua fidelidade, não pode ser suprimida pela morte [...] Essa concepção é
esclarecida ainda pela ideia de arrebatamento (‫ )לקח‬no Salmo 49.15.770
Com exceção de Dahood, e alguns seguidores de sua proposta, que chegam a
defender uma escatologia individual explícita em alguns salmos, 771 a maioria dos
pesquisadores não postula uma visão clara de um paraíso ou céu, nem mesmo da ressurreição,
mas apenas da expectativa de que a comunhão com YHWH era tão profunda que nem mesmo
o Sheol poderia rompê-la:772
Com base no texto não se pode responder com certeza se está em questão a ideia do
arrebatamento antes da morte, como em Gn 5.24 e 2Rs 2.9ss, ou da libertação do
Xeol (mundo dos mortos), por exemplo, através da ressurreição, como em Is 26.19
ou Dn 12.2. Em todo caso, para o poeta é a confiança em Deus, único com poder
sobre a morte, e a esperança da eternidade baseada nisso, que ocupa o centro, não só

769
MURPHY, 1977, p. 35; KRAUS, 1993, p. 737; cf. DAHOOD, 1965, p. 301; RAABE, 1990, p. 77; WEISER,
1994, p. 288; ALEXANDER, 1987, p. 13-6; TESH, 1999, p. 355. Segundo Von Rad: “o verbo em questão
significa (a propósito da morte) ‘arrebatar’. O melhor é entender a frase como expressão da esperança em uma
comunhão de vida com Deus que dura além da morte” (VON RAD, 1973, p. 263; cf. VON RAD, 2006. p. 393-
4). “Em relação aos ímpios, é claro que o Sheol significa a morada das sombras, para além da sepultura; em
relação aos justos, deve o Sheol, consequentemente, ter o mesmo sentido, e significar que em vez de ir para o
Sheol, Deus o receberá. [...] O que o salmista está dizendo é que as desigualdades desta vida se endireitarão na
outra.” (ROWLEY, H. H. A fé em Israel. São Paulo: Teológica, 2003. p. 252-3). Essa ideia de o fiel ser elevado
à presença divina já havia sido defendida no ambiente acadêmico alemão por Paul Volz, que interpretava o verbo
‫ לקח‬como um termo técnico para o arrebatamento do Sheol logo após a morte. Além de Gênesis 5 e 2Reis 2, ele
cita o Épico de Gilgamesh para defender sua tese. Volz observa aqui o início da crença na imortalidade e uma
inversão do ideal egípcio: não serão os aristocratas elevados até os deuses, enquanto o povo comum transforma-
se em nada com a morte; ao contrário, os nobres ricos ficarão presos ao Sheol, ao passo que os piedosos serão
arrebatados à presença divina (ver VOLZ, Paul. Psalm 49. ZAW, v. 55, n. 3-4, 1937, p. 242-3, 249-50)
770
WOLFF, 2008, p. 175.
771
Por exemplo, em relação ao Salmo 49, ele afirma: “Um salmo de sabedoria que reflete sobre a natureza
transitória da riqueza e do prazer. Não se deve invejar os ricos, pois a sepultura os aguarda, onde seu destino será
o mesmo que o dos animais que perecem. Entretanto, o Paraíso com Yahweh aguarda o homem justo que coloca
sua confiança em Deus, não nas riquezas ou prazeres terrenos.” (DAHOOD, 1965, p. 296).
772
Essa também é a compreensão de WITTE, 2000, p. 554: “Er beschrankt sich darauf, wie der Verfasser von Ps
lxxiii.24-5 mittels des Begriffs ‫ לקח‬auf eine den Tod besiegende Aufnahme in die unzerbruchliche Gemeinschaft
mit Gott zu hoffen (V 16b). Die Henoch und Elia zuteilgewordene Entruckung aus dem irdischen Leben
erscheint hier einerseits demokratisiert, andererseits auf die Zeit nach dem Tod verschoben. Daher trifft die
Wiedergabe von ‫ לקח‬in Ps xlix.16 mit ‘entrucken’ nicht den genauen Sinn, zumal wenn unter ‘Entrukkung’ eine
Herausnahme des Menschen aus diesem Leben unter Umgehung der Todesgrenze zu verstehen ist. Auf die
Ausmalung seiner postmortalen Existenz verzichtet der Beter von Ps xlix. Er beschrankt sich darauf, allein Gott
als die fur seine Erlösung verantwortliche Große zu benennen. Damit signalisiert er, daß fur ihn eine den Tod
überdauernde Gottesgemeinschaft nur im Vertrauen auf Gott selbst möglich ist. Dieses Vertrauen sieht der
Verfasser des Psalms in enger Verbindung mit der Fähigkeit, unterscheiden zu können (v. 21). Der Dichter von
Ps xlix bezeugt so den engen Zusammenhang von Glaube und Verstehen. Glaube erscheint hier - wie in Ps lxxiii
17 und Job xlii 3 - als ein Differenzierungsvermogen im Blick auf Zeit und Ewigkeit, Mensch und Gott, Leben
und Tod.”
115

do seu pensamento, mas também de sua vida. A certeza da fé de que fala não é tanto
o conhecimento do que acontecerá e sim, antes, a força que o transporta e o faz
andar com segurança também onde não vê concretamente o caminho. A certeza de
que pela morte é Outro que decide sobre a vida e não o homem com seu poder....773
Entretanto, parece que o quadro da Bíblia Hebraica, em especial no livro de Salmos,
não manifesta uma visão positiva a respeito da post mortem,774 por isso, os fiéis pediam a
Deus que os livrasse da morte prematura e violenta. O exemplo do fiel sofredor suplicando a
YHWH, em 6.4,5, parece não confirmar a expectativa mencionada pelos pesquisadores
citados acima: “Volta-te, SENHOR, e livra a minha vida; salva-me por tua graça. Pois, na
morte [‫] ַב ָמוֶת‬, não há recordação de ti; no Sheol [‫] ִבשְאֹול‬, quem te dará louvor?”. A Gattung do
Salmo 30 é um Louvor Declarativo do Indivíduo775 e na retrospectiva de sua invocação pela
ajuda de Deus, o salmista expressa a mesma falta de esperança depois da morte no versículo
10[9] (ARA):

Que proveito obterás no meu sangue, quando baixo à cova?


Louvar-te-á, porventura, o pó?
Declarará ele a tua verdade?
Quando o salmista apela para a celebração de YHWH, há aqui um apelo ao interesse
dos seres humanos, que deixam de celebrar o livramento do salmista por Deus. O texto parece
sugerir que a morte implica incapacidade de se relacionar com Deus, de reconhecer quem ele
é e o que faz.776
A vida era central na promessa da aliança de Deus; a morte era o oposto dessa
promessa (Dt 30.15-20) [...] O foco da aliança, em sua forma antiga, era esta vida
como o palco em que a bênção e a prosperidade de Deus poderiam ser
experimentadas; a morte, antes da plenitude dos anos, não era simplesmente a morte
do corpo, mas também o rompimento do relacionamento pactual com Deus. 777
Uma pessoa que estivesse passando por sofrimentos, como perseguição, doenças,
entre outros problemas, já estaria à beira do Sheol (Sl 88.3) ou até mesmo dentro dele (Jn 2.3;
Sl 18.4,5; 30.3; Sl 116.3-6).778
Diante disso, o Salmo 49 parece indicar uma perspectiva distinta dos demais
salmistas? Em primeiro lugar, a raiz verbal ‫“( פדה‬redmir”) foi usada em Salmos como

773
WEISER, 1994, p. 288. Essa
774
Chisholm afirma: “Os salmistas tinham uma visão limitada e pouco negativa da vida após a morte. Para eles, a
morte era uma intrusa indesejável, porque separava das ações reveladoras de Deus e da comunidade de
adoradores” (CHISHOLM, Robert. Uma teologia dos Salmos. In: ZUCK, Roy B. (org.). Teologia do Antigo
Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009. p. 260).
775WESTERMANN, 1980, p. 71-80; PINTO, 2014, p. 469-71.
776
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
777
CRAIGIE, 1983, p. 255.
778
ALTER, Robert . Salmos. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo:
Unesp, 1997. p. 281.
116

referência à salvação de um perigo temporário que ameaçava os salmistas ou a nação, não


implicando uma expectativa de pós-morte.779 No salmo 25.22, o fiel pede a Deus que redima
(‫ )פדה‬sua nação da tribulação específica pela qual ela passava, tirando Israel do seu estado de
sofrimento e humilhação (cf. 25.2,3).
O salmo 34.23[22] declara que “YHWH redime a vida dos seus servos [ַ‫פֹודֶ הַי ְהוָהַנֶפֶש‬
‫( ”] ֲעבָדָ יו‬Sl 34.23[22]; observe-se o paralelo com Sl 49.16: “Deus redimirá minha vida” [ַ‫אֱֹל ִָ֗הים‬
‫)]יִפְדֶ הַנַפְשִ י‬. O que esse resgate implicava? Livrar o fiel de “todas” as suas aflições terrenas (Sl
34.20[19]), preservar a integridade física do justo (“preserva todos os seus ossos”, v. 21[20]) e
trazer “desgraça” (‫)רעָה‬
ָ sobre o ímpio que lhe causaria a morte (v. 22[21]). Não há expectativa
de uma redenção posterior à morte, ao contrário, aguardava-se o livramento da morte
iminente.
Quanto ao uso de ‫לקח‬, os que defendem uma esperança de comunhão com YHWH na
vida além-túmulo no versículo 16 ignoram o fato que o “tomar” (‫ )לקח‬é usado diversas vezes
em outros trechos além das histórias de Enoque e Elias, incluindo o livro de Salmos, para
indicar a libertação da tribulação deste mundo (cf. Sl 18.16[17]; Ez 36.24; 37.21), um
livramento do Sheol ou da maneira que a morte consegue colocar suas mãos sobre o fiel ainda
nesta vida (cf. 16.10; 18.5[6]; 30.3[4]).780 Em especial, o Salmo 18.17,18[16,17] deixa claro
que o ato de “tomar” (‫ )לקח‬implica libertação da ameaça temporária e iminente: “Do alto me
estendeu ele a mão e me tomou [‫[ ]י ִ ָק ֵחנִי‬...] livrou-me de forte inimigo [...] pois eram mais
fortes do que eu”.781
Por fim, David Pleins oferece algumas considerações hermenêuticas que tornam a
interpretação de ‫ י ִ ָק ֵַּחנִי‬como esperança de vida com YHWH além-túmulo bastante improvável:
Acaso o salmista pretende indicar que o ato de Deus o “tomar” aqui se refere a um
livramento da morte como o destino dos verdadeiros sábios? Várias considerações
parecem se opor a essa visão. Como observação geral, podemos sugerir que o
salmista, ao deparar com o sepulcro, está afirmando a sabedoria da redenção divina
acima da tolice dos ricos, da mesma maneira que Qoheleth afirma os prazeres da
vida (com moderação) ao confrontar-se com as negações da morte (cf. e.g. Ec 9.3-
10). […] Além disso, os textos paralelos mais decisivos para a interpretação do
Salmo 49 vêm do próprio Saltério, em especial do Salmo 18.4-20, em que Davi/o
salmista, rodeado pela morte e pelo Sheol, clama a Deus, que age em seu favor, e é
‘tomado’ (yiqqâh nî, 18.17) por Deus, usando exatamente a mesma expressão verbal

779
DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 445.
780
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle). Ver a mesma percepção em DUNN, 2009, p. 212-3: “A
palavra [‫ ]לקח‬é melhor interpretada em referência à redenção da morte nesta vida, remetendo às promessas da
aliança de paz, vida longa e prosperidade”. Observe-se que, embora defenda uma perspectiva de ressurreição no
Salmo 49, David C. Mitchell reconhece, no Salmo 18.6[5], “uma linguagem figurada para o resgate da ameaça
de morte” (MITCHELL, 2006, p. 371).
781
GOULDER, 1982, p. 191-2.
117

que o Salmo 49. Esse ‘tomar’ de Deus é explicado em Salmo 18.17-20 por meio de
várias imagens e expressões relacionadas ao resgate divino diante da destruição
iminente.782
O salmista inicia o versículo 17 retomando a questão do versículo 6: “Por que
ָ ִ‫)ַאל־ת‬.783 O problema que
temerei...” e apresenta a seguinte resposta: “Não temas...” (‫ירא‬
preocupava o justo sofredor no início do salmo diante do poder econômico do ímpio já não o
preocupa mais, pois sabe que a morte cancelará essa distinção.784 O aspecto pessoal do v. 6
parece ter se resolvido com a reflexão dos versículos 8-16, e o autor, então, volta-se a seu
público para apresentar uma exortação com as razões para seguir seu conselho.785 “O que
antes dissera em relação a si mesmo, apresenta agora como orientação para os outros”.786
O versículo 17 reforça a relação entre o enriquecimento dos poderosos e o
sofrimento dos justos, desenvolvida anteriormente nos versículos 6-7.787 A riqueza de homens
que não confiam em YHWH (v. 7) e que se opõem aos justos (v. 6b) aumenta seu poder e lhes
dá condições de oprimir outros.788
“Temer”, da forma como o autor utiliza o termo, significa algo muito mais profundo
que a simples reação ao perigo. Ele fala de um temor que é uma intensa ansiedade
apreensiva a respeito do sentido e do destino da vida, uma preocupação diante da fé
do rico em sua riqueza [...] Esse é um temor que desorienta uma pessoa do único
temor que está associado à fé, o temor do SENHOR (Pv 1.7). 789
Há um pressuposto básico que perpassa a literatura sapiencial: YHWH é o único
digno do temor do fiel. Para os antigos israelitas, o êxito na obtenção de sabedoria não
consistia, simplesmente, em submissão às instruções sábias, mas em “confiança, reverência e
submissão ao Senhor (Pv 1.7; 3.5,6; 9.10), que criou todas as coisas e governa tanto o mundo
da natureza quanto a história (3.19,20; 16.4; 21.1)”.790 “Em Israel, a capacidade de
conhecimento do homem nunca se afastou do fundamento de sua existência total; isto é,
nunca rompeu seu vínculo com Deus para atuar de forma autônoma”.791

782
PLEINS, 1996, p. 23.
783
ESTES, 2004, p. 59-60.
784
BERRY, 1995, cap. 5.
785
DECLAISSÉ-WALFORD; TANNER; JACOBSON, 2014, p. 445; RAABE, 1990, p. 88. Embora não chegue
à mesma conclusão, Terrien examina a possibilidade de que a questão pessoal resolvida torna-se oportunidade
para a exortação pública (TERRIEN, 2003, p. 392).
786
WEISER, 1994, p. 288.
787
“É notável que o poeta sapiencial já veja um perigo ameaçador no ato de enriquecer-se: um perigo que paira
sobre o pobre e constitui um prova dilaceradora para sua fé no Deus justo (cf. Sl 73.2ss.)” (KRAUS,1993, p.
739)
788
NET Bible, 2005, Psalm 49.16, study note 39.
789
MAYS, 2011, p. 192.
790
ROSS, Allen P. Proverbs. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e Co enta . Grand Rapids:
Zondervan, 1991, v. 5. p. 885.
791
VON RAD, 1973, p. 96.
118

Como o temor a meros mortais é oposto ao temor e à confiança em YHWH: “O


medo de seres humanos produz cilada, mas o que confia em YHWH estará protegido”792 (Pv
29.25; cf. 1Sm 15.24), o sábio exorta seus leitores a não temerem o “homem” (‫( ) ִאיש‬Sl 49.17).
A situação que poderia gerar “temor” naqueles a quem o salmista faz sua exortação é
descrita como “se793 um homem alcançar riquezas” (‫)כִי־י ַ ֲעשִר ַ ִאיש‬. O uso de ‫ ִאיש‬aqui tem o
sentido genérico de “ser humano”, “mortal” (cf. Sl 31.21[22] Jó 38.26; Jr 10.24),
possivelmente em contraste com Deus (cf. esp. v. 15-16).794 O sentido básico da raiz verbal
‫ עשר‬no grau hifil é “alcançar riqueza”, “tornar-se rico”, “enriquecer”.795 Em Jeremias 5.26-27,
o verbo ‫ עשר‬é usado em referência a pessoas “perversas” (‫שעִים‬
ָ ‫)ר‬
ְ que “se enriqueceram”
(‫ ) ַויַעֲשִ ירּו‬à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades e os tratando como
um caçador que persegue pássaros. Em Oseias 12.7,8, YHWH condena a nação de Israel por
se enriquecer mediante ações comerciais desonestas (“balanças enganosas” [‫ )]מ ֹאזְנֵיַמ ְִרמָה‬e ao
“oprimir” (‫ )עשק‬os fracos e pobres.796
O aumento da “glória” (‫ )כָבֹוד‬de “sua casa” (v. 17b) é a manifestação concreta de sua
prosperidade. Embora a tradução básica de ‫ כָבֹוד‬seja “glória”,797 o substantivo é usado em
referência às riquezas de Jacó depois de muitos anos de trabalho para Labão (‫כָל־ ַהכָב ֹד ַ ַהזֶה‬
[“toda esta glória/riqueza”], Gn 31.1) ou à riqueza [‫ ]כָב ֹד‬de Nínive em paralelo com “todo
objeto desejável” [‫( ]מִכ ֹלַ ְכ ִַליַ ֶחמְדָה‬Na 2.9); portanto “glória” em Salmo 49.17b é sinônimo de
riqueza.798 O túmulo como ‫“( ַבי ִת‬casa”) futura do rico é contraposto à ‫“( ַבי ִת‬casa”) atual dele,
que é marcada por ‫( כְבֹוד‬lit., “glória”, com a ideia de “riqueza”) (Sl 49.17). Apesar de todo
investimento na “glória” de sua casa terrena, o ímpio terá uma surpresa ao descobrir que sua
“casa” definitiva, a sepultura, não é nada gloriosa.
Contra tudo o que era visível — o crescimento de poder dos ímpios e a intensificação
da perseguição que sofria — o salmista exorta sua audiência a não temer os perversos ricos e
poderosos (v. 17).

792
‫שגָב‬
ֻ ְ ‫ח ְֶרדַ תַָאדָםַי ִתֵּ ןַמֹו ֵּקׁשַּובֹו ֵּטחַַבַיהוָהַי‬. Para a tradução do verbo ‫שגַב‬
ָ no pual por “estar protegido”, ver KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 1306.
793
Para o uso de ‫ כִי‬com sentido de “se” ao introduzir uma oração condicional, ver WALTKE; O’CONNOR,
2006, p. 637, 38.2.d; PINTO, 1998, p. 144, 19.65.
794
ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 49.
795
KIRST et al., 2004, p. 189; GESENIUS, 2003, p. 660.
796
ALLEN, Ronald B. ‫ ָעשַק‬. In: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 705-6; KOEHLER;
BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 897.
797
GESENIUS, 2003, p. 382; GOULDER, 1982, p. 194.
798
DAHOOD, 1965, p. 302; BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 458; RAABE, 1990, p. 78; BRIGGS, 1906,
p. 411-12.
119

Além da razão fundamental dos versículos 15 e 16, o salmista apresenta outro motivo
para não temer os ímpios no versículo 18: “Certamente não tomará tudo [consigo] em sua
morte, não descerá atrás dele sua glória”. Há um fim para a maldade dos ímpios, e toda a sua
riqueza não os acompanhará quando a morte chegar. A imagem deste verseto é a de um
“cortejo” ou grupo de seguidores (‫)ַאח ֲָריו‬: todos os bens que o ímpio acumulou em vida não o
seguirão até a sepultura.799 Eles o abandonarão ali e o deixarão sozinho no Sheol. Já não resta
mais nada das riquezas (“glória”, ‫ )כָבֹוד‬de sua casa que aumentaram (cf. uso repetido de ‫כָבֹוד‬
em v. 17 e 18).
O versículo 18 começa com o uso enfático ou asseverativo da partícula ‫כִי‬:800
“Certamente não tomará tudo [consigo] em sua morte...” (‫)כִי ַֹלא ַבְמֹות ֹו ַיִקַח ַהַכ ֹל‬, e o objetivo
aqui é retomar a mesma afirmação de certeza que havia sido feita anteriormente no versículo
11: “Certamente [...] morrerão [...] serão destruídos”. Assim como é certo que todos os seres
humanos morrem — sejam sábios, sejam insensatos —, também é certo que não tomarão
consigo “todos” os bens que acumularam em vida quando descerem à sepultura.
No antigo Egito, o tema da morte como a partida, em que “a pessoa tem de deixar
para trás tudo o que possui” sem uma perspectiva pós-túmulo,801 é bastante enfatizado nas
canções dos harpistas hereges, que não representavam a visão religiosa tradicional:802 “Veja!
Ninguém tem a permissão de levar seus bens consigo. Veja! Não há ninguém que tenha ido e
retornado!”803
Goulder observou que o tema do tirano que desce ao Sheol de mãos vazias é bastante
enfatizado em Isaías 14: “Tu também, como nós, estás fraco? E és semelhante a nós?” (v. 10,
ARA).804 Nicholas Tromp chamou a atenção para outro texto sapiencial da Bíblia Hebraica
que também transmite a ideia de que na morte o homem que se enriqueceu por meio da
ָ ) (Jó 15.28-31).805
opressão nada levará consigo, sobrarão apenas “ruína” e o “vazio” (‫ׁשוְא‬
A morte põe fim à vida, e a honra e a riqueza não podem ser levadas juntas no final
da jornada. [...] Pode muito bem haver fundamento para não temer a morte, mas a
riqueza e a posição na sociedade são questões irrelevantes quando a morte chega.806

799
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle).
800
Sobre esse uso enfático ou asseverativo de ‫כִי‬, ver GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 498,
§159.ee; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 470; PINTO, 1998, p. 145,
19.67; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 312.
801
ZANDEE, J. Death as an enemy: according to ancient Egyptian conceptions. Leiden: Brill, 1960. p. 55-6.
802
FISCHER, Stephan. Qohelet and ‘heretic’ harpers’ songs. JSOT, v. 26, n. 4, 2002, p. 106-8.
803
LICHTHEIM, Miriam. The songs of harpers. NEAS, v. 4, n. 3, 1945, p. 193.
804
GOULDER, 1982, p. 194.
805
TROMP, 1969, p. 187-8.
806
CRAIGIE, 1983, p. 360.
120

A repetição de termos com finalidade retórica e irônica chama a atenção aqui:


enquanto ’E “certamente” (‫“ )כִי‬tomará” (‫ )לקח‬o fiel para si, redimindo-o do Sheol (v.
16), o homem que alcançou riquezas (v. 17) “certamente” (‫“ )כִי‬não tomará” (‫[ ֹלא‬...] ‫ )י ִ ַקח‬suas
riquezas consigo quando descer (‫ )ירד‬ao Sheol (v. 18).
Conforme a análise de crítica textual do capítulo anterior, deve-se manter a leitura do
TM no versículo 19, ainda que no segundo verseto a tradição textual massorética pareça um
pouco desajeitada (lectio difficilior praestat facilior — uma leitura mais difícil prevalece
sobre uma mais fácil).807 Como Aejmelaeus indica em seu artigo, o uso de ‫ כִי‬no início da
“oração circunstancial” aqui tem, provavelmente, função concessiva: “embora”, “ainda
que”.808
O versículo 19a nos apresenta o homem de posses congratulando/abençoando a
própria ‫נֶפֶש‬, que funciona como pronome pessoal ou pronome reflexivo no primeiro
verseto:809 “Embora em sua vida ele se congratulasse”. É interessante notar que em outro
texto da Bíblia Hebraica, o ato de abençoar/congratular a si mesmo é a característica de um
coração arrogante.810 Deuteronômio menciona um indivíduo que, ao ouvir o anúncio das
maldições da aliança contra os infiéis a YHWH811 (cf. 28.15-68[15-69]), abençoa a si mesmo
em seu coração (‫) ְוהִתְ ב ֵָרְך ַ ִב ְלב ָֹ֤ב ֹו ַלֵאמ ֹר‬: “Haverá paz para mim, ainda que eu persista na
obstinação perversa do meu coração” (‫( )שָלֹוםַי ִ ְהי ֶה־לִיַכִיַ ִבש ְִררּותַ ִלבִי‬v. 19).812
Chama bastante a atenção o uso da raiz verbal ‫ ידה‬na declaração que o rico insensato
diz a si mesmos no v. 19b: “‘Eles te louvam, pois as coisas vão bem contigo’” (ַ‫וְיֹודֻ ָךַכִי־תֵ יטִיב‬
‫)לְָך‬. Este verbo é sempre usado no grau hifil em Salmos para o ato de “louvar” ou “dar graças
a”813 YHWH por suas maravilhas, por sua verdade, seu caráter etc. (Sl 6.5; 7.17; 30.4,12;
35.18; 42.5,11; 43.5; 44.8; 45.17; 52.9; 57.9; 67.3; Sl 79.13; 86.12; 88.10; 89.5; 99.3; 105.1;
106.47; 107.8; 109.30; 111.1; 118.1, 21; 119.62; 122.4; 136.1; 138.1; 139.14; 142.7; 145.10).
807
SIMIAN-YOFRE et al, 2015, p. 67.
808
Cf. AEJMELAEUS, v. 105, n. 2, p. 199, nota 19. Ele afirma que “uma interpretação concessiva pode ser vista
como uma alternativa para a condicional [...]. Particularmente, só não se pode dizer que ‫ כי‬tem a função de
introduzir concessões reais que envolvam um contraste marcante em relação à oração principal. A tradução
concessiva de uma oração introduzida por ‫ כי‬é, portanto, sempre um caso especial da condicional e um resultado
da exegese.” (p. 199). Cf. RAABE, 1990, p. 78. Sobre a função concessiva de ‫כִי‬, ver WILLIAMS, 1976, p. 73,
88, § 448, 530
809
WOLFF, 2008, p. 52-5.
810
GOULDER, 1982, p. 194.
811
‫שמְע ֹוַ ֶאת־דִ ב ְֵריַהָָאלָהַהַז ֹאת‬
ָ ‫ְו ָהי ָהַ ְב‬
812
KALLAND, 1991. p. 182. Ver o sentido negativo de ‫ש ִררּות ַ ִלבִי‬
ְַ ‫ ִב‬em Jr 3.17; 11.8; 13.10; 16.12; 23.17; Sl
81.12 [BHS 81.13] (cf. KALLAND, 1991, p. 184; C. F. KEIL, F. DELITZSCH, 1996, v. 3, p. 449).
813
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 389; BROWN; DRIVER;
BRIGGS, 1977, p. 392; HOLLADAY; KÖHLER, 2000, p. 128.
121

Fala-se até de “confessar” os pecados a Deus (32.5). Em todas as demais passagens de


Salmos, Deus é sempre o foco do louvor, jamais o homem. Entretanto, Salmo 49.19 é a única
passagem do Saltério em que pessoas “louvam” um “ser humano” mortal. O verseto do
versículo 19b “é uma paródia da frase recorrente: ‘Louvai a YHWH, pois ele é bom’ (Sl
106.1; 107.1; 118.1,29)”.814
A linguagem do “louvor” é o ápice de uma série de termos teológicos significativos
usados em referência a YHWH, mas que no Salmo 49 são invertidos pelos ricos ímpios:
O salmista utilizou cinco palavras que são geralmente atribuídas à adoração de
YHWH à medida que descreveu a exaltação sem fundamento daqueles que são ricos
[...] Ao dar às suas posses a confiança, o louvor, a honra e as ações de graças que os
salmos em outras passagens dirigem a Yahweh, os ímpios estão de fato elevando seu
ouro [gold] à posição de Deus [god] [...] Ao usar termos teologicamente
significativos como ‫ ָבטַח‬, ‫ ָהלַל‬, ‫כָבֹוד‬, ‫ ב ַָרְך‬e ‫ידה‬, o salmista transmitiu claramente sua
mensagem de que os ímpios estão buscando de maneira vã usurpar as prerrogativas
que pertencem somente a Yahweh.815
Esse homem rico e poderoso passa a dar ouvidos ao que as pessoas dizem (“eles te
louvam”) (v. 19b), em vez de escutar com atenção o que a sabedoria tem a dizer: “Escutai
isto, todos os povos! Dai ouvidos, todos os habitantes do mundo! [...] Minha boca falará
sabedoria, e a meditação do meu coração [transmitirá] entendimento” (v. 2, 4). Como
declarou Craigie: “uma pessoa ‘abençoada em sua vida’ (v. 19a) talvez adote com facilidade
uma falsa confiança no que diz respeito à morte porque o louvor em tempos de prosperidade
alimenta essa confiança (v. 19b)”.816
Entretanto, o rico insensato está profundamente enganado, como a oração concessiva
do versículo 19a deixa entrever. A aparente tranquilidade e prosperidade (“... as coisas vão
bem contigo”, v. 19b) é repentinamente substituída pelo quadro de seu destino final: “Ele817
irá até a geração de seus pais...” (v. 20a).
A ideia de ser reunido aos pais (‫ )ַַוי ֵָּאסֶף ַאֶל־ ֲאבֹותָ יו‬é um eufemismo para a morte e
ressalta a condição mortal de todas as gerações,818 embora não seja totalmente negativa na
Bíblia Hebraica. Como Nicholas Tromp observou, essa expressão é autenticamente antiga e se

814
RAABE, 1990, p. 78.
815
ESTES, 2004, p. 66.
816
CRAIGIE, 1983, p. 360.
817
O sujeito aqui é entendido como o substantivo feminino ‫ נֶפֶש‬do versículo 19 (ver NET Bible, 2005, Psalm
49.19, translator note 42; RAABE, 1990, p. 78). Goulder também propõe ‫ נֶפֶש‬como o sujeito da construção do
TM (“ela [a alma] irá”), o que é plausível à luz de outro trecho do Saltério em que alma corre o risco de ser
lançada ao Sheol: ‫“( ֹלא־תַ עֲז ֹבַנַ ְפשִיַ ִלשְאֹול‬não abandonarás minha ‫ נֶפֶש‬no Sheol”, Sl 16.10a) (GOULDER, 1982, p.
194). Observe-se que Goldingay também pensa ser absolutamente possível a leitura de ‫ נֶפֶש‬como sujeito de ‫תָ בֹוא‬
(GOLDINGAY, 2006, psalm 49, nota 17 [edição kindle]).
818
ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677.
122

referia à união dos falecidos com seus antepassados no Sheol, que precedia o enterro
propriamente dito:819 “Expirou Abraão; morreu em ditosa velhice [...] e foi reunido ao seu
povo. Então, sepultaram-no Isaque e Ismael, seus filhos, na caverna de Macpela...” (Gn
25.8,9). Ela pressupunha, ainda que antecedesse, o enterro digno ao lado dos familiares (Gn
15.15; 49.29; Jz 2.8-10).820
O problema ressaltado no versículo 20a é que a morte chega cedo demais para os que
confiam em suas riquezas ou vivem desavisados e despreocupados com ela. “É um destino
terrível fazer o bem para si mesmo e, depois, descobrir-se de repente na companhia dos
ancestrais sem ter tido a chance de desfrutar de suas realizações”.821
No segundo verseto do versículo 20, o salmista declara uma realidade tenebrosa:
“não verão a luz para sempre” (‫)עַד־נֵצַח ַֹלא ַי ְִראּו־ ֽׁאֹור‬. Janet K. Smith registra dezenove
referências metafóricas à “luz” no livro de Salmos, entre elas: vida (Sl 56.13), presença divina
(Sl 89.15), a Torá (119.105, 130), orientação/verdade divina etc.822 A figura de “ver a luz”
indica a salvação que Israel receberá de Deus após experimentar um período de tribulação (Is
9.2) ou que o indivíduo experimentará da parte de YHWH diante da perseguição de seus
inimigos (Sl 27.1).823 “Ver a luz” é sinônimo de vida e vigor, frutos da benevolência de Deus
(Sl 36.8-10 [7-9]). Crianças que nunca “viram a luz” são natimortos, que nascem sem vida (Jó
3.16). “Ver a luz” é ter a vida salva da morte prematura (Jó 33.28). Diante da temática da
morte que percorre todo o Salmo 49, desde a impossibilidade de redenção (v. 8-11), passando
pela descrição dos insensatos e brutos ricos no Sheol (v. 15), até a afirmação de que eles
descerão de mãos vazias à sepultura (v. 18), é provável que “não verão a luz” seja uma
referência à ausência de vida neste mundo.824
Na sepultura, já não resta mais esperança de salvação ou de vitalidade para aqueles
que apostaram tanto em seus bens. Quando o sepulcro for fechado, o cadáver não mais verá a

819
TROMP, 1969, p 168-9.
820
MARTIN-ACHARD, 2015, p. 47.
821
GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle).
822
SMITH, 2011, p. 132.
823
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 25.
824
CRAIGIE, 1983, p. 360; ALONSO SCHÖKEL; CARNITI, 1996, p. 677-8. BRIGGS, 1906, p. 412: “não
verão a luz, que brilha neste mundo, mas não brilha na caverna escura e sombria do Sheol, ou sua Cova,
decadência para a qual o rico deve ir”. WEISER, 1994, 289: “Encaminham-se para a noite eterna, não para a luz,
pois não há nenhuma esperança para além da morte”. Parece muito pouco provável que o foco de “ver a luz”
aqui seja a “imortalidade” ou “a luz da face de Deus nos campos da vida”, como propõe Dahood (DAHOOD,
1965, p. 303), seguido por Janet Smith (SMITH, 2011, p. 132). Ver KOEHLER; BAUMGARTNER;
RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 24: “‫ = ָרָאהַא׳‬estar vivo Sl 49.20”.
123

luz, assim como seus antepassados, e isso será “para sempre” (‫)עַד־נֵצַח‬, um caminho sem volta
(2Sm 12.23).825 Eles não o podem salvar, na verdade, o abandonam ali na sepultura.

2.6. Refrão: O homem em esplendor e sem entendimento perecerá como os animais


(v. 21)

Pois um ser humano em esplendor não entende


É semelhante aos animais que perecem.

Assim como na primeira ocorrência do refrão (v. 13), o versículo 21 está estruturado
em um paralelismo progressivo826 ou de especificação/intensificação,827 em que a ideia geral é
transformada em uma imagem concreta, mais penetrante e enfática: a afirmação de que o ser
humano “não entende” é reforçada e enfatizada com a imagem dos “animais que perecem”.
Conforme discutido na seção de crítica textual, não há necessidade de se fazer
emendas para tornar os dois refrões exatamente iguais.828 Há certo complemento no emprego
de raízes verbais distintas, em que o uso de duas descrições com som semelhante (‫ יָלִין‬e ‫)יָבִין‬829
torna ainda mais trágica a situação do “ser humano em esplendor” (‫ָאדָ ם ְבִיקָר‬, v. 13,21). O
grande problema dos ímpios ricos não é somente o fato de eles perecerem como os animais (v.
13), mas também sua condição sem entendimento, rebaixando-se ao nível dos seres
irracionais.
A assonância entre ‫( יָלִין‬v. 13) e ‫( יָבִין‬v. 21) desempenha um papel fundamental no
desenvolvimento temático do salmista. O primeiro refrão resume o conteúdo dos
versículos 6-11, em que a presunção arrogante daqueles que confiam em sua riqueza
é subvertida. Portanto, o homem em sua pompa, como os animais que perecem, não
permanecerá (‫)בַל־יָלִין‬. A segunda referência segue os versículos 14-20, em que Deus
redime e recebe o justo, isto é, aqueles que têm entendimento espiritual. Portanto, o
versículo 21 é uma conclusão apropriada: em contraste com o justo que desfruta o
favor de Deus, “o homem em sua pompa, mas sem entendimento” (‫)ֹלאַיָבִין‬, é como
os animais que perecem”. A mudança de uma única consoante indica que a posse de
entendimento ensinado no salmo [...], embora facilmente ignorada pelos ricos tolos,
tem consequência eterna definitiva.830

825
GOLDINGAY, 2006, psalm 49 (edição kindle).
826
OSBORNE, 2009, p. 290; KÖSTENBERGER; PATTERSON, 2014, p. 242-3.
827
Categoria desenvolvida por ALTER, 2011, p. 21ss.
828
GOULDER, 1982, p. 190; cf. BRIGGS, 1906, p. 409. GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle):
“Em relação à homogeneidade dos refrões, é verdade que as antigas versões — e os intérpretes modernos tendem
a adaptar um verbo ao outro. As expressões relevantes no Salmo 49, ba - , “ele não permanecerá” (v. 13), e
’ b n, “ele não entenderá” (v. 21), realmente são muito semelhantes em som e na escrita. Portanto, é mais
difícil explicar as diferenças [observe, aqui, e lectio difficilior] no vocabulário, e podemos considerar essas
diferenças como sendo mais provavelmente originais. Ademais, poesia não é tão rigidamente fixa a ponto de
proibir pequenas variações nos refrões, especialmente se um cântico é apresentado por um cantor como no caso
do Salmo 49.” Ver também SAUR, 2015, p. 192-3.
829
DUNN, 2009, p. 210; RAABE, 1990, p. 79.
830
ESTES, 2004, p.70.
124

Se o rico insensato tivesse dado ouvidos à sabedoria e ao “entendimento” (‫( )תְ בּונֹות‬v.
4) proposto no início do salmo, certamente ele não seria alguém que “não entende” (ַ ‫וְֹלא‬
‫)יָבִין‬.831 “A tolice dos ricos e poderosos consiste de fato na falta de ‘entendimento’; por não
entenderem plenamente as dimensões da morte, é inevitável que eles também não entendam
de modo pleno as dimensões da vida”.832
Como ressaltado por Donald K. Berry, a raiz verbal ‫“( בִין‬entender”) e seus termos
derivados se aplicam às ações de Deus na criação e preservação do mundo (Jó 26.12; Pv 3.19)
e auxiliam a pessoa sábia a distinguir entre a tolice e a sabedoria e entre a impiedade e a
retidão, tornando-se o objetivo final do estudante da sabedoria (Pv 2.3 com Jó 28.12).833
Novamente, “entender” implica muito mais que um exercício intelectual, significa
também, e principalmente, um caráter íntegro e obediência a YHWH:834 “Os homens maus
não entendem [‫ ]יָבִינּו‬a justiça, mas os que buscam YHWH entendem [‫ ]יָבִינּו‬tudo” (Pv 28.5).
Em Isaías 6.9-11, a indisposição da nação de Israel em “entender” (‫ )בִין‬a mensagem
anunciada pelo profeta os impediria de ser converter de seus maus caminhos e, assim,
receberiam o juízo divino de cidades “desoladas” e uma terra totalmente “assolada”. 835 Em
Salmos 92.6-8, o “insensato” (‫) ְכסִיל‬836 “não entende” (‫)ֹלאַיָבִין‬837 (v. 7) de modo proposital as
“obras de YHWH” (v. 6) e, assim, age como “os ímpios” (‫שעִים‬
ָ ‫)ר‬
ְ e pratica a “maldade” (‫;)ָאוֶן‬
por isso, “serão destruídos para sempre” (‫שמְדָ םַעֲדֵ י־עַד‬
ַָ ‫) ְל ִה‬.
No Salmo 49, não é diferente: a constante recusa do rico “insensato” (‫( ) ְכסִיל‬v. 11)
em entender (‫( )ֹלא ַיָבִין‬v. 21) resulta no triste destino (‫זֶה ַדַ ְרכָם‬, “este é o destino”, v. 14) da
morte repentina (v. 15), “como os animais [que] perecem” (v. 21).

831SAUR, 2015, p. 193-4.


832
CRAIGIE, 1983, p. 360. Derek Kidner observa: “Conclama-se à coragem e à fé com visão clara; e o estribilho
final apresenta sua lição ao mudar de modo deliberado sua forma anterior [...]: ‘O homem, revestido de
honrarias, mas sem entendimento, é antes como os animais que perecem’” (KIDNER, 1980, p. 206).
833
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).
834
ROSS, 1991, p. 1103.
835
Ver análise desse texto em SMITH, Gary V. Isaiah 1–39. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2007. p.
194ss; CHILDS, Brevard. S. Isaiah. Louisville, London: Westminster John Knox, 2001. p. 56ss.
836
Cf. o mesmo termo em Sl 49.11.
837
Cf. o mesmo termo em Sl 49.21.
125

3. SABEDORIA, RIQUEZA E OPRESSÃO: O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL


DO SALMO 49

3.1. O “consenso” da datação pós-exílica do Salmo 49: uma exposição crítica


Há algum tempo, estabeleceu-se um “consenso” de que os salmos sapienciais são por
natureza pós-exílicos838 e teriam sido produzidos por escribas judeus do período do segundo
templo, que se consideravam os herdeiros dos profetas e antigos salmistas.839 Essa ideia
desenvolvida por Mowinckel de uma “salmografia erudita”840 com perspectiva mais
racionalista e produzida por um grupo de sábios escribas de época posterior841 tem sido
pressuposta nas análises de eruditos posteriores,842 embora cada vez mais se rejeite a
concepção de que esses salmos sapienciais não tiveram “origem nos cantores do templo, mas
eram de uma natureza realmente particular, sem mais alguma relação direta com o culto”.843
A leitura do comentário de Gerstenberger revela a aceitação da tese de Mowinckel de
que os salmos de sabedoria são pós-exílicos:
Sua aparência transformada e sua mensagem diferente devem-se unicamente às
condições alteradas de adoração durante o Exílio e posterior a ele. A estrutura
política e social de Israel havia mudado. Temos de visualizar as comunidades de
judeus espalhadas por todo o mundo, não mais desfrutando a proteção de seu estado
nativo.844
No entanto, há um aspecto de outra profissão que desempenhou um papel
significativo na reconstrução da época pós-exílica [...] sem a dedicação dos escribas
à Lei de Moisés, Israel não teria se recuperado. O próprio Esdras era um escriba (Ed
7.1-10; Ne 8.4) e quem deveria ler a torá (Ne 8.4; v. 2 indica que ele era um

838
Sobre esse tema, ver a análise de DELL, 2004a, p. 452-3; GOULDER, 1982, p. 182-3.
839MOWINCKEL, 1969, p. 208; MOWINCKEL, 2004, p. 211-3.
840Expressão criada em MOWINCKEL, 1969, p. 208.
841MOWINCKEL, 2004, p. 93-4.
842KRAUS, 1993, p. 734-7, por exemplo, entende que o salmo é tardio (pós-exílico) e expressa uma esperança de

vida pós-morte dos pobres que sofrem sob a opressão dos ricos. O autor é um pobre que aguarda ser resgatado da
morte, em contraste com o destino do ímpio. Gerhard von Rad aceita, sem uma análise crítica profunda, tanto a
ideia de que os salmos são pós-exílicos quanto a visão de que eles estavam dissociados do culto: “Em qualquer
caso, o ‘Sitz im Leben’ desses poemas não pode estar no culto. [...] O círculo ao qual pertencem esses salmos às
vezes é mais amplo e, em outras, mais restrito, o que não deve surpreender, tendo em vista a ausência de
características exatas no que diz respeito ao gênero. Claramente, estamos aqui diante de uma espécie de poesia
escolar, que foi apresentada aos alunos nos tempos pós-exilicos. Também é possível que os sábios tenham
escrito esse tipo de oração visando à própria edificação” (VON RAD, 1973, p. 71-2 [itálico acrescentado]). Da
mesma forma, Leopold Sabourin aceita as conclusões de Mowinckel, sem questioná-las: “O problema, na
exegese de salmos, [...] não são os salmos cultuais, mas os não cultuais [...] originados nos círculos dos ‘sábios’,
os líderes eruditos das ‘escolas de sabedoria’. Na mais tardia salmografia, dissociada de situações claras de culto,
os escritores erutidos tentaram aderir às antigas regras de composição, mas sem muito sucesso...” (SABOURIN,
1974, p. 371).
843MOWINCKEL, 1969, p. 211. Ver as críticas a essa ideia em SNEED, 2011, p. 61-4; DELL, 2004a, p. 445-51.
844
GERSTENBERGER, 1988, Introduction to cultic poetry 4.f. (edição kindle).
126

sacerdote também). Como Esdras, inúmeros escribas devem ter se ocupado em


copiar e proclamar a lei nas comunidades judaicas pós-exílicas. [...] O conteúdo e a
forma dos salmos de sabedoria do AT e a literatura sapiencial pós-canônica revelam
o ativo envolvimento desses homens eruditos com as questões litúrgicas.845
Uma das razões para datar os salmos sapienciais, em especial o capítulo 49, no
período pós-exílico é a estratificação social entre ricos e pobres refletida de modo muito claro,
por exemplo, no livro de Neemias (Ne 5.1-13). Aqui, há uma discussão sobre qual seria o
grupo responsável pela produção. Pleins relaciona a crítica à riqueza dos salmos sapienciais
(esp. Sl 49 e 73) com um período sacerdotal pós-exílico, em que houve uma fusão dos papeis
de sábios, profetas e sacerdote e em que os textos de sabedoria passaram a proclamar a mesma
justiça social dos profetas pré-exílicos.846 Gerstenberger associa os salmos de sabedoria às
classes mais baixas da hierarquia profética, aos levitas e aos escribas, que assumiram o papel
de aconselhar indivíduos e grupos em aflição e passaram a defender a causa desses
marginalizados.847
Rainer Albertz elaborou a tese, seguida por Spangenberg, de que havia dois grupos
de classe alta no período pós-exílico. O primeiro grupo desfrutava de sua posição e era
indiferente ao pobre, fazendo empréstimos a juros altos e tirando proveito da crise econômica
(Ne 5.7; Ml 3.5). O segundo era representado por Neemias, compassivo com os pobres e
buscava aliviar o sofrimento deles, mesmo que isso afetasse suas condições financeiras
pessoais (Ne 5.9,15).848 Segundo os estudiosos, o autor do Salmo 49 fazia parte do segundo
grupo e escreveu sua reflexão poética tanto como um encorajamento para os ricos piedosos,
que não colocavam sua confiança na fortuna (v. 8,16), quanto como uma crítica aos ricos
indiferentes aos pobres e que os oprimiam, colocando sua confiança nas riquezas, mostrando-
lhes que a riqueza é passageira e a morte é inevitável (v. 11,18).849

845
GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.1 (edição kindle, itálico acrescentado).
846PLEINS, 2003, p. 432-7.
847GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle).
848ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9.
849ALBERTZ, 1999, p. 675-7; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9. Observe-se que essa tese também é seguida por

Tércio M. Siqueira em seu Comentário de Salmos (no prelo): “ [A] linguagem deste salmo é própria de uma
facção da classe alta da comunidade dos judeus, no período pós-exílico. Esta classe compunha-se de dois grupos:
(a) os judeus funcionários públicos ligados ao Império Persa e proprietários de terra cujas mentalidades
individualista desenvolvia uma prática religiosa bastante arrogante e egoista; (b) judeus, também membros da
classe alta, que expressavam uma prática piedosa voltada para os pobres e explorados. O Salmo 49 é fruto da
crise social que caiu sobre a comunidade dos judeus, na segunda metade do século V aC (cf. Sl 37, 52, 62, 73, 94
e 112). A reportagem do capítulo 5 do livro de Neemias expõe o estado do conflito vivido pela sociedade
judaica. Evidentemente que o autor do Salmo 49 encontra-se entre os que praticavam a lealdade para com as
famílias pobres. Por isso, é muito significativo observar que na comunidade judaica existia pessoas sensíveis à
situação dos pobres. A intenção do salmista era desafiar, no Templo, a posição dos bem-abastados judeus que
negavam às instruções da Torá. [...] Essa crise social, do século V aC, fez produzir uma rica literatura que
127

Além do tema da estratificação social como razão para uma datação pós-exílica,
David Pleins também elabora um quadro em que pressupõe certo desenvolvimento de crítica
social da literatura de sabedoria. Ele afirma que as máximas dos mestres da elite urbana do
livro de Provérbios não estabelecem uma crítica social como fizeram os profetas pré-exílicos,
mas estimulam apenas a prática da caridade (Pv 14.31; 19.17; 21.13; 22.9), relacionando a
pobreza com a preguiça (Pv 6.6-11; 10.4; 12.11; 19.15; 20.4) e mantendo as distinções de
classes socioeconômicas (Pv 14.31; 17.5).850 Pleins argumenta, então, que é apenas no
período exílico/sacerdotal, com os livros de Jó, Eclesiastes e o Salmos 49 e 73, que os sábios
passam a criticar o caráter efêmero das riquezas e a defender a ideia de que justos sofrem nas
mãos dos ímpios.851
Essa oposição entre a antiga tradição sapiencial e os grupos proféticos e sacerdotais
pré-exílicos é bastante enfatizada por R. B. Y. Scott, que vê os sábios do período monárquico
como “orientados para o indivíduo”, com um foco secular e mantendo-se indiferentes à
preocupação de “sacerdotes e profetas com a ‘história da salvação’”.852 Segundo o estudioso,
foi somente no período pós-exílico que as três correntes religiosas e teológicas dos profetas,
sacerdotes e sábios foram combinadas em uma “simbiose” de piedade com a antiga tradição
sapiencial e produziram textos como os salmos de sabedoria.853
Embora seja bastante atraente a tese elaborada por Mowinckel e desenvolvida por
estudiosos posteriores acerca dos salmos de sabedoria, em especial o 49, como pós-exílicos,
refletindo conflitos socioeconômicos tardios, um desenvolvimento religioso na crítica social e
uma aproximação das outras tradições, ela tem várias fraquezas e não se impõe como uma
tese definitiva.
Primeiramente, a estratificação social que produzia temor nas pessoas quando “um
homem alcançar riquezas” (Sl 49.17) e que era fruto da “maldade” dos que “confiam” nas

representou um poderoso desafio ético-religioso em toda a comunidade. Evidentemente que foram os sábios que
agiram em defesa dos explorados pela classe alta do povo judeu. Os sábios não foram os únicos que operaram
em favor pobres (cf, Ne 5).” (SIQUEIRA, Salmo 49 [no prelo])
850PLEINS, 1987, p. 61-78.
851PLEINS, 2001, p. 432-7. John Day apresenta basicamente a mesma concepção que Pleins acerca da divisão de

dois tipos de literatura de sabedoria, sem uma dependência direta. Segundo ele, havia uma abrodagem mais
“ortodoxa”, em que os principais representantes eram o livro de Provérbios e os Salmos 1 e 112, e uma
abordagem “questionadora”, cujos textos representativos eram Jó, Eclesiastes e os Salmos 49 e 73 (ver DAY,
1990, p. 55).
852SCOTT, 1971, p. 17-20.
853SCOTT, 1971, p. 190-2 (cf. p. 17-18).
128

riquezas (49.6,7) não se constitui exclusividade da era pós-exílica, mas ocorre em vários
textos da bíblia Hebraica como uma realidade pré-exílica.854
Isaías de Jerusalém, por exemplo, retrata de forma vívida o conflito socioeconômico
e critica a ampliação egoísta de latifúndios na segunda metade do século VIII A.E.C:855 “Ai
dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam
como únicos moradores no meio da terra!” (Is 5.8, ARA). Da mesma forma, Miqueias,
originário de uma aldeia do interior em Judá, expõe os problemas de corrupção e injustiça
praticados pelos dirigentes da nação: “Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus
sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se
encostam ao SENHOR, dizendo: Não está o SENHOR no meio de nós? Nenhum mal nos
sobrevirá” (Mq 3.11, ARA).856

Sem dúvida, as imagens plásticas dos profetas ficaram na memória, jamais


esquecidas nem perdoadas: a comparação das mulheres da elite com vacas gordas de
Bashan (Am 4.1), as descrições daqueles que ficam estirados e se banqueteiam nas
camas (Am 2.8; 6.4ss.; Mq 2.2), a insaciável cobiça por mais terra e mais posses
(Mq 2.2s.; Is 5.8).857
O historiador deuteronomista revela que o uso da máquina pública para oprimir o
povo comum já estava presente desde os primórdios da monarquia instituída em Jerusalém,
com os excessivos encargos tributários sobre a nação, os trabalhos forçados 858 e a
concentração de construções e riqueza na capital e com a elite política (cf. 1Sm 8.10-18; Jz
9.7-15; 1Rs 4.7-19; 5.13-14; 7.1-12; 10.14-22; 11.28; 12.1-17).859 O “Estado tributário que
inicialmente nascera com funções públicas de organização e defesa passa, pouco a pouco, a
ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a
exploração”.860

854GOTTWALD, 2001, p. 233-4. O próprio Gerstenberger reconhece que a estratificação econômica e a crise
social já haviam começado no período monáquico: “Por causa de seus interesses econômicos e militares
centralizados, a monarquia deu oriem a um feudalismo que explorava cruelmente os pequenos proprietérios de
terra e o proletariado urbano e agrário (Am 2.6-8; 5.11,12; Is 5.8-10)” (GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2
[edição kindle]).
855GOLDINGAY, 2001, p. 53.
856KAEFER, 2015, p. 98-9; LIVERANI, 2014, p. 201. Veja a crítica social contra o latifundiarismo proferida por

Miqueias: “Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas, as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua
casa, a uma pessoa e à sua herança” (Mq 2.2).
857CRÜSEMANN, 2009, p. 161.
858VAUX, 2004. p. 173-5.
859BRINDLE, 1984, p. 223-30; MERRIL, 2003, p. 338-9.
860DA SILVA, 2011, p. 24-5.
129

Essa opressão continuou até o fim da monarquia antes da conquista definitiva de


Babilônia, como fica evidente na crítica do profeta Jeremias a Jehoaquim861 por sua “gestão
de poder”, movida por ganância e expressa na prática da injustiça e opressão (Jr 22.13-19).862
Em Jeremias 5.26-27, o profeta faz referência a pessoas “perversas” (‫שעִים‬
ָ ‫)ר‬
ְ que “se
enriqueceram” (‫שירּו‬
ִ ‫ ) ַוי ַ ֲע‬à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades e os
tratando como um caçador que persegue pássaros.863 “Os pecados eram tanto de omissão
judicial quanto de ordem econômica. Apesar da posição social de poder que os perpetradores
desfrutavam, eles deixaram de defender a justiça”, pois “fecharam os olhos para as decisões
erradas” e nada fizeram para assegurar “direitos legais dos membros marginalizados da
comunidade”.864
Portanto, não há como estabelecer uma datação pós-exílica para o Salmo 49 com
base nas crises sociais da comunidade à qual o salmista se dirige, pois elas também exisitiram
de forma abundante e intensa no período monárquico de Judá. Assim, resta analisar o
argumento socioreligioso em favor da autoria pós-exílica.
A concepção de que o movimento sapiencial pré-exílico esteve em constante conflito
com o movimento profético,865 distante do âmbito do culto,866 com um foco secular e
mantendo-se distante “dos interesses e métodos das tradições proféticas e sacerdotais
religiosamente dominantes”,867 tem sido questionada há algum tempo.
Em sua obra sobre a escola deuteronomista do templo de Jerusalém no século VII
A.E.C., Moshe Weinfeld indicou as estreitas ligações entre a literatura sapiencial e a teologia
deuteronômica, a qual ele entendia estar ligada aos sacerdotes do templo de Jerusalém e ser a
base da reforma josiânica.868 André Lemaire também observa que “em Israel, assim como em
outras nações do Antigo Oriente Próximo, a sabedoria não era irreligiosa. Ao contrário, o

861Aqui, em vez de seguir as traduções de ARA ou da BJ, estabeleço uma tradução/transliteração aproximada
para o nome de ‫י ְהֹויָ ִַקים‬, designando-o Jehoaquim. Seu filho será traduzido/transliterado por Jehoakin.
862LIVERANI, 2014, p. 229; CRÜSEMANN, 2009, p. 172-3.
863
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 897; ALLEN, ‫ ָעשַק‬, in: HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1999, p. 705-6.
864ALLEN, 2008, p. 81.
865WHYBRAY, 1972, p. 9-10.
866VON RAD, 1973, p. 71-2; MOWINCKEL, 1969, p. 208-11.
867SCOTT, 1971, p. 17-20; ver PEINS, 2001, p. 436-7.
868WEINFELD, 1972, p. 244-281. Em um trecho do livro, após fazer várias comparações entre a textos da

tradição sapiencial e o Deuteronômio, ele conclui: “Vimos, portanto, que, em todos os casos em que as pasagens
deuteronômicas tem paralelos claros e literais com a literatura de sabedoria, as prescrições sapienciais
demonstram estar em um contexto original e mais natural. Portanto, podemos apenas concluir que foi o livro de
Deusteronômio quem adotou o material temático específico da literatura de sabedoria, não o contrário” (p. 274).
130

comportamento religioso (‘o temor do Senhor’) desempenhou um papel dominante na


sabedoria tradicional”.869
Por ser a obra sapiencial reconhecidamente mais antiga, remontando em grande parte
ao período monárquico,870 o livro de Provérbios apresenta claros exemplos de como os sábios
do período pré-exílico estavam preocupados e envolvidos com a vida cultual de Israel. Uma
das máximas sapienciais critica o adorador que apresenta um sacrifício sem um caráter
íntegro: “O sacrifício dos perversos é abominável ao SENHOR, mas a oração dos retos é o seu

869LEMAIRE, 1990, p. 178.


870Vários estudiosos têm reconhecido a natureza palaciana de grande parte das máximas de Provérbios e sua
identificação com obras bem antigas do Egito e da Mesopotâmia que também estavam ligadas ou à monarquia ou
às escolas nos templos. Depois de um estudo profundo sobre o contexto social e teológico de Provérbios,
Katharine Dell reconhece que as seções 10.1—22.16; 22.17—24.22; 25—29; 30.1-14; 31.1-9 expressam
claramente um contexto palaciano (DELL, 2006, p. 88-9; 195-197) e que mesmo Provérbios 30.15-33, cujas
máximas refletem uma sabedoria da natureza, remontam ao tipo de sabedoria cultivada por Salomão em 1Rs
4.31-34 (DELL, 2006, p. 89). Então, ela conclui que a seção acrescentada por último no livro (Pv 1—9) tem
relação muito próxima com o movimento deuteronômico, o que indica uma coleção sapiencial editada entre o
período do século VII e o exílio; ela diz: “Entretanto, eu argumentaria aqui que nenhuma parte de Provérbios 1—
9 precisa ser datada bem depois do exílio” e ainda acrescenta que o exílio seria o “terminus ad quem para a
produção dessa seção e possivelmente a de todo o livro” (DELL, 2006, p. 196). Em outro texto, ela admite a
possibilidade de que os capítulos 1—9 tenham sido reunidos/editados no exílio ou imediatamente posterior a ele,
porém, sugere que boa parte desse trecho origine-se do período monárquico (DELL, 2009, p. 229-240)
Christopher Ansberry publicou sua pesquisa de doutorado sobre o livro de Provérbios em que compara o
propósito dos textos didáticos do Egito e da Síria/Mesopotâmia com os do antigo Israel. Ele mostra como as
obras egípcias, bem como as mesopotâmicas, visavam à preparação daqueles que trabalhariam na corte, portanto,
foram produzidos, em sua maioria no contexto da elite palaciana. Ele examina as várias seções do livro de
Provérbios e conclui que, devido ao contexto do discurso, o desenvolvimento do material e as ênfases temáticas,
a obra pode ser considerada o documento palaciano que servia para “prover o sensus communis ao jovem
palaciano ingênuo a fim de transformar sua disposição moral, introduzi-lo aos valores básicos os valores do
mundo sociorreligioso e lhe apresentar uma visão perspicaz de vida em suas várias dimensões” (ANSBERRY,
2011, p. 187). André Lemaire também defende um contexto social palaciano para o livro de Provérbios:
“Embora a data final do Livro de Provérbios ainda seja tema de debate, a influência da ‘Instrução de
Amenemope’ sobre Provérbios 22.17—23.12, bem como a importância de outros contatos literários com a
tradição de sabedoria do Egito, poderia ser melhor explicada por um contexto tanto no período salomônico
quanto no reinado de Ezequias. Ademais, em minha avaliação, esse livro é melho entendido como um ensino de
sabedoria transmitido no contexto de uma escola, mais preciamente uma escola monárquica, durante o período
do primeiro templo” (LEMAIRE, 1990, p. 172). Ver ainda a mesma conclusão de Bruce Waltke quanto à data
pré-exílica e o contexto palaciano: “As admoestações e provérbios no texto bíblico também parecem ter
originado-se nos lares cortesãos [...] Além disso, os temas de Provérbios se encaixam melhor nesse contexto.
Alguns deles são mais apropriados para os reis e para aqueles associados com eles, e.g., provérbios relacionados
à nação (11.14) ou ao rei (16.10; 20.2); jantares com a realeza (23.1-3); comportar-se de um modo digno de um
rei (31.4)” (WALTKE, 1979, p. 231-2). J. A. Loader, embora não atribua o processo de compilação e redação de
Provérbios à nobreza, reconhece que as coleções do livro foram reunidas e escritas por uma “classe de
profissionais” que trabalhava na corte real: “Redatores como os ‘homens do rei’ tinham propósitos específicos
com a seleção, edição e transmissão dos provérbios. Seria uma surpresa se isso [o material coletado] não
demonstrasse seu trabalho, isto é, tanto na forma do livro quanto nos provérbios individuais como temos hoje.
Particularmente, espera-se que o próprio Sitz im Leben e sua associação com a corte no Israel pré-exílico sejam
refletidos nos Provérbios.” (LOADER, 1999, p. 233). Até mesmo R. N. Whybray, que considera a seção 1—9
um trecho tardio (pós-exílico), reconhece “que a corte judaica ainda era um centro de atividade sapiencial
trezentos anos depois de Salomão, e é razoável supor que grande parte de Provérbios em sua forma atual seja
produto do desenvolvimento literário sapiencial contínuo ao longo de todo o período da monarquia, ou seja, do
século ao século VI a.C.” (WHYBRAY, 1972, p. 4-5).
131

contentamento” (Pv 15.8, ARA, itálico acrescentado).871 Observe-se que há dois elementos
cultuais nesse provérbio: a oração e o sacrifício, e a preocupação do sábio é com o modo de
vida do adorador,872 um tema de textos como os Salmos 15 e 24, bem como da tradição
sacerdotal ligada a Levítico 19.
Outro ditado sapiencial antigo está relacionado a um voto sagrado em um ambiente
cultual: “Laço é para o homem o dizer precipitadamente: É santo! E só refletir depois de fazer
o voto” (Pv 20.25). A advertência para que se avalie a condição de cumprir ou não um
determinado voto a YHWH está presente na literatura deuteronômica (Dt 23.21-23). A
referência ao “filho dos meus votos” (Pv 31.2) parece aludir à prática cultual de uma mulher
fazendo promessas a Deus em sua súplica por um filho (cf. 1Sm 1.11).873
A referência à “sorte [que] se lança no regaço” em Provérbios 16.33 parece ser uma
referência à prática religiosa dos sacerdotes para descobrir a vontade divina mediante o Urim
e Tumim (Êx 28.30; Dt 33.8; 1Sm 23.9-12). O sábio lembra que essa não é uma prática
mágica ou mecânica, mas uma forma de dispor-se a entender a vontade de YHWH (16.33b:
“mas do SENHOR procede toda decisão”, ARA).874
Esses são alguns exemplos de como o movimento sapiencial pré-exílico não era
oposto ou indiferente ao culto no antigo Israel, mas estava profundamente preocupado com a
forma correta de se adorar, pois a “religião cultual” era “uma parte importante e essencial
tanto da herança religiosa de Israel quanto da própria devoção religiosa do sábio”.875
Também é possível identificar um relacionamento entre a tradição sapiencial e os
profetas pré-exílicos, em que algumas formas e temas em comum revelam, em especial, a
influência sapiencial sobre o movimento profético.

O uso da linguagem, formas e ideias de sabedoria conhecidas da própria literatura de


sabedoria (Provérbios, Jó, Qoheleth, vários salmos) não demonstra que os autores ou
os profetas eram sábios. Isso simplesmente revela que eles conheciam essa literatura
ou tradições semelhantes a ela e compartilharam do pensamento de sabedoria geral a
israelitas instruídos.876

a “Instrução ao rei Merikare”: “Mais aceitável é o caráter de um justo de coração do que o boi do
871Observe-se

ímpio” (PRITCHARD, 1969, p. 417, coluna 2). WHYBRAY, 1972, p. 88.


872LUCAS, 2015, p. 118.
873DELL, 2006, p. 179-80.
874HUBBARD, 1989, p. 327
875PERDUE, 1977, p. 211.
876
LEEUWEN, 1990, p. 298. Ver DELL, 2008, p. 141.
132

Estudiosos têm notado a influência da literatura sapiencial em Amós, profeta do século


VIII.877 Por exemplo, as perguntas retóricas do capítulo 3 (v. 3-8) e de 6.12 se assemelham
bastante com Provérbios 6.27,28; 23.29 e Jó 8.11 e estão presentes em ditados mesopotâmicos
antigos:878

Andarão dois juntos, se não houver entre eles acordo?


Rugirá o leão no bosque, sem que tenha presa?
Levantará o leãozinho no covil a sua voz, se nada tiver apanhado?
Poderão correr cavalos na rocha? E lavrá-la com bois?

Provérbios e salmos sapienciais apresentam, de modo recorrente, um chamado inicial


feito pelo mestre (cf. Sl 49.1; 78.1; cf. Pv 2.1; 5.1 7.24), conhecido também por sua
designação Lehreröffnungsruf (“exortações inaugurais do mestre”).879 O profeta Miqueias, do
interior da Judá do século VII A.E.C., usa também esse tipo de chamado: “Ouvi, todos os
povos, prestai atenção, ó terra e tudo o que ela contém, e seja o SENHOR Deus testemunha
contra vós outros, o Senhor desde o seu santo templo” (Mq 1.2)880
Além disso, o padrão “três-quatro” bastante comum em textos sapienciais da Bíblia
(Pv 30.15,18,21,29; cf. Jó 5.19; Pv 6.16-19) e de civilizações do Antigo Oriente Próximo881
são empregados também pelo profeta Amós (caps. 1 e 2) sob influência dos sábios de
Israel.882 Por exemplo: “Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Damasco e por quatro,
não sustarei o castigo, porque trilharam a Gileade com trilhos de ferro” (Am 1.3).883
Há também uma temática característica da literatura de sabedoria presente nos
profetas. O tema sapiencial da teodiceia, ou seja, a aparente falta de retribuição ao ímpio e de

877DELL, 2004b, p. 264. Segundo Schniedwind, o texto de Amós foi produzido no período de vida do profeta,
tese corroborada pela menção a Gate, destruída em 712 A.E.C., em Amós 6.2. O entendimento de que o profeta
havia previsto corretamente a queda de Samaria e o anúncio de futuros dias gloriosos para dinastia de Davi (Am
9.11) contribuiram para que o texto fosse preservado por escribas do reino do Sul. (SCHNIEDEWIND, 2011, p.
122-3)
878
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle); VON RAD, 1973, p. 35; LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 488-9:
“Engravidou-se ela sem cópula? Engordou sem ter comido”. Observem-se estes provérbios acádicos da primeira
metade do segundo milênio: “Acaso crescerá o fruto maduro? Como sabemos? Acaso crescerá o fruto seco?
Como sabemos?” (PRITCHARD, 1969, p. 425, coluna 2). Ezequiel 15.2,3 também apresenta uma série de
perguntas retóricas sapienciais que usam de imagens para ensinar sobre o futuro dos hierosolimitas: “[...] por que
mais é o sarmento de videira que qualquer outro, o sarmento que está entre as árvores do bosque? Toma-se dele
madeira para fazer alguma obra? Ou toma-se dele alguma estaca, para que se lhe pendure algum objeto?”
(ARA). O uso desse recurso em Ezequiel pode apontar para uma influência sapiencial sobre os sacerdotes (cf. Ez
1.1-3) anterior ao período exílico (ver adiante).
879
BELLINGER, 2012. p. 130; KRAUS, 1993, p. 91; VON RAD, 1973, p. 35-36.
880Há exemplos desse tipo de chamado também em Isaías: “Inclinai os ouvidos e ouvi a minha voz; atendei bem

e ouvi o meu discurso” (Is 28.23, ARA); “Chegai-vos, nações, para ouvir, e vós, povos, escutai; ouça a terra e a
sua plenitude, o mundo e tudo quanto produz” (Is 34.1, ARA).
881
VON RAD, 1973, p. 55.
882
CRENSHAW, 1967, p. 49.
883
LASOR; HUBBARD; BUSH, 1999, p. 497.
133

recompensa ao justo nesta vida — analisada em salmos didáticos, como 49 (vv. 6-19) e 73
(vv. 2-24), em Eclesiastes (7.15; 8.10-14) e no livro de Jó — ocorre também no livro de
Habacuque,884 em que o profeta se esforça para compreender a justiça de um Deus que
controla um mundo aparentemente sem justiça, como suas palavras iniciais indicam: “Por que
me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? [...] Por esta causa, a lei se afrouxa, e a
justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida.” (Hc 1.3,4,
ARA).885.
Além de empregar recursos retóricos comuns da literatura de sabedoria, o profeta
Amós também parece enfatizar temas característicos dos sábios, ao tratar do relacionamento
de Israel com as nações, ao usar palavras do movimento sapiencial como ‫“( נָכ ֹ ַַח‬reto”, Am
3.10; cf. Pv 4.25; 8.9; 24.26) e ‫שפָט‬
ְ ‫“( ִמ‬justiça”, Am 5.7,15,24; 6.12; cf. Jó 29.14; Pv 18.5;
19.28; 21.15; 29.4), ao empregar pares antitéticos de palavras e demonstrar uma preocupação
com o pobre e o humilde (Am 2.7; 4.1; 5.11; 8.6).886
Isaías também utiliza ditados reais pré-exílicos de Provérbios (14.27,33;
16.10,12,13,16; 20.26,28; 21.30; 25.5; 29.4,14) para descrever o sábio messiânico ideal em
Isaías 9.1-6a e 11.1-5 e, assim, criticar de forma implícita a falha do rei e dos cortesãos
contemporâneos no exercício da sabedoria adequada a seu ofício. O mesmo profeta também
faz acusações severas e abertas contra os homens de estado usando as normas sapienciais que
se aplicavam a eles: um juiz não deveria se entregar à bebida para não corromper a justiça
nem ignorar o direito dos pobres (Is 5.11,22-23; cf. Pv 31.4,5; 20.1; 29.4,7,14,26; Ec 10.16-
17; cf. Os 7.5).887
Quando o profeta Jeremias deixou claro que cada indivíduo seria responsabilizado por
seus erros e punido por isso (Jr 31.29,30; Ez 18.2-20), não estava estabelecendo novos
padrões, mas remetendo a padrões bastante recorrentes na literatura de sabedoria (e.g.: Pv
5.22,23; 10.6,7), embora não exclusivos dela.888
Assim, fica evidente que a relação de sábios com profetas e sacerdotes não é fruto de
uma combinação tardia desses movimentos889 nem fruto de uma simbiose da piedade com a

884O trecho de Habacuque 1.2-4 é datado por Andersen de meados do século VII A.E.C. (ver ANDERSEN, 2008,
p. 24). ROBERTSON, 1990, p. 34-7, defende a data da obra no final do século VII A.E.C.
885
BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).
886
HUBBARD, 1966, p. 8-9.
887
LEEUWEN, 19990, p. 302-303.
888HUBBARD, 1966, p. 11.
889PLEINS, 2001, p. 436-7.
134

antiga tradição de sabedoria (e.g., salmos sapienciais),890 mas uma realidade bastante antiga
em que sábios tiveram importante participação na produção das tradições do antigo Israel.891
Portanto, Goulder estava certo ao dizer que a “data tardia” para o Salmo 49 está
fundamentada na “visão do consenso, e não se demonstra por aramaismos no texto, como há
nos Cânticos de Subida, ou por evidências externas, como no Salmo 1”.892 Mas esse consenso
ainda é razoável? Diane Jacobson apresenta alguns comentários e questões que colocam em
xeque a tese de que os salmos de sabedoria são pós-exílicos e dissociados do culto:

A maioria dos estudiosos recentes não vê razão suficiente para excluir um contexto
cultual para os salmos de sabedoria ou salmos com elementos sapienciais. Parece
evidente que líderes e escolas de sabedoria interagiam com o culto. [...] Além disso,
a maioria está persuadida de que o pensamento sapiencial como tal está mais
relacionado com uma cosmovisão compartilhada por todos os antigos israelitas do
que com uma forma de refletir praticada apenas pelos sábios. Pode-se fazer a
pergunta se essa cosmovisão mudou consideravelmente do período pré-exílico para
o pós-exílico. [...] O que não sabemos são as diferenças ou ligações entre os
representantes da “sabedoria antiga” [...] e os escritores pós-exílicos.
[...] Estamos convidados a a examinar a evidência com grande cuidado e reconhecer
que simplesmente dizer que algo é pós-exílico não é suficiente em si para esclarecer
o que estava ocorrendo na tradição.893
Assim, abre-se caminho para a análise de uma produção pré-exílica do Salmo 49, um
texto sapiencial, numa época em que sabedoria, culto e profecia estavam em contato
constante, influenciando-se e criticando-se mutuamente, e produzindo textos de elevada
crítica social em uma estrutura poética inteligentemente estruturada.894

3.2. Salmo 49 como poesia sapiencial pré-exílica: redesenhando o processo histórico


Para a concepção do Salmo 49 como um texto sapiencial do período final da realeza
judaíta, é necessário redesenhar o processo em que o Reino do Sul tornou-se o locus de alta
produção literária. Uma das dificuldades de exegetas para aceitar a produção de textos como o
Salmo 49 em Israel na época do primeiro templo está no questionamento se havia escolas de
escribas capazes de produzir literatura como aquela encontrada na Bíblia Hebraica.895

890SCOTT, 1971, p. 191.


891DELL, 2004b, p. 265: a influência sapiencial “pode ser considerada formativa, e não simplesmente uma etapa
editorial em relação a esses textos [bíblicos] com os quais pode ser comparada”.
892 GOULDER, 1982, p. 183.
893JACOBSON, 2014, p. 152, 154.
894SNEED, 2011, p. 64, apresenta uma observação bastante pertinente em um artigo instigante: “Todos os livros

bíblicos são produtos dos escribas eruditos. Não importa que posição social eles tivessem (sacerdote, profeta,
sábio e assim por diante), todos os autores bíblicos estavam unidos em seu papel como escribas e em seu
treinamento escribal em comum. Com relação à cosmovisão dos autores bíblicos, seu papel como escribas
deveria receber mais importância do que a questão se eram ao mesmo tempo sacerdotes, profetas e sábios”.
895
LEMAIRE, 1984, p. 272-3
135

O período do século VIII A.E.C. — em que houve um processo de rápida


urbanização em Judá como resultado da expansão do império assírio e do influxo de pessoas
do Reino do Norte para o Sul com a queda de Samaria em 722 A.E.C. — parece ter
contribuído para a produção e preservação literária de diversos textos do antigo Israel, sob a
liderança de Ezequias e de seus escribas.896
Na parte final do Ferro II (séculos VIII e VII A.E.C.), Jerusalém se expandiu, sua
população cresceu, e uma grande área se formou ao redor da cidade, sendo o limite da parte
fortificada de Jerusalém definido, em especial, pelas muitas sepulturas que a cercavam.
Aldeias vizinhas sem fortificações foram construídas ao norte da cidade, e havia propriedades
agrícolas, ao derredor dela, com grandes vilas constituindo a parte mais remota do raio do
território conhecido como “grande Jerusalém”, atingindo um tamanho entre 900 e 1.000
dunans.897
Esse processo de crescimento da Judá do fim do século VIII A.E.C. e a consequente
intensificação da burocracia em Jerusalém demandou a ampliação da atividade literária na
capital e nas principais cidades associadas a ela, conforme a pesquisa arqueológica revela:
“deve-se observar que todos os sete sítios nos séculos VIII e VII contendo direta evidência de
escrita têm sido analisados em diversas conexões da perspectiva de sua dependência de
Jerusalém”, o que implica as demandas da realeza na administração da rede político-
econômica da região.898 Como Schniedewind sintetizou bem:
A urbanização seria o catalisador necessário para uma atividade literária mais
disseminada [...] as condições sociais favoreceram o florescimento da literatura

896
Ver descrição em QUICK, 2014, p. 14, 23-24.
897
MAZAR, 1990, p. 416-424; LIPSCHITS, 2005, p. 215. Ver também as descobertas de uma fortificação ao
norte da cidade que “testemunham um intenso assentamento nesse período [Idade do Ferro]” (BARKAY;
FANTALKIN, 2002, p. 49-71). Dados de uma pesquisa arqueológica realizada na Sefelá desde 1979
complementam o quadro apresentado pelas escavações arqueológicas. Durante os séculos VIII e IX, a Sefelá
experimentou um florescimento populacional, com crescimento de seus habitantes, muitos novos assentamentos
(especialmente, pequenas propriedades agrícolas) e uma ampliação das regiões habitadas. A campanha de
Senaqueribe, em 701 A.E.C., provocou uma diminuição da população, que, todavia, voltou a crescer ao longo do
século VII, experimentando um processo de refortificação e somando, ao final do século, uma área de construção
de cerca de 800 dunans nas principais cidades (FINKELSTEIN, 1994, p. 172-173; LIPSCHITS, 2005, p. 220-
221.).
898JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 147-8. Isso também é confirmado por William Schniedewind: “No importante

aparato de um rei estavam incluídos seu escriba e a biblioteca real. Até mesmo aspirantes a reis como Abdi-
Heba, prefeito de Jerusalém no século XIV a.C., ou Mesá, chefe de Moabe no século IX a.C., tinham escribas.
Não é de surpreender que o florescimento da escrita e das artes escribais não fosse um fenômeno exclusivamente
judeu.” (SCHNIEDEWIND, 2011, p. 107). André Lemaire também observa que “escolas nas culturas vizinhas
[de Israel] parecem ter originado-se da necessidade de treinar escribas para o trabalho nas burocracias
governamentais. Com toda probabilidade houve escolas em Israel para o mesmo propósito de treinar futuros
membros da administração real...” (LEMAIRE, 1990, p. 169).
136

hebraica no séculos VIII e VII a.C. Essas mudanças na vida social do povo judeu
foram especialmente perceptíveis na cidade de Jerusalém. [...]899
O crescimento de Jerusalém foi um subproduto da ascensão do Império Assírio.
Antes de mais nada, a Assíria destruiu o reino setentrional de Israel, o que resultou
na imigração de israelitas para Jerusalém e outras cidades do Sul. [...] Em 722 a.C.,
Ezequias enfrentava um afluxo de imigrantes vindos do reino do norte derrotado.
Em vez de entricheirar suas fronteiras, Ezequias procurou integrar esses refugiados
em seu domínio, almejando assim restaurar a época de ouro de Israel, o rei Davi e
Salomão. [...] Uma burocracia real floresceu junto com a população de Jerusalém. 900
Os dados da Bíblia Hebraica parecem confirmar a presença desse aparato real. Em
Provérbios 25.1, ocorre a menção aos escribas de Ezequias: “São também estes provérbios de
Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá” (ARA, itálico
acrescentado).901 Segundo James Crenshaw, durante o reinado de Ezequias, houve o patronato
monárquico que possibilitou a atividade escribal dos “homens de Ezequias”. Como este rei
buscou seguir Salomão em vários aspectos, parece que a referência aos “homens de Ezequias”
reflete a menção na história deuteronomista aos “teus homens”, em um elogio da rainha de
Sabá a Salomão, como uma expressão para os escribas que trabalhavam na corte em 1Rs
10.8.902
Schniedewind também observou que, embora o foco de Provérbios 25.1 seja indicar
que os provérbios ali contidos são de Salomão, a expressão “os homens de Ezequias” é
secundária, portanto, consiste no tipo de referência desinteressada que pode ser a chave para a
pesquisa histórica de que esses homens foram de fato responsáveis por registrar as máximas
de Provérbios 25—29, e não somente isso, mas também foram responsáveis pela primeira
etapa da composição da história deuteronomista.903 Halpern e Lemaire apresentam diversas
razões para uma história protodeuteronômica do livro de Reis produzida na época de
Ezequias.904
Além disso, a menção casual a Sebna em 1Reis 18.18, “escriba de estado” ou
“secretário do rei” (‫)סֹפֵר‬,905 é significativa. A função do ‫ סֹפֵר‬ou “escriba” era muito importante

899
SCHNIEDEWIND, 2011, p. 98.
900SCHNIEDEWIND, 2011, p. 99, 101.
901
WHYBRAY, 1972, p. 146: “A referência aos homens de Ezequias, rei de Judá (cerca de 715-687 a.C), que
eram evidentemente escribas na corte real, revela que a literatura sapiencial, já associada com Salomão, ainda
era uma preocupação da corte judaíta dois séculos depois” (o primeiro itálico é do original; segundo itálico foi
acrescentado).
902CRENSHAW, 1985, p. 613-4. Em outra obra, Crenshaw faz observações semelhantes e conclui dizando: “a

posterior [depois dos conselheiros de Davi] aparição dos ‘homens de Ezequiel’ sugere que uma classe distintiva
de sábios existia no século VIII” (CRENSHAW, 1981, p. 29)
903SCHNIEDEWIND, 2011, p. 108-115.
904HALPERN; LEMAIRE, 2010, p. 143-5.
905
KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 767.
137

no Antigo Oriente Próximo. As antigas tradições de escribas remontam aos centros da cultura
em cada um dos extremos do Crescente Fértil: Mesopotâmia e Egito — ambos com uma
vigorosa tradição sapiencial, com sábios profissionais que produziam extensas obras
literárias.906 Na Babilônia, a arte do escriba é bastante antiga e foi reforçada pelo
estabelecimento de escolas de escribas, cujas atividades estavam associadas a todas as etapas
da sociedade da Mesopotâmia.907 Do mesmo modo, no Egito, as escolas e seus ensinamentos
eram organizados, desde o Reino Médio, em uma proporção bem ampla, a ponto de todo
egípcio poder levar seu filho à escola no período do Reino Médio.908 A arte de escriba tornou-
se fundamental para a sociedade faraônica, tanto que, na famosa “Sátira sobre os Negócios”, a
profissão de escriba é designada, de modo eloquente, como “o maior de todos os
chamados”.909
Portanto, 2Reis 18.18 testemunha a presença de um escriba (talvez o chefe de um
grupo maior de “homens de Ezequias”) no palácio de Ezequias.910 Como Roland de Vaux
indica:
O secretário Sebna é um dos três ministros que discutem com o mensageiro de
Senaqueribe (2Rs 18.18,37; 19.2; Is 36.3,11,22) [...] esse funcionário era, ao mesmo
tempo, secretário particular do rei e secretário de Estado. Ele redige a
correspondência externa e interna, anota a soma das contribuições (2Rs 12.11);
desempenha um papel importante nos negócios públicos. É inferior ao administrador
do palácio: mas ele vem imediatamente depois do administrador do palácio em
2Reis 18.18s; Isaías 36.3s, e a missão que ambos realizam em conjunto põe em jogo
a sorte do reino.911

906
CRENSHAW, 1981, p. 55.
907
PATTERSON, ‫ ָספַר‬, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632.
908
LEMAIRE, 1984, p. 275.
909
PATTERSON, ‫ ָספַר‬, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 632. “No Egito do Novo Império, o título
“escriba real” é freqüente, seja só, seja unido a outras funções. Mas, acima dos inumeráveis dedicados à escrita,
alguns escribas reais ocupam funções de primeiro plano e participam em todos os negócios do Estado” (DE
VAUX, 2004, p. 162).
910Rollston afirma: “O fato de um escriba estar presente, juntamente com outros oficiais, nas negociações com a

delegação de Senaqueribe, é também indicativo do poder e da proeminência alcançados às vezes por um escriba
real (2Rs 18.18)” (ROLLSTON, 2010, p. 89). Lester Grabbe faz a interessante síntese: “A Bíblia hebraica
pressupõe que os escribas foram empregados na administração dos reinos de Israel e Judá: os escribas de Davi
(2Sm 8.17; 20.25; 1Cr 18.16; 24.6); escriba de Salomão (1 Kgs 4.3); um escriba real no tempo de Jeoás (2Rs
12.11; 2Cr 24.11); Sebna, o escriba (2Rs 18.18,37; 19.2); Safã, o escriba (2Rs 22.3,8-10, 12; 2 Cr 34.15,18,20);
o escriba do comandante do exército (2Rs 25.19; Jr 52:25). Jeremias tem uma série de referências aos escribas: a
câmara de Gemarias, filho de Safã, o escriba no templo (36.10); câmara do escriba no palácio do rei (36.12);
Elisama, o escriba (36.12,20,21); Baruque, o escriba, desempenha um papel proeminente (36.26,32); Jeremias
foi preso na casa de Jônata, o escriba (3715.20).” (Ver GRABBE, 2014, p. 107)
911
DE VAUX, 2004, p. 162.
138

Como os escribas não estavam limitados ao palácio do rei, mas poderiam estar
associados ao templo ou ao ofício profético,912 observa-se o desenvolvimento do trabalho de
escribas no templo de Jerusalém, ocorrendo décadas depois de Ezequias, na segunda metade
do século VI A.E.C. O processo de urbanização do século VII A.E.C. gerou, ao que tudo
indica, uma “democratização” da escrita muito mais ampla do que David W. Jamieson-Drake
havia defendido,913 conforme a obserção de Alan Millard sobre a Judá a partir de 750 A.E.C.,
depois de uma análise das evidências arqueológicas e epigráficas:

A variedade de inscrições antigas — desde textos monumentais em prédios, tumbas


e obras públicas até cartas, selos, listas e nomes riscados em potes — certamente
indicam um difundido uso da escrita, especialmente quando se considera que a vasta
maioria dos documentos foi escrita em papiro, que não teria sobrevivido ao clima
úmido de Israel.914
Assim como ocorria no antigo Egito, em que o templo era uma extensão funcional da
instituição real,915 os escribas no templo de Jerusalém passaram a ter uma importância central
e o santuário tornou-se um dos principais loci de escrita na época de Josias:

Para compreender de que maneira o lugar social da escrita havia se modificado,


retornemos à famosa descoberta do pergaminho: “O sumo sacerdote Helcias disse ao
secretário Safan: ‘Encontrei na casa de YHWH o pergaminho da lei’” [2Rs 22.8]. O
fato de que tenha sido o sumo sacerdote que encontrou o pergaminho no templo é
crucial para compreender o novo lugar social da escrita: os sacerdotes e o templo. 916
Antes de Schniedewind, André Lemaire já havia chamado a atenção para o fato de
que a famosa descoberta do “livro da lei/instrução” (‫ַתֹורה‬
ָ ‫ ) ֵספֶר ַה‬na “casa de YHWH” (2Rs
22.8) pelo sacerdote Hilquias (22.23) poderia ser uma indicação da existência de uma
biblioteca em uma sala no templo de Jerusalém, em que os arquivos e textos eram
armazenados.917 Em sua análise sobre a relação dos sábios do templo com o livro de
Deuteronômio, Lemaire indica que o papel principal na história da descoberta do livro da lei
em 2Reis 22 foi desempenhado por “Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, o escriba [‫”]סֹפֵר‬.

912SNEED, 2011, p. 62. James Crenshaw observa: “O locus da tradição sapiencial no Egito era faraônico,
enquanto na Mesopotâmia, os sábios atuavam primariamente no templo [...] Enquanto a sabedoria egípicia se
concentrava em fornecer instrução para uma vida bem sucedida na corte real, o seu correspondente
mesopotâmico dava especial atenção em garantir o bem estar por meio de práticas cultuais” (CRENSHAW,
1981, p. 56). Christopher Ansberry observa que os textos sapienciais egípcios também estavam ligados ao
templo e aos sacerdotes (ver ANSBERRY, 2011, p. 18-19). No outro espectro, Tremper Longman chama a
atenção para o fato de que “os escribas profissionais” atuavam “nas várias partes da sociedade, particularmente a
corte real e o templo”, indicando que a E.DUB.BA.A (escola mesopotâmica) não servia apenas ao templo, mas
ao palácio também (LONGMAN III, 2017, p. 192 [edição kindle]).
913JAMIESON-DRAKE, 1991, p. 148.
914MILLARD, 1987, p. 27.
915ANSBERRY, 2011, p. 34.
916SCHNIEDEWIND, 2011, p. 153-4.
917LEMAIRE, 1990, p. 176.
139

Ele foi enviado pelo rei Josias ao templo (v. 3), recebeu a mensagem e o livro de Hilquias, o
sumo sacerdote (v. 8), leu o livro para o rei (v. 10) e foi consultar a profetisa Hulda (v. 14).
Posteriormente, membros da família de Safã também tiveram um papel importante em relação
a outro livro, que continha os oráculos de Jeremias: “Leu, pois, Baruque naquele livro as
palavras de Jeremias na Casa do SENHOR, na câmara [‫שכַת‬
ְ ‫ ] ְב ִל‬de Gemarias, filho de Safã, o
escriba, no átrio superior, à entrada da Porta Nova da Casa do SENHOR, diante de todo o
povo” (Jr 36.10, ARA). Depois disso, o rolo de Jeremias foi depositado em outra “câmara” ou
ְ ‫ ) ְב ִל‬no palácio (36.20).918
“sala” (‫שכַת‬
O HALOT define ‫שכָה‬
ְ ‫ ִל‬como uma sala geralmente em um prédio religioso com
bancos de pedra dos três lados.919 A referência à ‫שכָה‬
ְ ‫ ִל‬associada a um descendente de um
“escriba” (‫ )סֹפֵר‬e à leitura pública de um “livro” (‫ ) ֵספֶר‬no templo parece indicar uma sala em
que a atividade escribal era exercida, ao menos, em seu papel de ensino.920 O relato do
Cronista parece sugerir, fortemente, a presença de salas anexas (‫ ) ִלשְכֹות‬no entorno do templo,
que tinham vários propósitos: armazéns, locais para os levitas ficarem (1Cr 9.33; 28.12; 2Cr
31.11)921 e, conforme Jeremias 36.10, o ambiente em que escribas desempenhavam suas
funções. Tendo em vista essa ligação entre o templo e a atividade escribal nos dias de Josias e
de Jeremias, parece bastante razoável a tese de Moshe Weinfeld de que o movimento
deuteronomista estava associado a um grupo de sábios do templo de Jerusalém nos dias de
Josias.922
Nessa relação entre o templo e o movimento sapiencial, haveria grande possibilidade
de que salmos sapienciais fossem compostos para celebrações do culto em Jerusalém no
período final do século VII a.C., pois a sabedoria era vista como “parte da mais antiga

918LEMAIRE, 1990, p. 177.


919KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 536-7.
920KAISER, ‫לשך‬, in: HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1999, p. 483; LEMAIRE, 1990, p. 177-8.
921KELLERMAN, Diether, ‫שכָה‬ ְ ‫ ִל‬. In: BOTTERWECK, 1997, v. 8, p. 35-6.
922WEINFELD, 1972, p. 244-281, apresenta diversos paralelos entre Provérbios e Deuteronômio, indicando que

a literatura sapiencial precede à deuteronômica. Christopher Ansberry também estabelece várias ligações
temáticas entre os dois livros e diz: “A visão moral do livro de Provérbios procura reforçar o paradigma
deuteronômico de liderança. Semelhante ao programa deuterônico, o material sapiencial fornece aos jovens
nobres e inexperientes os valores fundamentais e as atitudes formativas da existência social: delineia o ethos
tradicional que devem incorporar para liderar os encarregados dos seus cuidados. As coleções individuais
incluem preocupações convencionais com material cortesão para inculcar valores estabelecidos e conselhos
práticos em seu público. Ao fazê-lo, o livro não só cultiva virtudes que coincidem com os interesses da
comunidade, mas também identifica certos valores que correspondem aos interesses, aspirações e tentações de
seu nobre destinatário. Esse programa ético complementa o modelo paradigmático de liderança apresentado no
Deuteronômio. Na visão deuterônica, os líderes das instituições sociais deveriam incorporar os valores da
comunidade e promover a justiça dentro de suas respectivas esferas sociais.” (ANSBERRY, 2011, p. 188)
140

autoexpressão de Israel em suas festas de adoração, bem como em outras áreas da vida, a
ponto de se manifestar em alguns salmos que revelam a influência sapiencial”.923 Assim,
Martin J. Buss parece estar correto em indicar que o Salmo 49 corresponde com toda
probabilidade à Judá pré-exílica.924 Markus Saur também entende que esse salmo é anterior ao
exílio, remontando a um período em que a realeza ainda não havia sido afetada pela
destruição babilônica.925
O desenvolvimento da análise anterior sobre o desenvolvimento histórico pré-exílico
da literatura sapiencial, leva à conclusão que se deve datar o Salmo 49 no final do século VII
A.E.C., provavelmente posterior a Josias. Existem elementos linguísticos que favorecem essa
datação, além do fato de que a coleção dos “filhos de Corá” geralmente é atribuída ao pré-
exílio.926 Por questão de limites deste projeto, exporemos a seguir somente alguns aspectos
linguísticos que parecem apoiar uma data no final do período pré-exílico.
Primeiramente, uma palavra significativa do Salmo 49 relacionada à crítica
socioeconômica — tema predominante dessa poesia sapiencial — ocorre nos profetas pré-
exílicos e em Ezequiel, mas não nos pós-exílicos.927 O substantivo ‫( ֶאבְיֹון‬v. 3: “pobre”) não
aparece em nenhum profeta considerado pós-exílico pela crítica bíblica (Ag, Ml, Zc, Is 56-
66),928 mas ocorre cinco vezes em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6),929 três vezes na primeira parte
do livro de Isaías (14.30; 29.19; 32.7; uma vez no chamado “Pequeno Apocalipse”930: Is
25.4),931 quatro vezes na seção reconhecida como dominantemente pré-exílica de Jeremias (Jr

923DELL, 2004a, p. 458; LEMAIRE, 1990, p. 179: “[Os salmos] parecem refletir a variedade de tradições no
antigo Israel, e alguns deles dão evidência de que a sabedoria também estava presente no templo”.
924BUSS, 1963, p. 387. Embora discorde-se aqui da classificação feita por Buss de que o salmo é “quase secular”

e de natureza “não deuteronômica”.


925SAUR, 2015, p. 199, 201. Embora discordemos de Saur de que os salmos 49 e 73 remontem à época dos

antigos reinos de Israel e Judá. Parece melhor um período em que apenas o Reino do Sul ainda mantinha-se
firme (ver adiante). Como Goulder observou, não há nada no texto que indique uma data tardia para o salmo, a
não ser o “consenso” de que a literatura sapiencial é tardia (GOULDER, 1982, p. 182-3).
926Ver análise da epígrafe do Salmo 49.
927Nesta parte, não faremos comparação com os livros sapienciais, embora haja muitos vocábulos que ocorram

em Provérbios (texto basicamente pré-exílico), outros aparecem em Jó e em Eclesiastes, que são considerados
pós-exílicos pela crítica bíblica. Nesses casos, as palavras características da literatura sapiencial (esp. Pv, Jó, Ec)
não indicam diacronia (fenômenos antigos ou tardios), mas sincronia (aspectos linguísticos sapienciais ou não
sapienciais) (ver HURVITZ, 1988, p. 43-4, esp. nota 12)
928Na narrativa claramente pós-exílica de Ester, ‫אבְיֹון‬
ֶ aparece somente uma vez (Et 9.22).
929Para a redação final de Amós no período pré-exílico, ver SCHNIEDEWIND, 2011, p. 119,122-3; FINLEY,

2003, p. 102-5.
930PLEINS, 2001, p. 237.
931A ocorrência em Isaías 41.17 é duvidosa por um problema textual (ver ELLIGER; RUDOLPH, 1997, p. 738).
141

2.34; 5.28; 20.13; 22.16)932 e três vezes em Ezequiel (Ez 18.12; 16.49; 22.25ss.).933 Os
profetas pós-exílicos usam outros termos paralelos a ‫ ֶאבְיֹון‬, por exemplo, ‫“( ָענִי‬pobre”,
“miserável”, “carente”, “sem posses”)934 (Zc 7.10; 9.9; 11.7,11) ou ‫“( י ָתֹום‬órfão”, com o
sentido de indefeso)935 (Zc 7.10; Ml 3.5).936
A crítica que impera no Salmo 49 em favor do pobre (‫) ֶאבְיֹון‬, contra o rico (‫שיר‬
ִ ‫( ) ָע‬v.
3), que é capaz de provocar temor (Sl 49.6,7) nos menos favorecidos por suas prováveis
ameaças e opressão, está presente também em Amós (2.6; 4.1; 5.12; 8.4,6) e em Jeremias
(e.g., 2.34; 5.28).937 Em Jeremias 20.13, o próprio profeta se identifica como ‫ ֶאבְיֹון‬a quem
YHWH salva (Jr 20.13),938 o que remete à perspectiva do Salmo 49, em que o autor começa
com uma pergunta retórica na primeira pessoa, colocando-se como um desfavorecido
ameaçado pelos ricos ímpios: “Por que temerei [...] a maldade dos que me atacam [...] os que
confiam em suas riquezas” (v. 6,7).
Chama a atenção o uso de ‫“( ֶחלֶד‬tempo de vida”; “mundo”)939 no versículo 2, um
substantivo que ocorre na literatura sapiencial (Sl 49.2; Jó 10.12,20; 11.17), no texto pré-
exílico Isaías 38.11940 e em um salmo que parece ser exílico (Sl 89.48; cf. v. 38-45).941 Assim,
a princípio, o terminus ad quem do uso do vocábulo favorece a produção do Salmo 49 até o
período exílico, pois ‫ ֶחלֶד‬não ocorre em textos claramente pós-exílicos (e.g., Ag; Ml; Ne, Et).
Há também paralelos verbais entre o Salmo 49 e a primeira parte do livro de
Jeremias que reforçam certa contemporaneidade com o profeta e expressam uma preocupação
semelhante com as desigualdades socioeconômicas na Judá do final do século VI, embora não
sejam argumentos definitivos de datação. Enquanto o salmista menciona o rico (‫שיר‬
ִ ‫( ) ָע‬Sl
49.3) e critica aqueles que “se gloriam” (‫ )י ִתְ ַה ַָללּו‬em “seus bens” (‫( ) ָעשְרַָם‬Sl 49.7), o profeta
Jeremias exorta “o rico” (‫שיר‬
ִ ‫ ) ָע‬a não “gloriar-se” (‫ )י ִתְ ַה ֵַלל‬no “seu bem” (‫( ַ) ְב ָעשְרֹו‬Jr 9.23).

932WESTERMANN, 1967, p. 155-63, atribui o primeiro estrato do livro aos capítulos 1—25, com exceção do
cap. 19. Ver também TOV, 1985, p. 211-37; LIPSCHITS, 2005, p. 305-7, que entendem ser o texto da LXX bem
próximo do primeiro estrato de Jeremias (mantendo basicamente o texto de 1—25, com alguns acréscimos de um
editor posterior). Cf. PLEINS, 2001, p. 278.
933BOTTERWECK, G. Johannes, ‫אבְיֹון‬ ֶ , in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 29-33.
934KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 856.
935BROWN; DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 450
936Observe-se que esses dois substantivos hebraicos também estão presentes em textos pré-exílicos, mas o fato de

‫ ֶאבְיֹון‬ser usado de forma quase exclusiva no período pré-exílico favorece a autoria antiga do Salmo 49.
937BOTTERWECK, ‫אבְיֹון‬ ֶ , in: BOTTERWECK, 1977, v. 1, p. 31-3.
938PLEINS, 2001, p. 290.
939BRENSINGEN, Terry L., ‫חלֶד‬ ֶ , in: VANGEMEREN, 2011, p. 137, verbete 2689; HOLLADAY; KÖHLER,
2000, p. 104; KOEHLER; BAUMGARTNER; RICHARDSON; STAMM, 1994-2001, p. 316
940FREEDMAN, 1987, p. 21-2; SCHNIEDEWIND, 2011, p. 121-2.
941GROGAN, 2008, Psalm 89 (edição kindle); LONGMAN, 2014, Psalm 89 (edição kindle).
142

Jeremias afirma que é no ‫“( ק ֶֶרב‬íntimo”) que estão presentes os “maus pensamentos” (ַ‫מַ חְשְ בֹות‬
‫ )אֹונְֵך‬dos habitantes de Jerusalém (Jr 4.14), e o salmista expõe o que está no “íntimo” (‫)קֶ ֶרב‬
dos que colocam a confiança em suas riquezas (Sl 49.12).
Em Jeremias 5.26-27, a raiz verbal ‫ עשר‬é usada em referência a pessoas “perversas”
(‫)רשָ עִים‬
ְ que “alcançaram riquezas” (‫שירּו‬
ִ ‫ ) ַוי ַ ֲע‬à custa de outros, o que parece remeter também a
situação do Salmo 49, em que “alcançar riquezas” (‫שר‬
ִַ ‫ )י ַ ֲע‬provoca o temor dos desafortunados
e pobres (Sl 49.17). Tanto Jeremias quanto o Salmo 49 utilizam a raiz ‫ ָע ֵקב‬para comunicar
uma atitude fraudulenta, que usa de engano para prejudicar outros (Jr 9.4; Sl 49.6). O autor do
Salmo 49 e Jeremias utilizaram ‫“( יְקָר‬preciosidade” e “honra”), atribuindo a esse substantivo o
sentido de riqueza (Jr 20.5; Sl 49.13,21).
Portanto, diante do quadro histórico de desenvolvimento da tradição de sabedoria e
das evidências linguísticas cumulativas, além do consenso sobre a datação da coleção dos
salmos de Corá,942 parece-nos adequado concluir que o balanço da probabilidade favorece a
redação do Salmo 49 no período final pré-exílico,943 quando a nação passava a experimentar
um novo momento de vassalagem à Babilônia, mas ainda não havia sido destruída por ela.944
Assim, o quadro de Jeremias 5.20-31; 7.5-6 e 22.11-17 parece corresponder à situação e às
mesmas preocupações do Salmo 49.
Assim como o profeta Jeremias se opunha aos profetas de sua época por praticarem
“a falsidade” (Jr 8.10) e profetizarem “o engano do seu íntimo”, o sábio levita que escreveu o
Salmo 49945 cultivava uma atitude diferente dos sábios do templo de sua época. Eles diziam
“Somos sábios, e a instrução [‫]תֹורה‬
ָ de YHWH está conosco” (Jr 8.8), mas, na verdade, “a
falsa pena dos escribas” “converteu em mentira” a tôrâ/instrução de YHWH (Jr 18.8). Em vez

942Ver análise da epígrafe do Salmo 49.


943DELL, 2004, p. 267, lembra que a discussão sobre as origens dos textos sapienciais no pré-exílio não pode ser
provada, mas pode ter “o balanço de probabilidade” a seu favor quando todos os elementos literários,
linguísticos, contexto social e teológico são avaliados.
944Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa derrota aos egípcios

(para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11),
impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã (cf. Jr 46.2-12.), e da ascensão de Nabucodonosor
ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.), o novo monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a
cidade de Asquelom e conquistou o apoio de Jeoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs
24.1) (PROVAN, Iain, A monarquia posterior: os reinos divididos, in: LONGMAN III; PROVAN; LONG, 2016,
p. 428-9). No entanto, os acontecimentos traumáticos viriam depois, nas duas deportações iniciais da população
judaica, em que os nobres e as pessoas da realeza foram exiladas (2Rs 24.14-15; 25.1-12; Jr 39.9-10).
945
Palavras do salmo como ‫“( ָח ְכ ָמה‬sabedoria”; cf. Pv 1.20; 9.1; 24.7), ‫“( תְ בּונָה‬entendimento”; cf. Jó 12.12; 26.12;
Pv 5.1), ‫של‬ָ ‫“( ָמ‬provérbio”; cf. Pv 10.1; 25.1; Ec 12.9), ‫“( חִידָ ה‬enigma”; cf. Pv 1.6; Sl 78.2) são característicos da
literatura de sabedoria do antigo Israel (ver as análises nos caps. 2 e 3 sobre as características sapienciais do
salmo; cf. GERSTENBERGER, 1988, Psalm 49 (edição kindle); BERRY, 1995, cap. 1 (edição kindle).
143

de rejeitar a “Palavra de YHWH” como os escribas de sua época (Jr 18.9), ele inclina os seus
ouvidos (Sl 49.5) para transmitir a verdadeira “sabedoria” e o “entendimento” (49.4), que
ressaltam a inutilidade das riquezas à luz da realidade da morte (49.8-15,17-21) e subvertem
as perspectivas injustas da elite ímpia do antigo Israel.

3.3. A vox pauperis e o quadro de conflito socioeconômico

À medida que a Assíria entrava em declínio com a morte de Assurbanipal (c.a. 627
A.E.C), o rei Josias de Judá sentia-se livre para implantar seu programa de reforma religiosa
em Judá, opondo-se às práticas religiosas aos deuses estrangeiros, pronafando os altares em
locais ao norte de Judá e tentando uma expansão territorial (2Rs 23.4ss.).946 Certamente, ela
foi apoiada tanto pelo “livro da lei” (‫ַתֹורה‬
ָ ‫( ) ֵספֶר ַה‬Dt 12—25?) encontrado no templo de
Jerusalém (2Rs 22.8-20) quanto pelo profeta Jeremias, que conclamou “Israel” (Jr 3.6) e
“Judá” (3.8) a adorarem a YHWH em Jerusalém: “Convertei-vos, ó filhos rebeldes, diz o
SENHOR; porque eu sou o vosso esposo e vos tomarei, um de cada cidade e dois de cada
família, e vos levarei a Sião” (Jr 3.14).947
A centralização do culto em Jerusalém narrada em 1Reis 23.8-20,27,948 sob o
governo de Josias, tem um paralelo estreito com a centralização do culto ordenada em
Deuteronômio 12.949 A celebração da Páscoa no lugar central de adoração, “escolhido por
Deus”, prescrito em Deuteronômio 16.1-8 corresponde à celebração promovida por Josias no
templo de Jerusalém (2Rs 23.21-23).
Infelizmente a reforma oficial de culto parece não ter impactado de forma
duradoura950 e profunda as práticas de justiça na sociedade, pois o profeta Jeremias denuncia
uma arrogante confiança do povo no templo (Jr 7.4,10-11) como justificativa para a prática da
opressão e de toda sorte de corrupção (7.5-6,9).951
Com a morte de Josias por Neco (2Rs 23.29-30), a deposição e aprisionamento de
Jeoacaz (2Rs 23.31-33) e a entronização de seu irmão Eliaquim, ou Jehoaquim, como rei

946KAEFER, 2015, p. 101-3; BARKER, 1999, p. 247-8; ORLINSKY, 1960, p. 94.


947BRIGHT, 2003, p. 402.
948GRANT, 1984, p. 140-1.
949
Gerhard von Rad observa que a teologia da singularidade do caráter de YHWH em Deuteronômio servia de
base para o estabelecimento de um lugar central para a sua adoração (Dt 12.2-7). Enquanto Baal se revelava em
qualquer lugar onde se havia experimentado um mistério da natureza, o culto a YHWH tinha sua característica
única e centralizadora, distinta da forma como se dava a adoração do deus da fertilidade cananeu (Gerhard VON
RAD, 2006, p. 222-223; Ver, também, GOLDINGAY, 1987, p. 150).
950
ORLINSKY, 1960, p. 95
951
BRIGHT, 2003, p. 402. É provável que Jeremias 7 reflita a sociedade da época imediatamente posterior a
Josias, no reinado de Jehoaquim, seu filho (cf. Jr 26.1ss.; FEINBERG, 1986, p. 426).
144

títere pelos egípcios em 609 A.E.C. (23.34-35), Judá deixou de ser um reino independente e
voltou à vassalagem e ao pagamento de tributos (23.33-35), desta vez sob o poder dos
egípcios,952 cujo território é definido pelo historiador deuteronomista como “entre o ribeiro do
Egito e o rio Eufrates” (2Rs 24.7 — antes da conquista babilônica).953
Depois da batalha de Carquemis, em que o exército babilônico infligiu uma completa
derrota aos egípcios,954 impactando profundamente os moradores da Síria e de Canaã,955 e da
ascensão de Nabucodonosor ao trono (ambos os eventos ocorreram em 605 a.C.),956 o novo
monarca invadiu a Síria-Palestina, subjugou a cidade de Asquelom e conquistou o apoio de
Jehoaquim (Eliaquim) de Judá, submetendo-o à vassalagem (2Rs 24.1).957 Esta seria a
primeira de oito campanhas do imperador babilônico na região958 e o início da consolidação
de seu domínio sobre Jerusalém.
Infelizmente, Jehoaquim atuava com “mão de ferro” sobre o povo, cobrando tributos
do povo (2Rs 23.35) e construindo um belo palácio à custa da opressão das pessoas comuns e
mediante a prática da corrupção (Jr 22.13-17). O historiador deuteronomista descreve
Jehoaquim como um tirano monstruoso, cuja culpa diante de YHWH era irremediável: “por
causa do sangue inocente que ele derramou, com o qual encheu a cidade de Jerusalém; por
isso, o SENHOR não o quis perdoar” (ARA).959
A prática da injustiça degenerou-se por toda a sociedade de tal modo que as classes
socioeconômicas mais frágeis sofriam nas mãos de quem tinha melhor condição financeira (Jr
7.5-6).960 O período inicial do governo de Jehoaquim e a condição social de exploração dos
pobres pelos ricos parecem corresponder à descrição de Habacuque 1.2-4, quando a Babilônia
ainda não havia assumido o controle do Levante, mas estava prestes a fazê-lo:961

952KELLE, 2014, p. 379-80.


953
PROVAN, 2016, p. 428
954
Para o relato babilônico sobre a batalha de Carquemis, veja WISEMAN, 1956, p. 67-69, B.M. 21946.1-11.
955
Ver o testemunho do profeta Jeremias sobre os efeitos da vitória dos babilônios sobre o Egito em seu relato
poético em Jr 46.2-12. Essa batalha marcou a transferência de poder sobre o Levante do Egito para a Babilônia
(FEINBERG, 1986, p. 365).
956
O ataque babilônio bem-sucedido contra Carquemis ocorreu entre maio e junho de 605, e a coroação de
Nabucodonosor, em setembro do mesmo ano (ver LIPSCHITS, 2005, p. 37-8)
957
KELLE, 2014, p. 380; BRIGHT, 2003, p. 392-3; PROVAN, 2016. p. 428-9.
958PROVAN, 2016, p. 429, nota 112.
959
BARKER, 1999, p. 250.
960
Para a datação dessa profecia no período de Jehoaquim, ver os paralelos entre o sermão do cap. 7 e o cap. 26:
7.1,2 com 26.1,2; 7.12-15 com 26.6,9 (cf. FEINBERG, 1986, p. 426; ALLEN, 2008, p. 94-5, reconhece os
paralelos entre as duas seções e entende serem duas versões do mesmo sermão).
961
ROBERTSON, 1990, p. 34-5; BRIGHT, 2003, p. 400.
145

Até quando, SENHOR, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E


não salvarás? Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão? Pois a
destruição e a violência estão diante de mim; há contendas, e o litígio se suscita. Por
esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta, porque o perverso cerca o
justo, a justiça é torcida.962
Nesse contexto de grave conflito social e perpetuação de injustiças, o autor do Salmo
49 produz sua poesia como crítica àqueles que achavam ter poder perpétuo. Ao contrário da
proposta de Albertz,963 o salmista não representa a vox divitis,964 mas sim, a vox pauperis.965
Ele expõe um mundo socioeconômico polarizado entre o “pobre” (‫ ) ֶאבְיֹון‬e o “rico” (‫)עָשִ יר‬,
identificando-se com a situação do primeiro.
A visão que apresenta sobre os ricos reforça essa natureza dualista de classes
econômicas e exploração da época. Em momento algum o salmista indica uma perspectiva
positiva sobre os ricos, a não ser a possibilidade de ouvirem seu discurso (Sl 49.2,3). Ao
contrário do conceito de “ricos piedosos”,966 as pessoas abastadas de sua época são descritas
como “os que confiam em suas posses” (49.7a) e vistas como inimigas do salmista, pois o
“atacam por trás” (49.6b). O proceder desses ricos estava repleto de “maldade” (‫)עָֹון‬967 contra
o próximo (49.6b), talvez roubando o pobre por meio da exploração de trabalho escravo ou
buscando o favoritismo de governantes à custa do marginalizado (uso de ‫ עָֹון‬em Os 7.1-3; Ez
9.9). É possível também que estivessem deixando de “amparar” o “pobre” (‫ ) ֶאבְיֹון‬em suas
necessidades (uso de ‫ עָֹון‬em Ez 16.49).
Ao usar os verbos “confiar” (‫ )בטח‬e “gloriar-se” (‫)הלל‬, que estão relacionados à
adoração a YHWH (Sl 22.4,5[5,6]; 34.2[3]) ou aos ídolos (97.7) no livro de Salmos, para falar
da relação dos ricos com as “suas posses” ou com a “abundância de seus bens” (Sl 49.7), o
salmista indica um problema básico de adoração e idolatria na sociedade em que vive.968 Não
há menção a adoração aos deuses das nações, mas existe a denúncia de que “Mamom” está
sendo o foco de devoção do establishment da nação. Um materialismo desenfreado tomou
conta dessa gente e isso não representa algo positivo para os desfavorecidos. Pois à medida

962
Tradução da ARA.
963
ALBERTZ, 1999, p. 667-76; SPANGENBERG, 1997, p. 338-9.
964
“Voz do rico”
965
“Voz do pobre”.
966
Ver essa ideia em SIQUEIRA, Salmo 49 (no prelo).
967
O vocábulo ‫ עָֹון‬é geralmente usado para ser referir tanto ao delito quanto à culpa e à punição que advêm do
delito praticado. Portanto, esses ricos que “atacam por trás” o salmista são culpáveis e dignos de punição
(KNIERIM, R., ‫עָֹון‬, in: JENNI; WESTERMANN, 1997, p. 863-4).
968
GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição kindle): “O verdadeiro risco em sua atitude [dos ricos] está implicado
nos verbos do salmo. Ele fala de sua confiança e exultação (louvor). Esses são verbos que merecem ter Yhwh
como seu objeto (e.g., 22.4,5[5,6]; 34.2[3]), mas aqui seus objetos são os recursos e a riqueza.”
146

que os abastados da comunidade do salmista alcançam mais riquezas (‫)עשר‬969 e suas casas
manifestam uma prosperidade ainda maior (49.17),970 os pobres são tomados de temor (‫)ירא‬,
por isso, a necessidade da exortação: “Não temas” (49.17a).
É possível ver aqui uma conexão com a situação de terrível opressão descrita em
Jeremias 5.26,27, em que a mesma raiz verbal ‫“( עשר‬alcançar riquezas”, “enriquecer”) e o
mesmo susbtantivo ‫“( ַבי ִת‬casa”) de Salmo 49.17 são usados em referência a pessoas
“perversas” (‫שעִים‬
ָ ‫)ר‬
ְ que “se enriqueceram” (‫שירּו‬
ִ ‫ ) ַוי ַ ֲע‬e aumentaram os bens de “suas casas”
(‫ )בָתֵ י ֶַהם‬à custa de outros, fazendo dos homens vítimas de suas maldades como pássaros
perseguidos por um caçador.
A ampliação egoísta de latifúndios está retratada pela aquisição desmedida de terras
(‫( )אֲ דָ מֹות‬Sl 49.12). O versículo 12 descreve a atividade poderosa dos ricos como se fossem
reis que “aclamam seus nomes sobre as terras”971 (2Sm 12.26ss.). “A expressão ‫קרא ַשם‬
(“aclamar o nome”) designa um ato jurídico por meio do qual ocorre uma transmissão de
domínio”.972 O plural de intensidade dos dois termos paralelos ‫“( בָתֵ ימֹו‬suas casas”) e ‫מִשְ כְנֹתָם‬
(“suas habitações”) (v. 12)973 enfatiza a rica condição dos “insensatos” e “brutos”, adquirindo
cada vez mais bens, ferindo a ideia sagrada no Deuteronômio da “herança” como posse
inalienável de cada família na terra de Israel (transmitida a cada geração – Dt 19.14) e como
porção prometida e dada por YHWH nessa terra de Israel (cf. Gn 15.7-8, 18-21).
Em uma nação com alta densidade demográfica devido à política de expansão e
centralização de Josias, o que sobraria para o “pobre” (‫) ֶאבְיֹון‬, se o rico havia tomado as terras
para cultivar e as casas em que poderia morar? Essa ampliação dos latinfúndios da elite
econômica na Judá da época do Salmo 49 reflete uma condição semelhante àquela anterior de
Isaías 5.8: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais
lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (ARA).
Certamente o autor do salmo não fazia parte da classe socioeconômica alta, pois,
assim como os desfavorecidos de Salmo 49.17 poderiam sentir-se tentados a temer (‫ )ירא‬a

969
O sentido básico do verbo ‫ עשר‬no grau hifil é “alcançar riqueza”, “tornar-se rico”, “enriquecer”. (KIRST et al.,
2004, p. 189; GESENIUS, 2003, p. 660).
970
Para o uso de ‫ כָבֹוד‬com o sentido de riqueza ou prosperidade, ver DAHOOD, 1965, p. 302; BROWN;
DRIVER; BRIGGS, 1977, p. 458; RAABE, 1990, p. 78; BRIGGS, 1906, p. 411-12.
971
‫ק ְָראּוַ ִבׁשְמֹותָ םַ ֲעלֵּיַאֲדָ מֹות‬
972
KRAUS, 1993, p. 737.
973
GESENIUS; KAUTZSCH; COWLEY, 1910, p. 397-8, §124.e; GOLDINGAY, 2006, Psalm 49 (edição
kindle).
147

ampliação de poder econômico dos donos das terras, o salmista enfrenta esse dilema e
pergunta: “Por que temerei [‫[ ]ירא‬...] a maldade dos que [...] confiam em suas riquezas”.974
Além disso, os que deixam “suas posses” (‫ )חֵי ַָלם‬para outros ao morrer não são os
“sábios”, grupo com o qual o salmista se identifica pelas carcaterísticas linguísticas e literárias
de seu texto,975 mas o “insensato” e o “bruto” (Sl 49.11).976 Conforme observado
anteriormente, é significativa a repetição de ‫“( חֵילָם‬suas posses”) em Salmo 49.11c, pois, essa
construção foi usada para designar “os que confiam em suas posses [‫ ”]חֵילָם‬em 49.7. O uso do
mesmo termo acompanhado do mesmo sufixo pronominal possessivo é, muito provavelmente,
estratégia retórica do autor para designar “os que confiam em suas posses” como
“insensato[s]” e “bruto[s]” — indivíduos sem uma vida moral correta (‫ ) ְכסִיל‬ou sem uma
forma de agir sensata e lúcida (‫) ַבעַר‬.
A observação de Erhard Gestenberger em seu comentário parece corroborar a tese de
autoria e ambiente do Salmo 49 que tem sido proposto aqui:

Os teólogos do Antigo Testamento estavam conscientes das distinções de classes e


distinções de interesses dentro da própria Israel. O inimigo e o mal não deveriam ser
simplesmente identificados fora do povo escolhido. Os salmistas muitas vezes
elaboraram severos vereditos contra os opressores dentro de seu próprio grupo
étnico (1Sm 2.3-8; Sl 10).
[...] À medida que a religião popular declinou sob a pressão das tendências
centralizadoras, aqueles de posições mais baixas nas hierarquias profética e
sacerdotal assumiram as responsabilidades de aconselhar pessoas e grupos em
angústia. Essa função explicaria a profunda empatia com os necessitados percebida
em muitos salmos e em sua teologia de compaixão.977
Portanto, à luz da análise do conteúdo e das observações anteriores sobre os salmos
dos filhos de Corá e sobre a relação da escola de escribas com o templo, pode-se concluir que

974
WEISER, 1994, p. 286: “A maneira como o poeta fala da questão que o preocupa deixa claro que não se trata
de um problema que se resolva no âmbito do pensamento teório. O problema nasceu-lhe da sua própria vida e a
resposta que dá está totalmente voltada para a vida prática [...] A pergunta ‘por que vou temer os dias maus,
quando a maldade me persegue e envolve?’ [...] deixa transparecer os sentimentos que o poeta venceu em si
mesmo contra as adversidades que seus ricos inimigos lhe preparavam: o medo e a inveja. Medo do oprimido do
poder humano e a inveja [...] que a riqueza dos outros provoca dolorosamente em face da própria penúria...”. Ver
também BORTOLINI, 2000, p. 206-8; BORTOLINI, 2002, p. 245-6.
975Ver a análise sobre esse tema na subseção 2.3.1 desta dissertação.
976
Keil e Delitzsch entendem que “certamente não é a intenção do poeta” ter os sábios como “sujeito” do último
verseto, que “deixam [...] suas posses” (KEIL; DELITZSCH, 1996, v. 5, p. 351). Paul Raabe também destaca
que o “sujeito do verbo e o antecedente do sufixo pronominal são o ‘insensato e o bruto’ do versículo 11b, pois o
foco está na riqueza” (RAABE, 1990, p. 73.).
977GERSTENBERGER, 1988, cap. 1.2 (edição kindle). Craigie se aproxima de algumas ideias expressas nessa

observação de Gerstenberger, ao sugerir a possibilidade de que o salmo tenha surgido em contexto semelhante ao
do aconselhamento de nossos dias. Uma pessoa com o dilema moral/intelectual se aproximou do representante
da tradição de sabedoria em busca de uma solução. O salmo seria uma resposta (recitada ou cantada) em que
apresenta o contexto adequado para lidar com o dilema das riquezas e da morte (CRAIGIE, 1983, p. 358).
148

o autor do Salmo 49 é um levita pobre978 e de baixa posição na hierarquia dos funcionários do


templo, que se opõe ao abuso socioeconômico praticado por aqueles que tinham melhores
condições financeiras, fossem sacerdotes de alta posição, fossem reis e príncipes, fossem os
ricos proprietários de terras.

978BORTOLINI, 2002, p. 245-6; BORTOLINI, 2000, p. 207: “O salmista é pobre e não tem medo de mexer com
os nobres e ricos, que o cercam e o espreitam”.
149

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta pesquisa, é possível vislumbrar de forma mais nítida a situação de vida
do autor do Salmo 49, quais eram seus dilemas, bem como as preocupações daqueles a quem
ele representava. Sua mensagem não foi comunicada em um vácuo histórico, mas em uma
condição repleta de cores e nuances que justificam sua mensagem profética e sapiencial.
No primeiro capítulo, buscou-se responder à pergunta sobre a condição do texto do
Salmo 49, que envolveu a análise de testemunhas textuais divergentes e convergentes com o
TM. Observou-se que o salmo está repleto de problemas textuais (mais de quarenta), porém,
em geral, o TM preserva um texto bem próximo daquele produzido pelo salmista, muitas
vezes apoiado pela Vulgata Latina, às vezes dicordando da LXX e, em várias instâncias,
distinto da Héxapla de Orígenes. Algumas variantes textuais originaram-se de erros
involuntários dos copistas, mas grande parte delas ocorreu por tentativas de tornar o texto
mais claro em trechos do hebraico aparentemente truncados ou confusos.
Em seguida, analisou-se a Gattung do salmo e observaram-se diversos aspectos
literários (o chamado inicial do mestre; a poesia dirigida a homens, não a YHWH) e de
conteúdo (termos sapienciais e a questão da teodicéia) que indicam claramente ser ele um
texto sapiencial, produzido por um antigo sábio de Israel.
Ainda no capítulo 1, estudou-se a estrutura e coesão do salmo. Constatou-se uma
estrutura quiasmática bastante clara e bem planejada, em que há uma sequência de pergunta e
resposta associadas com o aumento da riqueza dos ímpios e a realidade da morte para todos.
Além disso, destacou-se a presença de palavras-chaves ligadas aos campos semânticos da
economia, sabedoria e da morte. Diversas palavras se repetem no Salmo 49 e são usadas às
vezes de forma irônica para demonstrar exatamente o oposto daquilo que o rico ímpio
esperava: não a tão sonhada vida eterna, mas a morte firme e inflexível.
No segundo capítulo, a análise do conteúdo concentrou-se nos elementos
semânticos e sintáticos do Salmo 49, sem deixar de observar aspectos literários, como os
diversos tipos de parallelismus membrorum. O exame do conteúdo revelou alguns aspectos
predominantes sobre a identidade do salmista e sua mensagem: ele era um sábio do antigo
Israel ligado ao templo por sua relação com os coraítas; estava de certa forma associado à
150

tradição profética na crítica severa às injustiças sociais; e foi assertivo em declarar que o
homem é incapaz de livrar-se da morte.
O conteúdo do Salmo 49 afirma que somente YHWH pode redimir um ser humano
do poder do Sheol. Os ímpios são entregues à própria sorte e, no fim de suas vidas, são
pastoreados pela Morte (Sl 49.13-15,17-20). Aqui, há certa conexão com o Salmo 1. Assim
como o insensato e o bruto “são destruídos” (‫ )י ֹאבֵדּו‬em Salmo 49.11, em Salmo 1.6 afirma-se
que o “caminho dos perversos será destruído (‫”)ת ֹאבֵד‬. Há nesses dois textos ausência da “ação
de Deus” em relação aos ímpios, que são entregues à autodissolução.979 O rico malvado e
criticado no Salmo 49, em sua arrogância e estupidez (“não tem entendimento” [Sl 49.21]), se
assemelha “aos animais que perecem”.
Em contrapartida, o salmista tem a certeza do cuidado de YHWH em seu favor,
redimindo-o da morte prematura e violenta que os seus opositores lhe intentam causar: “Mas
Deus redimirá minha vida do poder do Sheol!” (Sl 49.16). Constatou-se que não há uma
perspectiva clara sobre a post mortem no salmo, apenas a visão de que YHWH é fiel à sua
aliança, preservando a vida daqueles que o temem. O cuidado de Deus não se manifesta no
além-túmulo, mas na redenção das tribulações e humilhações que os ímpios intentam contra o
justo, as quais são uma antecipação do Sheol (ver análise do conteúdo de Sl 49.16; cf. o uso
de ‫ פדה‬em Sl 25.22; Sl 34.23[22]; cf. o uso de ‫ לקח‬em 18.17,18[16,17] com a ideia de
libertação da ameaça de morte temporária e iminente: “Do alto me estendeu ele a mão e me
tomou [‫[ ]י ִ ָק ֵחנִי‬...] livrou-me de forte inimigo [...] pois eram mais fortes do que eu”).980
Por fim, o terceiro capítulo analisou a possibilidade de um contexto pré-exílico para
o Salmo 49, distinto daquele pressuposto pelo “consenso” desde que Mowinckel escreveu sua
tese sobre a “salmografia erudita”. Após um exame detalhado, concluiu-se que não é possível
assumir com segurança um contexto pós-exílico para a produção do texto bíblico em análise,
visto que as razões comumente apresentadas para ele, como os conflitos sociais e a relação da
sabedoria com outros movimentos no antigo Israel, já existiam no período pré-exílico.
Em seguida, procurou-se demonstrar, por um exame do desenvolvimento de escolas
escribais desde o período de Ezequias até o período final da monarquia em Israel, que o
salmista em foco nesta pesquisa poderia ser muito bem um sábio do templo, que conjugou sua
sabedoria com o culto. Por meio de uma análise de aspectos linguísticos e de paralelos com

979GRENZER,
2013, p. 22.
980
GOULDER, 1982, p. 191-2.
151

textos do profeta Jeremias, bem como pela semelhança com o contexto social de profundas
distinções socioeconômicas do profeta, esta pesquisa postulou um contexto no período de
Jehoaquim como o provável ambiente em que o Salmo 49 teria sido escrito.
Um levita pobre e sábio, preocupado com as questões do povo a quem ministrava,
provavelmente escreveu esse salmo para alertar os ricos ímpios de que suas riquezas eram
vazias, pois “um ser humano em esplendor” que “não entende” logo passa e se assemelha
“aos animais que perecem”.
152

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AEJMELAEUS, Anneli. Function and interpretation of ‫ כי‬in biblical Hebrew. JBL, v. 105, n.
2, 1986, p. 193-209.
AHARONI, Miriam; HERZOG, Ze’ev; RAINEY, Anson. Arad — an ancient Israelite fortress
with a temple to Yahweh. BAR, v. 13, n. 2, 1987, p. 16-25, 28-30, 34-35.
ALBERTZ, Rainer. Historia da la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento.
BCBO. Madrid: Trotta, 1999. 2 v.
ALEXANDER, T. D. The Psalms and the afterlife. IBS, v. 9, 1987, p. 2–17.
ALLEN, Leslie C. Psalm 73: pilgrimage from doubt to faith. BBR, v. 7, 1997, p. 1-10.
__________. Jeremiah: a commentary. OTL. Louisville; London: Westminster John Knox,
2008.
ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: tradução, introdução e comentário.
São Paulo: Paulus, 1996. v. 1.
ALONSO SCHÖKEL, Luís. Dicionário bíblico hebraico-português. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2004.
ALTER, Robert. The book of Psalms: a translation with commentary (New York: Norton,
2007)
__________. The art of biblical poetry. New York: Basic Books, 2011 (edição kindle).
ALTER, Robert; KERMODE, Frank. Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997.
ANDERSEN, F. I. Habakkuk: a new translation with introduction and commentary. ABC 25.
New Haven: Yale University Press. 2008.
ANSBERRY, Christopher B. Be wise, my Son, and make my heart glad: an exploration of the
courtly nature of Proverbs. Berlin: De Gruyter, 2011.
ARCHER, Gleason, Jr. A survey of Old Testament introduction. 3. ed. Chicago: Moody,
1994.
ARNDT, W.; DANKER, F. W.; BAUER, W. (2000). A Greek-English lexicon of the New
Testament and other early Christian literature. 3. ed. Chicago: University of Chicago
Press, 2000.
BACON, Betty. A morte na boca do povo: reflexões bíblicas e culturais. In: Vox Scripturae,
vol. 6, n. 1, 1996, p. 3-14.
BARKAY, Gabriel; FANTALKIN, Alexander; TAL, Oren. A Late Iron Age fortress North of
Jerusalem. In: BASOR, n. 328, 2002, p. 49-71.
BARKER, K. L. Micah, Nahum, Habakkuk, Zephaniah. NAC. Nashville: Broadman &
Holman, 1999.
BARTH, Christoph F. Introduction to the Psalms. New York: Charles Scribner’s Sons, 1966.
153

BAUER, W.; ARNDT, W.; GINGRICH, F. W.; DANKER, F. W. A Greek-English lexicon of


the New Testament and other early Christian literature: a translation and adaption of the
fourth revised and augmented edition of Walter Bauer's Griechisch-deutsches
Worterbuch zu den Schrift en des Neuen Testaments und der ubrigen urchristlichen
Literatur. Chicago: University of Chicago Press, 1979.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.
BELLINGER, W. H. Jr. Psalms: a guide to studying de Psalter. 2. ed. Grand Rapids: Baker
Academic, 2012.
BERMAN, Joshua. The ‘sword of mouths’ (Jud. III.16; Ps. C LI .6; Prov. V.4): a metaphor
and its Ancient Near Eastern context. VT, v. 52, n. 3, 2002, p. 291-303.
BERRY, Donald K. An introduction to wisdom and poetry of the Old Testament. Nashville:
Broadman and Holman, 1995 (edição kindle).
BIBLICAL STUDIES PRESS. The NET Bible first edition. Biblical Studies, 2005.
BORTOLINI, José. Conocer y rezar los Salmos: comentario popular para nuestros dias.
Madrid: San Pablo, 2002.
__________. Conhecer e rezar os Salmos: comentário popular para nossos dias. 2. ed. São
Paulo: Paulus, 2000.
BOTTERWECK, G. Johannes (ed.). Theological Dictionary of the Old Testament. Grand
Rapids: Eerdmans, 1977-2012. 15 v.
BRAND, C. et al. (orgs.). Holman illustrated Bible dictionary. Nashville: Holman Bible.
BRANNAN, R. et al. (orgs.). The Lexham English Septuagint. Bellingham: Lexham, 2012
BRENTON, L. C. L. The Septuagint version of the Old Testament: English translation.
London: Samuel Bagster and Sons, 1870.
BRIGGS, Charles Augustus. A critical and exegetical commentary on the book of Psalms.
Edinburgh: T & T Clark, 1906.
BRIGHT, John. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003.
BRINDLE, Wayne A. The causes of the division of Israel’s Kingdom. BS, v. 141, n. 563,
1984, p. 223-233.
BROTZMAN, Ellis R; TULLY, Eric J. Old Testament textual criticism: a practical
introduction. 2. ed. Grand Rapids: Baker Academic, 2016 (edição kindle).
BROWN, F.; DRIVER, S.; BRIGGS, C. The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English
lexicon. Oxford: Clarendon, 1977.
BROYLES, Craig C. Psalms. Grand Rapids: Baker, 1999.
BRUEGGEMANN, Walter. The message of the Psalms. Minneapolis: Augsburg, 1984.
BUSS, Martin J. The Psalms of Asaph and Korah. JBL, v. 82, n. 4, 1963, p. 382-392.
CATE, Robert L. Teologia del Antiguo Testamento: raíces para la fe neotestamentaria. El
Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 1989.
154

CHARRY, Ellen T. Psalms 1—50: sighs and songs of Israel. Grand Rapids: Brazos, 2015
(edição kindle).
CHILDS, Brevard. S. Isaiah. Louisville, London: Westminster John Knox, 2001.
CHISHOLM, Robert L. From exegesis to exposition: a practical guide to using biblical
Hebrew. Grand Rapids: Baker, 1998 (edição kindle).
__________. Da exegese à exposição: guia prático para o uso do hebraico bíblico. São Paulo:
Vida Nova, 2016.
CLINES, David J. A. The Dicitonary of the classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Academic,
1993-2011. 8 v.
COLE, R. D. Numbers. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2000.
COLLINS, C. John. “‘Death will be their shepherd’ or ‘death will feed on them’? mawet
i ‘e in Psalm 49.15 (EVV v. 14)”. TBT, vol. 46, n. 3, p. 320-6, 1995.
COOGAN, Michael D.; SMITH, Mark S. (eds.). Stories from ancient Canaan. 2. ed.
Louisville: Westminster John Knox, 2012.
COOPER, L. E. Ezekiel. Nashville: Broadman & Holman, 1994.
CORLEY, Bruce; LEMKE, Steve W.; LOVEJOY, Grant I. Biblical hermeneutics: a
comprehensive introduction to interpreting Scripture. 2. ed. Nashvile: Broadman &
Holman, 2002.
CRAIGIE, Peter C. Psalms 1—50. WBC. Nashville: Thomas Nelson, 1983.
CRENSHAW, James L. Education in Ancient Israel. JBL, v. 104, n. 4, 1985, p. 601-15.
__________. Old Testament wisdom. Atlanta: John Knox, 1981.
__________. In search of divine presence: some remarks preliminary to a theology of
Wisdom. RE, v. 74, n. 3, 1977, p. 353-369.
__________. The influence of Wise upon Amos. ZAW, v. 79, n. 1, 1967, p. 42-52.
CROFT, Steven John Lindsey. The identity of the individual in the book of Psalms. Durham:
Durham University, 1984 (Tese de Doutorado).
CRÜSEMANN, Frank. Cânon e história social: ensaios sobre o Antigo Testamento. São
Paulo: Loyola, 2009.
DAHOOD, Mitchell. Psalms 1—50: a new translation with introduction and commentary.
ABC. Garden City: Doubleday, 1965.
__________. Psalms 51—100: introduction, translation and notes. ABC. Garden City:
Doubleday, 1968.
DAY, John. Psalms. OTG. Sheffield: Sheffield Academic, 1990.
DA SILVA, Airton José. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C.
Brodowski, 2011.
DECLAISSÉ-WALFORD, Nancy; JACOBSON, Rolf A.; TANNER, B. Book One of the
Psalter: Psalms 1—41. NICOT. Grand Rapids: Eerdmans, 2014A.
155

__________. Book Two of the Psalter: Psalms 42–72. NICOT. Grand Rapids: Eerdmans,
2014B.
DELL, Katherine J. Proverbs 1—9: issues of social and theological context. Interpretation, v.
63, n. 3, 2009, p. 229-240.
__________. Scribes, sages, and seers in the First Temple. In: PERDUE, L. G. (ed.). Scribes,
sages, and seers: the sage in the Eastern Mediterranean World. Göttingen: Vandehoeck
& Ruprecht, 2008.
__________. The book of Proverbs in social and theological context. Cambridge: Cambridge
Univesity Press, 2006.
__________. “I will solve my riddle to the music of the lyre” (Psalm XLIX 4 [5]): A cultic
setting for wisdom psalms. VT, v. 54, n. 4, 2004a, p. 445-458.
__________. How much wisdom literature has its roots in the Pre-Exilic period?. In: DAY,
John (ed.). In search of Pre-Exilic Israel. New York: T&T Clark, 2004b.
WEBER, Robert; GRYSON, Roger (eds.). Biblia Sacra iuxta Vulgatem versionem. 3. ed.
Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1969 (edição eletrônica).
DEUTSCHE BIBELGESELLSCHAFT. Biblia Sacra: Psalmi iuxta hebraicum et varia lectio.
3. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1969 (edição eletrônica).
DILLARD, Raymond B.; LONGMAN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento (São
Paulo: Vida Nova, 2006).
DUNN, Seteven. Wisdom editing in the book of Psalms: vocabulary, themes, and structures.
Milwaukee: Marquette University, 2009 (Tese de Doutorado).
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
EDITORA PAULUS. Bíblia de Jerusalém. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2002.
ELLIGER, K.; RUDOLPH, W. (eds.). Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5 ed. Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.
ERICKSON, Millard. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015.
ESTES, Daniel J. Poetic artistry in the expression of fear in Psalm 49. BS, v. 161, n. 1, 2004,
p. 55-71.
EWALD, Heinrich. E a ’s int o ucto Heb e Ga a . London: Asher and Company,
1870.
FEINBERG, Charles L. Jeremiah. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e
Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1986. v. 6.
FIELD, Fredericus (ed.). Origenis Hexaplorum quae supersunt, sive veterum interpretum
Graecorum in totum Vetus Testamentum fragmenta. Oxford: Clarendoniano, 1875. v. 2:
Jobus – Malachias; Auctarium et Indices.
FINKELSTEIN, Israel. The archaeology of the days of Manasseh. In: COOGAN, M. D.;
EXUM, J. C.; STAGER, L. E. (eds.). Scripture and other artifacts: essays on the Bible
and archaeology in honor of Philip J. King. Louisville: Westminster John Knox, 1994.
FINLEY, T. J. Joel, Amos, Obadiah. [s.l.]: Biblical Studies Press, 2003.
156

FISCHER, Stephan. Qohelet and ‘heretic’ harpers’ songs. JSOT, v. 26, n. 4, 2002, p. 105-21.
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica. 3 ed. São Paulo: Vida Nova,
2008.
__________. RE: Uma dúvida sobre o texto do Sl 49[48] da Héxapla [mensagem pessoal].
Mensagem recebida por tatn84@hotmail.com em 4 de maio de 2017.
__________. Antigo Testamento interlinear hebraico-português. Barueri: SBB. v. 4: Escritos
(no prelo).
FREEDMAN, David Noel. Headings in the books of the eighth century prophets. AUSS, v.
25, n. 1, 1987, p. 9-26.
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: É Realizações, 2014.
GESENIUS, F. W. Gesenius’ Hebrew and Chaldee lexicon to the Old Testament Scriptures.
Bellingham: Logos Bible Software, 2003.
GESENIUS, F. W.; KAUTZSCH, Emil; COWLEY, Arthur. Gesenius’ Heb e g a a . 2.
ed. Oxford: Clarendon, 1910.
GESTENBERGER, Erhard S. Psalms: part I — with an introduction to cultic poetry. FOTL.
Grand Rapids: Eerdmans, 1988 (edição kindle).
GIMÉNEZ-RICO, Enrique Sanz. Salmos 49—52, Horizonte de comprensión del miserere.
Estudios Eclesiásticos, v. 89, n. 350, 2014, p. 393-431.
GOLDINGAY, John. Psalms. BCOT. Grand Rapids: Baker, 2006. v. 1: Psalms 1—41.
__________.Psalms. BCOT . Grand Rapids: Baker, 2007. v. 2: Psalms 42—89.
__________. Isaiah. NIIBC. Peabody: Hendrickson, 2001.
__________. Theological diversity and the authority of the Old Testament. Grand Rapids:
Eerdmans, 1987.
GORDON, Robert P. 1 and 2 Samuel: a commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1988.
GORMAN, Michael J. Elements of Biblical Exegesis. Peabody: Hendrickson, 2001.
GOULDER, Michael D. The Psalms of the sons of Korah. Sheffield: JSOT, 1982.
GOTTWALD, Norman K. The politics of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox,
2001.
GRABBE, Lester. Scribes, writing and epigraphy in the second temple period. In: ESHEL,
Esther; LEVIN, Yigal. “See, I Wi b ing a sc o ecounting at befe e” (Ps 40:8):
epigraphy and daily life from the Bible to Talmud. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
2014.
GRANT, Michael. The history of Ancient Israel. New York: Scribner’s Sons, 1984.
GRAY, John. The Book of Job. Sheffiel: Sheffield Phoenix, 2010.
GRENZER, Matthias (ed. e trad.). A Bíblia: Salmos. São Paulo: Paulinas, 2017.
__________. Caminhos de justos e perversos (Sl 1). In: GRENZER, Matthias; FERNANDES,
Leonardo A. Dança, ó terra: interpretando Salmos. São Paulo: Paulinas, 2013.
GROGAN, Geoffrey W. Psalms. THOTC. Grand Rapids: Eerdmans, 2008.
157

GUNKEL, Hermann. The Psalms: a form-critical introduction. Philadelphia: Fortress, 1967.


HALPERN, Baruch; LEMAIRE, André (eds.). The composition of Kings. In: HALPERN,
Baruch; LEMAIRE, André (eds.). The book of Kings: sources, composition,
historiography and reception. SVT. Leiden: Brill, 2010.
HARDEN, J. M. Dictionary of the Vulgate New Testament. New York: The Macmillan, 1921.
HARRIS, R. Laird, ARCHER, Gleason L., Jr., WALTKE, Bruce K. (orgs.). Theological
Wordbook of the Old Testament. Chicago: Moody, 1999.
HARRISON. Roland K. Introduction to the Old Testament. Peabody, Massachusetts:
Hendrickson, 2004.
HAYS, Christopher B. Death in the Iron Age II and in First Isaiah. Forschungen zum Alten
Testament 79. Tübingen: Mohr Siebeck, 2011.
__________. The covenant with Mut: A new interpretation of Isaiah 28.1-22. Vetus
Testamentum, vol. 60, 2010, p. 212-40.
__________. “You Destroy a Person’s Hope”: Job as a conversation about death. In: DELL,
Katharine; KYNES, Will (orgs.), Reading Job Intertextually, Library of Hebrew
Bible/Old Testament Studies 574. London: T & T Clark, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/EDUSF, 2006.
HESS, Richard S.; ARNOLD, Bill T. (orgs.). Ancient Is ae ’s istory: an introduction to
issues and sources. Grand Rapids: Baker, 2014.
HIRSCH JR., E. D. Validity in the interpretation. New Haven: Yale University Press, 1967, p.
10.
HOLLADAY, W. L.; KÖHLER, L. A concise Hebrew and Aramaic lexicon of the Old
Testament. Leiden: Brill, 2000.
HUBBARD, David. Mastering the Old Testament: Proverbs. Dallas: Word, 1989.
__________. The wisdom movement and Israel’s covenant faith. TB, v. 17, 1966, p. 3-33.
HUMMEL, Horace D. Enclitic Mem in early northwest Semitic, especially Hebrew. JBL, v.
76, n. 2, 1957, p. 85-104.
HURVITZ, Avi. Wisdom vocabulary in the Hebrew Psalter: a contribution to the study of
“wisdom psalms”. VT, v. 38, n. 1, 1988, p. 41-51.
HUWILER, Elizabeth; MURPHY, Ronald E. Proverbs, Ecclesiastes, Song of songs. NIBC.
Peabody: Hendrickson, 1999.
JACOBSON, Diane. Wisdom language in the Psalms. In: BROWN, William P. (ed.). The
Oxford handbook of the Psalms. Oxford: Oxford University Press, 2014.
JAMIESON-DRAKE, David W. Scribes and schools in monarchic Judah: a socio-
archaeological approach. JSOTS. Sheffield: Sheffield Academic, 1991.
JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theological lexicon of the Old Testament. Peabody:
Hendrickson, 1997.
JOÜON, R. P. Glanes palmyréniennes. Syria, v. 19, n. 1, 1938, p. 99-102.
158

JOÜON, Paul; MURAOKA, Takamitsu. A Grammar of Biblical Hebrew. 2. ed. Subsidia


Biblica 27. Roma: Gregorian & Biblical Press, 2009.
__________. A Grammar of Biblical Hebrew. 2. ed. rev. Subsidia Biblica 27. Roma:
Gregorian & Biblical Press, 2011.
KAEFER, José Ademar. Coélet e a idolatria ao dinheiro: um estudo do livro de Eclesiastes.
Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2016.
__________. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015.
__________. “Há uma doença debaixo do sol”: uma introdução ao livro de Coélet. In:
KAEFER, José Ademar; JARSCHEL, Haidi (orgs.). Dimensões sociais da fé no Antigo
Israel – Uma homenagem a Milton Schwantes. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 271-298.
KAISER, Walter C. O cristão e as questões éticas da atualidade. São Paulo: Vida Nova,
2016.
KALLAND, Earl S. Deuteronomy”. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e
Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1991. v. 3.
KAUFMAN, Stephen A. (ed.). Targum Psalms: The late Jewish literary Aramaic version of
Psalms from the files of the Comprehensive Aramaic Lexicon Project (CAL). Cincinnati:
Hebrew Union College-Jewish Institute of Religion, 2005.
KELLE, Brad E. Judah in the seventh century: from the aftermath of Sennacherib’s invasion
to the beginning of Jehoiakim’s rebellion. In: HESS, Richard S.; ARNOLD, Bill T.
(orgs.). Ancient Is ae ’s isto : an introduction to issues and sources. Grand Rapids:
Baker, 2014.
KELLEY, Page H. Hebraico bíblico: uma gramática introdutória. 4. ed. São Leopoldo:
Sinodal, 1998.
KEIL, C. F.; DELITZSCH, F. Commentary on the Old Testament. Peabody: Hendrickson,
1996. v. 3, 5.
KIDNER, Derek. Salmos 1—72: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1980.
__________. Salmos 73—150: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1981.
KIRST, Nelson, et al. Dicionário hebraico-português e aramaico- português. 18. ed. São
Leopoldo: Sinodal, 2004.
KITTEL, Rudolph (ed.). Biblia Hebraica. Leipzig: J.C. Hinrichs, 1905-1906. 2 v.
KLEIN, Ralph W. 1 Samuel. WBC. Waco: Word, 1983.
KOEHLER, L.; BAUMGARTNER, W.; RICHARDSON, M. E. J.; STAMM, J. J. The
Hebrew and Aramaic lexicon of the Old Testament. Leiden: 1994-2000.
KÖSTENBERGER, Andreas J., PATTERSON, Richard D. Convite à interpretação bíblica:
fundamentos da tríade hermenêutica — história, literatura e teologia. São Paulo: Vida
Nova, 2014.
KRAUS, Hans-Joachim. Los Salmos. Salamanca: Sigueme, 1993.
LASOR, William S., HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
159

LEEUWEN, R. C. van. The sage in the prophetic literature. In: PERDUE, L.; GAMMIE, J.
The sage in Israel and the Ancient Near East. Winona Lake: Eisenbrauns, 1990.
LEICK, Gwendolyn. A dictionary of Ancient Near Eastern Mythology. New York, NY:
Routledge, 2003.
LEMAIRE, André. The sage in school and temple. In: GAMMIE, John G.; PERDUE, Leo G.
The sage in Israel and the Ancient Near East. Winona Lake: Eisenbraus, 1990.
__________. Sagesse et ecoles. VT, v. 34, n. 3, 1984, p. 270-81.
LETE, Gregorio del Omo; SANMARTÍN, Joaquín (eds.). A dictionary of the Ugaritic
language in the alphabetic tradition. Leiden: Brill, 2003.
LEWIS, C. T. An elementary Latin dictionary. Medford: American Book Company, 1890.
LICHTHEIM, Miriam. The songs of harpers. NEAS, v. 4, n. 3, 1945, p. 178-212.
LIDDELL, H. G. A lexicon: abridged from Liddell and Scott’s Greek-English lexicon. Oak
Harbor: Logos Research Systems, 1996.
LIMBURG, James. Psalms. Louisville: Westminster John Knox, 2000.
LIPSCHITS, Oded. The fall and rise of Jerusalem: Judah under Babylonian rule. Winona
Lake: Eisenbrauns, 2005.
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. 2. ed. São Paulo:
Paulus/Loyola, 2014.
LOADER, J. A. Wisdom by (the) people for (the) people. ZAW, v. 111, n. 2, 1999, p. 211-34.
LOHFINK, Norbert. Qoheleth. CC. Minneapolis: Fortress, 2003.
LONGMAN III, Tremper. The fear of the Lord is wisdom: a theological introduction to
wisdom in Israel. Grand Rapids: Braker Acadmic, 2017 (edição kindle).
__________. Psalms. Nottingham: Inter-varsity, 2014 (edição kindle).
LONGMAN III, Tremper, PROVAN, Iain, LONG, V. Philips. Uma história bíblica de Israel.
São Paulo: Vida Nova, 2016.
LOUW, J. P.; NIDA, E. A. Greek-English lexicon of the New Testament: based on semantic
domains. 2. ed. New York: United Bible Societies, 1996.
LUST, J., EYNIKEL, E., HAUSPIE, K. A Greek-English Lexicon of the Septuagint: revised
Edition. Deutsche Bibelgesellschaft: Stuttgart, 2003 (edição eletrônica).
LUCAS, Ernest. Proverbs. THOTC. Grand Rapids: Eerdmans, 2015.
SIQUEIRA, Tércio Machado. Comentário de Salmos (no prelo).
__________. Jerusalém vista pelos coraítas (Sl 46). Estudos Bíblicos, v. 76, Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 44-51.
MCDANIEL, Carl. Samson’s riddle. Διδασκαλια, v. 12, n. 2, 2001, p. 47-57.
MARSHALL, I. H. et al. (orgs.). New Bible dictionary. 3. ed. Downers Grove: InterVarsity,
1996.
MARTIN-ACHARD, Robert. Da morte à ressurreição segundo o Antigo Testamento. São
Paulo: Academia Cristã, 2015.
160

MAYS, James Luther. Psalms. Interpretation. Louisville: Westminster John Knox, 2011.
MAZAR, Amihai. Archaeology of the land of the Bible: 10.000-586 B.C.E. New York:
Doubleday, 1990.
MENDONÇA, Élcio Valmiro S. Monte Sião extremidade do Safon: estudo da influência
cananeia na teologia de Sião a partir da análise exegética do Salmo 48. São Bernardo do
Campo: UMESP, 2012 (Dissertação de Mestrado).
MERWE, Christo van der; NAUDÉ, Jackie; KROEZE, Jan. A Biblical Hebrew reference
grammar. Sheffield: Sheffield Academic, 1999 (edição eletrônica).
MERRILL, Eugene H. História de Israel no Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2001.
MILLARD, Alan. The question of Israelite literacy. BR, v. 3, n. 3, 1987, p. 22-32.
MILLER, J. Maxwell. The Korahites of Southern Judah. CBQ, v. 32, 1970, p. 58-68.
MILLER, Cynthia L. A linguistic approach to ellipsis in biblical poetry. BBR, v. 13, n. 2,
2003, p. 251-270.
MILLER, D. B. Ecclesiastes. Scottdale; Waterloo: Herald, 2010.
MIRANDA, Evaristo E. de. Agora e na hora: ritos de passagem à eternidade, 2. ed., São
Paulo, Loyola, 1999.
MITCHELL, David C. ‘God will redeem my soul from Sheol’: The psalms of the sons of
Korah. JSOT, v. 30, n. 3, 2006, p. 365-84.
MITCHELL, Hinckley G. Final constructions of biblical Hebrew. JBL, v. 34, n. 1, 1915, p.
83-161.
MOWINCKEL, Sigmund. Psalms and wisdom. In: NOTH, Martin; THOMAS, D. Winton.
Wisdom in Ancient Israel and in the Ancient Near East: presented to Professor Harold
Heny Rowley. SVT 3. Leiden: Brill, 1969.
__________. Psalms in Israel worship. 2. ed. Grand Rapids: Eerdmans, 2004.
MUILENBURG, James. Introduction. In: GUNKEL, Hermann. The Psalms: a form-critical
introduction. Philadelphia: Fortress, 1967.
MÜLLER, D. H. Himjarische Inschriften. Zeitschrift der Deutschen Morgenländischen
Gesellschaft, v. 29, 1875, p. 591-628.
MURPHY, Roland E. Job, Psalms. Philadelphia: Fortress, 1977.
MYERS, A. C. (ed.). The Eerdmans Bible dictionary. Grand Rapids: Eerdmans, 1987.
NETO, Tiago Abdalla Teixeira. Sábios e profetas: a influência da tradição sapiencial no
profetismo da Bíblia Hebraica. Revista Batista Pioneira, v. 5, n. 2, 2016, p. 359-375.
__________. Poesia sagrada como arte: uma análise literária e retórica do Salmo 49.
Ciberteologia, n. 55, 2017, p. 146-155.
OGDEN, Graham S. Qoheleth. 2. ed. Sheffield: Sheffield Phoenix, 2007.
OLIVER, Andrew (ed.). Syriac Peshito version of the Psalms of David with notes critical and
explanatory. Boston: E. P. Dutton and Company, 1861.
161

OLIVEIRA, Jefferson Cardoso. Sítios da morte sem fim: espaço e focalização em Pedro
Páramo. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2013 (Dissertação de Mestrado).
ORLINSKY, Harry. Ancient Israel. 2. ed. Ithaca: Cornel Universtiy Press, 1960.
ORR, James. The international Standard Bible encyclopedia. Grand Rapids: Eerdmans, 1939
(versão eletrônica).
OSBORNE, Grant. A espiral hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
PATTERSON, R. D.; HILL, A. E. Minor Prophets: Hosea–Malachi. Carol Stream: Tyndale,
2008
PERDUE, Leo G. The riddles of Psalm 49. JBL, v. 93, n. 4, 1974, p. 533-42.
__________. Wisdom and creation: the theology of wisdom literature. Eugene: Wipf and
Stock, 1994.
__________. Wisdom and cult. Missoula: Scholars, 1977.
PETRANY, Catherine. Instruction, performance, and prayer: the didactic function of psalmic
wisdom. In: DECLAISSÉ-WALFORD, Nacy L. (ed.). The shape and shaping of the
Book of Psalms: the current state of scholarship. Atlanta: Society of Biblical Literature,
2014.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. 2. ed. São
Paulo: Hagnos, 2014.
__________. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006.
__________. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1998.
PLEINS, J. David. Poverty in the social world of the wise. JSOT, v. 12, n. 37, 1987, p. 61-78.
__________. Death and endurance: reassessing the literary structure and theology of Psalm
49. JSOT, v. 21, n. 69, 1996, p. 19-27.
__________. The social visions of the Hebrew Bible: a theological introduction. Louisville:
Westminster Joh Knox, 2001.
PLOEG, J. van der. Notes sur le Psaume XLIX. In: BOER, P. A. H. (ed.). Oudtestamentische
Studien 13. Leiden: Brill, 1963.
PONTE, Moisés Nonato Quintela. Por que o justo sofre? Um estudo do Salmo 73 (72) a partir
do método da “agenda para o estudo de um texto bíblico”. Pensar, v. 1, n. 1, 2011, p. 79-
93.
PRITCHARD, James B (ed.). Ancient Near Eastern texts relating to the Old Testament. 3. ed.
Princeton: Princeton University Press, 1969.
QUICK, Laura. Recente research on Ancient Israelite education: a bibliographic essay. CBR,
v. 13, n. 1, 2014, p. 9-33.
RAABE, Paul R. Psalm structures: a study of psalms with refrains. JSOTS 104. Sheffield:
Sheffield Academic, 1990.
__________. Deliberate ambiguity in the Psalter. JBL, v. 110, n. 2, 1991, p. 213-227.
RENDTORFF, Rolf. A formação do Antigo Testamento. 9 ed. São Leopoldo: Sinodal, 1998.
162

RIDLING, Zaine. Bible Atlas. [s.l.]: Acces Foundation, [s.d.].


RYKEN, Leland. Words of delight: a literary introduction to the Bible. Grand Rapids: Baker,
1992.
__________. A complete handbook of literary forms in the Bible. Wheaton: Crossway, 2014
(edição kindle).
ROBERTSON, O. P. The Books of Nahum, Habakkuk and Zephaniah. NICOT. Grand Rapids:
Eerdmans Publishing, 1990.
ROLLSTON, Christopher A. Writing and literacy in the world of Ancient Israel: epigraphic
evidence from the Iron Age. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2010.
ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico. 2. ed. São Paulo: Vida, 2009.
__________. Proverbs. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e Co entary. Grand
Rapids: Zondervan, 1991. v. 5.
__________. Psalms. In: WALVOORD, John F.; ZUCK, Roy B. The Bible Knowledge
commentary. Wheaton: Victor Books, 1985. v. 1, p. 780.
ROWLEY, H. H. A fé em Israel. São Paulo: Teológica, 2003.
RULFO, Juan. Pedro Páramo. 3. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015.
SABOURIN, Leopold. The Psalms: their origin and meaning. New York: Alba House, 1974.
SÁENZ-BADILLOS, Angel. A History of the Hebrew Language. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996.
SARNA, Nahum. On the book of Psalms: exploring the prayers of Ancient Israel. New York:
Schoken, 1993a.
__________. Songs of the heart. BR, v. 9, n. 4, 1993b, p. 32-37, 40.
SAUR, Markus. Where can wisdom be found? New perspectives on the wisdom psalms. In:
SNEED, Mark (ed.). Was there a wisdom tradition? New prospects in Israelite wisdom
studies. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2015.
SCHENKER, Adrian. K per et expiation. Biblica, v. 63, n. 1, 1982, p. 32-46.
SCHNIEDEWIND, William M. Como a Bíblia tornou-se um livro: a textualização do antigo
Israel. São Paulo: Loyola, 2011.
SCOTT, R. B. Y. The way of wisdom in the Old Testament. New York: Macmillan, 1971.
SEARLE, John. Reiterating the differences: reply to Derrida. Glyph: Johns Hopkins Textual
Studies, v. 1, 1977, p. 198-208.
SELLIN, Ernst, FOHRER, George. Introdução ao Antigo Testamento. 2 ed. São Paulo:
Paulinas, 1977. v. 1.
SÊNECA, Lucius. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: L&PM, 2006.
SIMIAN-YOFRE, Horácio et al. Metodologia do Antigo Testamento. 3. ed. São Paulo:
Loyola, 2015.
SIQUEIRA, Tércio Machado. Comentário de Salmos (no prelo).
SLOTKI, Judah J. Psalm XLIX 13, 21 (AV 12, 20). VT, v. 28, n. 3, p. 361-2.
163

SMITH, Gary V. Isaiah 1–39. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2007.
__________. Isaiah 40—66. Nashville: Broadman & Holman, 2009.
SMITH, J. E. 1 and 2 Samuel. Joplin: College Press, 2000.
SMITH, Janet K. Dust or dew: immortality in the ancient Near East and in Psalm 49. Eugene:
Pickwick, 2011.
SMITH, Mark S. The invocation of deceased ancestors in Psalm 49.12c. Journal of Biblical
Literature, v. 112, n. 1, 1993, p. 105-7.
SMITH, Ralph L. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo:
Vida Nova, 2001.
SNEED, Mark. Is the “wisdom tradition” a tradition?. CBQ, v. 73, 2011, p. 50-71.
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993.
SPANGENBERG, I. J. I. Psalm 49 and the book of Qohelet. VE, v. 18, n. 2, 1997, p. 328-44.
SPEISER, E. A. Census and ritual expiation in Mari and Israel. BASOR, n. 149, 1958, p. 17-
25.
STRACHAN, Owen; VANHOOZER, Kevin J. The pastor as public theologian. Grand
Rapids: Baker Academic, 2015.
STUART, D. K. Old Testament Exegesis. 4. ed. Louisville: John Knox, 2009.
__________. Exodus. NAC. Nashville: Broadman & Holman, 2006. v. 2.
SWANSON, J. Dictionary of biblical languages with semantic domains: Hebrew. Oak
Harbor: Logos Research Systems, 1997 (edição eletrônica).
SILVA, Valmor da. Los salmos como literatura. RIBLA, n. 45, 2003, p. 9-22.
TENNEY, Merrill C. The Zondervan pictorial encyclopedia of the Bible. Grand Rapids:
Zondervan, 1975-1976. 5 v.
TERRIEN, Samuel. The Psalms: strophic structure and theological commentary. Grand
Rapids: Eerdmans, 2003.
TESH, S. E.; ZORN, W. D. Psalms. Joplin: College Press, 1999.
TOV, Emanuel. Crítica textual da Bíblia Hebraica. Niteroi: BV Books, 2017.
__________. The Literary History of the Book of Jeremiah in the Light of Its Textual History.
In: TIGAY, J. H. (ed.). Empirical Models for Biblical Criticism. Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 1985.
TOY, C. H. The date of Korah Psalms. JSBLE, v. 4, n. 1-2, 1884, p. 80-92.
TROMP, Nicholas J. Primitive conceptions of death and the nether world in the Old
Testament. Biblica et Orientalia 21. Roma: Pontificio Instituto Biblico, 1969.
TRULL, Gregory V. An exegesis of Psalm 16.10. BS, v. 161, n. 643, 2004, p. 304-21.
VANGEMEREN, Willem A. (org.). Novo dicionário internacional de teologia e exegese do
Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. 5 v.
164

__________. Psalms. In: GABELEIN, Frank E. T e Exposito ’s Bib e Co enta . Grand


Rapids: Zondervan, 1991, v. 5.
VANHOOZER, Kevin J. A trindade, as Escrituras e a função do teólogo. São Paulo: Vida
Nova, 2016.
__________. Há um Significado neste Texto?. São Paulo: Vida, 2005
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.
VOLZ, Paul. Psalm 49. ZAW, v. 55, n. 3-4, 1937, p. 235-64.
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: ASTE, 2006.
__________. La sabiduría em Israel: los sapienciales, lo sapiencial. Madrid: Fax, 1973.
WALLACE, Howard N. Psalms. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009.
WALTKE, Bruce K., O’CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico. São Paulo:
Cultura Cristã, 2006.
WALTKE, Bruce K. Old Testament Theology. Grand Rapids: Zondervan, 2006.
__________. The textual criticism of the Old Testament. In: GAEBELEIN, Frank E. The
Exposito ’s Bib e Co enta . Grand Rapids: Zondervan, 1991, v. 1.
__________. The book of Proverbs and ancient wisdom literature. BS, v. 136, 1979, p. 221-
38.
WEINFELD, Moshe. Deuteronomy and the Deuteronmic school. Oxford: Clarendon, 1972
(reimpr. Winona Lake: Eisenbrauns, 1992).
WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994.
WESTERMANN, Claus. The Psalms: structure, content and message. Minneapolis:
Augsburg, 1980.
__________. Handbook to the Old Testament. Minneapolis: Augsburg, 1967.
WHITAKER, W. Dictionary of Latin Forms. Bellingham: Logos Bible Software, 2012.
WHYBRAY, R. N. Reading the Psalms as a book. JSOTS 222. Sheffield: Sheffield
Academic, 1996.
__________. The Book of Proverbs. CBC. Cambridge: Cambridge University Press, 1972.
WILLIAMS, Ronald J. Hebrew syntax: an outline. 2. ed. Toronto: University of Toronto
Press, 1976.
WISEMAN, D. J. (ed.). Chronicles of Chaldean kings (626-556) in the British Museum.
London: British Museum, 1956.
WITTE, Markus. “Aber Gott wird meine Seele erlösen” – Tod und Leben nach Psalm XLIX.
VT, v. 50, n. 4, 2000, p. 540-60.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008.
WÜRTHWEIN, Ernst. The text of the Old Testament: an introduction to the Biblia Hebraica.
2. ed. Grand Rapids: Eerdmans 1995.
YARON, R. A document of redemption from Ugarit. VT, v. 10, n. 1, 1960, p. 83-90.
165

YONGE, C. D. (ed.). The works of Philo: complete and unabridged. Peabody: Hendrickson,
1995.
ZANDEE, J. Death as an enemy: according to ancient Egyptian conceptions. Leiden: Brill,
1960.
ZENGER, Erich; HOSSFELD, Frank-Lothar. Die Psalmen I. Psalm 1—50. Die Neue Echter
Bibel. Würzburg: Echter, 1993.
ZUCK, Roy B. (org.). Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009.
__________. A interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 1994.
ZUCKER, David J. The riddle of Psalm 49. JBQ, v. 33, n. 3, 2005, p. 143-152.

Você também pode gostar