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Quem quisesse publicar uma obra literário na França nos tempos da codificação
espírita precisaria pedir autorização formal ao Governo, por intermédio de uma
das livrarias “juramentadas e licenciadas”. O pedido de registro era feito ao
prefeito regional contendo os dados bibliográficos (título, autor, edição, editora
etc.) ordenados pela data do pedido (art. 11 da do Decreto Imperial citado no
tópico anterior). O pré-requisito mais importante era o art. 33: “apego à pátria
e ao soberano”.
Cada impressor deveria depositar na prefeitura da polícia cinco cópias de cada
obra, a saber: duas para a biblioteca imperial, uma para o Ministro do Interior,
uma para a biblioteca de nosso Conselho de Estado, uma para a diretor
administrativo das obras de impressão (art. 48).
Uma vez examinado o pedido de registro da obra, se esta não fosse
considerada “imprópria”, a autorização seria assinada pelo ministro de polícia
geral e então liberada para impressão e publicação.
A lei estabelecia confisco e multa se o livro saísse sem o nome do autor e da
gráfica, se o autor ou o impressor não tivesse efetuado o registro e a
declaração do artigo 11, se a obra fosse pedida para exame e a impressão não
tivesse sido suspensa enquanto se faz, se a obra fosse publicada sem a
autorização do ministro da polícia geral, se fosse uma falsificação ou se fosse
impressa sem o consentimento e em detrimento do direito do autor ou
do editor.
O artigo 39 assegura o direito de propriedade ao autor e à sua viúva, e aos
filhos por vinte anos.
Conforme a regra, portanto, tendo a obra sido aprovada pelas autoridades, a
livraria (ou editora) responsável, em nome do autor, tinha que registrar
uma Déclaration d'Imprimer (DI), quer dizer, Declaração de Impressão,
informando a tiragem desejada (número de exemplares a serem impressos),
depois, tendo sido a obra impressa, precisava efetuar o Dépôt Légal (DL), ou
seja, o Depósito Legal do livro: entregar cópias do livro para os arquivos
governamentais. Se o livro sofresse qualquer alteração no seu conteúdo, um
novo DL da obra editada seria exigido; caso contrário, a nova tiragem só
precisava de uma nova DI para reimpressões. Mesmo assim, ainda que tenha
sido devidamente autorizada, a obra permanecia sob o controle de censura e, a
qualquer momento, estava sujeita a ser penalizada, caso sua publicação
gerasse qualquer desconforto ao Governo.
Mais detalhes em Espiritismo Comentado
Sobre as atualizações na lei de imprensa e livraria na França, ver a obra Code
de lois de la Presse interprétées par la jurisprudence et la doctrine de
Rolland de Villargues.
Importante: Apesar do rigor da letra, convém considerar que, na prática, o
controle de impressão não era executado com tanta precisão, inclusive com um
progressivo afrouxamento, principalmente em se tratando de obras literárias de
grande porte, cujo público era muito restrito. Em seu Political Censorship of
Arts and the Press in Nineteenth-Century Europe, o especialista em
ciências políticas Robert Justin Goldstein, professor da Universidade de
Oakland, EUA, observa que a preocupação maior dos censores se aplicava às
artes mais populares, como música e teatro; no caso de material impresso, os
cuidados maiores se concentravam em jornais e panfletos.
Uma lei baseada na liberdade de imprensa, que garante a livre circulação dos
jornais, sem regulamentação governamental foi aprovada em 1881 e está em
vigor até hoje.
Com isso, se ele não cuidava daqueles negócios comerciais, é de se supor que
também não se ocupava das tratativas burocráticas de suas publicações — o
que o isentaria de possíveis complicações legais junto aos órgãos competentes
para o controle literário.
9
Recuperação dos arquivos
Como "tudo concorre para o bem", apesar das aparências do "mal", é graças
àquele rigoroso controle (tópico 7) que hoje é possível recuperarmos parte da
História literária da fase da codificação espírita; aqueles livros
depositados (DL) atualmente estão sob a posse da Biblioteca Nacional da
França (BnF), que disponibiliza livre acesso ao seu acervo, pessoalmente, ou
virtualmente, através do seu portal Gallica, para o caso dos documentos já
digitalizados. Os registros de DI e DL estão à disposição para consulta pública
(presencialmente) no departamento Archives Nationales de
France (Arquivos Nacionais da França).
Assim é que se pode consultar quando uma edição ou reimpressão foi
registrada, seu título, autor, editora e até a sua tiragem. E isso vai ser
importante para a nossa pesquisa, como veremos adiante.
Além disso, a Biblioteca da França lançava periodicamente um catálogo das
obras recebidas em seu acervo (Journal Général de L'Imprimiere et de la
Librarie) — outra boa fonte de pesquisa. Na edição de 1 de fevereiro de 1868
(57° ano, 2ª série, n° 5), por exemplo, encontramos na primeira página o
registro do nosso livro em questão, catalogado pelo número 758. Veja abaixo a
imagem da nota do jornal da Biblioteca:
Fonte: Googl
e Books
10
A nova fase do Espiritismo
Estaria Kardec já pensando numa 5ª edição de A Gênese? E se sim, viria esta
edição com alguma modificação? Bem, até então, o público ignorava, pois ele
não havia informado nada sobre isso, inclusive porque estava bastante ocupado
com outros projetos urgentes.
Posteriormente, vamos ter informações de que sim — o codificador estava
debruçado numa revisão da obra em questão — e essas informações serão alvo
de controvérsias, como constataremos à frente. Mas, por hora, vamos ignorar
esse ponto.
Dentre aqueles "projetos urgentes" estava a inauguração da Livraria
Espírita (não apenas uma loja de livros, mas a sua própria editora), que
funcionaria em conjunto com o escritório da Revista Espírita; o local era Rua
de Lille, 7, centro de Paris, para onde também iria a sede da SPEE e
da Comissão Central, instituição que Kardec planejara estabelecer para
sucedê-lo na administração do movimento espírita (e até da herança pessoal
que ele e a esposa destinariam em favor do Espiritismo), enquanto para ele,
livre das obrigações burocráticas, pleiteava dedicar-se somente ao trabalho
intelectual em sua nova morada, na Vila de Ségur (Ver em Obras Póstumas,
2ª parte: "Constituição do Espiritismo" - ebook).
Entretanto, não houve tempo para Kardec assistir, enquanto encarnado, à
fundação daquela comitê.
Allan Kardec
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Desencarnação de Kardec
Túmulo de
Kardec no cemitério do Père-Lachaise, Paris
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Os "continuadores" de Kardec
Com a partida do Mestre (assim se referiam a Kardec), o Movimento Espírita
iria sofrer grandes reveses, especialmente pelo fato de que seus
"continuadores" não viriam a ser tão competentes em as suas prerrogativas
nem tão fiéis à causa doutrinária. Detalhes desse processo podem ser
conferidos no filme-documentário Espiritismo à Francesa: a derrocada do
movimento espírita francês pós-Kardec.
Outras obras de referência para o tema:
13
A edição revisada de A Gênese
Já com o selo da Livraria Espírita, a Sociedade Anônima (detentora dos
direitos autorais das obras de Kardec) publica a 5ª edição de A Gênese, desta
vez, editada mesma, e com bastante modificações, explicitadas na folha de
rosto pela linha "Revue, corrigée et augmentée", quer dizer, "Revisada,
corrigida e aumentada" — da qual seriam copiadas as reimpressões
subsequentes e as traduções autorizadas (inclusive a que se consagrou no
Brasil).
Portanto, sem maiores rumores, essa edição atualizada foi recebida e aceita
pelo público em geral.
Ebook da 5ª edição, "revisada, corrigida e aumentada", em francês.
Detalhe: hoje nós sabemos que essa obra é de 1872, mas a impressão do ano
foi omitida na folha de rosto, ao contrário das edições anteriores. Esse
"pormenor" terá implicâncias importantes logo mais.
Capa da 5ª edição
francesa de A Gênese
Detalhe da capa:
inscrição "CINQUIÈME ÉDITION - REVUE, CORRIGÉE ET AUGMENTÉE"
ou seja,
"QUINTA EDIÇÃO - REVISADA, CORRIGIDA E AUMENTADA"
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Fundação da União Espírita Francesa
É bem verdade que Madame Kardec decidiu "gerir tudo" deixado pelo esposo,
inclusive cuidando pessoalmente das reimpressões das obras kardequianas
(ver: Revista Espírita - maio de 1869, "Caixa Geral do Espiritismo"). Ocorreu,
no entanto, que os administradores da Sociedade Anônima foram pouco a
pouco deixando-a de fora das suas decisões. A partir da gestão Leymarie,
Amélie foi praticamente descartada das atividades da sociedade. Ela detinha
plenos poderes para intervir legalmente sobre a instituição, da qual era sócia
majoritária e administradora superior; contudo, absteve-se de efetuar qualquer
intervenção, na intenção de evitar escândalos.
Entenda melhor a Sociedade Anônima
Foi aí que algumas vozes se levantaram contra Leymarie e, para fazer lhe
frente, fundaram uma nova instituição: União Espírita Francesa (UEF), que
também lançou o seu jornal oficial: Le Spiritisme (O Espiritismo) (saiba
mais aqui). Os principais fundadores de UEF foram: Berthe Fropo, Gabriel
Delanne e Léon Denis, com a anuência da viúva Kardec.
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A denúncia de Henri Sausse
Mais adiante, o jornal da UEF ganharia um importante articulista: Henri
Sausse. Pois então, num artigo intitulado "Uma infâmia" e publicado no Le
Spiritisme, 1ª quinzena de dezembro de 1884 [ebook], Sausse denuncia que
Leymarie havia adulterado o livro A Gênese; ele inclusive fez um estudo
comparativo da 1ª edição (1868) para a versão atualizada publicada por
Leymarie, a 5ª edição, e apontou onde os textos haviam sido modificados, os
parágrafos excluídos e a aparição de itens estranhos ao contéudo original da
obra.
Henri Sausse
"Descobri, comparando os textos da primeira e da quinta edição, que 126 trechos
tinham sido modificados, acrescentados ou suprimidos. Desse número, onze (11)
forma objetos de uma revisão parcial. Cinquenta (50) foram acrescidos e sessenta e
cinco (65) foram suprimidos, e não conto os números dos parágrafos trocados de
lugar nem os títulos que foram adicionados.
"Todas as partes desse livro sofreram mutilações mais ou menos graves, mas o
capítulo XVIII: Os tempos são chegados, é o que foi mais maltratado; as modificações
feitas nele o tornam quase irreconhecível.
"Agora, digam-me, quem são os culpados?
"Qual o motivo dessas manobras?"
Henri Sausse
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A resposta de Leymarie
Leymarie apresentou a defesa da obra revisada através da Revista Espírita,
edição daquele mesmo dezembro de 1884, com o artigo "Continuação de
'Ficções e insinuações'" ("Continuação..." porque aqui Leymarie ajunta no
mesmo bojo a acusação de Henri Sausse com as de Berthe Fropo, sobre os
supostos desvios de Leymarie, que este respondeu através da
brochura Ficções e Insinuações - Resposta à brochura Muita Luz
(Beaucoup de Lumière), assinada pela Sociedade Científica do Espiritismo
(renomeação da Sociedade Anônima), presidida por Leymarie; por esta
brochura, alegou ele tudo não passar exatamente do que chamou de "ficções e
insinuações".
Primeiramente, diz que o autor de 'Uma infâmia' bem poderia ter dissipado
suas dúvidas quando a legitimidade da obra revisada se tivesse feito um pedido
de informação. E para assegurar a todos que ele, Leymarie, prontamente
poderia satisfazer a quem duvidasse, então vai oferecer suas justificativas.
Em suma, ele declarou que a revisão foi feita por Allan Kardec em 1868 e
ajuntou à sua defesa depoimentos de duas pessoas diretamente ligadas à
produção do livro: Joseph Rousset e o Sr. Rouge.
O Sr. Rousset, profissional que confeccionava placas de impressão, confirmou
ter trabalhado para a gráfica Rouge nas placas de A Gênese no ano de 1868 e
testemunhou que essas matrizes não passaram pelas mãos de Leymarie.
O Sr. Rouge, um dos irmãos Frères, donos da tipografia que havia impresso as
primeiras edições da obra (atenção: nessa ocasião Leymarie contou seis
edições; isto vai ser importante na nossa pesquisa). Diz o Sr. Rouge que fez a
primeira tiragem em 1867 da qual foram impressas as três primeiras edições
iguais; depois, de uma segunda tiragem, em agosto de 1868, a tipografia
Rouge Frères teria impresso três edições já com a revisão de Kardec,
correspondentes à 4ª, 5ª e 6ª edição, todas no ano 1868.
Por fim, Leymarie evoca o conselho da sua Sociedade a intimidar a UEF por
ordem judicial a fim de que a refutação oferecida fosse aceita pelo jornal Le
Spiritisme.
Ver artigo na íntegra
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Um vazio e a confusão de ideias
A acusação de Henri Sausse é desacompanhada de uma prova cabal da tese
de adulteração, como ele sugere; porém, ela levanta, com propriedade, a
dúvida da autenticidade da "edição revisada", em razão de a obra ter sido
publicada depois da estadia física de Allan Kardec, dúvida que pode ser
alimentada pelo confronto de conteúdo, dado o aparecimento de algumas ideias
esquisitas na 5ª edição — conforme a interpretação de alguns estudiosos. Mas,
efetivamente, faltou a prova do crime.
Até que, posteriormente ao artigo-resposta de Leymarie, Sausse tentou melhor
justificar sua denúncia: na edição da 1ª quinzena de fevereiro de 1885, o jornal
da UEF publicou uma Correspondência de seu articulista de Lyon, pela qual
ele explica que soube da "adulteração" por intermédio de um conterrâneo
lionês, um amigo de Leymarie e também "fervoroso adepto do roustainguismo",
que lhe advertia sobre a obra de Kardec não ser tão perfeita quanto se
pensava, visto que seu amigo (Leymarie) teria precisado introduzir "correções"
no livro A Gênese; isso foi o que motivou Sausse a se debruçar nas
comparações entre os dois conteúdos em questão.
Leia na íntegra a correspondência de Henri Sausse publicada no Le Spiritisme.
Por outro lado, a autodefesa de Pierre-Gaëtan Leymarie também é oca;
embora o ônus da prova seja de quem acusa (neste caso, Henri Sausse), uma
vez que o diretor da Sociedade propôs-se explicar tudo, deveria tê-lo feito com
exatidão — ainda mais porque era ele quem detinha os documentos
esclarecedores do caso; mas, ao invés disso, fez uma confusão de ideias (por
exemplo, a inexatidão da relação das edições e suas datas), também não bem
explicadas pelas suas "testemunhas". E essas confusões acabariam por suscitar
ainda mais questionamentos.
Na tentativa de encerrar o caso, Leymarie evoca o depoimento do homem que
havia assumido a condução das obras de Kardec imediatamente à
desencarnação do Mestre: Armand Desliens. Vejamos a seguir.
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O testemunho de Desliens