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Títu1o original:
Hegel et I'hégélianisme
@ Éresses Universitaires de France, 2005
ISBN: 2-13-053405-8

CoNspl-rio EnttontaL
Ivan Domingues (UFMG)
Juvenal Savian GINIFESP)
Marcelo Perine (PtiC-SP)
Mario A. G. Porta (PUC-SP)
Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR)

PnrpennçÁo: Carlos A. Bárbaro


DrecnnueçÃo: Fiávia da Silva Dutra
RBvtsÃo; Renato da Rocha

Edições LoYola
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ISBN: 97,8-85- 15-03468-0

@ EDIçÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2008


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5UMRRIO

PFOLB60 ........9
I
FRIMEIHH PRRïE
Em direçáo as Eistema

capítulo I
HL6UN5 LU6HFE5 COMUNs... ............19

capítulo ll
ENTFE TÜB|NGEN E IENH .................. 33

capílulo lll
O SISTEMH

sEEUNDH PRHTE
No sistema

capítulo I
H FEN0MEN0L06IR BO E5pí8ff0.............. .........57
Êapítuls ll
H L06|CF ........73

trapítulo lll
t]H NRTUHEZA ÃA EsPíRITO
PRBLO6O

pBrNcrpFrS TEXTOs E HBHEVTFÇOE5 ................1e5 Fì vida: aperitivo


De Hegel, tem-se vontade de dízer o que Heidegger escreveu de
Ariscóteles: "Nasceu, filosofou, morretr". Seu desejo é de que
sua pessoa se apague ante sua obra e sobretudo diante daquilo
que eie nomeia "a Coisa mesma". Hegel zornba daqueles para
qlrem "pensar por si mesmo" é o "último caminho teú" (Notas,
73'11; a exaltação do Eu lhe causa horror. Entretanto, não será
demasiado dizer algumas palavras sobre sua vida; no mais, o
leitor se reportará às biografias disponíveis. Ern francës, La
uie dc Hegel, de Rosenkranz (1844), foi enfim traduzída, e crês
biografias recentes são preciosas: H. Althaus, Hegel Naissance
d'une philosophie; J. D'Hondt, Hegel; e sobretudo T. Pinkard,
Hegel. Abiograpfu.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasce em 27 de outubro
de L770 em Stuttgart, em uma família da pequena burguesia
luterana - seu pai é funcionário público. Georg cursa o ensino
médio, no qual adquire uma sólida cultura clássic4 lendo, tradu-

1" Para as abreviações ucilizadas, ver p. 125.

r9
zìndo e anorando os aurores gregos e lacinos. É d,irecionad.o à a história, não as beLezas da natureza. Da estadia enr Berna
carreira eclesiástica: um caminho seguro em wurcemberg, ond.e
data um primeiro escriro publicado: a rradução (anônima) das
os pastores são formados e pagos pelo Estado. Assim, em lzg8
Lettres confdenüelles de um revolucionírìo da região
d,o vaud,
Hegel é admiddo no Süft de Tübingen, uma espécie d.e grand.e
J-J. Cart. Redige cambém um conjunto de fragmenros sobre a
seminário onde são formados os futuros pasrores. Recebe aí
"positividade" da religião cristã, bem como uma vid.a d.e
uma formação filosófica e reológica convencional conrra a Jesus,
na qual este parece reiacar aos discípulos a críüca da raz^ão prá-
qual seus primeiros escriros reagem com vigor. É assim que tica; esses escritos não serão concluídos nem publicados. No
reflete, no "Fragmento de Tübingen,,, sobre t q,r" seria uma verão de I796,Hegel deixa a Suíça e assume um novo posro
religião popular, que adaptasse ao dogma cristáo as práticas de
precepror, dessa vez em Frankfurt; reenconrra Hõlde;lin, que
litúrgicas das religiões cívicas da Antiguid.ade. com seus cole- lhe arranjou esse emprego, e aí permanece aré o fim de 1800.
gas de classe schelling e Hôlderlin, acompanha com paixão os
Sabemos pouce coisa sobre esse período. Ele mantém com uma
acontecimenros na França -- díz a lenda que eles plantaram amiga de infânciq Nanette Endel, uma correspondência que não
juntos uma árvore da liberdade. o rerror esfriará o entusiarmo
tem nada em comum com as tórridas carras de Hôlderrin e sua
desses j.vens sem dúvida girondinos: dentre as carras d.e Hegel
Diocima, Suzette Gontard; freqüenta assiduamenre Isaac von
que se conservaraln, a primeira censura "a ignornínia dos ro- sinclair, amigo e proreror de Holderlin. passa por um episódio
bespierristas" (corresp., 1, 18). Mas, contrariamente a olrrros depressivo que, se não tem nada em comum com o cohplo
(dentre os quais schelling), nâo reverâjamais sua adesão aos
psíquico de Hôlderlin, deixará marcas. Não obstanËe, a estadia
princípios da Revolução, que para ele se confundem com os ,l.a frankfurriana é fecunda no plano intelectual. É verdade que
modernidade política e social. nada publica além da tradução comenrada d.o libero de cart,
Ao fim de seus esrudos, Hegel se conveÍrce de não ter sid.o preparada em Berna; desisre de publicar urn panflero em rom
feito para a carreíra de pastor: será portanto precepror. Chega repubiicano sobre a situação polírica de v/urcemberg. Além
a Berna. Por quase três anos ensina rudimentos às crianças disso, começa a redigir o que deveria ser um rivro sobre a sirua-
da aristocrâtica fanília von steiger, da quar aproveita a'ríca
ção do Império, se o espíriro do cempo (encarnad.o por aquele
biblioteca paÍe expendir sua cultura. Descobre a economia que é a seus olhos o protótipo do herói moderno, Bonaparre)
política lendo e traduzindo o mercantilista escocês James não tivesse abreviado sua agonia; dará continuidade à reàaçao
sceuart; é eí tafvez que lê a Nqueza. das nações d.e Adam smith,
desse manuscriro, que abandonetâ no início da escadia em
que cita e comeÌLta em seus manuscritos de Iena. Lê também Iena. Descoberto um século mais carde , A consütuição d.o império
Hume, Gibbon, Montesquieu, Rousseau (seu ..herói,,, segundo aletnão é texto marcado por um republicanismo de inspiração
um colega do Süft) e, claro, Kanc (o de A rekgião. maioi refe_ maquiavélica. Mas o essencial do rrabalho de Heger gira sempre
i
Iì rência encre os escriros da juve'cude). Aproveita também o em torno de problemas f,losófico-religiosos. Menos kanriano que
verão para fazer uma viagem aos Alpes, mas, manifestamenËe,
fi em Bernq invenca uma conceítualízação original para pensar
#
não parrilha da paixão romândca pelas sublimes paisagens da
* o que escapa à linguagem comum. Se se volta então conrra a
montanha! o que the inreressa são os homens, os farosiociais, filosofia, é sua própria filosofia que está assim send.o elaborada.
10 I Hesel e a hegelianisms
próloso i ll
L
Doravante) trata-se de uitrapassar a "separaçío" qiJe catacterrza da.Lógica (18L2-I8L6). É também em Nuremberg que se casa,
a vida dos povos modernos, mâs assumindo-a e afroncando-a; em 1811, com Marie von Tucher, provenierrte da aristocracia
é. dialeücamente qve é necessário chegar à "coincidência com o local, com quem tem dois filhos, Karl e Emmanuel.
tempo" (Frankfurt, 377). Hegel busca uma posição acadêmica conforme à sua notorie-
De 1801 ao começo de 1807, Hegel Permenece em Iena, dade. Aguarda uma cátedra na Universidade de Erlangen, mas é
onde se enconcra com Schelling; graças antes de tudo a Fichte finalmente a cÍeHeidelberg que o recruta; ele tem quarenta e seis
(afascado da câtedra em L799 em razáo da querela do ateís- anos. passa aí dois anos, duranre os quais publica aEnciclopédia,
mo), a cidadezinha ê entío o centro da vida intelectual alemi das ciências flosófcas (18i7), compêndio do sistema finalmente
junramente com Weimar (de Goethe e Schiller). Nesse período, exposto em. sua totalidade. Doravante, é baseado nesse manual'
cujo fruto tardio ê aFenomenologia do Espírito, é que se fixa sua (do qual duas outras edições são publicadas em 1827 e 1830)
oriencação filosófica definitiva, graças a Schelling, e depois que ensina, desenvolvendo em aula tal ou qual segmento do
contra ele. Hegel faz suas primeiras incursões no ensino uni- conjunco. Publica também seu escrito político mais liberal, urn
versicário como Priuatdozent (docente universitário remunerado estudo dos Áros dos Estados do reino dc'Wurtemberg ern 1815-181'6,
conforme a quantidade de estudantes inscritos; e eles não são em que analisa o confiito entre o novo rei, que deseja outorgaÍ
numerosos). Publica seus primeiros texcos: inicialmente, em uma Constituição ao seu Povo, e os Estados convocados Para
IB}L, aDiferença dos sistemasflosóf.cos dc Ficbte e de Schellingem que ratificar esse projeto, os quais, em nome do "bom velho direito",
é po*a-voz de seu amigo, mas já exibindo uma tonalidade que na prâtíca o arruínam. Nessa oportunidade desenvolve uma
lhe é própria. A partir deJ.8O2, publica com Schellíng o Jarnal convicção: no contexto da Europa pós-revolucionáriE o mo-
crítico da flosof.a, em que escreve alguns artigos importantes e mento não é o da Restaunçáo daquilo que não tem mais lugar
dificeis. Além disso, redige cadernos para seus cursos, que são para ser - acreditam nisso somente os reacionários que "nada
o início de uma filosofia em elaboração. Esses escritos são tam- esqueceram e nada aprenderam" -, mas o de uma política de
bém o laboratório da grande obra que assinala Para o púbiico reformas impulsionadas do alto e Postas em prática Por uma
seu nascimento como filósofo original (e ao mesmo cemPo sua burocracia competente e dedicada.ao bem público.
ruptura com Schelling): a "ciência da experiência da consciência" É essa imagem de um Estado moderno e reformador que
que se transforma afinal na Fenornenologia do Espírito. atrai Hegel a Berlim,. para onde o ministro Altenstein o chama
Sofrendo pela precariedade de sua situação, Hegel busca em 1818. O prestígio da nova Universidade (criada em 1810
uma posição mais estável. Após parêntese de um ano e meio, por Humboldt) também contribui para isso; alguns dos gran-
quando exerce o jornalismo em Bamberg) encontra-a graças a des nomes da época aí se ilustram: Humboldt, Fichte (a quem
Friedrich Niechammer, alto funcionário bâvaro que lhe consegue Hegel vai suceder), o jurista Savigny, Schleiermacher. Até sua
o posto de direcor e professor de filosofia no liceu protestante de morte,:Hegel aí ensinará as "ciências filosóficas": seus cursos
Nuremberg. Hegel aifrcacercade oito anos (1808-1816), durante acraem centerÌas de ouvintes, guÊ, como Feuerbach, podem vir
os quais redige pa.ralelamente à docência (da qaal a-Propeüuüca de muito longe. Cerca-se de uma equipe de fiéis discípulos que
fiIosófca é o reflexo sucinto) seu segundo grande iivro, a Ciêncin' formam um verdadeiro partido hegelia.no; entre eles, o jurista

l2 I Heeel e o hegelianismo orólogo I 13


Gans, que às vezes o substitui e escreverá os ad.endos aos prin- que grassava com relação aos "demagogos" (riberais,
I francófilos
cípios daJilosofia do direito. poucas publicações novas
duranre esse eie teria com piena ciência encoberco um pensâmenro
período: além das duas reediç ões da Enciclopéd.ia, quena verdade _e1c.), mais
liberal do que aí aparece. Nenhuma inrerpretação escrarecida
são uma reelaboração completa do rivro, a mais nocáver do
é consri- hegelianismo pode ignorar a massa dos documenros
tuída peros Princrpios (LB2o), versão desenvolvida d,a teoria do doravance
disponíveis cada ano são
espíriro objetivo da Encicropédia. Esse livro cem um importanre - editadas noras comadas nesse ou
naquele curso --, nem os Adendos daEncicropédìaou
eco e conrribui para a má repucação do "firósofo do de Aftosofa
Escado do d.ireito elaborados paÍaaedição póstuma
a partir dos cadernos
prussiano", conforme a imagem cunhada por Rudolf Haym. de estudantes; mas é temerário prerender retificar
Hegel se consagra rambém pelos Anais d,a crítica cienttf.ca os escricos
que publicados por Hegei apoiand.o-se em anorações areacórias
criotr: publica aí longas recensões cla tradução do Baghiuact cle
Gita seu ensinamento oral.
de Humboldq de escriros de Hammann e d.e obras pÃtrrmns Falávamos da vida de Hegel... Ela acaba em novembro
d."
soiger. seu interesse pela porítica não cessou: uma de suas de
írrti- 1831: o filósofo é levado em poucos dias pero córera.
mas produções é o artigo'A propósito darei de reformalngresa,, Resram
algumas côisas a dtzer sobre esse homem que se ocuita
(1831), que conrém juízos muito severos sobre a situação por
locial trás de seus escritos. Da sua senhoria em Iena, Heger
reve um
e polírica da Grã-Bretan.ha, cuja pubric açáo é censuiada filho, que experimentou o d,escino reservad.o pel" sJciedade
pelo
governo prussiano! pouco antes de morrer, Hegel entrega da
ao época aos fiihos do pecado. Manreve vínculos com
editor uma segunda edição, revista, do primeirolirrro d.^íOgca a f."n.t-
maçonariq dos quais o poema Eleusis, dedicad.o a Hôlderlin,
e dedica-se à reedição da Fenomenologia. contém indícios; mas a maçonaria "não sabe nada de particu-
Enrreranto, o essencial da atividade intelecrual de Hegel em lar e portanËo nada rem a oculrar,, (Hp Introd.,77). piezava a
Bedim não deixa rempo para pubricações: semesrre após semes- vida social e os espetáculos. Apreciava o vinho, prova de
que
tre, trabalha no curso que dá, alternando exposiçOes sobre há espírito na natuÍeza. Nada de muito originar em rudo isso.
as
partes do sisrema. Esses cursos foram editadoi por seus alunos, Aliás, o homem Hegel não busca a originalid"d", ,. enrend.emos
que utilizararn suas noras e cadernos de ouvintËs, que formam, com isso a preocupação de se distinguir em seu meio: ,,Ca-d.a
juntamente aos escriros publicados em vida, a gr".rd. um quer e acredica ser melhor do que esse mund.o que é o
parce da
edição póstuma das Obras, cujos vinte,nol.rmes são p.rlli."d.os seu. Aquele que é melhor somenre exprirne melhor
a partir de 7832. Daí em diante, os cursos sobre a hisr:ória, !r.r" o,
a outros esse seu mundo" (Notas,73). Hegel foi melhor
arte, a religião e a hisrória da filosofia ocuparão canro espaço seu mtrndo. Mas seus escritos são a poderosa 'ãoexpressão que
dele e
Íìo comenrário hegeliano quanro os escriros publicados, conforme a naüJreza da filosofia: sío ,,seu tempo apreend.id,o nos
pãrrao
"
de às vezes parecerem modificar a imagem ã. ,.,., p"rrr"*.rrro. pensamentos" (PPD, 106).
Nos anos 1970,K. H. Ilting começa a publicar Hegel desapareceu) resta uma obra diftcit. Ele rem cons_
dad.as
por Hegel sobre a filosofia do direito em Heidelberg"r,iiçõ., ciência disso, ele, a quem se atribuem escas palavras: .,IJm
e Berrim, só
com a expressa intenção de redficar a postura conservadora fire compreendeu, e ainda assim não me compreend.eu,,. A
que
Hegel teria adotado no livro de 1g20: por receio da repressão reputação de ser o Arisróreles dos rempos modernos não lhe
t
It{ I Hegel e a hegelìanismo
ü

*
próloqo i 15

I
desagrada, e ele conclui sua Enciclopédia
com uma citação da
desenharam
Urtítrrno. Sua obra é, em tod'o caso, dessas que
Uma convrcçao
a paisagem d.o pensamento contemporâneo'
h"Ult" J"pr"r..r.ução que dela é dada aqui: a fi'losofraheg:1t"":
(PhE' I-50)' E
ordena-se unicamente à "tensão do conceito"
aí pouco esPaço' Hegel tem
;;;;" que o "prezadoeu" ocupa
horroraíúatd'esi.Eentretanto)comotodosessesheróisda
a explicá-
razío pensante que são os filósofos) nos "condena
apatur
lo" (tV 11,574) - ou a nos explicarmos nós próprios
dele. gm razío desses princípios ("é tolo
imaginar que uma
106-107])'
fi.losofia qualquer ultrapassa seu mundo" IPFD'
nosso mundo'
não se pod"ria esPerar ãe Hegel que fale de
que ele é' portanto
Entretanto, que Possa nos ajudar a Pensar o
é essa a
a ser filósofos (de outro modo que ele sem dúvida);
convicção que se gostaria de partilhar'

PRIMEIHH PHHTE
Em direção ao sistema

16 I Hesel e o hegelianismo
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rapítuln I

HL6UN5 LU6HHE5 COMUNs

seria ingênuo acredirar que uma obra filosófica rem senddo em


si mesma e que suas interpretações poderiam ser julgadas confqr-
me o afastamento que apresenram em relação a esse significado
autêntico. certamente, nem tudo podeser sustentado em matéria
de interpretação: é preciso ao menos levar em conra as regras de
formação daproposta, pronro adenunciá-las (o que, porexemplo,
fezMarx ao ler Hegel). Enrreranro, as leiruras de Heger às vezes
desafiam as regras de uma herm enèuticaruzoável. A compreensão
de sua obra assenta-se freqüentemente sobre esquemas sumários
que se tornÍrm obstáculos à leirura de seus escritos. A imagem de
Hegel liga-se a algumas reses que lhe são atribrrídas e funciona
como uma cortina. Para tornar a leitura possível e sensar4 é
necessário expor e demonstrar os principais lugares comuns (a
expressão deve ser consideraú de modo descritivo) que dominam,
atê entre os especialisras, a percepção do hegelianismo.

l. "Tese-antítese-síntese"
A dialética, isro é sabido, comporra crês tempos: a rese) a
antítese e a sínrese. Manifestação inconrestável. de certo vício da
';
I 119

r
ro e formal" se perfaz em "negatividade absoiuta" (ibid') e Seta
forma cernária que levará Hegel a violenrar o real para subme-
uma síntese especuiativa que é muico mais do que a simples
tê-lo à força a esse esquema"' Surpreendemo-nos Portanto justaposição da primeira tese e de sua antítese: ela é, na ver-
ao constataÍ que o próprio Hegel critica essa mania entre
os
res- dade, "tanto imediacidade quanto mediação" (ibid.) enquanto
filósofos danatureza de tendência schellingiana e adverte a
denomina o processo do qual tese e antítese são os lrÌomentos
peito d,o absurdo que consiste em aplicar um esquema triádico
isolados. O esquema cernário ca-mbém aPresenta "o modelo do
r trrdo o que é. Quando o índice dessas obras é examinado' ritmo do conhecimento" (HP,7,1'894), mas não Passa de um'
.orrrrt múldplas infrações à suposta regra ternária' apesar
"--re modeio ou esquema, e semPre incorre no risco de congelar o
de freqüencemente respeitada: assim, na Lógica, o capítulo "A
movimento do pensamento, sua característica Processual' Don-
idéia d.t conhecer" tem aPenas duas subdivisões, enguanto "O
de a invocação, no fim da Lógica, de um modelo quaternário
julgamento" possui quatro; a história universal divide-se em
e mesmo) tta Filosofa da Naturezt', de uma quinruplicidade do
qrrãrro "reinos" sucessivos. Em Hegel encontram-se explícitas
ricmo do conhecimento (Enclcl',2,5 248 A, 351).
declarações conrÍa o fetichismo da triplicidade: mesmo
que
Mas o principal problema que o esquema "tese-antícese-
ele renha permitid.o ao "conceito da ciênci t' se fazet Presente,
um "esquema sem síntese" coloca não é o do número dos momentos' E que
esse modelo pode facilmente ser rebaixado a
(PhE' esse esquema leva a uma repfesenração errônea da dialética.
vida'' quand.ã s"r, "significado absoluto" é desconhecído
Primeiro, é preciso lembrar que o terÍrÌo "dialética'' designa a
l-+Z). Nías. é em Kant, autor da "filosofia da tazáo pura" (e a
assim dizeg em esquemas)' rigor apenas um momento) certamente capital, do processo
r azáo o rganiza- s e naturalmente, P o r
de lógico: o momento mediano, que se desdobra em mediatízado
que U"g-"Ibaseia "o esquema - verdadeiramente despojado
e rnedíatizance (SI, 3, 81), e que é o "púncípio motor do con-
espírito - d"a triplicid. ade"; for Kant, e não Hegel, que "afirmou
e a síntese" (HP,7, L894)' ceito" (PPD, S 31, 140). Esse momento dialético (negativamente
^ codn Parte etese) a antítese
por
racional) tende a ser negado, ou aÍltes a se negar, trazendo à
Reconhecendo que um "mérito infinito" é devido a Kant
luz o momento especulativo (positivamenËe racional) no qual
por essa descoberta, Hegel juiga que esse é somente "o lado
ele se trltrapassa (Enc1cl.,1, S 81"-82, 343-344). Mas o principal
superficial, exterior, do modo de conhecer" (SI, 3, 383-384);
e

método inconveniente da imagem da síntese é que ela parece pôr tese


qÀao ele próprio se aventura a enumeraÍ os temPos do e antítese no mesmo plano, como se fossem duas quantidades
especulariv o ê. paraconcluir que, "se afinal de contas queremos
de sinal oposto. Ora, no regime hegeliano, é sempre um dos
cÀtar", ele pãde ser aPresentado como "quadruplicidade" e
dois membros da oposição que opera aAufhebung, a superação/
também como "triplicidad" e" (ibid.). Com efeito, no "método do
conservação desta, afirmando seu domínio sobre a outra' Por
conceito", o ,.to*"rrro mediano (impropriamente chamado de
exemplo, na oposição da identidade e da diferença, é o primeir'l
anrírese) também se desdobra. Ele é primeiramente a simples
desses termos, e não o segundo, que âssegura a reunião dos dois:
negação da posição inicial; Por exemPlo, à proposição "o
ser
-opõe-se Hegel define o absoluto como "a idenddade da identidade e da
é" a antítese "o seÍ náo ê" (ou "o não-ser é")' Mas' e é
não-iclenrid ade" (Différence, L40),e não como sua diferença (que
qrr. o método mostra-se dialérico, essa negação simples
"q,.ri ele também ê, náo obstante em segundo plano). A Aufhebung
drrpli."-r", volta-se contÍa si mesma' Assim, o "negativo primei-
alguns lugares comuns I 31
ê0 I em direção ão sistema
hegeliana é o movimento sintérico e ao mesmo rempo analíti- mos nazista ou stalinisra. Da dicadura do conceiro à simpies
co, graças ao qual um cermo de uma oposição conquisca sua ditadura haveria conrinuidade.
verdadeira identidade, jamais dada, assegurando-se do domínio Ora., a Enciclopédia conresra essa inrerpretação, admicindo
sobre o seu outro, que, negaÍrdo, ele promove à sua verdade. que "essas proposições simples pareceram chocantes para muiros
Cada um desses dois termos é negado ao mesmo tempo que espíritos" (Enqtcl.,1, 5 6, 169): "Mas se falei de efecividade seria a
conservado pela virtude dialética de um deles: bem o conrrário pensâr, de si mesmo, em que sentido e'emprego esca expressão;
de uma síntese artificial e indiferente. pots numarógicamais desenvolvida rrarei cambém de eferívidad.e
e logo a distingui, precisamente, não só do concingence, que sem
ll. "lïudol o que é real É racional" dúvida tem também existênciâ, mtr, com maior rigor, do ser-aí,
da existência e de ourras decerminações,,2. Atribuii a Hegel que
"O que é racional é efetivo; o que é efetivo é racional" "[todo] real é racional" é ignorar a distinção enrre a realid.ade do
(PPD,104). Essa fórmula, a mais (mal) citada de rodo o col,pus
ser-aí contingenre, objero da primeira seção da lógica do ser, e
hegeiiano, precocemente despertou suspeita. Na verdade, ela
a efetiuidad.e, conceitualizadapela lógica da essência. O real é o
poderia dar garantia filosófica aos aspectos mais conresráveis
que sempre pode ser diferente do que ele é, e torna-se mesmo
da realidade. Na transcrição correnre, ela significaria: "[TucJo]
incessantemente diferente daquilo que ele não é. .,Ser com t1m
que é racional ê real, e ftudo] que é rcaJ ê racional". Tal inter-
não-ser" (Sl, 1, 85), a realidade é um misro d,e si mesm, u L"
pretação está no fundamento da visão dominante do hegelia-
outra. Todavia, essa negatividade permanece envoka na posi-
nismo. Assim, Hegel negaria radicalmenre a conringência do
tividade maciça, ingênua do essenre. O real é portanro ser-aí,
acontecimento e sacrificaria a liberdade, que no entanto não
na sua insuperável conringência e facricidade, mas cambém na
cessa de invocar, em prol de um necessitarismo dispendioso. O
enganosa evidência de sua presença: ele esrá aí. A efetìvídade,
ser seria somente avestimenta. do conceito, posição qu.e encarna
ao contrário, é "a essência que é una com seu fenômeno,, (SI,
até o excesso a pretensão do idealismo de deduzir ou construir
2, 6). Embora, na realidade imediara, a mediação cravestida
tudo o que é, por mais irrisório. Daí resultaria ourro vício des-
manifeste-se somente sob a figura corrupcora da alteração e da
sa filosofia: sua tendência a dar a bênção do conceico a tudo
mudança, o efetivo é "subtraído à passagem" (Enrycl. 1",5 L4Z,
que é e a tudo que se produz. De fato, a imputaçã.o política de
393). Mas ele o é porque sua exrerioridade ou sua existência
consen'adorismo freqüentemente se associa à suspeita meta- não supõem nenhum pano de fundo de que dependam seLr ser
fisica sobre o que é percebido como um cego necessitari.smo. e seu sentido. Portanto, em Hegel a realidade é bem outra coisa
Assim, em 1857, R. Haym escreve que a fórmula do "Prefácio"
do que a efetividade; correspondem, pode-se üzet, a diferentes
aos Princípios da flosofa do direito "dá sua expressão clássica ao
níveis de inteiigência daquilo que é. Que a eferividade seja ra-
espírito da Restauração"l. Chega-se até mesmo a perceber na
filosofia hegeliana uma justificação antecipada dos totalitaris-
2. Tradução, a partir do original alemão, de Paulo Meneses, in G. \[/. F.
HEGEL, Enciclopédia das ciêncìas fi.losófcas. Em compêndio (1830), São Paulo,
1. R. HAYM, Hegel und seine Zeit,365, Loyola, L995, 45, v. I.

2ê I em direçáo aB sistema alguns lugareE cornunE I 23


cional, liga-se à sua deflnição. Em compensação, a realidade não à humanidade, não passa canco pelo conhecimenro mas pelo
poderia sê-lo absoluramenre; não se pode mesmo arribuir-lhe reconhecimento, que é o próprio reconhecimento do desejo do
qualquer coeficienre de racionalidade, pois a instabilidade e a outro; procede de um enfrenÊamenro cujo vencedor imediaco (o
desiguaidade consigo mesmo lhe são inerences. Hegel conclui senhor) é finalmente dominado pelo vencido (o escravo). Esre,
simpaticamente: "Quem não esraria suficiencemence advertido condenado pelo medo de morrer durante o trabalho servil, é
para ver no que o cerca muitas coisas que de fato não são como 'engajado em um processo
de aculturação que no fim lhe per-
deveriam ser?" (Encjtcl., L, $ 6, L7O). O real empírico freqüenre- mitirá rr:iunfar sobre um senhor devotado ao ócio e ao gozo
mence é nada menos do que racional. Todavia, pode vir a sê-lo escéril. Em suma, "independentemenre do que Hegel pensa a
ao fim de um pÍocesso que o comparibiliza com o seu concei- respeito, a Fenomenologia ê uma anrropologia filosófica".
to, rornando-o portanco efetivo. É essa a. tazão pela qual um Orq é possível conresrar o uso que Kojève faz dessa passa-
curso de 1819 expõe em termos graduais a equação enunciada gem. Primeiramenre deve-se quesrionar a escolha dos próprios
de maneira estárica no "Prefácio" de I82O: "O que é racional termos. Traduzír Herr por "seÍrhor" é aceítâvel, ainda que essa
torna,-se efetivo, e o efecivo torna-se racional" (Rpà Henrich, Sl). O escolha mascare o parenresco da palavra com a Herrscltaft, a
equivalente do efecivo e do racional não é uma verdade de fato; dominação no sentido do exercício pelo homem de um poder
é uma tese merafisica (que envolve a concepção processual do (que pode ser legítimo ou não) sobre o homem; berrscben, em
ser exposta na L6gica) da qual a hisrória do mundo, enquanro alemão e em Hegel, significa mais reinar do que dominar de
(outra cese especulariva) exposição darazáo no rempo, aos olhos
-
quaiquer modo não significa reduzir à escravidão. Quanto à
do filósofo - e sem dúvida dele somente é a verificação. cradução de Knecht por escravo, ela induz uma confusão encre
-
a servidão originária e políüca que consrirui o reconhecimen-
lll. Fì dialética do senhor e do escravo to extorquido qtre se instaura no firn do enfrentiunento e o
escaftrto econômico, social e familiar do escravo (Sklaue) nas
É uma idéia difundida: Hegel é o auror de uma "dialérica d.o
sociedades antigas. Tomando (como Kojève) liberdade com a
senhor e do escravo", que seria ao mesmo tempo a definição do
lecra do texto) se poderia falar em "dominante" e "dominado".
que é necessário enrender por dialética e uma espécie de parábola
Em segr:ndo lugar, a leirura kojeüana daFenomenologiaimplica
sobre a gênese da sociedade e o acesso do homem à humanidade.
a supressão conscienre daquilo que Hegel denomina o espírito
A origem dessa idêíaé conhecida: no curso que dá naÉcolepra- absoluco (que inclui a filosofia, a arte e a religião) em proveico
tique des hautes études entre 1933 e 7939 (esse curso foi publicado
do espírito objetivo (digamos: da humanidade social e polírica).
com o cítuio Introduction à La lecture de Hege[), Alexandre Kojève Com isso atribui um privilégio infundado (em rodo caso, de
fez desse cema, que primeiro aparece no capítulo 4 da Fenome- acordo com as exigências do sisrema) ao que Hegel denomina
nologia do Espírito ("Independência e dependência da consciência o espíritof nito, em detrimento do espírito infnito que pensa a
de si; dominação e servidão"), o eixo de uma incerpreração de si mesmo por meio da filosofia. Aliás, de modo algum Kojève
conjunto da obra cle Hegel. Segundo Kojève, o propósito dessa se furta a essa leitura: somente uma "interpretação ateísta" do
passegem é mostrar que o acesso à consciência de si, portanto capítulo sobre a religião é "comparível com o conjunto" da
ãQ I em direção a0 sistema algunE lugares comuns i ?5
-l
Fenomenologia. Enfim, não se deve esquecer que posteriormente o papel da dialética do senhor e do escravo e [...] esquem arizer o
o próprio Hegel apresentou uma interpretação da luta pelo conteúdo da fenomenologiaa.
reconhecimento. Ela náo é inteiramente incompatível com o
Ao lermos Hegel, esqueçamos um pouco a lendária dialé-
propósito de Kojève, mas impede que se faça da "dialética do
t senhor e do escravo" amatríz de uma interpretação de conjunto tica do senhor e do escravo; ela é indispensável, porém, para
de sua obra. É o que indica uma passagem da Enciclopédia que compreender Kojève.
retoma a figura domínio-servidão:
lV. Fì astúcla da razáo
A luta do reconhecimento, ea submissão a um senhor, ê ofenôrne-
zo do qual surgiu a vida em comum dos homens, como um come- A "astúcia da tazão" é comumente invocada por aqueles
. çï d:r Estados. Auiolência,que é fundamento nesse fenômeno, que pretendem refutar o hiper-racionalismo de que o hegelianis-
não é por isso fundamento do direito, embora seja o mornento mo estaria impregnado. Ela seria a conseqüência lógica - e
escandalosa - da equação do real e do racional. Essa idéia se
::iru::i'íïff "tJnËmár'#:*:u:'"ïi:ãÍï1 inscreveria no quadro de uma teoria inclinada e negar a liber-
de-si universal. o começo exterior,
É o fenomênico dos
o1r corneço dade prática e objetivamenre justificaria por anrecipação os
Esrados, nâo seuprincípio substancial (Enc1cl,3, S 433,231)3. crimes cometidos em nome da razío histórica. O que ela é na
realidade? Primeiramence, não é a propósiro da história q.rã o
Para que as coisas fiquem claras, Hegel explicita verbal-
tema da astúcia da razáo aparece, mas na análise do trabalho
mente que "a luta pelo reconhecimenco [...] só pode ocorrer
e da produção material. A partir de A rìqueza das nações, de
no estado de natureza" (Encycl., 3, 5 432 A, 533). A "dialética
Adam Smith, uma passagem do "Primeiro sistema" que estuda
do senhor e do escravo" descreve sem dúvida a origern proto-
a forma moderna do trabalho apresenta a máquina como um
histórica da sociedade; ela não indica nem o princípio racional
da relação política de subordinação, nem o modo de constitui- "artifícto que o [homem] utíIíza com relação à narureza", do
qual esta "se vinga "comprimindo-o na alienação de um rra-
ção da humanidade do homem, em sua inteíreza; pois esta
envolve, para Hegel, toda a esfera do espírito, aí compreendido balho "formal, abstrato, universal" (Esprit,1, 103); é conhecido
o espírito absoluto. o uso que Marx fará desse cema, que nele torna-se o tema da
. D," tltro: Kojève reconheceu servir-se
de Hegel para p-xpor reificação... Do mesmo modo, a "segunda filosofia do espíriro"
sua própria visão da história como antropogênese: (1805-1806) apresenta as ferramencas como "a armadìlba)' que
"interpus entre mim e a coisidade exterior": graças à máqui-
Dei um curso de antropologia filosófica utilizando-me dos Ëextos
na, o homem "subtrai-se inteiramente ao trabalho" e "deixa
hegelianos [...] e excluí o que me parecia ser, em Hegel, um erro.
a natureza desgastar-se" a si mesma (Esprit, 2, 33-34). Essa
A.ssim, renunciando ao monismo hegeliano, conscientemente
afastei-me desse grande fiIósofo, [...] conscientemente ressaltei
4. A. KOJÈVE, Carta a Tran Duc Thao, 7 de oucubro de 1948, in D.
AUFFRET, Alexandre Kojèue. La philosophie, L'Etat, la fin de I'histoire, Paris,
3. Ibid., 204, v. III. Grasset,249.

26 i em direção as sistema õlgung iugares comung i ê7


análise ê rctomada na Ciência da Lógica: no capículo dedicado pela mediação de técnicas, assim também a idéia universal deixa
à teleologia (à finalidade exterior, cuja atividade técnica é o as paixões humanas particulares se confrontarem para afinal
paradigma), Hegel opõe à "violência?', que é o uso iniediato do cudo reurur. O que a astúcia darczío significa para a fiiosofia
objeto com relação a fins que the são estranhos, a "astúciada da história é que o alcance histórico das ações humanas nunca
razío", que consisce em "colocar-se o fim em relação mediada se reduz às mocivações subjetivas daqueies que as empreendem,
com o objeto eintercalar entre ele e o objeto um outro objeto", por mais elevadas que sejam. Que historiador não adotaria
a ferramenta (SI, 3, 262-263). Percebe-se: a astúcia da ruzáo esse princípio? A ascúcia da razâo não implica o sacrifício da
ocorÍe no concexto de uma reflexão sobre a racionalidade das liberdade no altar da necessidade históricE mas faz com que
mediações, nocadamente da mediação cécnica. Aliás, a pré- as paìxões hu.manas, que são portadoras de alienação, possam
cicada passagem da Lógica conclui: "Com seus instrumentos também servir ao "progresso na consciência da liberdade". Ela
o homem possui poder sobre L r..at:u:reza exterior, mesmo se, tem portanto um papel fundamental, mas bem delimitado, na
conforme seus fins, a ela esceja submetido" (SL, 3,263). economia do espírito objetivo.
Entretanto, incontestavelmente, foi o recurso ao tema da De modo que não é a astúcia da razío, aplicação relativa-
astúcia darazío na filosofi.a da história que a Posteridade reteve' mente audaciosa de um modelo técnico no câmpo da interação
Uso, aliás, parcimonioso: no conjunto desse corpus encontra- humana, que apresenta problema. O que parece muito mais
se apenas uma ocorrência - famosa - da expressão, e seis no temerário é a tese segundo a qual hâ razío na história. Tal
conjunto da obra de Hegel. Eis o que ele disse: rese, inverificável, supõe uma concepção de racionalidade que
excede o modo segundo o qual ela é normalmente pensada:
Não éa idéia universal que se expõe ao conflito, ao combate e ao uma racionalidade objetiva, correspondente ao que Hegel deno-
perigo; ela se mancém em último plano, ao abrigo de todo ataque
mina o espírico objetivo, da qual a historicidade é a dimensão
e de todo dano. Pode- senomear astúcia darazão ao faro de deixar
constitutiva. A ruzáo não é uma sirnples faculclade do espírito
as paixões agirem em seu lugar; assim fazendo, quem sofre prejui
humano finito, nem o diretor desse teatro de sombras chamado
zo é aquilo por cuja força ela assoma à exiscência. Aídêia Paga o
rributo da exiscência e da caducidade não por causa dela mesma, história; ela é ao mesmo tempo "tazáo que pensa" e "tazáo que
mas pelo viés da.s paixões dos indivíduos (R-FI, 129). ê", exercícío por meio dos sujeitos, de capacidades discursivas,
e ex-posição da racionalidade por intermédio de práticas e de
Vê-se que a aplicação do esquema técnico da astúcia da razão inscituições presentes na história. À4as a razáo hegeliana não
à história diz respeito à relação en[re "a idéia universal" (Hegel é somente a,o rnestno temPo subjeriva e objetiva, ela é em sua
díz tarnbérr' espírito do mundo) e as paixões que determinam a constituição subjeriva-objetiva: desdobrada em sua verdade,
ação dos homens, aí compreendidos os grandes homens: aqueles além da subjetividade (a razáo humana) e da objetividade (a
nos quais a particularidade subjetiva e as paixões coincidem razão histórica), ela depende do espírito absoluto, cuja expressão
Lrm momento com o ceor objetivo do espírito do tempo. Do reflexiva é a filosofia. É so-ente sob o ponto de vista do espíri-
mesmo modo que, no trabalho, o homem Parece ausentar-se da to absoluto que se pode afirmar, de maneira evidentemente
atividade para melhor chegar à sacisfação de suas necessidades não-intuitiva, que hâ rczáo na história. Longe de expressar

êB I em direção ãs sisÌema alguns lugares comunE I ê9


um fantasma totalitário, a astúciâ dz ruzáo é solidária a uma seja bistoricarnente redonda (RFl, 280), que a história, que não
concepção do desenvolvimento da racionalidade que, únal de tem termo empírico (Hegel admite que o futuro pode rransfor-
contas, se entaíza na anistoricidade do pensar: "Sob o Ponto mar profundamente o esrado do mundo. Por exemplo, se a
de vista da história lidamos com o que foi e com o que é, mas América ntífr.caque é "o país do fururo", arrancando o espíriro
em filosofia não se trata somente do que foi ou do que será, da presente sede européia), cenha um "fim úkimo" objerivo:
mas daquilo que é e que é eternamente: a tazío, e com ela nós tudo isso, bem entendido, depende da especulação fiiosófica.
temos bastante a faze{' (PfI, 242). De resto, para quem, senão para o filósofo, há uma híxôría do
rnundo? A história dos historiadores é plural, verdadeiramenre
V. O fim da história frenética, em nosso tempo mais ainda do que no de Hegel. Mas
o postulado que a filosofia projera na hisrória do mundo não
F{egel, pensador do fim da hiscória: é tão evidente afir-
essa é outro senão o da racionalidade. Portanro, o cema do fim da
mação que geralmente não se cuida de examinar seu significado. história exprime apenas essa "parcialidade pela razão" que o
Ora, quem fãz isso tem uma surPresa: esse tema aParece muito filósofo deve testemunhar, assim como o juíz é inspirado por
porlco nos escritos hegelianos e tem um sentido visivelmente uma parcialidade pelo direito (Enc1cl 3, S 549, 328); ê por isso
diverso daquele que lhe é atribuído. Primeiramente é preciso que o "fim último do mundo" é, muito além do Estado moder-
evitar um mal-entendido concernente à equivocidade da palavra Ílo, "o pensamento tal como se apreende a si mesmo" (RFí)
"frrrr". Ela pode significar "termo" (que em alemão corresponde 2L2). Nguns dirão que essa parcialidade é suspeira, ou que foi
a das Ende) ou "propó sito" (der Zweck); um propósito objetivo abalada pelas monstruosidades da história: sobre a dialética
(telos), e não aquele que qualquer um Persegue. Em Hegel não da rrzão, Horkheimer e Adorno escreveriam páginas densas,
encontralnos quase nenhuma referência ao fim (terrno) da his- que questionariam o otimismo hegeliano e deixariam espaço
tória. Ele diz que a Ãsía oriental e a Europa transalpina são "o somente a uma dialética negativa, sem espírito absoluro e sem
coÍneço e o termo da história do mundo" (RI{, 244). }./.as "ter- fim da história. Mas, convenhamos, esse debate, que se refere à
mo", evidentemente, não significa que a história cessaria, que própria racionalidade, seu estatuto e suas forrnas de manifes-
não aconteceria mais nada, que o próprio acontecimento não taçío, situa-se muito aiém das representações usualmente es-
teria mais yez: o fim da história não é o fim do mundo! Hegel sociadas à idéia de fim da história.
quer sobretudo dizer, o que conCuz ao segundo signiâcado, que
a história mundial tem, para o f'lósofo, um telos corespondente
ao que chama de Estado moderno, tal como ele se realíza na.
Europa pós-revolucionária, mas não sem sobressaltos. Somente
essa convicção, evideÍÌtemente meta-empírica; Ihe permite
escrever) por exemplo, que a Europa é "o cencro e o termo clo
Mundo Antigo e do Ocidente absoluto" (R.F/, 270). Que haja
um Ocidente absoluto e um Oriente absoluto, Qu€ a Terra não

30 I em direção ao sistema alguns lugares csmuns I 3l


rffiï:tít$-il#

ENTRE TÜBINGEN E IENR

Desde a publicação dos "escritos teológicos da juventude", em


L907, c: benepláciro dos comentadores dirige-se freqüentemente
ao Hegel de antes do sistema, em que' aliás' iâ se encontra uma
preocupação com a sistemácica. c)s escritos de Berna, Frankfurt
I"rr" p"r...tt mais vivos que as obras da maturidade: o Hegel
"
que aí ie manifesta ainda está em busca de si mesmo, mais explo-
rand.o caminhosvirgens que expandindo as retilíneas avenidas do
sistema. Parafalar como Glockner, a dimensão pantrágica ainda
não havia sido abafada pelo panlogismo que aParece livremente
nos escritos berlinenses. Daí a pensar que o mais interessante em
Hegel é o que não foi publicado é apenas um PáÌsso, que não será
d.aáo aqui. Se nos inceressamos pelos esboços de Bernq Frank-
furt e tena, é porque nos insrruem sobre o longo e dificultoso
porvir do pensamento hegeliano. Sem dúvida, às vezes há mais
asdíciana escrirq mais genialidade no aprendiz filosófico con-
frontado com as incandescências do romantismo, cujo melhor
amigo chama-se Hôlderlin, mas o gênio é uma virtude da qual
é preciso desconfiar, pois o que produz não é "nem carne, nem
p.i"., nem poesia, nem fi'losofit' (PLE,I-S8)' Portanto, leiamos
o jovem Hegel como é: um filósofo em devir'

t33
l. Berna: a crítica da pssitividade por si-mesmos" (ibil..). A institucionaTização do cristianismo len-
taÍnente faz dessas "sociedades de amigos" que eram as primeiras
Excetuando alguns trabalhos escolares e o Fragmento de
'Iübingen, os escritos redigidos por Hegel duranre seus anos de comunidades um Esrado eclesiáscico que impõe a seus fiéis o que
deveriam escolher para aderir livremente. Mas ela também mina
precepcorado em Bema são os primeiros sinais de sua arividade.
a autoridade do Escado político: argreja tende a se impor sobre
Trata-se de um rexto inacabado, que se intitulou A positiuidade
ele ou a se idenrificar com ele. De faro, opressão política e tirania
da religião trisüã (L795), e de ourros fragmentos mais ou menos
longos. Hegel :ululiza os três pilares de sua cultura inrelectual, religiosa caminharão junras ranro no cesaripapismo bisanrino
colocando-os uns coritra os olrrros: a religião (luterana), a polírica quanto no catolicismo medieval. euando a"rgrejaconsricui um
(antiga e moderna) e a filosofia (kantiana). Seu fio condutor é a Estado" (Poiüuité,65), aí não é mais possível haver verdad.eiramen-
crítica da positividade. Embora enconrre em Kanc a distinção te Estado, e alegalidade e a moralidade igualmenre se decompõem.

entre religião natural (racional) e religião positiva (Posiüuité,109), Em seguida, sua cúcíca se esËende ao protescantismo, o qual é
Hegel se inceressa particularmente por aquilo que faz com que censurado por ser "muito mais subordinado ao Estad.o,, que o
uma religião se torne posiriva. Eis sua definição de positividade: catolicismo (Posiüuité,69). As dificeis relações do jovem seminarisca
"LIma fé positiva é um sisrerna de proposições religiosas que deve de Tübingen com a orrodoxia do Süft a.í ocorrem à roa.
ser verídico para nós, visto nos ser imposto por uma autoridade Como lurar conrra a esclerose da religião (que é no funto
à qual não podemos recusar a subrnissão da nossa fê" (Berne,B!), uma religião situada nos limires da simples razão, uma moral)?
A positividade designa o devir exrerior da fé, cuja conseqüência. Por meios religiosos e políricos, ranro é verdade que "rerigião e
é o esquecimento do que é "a mete e a essência de toda religião política são consideradas unha e caÍne" para subjugar os espíricos
verdadeirq a moralidade dos homens" (Posiüuité 30). Portanro, ela (Conesp., 1,29). Como posteriormenre o jovem Marx, o jovem
se atém menos aos dogmas de uma religião do que à "norma sob Hegel considera a crícica da religião e a críríca da porírica indis-
a quel constata a verdade de sua doutrina e exige a execução de sociáveis. o trágico desfecho da Revolução francesa seguramenre
seus mandamentos" (Posiüuité,114). Hegel interroga-se sobre essa o convenceu
- e a esse respeito ele não mais mudará _ de que
esclerose (inelutável?) da fê. viva do cristianismo primitivo) como não se pode lutar conrra a alienação simplesmenre por meios
também sobre a da religião cívica da cidade antiga de cuja unidade políticos, que não basta instaurar auroritariamenre o culro à
ela era o fermento. No que conceme à religião cristã, essa degrada- deusa Razío para tornar os homens racionais e virtuosos. Es-
ção começa desde a primeira geração dos discípulos de Cristo, os creverá, mais tarde: "Deve-se julgar uma insensatez dos tempos
quais, ústo "não terem conquistado por si mesmos a verdade e a modemos mudar o sistema de uma eticidade corrompida, sua
liberdade", transformaraÍn esse "mestre de virtude" -.que naVida constituição e legislação, sem a mudança da religìão; rer feiro
d.e Jesw (1795) fala alinguaguem da Críüca da ruzÃ,o prática! -- em
uma revolução sem uma reforma (EnEcl.,3, S S52, 338)1. Mas
"mestre de uma religião positiva" (Posiüuité,45). Conrrasre sur-
preendente em relação aos discípulos de Sócrares: esses, que haviam
1. Tradução, a partir do original alemão, de paulo Meneses, in G. W. F.
"conhecido outros mestres" e üvi.am sobretudo em um Escado HEGEL, Enciclopédia das ciências flosófcas. Em compêndio (i830), São paulo,
"que ainda merecia -seu interesse" (ibì.d..), foram "grandes homens Loyol4 1995, 332, v. III.

3U I em direçáo ao sisterrra entre tübinsen e íena I 35


insÉurar uma religião aucêntica de profundas ransformações na hora em que "a imagem de
é impossível, reciprocamente,
melhores e mais justos cempos nascem na alma dos hornens"
sem desenvolver a liberdade política' Um dos fragmentos de
e onde "a aspiração a uma situação mais pura e mais livre sa-
Berna estabelece um paralelo entre a degradação da liberdade
cudiu todos os corações e os separou da realidade" (Francforc,
poiítica e a corrupção positiva da fé religiosa; de certo modo,
167): codo um programa!
a positivação do cristianismo foi favorecida, aliás, pelo declínio
das instituições republicanas. Na verdade, "em uma República,
ll. Frankfurt: destino, amor, vida
é por uma idéia que se vle" (Berna, 80); Catão não tinha ne-
cessidade de uma rclígiáo consoladora ou de uma Promessa de Durante os quatro anos, difíceis no plano pessoal, que
imortalidade pessoal, pois para ele apítría era"a meta final do Hegel passa em Frankfurc (ele reconhece ter atingido tí "o
mundo ou a meta final de seu mundo" (Berne,98). Portanto, ponco níJturno da contradição de seu ser" lCorresp., 1,28L)),
para combater a positividade convém Íestaurar simultaneamen- seus interesses teóricos (religião e política) permanecÈm
rc a fê autêntica veiculada pelas palavras de Cristo e os cultos a-parentemente os mesmos) mas o modo como reage a eles
cívicos das cidades republicanas. Tarefa difícil, Pata a qual não se cransforma profundamente. No que concerne à política, a
há solução pronta; os escritos bernenses Parecem hesitar encre leitura dos economistas anglo-saxões começada em Berna abala
um neopaganismo que lembra a religião civil do Contrato socia'l o modelo grego dapolis e convence Hegel de que o mundo mo-
(Rousseau, sabemos graçâs a um de seus colegas, era "seu Deus ") derno não se acomoda mais ao primado absoluto do espírito
e a esperança de uma reforma do criscianismo realizada graças público que ele sonhava restaurar. É em Frankfurt que redige,
aos recursos da fiiosofia moderna' em !799, um comentário - hoje perdido - do tratado deJames
Entretanto, ê. da política que Hegel, que ainda não havia Steuart, An inqairl into tbe principles of political econom3t, do qual
renunciado à esperança de uma restauração da ética dos an- um leitor informado díz que condensa "todos os pensamenËos
tigos, espera a salva-ção. Na verdade, a religião só se corna de Hegel referentes à essência da sociedade civil, à necessidade
rotalmente posiriva com a decadência do espírito público: 'A do trabalho, à divisão do trabalho e ao poder dos Escados, à
religião cristã foi acolhida aberta e favoravelmente na ocasião assistência pública e à polícia, aos impostos etc.)) (Rosenkranz,
em que a virtude cívica dos romanos havia desaparecido" (Beme, Vie de lIegel,201). Essa leitura, segrrida da Nqueza das nações de

69). O único trabalho bernense publicado (quando HegeL jâ Adam Smith (cujos primeiros craços explícitos datam, todavia,
escá em Frankfurt) foi uma tradução anônima e comentada de da estadia em lena), coloca Hegel no caminho de uma de suas
urn libelo do advogado J.-J. Cart denunciando a opressão da maiores criações conceituais: a distinção entre sociedade civil e
Esta.do, que esclarece a dimensão não diretamente política do
região do Vaud pela aristocracia bernense. No início da esta-
viver conjunËamente, apoiada pelos mecanismos do mercado.
dia em Frankfurt, esse opúsculo é acrescido de um panfleto
Logo concluirá daí que "a bela e feliz liberdade dos gregos" é
que Hegel redige sobre a situação poiícica de Wurtemberg. No
incompatível com a afrrmação do interesse particular, conr-
encanto) desiste de publicá-lo; dele só restam algumas páginas'
ponente do " princípio superior dos ternpos rnodernos" (Esprit, 2, 93
Incituiado "Os magiscrados devem ser eleitos pelo povo", defen-
entre tübingen e iena I 37
35 I em direção êo sistemõ
e 95), e que portanto convém invenrar ourro ripo de polírica, (Pol., LL8) que exorta seus compâcriotas a "liberrá-la dos bárba-
diferente da ilustrada peio ídeú da. polis. ros". A história (e Napoleão, esse "grande professor de direito
Hegel não 1ê somente os economistas, mas também obras conscitucional") condenarâ a voz de Hegel, como rambém a
históricas antigas (Tucídides) e modernas (Hume, Gibbon, de Maquiavel, a "ficar sem eco" (Pol., I2I). Para a posteridade
Schiller, Raynal): essas leituras alimenram uma reílexão na resta um escrito de severa acuidade. Alguns dos maiores remas
qual a questão da hisroricidade adquire imporrância definiciva. da filosofia política posterior jâ aparecem aí, mas sem a infra-
Na verdade, alimentam uma refiexão especulativa sobre a uida estrutura que os suportará: necessidade de um Estado que não
histórica do espírito. Esse é um rraço consrance da conscituição seja um "Estado na. idéia" (Po|.,73, 162), recusa da redução do
intelectual de Hegel: ele não quer se arpoiar somenre nas grandes direito público ao direito privado (Po\.,1,03) e da polícica à moral
obras filosóficas, mas tambéÍn nas produções do encendimenro (Pol.,I05), rejeição de um pacifismo que ignora "a verdade que
culto que oferecem acesso priviiegiado à inteligência do real. mora dentro do poder" (PoL.,95).
Quando morreu, sua biblioteca continha quase tantas obras Entretanco, o grosso do trabalho realizado em Frankfurt
científicas no sentido amplo quanro esrriramente filosóficas. (e que não viria à luz) díz ainda respeito a remas reológicos:
O interesse pela história se manifesra rambém num rrabalhc, consiste em dois manuscritos, claramente parres de um projeto
que empreende após a parrida de Frankfurr, abandonando-o em comum, que craram de O espírito do judaísmo e de O espírito do
seguidq jâ que a aniquilação dos Esrados alemães pelo exército crisüanismo e seu destino (os tículos não são de Hegel). Há un\a
napoleônico tornou-o ultrapassado: a redação de uma obra que nítida diferença entre o modo peio qual os escriros bernenses
analisa as razões da decadência do Império e propõe os meios de cricicavam as religiões positivas opondo-lhes um kandsmo bem
interrompê-la. O essencial dos fragmentos que se conservaram sumário e uma dinâmica mobilizadora dos cultos cívicos, e o
de A Consütuição da Alemanha (eles foram editados em 1900) modo peio qual os textos frankfurtianos estudam o "descino" do
redigiu-se em Iena em 1801-1802, mas foi em Frankfurt que judaísmo e do cristianismo. O Jesus de Berna era a encarnação
Hegel concebeu o projeto e examinou a abundanre literarura da fé moral, e o que Hegel opunha ao devir positivo da religião
histórica e jurídica que deveria alimentar sua realização. Redigiu era a idéia kantiana da religião racional (simulraneamenre a uma
aí três primeiros esboços, obras de um "coração que abandona religião cívicacom caracceríscicas rosseaunianas). Em Frankfurt,
com pesar a esperança de ver o Estado alemão ser arrancado o pano de fundo kantiano desaparece, assim como o modelo da
de sua insignificância" (Francfort,356; Pol.,25). Ainda náo é a cidade antiga. Para pensar esse destino (essa necessidade vivida,
sentença lapidar: 'A Alemanha não é mais um Estado", com a mas não assumida) que é a positividade, Hegel utílizaconceiros
qual se abre a úlcima redação do manuscrito (P01.,31); mas já anticonceituais2: amor, vida, destino. Por que o recurso a um
percebemos nesses fragrnentos o realismo político, a vontade de vocabulário que pode parecer pouco rigoroso, figurado? Porque
opor a fria análise dos processos hisróricos à "lend.a da liberdade se trata de pensar o que o "conceito" (que posteriormente se
alenrã" (Francfort,357; Pol.,26), que são o traço disrintivo dos chamatâ conceito do entendimento) por oposição ao conceiro
escritos políticos de Hegel. Aqui, seu modelo é Maquiavel, esse
republicano desejoso "de elevar a Irália à categoria de Estado" 2. B. BOURGEOIS, Ia, pensée polìtique de Hegel, Paris, PUF, 1969,49.

38 I em direçáo aú sistema entre tübingen e iena I 39


racional ou especularivo) não permite apreender: é isso que o Encretanto, seria arriscado falar em anti-semitismo, com o que ele
Fragmento de sistema designa, com identifr'caçío à vida, como a comporrE retrosPectivamente) de ameaçador. H. Arendt demons-
"ligação da ligação e da não-ligação" (Francfort,372); dko de trou que o anti-semitismo é uma invenção do século XIX que tem
ourro modo, a dialética daquilo que é. Hegel opõe a vida ao con- aver com a exacerbação dos nacionalismos. Se olharmos de Perco,
ceito, a religião à filosofia porque enrão identifi.cava o conceiCo veremos que a crítica de Frankfurt ao judaísmo dirige-se antes de
e a filosofia com a expressão finita que o kantismo lhes dera: tudo à passividade induzida pela teocracia; Hegel the opõe não
tanto o cristianismo mas o belenismo, a ciwlízação da liberdade e
A fiiosofia deve necessariamente cessar quando a religião começa,
dos deuse.s politicos: "Os gregos deviam ser iguais Porque eram
porque é um pensamento) e Portanto traz consigo, de um lado,
a opãsiçao donão-pensamento [e do pensamento], de outro, do todoslivres;ao passo que os judeus eram iguais Porque todos etam
p"r,r..ta" e do pensadol cabe-ihe mostrar em tudo que é finito a incapazes de auto-subsistência" (Francfort,196). Isso está longe
hnitude, exigiriua re alizaçáo pelanzâo,e em particular conhecer do antijudaísmo cristão tradicional, do qual aliás Hegel evita
as ilusões [pioduzidas] pelo seu próprio infinito, e assim colocar todos os clichês. Seria preferível-, éverdade, que Hegel não tivesse
o verdadeiro infiniro fora de seu campo (Francfort,ZTZ)' escrito: "a grande tragédia do povo judeu não é uma tragédia
grega, não pode despercar nem o temor, nem a compaixão, [."]
infinito com a ajuda dos
Essa razão rncaPazde apreender o
[ela] só pode despertar aversão" (Francfort,203). Ao redigir sua
conceicos é, no vocabulário posterior, uma tazío do entendi-
FilasoJìa do Direito, Hegel teria se lembrado do que esboçara por
menro) desatenra à dialédca e à hisroricidade que somente os
volta de 1800? Aí ele sempre advoga em fâvor da concessão de
não-conceicos (o desrino como separação ou como hipóstase
direitos civis e políticos aos judeus, pois eles "são antes de tudo
do negativo; a vida como poder unificador do que está cindido;
homens, e isso não é uma qualidade triüai, abstrata" (PPD, S
o amor como ato de reconciliação) podem denominar
27A,357). Portanto, a lei civil teria o poder de desfazer o que a
Uma suspeita de anci-semitismo Pesa sobre a análise do
Lei divina. fez: a passividade, o isolamento e a infelicidade.
d.estino do judaísmo. Para Hegei, o judaísmo é essencialmente
Mas a reflexão sobre o destino ulcrapassa o caso do judaís-
um desrino, no sencido de não ser suscetível à reconciliação no
mo. Ao fim de uma reflexão sobre o caríter inacabado de uma
amor que a fr.gura de Cristo simboliza. O judaísmo - Hegel ja-
l

reconciliação segundo a lei (não somente a lei judaica) e na forma


mais mudará a esse respeito - é uma religião da separação: do ll

de castigo, lê-se: "Esse sentimento da vida que se reencontra â si


homem e de Deus, do homem e do homem; nesse sentido, ele é
mesma é o amor, e nele o destino se reconcilia- [...] O descino não é
o paradigma da alienação religiosa que Feuerbach denunciará no
descorrhecido, [..J é a consciência de si-mesmo, mas como a de um
crìsdanismo. Hegei estabelece uma ligação entre a "infelicidade"
do povo jud,eu, fadado à dispersão e à opressão) e a nacurezade [ser] hostil; o todo pode restabelecer em si a arníz,ade, pode voltar,
sua religião: "A re\igíío mosaica é uma religião proveniente da pelo amor, para a. sua vida pura; assim sua consciência torna-se
infelícidade e [feita] para a infelicidade; fnão é uma reügião] para novarnente fr em si-mesma, a incuição de si-mesma torrìa-se uma
a felicidade, que aspira a coisas alegres; seu deus é muito sério" oucra e o destino é reconciliado" (Francfort,255-256). Como não
(Francfort,132). Esse propósico reflete os Preconceitos da êpoca, perceber aqui a antecipação da futura temática da reconciliação
partilhados mesmo pelos partidários da integração dos judeus' como "identidade da identidade e da não-idenddade"? Aqui é a

LlO I em direçéo ôs 5istema entre tübingen e iena I Lll


linguagem evangéüca do amor e da fé que é mobtlizada- Enrre- mo, Hegel está em busca de sua própria orientação. Isso se vê
taÍÌto, a "nova religião" cujo "Mais antigo programa sistemático" no exemplo precedente: ao subsriruir a formula de schelling por
(seja ou não esse texto de Hegel) se anuncia sob a forma de uma outra expressão, calcada na definição frankfurriana da üda como
"mitolo gia d a tazáo" (Francfort, 9 7) será a superação (Aufh ebang) da "Iigação da ligação e da não-ligaçío',, Hegel d.á um imporranre
reiigião, (cujo elemento permanece a representação) pela filosofia passo na direção da concepção processual do ser e do pensar
especulativa; mas isso Hegel ainda não sabe. (ontológico) que o conduzirâ à rupcur4 no ,,prefácio,, de Lg07,
com o "branco informe" da identidade, que exprirne somence "a
lll. lena: na direçáo da "Sexta-feira santa especulativa" vacuidade do absoluto" (pbE,I-4S). Oucro exemplo, sempre na
Diferença: o sisrema fichteano é censurado por ser uma filosofia d,a
Em Iena, Hegel escreve e começa a publicar; nada de compa-
reflexão que se mostra incapaz de pensar a síntese a não ser como
rável, enrreranto, com a produção de seu amigo Schelling, com
unificação de oposros considerados como dados (o Eu e o não-Eu,
quem prepara a redação do Jomal críüco daflosofa. Os rrabalhos de
por exemplo): 'A reflexão parte de oposros e concebe a intuição
Iena têm importância decisiva na formação do filosofar hegeli.ano,
como sua unificação" (Différence,IL4). Or4 o que importa pensar
que prodrrz no fim desse período seu primeiro fruto maduro: a
é ao mesmo rempo a produção da diferença a partir da idencidade
Fmomenologia do Espíüto. Prosseguindo seus estudos anreriores,
e o acesso a partir dessa diferenciação a uma idend,lade superiorn
doravante Hegel trúalha conscienternence no que aré então per-
superveniente. O que ind,ìca aquia palavra,.incuição,, é exaramenre
manecia como um objerivo em longo prazo:a elaboração de um
o que o "Prefácio" daFenomenologiavu opor à intuição, enquanro
sistema Suas articulações definitivas surgem enrre 1803 e 1805.
pretende a apreensão imediata do absoluto: o conceìto. Mas o con-
Há notáveis diferenças enrre zÌs publicações de Hegei em lena e os
ceito, aqui designado como inruição, ê. algo toralmente diverso do
manuscritos redigidos paraseus cursos. Em seus rextos publicados,
produto de uma atividade reflexiva de um sujeico sobre um objero:
Hegel se baliza pelo pensamenro (às vezes o não-pensamenco) de
é "o Eu próprio do objeto" (pbE,I-Í2). Terceiro exemplo: o arrigo
seus contemporâneos (Difumça entre os sisternas de Fichte e de Scbelling
sobre direito natural (1s02) recorre largamenre ao vocabulário
Fé e saber, Arelação d,o ceücisrno e daf.losofa, Como o senso cornarn corn-
schellingiano: identidade, indiferenç4 poder (potenz). Enrreranro,
preendc a flosofa) ou rrara de uma disciplina canônica do ensino
em seu ensaio juvenil de uma Noua dcdução do direito natural (e
universitárío (fuIaneiras de üscutir cìenüfcamente o direito nauaral). sobretudo para desenvolver perspectivas que jamais serão as de
Seu contexco de referência e seu vocabulário são os da filosofia schelling mas já eraÍn as de Hegel em Frankfurr) ele o aplica a
da identidade de Scheiling de 1800-1802. O sj.stema da idenri- um domínio a cujo respeito Schelling não havia cogitado. Longe
dade - em que Hegel embarca quase automaticamente quando de ser uma simples "máquina" que se pretende superar
transforma a definição schellingiana do absoluto ("identidade da - como
escreve no "Mais antigo programa sistemático,, (o qual, por essa
identidade" , Exposição dc meu sistema de flosofw) em "idenridade da razáo,dificilmenre pode ser atribuído a Hegel)
identidade e da não-idenridade" (Dffirence,1.40) é a solução das -, o Estado (a,,vida
- ética absoluta"), enquanto ensina os indivíduos a ,.levarem uma
aporias do pós-kantismo, qualificado no seu todo como "filosofia vida universal" (DN, 63) em vez de se aniquilarem na ..nulidade
da reflexão". Entretanto, apesar de seu vocabulário de emprésti- política'' de uma "vida privada universal" (DN, 66, 6g), é o verdadeiro

l-l? I em direçáo ao sistema


entÍe tübíngen e iena I Ll3
e ffabalho' embate e
cicas aParentemente divergentes: linguagem
insrituid.or do "aro d.e filosofa/'. A forte articulação entre política
mais novo é
e pensamento, traço discintivo do hegelianismo, expõe-se aqui reconhecimerÌto) o social e o político' Mas o que há de
que Hegel, pela primeitavez)renuncia ao modelo
g:g" e engaja
,rr"dirttr" um léxico que the cai mal o de um filósofo PaÍa quem .se
a Acad.emia consrirui o model0 de um Estado bem
formado. ,r,r- pã..tro d" "r..onciüação com o cempo" cujo fruto é sua obra
posterior. Certamente, o Estado descrito na seção
"Constifuição"
Editad.os após sua morte, os rnanuscritos redigidos por
He-
d^Po'a"'' em ouffo lugar
gel em Iena sãode um gênero diference' Não se tratade posições ainda deve muito àídealrzaçío precedente
que íoi e perma-
ãriri.", quanto a tal ou tal autor, mas Partes de um "sistema da Hegel evoca "a bela e feliz liberdade dos gregos'
ciência" em gestação, do qual Hegel conclui em L8A7 o que
acre- ,r"ã ,r-rrrito desejada'' (Es7nt,2, g3)' Mas em seguida observa que
moderwol'
dita ser a primeira Parte: a Fenomenologia' Ê'sses esboços, às vezes esse modelo não se ajusta ao "princípio supqior dns Ternpos
(Esprit,2, gS), pois repousa no sacrificio da individualidade -
o
muito difïceis - Hegel criou aí uma linguagem nova PaÍa PensaÍ
objecos novos -, dizern respeito a todas as PaÍtes da futura
siste- ilro-sobre d.i-reit., n"rurrl dizia que é necessário "reprimi-ia-'' o
pela consciência
mâtíca: logica, rraturez4 espírito. Este vem primeiro, cronológica "deíaparecimento da individuúdadd' é rejeiado
de si modern a, e é meLhor assim: jâ é coisa
julgada
e quanrarivamente. Em 1802, Hegel redige o sisterna da uìda
éüca.

Mas os esildos de Iena não cliscutem somente o


mais espírito: a
Esse texto, ainda impregnado do vocabulario schellingiano,
escaPa às suas
aind.a d.o que o artigo sobre direito nacural, quase contemporâneo' ambição de Hegel é sistemácica, e nenhum domínio
editado sob
é um esboço da furura doutrina do espírito objetivo. As análises irrv"stigaç0"r. í o caso da l6grc4com o manuscrito
com um manifestação da
posteriores esrão esmbelecidas em suas grandes linhas, fiIas o drulo lÁgra e rlrctã'fsictí (1804-1805), primeira
vocabulário fadado a desaparecer. Em 1803-1804, Hegel redige um CiêncAdaúgira, pelo rnenos em alguns de seus
asPeccos' Opondo-se

manusciito conhecido pelo nome de "primeiro sistema"' os temas à redução dã rnetafisica à lógica tal como
tentado por alguns pós-
abordados recobrem os precedentes. Encontramos aí, em parcicular' que "o conhecer
kandanos (ver Dffience, L93'L98), Hegel considera
uma reflexão sobre a linguagem como vetor de universúzação da versad,o na merafísi ca é o suprassumk
(Aufheben) da logica" (Ing'
sobre
relação singular da consciência com o objeto (EsPn41, 68s'), Iéna,LSL).Alógicadequesetrat4bemdiferentedalógicaaris-
o "poder d.ã irrst.om ento" (Esprit,1, 78s'), sobre o craba'lho como reside na economia'
totélica da qual-incorPora alguns elementos'
das
desejo inesgocável, potencialmente alienante, de apropriação fornral da relação. Portanto, "alôglcatermina
ali onde termina a
coisas (Esprtr,1., 80) e, enfim, sobre a constitLrição dialética
do re- enquanto frlosofia
relação" (I'og.Ifua, L49) edá lugar à metafïsica
conhecimenro na,,conrradição absolutd' que é o embate (Espi\1, propriamente especulativa- Somente mais tarde'
renovando o sig-
BBs.). Um terceiro bloco, de l'805-1806, forma a "segunda filosofia nificadodotermo,Hegelfaúdalógica(diatédcaeespeculativa)a
do espírico". Hegel abord.a em conjunto o que mais tarde charnarâ uadaleira merafi sica- Mas muitas características
dessa fucu ralígsca
d. subjerivo (aqui, "o espírito conforme seu conceito") e de já estão Presentes, como Por exemplo a distin@o
enrre infinidade
"siiriro
.spírito objerivo ("o espírito eferivo"). Esse texto não mais utíltzea mï' e infinidade "verdadeira" (I'og' Ima, 5 L ss')3'
ling,r"g.*rchellingiana- É Hegel que fal4 mostra-o ao constituir "'
,rrrr a"-ittio (o do espírito) que ultrapassa a oposição herdada
enrre a subjerividade e a objerividade, e ao fazet convergir temá- 3. Ver abaixo, P. 83.

entre tÜbingen e iEna I L{5


LIQ I em direçáo ao sistema
-l

t' Depois da lógica e da merafísic4 o manuscriro de 1804-


1805 trata da filosofia danatrtreza, e talvez seja nesse plano que
ocorra a ruprura com Schelling. Enconrramos aí a anrecipação
do objetivo da Enciclopédìa, notadamenre no que concerne ao r*ipíluln Íll
movimento planetário (o "sistema dateffa,, torna-se a..mecâni-
ca", e depois a "mecânica absoluta"). Do mesmo modo, o ..sis- O sIsTEMH
tema terrestre" tornar-se-á a. "físíca". Todavia, ainda resta um
caminho a percorrer para se iiberar do clima schellingiano dos
trabalhos precedentes: enquanto na Enciclop édia a ê,, a
''atureza
idéia em seu ser-outro" e o espírito se define como sua,,verdade,,
(Enc1d. 18L7,3, S 301, 97), em Iena ela é ,,o espírito absoluro
referindo-se a si-mesm o" (GW, 7, IZg), ainda que nela esse es-
pírito apareça como "o ourro de si-memo,,. Em 1B05-1g06, um
outro manuscriro rrata da mecânica, da química e do orgânico.
A idéia de sistema está no centro da filosofia kantiana: ,,A uni-
A estrutura completa da filosofia danatureza está aí contida de
dade sistemâtícaê o que transforma em ciência o conhecimenqg
maneira dehnitiv4 com um vocabulário aind.a provisório. De
comum, isto é, o que faz de um simples agregado desses conhe-
modo geral, a filosofia da naüsreza mostra-se mais estável que
cimentos um siscema"l. O que distingue um sistema cienrífico de
a do espíriro; mas o trabalho começado em Iena para diferen-
um agregado? É o faco de que os conhecimenros aí contidos são
ciar essas duas manifesrações do absoluto influencia ranto um
otganízados segundo uma "idéia", um',conceito racional" que
quanto o outro conceito. O pensamento deve alienar-se, sair de
determina "o fim e a forma do rodo" (ibid.). Os pós-kandanos
si mesmo (em relação à idéia lógíca pura, a rretuteza e o espí-
apropriam-se dessa definição para fazer dela a mola-mesra de
rito finito são essa alienação) para verdadeiramente chega.r a si
uma rÌova concepção do filosofar. Para eles, a sistemadzação
mesmo. Tal ê, para além da referência religiosa do objetivo, o
nío diz respeito somenre ao modo de exposição, ela exprime a
sencido do que Hegel chama (em Fé e saber) a ,.Sexta-feira sanca
caracteríscica autofundadora da frIosofr.a. Essa concepção forte
especuladva": a "dor infinita" da perda do absoluco (a morte de
de sistemarizaçío encontra-se em Hegel, que faz da apreensão
Deus) é um momento do absoluto, e é necessário reconhecer
da totalidade ("o verdadeiro é o rodo") a pedra de toque da
"toda a verdade" apesar da"drstezade sua impiedade,, (FS, 29g).
liberdade do saber: a "ciência do absoluco é essencialmenre
Em Iena Hegel concebe todo o alcance da descoberra feira em
sistema" pois "o verdadeiro somente é enquanto totalidade,,, e
Frankfurt - a fecundidade da negatividade
- eaexploranas a "necessidade" de sua diferenciação ê a própría expressão da
mais diversas direções, sem coordena.ção exaramenre deliberada.
"liberdade do todo" (Encycl.,1, S 14, 180).
Trata-se agota, para ele, de fazet da negatividade a alma de uma
nova concepção da sisrematicidade.
1. Immanuel KAÌ.ff, Criüque da Ia raison pure, parís, Gallimard, 1990,
1.384 (Oeuvres philosophiques, t. I).

tl6 I em direçiãB aE sistema I Lt7


l. Em direçáo ao sistema em sua totalidade (nacural e espiritual). Resta dar um nome
e encontrar um lugar àquilo que permire pensar "a identidad.e
Hegel escreve para Schelling em 1800: "Em minha for- da identiclade e da não-idenddade,, (Dffirence,I4}):esse nome
mação cíentífica, que começou pelas necessidades mais ele-
será o conceito, e esse lugar, a lógica. A Fenomenologia do Espírito
mentares do homem, eu devia necessariamente ser impelido
faz a conversão do sistema em uma filosofia do conceiro como
para a ciência, e o ideal de minha juvenrude devia necessaria-
"identidade da morte e davida',2.
mence se cransformar num sistema; agora me pergunto [...]
como encontrar o meio de retornar a uma ação sobre a vida
ll. Da substência ao sujeito
do homem" (Corresp., 1, 60). Esse propósiro evidencia um
traço original de seu pensamento; ele combina os interesses O "Prefácio" de 1,807 proclama enfacicamente: ..A verdadeira
especulativos mais elevados com a arenção às realidades figtrra em que exisre a verdade é o seu sisrema cíentífrco', (pbí,
comuns. É o mesmo Hegel que concebe ambiciosos projeros I-8). Mas esse casamenco supõe um rerceiro termo: a circuhrid,ad,e.
sistemáticos de teor metafísico no sentido literal do rermo e Por ser o conceito um processo d.ialetico que inclui o momenro
que lê os economistas e os historiadores ou se interessa pelo da negativiclade, o sistema é um "círculo de círculos, cada um
destino do Império alemão. Mas o que é necessário reter da dos quais é um momenro necessário,, (Enqtcl.,1, S 15, 1g1).
carta e Schelling é que Hegel quer trabalhar não no que deve Ao ligar conceico, verdade e circularidade, o ,,prefâcío,, sugere
ser seu sistema, mas no sistema d.a frIosofr.a. O "Mais antigo lrma concepção dinâmica de sisrema" opondo-se à representação
programa sistemático do idealismo alemão" é um exemplo comum da complerude do saber. O sistema não é um ..círculo'
dessa ambição, mas é controversa a parernidade desse docu- que permanece fechado sobre si mesmo,, (phE, I-29); é sobre-
menro inacabado. O "Fragmento de sistema", de 1800, é, ele tudo "o devir de si mesmo" (PbE, I-IB). Assim, é portador de
sim, inconcescavelmence de Hegel. O propósito do texro é que uma circularidade dinâmica que se exprime na subjetiuiã,ade do
os pensamentos da narureza e do espírito se unifiquem sob processo de verdade: "segundo minha maneira de ver
[...] tudo
o comando da vida compreendida como processo diaiético, depend.e desse ponto essencial apreender e exprimir o verdadeiro
essa vida que os escritos de Iena rebatízarão de conceito para não como substâ.ncia, mas como sujeiro',. O sujeito, porém, não é
fazer dela a pedra angular do sistema. Um pensamento da em princípio a subjerividade finira (humana). A subjeriúdade
vida (do conceito) como processualidade, permitindo - para é antes de cudo a propriedade do conceito enquÍÌnËo produção
além da "morte, da oposição, do entendimento" - produzir de si, e não de uma substânciq ainda que pensanre, ou da
"o verdadeiro infinito" (Francfort,373): jâ é, no primeiro voca- subjecividade finica. Essa é sobretudo uma imagem murilada
bulário, uma descrição do sisrema definitivo. É na "oposição da verdacleira subjetividade: 'A subjecividade também não é
absoluta" que deve ser pensada a "reunião", a "recoÍrciliação" simplesmerrre a subjetividade má e finita, enquanro oposta à
cuja exigência a religião exprime melhor que uma filosofia
presa ao finito, rnas de um modo inadequado. O siscema 2.Yer P.-J, LABARRIERE, Le concepr hégélien, idenrité de la morr er de la
deve pensar a uniã.o na cisão, pensar a dialeticidade do rcal vie, in G. JARCZYK, P.-J. LABARzuÈRE, Hegelia.na,paris, pUF, L986, 54ss.

tlB i em direçèr: ao sistema o sisÌema I U9


Coisa; mas, segundo sua verdade, ê imanenre à [própria] Coisa" cega; é racional que haja o irracionala. Mas a conringência não
(Enrycl., L, S L47 A, 582)3. é a liberdade; porcanro convém jusrificar a necessária ligação
Conceito, sujeito, círculo, sistema: essas determinações são entre a necessidade e a liberdade. E o que se faz na Lógìca, com
significativas. É necessário acrescentar aí o rermo que busca a passagem, apresentada como "a mais difïcil" (Encycl.,1,
S 1S9,
unificá.-las, o espírito: "Que o verdadeiro seja eferivo somente 405), da substância ao conceiro. Essa transição, a da objerivi-
como siscema, ou que a substância seja essencialmente sujeito, dade à subjetividade, descreve a consciruição do ser em si na
isso está expresso na representação que enuncia o absoluco alteridade, da liberdade no seio da necessidade. A necessidade
como espírito. t...] O espírito que se conhece ê a ciência" (PbE, não é suprimida, mas conduzida ao seu verdacieiro significado:
I-22123). Porque o absoiuto ê espírito, o verdadeiro só se pode ao mesmo tempo apresentada como necessidade e ordenada à
considerar sistema. Mas o que é necessário entender por espí- livre processualidade do conceito que gere a si mesmo e ao seu
rito? Ao redigir o que devia ser uma ciência da experiência da outro. Mas se "a verdade da necessidade é aliberdade", e se essa
consciência e que se torna finalmente uma fenomenologia do última é a determinação mais aha do conceito, enrão o próprio
espírito, Hegel tem a necessidade de ir além de uma concep- sistema deve ser entendido como dinâmica de aucoprodução
ção subjetiva, consciencial do espírito. É isso que auroriza o da verdade. O hegelianismo não é aberro no senrido de ser
"Prefâcio" a identificar "a ciência" (portanto o sistema) com indefrnidamente modificável: há somente um sistema. Mas
"o espírito que se reconhece como espírito". Tal proposta só esse sistema é processual. Tal processo não pode se fechar em
tem senticlo se o espírito ê capaz de acolher seu outro) se a qualquer ponto, e é por isso que em cada um deles esrá em jogor
subjecividade não é a simples negação da substancialidacle, a verdade do sistema. O absoluto hegeliano ê utópico: não reside
mas sua assunção. O sistema da ciência é a explicitação, pelo em parte alguma, mesmo se as suas expressões são ordenadas
espírito, de seu próprio conceiro. pelo movimento do conceiro. Verifiquemos dois exemplos.
1) A circularidade do saber sistemático é a úkima manifesra-
lll. Fl "ciência da liberdade" ção de sua capacidade de engendrar sua própria alreridade: no
frm da Lógica, a idéia "se despede livremente dela mesm a" (SL, 3 ,
É por ser organizada segundo um cerro vínculo de necessi- 393) para fazeçse íatttreza) " idêrana forma do ser-outro" (Enqtcl"
dade que a fiIosofia é a "ciência da liberdade" (Encltcl. 1.877,I, 2, S 247, L87). É na compleca alienação que ela confirma sua
5 5, 156). Círculo dos círculos, o sisrema acolhe a concingência liberdade: o conceito mostra seu poder ao se reconhecer como
naquilo que tem de aparentemenre irreducível ao sisrema. Nada elemenco de radical alceridade (PhE,II-31,L).2) A imediaridade
mais enganoso do que acreditar em um necessitarismo hege- assim se tornou ou é mediada. Essa é a rese da Lógica a cujo
iiano reduzindo-o à sombra inconsciente de uma necessicla.d.e respeico, na Fenotnenologia, a certeza sensível faz a expetiência
cega. Sua incapacidade de apreender o "isto" em sua singulari-
3. Tradução, a partir do original alemão, de Paulo Meneses, in G. \[/. F.
HEGEL, Enciclopédia das ciências flosófcas. Ern compêndio (1330), São Paulo, 4. Ver B. BOURGEOUIS, Hegel ec la déraison hiscorique, in Études
Loyola, L99 5, 27 6-277, v. L
Paris, PUF, L992, 27 lss.
hégéliennes,

50 I em direçáo ao sistema o sistema I 5l


' _::.:.,.n:íëryFFry!ry{Fi.ql'r{,.{1Ì:".r..ir'TjFw@.Ql

dade significa que ela só é pensável a partir de seu outro, o positivas - é a garantia de sua fecundidade -, frs porque são
saber absoluto. Portanto, no fim da Fenomenologia, ela ressurge
"sem sistema", ordenadas a um ponto de vista setorial. Isso
como resultado de uma licença que o espírito se concede; essa ainda é rnais verdadeiro a respeito de lilosofias correspondenres
licença é a "liberda.de suprema" do saber que o espírito tem de
a um "princípio limitado"; elas são visões sobre o absoluro, não
si (PLE,II-311). O paraleio é manifesto, até no vocabulário, entre
o saber do absoluco. Só há uma filosofia cujos sistemas parricu-
a passagem do saber absoluto à consciência sensível e a passa-
lares são os momentos em sentido ao mesmo tempo lógicr: e
gem da idéia absoluta à naüÍeza: nesses lugares esffatégicos cronológico do termo. A sistematicidade não é somenre uma
nos quais o sistema parece repousar em uma expressão defini- exigência do tempo presente; Lxprime anatvÍezaatemporal clo
tivá, a circularidade destrói a ilusão de um Ponto de parada. fi.iosofar. De onde a espantosa tese da correspondêncie entre os
Subtraído desse processo (aquele cuja proposição especulativa momentos da idêía lógica e a sucessão dos sistemas reduzid.os
apreende o "ritmo"), o próprio absoluto seria somente "um
a seu princípio: 'A história da filosofia é a mesma coisa que o
pensamento uisto". sistema da filosofia" (HP Introd., 4L-42 e 104-105).
Então, pergunta-se: o sistema de Hegel identifica-se com e.ssa
lV. O diEcuÍso filosófico da totalidade
filosofiaunacujo momento são as filosofias particulares? Dianre
A do programa de um siscema
Enciclopédia é a execução da concepção de sistema, por um lado Hegel deue ídentífrcar seu
que expõe o ponto de vista não de um sujeito singular (isso pensamento (que desde então nío é seu pensamento) à ciência do
setía um sistema), mas do espírito apreendido como dialética absoluto: pois é quando se chega ao ponto de vista da totalidade
da constituição de si: que se pode discernir o verdadeiro significado da sistematização.
Mas tal visão a respeito da completude hegeliana da filosofi.a in-
A ciência dele [do absoluto] é essencialmente sistema, Porque o
verdadeiro, enquárÍÌto co ncreto,s6 é enquanto desdobrando-se em
terromperia o dinamismo processual de :urrrarazío se ex-pondo
si mesmo e recolhendo-se e mancendo-se junto na unidade - isto na hiscória. O sistema, para responder à definição dinâmica que
é, como totalidade l...l.Por sistema entende-se erroneaÍnenre ume Hegel adota, não pode completar-se sem deixar de ser: ele está
filosofia que tem um Princípio limitado, distinto dos outros; ao sempre aberto ao acontecimento do pensamento. Encontra-se
contrário, é princípio de verdadeira filosofia conter em si codos aqui o fecundo dilema do hegelianismo: ele não pode e enrre-
(EnEd.1,
-
os ourros princípios particulares S 14, 180-181)s. tanto só pode - se colocar como última figora da frlosofia.

Essa passagem contém dois ensinamentos: 1) Só há ciência


da tocalidade. Esse é o único meio de escapar ao risco da ar-
birrariedade própria a todo curso do pensamenco. As ciências
positivas nunca são plenamente ciências: não porque sejam

5. Tradução, a parrir do original alemão, de Paulo Meneses, in G. 17. F.


HEGEL, Enciclopéd,ia das üncias f.losófcas...,55, v. L

5? I em direçáo eo sistema
o sistema I 53

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