Você está na página 1de 11

Notas Estranhas

Harmonia, Contraponto e Estruturação

Mto. Gustavo Medina


2010

Definição

O estudo das relações harmônicas produto da coincidência rítmica de várias melodias


simultâneas, nos leva a concluir que a complexidade da estrutura musical se encontra sustentada em
um “esqueleto” formado pelos acordes que identificamos no chamado ritmo harmônico.
Obviamente, grande parte da música contem notas melódicas que não formam parte destes acordes,
o que seria uma perspectiva abstrata, porque no sentido literal, devemos exercitar o raciocínio
estrutural já que as mesmas soam em conjunto criando relações harmônicas na memória auditiva do
espectador. Mesmo assim, entendemos as notas estranhas como aquelas que integram o complexo
melódico e cuja funcionalidade é fundamentalmente horizontal “sem compromisso” de
concordância (consonância) com a malha harmônica mencionada. Caberia destacar, com o intuito
de contribuir mais ainda com o entendimento deste fenômeno, que a malha harmônica não é
totalmente estática. No outro extremo da explicação anterior, podemos cair no gravíssimo erro de
imaginar que os acordes do ritmo harmônico são blocos rígidos e estáticos! Cuidado hein?. A
essência da música é o movimento e este âmago está presente no DNA de TODA a estrutura
musical e a harmônia não podia ser uma excepção. Podemos ter harmonias ativadas ritmicamente
ou figuradas, ou seja, acordes que movimentam seus fatores de diversas maneiras produzindo como
resultado a audição acórdica em questão sem o rigor que costumamos observar nos exercícios de
harmonia iniciais. Nestes casos devemos avaliar a estrutura para definir si os seus valores (notas)
estão em funções harmônicas como fatores do acorde ou como elementos melódicos em função
contrapontística. Analise, observe e cultive sua audição interna para saber as respostas de cada caso.

A dissonância melódica e a dissonância harmônica

Na apostila que trata do acorde de sétima, explico que a adição desta nota à tríade,
transformando a mesma em tetracorde e acrescentando uma dissonância inexistente na configuração
inicial, foi um passo muito importante no desenvolvimento da teoria musical. Este processo de
assimilação de uma dissonância de origem contrapontístico e sua elevação a categoria de fator
acórdico teve um grande impacto na variedade disponível para harmonizar e nas possibilidades de
crescimento formal da estrutura musical. Até aqui, o importante é saber que este enriquecimento das
possibilidades da malha harmônica teve grandes conseqüências positivas e ainda hoje, alguns
autores insistem em dizer que combinações maiores de sons podem ser explicados como
combinação de acordes já conhecidos ou como encontros contrapontísticos em trechos polifônicos
que envolvem mais de 4 vozes reais. Fora do contexto explicado, devemos definir então a categoria
das notas estranhas que integram esse elemento motriz da forma musical chamada melodia, não sem
antes fazer algumas considerações pertinentes.

Os físicos interpretam os fenômenos que nos rodeiam em termos dimensionais, isto é, todos os
fenômenos acontecem dentro de um marco espaço tempo mensurável que compreendem as três
dimensões espaciais (altura, largura e profundidade) e um “espaço de tempo” no qual os objetos
“existem” e “onde acontecem as coisas”. A música, como fenômeno físico e psicológico existe na
quarta dimensão fundamentalmente!. Gosto de fazer uma comparação aos alunos onde descrevo
uma pintura na qual, ainda que tenhamos a sensação de profundidade como ilusão das técnicas da
perspectiva utilizada pelo autor, sabemos que é um objeto basicamente bidimensional. Podemos
dizer que ela começou a existir em um espaço de tempo desde que foi criada, porém percebemos
que não muda através do tempo dando uma sensação estática com respeito a outros parâmetros. A
música, necessita do tempo da mesma forma como a pintura necessita do lenço como superfície
para poder existir. Dentro de este contexto devemos compreender que escutamos todas as notas de
uma obra musical organizadas de maneira seqüencial, e que se bem escutamos algumas
simultaneamente, sua estrutura está distribuída em um espaço temporal perfeitamente definido. Esta
visão multidimensional da música é de vital importância para o entendimento das diversas forças
que interatuam durante a execução de qualquer obra.

Como explicado anteriormente, podemos dizer que a “idéia” de música surge na nossa mente
quando depois de perceber um conjunto de vibrações sonoras, o cérebro as interpreta e lhes atribui
vários significados. Um deles vertical que corresponde aos sons simultâneos e que chamamos de
Harmonia, outro seqüencial, horizontal que chamamos de melodia e o mais interessante de todos é o
formal ou estrutural, que é a idéia resultante de ouvir o conjunto do início ao fim e que ainda por
cima produz a sensação de satisfação e plenitude no ouvinte.

Dentro de este contexto, podemos entender porque vários autores (Schönberg por exemplo)
falam constantemente da música como de um organismo vivo, tentando repassar o pensamento de
que todas suas partes coexistem e interatuam entre sim para poder viver e que toda tentativa de
separa-las completamente trará inevitavelmente a inviabilidade da estrutura. Isto significa que para
falar por exemplo de notas estranhas, podemos fazer enfases na perspectiva harmônica,
contrapontística ou formal, mas nunca desde uma visão única e excludente que negaria qualquer
possibilidade de compreensão do fenômeno musical.
O arpejado de uma tríade leva implícito o movimento melódico disjunto porque os fatores de
um acorde não são notas adjacentes na escala. O movimento conjunto, implica em uma relação
dissonante porque as segundas maiores e menores são dissonantes. Por outro lado, um intervalo
dissonante pode ser resolvido com um movimento de segunda, ou seja as dissonâncias enlaçam
consonâncias. Esta observação é a base da teoria do contraponto.

A nota de passagem

Um salto melódico pode ser completado com notas em todos seus graus intermediários,
diatônicos ou cromáticos. Estas notas são chamadas notas de passagem.

O intervalo a ser completado com as notas de passagem não necessariamente devem pertencer
ao mesmo acorde (atenção: pode ser dissonante ou não).

Estas notas são ritmicamente fracas mais mesmo assim podem ser colocadas em qualquer parte
do compasso, sobre um tempo ou fração de tempo.

Podem ser utilizadas em todas as vozes ou inclusive em várias vozes ao mesmo tempo, porém
se usadas mais de duas notas de passagem ao mesmo tempo pode parecer que todo o acorde se
movimenta.
No modo menor, os graus sexto e sétimo quando utilizados como notas de passagem procedem
da escala menor melódica ascendente ou descendente.

A bordadura

A bordadura (também chamada de auxiliar) é uma nota de valor rítmico fraco e serve para
ornamentar uma nota imóvel. Se usa colocando uma segunda maior ou menor por cima ou por
baixo da nota ornamentada para logo voltar para a mesma nota de partida.
Quando a bordadura retorna à nota principal pode haver uma mudança de acorde. Como
falamos antes pode ser diatônica ou não sendo muito freqüente que seja alterada cromaticamente
para aproxima-la da nota principal. Quando isto ocorre por baixo tem um caráter de sensível
temporária do grau da escala que ornamenta.

A combinação de bordaduras superiores e inferiores forma um grupo melódico no redor da nota


principal.

O agrupamento de notas do exemplo anterior encontra-se frequentemente com a terceira nota


omitida. Esta configuração se chama de bordadura dupla indicando que há uma nota só
ornamentada por duas bordaduras.
Duas ou três bordaduras ao mesmo tempo em movimento paralelo constituem um acorde que
podemos chamar de acorde bordadura ou auxiliar.

A bordadura incompleta resulta da omissão da nota principal de inicio ou de retorno. É um


componente das formulas da escapada e da nota vizinha (cambiata) que serão explicadas nos
próximos parágrafos mais mesmo assim pode ser considerada separadamente. No exemplo seguinte,
as bordaduras incompletas são ornamentos dos fatores arpejados do acorde de tônica.

Cabe destacar que assim como a nota de passagem, a bordadura poderá ser dissonante ou não.
Consonante quando forma parte de um movimento de quinta para sexta voltando novamente para a
quinta, desta forma se a tríade esta em estado fundamental a bordadura é consonante com a terça
transformando-a em uma de primeira inversão. Esta progressão é fraca demais, portanto sua
consideração harmônica é descartada confirmando sua natureza contrapontística de bordadura
convencional.

Antecipação

Como seu próprio nome o diz é um tipo de avance de uma nota consonante de um acorde que
está por vir. Desde o ponto de vista rítmico funciona como anacrusa da nota antecipada e
geralmente não está ligada à mesma.
É característico o uso da antecipação antes de uma apogiatura sendo mais breve que a nota
principal como no exemplo precedente ou podem ser da mesma duração como no exemplo seguinte.

Na cadência seguinte a antecipação da tônica soando ao mesmo tempo que a sensível forma a
chamada dissonância de Corelli.

Apogiatura

Todas as notas estranhas são fracas ritmicamente menos a apogiatura (do italiano appoggiare
que significa apoiar). A mesma dá a impressão de se inclinar sobre a nota apoiada onde resolve
com movimento de tom ou de semitom. O ritmo da apogiatura seguido pela sua resolução é sempre
forte-fraco mais resolvendo em um fator consonante do acorde.
A apogiatura pode estar por baixo da nota de resolução. A mais comum é a apogiatura de
sensível para tônica. Nos exemplos seguintes apresento o uso no século XIX de uma notação do
século XVIII que utilizava um simbolo ornamental parecido com a acciacatura porém sem a
barrinha diagonal. Para evitar esta confusão a maioria das editoras modernas escrevem as
apogiaturas e sua resolução com seus valores exatos.

O retardo

O retardo é uma nota cuja progressão natural é atrasada ou retardada ritmicamente. Forma-se
sobre o tempo forte ou sobre uma fração do tempo fraco mas ritmicamente é fraco com respeito à
nota que prepara por conta da ligadura. Soa antes da harmonia com a qual é dissonante e por isto se
diferencia da apogiatura preparada. Esta diferencia é muito importante no contraponto rigoroso do
séc. XVI que permitia o retardo mas não a apogiatura.

Geralmente o retardo resolve no grau inferior da escala porém podemos encontrar algumas
resoluções na nota superior sobre tudo se é com a nota sensível

Quando se retardam várias notas ao mesmo tempo podemos ouvir um acorde retardado podendo
ser ouvidas as duas harmonias de forma simultânea com um efeito similar ao de uma cadência.
Escapada e cambiata

Estas duas notas estranhas são caminhos desviados entre um retardo e sua resolução ou entre
uma apogiatura e sua resolução. Sua foma essencial consta de uma segunda seguida por salto
diferenciadas apenas pela direção melódica. No caso da escapada, esta é uma nota que muda a
direção melódica precedente e depois volta por salto. No caso da cambiata o salto acontece
primeiro na mesma direção da melodia precedente para logo voltar por movimento conjunto. Esta
última definição se encontra no Tratado de Contraponto de J.J. Fux porém podemos encontrar no
livro de Exercícios Preliminares de Contraponto de Schoenberg que a cambiata é considerada como
um conjunto de 5 notas.

Obviamente, a complexidade do repertório musical mostrará que o uso de notas estranhas é


combinado sem restrições de acordo com as necessidades contrapontísticas e melódicas.
O pedal

O pedal é uma nota (tônica ou dominante) que persiste em uma voz em quanto se produzem
mudanças na harmonia. O pedal é uma exceção entre as notas estranhas já que não tem caráter
melódico. Ele segura o ritmo harmônico mantendo-o estático sendo compensado pelo uso de
acordes dissonantes com respeito ao pedal. Pode começar sendo uma nota dissonante com respeito à
harmonia mas frequentemente começa e finaliza como fator consonante do acorde. Se utiliza com
mais regularidade no baixo porém, também é usado tanto em vozes superiores como internas. Seu
uso pode estar associado à preparação de uma recapitulação, em uma introdução lenta antes da
exposição, o inclusive transformar-se em um elemento temático de um obstinato.

Você também pode gostar