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A Nacao Oyo em Alegrete
A Nacao Oyo em Alegrete
ALEGRETE
2012
1
Alegrete
2012
2
CDU 299.6
3
Alegrete
___________________________________________________
Orientador: Prof. Ms. Luiz Felipe Schervenski Pereira
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
4
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 68
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 70
10
INTRODUÇÃO
II
1
Síntese dos costumes de um povo. O modo de ser característico de um grupo sob o ponto de vista
social e cultural.
2
Cf. BRAGA, 1998. Fato ocorrido após a instauração da república e fim da escravidão, momento em
que Rui Barbosa reúne toda a documentação sobre o trafico de escravos de posse das repartições
públicas e ordena que seja queimada. Estes documentos poderiam ajudar no estudo da procedência
dos escravos, suas nações e distribuição.
12
III
3
Federação da Religião Afro-brasileira.
4
Associação de Umbanda e Religião Africana de Alegrete.
14
IV
VI
Com base no que foi dito, pode-se afirmar que o presente trabalho transita por
várias áreas do conhecimento. Utiliza-se da Historiografia regional e da Microhistória
para criar um plano de fundo ao trabalho, uma vez que muitas das estruturas
religiosas do presente são frutos de seu passado ancestral. Por sua vez, o trabalho
etnográfico é sustentado pela Antropologia, servindo-se das teorias Funcionalista e
Estruturalista para abarcar o maior número de facetas possíveis do complexo
religioso que é o Batuque. E ainda recorre à Geografia para diversificar a forma de
expressar as informações coletadas, criando um trabalho multifacetado para ser lido
tanto no meio acadêmico, quanto por adeptos do Batuque.
16
5
A palavra Batuque pode vir a parecer, inicialmente, um termo pejorativo. Chamar seus adeptos de
batuqueiros também pode soar como desprestigio, porém estes termos são comumente empregados
para se referir a esta religião Afro-brasileira inclusive pelos seus próprios adeptos, não havendo
problemas com o uso desta nomenclatura. Porém há os que prefiram se referir a estas crenças pelo
nome de Nação, já que estas tradições advêm de grupos de escravos pertencentes a distintas
nações africanas, como será detalhado na sequência.
6
Manifestação religiosa que envolve de atributos sagrados os elementos do cosmos, a natureza, os
animais e os fenômenos naturais.
7
A Constituição do Império, no artigo 5º, permitia a existência de outras religiões além da oficial.
Exigia, contudo, que as mesmas se limitassem ao culto doméstico ou particular, em lugares
apropriados, desde que não apresentassem a forma exterior de templos. Mesmo assim, a prática de
outras religiões não era fácil, uma vez que o decreto 2.711, de 19 de dezembro de 1860, estabelecia
quer toda sociedade, religiosa ou política, necessitava da aprovação das autoridades eclesiásticas
para funcionar. Cf. MACHADO, 1997, p. 107; apud OLIVEIRA, 2008, p. 105.
17
8
Do inglês: “saber como”. É o conhecimento processual de como executar uma tarefa.
9
LOPES, 2004, p. 344: Povo da África Ocidental. Os Iorubás, que constituem um dos três maiores
grupos étnicos da República da Nigéria, vivem no Oeste do país, onde se espraiam para dentro do
território da República do Benin até o Togo, e no Sudoeste, até a cidade de Lagos. O etnônimo Iorubá
originalmente designava apenas o grupo de Oyó, mas hoje ele nomeia vários subgrupos
populacionais [...]
18
10
Cf. LOPES, 2004, p. 98: [...] designa cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual
pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados de angolas, congos, cabindas, benguelas,
moçambiques etc.
11
Como eram designados os escravos nagôs e jejes. Cf. LOPES, Nei, 2004, p. 634: Designação
arbitrária dada aos povos africanos localizados a Oeste, entre o Saara e Camarões [...]
12
Cf. Renato da Silveira, disponível no documentário: Mojubá: a cor da cultura; parte 1 – as origens.
Documentário da TV Escola. Realização: Canal Futura. Brasil, 2005.
19
42), a região das charqueadas ainda figura por ser o local de mais expressiva
participação numérica do negro na população.
As charqueadas eram áreas rurais aonde se produzia a carne seca
(charque), que era um dos elementos da alimentação dos escravos. Elas
começaram no Rio Grande do Sul por iniciativa dos portugueses e luso-brasileiros
que vinham de São Paulo. Uma das entradas destes era o porto de Rio Grande,
local também de intensa venda de escravos. Os escravos vendidos no porto de Rio
Grande passavam primeiro pelo porto de Santos, uma medida da coroa para coibir o
tráfico ilegal de escravos e garantir seus lucros (BRAGA, 1998, p. 25).
Neste ponto, se fazem oportunas algumas observações acerca do conceito
de “democracia racial” que pretensamente existia no Rio Grande do Sul segundo
historiadores rio-grandenses da linha tradicional. Baseados nas crônicas de viagem
do francês Saint‟Hilaire, historiadores comprometidos com o tradicionalismo como
Moysés Vellinho e Walter Spaldin, mencionam em suas obras (1964 e 1957
respectivamente) que a presença de escravos na província era numericamente
desprezível e que os escravos que aqui viviam eram bem tratados. Estes mesmos
historiadores ignoram o fato de que, embora o número de escravos nas fazendas de
pastoreio fosse realmente pequeno, o próprio Saint‟Hilaire menciona que “nas
charqueadas, a coisa muda de figura” (SAINT‟HILAIRE, 1974, p. 47). Também
deixam a desejar estes historiadores por não recorrem aos relatos de época num
âmbito mais abrangente. Corrêa faz menção a outros relatos que mostram o
contrário, como o relato do aventureiro Nicolau Dreys: “O Rio Grande do Sul é o
Purgatório dos Negros”; além dos relatos do viajante Arsène Isabelle, que retratam a
violência sofrida nas estâncias e as condenações em praça pública nas cidades
(CORRÊA, 1992, p. 43). E quanto à parte numérica, Correa fala de uma população
escrava correspondente a 30% da população da província, percentual que
aumentava ao avaliar certas cidades individualmente, como Vacaria, 43%; Osório,
38% e Porto Alegre, 36% (Ibidem, idem, p. 44). Com base nisso percebe-se que a
participação do negro em nossa sociedade foi bem mais expressiva.
Pelotas, cidade expoente das charqueadas, e Rio Grande, porto pelo qual
chegavam boa parte dos escravos em nosso estado, contavam com percentuais de
escravos ainda maiores, 60% e 36% respectivamente, segundo Fernando Henrique
Cardoso (1962, p. 43. Apud, CORRÊA, 1992, p. 45). Estas duas cidades são
mencionadas por Corrêa e Braga como os berços do Batuque, porém torna-se difícil
20
Batuque. Estes “lados”, como são chamados pelos adeptos, são as diferentes
tradições ou nações que compõe este complexo religioso chamado Batuque (Oyó,
Ijexá, Jeje, Nagô, Cabinda e Oiá/Moçambique). Salvo algumas particularidades de
cada nação, todas possuem uma grande semelhança com o culto Ijexá, que é o
mais numeroso no estado.
Atualmente as tradições têm convergido para uma espécie de
homogeneidade em seus rituais, fruto da grande profusão das casas de nação, do
enfraquecimento da autoridade dos Pais e Mães de Santo e das descontinuidades
deixadas pela tradição oral que obrigam as casas a inserirem tradições alheias para
preencher as lacunas no ritual. Uma das tradições que tenta sobreviver neste
contexto é a nação Oyó, que apesar de pouco expressiva numericamente, apresenta
um alto nível de fidelidade às tradições que lhe dão origem.
13
Cf. LOPES, 2004, p. 337: Elemento que significa “casa”, antecede a denominação de várias
comunidades-terreiro dedicadas ao culto dos orixás, bem como, genericamente, diversos
compartimentos de casas de culto. Do ioruba ilê, “casa”, “lar”.
14
Federação da Religião Afro-brasileira. Órgão que regulamenta o funcionamento das casas de
Umbanda e Batuque. Localizada em: Rua Uruguai 91, sala 324/25, bairro centro, Porto Alegre-RS,
CEP 90010-14.
15
Cf. consulta feita pelo telefone 0 (xx) 55 3225 2800 no dia vinte e oito de abril de 2012.
22
apenas de duas famílias, uma delas entrou no estado chegando primeiro em Santa
Catarina, no porto de Laguna, e depois se deslocando para o Rio Grande do Sul em
direção a Porto Alegre, tendo como precursor o Babalorixá chamado Antoninho
Gululu de Yemanjá. A segunda família religiosa chegou pelo porto de Rio Grande,
deslocando-se depois para Pelotas, local de nascimento de Mãe Emília de Oyá
Ladjá (Emília Fontes de Araújo, nascida no século XIX e falecida na década de 30),
a Mãe de Santo mais antiga que se tem notícia desta família. É sobre a tradição de
Mãe Emilia e de seus descendentes religiosos que se ocupará este trabalho de
pesquisa.
Segundo constam as fontes orais, Mãe Emília era filha de escravos nascida
16
sob a Lei do Ventre Livre . Em sua cidade natal, ela era dona de um
estabelecimento conhecido por “casa de pasto”, local similar a uma casa de pensão
aonde também se servia comida. Posteriormente, ela mudou-se para Porto Alegre,
cidade em que fundou uma casa de santo localizada na Rua Visconde do Herval. A
idéia desta mudança de Pelotas para a capital surgiu quando Mãe Emília foi
convidada a uma festa de Batuque em Porto Alegre, tendo gostado bastante da
cidade. Posterior a isso, diz-se que ela foi aconselhada pelas próprias entidades a
deslocar-se para Porto Alegre e abrir uma casa de religião lá. Estima-se que estes
fatos aconteceram num período situado entre o final do século XIX e o começo do
século XX. Mãe Emília viveu neste local até o final de sua vida e acredita-se que seu
legado em Porto Alegre tenha sido preservado pela Mãe Elvira de Oxum, a filha de
santo mais próxima de Mãe Emilia. Na sequência genealógica do Batuque Oyó da
cidade de Alegrete, está uma das filhas de Santo de Mãe Emília, Mãe Doca de
Yemanjá (Palmira de Jesus), era originária de Gravataí e representa o elo seguinte
na linhagem do Oyó de Alegrete. Mãe Doca, antes de se dedicar integralmente ao
Batuque, trabalhava como lavadeira. Foi ela quem iniciou Mãe Lili de Xapanã, a
introdutora do Batuque da Nação Oyó em Alegrete.
16
Lei federal brasileira de 28 de setembro de 1871, que declarava livres os filhos de escravos
nascidos a partir daquela data.
23
pensão ao lado do Ilê de Mãe Doca de Yemanjá na Avenida Praia de Belas, esquina
com a Rua Rodolfo Gomes. Ela mudou-se para a capital com cerca de vinte anos de
idade a procura de novas oportunidades. Na capital, fez serviços diversos, inclusive
trabalhando como funcionária de limpeza em firmas, das quais não há registro. Seu
ingresso no Batuque ocorreu na ocasião de uma festa religiosa na casa de Mãe
Doca, Mãe Lili fora convidada a participar, mesmo não sendo iniciada no Batuque.
Segundo conta Airton de Yemanjá, Mãe Lili sequer sabia que a festa em questão
tratava-se de um ritual religioso de Batuque. Ao entrar no recinto, ela foi recebida por
uma das filhas de santo de Mãe Doca, Mãe Paulina do Ogum, que lhe explicou o
que estava se passando. Logo então, a entidade que estava manifestada no corpo
de Mãe Doca, Yemanjá, anunciou aos presentes que no momento a casa havia
ganhado mais uma integrante.
17
Quando já era pronta no santo , em meados da década de 60, Mãe Lili
transladava-se constantemente entre Alegrete, onde ficava na residência que
pertencera a sua família (Rua Nossa Senhora do Carmo nº 270), e Porto Alegre, em
virtude dos seus compromissos religiosos. Nos momentos em que passava em
Alegrete, Mãe Lili cativou um grande número de pessoas para os quais jogava
18
búzios e cartas, além de outros que se tornaram seus filhos de santo. Segundo
relatou o profissional da construção civil Alfredo do Prado, em entrevista cedida em
primeiro de maio de 2012, Mãe Lili era uma pessoa bastante carismática, dona de
uma personalidade magnética. Foi com estes atributos que ela atraiu os seus
primeiros filhos de santo. Estes seus primeiros filhos de santo foram iniciados em
Porto Alegre, no Ilê de Mãe Doca, do qual Mãe Lili ainda era dependente. Isso se
explica pelo fato de que a autonomia de um filho de santo não começa quando ele
se torna pronto, mas sim quando seu pai de santo lhe permite. Além disso, os
19
assentamentos (obrigação) de Mãe Lili ainda se encontravam em Porto Alegre
nesta época. Ela só foi estabelecer-se de fato em Alegrete na década de 80, quando
trouxe para a cidade os assentamentos de seus Orixás, passando a ter mais
autonomia.
17
Termo usado para descrever a pessoa que já cumpriu todos os rituais iniciáticos do Batuque e já
está apta a se tornar uma Mãe ou Pai de Santo.
18
Técnica divinatória iorubá também chamada de Ifá. São usados caroços de dendê ou pequenos
búzios (conchas de moluscos), derivando destas o nome popular do oráculo.
19
Obrigação é o termo que designa o conjunto de “assentamentos” de Orixás que um indivíduo
possui. Um assentamento é a materialização da energia do Orixá em um objeto simbólico.
24
É importante lembrar que, embora Mãe Lili tenha sido uma das primeiras
pessoas a estabelecer casas de Batuque em Alegrete, na cidade já existiam casas
de Batuque e de Umbanda20. Esta se estabeleceu na cidade em meados da década
de 40, servindo como ponte para a fundação das primeiras casas de Batuque, o que
ocorreu ao longo da década de 60. A título de informação, a umbandista mais antiga
21
da cidade foi Araci Baez (1902 – 1977) , que fez uma trajetória similar a de Mãe
Lili, trazendo de Porto Alegre uma nova tradição religiosa para o município. Dessa
forma se percebe um pequeno padrão quanto à origem da religiosidade afro-
brasileira em Alegrete, uma vez que não foram encontrados até então registros de
uma religiosidade típica da cidade, mas sim de uma “importação” de tradições que já
estavam estabelecidas na região de Porto Alegre. Isso descarta hipóteses de uma
religiosidade africana nata, por mais tentadora que seja a idéia, visto que Alegrete
possui um histórico de escravidão, inclusive contando com quilombos em seu
território 22, como o quilombo do Angico.
23
Figura 1: Foto do “local de honra” do terreiro de Airton de Yemanjá. À
esquerda, Mãe Doca de Yemanjá e à direita, Mãe Emilia da Oyá Ladjá.
20
Religião originária do estado do Rio de Janeiro, surgida de um desdobramento das doutrinas
espíritas e que mescla elementos da religiosidade africana e indígena.
21
Cf. o advogado Prudêncio Almiron, em entrevista cedida em quatro de maio de 2012.
22
Cf. GRISA, José Ernesto Alves. Os efeitos da política pública RS/Rural na configuração da
identidade de comunidade remanescente de quilombo do Angico, em AlegreteRS- um estudo do
caso. Porto Alegre. 2006.
23
Espaço logo acima da porta do quarto de santo onde ficam as fotos dos ancestrais da família
religiosa.
25
24
Termo interno para designar pessoa de fora do Batuque.
28
25
A Seção de Tóxicos e Mistificações tinha por finalidade investigar e reprimir o descumprimento dos
artigos156, 157 e 158 do Código Penal de 1890, os quais proibiam a prática ilegal da medicina
(curandeirismo), o espiritismo e a magia ou feitiçaria (charlatanismo). Cf. OLIVEIRA, 2007, p. 119.
26
Ritual de limpeza periódico dos assentamentos dos Orixás.
29
27
O universo místico dos iorubás consiste na adoração dos Orixás , que não
são deuses, mas sim potencialidades que manifestam distintos aspectos da
natureza. Essa concepção se elabora no mito criacional dos iorubás. Este mito,
como os mitos de outros povos, surge da necessidade filosófica inerente à espécie
humana de querer explicar de onde viemos, qual o nosso objetivo neste mundo,
para onde vamos após a morte etc. Segundo os iorubás, antes da existência do
28
mundo, havia um espaço imaterial, o Orun , a morada dos espíritos, que era
29
habitado por uma força chamada de Olodumaré ou Olorum . Além deste havia um
30
espaço material chamado de Aiyê , que era uma réplica do Orun, porém inabitado,
pois era pantanoso e sem vida. Olodumaré é o que mais se aproxima do conceito de
deus nesta visão. Mesmo assim, refere-se a Olodumaré mais como uma “força”, por
este não ser uma personificação de uma entidade cósmica divina, mas sim de uma
força de vontade eterna que criou tudo que existe.
27
Cf. LOPES, 2004, p. 499: “Na tradição iorubana, cada uma das entidades sobrenaturais, forças da
natureza emanadas de Olorum ou Olofim, que guiam a consciência dos seres vivos e protegem as
atividades de manutenção da comunidade [...]”.
28
Cf. LOPES, 2004, p. 500: “Na mitologia iorubana, compartimento do universo onde moram as
divindades [...]”.
29
Dois nomes para definir o mesmo conceito. Olodumaré, do iorubá: ol (contração de oni), “senhor”;
odu, “pleno” (algo vasto, profundo) e maré, “perfeito”. Enquanto que Olorum, do iorubá: ol (contração
de oni), “senhor” e orum, “paraíso”, algo como “Senhor do Orum”.
30
Designa o mundo dos vivos que existe num espaço oposto ao Orun.
30
Segundo a lenda (itã), Olodumaré decidiu dar vida ao mundo material, para
isso ele criou uma imensa massa d‟água que caiu pelo Orun, dessa água nasceram
31
os Orixás Funfun , os primeiros seres criados por Olodumaré e os únicos Orixás
com o dom de dar a vida às coisas sem vida. Mas ao mesmo tempo em que a água
originou os Orixás Funfun, o movimento que ela fez no espaço deu origem ao Orixá
Bará, dono do movimento e dos caminhos. Obatalá, o mais antigo dos Funfun, foi
nomeado por Olodumaré para tornar o Aiyê habitável. Obatalá colocou dentro de um
saco os materiais necessários para tanto, que eram uma concha cheia de terra seca
e uma galinha d‟angola. Porém, Obatalá precisava percorrer um longo caminho até
este local, e para tanto deveria fazer oferendas ao dono dos caminhos, Bará.
Obatalá esqueceu-se das oferendas e Bará fez com que ele se perdesse.
Olodumaré designa outro Funfun para desempenhar esta função, Oduduwa, que
pegou o saco que Obatalá havia deixado e com a ajuda da galinha, ele espalhou a
terra contida dentro da concha por todo o Aiyê, o que fez o pântano secar e surgirem
os limites entre a terra seca e a água, os oceanos.
Obatalá ficou envergonhado por ter fracassado na sua tarefa, mas
Olodumaré o consolou dando-lhe uma nova ordem, a de criar seres com vida. Dessa
forma Obatalá, durante um longo tempo, percorre toda a extensão do Aiyê, criando a
flora e a fauna de cada lugar, usando os elementos primordiais, terra e água. À
medida que os elementos foram sendo criados, foram ativadas as energias vitais
destes elementos, os Orixás. Ele também criou os seres humanos, seres pensantes
que poderiam povoar e viver da terra, além de render oferendas e agradecimento
aos Orixás, já que estes são a manifestação dos elementos naturais que possibilitam
a vida dos humanos.
Dessa forma, os Orixás trazem consigo as características da natureza, local
que habitam e controlam. Soma-se isso à idéia da dualidade Orun/Aiyê, onde tudo
que há no Orun, também existe no Aiyê, de modo que os Orixás (seres divinos)
refletem características dos humanos (seres mortais), conectando a natureza
(oceanos, rios, florestas, montanhas, minérios) com as afetações humanas (amor,
guerra, força, velhice, saúde, doença). Esses mitos lançam bases para os rituais. Na
história narrada, Obatalá esqueceu-se de fazer as oferendas para Bará, antes de
começar sua viagem, e fracassou no seu intento. Para evitar algo deste tipo. Bará é
31
Os primeiros Orixás a serem criados. Tem esse nome por vestirem-se de branco. Do iorubá funfun,
“branco”.
31
32
Ibidem, 1989, p. 128, apud; BRAGA, 1998, p. 21
33
Orixá ligado à agricultura. É compreensível que fosse pouco recorrido pelos escravos, uma vez que
ele rege a agricultura e as oferendas feitas a ele iriam beneficiar em maior parte o senhor de
escravos. Também é associado à “boa morte”, quem possuir um assentamento deste Orixá em seu
terreiro terá uma passagem tranqüila para a outra vida. Hoje em dia seu culto foi mesclado ao de
Oxalá, pois ambos vestem-se de branco e tem por símbolo um cajado.
34
Cf. LOPES, 2004, p. 490: “No Batuque gaúcho, orixá guardião do templo e relacionado ao que
ocorre na rua”.
32
de passagem entre Aiyê e o Orun, por fazer este elo entre a água e a terra seca. Os
demais Orixás representam aspectos mais dinâmicos da natureza e dos seres
humanos (trovão, tempestade, caça, guerra), o que não quer dizer que Orixás tidos
como velhos não tenham seu lado mais agressivo, como Yemanjá, Orixá do mar,
que pode oscilar de um mar sereno de marolas para um maremoto, dependendo do
seu humor.
Duas disposições devem ser feitas sobre os Orixás, no tocante à possessão
e as “qualidades” dos Orixás. A possessão consiste em um afastamento da
consciência do indivíduo para que o Orixá possa se manifestar em seu corpo. No
período em que o Orixá “ocupa” o corpo, ele pode dançar, falar, comer, manipular
objetos, efetuar curas e ensinar fundamentos religiosos. Neste ponto, existe um
grande tabu no Batuque, segundo o qual não se pode informar aos filhos de santo
que eles recebem as entidades. Acredita-se que pela magnitude da energia de um
Orixá, as pessoas poderiam sentir-se envaidecidas caso soubessem disso, e não é
este o objetivo da possessão, mas sim estreitar os laços entre os adeptos do culto e
as entidades. Esse fenômeno parece similar à possessão espiritual da Umbanda ou
do Espiritismo, mas difere no ponto em que nestas duas religiões a possessão é
35
estimulada por uma capacidade mediúnica inata aos adeptos, que a desenvolvem
ao longo de sua experiência religiosa, não havendo problemas quanto a saberem
que elas próprias são capazes de manifestar tal fenômeno, além de que cada
médium pode ser possuído por mais de uma entidade ao longo da vida. No Batuque
cada filho de santo pode ocupar-se apenas de um Orixá, seu “Orixá de cabeça”, que
existe numa condição similar a um “anjo da guarda”, uma entidade que acompanha
todas as pessoas ao longo de suas vidas. Porém, a fenomenologia da possessão
não tem um caráter central no Batuque, já que muitos Pais e Mães de Santo não se
“ocupam” com seus Orixás, fato que não lhes tira o prestígio, tampouco lhes
incapacita de terem filhos de santo que manifestam seus Orixás.
Quanto às “qualidades” de um Orixá, é comum que neófitos e “estrangeiros”
se questionem, por exemplo, quando vêem dois filhos de santo incorporarem o
mesmo Orixá em uma mesma ocasião: Os Orixás não são um só? Qual dos dois é o
verdadeiro? Em resposta: Sim, os Orixás são uma única energia e ambos são
verdadeiros. Retomando o conceito de que os Orixás representam as forças da
35
Capacidade humana que permite a comunicação entre os seres vivos e os espíritos. Manifesta-se
independente da religião e recebe denominações diferentes dependendo do meio cultural.
33
2.1.1 Bará
36
Ajuntó vem a ser a “iorubanização” da palavra portuguesa “junto”, para referir-se que determinado
Orixá está junto ao Orixá de cabeça.
34
Batuque o Bará tem filhos de santo, mas não deixa de desempenhar a função de
servo dos Orixás. Os filhos deste Orixá não costumam ser insubordinados, não fixam
residência num mesmo local por muito tempo, pois como o Bará, eles necessitam da
sensação de liberdade, gostam de estar na rua e em constante movimento.
2.1.2 Ogum
37
Colares de contas de vidro colorido que representam os Orixás e são usados pelos filhos de santo
de um terreiro.
38
São as vestimentas usadas nas festas e em alguns rituais. Os filhos de santo costumam usar as
cores de seus Orixás.
39
Atribuição ou permuta de significados entre duas concepções religiosas diferentes. O sincretismo
entre Orixás e santos católicos ocorreu como uma estratégia para disfarçar a religião dos escravos
durante a escravidão. O culto Oyó não utiliza o sincretismo com os santos católicos na representação
dos Orixás.
35
mesclado ao da Yemanjá) e que possuía o físico deformado, por isso sua mãe o
rejeitou, jogando-o no rio. O rio o conduziu ao mar, onde ele foi encontrado por
Yemanjá, porém ele ficou com cicatrizes na pele causadas pelas pedras do rio e
pelos caranguejos da praia. Um de seus nomes é Obaluaê, que do iorubá significa
obá, “rei”; oluwô, “senhor” e aiyê, “terra”, que numa tradução livre seria algo como “O
dono da terra”, pois ele representa terra que virá a cobrir a todos os seres vivos
depois da morte, por isso costuma ser temido e respeitado pelos adeptos do
40
Batuque. Ele é associado e cultuado no Oyó ao Vodun Jeje chamado Sapatá, seu
símbolo é a vassoura, chamada de Xaxará, com a qual ele varre as doenças e
afasta os espíritos dos mortos. Os filhos deste orixá costumam ter marcas de
nascença na pele e tendem a ter um temperamento ranzinza, porém são bastante
prestativos.
40
Entidade da região do Daomé que equivale aos Orixás das nações nagôs e aos Inquices das
nações banto.
37
2.1.4 Ossanha
Orixá que habita as matas, a ele pertencem todo tipo de vegetação. Por
causa disso ele tem suma importância no Batuque, pois sem as ervas sagradas dos
Orixás não se pode proceder com os rituais. Cada Orixá tem sua erva votiva, porém
somente Ossanha possui o segredo do uso de todas elas. Ossanha, às vezes
chamado de Ossain, Osanyin ou Ossãe é representado por um homem sem uma
das pernas e que caminha apoiado em uma muleta, por causa disso alguns dos
filhos deste Orixá apresentam algum tipo de deformidade física, ou adquirem ao
longo da vida. Também é conhecido como Orixá “médico” no Batuque, pois tem o
conhecimento das ervas medicinais.
41
O cágado não se sacrifica mais à Ossanha devido ao fato de ser um animal protegido por lei.
38
2.1.5 Odé
2.1.6 Orunmilá
Orixá associado ao jogo de búzios. Ele não tem a função de iniciar filhos de
santo, sendo recorrido no Batuque Oyó somente como entidade que sustenta o
oráculo dos búzios. Mesmo assim, seu culto se associa ao de Oxalá em outras
nações. Ele tem parte nas oferendas rituais e nas danças da roda de Batuque, mas
só se sacrificam animais para Orunmilá na ocasião do apronte de um pai de santo, e
só caso este for ganhar seu axé de búzios.
Símbolos: Olhos
Cor: Branco com preto
Animais sacrificais: Uma galinha preta
Comida: Axoxó (milho cozido), ovos cozidos, canjica branca.
Números: 16
Dia da semana:Sexta feira
Sincretismo: Santa Luzia
2.1.7 Bocum
Outro Orixá que, dentro da tradição Oyó, não tem função de iniciar filhos de
santo. Está associado a uma qualidade mais jovem de Oxalá. Da mesma forma que
Orunmilá, ele é cantado na roda de Batuque, mas já não se fazem oferendas ou
sacrifícios a Bocum.
Xangô é tido como rei da nação Oyó. Xangô Agodô e Xangô Aganju são dois
Orixás ligados a uma mesma potencialidade da natureza, porém manifestam
aspectos diferentes dela. Originalmente, seu culto era separado e o conceito
genérico de Xangô correspondia à entidade hoje chamada de Xangô Agodô. Aganju,
que na mitologia era sobrinho de Xangô, passou a corresponder a uma de suas
qualidades. Orixá do fogo, do trovão, das montanhas, do equilíbrio, da justiça, da
palavra falada e escrita (rege a atividade intelectual) e também de tudo que faz
barulho (como tambores e chocalhos). Os movimentos da dança de Xangô
representam o equilibro, na troca do ponto de apoio dos pés e do movimento das
mãos, oscilando para cima e para baixo. No corpo humano, Xangô rege a língua
(bem como todos os órgãos da fala) e os problemas de pressão. Mitologicamente, os
raios eram interpretados como a flexão da voz de Xangô, convertida em fogo, que
caía das alturas de seu palácio. Os filhos deste Orixá tendem a ser diplomáticos e a
terem boa oratória.
42
Tecido estampado com padrão de pontos. O nome vem do francês, que significa “pequenas
ervilhas”, referência ao formato do padrão da estampa.
41
2.1.10 Ibejis
Orixá duplo (do iorubá significa “gêmeos”, da raiz éji), representados por dois
meninos gêmeos ainda crianças, como se fossem versões infantis de Xangô. São
uma alusão à dualidade da natureza, à vida e a tudo que tudo que nasce, não
apenas no sentido do nascimento de um ser humano, mas também no que nasce da
natureza, como as nascentes de rios e as plantas que germinam. Mitologicamente
existem muitas versões, são mencionados como filhos de Xangô e Oxum, ou mesmo
filhos abandonados de Oyá, criados por Oxum. Algumas nações os representam
como um menino e uma menina, mas no Oyó permanece a versão dos dois
meninos. Uma das lendas mais contadas, e que lança bases para os rituais de
adoração dos Ibejis, é a lenda de como os Ibejis venceram a morte:
A morte, para os iorubás, é personificada na entidade Ikú. Nesta lenda, Ikú
estava investindo sobre muitas aldeias e levando todos os seus habitantes, alheio a
qualquer oferenda feita para aplacar sua ira. Nenhum Orixá ousava interferir frente a
Ikú, temerosos de seu poder. Quando Ikú se dirigiu para a aldeia onde moravam os
Ibejis, os dois meninos esconderam-se e uma gruta próxima a entrada da aldeia e
levaram consigo um tambor. Quando Ikú apareceu, um dos meninos pôs-se na sua
frente tocando tambor e aquele som encantou Ikú, que começou a dançar em frente
ao menino. Quando ele se cansava, esperava Ikú girar em sua dança e trocava de
lugar com seu irmão que estava escondido. O revezamento durou muitos dias, a
ponto de que Ikú cansou-se ou mesmo esqueceu porque tinha vindo até ali, isso
salvou a aldeia onde moravam os Ibejis.
Essa lenda, ou itã, é uma alegoria da vida (Ibejis) vencendo a morte (Ikú).
Por isso o ritual consagrado aos Ibejis, a mesa de Ibejis, está presente em vários
momentos do calendário litúrgico do Batuque, como uma forma de afastar a energia
negativa da morte, justapondo a esta a energia da vida, trazida pelos Ibejis. A lenda
pode também representar a inocência vencendo desafios, na forma como o jeito
lúdico e inocente com que uma criança vê o mundo pode resolver uma situação que
43
2.1.11 Oyá
43
Do iorubá égun, “esqueleto”.
44
Orixá guardiã de algumas casas, pois não existe assentamento junto ao Bará Lodê
em nenhuma das casas em que o etnógrafo pesquisou.
2.1.12 Obá
Orixá feminino ligado às águas dos rios turbulentos. Representa uma mulher
guerreira, mas que também sabia fiar, por isso o seu símbolo são a roca, a roda, a
panela e demais objetos redondos. Foi uma das esposas de Xangô, porém nunca
consumou o casamento. Por causa disso, Xangô casou-se com outra mulher, Oxum,
que correspondia melhor aos sentimentos de Xangô. Enciumada, Obá pergunta à
Oxum, exímia cozinheira e ardilosa, o seu segredo e ela lhe mente, dizendo que
preparava para Xangô uma sopa com um pequeno pedaço de sua própria orelha
para enfeitiçá-lo, como Oxum usava um pano de cabeça que lhe escondia as
orelhas, Obá não desconfiou. Obá seguiu o conselho de Oxum e preparou uma sopa
para Xangô com uma de suas orelhas, mas somente conseguiu causar-lhe repulsa
44
Pequeno jarro de barro que contém a água sagrada de cada um dos Orixás assentados em um
terreiro.
45
com o repugnante prato apresentado. Neste momento, Oxum revela que Obá fora
enganada, iniciando uma violenta briga entre ambas as esposas. Irritado com a
situação, Xangô expulsa as duas de casa.
Este Itã explica o porquê das divergências entre Obá e Oxum, pois nos
rituais não se deve por as oferendas dessas duas entidades próximas umas das
outras. Devido ao fato de Obá ter mantido sua virgindade e não ter consumado seu
casamento com Xangô, segundo alguns Pais e Mães de Santo afirmam, ela só
aceita sacrifícios de animais (cabritas, angolas e galinhas) virgens, sendo que as
cabritas não podem ter aspas. É um Orixá relacionado ao sentimento de ciúmes e
aos problemas auditivos. Na nação Oyó, possui culto diferenciado simbolizado pela
“Roda de Alabaô”, com uma reza diferenciada das outras nações e que somente
filhos de santo prontos podem participar. Segundo afirmam os Babalorixás Airton de
Yemanjá e Carlos de Oxum, isto ocorre por se tratar de um Orixá muito delicado e
difícil de ser cultuado.
2.1.13 Otin
Esposa de Odé, caso raro de Orixá que só casa com uma entidade
específica. Odé e Otim formam o casal de caçadores do Batuque. Embora Odé
46
possa fazer ajuntó com Oyá (em raras circunstâncias), Otin casa-se somente com
ele. Na mitologia, Odé é um caçador que se apieda dos animais que caça, então os
dá a sua esposa, que os come sozinha. Por causa disso, Otin é representada por
uma mulher um tanto acima do peso. Raríssimos são os filhos de Otin, em algumas
nações suscita-se que ela não possua filhos de santo, servindo apenas como ajuntó
de Odé e raramente se manifesta nos seus filhos. Segundo Carlos de Oxum,
existem mitos que afirmam que Otin seria um ser hermafrodita, se tratava de um
jovem com ambivalência genital e características femininas. Inconformado e
sentindo-se um ser diferenciado foge para a floresta e ao banhar-se se desnuda,
encontrando Odé, o caçador, que o aceita e promete proteção sem julgamento. Otin
corresponde ao Orixá Odé e os dois passam a ser vistos, desde então, eternamente
juntos.
2.1.14 Oxum
É uma Iyabá no Batuque, título dado à Yemanjá e Oxum, o que significa que
é uma entidade ligada à água, a feminilidade e à maternidade. Rainha da nação
Ijexá, Oxum é o Orixá dos rios e cachoeiras, também está associada ao ouro e à
prosperidade. Por ser Orixá do ouro, Oxum é representada por uma mulher muito
47
vaidosa, que passa horas de seu dia na beira dos rios com seu leque (abelê),
polindo seus inúmeros adereços de ouro e olhando-se em seu espelho de cobre
(abebê), devido ao seu grau de importância no panteão africano recebeu o título de
Iyalodê, pois em algumas lendas ela foi mãe do Bará (do iorubá: Iyá, “mãe” e Lodê,
uma qualidade de Bará). No corpo humano rege os órgãos sexuais femininos, pois é
o Orixá do parto, possuindo uma estreita relação com os Ibejis, Orixás do
nascimento. Divide-se em três principais manifestações: Docô, a velha e sábia;
Demun, de meia idade e Pandá, a mais moça e que faz ajuntó com os Orixás
45
guerreiros. Possui uma quizila , muito forte com Obá, devido à lenda que envolve
as duas. Oxum também é a Orixá do amor, uma vez que ela faz ajuntó com todos os
Orixás masculinos. Simbolizada pela lua, já que possui fazes como as mulheres, os
filhos de Oxum tem um temperamento bastante variável, porém preservam sempre
um ar maternal. Existem afirmações contundentes de que haveria uma outra
qualidade chamada Oxum Olobá que faria adjunto com Xapanã e em alguns casos
com Xangô Agodô.
45
Tabu ou proibição de natureza ritual. Do idioma quimbundo kizila, “proibição”, “jejum”, “castidade”.
48
2.1.15 Yemanjá
2.1.16 Oxalá
Mais velho e pai de todos os Orixás, associado com o mito da criação. Este
Orixá habita o sol, as nuvens e o céu. Oxalá é representado por um homem muito
idoso, curvado sobre um cajado (opaxorô). Sua energia trás os simbolismos da
idade. Por ser muito velho, ele detém a sabedoria absoluta; a sua visão já é fraca,
mas ele aprendeu a ver com sua alma, com a qual ele pode enxergar de dia e de
noite; o caminhar lento denota a paciência e a parcimônia e o tom de voz frágil
representa que se deve ter brandura para lidar mesmo com as situações mais
difíceis. Oxalá tem dois animais votivos, a pomba branca, símbolo da paz, e um tipo
de caramujo, chamado igbin (lê-se “Ebi”) da espécie Helix pomatia. O caramujo
resume vários aspectos de Oxalá, anda de maneira vagarosa, o seu formato remete
à visão de Obatalá (um dos nomes de Oxalá) carregando sua pesada sacola para
cumprir a tarefa de Olodumaré e criar a vida no Aiyê, além de que seu sangue é
esbranquiçado, quase transparente, igual ao de Oxalá. Por ser um Orixá muito
velho, os filhos deste Orixá (e também os de Yemanjá e Oxum) não costumam fazer
46
reverência a pessoas filhas de Orixás de frente (Orixás do dendê), principalmente
as de Bará. Isto não é visto como sinônimo de soberba por parte da pessoa, mas de
que o Oxalá representa os princípios mais puros e elevados do cosmos, e que não é
compatível que ele curve-se a Orixás menores, diga-se mais jovens (menores, mas
não menos Importantes). Como as pessoas velhas, os filhos de Oxalá apresentam
desde cedo problemas típicos da idade, como dores nas costas, reumatismos etc.
Também costumam ser rabugentos, mandões e lentos, porém tudo que fazem
possuiu grande profundidade.
46
Especificamente o ato de “bater cabeça”. Uma reverência que consiste de curvar-se e encostar
com a testa no chão.
50
47
Do iorubá, “dança”. É a ordem dos cânticos entoados durante uma festa de batuque.
51
Orixás de praia dos demais, colocando-os no final no Irunmalé. Quanto à Oyá, ela
continua merecendo um local de destaque, por isso foi colocada próxima a Xangô,
abrindo a sequência de Orixás femininos.
Detalhes como estes contam uma história e representam a identidade de um
grupo. São elementos que os identificam e diferem os adeptos do Batuque da Nação
Oyó das outras tradições do Batuque. No estudo dos mitos, não se propõe uma
leitura literal, ou mesmo que eles sirvam como um legitimizadores da veracidade de
algo, mas sim que os mitos lançam as bases para a estrutura do Batuque enquanto
religião. Segundo Lévi-Strauss (1978, p. 66):
Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura
musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página
inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da
página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma
parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e
assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita,
mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber
que cada página é uma totalidade.
exercício de sua vontade e com consciência de que não estão ofendendo nenhum
preceito da religião, não estão sujeitas a nenhum tipo de punição por parte das
entidades, inclusive por que o Batuque não é uma religião que vê a si mesma como
o único caminho de encontro com o conceito de divino. Este tipo de experiência é
muito subjetiva e cada pessoa dará um sentido diferente a ela.
Para melhor entender como se processam os rituais que marcam as etapas
da vida religiosa de um iniciado, será esboçado um esquema destes rituais. No
entanto, não é permitido que se narre como eles são feitos, pois residem neles os
preceitos ancestrais que não podem ser ensinados para “estrangeiros”. Será
explicada a função dos rituais na liturgia, citar-se-á algum material envolvido em sua
elaboração e a ordem dos processos dos rituais mais longos.
2.2.2 Aribibó
Pode ser feito inclusive por pessoas não iniciadas, com o diferencial que não
há a lavagem de cabeça antes. Para quem deseja se iniciar, esse ritual é feito após
a lavagem de cabeça. Aribibó vem da expressão iorubana Ori bi bó (Ori = cabeça, bi
= dois e bó = comida), ou seja, “dois que alimentam a cabeça”, pois este ritual
consiste no sacrifico de um casal de pombos na cabeça. O aribibó trás
fortalecimento e saúde à pessoa que o faz.
53
2.2.3 Bori
2.2.4 Apronte
48
Termos usados para dividir os animais sacrificados em animais de quatro pés (Quadrúpedes –
cabras cabritos, carneiros, ovelhas e porcos) e de dois pés (aves).
54
(chamada de levantação), remoção das cabeças dos animais que foram ofertadas
(levantação das cabeças), sacrifício do peixe, ritual do saco (feito com as comidas
de todos os Orixás e uma limpeza e é despachado na praia), quinzena de
confirmação (sacrifício de aves). Mesa de Ibejis (pedindo misericórdia e atraindo
boas energias), segunda e última festa de Batuque (todos vestidos de branco) na
qual se entregam os axés.
2.2.5 Arissun
Quinzena é uma festa menor, marcada quando é preciso dar comida aos
Orixás, mas não se pode fazer um sacrifício maior com animais de quatro pés.
Sendo assim, a quinzena compreende um sacrifício de aves apenas (animais de
dois pés), em que se sacrificam quinze animais para os Orixás, vindo daí o nome,
diferente do que se acredita de início, que seja um ritual dado a cada quinze dias.
Na quinzena, quatorze Orixás comem um galo ou uma galinha cada um, à exceção
57
dos Ibejis, que comem um casal de pombos (fechando a conta dos quinze). Os
Orixás que comem são: Bará Lodê, Bará de dentro, Ogum, Xapanã, Ossanha, Odé,
Xangô (Agodô e Aganju juntos), Ibejis, Oyá, Obá, Otin, Oxum, Yemanjá e Oxalá.
Além das quinzenas há os Ebós, onde se sacrificam animais de quatro pés
(cabras, cabritos, ovelhas, carneiros e porcos), e que já foi detalhado no subtítulo
sobre o apronte. Além as iniciações, que também já foram detalhadas e que se
configuram como festas móveis no calendário do Batuque.
49
Idem, ibidem.
58
50
Do latim, "modo de operação". Refere-se à maneira de executar uma atividade seguindo os
mesmos procedimentos.
51
Referência ao fato de que nessas ocasiões os filhos de santo precisam dormir no ronco, em camas
improvisadas rente ao chão.
52
Salada de frutas servida no final de uma festa de Batuque, tradicionalmente guardada em uma
talha de barro. É servido em copos, como uma bebida, e simboliza o Orixá Ogum.
53
Instrumento musical que consiste de um porongo recoberto com uma teia de miçangas
entrelaçadas e que emite um som similar ao chocalho. São usados como acompanhamento dos
atabaques nas festas de Batuque. Em outros locais, se dá o nome de afoxê.
59
Estes são os locais aonde o ritual se desenvolve nas suas variadas etapas.
55
Como observado nos terreiros , era de costume haver uma divisão entre a casa
onde reside o Pai de Santo e as dependências em que se praticam os rituais, em
decorrência de adaptações ao estilo de vida contemporâneo, essas peças acabaram
se fundindo, podendo a própria cozinha do Pai de Santo ser a cozinha de santo e o
salão de santo ser improvisado em sua sala de estar, por exemplo.
O território de propriedade do terreiro ainda tem outras partes secundárias
da sua configuração espacial, algumas destas podem ainda ajudar a identificar o Ilê,
já que pela tradição estes templos não ornam nas suas fachadas nenhuma
sinalização de que ali funciona um terreiro. Isso se deve em parte à estigmatização
que sofrem os adeptos do culto e também para pregar a simplicidade e a humildade.
Estes espaços aos quais se faz referência são:
54
Cf. LOPES, 2004, p. 689: [...] o conjunto ordenado de toques, cantigas, e danças com os quais os
Orixás são invocados.
55
Nos Ilês dos Pais de Santo Carlos de Oxum e Airton de Yemanjá.
60
melhor compreensão do que foi teorizado, segue uma descrição dos espaços
externos usados durante alguns dos rituais, a começar pelos urbanos:
Matas e pedreiras: São dois locais para finalidades distintas, mas que
envolvem as mesmas questões espaciais. Muitos Orixás têm a mata como seu
habitat, como é o caso de Ogum, Ossanha, Odé e Otim. Suas oferendas e
despachos devem ser depositadas no meio do mato, preferivelmente em locais mais
ermos. Os batuqueiros costumam depositar oferendas nos mesmos locais de mata,
o que estabelece uma noção de territorialidade no espaço freqüentado. Quanto às
pedreiras, estas são pertencentes a Xangô, para elas valem os mesmos critérios que
as matas. Porém, a essência de uma oferenda ou despacho é depositar algo no
meio natural, isso acarreta em uma questão de ética ambiental, já que estes podem
vir a poluir a natureza. Há um comum consenso entre os batuqueiros e umbandistas
nestes casos, que será mais bem detalhado no próximo capítulo deste trabalho;
Praias: As praias, sejam elas de rios ou de mares, tem um significado
simbólico para o batuque, pois são estes os habitats dos Orixás ditos velhos (Oxum,
Yemanjá e Oxalá). Na concepção afro-religiosa, estes orixás estão mais próximos
das energias sublimes do Orun e a água é algo como um elo entre o mundo visível e
o Orun. Quanto a delimitação territorial das praias para uso de umbandistas e
batuqueiros, sabe-se que pelo art.98 do Código Civil, são “bens de uso comum do
povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”, portanto as praias são bens
públicos mas elas podem carregar a identidade do público que as freqüenta. Em
Alegrete houve uma tentativa por parte de um grupo de religiosos, posteriormente
ligados à AURAFA, de batizar um trecho da praia do rio Ibirapuitã de “Praia de
Iemanjá”, pretendida através da lei municipal 929/70 (conforme atesta a seguinte
fotografia do acervo do Sr. Sylla Orguissa, presidente em exercício da AURAFA).
Porém a Lei não foi aprovada, restando apenas a lembrança de uma tentativa de
delimitação territorial.
65
3.1 OS CONFLITOS
56
Cf. Carlos de Oxum e Airton de Yemanjá.
66
O sacrifício animal existe nos rituais como uma troca simbólica entre os
Orixás. Devido aos nossos padrões sociais, este tema gera reações adversas, uma
vez que cada vez mais são elaboradas leis e medidas que protejam e garantam um
tratamento digno às espécies animais que compartilham com o ser humano o
espaço em que vivem. Como defender tais práticas, então? Primeiramente devemos
compreender a imolação animal no contexto em que ela está inserida na ritualística
do Batuque, que ocorrem na ocasião de festas dedicadas aos Orixás. Nessas festas
os animais são imolados para que seu sangue alimente os Orixás e sua carne
alimente os filhos de santo, como em um pacto simbólico entre o divino e o terreno.
Não são infligidas em momento algum, torturas aos animais, já que estes devem
estar relaxados até o momento de seu sacrifício, onde o Babalorixá corta-lhe a
carótida com presteza e agilidade para abreviar a dor. Este tipo de imolação se
assemelha ao abate de animais para consumo que nossa sociedade pratica,
tornando esta prática um pouco mais próxima da nossa realidade. Porém, em maio
de 2003, foi criada a lei nº 11.915, instituindo o Código Estadual de Proteção aos
Animais no Rio Grande do Sul. O que poderia representar uma grande vitória aos
movimentos que prezam pelos direitos dos animais, mas o que se viu foi uma
deturpação do sentido da lei em si e do valor simbólico e cultural dos rituais de
imolação, pois a lei foi utilizada para restringir e proibir sacrifícios animais em
terreiros do Rio Grande do Sul. Estas medidas vêm a violar a constituição de 1988,
que diz: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e suas liturgias” (do Cap I, Art 5º, Inciso VI). Essas antigas rusgas se
desenvolvem em um debate ainda sem resolução, onde setores diferentes da
sociedade rio-grandense medem forças para fazer valer suas convicções.
locais próximos aos dos despachos, uma vez que a poluição pode causar problemas
ambientais. O que não se avalia é que os batuqueiros não têm interesse de causar
transtornos desta ordem, uma vez que cultuam uma religião que venera a natureza,
mas as condições de vida de certas cidades não deixam muitas alternativas para as
casas de religião. Parece não haver um interesse do estado em estabelecer um
diálogo entre as lideranças religiosas para que se estabeleçam locais apropriados
aos despachos, ou mesmo uma política ambiental por parte dos terreiros, para que
estes se responsabilizem em manter o asseio dos espaços por eles utilizados.
Esta questão não pode ser tratada com a mesma falta de diálogo com que
foi tratada a questão do sacrifício animal. É um anseio da comunidade religiosa que
se possa dar continuidade às liturgias ancestrais sem ferir os padrões da sociedade
atual, porém qualquer adaptação a ser estabelecida na forma de se cultuar as
entidades deve ser feita com diálogo e respeito à cultura e à ancestralidade de um
povo, uma vez que não se pode resolver um problema causando outro, ocasionando
um desserviço à diversidade cultural existente.
68
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. 9.ed. São Paulo, SP: WMF Martins
Fontes, 2008.
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1992.
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Negro, 2004.
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, SP:
Editora Contexto, 2008.
71
OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Das Macumbas à Umbanda. 1.ed. Limeira, SP:
Conhecimento, 2008.
PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. 3.ed. São Paulo, SP: Global, 1984.
VERARDI, Jorge. Axés dos Orixás no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS: Jan
Comércio e Representações ltda. 1990.
XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: Mestre Tito.
Porto Alegre, RS: UFRGS, 2008.
3 FONTES PRIMÁRIAS:
4 ENDEREÇOS ELETRÔNICOS: