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Título original: In my father’s house : Africa in the philosophy of culture

© Kwame Anthony Appiah 1992


© da tradução, Vera Ribeiro 1997

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por


CONTRAPONTO EDITORA LTDA.
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Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro sem autorização da editora.

Projeto grá co
Regina Ferraz

Revisão tipográ ca
Tereza da Rocha

1a edição, maio de 1997

4a reimpressão, março de 2014


Tiragem: 1.000 exemplares

Appiah, Kwame Anthony.


Na casa de meu pai : a África na loso a da cultura / Kwame Anthony Appiah ; tradução
Vera Ribeiro ; revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. - Rio de Janeiro : Contraponto, 1997.
304 p.

Tradução de : In my father’s house : Africa in the philosophy of culture.


Inclui bibliogra a.

ISBN 978-85-85910-16-7

1. Antropologia. 2. Cultura - Filoso a. I. Título.

CDD 301.2
Para
Gyam , Anthony, Per Kodjo, Tomiwa, Lamide,
Tobi, Mame Yaa, Maggie e Elizabeth

e em memória de meu pai


Joe Appiah
1918-1990

Abusua-dua yεntwa
Sumário

Prefácio
Agradecimentos

1 - A invenção da África
2 - Ilusões de raça
3 - Pendendo para o nativismo
4 - O mito de um mundo africano
5 - A etno loso a e seus críticos
6 - Velhos deuses, novos mundos
7- O pós-colonial e o pós-moderno
8 - Estados alterados
9 - Identidades africanas
Epílogo: Na casa de meu pai

Notas
Bibliogra a
Índice onomástico
Prefácio

Minhas primeiras lembranças são de um lugar chamado “Mbrom”, um


pequeno povoado de Koumassi, capital de Achanti, quando esse reino
deixou de ser parte da colônia britânica da Costa do Ouro e se
transformou numa região da República de Gana. Nossa casa cava em
frente à de meus avós — onde moravam dúzias de parentes e
dependentes de vovó, sob a direção de minha avó por a nidade, a “Tia
Jane”, que fazia pão para centenas de pessoas de Mbrom e das áreas
vizinhas — e a poucos metros, na mesma rua, das casas de muitos primos
cujos graus de parentesco eram variáveis e geralmente obscuros. Perto
do centro da segunda maior cidade de Gana, atrás de nossa cerca de
hibiscos na “cidade-jardim da África Ocidental”, nossa vida era
essencialmente a de um vilarejo, passada entre poucas centenas de
vizinhos; daquela aldeia, íamos aos outros pequenos povoados que
formavam a cidade.
Podíamos subir a montanha um pouco mais, em direção à Nova
Cidade de Achanti, e ir até o palácio do rei achanti Prempeh II, cuja
primeira mulher, minha tia-avó, sempre me chamava de “Akroma-
Ampim” — o nome de nosso mais ilustre ancestral — ou de “Yao
Antony”, nome do tio-avô e chefe da família de quem herdei meu nome
anglicizado, “Anthony”. Ou então, podíamos rumar, tomando outra
direção cultural, para o campus da Universidade de Ciência e Tecnologia
Kwame Nkrumah — conhecida por “Tec” —, onde freqüentei a escola
primária e onde muitos dos pais de meus amigos eram professores.
Alguns mundos — o mundo dos tribunais de justiça, para onde meu
pai ia, trajando seus escuros ternos europeus e levando a peruca branca
dos advogados britânicos (que, depois da independência, ele continuou
a usar tal como no período colonial), sempre com uma rosa do jardim (o
jardim de minha mãe) na lapela; o mundo do parlamento, para onde ele
ia nos primeiros anos de que tenho lembrança, já então como adversário
de seu velho amigo Kwame Nkrumah*1 — alguns mundos só nos eram
conhecidos porque nossos pais falavam deles. Outros — o mundo da
igrejinha de São Jorge, onde freqüentávamos a escola dominical com
batistas e coptos e católicos e metodistas e anglicanos de outras partes
do país, outras partes do continente, outras partes do mundo — eram-
nos muito bem conhecidos, conhecidos por serem centrais para nossas
amizades, nossa aprendizagem e nossas crenças.
Em casa, minha mãe recebia regularmente a visita de comerciantes
muçulmanos de Haussá, vindos do que chamávamos (numa expressão
que soava a meus ouvidos infantis como maravilhosamente misteriosa,
exótica em sua esplêndida imprecisão) “o Norte”. Esses homens sabiam
que ela se interessava por ver e, vez por outra, comprar os pesos de
bronze que os achantis haviam usado para pesar ouro, e os pesos de ouro
que os mercadores arrebanhavam dos vilarejos de toda a região, onde
eles eram vendidos por pessoas para quem já não tinham nenhuma
serventia, já que o papel e as moedas haviam substituído o pó de ouro
como moeda corrente. À medida que os ia colecionando, minha mãe
tomava mais e mais conhecimento do folclore que os acompanhava, dos
provérbios evocados por cada peso de ouro representando uma gura, e
das lendas populares, Ananseasem, que esses provérbios evocavam. Meu
pai também nos contava essas histórias ananses, algumas recolhidas
quando ele fora prisioneiro político no governo de Nkrumah (havia
pouca coisa a fazer na prisão além de contar casos). Entre suas histórias e
as mensagens culturais que vinham com os pesos de ouro, fomos
acumulando o tipo de sentimento que provém de crescer dentro de uma
tradição cultural. Para nós, isso não era a tradição achanti, mas a trama
de nossas vidas. Adorávamos essas histórias — minhas irmãs lêem hoje as
que minha mãe publicou para meus sobrinhos em Gaberone e Lagos;
meus a lhados as lêem aqui nos Estados Unidos — e passamos a amar os
pesos de ouro e os entalhes trazidos pelos mercadores.
E a família em que crescemos (uma família “extensa”, como diriam
nossos amigos ingleses, embora pensássemos em suas concepções de
família como “contraídas”) deu-nos um imenso espaço social para
crescer.
Mas, de tempos em tempos, também íamos à terra natal de minha mãe,
a Inglaterra, para temporadas com minha avó no West Country rural,
retribuindo as visitas que ela nos fazia. E, ao menos agora — talvez
apenas porque isso também faz parte de minhas mais antigas lembranças
—, parece-me que a vida por lá não era muito diferente, de um modo
geral. Minha avó morava ao lado da casa de minha tia (irmã de mamãe) e
sua família, na cidadezinha onde minha tia nascera, tal como meu pai
morava ao lado do dele; e assim, por uma curiosa inversão cultural, meu
pai morava em frente e perto de seus parentes patrilineares (na Achanti
matrilinear), enquanto minha tia e seus lhos moravam perto de seus
parentes matrilineares (na Inglaterra patrilinear). Mas, foram o clã
materno de meu pai e o clã materno de meu avô inglês — descendentes
das oito irmãs, das quais uma era minha bisavó — os que passei a
conhecer melhor ao longo dos anos.
Se minhas irmãs e eu éramos “ lhos de dois mundos”, ninguém se dava
ao trabalho de nos dizer isso; vivíamos num único mundo, em duas
famílias “extensas”, divididas por vários milhares de milhas e por uma
distância cultural supostamente insuperável, que nunca, ao que eu me
lembre, nos intrigou ou assombrou muito. Quando cresci um pouco
mais e fui para um colégio interno inglês, quei sabendo que nem todo
mundo tinha familiares na África e na Europa; nem todos tinham um tio
libanês e primos americanos, franceses, quenianos e thais. E hoje, depois
que minhas irmãs se casaram com um norueguês, um nigeriano e um
ganês, agora que vivo nos Estados Unidos, estou acostumado a ver o
mundo como uma rede de pontos de parentesco.
Este livro é dedicado a nove crianças: um menino nascido em
Botsuana, lho de um norueguês e uma anglo-ganesa; seus irmãos,
nascidos na Noruega e em Gana; seus quatro primos, três meninos de
Lagos, lhos de pai nigeriano e mãe anglo-ganesa, e uma menina de
Gana; e mais duas meninas, nascidas em New Haven, Connecticut, de pai
afro-americano e mãe norte-americana “branca”. Essas crianças, meus
sobrinhos e a lhados, têm aparências que vão da cor e dos cabelos dos
parentes achantis de meu pai até os ancestrais vikings de meu cunhado
norueguês; têm nomes provenientes de Ioruba, de Achanti, dos Estados
Unidos, da Noruega e da Inglaterra. Ao vê-las brincando juntas e falando
umas com as outras com seus sotaques variados, sinto, pelo menos, uma
certa esperança no futuro humano.

Essas crianças representam um olhar para a posteridade; mas este livro é


também dedicado a meu pai, que morreu quando eu revisava o
manuscrito nal e se tornou o mais próximo de meus ancestrais. Muito
antes de ele adoecer, eu havia decidido dar a este livro um título em sua
homenagem: a nal, foi dele que herdei o mundo e os problemas sobre os
quais versa o livro. Dele herdei a África em geral, Gana em particular, e
Achanti e Koumassi, ainda mais particularmente; seu cristianismo (dele
e de minha mãe) deu-me tanto o conhecimento bíblico que signi ca que,
para mim, a expressão “na casa de meu pai...” deve ser completada por
“há muitas moradas”, quanto a compreensão bíblica de que, quando
Cristo proferiu essas palavras na Última Ceia, ele pretendia dizer que há
espaço bastante para todos no paraíso — na casa de seu Pai. Até meu pai,
que amava Gana tanto quanto qualquer um, teria resistido à
assemelhação de Gana ao paraíso, embora talvez se sentisse tentado a
a rmar que a Koumassi de sua mocidade cava tão perto do paraíso
quanto qualquer outro ponto da Terra. Mas, ele não negaria — ninguém
que conheça esses lugares poderia negar — que há espaço de sobra na
África, em Gana, até mesmo em Achanti, para todos os tipos e situações
de homens e mulheres; que, em todos os níveis, a África é vária.
Dois outros legados intelectuais cruciais de meu pai instrumentam
este livro. Um é seu pan-africanismo. Em 1945, meu pai esteve com
Nkrumah e Du Bois*2 no Congresso Pan-Africano em Manchester; em
1974, foi um dos poucos remanescentes do Congresso de 1945 (ele
mesmo não encontrou nenhum outro) a comparecer ao congresso cujo
an trião foi Julius Nyerere,*3 em Dar-esSalam. A essa altura, Du Bois e
Nkrumah haviam falecido: em 1972, meu pai fora à Guiné negociar a
devolução do corpo de Nkrumah para um funeral estatal ganês; e,
naquela época, seu escritório no Castelo Christiansborg, em Acra, cava
a poucos passos da sepultura de Du Bois. Meu pai, penso eu, era um
panafricanista tão completo quanto qualquer dos dois; mas também nos
ensinou, a nós, seus lhos, a sermos tão completamente não tentados
pelo racismo quanto ele. E pôde, apesar de seu anti-racismo — apesar do
que me inclino a chamar de seu completo a-racismo, já que o racismo
nunca foi uma tentação a que tivesse que resistir — achar natural,
quando representante de Gana na ONU, buscar solidariedade no
Harlem, onde freqüentava a igreja quase todos os domingos e onde fez
muitos amigos de uma vida inteira. Meu pai é meu modelo da
possibilidade de um pan-africanismo sem racismo, tanto na África
quanto em sua diáspora — uma possibilidade concreta, cujas implicações
conceituais este livro tem a intenção parcial de explorar.
O segundo legado é o apego múltiplo de meu pai a suas identidades:
acima de tudo como achanti, ganês, africano e cristão e metodista. Não
posso a rmar que eu participe plenamente de qualquer dessas
identidades como ele; dada a história que não compartilhamos, ele não
esperaria que eu o zesse. Mas tentei, neste livro, em muitos pontos,
examinar o sentido de uma ou outra e, no nal, de todas essas
identidades, e aprender com a capacidade dele de se servir dessas
múltiplas identidades sem nenhum con ito signi cativo, ao que eu
soubesse dizer.
Eu poderia falar mais das múltiplas presenças de meu pai neste livro.
Mas, no m das contas, pre ro que o livro mostre o que aprendi com
ele, em vez de catalogar meus débitos logo no início. Em parte, digo
tudo isso porque, quando pensamos na cultura, que é o tema deste livro,
estamos fadados a ser formados — moral, estética, política e
religiosamente — pela gama de vidas que conhecemos. Outros hão de
discordar de muito do que tenho a dizer. Como dizemos nos Estados
Unidos, é lícito que os que discordarem, bem como os que concordarem
comigo, saibam “de onde eu venho”. Isso é especialmente importante
porque o livro versa sobre questões que estão fadadas a ser de profunda
importância para qualquer um que tenha a minha história, uma vez que
seu tema é a questão de como devemos pensar sobre as culturas
contemporâneas da África, à luz dos dois principais determinantes
externos de sua história cultural recente — as concepções européias e
afro-novo-mundistas da África — e de suas próprias tradições culturais
endógenas. Creio — e essa é uma das metas centrais do mundo
acadêmico, que é minha vocação — que devemos re etir criteriosamente
sobre as questões que mais nos importam. Quando a rmo que a
descolonização ideológica está destinada a fracassar, se negligenciar a
“tradição” endógena ou as idéias “ocidentais” exógenas, e que muitos
intelectuais africanos (e afro-americanos) não conseguiram encontrar
um meio-termo negociável, estou falando de amigos e vizinhos, e falo de
como nós devemos lidar com nossa situação comum. Seria temerário
supor e pouco convincente a rmar que, nessa situação, é sempre a razão
desapaixonada que triunfa, que é possível examinar as questões com a
imparcialidade dos desinteressados. Precisamente por estar ciente dessas
outras forças, tenho a expectativa de que em alguns pontos do caminho
minha história tenha não apenas formado meu julgamento (o que muito
me agrada), mas também o tenha distorcido (o que, é claro, não me
agrada nem um pouco); para avaliar se ela o fez, você precisará conhecer
um pouco dessa história; e quero que a conheça, até porque somente
através das reações dos leitores é que eu carei sabendo de minhas
distorções.
Mas, também é importante depor, penso eu, sobre a realidade prática
do tipo de projeto intercultural cujas rami cações teóricas exploro
nestes ensaios: mostrar como é fácil, sem teoria e sem muita re exão
consciente, viver em famílias humanas que atravessam as fronteiras que
atualmente se a rma dividirem nossa raça.

Talvez seja útil dispor de uma descrição sucinta do território que se


estende diante de nós.
Os intelectuais da África têm-se empenhado, há muito tempo, numa
conversa entre si e com europeus e norte-americanos sobre o que
signi ca ser africano. No cerne desses debates sobre a identidade africana
encontram-se as obras fecundas de políticos, escritores e lósofos da
África e de sua diáspora. Neste livro, recorro aos textos desses
pensadores africanos e afro-americanos para explorar as possibilidades e
armadilhas de uma identidade africana no m do século XX.
Os ensaios dividem-se em quatro grupos. Ao examiná-los
retrospectivamente, identi co em cada grupo uma preocupação central.
Nos dois capítulos iniciais, que formam o primeiro grupo, exploro o
papel da ideologia racial no desenvolvimento do pan-africanismo. Mais
particularmente, enfoco as idéias dos intelectuais afro-americanos que
deram início ao discurso pan-africanista. Meus arquétipos são Alexander
Crummell, no capítulo 1, e W. E. B. Du Bois, no capítulo 2; examinando
a obra deles, sustento que a idéia do negro, a idéia de uma raça africana,
é um elemento inevitável desse discurso, e que essas noções racialistas
fundamentam-se em idéias biológicas precárias — e idéias éticas ainda
piores — herdadas do pensamento cada vez mais racializado da Europa e
dos Estados Unidos do século XIX.
Os dois capítulos seguintes unem-se na indagação de como as questões
referentes à identidade africana guram na vida literária da África, e o
fazem explorando as idéias de críticos e teóricos da literatura, no
capítulo 3, e de um grande escritor — Wole Soyinka*4 — no capítulo 4.
A ênfase desses capítulos está em que a tentativa de construir uma
literatura africana, enraizada nas tradições africanas, levou a minimizar-
se a diversidade das culturas da África e a tentar-se censurar a profunda
intricação dos intelectuais africanos com a vida intelectual da Europa e
das Américas.
O par de capítulos seguinte — o grupo três, para os que estão
contando — é motivado por uma preocupação essencialmente losó ca
com as questões da razão e da modernidade. Ao considerar a moderna
loso a africana, no capítulo 5, e a religião “tradicional”, no capítulo 6,
apóio-me numa visão do papel central da razão na vida africana, antes e
depois do colonialismo, e proponho uma visão da modernização na
África que difere, conseqüentemente, da visão weberiana padrão. Não é
muito fácil reduzir a conclusão dessa parte a uma fórmula: mas meu
tema é que o ideal de sensatez (concebido, num sentido especí co,
transculturalmente) tem um papel central a desempenhar na re exão
sobre o futuro da África. De um lado ca o provincianismo; do outro, as
falsas pretensões de universalidade.
O último conjunto de capítulos levanta, mais explicitamente, questões
de política e identidade. O capítulo 7 nos conduz, através do mercado
artístico e de alguns romances contemporâneos, até a emergência de
uma forma não sentimental de humanismo africano, capaz de sustentar
nossa resistência à tirania. Exploro, no capítulo 8, o sentido do Estado
nacional africano e as formas de organização social que o questionam e o
facultam. No capítulo 9, examino de maneira mais teórica a questão
geral das identidades — raciais, étnicas, nacionais, pan-africanas — e o
que o poder das identidades, em cada um desses níveis, revela sobre as
possibilidades da política e sobre o papel dos intelectuais na vida
política.
É nessa esfera política que se reúnem muitas das questões levantadas
neste livro. Rejeitar a retórica da ascendência exige que se repense a
política panafricanista; na África, a literatura e sua crítica preocupam-
se, mais explicitamente do que na Europa e na América do Norte, com
as questões políticas; e a modernização e seu signi cado constituem a
principal questão política com que se confrontam nossas instituições
políticas. Naturalmente, portanto, não existe uma separação fácil entre
essas questões e, também naturalmente, as questões políticas vêm
reiteradamente à tona ao longo de todo o livro. Mais surpreendente,
penso eu, é a recorrência das questões raciais, da história racialista que
tem atormentado o pan-africanismo desde seus primórdios.
Dito isto, eu gostaria de resistir à redução deste livro a um único
tema. Pois a situação do intelectual africano é tão complexa e
multifacetada quanto pode um ser humano enfrentar em nossa época.
Ao abordar essa situação, eu não gostaria de enterrar as múltiplas
histórias numa narrativa única. Essa pretensão tornou-se um maneirismo
pós-modernista: mas, a rigor, também me parece uma demonstração
muito antiga e sadia de sabedoria. G. E. Moore costumava citar a
observação de Joseph Butler de que “tudo é o que é, e não outra coisa”.
Há um trocadilho akan que tem a mesma moral: “εsono εsono, na εsono
sosono”, que, traduzido, diz: “o elefante é uma coisa, a minhoca, outra”.
Um último pedido: uma coletânea de ensaios como esta, que tanto é
interdisciplinar (abarcando a biologia, a loso a, a crítica e a teoria
literárias, a sociologia, a antropologia e a história intelectual e política)
quanto intercultural (discutindo idéias africanas, norte-americanas e
européias) está fadada a gastar parte de seu tempo dizendo a cada um de
seus leitores algo que ele ou ela já sabem. Seja qual for sua formação e
onde quer que você viva, gentil leitor, imagine seus companheiros de
leitura e suas áreas de conhecimento e ignorância, antes de se perguntar
por que expliquei o que não requer explicação para você. E, quando me
constatar ignorando o que você julga importante, ou entendendo mal o
que você entendeu corretamente, lembre-se de que ninguém, nos dias
atuais, é capaz de abranger todas essas áreas com igual competência, e de
que isso não torna menos válida a tentativa; e lembre-se, acima de tudo,
de que estes, como dizia Bacon (ele mesmo, um ensaísta nada medíocre),
são “apenas ensaios — ou seja, meditações dispersas”.

1 Político de Gana (Nkroful, 1909 - Bucareste, 1972), líder do movimento de oposição nacionalista,
primeiro-ministro em 1952 e, após a independência da Costa do Ouro, presidente da República,
eleito em 1960. (N. da T.)
2 William E. B. Du Bois, sociólogo e escritor norte-americano (Great Barrington, Mass., 1868 -
Acra, Gana, 1963), um dos fundadores da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de
Cor (NAACP), militante do movimento pela igualdade de direitos entre negros e brancos, e um
dos fundadores do pan-africanismo. (N. da T.)

3 Político da Tanzânia. Nascido em 1922, militou pela independência, foi primeiro-ministro em


1960, elegeu-se presidente em 1962, depois presidiu o Estado Federal da Tanzânia (Tanganica e
Zanzibar) em 1964; foi presidente da Tanzânia entre 1964 e 1986. (N. da T.)

4 Escritor nigeriano de expressão inglesa, nascido em Abeokuta em 1934. Recebeu o Prêmio Nobel
de Literatura em 1986. (N. da T.)
Agradecimentos

Aprendi muito sobre os tópicos discutidos neste livro, no correr de


muitos anos, através de longas conversas — ainda que lamentavelmente
infreqüentes — com Kwasi Wiredu, Kwame Gyekye e Robin Horton, e,
mais recentemente, com Abiola Irele e Valentin Mudimbe, bem como
pela leitura de suas obras; e também através das conversas com meus
pais, Joe e Peggy Appiah, e com minhas irmãs, Ama, Adwoa e Abena.
Sou também muito grato a Ali Mazrui, Chris Miller, Dick Bjornson e
Kwasi Wiredu pela leitura do manuscrito numa etapa avançada e pelas
proveitosas sugestões que eles zeram. Numerosas dívidas mais
especí cas são reconhecidas nas notas.
Comecei a construir um ancestral deste livro na Sociedade Cornell de
Humanidades em 1985. Terminei-o no ambiente extremamente afável do
Centro Nacional de Humanidades, como pesquisador bolsista da cadeira
de Andrew W. Mellon: muito me agrada reconhecer e agradecer o apoio
da Sociedade, do Centro e da Fundação Mellon. Sou igualmente grato a
muitos de meus colegas pesquisadores de ambos os locais —
especialmente a Wole Soyinka e Gayatri Spivak, em Cornell, pelo
estímulo e incentivo que eles não sabiam estar fornecendo; aos dois
diretores, Jonathan Culler e Bob Connor; e às equipes dirigentes de
ambas as instituições, que foram perfeitamente afáveis, ao mesmo tempo
que eliminaram quase todas as nossas preocupações materiais.
Mas, minhas dívidas principais são para com Henry Louis Gates Jr., o
“Skip”, meu companheiro de estudos em Cambridge, meu colega em Yale
e em Cornell e Duke, e meu amigo de sempre; e para com Henry Finder,
que me ouviu e debateu comigo a cada passo do caminho nestes últimos
anos, e que agora deve achar que conhece meus argumentos tão bem
quanto eu — ou talvez melhor. Skip propiciou minhas primeiras
re exões sobre muitos desses tópicos, tanto em nossas conversas
permanentes — que agora já datam de uma década e meia — sobre
assuntos relacionados à África e Afro-América quanto ao me pedir
contribuições para três coletâneas que editou. Henry entrou na conversa
nos últimos anos, ampliando-lhe o âmbito. Sem os dois Henrys, este
livro teria sido muito diferente; na verdade, sem eles, duvido que eu
sequer me houvesse aventurado a escrever um livro sobre esses temas.

K. A. A.

Koumassi, Achanti
Janeiro de 1991
1
A invenção da África

“A África para os africanos!”, exclamei. (...)


“Um Estado livre e independente na África.
Queremos poder governar-nos neste nosso país sem interferência externa. (...)”1

Kwame Nkrumah

E m 26 de julho de 1860, Alexander Crummell, afro-americano de


nascimento, liberiano por adoção e padre episcopal com formação
na Universidade de Cambridge, discursou para os cidadãos de um
condado de Maryland, Cape Palmas. Embora a Libéria só viesse a ser
reconhecida pelos Estados Unidos dois anos depois, a ocasião, segundo a
estimativa de Crummell, foi o décimo terceiro aniversário de sua
independência. Assim, é particularmente curioso que seu título tenha
sido “A língua inglesa na Libéria”, e que seu tema tenha sido que os
africanos “exilados” pela escravidão no Novo Mundo haviam recebido da
divina providência “ao menos esta compensação, ou seja, a posse da
língua anglo-saxônica”.2 Crummell, considerado por muitos como um
dos pais do nacionalismo africano, não tinha a menor dúvida de que o
inglês era uma língua superior às “várias línguas e dialetos” das
populações nativas africanas; superior em sua eufonia, seus recursos
conceituais e sua capacidade de expressar as “verdades mais elevadas” do
cristianismo. Agora, decorrido mais de um século, mais de metade da
população da África negra vive em países em que o inglês é uma língua
o cial; e a mesma providência decretou que quase todo o restante da
África fosse governado em francês, árabe ou português.
Talvez o reverendo Crummell casse contente com essa notícia, mas
teria poucos motivos para sentir-se otimista. Pois, com algumas exceções
fora dos países de língua árabe da África do Norte, a língua do governo
é a primeira língua de uns poucos, e só é dominada com segurança por
uma pequena parcela da população; na maioria das nações anglófonas,
até as elites instruídas aprenderam pelo menos uma das centenas de
línguas nativas, além — e quase sempre antes — do inglês. Na África
francófona, existem hoje elites dentre as quais muitas falam francês
melhor do que qualquer outra língua, e falam um tipo de francês
particularmente próximo, na gramática, embora nem sempre no sotaque,
da língua da França metropolitana. Mas, mesmo nesses casos, o francês
não é con antemente dominado por nada que se assemelhe a uma
maioria.
Essas diferenças entre os Estados francófonos e anglófonos decorre, é
claro, das diferenças entre a política colonial francesa e a britânica.
Embora o quadro seja complexo demais para um resumo conveniente, a
política colonial francesa, em linhas gerais, foi de assimilation —
transformar os africanos “selvagens” em negros e negras franceses
“evoluídos” —, ao passo que a política colonial britânica interessou-se
bem menos por formar os anglo-saxões negros da visão de Crummell.
Apesar dessas diferenças, as elites francófonas e anglófonas não apenas
usam as línguas coloniais como meio de governo, como também
conhecem e amiúde admiram a literatura de seus ex-colonizadores,
havendo optado por escrever uma literatura africana moderna em
línguas européias. Mesmo depois de uma brutal história colonial e de
quase duas décadas de contínua resistência armada, a descolonização da
África portuguesa, em meados dos anos 70, deixou atrás de si uma elite
que redigiu as leis e a literatura africanas em português.
Isso não equivale a negar que haja vigorosas tradições vivas de cultura
oral — religiosa, mitológica, poética e narrativa — na maioria das
línguas “tradicionais” da África abaixo do Saara, nem a ignorar a
importância de algumas línguas tradicionais escritas. Mas, para abrir
caminho fora de suas próprias comunidades e adquirir o
reconhecimento nacional, para não falar do internacional, a maioria das
línguas tradicionais — com a exceção óbvia do swahili — tem que ser
traduzida. Poucos Estados negros africanos têm o privilégio de
corresponder a uma única comunidade lingüística tradicional. Por essa
simples razão, quase todos os escritores que procuraram criar uma
tradição nacional, transcendendo as divisões étnicas dos novos Estados
africanos, tiveram de escrever em línguas européias ou correr o risco de
ser vistos como particularistas, identi cados com as antigas delidades e
não com as novas. (Uma exceção interessante é a Somália, cujo povo tem
a mesma língua e as mesmas tradições; não obstante, ela conseguiu
passar uma década, depois da independência, em que suas línguas
o ciais foram o inglês, o italiano e o árabe.)3
Esses fatos re etem-se em muitos momentos; permitam-me apresentar
apenas dois: um, quando a decisão do escritor queniano Ngugi wa
iong’o de escrever em sua língua materna, o gikuyu, levou muita gente
em seu próprio país a vê-lo — erroneamente, em minha opinião — como
uma espécie de imperialista gikuyu (o que não é uma questão nada
trivial no contexto das relações interétnicas no Quênia); e outro, quando
o antigo “Haute Volta”*5 encontrou um nome “autêntico”,
denominando-se Burkina Faso, com palavras extraídas de duas das
línguas do país — embora continuasse, é claro, a conduzir grande parte
de seus assuntos o ciais em francês. Em certo sentido, temos usado as
línguas européias porque, na tarefa de construção nacional [nation-
building], não podíamos nos dar ao luxo, politicamente, de usar as
línguas uns dos outros.
Convém dizer que há outras razões, mais ou menos honrosas, para a
extraordinária persistência das línguas coloniais. Não podemos ignorar,
por exemplo, do lado honroso, as di culdades práticas de desenvolver
um sistema educacional moderno numa língua em que nenhum dos
manuais e livros didáticos foi redigido; tampouco devemos esquecer, na
coluna dos débitos, a possibilidade menos nobre de que essas línguas
estrangeiras, cujo domínio havia marcado a elite colonial, tenham-se
transformado em marcas de status preciosas demais para serem
abandonadas pela classe que herdou o Estado colonial. Juntas, essas
forças díspares conspiraram no sentido de garantir que o corpo mais
importante de textos da África abaixo do Saara, mesmo depois da
independência, continuasse a ser redigido em inglês, francês e
português. Para muitos de seus mais importantes ns culturais, a
maioria dos intelectuais africanos ao sul do Saara é o que chamamos de
“eurófona”.
Essa situação lingüística é de suprema importância na vida cultural
dos intelectuais africanos. Obviamente, é de imenso peso, para os
cidadãos dos Estados africanos em geral, que suas elites dominantes
sejam orientadas e, em muitos casos, constituídas por intelectuais
eurófonos. Mas, a preocupação com as relações dos mundos conceituais
“tradicional” e “moderno”, com a integração dos modos de compreensão
herdados e os oriundos das teorias, conceitos e crenças recém-
adquiridos, está fadada a ser de especial importância na vida daqueles
dentre nós que pensam e escrevem sobre o futuro da África em termos
basicamente tomados de empréstimo de outros lugares. Podemos
reconhecer que a verdade não é propriedade de nenhuma cultura;
devemos apoderar-nos das verdades de que precisamos onde quer que as
encontremos. Mas, para que as verdades se transformem na base da
política nacional e, em termos mais amplos, da vida nacional, há que se
acreditar nelas; e saber se as verdades que retiramos do Ocidente serão
ou não dignas de crédito depende, em grande medida, de como
consigamos administrar as relações entre nossa herança conceitual e as
idéias que correm a nosso encontro, vindas de outros mundos.

O discurso de Crummell é-nos mais facilmente acessível numa coletânea


de seus textos, publicada pela primeira vez em 1862 e intitulada e
Future of Africa [O futuro da África]. Um marco do sucesso de uma
imagem do mundo que ele compartilhava é que, nos últimos cem anos,
poucos dos leitores desse livro — isto é, poucos dos europeus, norte-
americanos e africanos dotados do inglês necessário para lê-lo — viram
algo estranho nesse título, no interesse particular de seu autor pelo
futuro da África, ou em sua alegação de estar falando em nome de um
continente. Trata-se de uma imagem que Crummell aprendeu nos
Estados Unidos e con rmou na Inglaterra; embora houvesse de
estarrecer a maioria da população “nativa” da Libéria, essa imagem
tornou-se, em nosso século, uma propriedade comum de grande parte
da humanidade. E há em sua raiz uma compreensão do mundo que
faremos bem em examinar, questionar e, talvez, no m, rejeitar.
No cerne da visão de Crummell há um só conceito norteador: a raça.
A “África” de Crummell é a pátria da raça negra, e seu direito de agir
dentro dela, falar por ela e arquitetar seu futuro decorria — na
concepção do autor — do fato de ele também ser negro. Mais do que
isso, Crummell sustentava que havia um destino comum para os povos
da África — pelo que devemos sempre entender o povo negro 4 —, não
porque eles partilhassem de uma ecologia comum, nem porque tivessem
uma experiência histórica comum ou enfrentassem uma ameaça comum
da Europa imperial, mas por pertencerem a essa única raça. Para ele, o
que tornava a África unitária era ela ser a pátria dos negros, assim como
a Inglaterra era a pátria dos anglo-saxões, ou a Alemanha, a dos teutões.
Crummell foi uma das primeiras pessoas a falar como negro na África, e
seus textos efetivamente inauguraram o discurso do pan-africanismo. É
que ele pensava no povo da África (em termos que o nacionalismo do
século XIX tornava naturais) como sendo um único povo, a ser
concebido, à semelhança dos italianos ou anglo-saxões, em certo sentido,
como uma unidade política natural. Esse é o pressuposto fundamental
do pan-africanismo.

A maioria das pessoas de hoje sabe como é difícil avaliar a vida e as


pretensões de outras culturas e tradições sem cair presa dos
preconceitos decorrentes das perspectivas das nossas. Quando deixamos
de avaliar os outros com imparcialidade, torna-se muito improvável
receber deles tratamento imparcial. Esse tipo de etnocentrismo, por
mais que nos a ija, já não tem como nos surpreender. Podemos rastrear
sua feia trajetória na própria história recente da África. Ainda assim, ao
menos a princípio, é surpreendente que até afro-americanos como
Crummell, que deram início ao discurso nacionalista sobre a África na
África, tenham herdado um par de antolhos conceituais que os
impossibilitou de ver qualquer virtude na África — muito embora
precisassem dela, acima de qualquer outra coisa, como fonte de
validação. Uma vez que conceberam os africanos em termos raciais, sua
opinião negativa sobre a África não foi fácil de distinguir de uma
opinião negativa sobre os negros; através da vinculação da raça ao pan-
africanismo, eles nos deixaram um legado incômodo.
A centralidade da raça na história do nacionalismo africano é
amplamente presumida e freqüentemente ignorada. Havia muitos
estudantes coloniais da África britânica reunidos na Londres dos anos
subseqüentes à Segunda Guerra Mundial — uma guerra em que muitos
africanos morreram em nome da liberdade —, e era natural que eles se
aproximassem uns dos outros, dado seu anseio comum de tornarem-se
politicamente independentes de um mesmo Estado metropolitano. Eles
também foram unidos pelo fato de que os britânicos — tanto os que
ajudavam quanto os que prejudicavam — os viam a todos, antes de mais
nada, como africanos. Mas foi através de um discurso herdado do
panafricanismo de antes da guerra que conseguiram articular uma visão
comum da África pós-colonial; e esse discurso foi basicamente produto
de cidadãos negros do Novo Mundo.
Posto que o que unia esses pan-africanistas afro-americanos e afro-
caribenhos era a ancestralidade parcialmente africana que eles
compartilhavam, e uma vez que essa ancestralidade tinha importância no
Novo Mundo, através de suas várias teorias populares da raça, talvez a
compreensão racial de sua solidariedade tenha sido um desdobramento
inevitável; isso foi reforçado pelo fato de que algumas guras cruciais —
entre elas, Nkrumah — haviam rumado na direção oposta à de
Crummell, procurando educar-se nas faculdades negras dos Estados
Unidos. A tradição em que se pautavam os intelectuais francófonos da
era do após-guerra, fosse ela articulada por Aimé Césaire,*6 do Novo
Mundo, ou Léopold Senghor,*7 do Velho, partilhava da visão européia e
norte-americana da raça. Tal como o pan-africanismo, a négritude*8
começa pela suposição da solidariedade racial dos negros.
Na era do pré-guerra, os africanos coloniais vivenciaram o racismo
europeu em graus radicalmente diferentes, em situações diferentes e, em
consonância com isso, tinham diferentes graus de preocupação com o
assunto. Mas, com a realidade do racismo nazista plenamente à vista —
uma realidade que ainda hoje esgota os recursos de nossa linguagem —,
era fácil para qualquer um, na era do após-guerra, ver os malefícios
potenciais da raça como princípio organizador da solidariedade
política. Difícil era ver a possibilidade de abandonar por completo a
raça como noção. Poderia algo ser mais real do que o fato de ser judeu,
num mundo em que ser judeu signi cava a ameaça dos campos de
extermínio? Num mundo em que ser judeu passara a ter um signi cado
— racial — terrível para todos, o racismo, ao que parecia, só poderia ser
enfrentado mediante a aceitação das categorias raciais. (Esse é o tipo de
situação que Michel Foucault entendeu através de sua noção de
“discurso invertido”.) Para os panafricanistas do após-guerra, o problema
político era o que fazer com a situação do negro. Os que voltaram para
casa para criar a África pós-colonial não precisavam discutir ou analisar
a raça. Ela era a noção que os havia unido, para começar. A lição que os
africanos aprenderam com os nazistas — a rigor, com a Segunda Guerra
Mundial como um todo — não foi o perigo do racismo, mas a falsidade
da oposição entre uma “modernidade” européia humana e o
“barbarismo” do mundo não-branco. Soubéramos, no passado, que o
colonialismo europeu podia devastar as vidas africanas com
despreocupada facilidade; nesse momento, soubemos que os povos
brancos podiam tomar os instrumentos mortíferos da modernidade e
usá-los uns contra os outros.
Mas o que a raça signi cava emocionalmente para os novos africanos
não era, de modo geral, o que signi cava para os negros instruídos do
Novo Mundo. Para muitos afro-americanos, criados numa sociedade
norte-americana segregacionista e expostos às formas mais cruas de
discriminação, o intercâmbio social com os brancos era doloroso e
desconfortável. Muitos dos africanos, por outro lado (meu pai entre
eles), levaram de volta para casa esposas européias e lembranças
calorosas de amigos europeus; poucos deles pareciam estar
comprometidos com idéias de separação racial ou doutrinas de ódio
racial, mesmo quando voltavam das culturas de “colonos brancos ”*9 da
África Oriental e do Sul. Uma vez que provinham de culturas em que os
negros eram majoritários e em que a vida continuava a ser basicamente
controlada por concepções morais e cognitivas locais, eles não tinham
motivo para crer que fossem inferiores aos brancos e, conseqüentemente,
tinham menos razão para se ressentir deles.
Esse fato é de importância crucial para compreender a psicologia da
África pós-colonial. É que, embora essa a rmação possa ser facilmente
aceita pela maioria daqueles que, como eu, vivenciaram uma criação
africana na África britânica da segunda parte do século XX, ela não há
de parecer óbvia aos observadores externos, sobretudo, a meu ver, em
virtude de uma importante fonte de equivocação.

Para a maioria dos observadores externos europeus e norte-americanos,


há de parecer que nada poderia ser uma base mais óbvia para o
ressentimento do que a experiência de um povo colonizado, forçado a
aceitar a presença arrogante do colonizador. Isso parece óbvio porque se
presume uma comparação com a situação dos negros no Novo Mundo.
Meu primeiro sentimento pessoal dessa situação veio, penso eu, da
leitura do exemplar de Family and Color in Jamaica [A família e a cor na
Jamaica], de Fernando Henriquez, que George Padmore, o pan-
africanista das Índias Ocidentais, deu a meus pais como presente de
casamento; e é impossível ler o Soul on Ice [A alma no gelo] de Eldridge
Cleaver, por exemplo, sem car com uma poderosa sensação de como
deve ser pertencer a uma subcultura estigmatizada, viver num mundo em
que tudo, desde seu corpo até sua língua, é de nido pela “corrente
dominante” como inferior. Mas, ler dessa maneira a situação dos súditos
coloniais que chegaram à idade adulta antes da década de 1950 é fazer
uma suposição que Wole Soyinka identi cou, numa passagem que
discutirei no capítulo 4 deste livro: a suposição da “igualdade potencial,
em qualquer situação dada, entre a cultura estrangeira e a local, no solo
efetivo desta última”.5 O que invalida essa suposição é o fato de que a
experiência da vasta maioria desses cidadãos das colônias européias na
África foi a de uma penetração essencialmente super cial por parte do
colonizador.
Se lermos o Aké de Soyinka, uma autobiogra a de sua infância na
Nigéria colonial do pré-guerra — ou as narrativas mais explicitamente
ccionalizadas de seu conterrâneo Chinua Achebe —, seremos
vigorosamente informados das maneiras como até as crianças,
arrancadas da cultura tradicional de seus pais e avós e colocadas nas
escolas coloniais, estavam, ainda assim, plenamente imersas numa
experiência primária de suas próprias tradições. Esse mesmo sentido
claro transparece na névoa romanceada de L’Enfant noir [O menino
negro], de Camara Laye.*10 Nessas condições, insistir na alienação dos
súditos coloniais de educação ocidental, em sua incapacidade de
apreciar e valorizar suas próprias tradições, é correr o risco de
confundir o poder dessa experiência primária com o vigor de muitas
formas de resistência cultural ao colonialismo. O sentimento de que os
colonizadores superestimam o alcance de sua penetração cultural é
compatível com a raiva ou o ódio, ou com a ânsia de liberdade; mas não
implica as de ciências de autocon ança que levam à alienação.
Quando eu discutir, no capítulo 3, os intelectuais coloniais e pós-
coloniais, terei mais a dizer sobre a pequena classe de pessoas instruídas
cuja alienação constitui um fenômeno real (poderosamente
caracterizado por Frantz Fanon*11). Mas, a verdade é que a maioria dos
que fomos criados durante a era colonial, e por algum tempo depois
dela, temos uma aguda consciência de como os colonizadores nunca
detiveram um controle tão pleno quanto os mais velhos de nós
deixavam-nos parecer que tinham. Todos vivenciamos o poder
persistente de nossas próprias tradições cognitivas e morais: na religião,
em eventos sociais como os funerais, em nossa experiência da música, em
nossa prática da dança e, é claro, na intimidade da vida familiar. As
autoridades coloniais procuravam estigmatizar nossas crenças religiosas
tradicionais. Conspirávamos com essa cção ocultando nosso desdém
por grande parte do cristianismo europeu, nas criativas fusões de idéias
religiosas que discutirei no capítulo 6; o Estado colonial estabelecia um
sistema legal cuja agrante falta de correspondência com os valores dos
colonizados ameaçava, não esses valores, mas o sistema legal colonial.
Um breve episódio servirá para ilustrar essa a rmação. Em meados dos
anos 70, eu rodava com um amigo inglês (branco) pela cidade ganesa de
Takoradi. Meu amigo estava ao volante. Num cruzamento, paramos atrás
de um grande caminhão de madeira, e o motorista, que não nos viu por
seu retrovisor, deu marcha a ré em direção a nós. Meu amigo inglês
tocou a buzina, mas o motorista continuou recuando... até bater e
quebrar nosso pára-brisa. Era uma área movimentada, perto das docas, e
houve muitas testemunhas. Ficou bastante claro de quem era a culpa —
no sentido do sistema legal — pelo acidente. Contudo, nenhuma das
testemunhas dispôs-se a corroborar nossa versão da história.
Noutros contextos, poder-se-ia presumir que isso foi um re exo da
solidariedade racial. Mas, o que as testemunhas disseram deixou claro
que seu julgamento tinha uma base diferente, uma base cujo equivalente
euro-americano mais próximo teria sido, não a solidariedade de raça,
mas de classe. Para elas, a questão era entre uma pessoa — um
estrangeiro e, portanto, alguém endinheirado — capaz de pagar por seu
pára-brisa, e uma outra pessoa — o motorista de caminhão — que era
um empregado que perderia seu emprego e seu ganhapão, se fosse
julgado culpado de uma infração de trânsito. Na opinião de nossas
testemunhas, era provável que o sistema formal da autoridade estatal
penalizasse o motorista de caminhão — que nada zera de mais sério do
que dani car uma propriedade — de um modo que elas julgavam
totalmente desproporcional a seu delito. Assim, sem nenhuma
coordenação, elas “conspiraram” no sentido de solapar o sistema legal
formal.6
Esse sistema legal era o de Gana, o sistema de um Estado nacional pós-
colonial independente. Mas era, em essência, o sistema colonial, com
suas normas impostas pelos britânicos. Nos dez anos seguintes a esse
episódio, a “Revolução do Povo”, de Jerry Rawlings,*12 tentou
desmantelar boa parte desse sistema, com bastante apoio popular; e o
fez, creio eu, precisamente por estar claro que o sistema estava longe de
re etir as normas populares.
Pessoalmente, não creio que fossem erradas as noções de direito e
responsabilidade implícitas na maneira como o sistema legal ganês de
meados dos anos 70, operando em condições ideais, teria resolvido a
questão. Mas, isso serve apenas para marcar minha distância das
concepções morais vigentes nas ruas de Takoradi. (Mesmo assim, não
estou tão distante da realidade do sistema legal ganês — ou dos sistemas
legais em geral — a ponto de acreditar que houvesse qualquer garantia
de que o caso fosse formalmente decidido segundo padrões ideais.)
Os sistemas legais — como os da França, Grã-Bretanha ou Estados
Unidos — que evoluíram em resposta a uma mudança da moral política
local têm por esteio uma espécie de consenso popular, ao qual se chegou
através de uma longa história de acomodação mútua entre a prática
legal e a norma popular. Qualquer um que tenha testemunhado um
desses atos de oposição espontânea e descomplicada a um Estado cujo
funcionamento não se baseia nesse consenso pode imaginar, com
facilidade, o quanto os súditos coloniais eram capazes de criar atos de
resistência similares.
Assim, repetindo minha a rmação, era natural que os súditos
coloniais que voltaram para a África depois da Segunda Guerra Mundial
fossem, em sua maioria, menos alienados do que presumiram muitos
europeus e norte-americanos. É patente que guras como Keniata*13 e
Nkrumah, Kaunda*14 e Nyerere só vivenciaram plenamente a cultura
ocidental ao visitarem a Europa e a América; todos eles, em casa, viviam
comodamente enraizados nas tradições de seus povos.
De fato, falar em “resistência” nessa fase da cultura colonial já é
exagerar os aspectos em que o Estado colonial foi invasivo. Minha
historieta provém da Takoradi urbana do m do século XX; em questões
como a vida familiar, nas quais o Estado não pôde intervir efetivamente;
nas áreas rurais (pelo menos onde não havia plantations); nas classes
dominantes locais tradicionais e em meio àqueles que escaparam a uma
exposição expressiva à educação colonial, mesmo nas cidades; e
anteriormente às penetrações cada vez mais profundas de uma
modernidade estrangeira — em todos esses aspectos o sistema colonial
anterior pôde ser ignorado para quase todos os ns.
Uma comparação adequada, no Novo Mundo, não seria com a
experiência urbana de Soul on Ice, mas com o mundo que Zora Neale
Hurston registra e re ete, tanto em seus textos mais etnográ cos quanto
em seu brilhante romance, eir Eyes Were Watching God [Seus olhos
observavam Deus]: um mundo negro no qual o mundo norte-americano
in uía de modos culturalmente marginais, ainda que politicamente
esmagadores em termos formais. Há muitos momentos de autonomia
cultural na América negra, que atingem um sentimento igualmente
vívido de seu próprio valor, opondo-se a desvantagens ideológicas muito
maiores do que jamais foram enfrentadas pela maioria dos povos
colonizados da África.

O que a geração do após-guerra de africanos britânicos retirou de sua


estada na Europa, portanto, não foi um ressentimento em relação à
cultura “branca”. O que eles retiraram de sua experiência comum, ao
contrário, foi o sentimento de que, como africanos, tinham muito o que
compartir: tomaram por verdadeiro, assim como todo o mundo, que esse
sentimento comum estava ligado à sua “africanidade” compartilhada e,
em sua maioria, aceitaram a visão européia de que isso signi cava sua
raça comum.
Para os cidadãos da África francesa, uma situação diferente levou aos
mesmos resultados. Para os évolués franceses, de quem Léopold Senghor
é a epítome, não havia como pensar numa explicação cultural de sua
diferença da Europa, pois, culturalmente, como exigia a política
francesa de assimilation, era fatal que acreditassem que,
independentemente do que mais pudessem ser, eles eram no mínimo
franceses. Uma história que merece ser recontada com freqüência é que
essa política resultou em que as crianças africanas do Império Francês
liam livros didáticos que falavam dos gauleses como “nos ancêtres”
[nossos ancestrais].
Naturalmente, só em sentido gurado uma criança senegalesa podia
a rmar descender de Asterix; e, como mostrou Camara Laye em E Enfant
noir, a escolarização colonial fracassou, tão notavelmente na África
francófona quanto na anglófona, em seu propósito de “libertar” seus
objetos de suas raízes culturais. Não importa em que sentido os gauleses
fossem seus ancestrais, eles sabiam que eram — e que se esperava que
continuassem a ser — “diferentes”. Para dar conta dessa diferença,
também eles foram remetidos a teorias raciais.
Assim é que Senghor, o primeiro presidente do Senegal, arquiteto de
sua independência e expoente da négntude — o principal movimento
literário francófono africano e afro-caribenho de nosso século —, é
também membro da Académie Française, ilustre poeta francês e ex-
membro da Assembléia Nacional da França. Assim é que esse francês
extremamente culto — falando em termos culturais, senão jurídicos — é
também, aos olhos de milhões de franceses e africanos francófonos
(como também a seus olhos, é claro), um porta-voz da raça negra.

Para a geração que teorizou a descolonização da África, portanto, a


“raça” foi um princípio organizador central. E, como esses africanos
herdaram sua concepção de “raça” basicamente de seus precursores no
Novo Mundo, entenderemos melhor a profunda intricação do pan-
africanismo com essa concepção se examinarmos, primeiramente, de que
modo ela foi manejada no trabalho dos intelectuais afro-americanos que
moldaram os elos entre a raça e o pan-africanismo. Essa história tem
sido contada com freqüência no caso francófono — é muito difícil
ignorar a centralidade da raça no desenvolvimento da négritude —, mas
tem seu equivalente anglófono.7
No capítulo 2, portanto, examino essa questão na obra de W. E. B. Du
Bois, e começo pela discussão de um artigo sobre a “Preservação das
raças” que ele apresentou à American Negro Academy no ano em que ela
foi fundada por Alexander Crummell.
Mas, o uso que Crummell fazia do termo “raça” era menos articulado
teoricamente — e portanto, mais representativo — que o de Du Bois.
Não obstante, ele forneceu uma de nição — muitos anos depois de sua
celebração da língua inglesa na Libéria — que mais tarde encontraria
eco em Du Bois: “uma RAÇA, isto é, uma população compacta e
homogênea de uma única ascendência e linhagem sangüíneas...”8 Como
Du Bois, ele acreditava que “as raças têm sua individualidade. Essa
individualidade está sujeita, em todas as épocas, às leis da vida racial.
Essa vida racial, em todo o globo, mostra uma invariável propensão, na
totalidade dos casos, à integração do sangue e à permanência da
essência”.9 Ou então, como ele a rma em outra passagem, “há certas
tendências, vistas por mais de duzentos anos em nossa população, que
indicam propensões estabelecidas e determinadas e mostram, se não
estou enganado, o destino das raças. (...) o princípio da raça é uma das
coisas mais persistentes na constituição do homem”.10
Não há razão para crer que Crummell jamais endossasse
explicitamente qualquer visão muito especí ca sobre o caráter biológico
da diferença racial, ou que se indagasse, como Du Bois veio a fazer, se
haveria uma “permanência da essência”. Embora ele sempre presuma que
existem raças e que ser membro de uma raça implica a posse de certos
traços e inclinações, sua noção de “raça” — como a da maioria dos pan-
africanistas posteriores — é menos pensada do que sentida. Assim, é
difícil estabelecer algumas das distinções de que precisamos ao nos
formularmos o que está fadado a parecer uma pergunta importante: se e
em que sentido o movimento pan-africanista, e Crummell como sua
epítome, devem ser chamados de “racistas”.

Convém reconhecer com clareza que, no começo, por mais incipiente


que fosse a forma de teoria racial adotada por Crummell, ela
representou algo novo no século XIX. O fato de a forma especí ca
assumida pela teoria racial ser nova não signi ca, é claro, que ela não
tivesse antecedentes históricos; mas é importante, para compreender o
que havia de singular na teoria racial de Crummell, relembrarmos suas
continuidades e sua distância em relação a seus predecessores.
Remontando quase aos escritos humanos mais primitivos, a nal,
podemos encontrar opiniões mais ou menos bem articuladas sobre as
diferenças entre “nossos iguais” e as pessoas de outras culturas. Essas
doutrinas, como as modernas teorias raciais, muitas vezes depositaram
uma ênfase central na aparência física ao de nir o “Outro”, bem como na
ascendência comum ao explicar por que os grupos de pessoas exibem
diferenças em suas atitudes e aptidões.
Se chamarmos de “povo” qualquer grupo de seres humanos de
ascendência comum que vivam juntos em algum tipo de associação, por
mais frouxamente que esta se estruture, poderemos dizer que toda
cultura humana ciente de outros povos parece ter tido opiniões sobre o
que respondia pelas diferenças — de aparência, costumes e linguagem —
entre eles. Isso certamente se aplica às duas principais tradições da
Antiguidade para as quais se voltaram os pensadores europeus e norte-
americanos em geral (como Crummell, em particular): a dos gregos
clássicos e a dos antigos hebreus. Assim, no século V a.C., encontramos
Hipocrates, na Grécia, procurando explicar a (suposta) superioridade de
seu povo em relação aos povos da Ásia (Ocidental) pela alegação de que
os solos áridos da Grécia haviam forçado os gregos a se tornar mais
fortes e independentes. Tal visão atribui as características de um povo a
seu meio ambiente, deixando em aberto a possibilidade de que seus
descendentes se modi quem, caso se mudem para novas condições.
Embora a opinião geral na Grécia pareça ter sido a de que os “etíopes”
negros ao sul e os “citas” louros ao norte eram inferiores aos helenos,
não havia uma suposição geral de que essa inferioridade fosse
incorrigível. A nal, os gregos instruídos sabiam que, tanto na Ilíada
quanto na Odisséia, Homero descrevera Zeus e outros deuses do Olimpo
banqueteando-se com os “etíopes”, que ofereciam pias hecatombes de
carneiros e bois aos imortais; nas obras dos so stas pré-socráticos há
argumentos no sentido de que é o caráter individual, e não a cor da pele,
que determina o valor de uma pessoa.11
Os gregos identi cavam os povos por sua aparência característica,
tanto em aspectos biológicos, como a cor da pele, dos olhos e do cabelo,
quanto em questões culturais, como os penteados, o corte da barba e os
estilos de vestuário. E, embora tivessem uma opinião negativa da maioria
das culturas não gregas — chamavam os estrangeiros de “bárbaros”,
segundo a etimologia popular, porque a fala destes soava como um
contínuo “bar bar...” —, eles respeitavam muitos indivíduos de aparência
diferente (em particular quanto à cor da pele) e presumiam, por
exemplo, haver adquirido muito de sua cultura do povo de pele mais
escura do Egito. Depois que os romanos assumiram o controle do
mundo mediterrâneo e herdaram a cultura grega, exatamente essa
mesma visão pode ser encontrada em seus autores — um padrão que
ultrapassa o auge do Império Romano e prossegue no período do
declínio imperial.
No Velho Testamento, por outro lado, como seria de se esperar, o que
se considera característico nos povos são menos a aparência e os
costumes do que sua relação, através de um ancestral comum, com Deus.
Assim, no Gênesis, Jeová diz a Abraão: “Sai de tua terra, e de tua
parentela, e da casa do teu pai, e vai para a terra que te mostrarei; farei
de ti um grande povo (...) e farei célebre o teu nome” (Gênesis, cap. 12, v.
1, 2). E, a partir desse momento fundante, desse pacto entre Abraão e
Jeová, os descendentes de Abraão têm um lugar especial na história.
Obviamente, é o neto de Abraão, Jacó, que assume o nome de Israel: e
assim seus descendentes se tornam o “povo de Israel”.
O Velho Testamento está repleto de nomes de povos. Alguns ainda são
familiares, como sírios, listeus e persas; outros, um pouco menos, como
cananeus, hititas e medas. Muitos desses grupos são levados em conta nas
genealogias dos povos da Terra e explicitamente vistos como
descendendo, em última instância, não apenas do primeiro casal
humano, Adão e Eva, porém, mais particularmente, dos três lhos de
Noé. Assim como os israelitas são “ lhos de Sem”, os lhos de Cam e Jafé
respondem pelo resto da “família” humana.
Mas, conquanto esses diferentes povos sejam considerados como tendo
características e ancestrais diferentes, a perspectiva fundamentalmente
teocêntrica do Velho Testamento exige que a diferença entre todos eles e
os hebreus seja, essencialmente, o fato de eles não terem com Jeová a
relação especial característica dos lhos e descendentes de Israel. Há
muito poucos indícios de que os primeiros escritores judeus tenham
elaborado qualquer teoria sobre a importância relativa das heranças
biológicas e culturais pelas quais Deus distinguiu esses povos diferentes.
De fato, no contexto teocêntrico, o que importa é o pacto com Deus, e a
própria distinção entre características ambientais e herdadas é
anacrônica.
Quando o profeta Jeremias pergunta “Pode um etíope modi car sua
pele, ou um leopardo, suas manchas?” (Jeremias, cap. 13, v. 23), a
sugestão de que a pele escura herdada pelos africanos era algo que eles
não podiam alterar não implicava, necessariamente, que a “natureza” dos
africanos fosse inalterável em outros aspectos, ou que eles
inevitavelmente herdassem traços morais ou intelectuais especiais
juntamente com a cor da pele.
Se há um modo normal de a Bíblia explicar as características
distintivas dos povos, é contando uma história em que um ancestral é
abençoado ou amaldiçoado. Esse modo de pensar também funciona no
Novo Testamento e, ironicamente, tornou-se a base de teses
subseqüentes da Europa cristã (no início do século XI) em favor do anti-
semitismo. Pois, quando “os judeus” do Evangelho de São Mateus
escolhem Barrabás e não Cristo, em resposta à oferta de Pilatos de
libertar um dos dois, eles respondem: “Caia o seu sangue sobre nós e
sobre nossos lhos” (Mateus, cap. 27, v. 25). Na verdade, nesse ponto, “os
judeus” amaldiçoam a si mesmos.
Também os gregos, visivelmente, tinham idéias sobre certos clãs que
teriam as características morais que lhes eram próprias em virtude de
bênçãos ou maldições lançadas sobre seus ancestrais. A nal, o Édipo rei,
de Sófocles, é arrastado para seu destino por força de uma maldição
sobre sua família pela qual ele di cilmente seria responsável, uma
maldição que prossegue, na geração seguinte, nos Sete contra Tebas, de
Ésquilo. Mas, mesmo nesses casos, nunca se trata de a maldição
funcionar tornando toda a linhagem perversa, ou modi cando de outro
modo sua natureza fundamental. O destino atua sobre as pessoas por
causa de sua ascendência, quando sua linhagem é amaldiçoada. E isso, no
que concerne às explicações, é mais ou menos o m da história. Se o
caráter moral tiver que ser explicado, entretanto, ele o será através do
ambiente.
Insisto no fato de que a concepção grega das diferenças culturais e
históricas entre os povos era essencialmente ambiental, e de que a
concepção judaica era essencialmente uma questão das conseqüências
teológicas dos pactos com (ou das maldições sobre) os ancestrais. E a
razão disso há de ser óbvia, se pensarmos por um momento nas
passagens de Crummell que citei na seção anterior: nem o ambientalismo
dos gregos nem a compreensão hebraica teocêntrica da importância de
ser um povo são idéias que devamos naturalmente aplicar para entender
o uso que Crummell faz da idéia de raça. Na medida em que pensarmos
na ideologia racial de Crummell como moderna, como implicando
idéias que nós entendemos, deveremos supor que ele acreditava que as
“propensões estabelecidas e determinadas” re etiam as capacidades
hereditárias de uma raça. Em nossa época, a raça tornou-se, por
de nição, uma questão de herança.
De fato, mesmo que Crummell pensasse (como parece ter feito) que
era parte do plano de Deus para o mundo que os herdeiros dos anglo-
saxões o governassem, ele não teria pensado nessa missão divina como
algo que lhes fosse assegurado porque algum ancestral houvesse
agradado a Deus e sido abençoado com uma recompensa hereditária
(ou, a propósito, porque os ancestrais das “raças mais escuras”
houvessem ofendido a Deus e sido amaldiçoados). Sucede que, na época
de Crummell, uma compreensão singularmente moderna do que
signi cava ser um povo — uma compreensão em termos de nossa
moderna noção de raça — estava começando a ser forjada: essa noção
tinha em seu cerne uma nova concepção cientí ca da hereditariedade
biológica, ainda que desse continuidade a alguns dos papéis
desempenhados no pensamento grego e judaico pela idéia de povo. Mas,
ela também se entrelaçava com uma nova compreensão do povo como
nação, e do papel da cultura — e, crucialmente (como veremos no
capítulo 3), da literatura — na vida das nações.
Assim, se quisermos responder se Crummell era racista, primeiro
teremos de levantar o teor característico do racismo do século XIX.
Veremos de imediato que há muitas doutrinas distintas que competem
pelo termo “racismo”, dentre as quais tentarei articular as que considero
serem as três cruciais. (Assim, usarei as palavras “racismo” e “racialismo”
com os sentidos que estipulo: em alguns dialetos do inglês, elas são
sinônimas — e, na maioria dos dialetos, sua de nição não chega a ser
precisa.) A primeira doutrina é a visão — que chamarei de racialismo —
de que existem características hereditárias, possuídas por membros de
nossa espécie, que nos permitem dividi-los num pequeno conjunto de
raças, de tal modo que todos os membros dessas raças compartilham
entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com
membros de nenhuma outra raça. Esses traços e tendências
característicos de uma raça constituem, segundo a visão racialista, uma
espécie de essência racial; e faz parte do teor do racialismo que as
características hereditárias essenciais das “Raças do Homem” respondam
por mais do que as características morfológicas visíveis — cor da pele,
tipo de cabelo, feições do rosto — com base nas quais formulamos nossas
classi cações informais. O racialismo está no cerne das tentativas do
século XIX de desenvolver uma ciência da diferença racial, mas parece
ter despertado também a crença de outros — como Hegel,
anteriormente, e Crummell e muitos africanos desde então — que não
tinham nenhum interesse em elaborar teorias cientí cas.
Em si, o racialismo não é uma doutrina que tenha que ser perigosa,
mesmo que se considere que a essência racial implica predisposições
morais e intelectuais. Desde que as qualidades morais positivas
distribuam-se por todas as raças, cada uma delas pode ser respeitada,
pode ter seu lugar “separado mas igual”. Diversamente da maioria das
pessoas educadas no Ocidente, creio que o racialismo é falso — e
discutirei isso no capítulo sobre Du Bois; mas, por si só, ele mais se
a gura um problema cognitivo do que um problema moral. A questão é
como o mundo é, e não como gostaríamos que fosse.
O racialismo, entretanto, é um pressuposto de outras doutrinas que
foram chamadas de “racismo”; e essas outras doutrinas têm sido, nos
últimos séculos, a base de um bocado de sofrimento humano e a fonte de
inúmeros erros morais.
Uma dessas doutrinas — agora, a segunda de minhas três rivais pelo
rótulo de “racismo” — é o que se poderia chamar de “racismo
extrínseco”: os racistas extrínsecos fazem distinções morais entre os
membros das diferentes raças, por acreditarem que a essência racial
implica certas qualidades moralmente relevantes. A base da
discriminação que os racistas extrínsecos fazem entre os povos é sua
crença em que os membros das diferentes raças diferem em aspectos que
justificam o tratamento diferencial; aspectos — como a honestidade, a
coragem ou a inteligência — incontrovertidamente considerados (ao
menos na maioria das culturas contemporâneas) aceitáveis como base
para o tratamento diferencial das pessoas. Assim, a prova de que não
existem tais diferenças em características moralmente relevantes — de
que não faltam necessariamente aos negros aptidões intelectuais, ou de
que os judeus não são especialmente avarentos — deveria retirar as
pessoas de seu racismo, sendo este puramente extrínseco. Como sabemos,
é comum tal prova não conseguir alterar substancialmente as atitudes de
um racista extrínseco, pois alguns dos melhores amigos do racista
extrínseco sempre foram judeus. Mas, nesse ponto, se o racista for
sincero, o que temos já não é uma doutrina falsa, mas uma de ciência
cognitiva.
Essa de ciência cognitiva, naturalmente, não é rara. Muitos de nós
somos incapazes de abandonar crenças que desempenham um papel na
justi cação das vantagens especiais que auferimos de nossas posições na
ordem social. Muitas pessoas que expressam crenças racistas extrínsecas
— muitos sul-africanos brancos, por exemplo — bene ciam-se de ordens
sociais que lhes conferem vantagens em virtude de sua “raça”, de modo
que sua pouca inclinação a aceitar provas que as privem de uma
justi cação dessas vantagens é apenas um exemplo desse fenômeno geral.
Do mesmo modo, a prova de que o acesso ao ensino superior é
largamente determinado pela qualidade de nossa formação anterior,
tanto quanto por nossos talentos inatos, não mina, de modo geral, a
con ança dos que ingressam nas faculdades, provenientes de escolas
particulares da Inglaterra, Estados Unidos ou Gana. Muitos deles
continuam a achar, diante dessa evidência, que sua aceitação nas “boas”
universidades mostra que eles são mais bem dotados intelectualmente (e
não apenas mais bem preparados) do que os rejeitados. São fatos como
esses que dão sentido à noção de falsa consciência, à idéia de que uma
ideologia pode proteger-nos de enfrentar fatos que ameacem nossa
posição.
Meu interesse aqui não diz respeito aos processos psicológicos ou (de
um modo talvez mais importante) aos processos sociais pelos quais essas
defesas atuam: mas a recusa de alguns racistas extrínsecos a aceitar
provas contrárias a suas crenças deve ser encarada como um exemplo de
um fenômeno muito difundido nas questões humanas. É um fato
evidente, para o qual as teorias da ideologia devem voltar-se, que nossa
espécie é moral e intelectualmente propensa à parcialidade de
julgamento. A incapacidade de mudar de idéia diante das evidências é
uma de ciência cognitiva, da qual todos nós decerto sofremos em
algumas áreas de crença. Mas não constitui, como a rmaram alguns,
uma tendência que sejamos impotentes para alterar. Para abalar as
convicções daqueles cuja incapacidade decorre desse tipo de defesa
ideológica, talvez seja útil lhes mostrarmos como sua reação se encaixa
no padrão geral. Na verdade, é em virtude de essas visões efetivamente
costumarem se enquadrar nesse padrão que as chamamos de “racismo” —
vindo o su xo “-ismo” indicar que o que temos em mente não é apenas
uma teoria, mas uma ideologia. Seria estranho chamar de racista alguém
criado num canto remoto do mundo, em meio a opiniões falsas e
depreciativas sobre os brancos, se ele ou ela abandonasse essas crenças
com toda a facilidade diante das evidências.
A rmei que o racista extrínseco sincero pode sofrer de uma de ciência
cognitiva. Mas, alguns dos que abraçam doutrinas racistas extrínsecas são
simplesmente racistas intrínsecos insinceros. Pois (e eis aqui meu terceiro
candidato ao rótulo de “racista”) os racistas intrínsecos, segundo minha
de nição, são pessoas que estabelecem diferenças morais entre os
membros das diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um
status moral diferente, independentemente das características
partilhadas por seus membros. Assim como, por exemplo, muita gente
presume que o simples fato de ser biologicamente aparentada com outra
pessoa — um irmão, uma tia, um primo — lhe confere um interesse
moral por essa pessoa, o racista intrínseco sustenta que o simples fato de
ser de uma mesma raça é razão su ciente para preferir uma pessoa a
outra. Para um racista intrínseco, nenhuma quantidade de provas de que
um membro de outra raça é capaz de realizações morais, intelectuais ou
culturais, ou de que tem características que, em membros de sua própria
raça, haveriam de torná-lo admirável ou atraente, serve de base para
tratar essa pessoa como ele trataria os membros similarmente dotados de
sua própria raça. Do mesmo modo, alguns sexistas são “sexistas
intrínsecos”, a rmando que o simples fato de alguém ser mulher (ou
homem) é razão para tratá-la(o) de determinadas maneiras. A diferença
fundamental entre os “-ismos” intrínseco e extrínseco é que o primeiro
declara que um certo grupo é objetável, sejam quais forem seus traços,
ao passo que o segundo fundamenta suas aversões em alegações sobre
características objetáveis.
Haverá quem já queira objetar que minha discussão do teor das
crenças morais e factuais racistas subestima algo que é absolutamente
crucial para o caráter da realidade psicológica e sociológica do racismo,
ponto em que toquei ao mencionar que os enunciados racistas
extrínsecos são freqüentemente feitos por pessoas que sofrem do que
chamei de “de ciência cognitiva”. Como resultado, convém também
a rmar aqui, explicitamente, que a maioria dos racistas na vida real
exibe uma racionalidade sistematicamente distorcida: precisamente o
tipo de racionalidade sistematicamente distorcida que costumamos
reconhecer na ideologia. E trata-se de uma distorção especialmente
notável no campo cognitivo: os racistas extrínsecos, por mais
inteligentes ou bem informados que sejam, amiúde não tratam
desapaixonadamente as provas contrárias às proposições teóricas do
racismo extrínseco. Tal como o racismo extrínseco, o intrínseco também
pode comumente ser visto como ideológico: mas, uma vez que as provas
cientí cas não resolvem a questão, a incapacidade de ver que esse
racismo é errado só representa uma de ciência cognitiva no que tange às
visões loso camente controvertidas sobre a natureza da moralidade.12
O que torna o racismo intrínseco igualmente ideológico não é tanto a
de ciência da racionalidade indutiva ou dedutiva, que é tão marcante,
digamos, na teoria o cial africâner, mas a ligação que ele tem, tal como
o racismo extrínseco, com os interesses — reais ou percebidos — do
grupo dominante.
Há possibilidades interessantes de complicar as distinções que
estabeleci: por exemplo, alguns racistas alegam, como Crummell, que
fazem discriminações entre as pessoas por acreditarem que Deus exige
que eles ajam assim. Será esse um racismo extrínseco, baseado na
combinação entre Deus como um racista intrínseco e a crença em que é
correto fazer o que Deus quer? Ou será que é um racismo intrínseco, por
se basear na crença em que Deus requer essas discriminações, por elas
serem certas? (Essa distinção tem paralelos interessantes com a pergunta
do Eutífron:*15 será que um ato é piedoso porque os deuses o amam, ou
será que eles o amam por ser piedoso?) Não obstante, creio que o
contraste entre racialismo e racismo e a identi cação de dois tipos
potencialmente superpostos de racismo fornecem-nos o esqueleto de
uma anatomia das atitudes raciais. De posse desses instrumentos
analíticos, podemos nalmente abordar a questão do racismo de
Alexander Crummell.

Certamente, Crummell era racialista (em meu sentido) e também


(novamente, em meu sentido) racista. Mas, nem sempre cou claro se
seu racismo era extrínseco ou intrínseco. Apesar de ele ter tido opiniões
muito negativas e esperanças muito elevadas em relação aos negros,
porém, podemos suspeitar que o racismo subjacente a seu pan-
africanismo teria sido, se articulado, fundamentalmente intrínseco;
portanto, teria sobrevivido à descoberta de que aquilo em que ele
acreditava no tocante à ligação entre a raça e a capacidade moral era
falso. É verdade que ele diz, ao discutir “O problema racial nos Estados
Unidos”, que “seriam necessárias gerações e mais gerações para tornar o
povo norteamericano homogêneo no sangue e nas qualidades essenciais”,
deixando implícito, como alguns poderiam supor, que são as realidades
da diferença racial — a diferença moral “essencial”, a diferença das
“qualidades” — entre os membros de diferentes raças que exigem uma
resposta moral diferente.13 Mas, tudo com que essa a rmação o
compromete, por si só, é o racialismo: a existência presente de diferenças
raciais. E, em outros pontos — como ao discutir “As relações e deveres
dos negros livres dos Estados Unidos com a África” —, ele fala das
demandas feitas pela África aos negros de toda parte como “uma
convocação natural”,14 um “grande e nobre trabalho planejado pela
Providência Divina”,15 como se o status moral diferente das várias raças
derivasse, não de seu caráter moral diferenciado, mas de lhes serem
atribuídas diferentes tarefas por Deus. Segundo essa visão, poderia haver
uma alocação de tarefas moralmente diferentes, sem nenhuma diferença
especial de capacidade moral ou cognitiva.
Nesse ponto, o modelo de Crummell, como o da maioria dos
nacionalistas negros do século XIX, era, é claro, a história bíblica dos
judeus: Jeová escolheu os lhos de Israel e fez um pacto com eles como
Seu povo, e isso lhes conferiu um papel moral especial na história. Mas,
como a rmei antes, Ele não lhes deu nenhum equipamento biológico ou
intelectual especial para sua tarefa especial.
Se nem sempre ca claro se o racismo de Crummell era intrínseco ou
extrínseco, decerto não há razão para esperarmos poder resolver a
questão. Já que, provavelmente, esse problema nunca lhe ocorreu nesses
termos, não podemos supor que ele tenha tido uma resposta. Na
verdade, dada a de nição dos termos que ofereci, nada impede que
alguém seja um racista intrínseco e extrínseco, a rmando que a simples
realidade da raça lhe fornece uma base para tratar os membros de sua
própria raça de um modo diferente dos das outras, e que existem
características moralmente relevantes que se distribuem
diferencialmente entre as raças. Com efeito, por razões que discutirei
dentro em pouco, a maioria dos racistas intrínsecos tende a expressar
crenças racistas extrínsecas, de modo que não deve surpreender-nos que
Crummell pareça ter-se comprometido, efetivamente, com as duas
formas de racismo.
Mencionei anteriormente o poderoso impacto exercido pelo racismo
nazista nos africanos instruídos que estavam na Europa depois da guerra;
desde então, o desenvolvimento político do apartheid na República da
África do Sul manteve nosso continente continuamente atento à ameaça
que o racismo representa para a dignidade humana. Ninguém que viva
na Europa ou nos Estados Unidos — pelo menos, ninguém senão um
heremita sem nenhum acesso aos meios jornalísticos — pode deixar de
estar ciente dessas ameaças. Em tais circunstâncias, sem dúvida parece
politicamente inoportuno, na melhor das hipóteses, e moralmente
insensível, na pior delas, usar o mesmo termo — “racismo” — para
descrever as atitudes que encontramos em Crummell e em muitos de
seus herdeiros pan-africanistas. Mas, essa reação natural fundamenta-se,
creio eu, em confusões.
O que há de peculiarmente aterrador no racismo nazista não é que ele
tenha pressuposto, como faz qualquer forma de racismo, crenças
(racialistas) falsas, nem tampouco que trouxesse dentro de si uma falha
moral — a incapacidade de estender a igualdade de consideração a
nossos semelhantes —, mas sim o fato de ele ter levado, primeiro, à
opressão, e depois, ao assassinato em massa. E, embora o racismo sul-
africano não tenha conduzido a matanças na escala do Holocausto —
conquanto tenha levado a África do Sul a executar judicialmente mais
membros (quase sempre negros) per capita da população do que a
maioria dos outros países, e levado a diferenças maciças entre as
expectativas de vida dos sul-africanos brancos e não brancos —, ele de
fato levou à opressão sistemática e à exploração econômica das pessoas
não classi cadas como “brancas”, bem como à imposição de sofrimentos
aos cidadãos de todas as classi cações raciais, inclusive pelo Estado
policialesco exigido para se manter essa exploração e opressão.
Portanto, parte de nossa resistência a chamar as idéias raciais de
Crummell pelo mesmo termo que usamos para descrever as atitudes de
muitos africâneres reside, por certo, no fato de Crummell jamais haver
contemplado, nem por um momento, a utilização da raça como base
para fazer mal a alguém. A rigor, parece-me haver um padrão
signi cativo na retórica do racismo moderno: o discurso da
solidariedade racial costuma expressar-se através da linguagem do
racismo intrínseco, enquanto os que usaram a raça como base da opressão
e do ódio apelaram para idéias racistas extrínsecas. Esse ponto é
importante para compreendermos o caráter do pan-africanismo
contemporâneo.

Na África, na Europa e nos Estados Unidos, os dois principais e mais


conhecidos usos da raça como fundamento para a solidariedade moral
são variações do pan-africanismo e do sionismo. Em ambos os casos,
pressupõe-se que um “povo”, os negros ou os judeus, tenha como base
para uma vida política comum o fato de pertencer a uma única raça. Há
variedades de cada uma dessas formas de “nacionalismo” que fazem com
que a base resida nas tradições comuns; contudo, por mais plausível que
seja isso no caso do sionismo, que tem no judaísmo, como religião, um
candidato realista a um foco comum e não racial de nacionalidade, os
povos da África têm muito menos em comum, culturalmente, do que se
costuma supor. Voltarei a essa questão em capítulos posteriores, mas
permitam-me dizer desde logo qual é, a meu ver, o fato central: o que os
negros do Ocidente, tal como os judeus secularizados, mais têm em
comum é o fato de serem percebidos — por eles mesmos e pelos outros
— como pertencendo a uma mesma raça, e de essa raça comum ser usada
pelos outros como fundamento para discriminá-los: “Se algum dia você
esquecer que é judeu, um goy o lembrará disso.” Os pan-africanistas
reagiram à sua experiência de discriminação racial aceitando o
racialismo que ela pressupunha. Como argumentarei no capítulo 2, sem
os antecedentes das noções raciais desaparece essa fundamentação
intelectual original do panafricanismo.
Embora a raça realmente esteja no cerne do nacionalismo pan-
africanista, entretanto, parece que é a realidade de uma raça comum, e
não a de um caráter racial comum, que proporciona a base para a
solidariedade. Quando o racismo se entranha na base da solidariedade
nacional, ele é intrínseco, e não extrínseco. É isso que faz da idéia de
fraternidade uma idéia naturalmente aplicável ao discurso nacionalista.
Pois, como já assinalei, o status moral dos parentes próximos não é
normalmente considerado, na maioria das culturas, como decorrente
das qualidades do caráter: supõe-se que amemos nossos irmãos e irmãs a
despeito de suas falhas, e não por suas virtudes. Crummell, novamente
uma gura representativa, usa a metáfora da família e a torna literal
nestas palavras surpreendentes:
As raças, como as famílias, são organismos e ordenações de Deus; e o sentimento racial, tal
como o sentimento familiar, é de origem divina. A extinção do sentimento racial é tão possível
quanto a extinção do sentimento familiar.
Na verdade, a raça é uma família.16

É a assemelhação do “sentimento racial” ao “sentimento familiar” que


faz o racismo intrínseco parecer tão menos objetável do que o
extrínseco. É que essa identi cação metafórica re ete o fato de que, no
mundo moderno (ao contrário do século XIX), o racismo intrínseco é
quase que exclusivamente reconhecido como a base dos sentimentos
comunitários. Desse modo, certamente podemos ter uma idéia daquilo
que um amigo e companheiro de trabalho de Crummell, Edward Blyden,
chamou de “a poesia da política”, que é “o sentimento da raça”, o
sentimento das “pessoas a quem estamos ligados”.17 O racismo, aqui,
serve de base para exageros, para um tratamento melhor do outro do
que dispensaríamos em condições diferentes, melhor do que o dever
moral exige de nós.
Esse, insisto, é um dado contingente, é algo que poderia facilmente ter
sido outra coisa. Não há nenhuma impossibilidade lógica na idéia de
racialistas cujas crenças morais levam a sentimentos de ódio contra
outras raças, ao mesmo tempo não deixando espaço para o amor pelos
membros da sua. No entanto, a maior parte do ódio racial é de fato
expressa pelo racismo extrínseco: a maioria das pessoas que usaram a
raça como base para fazer mal aos outros sentiu necessidade de ver esses
outros como moralmente falhos por si mesmos. Uma coisa é alguém
abraçar a fraternidade sem alegar que seus irmãos e irmãs têm quaisquer
qualidades especiais que mereçam reconhecimento, e outra é ele abraçar
o ódio por outros que nada zeram para merecê-lo. Conta-se uma
história — uma das muitas numa tradição heróica de humor judaico na
opressão — de um velho judeu provocado por um par de nazistas numa
rua de Berlim, na década de 1930. “Quem você acha que é responsável
por todos os nossos problemas, judeu?”, pergunta um dos provocadores.
O ancião faz uma pequena pausa e responde: “Por mim, acho que são os
fabricantes de pretzel*16 ” “Por que os fabricantes de pretzel ?”, pergunta o
nazista; e vem a resposta: “E por que os judeus?” Na Alemanha dominada
pelos nazistas, qualquer observador, mesmo vagamente objetivo, teria
sido levado a formular essa pergunta. Mas Hitler tinha para ela uma
resposta comprida — uma lista extensa, ainda que absurda, de acusações
contra a “raça” judaica.
Similarmente, muitos africâneres — como muitos do Sul dos Estados
Unidos até data recente — têm uma longa lista de respostas racistas
extrínsecas para a pergunta sobre por que os negros não devem ter
plenos direitos civis. O racismo extrínseco costuma ser a base para
tratarmos as pessoas pior do que faríamos em outras circunstâncias, e
para lhes darmos menos do que aquilo a que sua humanidade as habilita.
Mas, também esse é um fato contingente. Na verdade, o cauteloso
respeito de Crummell pelos brancos decorria de uma crença nas
qualidades morais superiores da raça anglo-saxônica.
O racismo intrínseco é, a meu ver, um erro moral. Mesmo que o
racialismo fosse correto, o simples fato de alguém pertencer a outra raça
não seria razão para tratá-lo pior — ou melhor — do que a alguém da
própria raça. Em nossa vida pública, as pessoas devem ser tratadas
independentemente de suas características biológicas: para que sejam
diferentemente tratadas, tem que haver alguma diferença moralmente
relevante entre elas. Em nossa vida privada, somos moralmente livres
para ter preferências “estéticas” entre as pessoas, mas, como nosso
tratamento delas levanta questões morais, não podemos fazer distinções
arbitrárias. Usar a raça em si como uma distinção moralmente relevante
parece-nos obviamente arbitrário. Sem características morais associadas,
por que haveria a raça de fornecer uma base melhor do que a cor do
cabelo, a altura ou o timbre da voz? E, quando duas pessoas
compartilham todas as propriedades moralmente relevantes para uma
ação que devamos praticar, seria um erro — uma incapacidade de aplicar
a injunção kantiana de universalizar nossos juízos morais — usar os
meros fatos da raça como base para tratá-las de maneira diferenciada.
Ninguém há de negar que a ascendência comum pode, em alguns casos
particulares, responder por semelhanças no caráter moral. Mas, nesse
caso, as semelhanças morais é que justi cariam o tratamento
diferenciado.
Presumivelmente, a maioria das pessoas — excetuados o Partido
Nacionalista Sul-Africano e a Ku Klux Klan — têm em comum o
sentimento de que o racismo intrínseco requer distinções arbitrárias.
Por isso, em sua maioria, elas não se dispõem a expressá-lo em situações
que suscitem uma crítica moral. Mas, não sei como eu discutiria com
alguém que se dispusesse a anunciar um racismo intrínseco como uma
idéia moral básica.
Poder-se-ia supor que essa visão devesse ser encarada menos como a
adesão a uma proposição (moral) do que como a expressão de um gosto,
análogo, digamos, ao preconceito alimentar que faz com que a maioria
dos ingleses não se disponha a comer carne de cavalo, e com que a
maioria dos ocidentais não queira comer as larvas de insetos que o povo
!Kung da África Austral considera tão apetitosas. Essa analogia faz por
nós ao menos isto: fornece um modelo do modo como o racismo
extrínseco pode ser re exo de um preconceito intrínseco subjacente.
Pois, é claro, na maioria das culturas, os preconceitos alimentares são
racionalizados: os norte-americanos dizem que os insetos são anti-
higiênicos, e o povo achanti, que os gatos devem ter um sabor horrível.
No entanto, um inseto cozido não é mais ameaçador para a saúde do que
uma cenoura cozida, e o sabor desagradável da carne de gato, longe de
justi car nosso preconceito contra ela, provavelmente decorre desse
preconceito.
Mas, aí termina a utilidade da analogia. Pois o racismo intrínseco, tal
como o de ni, não é simplesmente uma preferência pela companhia dos
“iguais” [one’s “own kind”], mas uma doutrina moral, uma doutrina que
supostamente subjaz a diferenças no tratamento das pessoas em
contextos em que a avaliação moral é apropriada. E, no que tange às
distinções morais, não podemos aceitar que de gustibus non disputandum
[“gosto não se discute”]. Não é preciso todo o aparato da ética kantiana
para exigir que a moral seja limitada pela razão.
Uma analogia adequada seria com alguém que achasse que podia
continuar a matar o gado para obter carne, mesmo que o gado exercesse
todas as complexas habilidades culturais dos seres humanos. Penso ser
óbvio que criaturas que compartilhassem nossa capacidade de
entendimento e nossa capacidade de sentir dor não seriam tratadas do
modo como efetivamente tratamos o gado; que um “especismo
intrínseco” seria tão errôneo quanto o racismo. E o fato de a maioria das
pessoas considerar pior a crueldade com os gol nhos do que com os
sapos sugere que elas talvez concordem comigo. Essa distinção nas
atitudes por certo re ete a crença em que a vida mental dos grandes
mamíferos é mais rica. Mesmo assim, como a rmei, não sei como eu
haveria de argumentar com alguém que não conseguisse enxergar isso;
alguém que continuasse a agir segundo a crença contrária poderia, no
m das contas, simplesmente ter que ser tranca ado.
Se, como creio, o racismo intrínseco é um erro moral e o racismo
extrínseco implica falsas crenças, de modo algum é evidente que o
racismo seja o pior erro que nossa espécie cometeu em nossa época. O
que houve de errrado no genocídio nazista foi que ele acarretou o
assassinato sádico de milhões de inocentes; dito isso, seria perverso
concentrar demasiada atenção no fato de que a lógica alegada para esse
assassinato foi a “raça”. Os assassinatos em massa de Stalin ou de Pol
Pot *17 extraem pouca vantagem moral de terem sido
predominantemente baseados em critérios não raciais.
O pan-africanismo herdou o racismo intrínseco de Crummell. Não se
pode dizer que o tenha herdado de Crummell, já que, na época deste, era
uma propriedade intelectual comum do Ocidente. Podemos ver
Crummell como um símbolo da in uência desse racismo nos intelectuais
negros, uma in uência profundamente calcada na retórica do
nacionalismo africano do após-guerra. É notável o quanto de Crummell
ou Blyden podemos ouvir, por exemplo, no primeiro primeiro-ministro
de Gana, Kwame Nkrumah, quando ele narra, na Autobiografia de Kwame
Nkrumah, um discurso feito na Libéria em 1952, quase um século depois
do discurso de Crummell pelo qual comecei:
Assinalei que a Providência é que havia preservado os negros durante seus anos de provação
no exílio, nos Estados Unidos da América e nas Índias Ocidentais; que se tratava da mesma
Providência que havia cuidado de Moisés e dos israelitas no Egito, séculos antes. “Um grande
êxodo está chegando à África de hoje”, declarei, “e esse êxodo será con rmado quando houver
uma África Ocidental unida, livre e independente (...).”
“A África para os africanos!”, exclamei. (...) “Um Estado livre e independente na África.
Queremos poder governar-nos neste nosso país sem interferência externa. (...)”18

Não é difícil ler este último parágrafo de Nkrumah como a epígrafe de


uma discussão sobre Alexander Crummell. Para Nkrumah, assim como
para Crummell, os afro-americanos que foram para a África (como Du
Bois foi para Gana a convite de Nkrumah) estavam voltando —
providencialmente — para sua pátria racial natural.
Se quisermos escapar plenamente do racismo e do racialismo que ele
pressupõe, teremos que buscar outros fundamentos para a solidariedade
pan-africana. No capítulo 3, referente à crítica literária africana, ofereço
diversas sugestões para re etir sobre os modernos escritos africanos,
sugestões que procuram elaborar uma compreensão dos modos como os
escritores africanos são formados, em aspectos comuns, pela situação
colonial e pós-colonial; argumentarei que a literatura africana nas
línguas metropolitanas sugere, de muitos modos sutis, o encontro
histórico entre a África e o Ocidente. Depois, no capítulo sobre Soyinka,
e mais plenamente no capítulo 9, a rmarei que há bases para uma ação
comum em nossa situação compartilhada: a Organização da Unidade
Africana pode sobreviver à derrocada da idéia de raça negra.

A política racial que descrevi — decorrente de lugares-comuns do


nacionalismo europeu — foi central na ideologia de Crummell. Mas,
esse nacionalismo diferiu do de seus predecessores e contemporâneos
europeus em aspectos importantes, que emergem ao explorarmos a
política da língua pela qual comecei. O envolvimento de Crummell com
a questão da transferência da língua inglesa para o negro africano
contraria uma vigorosa tradição da loso a nacionalista européia. Para
Herder, profeta do nacionalismo alemão e lósofo fundador da moderna
ideologia da nacionalidade, o espírito de uma nação expressava-se
sobretudo em seu Sprachgeist, o espírito da língua; e uma vez que, como
observou Wilson Moses, há muito de Herder em Crummell, seria
esperável vermos Crummell debatendo-se com a tentativa de descobrir
nas línguas tradicionais da África uma fonte de identidade.19 Contudo, a
adoção desse princípio herderiano por Crummell enfrentou obstáculos
insuperáveis, entre eles seu conhecimento da variedade das línguas
africanas. É que, na época de Crummell, a nação fora inteiramente
racializada: admitindo-se seu pressuposto de que o negro era uma única
raça, ele não poderia buscar na língua o princípio da identidade negra,
simplesmente por haver línguas demais. Como mostrarei no capítulo 3,
ao discutir a crítica literária africana, a política da linguagem continuou
a a igir os africanos; e houve, é claro, muitos escritores, como Ngugi,
que tiveram um apego mais profundo a nossas línguas maternas.
Não há indícios, porém, de que Crummell jamais tenha-se a igido por
sua rejeição das muitas “línguas e dialetos” da África. Para isso, penso eu,
há uma explicação simples. Para Crummell, como deixa claro “A língua
inglesa na Libéria”, não é o inglês como Sprachgeist dos anglo-saxões que
importa: é o inglês como veículo do cristianismo e — o que ele veria
como exatamente a mesma coisa — da civilização e do progresso.
É que Crummell herdou não apenas a concepção européia aceita de
raça, mas também, como a rmei, a compreensão aceita da natureza da
civilização e da falta dela na África. O uso do termo “civilização” por
Crummell é característico dos ingleses ou norte-americanos vitorianos
cultos. Às vezes, ele parece ter em mente apenas o que os antropólogos
de hoje chamariam de “cultura”: o corpo teórico moral, religioso,
político e cientí co e as práticas costumeiras de uma sociedade. Nesse
sentido, é claro, teria sido apropriado, mesmo para ele, falar de
civilizações africanas.
Mas, ele também emprega o termo — como é comum usarmos a
palavra “cultura” — não dessa maneira descritiva, mas de um modo
valorizador; e o que ele valorizava era o corpo de crenças verdadeiras e
práticas morais corretas que considerava caracterizarem o cristianismo
— ou, mais precisamente, sua própria forma de protestantismo. Essa
dupla utilização do termo, evidentemente, não é acidental. Pois uma
civilização — no sentido descritivo — di cilmente seria digna desse
nome se deixasse de reconhecer as “verdades mais elevadas”; nosso
interesse na cultura, no sentido descritivo antropológico, decorre
basicamente de nosso senso de seu valor. Crummell tinha em comum
com seus contemporâneos europeus e norte-americanos (ao menos os
que dentre eles tinham alguma opinião sobre o assunto) uma idéia
essencialmente negativa da cultura tradicional da África, anárquica,
desprovida de princípios e ignorante, e de nida, dada a ausência de
todos os traços positivos da civilização, como “selvagem”; os selvagens
di cilmente têm alguma cultura. A civilização implicava, para
Crummell, precisamente “a clareza da mente, livre do domínio das falsas
idéias pagãs”.20 Somente se houvesse nas culturas tradicionais algo que
Crummell considerasse digno de ser salvo é que ele teria esperado, com
Herder, encontrá-lo captado no espírito das línguas da África.
É tremendamente importante, penso eu, insistir em quão natural era a
visão de Crummell, dados os seus antecedentes e a sua educação. Por
mais que tivesse esperanças na África, por mais que lhe dedicasse sua
vida, ele não conseguia deixar de vê-la, acima de qualquer outra coisa,
como pagã e selvagem. Qualquer livro com alguma autoridade que ele
lesse sobre a África teria con rmado esse juízo. E podemos ver quão
inescapáveis eram essas crenças, ao considerarmos que cada uma das
idéias que rastreei em Crummell também pode ser encontrada nos textos
do mesmo Edward W. Blyden que citei anteriormente, um homem que
foi, ao lado de Africanus Horton, do Velho Mundo, e Martin Robinson
Delany, do Novo, um dos três contemporâneos de Crummell igualmente
aptos a reivindicar o título de “pai do pan-africanismo”.
Como Crummell, Blyden era nativo do Novo Mundo e liberiano por
adoção; como Crummell, era padre e fundador da tradição do pan-
africanismo; e, por algum tempo, os dois foram amigos e colegas de
trabalho, nos primórdios do moderno sistema educacional da Libéria.
Blyden era um estudioso poliglota: seus ensaios incluem citações de
Dante, Virgílio e Saint-Hilaire nas línguas originais; estudou árabe, com
vistas “à sua introdução na Universidade Liberiana”, onde foi um dos
primeiros professores; e, quando se tornou embaixador liberiano junto à
rainha Vitória, ele entrou em “contato — epistolar ou pessoal — com (...)
o sr. Gladstone, (...) Charles Dickens [e] Charles Sumner”.21 Suas idéias
sobre a raça são as de Crummell — e, poderíamos acrescentar, da rainha
Vitória, de Gladstone, de Dickens e de Sumner: “Entre as conclusões a
que o estudo e a pesquisa vêm conduzindo os lósofos, nenhuma é mais
clara do que esta: a de que cada uma das raças da humanidade tem um
caráter especí co e um trabalho especí co.”22 Para Blyden, assim como
para Crummell, a África era a pátria adequada do negro, e o afro-
americano era um exilado que deveria “voltar para a terra de seus pais
(...) E FICAR EM PAZ CONSIGO MESMO”.23 Como Crummell, Blyden
acreditava que “o inglês é, sem dúvida, a mais adequada das línguas
européias para transpor os numerosos abismos entre as tribos, causados
pela grande diversidade de dialetos entre elas”.24
Talvez não surpreenda, portanto, que Blyden também tenha
compartilhado o extremo desapreço de Crummell pelas culturas
tradicionais — ou, como diria ele, “pagãs” — da África. Fora das áreas
em que o islamismo havia introduzido uma certa medida de civilização
exógena, a África de Blyden era um lugar de “ruidosas apresentações
dançantes”, “fetichismo” e poligamia; em suma, achava-se num “estado de
barbarismo”.25 Blyden a rmava, no entanto, que “não há uma só
de ciência mental ou moral hoje existente entre os africanos — uma só
prática a que eles hoje se dediquem — para a qual não possamos
encontrar paralelo na história passada da Europa”;26 e tinha grande
respeito pelo islamismo africano. Mas, no cômputo nal, sua opinião,
como a de Crummell, era que as religiões e políticas da África deveriam
ceder lugar ao cristianismo (ou, como segunda opção, ao islamismo) e
ao republicanismo.27
As pessoas letradas de minha geração, tanto na África quanto, em
menor grau, no Ocidente, talvez tenham di culdade em resgatar a
concepção sobre os africanos, esmagadoramente negativa, que povoava a
corrente dominante da vida intelectual européia e norte-americana nos
primeiros anos dos impérios africanos da Europa. Como Blyden
expressou essa questão na Fraser’s Magazine, em 1875, com louvável
comedimento: “Não é demais dizer que a literatura popular do mundo
cristão, desde o descobrimento da América, ou no mínimo nos últimos
duzentos anos, tem sido antinegra.”28 Eu poderia fazer uma seleção
dentre milhares e milhares de textos que Crummell e Blyden talvez
tenham lido para “lembrar-nos” disso; deixem-me oferecer como prova
um texto emblemático, cujas palavras contêm uma ironia especial.
Até nesse monumento da racionalidade iluminista que é a Encyclopédie
— texto que ele provavelmente teria estigmatizado como obra de um
deísmo cínico — Crummell poderia ter lido, a propósito dos povos da
costa da Guiné:
Os nativos são idólatras, supersticiosos e vivem em extrema imundície; são malandros
preguiçosos e bêbados que não pensam no futuro, insensíveis a qualquer acontecimento,
alegre ou triste, que lhes dê prazer ou os a ija; não têm senso de pudor ou continência nos
prazeres da vida, cada um dos sexos mergulhando no outro como um selvagem das eras mais
primitivas.29

Se Crummell abrisse a enciclopédia no artigo sobre a Humanidade,


teria lido que “les Nègres sont grands, gros, bien faits, mais niais & sans
géme”. (Não tenho certeza de poder captar numa tradução o tom
original de condescendência dessa frase, mas aqui vai: “Os negros são
grandes, gordos e bem-feitos, mas ingênuos e sem criatividade
intelectual”) Temos de fazer um esforço para recordar que essa é a
mesma Encyclopédie, o mesmo “Dictionnaire Raisonée des Sciences”, que
condenou a escravidão africana como “repugnante à razão”, e que
a rmou que reconhecer a condição do escravo na Europa seria “decidir,
nas palavras de Cícero, as leis da humanidade pela lei civil da sarjeta”.30
O preconceito racial que o século XIX adquiriu e desenvolveu a partir
do Iluminismo não decorreu simplesmente de um sentimento negativo
em relação aos africanos. E a incapacidade de Crummell e Blyden de
enxergar qualquer virtude em nossas culturas e tradições não tornou
menos autêntico seu desejo de ajudar os africanos.
Crummell não precisava ler essas palavras na enciclopédia; sua mente
fora formada pela cultura que as produziu. Mesmo depois de ter vivido
na África, ele acreditava que sua experiência con rmava esses juízos.
A África é vítima de suas idolatrias heterogêneas. A África tem de nhado sob o peso do
aumento das misérias moral e civil. A escuridão cobre a terra, e uma grande escuridão, o povo.
Os grandes males sociais têm prevalência universal. A con ança e a segurança estão destruídas.
A licenciosidade abunda por toda parte. Moloch domina e impera em todo o continente e, pelo
ordálio da Sassywood, *18 dos fetiches, dos sacrifícios humanos e da adoração do demônio, vem
devorando homens, mulheres e crianças.

Portanto, embora a visão de Crummell sobre a África pouco diferisse


da visão da Encyclopedic, publicada cerca de um século antes, ele tinha
uma análise diferente do problema: “Eles não dispõem do Evangelho.
Estão vivendo sem Deus. A Cruz nunca deparou com seu olhar (...).”31
A visão de Crummell de uma “religião nativa”, composta “pelo ordálio
da Sassywood, dos fetiches, dos sacrifícios humanos e da adoração do
demônio” na “escuridão” africana era menos sutil que a de Blyden. Este
escreveu:
Não há uma tribo no continente da África, apesar da opinião quase
universal em contrário, apesar dos fetiches e amuletos que muitas delas
supostamente adoram — não há, a rmo, uma única tribo que não
levante as mãos para o Grande Criador. Não há uma só que não
reconheça o Ser Supremo, ainda que entendendo imperfeitamente Seu
caráter — e quem compreende perfeitamente Seu caráter? Eles
acreditam que o céu e a terra, o sol, a lua e as estrelas que eles tam
foram criados por um Agente pessoal Todo-Poderoso, que é também seu
Criador e Soberano, e Lhe rendem a adoração que seus instintos incultos
conseguem conceber. (...) Não há ateus nem agnósticos entre eles.32
Mas as diferenças, aqui, são basicamente diferenças de tom: pois
Crummell também escreveu — numa passagem citada por Blyden —
sobre “o anseio do africano nativo por uma religião superior”.33 Esses
missionários, que eram também nacionalistas, frisaram reiteradamente a
receptividade dos africanos, quando adequadamente instruídos, ao
monoteísmo; a despeito dos horrores do paganismo africano, a ambos
impressionou a religiosidade natural dos africanos.34
É tentador encarar essa visão como mais uma imposição da visão
distorcida dos exilados; no Novo Mundo, o cristianismo proporcionara
o principal veículo de expressão cultural aos escravos. Ele não lhes podia
ser negado num país cristão — e lhes deu consolo em seu “vale de
lágrimas”, guiando-os pelo “vale das sombras”. Uma vez comprometida
com as explicações racialistas, era inevitável que a rica vida religiosa dos
negros do Novo Mundo fosse vista como decorrente da natureza do
negro e, desse modo, projetada nos negros da África. Não obstante, há
uma certa veracidade nessa visão compartilhada por Crummell e Blyden:
em certo sentido, de fato não havia “ateus e agnósticos na África”.
Infelizmente para os projetos de uma África cristã, moldada segundo
as ambições de Crummell ou Blyden, a religiosidade dos africanos —
como veremos mais adiante — era algo difícil de entender pelos cristãos
ocidentais.35

Num maravilhoso poema, a cabo-verdense Onésima Silveira escreveu:


O povo das ilhas quer um poema diferente
Para o povo das ilhas;
Um poema sem exilados a se queixar
Na calma de sua existência.36

Podemos tomar essa estrofe como um símbolo do desa o que os pan-


africanistas africanos do após-guerra lançaram à atitude representada
por Crummell em relação à África. Criados na África, em culturas e
tradições que eles conheciam e compreendiam como gente do lugar, era-
lhes impossível compartilhar da idéia da África como um vazio cultural.
Por mais impressionados que estivessem com o poder da tecnologia
ocidental, eles também tinham um compromisso com os mundos de suas
diversas tradições. As provas cotidianas, em sua educação — na
medicina, na lavoura, na possessão pelos espíritos, nos sonhos, na
“bruxaria, nos oráculos e na magia” —, da existência da rica ontologia
espiritual dos ancestrais e divindades a seu redor não podiam ser tão
facilmente descartadas como um absurdo pagão. Os “exilados” do Novo
Mundo podiam mostrar seu amor pela África procurando eliminar suas
culturas nativas, mas os herdeiros das civilizações africanas não podiam
desfazer-se com tamanha facilidade de seus ancestrais. Dessa situação
brotou uma abordagem cuja lógica descrevo no capítulo referente a Du
Bois; os novos africanos compartilhavam a concepção de Crummell — e
da Europa — sobre eles mesmos, como unidos pela raça, mas
procuravam celebrar e pautar-se em suas virtudes, e não depreciar e
substituir seus vícios. A manifestação mais conhecida dessa lógica
encontra-se na négritude, mas tem também suas manifestações
anglófonas, por exemplo, no culto da “personalidade africana” por
Nkrumah, ou na celebração que J. B. Danquah fez de suas próprias
tradições religiosas em e Akan Doctrine of God [A doutrina akan de
Deus].37 Esses celebradores da raça africana podem ter falado da
necessidade de cristianizar ou islamizar a África, de modernizar, por
assim dizer, sua religião. Mas, a concepção que tinham do que signi cava
isso no nível da metafísica era muito diferente da de Crummell e das
missões européias. Traçar essa diferença é acompanhar um elemento
importante na mudança de posição do pan-africanismo a respeito da
política cultural, ocorrida depois da Segunda Guerra Mundial, quando
ele en m se tornou um movimento africano. Voltarei a essa questão
adiante.
Embora, com isso, tenha-se tornado possível valorizar as tradições
africanas, a persistência da categoria da raça teve conseqüências
importantes. É que parte da concepção crummelliana da raça é uma
concepção da psicologia racial, e esta — que às vezes se manifesta como
uma crença em modos de pensar caracteristicamente africanos —
também levou a uma suposição persistente de que existem crenças
caracteristicamente africanas. Ou seja, a psicologia racial levou não
apenas a uma crença na existência de uma forma de pensamento africana
peculiar, mas também a uma crença em conteúdos africanos especiais do
pensamento. O lósofo beninense Paulin Hountondji chamou
“unanimismo” a essa visão de que a África é culturalmente homogênea —
à crença em que há uma espécie de corpo central da loso a popular
compartilhado pelos africanos negros em geral. E não teve di culdades
para reunir uma monstruosa coleção de textos africanos unanimistas.
No entanto, nada é mais impressionante, para alguém isento de
preconcepções, do que a extraordinária diversidade dos povos da África
e suas culturas. Ainda me lembro claramente do esmagador sentimento
de diferença que vivenciei ao viajar pela primeira vez do Oeste para o
Sul da África. Dirigindo pelo interior semi-árido de Botsuana até sua
capital, Gaborone, a apenas um dia de distância, por avião, da vegetação
tropical de Achanti, todos os homens vestiam camisas e calças, a maioria
das mulheres trajava saias e blusas, e quase todas essas roupas eram sem
padronagens, de modo que faltava às ruas o colorido dos delicados
“tecidos” achantis; e os estilos dos entalhes, da tecelagem, da cerâmica e
da dança eram-me totalmente desconhecidos. Nesse cenário, quei a me
perguntar o que, em Botsuana, supostamente decorreria de eu ser
africano. Em conversas com médicos, juízes, advogados e acadêmicos
ganeses em Botsuana — bem como no Zimbábue e na Nigéria — muitas
vezes ouvi ecos da linguagem dos colonizadores em nossos debates sobre
a cultura dos “nativos”.
É fácil ver como a história pode tornar-nos, por um lado, digamos,
cidadãos da Costa do Mar m ou de Botsuana, ou, por outro lado,
digamos, anglófonos ou francófonos. Mas, dada toda a diversidade das
histórias pré-coloniais dos povos da África e toda a complexidade das
experiências coloniais, que signi ca dizer que alguém é africano? No
capítulo 4, examino uma das respostas dadas a essa importante questão: a
resposta de Wole Soyinka, o principal dramaturgo e homem de letras da
Nigéria, e talvez o autor que escreveu de maneira mais convincente
sobre o papel do intelectual e do artista na vida das nações da África
contemporânea.
Contudo, a resposta de Soyinka à pergunta “O que é a África?” é uma
entre outras. No capítulo 5, examino as respostas de alguns lósofos
africanos contemporâneos. A rmo que resta, em grande parte dessa
obra, um importante resíduo da ideologia representada por Du Bois; um
resíduo que se traduz, no entanto, no que podemos chamar de nível
metafísico. Não obstante, como veremos, essa obra fornece indícios úteis
sobre as direções em que devemos movernos para responder a essa
pergunta fundamental.
Agora, sinto-me con ante para rejeitar qualquer retrato
homogeneizador da vida intelectual africana, porque as etnogra as, a
literatura de viagem e os romances de outras partes da África que não a
minha são repletos, todos eles, de exemplos de estilos de vida e de
pensamento que me parecem completa e préteoricamente diferentes da
vida em Achanti, onde cresci.
Compare os famosos oráculos zandes*19 de Evans-Pritchard,38 de
perguntas simples e respostas diretas, com a fabulosa riqueza dos
oráculos iorubanos, cuja interpretação requer grande habilidade na
hermenêutica do complexo corpo de versos de Ifá; ou compare nossa
própria monarquia achanti, uma confederação em que o rei é o primeiro
entre seus pares, entre os anciãos e os chefes principais que o orientam
no conselho, com o poder mais absoluto de Mutesa I na Buganda do
século XIX; ou ainda, os horizontes fechados de uma esposa haussá
tradicional, perenemente impedida de contato com outros homens que
não seu marido, com os espaços abertos das comerciantes do Sul da
Nigéria; ou ainda a arte de Benim — seus bronzes maciços — com as
minúsculas e elegantes guras que servem de pesos de ouro em Akan.
Compare os guerreiros montados dos jihads de Fulani com os impis zulus
de Chaka; prove as comidas delicadas de Botsuana depois dos temperos
da culinária fanti; tente entender o kikuyu, o ioruba ou o fulfulde com
um dicionário twi. Sem dúvida, as diferenças na ontologia e nos rituais
religiosos, na organização da política e da família, nas relações entre os
sexos e na arte, nos estilos de guerra e de culinária, na linguagem —
todos estes, decerto, são tipos de diferença fundamentais, não são?
Como escreveu certa vez Edward Blyden, que, apesar de todo o seu
sentimentalismo racial, era um observador mais arguto do que
Crummell:
Existem negros e negros. As numerosas tribos que habitam o vasto continente da África são tão
pouco passíveis de ser consideradas iguais em todos os aspectos quanto o são os numerosos
povos da Ásia ou da Europa. Há entre os africanos as mesmas variedades tribais ou familiares
que entre os europeus. (...) Existem os fulas que povoam a região do Alto Níger, os haussás, os
bornus de Senegâmbia, os núbios da região do Nilo, de Darfur e Kordofan, os achantis, os
fantis, os daomeanos, os iorubas e toda a classe de tribos que ocupam as porções oriental,
central e ocidental do continente ao norte do Equador. Há ainda as tribos da Baixa Guiné e de
Angola (...), todas elas diferindo na inclinação original e nos instintos tradicionais. (...) Ora, há
de ser evidente que nenhuma descrição sucinta pode incluir todos esses povos, nenhuma
de nição isolada, por mais abrangente que seja, pode abarcá-los a todos. No entanto, os
autores gostam de selecionar os traços mais destacados das tribos isoladas com que estão mais
familiarizados, e de aplicá-los à raça inteira.39

Teremos ampla oportunidade, nos capítulos posteriores, de examinar as


provas da diversidade cultural da África.
Não importa o que os africanos compartilhem, não temos uma cultura
tradicional comum, línguas comuns ou um vocabulário religioso e
conceitual comum. Como a rmarei no próximo capítulo, nem sequer
pertencemos a uma raça comum; e, já que é assim, o unanimismo não
tem direito ao que é, a meu ver, seu pressuposto fundamental. Essas
a rmações essencialmente negativas ocuparão boa parte da
argumentação dos próximos capítulos. Mas, nos capítulos nais deste
livro, pretendo mover-me num sentido oposto. Tentarei articular uma
compreensão do atual estado da vida intelectual africana que não
compartilha, nem mesmo no nível metafísico, dos pressupostos que têm
estado conosco desde o início do pan-africanismo. Os africanos têm
problemas e projetos demais em comum para ser confundidos por uma
base espúria de solidariedade.

Há uma conhecida história de uma camponesa que é abordada por


alguém que viaja num carro grande e indagada sobre o caminho para a
capital. “Bem”, responde ela, depois de ponderar sobre o assunto por
algum tempo, “se eu fosse você, não partiria daqui.” Em muitos projetos
intelectuais, muitas vezes solidarizei-me com esse sentimento. Parece-me
que a mensagem dos quatro primeiros capítulos deste livro é que
devemos fornecer uma compreensão do trabalho cultural da África que
não “parta daqui”.
Assim, na esperança de encontrar um ponto de partida diferente e
mais produtivo, volto-me, no m do capítulo 5, para a obra recente de
alguns lósofos africanos que começaram a elaborar uma compreensão
da situação dos intelectuais na cultura pós-colonial, uma compreensão
que não se baseia numa visão racial.
Por m, começando no capítulo 6, esboço minha própria visão da
atual situação cultural da África. Argumentarei em favor de uma
explicação diferente do que há de comum na situação dos intelectuais
africanos contemporâneos, uma explicação que indica por que, embora
eu não acredite numa África homogênea, realmente acredito que os
africanos possam aprender uns com os outros... tal como podemos, é
claro, aprender com toda a humanidade.
E quero insistir desde logo em que essa tarefa, portanto, não compete
apenas aos intelectuais africanos. Nos Estados Unidos, uma nação que há
muito se compreendeu através de um conceito de pluralismo, é muito
fácil parecer não problemático a rmar que as nações da África — e até a
própria África — poderiam unir-se, não apesar das diferenças, mas
mediante uma celebração delas. No entanto, também o pluralismo
norte-americano parece ser teorizado, em parte, através de um discurso
das raças. Em seu importante livro, Beyond Ethnicity: Consent and Descent
in American Culture [Para além da etnicidade: consentimento e
descendência na cultura norte-americana], Werner Sollors desenvolveu
uma análise do atual panorama norte-americano em termos de um
dualismo analítico da descendência (os laços sangüíneos) e do
consentimento (as unidades libertárias da cultura).
O xis da questão é que, no atual clima consciente do consentimento, os norte-americanos
dispõem-se a perceber as distinções étnicas — diferenciações que, segundo parece, eles
baseiam exclusivamente na descendência, por mais distante e arti cialmente selecionada e
interpretada que ela seja — como poderosas e cruciais; e os autores e críticos grati cam essa
expectativa (...), e até os menores símbolos de diferenciação étnica (...) são
desproporcionalmente exagerados, de modo a representar grandes diferenças culturais,
diferenças que se acredita resistirem à comparação ou ao exame rigoroso (...).40

Tal como os africanos, os norte-americanos precisam, creio eu, escapar


de alguns dos mal-entendidos do discurso moderno sobre a
descendência e o consentimento, condensados no racialismo de
Alexander Crummell. Norte-americano por descendência e africano por
consentimento, Alexander Crummell tem algo a ensinar a seus herdeiros
dos dois continentes. Na verdade, uma vez que os projetos intelectuais
de nosso mundo único estão essencialmente interligados por toda parte,
uma vez que as culturas mundiais ligam-se umas às outras, ora através
das instituições, ora da história, ora dos textos, ele tem algo a ensinar à
raça única a que todos pertencemos.

5 República democrática e popular da África Ocidental, com cerca de 8 milhões de habitantes, que
conquistou a independência em 1960, denominando-se Haute Volta. Mudou de nome em 1984.
(N. da T.)

6 Escritor e político francês, nascido na Martinica em 1913, que fez da poesia um motivo de retorno
às fontes da negritude e proclamou em seus ensaios e peças o desejo de se libertar das formas
tradicionais da cultura ocidental. Elegeu-se deputado em 1946, presidindo o Partido
Progressista martiniquenho. (N. da T.)

7 Léopold Sédar Senghor, político e escritor senegalês, nascido em Joal (perto de Dacar) em 1906.
Foi um dos criadores do movimento da négritude e presidente do Senegal desde 1960 até 1981,
tendo sido reeleito três vezes. (N. da T.)

8 Aqui e em outras passagens, mantivemos o termo francês, usado pelo próprio autor, para marcar
que négritude, nesse contexto, não se refere simplesmente à condição de ser negro, mas a um
movimento muito especí co, historicamente situado. O substantivo negritude, em sentido
genérico, também aparecerá no texto, sem destaque. (N. da T.)

9 Para preservar a diferença presente na língua inglesa, usamos “colonos brancos” para traduzir
settlers e “súditos coloniais” para traduzir colonials. Esta última palavra designava especi camente
os súditos não brancos do Império. (N. da T.)

10 Escritor da Guiné (Kouroussa, 1928 - Dacar, 1980) que evocou em seus romances as crenças e
costumes tradicionais. (N. da T.)

11 Psiquiatra e teórico político francês (Fort-de-France, 1925 - Bethesda, Maryland, 1961), foi um
dos principais teorizadores do anticolonialismo. (N. da T.)

12 O cial e político de Gana (Acra, 1947), que esteve no poder em 1978 e a ele retornou após o
golpe de Estado de 1981. (N. da T.)

13 Kamau Johnstone wa Ngengi Keniata, dito Jomo Keniata, político do Quênia (1893-1978) que
chegou a primeiro-ministro em 1963, após a independência do país, e foi presidente da
República de 1964 a 1978. (N. da T.)

14 Kenneth Davis Kaunda, político zambiano (Lubwa, 1924) e primeiro presidente da República de
Zâmbia, sucessivamente reeleito desde 1964. (N. da T.)
15 Um dos “diálogos socráticos” de Platao, cuja discussão sobre ética procura de nir a virtude da
piedade. (N. da T.)

16 Biscoito salgado crocante, em forma de nó, muito consumido pelos alemaes e comumente
servido para acompanhar a cerveja. (N. da T.)

17 Nome verdadeiro de Saloth Sor (ou Sar), político cambojano, chefe militar do Khmer Vermelho,
depois primeiro-ministro em 1976 e principal responsável pelas atrocidades cometidas em seu
regime. (N. da T.)

18 Nesse ordálio, ou prova, o acusado de feitiçaria bebia uma mistura da casca de Sassywood, para
mostrar-se inocente ou culpado. Sassywood é uma árvore da África Ocidental (Erythrophloeum
guineense) cuja casca é venenosa. (N. da T.)

19 Zandes ou azandes, termos intercambiáveis. (N. da T.)


2
Ilusões de raça

Se isso é verdade, a história do mundo é a história,


não de indivíduos, mas de grupos, não de nações,
mas de raças (...)1

W. E. B. Du Bois

A lexander Crummell e Edward Wilmot Blyden deram início à


articulação intelectual de uma ideologia pan-africanista; mas foi
W. E. B. Du Bois que lançou as bases intelectuais e práticas do
movimento panafricano. A vida de Du Bois foi longa, e sua carreira
intelectual — que ele chamava de “autobiogra a de um conceito de
raça”2 — abrangeu quase todo o período de controle colonial europeu
sobre a África. É difícil imaginar uma ruptura mais substancial nas idéias
políticas do que a que separa a divisão da África, no Congresso de
Berlim, e a independência de Gana; no entanto, Du Bois era adolescente
quando ocorreu a primeira, em 1884, e, em 1957, testemunhou — e se
regozijou com — a segunda. Como veremos, há uma assombrosa
coerência em sua postura ao longo dos anos. Du Bois não apenas viveu
muito, mas também escreveu extensamente; se alguma pessoa isolada é
capaz de nos fornecer uma compreensão da arqueologia da idéia de raça
no panafricanismo, é ele.
A primeira longa discussão do conceito de raça por Du Bois encontra-
se em “A preservação das raças”, artigo que ele apresentou à American
Negro Academy no ano em que ela foi fundada por Alexander
Crummell. O “negro norte-americano”, declara Du Bois, “foi levado a (...)
minimizar as distinções raciais” porque “por trás da maioria das
discussões raciais com que ele está familiarizado, ocultam-se certos
pressupostos quanto a suas aptidões naturais, quanto a seu status
político, intelectual e moral, que ele julgou errados”. E Du Bois
prossegue: “Não obstante, em nossos momentos mais calmos, devemos
reconhecer que os seres humanos se dividem em raças”, ainda que “ao
inquirirmos sobre as diferenças essenciais das raças, constatemos ser
difícil chegar de imediato a qualquer conclusão de nitiva”.3 Seja qual for
a importância que isso possa ter, entretanto, “a palavra nal da ciência
até hoje é que temos pelo menos duas, ou talvez três grandes famílias de
seres humanos — os brancos e os negros, e possivelmente a raça
amarela”.4
Du Bois não se contenta, entretanto, com a “palavra nal” da ciência
do m do século XIX. É que, segundo pensa, o importante não são as
“diferenças físicas mais grosseiras da cor, dos cabelos e dos ossos”, mas as
“diferenças — por mais sutis, delicadas e elusivas que sejam — que, de
maneira silenciosa mas de nitiva, separaram os homens em grupos”.
Conquanto essas forças sutis tenham em geral seguido a clivagem natural do sangue, da
ascendência e das peculiaridades físicas comuns, noutras ocasiões elas passaram por cima
destes e os ignoraram. Em todas as épocas, entretanto, elas dividiram os seres humanos em
raças, que, embora talvez transcendam a de nição cientí ca, são, não obstante, claramente
de nidas aos olhos do historiador e do sociólogo.
Se isso é verdade, a história do mundo é a história, não de indivíduos, mas de grupos, não de
nações, mas de raças. (...) Que é uma raça, então? É uma vasta família de seres humanos, em
geral de sangue e língua comuns, sempre com uma história, tradições e impulsos comuns, que
lutam juntos, voluntária e involuntariamente, pela realização de alguns ideais de vida, mais ou
menos vividamente concebidos.5

Afastamo-nos, portanto, da concepção “cientí ca” — isto é, biológica e


antropológica — da raça, rumo a uma noção sócio-histórica; e, por esse
critério sócio-histórico — cujo alcance grandioso por certo estimula a
idéia de que nenhuma de nição biológica ou antropológica é possível
—, Du Bois considera que existem, não três, mas oito “raças
distintamente diferenciadas, no sentido como a história nos diz que essa
palavra deve ser usada”.6 A lista é curiosa: eslavos, teutões, ingleses (tanto
na Grã-Bretanha quanto nos Estados Unidos), negros (da África e, do
mesmo modo, da América), a raça românica, os semitas, os hindus e os
mongóis.
Du Bois continua:
A pergunta agora é: qual é a verdadeira distinção entre essas nações? Serão as diferenças físicas
de sangue, cor e medidas cranianas? Certamente, todos devemos reconhecer que as diferenças
físicas desempenham um grande papel (...). Mas, embora as diferenças raciais tenham seguido
principalmente linhas físicas, nenhuma simples distinção física realmente de niria ou
explicaria as diferenças mais profundas — a coesão e a continuidade desses grupos. As
diferenças mais profundas são espirituais e psíquicas — indubitavelmente baseadas nas físicas,
mas transcendendo-as in nitamente.7 [As várias raças] lutam, cada qual à sua maneira, por
desenvolver para a civilização sua mensagem particular, seu ideal particular, que hão de ajudar
a guiar o mundo para cada vez mais perto da perfeição da vida humana pela qual todos
ansiamos, “que está muito distante do feito Divino”.8

Para Du Bois, portanto, o problema do negro é descobrir e expressar a


mensagem de sua raça.
A plena e completa mensagem negra da totalidade da raça negra ainda não foi oferecida ao
mundo. (...)
A questão, portanto, é: como será entregue essa mensagem, como se realizarão esses vários
ideais? A resposta é clara: pelo desenvolvimento desses grupos raciais, não como indivíduos,
mas como raças. (...) Para o desenvolvimento do talento negro, da literatura e arte negras, do
espírito negro, somente os negros ligados e unidos, os negros inspirados por um vasto ideal,
podem elaborar na plenitude a grande mensagem que temos para a humanidade. (...)

Por essa razão, a guarda avançada do povo negro — os oito milhões de


pessoas de sangue negro dos Estados Unidos da América — logo deverá
se dar conta de que, se quiser tomar seu lugar na linha de frente do
pannegrismo, seu destino não será a absorção pelos norte-americanos
brancos.9
Assim, Du Bois termina propondo seu Academy Creed [Credo
losó co], que começa com palavras que ecoam quase um século de
relações raciais norteamericanas:
1. Creio que o povo negro, como raça, tem uma contribuição a dar à civilização e à humanidade
que nenhuma outra raça pode dar.
2. Cremos no dever dos norte-americanos de ascendência negra, como um corpo, de manter
sua identidade racial, até que se cumpra essa missão do povo negro e que o ideal da
fraternidade humana tenha-se tornado uma possibilidade prática.10

Que podemos depreender dessa análise e dessa prescrição? À primeira


vista, o argumento de Du Bois na “Preservação das raças” é que “raça”
não é um conceito “cientí co” — isto é, biológico —, mas sócio-
histórico. Cada uma das raças sócio-históricas tem uma “mensagem” para
a humanidade, uma mensagem que decorre, de algum modo, do
propósito de Deus ao criá-las. A raça negra ainda está por entregar sua
mensagem plena e, sendo assim, é dever dos negros trabalharem juntos
— através de organizações raciais — para que essa mensagem possa ser
entregue.
Não precisamos dos suportes teológicos dessa argumentação. O
essencial é a idéia de que os negros, em virtude de sua comunhão sócio-
histórica e mediante a ação comum, podem atingir ns valiosos, que de
outro modo não serão atingidos. Aparentemente, portanto, a estratégia
de Du Bois é aqui a antítese de uma dialética clássica na reação ao
preconceito. A tese dessa dialética — que Du Bois relata como sendo a
tentativa dos negros norte-americanos de “minimizar as distinções
raciais” — é a negação da diferença. A antítese de Du Bois é a aceitação
da diferença, ao lado de uma a rmação de que cada grupo tem um papel
a desempenhar, de que as raças branca e negra estão relacionadas, não
como um superior e um inferior, mas como complementaridades; a
mensagem negra, junto com a branca, faz parte da mensagem da
humanidade. O que ele defende é o que Sartre certa vez chamou — na
négritude — de “racismo anti-racista”.11
Chamo a esse padrão uma dialética clássica; com efeito, também a
encontramos no feminismo. De um lado, uma simples reivindicação de
igualdade, uma negação da diferença substancial; de outro, a
reivindicação de uma mensagem especial, revalorizando o “Outro”
feminino, não como “companheiro” do sexismo, mas como a Nova
Mulher.
Por ser essa uma dialética clássica, minha leitura do argumento de Du
Bois é natural. Para con rmar essa interpretação, devemos estabelecer
que o que Du Bois está tentando, apesar de suas a rmações em contrário,
não é transcender a concepção cientí ca do século XIX sobre raça —
como veremos, ele con a nela —, mas antes, como exige a dialética,
revalorizar a raça negra frente às ciências da inferioridade racial.
Podemos começar pela análise das fontes de tensão na concepção
supostamente sócio-histórica que Du Bois tem da raça, que ele contrasta
explicitamente com a concepção “cientí ca”. A tensão é bastante clara em
suas referências ao “sangue comum”, pois este, adornado por uma
craniometria fantasiosa, uma pitada de melanina e uma certa medida de
encaracolamento do cabelo, é no que se resume a noção cientí ca. Se ele
transcendeu plenamente a noção cientí ca, qual é o papel desse discurso
sobre o “sangue”?
Podemos deixar de lado, por enquanto, os “impulsos” comuns e os
“esforços” voluntários e involuntários. Pois estes devem decorrer de uma
herança biológica comum, “baseada no físico, mas transcendendo-o
in nitamente”, ou de uma história comum; ou então, é claro, de alguma
combinação das duas. Se a noção de Du Bois é puramente sócio-
histórica, então a questão são a história e as tradições comuns; caso
contrário, a questão é, ao menos em parte, uma biologia comum. Só
saberemos de qual se trata quando compreendermos o núcleo da
concepção de raça de Du Bois.
A a rmação de que uma raça geralmente partilha uma língua comum
também não tem grande serventia, é claro: a raça “românica” não tem
uma língua comum, nem tampouco, mais obviamente, a negra. E o
“sangue comum” pode signi car pouco mais do que “de ascendência
comum”, o que já está implícito no discurso crummelliano sobre uma
“vasta families. No centro da concepção de Du Bois, portanto, está a
a rmação de que uma raça é “uma vasta família de seres humanos,
sempre de história [e] tradições comuns”.12 Assim, se quisermos entender
Du Bois, nossa pergunta terá que ser: o que é uma “família (...) de
história comum”?
Já podemos ver que Du Bois não ultrapassou realmente a noção
cientí ca, que pressupõe traços comuns em virtude de uma biologia
comum, decorrente de uma ascendência comum. Certamente, uma
família pode ter adotado lhos, parentes pela lei social, e não pela
biológica. Por analogia, portanto, uma vasta família humana pode
conter pessoas unidas, não pela biologia, mas por um ato de escolha.
Contudo, está bem claro que Du Bois não pode ter contemplado essa
possibilidade: como todos os seus contemporâneos, ele teria presumido
que a raça é uma questão de nascimento. Na verdade, para compreender
essa fala sobre a “família”, devemos distanciar-nos de todo o seu
signi cado sociológico. A família costuma ser culturalmente de nida
apenas por sua ascendência patrilinear ou matrilinear.13 Mas, se um
indivíduo traçasse uma árvore genealógica “conceitual” que recuasse
quinhentos anos, e presumisse que ele ou ela descendia apenas de um
modo de cada ancestral, a árvore poderia ter mais de um milhão de
ramos no topo. Embora, na verdade, muitos indivíduos fossem
representados em mais de um ramo — recuando tanto assim, todos
teremos descendido de muitas pessoas por mais de um caminho —, ca
claro, como resultado, que a concepção matrilinear ou patrilinear de
nossas histórias familiares é uma drástica sub-representação da gama
biológica de nossa ancestralidade.
A biologia e a convenção social seguem caminhos espantosamente
diferentes. Imaginemos que o direito da rainha da Inglaterra ao trono
dependesse, em parte, de uma única linhagem, proveniente de um de
seus antepassados de novecentos anos atrás. Se não houvesse
superposições em sua árvore genealógica, haveria mais de cinqüenta
trilhões dessas linhas, embora, é claro, nunca tenha havido nada que se
aproximasse dessa quantidade de pessoas no planeta; mesmo fazendo
suposições razoáveis a respeito das superposições, haveria milhões dessas
linhas. Escolhemos uma delas, muito embora a maioria da população
provavelmente descenda, por alguma via não mapeada, de Guilherme, o
Conquistador. A biologia é democrática: todos os pais são iguais. Assim,
falar de duas pessoas como sendo de ascendência comum é exigir que,
em algum lugar do passado, uma grande parcela dos ramos que
remontam a esse passado em suas árvores genealógicas tenha
coincidido.14
Assim, como faz a concepção cientí ca, Du Bois já exige uma
ancestralidade comum (no sentido que acabamos de de nir), com o que
quer que isso implique — se é que implica alguma coisa — em termos
biológicos. No entanto, é claro que não é um grupo qualquer de
ascendência comum que servirá aos objetivos de Du Bois. Pois há muitos
desses grupos — que vão, em seu alcance mais amplo, desde a
humanidade em geral até o grupo mais estreito dos eslavos, teutões e
românicos, considerados em conjunto — que não constituem raças para
Du Bois. Está claro que Du Bois pretende que o compartilhar de uma
“história comum” distinga os grupos de ascendência comum que
importam: deve ser isso o que supostamente distingue os eslavos e os
teutões. A questão, agora, é se uma história comum é algo que possa
constituir um critério capaz de distinguir um grupo de seres humanos —
dilatado no tempo — de outro. Será que acrescentar a noção de história
comum nos permite estabelecer as distinções entre eslavos e teutões, ou
entre ingleses e negros? A resposta é “não”.
Consideremos, por exemplo, o próprio Du Bois. Como descendente de
ancestrais holandeses, por que a história da Holanda no século XIV (que
ele reparte com todas as pessoas de ascendência holandesa) não faz dele
um membro da raça teutônica? A resposta é direta: os holandeses não
eram negros, Du Bois é. Mas, decorre daí que a história da África faz
parte da história comum dos afroamericanos, não apenas porque os
afro-americanos descendem de vários povos que desempenharam um
papel na história africana, mas também porque a história africana é a
história de pessoas da mesma raça.
A idéia geral que quero frisar é esta: para reconhecer dois
acontecimentos de épocas diferentes como sendo parte da história de
um único indivíduo, temos que dispor de um critério de identidade do
indivíduo em cada uma dessas épocas, independentemente de sua
participação nos dois acontecimentos; da mesma forma, ao reconhecer
dois acontecimentos como pertencentes à história de uma raça, também
temos que dispor de um critério de pertença da raça nessas duas épocas,
independentemente da participação dos membros nos dois
acontecimentos. Dito de maneira mais simples: compartilhar uma
história grupal comum não pode ser um critério para sermos membros de
um mesmo grupo, pois teríamos que ser capazes de identi car o grupo
para identi car sua história. Alguém do século XIV só poderia
compartilhar de uma história comum comigo, através de nossa pertença
a uma raça historicamente extensa, se algo explicasse sua pertença à raça
no século XIV e a minha no século XX. Sob pena de circularidade, esse
algo não pode ser a história da raça.15
Há aqui uma analogia útil, na qual me pautei há um instante, entre a
continuidade histórica das raças e a continuidade temporal das pessoas.
A tentativa de Du Bois de dar sentido à identidade racial ao longo do
tempo, mediante uma “longa memória” gurativa, serve à mesma função
da tentativa de John Locke — em seu Ensaio sobre o entendimento
humano*20 — de fazer da memória literal o cerne da identidade da alma
ao longo do tempo. É que Locke precisava ter uma explicação da
natureza da alma que não se pautasse na continuidade física do corpo,
assim como Du Bois queria con ar em algo mais elevado do que a rude
continuidade dos genes humanos. A visão de Locke era que duas almas,
em momentos diferentes, eram, no jargão do lósofo, “fatias de tempo”
do mesmo indivíduo, se o posterior tivesse lembranças do anterior. Mas,
como assinalaram os lósofos depois de Locke, não sabemos dizer se
uma lembrança é prova da identidade daquele que lembra, mesmo que a
coisa “lembrada” tenha realmente acontecido com uma pessoa anterior,
a menos que já saibamos que o rememorador e a pessoa anterior são um
só. Pois é perfeitamente concebível que alguém pense lembrar-se de algo
que, na verdade, aconteceu com outra pessoa. Simplesmente empreguei
essa mesma estratégia argumentativa contra Du Bois. É bem possível que
a história nos tenha feito o que somos, mas a escolha de uma fatia do
passado, num período anterior ao nosso nascimento, como sendo nossa
própria história, é sempre exatamente isso: uma escolha. Embora a
expressão “invenção da tradição” tenha um ar contraditório, todas as
tradições são inventadas.16
Seja o que for que mantém conceitualmente unidas as raças de Du
Bois, portanto, não pode ser a história comum. É somente por já estarem
unidos que os membros de uma raça, em diferentes épocas, podem
compartilhar de uma história. Se isso é verdade, a referência de Du Bois
a uma história comum não pode ter nenhuma serventia em sua
individuação das raças. Uma vez que tenhamos retirado os elementos
sócio-históricos da de nição de raça de Du Bois, restanos seu critério
verdadeiro.
Conseqüentemente, não apenas o discurso sobre a linguagem — que
Du Bois admite não ser nem necessário (a raça românica fala muitas
línguas) nem su ciente (os afro-americanos geralmente falam a mesma
língua de outros norte-americanos) para a identidade racial — deve ser
excluído da de nição, como vimos agora que também o discurso sobre a
história comum e as tradições deve ser eliminado. Restam-nos a
ascendência comum e os impulsos e esforços comuns, que pus de lado
anteriormente. Uma vez que a ascendência comum e as características
que decorrem dela fazem parte da concepção cientí ca de raça do século
XIX, esses impulsos são tudo o que resta para realizar o trabalho que Du
Bois reivindicou para uma concepção sócio-histórica: ou seja, distinguir
entre sua concepção e a biológica. Du Bois a rma que a existência das
raças é “claramente de nida aos olhos do historiador e do sociólogo”.17
Uma vez que a ancestralidade comum é reconhecida pela biologia como
um critério, qualquer entendimento adicional que possa ser fornecido
pela compreensão sócio-histórica só pode ser obtido pela observação
dos impulsos e esforços comuns. A re exão sugere, porém, que isso não
pode ser verdade. Pois, quais são os impulsos comuns — sejam eles
voluntários ou involuntários — de que os povos românicos
compartilham, enquanto os teutões e os ingleses não o fazem?
Du Bois leu a historiogra a da escola anglo-saxônica, que explicava o
impulso democrático dos Estados Unidos fazendo-o remontar à tradição
racial da assembléia do povo anglo-saxônica. Ele já lera historiadores
norte-americanos e britânicos discutindo seriamente o espírito “latino”
dos povos românicos, e talvez houvesse acreditado em parte disso. Aí
estaria, portanto, a origem da idéia de que a história e a sociologia
podem observar os diferentes impulsos das raças.
Em todos esses textos, entretanto, esses impulsos são supostamente
descobertos como propriedades a posteriori dos grupos raciais e
nacionais, não sendo critérios de pertença a eles. Na verdade, é pelo fato
de a alegação ser a posteriori que a comprovação histórica lhe é
importante. E, se perguntarmos quais dos impulsos comuns detectados
pela história permitem-nos reconhecer o negro, veremos que a
a rmação de Du Bois de haver encontrado nesses impulsos um critério
de identidade é mera bravata. Se, sem a prova de seus impulsos, não
sabemos dizer quem é negro, não pode fazer parte do ser negro tê-los ou
não; antes, dizer que é comum que as pessoas de uma raça comum,
de nida pela ascendência e pela biologia, tenham impulsos, seja por que
razão for, deve ser uma a rmação a posteriori. Naturalmente, os impulsos
comuns de um grupo biologicamente de nido devem ser historicamente
causados por experiências comuns, pela história comum. Mas a
a rmação de Du Bois só pode ser a de que as raças biologicamente
de nidas compartilham, seja por que motivo for, de impulsos comuns.
Os impulsos comuns não podem ser um critério de participação no
grupo. Se é assim, resta-nos a concepção cientí ca.
Como é possível, então, que os critérios de Du Bois resultem em oito
grupos, enquanto a concepção cientí ca resulta em três? A razão ca
clara pela lista. Os povos eslavos, teutões, ingleses, hindus e românicos
vivem, cada um deles, numa região geográ ca característica. (As pessoas
anglo-americanas — e, incidentalmente, teuto-americanas, eslavo-
americanas e românico-americanas — compartem uma ascendência
recente com seus “primos” europeus e, desse modo, têm em comum uma
relação ligeiramente mais complexa com um lugar e com suas línguas e
tradições.) Os semitas (se ignorarmos detalhes como a diáspora judaica e
a expansão dos árabes islamizados para o Ocidente) e os mongóis (que
são toda a população da Ásia Oriental) também compartem uma região
geográ ca (muito maior). O discurso de Du Bois sobre uma história
comum esconde esse novo acréscimo de um critério geográ co: a
história de cada um é, em parte, a história das pessoas que viveram num
mesmo lugar.18
O critério que Du Bois efetivamente utiliza resume-se, pois, no
seguinte: as pessoas são membros da mesma raça quando têm traços em
comum, em virtude de haverem descendido basicamente de pessoas de
uma mesma região. Esses traços podem ser físicos (donde os afro-
americanos serem negros) ou culturais (donde os anglo-americanos
serem ingleses). Focalizando-se um único tipo de traço — “as diferenças
mais grosseiras de cor, cabelos e ossos” —, chega-se aos “brancos e
negros, possivelmente à raça amarela”, a “última palavra da ciência até
agora”. Focalizando-se um traço diferente — a língua ou os costumes
comuns —, chega-se aos povos teutônicos, eslavos e românicos. A tensão
da de nição de raça de Du Bois re ete o fato de que, para ns da
historiogra a européia (da qual sua formação em Harvard e na
Universidade de Berlim o havia conscientizado), era este último que
importava; mas, para ns da vida social e política norte-americana, era o
primeiro.
A verdadeira diferença na concepção de Du Bois, portanto, não está
em que sua de nição da raça discorde da cientí ca: trata-se, antes, como
exige a dialética, de que ele confere à raça uma importância moral e
metafísica diferente da da maioria de seus contemporâneos brancos. A
a rmação distintiva é que a raça negra tem uma mensagem positiva, uma
mensagem que é não apenas diferente, mas valiosa. E essa, ao que me
parece, é a importância da dimensão sócio-histórica, pois os esforços de
uma raça, tal como Du Bois via o assunto, são a matériaprima da
história. “A história do mundo é a história, não de indivíduos, mas de
grupos, não de nações, mas de raças, e quem ignora ou procura anular a
idéia de raça na história humana ignora e anula a idéia central de toda a
história.”19 Estudando a história, podemos discernir os contornos da
mensagem de cada raça.

Vimos que, para o objetivo que mais lhe interessava — ou seja, para
compreender o status do negro —, Du Bois foi lançado de volta à
de nição “cientí ca” da raça, que ele o cialmente rejeitava. Mas, a
de nição cientí ca (o desconforto de Du Bois com ela re ete-se em seu
comentário de que as raças “talvez transcendam a própria de nição
cientí ca”) já cara ameaçada, em si mesma, quando ele discursou na
primeira reunião da Negro Academy. No m do século XIX, a maioria
das cabeças pensantes (como muitas ainda hoje) acreditava que o que Du
Bois chamava de “diferenças mais grosseiras” era o sinal de uma essência
racial herdada, que explicava a de ciência intelectual e moral das raças
“inferiores”. Em “A preservação das raças”, Du Bois optou, efetivamente,
por admitir que a cor era sinal de uma essência racial, mas escolheu
negar que as aptidões culturais dos humanos de pele escura e cabelo
encaracolado — as aptidões determinadas por sua essência — fossem
inferiores às dos de pele branca e cabelos mais lisos. Contudo, o colapso
das ciências da inferioridade racial levou Du Bois a repudiar a ligação
entre a capacidade cultural e a morfologia grosseira; a negar os
“impulsos e esforços” familiares de sua de nição anterior. Podemos
encontrar provas dessa mudança de idéia num artigo da edição de
agosto de 1911 de e Crisis, o jornal da National Association for the
Advancement of Colored People [Associação Nacional para o Progresso
das Pessoas de Cor, NAACP] dos Estados Unidos, que ele editou
entusiasticamente durante a maior parte dos primeiros anos deste
século.
Os principais cientistas do mundo apresentaram-se (...) e expuseram,
em termos categóricos, uma série de proposições20 que podem ser
resumidas da seguinte maneira:
1. (a) Não é legítimo a rmar, a partir de diferenças nas características físicas, diferenças nas
características mentais (...).
2. A civilização de uma (...) raça, em qualquer momento particular do tempo, não oferece
nenhum índice de suas capacidades inatas ou herdadas (...).21

Tais resultados foram amplamente con rmados desde então. E penso


que fazemos bem em nos relembrarmos do quadro atual.
Os dados da literatura biológica contemporânea, à primeira vista, são
enganosos. É que, apesar de um amplo consenso cientí co quanto à
genética subjacente, os biólogos contemporâneos não estão de pleno
acordo quanto à questão de haver ou não raças humanas. Contudo, para
nossos objetivos, essa discordância é ilusória. Pois aquilo em que a
maioria das pessoas da maioria das culturas comumente acredita, no
tocante à signi cação da diferença “racial”, é muito distante daquilo em
que os biólogos de fato concordam; e, em particular, não é compatível
com o que, no ensaio anterior, chamei de “racialismo”. Qualquer biólogo
bem conceituado há de concordar em que a variabilidade genética
humana que diferencia as populações da África, da Europa ou da Ásia
não é muito maior do que a existente dentro dessas mesmas populações,
ainda que o “muito maior” dependa, em parte, da medida de
variabilidade genética que o biólogo escolher. Quando os biólogos
querem fazer com que a diferença inter-racial pareça relativamente
grande, eles podem dizer que “a proporção de variação de genes
atribuível à diferença racial é de (...) 9%-11%”.22 Quando querem fazê-la
parecer pequena, podem dizer que, em duas pessoas que sejam ambas
“caucasóides”, as probabilidades de elas diferirem na constituição
genética num locus de um dado cromossomo foram estimadas,
recentemente, em cerca de 14,3%, ao passo que, em quaisquer duas
pessoas tomadas ao acaso na população humana, os mesmos cálculos
sugerem uma cifra de cerca de 14,8%. Os dados estatísticos subjacentes à
distribuição das características variáveis nas populações e subpopulações
humanas são os mesmos, não importa como se expresse o assunto. À
parte as características morfológicas visíveis da pele, cabelos e ossos,
pelas quais nos inclinamos a incluir as pessoas nas mais amplas
categorias raciais — brancos, negros, amarelos —, poucas são as
características genéticas encontráveis na população da Inglaterra que
não se encontrem, em proporções similares, no Zaire ou na China; e
também poucas (embora mais numerosas) são as que se encontram no
Zaire, mas não em proporções similares na China ou na Inglaterra. Tudo
isso, repito, faz parte do consenso.
Uma parte mais conhecida do consenso é que as diferenças entre as
pessoas, na linguagem, nos atributos morais, nas atitudes estéticas ou na
ideologia política — as diferenças que nos afetam mais profundamente
em nosso trato uns com os outros — não são biologicamente
determinadas em nenhum grau signi cativo.
Essa a rmação decerto parecerá ultrajante àqueles que confundem a
questão de a diferença biológica explicar ou não nossas diferenças com a
questão de a semelhança biológica responder ou não por nossas
similaridades. Algumas de nossas semelhanças como seres humanos,
nesses aspectos largamente culturais — a capacidade de aprender
línguas, por exemplo, ou a capacidade de sorrir —, são biologicamente
determinadas, num grau expressivo. Podemos estudar os fundamentos
biológicos dessas capacidades culturais e dar explicações biológicas de
alguns aspectos do modo como as exercemos. Mas, se a diferença
biológica entre os seres humanos carece de importância nessas
explicações — e carece —, a diferença racial, como uma espécie de
diferença biológica, também não terá importância. Poderemos ver a
razão disso se atentarmos para a genética subjacente.
Características humanas são geneticamente determinadas23 (na
medida em que são determinadas) por seqüências de ADN no
cromossomo; em outras palavras, pelos genes.24 Uma região do
cromossomo ocupada por um gene é chamada de locus. Alguns loci são
ocupados, nos diferentes membros de uma população, por diferentes
genes — cada um dos quais é chamado alelo; e diz-se que um locus é
“polimorfo” numa população quando há pelo menos um par de alelos
nele. É possível que quase metade dos loci da população humana sejam
polimorfos; os demais, naturalmente, são chamados de “monomorfos”.
Muitos loci não têm apenas dois alelos, porém vários, e cada qual tem
uma freqüência na população. (Diz-se que alguém que tem o mesmo
alelo em ambos os cromossomos de um locus é “homozigoto” quanto a
esse locus; caso contrário, é “heterozigoto”.) Suponhamos que um
determinado locus tenha n alelos, que podemos simplesmente chamar de
1, 2 e assim por diante, até n; depois, podemos chamar as freqüências
desses alelos de x1, x2, ..., x n. Se considerarmos dois membros de uma
população, escolhidos ao acaso, e examinarmos o mesmo locus em um
cromossomo de cada um deles, a probabilidade de que eles tenham o
mesmo alelo nesse locus é igual à probabilidade de que ambos tenham o
primeiro alelo (x12), somada à probabilidade de que ambos tenham o
segundo (x22)... somada à probabilidade de que ambos tenham o enésimo
(x n2). Podemos chamar a esse número a homozigose esperável nesse
locus: ele é justamente a proporção de pessoas na população que seriam
homozigóticas nesse locus — tendo nele alelos idênticos em cada um dos
cromossomos pertinentes — desde que a população procrie ao acaso.25
Pois bem, se tomarmos o valor médio da homozigose esperável de
todos os loci, polimorfos e monomorfos (que os geneticistas chamam de
J), teremos uma medida da probabilidade de que duas pessoas, tomadas
ao acaso na população, tenham um mesmo alelo num locus de um
cromossomo tomado ao acaso. Essa é uma boa medida da similaridade
biológica que se pode esperar encontrar em um par de indivíduos
escolhidos ao acaso, e é também um bom guia de quão estreita — em
média — é a relação genética entre os membros da população.
Posso agora expressar, de forma simples, uma medida de até que ponto
os membros das populações humanas a que chamamos raças diferem
mais uns dos outros do que dos membros da mesma raça. É que o valor
de J para os “caucasóides” — basicamente estimado, na verdade, a partir
de amostras da população inglesa26 — é calculado em 0,857, ao passo
que o de toda a população humana é estimado em 0,852. Em outras
palavras, as chances de que duas pessoas retiradas ao acaso da população
humana tenham a mesma característica, num locus escolhido ao acaso,
são de cerca de 85,2%. E, já que 85,2 são 100 menos 14,8, e 85,7 são 100
menos 14,3, isso é equivalente ao que eu disse não muito atrás: as
probabilidades de duas pessoas “caucasóides” diferirem quanto à
constituição genética num locus de um dado cromossomo são de
aproximadamente 14,3%, enquanto, em duas pessoas quaisquer,
escolhidas ao acaso na população humana, são de cerca de 14,8%.
A conclusão é óbvia: sendo dada apenas a raça de uma pessoa, é difícil
dizer quais serão suas características biológicas — excetuadas as
características que os seres humanos têm em comum —, a não ser no
tocante aos traços “mais grosseiros” da cor, cabelos e ossos (cuja
genética, de qualquer modo, é muito precariamente entendida). Um
biólogo evolucionista chamaria esses traços de “diferenciação
morfológica”. Como se expressam Nei e Roychoudhury, meio
timidamente, “o grau de diferenciação gênica entre as raças humanas
nem sempre se correlaciona com o grau de diferenciação morfológica”.27
Isso talvez pareça relativamente tranqüilizador para os racialistas
convictos. A raça, diriam, ao menos é importante para prever a diferença
morfológica. Apesar de verdadeiro, esse não é um fato biológico, porém
lógico; é que as raças de Nei e Roychoudhury são de nidas, em primeiro
lugar, por sua morfologia. O critério para excluir de uma amostra
“caucasóide” norte-americana as pessoas de pele negra é apenas o dado
morfológico “grosseiro” de que sua pele é negra. Imigrantes recentes de
ascendência européia oriental seriam incluídos na amostra, enquanto
pessoas de pele escura cujos ancestrais tivessem vivido basicamente no
Novo Mundo nas últimas dez gerações seriam excluídas.
Demonstrar que essa noção de raça é relativamente sem importância
para explicar as diferenças biológicas entre as pessoas, quando a
diferença biológica é medida na proporção das diferenças nos loci do
cromossomo, ainda não equivale a mostrar que a raça não é importante
para explicar a diferença cultural. Talvez as grandes diferenças de
capacidade intelectual ou moral sejam causadas por diferenças em
pouquíssimos loci, e talvez, nesses loci, todas (ou quase todas) as pessoas
de pele negra di ram de todas (ou quase todas) as de pele branca ou
amarela. Ocorre que são pouquíssimas as provas em favor de qualquer
proposição dessa ordem, e inúmeras as que vão contra ela. Mas, vamos
supor que tivéssemos razões para acreditar nela. Na concepção biológica
do organismo humano, na qual as características são determinadas pelo
padrão dos genes que interagem com os ambientes, é a presença de
alelos (que dão origem a essas capacidades morais e intelectuais) que
responde pela diferença observada nessas capacidades, em pessoas em
ambientes similares. Logo, a morfologia racial característica — pele,
cabelos e ossos — só poderia ser um sinal dessas diferenças se tivesse uma
(alta) correlação com esses alelos. Uma vez que não existem essas
correlações fortes, até os que acham que o caráter intelectual e moral
tem uma forte determinação genética são forçados a admitir que a raça
é, na melhor das hipóteses, um indicador precário da capacidade.
Quando de ni o “racialismo” no capítulo anterior, a rmei que ele
estava comprometido não apenas com a visão de que existem
características hereditárias que constituem “uma espécie de essência
racial”, mas também com a a rmação de que as características essenciais
hereditárias respondem por mais do que a morfologia visível — cor da
pele, tipo de cabelo, traços faciais — com base na qual fazemos nossas
classi cações informais. Dizer que as raças biológicas existiriam por ser
possível classi car as pessoas num pequeno número de classes, de acordo
com sua morfologia grosseira, seria preservar o racialismo na forma,
porém perdê-lo na substância. A noção de raça que foi resgatada não
teria nenhum interesse biológico — as generalizações biológicas
interessantes dizem respeito a quais genes e quais características têm os
organismos, e a sua distribuição nas populações geográ cas. Também
poderíamos classi car as pessoas conforme elas fossem ou não ruivas, ou
ruivas e sardentas, ou ainda ruivas, sardentas e com o nariz largo, mas
ninguém a rma que esse tipo de classi cação seja central para a biologia
humana.
Há razões relativamente diretas para supor que grandes parcelas da
humanidade não se enquadrarão em nenhuma classe de pessoas que
possam ser de nidas por terem, além de uma morfologia super cial,
também outras características biológicas signi cativas em comum. A
disputa do século XIX entre a monogênese e a poligênese, entre a visão
de que todos descendemos de uma só população original e a visão de
que descendemos de várias, está encerrada. Não há dúvida de que todos
os seres humanos descendem de uma população original
(provavelmente, aliás, da África) e que, a partir dela, as pessoas se
espalharam de modo a povoar o globo habitável. A teoria evolucionista
convencional prediria que, como essas populações se deslocaram para
ambientes diferentes e novas características foram introduzidas por
mutações, algumas diferenças emergiriam, já que características
diferentes propiciariam melhores probabilidades de reprodução e
sobrevivência. Numa situação em que um grupo de pessoas fosse
geneticamente isolado durante muitas gerações, poderiam acumularse
diferenças signi cativas entre as populações, embora fosse necessário um
período muito extenso para que essas diferenças levassem ao isolamento
reprodutivo — à impossibilidade de reprodução fértil — e, desse modo,
à origem de um novo par de espécies distintas. Sabemos que não existe
tal isolamento reprodutivo entre as populações humanas, como
con rmará uma caminhada por qualquer rua de Nova York, de Paris ou
do Rio; mas também sabemos que nenhum dos grandes grupos
populacionais humanos jamais esteve isolado, do ponto de vista
reprodutivo, por um número muito grande de gerações. Se me puderem
perdoar o que soará como um eufemismo, direi que nas margens sempre
há uma troca de genes.
Não só sempre houve um certo grau de ligação genética desse tipo
marginal, como a história humana abrange contínuos deslocamentos de
pessoas em larga escala — as “hordas” de Átila, o Huno, os jihads
mediterrâneos dos árabes recém-islamizados, as migrações dos bantos —
que representam possibilidades de trocas genéticas. Por conseguinte,
todas as populações humanas estão vinculadas umas às outras por
populações vizinhas, seus vizinhos e assim por diante. Poderíamos ter
terminado como uma “espécie circular”, como as gaivotas dos grupos de
Larus argentatus e Larus fuscus que contornam o Pólo Norte, onde a
maioria das populações vizinhas se acasalam, mas as variedades que estão
no começo e no m da cadeia de variações permanecem em isolamento
reprodutivo. Porém, não terminamos.28
A classi cação das pessoas em “raças” seria biologicamente
interessante se as margens e as migrações não houvessem deixado um
rastro genético. Mas deixaram: e, ao longo desse rastro, há milhões de
nós (dependendo os números, é óbvio, dos critérios de classi cação
utilizados) que não se enquadram em nenhum esquema plausível. Em
certo sentido, tentar classi car as pessoas num pequeno número de raças
é como tentar classi car livros numa biblioteca: pode-se usar uma única
propriedade — o tamanho, digamos —, mas o que se obterá é uma
classi cação inútil; ou pode-se usar um sistema mais complexo de
critérios interligados, e então se obterá uma boa dose de arbitrariedade.
Ninguém, nem mesmo o mais compulsivo dos bibliotecários, supõe que
as classi cações dos livros re itam fatos profundos sobre estes. Cada qual
é mais ou menos inútil para várias nalidades; todas, como sabemos, têm
o tipo de arestas ásperas que levam algum tempo para se contornar. E
ninguém supõe que uma classi cação bibliotecária possa decidir quais
livros devemos valorizar; os números do sistema decimal de Dewey não
correspondem às qualidades de utilidade, ou interesse, ou mérito
literário.
A invocação da raça como noção classi catória fornece-nos um
exemplo de um padrão conhecido na história da ciência. Nas primeiras
fases da teoria, os cientistas partem, inevitavelmente, das categorias
presentes em teorias populares sobre o mundo, e, muitas vezes, os
critérios de pertença a essas categorias podem ser detectados apenas
com os sentidos. Assim, nos primórdios da química, a cor e o paladar
desempenharam um papel importante na classi cação das substâncias;
nos primórdios da história natural, as espécies de plantas e animais eram
identi cadas basicamente por sua morfologia macroscópica visível. Aos
poucos, entretanto, à medida que a ciência se desenvolve, elaboram-se
conceitos cuja aplicação requer mais do que os simples sentidos; em vez
de propriedades fenomênicas — as aparências — das coisas, buscamos
propriedades “mais profundas” e mais teóricas. O preço que pagamos é
que a classi cação torna-se uma atividade mais especializada; o benefício
que auferimos é sermos capazes de fazer generalizações de maior poder e
alcance. Referências a cor, sabor, cheiro ou textura dos objetos têm
poucas probabilidades de de nir leis da natureza. É difícil admitirmos
que as cores dos objetos, que desempenham um papel tão importante em
nossa experiência visual e em nosso reconhecimento dos objetos
cotidianos, não desempenham um papel importante no comportamento
da matéria, nem guardam correlações com propriedades que o façam.
Por exemplo, é difícil correlacionar, de maneira clara, o marrom, cuja
ausência provocaria uma diferença radical na aparência do mundo
natural, com as propriedades físicas das superfícies re etoras.29
Esse desejo de compreender os fenômenos de nossa experiência por
meio de objetos e propriedades ocultos de nossa visão direta é,
evidentemente, um aspecto crucial das ciências naturais. No cerne desse
projeto, como certa vez assinalou Heisenberg — um dos maiores físicos
da nossa e de qualquer época —, está um princípio que ele atribuiu a
Demócrito:
A teoria atômica de Demócrito (...) reconhece que para explicar racionalmente as qualidades
perceptíveis da matéria é preciso fazê-las remontar ao comportamento de entidades que, em si
mesmas, já não possuem essas qualidades. Para que os átomos realmente expliquem a origem
da cor e do odor dos corpos materiais visíveis, eles não podem ter propriedades como cor e
odor.30

A explicação dos fenótipos dos organismos (suas características) em


termos de seus genes enquadra-se bem nesse padrão democritiano. Do
mesmo modo, a ciência racial do século XIX buscava numa essência
racial hereditária uma explicação para o que seus proponentes
consideravam como fenômenos observáveis da distribuição diferencial,
nas populações humanas, dos traços morfológicos e dos traços
psicológicos e sociais. O que a genética moderna mostra é que não existe
essa essência racial subjacente. Não havia nada de errado no impulso de
Demócrito, mas apenas na forma particular que ele assumiu, e nos
preconceitos que instrumentalizaram — talvez devêssemos dizer
“deturparam” — a visão que os teóricos tinham dos fenômenos.
O desaparecimento da difundida crença no negro como categoria
biológica não deixaria nenhum traço diante do qual os racistas
pudessem ter uma atitude. Mas não ofereceria, por si só, uma garantia de
que os africanos escapassem ao estigma de séculos. Os racistas
extrínsecos poderiam desaparecer e ser substituídos por pessoas que
acreditassem que a população da África teria, em sua combinação
genética, um número menor dos genes que respondem pelas capacidades
humanas que geram o que é valioso na vida humana; menor, em outras
palavras, do que nas populações européia, asiática ou outras. Deixando
de lado a extraordinária di culdade de de nir quais são esses genes, não
há, evidentemente, nenhuma base cientí ca para essa a rmação. Sua
con ante reiteração demonstraria apenas a persistência de velhos
preconceitos em novas formas.
Mas, até mesmo essa visão seria, sob certo aspecto, um avanço em
relação ao racismo extrínseco, pois signi caria que cada africano
precisaria ser julgado por seus próprios méritos. Sem uma informação
cultural, saber que alguém é de origem africana fornece pouca base para
se supor grande coisa a seu respeito. Deixem-me formular essa a rmação
em sua forma mais fraca: na falta de uma essência racial, não poderia
haver garantia de que uma dada pessoa não fosse mais dotada — em
algum aspecto especí co — do que qualquer outra, ou todas as outras,
das populações de outras regiões.31
Foi uma constatação anterior, que também apontava para a conclusão
de que “a variação gênica dentro e entre as três grandes raças do homem
(...) é pequena, comparada à variação intra-racial”,32 e de que as
diferenças de morfologia não tinham uma forte correlação com a
capacidade intelectual e moral, que levou Du Bois, em e Crisis [A
crise], a uma rejeição explícita da a rmação de que a raça biológica era
importante para compreender a situação do negro:
Pelo menos no que concerne às aptidões intelectuais e morais, devemos falar de civilizações
onde hoje falamos de raças. (...) Na verdade, até as características físicas, excluindo a cor da pele
de um povo, são o resultado direto, numa medida nada insigni cante, do meio físico e social
em que ele vive. (...) Essas características físicas, além disso, são por demais inde nidas e
elusivas para servir de base para qualquer classi cação ou divisão rígidas dos grupos
humanos.33
Isso é direto o bastante. No entanto, seria uma conclusão apressada
demais supor que Du Bois expresse aí suas convicções mais profundas.
Depois de 1911, ele passou a defender o pan-africanismo, tal como havia
advogado o pannegrismo em 1897; mas, seja o que for que os afro-
americanos e os africanos tenham em comum, desde os achantis até os
zulus, não se trata de uma única civilização.
Du Bois conseguiu manter o pan-africanismo, ao mesmo tempo que
rejeitou o cialmente o discurso sobre a raça como sendo qualquer outra
coisa senão um sinônimo de cor. Poderemos ver como fez isso, se nos
voltarmos para sua segunda autobiogra a, Dusk of Dawn [A penumbra
do amanhecer], publicada em 1940.

Em Dusk of Dawn — um “ensaio para a autobiogra a de um conceito


racial” —, Du Bois alia-se explicitamente à a rmação de que a raça não é
um conceito “cientí co”:
É fácil veri car que a de nição cientí ca de raça é impossível; é fácil provar que as
características físicas não são tão herdadas a ponto de possibilitar a divisão do mundo em raças;
essa capacidade não é monopólio de nenhuma aristocracia conhecida; é fácil constatar que as
possibilidades de desenvolvimento humano não podem ser circunscritas pela cor, pela
nacionalidade ou por qualquer de nição concebível de raça.34

Mas, não precisamos de nenhuma de nição cientí ca, pois


tudo isso nada tem a ver com o fato evidente de que, em todo o mundo de hoje, grupos de
homens organizados pelo monopólio do poder econômico e físico, pela imposição da lei e
pela formação intelectual, vêm limitando, com determinação e um zelo infatigável, o
desenvolvimento de outros grupos; e a atual concentração, particularmente do poder
econômico, coloca a maior parte da humanidade na escravidão perante os demais.35

Ou, como ele o formula vigorosamente um pouco adiante, “o homem


negro é uma pessoa que tem que dominar o ‘Jim Crow’*21 da Geórgia”.36
No entanto, poucas páginas antes, ele havia explicado por que
continuava a ser pan-africanista, comprometido com um projeto
político que unia toda essa inde nível raça negra. A passagem merece ser
longamente citada.
Du Bois começa pela pergunta de Countée Cullen*22 — “Que é a
África para mim?” — e responde:
Em certa época, eu teria respondido a essa pergunta com simplicidade: teria dito a “pátria”, ou
talvez, melhor ainda, a “mãe pátria”, porque nasci no século em que os muros da raça eram
claros e erectos, em que o mundo compunhase de raças mutuamente excludentes; muito
embora os contornos pudessem ser vagos, não havia dúvida quanto à de nição e à
compreensão exatas do sentido da palavra (...).
Desde [a redação de “A preservação das raças”], o conceito de raça modi cou-se tanto e
apresentou tamanhas contradições que, ao olhar para a África, pergunto a mim mesmo: que é
isso entre nós que constitui um laço que sou mais capaz de sentir do que de explicar? A África
é, evidentemente, minha pátria. No entanto, nem meu pai nem o pai de meu pai jamais a viram,
ou souberam de seu signi cado, ou se importaram excessivamente com ela. Os parentes de
minha mãe eram-lhe mais próximos, mas sua vinculação direta, na cultura e na raça, tornou-se
tênue; mesmo assim, é intensa a minha ligação com a África. Nesse vasto continente nasceu e
viveu grande parte de meus ancestrais diretos, remontando a mil anos ou mais. A marca de sua
herança está em mim, na cor e nos cabelos. Essas são coisas óbvias, mas de pouca signi cação
em si mesmas; só importam por representarem diferenças reais e mais sutis em relação a
outros homens. Se elas representam ou não, não sei, nem tampouco sabe a ciência de hoje.
Mas, uma coisa é certa: desde o século XV, esses meus ancestrais e seus descendentes
tiveram uma história comum; sofreram uma calamidade comum e têm uma mesma extensa
memória. Os laços efetivos da herança entre os indivíduos desse grupo variam de acordo com
os ancestrais que eles têm em comum com muitos outros: europeus e semitas, talvez mongóis,
e certamente índios norte-americanos. Mas o vínculo físico é ín mo e a insígnia da cor é
relativamente sem importância, a não ser como insígnia; a verdadeira essência desse
parentesco é sua herança social de escravidão, de discriminação e de insulto; e essa herança
une não apenas os lhos da África, mas se estende por toda a Ásia amarela até os Mares do Sul.
É essa união que me atrai para a África.37

Essa passagem é tocante e tem uma formulação vigorosa. Gostaríamos


de poder acompanhá-la em suas conclusões. Mas, já que ela nos seduz
para o erro, devemos começar por nos distanciarmos do apelo de sua
argumentação, observando como ele faz eco a nosso texto anterior. A
cor e os cabelos não são importantes, a não ser “por representarem
diferenças reais e mais sutis”, diz Du Bois, o que nos faz lembrar as
“forças sutis” de “A preservação das raças”, que “em geral seguiram a
clivagem natural do sangue, da ascendência e das peculiaridades físicas
comuns”. Ali, uma parte essencial da argumentação consistia em que
essas forças sutis — impulsos e esforços — eram uma propriedade
comum dos que partilhavam de um “sangue comum”; aqui, Du Bois “não
[sabe], nem tampouco sabe a ciência” se isso ocorre. Mas, se não é assim,
então, pela própria admissão de Du Bois, essas “coisas óbvias” são “de
pouca signi cação”. E, se são de pouca signi cação, a menção que o
autor faz delas assinala, na superfície de sua argumentação, o quanto ele
não consegue realmente escapar ao apelo da concepção anterior de raça.
A saudade que Du Bois sente da concepção anterior, que agora ele se
proibiu, responde pelo páthos do abismo entre a certeza pouco con ante
de que a África é sua pátria, “evidentemente”, e a admissão de que ela não
é a terra de seu pai nem do pai de seu pai. De que serve uma pátria
assim? De que serve uma mãe pátria com a qual até a ligação da mãe é
“tênue”? Que importa que uma grande parcela de seus ancestrais tenha
vivido nesse vasto continente, se não há nenhum laço mais sutil com
eles, a não ser a ascendência biológica bruta — ou seja, sem mediação
cultural — e a “insígnia” que ela implica, dos cabelos e da cor?
Mesmo na passagem que se segue à sua renegação explícita da
concepção cientí ca da raça, as referências à “história comum” — a “uma
mesma extensa memória”, à “herança social de escravidão” — só fazem
reconduzir-nos ao movimento já familiar de substituir a concepção
biológica da raça por uma concepção sócio-histórica; e isso, como
vimos, é simplesmente sepultar a concepção biológica sob a superfície, e
não transcendê-la. Como, na verdade, ele nunca “fala de civilização”, Du
Bois não pode indagar se não haverá, na cultura norteamericana — que
sem dúvida é a sua —, um resíduo africano do qual se apossar e com o
qual se regozijar, uma ligação sutil, não mediada pela genética, mas pelas
intenções e pelo sentido. Du Bois não dispõe aí de maiores recursos
conceituais para explicar a unidade da raça negra — a identidade pan-
africana — do que tivera em “A preservação das raças”, meio século antes.
Um glorioso non sequitur deve estar submerso nas profundezas da
argumentação. É fácil trazê-lo à superfície.
Se o que Du Bois tem em comum com a África é uma história de
“discriminação e de insulto”, então isso também o liga, segundo suas
próprias palavras, à “Ásia amarela e (...) aos Mares do Sul”. Como pode
uma coisa que ele compartilha com todo o mundo não branco ligá-lo a
uma parte deste? Ao interrogarmos a argumentação nesse ponto, surge a
suspeita adicional de que a reivindicação desse vínculo baseia-se numa
interpretação hiperbólica dos fatos. A “discriminação e insulto” que
sabemos que Du Bois vivenciou em sua infância norteamericana e como
cidadão adulto do mundo industrializado teve um caráter diferente da
vivenciada, digamos, por Kwame Nkrumah na África Ocidental
colonizada; e esteve completamente ausente de grandes áreas da “Ásia
amarela”. O que Du Bois tem em comum com o mundo não branco não é
o insulto, mas a insígnia do insulto; e essa insígnia, sem o insulto, são
apenas a própria pele, cabelos e ossos, que são impossíveis de ligar a uma
de nição cientí ca da raça.
A pergunta de Du Bois merece uma resposta mais criteriosa do que a
que ele lhe dá. Que é, efetivamente, que aglutina as pessoas que
compartem uma característica — a “insígnia do insulto” — com base na
qual algumas delas sofreram discriminação? Poderíamos responder:
“Justamente isso; logo, certamente existe algo que as pessoas não brancas
do mundo têm em comum.” Mas, se formos adiante e perguntarmos
exatamente que prejuízo sofre uma moça de Mali em função do
preconceito contra a raça negra em Paris, a resposta perderá de vista
todos os detalhes importantes. Ela realmente sofre, é claro, porque, por
exemplo, as decisões políticas sobre as relações Norte-Sul são
intensamente afetadas pelo racismo das culturas metropolitanas do
Norte. Mas esse prejuízo é mais sistêmico, menos pessoal do que a
afronta à dignidade individual representada pelos insultos racistas da
cidade pós-industrial. Se ela for uma intelectual que re ita sobre as
culturas do Norte, também poderá experimentar o sentimento meditado
do insulto: poderá saber, a nal, que se estivesse lá, em Paris, correria o
risco de ser submetida a algumas das mesmas discriminações; poderá
reconhecer que o racismo foi parte da razão pela qual ela não pôde
obter um visto para ir até lá, e pela qual não se teria divertido se o
obtivesse.
Essas idéias por certo são exasperantes, como admitirão os intelectuais
africanos, afro-americanos e negros europeus, caso lhes perguntemos
como eles se sentem a respeito das políticas racistas de imigração da
Europa, ou do racismo institucionalizado do apartheid; e são idéias que
podem ser contempladas por qualquer pessoa não branca de qualquer
lugar, que saiba — numa expressão de Chinua Achebe — “como gira o
mundo”.38 A idéia de que, se eu estivesse lá agora, seria uma vítima,
atinge-nos de um modo diferente, ao que me parece, da idéia — capaz de
enfurecer qualquer ser humano branco digno — de que, se eu estivesse lá
e não fosse branco, eu seria uma vítima.39 No entanto, devemos sempre
lembrar que essa idéia também levou muita gente a uma identi cação
com a luta contra o racismo.
A lição dessas re exões, penso eu, deve ser que nosso anti-racismo nos
levará a diferentes alianças em diferentes situações. Du Bois escreve
como se tivesse que escolher entre a África, de um lado, e “a Ásia
amarela e (...) os Mares do Sul”, de outro. Mas essa, ao que me parece, é
justamente a escolha que o racismo nos impõe, justamente a escolha que
devemos rejeitar.

No primeiro capítulo, a rmei que há a nidades substanciais entre as


doutrinas raciais do pan-africanismo e outras formas de nacionalismo
enraizadas no século XIX, em particular com o sionismo. Como não
podemos esquecer o que, em nome da raça, se fez com os judeus neste
século, é fatal que essa a rmação suscite controvérsias. Faço-a apenas
para insistir nos modos como o pan-africanismo e os criadores afro-
americanos da retórica nacionalista negra não deixaram de ser típicos
do pensamento europeu e norte-americano da época, inclusive da
retórica das vítimas do racismo. Com a postura de Du Bois exposta
diante de nós, essa comparação pode ser mais substancialmente
articulada.
Entretanto, dado o caráter sensível dessa questão, sou obrigado a
começar por ressalvas. Não faz parte de meu resumo argumentar que o
sionismo tem que ser racialista, até porque, como argumentarei no nal,
o impulso pan-africanista também pode receber uma base não racialista.
Tampouco é minha intenção defender a a rmação de que as origens do
sionismo moderno são essencialmente racialistas, ou de que o racialismo
é central no pensamento de todos os fundadores do sionismo moderno.
Parece-me, como a rmei, que o judaísmo — a religião —, bem como o
corpo mais amplo de práticas judaicas através das quais se de niram as
várias comunidades da diáspora, permitem uma concepção cultural da
identidade judaica, que não tem como se tornar plausível no caso do
panafricanismo. Como prova desse fato, eu simplesmente citaria o fato
de que as cerca de cinqüenta nacionalidades africanas díspares de nosso
mundo atual parecem ter satisfeito os impulsos nacionalistas de muitos
africanos, enquanto o sionismo satisfez-se, necessariamente, com a
criação de um Estado único.
Mas, apesar dessas diferenças, é importante reconhecer com clareza
que houve racialistas judeus na história inicial do sionismo moderno;
que eles não foram guras marginais ou loucos da periferia e que, como
Crummell e, depois, Du Bois, desenvolveram um nacionalismo
enraizado nas teorias raciais do século XIX. Isso é importante, no mundo
prático da política, porque o sionismo racializado continua a ser uma
das ameaças à estabilidade moral do nacionalismo israelense, como
atesta a política do falecido rabino Meir Kahane. Contudo, é
teoricamente importante para minha argumentação porque, como
a rmo, isso é central em minha visão de que as hipóteses incipientes de
Crummell, que Du Bois transformou numa teoria organizada, foram
perfeitamente convencionais.
Para determinar que a visão de Crummell foi convencional, não
precisamos fazer mais do que citar os textos históricos dos primeiros
historiadores acadêmicos dos Estados Unidos, com suas encantadoras
fantasias de uma democracia puritana como parte de uma tradição
contínua, derivada da assembléia do povo anglo-saxônica, ou as obras da
historiogra a britânica anglo-saxônica que rastrearam a evolução das
instituições britânicas até as hordas teutônicas de Tácito; de fato,
examinarei algumas das questões levantadas nesses textos no início do
próximo capítulo. Mas, essa comparação deixaria de fora parte do que há
de realmente fascinante no pensamento desses primeiros nacionalistas.
Pois, não importa quão anacrônica seja nossa reação, nossa surpresa
diante de Crummell e daqueles dentre seus contemporâneos sionistas
que compartilharam de sua visão racializada está em que, como vítimas
do racismo, eles endossaram teorias racialistas.
Assim, ao lermos Horace M. Kallen, escrevendo em e Maccabean [O
macabeu], publicado em Nova York em agosto de 1906, sobre “A ética do
sionismo”, é possível sentirmos o mesmo espanto, sem dúvida
anacrônico.40 O ensaio de Kallen baseou-se numa palestra que ele zera
numa reunião de uma organização sionista norte-americana. (e
Maccabean era sua publicação o cial.) Diz ele: “É a raça, e não o homem,
que, na explicação mais ampla do destino humano, luta, sobrevive ou
morre, e os tipos de civilização sempre re etiram o caráter natural das
raças dominantes. (...)”41 E isso nos lembra a a rmação de Du Bois: “A
história do mundo é a história, não de indivíduos (...), mas de raças.”
Kallen pergunta: “A nal, que fez o judeu pela civilização? Qual é seu
lugar na evolução da raça humana? Qual é seu valor moral para a
humanidade?”42Isso nos faz lembrar as raças de Du Bois, cada qual
“lutando (...) por desenvolver para a civilização sua mensagem
particular”.
Existem, é claro, diferenças instrutivas entre a “ética” de Kallen e a de
Du Bois. Parte da divergência histórica entre as concepções afro-
americanas e judaico-americanas da identidade é revelada quando
Kallen rejeita explicitamente uma concepção religiosa ou cultural da
identidade judaica:
Eis aí um povo intensamente unido, de sangue relativamente puro e intensa consciência racial,
que vive em todas as partes da Terra, de certo modo com sucesso, e é objeto do ódio daqueles
com quem convive. Para evitar o efeito desse ódio, muitos membros da raça tentaram eliminar
todas as semelhanças entre eles e ela. Suas línguas são tão diversi cadas quanto os países em
que vivem; eles proclamam suas nacionalidades como russos, ingleses, franceses, austríacos ou
norte-americanos, e relegam seu caráter racial a um rótulo sectário. “Nós”, dizem, “não somos
judeus, mas judaístas.[”] 43
(...) nosso dever [é] judaizar o judeu (...).44

Kallen encarava esse tipo de “sionismo cultural” como não sendo


“muito melhor do que a assimilação”,45 à qual, é claro, também se
opunha ativamente. Mas, essa resistência à assimilação não podia fazer
parte da posição de Du Bois: a assimilação, que depois da Guerra Civil
norte-americana, por um breve momento, alguns consideraram como
uma possibilidade, só voltou a se converter em mais do que uma
possibilidade teórica — a não ser pelos poucos afro-americanos que
podiam “passar por brancos” — depois do movimento dos Direitos Civis;
e nesse momento, é claro, foi amplamente rejeitada em favor de um
nacionalismo cultural das Raízes.
Não obstante, mutatis mutandis, a ideologia que funciona aí é,
reconhecivelmente, a de Du Bois; o nacionalismo judaico norte-
americano — pelo menos nessa manifestação — e o nacionalismo negro
norte-americano são (o que não chega a surpreender) parte do mesmo
esquema de coisas.46

O conceito racial de Du Bois parece uma criação por demais norte-


americana, mas seus vestígios na retórica africana são imensos. Quando
Kwame Nkrumah discursou perante o parlamento da Costa do Ouro,
apresentando a “moção do destino” que aceitava a constituição da
independência, ele proferiu as seguintes palavras:
Nobres membros (...). Os olhos e ouvidos do mundo estão voltados para vocês; sim, nossos
irmãos oprimidos de todo este vasto continente da África e do Novo Mundo estão olhando
para vocês com desvairada esperança, como uma inspiração para que eles prossigam em sua
luta sombria contra crueldades que nós, neste canto da África, jamais conhecemos —
crueldades que são uma vergonha para a humanidade e para a civilização que o homem branco
propôs-se ensinar-nos.47

Para uma pessoa não sobrecarregada com a bagagem da história da


idéia de raça, por certo pareceria estranho que a independência de uma
nação de homens e mulheres negros tivesse maior repercussão entre os
negros do que junto a outros povos oprimidos; e igualmente estranho
que fosse a brancura dos opressores — “o homem branco” —, em
contraste, digamos, com seu imperialismo, que ganhasse destaque. Seria
estranho, mesmo para aqueles dentre nós que vivemos num mundo
formado pela ideologia racial, pensar que a libertação dessas pessoas de
crueldades que jamais conheci me instigasse em minha luta pela
liberdade, por sermos da mesma cor. No entanto, Du Bois morreu na
Gana de Nkrumah, levado para lá pelo sonho do pan-africanismo e pela
realidade do racismo norte-americano. Se escapou desse racismo, nunca
completou sua fuga da raça. A lógica de sua argumentação leva,
naturalmente, ao repúdio nal da raça como termo diferenciador — a
falar “de civilizações onde hoje falamos de raças”. Essa lógica é a mesma
que nos levou a falar de gênero — a construção social a partir dos fatos
biológicos — onde antes falávamos de sexo; e uma avaliação racional dos
dados exige que endossemos não apenas a lógica, mas também as
premissas de cada argumento. Apenas esbocei as provas dessas premissas
no caso da raça, mas está tudo nos textos. Discutir Du Bois foi, em
grande parte, um pretexto para bosquejar a tese que ele nunca chegou
propriamente a concluir.
No capítulo 1, distingui dois tipos de racismo — intrínseco e
extrínseco; o racismo teórico de Du Bois foi, a meu ver, extrínseco.
Contudo, em seu íntimo, parece-me que os sentimentos de Du Bois eram
os de um racista intrínseco. Ele queria desesperadamente encontrar na
África e em meio aos africanos um lar, um lugar do qual pudesse sentir,
como nunca sentira nos Estados Unidos, que fazia parte. No entanto, sua
razão não lhe permitiria ser um racista intrínseco: assim, ele reagiu aos
desa os do racialismo procurando, de maneiras cada vez mais exóticas,
defender sua crença na conexão entre a raça e as propriedades
moralmente relevantes.
A verdade é que não existem raças: não há nada no mundo capaz de
fazer tudo aquilo que pedimos que a raça faça por nós. Como vimos, até
mesmo a noção do biólogo tem apenas usos limitados, e a noção que Du
Bois requeria, e que subjaz aos racismos mais odiosos da era moderna,
não se refere a absolutamente nada que exista no mundo. O mal que se
faz é feito pelo conceito, e por suposições simplistas — mas impossíveis
— a respeito de sua aplicação.
Falar de “raça” é particularmente desolador para aqueles de nós que
levamos a cultura a sério. É que, onde a raça atua — em lugares onde as
“diferenças macroscópicas” da morfologia são correlacionadas com
“diferenças sutis” de temperamento, crença e intenção —, ela atua como
uma espécie de metáfora da cultura; e só o faz ao preço de biologizar
aquilo que é cultura, a ideologia.
Chamá-lo de “biologizante”, no entanto, não é con ar nosso conceito
de raça à biologia, pois o que está presente ali não é nosso conceito, mas
apenas nossa palavra. Até os biólogos que acreditam em raças humanas
usam o termo “raça”, segundo dizem, “sem nenhuma implicação social”.48
O que existe “lá fora”, no mundo — comunidades de sentido, fundindo-se
diversamente umas nas outras na rica estrutura do mundo social —, é o
campo, não da biologia, mas das ciências humanas.
Examinei essas questões através dos escritos de Du Bois, com o peso de
sua herança acadêmica, procurando transcender o sistema de oposições
cuja aceitação o teria deixado em confronto com a norma (branca) da
forma e do valor. Em seus trabalhos iniciais, Du Bois presume a
existência da raça e procura revalorizar um pólo da oposição entre
brancos e negros. O conceito aceito é uma hierarquia, uma estrutura
vertical, e Du Bois quer girar o eixo, dar à raça uma interpretação
“horizontal”. Basta questionar o pressuposto de que exista um eixo, seja
qual for sua orientação no espaço dos valores, para que o projeto caia
por terra, por falta de pressupostos. Em seus escritos posteriores, Du
Bois — cujo trabalho da vida inteira foi, em certo sentido, uma tentativa
de realizar justamente esse projeto impossível — não conseguiu escapar
à noção de raça que rejeitou explicitamente. Mostrarei, nos capítulos
seguintes, que essa curiosa conjunção de con ança na raça e repúdio a
ela repete-se na recente teorização africana.
Podemos tomar emprestada a própria metáfora de Du Bois: embora
ele visse a chegada do alvorecer, nunca olhou para o sol. E seria difícil
negar que ele é seguido nisso por muita gente da África — como da
Europa e da América — nos dias atuais: todos vivemos na penumbra
desse amanhecer.
20 Edição em língua portuguesa: Lisboa, Edições 70. (N. da T.)

21 Termo pejorativo, que equivale aproximadamente a “crioulo” em português. (N. da T.)

22 Escritor norte-americano (1903-1946), autor de poemas ligados à condição negra (“Copper Sun”,
“On ese I Stand”) e de um romance (One Way to Heaven). (N. da T.)
3
Pendendo para o nativismo*23

Para além da recusa de qualquer dominação externa, existe a vontade de reatar profundamente
os laços com a herança cultural da África, mal-entendida e rejeitada por demasiado tempo. Longe
de ser um esforço superficial ou folclórico de fazer com que se revivam algumas tradições
ou práticas ancestrais, trata-se. de construir uma nova sociedade [africana]
cuja identidade não seja conferida de fora. 1

Cardeal Paul Zoungrana

M artin Farquhar Tupper, um inglês que viveu durante a maior


parte do século XIX, foi um autor extremamente prolí co; em
sua época, os versos de suas Proverbial Maxims [Máximas
proverbiais] eram lidos por milhões de pessoas, e seus dois romances e
muitos outros textos granjearam-lhe um público respeitável. Hoje em
dia, Tupper só é conhecido pelos que têm um interesse histórico nos
escritores populares do século XIX, ou um interesse de antiquário pela
poesia de segunda. Mas, em 1850, Tupper estava no auge de sua
popularidade e de suas forças; e, nesse ano, publicou estas palavras, que
logo se tornariam famosas, num jornal chamado e Anglo-Saxon:
Stretch forth! Stretch forth! from the south to the north,
From the east to the west, — stretch forth! stretch forth!
Strenghten thy stakes and lenghten thy chords, —
e world is a tent for the world’s true lords!
Break forth and spread over every place
e world is a world for the Saxon race!*24
O Anglo-saxão durou apenas um ano, mas seu tom é o símbolo de um
importante desdobramento no modo como os ingleses e inglesas
instruídos pensavam em si mesmos e no que os tornava ingleses; um
desdobramento que, por sua vez, fez parte de um movimento mais amplo
de idéias na Europa e na América do Norte. Como herdeiros da cultura
do mundo moderno, uma cultura tão crucialmente moldada pelas idéias
que o poema de Tupper representa, quase todos os leitores do século XX,
não só na Europa e na América, mas no mundo inteiro, podem presumir
um conjunto de suposições sobre o que Tupper quer dizer com “raça”.
Essas suposições, que equivaleram a uma nova teoria da raça, falseiam
sob aspectos fundamentais nossa moderna compreensão da literatura —
a rigor, da maior parte da cultura simbólica — e o fazem a despeito de
muitas dessas suposições terem sido o cialmente descartadas.

Raça, nação, literatura: esses termos estão ligados na recente história


intelectual do Ocidente. Como vamos ver, precisaremos ter isso em
mente ao nos voltarmos para os herdeiros literários pós-coloniais de
Crummell e Du Bois. Isso porque, embora as idéias do racialismo sejam
conhecidas e ninguém precise ser lembrado da conexão entre o
racialismo e o tipo de imperialismo que Tupper celebrou, talvez seja
menor a percepção de que as questões raciais permeiam a temática de
muitas das obras centrais na história recente do que compreendemos
como literatura. Mas, a razão disso não tem que ser buscada muito longe:
ela reside na dupla ligação, feita nos séculos XVIII e XIX no pensamento
euroamericano, entre, de um lado, a raça e a nacionalidade, e de outro, a
nacionalidade e a literatura. Em suma, a nação é o termo intermediário
fundamental para compreender as relações entre o conceito de raça e a
idéia de literatura.
O primeiro desses vínculos, entre a nação e a raça, decerto há de ser o
menos intrigante, mesmo para um leitor norte-americano, criado numa
nação explicitamente multi-racial. Desde o século XVII, os norte-
americanos acreditaram que parte do que é característico da cultura e da
política do Novo Mundo é a variedade das origens nacionais (e, mais
tarde, “raciais”) dos povos que ali se estabeleceram. Os Estados Unidos
eram uma nação nova, concebida pelos puritanos como produto do livre
arbítrio de seus imigrantes. A comunidade puritana estabeleceu-se em
contraste explícito com os reinos e principados europeus de que vieram
os primeiros imigrantes, Estados em que o berço de nia quem era súdito
de qual governante. Esses primeiros imigrantes pensavam em sua nova
comunidade como um produto, não da ascendência, mas da escolha e
dos laços, numa expressão conhecida, do amor fraterno. Como disse
John Winthrop em 1630, “os ligamentos deste corpo [a comunidade
puritana] que [o] mantêm unido são o amor”.2 Precisamente por
haverem os norte-americanos, desde o início, contrastado sua situação
— a de haverem consentido em viver juntos no Novo Mundo — com a
do Velho Mundo, onde as pessoas eram súditos hereditários de
monarquias, eles sempre souberam que as nações européias se concebiam
em termos da ascendência. Por esse ponto de vista, tudo o que aconteceu
foi que a ascendência passou a ser entendida, em meados do século XIX,
em termos de raça.
Contudo, a crescente identi cação da raça com a nação no
pensamento europeu — e, mais particularmente, no inglês — foi um
processo complexo. O anglo-saxonismo do século XIX na Grã-Bretanha
— o anglo-saxonismo de Crummell — tem raízes profundas no solo da
argumentação histórica sobre a constituição inglesa, no fascinante
processo pelo qual uma classe comercial ascendente transformou a
monarquia na Grã-Bretanha, levando-a das raízes feudais à “monarquia
constitucional” que se estabeleceu na Restauração de 1660. Nas
discussões que cercaram esse acontecimento, desenvolveu-se no século
XVII a mitologia de um povo anglo-saxão livre, vivendo sob um governo
parlamentar antes da conquista normanda de 1066. Cada vez mais, as
instituições anglo-saxônicas foram vistas como correspondendo ao
“amor natural pela liberdade” dos ingleses, e como subjazendo aos
“direitos imemoriais” dos cidadãos livres contra a coroa.
Essa mitologia contrapôs-se à historiogra a da corrente dominante na
Idade Média, que rastreou a History of the Kings of Britain [História dos
reis da GrãBretanha] — como se chamou a obra seminal de Geoffrey of
Monmouth em 1136 — até Brutus, neto de Enéias de Tróia.3 Foi
Geoffrey quem instituiu a história do rei Artur, lho de
Utherpendragon, como uma parte permanente da mitologia britânica.
Sua obra desempenhou um papel signi cativo na construção de um
arcabouço dentro do qual as diferentes correntes culturais — romanos,
saxões, dinamarqueses e normandos — que se haviam agregado na Grã-
Bretanha ao longo do primeiro milênio puderam ser reunidas numa
única história uni cadora.
Quando Richard Verstegen publicou seu in uente livro Restitution of
Decayed Intelligence [O resgate da inteligência decaída], em 1605, ele
a rmou que o passado anglo-saxão era o passado de um povo germânico
que compartilhava sua língua e suas instituições com as tribos
germânicas, cuja grande coragem e feroz independência Tácito havia
descrito muitos séculos antes. Verstegen a rmou que essas tribos
também eram os ancestrais dos dinamarqueses e normandos, cujas
invasões da Grã-Bretanha, portanto, não haviam perturbado
essencialmente a unidade dos ingleses como um povo germânico. O
efeito dessa argumentação, é claro, foi fornecer ao século XVIII o que a
History of the Kings of Britain havia proporcionado na Idade Média: um
arcabouço dentro do qual os povos da Inglaterra puderam ser
concebidos como unidos.
Às vésperas da Revolução Norte-Americana, a historiogra a anglo-
saxônica e o estudo do direito, da língua e das instituições anglo-saxões
eram atividades acadêmicas já aceitas; e, naturalmente, a noção de um
passado anglo-saxão livre, cujo restabelecimento seria uma forma de
fugir de uma possível conversão da monarquia numa tirania, era de
molde a atrair guras como omas Jefferson. O anglo-saxonismo
difundiu-se rapidamente para uma nação norte-americana cuja cultura
dominante se imaginava — mesmo depois da Revolução — britânica. E
quando Jefferson, por sua vez um estudioso anglo-saxão nada medíocre,
projetou um currículo para a Universidade de Virgínia, ele incluiu o
estudo da língua anglo-saxônica, porque, como disse, ao lerem as
“histórias e leis que nos foram deixadas nesse (...) dialeto”, os estudantes
se “impregnariam, juntamente com a língua, de seus livres princípios de
governo”.
O próprio Jefferson também “suspeitava”, como a rmou em suas Notes
on the State of Virginia [Notas sobre o Estado da Virgínia] (1787), que o
povo anglo-saxão fosse superior aos negros “nos dotes do corpo e da
mente”, embora jamais contestasse diretamente a ortodoxia bíblica de
que os africanos, como todos os seres humanos, descendiam de Adão e
Eva. E essa linguagem, com seu foco nos dotes, ou seja, na
hereditariedade e na ligação da herança corporal física com os dotes da
mente, é uma das primeiras declarações do que constituía, na época,
uma visão radical: a visão de que a inferioridade cultural das raças não
brancas decorria de uma essência racial herdada.
Mas Jefferson, sob muitos aspectos, não chegou a ser um racialista
rematado. Para começar, sua visão não era totalmente generalizada, de
modo que ele não tinha a idéia de que todas as pessoas zessem parte de
uma raça, com sua própria essência característica e seu lugar na ordem
dos dotes morais e intelectuais. Embora suas atitudes para com os negros
não chegassem a ser entusiásticas, suas crenças quanto aos “dotes” dos
índios norte-americanos, que obviamente não eram de ascendência
anglo-saxônica, eram basicamente positivas, e ele favoreceu ativamente o
casamento inter-racial, para produzir uma nova cepa de norte-
americanos de “sangue misto”. Mas, no meio século que se seguiu às Notes
on the State of Virginia, a generalização do pensamento racial — que
produziria o racialismo de Crummell e Du Bois — estava completa.4
Nas condições diferenciadas do Novo Mundo, onde a escravidão racial
havia-se tornado um dado central da vida, Jefferson antecipou um
processo intelectual que só mais tarde teria início na Grã-Bretanha. Na
Inglaterra, a mitologia anglo-saxônica fora basicamente usada, até então,
em discussões dentro do Reino Unido, discussões que se centravam na
transferência do poder da aristocracia feudal para a burguesia
ascendente. No período entre o m das Guerras Napoleônicas e meados
do século, a celebração do povo anglo-saxão e suas instituições voltou-se
para fora, para justi car a dominação do mundo não branco. E são os
traços dessa nação plenamente racializada — o que antes chamei de
vínculo entre a nação e a raça — que reconhecemos com muita
facilidade no poema de Tupper.

Mas, é provável que o caráter profundamente arraigado do segundo


vínculo — entre a nação e a literatura — seja menos naturalmente
inteligível. E nosso ponto de partida para entender o papel da idéia de
uma literatura nacional no desenvolvimento do conceito de cultura
nacional deve estar na obra do homem que elaborou sua primeira
verdadeira articulação teórica (um homem que já mencionei, de modo
quase inevitável, ao falar de Crummell), ou seja, Johann Gottfried
Herder.
Em seu livro On the New German Literature: Fragments [Sobre a nova
literatura alemã: fragmentos], de 1767, Herder — que foi, sob alguns
aspectos, o primeiro lósofo importante do nacionalismo moderno —
propôs a noção de que a linguagem não é apenas “um instrumento das
artes e das ciências”, porém “parte delas”. “[Q]uem quer que escreva sobre
a literatura de um país”, prosseguiu Herder, “não deve desprezar sua
língua.” A noção herderiana do Sprachgeist — literalmente, o “espírito”
da língua — incorpora a idéia de que a língua é mais do que o meio pelo
qual os falantes se comunicam. Como escreveu Hans Kohn, um dos
grandes historiadores do nacionalismo, para Herder a
nacionalidade vivia sobretudo em sua civilização; seu principal instrumento era sua língua: não
um instrumento arti cial, mas um dom de Deus, guardião da comunidade nacional e matriz de
sua civilização. Assim, a língua, a língua nacional, tornou-se um instrumento sagrado; cada
homem só poderia ser ele mesmo ao pensar e criar em sua própria língua. Juntamente com o
respeito por todas as outras nacionalidades, havia o respeito por suas línguas.5

Herder, é claro, teve de fazer uma clara distinção entre as nações e os


Estados, porque, na Europa do século XVIII, não havia nem mesmo uma
correlação aproximada entre as fronteiras lingüísticas e políticas. (É
importante lembrar que essa correlação continua a ser, na maior parte
do mundo, bastante tosca.) O moderno nacionalismo europeu, que
produziu, por exemplo, os Estados alemão e italiano, foi uma tentativa
de criar Estados que correspondessem às nacionalidades, nacionalidades
estas concebidas como o compartilhar de uma civilização e, mais
particularmente, de uma língua e uma literatura. Exatamente pelo fato
de a geogra a política não corresponder às nacionalidades de Herder,
ele foi obrigado a estabelecer uma distinção entre a nação como
entidade natural e o Estado como produto da cultura, como um
artifício humano.
A oposição entre a natureza e a cultura é uma das mais antigas na
história intelectual do Ocidente (na verdade, Claude Lévi-Strauss
a rmou que ela é uma das oposições centrais do pensamento humano).
Mas, essa oposição foi entendida de maneiras radicalmente diferentes
em diferentes períodos. Para Herder e seus contemporâneos, como deixa
claro o comentário de Hans Kohn, a natureza humana ainda era,
basicamente, uma questão das intenções de Deus em relação aos seres
humanos; a nação era natural, como escreveu Crummell cerca de um
século depois dos Fragmentos de Herder (num trecho que já citei),
porque “[a]s raças, como as famílias, são organismos e ordenações de
Deus”.6
Entretanto, com a crescente in uência das ciências naturais no
período transcorrido desde a época de Herder, aquilo que é natural nos
seres humanos — a “natureza humana” — passou a ser cada vez mais
considerado em termos das ciências da biologia e da antropologia.
Inevitavelmente, portanto, a nação passou a ser mais e mais identi cada
com uma unidade biológica, de nida pela essência comum que
decorreria de uma ascendência comum, mesmo quando, como no caso
de Alexander Crummell, a própria realidade das raças também era vista,
teologicamente — como a tinham visto os hebreus — como um produto
da vontade divina.
Superpondo a identi cação herderiana do cerne da nação com sua
literatura nacional à concepção racial de nação, chegamos à
compreensão racial da literatura que oresceu, de meados do século XIX
em diante, na obra dos primeiros historiadores literários modernos. A
monumental History of English Literature [História da literatura inglesa],
de Hippolyte Taine — talvez a primeira história literária moderna do
inglês, publicada na França na década de 1860 —, começa pelas palavras:
“A história foi transformada ao longo de cem anos, na Alemanha, e de
sessenta, na França, e isso através do estudo de suas literaturas.”7 Mas ele
logo nos diz que
uma raça, como os antigos arianos, estendeu-se do Ganges até as Hébridas, estabeleceu-se em
todos os climas, e todos os estágios de civilização; transformados por trinta séculos de
revoluções, ainda assim manifestam, em suas línguas, religiões, literaturas e loso as, a
comunhão de sangue e intelecto que até hoje une seus descendentes.8

Em suma, o que se revela pelo estudo da literatura que transformou a


disciplina da história é o “estado moral” da raça a que essa literatura
pertence. É por essa concepção que Taine julga apropriado iniciar seu
estudo da literatura inglesa por um capítulo sobre os saxões; assim, o
capítulo 1 do Livro I da História de Taine não começa na Inglaterra, em
absoluto, mas na Holanda:
Quando se costeia pelo mar do Norte a região que vai do rio Scheldt à Jutlândia, observa-se, em
primeiro lugar, que o traço característico é a ausência de montanhas: charcos, descampados,
baixios; os rios mal conseguem arrastar-se, engrossados e indolentes, com longas ondas
enegrecidas (...)9

Os “saxões, anglos, jutos, frísios (...) [e] dinamarqueses”10 que ocuparam


essa região da Holanda no início do primeiro milênio são, no dizer de
Taine, os ancestrais dos ingleses; entretanto, uma vez que eles mesmos
são de ascendência germânica, Taine também se refere, ao descrever essa
“raça” algumas páginas adiante, a alguns de seus traços relatados em
Tácito.
É a concepção do núcleo uni cador da nação inglesa como sendo a
raça anglo-saxônica que explica a decisão de Taine de identi car as
origens da literatura inglesa, não em seus antecedentes nos clássicos
gregos e romanos que forneceram os modelos e os temas de grande parte
das mais afamadas obras da “arte poética”*25 inglesa, nem nos modelos
italianos que in uenciaram a arte dramática de Marlowe e Shakespeare,
mas em Beowulf, um poema em língua anglo-saxônica, poema este que
era desconhecido de Spenser e Shakespeare, os primeiros poetas a
escreverem numa versão da língua inglesa que ainda quase conseguimos
entender.
Contudo, essa decisão foi muito representativa. Quando o ensino da
literatura inglesa institucionalizou-se nas universidades inglesas no
século XIX, exigiu-se que os alunos aprendessem anglo-saxão para
estudar o Beowulf. Assim, o anglo-saxonismo desempenhou um grande
papel no estabelecimento do cânone das obras literárias a serem
estudadas nas faculdades britânicas e norteamericanas; e os professores
que saíram dessas faculdades para as escolas secundárias levaram consigo
o cânone anglo-saxão.

É quase desnecessário assinalar que o anglo-saxonismo explícito não é


exatamente prestigiado; ele sucumbiu, alegra-nos dizer, primeiro às
investidas políticas e, depois, aos ataques intelectuais do anti-racismo.
Portanto, há uma espécie de ironia histórica no fato de o
desenvolvimento da crítica literária afro-americana fornecer um dos
mais destacados exemplos de etnicidade racialmente entendida nos
estudos literários dos últimos anos. Para quem quer que tenha
acompanhado a argumentação até aqui, não será de surpreender que o
persistente uxo de discussões nacionalistas afro-americanas — uma
tradição cujas origens remontam a bem antes da ascensão do anglo-
saxonismo racial — tenha sido acompanhado de apelos a uma herança
cultural africana, expressa na música popular, na poesia e nas canções
negras. Pioneiros intelectuais como Du Bois, do nal do século XIX em
diante, tentaram articular uma tradição racial de letras negras, em parte
como uma expressão natural da visão herderiana da nação como
identi cada, acima de tudo, com sua expressão na “arte poética”. Muitos
teóricos afro-americanos concordariam com Carlyle — e há outra ironia
nesse feliz consenso entre os “pretos”*26 e o autor do “Occasional
discourse on the Nigger Question” [Discurso situacional sobre a questão
dos pretos] — quando ele escreveu na Edinburgh Review, em 1831 (num
debate sobre uma história da poesia alemã):
A história da poesia de uma nação é a essência de sua história, seja ela política, cientí ca ou
religiosa. Com todas essas, o consumado Historiador da Poesia há de estar familiarizado: a
sionomia nacional, em seus traços mais apurados e através de seus sucessivos estágios de
crescimento, há de lhe ser clara; ele discernirá a grande tendência espiritual de cada período
(...).
Entretanto, há mais uma razão por que a identi cação de uma história
da literatura negra tem sido central, não apenas para a crítica literária
afro-americana, mas para a cultura dos afro-americanos, a saber: durante
quase todo o período em que houve pessoas de ascendência africana no
Novo Mundo, os europeus e os norte-americanos de ascendência
européia negaram sistematicamente que os negros fossem capazes de
contribuir para “as artes e as letras”. A começar de antes do
estabelecimento da raça como um conceito biológico, guras in uentes
manifestaram suas dúvidas sobre a “capacidade do negro” de produzir
literatura. Mesmo no Iluminismo, que enfatizou a universalidade da
Razão, Voltaire, na França, Hume, na Escócia, e Kant, na Alemanha,
assim como Jefferson no Novo Mundo, negaram a capacidade literária
das pessoas de ascendência africana. Como escreveu Hume — um lósofo
de in uência nada desprezível — numa famosa nota de rodapé em seu
ensaio Of National Characters [Dos atributos nacionais] (1748): “Tendo a
suspeitar que os negros sejam naturalmente inferiores aos brancos.
Raramente houve uma nação civilizada com essa tez, nem tampouco
qualquer indivíduo que fosse eminente na ação ou na especulação.”11 E,
uma vez conceituada a raça em termos biológicos, essas opiniões
negativas sobre as realizações negras levariam facilmente à conclusão de
que os negros eram simplesmente incapazes dessa eminência.
Em resposta a essa longa linha de invectivas contra os negros, os
escritores negros dos Estados Unidos, desde o primeiríssimo poeta afro-
americano — Phillis Wheatley, que viveu em Boston na última parte do
século XVIII —, procuraram estabelecer a “capacidade do negro”,
escrevendo e publicando poesia, primeiramente, e, mais tarde — à
medida que a literatura passou a ser concebida como abrangendo o
romance, o ensaio e a autobiogra a —, cada uma dessas formas.12 Mais
do que isso, grande parte dos textos publicados por afro-americanos,
mesmo quando não voltados para uma oposição à mitologia racista,
versou tematicamente sobre questões raciais — fato que não chega a
surpreender, num país onde os negros foram submetidos à escravidão
racial até meados do século XIX e, em seguida, legalmente tratados
como cidadãos de segunda classe em muitos locais, até a década de 1960.
O reconhecimento, especialmente nos últimos anos, do papel do
anglo-saxonismo, em particular, e do racismo, em termos mais gerais, na
construção dos cânones da literatura estudada nos departamentos de
inglês das universidades norte-americanas levou muitos estudiosos a
defender a inclusão de textos de afro-americanos nesse cânone, em parte
porque sua exclusão inicial era uma expressão de racismo. E levou outros
a defender o reconhecimento de uma tradição literária afro-americana,
com seus próprios grandes textos, passíveis de ser estudados como um
cânone em si.
O que não cou muito claro — a despeito das estreitas a liações da
crítica africana anglófona e da afro-americana — foi o legado do
pareamento da nação com a literatura na crítica africana anglófona;
quero voltar-me agora para essa questão, que devemos compreender,
creio eu, no contexto recém-descrito.

Não faz muito tempo que ouvi o escritor congolês Sony Labou Tansi
discutir sua relação ambivalente com a língua francesa. Inicialmente
criado por sua parentela zairense no Congo (belga), e depois mandado
para a escola no CongoBrazaville (francês), ele chegou à sua
escolarização formal sem estar familiarizado com sua língua (francesa)
de instrução. Com estranha brandura, relatou a maneira como seus
professores coloniais o besuntavam com fezes humanas como punição
por seus solecismos gramaticais iniciais; e então, um momento depois,
passou a falar de sua própria obra notável como romancista e
dramaturgo em francês. Labou Tansi inventou, a partir de uma
experiência de primórdios tão pouco promissores, um uso para uma
língua que ele certamente deveria odiar — uma língua literalmente suja
de cocô em sua infância —, um uso no projeto do nacionalismo literário
pós-colonial.
Na África e em todo o mundo, muitos de nossos escritos, e, mais
especialmente, de nossos escritos sobre a literatura, tocam nessas
questões da nação e sua língua, na conjunção captada, quase no início
das modernas teorias da nação, pela concepção herderiana do
Sprachgeist. É que os intelectuais de toda parte estão hoje empenhados —
seja como voluntários, seja como convocados ou resistentes — numa luta
pela articulação de suas respectivas nações: e em toda parte, ao que
parece, a língua e a literatura são centrais nessa articulação.
No mundo não industrializado, o poder da idéia de nação é mais uma
conseqüência da hegemonia cultural dos europeus e norte-americanos,
cujos ancestrais inventaram tanto a idéia quanto a maioria das
nacionalidades jurídicas do mundo. Como a rmou Ben Anderson (em
seu conciso texto Imagined Communities [Comunidades imaginadas]),
embora a idéia nacional tenha sido apresentada a grande parte do
mundo através de contatos com o imperialismo europeu, a atração dessa
idéia para os “nativos” logo escapou ao controle e aos interesses da
metrópole. Não é verdade que os intelectuais africanos e asiáticos
con am na autodeterminação nacional só porque ela nos foi impingida,
porque foi imposta como um instrumento de nossa contínua dominação
neocolonial: ao contrário, a idéia de nação proporcionou — primeiro à
elite local, depois aos habitantes recém-proletarizados da cidade
colonial, e por m, até ao campesinato que tentava se haver com sua
crescente incorporação no sistema mundial — um meio de articular a
resistência à dominação material dos impérios mundiais e à ameaça mais
nebulosa aos pensares pré-coloniais, representada pelo projeto ocidental
de domínio cultural.
Parti da tradição que, através de Tupper, conduz aos dias atuais, não
apenas porque, como veremos, ela instrumentaliza a crítica africana
recente, mas também porque quero insistir no grau em que as questões
da língua e da nação, tão centrais à situação que quero discutir neste
ensaio — a dos escritores e críticos africanos ao sul do Saara —, são
também problemas da crítica européia e norteamericana. Isso não
constitui — como é tantas vezes apresentado — uma viagem ao exótico,
um erte com um Outro distante. Voltaire, ou um de seus companheiros
philosophes numa cultura européia anterior ao auge dos impérios
mundiais, certa vez disse que, quando viajamos, o que descobrimos é
sempre a nós mesmos. Parece-me que essa idéia, por assim dizer, tornou-
se verdade. No mundo posterior a esses impérios mundiais, um mundo
em que o centro e a periferia são mutuamente constitutivos, a vida
política pode ser concebida (não importa quão enganosamente) em
termos nacionais, mas o que Voltaire teria chamado de vida mental, não.
Se procuro situar minha discussão da situação africana com alguns
elementos contextuais, em parte é para que outros possam reconhecer
quanto dessa situação é um território familiar.
O fato de o território ser muito familiar é conseqüência da maneira
como os intelectuais do que denomino Terceiro Mundo, com certa
reserva, são o produto histórico de um encontro com o que, com
reservas similares, continuo a chamar de Ocidente. Como vimos, a
maioria dos escritores africanos recebeu uma educação de estilo
ocidental; suas relações ambíguas com o mundo de seus antepassados e
com o mundo dos países industrializados fazem parte de sua localização/
deslocamento cultural característico, situação esta que Abiola Irele
descreveu com eloqüência em seu “In Praise of Alienation” [Em louvor
da alienação]:
(...) estamos incomodamente espremidos entre os valores de nossa cultura tradicional e os do
Ocidente. O processo de mudança por que estamos passando criou um dualismo de formas de
vida que vivenciamos, no momento, menos como um estilo de instigante complexidade do que
como um de confusa desigualdade.

Naturalmente, existem in uências — algumas importantes (como


veremos) — que vão da cultura intelectual pré-colonial até aqueles que
receberam uma educação colonial ou pós-colonial no estilo do
Ocidente. Não obstante, na África ao sul do Saara, a maioria dos
literatos é instruída nas línguas coloniais; a maioria dos textos com um
público leitor substancial (com a importante exceção do swahili)
encontra-se nessas línguas, e os únicos textos com um público e um tom
autenticamente subcontinentais são escritos em inglês ou francês. Para
muitos de seus mais importantes objetivos culturais, os intelectuais
africanos ao sul do Saara são o que chamei de “eurófonos”.
Existem trabalhadores intelectuais — padres, xamãs e griots,*27 por
exemplo — na África e na Ásia (e alguns também na América do Sul e na
Australásia) que continuam a funcionar em mundos de pensamento
distantes das in uências do discurso literário ocidental. Mas, certamente
estamos vivendo os últimos dias dessa fase da vida humana na cultura e,
quer optemos ou não por chamar essas pessoas de “intelectuais” — o que
me parece uma decisão cujo resultado é menos importante do que
reconhecer que ela tem que ser tomada —, elas decerto não são os
intelectuais que estão produzindo o grosso do que chamamos literatura
terceiro-mundista, nem estão articulando o que chamamos teoria ou
crítica literárias. Basicamente, a literatura da África ao sul do Saara
signi ca a literatura eurófona (exceto na região da cultura swahili, onde
o swahili e as línguas coloniais atuam em conjunto). E o que importa em
ela ser eurófona é mais do que sua inscrição nas línguas dos
colonizadores.
É que aqui, é claro, a língua é apenas parte do que está em discussão.
Quando os colonialistas tentaram domar a ameaçadora alteridade
cultural do africano (quer pelo que os franceses chamavam de
assimilation, quer por intermédio da “conversão” missionária), a
pedagogia foi sua arma mais portentosa. Assim, o problema não está
apenas, ou não tanto, nas línguas inglesa, francesa ou portuguesa, mas na
imposição cultural que cada uma delas representa. O ensino colonial, em
suma, produziu uma geração imersa na literatura dos colonizadores,
uma literatura que amiúde re etia e transmitia a visão imperialista.
Isso, por certo, não é nada de novo: a pedagogia literária
desempenhou um papel semelhante na educação romana nas províncias
daquele Império, um império que talvez ainda forneça o nosso mais
poderoso paradigma do imperialismo. Recentemente, John Guillory
chamou-nos a atenção para um tratamento padrão — eu ousaria dizer
magisterial — dado por R. R. Bolgar, em e Classical Heritage and its
Beneficiaries [A herança clássica e seus bene ciários], ao processo pelo
qual “as legiões se retiram e são substituídas por escolas”:
À medida que se enfraqueceu o poder protetor das legiões, o governo imperial passou a
depender, em grau cada vez maior, de seus ativos intangíveis. (...) Havia uma escassez no
abastecimento de aço (...), de modo que as províncias tinham que ser atadas à alma de Roma por
argolas de fabricação diferente.13

O papel da escola colonial (e, infelizmente, da pós-colonial) na


reprodução da hegemonia cultural do Ocidente é crucial para a crítica
africana, em virtude da estreita ligação entre a idéia da crítica e o
aumento da pedagogia literária, pois (como nos lembra John Guillory
no mesmo trecho) o papel da literatura, ou, a rigor, a formação do
conceito, da instituição da “literatura”, é indissociável da pedagogia.
Roland Barthes expressou essa questão num apotegma característico: “O
‘ensino da literatura’ é, para mim, quase tautológico. A literatura é o que
se ensina, apenas isso. É um objeto de ensino.”14
Abstraída de seu contexto, essa formulação requer, sem dúvida, alguns
retoques restritivos. Mas é impossível frisar em demasia a importância de
um fato: o que discutimos sob a rubrica de literatura africana moderna é,
predominantemente, o que é ensinado nas escolas secundárias de todo o
continente. Tampouco devemos ignorar a importância psicológica
crucial da possibilidade de tal literatura africana. A arma da pedagogia
muda de mãos, simplesmente, porque passamos da leitura de Buchan,
Conrad e Graham Greene para a leitura de Abrahams, Achebe, Armah...
para dar início a um alfabeto de escritores na Série Heinemann de
Autores Africanos, que constitui, no sentido mais concreto, o cânone
pedagógico da literatura africana anglófona. Vemos a formação de um
discurso de resistência e descobrimos as possibilidades de ensinar a
resistência, à medida que os próprios súditos descolonizados escrevem,
agora, como sujeitos de uma literatura própria. O simples gesto de
escrever para e sobre si mesmo — há aqui paralelos fascinantes com a
história da literatura afro-americana — tem uma profunda signi cação
política.
Escrever para e sobre nós mesmos, portanto, ajuda a constituir a
moderna comunidade da nação; mas nós o fazemos,
predominantemente, em línguas impostas pelo “poder das legiões”.
Agora que os objetos do imperialismo europeu nalmente se
transformaram em sujeitos de um discurso dirigido por uns aos outros e
ao Ocidente, as línguas européias e as disciplinas européias “deram uma
guinada”, como os agentes duplos, dos projetos da metrópole para a obra
intelectual da vida cultural pós-colonial.
Mas, embora estejam o cialmente a serviço dos novos patrões, esses
instrumentos continuam, como todos os agentes duplos, sob perpétua
suspeita. Mesmo quando a língua do colonizador é “crioulizada”, mesmo
quando a visão do imperialista é jocosamente subvertida nas letras das
canções populares, persiste a suspeita de que há um Sprachgeist hostil em
ação. Tanto as queixas contra a corrupção por tradições estrangeiras
numa língua estrangeira quanto as defesas delas como uma necessidade
prática (controvérsia que faz lembrar debates similares, em situações tão
diferentes quanto, digamos, o debate norueguês do início do século XX
sobre o “Novo Norueguês” e os debates teuto-judaicos do século XIX
sobre o iídiche) parecem, muitas vezes, reduzir-se a uma disputa entre,
de um lado, uma concepção herderiana sentimentalista das línguas e
tradições da África, como expressão da essência coletiva de uma
comunidade tradicional pura, e, de outro lado, uma concepção
positivista das línguas e disciplinas européias como meros instrumentos;
instrumentos que podem ser purgados dos modos de pensar
imperialistas — e, mais especi camente, racistas.
A primeira visão encontra-se freqüentemente no cerne do que
podemos chamar de “nativismo”: a a rmação de que a verdadeira
independência africana exige uma literatura própria. Fazendo eco ao
debate da Rússia oitocentista entre os “ocidentais” e os “eslavó los”, o
debate da África apresenta-se como uma oposição entre o
“universalismo” e o “particularismo”, de nindo-se este último, acima de
tudo, por sua oposição ao primeiro. Mas, há apenas dois contendores
reais nesse jogo: nós, do lado de dentro, e eles, do lado de fora. É só isso.
Funcionando com essa topologia do dentro e do fora — nativo e
alienígena, ocidental e tradicional —, os apóstolos do nativismo são
capazes de mobilizar, na África contemporânea, o indubitável poder de
uma retórica nacionalista: uma retórica em que a literatura própria é a
da própria nação do sujeito. Contudo, os nativistas podem apelar para
identidades que são mais amplas e mais estreitas do que a nação: para
“tribos” e cidades, abaixo do Estado nacional, e para a África, acima dele.
E creio que teremos a melhor oportunidade de redirecionar o poder do
nativismo se questionarmos, não a retórica da tribo, da nação ou do
continente, mas a topologia que ela pressupõe e a oposição que ela
a rma.
Consideremos, pois, o já clássico manifesto do nacionalismo cultural
africano, Toward the Decolonization of African Literature [Pela
descolonização da literatura africana]. Esse debatidíssimo livro é obra de
três autores nigerianos — Chinweizu, Onwuchekwa Jemie e Ihechukwu
Madubuike —, todos entulhados de extensas formações universitárias
ocidentais. O dr. Chinweizu, poeta fartamente divulgado e ex-editor da
revista literária nigeriana Okike, foi aluno do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) e tem um doutorado da Universidade Estadual de
Nova York (SUNY), em Buffalo; além disso, despontou (de uma carreira
que incluiu um período no corpo docente do MIT e da Universidade
Estadual de San José) como uma das guras principais do jornalismo
nigeriano, escrevendo, por um longo período, uma coluna de grande
in uência no Guardian de Lagos. O dr. Jemie tem um título de PhD da
Universidade de Columbia, em Inglês e Literatura Comparada, é também
um eminente poeta e publicou uma introdução à poesia de Langston
Hughes. E o dr. Ihechukwu Madubuike — que foi ministro da Educação
da Nigéria — estudou em Laval (no Canadá), na Sorbonne e na SUNY,
em Buffalo. Todos esses críticos lecionaram em programas de estudos
sobre os negros nos Estados Unidos: em seu prefácio, eles agradecem aos
Departamentos de Estudos Afro-Americanos da Universidade de
Minnesota e ao Departamento de Estudos sobre os Negros da
Universidade Estadual de Ohio pela “ajuda secretarial de apoio”. Se sua
retórica evoca uma resposta receptiva nos ouvidos norte-americanos,
não havemos de nos surpreender muito com isso.
Não é que a linguagem deles deixe de incorporar elementos
nigerianos. O termo bolekaja — que signi ca “desça até aqui para brigar”
— é usado na Nigéria ocidental para se referir aos “ mammy-wagons”,*28
que são os principais meios de transporte popular, e re ete “o
comportamento afrontoso de seus touts”.*29 Em seu prefácio, Chinweizu,
Jemie e Madubuike autodenominam-se de “críticos bolekaja, touts
ultrajados dos caminhões de passageiros da literatura africana”:
Chega um momento, cremos, nas questões dos homens e das nações, em que se torna
necessário que eles se comprometam com uma crítica bolekaja, para derrubar por terra
aqueles que sufocam sua vida, numa peleja corretiva. Uma briguinha na areia nunca matou
nenhum garoto decidido.15

E ca claro que não é realmente o “garoto decidido” da crítica


africana que eles consideram estar em risco, pois o trabalho dos
capítulos subseqüentes consiste em derrubar por terra o etnocentrismo
crítico de seus adversários eurocêntricos, em nome de um
particularismo afrocêntrico. Se essa tiver que ser uma luta de morte,
Chinweizu e seus compatriotas esperam ser os sobreviventes. Eles dizem,
por exemplo, que
[a] maioria das objeções às questões temáticas e ideológicas do romance africano soa como
advertências de mamães-galinhas imperialistas a seus pintinhos teimosos ou francamente
rebeldes. Elas cacarejam: “Sejam universais! Sejam universais!”16

E condenam
[o] retraimento modernista de nossos poetas para um universalismo privatista [que] lhes
torna muito fácil desfazerem-se de qualquer consciência nacionalista africana que possam ter,
antes de cruzarem o limiar do santuário da ‘poesia nas nuvens’. E isso convém perfeitamente ao
establishment literário inglês, que preferiria muito que uma consciência nacionalista africana,
inevitavelmente antibritânica, não fosse promovida ou cultivada, através da literatura, na jovem
elite africana.17
Assim, quando o crítico britânico Adrian Roscoe exorta os poetas
africanos a se verem como “herdeiros de uma tradição universal das
artes e letras, e não apenas como bene ciários de um legado nativo”, ele
colhe o desprezo dos nacionalistas.18 É que a insistência central destes
consiste em que “a literatura africana é uma entidade autônoma,
separada e distinta de qualquer outra literatura. Ela tem suas próprias
tradições, modelos e normas.”19
Ora, devemos reconhecer desde logo que essas polêmicas podem ser
um corretivo salutar para uma porção de absurdos que foram escritos
sobre a literatura africana, por críticos para quem o mérito literário é
aquilatado pelo fato de uma obra poder inserir-se numa Grande
Tradição Branca de obras-primas. É difícil não carmos irritados com os
pronunciamentos arrogantes de críticos para quem a descrição
detalhada do panorama local equivale a uma mera palestra ilustrada
sobre viagens, a menos, digamos, que o cenário seja “Wessex” e o autor
seja omas Hardy; para quem a evocação dos costumes locais reduz-se à
mera etnogra a, a menos, digamos, que se trate dos costumes de uma
cidade mineradora do Norte da Inglaterra e que o autor seja D. H.
Lawrence; e para quem a narrativa de acontecimentos históricos reduz-
se a um simples jornalismo, a menos que o acontecimento seja a Guerra
Civil Espanhola e o autor seja Hemingway.
Aquilo a que Chinweizu e seus colegas se contrapõem, em outras
palavras, é a postura que dissimula o privilegiamento de uma tradição
nacional (ou racial) em relação a outras, numa conversa ada sobre a
Condição Humana. Não surpreende, portanto, que Chinweizu e seus
companheiros também endossem a visão de T. S. Eliot de que, “embora
seja muito fácil para um escritor ser local sem ser universal, duvido que
um poeta ou um romancista possa ser universal sem também ser local”.20
E nesse ponto, é claro, ca bastante evidente que “universal” di cilmente
seria um termo depreciativo.
De fato, é característico dos que posam como anti-universalistas usar o
termo “universalismo” como se ele signi casse “pseudo-universalismo”; e
a verdade é que sua reclamação não é com o universalismo, em absoluto.
Aquilo a que eles realmente objetam — e quem não objetaria? — é a
hegemonia eurocêntrica fazendo-se passar por universalismo. Assim,
enquanto o debate é formulado em termos das reivindicações rivais do
particularismo e do universalismo, a verdadeira ideologia do
universalismo nunca é interrogada e, a rigor, é até tacitamente aceita.
Ironicamente, como veremos mais adiante, o ataque a algo chamado
“universalismo” leva ao obscurecimento da autêntica diferença local.
O atrativo dessa retórica nativista é compreendido com extrema
facilidade no contexto da geogra a político-lingüística sub continental,
uma geogra a que descrevi no começo do livro. O fato essencial a ser
lembrado aqui é a associação de uma elite eurófona com um populacho
não-eurófono, pois é essa combinação que responde pela atração do
nativismo. O fato de as línguas européias — e, em particular, os dialetos
delas em que a elite continua a escrever — estarem longe de ser
con antemente dominadas pela plebe não distingue, evidentemente, a
literatura do Terceiro Mundo — os textos que são ensinados — do
grosso dos textos norte-americanos ou europeus contemporâneos
igualmente ensinados. Mas, o fato de a literatura africana
contemporânea funcionar numa esfera de linguagem que é prontamente
identi cável como produto da escolarização — e uma escolarização que
só é plenamente acessível a uma elite — decerto estimula a identi cação
nativista da literatura formal nas línguas coloniais como sendo
simplesmente estrangeira. Essa associação é ainda mais reforçada pelo
reconhecimento de que existe, na África como no Ocidente, um corpo
de produtos culturais característicos — em toda a gama da cultura
popular — que têm um acesso mais imediato aos cidadãos providos de
menor instrução formal.
Por exemplo, certamente existem, como já a rmei, vigorosas práticas
vivas de cultura oral — religiosas, mitológicas, poéticas e narrativas —
na maioria das mil e tantas línguas da África ao sul do Saara; e não há
dúvida quanto à importância das poucas línguas que já estavam (como se
diz) reduzidas à escrita antes da era colonial. Mas, não devemos deixar-
nos levar pela idéia sentimentalista de que o “povo” se agarrou a uma
tradição nacional nativa, e de que apenas a burguesia instruída é
composta de “ lhos de dois mundos”. Também no plano da cultura
popular, a moeda corrente não é um remanescente de um uxo contínuo
de tradições; na verdade, como a maioria das culturas populares na era
da produção em massa, ela di cilmente chega a ser nacional. A cultura
popular da África abrange (os norte-americanos) Michael Jackson e Jim
Reeves; e, quando colhe produções culturais cujas fontes são
geogra camente africanas, o que ela colhe não costuma ser tradicional
em nenhum sentido plausível. A música da alta sociedade tanto é
reconhecivelmente africana ocidental quanto nitidamente não pré-
colonial; e os sons de Fela Kuti teriam estarrecido os músicos da última
geração de músicos palacianos de Ioruba. À medida que desenvolveram
novas formas de música, recorrendo a repertórios instrumentais e idéias
musicais de estonteante ecletismo, os músicos da África também zeram
coisas assombrosas com uma língua que costumava ser o inglês. Mas é
como inglês que essa língua é acessível a milhões em todo o continente (e
em todo o mundo).

Vale a pena insistir num ponto que é desprezado quase com a mesma
freqüência com que é frisado: o nativismo e o nacionalismo (em todos os
seus múltiplos sentidos) são criaturas diferentes. Sem dúvida, eles se
combinam incomodamente, por muitas razões. A nal, um retorno às
tradições nunca seria um retorno ao Estado nacional contemporâneo.
Nem poderia signi car, na África (onde o pan-africanismo é uma forma
favorita de nacionalismo), um retorno a uma unidade continental
anterior, uma vez que — insistindo no óbvio — o continente não era
uni cado no passado. Argumentarei, no capítulo 9, que vários projetos
de solidariedade africana têm seus usos no continente e em sua diáspora,
mas essas formas de “nacionalismo” voltam-se para o futuro, e não para o
passado.
Se quisermos ir além dos acenos nativistas, o certo será começar
desfamiliarizando os conceitos com que pensamos — e ensinamos — a
literatura. Com demasiada freqüência, as tentativas de análise cultural
são abreviadas pela incapacidade de recordar as histórias dos termos
analíticos — “cultural”, “literatura”, “nação” — através dos quais passamos
a falar do mundo pós-colonial. Assim, é bom nos relembrarmos do
pareamento da literatura com o nacionalismo, com o qual iniciei este
capítulo, e com os modos como cada um deles é essencializado através
das narrativas. Estamos familiarizados, a partir de Ernest Renan, com a
lembrança e o esquecimento seletivos do passado, que dão sustento à
identidade grupal. E a historiogra a recente enfatizou reiteradamente os
modos como a “herança nacional” é construída pela invenção das
tradições, pela criteriosa ltração da torrente impetuosa dos
acontecimentos históricos no curso suave de uma narrativa o cial, e
pela criação de um legado homogêneo de valores e experiências.21
No contexto especí co da história da “literatura” e seu estudo, os
debates recentes também nos deixaram em sintonia com os modos pelos
quais a “escavação” convencional do cânone literário pode servir para
consolidar uma determinada identidade cultural. A constituição o cial
de uma história nacional lega-nos a nação; e a disciplina da história
literária, como observou oportunamente Michel de Certeau,
“transforma o texto numa instituição” — e, com isso, lega-nos o que
chamamos literatura.22
O falecido Raymond Williams certa vez observou que, à medida que o
termo “literatura” começa a adquirir sua carga semântica moderna,
constatamos “um desenvolvimento do conceito de ‘tradição’ em termos
nacionais, que resulta na de nição mais e caz de ‘uma literatura
nacional’”.23 Como a rmei no início deste capítulo, “literatura” e “nação”
di cilmente poderiam deixar de se encaixar: desde o começo, elas foram
feitas uma para a outra. Depois que o conceito de literatura foi adotado
pelos intelectuais africanos, o debate africano sobre o nacionalismo
literário era inevitável.
Assim, o que vemos em Toward the Decolonization of African Literature
é, com efeito, a instauração de um “discurso invertido”: os termos da
resistência já nos foram dados e nossa contestação é apanhada na
armadilha da matriz cultural ocidental que pretendemos questionar. A
pose de repúdio pressupõe, na verdade, as instituições culturais do
Ocidente e suas ideologias. Esbravejando contra a dominação cultural
do Ocidente, os nativistas são partidários dela sem saber.24 De fato, os
próprios argumentos e a retórica de contestação que nossos
nacionalistas exibem são, em certo sentido, canônicos, con rmados pelo
tempo. É que eles encenam um con ito que é interno à mesma ideologia
nacionalista que deu à categoria “literatura” suas condições de
emergência: a contestação é menos determinada pelas noções “nativas”
de resistência do que pelos ditames do próprio legado herderiano do
Ocidente — suas ideologias sumamente elaboradas de autonomia
nacional, e da língua e da literatura como seu substrato cultural. A
nostalgia nativista, em suma, é basicamente impulsionada pelo
sentimentalismo ocidental que nos é tão familiar desde Rousseau;
poucas coisas, portanto, são menos nativas do que o nativismo em suas
formas atuais.
Nesse debate entre intelectuais africanos, vemos recapitulados os
gestos clássicos da formação das nações no campo da cultura. E, sem
dúvida, isso é exatamente o que deveriamos esperar. No discurso pós-
colonial, o projeto de formação da nação — o que costumava ser, no
século XVIII, a tentativa de de nir (e portanto, de inventar) o “caráter
nacional” — está sempre perto da super cie. Mas, como nos lembraria
qualquer americanista, o surgimento da literatura norte-americana no
século XIX foi cercado justamente por essas preocupações, aliadas a um
forte sentimento de estar na periferia em relação ao centro europeu.
Assim, é com uma sensação de reconhecimento que hoje nos voltamos
da retórica da critica pós-colonial para, digamos, a leitura da angustiada
observação de William Carlos Williams:
Os norte-americanos nunca se reconheceram. Como poderiam? Isso é impossível, até que
alguém invente termos originais. Enquanto nos contentarmos em ser chamados pelos termos
de outrem, seremos incapazes de ser qualquer coisa senão tapeados por nós mesmos.25

Os nacionalistas culturais continuam numa posição de contra-


identi cação (para usarmos a conveniente terminologia de Michel
Pêcheux), o que equivale a continuar a participar de uma con guração
institucional — a car sujeito a identidades culturais — que é
ostensivamente execrada.26
Uma vez que deixemos de lado o “universalismo” que Chinweizu e
outros atacam, acertadamente, como um particularismo disfarçado,
poderemos compreender como o particularismo afrocêntrico — o
nacionalismo cultural de Chinweizu — é, por sua vez, dissimuladamente
universalista. O nativismo organiza suas alardeadas particularidades
numa “cultura” que é, na verdade, um produto da modernidade
ocidental. Embora os critérios ocidentais sejam questionados, o modo
como se estrutura a contestação não o é. A tendenciosidade
“eurocêntrica” da crítica é esquadrinhada, mas não o modo como sua
substância de nidora é construída. É que reconhecer isso seria admitir
que o externo não tem nada de externo, de modo que a topologia do
nativismo caria irremediavelmente ameaçada.

As ideologias obtêm êxito na medida em que são invisíveis, no momento


em que sua trama de pressupostos ca aquém da consciência; as
verdadeiras vitórias são obtidas sem que se dispare um tiro. Na medida
em que o mais ardoroso dos nacionalistas culturais da África participa
da naturalização — universalização — das valorizadas categorias da
“literatura” e da “cultura”, a vitória do universalismo, frente a um
silencioso nolo contendere, já ocorreu. O imperador ocidental ordenou
que os nativos trocassem suas túnicas por calças: o ato de contestação
destes consiste em insistir em cortá-las em tecidos de fabricação
doméstica. Considerados os seus argumentos, é óbvio que os
nacionalistas culturais não vão su cientemente longe; cam cegos para o
fato de que suas demandas nativistas habitam numa arquitetura
ocidental.
Penso que, quando virmos o contexto mais amplo com maior clareza,
caremos menos propensos às angústias do nativismo, menos inclinados
a ser seduzidos pela retórica da pureza ancestral. Há mais de um quarto
de século, Frantz Fanon expôs o arti cialismo dos intelectuais nativistas,
cujo populismo falacioso só faz afastá-los do Volk [povo] que eles
veneram. O intelectual
(...) valoriza altamente os costumes, tradições e aparências de seu povo, mas sua experiência
inevitável e dolorosa parece ser apenas uma busca banal de exotismo. O sari torna-se sagrado e
os sapatos vindos de Paris ou da Itália são abandonados em favor dos calçados de couro cru, ao
mesmo tempo que, de uma hora para outra, a língua do poder dominante é sentida como
queimando os lábios.27

Inevitavelmente, no entanto, a “cultura para a qual o intelectual se


inclina não passa, muitas vezes, de um punhado de particularismos. Ele
quer se ligar ao povo, mas, em vez disso, só se apodera de sua roupagem
externa.”28 Fanon não descarta os produtos do trabalhador cultural
moderno da era colonial ou póscolonial, mas insiste em que o poeta
nativo que tenha tomado seu povo como tema “não pode avançar
resolutamente sem se aperceber, primeiro, de como é grande seu
alheamento dele”.29 Os intelectuais deixam transparecer esse alheamento
por uma atitude fetichista para com os costumes, o folclore e as
tradições vernaculares de sua gente, uma atitude que, como diz Fanon,
acaba por jogá-los contra o povo em seu momento de luta.
Um foco desse alheamento, que talvez não tenha sido su cientemente
apreciado, é a própria concepção de identidade africana. Embora a
maior parte do discurso sobre a literatura africana tenha ultrapassado as
noções monolíticas de négritude ou de “personalidade africana”, a
natureza arquitetada da moderna identidade africana (como todas as
identidades) não é compreendida com amplitude su ciente. Terence
Ranger escreveu sobre como o “respeito pela ‘tradição’” [dos próprios
colonialistas] “os predispôs a encarar favoravelmente aquilo que
tomaram por tradicional na África”.30 Funcionários graduados
britânicos, seguindo as pegadas de Lord Lugard (e com o apoio dessa
curiosa criatura que é o antropólogo governamental), coletaram,
organizaram e puseram em vigor essas “tradições”; e obras como Ashanti
Law and Constitution [A lei e a constituição dos achantis], de Rattray,
tiveram o efeito de monumentalizar as operações exíveis dos sistemas
pré-coloniais de controle social como o que passou a ser chamado de
“direito consuetudinário”. Ironicamente, para muitos intelectuais
africanos contemporâneos, essas tradições inventadas adquiriram agora
o status de mitologia nacional; e o passado inventado da África passou a
desempenhar um papel na dinâmica política do Estado moderno.
As tradições inventadas, importadas da Europa, não apenas forneceram aos brancos modelos
de comando, como também ofereceram a muitos africanos modelos de comportamento
“moderno”. As tradições inventadas das sociedades africanas — quer inventadas pelos
europeus, quer pelos próprios africanos a título de resposta — distorceram o passado, mas se
tornaram, em si mesmas, realidades mediante as quais se expressou grande parte do encontro
colonial.31

É assim, observa Ranger, que “[p]essoas como Ngugi, que repudiam a


cultura da elite burguesa, enfrentam o irônico perigo de abraçarem, em
vez disso, outro conjunto de invenções coloniais”.32 Os ingleses, que tudo
sabiam sobre as nações, puderam estender uma compreensão similar a
seu substituto, a “tribo”, e isso pôde signi car a invenção de tribos onde,
a rigor, nenhuma existia antes. Essa questão vai além da área de domínio
anglófona. No Zaire, constata-se que uma extensa divisão lingüística
(entre o lingala e o swahili) é um produto da história recente, um efeito
da estrati cação dos trabalhadores, imposta pelo governo belga.33 Na
verdade, como a rmei no primeiro ensaio, a própria invenção da África
(como algo mais do que uma entidade geográ ca) deve ser entendida,
em última instância, como um subproduto do racialismo europeu; a
idéia de pan-africanismo fundamentou-se na noção do africano, a qual,
por sua vez, baseou-se, não numa autêntica comunhão cultural, mas,
como vimos, no próprio conceito europeu de negro. “O negro”, escreve
Fanon, “nunca foi tão negro quanto a partir do momento em que foi
dominado pelos brancos.”34 Mas, a realidade é que a própria categoria
do negro é, no fundo, um produto europeu, pois os “brancos”
inventaram os negros a m de dominá-los. Dito de maneira simples, o
curso do nacionalismo cultural na África tem consistido em tornar reais
as identidades imaginárias a que a Europa nos submeteu.

Como costumava observar John Wisdom,*30 “todos os dias, sob todos os


pontos de vista, estamos indo cada vez melhor”. Era inevitável, nessa era,
que o debate se traduzisse num registro mais elevado. Sem dúvida, as
reivindicações do nativismo em relação à teoria literária deram um
nítido relevo político ao debate contínuo sobre a relação entre a teoria
literária e corpos especí cos de textos. Podemos tomar como ponto de
partida uma recente intervenção de Christopher Miller nessa questão.
Em seu “eories of Africans: e Question of Literary Anthropology”
[Teorias dos africanos: A questão da antropologia literária], Miller
aborda com sutileza e inteligência a natureza problemática da a rmação
de que as literaturas da África exigem seus próprios tipos particulares de
leitura; e propõe, como sugere seu título, uma espécie de teoria literária
movida pela premência “antropológica” de questionar “a aplicabilidade
de todos os nossos termos críticos” e examinar “as culturas tradicionais
africanas, à procura dos termos que elas possam oferecer”.35
A tese de Miller convida-nos a examinar duas grandes questões. Por
um lado — e é essa a direção tomada por sua própria investigação —, a
invocação da antropologia como modelo teórico está fadada a levantar
questões, no mínimo, de tato. Como reclamaram os críticos africanos, a
leitura antropológica parte, muitas vezes, de uma visão dos textos que
encara a literatura africana como um dado sociológico, simplesmente
por ela não merecer nem exigir uma interpretação literária. Mas, isso
suscita a questão mais geral da constituição da crítica africana, que a nal
dependerá, por sua vez, de enfrentarmos o segundo problema formulado
pelo texto de Miller, qual seja, a questão de saber se o que é chamado de
teoria literária aplica-se apenas a tradições literárias especí cas. A
caracterização milleriana da teoria como “auto-re exividade” levanta
imediatamente a questão da complexa dependência da chamada teoria
literária em relação a corpos particulares de textos; se quisermos
começar a descobrir um lugar para o termo “teoria” nos estudos
literários africanos, esse é um problema que teremos de abordar. E,
como veremos, central para essa situação é, precisamente, a questão
daquilo em que consiste fazer uma interpretação literária.
Contudo, até mesmo levantar a questão da especi cidade textual da
teoria é pressupor uma concepção bastante recente, em termos
históricos — embora muito poderosa e muito sedutora —, do que é ou
deveria ser a teoria literária. Até um estudo ambicioso como o Die
eorie des Romans [A teoria do romance], de Georg Lukács, é, em
última instância, uma explicação historicamente concebida de (alguns)
romances; do ponto de vista da concepção contemporânea da teoria, a
obra continua a ser mera theoria (sem por isso deixar de ser magní ca).
Aquilo a que fomos apresentados, nas duas últimas décadas, é uma
epistemologia da interpretação que é verdadeiramente imperial: de
âmbito mais re nado e mais genérico — mais “universal”, por assim dizer.
O objeto de estudo pode ser a natureza do próprio ato lingüístico (ou,
alternativamente, a natureza do “literário”), e não uma formação
literária particular, temática ou formalmente delineada.
Essa concepção da teoria encontrou seu mais imponente exemplo no
falecido Paul de Man: como quando ele anuncia que a literaridade — a
propriedade que “emerge” numa interpretação literária de qualquer
texto — consiste, pelo menos em parte, no “uso da linguagem que
privilegia a função retórica em relação às funções gramatical e lógica”.36
Lendo Proust de maneira a que “se revele uma vasta rede temática e
semiótica que estrutura toda a narrativa, e que permanece invisível para
o leitor apanhado na misti cação metafórica ingênua”, de Man observa
que
[t]oda a literatura responderia de maneira similar, embora as técnicas e padrões tivessem que
variar consideravelmente, é claro, de autor para autor. Mas, não há absolutamente nenhuma
razão por que as análises do tipo sugerido para Proust não seriam aplicáveis, com as
modi cações apropriadas da técnica, a Milton, Dante ou Holderlin. Essa será, de fato, a tarefa
da crítica literária nos anos vindouros.37

No entanto, essa concepção euro-americana da teoria que de Man


representa é abalada, precisamente, por essas pretensões a uma
determinada universalidade. De um lado está a concepção de-maniana
da teoria literária como um discurso sobre a literatura-em-geral, um
discurso que procura caracterizar a própria textualidade, e não explorar
este soneto ou aquele romance. De outro está a noção igualmente
familiar de que as “teorias”, em certo sentido, devem ser especí cas do
texto — ou seja, devem abordar grupos de escritos que, em algum
sentido, estejam particularmente inter-relacionados. Confrontamo-nos
com a pergunta que Denis Kambouchner formulou tão resolutamente —
“como épossível a generalidade na teoria literária?” —, ou, em termos ainda
mais simples, quando persistimos em reconhecer a generalidade como a
condição fundamental do discurso teórico: como é possível uma teoria
literária?38 E, como a rma Kambouchner, para responder a essa
pergunta temos que distinguir, primeiramente, dois sentidos da
expressão “teoria literária”:
Em seu sentido mais amplo e mais diluído, esse termo ou título denotaria a totalidade dos
textos de natureza teórica, dedicados à literatura, sem fazer nenhuma discriminação quanto a
seu objeto, orientação ou validade. Em seu segundo sentido, mais estrito e mais forte, ela
designaria apenas a constituição geral de uma teoria uni cada e coerente.39

Consideremos agora a tensão entre o que é a rmado e o que é


oferecido para sustentar essa a rmação, à guisa de exemplo — o tipo de
entrelaçamento disruptivo que o próprio de Man encontra por toda
parte —, na grandiosa passagem que acabo de citar, onde “toda a
literatura” reduz-se misteriosamente ao eminentemente canônico:
Milton, Dante e Holderlin. A verdade é que, apesar dessa conversa sobre
“toda a literatura”, existe, como a rmou Cynthia Chase, uma complexa
interdependência entre a teoria literária de Paul de Man e um corpo
especí co de textos — predominantemente românticos — que se ajusta
com di culdade à pretensão de universalidade epistemológica
inevitavelmente subentendida ao se falar de “teoria”.40 Em suma,
qualquer um que aceite a pertinência do pensamento pós-estruturalista
para os textos europeus, do Iluminismo em diante, tem razão de se sentir
pouco à vontade com sua extensão a textos provenientes de fora dessa
tradição — textos, como diz Chris Miller, talvez esboçando um sorriso,
“que podem não ser uma reescrita de Hegel (ou mesmo de Kant) (...)”.41
Não chega a ser ultrajante, penso eu, sugerir que a teoria literária, no
sentido mais estrito de Kambouchner, que toma por objeto o “texto em
geral”, não é, a nal de contas, algo com que precisemos car
especialmente preocupados, se nosso interesse estiver nas características
peculiares do texto escrito africano. Não decorre daí que devamos
considerar desinteressante o projeto da teoria literária, novamente no
sentido forte de Kambouchner; longe disso. Na medida em que a
textualidade africana deixa de se conformar a uma teoria literária nesse
sentido forte, isso é um problema da teoria, revelando-a como mais um
princípio local que se faz passar por universal; e esse é um problema que
só podemos começar a abordar, precisamente, através de uma análise
séria dos textos africanos.
Mas, já que essa tarefa teórica não é nem um pouco motivada por um
interesse pelas particularidades dos gêneros e estilos individuais, ela só
pode tomar os textos africanos como amostras ao preço de ignorar o que
seria mais importante para nós a respeito deles. E, de fato, pode-se fazer
aqui uma distinção — de um modo que se tornou familiar pelas
discussões metodológicas das relações entre a história e a sociologia —
entre duas motivações fundamentais da atividade teórica: o impulso
nomotético, que busca a generalização e a universalidade, e o impulso
ideográ co, que almeja captar a particularidade do acontecimento
individual. Os positivistas procuraram aplicar seus modelos da
explicação cientí ca natural à disciplina da história, tentando forçar a
explicação histórica a se enquadrar no molde procustiano de seu modelo
“dedutivonomológico”; é conhecida a objeção de que, assim fazendo, eles
desconheceram as premências [urges] fundamentalmente diferentes da
explicação histórica e da cientí ca.
O modelo dedutivo-nomológico procura ver a explicação em termos
de uma redução de certos eventos particulares, ainda a serem
esclarecidos, a um padrão geral. E embora, sem dúvida, haja veracidade
na a rmação de que um modo de compreender um acontecimento
histórico é vê-lo como enquadrado num padrão geral — talvez as
conseqüências da Revolução Francesa de fato sejam mais bem entendidas
como parte de um padrão que também é encontrado na Revolução Russa
—, é igualmente verdade que o interesse principal do historiador
costuma recair sobre o acontecimento particular. Os historiadores não
precisam con rmar ou descobrir os padrões que a sociologia busca
desvendar, pois podem usar padrões conhecidos para explorar a
particularidade minuciosa de uma con guração local de fato. Se o
impulso nomotético consiste em procurar padrões gerais, quer se os
chame de leis ou seja lá do que for, podemos explicar o impulso
ideográfico — o impulso do cronista — como o desejo de colocar nossos
conhecimentos gerais a serviço de determinada narrativa.
Essa questão é importante na atual conjuntura teórica, pois às vezes
dizem que estamos numa era pós-estruturalista, e o estruturalismo
começou, por muitas razões, com a aplicação da lingüística saussuriana à
questão do texto literário. Mas, como observei certa vez numa discussão
sobre a crítica estruturalista e a literatura africana, se achamos que a
lingüística saussuriana funciona, ela deve funcionar tanto para as línguas
africanas quanto para as indo-européias que lhe serviram de modelo.
Entretanto, se você estiver interessado(a), por contraste, em se
familiarizar com as particularidades do twi, com certeza algo como a
lingüística saussuriana será simplesmente o nível errado, um nível de
abstração elevado demais para começar.42
Aquilo com que devemos começar é um rme contraste entre um
sentido da teoria literária — o estrito ou nomotético, que pretende ser
uma teoria geral da literatura, independente de meios textuais
particulares — e as metas mais humildes da crítica literária, que se
interessa pela especi cidade de determinados textos e literaturas e pode
se preocupar com o que valorizamos na leitura, como um encontro com
textos especí cos.
Naturalmente, não resolveremos nosso problema com uma de nição.
Por um lado, não existe algo que se possa chamar de interpretação
“ingênua”, inocente de todas as suposições teóricas; por mais que
façamos uma distinção cuidadosa entre teoria e crítica, não poderemos
erradicar, de nossas interpretações, a teoria. Por outro lado, existe algo
de atraente na idéia de teorias africanas para textos africanos. Na
verdade, poder-se-ia supor que essa possibilidade exerce uma atração
especialmente forte, à luz do fato de que (como se queixam muitos
críticos) a teoria contemporânea tem amiúde apadrinhado técnicas de
interpretação literária que geram resultados um tanto uniformes. Nossas
teorias modernas são excessivamente poderosas, provam coisas demais.
Aprendemos a ler Baudelaire de modo a exempli car a disjunção de
Paul de Man entre a retórica como tropo e a retórica como persuasão;
mas, por certo é com um sentimento de ennui [enfado] que saudamos
esse mesmo resultado ao “interpretar” Rilke e Holderlin e Proust e
Wordsworth e Yeats e Nietzsche e Locke e Hegel e Blanchot. Sem dúvida,
portanto, a postura dos particularistas tem sido reforçada pelo fato de
que a desconstrução — que, tal como institucionalizada nos Estados
Unidos, é amplamente identi cada com a própria “teoria” — é um modo
de interpretação que parece partilhar seu lema com o Holiday Inn:*31 a
melhor surpresa, aparentemente, é não haver surpresa alguma.
Seja como for, a teoria no sentido lato certamente vem-se rendendo
cada vez mais a um método histórico mais particularizado. Hoje em dia,
como sugeriu Marilyn Butler, por exemplo, a pergunta é: “Como
havemos de escrever a crítica histórica?”43 E a “história”, aqui, é — como
lhe convém ser — a oportunidade de um estilo mais político de
interpretação. Os críticos com essas simpatias talvez estejam em maior
sintonia com as circunstâncias características da composição das
literaturas pós-coloniais.

Mas, em que consiste exatamente — no contexto pós-colonial — o


conteúdo da injunção dos nativistas de interpretar a literatura por meio
de uma teoria extraída da herança cultural ou intelectual do próprio
texto? À primeira vista, parece que aceitar esse princípio teria amplas
conseqüências para a maneira como interpretamos toda a literatura,
pois ele parece outorgar à literatura africana uma deferência que não
outorgamos às obras altamente canônicas da literatura européia. A
maioria de nós inclina-se a pensar que nossa apreensão, digamos, da
produção cultural em termos de estilo e de gênero não deve reservar-se
a nossa era e região; não achamos que uma interpretação feminista ou
marxista de Milton seja meramente um exercício de imperialismo
cultural (um imperium temporal correspondente ao geográ co). Um
livro largamente considerado como tendo revitalizado a crítica moderna
de Wordsworth (re ro-me ao estudo de Hartman intitulado Wordsworth’s
Poetry, 1787-1814 [A poesia de Wordsworth, 17871814]) recorre
extensamente às categorias de Jung e dos fenomenólogos alemães — não
porque alguém tenha suposto que eles zessem parte da atmosfera
intelectual de Wordsworth, mas porque se supôs que poderiam ajudar a
esclarecer a natureza das realizações poéticas de Wordsworth.
Também nesse caso, poderíamos substituir esse pluralismo de
perspectivas críticas por uma crítica baseada nos fundamentos culturais
ou intelectuais do próprio texto (ou de seu autor); mas tampouco
haveria nada de rebuscado nessa tentativa. O clássico John Keats’s Fancy
[A fantasia de John Keats], de J. R. Caldwell (os exemplos são escolhidos
quase ao acaso), interpreta Keats em termos das categorias do
associacionismo, categorias estas que tiveram grande destaque na
própria herança literária e intelectual de Keats, e que zeram parte do
legado intelectual e literário geral do século XVIII. Tony Nuttall
interpretou Wordsworth em termos da psicologia lockiana —
novamente, algo nativo do clima intelectual do próprio poeta; algo, por
assim dizer, vindo de dentro.
Uma di culdade dessa lógica do nativismo, entretanto, é justamente
que ela desconhece como é múltipla a herança do moderno escritor
africano. Insistir no nativismo com base nisso seria ignorar fatos
patentes: ignorar o fato inegável de que as referências de Soyinka a
Eurípedes são tão reais quanto seu recurso a Ogum (e também às
combinações brasileiras das religiões iorubana e cristã); ou desconhecer
a certeza de que, sejam quais forem suas relações éticas ou legais, Le
Devoir de violence [O dever de violência] de Ouologuem está
intimamente ligado ao It’s a Battlefield [É um campo de batalha] de
Graham Greene;44 ou ignorar o relato de Achebe a propósito de suas
leituras, quando menino, de que “as coisas principais eram a Bíblia, o
Book of Common Prayer*32 e o Livro [inglês] dos Hinos”.45
Ninguém há de contestar que a compreensão adequada de uma obra
literária implica uma compreensão de seus pressupostos culturais. Será
que importa para Madame Bovary o valor atribuído ao adultério na
França de sua época? Nesse caso, é importante (como veremos no
próximo capítulo) para Death and the King’s Horseman [A morte e o
cavaleiro do rei], de Soyinka, que a morte do título seja uma morte cujo
sentido o cavaleiro do rei aceita, uma morte que ele escolheu. Mas, esses
dois casos frisam-nos um dado crucial: nem sempre precisamos que nos
digam o que não sabemos. Pois o próprio texto pode no-lo mostrar.
Poderíamos extrair exemplos de quase qualquer lugar, mas
consideremos, a título de exemplo, o esplêndido ciclo poético Song of
Lawino [A canção de Lawino], de Okot p’Bitek, em que uma esposa acoli
“tradicional” chora a perda do marido diante do mundo do Homem
Branco. Lawino diz, a certa altura, ao discutir seus sentimentos a
respeito da outra mulher de seu marido, a europeizada Clementina, ou,
encurtando, Tina:
Forgive me, brother
Do not think I am insulting
e woman with whom I share my husband!
Do not think my tongue
Is being sharpened by jealousy.
It is the sight of Tina
at provokes sympathy from my heart.
I do not deny that
I am little jealous
It is no good lying,
We all suffer from a little jealousy.
It catches you unawares
Like the ghosts that bring fevers;
It surprises people
Like earth tremors:
But when you see the beautiful woman
With whom I share my husband
You feel a little pity for her!

Her breasts are completely shrivelled up,


ey are all folded dry skins,
ey have made nests of cotton wool
And she folds the bits of cow-hide
In the nests
And calls them breasts!

O! my clansmen
How aged modern women
Pretend to be young girls! *3346

Ora, qualquer um que leia o poema poderá se indagar se o recurso de


dirigir a narrativa a um “irmão” ou aos “membros do clã” provém da
poesia oral acoli tradicional, e (para ns de registro) provém. Mas, não é
preciso que nos digam, após a leitura desse trecho, que o casamento
entre os acolis é polígino, que a tradição acoli considera que os
fantasmas trazem febres e que, tradicionalmente, os acolis esperavam que
as pessoas “envelhecessem graciosamente”. Essa informação nos está
disponível no poema — e em seu original acoli extremamente popular
— e não se pode a rmar que esteja ali pelo fato de p’Bitek estar-se
dirigindo a estrangeiros.
Parte do que signi ca avaliar, digamos, o ings Fall Apart [As coisas se
desintegram] de Achebe, “antropologizando-o”, é que o narrador nos diz
muito sobre a cultura que assim poderia ser mostrada. Já sugeri uma
razão por que esse fato requer uma interpretação cuidadosa: é que o que
chamei anteriormente de “gesto de escrever para e sobre si mesmo” não é
uma simples questão de criar textos dirigidos a um Outro europeu. Para
aqueles de nós que fomos predominantemente criados com textos que
mal reconheciam a especi cidade de nossa existência, cada obra que
simplesmente coloque diante de nós o mundo que já conhecemos — e
esse é um aspecto eloqüentemente destacado pelo feminismo — é capaz
de proporcionar um momento prazeroso de autovalidação; mais
adiante, voltarei ao papel desses reconhecimentos na interpretação.
Oferecer tais explicações das estratégias narrativas de Achebe não
equivale, por certo, a empreender uma crítica negativa. Ninguém acha
que quando, em Ivanhoé, Scott expõe as realidades históricas (tal como
ele as imaginava) da cultura anglo-saxônica e normanda, o resultado seja
irresponsável ou antiliterário.
A exposição que Achebe faz da vida dos ibos deve ser comparada ao
relato de Scott, pois cada um deles é uma forma de romance histórico.
Na época em que Achebe escreveu, o mundo que ele descrevia tinha
desaparecido; como assinalou Gerald Moore,
Achebe teve de lutar pela objetividade ao evocar um mundo que jamais conhecera. (...) A
infância de Achebe, como lho de um eminente cristão converso, foi passada em considerável
isolamento dos vestígios da cultura tradicional que ainda sobreviviam a seu redor. Somente
quando adulto é que ele adquiriu a orientação que o fez freqüentar os anciãos, os santuários, os
festivais e todos os outros meios disponíveis, com vistas à recriação de um passado real e
crível.47

Achebe tem aguda consciência de sua distância desse mundo e do


papel da pedagogia colonial em sua imposição. Como escreveu certa vez:
“Eis aqui, portanto, uma revolução que me é adequado abraçar — ajudar
minha sociedade a recuperar a con ança em si e a se desfazer dos
complexos dos anos de infâmia e autodegradação.”48 Se Achebe às vezes
nos diz coisas demais (e, nesse aspecto, há infratores muito piores), ele é
também um hábil expositor.
Sugeri que o contexto de que precisamos pode ser pressuposto — e
portanto, comunicado — pelo texto a qualquer um que deseje exercer
um mínimo de esforço (embora as resenhas feitas em Nova York da
produção de Soyinka de 1987, Death and the King’s Horseman, devam
lembrar-nos que alguns críticos europeus e norte-americanos não se
dispõem a realizar essa modesta tarefa). Mas, mesmo quando o leitor ou
o público está disposto, há aspectos contextuais que um leitor cuja
cultura não seja a da cção talvez não consiga apreender; e me parece
não ser nada além de bom senso fornecer ao leitor estrangeiro a
informação necessária.

Mas, é claro, nada disso é novidade. Na verdade, a história da acolhida


da literatura africana no Ocidente sugere que o fornecimento de um
contexto social nunca foi o problema: ao contrário, as pessoas estavam
extremamente ansiosas por atentar para a dimensão etnográ ca da
literatura africana.49 E, como sugeri, seria completamente diferente
a rmar que uma perspectiva crítica que simula a do autor garante uma
interpretação mais adequada do texto. O dr. Johnson*34 tinha vantagens
inequívocas como leitor de seus contemporâneos, e nós tiramos proveito
de sua compreensão, mas isso não quer dizer que lhe concedamos — ou
devamos conceder — a última palavra (ah! como gostaríamos disso!)
nessa matéria.
Seja como for, há uma razão fundamental pela qual é improvável que o
nativismo na teoria nos afaste de onde já estamos. Vez após outra, o
nacionalismo cultural seguiu a via da genealogização alternativa. Sempre
acabamos no mesmo lugar; a realização consiste em havermos inventado
um passado diferente para ele. No ardor da rea rmação cultural, como
observou Immanuel Wallerstein, “os antecedentes do cienti cismo foram
redescobertos sob muitos nomes diferentes”;50 hoje, alguns intelectuais
africanos estão fazendo o mesmo com a teoria literária. Se partirmos de
uma concepção da interpretação retirada do meio acadêmico euro-
americano, é bem possível que consigamos produzir uma “variação
elegante”, inserindo, digamos, a curiosa metáfora da interpretação de
oráculos nativa.51 Mas, todo esse exercício me faz lembrar uma certa
empresa comercial mal-afamada que certa vez visitei em Harare —
produto das tentativas francamente incoerentes de impor sanções à
república da África do Sul. Sua especialidade era carimbar “Produzido
no Zimbábue” em mercadorias mais ou menos legalmente importadas do
sul. Talvez alguns realmente se deixassem enganar, mas o efeito global
desse procedimento era apenas fornecer uma tênue capa de legitimidade
para encobrir as práticas existentes.
É que nenhum de nossos gestos de devoção perante os deuses
domésticos é capaz de disfarçar o fato de que o “intelectual” é produto
de uma determinada formação social — de que, como observou Gayatri
Spivak, há um sentido em que o “intelectual terceiro-mundista” é uma
contradição nos termos, precisamente porque, como a rmei no começo,
os intelectuais do Terceiro Mundo são um produto do encontro
histórico com o Ocidente. E a problemática de que emerge o discurso
teórico sobre a literatura não é universal — pelo menos, não até que se
torne universal. A teoria literária não é apenas um projeto intelectual,
mas é também um gênero; e os gêneros têm histórias, ou seja, épocas e
lugares. Também nesse aspecto, o universalismo dissimulado dentro da
retórica do particularismo põe a cabeça para fora: pois decerto é uma
presunção européia insistir numa correspondência, na cultura africana,
com os discursos institucionalizados do Ocidente.

Há outra di culdade, entretanto, nesse nativismo na teoria, qual seja, a


de que (consoantemente com a retórica da teoria contemporânea em
geral) ele fundamenta uma política da interpretação numa
epistemologia espúria da interpretação. E falar de adequação teórica —
que, aqui, tanto é a cenoura quanto a vara*35 — é seriamente enganador.
Em lugar disso, penso que nos sairemos melhor em nossa escolha da
teoria se desistirmos da busca do Príncipe Encantado e falarmos, mais
modestamente, de modos produtivos de interpretação. Aqui, especialmente
ao abordar textos para os quais nos faltem tradições bem desenvolvidas
de interpretação, teremos a oportunidade de repensar toda a atividade
de re exão sobre a escrita. De modo que, antes de nalmente passar a
algumas das particularidades da produção literária africana, quero falar
um pouco sobre uma alternativa à epistemologia da interpretação que
instrumentaliza boa parte de nossa retórica atual.
Concentrarmo-nos na questão de saber se uma interpretação é correta
equivale a suscitarmos a pergunta: “Do que é que se supõe que uma
interpretação deva dar uma explicação correta?” A resposta rápida —
que, como veremos de imediato, diz-nos menos do que pretende — é,
evidentemente, “do texto”. Só que o texto existe como evento lingüístico,
histórico, comercial e político; e, embora cada um desses modos de
conceber o mesmíssimo objeto forneça oportunidades pedagógicas, cada
qual oferece oportunidades diferentes: oportunidades entre as quais
temos de escolher. No momento, inclinamo-nos a falar dessa escolha
como se os propósitos pelos quais ela é guiada fossem, em certo sentido,
dados. Mas, se isso fosse verdade, há muito teríamos concordado quanto
à natureza da interpretação literária: e certamente há poucas dúvidas de
que o conceito de “interpretação literária”, tal como o conceito de
“literatura”, é o que W. B. Gallie costumava chamar de “conceito
essencialmente contestado”. Compreender o que é uma interpretação
equivale a compreender que a chamada interpretação está sempre ao
alcance de qualquer um.
Por que propósitos, sendo assim, devem-se julgar nossas
interpretações? Dar uma resposta a essa pergunta não é colocarmo-nos
acima da disputa, mas nos engajarmos nela: tomar uma posição e
defendê-la. E penso que cará su cientemente claro por que — ao
menos nesse ponto — as esmagadoras diferenças entre as situações sócio-
políticas dos professores de literatura da África, de um lado, e as várias
tradições do Ocidente, de outro, podem muito bem sugerir posturas
diferentes, argumentos diferentes e, portanto, diferentes concepções da
interpretação.
Consideremos, pois, essas diferenças (tomando os Estados Unidos
como ponto de contraste especí co no Ocidente). O professor africano
de literatura leciona para alunos que, em sua imensa maioria, são
produtos de um sistema educacional no qual vigora um sistema de
valores que garante que, no âmbito da cultura, o Ocidente em que eles
não vivem seja o termo de valor; o professor norte-americano de
literatura, em contraste, tem alunos para quem esse mesmo Ocidente é o
termo de valor, mas para quem o Ocidente, é claro, é plenamente
concebido como lhes sendo próprio. Enquanto os estudantes norte-
americanos internalizaram amplamente um sistema de valores que os
proíbe de ver as culturas da África como fontes de valor para eles —
apesar das celebrações ritualizadas da riqueza da vida dos selvagens —,
eles também adquiriram uma retórica relativista que lhes permite, ao
menos em tese, admitir que, “para o Outro”, seu mundo é uma fonte de
valor. Assim, os alunos norte-americanos esperam que os estudantes
africanos valorizem a cultura africana por ela ser africana, ao passo que os
alunos africanos, criados sem o relativismo, esperam que os norte-
americanos valorizem os produtos de sua própria cultura porque, por
algum padrão objetivo, eles são superiores.
Esses fatos sociológicos, que re etem assimetrias do poder cultural,
têm profundas conseqüências na interpretação. Caso se acredite que os
tipos de complexos culturais de inferioridade representados nas atitudes
de muitos alunos africanos precisam ser exorcizados, então, o ensino da
literatura na vida acadêmica ocidentalizada da África exigirá uma
abordagem que faça três coisas cruciais: primeiro, identi que com
exatidão a situação do texto africano moderno como um produto do
encontro colonial (e não como simples continuação de uma tradição
nativa, nem como mera intromissão da metrópole); segundo, enfatize
que as continuidades entre as formas pré-coloniais de cultura e as
contemporâneas são, de qualquer modo, genuínas (e, portanto,
proporcionam um meio pelo qual os estudantes podem valorizar e
incorporar o passado africano); e terceiro, conteste diretamente a
suposição da superioridade cultural do Ocidente, tanto minando as
concepções estetizadas do valor literário que ele pressupõe quanto
fazendo uma distinção clara entre um campo de habilidade tecnológica
em que — reconhecidas as metas — as comparações de e ciência são
possíveis, e um campo de valor em que tais comparações de modo algum
são diretas assim. (O que tenho em mente aqui é um argumento que
começa pela modesta observação de que, com certeza, é uma idéia muito
estranha que haja uma só moeda corrente de valor literário, uma
“qualidade estética” que explique nossas opções na e de leitura.) Esse
questionamento nal — ao pressuposto da superioridade cultural do
Ocidente — exige, em última análise, que exponhamos as maneiras como
o caráter dos juízos de valor literários (e, em termos mais amplos,
estéticos) são produto de certas práticas institucionais, e não algo que
simplesmente re ita uma realidade com existência independente dessas
práticas e instituições.
No meio acadêmico norte-americano, por outro lado, a leitura de
textos africanos é razoavelmente guiada por outros ns: pela ânsia de
continuar repudiando o racismo; pela necessidade de fazer a imaginação
norte-americana — uma imaginação que regula boa parte do sistema
mundial, econômica e politicamente — transpor o âmbito estreito dos
Estados Unidos; e pelo desejo de desenvolver visões de outras partes do
mundo que respeitem mais profundamente a autonomia do Outro,
visões que não sejam geradas pelas necessidades políticas locais das
múltiplas diásporas da América.
Frisar esses propósitos na leitura é a rmar que, do ponto de vista de
uma análise da atual situação cultural — uma análise que é francamente
política —, certos objetivos são produtivamente bene ciados pelas
instituições literárias do meio acadêmico.

Feitas essas distinções, talvez valha a pena insistir em que alguns de


nossos materiais críticos podem ser usados nos dois lados do Atlântico.
Assim, por exemplo, há traços formais característicos que brotam, como
já foi assinalado muitas vezes, da proximidade que os leitores e escritores
africanos mantêm com as tradições vivas da narrativa oral. Abordar a
incorporação da tradição oral na escrita permite-nos atender à
necessidade de vincular os modernos estudantes africanos a suas
situações geográ cas, e atender ao interesse de expandir a imaginação
do mundo por parte dos estudantes norte-americanos.
E — para dar outro exemplo menos familiar — a literatura africana
levanta um conjunto de di culdades que provêm de uma das
características da situação cultural dos autores africanos nas línguas
coloniais, a saber, o fato de eles normalmente se perceberem como
dirigindo-se a um público leitor que abrange comunidades mais amplas
do que qualquer cultura “tradicional”. Abordar produtivamente essas
questões é facultar aos estudantes explorarem o espaço da política
cultural: permitir, tanto a estudantes africanos quanto norte-
americanos, que eles aprendam a resistir às reduções simplistas da
moderna produção cultural africana. Convém eu exempli car minhas
a rmações nessa área especí ca.
As conseqüências mais freqüentemente discutidas da situação que
acabo de delinear aparecem no nível temático. Quando os autores
escrevem em inglês ou francês sobre sua vida em seus próprios países,
com toda a sua especi cidade, eles necessariamente se descobrem
explicando aspectos dessa vida que decorrem dessa especi cidade. Isso
acarreta o uso de conceitos particulares, por exemplo, de parentesco e
família, casamento e posição social. Como vimos, a apresentação desses
detalhes é comumente interpretada, especialmente por pessoas fora da
África, como antropologizadora. Dizem-nos que o Arrow of God [A
echa de Deus] de Achebe, por exemplo, falha, em parte, porque está
sempre a nos dizer o que precisamos saber, reconhecendo a distância
entre o leitor e as tradições dos ibos e, com isso, supostamente
identi cando o leitor visado como estrangeiro. Ouvi essa mesma
observação a respeito das peças de Soyinka, e confesso julgá-la difícil de
aceitar. Pois há razões, razões altamente especí cas da situação da
literatura africana negra em línguas metropolitanas, pelas quais isso
constitui um erro.
Existe uma razão trivial. Achebe e Soyinka escrevem, muito
conscientemente, para públicos nigerianos — e não apenas ibos ou
iorubas. O fato de uma certa quantidade de detalhes ser introduzida, a
m de especi car uma descrição densa do meio cultural, simplesmente
não implica um leitor estrangeiro — se isso signi car não africano. Esse
é o primeiro ponto.
Mas ele é trivial, essencialmente, por causa de um segundo aspecto.
Para frisá-lo, devo começar por um dado que não deve ser
negligenciado: Achebe e Soyinka são escritores populares em seu país. Se
a presença desses acúmulos de detalhes supostamente etnográ cos fosse
realmente um modo de identi car um leitor estrangeiro, por que os
leitores nigerianos (e, mais especi camente, iorubas ou ibos) não os
consideram alienantes? A verdade é que a acumulação de detalhes é um
recurso, não de alienação, mas de incorporação. Nas narrativas
tradicionais, o fornecimento de informações já conhecidas pelo ouvinte
não re ete uma visão desse ouvinte como estrangeiro. Não fosse assim, as
narrativas orais não consistiriam em histórias batidas. A função da
descrição do que é familiar na narrativa depende, muitas vezes,
precisamente de nosso prazer em reconhecer numa história aquilo que já
sabemos.
O caráter central dessa questão — da inscrição do mundo social a
partir do qual se escreve — é apenas um exemplo, é claro, do tipo de
circunstância de que precisamos ter ciência, se quisermos escrever
inteligentemente sobre a moderna literatura africana. E isso depende
essencialmente de vermos o escritor, o leitor e a obra num contexto
cultural — e, portanto, histórico, político e social.
Assim, permitam-me encerrar com uma observação que decorre
justamente dessa apreensão contextualizadora, que identi ca as duplas
fontes da situação do moderno texto africano. Numa passagem que
fornece a epígrafe do próximo capítulo, Chinua Achebe re ete sobre a
necessidade de o(a) escritor(a) africano(a) moderno(a) examinar
inteligentemente as várias identidades que ele ou ela detém. E termina
interrogando sua identidade de africano com estas palavras: “Que
signi ca a África para o mundo? Quando se vê um africano, que signi ca
isso para o homem branco?”52 Note-se a pressuposição da segunda
pergunta: o reconhecimento de que uma identidade especi camente
africana começou como produto de um olhar europeu (masculino).
Os modos de interpretação antropologizadores enfatizariam as fontes
da “visão social” de Achebe num contexto africano.53 Parece-me
essencial, por contraste, insistir em que as dimensões nacionalistas da
história popular, que são centrais para tantos textos africanos modernos,
não são meros re exos do estilo épico de história e mito orais; elas
nascem da situação mundial do escritor africano, e não de uma
excentricidade puramente local. Achebe é um belo exemplo de alguém
que recorre às reservas de sua oratória nativa; mas, entendemos mal esses
usos quando não os vemos em seus múltiplos contextos.
Precisamos transcender as banalidades do nativismo — suas imagens
de purgação, suas declarações, frente ao capital internacional, de uma
“autonomia” ilusória, e suas topologias simplistas. A linguagem do
imperialismo — de centro e periferia, identidade e diferença, sujeito
soberano e suas colônias — continua a estruturar a crítica e a aceitação
da literatura africana, tanto na África quanto em outros lugares. E isso
torna a conquista do equilíbrio crítico especialmente difícil de sustentar.
Por um lado, encontramos teóricos que enfatizam os processos de
demonização e sujeição, as maneiras como a “margem” é produzida pela
“dominante cultural”, com a Europa de nindo sua soberania pela
insistência na alteridade de suas colônias. Por outro — Outro? — lado,
falar da produção da marginalidade pela cultura do centro é, em si,
totalmente inadequado, pois ignora a natureza recíproca das relações de
poder, despreza as variedades multiformes da ação individual e coletiva
acessível ao sujeito africano, e diminui as realizações e as possibilidades
da literatura da África.
O dado a ter em mente aqui não é que as ideologias, como as culturas,
existam antagonicamente, mas que elas só existem antagonicamente; a
dominação e a resistência são aquilo para que elas servem. No fervor do
debate literário africano dos dias atuais, é bom lembrar que o próprio
sentido do discurso póscolonial subsiste nessas relações con itivas. A
rigor, elas são o tema da literatura africana contemporânea.
Entretanto, eu, pelo menos, preocupo-me com nosso entusiasmo com
as polaridades da identidade e da diferença, em parte porque a retórica
da alteridade tem signi cado, com excessiva freqüência, o esvaziamento
da especi cidade, e em parte porque um número exagerado de
intelectuais africanos, cativados por esse tema ocidental, procuram
moldar-se como o Outro (ou à imagem dele). Corremos o risco de um
exotismo arti cial, como as quinquilharias para turistas nas Gie
Shoppes*36 de Lagos e Nairóbi.
O nativismo convida-nos a conceber a nação como uma comunidade
orgânica, unida pelo Sprachgeist, pelas normas comuns que são o legado
da tradição, e lutando para se desvencilhar dos grilhões dos estilos de
vida e pensamento estrangeiros. “Eis-me aqui”, escreveu certa vez
Senghor, “tentando esquecer a Europa no coração pastoril do Sine.”*3754
Para nós, porém, esquecer a Europa é eliminar os con itos que
moldaram nossas identidades; e, como é tarde demais para escaparmos
uns dos outros, poderíamos, em vez disso, tentar colocar a nosso favor as
interdependências mútuas que a história lançou sobre nós.

23 No original, GoingNativist, jogo de palavras construído a partir da expressão pejorativa going


native, que se perde na tradução. (N. da T.)

24 Em tradução livre: “Espalhai-vos! espalhai-vos! de sul a norte, / De leste a oeste, — espalhaivos!


espalhai-vos! / Fortalecei vossas estacas e esticai vossas cordas — / O mundo é uma tenda para
seus verdadeiros senhores! / Avançai e dispersai-vos por todos os lugares, / O mundo é um
mundo para a raça saxônica!” (N. da T.)

25 O autor usa aqui o termo “poesy”, do inglês medieval, em vez do moderno “poetry”. (N. da T.)

26 A palavra usada no original é “niggef ’, termo popular e pejorativo de referência aos negros.(N. da
T.)

27 Tipo muito conhecido de pessoa que transmite histórias orais na África Ocidental. (N. da T.)
28 Ônibus pequenos, abertos nas laterais, ou caminhões de médio porte usados para transporte de
carga ou passageiros na África Ocidental. (N. da T.)

29 O termo touts, de difícil tradução, refere-se a intermediários, de nível muito baixo, que atuam no
mundo do crime. Correspondem aproximadamente aos “aviões” do trá co de drogas no Rio de
Janeiro. Em outros contextos, o termo pode signi car também vendedores importunos, espiões,
olheiros que vendem informações sobre “barbadas” nas corridas de cavalos etc. (N. da T.)
30 Filósofo britânico nascido em 1904, autor de Other Minds (1952) e Philosophy and Psichoanalysis
(1953), entre outras obras. (N. da T.)

31 Conhecida cadeia de hotéis norte-americana, cujo lema é “e best surprise is no surprise”(N. da T.)

32 Livro do ritual e das oraçoes da Igreja Anglicana. (N. da T.)

33 Em tradução livre: “Perdoa-me, irmão, / Não creias que insulto / A mulher com quem comparto
meu marido! / Não creias que minha língua / É a ada pelo ciúme. / É a visão de Tina / Que
desperta simpatia em meu coração. / Não nego que / Eu seja um pouco ciumenta, / De nada serve
mentir, / Todos sofremos de um leve ciúme. / Ele nos pega desprevenidos, / Como os fantasmas
que trazem as febres; / Surpreende as pessoas / Como os tremores de terra; / Mas, quando vires a
bela mulher / Com quem partilho meu marido, / Sentirás certa comiseração por ela! // Seus seios
são completamente murchos, / São peles secas em dobras; / Formaram ninhos de algodão cru, / E
ela dobra os pedaços de couro de vaca / Nos ninhos, / E os chama de seios! // Ah! membros de
meu clã! / A que ponto as modernas mulheres idosas / Pretendem ser jovenzinhas!” (N. da T.)
34 Samuel Johnson (1709-1784), escritor e dicionarista inglês que, em sua época, foi um defensor
do classicismo e exerceu uma in uência literária por muitos considerada forte demais. (N. da T.)

35 Da expressão “the carrot and the stick”, com o sentido gurado de engodo, que descreve a
situação hipotética em que se ata uma vara ao corpo de um coelho, projetada à sua frente e, na
ponta dela, uma cenoura, para fazê-lo correr incessantemente na tentativa de abocanhar a isca. (N.
da T.)

36 Lojas de souvenirs. (N. da T.)

37 Sine é uma região do Senegal. (N. da T.)


4
O mito de um mundo africano

Sou um escritor ibo, porque essa é minha cultura básica;


nigeriano, africano e escritor... não, primeiro negro, depois escritor.
Cada uma dessas identidades efetivamente invoca um certo tipo de
compromisso de minha parte. Devo enxergar o que é ser negro — e isso significa ser
suficientemente inteligente para saber como gira o mundo e como se saem os
negros no mundo. É isso que significa ser negro. Ou africano — dá
no mesmo: que significa a África para o mundo? Quando se vê
um africano, que significa isso para um homem branco?1
Chinua Achebe

O s afro-americanos cuja obra discuti nos dois primeiros ensaios


conceberam sua relação com a África através do conceito
intermediário de raça, conceito este que eles adquiriram de uma
matriz cultural euroamericana. Em decorrência disso, como a rmei, era
inevitável que sua resposta à questão da identidade africana se enraizasse
nos racismos românticos que foram tão centrais para os nacionalismos
europeu e norte-americano do último século e meio; o pensamento
destes forneceu o ponto de partida para os africanos que assumiram a
bandeira de um nacionalismo negro pan-africanista no período
decorrido desde a Segunda Guerra Mundial. O nativismo de Towards the
Decolonization of African Literature [Pela descolonização da literatura
africana] é, simplesmente, o re exo dessas forças no campo da crítica
literária acadêmica.
Contudo, os africanos também estavam fadados a partir de um
conhecimento e um apreço mais profundos por suas tradições locais.
Blyden e Crummell podem ter sido liberianos, mas suas simpatias foram
restringidas por sua formação norte-americana. Du Bois, apesar de ganês
ao morrer, nunca buscou uma compreensão profunda das culturas em
que passou seus últimos anos de vida. Quando nos voltamos para os
africanos eurófonos que lhes herdaram o manto, vemos uma mudança de
foco, de atitude e de perspectiva que é de importância crucial para
entender sua política cultural; se há uma perspectiva, acima de todas,
que resume essas mudanças no mundo anglófono, ela não é a dos padres
e missionários cristãos (como Blyden ou Crummell), nem a dos
sociólogos (como Du Bois), nem a dos críticos (como Chinweizu e seus
colaboradores), mas a do escritor. Chinua Achebe formulou essa questão
de maneira caracteristicamente concisa:
É verdade, é claro, que a identidade africana ainda está em processo de formação. Não há uma
identidade nal que seja africana. Mas, ao mesmo tempo, existe uma identidade nascente. E ela
tem um certo contexto e um certo sentido. Porque, quando alguém me encontra, digamos,
numa loja de Cambridge [na Inglaterra], ele indaga: “Você é da África?” O que signi ca que a
África representa alguma coisa para algumas pessoas. Cada um desses rótulos tem um sentido,
um preço e uma responsabilidade. Todos esses rótulos, infelizmente para o negro, são rótulos
de incapacidade (...).
Penso que faz parte do papel do escritor estimular a criação de uma identidade africana.2

Não há melhor ponto de entrada na questão da articulação de uma


identidade africana pelos intelectuais africanos do que as re exões de
nossos ccionistas mais vigorosos: e, dentre estes, nenhum, creio eu, foi
uma força literária, cultural e política, ao menos na África anglófona,
maior do que o escritor nigeriano Wole Soyinka.

Wole Soyinka escreve em inglês. Mas esse, como muitos fatos evidentes, é
um cuja obviedade pode levar-nos a subestimar sua importância e suas
obscuridades. Pois, se é óbvio que a língua de Soyinka é o inglês, é difícil
saber de quem é o inglês que ele escreve. Amos Tutola acostumou o
ouvido ocidental ao “inglês nigeriano”; o inglês de Soyinka só é
“nigeriano” quando ele escuta nigerianos, e, nesse caso, sua escuta é
precisa. Mas, com a mesma precisão ele capta a língua do súdito
colonial, em tema e estilo: somente alguém que escutasse faria a mulher
do Administrador Distrital britânico dizer a seu marido, quando ele sai
para negociar com “os nativos” em Death and the King’s Horseman [A
morte e o cavaleiro do rei]: “Tome cuidado, Simon, quero dizer, seja
esperto.”3
Contudo, esse mesmíssimo texto relembra, ocasionalmente, o inglês
das traduções do grego feitas por Gilbert Murray: Soyinka, como
estamos lembrados, traduziu (ou, melhor dizendo, transformou) As
bacantes — como aqui, na primeira narração da peça:
Death came calling.
Who does not know the rasp of the reeds?
A twilight whisper in the leaves before
e great araba falls. *38 4

A ressonância é uma entre a multidão. Ao ler Soyinka, ouvimos uma voz


que saqueou os tesouros da enunciação literária e vernacular inglesa,
com um ecletismo que estonteia sem desconcertar, e que descobriu uma
linguagem incontestavelmente sua. Pois — e é isso que importa — por
mais ressonâncias que ouçamos, Soyinka escreve de um modo que
nenhum autor inglês ou norteamericano contemporâneo poderia
escrever. É importante compreender por que isso se dá. Pois a resposta
está na raiz do projeto intelectual e literário de Soyinka.
Embora escreva numa língua européia, Soyinka não escreve, não pode
escrever, com os propósitos dos autores ingleses da atualidade. É por
essa razão, acima de tudo, que sua linguagem pode ser enganadora.
Exatamente por terem pouca di culdade de compreender o que Soyinka
diz, os europeus e norte-americanos precisam aprender a ter cuidado ao
atentar para seus propósitos ao dizê-lo. É que há uma profunda
diferença entre os projetos dos escritores contemporâneos europeus e
africanos: uma diferença que resumirei, a título de slogan, como a
diferença entre a busca do eu e a busca de uma cultura.
A idéia de que os modernos escritores europeus têm-se engajado na
busca do eu é um lugar-comum da crítica. Ser um lugar-comum, porém,
não nos oferece nenhuma garantia de que seja verdadeiro. Entretanto, há
muito a dizer em favor dessa idéia, tal como exposta, por exemplo, na
argumentação de Lionel Trilling em seu clássico ensaio Sincerity and
Authenticity [Sinceridade e autenticidade].
Para Trilling, a sinceridade deixou de ser o problema do escritor
europeu. Acabou a obsessão com a tentativa de introduzir uma espécie
de harmonia entre o que se é (o eu) e o que se parece ser (o papel que se
desempenha). Com sua “seriedade (...) cativantemente arcaica”,5 Leavis é
o último herói recente da sinceridade e, para ele, o maior de todos os
pecados é a hipocrisia. Entra em cena a autenticidade, a preocupação
paradoxalmente histriônica do existencialismo e dos poetas beatniks,
que também é central, para termos uma idéia de sua amplitude, em
Proust e na psicanálise: a obsessão com a transcendência daquilo que se
parece ser pelo que realmente se é, além da sinceridade e da hipocrisia.
A autenticidade é uma fuga do que a sociedade, a escola, o Estado — a
história — tentaram fazer de nós; o homem autêntico é Nietzsche, e seu
pecado-mor é a falsa consciência. No mundo da autenticidade, Freud
ergue-se como uma gigantesca testemunha da dor impossível de
descobrir o eu interior, mais profundo e mais real — em suma, o eu
autêntico.
O artista — tal como passa a ser chamado — deixa de ser o artesão ou o ator que dependem da
aprovação da platéia. Sua referência é apenas a si mesmo, ou a algum poder transcendental que
— seja ele uma força ou uma entidade — tenha ordenado sua iniciativa e seja o único digno de
julgá-la.6
O próprio fato de a linguagem de Trilling a gurar-se obsoleta a
muitos críticos literários europeus e norte-americanos, nesse trecho, é
prova do caráter da vida intelectual do mundo industrializado. (No
capítulo 7 voltarei a essa questão, que está ligada, a meu ver, à crescente
mercadologização da produção intelectual e “artística” na chamada
cultura “pós-moderna”.) Nos anos decorridos desde a morte de Trilling, a
linguagem da crítica e da teoria crítica modi couse. Mas, é provável que
os historiadores literários e os historiadores das idéias no Ocidente
concordem em que existe, em sua tradição, um certo sentido do escritor
como oposicionista, cujas raízes remontam pelo menos ao
Renascimento. Stephen Greenblatt a rmou, em Renaissance Self-
fashioning [A moldagem do eu no Renascimento], que os autores
renascentistas moldavam “eus” “dentre possibilidades cuja gama era
estritamente delimitada pelo sistema social e ideológico em vigor”,7 de
modo que o sentido de um eu formado contra a cultura é uma cção. A
história literária, pelo fato mesmo de procurar explicar o escritor em
termos de uma história dentro da sociedade, contesta a a rmação do
escritor — que encontramos na Europa desde o romantismo, pelo menos
— de ser simplesmente um oposicionista. Mas, é exatamente esse sentido
difundido do eu criativo como oposicionista — tão difundido que a
obra de Greenblatt é interessante, em parte, por questioná-lo — que
considero como dado, em meu contraste com os escritores africanos
contemporâneos.8
Podemos ver essa concepção articulada no prefácio de Trilling a e
Opposing Self [O eu oposicionista], uma coletânea de ensaios sobre vários
escritores europeus, de Keats até Orwell. Trilling discute a máxima de
Mathew Arnold, freqüentemente citada, de que a literatura é uma crítica
da vida. Arnold, a rma Trilling,
queria dizer, em suma, que a poesia é uma crítica da vida, do mesmo modo que “e Scholar
Gipsy” [O cigano erudito] foi uma crítica da vida de um inspetor de escolas primárias. “e
Scholar Gipsy” é poesia — é imaginação, impulso e prazer: é praticamente o que todo escritor
do período moderno concebe, a experiência da arte projetada na efetividade e na totalidade da
vida, como forma ideal da vida moral. Sua existência pretende perturbar-nos e deixar-nos
insatisfeitos com nossa vida habitual na cultura (...).9

O interesse particular de Trilling pela transição da sinceridade para a


autenticidade, como morais da criação artística, é parte de um padrão
característico mais amplo. A autenticidade é apenas uma das idéias
através das quais se articulou a idéia do artista como um sujeito à
margem.
Para a África, essa autenticidade é basicamente uma curiosidade:
apesar de formados na Europa ou em escolas e universidades dominadas
pela cultura européia, os escritores africanos não têm seu interesse
voltado para a descoberta de um eu que seja objeto de uma viagem
interior de descobrimento. Seu problema — embora não seu tema, é
claro — consiste em descobrir um papel público, não um eu particular.
Se os intelectuais europeus, apesar de comodamente instalados em sua
cultura e suas tradições, têm uma imagem de si como marginais, os
intelectuais africanos são marginais mal acomodados, que buscam
desenvolver suas culturas em direções que lhes con ram um papel.
É que a relação dos escritores africanos com o passado africano é uma
trama de ambigüidades delicadas. Se eles aprenderam a não o desprezar
nem tentar ignorá-lo — e há muitas testemunhas da di culdade dessa
descolonização da mente —, ainda estão por aprender a assimilá-lo e
transcendê-lo. Eles cresceram em famílias para quem o passado, quando
não está presente, ao menos não se encontra muito abaixo da superfície.
Esse passado e os mitos do passado de seu povo não são coisas que eles
possam ignorar. Quando Ngugi wa iong’o *39 diz que “o romancista, em
sua melhor forma, deve sentir-se herdeiro de uma tradição contínua”, ele
não está pretendendo referir-se, como poderia supor um ocidental, a
uma tradição literária: refere-se, como saberia qualquer africano, à
“corrente central do drama histórico de seu povo”.10 É essa perspectiva
fundamentalmente sócio-histórica que faz do problema europeu da
autenticidade algo distante e pouco atraente para a maioria dos autores
africanos.
Não devemos exagerar a distância entre Londres e Lagos: o conceito
de autenticidade, embora amiúde dissociado de suas raízes na relação do
leitor ou do escritor com a sociedade, é de molde a só poder ser
compreendido contra o pano-de-fundo social. É o fato de sermos seres
sociais, a nal, que levanta o problema da autenticidade. O problema de
quem sou realmente é levantado pelos dados do que pareço ser: e,
conquanto seja essencial para a mitologia da autenticidade que esse fato
seja obscurecido por seus profetas, o que pareço ser é,
fundamentalmente, a aparência que tenho para os outros, e apenas de
forma derivada para mim mesmo. Robinson Crusoé, antes de Sexta-Feira,
di cilmente teria o problema da sinceridade; mas também é razoável
duvidarmos que deparasse com questões de autenticidade.
No entanto, e aí está o ponto crucial, esses outros que de nem o
problema, para os escritores europeus, são “o meu povo”, e eles sentem
que sabem quem são essas pessoas e o que elas valem. Para os escritores
africanos, a resposta não é tão simples. Eles são achantis, iorubas,
kikuyus, mas, que signi ca isso? São ganeses, nigerianos ou quenianos,
mas, será que isso quer dizer alguma coisa? São negros, e qual é o valor
da pessoa negra? Em outras palavras, eles estão fadados a enfrentar as
questões articuladas na epígrafe deste capítulo, de Achebe. Assim,
embora o europeu possa sentir que o problema de quem ele ou ela é
constitui um problema particular, o africano sempre pergunta, não
“quem sou eu?”, mas “quem somos nós?”. “Meu” problema não é apenas
meu, mas “nosso”.
Essa constelação particular de problemas e projetos não é encontrada
com freqüência fora da África: uma história colonial recente, uma
multiplicidade de variadas tradições locais subnacionais, uma língua
estrangeira cuja cultura metropolitana tradicionalmente de niu os
“nativos” como inferiores, por sua raça, e uma cultura literária ainda
basicamente em processo de formação. É por eles compartirem esse
conjunto de problemas que faz sentido falar de um escritor nigeriano
como um escritor africano, com os problemas de um escritor africano: e
é por haver tentado enfrentar alguns desses problemas comuns, com
sutileza e inteligência, que Soyinka merece a atenção dos africanos.
Quero tentar identi car um problema no relato que Soyinka faz de sua
tradição cultural: um problema relativo à explicação que ele oferece do
que é ser um escritor africano em nossos dias, um problema que aparece
na tensão entre o que suas peças mostram e o que ele diz a respeito delas.
Poderíamos partir de muitos pontos de sua oeuvre dramática; optei
por Death and the King’s Horseman. Soyinka diz:
A peça baseia-se em eventos ocorridos em Oyo, uma antiga cidade ioruba da Nigéria, em 1946.
Naquele ano, a vida de Elesin (Olori Elesin), a de seu lho e a do Administrador Distrital da
Colônia entrelaçaram-se, com os resultados desastrosos expostos na peça.11

A primeira cena começa com um cantador de loas [praise-singer] e


alguns tamborileiros que seguem Elesin Oba enquanto ele caminha pelo
mercado. Aos poucos, vamos descobrindo que ele é o “Cavaleiro do Rei”,
cujo orgulho e dever é acompanhar o rei morto e seguir com ele para a
“morada dos deuses”.12 Nas palavras de Joseph, o “criado”*40 do
Administrador Distrital Britânico: “É a lei, o costume nativo. Rei morto
mês passado. Hoje à noite é seu enterro. Mas, para que possam enterrá-
lo, Elesin tem que morrer, para acompanhá-lo até o céu.”13 Quando um
funcionário colonial intercede para impedir o “suicídio ritual” de Elesin
Oba, seu lho, recém-retornado da Inglaterra para o funeral do rei,
morre em seu lugar: e Elesin reage enforcando-se em sua cela com a
corrente com que os policiais coloniais haviam atado suas mãos. A
intervenção do Administrador Distrital para salvar uma vida acaba
levando à perda de duas: e, como acredita o povo de Oyo, a uma ameaça
à ordem cósmica.
O problema se agrava pelo fato de que Elesin Oba resolvera casar-se na
véspera de sua morte, para que, em suas palavras, “meu uxo vital, o
último desta carne, seja mesclado com a promessa da vida futura”.14
Tomamos ciência, desde a primeira cena, de que esse ato desperta
dúvidas — expressas por Iyaloja, a Mãe do Mercado — sobre a
capacitação de Elesin para essa tarefa. Quando fracassa, o próprio Elesin
aborda essa questão, ao falar com sua jovem esposa:
Primeiro culpei o homem branco, depois culpei meus deuses por me abandonarem. Agora,
acho que quero culpar você pelo mistério da debilitação de minha vontade. Mas, a culpa é uma
estranha oferenda de paz a ser feita por um homem a um mundo que ele ofendeu
profundamente, assim como a seus inocentes habitantes. Oh! mãezinha, possuí inúmeras
mulheres em minha vida, mas você foi mais que um desejo da carne. Eu precisava de você como
o abismo através do qual meu corpo deveria ser arrastado; enchi-o de terra e nele depus minha
semente, no momento do preparo para minha travessia. (...) Confesso-lhe, lha, que minha
fraqueza não veio apenas da abominação do homem branco, que irrompeu com violência em
minha presença evanescente, mas que houve também o peso de um anseio em meus membros
retidos pela terra. Eu o teria sacudido para longe, já meu pé começara a se erguer, mas o
fantasma branco entrou e tudo se corrompeu.15

Há aqui inúmeras possibilidades de interpretação, e as incertezas de


Elesin quanto ao sentido de seu próprio fracasso dão-nos margem para
indagar se a intervenção do colonizador serve apenas de pretexto. Mas,
qual é a interpretação do próprio Soyinka?
Em sua Nota do Autor para a peça, Soyinka escreve, num trecho do
qual já extraí uma citação no primeiro capítulo:
O problema desse gênero de temas é que, mal se os emprega criativamente, eles adquirem o
rótulo simplista de “choque de culturas”, uma etiqueta prejudicial que, à parte sua freqüente
aplicação equivocada, pressupõe uma igualdade potencial, em qualquer situação dada, entre a
cultura estrangeira e a local, no solo efetivo desta última. (Na área da aplicação equivocada, o
prêmio ultramarino pela ignorância e pelo condicionamento mental vai, sem dúvida, para o
divulgador da edição norte-americana de meu romance Season of Anomy [Temporada de
anomia], que tem a desfaçatez de declarar que essa obra retrata o “choque entre os antigos
valores e os novos costumes, entre os métodos ocidentais e as tradições africanas”!) (...)
Considero necessário advertir o pretendente a produtor desta peça a se opor a uma tendência
reducionista lamentavelmente conhecida e, em vez disso, a orientar sua visão para a tarefa
muito mais difícil e arriscada de trazer à tona a essência trenodial da peça. (...)
O Fator Colonial é um incidente, um mero incidente catalisador (...). O confronto da peça é
predominantemente metafísico.

Considero forçado o tom dessa passagem e insincera a sua a rmação.


Podemos, é claro, estabelecer distinções com maior critério do que os
divulgadores e os rabiscadores de rótulos simplistas: Soyinka acha que
falar do choque entre culturas sugere que o colonizador e o colonizado
confrontam-se em termos culturalmente iguais. Podemos rejeitar essa
implicação. Existe, como diz Soyinka, algo de tão supersimpli cado que
chega a ser totalmente enganoso na a rmação de que o romance é
“sobre” a relação entre os métodos europeus e as tradições africanas, de
que ele as “retrata”.
Ainda assim, é absurdo negar que o romance e a peça têm algo a dizer
sobre essa relação. O “Fator Colonial” não é um mero incidente
catalisador; é um ataque profundo à consciência do intelectual africano,
à consciência que norteia essa peça. E seria irresponsável, coisa que
Soyinka não é, a rmar que o romance e a peça não implicam um
conjunto complexo (e não reducionista) de atitudes perante o problema.
Uma coisa é dizer (corretamente, penso eu) que o drama ocorrido em
Oyo é guiado, em última instância, pela lógica da cosmologia iorubana,
e outra é negar a existência de uma dimensão de poder em que é o
Estado colonial que molda a ação.
De modo que, traçadas todas as distinções, continuamos precisando
perguntar por que Soyinka sente necessidade de ocultar seus propósitos.
Será, talvez, por não ter resolvido a tensão entre o desejo — que brota de
suas raízes na tradição européia da autoria — de ver sua obra literária
como, digamos, autêntica, “metafísica”, e o desejo que ele deve sentir,
como africano numa cultura antes colonizada e apenas nocionalmente
descolonizada, de enfrentar e re etir sobre esse problema no plano da
ideologia? Será, dito de maneira sucinta, por estar Soyinka dilacerado
entre as exigências de uma autenticidade privada e um compromisso
público? Entre a autodescoberta individual e o que ele chama, em outro
texto, de “visão social”?
É esse problema, central na situação de Soyinka como escritor
africano arquetípico, que quero passar a discutir.

A “visão social”, naturalmente, é o tema de duas das palestras de Myth,


Literature and the African World [Mito, literatura e o mundo africano], de
Soyinka, e foi nessa obra que as tensões que mencionei chamaram minha
atenção pela primeira vez. Fica claro que os ensaios de Soyinka não são
particularmente dirigidos para um público africano (o que não chega a
surpreender, ao nos lembrarmos de que eles se basearam em palestras
feitas na Inglaterra, na Universidade de Cambridge). Algumas referências
a Peter Brook e Brecht, Robbe-Grillet e Lorca tencionam ajudar a situar
o leitor ocidental. De fato, a introdução de Lorca vem adornada pela
observação de que está ali “para facilitar a referência”.16 E isso ca claro
pela maneira como o primeiro capítulo (sobre a teologia iorubana e suas
transformações no teatro africano e afro-americano) nos dá inúmeras
informações que seria absurdo fornecer a qualquer ioruba, bem como
uma certa quantidade delas que seria gratuito mencionar a quase
qualquer público africano.
Contudo, tenciona-se (e, em larga medida, essa intenção é alcançada)
que Myth, Literature and the African World seja uma obra que, tal como as
peças de Soyinka (e diferentemente, digamos, dos romances de Achebe),
presuma profundamente como dado o seu contexto africano — e
iorubano. Soyinka não está defendendo a idéia de que os modernos
escritores africanos devam ser livres para beber nas fontes da mitologia
africana e, no presente caso, iorubana; antes, simplesmente nos mostra
que esse processo pode ocorrer e de fato ocorre. Ele nos diz em seu
prefácio, por exemplo, que a literatura da “visão social secular” revela
que as “verdades universais” do “novo ideólogo” podem ser “inferidas da
visão de mundo e das estruturas sociais de seu próprio povo
[africano]”.17 Tenho toda a simpatia pelo modo como Soyinka procura
presumir como dada a realidade da África. Mas, essa presunção é
duplamente paradoxal.
Primeiro, o público que o lê como autor de textos dramáticos e como
teórico — ao contrário da platéia de suas montagens — é
predominantemente não africano. Myth, Literature and the African World
é para ser lido, basicamente, por pessoas que vêem Soyinka como um
guia para o que continua a ser, para elas, do ponto de vista literário (o
que constitui, é claro, um re exo das realidades políticas), o Continente
Negro. Como é possível pedirmos a pessoas que não são africanas, que
não conhecem a África, que nos presumam como dados? E, o que é mais
importante, por que deveriamos fazê-lo? (Observe-se como seria estranho
louvar Norman Mailer — para citar um nome inteiramente ao acaso —
por ele presumir a América como dada.)
A situação do intelectual africano é curiosa, em parte, pelo fato de
que tomar sua cultura como dada — como política, história, cultura e,
em termos ainda mais abstratos, como mente — é, absurdamente, algo
que de fato requer um esforço. De modo que, como seria inevitável — e
esse é o segundo aspecto do paradoxo —, o que Soyinka faz é presumir a
África como dada, em reação a uma série de auto-equivocações da
própria África, que são produto da história colonial e da imaginação
européia: e isso apesar de Soyinka saber que é das cções européias sobre
a África que precisamos esquecer. Ao escapar da África tal como vista
pela Europa, a única cção de que Soyinka não consegue escapar, como
teórico, é a de que os africanos só podem presumir como dadas as suas
tradições culturais através de um esforço mental.
No entanto, nas peças de Soyinka, a mitologia e a teologia iorubanas,
os costumes e as tradições dos iorubas são presumidos. Eles podem ser
reelaborados, como Shakespeare reelaborou as tradições inglesas, ou
Wagner, as alemãs, mas nunca existe qualquer hesitação quando, como
em Death and the King’s Horseman, Soyinka inspira-se con antemente
nos recursos de sua tradição.
Decerto não há razão para que nós, de fora, tenhamos mais di culdade
de compreender os dramas de Soyinka, por eles se basearem na cultura
iorubana, do que de compreender Shakespeare, por ele falar a partir do
que se costumava chamar de “visão de mundo elisabetana”; e as peças de
Soyinka mostram que ele sabe disso.
Creio que deveriamos indagar o que desvirtua Soyinka, quando se
trata de ele dar conta de sua situação cultural. E parte da resposta deve
consistir em que ele está respondendo à pergunta errada. Pois o que ele
precisa fazer não é presumir como dado um mundo africano, mas
presumir sua própria cultura — falar livremente, não como africano,
mas como ioruba e nigeriano. A pergunta certa, portanto, não é “Por
que não deve a África presumir como dadas as suas tradições?”, e sim
“Por que não devo eu fazê-lo com as minhas?”. A razão de a África não
poder presumir como dada uma vida cultural, politica ou intelectual
africana é que não existe tal coisa: existe apenas um sem-número de
tradições, com suas relações complexas — e, com igual freqüência, sua
falta de qualquer relação — umas com as outras.
Por essa razão, a situação de Soyinka é ainda mais complexa do que
tende a se a gurar ao ocidental — ou ao africano enredado em
mitologias unanimistas. Isso porque, mesmo que seus textos se dirigissem
exclusivamente a outros africanos, ele não poderia pressupor um
conhecimento das tradições iorubanas: e são precisamente estas que
precisamos compreender, se quisermos acompanhar os argumentos de
sua primeira palestra. Em outras palavras, mesmo ao se dirigir a outros
africanos, tudo o que ele pode presumir é um interesse por sua situação,
e uma suposição comum de que ele tem o direito de falar a partir de um
mundo cultural iorubano. Ele não pode presumir um reservatório
comum do saber cultural.
Essas questões são importantes para meu próprio projeto nestes
ensaios. Como já a rmei, é simplesmente um erro supor que as culturas
da África sejam, umas para as outras, um livro aberto. Essa é uma das
razões por que, como vimos no último ensaio, o fato de eu explicar este
ou aquele costume ou crença achanti não mostra, por si só, que eu esteja
falando para o Ocidente. Logo, não podemos inferir um público
ocidental para a exposição — brilhante e original — que Soyinka faz da
cosmologia iorubana. O que mostra que seu público é ocidental são os
tipos de referências que ele faz, os tipos de costumes iorubanos que opta
por explicar.
Ora, evidentemente, a única maneira de superar os mal-entendidos
que venho discutindo é reconhecê-los e transcendê-los; não se consegue
nada ignorando-os. E, apesar das observações na Nota do Autor, Soyinka
bem sabe disso. O que quero a rmar, entretanto, é que o “Mundo
Africano” que ele contrapõe como sua cção da África é um mundo
contra o qual devemos rebelar-nos — e que devemos fazê-lo, voltando a
meu argumento anterior, porque essa cção pressupõe uma falsa
explicação das relações adequadas entre a autenticidade “metafísica”
privada e a ideologia, uma falsa explicação das relações entre a
literatura, de um lado, e o mundo africano, de outro.

Podemos abordar os pressupostos de Soyinka formulando-nos uma


pergunta: que tem a cosmologia iorubana, preocupação da primeira
palestra de Myth, Literature and the African World, a ver com a literatura
africana? Não basta responder que a cosmologia iorubana fornece os
personagens e as ressonâncias míticas de parte da dramaturgia africana
— em especial, é claro, a de Soyinka —, tal como faz com parte do teatro
afro-caribenho e afro-americano que o próprio Soyinka discute em
Myth, Literature and the African World. É que isso não constitui uma
resposta para o autor e o leitor akan, que estão mais familiarizados com
Ananse do que com Esu-Elegba*41 como embusteiro [trickster], e que não
têm maiores obrigações para com Ogum do que para com Vishnu. “A
África, menos o norte saariano” — e essa é uma observação de Soyinka
— “ainda é um imenso continente, povoado por uma miríade de raças e
culturas.”18
É natural, após a leitura da primeira palestra de Myth, Literature and
the African World, supor que a resposta de Soyinka a nossa pergunta seja
a seguinte: “A mitologia iorubana é usada à guisa de exemplo porque,
como ioruba, sucede-me ser a que eu conheço.” Em sua interessante
discussão sobre as diferenças (e semelhanças) entre os mitos e o teatro
gregos e iorubanos, por exemplo, ele diz: “O fato de que a religião grega
exibe paralelos convincentes, para nos atermos a nosso exemplo, com a
ioruba, de modo algum é negado (...)”,19 como se o caso iorubano fosse
discutido como exemplo — do que mais? — do caso africano. Muitos
outros trechos con rmariam essa interpretação.
Ora, se é esse o pressuposto de Soyinka — e, se não é, por certo é um
pressuposto de seu texto —, então ele é algo que devemos questionar.
Pois, segundo eu sugeriria, a suposição de que esse sistema de ideais
iorubanos seja — ou possa ser — típico constitui uma reação
demasiadamente direta à concepção européia da África como aquilo que
Soyinka denomina esplendidamente, em outro texto, de “vazio
metafísico”:20 e a resposta correta a esse disparate não está em a rmar
que o que se a gura um vazio aos olhos da Europa é, na verdade,
povoado por certas noções metafísicas típicas, das quais as concepções
iorubanas seriam um caso particular, mas em insistir em que ele é
ricamente povoado pelos diversos mundos de pensamento metafísico de
“uma miríade de raças e culturas” (segundo sua própria hipérbole
inofensiva).
Não quero apresentar a aparente postura de Soyinka como uma
espécie de imperialismo ioruba do mundo do pensamento. Sua
motivação é mais nobre, e penso ser esta: Soyinka reconhece que, apesar
das diferenças entre as histórias das ex-colônias britânicas, francesas e
portuguesas, há uma continuidade profunda, e vivamente consciente de
si mesma, entre os problemas e projetos dos africanos descolonizados,
uma continuidade que tanto é metafísica quanto endógena. O desejo de
explicar essa continuidade, este é metafísico e endógeno. O desejo de dar
uma explicação que seja endógena é, a meu ver, primordial. Como vimos
no caso de Du Bois, há algo de desconcertante, para um pan-africanista,
na tese (que exponho aqui em sua formulação mais extrema) de que o
que os africanos têm em comum é, fundamentalmente, o fato de o
racismo europeu não ter sabido levá-los a sério, de o imperialismo
europeu os haver explorado. Soyinka recusa-se a admitir o pressuposto
da pergunta de Achebe — “Quando se vê um africano, que signi ca isso
para um homem branco?” —, ou seja, o pressuposto de que a identidade
africana é, em parte, o produto de um olhar europeu.
Convém eu insistir, mais uma vez, em que não penso que isso seja tudo
o que os africanos têm em comum culturalmente. É óbvio que, como a
Europa antes do Renascimento e como grande parte do Terceiro Mundo
moderno, as culturas africanas são formadas, sob importantes aspectos,
pelo fato de não terem, até recentemente, nenhuma tecnologia de ponta,
e de contarem com níveis relativamente baixos de alfabetização. Apesar
da introdução da alta tecnologia e do rápido aumento da alfabetização,
esses fatos do passado recente ainda se re etem até mesmo nas
concepções daqueles, dentre nós, que mais somos afetados pelo
desenvolvimento econômico e pela exposição cultural ao Ocidente.
Voltarei a estas questões nos capítulos nais. Contudo, ainda que essas
semelhanças econômicas e técnicas só fossem encontradas na África — e
não são —, elas não justi cariam, mesmo com as semelhanças da história
colonial, a suposição de uma unidade metafísica ou mítica, exceto se
seguirmos os pressupostos mais horripilantemente deterministas.
Ao negar uma unidade metafísica e mítica nas concepções africanas,
portanto, não neguei que “literatura africana” seja uma categoria útil.
Insisti desde o começo em que a situação sócio-histórica dos escritores
africanos gera um conjunto comum de problemas. Mas, observe-se que,
justamente, não é um consenso metafísico que cria essa situação comum.
São, inter alia, a transição das delidades tradicionais para as modernas,
a experiência do colonialismo e as teorias e preconceitos raciais da
Europa que fornecem a linguagem e o texto da experiência literária; o
crescimento da alfabetização e o da economia moderna. E, como eu
disse, é pelo fato de estas serem mudanças largamente impostas aos
povos africanos pelo imperialismo europeu, é precisamente por elas
serem exógenas, que Soyinka, a meu ver, rebela-se contra encará-las
como os principais determinantes da situação do escritor africano.
Uma vez que ele está comprometido com uma explicação endógena
dessa situação, que resta senão a unidade na metafísica? Chaka e Osei
Tutu — fundadores, respectivamente, das nações zulu e achanti — não
cabem numa mesma narrativa; falavam línguas diferentes, e suas
concepções de parentesco (para nos inclinarmos ante um dos ídolos do
etnógrafo) eram centralmente patrilineares e matrilineares,
respectivamente. Soyinka poderia ter feito uma exposição do que eles
tinham de racial em comum, mas, como argumentei e como Soyinka
sabe perfeitamente, já ultrapassamos a época em que o racismo negro era
possível como uma reação inteligente ao racismo branco. De modo que,
como a rmei, restam-nos as concepções metafísicas comuns.
Embora eu creia que o atrativo do mito da solidariedade metafísica da
África se deve basicamente ao desejo de Soyinka de uma explicação
endógena, suspeito que existe outra razão pela qual ele é tentado por
essa história. Soyinka, esse homem de letras européias, está familiarizado
com a literatura da autenticidade e com a explicação dela como uma
exploração da metafísica do eu individual; e se sente tentado, por uma
dessas oposições retóricas que atraem os pensadores abstratos, a
contrapor a esse tema uma exploração africana da metafísica da
comunidade.
Mas, ao aceitar essa explicação, Soyinka enreda-se mais uma vez no
mito europeu da África. Por não conseguir ver nem o cristianismo nem
o islamismo como endógenos (mesmo em suas formas mais sincréticas),
resta-lhe re etir sobre as religiões tradicionais africanas: e estas sempre
pareceram, do ponto de vista da Europa, ser praticamente a mesma
coisa.

Há alguns os por atar. Iniciei este capítulo a rmando que o projeto


central da cultura literária a que Soyinka pertence poderia ser
caracterizado como a busca de uma cultura — uma busca da relação do
autor com o mundo social. Em seguida, sugeri que podíamos detectar,
num prefácio de Soyinka, uma tensão entre uma explicação “metafísica”
privada de sua peça Death and the King’s Horseman e as evidentes
implicações ideológicas desta. Soyinka, a rmei a seguir, rejeita qualquer
explicação obviamente “política” de sua obra literária, porque deseja
mostrar como um escritor africano pode presumir a África como dada
em seu trabalho, recorrendo à “visão de mundo (...) de seu próprio
povo”, e porque quer representar o que há de africano nos seus e em
outros textos africanos como provindo endogenamente dos recursos
metafísicos comuns da África. Por último, a rmei que não podemos
aceitar um pressuposto central dessa visão, a saber, o pressuposto de que
exista, mesmo num nível de abstração bastante elevado, uma única visão
de mundo africana.
Minha argumentação cará completa quando eu houver mostrado por
que a visão de Soyinka sobre a solidariedade metafísica africana é uma
resposta à busca de uma cultura, bem como o que, já que temos de
rejeitar essa resposta, deve substituí-la. Para esta última pergunta,
oferecerei os primórdios de uma resposta que será mais bem delineada
em capítulos posteriores.
Os escritores africanos têm em comum, como eu disse, uma situação
sóciohistórica e uma perspectiva sócio-histórica. Um dos aspectos dessa
situação é o aumento da alfabetização e da disponibilidade de impressão
da palavra escrita. Isso gera o já conhecido problema da transição de
culturas fundamentalmente orais para culturas literárias: e, assim
fazendo, dá origem à privacidade peculiar que está associada ao texto
escrito, uma privacidade ligada a um novo tipo de propriedade dos
textos, um novo tipo de autoridade autoral, um novo tipo de persona
criadora. Assim, é fácil perceber que, ao gerar a categoria do indivíduo
no novo mundo do texto público — publicado —, ao criar a
“interioridade metafísica” privada do autor, essa situação sócio-histórica
arranca o escritor de sua perspectiva sócio-histórica; o “eu” autoral luta
por desalojar o “nós” da narrativa oral.
Essa luta é tão central na situação de Soyinka quanto na dos escritores
africanos em geral. Ao mesmo tempo, e de novo tipicamente, o
indivíduo Soyinka, um nigeriano afastado do mundo tradicional e mais
certeiro de seus ancestrais iorubas, luta com o Soyinka que vivencia a
perda desse mundo, dos deuses de quem ele fala com tanto amor e
saudade na primeira palestra. Mais uma vez, o “eu” procura escapar do
persistente e envolvente “nós”.
E, com essa dialética do eu-como-todo e do eu-como-parte, chegamos
ao núcleo central: pois essa luta, sugiro, é a fonte da tensão na Nota do
Autor de Soyinka — da tensão entre sua explicação para sua peça e a
peça em si. Mas, ela também está na raiz do projeto de Myth, Literature
and the African World.
É que a busca da cultura por Soyinka levou-o, como indica o título do
livro, a se afastar da possibilidade de um “nós” ioruba ou nigeriano,
movendo-se para uma comunidade africana continental. Sua solução
para o problema do que é que individualiza a cultura africana (que ele
sente como um problema, pois se apercebe de que os africanos têm
muito em comum) consiste em que a literatura africana se une ao beber
nas fontes de uma concepção africana de comunidade, que nasce de uma
metafísica africana. A tensão de Myth, Literature and the African World
está entre essa tese e o Soyinka teatrólogo, implícita em sua exposição da
cosmologia iorubana em sua primeira palestra — o Soyinka cuja
explicação da cosmologia iorubana não é, justamente, a explicação dos
iorubas; que ora tomou a mitologia iorubana, ora, em vez dela, o mundo
de um grego morto há muito tempo, e que os desmitologizou para seus
próprios ns, fazendo deles algo novo, mais “metafísico” e, acima de
tudo, mais privado e individual.
Uma vez percebendo que a exposição de seu projeto literário está em
tensão com seu corpus literário, podemos ver por que Soyinka tem que
ocultar, como sugeri que faz, o papel ideológico que ele visualiza para o
escritor. Se os autores africanos tivessem que desempenhar seu papel
social criando uma nova literatura africana da “visão social secular”,
pautados numa metafísica africana, então a experiência colonial seria um
“mero incidente catalisador” — só poderia consistir no impulso de
desvendar essa solidariedade metafísica. Além disso, a própria obra de
Soyinka, vista como um exame do “abismo de transição”, só atende a sua
nalidade ideológica sendo um exame metafísico, e perde esse caráter ao
se reduzir a uma exposição da experiência colonial. Paradoxalmente, a
nalidade política dessa obra — na criação de uma cultura literária
africana, da declaração de independência da mente africana — só é
atendida ao se ocultar sua interpretação política.
Assim, não podemos aceitar o modo como Soyinka entende os
propósitos das atuais literaturas da África. Apesar disso, sua obra
incorpora, talvez mais do que qualquer outro corpus de textos africanos
modernos, o desa o de um novo estilo de individualidade na vida
intelectual africana. Ao assumir tão apaixonadamente a herança da
palavra impressa, ele entrou inevitavelmente no novo tipo de eu
literário que vem com o prelo, um eu que certamente é produto das
mudanças na vida social e na tecnologia do mundo. Esse novo eu é mais
individualista e atomizado que o eu das sociedades pré-capitalistas; é
uma criatura das modernas relações econômicas. Não sei se essa nova
concepção do eu era inevitável, mas ela já não constitui algo de que nós,
na África, possamos escapar, mesmo que quiséssemos fazê-lo. E, se não
podemos escapar, vamos celebrá-la — seguramente existe um provérbio
ioruba com essa moral, não? —, e celebrá-la na obra de Wole Soyinka,
que proporcionou em suas peças uma experiência literária cuja
individualidade é uma fonte interminável de discernimento e prazer.21

38 Em tradução livre: “A morte veio chamar. / Quem nao conhece o áspero som dos juncos? / Um
sussurro crepuscular nas folhas, antes / Que caia a grande carruagem.” (N. da T.)

39 Também chamado James Ngugi, escritor queniano (Limuru, 1938), autor de romances
engajados, ensaios e peças, exilado em Londres desde 1982. (N. da T.)

40 O termo usado aqui é houseboy, designação bastante pejorativa dos colonizadores ingleses para
se referir aos empregados domésticos (masculinos) das colônias. (N. da T.)

41 Ananse é uma personagem (uma aranha) sobre a qual existe um imenso ciclo de histórias na
África Ocidental, no Caribe e, em muito menor grau, na América do Norte. Esu-Elegba
corresponde, no Brasil, a Exu-Elegbá. (N. da T.)
5
A etnofilosofia e seus críticos

Por “filosofia africana” refiro-me a um conjunto de textos, especificamente


ao conjunto de textos escritos pelos próprios africanos e descritos como
filosóficos por seus próprios autores. 1

Paulin Hountondji

M inha epígrafe é uma de nição do lósofo beninense Paulin


Hountondji, uma de nição que se esquiva deliberadamente do
que tem sido um dos grandes dilemas do debate losó co da
África negra pós-colonial. Assim como procuramos decifrar se os
lósofos que porventura compartilham um continente devem, por essa
razão, ser classi cados em conjunto, também nos indagamos que tipos de
atividade intelectual deveriam ser chamados de “ loso a”. E, apesar de
Hountondji, sabemos que não é qualquer resposta que servirá para essa
pergunta. Se Sir Isaac Newton tivesse vivido na África, os Principia
seriam, por esse critério, uma obra da loso a africana, pois Newton
chamou a esse primeiro grande texto da moderna física teórica uma obra
de loso a natural. E os milhares de livros anualmente publicados nos
Estados Unidos sobre astrologia ou sobre um pretenso misticismo hindu
gurariam, segundo um critério análogo, como loso a norteamericana.
Contudo, há algo a dizer em favor da estratégia de Hountondji.
Enquanto os lósofos da África buscam um papel para si — ou se
indagam, quem sabe, se realmente têm algum papel —, talvez convenha
não con ar demais em de nições restritivas. A nal, o pior que se pode
dizer contra alguém que chame um livro de cozinha de contribuição
para a loso a da culinária é, talvez, que “ loso a” é uma palavra um
bocado pomposa.
É bom termos um cuidado especial ao empregar de nições extraídas
das tradições losó cas européias em que foram formados os lósofos
universitários africanos contemporâneos, porque até nessas tradições há
uma gama de opiniões notoriamente ampla a respeito das tarefas e dos
temas da loso a. E as discordâncias dentro do mundo acadêmico
ocidental sobre o caráter da loso a reduzem-se à insigni cância,
quando procuramos dar uma explicação unitária do que torna Confúcio
e Platão lósofos, ou do que faz com que alguns textos indianos,
chineses e latinos sejam todos filosóficos.
Portanto, embora possamos tentar abordar a questão da loso a
africana pelo método das de nições, perguntando o que signi ca
“ loso a” e o que signi ca ser africano, é improvável que seja produtivo
resolver essa questão mediante uma ordem de nitória. Talvez fosse
melhor não chamar um livro de cozinha de “ loso a da culinária”, mas,
mesmo assim, ele pode ser um bom livro de cozinha. Sugiro que
comecemos, em vez disso, examinando a gama de coisas que passaram a
ser denominadas de “ loso a africana” e perguntando qual dessas
atividades vale a pena ou é interessante — e sob quais aspectos.
Uma vez que não quero prejulgar a questão do que deve gurar como
loso a africana, não presumirei, como faz Hountondji, que ela tem que
ser escrita. Como veremos no capítulo seguinte, há algo a dizer em prol
— e muita coisa a dizer contra — uma visão da loso a africana escrita
como algo que dá continuidade às formas pré-letradas anteriores de
atividade intelectual. No entanto, minha preocupação primordial nestes
ensaios é com a situação dos intelectuais africanos;2 e considerando,
como já a rmei, que a formação dos lósofos universitários africanos
tem-se dado nas tradições do Ocidente, aqui como em outros pontos da
caracterização da vida intelectual africana podemos começar relatando a
situação do intelectual africano contemporâneo em relação às culturas
de seus ex-colonizadores. Desde que mantenhamos a mente aberta, isso
não precisará cegar-nos para o modo como a loso a da África brota de
suas próprias tradições locais.

É possível que a loso a acadêmica ocidental tenha tido di culdade de


chegar a um acordo quanto a sua própria de nição, mas qualquer
de nição deve ser responsável perante alguns fatos relativos à aplicação
do conceito. Na tradição euro-americana, por exemplo, nada pode
gurar como loso a se não discutir problemas que tenham uma
semelhança familiar com os problemas que têm interessado
centralmente àqueles a quem chamamos “ lósofos”; tampouco deverá
contar como loso a nada que aborde esses problemas de maneiras que
não tenham qualquer semelhança familiar com os métodos losó cos
tradicionais. A noção wittgensteiniana de semelhança familiar é
especialmente apropriada aqui, porque uma tradição, como uma família,
é algo que se modi ca de uma geração para outra. Assim como não há
meio de me verem como especialmente parecido com meus ancestrais
remotos, muito embora haja similaridades substanciais entre os
membros das sucessivas gerações, é provável que só consigamos ver as
continuidades entre Platão e Frege se rastrearmos os passos que há entre
eles. O discurso losó co contemporâneo do Ocidente, como qualquer
discurso, é produto de uma história; é essa história que explica por que
seus muitos estilos e problemas mantêm-se unidos.
Seria difícil fornecer uma lista exaustiva dos problemas que passaram a
se situar no cerne da tradição ocidental. Mas todos eles, penso eu,
podem ser vistos como decorrentes de uma história de re exão
sistemática sobre crenças pré-re exivas muito difundidas acerca da
natureza da humanidade, de nossos objetivos e de nosso conhecimento
sobre o cosmo e sobre nosso lugar nele. Quando essas crenças não são
submetidas a uma análise crítica e sistemática, falamos em “ loso a
popular”. Mas, na loso a acadêmica ocidental — em contraste, por
exemplo, com a antropologia ou a história das idéias —, o que se exige
não é apenas um interesse pelas questões que são tema da loso a
popular, porém um discurso crítico em que a razão e a argumentação
desempenhem um papel central.
Entretanto, não podemos caracterizar a loso a simplesmente como o
discurso que aplica a nossas crenças populares as técnicas da lógica e da
razão. Não apenas porque outros — na física, na sociologia e na teoria
literária — também formulam esses argumentos, mas porque a loso a
acadêmica passou a ser de nida por um cânone de temas, assim como
por seu método argumentativo. Se entendermos por “ loso a” a tradição
a que pertencem Platão e Aristóteles, Descartes e Hume, Kant e Hegel, é
fatal que pelo menos os seguintes conceitos sejam considerados centrais
nesse cânone: beleza, bem, causação, conhecimento, Deus, deuses,
direito, entendimento, erro, ilusão, justiça, mal, mente, pessoa, razão,
realidade, sentido, verdade e vida.
Ora, sem dúvida, nem todas as culturas têm exatamente esses
conceitos. Mas é provável que todas tenham conceitos que mostrem uma
semelhança familiar com eles. Nenhum ser humano que não dispusesse
de um conceito semelhante a nosso conceito de causação seria capaz de
pensar na ação, nem tampouco, sem ele, de pensar em por que as coisas
acontecem no mundo. Ninguém poderia ter normas sociais sem
conceitos ao menos um pouco parecidos com bem, mal, certo e errado; e
di cilmente poderia existir uma sociedade sem normas — não apenas
porque o conceito de sociedade está ligado à idéia de normas comuns,
mas também porque, sem normas comuns, é difícil conceber qualquer
ação coletiva. Similarmente, toda cultura tem opiniões sobre o que é ter
uma mente (ou coisa parecida) e sobre sua relação com o corpo; e quase
todas as culturas dispõem de algum conceito que desempenhe alguns
dos papéis dos conceitos de divindade. Mesmo que houvesse uma cultura
humana em que não se zesse presente nada parecido com qualquer
desses conceitos, é difícil dar sentido à idéia de uma cultura que não
tivesse nenhum conceito organizador crucial.
Portanto, há uma loso a popular em todas as culturas: e implícitos
nessa loso a popular estão todos (ou muitos d)os conceitos que os
lósofos acadêmicos tornaram centrais para seu estudo no Ocidente.
Naturalmente, é possível não haver em todas as sociedades pessoas que
realizem uma investigação conceitual crítica sistemática, mas, pelo
menos, em toda cultura há trabalho a ser feito por um lósofo, se
aparecer algum.
Há muitas razões para supor que essa tarefa seja difícil; há também
muitas para duvidar de que todas as sociedades venham, sem intervenção
exógena, a adotar esse projeto. Mas, no mundo real, houve uma
intervenção exógena, e ela deixou pessoas de formação losó ca
ocidental na África. Por serem africanas, enraizadas ao menos até certo
ponto em suas culturas tradicionais, e por serem, ao mesmo tempo,
intelectuais formados nas tradições do Ocidente, essas pessoas enfrentam
uma situação especial. Podem optar por tomar emprestados os
instrumentos da loso a ocidental em seu trabalho. Mas, se quiserem
realizar essas investigações conceituais nos mundos de pensamento de
suas próprias tradições, estarão fadadas a fazê-lo com uma consciência
altamente desenvolvida dos questionamentos das idéias ocidentais.

É também fatal que elas tenham que fazer escolhas dentro das tradições
ocidentais. Há uma considerável diferença de estilos de loso a na
França e na Alemanha, por um lado, e no mundo anglófono, por outro;
na Grã-Bretanha e na América do Norte, há também uma ampla
divergência entre a prática — e a teoria meta losó ca — da tradição
anglo-americana dominante e a teoria e prática daqueles cujo trabalho é
concebido como mais próximo das tradições que ainda são fortes na
França e na Alemanha.3 Que o trabalho destes últimos lósofos seja
freqüentemente designado por loso a “continental” é um re exo das
origens essencialmente inglesas dessa dicotomização.
Quando, nas primeiras décadas deste século, Frege começou a
substituir Hegel como o espírito tutelar da loso a inglesa, o espírito
dos modos de pensar historicistas continentais foi gradualmente
eliminado das faculdades de loso a das universidades inglesas (embora,
curiosamente, não das escocesas). Na Inglaterra, o corpo mais in uente
de prática losó ca durante meados do século derivou da transposição,
através de guras como Ludwig Wittgenstein e Alfred Ayer, do
positivismo lógico do Círculo de Viena para Oxford e Cambridge, no
contexto fornecido pela crítica do idealismo iniciada por G. E. Moore e
Bertrand Russell. A tradição daí resultante tornou-se conhecida como
“ loso a analítica”.
Os ventos da Áustria sopraram com menos força nos Estados Unidos,
onde o pragmatismo proporcionava uma alternativa local às in uências
do Círculo de Viena. Mas W. V. O. Quine, uma das mais poderosas
in uências na formação da moderna linguagem da loso a norte-
americana, fora in uenciado, como Alfred Ayer, por seus contatos com a
escola vienense, muito embora admitisse que o pragmatismo fosse outra
de suas grandes in uências. Enquanto Wittgenstein levou o evangelho
para Cambridge, a in uência de Moritz Schlick, gura central na
organização do Círculo, e sobretudo de Rudolf Carnap — sob certo
aspecto, o maior lósofo sistemático do século — também deixou sua
marca na loso a acadêmica norte-americana.
Para os muitos que resistiram a essas correntes de pensamento nos
Estados Unidos, a gura fundadora de sua tradição continuou a ser, não
Frege, mas Hegel, e os mais in uentes dentre os modernos não foram
Wittgenstein e Carnap, mas Husserl e Heidegger. Os que seguiam essa
tradição sentiam-se à vontade com Sartre, que introduzira na loso a
francesa a in uência dos fenomenólogos alemães e, segundo a rmava,
dera-lhe uma boa utilização existencialista. Eles continuavam a ler
Schopenhauer. Redescobriram Nietzsche — descontaminado de suas
associações nazistas — após a Segunda Guerra Mundial. Entrementes, os
lósofos analíticos liam Russell e Moore e o Wittgenstein dos primeiros
textos — e, mais tarde, Carnap e o Wittgenstein da maturidade, bem
como Quine — e gastavam uma parte cada vez maior de seu tempo com
algo chamado “ loso a da linguagem”.
Muito mais marcantes para o observador ocasional do que as
diferenças de doutrina desses grupos — pois nem a loso a
“continental” nem a “analítica” são fáceis de caracterizar pelo credo —
são suas diferenças de método e expressão. Elas compartilham, é claro,
de um vocabulário de palavras-chave que pertencem à linguagem da
tradição losó ca ocidental — “verdade” e “sentido”, por exemplo, são
palavras familiares a ambas —, mas é freqüente utilizarem essas palavras
comuns de modos radicalmente diferentes; e termos como “ser” (para os
analíticos) e “referência” (para os continentais), que eram importantes
para a outra tradição, tornaram-se praticamente um tabu por algum
tempo.
Para um observador externo, esse excesso de minudências talvez
pareça simplesmente absurdo: a nal, o que está em jogo é apenas o
direito ao rótulo de “ loso a”. Por que haveria de ser importante para
alguém, analítico ou continental, que uma outra pessoa, continental ou
analítica, se incomodasse em chamar por esse rótulo o que ele estava
fazendo? Mas, a resposta é simples: “ loso a” é o rótulo de maior status
no humanismo ocidental. Pretender-se com direito à loso a é
reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental
na tradição do Ocidente; e o poder duradouro dessa pretensão re ete-se
na resposta mais comum do estrangeiro inquisitivo, seja ele francês,
britânico ou norte-americano, que me pergunta o que eu faço:
“Filoso a?” Pausa. “Você deve ser muito inteligente.” Admitir perante
uma platéia ocidental que os lósofos, como todos os intelectuais,
podem ser obtusos ou brilhantes, e que as perguntas que formulamos e
respondemos são difíceis, porém não mais difíceis do que as da física ou
da teoria literária, admitir isso — nosso mais recôndito segredo — seria
jogar fora uns dois milênios de capital cultural.

Podemos caracterizar a casa dividida da loso a acadêmica anglófona


não apenas por sua linguagem dupla, mas também por uma dupla auto-
imagem. Os lósofos analíticos pensam em si como estando do lado da
lógica, da ciência e do método, contra a superstição — do lado de uma
busca modesta e criteriosa da verdade, em oposição à linguagem
bombástica. Para eles, muitas vezes, a loso a é um assunto técnico, e a
apreensão dessa tecnicidade é uma condição da competência
pro ssional. Os continentais crêem que as questões com que lidam são
difíceis e importantes e que sua tradição dá continuidade ao que há de
melhor e mais profundo na tradição ocidental do saber humanista. Eles
tendem a ver a loso a como uma extensão, não das ciências, mas da
literatura e das artes. Quando se queixam dos analíticos, queixam-se de
que o trabalho destes é super cial, frio, estéril e inconseqüente; de que
eles se esquivam da di culdade das questões losó cas centrais,
reduzindo-as a debates triviais e amiúde semânticos; e de que lhes falta
um senso do desenvolvimento histórico da vida da razão. Em troca, os
analíticos tendem a objetar que os continentais tomam o obscurantismo
por profundidade.
Essas auto-imagens (e imagens do outro) são, suponho eu,
estereótipos. Poucos, de cada um dos “lados”, expressam-se com toda essa
clareza e ênfase; a maioria dos lósofos analíticos concorda em que há
um certo interesse, digamos, na psicologia moral de Sartre, e a maioria
dos continentais concorda em que a loso a analítica da lógica e da
linguagem, embora não chegue perto de ter a importância que nela se
supõe, muitas vezes é obra de mentes sutis e talentosas. Embora essas
imagens sejam estereótipos, elas não constituem, a meu ver, caricaturas.
Bernard Williams, um eminente lósofo analítico britânico, escreveu
recentemente que a loso a analítica “não tem nenhum tema
singularizador”.
O que distingue a loso a analítica e outras formas de loso a contemporânea (mas não de
grande parte da loso a de outras épocas) é um certo modo de proceder, que implica
argumentação, distinções e, até onde ela se lembra de tentar consegui-la e logra êxito, uma fala
moderadamente simples. Como alternativa à fala simples, ela faz uma clara distinção entre a
obscuridade e a tecnicidade. Sempre rejeita a primeira, mas julga a segunda, por vezes, uma
necessidade. Esse aspecto enfurece singularmente alguns de seus inimigos. Querendo que a
loso a seja simultaneamente profunda e acessível, eles se ressentem da tecnicidade e se
consolam com a obscuridade.4

“Um certo modo de proceder”: não há escolha de formulação capaz de


exibir mais vividamente o tom relaxado de uma grande parte do losofar
analítico, o sentimento de que iremos mais longe, mais depressa, se não
zermos muito estardalhaço. É fatal que os “inimigos” se enfureçam com
alguém que fala num “certo modo de proceder”, quando o que está em
pauta é a metodologia losó ca; até porque esse tom polêmico tenta
a rmar como natural e descomplicado o que freqüentemente é, por
outro ponto de vista, uma pretensão losó ca profundamente
provocadora. Para qualquer um que tenha observado o panorama
losó co anglo-americano, mesmo de longe, não há de ser difícil
imaginar quem são esses “inimigos”.
Nos Estados Unidos, esse discurso de incompreensão e desapreço
mútuos tem-se tornado mais complicado nos últimos anos. É que muitos
lósofos mais jovens não vêem grande importância nos rótulos. Há uma
tendência cada vez maior a falar — como faz Williams aqui — em
diferenças de linguagem, e esperar por algum tipo de campo comum.
Mas, no mundo acadêmico, como na política, a verdadeira détente
requer muito mais do que a expressão costumeira de um desejo de
reaproximação.
Os continentais dos Estados Unidos, embora se pautem nos cânones da
loso a acadêmica da França e da Alemanha, divergiram de seus primos
literalmente europeus num aspecto fundamental: é que a loso a
política e, em particular, as várias interpretações e reações ao marxismo
nunca tiveram, na tradição norte-americana, o papel central que
exerceram na Europa. Nesta, guras como Althusser e Sartre, na França,
ou Adorno e Habermas, na Alemanha, elaboraram uma re exão
losó ca sobre a política que leva o marxismo a sério, por mais que ele
seja criticado.
Não apenas as recentes aproximações tornaram o trabalho dos
lósofos europeus cada vez mais conhecido dos lósofos anglo-
americanos, como há também na Europa um interesse crescente pelo
trabalho dos lósofos britânicos, norte-americanos e australianos que
constituem o cânone da loso a analítica. Não obstante, quanto aos
primeiros 25 anos do período do após-guerra, devemos reconhecer duas
tradições losó cas poderosas e vigorosamente distintas no Ocidente. E
foi nessas décadas que os departamentos de loso a da África anglófona
e francófona foram criados.

Os lósofos dos departamentos de loso a africanos herdaram,


portanto, as duas tradições ocidentais em guerra; e uma coisa que se
pode dizer com certeza é que, se aceitarmos a proposta de Paulin
Hountondji, teremos de considerar como loso a africana, em
decorrência disso, muitos textos cuja ligação com a África não é mais (e
sem dúvida caberia dizer, nem menos) profunda do que a nacionalidade
de seus autores. Essa é uma conseqüência que Hountondji aceita. Sua
de nição, com a qual comecei, pretende restabelecer “a verdade simples
e óbvia de que a África é, acima de tudo, um continente, e de que o
conceito de África é um conceito empírico e geográ co, e não
metafísico”.5 Mas, as questões importantes para os estudiosos africanos
sobre seu envolvimento com a loso a acadêmica ocidental não podem
ser resolvidas por dados geográ cos. Pois eles querem perguntar,
primeiramente, se há algo característico em sua história e sua cultura,
suas línguas e suas tradições, que eles possam levar para a tradição
ocidental; e, em segundo, de que servem, na África, o ensino e a
produção de uma loso a de estilo ocidental.
Ora, muitos lósofos ocidentais contemporâneos tratariam a questão
de para que serve a loso a com o desdém especial que é reservado ao
prosaísmo. É claro que eles têm suas razões para fazer loso a, e a
maioria acredita que o fato de a loso a ser estudada em suas
universidades é um bem positivo para suas culturas. Contudo, eles
tendem a encarar como uma questão complexa o que é o bem positivo; e,
já que a prática da loso a não está seriamente ameaçada, por mais
apertados que estejam os cordões da bolsa da loso a acadêmica, eles
não perdem muito tempo para responder. Admitindo-se que a loso a
tem alguma serventia, a tarefa não é justi cá-la, mas produzi-la.
Na África, a questão da utilidade da loso a não é tão facilmente
posta de lado. As universidades competem com outras áreas da vida
nacional pelos escassos recursos do desenvolvimento. Para os políticos e
para o povo em geral, é fácil perceber por que vale a pena ter médicos,
engenheiros, economistas e até advogados; também é fácil acreditar que
as ciências teóricas, desde a física até a jurisprudência, estão
inextricavelmente ligadas às aplicadas. Mas as humanidades, e sobretudo
a loso a, não são tão fáceis de valorizar. É que, na África como em
outros lugares, a loso a, tal como praticada na universidade, está
singularmente distante das idéias dos indivíduos comuns sobre a verdade
e a razão, os deuses e o bem, a matéria e a mente.
O valor de qualquer loso a formal é especialmente difícil de
perceber fora das regiões islamizadas, porque não existe nenhuma
tradição formal local. Os muçulmanos têm uma longa história de textos
losó cos, grande parte deles escrita na África, de modo que o estudo
da loso a pode ser visto como tradicional (logo, sagrado) e endógeno
(logo, nacionalista). Entretanto, em grande parte da África negra não
existe uma tradição islâmica, ou, a rigor, nenhuma tradição escrita. O
sentido em que existe uma tradição losó ca é, como sugeri antes, o fato
de haver uma loso a popular oral, cuja autoridade reside basicamente
em sua pretensa antiguidade, e não na qualidade do raciocínio — ou das
provas — que a sustentam, e que costumam poder tratar a atividade
crítica como desinteressada. Dado o ceticismo pós-colonial nada
absurdo diante de tudo o que é estrangeiro, é natural que haja uma
literatura crescente, escrita por africanos formados na loso a
ocidental, que pergunta para que serve a loso a africana.
Isso é não apenas natural, como decerto também salutar, mesmo que
signi que ocupar muito tempo, nas palavras do lósofo ganês Kwasi
Wiredu, “falando sobre a loso a africana, em oposição a efetivamente
praticá-la”.6
Na concepção de Wiredu, que brota da tradição anglo-americana, a
loso a africana pode tomar emprestados e aprimorar os métodos da
loso a ocidental e aplicá-los à análise dos problemas conceituais da
vida africana. Para tanto, a seu ver, primeiro é preciso desenvolver uma
compreensão re exiva generosa dos modos de pensamento tradicionais;
e, em grande parte, como discutirei mais adiante, nossos modos de
pensar continuam muito mais próximos das idéias tradicionais do que
muitos se dispõem a admitir. Uma vez que as idéias especí cas das
diferentes culturas africanas variam, cada lósofo tem que falar de
dentro de alguma tradição especí ca: o projeto só é africano porque o
lósofo é, digamos, akan, e os akans são geogra camente africanos.
Outros, porém, procuraram tornar africana a sua loso a de um
modo diferente. Perguntaram: “Existe uma loso a africana?”, e
responderam na a rmativa. Entetanto, já que “ loso a” é uma palavra
tão dúbia, há várias maneiras de interpretar essa pergunta.
Se ela signi car “Existe uma loso a popular na África?”, a resposta é:
“A África tem povos e culturas vivos e, portanto, necessariamente,
loso as populares.” Mas, se o “africana” de “ loso a africana” tiver a
intenção de distinguir uma espécie local, não parece haver nenhuma
razão tremendamente boa para supor que a resposta seja sim. Por que
haveriam os zulus, os azandes, os haussás e os achantis de ter os mesmos
conceitos ou as mesmas crenças sobre os assuntos a respeito dos quais os
conceitos são usados para pensar e discutir? A rigor, eles parecem não
tê-los. Se houver uma expectativa de semelhanças, há de ser com base nas
similaridades entre as economias e as estruturas sociais das sociedades
tradicionais, ou como resultado dos intercâmbios culturais: mas o
intercâmbio cultural em todo o continente, no plano das idéias, tem
sido limitado pela ausência de textos escritos, e é freqüente se
exagerarem as semelhanças socioeconômicas. Muitas sociedades
africanas têm tanto em comum com as sociedades tradicionais não
africanas quanto entre si.
A pergunta, entretanto, pode ter a intenção de concernir à loso a no
sentido dos cânones acadêmicos ocidentais: o sentido em que Sócrates
ou Tales têm a reputação de ser, um ou outro, o primeiro lósofo
ocidental. Nesse sentido, a pergunta é mais difícil. Certamente, os
anciãos de muitas sociedades africanas discutem questões relativas ao
certo e ao errado, à vida e à morte, à pessoa e à imortalidade. Discutem
até mesmo se um argumento é bom ou se uma consideração é uma
consideração de peso. E isso constitui, pelo menos, os primórdios da
loso a como atividade re exiva. Muitas vezes, porém, os problemas
difíceis são postos de lado através do recurso ao “que os ancestrais
disseram”, de um modo que faz lembrar o argumento da autoridade na
Idade Média européia. E, tal como apresentavam uma argumentação
precária os lósofos da tradição escolástica que a rmavam que algo
devia ser como era porque “o Filósofo” — Aristóteles — assim tinha dito,
parece-me que os anciãos que argumentam dessa maneira estão
simplesmente fazendo argumentações precárias. Entretanto, a idéia de
um discurso livre das restrições da autoridade da tradição é uma
concepção extraordinariamente moderna na Europa — e não deve ser
motivo de vergonha nem censura o fato de, com toda a probabilidade,
terem sido muito poucos os anciãos que enfrentaram a questão de saber
se os ancestrais teriam estado errados. Os lósofos críticos criativos
foram poucos na história do Ocidente, e sua ousadia foi amiúde
facilitada por seu acesso a uma tradição crítica escrita. As tradições orais
têm o hábito de transmitir apenas o consenso, a visão aceita: muitas
vezes, aqueles que se posicionam numa rebeldia intelectual (e os
antropólogos e missionários depararam com muitos deles) têm que
recomeçar tudo a cada nova geração.
Já a rmei que não há razão para supor que as loso as populares da
África sejam uniformes: que explicação podemos fornecer, portanto,
para a crença em que existe um papel para algo eminentemente africano
a ser feito na loso a? Parte da explicação deve residir, como vimos, no
racialismo: que reação seria mais natural, ante uma cultura européia que
a rma — com Hume e Hegel — que o intelecto é propriedade dos
homens de pele branca, do que insistir em que há algo importante na
esfera do intelecto pertencente às pessoas negras? Se existe uma loso a
branca, por que não também uma loso a negra? As origens desse
argumento são inteligíveis e, de certo modo, ele é mais sadio do que a
visão dos apóstolos da négntude, segundo a qual os negros devem deixar
o intelecto por conta dos brancos e explorar o campo dos sentimentos,
que é sua propriedade especial. Ao contrário de Césaire, não precisamos
dizer: “Viva os que nunca inventaram nada!”7
Mas, a loso a negra tem que ser rejeitada, pois defendê-la depende
dos pressupostos essencialmente racistas da loso a branca da qual ela é
a antítese. O etnocentrismo — que é uma atitude pouco imaginativa
perante a própria cultura — corre o risco de incorrer no racismo, que é
uma atitude absurda perante a cor da pele de outra pessoa.
Assim, para que a tese favorável a uma loso a africana não seja
racista, há que se consubstanciar alguma alegação no sentido de que
existem problemas importantes de moral, epistemologia ou ontologia
que são comuns na situação dos que vivem no continente africano: e a
fonte desse complexo comum de problemas, não podendo ser racial, há
de residir no meio ambiente africano ou na história africana.
Ora, você poderia dizer que acabo de presumir que a tese favorável a
uma loso a africana deve ser o argumento de que existem problemas
losó cos suscitados, crucial ou exclusivamente, na situação africana, e
que presumi isso a despeito de estar claro que as diferenças de estilo na
loso a, como a rmei, muitas vezes são menos diferenças de substância
do que de método. Certamente, porém, essas suposições são muito
razoáveis. Pois, que razões poderia haver, na situação africana, para
supor que devamos lidar com a loso a de um modo particular? O
máximo que se pode dizer é que a natureza de nossos problemas
determina os métodos que lhes são apropriados: e talvez os problemas
que nos dizem respeito sejam tão diferentes dos problemas losó cos
europeus que tenhamos que desenvolver uma metodologia radicalmente
diferente. No entanto, se a loso a africana não compartilha nem os
problemas nem os métodos da loso a ocidental, é fatal que nos
indaguemos de que adianta chamar essa atividade de “ loso a”. Sem
dúvida, não há mais razão para supor que toda atividade intelectual do
Ocidente deva ter um gêmeo africano do que para supor que devamos
ter clavecinos africanos ou sonetos africanos.

Mas, evidentemente, deixei de considerar uma coisa. A “ loso a”, como


a rmei antes, é o rótulo de status mais elevado no humanismo ocidental.
A ânsia de encontrar algo na África que “ que à altura” desse rótulo é,
em parte, uma questão de querer descobrir na África algo que mereça
essa dignidade, que assegure que o respeito que nos foi ensinado (em
nossas escolas e faculdades ocidentais ou ocidentalizadas) se deve a
Platão e Aristóteles, Kant e Hegel. E parte de uma resposta adequada a
esse impulso consiste em desmisti car esse respeito canônico, coisa que
apenas requer, com certeza, que observemos os fundamentos absurdos
em que ele se baseia.
Nossos manuais de história da cultura ocidental podem insistir em
que Platão e Aristóteles encontram-se na raiz de seus atos centrais de
discernimento; mas, se nos perguntarmos o que há de mais valioso na
cultura euro-americana, certamente quereremos mencionar, por
exemplo, a democracia, à qual Platão e Aristóteles — como, aliás, Kant e
Hegel — se opunham; a ciência aplicada e a tecnologia, para as quais
Platão não fez nenhuma contribuição e Aristóteles forneceu um longo
erro de partida, cuja derrubada no Renascimento nalmente possibilitou
a revolução cientí ca; e uma cultura literária que se refere a Platão e
Aristóteles, quase exclusivamente, nos momentos de religiosidade cristã
(que ambos teriam repudiado) ou de esnobismo ou embromação. Não se
trata de que esses sejam autores que não devamos ler — lê-los
proporcionou-me, como a muitos outros, alguns do maiores prazeres de
minha vida de leitor —, mas de que não devemos lê-los como
depositários da verdade esquecida ou como fontes de um valor
intemporal. Platão e Aristóteles são interessantes, muitas vezes, por
serem iníquos e errados; por nos darem acesso a mundos de pensamento
que nos são alheios, ampliando nossa concepção da extensão do
pensamento humano; e por podermos rastrear, ao levantar a história da
re exão sobre sua obra, uma única e fascinante corrente na história da
vida mental de nossa espécie.
Ainda que o cânone losó co fosse a fonte de todo o valor da cultura
ocidental — e mesmo que não houvesse nada que se equiparasse a ele na
África —, o que decorreria disso, afora um momento de pesar por só
podermos partilhar do orgulho por ele como seres humanos, e não
como africanos? Não, decerto, que assim cássemos privados de alguns
direitos contra o Ocidente, não é mesmo? Não há razão para se aceitar a
espantosa hipérbole de que aquilo que tem mais valor para os ocidentais
— ou para qualquer outra pessoa — em sua cultura, aquilo que há de
justi cá-la no Juízo Final, seja encontrável em algumas dezenas de obras
losó cas, escritas ao longo de uns dois milênios por um pequeno grupo
de homens europeus ocidentais. Não é como membros da comunidade
nacional (ou racial ou intelectual) de que provieram esses autores que os
europeus merecem uma igualdade de respeito, ou que eles reivindicam
seus direitos nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
da Organização das Nações Unidas; e não pertencer a essa comunidade,
por conseguinte, não constitui empecilho para que o restante de nós
reivindique esses direitos.
Se quisermos encontrar um lugar para a loso a na África, tratemos
de começar por um senso de equilíbrio quanto a sua importância; sou
totalmente a favor de conservar meu emprego, mas não ao preço de uma
mentira ignóbil.
A que projetos, portanto, devem dar seguimento os lósofos
interessados na saúde intelectual do continente? Richard Wright
forneceu um levantamento preciso das respostas atualmente oferecidas a
essa pergunta:
(1) o pensamento do povo africano8 é intrinsecamente valioso e deve ser estudado por essa
razão, senão por qualquer outra; (2) é importante para a história das idéias que descubramos e
compreendamos a relação entre o pensamento africano (ou sua in uência) e o pensamento do
mundo ocidental. Pois, se a civilização ocidental teve sua origem no continente africano (...), o
padrão correto de desenvolvimento intelectual (...) só se tornará claro quando começarmos a
entender a base e a direção desse desenvolvimento (...); (3) é importante, na compreensão das
questões práticas, delinearmos claramente sua motivação losó ca subjacente.9

A primeira dessas opções leva rapidamente ao que Paulin Hountondji


chama de “etno loso a”, a tentativa de explorar e sistematizar o mundo
conceitual das culturas tradicionais da África. Na verdade, ela equivale a
adotar a abordagem do folclorista: compilar a história natural do
pensamento popular tradicional sobre as questões centrais da vida
humana.10
O texto fundador da etno loso a é La Philosophie bantoue [A loso a
banta], livro em que o missionário e padre belga Placide Tempels
procurou caracterizar os traços essenciais do pensamento dos povos de
língua banto da África Central e do Sul. Tempels a rmou que o modo de
pensar banto tinha em seu centro uma idéia de Força, uma idéia que
ocupava a posição privilegiada da idéia do Ser no pensamento ocidental
(com o que, sendo católico, ele se referia ao tomismo). Pessoalmente,
não creio que essa maneira de formular sua assertiva tenha sido útil.
Mas, a in uente formulação de Tempels pode ao menos ser vista como
registrando o papel crucial desempenhado pelos conceitos de ação em
muitas culturas africanas tradicionais, em pontos em que o Ocidente
passou a ver apenas a causação e ciente — ou seja, impessoal. (Essa é
uma questão a ser retomada no próximo capítulo.)
Embora grande parte do material etno losó co seja, com efeito,
muito interessante — ao menos onde ele não é lamentavelmente inexato,
como ocorre com muita freqüência —, devemos proceder com cautela
ao discutir a maneira de utilizá-lo em termos losó cos. É que, embora a
antropologia (como as viagens) possa ampliar os horizontes mentais, o
tipo de trabalho analítico que precisa ser feito com esses conceitos não é
algo que se realize com facilidade a partir de informações de segunda
mão: e a maioria dos relatos antropológicos — ainda que não os
melhores, talvez — é um bocado ingênua do ponto de vista losó co.
Isto seria mera implicância crítica (a nal, há pouquíssima coisa escrita
sobre a África que seja loso camente séria), não fosse o fato de que a
visão de que a loso a africana é justamente a etno loso a foi
largamente presumida pelos que pensaram no que os lósofos africanos
deveriam estudar.
Ora, a descrição da loso a popular de um outro, sem nenhuma
análise séria de seus conceitos, ou sem qualquer re exão crítica sobre o
quanto entender o mundo através desses conceitos permite-nos apreciar
o que talvez não fosse apreciado em outros esquemas conceituais, é, com
certeza, mera curiosidade: suponho que pudesse levar à tolerância
intelectual, mas, com igual facilidade, poderia levar ao chauvinismo ou à
completa incompreensão: “Pois, então, eles acreditam nisso tudo; e daí?
Estão errados, não estão?”
Naturalmente, onde as crenças são as de nossas culturas, não podemos
dar essa resposta. Não se pode dizer, inteligivelmente: “Acreditamos nisso
tudo; e daí? Estamos errados, não estamos?” Mas, a verdade é que os
lósofos da África estão destinados, por sua situação de intelectuais
educados à sombra do Ocidente, a adotar uma perspectiva
essencialmente comparativa. Mesmo que estejam analisando suas
próprias tradições, é fatal que eles as vejam no contexto das culturas
européias (e amiúde islâmicas), bem como de outras culturas africanas.
Não há quem se satisfaça em celebrar sua própria tradição, sabendo que
ela faz a rmações incompatíveis com outros sistemas, sem começar a se
indagar qual dos sistemas está certo sobre quais questões. A cômoda
celebração dos recursos conceituais e teóricos de que se dispõe é uma
simples impossibilidade, pois o sujeito tem que levar sua vida através de
conceitos; e, apesar de as pessoas por toda parte constantemente
abrigarem pressupostos incoerentes, às vezes só há espaço, numa só vida
e numa só época, para um único sistema. Esse sistema não tem que ser
“ocidental” nem “tradicional”: pode extrair elementos de ambos e criar
novos elementos próprios. Mas, a vida da razão exige a integração dos
elementos: quando os elementos de diferentes sistemas ou dentro de um
mesmo sistema são incompatíveis, alguma coisa tem que ser abandonada.

A maior parte da etno loso a existente baseia-se em dois grandes


pressupostos. O primeiro, que Paulin Hountondji chamou de
“unanimismo”, é a suposição factual, que já rejeitei, de que haja um
corpo central de idéias compartilhado pelos africanos negros de um
modo geral. O segundo é a suposição avaliativa de que vale a pena
resgatar essa tradição.
Opondo-se à corrente dominante da etno loso a, há um uxo de
obras recentes que negam explicitamente um ou ambos os pressupostos
da etno loso a. African Philosophy: Myth and Reality [A loso a africana:
mito e realidade], de Hountondji — originalmente publicado em francês
em 1976, com o subtítulo “uma crítica da etno loso a” —, assim como a
obra de 1971 de Marcien Towa, Essai sur la problématique philosophique
dans lAfrique actuelle [Ensaio sobre a problemática losó ca na África
atual],11 na África francófona, e Philosophy and an African Culture [A
loso a e uma cultura africana], de Kwasi Wiredu, na África anglófona,
são os principais textos dessa segunda tradição.
Towa e Wiredu zeram um ataque sistemático ao pressuposto
avaliativo: Wiredu, argumentando convincentemente que não existe
interesse losó co num resgate e preservação das idéias tradicionais que
não seja um interesse crítico; e Towa sugerindo, na trilha de Césaire, que
a mera acumulação de tradições é um desvio da assunção de um
compromisso com as verdadeiras questões políticas com que se
confronta a África, questões estas que seus lósofos deveriam articular e
abordar. Hountondji endossa essas duas linhas de ataque, mas as
combina com uma investida sistemática contra o unanimismo que dá
esteio ao projeto da etno loso a. Voltarei ao trabalho de Hountondji e
Wiredu no nal deste capítulo. Mas, podemos examinar as perspectivas e
as ciladas da etno loso a, examinando alguns trabalhos representativos
dessa tradição.
Se há uma pergunta, acima de todas, que quase nunca é
satisfatoriamente abordada por esses trabalhos, é para que serve essa
catalogação dos mundos de pensamento. Wiredu asseverou que ela não
atende a nenhum propósito filosófico : a que outros propósitos pode
atender? Tomemos um par dos artigos que Richard Wright compilou em
African Philosophy: An Introduction [Filoso a africana: introdução]: a
discussão de John Aoyoade sobre “O tempo no pensamento ioruba”, e o
ensaio de Helaine Minkus, a propósito de Gana, sobre “A teoria causal
na loso a akan de Akwapim”, e enunciemos a pergunta, tão claramente
quanto for possível formulá-la: já que, nas palavras de Hountondji, “as
tradições africanas não são mais homogêneas que as de qualquer outro
continente”,12 por que haveria alguém, não sendo de Akwapim nem de
Ioruba, de se interessar por esses artigos?
Essa pergunta é formulada com especial premência, para mim, porque
os povos de língua twi de Akwapim compartilham a maioria dos
conceitos e da língua de Achanti, minha terra natal: nos pontos de
divergência entre as crenças de Akwapim (tal como relatadas por
Minkus) e as de Achanti, até um achanti leigo em loso a poderia
querer levantar a questão que Minkus nunca aborda: perguntar se aquilo
em que os akans de Akwapim acreditam é verdade. Minkus tem um
parágrafo em que discute o fato de que o pensamento akan — como a
ciência natural, o cristianismo, o islamismo e a teoria quântica — tem
características que “o isolam do ataque e da dúvida”;13 a rigor, ela
assinala que essa maneira de encarar o mundo tem as propriedades que
Pierre Duhem, o grande lósofo e físico francês, observou na teoria
física. Mas, que conclusões se supõe que tiremos disso? — eis a única
observação crítica que a autora faz.
Voltarei à tese de Duhem no capítulo 6, a rmando que sua
aplicabilidade à religião tradicional é um marco de algumas semelhanças
subjacentes entre os modos de pensar ocidental e tradicional — em
suma, humanos. Aqui, porém, quero apenas deixar claro que, como
argumentei, já que o lósofo africano está fadado a adotar uma
perspectiva essencialmente comparativa, Minkus, ao abraçar uma
iniciativa essencialmente descritiva, pára exatamente no ponto em que
começam as perguntas que nos são urgentes.
Os primórdios de uma análise mais comparativa são encontrados num
interessante artigo de Ben Oguah, “African and Western Philosophy: A
Comparative Study” [Filoso a ocidental e africana: um estudo
comparativo]. Oguah a rma que o material para re etir sobre certos
problemas perenes da loso a ocidental acha-se disponível no
vocabulário conceitual fanti. Assim, ele mostra convincentemente (como
eu, por exemplo, esperaria) que os conceitos necessários para discutir a
natureza da pessoa, dos juízos alheios, do livre arbítrio, da imortalidade,
do racionalismo e do empirismo — em suma, de toda a gama de questões
losó cas conhecidas no Ocidente — existem no vocabulário fanti.
Organizar esses conceitos e suas relações num sistema coerente é tarefa
do que o lósofo inglês Sir Peter Strawson — um dos mestres de Oguah
— chamou de “metafísica descritiva”.14 Mas, como observaram muitos
lósofos ao discutir a obra de Strawson, embora esse tipo de análise
conceitual criteriosa seja realmente uma preliminar útil ao projeto
losó co, ela é, por certo, apenas uma preliminar da “metafísica
revisionista” que procura aquilatar nossos conceitos e crenças mais
gerais, buscar neles um sistema, avaliá-los criticamente e, quando
necessário, propor e desenvolver novos meios de re etir sobre o mundo.
Mais do que isso, a sistematização do que existe antes do tipo de
discurso colaborativo, organizado e escrito, representado pela loso a
acadêmica, altera inevitavelmente o caráter de nossas idéias. A imagem
da loso a apresentada pela análise conceitual britânica das décadas de
1950 e 1960, como uma atividade que toma por seu material a matéria-
prima da vida conceitual cotidiana, e meramente a organiza e articula, é
falsa para a experiência do exercício da loso a. Podemos concordar
com J. L. Austin em que a estrutura dos conceitos com que as pessoas
comumente funcionam é altamente complexa e tem nuanças sutis, sem
concordar em que o processo de explicitar o implícito deixa inalterada a
textura pré-re exiva de nosso pensamento.
Um exemplo simples deixará isso claro, a meu ver. Se fôssemos relatar,
na condição de etnógrafos, a visão dos franceses e francesas de áreas
rurais, teríamos de admitir que muitos deles acreditam que algo de seu
— o espírito, poderíamos dizer — sobrevive à morte de seus corpos. Mas,
para sistematizar esse tipo de visão, teríamos que decidir se essa entidade
teria uma localização no mundo comum do espaço e do tempo. Caso
tivessem alguma opinião sobre o assunto, muitas dessas pessoas, se
indagadas, provavelmente tenderiam a responder que não. Podemos
imaginar que, para elas, a idéia da existência desincorporada é, em
essência, subjetivamente concebida como vivenciar experiências sem a
posse de um corpo. Mas a re exão losó ca, remontando de
Wittgenstein a Descartes, levou muitos de nós a concluir que essa idéia é
simplesmente incoerente. Já que qualquer um que tenha uma formação
losó ca ocidental sabe que há fundamentos para julgá-la incoerente, há
algo que não chega a ser sensato no projeto intelectual de resgatar essa
noção, sem ao menos considerar se, no nal das contas, ela faz sentido.
Sabemos que existem tradições místicas no catolicismo ou no
budismo, por exemplo, que abrigam em seu cerne a crença na
ininteligibilidade última das verdades mais profundas sobre nossa
condição humana; ambos acreditam que existem “mistérios no sentido
estrito”. John Skorupski assim resume a postura católica:
Em síntese, um “mistério” é uma doutrina cuja verdade não pode ser demonstrada, devendo
ser aceita com base na fé; um mistério “no sentido estrito” é uma doutrina tal que não apenas o
fato de ser verdadeira mas também o de ter um sentido de nido coerente devem ser aceitos
com base na fé.15

Contudo, mesmo nessas tradições, a classe desses mistérios é restrita, e


sua veracidade e inteligibilidade têm a sanção, não das provas e
argumentos, é verdade, mas, num caso, da revelação divina, e no outro,
de um certo tipo de experiência contemplativa.
Existe outro exemplo crucial da aceitação da ininteligibilidade, que é
importante para a compreensão da vida intelectual do Ocidente: a teoria
quântica. Nesta, a aceitação do indeterminismo também exige que
aceitemos a inexplicabilidade última de certos acontecimentos — que
ocorrem, simples e irredutivelmente, ao acaso — e, portanto, que
abandonemos a visão laplaciana de um mundo cujos movimentos são
completamente previsíveis e determinados por leis inteligíveis. Mas, há
uma tremenda resistência — exempli cada na dorida exclamação de
Einstein de que Deus não joga dados com o mundo — à aceitação disso;
e, quando a ininteligibilidade última de certos aspectos do mundo é
aceita, ela só o é com relutância e frente a provas muito poderosas.
Quando a ciência aceita a ininteligibilidade, ela o faz em nome da
verdade.
Também na tradição católica, não há dúvida de que a verdade dos
mistérios é concebida como a fonte de sua importância. Talvez o católico
ocidental, nos momentos religiosos, possa aceitar esse campo restrito de
doutrinas que ultrapassam nossa capacidade de interpretação; mas um
intelectual — um universitário ou universitária ao menos parcialmente
formados na tradição ocidental — não pode admitir a proliferação da
ininteligibilidade. Se o sábio budista realmente aceita, simplesmente, a
incognoscibilidade do mundo, essa é uma aceitação que a maioria dos
intelectuais africanos terá tanta di culdade de compartir quanto a
maioria dos europeus.
Dado que as questões da verdade e da inteligibilidade estão fadadas a
ser centrais em qualquer projeto intelectual concebido por alguém com
uma concepção ocidental da vida re exiva, Oguah depara, como
resultado, com o seguinte dilema. Se, de um lado, sua visão é que os
conceitos europeus e fantis são os mesmos, mas suas crenças são
diferentes, uma pergunta crucial, que ele mal chega a formular, é quem
tem razão. E se, de outro lado, os conceitos são diferentes, a questão
interessante é saber se os conceitos fantis são mais apropriados para o
mundo do que os europeus, ou, caso contrário, se ao menos são mais
apropriados para os problemas e a forma de vida dos fantis. Em qualquer
desses casos, recusar-se a ir além da mera descrição da situação
conceitual parece, na melhor das hipóteses, excêntrico, e na pior,
simplesmente irresponsável.
Esses problemas, é claro, constituem problemas nas ciências naturais e
biológicas, ou na antropologia ou no raciocínio comparativo: mas um
lósofo, com sua formação em loso a, pelo menos está em melhores
condições do que muitos cientistas sociais para ver e dizer o que são os
conceitos fantis e como eles funcionam, em particular se esse lósofo,
como Oguah, for fanti. E, de qualquer modo, na atual situação africana,
esse trabalho preliminar tem que ser feito por alguém, caso se pretenda
que a tarefa inescapável de decidir quem tem razão — e portanto, se
convém ou não abandonar os modos de pensar fantis tradicionais — seja
racionalmente executada. Não abordar essa questão é deixar o resultado
nas mãos, não da razão, mas do acaso; ou, talvez, deixar o futuro
intelectual dos povos de língua fanti, bem como o de outros africanos,
ser decidido pela realidade da superioridade tecnológica das culturas já
hegemônicas do mundo metropolitano.

A meu ver, portanto, não há como não recorrermos ao uso de uma


formação losó ca ocidental. Aquilo de que devemos acautelar-nos é
simplesmente de projetar as idéias ocidentais, junto com esses métodos
derivados do Ocidente, no arcabouço conceitual local; e Oguah não me
parece haver transposto esse problema com êxito. Quero examinar essa
questão no contexto de sua interessante discussão sobre a loso a fanti
da mente; mas, por razões que se tornarão claras, começarei falando um
pouco da psicologia losó ca do povo achanti, cuja cultura e linguagem
pertencem à mesma área de cultura akan dos fantis.
Segundo o povo achanti mais tradicional, uma pessoa compõe-se de
um corpo (nipadua) feito do sangue da mãe (a mogya), um espírito
individual, o sunsum, que é o principal portador da personalidade do
sujeito, e uma terceira entidade, a ckra. O sunsum deriva do pai na
concepção. A ckra, uma espécie de força vital, só deixa o corpo quando
do último suspiro da pessoa; por vezes, como entre os gregos e os
hebreus, é identi cada com a respiração; e muitas vezes se diz que é
enviada por Deus à pessoa no nascimento, como portadora de seu
nkrabea, ou destino. O sunsum, ao contrário da ckra, pode deixar o
corpo em vida, e o faz, por exemplo, durante o sono, sendo os sonhos
concebidos como percepções do sunsum da pessoa em suas
peregrinações noturnas. Como o sunsum é uma entidade real, sonhar
que se cometeu um delito é prova de que se o praticou; por exemplo, um
homem que sonha ter tido relações sexuais com a mulher de outro ca
sujeito às multas por adultério pagas pelos delitos praticados na
vigília.16
Como o twi achanti e o twi fanti são, em grande parte, mutuamente
inteligíveis, penso ser razoável examinar a exposição de Oguah à luz
dessas concepções achantis.17 Oguah a rma que o esquema conceitual
fanti é dualista — a rigor, cartesiano. Mas, pelo menos três ressalvas
precisam ser introduzidas acerca dessa a rmação. Primeiro, como o fanti
é uma língua akan e a palavra ckra, que Oguah traduz por “alma”, é
obviamente a mesma que expressa, em achanti, aquilo que identi quei,
não com a mente, mas com a força vital, poderíamos indagar por que
não há em Oguah nenhuma menção ao sunsum. Não há razão alguma, é
claro, pela qual os fantis devessem ter precisamente o sistema tripartite
que encontramos entre os achantis (e em outros povos akans de
Akwapim, por exemplo); e, entre os falantes modernos do achanti, há
também uma tendência a usar as palavras ckra e sunsum quase
indistintamente, embora eles insistam, se indagados, no caráter
diferenciado de seus referentes. Mas, o acesso de Oguah a esses termos,
na condição de falante nativo contemporâneo do twi fanti, faz-se pela
intermediação das muitas in uências cristãs que se instalaram nas
regiões costeiras de Gana, após quatro séculos de comércio e de missões
vindos da Europa e mais de um século de extensa presença cultural
britânica na colônia da Costa do Ouro. Assim, mesmo que não haja um
sunsum para os fantis, não estamos livres para inferir que esse seja um
fato relativo a tradições fantis não adulteradas: ele poderia ser resultado
da cristianização.
Fique claro que não quero concluir que as crenças cristãs sejam
intrinsecamente não africanas. Mas os fantis vivem no litoral da
moderna Gana e, nesse caso, permitem que nos concentremos em saber
se, em culturas que por muitos séculos trocaram mercadorias, pessoas e
idéias entre si e com a Europa (ou, na África Oriental, com o Oriente
Médio e o Extremo Oriente), faz algum sentido insistir na possibilidade
de identi car algum sistema pré-colonial de idéias como sendo a
tradição fanti. Naturalmente, para um falante fanti de hoje, as crenças de
seus ancestrais decerto não são intrinsecamente mais valiosas do que as
crenças de seus contemporâneos, e é perfeitamente razoável que Oguah
trate os conceitos da maneira como os encontra — agora — em sua
cultura. Mas, o fato de haver razão para supor que essas crenças são
produto de uma história de intercâmbios culturais, de que
provavelmente não são, como às vezes a rmam os mais velhos, o legado
inadulterado de uma tradição imemorial, efetivamente coloca em nítido
relevo a questão de saber por que se deve conceder a essas crenças em
particular um status especial. Se nossos ancestrais tinham modos
diferentes de crer, por que não os teriam nossos descendentes? Essa
re exão está fadada a tornar especialmente imperativa a exigência, à
qual tenho voltado vez após outra, de que os intelectuais africanos façam
uma interpretação crítica — o que não signi ca insensível — dos modos
de pensar de seus irmãos e irmãs menos in uenciados pelo Ocidente.
Em segundo lugar, porém — e deixando de lado a questão de saber se
esse repertoriamento dos fatos é em si o que se faz necessário —, a prova
de que os fantis são hoje dualistas, e aliás dualistas cartesianos, decerto
não é muito convincente. Para um dualista cartesiano, mente e corpo
são substâncias separadas; e essa doutrina — que admito não achar fácil
de entender — não é a que eu esperaria encontrar entre os fantis. Estes,
por exemplo, segundo o relato do próprio Oguah, sustentam que “o que
acontece com a ckra efetiva-se no honam”18 — isto é, no corpo. E Oguah
não fornece nenhuma prova de que eles considerem essa idéia
minimamente problemática. Mas, se é assim, o dualismo dos fantis deve
diferir em pelo menos alguns aspectos do de Descartes: para um
cartesiano, a relação entre a mente e o corpo é considerada
problemática.
Mais do que isso, como assinalou Kwame Gyekye — outro eminente
lósofo de língua twi —, existe um bom número de provas de que os
akans encaram o componente psíquico de uma pessoa como tendo
muitas propriedades que soam bastante físicas. Assim, mesmo que a idéia
geral dos fantis como interacionistas cartesianos não apresentasse esses
problemas, a insistência de Oguah em que a “ckra, como a alma
cartesiana, não é espacialmente identi cável”19 parece-me uma projeção
de idéias ocidentais. Pois se, como descon o, minha avó por a nidade,
que era fanti, concordaria em que a ckra deixa o corpo quando este
morre,20 não há dúvida de que pelo menos algumas vezes — ou seja, ao
deixar o corpo — ela é concebida como tendo uma localização espacial,
ainda que, na maioria dos casos, se considere estranho perguntar onde
estaria localizada, já que a resposta, quanto a uma pessoa viva, seria
óbvia — no corpo — e, quanto a uma pessoa morta, provavelmente seria
tida, quando muito, como especulativa.
Mas, em terceiro lugar, parece-me que a imputação de doutrinas
losó cas tão especí cas quanto o dualismo cartesiano a um povo
inteiro, em virtude de sua posse de uma idéia que tem algumas das
características de uma mente cartesiana, não é intrinsecamente muito
plausível. Será que os camponeses contemporâneos de Descartes eram
dualistas, por usarem palavras como “penser” [pensar]? Oguah fornece
provas sobre essas questões sob a forma de provérbios: e isso faz parte de
uma tradição já rmada na etno loso a africana.21
Pessoalmente, não creio que nenhum dos povos akans de Gana seja
dualista. Mas tampouco penso que faça sentido dizer que eles são
monistas: como a maior parte dos ocidentais — a rigor, todos os
ocidentais sem formação losó ca —, a maioria deles simplesmente não
tem nenhuma opinião sobre esse assunto.22 É que, como já a rmei, o
exame e a sistematização de conceitos podem exigir que enfrentemos
questões que, antes da re exão, simplesmente não tenham sido
abordadas. O que os fantis têm é um conceito — ckra — pronto para o
trabalho losó co; e o que se faz necessário é alguém que efetue com
esse conceito o tipo de trabalho que Descartes realizou com o conceito
de mente; e ao fazê-lo, tal como Descartes, esse lósofo fanti estará
abarcando um território novo.

Assim, a etno loso a parece-me um começo útil, um ponto de onde


partir para a negociação da vida conceitual — o que, em certo sentido,
equivale a dizer a vida tout court — dos africanos contemporâneos. Mas,
como argumentei, sem um impulso para essas intervenções (ou, pior
ainda, como um substituto delas), a etno loso a é meramente um
passatempo.
Na enumeração que citei do lósofo Richard Wright, tanto a primeira
opção (estudar os sistemas conceituais africanos por eles mesmos)
quanto a terceira (estudá-los porque, na “compreensão das questões
práticas”, precisamos “delinear claramente sua motivação losó ca
subjacente”) podem levar, naturalmente, à etno loso a (embora, como
mostrarei no m deste ensaio, este último argumento também possa
levar a outras direções). Não obstante, como sugere a exposição de
Wright, a etno loso a é apenas uma das opções que têm ocupado os
lósofos africanos. E sua segunda opção — ou, mais exatamente, sua
lógica — parece-me ainda mais duvidosa do que o projeto de uma
etno loso a acrítica.
Examinemos mais uma vez o trecho:
É importante para a história das idéias que descubramos e compreendamos a relação entre o
pensamento africano (ou sua in uência) e o pensamento do mundo ocidental. Pois, se a
civilização ocidental teve sua origem no continente africano (...), o padrão correto de
desenvolvimento intelectual (...) só se tornará claro quando começarmos a entender a base e a
direção desse desenvolvimento (...)

Obviamente, é crucial, como eu mesmo a rmei, compreendermos (como


propõe a segunda opção) “a relação entre o pensamento africano (ou sua
in uência) e o pensamento do mundo ocidental”. Mas Wright, como
muitos outros, toma isso como razão para levantar a questão de
determinar se a loso a egípcia, como autêntica pré-história da loso a
na África, não deveria ser estudada nos departamentos de loso a
africanos. “Pois, se a civilização ocidental teve sua origem no continente
africano (...), o padrão correto de desenvolvimento intelectual (...) só se
tornará claro quando começarmos a entender a base e a direção desse
desenvolvimento (...).” Faço objeção a essa argumentação, não apenas por
achar que o importante são as respostas, e não as histórias das respostas,
mas também porque é absurdo a rmar que, pelo fato de um pensamento
ser africano e de a pré-história do pensamento europeu residir na
África, esse pensamento irá ajudar-nos a compreender o Pensamento
Ocidental. Caberia conduzirmos um estudo do campesinato italiano no
século XX como uma preliminar ao estudo de Cícero? Ou procurar o
prefeito de Atenas para compreender a República de Platão?
A importância da antiga loso a egípcia para a vida intelectual
africana contemporânea foi defendida com máximo vigor nos textos do
literato senegalês Cheikh Anta Diop, cuja obra deixa claras, a meu ver, as
motivações da escola. Em e African Origins of Civilisation [As origens
africanas da civilização], Diop resume suas a rmações: “O antigo Egito
foi uma civilização negra (...). O fruto moral de sua civilização deve
gurar entre os componentes do patrimônio do mundo negro (...)”,
porque, “[f ]alando em termos antropológicos e culturais, o mundo
semítico nasceu, em tempos proto-históricos, da mistura de pessoas de
pele branca e pele escura na Ásia Ocidental (...) [e] todas as raças
descenderam da raça negra (...)”;23 donde, a primeira grande civilização
humana — da qual os gregos, entre outros, retiraram muitas coisas — foi
uma civilização negra. Uma vez que Diop também defendera, em LUnité
culturelle de l’Afrique noire [A unidade cultural da África negra], a
existência de “traços comuns da civilização africana negra”,24 ele exibe,
em nossa própria época, os elementos essenciais do racialismo
romântico de Crummell, Blyden e Du Bois: e deixa bem explícitas as
ligações entre as a rmações referentes à loso a egípcia e os projetos do
nacionalismo pan-africano. Isso porque, é claro, é a profundidade
histórica da alegada tradição, juntamente com sua suposta négritude, que
faz do pensamento egípcio o veículo adequado para o orgulho racial
contemporâneo; e, já que os lósofos conseguiram convencer muitos no
Ocidente de que as idéias losó cas são centrais em qualquer cultura —
ardil que decorre de uma equivocação entre “ loso a”, a disciplina
formal, e “ loso a popular” —, e já que esses homens são intelectuais
formados no Ocidente, é natural que eles vejam na loso a egípcia a
realização que é motivo de maior orgulho no continente.
Contudo, parece-me que Diop — cuja obra é claramente a melhor
dessa tradição — fornece poucas provas de que a loso a egípcia seja
mais do que uma loso a popular, sistematizada mas bastante acrítica;
não faz nenhuma demonstração de que a situação egípcia do passado
remoto fosse relevantemente similar à dos africanos contemporâneos; e
admite uma sugestão que ca em suspenso, mas não se explicita, de que
os egípcios são importantes pelo fato de os originadores das dinastias
faraônicas terem sido negros.
Nunca vi nenhum sentido especial em exigir que os lósofos europeus e
norte-americanos — qua lósofos — estudassem os pré-socráticos: a
obra destes é uma mistura de “ciência” primitiva, poesia e mito. Se é que
tem alguma importância para a loso a moderna, ela é importante, em
parte, por criar o mundo de textos em que Platão deu início 25 — ou,
talvez nos caiba dizer, deu os primeiros passos hesitantes em direção — à
tarefa de re etir sistematicamente sobre os conceitos da loso a
popular e discuti-los; e, em parte, por ter sido objeto da constante
atenção dos lósofos da tradição ocidental.26 Não há nenhum
argumento análogo em favor do estudo do antigo pensamento egípcio
na África contemporânea: não existem textos fundadores e não há
nenhuma tradição direta ou contínua.
Nem mesmo o que chamaríamos de visão historicista (a compreensão
de um conceito implica compreender sua história) justi ca o estudo da
“ loso a” grega ou egípcia: pois as transformações por que passaram os
mundos conceituais da África e da Europa, desde, respectivamente, o
século V a.C. e a 18a dinastia, são tão grandes, e nossas formas de vida
são tão diferentes, que o nível de compreensão vislumbrável pela
pesquisa histórica é certamente muito limitado. Compreender a pré-
história de um conceito só é útil, nas atuais investigações conceituais,
quando a pré-história é compreendida de um modo autêntico e
profundo; ora, a distância e a escassez de dados provenientes da Grécia
ou do Egito antigos são su cientes para impedir qualquer compreensão
histórica profunda. Além disso, a alegação historicista só é plausível
quando há importantes continuidades sociais e intelectuais entre os
vários estágios da sociedade em que um conceito é estudado. E nego que
essa concepção se satisfaça na relação entre o antigo Egito e a África
moderna, ou entre a antiga Grécia e a Europa moderna. Mesmo que eu
esteja errado, não encontro nada em Diop que me convença de outra
coisa.27
Se Diop e seus seguidores — um grupo que poderíamos denominar de
“egipcianistas” — estão certos, o Egito antigo merece um lugar mais
central do que lhe é atualmente conferido no estudo do pensamento
antigo: e, se têm razão, ele deve ser intensamente estudado na África e na
Europa e na América e na Australásia, onde quer que haja um interesse
pelo Mundo Antigo. Se os intelectuais europeus, norte-americanos ou
australasianos têm antolhos grandes demais ou um chauvinismo por
demais aprofundado para aceitar isso, é possível que esses assuntos só
sejam estudados na África. O que seria lamentável.
O único artigo da coletânea de Wright que exempli ca a análise crítica
que caracteriza a melhor loso a — o único que me parece oferecer um
padrão que a loso a africana deve almejar — é o artigo de Kwasi
Wiredu, “How Not to Compare African ought with Western ought”
[Como não comparar o pensamento africano com o pensamento
ocidental]. Em essência, o que ele a rma é que certa visão comum, a de
que há algo especialmente intrigante no pensamento africano sobre os
“espíritos”, decorre de uma incapacidade de notar que essas crenças são
muito semelhantes a crenças amplamente difundidas no passado
europeu; e sua pressuposição de que o que torna um conceito
interessante não é a quem ele pertence, mas o que ele é e o modo como
lida com as realidades com que se confrontam aqueles a quem pertence,
é uma pressuposição que julgo perfeitamente simpática. Podemos
formular a questão entre Wiredu e os etno lósofos de maneira bastante
simples: a análise e a exposição são preliminares necessárias à crítica dos
conceitos, mas, sem a crítica, a análise é Otelo sem o Mouro de Veneza.
Com exceção de Hountondji e Diop, as obras que examinei até aqui
provêm da tradição anglófona. E, ao discutir a estrutura do debate
losó co africano, temos que distinguir, como a rmei, as duas diferentes
tradições principais do moderno trabalho losó co sobre o continente
africano. Mas, não creio que, no que concerne às questões que venho
discutindo, essa divisão tenha hoje a mesma importância, digamos, que o
(decrescente) hiato intelectual entre Londres e Paris. Os lósofos
africanos estão hoje signi cativamente cônscios uns dos outros,
atravessando o divisor anglófono-francófono. Há um bocado de
etno loso a publicada em francês, por exemplo, nos francófonos Cahiers
des religions africaines e na bilíngüe Africa, e ela fornece material para a
re exão losó ca. Mas, sem o passo adicional da re exão crítica sobre o
material etno losó co, este não tem, como insistiram Hountondji (um
francófono de Benim) e Wiredu (um anglófono de Gana), nenhum
interesse direto para a filosofia, no sentido de “ loso a” que distingue
aqueles que trabalham com ela na universidade; e, como argumentei, a
etno loso a acrítica acaba não conseguindo, no nal, enfrentar as
questões realmente urgentes que seriam enfrentadas por uma tradição
crítica.28
Todavia, não quero minimizar a importância ou negar a
inteligibilidade de uma importante motivação do trabalho dos
etno lósofos, qual seja, o desejo de resgatar para a África uma história
na loso a, de negar a a rmação de Robin Horton de que “a Lógica ou a
Filoso a”29 acham-se ausentes do pensamento tradicional do continente.
Mas, a objeção a essa estratégia foi bem formulada por Marcien Towa:30
O conceito de loso a, assim ampliado, é co-extensivo ao conceito de cultura. É obtido por
oposição ao comportamento animal. Assim, diferencia-se de tal comportamento, mas continua
indiscernível de qualquer forma cultural: mito, religião, poesia, arte, ciência etc.31

Defender a “ loso a”, eliminando o que há de característico no


pensamento losó co, é apenas lutar por uma palavra.
Parece-me, no entanto, que há razões para os lósofos da África
continuarem a analisar a natureza dos mundos conceituais pré-coloniais
de nossas culturas; razões essencialmente captadas na formulação que
Wright dá a sua terceira opção: “é importante, na compreensão das
questões práticas, delinearmos claramente sua motivação losó ca
subjacente”.32 Pois (como argumentarei com detalhes no capítulo 6)
alguns dos traços comuns que existem em muitos dos mundos
conceituais tradicionais da África persistem, visivelmente, no
pensamento da maioria dos africanos, mesmo depois da instrução
moderna nas escolas secundárias e nas universidades. Eles fornecem a
base para um conjunto comum de problemas losó cos africanos, pois,
ali onde diferimos do Ocidente, só um exame criterioso dos méritos de
nossas tradições pode permitir-nos escapar dos perigos complementares
de adotarmos demais ou de menos a bagagem intelectual de nossos ex-
colonizadores.
Wiredu e Hountondji partilham dessa crença; ao explorarmos as
atuais opções losó cas da África, é acertado voltarmos a eles.

A rejeição da etno loso a por Kwasi Wiredu re ete sua oposição à


a rmação de que, para que a loso a seja aceitavelmente africana, sua
temática, suas a rmações ou seus métodos, ou todos três, devem diferir
dos da loso a nas culturas que colonizaram a África. Como vimos no
capítulo anterior, outros amiúde presumiram, quando não chegaram a
a rmar, que os traços distintivos da loso a na África hão de ser
africanos — e não kikuyus ou, digamos, iorubas —, re etindo uma
comunidade metafísica continental (ou racial).
Como adepto da universalidade da razão, Wiredu considera que a
importância de ele ser africano, para sua loso a, tanto é mais global,
em certo sentido, quanto mais local, em outro; mais local porque, como
implica seu título, ele fala como ganês em nome de uma cultura
africana, e mais global por ele indagar o que, a nal, a particularidade de
sua experiência ganesa pode oferecer à comunidade losó ca fora da
África. Para Wiredu, não existem verdades africanas, apenas verdades —
algumas referentes à África.
É com esses pressupostos que ele pergunta “o que um lósofo africano
contemporâneo deve fazer com suas origens”. Se sua resposta a essa
pergunta tem um tema central, ele é o de que a modernização, projeto
central da África negra, é essencialmente um projeto losó co. O
desenvolvimento, diz ele, deve ser medido pelo “grau em que os métodos
racionais penetraram nos hábitos”. Para Wiredu, “a busca do
desenvolvimento (...) deve ser vista como um processo histórico mundial
contínuo, no qual todos os povos, ocidentais e não ocidentais, estão
empenhados”. Vista dessa maneira, a modernização não está “jogando
fora impensadamente” os modos de pensar tradicionais e adotando
hábitos estrangeiros, mas é, antes, um processo em que “os africanos,
juntamente com todos os outros povos, procuram alcançar um destino
especi camente humano”.
O tom de Wiredu em seu livro é intensamente humanista: moralmente
sério, sem ser moralista. Ele critica os apóstolos da négritude, observando
que há pessoas morrendo cotidianamente em Gana por preferirem os
medicamentos tradicionais, à base de ervas, aos remédios ocidentais, de
modo que “qualquer inclinação a glori car a mentalidade não analítica é
não apenas retrógrada: é trágica”. Ele articula e endossa o comunitarismo
da sociedade tradicional, ao mesmo tempo que deplora o autoritarismo
que parece acompanhá-lo, e diz que “é importante (...) veri car que
contribuição o pensamento losó co pode fazer” para a questão de saber
se o primeiro pode ser preservado sem o segundo.
Wiredu explicita a ligação entre entender a tradição e interessar-se
pelas possibilidades da modernização. “Obviamente, é de suma
importância losó ca distinguir entre o pensamento pré-cientí co
tradicional e o pensamento cientí co moderno, mediante um critério ou
conjunto de critérios claramente articulados.”33 Embora compartilhe a
visão de que o pensamento tradicional implica a crença literal em
agentes invisíveis — Wiredu assinala a “ubiqüidade das referências a
deuses e a toda sorte de espíritos”34 —, ele julga útil tomar como
modelo o “pensamento popular” do Ocidente. Pois, segundo a rma, o
que há de característico no pensamento tradicional africano é ele ser
tradicional; não há nele nada de especialmente africano. Wiredu a rma
que o que se denomina de modo de pensar “tradicional” não é
especialmente africano, e é sumamente crítico em relação a sua
racionalidade. Diz, por exemplo, no capítulo 3 de Philosophy and an
African Culture:
Muitas instituições e práticas culturais africanas tradicionais (...) baseiam-se na superstição.
Por “superstição” re ro-me a uma crença, sem fundamentação racional, em toda sorte de
entidades 35 (...). O pensamento popular pode ser abrangente e interessante em si mesmo, mas
sua não-discursividade continua a ser um estorvo.36

O problema não está no teor das crenças expressas, entretanto, nem


tampouco em elas serem ou não abrangentes, mas no fato de serem
supersticiosamente adotadas. “O atributo de ser supersticiosa não se liga
ao teor de uma crença, mas a sua relação com outras crenças.”37 É esse
desinteresse pelas razões, com o apelo ao “que nossos ancestrais
disseram”,38 que faz parte do “autoritarismo”39 do pensamento
tradicional, e que diferencia o pensamento tradicional e o cientí co.
Assim, essa crítica dá margem a uma reivindicação urgente do “cultivo
da investigação racional”. Um modo esclarecedor (porque fundamental)
de abordar o conceito de “desenvolvimento” é medi-lo pelo “grau em
que os métodos racionais penetraram nos hábitos de pensamento”.40

Com muita freqüência, o livro de Wiredu, como a rmei, é visto como


relacionado com African Philosophy: Myth and Reality, de Hountondji;
um livro que compila os principais artigos em que ele empreendeu seu
ataque à etno loso a.
Hountondji expõe suas principais objeções à etno loso a nos três
primeiros capítulos, que aparecem em sua ordem original de publicação.
Começando por uma recapitulação da crítica política de Césaire a
Tempels como uma “digressão”, ele discute em seguida a obra de Kagamé,
o principal seguidor africano de Tempels, cuja Philosophic bantou-
rwandaise de l’être [Filoso a banto-ruandesa do ser] “estabelece
expressamente, desde o início, seu ponto de vista em relação ao trabalho
de Tempels, como a tentativa de um banto africano autóctone de
‘veri car a validade da teoria proposta por esse excelente missionário’”.41
Embora endosse parte da crítica especí ca de Kagamé a Tempels,
Hountondji se opõe ao unanimismo comum a ambos.
É nessas objeções a Kagamé que a argumentação de Hountondji parece
mais fraca. Pois Kagamé enraíza explicitamente sua análise na linguagem.
E, embora seja realmente estranho supor, como alguns unanimistas, que
um povo deva compartilhar as mesmas crenças sobre todas as grandes
questões de sua vida, não há nada de estranho em supor que pessoas que
falam uma mesma língua compartilhem conceitos e, com isso, as crenças
a priori cuja posse é constitutiva de uma apreensão dos conceitos. Se essa
visão — que foi justamente a teoria o cial da loso a comum da
linguagem e é o pressuposto o cioso de grande parte da análise
conceitual — está errada, é impossível refutá-la através dos argumentos
de Hountondji, que apenas mostram ser improvável que um povo inteiro
compartilhe todas as suas crenças importantes a posteriori.
Paralelamente a seu ataque à etno loso a, Hountondji tem uma
análise plausível e pouco enaltecedora das motivações dela. A
etno loso a, alega, existe “para um público europeu”.42- É uma tentativa
de lidar com sentimentos de inferioridade cultural rede nindo o
folclore como “ loso a”, de modo a poder reivindicar uma tradição
losó ca autóctone.
A mais original das objeções de Hountondji aos etno lósofos decorre
de uma visão essencialmente althusseriana do lugar da loso a; e o
recurso a Althusser — que contrasta muito marcantemente com os
apelos de Wiredu a Dewey — re ete a distinção entre as tradições
francófona e anglófona, pela qual comecei.
Hountondji cita uma passagem de Lênin e a filosofia, na qual Althusser
diz que a loso a “só foi observada em lugares onde há também o que é
chamado ciência ou ciências — no sentido estrito de disciplina teórica,
isto é, ideativa e demonstrativa, e não um agregado de resultados
empíricos (...)”;43 passa então a argumentar, por sua vez, que se “o
desenvolvimento da loso a se dá, de algum modo, em função do
desenvolvimento das ciências, (...) nunca teremos na África uma loso a
no sentido estrito, enquanto não houvermos produzido uma história da
ciência (...)”.44 Hountondji elabora então, num linguajar althusseriano,
uma versão da insistência de Wiredu no desenvolvimento da tradição
crítica que a instrução possibilita pela primeira vez.
Esse marxismo explícito diferencia Hountondji e Wiredu, pois,
quando este último discute a relação entre a re exão losó ca sobre a
política e a vida política, ele está predominantemente interessado em
questionar a hegemonia dos marxistas na loso a política africana.
Entretanto, considero essa diferença entre eles, sem dúvida signi cativa,
menos fundamental para meu propósito neste ponto do que sua
concordância sobre o que há de especial na situação do lósofo africano.
A crítica de Hountondji sobre o método e a motivação conduz
naturalmente a suas recomendações. Sua prescrição primordial é que
devemos pensar na loso a africana como africana, não (como alegam
os etno lósofos) por ela dizer respeito a conceitos ou problemas
africanos, mas porque (e é aí que ele concorda com Wiredu) ela é a parte
do discurso universal da loso a que é realizada por africanos. Na
verdade, essa a rmação é anunciada na primeira frase — extremamente
conhecida — do primeiro ensaio, a frase com que eu mesmo comecei:
“Por ‘ loso a africana’ re ro-me a um conjunto de textos,
especi camente ao conjunto de textos escritos pelos próprios africanos e
descritos como losó cos por seus próprios autores.”45 Essa frase
pre gura todo o peso de boa parte de sua argumentação. A de nição da
loso a africana como sendo simplesmente a loso a escrita por
africanos é o primeiro passo na defesa de um discurso em línguas
africanas, dirigido aos africanos.46 E a ênfase nos “textos” com “autores”
antecipa-se à objeção de Hountondji à idéia da etno loso a como
propriedade de comunidades inteiras e à possibilidade de uma tradição
oral de loso a. O discurso oral é incompatível com as exigências do
que Althusser chama de “ciência”: escrever libera a mente do indivíduo
“para fazer inovações capazes de abalar as idéias estabelecidas e até
derrubá-las por completo”.47
Ao rejeitar a possibilidade de que haja temas e conceitos
especi camente africanos que mereçam um estudo losó co,
Hountondji me parece extrair uma conclusão por demais radical de sua
crítica da etno loso a.48 Pois, se os lósofos pretendem contribuir — no
nível conceitual — para a solução dos verdadeiros problemas da África,
eles precisam começar por uma compreensão profunda dos mundos
conceituais tradicionais em que habita a vasta maioria de seus
compatriotas. Nisso, creio eu, é Wiredu quem tem razão: o que está
errado nos etno lósofos é que eles nunca ultrapassaram esse passo
essencialmente preliminar. Wiredu diz que “o teste da concepção de
loso a africana por um lósofo africano contemporâneo está em saber
se ela lhe faculta empenhar-se frutiferamente na atividade do losofar
moderno, com uma consciência africana”.49
Ultrapassar o projeto descritivo da etno loso a é o verdadeiro desa o
dos lósofos comprometidos com os problemas da África
contemporânea; como Wiredu — e Hountondji —, aspiro a um discurso
mais verdadeiramente crítico. Assim, nos capítulos nais, tentarei levar
mais adiante esse discurso elusivo. Começo por dois capítulos que
re etem sobre modos bem diferentes de pensar na vida intelectual
africana contemporânea: um, no discurso losó co sobre “tradição e
modernidade”; e o outro, nas discussões da situação póscolonial. No
último par de capítulos, examino, primeiramente, as questões que
cercam o nacionalismo e as ligações com o Estado moderno; e depois,
mais especulativamente, esboço as possibilidades de uma identidade
pan-africana repensada.50
6
Velhos deuses, novos mundos

“Bima ya beto ke dya — bambuta me bikisa.” O que comemos — os


ancestrais nos mostraram. Glosa: “Reconhecemos o que é comestível porque os
ancestrais no-lo mostraram. Simplesmente seguimos os ancestrais.”1

Provérbio mbiem

P ara se haverem com o que signi ca serem modernos, os intelectuais


ocidentais e africanos têm interesses que devem compartilhar. Pois a
natureza e o sentido da modernidade são um tema que se repete na
imaginação ocidental moderna. Quer nos romantismos reacionários ou
nas celebrações futuristas do novo, quer num otimismo con ante nas
capacidades aprimorativas da ciência moderna ou num anseio saudoso
pelo senso tradicional de comunidade, não alienado, não apressado — e,
a esta altura, pouco conhecido —, grande parte do pensamento
ocidental sobre a vida intelectual e social baseia-se num entendimento
do que é ser moderno e nas reações, positivas ou negativas, ao fato da
modernidade.
Para o intelectual africano, é claro, o problema é se — e, em caso
a rmativo, como — nossas culturas devem tornar-se modernas. O que
para o Ocidente é um fait accompli — a rigor, poderíamos de nir a
modernidade como a formação intelectual e social característica do
mundo industrializado — oferece à maioria dos africanos, na melhor das
hipóteses, panoramas esperançosos, e na pior, perspectivas a temer. Mas,
obviamente, o que signi ca ser moderno é uma pergunta que africanos e
ocidentais podem formular juntos. E, como pretendo sugerir, nenhum
de nós compreenderá o que é a modernidade enquanto não
compreendermos uns aos outros.
Uma vez que sou lósofo — e, por conseguinte, intelectualmente
perverso —, começarei tentando compreender o moderno através de sua
antítese, o tradicional. Quero tentar expor alguns erros naturais de
nosso pensamento sobre a polaridade tradicional-moderno e, com isso,
esclarecer algumas das mudanças em andamento na África e os modos
pelos quais elas a tornaram — e não tornaram — mais parecida com o
Ocidente. Quero examinar alguns aspectos da cultura tradicional —
entendida como signi cando simplesmente a cultura anterior aos
impérios europeus —, tal como manifestada num local da África, e
depois examinar alguns dos modos pelos quais a experiência de
colonização e a maior interação com o Ocidente produziram uma
cultura em transição da tradição para a modernidade, uma cultura que,
na falta de uma palavra melhor, chamarei de não tradicional.2

Proponho, no entanto, começar por um lugar cuja estranheza para a


maioria dos europeus e norte-americanos e cujo caráter natural para
muitos africanos é uma medida da distância entre Nairobi e Nova York,
ou seja, por aquilo que, com certo desagrado, chamarei de “religião”. É
que um dos marcos da vida tradicional é a extensão em que as crenças,
atividades, hábitos mentais e comportamentos em geral são perpassados
pelo que os europeus e norte-americanos chamariam de “religião”. Na
verdade, o debate losó co sobre o status da religião tradicional
tornou-se realmente central na loso a africana recente justamente
porque o entendimento da religião tradicional é central para as questões
conceituais suscitadas pela modernização; e a urgência e relevância dessa
questão para os problemas cruciais da política pública constituem uma
das razões por que se veri ca ser mais instigante a discussão losó ca da
religião na África do que na loso a da religião no Ocidente.
Se reluto em usar sem ressalvas o termo “religião”, é porque a religião
no Ocidente contemporâneo, grosso modo, é tão diferente do que é na
vida tradicional africana, que enunciá-la nas categorias ocidentais
equivale tanto a suscitar mal-entendidos quanto a promover o
entendimento. Mas os exemplos que quero discutir deverão ajudar-me a
esclarecer esse aspecto. Comecemos, pois, pela descrição de uma
cerimônia tradicional.
O cenário é algum lugar na Achanti rural. O momento é o presente
etnográ co — ou seja, o passado. Ao chegarmos, uma gura masculina,
trajando uma saia de capim e amuletos no pescoço, dança ao som de
tambores e cânticos. De repente, ele salta num riacho próximo e emerge
segurando alguma coisa contra o peito. Coloca isso num tacho de latão e
soca-o juntamente com argila (que depois descobrimos provir do rio
sagrado Tano) e com folhas ou cascas de várias plantas, um pouco de
ouro em pó e uma coisa chamada “aggrey bead”.*42
Durante a trituração, a gura enuncia palavras que podemos traduzir
da seguinte maneira:
Deus, Kwame, Aquele-em-Quem-os-homens-se-apóiam-e-não-caem; Deusa da Terra, Yaa;
Leopardo e todos os animais e plantas da oresta, hoje é sexta-feira sagrada: e tu, Ta Kwesi, nós
te estamos instalando, nós te estamos empossando para que tenhamos vida, para que não
morramos, para que não nos tornemos impotentes. Ao chefe de aldeia desta aldeia, vida; aos
homens moços da aldeia, vida; àquelas que dão à luz, vida; às crianças da aldeia, vida.
Espíritos das árvores, nós vos invocamos a todos para que entreis aqui agora, e deixeis que
tudo o que há em nossa cabeça seja posto neste santuário.
Quando te invocarmos nas trevas, quando te invocarmos de dia, se te dissermos “Faze isto
para nós”, será isto o que farás.
E são estas as regras que aqui estabelecemos para ti, deus nosso: se um rei vier de algum
lugar, e se vier a nós ou nossos lhos ou nossos netos, e disser que está indo à guerra, e se vier
dizer-te isso: e se ele for lutar e não obtiver a vitória, é preciso que no-los digas; e se ele for
para ser vitorioso, dize a verdade também.
A peroração continua: e o espírito é repetidamente solicitado a dizer a
verdade sobre as origens do mal que adoece os homens. O sacerdote
termina dizendo:
Trouxemos cordeiros e uma galinha, e trouxemos aguardente de palma, que estamos para te
oferecer, para que mores nesta aldeia e preserves sua vida (...).
Talvez, no futuro, o rei de Achanti possa vir dizer, “Meu lho Fulano está doente”, ou talvez
“Um ancião está doente”; ou poderá enviar um mensageiro para pedir que vás com ele; e nesse
caso, poderás ir, e não pensaremos que estás fugindo de nós.
Os lábios de todos nós dizem estas coisas juntos.

Fazem-se então os sacrifícios dos animais e deixa-se que seu sangue seja
vertido no tacho de latão. Durante esse processo, é possível que outro
sacerdote entre em transe e entoe o cântico de outro espírito local
menor.
Essa descrição é uma paráfrase aproximada da publicada pelo capitão
R. S. Rattray na década de 19203 e, com algumas modi cações, seria
possível encontrar uma cerimônia idêntica no empossamento de um
espírito — um cbosom — num santuário atual.
Talvez não haja nada de intrigante no ritual que descrevi. Procurei,
deliberadamente, fazer o relato de uma série de atos que di cilmente as
pessoas de fora da cultura acreditariam ser capazes de lograr êxito, mas
em que certamente todos podemos pelo menos imaginar acreditar. No
entanto, esse ritual faz parte de um mundo religioso que é típico das
muitas culturas tradicionais cujos modos de pensar a guraram-se
intrigantes à etnogra a e à loso a ocidentais.
É possível começarmos a compreender a razão disso se nos
perguntarmos, não em que é que esses atores acreditam, mas como foi
que eles passaram a ter essa crença. A maioria dos intelectuais fora de
Achanti julga saber, a nal, que esses espíritos não existem. Que, apesar
de todos os apelos da oração do sacerdote, nenhum agente invisível irá
habitar no santuário; ninguém responderá às perguntas “Que fez esta
pessoa adoecer?”, “Será que venceríamos, se fôssemos à guerra?”, ou
“Como devemos curar o ancião?”. No entanto, eis aí uma cultura em que,
ao menos por várias centenas de anos, as pessoas têm criado santuários
exatamente assim, têm-lhes formulado exatamente essas perguntas, e têm
pedido aos espíritos que elas crêem estar ali que executem exatamente
essas tarefas. A esta altura, elas decerto deveriam saber, se são racionais,
que isso não vai funcionar, não é?
Pois bem: o apelo a uma noção de racionalidade, nesta última
pergunta, nos leva a um território caracteristicamente losó co; e, em
parte, é pelo que ele nos diz sobre a racionalidade, sobre o âmbito e a
função próprios da razão, que esses rituais têm uma importância
losó ca. Se insistirmos em perguntar como é possível que essas crenças
se mantenham, frente a uma falsidade que é patente, ao menos para
alguém com uma formação de estilo moderno, acabaremos voltando à
questão de saber se realmente compreendemos o que acontece.

Convém, entretanto, começarmos por algumas distinções. Já z aquela


que é a primeira distinção crucial: entre compreender o conteúdo das
crenças subentendidas nos atos de uma prática religiosa, de um lado, e
compreender de que modo essas crenças se estabeleceram na cultura, de
outro. Pois, a meu ver, é preciso termos em mente ao menos estes três
tipos separados de compreensão: primeiro, compreender o ritual e as
crenças que lhe são subjacentes; segundo, compreender as origens
históricas do ritual e das crenças; e terceiro, compreender o que os
sustenta.
Uma das vantagens de estabelecer essas distinções — exatamente a
espécie de distinção freqüentemente apontada como sendo típica do
palavrório lógico trivial que torna a loso a acadêmica tão desagradável
para os que não a praticam — é que isso nos permite destacar algumas
questões. Assim, antes de mais nada, podemos dizer que, para
compreender esses atos ritualísticos, o que é necessário é aquilo que se
faz necessário no entendimento de qualquer ato, ou seja, compreender
quais crenças e intenções lhe são subjacentes, a m de saber o que os
atores pensam estar fazendo, o que estão tentando fazer. Na verdade, se
não pudermos fazer isso, nem sequer saberemos dizer de que ritual se
trata. Dizer que o que está acontecendo aqui é que essas pessoas estão
convidando um espírito a assumir seu lugar num santuário já é dizer
algo sobre suas crenças e suas intenções. Equivale a dizer, por exemplo,
que elas acreditam na existência de um espírito, Ta Kwesi, e também
acreditam que pedir a esse espírito para fazer alguma coisa é um modo
de levá-lo a fazê-la; equivale a dizer que elas querem que o espírito
habite no santuário.
Talvez isso seja óbvio; talvez não reste nenhum behaviorista no mundo,
ou, pelo menos, não na pequena parcela dele que poderia ler este livro.
Assim, talvez eu não precise dizer que não é apenas a execução de certos
movimentos corporais pelo sacerdote e pelos outros aldeões que
compõe esse ritual. Mas, é importante lembrar que você e eu poderíamos
executar esses mesmíssimos movimentos para demonstrar a forma do
ritual; e que, se nós o zéssemos com essa orientação, não estaríamos
pedindo a ninguém — muito menos a Ta Kwesi — para fazer o que quer
que fosse. Portanto, sabemos que o que está ocorrendo é um ato
religioso precisamente por acharmos que esses atos achanti especí cos
têm uma certa intenção. O que o torna religioso é o que as pessoas estão
tentando fazer.
Qualquer explicação teórica desse ritual, portanto, deve começar por
procurar compreender quais são as crenças e intenções que o
instrumentam. Mas, é claro, não basta isso para compreender o ritual.
Pois certamente há aspectos dele — o uso do ouro em pó e da conta de
vidro na composição do conteúdo do tacho de latão, por exemplo —
que talvez continuem precisando de explicação. É bem possível
descobrirmos que, embora o sacerdote tenha a intenção de colocar o
ouro em pó no tacho, ele só o faz porque isso, como talvez nos dissesse,
faz parte do “como os ancestrais invocavam um espírito”; ou seja, talvez
ele não tenha nenhuma razão especial própria para utilizar o ouro em
pó.
Que signi ca dizer que isso ainda requer explicação? O sacerdote faz
uma porção de coisas na execução do ritual, sem nenhuma razão especial
que lhe seja própria. Levanta e abaixa uma vara enquanto dança, e o faz
deliberadamente: faz parte de sua intenção, ao dançar, erguer e abaixar a
vara. No entanto, talvez não encontremos nada que explique isso.
Penso que o primeiro passo para responder à pergunta “Por que o
ouro em pó requer explicação?” é distinguir entre dois tipos de coisas
que o sacerdote faz na execução do ritual. De um lado, há coisas como o
acréscimo de ouro em pó, que o sacerdote acredita ser uma parte
essencial do que está fazendo. Deixar de fora o ouro em pó seria deixar
de fazer algo essencial para que a execução consiga levar o espírito para
seu novo santuário. Esses componentes essenciais do ritual devem ser
contrastados com o que podemos chamar de componentes “acidentais”.
Talvez o sacerdote enxugue o suor do nariz à medida que a dança acelera
seu ritmo e, ao ser indagado, nos diga que isso, evidentemente, é algo de
que o ritual poderia prescindir. Se o erguimento da vara e o
enxugamento do suor forem acidentais na execução, é por isso que não
precisaremos explicá-los para compreender o ritual. Assim, parte do
motivo pelo qual o ouro em pó requer uma explicação está em ele ser
essencial ao ato ritualístico.
Ora, ao dizer que o ouro em pó é essencial, já estamos fornecendo
parte de sua explicação. Ele está ali porque, sem ele, acredita-se que o
ato seja menos e caz, ou talvez não tenha nenhuma e cácia. Mas,
persiste uma pergunta. Por que acrescentá-lo faz diferença? A nal, é
provável que todos nós tenhamos ancestrais, bisavós, por exemplo, que
tinham remédios para o resfriado comum aos quais prestamos pouca ou
nenhuma atenção. Por que haveria o sacerdote de achar que vale a pena
apegar-se a esse costume ancestral, sobretudo se não tivesse a menor
idéia da razão de os ancestrais o considerarem parte essencial da
invocação de um espírito?
Nesse ponto, penso eu, muitos antropólogos culturais se disporão a
dizer que o ouro em pó nos chama a atenção porque obviamente
simboliza algo. Podemos inventar nossas próprias versões. Suponhamos,
a bem da discussão, que o que ele simboliza seja a doação de riqueza ao
espírito, uma espécie de adoçante espiritual para esse contrato que está
sendo feito entre a aldeia e o espírito. A plausibilidade dessa sugestão
não deve desviar-nos do que há de problemático nela: pois, se é essa a
razão da presença do ouro em pó, por que o sacerdote não sabe disso? A
resposta óbvia é que ele está apenas executando a forma prescrita, e por
isso não sabe.4 As pessoas que conceberam o ritual, as pessoas a quem o
sacerdote chama ancestrais, sabiam a razão da presença do ouro em pó.
Colocavam-no ali por julgarem que parte de um convite adequado a um
espírito poderoso era oferecer-lhe uma parcela da própria riqueza, pois
fazê-lo é fazer o que qualquer um faria ao pedir um favor a uma pessoa
poderosa. É fato que o dinheiro de nada serve aos espíritos — a
economia espiritual é movida por outras coisas que não o ouro —, mas,
ao oferecer esse ouro em pó, trata-se o espírito tal como se trataria um
ser humano a quem se respeitasse. Para esses ancestrais, portanto, a
oferenda do ouro em pó é um ato cuja e cácia depende do
reconhecimento, pelo espírito, de que isso é uma expressão de respeito.
Não sei se a verdade tem alguma semelhança com isso; seria difícil
descobrir, simplesmente porque “os ancestrais” já não estão aí para lhes
perguntarmos. Mas, observem que essa explicação da presença do ouro
em pó como simbólico desloca-nos do terreno da compreensão dos atos
ritualísticos em si para o exame de suas origens. Esse recurso às origens,
contudo, não é o que torna verdadeiro que o ouro em pó funcione
simbolicamente. Nosso sacerdote poderia ter estado cônscio, ele mesmo,
de que o ouro em pó tem esse funcionamento simbólico. E logo adiante
tentarei falar um pouco mais do que isso signi ca. Mas, é importante
notar que tratar um elemento de um ritual como simbólico exige que
haja alguém que o trate simbolicamente, e que esse alguém seja o
próprio agente ou o originador da forma da ação ritual. Ao constatar
que o sacerdote não vê o ato como simbólico, tivemos que buscar
alguém que o zesse. Existem versões mais ou menos so sticadas desse
tipo de abordagem. Durkheim, por exemplo, parece haver considerado
que as práticas religiosas podem simbolizar a realidade social porque,
embora o agente não saiba conscientemente o que elas simbolizam,
talvez tenha um conhecimento inconsciente disso.5 Penso que Lévi-
Strauss acredita em algo similar. Considero isso um erro; mas, quer
Durkheim tivesse ou não razão, ao menos ele reconheceu que um
símbolo é sempre símbolo de alguém: é algo que signi ca alguma coisa
para alguém.
Mas, que vem a ser, exatamente, usar o ouro em pó como símbolo de
respeito? Estamos tão familiarizados com esse tipo de atos simbólicos —
eles ocorrem em todas as culturas — que não re etimos sobre eles com
freqüência. Aqui, mais uma vez, convém estabelecer uma distinção.
Alguns símbolos, dos quais as palavras são o paradigma, são puramente
convencionais. Só podemos usar nossas palavras para expressar nossas
idéias uns aos outros porque existe uma interação complexa de crenças e
intenções entre os falantes de uma mesma língua. Esse complexo pano de
fundo permite que nos re ramos aos objetos e, com isso, que usemos
palavras para representar simbolicamente esses objetos. Mas, as palavras
não são os únicos símbolos puramente convencionais, e falar não é o
único ato simbólico puramente convencional. Ao fazer continência para
um o cial superior, o soldado expressa seu reconhecimento da
superioridade do o cial. E é somente por existir essa convenção que o
ato de fazer continência tem o sentido que tem.
Ora, o ouro em pó não é um símbolo puramente convencional. É
possível usá-lo nesse contexto como símbolo de respeito porque, em
outros contextos, ofertar ouro em pó é um sinal de respeito. A nal, a
razão de a oferenda de ouro em pó a uma gura poderosa de Achanti ser
um sinal de respeito não está em haver uma convenção nesse sentido. As
pessoas dão ouro em pó aos poderosos porque o ouro em pó é dinheiro,
e o dinheiro é algo que tem serventia para as pessoas poderosas, tal
como as outras. Dar dinheiro a alguém quando se precisa que ele ou ela
façam alguma coisa para nós é procurar in uenciar seus atos e, desse
modo, reconhecer que essas pessoas têm o poder de fazer algo por nós.
Elas sabem que achamos que têm esse poder, porque ambos sabemos que
de outro modo não lhes daríamos dinheiro. Se a oferta de ouro em pó
junto com um pedido ocorre sistematicamente, em contextos em que as
pessoas pedem alguma coisa a alguém com poderes que elas mesmas não
têm, e se, como em Achanti, pedir a alguém em posição de poder que
faça algo por nós é uma demonstração de respeito, então, oferecer ouro
em pó em conjunção com um pedido torna-se um sinal de respeito, num
sentido simples: ele é algo cuja presença evidencia que o doador respeita
aquele que o recebe.
Portanto, não é arbitrário que os ancestrais de minha história tenham
escolhido o ouro em pó como símbolo de respeito, embora tenham-se
dado conta de que, ao colocá-lo no tacho, não estavam efetivamente
dando ao espírito algo que ele pudesse usar.
Muitos atos simbólicos ritualísticos têm esse caráter. Não são signos
arbitrários, como as palavras ou as continências; são atos que extraem
seu sentido da importância não ritualística de práticas pertinentemente
similares. O que os torna simbólicos é o reconhecimento, por parte dos
agentes, de que esses atos, nos contextos ritualizados, não funcionam da
maneira padronizada. O espírito vem, não porque lhe tenhamos dado
dinheiro, mas por termos feito algo que demonstra respeito; e dar ouro
em pó demonstra respeito porque, fora desses contextos ritualísticos, o
oferecimento de ouro em pó é padronizadamente acompanhado pelo
respeito.
Passei algum tempo discutindo o papel desse símbolo nesse ritual
porque pareceu a muitos que o caráter singularizante desses atos
religiosos é eles serem simbólicos. É famoso o comentário de Clifford
Geertz de que a religião é “um sistema de símbolos”.6 Ora,
evidentemente, um fato marcante de muitas práticas e crenças religiosas
é elas terem elementos simbólicos: a Eucaristia é carregada de
simbolismo, assim como a refeição da Páscoa judaica. Mas quero
argumentar que o simbolismo provém da natureza fundamental das
crenças religiosas, e que essas crenças fundamentais não são simbólicas
em si.

Durante a vida inteira, vi e ouvi cerimônias semelhantes a essa por que


comecei. Esse apelo ritualístico público a espíritos invisíveis, em
ocasiões cerimoniais, faz parte de uma forma de vida em que tais apelos
costumam ser feitos em particular. Quando um homem abre uma garrafa
de gim, ele derrama uma pequena quantidade no chão, pedindo aos
ancestrais que bebam um pouco e protejam sua família e suas ações. Esse
ato é desprovido de cerimônia, sem a agitação do empossamento
público de um cbosom num novo santuário, mas habita no mesmo
mundo. Na verdade, é tentador dizer que, assim como o empossamento
público de um espírito assemelha-se ao empossamento público de um
chefe, a libação particular é como verter um drinque em particular para
um parente. O elemento cerimonial não é o essencial; o essencial é a
ontologia dos seres invisíveis. De modo que, no contexto mais amplo da
vida achanti, parece absurdo a rmar que o que aconteceu em certa
ocasião, quando meu pai derramou acidentalmente no tapete algumas
gotas do gargalo de uma garrafa de scotch recém-aberta, tenha implicado
outra coisa senão uma crença literal nos ancestrais. Derramar a bebida
pode ter sido simbólico, mas não há em Achanti nenhuma suposição
geral de que os mortos gostem de uísque. Mas, para que o gesto de lhes
oferecer um pouco de uma bebida valiosa tenha sentido, os ancestrais
assim reconhecidos simbolicamente têm que existir. É verdade, como
Kwasi Wiredu expressou essa questão, que a a rmação de “que nossos
ancestrais falecidos continuam a pairar sob alguma forma rarefeita,
prontos, vez por outra, a tomar um gole do gim cerimonial, é (...) [uma
a rmação] que nunca ouvi ser racionalmente defendida”.7 Mas o fato de
ela nunca ser racionalmente defendida talvez não cause tanta surpresa:
a nal, ela não costuma ser racionalmente atacada. (Nem tampouco,
como costumo dizer, precisamos supor que esteja em jogo um gole
literal.) A a rmação de que existem planetas maiores do que a Terra
girando ao redor do Sol, por menores que eles se a gurem ao olharmos
o céu noturno, não é racionalmente defendida, no curso usual das
coisas, na Europa ou na América. E não é racionalmente defendida, não
porque alguém ache que não haveria uma defesa racional, mas por ser
hoje tomada como uma verdade patente. E, na cultura achanti
tradicional, a existência de espíritos desencarnados dos mortos é
igualmente incontroversa. Voltarei a essa questão mais adiante.
Se tenho razão, e se (como a rmou Tylor) é o compromisso com uma
entidade desencarnada que de ne crucialmente as crenças religiosas
subjacentes a rituais como o que descrevi, existe, é claro, uma
importante pergunta a ser respondida: por que, em muitos desses rituais,
o simbolismo desempenha um papel tão importante? A resposta está
implícita na descrição que z da relação entre o empossamento de um
chefe e o empossamento de um espírito.
Pois, como poderia dizer qualquer achanti, o simbolismo é um traço
fundamental dessas duas cerimônias. Embora haja um componente
religioso no empossamento de um chefe, como há em qualquer
cerimônia pública em Achanti, isso não faz do empossamento um ato
essencialmente religioso. O simbolismo, com efeito, é uma característica
de todas as grandes ocasiões cerimoniais de qualquer cultura; e a
presença do simbolismo no cerimonial religioso decorre de sua natureza
de cerimonial, e não de sua natureza religiosa. Nos atos religiosos
particulares e menos cerimoniosos de uma cultura tradicional (como,
por exemplo, num apelo aos ancestrais num santuário doméstico), ainda
existe, é claro, um elemento de simbolismo. Mas, é importante lembrar
aqui que, na cultura Achanti, as relações com os ancestrais vivos em que
um pedido é feito em particular também são cerimoniosas. Todos os
contatos importantes entre os indivíduos, nas culturas tradicionais, são
cerimoniosos. Ao relatar uma sessão no santuário do Tano na primeira
parte deste século, Rattray descreveu como, quando o sacerdote que
trazia na cabeça o santuário “contendo” o espírito entrou no transe em
que falaria em nome deste, os sacerdotes e anciãos reunidos disseram
“Nana, ma akye” — “Senhor, bom dia” —, como teriam feito se um chefe
(ou um ancião) houvesse chegado. O formalismo da resposta, de algum
modo, é menos impressionante para mim do que sua naturalidade — o
sentimento que ela transmite de que o espírito do Tano é simplesmente
um ser entre outros, tratado com cerimônia por seu status ou seu poder,
e não porque a cena se distinga do cotidiano.
E, depois de havermos constatado que o cenário ritualístico é
cerimonioso, precisamos apenas da premissa adicional de que toda
cerimônia tem elementos de simbolismo para completar um silogismo: o
ritual implica o simbolismo. Pessoalmente, não tenho teorias sobre por
que os seres humanos ligam tão estreitamente a cerimônia ao
simbolismo. Isso é algo que muitos de nós começamos a fazer em nossas
brincadeiras infantis e, com certeza, é parte tão integrante de nossa
história natural quanto o é, digamos, a linguagem. Mas, que a
prevalência do simbolismo nos rituais religiosos de Achanti decorre da
concepção das relações entre pessoas e espíritos como relações entre
pessoas parece-me, à luz desses fatos, difícil de negar. Caso a caso, pode-
se fazer a mesma a rmação sobre a religião na maioria das culturas
ágrafas — na África e em outros locais.
Se a ênfase da teoria ocidental no caráter nitidamente simbólico do
pensamento e das práticas religiosos tradicionais é enganadora, vale a
pena nos determos por um momento para examinar por que ela tem sido
tão difundida. E a resposta reside, penso eu, no caráter da religião nas
culturas industrializadas em que se dá essa teorização sobre a religião.

O cristianismo é uma religião que se de ne pela doutrina; a heresia, o


paganismo e o ateísmo, como resultado, foram em várias épocas temas
centrais da re exão cristã. Nesse aspecto, é claro, o cristianismo não é
único; também o islamismo se de ne por sua doutrina e, como o
cristianismo, por seu Livro. Os evangelizadores islâmicos sustentam, vez
por outra, que a simples aceitação de dois pontos da doutrina — que
Deus é um e que Maomé é seu profeta — seria su ciente para constituir
a conversão, ao passo que os missionários cristãos costumam insistir pelo
menos num assentimento simbólico a um credo um pouco mais
complexo. Mas essas diferenças parecem relativamente insigni cantes, ao
contrastarmos o cristianismo e o islamismo, de um lado, com muitos dos
outros sistemas de ritos, práticas e crenças a que chamamos religiões.
Esse contraste nunca foi traçado com mais nitidez do que numa
observação de Chinua Achebe: “Não consigo imaginar os igbos viajando
quatro mil milhas para dizer a alguém que seu culto estava errado!”8
A extraordinária importância conferida à doutrina nas Igrejas cristãs
não é um fenômeno moderno; crescendo entre o paganismo romano e o
helênico, de um lado, e o judaísmo, de outro, e dividida desde os
primórdios, com acirramento e regularidade, em relação a temas que
podem parecer esplendidamente obscuros, a história da Igreja é, em
grande parte, a história das doutrinas. Mas, embora a doutrina seja
efetivamente central para o cristianismo, é importante lembrar o que
isso signi ca. “Doutrina”, justamente, não signi ca crenças (pois é fácil
demonstrar, como faz Keith omas em seu maravilhoso Religion and the
Decline of Magic [A religião e o declínio da magia*43 ], que nos dois últimos
milênios alterou-se radicalmente o caráter das proposições efetivas em
que os cristãos têm depositado sua crença); signi ca, antes, as fórmulas
verbais que expressam a crença. E isso tem-se revelado um tanto
embaraçoso para muitos cristãos do mundo, desde a revolução cientí ca.
Um conhecido tema da história da teologia é que o cristianismo
seguiu, numa certa medida, o epigrama de Oscar Wilde: “As religiões
morrem quando se provam verdadeiras. A ciência é a crônica das
religiões mortas.”9 Uma reação poderosa, entre os intelectuais cristãos,
tem consistido em recuar, em face da ciência, para a desmitologização
daquelas doutrinas de cujo lugar central na de nição de sua tradição
religiosa eles não podem escapar. E — como penso ser mostrado pela
obra de Keith omas, entre outros — é acertado dizer que o efeito da
desmitologização tem sido o de tratar como metafóricas doutrinas antes
tomadas na literalidade, ou, voltando a meu tema, tratá-las como
simbólicas. Isso nos levou, se posso caricaturar a história teológica
recente, a uma situação em que a a rmação de que “Deus é amor” pode
ser declarada por gente séria — Paul Tillich, por exemplo — como
signi cando algo como “O amor é extraordinariamente importante”; e a
uma abordagem da doutrina tradicional da vitória do Reino de Deus
como um modo “simbólico” de expressar a con ança em que “o amor
acabará triunfando”. E é possível detectar tendências desmitologizantes
similares na teologia liberal (ou de algum modo contra-normativa)
judaica (elas decerto são encontráveis em Martin Buber). Não é meu
propósito dizer se esse é um desdobramento sadio, embora sem dúvida
esteja claro para que lado pendem minhas simpatias. Mas, mesmo que —
coisa de que duvido — isso seja compatível com as principais tradições
do cristianismo e do judaísmo, tratar as crenças religiosas das culturas
tradicionais como igualmente simbólicas é fazer uma idéia radicalmente
equivocada de seu caráter.
A reformulação intelectual do cristianismo coexiste com uma
mudança no caráter da vida leiga cristã, pelo menos no que concerne aos
intelectuais. Para os cristãos cultos da Europa de antes da revolução
cientí ca e do crescimento do capitalismo industrial, a crença em seres
espirituais — santos, anjos, principados e potestades — tinha, sob muitos
aspectos, exatamente o caráter que reivindico para a religião achanti
tradicional. Através de atos praticados em santuários, que os ocidentais
chamariam de mágicos em Achanti, os éis buscavam a cura para suas
doenças, respostas para suas perguntas e orientação para seus atos. À
medida que se desenvolveram soluções tecnológicas para as doenças e
uma compreensão cientí ca destas, muitas pessoas (e, em especial,
muitos intelectuais) afastaram-se desse aspecto da religião, embora,
como seria de se esperar, ele continuasse a ser uma parcela importante
do cristianismo no mundo não industrializado e nas partes —
signi cativas — do mundo industrializado em que a visão cientí ca de
mundo ainda está por ser apreendida.
Mas, no mundo industrial, a vida religiosa dos intelectuais voltou-se
mais e mais para a vida contemplativa, concebida como uma relação
espiritual com Deus. Se a resposta de Deus é buscada para muitas
perguntas de caráter técnico, essas são as perguntas que continuaram
resistentes ao manejo cientí co — indagações sobre as relações do
sujeito com outrem, e perguntas que nem mesmo em princípio podiam
ser abordadas pela ciência: questões de valor. Por si só, esse é um
desdobramento muito interessante, mas inseriu uma grande cunha entre
a religião do mundo industrializado e a religião das culturas
tradicionais.
Há uma outra mudança na natureza da religião contemplativa no
Ocidente. Ela está ligada a minha observação anterior de que o
simbolismo caracteriza o cerimonioso, e de que nas culturas tradicionais
as relações sociais importantes exigem cerimônia. À medida que nossas
relações uns com os outros tornaramse menos cerimoniosas, o mesmo se
deu com nossos atos religiosos privados. A oração tornou-se, para
muitos, semelhante a uma conversa íntima. Mas o mesmo sucede com a
tradição achanti. O que acontece é que a compreensão da intimidade é
diferente.

Venho abordando basicamente o primeiro grupo de questões que


levantei sobre o ritual religioso: as referentes à natureza do ritual e às
crenças que lhe são subjacentes. Falei pouco das origens dessas crenças;
nas culturas predominantemente ágrafas, muitas vezes é impossível
responder a essas perguntas, por falta de elementos comprobatórios. No
que concerne ao cristianismo e ao judaísmo, é possível discutir essas
questões porque temos registros dos concílios de Nicéia e Calcedônia,
ou porque temos amplas tradições de re exão judaica letrada. Se
quisermos, porém, enfrentar a questão da racionalidade das crenças
tradicionais, teremos que nos voltar, nalmente, para meu terceiro
conjunto de perguntas: as que se referem ao que mantém vivas essas
crenças que as pessoas de fora julgam tão obviamente falsas.
Ao formular essas perguntas, alguns foram levados, por um caminho
diferente, a tratar a religião em termos simbólicos. O antropólogo
britânico John Beattie, por exemplo, desenvolveu uma visão “simbolista”
das religiões tradicionais da África, cujo “esteio central”, como diz Robin
Horton (um lósofo-antropólogo que é súdito britânico e vive há muito
tempo na Nigéria), “é que o pensamento religioso tradicional é
basicamente diferente do pensamento cientí co ocidental e
incomensurável com ele”; assim, os simbolistas evitam “as comparações
com a ciência e se voltam, em vez disso, para as comparações com o
simbolismo e a arte”.10
O pensamento simbolista básico é captado concisamente (se bem que
com ironia) nesta formulação do lósofo camaronês M. Hegba:
Uma das abordagens dos fenômenos da magia e da feitiçaria seria supor que estamos diante de
uma linguagem simbólica (...). Um homem que voa pelo ar, transforma-se num animal ou se
torna invisível segundo sua vontade (...) não pode ser outra coisa senão uma linguagem
codi cada, cuja decodi cação simplesmente temos que descobrir. Então estaríamos
garantidos.11

Dito em termos simples, os simbolistas só conseguem tratar os éis


tradicionais como seguramente racionais porque negam que as pessoas
tradicionalistas pretendam dizer o que dizem. Ora, Robin Horton
objetou — com acerto — que essa colocação deixa completamente
inexplicado o fato de os povos tradicionais apelarem sistematicamente
para os agentes invisíveis de suas religiões, tendo em vista explicar os
acontecimentos do que chamaríamos mundo natural.12 Horton poderia
ter chamado atenção aqui, com proveito, para um fato que Hegba
observa ao passar da caracterização para a crítica do simbolismo: “a
linguagem simbólica e esotérica é altamente reverenciada em nossa
sociedade”.13 É peculiarmente insatisfatório tratar um sistema de
proposições como simbólico, quando aqueles a quem pertencem essas
proposições parecem tratálas literalmente e exibir, em outros contextos,
uma clara apreensão da noção de representação simbólica.
Já mencionei Durkheim uma vez; em sua obra encontramos a
exposição mais clara da ligação entre a ânsia de tratar a religião como
simbólica e a questão de por que essas crenças patentemente falsas não
poderiam sobreviver. É que Durkheim não admite que as crenças
religiosas sejam falsas, pois julga que as crenças falsas não podem
sobreviver. Já que, se fossem falsas, elas não teriam sobrevivido, segue-se
que devem ser verdadeiras; e, já que não são literalmente verdadeiras,
devem sê-lo em termos simbólicos.14 Essa argumentação baseia-se num
entendimento equivocado da relação entre a racionalidade das crenças,
sua utilidade e sua verdade; é importante dizer por quê.

A melhor maneira de conceber a racionalidade é como um ideal, tanto


no sentido de ela ser algo que vale a pena almejar quanto no de ser algo
que somos incapazes de realizar na prática. Ela é um ideal que tem uma
importante relação interna com outro grande ideal cognitivo, a
Verdade. Poderíamos dizer que, na crença, a racionalidade consiste em
ter uma disposição tal a reagir às provas e à re exão, que o sujeito altera
suas crenças de modo a tornar mais provável que elas sejam verdadeiras.
Se isso estiver certo, podemos ver prontamente por que a incoerência na
crença é um sinal de irracionalidade: é que ter um par de crenças
incoerentes garante que se tem pelo menos uma crença falsa, já que as
crenças incoerentes são precisamente aquelas que não podem ser todas
verdadeiras. Mas vemos também que a coerência, como ideal, não basta.
Pois alguém poderia ter um conjunto perfeitamente coerente de crenças
sobre o mundo, sendo, porém, quase todas não apenas falsas, mas
obviamente falsas. É coerente a rmar, com Descartes num de seus
momentos céticos, que todas as minhas experiências são causadas por
um gênio maligno; e, dando a essa fantasia uma roupagem moderna, não
há incoerência em sustentar a fantasia paranóide de que o mundo é
“realmente” um cubo que contém apenas meu cérebro, imerso num
líquido, uma porção de os e um cientista maligno. Mas, apesar de
coerente, essa crença não é racional: todos concordamos, espero, em que
reagir às provas sensoriais dessa maneira não aumenta a probabilidade
de que as crenças do sujeito sejam verdadeiras.15
Ora, a questão da utilidade, do valor de sobrevivência de um conjunto
de crenças, é muito distinta da de sua verdade e sua sensatez, concebidas
dessa maneira. Qualquer um que tenha lido a elegante discussão de
Evans-Pritchard sobre as crenças dos zandes na feitiçaria — às quais
retornarei mais adiante — há de lembrar como é fácil compreender a
idéia de que todo um conjunto de crenças falsas pode, não obstante,
fazer parte do que mantém unida uma comunidade. Mas essa idéia não
requer muito esforço: desde Freud, todos estamos aptos a entender por
que, por exemplo, pode ser mais útil o sujeito acreditar que ama alguém
do que reconhecer que não o faz.
Com tal explicação da racionalidade, vê-se por que a falsidade
aparentemente óbvia das crenças do sacerdote achanti poderia ser
encarada como prova de sua irracionalidade. Pois, como poderia ele ter
aquirido e mantido essas crenças, caso seguisse a prescrição de sempre
procurar modi car as próprias crenças de maneira a tornar mais
provável sua veracidade? A resposta é simples. O sacerdote adquiriu suas
crenças da maneira como todos adquirimos o grosso de nossas próprias
crenças: sendo-lhe ditas coisas enquanto ele crescia. Como a rma Evans-
Pritchard sobre o povo zande: eles “nascem numa cultura com padrões
de crença prontos, que têm o peso da tradição a sustentá-los”.16 O
mesmo, é claro, se dá conosco. De modo geral, na vida do sacerdote
acontecem poucas coisas que possam sugerir que elas não são
verdadeiras. Na nossa também.
Ora, talvez pareça estranho sugerir que aceitar as crenças da própria
cultura e ater-se a elas, na ausência de provas contrárias, possa ser
racional, se isso levar à adoção de crenças que, do ponto de vista dos
intelectuais ocidentais, são desvairadamente falsas. E isso se aplicará, em
especial, se você encarar a racionalidade como uma questão de tentar
desenvolver hábitos de aquisição de crenças que tornem provável que
você reaja às provas e à re exão de modos que tendam a produzir a
verdade. Mas, pensar de outra maneira é entender mal a natureza
relativamente deplorável de nossa situação epistêmica no universo. Uma
descoberta fundamental da re exão losó ca sobre nossa situação como
conhecedores é que não há outro requisito, a não ser a coerência, que
possamos impor de antemão a nossas crenças, de modo a lhes aumentar
a probabilidade de serem verdadeiras; e que uma pessoa que parta de um
conjunto coerente de crenças pode chegar, através de princípios de
evidência racionais, às mais fantásticas inverdades. A sabedoria da
modéstia epistemológica é, sem dúvida, uma das lições da história da
ciência natural; e, de fato, se há uma grande lição a extrair do fracasso
do positivismo como metodologia das ciências, com certeza ela é, como
recentemente argumentou Richard Miller, que não existem regras a
priori que nos garantam teorias verdadeiras.17 Olhando para trás, o
sucesso do que chamamos “método empírico” parece ter resultado, como
a evolução, da capitalização numa série de acasos fortuitos. Se a teoria
do sacerdote é errada, devemos encarar isso como sendo basicamente
uma questão de azar, e não de ele ter sido culpado de haver deixado de
observar as regras adequadas de um método a priori.
Um europeu ou norte-americano moderno também pode não perceber
quão sensatas pareceriam as visões do sacerdote, pois, ao avaliar as
crenças religiosas de outras culturas, todos partimos, como é natural,
das nossas. Mas, é exatamente a ausência desse ponto de vista alheio
alternativo, numa cultura tradicional, que torna sensato adotar a visão
de mundo “tradicional”. A prova de que os espíritos existem é evidente:
os sacerdotes entram em transe, as pessoas melhoram após a aplicação de
remédios espirituais, e sistematicamente morrem pessoas pela ação de
espíritos inamistosos. A reinterpretação dessas provas em termos de
teorias médico-cientí cas ou psicológicas exige que existam essas teorias
alternativas, e que as pessoas tenham alguma razão para acreditar nelas:
vez após outra, no entanto, e especialmente na área da vida mental e
social, a visão tradicional tende a ser con rmada. Dispomos de teorias
que explicam parte disso, como a teoria da sugestão e da
sugestionabilidade, por exemplo; e, se convencêssemos os pensadores
tradicionais dessas teorias, é possível que eles se tornassem céticos a
respeito das teorias sustentadas em sua própria cultura. Entretanto, não
podemos começar por pedir-lhes que presumam que suas crenças são
falsas, pois eles sempre têm a possibilidade de fazer numerosos
movimentos no sentido de uma defesa razoável de suas crenças. É esse
fato que nos habilita a nos opor à tese de que as crenças tradicionais são
simplesmente irracionais.

A exposição clássica desse processo de defesa na etnogra a do


pensamento tradicional africano é Witchcra, Oracles and Magic Among
the Azande [Bruxaria, oráculos e magia entre os azande], de Evans-
Pritchard. Quase no nal do livro, ele diz: “Pode-se indagar por que os
azande não percebem a inutilidade de sua magia. Seria fácil redigir um
longo texto em resposta a essa pergunta, mas contento-me em sugerir,
da maneira mais sucinta possível, diversas razões.”18 O autor arrola então
22 dessas razões. Menciona, por exemplo, que, já que “a magia é
predominantemente empregada contra poderes místicos (...), sua ação
transcende a experiência” e, por conseguinte, “não é fácil contradizê-la
pela experiência”,19 o que reforça uma a rmação feita algumas páginas
antes: “Não compreenderemos a magia zande (...) se não nos dermos
conta de que seu principal objetivo é combater outros poderes místicos,
e não produzir mudanças favoráveis ao homem no mundo objetivo.”20
Ele diz que as práticas da feitiçaria, dos oráculos e da magia pressupõem
um sistema coerente de crenças mutuamente corroborativas.
A morte é prova da feitiçaria. É vingada através da magia (...). A acuidade do oráculo do veneno
é determinada pelo oráculo do rei, que está acima de qualquer suspeita (...). Os resultados
supostamente produzidos pela magia ocorrem, de fato, depois da execução dos ritos (...). A
magia é praticada apenas para produzir eventos que tendem a acontecer de qualquer maneira
(...) [e] raramente é solicitada a produzir por si só algum resultado, sendo associada, antes, a
uma ação empírica que de fato o produz — por exemplo, um príncipe dá alimentos para atrair
seguidores, não con ando apenas na magia.21

Embora Evans-Pritchard reconheça que os azande observam falhas em


sua feitiçaria, ele também mostra como estes dispõem de muitos modos
de explicar essas falhas: pode ter havido um erro na execução do feitiço;
pode haver um feitiço desconhecido e contrário, e assim por diante.
O fato de ser possível fazer exatamente esse tipo de gestos em defesa
das crenças religiosas tradicionais tem levado alguns a concluir que a
crença religiosa tradicional deve ser interpretada como tendo os
mesmos objetivos das crenças da moderna ciência natural, que se
resumem no lema “explicação, previsão e controle”. Isso porque, quando
os procedimentos cientí cos falham, os cientistas não costumam reagir
— como certa vez ouvi um físico eminente reagir a uma hora num
laboratório com os fenômenos supostamente parapsicológicos
produzidos por Uri Geller22 — dizendo que devemos “reformular toda a
física desde o começo”. Ao contrário, eles oferecem explicações sobre
como as falhas poderiam ter ocorrido, coerentemente com a teoria. É
comum os bioquímicos ignorarem os resultados negativos, presumindo
que os tubos de ensaio estavam sujos, ou que as amostras estavam
contaminadas, ou que, na preparação da amostra, eles deixaram de
tomar alguma precaução necessária para prevenir a ação das enzimas que
sempre são liberadas quando se dani ca uma célula. Um zande cético
poderia perfeitamente fazer sobre esses processos o mesmo tipo de
observação feita por Evans-Pritchard sobre a magia azande: “A
percepção do erro numa noção mística, numa situação particular,
meramente prova a exatidão de outra noção igualmente mística.”
Os lósofos da ciência têm nomes para isso: dizem que a teoria é
“subdeterminada” pela observação e que a observação está
“sobrecarregada pela teoria”. E o que querem dizer com subdeterminação
é um fato assinalado pelo lósofofísico francês Pierre Duhem no início
deste século: que a aplicação da teoria a casos particulares baseia-se em
toda uma multiplicidade de outras crenças, nem todas as quais podem
ser veri cadas de uma só vez. Por sobrecarga teórica da observação, de
modo correlato, eles pretendem referir-se ao fato de que nossas teorias
tanto contribuem para formar nossa experiência quanto dão sentido à
linguagem que usamos para relatá-la. A a rmação de Sir Karl Popper de
que a ciência deve avançar por tentativas de falseamento é incorreta,
como todos sabemos após a leitura de omas Kuhn.23 Se todas as vezes
que um experimento fracassa nós desistíssemos, a teoria cientí ca não
chegaria a parte alguma. A subdeterminação de nossas teorias por nossa
experiência signi ca que até o mais malsucedido experimento nos deixa
uma margem de manobra. O negócio é não desistir depressa demais, nem
insistir por tempo demasiado. Na ciência, como em qualquer outra área,
existem os bebês e existe a água suja do banho.
Sugeri que poderiamos assemelhar as teorias subjacentes à religião
tradicional e à magia às teorias engendradas nas ciências naturais,
porque ambas são sistemas explicativos de crenças que têm em comum o
problema da subdeterminação. Mas há outros caminhos para essa
assemelhação. Se quisermos explorar a plausibilidade dessa idéia, será
útil reunirmos mais algumas provas.

A título de comparação com a cerimônia pela qual iniciei este capítulo,


permitam-me descrever uma outra, da qual participei há alguns anos em
Koumassi. Foi, aliás, o casamento de minha irmã. A cerimônia legal
ocorreu numa igreja metodista, no contexto de um ofício religioso
conduzido na linguagem do antigo livro de orações inglês. “Amados
irmãos”, começava ele, “estamos aqui reunidos na presença de Deus (...).”
Na primeira la sentavam-se o rei de Achanti, sua mulher, a rainha-mãe
e o lho do rei, Nana Akyempemhene — uma coleção tão grandiosa da
aristocracia tradicional achanti quanto se poderia desejar. Depois,
voltamos para a residência particular do rei e ali tivemos uma recepção
ao som dos tocadores de tambor da rainha-mãe, com centenas de
membros da família real.
Contudo, não muito depois de começarmos, o arcebispo católico de
Koumassi (lembrem-se, isso foi depois de uma cerimônia metodista) fez
algumas orações, o que foi seguido (e lembrem-se, tratava-se de um
arcebispo católico) por libações vertidas em honra aos ancestrais de
minha família, feitas por um dos mais antigos lingüistas do rei. As
palavras endereçadas a esses ancestrais foram enunciadas no mesmo
estilo das palavras do sacerdote ouvido por Rattray. O rei de Achanti é
anglicano e membro do tribunal inglês; seu lho, na época advogado do
Serviço Diplomático de Gana, tem um PhD de Tus; e os noivos se
conheceram na Universidade de Sussex, na Inglaterra (cada qual tendo
também outro diploma), e eram, respectivamente, uma médica
sanitarista e um banqueiro mercantil nigeriano. São, portanto, africanos
modernos, não apenas no sentido de estarem vivendo agora, mas
também no de terem essa credencial essencial do homem ou da mulher
modernos — um título universitário ao lado do nome. Dentro de um
instante, a rmarei que esses títulos têm mais do que uma importância
metafórica.
Que havemos de depreender de tudo isso? Ou melhor, como hão de
entendêlo os europeus e norte-americanos, já que é tudo tão familiar
para mim — para a maioria dos africanos contemporâneos —, que acho
difícil resgatar o sentimento de contradição entre os elementos dessa
síntese sem dúvida notável?
Essas cerimônias são o que quero chamar de “não tradicionais”: elas
são não tradicionais por coexistirem com uma certa medida de crença
no cristianismo que veio com os colonizadores, por um lado, e com uma
certa familiaridade com a visão das ciências naturais, por outro. Mas
tampouco são “modernas”: os sentidos ligados a esses atos não são os da
eucaristia puramente simbólica da teologia liberal rigorosa. A questão, é
claro, está em como todos esses elementos podem coexistir, no que é que
faz dessa mistura conceitual, não uma fonte de tensão e mal-estar
intelectuais, mas a fonte de uma extraordinária gama de atividades
culturais.
Penso que a chave desse enigma pode ser encontrada se retomarmos a
idéia a que fomos levados antes: a idéia de que a teoria religiosa
tradicional, sob certos aspectos, assemelha-se mais à ciência moderna do
que à religião moderna; em particular, de que ela compartilha os
objetivos da ciência natural moderna, que podemos resumir no lema
“explicação, previsão e controle”. Foi a elaboração sistemática da
analogia entre a ciência natural e a religião tradicional que tornou a
obra de Robin Horton tão importante na loso a das religiões
tradicionais africanas; e será útil começar por ele.24
A a rmação básica de Horton é justamente a que z antes: o caráter
fundamental desses sistemas religiosos é que as práticas decorrem da
crença literal, e não simbólica, nos poderes de agentes invisíveis. Horton
argumenta de maneira convincente, e a meu ver correta, que os espíritos
e similares funcionam, na explicação, previsão e controle, exatamente
como o fazem outras entidades teóricas: eles diferem das da ciência
natural por serem pessoas, e não forças e poderes materiais, mas a lógica
de seu funcionamento na explicação e na previsão é a mesma.
A visão de Horton, portanto, é que as crenças religiosas dos povos
tradicionais constituem teorias explicativas, e que os atos religiosos
tradicionais são tentativas sensatas de realizar objetivos à luz dessas
crenças; em outras palavras, tentativas de previsão e controle do mundo.
Nesses aspectos, a rma Horton, a crença e a ação religiosas tradicionais
são como a teoria nas ciências naturais e as ações baseadas nela. Como
diz Hegba, na tradição africana francófona:
Embora sem deixar de reconhecer seus limites nem cercear a marcha para o progresso, para a
compreensão teórica [a ciência] e para a libertação, devemos admitir que as explicações
africanas dos fenômenos da magia e da feitiçaria são racionais. Nossas crenças populares
decerto são desconcertantes e, às vezes, falsas; mas, não seria um grave erro metodológico
postular a irracionalidade no começo do estudo de uma sociedade?25

A tese de Horton não é que a religião tradicional seja uma espécie de


ciência, mas que as teorias desses dois campos são semelhantes nesses
aspectos cruciais. A principal diferença no conteúdo das teorias, a rma
ele, é que a teoria religiosa tradicional é enunciada em termos de forças
pessoais, enquanto a teoria cientí ca natural é enunciada em termos de
forças impessoais. Essa a rmação básica me parece imensamente
plausível.
Contudo, na analogia entre a ciência natural e a religião tradicional
há também muita coisa que pode desorientar. Um primeiro aspecto de
como essa assemelhação corre o risco de ser enganosa destaca-se ao
recordarmos que a maioria de nós tem idéias bastante vagas sobre os
fundamentos teóricos das teorias médicas que norteiam nossos médicos
e das teorias físicas usadas para produzir e consertar nossos rádios.
Nisso, é claro, somos como o achanti médio do século XIX, que,
presumivelmente, tinha uma vaga percepção dos fundamentos a partir
dos quais os herboristas e sacerdotes praticavam sua arte. Na aplicação,
na utilização por não-especialistas na vida cotidiana, é freqüente nossas
teorias sobre como funciona o mundo receberem nossa con ança em
linhas gerais e de maneira prática, sem muita articulação e sem nenhum
investimento profundo nos detalhes. Em boa parte da prática religiosa
africana contemporânea (e isso inclui a cerimônia que descrevi), há (em
cada comunidade praticante, cada seita ou culto ou comunidade) muito
mais consenso sobre as formas apropriadas do ritual e da ação litúrgica
do que sobre o que os justi ca; e, nesse aspecto, a prática religiosa na
África difere bem pouco da prática religiosa no mundo industrializado
contemporâneo. Embora a extensão da crença literal numa entidade
invisível possa ser um pouco maior na África do que nos Estados Unidos
(e provavelmente muito maior do que, digamos, na Grã-Bretanha ou na
Noruega), tanto numa quanto no outro há um sentido em que a vida
religiosa pode continuar, e em que se pode participar dela com pouca
curiosidade sobre as crenças literais dos co-participantes e pouco
compromisso teórico de nossa parte. Ao insistir no papel da teoria, aqui,
camos fadados, por conseguinte, a parecer que nos estamos
concentrando em algo que está longe de ser central para aqueles cujas
práticas religiosas estamos discutindo e que, com isso, distorcemos sua
experiência para traçar a analogia com a ciência natural. Mas, desde que
tenhamos em mente que não se está fazendo nenhuma a rmação senão a
de que essas práticas religiosas funcionam segundo o pressuposto de
uma certa teoria — a de que existem entidades espirituais de vários tipos
—, e de que essa teoria permite a explicação e a previsão no estilo do que
fazem as teorias cientí cas, não creio que, com isso, precisemos ser
levados a julgar erroneamente a importância relativa da teoria e da
prática na religião tradicional.
Contudo, essa preocupação aproxima-se de uma segunda di culdade
da assemelhação da religião tradicional com a ciência natural, uma
di culdade apontada por Kwasi Wiredu: é aparentemente muito
estranho equiparar a crença religiosa tradicional da África Ocidental
com a teoria cientí ca ocidental moderna, quando seu análogo óbvio
seria a crença religiosa tradicional ocidental.26 Penso que há de estar
evidente, pelo que eu já disse, que me parece não haver necessidade de
competição aqui, pois a função explicativa das crenças religiosas na
Europa tradicional também me parece ser idêntica, em sua lógica, à da
teoria cientí ca.
O que é inducente a erro não é a assemelhação das lógicas explicativas
das teorias advindas da religião e da ciência, mas a assemelhação da
religião tradicional com a ciência natural como instituições. Isso é
enganador, antes de mais nada, por causa dos tipos de mudanças que
delineei na vida religiosa ocidental. Para o ocidental moderno, como
mostrei, chamar algo de “religioso” é conotar muita coisa que falta na
religião tradicional e não conotar muito do que está presente. Mas, há
uma razão muito mais fundamental por que a equiparação da religião
com a ciência é enganadora. Ela tem a ver com a organização social da
investigação, que é totalmente diferente nas culturas tradicionais e
modernas. Voltarei a essa questão no m do capítulo.

O próprio Horton, é claro, está ciente de que as crenças religiosas


tradicionais certamente diferem das da ciência natural, em pelo menos
dois aspectos importantes. Antes de mais nada, como já insisti, ele
assinala que as entidades teóricas invocadas são agentes, e não forças
materiais. E nos oferece uma explicação de por que isso se dá. Horton
sugere que essa diferença provém da natureza fundamental da explicação
como redução do desconhecido ao conhecido. Nas culturas tradicionais,
a natureza, a vida natural, é indomada, estranha, e fonte de perplexidade
e medo. As relações sociais e as pessoas, ao contrário, são conhecidas e
bem compreendidas. Explicar o comportamento da natureza em termos
de entidades é, portanto, reduzir as forças desconhecidas do mundo
natural às categorias explicativas conhecidas das relações pessoais.
No mundo industrializado, por outro lado, a industrialização e a
urbanização tornaram as relações sociais intrigantes e problemáticas.
Deslocamo-nos entre ambientes sociais — o rural e o urbano, o local de
trabalho e o lar — em que funcionam convenções diferentes; no novo
ambiente urbano, fabril e de mercado, lidamos com pessoas que só
conhecemos através de nossos projetos produtivos comuns. Como
resultado, o social é relativamente desconhecido. Na cidade, por outro
lado, nossas relações com os objetos são relações que permanecem
relativamente estáveis em todas essas diferentes relações sociais. Com
efeito, quando os operários fabris se movem de uma fábrica a outra, as
habilidades que levam consigo são precisamente aquelas que dependem
de uma familiaridade, não com outras pessoas, mas com o
funcionamento das coisas materiais. Já não é natural tentar compreender
a natureza através das relações sociais; antes, nós a compreendemos
através de máquinas, através da matéria cujo funcionamento
consideramos comodamente conhecido. É sabido que a compreensão dos
gases no século XIX pautou-se no comportamento de bolas de bilhar em
miniatura: é que os cientistas oitocentistas da Europa conheciam a mesa
de bilhar melhor do que conheciam, por exemplo, seus criados. A
alienação é largamente considerada como o estado característico do
homem moderno: pode-se exagerar a ênfase nessa colocação, mas é
impossível negá-la.
Nas sociedades industriais complexas e em rápido processo de mudança, o cenário humano é
cambiante. A ordem, a regularidade, a previsibilidade, a simplicidade, tudo isso parece
lamentavelmente ausente. É no mundo das coisas inanimadas que essas qualidades são
prontamente observadas. E essa (...), sugiro eu, é a razão por que a mente à procura de
analogias explicativas volta-se com extrema presteza para o inanimado. Nas sociedades
tradicionais da África vemos o inverso dessa situação. O cenário humano é o locus por
excelência da ordem, da previsibilidade e da regularidade. No mundo do inanimado, essas
qualidades são muito menos evidentes (...); ali, a mente à procura de analogias explicativas
volta-se naturalmente para as pessoas e suas relações.27

Nesse ponto, a função da teoria cientí ca, para Horton, seria


essencialmente o desenvolvimento de modelos a partir de traços
subjacentes uni cados, simples, ordeiros e regulares da realidade, a m
de explicar a diversidade, a complexidade, a desordem e o aparente
desregramento da experiência comum.28 O argumento dele funciona tão
bem que é difícil não acharmos que há alguma coisa certa ali; de fato, ele
explicaria a preferência pela entidade à matéria, primeira das grandes
diferenças que Horton reconhece entre a religião tradicional e a ciência.
No entanto, isso não pode estar realmente certo. Todas as culturas —
num estilo modesto, diria eu, todas as culturas de que tenho
conhecimento — têm recursos conceituais para pelo menos dois tipos
fundamentais de explicação. De um lado, todas têm algum tipo de idéia
do que Aristóteles chamava de causação “e ciente”: a causalidade do
empurra-e-puxa mediante o qual entendemos as interações cotidianas
dos objetos e forças materiais. De outro, todas têm uma idéia de
explicação que tem a ação humana como seu protótipo, a idéia que,
como o lósofo norte-americano Daniel Dennett caracterizou,
subentende a “postura intencional”.29 Esse tipo de explicação relaciona
as ações com as crenças, desejos, intenções, medos e assim por diante —
as chamadas “atitudes propositivas” — e é fundamental (pelas maneiras
que sugeri antes) para a psicologia popular. Poderíamos dizer,
analogamente, que a causalidade e ciente é central para o que os
psicólogos cognitivistas hoje chamam de “física ingênua” ou “popular”.
Esses tipos de explicação estão interligados, é claro: quando explico a
morte de um elefante falando da necessidade de alimento, da caça, do
disparo da arma, esses são elementos da física popular e da psicologia
popular, subentendidos em cada etapa dessa narrativa. Dizer que a
explicação mecanicista é desconhecida dos povos pré-industriais é,
evidentemente, uma verdade. A explicação mecanicista é a explicação em
termos de máquinas, que são, é claro, exatamente o que as culturas pré-
industriais não têm. Mas a explicação mecanicista não é, de modo
algum, o único tipo de explicação não intencional: há mais na física
popular do que uma visão das máquinas. E a verdade é que a estabilidade
das relações causais dos objetos no mundo pré-industrial é certamente
muito substantiva: não só as pessoas fazem ferramentas e utensílios,
usando os conceitos da causação e ciente, como suas interações físicas
habituais com o mundo — ao cavar, caçar, andar, dançar — são tão
estáveis e bem compreendidas quanto suas relações de família. Mais do
que isso, o homo préindustrial já é o homo faber. e a feitura de vasos e
jóias, por exemplo, implica um conhecimento íntimo das coisas físicas e
uma expectativa de regularidade em seu comportamento. Os vasos, anéis
e colares quebram, é claro, e muitas vezes o fazem de modo imprevisível.
Mas, nesse aspecto, não são obviamente menos con áveis que as pessoas,
que, a nal, também são notoriamente difíceis de prever.
O que precisamos reintroduzir no panorama, aqui, é um tipo de
explicação que falta na argumentação de Horton, a saber, a explicação
funcionalista, que encontramos em caráter central (mas de modo algum
exclusivo) no que poderiamos chamar de “biologia popular”. A
explicação funcional é o tipo de explicação que damos quando dizemos
que a or existe para atrair a abelha que a poliniza; que o fígado existe
para puri car o sangue; que a chuva cai para irrigar as plantações.
Esse tipo de explicação está ausente da argumentação de Horton, e
por uma ótima razão, a saber: a loso a positivista da ciência, na qual ele
se pauta, procurou erradicar a explicação funcionalista ou reduzi-la a
outros tipos de explicação, em grande parte porque cheirava a uma
teleologia — do tipo da causação “ nal” aristotélica, que o positivismo
julgou ter-se demonstrado inútil pelo fracasso do vitalismo na biologia
do século XIX. E, com certeza, o que mais impressiona nas explicações
“acientí cas” oferecidas pela maioria das culturas africanas pré-coloniais
não é apenas o fato de elas recorrerem a uma entidade, mas o de visarem
à pergunta “por quê?”, entendida como indagando para que serve o
evento em questão. Evans-Pritchard, em sua exposição da crença zande,
insiste em que os azande não consideram que os “acontecimentos
infaustos” ocorram por acaso:30 seu recurso freqüente à feitiçaria — na
falta de outras explicações aceitáveis para o infortúnio — demonstra que
eles não se dispõem a aceitar a existência do contingente. Mas, rejeitar a
possibilidade do contingente é, exatamente, insistir em que tudo o que
acontece atende a alguma nalidade: uma visão familiar na tradição
cristã, em formulações como “E sabemos que todas as coisas cooperam
para o bem daqueles que amam a Deus (...)” (Romanos, 8:28), ou na
necessidade profunda que as pessoas sentem — tanto na Europa e
América quanto na África — de respostas para a pergunta “Por que
acontecem coisas ruins com gente boa?”. As crenças da feitiçaria zande
decorrem de uma suposição de que o universo acha-se num certo tipo de
equilíbrio avaliativo; em suma, o tipo de pressuposto que leva os
teólogos monoteístas a elaborar teodicéias.
O que o povo zande recusa-se a aceitar, como deixa claro a exposição
de Evans-Pritchard, não é que os “acontecimentos infaustos” não tenham
explicação — o celeiro desabou porque os cupins devoraram as estacas
que o sustentavam —, mas que eles sejam desprovidos de sentido, que
não haja uma razão mais profunda pela qual a pessoa sentada à sombra
do celeiro tenha-se ferido. Nesse sentido, ele compartilha uma atitude
que encontramos na teodicéia cristã, de Irineu a Santo Agostinho e a
Karl Barth: a atitude de que o cosmo funciona de acordo com um
projeto. Pois as culturas pré-coloniais africanas, como os pensadores
pré-cientí cos e não cientí cos de toda parte, inclinam-se a supor que
os acontecimentos do mundo têm sentido; eles se preocupam, não com a
possibilidade do inexplicado (aquilo que não tem causa e ciente nem
pode ser explicado por um agente), mas com a do absurdo (aquilo que
não tem nenhuma função, que não serve para nada). E isso diferencia os
que aceitam a visão de mundo cientí ca — uma minoria, é claro, mesmo
no mundo industrializado — de quase todos os outros seres humanos ao
longo de toda a história. Pois um traço característico da visão cientí ca
de mundo é que ela admite que nem tudo o que acontece tem um sentido
humano. Penso que, para explicar essa diferença entre as concepções
cientí cas e não cientí cas, precisamos começar pelo fato de que o
mundo, tal como as ciências o concebem, estende-se imensamente além
do horizonte humano, no tempo e no espaço.
Como indicou Alexandre Koyré no título de seu célebre estudo sobre
o nascimento da moderna física celeste, a revolução newtoniana seguiu a
trilha intelectual que vai From the Closed World to the Infinite Universe
[Do mundo fechado ao universo infinito*44 ]; e a disputa vitoriana entre a
ciência e a religião teve em seu centro um debate sobre a idade da Terra,
com a geologia insistindo em que a escala temporal bíblica, de alguns
milhares de anos decorridos desde a Criação, subestimava radicalmente a
idade do planeta. Copérnico levou os cientistas europeus de uma visão
geocêntrica para uma visão heliocêntrica do universo, e iniciou um
processo, continuado por Darwin, que retirou inapelavelmente a espécie
humana do centro das ciências naturais. O reconhecimento de que o
universo não parece ter sido feito para nós é a base do caráter
radicalmente não antropocêntrico das teorias cientí cas do mundo. Esse
nãoantropocentrismo faz parte da mudança de opinião que se
desenvolveu com o crescimento do capitalismo, da ciência e do Estado
moderno, mudança abordada, por exemplo, pela explicação weberiana
da modernização; e ele contribui profundamente para o sentimento de
um universo desencantado, que os weberianos julgaram ser um traço
muito central da modernidade (a rmação que faz mais sentido como
referente à vida dos intelectuais pro ssionais do que como uma
a rmação sobre a cultura em geral). Voltarei a essas questões no capítulo
7.

Mas em seu trabalho original, como eu disse, Horton fez uma segunda
a rmação importante em prol da diferença: resumiu-a chamando o
mundo cognitivo das culturas tradicionais de “fechado”, e o das culturas
modernas, de “aberto”. “O que considero ser a diferença fundamental é
uma diferença muito simples”, escreve ele. “É que, nas culturas
tradicionais, não há uma consciência desenvolvida das alternativas ao
corpo de princípios teóricos aceito, ao passo que, nas culturas de
orientação cientí ca, essa consciência é altamente desenvolvida.”31
Quando saímos das questões relativas ao conteúdo e à lógica da
explicação tradicional e cientí ca e entramos nos contextos sociais em
que essas teorias são construídas e mobilizadas, é aí que a explicação de
Horton começa a parecer menos satisfatória.
Devemos começar, entretanto, concordando em que existem
claramente importantes diferenças entre os contextos sociais da
formação e desenvolvimento da teoria na África pré-colonial, de um
lado, e na Europa pós-renascentista, de outro. A ciência moderna teve
início na Europa, justamente quando seus povos estavam começando a se
expor às culturas antes desconhecidas do Oriente, da África e das
Américas. Os primeiros trabalhos cientí cos em língua vernácula — os
diálogos de Galileu, por exemplo — foram escritos na Itália, numa época
em que fazia algum tempo que as cidades mercantis italianas
encontravam-se no centro do comércio entre o Mediterrâneo, o Oriente
— próximo e distante —, o Novo Mundo e a África. Num clima assim,
era natural indagar se as certezas dos antepassados estariam corretas, no
confronto com culturas como a China descrita por Marco Polo, cuja
engenhosidade técnica combinava-se com teorias da natureza totalmente
desconhecidas.
Esse questionamento das crenças ocidentais ocorreu não apenas em
termos da teoria da natureza, mas também recapitulou as discussões
gregas sobre os modos como as questões de valor parecem variar de um
lugar para outro, discussões estas que levaram, muito naturalmente, a
um ceticismo moral e cientí co, exatamente do tipo que encontramos
nos primeiros empiristas modernos. E não parece ter sido por
coincidência que essas antigas discussões gregas foram instigadas por
uma consciência de que existiam visões de mundo alternativas, africanas
e asiáticas — uma consciência encontrável nos primeiros historiadores,
como Heródoto. (O relato de Heródoto sobre as Guerras Persas começa
por uma longa discussão da variedade de costumes religiosos e sociais
encontrados no Império Persa.) Em outras palavras, é a disponibilidade
de teorias alternativas da moral e da natureza que dá origem à
investigação sistemática da natureza, ao aumento da especulação e ao
desenvolvimento desse elemento crucial que distingue a sociedade
aberta, ou seja, o questionamento organizado da teoria vigente.
Lembremos a resposta dada pelo sacerdote à pergunta sobre o ouro
em pó. “Nós o fazemos porque os ancestrais o faziam.” Na sociedade
aberta, isso já não serve de razão. Os primeiros cientistas naturais
modernos, os lósofos naturais do Renascimento, freqüentemente
frisavam a irracionalidade dos apelos à autoridade: e, se a erudição
moderna sugere que eles superenfatizaram o quanto seus predecessores
tinham sido vítimas de um tradicionalismo tacanho, mesmo assim é
verdade que existe uma diferença — nem que seja de grau — na medida
como a modernidade celebra a distância cognitiva em relação a nossos
predecessores, enquanto o mundo tradicional celebra a continuidade.
Pois bem, a explicação de Horton sobre o sentido em que a visão de
mundo tradicional é fechada tem sido — acertadamente — questionada.
Em boa parte da África pré-colonial, as complexidades da guerra e do
comércio, da dominação e do clientelismo, da migração e da diplomacia,
simplesmente não são compatíveis com a imagem de povos
desconhecedores de que existe um mundo em outro lugar. Como
assinalou Catherine Coquery-Vidrovitch, uma eminente historiadora
francesa da África:
Na verdade, essas sociedades supostamente estáveis raras vezes desfrutaram do encantador
equilíbrio que se presume ter sido rompido pelo impacto do colonialismo. A África Ocidental,
por exemplo, fervilhou de atividade já desde as ondas de conquista dos fulas no século XVIII, e
muito antes da criação das unidades de resistência à in uência européia (...). A bacia congolesa
foi palco de convulsões sociais ainda mais profundas, ligadas à penetração comercial. Nesses
casos, a revolução na produção abalou os próprios alicerces da estrutura política. Quanto ao
Sul da África, a revolta dos zulus e sua expansão tiveram repercussões que chegaram à África
Central. Até onde teremos de recuar para encontrar a estabilidade tida como “característica” do
período pré-colonial: até antes da conquista portuguesa, antes da invasão islâmica, antes da
expansão dos bantos? Cada um desses grandes momentos de decisão marcou uma reviravolta
em tendências de longo prazo, dentro das quais, por sua vez, seria possível identi car toda
uma série de ciclos mais curtos, como, por exemplo, a sucessão dos impérios sudaneses, ou de
ciclos ainda mais curtos, como os períodos de recessão (1724-1740, 1767-1782, 17951811 etc)
e a ascensão da economia de comércio escravagista de Daomé. Em suma, o conceito estático de
sociedade “tradicional” não consegue resistir à análise do historiador.32

Em particular — como insistiu o próprio Horton em “Cem anos de


mudança na religião kalabari” —, os historiadores africanos podem
detectar mudanças nas crenças religiosas e outras em diversos locais,
muito antes do advento dos missionários cristãos e dos educadores
coloniais. Os iorubanos tiveram conhecimento do Islã antes de
conhecerem a Inglaterra, e de Daomé antes de ouvirem falar da Grã-
Bretanha. Mas a religião ioruba tem muitas das características que
Horton se propôs explicar através da referência, justamente, a um
desconhecimento dessas alternativas.
Nas sociedades tradicionais, também é possível encontrar pensadores
especulativos de primeira classe, cuja mentalidade aberta é inegável.
Estou pensando em Ogotemmeli, cuja cosmologia Griaule captou em
Dieu d’eau [Deus de água]; e Barry Hallen forneceu provas, obtidas de
fontes nigerianas, sobre a existência, dentro dos modos de pensamento
africanos tradicionais, de estilos de raciocínio que não são passíveis nem
das críticas severas de Wiredu nem das mais brandas de Horton.33 Para
começar, diz Hallen, quando as pessoas iorubanas respondem à pergunta
“Por que você acredita em X?”, dizendo que “Isso é o que diziam os
antepassados”,34 da maneira questionada por Wiredu e que Horton
também considera típica, elas não estão tentando fornecer uma
justi cativa ponderada para acreditar em X. Antes, estão
entendendo a pergunta como dizendo respeito à origem de uma crença ou costume. Estão
dando o mesmo tipo de resposta que os ocidentais tenderiam a dar se lhes perguntassem como
eles passaram a acreditar em barbear os pêlos do rosto. Entretanto, quando se vai adiante e se
pede a um ioruba para explicar o que “signi ca” uma crença, é freqüente surgir uma resposta
mais so sticada.35

Hallen ainda argumenta que, na cultura iorubana, essa resposta mais


so sticada muitas vezes atende aos requisitos-padrão de ser crítica e
re exiva. Hallen toma como modelo a caracterização que Karl Popper36
faz da re exão crítica sobre a tradição, gesto que é ainda mais
signi cativo, considerando-se a proveniência popperiana da dicotomia
aberto-fechado. Esta exige:
1. identi car a tradição como tradição;
2. exibir um conhecimento de suas conseqüências; e
3. estar ciente de ao menos uma alternativa e, com algum fundamento crítico, optar por a rmá-
la ou rejeitá-la.37

Por esse teste, o babalaô ioruba — o adivinho e curandeiro — citado por


Hallen é criticamente apreciador da tradição em que acredita.
Hallen tem razão, portanto, em contestar a estrutura da dicotomia
hortoniana original do aberto e do fechado. Por um lado, como a rmei
há pouco, há na história e na sociologia da ciência pós-kuhnianas um
bom número de provas de que esses desiderata popperianos raramente
são atendidos na física, cerne da teoria ocidental. Por outro, a ênfase
original de Horton na natureza “fechada” dos modos de pensamento
tradicionais realmente se a gura menos satisfatória em face da complexa
história das trocas culturais da África e diante do babalaô de Hallen, ou
na presença da extraordinária síntese metafísica do ancião de Dogon,
Ogotemmeli.38 Num livro recente — escrito com o lósofo nigeriano J.
O. Sodipo —, Hallen insiste na presença, entre os médicos iorubanos, de
teorias da feitiçaria bem diferentes das de seus conterrâneos.39 Aqui,
portanto, ocorre entre os médicos uma especulação incompatível com a
crença popular comum; e não há razão para duvidar de que esse aspecto
da cultura ioruba contemporânea seja, nesse sentido, semelhante a
muitas culturas pré-coloniais.
Mas, ao rejeitar por completo a caracterização hortoniana do mundo
tradicional como “fechado”, corremos o risco de perder de vista uma
coisa importante. Pensadores como Ogotemmeli são indivíduos —
indivíduos como Tales e os outros primeiros pré-socráticos da tradição
ocidental —, e há poucos indícios de que suas opiniões tenham ampla
circulação ou impacto (na verdade, parece claro que os babalaôs
conhecidos por Hallen e Sodipo não estão especialmente interessados
em partilhar ou difundir suas especulações). Se o pensamento
“tradicional” está mais ciente das alternativas e contém mais momentos
de especulação do que sugeriu a imagem original de Horton, também é
verdade que ele difere do pensamento dos teóricos e da gente comum do
mundo industrializado em suas respostas a essas alternativas e em sua
incorporação dessas especulações.
Horton passou recentemente a falar — em parte, em resposta à crítica
de Hallen — não de os sistemas tradicionais de crença serem fechados,
mas, tomando emprestado um termo de Wole Soyinka, de eles serem
“conciliatórios”. Ele discute um trabalho feito por alunos de Evans-
Pritchard, que não apenas aborda o tipo de corpo estático de crenças
captado na imagem que EvansPritchard faz do mundo de pensamento
azande, mas também frisa a maneira dinâmica e — como admite Horton
— “aberta” pela qual eles “concebem explicações para elementos inéditos
da (...) experiência”, bem como “sua capacidade de tomar emprestadas,
reelaborar e integrar idéias alheias no curso da elaboração dessas
explicações”. “Na verdade, foi essa ‘abertura’ que deu às cosmologias
tradicionais uma durabilidade tão impressionante, diante das imensas
mudanças que o século XX introduziu no cenário africano.” Horton
contrasta esse estilo “conciliatório” com o estilo “antagonístico” da
teoria cientí ca, que se caracteriza pelo modo como o principal
estímulo à mudança de crenças não é “a experiência inédita, mas uma
teoria rival”.40
E me parece que essa mudança da terminologia popperiana do
“aberto” e do “fechado” permite a Horton captar uma coisa importante
sobre a diferença entre a religião tradicional e a ciência, uma coisa que
tem a ver, não com as estratégias cognitivas individuais, mas com as
sociais. Se quisermos compreender a importância da organização social
na diferenciação entre a religião tradicional e a ciência natural, não
poderemos fazer nada melhor do que começar, dentre as respostas de
Evans-Pritchard à questão de por que os azande não percebem a
falsidade de suas crenças mágicas, por aquelas que mencionam fatos
sociais sobre a organização das crenças.
Evans-Pritchard escreveu:
O ceticismo, longe de ser sufocado, é reconhecido e até inculcado. Só que apenas a respeito de
certos medicamentos e certos curandeiros. Em contraste, ele tende a apoiar outros
medicamentos e outros curandeiros.
(...) Cada homem e cada grupo de parentesco age sem conhecimento das ações dos outros.
As pessoas não partilham suas experiências ritualísticas.
(...) Elas não têm uma inclinação experimental.41 (...) Não sendo de tendência
experimentalista, não veri cam a e cácia de seus medicamentos.

E, acrescentou Evans-Pritchard, “as crenças zande geralmente têm uma


formulação vaga. Uma crença, para ser facilmente contrariada pela
experiência, (...) tem que ser claramente compartilhada e
intelectualmente desenvolvida.”42
Como quer que efetivamente sejam as práticas dos cientistas
imperfeitos, não se supõe que nenhuma dessas coisas se aplique à ciência
natural. Em nossa imagem o cial das ciências, o ceticismo é incentivado
até no que diz respeito às questões de fundamento: na verdade, supõe-se
que os melhores estudantes serão orientados para isso. Os pesquisadores
cientí cos concebem a si mesmos como uma comunidade que atravessa
fronteiras políticas tão divisórias quanto a (extinta e não lamentada)
cortina de ferro da Guerra Fria; e os resultados, as “experiências”, são
compartilhados. A comunidade cientí ca tem uma inclinação
experimentalista; e, é claro, a teoria cientí ca é formulada com a maior
precisão possível, a m de que esses experimentos possam ser realizados
de maneira controlada.
Essa, evidentemente, é apenas a visão oficial. Três décadas de trabalho
na história e na sociologia da ciência, desde o iconoclasta e Structure
of Scientific Revolutions [A estrutura das revoluções científicas*45] de
omas Kuhn, deixaramnos uma imagem da ciência como algo muito
mais confuso e obscuro; em síntese, como uma coisa mais humana. No
entanto, embora esse trabalho tenha tido o efeito de rever ( ca-se
inclinado a dizer “macular”) nossa imagem das instituições de pesquisa
cientí ca, ele não revisou o reconhecimento fundamental de que a
produção do conhecimento cientí co organiza-se em torno de posições
teóricas rivais, e de que a demanda de publicação, para consolidar o
sucesso dos laboratórios e dos cientistas individuais, expõe cada teoria
concorrente aos comentários de ambiciosos contra-teóricos de outros
laboratórios, com outras posições. O que aprendemos, no entanto
(embora devesse ter sido óbvio desde sempre), é que há sérios limites
impostos à gama de posições a serem sustentadas. Em 1981, por exemplo,
quando foi publicada A New Science of Life [Uma nova ciência da vida], de
Rupert Sheldrake, um correspondente da revista Nature sugeriu que
seria útil queimá-la; e isso era incompatível com a ideologia o cial,
porque Sheldrake, um ex-pesquisador da Royal Society que estudou
loso a da ciência, havia elaborado uma proposta que, apesar de
provocadora, fora deliberadamente enunciada em termos que a
tornavam sujeita a uma veri cação experimental potencial. Mesmo
assim, ela deixou muitos biólogos (e físicos) ultrajados e, se não tivesse
havido um desa o da revista New Scientist para que se projetassem
experimentos, sua proposta — como a maioria das que são encaradas, de
um modo ou de outro, como obra de um “maníaco” — provavelmente
teria sido simplesmente ignorada por seus pares pro ssionais. (Há uma
certa conclusão a extrair do fato de que o exemplar do livro de
Sheldrake listado no catálogo da Universidade Duke parece estar na
biblioteca da Faculdade de Teologia!) O desenvolvimento da ciência não
é uma área de entrada franca, com todos os participantes incentivando
uns aos outros com a exclamação: “Que vença a melhor teoria!” Mas a
ciência é crucialmente antagonística: e as normas de publicação e de
reprodutibilidade dos resultados, ainda que contem apenas com uma
adesão imperfeita, têm a intenção explícita de expor as teorias e as
a rmações experimentais ao ataque dos pares e, com isso, possibilitar a
competição do aventureiro “jovem turco”.*46
Mais importante do que o contraste imensamente supersimpli cado
entre uma ciência experimental cética e um modo de pensamento
tradicional, “dogmático” e não experimental, é a diferença das imagens
do conhecimento representadas pelas diferenças da organização social
da investigação nas sociedades modernas, em contraste com as
“tradicionais”. Os cientistas, como o resto de nós, aferram-se a teorias
por mais tempo do que lhes é lícito, suprimem, inconsciente ou
semiconscientemente, provas que não sabem manejar, e mentem um
pouco; podemos ter certeza de que, nas sociedades pré-coloniais, houve
pessoas isoladas que duvidavam e se atinham à sua própria opinião,
resistindo ao dogma local. Mas, o interessante nos modos de teorização
modernos é que eles se organizam em torno de uma imagem de mudança
constante: esperamos por novas teorias, recompensamos e incentivamos
sua pesquisa, e acreditamos que as melhores teorias de hoje serão revistas
a ponto de se tornarem irreconhecíveis, se a empreitada da ciência
sobreviver. Meus ancestrais de Achanti nunca organizaram uma atividade
especializada que se baseasse nessa idéia. Eles sabiam que algumas pessoas
têm maior conhecimento do que outras e que há coisas por descobrir.
Mas não pareciam julgar necessário investir um esforço social na
elaboração de novas teorias sobre como funciona o mundo, não para
alguma nalidade prática (o que eles faziam constantemente), mas em si
e por si, como costumamos dizer.
As diferenças entre a teoria religiosa tradicional e as teorias das
ciências residem na organização social da investigação como um
trabalho sistemático. E, penso eu, são as diferenças na organização social
que respondem tanto pela diferença que sentimos no caráter da teoria
cientí ca natural e da teoria religiosa tradicional — elas são produto de
diferentes tipos de processos sociais — quanto pela espetacular expansão
do campo da previsão e controle exitosos, uma expansão que caracteriza
a ciência natural, mas que se acha notavelmente ausente das sociedades
tradicionais. A experimentação, a publicação e a reprodução de
resultados, o desenvolvimento sistemático de teorias alternativas em
termos exatos, todos esses ideais, por mais imperfeitamente que se
realizem na prática cientí ca, só são inteligíveis numa empreitada social
e organizada de conhecimento.
Mas, o que pode ter instigado essa abordagem radicalmente diferente
do conhecimento? Por que os praticantes da religião tradicional,
inclusive os sacerdotes, que são pro ssionais, nunca desenvolveram os
métodos “antagonísticos” organizados nas ciências? Há, sem dúvida,
muitas fontes históricas. Algumas sugestões conhecidas nos ocorrem de
imediato.
A mobilidade social leva ao individualismo político, e de um tipo que
é raro na política tradicional; o individualismo político também permite
que a autoridade cognitiva se desloque do sacerdote e do rei para o
plebeu; e a mobilidade social é uma característica das sociedades
industrializadas.
Ou então: nas sociedades tradicionais, conciliar visões teóricas
con itantes faz parte do processo geral de acomodação necessário
àqueles que estão ligados uns aos outros como vizinhos, pela vida afora.
Lembro-me de haver discutido, certa vez, diferenças de estilo cultural
entre Gana e os Estados Unidos com um conterrâneo ganês e um norte-
americano. O estudante norte-americano perguntou o que nos havia
parecido ser a diferença cultural mais importante entre Gana e os
Estados Unidos, ao chegarmos a este último país pela primeira vez.
“Vocês são muito agressivos”, disse meu amigo ganês; “em Gana, não
consideraríamos isso muito boas maneiras.” Obviamente, o que ele havia
notado não fora a agressividade, mas simplesmente um estilo de
conversação diferente. Em Gana, mas não nos Estados Unidos, é
indelicado discordar, discutir ou refutar. E essa abordagem conciliatória
da conversa faz parte da mesma gama de atitudes que leva às conciliações
teóricas.
Poderíamos pensar em outras diferenças no cenário social, econômico
e ecológico que, juntas, contribuiriam para explicar essa diferença de
abordagem da teoria; no próximo capítulo, direi algo sobre a
importância do crescimento da economia de mercado para essa questão.
Mas, parece-me haver outra diferença fundamental entre a cultura
tradicional da África Ocidental e a cultura do mundo industrializado, e
ela desempenha um papel fundamental na explicação de por que o estilo
antagonístico nunca se rmou na África Ocidental. Essa diferença
consiste em que tais culturas eram predominantemente iletradas.
Como assinalou Jack Goody em seu in uente livro e Domestication
of the Savage Mind [A domesticação da mente selvagem], a alfabetização
tem conseqüências importantes, dentre elas o fato de permitir um tipo
de coerência que a cultura oral não exige nem pode exigir. Basta escrever
uma frase para que, em princípio, ela exista para sempre; e isso signi ca
que, quando se escreve outra frase incoerente com ela, pode-se ser
agrado em erro. Esse fato se acha na raiz da possibilidade do estilo
antagonístico. Quantas vezes vimos Perry Mason — na televisão de Gana,
dos Estados Unidos ou da Inglaterra (para a televisão, pelo menos, existe
apenas um mundo) — pedir à estenógrafa que relesse alguma coisa nos
apontamentos? Na cultura tradicional, a resposta só pode ser: “Que
apontamentos?” Na falta de registros escritos, não é possível comparar as
teorias dos ancestrais, em suas palavras efetivas, com as nossas; e, dadas
as limitações quantitativas impostas pela transmissão oral, sequer
dispomos de um conhecimento detalhado do que eram essas teorias.
Conhecemos melhor o pensamento de Isaac Newton a respeito de um ou
dois temas do que o de toda a população de seus contemporâneos
achanti.
O estilo conciliatório é possível porque a transmissão oral di culta o
reconhecimento das discrepâncias. Assim, é possível ter uma imagem do
conhecimento como um saber imutável, transmitido pelos ancestrais.
Não surpreende, com essa imagem do conhecimento, que não haja
nenhuma pesquisa sistemática: ninguém jamais precisa notar que a
maneira como a teoria tradicional é usada requer interpretações
incoerentes. É a instrução que possibilita a formulação exata das
questões, que acabamos de assinalar como uma das características da
teoria cientí ca; e é a formulação precisa que aponta a incoerência. Essa
explicação, que devemos a Horton, por certo é muito plausível.
Dado o caráter oral da cultura tradicional, é possível constatar como
a abordagem conciliatória pode ser mantida. Com a difusão ampla da
alfabetização, a imagem do conhecimento como um corpo de verdades
sempre já dadas não consegue sobreviver. Mas, o reconhecimento de
incoerências na visão de mundo tradicional não leva automaticamente à
ciência; existem, como já observei, muitos outros fatores que concorrem
para isso. Sem a disseminação da alfabetização, é difícil entender como a
ciência poderia ter começado: ela não é uma condição su ciente para a
ciência, mas certamente parece ser necessária. O que mais, afora um
bocado de sorte, explica os primórdios da ciência moderna? Inúmeras
coisas: a Reforma, ela mesma dependente, não apenas da alfabetização,
mas também da imprensa e da disseminação mais ampla da Bíblia e de
outros textos religiosos, com a subseqüente transferência da autoridade
cognitiva da Igreja para o indivíduo; a experiência com engenhos
mecânicos, com a maquinaria da agricultura e da guerra; o
desenvolvimento das universidades. Minha a rmação não é que a
alfabetização explique a ciência moderna (a China é uma refutação
consagrada dessa a rmação), mas que ela foi crucial para sua
possibilidade. Um nível baixíssimo de instrução moldou as possibilidades
intelectuais da África pré-colonial.

A alfabetização tem outras conseqüências signi cativas. Aqueles dentre


nós que sabem ler e escrever aprendem muito depressa o quanto a
comunicação escrita difere da oral no estilo; aprendemos isso tão cedo e
tão bem, que é preciso que nos relembrem algumas dessas diferenças...
que nos relembrem, na verdade, as diferenças que são realmente
importantes. Eis uma delas, cujas conseqüências para a vida intelectual
dos povos alfabetizados são, penso eu, consideráveis.
Suponha que você ache um pedaço de papel contendo as seguintes
palavras: “Aqui, aos domingos, muitas vezes fazemos o que João está
fazendo ali. Mas não é normal fazer isso neste dia. Perguntei ao padre se
era permitido fazê-lo hoje e ele fez assim.” Uma suposição razoável seria
que você está lendo a transcrição das palavras que alguém proferiu. E
por quê? Porque todas essas palavras — “aqui”, “ali”, “isso”, “hoje”, e até
mesmo “João” e “o padre” — são o que os lógicos chamam de
indicadores.*47 Você precisa do contexto em que a frase é enunciada para
saber a que eles se referem.
Todo falante de inglês sabe que “I” refere-se ao locutor, e “you”, a seu
interlocutor ou interlocutora; que “here” [aqui] e “now” [agora] referem-
se ao lugar e ao momento do enunciado. E, quando ouvimos alguém
falar, costumamos estar em condições de identi car o locutor e o
ouvinte, o lugar e o momento. Mas, ao escrever, temos que inserir no
texto muito daquilo que o contexto fornece ao falarmos. Temos que fazê-
lo, não apenas para evitar a imprecisão dos indicadores, mas também
porque não podemos presumir que nossos leitores partilhem do
conhecimento que temos de nossa situação; e porque, se eles não
partilharem, não poderão perguntar-nos. Pensar nisso, entretanto — e
tentar reformular a fala na escrita para atender a essas exigências —, está
fadado a nos deslocar para o abstrato e o universal, afastando-nos do
concreto e do particular.
Para veri car por que a alfabetização nos desloca para a
universalidade em nossa língua, consideremos a diferença entre os juízos
de um oráculo tradicional e os dos peritos numa tradição escrita. Um
pensador tradicional pode safarse dizendo que, se três oráculos
responderam que Kwame praticou o adultério, é porque ele o fez. Mas,
numa tradição escrita, toda sorte de problemas pode surgir. A nal, todo
mundo conhece casos em que os oráculos erraram três vezes, por terem
sofrido interferência da feitiçaria. Para fugir desse problema, o teórico
letrado tem que formular princípios, não apenas para cada caso
particular, mas em termos mais gerais. Em vez de dizer “Três oráculos
falaram: assim é” — ou, como diz o provérbio akan, “Cbosom anim, yekc
no mprensa” [Consulta-se um espírito três vezes] —, ele terá que dizer
algo como: “Três oráculos constituem uma boa prova prima facie de que
algo se deu; mas eles podem ter sofrido interferência da feitiçaria. Isso
será revelado por tais e quais meios. Se eles houverem sofrido
interferência da feitiçaria, será necessário, primeiro, puri car o
oráculo...” e assim por diante, listando as ressalvas que reconhecemos
como a marca da erudição escrita.
E, para veri car por que a alfabetização nos desloca para a abstração
em nossa língua, ouçamos os provérbios tradicionais, oralmente
transmitidos. Considere-se o provérbio akan “Aba a etc nyinaa na efifiri a,
anka obi rennya dua ase kwan”, que signi ca (literalmente): “Se todas as
sementes que caem crescessem, ninguém poderia seguir a trilha sob as
árvores.” Sua mensagem é (geralmente) que, se todos fossem prósperos,
ninguém trabalharia. Mas ele fala em sementes, árvores e trilhas pela
oresta. A mensagem é abstrata, mas o enunciado da frase é concreto.
Essa concretude torna o provérbio memorável — e, na tradição oral,
tudo o que é transmitido é transmitido de memória; não há, como
a rmei, registros. Contudo, isso também signi ca que, para
compreender a mensagem — como estou certo de que somente os
falantes de twi compreenderam, antes que eu a explicasse —, é preciso
partilhar com o falante um conhecimento dos pressupostos que lhe
servem de base, numa medida bastante especí ca. O provérbio funciona
porque, nas sociedades tradicionais, fala-se basicamente com pessoas a
quem se conhece; todos os pressupostos necessários para decifrar um
provérbio são compartilhados. E, por serem compartilhados, a
linguagem (ou intercâmbio oral) pode ser indicial, metafórica e
dependente do contexto.
Mas, se você escreve, as exigências impostas pelo leitor distante e
desconhecido exigirão maior universalidade, maior abstração. Como
nosso leitor pode não partilhar dos pressupostos culturais necessários ao
entendimento, em contextos em que a comunicação da informação é
central, nossa linguagem escrita torna-se menos gurada. Assim, apressa-
se a morte das incoerências de nosso pensamento informal.
Pois, se falarmos em termos gurados, o que dizemos poderá ser
tomado e reinterpretado num novo contexto; um mesmo provérbio,
precisamente por sua mensagem não ser xa, poderá ser usado
repetidamente. E, se pudermos usá-lo vez após outra, com mensagens
diferentes, talvez não reparemos que as mensagens são incoerentes entre
si. A nal, o provérbio está sendo usado agora, nesta situação; logo, por
que haveríamos de pensar, aqui e agora, nas outras ocasiões de seu uso?
Obviamente, o impulso para o abstrato e o universal, afastando-se da
linguagem gurada, bem como o reconhecimento das incoerências da
visão de mundo tradicional não conduzem automaticamente à ciência;
existem, como já assinalei, muitos outros fatores contributivos. Mas, tal
como a própria alfabetização, esses traços das culturas letradas, embora
não sejam su cientes para levar à ciência, são características das quais a
ciência di cilmente poderia prescindir.
Ao caracterizar as possibilidades da alfabetização, existe, como vimos
em muitas das tentativas de contrastar a tradição com a modernidade,
um risco de exagerar; nossa modernidade, a rigor, consiste, em parte, em
desejarmos vernos como diferentes de nossos ancestrais. As comunidades
de conhecimento especializado que produzem a nova física e a nova
ecologia e a nova química são mundinhos próprios, com códigos e
práticas complexos, nos quais os efebos são introduzidos não apenas pela
transmissão dos textos. A cultura letrada continua a ser a cultura de
pessoas falantes; e a marca do autodidata, da pessoa que tem apenas um
saber livresco, é a falta de familiaridade com o contexto de conversação
necessário para se formular um sólido juízo pro ssional. Os manuais de
física não nos dizem como devemos funcionar na sociologia e na política
do laboratório; em parte alguma encontraremos por escrito exatamente
aquilo que torna importante o trabalho dos grandes teóricos de um
campo. Mais do que isso, o tipo de veri cação da coerência possibilitado
pelo texto (e, atualmente, pelo computador) não é garantia de que essa
possibilidade se efetive, ou de que, uma vez identi cadas as incoerências
(como parecem ter sido no cerne da teoria quântica), se saberá ao certo
o que fazer com elas.
Por outro lado, há muitos recursos para sustentar a transmissão de um
corpo complexo e variado de práticas e crenças sem escrever. Em
Achanti, por exemplo, os pesos gurativos de latão usados para pesar o
ouro em pó associam-se a provérbios que eles representam, de um modo
que signi ca que a condução diuturna dos negócios oferecia lembretes
de idéias da sociedade e da natureza; e os mesmos tipos de códigos
culturais são encontrados nas padronagens impressas nos tecidos
adinkra, ou entalhadas em nossos banquinhos.
Ainda assim, o estilo intelectual das culturas sem ampla difusão da
alfabetização foi, por isso mesmo, radicalmente diferente do estilo das
culturas letradas contemporâneas: e, por mais complexa que seja a
história real, os tipos de diferenças que venho discutindo são reais e têm
sido importantes.
A alfabetização, portanto, possibilita a imagem “moderna” do
conhecimento, como algo que está sendo constantemente refeito; o que
impele a cultura a adotar essa possibilidade é, creio eu, a lógica
econômica da modernidade, a cujos modos de funcionamento dedicarei
atenção no próximo ensaio.

Uma vez efetivamente iniciada, a atividade cientí ca seguiu o padrão de


todas as outras atividades da sociedade industrializada: cou sujeita a
uma divisão do trabalho. Primeiro, houve uma classe de cientistas,
depois, de biólogos, zoólogos, embriologistas, numa hierarquia
interminável de espécies em proliferação. Essa diferenciação tem suas
próprias conseqüências importantes para a natureza da ciência e para as
teorias que são seu produto.43 A divisão do trabalho no Ocidente é tão
altamente desenvolvida que, como assinalou Hilary Putnam, chegamos
até a deixar a cargo de especialistas a tarefa de compreender algumas
partes de nossa linguagem: é pelo fato de palavras como “elétron” terem
sentidos exatos para os físicos que eu, que não tenho uma apreensão
muito boa de seu signi cado, posso utilizá-las, e o mesmo se aplica à
palavra “contrato” e aos advogados. Essas palavras, como meu
instrumento, só cumprem sua nalidade para mim pelo fato de seus
signi cados serem aprimorados por outras pessoas.44
A alfabetização do período imediatamente anterior à Revolução
Cientí ca na Europa diferiu, pelo menos num aspecto crucial, da Alta
Idade Média e da Antiguidade: estava começando a se difundir. Através
da imprensa, tornou-se possível a outras pessoas, que não os clérigos e os
muito ricos, possuir livros. Muitos fatores — alguns dos quais já
mencionei — possibilitaram o colapso da autoridade cognitiva da Igreja
durante a Reforma; entretanto, para ns de comparação com a África
contemporânea, ou, a rigor, com o mundo contemporâneo em
desenvolvimento, a imprensa, com a independência mental que gera, é
crucial.
Todos sabemos da signi cação da imprensa na disseminação do
protestantismo baseado na Bíblia durante a Reforma européia; mas a
importância da difusão da alfabetização para a África moderna foi
antecipada na Achanti do século XIX. Na corte achanti do m do século
XIX, alguns se opunham à transcrição de sua língua, em parte porque,
numa nação analfabeta, eles podiam manter, segundo pensavam, maior
controle sobre o uxo da informação. Quando realmente queriam enviar
mensagens escritas, usavam os estudiosos islâmicos letrados que era
possível encontrar nas grandes cidades do interior da África Ocidental,
con ando na tradução do twi para o árabe ou o haussá e, depois,
novamente para a língua de seus correspondentes. Agora, passados
apenas uns cem anos, uma expressiva maioria das crianças de Koumassi
sabe escrever — em inglês e (em menor grau) em twi; podem ler livros —
das bibliotecas — e jornais ou pan etos comprados na rua, o que
efetivamente torna impossível que a autoridade da tradição achanti
permaneça sem ser questionada.
Permitam-me dizer, por m, por que penso que o hiato entre africanos
e ocidentais instruídos talvez não continue a ser tão amplo por muito
mais tempo, e por que todos nós logo teremos di culdade de reconhecê-
lo a partir da natureza do indivíduo. A resposta é bem simples: temos
agora algumas gerações de intelectuais africanos letrados, que deram
início ao processo de examinar nossas tradições. Eles vêm sendo
ajudados nisso pela disponibilidade de tradições ocidentais, às quais seu
acesso, através da escrita, não é diferente do dos ocidentais. Esse
processo de análise produzirá novas e imprevisíveis fusões. Em alguns
momentos, algo terá que ceder. O que será, não sou capaz de prever,
embora tenha minhas suspeitas; e você poderá adivinhar quais são elas,
se eu lhe disser que me parece que a esmagadora dominação política e
econômica do Terceiro Mundo pelo mundo industrializado terá um
papel a desempenhar nisso.
O fato de o futuro de nossa cultura poder vir a ser guiado por uma
apreensão teórica de nossa situação é uma oportunidade extraordinária.
Em 1882, William Lecky, um estudioso inglês, publicou uma History of
the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe [História da
ascensão e in uência do espírito do racionalismo na Europa]. Lecky
escreveu:
Se perguntarmos por que o mundo rejeitou aquilo em que antes se acreditava de maneira tão
universal e intensa — por que a narrativa de uma velha que fora vista montando uma vassoura,
ou que comprovadamente se havia transformado num lobo e devorado os rebanhos dos
vizinhos, é considerada tão inteiramente inacreditável —, a maioria das pessoas,
provavelmente, será incapaz de dar uma resposta muito clara à pergunta. Nem sempre é por
havermos examinado as provas e constatado que elas eram insu cientes...45

Quando deparei com essa passagem pela primeira vez, ela logo me
pareceu esplendidamente adequada à situação dos intelectuais africanos
de hoje. Esse parágrafo registra um sentimento de Lecky, de que a
secularização intelectual da cultura — o “crescimento do racionalismo”
— ocorreu sem um exame apropriado das provas. Tenho con ança
su ciente na vitalidade da razão para crer que nós, africanos, teremos
perspectivas melhores se não seguirmos esse exemplo. E contamos com a
grande vantagem de ter diante de nós as experiências européia e norte-
americana com a modernidade — bem como a asiática e a latino-
americana —, para ponderar à medida que formos fazendo nossas
escolhas.

Por que se haveria de julgar importantes as questões que discuti? Para


mim, por duas razões: uma de ordem prática (para nós, africanos), outra
de ordem moral (para todo o mundo). A razão moral é simples: a menos
que todos compreendamos uns aos outros, e nos compreendamos como
racionais, não trataremos uns aos outros com o respeito apropriado. A
concentração nos aspectos não cognitivos das religiões tradicionais não
apenas dá uma falsa imagem delas, como leva também a subestimar o
papel da razão na vida das culturas tradicionais.
A razão prática é a seguinte: hoje em dia, a maioria dos africanos, quer
eles sejam ou não convertidos ao islamismo ou ao cristianismo, ainda
compartilha as crenças de seus ancestrais numa ontologia de seres
invisíveis. (Isso, é claro, também se aplica a muitos europeus e norte-
americanos.) Conta-se uma história — provavelmente apócrifa — de
alguns missionários, no Norte da Nigéria, que estavam preocupados com
a mortalidade infantil decorrente de infecções estomacais transmitidas
pela ingestão de água. Eles explicaram aos “convertidos” da missão que as
mortes se deviam a animais minúsculos presentes na água, e disseram
que esses animais seriam mortos se eles simplesmente a fervessem antes
de dá-la às crianças. O discurso sobre os animais invisíveis produziu
apenas um ceticismo tolerante: os bebês continuaram morrendo. Por m,
um antropólogo visitante sugeriu um remédio. Havia, disse ele, espíritos
malé cos na água; fervendo a água, seria possível vê-los indo embora,
borbulhando para fugir do calor. A nova mensagem funcionou. Essas
pessoas eram “convertidas”; para os missionários, apelar para os espíritos
era apelar para os demônios, para o que o Novo Testamento chama de
“principados e potestades”. Para os “convertidos”, a mensagem cristã
provinha do Deus Superior que eles sabiam existir (se há um deus em
todo reino, por que não entre os espíritos?), e a ordem de renegar
outros espíritos era apenas um re exo do ciúme costumeiro dos
sacerdotes de um deus em relação aos de outro.
Essa crença na pluralidade de forças espirituais invisíveis possibilita o
espetáculo extraordinário — aos olhos ocidentais — de um bispo
católico rezando num casamento metodista, junto com o apelo
tradicional da realeza aos ancestrais. Para a maioria dos participantes do
casamento, é possível dirigir-se a Deus em diferentes estilos —
metodista, católico, anglicano, muçulmano, tradicional — e também é
possível dirigir-se aos ancestrais. Os detalhes sobre a natureza exata da
Eucaristia, sobre quaisquer questões teológicas, não têm importância:
isso é um problema teórico, e a teoria não importa quando a questão
prática é colocar Deus do nosso lado. A nal, quem precisa de uma teoria
sobre quem é aquele com quem se está falando, quando se ouve uma voz
falar?
Essas crenças em agentes invisíveis signi cam que a maioria dos
africanos não consegue aceitar plenamente as teorias cientí cas do
Ocidente que são incompatíveis com elas. Não creio, a despeito do que
muitos parecem achar, que isso seja motivo de vergonha ou embaraço.
Mas é algo em que pensar. Se a modernização é concebida, em parte,
como a aceitação da ciência, temos que resolver se achamos que as
provas nos obrigam a abandonar a ontologia invisível. Nesse ponto, é
fácil sermos desvirtuados pela conciliação entre ciência e religião que
ocorreu nas pessoas instruídas do mundo industrializado em geral, e dos
Estados Unidos em particular. Pois ela limitou consideravelmente os
campos em que é permissível aos intelectuais invocar uma ação
espiritual. A questão de quanto do mundo dos espíritos nós, intelectuais,
devemos abandonar (ou transformar em algo cerimonial, sem a antiga
ontologia literal) é uma questão que temos de enfrentar; não penso que
a resposta seja óbvia. “Todo africano que quisesse fazer alguma coisa
positiva tinha que começar por destruir todas essas velhas crenças, que
consistem em criar o maravilhoso onde existe apenas um fenômeno
natural: vulcão, oresta virgem, relâmpago, o Sol etc”,46 diz o narrador
de Kocoumbo, Vétudiantnoir [Kocumbo, o estudante negro], de Aké Loba.
Mas, ainda que concordássemos em que todas as nossas velhas crenças
eram superstições, precisaríamos de princípios para nortear nossas
escolhas de novas crenças. Além disso, há provas de que os sucessos
práticos acham-se basicamente ausentes da cultura tradicional. A
questão de devermos ou não adotar esses métodos não é puramente
técnica. Não podemos evitar o problema de saber se é possível adotar
estilos cognitivos antagonísticos e individualistas e, como talvez
quiséssemos fazer, conservar uma moral comunitária conciliatória. As
culturas e os povos têm sido freqüentemente capazes de manter esses
critérios duplos (e emprego o termo em caráter não pejorativo, pois
talvez precisemos de critérios diferentes para ns diferentes). Assim, se
pretendemos tentar, temos de enfrentar essas di culdades. O método
cientí co pode levar ao progresso em nossa compreensão do mundo,
mas não é preciso ser adepto de oreau para indagar se ele levou
apenas ao progresso na busca de todos os nossos objetivos humanos.
Nessa área, podemos aprender juntamente com outras culturas —
inclusive, por exemplo, a cultura japonesa, que aparentemente logrou
uma certa segregação entre as esferas moral-política e cognitiva. Nesse
aspecto, parece-me evidente que o lósofo ganês Kwasi Wiredu tem
razão. Só resolveremos nossos problemas se os encararmos como
problemas humanos, decorrentes de uma situação especial. Não os
solucionaremos se os virmos como problemas africanos, gerados pelo
fato de sermos meio diferentes dos outros.

42 Também aggry bead ou aggri bead; trata-se de um tipo de conta de vidro variegada, que se
encontra enterrada no chão em Gana. (N. da T.)

43 Edição brasileira: Sao Paulo, Companhia das Letras. (N. da T.)

44 Edição brasileira: Sao Paulo, Forense Universitária/Editora da Universidade de Sao Paulo.

(N. da T.)

45 Edição brasileira: Sao Paulo, Perspectiva. (N. da T.)

46 Expressão de origem inglesa. Refere-se originalmente aos jovens o ciais participantes do


movimento político-militar que, na década de 1920, levou à formação da Turquia moderna. É
usada no sentido de caracterizar jovens ousados que decidem enfrentar os mais velhos e mais
prestigiados. (N. da T.)

47 Essa é a denominação dada por E. Benveniste aos dêiticos de tempo e espaço (agora e aqui).
Dêitico é todo elemento lingüístico que, num enunciado, refere-se à situação e ao momento em
que ele é produzido, bem como ao falante. (N. da T.)
7
O pós-colonial e o pós-moderno

“Você se chamava Bimbircokak


E estava tudo bem assim
Tornou-se Victor-Emile-Louis-Henri-Joseph
O que
Ao que eu me lembre
Não reflete seu parentesco com Rockefeller...”1
Yambo Ouologuem

E m 1987, o Centro de Arte Africana em Nova York organizou uma


exposição chamada Perspectives: Angles on African Art [Perspectivas:
ângulos da arte africana].2 A curadora, Susan Vogel, havia
trabalhado com diversos “co-curadores”, que relaciono por sua ordem de
aparecimento no Índice: Ekpo Eyo, ex-diretor do Departamento de
Antiguidades do Museu Nacional da Nigéria; William Rubin, diretor de
Pintura e Escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York e
organizador de sua controvertida exposição Primitivismo; Romare
Bearden, pintor afro-americano; Ivan Karp, curador de Etnologia
Africana do [Instituto] Smithsonian; Nancy Graves, pintora, escultora e
cineasta euro-americana; James Baldwin, que certamente dispensa
comentários adjetivatórios; David Rockefeller, colecionador de arte e
amigo dos poderosos; Lela Kouakou, artista e adivinho baúle da Costa
do Mar m (essa é uma justaposição deliciosa: o mais rico e o mais pobre,
lado a lado); Iba N’Diaye, escultor senegalês; e Robert Farris ompson,
professor de Yale e historiador de arte africana e afro-americana. Vogel
descreve o processo de seleção em seu ensaio introdutório. Foram
oferecidas a cada um, à única mulher e aos nove homens, cerca de cem
fotogra as de “arte africana de tipo e origem tão variados e qualidade
tão superior quanto pudemos reunir”, sendo-lhes solicitado que
escolhessem dez para a exposição.3 Ou talvez eu devesse dizer, mais
exatamente, que isso é o que foi oferecido a oito dos homens. Pois Vogel
acrescenta que “[n]o caso do artista baúle, um homem familiarizado
apenas com a arte de seu próprio povo, somente objetos baúles foram
incluídos no conjunto de fotogra as”. Nesse ponto, somos remetidos a
uma nota de rodapé do ensaio, que diz:
Mostrar-lhe o mesmo conjunto de fotos visto pelos outros teria sido interessante, mas
perturbador em termos das reações que estávamos buscando. Estudos estéticos de campo,
meus e de outros, mostraram que os informantes africanos criticam as esculturas de outros
grupos étnicos em termos de seus próprios critérios tradicionais, muitas vezes presumindo
que essas obras são apenas entalhes grosseiros de sua própria tradição estética.

Voltarei num momento a essa nota irresistível. Mas, deixem-me fazer


uma pausa para citar um pouco mais, desta vez excertos das palavras de
David Rockefeller, que decerto jamais “[criticaria] esculturas de outros
grupos étnicos em termos de seus próprios critérios tradicionais”, ao
discutir o que o catálogo chama de “ gura feminina fanti”:4
(...) possuo coisas semelhantes a essa e sempre as apreciei. Essa é uma versão bem mais
so sticada do que as que tenho visto, e achei-a muito bonita (...) a composição total tem um ar
muito contemporâneo, muito ocidental. É o tipo de coisa que combina muito bem com as
coisas ocidentais contemporâneas. Ficaria bem num apartamento ou numa casa modernos.

Podemos supor que David Rockefeller tenha cado radiante ao


descobrir que seu julgamento nal era compatível com as intenções dos
criadores da escultura. Pois uma nota de rodapé do “Índice
catalográ co” anterior revela que o Museu de Arte de Baltimore deseja
“trazer a público que a autenticidade da gura fanti desta coleção foi
contestada”. Na verdade, o trabalho de Doran Ross sugere que esse
objeto, quase com certeza, é uma peça moderna, produzida em minha
cidade natal de Koumassi pela o cina de um certo Francis Akwasi, que
“se especializa em entalhes para o mercado internacional, no estilo da
escultura tradicional. Muitas de suas obras encontram-se agora em
museus de todo o Ocidente e foram divulgadas como autênticas por
Cole e Ross”5 (sim, o mesmo Doran Ross) em seu clássico catálogo e
Arts of Ghana [Artes de Gana].
Mas, a nal, é difícil ter certeza do que agradaria a um homem que
indica como razão para sua escolha de outra peça (dessa vez, uma
máscara senufo): “Devo dizer que escolhi essa peça porque ela me
pertence. Foi-me oferecida pelo presidente Houphouet Boigny, da Costa
do Mar m”,6 ou que comenta
no que concerne ao mercado de arte africana (...) as melhores peças têm saído por preços
altíssimos. Em geral, as peças menos boas em termos de qualidade não têm subido de preço. E
essa é uma boa razão para escolher as boas, e não as ruins. Elas sabem se tornar mais valiosas.
Gosto da arte africana como objetos que acho que seriam atraentes para usar numa casa ou
num escritório (...). Não acho que ela combine com tudo, necessariamente — embora a de
melhor qualidade talvez o faça. Mas acho que combina bem com a arquitetura contemporânea.7

Há qualquer coisa de deslumbrantemente despretensioso na


movimentação desenvolta do sr. Rockefeller entre as considerações
nanceiras, estéticas e de decoração. Nessas respostas, temos um
microcosmo da localização do africano nos Estados Unidos
contemporâneo — o que equivale a dizer, certamente, pósmoderno.
Fiz toda essa citação de David Rockefeller, não para enfatizar o
conhecido fato de que as questões do que chamamos de valor “estético”
estão crucialmente vinculadas ao valor de mercado, nem tampouco para
chamar atenção para o fato de que isso é sabido pelos que atuam no
mercado de arte. Antes, quero manter claramente visível diante de nós o
fato de que David Rockefeller está autorizado a dizer qualquer coisa
sobre a arte da África por ser um comprador e por estar no centro, ao
passo que Lela Kouakou, que meramente produz arte e vive na periferia,
é um africano pobre cujas palavras só vêm ao caso como parte da
mercadologização 8 — tanto para aqueles dentre nós que compõem o
público do museu quanto para os colecionadores, como Rockefeller —
da arte baúle.9 Quero lembrar-lhes, em suma, como é importante que a
arte africana seja uma mercadoria.
Mas o co-curador cuja escolha nos porá a caminho é James Baldwin —
o único a escolher uma peça que não estava nos moldes da África do
“primitivismo”, uma escultura que será minha pedra angular, uma peça
rotulada pelo museu como “Iorubano com bicicleta”. Eis um pouco do
que Baldwin disse sobre ela:
Isso é incrível. Tem que ser contemporâneo. Ele está realmente indo à cidade. É algo muito
elegante, muito convincente. Talvez sua missão se revele impossível. Ele está desa ando algo —
ou algo o desa ou. Está plantado na realidade imediata através da bicicleta. (...) Aparentemente,
é um homem muito orgulhoso e calado. Veste-se de um modo meio poliglota. Nada parece
assentar-lhe muito bem.

A interpretação dessa peça por Baldwin, evidente e inevitavelmente, é


feita “em termos de seus próprios critérios”, numa reação
contextualizada apenas pelo conhecimento de que as bicicletas são novas
na África e de que essa obra, de qualquer modo, não se parece nem um
pouco com as peças que ele lembra ter visto em sua infância no museu
Schomburg, no Harlem. E sua resposta torpedeia a argumentação de
Vogel, de que se deveria recusar ao único africano “autenticamente
tradicional” — o único cujas respostas, no dizer dela, poderiam ter sido
encontradas um século atrás — a possibilidade de escolher entre as
culturas artísticas da África, porque, diferentemente dos demais co-
curadores, que são norte-americanos e africanos educados na Europa,
ele usaria “seus próprios critérios”. Esse adivinho baúle, esse aldeão
autenticamente africano — essa é a mensagem — não sabe o que nós,
pós-modernistas genuínos, sabemos agora: que o pior de todos os erros
consiste em julgar o Outro segundo nossos próprios termos. E assim, em
nome desse discernimento relativista, impomos nosso julgamento: o de
que Lela Kouakou não pode julgar esculturas vindas de fora da zona
cultural baúle, porque — como todos os outros “informantes” africanos
que encontramos em campo — ele as interpretará como se elas tivessem
a pretensão de atender aos padrões baúles.
Pior do que isso, é um absurdo explicar as respostas de Lela Kouakou
como decorrentes de um desconhecimento de outras tradições — se ele
de fato for parecido com a maioria dos artistas “tradicionais” de hoje, se
for parecido, por exemplo, com Francis Akwasi, de Koumassi, como sem
dúvida se supõe que seja. Kouakou pode julgar outros artistas por seus
próprios padrões (e que outra coisa, a nal, poderia ele ou qualquer
pessoa fazer, exceto não fazer nenhum julgamento?), mas, supor que ele
desconheça que existem outros padrões dentro da África (e, mais ainda,
fora dela) é ignorar um conhecimento cultural absolutamente básico,
que é comum à maioria das culturas pré-coloniais e à maioria das
culturas coloniais e pós-coloniais do continente: o conhecimento
cultural que explica por que existem, de fato, as pessoas que hoje
chamamos de “baúles”. Ser baúle, por exemplo, é, para um baúle, não ser
branco, não ser senufo, não ser francês.10 Os grupos étnicos — a “tribo”
baúle de Lela Kouakou, por exemplo —, em cujo interior toda a vida
estética africana parece transcorrer, são (como argumentarei no
próximo capítulo) produto de articulações coloniais e pós-coloniais. E
alguém que sabe o su ciente para se preparar como baúle para o século
XX certamente sabe que existem outros tipos de arte.
Mas o “Iorubano com bicicleta” de Baldwin faz mais do que desmentir
a estranha nota de rodapé de Vogel; ele nos dá uma imagem de um
objeto que pode servir de porta de entrada em meu tema: uma obra da
arte africana contemporânea que nos permitirá explorar a articulação
entre o pós-colonial e o pósmoderno. O “Iorubano com bicicleta” é
assim descrito no catálogo:
Página 124
Homem com bicicleta
Ioruba, Nigéria, século XX
Madeira e pintura, alt. 35 3/4 pol.
Museu de Newark.

A in uência do mundo ocidental revela-se nas roupas e na bicicleta dessa escultura iorubana
neotradicional, que provavelmente representa um mercador a caminho do mercado.11

E é essa palavra, “neotradicional” — uma palavra quase correta —, que


fornece, a meu ver, a pista fundamental.

Mas, não sei como explicar essa pista sem dizer, primeiro, como
mantenho minha orientação nas águas infestadas de tubarões ao redor
da ilha semântica do pós-moderno. Já que as narrativas, diversamente das
metanarrativas, têm permissão de proliferar nesses mares, começarei por
uma história a respeito de minha falecida amiga Margaret Masterman.
Certa ocasião, em meados dos anos 60, Margaret foi convidada a
participar de um simpósio presidido por Karl Popper, no qual Tom
Kuhn deveria ler um artigo; depois, ela, J. M. W. Watkins, Stephen
Toulmin, L. Pearce Williams, Imre Lakatos e Paul Feyerabend travariam
um debate sobre o trabalho de Kuhn. Infelizmente para Margaret, ela
contraiu uma hepatite infecciosa no período imediatamente anterior ao
simpósio e, por isso, não pôde preparar um texto. Felizmente para todos
nós, porém, ela pôde sentar-se em seu leito de hospital — no Bloco 8 do
hospital de Norwich, a cuja equipe foi dedicado o artigo que acabou
escrevendo — e criar um índice remissivo para A estrutura das revoluções
científicas. No processo de fazer o chamento do livro, Margaret
identi cou “nada menos de 21 sentidos, possivelmente mais, não menos”,
em que Kuhn utiliza a palavra “paradigma”. Depois de catalogar esses 21
usos, ela comenta laconicamente que “nem todos esses sentidos de
‘paradigma’ são incoerentes entre si”, e prossegue:
Não obstante, dada a diversidade, é obviamente razoável perguntar: existe alguma coisa em
comum entre todos esses sentidos? Haverá, loso camente falando, algo de de nido ou geral
na noção de paradigma que Kuhn está tentando esclarecer? Ou será que ele é apenas um poeta-
historiador, descrevendo diferentes acontecimentos ocorridos na história da ciência e se
referindo a todos eles através do uso da mesma palavra, “paradigma”?12

A pertinência dessa historieta mal chega a requerer explicação: e a tarefa


de perseguir a palavra “pós-modernismo” nas páginas de Lyotard,
Jameson e Habermas, dentro e fora da Village Voice e do TLS [ Times
Literary Supplement], e até da resenha de livros do New York Times, faz
com que a tarefa de xar o sentido do “paradigma” de Kuhn se assemelhe
a um trabalho de um minuto antes do café da manhã.
Não obstante, existe, penso eu, uma história a contar sobre todas essas
histórias — ou eu deveria dizer, é claro, que há muitas, mas esta, por
enquanto, é a minha — e, à medida que eu a for contando, o ciclista de
Ioruba acabará ressurgindo no horizonte.
Deixem-me começar pelo aspecto mais óbvio e, com certeza, um dos
mais comentados da explicação da pós-modernidade por Jean-François
Lyotard: o fato de ela ser uma metanarrativa do m das metanarrativas.13
É claro que teorizar alguns aspectos centrais da cultura contemporânea
como pós-qualquer coisa é, inevitavelmente, invocar uma narrativa. E,
do Iluminismo em diante, na Europa e nas culturas dela derivadas, esse
“pós” também signi cou “acima e além”, de modo que dar um passo
adiante (no tempo) representou, ipso facto, progredir.14 Brian McHale
anuncia, em seu recente Postmodernist Fiction [A cção pós-modernista]:
Quanto ao pre xo PÓS, quero aqui enfatizar o elemento de consequência lógica e histórica, em
vez da simples posterioridade temporal. O pós-modernismo provém do modernismo, em certo
sentido, mais do que sucede ao modernismo. (...) O pós-modernismo é a posteridade do
modernismo, isso é tautológico (...)15
O que pretendo frisar, portanto, não é a maçante questão lógica de
que a visão de Lyotard — na qual, na falta de “grandes narrativas de
legitimação”, restam-nos apenas legitimações locais, imanentes a nossas
práticas — pareceria pressupor sua própria “grande narrativa de
legitimação”, na qual a justiça mostraria residir, de maneira nada
excitante, na institucionalização do pluralismo: trata-se, antes, de que a
análise dele parece ter necessidade de encarar a situação contemporânea
como oposta a um conjunto imediatamente anterior de práticas, e como
indo além destas. O pós-modernismo de Lyotard — sua teorização da
vida contemporânea como pós-moderna — é posterior ao modernismo
porque rejeita aspectos do modernismo. E, nesse repúdio dos
predecessores imediatos (ou, mais especialmente, de suas teorias sobre
eles mesmos), esse pósmodernismo recapitula o gesto crucial da avant-
garde histórica; na verdade, recapitula o gesto crucial do “artista”
moderno, no sentido de modernidade característico do uso sociológico,
em que ela denota “uma era introduzida através do Renascimento, da
loso a racionalista e do Iluminismo, de um lado, e da transição do
Estado absolutista para a democracia burguesa, de outro”;16 no sentido
de “artista” encontrado na exposição de Trilling sobre “O cigano
erudito” de Arnold, cuja “existência tenciona perturbar-nos e nos deixar
insatisfeitos com nossa vida habitual na cultura (...)”17
Essa busca insistente de um contraste — uma modernidade ou um
modernismo contra o qual colocar-se — é extremamente notável, dada a
falta de qualquer explicação plausível e nitidamente formal sobre o que
distingue o moderno e o pós-moderno. Num ensaio recente, Fredric
Jameson admite, a certa altura, depois de resenhar as recentes
teorizações francesas (Deleuze, Baudrillard, Debord), que é difícil
distinguir formalmente o pós-moderno do alto modernismo:
(...) realmente, uma das di culdades de especi car o pós-modernismo reside em sua relação
simbiótica ou parasitária com [o alto modernismo]. Com efeito, com a canonização de um alto
modernismo até aqui escandaloso, feio, dissonante, amoral, anti-social e boêmio, ofensivo para
a classe média, com sua promoção à própria imagem da cultura superior em geral e, o que
talvez seja o mais importante, com sua cultuação na instituição acadêmica, o pósmodernismo
emerge como um modo de abrir um espaço criativo para os artistas hoje oprimidos pelas
categorias doravante hegemônicas da ironia, complexidade, ambigüidade, temporalidade
densa e, em particular, monumentalismo estético e utópico.18

A tese de Jameson nesse ensaio é que devemos caracterizar tal


distinção, não em termos formais — em termos, digamos, de uma
“estética da textualidade”, ou do “eclipse, nalmente, de toda a
profundeza, especialmente da própria historicidade”, ou da “‘morte’ do
sujeito”, ou da “cultura do simulacro”, ou da “sociedade do espetáculo”19
—, mas em termos da “funcionalidade social da própria cultura”.
[O] alto modernismo, seja qual for seu conteúdo político declarado, foi oposicionista e
marginal numa cultura de classe média vitoriana, ou prosaica, ou dos anos dourados. Embora o
pós-modernismo seja igualmente ofensivo em todos os aspectos enumerados (pensem no rock
punk ou na pornogra a), ele já não é, nesse sentido, nada “oposicionista”; a rigor, constitui a
própria estética dominante ou hegemônica da sociedade de consumo e, signi cativamente,
serve à produção de mercadorias desta última, praticamente como um laboratório de novas
formas e modismos. A tese favorável a uma concepção do pós-modernismo como categoria
periodizante baseia-se, portanto, no pressuposto de que, mesmo que todos os aspectos
formais enumerados acima já estejam presentes no antigo alto modernismo, a própria
importância desses aspectos se modi ca quando eles se transformam numa dominante cultural
com uma funcionalidade socioeconômica precisa.20

Jameson considera que a chave para compreender a situação pós-


moderna é o “declínio” da “oposição dialética” entre o alto modernismo
e a cultura de massa, isto é, a mercadologização e, se posso cunhar um
barbarismo, o des-oposicionismo das formas culturais antes constitutivas
do alto modernismo.
Sem dúvida, há muito que dizer em favor da teorização jamesoniana
do pósmoderno. Mas, não creio que compreendamos o que é comum a
todos os vários pós-modernismos se nos ativermos à visão oniabrangente
de Jameson. A mercadologização de uma cção, de uma postura de
oposicionismo, que é vendável justamente porque sua mercadologização
garante ao consumidor que ela não é uma ameaça substancial, foi
central, de fato, para o papel cultural do “rock punk” na Europa e na
América. Entretanto, mais do que uma palavra e uma conversa, que é que
faz de Lyotard e Jameson teóricos rivais do mesmo pós-moderno?
Não tenho — o que não há de ser surpresa — uma de nição do pós-
moderno para colocar no lugar da de Jameson ou da de Lyotard: mas há
agora um consenso aproximado sobre a estrutura da dicotomia
moderno/pós-moderno, nos muitos campos — da arquitetura à poesia, à
loso a, ao rock e ao cinema — em que ela tem sido invocada. Em cada
um desses campos, há uma prática antecedente que reivindicou uma
certa exclusividade de discernimento e, em cada um deles, o pós-
modernismo é um dos nomes da rejeição dessa reivindicação de
exclusividade, uma rejeição que é quase sempre mais jocosa — embora
não necessariamente menos séria — do que a prática que ela almeja
substituir. Que isso não serve como definição do pós-modernismo
decorre do fato de que, em cada campo, essa rejeição da exclusividade
assume uma certa forma especí ca, que re ete as especi cidades de seu
contexto.
Entender dessa maneira os vários pós-modernismos é deixar em aberto
a questão de como suas teorias da vida social, cultural e econômica
contemporânea se relacionam com as práticas efetivas que constituem
essa vida; é deixar em aberto, portanto, as relações entre o pós-
modernismo e a pós-modernidade. Quando a prática é teoria — literária
ou losó ca —, o pós-modernismo como teoria da pós-modernidade só
pode ser su ciente se re ete em alguma medida as realidades dessa
prática, pois a prática em si é plenamente teórica. Mas, quando um pós-
modernismo aborda, digamos, a propaganda ou a poesia, ele pode ser
su ciente como explicação delas, ainda que entre em con ito com suas
narrativas, com as teorias que elas têm sobre si mesmas. É que,
diversamente da loso a e da teoria literária, a propaganda e a poesia
não se compõem predominantemente de suas teorias articuladas a seu
próprio respeito.
Uma pergunta importante é por que esse distanciamento em relação
aos ancestrais tornou-se um aspecto tão central de nossas vidas culturais.
E a resposta, com certeza, tem a ver com o sentido em que a arte é cada
vez mais mercadologizada. Vender a si mesmo e a seus produtos como
arte no mercado é importante, acima de tudo, para abrir um espaço em
que o sujeito se distinga de outros produtores e produtos — e isso se faz
pela construção e acentuação das diferenças.
É isso que responde por uma certa intensi cação do velho
individualismo da produção artística pós-renascentista: na era da
reprodução mecânica, o individualismo estético — a caracterização da
obra de arte como pertencente à oeuvre de um indivíduo — e a absorção
da vida do artista na concepção da obra podem ser considerados,
precisamente, como modos de identi car os objetos para o mercado. O
escultor da bicicleta, em contraste, não será conhecido pelos que
comprarem esse objeto; sua vida individual não fará nenhuma diferença
para a história futura da obra. (Na verdade, ele certamente sabe disso, no
sentido de que se sabe de qualquer coisa cuja negação nunca se tenha
sequer considerado.) Não obstante, existe alguma coisa no objeto que
serve para prepará-lo para o mercado: a disponibilidade da cultura
iorubana e de histórias sobre a cultura iorubana que cerquem o objeto e
o distingam da “arte popular” de outros locais. Voltarei a esse ponto.
Permitam-me con rmar essa proposição através de exemplos.
Na loso a, o pós-modernismo é a rejeição do consenso dominante,
desde Descartes até o positivismo lógico, passando por Kant, sobre o
fundacionismo (existe uma via para o conhecimento, que é apanágio da
epistemologia) e sobre o realismo metafísico (existe uma verdade, que é
apanágio da ontologia), cada qual comprometido com uma noção
unitária da razão; assim, essa rejeição celebra guras como Nietzsche
(que não era um realista metafísico) e Dewey (que não era um
fundacionista). A modernidade a que se faz oposição aqui, portanto,
pode ser cartesiana (na França), kantiana (na Alemanha) e positivista
lógica (nos Estados Unidos).
Na arquitetura, o pós-modernismo é a rejeição de um exclusivismo
funcional (bem como a acolhida de um certo gosto pelo pastiche). A
modernidade a que se faz oposição aqui são o “monumentalismo”, o
“elitismo” e o “autoritarismo” do Estilo Internacional de Le Corbusier,
ou de Mies.21
Na “literatura”, o pós-modernismo reage contra a seriedade exagerada
do alto modernismo, que mobilizava a “di culdade” como modo de
privilegiar sua própria sensibilidade estética, e celebrava uma
complexidade e uma ironia somente apreciáveis por uma elite cultural.
A modernidade aqui são, digamos (sem nenhuma ordem particular),
Proust, Eliot, Pound e Woolf.
Na teoria política, por m, o pós-modernismo é a rejeição do
monismo do Marxista com M maiúsculo (embora não do marxista mais
recente, com M minúsculo) e das concepções liberais de justiça, bem
como sua derrubada por uma concepção da política como sendo
irredutivelmente plural, cada perspectiva sendo essencialmente
contestável por outras perspectivas. A modernidade, aqui, são as grandes
narrativas políticas oitocentistas de Marx e Mill, mas inclui, por
exemplo, obras mais recentes, como a reconstrução de e Liberal eory
of Justice [A teoria liberal da justiça*48 ], de John Rawls.
Esses exemplos esquemáticos pretendem sugerir como poderíamos
compreender a semelhança de família entre os vários pós-modernismos
como sendo regida por um princípio frouxo. Eles também sugerem por
que os grandes teóricos do pós-modernismo — digamos, Lyotard,
Jameson e Habermas22 — parecem competir por um mesmo território: o
privilegiamento lyotardiano de um certo antifundacionismo losó co
decerto poderia ser visto como subscrevendo — embora, penso eu, não
plausivelmente causando — cada um desses movimentos; a
caracterização jamesoniana do pós-modernismo como a lógica do
capitalismo avançado — tendo a mercadologização das “culturas” como
aspecto central — bem poderia explicar, igualmente, muitos aspectos de
cada uma dessas transições; e o projeto habermasiano certamente
tenciona (ainda que em nome de uma metanarrativa sumamente não-
lyotardiana) fornecer um modus operandi num mundo em que o
pluralismo, por assim dizer, é uma realidade à espera de instituições.
A cultura pós-moderna é a cultura em que operam todos os pós-
modernismos, ora em sinergia, ora em competição; uma vez que a
cultura contemporânea, em certos sentidos a que voltarei, é
transnacional, a cultura pós-moderna é global — embora isso não
signi que, de maneira alguma, que ela seja a cultura de todas as pessoas
do mundo.

Se o pós-modernismo é o projeto de transcender algumas espécies de


modernismo — ou seja, um projeto de autoprivilegiamento
relativamente constrangido de uma modernidade privilegiada —,
presume-se que nosso escultor neotradicional do “Homem com bicicleta”
deva ser entendido, em contraste, como prémoderno, isto é, tradicional.
(Estou supondo, portanto, que ser neotradicional constitua uma
maneira de ser tradicional; o trabalho desempenhado pelo “neo” é uma
questão que retomarei sucintamente mais adiante.) As narrativas
sociológicas e antropológicas da tradição pelas quais esse escultor ou
escultora veio a ser teorizado(a) dessa maneira são dominadas, é claro,
por Weber.
A caracterização weberiana da autoridade tradicional (e carismática),
em oposição à autoridade racional, é compatível com sua caracterização
geral da modernidade como a racionalização do mundo; e Weber
insistiu na importância desse processo caracteristicamente ocidental
para o resto da humanidade. A introdução de A ética protestante*49
começa assim:
No estudo de qualquer problema da história universal, um lho da
moderna civilização européia sempre estará sujeito à indagação de qual
a combinação de fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização
Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido
fenômenos culturais dotados (como queremos crer) de um
desenvolvimento universal em seu valor e signi cado.23
Não há dúvida de que a modernidade ocidental tem hoje uma
importância geográfica universal. O ciclista iorubano — como Sting e
seus chefes ameríndios da oresta tropical amazônica, ou Paul Simon e
os músicos mbaqanga de Graceland — é um testemunho disso. Mas, se
posso tomar emprestado o empréstimo de outra pessoa, a verdade é que
o Império dos Sinais Contraataca;*50 o “como queremos crer” de Weber
re ete suas dúvidas sobre se o imperium ocidental no mundo é tão
claramente de valor universal quanto decerto é de importância universal;
e o pós-modernismo com certeza endossa plenamente sua resistência a
essa a rmação. A bicicleta entra em nossos museus para ser valorizada
por nós (e David Rockefeller diz como ela deve ser valorizada); mas,
assim como a presença do objeto nos relembra esse fato, seu conteúdo nos
lembra que o comércio é de mão dupla.
Quero argumentar que, para compreender nossa modernidade —
nossa modernidade humana —, primeiro temos que entender por que a
racionalização do mundo já não pode ser vista como a tendência do
Ocidente ou da história, ou, dito em termos simples, por que a
caracterização modernista da modernidade deve ser questionada.
Compreender nosso mundo é rejeitar a a rmação weberiana da
racionalidade do que Weber chamou de racionalização, bem como sua
projeção da inevitabilidade dela; é ter, portanto, uma concepção
radicalmente pós-weberiana da modernidade.

Podemos começar por um par de caricaturas conhecidas e úteis: omas


Stearns Eliot coloca-se contra a desumanidade e a secularização da
sociedade moderna, a extensão do racionalismo iluminista ao mundo
inteiro. Ele partilha da explicação weberiana da modernidade e, em
termos mais diretos, a deplora. Le Corbusier é a favor da racionalização
— uma casa é uma “máquina em que viver” —, mas também ele partilha
da visão de modernidade de Weber. E, é claro, os grandes racionalistas —
os que crêem numa razão trans-histórica triunfando no mundo —, a
partir de Kant, são a fonte da visão kantiana de Weber. O modernismo
na literatura, na arquitetura e na loso a — a explicação da
modernidade que, segundo meu modelo, o pós-modernismo procura
subverter — pode ser favorável ou contrário à razão; mas, em cada
campo, a racionalização — o caráter difundido da razão — é vista como
a dinâmica singularizadora da história contemporânea.
Entretanto, o começo do saber pós-moderno consiste em perguntar se
a racionalização weberiana foi de fato o que aconteceu. Para Weber, a
autoridade carismática — a autoridade de Stalin, Hitler, Mao, Guevara,
Nkrumah — é anti-racional; no entanto, a modernidade foi dominada
justamente por esse carisma. A secularização mal parece estar
avançando; as religiões crescem em toda parte do mundo; mais de 90%
dos norte-americanos ainda reconhecem algum tipo de teísmo; o que
chamamos “fundamentalismo” está tão vivo no Ocidente quanto na
África, no Oriente Médio e no Extremo Oriente; Jimmy Swaggart e Billy
Graham têm negócios na Louisiana e na Califórnia, assim como na Costa
Rica e em Gana.
O que podemos ver em todos esses casos, penso eu, não é a vitória da
Razão iluminista com R maiúsculo — que teria acarretado exatamente o
m do carisma e a universalização do secular —, nem tampouco a
penetração de uma razão instrumental mais restrita em todas as esferas
da vida, mas sim o que Weber confundiu com isso, a saber: a
incorporação de todas as áreas do mundo, e de todas as áreas até mesmo
da antiga vida “privada”, na economia monetária. A modernidade
transformou cada um dos elementos do real num letreiro, e o letreiro
diz “vende-se”; e isso se aplica até a campos como a religião, onde a
razão instrumental reconheceria que o mercado tem, quando muito, um
lugar ambíguo.
Se hoje se pode ver que o discurso weberiano sobre a vitória da razão
instrumental constitui um erro, aquilo em que Weber pensou como
sendo o desencantamento do mundo, ou seja, a difusão de uma visão
cientí ca das coisas, descreve, se tanto, o mundo minúsculo — e, nos
Estados Unidos, bastante marginal — dos círculos acadêmicos superiores
e de algumas ilhas sob sua in uência. O mundo do intelectual é, penso
eu, basicamente desencantado (até os acadêmicos teístas, em sua
maioria, não acreditam em fantasmas e espíritos dos ancestrais); e um
número menor de pessoas (embora ainda muito numerosas) supõe que o
mundo seja povoado pelas multidões de espíritos das religiões antigas.
Mesmo assim, o que temos visto recentemente nos Estados Unidos não é
a secularização — o m das religiões —, mas sua mercadologização; e,
com essa mercadologização, as religiões têm ido mais longe e crescido —
seus mercados se expandiram — em vez de morrer.
O pós-modernismo pode ser visto, portanto, como um novo modo de
compreender a multiplicação de distinções decorrente da necessidade
de abrir um espaço para si — a necessidade que impulsiona a dinâmica
subjacente da modernidade cultural. O modernismo assistiu à
economização do mundo como a vitória da razão; o pós-modernismo
rejeita essa a rmação, permitindo, no âmbito da teoria, a mesma
multiplicidade de distinções que vemos nas culturas que ele procura
entender.

Prevejo a objeção de que o Weber a quem me venho opondo é uma


espécie de caricatura. E não caria insatisfeito em admitir que há certa
veracidade nisso. Weber previu, por exemplo, que a racionalização do
mundo continuaria a encontrar resistência, e sua visão de que cada caso
de carisma precisava ser “rotinizado” não pretendeu excluir o
aparecimento de novos líderes carismáticos em nossa época, como nas
anteriores: nossa política do carisma talvez não o tivesse surpreendido.24
Certamente, além disso, sua concepção da razão implicava muito mais
do que o cálculo instrumental. Já que muito do que assinalei aqui teria
sido previsto por ele, talvez mais valha encarar isto como uma rejeição
de uma leitura equivocada e estreita (se bem que conhecida) de Weber
do que como uma argumentação contrária ao que há de melhor nas
visões complexas e cambiantes do próprio Weber.
Mas, creio que também poderíamos interpretar essa leitura
equivocada — que encontramos, talvez, em Talcott Parsons — como
sendo conseqüência, em parte, de um problema da própria obra de
Weber. Parte da di culdade dessa obra está em que, apesar da profusão
de detalhes históricos em seus estudos sobre a religião, o direito e a
economia, é freqüente ele mobilizar termos teóricos de um nível muito
elevado de abstração. Como resultado, nem sempre ca claro se há
realmente traços comuns signi cativos entre os vários fenômenos sociais
que ele assemelha sob conceitos genéricos como “racionalização” ou
“carisma”. (Esse é um dos problemas gerais levantados pela famosa
con ança de Weber nos “tipos ideais”.) Reinhard Bendix, um dos
intérpretes mais importantes e simpáticos de Weber, comenta, a certa
altura de sua discussão de uma das distinções teóricas desse autor (a
distinção, aliás, entre patrimonialismo e feudalismo), que “[e]ssa
distinção só ca clara enquanto é formulada em termos abstratos”.25 Ao
ler Weber, essa é uma sensação que se tem reiteradamente. O problema é
exempli cado na discussão weberiana do “carisma” na Teoria da
organização social e econômica:
O termo “carisma” será aplicado a uma certa qualidade de uma personalidade individual, em
virtude da qual ele se distingue dos homens comuns e é tratado como dotado de poderes ou
qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, no mínimo, especi camente excepcionais. Estes
são (...) considerados como tendo origem divina ou exemplar, e, com base neles, o indivíduo
em questão é tratado como um líder.26

Note-se como o carisma é disjuntivamente de nido aqui como


implicando ora capacidades mágicas (“sobrenaturais, sobre-humanas”,
“de origem divina”), de um lado, ora qualidades meramente
“excepcionais” ou “exemplares”, de outro. A primeira disjunção de cada
alternativa abrange satisfatoriamente os muitos casos de liderança
sacerdotal e profética que Weber discute, por exemplo, em seu estudo do
Judaísmo antigo. Mas é a segunda, presumivelmente, que devemos
empregar ao procurar entender o papel político de Hitler, Stalin ou
Mussolini, que, embora tenham sido “excepcionais” e “exemplares”, não
foram considerados como tendo poderes “sobrenaturais”, “de origem
divina”. O fato é que grande parte do que Weber tem a dizer em sua
discussão geral do carisma, na Teoria da organização social e econômica e
na explicação da “dominação” em Economia e sociedade,*51 exige que
levemos a sério seu aspecto mágico. Quando, entretanto, efetivamente o
levamos a sério, descobrimos que a teoria weberiana não consegue
aplicar-se aos exemplos de carisma que se incluem na segunda disjunção
de sua de nição. Em suma, a explicação que Weber dá ao carisma
assemelha dois fenômenos estreitamente relacionados — como a
liderança de Stalin, numa ponta do espectro, e a do rei Davi ou do
imperador Carlos Magno, na outra — em que as idéias mágico-religiosas
parecem, para dizê-lo em termos brandos, desempenhar papéis
singularmente diferentes. Se acompanharmos a lógica dessa conclusão,
rede nindo o carisma weberiano de maneira a insistir em seu
componente mágico, daí decorrerá, por de nição, que o desencanto do
mundo — o declínio da magia — leva ao m do carisma; nesse caso,
porém, teremos de nos perguntar quão correto é a rmar, com Weber,
que as concepções mágicas desaparecem cada vez mais com a
modernidade. E, se ele tiver razão nisso, também teremos que abandonar
a a rmação de que a sociologia da política de Weber — na qual o
carisma de sempenha um papel conceituai central — esclarece os
avanços políticos característicos da modernidade.
Há um conjunto similar de di culdades na explicação weberiana da
racionalização. Em A ética protestante e o espírito do capitalismo,27 Weber
escreveu: “Se este ensaio der alguma contribuição, que seja a de destacar
a complexidade do conceito, apenas super cialmente simples, de
racional.” Mas, talvez quemos tentados a indagar se nossa compreensão
das verdadeiras complexidades dos fenômenos históricos dos últimos
séculos de história social, religiosa, econômica e política da Europa
Ocidental se torna realmente mais profunda pela utilização de um
conceito de racionalização que reúne um suposto aumento do cálculo
meios- ns (racionalidade instrumental); um declínio do apelo a “forças
misteriosas e incalculáveis” e um aumento correlato da con ança no
cálculo (desencanto ou intelectualização);28 e o crescimento do “valor
racionalidade”, que signi ca algo como uma concentração crescente em
maximizar uma gama estreita de metas últimas.29 Procurando funcionar
nesse nível elevado de generalidade, assimilando num conceito tantos
processos, a meu ver distintos e independentemente inteligíveis, a
apreciação weberiana detalhada e sutil da dinâmica de muitos processos
sociais é obscurecida aqui por seu aparato teórico; mal chega a
surpreender, penso eu, que aqueles que foram guiados por seus escritos
teóricos tenham atribuído a Weber uma imagem mais crua do que a
exibida em sua obra histórica.

Venho explorando como se a gura a modernidade do ponto de vista do


intelectual euro-americano. Mas, como se a gura ela, vista dos espaços
pós-coloniais habitados pelo “Homem com bicicleta”? Falarei sobre a
África, con ando tanto em que parte do que tenho a dizer se aplicará a
outros locais do chamado Terceiro Mundo, quanto em que, em certos
locais, certamente não o fará. Falarei, primeiro, dos produtores desses
chamados trabalhos artísticos neotradicionais e, depois, do caso do
romance africano. Creio que nos concentrarmos exclusivamente no
romance (como se inclinaram a fazer os teóricos das culturas africanas
contemporâneas) equivale a distorcer a situação cultural e a
importância, dentro dela, do pós-colonialismo.
Não sei quando o “Homem com bicicleta” foi feito, nem por quem; a
arte africana, até recentemente, foi colecionada como propriedade de
grupos “étnicos”, e não de indivíduos e estúdios, de modo que não é
incomum que nenhuma das peças da exposição Perspectivas tenha sido
identi cada na “Lista catalográ ca” pelo nome de um artista individual,
embora muitas delas sejam do século XX (e ninguém há de ter-se
surpreendido, em contraste, com o fato de a maioria delas ser
gentilmente rotulada com o nome dos proprietários das coleções,
basicamente particulares, em que elas hoje se encontram). Como
resultado, não sei dizer se a obra é literalmente pós-colonial, ou seja,
produzida após a independência nigeriana em 1960. Mas ela pertence a
um gênero que certamente foi produzido desde então: o gênero que o
catálogo chama de neotradicional. Dito em termos simples, o que há de
característico nesse gênero é ele ser produzido para o Ocidente.
Devo fazer algumas ressalvas. Evidentemente, muitos dos primeiros
compradores residem na África e muitos deles são, juridicamente,
cidadãos de Estados africanos. Mas, os consumidores burgueses africanos
da arte neotradicional são educados em estilo ocidental e, quando
querem arte africana, é comum preferirem peças “genuinamente”
tradicionais, com o que me re ro a peças que eles acreditem ter sido
produzidas pré-colonialmente, ou, pelo menos, num estilo e por
métodos já estabelecidos nos tempos pré-coloniais. Tais compradores são
minoria. A maior parte dessa arte, que é tradicional por usar técnicas
efetiva ou supostamente pré-coloniais, mas que é neo — essa, pela
serventia que possa ter, é a explicação que prometi antes — por ter
elementos reconhecidamente provenientes do colonial ou do pós-
colonial como referência, tem sido feita para turistas ocidentais e outros
colecionadores.
A incorporação dessas obras no mundo ocidental da cultura
museológica e de seu mercado artístico quase nada tem a ver, é claro,
com o pós-modernismo. Basicamente, a ideologia mediante a qual elas
são incorporadas é modernista: trata-se da ideologia que levou algo
chamado “Bali” a Artaud, algo chamado “África” a Picasso, e algo
chamado “Japão” a Barthes. (Essa incorporação, como um Outro o cial,
foi obviamente criticada desde seus primórdios: Oscar Wilde certa vez
comentou que “o Japão inteiro é pura invenção. Não existe esse país, não
existe esse povo.”30 ) O que é pós-modernista é a confusa convicção de
Vogel de que a arte africana não deve ser julgada “em termos dos
critérios tradicionais [de outrem]”. Para o modernismo, a arte primitiva
deveria ser julgada por critérios estéticos pretensamente universais; e,
por esses padrões, nalmente se veri cou que era possível valorizá-la. Os
escultores e pintores que julgaram isso possível estavam
predominantemente buscando um ponto arquimediano fora de suas
próprias culturas, para fazer uma crítica de uma modernidade
weberiana. Para os pós-modernismos, em contraste, essas obras, como
quer que devam ser entendidas, não podem ser vistas como legitimadas
por padrões que transcendam a cultura e a história.
O que há de útil no objeto neotradicional como modelo — a despeito
de sua marginalidade na maioria das vidas africanas — é que sua
incorporação no mundo dos museus (enquanto muitos objetos feitos
pelas mesmas mãos, como os bancos, por exemplo, residem
paci camente em lares não burgueses) faz lembrar que na África, ao
contrário, a distinção entre cultura e cultura de massa, se é que faz
algum sentido, corresponde predominantemente à distinção entre os
que têm e os que não têm uma educação formal de estilo ocidental como
consumidores culturais.
O fato de a distinção ter que ser feita dessa maneira — na maior parte
da África ao sul do Saara, excluída a República da África do Sul —
signi ca que a oposição entre a cultura re nada e a cultura de massa só
existe em campos em que há um corpo signi cativo de instrução
ocidental formal: e isso exclui (na maioria dos lugares) as artes plásticas
e a música. Há distinções de gênero e de público nos tipos de música
africana e, para vários ns culturais, existe algo a que chamamos música
“tradicional”, que ainda praticamos e valorizamos; mas, tanto os
habitantes das aldeias quanto os moradores urbanos, burgueses e não
burgueses, escutam em discos e, o que é mais importante, no rádio, o
reggae, Michael Jackson e King Sonny Adé.
Isso quer dizer que, basicamente, o campo em que essa distinção faz
mais sentido é o único em que ela é poderosa e difundida, a saber: a
literatura africana escrita em línguas ocidentais. Portanto, é aí que
encontramos, penso eu, um lugar para a consideração da questão do pós-
colonialismo da cultura africana contemporânea.

O pós-colonialismo é a condição do que poderíamos chamar, de maneira


pouco generosa, uma intelectualidade comprista: a de um grupo de
escritores e pensadores relativamente pequeno, de estilo ocidental e
formação ocidental, que intermedeia, na periferia, o comércio de bens
culturais do capitalismo mundial. No Ocidente, eles são conhecidos pela
África que oferecem; seus compatriotas os conhecem pelo Ocidente que
eles apresentam à África e por uma África que eles inventaram para o
mundo, uns para os outros e para a África.
Todos os aspectos da vida cultural africana contemporânea —
inclusive a música e algumas esculturas e pinturas, e até alguns textos
com os quais o Ocidente quase não tem nenhuma familiaridade — foram
in uenciados, amiúde poderosamente, pela transição das sociedades
africanas pelo colonialismo, mas nem todos são, no sentido pertinente,
pós-coloniais. É que o pós de pós-colonial, como o pós de pós-moderno,
é o pós do gesto de abrir espaço que caracterizei antes; e muitas áreas da
vida cultural africana contemporânea — daquilo que veio a ser teorizado
como cultura popular, em especial — não estão preocupadas em
transcender dessa maneira o colonialismo (em ir além dele). Na verdade,
poder-se-ia dizer que um marco da cultura popular é que seus
empréstimos de formas culturais internacionais são notavelmente
indiferentes à questão do neocolonialismo ou “imperialismo cultural” —
não é propriamente que a descartem, mas que são cegos para ela. Isso
não signi ca que as teorias do pósmodernismo sejam irrelevantes para
essas formas de cultura, pois a internacionalização do mercado e a
mercadologização das obras de arte lhes são ambas centrais. Realmente
signi ca, porém, que essas obras de arte não são entendidas por seus
produtores ou consumidores em termos de um pós-modernismo: não há
nenhuma prática anterior cuja reivindicação de exclusividade de visão
seja rejeitada através dessas obras de arte. O que aqui se chama
“sincretismo” é possibilitado pelo comércio internacional de
mercadorias, mas não é conseqüência do gesto de abrir espaço.
Os intelectuais pós-coloniais da África, em contraste, são quase
totalmente dependentes de duas instituições para obter apoio: a
universidade africana — uma instituição cuja vida intelectual é
maciçamente constituída como ocidental — e os editores e leitores
euro-americanos. (Mesmo quando esses escritores procuram escapar do
Ocidente, como fez Ngugi wa iong’o ao tentar construir um drama
camponês kikuyu, suas teorias de sua situação são irredutivelmente
pautadas em sua formação euro-americana. A concepção de Ngugi sobre
o potencial do escritor na política é essencialmente a da vanguarda, a do
modernismo de esquerda.)
Ora, essa dupla dependência da universidade e do editor euro-
americano signi ca que a primeira geração de romances africanos
modernos — a geração de ings Fall Apart [As coisas se desintegram], de
Achebe, e LEnfant noir [O menino negro], de Laye — foi redigida no
contexto das noções de política e cultura dominantes nos mundos
universitário e editorial francês e inglês das décadas de 1950 e 1960. Isso
não quer dizer que eles tenham sido como os romances escritos na
Europa Ocidental nessa ocasião, pois parte do que era considerado
óbvio por esses escritores e pela cultura superior da Europa da época era
que as novas literaturas das novas nações deviam ser anticolonialistas e
nacionalistas. Esses primeiros romances parecem pertencer ao mundo do
nacionalismo literário dos séculos XVIII e XIX; são teorizados como a
recriação ccional de um passado cultural comum, artisticamente
trabalhado numa tradição comum pelo escritor; encontram-se na
tradição de Scott, cujas Minstrelsy of the Scottish Border [Canções da
fronteira escocesa] pretenderam, como ele disse no prefácio, “contribuir
um pouco para a história de minha terra natal, cujos traços peculiares,
maneiras e caráter vêm-se derretendo e dissolvendo nos de sua irmã e
aliada”. Os romances dessa primeira fase, portanto, são legitimações
realistas do nacionalismo: autorizam um “retorno às tradições”, ao
mesmo tempo que reconhecem as exigências de uma modernidade
weberiana racionalizada.

Do m dos anos 60 em diante, esses romances celebratórios da primeira


fase começaram a rarear: Achebe, por exemplo, passou da criação de um
passado utilizável em ings Fall Apart para uma denúncia cínica da
política na esfera moderna, em A Man of the People [Um homem do
povo]. Mas, eu gostaria de focalizar um romance francófono do m dos
anos 60, que tematiza de maneira extremamente vigorosa muitas das
questões que venho formulando sobre a arte e a modernidade: re ro-me,
é claro, a Le Devoir de violence [O dever de violência] de Yambo
Ouologuem. Esse romance, como muitos dessa segunda fase, representa
um questionamento dos da primeira: ele identi ca o romance realista
como parte da tática de legitimação nacionalista e, portanto, é — se
posso iniciar um catálogo de suas maneiras-de-ser-pós-isto-e-pós-aquilo
— pós-realista.
Ora, é claro que o pós-modernismo também é pós-realista. Mas o pós-
realismo de Ouologuem certamente é motivado de um modo bem
diferente do de autores pós-modernos como, digamos, Pynchon. O
realismo naturaliza: o “romance africano” originário de Chinua Achebe
— ings Fall Apart — e de Camara Laye — L’Enfant noir — é “realista”.
Assim, Ouologuem é contra ele; rejeita — a rigor, ataca — as convenções
do realismo. Procura deslegitimar as formas do romance africano
realista, em parte, com certeza, porque o que estava procurando
naturalizar era um nacionalismo que, em 1968, havia claramente
fracassado. A burguesia nacional que pegou o bastão da racionalização,
da industrialização e da burocratização, em nome do nacionalismo,
revelou-se uma cleptocracia. Seu entusiasmo pelo nativismo era uma
racionalização de sua ânsia de manter as burguesias nacionais de outras
nações — e particularmente as poderosas nações industrializadas — fora
do caminho. Como observou Jonathan Ngaté, “(...) Le Devoir de violence
(...) versa sobre um mundo em que a eficácia do apelo aos Ancestrais,
assim como os próprios Ancestrais, é seriamente questionada”.31 O fato
de o romance ser pós-realista dessa maneira permite a seu autor tomar
emprestadas, quando precisa delas, as técnicas do modernismo, que,
como aprendemos com Fredric Jameson, muitas vezes são também as
técnicas do pós-modernismo. (É útil lembrar, neste ponto, como Yambo
Ouologuem é descrito na contracapa da primeira edição das Éditions du
Seuil: “Né en 1940 au Mali. Admissible à l’École Normale Supérieure.
Licencié ès Lettres. Licencié en Philosophie. Diplôme d’études supérieures
dAnglais. Prépare une thèse de doctorat de Sociologie.”*52 Retirar
empréstimos do modernismo europeu não chega a ser difícil para
alguém tão quali cado — a rigor, ser alguém da École Normale é, na
encantadora formulação de Christopher Miller, “mais ou menos
equivalente a ser batizado por Bossuet”.32 *53 )
A discussão de Christopher Miller sobre Le Devoir de violence — em
Blank Darkness [Escuridão vazia] — enfoca proveitosamente algumas
questões teóricas da intertextualidade, levantadas pela persistente
massagem que o romance faz com um texto após outro na superfície de
seu próprio corpo. O livro contém, por exemplo, a tradução de um
trecho do romance de Graham Greene It’s a Battlefield [Campo de
batalha], de 1934 (traduzido e aprimorado, segundo alguns leitores!), e
empréstimos de Boule de suif [Bola de sebo], de Maupassant (obra que
di cilmente seria desconhecida dos leitores francófonos; se estes últimos
constituem um furto, trata-se do furto aventureiro do cleptomaníaco,
que se atreve a nos deixar agrá-lo no ato).
E a primeira frase do livro estabelece habilidosamente o estilo oral —
àquela altura, uma convenção inevitável da narração africana —, com
palavras que Ngaté descreve acertadamente como tendo a “concisão e a
beleza e poder impressionantes de um provérbio”...,33 e nesse momento
zomba de nós, pois a frase ecoa o começo do romance de holocausto
decididamente anti-africano de André Schwartz-Bart, escrito em 1959,
Le Dernier des justes [O último dos justos]; um eco que empréstimos
posteriores mais substanciais vêm con rmar.34
Nos yeux boivent l’éclat du soleil, et, vaincus, s’étonnent de pleurer. Maschallah! oua bismillah!
(...) Un récit de l’aventure sanglante de la négraille — honte aux hommes de rien! — tiendrait
aisément dans la première moitié de ce siècle; mais la véritable histoire des Nègres commence
beaucoup plus tôt, avec les Saifs, en l’an 1202 de notre ère, dans l’Empire africain de Nakem,
(...).35

Nos yeux reçoivent la lumière d’étoiles mortes. Une biographie de mon ami Ernie tiendrait
aisément dans le deuxième quart du XXe siècle; mais la véritable histoire d’Ernie Lévy commence
très tôt, dans la vielle cité anglicane de York. Plus précisément: le 11 mars 1185.36

Para essa comparação, z minhas próprias traduções, que são tão


literais quanto possível:
Nossos olhos bebem o brilho do sol e, vencidos, surpreendem-se por chorar. Maschallah! oua
bismillah! (...) Uma narrativa da aventura sangrenta da negrada — vergonha aos homens
ordinários! — caberia facilmente na primeira metade deste século; mas a verdadeira história dos
negros começa muito antes, com os saífes, no ano 1202 de nossa era, no império africano de
Nakem, (...).

Nossos olhos recebem a luz de estrelas mortas. Uma biogra a de meu amigo Ernie caberia
facilmente no segundo quarto do século XX; mas a verdadeira história de Ernie Lévy começa bem
antes, na velha cidade anglicana de York. Mais precisamente: em 11 de março de 1185.

O leitor adequadamente preparado há de esperar por um holocausto


africano; e esses ecos certamente pretendem ironizar a posição dos
governantes de Nakem como descendentes de Abraham El Héit, “le Juif
noir” [o judeu negro].37
O livro começa, portanto, com uma piada doentia contra o nativismo,
à custa do leitor desavisado: e o ataque ao realismo é — eis aqui meu
segundo marco — pós-nativista; esse livro é um antídoto homicida
contra a saudade das Raízes [Roots]. Como disse Wole Soyinka, numa
interpretação justi cadamente respeitada, “a Bíblia, o Corão e a
solenidade histórica dos griots são reduzidos à histrionice de meninos
levianos, disfarçados de seres humanos.”38 É tentador interpretar o
ataque à história, aqui, como um repúdio, não das raízes, mas do
islamismo, como faz Soyinka ao prosseguir:
Uma cultura que reivindicou uma antiguidade autóctone nas partes da África que se
submeteram a seus inegáveis atrativos é con antemente provada imperialista; pior ainda,
demonstra-se que ela é essencialmente hostil à cultura local (...) Ouologuem declara que a
incursão muçulmana na África negra é corrupta, violenta, decadente, elitista e insensível. No
mínimo, essa obra funciona como um enorme esfregão na operação de limpeza do convés para
o começo da restauração racial.39
A mim me parece muito mais claro interpretar o repúdio como um
repúdio da história nacional, ver o texto como pós-colonialmente pós-
nacionalista, e também como anti(e portanto, é claro, pós-) nativista.
(Na verdade, a interpretação de Soyinka nesse ponto parece ser guiada
por sua própria tendência, igualmente representativa — que discuti no
quarto capítulo —, de interpretar a África como raça e lugar em tudo.)
Raymond Spartacus Kassoumi — que é, se existe algum, o herói desse
romance — é, a nal, um lho da terra, mas seus projetos políticos no
m da narrativa não chegam a ser animadores. Mais do que isso, o
romance tematiza explicitamente, no antropólogo Shrobenius — um eco
evidente do nome do africanista alemão Frobenius, cuja obra é citada
por Senghor —, o mecanismo pelo qual a nova elite veio a inventar suas
tradições, através da “ciência” da etnogra a:
Saíf fabulava e o intérprete traduzia; Madoubo repetia em francês, requintando as sutilezas
para deleite de Shrobenius, lagostim humano atacado pela tateante mania de querer
ressuscitar, a pretexto de uma autonomia cultural, um universo africano que não correspondia
a mais nada de vivo: (...) queria descobrir um sentido metafísico em tudo (...) Considerava que a
vida africana era pura arte (...).40

No começo, fôramos informados de que “existem poucos relatos escritos,


e as versões dos anciãos divergem das dos griots, que diferem das dos
cronistas”.41 Agora, somos alertados contra o discurso supostamente
cientí co dos etnógrafos.42
Por ser esse um romance que procura deslegitimar não apenas a forma
do realismo, mas também o conteúdo do nacionalismo, ele nos parecerá,
nessa medida, enganosamente pós-moderno. Enganosamente, pois o que
temos aqui não é pós-modernismo, e sim pós-modernização; não uma
estética, mas uma política, no sentido mais literal do termo. Depois do
colonialismo, diziam os modernizadores, vem a racionalidade; essa é a
possibilidade que o romance exclui. O romance de Ouologuem é típico
desse segundo estágio, no sentido de não ser escrito por alguém que se
sinta à vontade e seja aceito pela nova elite, a burguesia nacional. Longe
de ser uma celebração da nação, portanto, os romances da segunda fase
— a fase pós-colonial — são romances de deslegitimação, rejeitando o
imperium ocidental, é verdade, mas também rejeitando o projeto
nacionalista da burguesia nacional pós-colonial. E, ao que me parece, a
base desse projeto de deslegitimação realmente não é a pós-modernista:
antes, ela se fundamenta num apelo a um universal ético; na verdade,
baseia-se, como se baseiam predominantemente as respostas intelectuais
à opressão na África, num apelo a um certo respeito simples pelo
sofrimento humano, numa revolta fundamental contra o sofrimento
interminável dos últimos trinta anos. Ouologuem di cilmente tenderia a
unir forças com um relativismo que pudesse permitir que a
horripilantemente nova-velha África da exploração fosse entendida —
legitimada — em seus próprios termos locais.
Os romancistas pós-coloniais da África — romancistas ansiosos por
escapar do neocolonialismo — já não estão comprometidos com a
nação; e, nesse aspecto, hão de parecer, como sugeri, enganosamente
pós-modernos. Mas, o que escolheram em lugar da nação não é um
tradicionalismo mais antigo, porém a África — o continente e seu povo.
Isso ca bastante claro, creio, em Le Devoir de violence; no m do
romance, Ouologuem escreve:
Muitas vezes, é verdade, a alma quer sonhar com o eco sem passado da felicidade. Mas, jogados
no mundo, não podemos deixar de lembrar que Saif, pranteado três milhões de vezes, renasce
incessantemente na História, sob as cinzas quentes de mais de trinta repúblicas africanas.43

Se havemos de nos identi car com alguém, in fine, será com “la négraille”
— a negrada, que não tem nacionalidade. Para esse m, uma república é
tão boa — o que equivale a dizer tão ruim — quanto qualquer outra. Se
essa postulação de si mesmo como africano — e nem desta ou daquela
etnicidade supostamente pré-colonial nem dos novos Estados nacionais
— está implícita em Le Devoir de violence, esse recurso pós-colonial à
África é encontrado, nos importantes romances de V. Y. Mudimbe —
Entre les eaux [Entre as águas], LeBelImmonde [O Belo Imundo] (recém-
publicado em inglês como Before the Birth of the Moon [Antes do
nascimento da lua]) e LÉcart [O desvio] —, mais perto da superfície, e
vez após outra.44

Em LÉcart, por exemplo, há um momento em que o protagonista, de


quem o livro constitui o diário, lembra uma conversa com a namorada
francesa de seus tempos de estudante — a moça sobre quem ele re ete
constantemente, ao se envolver com uma mulher africana:
— Você não tem como saber, Isabelle, como a África é exigente.
— Ela [a África] é importante para você, não é?
— Para dizer a verdade, não sei... Realmente não sei... Eu me pergunto se não costumo car
apenas brincando com isso.
— Nara... eu não compreendo. Para mim, o importante é ser eu mesma. Ser européia não é uma
bandeira.
— Você nunca foi ferida como...
— Você está dramatizando, Nara. Carrega sua africanidade como um mártir... Isso dá o que
pensar... Eu o desprezaria se entrasse no seu jogo.
— A diferença, Isabelle, a diferença é que a Europa é antes de tudo uma idéia, uma instituição
jurídica... ao passo que a África...
— O quê?...
— Á África talvez seja sobretudo um corpo, uma existência múltipla... Estou me expressando
mal...45

Esse diálogo me parece captar a ambigüidade essencial da relação do


intelectual africano pós-colonial com a África. Mas, deixem-me
acompanhar a África, nalmente, no primeiro romance de Mudimbe,
Entre les eaux, romance que tematiza essa questão de maneira sumamente
explícita.
Em Entre les eaux — uma narrativa na primeira pessoa —, nosso
protagonista é um jesuíta africano, Pierre Landu, que tem um “doctorat
en théologie et [une] licence en droit canon”,46 *54 adquiridos quando
estudante em Roma. Landu é apanhado entre sua devoção à Igreja e,
como se diria numa linguagem mais protestante, a Cristo; e este último
o leva a repudiar a hierarquia católico-romana o cial de sua pátria e a se
ligar a um grupo de guerrilheiros marxistas, empenhados em eliminar o
Estado corrupto pós-independência. Quando fala pela primeira vez de
suas intenções a seu superior imediato na hierarquia, o padre Howard,
que é branco, este lhe responde, imediatamente e sem remorso, que isso
será uma traição:
—Você estará cometendo uma traição — dissera-me meu superior quando lhe participei meu
projeto.
— Contra quem?
— Cristo.
— Padre, não será antes o Ocidente que estou traindo? Isso é uma traição mesmo assim? Não
tenho o direito de me dissociar desse cristianismo que traiu o Evangelho?
— Você é padre, Pierre.
— Desculpe, padre, sou um padre negro.47

É importante, creio, não ver a negritude aqui como uma questão de


raça. Ela é, antes, um sinal de africanidade. Ser um padre negro é ser um
padre que é também africano, e estar assim comprometido, querendo ou
não, com um engajamento no sofrimento africano. Essa demanda feita
pela África nada tem a ver com uma simpatia pelas culturas e tradições
africanas; re etindo, um pouco depois, sobre a resposta alienante do
padre Howard, Landu deixa isso claro:
O padre Howard também é padre, como eu. É esse o laço que nos une. Será que é o único? Não.
Existem nossos gostos comuns.
A música clássica. Vivaldi. Mozart. Bach. (...)
E há também nossas leituras. Os livros, nós os passávamos um para o outro. Nossas
lembranças comuns de Roma. Nossas discussões apaixonadas sobre o papel do padre, e sobre a
literatura e os romances policiais que ambos devorávamos. Sou mais próximo do padre
Howard que de meus compatriotas, mesmo os padres.
Só uma coisa nos separa: a cor da pele.48

Em nome dessa “couleur de la peau”, que é precisamente o sinal da


solidariedade com a África, Landu parte do catolicismo romano para o
marxismo, procurando juntar a energia revolucionária popular deste
último à visão ética — e religiosa — do primeiro, projeto que ele
examina numa passagem posterior, ao lembrar uma conversa mantida
muito tempo antes, em Roma, com monsenhor Sanguinetti. “LÉglise et
1’Afrique”, diz-lhe o monsenhor, “comptent sur vous.”49 Landu pergunta,
no presente:
A Igreja ainda poderia contar comigo? É o que eu desejaria e desejo. O essencial, no entanto, é
que Cristo conta comigo. Mas, e a África? De que África me falou Sanguinetti? A de meus
confrades negros que continuaram no bom caminho, ou a de meus pais, a quem já traí? Ou será
que ele estava falando da África que defendemos neste campo?50

Toda vez que Landu enfrenta uma decisão crucial, ela lhe é formulada
como uma pergunta sobre o signi cado da África.
Após ser acusado de outra traição — desta vez, pelos rebeldes, que
interceptaram uma carta endereçada a seu bispo (uma carta em que
Landu apela para que ele se solidarize com os negros rebeldes, que os
recupere para Cristo) —, Landu é condenado à morte. Enquanto
aguarda a execução, ele se lembra de algo que um tio lhe dissera, dez
anos antes, sobre “os ancestrais”:
“Farás falta aos teus...”, dissera-me meu tio há mais de dez anos. Eu me recusara a ser iniciado.
Que queria dizer? Eles é que me estão fazendo falta. Seria esta sua maldição? A fórmula me
invadiu, a princípio discreta, depois estonteante, impedindo-me de pensar: “Espera que
nossos ancestrais desçam. Tua cabeça queimará, tua garganta explodirá, teu ventre se abrirá e
teus pés se quebrarão. Espera que os ancestrais desçam...” Eles haviam descido. E eu tinha
apenas a secura de uma Fé racionalizada para me defender da África.51

A visão de modernidade dessa passagem não é, a meu ver, weberiana.


Sendo pós-colonial, Pierre Landu é contra o impulso racionalizante da
modernidade ocidental (que essa modernidade seja representada pelo
catolicismo, aqui, nesse contexto africano, con rma quão pouco a
modernidade tem a ver, em última instância, com a secularização). E,
mesmo nesse momento, quando ele acredita estar diante da morte, a
pergunta “Que signi ca ser africano?” está no centro de sua mente.
Um ataque das forças do governo ao campo salva Pierre Landu da
execução; a intervenção de um bispo e de um irmão com ligações
poderosas dentro do Estado moderno salva-o do destino de um rebelde
capturado: e ele se afasta do mundo para adotar uma vida monástica, sob
um novo nome — não mais Pedro-sobre-quem-construirei-minha-Igreja,
mas Mateus-Maria da Encarnação —, numa ordem diferente e mais
contemplativa. Quando o deixamos, suas palavras nais, as últimas do
romance, são: “(...) a humildade de minha degradação, que glória para o
homem!”52 Nem Marx nem São Tomás, sugere o romance — nenhuma
das duas grandes energias políticas do Ocidente na África —, oferecem
um caminho a seguir. Mas esse retraimento para o que é do outro
mundo não pode ser uma solução política. O pós-colonialismo também
se tornou, penso eu, uma condição do pessimismo.
Literatura pós-realista, política pós-nativista, solidariedade
transnational, em vez de nacional. E pessimismo: uma espécie de pós-
otimismo para compensar o entusiasmo anterior por e Suns of
Independence [Os sóis da independência]. O pós-colonialismo é posterior
a tudo isso: e seu pós, como o do pós-modernismo, é também um pós que
contesta as narrativas legitimadoras anteriores. E as contesta em nome
das vítimas sofredoras de “mais de trinta repúblicas”. Mas contesta-as em
nome do universal ético, em nome do humanismo, “la gloire pour
l’homme”. E, baseado nisso, ele não é um aliado do pósmodernismo
ocidental, mas um adversário: com o que acredito que o pós-
modernismo possa ter algo a aprender.

Pois o que estou chamando de humanismo pode ser provisório,


historicamente contingente, anti-essencialista (em outras palavras, pós-
moderno) e, ainda assim, ser exigente. Decerto podemos manter um
compromisso vigoroso com a preocupação de evitar a crueldade e a dor
e, ao mesmo tempo, não obstante, reconhecer a contingência dessa
preocupação.53 Talvez, portanto, possamos recuperar, dentro do pós-
modernismo, o humanismo dos escritores pós-coloniais — a
preocupação com o sofrimento humano, com as vítimas do Estado pós-
colonial (uma preocupação que encontramos por toda parte: em
Mudimbe, como vimos; em A Play of Giants [Jogo de gigantes], de
Soyinka; em Achebe, Farrah, Gordimer, Labou Tansi, lista difícil de
completar) —, ao mesmo tempo rejeitando as narrativas mestras do
modernismo. Esse impulso humano, um impulso que transcende as
obrigações para com igrejas e nações, é o que proponho aprendermos
com o Landu de Mudimbe.
Mas, também há algo a rejeitar na adesão pós-colonial à África de
Nara, o protagonista anterior de LÉcart, de Mudimbe: o tipo de
maniqueísmo que faz da África “um corpo” (a natureza), em oposição à
realidade jurídica da Europa (a cultura), e depois deixa de reconhecer —
muito embora o a rme — a plena signi cação do fato de a África ser
também “uma existência múltipla” Entre as águas fornece uma vigorosa
crítica pós-colonial desse binarismo: podemos lêlo como argumentando
que, para quem postula uma escolha ou-ou entre a África e o Ocidente,
não há lugar no mundo real da política, e seu lar deve ser o mundo
extraterreno, o retiro monástico.

Se há uma lição no formato amplo dessa circulação de culturas,


certamente ela é que todos já estamos contaminados uns pelos outros,
que já não existe uma cultura africana pura, plenamente autóctone, à
espera de resgate por nossos artistas (assim como não existe, é claro,
cultura norte-americana sem raízes africanas). E há um sentido claro, em
alguns textos pós-coloniais, de que a postulação de uma África unitária,
em contraste com um Ocidente monolítico — o binarismo do Eu e do
Outro —, é a última das pedras de toque dos modernizadores, da qual
devemos aprender a prescindir.
Já em Le Devoir de violence, na devastadora crítica da “shrobéniusologie”
[shrobeniusologia] feita por Ouologuem, vimos os primórdios dessa
crítica pós-colonial do que poderíamos chamar de “alterismo”: a
construção e celebração de si mesmo como o Outro. “(...) eis a arte negra
batizada de ‘estética’ e comercializada — salve! — no universo imaginário
das ‘trocas vivi cantes’!”,54 escreve Ouologuem; e então, depois de
descrever a elaboração fantasmática de uma misti cação “inventada por
Saif ”, ele anuncia que “(...) a arte negra forjou seus títulos de nobreza no
folclore da espiritualidade mercantilista, salve, salve, salve...”55
Shrobenius, o antropólogo, como apologista de “seu” povo; um público
europeu que absorve sofregamente esse outro que se tornou exótico; os
comerciantes e produtores de arte africana, que compreendem a
necessidade de manter os “mistérios” que estabelecem seu produto como
“exótico”; as elites tradicionais e contemporâneas que requerem um
passado sentimentalizado para autorizar seu poder atual, tudo isso é
exposto em suas cumplicidades complexas e múltiplas:
“(...) comprove: o esplendor de sua arte — a grandeza dos impérios da Idade Média constituiu a
verdadeira face da África, sábia, bela, rica, ordeira, não violenta e poderosa, ao mesmo tempo
que humanista — o próprio berço da civilização egípcia.
Babando assim, Shrobenius, de volta ao lar, tirou disso uma dupla vantagem: de um lado,
misti cou o povo de seu próprio país, que, encantado, alçou-o a uma cátedra sorbonical, e de
outro, explorou o sentimentalismo crioulo — feliz demais por ouvir um branco dizer que “a
África era o ventre do mundo e o berço da civilização”.
A negrada ofereceu às toneladas, conseqüentemente e de graça, máscaras e tesouros
artísticos aos acólitos da “shrobeniusologia”.56

Mais adiante, Ouologuem articula com mais exatidão as interligações


das misti cações africanistas com o turismo, bem como a produção,
embalagem e comercialização das obras de arte africanas:
Uma escola africanista, assim agarrada às brumas do simbolismo mágicoreligioso, cosmológico
e mítico, havia nascido: tanto assim que, durante três anos, homens — e que homens!
atravessadores, aventureiros, aprendizes de banqueiro, políticos, caixeiros-viajantes,
conspiradores —, “cientistas”, diziase, mas na verdade sentinelas servis, montando guarda
diante do monumento “shrobeniusológico” do pseudo-simbolismo negro, acorreram a Nakem.
Já a aquisição das máscaras antigas se tornara problemática, desde que Shrobenius e os
missionários tinham tido a felicidade de comprá-las em profusão. Assim, Saíf — e essa é ainda
hoje uma prática corrente — mandou enterrar montões de máscaras, feitas às pressas à
semelhança dos originais, em charcos, brejos, lagoas, pântanos, lagos e lodaçais, nem que fosse
para exumá-las algum tempo depois, vendendo-as a curiosos e a leigos a peso de ouro. Essas
máscaras de três anos de idade estavam, segundo se dizia, carregadas com o peso de quatro
séculos de civilização.57

Ouologuem expõe aí, de maneira vigorosa, as ligações que vimos antes


em algumas das opiniões de David Rockefeller sobre o sistema
internacional do comércio artístico, o mundo internacional da arte: vê-
se de que modo uma ideologia do valor estético desinteressado — o
“batismo” da “arte negra” como “estética” — mistura-se com a
mercadologização internacional da cultura expressiva africana, uma
mercadologização que exige, pela lógica do gesto de abrir espaço, a
fabricação da alteridade. (Um bônus signi cativo é que ela também se
harmoniza com a decoração dos apartamentos modernos.) Shrobenius,
“[c]e marchand-confectionneur d’ideologie” — esse negociante-manufator
de ideologias —, o etnógrafo aliado a Saíf — imagem da casta dominante
africana “tradicional” —, inventou uma África que é um corpo contrário
à Europa, a instituição jurídica; e Ouologuem incita-nos vigorosamente
a nos recusarmos a ser esse Outro.58

Sara Suleri escreveu recentemente, em Meatless Days [Dias sem carne],


sobre ser tratada como uma “máquina de alteridade” — e sobre estar
decididamente farta disso.59 Se não há saída para o intelectual pós-
colonial dos romances de Mudimbe, é porque, descon o, como
intelectuais — uma categoria instituída na África negra pelo
colonialismo —, estamos sempre em perigo de nos tornarmos máquinas
de alteridade. É o que corre o risco de se transformar em nosso papel
principal. Nossa única distinção, no mundo dos textos em que somos
retardatários, é que podemos mediá-lo para nossos companheiros. Isso
se aplica especialmente quando o pós-colonial encontra-se com o pós-
moderno, pois o que o leitor pós-moderno parece exigir de sua África é
sumamente próximo do que o modernismo — como documentado na
exposição Primitivismo de William Rubin, em 1985 — exigiu dela. O
papel que a África — como o resto do Terceiro Mundo — desempenha
para o pós-modernismo euro-americano (tal como sua importância mais
bem comprovada para a arte modernista) deve ser distinguido do papel
que o pós-modernismo poderia desempenhar no Terceiro Mundo; qual
seria este, a meu ver, ainda é cedo demais para dizer. E o que acontecer
acontecerá, não por nos pronunciarmos sobre o assunto na teoria, mas
pelas práticas cotidianas mutáveis da vida cultural africana.
É que, durante todo esse tempo, nas culturas da África, existem
aqueles que se recusam a ver-se como o Outro. Apesar da realidade
esmagadora do declínio econômico, apesar da pobreza inimaginável,
apesar das guerras, da desnutrição, da doença e da instabilidade política,
a produtividade cultural africana cresce a olhos vistos: as literaturas
populares, a narrativa oral e a poesia, a dança, o teatro, a música e as
artes visuais, todos vicejam. A produção cultural contemporânea de
muitas sociedades africanas — e as muitas tradições cujos testemunhos
persistem de modo muito vigoroso — são um antídoto contra a visão
sombria do romancista pós-colonial.
Sou grato a James Baldwin por sua introdução ao “Homem com
bicicleta”: uma gura que, como viu Baldwin com tanto acerto, é
poliglota — falando ioruba e inglês, provavelmente um pouco de haussá
e um pouquinho de francês para suas viagens a Cotonou ou Camarões, e
alguém cujas “roupas não lhe assentam muito bem”. Ele e outros homens
e mulheres, entre os quais vive quase todo o tempo, sugerem-me que o
lugar onde buscar a esperança não é apenas o romance pós-colonial —
que lutou por alcançar o discernimento de um Ouologuem ou um
Mudimbe —, mas a visão exaustiva dessa criatividade menos angustiada.
Pouco importa para quem ela foi feita; aquilo com que devemos
aprender é a imaginação que a produziu. O “Homem com bicicleta” foi
produzido por alguém que não se importa com o fato de a bicicleta ter
sido uma invenção de Homem Branco — ela não está ali para ser o
Outro do Eu iorubano; está ali porque alguém se importou com sua
solidez; está ali porque nos levará mais longe do que nossos pés; está ali
porque as máquinas são agora tão africanas quanto os romancistas... e tão
inventadas quanto o reino de Nakem.60

48 Edição brasileira: Sao Paulo, Martins Fontes. (N. da T.)


49 Edição brasileira: Sao Paulo, Pioneira. (N. da T.)

50 O autor parece fazer uma dupla referência: a O império dos signos, famoso livro de Roland Barthes
sobre os japoneses, e a O império contra-ataca, lme de cção cientí ca de George Lucas. (N. da
T.)

51 Edição brasileira: Brasília, Editora da UnB, v. 1, 1991. (N. da T.)

52 “Nascido em 1940 no Mali. Admitido na Escola Normal Superior. Licenciado em Letras.


Licenciado em Filoso a. Diploma de estudos superiores em inglês. Está preparando uma tese de
doutorado em Sociologia.” (N. da T.)

53 Jacques Bénigne Bossuet (1627-1704), escritor francês célebre por suas prédicas em Paris e por
seus sermões escritos; foi também prelado (e bispo). (N. da T.)

54 “Doutorado em teologia e licenciatura em direito canônico”. (N. da T.)


8
Estados alterados

Aban bεgu a, εfiri yam.


Se o Estado cair, será da barriga. 1

Q uando eu era menino em Achanti, havia, suponho, apenas cerca de


um milhão de nós, e logo haveria dez milhões de ganeses; mas
sabíamos que Koumassi, a segunda maior cidade do país
(construída, dizia meu pai, como Roma, como inúmeras grandes
cidades, em sete colinas), tinha uma história mais longa e mais nobre
que a da capital, Acra. Koumassi era um lugar orgulhoso, movimentado
e atarefado, uma cidade de parques deslumbrantes e arredores oridos;
as pessoas de toda a Costa Ocidental a conheciam como a capital de
nosso famoso reino, como a “cidade-jardim da África Ocidental”. Cresci
sabendo que eu morava em Achanti e que o Asantehene*55 era nosso rei.
Também cresci cantando entusiasticamente o hino nacional ganês —
“Erguei bem alto a bandeira de Gana” — e sabendo que Nkrumah era, de
início, nosso primeiro-ministro, e depois, nosso presidente. Quando
menino, não me ocorria que o “nós”, do qual esse “nosso” era o
possessivo, era uido, ambíguo e obscuro.
Eu sabia que meu pai era e fazia questão de ser um achanti, e que era e
fazia questão de ser um nacionalista ganês: orgulhoso de seu papel na
luta por nossa independência da Grã-Bretanha, mas empenhado, não
obstante, em que aprendêssemos inglês — não como o idioma do
colonizador, mas como a língua uni cadora de nossa nação nova e
poliglota. Não me ocorria — nunca ocorreu a ele — que essas
identidades pudessem estar em con ito, embora tenha ocorrido a outros
(muitos deles, jornalistas da Europa e da América do Norte) dizer isso a
seu respeito, quando ele se ligou à oposição a seu velho amigo Nkrumah
e ingressou no primeiro parlamento independente de Gana pelo United
Party [Partido Unido], ao lado de J. B. Danquah e Ko Busia; e isso
também ocorreu a muita gente de Achanti quando ele deixou de se ligar
ao Progress Party [Partido Progressista] de Busia, na ocasião em que este
chegou ao poder, por sua vez, passados um golpe de Estado e umas duas
constituições, na época em que eu era adolescente. Cresci sabendo que
éramos nacionalistas ganeses e que éramos achantis.
Também cresci acreditando na democracia constitucionalista, ou, para
dizêlo em termos mais exatos, acreditando que o que essas palavras
representavam era importante. Quando meu pai e seus amigos foram
presos por Kwame Nkrumah no começo dos anos 60, eu era jovem
demais para pensar nisso como outra coisa além de uma tragédia
familiar; quando eles foram soltos, entretanto, eu sabia que a proibição
da oposição legal em 1960 fora um golpe contra a democracia, que
naturalmente levara ao aprisionamento dos que discordavam de nosso
presidente e daqueles a quem meu pai chamava “parasitas embasbacados”
ao redor dele, e que todo esse mal havia começado com o m da
democracia eleitoral pluripartidária. Eu também sabia, é claro, que
devíamos respeito aos chefes de Achanti (e, a rigor, de outras regiões de
Gana), e que o papel deles no controle da distribuição de terras e na
resolução das disputas familiares era uma parte essencial da vida. Cresci
sabendo que éramos democratas e que respeitávamos a instituição da
che a.
E, quando já tinha idade su ciente para ser a favor da democracia, eu
sabia que éramos também favoráveis ao desenvolvimento e à
modernização; que isso signi cava estradas, hospitais e escolas (em
oposição às trilhas pela mata, aos amuletos e à ignorância), cidades (em
oposição à pasmaceira da vida rural), dinheiro e salários (em oposição
ao escambo e à produção doméstica). Não considerávamos, é claro, que
isso excluísse a oferenda apropriada de libações aos ancestrais, nem as
práticas complexas e multifacetadas dos funerais achantis. Se era preciso
usar um jaleco branco para ser médico, nem por isso tinha-se que
abandonar o ntoma, o pano em estilo de toga que meu pai usava quase
sempre no mundo externo ao hospital. Para dizê-lo num lema: cresci
acreditando no desenvolvimento e na preservação do que havia de
melhor em nossa herança cultural.
Duvido que essas experiências fossem incomuns na situação (um tanto
incomum em si, admito) de uma pessoa jovem que crescesse mais ou
menos na época da independência, na África sub-saariana, na casa de
pro ssionais de nível superior.2 Todavia, é bastante natural que, olhando
da Europa ou da América do Norte para a história política dos Estados
africanos ao sul do Saara a partir da independência, uma pessoa
considere incoerente esse agregado de crenças e compromissos. Talvez
seja possível combinar delidades etno-regionais e nacionais (afro-
americanos e sulistas nos Estados Unidos; galeses ou nortistas na Grã-
Bretanha; ou, quem sabe de modo mais controvertido, os quebequianos
no Canadá); talvez seja até possível (com uma teoria constitucional
su ciente para disfarçar os problemas) combinar a deferência social ante
uma aristocracia hereditária com uma forma de democracia, como na
Grã-Bretanha; talvez o pósmodernismo no campo da cultura expressiva
nos dê motivos de ceticismo acerca da modernização e do
desenvolvimento, concebidos como incompatíveis com os costumes
populares mais antigos. Mas, no Ocidente industrializado, penso eu,
poucos hão de ter conseguido prosseguir, tão jovialmente quanto o
zemos nós, na ignorância daquilo que, no mínimo, deve ser admitido
como as tensões existentes aqui, mesmo que elas não equivalham a
francas contradições.
Evidentemente, Gana e eu fomos cando pouco à vontade com todas
essas crenças da infância. No entanto, olhando agora para trás, consigo
discernir um certo padrão nessas adesões pareadas, tão desajeitadamente
unidas: Gana e Achanti; desenvolvimento e herança; democracia e che a;
e é um padrão que faz um certo sentido. É que, embora não o
formulássemos dessa maneira enquanto eu crescia, creio podermos dizer
que, em cada um dos casos, o primeiro membro de cada par era algo que
considerávamos como sendo da alçada da esfera do Estado, problema do
governo da capital, Acra; já o segundo pertencia a uma esfera que todos
podíamos chamar de sociedade.
Contudo, esse modo de pensar deixa inúmeros pontos obscuros. Na
teoria política ocidental, o Estado é naturalmente caracterizado em
termos que, mais uma vez, é comum fazermos remontar a Weber: onde
existe um Estado, o governo reivindica a autoridade suprema sobre um
espaço territorial e o direito de respaldar essa autoridade com a força
coercitiva. Os impostos e o alistamento não são voluntários; o direito
criminal não é um código optativo. A prisão, o açoite e as galés dão
esteio ao poder do Estado. A esfera da sociedade, em contraste, embora
igualmente exigente, é unida por convicções éticas, laços de afeição e
mundos compartilhados de signi cações. Correlacionadas — mas,
infelizmente para a conveniência teórica, apenas grosseiramente
correlacionadas — com essas distinções entre o Estado e a sociedade
existem outras: entre a lei e os costumes, a vida pública e privada, as
obrigações de cidadania e o mundo mais eletivo da reciprocidade
comunitária. Em nossas teorias, talvez imaginemos um Estado em que
apenas o governo seja sistematicamente coercitivo — e somente em
questões de interesse público; em que a afeição pessoal, a região e a
etnicidade não desempenhem nenhum papel na atribuição e na execução
das funções estatais; onde, numa fórmula, as carreiras sejam acessíveis ao
talento. Mas, há uma moeda comum ao Estado e à sociedade assim
concebidos: trata-se da economia. Seja qual for a extensão do
envolvimento estatal na economia (e o colapso do império soviético e de
seu modelo de economia gerida pelo Estado não deve levar-nos a perder
de vista a centralidade deste último em todas as economias em
funcionamento no mundo moderno), sempre haverá o bastante em jogo
nas operações do Estado moderno, em termos econômicos, para que
nossos impulsos sociais — o apelo da sociedade — penetrem
inextricavelmente nas operações de governo. Embora as relações sociais
e as relações de família nem sempre possam ser compradas e vendidas,
mesmo na mais íntima das relações domésticas o dinheiro tem sua
serventia; e, na esfera estatal, as relações sociais — família, etnicidade,
delidades regionais, clubes, sociedades e associações — fornecem a
matéria-prima das alianças.
Nos Estados Unidos (bem como na Europa), esse é um fato por demais
conhecido: os interesses econômicos, as a liações étnicas e as alianças
regionais lutam juntos por moldar as operações do Estado. Na Europa e
na América do Norte, com algumas exceções poderosamente
importantes (na Irlanda e no País Basco, na Lituânia “soviética” ou em
Porto Rico), há um consenso esmagador de que é legítimo que o Estado
reivindique o monopólio da coerção e, como resultado, ele vigora
amplamente. Mesmo nos casos em que algumas das injunções especí cas
do Estado não são respaldadas por esse consenso ético, esse fato, de
modo geral, não ameaça suas outras reivindicações. Convém lembrar
que, em muitas cidades e estados norte-americanos, uma das maiores
indústrias é a indústria da droga, cada uma de cujas etapas, desde a
produção até a distribuição e consumo, é ilegal. Tal como as chamadas
economias paralelas da África, ela envolve funcionários estatais,
inclusive policiais; acarreta suborno e corrupção de autoridades;
mobiliza lealdades étnicas e de família; e depende da existência de
subculturas cujas normas simplesmente não se enquadram nas normas
legais enunciadas no direito e nos pronunciamentos das autoridades.
Apesar disso, a maioria dos norte-americanos que utilizam e
comercializam drogas — e que, portanto, questionam uma norma
central do governo do país — não questiona sua lealdade aos Estados
Unidos.
Em Gana, porém (como no resto da África sub-saariana), há mais uma
coisa acontecendo. Em Gana, por um curto período antes e depois da
independência, é bem possível que seja verdade que muitos cidadãos
urbanos letrados (e alguns outros) tenham compartilhado uma lealdade
comum ao Estado ganês. No auge do nacionalismo pós-independência,
muitos de nós tínhamos em comum o sentimento da signi cação de
Gana, pois sabia-se com clareza contra o que nos colocávamos —
nominalmente, contra o imperialismo britânico; mesmo nessa ocasião,
porém, na cabeça de muitas pessoas, Achanti tinha direitos legítimos (ao
menos em certos campos) à obediência. E uma distinção formalista entre
a lei, teoricamente aplicável pelo poder policial do Estado, e os
costumes, não mais habilitados a coagir em esferas em que o direito
detinha a soberania técnica, em nada ajudaria a explicar como tudo isso
se a gurava para nós.
Aliás, tampouco nos seria de grande serventia uma distinção entre
uma vida privada étnica e uma vida pública nacional. As comemorações
públicas em Gana sempre implicaram o cerimonial da che a e,
inversamente, os chefes tribais e os chefes de família, cujas concepções
de obrigação não se enquadram no Estado moderno, continuam a
reivindicar uma legitimidade real e a exercer um poder substancial nas
questões de casamento, herança e criação dos lhos, e, através de todas
elas, da riqueza.
Todavia, por algum tempo, como eu disse — enquanto estávamos
todos entusiasmados com a independência nacional e Nkrumah criou o
primeiro (e último) partido de massa em Gana, o Convention People’s
Party [Partido da Convenção Popular, PCP], que envolvia organizações
de mulheres negociantes e de “verandah boys”*56 da primeira geração de
alfabetizados, produtos da ampliação do sistema de ensino primário e
secundário —, nenhuma dessas complicações conseguiu diminuir nosso
entusiasmo. Mas o “nós”, nesse caso, era de fato bastante limitado. O
apoio eleitoral a Nkrumah nas eleições pré-independência de Gana, em
1957, equivaleu a uma maioria de 57% dos 50% da população habilitados
a votar, e talvez tenha atingido 18% da população adulta.3 Nossa visão
de Nkrumah é, em parte, uma daquelas ilusões típicas da modernidade: o
Osagyefo *57 Dr. Kwame Nkrumah, o “Redentor”, o organizador de
comícios, o orador público carismático, o estadista internacional — e
até mesmo Nkrumah, o tirano cego — foi uma criação da mídia
moderna, e todos esses papéis encaixavam-se com facilidade em nossas
narrativas; não víamos os milhões de pessoas (especialmente longe da
costa) para quem ele era quase tão misterioso quanto o governador
colonial que o precedera. (Ainda me lembro vividamente de um vigia
aposentado que trabalhara muito tempo para patrões coloniais, e que
nos visitava anualmente no Natal, durante grande parte de minha
infância, para perguntar por calendários com fotos da rainha britânica.
Em sua opinião, estava claro, a independência fora um erro.) Em 1966,
quando o primeiro de nossos muitos golpes pós-independência exilou
Nkrumah, o entusiasmo real que um dia existira, ainda que limitado,
tinha-se evaporado; as complicações começaram a reter nossa atenção.
Quando Jerry Rawlings chegou ao poder, num golpe subseqüente à
nossa terceira constituição civil (por sua vez, uma criação dele), em
1981, sua retórica nacionalista e a ressurreição do nkrumahismo
geraram entusiasmo, sobretudo entre os estudantes, que não tinham
assistido a tudo isso antes. O cinismo em relação ao Estado e sua retórica
estava na ordem do dia. É instrutivo re etir sobre os processos dessa
desilusão.
Primeiro, contudo, devemos reconhecer como é surpreendente que
sequer tenha havido algum momento de “nacionalismo”. O Estado que
herdou Gana dos britânicos parecia-se com a maioria das cerca de duas
vintenas de Estados sub-saarianos da África pós-colonial. Tinha uma
gama bastante ampla de culturas e línguas dentro de suas fronteiras
(apesar de boa parte da Gana moderna ter estado, numa ou noutra
época, sob a esfera hegemônica do império achanti). Havia, por
exemplo, o próprio estado achanti, burocrático e relativamente
centralizado, juntamente com vários outros estados akan de menor
tamanho e poder (tendo, no caso de Akuapim, uma expressiva
etnicidade subordinada de língua guan); havia ainda, no sudeste, os
povos de língua ewe, muito menos centralizados, cujos dialetos nem
sempre eram fáceis de entender mutuamente e cuja separação dos outros
falantes de ewe, em Togo, foi um artifício da divisão das possessões
coloniais da Alemanha no m da Primeira Guerra Mundial; havia os ga-
adangbe, signi cativamente urbanizados, que dominavam a região da
capital; e havia uma miscelânea de pequenos clãs e sociedades acéfalas
no que nós, em Koumassi, chamávamos de “o norte”.
Em alguns casos de outras partes da África negra — Somália, Lesoto,
Suazilândia —, os novos Estados nacionais correspondiam a sociedades
pré-coloniais de uma só língua e, em se tratando dos dois últimos, o
moderno Estado nacional surgiu de uma monarquia pré-colonial.4 Em
quase todos os lugares, entretanto, os novos Estados reuniram povos que
falavam línguas diferentes, tinham tradições religiosas e noções de
propriedade diferentes e, em termos políticos (e sobretudo
hierárquicos), tinham graus diferentes de integração — muitas vezes,
radicalmente diversos. No m da descolonização européia — quando
mais de 80% da população da África negra encontrava-se nos dez
maiores países africanos ao sul do Saara e 2% estavam nos dez menores
—, nem mesmo os Estados com as populações mais diminutas, de modo
geral, eram etnicamente homogêneos.
Gana também tinha uma ecologia diversi cada, que ia das savanas
costeiras (economicamente integradas à economia mundial por quatro
séculos de comércio marítimo), passando por um cinturão orestal
relativamente rico (em decorrência de quase um século de produção de
cacau), até as savanas e os trópicos semi-áridos das regiões do norte e
das terras altas, estendendo-se até o Alto Volta (atual Burkina Faso) e a
orla sul do Saara. Também ali, o país se assemelhava a muitos dos
Estados anglófonos e francófonos do litoral oeste africano; muitos
Estados da África Oriental — Quênia, Uganda, Malaui — são igualmente
diversi cados em termos econômicos e ecológicos.
A partir de todas essas culturas, economias e ecologias variadas,
quatro nações européias — Grã-Bretanha, França, Portugal e Bélgica —
construíram a geogra a nacional da África contemporânea. (A Espanha
nunca teve grande importância; a Alemanha perdeu suas possessões
africanas depois da Primeira Guerra Mundial; após a Segunda Guerra
Mundial, a Itália deixou de participar do jogo.) Em Gana, como em
quase todos os outros países, a língua colonial continuou a ser a língua
de governo depois da independência, pela razão óbvia de que a escolha
de qualquer outra língua nativa teria favorecido um único grupo
lingüístico. (Até mesmo a Somália, basicamente monolíngüe, como
assinalei no capítulo 1, levou algum tempo para vir a utilizar o somali.)
A história da Europa metropolitana no último século e meio foi a da
luta para estabelecer a condição de Estado para as nacionalidades. Mas,
na independência, a mesma Europa deixou a África com Estados à
procura de nações. Uma vez passado o momento de coesão contra os
britânicos (um momento cujo signi cado foi maior para aqueles dentre
nós — geralmente nas cidades — que tivéramos maior experiência com
os colonizadores), o registro simbólico da união nacional confrontou-se
com a realidade de nossas diferenças.
Como pôde o nacionalismo de Nkrumah ignorar a realidade de nossa
diversidade? Em parte, creio, foi porque, no nível do simbolismo, ele foi
curiosamente desvinculado do Estado ganês. Os entusiasmos
nacionalistas de Nkrumah eram notoriamente pan-africanistas. No
capítulo 1, citei um discurso feito por Nkrumah na Libéria em 1952: “A
África para os africanos! (...) Queremos poder governar-nos neste nosso
país sem interferência externa. (...)”5 Para ele, era natural falar do “nosso”
país em qualquer lugar da África (negra). No plano da generalidade em
que os africanos se opõem aos europeus, é fácil nos convencermos de
que temos semelhanças: a maioria de “nós” é negra, a maioria “deles” é
branca; somos ex-súditos, eles são ex-senhores; somos ou éramos
“tradicionais” até recentemente, eles são “modernos”; somos
“comunitaristas”, eles são “individualistas”, e assim por diante. O fato de
essas observações, em sua maioria, não serem muito verdadeiras nem
muito claras não as impede de serem mobilizadas para estabelecer
diferenças, em parte porque, no nal das contas, quase todos “eles” são
muito ricos, e a maioria de “nós” é muito pobre. Somente nos países mais
ricos da África negra ao sul do Saara é que o PIB médio anual per capita
ultrapassou mil dólares (o Gabão, com sua população reduzida, seu
petróleo e suas ricas reservas minerais, encabeça a lista, com cerca de 3
mil dólares em 1988). Mais características são as poucas centenas de
dólares per capita do PIB do Senegal, Gana, Quênia e Zâmbia.
Uma parte importante do atrativo de Nkrumah, portanto, é que ele foi
central para a fundação da Organização da Unidade Africana,
representou a África no Movimento dos Países Não-Alinhados e na
Organização das Nações Unidas, e se preocupou, coerente e
publicamente, com a completa libertação africana do jugo colonial.
Orgulharmo-nos de ser ganeses, para muitos de nós, ligava-se ao que
Nkrumah estava fazendo, não por Gana, mas pela África. E não é grande
surpresa que, à medida que prosseguiu a descolonização e que Gana,
parcialmente empobrecida pelas aventuras internacionais de Nkrumah,
tornou-se um personagem menos importante no cenário africano, o
Estado pós-Nkrumah só tenha conseguido apelar com êxito cada vez
menor para seu registro nacionalista.

Como os herdeiros do Estado pós-colonial que se seguiram a ele em


nossa parte da África, Nkrumah tinha grandes ambições para esse
Estado; e elas foram moldadas, em parte, pela experiência especí ca de
Gana com o colonialismo. Conquanto a pluralidade cultural ganesa fosse
típica dos novos Estados, a forma de colonialismo que o país conhecera
não era encontrada em todos os lugares.
Samir Amin, um eminente economista político africano e diretor do
Fórum do Terceiro Mundo em Dakar, no Senegal, fez uma útil
classi cação das experiências coloniais da África sub-saariana,
dividindo-as em três grandes categorias. Os países como Gana
pertencem à “África da economia comercial colonial”, onde o trá co
negreiro esteve no cerne da integração inicial à economia mundial, as
reservas minerais conhecidas não eram substanciais durante a era
colonial, e os produtos agrícolas tropicais — cacau, óleo de palma, café
— eram a base de uma economia agrícola voltada para a exportação. A
Nigéria, talvez com 1/4 da população da África negra, é o mais
importante desses Estados. Na África central francófona — Gabão,
República Centro-Africana, Congo e Zaire — ca “a África das empresas
concessionárias”, criação da França e da Bélgica. Ali, as pequenas
populações e um clima e ecologia difíceis fazem da agricultura tropical
da África Ocidental uma proposta duvidosa: as empresas concessionárias
que trabalham com madeira, borracha e mar m praticaram uma forma
brutal de exploração, investindo o mínimo possível e, como resultado,
deixando de criar excedentes locais e não oferecendo quase nada em
termos de educação ocidental. (Por ocasião da independência, em 1960,
havia apenas três africanos entre os 4.700 principais servidores públicos
do Zaire.6 ) A última esfera colonial é “a África das reservas de mão-de-
obra” — que inclui todas as economias baseadas em plantations e
controladas por colonos brancos [settlers] da Tanganica alemã, do
Quênia e da Rodésia, bem como a totalidade da África ao sul do Zaire,
onde a economia colonial foi dominada pela mineração. Nessas áreas, as
sociedades foram radicalmente desintegradas pela instituição de uma
nova migração, maciça e nem sempre voluntária, para as minas e
plantações.7
Na África da economia mercantil colonial, o cultivo comercial de
produtos agrícolas tropicais ocupou o centro da economia — no nosso
caso, o importante era o cacau — e transformou o nanciamento do
governo numa questão de apropriação do excedente da agricultura.
In uenciado por idéias de planejamento defendidas, na época, por
economistas desenvolvimentistas tanto de orientação liberal como
socialista, Nkrumah usou a máquina de uma Câmara de Comércio do
Cacau [Cocoa Marketing Board], de âmbito nacional (originalmente,
uma concepção dos colonizadores), com o monopólio legal da compra e
comercialização e com uma grande divisão de ampliação agrícola, para
supervisionar a extração estatal de dinheiro da economia cacaueira. A
produção não era nacionalizada; a comercialização (e portanto, o acesso
ao valor da mercadoria em divisas estrangeiras), sim. Na teoria, o
excedente gerado por esse monopsônio deveria ser usado para nanciar
o desenvolvimento; na prática, ia para as cidades. Como fonte
predominante dos lucros nanceiros de nossa economia, a Câmara de
Comércio do Cacau e o Estado que a “possuía” — ou seja, todos os
políticos e burocratas que detinham algum tipo de in uência — eram
focos privilegiados de enriquecimento. Noutros sistemas de economia
política, sugeriram-se diferentes métodos de nanciamento do Estado,
muitas vezes surtindo praticamente o mesmo efeito.
Entretanto, apesar das variações da economia política do
imperialismo, os sistemas coloniais compartilhavam um conjunto
fundamental de pressupostos estruturais: em cada esfera, o interesse
econômico dominante achava-se no centro da atenção metropolitana, e
todas as colônias foram supostamente autônomas em termos
econômicos até depois da Segunda Guerra Mundial, o que incluiu o
nanciamento de seus próprios governos. Como resultado, já que
aproximadamente metade da receita dos governos coloniais fora gasta
na remuneração de burocratas expatriados, e mais 1/6 fora destinado ao
pagamento de empréstimos levantados para cobrir gastos de capital,
muitos dos quais bene ciavam mais o controle do que o
desenvolvimento, restava pouco para investir em capital humano —
através da educação, da saúde e dos serviços sociais. À parte a
manutenção de uma ordem econômica e política em que pudessem
desenvolver-se a agricultura tropical, as reservas de mão-de-obra ou as
concessões, a administração colonial tinha interesses muito limitados.
Como observou um estudo recente,
os órgãos formais transferidos para as mãos dos africanos eram (...) de derivação estrangeira,
funcionalmente concebidos, burocraticamente planejados, de natureza autoritária e
primordialmente interessados nas questões de dominação, e não de legitimidade.8

Os Estados coloniais foram criados para elevar — e não para gastar — as


receitas de governo. Em 1960, apenas um em cada seis adultos da África
era alfabetizado; nas possessões belgas e portuguesas, praticamente
ninguém tinha diploma universitário.
Em vista das metas restritas do sistema de governo colonial, talvez não
surpreenda saber quão poucos foram os administradores estrangeiros, os
colonialistas, necessários para manter essa hegemonia colonial de curta
duração. Assim como os britânicos haviam “governado” o subcontinente
indiano através de um Indian Civil Service*58 com menos de mil
funcionários britânicos, também os servidores públicos coloniais
britânicos, franceses e portugueses eram maciçamente superados em
número pelas populações de que supostamente deveriam encarregar-se.
Os exércitos e as forças policiais que mantinham a paz nas colônias
tinham um o cialato europeu, mas seu efetivo compunha-se de súditos
africanos.
A aparente simplicidade da administração colonial gerou nos
herdeiros das nações pós-coloniais a ilusão de que o controle do Estado
lhes permitiria, com a mesma facilidade, lograr seus objetivos muito
mais ambiciosos. “Busquem primeiro o domínio político”, fora a célebre
exortação de Nkrumah. Só que esse domínio fora concebido para
administrar objetivos restritos. Quando se voltou para as tarefas de um
desenvolvimento maciço da infra-estrutura — para a construção de
estradas e diques, escolas e prédios governamentais —, bem como para o
ensino primário universal e a imensa ampliação dos serviços de saúde e
de expansão agrícola, ele se revelou aquém da tarefa. Ao herdarem o
aparelho de Estado colonial, os governantes pós-coloniais herdaram as
rédeas do poder; poucos repararam, no princípio, que elas não estavam
ligadas a um bocal de freio.
Uma das razões disso, é claro, estava em que planejar e dirigir uma
economia exigem não apenas vontade, mas conhecimento. E o
planejamento econômico na África sub-saariana teve que se apoiar em
modestíssimas bases estatísticas. Uma segunda razão crucial foram
exatamente as lealdades etno-regionais pelas quais comecei.
Muitas vezes, estas não eram especialmente antigas, o que é
importante assinalar, mas amiúde produto — segundo os aspectos que
discuti e que pretendo nalmente retomar no capítulo 9 — de reações às
experiências coloniais e póscoloniais. Quando pessoas de culturas
correlatas, falando línguas semelhantes, chegaram às aldeias e cidades
coloniais; quando ouviram programas de rádio transmitidos num
dialeto relacionado com o seu, e quando se aperceberam de que havia
outras partes de seus países em que as pessoas tinham práticas diferentes,
um antigo e vago corpo de práticas culturais comuns foi freqüentemente
transformado numa nova etnicidade atuante. Assim, em muitos locais,
identidades etno-regionais recém-organizadas tornaram-se
extremamente poderosas. Esse, no entanto, foi outro aspecto em que as
diferenças da experiência colonial tiveram importância. É que os
governos coloniais britânicos e franceses foram norteados por teorias de
império muito diversas; e, embora as a liações etno-regionais sejam
centrais em toda a linha divisória anglófono-francófona, um dos
resultados dessas teorias distintas foi uma diferença, não tanto na
importância da etnicidade — ela é crucial por toda parte —, mas no
papel que ela desempenhou no Estado pós-colonial.

A administração indireta britânica mantinha “governos autóctones”,


numa tentativa de regulamentar os interesses limitados que os Estados
coloniais tinham nos impostos e na ordem, através da utilização das
estruturas dos Estados pré-coloniais existentes. Na medida do possível, e
com a ajuda de antropólogos o ciais das colônias, faziam-se tentativas
de compreender o que passou a ser chamado de “direito
consuetudinário”, e de permitir que as elites tradicionais zessem viger
os costumes — no casamento e nos direitos à posse da terra, por
exemplo — que fossem (aproximadamente) compatíveis com as práticas
tradicionais britânicas. Buganda — o reino, situado no coração da
moderna Uganda, que deu à nova república sua capital — e os Estados
nortistas muçulmanos da Nigéria eram compatíveis, como Achanti, com
a visão monárquica dos servidores públicos ingleses, entre os quais
foram recrutados os funcionários coloniais que inventaram a política
colonial britânica na África. (Onde não havia governantes tradicionais
para apoiar, como entre os povos de língua igbo na Nigéria Oriental, as
autoridades coloniais procuraram inventar uma forma de “sistema de
che a”.)
O resultado dessa política, é claro, foi que, especialmente nos lugares
onde havia sólidas estruturas estatais pré-coloniais servindo de base —
como Achanti, em Gana, Buganda, em Uganda, ou nos estados islâmicos
do Norte da Nigéria —, muitas elites locais não caram nada satisfeitas,
por ocasião da independência, em se submeter aos impulsos
centralizadores dos Estados independentes. Esse processo ajudou a
produzir na Nigéria, por exemplo, as vigorosas forças centrípetas que
deram origem à Guerra Civil Nigeriana do m dos anos 60. O que
começara como um pogrom contra os mercadores igbos do Norte da
Nigéria levou, primeiro, à secessão dos igbos, e depois, a uma guerra
civil em que o povo iorubano alinhou-se com o Norte para “salvar a
União”.
Também em Gana, nas ocasiões em que tivemos eleições civis no
período posterior a Nkrumah, os partidos costumavam aparecer com
rótulos “tribais”, rótulos cuja força pouco tinha a ver com as intenções
propaladas de seus líderes. Certamente, o reino achanti em que cresci foi
uma fonte de resistência à visão que Nkrumah tinha da nação. O partido
que passou a concentrar a oposição parlamentar a Nkrumah no m dos
anos 50, nos primeiros anos depois da independência, foi o United Party
[Partido da União], cujos fundadores e cuja base eleitoral estavam
solidamente estabelecidos em Achanti. Por força da associação da
oposição anti-Nkrumah com Achanti, em particular, e com a esfera mais
ampla das sociedades akan em geral, o Progress Party [Partido
Progressista] de Busia, na eleição de 1969, foi visto como achanti; a
oposição a Busia, a National Alliance of Liberals [Aliança Nacional dos
Liberais], de Gbedemah, era ewe (pelo menos aos olhos dos achantis),
pois Gbedemah o era. Até o minúsculo United Nationalist Party [Partido
Nacionalista Unido], fundado por meu pai na segunda república e
conhecido por seu lema akan “Abaa base”, passou a ser identi cado com
o povo ga e com a capital. Viajando nos transportes coletivos das áreas
akans de Gana nos anos 80, podia-se ouvir (caso se entendesse o twi,
língua da maioria dos povos akans de Gana9 ) discussões em que o atual
governo de Jerry Rawlings, cuja mãe era ewe, era tratado como um
instrumento da dominação ewe (acusação que soa pouco mais sensata do
que a a rmação de que ele representaria a dominação da Escócia, através
de seu pai).
O projeto colonial francês, em contraste com o britânico, acarretou a
evolução dos africanos francófonos; sua meta era produzir uma elite
francófona mais homogênea. As escolas não lecionavam nas línguas
“nativas”, e os franceses não concediam poderes substanciais a governos
pré-coloniais reformulados. Poderse-ia supor, desse modo, que o projeto
francês de criar uma classe de negros “évolués” teria estabelecido
fundações mais sólidas para o Estado pós-colonial. Na medida em que as
relações políticas pré-coloniais fossem extirpadas com êxito, elas não
poderiam constituir uma base de resistência à penetração do poder
estatal.
É fato que alguns dos Estados do antigo Império Africano Francês —
em particular, o Senegal e a Costa do Mar m, a oeste, e Camarões e
Gabão, mais ao leste — têm sido relativamente estáveis. Mas isso não
resultou, a meu ver, da erradicação da etnicidade. A maioria das
colônias francesas optou por continuar ligada à França; e todas, com
exceção da Guiné (que mal chega a ter um histórico de progresso
estável), aceitaram graus variáveis de supervisão “neocolonial” pela
metrópole. Nenhum golpe militar foi possível na Costa do Mar m, por
exemplo, porque a defesa do aparelho de Estado está nas mãos de
soldados franceses que ali têm sua base (podendo-se, ao mesmo tempo,
trazer reforços aerotransportados de outros locais); no Gabão, com
efeito, os franceses afastaram alguns militares que cometeram a
temeridade de tentar tomar o poder através de um golpe. E, embora
Daomé (depois, Benin) tenha tido a média de um golpe de Estado por
ano em sua primeira década de independência, esses golpes zeram o
poder trocar de mãos dentro de um pequeno grupo, geralmente com o
consentimento tácito do Quay d’Orsay. (O fato de, recentemente, os
franceses se haverem desligado o cialmente desse compromisso levanta
alguns problemas para vários Estados.) A França mantém a
conversibilidade do franco CFA,*59 usado em quase todas as ex-colônias
francesas da África Ocidental e Central, o que restringe a autonomia dos
Estados mas elimina o tipo de in ação maciça causada pela impressão de
papel-moeda, como a que assistimos em Gana em meados dos anos 70,
no governo do general Acheampong; isso também ajuda a manter a
estabilidade política.
Mas, a verdade é que, apesar desses legados da diferença entre as
abordagens britânica e francesa da política colonial e da política da
descolonização, personalidades como Félix Houphouet-Boigny, líder da
Costa do Mar m desde a independência, têm tido que praticar um
complexo jogo de manutenção do equilíbrio etno-regional na gestão das
forças que as mantêm no poder. A razão é simples: uma vez que, como
sugeri, as etnicidades tanto podem ser novas como velhas, a simples
eliminação das antigas instituições políticas — o sistema de che a é
basicamente cerimonial na Costa do Mar m — não acabou com o poder
das comunidades culturais. (Essa idéia não há de surpreender os
norteamericanos: os afro-americanos têm uma etnicidade politizada,
sem nenhum sistema tradicional de governo.) O presidente Houphouet-
Boigny, da Costa do Mar m, provém de uma cidadezinha da região
baúle do sudeste do país (também a terra natal, como o leitor estará
lembrado, de Lela Kouakou). Na era précolonial, os baúles eram um
grupo relativamente descentralizado, falante de uma língua akan e
uni cado por complexas a liações de comércio e casamento; por certo
não formavam um grande reino, como seus vizinhos akans do Estado
achanti mais a leste. Todavia, como o presidente é baúle, e uma vez que
os migrantes para Abidjã, a capital, descobrem a importância das
culturas que levam consigo modos de associação na vida urbana, ser
baúle (e, igualmente importante, não ser baúle), numa capital em que o
presidente é baúle, passa a ter um profundo signi cado. Além disso, o
presidente, ao construir suas bases de apoio em regiões diferentes da sua,
tem praticado uma política criteriosa de incluir representantes de todas
as regiões do país em seu partido — o Parti Démocratique de la Côte
d’Ivoire — e em seu ministério.
Nos Estados de língua portuguesa de Angola e Moçambique, que
conquistaram a independência através de longas guerras coloniais em
que a resistência foi dominada por marxistas, seu marxismo — não
importa a que tenha equivalido — levou os Estados Unidos (muitas vezes
agindo de comum acordo com a África do Sul) e a União Soviética (às
vezes atuando através de Cuba) a porem em prática seus antagonismos
mútuos à custa de vidas africanas. Em cada um desses países, uma grande
preocupação para o governo central é uma oposição que, em grande
parte, e ao menos em termos militares, é uma criação — senão a criatura
— da África do Sul *60 e dos Estados Unidos. Também neles, entretanto,
as a liações etno-regionais desempenharam um papel substancial na
moldagem dessas guerras civis; a União Nacional pela Independência
Total de Angola (Unita) — força de resistência ao governo de Angola
apoiada pela África do Sul —, por exemplo, é mais forte entre alguns
grupos étnicos do sul.
Em todas as suas circunstâncias extremamente variegadas, aqueles que
procuram controlar as instituições do Estado africano têm que
mobilizar o repertório padrão dos recursos do estadismo. Eles podem
usar o simbolismo através do qual Nkrumah captou a atenção de tantos;
podem oferecer recompensas materiais e as virtudes hobbesianas da
segurança; e (quando o atrativo falha) podem usar o açoite.
A deterioração da balança comercial, os choques do petróleo da
década de 1970, as secas e uma boa dose de governos ruins — alguns
negligentes, alguns bem intencionados, e muitos venalmente alheios ao
bem comum — signi caram que os Estados da África sub-saariana
dispõem de poucos recursos com que comprar a lealdade e de poucas
conquistas, desde a independência, com que conquistá-la numa moeda
simbólica. Quanto à coerção, também esta exige recursos de vigilância e
implementação. Até onde os Estados africanos continuaram capazes de
oferecer atrativos e punições, isso se deu, em muitos casos, porque a
comunidade internacional forneceu apoio nanceiro e militar
(reconhecidamente limitado) aos regimes, sobretudo porque só
recentemente os governos nacionais e os doadores multilaterais
procuraram ajudar os cidadãos dos Estados africanos, sem apoiar seus
governos. Em decorrência das noções de legalidade internacional e da
difundida aceitação (pelo menos em tese) da idéia de que as relações
entre os Estados devem respeitar os princípios da não-interferência nos
assuntos internos uns dos outros, as elites estatais da África têm
conseguido resistir, em nome da legalidade, às tentativas de terceiros de
manter suas mãos fora do pote da ajuda. Cada vez mais, entretanto,
através dos mecanismos coordenados do FMI e do Banco Mundial, os
chamados programas de “ajuste estrutural” têm forçado as elites a aceitar
a redução de seu envolvimento na economia, como preço pelos recursos
nanceiros (e técnicos) do capital internacional.10 O preço pago por
esse escoramento do Estado é a franca admissão de seus limites: uma
puxada das rédeas de seus recursos simbólicos, materiais e coercitivos.

Em vista do papel estatal na mediação entre os cidadãos dos diferentes


países, há um papel evidente a ser desempenhado até mesmo pelos
Estados enfraquecidos da África contemporânea, para facilitar a
integração das economias africanas. Essa é uma meta supostamente
visada por uma proliferação de organizações regionais: a Comunidade
Econômica dos Países da África Ocidental (ECOWAS);*61 a francófona
Comunidade Econômica da África Ocidental (CEAO); a Conferência
para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral (SADCC); e
a Organização para a Valorização do Rio Senegal (OMVS). Essas e uma
multiplicidade de outras organizações — sob a ampla proteção da
Organização da Unidade Africana (OUA) — têm almejado metas
grandiosas, como a livre mobilidade da mão-de-obra (ECOWAS) e a
eliminação das barreiras comerciais (CEAO), e as têm perseguido, de
modo geral, sem grande sucesso. (A SADCC propôs-se objetivos mais
modestos e, modestamente, tem alcançado alguns deles, parcialmente
unida, até agora, por sua inimizade comum pelo Estado do apartheid
[África do Sul] e por sua dependência dela.)
Essas organizações internacionais demonstram o problema — que
também vemos na Comunidade Européia e que os norte-americanos
devem recordar de sua Guerra Civil — de que a integração dos países
freqüentemente cria uma ameaça para suas elites.11 De fato, longe de
querer facilitar o comércio intraregional, muitas elites estatais africanas
têm dependido da existência de barreiras ao comércio e às nanças
como um mecanismo para ganhar dinheiro, dando continuidade à longa
tradição de governantes africanos que vivem dos impostos sobre o
comércio. Um dos padrões mais bem-sucedidos de comércio no sudeste
ganês, nos anos 70, foi o contrabando de cacau (ocasionalmente, a maior
parte da safra da região leste!) para a república vizinha de Togo,
mecanismo este que contornou a tentativa estatal de lucrar, ao mesmo
tempo, com a diferença entre os preços que o governo oferecia aos
cultivadores e os preços do mercado mundial, e com as taxas de câmbio
arti ciais e um controle do acesso às divisas estrangeiras. Inversamente,
uma das mercadorias mais valorizadas de Gana em muitos períodos,
desde a independência, foram as guias de importação, que, dadas as taxas
de câmbio arti ciais e a limitação das divisas externas, mais se
assemelham, com freqüência, a licenças para imprimir dinheiro.

Que dizer da moeda hobbesiana da ordem? Em meados da década de


1970, quando o Estado ganês iniciou seu declínio vertiginoso, eu estava
lecionando em Gana. Uma de minhas tarefas na universidade era ensinar
loso a política e, em particular, o Leviatã. Para um hobbesiano,
suponho, o retraimento do Estado ganês, frente a sua incapacidade de
levantar a receita necessária à execução de suas tarefas, deveria ter
levado à tragédia. No entanto, apesar do grau em que o governo deixou
de deter as rédeas da situação, a vida ganesa não se converteu numa
guerra embrutecida de todos contra todos. A vida continuou. Não só as
pessoas não “escapavam impunemente de seus crimes”, muito embora a
polícia costumasse não estar em condições de fazer nada a esse respeito
se elas os cometessem, como também fechavam negócios, compravam e
vendiam produtos, possuíam residências, casavam-se e criavam seus
lhos.
Se havia algo que se pudesse dizer sobre o papel dos servidores
públicos (inclusive o exército e a polícia), era que, em geral, sua
intervenção tinha tanta probabilidade de atrapalhar esses arranjos
quanto de ajudá-los, tendia tanto a ser temida e vivenciada com
ressentimento quanto a ser bem-vinda. Para muitos ganeses, em especial
os do mundo culturalmente mais homogêneo dos trabalhadores rurais,
um mundo em que uma língua — uma língua materna diferente do
inglês, essa língua de nossos colonizadores e do governo que os sucedeu
— era soberana, o importante era a regulação da vida através das
normas, comuns e inteligíveis, nascidas das reações das culturas pré-
coloniais a seu embate com o imperialismo europeu. As disputas nas
áreas urbanas e rurais tendiam a terminar numa arbitragem entre os
chefes das famílias, ou nos tribunais dos chefes e rainhas-mães
“tradicionais”, em processos que as pessoas se sentiam capazes de
compreender e, pelo menos até certo ponto, administrar; depois que os
advogados, desembargadores e juízes do sistema judiciário colonial (e
agora, com poucas mudanças, do pós-colonial) entraram em cena, a
maioria das pessoas soube que o que viesse a acontecer tenderia a
ultrapassar sua compreensão e controle.12
Nessas condições, uma defesa do Estado como provedor de segurança
seria, justi cadamente, motivo de galhofa. Somente em algumas
situações extremas — dentre elas, Uganda, a partir das depredações de
Idi Amin — é que as coisas atingiram um ponto de crise hobbesiana.
Mesmo na Nigéria, onde o roubo urbano à mão armada e o banditismo
das estradas tornaram-se inconvenientes aceitos, os cidadãos não tendem
a encarar o Estado como uma solução, uma vez que, certos ou errados,
eles parecem descon ar que os governantes têm aliados (ou testas-de-
ferro) através dos quais tiram proveito desses delitos contra a ordem.
Todavia, a despeito de todas as suas limitações, os Estados africanos
persistem. Ao que me parece, em Gana e em diversos outros lugares o
declínio se deteve. Não estou em condições de avaliar que parcela disso
pode ser creditada às políticas de ajuste estrutural, cujos efeitos
estritamente econômicos têm sido bem menos positivos do que a rmou
o Banco Mundial algumas vezes. Mas, na tentativa de compreender o que
aconteceu com o retorno do Estado em Gana, penso ser útil indicar o
caminho pelo qual o governo tornou-se um facilitador, em vez de um
dirigente, mobilizando e facultando compromissos de delidade sociais
que são predominantemente autônomos. E é importante esclarecer que
não estou falando apenas da mobilização de lealdades etnoregionais (ou
“tribais”).
Para explicar o que pretendo dizer, é útil voltarmos a Koumassi.

Uma das organizações mais importantes da vida de meu avô foi a


Sociedade Kotoko de Achanti, uma organização achanti moderna que se
dedicava a várias atividades, muitas delas bene centes. Igualmente
importante, descon o, era a loja maçônica de que ele era mestre (seu
retrato, pendurado na casa de meus pais, mostra-o em seus trajes da
maçonaria). Em toda a África do período colonial desenvolveram-se
novas organizações, ora pautadas, como os maçons, em modelos
europeus importados, ora baseadas em sociedades secretas, guildas e
cultos tradicionais. Quando as pessoas se mudavam para as cidades, era
comum formarem sociedades de sua terra natal (associations des
originaires), como a União Progressista Umuo a de O mal-estar, de
Chinua Achebe; e, entre as outras formas mais importantes de
organização, havia muitas que se centravam em igrejas cristãs e
mesquitas muçulmanas.13
Na década de 1970 e mais ainda na de 1980, cou claro que algumas
organizações de Koumassi, como a Igreja Metodista (à qual meu pai
pertencia) e outras igrejas menores (como a de minha mãe), estavam-se
tornando mais e mais centrais na organização do nanciamento,
construção, contratação de pessoal e aparelhamento das escolas; no
apoio ao hospital municipal; e no trabalho, amiúde em combinação
umas com as outras e com os líderes da comunidade muçulmana e do
arcebispado católico, pela manutenção de orfanatos e asilos para
doentes mentais e idosos sem famílias para tratá-los. (Aliás, quando
parou de trabalhar na política estatal, em meados dos anos 80, foi para
sua igreja e para a política institucional por ela adotada que meu pai,
como muitos outros, voltou sua atenção.)
Não é que as igrejas e mesquitas não houvessem feito essas coisas antes:
grande parte do melhor ensino secundário de Gana encontrava-se nas
escolas eclesiais desde a época em que meu pai era menino, e os hospitais
de missionários são um traço familiar da paisagem africana. Os
muçulmanos são obrigados por dever religioso a sustentar os pobres. O
que houve de signi cativo nessas mudanças, na última década e meia, é
que elas implicaram um reconhecimento explícito de que essas
organizações (e outros grupos, como o Rotary Club) estavam assumindo
funções antes reservadas ao governo, e que o estavam fazendo em
circunstâncias em que os servidores estatais tinham todo o interesse em
contar com sua ajuda.
Mas não foram apenas as igrejas. Os chefes e anciãos organizaram a
manutenção das rodovias “públicas”; organizações empresariais e outros
grupos privados forneceram alimentos às escolas “estatais”; grupos de
cidadãos compraram e importaram equipamentos médicos para os
hospitais “do governo”. Ao lado de novas associações, estas baseadas na
etnia, de organizações religiosas universalistas e de sociedades
transplantadas, como os maçons, as instituições do sistema de che a, em
Achanti e em outros locais, também começaram a exercer cada vez mais
o que antes eram funções do governo: por exemplo, a intermediação
entre trabalhadores e empresários nas disputas industriais.
Donde se poderia dizer, genericamente falando, que a lealdade a
causas diversas, cuja importância decorre da maneira como todas as
várias formas de associação trazem benefícios econômicos, afetivos e
simbólicos — benefícios que hoje costumam ultrapassar
substancialmente os que antes estavam ao alcance do Estado — passou a
ser usada para cumprir o que, em épocas anteriores, eram funções
estatais; e o Estado concordou com isso. A importância do retraimento do
Estado vai além dos pronunciamentos o ciais na capital; os burocratas
locais dos municípios e vilarejos dependem cada vez mais de associações
não estatais para exercer suas funções. A administração dos asilos de
idosos e orfanatos “governamentais” de Koumassi depende crucialmente
do apoio “privado”, da cooperação dos chefes, empresários e líderes
comunitários, para mobilizar e oferecer apoio.
Na medida em que o governo fornece alguma assistência técnica e
exerce uma função de coordenação nesse processo, podemos dizer, como
a rmei, que o Estado vem agora assumindo o papel, não de dirigir, mas
de facilitar certas funções; e isso é sem dúvida bem-vindo, na medida em
que aumenta o controle dos cidadãos sobre sua própria vida.14 Como
sugeri, sempre foi fato que, em grandes partes da África, o “tribalismo”
— aquilo que, na Costa do Mar m, é meio jocosamente chamado de
geopolítica: a política das regiões geográ cas, a mobilização e
administração do equilíbrio étnico —, longe de constituir um obstáculo
ao governo, é o que possibilita qualquer forma de governo. E podemos
encarar esse novo papel de facilitador — reconhecendo as associações da
sociedade, em vez de tentar dominá-las, ignorá-las ou erradicá-las —
como uma extensão desse padrão já estabelecido.

Embora tenha ocorrido em níveis diferentes e com efeitos diversos, a


proliferação de organizações não governamentais constitui, se é que isso
existe, um fenômeno universal da África pós-colonial. E é importante
deixar claro que as associações etno-regionais e religiosas que venho
examinando são apenas as primeiras dentre muitas. Os clubes esportivos,
os grupos de mulheres negociantes, as organizações pro ssionais, os
sindicatos e as cooperativas agrícolas, todos eles proporcionam as
múltiplas recompensas da associação. Em muitas dessas organizações —
quer se trate de um clube esportivo, um coral, uma association des
originaires15ou a Sociedade Kotoko de Achanti —, há um grau notável de
formalismo: eleições, normas de conduta sumamente formais e uma
preocupação considerável com a responsabilidade dos líderes — com
aqueles que administram a vida cotidiana das organizações e, em
particular, suas nanças; a preocupação com os estatutos e a conduta é
um traço fundamental das igrejas de Gana e de outros locais. Embora a
Igreja Católica estabeleça normas antidemocráticas para si mesma, ela
não consegue deter o desenvolvimento de associações leigas — a
proliferação do que poderíamos chamar de organizações para-
eclesiásticas — em que ocorrem os mesmíssimos fenômenos. As
“assistentes” femininas — sejam elas auxiliares da Igreja ou de
organizações sindicais — permitem às mulheres, que em geral têm
recebido um tratamento muito pior (e sido muito mais mal
representadas) no Estado pós-colonial, ter acesso à prática de algo que
se assemelha a uma participação democrática. E esse tampouco é um
fenômeno exclusivamente urbano. Os clubes, associações e cooperativas
são abundantes no setor rural.
Esses organismos, bem como as experiências de organização autônoma
e relativamente democrática que eles proporcionam, são, creio eu, de
tremenda importância para o desenvolvimento da vida pública na
África, e pela mais simples das razões: eles dão às pessoas a oportunidade
de exercer modos participativos de organização da vida comunitária,
proporcionam uma experiência de autonomia. Como resultado, será
cada vez mais difícil os Estados fracos manterem a legitimidade, sem
oferecer tais formas de participação democrática. Em 1989 e 1990,
houve tumultos na Costa do Mar m e no Quênia (dois dos Estados
africanos mais estáveis e mais fortes em termos econômicos),
plausivelmente ligados, em ambos os casos, a um sentimento de que o
presidente, em particular, e a elite, em termos mais gerais, não atendem
aos interesses do povo. Na Europa Oriental, vimos como a eliminação do
exército como mecanismo de controle levou a uma resistência a Estados
autoritários aparentemente bem-postados, providos de complexos
aparelhos de segurança e até da aparência de um certo grau de
legitimidade. Muitos Estados africanos não contam com nenhum destes
fatores para se escorar.
A democracia, nesse contexto, não é uma simples questão de
parlamentos e eleições — ainda que estes fossem bem acolhidos por
alguns, embora nem sempre os mais ponderados, em todos os países da
África —, mas implica o desenvolvimento de mecanismos pelos quais os
governantes possam ser cerceados pelos governados. E, na África, sem
esse pacto, os cidadãos têm poucas razões para aquiescer aos desejos (ou
caprichos) daqueles que pleiteiam o governo. Paradoxalmente, ao que
me parece, é o Estado que precisa de democracia, mais do que os
cidadãos.
Mas, conquanto seja fácil observar a inadequação do modelo do
Estado nacional frente às complexas instituições e compromissos de
delidade mediante os quais a sociedade civil pode organizar-se, talvez
seja cedo demais para nos pronunciarmos quanto ao desfecho disso.
Claramente, para que o Estado venha algum dia a reverter a história
recente e ampliar o papel que desempenha na vida de seus cidadãos, ele
terá que aprender alguma coisa sobre a surpreendente persistência
dessas a liações “pré-modernas”, dessa trama cultural e política de
relações pela qual nossa identidade é conferida.

Quando eu tinha cerca de oito anos, adoeci gravemente. Quase ao nal


de uns dois meses de cama no hospital local, a rainha inglesa, Elizabeth
II fez sua primeira visita pós-independência a Gana. Ela, o marido e o
presidente de Gana, o Osagyefo Dr. Kwame Nkrumah, chegaram a
Koumassi e zeram sua ronda pelo hospital, passando, nesse processo,
por minha cama. A rainha, cujo domínio da conversa ligeira é
proverbial, perguntou-me como eu estava, e eu, literalmente numa febre
de excitação por encontrar num mesmo dia a rainha de minha mãe e o
presidente de meu pai, resmunguei com presunção igual, porém talvez
mais desculpável, que estava muito bem. Enquanto isso ocorria, o
presidente, que recentemente mandara prender meu pai, cou olhando
para o teto e batendo com o pé (tomando nota mentalmente, como
depois se veri cou, de mandar meu médico de volta para o que então
ainda era a Rodésia). Depois da passagem dos dois, eu, contrariando as
ordens de meu médico e para consternação das enfermeiras, fui até a
janela e olhei para fora, a tempo de ter uma visão extraordinária: o
duque de Edinburgo e o presidente de Gana, sem grande entusiasmo,
tentavam arrancar uma antiga espada achanti do chão onde ela estava
ncada. A espada, rezava a tradição, fora colocada ali por Okomfo
Anokye, o grande sacerdote de Achanti que, com o primeiro grande rei,
Osei Tutu, havia fundado o reino, dois séculos e meio antes. Não muito
depois da independência, o “Hospital Central” da colônia, onde eu
estava internado, fora redenominado Hospital Okomfo Anokye. A
tradição também dizia que o grande sacerdote havia declarado que, com
todas as palavras mágicas que proferira, se algum dia a espada fosse
arrancada do chão, a nação achanti se fragmentaria nas múltiplas
unidades a partir das quais ele e Osei Tutu a haviam formado.
Lá do alto da multidão de dignitários, pareceu-me que o puxão de
Nkrumah na espada foi ainda mais desanimado que o do duque. Nenhum
governante ganês poderia, nem mesmo a título de brincadeira, simular
um ataque à unidade achanti, ali, no coração da terra. Hoje, muito
depois de Nkrumah haver-se reunido a seus ancestrais, Achanti
permanece, é claro; remodelada, talvez, mas estranhamente obstinada. A
espada, disseram-me, desapareceu.16
55 Asante é uma forma mais antiga e arcaica de Achanti, encontrada em textos coloniais. (N. da T.)

56 Os verandah boys podem ser encontrados um pouco por toda a África. São garotos que
permanecem nas varandas, do lado de fora das casas, esperando pequenos trabalhos que lhes
rendam alguma comissão. (N. da T.)

57 Palavra twi, principal língua dos akan, que habitam as regiões central e meridional de Gana. Pode
ser traduzida por “libertador”, ou “salvador”. (N. da T.)

58 Instituição formada por funcionários ingleses que serviam na Índia. (N. da T.)

59 Ou “franco comunidade nanceira africana”. (N. da T.)

60 O autor escreve em 1991, antes da posse do governo de Nelson Mandela. (N. da T.)

61 As siglas indicadas nesse parágrafo correspondem, respectivamente, às iniciais de Economic


Community of West African States (ECOWAS), Communauté Économique de L’Afrique de
l’Ouest (CEAO), Southern African Development Coordination Conference (SADCC) e
Organisation pour la Mise en Valeur du Fleuve Senegal (OMVS). (N. da T.)
9
Identidades africanas

É verdade, é claro, que a identidade africana ainda está em processo de formação.


Não há uma identidade final que seja africana. Mas, ao mesmo tempo,
existe uma identidade nascente. E ela tem um certo contexto e um
certo sentido. Porque, quando alguém me encontra, digamos, numa loja de
Cambridge, ele indaga: “Você é da África?” O que significa que a África
representa alguma coisa para algumas pessoas. Cada um desses rótulos
tem um sentido, um preço e uma responsabilidade. 1
Chinua Achebe

A vida cultural da África negra permaneceu basicamente não afetada


pelas idéias européias até os últimos anos do século XIX, e a
maioria das culturas iniciou nosso século com estilos de vida
muito pouco moldados pelo contato direto com a Europa. O comércio
direto com os europeus — e especialmente o trá co de escravos — havia
estruturado as economias de muitos dos Estados da costa africana
ocidental e de seu interior desde meados do século XVII, substituindo o
vasto comércio de ouro que existia, no mínimo, desde o Império
Cartaginês, no século II a.C. No início do século XIX, à medida que o
comércio escravagista entrou em declínio, os óleos de babaçu e de
amendoim tornaram-se as principais exportações para a Europa, sendo
posteriormente seguidos pelo cacau e pelo café. Mas a colonização
direta da região só começou para valer no m do século XIX; e a
administração européia de toda a África Ocidental só foi conseguida —
após muita resistência — quando o califado de Sokoto foi conquistado,
em 1903.
No oceano Índico, o comércio voltado para o Oriente, que enviava
ouro e escravos para a Arábia e trocava especiarias, incenso, mar m,
óleo de coco, madeira, cereais e ferro-gusa por seda e tecidos nos
indianos, bem como por cerâmica e porcelana da Pérsia e da China,
havia dominado as economias do litoral leste da África, até que a
chegada dos portugueses desbaratou esse comércio no m do século XV.
A partir de então, o comércio europeu tornou-se cada vez mais
predominante; mesmo assim, a principal força econômica da região em
meados do século XIX eram os omanianos árabes, que haviam capturado
Mombaça dos portugueses, mais de cem anos antes. Usando o trabalho
escravo do continente africano, os omanianos desenvolveram o lucrativo
comércio de cravo de Zanzibar, transformando o local, por volta de
1860, no maior produtor mundial. Entretanto, na maior parte da África
Oriental, assim como na Ocidental, o extenso contato direto com os
europeus foi um fenômeno do m do século XIX, e a colonização só
ocorreu, essencialmente, depois de 1885.
No sul do continente, nas áreas em que predominam os povos de
língua banta, poucas culturas tiveram qualquer contato com os europeus
antes de 1900: no nal do século anterior, a região havia adotado o
cultivo de muitos novos produtos agrícolas para a economia mundial, as
importações de armas de fogo fabricadas no Ocidente recém-
industrializado haviam criado uma nova ordem política, amiúde baseada
na força, e missionários e exploradores europeus — dos quais David
Livingstone foi, para os ocidentais, a epítome — tinham viajado por
quase todos os pontos da região. Só em 1902, no nal da Guerra dos
Bôeres, o domínio europeu da África Austral foi estabelecido em lei.
Não surpreende, portanto, que a in uência cultural européia na África
antes do século XX tenha sido extremamente limitada. As tentativas
deliberadas de mudança, através das atividades missionárias ou da
criação de escolas ocidentais, e a in uência inintencional, mediante o
contato com os exploradores e colonizadores no interior e com os
entrepostos comerciais no litoral, produziram pequenos enclaves de
africanos europeizados; porém, o grande impacto cultural da Europa foi
basicamente um produto do período posterior à Primeira Guerra
Mundial.
Para compreender a variedade das culturas contemporâneas da África,
portanto, precisamos, em primeiro lugar, recordar a variedade das
culturas précoloniais. As diferenças na experiência colonial também
tiveram seu papel na con guração das diversidades do continente, mas
até mesmo políticas coloniais idênticas, identicamente implementadas,
in uindo sobre materiais culturais muito diferentes, decerto teriam
produzido resultados amplamente variáveis.
É claro que podemos encontrar generalizações, num certo nível de
abstração, que se aplicam à maior parte da África negra antes da
conquista européia. Uma idéia conhecida na historiogra a africana é que
a África foi o último continente do mundo antigo com um campesinato
“não cativo”, capaz de utilizar a terra sem a supervisão de senhores
feudais e apto, se quisesse, a comercializar seus produtos através de um
complexo sistema de redes comerciais.2 Enquanto as classes dominantes
européias viviam do excedente dos camponeses e da recém-formada
classe trabalhadora industrial, os governantes africanos viviam
essencialmente dos impostos sobre o comércio. Mas, se nos fosse possível
viajar pelas muitas culturas da África naqueles anos — desde os
pequenos grupos de caçadores-coletores bosquímanos, com seus
instrumentos da Idade da Pedra, até os reinos haussás, ricos em metais
trabalhados —, teríamos sentido, em cada lugar, impulsos, idéias e
formas de vida profundamente diferentes. Falar de uma identidade
africana no século XIX — se identidade é uma coalescência de estilos de
conduta, hábitos de pensamento e padrões de avaliação mutuamente
correspondentes (ainda que às vezes con itantes), em suma, um tipo
coerente de psicologia social humana — equivaleria a “dar a um nada
etéreo um local de habitação e um nome”.

Todavia, não há dúvida de que agora, um século depois, começa a existir


uma identidade africana. A rmei, em todos estes ensaios, que tal
identidade é uma coisa nova; que é produto de uma história da qual
esquematizei alguns momentos; e que as bases em que tem sido
predominantemente teorizada até hoje — a raça, uma experiência
histórica comum, uma metafísica compartilhada — pressupõem
falsidades sérias demais para que as ignoremos.
Toda identidade humana é construída e histórica; todo o mundo tem
seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia
chama de “mito”, a religião, de “heresia”, e a ciência, de “magia”. Histórias
inventadas, biologias inventadas e a nidades culturais inventadas vêm
junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem
que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa a que o
mundo jamais consegue conformar-se realmente.
Muitas vezes, quem diz isto — quem nega a realidade biológica das
raças ou a verdade literal de nossas cções nacionais — é tratado pelos
nacionalistas e pelos “adeptos da raça” como se estivesse propondo o
genocídio ou a destruição das nações, como se, ao dizer que literalmente
não existe uma raça negra, estivesse obliterando todos aqueles que
a rmam ser negros, e, ao duvidar da história de Okomfo Anokye,
estivesse repudiando a nação achanti. Essa é uma hipérbole que não
ajuda; mesmo assim, deve haver contextos em que uma a rmação dessas
verdades é politicamente inoportuna. Sou aplicado o bastante para me
sentir atraído pela enunciação da verdade, mesmo que o mundo venha
abaixo; e sou animal político o bastante para reconhecer que há lugares
em que a verdade prejudica mais do que ajuda.
Mas, pelo que posso ver, não temos que optar entre esses impulsos:
não há razão para crer que o racismo seja sempre — ou mesmo
usualmente — promovido pela negação da existência das raças; e,
embora haja uma certa razão para descon ar que os que resistem aos
remédios legais para a história do racismo poderiam utilizar a
inexistência das raças para se posicionar — nos Estados Unidos, por
exemplo — contra uma ação a rmativa, essa estratégia, em matéria de
lógica, encontra uma oposição fácil. Pois, como nos lembra Tzvetan
Todorov, a existência do racismo não requer a existência de raças;
podemos acrescentar que as nações são bem reais, por mais inventadas
que sejam suas tradições.3
Levantar a questão de saber se essas verdades são verdades a serem
enunciadas é ser forçado a encarar de frente a verdadeira questão
política: a questão, tão velha quanto a loso a política, de quando
devemos endossar a mentira enobrecedora. No mundo real da prática
política, das alianças cotidianas e das mobilizações populares, uma
rejeição das raças e nações, na teoria, só pode fazer parte do projeto de
uma prática política coerente se pudermos mostrar mais do que o fato
de que a raça negra — ou a tribo chona, ou qualquer dos outros modos
de auto-invenção que a África tenha herdado — enquadra-se no padrão
comum de se basear em algo menor do que a verdade literal.
Precisaríamos mostrar, não que a raça e a história nacional são
falsidades, mas que elas são, na melhor das hipóteses, falsidades inúteis,
ou — na pior — perigosas: que um outro conjunto de histórias nos
construirá identidades através das quais possamos fazer alianças mais
produtivas.
O problema, é claro, é que a identidade grupal só parece funcionar —
ou, pelo menos, funcionar melhor — quando é vista por seus membros
como natural, como “real”. O pan-africanismo, a solidariedade negra,
pode ser uma força importante, com benefícios políticos reais; mas não
funciona sem suas misti cações concomitantes. (Para nos voltarmos para
o outro exemplo óbvio, o feminismo tampouco está livre de seus riscos e
misti cações ocasionais.) Aos olhos de muitos, reconhecer que a história
das identidades é algo construído tem parecido incompatível com a
assunção dessas novas identidades, com a seriedade que elas requerem
daqueles que as inventam — ou, como eles sem dúvida prefeririam dizer,
que as descobrem — e as possuem.4 No mundo real da política, em suma,
as demandas de intervenção sempre parecem implicar um
desconhecimento de sua gênese; é impossível construir alianças sem
misti cações e mitologias. E este capítulo é uma investigação dos modos
como o que há de produtivo na solidariedade pan-africana pode ser
fecundamente entendido por aqueles de nós cuja posição de intelectuais
— de pesquisadores da verdade — nos impede de viver segundo as
falsidades da raça, tribo e nação, e cuja compreensão da história nos
torna céticos quanto à idéia de que o nacionalismo e a solidariedade
racial possam fazer o bem que são capazes de fazer, sem os males
concomitantes do racismo — e de outros particularismos; sem a guerra
entre as nações.

Por onde devemos começar? Nestas páginas, muitas vezes coloquei-me


contra as formas de racismo implícitas em grande parte do discurso
sobre o panafricanismo. (E, em outros textos, especialmente em
“Racisms” [Racismos] e “Racism and Moral Pollution” [Racismo e
poluição moral], ofereci outros argumentos contra esses pressupostos
racistas.) Mas, estas objeções a uma concepção da raça baseada na
biologia talvez ainda pareçam por demais teóricas: se os africanos
puderem unir-se em torno da idéia da Pessoa Negra, se puderem criar,
através dessa idéia, alianças produtivas com os afro-americanos e com as
pessoas de ascendência africana da Europa e do Caribe, essas objeções
teóricas decerto empalidecerão à luz do valor prático dessas alianças.
Mas, há todas as razões para duvidar de que elas consigam fazê-lo.
Dentro da África — na OUA, no Sudão, na Mauritânia5 —, a racialização
produziu fronteiras arbitrárias e tensões exacerbadas; na Diáspora, por
outro lado, as alianças com pessoas de outra cor, como vítimas do
racismo — pessoas de ascendência sul-asiática na Inglaterra, hispânicos
nos Estados Unidos, “árabes” na França, turcos na Alemanha — têm-se
revelado essenciais.
Em suma, penso ser bastante claro que uma concepção da raça
enraizada na biologia é perigosa na prática e enganosa na teoria: a
unidade africana e a identidade africana precisam de bases mais seguras
do que a raça.
O trecho de Achebe pelo qual iniciei este ensaio continua com estas
palavras: “Todos esses rótulos, infelizmente para o negro, são rótulos de
incapacidade.” Mas, a meu ver, eles são menos rótulos de incapacidade
do que rótulos incapacitantes; isso constitui, em essência, minha queixa
contra a África como uma mitologia racial — a África de Crummell e
Du Bois (do Novo Mundo) e dos críticos bolekaja (do Velho) —; contra a
África como uma metafísica comum — a África de Soyinka —; contra a
África como um passado fantasioso de glórias compartilhadas — a
África de Diop e dos “egipcianistas”.
Cada uma dessas queixas pode ser resumida num parágrafo.
A “raça” nos incapacita porque propõe como base para a ação comum
a ilusão de que as pessoas negras (e brancas e amarelas) são
fundamentalmente aliadas por natureza e, portanto, sem esforço; ela nos
deixa despreparados, por conseguinte, para lidar com os con itos
“intra-raciais” que nascem das situações muito diferentes dos negros (e
brancos e amarelos) nas diversas partes da economia e do mundo.
A metafísica africana de Soyinka nos incapacita porque fundamenta
nossa unidade em deuses que não nos foram de muita serventia em nosso
trato com o mundo — Soyinka nunca defende o Mundo Africano da
acusação de Wiredu de que, uma vez que as pessoas morrem
cotidianamente, em Gana, por preferirem os remédios tradicionais à
base de ervas aos medicamentos ocidentais, “qualquer propensão a
glori car a mentalidade não analítica [isto é, tradicional] é não apenas
retrógrada; é trágica”. Soyinka provou que o panteão iorubano é um
poderoso recurso literário: mas não consegue explicar por que o
cristianismo e o islamismo substituíram tão amplamente os velhos
deuses, nem por que a imagem do Ocidente tem uma in uência tão
poderosa na imaginação iorubana contemporânea; sua criação de mitos
tampouco é capaz de nos oferecer os recursos para criarmos economias e
políticas adequadas a nossos variados lugares no mundo.
E os egipcianistas — como todos os que optaram por radicar a
identidade moderna da África numa história imaginária — pleiteiam
que encaremos o passado como o momento de completude e unidade;
ligam-nos aos valores e crenças de outrora; desse modo, desviam-nos dos
problemas do presente e das esperanças do futuro (esta crítica é tão
velha quanto a avaliação de Tempels por Césaire).
Para que uma identidade africana nos con ra poder, o que se faz
necessário, eu creio, não é tanto jogarmos fora a falsidade, mas
reconhecermos, antes de mais nada, que a raça, a história e a metafísica
não impõem uma identidade: que podemos escolher, dentro de limites
amplos instaurados pelas realidades ecológicas, políticas e econômicas,
o que signi cará ser africano nos anos vindouros.

Não quero ser mal interpretado. Já somos africanos. E podemos dar


numerosos exemplos, extraídos de múltiplos campos, do que signi ca
sermos africanos. Temos instituições africanas, por exemplo, na
Organização da Unidade Africana e no Banco de Desenvolvimento
Africano, em organizações regionais como a Conferência para a
Coordenação do Desenvolvimento da África Austral (SADCC) e a
Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental (ECOWAS), e
ainda nas bancadas africanas dos órgãos das Nações Unidas e do Banco
Mundial. Nas Olimpíadas e nos jogos da Comunidade das Nações, atletas
de países africanos são vistos como africanos pelo mundo — e talvez, o
que é mais importante, por eles mesmos. Ser africano já tem “um certo
contexto e um certo sentido”.
Mas, como sugere Achebe, esse sentido nem sempre é tal que nos deixe
satisfeitos; e essa identidade é de um tipo que devemos continuar a
reformular. Ao re etir sobre como havemos de reformulá-la, seria bom
nos lembrarmos de que a identidade africana é, para seus portadores,
apenas uma dentre muitas. Como todas as identidades,
institucionalizadas antes que qualquer um tenha estabelecido em caráter
permanente um sentido único para elas — como a identidade alemã do
início deste século, ou a norte-americana do m do século XVIII, ou a
identidade indiana quando da independência, há tão poucos anos —, ser
africano é, para seus portadores, um dentre muitos outros modelos
destacados de ser, por todos os quais é preciso lutar e tornar a batalhar
constantemente. E de fato, na África, é outra dessas identidades que
proporciona um dos modelos mais úteis para essa reelaboração; trata-se
de um modelo que se pauta em outras identidades centrais para a vida
contemporânea no subcontinente, a saber, a rede nição constantemente
cambiável das identidades “tribais”, para atender às exigências
econômicas e políticas do mundo moderno.
Mais uma vez, permitam-me citar Achebe:
A duração do conhecimento, da consciência de uma identidade, tem realmente muito pouco a
ver com a profundidade desta. Súbito, pode-se tomar ciência de uma identidade da qual se vem
sofrendo por muito tempo sem saber. Por exemplo, tomemos o povo igbo. Em minha região,
historicamente, eles não se viam como igbos. Viam-se como pessoas desta ou daquela aldeia.
Na verdade, em alguns locais, “igbo” era um termo ofensivo; eles eram o “outro” povo, lá
dentro dos bosques. No entanto, depois da experiência da Guerra de Biafra, durante um
período de dois anos, essa se tornou uma consciência poderosíssima. Entretanto, isso fora real
o tempo todo. Todos eles falavam a mesma língua, chamada “igbo”, ainda que não usassem de
modo algum essa identidade. Mas chegou o momento em que essa identidade tornou-se muito,
muito poderosa (...) e em curtíssimo prazo.

Sim, foi um prazo curto; e também trágico. A Guerra Civil da Nigéria


de niu uma identidade igbo: e o fez de maneiras complexas, que
brotaram do desenvolvimento de uma identidade igbo comum na África
colonial, uma identidade que criou os mercadores igbos das cidades do
Norte da Nigéria como um objeto identi cável de agressão, no período
que levou à invenção de Biafra.
Reconhecer a identidade igbo como uma coisa nova não é um modo
de privilegiar outras identidades nigerianas: cada uma das três
identidades étnicas centrais da vida política moderna — os haussá-
fulanis, os iorubanos e os igbos — foi produto da transição turbulenta
do status colonial para o pós-colonial. David Laitin assinalou que “[a]
idéia de que havia uma única tribo haussá-fulani (...) foi, basicamente,
uma alegação política do Northern Peoples’ Congress [Congresso dos
Povos do Norte, NPC] em sua batalha contra o Sul”, ao passo que
“muitos dos meus parentes mais velhos, intimamente envolvidos na
sociedade iorubana rural de hoje, lembram que, ainda na década de
1930, ‘iorubano’ não era uma forma comum de identi cação política”.6
Nnamdi Azikiwe — uma das guras-chave na construção do
nacionalismo nigeriano — era extremamente popular (como também
aponta Laitin) na Lagos iorubana, onde “editava seu jornal nacionalista,
o West African Pilot. Somente os acontecimentos posteriores é que o
levaram a ser de nido na Nigéria como um líder igbo”7 Todavia, a
política nigeriana — tal como a economia mais cotidiana das relações
pessoais corriqueiras — orienta-se por esses eixos; e só muito
ocasionalmente vem à tona o fato de que até essas três identidades
problemáticas respondem, quando muito, por sete em cada dez
nigerianos.
Essa história se repete mesmo em lugares onde não foi escrita com
letras de sangue. Como observou Johannes Fabian, as poderosas
identidades lingala e de língua swahili do Zaire moderno existem
“porque se estabeleceram esferas de interesse político e econômico antes
de os belgas assumirem pleno controle, e elas continuaram a
instrumentar as relações entre as regiões sob domínio colonial”.8 A Gana
moderna assiste ao desenvolvimento de uma identidade akan, à medida
que os falantes dos três principais dialetos regionais do twi — achanti,
fante e akuapem — vão-se organizando numa corporação contrária a
uma unidade ewe (igualmente nova).9
Quando não é a “tribo” que é investida de novos usos e sentidos, é a
religião. No entanto, a idéia de que a Nigéria se compõe de um Norte
muçulmano, um Sul cristão e um mosaico de remanescentes “pagãos” é
tão inexata quanto o quadro das três identidades tribais históricas. Duas
em cada cinco pessoas iorubanas do Sul são muçulmanas; e, como nos
diz Laitin:
[M]uitos grupos nortistas, especialmente no que hoje são os estados de Benue, Plateau,
Gongola e Kwara, são predominantemente cristãos. Quando os líderes de Biafra tentaram
convencer o mundo de que estavam sendo oprimidos pelos muçulmanos do Norte, os
estrangeiros ignorantes (inclusive o papa) acreditaram neles. Mas o exército nigeriano (...) era
liderado por um cristão do Norte.10

Aqui, como no caso da raça, é igualmente inútil assinalar que a tribo ou


a religião, como todas as identidades sociais, baseia-se numa cção
idealizadora, pois a vida na Nigéria ou no Zaire passou a ser vivida
através dessa idealização: a identidade igbo é real porque os nigerianos
acreditam nela; a identidade chona o é porque os zimbabuanos lhe
deram um sentido. A retórica de um Norte muçulmano e um Sul cristão
estruturou as discussões políticas no período anterior à independência
nigeriana; mas foi igualmente importante nos debates sobre a instituição
de um Tribunal de Apelação muçulmano no Projeto de Constituição de
1976; e pôde ser encontrada em muitos artigos da imprensa nigeriana
quando começou o registro eleitoral para uma nova era civil em julho
de 1989.

Penso que existem três lições cruciais a serem aprendidas através desses
casos. Primeiro, que as identidades são complexas e múltiplas, e brotam
de uma história de respostas mutáveis às forças econômicas, políticas e
culturais, quase sempre em oposição a outras identidades. Segundo, que
elas orescem a despeito do que antes chamei de nosso
“desconhecimento” de suas origens, isto é, a despeito de terem suas
raízes em mitos e mentiras. E terceiro, que não há, por conseguinte,
muito espaço para a razão na construção — em contraste com o estudo e
a administração — das identidades. Assim, para aqueles que atribuem
uma centralidade a essas cções em nossa vida é tentador deixar a razão
para trás: celebrar e endossar as identidades que, no momento, parecem
oferecer a melhor esperança de promover nossos outros objetivos, e
silenciar sobre as mentiras e os mitos. Mas, como a rmei antes, os
intelectuais não desprezam facilmente a verdade e, tecidas todas as
considerações, nossas sociedades se bene ciam, a meu ver, da
institucionalização desse imperativo no mundo acadêmico. É importante
que continuemos procurando dizer nossas verdades. Mas os fatos que
examinei devem imbuir-nos a todos de um intenso sentimento da
marginalidade desse trabalho para a questão central da resistência ao
racismo e à violência étnica — e para o sexismo e as outras estruturas da
diferença que moldam o mundo do poder; e eles devem impor-nos o
reconhecimento claro de que a verdadeira batalha não é travada nos
círculos acadêmicos. Todas as vezes que leio mais uma reportagem nos
jornais sobre uma calamidade africana — a fome na Etiópia, uma guerra
na Namíbia, con itos étnicos em Burundi —, co me perguntando qual
é o benefício de corrigir as teorias a que esses males estão ligados; a
solução são os alimentos, a mediação ou alguma outra medida mais
material, mais prática. E no entanto, como venho tentando argumentar
neste livro, a con guração da África moderna (a con guração de nosso
mundo) é produto, em grande parte — muitas vezes um produto
inintencional e não previsto —, das teorias; até o mais vulgar dos
marxistas terá que admitir que os interesses econômicos operam através
das ideologias. Não podemos modi car o mundo simplesmente pela
evidência e pelo raciocínio, mas decerto tampouco podemos mudá-lo
sem eles.
Aquilo para o que nós do mundo acadêmico podemos contribuir —
ainda que apenas lenta e marginalmente — é a desarticulação do
discurso das diferenças “raciais” e “tribais”. Pois, em minha opinião
perfeitamente não original, a realidade dessas muitas identidades rivais
da África de hoje faz o jogo, justamente, dos exploradores de cujos
grilhões estamos tentando escapar. A “raça”, na Europa, e a “tribo”, na
África, são centrais para o modo como se distorcem os interesses
objetivos daqueles que estão em pior situação. Um dado análogo foi
reconhecido há muito tempo por Du Bois a respeito dos afro-
americanos.11 Du Bois a rmou, em Black Reconstruction [A reconstrução
negra], que a ideologia racista bloqueou essencialmente a formação de
um movimento trabalhista signi cativo nos EUA, pois tal movimento
teria exigido a colaboração dos nove milhões de ex-escravos e de
agricultores brancos do Sul.12 Em outras palavras, como as categorias
diferenciais freqüentemente perpassam nossos interesses econômicos,
elas funcionam no sentido de nos cegar para seu reconhecimento. O que
liga os afro-americanos de classe média a seus concidadãos de pele
escura dos bairros pobres não é o interesse econômico, mas o racismo e
os produtos culturais da resistência a ele, que são compartilhados pela
(maior parte da) cultura afro-americana.
Parece-me que aprendemos com esse exemplo o que John ompson
a rmou recentemente, numa crítica vigorosa mas apreciativa a Pierre
Bourdieu, isto é, que talvez seja um erro considerarmos que a
reprodução social — os processos pelos quais as sociedades se mantêm
ao longo do tempo — pressupõe “algum tipo de consenso a respeito dos
valores ou normas dominantes”. Ao contrário, a estabilidade da
sociedade industrializada de hoje talvez exija “uma vasta fragmentação da
ordem social e uma proliferação de divisões entre seus membros”. Pois é
precisamente essa fragmentação que impede que as atitudes
oposicionistas gerem “uma visão alternativa coerente, capaz de fornecer
uma base para a ação política”.
As divisões rami cam-se pelas linhas do sexo, da raça, das quali cações pro ssionais e assim
por diante, formando barreiras que bloqueiam o desenvolvimento de movimentos que possam
ameaçar o status quo. A reprodução da ordem social talvez dependa menos de um consenso a
respeito dos valores ou normas dominantes do que de uma falta de consenso, justamente no
ponto em que as atitudes de oposição poderiam traduzir-se na ação política.13

ompson nos permite ver que, nas sociedades industriais


contemporâneas, a auto-identi cação como africano permite, acima de
tudo, que o fato de o sujeito ser, digamos, não asiático seja usado contra
ele; e, nesse contexto — como vemos na África do Sul —, a concepção
racializada da própria identidade é um retrocesso. Argumentar dessa
maneira é pressupor que os sentidos das identidades sejam histórica e
geogra camente relativos. Assim, é perfeitamente coerente com essa
a rmação sustentar, como faço eu, que, na construção de alianças entre
os Estados — e especialmente no Terceiro Mundo —, uma identidade
panafricana que permita que os afro-americanos, os afro-caribenhos e os
afro-latinos se aliem aos africanos continentais, baseando-se nos
recursos comuns do mundo negro do Atlântico, pode atender a
nalidades úteis. A resistência a um nacionalismo negro auto-isolador,
dentro da Inglaterra, da França ou dos Estados Unidos, é portanto
compatível, teoricamente, com o pan-africanismo como projeto
internacional.
Dado que o valor das identidades é relativo, devemos argumentar a
favor e contra elas caso a caso. E, dada a situação atual da África, penso
que continua claro que um outro pan-africanismo — o projeto de uma
fratria continental, e não o projeto de um nacionalismo negro
racializado —, por mais falsas ou confusas que sejam suas raízes teóricas,
pode ser uma força progressista. Foi como concidadãos africanos que os
diplomatas ganeses (entre eles, meu pai) intercederam entre os partidos
nacionalistas em guerra na Rodésia, no regime da UDI;*62 é como
concidadãos africanos que as equipes da OUA podem fazer a mediação
de con itos regionais; é como concidadãos africanos que os scais dos
direitos humanos, organizados nos termos da Declaração de Banjul da
OUA, podem interceder pelos cidadãos dos países africanos contra os
excessos de nossos governos. Se há também esperança, como sugeri, para
o pan-africanismo de uma diáspora africana, depois que também ele se
libertar da servidão das ideologias raciais (junto com as muitas bases de
aliança acessíveis aos povos da África em suas lutas políticas e culturais),
é crucial reconhecermos, uma vez superado o nacionalismo “negro”, a
independência do pan-africanismo da diáspora e do pan-africanismo do
continente. É, creio eu, no exame dessas questões, dessas possibilidades,
que reside o futuro de um pan-africanismo intelectualmente revigorado.
Por m, eu gostaria de sugerir que realmente não surpreende que uma
identidade continental esteja se transformando numa realidade cultural
e institucional através de organizações regionais e sub-regionais.
Compartimos um continente e seus problemas ecológicos; compartimos
uma relação de dependência perante a economia mundial; compartimos
o problema do racismo, na maneira como o mundo industrializado
pensa em nós (e permitam-me incluir aqui, explicitamente, a África
“negra” e a “magrebina”); compartimos as possibilidades de
desenvolvimento dos mercados regionais e dos circuitos locais de
produção; e nossos intelectuais participam, através das contingências
comuns de nossas histórias diversas, de um discurso cujos contornos
tentei delinear neste livro.
“Cdεnkyεm nwu nsuo-ase mma yεmmεfrε kwakuo sε cbεyε no ayie”, diz
um provérbio akan: o crocodilo não morre embaixo d’água para que
possamos chamar o macaco para celebrar seu funeral. Cada um de nós,
pode-se usar o provérbio para dizer, pertence a um grupo com costumes
próprios. Admitir que a África, sob esses aspectos, possa ser uma
identidade utilizável é não esquecer que todos pertencemos a
comunidades diversi cadas, com seus costumes locais; é não sonhar com
um Estado africano único e esquecer as trajetórias complexamente
diferentes das inúmeras línguas e culturas do continente. “Africano”
certamente pode ser uma insígnia vital e capacitadora; mas, num mundo
de sexos, etnicidades, classes e línguas, de idades, famílias, pro ssões,
religiões e nações, mal chega a surpreender que haja ocasiões em que ela
não é o rótulo de que precisamos.

62 Referência ao regime de minoria branca, instalado quando Ian Smith declarou a independência da
Rodésia, de forma unilateral e ilegal. A Unilateral Declaration of Independence, então
proclamada, passou a ser conhecida como UDI. (N. da T.)
EPÍLOGO
Na casa de meu pai

Abusua d cfunu.
O clã materno adora um cadáver.

Provérbio akan

M eu pai morreu, como a rmei, quando eu estava tentando concluir


este livro. Seu funeral foi uma oportunidade de fortalecer e
rea rmar os laços que me unem a Gana e à “casa de meu pai”; e,
ao mesmo tempo, de tensionar minha lealdade a meu rei e ao clã
materno de meu pai... talvez a ponto de esgarçá-la de maneira
irreversível. Da última vez que o encontrei ainda vivo, meu pai pediu-me
que o ajudasse a redigir um codicilo a seu testamento, descrevendo seus
desejos para seu funeral. Na ocasião, não me dei conta de que, ao
registrar esses pedidos em seu leito de morte e lhes conferir força de lei,
ele nos estava deixando, a nós, seus lhos, uma missão quase impossível.
É que, em nosso esforço de conduzir o funeral de acordo com os desejos
de meu pai — expressos no codicilo —, tivemos de contestar, primeiro, a
autoridade do clã materno — a abusua — do qual meu pai antes fora o
chefe, e, no m, a vontade do rei de Achanti, meu tio.
E, em meio a tudo isso — quando nossos partidários foram surrados
na igreja de meu pai, quando se sacri caram cordeiros para lançar
feitiços poderosos contra nós, e quando as pessoas de nossa casa se
convenceram de que a comida que minha tia me mandara estava
envenenada —, era como se todas as tentativas de compreender o que
estava acontecendo me zessem recuar cada vez mais na história da
família e na história de Achanti; afastar-me ainda mais das abstrações
(“tradição” e “modernidade”, “Estado” e “sociedade”, “clã materno” e “clã
paterno”) e me aprofundar mais no que, para um europeu ou um norte-
americano, provavelmente pareceria um mundo quase fantasioso de
feitiçaria e tias malvadas e velhas feiticeiras e magos.
Muitas vezes, nas lutas que se seguiram, descobri-me lembrando as
palavras de despedida de meu pai, anos atrás, quando eu era um
estudante a caminho de Cambridge — eu não voltaria a vê-lo por seis
meses ou mais. Dei-lhe um beijo de despedida, e, quando estava de pé
junto à cama à espera de sua bênção nal, ele me espiou por sobre o
jornal, com os óculos equilibrados na ponta do nariz, e declarou: “Não
desonre o nome da família.” Em seguida, voltou à leitura.
Confesso que quei surpreso com essa ordem, a tal ponto ela fazia eco
a um antigo paterfamilias vitoriano (ou, talvez, aos originais romanos
que meu pai conhecia de sua formação colonial nos clássicos). Mas,
acima de tudo, queime indagando o que ele pretendera dizer. Estar-se-
ia referindo à família de minha mãe (cuja tradição de erudição
universitária ele sempre me incitara a imitar), uma família cujo nome eu
não portava? Será que se referia à sua própria abusua (que, por tradição,
não era em absoluto minha família), a partir da qual ele me dera o nome
de Anthony Akroma-Ampim? Pretenderia referir-se a seu sobrenome
legal, Appiah, o nome inventado para ele quando as autoridades
coloniais britânicas resolveram (segundo seus próprios costumes) que
deveríamos ter sobrenomes “de família”, e que o nome “de família”
deveria ser o nome do pai? Quando a tradição familiar do pai nos insere
no clã materno e a da mãe nos reivindica para o pai, essas dúvidas,
suponho, são bastante naturais.
Papai, em contraste, não se a igia com essas incertezas. Ele era o chefe
de seu clã materno, sua abusua, o clã materno de Akroma-Ampim, em
homenagem a quem, como eu disse, recebi meu nome. Na autobiogra a
que foi seu último legado a nós, ele escreveu:
Meus ancestrais matrilineares estiveram entre os primeiríssimos akans do grande clã de
Ekuona (Vaca do Mato), que se estabeleceu originalmente em Asokore, a umas 26 milhas de
Koumassi, muito antes de Achanti ter sido criada como nação pelo grande Rei guerreiro, Osei
Tutu, e seu grande Feiticeiro, Okomfo Anokye. No correr do tempo, alguns de meus
ancestrais mudaram-se para Fomena e Adanse, onde outros membros do clã haviam-se
instalado anteriormente. Da longa linhagem de ancestrais, Akroma-Ampim (“o gavião nunca se
detém em seu vôo”) e sua irmã Nana Amofa juntaramse, mais tarde, a essa migração para
Fomena e estabeleceram a reputação da família e deles mesmos em Mfumenam, em Adanse,
algum tempo bem antes do início do século XIX. (...)
Sendo um grande guerreiro, Akroma-Ampim recebera mil “escravos” pessoais como
recompensa por seu mérito em várias guerras. Todos estes eram homens capturados em
batalhas e, portanto, eram um grande patrimônio para um guerreiro-aventureiro. Meu
ancestral instalou esses homens em Mfumenam, um cinturão orestal na margem do rio Offin
do lado de Adanse. Todos os dias, ele observava a vasta oresta despovoada do outro lado do
grande rio, até que seu espírito aventureiro o fez decidir-se a atravessá-lo com suas irmãs e os
homens para ocupar toda a área. (...) Tomadas todas as precauções contra qualquer
eventualidade, ele e seu valente bando de mil homens partiram para as novas terras, levando à
frente seus famosos fetiches de guerra Anhwere e Tano Kofi. (...) Satisfeito com o que havia
conquistado, ele demarcou as fronteiras e instalou seu fetiche Tano Kofi no extremo ocidental
da fronteira. (...) Esse povoado recebeu o nome de “Nyaduom”, ou lugar dos ovos do pomar.1

Mas, se ele sabia com clareza que essa era sua família, sabia com igual
clareza que nós também o éramos. Num caderno de notas que
encontramos após sua morte, ele escrevera uma mensagem para nós, seus
lhos, contando-nos a história de sua abusua, da família de nossa mãe,
de seu pai e de suas esperanças para nós. E a ternura de seu tom era
ainda mais marcante. Referindo-se a seu próprio pai, escreveu:
Não tive a sorte de conhecê-lo tão intimamente quanto vocês me conheceram, e por duas
razões: ele era reservado e, além disso, não era o costume aqui, na época, um pai familiarizar-se
demais com os lhos, por medo de gerar desprezo.

Em sua autobiogra a, ele também nos contou como fora reconhecido


como chefe de sua abusua após o funeral de seu predecessor (o homem
em cuja homenagem também recebi meu nome — Yao Antory, depois
corrompido para Yao Antony, e anglicizado em minha certidão de
batismo para Anthony —, cujo apelido era “Príncipe Mercador”: um
negociante que, embora analfabeto, dirigira um vasto império):
As cerimônias do dia seguinte começaram por volta das 6:00h da manhã. À nossa frente — dos
anciãos, minha irmã e eu — ia um homem carregando o cordeiro do sacrifício e uma garrafa de
genebra. A poucas jardas do largo rio, vi um enorme crocodilo de boca escancarada, dançando
em círculos no meio das águas. (...) Encerrada a libação com o genebra, os mais velhos dentre os
anciãos e eu, cada um segurando duas pernas, atiramos o cordeiro no rio, para que fosse
agarrado, para minha felicidade, pelo crocodilo dançante. Após três mergulhos, seguidos por
uma dança circular, o crocodilo desapareceu, abocanhando o cordeiro entre suas poderosas
mandíbulas. Começaram os tiros de mosquete, em meio à entoação de cânticos de guerra,
enquanto fazíamos o percurso de volta. Ficara comprovado que eu era o legítimo e verdadeiro
sucessor de meu recém-falecido tio-avô, na longa linhagem até Akroma-Ampim. Agora, cada
palavra minha seria lei — sem jamais ser questionada enquanto eu respirasse o sopro da vida.2

Meu pai reencontrou sua família no funeral de seu tio-avô; no funeral


dele, aprendi mais sobre essa família e descobri sob que aspectos ela era e
não era a minha.

No codicilo de seu testamento, meu pai instruiu sua igreja e “minha


amada esposa, Peggy” a executarem todos os ritos associados a seu
funeral. Nada de especial a assinalar nisso, pensariam vocês; mas, dada a
centralidade da abusua em Achanti (uma centralidade muito claramente
descrita no relato de meu pai sobre suas origens), não é de surpreender
que, segundo o costume achanti, o funeral fosse problema deles. Na
prática, isso costuma signi car um assunto dos irmãos e irmãs do sujeito
(ou dos lhos das irmãs de sua mãe), juntamente com a mãe do morto e
as irmãs e irmãos dela, se estiverem vivos. Uma vez que o sujeito pertence
à abusua da mãe, a viúva e os lhos pertencem a uma família diferente
da do marido e pai. É claro que a viúva e os lhos de um morto fazem
parte da organização de um funeral achanti. Mas não o controlam.
Naturalmente, nessas circunstâncias, o codicilo não agradou à abusua
e, em particular, desagradou à irmã de meu pai, minha tia Victoria; e ela
e seu irmão Jojo estavam decididos a retirar da igreja, da viúva e dos
lhos o controle do funeral. Seu desagrado agravou-se pela inescapável
publicidade do repúdio manifestado a eles por meu pai em seu leito de
morte. É que o funeral, como despedida de um estadista ganês, cunhado
do rei, advogado eminente e membro de uma importante abusua, era,
inevitavelmente, um acontecimento público. Através de uma longa
carreira na vida pública, Papa (ou Paa) Joe, como ele era conhecido, era
uma personalidade famosa em Gana. Seus arroubos de eloqüência no
parlamento, nos comícios populares ou quando ele pregava na igreja,
sua resistência implacável às políticas governamentais que desaprovava,
suas anedotas maliciosas: uma centena de histórias em milhares de bocas
cercaria seu caixão. As cerimônias fúnebres eram uma oportunidade para
as câmeras da televisão nacional; para artigos nos jornais ganeses que
contaram histórias conhecidas, demonstrando a reputação de
incorruptibilidade de meu pai; para histórias da corrupção que ele havia
extirpado, dos subornos lendários de que zera chacota. Houve longos
obituários na imprensa nacional e internacional; mais tarde, haveria
editoriais sobre o funeral. Retirar a abusua do controle normal
implicava, inevitavelmente, um fator de desonra pública.
Era fatal que a especulação sobre os motivos de meu pai para excluir
sua abusua de suas exéquias corresse à solta. Também eu especulei, já que
ele nunca me explicou sua decisão diretamente. No entanto, eu sabia,
como quase todo mundo em Koumassi, que ele tivera uma briga com
minha tia por propriedades legadas a eles e à irmã de ambos, Mabel, no
testamento de meu tio-bisavô, Yao Antony. Todos sabíamos, igualmente,
que minha tia se recusara a visitar e fazer as pazes com o irmão, mesmo
em seu leito de morte.
Meu pai tinha opiniões formadas sobre seus ritos fúnebres. Em sua
autobiogra a, escreveu:
A exibição dos cadáveres a todo e qualquer um, antes do enterro, e as desnecessárias e
elaboradas celebrações fúnebres posteriores sempre me angustiaram; assim, peço
solenemente que esses ornatos abomináveis sejam evitados em meu falecimento. Quero que
meus familiares e amigos lembrem-se de mim como fui antes de morrer, e que se vistam de
branco, em vez do preto e marrom escuro tradicionais, que retratam a inevitável transição do
homem como um espectro lúgubre.3

Apesar do codicilo de meu pai, nem minha mãe nem a igreja


procuraram, a princípio, excluir a abusua das providências fúnebres.
Antes, tínhamos a esperança de incluí-los numa demonstração pública
de solidariedade em torno do caixão. Olhando para trás, parece-me
perfeitamente natural que as ofertas que lhes zemos fossem rechaçadas.
Não importa que datas sugeríssemos, por exemplo; a abusua propunha
outras. Não era uma questão de conveniência, mas de controle.

Passada uma semana da morte de papai, parecia que o mundo à nossa


volta tomara partidos. De um lado estavam a igreja e seus líderes, o Rev.
Dr. AsanteAntwi, Administrador da Comarca, e o Rev. Dr. Asante, pastor
da Igreja Metodista Wesley, além de minhas irmãs e eu. (Tanto quanto
possível, mantivemos minha mãe fora da disputa.) Uma vez que a igreja
tinha a preocupação pro ssional de conciliar divergências e que eu era o
primogênito de minha mãe e seu único lho varão, a liderança do
“nosso” lado — na medida em que implicava um confronto — recaiu
sobre mim. (Jamais confunda uma sociedade matrilinear com uma
sociedade em que as mulheres detêm o controle.)
Na liderança do “lado” oposto estava a irmã de meu pai, Victoria, cujo
marido era o Asantehene, nosso rei. Ela talvez seja a pessoa mais
poderosa do reino. (Jamais presuma que mulheres isoladas não possam
conquistar o poder no patriarcado.) Na época em que começamos a
tomar as providências, Tia Vic começara a mobilizar o poder
considerável do trono (ou do “banco”, como dizemos em Achanti), numa
tentativa de retirar de nós o controle do funeral.
O pivô imediato da discussão parece banal. Decidimo-nos pela quinta-
feira, 26 de julho de 1990, como data do sepultamento de meu pai, o que
já seriam dezoito dias após sua morte. Isso signi cava que a noite de
quarta-feira seria a do velório; sexta-feira seria um dia de descanso; no
sábado viria o ayie, o funeral achanti tradicional; e no domingo, a
cerimônia de Ação de Graças. Estávamos ansiosos por dar o funeral por
encerrado, em parte porque parecia que, quanto mais esperássemos,
maior seria a probabilidade de que a igreja fosse obrigada a ceder e
deixar que a abusua assumisse o controle; em parte por considerações
práticas de ordem diversa; e em parte, pela razão normal de que a
expectativa do funeral, até que ele estivesse encerrado, continuaria a ser
uma fonte de tensão e angústia. Havíamos explicado nossas razões à
abusua em várias ocasiões, em diversos encontros, e eles pareciam ter
aquiescido. E então, na semana anterior à data marcada para o funeral,
chegou uma mensagem convocando minhas irmãs e eu para uma reunião
às 11:00h, no palácio do rei de Achanti — o Asantehene — em sua
capital, nossa cidade natal de Koumassi.
A convocação não era de todo surpreendente. Havíamos começado a
ouvir rumores de que o Asantehene estava fazendo objeção às datas
sugeridas por nós, porque planejava celebrar o aniversário de sua
ascensão ao trono na sextafeira, 27 de julho, o que colocaria a
comemoração exatamente no dia seguinte ao do enterro.
Ainda que, como suspeitávamos, esse evento tivesse sido criado como
um pretexto, tínhamos que levar o assunto a sério, pois sabíamos que a
igreja o faria. Obedecemos à convocação de Nana.4

Fomos acompanhados ao palácio pelo melhor amigo de meu pai, o Tio


T. D., um jornalista que estivera ao lado dele em sua morte. Depois de
sermos mantidos aguardando por algum tempo (sem dúvida, para deixar
claro quem dava as ordens), fomos convocados, junto com o comitê da
igreja, ao imenso salão do palácio; era um aposento enorme, com suas
duas áreas de assentos, cada qual centrada num gigantesco tapete
oriental e cercada por móveis caros, imitando antiguidades, que
pareciam ter vindo da [loja] Harrods, de Londres (provavelmente
porque vieram). Meu tio, Otumfuo Nana Opoku Ware II, o Asantehene,
já estava sentado no meio do salão.
Estava cercado pela maior coleção de membros da corte que eu jamais
vira no palácio. Sentados em duas leiras à sua direita estavam cinco ou
seis lingüistas, che ados por Baffuor Akoto, que fora o Lingüista-Mor do
último rei. O Sanahene, chefe do tesouro, e seu colega, o Banahene,
também se achavam presentes, e havia outros que reconheci, mas cujos
nomes não sabia. Atrás do Asantehene e sentado à sua direita estava o
Juabenhene, cujo banco é “tio” do Banco de Ouro. Nana Juabenhene fora
meu colega na escola primária e depois estudara engenharia na
Universidade de Ciência e Tecnologia de Koumassi. Embora, como eu,
estivesse em meados da casa dos 30 anos, a senioridade de seu banco e
seu parentesco com o Asantehene signi cavam que ele era um chefe
muito importante. Havia outros chefes em volta, inclusive Nana
Tafohene, chefe de um vilarejo nos arredores de Koumassi, um advogado
num terno formal que, presumivelmente, havia usado no tribunal
naquela manhã. À esquerda do rei (que, por sua vez, estudara direito na
Inglaterra) e a alguns pés de distância sentava-se minha tia, também
numa cadeira semelhante a um trono. Quando estávamos prestes a
começar, Tio George, chefe da abusua de meu avô, lho do rei anterior e
homem de con ança de minha tia, entrou pelas portas envidraçadas à
nossa direita e sentou-se numa cadeira ao lado dela.
Nos sofás e poltronas dispostos em ângulos retos em relação a eles e
ao rei, de frente para as leiras cerradas dos lingüistas e outros membros
da corte, estavam os membros do comitê fúnebre da igreja e os
reverendos Asante-Antwi e Asante.
Fôramos até lá decididos a não deixar que a igreja fosse pressionada a
alterar o que havíamos combinado. Naturalmente, nós mesmos não
tínhamos nenhuma intenção de ser pressionados. Mas aquela
congregação de notáveis era impressionante, e fora concebida para
intimidar. Segundo o costume, a cada vez que meu tio, o rei, fazia uso da
palavra, seu Lingüista-Mor dirigia-se a nós na versão formal de seus
ditos, em seu belo twi palaciano. E, à medida que ele falava, os outros
emitiam várias palavras e sons para frisar os pontos fundamentais:
“Ampa, é verdade”, diziam três ou quatro deles; ou “Hwiem!”, uma espécie
de pontuação do ouvinte, um ponto de exclamação ao nal de algum
enunciado signi cativo. (Se você quiser saber de onde vem a tradição da
igreja afro-americana, com seus gritos de “testify!” [testemunhai!], talvez
possa começar investigando por aí.)
Baffuor Akoto fora claramente instruído pelo Asantehene sobre o que
ele tinha a dizer. Explicou-nos, como esperávamos, o problema referente
ao con ito com o aniversário. Obviamente, Nana queria comparecer a
tantas das cerimônias associadas à morte de seu cunhado quantas lhe
fosse possível. Mas, não poderia comparecer nos trajes celebratórios
brancos a um ofício fúnebre; e di cilmente poderia comparecer em
trajes de luto à comemoração de suas duas décadas no banco. A
determinação da data estava nas mãos da igreja. Nana não nos pediu para
alterar nada. Chamara-nos apenas para nos dar conhecimento de seu
problema.
Foi-me impressionante observar como, mesmo nessa demonstração de
poder, a realeza achanti funciona hoje (como talvez sempre tenha
funcionado) através de uma espécie de eufemismo. Não havia ordens ali;
não havia o reconhecimento de nenhum con ito. Nana compareceria a
tudo o que pudesse do funeral, disseram-nos. Obviamente, se o
adiássemos, ele poderia comparecer a tudo. Mas a decisão era nossa.
Os homens da igreja tentaram explicar o raciocínio por trás da escolha
das datas, e foram interrompidos de tempos em tempos por minha tia;
ela foi bem menos eufemística em suas solicitações. Por que eles não se
dispunham a fazer essa coisinha de nada por Nana?
Os membros do comitê eclesiástico respondiam polidamente, mas com
rmeza decrescente, a todas as perguntas que lhes eram formuladas; e, a
certa altura, pareceu-me que talvez estivessem começando a vacilar.
Vimo-nos ante a perspectiva de um funeral adiado por semanas por
minha tia, enquanto ela se esforçava por desfazer os efeitos do codicilo
de meu pai.
À medida que esse espetáculo prosseguiu, minhas irmãs e eu fomos
cando irritados. Os cochichos delas em meus ouvidos foram-se
tornando cada vez mais prementes. Por m, quando a indignação havia-
se transformado na emoção pouco familiar da ira, quando o sangue
martelava em minha cabeça, não pude agüentar mais. Essa disputa pelo
cadáver de meu pai (como me pareceu), por pessoas que haviam
ignorado seu sofrimento quando ele estava vivo, aparentemente sem se
preocuparem com aqueles de nós que o havíamos amado e cuidado dele,
foi mais do que eu podia suportar. Se eu acreditasse em possessões, diria
que estava possuído. Apesar de anos de treinamento na deferência à
realeza achanti e suas instituições, não pude me conter. Pus-me de pé,
havendo a violência de meu gesto interrompido, penso eu, o pobre e
velho Baffuor Akoto (amigo e aliado político de meu pai durante longos
anos); e andei até a extremidade do tapete mais próxima da porta, com
minhas irmãs a meu redor, antes de falar.
— Todos aqui sabem o que está acontecendo, e minhas irmãs e eu não
vamos car sentados e deixar que aconteça. Aquela mulher — disse eu,
apontando para minha tia — e aquele homem — desta vez apontando
para seu aliado, o Tio George — estão tentando usar Nana para lograr
seu intento; para obrigar a igreja a fazer o que eles querem. (Não
estávamos dispostos a apoiar tamanho abuso do banco; iríamos embora.
A essa altura, minhas irmãs, em prantos, também gritavam com eles: —
Por que vocês estão fazendo isso conosco?)
Sobreveio um pandemônio. Na história da corte, disseram-nos depois,
nunca ninguém jamais abandonara a presença do rei. Ao nos
precipitarmos para nosso carro, uma multidão de agitados membros da
corte correu atrás de nós, precedida pelo Tio T. D.
— Você não pode ir embora — disse ele. — Não pode sair assim.
Meu amigo de infância, o Juabenhene, juntou-se a ele:
— Você tem que voltar. Você deve isso a Nana.
Eu lhe disse que realmente fora criado para respeitar o banco e seu
ocupante; que ainda estava tentando fazê-lo, mas que o banco estava
sendo “espoliado” por minha tia; e que, depois do que tinha visto
naquele dia, era-me difícil respeitar o próprio Nana. Nana Juabenhene
mostrou-se solidário.
— Mas — insistiu —, você não pode sair assim. Tem que voltar.
Depois de alguns minutos que transcorreram como horas, estávamos
su cientemente recompostos para tornar a entrar no palácio.
— Não se preocupe — disse Tio T. D. — O que você fez há de ter
ajudado. Agora, todos sabem quão rme é sua opinião. Mas você tem que
voltar e terminar isso.
Quando entramos e todos se instalaram, Nana Tafohene ergueu-se a
nossa direita. Dirigiu-se a Baffuor Akoto, como Lingüista-Mor, pedindo
perdão a Nana pela exibição desonrosa que acabara de acontecer. No
auge da peroração de Nana Tafohene, ele comentou sobre minha
transgressão:
— É claro que deveríamos surrá-lo com barras de ferro até ele sangrar.
Mas — acrescentou, após uma pausa magistral —, ele é nosso lho, e isso
só nos faria ter que cuidar de suas feridas.
Depois, todos os membros do comitê da igreja e da abusua (até mesmo
minha tia) levantaram-se e imploraram perdão em meu nome, dobrando
o joelho direito com a mão sobre ele, e dizendo a fórmula tradicional de
desculpas: — Dibim. — Juntei-me a eles, meio desajeitado, por insistência
do Tio T. D. Teria eu desonrado o nome da família, a nal?
Nana falou.
— Trancamos o que houve aqui numa caixa e jogamos fora a chave —
disse. E pretendeu dizer: o assunto está encerrado.
Não poderia ter estado mais equivocado.
Ao nos retirarmos em la rumo à tarde ensolarada e entrarmos em
nosso carro, tentando car calmos e nos preparando para partir, um dos
criados do palácio esgueirou-se até o carro em que estávamos sentados.
“Ways ades”, disse ele, sorrindo e segurando minha mão. “Você fez
alguma coisa”, que é a maneira akan de dizer “muito bem”. Não estava
expressando nenhuma hostilidade ao rei: estava nos dizendo que ele,
como muitos outros no palácio, achava que já era tempo de alguém dizer
à mulher do rei que parasse de abusar do poder de Nana. Ele estava
falando por preocupação com o rei e por respeito ao banco; e, quem
sabe, por amor a meu pai.
Poucas horas depois, vieram a nossa casa pessoas de toda a cidade,
para indagar sobre nossa versão do ocorrido e para me dizer “Ways
ades”. Alguns da família sugeriram que agora eu seria a escolha óbvia
para um banco — uma che a — na aldeia ancestral de Nyaduom. (O fato
de eu não pertencer à sua abusua foi posto de lado. Era como se, para
eles, eu me houvesse tornado realmente um achanti, no ato de me opor à
tradição achanti.) Estavam-me chamando de volta, reivindicando o
menino a quem haviam conhecido como um dos seus. Curiosamente
para muitos, a ousadia na corte transformou-me uma espécie de herói.
Estava claro que muita gente queria que soubéssemos que eles
reprovavam a campanha de minha tia; contaram histórias de como ela
in uenciara Nana a tomar decisões ruins em disputas pelas che as;
deixaram implícito que as decisões dele podiam ser compradas,
mediante o suborno de sua mulher. Essas eram acusações que eu nunca
tinha ouvido; antes, eu fora um de seus sobrinhos favoritos, o único lho
varão de seu irmão predileto. Agora que estávamos em lados opostos, eu
podia ouvir essas histórias. Verdadeiras ou não, elas revelavam um grau
de hostilidade para com minha tia e de desprezo pelo rei que eu
desconhecia por completo. Alguém chegou a dizer: “É melhor ela sair
depressa da cidade quando Nana se for”, com isso rompendo o tabu
contra a menção da morte do Asantehene e, ao mesmo tempo,
proferindo ameaças contra sua mulher.

Mas, até eu sabia como era difícil trancar as coisas numa caixa em
Achanti. Acostumara-me a isso fazia muito tempo. Lembro-me de
quando, uns quinze anos atrás, estive hospedado em Koumassi com um
amigo inglês da faculdade. Na época, eu estava lecionando na
Universidade de Gana e meu pai era ministro do governo, trabalhando
“no Castelo”, a sede do governo no antigo castelo escravagista holandês
de Christiansborg, em Acra. Meu amigo James e eu estávamos sozinhos
em Koumassi para o m de semana — sozinhos, bem entendido, exceto
pelo motorista, o cozinheiro e nosso camareiro —, já que meus pais
estavam ambos fora. James pediu para ser levado às discotecas de
Koumassi.
— Ótimo — eu disse. — Peça a Boakye, nosso motorista, para levá-lo.
Ele vai gostar.
No alvorecer do dia seguinte, meu pai, então ministro de governo,
telefonou de seu escritório na capital. Recebera a notícia de que nosso
carro fora visto numa parte “estranha” da cidade na noite anterior. Que
estivera fazendo? Meu pai lembrou-me que nosso carro seria
reconhecido onde quer que fosse; pediu que eu guardasse isso em mente
ao decidir onde mandar o motorista; e voltou a suas investigações sobre
as transações nanceiras de mais uma multinacional desonesta.
No café da manhã, falei com James sobre o telefonema do raiar do dia.
Onde ele tinha ido? James não sabia dizer ao certo, mas as mulheres
tinham sido muito amáveis. E, desse dia em diante, ele passou a se
locomover de táxi. O nome da família não seria desonrado.

A abusua não se limitou a apelar para os poderes terrenos. No auge das


tensões, meu parente Kwaku veio da casa familiar para nos dizer que um
carneiro fora abatido e enterrado lá, no pátio principal, e que se haviam
feito feitiços contra nós depois do sacrifício. Reunimo-nos a Kwaku e
outros membros preocupados de nossa família no patamar da escada,
sussurrando para não perturbar minha mãe, lá em cima, e para não ser
ouvidos pelas pessoas enlutadas que se reuniam no saguão e na sala de
jantar, lá embaixo. Kwaku sairia prontamente para procurar um malam,
um curandeiro muçulmano, que pudesse trazer algum antídoto. Uma
galinha branca e algumas pombas seriam sacri cadas. O consenso cou
com Kwaku; obviamente, algum tipo de sacrifício contrário fazia-se
necessário. Eu o providenciei.
Tratava-se de uma forma de remédio com que meu pai tivera grande
experiência em sua meninice em Adum, “o centro e o coração de
Koumassi, e até de Achanti”.
Nós, a verdadeira juventude de Adum, passávamos a maior parte do tempo aprendendo a lutar,
antecipando-nos aos freqüentes ataques que fazíamos a cidadãos de outras áreas de Koumassi
que julgávamos serem colaboradores dos usurpadores britânicos em nosso meio. Para garantir
a vitória em todas as ocasiões, nossos líderes nos forneciam juju, que esfregávamos em nossas
cabeças raspadas e no corpo, e que se destinava a quebrar ou desviar as garrafas ou outros
projéteis atirados em nós pelo inimigo. Para esse e outros ns, nenhuma galinha estaria
realmente segura à noite.5

O fato de eu mesmo não acreditar em magia estava curiosamente fora de


questão. Era minha responsabilidade responder à ameaça espiritual,
como chefe local de nossa abusua e único varão (e portanto, suponho, o
de maior senioridade). E daí, se os membros do “nosso” lado fossem
surrados na rua por legalistas do “lado” oposto? O juju, pelo menos,
seria combatido pelo contra-juju.

Entrementes, histórias ainda mais inquietantes começaram a circular:


que Tio Jojo estava providenciando um bando dos homens notoriamente
violentos de Adum para “seqüestrar” o corpo, quando ele chegasse, e
levá-lo embora.
Falava-se também em ameaças aos interesses comerciais dos membros
da comissão funerária, aos padres e ao administrador da Comarca; no
domingo anterior à data para a qual fora marcado o funeral, fomos
informados de que alguém entrara na sacristia da Igreja Metodista
Wesley e tentara bater num dos pastores. Estes vacilaram; sua tarefa era
conciliar divergências, e não participar de hostilidades. Eles me
exortaram a ter abotare, uma virtude twi que se costuma traduzir por
“paciência”. Foi uma palavra que veio à baila com freqüência nos dias que
se seguiram. Minhas irmãs e eu concordamos em que, se havia uma
palavra que gostaríamos de ver expurgada da língua, era essa. Em nome
da abotare, as pessoas se dispunham a esperar e ouvir, enquanto a abusua
em geral, e Tio Jojo em particular, tiravam vantagem repetidamente de
nosso desejo de chegar a um acordo com eles. Em parte, era em nome da
abotare que os abusos de minha tia para com o banco eram tolerados:
com o tempo, pensavam todos, isso também passaria. Exortar a abotare,
ao que me parece, é fazer o que pretendem os camponeses muçulmanos
quando dizem “se Alá quiser”: é deixar nas mãos dos deuses o que pode
estar na esfera da ação humana. Mas, às vezes, acho eu, o que eles
realmente queriam dizer não é “tenha paciência”, mas “continue a buscar
um acordo”.
Queríamos sepultar nosso pai nos termos dele (ou, pelo menos, nos
nossos): os sacerdotes queriam manter a paz. Queríamos o que
julgávamos legítimo e justo; eles queriam uma solução que lhes
permitisse um convívio pací co. Esse é um velho confronto entre os
“direitos abstratos” e a “comunidade social”, uma oposição muito cara
aos antropólogos jurídicos*63 que nos exortam a ver “valores
comunitários africanos” expressos em nossos métodos de arbitragem e
em nossa hostilidade para com o sistema jurídico colonial. Entretanto,
quando me pergunto de onde veio meu próprio interesse pelos direitos
abstratos, minha própria paixão pela justiça, creio que devo responder
que não o recebi de minha escolarização britânica, mas do exemplo de
meu pai. E muitas vezes, ao que me parece, como nesse caso, aqueles que
exortam a conciliação como uma virtude africana estão apenas apoiando
uma conciliação com o status quo, uma concessão aos que têm dinheiro e
poder; e um pouquinho de interesse pelos direitos abstratos pode
re etir, não uma mente colonizada, mas o anseio de tomar partido
contra os poderosos, e de “dizer umas verdades ao poder”.

Eu havia rompido com meu rei, com a abusua de meu pai. Havia
irritado a irmã de meu pai, em si uma mulher poderosa. Não se faz isso
impunemente. Quando entregaram comida do palácio em nossa casa,
houve quem nos dissesse que, muito provavelmente, ela estaria
envenenada (por meio de feitiçaria, é claro). Tia Vic fez sentir seu peso
por toda a cidade, sendo transportada num dos automóveis de sua frota
de Mercedes Benz, cultivando uma aura levemente plutocrática. O
desagrado da abusua também não era coisa em que se incorresse com
leviandade. Minha prima Nana Ama, que eu sempre considerara
generosa e acomodada, revelou a intensidade dos sentimentos da abusua
ao nos advertir friamente a considerarmos o bem-estar futuro de mamãe.
“Tomem cuidado”, disse ela a minhas irmãs e a mim. “Vocês não moram
aqui. Estamos aqui com sua mãe.” Quando minhas irmãs a desa aram a
dizer diretamente se estava ameaçando mamãe — quando lhe
perguntaram se estava lembrada de como minha mãe havia zelado por
sua educação —, ela gritou defensivamente que “tinha dito o que dissera”.

No dia em que retiramos os restos mortais de meu pai em Acra e os


levamos de volta num avião militar, o principal editorial do Ghanaian
Times intitulou-se “A lição de Paa Joe”; ele tomou explicitamente nosso
partido contra a abusua. Os desejos do homem deviam ser respeitados,
insistiu. Inimigos poderosos, nós os tínhamos; mas também estava claro
que contávamos com o sentimento popular a nosso favor. Sobrevoando o
Sul de Gana rumo a Koumassi, numa viagem que eu não zera de avião
por quase duas décadas, pudemos ver as estradas de laterita vermelha
serpenteando pelas orestas até os vilarejos e cidades de Akwapim e
Achanti. Quando nossa cidade surgiu no horizonte, pude ver o quanto
havia crescido nos últimos anos, reunindo a seu redor uma faixa de
novas habitações que se estendiam até o que antes tinham sido fazendas
na oresta. Ao aterrissarmos na pista, vimos as centenas de pessoas
reunidas no aeroporto, em vestes vermelhas e pretas; os sacerdotes com
suas túnicas; e o carro fúnebre esperando pelo caixão na parte asfaltada
da pista. A maior parte de nosso grupo desceu pela porta traseira do
avião, mas alguns de nós nos reunimos na frente, perto da porta de
carga: desci num salto os poucos degraus que me separavam da pista
asfaltada, com a túnica negra que vestia esvoaçando atrás de mim, e
esperei para levantar o caixão. Nós havíamos conseguido. Trouxéramos
papai para casa. Enquanto os lamentos das carpideiras aumentavam e
diminuíam de volume, Tio George, chefe da abusua de meu avô, deu um
passo à frente para verter as libações. (Tio Jojo cou pairando ali por
perto, obviamente ansioso por exercer suas prerrogativas de herdeiro
presuntivo e autodesignado da che a da abusua, mas também cônscio de
que sua participação naquele momento não seria bem-vinda. Não que ele
houvesse perdido tempo: descobrimos, mais tarde, que tinha passado o
tempo em que estivéramos em Acra tentando encontrar um advogado
que impetrasse um mandado para impedir o sepultamento. Como a
Ordem dos Advogados estivesse envolvida nos arranjos do funeral — o
presidente da Ordem Nacional, o diretor da Ordem dos Advogados de
Achanti e outros advogados sêniores deveriam carregar o caixão à saída
da igreja —, todos os advogados de Koumassi estavam cientes do que
vinha acontecendo; e, surpreendentemente, Jojo não conseguiu
encontrar um único dentre eles que se dispusesse a entrar com o
recurso.)

Nossa casa é uma construção erguida por meus pais pouco antes da
independência. No térreo, duas portas se abrem da varanda fronteiriça,
uma para a casa, outra para o escritório advocatício de meu pai. Quando
crianças, costumávamos ir para a escola, de manhã, passando pelas
muitas pessoas reunidas naquela varanda, desde as primeiras horas do
amanhecer, para consultá-lo. Muitas delas eram extremamente pobres e,
em vez de dinheiro, levavam galinhas, inhame ou tomates, pois sabiam
que meu pai nunca insistia em ser pago. Às vezes, as pessoas que
chegavam não eram clientes, mas eleitores que haviam caminhado
milhas, desde o lago Bosomtwi, para tomar um “mammy-wagon” até a
cidade e pedir a ajuda de meu pai em tratativas com o governo; outras
vezes, não eram eleitores, mas pessoas de Nyaduom que iam buscar uma
decisão sobre direitos da terra, ou ajuda para conseguir a abertura de
uma estrada, para que pudessem transportar suas safras em caminhões,
em vez de fardos sobre a cabeça.
O caixão de meu pai foi levado para dentro por sob a árvore que
minha avó inglesa plantara em sua primeira visita àquela casa (uma
árvore em que, quando menino, eu ngia ser Tarzan, balançando-me nos
galhos, alheio à política cultural de minha brincadeira), subiu os
degraus da varanda e passou pelo escritório em que papai fora o Sr. Joe
Appiah, Advogado e Procurador da Suprema Corte de Gana em seus
Salões de Audiência de Ekuona; Digníssimo Membro do Parlamento por
Atwima-Amansie, conhecido como o Leopardo, Csebc, por sua oposição
destemida ao governo; Cpanin Kwabena Gyam , herdeiro de Akroma-
Ampim, ancião e dono hereditário de Nyaduom. Ao entrarmos em casa,
ele voltou a ser mais uma vez o Joe de minha mãe e nosso papai.
Houve sonoros toques de tambor e um choro ainda mais alto quando
o corpo foi introduzido na casa, nos ombros de meia dúzia de rapazes
com panos amarrados na cintura, alguns da casa de minha avó por
a nidade, outros, simples vizinhos de rua. Amarrei meu próprio pano na
cintura e me juntei a eles.

Na sala de jantar, erguera-se uma plataforma cercada de ores. Ali


depositamos o corpo, com o caixão coberto pelo krn.tf mais no de meu
pai, e abrimos a janelinha acima de sua cabeça, para podermos ver seu
rosto.
Um ano e meio depois de haver adoecido na Noruega, quase um ano
depois de haver retornado a Acra, nosso pai, herdeiro de Akroma-
Ampim e Yao Antony, Cpamn Kwabena Gyam — vulgo Csebc, o
Leopardo, Papa Joe e Pops — estava em casa pela última vez.

Às 10:00h do dia do funeral, a igreja estava repleta e o Asantehene e sua


rainhamãe estavam sentados em seus assentos reais, com minha tia
Victoria entre eles. (Alguém nos disse depois que, num dado momento
do ofício, quando minha tia começou a chorar, a rainha-mãe voltou-se
para ela e perguntou: “Por que você está chorando? Morreu alguém que
você conheça?” Foi uma reprimenda régia a minha tia por suas
tentativas de impedir o funeral.) Os bancos que havíamos reservado para
os VIPs estavam vazios, exceto pelo presidente da Academia Ganesa de
Artes e Ciências, Dr. Evans-Amfom, um amigo da família desde os
tempos em que fora vice-reitor da Universidade de Koumassi. Quando
cessaram os acordes do primeiro hino, houve bastante barulho do lado
de fora, inclusive sirenes e sons de uma multidão que aplaudia. Uma
pessoa com aparência de diplomata encaminhou-se da porta lateral até o
Reverendo Asante e os dois cochicharam por um momento. Ao nal do
versículo, este disse: “Por favor, queiram todos levantar-se para receber o
chefe de Estado e presidente do PNDC, o capitão-aviador Jerry
Rawlings e seu grupo.”
Foi um momento eletrizante, pois as considerações de segurança
signi cavam que quase ninguém fora informado de que ele
compareceria. O chefe de Estado entrou, vestindo um traje civil aberto
no pescoço, acompanhado por um membro civil do governo — um
velho amigo com quem eu havia lecionado na Universidade de Gana,
mais de uma década antes — e alguns companheiros uniformizados.
Nesse momento, eu soube que as pessoas entenderiam que prestáramos a
meu pai a homenagem que ele merecia de nós; que, pelo menos,
havíamos honrado o nome dele.
Durante todo o culto, advogados trajando suas togas montaram
guarda à testa e aos pés do caixão, revezando-se a cada cinco minutos
para homenagear seu colega. Se eu me voltasse para a esquerda e
percorresse com os olhos a cena até a direita, poderia ver, primeiro, a
abusua; depois, os sacerdotes das diversas igrejas; mais adiante, atrás da
cabeça do presidente do PNDC, na parede, a placa em memória ao pai
de meu pai, que também fora membro dessa igreja. Mais à direita
estavam as leiras compactas dos advogados em suas togas.
Imediatamente à minha esquerda, Tio T. D.; atrás de mim, minhas irmãs,
meus parentes e amigos nigerianos e meus amigos dos Estados Unidos. E,
à minha direita, grave e sóbria em sua túnica negra e sua mantilha negra,
sentava-se minha mãe.
Todas as identidades com que meu pai se importara achavam-se
encarnadas a nosso redor: advogado, homem de Achanti, ganês, africano,
internacionalista; estadista e homem da igreja; homem de família, pai e
chefe de sua abusua; amigo; marido. Somente algo tão particular quanto
uma vida única — como a vida de meu pai, encapsulada no complexo
padrão de relacionamentos sociais e pessoais que cercavam seu ataúde —
seria capaz de captar a multiplicidade de nossas vidas num mundo pós-
colonial.
“Tive que bancar o homem e conter as lágrimas da melhor maneira
possível”, escrevera meu pai sobre o funeral de Yao Antony. “Não era
costume o chefe de uma família ou um líder de homens derramar
lágrimas em público.”6 Não me saí tão bem nessa continência achanti.

Do lado de fora, o povo, milhares e milhares de pessoas que haviam


gritado à nossa chegada “Pops, O, Pops”, o lema dos amigos de meu pai,
passaram a gritar “J. J., J. J.” (as iniciais de Rawlings), enquanto seu
cortejo se retirava. De algum modo, fomos conduzidos às pressas por
entre a multidão (muita gente vestindo as túnicas branco-e-preto que
havíamos pedido — celebrando a vida dele, pranteando sua morte —, e
muitos com os trajes comuns do luto, marrons e vermelhos) até a
delegacia central de polícia, onde nosso carro se encontrava
estacionado; depois, acompanhamos o carro fúnebre, liderados por
batedores de motocicleta que iam abrindo caminho. Passamos pelo
tribunal onde meu pai defendera tantos casos, descemos pela rua
principal de Koumassi, a Kingsway, e passamos por Adum, onde ele
havia nascido, ladeados por uma multidão de curiosos; percorremos os
arredores de Kejetia, com sua imensa escultura central — um operário,
um soldado e um agricultor, simbolizando nossa nação —, e seguimos
pela estação rodoviária de onde milhares de pessoas partem diariamente
de Koumassi, rumando em todas as direções da bússola; passamos por
nossa casa e pelas de uma dúzia de colegas e amigos de meu pai.
Margeamos o Colégio Metodista Wesley, onde ele havia trabalhado com
os missionários quando menino; e entramos em Tafo, o domínio do
Tafohene, e no cemitério municipal onde meu pai, como seu pai antes
dele, seria sepultado. Ao nos instalarmos junto à sepultura e ao ser o
ataúde depositado no chão, Jerry Rawlings juntou-se a nós. Suas palavras
à beira do túmulo foram breves, mas oportunas. Se queremos
verdadeiramente homenagear a memória de um grande homem, disse
ele, não havemos de transtornar sua viúva e seus lhos por questões de
propriedade.
Com efeito, sua mera presença no funeral, que em condições normais
não teríamos esperado, foi uma reprimenda ao Asantehene e sua mulher:
o fato de as palavras proferidas por Rawlings junto à sepultura serem
dirigidas ao cerne da disputa entre meu pai e sua irmã só fez explicitar
isso. Nos assuntos corriqueiros de Gana, o chefe de Estado e o rei
circulam cautelosamente ao redor um do outro, cada qual ciente dos
recursos simbólicos e materiais de que o outro dispõe. Para ir à capital
do Asantehene e fazer essa reprimenda, Jerry Rawlings tinha que ter algo
a frisar. No contexto do conhecimento público, os principais efeitos
políticos de sua presença foram três: primeiro, a rmar a a nidade com
um político da geração da independência; segundo, sublinhar os
recentes decretos governamentais que ampliavam os direitos de
propriedade das viúvas; e terceiro, deixar implícito seu conhecimento
das manipulações do banco para ns pessoais. Saber que ele poderia ter
comparecido por motivos particulares — por um respeito pessoal por
meu pai, como alguém me disse depois — em nada prejudicou essas
mensagens públicas.
“Wowu na w’ayie bεba a, wohwε wo yareda hc mu”, diz nosso provérbio.
“Quando alguém morre e seu funeral se aproxima, ele o antevê de seu
leito de enfermo.” Não sei até que ponto meu pai teria antevisto, se sabia
que seu funeral daria ensejo a um con ito entre o monarca e o chefe de
Estado, entre Achanti e Gana. Para a maioria de meus parentes, com
certeza, suas idéias sobre o assunto di cilmente teriam sido hipotéticas;
para eles, meu pai assistiu às cerimônias. Alguns me dizem que teria
cado satisfeito.
O sucessor de meu pai como chefe da abusua será nomeado no devido
tempo (a sucessão ainda está em disputa enquanto escrevo), o último da
longa linhagem de Akroma-Ampim. Talvez, se as coisas forem
corretamente arranjadas, outro crocodilo abocanhe outro cordeiro,
assinalando a aceitação da escolha pelas forças e potestades do mundo
espiritual. A linhagem continuará.
Outro provérbio diz: Abusua te sε kwaeε, wowc akyiri a εyε kusuu,
wopini ho a, na wohunu sε dua koro biara wc ne siberε. “O clã materno é
como a oresta; quando se está fora, ela é densa, quando se está dentro,
vê-se que cada árvore tem sua posição própria.” Assim me parece agora.
Talvez eu ainda não tenha desonrado minhas famílias e seus nomes. Mas,
enquanto viver, sei que não estarei fora dessas orestas.

63 Especialistas em sistemas jurídicos nativos. (N. da T.)


Notas

Capítulo 1

1. Kwame Nkrumah, Autobiography of Kwame Nkrumah, p. 153, narrando um discurso feito na


Libéria em 1952.
2. Alexander Crummell, “e English Language in Liberia”.
3. Ver David Laitin, Politics, Language, and ought, e também “Linguistic Dissociation: A Strategy
for Africa”.
4. Embora isso não exclua necessariamente os norte-africanos: pois há uma ampla literatura — à
qual farei referência no capítulo 5 — que a rma que os egípcios têm ancestrais negros; ver, por
exemplo, Chiekh Anta Diop, African Origins of Egyptian Civilization.
5. Wole Soyinka, Death and the King’s Horseman, Nota do Autor.
6. A era colonial formal havia terminado na época em que freqüentei a escola primária. Mas a
transição para as atitudes pós-coloniais não ocorreu no instante em que a bandeira britânica foi
retirada do palácio do governo. Creio, entretanto, que existem diferenças entre a geração que
herdou o Estado colonial e a atual geração de africanos educados no Ocidente. Ao menos em
Gana e na Nigéria, essas diferenças resultam de mudanças iniciadas nos anos 60. Hoje, o racismo
contra os brancos me parece mais comum entre as pessoas com instrução universitária nesses
países — embora ainda seja, enfaticamente, uma visão minoritária — do que quando eu era
criança. Centrais nessas mudanças são pelo menos dois fatos: primeiro, a divulgação mundial do
racismo norte-americano, como resultado da cobertura dada ao Movimento pelos Direitos Civis
nos Estados Unidos, que levou a uma identi cação de bases cada vez mais amplas entre os
africanos e as aspirações políticas afro-americanas; segundo, a crença progressiva em que a
recusa do Ocidente a tomar providências em relação à África do Sul, bem como sua
extraordinária relutância em agir contra o governo minoritário rodesiano, nasceram de um
arraigado racismo contra os negros. É provável que a maioria das pessoas fora da África
desconheça o intenso interesse pelo Sul da África que existe numa classe muito vasta de
africanos comuns de outras partes do continente.
7. A posição de Césaire — nascido na Martinica em 1913 — quanto a essa questão modi cou-se
substancialmente nos últimos anos. Mas, no período em torno da Segunda Guerra Mundial — o
período que formou a cultura intelectual da fase de descolonização —, não há dúvida quanto à
base racial de suas teorias: A. James Arnold, em sua interessante discussão desse tema em
Modernism and Négritude, cita uma passagem da revista Tropiques n° 5, de abril de 1942: “Corre
em nossas veias um sangue que exige de nós uma atitude singular perante a vida (...) devemos
corresponder (...) à dinâmica especial de nossa complexa realidade biológica” (p. 38, grifado por
Arnold). O sangue, aqui, é uma sinédoque, não uma metáfora.
8. Alexander Crummell, “e Relations and Duties of Free Colored Men in America to Africa”,
carta ao sr. Charles B. Dunbar, médico, de 1° de setembro de 1860, originalmente publicada em
e Future of Africa. (As citações são de H. Brotz, Negro Social and Political ought. Por si só, o
livro de Brotz seria su ciente para refutar a extraordinária a rmação feita por Joyce Joyce, em
seu ensaio “Who the Cap Fit”, de que “a maioria das pessoas negras sempre soube [disto:] que a
divisão da humanidade em raças é um artifício biologicamente infundado” [p. 377].)
9. Robert K. July, e Origins of Modern African ought, p. 108.
10. Brotz, Negro Social and Political ought, p. 181 e 184.
11. Netuno — encolerizado com Ulisses por ele haver cegado Polifemo, e que desempenha um
papel de peso ao mantê-lo em suas peregrinações — está ocupado em desfrutar de uma
hecatombe etíope em sua homenagem no começo da Odisséia, enquanto Minerva intercede
junto a Zeus por Ulisses. Ver Frank Snowden, Blacks in Antiquity, e Martin Bernal, Black Athena,
v. I, para uma discussão completa dessas questões.
12. A controvérsia losó ca surge porque falar de conhecimento moral parece pressupor a idéia de
uma verdade moral: e essa é uma idéia que muitos lósofos morais — dentre eles a maioria dos
relativistas, por exemplo — consideram problemática. Ver o capítulo 5 de meu livro Necessary
Questions, especialmente p. 121-124.
13. Citado em Brotz, Negro Social and Political ought, p. 185.
14. Id., ibid., p. 175.
15. Id., ibid., p. 180.
16. “e Race Problem in America”, in Brotz, Negro Social and Political ought, p. 184.
17. Id., ibid., p. 197.
18. Nkrumah, Autobiography of Kwame Nkrumah, p. 152-153.
19. Wilson Moses, e Golden Age of Black Nationalism, p. 25.
20. Id., ibid., p. 61.
21. Ver a nota biográ ca de Lewis em E. W. Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race, p. ix.
22. Id., ibid., p. 94; de um discurso proferido em 1883 perante a Sociedade Norte-Americana de
Colonização.
23. Id., ibid., p. 124.
24. Id., ibid., p. 212; de uma palestra feita em Serra Leoa em abril de 1884, sobre “Serra Leoa e a
Libéria”.
25. As duas primeiras alegações encontram-se na p. 6, a seguinte nas p. 58-59, e a última na p. 176
de Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race.
26. Id., ibid., p. 58.
27. Johannes Fabian a rmou recentemente (em Time and the Other) que ver a África como um
re exo do passado europeu é, fundamentalmente, um recurso de “alterização temporal”, um
modo de estabelecer e manter a distância cultural.
28. Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race, p. 17.
29. Ver o artigo sobre a “Guinée”. (As traduções da Encyclopédie são minhas.)
30. Isso provém da famosa diatribe de Jaucourt contra o trá co de escravos, no artigo “Traite des
Nègres”.
31. Essa citação e a anterior sao de Brotz, Negro Social and Political ought, p. 174.
32. Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race, p. 115; discurso perante a Sociedade
NorteAmericana de Colonização, 1880.
33. Crummell, e Future of Africa, p. 305, citado por Blyden em Christianity, Islam and the Negro
Race, p. 175.
34. Essa impressão persistiu: ver, por exemplo, o in uente African Religions and Philosophy, de
John S. Mbiti.
35. Ver meu artigo “Old Gods, New Worlds: Some Recent Work in the Philosophy of African
Traditional Religion”.
36. Gerald Moore e Ulli Beier (orgs.), Modern African Poetry, p. 59.
37. Essa expressão parece ter-se originado com Blyden, num discurso proferido em Freetown,
Serra Leoa, em 1893, e foi usada, a partir de então, por diversos pan-africanistas — inclusive
Sylvester Williams, que convocou o Congresso Pan-Africano de 1900. (O discurso foi
reproduzido como “Study and Race” em Black Spokesman: Selected Published Writings of Edward
Wilmot Blyden.)
38. Ver E. E. Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande.
39. Blyden, Christianity, Islam and the Negro Race, p. 272-273; esse trecho mostra como as pessoas
podem enfrentar a verdade quando precisam: a argumentação de Blyden, nesse ponto, exige que
os negros em terras cristãs sejam não representativos, e portanto, ele pode questionar a própria
idéia do negro representativo. Blyden, pelo menos, foi um determinista mais ambientalista — e
menos hereditarista — do que Crummell; ele é coerente ao insistir na variedade dos traços de
caráter criada pela variedade da ecologia da África.
40. Werner Sollors, Beyond Ethnicity, p. 7.

Capítulo 2

1. W. E. B. Du Bois, “e Conservation of Races”, p. 76.


2. Du Bois, Dusk of Dawn: An Essay Toward an Autobiography of a Race Concept.
3. Du Bois, “e Conservation of Races”, p. 73-74.
4. Id., ibid., p. 75.
5. Id., ibid., p. 75-76.
6. Id., ibid., p. 76.
7. Id., ibid., p. 77.
8. Id., ibid., p. 78.
9. Id., ibid., p. 78-79. Esse discurso sobre a absorção racial e falas similares sobre a extinção racial
re etem a idéia de que os afro-americanos poderiam desaparecer porque sua herança genética
seria diluída pela branca. Essa idéia pode ser considerada absurda por qualquer visão que
acredite numa essência racial: ou bem a pessoa a tem, ou não tem. Mas, pensar dessa maneira é
conceber as essências raciais como parecidas com os genes: e a genética mendeliana ainda não
fora “redescoberta” quando Du Bois escreveu esse texto. Provavelmente, Du Bois está pensando
no “fazer-se passar por branco”, que é como os afro-americanos chamam o fato de uma pessoa
de tez clara, de ascendência africana, esconder essa ascendência e ngir que é (totalmente)
“branca”. E, segundo as concepções da herança como mistura do “sangue” parental, poder-se-ia
supor que, quanto mais o “sangue” negro for diluído, maior será a probabilidade de que todas as
pessoas de ascendência africana nos Estados Unidos possam passar por brancas. Isso seria uma
espécie de extinção do negro socialmente reconhecido. Uma pergunta interessante é por que as
pessoas que discutiram essa questão presumiram que isso não equivaleria também à extinção
dos brancos e à criaçao de uma raça humana “híbrida”. Mas, como digo, essa especulação foi
eliminada pelo advento da genética mendeliana.
10. Id., ibid., p. 85.
11. Jean-Paul Sartre, “Orphée Noir”, in Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malagache de langue
française (org. de L. S. Senghor), p. xiv. Nessa passagem, Sartre argumenta explicitamente que
esse racismo anti-racista é uma via para “a união nal (...) para a abolição das diferenças raciais”.
12. As tradições comuns não ajudam: as tradições dos afro-americanos derivadas dos africanos
provêm de culturas africanas específicas e, portanto, não são uma propriedade negra comum; e a
americanidade dos afro-americanos tem a ver com tradições desenvolvidas no Novo Mundo, em
interação com as culturas levadas da Europa e da Ásia por outros norteamericanos.
13. Mesmo os sistemas de ascendência dupla, em que se pode rastrear a ancestralidade através de
ambos os sexos, tendem a rastrear um ramo até o passado a cada geração.
14. Esse modo de pensar sobre a distância entre a ascendência social e a biológica é algo que devo a
Acts of Identity, de R. B. Le Page e A. Tabouret-Keller, capítulo 6. Sou muito grato ao Prof. Le
Page por ter-me permitido examinar um original datilografado, muitos anos atrás.
15. Poder-se-ia sugerir, em defesa de Du Bois, que o que ele quis dizer com duas pessoas que
compartilham uma história comum foi apenas que duas pessoas, no presente, que sejam da
mesma raça, têm uma ascendência comum, consistindo a relação histórica entre elas em que
ambas podem rastrear sua ascendência até membros de um mesmo grupo passado de pessoas.
Mas, nesse caso, essa não seria claramente uma concepção sócio-histórica da raça, e sim, mais
uma vez, biológica.
16. Há um sentido diferente em que a disciplina da história é sempre uma questão de criação, bem
como de descoberta: todos os relatos sobre o passado são controlados por convenções
narrativas. Nem essa colocação nem a que faço neste texto implicam que não existam fatos
relativos ao passado, ou que as narrativas históricas sejam cções, no sentido de não podermos
formular julgamentos válidos sobre sua veracidade e falsidade.
17. Du Bois, “e Conservation of Races”, p. 75.
18. Essa me parece ser justamente a noção com que os biólogos acabaram: a de população, que é
um grupo de pessoas (ou, de modo mais geral, de organismos) que ocupam uma região comum
(ou, em termos mais gerais, um nicho ambiental), junto com as pessoas de outras regiões que
descendem predominantemente de pessoas da mesma região. Ver M. Nei e A. K. Roychoudhury,
“Genetic Relationship and Evolution of Human Races”; como um antecedente útil, ver também
M. Nei e A. K. Roychoudhury, “Gene Differences between Caucasian, Negro and Japanese
Populations”.
19. Du Bois, “e Conservation of Races”, p. 75.
20. Essa a rmação foi sugerida por G. Spiller (org.), Papers in Inter-Racial Problems Communicated
to the First Universal Races Congress Held at the University of London, July 26-29, 1911.
21. Du Bois, “e Conservation of Races”, p. 13.
22. Nei e Roychoudhury, “Genetic Relationship and Evolution of Human Races”, p. 4.
23. Chamo de geneticamente determinada uma característica de um organismo quando, grosso
modo, o organismo tem uma certa constituição genética cuja posse acarreta, dentro da gama
normal dos ambientes em que ele vive, e no curso de um desenvolvimento normal ininterrupto,
a posse dessa característica. “Normal” e “ininterrupto” são conceitos que exigem uma
explicação detalhada, é claro, mas a idéia geral é su ciente para nosso propósito aqui.
24. A rigor, deveríamos dizer que o caráter de um organismo é determinado pelos genes,
juntamente com seqüências de ácido nucleico no citoplasma e com alguns outros aspectos do
citoplasma do ovo. Mas as in uências diferenciais destas últimas fontes de características
humanas são basicamente eliminadas pelo ADN nucléico; elas são substancialmente semelhantes
em quase todas as pessoas. São esses fatos que explicam, penso eu, que em geral elas não sejam
mencionadas.
25. Decorre dessas de nições, é claro, que, quando um locus é monomór co, a homozigose
esperada será igual a um.
26. Esses números provêm de Nei e Roychoudhury, “Genetic Relationship and Evolution of Human
Races”; e usei os números derivados do exame das proteínas, e não dos grupos sangüíneos, uma
vez que os autores a rmam que elas tendem a ser mais con áveis. Optei por uma medida da
diferença “racial” biológica que a faz parecer espetacularmente pequena, mas não quero
insinuar que não seja fato, como dizem esses autores, que “a diferenciação genética é real e, em
geral, altamente signi cativa em termos estatísticos” (p. 41). O que eu de fato questionaria é sua
a rmação de que seu trabalho mostra haver uma base biológica para a classi cação das raças
humanas: o que ele mostra é que as populações humanas diferem em suas distribuições
genéticas. Esse é um fato biológico. A objeção a utilizá-lo como fundamento de um sistema de
classi cação é que um número excessivamente grande de pessoas não se enquadra em apenas
uma categoria que possa ser de nida dessa maneira.
Eu acrescentaria que esses são números apenas ilustrativos; um modo que recomendo para se
ter uma idéia do quadro total atual, caso não se esteja familiarizado com essa literatura, é ler os
dois artigos desses dois autores citados na bibliogra a, na ordem de publicação. Para uma
referência cruzada, eu assinalaria que a “heterozigose média” a que eles se referem é apenas um
menos a homozigose média, que expliquei acima.
27. Nei e Roychoudhury, “Genetic Relationship and Evolution of Human Races”, p. 44.
28. Ver John Maynard-Smith, e eory of Evolution, p. 212-214. O corvo europeu é um lembrete
similar da relativa arbitrariedade das fronteiras de algumas espécies: existe cruzamento das
populações vizinhas, mas há um isolamento reprodutivo das aves dos extremos oriental e
ocidental.
29. Ver Jonathan Westphall, Colour: Some Philosophical Problems from Wittgenstein.
30. Philosophic Problems of Nuclear Science, de W. Heisenberg (1952), conforme citado no artigo de
Robin Horton, “Paradox and Explanation: A Reply to Mr. Skorupski”, p. 243.
31. Em contextos socioculturais especí cos, as características supostamente “raciais” podem ser
altamente preditivas, é claro, de traços sociais ou culturais. Os afro-americanos têm muito maior
probabilidade de ser pobres, por exemplo, do que os norte-americanos tomados ao acaso; e
portanto, têm mais probabilidade de ter uma instrução precária. Mesmo nesse caso, porém,
uma simples e pequena informação sociocultural pode alterar o panorama. Os imigrantes afro-
caribenhos de primeira geração, por exemplo, a guram-se muito diferentes, em termos
estatísticos, de outros afro-americanos.
32. Nei e Roychoudhury, “Genetic Relationship and Evolution of Human Races”, p. 40.
33. Du Bois, “Races”, p. 14.
34. Du Bois, Dusk of Dawn, p. 137.
35. Id., ibid., p. 137-138.
36. Id., ibid., p. 153.
37. Id., ibid., p. 116-117.
38. Ver a epígrafe do quarto ensaio.
39. Para outras idéias dentro dessa linha, ver meu artigo “But Would at Still Be Me? Notes on
Gender, ‘Race’, Ethnicity as Sources of Identity”.
40. Kallen sem dúvida adquiriu algumas de suas idéias nos mesmos cursos de Harvard, de Du Bois;
e se identi cou claramente com as lutas dos negros contra a intolerância racial, recusando-se,
em certa ocasiao, a comparecer a um jantar da associaçao Rhodes Scholar, em Oxford, do qual
Alan Locke, na condição de negro, fora excluído.
41. Kallen, “e Ethics of Zionism”, p. 62.
42. Id., ibid., p. 62.
43. Id., ibid., p. 69. Kallen também endossa várias doutrinas racialistas mais especí cas —
notadamente, uma visão do casamento interétnico como conducente à esterilidade — que os
afro-americanos eram menos propensos a endossar. “Que o judeu merece e deve ter sua
personalidade, sua individualidade, está fora de dúvida. Ele tem a dotação biológica fundamental
e a e ciência transcendental da função moral, que são as condições éticas dessa automanutenção.
(...) É o judeu que predomina no lho de um casamento misto e, após algumas gerações, quando
não sobrevém a esterilidade, como costuma acontecer, aquilo que não é judeu morre ou se
transmuda” (p. 70). Mas, note-se que essa visão, mutatis mutandis, seria compatível com a
prática norte-americana, endossada por Du Bois, de tratar as pessoas com qualquer ascendência
africana identi cável como “negras”.
44. Id., ibid., p. 71.
45. Id., ibid., p. 70.
46. Sou muito grato a Jeff Vogel por ter chamado minha atenção para o artigo de Kallen e pelo que
aprendi nas discussões desse assunto com ele.
47. Kwame Nkrumah, Autobiography of Kwame Nkrumah, p. 166-167; essa foi a moção de julho de
1953 que Nkrumah chamou de “Moção do Destino”.
48. Nei e Roychoudhury, “Genetic Relationship and Evolution of Human Races”, p. 4.

Capítulo 3

1. “Au delà du refus de toute domination extérieure, c’est la volonté de renouer en profondeur avec
l’héritage culturel de l’Afrique, trop longtemps méconnu et refusé. Loin d’etre un effort superficiel ou
folklorique pour faire revivre quelques traditions ou pratiques ancestrales, il s’agit de construire une
nouvelle société dont l’identité n’est pas conférée du dehors.” Citado por Valentin Mudimbe em
“African Gnosis. Philosophy and the Order of Knowledge: An Introduction”, p. 164.
2. Essa citação é feita em Werner Sollors, Beyond Ethnicity: Consent and Descent in American
Culture (p. 57), que fornece uma discussão lúcida do papel das idéias de ascendência na
compreensão da etnicidade nos Estados Unidos; ver minha discussão de Sollors em “Are We
Ethnic? e eory and Practice of American Pluralism”. Minha discussão, aqui, deve muito ao
trabalho de Sollors.
3. Ver Hugh B. MacDougall, Racial Myth in English History: Trojans, Teutons, and AngloSaxons. A
discussão desses parágrafos baseia-se na exposição de MacDougall.
4. Ver Reginald Horsman, Race and Manifest Destiny: e Origins of American Racial
AngloSaxonism. Minha discussão de Jefferson baseia-se na exposição de Horsman, de onde
provêm essas citações; ver p. 19, 101 e 108.
5. Ver Hans Kohn, e Idea of Nationalism, p. 431-432, que inclui a referência a Herder, On the
New German Literature: Fragments.
6. Alexander Crummell, “e Race Problem in America”, in Brotz, Negro Social and Political
ought, p. 184.
7. Hippolyte A. Taine, History of English Literature, p. 1.
8. Id., ibid., p. 17.
9. Id., ibid., p. 37.
10. Id., ibid., p. 39.
11. David Hume, Of National Characters (1748), nota [M.], p. 521-522.
12. Ver o prefácio de Henry Louis Gates a Black Literature and Literary eory.
13. Citado em John Guillory, “Canonical and Non-Canonical: A Critique of the Current Debate”.
Esse ensaio certamente passará a ser visto como uma análise de nitiva.
14. “(...) Tenseignement de la littérature’ estpour moipresque tautologique. La littérature, c’est ce qui
s’enseigne, un point c’est tout. C’est un objet d’enseignement” Roland Barthes, “Re ections sur un
manuel”, p. 170.
15. Chinweizu, Jemie e Madubuike, Toward the Decolonization of African Literature, p. xiv, texto e
nota de rodapé.
16. Id., ibid., p. 89.
17. Id., ibid., p. 151.
18. Id., ibid., p. 147.
19. Id., ibid., p. 4.
20. Eliot é citado na p. 106. Quando Chinweizu et al. a rmam, tipicamente, que “havia na África
pré-colonial uma abundância de narrativas orais que em nada são inferiores aos romances
europeus” (p. 27), eles presupõem a visão universalista de que existe alguma métrica avaliativa
(universal) pela qual a excelência relativa dos dois possa ser aquilatada.
21. O in uente ensaio de Renan, “Qu’est-ce qu’une nation”, é o locus classicus das tentativas de
de nir a nacionalidade por uma “memória comum”. Para um trabalho recente sobre a invenção
de tradições, ver Hobsbawm e Ranger, e Invention of Tradition.
22. Michel de Certeau, Heterologies: Discourse on the Other, p. 32.
23. “As fontes de cada uma dessas tendências podem ser discernidas a partir do Renascimento, mas
foi nos séculos XVIII e XIX que elas se evidenciaram com mais vigor, até efetivamente se
tornarem, no século XX, pressupostos aceitos.” Raymond Williams, Marxism and Literature, p.
47. Ver também Louis Montrose, “Of Gentlemen and Shepherds: e Politics of Elizabethan
Pastoral Form”, e Michel Beaujour, “Genus Universum”.
24. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe escrevem: “Somente quando se aceitar que as posições do
sujeito não podem ser reconduzidas a um princípio fundante positivo e unitário — só então o
pluralismo poderá ser considerado radical. O pluralismo só é radical na medida em que cada
termo dessa pluralidade de identidades encontre dentro de si o princípio de sua própria
validade, sem que esta tenha que ser buscada numa base positiva transcendental ou subjacente,
como a hierarquia de sentido de todos eles e como fonte e garantia de sua legitimidade”
(Hegemony and Socialist Strategy, p. 167).
25. William Carlos Williams, In the American Grain, p. 226.
26. Para Pêcheux, o gesto mais radical se dá em direção ao que ele denomina de desidenti cação,
na qual já não somos investidos das determinações institucionais especí cas do Ocidente.
Michel Pêcheux, Language, Semantics and Ideology, p. 156-159.
27. Frantz Fanon, e Wretched of the Earth, p. 221.
28. Id., ibid., p. 223-224.
29. Id., ibid., p. 226. Para Ngugi, a causa do nacionalismo cultural levou-o a escrever em gikuyu,
evitando as línguas da Europa. Na verdade, a propósito de seus pares eurófonos, ele insiste em
que, “apesar das a rmações em contrário, o que eles produziram não é literatura africana”, e
quali ca a obra de Achebe, Soyinka, Sembene e outros como uma mera aberração híbrida, que
“só pode ser chamada de literatura afro-européia” (Ngugi wa iong’o, “e Language of African
Literature”, p. 125). Assim, é interessante notar que, a despeito de seu nativismo lingüístico, ele
não evita inovações enraizadas nos meios de comunicação expressivos ocidentais.
Recentemente, explicou alguns dos efeitos que conseguiu em seu último romance gikuyu,
Matigari ma Njirugi, pelo fato fortuito de ter sido “in uenciado pela técnica cinematográ ca. (...)
Escrevo como se cada cena fosse captada num quadro, de modo que o romance inteiro é uma
série de tomadas de câmera”. (“Interview with Ngugi wa iong’o, por Hansel Nolumbe Eyoh”, p.
166.)
30. Terence Ranger, “Invention of Tradition in Colonial Africa”, in Hobsbawm e Ranger, e
Invention of Tradition, p. 212.
31. Id., ibid., p. 212.
32. Id., ibid., p. 262. Al-Amin M. Mazrui argumentou, oportunamente, que “as observações
empíricas tenderam a sugerir uma mudança para uma crescente consciência étnica, apesar da
tendência inversa no sentido de reduzir o comportamento étnico. Perder de vista essas
observações culmina, necessariamente, na distorção da natureza da identidade tribal e na
misti cação do renascimento cultural como um auxiliar da identidade tribal. Na verdade, essa
tendência a misti car a identidade tribal é precisamente o fator que levou os países imperialistas
a reconhecerem que não há nenhum con ito de interesses em seu patrocínio de toda sorte de
festivais culturais tribais provincianos, a título de revivi car a herança cultural africana, ao
mesmo tempo em que tentam infundir em nossas sociedades um ‘novo’ ethos cultural que seja
conducente a uma maior consolidação do capitalismo neocolonial na África.” Al-Amin Mazrui,
“Ideology or Pedagogy: e Linguistic Indigenisation of African Literature”, p. 67.
33. Johannes Fabian, Language and Colonial Power, p. 42-43. O predomínio do swahili em muitas
áreas é, em si mesmo, um produto colonial (ver p. 6).
34. Fanon, e Wretched of the Earth, p. 212.
35. Christopher Miller, “eories of Africans: e Question of Literary Anthropology”.
36. Paul de Man, “e Resistance to eory”, p. 14.
37. Paul de Man, Allegories of Reading, p. 16-17.
38. Denis Kambouchner, “e eory of Accidents”, p. 149.
39. Id., ibid., p. 150.
40. É importante que que claro que a a rmação de dependência de Chase é complexa; Paul de
Man, a rma ela, está parcialmente empenhado numa crítica da ideologia romântica; ver o artigo
de Chase, “Translating Romanticism: Literary eory as the Criticism of Aesthetics in the Work
of Paul de Man”, para uma elaboração desse ponto.
41. Miller, “eories of Africans: e Question of Literary Anthropology”, p. 281.
42. Ver meu artigo “Strictures on Structures: On Structuralism and African Fiction”.
43. Marilyn Butler, “Against Tradition: e Case for a Particularized Historical Method”.
44. Para uma discussão esclarecedora sobre as acusações de que Ouologuem seria culpado de
“plágio” da obra de Greene, ver Christopher Miller, Blank Darkness: Africanist Discourse in
French, p. 219-228.
45. “Entrevista com Achebe” (Anthony Appiah, John Ryle e D. A. N. Jones), 26 de fevereiro de
1982.
46. Otok p’ Bitek, Song of Lawino and Song of Ocol, p. 43-44.
47. Gerald Moore, Twelve African Writers, p. 124-125.
48. Ver Killam, African Writers and Writing, p. 3.
49. Signi cativamente, quando, em minha própria época de estudante universitário lá, a
Universidade de Cambridge nomeou Wole Soyinka como lente, foi através do Departamento de
Antropologia.
50. Immanuel Wallerstein, Historical Capitalism, p. 88.
51. Eu contrastaria isso com as tentativas sérias de usar situacionalmente, na teoria literária, noções
extraídas da adivinhação ifa, por exemplo, como fez Henry Louis Gates em seu Signifying
Monkey. Mas, nesse caso, teremos ultrapassado em muito a mera inserção de uma metáfora
ocasional. Aquilo a que faço objeção é o glacê nativista, e não o bolo africano.
52. “Entrevista com Achebe”. Essa passagem, que provém de minha transcrição original, foi editada
a partir da versão publicada no Times Literary Supplement.
53. Soyinka, é claro, usa a expressão “visão social” para ns mais complexos, em Wole Soyinka,
Myth, Literature and the African World. Para uma discussão adicional dessas questões, ver o
capítulo 4.
54. “Tout le long du jour” vem de Chants d’ombre.

Capítulo 4

1. Chinua Achebe, entrevista.


2. Chinua Achebe, entrevista.
3. Wole Soyinka, Death and the King’s Horseman, p. 49.
4. Id., ibid., p. 49.
5. Lionel Trilling, Sincerity and Authenticity, p. 6.
6. Id., ibid., p. 97.
7. Stephen Greenblatt, Renaissance Self-fashioning, p. 256.
8. Procurei falar mais sobre as questões da intervenção, levantadas pela obra de Greenblatt em
“Tolerable Falsehoods: Agency and the Interests of eory”.
9. Lionel Trilling, e Opposing Self, p. xii-xiv.
10. Ngugi wa iong’o, Homecoming, p. 39.
11. Wole Soyinka, Death and the King’s Horseman, Nota do Autor.
12. Id., ibid., p. 62.
13. Id., ibid., p. 28.
14. Id., ibid., p. 40.
15. Id., ibid., p. 65.
16. Wole Soyinka, Myth, Literature and the African World, p. 50.
17. Id., ibid., p. xii.
18. Id., ibid., p. 97.
19. Id., ibid., p. 14, grifos meus.
20. Id., ibid., p. 97.
21. Minha discussão de A morte e o cavaleiro do rei foi muito in uenciada pela montagem de
Soyinka no Lincoln Center, no início de 1987.

Capítulo 5

1. Paulin Hountondji, African Philosophy: Myth and Reality, p. 33.


2. Embora, para repetir um comentário que z no primeiro capítulo, a situação dos intelectuais
seja de suma importância para os africanos em geral.
3. Não me agradaria ser tomado por alguém que supõe que a distância entre as tradições losó cas
francesa e alemã seja desprezível: e Philosophical Discourse of Modernity: Twelve Lectures, de
Jürgen Habermas, por exemplo, é amiúde sublimemente incapaz de compreender a obra de
eminentes philosophes franceses, como Derrida, Lyotard e Foucault. Ver John Rajchman,
“Habermas’s Complaint”.
4. Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, p. 6.
5. Hountondji, African Philosophy: Myth and Reality, p. 66.
6. Kwasi Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. xi.
7. Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal, p. 117. Eu assinalaria que a expressão desse
sentimento por Césaire provavelmente merece uma interpretação irônica.
8. As implicações dessa referência a “o” povo africano nesse ponto, espero eu, hão de parecer
preocupantes aos que me acompanharam até aqui.
9. Richard Wright (org.), African Philosophy, p. 26-27.
10. Muitas das referências na minuciosa bibliogra a da coletânea de Richard Wright dizem
respeito a relatos antropológicos dos conceitos e crenças das loso as populares de vários
grupos da África, re etindo a visão do organizador de que a etno loso a é, efetivamente, uma
preocupação losó ca fundamental.
11. M. Towa, Essai sur la problématique philosophique dans l’Afrique actuelle.
12. Hountondji, African Philosophy: Myth and Reality, p. 161.
13. Helaine Minkus, “Causal eory in Akwapim Akan Philosophy”, in African Philosophy: An
Introduction, p. 127.
14. Ver P. F. Strawson, Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics.
15. John Skorupski, Symbol and eory, p. 218.
16. Essas idéias se encontram nos textos de Rattray, que foi o primeiro etnógrafo a fazer uma
exposição escrita da ideologia achanti; e podem ser con rmadas através de discussões com os
anciãos da Achanti atual; ver R. S. Rattray, Ashanti, p. 46. Elas também são discutidas por Wiredu
em Wright (org.), African Philosophy: An Introduction, p. 141, e por Kwame Gyekye em “Akan
Language and the Materialism esis” e, mais recentemente, em seu African Philosophical
ought.
17. Na verdade, a literatura sobre as idéias dos akans não faz uma distinção freqüente entre as várias
culturas akan que falam o twi; assim, o fato de se estarem comparando esquemas potencialmente
diferentes é uma questão que não tem sido usualmente levantada.
18. Oguah, “African and Western Philosophy: A Comparative Study”, in African Philosophy: An
Introduction, p. 170.
19. Id., ibid., p. 177; compare-se com Gyekye, “Akan Language and the Materialism esis”.
20. Mas minha avó por a nidade era uma metodista muito ativa e, provavelmente, acharia que eu
estava indagando apenas sobre a alma cristã — sobre a qual, entretanto, é provável que ela
tivesse a mesma crença.
21. A interpretação de provérbios fora do contexto não é uma questão nada direta; ver a
introdução de Bu Me Be: e Proverbs of the Akan (Enid Margaret Appiah, Anthony Appiah et al.,
a ser publicado).
22. Digo “a maioria” porque Kwasi Wiredu é monista e Kwame Gyekye, dualista; entretanto, ambos
são produto, é claro, de uma extensa formação ocidental.
23. Cheikh Anta Diop, e African Origin of Civilization: Myth or Reality, p. xiv-xv.
24. Id., ibid., p. xvi.
25. A obra de Diop, que estou prestes a discutir, contesta a a rmação da originalidade grega: ao
contrário das outras a rmações deles, essa me parece plausível e digna de ser examinada; e sua
melhor defesa, ao que eu saiba, encontra-se no recente livro de Martin Bernal, Black Athena.
Penso que uma das lições mais importantes do trabalho de Bernal é que ele advoga solidamente a
centralidade do racismo — dirigido contra os “negros” e os “semitas” na nova redação da história
o cial do milagre grego ocorrida no Iluminismo europeu, uma nova redação que rejeitou o
antigo lugar-comum de que os gregos aprenderam muito com o Egito. Bernal não me parece
egipcianista, porque não faz de sua tese a base de uma visão sobre o que deveria ser importante
para os intelectuais negros contemporâneos. Ele está simplesmente interessado em corrigir
uma falha.
26. Meus sentimentos quanto a esse tema talvez estejam ligados a eu ter recebido uma instrução
secundária britânica, na qual era difícil de ignorar o papel dos clássicos para manter a
diferenciação de classes!
27. A propósito, há algo de paradoxal na insistência em que devemos trabalhar com os grandes
textos escritos da loso a na África. Ora, se estamos tentando livrar-nos dos estereótipos
europeus, certamente a visão de que qualquer obra conceitual interessante é escrita e é
propriedade de um indivíduo, e de que qualquer análise interessante tem que ser feita sobre
textos escritos, é uma visão que deveríamos descartar mais depressa do que muitas outras, pois
não?
28. Não pretendo dizer que esse seja o único lugar em que ocorre a loso a nesse sentido. Quero
apenas dizer que o tipo de loso a que tenho em mente ocorre, tipicamente, nas universidades.
29. Robin Horton, “African Traditional Religion and Western Science”, p. 159.
30. Towa também oferece uma análise perspicaz das motivações dessa estratégia: Essai sur la
problématiquephilosophique dans I’Afrique actuelle, p. 26-33.
31. “Le concept de philosophie ainsi élargi est coextensif à celui de culture. Il est obtenu par opposition
au comportement animal. Il se différencie donc d’un tel comportement mais demeure indiscernible
de nimporte quelle forme culturelle: mythe, religion, poésie, art, science, etc” Towa, Essai sur la
problématique philosophique dans l’Afrique actuelle, p. 26.
32. Wright, African Philosophy: An Introduction, p. 27.
33. Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. 38.
34. Id., ibid., p. 38.
35. Id., ibid., p. 41.
36. Id., ibid., p. 47.
37. Id., ibid., p. 41.
38. Id., ibid., p. 47.
39. Id., ibid., p. 1 e 4.
40. Id., ibid., p. 43. É importante, sobretudo à luz de seu trabalho mais recente de explicação das
idéias losó cas akan, perceber com clareza que Wiredu não rejeita como tradicionais ou
supersticiosos todos os modos de pensar africanos. Na verdade, como ele teve a gentileza de me
apontar, ao comentar um rascunho deste capítulo, no último parágrafo da p. 42 ele nega isso
explicitamente; e, na p. 50, escreve: “Particularmente no campo da moral, existem concepções,
não baseadas na superstição, com as quais o ocidental moderno bem poderia ter algo a aprender.
A exposição desses aspectos do pensamento tradicional africano condiz especialmente com o
lósofo africano contemporâneo.”
41. Hountondji, African Philosophy: Myth and Reality, p. 39.
42. Id., ibid., p. 45.
43. Id., ibid., p. 97.
44. Id., ibid., p. 98. “Ciência”, aqui, signi ca conhecimento sistemático, e é usada no sentido
francês; nós, anglófonos, precisamos saber ao menos isso sobre a loso a “continental”, se não
quisermos interpretar mal nossos irmãos francófonos!
45. Id., ibid., p. 33.
46. Id., ibid., p. 168.
47. Id., ibid., p. 104.
48. Hountondji — por exemplo, numa conversa no encontro da Associação Africana de Literatura
em Dakar, no Senegal, em abril de 1989 — aceitou essa colocação, insistindo agora em que sua
formulação original de sua posição foi polêmica. Numa situação em que a loso a africana seria
supostamente esgotada por uma etno loso a descritiva, é compreensível que sua colocação —
de que isso de modo algum era tudo o que havia na loso a — fosse exagerada, tal como a
a rmação de que a etno loso a nada teria a ver com a loso a.
49. Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. x.
50. Alguns dos trabalhos mais interessantes que poderiam ser classi cados como loso a africana
não provêm, em absoluto, da problemática que venho discutindo. e Invention of Africa, de V. Y.
Mudimbe, uma poderosa investigação dos contornos da África na modernidade ocidental, é um
exemplo daquele tipo de explorações ricamente urdidas da vida cultural que são a tarefa
inevitável de uma loso a africana contemporânea.

Capítulo 6

1. J. F. iel, La Situation religieuse des Mbiem (Provérbio 5), p. 171. Verti a tradução e a glosa
francesas.
2. Eu poderia ter escolhido aqui a palavra “pós-tradicional”, mas, como argumento no ensaio
seguinte, talvez convenha reservar o “pós” como pre xo para um m mais especí co que o de
signi car simplesmente “depois”.
3. R. S. Rattray, Ashanti, p. 147-149. Modi quei a tradução dele em alguns pontos.
4. Experimente pedir a um padre católico, na Irlanda rural ou na Guatemala, uma explicação de
cada passo da Eucaristia.
5. Esse ponto é claramente exposto no excelente Symbol and eory, de John Skorupski.
6. Clifford Geertz, e Interpretation of Cultures, p. 90.
7. Kwasi Wiredu, Philosophy and an African Culture, p. 42.
8. Chinua Achebe, entrevista.
9. Oscar Wilde, Phrases and Philosophies for the Use of the Young, p. 418.
10. Robin Horton, “Spiritual Beings and Elementary Particles: A Reply to Mr. Pratt”, p. 21-33; p.
30.
11. “ Unepremière approche desphénomènes de la magie et de la sorcellerie serait de supposer que nous
nous trouvons là en face d’un langage symbolique (...) Un homme qui vole dans les airs, qui se
transforme en animal, ou qui se rend invisible à volonté (...) pourraient ríêtre alors qu’un langage
codé dont nous devrions simplement découvrir la clef. Nous serions alors rassurés.” M. P. Hegba,
Sorcellerie; chimère dangereuse...?, p. 219.
12. Horton, “Spiritual Beings and Elementary Particles - A Reply to Mr. Pratt”, p. 31.
13. “[L]e langage symbolique et ésotérique est fort en honneur en notre société (...)”, Hegba, Sorcellerie:
chimère dangereuse...?, p. 219.
14. John Skorupski convenceu-me de que Durkheim realmente oferece essa argumentação
aparentemente grosseira; ver Skorupski, Symbol and eory, capítulo 2, para uma excelente
discussão.
15. Essa explicação me foi sugerida numa conversa com Ruth Marcus. Essa concepção da
racionalidade pertence a uma família de propostas recentes que tratam o conceito como sendo
de nido por aquilo que os lósofos chamam relações de re dos agentes com o mundo; ver, por
exemplo, a explicação do conhecimento dada por Grandy em Hugh Mellor (org.), Prospects for
Pragmatism. Assim, segundo essa visão, é verdade que as crenças de uma pessoa podem ser
objetivamente irracionais, muito embora sejam subjetivamente justi cadas. Como mostrou
Gettier, uma crença pode ser justi cada e verdadeira, mas não um conhecimento, em virtude de
a justi cação não se relacionar apropriadamente, de re, com os fatos; ver Edmund L. Gettier III,
“Is Justi ed True Belief Knowledge?”, p. 281-282. Do mesmo modo, quero dizer que uma crença
pode ser sensata (subjetivamente) mas irracional (objetivamente). Uma vez que as questões da
racionalidade, portanto, levantam questões sobre como as outras pessoas se situam em relação à
realidade, e já que essas questões não podem ser respondidas e ao mesmo tempo deixar em
aberto, como desejo fazer, questões sobre quem tem razão, falarei mais, de agora em diante, em
sensatez do que em racionalidade. Uma pessoa é sensata, a meu ver, quando tenta ser racional:
quando tenta agir de modo a maximizar a probabilidade de que suas crenças sejam verdadeiras.
16. Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande, p. 202.
17. Richard Miller, Fact and Method, passim.
18. Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande, p. 201.
19. Id., ibid., p. 201.
20. Id., ibid., p. 199. O que Evans-Pritchard pretende dizer com “místicos”, como a rma, são os
“padrões de pensamento que atribuem aos fenômenos supra-sensíveis qualidades as quais, ou
parte das quais, não decorrem da observação, ou não podem ser logicamente inferidas desta, e as
quais eles não possuem” (p. 229, grifos meus). É a oração grifada que executa todo o trabalho aqui:
o resto dessa de nição signi ca, simplesmente, que os predicados místicos são carregados de
teoria, o que quer dizer, se a recente loso a da ciência tiver razão, que eles são, nesse aspecto,
como qualquer outro predicado empírico; ver N. R. Hanson, Patterns of Discovery, e (para
algumas ressalvas) Ian Hacking, Representing and Intervening, p. 171-176. (O termo de Hanson é
“theory-loaded”, mas eu — e outros — usamos a expressão “theory-laden” [ambos traduzidos em
português por “carregados de teoria”].)
21. Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande, p. 201-203.
22. Algumas pessoas acreditam que Uri Geller tenha poderes ditos “paranormais”: a capacidade,
por exemplo, de vergar colheres “pelo poder da mente”.
23. Ver Karl Popper, Conjectures and Refutations, e T. S. Kuhn, e Structure of Scientific
Revolutions.
24. O artigo mais famoso de Horton é seu “African Traditional Religion and Western Science”
[Religião tradicional africana e ciência ocidental]. Toda a minha re exão sobre essas questões foi
estimulada e avivada pela leitura e pelas conversas com ele; e tantas das idéias que estarei
apresentando são dele, que faço agora um agradecimento geral.
25. “Sans méconnaitre ses limites ni freiner la marche vers le progrès, la science et la libération, il faut
admettre que l’explication africaine des phénomènes de la magie et de la sorcellerie est rationelle. Nos
croyances populaires sont déconcertantes certes, parfois fausses, mais ne seraitce pas une faute
méthodologique grave que de postuler l’irrationnel au point de départ de l’étude d’unesociété?”M. P.
Hegba, Sorcellerie: chimère dangereuse...?, p. 267.
26. Wiredu, Philosophy and an African Culture, cap. 3.
27. Horton, “African Traditional Religion and Western Science”, p. 64.
28. Id., ibid., p. 51.
29. Ver Daniel Dennett, e Intentional Stance.
30. Ver Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande, cap. 2.
31. Wilson, Rationality, p. 153.
32. Catherine Coquery-Vidrovitch, “e Political Economy of the African Peasantry and Modes of
Production”, p. 91.
33. Barry Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional ought”. Wiredu, é claro,
não nega a existência de céticos nas culturas tradicionais. Ver p. 20-21, 37 e 143 de Philosophy
and an African Culture.
34. Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional ought”, p. 82.
35. Id., ibid., p. 82.
36. Karl Popper, “Towards a Rational eory of Tradition”.
37. Hallen, “Robin Horton on Critical Philosophy and Traditional ought”, p. 83.
38. M. Griaule, Dieu d’eau. Entretiens avec Ogotemmeli (Paris, 1948). (E poderiamos acrescentar,
apesar dos comentários de Horton no manuscrito “African ought-patterns: the Case for a
Comparative Approach” [Padrões de pensamento africanos: em defesa de uma abordagem
comparativa], que, desde Kuhn, a “abertura” da ciência também está em questão; ver D. Gjertsen,
“Closed and Open Belief Systems”.)
39. Barry Hallen e J. O. Sodipo, Knowledge, Beliefand Witchcra.
40. Esse trabalho encontra-se no artigo “Traditional ought and the Emerging African
Philosophy Department: A Reply to Dr. Hallen” [O pensamento tradicional e o emergente
Departamento de Filoso a Africana: resposta ao dr. Hallen].
41. O que não quer dizer que eles não tenham os conceitos necessários para compreender a idéia
de um experimento, mas apenas que não se interessam pela experimentação desinteressada,
simplesmente para descobrir como as coisas funcionam. Pois os azande estão muito cônscios,
por exemplo, de que um oráculo precisa ser executado cuidadosamente, para que possa ser
con ável. Assim, eles testam sua con abilidade a cada ocasião em que ele é usado. Em geral,
existem dois testes: bambata sima e gingo, o primeiro e o segundo testes. Geralmente, no
primeiro teste, a pergunta é formulada para que a morte de uma galinha signi que “sim”, e, no
segundo, para que a morte signi que “não”; mas pode dar-se o inverso. Os resultados
incoerentes invalidam o processo. Os azande também têm um meio de con rmar se um oráculo
não está funcionando: fazer-lhe uma pergunta cuja resposta eles já conheçam. Essas falhas
podem ser explicadas por um dos muitos obstáculos ao funcionamento adequado de um
oráculo: desrespeito ao tabu; feitiçaria; o fato de o veneno benge usado no oráculo ter sido
“estragado” (como crêem os azande) por ter estado perto de uma mulher menstruada.
42. Evans-Pritchard, Witchcra, Oracles and Magic Among the Azande, p. 202-204.
43. Gellner propõe uma “baixa divisão cognitiva do trabalho, acompanhada, ao mesmo tempo, por
uma proliferação de papéis”, como “diferenças cruciais entre a mente selvagem e a mente
cientí ca”, em Legitimation of Belief, p. 158.
44. A discussão da importância desse fato é uma das áreas mais estimulantes da loso a da
linguagem; ver, por exemplo, Hilary Putnam, “e Meaning of ‘Meaning’”, em seu livro Mind,
Language and Reality.
45. William Lecky, History of the Rise and Influence of the Spirit of Rationalism in Europe, p. 8-9.
46. “Tout Africain qui voulait faire quelque chose depositif devait commencerpar détruire toutes ces
vieilles croyances, qui consistent à créer le merveilleux là ou il n’y a quephénomène naturel: volcan,
forêt vierge, foudre, soleil, etc” Aké Loba, Kocoumbo, l’étudiant noir, p. 141.

Capítulo 7

1. “Tu t’appelais Bimbircokak. / Et tout était bien ainsi / Tu es devenu Victor-Emile-LouisHenri-Joseph /


Ce qui / Autant qu’il m’en souvienne / Ne rappele point ta parenté avec / Roqueffelère...” (Yambo
Ouologuem, “A Mon Mari”)
2. Perspectives: Angles on African Art (Nova York, e Center for African Art, 1987), por James
Baldwin, Romare Bearden, Ekpo Eyo, Nancy Graves, Ivan Karp, Lela Kouakou, Iba N’Diaye,
David Rockefeller, William Rubin e Robert Farris ompson, entrevistados por Michael John
Weber, com uma introdução de Susan Vogel.
3. Vogel, Perspectives: Angles on African Art, p. 11.
4. Id., ibid., p. 11.
5. Id., ibid., p. 29.
6. Id., ibid., p. 143.
7. Id., ibid., p. 131.
8. Devo insistir, na primeira vez em que emprego essa palavra, em que não partilho da difundida
avaliação negativa da mercadologização: seus méritos, creio, devem ser avaliados caso a caso.
Certamente, críticos como Kobena Mercer (por exemplo, em seu artigo “Black Hair/ Style
Politics”) criticaram persuasivamente qualquer rejeição re exiva da forma mercadoria, que
tantas vezes reinstaura a veneranda oposição humanista entre o “autêntico” e o “comercial”.
Mercer examina os caminhos pelos quais os grupos marginalizados têm manipulado os artefatos
mercadologizados de maneiras culturalmente inéditas e expressivas.
9. Considerando-se que Vogel assim recusou a voz a Kouakou, é menos surpreendente que os
comentários deste também se revelem uma composição. Num exame mais detido, constata-se
que não existe nenhum Lela Kouakou isolado que tenha sido entrevistado como os outros co-
curadores. Kouakou acaba sendo, no m, exatamente uma invenção, o que literaliza o sentido em
que “nós” — e, mais particularmente, “nossos” artistas — somos indivíduos, ao passo que “eles”
— e os “deles” — são tipos étnicos.
10. É absolutamente crucial notar que Vogel não traça sua distinção de acordo com categorias
raciais ou nacionais: os co-curadores nigeriano, senegalês e afro-americano têm permissão,
todos eles, de car do “nosso” lado da grande linha divisória. A questão aqui é algo menos óbvio
do que o racismo.
11. Vogel, Perspectives: Angles on African Art, p. 23.
12. Margaret Masterman, “e Nature of a Paradigm”, nota de rodapé 1, p. 59; p. 61 e 65.
13. Jean-François Lyotard, e Postmodern Condition: A Report on Knowledge.
14. O “pós”, portanto, representa na modernidade a imagem da trajetória do “meta” na metafísica
clássica. Originário das glosas editoriais dos aristotélicos desejosos de se referir aos livros
surgidos “depois” dos do Filósofo sobre a natureza (a física), esse “depois” também foi traduzido
por “acima e além de”.
15. Brian McHale, Postmodernist Fiction, p. 5.
16. Scott Lash, “Modernity or Modernism? Weber and Contemporary Social eory”, p. 355.
17. Lionel Trilling, e Opposing Self: Nine Essays in Criticism, p. xiv.
18. Fredric Jameson, e Ideologies of eory: Essays 1971-1986, v. II: Syntax of History, p. 178208 e
p. 195.
19. Id., ibid., p. 195.
20. Id., ibid., p. 195 e 196.
21. Id., ibid., p. 105.
22. Habermas, é claro, é um teórico contrário ao pós-modernismo.
23. e Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, p. 13.
24. Tudo em que Weber insistia era que esses novos líderes carismáticos também teriam seu
carisma rotinizado.
25. Reinhard Bendix, Max Weber: An Intellectual Portrait, p. 360.
26. e eory of Social and Economic Organization, p. 358-359.
27. e Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, p. 194.
28. Ver “Science as a Vocation”, in From Max Weber, p. 155.
29. É essa tendência que leva, por exemplo, no caso dos utilitaristas britânicos do século XIX,
como John Stuart Mill, à visão de que podemos identi car uma meta única — “o bem maior da
maioria” —, concebida como a maximização da felicidade ou “utilidade”.
30. “e Decay of Lying: An Observation”, em Intentions, p. 45.
31. Jonathan Ngaté, Francophone African Fiction: Reading a Literary Tradition, p. 59.
32. Christopher Miller, Blank Darkness: Africanist Discourse in French, p. 218.
33. Ngaté, Francophone African Fiction: Reading a Literary Tradition, p. 64.
34. O foco de Ngaté nessa frase inicial segue Aliko Songolo, “e Writer, the Audience and the
Critic’s Responsibility: e Case of Bound to Violence” citado por Ngaté, loc. cit.
35. Yambo Ouologuem, Le Devoir de violence, p. 9.
36. André Schwartz-Bart, Le Dernier des justes, p. 11.
37. Ouologuem, Le Devoir de violence, p. 12.
38. Soyinka, Myth, Literature and the African World, p. 100.
39. Id., ibid., p. 105.
40. Bound to Violence, traduzido [para o inglês] por Ralph Manheim, p. 87: “Saif fabula et
l’interprète traduisit, Madoubo répéta en français, raffinant les subtilités qui faisaient le bonheur de
Shrobénius, écrevisse humaine frappée de la manie tâtonnante de vouloir ressusciter, sous couleur
d’autonomie culturelle, un univers africain qui ne correspondait à plus rien de vivant; (...) il voulait
trouver un sens métaphysique à tout (...) Il considérait que la vie africaine était art pur (...).”
(Ouologuem, Le Devoir de violence, p. 102)
41. Ouologuem, Bound to Violence, p. 6.
42. Temos aqui a tematização literária da Invenção da África foucaultiana, que é o tema da
importante intervenção recente de Valentin Mudimbe.
43. Bound to Violence, p. 181-182: “Souvent il est vrai, l’âme veut rêver l’écho sans passé du bonheur.
Mais, jeté dans le monde, l’on peut s’empêcher de songer que Saif, pleuré trois millions de fois, renait
sans cesse à l’Histoire, sous les cendres chaudes de plus de trente Républiques africaines (...)”.
(Ouologuem, op. cit., p. 207)
44. Seria interessante especular sobre como explicar uma tendência aparentemente semelhante
nos textos e na teoria cultural afro-americanas.
45. “Tu ne peux savoir, Isabelle, l’exigence de l’Afrique. — C’est important pour toi, n’est-ce pas? — A vrai
dire, je nesaispas... (...) — Nara... Je ne comprendpas. Pour moi, l’important, c’est d’être moi. Être
européenne n’estpas un pavillon. — Tu n’as jamais été blessée comme... — Tu dramatises, Nara. Tu
portes ton africanité comme un martyre... Ça donne à penser... Je te mépriserais si j’entrais dans ton
jeu. — La différence, Isabelle, la différence, c’est que l’Europe est avant tout une idée, une institution
juridique (...) alors l’Afrique... — Oui? — L’Afrique estpeut-être surtout un corps, une existence
multiple... Je m’exprime mal...” (Mudimbe, L’Ecart, p. 116)
46. Mudimbe, Entre les eaux, p. 75.
47. “Tu vas trahir, m’avait dit mon supérieur, lorsque je lui avais fait part de mon projet. — Trahir qui?
— Le Christ. — Mon Père, n’est-ce pas plutôt l’Occident que je trahis? Est-ce encore une trahison?
N’ai-jepas le droit de me dissocier de ce christianisme qui a trahi l’Evangile? — Vous êtesprêtre, Pierre.
— Pardon, mon Père, je suis un prêtre noir.” (V. Y. Mudimbe, Entre les eaux, p. 18)
48. “Le Père Howard est aussiprêtre, comme moi. C’est là le lien qui nous unit. Est-ce le seul? Non. Il y a
nos gouts communs.
La musique classique. Vivaldi. Mozart. Bach. (...)
Et puis nos lectures. Les livres, nous nous les passions. Nos souvenirs communs de Rome. Nos
discussions passionées sur le rôle du prêtre, comme sur la littérature et sur les romans policiers que
nous dévorions l’un et l’autre. Je suis plus proche du Père Howard que je ne suis de mes compatriotes,
même prêtres.
Une seule chose nous sépare: la couleur de la peau” (Mudimbe, Entre les eaux, p. 20)
49. “A Igreja e a África contam com você.”
50. “L’Eglise pouvait-elle compter encore sur moi? Je l’aurais souhaité et je la souhaite. L’essentiel
cependant est que le Christ compte sur moi. Mais l’Afrique? De quelle Afrique m’a parlé Sanguinetti?
Celle de mes confrères noirs restés dans la bonne voie ou celle de mes parents pour qui j’ai déjà trahi?
Ou même parlait-il de l’Afrique que nous défendons dans le camp?” (Mudimbe, Entre les eaux, p. 73-
74)
51. “ ‘Tu manqueras aux tiens...’, m’avait dit mon oncle, il y a plus de dix ans. J’ai refusé d’être initié. Que
voulait-il dire? Ce sont eux qui me manquent. Serait-ce leur malédiction? La formule m’envahit,
discrete d’abord, plus éblouissante, m’empêchant de penser: ‘Attends que nos ancêtres descendent. Ta
tête brulera, ta gorge éclatera, ton ventre s’ouvrira et tes pieds se briseront. Attends que les ancêtres
descendent...’ Ils étaient descendus. Et je navais que la sécheresse d’une Foi rationaliséepour me
défendre contre l’Afrique.” (Id., ibid., p. 166)
52. “(...) l’humilité de ma bassesse, quellegloirepour l’homme!” (Id., ibid., p. 189)
53. Ver Richard Rorty, Contingency, Irony and Solidarity.
54. “(...) voilà l’art nègre baptisé ‘esthétique’ e marchandé — oye! — dans l’univers imaginaire des
‘échanges vivifiants’!” (Ouologuem, Le Devoir de violence, p. 110)
55. “[L]’art nègre se forgeait ses lettres de noblesse au folklore de la spiritualité mercantiliste, oye oye oye
(...)”. (Id., ibid., p. 110)
56. Ouologuem, Bound to Violence, p. 94-95: “ ‘(...) témoin: la splendeur de son art —, la grandeur
des empires du Moyen Age constituait le visage vrai de l’Afrique, sage, belle, riche, ordonnée, non
violente et puissante tout autant qu’humaniste — berceau même de la civilisation égyptienne.’
Salivant ainsi, Shrobénius, de retour au bercail, en tira un double projit: d’une part, il mystifia son
pays, qui, enchanté, le jucha sur une haute chair sorbonicale, et, d’autrepart, il exploita la
sentimentalité négrillarde — par trop heureuse de s’entendre dire par un Blanc que ‘l’Afrique était
ventre du monde et berceau de civilisation’.
La négraille offritpar tonnes, conséquemment et gratis, masques et trésors artistiques aux acolytes
de la ‘schrobéniusologie’.” (Id., ibid., p. 111)
57. Bound to Violence, p. 95-96: “Une école africaniste ainsi accrochée aux nues du symbolisme
magico-religieux, cosmologique et mythique, étai née: tant et si bien que durant trois ans, des
hommes — et quels hommes!: des fantoches, des aventuriers, des apprentis banquiers, des politiciens,
des voyageurs, des conspirateurs, des chercheurs — ‘scientifiques’, dit-on, en vérité sentinelles
asservies, montant la garde devant le monument ‘shrobéniusologique’ du pseudosymbolisme nègre,
accoururent au Nakem.
Déjà, l’acquisition des masques anciens était devenue problématique depuis que Shrobénius et les
missionnaires connurent le bonheur d’en acquérir en quantité. Saif donc — et la pratique est courante
de nous jours encore — fit enterrer des quintaux de masques hâtivement executés à la ressemblance
des originaux, les engloutissant dans des mares, marais, étangs, marécages, lacs, limons — quitte à les
exhumer quelque temps après, les vendant aux curieux etprofanes à prix d’or. Ils étaient, ces masques,
vieux de trois ans, charges disait-on, du poids de quatre siècles de civilisation.” (Id., ibid., p. 112)
58. Id., ibid., p. 111.
59. Sara Suleri, Meatless Days, p. 105.
60. Aprendi muito ao experimentar versões anteriores dessas idéias num curso de verão do NEH
sobre “O futuro da vanguarda na cultura pós-moderna”, sob a direção de Susan Suleiman e Alice
Jardine, em Harvard, em julho de 1989; na Associação de Estudos Africanos (sob os auspícios da
Sociedade de Filoso a Africana da América do Norte), em novembro de 1989, onde a resposta
de Jonathan Ngaté foi particularmente útil; e, como convidado de Ali Mazrui, no Centro Braudel
da SUNY, Binghamton em maio de 1990. Como de praxe, eu gostaria de saber como incorporar
uma quantidade maior das idéias dos debatedores nessas ocasiões.

Capítulo 8

1. Provérbio akan. (Os provérbios são notoriamente difíceis de interpretar, e portanto, também de
traduzir. Mas a idéia é a de que os Estados desmoronam por dentro, e o provérbio é usado para
expressar o sentimento de que as pessoas sofrem em decorrência de suas próprias fraquezas.
Meu pai jamais perdoaria o solecismo de tentar explicar um provérbio!)
2. Em Politics and Society in Contemporary Africa, p. 81, Naomi Chazan, Robert Mortimer, John
Ravenhill e Donald Rotchild citam, com base na revista Afriscope 7, n. 4 (1977), p. 2425, uma cifra
de 150 mil “pessoas pro ssionalmente quali cadas” na África sub-saariana.
3. Ver D. G. Austin, Politics in Ghana 1946-1960, p. 48.
4. A Etiópia, que nunca foi colônia, é um dos mais antigos Estados uni cados do mundo; mas as
fronteiras modernas da Etiópia incluem a Eritréia e Ogaden, ambos essencialmente concedidos
ao império etíope por potências ocidentais.
5. Kwame Nkrumah, Autobiography ofKwame Nkrumah, p. 153-161.
6. Politics and Government in African States 1960-1985, de Peter Duignan e Robert H. Jackson
(orgs.), p. 120-121.
7. Samir Amin, “Underdevelopment and Dependence in Black Africa: Origins and Contemporary
Forms”.
8. Chazan et al., Politics and Society in Contemporary Africa, p. 41.
9. Twi é o nome genérico da língua falada (com algumas variações de acento e vocabulário) na
maior parte do setor akan de Gana; a língua de Achanti é o twi-achanti.
10. Isso não equivale a ignorar o papel do SAP (Programa de Ajuste Estrutural) no
estrangulamento dos movimentos trabalhistas, que, em alguns locais, constituíram um dos
principais opositores societários ao Estado. O SAP tem desempenhado, como se pretendia, o
papel de facilitar a vida do capital também de outras maneiras.
11. Na Grã-Bretanha, a oposição da sra. atcher à plena união monetária européia e a uma moeda
única, por exemplo — uma oposição que cumpriu um papel em sua saída do cargo de primeira-
ministra —, esteve claramente ligada a um sentimento (extremamente ameaçador para quem
quer que tivesse as simpatias da sra. atcher pelo monetarismo) de que isso reduziria as opções
da política monetária nacional britânica.
12. A referência à “con ança essencial dos cidadãos de Gana e de outros locais no sistema judiciário
estabelecido” — em Chazan et al., Politics and Society in Contemporary Africa, p. 59 — é um dos
raros pontos em que sou obrigado a dizer que considero pouco convincente a análise desses
autores.
13. Considerei muito útil a elaboração teórica desses padrões em Chazan et al., Politics and Society
in Contemporary Africa, cap. 3, “Social Groupings”.
14. Não devemos, entretanto, desconhecer o papel das assimetrias do poder na periferia de
Koumassi e em outros lugares da periferia do Estado, na estruturação de quem se bene cia com
esses arranjos.
15. Uma association des originaires é uma associação de pessoas de origem comum.
16. Sou especialmente grato a Jeff Paine por sua ajuda na construção de uma visão anterior dessas
colocações, publicada no Wilson Quarterly.

Capítulo 9

1. Chinua Achebe, entrevista.


2. Ver, por exemplo, Robert Harms, Times Literary Supplement de 29 de novembro de 1985, p.
1.343.
3. Tzvetan Todorov, “‘Race’, Writing and Culture”. Não é preciso acreditar em feitiçaria, a nal, para
acreditar que as mulheres foram perseguidas como feiticeiras no estado de Massachusetts do
período colonial.
4. Gayatri Spivak reconhece esses problemas ao falar dos essencialismos “estratégicos”. Ver p. 205
do livro dessa autora, In Other Worlds: Essays in Cultural Politics.
5. A violência entre senegaleses e mauritanos, na primavera de 1989, só pode ser entendida ao
lembrarmos que a abolição legal da escravidão racial dos “negros” pertencentes a senhores
“mouros” ocorreu no início da década de 1960.
6. David Laitin, Hegemony and Culture: Politics and Religious Change Among the Yoruba, p. 7-8.
7. Id., ibid., p. 8.
8. Essa passagem prossegue: “Cada vez mais, também o lingala e o swahili passaram a dividir
funções entre si. O lingala serviu aos militares e a boa parte do governo da capital do baixo
Congo; o swahili tornou-se a língua dos trabalhadores das minas de Katanga. Isso criou
conotações culturais que logo começaram a emergir e que continuam a prevalecer no Zaire de
Mobutu. Do ponto de vista de Katanga/Shaba, o lingala era o jargão desonroso dos soldados
improdutivos, dos burocratas do governo, dos artistas pro ssionais e, recentemente, de uma
igrejinha do poder, todos designados como batoka chini, gente que mora a jusante, isto é, em
Kinshasa. O swahili, tal como falado em Katanga, era um símbolo do regionalismo, inclusive para
os súditos colonos que o falavam sem uência.” Johannes Fabian, Language and Colonial Power, p.
42-43. O predomínio do swahili em certas áreas já é, por si só, um produto colonial (Language
and Colonial Power, p. 6).
9. Similarmente, as identidades chona e ndebele do Zimbábue moderno associaram-se a partidos
políticos por ocasião da independência, muito embora os povos de língua chona houvessem
passado grande parte do m do período pré-colonial em confrontos militares uns com os
outros.
10. Laitin, Hegemony and Culture: Politics and Religious Change Among the Yoruba, p. 8. Nem
preciso acrescentar que as identidades religiosas são igualmente destacadas e igualmente
mitológicas no Líbano ou na Irlanda.
11. O fato de a “raça” funcionar dessa maneira tem sido claro para muitos outros afro-americanos:
assim, por exemplo, ela aparece, num contexto ccional, como tema central de Black No More
[Negro, nunca mais], de George Schuyler; ver, por exemplo, p. 59. Du Bois (como de praxe)
fornece — em Black Reconstruction [Reconstrução negra] — um corpo de provas que ainda é
relevante. Como escreve Cedric Robinson, “uma vez que a classe industrial emergiu como
dominante na nação, ela teve não apenas sua própria base de poder e as relações sociais
historicamente relacionadas com esse poder, como também teve a seu dispor os instrumentos
de repressão criados pela então subordinada classe dominante sulista. Em sua luta com o
operariado, ela pôde acionar o racismo para dividir o movimento trabalhista em forças
antagônicas. Além disso, as permutações do instrumento pareciam intermináveis: negros contra
brancos; anglo-saxões contra europeus orientais e do sul; nativos contra imigrantes; o
proletariado contra os meeiros; norte-americanos brancos contra asiáticos, negros, latino-
americanos etc.” Cedric Robinson, Black Marxism: e Making of the Black Radical Tradition
[Marxismo negro: a formação da tradição radical negra], p. 286.
12. Id., ibid., p. 313.
13. John B. ompson, Studies in the eory of Ideology, p. 62-63. Vez após outra, na história
trabalhista norte-americana, podemos comprovar as maneiras como os con itos organizados em
torno da identidade de um grupo racial ou étnico podem ser captados pela lógica da ordem
existente. O apoio nanceiro que as igrejas negras de Detroit receberam da Ford Motor
Company, na década de 1930, foi apenas um exemplo particularmente dramático de um
fenômeno muito difundido: a manipulação empresarial da diferença racial, num esforço de
derrotar a solidariedade trabalhista. Ver, por exemplo, James S. Olson, “Race, Class and
Progress: Black Leadership and Industrial Unionism, 1936-1945” [Raça, classe e progresso:
liderança negra e sindicalismo industrial, 1936-1945]; David M. Gordon et al., Segmented Work,
Divided Workers [Trabalho fragmentado, trabalhadores divididos], p. 141-143; Fredric Jameson,
e Political Unconscious [O inconsciente político], p. 54.

Epílogo

1. Joe Appiah, Joe Appiah: e Autobiography of an African Patriot, p. 103.


2. Id., ibid., p. 202-203.
3. Id., ibid., p. 368.
4. No caminho para o palácio, uma ou duas notas sobre a terminologia que cerca o sistema de
che a talvez sejam oportunas. O símbolo da che a nas culturas akan, inclusive a achanti, é o
banco. O banco do Ashantehene é chamado Banco de Ouro; o de sua rainha-mãe é o Banco de
Prata. Essas são representações simbólicas da che a e, diversamente de um trono na Europa, não
é costume sentar neles no curso normal das coisas, considerando-se-os, antes, como
repositórios do sunsum — da alma — do vilarejo, cidade, área ou nação de um chefe. Na verdade,
o Banco de Ouro tem seu próprio palácio e criados. Em twi (e no inglês ganês), falamos no
banco, tal como o faria um inglês ao falar do trono, ao nos referirmos ao objeto, à instituição e,
às vezes, ao chefe titular ou à rainha-mãe.
Qualquer pessoa de condição elevada, homem ou mulher — inclusive os avós de alguém,
outros anciãos, os chefes e o rei e a rainha —, pode ser chamada de “Nana”.
Um chefe-chene é denominado por seu lugar: o rei de Achanti é o Asantehene; o chefe da
cidade de Tafo, o Tafohene; e a rainha-mãe — a Ahemma — é chamada Asantehemma ou
Tafohemma. Nem todas as che as restringem-se hereditariamente a um determinado clã
materno; algumas se dão por nomeação. Assim, o Kyidomhene, chefe da retaguarda, associado
aos principais bancos, é nomeado (vitaliciamente) por seu chefe.
5. Appiah, Joe Appiah: e Autobiography of an African Patriot, p. 2-3.
6. Id., ibid., p. 200-201.
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Índice onomástico

Abrahams, 88
Acheampong, general, 232
Achebe, Chinua, 25, 72, 88, 102-104, 108, 109, 111, 112, 115, 119, 122, 164, 209, 210, 216, 236, 241,
245, 246, 275n, 276n, 277n, 280n, 287n
Adorno, eodor, 133
Akoto, Baffuor, 258-260
Akwasi, Francis, 194, 196
Akyempemhene, Nana, 171
Althusser, Louis, 133, 152, 153
Amin, Idi, 236
Amin, Samir, 228, 186n
Anderson, Ben, 85
Anokye, Okomfo, 240, 243, 254
Aoyoade, John, 140
Appiah, Joe, 10-12, 17, 253-268, 288n
Appiah, Peggy, 9, 10, 17, 255, 257
Aristóteles, 129, 135, 137, 175
Armah, 88
Arnold, A. James, 269n
Arnold, Matthew, 114, 198
Arthur, rei, 79
Asante, Rev. Dr., 257, 258, 266
Asante-Antwi, Rev. Dr., 257, 258
Austin, D. G., 286n
Austin, J. L., 141
Ayer, Alfred, 130
Azikiwe, Nnamdi, 247

Bacon, 15
Baldwin, James, 193, 195, 196, 219, 282n
Barth, Karl, 177
Barthes, Roland, 88, 202, 207, 275n
Baudelaire, Charles, 100
Baudrillard, 198
Bearden, Romare, 193, 282n
Beattie, John, 166
Beier, Ulli, 271n
Bendix, Reinhard, 204, 283n
Bernal, Martin, 270n, 278n
Bitek Otok p’, 276n
Bjornson, Dick, 17
Blyden, Edward W., 39, 41,44-47, 49, 53, 111, 147, 270n, 271n
Boigny, Houphouet, 194
Bolgar, R. R., 87
Brecht, Bertold, 118
Brook, Peter, 118
Brotz, H., 270n, 271n, 274n
Buber, Martin, 165
Buchan, 88
Busia, Ko , 221, 222, 231
Butler, Joseph, 15
Butler, Marilyn, 101, 276n

Caldwell, J. R., 101


Carlyle, omas, 83
Carnap, Rudolf, 130, 131
Certeau, Michel de, 93, 275n
Césaire, Aimé, 23, 136, 140, 152, 246, 269n, 278n
Chaka (fundador da nação zulu), 49, 123
Chase, Cynthia, 98, 276n
Chazan, Naomi, 286n
Chinweizu, Dr., 89-91, 94, 111, 275n
Cícero, 45, 147
Cleaver, Eldridge, 25
Cole, H., 194
Confúcio, 128
Conrad, 88
Copérnico, Nicolau, 177
Coquery-Vidrovitch, Catherine, 179, 281n
Crummell, Alexander, 14, 19-23, 29, 30, 32, 33, 36-47, 49, 51,53, 56, 72, 73, 78-82, 111, 147, 245,
269n, 270n, 271n, 274n
Cullen, Countée, 69

Danquah, J. B., 47, 221


Dante Alighieri, 44, 98
Darwin, Charles, 177
Debord, Guy 198
Delany, Martin Robinson, 44
Deleuze, Gilles, 198
Demócrito, 67
Dennett, Daniel, 175, 281n
Descartes, René, 129, 142, 145, 146, 167, 200
Dewey, John, 66, 152, 200
Dickens, Charles, 44
Diop, Cheikh Anta, 147-149, 245, 269n, 278n
Du Bois, William E. B., 12, 14, 29, 33, 42, 47, 48, 53-61, 68-76, 78, 80, 83, 111, 122, 147, 245, 249,
271n, 272n, 273n, 274n, 287n
Duhem, Pierre, 141, 170
Duignan, Peter, 286n
Durkheim, Emile, 160, 167, 280n

Einstein, Albert, 142


Eliot, T. S., 91,201,203, 275n
Elizabeth II, rainha,
Ésquilo, 32
Eurípedes, 101
Evans-Amfom, Dr., 266
Evans-Pritchard, E. E., 49, 168-170, 176, 177, 181, 182, 271n, 281n, 282n
Eyo, Ekpo, 193, 282n

Fabian, Johannes, 247, 270n, 276n, 287n


Fanon, Frantz, 25, 95, 96, 275n, 276n
Feyerabend, Paul, 197
Foucault, Michel, 24, 277n, 284n
Frege, Gottlob, 128, 130, 131
Freud, Sigmund, 113, 168
Frobenius, 212

Galileu, 178
Gallie, W. B., 106
Gates, Henry Louis, 17, 275n, 277n
Gbedemah, 231
Geertz, Clifford, 162, 280n
Geller, Uri, 170, 281n
George, Tio, 258, 260, 265
Gettier, Edmund L., 280n
Gjertsen, D., 282n
Gladstone, 44
Goody, Jack, 185
Gordimer, Nadine, 216
Gordon, David M., 288n
Graves, Nancy, 193, 282n
Greenblatt, Stephen, 114, 277n
Greene, Graham, 88, 102, 210, 276n
Griaule, M., 180, 282n
Guilherme, o Conquistador, 57
Guillory, John, 87, 275n
Gyekye, Kwame, 17, 145, 278n

Habermas, Jürgen, 133, 197, 201,277n, 283n


Hacking, Ian, 281n
Hallen, Barry, 180, 181, 281n, 282n
Hanson, N. R., 281n
Hardy, omas, 91
Hartman, Geoffrey, 101
Hegba, Meinrad, 166, 167, 172
Hegel, Friedrich, 33, 99, 100, 129, 130, 131, 136, 137
Heidegger, Martin, 131
Heisenberg, Werner, 67, 273n
Henriquez, Fernando, 25
Herder, Johann Gottfried, 42, 43, 81-83, 85, 88, 93, 274n
Heródoto, 178
Hitler, Adolf, 39, 203, 205
Hobbes, omas, 233, 235, 236
Hõlderlin, Johann Friedrich, 98, 100
Homero, 30
Horsman, Reginald, 274n
Horton, Africanus, 44
Horton, Robin, 17, 149, 166, 167, 172, 174-176, 178-180, 181, 185, 273n, 279n, 280n, 281n, 282n
Hountondji, Paulin, 48, 127, 128, 133, 138-140, 149-153, 277n, 278n, 279n, 280n
Houphouet-Boigny, Presidente Félix, 232, 233
Hughes, Langston, 89
Hume, David, 84, 129, 136, 275n
Hurston, Zora Neale, 27

Irele, Abiola, 17, 86


Irineu, 177

Jackson, Michael, 92
Jackson, Robert H., 286n
Jameson, Fredric, 197-199, 201, 210, 283n, 288n
Jaucourt, 270n
Jefferson, omas, 79, 80, 84, 274n
Jemie, Dr. Onwuchekwa, 89, 90, 275n
Johnson, Samuel, 104
Jojo, Tio, 256, 263, 265
Juabenhene, Nana, 258, 260
July, Robert K., 270n

Kagamé, Alexis, 152


Kahane, rabino Meir, 73
Kallen, Horace M., 73, 74, 273n, 274n
Kambouchner, Denis, 98, 99, 276n
Kant, Immanuel, 40, 41, 84, 99, 129, 137, 200, 201, 203
Karp, Ivan, 193, 282n
Kaunda, Kenneth Davis, 27
Keats, John, 101, 114
Kenyata, Jomo, 27
Kohn, Hans, 81, 274
Kouakou, Lela, 193, 195, 196, 233n, 282n, 283n
Koyré, Alexandre, 177
Kuhn, omas, 170, 180, 182, 197, 281n, 282n

Laclau, Ernesto, 275n


Laitin, David, 247, 248, 269n, 287n
Lakatos, Imre, 197
Lawrence, D. H., 91
Laye, Camara, 25, 28, 209, 210
Lecky, William, 190, 282n
Le Corbusier, 201, 203
Le Page, R. B., 272n
Lévi-Strauss, Claude, 81, 160
Lewis, 270n
Livingstone, David, 242
Loba, Aké, 191, 282n
Locke, John, 58, 100
Lorca, Garcia, 118
Lukács, Georg, 97
Lyotard, Jean-François, 197-199, 201,277n, 283n

MacDougall, Hugh B., 274n


Madubuike, Dr. Ihechukwu, 89, 90, 275n
Mailer, Norman, 119
Man, Paul de, 97, 98, 100, 276n
Maomé, 164
Marx, Karl, 33, 153, 201, 216, 233, 249, 275n, 287n
Masterman, Margaret, 197, 283n
Maupassant, Guy de, 210
Maynard-Smith, John, 273n
Mazrui, Al-Amin M., 276n
Mazrui, Ali, 17, 286n
Mbiti, John S., 271n
McHale, Brian, 197, 283n
Mellor, Hugh, 280n
Mercer, Kobena, 283n
Mies van der Rohe, Ludwig, 201
Mill, John Stuart, 201, 284n
Miller, Christopher, 17, 96, 97, 99, 210, 276n, 284n
Miller, Richard, 168, 281n
Milton, John, 98, 101
Minkus, Helaine, 140, 141, 278n
Mobutu, 287n
Monmouth, Geoffrey of, 79
Moore, Gerald E., 15, 104, 130, 131, 271n, 276n
Mortimer, Robert, 286n
Moses, Wilson, 42, 270n
Mouffe, Chantal, 275n
Mudimbe, Valentin Y., 17, 213, 214, 216-219, 274n, 280n, 284n, 285n
Murray, Gilbert, 112
Mutesa I de Buganda, 49

N’Diaye, Iba, 193, 282n


Nei, M., 64, 272n, 273n, 274n
Newton, Isaac, 127, 185
Ngaté, Jonathan, 210, 211, 284n, 286n
Ngugi wa iong’o, 20, 43, 96, 115, 209, 275n, 276n, 277n
Nietzsche, Friedrich, 100, 113, 131, 200
Nkrumah, Kwame, 9-10, 12, 19, 23, 27, 41, 42, 47, 71, 74, 75, 203, 221,222, 225, 227, 228, 230,
231,233, 239, 240, 269n, 270n, 274n, 286n
Nuttall, Anthony, 101
Nyerere, Julius, 12, 27

Ogotemmeli (ancião de Dogon), 180


Oguah, Ben, 141, 143, 144, 145, 278n
Olson, James S., 288n
Osei Tutu, rei, 123, 240, 254
Otumfuo Nana Opoku Ware II, Asantehene, 221, 257, 258, 259, 261,266, 267, 288n
Ouologuem, Yambo, 102, 193, 209, 210, 212, 213, 217-219, 276n, 282n, 284n, 285n

Padmore, George, 25
p’Bitek, Okot, 102, 103
Pêcheux, Michel, 94, 275n
Platão, 36, 128, 129, 137, 147, 148
Polo, Marco, 178
Pol Pot (Saloth Sor), 41
Popper, Karl, 170, 180, 181, 197, 281n, 282n
Pound, Ezra, 201
Prempeh II, rei achanti, 9
Proust, Marcel, 98, 100, 113, 201
Putnam, Hilary, 189, 282n

Quine, W. V. O., 130, 131

Ranger, Terence, 95, 96, 275n, 276n


Rattray, R. S., 95, 157, 163, 171, 278n, 280n
Ravenhill, John, 286n
Rawlings, Jerry, 26, 225, 231, 266, 267, 268
Rawls, John, 201
Reeves, Jim, 92
Renan, Ernest, 93, 275n
Rilke, Rainer Maria, 100
Robbe-Grillet, 118
Robinson, Cedric, 287n
Rockefeller, David, 193-195, 202, 218, 282n
Rorty, Richard, 285n
Roscoe, Adrian, 90
Ross, Doran, 194
Rotchild, Donald, 286n
Roychoudhury, A. K., 64, 272n, 273n, 274n
Rubin, William, 193, 219, 282n
Russell, Bertrand, 130, 131

Saint-Hilaire, 44
Santo Agostinho, 177
São Tomás, 216
Sartre, Jean-Paul, 56, 131-133, 272n
Schlick, Moritz, 130
Schopenhauer, Arthur, 131
Schuyler, George, 287n
Schwartz-Bart, André, 211, 284n
Scott, 103, 209
Senghor, Léopold, 23, 28, 110, 212, 272n
Shakespeare, William, 83, 119, 120
Sheldrake, Rupert, 182, 183
Silveira, Onésima, 47
Simon, Paul, 202
Skorupski, John, 142, 278n, 280n
Snowden, Frank, 270n
Sócrates, 135
Sodipo, J. O., 181,282n
Sófocles, 32
Sollors, Werner, 51, 271n, 274n
Soyinka, Wole, 14, 17, 25, 42, 48, 101, 102, 104, 108, 109, 112, 113, 116-125, 181, 212, 216, 245,
269n, 275n, 276n, 277n, 284n
Spenser, Edmund, 83,
Spivak, Gayatri, 17, 105, 287n
Stalin, Joseph, 41, 203, 205
Strawson, Peter, 141, 278n
Suleiman, Susan, 285-286n
Suleri, Sara, 218, 285
Sumner, Charles, 44

Tabouret-Keller, A., 272n


Tácito, 73, 79, 82
Tafohene, Nana, 258, 260, 267, 288n
Taine, Hippolyte, 82, 274n
Tansi, Sony Labou, 85, 216
Tempels, padre Placide, 138, 152, 246
iel, J. F., 280n
omas, Keith, 164, 165
ompson, John, 249, 250, 288n
ompson, Robert Farris, 193, 282n
oreau, 192
Tillich, Paul, 165
Torodov, Tzvetan, 243, 287n
Towa, Marcien, 140, 149, 278n, 279n
Trilling, Lionel, 113, 114, 198, 177n, 283n
Tupper, Martin Farquhar, 77, 78, 80, 86

Utherpendragon (pai do rei Arthur), 79

Verstegen, Richard, 79
Victoria, tia (mulher do Asantehene), 256, 257, 266
Virgílio, 44
Vitória, rainha, 44
Vogel, Susan, 193, 195, 196, 207, 282n, 283n
Voltaire, 84, 86

Wagner, Richard, 119


Wallerstein, Immanuel, 105, 276n
Watkins, J. M. W., 197
Weber, Max, 14, 177, 202-207, 209, 216, 223, 283n
Westphall, Jonathan, 273n
Wheatley, Phillis, 84
Wilde, Oscar, 164, 207, 280n
Williams, Bernard, 278n
Williams, Pearce, 197
Williams, Raymond, 93, 132, 133, 275n
Williams, Sylvester, 271n
Williams, William Carlos, 94, 275n
Winthrop, John, 78
Wiredu, Kwasi, 17, 134, 140, 148-153, 162, 173, 180, 192, 245, 278n, 279n, 280n, 281n
Wisdom, John, 96
Wittgenstein, Ludwig, 128, 130, 131, 142
Woolf, Virginia, 201
Wordsworth, William, 100, 101
Wright, Richard, 138, 140, 146, 148, 150, 278n, 279n

Zoungrana, cardeal Paul, 77


4a reimpressão, março de 2014

Tipogra a: Minion, 10,5/13

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