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Filogênese da Motricidade
o
- “Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas.
<6 E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o
trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que
isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que,
sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem”.
ENGELS, 1876

Para que possamos entender a Psicomotricidade, seus objetos de estudo e de traba­


lho, ao longo da história, faz-se necessário explicitar o fator que jogou a motricidade no
processo de hominização.
Ao estudarmos a filogênese da motricidade humana, acompanhando as transforma­
ções anátomo-corticais desde os macacos até o homo sapiens-sapiens, evidencia-se com
extrema clareza que, assim como refere MARX (2001), o trabalho é um processo pelo qual
o homem, à medida que modifica a natureza externa, modifica a sua própria natureza.
Da quadrupedia terrestre à apropriação do meio arbóreo-aéreo, como modo de reme­
diar sua condição de vulnerabilidade frente aos predadores, nossos ancestrais remotos fica­
ram imersos em novas necessidades. Tal situação colocou em marcha uma série de modifi­
cações na organização social, alimentar, esquelética e cerebral desses pré-hominídeos.
\
Explicitando as transformações cerebrais relativas à organizaçao tônica, resultante das
novas necessidades impostas pelo habitat aéreo, explica FONSECA (1982, p. 69) que
...a locomoção aérea põe mais problemas de equilibração e coordenação que a locomoção terrestre,
na medida em que os estímulos proprioceptivos tendem a multiplicar-se, até porque, se encontram
conjugados com os estímulos exteroceptivos visuais, razão pela qual as conexões corticais e
cerebelosas se inter-relacionam cada vez mais, favorecendo um desenvolvimento cerebeloso que tem
como função coordenar as informações que vêm dos músculos, dçs tendões e das articulações e
submetê-las à apreciação da motricidade, respohsável pela equilibração (sistema extrapiramidal-
teleocinático) e pela coordenação (sistema piramidal-ideocinático).
Tais modificações, de ordem cerebelar, além de terem garantido a precisão dos mo­
vimentos amplos, a partir da independização das mãos pela postura verticalizada, influenci­
aram decisivamente na possibilidade de manipular objetos e construir instrumentos. Citan­
do Sanides, FONSECA (1982, p. 69) enfatiza que “[ao] grau mais elevado da diferenciação
da representação motora neocortical, com o aperfeiçoamento progressivo dos movimen­
tos unilaterais das extremidades, corresponde um aperfeiçoamento cerebeloso que asse­
gura a harmonia do movimento mais complicado através de sistemas cerebelosos
proprioceptivos”.
Neste sentido, Sanides evidencia que a capacidade de planejamento e execução das
ações, fator de distinção entre o homem e seus antecessores primatas, ou seja, o desen­
volvimento do neocórtèx bem como a especialização dos hemisférios cerebrais, entre ou­
tras coisas, é resultante de um processo que visou equacionar as necessidades impostas
pelo meio arbóreo.
Com a emancipação da mão, até então necessária às funções de locomoção arboriai,
novas funções apresentaram-se. A princípio, ligadas às necessidades básicas adaptativas,
por exemplo, de preparação alimentar, apanhando e selecionando os alimentos antes de
introduzi-los na boca, etc. Assim, a destralidade manual, pouco a pouco, colocou-se como
um dos principais instrumentos de apropriação do real e de relação com este.

Imagem 1: A mão humana, com os dedos reduzidos, com um polegar relati­


vamente comprido, evidenciando a capacidade de rotação sobre o seu
próprio eixo, podendo opor-se aos restantes dedos, permitiu ao Homem a
capacidade de fabricar [e utilizar] instrumentos, razão fundamental do
fenômeno humano (FONSECA, 1982, p.71).
/
A partir do refinamento das possibilidades de manipulação da realidade circundante,
a utilização consciente e a produção de instrumentos tornam-se um fato e, ao mesmo tem­
po, um marco qualitativo na passagem do homo habilis para o fiomo sapiens sapiens. O
objeto, antes tido pelos primatas e hominídeos como intracorpóreo, ou seja, indiferenciado
do corpo, passa a ser diferenciado. Ao ser (des)incorporado intencionalmente na dinâmica
de produção da sobrevivência da comunidade, o objeto torna-se instrumento. Neste senti­
do, nossos antepassados libertam-se da sujeição à da natureza externa e passam a produ­
zir modos de intervir conscientemente sobre ela, superando suas limitações físicas (o ins­
trumento amplia suas capacidades motòras) e fisiológicas (expansão das estruturas cere­
brais) de sobrevivência.

Imagem 2: Do movimento ao pensamento reflexivo. Das acções à sequên­


cia dos seus efeitos. Acção e representação corolário um do outro
(FONSECA, 1982, p.99).

Deste modo, surgiram as primeiras formas de trabalho propriamente ditas, ou seja,


as primeiras intervenções intencionais sobre a natureza, provocando a expansão do poten-
ciai humano pelo uso do instrumento.
• Se o fabrico e uso consciente do instrumento permitiram a superação das limitações
cõrporais do indivíduo, segundo MARX (2001, p. 382),"... ao cooperar com outros de acor-
BfcsásaasãajgiBai

:: som um plano, desfaz-se o (ser humano) trabalhador dos limites de sua individualidade
e seser .olve a capacidade de sua espécie” (parêntese nosso).
A necessidade do trabalho cooperado e planejado oportunizou o florescer de uma
ngjagem cada vez mais elaborada e, com isto, a expansão das capacidades cerebrais
dá um salto qualitativo em suas possibilidades de associação e abstração.
No quadro abaixo, FONSECA (1982, p. 104) oferece uma síntese do processo que
até agora expusemos e procura enfatizar a profunda conexão entre necessidades de so-
brevivência, trabalho, utilização e fabrico de instrumentos e alterações anátomo-fisiológi-
cas. que levaram o Homem a constituir-se como tal.

* TRABALHO FABRICAÇAO DE
INSTRUMENTOS

MAO ACTIVIDADE
COMUNICAÇÃO
VISÃO LABORAL

UTILIZAÇÃO TRANSMISSÃO RETENÇÃO


DA TÉCNICA da técnica! DA TÉCNICA

TRANSFORMAÇAO
DA NATUREZA

i. ■ 'j mç*

ACÇAO PENSAMENTO

JOGO JOGO
MANUAL FACIAL

PROPRIOCEP SENTIDO
TÁCTILO- AUDIÇAO MOTRICIDADE
TIVIDADE QUINESTÉSICO

VOCALIZAÇAO VISÃO

CORTEX
ASSOCIATIVO

Imagem 3: FONSECA, 1982, p.104


« í »

Nesta parte do trabalho, relativa à filogênese da motricidade humana, procuramos


evidenciar o fato de que o trabalho, historicamente, vem se apresentando como o grande
mote da consciência humana.
Criadora da cultura, primórdio da expansão cerebral com suas ilimitadas poten­
cialidades associativas, a atividade laborai coloca o potencial humano dialeticamente de­
pendente de uma organização social cada vez mais complexa, organização esta que exigi­
rá e produzirá estreitos vínculos entre a necessidade de desenvolvimento de suas forças
produtivas e de seus meios de produção.
Na seqüência de nossas aulas, continuaremos nossas reflexões, procurando explicitar
o modo pelo qual a Psicomotricidade, enquanto elemento do processo educacional, tor­
nou-se um dos meios pelo qual os Homens vêm intervindo conscientemente na natureza
humana, produzindo especificidades motoras de acordo com as necessidades de produ­
ção de nossa sociedade.
Embora estudos sobre as práticas corporais considerem os primórdios da
Psicomotricidade datados dos séculos XVII - XVIII, momento em que as técnicas corporais
passam a ser utilizadas, deliberadamente, para um investimento político e econômico do
corpo, Le Camus (1986) situa o “nascimento’3 da Psicomotricidade no final do século XIX.
Este marco deve-se ao fato de o autor considerar a Psicomotricidade como saber derivado
das ciências médicas e não das ciências humanas.
Sendo assim, em vez de concebida enquanto produto e produtora das necessidades
materiais e de organização social do capitalismo moderno, segundo aquele autor, são as
descobertas na área da neurologia as principais responsáveis pelo batismo desta nova
área do conhecimento. Segundo VIGARELLO1 (1986, p. 16) “[o] adjetivo “psicomotor” teria
nascido pouco após 1870, quando foi preciso dar um nome às regiões do córtex cerebral
situadas além das áreas propriamente motoras (...) onde podia operar-se a junção ainda
bem misteriosa, entre imagem mental e movimento.”
Segundo estudos sistematizados por Le Camus, o marco inaugural da Psicomo­
tricidade deve-se às experiências de Broca (1861), que descobre a ligação entre uma
lesão cerebral localizada e os sintomas da afasia. Isto outorga ao conhecimento médico da
época a idéia de que havia uma estreita relação entre movimento e processos cerebrais,
estabelecendo-se o que se denominou paralelismo psicomotor.

Aiea motora Area soma|0 sensorial

Áreas de córtex envolvidas na fala: Área auditiva (inrput)


Área de Wernicke (compreeensão)
Área de Broca (output)
Imagem 1:F0NSECA, 1982, p.

1 VIGARELLO G. Le corps redressé. Paris: JP Delarge, 1978, p. 29. Apud LE CAMUS, J. O corpo em
discussão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986, p. 16.
t » *

Numa época de grandes transformações no modo de produção industrial, os estudos


de Broca e de tantos outros cientistas que buscaram_entender os/processos pelos quais se
estabeleciam as relações entre mente e movimento, receberam grandes investimentos.
ÍTsto se deu pelo fato de que tais estudos respondiam, diretamente, às necessidades de a
fmodernidade capitalista resolvera difícil tarefa de adequar os movimentos, hábitos e costu-
tmes dos trabalhadores aos imperativos do crescente processo de industrialização2.

Imagem 1: Antiga Hipótese de Gall Sobre a localização das facilidades


mentais. 1- WELLS & Huxley,1955, p.42.

Centros do: (1) sentido das dimensões; (2) sentido da causalidade; (3)
disposição para imitar; (4) sentido das cores; (5) sentido do tempo; (6)
talento; (7) sentido da admiração; (8) otimismo; (9) firmeza de caráter; (10)
vaidade; (11) constância na amizade; (12) cuidados com a prole; (13)
capacidade de amar; (14) agressividade; (15) prudência; (16) poesia; (17)
sentido da melodia; (18) sentido da ordem; (19) aptidão matemática; (20)
sentido mecânico; (21) cupidez; (22) astúcia; (23) gula; (24) crueldade.

Neste sentido, o treinamento da classe trabalhadora deveria se dar de modo a abar­


car um número cada vez maior de pessoas e em idades cada vez mais precoces. A educa­
ção escolar, neste contexto, ocupou lugar importantíssimo, entre outros, como modo de
controle e adequação do corpo e do espírito aos novos ditames do trabalho. Sobre o pace'
de tal modalidade educacional no processo de organização produtiva RAGO (1987, p. 122
< explicita que “[na] representação imaginária que os dominantes se fazem da infância. es’a
é percebida como superfície chata e plana, facilmente "moldável", mas ao mesmo terrco
»r dotado de características e vícios latentes, que deveríam ser corrigidos pore:- -
agógicas para constituir-se em sujeito produtivo da nação”.
leito das transformações nos modos de produção daquela época, ver; GOUNET. Th cr-as
;mo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo,; Boitempo Editorial. 1999
RAGO (1987, p. 118) acrescenta ainda que, neste processo,
...o poder médico defendeu a higienização da cultura popular, isto é, a transformação dos hábitos
cotidianos do trabalhador e de sua família e a supressão de crenças e práticas qualificadas como
primitivas, irracionais e nocivas. (...) Assim, a criança foi percebida pelo olhar disciplinar, atento e
intransigente, como elemento de integração, de socialização e de fixação indireta das famílias po­
bres, e isto antes mesmo de afirmar-se como necessidade econômica e produtiva da nação. Consti­
tuindo a infância em objeto privilegiado da convergência de suas práticas, o poder médico procurou
legitimar-se como tal, demonstrando para toda a sociedade a necessidade insubstituível de sua
intervenção como orientadores das famílias e como conselheiros da ação governamental. O recorte e
a circunscrição daquilo que se configurou como o tempo da infância e sua objetivação pela medicina
atenderam, então, ao objetivo maior de legitimação das práticas de regulamentação e controle da
vida cotidiana. Os médicos procuraram apresentar-se como autoridade mais competente para pres­
crever normas racionais de conduta e medidas preventivas, pessoais e coletivas, visando produzir a
nova família e o futuro cidadão.
É nesta perspectiva que as práticas corporais do primeiro período, legitimadas pela
tese da privação cultural, no Brasil, travestem-se de um cunho cientificista, higienista e
salvacionista dos processos de desenvolvimento infantil, organizadas, entre outras formas,
sob a égide da disciplina Educação Física.
Em 1901 (França), o Doutor Philipe Tissié (p. IX), que se opunha ao militarismo
imperante na área da educação do corpo, defendendo as bases científicas desta discipli­
na, declara que “[por] Educação Física não se deve entender apenas o exercício muscular
do corpo, mas também e principalmente o treinamento dos centros psicomotores pelas
associações múltiplas e repetidas entre movimento e pensamento e entre pensamento e
movimento" (apud LE CAMUS, 1986, p. 16).
Sob estas bases surge uma técnica de abordagem corporal que, auxiliada pelos co­
nhecimentos das áreas médicas, paramédicas e das ciências humanas, foi denominada
ginástica educativa, posteriormente, dividindo-se em dois grandes ramos: "ginástica peda­
gógica, destinada a todas as crianças", e "ginástica médica, reservada à reabilitação das
crianças retardadas", (id. ibid., p. 24).
Estava, em embrião, lançada a idéia daquilo que posteriormente denominou-se Edu­
cação Psicomotora e Reeducação Psicomotora.
No contexto nacional, este processo de cientificização do corpo encontrará sua
aplicabilidade em escalas maiores a partir dos anos 30, do século passado. Neste período,
enquanto para a primeira infância as intervenções aproximavam-se daquelas tidas como
cuidados ideais que a maternidade deveria suprir (noções alimentares, de higiene, de saú­
de, etc.), a segunda infância e a adolescência eram submetidas a processos de exercícios
físicos que garantiam a afirmação do ideário liberal - "ordem e progresso", através da
máxima grega - "mente sã em corpo são".
Acompanhando o processo de verticalização dos saberes-poderes sobre o corpo,
FOUCAULT (1988, p. 126) explicita que
[muitas] coisas são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de
cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-
lo detalhadamente: de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da
mecânica - movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em
seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem
do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais
sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A
modalidade enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos de ativida­
de mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao
máximo o tempo, o espaço, os movimentos.
Ao mesmo tempo que estas formulações científicas possibilitavam uma maior pro­
priedade sobre o detalhamento do corpo e das práticas que dele se ocupam, também
apresentavam suas limitações. Conforme MARX (1984, p. 44) relatou, u[aj principal difi­
culdade na fábrica automática consistia em sua disciplina necessária, em fazer seres
humanos renunciar a seus hábitos irregulares no trabalho e se identificar com a invariá­
vel regularidade do grande autômato. Divisar um código de disciplina fabril adequado
às necessidades e à velocidade do sistema automático e realizá-lo com êxito foi um
empreendimento digno de Hércules”.

A verdade é que este êxito não foi total, o capital jamais conseguiu controlar totalmen­
te a força de trabalho humano. Se por um lado isto constituiu um problema para o capital,
também implementou uma busca incessante neste sentido, fato que resultou em processos
cada vez mais requintados de diagnóstico e encaminhamento das questões relativas à
relação corpo-mente.

Um exemplo disto são os estudos de Edouard Guilmain, o qual empenhou-se em "[en­


contrar] um método de exame direto que [descobrisse] o próprio fundo do qual os atos são
a conseqüência." Sua ambição era conseguir identificar quais estruturas psicomotoras.
solidariedades interfuncionais, concomitâncias de sintomas (síndromes) ou de disposi­
ções (tipo) que incidiam sobre as esferas motora e afetiva da criança. Deste modo, ao
estabelecer um protótipo do Exame Psicomotor (1935), Guilmain procurou desenvolver um
instrumento de medida, meio diagnóstico, indicador terapêutico e de prognóstico das
disfunções psicomotoras. Além da identificação e classificação dos "desviantes" de modo
precoce e a sistematização de um modo de tratá-los, ou melhor, adaptá-los aos imperati­
vos sociais ainda quando crianças, este tipo de instrumento permitia averiguar as causas
de sintomas das desordens psicomotoras que acometiam a população trabalhadora ativa,
e organizar medidas para saná-las (Reeducação Psicomotora).

Com o a va n çodos^ prgçessosde_piQdução,..Q..a ume n to da população, os problemas


da automação, as necessidades da sociedade burguesa tornam-se mais complexas. O
conhecimento de que psiquismo e dinamismo constituem-se numa díade inseparável já
não era mais suficiente para^garantir a disçjplinarização do corpo e da mente frente às
novas necessidades sociais e de produção que se_aprasentam. O tratamento mecanizado,
autômato, infrinqidojao corpo, suficiente para o encaminhamento das necessidades &n
tempos anteriores, começava ããpresentar sinais de falência.

Desse modo, tornou-se premente uma superação dos modos vigentasde-forjar, uti -
zar e controlar a classe trabalhadora, be rnjcomo, o seu potencial prod utivo. Mais um 2 . e z
ao corpo e às ciências que dele se ocupamjzaberia um lugar central neste processoTÃ^im
de recuperar os "anormais" que, pelo seu volume de incidência, já se tornavam um proble­
ma sócio-econômico, era preciso também criar artifícios compensatórios que pudesse—
suprir a precariedade das condições necessárias para um satisfatório desenvolvime^*: a
que estavam sujeitas as crianças, garantindo, assim, a continuidade do sistema prod-/ »: e
a sobrevivência das classes dominadas.

Passamos a um segundo período da história da Psicomotricidade ao qual Jean


Camus denominou corpo consciente.
Corpo Consciente:
ema análise das mnlnbuicncs da Psicologia do
Desenvolvimento para a “ciência" do Ksquerra Corporal.

O corpo sutil é agora o corpo capaz de acolher, pôr em ordem e


conservar a informação emanada do seu próprio funcionamento e do
meio (físico e humano) no qual se insere (...) Se o corpo sutil do
primeiro período [O corpo hábil] tinha por matriz uma psicologia ainda
muito enfeudadaà neurologia, agora uma psicologia mais autônoma
irá constituir a principal referência teórica dos investigadores e técni­
cos da psicomotricidade (Le Camus, 1986, p. 31).
Conforme a citação acima, a qual sintetiza o pensamento de Le Camus com relação
aos referenciais teóricos que nortearam a psicomotricidade do corpo consciente, acompa­
nharemos que os processos colocados em marcha, a partir dos estudo da psicologia do
desenvolvimento, causaram uma verdadeira revisão nos modos de conceber os processos
de aprendizagem e intervir neles.
Organizando saberes cada vez mais elaborados, que justificaram, no país, inúmeros
programas compensatórios direcionados à infância, utilizados como barganha pelo gover­
no com a classe trabalhadora, foi adotado pelos profissionais brasileiros, a partir de mea­
dos dos anos 50, do século XX, um conhecimento alusivo à existência de uma íntima rela­
ção entre inteligência, motricidade e psiquismo, o qual influenciou, diretamente, as técnicas
de abordagem corporal nas creches, nas escolas e nos consultórios.
Paulatinamente, passou-se da era do corpo neurológico, isolado e do movimento con­
dicionado, para a era do movimento consciente, no qual o próprio indivíduo, pelo ato volun-
jário, é levado a colaborar para a suíeicão de seu corpo.|Nesta perspectiva, a Psicomo­
tricidade do segundo período1, descrita por Le Camus, constituiu-se como a ciência do
Esquema Corporal ou, como prefere este autor, do Corpo Consciente.
Segundo nossos estudos, o Esquema Corporal foi concebido enquanto dimensão
do corpo, organizadora das experiências dos seres humanos no tempo e no espaço pre­
sentes. As técnicas que dele se ocupam procuraram priorizar o desenvolvimento da peii
cepção e do controle do próprio.corpo, ou seja^a iateiiorização das sensações relativas a
uma ou outra parte do corpo e da globalidade de si mesmo; a apropriação de um equilíbrio
postural econômico; de uma lateralidade bem definida e afirmada; de uma independência
dos diferentes segmentos do corpo em relação ao tronco e entre eles: um domínio das.
^pulsõês~e7nibjçoas--estreitam^ntejjgadas aos elementos precedentes e ao domínio da
respiração (PICQ - VAYER, 1969, p. 13)f " “-----——— - -
Entre os autores que influenciaram os profissionais e estudiosos deste segundo perí­
odo da história da Psicomotricidade, enfatizamos Wallon (1879-1962) e Piaget (1896-1980).
Não pretendemos fazer um estudo aprofundado da obra desses autores, porém reco­
nhecemos indispensável para nossas análises apontar os conceitos básicos que nortearam

1 Segundo Le Camus. este período, na França, está compreendido entre os anos de 1945 e .1973.
(LE CAMUS, 1988, p.48) No Brasil, podemos concebê-lo a partir dos anos 50, do século XX'até,
aproximadamente, 1980.
os seus estudos, no sentido de situar a contribuição de cada um deles para a sistematiza-
ção da Psicomotricidade, enquanto ciência do Esquema Corporal.
O pressuposto comum levado a cabo por esses autores refere-se à importância fundante
das experiências vividas na primeira infância como base do desenvolvimento social, emo­
cional, intelectual e físico das crianças. Destas experiências, ambos ressaltam a importân­
cia das percepções táteis, visuais e motoras, embora apresentem particularidades em
suas formulações.

WALLON (1951), por exemplo, coloca o diálogo tônico, ou seja, a relação corporal
afetiva no centro do processo de desenvolvimento do caráter e da inteligência da criança.
Propondo uma estreita relação entre tono posjura! e tono emocional, e considerando a
emoção elemento de ligação entre o orgânico e o social, elabora uma teoria do dêsenvõt^
vimento que concebe a criança, desde o seu nascimento, como um ser em sociedade.
Sendo assim, para este autor, a estruturação do caráter e da inteligência depende, funda?
mentalmente, das relações estabelecidas entre a criança e seus pares. Ajuriaguerra
(1962), neurologístãlrancês, citado por LE CÀMÜS (1986, p. 39), ao comentar as idéias
de Wallon a respeito da importância das relações corporais afetivas para o desenvolvi­
mento infantil diz que
...a constante preocupação de Wallon foi a de destacar a importância da função afetiva primitiva em
todos os desenvolvimentos ulteriores do sujeito, fusão expressa através dos fenômenos motores num
diálogo que é o prelúdio ao diálogo verbal ulterior e a:que chamamos de diálogo tônico. [...] todos
sabem da importância que Wallon concedeu ao fenômeno tônico por excelência que é a função postural
de comunicação, essencial para a criança pequena, função de troca por meio da qual a criança dá e
recebe. É principalmente aí, em nossa opinião, que a obra de Wallon abre uma perspectiva original e
fecunda na psicologia e na psicopatologia. A função postural está essencialmente vinculada à emoção,
isto é, à exteriorização da afetividade.

Concebendo o processo de desenvolvimento como descontínuo, Wallon se contrapõe


às teorias elaboradas segundo regras de maturação unívoca e de encadeamento de ope­
rações sucessivas do pensamento. Em suas formulações, o desenvolvimento advêm de um
processo de superação, por incorporação, de antigas atitudes è formas de pensamento,
motivadas pelas contradições presentes nas novas relações que se estabelecem entre a
criança e o meio humano. Neste sentido, podemos dizer que para Wallon o homem é um
processo histórico, precisamente o processo de seus atos, de suas relações.
Conforme podemos acompanhar, WALLON (1951, apud CABRAL, 2000, p. 271) pres­
supõe a articulação entre o orgânico e o ser psíquico, afirmando não serem estas dimen­
sões isoladas:
Não são duas entidades que se deva estudar separadamente e, depois, colocar em concordân­
cia^...) Um e outro se exprimem simultaneamente em todos os níveis da evolução, pelas ações e
reações do sujeito sobre o meio, diante do outro. O meio mais importante para a formação da
personalidade não é o meio físico, é o meio social. Pouco a pouco, ela que se confundia com o
meio vai se dissociar dele. Sua evolução não é uniforme, mas feita de oposições e identificações.
É dialética.

Portanto, para WALLON (1951, apud LE CAMUS, 1986, p. 37), “[o] esquema corpo­
ral não é “um dado inicial, nem uma entidade biológica ou psíquica", mas uma constru­
ção.[...] Estudar a gênese do esquema corporal na criança, é indagar-se como a crian­
ça chega “á representação mais ou menos global, específica e diferenciada de seu
corpo próprio". [...] Esta aquisição é importante. “ É um elemento básico indispensável

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à construção da personalidade da criança (...) É o resultado e a condição de legítimas
relações entre o indivíduo e seu meio”.
Piaget, por sua vez, fundamentou sua teoria numa visão evolutiva. Diferentemente de
Wallon, para o qual o sujeito é antes de tudo um ser social, Piaget parte de um sujeito
biológico, uma espécie de organismo rudimentar que, por meio da experiência, desenvol-
ve-se rumo à socialização. PULASKI (1983, p.32), com base nos estudos de Piaget, afirma
que o bebê “... vem ao mundo equipado com uns poucos reflexos neonatais, como sugar e
agarrar, que fazem parte de sua herança biológica. Além desses, seu comportamento con­
siste em movimentos motores grosseiros, a princípio sem coordenação e sem objetivo.2
Deste modo, concebe o desenvolvimento como um processo de equilibração pro­
gressiva, que parte de um estado inferior até atingir um estado mais elevado. Processo
auto-regulador, dinâmico e contínuo, a equilibração tem o papel de promover um balanço
entre as funções de assimilação e acomodação que, funcionando simultaneamente em to­
dos os níveis biológicos e intelectuais, possibilitam o desenvolvimento tanto físico quanto
cognitivo da criança. Esta conceituação baseia-se nos processos adaptativos referidos
pela biologia que, segundo Piaget, constituem o elo comum entre todos os seres vivos
(PULASKI, 1983, p. 23-25).
Quatro fatores são apresentados por PULASKI (1983, p. 24-27) como fundamentais
para o processo de desenvolvimento bio-psico-social da criança. São eles: maturação
ou crescimento fisiológico das estruturas orgânicas hereditárias; experiências física e
empírica, em que a criança vai fazer sua próprias aprendizagens; transmissão sociai
referente às informações aprendidas com seus pares, por via direta ou indireta
equilibração que coordena e regula os outros três fatores, fazendo surgir estados pro­
gressivos de equilíbrio.
Embora Piaget não tenha definido um conceito de Esquema Corporal, visto que
seus estudos não se propunham a tal tarefa, suas formulações levam-nos a considerar ta
esquema como o conhecimento progressjvo das partes e funções do corpo, constituído a
partir de etapas sucessivas, semelhantes em crianças da mesma idade, determinado pe­
los processos de auto-regulação e adaptação ao meio exterior.
A partir desta breve contextualização, podemos considerar que enquanto Wallon con­
cebe o EsquemajCarppjalçamo4^su.l-ta-n4e-das4Xuíltipias--felaçée-s-que-0-i-ndivíduoestâ&e-
leueeom seus pares; Piaget define esta categoria a partir de uma visão cognitivista. **3
qual a consciência do corpo resulta do amadurecimento das interações entre as estruturas
cerebrais, como processo natural de adaptação ao meio ambiente.|Segundo a prime 'a
concepção, o indivíduo toma consciência dè si a partir de sua inserção no meio socia a
na segunda, esta consciência é determinada por uma auto-equilibração, comum a todos c s
seres vivos.\
Ao analisarmos a tendência das produções teórico-práticas da Psicomotricidace
no período considerado por Le Camus do Corpo Consciente, evidenciamos que. :e
Wallon, foram incorporados os fundamentos, elaborados na segunda década do se:_ :
XX, que tratam da influência direta do tono postural sobre o tono emocional e vice--. ess
relegando a segundo plano a importância das relações sociais e afetivas; de Pisçe*
foram incorporados, pela Psicomotricidade, os processos advindos da tendência ps* - *s
à auto-regulação e adaptação.

2 Optamos por utilizar Pulaski em vez de Piaget, no original, pelo fato de encontrarmos naqu-s e = _*:*
: uma abordagem mais didática e direta do conceitos piagetianos, o que entendemos su* :
para o estudo proposto.
Como resultante destas influências, encontramos, nesse período da Psicomotricidade,
a formulação de um grande número de manuais e práticas psicomotoras, elaborados de
acordo com normas de desenvolvimento pré-determinadas, que visam ao desenvolvimento
do Esquema Corporal e proporcionar, sobretudo, às crianças pequenas, condições “fa­
vo ráyeis^de_ada£tação e auto-equilibração voluntárias. Se os fundamentos piagetianos
fõramadotados para educar os movimentos e legitimar a capacidade universal de adapta­
ção dos seres humanos, da mesma forma, foram os fundamentos de Wallon, relativos à
mútua influência entre tono postur^le tono emocional, que atribuíram um caráter científico à
maneira pela qual o poâeTpassou asáTírrcoí^ comportamentos.

Deste modo, podemos dizer que os saberes-poderes sobre o corpo, formulados no


segundo período da Psicomotricidade, restituem ao ser humano a propriedade, a consciên­
cia de seu corpo, ao mesmo tempo que consideram voluntária a sua participação no encami­
nhamento das necessidades da sociedade capitalista, de produção e de controle social.
Automatismo e consciência do movimento tornaram-se o mote da busca de supera­
ção das dificuldades explicitadas pelos modelos disciplinares autômatos dos séculos XVIII,
XIX e início do séc. XX:
(...) para crear los automatismos indispensables Ia consciência debe pasar a um segundo
término, habitualmente Ia participación voluntária dei sujeto es Ia condición de Ia educación o
reeducación psicomotriz, estando presente em todos los instantes y dándole caráter. El
\ movimiento “en si” no es educativo. Para que el ejercicio pueda intervenir em Ia vida psíquica y
' contribuir a su desarrollo, es necesario que sea voluhtario, pensado, preciso y controlado (PICQ-
VAYER, 1969, p.25)3. 4
Deste modo, o conhecimento da área psicomotora, neste período, oportunizou uma
adequação voluntária dos movimentos humanos ao tempo e espaço de produção, a partir
do desenvolvimento de programas de educação e reeducação psicomotoras, incorpora­
dos ao cotidiano das creches e pré-escolas. É deste modo que, de maneira precoce,
...disciplinando Ias contracciones musculares, aumentando em cuanto sea posible Ia acción de
los centros superiores sobre los inferiores, se mejorará, disicplinará y educará Ia voluntad y Ia
atención. En fin, nada se opone, ya que se trata siempre de Ia misma funcción, a que se pueda
pasar progresivamente de Ia inibición muscular impuesta al dominio de Ia totalidad dei cuerpo e
incluso al refrenamiento de los deseos y a Ia obediência de los imperativos sociales (PICQ-
VAYER, 1969, p. 23)\
Sendo assim, podemos apreender que as técnicas especializadas no desenvolvimento
do esquema corporal destinavam-se, de fato, a dar suporte para um processo de apropria­
ção do corpo, com vistas à exploração da força de trabalho das classes menos favorecidas.
Outro aspecto a ser analisado refere-se ao caráter universal atribuído às formula­
ções do segundo período da Psicomotricidade (LE CAMUS, 1987), no tocante à legitima­
ção da ideologia liberal e dos princípios do Estado burguês. Sabemos, com base nos
estudos de Marx, que uma das necessidades da classe dominante, para sustentar-se no

3 (...)para criar os automatismos indispensáveis, a consciência deve passar a um segundo termo;


habitualmente, a participação voluntária do sujeito é condição para a Educação ou Reeducação
Psicomotora, estando presente em todos os instantes, outorgando-lhe caráter. O movimento em si
não é educativo. Para que o exercício possa intervir na vida psíquica e contribuir para seu desenvol­
vimento, é necessário que seja voluntário, pensado, preciso e controlado (tradução do autor).
4 (...)disciplinando as contrações musculares, aumentando ao máximo a ação dos centros superio­
res sobre os inferiores, se melhorará, disciplinará e educará a vontade e a atenção. Ao final, nada
se oporá, na medida em que se trata sempre do mesmo objetivo, da mesma função, a de passar
progressivamente da inibição muscular imposta ao domínio da totalidade do corpo, inclusive, ao
recalcamento dos desejos e à obediência aos imperativos sociais (tradução do autor).
poder, é tornar universal suas idéias e necessidades. Assim sendo, cabe recuperar que
uma das estratégias principais do sistema liberal para a legitimação e manutenção de
seu poder é a meritocracia. ({*«*'»''*- •'

Uma vez que a base ideológica deste sistema funda-se na idéia de igualdade de
condições para todos, fica subentendido, a partir dessa concepção, que o que falta aos
indivíduos não é fruto de desigualdades sociais, mas sim, resultante de uma incompetência
pessoal pelo não aproveitamento das oportunjcjades oferecidas a todos. O Estado, então,
coloca-se na condição de redentor dessas faltas, operando por meio de programas com­
pensatórios formulados nas áreas educacionais, médicas e paramédicas, como dispositi­
vos remediadores das desigualdades sociais. Deslocando-se, desta maneira, o ponto fulcral
da problemática social para o sujeito, para a família e para os profissionais ligados ao fazer
educativo, os programas compensatórios, por um lado, tendem a culpar e desqualificar o
potencial profissional e as condições de vida das pessoas e instituições, por outro, enaltecem
as ações paliativas do sistema. Deste modo, tais programas configuram-se como instru­
mentos de controle das pressões sociais.
Neste contexto, a Psicomotricidade apresenta-se como um saber-poder que respal­
da e viabiliza a idéia de devolver no indivíduo um EU, no caso, corporal, reparador do vazio
provocado pela expropriação do capital, acenando com a possibilidade de um lugar de
cidadania às gerações futuràs. Com isto, produz um duplo controle social: exacerba a apro­
priação da força de trabalho que, pela via da consciência do movimento, torna-se ainda
mais efetiva e, ao mesmo tempo, promove o reconhecimento e engajamento voluntários
das famílias e profissionais em programas sociais compensatórios, como solução para
suas necessidades de manutenção da vida.
Se por um lado, as práticas psicomotoras, pautadas em medidas que buscam
normatizar o corpo, adequando-o aos imperativos sociais, às custas de um processo
segregacionista, trouxeram benefícios para o Estado burguês, por outro, opotunizaram à
classe trabalhadora a possibilidade de Colocar em marcha novas contradições sociais e
políticas, a partir das quais foram formulados saberes-poderes que constituíram o terceiro
período da Psicomotricidade , denominado por Le Camus, Corpo Significante5.

5 Le Camus, ao considerar sobre este período, propõe-se a analisar as produções da área r =


Psicomotricidade entre os anos de 1974 e 1980. Sabemos que esta periodização é um recitrse
didático, que intenciona circunscrever as propostas de estudo daquele autor. Sendo = = = -
vamos considerar o período, denominado pelo autor como Corpo Significante, exíens . : = r =
dias de hoje, visto que os paradigmas que o fundamentam ainda se encontram presentes aa
Psicomotricidade atual.

i 36
V-
\ \ ‘ú

Com os processos de abertura política, primeiro na Europa e, posteriormente, na


América Latina, fruto das pressões sociais e dos movimentos que defendiam os direitos
humanos, aalécnicas de abordagem corpoiaLque propunham a inibição muscular (Corpo
~ábil) ou o domínio da totalidade do corpo, incluindo o refreamento do des.ejo.aa_o.bedi-
ència aos imperativos sociai arderam sua força^Tornou-se urgen­
te a produção de um outro conhecimento, que se apresentasse em sintonia com as novas
tendências e movimentos que emergiam depois de tantos anos de subjugação em todos
os setores da sociedade.
Sob o clima de anistia política, liberdade de expressão e enaltecimeto dos direitos
humanos, os psicomotricistas passam a ser motivados pela idéia de emancipação do
sujeito, inaugurando o terceiro período da Psicomotricidade, denominado por Le Camus
de Corpo Significante.
>> Além de um corpo que ouve e aprende, o foco passou a ser o corpo que “fala”, que se
expressa. “Anistia do sujeito pela anistia do corpo”, as formulações levadas a cabo neste
período encontraram um campo fértil de proliferação na América Latina, sobretudo, no Bra­
sil e Argentina, a partir de meados do ano de 1980.
A terceira fase da evolução nos parece marcada pela dispersão e também pelo questionamento das
referências teóricas, pela ampliação da metodologia para as técnicas semio-motoras; pela intensifica­
ção e descentralização do recrutamento dos terapeutas da psicomotricidade, oficialmente chamados
doravante “psico-reeducadores"; enfim, pelo declínio ou, pelo menos, a marginalização daquilo que
denominamos de práticas psicomotoras com objetivo educativo. (...) Teoria e prática parecem ordenar-
se em torno de um novo organizador que chamaremos de expressionismo. O "corpo sutil" é agora o
corpo capaz de emitir informação (...) urh corpo portador de significações (...) A função informacional
está, mais do que nunca, à frente da cena, mas o interesse deslocou-se da vertente centrípeta à
vertente centrífuga, do input ao output (LE CAMUS, 1986, p. 49).

Com base em princípios advindos da psicanálise da psicologia das comunicações


não verbais, para a qual a expressão corporal se apresenta como um veículo de libertação,
e da etologia infantil, área do conhecimento que concebe que parte importante das mensa-
gens humanas se dá pelas mímicas, pelas posturas, pelos gestos, encontramos neste perí­
odo um movimento de psicotropismo das técnicas do corpo - pautado na relação entre
sujeitos - e um somatotropismo das técnicas verbais que se utilizam da experiência sen-
sorial e motora do. corpo como trampolim da verbalização. (LE CAMUS, 1986, p. 53-59).
Frente ao dualismo platônico, augustiniano e cartesiano, eles [os psicomotricistas] replicaram com o
paralelismo científico de T. Ribot, de P. Janet e P. Tissié, de H. Wallon e de E. Guilmain: é o corpo hábil
(“adroit”; o corpo tem direito: ‘ a droit’); frente ao intelectualismo dos racionalistas dos séculos XVIII e
XIX, replicaram com o impressionismo de M. Merleau-Ponty, de J. Piaget, de S. Freud, de J. de
Ajuriaguerra: é o corpo consciente, o pensamento feito corpo; frente ao verbalismo dos lacanianos,
replicaram com o expressionismo dos cientistas da comunicação e dos etologistas: é o corpo significante,
o corpo que fala (LE CAMUS, 1986, p. 67)
Na área da psicomotricidade, segundo o mesmo autor (1986, p.61), “[evidentemen­
te], foi como meio de linguagem que o corpo interessou aos psicomotricistas: um corpo
que sabe falar utilizando a linguagem anterior à linguagem, uma linguagem constituída de
significantes mudos”.

42
Para este autor, o terceiro período da Psicomotricidade foi marcado por uma tendên­
cia dos profissionais da área em adotar uma atitude de aceitação e reconhecimento do
sujeito, bem como, da importância da dinâmica de seus desejos em seu processo de for­
mação. Neste sentido, comenta:
[a] ruptura parece-nos operar-se em três eixos: o eixo que opõe o cibernético ao termodinâmico; o eixo
que opõe o pulsional ao funcional; o eixo que opõe o materno ao paterno. Os psicomotricistas da
terceira geração acabam de afirmar sua originalidade acentuando o primeiro pólo destes pares. Ser
psicomotricista em 1980 significava, em termos biológicos, dar primazia à máquina informacional; em
termos psicanalíticos, dar primazia ao papel materno.

Os psicomotricistas da terceira geração acreditaram que, minimizando ou, até mes­


mo, abolindo do processo formativo das crianças o formalismo e o autoritarismo, até então
presentes nas técnicas de educação e reeducação psicomotora - aspectos ligados à fun­
ção paterna (lei e ordem) seria possível a superação das dificuldades encontradas por
esta área no equacionamento dos desvios escolares e, sobretudo, guardando ainda uma
perspectiva higienista e normativa, dos desvios sociais.
Impulsionados por tal tarefa, psicomotricistas, atuantes nas sistematizações do se­
gundo período da Psicomotricidade, paulatinamente, foram reformulando seus pressu­
postos e práticas. Entre eles, resaltamos André Lapierre e seus colaboradores, os quais
nos legaram a sistematização de um método de abordagem corporal (França, final dos
anos 70, do século XX), denominado Psicomotricidade Relacionai. Para aquele autor:
[toda] reeducação normativa é evidenciada como uma agressão geradora de insegurança, culpa e
ansiedade. Consegue-se assim um reforço das resistências. Todavia, chega-se algumas vezes a mos­
trar mecanismos de adaptação às “situações psicomotoras”, mas esses mecanismos permanecem
específicos e, se permitem bons resultados nos “teste de controle”, esses resultados não se transfe­
rem ao nível das atividades escolares. [...] Existem, entretanto, reeducações bem sucedidas, sem
contrapartida danosa. Percebe-se ao analisá-las, que o determinante foi a qualidade da relação e da
comunicação afetiva que pôde se desenvolver entre o reeducador e a criança...e que as técnicas em­
pregadas tiveram, neste caso, pouco espaço. É de alguma maneira o efeito placebo...(LAPIERRE,
1988, p.13).
Podemos analisar a mudança de eixo proposta por Lapierre que, seguindo as inclina­
ções da época, coloca a qualidade da relação Educador - Educando como elemento rele­
vante no processo formativo das crianças. Ao contrário das tendências que priorizavam o
aparato técnico nos processos educativos e reeducativos, Lapierre procurou trazer para o
centro do fazer educativo a valorização da relação sujeito(educador) - sujeito(educando).
Nesta linha, propôs um trabalho que prioriza as relações humanas e as potencialidades do
indivíduo. A esse respeito, LAPIERRE (1988, p. 13-14) declara que
[queremos] trabalhar com o que há de positivo na criança; interessarmos pelo que ela sabe fazer e não
pelo que não sabe fazer. É a partir daí que a relação pedagógica pode descontrair-se, a situação deixar
de ser dramatizada e a criança reencontrar a confiança e a segurança.[...] Neste ponto abandonamos
o modelo médico: diagnóstico, prescrição, tratamento, modelo sobre o qual funcionam os estabeleci­
mentos de reeducação.[...] Isto marcou uma etapa decisiva na nossa evolução. A partir daí, com efeito,
não existe mais “reeducação”. Tudo se torna educação, tal como nós a concebemos, ou seja, desen­
volvimento das potencialidades próprias de cada criança.

Apesar de influenciado pelo modelo científico da ciência positiva, paradigma que jus­
tifica o ideal capitalista liberal, Lapierre representa, para a Psicomotricidade, a possibilida­
de de quebra com o modelo científico médico higienista, vigente na Europa e na América
Latina, principalmente, no Brasil e Argentina. À semelhança da posição inaugurada pela
Escola Nova, Lapierre, na Psicomotricidade, recupera para a criança um lugar de reconhe­
cimento e poder e enfatiza a importância da formação profissional e pessoal do
psicomotricista que pretende trabalhar no campo relacionai, ressaltando seu pape
estruturante nas vivências grupais e individuais.
Colocando em discussão as relações de poder presentes no fazer educativo, orga­
nizou um método de educação psicomotora para a idade pré-escolar, procurando
grar as relações afetivas, a estruturação da personalidade e a sistematização do conhe­
cimento, numa proposta lúdica, emancipatória e democrática. Nesta direção, LAPIEPRE
(1988, p.20) ressalta que
[podemos] então retornar ao grupo, cada vez mais numeroso: não se trata mais do mesmo grupe-
refúgio, mas de um grupo composto de indivíduos autônomos, capazes de cooperar, de levar coisas
aos outros e de receber, mas sem se diluir na massa. A experiência nos prova que em tal grupo c »der
questionado, se dilui e mesmo desaparece em proveito de uma organização democrática, o que r&r-
sempre ocorre sem choques nem conflitos. [...JNesta ótica, o trabalho individual aparece comc in
fechar-se em si mesmo, não num espírito narcisista, mas como uma regeneração da pessoa de rrxxfc
a permitir sua reinserção no grupo, que ela beneficiará com sua busca pessoal. [...] É-uma seqõênce
de rupturas (ruptura consigo mesmo, ruptura com os outros), um balanço dialético do qual renasce
cada vez, o desejo inverso com a segurança constante de reencontrar o outro ou a si mesmo.

Como Lapierre, os psicomotricistas da terceira geração organizaram-se em torno ca


necessidade de construção de uma Imagem Corporal positiva, como forma de emancipa­
ção afetiva e intelectual do sujeito. Embora esses profissionais tivessem na base de suas
formulações o mesmo referencial teórico, a Psicanálise, na prática, constituíram métodos a
técnicas diversas. A concepção de Imagem Corporal como uma organização psíquica ~-
consciente, fruto das relações de prazer e desprazer que o sujeito estabelece com seus
pares cuidãntes, nem sempre resultou em práticas de abordagem psicomotora que pri. e-
giassem o corpo, o processo grupai, o lúdico, as relações afetivas diretas, como me :
facilitador de suas práticas.
Mesmo alguns que pretenderam, como Lapierre, propor uma educação de base
psicomotora, integradora, inclusiva, pautada nas relações afetivas, ao alienarem-se ca
uma atitude crítica e histórica de suas práticas, continuaram adotando uma perspec: . a
positivista de ciência, não levando às últimas conseqüências o potencial revoluciora^:
de suas propostas.
Ao longo desse texto, refletimos sobre como as técnicas corporais foram sistema:-
zadas a partir das necessidades e contradições determinadas pelo modo de produçã: ca
sociedade capitalista , resultando na elaboração de saberes-poderes sobre o corpo, caca
vez mais sutis e especializados. Da disciplina do corpo passamos à automação dor:
mento e, posteriormente, à economia consciente do movimento. Com a política dos dire :cs
humanos e de valorização da expressão, entramos na era do corpo anistiado, culminando
com o último movimento da história da psicomotricidade, na era da economia do desec
psicomotricista que pretende trabalhar no campo relacionai, ressaltando seu papel
estruturante nas vivências grupais e individuais.
Colocando em discussão as relações de poder presentes no fazer educativo, orga­
nizou um método de educação psicomotora para a idade pré-escolar, procurando inte­
grar as relações afetivas, a estruturação da personalidade e a sistematização do conhe­
cimento, numa proposta lúdica, emancipatória e democrática. Nesta direção, LAPIERRE
(1988, p.20) ressalta que
[podemos] então retornar ao grupo, cada vez mais numeroso: não se trata mais do mesmo grupo-
refúgio, mas de um grupo composto de indivíduos autônomos, capazes de cooperar, de levar coisas
aos outros e de receber, mas sem se diluir na massa. A experiência nos prova que em tal grupo o líder,
questionado, se dilui e mesmo desaparece em proveito de uma organização democrática, o que nem
sempre ocorre sem choques nem conflitos. [...]Nesta ótica, o trabalho individual aparece como um
fechar-se em si mesmo, não num espírito narcisista, mas como uma regeneração da pessoa de modo
a permitir sua reinserção no grupo, que ela beneficiará com sua busca pessoal. [...] É uma seqüência
de rupturas (ruptura consigo mesmo, ruptura com os outros), um balanço dialético do qual renasce,
cada vez, o desejo inverso com a segurança constante de reencontrar o outro ou a si mesmo.

Como Lapierre, os psicomotricistas da terceira geração organizaram-se em torno da


necessidade de construção de uma Imagem Corporal positiva, como forma de emancipa­
ção afetiva e intelectual do sujeito. Embora esses profissionais tivessem na base de suas
formulações o mesmo referencial teórico, a Psicanálise, na prática, constituíram métodos e
técnicas diversas. A concepção de Imagem Corporal como uma organização psíquica in­
consciente, fruto das relações de prazer e desprazer que o sujeito estabelece com seus
pares cuidantes, nem sempre resultou em práticas de abordagem psicomotora que privile­
giassem o corpo, o processo grupai, o lúdico, as relações afetivas diretas, como meio
facilitador de suas práticas.
Mesmo alguns que pretenderam, como Lapierre, propor uma educação de base
psicomotora, integradora, inclusiva, pautada nas relações afetivas, ao alienarem-se de
uma atitude crítica e histórica de suas práticas, continuaram adotando uma perspectiva
positivista de ciência, não levando às últimas conseqüências o potencial revolucionário
de suas propostas.
Ao longo desse texto, refletimos sobre como as técnicas corporais foram sistemati­
zadas a partir das necessidades e contradições determinadas pelo modo de produção da
sociedade capitalista , resultando na elaboração de saberes-poderes sobre o corpo, cada
vez mais sutis e especializados. Da disciplina do corpo passamos à automação do movi­
mento e, posteriormente, à economia consciente do movimento. Com a política dos direitos
humanos e de valorização da expressão, entramos na era do corpo anistiado, culminando,
com o último movimento da história da psicomotricidade, na era da economia do desejo.

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