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EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTE: INTERVENÇÃO E CONHECIMENTO
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Valter Bracht
RESUMO. Neste estudo, discutimos as relações entre os processos de conhecer e intervir, procurando enfocar as
características do conhecimento científico, apontando suas possibilidades e limitações no seu papel de
orientador/condutor da prática pedagógica em educação física.
Palavras-chave: educação física, esporte, ciência, prática pedagógica.
ABSTRACT. In this study we discussed the relationships between the process of knowing and intervening,
trying to focus the characteristics of the scientific knowledge pointing out its possibilities and limitations in its
leading role of the pedagogical practice in Physical Education.
Key words: physical education, sport, science, pedagogical practice. 23
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Este texto serviu de base para uma palestra com este título, proferida na I Semana de Educação Física, promovida pelo
Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe em maio de 1999.
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Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo.
Endereço para correspondência: Caixa postal 019.014. CEP: 29060-970. Vitória – ES.
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Como lembra Demo (1990:119): “a ciência confia que, se há opções, estão dadas, como há dois sexos”. Sua função não é
propriamente criar; “há coisas-a-saber” (Pecheux, 1980:34).
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Duas foram as formas: a) considerar a natureza como o outro do homem, como aquilo que não é especificamente
humano; b) considerar a história humana como submetida ao mesmo tipo de leis que a própria natureza.
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é intervir e intervir é conhecer, não como algo sentido amplo, conferiu ao homem uma
exterior ao objeto. A presença do homem na capacidade de intervenção, de controle, de
realidade é tipicamente interferência, como domínio, de poder sobre a natureza quase
lembra Demo (1990:120). ilimitada, embora com conseqüências não
O termo intervenção/interferência assume, necessariamente positivas.
portanto, seus significados na dependência das Para concretizar esta afirmação, poderíamos
visões de natureza e história, natureza e homem citar alguns exemplos do âmbito da educação
que adotarmos (a racionalidade científica física. Os métodos ginásticos e de treinamento
moderna produziu/trabalhou com determinada físico foram construídos a partir basicamente de
visão). um conhecimento anátomo-fisiológico do corpo
Nunca é demais lembrar também que nós humano. O conhecimento dos mecanismos de
não apenas estamos na natureza, nela intervimos funcionamento do corpo humano permitiu a
e nisso construímos nossa humanidade construção de uma tecnologia de intervenção
(história). Para existirmos, precisamos produzir eficiente no corpo, alterando aspectos do
e reproduzir a vida; talvez essa seja a motivação funcionamento deste numa direção desejada.
inicial de todo conhecimento. A possibilidade do Outros exemplos poderiam ser dados com
conhecimento, está ligada ao desenvolvimento conhecimentos do âmbito das teorias da
da linguagem. “Estamos imersos num viver que aprendizagem, da psicologia, da sociologia, etc.
nos ocorre na linguagem” (Maturana:38). Observe-se, de passagem, que a relação
desta forma de produzir e conceber o
Feitas estas observações de caráter mais
conhecimento com a idéia de progresso
geral, gostaríamos de nos reportar ao tipo de
ilimitado e com o advento da sociedade
intervenção ou como esta foi concebida no
capitalista não é, obviamente, mera
âmbito da racionalidade científica moderna, em
coincidência.
função da centralidade e do status que esta
Em um plano mais geral, o alargamento
forma de conhecimento alcançou na desta perspectiva forjou uma visão otimista do
modernidade. potencial da racionalidade científica, ou da
Como sabemos a racionalidade científica ou razão no sentido iluminista ou do
a ciência moderna (como ela se esboça a partir esclarecimento, para orientar nossas ações frente
do século XVII, principalmente), se caracteriza, ao mundo. Num tom irônico, Pecheux (1990:35)
entre outras coisas, por se tratar de uma forma assim se expressa a respeito desta oferta:
de conhecer que objetiva a intervenção eficiente
na natureza (no mundo, na vida). Pretendeu A idéia de uma possível ciência da
superar o caráter contemplativo do estrutura desse real, capaz de
conhecimento que predominou na Idade Média. explicitá-lo fora de toda falsa-
A famosa frase de F. Bacon: ‘saber é poder’ é a aparência e de lhe assegurar o
expressão desta característica. Está presente aí a controle sem risco de interpretação
pretensão de intervir na realidade a partir da (logo uma autoleitura científica,
apreensão racional-científica de como esta sem falha, do real) responde, com
realidade (no caso a natureza) funciona. toda evidência, a uma urgência tão
Produzir tecnologia em última instância. É claro viva, tão universalmente
que a tecnologia não surge ou é produzida “humana”. Ele amarra tão bem,
apenas a partir da transformação ou aplicação de em torno do mesmo jogo
saber teórico-conceitual em meios mais dominação/resistência, os
eficientes de produção de bens e produtos. Aliás, interesses dos sucessivos mestres
há intensa controvérsia entre os historiadores da desse mundo e os de todos os
ciência sobre as relações entre ciência e condenados da terra que o
tecnologia. A tecnologia é também o domínio do fantasma desse saber, eficaz,
saber fazer ou de um saber prático, que por sua administrável e transmissível, não
vez pode ser tremendamente potencializado pelo podia deixar de tender
saber teórico-conceitual. Captar a ordem, as leis historicamente a se materializar
da natureza ou que regem a realidade, num por todos os meios.
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metafísica). O discurso científico não interfere leitura do que é a realidade. Se consideramos ser
diretamente na realidade (a ciência deve seguir impossível fundamentar, com pretensões de
apenas princípios lógicos), é o seu uso, sua racionalidade, estas opções, ficamos no nível do
transformação em tecnologia que lhe dá um decisionismo subjetivista e pessoal e acabamos
caráter terreno, e sua dimensão política elegendo como princípio o relativismo (seja
somente aí apareceria. A dimensão política na pessoal ou de classe). Isto significa que a idéia
ciência não estaria na produção do de que a verdade científica seria a
conhecimento e sim na sua utilização. Portanto, correspondência entre a teoria ou conceito e o
o problema do uso do conhecimento não seria objeto é equivocada. Há verdades. Há discursos
um problema propriamente da esfera da ciência incomensuráveis entre si. Parece que estamos
e sim da política. Esta é uma posição, embora frente a apenas duas opções: ou o relativismo ou
ainda presente em alguns círculos, inclusive na o irracionalismo (no sentido da não-
universidade, francamente em declínio. A racionalidade científica) das decisões – de
própria Declaração sobre a ciência e o uso do qualquer forma diante da impossibilidade de
conhecimento (em documento preliminar da fundamentar racionalmente (aqui entendida
Unesco e das Uniões Científicas Internacionais) como razão científica) as opções, em última
deste ano, é uma demonstração de que a ciência instância, político-ideológicas.
e os cientistas precisam assumir a Aliás, o relativismo está muito em voga (por
responsabilidade ética e política de sua razões que não é possível aqui discutir), e é
produção. Historicamente, a produção e o uso preciso enfrentá-lo, ou melhor, enfrentar seus
feito do conhecimento científico têm sido argumentos. O historiador Peter Burke
majoritariamente sob o ponto de vista político, recentemente discutiu no caderno MAIS da FSP
conservador. É preciso que a comunidade (02/05/99) a questão do relativismo cultural,
científica assuma sua responsabilidade social e intitulando seu artigo de Mal-estar da
política e não se esconda atrás do véu protetor civilização. Burke expõe o crescimento da
de uma pseudoneutralidade. Mas isto é, até certo consciência mundial de que devemos respeitar
ponto, uma banalidade – estamos saturados de culturas diferentes das nossas. Mas cita casos
apelos deste tipo. Além do mais, a questão é extremos em que, em algumas culturas, práticas
mais complexa. colocam em cheque valores humanos mais
Estamos aqui, na verdade, confrontados com fundamentais como, por exemplo, naquela em
uma das questões mais controversas no plano da que mulheres são queimadas, o que levou Burke
ciência e das mais problemáticas para a a concluir seu ensaio com a seguinte questão:
epistemologia. “Podemos dizer que é dar valor extremado ao
Uma vez assumida a perspectiva da princípio do relativismo cultural permitir que, a
produção do conhecimento orientada não na bem dele, mulheres sejam queimadas. Parece
neutralidade, mas na idéia da intervenção social, que estamos diante de um conflito entre o
trata-se de enfrentar a questão da possibilidade respeito às opiniões éticas de outras culturas e o
de fundamentar as opções ético-políticas que respeito à vida humana. É possível resolver tal
quem assume esta posição necessariamente faz. conflito?” (Burke,1999:9)4
Se na produção do conhecimento sobre a Não vamos nos alongar aqui colocando as
realidade social necessariamente trabalhamos posições ou as tentativas (todas problemáticas)
com pressupostos – o que implica que a leitura de solução deste dilema ou destas aporias (por
que fazemos desta realidade está pré- exemplo: a do pragmatismo liberal de R. Rorty,
condicionada por estes –, como fundamentar a ou da razão comunicativa de J. Habermas, ou
opção por determinados pressupostos em mesmo a do marxismo ortodoxo). Fiel ao que
detrimento de outros? Por que nossos
pressupostos seriam melhores do que outros? Ou 4
Um dos problemas para fundamentar a estratégia
devemos abdicar desta pretensão? Ou seja, as política da revolução é a dificuldade de fundamentar a
opções no plano dos pressupostos (ideológicos) idéia de que os fins justificam os meios. Como se
basear na justeza do fim, da finalidade e, ao mesmo
envolvem elementos do que consideramos tempo, reconhecer o relativismo cultural e da verdade
deveria ser a realidade, que influenciam a científica?
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aprendemos. A quem recorremos? Aos estudos da grande parte nossa intervenção e que tende a ser
aprendizagem motora? Aos da psicologia do desqualificado pela academia. É preciso
desenvolvimento? Aos da fisiologia do esforço? aproximar estes saberes se quisermos operar
Aos da sociologia do esporte? Como tornar estes mudanças efetivas na prática pedagógica em
conhecimentos produtivos para as decisões da educação física.
prática? (Aos de uma teoria da educação física?!!!). Por último, um lembrete. Quando falamos
A forma como se estruturou o campo em transposição de conhecimento científico em
acadêmico da educação física levou a uma tecnologias de intervenção não podemos igualar
negligência desta questão, qual seja, a da a tecnologia da construção de carros, por
necessidade de articular o conhecimento em exemplo, com a tecnologia educacional. A teoria
função da prática. Entendemos ser esta uma das educacional ou a didática não pode pretender (e
razões da tão identificada distância entre a teoria nem esta pode ser nossa expectativa) ser pura
e a prática na educação física – entre os teóricos techne. Por lidar com o humano, precisa e será
e os práticos. A produção do conhecimento e os sempre também poiésis (criação, encontro entre
nossos currículos estão orientados por uma sujeitos).
perspectiva cientificista, na qual as disciplinas
se bastam a si próprias, não precisam tomar
como referência as problemáticas da prática, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
podem se ater às suas próprias problemáticas
(das disciplinas de origem) – o professor de BURKE, P. Mal-estar na civilização. Jornal Folha de São
Paulo, caderno MAIS, 02.05.99.
educação física aliás gosta de posar de cientista.
DEMO, P. Dialética e qualidade. In: Haguette, M. T.,
Farinatti (1998:34) pergunta: “como evitar
(Org.). Dialética hoje. Petrópolis: Vozes, 1990.
que os estudantes (de educação física) caiam na
FARINATTI, P. de T. V. ‘Ciência’ ou ‘cientificismo’?
armadilha de, ao mesmo tempo em que reflexões sobre a transmissão de conhecimentos nos
hipervalorizam o conhecimento científico cursos superiores de educação física. Revista Brasileira
cartesiano, não serem capazes de transpô-lo à de Ciências do Esporte, número especial, set. 1998.
sua vida profissional? É preciso reconhecer que GIDDENS, A. et al. Modernização reflexiva. São Paulo:
poucos saberão fazer uso das informações que Unesp, 1997.
recebem sob a forma de gráficos, tabelas, MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na
fórmulas ou dados brutos...”. política. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
Esta característica da organização e prática MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa:
acadêmicas de nosso campo levou à negligência Instituto Piaget, 1993.
também daquilo que podemos chamar de saber PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento.
prático. Aquele saber fazer que orienta em Campinas: Pontes, 1990.