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Breve História
da Neurociência Cognitiva

Do que trata o campo da neurociência cognitiva? De onde surgiu? Para onde está indo? Começamos
este livro com uma breve história das pessoas e das idéias que levaram ao novo campo da neurociên-
cia cognitiva, aquele que tem suas raízes na neurologia, na neurociência e na ciência cognitiva. A neu-
rociência cognitiva, atualmente, representa um híbrido de disciplinas, de maneira que um estudante
da mente deve estar atento a ter conhecimento em várias áreas para entender completamente os tópi-
cos nela estudados. E esta área muda rapidamente. Ao final deste capítulo, apresentamos a curta e
muito recente história da neuroimagem. O imageamento do cérebro tornou-se um ponto central no
estudo da mente nos últimos anos.

PENSANDO SOBRE AS GRANDES QUESTÕES


Você pensa sobre grandes questões, como o sentido da nome. Desta corrida de táxi surgiu o termo neurociência
vida ou o significado do significado? Ou você é do tipo cognitiva, que foi aceito na comunidade científica.
que não se preocupa com tais questões? Se você é do se- Agora a questão é: O que isto significa? Para respon-
gundo tipo, não leia este livro (muito embora seria me- der a essa intrigante questão, precisamos voltar atrás e
lhor que você o lesse). Este livro é para aqueles que se olhar não somente para a história do pensamento huma-
preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, no, mas também para as disciplinas científicas de biolo-
o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, a gia, psicologia e medicina.
atenção, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este li- Para compreender as propriedades miraculosas das
vro trata do estudo científico destas grandes questões. funções cerebrais, você deve ter em mente que foi a Mãe
Então, prepare-se para aprender sobre uma fantástica Natureza que as criou, e não uma equipe de engenheiros
história que ainda está sendo escrita. racionais. Apesar da Terra ter sido formada há aproxima-
O campo científico da neurociência cognitiva rece- damente 5 bilhões de anos, e da vida ter surgido há cer-
beu este nome no final da década de 1970, no banco tra- ca de 3,5 bilhões de anos, os encéfalos humanos, na sua
seiro de um táxi da cidade de Nova York. Um de nós, Mi- forma final, apareceram há somente 100.000 anos. O en-
chael S. Gazzaniga, estava com o grande fisiologista cog- céfalo dos primatas apareceu há aproximadamente 20
nitivo George A. Miller, a caminho de um jantar de con- milhões de anos, e a evolução tomou seu curso para
fraternização no Hotel Algonquin. O jantar era oferecido construir o encéfalo humano de hoje, capaz de todo o ti-
por cientistas das Universidades Rockfeller e Cornell, po de façanhas maravilhosas – e banais.
que estavam se esforçando para estudar como o cérebro* Durante grande parte da história, os humanos esti-
dá origem à mente, um assunto que necessitava de um veram muito ocupados para ter chance de pensar sobre o
pensamento. Embora não se tenha dúvida de que o encé-
* N. de T. Aqui, a palavra “cérebro” é utilizada de forma mais ampla,
falo humano possa exercer tais atividades, a vida exigia
para expressar muitas vezes o encéfalo ou, até mesmo, o sistema atenção a aspectos práticos, como a sobrevivência em
nervoso como um todo. ambientes adversos, a criação de melhores maneiras de
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viver, inventando a agricultura ou domesticando ani- culo XIX. Observa, manipula, mede e começa a determi-
mais, e assim por diante. Entretanto, logo que a civiliza- nar como o encéfalo faz o seu trabalho. O pensamento
ção se desenvolveu a ponto de que o esforço diário para teórico é algo maravilhoso e produziu ciências fascinan-
sobreviver não ocupasse todas as horas do dia, nossos tes, como as teorias da física e da matemática. Contudo,
ancestrais começaram a dedicar mais tempo construindo para entender como um sistema biológico funciona, é
teorias complexas sobre as motivações dos seres huma- necessário um laboratório, e experimentos têm de ser
nos. Exemplos de tentativas de compreender o mundo e realizados. Idéias derivadas da introspecção podem ser
nosso lugar nele incluem Oedipus Rex (Édipo Rei), a anti- eloqüentes e fascinantes, mas elas são verdadeiras? A fi-
ga peça do teatro grego que lida com a natureza do con- losofia pode acrescentar perspectivas, mas estariam cor-
flito pai-filho e as teorias mesopotâmica e egípcia sobre retas? Somente o método científico pode guiar um tópi-
a natureza da religião e do universo. Os mecanismos ce- co por um caminho seguro. Pense sobre a riqueza de fe-
rebrais que possibilitam a geração de teorias sobre a ca- nômenos a serem estudados. Pegue a percepção de faces,
racterística da natureza humana prosperaram no pensa- por exemplo. Alguns dizem que o cérebro tem um siste-
mento dos ancestrais humanos. Ainda assim eles tinham ma especial para reconhecimento de faces. Esse sistema
um grande problema: não possuíam a habilidade de ex- especializado foi identificado porque pacientes com cer-
plorar a mente de forma sistemática por meio da experi- tas lesões cerebrais tinham dificuldade em reconhecer
mentação. faces de todo o tipo. Cientistas imediatamente debate-
Em um trecho de um diário de 1846, o brilhante filó- ram sobre a possível existência de um sistema especiali-
sofo Soren Kierkegaard escreveu: zado. Não, alguns disseram, o dano seria com a percep-
ção de objetos em geral, não com faces em particular.
Um homem deve dizer simples e profundamente que não Eles mostraram pesquisas que sugeriam que pessoas
compreende como a consciência leva à existência – é perfei- com dificuldades em reconhecer faces também tinham
tamente natural. Mas um homem deve grudar seus olhos problemas em reconhecer objetos ou faces de animais.
em um microscópio e olhar e olhar – e ainda assim não ser Mas eis que surge um novo caso. Um paciente, com
capaz de ver como está acontecendo –; é ridículo, e é parti- grande dificuldade em identificar objetos do dia-a-dia,
cularmente ridículo quando se supõe que isto é sério... Se
não tinha problema para identificar faces! De fato, se a
as ciências naturais estivessem desenvolvidas nos tempos
face era composta de frutas arrumadas de modo a pare-
de Sócrates como estão agora, todos os sofistas seriam cien-
tistas. Haveria microscópios pendurados do lado de fora cer uma face, o paciente dizia que via uma face, mas não
das lojas para atrair fregueses e teria uma placa dizendo: reconhecia que ela era feita de frutas! Incrível, mas real.
“Aprenda e veja através de um microscópio gigante como Parecia, então, que um sistema especial no cérebro reco-
um homem pensa (e, lendo esta placa, Sócrates teria dito: nhecia faces; esse seria ativado para produzir a percepção
‘Assim se comporta um homem que não pensa’)”. em nossa consciência por meio da configuração de ele-
mentos. Este processador especial de faces não sabe e
O prêmio Nobel Max Delbruk (1986) iniciou seu não se importa com os elementos que as compõem: des-
fascinante relato sobre a evolução do cosmos no livro de que os elementos estejam de acordo, uma face é per-
Mind from Matter? com esta citação de Kierkegaard. Del- cebida. O que poderia ser mais fascinante do que estudar
bruck faz parte da tradição moderna que se iniciou no sé- como o cérebro faz tais coisas?

A HISTÓRIA DO CÉREBRO
Um problema lhe é dado para ser resolvido. Sabe-se pessoas, por sua vez, sejam feitas de unidades menores,
que uma fatia de tecido biológico pensa, lembra, presta mais especializadas.
atenção, resolve problemas, deseja sexo, pratica jogos, Este tema central – se o cérebro funciona como um
escreve novelas, expressa preconceito e faz milhões de todo, ou se partes dele trabalham independentemente,
outras coisas. É proposto que você descubra como isso constituindo a mente – é o que alimenta muito das pes-
acontece. Antes de começar, você pode fazer algumas quisas modernas. Como veremos, a visão dominante
perguntas. O tecido trabalha como uma unidade, com mudou nos últimos 100 anos, e continua a mudar. Tudo
todas as partes contribuindo como um todo? Ou ele é começou no século XIX, quando os frenologistas, lidera-
cheio de processadores individuais, cada um deles ten- dos por Franz Joseph Gall e J. G. Spurzheim (entre 1810
do suas funções específicas, resultando em algo que pa- e 1819), declararam que o cérebro era organizado com
rece funcionar como uma só unidade? Lembre-se que, cerca de 35 funções específicas (Figura 1.1). Essas fun-
a distância, a cidade de Nova York parece um todo inte- ções, que variavam de funções básicas cognitivas, como
grado, mas na realidade ela é composta de milhões de a linguagem e a percepção da cor, até capacidades mais
processadores individuais, que são as pessoas. Talvez as efêmeras, como a esperança e a auto-estima, eram con-
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tizar a idéia de que diferentes funções cerebrais são loca-
lizadas em discretas regiões cerebrais.
O fisiologista experimental Pierre Flourens questio-
nou a visão localizacionista de Gall (Figura 1.3). Um
grande número de pessoas rejeitou a idéia de que proces-
samentos específicos, como a linguagem e a memória,
eram localizados em regiões circunscritas do encéfalo, e
Flourens tornou-se seu porta-voz. Ele estudava animais,
especialmente pássaros, e descobriu que lesões em áreas
particulares do cérebro não causavam certos déficits du-
radouros de comportamento. Não importava onde fizes-
se a lesão no encéfalo, o pássaro sempre se recuperava.
Figura 1.1 Esquerda: Franz Joseph Gall. Um dos fundadores da frenolo- Ele desenvolveu, então, a noção de que todo o cérebro
gia no início do século XIX. Direita: O hemisfério direito do encéfalo, por participa no comportamento, uma visão conhecida pos-
Gall e Spurzheim, em 1810. teriormente como campo agregado. Em 1824, Flourens
escreveu: “Todas as sensações, todas as percepções, e to-
das as vontades ocupam o mesmo espaço nestas estrutu-
cebidas como sendo mantidas por regiões específicas do ras (cérebro). As faculdades de sensação, percepção e
cérebro. Além disso, se uma pessoa usava uma das facul- vontade são, essencialmente, uma só faculdade”.
dades com mais freqüência que as outras, a parte do cé- Trabalhos realizados no continente europeu e na In-
rebro que representava esta função devia crescer. De glaterra ajudaram a retomada da visão localizacionista.
acordo com os frenologistas, esse aumento do tamanho Na Inglaterra, por exemplo, o neurologista John Hugh-
de uma região cerebral causaria uma distorção no crânio. lings Jackson (Figura 1.4) passou a publicar suas obser-
Logicamente, então, Gall e colaboradores acreditaram vações sobre o comportamento das pessoas com lesão
que uma análise detalhada da anatomia do crânio pode- cerebral. Uma das principais características dos escritos
ria descrever a personalidade de uma pessoa. Ele cha- de Hughlings Jackson foi a incorporação da sugestão de
mou esta técnica de personologia anatômica (Figura 1.2). experimentos para testar suas observações. Ele notou,
Gall, médico e neuroanatomista austríaco, não era por exemplo, que durante o início das convulsões, al-
um cientista, pois não testava suas idéias; a melhor par- guns pacientes epilépticos moviam-se de modo caracte-
te de seu esforço foi direcionada para a análise do córtex rístico, e parecia que as convulsões estimulavam um
cerebral, particularmente da sua superfície, e para enfa- ponto correspondente do corpo no cérebro; assim, mo-

Figura 1.2 Esquerda: Uma análise dos presidentes Washington, Jackson, Taylor e Mckinley, por Jessie A. Fowler; Phrenological Journal, junho
1898. Centro: O mapa frenológico das características pessoais no crânio; American Phrenological Journal, 1850. Direita: A publicação de Fowler e
Wells Company sobre compatibilidade matrimonial em conexão com a frenologia, 1888.
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Figura 1.3 Esquerda: Pierre Jean Marie Flourens (1794-1867), que


apoiava a idéia que depois se chamou de campo agregado. Direita: A Figura 1.4 John Hughlings Jackson, neurologista inglês que foi um
posição de um pombo destituído de seus hemisférios cerebrais como dos primeiros a reconhecer a visão localizacionista.
descrito por Flourens.

vimentos tônicos e clônicos dos músculos, produzidos Jackson, um neurologista clínico muito observador, no-
pelo disparo epiléptico anormal dos neurônios no encé- tou que era raro um paciente perder totalmente uma
falo, progrediam de maneira ordenada de uma parte do função. A maioria das pessoas que perdiam a capacidade
corpo para outra. Esse fenômeno o levou a propor uma de falar após um acidente vascular cerebral, por exem-
organização topográfica no córtex cerebral: nesta visão, plo, ainda conseguia falar algumas palavras. Pacientes in-
um mapa do corpo era representado em uma área corti- capazes de direcionar suas mãos voluntariamente para
cal particular. Hughlings Jackson foi um dos primeiros locais específicos do corpo ainda podiam coçar nesse lu-
a observar essa característica essencial da organização gar caso sentissem coceira. Quando Hughlings Jackson
cerebral. fez tais observações, ele concluiu que muitas regiões do
Embora Hughlings Jackson também tenha sido o pri- encéfalo contribuíam para um dado comportamento.
meiro a observar que lesões no lado direito do encéfalo Nessa mesma época, na França, talvez o mais famoso ca-
afetam processos visuoespaciais mais do que lesões no so de neurologia da história foi relatado por Paul Broca
lado esquerdo, ele não afirmou que partes específicas do (Figura 1.5). Em 1861, ele tratou um homem que havia
lado direito do encéfalo estavam intimamente ligadas a sofrido um acidente vascular cerebral; o paciente podia
essa importante função cognitiva humana. Hughlings entender a linguagem, mas não conseguia falar. Consis-

Pc
B

Figura 1.5 Esquerda: Pierre Paul Broca. Direita: As conexões entre os centros da fala, no artigo de Wernicke sobre afasia. B = área motora da fa-
la, de Broca; A = centro sensorial da fala, de Wernicke; Pc = área relacionada à linguagem.
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tente com as observações de Hughlings Jackson, entre- fotografam o encéfalo vivo. Vamos aprender sobre essas
tanto, o paciente podia murmurar algumas coisas – co- técnicas conforme avançarmos na leitura deste livro. (Co-
mo o som “tam”. Esses pacientes em geral falam auto- mo uma observação histórica interessante, o encéfalo do
maticamente; assim, enquanto apenas dizem “tam, tam, paciente famoso de Broca foi preservado. Mapeamentos
tam...” em resposta à questão “quem é você?”, podem recentes do encéfalo deste paciente revelaram que a lesão
facilmente contar de um a dez de maneira normal. era muito maior do que aquela descrita por Broca.)
A exata parte do cérebro que estava lesionada no pa- Como acontece na maioria dos casos, os estudos em
ciente de Broca era o lobo frontal esquerdo. Denominou- humanos levaram a questões para aqueles que traba-
se, posteriormente, esta região de área de Broca. O impac- lham com modelos animais. Logo após a descoberta de
to de seus achados foi enorme. Aqui havia um aspecto ex- Broca, os fisiologistas alemães Gustav Fritsch e Eduard
clusivo da linguagem que estava prejudicado por uma le- Hitzig estimularam eletricamente pequenas partes do
são específica. Esse tema foi escolhido pelo neurologista encéfalo de um cão e observaram que este estímulo pro-
alemão Carl Wernicke. Em 1876, quando tinha apenas 26 duzia movimentos característicos no animal (Figura
anos, ele relatou o caso de uma vítima de acidente vascu- 1.6). Essa descoberta levou os neuroanatomistas a uma
lar cerebral que podia falar quase normalmente, diferen- análise mais detalhada do córtex cerebral e sua organiza-
temente do paciente de Broca, mas o que ele falava não ção celular; eles queriam apoio para suas idéias sobre a
fazia sentido. O paciente de Wernicke também não com- importância de regiões localizadas. Como essas regiões
preendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma le- executavam diferentes funções, concluíram que deviam
são numa região mais posterior do hemisfério esquerdo, olhar de modo diferente o nível celular.
na área e ao seu redor, onde os lobos parietal e temporal Seguindo essa lógica, os neuroanatomistas alemães
se encontram. Hoje, essas diferenças sobre como o encé- começaram a analisar o encéfalo utilizando métodos mi-
falo responde a doenças focais já são bem-compreendi- croscópicos para ver tipos de células em diferentes re-
das. Todos os neurologistas, em todos os hospitais, sa- giões cerebrais. Talvez o mais famoso no grupo fosse
bem dessas coisas. Contudo, há pouco mais de 100 anos, Korbinian Brodmann, que analisou a organização celular
as descobertas de Broca e Wernicke fizeram “tremer a do córtex e caracterizou 52 regiões diferentes (Figura
Terra”. Filósofos, médicos e os primeiros psicólogos assu- 1.7). Brodmann usou tecidos corados, como aqueles de-
miram um ponto de partida fundamental: doenças focais senvolvidos por Franz Nissl, que permitiram que ele vi-
causam déficits específicos. Naquela época, os investiga- sualizasse diferentes tipos de células em diferentes re-
dores eram limitados em sua habilidade para identificar giões cerebrais. Como as células diferiam entre as re-
as lesões dos pacientes. Os médicos podiam observar o giões cerebrais, essa divisão foi chamada de citoarquite-
local do dano – por exemplo, uma lesão penetrante pro- tônica, ou arquitetura celular. Logo, muitos anatomistas
vocada por uma bala –, mas eles tinham de esperar o pa- agora famosos, incluindo Oskar Vogt, Vladimir Betz,
ciente morrer para determinar o local da lesão. A morte Theodor Meynert, Constantin von Economo, Gerhardt
podia levar meses ou anos, e, em alguns casos, geralmen- von Bonin e Percival Bailey, contribuíram para este traba-
te não era possível realizar a observação: o médico perdia lho, e muitos subdividiram o córtex ainda mais do que
contato com o paciente após sua recuperação, e, quando Brodmann havia feito. De maneira mais ampla, esses in-
este finalmente morria, o médico não era informado e as- vestigadores descobriram que várias áreas cerebrais des-
sim não podia examinar o encéfalo e correlacionar a lesão critas pela citoarquitetura realmente representavam re-
cerebral com os déficits de comportamento da pessoa. giões cerebrais funcionalmente diferentes. Por exemplo,
Hoje, o local da lesão cerebral pode ser determinado em Brodmann foi o primeiro a distinguir as áreas 17 e 18,
poucos minutos com métodos de imagem que mapeiam e distinção essa que provou ser correta em estudos funcio-

Figura 1.6 Esquerda: O fisiologista e ana-


tomista Gustav Theodor Fritsch (1838-1907).
Centro: O professor de Psiquiatria Eduard
Hitzig (1838-1927). Direita: Ilustração origi-
nal de Fritsch e Hitzig do córtex de um cachor-
ro, por Fritsch e Hitzig.
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3 1 2

5
8 4
9 6 7

40
39
10 46
44 43 41 19
52
42 18
45 22

11 21 37
38
47 17
20

Figura 1.7 As 52 áreas distintas descritas por Brodmann, baseadas na


estrutura e no arranjo celulares. Adaptada de Brodmann (1909).
Figura 1.9 Esquerda: Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), co-ven-
nais subseqüentes. A caracterização da área visual pri- cedor do Prêmio Nobel de 1906. Direita: Desenhos de Cajal das aferên-
cias no córtex de mamíferos.
mária do córtex, área 17, como sendo distinta da área 18,
demonstrou o poder do estudo da abordagem pela ci-
primeiro a identificar não somente a natureza unitária
toarquitetura, como vamos ver melhor no Capítulo 3.
do neurônio, mas também a transmissão de informação
No entanto, a grande revolução na nossa compreen-
elétrica em uma única direção, dos dendritos para a ex-
são sobre o sistema nervoso estava ocorrendo mais ao
tremidade do axônio (Figura 1.10).
sul da Europa, na Itália e na Espanha. Lá, uma luta inten-
Muitos cientistas genuinamente brilhantes estive-
sa ocorria entre dois brilhantes neuroanatomistas. Estra-
ram envolvidos na história inicial da doutrina neuronal.
nhamente, foi o trabalho de um deles que levou à com-
Por exemplo, Johannes Evangelista Purkinje – um tcheco
preensão do trabalho do outro. O italiano Camillo Golgi
educado em Praga, à época ainda controlada pelos ale-
desenvolveu uma coloração que impregnava neurônios
mães, que teve de viajar para a Polônia para conseguir
individuais com prata (Figura 1.8). Essa coloração per-
uma posição na universidade (Figura 1.11) – descreveu
mitia a visualização completa de um único neurônio.
não somente a primeira célula nervosa, mas também in-
Usando o método de Golgi, o espanhol Santiago Ramón
ventou o estroboscópio, descreveu fenômenos visuais
y Cajal descobriu que, ao contrário da visão de Golgi e
comuns e encaminhou uma série de outras descobertas.
outros, os neurônios eram entidades únicas (Figura 1.9).
Até mesmo Sigmund Freud entrou na história do neu-
Golgi acreditava que todo o encéfalo era um sincício, ou
rônio (Figura 1.12). Como um jovem cientista, ele estu-
uma massa contínua de tecido que compartilhava um
dou anatomia microscópica com o grande anatomista ale-
único citoplasma! Cajal estendeu seus achados e foi o
mão Ernst Brücke. Freud escreveu um ensaio sobre seu
trabalho subseqüente e independente acerca do lagostim.
Na realidade, algumas das biografias de Freud sugerem
que ele também defendeu a idéia de que o neurônio era
uma unidade fisiológica distinta e separada.
Hermann von Helmholtz, talvez um dos mais fa-
mosos cientistas de todos os tempos, também contri-
buiu para os primeiros estudos sobre o sistema nervo-

Dendritos

Corpo celular

Figura 1.8 Esquerda: Camillo Golgi (1843-1926), co-vencedor do Axônio


Prêmio Nobel em 1906. Direita: Desenhos de Golgi de diferentes tipos
de células ganglionares em cachorro e gato. Figura 1.10 Uma célula bipolar da retina.
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Dendritos

Corpo celular Figura 1.11 Esquerda: Johannes Evange-


lista Purkinje, que descreveu o primeiro neu-
rônio no sistema nervoso. Direita: Uma célu-
Axônio la de Purkinje do cerebelo.

Figura 1.12 Esquerda: Sigmund Freud


(1856-1939). Direita: Do seu trabalho com
o lagostim, Freud publicou esta ilustração co-
mo um exemplo de anastomose de fibras
nervosas, um conceito que Cajal mostrou es-
tar errado.

Figura 1.13 Esquerda: Hermann Ludwig von Helmholtz (1821-1894). Direita: O aparelho de Helmholtz para medir a velocidade de condução
nervosa.
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MARCOS EM NEUROCIÊNCIA COGNITIVA

Entrevista com Mitchell Glickstein, PhD. Dr. Glickstein é professor de neuroanatomia e neurociências no
University College, Londres. Ele escreveu extensamente sobre a história da neurociência.

Autores: Você assumiu a tarefa de estudar uma va- os corações tenham um suprimento de nervos, eles po-
riedade de assuntos em neurociências do ponto de vista dem continuar a bater mesmo quando estes nervos
histórico. O que motivou esse interesse? são cortados. O maior dos nervos autonômicos, o ner-
MG: Duas coisas. Uma foi a minha graduação na vo vago, dá inervação ao coração e causa diminuição
Universidade de Chicago, uma organização batista on- das batidas cardíacas. Se o nervo vago é estimulado
de os professores judeus ensinaram o catolicismo a es- eletricamente, o ritmo do coração e a força das bati-
tudantes ateus. Não existiam livros-texto (ou quase ne- das diminuem. Todos esses fatos eram conhecidos na
nhum), somente resumo de artigos originais. Em histó- época de Loewi. O que não se sabia era como o vago
ria, por exemplo, lemos Lênin e Martov na Revolução agia. Loewi estimulou a preparação de um nervo-cora-
Russa. Em química, lemos Lavoisier. Eu sempre pensei ção de um sapo em uma taxa muito alta, causando a
que as pessoas que criaram novas idéias podiam ensinar diminuição do ritmo cardíaco. Ele coletou o fluido de
mais efetivamente que autores de livros. A segunda in- dentro do coração logo após a estimulação elétrica.
fluência foram as aulas de Harry Patton aos estudantes Então, injetou este fluido no mesmo coração – ou em
de medicina na Universidade de Washington. Ele ensi- um segundo coração – e isso produziu o mesmo efeito
nou brilhantemente sobre reflexos – experimento por de diminuição do ritmo cardíaco e da pressão. Quando
experimento. Após a sua aula, você entendia que o ca- o fluido era removido sem que o vago tivesse sido esti-
minho mais curto para o ”reflexo do martelinho” en- mulado, não havia efeito no coração ou no segundo
volvia apenas uma sinapse, mas a evidência que levou a coração. Loewi concluiu que alguma coisa devia estar
esta conclusão foi feita de maneira brilhantemente cla- sendo liberada quando o vago era estimulado, e era
ra. Patton ensinou não somente o que sabemos, mas, esta substância química que causava a diminuição do
mais importante, como sabemos. ritmo e da força. Ele a chamou provisoriamente de va-
Autores: Você está agora muito ligado ao mundo gusstoff, significando exatamente “material do vago”.
moderno dos livros, TV, revistas e conferências freqüen- Alguns anos depois, Loewi e outros demonstraram
tes. Tudo isso leva a uma imagem sobre quais são os as- que a substância era o neurotransmissor acetilcolina.
suntos importantes em neurociências e como eles se tor- Loewi primeiramente acreditou que o vagusstoff –
naram importantes. Você está sugerindo que a investiga- acetilcolina – era específico. Sir Henry Dale, Walter
ção dos trabalhos originais e a história das idéias levam a Feldberg (um estudante de Loewi) e Marthe Vogt (a fi-
uma diferente interpretação do presente do que aquela lha de Cecile e Otto) demonstraram que a acetilcolina
que a maioria das pessoas conhece? Se for, poderia dar é também um neurotransmissor nas junções neuro-
um exemplo? musculares voluntárias.
MG: Há tanto para ser dito... Para começar, consi- Consideremos agora a auto-observação. Wollaston
deremos o experimento de Otto Loewi em “Vaguss- (1824) descreveu sua própria hemianopsia transitória
toff”. No tempo em que Loewi fez seu experimento (perda parcial da visão) e a hemianopsia mais perma-
crucial, existia a suspeita de que os nervos podiam ati- nente de dois conhecidos, quando o conceito ainda
var os músculos ou outros nervos liberando uma pe- nem existia, e sua descrição foi colocada no Boston Me-
quena quantidade de uma substância química – mas dical and Surgical Intelligencer como uma curiosidade
não existia prova disso. Loewi desenhou um experi- (depois disso, eles descreveram um menino na Filadélfia
mento simples na sua própria casa após ter tido a idéia que via uma chama de vela de cabeça para baixo!). Wol-
enquanto estava dormindo. Sabia-se naquele momen- laston foi um dos gênios ingleses do século XIX, traba-
to que os corações dos vertebrados, de sapos até ma- lhando em uma época em que as pessoas podiam fazer
míferos, podiam continuar a bater se removidos do contribuições a diversas ciências. Ele inventou um tipo
corpo e colocados em uma solução adequada. Embora de prisma para o trabalho óptico e também desenvol-

so (Figura 1.13). Ele foi o primeiro a sugerir que os in- O fenômeno de um famoso cientista fazer contribui-
vertebrados seriam bons modelos para entender os ções significativas para distintas áreas pode ser algo do
mecanismos cerebrais dos vertebrados. Helmholtz passado. Não que tais coisas não aconteçam nos dias de
também fez grandes contribuições para a física, a me- hoje, elas somente não são facilmente reconhecidas. A
dicina e a psicologia. ciência hoje é um enorme empreendimento, e cada sub-
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 27

veu uma técnica para puxar fios muito finos para usar Autores: Com certeza, tudo isso é verdadeiro e
em instrumentos de precisão. Antes do trabalho de muito mais. Por exemplo, você poderia comentar a dou-
Wollaston, crina de cavalo havia sido utilizada. Wollas- trina neuronal de Cajal? Embora ele seja amplamente
ton fez uma simples auto-observação. Ele notou que às creditado como seu fundador, não seria realmente o ca-
vezes tinha um ataque de perda parcial da visão. A per- so de a idéia “estar no ar” e muitas pessoas estarem fa-
da visual era semelhante em ambos os olhos; metade do lando sobre isso naquele momento? Apesar de Cajal ter
campo visual não podia ser visto. E era sempre a mesma sido, inquestionavelmente, um brilhante anatomista —
metade em ambos os olhos. Wollaston deu este exem- talvez o mais brilhante que tenha existido —, será que
plo: ele foi ver seu amigo – chamado Hughlings Jackson ele simplesmente não cristalizou e divulgou, com muito
– e olhou o nome na placa da porta de Hughlings Jack- sucesso, a idéia vigente na época?
son. Ele disse que só conseguia ver a palavra “son”. MG: Cajal foi mais que isso. Você pode melhor apre-
Wollaston estava cego na metade esquerda de cada ciar Cajal pela leitura de seus contemporâneos (Golgi,
campo visual em ambos os olhos. A meia-cegueira tran- Dogiel, Kölliker). Quando Cajal começou seu trabalho, a
sitória de Wollaston (agora chamada hemianopsia, lite- visão dominante era a de um sincício vago. Golgi pensa-
ralmente “metade da visão sem ver”) era transitória, va que havia anastomoses entre as colaterais de um
mas ele sabia de outros dois indivíduos que tinham a axônio e que o encéfalo era uma rede fusionada. Re-
meia-cegueira permanente. Ambos os tipos de hemia- centemente, dei uma aula sobre Cajal no Instituto Cajal
nopsia agora são bem conhecidos dos médicos. Sir Isaac – um verdadeiro desafio. Foquei-me na visita de Cajal a
Inglaterra em 1894. Eu tinha todos os documentos rela-
Newton, em seu texto sobre óptica, especulou que cada
cionados ao seu convite, seu aceite e seu grau honorá-
nervo óptico era dividido de tal maneira que o nervo
rio em Cambridge. (Ele foi preso rapidamente em Cam-
óptico ligado ao lado esquerdo de cada retina ia para o
bridge, um episódio à parte muito divertido.) A razão
lado esquerdo do encéfalo, e o nervo óptico do lado di-
pela qual eu passei um dia no Instituto foi para apresen-
reito ia para o lado direito do encéfalo. As implicações
tar um assunto em particular – a descoberta das espi-
das sugestões anatômicas de Newton nunca foram reco-
nhas dendríticas. Golgi certamente as viu, mas deixou-
nhecidas, e Wollaston não parecia saber de sua existên-
as de fora de suas figuras. Kölliker revisou a questão em
cia. Suas observações eram raras, e seus exemplos, não-
seu livro (1896) e concluiu solenemente que eram um
usuais. Foi só após outros 70 anos que essas duas contri-
artefato. Cajal escreveu um artigo brilhante no qual le-
buições foram completamente integradas. A especula- vantou a questão sobre por que os dendritos deviam
ção de Newton sobre o curso da fibra do nervo óptico aparecer, mas não os axônios. Por que o método de Gol-
foi verificada, os médicos começaram a reconhecer o fa- gi e suas variantes (baseadas em mercúrio) os mostra-
to de que a hemianopsia era muito comum e relaciona- vam? Para provar sua validade, ele disse que aquilo te-
da com a anatomia. ria de ser mostrado por um método independente. Ele
Consideremos a natureza transcendente e interna- tentou com o método de azul de metileno e conseguiu
cional da ciência. Ela não envolveu somente os alemães impregnar (corar) as espinhas, da mesma forma que o
no século XIX. Foi um rapaz de baixa estatura, Cajal, de método de Golgi corava. Eu fui a Madrid para olhar
um país com pouca tradição científica, quem colocou a seus desenhos. Como Cajal disse: “Elas estão lá com azul
neuroanatomia no curso certo por cem anos. de metileno; elas estão realmente lá. O problema está
Esses são alguns exemplos de por que eu uso recur- acabado”. Mas existiam outros. Waldeyer, por exemplo,
sos históricos. Eles ajudam a enfrentar o absurdo que é cunhou o termo neurônio, mas contribuiu muito pouco.
uma pessoa de 35 anos com cinco pós-doutorados, bri- Concordo com Cajal, que disse que o que Waldeyer fez
lhante nos últimos cinco anos de pesquisa e um pouco foi “... publicar minha pesquisa em um jornal médico se-
confusa nos cinco anos anteriores, que não sabe nada so- manal”. Quantos livros escritos há cem anos ainda são
bre como tudo o que sabemos chegou a ser conhecido. úteis hoje?
Se você quer ensinar sobre ciência, não é uma má escolha Autores: Bem, somente o tempo irá dizer se este irá
ensinar como nós chegamos aqui. se juntar aos outros. Obrigado.

disciplina tem seu próprio quadro de heróis e vilões. Es- perto de Milão, Golgi, filho de um médico, recebeu seu
ses guardiões de um determinado tema relutam em dei- diploma de medicina aos 22 anos de idade, na Universi-
xar estranhos entrarem em seus debates. dade de Pávia, na Itália. Contudo, ele ficou de fora das
Shepherd (1992) recontou a fascinante história de pesquisas das grandes universidades alemãs – um fato
Camillo Golgi e a comparou com a de Cajal. Nascido que o perseguiu durante toda sua carreira. Mesmo as-
28 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

MARCOS EM NEUROCIÊNCIA COGNITIVA

Interlúdio
ton, por exemplo, inventou a máquina a vapor em

A
o escrever livros-texto, os autores usam amplas
pinceladas para comunicar os marcos que se 1807; Hans Christian Ørsted descobriu o eletromag-
tornaram importantes para o nosso pensa- netismo. Mais interessante para o nosso campo foi
mento durante um longo período de tempo. Seria bo- Leopold Nobili, um físico italiano que inventou o
bagem, entretanto, não alertar o leitor sobre a com- precursor do galvanômetro – o aparelho que permi-
plexa e intrigante rede de aspectos pessoais, culturais tiu as bases para o estudo de correntes elétricas em
e intelectuais. Os problemas que atormentaram o tecidos vivos. Muitos anos antes, em 1674, Anton
mundo dos primeiros cientistas permanecem, até ho- van Leeuwenhoek, na Holanda, usou um microscó-
pio primitivo para observar tecidos animais (Figura
je, em total glória. Questões de autoria, ego, fundos e
A). Uma das suas primeiras observações foi uma se-
créditos são todos integrantes da fábrica da vida inte-
ção transversal de um nervo de vaca, no qual ele no-
lectual. Assim como os adolescentes nunca imaginam
tou “vasos muito pequenos”. Essa observação foi
que seus pais tenham tido os mesmos interesses e de-
consistente com a idéia de René Descartes, de que os
sejos que eles têm, os novatos em ciências acreditam
nervos contêm fluidos ou “espíritos”; estes seriam
que estão abordando novas questões pela primeira
responsáveis pelo fluxo de informação sensorial e
vez na história humana. Gordon Shepherd (1992), em motora no corpo (Figura B). Indo mais longe, entre-
seu histórico livro Foundations of the Neuron Doctri- tanto, este trabalho revolucionário teria de superar
ne, detalhou a variedade de forças atuantes no traba- os problemas com os primeiros microscópios, no mí-
lho de cientistas que agora conhecemos em nossa bre- nimo a qualidade do vidro usado nas lentes. Aberra-
ve história. ções cromáticas tornaram estes aparelhos inúteis pa-
Shepherd notou que a explosão de pesquisas so- ra a função de aumento. Foi somente quando os fa-
bre o sistema nervoso começou no século XVIII, co- bricantes de lentes resolveram este problema, que a
mo parte de uma intensa atividade presente quando anatomia microscópica tornou-se novamente impor-
do nascimento das ciências modernas. Robert Ful- tante na história da biologia.

Figura A Esquerda: Anton van Leeuwenhoek. Direita: Um Figura B Retrato de René Descartes, por Frans Hals.
dos microscópios originais usado por Leeuwenhoek, composto
por duas placas de bronze que sustentavam a lente.

sim, Pávia foi o berço de cientistas espetaculares, como a aceitar um emprego fora de Pávia, na cidade de Abbiate-
o físico Alessandro Volta, Christopher Columbus e um grasso, onde trabalhou como médico residente na Casa
grupo de grandes biologistas. Nesse brilhante grupo, dos Incuráveis. Nessas circunstâncias, era muito pouco
Golgi era um médico e cientista muito bem-formado. provável que Golgi continuasse sua carreira científica. Mas
Apesar de sua carreira ter começado de forma promis- ele perseverou e, trabalhando sob a luz do candelabro de
sora, Golgi foi forçado, devido a necessidades financeiras, sua cozinha, desenvolveu a mais famosa coloração de toda
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 29
a história. Golgi descobriu o método da prata para corar A resposta de Cajal, ao ver a coloração, permanece
neurônios – la reazione negra, a “reação negra”. fascinante (traduzida por Sherrington, em 1935):
A coloração de Golgi ficou famosa, assim como ele
próprio. Seu grande interesse pelas doenças o levou a vá- Contra um fundo claro apareciam filamentos negros, al-
rias descobertas em patologia, e ele então voltou a Pávia guns finos e lisos, outros grossos e espinhosos, em um pa-
para ser professor. Porém seus escritos não eram muito drão pontuado por pontos pequenos e denso, estrelados
ou fusiformes. Tudo era definido como um esboço de tinta
conhecidos fora da Itália; então, traduziu-os e publicou-
nanquim em papel transparente japonês. E pensar que es-
os no Italian Archives of Biology – que, curiosamente, era
te era o mesmo tecido que, corado com carmim ou campe-
editado em francês. A reputação de Golgi cresceu, e em che, aparecia como um bolo emaranhado em que o olhar
1906 ele recebeu o Prêmio Nobel juntamente com Cajal. tateava e tentava inutilmente exergar alguma coisa, termi-
Neste meio tempo, Cajal era o impetuoso filho de nando frustrado na tentativa de desvendar uma confusão e
outro médico. Somente a partir dos ensinamentos em completamente perdido em sombria dúvida. Aqui, ao con-
casa, realizados pelo pai, que Cajal desenvolveu algum trário, tudo estava claro e simples como um diagrama.
interesse pela biologia. Após uma infância complicada, Uma olhada era suficiente. Como um tolo, eu não podia ti-
Cajal emergiu como, conforme alguns chamam, o “pai da rar os olhos do microscópio.
neurociência moderna”. Ele recebeu os créditos por ter
sido o primeiro a articular, na sua totalidade, a doutrina Todavia, muitos anos depois, a cena na cerimônia do
neuronal. Prêmio Nobel, em Estocolmo, foi horrível. Golgi apare-
A ironia nesta história, como já mencionamos, é que ceu como um egocêntrico e, à sua maneira, negou-se a
Cajal fez muitas de suas descobertas utilizando a colora- reconhecer as descobertas de Cajal, que naquele momen-
ção de Golgi. Ele viu pela primeira vez a coloração na ca- to já tinha estabelecido a doutrina neuronal. Ambos es-
sa de um amigo, em Madri, Don Luis Simarro, que havia tavam usando a mesma coloração, o mesmo microscópio
aprendido a técnica enquanto participava de um encon- e estudavam o mesmo tecido. Um enxergou a resposta,
tro em Paris. Cajal disse que foi lá, no laboratório da ca- o outro não. Golgi continuava a ver seu amado sincício
sa de Simarro – não muito diferente do laboratório onde de neurônios como uma só unidade, enquanto Cajal en-
Golgi inventou a coloração – que ele viu pela primeira xergava cada neurônio como uma unidade independen-
vez “as famosas fatias de encéfalo impregnadas com o te, como depois foi comprovado.
método de prata do sábio de Pávia”.

O SÉCULO XX
Há quem fique desapontado em saber que os resultados preender como o gânglio somatogástrico da lagosta, com
dos primeiros trabalhos de Cajal e de outros confundi- oito neurônios, produzia atividade rítmica. Os avanços
ram os cientistas na primeira metade do século XX. To- são feitos trabalhando-se em diferentes níveis de organi-
do o seu trabalho, especialmente quando visto retrospec- zação, eis a estratégia fundamental em neurociência cog-
tivamente, argumentava sobre a importância dos neurô- nitiva. Sabendo-se qual comportamento é realmente
nios isolados. Para saber como o sistema nervoso funcio- produzido, não precisamos conhecer todas as possibili-
na, faz-se necessário compreender como um único neu- dades de interações que ocorrem entre os elementos re-
rônio interage e se comporta, assim como, para com- lacionados. Dessa maneira, um problema se torna restri-
preender as proteínas, necessita-se entender como os to e passível de solução. Mas essa não era a questão do-
aminoácidos são organizados. A excentricidade dos pro- minante no início do século XX. Apesar de o renomado
cessos sinciciais, das redes nervosas e dos processos ho- fisiologista inglês Sir Charles Sherrington acreditar enfa-
lísticos não era necessária. O sistema nervoso não é ticamente que o neurônio se comportava como uma uni-
uma grande bolha; ele é construído de unidades distin- dade e criar o termo sinapse para descrever a junção entre
tas. Se pudermos compreender como esse sistema fun- dois neurônios, os cientistas que trabalhavam em ques-
ciona e descrever as leis e os princípios de suas intera- tões mais “amplas” do encéfalo e do comportamento
ções, então, o problema de como o encéfalo dá origem à mantiveram-se unidos à idéia do processo holístico. Le-
mente pode ser tratado e, finalmente, resolvido. vou tempo para que as novas idéias fossem amplamente
Esta é a visão ideal, isto é, ao conhecer todos os ele- aceitas, principalmente porque importantes figuras do
mentos de um sistema, podemos compreender esse sis- início dos estudos cerebrais estavam bastante divididas
tema. Porém o encéfalo humano é composto de bilhões em suas teorias. Além do mais, muitas das primeiras
de neurônios, e pensar que precisamos saber a ação de propostas eram na realidade bem razoáveis, levando-se
todos eles para entender como o encéfalo funciona seria em consideração o estado do conhecimento científico na-
irracional. Na realidade, foi um grande esforço com- quele dado momento.
30 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

Tomemos como exemplo a idéia de contemporâ- de sintomas em um paciente, dada a extensão da lesão
neos de Broca, como Pierre Marie. Enquanto Broca es- vista em um exame de imagens do cérebro.
tava defendendo a importância da localização das fun- Ainda assim, um grande avanço havia sido feito. No
ções, Marie demonstrava a variabilidade da localização início do século XX, quase todos queriam provar que al-
cortical. Marie relatou que somente metade de seus pa- gum grau de localização funcional ocorria no córtex cere-
cientes apresentava dificuldades de fala quando as le- bral. Mesmo Goltz notou muitas diferenças nos seus ani-
sões eram localizadas no terceiro giro frontal do hemis- mais quando o lobo occipital era removido, em compara-
fério cerebral esquerdo – a área de Broca. Ele também ção a quando o córtex motor era removido. Os críticos
notou que muitos pacientes com lesões que não atin- então diziam que era impossível localizar “funções corti-
giam essa área tinham afasia do tipo de Broca. Marie cais superiores”, como o pensamento e a memória, dife-
estava tanto certo quanto errado. Existe uma grande rente da visão original, que postulava a ausência de qual-
variação no encéfalo humano, mas, por meio da obser- quer localização de funções encefálicas. Essas ressalvas
vação da estrutura subjacente, ele poderia bem ter des- estavam de acordo com a primeira observação articulada
coberto que uma região crucial do encéfalo simples- por Hughlings Jackson, isto é, de que se deve distinguir
mente trocava de um lugar para outro durante o desen- entre a evidência para localização de sintomas e a idéia de
volvimento. A noção de localização, portanto, não foi localização de função. Com isso, Hughlings Jackson que-
realmente modificada com o tipo de observação que ria dizer que, enquanto uma lesão cerebral pode produzir
Marie ofereceu. um sintoma bizarro, não quer dizer que a área afetada se-
Ainda hoje, algumas pessoas simplesmente se recu- ja especializada somente nessa função. A lesão pode mui-
sam a aceitar que, compreendendo a função de um único to bem afetar outras estruturas no encéfalo, porque pode
neurônio ou de áreas menores do encéfalo, podemos ex- danificar neurônios conectados a outras regiões. A distin-
plicar como o encéfalo funciona. Essa visão é tão comum ção de Hughlings Jackson foi também uma das primeiras
hoje como era no início do século XX. Todos os envolvi- evidências de que comportamentos expressam uma cons-
dos no problema tinham o seu exemplo favorito das pro- telação de atividades independentes, e não uma entidade
fundas contradições vistas nesta lógica. Durante a época única. Essa distinção é crucial quando analisamos dados
de Broca, um professor de fisiologia alemão chamado de modernas imagens cerebrais, como veremos adiante.
Friedrich Goltz levava seu cachorro em encontros cientí- Stanley Finger (1994), em sua histórica descrição
ficos (Figura 1.14). Goltz havia removido grande parte dos eventos relacionados a este tema fundamental em
do córtex do animal, e, mesmo que alguns danos fossem Origins of neuroscience, apresenta citações dos antilocaliza-
percebidos, o comportamento do cachorro era perfeita- cionistas. Na virada do século, um movimento de amplas
mente funcional. Mostrou-se, posteriormente, que a le- bases foi absorvido pelos processos de Gestalt, a idéia de
são do cachorro era bem menor do que aquela relatada, que o todo é diferente da soma das partes. Um dos mem-
mas o exemplo não é incomum. Em humanos com lesão bros desse movimento, o grande biólogo francês Claude
cerebral, é comum nos surpreendermos com a ausência Bernard, escreveu em 1855:

Figura 1.14 Esquerda: Friedrich Leopold Goltz (1834-1902). Centro: O cachorro que Goltz mostrou no Congresso Internacional de Medicina em
1881. Direita: O cérebro do cachorro do qual Goltz removeu uma porção do córtex.
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 31
Apesar de ser possível dissecar todas as partes do corpo, dos neurônios como unidade e função localizada foi pos-
isolá-las para serem estudadas em suas estruturas, formas ta em dúvida. Seus estudos e escritos eram baseados em
e conexões, não é a mesma coisa em vida, quando todas as forte contexto acadêmico e apoiados em seus dados expe-
partes cooperam ao mesmo tempo em um único propósito. rimentais. O ponto assinalado por Lashley era de que as
Um órgão não vive sozinho, pode-se dizer que este não
lesões ocorridas no encéfalo não pareciam criar proble-
existe anatomicamente, pois os limites estabelecidos são
meramente arbitrários. O que vive, o que existe, é o todo e,
mas no aprendizado ou no desempenho de tarefas. O ani-
se alguém estuda todas as partes de um mecanismo separa- mal escolhido por Lashley era o rato, e ele utilizou exclu-
damente, não sabe como este funciona. Da mesma manei- sivamente a tarefa de aprendizado em labirinto. Desde
ra, anatomicamente, temos o organismo separado, mas não então, aprendemos que as conclusões de Lashley têm al-
sabemos como ele funciona como um todo. Este todo só gumas falhas. Por exemplo, a tarefa de aprendizado em
pode ser visto quando os órgãos estão em funcionamento. labirinto requer muitas modalidades, que, por sua vez,
requerem tanto do sistema nervoso, que nenhuma lesão
Esse tipo de pensamento motivou muito o trabalho isolada pode produzir um déficit de aprendizado. Se um
posterior de dois neurologistas, Constantin von Mona- animal aprendeu a tarefa de locomover-se em um labirin-
kow e Sir Henry Head (Figura 1.15). Monakow é o pai do to usando informação visual e proprioceptiva, uma lesão
conceito de diásquise, a idéia de que o dano de uma par- no sistema visual ou no sistema proprioceptivo pode não
te do encéfalo pode criar problemas para outras partes, ser suficiente para criar um déficit, pois uma das modali-
um fato que tem sido bastante demonstrado. Head, que dades pode compensar a lesão. Seguindo essa lógica, caso
trabalhava em Londres, também via o encéfalo como um uma lesão seja tão grande que inclua todas as modalida-
sistema dinâmico, interconectado e mutável. Quando des, então o déficit deve ser observado. Na verdade, essa
havia algum dano, Head acreditava que o comportamen- também foi a conclusão de Lashley.
to resultante da lesão se devia ao sistema como um todo De qualquer forma, a mensagem da escola holística
estar em pane. Ele acreditava que um encéfalo lesionado ainda tem lições válidas. O pêndulo lentamente se voltou
era como um novo sistema, não um sistema antigo com para a visão da localização assim que a pesquisa neurofi-
uma parte faltando. Segundo Head: siológica começou a mostrar certas regularidades na or-
ganização do córtex cerebral. No início da década de
No que diz respeito à perda de função ou manifestações nega-
1930, Clinton Woolsey, Philip Bard e outros começaram
tivas, estas respostas não revelam os elementos com os quais
a descobrir os “mapas” sensoriais e motores no encéfalo.
o comportamento original era composto... É uma nova condi-
ção, conseqüência de um novo reajuste do organismo como Na realidade, tornou-se claro que cada modalidade tinha
um todo aos fatores que funcionam em nível fisiológico parti- mais de um desses mapas. Nas décadas de 1970 e 1980,
cular perturbados pela lesão local. aprendemos que os múltiplos mapas existem em cada
modalidade sensorial, chegando a um pico de complexi-
Apesar da derrota nessa batalha intelectual, esses bri- dade no sistema visual dos primatas. Até hoje, mais de 30
lhantes cientistas formularam argumentos transcenden- mapas de informação visual foram encontrados no encé-
tais. Os pontos levantados pelo grupo holístico e suas ra- falo de primatas. Ainda mais espetaculares são as desco-
zões ainda hoje têm mérito. Com o aparecimento de Karl bertas de que áreas bem localizadas no encéfalo, como a
Lashley, o grande psicólogo experimental, a importância área médio-temporal, são altamente especializadas no

O charme da neurologia, acima de todos os outros ramos da prática


médica, deve-se à maneira como esta nos força ao contato diário
com os princípios. O conhecimento da estrutura e das funções do
sistema nervoso é necessário para explicar o mais simples fenôme-
no da doença, e isso só pode ser conseguido pensando-se cientifica-
mente.
Sir HENRY HEAD, Some Principles of Neurology, 1918.

Figura 1.15 Esquerda: Sir Henry Head e W.H.R.Rivers no St. John College, em Cambridge, 1903. Head seccionou um ramo do seu próprio nervo ra-
dial e fez Rivers realizar experimentos de perda sensorial. Direita: Citação de Sir Henry Head.
32 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

MARCOS EM NEUROCIÊNCIA COGNITIVA

Figuras Femininas Históricas em Neurociências


que o princípio, na época recentemente descoberto, do

C
omo na maioria dos campos científicos, até recen-
temente, poucas mulheres eram reconhecidas por “tudo-ou-nada” da contração não era universalmente
suas contribuições em neurociências. Apesar de ser verdadeiro para todas as células contrácteis. Esse microe-
fácil concluir que isso se deve à pouca participação femi- letrodo foi subseqüentemente perdido durante a guerra
nina, uma interpretação alternativa é de que as mulhe- e teve de ser reinventado.
res, apesar de seu envolvimento, não foram completa- O primeiro relato de que um microletrodo teria sido
mente creditadas por seu trabalho. Consideremos o caso usado para gravar potenciais de repouso das membranas
dos microeletrodos. Ferramenta poderosa em estudos musculares de um sapo foi publicado em 1942, por Ju-
eletrofisiológicos hoje em dia, os microeletrodos são uti- dith Graham Pool (1917-1975), G.R. Carlson e Ralph Ge-
lizados para descarregar discretos estímulos elétricos ou rard. Os eletrodos utilizados (2-3 mícrons de diâmetro)
químicos em uma célula e gravar a atividade elétrica de também eram tubos capilares torcidos em uma das pon-
um nervo ou uma célula muscular de um indivíduo. tas e preenchidos com uma solução salina isotônica de
Ralph Gerard ganhou o Prêmio Nobel na década de cloreto de potássio, o que permitiu a Pool e Gerard regis-
1950, recebendo todos os créditos pela descoberta do trarem os potenciais de repouso e de ação evocados com
microeletrodo, entre outras tantas realizações. Entretan- seu eletrodo. Embora Gerard tenha recebido todos os
to, duas notáveis mulheres fizeram grandes contribui- créditos pela descoberta do microeletrodo, porque dimi-
ções para a descoberta dos microeletrodos, apesar de nuiu o seu diâmetro para 0,25 mícron, parece que Pool
não terem sido reconhecidas formalmente. foi pelo menos instrumental nesta descoberta; de acordo
Em 1902, Ida Hyde (1854-1945) foi a primeira mulher com ela, a invenção foi sua, e ela não recebeu qualquer
a ser eleita para a Sociedade Americana de Fisiologia, e crédito pela descoberta.
permaneceu sendo a única mulher nesta sociedade até Além de não serem reconhecidas por seu trabalho,
1914. Ela foi a primeira mulher a ganhar o título de dou- as mulheres também foram colocadas sob a sombra de
tora em fisiologia de uma universidade alemã (Universi- seus colegas contemporâneos, como é exemplificado pe-
dade de Heidelberg) e a fazer pesquisa na Escola de Me- los estudos de registro de células isoladas. Embora a
dicina de Harvard. Hyde inventou o primeiro microele- maioria dos livros-texto em neurociências discuta o tra-
trodo para o trabalho intracelular com organismos infe- balho de Hodgkin e Huxley sobre o axônio gigante de
riores, combinando instrumentos usados por F.H. Pratt lula, outra cientista menos reconhecida, Angelique Ar-
(1917) e M.A Barber (1912). Ela construiu um eletrodo de vanitaki, fez contribuições significativas ao estudo dos
diâmetro muito pequeno (3 mícrons ou menos), preen- neurônios isolados.
chido com uma solução salina, e conectou-o a uma pe- Nos anos de 1940, os neurobiologistas tinham apren-
quena coluna de mercúrio; o nível da coluna podia ser al- dido a penetrar com microeletrodos células eletricamen-
terado pela introdução de quantidades variáveis de cor- te ativas e queriam estudar as propriedades nervosas de
rentes elétricas negativas ou positivas. Esse mercúrio, por uma célula isolada. Embora os nervos dos vertebrados
sua vez, forçava a solução salina a favor ou contra a pon- sejam muito pequenos e estejam dentro de um encéfalo
ta do capilar e também transmitia estímulos elétricos pa- e de um sistema nervoso, o mesmo não se aplica a gran-
ra a célula através da solução salina. Em 1921, usando es- des nervos de certos invertebrados. Angelique Arvanita-
se método, Hyde demonstrou a primeira evidência de ki (1939) desenvolveu a preparação ganglionar de gran-

processamento da informação visual de movimento. Para é compreender que funções complexas, como percepção, me-
resumir, a neurociência continua a revelar a surpreenden- mória, raciocínio lógico e movimento, são o produto de vá-
te complexidade e a especialização do córtex cerebral. rios processos subjacentes, realizados em distintas regiões
Stephen Kosslyn, um dos fundadores da neurociência do encéfalo. Na realidade, as habilidades propriamente ditas
cognitiva, resumiu meticulosamente o conflito entre os lo- podem ser alcançadas de diferentes maneiras, o que envolve
calizacionistas e os holistas (Kosslyn e Andersen, 1992): diferentes combinações de processos... Qualquer habilidade
complexa, então, não é alcançada por uma única parte do en-
O erro dos primeiros localizacionistas é que eles tentaram céfalo. Neste ponto, os holistas estavam corretos. Os tipos
mapear o comportamento e a percepção em localizações úni- de funções classificadas pelos frenologistas não se localizam
cas no córtex. Qualquer comportamento ou percepção parti- em uma única região cerebral. Entretanto, processos simples
cular é produzido por muitas áreas, localizadas em várias que são recrutados a exercer tais habilidades são localizados.
partes do encéfalo. Assim, a chave para resolver este debate Neste aspecto, os localizacionistas estavam corretos.
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 33

a h

g
f

e
c d

a, bateria; b, comutador; c, bobina de indução; d, presilha; e, fio de platina;


f, ponta da pipeta; g, presilha; h, tubo de borracha.

Esquerda: Ida Hyde (1854-1945). Primeira mulher eleita para a Sociedade Americana de Fisiologia, 1902. Direita: Microeletrodo de
Ida Hyde (1921).

des nervos identificados nas lesmas Aplysia (lebre mari- Desde o trabalho sobre memória de Brenda Milner
nha) e Helix (lesma da terra). Arvanitaki também desco- na década de 1960, muitas mulheres em várias áreas das
briu que, em soluções com pouco cálcio, fibras nervosas neurociências têm sido reconhecidas como cientistas de
isoladas do cefalópodo Sepia (um parente do polvo) ponta em suas áreas: Patricia Goldman-Rakic (neurofisio-
produziam oscilações elétricas regulares que se torna- logia e neuroanatomia do córtex frontal) – ex-presiden-
vam periodicamente maiores e maiores, até que o nervo te da Sociedade de Neurociências; Margaret Livingstone
começava, de tempos em tempos, a disparar potenciais (neurofisiologia visual); Leslie Ungerleider (neuroima-
de ação. Ela foi a primeira a demonstrar que, esponta- gem cortical funcional); Carol Colby (visão e córtex parie-
neamente, a atividade rítmica recorrente pode ser uma tal); Mary Hatten (neurofisiologia celular do desenvolvi-
propriedade inerente de um único nervo sem a necessi- mento); Carla Shatz (neurofisiologia visual) – ex-presi-
dade do circuito neural gerá-la. Além disso, ela notou dente da Sociedade de Neurociências; Christine Nussel-
que, quando dois ou mais nervos correm juntos, a ativi- lin-Volhard (neurofisiologia molecular), e, talvez a mais
dade de um nervo pode atingir a atividade do vizinho. conhecida, Rita Levi-Montalcini, a neurobióloga que divi-
Hodgkin e Huxley ganharam o Prêmio Nobel de fisiolo- diu o Prêmio Nobel de medicina de 1986 pela descoberta
gia e medicina em 1963 por analisarem as bases iônicas do fator de crescimento nervoso. Embora o campo das
do potencial de ação no axônio da lula e são reconheci- neurociências ainda tenha mais membros homens que
dos na maioria dos livros-texto de neurociências, ofus- mulheres, este desequilíbrio está desaparecendo rapida-
cando as significativas contribuições de Arvanitaki a es- mente, como pode ser visto pelo número de estudantes
ta área de estudo. mulheres realizando sua formação em neurociências.

A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA
Enquanto a profissão médica foi pioneira nos estudos tre os intelectuais e cientistas, tornou-se a única manei-
sobre como o encéfalo funciona, os psicólogos começa- ra de pensar sobre o mundo. Por meio do pensamento
ram a defender que tinham condições de mensurar o correto, os racionalistas podiam determinar suas verda-
comportamento e sem dúvida estudar a mente. Até o co- deiras opiniões. Eles rejeitavam opiniões que, mesmo
meço da psicologia experimental, a mente era terreno que fossem reconfortantes, eram inexplicáveis e total-
dos filósofos, que questionavam a natureza do conheci- mente supersticiosas.
mento, sobre como conhecemos o que nos cerca. Os filó- Embora o racionalismo freqüentemente seja equipa-
sofos tinham duas posições principais: empirismo e ra- rado ao pensamento lógico, ele é diferente. O racionalis-
cionalismo. O racionalismo se desenvolveu no Século mo leva em conta alguns temas, como o sentido da vida,
das Luzes (Iluminismo). Tomou o lugar da religião e, en- enquanto que a lógica não. A lógica simplesmente se ba-
34 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

seia no raciocínio indutivo, na estatística e nas probabili- mo como uma resposta habitual. Se não existisse recom-
dades. Ela não trata de inquietações a respeito de estados pensa após a resposta, esta desapareceria. Assim, as re-
mentais, como felicidade, interesses pessoais e bem-estar compensas eram responsáveis por disponibilizar um me-
geral. Cada pessoa pesa essas questões de maneira dife- canismo que estabelecesse uma resposta mais adaptati-
rente e, como conseqüência, uma decisão racional é mais va. Essa idéia se assemelha um pouco com a teoria da se-
problemática do que uma simples decisão lógica. Clara- leção natural de Darwin – na realidade, Thorndike foi
mente, o racionalismo é uma atividade mental complexa. profundamente influenciado por Darwin.
O empirismo, por outro lado, é a idéia de que todo Ainda assim, o pai do pensamento associativo em
conhecimento advém de uma experiência sensorial. A psicologia misturou sua terminologia. Associacionismo
experiência sensorial direta produz idéias e conceitos dificilmente combina com nativismo (isto é, a idéia de
simples. Quando idéias simples interagem e se associam que muitas formas de conhecimento já estão presentes
umas com as outras, idéias e conceitos complexos são no organismo desde o nascimento). O associacionismo
criados em um sistema de conhecimento do indivíduo. é comprometido com a idéia amplamente popularizada
Os filósofos britânicos – de Thomas Hobbes no século pelo psicólogo americano John B. Watson, que promo-
XVII, John Locke e David Hume, até John Stuart Mill no veu a noção de que ele podia pegar qualquer bebê e
século XIX – enfatizaram o papel da experiência. Não é transformá-lo em qualquer coisa (Figura 1.17). Apren-
surpresa, então, que a principal escola de psicologia ex- der era a chave da questão, ele proclamava, e todos ti-
perimental tenha nascido dessa visão associacionista. nham os mesmos equipamentos nos quais o aprendiza-
Um dos primeiros cientistas a defender o associa- do podia ser construído. A psicologia americana foi to-
cionismo foi Hermann Ebbinghaus. No final do século mada por essa idéia. Consumidos por isso, todos os
XIX, ele afirmou que processos complexos, como a me- grandes setores da psicologia dos Estados Unidos eram
mória, podiam ser medidos e analisados, saindo à fren- liderados por pessoas que tinham essa visão.
te dos notáveis psicofísicos Gustav Fechner e E.H. We- Todo esse tumulto na psicologia behaviorista conti-
ber. Estes trabalhavam arduamente, relacionando as nuou, apesar da bem-estabelecida posição – primeiramen-
propriedades físicas de fenômenos, como a luz e o som, te articulada por Descartes, Leibniz, Kant e outros – de
às experiências psicológicas que produziam no observa- que a complexidade estava embutida no organismo. Infor-
dor. Essas medidas eram rigorosas e reproduzíveis. Eb- mações sensoriais são meramente dados nos quais estru-
binghaus foi um dos primeiros a compreender que era turas mentais preexistentes agem. Essa idéia, que domina
possível medir processos mentais internos, como a me- a psicologia atualmente, foi alegremente afirmada nessa
mória (ver Capítulo 8). idade de ouro. Com os associacionistas tomando a frente,
Ainda mais influente foi a monografia clássica de Ed- foram realizados milhares de experimentos e, pelo volu-
ward Thorndike, Animal Intelligence: An Experimental Study me de atividade, roubaram essa questão para eles.
of the Associative Process in Animals (Figura 1.16). Nesse A couraça dos behavioristas começou a quebrar, en-
volume, publicado em 1911, Thorndike articulou sua lei tretanto, quando os psicólogos da Gestalt, trabalhando
do efeito, que foi a primeira demonstração sobre a natu- com o fenômeno perceptual, demonstraram que a per-
reza das associações. De vários pontos de vista, sua teo- cepção era melhor compreendida em relação às proprie-
ria era muito simples. Thorndike apenas observou que a dades emergentes de um estímulo. O movimento aparen-
resposta a uma recompensa estaria gravada no organis- te, por exemplo, era uma propriedade emergente dos es-
tímulos do mundo real. Existia somente como uma fun-
ção das propriedades preexistentes no encéfalo. Não era
aprendido. Os psicólogos gestaltistas desenvolveram cen-
tenas de demonstrações mostrando pontos similares.
O verdadeiro fim da dominância do behaviorismo e
da psicologia do estímulo-resposta não veio antes do fi-
nal dos anos de 1950. Quase de um dia para o outro, os
psicólogos começaram a pensar em termos de cognição,
e não somente em comportamento. George Miller, que
era um behaviorista assumido, ofereceu o que ele cha-
mou de “memórias muito pessoais” daquele evento (Fi-
gura 1.18). Miller provocou uma revolução nos anos de
1950. Em 1951, ele escreveu um livro muito influente
chamado Language and Communication e observou: “O viés
é behaviorista...”. Onze anos depois, ele escreveu outro
livro, chamado Psychology, the Science of Mental Life, título
Figura 1.16 Edward L.Thorndike. que reflete uma completa rejeição à idéia de que a psico-
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 35

Figura 1.17 Esquerda: John B. Watson. Direita: John B. Watson e o “Pequeno Albert”, durante um de seus experimentos de condiciona-
mento de medo.

logia deveria estudar somente o comportamento. Con- técnicas psicológicas estavam sendo aplicadas. James
forme as palavras de Miller: “Meu despertar cognitivo Tanner e John Swets utilizaram a detecção de sinais, teo-
deve ter ocorrido nos anos de 1950”. ria servo e a tecnologia computacional para estudar per-
Após uma rápida avaliação, Miller colocou a exata cepção. (Essas técnicas foram desenvolvidas, em grande
data de seu despertar em 11 de setembro de 1956, du- parte, para ajudar o departamento de defesa americano a
rante o Segundo Simpósio sobre Teoria da Informação, detectar submarinos.) Miller também escreveu seu clás-
que ocorreu no Instituto de Tecnologia de Massachu- sico artigo “The Magical Number Seven, Plus-or-Minus
setts (MIT). Aquele foi um ano muito rico para várias two”, no qual mostrou que existe um limite no volume
disciplinas. Nas ciências da computação, Allen Newell de informação que pode ser captada em um breve perío-
e Herbert Simon lançaram com sucesso Information do de tempo. Igualmente, o psicólogo do desenvolvi-
Processing Language I, um poderoso programa que si- mento Jerome Bruner estava trabalhando no problema
mulava a prova dos teoremas lógicos. O guru da com- do pensamento. Ao mesmo tempo em que via uma utili-
putação John von Neumann escreveu as Palestras Sil- dade limitada das idéias associacionistas no aprendizado
liman em organização neural. Um famoso encontro infantil, ele acreditava em mecanismos superiores envol-
sobre inteligência artificial aconteceu na Faculdade vidos no pensamento, construídos por meio de represen-
Dartmouth, com Marvin Minsky, Claude Shannon (co- tações e mapas mentais. Talvez a mais importante reve-
nhecido como o pai da teoria da informação) e muitos lação, entretanto, tenha sido o trabalho de Noam Chom-
outros. sky (Figura 1.19). Uma versão preliminar de suas idéias
Grandes iniciativas também estavam acontecendo na em teorias sintáticas foi publicada sob o título Three Mo-
psicologia. Como resultado da II Guerra Mundial, novas dels of Language. O esforço de Chomsky transformou o es-

Figura 1.18 George A. Miller. Figura 1.19 Noam Chomsky.


36 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

MARCOS EM NEUROCIÊNCIA COGNITIVA

Entrevista com George A. Miller, PhD. Dr. Miller é professor emérito na Universidade de Princeton e um
dos fundadores da ciência cognitiva moderna.

Autores: A psicologia passou por mudanças revolu- as pessoas podiam “sintonizar-se” para discriminar oti-
cionárias nos últimos 50 anos. Após anos de dominação mamente entre um conjunto particular de estímulos al-
pelos behavioristas, repentinamente houve um interesse ternativos sem falar sobre suas expectativas subjetivas.
pela cognição. Alguns dizem que isso ocorreu em setem- Ulric Neisser juntou exemplos destes fenômenos alguns
bro de 1956. Poderia nos falar um pouco sobre isso? anos depois em seu livro Cognitive Psychology (1967).
GAM: Eu escolhi, certa vez, o 11 de setembro de Mas lembro que fiquei particularmente impressionado
1956 como um aniversário apropriado para a ciência cog- com alguns experimentos que pareciam mostrar que a
nitiva. Essa foi a data do encontro, no Instituto de Tecno- atenção do gato poderia ser monitorada em termos de
logia de Massachusetts, em que líderes cognitivistas das resposta do nervo auditivo. Acho que os resultados pos-
ciências da computação, da lingüística e da psicologia fi- teriormente mostraram ser artefatos, mas naquele mo-
caram juntos pela primeira vez e começaram a comparti- mento foi muito excitante pensar que alguma coisa
lhar seu interesse pela mente humana. O interesse na subjetiva como a atenção podia estar refletida em algo
cognição estava crescendo na última década, mas essa foi tão objetivo como um impulso nervoso. Durante os
a primeira vez que nos demos conta de que esses dife- anos de 1950, tornou-se cada vez mais claro que o com-
rentes campos eram parte de um todo, antes mesmo de portamento é simplesmente uma evidência, não a ques-
sabermos como denominar isso. tão principal em psicologia.
Autores: Existia alguma determinação particular pe- Autores: É interessante notar que o termo psicolo-
la qual estudantes da mente eram pressionados a expli- gia foi amplamente abandonado, mesmo que a maioria
car resultados científicos em termos dos princípios beha- das universidades ainda tenha departamentos de psico-
vioristas? Ou as pessoas estavam simplesmente ficando logia. Você ouve falar de ciência cognitiva, embora a psi-
cansadas daquele tipo de explicação? cologia seja definida como “ciência dos processos men-
GAM: Existiam muitos fenômenos desse tipo. Por tais e do comportamento”. Isso foi necessário e delibera-
exemplo, os lingüistas achavam impossível descrever a do por alguma razão sociológica?
estrutura de uma sentença gramatical em termos de se- GAM: A psicologia tem sido definida de muitas ma-
qüência linear de reflexos estímulo-resposta. Bruner e neiras. No século XIX, pensava-se que existiam três rami-
colaboradores acharam claras evidências de estratégias ficações, que poderiam ser traduzidas para os dias de ho-
de solução de problemas que em nada se pareciam com je como emoção, motivação e cognição. O behaviorismo
estímulos objetivos, respostas ou reforços, e Simon e Ne- podia lidar com emoção e motivação, mas sua recusa em
well eram capazes de programar um computador primi- admitir o mentalismo sob qualquer forma tornou muito
tivo para rastrear um problema da mesma maneira co- difícil uma abordagem plausível da cognição. Alguns psi-
mo as pessoas o fazem, mas não através de procedimen- cólogos sentiram que uma psicologia sem cognição era
to cego de tentativa-e-erro. Eu não podia explicar como absurda, e aí começou a contra-revolução. Rapidamente,

tudo da linguagem rapidamente. A mensagem funda- cial de se testar a teoria neuropsicológica de Donald
mental era a de que o aprendizado teórico – ou seja, o as- Hebb sobre redes celulares, que sugeria que qualquer
sociacionismo, extremamente defendido por B. F. Skin- grupo de neurônios pode aprender qualquer coisa. Re-
ner – não podia explicar como a linguagem era aprendi- centemente, as idéias de Hebb avançaram bastante gra-
da. A complexidade da linguagem era própria do cérebro ças à neurociência da computação. Ao mesmo tempo que
e seguia regras e princípios que transcendiam todos os esse campo de especialização se volta gradualmente em
povos e todos os idiomas. Era universal. direção à importância da estrutura neural interna e uni-
Herbert Simon e Allen Newell também divulgaram versal que governa a vida cognitiva e perceptual, prosse-
seus esforços para simular um processo cognitivo, apre- guem os esforços para demonstrar que leis de associação
sentado no contexto do trabalho lingüístico. Uma forma simples são responsáveis por nosso aprendizado sobre o
simples de associacionismo estava em voga novamente. mundo. Retornaremos a esse assunto no Capítulo 14,
Curiosamente, no mesmo dia, ocorreu uma tentativa ini- sobre perspectivas evolutivas.
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 37

descobrimos aliados em outras disciplinas, particular- GAM: É difícil ser conciso quando você está tão per-
mente em lingüística e inteligência artificial, mas tam- to de um trabalho como eu estou do conhecimento do
bém em filosofia e na neurociência. Pessoalmente, fi- léxico, mas deixe-me tentar caracterizar isso com um
quei aliviado em começar a colaborar com estes novos exemplo. Há algum tempo, o filósofo inglês Grice notou
profissionais e suas novas idéias e parar de perder tem- que duas sentenças como “Estou sem gasolina” e “Há
po em explicar o que estava errado com o behavioris- um posto ali na esquina” são imediatamente vistas como
mo. Com o crescimento da colaboração, a necessidade relacionadas por pessoas com inteligência normal. A
de nomear esta nova iniciativa também cresceu. Portan- questão é: Como as pessoas preenchem a informação
to, ciência cognitiva. não-oferecida para esta relação? Uma explicação pode
Autores: E agora a ciência cognitiva é uma força ser em termos do alastramento da excitação no encéfalo.
majoritária no estudo da mente. Modelos sofisticados A primeira frase ativa o nodo léxico para “gasolina”, e a
da mente foram construídos como resultado de experi- segunda ativa o nodo léxico para “posto”. Essas ativa-
mentos. Uma das motivações para o desenvolvimento ções se alastram até finalmente se cruzarem em algum
da ciência cognitiva foi testar estes modelos em um sis- nodo léxico intermediário, como “carro”, e então uma
tema biológico, para averiguar sua validade. Agora, os sentença intermediária pode ser construída: carros são
problemas da mente podem ser denominados por meio abastecidos com gasolina nos postos.
da percepção física ou da percepção biológica. Os físicos Quando você tenta construir um sistema que vai fa-
buscam por alguns poucos princípios gerais para explicar zer isso, entretanto, você vê que este alastramento resul-
processos complexos, e essa atitude dependeria de al- ta em muitas intersecções. Estima-se que somente 1/10
guns poucos princípios da mente. Os biólogos mais ou das intersecções resultantes de uma ativação não especi-
menos abrem mão dessa idéia e dizem que a criatura ficamente direcionada serão apropriadas. Claramente, se
biológica é um “saco de truques”, uma espécie de cani- existir essa excitação, a sua difusão é guiada de alguma
vete suíço com muitas funções especializadas. De que la- maneira. Assim, que tipo de informação um sistema vai
do você fica nesse debate? precisar – seja um sistema cerebral ou de computador –
GAM: Ambos estão corretos. A compreensão deta- de forma a ser capaz de restringir a difusão da excitação
lhada das funções especializadas provavelmente tem de pelos canais apropriados?
vir primeiro, antes dos princípios gerais poderem ficar Nosso grupo aqui em Princeton tem buscado propor
claros. O fato de não podermos intuir esses princípios uma resposta a essa questão em termos de uma fina re-
com antecedência não significa que eles nunca serão de interconectada de conceitos léxicos. Não pensamos
compreendidos. que o encéfalo faça isso da mesma maneira que nosso
Autores: Para aproveitar um exemplo específico em computador o faz, mas estamos ganhando uma visão
ciência cognitiva: você está trabalhando em um dicioná- muito mais profunda do problema que o encéfalo tem
rio eletrônico que se tornou um modelo de como o léxi- de resolver. Quando entendermos isso, os neurocientis-
co humano deve trabalhar no encéfalo humano. Poderia tas cognitivos terão uma idéia bem mais clara do que
nos falar um pouco sobre ele e como isso pode levar à procurar.
compreensão de como o nosso próprio léxico trabalha?

NEUROCIÊNCIA COGNITIVA
O termo neurociência cognitiva foi criado dentro daquele muito além dos simples métodos de lesão para acessar
táxi da cidade de Nova York, no final dos anos de 1970, quais distúrbios perceptivos ou cognitivos poderiam
porque naquele momento uma nova missão se fazia real- ocorrer após uma lesão cerebral. Os neurocientistas es-
mente necessária. Os neurocientistas estavam desco- tavam começando a construir modelos de como células
brindo como o córtex cerebral era organizado e como ele unitárias interagem para produzir percepções. A maioria
funcionava em resposta a estímulos simples. Eles eram dos psicólogos não mais levava o behaviorismo a sério,
capazes de descrever mecanismos específicos como como uma maneira de explicar a cognição complexa. Pes-
aqueles relacionados à percepção visual. Por exemplo, soas como George Miller abandonaram a abordagem ini-
David Hubel e Torsten Wiesel, em Harvard, estavam cial, que era totalmente behaviorista; ao invés disso, ten-
mostrando como um único neurônio no córtex visual tavam articular como a linguagem era representada. Não
respondia de maneira confiável a formas particulares de sendo mais considerada como simples produto de apren-
estímulo visual. A área de estudo da mente avançou dizado e associacionismo, a linguagem veio a ser aceita
38 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

como uma construção complexa realizada pelo encéfalo. Apesar de moderna e arrojada, a abordagem de
Desde o avanço de Chomsky, ficou claro que a gramática Marr não era muito precisa. Sua idéia foi adotada pelos
é um instinto, enquanto o léxico é aprendido. teóricos cognitivos porque ele sugeriu que poderíamos
O extraordinariamente talentoso David Marr, do entender o nível cognitivo simplesmente com a racio-
MIT, fez um grande esforço para ligar os mecanismos ce- nalidade. Teorias que pretendiam explicar aptidões
rebrais e a percepção. Marr, que morreu tragicamente mentais como a linguagem, a memória ou a atenção re-
muito jovem, deu uma visão do que seria a neurociência queriam análises mais profundas, incluindo algoritmos,
cognitiva. Como Kosslyn e Andersen (1992) colocaram, para descrever como os processos neuropsicológicos
“naquele momento, o trabalho de Marr era unicamente produzem o estado cognitivo.
interdisciplinar e particularmente importante porque Mas as idéias de Marr não funcionaram completa-
propiciou os primeiros exemplos rigorosos de teorias da mente. A distinção entre níveis – isto é, entre os algorit-
neurociência cognitiva”. mos e os mecanismos de implementação dos neurônios
Marr reforçou a idéia de que a computação neural – era muito vaga. Não existe somente um tipo de neurô-
pode ser compreendida pela análise em múltiplos níveis. nio no encéfalo; há muitos tipos, cada um com proprie-
Filósofos das ciências têm observado, há muito tempo, dades diferentes, acionado por diferentes neurotrans-
que um único fenômeno pode ser examinado em múlti- missores, e assim por diante. Qualquer teoria computa-
plos níveis de análise. Ao considerar a psicologia, filóso- cional, por conseqüência, deve ser sensível à real biolo-
fos como Jerry Fodor distinguiram níveis funcionais e fí- gia do sistema nervoso e limitada pela maneira como o
sicos; o nível funcional atribuía papéis e propósitos aos encéfalo realmente funciona – e ele funciona de maneira
eventos, enquanto o nível físico caracterizava os compo- diferente para diferentes funções.
nentes elétricos e químicos próprios desses eventos. Não que amplas generalizações das funções do siste-
Marr levou esses passos iniciais muito adiante. Ele ma nervoso não existam. Elas existem e permitem que
atribuiu uma hierarquia aos níveis, baseado na idéia de os cientistas procurem por mecanismos específicos, o
que o encéfalo computa. Assim, dividiu o nível funcional que levou ao crescimento rápido do campo de pesquisas
em dois níveis, um que caracteriza o que é computado e de rede neural. Aqui, os cientistas constroem modelos
outro que caracteriza como a computação é realizada (is- de como o encéfalo pode funcionar e tentam limitar co-
to é, algoritmos), e mostrou como esses níveis relaciona- mo as redes funcionam, incluindo informações da neuro-
vam-se ao nível mais baixo, o de implementação. fisiologia e da neuroanatomia.

O SÚBITO NASCIMENTO DO IMAGEAMENTO CEREBRAL


É difícil entender a evolução meteórica das imagens ce- a ser quantificada. Seymour Kety, Lou Sokoloff, e mui-
rebrais. Quando da 1a edição deste livro, o imageamento tos outros, a serviço do Instituto Nacional de Saúde,
cerebral tinha algum apoio na neurociência cognitiva, começaram a medir o fluxo cerebral no encéfalo de
mas a maior parte do trabalho provinha de poucos labo- animais. Esse trabalho abriu caminho para o surgi-
ratórios ao redor do mundo. Na época da presente edi- mento dos primeiros aparelhos de imagem cerebral.
ção, a neuroimagem expandiu-se para dezenas de cen- Primeiro, os pesquisadores escandinavos David Ing-
tros. Na realidade, hoje, todo o tradicional departamen- var e Neils Lassen desenvolveram um capacete com
to acadêmico de psicologia possui um aparelho de resso- contadores de cintilação que envolvia toda a cabeça e
nância magnética no seu subsolo, ou planeja ter um. Co- permitia a medida regional bruta de mudanças no flu-
mo tudo isso aconteceu? Como o estudo do fluxo san- xo cerebral durante a atividade mental. Essa técnica
güíneo cerebral por meio de imagens nos ajuda a enten- logo deu lugar a uma tecnologia muito mais poderosa
der processos como a atenção ou a leitura? e espacialmente mais acurada chamada tomografia por
Muitas coisas boas tiveram início na Itália, e isso in- emissão de pósitrons (TEP).
clui a pesquisa do fisiologista Angelo Mosso, que traba- Com a TEP, uma técnica desenvolvida na Universi-
lhou em uma enfermaria de neurocirurgia e estudou pa- dade de Washington, em Saint Louis, tanto o fluxo ce-
cientes com defeitos no crânio. Ele notou que a pulsação rebral como o metabolismo podiam ser quantificados.
do córtex humano aumentava regionalmente durante a Usando procedimentos desenvolvidos por Kety e Soko-
atividade mental. Com esse trabalho, Mosso havia esta- loff, os pesquisadores podiam agora, de forma similar,
belecido a correlação entre o fluxo sangüíneo cerebral e retratar o encéfalo humano. Rapidamente, entretanto,
a atividade neural. a medida do metabolismo perdeu espaço para a medi-
Mas foi somente após a II Guerra Mundial que a da do fluxo cerebral. Com o desenvolvimento de radio-
relação entre fluxo cerebral e função neural começou fármacos (p. ex., H215O) com meia-vida curta (123 se-
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA • 39
gundos), o fluxo cerebral podia ser medido rapidamen- foi desenvolvido. Ele se baseava em outro princípio fí-
te (<1 minuto), e cada indivíduo podia ser estudado sico, o comportamento dos átomos de hidrogênio ou
várias vezes, permitindo, assim, medidas cognitivas prótons em um campo magnético. Paul Lauterbur, en-
complexas. tão na Universidade de Illinois, percebeu como traba-
Na década de 1980, começou a existir um grande inte- lhos anteriores da física podiam ser utilizados para se
resse em como a TEP poderia ajudar a esclarecer a cogni- fazer imagens biológicas, e sua criatividade levou ao
ção humana. Psicólogos cognitivos rapidamente se envol- desenvolvimento da imagem por ressônancia magnéti-
veram nesses estudos. Michael I. Posner e Steve Petersen ca (IRM). Inicialmente, as imagens eram relacionadas
uniram esforços na Universidade de Washington e colabo- com a anatomia do encéfalo; estas eram chamadas ima-
raram com Marcus Raichle. Seu trabalho pioneiro lançou gens estruturais. Contudo, Seiji Ogawa e colaboradores
um campo inteiro de pesquisa. Nos 10 anos seguintes, rapidamente entenderam que o estado funcional do
pesquisadores realizaram estudos e mais estudos usando encéfalo também podia ser representado. Baseado em
basicamente o chamado método da subtração. Derivado ori- fatos químicos prévios, descobertos por Linus Pauling
ginalmente do trabalho realizado pelo fisiologista holan- e colaboradores – segundo os quais o montante de oxi-
dês Franciscus Donders em 1868, esse método envolve a gênio carregado pela hemoglobina muda o grau pelo
subtração de um mapeamento cerebral adquirido durante qual a hemoglobina perturba o campo magnético—, a
um estado de comportamento particular de outro mapea- idéia de trilhar o fluxo cerebral usando IRM tornou-se
mento feito durante um diferente estado de comporta- uma realidade. O sinal tornou-se conhecido como o
mento. Assim, um mapeamento obtido enquanto alguém “sinal dependente do nível sangüíneo de oxigênio”, ou
olhava uma tela branca podia ser subtraído de um mapea- blood oxygen level dependent (BOLD), e é a base para a
mento feito quando a mesma pessoa olhava a mesma tela maioria dos estudos em imagem cerebral. Os detalhes
com uma palavra escrita. O mapeamento subtraído isola- dos métodos de imagem serão apresentados no Capí-
va um processo especificamente associado com a leitura. tulo 4. Para saber mais sobre essa fascinante história,
Enquanto esses estudos revolucionários estavam leia a excelente revisão escrita por um dos fundadores
sendo conduzidos, outro avanço em imagem cerebral desse campo, Marcus Raichle (1998).

RESUMO
Aprendemos como pelo menos dois campos acadêmicos biente poderiam explicar tudo tornou-se parte essencial
ricos e poderosos se uniram para produzir outro campo desse pensamento. Afinal, isso refletia o “sonho ameri-
científico de pesquisa, a neurociência cognitiva. A ciên- cano”. Qualquer um podia tornar-se qualquer coisa no
cia do encéfalo emergiu no século passado e deu-nos o ambiente certo.
conhecimento de que ele é feito de unidades distintas – Tudo isso veio abaixo no fim da década de 1950. O
os neurônios. Cajal uniu a história sobre a importância empirismo não conseguiu explicar funções mentais com-
de entidades distintas, neurônios funcionais, e como eles plexas, como a linguagem e outras funções perceptuais.
devem interagir para produzir o comportamento. Em um Os cientistas começaram a considerar que a representa-
nível mais geral, linhas de batalha foram travadas para ção de informações vinha embutida no encéfalo pratica-
determinar de que modo o encéfalo, como um todo, era mente desde o nascimento. Conseqüentemente, surgiu a
organizado. Alguns pesquisadores acreditavam que as psicologia cognitiva, que promoveu a noção de que está-
funções eram localizadas em áreas distintas do encéfalo; gios de processamento e atividade cognitiva podiam ser
outros se opuseram duramente a essa idéia e sustenta- analisados levando em consideração seus componentes
ram a tese de que as funções eram representadas em to- interligados.
do córtex cerebral. Entretanto, toda essa atividade produziu uma nova
Como o debate a respeito da localização continuou visão. Se alguém quisesse entender como o encéfalo per-
no século XX, os psicólogos começaram a pensar dife- mitia a cognição, o pensamento da neurociência não es-
rentemente sobre suas teorias. Colocando as idéias de tava preparado para tal trabalho. Da mesma maneira, na
Freud de lado, os maiores cientistas experimentais que psicologia propriamente dita, modelos estavam sendo
trabalhavam em temas da psicologia passaram a acredi- construídos, e processos mentais estavam sendo simula-
tar em alguma forma de associacionismo. Em princípio, dos – mas sem interesse a respeito de como o encéfalo
entendiam que tudo o que influenciava o organismo, no fazia o trabalho. Ou seja, houve interesse em como a
sentido de explicar por que e o que as pessoas aprendiam mente devia funcionar, ou como podia funcionar, mas
e lembravam, era baseado na teoria da recompensa e pu- não em como realmente funciona. Neste livro, explora-
nição. Essa convicção de que as contingências do am- mos como realmente o cérebro dá origem à mente.
40 • GAZZANIGA, IVRY, MANGUN

TERMOS-CHAVE
associacionismo citoarquitetura frenologia racionalismo
behaviorismo diásquise holismo sincício
campo agregado empirismo localização doutrina neuronal

QUESTÕES PARA PENSAR


1. É possível realizar um estudo sobre como a mente 3. O que os psicólogos cognitivos querem dizer com o
trabalha sem se estudar o encéfalo? termo representação? E o que os neurocientistas
2. Os novos experimentos em imageamento cerebral querem dizer com esse termo?
poderão tornar-se a nova frenologia? 4. Você consegue imaginar como o encéfalo poderá ser
escaneado no futuro?

LEITURAS SUGERIDAS
KASS-SIMON, G., and FARNES, P. (1990). Women of Science: RAICHLE, M.E. (1998). Behind the scenes of functional brain
Righting the Record. Bloomington, IN: Indiana University imaging: A historical and physiological perspective. Proc.
Press. Nat. Acad. Sci. U.S.A. 95:765-772.
LINDZEY, G. (Ed.). (1936). History of Psychology in Autobio- SHEPHERD, G.M. (1992). Foundations of the Neuron Doctrine.
graphy, Vol. III. Worcester, MA: Clark University Press. New York: Oxford University Press.

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