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Filogênese da Motricidade
o
- “Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas.
<6 E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o
trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que
isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que,
sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem”.
ENGELS, 1876
:: som um plano, desfaz-se o (ser humano) trabalhador dos limites de sua individualidade
e seser .olve a capacidade de sua espécie” (parêntese nosso).
A necessidade do trabalho cooperado e planejado oportunizou o florescer de uma
ngjagem cada vez mais elaborada e, com isto, a expansão das capacidades cerebrais
dá um salto qualitativo em suas possibilidades de associação e abstração.
No quadro abaixo, FONSECA (1982, p. 104) oferece uma síntese do processo que
até agora expusemos e procura enfatizar a profunda conexão entre necessidades de so-
brevivência, trabalho, utilização e fabrico de instrumentos e alterações anátomo-fisiológi-
cas. que levaram o Homem a constituir-se como tal.
* TRABALHO FABRICAÇAO DE
INSTRUMENTOS
MAO ACTIVIDADE
COMUNICAÇÃO
VISÃO LABORAL
TRANSFORMAÇAO
DA NATUREZA
i. ■ 'j mç*
ACÇAO PENSAMENTO
JOGO JOGO
MANUAL FACIAL
PROPRIOCEP SENTIDO
TÁCTILO- AUDIÇAO MOTRICIDADE
TIVIDADE QUINESTÉSICO
VOCALIZAÇAO VISÃO
CORTEX
ASSOCIATIVO
1 VIGARELLO G. Le corps redressé. Paris: JP Delarge, 1978, p. 29. Apud LE CAMUS, J. O corpo em
discussão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986, p. 16.
t » *
Centros do: (1) sentido das dimensões; (2) sentido da causalidade; (3)
disposição para imitar; (4) sentido das cores; (5) sentido do tempo; (6)
talento; (7) sentido da admiração; (8) otimismo; (9) firmeza de caráter; (10)
vaidade; (11) constância na amizade; (12) cuidados com a prole; (13)
capacidade de amar; (14) agressividade; (15) prudência; (16) poesia; (17)
sentido da melodia; (18) sentido da ordem; (19) aptidão matemática; (20)
sentido mecânico; (21) cupidez; (22) astúcia; (23) gula; (24) crueldade.
A verdade é que este êxito não foi total, o capital jamais conseguiu controlar totalmen
te a força de trabalho humano. Se por um lado isto constituiu um problema para o capital,
também implementou uma busca incessante neste sentido, fato que resultou em processos
cada vez mais requintados de diagnóstico e encaminhamento das questões relativas à
relação corpo-mente.
Desse modo, tornou-se premente uma superação dos modos vigentasde-forjar, uti -
zar e controlar a classe trabalhadora, be rnjcomo, o seu potencial prod utivo. Mais um 2 . e z
ao corpo e às ciências que dele se ocupamjzaberia um lugar central neste processoTÃ^im
de recuperar os "anormais" que, pelo seu volume de incidência, já se tornavam um proble
ma sócio-econômico, era preciso também criar artifícios compensatórios que pudesse—
suprir a precariedade das condições necessárias para um satisfatório desenvolvime^*: a
que estavam sujeitas as crianças, garantindo, assim, a continuidade do sistema prod-/ »: e
a sobrevivência das classes dominadas.
1 Segundo Le Camus. este período, na França, está compreendido entre os anos de 1945 e .1973.
(LE CAMUS, 1988, p.48) No Brasil, podemos concebê-lo a partir dos anos 50, do século XX'até,
aproximadamente, 1980.
os seus estudos, no sentido de situar a contribuição de cada um deles para a sistematiza-
ção da Psicomotricidade, enquanto ciência do Esquema Corporal.
O pressuposto comum levado a cabo por esses autores refere-se à importância fundante
das experiências vividas na primeira infância como base do desenvolvimento social, emo
cional, intelectual e físico das crianças. Destas experiências, ambos ressaltam a importân
cia das percepções táteis, visuais e motoras, embora apresentem particularidades em
suas formulações.
WALLON (1951), por exemplo, coloca o diálogo tônico, ou seja, a relação corporal
afetiva no centro do processo de desenvolvimento do caráter e da inteligência da criança.
Propondo uma estreita relação entre tono posjura! e tono emocional, e considerando a
emoção elemento de ligação entre o orgânico e o social, elabora uma teoria do dêsenvõt^
vimento que concebe a criança, desde o seu nascimento, como um ser em sociedade.
Sendo assim, para este autor, a estruturação do caráter e da inteligência depende, funda?
mentalmente, das relações estabelecidas entre a criança e seus pares. Ajuriaguerra
(1962), neurologístãlrancês, citado por LE CÀMÜS (1986, p. 39), ao comentar as idéias
de Wallon a respeito da importância das relações corporais afetivas para o desenvolvi
mento infantil diz que
...a constante preocupação de Wallon foi a de destacar a importância da função afetiva primitiva em
todos os desenvolvimentos ulteriores do sujeito, fusão expressa através dos fenômenos motores num
diálogo que é o prelúdio ao diálogo verbal ulterior e a:que chamamos de diálogo tônico. [...] todos
sabem da importância que Wallon concedeu ao fenômeno tônico por excelência que é a função postural
de comunicação, essencial para a criança pequena, função de troca por meio da qual a criança dá e
recebe. É principalmente aí, em nossa opinião, que a obra de Wallon abre uma perspectiva original e
fecunda na psicologia e na psicopatologia. A função postural está essencialmente vinculada à emoção,
isto é, à exteriorização da afetividade.
Portanto, para WALLON (1951, apud LE CAMUS, 1986, p. 37), “[o] esquema corpo
ral não é “um dado inicial, nem uma entidade biológica ou psíquica", mas uma constru
ção.[...] Estudar a gênese do esquema corporal na criança, é indagar-se como a crian
ça chega “á representação mais ou menos global, específica e diferenciada de seu
corpo próprio". [...] Esta aquisição é importante. “ É um elemento básico indispensável
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à construção da personalidade da criança (...) É o resultado e a condição de legítimas
relações entre o indivíduo e seu meio”.
Piaget, por sua vez, fundamentou sua teoria numa visão evolutiva. Diferentemente de
Wallon, para o qual o sujeito é antes de tudo um ser social, Piaget parte de um sujeito
biológico, uma espécie de organismo rudimentar que, por meio da experiência, desenvol-
ve-se rumo à socialização. PULASKI (1983, p.32), com base nos estudos de Piaget, afirma
que o bebê “... vem ao mundo equipado com uns poucos reflexos neonatais, como sugar e
agarrar, que fazem parte de sua herança biológica. Além desses, seu comportamento con
siste em movimentos motores grosseiros, a princípio sem coordenação e sem objetivo.2
Deste modo, concebe o desenvolvimento como um processo de equilibração pro
gressiva, que parte de um estado inferior até atingir um estado mais elevado. Processo
auto-regulador, dinâmico e contínuo, a equilibração tem o papel de promover um balanço
entre as funções de assimilação e acomodação que, funcionando simultaneamente em to
dos os níveis biológicos e intelectuais, possibilitam o desenvolvimento tanto físico quanto
cognitivo da criança. Esta conceituação baseia-se nos processos adaptativos referidos
pela biologia que, segundo Piaget, constituem o elo comum entre todos os seres vivos
(PULASKI, 1983, p. 23-25).
Quatro fatores são apresentados por PULASKI (1983, p. 24-27) como fundamentais
para o processo de desenvolvimento bio-psico-social da criança. São eles: maturação
ou crescimento fisiológico das estruturas orgânicas hereditárias; experiências física e
empírica, em que a criança vai fazer sua próprias aprendizagens; transmissão sociai
referente às informações aprendidas com seus pares, por via direta ou indireta
equilibração que coordena e regula os outros três fatores, fazendo surgir estados pro
gressivos de equilíbrio.
Embora Piaget não tenha definido um conceito de Esquema Corporal, visto que
seus estudos não se propunham a tal tarefa, suas formulações levam-nos a considerar ta
esquema como o conhecimento progressjvo das partes e funções do corpo, constituído a
partir de etapas sucessivas, semelhantes em crianças da mesma idade, determinado pe
los processos de auto-regulação e adaptação ao meio exterior.
A partir desta breve contextualização, podemos considerar que enquanto Wallon con
cebe o EsquemajCarppjalçamo4^su.l-ta-n4e-das4Xuíltipias--felaçée-s-que-0-i-ndivíduoestâ&e-
leueeom seus pares; Piaget define esta categoria a partir de uma visão cognitivista. **3
qual a consciência do corpo resulta do amadurecimento das interações entre as estruturas
cerebrais, como processo natural de adaptação ao meio ambiente.|Segundo a prime 'a
concepção, o indivíduo toma consciência dè si a partir de sua inserção no meio socia a
na segunda, esta consciência é determinada por uma auto-equilibração, comum a todos c s
seres vivos.\
Ao analisarmos a tendência das produções teórico-práticas da Psicomotricidace
no período considerado por Le Camus do Corpo Consciente, evidenciamos que. :e
Wallon, foram incorporados os fundamentos, elaborados na segunda década do se:_ :
XX, que tratam da influência direta do tono postural sobre o tono emocional e vice--. ess
relegando a segundo plano a importância das relações sociais e afetivas; de Pisçe*
foram incorporados, pela Psicomotricidade, os processos advindos da tendência ps* - *s
à auto-regulação e adaptação.
2 Optamos por utilizar Pulaski em vez de Piaget, no original, pelo fato de encontrarmos naqu-s e = _*:*
: uma abordagem mais didática e direta do conceitos piagetianos, o que entendemos su* :
para o estudo proposto.
Como resultante destas influências, encontramos, nesse período da Psicomotricidade,
a formulação de um grande número de manuais e práticas psicomotoras, elaborados de
acordo com normas de desenvolvimento pré-determinadas, que visam ao desenvolvimento
do Esquema Corporal e proporcionar, sobretudo, às crianças pequenas, condições “fa
vo ráyeis^de_ada£tação e auto-equilibração voluntárias. Se os fundamentos piagetianos
fõramadotados para educar os movimentos e legitimar a capacidade universal de adapta
ção dos seres humanos, da mesma forma, foram os fundamentos de Wallon, relativos à
mútua influência entre tono postur^le tono emocional, que atribuíram um caráter científico à
maneira pela qual o poâeTpassou asáTírrcoí^ comportamentos.
Uma vez que a base ideológica deste sistema funda-se na idéia de igualdade de
condições para todos, fica subentendido, a partir dessa concepção, que o que falta aos
indivíduos não é fruto de desigualdades sociais, mas sim, resultante de uma incompetência
pessoal pelo não aproveitamento das oportunjcjades oferecidas a todos. O Estado, então,
coloca-se na condição de redentor dessas faltas, operando por meio de programas com
pensatórios formulados nas áreas educacionais, médicas e paramédicas, como dispositi
vos remediadores das desigualdades sociais. Deslocando-se, desta maneira, o ponto fulcral
da problemática social para o sujeito, para a família e para os profissionais ligados ao fazer
educativo, os programas compensatórios, por um lado, tendem a culpar e desqualificar o
potencial profissional e as condições de vida das pessoas e instituições, por outro, enaltecem
as ações paliativas do sistema. Deste modo, tais programas configuram-se como instru
mentos de controle das pressões sociais.
Neste contexto, a Psicomotricidade apresenta-se como um saber-poder que respal
da e viabiliza a idéia de devolver no indivíduo um EU, no caso, corporal, reparador do vazio
provocado pela expropriação do capital, acenando com a possibilidade de um lugar de
cidadania às gerações futuràs. Com isto, produz um duplo controle social: exacerba a apro
priação da força de trabalho que, pela via da consciência do movimento, torna-se ainda
mais efetiva e, ao mesmo tempo, promove o reconhecimento e engajamento voluntários
das famílias e profissionais em programas sociais compensatórios, como solução para
suas necessidades de manutenção da vida.
Se por um lado, as práticas psicomotoras, pautadas em medidas que buscam
normatizar o corpo, adequando-o aos imperativos sociais, às custas de um processo
segregacionista, trouxeram benefícios para o Estado burguês, por outro, opotunizaram à
classe trabalhadora a possibilidade de Colocar em marcha novas contradições sociais e
políticas, a partir das quais foram formulados saberes-poderes que constituíram o terceiro
período da Psicomotricidade , denominado por Le Camus, Corpo Significante5.
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Para este autor, o terceiro período da Psicomotricidade foi marcado por uma tendên
cia dos profissionais da área em adotar uma atitude de aceitação e reconhecimento do
sujeito, bem como, da importância da dinâmica de seus desejos em seu processo de for
mação. Neste sentido, comenta:
[a] ruptura parece-nos operar-se em três eixos: o eixo que opõe o cibernético ao termodinâmico; o eixo
que opõe o pulsional ao funcional; o eixo que opõe o materno ao paterno. Os psicomotricistas da
terceira geração acabam de afirmar sua originalidade acentuando o primeiro pólo destes pares. Ser
psicomotricista em 1980 significava, em termos biológicos, dar primazia à máquina informacional; em
termos psicanalíticos, dar primazia ao papel materno.
Apesar de influenciado pelo modelo científico da ciência positiva, paradigma que jus
tifica o ideal capitalista liberal, Lapierre representa, para a Psicomotricidade, a possibilida
de de quebra com o modelo científico médico higienista, vigente na Europa e na América
Latina, principalmente, no Brasil e Argentina. À semelhança da posição inaugurada pela
Escola Nova, Lapierre, na Psicomotricidade, recupera para a criança um lugar de reconhe
cimento e poder e enfatiza a importância da formação profissional e pessoal do
psicomotricista que pretende trabalhar no campo relacionai, ressaltando seu pape
estruturante nas vivências grupais e individuais.
Colocando em discussão as relações de poder presentes no fazer educativo, orga
nizou um método de educação psicomotora para a idade pré-escolar, procurando
grar as relações afetivas, a estruturação da personalidade e a sistematização do conhe
cimento, numa proposta lúdica, emancipatória e democrática. Nesta direção, LAPIEPRE
(1988, p.20) ressalta que
[podemos] então retornar ao grupo, cada vez mais numeroso: não se trata mais do mesmo grupe-
refúgio, mas de um grupo composto de indivíduos autônomos, capazes de cooperar, de levar coisas
aos outros e de receber, mas sem se diluir na massa. A experiência nos prova que em tal grupo c »der
questionado, se dilui e mesmo desaparece em proveito de uma organização democrática, o que r&r-
sempre ocorre sem choques nem conflitos. [...JNesta ótica, o trabalho individual aparece comc in
fechar-se em si mesmo, não num espírito narcisista, mas como uma regeneração da pessoa de rrxxfc
a permitir sua reinserção no grupo, que ela beneficiará com sua busca pessoal. [...] É-uma seqõênce
de rupturas (ruptura consigo mesmo, ruptura com os outros), um balanço dialético do qual renasce
cada vez, o desejo inverso com a segurança constante de reencontrar o outro ou a si mesmo.