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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

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The New Science of Politics


Copyright © 1952 by The University of Chicago

Direitos exclusivos para edição em língua portuguesa:


Editora Universidade de Brasília

Capa:
Arnaldo Machado de Camargo Filho

EQUIPE TÉCNICA
Editores:
Lúcio Reiner, Manoel Montenegro da Cruz,
Maria Rizza Baptista Dutra, Maria Rosa Magalhães.
Supervisor Gráfico:
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Clarice Santos, Lais Serra Bátor, Maria dei Puy Diez de Uré Helinger,
Maria Helena Miranda, Monica Fernandes Guimarães, Patrícia Maria Silva de Assis,
Thelma Rosane Pereira de Souza, Wilma G. Rosas Saltarelli.

32 Voegelin, Eric, 1901-


V872n A Nova Ciência da Política. Trad. de José Viegas
=690 Filho. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982,
2? Edição.

148 p.

Título original: The New Science of Politics.


"A posteridade poderá saber que não deixamos,
pelo silêncio negligente,
que as coisas se passassem como num sonho, j

Richard Hooker
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5
PREFÁCIO 11
AGRADECIMENTOS * 13
INTRODUÇÃO 17
1. A teoria política e a filosofia da história. O declínio da ciência política e sua
restauração.
2. A destruição da ciência política através d o positivismo. Premissas positivis-
tas. A subordinação da pertinência ao método. A natureza d o positivismo.
Manifestações d o positivismo. Acumulação de fatos irrelevantes. Interpreta-
ção errônea de fatos pertinentes. O m o v i m e n t o da metodologia. A objeti-
vidade através da exclusão dos julgamentos de valor.
3. A posição transitiva de M a x Weber. A ciência isenta de valores de Weber.
O demonismo dos valores. As contradições da posição de Weber. A reapre-
sentação dos valores. O tabu das metafísicas clássica e cristã. O positivismo
desencantado.
4. A restauração da ciência^política. Obstáculos e êxito.

I — REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 33
1. O procedimento aristotélico. Os símbolos da realidade e os conceitos da
ciência.
2. A representação n o sentido elementar.
3. A insuficiência d o conceito elementar da representação.
4. A representação n o sentido existencial. A sociedade capaz de atuar. A distin-
ção entre representante e agente.
5. A representação e a articulação social. A Magna Carta. Notificações ao
Parlamento. O caso Ferrers. A fórmula dialética de L i n c o l n .
6. A teoria ocidental da representação. A consolidação dos reinos n o século
X V . A teoria de Fortescue. A erupção e a prorrupção. O corpo mysticum. A
intendo populi.
7. As fundações migratórias. O m i t o de Tróia. Paulus Diaconus.
8. A desintegração. Maurice H a u r i o u . A idée directrice. O poder e o d i r e i t o . O
representante constitucional e o existencial.
9. Sumário. A definição de existência. Das instituições representativas. O
provincianismo da teoria contemporânea da representação.
2 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

I I — REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 49
1. A simbolizaçào social e a verdade teórica.
2. A sociedade como representante da ordem cósmica. A verdade e a mentira.
A Inscrição de Behistun. A ordem mongol de Deus. O monadismo da ver-
dade imperial.
3. O desafio à verdade imperial. O tempo crucial da história humana de Jas-
pers. As sociedades fechadas e abertas de Bergson.
4. O princípio antropológico de Platão. Como princípio para a interpretação
da sociedade. Como instrumento de crítica política. O padrão da verdadei-
ra ordem da alma.
5. O significado da teoria. A teoria aristotélica do homem maduro. A teoria
como explicação de experiências. A base experiencial da teoria.
6. A autoridade da verdade teórica. A abertura da alma. A psique como o cen-
tro da transcendência. O princípio teológico. Platão e os tipos de teologia.
7. A representação trágica. Os Suplicantes de Esquilo. O significado da tra-
ma. A atuação persuasiva do Governo. A decisão em favor de Dike. O so-
frimento representativo.
8. Da tragédia à filosofia.
9. Sumário. A representação no sentido transcendental. A teoria como a ciên-
cia da ordem. O critério da verdade na ciência.

III — A L U T A P E L A REPRESENTAÇÃO N O IMPÉRIO R O M A N O 65


1. Problemas teóricos. Os dpos concorrentes da verdade. Distinção entre
a verdade antropológica e a verdade soteriológica. Definição da substância
da história. A dependência da teoria com relação à gama de experiências
clássicas e cristãs.
2. Varro, Santo Agostinho e os tipos de teologia.
3. A função política do Civitas Dei. O ataque ao culto romano. A questão do
Altar de Vitória. As posições de Símaco e Santo Ambrósio, o imperatorfelix
de Santo Agostinho. O culto romano como problema candente.
4. O problema existencial na teologia civil romana. A incompreensão de Santo
Agostinho com relação à posição de Varro. Cícero e a contraposição do
princeps civis ao princeps philosophiae. O arcaísmo de Roma. A verdade roma-
na contra a verdade da filosofia.
5. O princeps como representante existencial. O patronato e o principado. Os
príncipes como chefes políticos e militares no fim da república. Os triún-
viros. O principado imperial.
6. A debilidade sacramentai do principado imperial. Experiências com a teo-
logia imperial. A experiência com o Cristianismo.
7. Celso e o caráter revolucionário do Cristianismo.
8. O monoteísmo metafísico de Fílon. A teologia política de Eusébio de Ce-
saréia. O trinitarismo e o fim da teologia política.

IV — G N O S T I C I S M O — A NATUREZA DA M O D E R N I D A D E 85
1. A vitória do Cristianismo. Desdivinização da esfera política e redivinização.
SUMÁRIO 3

O milênio da Revelação e a teoria da Igreja de Sto. Agostinho. Representa-


ção espiritual e temporal. A sobrevivência da idéia romana na sociedade
ocidental.
2. O simbolismo da redivinização. A especulação trinitária de Joaquim de
Flora. Os símbolos de Joaquim: (a) o Terceiro Reino; (b) o Líder; (c) o
Profeta Gnóstico, (d) a Irmandade de Pessoas Autônomas. O Terceiro
Reino nacional-socialista. Moscou — a Terceira Roma. Reconhecimento
ocidental do problema russo. O tipo russo de representação.
3. O conteúdo teórico dos novos símbolos. O significado de história trans-
cendental em Sto. Agostinho. A imanentização do significado da história
em Joaquim. Secularização. O eidos da história como construção falaciosa.
Os tipos de imanentização falaciosa do eschaton: progressivismo, utopismo,
ativismo revolucionário.
4. Motivos e alcance do imanentismo gnóstico. O desejo da certeza e a incer-
teza da fé. O êxito social do Cristianismo e a queda da fé. O recurso à auto-
divinização gnóstica. O espectro psicológico de tipos: contemplativo, emo-
tivo, ativista. O espectro da radicalização: do paracleto ao super-homem.
O espectro civilizacional: do monasticismòao cientificismo.
,

5. A evolução da modernidade. Origens no século IX. O problema do pro-


gresso e declínio simultâneos. O prêmio da salvação à ação civilizacional.
A imortalidade da fama e os poços de esquecimento. Morte espiritual e
assassinato de Deus. O Totalitarismo como forma final da civilização pro-
gressivista.

— A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 101


1. Periodização da história ocidental. A modernidade como o crescimento
do gnosticismo. A era moderna como um símbolo gnóstico. A era moderna
como revolução gnóstica.
2. O retrato do puritano por Hooker. A causa e o movimento.
3. A revolta contra a cultura intelectual. A camuflagem das Escrituras. A codi-
ficação da verdade gnóstica. A interdição dos instrumentos de crítica. A
proibição do argumento teórico. A reação de Hooker. A solução islâmica.
Apelo à autoridade governamental.
4. O anjo da Revelação e o exército puritano. Um Vislumbre da Glória de Sion.
O homem comum. Q reino gnóstico dos santos. O programa da revolução.
As Perguntas a Lord Fairfax. A liquidação do Velho Mundo. A guerra entre
os mundos. Reflexões metodológicas.
5. A teoria da representação de Hobbes. Ordem pública contra a revolução
gnóstica. A ressurreição da theologia ávilis. A abertura da alma reexaminada.
A tensão essencial entre a verdade da sociedade e a verdade da alma. A so-
lução de Platão. Vacilações cristãs. A idéia hobbesiana da constituição
perene.

— O FIM DA MODERNIDADE 119


1. A verdade da ordem cósmica reafirmada. O gnosticismo como uma teologia
civil. Sua tendência de reprimir a verdade da alma. O ciclo de advento e
recessão. Dinâmica futura da civilização ocidental.
2. A negligência gnóstica para com os princípios da existência. Criação de um
4 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

m u n d o de fantasia. Suas motivações. O resultado pneumopatológico. A t a -


que às virtudes do intelecto e propaganda e m p r o l da insanidade m o r a l .
As causas do estado permanente de guerra. A impossibilidade da paz.
3. Liberalismo e c o m u n i s m o . A situação dos intelectuais liberais. Dinâmica
da revolução gnóstica. O perigo comunista. As causas da paralisia ociden-
tal.
4. Hobbes. Imanência radical da existência. A vida d o espírito c o m o libido
dominandi. A abolição d o summum bonum. Paixão e medo da m o r t e . A pessoa
e o Leviatã.
5. O simbolismo hobbesiano. A psicologia d o h o m e m desorientado. A enfer-
midade c o m o natureza d o h o m e m . O Leviatã como destino d o intelectual.
6. Resistência contra o gnosticismo. A relação das revoluções nacionais n o
Ocidente c o m o gnosticismo. Conservadorismo inglês e norte-americano.
A restauração das tradições.

índice onomástico 135


APRESENTAÇÃO

NAS PROFUNDEZAS DO PENSAMENTO POLÍTICO:


REALIDADES HISTÓRICAS E MITOS IDEOLÓGICOS

Os homens concretos, na sua convivência histórica, eis o dado fundamental da


ciência política. P o r isso mesmo, a teoria política é u m a teoria da história. As diver-
sas formas mediante as quais se estruturam a sociedade e o poder que a governa
representam essa realidade, cuja significação mais p r o f u n d a decorre d o próprio
destino h u m a n o .
Mas o subjetivismo do pensamento m o d e r n o , apartando a inteligência d o seu
objeto natural — o ser — e enclausurando-a no mundo das idéias p o r ela mesma
forjadas, deu o r i g e m , n o campo da filosofia política e da Teoria d o Estado, às
construções esvaziadas de todo o conteúdo histórico, n u m abstracionismo fechado,
incapaz de alcançar o transcendente. Nas ideologias daí resultantes b e m p o d e ver-se
u m a reprodução da gnose dos primeiros tempos d o cristianismo.
T a l a temática desenvolvida ao l o n g o das páginas deste v o l u m e , a q u a l p o d e
reduzir-se a três importantíssimos tópicos, a saber:
1) historicidade das sociedades políticas;
2) teoria da representação;
3) gnosticismo, essência da " m o d e r n i d a d e " .
Consideremos brevemente esses três pontos capitais para concluirmos c o m
u m a referência à personalidade d o a u t o r e à atualidade da obra.

/. A historicidade do conviver humano


A conexão entre o histórico e o político resulta da própria natureza das sociedades,
isto é, do conviver humano. Se o h o m e m é o " a n i m a l político" d o conceito aristo-
télico, é também e, p o r isso mesmo, um ser histórico. O q u e distingue os agrupa-
mentos humanos dos agregados animais é a sua variedade n o espaço e n o tempo,
decorrente precisamente do que há de específico n o h o m e m , diferenciando-o dos
demais seres da natureza: a razão. Sendo racional e, portanto, livre, o homem
coopera livremente c o m os seus semelhantes, constituindo assim as diversas socie-
6 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

dades de que faz parte. Cabe à razão ordenar as coisas e as ações para u m t i m , e
q u a n d o reunidos os indivíduos racionais, isto é, as pessoas, eles têm conhecimento
d o f i m o u b e m c o m u m a atingir, determinando eles mesmos os meios adequados.
C o m os seres destituídos de razão isto não se dá, e se vivem gregariamente — c o m o
ocorre, p o r exemplo, c o m as formigas, as abelhas e os castores — são m o v i d o s pelo
instinto e sujeitos a leis naturais que atuam p o r u m processo de determinação ne-
cessária.
Só p o r analogia metafórica o sociólogo francês Espinas p o d i a dar ao conhecido
l i v r o que escreveu, a respeito, o título Les sociétés animales. Sociedade, n o sentido
próprio, supõe racionalidade e liberdade, donde lhe decorre também a nota da
historicidade. Não se pode confundir a história natural dos animais c o m a história
d o h o m e m e das civilizações. A organização de u m a colméia é sempre a mesma, e m
todas as épocas e e m qualquer parte d o m u n d o . Q u e contraste c o m a m u l t i p l i c i d a -
de de formas humanas de convivência e c o m a diversificação dos regimes políticos
desde a t r i b o p r i m i t i v a até ao Estado nacional de nossos dias!
A sucessão de tais formas, em meio aos episódios também os mais variados da
vida e m sociedade, faz a história. Esta emerge da o r d e m dos acontecimentos que se
vão sucedendo n o decurso d o tempo e, p o r sua vez, serve de lastro para a o r d e m
instituída pelos homens n u m a correlação com os costumes, as tradições, o legado
de cultura recebido e transmitido.
O h o m e m é, p o r isso mesmo, naturalmente tradicionalista. Vive e se aperfeiçoa
graças à educação que lhe é dada e ao acervo de bens acumulados pelos seus ances-.
trais. Sem herança, sem tradição, não há progresso, isto é, sem a entrega de u m p a -
trimônio de cultura de u m a geração a outra. O r i g i n a r i a m e n t e a palavra traditio
significa exatamente essa transmissão o u entrega, sem a qual as sociedades se i m o -
bilizariam o u retrocederiam à barbárie. Por onde vemos que a tradição, longe de
ser conservadorismo estático, é a própria movimentação d a dinâmica social, l i g a n -
d o o presente ao passado e ao f u t u r o . Se nos colocarmos, p o r exemplo, n o terreno
das ciências, c o m o será possível conceber aí o progresso sem a tradição, o u seja,
sem aprendermos c o m a experiência dos q u e nos precederam e sem toirfarmos co-
nhecimento das suas descobertas e invenções? Se u m cientista fizesse tábua rasa
destas aquisições e pretendesse começar t u d o de novo, estaria regressando à idade
d o h o m e m das cavernas.
O r a , as ideologias difundidas, sobretudo a p a r t i r d o século X V I I I , representam
u m a r u p t u r a c o m a tradição. Eis p o r que, n o dizer de Voegelin, não são apenas
uma revolta contra Deus, mas também u m a rebelião contra o h o m e m . A o contrário
da filosofia, que tem p o r objeto o ser, isto é, a realidade, a ideologia leva o h o m e m
para u m m u n d o de quimeras, substituindo-se à história e substituindo a realidade
pela idéia enquanto m e r o p r o d u t o da mente, sem aquela "adequação" c o m a coisa,
segundo a definição clássica da verdade.
As ideologias revolucionárias de nossa época criaram novos mitos — os mitos
da H u m a n i d a d e , d o Povo, d a Raça, d a Classe (ou d o Proletariado), d a Liberdade,
d a Igualdade, d o Paraíso na Terra — , mas mitos que não simbolizam entidades
concretas como eram os das antigas religiões, e sim abstrações que, aplicadas à p o -
lítica real na vida dos povos, acabam p o r se dissolver na Reolpolitik, na política d o
poder, n a força totalitária.
A f i r m a r a historicidade não é cair n o erro d o historicismo, pelo q u a l o h o m e m
é submetido aos impulsos de u m a pretensa consciência coletiva, n e m tampouco
i r i r i f r na grosseira superstição desse progressismo q u e faz dos homens cata-ventos
movidos pelos ventos d a história e considera sempre o m o d e r n o superior ao antigo.
APRESENTAÇÃO 1

I
A teoria política sem base histórica será uma concepção desencarnada, inspira-
• dora de formas de governo e de Estado desajustadas das condições reais dos povos.
E o que temos vistofreqüentemente,daí resultando o conflito entre o "país legal" e
o "país real", entre a constituição jurídico-formal e a constituição social e histórica,
entre o Estado e a Nação.
Note-se finalmente que além e acima da ordem dos fatos — no domínio da
história — e imprimindo-lhe um sentido, está a ordem dos princípios e dos valores,
no plano da ética e do direito natural. A política é uma ciência prudencial, a pru-
dência ordena para os fins humanos e esta ordenação só é válida e eficaz quando
leva em conta a situação concreta do homem como ser histórico.

2. O significado político da representação ^


A representação é uma idéia-chave da ciência política. Tenho feito ver, nos meus
cursos de Teoria Geral do Estado, que esta disciplina pode ser dividida em três
partes, concernentes à sociedade, ao poder e à representação. A sociedade civil ou
política, constituída por famílias e outros grupos, é o meio'em que se forma o Es-
tado. O poder é o elemento organizador da sociedade, princípio de unidade social,
centro propulsor e coordenador. E a representação é um vínculo entre a sociedade
e o poder, sintonizando a ação dos governantes e as aspirações dos governados.
Mas temos aí apenas o primeiro sentido da representação política, dizendo
respeito às denominadas instituições representativas. Trata-se da sociedade represen-
tada junto ao poder. Além disso, cumpre considerar o poder enquanto ele representa
a sociedade, ou, por outras palavras, a sociedade representada pelo poder. Assim, mes-
mo num país onde não existam instituições representativas, o poder que o governa
não deixa de representá-lo perante os outros Estados, sendo reconhecido por estes
no plano das relações internacionais. A este segundo tipo de representação, Eric
Voegelin chama de representação no sentido existencial.
Finalmente, a representação assume ainda um terceiro significado, como valor
simbólico manifestando uma" ordem transcendente. O que claramente se verifica
não apenas na Antigüidade oriental, desde o faraó, tido por uma divindade presen-
te na terra, até os reis babilônicos, considerados comissários de Marduk, e os aquê-
menides, representantes de Ahuramazda, mas também em povos primitivos nas
áreas do Pacífico, da América e da índia. A mesma concepção reflete-se nos califa-
dos islâmicos e na China e no Japão até o nosso século. Caso singular é o do povo
hebreu, quer sob a teocracia, quer sob a monarquia. Nas monarquias cristãs
medievais, a sagração real apresenta um aspecto novo, e observa-se a distinção
entre as esferas do poder eclesiástico e do poder civil, o que não ocorre no cesaro-
papismo bizantino e nas "monarquias de direito divino" de inspiração protes-
tante .1

Com a secularização das sociedades' modernas, há uma deslocação do trans-

1. Cf. a respeitoJEAN DE PANGE, Le Roi três Chrétien, Arthème Fayard, Paris, 1949. Sobre os três aspectos da
representação, ver J . P. GALVÃO DE SOUSA, Da Representação Política, Edição Saraiva, São Paulo, 1971.
O primeiro aspecto - referente ao sistema representativo — è o que mais tem sido focalizado pelos tratadistas, em consi-
derações sobre suas variantes no parlamentarismo ou no presidencialismo, sobre o regime de partidos, sobre eleições
diretas e indiretas, etc. Um labirinto de questões, em meio ao qual se perdeu o fio de Ariadne e não se encontra mais a
saída. O liberalismo reduziu a sociedade política a uma soma de indivíduos, preparando o caminho para o totalitaris-
mo, que dela faz a massa manipulada pelo Estado. A sociedade há de ser representada não segundo visões ideológicas,
mas como ela éna realidade, composta de famílias e corpos intermediários. Do contrário, nunca haverá representação
8 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

cendente para o imanente, surgindo aqueles mitos que representam a deificação de


entidades ou valores temporais. É o caso típico do totalitarismo, deificando o Esta-
do. O que nos faz passar ao terceiro tópico acima indicado.

3. O fundo gnóstico do pensamento moderno

A ruptura do pensamento moderno com o transcendente encontra, no domínio


político, suas primeiras grandes expressões em Maquiavel e Hobbes, sem falarmos
no precursor medieval de ambos, Marsílio de Pádua. Em Hobbes há uma sistemati-
zação rigorosa da concepção naturalista do universo, reduzido este a um mecanis-
mo corpóreo ou físico e sendo o Estado igualmente regido por normas de leis físi-
cas, com total subordinação do homem ao corpo político, o Leviatã.
Isso não quer dizer que, na sua significação mais profunda, seja o pensamento
político especificamente moderno destituído de qualquer vinculação com motiva-
ções religiosas. Donoso Cortês — que, com quase um século, de antecipação, previu
genialmente a propagação do socialismo e o expansionismo imperialista da Rússia
— fez ver nas concepções revolucionárias de sua época, de Rousseau a Proudhon, a*
prática de uma filosofia panteísta e afirmou que entre os erros contemporâneos não
há nenhum que não se resolva numa heresia . E ainda recentemente o renomado
2

matemático soviético Igor Chafarévitch estudou as origens do socialismo entre os


cátaros e albigenses (do século X I ao XIV), nas heresias panteístas do século X I I I ao
século XV e em seitas ligadas ao movimento protestante, como a dos valdenses e a
dos anabatistas . 3

Eric Voegelin, neste ponto continuador de Donoso Cortês, em análise pro-


funda do imanentismo moderno, filia-o à gnose dos primeiros séculos cristãos. Na
Idade Média, esta heresia reaparece em alguns pensadores, entre os quais é de se
destacar Joaquim de Flora, cuja interpretação da história segundo as três idades, é'
uma antecipação do progressismo de Turgot, Condorcet, Comte, Hegel e Marx.
O marxismo é também imanentista, e aliás Marx, unindo a dialética cje Hegel ao
materialismo de Feuerbach, transpõe para a Matéria o que Hegel afirmava da Idéia.
A gnose apresenta várias formas. Em sua modalidade predominantemente intelec-
tual, procura penetrar especulativamente no mistério da criação e da existência.
Tal é a gnose especulativa de Schelling e do sistema hegeliano. A gnose volitiva, vol-
tada para a ação e estabelecendo o primado da praxis, destina-se a redimir o ho-
mem e a sociedade. Ê o caso de Comte, Marx, Lenin e Hitler, "ativistas revolucio-
nários".
Note-se que a expressão gnose é palavra grega que significa o conhecimento,
sendo usada para designar não o processo discursivo próprio da razão, mas uma re-
velação da verdade divina, alcançada por via intuitiva e trazendo ao "iniciado"
alegria e certeza de salvação. O movimento gnóstico remonta a Simão Mago, cuja
história nos foi transmitida pelos Atos dos Apóstolos. Desenvolveu-se no século
I I , mas, longe de desaparecer ante a refutação de seus erros por Irineu, Tertuliano,
Clemente de Alexandria e outros, ficou sendo uma vegetação religiosa parasitária
ao longo da história da Igreja, corroendo a doutrina cristã e suscitando outras tan-

Zj£- DONOSO CORTES, alem do conhecido Ensayo sobre el Catolicismo, el Liberalismo y el


SooalMroo, o Discurso sobre a Europa e principalmente a Carta ao Cardeal Fornari sobre o princípio gerador dos
mm*jr*xs erros do nosso tempo, no segundo volume de suas Obras Completas, editadas pela B.A.C. (Madrid).
* IQOR CHAFARÉVITCH, Le Phenomène Socialiste, Éditions du Seuil, Paris, 1977.
APRESENTAÇÃO 9

tas heresias . Extraordinariamente reavivado em nosso século, palpita n o fundo da


4

heresia modernista e d o chamado "progressismo" . Daí resultou a "teologia da l i -


5

bertação", difundida hoje especialmente na América Latina e cujo significado


essencial foi anunciado p o r Eric Voegelin, antes mesmo de ter sido elaborado sis-
tematicamente pelos seus adeptos, c o m o se pode depreender d o seguinte trecho do
livro cuja apresentação a q u i está sendo feita:
" A especulação gnóstica venceu a incerteza da té recuando da transcendência e
dotando o h o m e m e seu raio de ação i n t r a m u n d a n o c o m o significado da realiza-
ção escatológica. N a medida em que essa imanentização avançou sobre o terreno
da experiência, a atividade civilizadora transformou-se n u m trabalho místico de
auto-salvação. A força espiritual da alma, que n o Cristianismo se devotava à santifi-
cação da vida, p o d i a agora ser desviada r u m o à criação do paraíso terrestre, tarefa
esta mais atraente, mais tangível e, acima de tudo, m u i t o mais fácil" (IV, 5).

4. O autor e o livro
Eric Voegelin é, sem dúvida, u m dos mais penetrantes pensadores de nossa época.
Graduado pela Universidade de Viena em 1922, familiarizou-se c o m a vida univer-
sitária na Alemanha, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. C o m o muitos
de seus compatriotas, teve de deixar o Velho M u n d o , em circunstâncias aflitivas e
entre trágicas perturbações, p r o c u r a n d o refúgio na América, onde encontraria
condições para consagrar-se à vocação de u m scholar, atraído pelas questões mais
altas da filosofia política e da filosofia da história.
U m e o u t r o desses dois tipos de conhecimento conjugam-se na sua obra, que
ficará assinalando u m marco na trajetória d o pensamento político. É o que se pode
notar desde logo, às primeiras linhas da introdução p o r ele escrita para o seu livro
The New Science of Politics, agora traduzido entre nós: " A existência do h o m e m n a
sociedade política é a existência histórica; e a teoria política, desde que penetre n o
terreno dos princípios, deve ser. ao mesmo tempo, u m a teoria da história".
Descortinando horizontes novqs para o perfeito entendimento do assunto ver-
sado, Voegelin ultrapassa a tentativa de Haller, q u a n d o este teórico do Estado
suíço escreveu sobre a restauração da ciência política. C u m p r e lembrar, neste sen-
tido, sua notável obra Order and History, u m m o n u m e n t o d o nosso século, na ex-
pressão de Gerhart Niemeyer, recenseando-a e m The Review of Politics, e a propósito
da q u a l Crane B r i n t o n não hesitou e m colocar Voegelin n o p l a n o de Toynbee,
Spengler, Sorokin e C o l l i n g w o o d .
N o p r i m e i r o volume daquele tão alentado estudo — volume tendo p o r objeto
Israel e a Revelação, remontando à Mesopotàmia e ao Egito, em mais de q u i n h e n -

4. Houve no gnosticismo uma confluência de elementos heterogêneos:filosofia helenística, hermetismo e correntes mági-
co-astrológicas orientais, crenças religiosas da índia, da Pérsia e do Egito. Mas a descoberta no Egito, perto de Nag
Hammadi, em 1946, de uma biblioteca copta, permitiu melhor compreensão do que tenha sido a gnose: não simples re-
sultado do sincrelismo oriental, mas produto nutrido de um pensamento especificamente judaico, calcado no Antigo
Testamento, com vocabulário grego efórmulas egípcias ou persas. Entre as várias seitas e doutrinas gnósticos há alguns
pontos comuns: o emanatismo (para explicar a origem dos seres), o dualismo do princípio do bem e do princípio do mal
ipara decifrar o problema do mal) e a idéia de redenção, negando-se a união hipostática e a humanidade de Jesus
Cristo.
5. O modernismo foi condenado por São Pio X na memorável Encíclica Pascendi dominici gregis de 8 de setembro
de 1907, à qual deve ser acrescentada a Carta do mesmo Pontífice sobre Le Sillon (25 de agosto de 1910). Quanto
ao progressismo, ele teve grande impulso na Renascença e "tornou-se uma teoria bem definida no século XVIII, prin-
cipalmente com as obras de Condorcet e de Lessing, para se depositar comofermento ativo nos sistemasfilosóficose cien-
tíficos que, no século XIX, haviam de ser elaborados por Hegel, Marx, Comte e Spencer. "Eo quefaz verj. VAN DEN
10 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

tas páginas, e sendo os dois tomos imediatamente seguintes dedicados ao mundo


da "Polis" e a Platão e Aristóteles — o autor começa por delinear ao leitor a pers-
pectiva hístórico-filosófica em que se situa.
Vamos às suas palavras textuais: "A ordem da história emerge da história da
ordem". E logo a seguir: "Cada sociedade leva sobre si o peso da tarefa de criar
uma ordem que dará ao fato de sua existência histórica um sentido em termos de
fins divinos e humanos" . 6

Dessa ordem as sociedades modernas têm sido afastadas pela deformação ideo-
lógica da realidade do homem, não só no domínio político, mas também no cientí-
fico. Voegelin refere-se especialmente aos liberais e socialistas, a Marx e Freud, às
variedades de nacionalismo, progressismo e positivismo, às metodologias neo-
kantianas, para concluir: " A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o
homem" . 7

Em face de tal rebelião, marcada com o signo da gnose, ele apela para a filoso-
fia enquanto "amor ao ser através do amor ao Ser divino", fonte da ordem . No 8

que lembra Santo Agostinho ao dizer que, sendo a sabedoria o próprio Deus, ver-
dadeiro filósofo é o que ama a Deus . 9

José Pedro Galvão de Sousa

BESSELAAR, em O Progressismo de Sêneca (publicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univer-


sidade de Assis), ponderando que os progressistas convidam todos os homens a colaborar com o que chamam "sentido
da história", variando suas motivações, conforme se trate de cristãos, positivistas ou marxistas (pp. 11 e 12).
6. E. VOEGELIN, Order and History, vol. I, Louisiana State University Press, 1956, prefácio, p. IX.
7. Op. cit., pág. XIV. Em artigo publicado por The Review of Politics (vol. 12, n 3, julho de 1950, pp. 275-
9

302) sob o título The Formation of the Marxian Revolutionary Idea, VOEGELIN estuda a posição gnóstica
de Marx, herdada de Hegel, e que o leva a afirmar a "autoconsciência humana" (das mensehliche Selbstewusst-
sein) como a suprema divindade (KARL MARX, Über die Differenzen der demokritischen und epikureischen
Naturphilosophie, Gesamtausgabe, I, 1).
3. Loc. cit.
9. De Ctvitate Dei, VIII, I. Não nos devemos esquecer de que etímologicamente "filósofo" quer dizer "amigo da
PREFÁCIO

Durante os últimos trinta anos o u mais têrrf surgido, dentre os estudiosos da


política, aqueles que se opõem à maneira tradicional de considerar o governo e a
política e que remonta aos tempos de Aristóteles. Houve, assim, os que fundamen-
taram a ciência política sobre bases estatísticas, psicológicas e sociológicas. Os p r o -
pugnadores das novas teorias ignoraram o u rejeitaram a consideração de qualquer
sistema de valores ao abordarem a política p o r u m ângulo científico. Apesar de
sua grande aceitação nos dias de hoje, essa corrente vem enfrentando incisiva con-
testação e m vários setores, sobretudo n o próprio berço da escola científica, a U n i -
versidade de Chicago. Neste l i v r o , o Professor Voegelin presta u m a contribuição
inovadora e estimulante aos objetivos e métodos da política. Seu renome n o cam-
po da teoria política é u m a garantia d o tratamento exaustivo e objetivo dado ao
tema.
A obra baseia-se n u m a série de conferências pronunciadas durante o inverno
de 1951 na Universidade de Chicago, sob o patrocínio da Fundação Charles R.
Walgreen. A cooperação d o autor e da Universidade de Chicago p e r m i t i u à F u n -
dação publicar essas conferências sob a f o r m a de l i v r o .

Jerome G. K e r w i n ,
Presidente da Fundação Charles R. Walgreen
para o Estudo das Instituições Norte-Americanas
AGRADECIMENTOS

Por ocasião do lançamento deste l i v r o , gostaria de expressar m i n h a gratidão


à John Simon Guggenheim Memorial Foundation p o r me haver p e r m i t i d o atualizar a
análise dos problemas nele tratados mediante estudos realizados na Europa, d u r a n -
te o verão de 1950. Esses estudos f o r a m também facilitados p o r u m auxílio d o
Conselho de Pesquisa da Louisiana State University.
M e u colega, o Professor Nelson E. Taylor, teve a gentileza de ler o manuscri-
t o ; agradeço-lhe os conselhos que m e f o r a m dados e m matéria estilística. Agra-
deço também a colaboração secretarial da Srta. Josephine Scurria. A V i k i n g Press
gentilmente p e r m i t i u a citação de trechos de u m livro p o r ela publicado.
O presente livro f o i desenvolvido a p a r t i r de seis conferências sobre " A Ver-
dade e a Representação", dadas em 1951 sob os auspícios da Charles R. Walgreen
Foundation. Aproveito essa agradável o p o r t u n i d a d e para renovar meus agrade-
cimentos à Fundação, assim como a seu ilustre Presidente, Professor Jerome G.
Kerwin.

Baton Rouge, Louisiana Eric Voegelin


INTRODUÇÃO

A EXÍSTÊNCÍA d o h o m e m n a sociedade política é a existência histórica; e a t e o r i a


política, desde q u e p e n e t r e n o t e r r e n o d o s princípios, deve ser, a o m e s m o t e m p o ,
u m a teoria d a história. P o r conseguinte, os capítulos q u e se seguem, referentes a o
p r o b l e m a c e n t r a l d a teoria política, o d a representação, estender-se-ão além d a
descrição das chamadas instituições representativas, o c u p a n d o - s e d a natureza d a
representação c o m o a f o r m a pela q u a l a sociedade política passa a existir e a t u a r
na história. A l é m disso, a análise não se interromperá nesse p o n t o , m a s p r o s s e g u i -
rá n a exploração dos símbolos pelos q u a i s as sociedades políticas i n t e r p r e t a m - s e
a si mesmas c o m o representantes de u m a v e r d a d e transcendente. F i n a l m e n t e o
c o n j u n t o desses símbolos não representará u m a m e r a l i s t a g e m , p r e s t a n d o - s e ,
p e l o contrário, a u m esforço de teorização, c o m o u m a sucessão compreensível
de fases n u m processo histórico. Q u a l q u e r investigação s o b r e a representação,
desde q u e suas implicações teóricas sejam consistentemente d e s d o b r a d a s , t o r n a r -
se-á, n a verdade, u m a filosofia da história.
N ã o é u s u a l , h o j e e m d i a , levar a discussão de u m p r o b l e m a teórico até o p o n -
t o e m q u e os princípios d a política se e n c o n t r a m c o m os princípios d a filosofia
da história. Este p r o c e d i m e n t o não p o d e , n o e n t a n t o , ser c o n s i d e r a d o c o m o u m a
inovação e m ciência política; seria antes u m a restauração, se se t e m e m c o n t a q u e
os d o i s c a m p o s , h o j e c u l t i v a d o s separadamente, estavam i n d i s s o l u v e l m e n t e l i g a -
dos q u a n d o a ciência f o i f u n d a d a p o r Platão. Esta t e o r i a i n t e g r a l d a política nasceu
da crise d a sociedade helênica. As h o r a s d e crise, q u a n d o a o r d e m d a sociedade
f r a q u e j a e se desintegra, são mais propícias à consideração d o s p r o b l e m a s f u n -
d a m e n t a i s da existência política e m perspectiva histórica q u e os períodos de m a i o r
e s t a b i l i d a d e r e l a t i v a . Pode-se dizer q u e , desde então, a concepção estreita d a ciên-
cia política c o m o a descrição das instituições existentes e a apologia d o s seus p r i n -
cípios, o u seja, a degradação d a ciência política a u m i n s t r u m e n t o d o p o d e r , têm s i -
d o típicas das situações de estabilidade, e n q u a n t o a concepção a m p l i a d a até os l i -
m i t e s de sua grandeza, c o m o a ciência d a existência Inumana n a sociedade e n a
história e d o s princípios d a o r d e m e m g e r a l , t e m sido típica das grandes épocas
de natureza revolucionária e crítica. Três dessas épocas o c o r r e r a m n o d e s e n r o l a r
da história o c i d e n t a l . A fundação d a ciência política p o r Platão e Aristóteles m a r -
c o u a crise helênica; o Civitas Dei, d e S a n t o A g o s t i n h o , m a r c o u a crise d e R o m a e
d o C r i s t i a n i s m o ; e a filosofia hegeliana d a lei e d a história m a r c o u o p r i m e i r o
18 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

grande terremoto da crise ocidental. Estas são apenas as grandes épocas e as gran-
des restaurações; os períodos milenares q u e as separam caracterizam-se p o r épo-
cas menores e restaurações secundárias; c o m relação ao período m o d e r n o , em
particular, deve ser lembrada a grande tentativa de B o d i n na crise d o século X V I .
A restauração da ciência política deve ser entendida como u m a volta à cons-
ciência dos princípios, mas nâo necessariamente o r e t o r n o ao conteúdo específico
de u m a tentativa anterior. Não se pode restaurar hoje a ciência política através
de u m a volta ao platonismo, ao augustinismo o u ao hegelianismo. Evidentemente,
m u i t o se pode aprender dos filósofos anteriores n o q u e concerne à extensão dos
problemas e a seu tratamento teórico; mas a própria historicidade da existência
humana, o u seja, o desdobramento d o que é típico e m instâncias significativas e
concretas, impede q u e u m a reformulação válida dos princípios se faça através da
v o l t a a uma- instância concreta anterior. Portanto, a ciência política não pode
ser restaurada em sua dignidade como ciência teórica, e m sentido estrito, p o r
meio de u m renascimento literário das conquistas filosóficas d o passado; os p r i n -
cípios devem ser retomados através de u m trabalho de teorização q u e tenha o r i -
gem na situação histórica concreta d o seu próprio tempo e leve e m conta a a m p l i -
tude global d o conhecimento empírico desse tempo.
F o r m u l a d o nesses termos, o empreendimento parece gigantesco sob todos os
pontos de vista; e pode parecer fadado ao fracasso devido à fabulosa quantidade
d o material que a história e as ciências empíricas da sociedade põem à nossa dis-
posição atualmente. N o entanto, esta impressão é, na verdade, enganosa. Sem
subestimar de m o d o a l g u m as dificuldades, o empreendimento começa a t o r n a r -
se factível e m nossa época e m v i r t u d e d o trabalho preparatório realizado n o úl-
timo meio século. Já há duas gerações as ciências humanas e sociais estão envol-
vidas e m u m processo de renovada teorização. O novo desenvolvimento, inicial-
mente lento, c o b r o u força após a p r i m e i r a guerra m u n d i a l e hoje t o m o u velocida-
de alucinante. A empresa se a p r o x i m a agora da factibilidade porque, e m grande
medida, é o p r o d u t o da teorização convergente de materiais pertinentes apresen-
tados e m estudos monográficos. O título destas exposições sobre a representa-
ção, A Nova Ciência da Política, indica a intenção de confrontar o leitor c o m u m
desenvolvimento da ciência política até a q u i praticamente desconhecido d o pú-
b l i c o em geral e também de mostrar q u e a exploração monográfica dos problemas
alcançou u m p o n t o tal que a aplicação dos seus resultados a u m p r o b l e m a teórico
básico em política pode ser tentada.

O N O V O esforço de teorização não é bem conhecido nem em seu alcance nem e m


suas realizações. Esta não é, porém, a ocasião de empreender u m a descrição que,
para ser adequada, teria de ser consideravelmente longa. Não obstante, p o d e m -
se apresentar algumas indicações a respeito de suas causas e de suas intenções, a
fim de responder a algumas das questões que inevitavelmente ocorrerão ao leitor.
A restauração dos princípios da ciência política i m p l i c a que esse trabalho é
necessário p o r q u e a consciência dos princípios f o i p e r d i d a . O m o v i m e n t o n o r u -
m o da nova teorização deve ser compreendido, c o m efeito, c o m o u m a recuperação
INTRODUÇÃO 19

r d a destruição da ciência q u e caracterizou a-época p o s i t i v i s t a , n a segunda


de d o século X I X . A destruição causada p e l o p o s i t i v i s m o é conseqüência d e
duas premissas f u n d a m e n t a i s . E m p r i m e i r o l u g a r , o esplêndido d e s e n v o l v i m e n -
t o das ciências n a t u r a i s f o i responsável, j u n t a m e n t e c o m o u t r o s fatores, pela p r e -
missa s e g u n d o a q u a l os métodos u t i l i z a d o s nas ciências maternatizantes d o m u n -
d o e x t e r i o r possuíam u m a v i r t u d e i n e r e n t e , razão p o r q u e todas as d e m a i s ciên-
cias alcançariam êxitos comparáveis se l h e seguissem o e x e m p l o e aceitassem tais
métodos c o m o m o d e l o . Essa crença, p o r s i só, e r a u m a idiossincrasia inofensiva,
e t e r i a desaparecido q u a n d o os entusiasmados a d m i r a d o r e s d o m é t o d o - m o d e l o
se pusessem a t r a b a l h a r e m sua própria ciência e não obtivessem os resultados
esperados. E l a t o r n o u - s e p e r i g o s a p o r se haver c o m b i n a d o c o m u m a s e g u n d a
premissa, q u a l seja a de q u e os métodos das ciências n a t u r a i s constituíam u m c r i -
tério p a r a a pertinência teórica e m g e r a l . A.combinação desses d o i s conceitos r e -
s u l t o u n a b e m c o n h e c i d a série d e afirmações n o s e n t i d o d e q u e q u a l q u e r e s t u d o
d a r e a l i d a d e s o m e n t e p o d e r i a ser q u a l i f i c a d o c o m o científico se usasse os métodos
das ciências n a t u r a i s ; de q u e os p r o b l e m a s c o l o c a d o s e m o u t r o s t e r m o s e r a m a p e -
nas ilusórios; d e q u e as questões metafísicas, e m especial, q u e não a d m i t e m res-
posta através d o s métodos das ciências fenomenológicas, não d e v e r i a m ser f o r -
m u l a d a s ; de q u e os domínios d a existência q u e não fossem acessíveis à e x p l o r a -
ção p o r m e i o d o s m é t o d o s - m o d e l o não e r a m p e r t i n e n t e s ; e n u m p o n t o e x t r e m o ,
d e q u e tais domínios d a existência n e m ao m e n o s e x i s t i a m .
A segunda premissa é a v e r d a d e i r a f o n t e d o p e r i g o . Ê a chave p a r a a c o m -
preensão d a d e s t r u t i v i d a d e p o s i t i v i s t a e nâo t e m r e c e b i d o , d e m o d o a l g u m , a a t e n -
ção q u e merece. I s t o p o r q u e essa segunda premissa s u b o r d i n a a pertinência teó-
rica a o método e, p o r conseguinte, perverte o s i g n i f i c a d o d a ciência. A ciência
é a busca d a v e r d a d e c o m respeito aos vários domínios d a existência. Para ela,
é p e r t i n e n t e o q u e q u e r q u e contribua para o êxito dessa- busca. O s fatos são
pertinentes n a m e d i d a e m q u e seu c o n h e c i m e n t o c o n t r i b u a p a r a o e s t u d o d a es-
sência, e n q u a n t o q u e os métodos são a d e q u a d o s n a m e d i d a e m q u e p o s s a m ser
usados efetivamente c o m o m e i o s p a r a chegar a esse fim. O b j e t o s diferentes r e -
q u e r e m métodos diferentes. U m cientista político q u e deseje c o m p r e e n d e r o s i g -
n i f i c a d o d a República de Platão não encontrará m u i t a u t i l i d a d e n a matemática; u m
b i ó l o g o q u e estude a e s t r u t u r a d a célula não julgará convenientes os métodos d a
f i l o l o g i a clássica o u os princípios d a hermenêutica. I s t o p o d e parecer t r i v i a l , m a s
o c o r r e q u e a desatenção p a r a c o m as verdades elementares é u m a das caracterís-
ticas d a a t i t u d e p o s i t i v i s t a ; daí q u e se t o r n e necessário e l a b o r a r o ó b v i o . Talvez
s i r v a c o m o c o n s o l o l e m b r a r q u e essa desatenção é u m p r o b l e m a p e r e n e n a h i s -
tória d a ciência, u m a vez q u e o p r ó p r i o Aristóteles teve de r e c o r d a r a a l g u n s ele-
m e n t o s n o c i v o s d o seu t e m p o q u e " u m h o m e m e d u c a d o " não deve esperar exa-
tidão d e t i p o matemático e m u m t r a t a d o s o b r e política.

Se não se m e d i r a adequação de u m m é t o d o pela sua u t i l i d a d e c o m relação


ao propósito d a ciência; se, ao contrário, se fizer d o u s o de u m m é t o d o o critério
d a ciência, então estará p e r d i d o o s i g n i f i c a d o d a ciência c o m o u m r e l a t o v e r d a -
d e i r o d a e s t r u t u r a da r e a l i d a d e , c o m o a orientação teórica d o h o m e m e m s e u
m u n d o e c o m o o g r a n d e i n s t r u m e n t o p a r a a compreensão d a posição d o h o m e m
n o u n i v e r s o . A ciência p a r t e d a existência pré-científica d o h o m e m , d e sua p a r -
ticipação n o m u n d o c o m o seu c o r p o , sua a l m a , seu i n t e l e c t o e seu espírito, e d a
apreensão primária de t o d o s os domínios d a existência, q u e l h e é assegurada p o r -
q u e a própria natureza h u m a n a é a síntese desses domínios. E dessa participação
c o g n i t i v a primária, p r e n h e de paixão, nasce o c a m i n h o árduo, o tmetítâdm* r u m o à
20 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

contemplação d e s a p a i x o n a d a d a o r d e m d a existência, q u e c o n s t i t u i a essência


d a a t i t u d e teórica. A questão de saber se, n o caso c o n c r e t o , o c a m i n h o é c o r r e t o
só p o d e porém ser r e s o l v i d a ao se o l h a r p a r a trás, d o fim p a r a o começo. Se o m é -
t o d o t r o u x e clareza essencial a o q u e e r a apenas v i s l u m b r a d o , então e r a a d e q u a -
d o ; se não c o n s e g u i u fazê-lo, o u m e s m o se t r o u x e clareza essencial a a l g o sobre
o q u e não h a v i a interesse c o n c r e t o , então ele se r e v e l o u i n a d e q u a d o , Se, p o r
e x e m p l o , e m nossa participação pré-científica n a o r d e m de u m a sociedade, e m
nossas experiências pré-cíentí ficas d o q u e seja certo o u e r r a d o , d o q u e seja j u s t o
òu i n j u s t o , sentimos o desejo de p e n e t r a r n o e n t e n d i m e n t o teórico d a f o n t e d a
o r d e m e d a sua v a l i d a d e , p o d e m o s chegar, n o curso d e nossos l a b o r e s , à t e o r i a
d e q u e a justiça d a o r d e m h u m a n a depende de sua participação n o Agathon p l a -
tônico, n o Naus arístotélico, n o Logos estóico, o u n a raüo aeterna t o m i s t a . P o r d i -
versas razões, n e n h u m a dessas teorias talvez n o s satisfaça c o m p l e t a m e n t e ; m a s
sabemos q u e estamos e m busca de u m a resposta desse t i p o . Se, n o e n t a n t o , o
c a m i n h o n o s levar à noção d e q u e a o r d e m social é m o t i v a d a pela ânsia d o p o d e r e
p e l o m e d o , satferemos q u e a essência d o p r o b l e m a perdeu-se e m a l g u m p o n t o
n o transcurso d a nossa investigação — a i n d a q u e os resultados o b t i d o s sejam v a -
liosos p a r a o esclarecimento de o u t r o s aspectos essenciais d a o r d e m social. E x a -
m i n a n d o a p e r g u n t a a p a r t i r d a resposta, v e r i f i c a m o s , p o r t a n t o , q u e os métodos
da p s i c o l o g i a das motivações não são a d e q u a d o s à exploração d o p r o b l e m a e q u e ,
neste caso c o n c r e t o , seria m e l h o r c o n f i a r n o s métodos d a especulação metafísica
e d a simbolização teológica.
A subordinação d a pertinência teórica a o m é t o d o p e r v e r t e o s i g n i f i c a d o d a
ciência e m matéria d e princípio. A perversão ocorrerá q u a l q u e r q u e seja o méto-
d o e s c o l h i d o c o m o m o d e l o . A s s i m , o princípio deve ser c u i d a d o s a m e n t e d i s t i n -
g u i d o de sua manifestação especial. S e m essa distinção t o r n a - s e e x t r e m a m e n t e d i -
fícil c o m p r e e n d e r o fenômeno histórico d o p o s i t i v i s m o e m sua natureza e e m seu
alcance; e, p r o v a v e l m e n t e p o r q u e essa distinção não t e m s i d o feita, o estudo a d e -
q u a d o desta i m p o r t a n t e fase d a história i n t e l e c t u a l d o O c i d e n t e a i n d a se faz espe-
r a r . E m b o r a t a l análise não possa ser e m p r e e n d i d a nesta ocasião, impõe-se e x p o r
as regras q u e t e r i a m d e ser seguidas nesse caso, d e m o d o a p r o p o r c i o n a r o e n f o -
q u e d o s vários fenômenos d o p o s i t i v i s m o . A análise começaria i n e v i t a v e l m e n t e
m a l se o p o s i t i v i s m o fosse d e f i n i d o c o m o a d o u t r i n a deste o u d a q u e l e destacado
p e n s a d o r p o s i t i v i s t a — se fosse d e f i n i d o , p o r e x e m p l o , nos t e r m o s d o sistema de
C o m t e . A f o r m a especial d a perversão t o r n a r i a o b s c u r o o princípio e os fenôme-
nos c o r r e l a t o s não p o d e r i a m , ser r e c o n h e c i d o s como t a l p o r q u e , ao nível d a d o u -
t r i n a , os adeptos d e diferentes m é t o d o s - m o d e l o t e n d e m a d i s c o r d a r e n t r e s i .
A s s i m , seria aconselhável começar p e l o i m p a c t o q u e o sistema n e w t o n i a n o causou
sobre intelectuais o c i d e n t a i s c o m o V o l t a i r e ; t r a t a r esse i m p a c t o c o m o u m c e n t r o
e m o c i o n a l a p a r t i r d o q u a l o princípio d a perversão, assim c o m o a f o r m a espe-
c i a l d o m o d e l o d a física, p ô d e i r r a d i a r - s e , seja i n d e p e n d e n t e m e n t e , seja e m c o m -
binação c o m o u t r o s conceitos, e i d e n t i f i c a r os efeitos, q u a l q u e r q u e seja a f o r m a
q u e cies a s s u m a m . Este p r o c e d i m e n t o é especialmente recomendável p o r q u e , a
r i g o r , não se t e n t o u a i n d a a transferência d o s métodos d a física matemática, e m
q u a l q u e r s e n t i d o estrito d a p a l a v r a , p a r a as ciências sociais, pela simples razão
d e q u e t a l i n t e n t o estaria c l a r a m e n t e c o n d e n a d o ao fracasso. A idéia de e n c o n -
t r a r u m a " l e i " d o s fenômenos sociais q u e correspondesse f u n c i o n a l m e n t e à l e i
da gravitação d a física n e w t o n i a n a n u n c a passou d o estágio de t e m a de c o n v e r -
sas extravagantes n a e r a napoleônica. A o t e m p o de C o m t e , essa idéia já se h a v i a
r e d u z i d o á " l e i " das três fases, o u seja, a u m a especulação falaciosa a r e s p e i t o
INTRODUÇÃO 21

do significado da história, que se auto-interpretava c o m o a descoberta de u m a


lei empírica. Característico da diversificação precoce d o p r o b l e m a é o destino q u e
t o m o u o termo physique sociale. Comte queria usá-lo e m sua especulação positivis-
ta, mas viu-se impedido de fazê-lo p o r q u e Quételet apropriou-se da expressão
em suas próprias investigações estatísticas; a área dos fenômenos sociais que efe-
tivamente se prestam à quantificação começou a diferenciar-se da área e m que
brincar c o m imitações da física constitui u m passatempo para diletantes de ambas
as ciências. Assim, se o positivismo for encarado, em sentido estrito, c o m o u m de-
senvolvimento da ciência social q u e usa modelos matematizantes, pode-se chegar
à conclusão de q u e o positivismo nunca e x i s t i u ; se, n o entanto, ele f o r entendido
c o m o o propósito de tornar as ciências sociais "científicas" através d o uso de
métodos que se assemelhem o mais possível aos métodos empregados nas ciên-
cias d o m u n d o exterior, então os resultados desse propósito (embora não i n t e n -
cionais) serão m u i t o variados.
Os aspectos teóricos d o positivismo c o m o fenômeno histórico devem ser ex-
postos c o m a l g u m c u i d a d o ; a própria variedade de suas manifestações pode ser
brevemente descrita, u m a vez que o vínculo que as une tenha sido explicitado. O
uso d o método como critério da ciência e l i m i n a a pertinência teórica. E m conse-
qüência, todas as proposições referentes a quaisquer fatos serão alçadas à d i g n i -
dade de ciência, independentemente de serem o u não pertinentes, desde que re-
sultem d o correto uso d o método. Lima vez q u e o oceano dos fatos é i n f i n i t o , t o r n a -
se possível u m a prodigiosa expansão da ciência n o sentido sociológico, que dá
emprego a pretensos técnicos científicos e leva a u m a acumulação fantástica de
conhecimentos irrelevantes através de grandes "projetos de pesquisa", cuja ca-
racterística mais interessante é o gasto quantificável acarretado p o r sua realização.
É grande a tentação de examinar mais atentamente estas flores de estufa d o positi-
vismo recente e acrescentar algumas reflexões a respeito d o j a r d i m acadêmico
onde elas crescem, mas o ascerismo da teoria não permite esses prazeres botâ-
nicos. A preocupação presente é c o m o princípio de que todos os fatos são iguais
— c o m o já houve quem dissesse — desde q u e possam ser determinados através
de algum método. Esta igualdade dos fatos é independente d o método usado n o
caso especial. A acumulação de fatos irrelevantes não requer o emprego de mé-
todos estatísticos; pode perfeitamente ocorrer n o contexto dos métodos críticos
usados na história política, na descrição de instituições, na história das idéias o u
nos vários ramos da filologia. A acumulação de fatos não digeridos teoricamente,
e talvez indigeríveis, excrecência para a q u a l os alemães inventaram o t e r m o Ma-
terialhuberei, é, p o r t a n t o , a p r i m e i r a das manifestações d o positivismo e, p o r estar
tão difundida, t e m importância m u i t o m a i o r q u e excentricidade atraentes c o m o
a "ciência unificada".
A acumulação de fatos irrelevantes, n o entanto, está inextricavelmente l i -
gada a outros fenômenos. N a verdade, é r a r o , se não impossível, encontrar g r a n -
des empreendimentos de pesquisa que contenham apenas material irrelevante. O
p i o r dos exemplos produzirá u m a página o u o u t r a de análises pertinentes, e pode
mesmo haver pepitas de o u r o enterradas em m e i o ao material, à espera de sua
descoberta acidental p o r a l g u m estudioso que lhes reconheça o valor. Isco p o r -
q u e o fenômeno do positivismo ocorre n u m a civilização q u e t e m tradições teó-
ricas; e é praticamente impossível encontrar u m caso de irrelevância absoluta
porque, sob a pressão d o ambiente, até mesmo a coleção mais volumosa e inútil
de material de pesquisa t e m de sustentãr-se por u m fio, ainda q u e tênue, q u e a
ligue c o m a tradição. Mesmo o mais ferrenho positivista encontrará dificuldade*
22 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

em escrever u m l i v r o totalmente sem valor sobre o direito constitucional a m e r i -


cano, desde que, com u m mínimo de consciência, siga as linhas de raciocínio e
os precedentes indicados pelas decisões da Suprema Corte; ainda q u e o l i v r o seja
u m trabalho árido e que não relacione o raciocínio dos juizes (que n e m sempre
são os melhores teóricos) c o m u m a teoria crítica da política e d o d i r e i t o , o m a -
terial terá 'obrigatoriamente de submeter-se pelo menos ao seu próprio sistema
de pertinência.
A segunda manifestação d o positivismo t e m atingido a ciência c o m m u i t o
m a i o r profundidade que o facilmente identificável acúmulo de trivialidades. C o n -
siste ela na elaboração de material pertinente a p a r t i r de princípios teóricos defi-
cientes. Há exemplos de estudiosos altamente responsáveis q u e se dedicaram a
u m imenso trabalho de erudição na absorção de material histórico e que desper-„
diçaram quase totalmente seus esforços p o r q u e os princípios utilizados na seleção
e interpretação d o m a t e r i a l não t i n h a m fundamento teórico correto, derivando,
pelo contrário, d o Zeitgeist, de preferências políticas o u idiossincrasias pessoais
A esta classe pertencem as histórias d a filosofia grega que, de suas fontes, só
conseguiram extrair u m a "contribuição" p a r a a criação da ciência o c i d e n t a l ; os
tratados escritos sobre Platão, nos quais ele é visto c o m o u m precursor da lógica
neo-kantiana o u , de acordo c o m a voga política da época, c o m o u m consútucio-
nalista, u m utópico, u m socialista o u u m fascista; as histórias d o pensamento
político que definem a política nos termos d o constitucionalismo ocidental e são
p o r isso incapazes de descobrir que tenha havido teoria política n a Idade Média;
o u ainda a o u t r a variante, q u e descobriu na Idade Média uma b o a dose de " c o n -
tribuição" para a d o u t r i n a constitucional, mas ignora completamente os m o v i m e n -
tos políticos sectários que c u l m i n a r a m n a Reforma; o u u m empreendimento g i -
gantesco c o m o o Genossenshaftsrecht, de Gierke, seriamente viciado pela convicção
d o autor de que a história do pensamento político e legal estava providencial-
mente encaminhando-se em direção a o clímax, materializado na sua própria teoria
da Realperson. Nesses casos, o dano não é devido à acumulação de m a t e r i a l inútil;
ao contrário, os tratados deste t i p o são, c o m m u i t a freqüência, indispensáveis
p o r conter informações fidedignas a respeito de fatos (referências bibliográficas,
comprovações críticas de textos, etc). O dano é p r o d u z i d o pela interpretação. O
conteúdo de determinada fonte pode estar expresso corretamente e, n o entanto,
o trabalho p o d e p r o d u z i r u m a imagem totalmente falsa p o r q u e partes essenciais
f o r a m omitidas. E f o r a m omitidas p o r q u e os princípios não-críticos da interpre-
tação não p e r m i t e m que sejam reconhecidas c o m o essenciais. As opiniões não-crí-
ticas, públicas o u privadas (doxa, n o sentido platônico), não p o d e m preencher o
lugar da teoria na ciência.
A terceira manifestação d o positivismo f o i o desenvolvimento da metodologia,
sobretudo n o m e i o século q u e v a i de 1870 a 1920. Este m o v i m e n t o f o i claramente
u m a fase d o positivismo na medida e m que a perversão da pertinência, através do
deslocamento da teoria p a r a o método, f o i o princípio responsável p o r sua exis-
tência. P o r o u t r o lado, íbi também útil n a superação d o positivismo porque, ao
generalizar a pertinência d o método, fez ressurgir o entendimento de que métodos
diferentes são especificamente adequados a ciências diferentes. Pensadores c o m o
Husserl o u Cassirer, p o r exemplo, eram ainda positivistas de tendência comtiana
no que concerne à filosofia da história; mas a crítica d o psicologismo, ,de Husserl,
e a filosofia das formas simbólicas, de Cassirer, f o r a m passos importantes n o r u m o
d a restauração d a pertinência teórica. O m o v i m e n t o c o m o u m todo é, p o r t a n t o ,
demasiado complexo para a d m i t i r generalizações sem qualificações extensas e c u i -
INTRODUÇÃO 23

dadosas. U m único p r o b l e m a pode, e deve, ser selecionado p o r ter importância


especifica na destruição da ciência: trata-se d a tentativa de t o r n a r " o b j e t i v a " a
ciência política (e as ciências sociais e m geral) através da exclusão metodológica -
mente rigorosa de todos os "julgamentos de v a l o r " .
Para analisar-se c o m clareza esta matéria é necessário, e m p r i m e i r o lugar, q u e
se saiba que as expressões " j u l g a m e n t o de v a l o r " e "isento de valores", referidos à
ciência, não faziam parte d o vocabulário filosófico antes da segunda metade d o
século X I X . A noção de j u l g a m e n t o de valor (Werturteil) é e m si carente de sentido:
ganha sentido a p a r t i r de u m a situação e m q u e se contrapõe a u m j u l g a m e n t o c o n -
cernente a fatos (Tatsachenurteile). E esta situação f o i criada pelo conceito positivis-
ta de que apenas as proposições relativas a fatos d o m u n d o exterior eram " o b j e t i -
vas", enquanto q u e os julgamentos referentes ao ordenamento correto d a a l m a e d a
sociedade eram "subjetivos". Somente as proposições d o p r i m e i r o t i p o p o d e r i a m
ser consideradas "científicas", enquanto q u e as d o segundo tipo expressariam
apenas preferências e decisões pessoais, não passíveis de verificação crítica e p o r -
tanto despidas de validade objetiva. Essa classificação só poderia ser válida se o
d o g m a positivista fosse aceito p o r princípio; e tal d o g m a só p o d e r i a ser aceito p o r
pensadores q u e não dominassem a ciência clássica e cristã d o h o m e m . Isto p o r -
que n e m a ética n e m a política clássica e cristã contém " j u l g a m e n t o de v a l o r " , mas
sim elaboram, empírica e criticamente, os problemas da o r d e m derivados da a n t r o -
p o l o g i a filosófica, c o m o parte de u m a o n t o l o g i a geral. Somente q u a n d o a o n t o l o -
gia se perdeu c o m o ciência e quando, em conseqüência disso, a ética e a política
já não p o d i a m ser entendidas como ciências da o r d e m na q u a l a natureza h u m a n a
alcança sua máxima realização, passou a ser.possível considerar este c a m p o d o
conhecimento c o m o suspeito de ser o repositório de opiniões subjetivas e não-crí-
ticas.
N a medida e m q u e os metodologistas aceitaram o d o g m a positivista, eles p a r -
ticiparam da destruição da ciência. A o mesmo tempo, n o entanto, tentaram valen-
temente salvar as ciências históricas e sociais d o descrédito e m que estavam prestes
a cair p o r causa d a destruição de q u e eles próprios participaram. Q u a n d o o episteme
se arruina, os homens não p a r a m de falar e m política; mas agora eles são obrigados
a expressar-se à maneira da doxa. Os chamados julgamentos de valor p o d e r i a m tor-
nar-se u m a séria preocupação para os metodologistas p o r q u e , e m linguagem filo-
sófica, eram doxai, opiniões não-críticas a respeito d o p r o b l e m a da o r d e m ; e a ten-
tativa dos metodologistas n o sentido de tornar novamente respeitáveis as ciências
sociais, pela eliminação do opinar não-crítico d a época, ao menos despertou a
consciência para os padrões críticos, e m b o r a nâo fosse suficiente para restabelecer
u m a ciência da o r d e m . Assim, tanto a teoria dos "julgamentos de v a l o r " q u a n t o a
tentativa de estabelecer u m a ciência "isenta de valores" f o r a m ambivalentes e m
seus efeitos. N a medida e m que o ataque aos julgamentos de valor f o i u m ataque
às opiniões nâo-críticas disfarçadas de ciência política, p r o d u z i u u m efeito p u r i f i -
cador sobre a teoria. N a medida e m q u e o conceito de j u l g a m e n t o de valor incluía
todo o c o r p o da metafísica clássica e cristã e especialmente da a n t r o p o l o g i a filosó-
fica, o ataque só poderia resultar na confissão de que não existia qualquer ciência
de o r d e m humana e social.
A variedade das tentativas concretas perdeu já grande parte d o seu interesse
agora que as grandes batalhas metodológicas são coisa do passado. Elas eram e m
geral orientadas pelo princípio de expulsar os "valores" da ciência, colocando-os
na posição de axiomas o u hipóteses não questionadas. Por exemplo, de acordo
c o m a premissa de que o " e s t a d o " era u m valor, a história política e a ciência p o -
24 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

lítica seriam legitimadas c o m o "objetivas" na medida e m que explorassem as m o t i -


vações, ações e condições q u e se correlacionavam c o m a criação, a preservação e a
extinção dos estados. Evidentemente, o princípio levaria a resultados duvidosos se
o valor legitimador fosse deixado ao arbítrio d o cientista. Se a ciência fosse defini-
da c o m o a exploração dos fatos c o m relação a u m valor, haveria tantas histórias e
ciências políticas quantos são os estudiosos que diferem em suas idéias a respeito
d o q u e seja valioso. O s fatos tratados c o m o pertinentes p o r terem relação c o m os
valores de u m progressista não são os mesmos considerados pertinentes p o r u m
conservador; e os fatos pertinentes p a r a u m economista liberal não o serão para u m
marxista. N e m o mais escrupuloso cuidado n o sentido de manter o trabalho con-
creto "isento de valores", n e m a observância mais consciente d o método crítico
na determinação dos fatos e das relações causais p o d e r i a m i m p e d i r q u e as ciências
históricas e políticas naufragassem n u m m a r de relativismo. N a verdade, chegou-se
a f o r m u l a r a idéia, que aliás obteve a m p l a aceitação, de q u e cada nova geração teria
que reescrever a história, u m a vez que os "valores" determinantes da seleção dos
problemas e dos materiais são mutáveis. A confusão resultante só não f o i m a i o r
porque, u m a vez mais, a pressão das tradições d a nossa civilização manteve a d i -
versificação das opiniões não-críticas dentro de seus limites gerais.

O M O V I M E N T O da metodologia, n o q u e concerne à ciência política, atingiu o extre-


m o de sua lógica imanente na pessoa e n o trabalho de M a x Weber. Não se pode
tentar, n o contexto desta obra, u m a corroboração integral desta'afirmação. Serão
traçadas apenas algumas linhas q u e o caracterizam c o m o u m pensador situado en-
tre o f i m de u m estágio e u m novo começo.
U m a ciência isenta de valores significava para Weber a exploração das causas
e efeitos, a construção de tipos ideais q u e permitissem distinguir as regularidades
das instituições, assim c o m o seus desvios, e, sobretudo, a construção de relações
causais típicas. T a l ciência não estaria e m condições de dizer a ninguém se ele deve-
r i a ser u m liberal o u u m socialista e m matéria econômica, u m constitucionalista
democrática o u u m revolucionário marxista, mas poderia indicar-lhe quais seriam
as conseqüências se tentasse aplicar os valores de sua preferência à prática política.
De u m l a d o estavam os "valores" d a o r d e m política, insuscetíveis de avaliação crí-
tica; d o o u t r o lado estava u m a ciência da estrutura da realidade social que p o d i a ser
usada como conhecimento técnico p o r u m político. C o m esse pragmatismo, Weber
agudizou a discussão e m t o r n o d a ciência "isenta de valores" e deslocou os de-
bates para além das escaramuças metodológicas, focalizando novamente a o r d e m
de pertinência. Ele queria a ciência p o r q u e q u e r i a clareza sobre o m u n d o d o qual
participava apaixonadamente; percorria assim, novamente, a estrada n o r u m o da
essência. A busca da verdade, n o entanto, cessava ao nível da ação pragmática.
N o clima intelectual d o debate metodológico, os "valores" t i n h a m que ser aceitos
como inquestionáveis e a procura não p o d i a avançar até a contemplação da o r -
dem. Para Weber, a rotio da ciência se estendia não aos princípios, mas apenas
à causalidade da ação.
Por isso, o novo sentido de pertinência teórica podia expressar-se apenas n a
INTRODUÇÃO 25

criação das categorias de "responsabilidade" e " d e m o n i s m o " na política. Weber


reconheceu os valores pelo que eram, o u seja, idéias ordenadoras da ação política,
mas atribui-lhes a condição de decisões "demoníacas", insuscetíveis de argumen-
tação racional. A ciência só poderia confrontar o d e m o n i s m o d a política alertando
os políticos sobre as conseqüências de suas ações e despertando neles o senso de
responsabilidade. Esta "ética da responsabilidade" weberiana não deve ser ne-
gligenciada. F o i ideada para mitigar o a r d o r revolucionário dos polemistas inte-
lectuais políticos, especialmente depois de 1918; para ressaltar que os ideais não
justificam nem os meios n e m os resultados da ação, q u e ação envolve culpa e q u e
a responsabilidade pelos efeitos políticos cabe exclusivamente ao h o m e m que se
transforma n u m a causa. Mas ainda, o diagnóstico "demoníaco" revela que não se
p o d i a derivar "valores" inquestionáveis de fontes racionais de o r d e m , e q u e a
política da época tinha-se transformado efetivamente n u m campo de desordem de-
moníaca. A rematada sutileza c o m que este aspecto d o trabalho de Weber tem sido,
e ainda é, ignorado p o r aqueles aos quais se dirige constitui talvez a m e l h o r prova
de sua importâicia
Caso Weber se houvesse l i m i t a d o a revelar q u e a ciência política "isenta de va-
lores" não é u m a ciência da ordem e que os " v a l o r e s " são decisões demoníacas,
a grandeza d o seu trabalho (que é mais sentida que compreendida) poderia ser
posta e m dúvida. A marcha ascendente e m direção à essência ter-se-ia i n t e r r o m -
p i d o n o p o n t o em que, da estrada p r i n c i p a l , sai u m caminho convencionalmente
denominado "existencialismo" — u m a saída para os perplexos que, nos anos re-
centes, e n t r o u e m m o d a internacional através do trabalho de Sartre. Weber, n o en-
tanto, f o i m u i t o além — embora o pesquisador se encontre na difícil posição de ter
que extrair os resultados a p a r t i r dos conflitos e contradições intelectuais em que
Weber se envolveu. A maneira de considerar o p r o b l e m a da ciência isenta de valo-
res, que acaba de ser descrita, suscita mais de u m a questão. O conceito weberiano
da ciência, p o r exemplo, supunha u m a relação social entre o cientista e o político,
ativada na instituição da universidade, onde o cientista, c o m o professor, i n f o r m a
seus estudantes, os homines politiá potenciais, a respeito da estrutura da realidade
política. Pode-se então perguntar: que propósito deve ter essa informação? Os
valores políticos dos estudantes supostamente não p o d e r i a m ser tocados pela ciên-
cia de Weber, u m a vez que os valores estão além da ciência. Os princípios políticos
dos estudantes não p o d e r i a m ser formados p o r u m a ciência que não se estendia
aos princípios da ordem. Poderia ela talvez ter o efeito indireto de incentivar os es-
tudantes a rever seus valores, q u a n d o verificassem as insuspeitadas e talvez indese-
jadas conseqüências que suas idéias políticas trariam na prática? Nesse caso, então,
os valores dos estudantes não estariam tão demoniacamente fixados. Poder-se-ia
fazer u m apelo à reflexão e ao j u l g a m e n t o ; e o que seria u m j u l g a m e n t o q u e resul-
tasse na preferência racional p o r u m valor c o m relação a"'outro senão u m j u l g a -
mento de valor? Afinal de contas, seriam possíveis os j u l g a m e n t o s de valor racio-
nais ? O ensino da ciência política isenta de valores na universidade seria u m e m -
preendimento sem sentido a menos que fosse concebido de maneira a influenciar
os valores dos estudantes, colocando a sua disposição u m conhecimento objetivo
da realidade política. C o m o grande professor que era, Weber pôde desmentir sua
idéia dos valores como decisões demoníacas.
Até que p o n t o seu método de ensino p o d e r i a ser efetivo é o u t r a questão. E m
p r i m e i r o lugar, era u m ensino p o r vias indiretas, p o r q u e ele evitou deliberadamen-
te u m enunciado explícito dos princípios positivos da o r d e m ; e m segundo lugar, o
ensino, mesmo através d a elaboração direta dos princípios, não poderia ser eficaz se
26 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

o estudante estivesse na verdade demoniacamente preso às suas atitudes. C o m o


educador, Weber poderia confiar apenas na vergonha (o aidos aristotélico) do estu-
dante como o sentimento que o induziria à consideração racional. Mas o que fazer,
se o estudante estivesse além d a vergonha? Se o apelo a seu senso de responsabili-
dade somente o fizesse sendr-se desconfortável, sem resultar numa mudança de a t i -
tude? O u se n e m sequer lhe provocasse tal sentimento, mas sim o fizesse cair n o que
Weber chamava a "ética da intenção" (Gesinnungsethik), o u seja, na tese de que sua
.crença contém sua própria justificação e de que as conseqüências não i m p o r t a m se
a intenção da ação é correta? T a m p o u c o esta questão f o i esclarecida p o r Weber.
C o m o ilustração de sua "ética d a intenção" ele usou u m a m o r a l i d a d e cristã " e x t r a -
terrenã" que nunca f o i bem definida; jamais considerou o p r o b l e m a de que seus
valores demoníacos talvez fossem demoníacos precisamente p o r q u e tinham a ver
c o m a "ética d a intenção", e não c o m a "ética a a responsabilidade", u m a vez que
conferiam a qualidade de u m comando d i v i n o a u m a veleidade humana. A discus-
são dessas questões somente seria possível ao nível da antropologia filosófica, que
Weber evitou. Não obstante, enquanto fugia dessa discussão, ele tomara a decisão
de entrar e m conflito racional c o m os valores pela simples existência de seu e m -
preendimento.
O conflito racional com os valores inquestionáveis dos intelectuais políticos era
inerente a seu empreendimento de atingir a ciência política objetiva. A concepção
o r i g i n a l de u m a ciência isenta de valores estava e m dissolução. Para os m e t o d o l o -
gistas que precederam M a x Weber, a ciência social o u histórica p o d i a ser isenta de
valores porque seu objeto consistia na "referência a u m valor " (Wertbeúehende
Methode); n o campo assim constituído, o cientista devia trabalhar, supostamente,
sem julgamentos de valor. Weber reconheceu que havia u m a série de "valores"
conflitantes na política de seu t e m p o ; cada u m deles poderia ser t o m a d o para cons-
t i t u i r u m " o b j e t o " . O resultado teria sido o relativismo antes mencionado, e a
ciência política ter-se-ia degradado, transformando-se em u m a apologia dos ca-
prichos duvidosos dos intelectuais políticos, como era de fato o caso, e ainda o é
e m larga medida. C o m o Weber escapou a essa degradação — pois é certo q u e o
fez? Se n e n h u m dos valores conflitantes constituía para ele o campo da ciência e
se ele preservava sua integridade crítica perante os valores políticos correntes, quais
eram então os valores que constituíam sua ciência ? A resposta exaustiva a estas
perguntas transcende o propósito da presente obra. Apenas o princípio de sua téc-
nica será ilustrado. A " o b j e t i v i d a d e " da ciência de Weber, onde existia, poderia
derivar apenas dos autênticos princípios da o r d e m , .tais c o m o haviam sido desco-
bertos e elaborados n o transcurso da história da humanidade. U m a vez que, na s i -
tuação intelectual de Weber, não se p o d i a a d m i t i r a existência de u m a ciência da
o r d e m , seu conteúdo ( o u tanto quanto possível de seu conteúdo) tinha de ser apre-
sentado p o r m e i o d o reconhecimento de suas expressões históricas c o m o fatos e fa-
tores causais d a história. Se, p o r u m l a d o , Weber, c o m o metodologista d a ciência
isenta de valores, professaria não ter objeções contra u m intelectual político que
houvesse assumido "demoniacamente" o marxismo como o " v a l o r " de sua prefe-
rência, p o r o u t r o l a d o podia dedicar-se tranqüilamente a o estudo d a ética p r o -
testante e demonstrar que certas convicções religiosas desempenharam u m papel
m u i t o mais i m p o r t a n t e que o da luta de classes na formação do capitalismo. Res-
saltou-se p o r diversas vezes nas páginas anteriores que a arbitrariedade d o méto-
d o não degenerou na total irrelevância da produção cientifica p o r q u e a pressão das
tradições teóricas permaneceu c o m o u m fator determinante na seleção dos mate-
riais e dos problemas. Pode-se dizer q u e essa pressão f o i elevada p o r Weber à c o n -
INTRODUÇÃO 27

dição d e princípio. O s três v o l u m e s d a sua s o c i o l o g i a d a religião, p o r e x e m p l o ,


lançaram n o d e b a t e s o b r e a e s t r u t u r a d a r e a l i d a d e u m a e n o r m e q u a n t i d a d e d e v e r -
dades, vistas c o m m a i o r o u m e n o r clareza, a respeito d a o r d e m h u m a n a e social. A
o b j e t i v i d a d e d a ciência p o d i a ser possivelmente r e t o m a d a através d a explícitação
d o fato indiscutível de q u e as verdades a r e s p e i t o d a o r d e m e r a m fatores d a o r d e m
d a r e a l i d a d e — e talvez não apenas o desejo de p o d e r e r i q u e z a o u o m e d o e a f r a u -
d e — , m u i t o e m b o r a os princípios tivessem q u e e n t r a r pela p o r t a d o s f u n d o s das
"crenças", e m competição e e m c o n f l i t o r a c i o n a l insolúvel c o m os " v a l o r e s " c o n -
temporâneos de W e b e r .
U m a vez m a i s , W e b e r i g n o r o u as d i f i c u l d a d e s teóricas q u e esse p r o c e d i m e n t o
l h e a c a r r e t a r i a . Se o e s t u d o " o b j e t i v o " d o s processos históricos revelasse, p o r
e x e m p l o , q u e a interpretação m a t e r i a l i s t a d a história estava e r r a d a , então, o b v i a -
m e n t e , e x i s t i r i a u m padrão d e o b j e t i v i d a d e n a ciência q u e i m p e d i r i a a constituição
d o o b j e t o d a ciência pela "referência" d o s fatos e p r o b l e m a s a o " v a l o r " d e u m
m a r x i s t a ; o u — sem o j a r g ã o m e t o d o l ó g i c o — u m h o m e m de saber não p o d e r i a
ser m a r x i s t a . M a s , se a o b j e t i v i d a d e crítica t o r n a v a impossível q u e u m h o m e m d e
saber fosse m a r x i s t a , seria possível p a r a q u a l q u e r pessoa ser m a r x i s t a sem a b r i r
m ã o d o s padrões de o b j e t i v i d a d e crítica q u e t o d o s estamos o b r i g a d o s a o b s e r v a r
c o m o seres h u m a n o s responsáveis? N ã o há respostas a essas p e r g u n t a s n o t r a b a l h o
d e W e b e r . N ã o havia a i n d a c h e g a d o o t e m p o de dizer c l a r a m e n t e q u e o " m a t e r i a -
l i s m o histórico" não é u m a t e o r i a , m a s s i m u m a falsificação d a história, o u q u e o
intérprete " m a t e r i a l i s t a " d a política é u m i g n o r a n t e q u e m e l h o r faria se estudasse
os fatos elementares. C o m o s e g u n d o c o m p o n e n t e d o " d e m o n i s m o " d o s valores,
transparece u m a b o a dose d e ignorância, não r e c o n h e c i d a c o m o t a l p o r W e b e r . E
o i n t e l e c t u a l político q u e se decide, ele p r ó p r i o , " d e m o n i a c a m e n t e " p o r seu " v a -
l o r " n a d a m a i s é q u e u m i g n o r a n t e megalomaníaco. Pareceria q u e o " d e m o n i s m o "
é u m a q u a l i d a d e q u e o h o m e m p o s s u i e m proporção inversa ao alcance d e seu c o -
nhecimento pertinente.
T o d o o c o m p l e x o de idéias — " v a l o r e s " , "referência a v a l o r e s " , " j u l g a m e n -
tos de v a l o r " e "ciência isenta d e v a l o r e s " — p a r e c e r i a estar a p o n t o de desinte-
grar-se. Havia-se r e t o m a d o u m a " o b j e t i v i d a d e " científica q u e c l a r a m e n t e não se
e n q u a d r a v a n o s padrões d o debate m e t o d o l ó g i c o . E, n o e n t a n t o , n e m m e s m o os
estudos s o b r e a s o c i o l o g i a d a religião c h e g a r a m a i n d u z i r W e b e r a t o m a r o passo
decisivo n o r u m o da ciência d a o r d e m . A razão última d e sua hesitação, se não f o i
o m e d o , talvez seja inescrutável; m a s o p o n t o técnico o n d e ele se deteve p o d e ser
d a r a m e n t e d i s c e r n i d o . Seus estudos s o b r e a s o c i o l o g i a d a religião s e m p r e desper-
t a r a m admiração, q u a n d o n a d a p o r r e p r e s e n t a r u m tour de force. O v o l u m e d o m a -
t e r i a l a n a l i s a d o nesses a l e n t a d o s estudos s o b r e o p r o t e s t a n t i s m o , o c o n f u c i o n i s m o ,
o taoísmo, o hinduísmo, o b u d i s m o , o j a i n i s m o , Israel e o judaísmo, a serem c o m -
pletados c o m u m estudo sobre o íslamismo, é, n a v e r d a d e , a s s o m b r o s o . Talvez
não se t e n h a ressaltado s u f i c i e n t e m e n t e , e m vista d o i m p r e s s i o n a n t e v u l t o d a
o b r a , q u e essa série de estudos g a n h a seu t o m g e r a l através de u m a omissão s i g n i -
ficativa, q u a l seja, a d o c r i s t i a n i s m o a n t e r i o r à R e f o r m a . A razão dessa omissão p a -
rece óbvia. É p r a t i c a m e n t e impossível efetuar u m e s t u d o sério d o c r i s t i a n i s m o
m e d i e v a l sem d e s c o b r i r , e n t r e os seus " v a l o r e s " , a crença n u m a ciência r a c i o n a l
d a o r d e m h u m a n a e social e, s o b r e t u d o , d o d i r e i t o n a t u r a l . A l é m disso, t a l ciência
não constituía s i m p l e s m e n t e u m a crença, p o i s e r a e l a b o r a d a n a prática c o m o u m
t r a b a l h o de construção r a c i o n a l . Nesse ponto, W e b e r ter-se-ia d e f r o n t a d o c o m
a ciência d a o r d e m c o m o u m fato o b j e t i v o , c o m o t e r i a a c o n t e c i d o se ele se h o u v e s -
se d e d i c a d o seriamente a o estudo d a f i l o s o f i a grega. A disposição d e W e b e r p a -
28 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

ra apresentar verdades a respeito da o r d e m sob a f o r m a de fatos históricos ces-


sava antes de chegar à metafísica grega e medieval. Para poder degradar a polí-
tica de Platão, Aristóteles o u São Tomás ao nível de "valores", u m estudioso res-
ponsável teria primeiramente q u e demonstrar não ter fundamento a consideração
daquelas formulações c o m o científicas. E essa demonstração é impossível. Q u a n d o
o pretendente a crítico houver penetrado n o significado da metafísica c o m p r o f u n -
didade suficiente para q u e a sua critica tenha peso, ele já se terá transformado
em u m metafísico. A metafísica só pode ser atacada de sã consciência q u a n d o o
" crítico se coloca a u m a distância suficiente, que lhe garanta o conhecimento i m -
perfeito. O horizonte d a ciência social de Weber era imenso; assim, sua cautela
em aproximar-se demasiado d o centro decisivo dessa ciência é a m e l h o r p r o v a
de suas limitações positivistas.
Deste m o d o , o resultado d o trabalho de Weber f o i ambíguo. Ele havia reduzido
ad absurdum o princípio da ciência isenta de valores. A idéia da ciência isenta de
valores, cujo objeto se constituísse pela "referência a u m v a l o r " , somente poderia
concretizar-se caso o cientista estivesse disposto a decidir-se a respeito de u m " v a -
l o r " c o m o referência. Se, ao contrário, o cientista se recusasse a optar p o r u m
" v a l o r " , se tratasse todos os "valores" c o m o iguais (como fazia M a x Weber) e se,
além d o mais, os tratasse como fatos sociais entre outros — então não restariam
"valores" q u e pudessem constituir o objeto da ciência, p o r q u e se teriam transfor-
m a d o e m parte d o próprio objeto. A abolição dos "valores" c o m o elementos cons-
tituintes da ciência levava a u m a situação de impossibilidade teórica p o r q u e , afinal,
o objeto da ciência tem u m a "constituição", isto é, a essência r u m o à q u a l nos
deslocamos e m nossa busca d a verdade. N o entanto, u m a vez que a ressaca p o s i t i -
vista não p e r m i t i a a admissão de uma ciência da essência, de u m verdadeiro episíe-
me, os princípios da o r d e m tinham de ser apresentados como fatos históricos.
Q u a n d o construiu o grande edifício d a sua " s o c i o l o g i a " (isto é, a fuga positivista
à ciência da ordem), Weber não considerou seriamente todos os " v a l o r e s " c o m o
iguais. Ele não se dedicou a organizar u m a inútil coleção de quinquilharias, mas
sim m o s t r o u preferências bastante sensatas p o r fenômenos " i m p o r t a n t e s " da his-
tória da h u m a n i d a d e ; ele sabia distinguir perfeitamente as principais civilizações de
outros desenvolvimentos periféricos e secundários, assim c o m o as "religiões m u n -
d i a i s " dos fenômenos religiosos sem importância. N a ausência de u m princípio de
teorização bem fundamentado, ele deixou-se guiar não p o r "valores", mas sim pela
auctoritas majorum e p o r sua própria sensibilidade c o m respeito à qualidade d o tra-
b a l h o intelectual.
Até a q u i o trabalho de Weber pode ser caracterizado c o m o u m a tentativa b e m
sucedida de desembaraçar a ciência política das impertinências da m e t o d o l o g i a e de
restaurar-lhe a o r d e m teórica. N o entanto, a nova teoria e m direção à qual cami-
nhava não pôde ser explicitada, porque Weber observou religiosamente o tabu p o -
sitivista a respeito d a metafísica. A o invés disso, outras coisas f o r a m explicitadas,
pois Weber desejava ser explícito sobre os seus princípios, c o m o o deve ser u m teó-
rico. A o longo de toda sua o b r a ele se esforçou p o r elaborar u m a explicação de
sua teoria mediante a construção de " t i p o s " . N ã o se p o d e m considerar nesta oca-
sião as diversas fases pelas quais passou esse esforço. Na última fase, ele usou tipos
d e "ação r a c i o n a l " como os tipos padrões e construiu os outros tipos c o m o
desvios d a racionalidade. O procedimento ter-lhe-á o c o r r i d o p o r q u e Weber c o m -
preendia a história c o m o u m a evolução r u m o à racionalidade e sua época c o m o o
ponto mais alto até então alcançado na "auto-determinação r a c i o n a l " d o h o m e m .
E s a idéia f o i desdobrada e m diferentes graus de desenvolvimento, c o m relação
INTRODUÇÃO 29

à história econômica, política e religiosa, e, de maneira mais completa, c o m rela-


ção à história da música. Sua concepção global derivava claramente da filosofia d a
história de Comte; e a interpretação weberiana da história pode ser vista c o m j u s -
tiça como o último dos grandes sistemas positivistas. Nota-se, n o entanto, u m a t o -
nalidade nova na execução que Weber deu ao p l a n o . A evolução da humanidade
em direção à racionalidade da ciência positiva era para Comte u m processo n i t i -
damente progressista; para Weber, era u m processo de desencantamento (Entzau-
berung) e de desdivinizaçào (Entgottlichung) do m u n d o . Por seu sentimento de
pena de que o encantamento d i v i n o houvesse desaparecido d o m u n d o , p o r sua
resignação ao racionalismo c o m o u m a sina a ser aturada, mas não desejada, pe-
las queixas ocasionais de que a sua a l m a não estava em sintonia c o m o d i v i n o (re-
Iigiõs unmusikalisch), Weber deixou revelar sua afinidade c o m os sofrimentos de
Nietzsche — m u i t o embora, apesar de tal confissão, sua alma estivesse suficiente-
mente em sintonia c o m o d i v i n o para que ele não seguisse Nietzsche em sua trá-
gica revolta. Weber sabia o q u e almejava, mas, p o r alguma razão, não conseguiu
chegar ao objetivo. Ele v i u a terra p r o m e t i d a , mas não lhe f o i dado nela entrar.

C O M O trabalho de M a x Weber, o positivismo f o i tão longe quanto p o d i a e se t o r -


naram visíveis as linhas através das quais a restauração da ciência política teria q u e '
ser empreendida. A correlação entre o " v a l o r " constituinte e a ciência constituída
"isenta de valores" se havia r o m p i d o ; os "julgamentos de v a l o r " haviam r e t o r n a -
d o à ciência sob a f o r m a de "crenças legitimadoras" que criavam unidades de o r -
dem social. O último baluarte f o i a convicção de Weber de que a história evoluía
e m direção a u m t i p o de racionalismo q u e relegava a religião e a metafísica ao r e i n o
d o " i r r a c i o n a l " . E mesmo esse baluarte não era tão inexpugnável, desde que se
compreendesse que ninguém estava o b r i g a d o a nele penetrar se p o d i a simplesmen-
te dar-lhe as costas e redescobrir a racionalidade da metafísica e m geral e d a a n -
tropologia filosófica em particular, o u seja, das áreas da ciência c o m relação as
quais Weber se havia conservado deliberadamente distante.
A fórmula d o remédio é mais simples que sua aplicação. A ciência não é a c o n -
quista i n d i v i d u a l deste o u daquele estudioso: é u m esforço de cooperação. O t r a -
b a l h o efetivo só é possível se inserido n u m a tradição de cultura intelectual. Q u a n d o
a ciência fica completamente arruinada, c o m o f o i o caso p o r volta de 1900, a s i m -
ples reconquista do artesanato teórico é u m a tarefa de m o n t a , para não mencionar
as quantidades de material que deve ser reelaboradoi para reconstituir a o r d e m
d e pertinência dos fatos e problemas. Além disso, as dificuldades pessoais não d e -
vem ser ignoradas; a exposição de idéias novas, aparentemente aberrantes, i n e v i -
tavelmente desperta resistências. U m exemplo ajudará a compreender a natureza
dessas dificuldades.
Weber, como se assinalou acima, ainda concebia a história como u m a u m e n t o
d o racionalismo n o sentido positivista. D o p o n t o de vista de u m a ciência da o r d e m ,
n o entanto, a exclusão da sríentia prima dos domínios da razão não consumi u m
aumento, mas sim u m a diminuição do racionalismo. O que Weber, n a esteira de
Comte, entendeu p o r racionalismo m o d e r n o teria de ser reinterpretado c o m o i r r a -
cionalismo m o d e r n o . Esta inversão dos significados socialmente aceitos dos termos
30 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

despertaria u m a certa hostilidade. Mas a reinterpretação não poderia i n t e r r o m -


per-se nesse p o n t o . A rejeição de ciências q u e já se encontravam desenvolvidas e o
r e t o r n o a u m nível inferior de racionalidade devem ter motivações experiencial-
mente profundas. U m a investigação mais minuciosa revelaria que certas experiên-
cias religiosas estavam n a o r i g e m d a resistência a reconhecer a ratio d a o n t o l o g i a e
da antropologia filosófica; e, na verdade, na última década d o século X I X começou
a exploração d o socialismo c o m o m o v i m e n t o religioso, exploração que mais tarde
se t r a n s f o r m o u n o estudo extensivo dos movimentos totalitários c o m o u m n o v o
" m i t o " o u religião. A investigação levaria ainda ao p r o b l e m a geral da conexão
entre dpos de racionalidade e tipos de experiência religiosa. Algumas experiências
religiosas t e r i a m de ser classificadas c o m o superiores e outras c o m o inferiores p e l o
critério objetivo d o grau de racionalidade que a d m i t e m na interpretação da reali-
dade. As experiências religiosas dos filósofos místicos gregos e d o cristianismo se-
r i a m considerados de nível elevado p o r p e r m i t i r e m o desenvolvimento da metafí-
sica; as experiências religiosas de Comte e M a r x seriam classificadas como i n f e r i o -
res p o r p r o i b i r e m a colocação de perguntas metafísicas. Estas considerações afeta-
r i a m radicalmente a concepção positivista da evolução d a h u m a n i d a d e de u m a fase
religiosa o u teológica p r i m i t i v a para o racionalismo e a ciência. A evolução não só
teria o c o r r i d o de u m grau mais elevado de racionalismo para o u t r o inferior, pelo
menos n o q u e concerne ao período m o d e r n o , mas, além disso, esse declínio da r a -
zão teria de ser interpretado c o m o conseqüência da regressão religiosa. Seria neces-
sário revolucionar u m a interpretação tradicional da história ocidental, desenvol-
vida ao longo de séculos; e u m a revolução dessa magnitude enfrentaria a oposição
dos "progressistas", que, repentinamente, se encontrariam na posição de i r r a c i o -
nalistas retrógrados.
As possibilidades de u m a reinterpretação do racionalismo e da concepção p o -
sitivista da história f o r a m colocadas n o m o d o condicional de maneira a indicar
o caráter hipotético da restauração d a ciência política na passagem d o século. C i r -
culavam idéias deste t i p o , mas havia u m a grande distância entre a certeza de que a l -
go estava profundamente errado c o m o estado da ciência e o entendimento preciso
da natureza d o m a l q u e a acomeúa. Igualmente longa era a distância entre as con-
jecturas inteligentes a respeito da direção a ser tomada para a consecução do o b j e t i -
vo. Era necessário preencher u m b o m número de condições antes que as p r o p o s i -
ções, neste caso, pudessem ser apresentadas n o m o d o indicativo. Tinha-se q u e r e -
tomar o entendimento da o n t o l o g i a e o artesanato da especulação metafísica, e,
sobretudo, c u m p r i a restabelecer a a n t r o p o l o g i a filosófica como ciência. Pelos
padrões assim reconquistados, era possível definir c o m precisão os p o n t o s técnicos
de irracionalidade da posição positivista. C o m esse propósito, os trabalhos dos
principais pensadores positivistas t i n h a m de ser analisados c o m cuidado a f i m de
se explicitar sua rejeição crítica de argumentos racionais; era preciso, p o r exem-
p l o , trazer à luz as passagens dos trabalhos de Comte e M a r x e m q u e estes pensado-
res reconheciam a validade das questões metafísicas, mas se recusavam a considerá-
las p o r q u e t a l consideração t o r n a r i a impossível a articulação de sua opinião i r r a -
cional. Q u a n d o o estudo chegasse às motivações do irracionalismo, o pensamento
positivista teria de ser caracterizado c o m o u m a variente da teologização, novamente
com base nas fontes, e as experiências religiosas subjacentes teriam que ser diagnós-
tico somente poderia ser feito c o m êxito se estivesse suficientemente elaborada u m a
leona geral dos fenômenos religiosos q u e permitisse o enquadramento d o caso
oocreto n u m tipo. A generalização u l t e r i o r relativa à conexão entre graus de r a -
cionalidade e experiências religiosas, b e m c o m o a comparação c o m exemplos gre-
INTRODUÇÃO 31

gos e cristãos, r e q u e r e r i a m u m estudo r e n o v a d o d a f i l o s o f i a grega, q u e revelasse a


ligação e n t r e o d e s e n v o l v i m e n t o d a metafísica grega e as experiências religiosas d o s
filósofos q u e a e l a b o r a r a m ; e u m n o v o e s t u d o d a metafísica m e d i e v a l teria de c o m -
p r o v a r a ligação c o r r e s p o n d e n t e n o caso cristão. Deveria a i n d a d e m o n s t r a r as d i -
ferenças características e n t r e as metafísicas grega e cristã capazes d e serem atribuí-
das a diferenças religiosas. E, q u a n d o t o d o s esses estudos preparatórios estivessem
p r o n t o s , q u a n d o os conceitos críticos p a r a o t r a t a m e n t o d o s p r o b l e m a s estivessem
estabelecidos e as proposições tivessem a p o i o nas fontes, ter-se-ia q u e e n f r e n t a r a
tarefa f i n a l de buscar u m a o r d e m histórica t e o r i c a m e n t e inteligível n a q u a l estes
múltiplos fenômenos p u d e s s e m ser o r g a n i z a d o s .
N a verdade, essa tarefa, de restauração já teve início; e h o j e alcançou u m p o n t o
e m q u e se p o d e dizer q u e j á f o r a m lançados ao m e n o s os alicerces sobre os q u a i s
se construirá a n o v a ciência d a o r d e m . A descrição e m detalhe desse o u s a d o e m -
p r e n d i m e n t o está além d o escopo desta o b r a — e, além disso, t o m a r i a a f o r m a de
u m a v o l u m o s a história d a ciência n a p r i m e i r a m e t a d e d o século X X . O s capítulos
1

seguintes, a r e s p e i t o d o p r o b l e m a d a representação, p r e t e n d e m apresentar ao l e i -


t o r esse m o v i m e n t o , b e m c o m o a p r o m e s s a de restauração d a ciência política nele
contida.

1 A história intelectual d a primeira metade d o século X X é extremamente complexa, p o r ser a história


de u m a lenta recuperação (com muitas tentativas que terminaram e m impasses) d a completa destruição
d a cultura intelectual ocorrida a o final d o século X I X . Talvez seja prematuro efetuar o estudo crítico
desse processo enquanto a poeira dos combates ainda não assentou; e, c o m efeito, n e n h u m estudo
abrangente nesse sentido foi feito até aqui. Há, no entanto, u m a recente introdução à filosofia c o n -
temporânea que (apesar de certas imperfeições técnicas) demonstra o quanto pode ser feito atualmente.
T r a t a - s e de Europãische Philosophie der Gegenwart (Berna, 1947), de I. M . Bochenski. A interpretação do a u -
tor tem c o m o guia dois motos colocados na página inicial do seu livro — u m , d e M a r c o Aurélio: " O
filósofo, este sacerdote e ajudante dos deuses' ; outro, de Bergson: "Também a filosofia tem seus escri-
bas e seus fariseus". A s várias filosofias são classificadas segundo seu valor c o m o ontologias, dos níveis
mais baixos aos mais altos, e m capítulos intitulados "Matéria", "Idéia", " V i d a " , "Essência", "Existên-
c i a " e " S e r " . O último capítulo, sobre as filosofias d o ser, trata d o s metafísicos ingleses e alemães ( S a -
m u e l Alexander, Alfred N. Whitehead, Nicolai Hartmann) e dos heotomistas. O primeiro capítulo trata
das filosofias situadas nos níveis inferiores, começando p o r baixo c o m B e n r a n d Russetl, o neopositi-
vismo e o materialismo dialético.
I

REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA

A C I Ê N C I A P O L Í T I C A sofre.de u m a d i f i c u l d a d e q u e t e m o r i g e m e m sua própria n a t u -


reza, c o m o ciência d o h o m e m e m sua existência histórica. U m a vez q u e o h o m e m
não espera pela ciência até q u e e l a l h e e x p l i q u e a própria v i d a , q u a n d o o teórico
a b o r d a a r e a l i d a d e social e n c o n t r a u m c a m p o j á o c u p a d o p e l o q u e p o d e r i a ser
c h a m a d o de auto-interpretação d a sociedade. A sociedade h u m a n a não é s i m p l e s -
m e n t e u m f a t o o u u m a ocorrência d o m u n d o e x t e r i o r , q u e o o b s e r v a d o r devesse
estudar c o m o se fosse u m fenômeno n a t u r a l . E m b o r a a e x t e r i o r i d a d e seja u m d e
seus c o m p o n e n t e s i m p o r t a n t e s , ela é e m seu t o d o u m p e q u e n o m u n d o , u m cosmion,
c u j o s i g n i f i c a d o provém d o seu próprio i n t e r i o r , através d o s seres h u m a n o s q u e
c o n t i n u a m e n t e o c r i a m e r e c r i a m , c o m o m o d o e condição de sua auto-realização.
A sociedade é i l u m i n a d a p o r u m c o m p l e x o s i m b o l i s m o , c o m vários graus d e c o m -
pactação e diferenciação — desde o r i t o , passando p e l o m i t o , até a t e o r i a - - e esse
s i m b o l i s m o a i l u m i n a c o m u m significado n a m e d i d a e m q u e os símbolos t o r n e m
transparentes a o mistério d a existência h u m a n a a e s t r u t u r a i n t e r n a desse p e q u e n o
m u n d o , as relações e n t r e seus m e m b r o s e g r u p o s de m e m b r o s , assim c o m o sua
existência c o m o u m t o d o . A auto-iluminação d a sociedade através d o s símbolos é
p a r t e i n t e g r a n t e d a r e a l i d a d e s o c i a l , e p o d e - s e m e s m o d i z e r q u e é u m a p a r t e essen-
cial dela, p o r q u e através dessa simbolização os m e m b r o s d a sociedade a v i v e n c i a m
c o m o a l g o m a i s q u e u m acidente o u u m a conveniência; v i v e n c i a m - n a c o m o p e r -
t e n c e n d o a sua essência h u m a n a . I n v e r s a m e n t e , os símbolos e x p r i m e m a experiên-
cia de q u e o h o m e m é i n t e i r a m e n t e h o m e m e m v i r t u d e d e sua participação e m u m
t o d o q u e transcende a sua existência p a r t i c u l a r , e m v i r t u d e de sua participação n o
xynon, o c o m u m , n a expressão d e Heráclito, o p r i m e i r o p e n s a d o r o c i d e n t a l q u e d e -
senvolveu esse c o n c e i t o . E, e m conseqüência, t o d a sociedade h u m a n a c o m p r e e n d e
a si mesma através de u m a variedade de símbolos, a l g u n s deles símbolos lingüís-
ticos a l t a m e n t e diferenciados, i n d e p e n d e n t e s d a ciência política; t a l a u t o c o m -
preensão precede h i s t o r i c a m e n t e d e alguns milênios o s u r g i m e n t o d a ciência p o l í -
tica, d o episteme politike, n o sentido aristotélico. A s s i m , a o se i n i c i a r , a ciência p o l í -
t i c a não p a r t e d e u m a tabula rasa n a q u a l pudesse inscrever seus c o n c e i t o s ; começa
i n e v i t a v e l m e n t e a p a r t i r d o r i c o c o n j u n t o de auto-interpretações d a sociedade
e prossegue através d o esclarecimento crítico d o s símbolos sociais preexistentes.
Q u a n d o Aristóteles escreveu as o b r a s Ética e Política, q u a n d o formulou seu c o n c e i -
t o d a polis, d a constituição, d o cidadão, das várias f o r m a s de g o v e r n o , de justiça, de
felicidade, etc-, ele não i n v e n t o u esses t e r m o s n e m os d o t o u de significados a r b i -
trários; a o invés, r e c o l h e u os símbolos e n c o n t r a d o s e m seu a m b i e n t e s o c i a l , e x a m i -
n o u c u i d a d o s a m e n t e a variedade dos significados q u e t o m a v a m n a conversação
34 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

c o m u m e o r g a n i z o u e esclareceu esses significados c o m os critérios d e sua teo-


ria . 1

Estas p r e l i m i n a r e s de m o d o a l g u m esgotam a situação p e c u l i a r d a ciência p o -


lítica, m a s a b r e m suficientes perspectivas p a r a o propósito m a i s i m e d i a t o , p o i s
permitirão a l g u m a s conclusões teóricas q u e , p o r sua vez, p o d e m ser aplicadas a o
tópico d a representação.
Q u a n d o u m teórico reflete s o b r e sua própria situação teórica, d e f r o n t a - s e c o m
d o i s c o n j u n t o s de símbolos: os símbolos d a l i n g u a g e m p r o d u z i d o s c o m o p a r t e
i n t e g r a n t e d o m u n d o social e m seu progresso de auto-iluminação, e os símbolos
d a l i n g u a g e m d a ciência política. A m b o s se r e l a c i o n a m e n t r e si, n a m e d i d a e m q u e
o s e g u n d o c o n j u n t o se desenvolve a p a r t i r d o p r i m e i r o através de u m processo
p r o v i s o r i a m e n t e c h a m a d o d e esclarecimento crítico. N o transcurso desse processo,
alguns d o s símbolos q u e o c o r r e m n a r e a l i d a d e serão a b a n d o n a d o s p o r não se pres-
t a r e m à utilização científica, e n q u a n t o n o v o s símbolos se desenvolverão d e n t r o
d a própria t e o r i a p a r a a descrição crítica a d e q u a d a d o s símbolos q u e fazem p a r t e
d a r e a l i d a d e . Se, p o r e x e m p l o , o teórico descrever a idéia m a r x i s t a d o r e i n o d a
l i b e r d a d e , a ser estabelecida pela revolução comunista, como a hipóstase i m a n e n -
tista d e u m símbolo escatológico cristão, o s í m b o l o " r e i n o d a l i b e r d a d e * ' é p a r t e
da r e a l i d a d e ; é p a r t e de u m m o v i m e n t o secular d o q u a l o m o v i m e n t o m a r x i s t a é
u m a subdivisão, e n q u a n t o q u e t e r m o s c o m o " i m a n e n t i s t a " , "hipóstase" e "escato-
l o g i a " são conceitos d a ciência política. O s t e r m o s usados n a descrição não o c o r -
r e m n a r e a l i d a d e d o m o v i m e n t o m a r x i s t a , e n q u a n t o q u e o símbolo " r e i n o d a l i -
b e r d a d e " não t e m v a l o r p a r a a ciência crítica. N ã o há, p o r t a n t o , n e m d o i s c o n j u n -
tos d e t e r m o s c o m significados diferentes, n e m u m c o n j u n t o d e t e r m o s c o m d o i s
c o n j u n t o s diferentes de s i g n i f i c a d o s ; o q u e há são d o i s c o n j u n t o s de símbolos
c o m u m a g r a n d e área d e f o n e m a s q u e se superpõem. A l é m disso, os símbolos d a
r e a l i d a d e são, eles próprios, e m g r a n d e p a r t e , o r e s u l t a d o de professos de esclare-
c i m e n t o , de m o d o q u e os d o i s c o n j u n t o s também se aproximarão c o m freqüên-
cia u m d o o u t r o c o m r e s p e i t o a o s seus significados, e, e m a l g u n s casos, chegarão
a alcançar a i d e n t i d a d e . Esta c o m p l i c a d a situação é u m a inevitável f o n t e de c o n f u -
sões, e n t r e as q u a i s a ilusão de q u e os símbolos usados n a r e a l i d a d e política são
conceitos teóricos.
I n f e l i z m e n t e , esta ilusão e a confusão d e l a r e s u l t a n t e c o r r o e r a m p r o f u n d a m e n -
te a ciência política contemporânea. P o r e x e m p l o , ninguém hesita a o referir-se à
" t e o r i a c o n t r a t u a l de g o v e r n o " , o u à " t e o r i a d a s o b e r a n i a " , o u à " t e o r i a m a r x i s t a
d a história", m u i t o e m b o r a , n a r e a l i d a d e , seja m u i t o d u v i d o s o q u e q u a l q u e r dessas
chamadas teorias possa ser c o n s i d e r a d a c o m o t a l , e m s e n t i d o crítico; e v o l u m o s a s
h i s t o r i o g r a f i a s sobre " t e o r i a política" dão t r a t a m e n t o a símbolos q u e , n a m a i o r
p a r t e das vezes, e n c e r r a m escasso conteúdo teórico. Essa confusão chega a a n u l a r
a l g u n s avanços l o g r a d o s p e l a ciência política desde a antigüidade. Veja-se, a p r o p ó -
sito, a c h a m a d a t e o r i a c o n t r a t u a l . Neste caso, i g n o r a - s e o f a t o de q u e Platão j á
realizara u m a análise exaustiva d o símbolo c o n t r a t u a l , não só estabelecendo seu
caráter não-teórico, c o m o a i n d a e x p l o r a n d o o t i p o de experiência d o q u a l se o r i -
g i n a . M a i s a i n d a , ele i n t r o d u z i r a o t e r m o técnico doxa p a r a a classe d e símbolos d a
q u a l a " t e o r i a c o n t r a t u a l " é u m e x e m p l o , a f i m d e d i s t i n g u i - l o s d o s símbolos teó-
ricos . Os teóricos de h o j e não u s a m o t e r m o doxa c o m esse propósito n e m desen-
2

1. Aristóteles, Politics, 1280 a 7 e seg.


2- Platão, Republic, 358e — 367e.
REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 35

volveram u m termo equivalente. A diferenciação foi perdida. Por outro lado, e n -


t r o u e m m o d a o t e r m o " i d e o l o g i a " , que, e m alguns aspectos, se relaciona c o m a
doxa platônica. Mas justamente esse termo tornou-se u m a nova fonte de confusão
porque, sob a pressão do que M a n n h e i m chamou aüegemeine Ideologieverdacht, a
suspeita geral da ideologia, seu sentido se estendeu de tal maneira q u e cobre todos
os tipos de símbolos usados para proposições políticas, inclusive os próprios sím-
bolos teóricos; hoje, há numerosos cientistas políticos que classificariam como
ideologia até mesmo o episteme platônico-aristotélico.
O u t r o sintoma dessa confusão é dado p o r certos hábitos de discussão. A c o n -
tece c o m certa freqüência que, em discussões sobre u m tema político, u m estudan-
te — na verdade, n e m sempre u m estudante — me pergunte como eu defino o fas-
cismo, o socialismo o u qualquer o u t r o ismo do gênero. C o m igual freqüência sou
forçado a surpreender o m e u i n t e r l o c u t o r — q u e aparentemente absorveu, c o m o
parte da sua educação universitária, o conceito de q u e a ciência é u m depósito de
definições de dicionário — c o m m i n h a afirmação de que não me sentia obrigado a
fazer esse t i p o de definição porque os movimentos d o t i p o mencionado, assim c o m o
os seus simbolismos, eram parte da realidade; que apenas os conceitos p o d i a m ser
objeto de definições, e nâo a realidade; e era altamente duvidoso que os símbolos
de linguagem em questão pudessem ser criticamente esclarecidos até o p o n t o em
que tivessem alguma utilidade cognitiva n a ciência.
O terreno está agora preparado para a consideração d o tema da representa-
ção. À luz das reflexões anteriores torna-se claro que a tarefa não será mais sim-
ples se a investigação for realizada de acordo c o m os padrões críticos da busca da
verdade. O s conceitos teóricos e os símbolos q u e f o r m a m parte d a realidade devem
ser cuidadosamente distinguidos; n a transição da realidade à teoria, os critérios
empregados n o processo de esclarecimento devem ser b e m definidos; e o valor
cognitivo dos conceitos resultantes deve ser verificado, colocando-os e m contextos
teóricos mais amplos. O método assim esboçado é, substancialmente, o p r o c e d i -
mento aristotélico.

É APROPRIADO iniciar pelos aspectos elementares d o tema. De m o d o a determinar


o q u e é teoricamente elementar, cabe recordar o i n i c i o desta exposição. A socieda-
de política f o i caracterizada como u m cosmion, u m pequeno m u n d o , i l u m i n a d o i n -
ternamente; esta caracterização f o i , n o entanto, qualificada c o m a ênfase dada ao
fato de q u e a exterioridade é u m dos componentes importantes da sociedade polí-
tica. T a l cosmion t e m u m r e i n o interior de significado, mas esse reino existe tangi -
velmente n o m u n d o exterior, em seres humanos dotados de corpos e que p a r t i c i -
p a m fisicamente d a exterioridade orgânica e inorgânica d o m u n d o . A sociedade
política p o d e dissolver-se não apenas pela desintegração das crenças que fazem de-
la u m a unidade atuante n a história, mas também p o d e ser destruída pela disper-
são de seus m e m b r o s de tal maneira q u e a comunicação entre eles se torne fisica-
mente impossível o u , mais radicalmente, p o r sua eliminação física; pode, igual-
mente, sofrer danos sérios, destruição parcial d a tradição o u paralisia p r o l o n g a d a
mediante o extermínio o u opressão dos m e m b r o s ativos que constituem as m i n o -
36 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

rias políticas e intelectuais que d i r i g e m a sociedade. A existência exterior da socie-


dade será entendida neste sentido q u a n d o , p o r razões a serem dadas p r o x i m a m e n -
te, falarmos d o aspecto teoricamente elementar d o nosso tema.
Nos debates políticos, na imprensa e nas obras de direito internacional,
as instituições políticas de países c o m o os Estados Unidos d a América, o Reino U n i -
do, a França, a Suíça, os Países Baixos e os reinos escandinavos são n o r m a l m e n t e
consideradas representativas. Nesses contextos, o termo instituição representativa
é usado c o m o u m símbolo na realidade política. Caso alguém que usa esse símbolo
fosse solicitado a explicar o que entende p o r ele, certamente responderia q u e as
instituições de u m país p o d e m ser consideradas representativas q u a n d o os m e m -
bros da assembléia legislativa o c u p a m seus lugares e m v i r t u d e de eleições p o p u l a -
res. Se a pergunta se referisse ao excutivo, t a l pessoa aceitaria a eleição p o p u l a r d o
chefe do governo, como nos Estados Unidos da América, mas também estaria de
acordo c o m o sistema inglês, em que u m comitê da m a i o r i a parlamentar compõe
o ministério, o u c o m o sistema suíço, e m q u e o executivo é eleito pelas duas casas
em sessão conjunta; e provavelmente não consideraria que a presença de u m m o -
narca afete o caráter representativo, desde que tal monarca só possa atuar convali-
d a d o p o r u m m i n i s t r o responsável. Caso se pedisse ao nosso interlocutor q u e fos-
se u m p o u c o mais explícito a respeito d o significado da expressão "eleição p o p u -
l a r " , ele inicialmente se referiria à eleição de u m representante p o r todas as pessoas
de m a i o r idade q u e residam e m determinado distrito t e r r i t o r i a l ; mas, provavel-
mente, não negaria o caráter representativo d o processo se as mulheres estivessem
excluídas d o sufrágio o u se, e m u m sistema de representação p r o p o r c i o n a l , a repre-
sentatividade fosse pessoal e não territorial. Finalmente, ele poderia sugerir q u e as
eleições se realizassem c o m freqüência razoável e mencionaria os partidos como o r -
ganizadores e mediadores d o processo eleitoral.
Q u e p o d e o teórico fazer com uma resposta desse t i p o , e m termos de ciência
política? T e m ela algum valor cognitivo?
Evidentemente, trata-se de u m a resposta importante. A r i g o r , a existência dos
países enumerados deve ser tomada c o m o u m p o n t o pacífico, sem maiores ques-
tões a respeito d o que os faz existir o u d o que se deve entender por existência. Não
obstante, ilumina-se u m a área de instituições que existem dentro de u m a m o l d u r a
existencial, e m b o r a a própria m o l d u r a permaneça na obscuridade. Existem, sem
dúvida, m u i t o s países cujas instituições p o d e m ser incluídas entre as d o ripo esbo-
çado; e, se há alguma validade na exploração das insitítuições, a resposta certa-
mente sugere u m gigantesco conjunto de conhecimentos científicos. Ademais, esse
conjunto de conhecimentos existe c o m o u m fato insofismável da ciência, sob a for-
ma de numerosos estudos monográficos a respeito das instituições de diferentes
países, nos quais se descrevem as ramificações e instituições auxiliares necessárias
ao funcionamento de u m governo representativo m o d e r n o , e também sob a f o r m a
de estudos comparativos, que elaboram o t i p o institucinal e suas variantes. Não
p o d e tampouco haver dúvidas a respeito da pertinência desses estudos, pelo me-
nos e m princípio, u m a vez que a existência exterior da sociedade política é parte de
sua estrutura ontológica. Os tipos de realização exterior da sociedade têm sempre
a l g u m grau de pertinência, independentemente da pertinência q u e possam ter
q u a n d o colocados e m u m contexto teórico mais a m p l o .
Neste nível de teorização, os conceitos que entram na construção do t i p o des-
critivo das instituições representativas referem-se a dados simples d o m u n d o exte-
rior: distritos geográficos, os seres humanos que neles vivem, homens e mulheres,
suas idades, seus votos (que consistem na marcação de pedaços de papel n o lado
REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 37

que tem nomes impressos), operações aritméticas e matemáricas das quais resulta
a designação de outros seres humanos como representantes, o comportamento
dos representantes que resulta e m atos formais reconhecidos c o m tal através de ele-
mentos exteriores, etc. U m a vez que, neste nível, os conceitos não são problemá-
ticos em termos de auto-interpretação interna da sociedade, este aspecto d o nosso
tema pode ser considerado elementar e o tipo descritivo de representação desenvol-
v i d o neste nível será, p o r t a n t o , considerado o t i p o elementar.
A pertinência desse enfoque elementar é aceita e m princípio. A extensão real
de seu valor cognitivo, n o entanto, só p o d e ser medida colocando-se o t i p o n o c o n -
texto teórico mais a m p l o antes mencionado. O tipo elementar, c o m o dissemos,
i l u m i n a apenas u m a área de instituições que ocorrem n u m contexto existencial,
o q u a l deve ser aceito c o m o dado, sem outras indagações. Portanto, devem-se
fazer algumas perguntas c o m respeito à o u t r a área, que até a q u i permaneceu na
obscuridade.

A o SUSCITAR estas questões, novamente será seguido o procedimento atistoté-


lico de examinar os símbolos tal c o m o ocorrem n a realidade. U m tema adequado
para este questionamento é o caráter representativo das instituições soviéticas. A
União Soviética tem u m a constituição, aliás de grande beleza, q u e estabelece insti-
tuições que p o d e m ser, c o m o u m todo, incluídas n o tipo elementar. Apesar disso,
conflitam vivamente as opiniões emitidas p o r democratas ocidentais e p o r c o m u -
nistas sobre seu caráter representativo. Os ocidentais dizem q u e o mecanismo de
representação p o r si só não é suficiente, que o eleitor deve ter acesso a u m a escolha
genuína e que o monopólio partidário estabelecido pela constituição soviética i m -
pede tal escolha. Os comunistas dizem q u e o verdadeiro representante deve efeti-
vamente zelar pelo interesse d o p o v o , que a exclusão dos partidos que represen-
tam interesses especiais é necessária para que as instituições sejam verdadeiramente
representativas e que somente os países nos quais o monopólio da representação
é assegurado ao p a r t i d o comunista são democracias populares autênticas. Deste
m o d o , a discussão se fundamenta na função mediadora d o p a r t i d o n o processo
de representação.
A matéria não é suficientemente simples para p e r m i t i r u m j u l g a m e n t o imedia-
to. A o contrário, torna-se necessária u m a reflexão mais p r o f u n d a , pois, c o m efeito,
pode-se facilmente aumentar a confusão ao recordar que, q u a n d o da fundação da
República Americana, eminentes estadistas eram de opinião que a verdadeira re-
presentação só seria possível se não houvesse p a r t i d o a l g u m . O u t r o s pensador s,
além do mais, a t r i b u e m o funcionamento d o sistema bipartidário inglês ao fato de
que, originalmente, os dois partidos eram, na verdade, duas facções da aristocracia
inglesa; outros, ainda, verão n o sistema bipartidário norte-americano u m a h o m o -
geneidade ulterior que leva os dois partidos a parecer duas facções de u m mesmo
p a r t i d o . Resumindo as várias opiniões pode-se, p o r t a n t o , c o m p o r u m a série: o
sistema representativo é verdadeiramente representativo quando não há partidos,
quando há u m p a r t i d o , q u a n d o há dois o u mais partidos, q u a n d o os dois partidos
p o d e m ser considerados c o m o facções de u m mesmo p a r t i d o . Para completar o
38 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

q u a d r o , pode-se, finalmente, acrescentar o conceito-tipo de Estado pluripartidário


que entrou e m m o d a após a Primeira G u e r r a M u n d i a l , c o m sua implicação de que
o sistema representativo não pode funcionar quando há dois o u mais partidos que
discordam e m matéria de princípios.
A partir dessa variedade de opiniões, podem-se tirar as seguintes conclusões.
O t i p o elementar das instituições representativas não exaure o p r o b l e m a da repre-
sentação. Através do conflito de opiniões, pode-se discernir u m consenso segundo
o q u a l o processo representativo só é significativo quando certos requisitos referen-
tes à sua substância são satisfeitos, razão pela qual o estabelecimento do processo,
p o r si só, não p r o p o r c i o n a a substância desejada. Há consenso também q u a n t o ao
fato de que certas instituições mediadoras, os partidos, têm algo a ver c o m a conso-
lidação o u a corrupção da substância da representação. Além desse p o n t o , n o en-
tanto, a matéria se torna confusa. A substância e m questão está vagamente associa-
da c o m a vontade do povo, mas o que significa precisamente o símbolo " p o v o " não
está claro ainda. O símbolo deve ser provisoriamente deixado para exame poste-
r i o r . Além disso, a discordância a respeito d o número de partidos q u e garantirão,
o u não, o f l u x o da substância sugere u m novo tema, ainda não suficientemente
analisado, e que nâo poderá ser equacionado simplesmente contando-se os p a r t i -
dos. Segue-se daí q u e u m conceito-tipo c o m o o do, Estado monopartidário deve
ser considerado como de valor teórico duvidoso; ele poderá ter algum uso prático
para breves referências n o transcurso de u m debate político, mas obviamente nâo
está suficientemente esclarecido a p o n t o de ser pertinente e m termos científicos.
Pertence à classe elementar, c o m o o conceito-tipo elementar das instituições r e -
presentativas.
Estas primeiras questões metodológicas não levam a u m impasse, mas o p r o -
gresso o b t i d o é inconclusivo devido à consideração simultânea de u m a quantidade
demasiado grande de material. A matéria deve ser analisada em sua essência para
que possa ser esclarecida; e, para esse propósito, convém fazer u m a reflexão mais
profunda sobre o tema tentador que é a União Soviética.

SE, POR U M LADO, pode haver desacordos radicais a respeito de se o Governo


soviético representa efetivamente o p o v o o u não, p o r o u t r o lado não há n e n h u m a
dúvida de q u e o governo soviético representa a sociedade soviética c o m o sociedade
política capaz de atuar na história. Os atos legislativos e administrativos do G o -
verno soviético são internamente efetivos, n o sentido de q u e as ordens governa-
mentais são obedecidas pelo povo, desprezando-se u m a m a r g e m politicamente
irrelevante de ineficácia; e a União Soviética é u m a potência n o cenário histórico
porque o Governo soviético pode operar efetivamente u m a enorme máquina m i l i -
tar alimentada pelos recursos humanos e materiais d a sociedade soviética.
À p r i m e i r a vista, pareceria que c o m estas proposições a discussão alcançou ter-
renos m u i t o mais férteis do p o n t o de vista teórico. Isto porque, sob o título "socie-
dades políticas capazes de a t u a r " e n t r a m em foco unidades históricas de poder cla-
ramente identificáveis. Para serem capazes de amar, as sociedades políticas devem
ter u m a estrutura interna que possibilite a alguns dos seus membros — o gover-
REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 39

nante, o governo, o príncipe, o soberano, o magistrado, e t c , de acordo c o m a ter-


m i n o l o g i a da época — obter obediência natural a suas ordens e essas ordens devem
servir às necessidades existenciais da sociedade, tais como a defesa d o r e i n o e a
aplicação da justiça — se se permite u m a classificação medieval dos propósitos.
Essas sociedades, organizadas internamente para atuar, não são entes permanentes
e estáticos, e sim crescem historicamente; o processo pelo q u a l os seres humanos se
i n c o r p o r a m n u m a sociedade capaz de atuar será denominado a articulação da so-
ciedade. E m conseqüência da articulação política, há seres humanos, os governan-
tes, que podem atuar e m n o m e da sociedade, homens cujos atos não são atribuídos
às suas próprias pessoas mas à sociedade c o m o u m t o d o — o q u e resulta, p o r
exemplo, e m que a emissão de u m a n o r m a geral que regule u m a área da vida h u -
mana não será vista pelos membros da sociedade como u m exercício de filosofia
m o r a l , mas sim c o m o o estabelecimento de u m a n o r m a de c u m p r i m e n t o obrigató-
rio. U m a pessoa representa a sociedade q u a n d o seus atos são percebidos dessa
maneira.
Neste contexto, o significado da representação tem p o r base u m a atribuição
efetiva, o que torna necessário distinguir a representação de outros tipos de a t r i -
buição, estabelecendo a diferença entre agente e representante. Neste sentido, p o r
agente deve-se entender u m a pessoa a quem seu superior a t r i b u i u determinado
poder para tratar, sob instruções determinadas, de u m assunto específico, enquan-
to que p o r representante deve-se entender u m a pessoa que tem o poder de agir e m
n o m e da sociedade e m v i r t u d e de sua posição n a estrutura da comunidade, sem
instruções determinadas referentes a u m assunto específico, e cujos atos não sejam
efetivamente repudiados pelos membros da sociedade. U m delegado j u n t o às N a -
ções Unidas, p o r exemplo, é u m agente de seu Governo que age sob instruções,
enquanto que o Governo que o designou é o representante da respectiva sociedade
política.

EVIDENTEMENTE, O governante representativo de u m a sociedade articulada não


pode representá-la como u m t o d o sem impor-se, através de a l g u m t i p o de relação,
aos outros membros da sociedade. Esta é u m fonte de dificuldades para a ciência
política de nossa época porque, sob a pressão d o simbolismo democrático, a resis-
tência a estabelecer u m a distinção entre as duas relações, do p o n t o de vista t e r m i -
nológico, tornou-se tão forte que chegou a afetar a teoria política. O poder gover-
nante é u m poder governante mesmo n u m a democracia, apesar das hesitações e m
encarar esse fato. O Governo representa o povo e o símbolo " p o v o " absorveu os
dois significados que, n a linguagem medieval, p o r exemplo, p o d i a m ser distingui-
dos u m d o o u t r o , sem resistência e m o c i o n a l : o * r e i n o " e os "súditos".
A atual pressão do simbolismo democrático é a última fase de u m a série de
complicações terminológicas que começam nos meados da Idade Média, c o m a
incipiente articulação das sociedades políticas ocidentais. A M a g n a Carta, p o r
exemplo, se refere ao Parlamento c o m o o "commune consiliumregni nostri", o "conse-
l h o c o m u m de nosso r e i n o " . Examinemos esta fórmula. Ela designa o Parlamento
3

3 Magna Carta, cap. 12.


40 A N O V A CIÊNCIA DA P O L Í T I C A

como o conselho d o reino e não necessariamente c o m o a representação d o povo,


visto que o reino, em si, é u m a possessão d o r e i . A fórmula é característica de u m a
época para a q u a l convergem dois períodos de articulação social. N u m a p r i m e i r a
fase, o r e i é o único representante do reino e o sentido deste monopólio da repre-
sentação está preservado n o p r o n o m e possessivo acoplado ao símbolo " r e i n o " .
N u m a segunda fase, as comunas d o reino — condados, burgos e cidades — come-
çam a articular-se até que se t o r n a r a m capazes de atuar c o m o representantes delas
mesmas; os próprios barões deixaram de ser senhores feudais isolados e se associa-
r a m n o baronagium, u m a comuna capaz de atuar, c o m o se vê na forma securitatis da
Magna Carta. Não é necessário assinalar os detalhes desse processo c o m p l i c a d o ; o
p o n t o de interesse teórico é que, q u a n d o os representantes das comunas articula-
das se encontram n o conselho, f o r m a m comunas de u m a o r d e m superior, e assim
sucessivamente até o Parlamento de duas casas, q,ue se vê a si mesmo como o con-
selho representante de u m a sociedade ainda m a i o r , o r e i n o c o m o u m todo. C o m a
progressiva articulação da sociedade, desenvolve-se, assim, u m a representação
composta peculiar, j u n t a m e n t e c o m u m simbolismo que expressa sua estrutura
hierárquica interna.
A parte p r i n c i p a l da representação permaneceu c o m o r e i nos séculos que se
seguiram à Magna Carta. Os zorits of summons, notificações dos séculos X I I I e X I V ,
revelam u m a terminologia consistente, reconhecendo a articulação da sociedade
mas i n c l u i n d o ainda os novos participantes da representação d e n t r o da represen-
tação monárquica propriamente dita. Não só o reino pertence ao r e i ; também os
prelados, os magnatas e as cidades lhe pertencem. Os comerciantes independentes,
p o r o u t r o lado, nâo estão incluídos n o simbolismo representativo; eles não são
do rei, mas sempre " d o r e i n o " , o u " d a cidade", o u seja, d o todo o u de u m a sub-
divisão articulada . Os indivíduos comuns, m e m b r o s da sociedade, são simples-
4

mente " h a b i t a n t e s " o u "cidadãos d o r e i n o " . O símbolo " p o v o " não é utilizado
5

c o m referência a u m nível de articulação e representação; é usado apenas, e oca-


sionalmente, c o m o sinônimo d o reino, c o m o na frase " o bem-estar geral d o r e i -
no" . 6

A fusão dessa hierarquia representativa e m u m único representante, o rei n o


Parlamento, t o m o u u m tempo considerável; o fato de q u e esse processo de fusão
estava ocorrendo só se t o r n o u teoricamente tangível séculos depois, n u m a famosa
passagem d o discurso de Henrique V I I I ao Parlamento a propósito do caso Ferrers.
Nessa ocasião, em 1543, o r e i disse: "Somos informados p o r nossos Juizes de q u e
em tempo algum nos elevamos mais e m nossa condição real d o que q u a n d o o Par-
lamento está r e u n i d o , ocasião e m que, nós como cabeça e vós c o m o membros, nos
entrelaçamos e nos articulamos f o r m a n d o u m só corpo político, de t a l maneira q u e
qualquer ofensa o u ataque (durante esse tempo) d i r i g i d o contra o mais inferior dos
membros da Casa deve ser j u l g a d o como se fosse feito contra a nossa pessoa e con-
tra toda a Corte d o Parlamento". A diferença de nível entre o r e i e o Parlamento
ainda é preservada, mas já p o d e ser simbolizada através da relação entre a cabeça
e os membros de um c o r p o ; o representante composto transforma-se e m " u m só
corpo político"; a condição real se engrandece c o m sua participação n a represen-
tação parlamentar e o Parlamento se engrandece com sua participação na majes-
tade d a representação real.

4 Notificação de um colloquium" de comerciantes (1303), in Stubbs, Select Charters {8? ed.) p. 500.
5 Notificação do Arcebispo e do Clero ao Parlamento (1295), in Stubbs, op. cit., p. 485.
6 Notificação ao Parlamento de Lincoln (1301), in Stubbs, op. cit., p. 499.
REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 41

A direção e m que os símbolos se deslocam deve ter-se t o r n a d o clara c o m esta


passagem: q u a n d o a articulação se expande p o r toda a sociedade, também o repre-
sentante se expandirá até que se alcance o limite determinado pela articulação p o -
lítica total da sociedade, até o último indivíduo, e pelo fato correspondente de que
a sociedade se t o r n a o representante de si mesma. Simbolicamente, esse l i m i t e é
alcançado na magistral descrição d o governo feito p o r L i n c o l n — " d o p o v o , p e l o
p o v o , para o p o v o " . O símbolo " p o v o " nesta fórmula significa sucessivamente a
sociedade política articulada, seu representante e a comunidade afetada pelos atos
d o representante. A fusão inigualável d o simbolismo democrático c o m o conteúdo
teórico é o segredo d o efeito dessa fórmula. O processo histórico n o q u a l se alcança
o limite da articulação expressada através d o simbolismo do " p o v o " nos ocupará,
e m detalhe, n u m a etapa posterior desta obra. Por ora, deve-se notar que a transi-
ção para o l i m i t e dialético pressupõe u m a articulação da sociedade até o nível d o
indivíduo c o m o unidade representável. Este t i p o particular de articulação não
ocorre e m toda parte; c o m efeito, existe apenas nas sociedades ocidentais. De m o d o
a l g u m é ela uma qualidade da natureza humana, não p o d e n d o ser separada de cer-
tas condições históricas que, u m a vez mais, só se d e r a m n o Ocidente. N o Oriente,
o n d e essas condições especificas estão historicamente ausentes, esse t i p o de a r t i c u -
lação simplesmente não ocorre — e o Oriente abrange a m a i o r parte d a h u m a n i -
dade.

A ARTICULAÇÃO é, pois, a condição da representação. Para chegar a existir, a so-


ciedade deve articular-se. A f i m de produzir u m representante que aja p o r ela.
Pode-se prosseguir agora c o m o escla«ecimento desses conceitos. Por trás do sím-
b o l o "articulação" esconde-se nada menos q u e o processo histórico através d o q u a l
as sociedades políticas, as nações e os impérios ascendem e caem, assim c o m o as
evoluções e revoluções que o c o r r e m entre os dois pontos extremos. A i n d i v i d u a l i -
zação de tal processo em cada exemplo de sociedade política não chega ao p o n t o de
t o r n a r impossível enquadrar suas múltiplas variedades e m alguns tipos gerais. Mas
este é u m vasto tópico (Toynbee já escreveu seis volumes para expô-lo) que deve
ser posto de lado. A preocupação n o m o m e n t o deve concentrar-se e m examinar
se as implicações d o conceito da articulação p o d e m ser diferenciadas ainda mais.
Isto evidentemente pode ser feito e existem diversas tentativas interessantes nesse
sentido. C o m efeito, essas tentativas são feitas q u a n d o a articulação d a sociedade
chega a u m p o n t o crítico; o p r o b l e m a chama atenção quando a sociedade está
prestes a começar a existir, q u a n d o está prestes a se desintegrar, o u q u a n d o está
atravessando u m a fase crucial de sua história. U m a fase crucial d o desenvolvimento
das sociedades ocidentais o c o r r e u aproximadamente na metade d o século X V ,
c o m a consolidação dos reinos nacionais, após a Guerra dos Cem Anos. Nessa eta-
pa crítica, u m dos melhores pensadores políticos ingleses, Sir J o h n Fortescue, ten-
t o u teorizar o p r o b l e m a da articulação. Vale a pena examinar o que ele tinha a
dizer.
A realidade política que interessava particularmente a Fortescue eram os reinos
da Inglaterra e da França. Sua amada Inglaterra era u m dominium politicum et regale,
o que hoje se chamaria u m governo constitucional; a perversa França de Luis X I
era u m dominium tantum regale, algo como u m a tirania — boa apenas c o m o exílio,
42 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

q u a n d o o paraíso constitucional se t o r n o u demasiado inóspito . O mérito de For-


7

tescue f o i o de não se ter l i m i t a d o a u m a descrição estática dos dois tipos de gover-


no. É b e m verdade que ele usou a analogia estática d o organismo q u a n d o insistiu
e m que o r e i n o deve ter u m governante assim c o m o o corpo tem u m a cabeça, mas
também é verdade que, e m u m a b r i l h a n t e página d o seu livro De laudibus legum
Anglie, ele t o r n o u a analogia dinâmica, comparando a criação do reino c o m o cres-
cimento de u m corpo articulado a p a r t i r d o embrião . U m estado social p o l i t i c a -
8

mente inarticulado dá lugar à articulação d o r e i n o , ex populo erúmpit regmtm. Fortes-


cue usou a palavra "erupção" c o m o termo técnico para designar a articulação i n i -
cial da sociedade e "prorrupção" para designar os progressos da articulação, tais
como a transição de u m r e i n o meramente monárquico para u m reino político.
Esta teoria da erupção d o p o v o não supõe que, p a r t i n d o de u m estado natural, o
povo, p o r m e i o de u m contrato, emerja já organizado e sob o império d a lei. For-
tescue conhecia a diferença perfeitamente bem. Para marcar sua posição c o m cla-
reza, ele criticou a definição de Santo Agostinho, segundo a q u a l o p o v o era u m a
multidão associada p o r consentimento a u m a o r d e m justa e à comunhão de inte-
resses. Esse povo, dizia Fortescue, seria acephalus, constituído apenas d o tronco de
u m corpo sem cabeça; só se p o d e chegar ao r e i n o através do estabelecimento de
u m a cabeça para governar o c o r p o : rex erectus est.
A criação dos conceitos de erupção e prorrupção constitui u m avanço teórico
significativo, p o r q u e nos permite d i s t i n g u i r o componente da representação q u e
ficou quase totalmente eSquecido o n d e quer q u e o simbolismo jurídico dos séculos
seguintes p r e d o m i n o u n a interpretação da realidade política. Mas Fortescue f o i
ainda além. Ele compreendeu que a analogia orgânica poderia ajudar a construção
d o conceito da erupção, mas que, afora isso, tinha pouca utilidade cognitiva. H a v i a
alguma coisa n o reino articulado, u m a substância i n t e r i o r que proporcionava a
força vinculatória da sociedade, a qual não p o d i a ser apreendida através d a analo-
gia orgânica. Para aproximar-se dessa substância misteriosa, ele transferiu o sím-
b o l o cristão d o corpus mysticum para o reino. Esse f o i u m passo fundamental e m sua
análise, que desperta interesse e m mais de u m aspecto. E m p r i m e i r o lugar, o sim-
ples fato de q u e t a l passo tenha sido dado j á era sintomático d o declínio da socie-
dade cristã, articulada na Igreja e n o império; p o r conseguinte, era também sinto-
mático da consolidação progressiva dos reinos nacionais como sociedades a u t o -
centradas. E m segundo lugar, o passo revelou que os reinos haviam a d q u i r i d o u m
significado particularmente fundamental. N a transferência do corpus mysticum para
o r e i n o pode-se apreciar a evolução r u m o a u m t i p o de sociedade política que su-
cederá não apenas ao império, mas também à Igreja. Logicamente, estas i m p l i c a -
ções não f o r a m sequer vagamente visualizadas p o r Fortescue; mas a transferência
apontava e m direção ao estabelecimento de u m representante da sociedade c o m
relação a todos os segmentos da existência humana, inclusive a sua dimensão espi-
r i t u a l . A o contrário, Fortescue estava bastante consciente de que o reino só poderia
ser chamado de corpus mysticum n u m sentido analógico. A tertium comporationis seria
o vínculo sacramentai da comunidade, distinto tanto d o Logos de Cristo, q u e vive
nos membros d o corpus mysticum cristão, quanto de u m Logos pervertido c o m o o que
vive nas comunidades totalitárias modernas. N o entanto, e m b o r a não estivesse
consciente das implicações de sua busca de u m Logos imanente da sociedade, ele

7 Fortescue, The Governance of England, ed. Plummer (Oxford, 1885), caps. I e lí.
8 Fortescue, De laudibus legum Anglie, ed S. B. Chrimes (Cambridge, 1942), cap. X I I I .
REPRESENTAÇÃO E E X I S T Ê N C I A 43

lhe d e u u m nome, chamando-o intendo populi. A intendo populi é o centro d o corpo


místico d o r e i n o ; novamente c o m u m a analogia orgânica, ele o descreve c o m o o
coração a partir d o q u a l se transmite à cabeça e aos m e m b r o s d o corpo, c o m a cor-
rente nutriente d o sangue, a provisão política d o b e m estar d o p o v o . Note-se a
função da analogia orgânica neste contexto; ela não serve para identificar m e m -
bros da sociedade c o m partes correspondentes d o c o r p o , mas, ao contrário, tenta
mostrar q u e o centro a n i m a d o r d o corpo social não será encontrado e m n e n h u m
dos seus membros humanos. A intendo populi não se localiza n e m n o representante
real, nem n o p o v o c o m o multidão de súditos; é, porém, o intangível centro vital
do reino c o m o u m t o d o . A palavra " p o v o " nesta fórmula não significa a multidão
exterior de seres humanos, mas a substância mística' q u e " e n t r a e m erupção" na
articulação; e a palavra "intenção" significa o i m p u l s o o u a necessidade dessa subs-
tância emergir e conservar sua existência articulada, c o m o u m a entidade que, p o r
meio de sua articulação, p o d e p r o p o r c i o n a r seu próprio bem-estar.
Q u a n d o Fortescue aplicou concretamente sua concepção, e m The Govemance
of England, esclareceu u m p o u c o mais a idéia d o representante real, contrastando-a
c o m a concepção feudal hierárquica d a organização real. N a concepção feudal,
o rei era " o mais alto estado t e m p o r a l sobre a t e r r a " : inferior, e m nível, ao estado
eclesiástico, mas superior aos feudatários q u e existem d e n t r o d o r e i n o . Fortescue
9

aceitou a o r d e m dos estados da Christianitas; estava longe de conceber a idéia de


u m estado soberano e fechado, mas introduziu o novo corpus mysticum n o corpo mís-
tico de Cristo, a t r i b u i n d o ao representante real u m a d u p l a função. N a o r d e m d a
Christianitas, o r e i permanecia c o m o o mais alto estado t e m p o r a l , mas, ao mesmo
tempo, a casa real deveria ser vista c o m o u m a instituição que prove a defesa e a
justiça d o reino. Fortescue cita Santo Tomás dé A q u i n o : " O r e i é d a d o ao r e i n o , e
não o reino ao r e i " ; e daí parte para c o n c l u i r : o rei é e m seu r e i n o o que o Papa é
na igreja, u m servus servorum Dd; e, p o r conseguinte; " t u d o o que o r e i faz deve ser
referido ao seu r e i n o " — a formulação mais compacta d o p r o b l e m a d a represen-
tação . 10

A ELABORAÇÃO desse simbolismo f o i o grande êxito pessoal de Fortescue c o m o


teórico. Os reinos da Inglaterra e da França causaram grande impressão na época
p o r existirem c o m o unidades de poder depois que a G u e r r a dos Cem Anos des-
mantelou a estrutura feudal d o poder e p r o p i c i o u a fixação t e r r i t o r i a l dos reinos.
Fortescue tentou explicar o que eram, na verdade, os reinos, essas novas e curiosas
entidades. Sua teoria f o i a solução o r i g i n a l de u m p r o b l e m a que se apresentava na
realidade. Seu trabalho f o i facilitado, n o entanto, p o r u m a tradição de articulação
política que sobrevivera desde o período da Grande Migração, anterior à fundação
do império ocidental. E m u m a seção pouco estudada de The Govemance of England
ele usou c o m o m o d e l o de articulação política u m a das muitas versões a respeito d a
fundação dos reinos resultantes da migração de u m g r u p o de refugiados troianos.
O m i t o d a fundação de reinos n o Ocidente p o r u m bando de troianos chefiados
p o r u m f i l h o o u neto de Enéias era bastante conhecido; e servira, n o i n i c i o da civi-

9 Fortescue, The Goíiernance qf England, cap. V I I I


10 Ibid.
A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

#5Kição d o ocidente, para emprestar às novas colônias u m a origem digna, compa-


rável à de Roma. N o m o d e l o de Fortescue, u m desses bandos, chefiados p o r Brutus,
que deu origem ao nome britânico, f u n d o u a Inglaterra. Q u a n d o esse "grande g r u -
p o " , escreveu ele, " q u e chegou a esta terra c o m Brutus, mostrou-se desejoso de
unir-se e c o m p o r u m c o r p o político chamado reino, c o m u m a cabeça para gover-
ná-lo, o próprio Brutus f o i escolhido cabeça e rei. E eles e o r e i , em conseqüência de
sua incorporação, instituição e união c o m o reino, ordenaram q u e o mesmo reino
tivesse governo e justiça de acordo c o m leis às quais todos eles assentissem" . 11

O componente troiano do m i t o , a rivalidade c o m Roma, tem interesse apenas


secundário para o propósito a m a i ; mas, sob a aparência exterior d o m i t o , está r e -
gistrada a efetiva articulação dos bandos migratórios e m sociedades políticas. O
m i t o ressalta a fase inicial da articulação, e convida a u m a rápida consulta às n a r r a -
tivas originais das fundações das colônias, assim como à terminologia em que a
articulação é descrita. Selecionarei para este fim algumas passagens da "História dos
Lombardos", de Paulus Diaconus, escrita n a segunda metade d o século V I I I .
Segundo a narrativa de Paulus, a história ativa dos lombardos teve início q u a n -
d o , após a m o r t e de dois.duques, o p o v o decidiu que não queria mais viver em pe-
quenos grupos federados, dirigidos pelos duques, mas sim " c o n f e r i r se u m r e i ,
c o m o as outras nações" . A linguagem revela a influência d o desejo israelita, ex-
12

presso n o l i v r o de Samuel, de ter u m r e i c o m o as outras nações, mas o processo


prático da articulação das tribos e m u m reino é registrado com m u i t a clareza.
Q u a n d o , n o decurso da migrarão, a federação t r i b a l mostrou-se demasiado f r o u x a
e fraca c o m o estrutura, elegeu-se u m r e i c o m o propósito de obter u m a direção
mais eficaz.dos assuntos militares e administrativos; e o r e i f o i escolhido de u m a
família " q u e era tida entre eles c o m o particularmente n o b r e " . A narrativa chega a
alcançar a articulação inicial, historicamente concreta. Nessa situação estava pre-
sente o que se p o d e chamar de matéria-prima social, que consistia e m agrupamen-
tos de nível t r i b a l , suficientemente homogêneos para articularem-se e m u m a socie-
da de m a i o r . Pode-se identificar, ademais, a pressão das circunstâncias, que p r o -
porciona o estímulo para a articulação; e, finalmente, havia membros d o g r u p o
q u e se destacavam o bastante, e m termos de carisma sangüíneo e pessoal, para t o r -
narem-se representantes b e m sucedidos.
Sigamos u m p o u c o mais o historiador dos lombardos. Após a eleição d o r e i ,
começaram as guerras vitoriosas. Primeiramente os hérulos f o r a m derrotados e seu
poder fragmentado a tal p o n t o que "eles já não tinham r e i " . A essa seguiu-se a
1 3

guerra c o m os gépidas, cujo fato decisivo f o i a m o r t e d o filho d o r e i gépida, " o q u a l


havia sido u m dos fatores principais na causação da g u e r r a " . Após a morte do
14

j o v e m príncipe, os gépidas fugiram e, c o m o n o caso anterior, " f i n a l m e n t e abate-


ram-se tanto que já não tinham r e i " . Podem-se acumular outras passagens simi-
lares de outros historiadores do período das migrações. L i m i t e m o - n o s a u m b o m
exemplo apenas: I s i d o r o narra como os alanos e os suevos perderam a indepen-
dência d o seu reino p o r o b r a dos godos, mas, p o r estranho que pareça, conserva-
r a m seu r e i na Espanha p o r longo tempo, " e m b o r a disso não tivessem necessidade,
e m sua i n i n t e r r u p t a queitude". E m toda a historiografia das migrações, d o século
V ao V I I I , a existência histórica da sociedade política era expressa sistematicamente

11 Ibid., cap. 3; também De laudibus, cap. X I I I .


12 Pauli Historia Langobardorum (Hanover, 18 7 8), 1, 14.
13. Ibid., p. 20.
14. Ibid., p. 23.
REPRESENTAÇÃO E EXISTÊNCIA 45

em termos da aquisição, posse e perda do rex, o representante real. Estar articulado


para agir significava ter rei; perder o rei significava perder a capacidade de atuação;
quando o grupo não agia, não precisava de r e i . 15

8
As FORMULAÇÕS teóricas que acabamos de examinar pertencem aos períodos da
da fundação e da posterior consolidação das sociedades políticas ocidentais n a I d a -
de Média. O problema da articulação representativa voltou a despertar u m grande
interesse quando as sociedades passaram a mover-se n o rumo perigoso da desinte-
gração. A debilidade da Terceira República foi o clima n o qual Maurice Hauriou
desenvolveu sua teoria da representação. Farei u m breve sumário da teoria, tal
como formulada p o r Hauriou no seu livro Précis de droit constitutionnel . 16

O poder do governo é legítimo, de acordo com Hauriou, por funcionar como


representante de uma instituição, especificamente o estado. O estado é uma c o m u -
nidade nacional na qual o poder governante conduz os negócios da res publica. A
primeira tarefa do poder governante é a criação de uma nação politicamente unifi-
cada, pela transtòrmação do todo desorganizado preexistente e m u m corpo orga-
nizado para agir. O núcleo dessa instituição será a idéia, a idée directrice, de realizá-
la e de expandi-la aumentando seu poder; e a função específica do governante é a
concepção dessa idéia e sua realização histórica. A instituição se aperfeiçoa quando
o governante se subordina à idéia e quando, ao mesmo tempo, o consentement coú-
tumier dos membros é obtido. Ser representante significa orientar, desde u m a po-
sição dirigente, o trabalho de realizar a idéia através d a sua encarnação institucio-
nal; e o poder do governante tem autoridade na medida em que ele consiga torná-
lo representativo da idéia.
A partir dessa concepção, Hauriou deriva u m conjunto de proposições referen-
tes às relações entre o poder e a lei: (1) A autoridade do poder representativo prece-
de existencialmente a regulamentação desse poder pelo direito positivo. (2) O p o -
der, propriamente dito, é u m fenômeno jurídico e m virtude de sua base institucio-
nal; na medida em que o poder tiver autoridade representativa, poderá produzir
o direito positivo. (3) A origem do direito não pode ser encontrada nas regulamen-
tações legais, senão que deve ser buscada na decisão pela qual u m a situação litigiosa
é superada pelo poder organizado.
A teoria recém-resumida, assim como o subseqüente conjunto de proposições,
era dirigida contra certas fraquezas bem conhecidas da Terceira República; a lição
da análise de H a u r i o u pode ser concentrada na seguinte tese: para ser representa-
tivo, não basta que o governo o seja no sentido constitucional (nosso tipo elementar
de instituição representativa); deve sê-lo também no sentido existencial de realizar
a idéia da instituição. E a advertência implícita pode ser explicitada n a seguinte
tese: se u m governo é representativo apenas no sentido constitucional, um gover-
nante representativo no sentido existencial, mais cedo ou mais tarde, por-lhe-á
fim; e, muito possivelmente, o novo governante existencial não será dos mais re-
presentativos n o sentido constitucional.

15. Para um exame amplo do problema, ver Alfred Dove, Der Wiederintritt des naíionalen Prinüòs in die
Weltgeschichte (1890), em Ausgewãhlte Schriften (1898).
16 Maurice Hauriou, Prérís de droit constitutionnel (2* ed., 1929).
46 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

A ANÁLISE da representação neste nível chega ao fim. O sumário dos resultados


pode ser breve.
Consideramos, sucessivamente, a representação n o sentido elementar e n o sen-
tido existencial. A transição de u m tipo ao o u t r o f o i necessária p o r q u e a mera des-
crição da realização exterior d a sociedade política não toca a questão fundamental
da sua existência. A investigação das condições da existência levou, então, ao p r o -
blema da articulação, assim como a u m entendimento da correspondência íntima
entre tipos de articulação e de representação. O resultado d a análise p o d e ser ex-
presso na definição de q u e a sociedade política começa a existir q u a n d o se articula
e produz u m representante. Aceita essa definição, seguir-se-á que o t i p o elementar
de instituições representativas abrange apenas a realização exterior de u m tipo es-
pecial de articulação e representação. N a ciência crítica, p o r t a n t o , será aconselhá-
vel restringir o uso do termo "representação" ao seu sentido existencial. Só c o m
essa restrição a articulação social pode ser vista c o m nitidez c o m o o p r i n c i p a l p r o -
blema existencial; e apenas desse m o d o se obterá u m a compreensão clara das c o n -
dições históricas m u i t o especiais sob as quais podem-se desenvolver as instituições
convencionalmente chamadas de representativas. Assinalou-se que elas ocorrem
apenas nas civilizações greco-rotnana e ocidental; e postulou-se p r e l i m i n a r m e n t e
que a condição do seu desenvolvimento é a articulação d o indivíduo c o m o unidade
representável. Incidentalmente à análise, surgiram diversos problemas que não
puderam ser objeto de exame mais p r o f u n d o no m o m e n t o — tais c o m o o símbolo
d o " p o v o " , a intendo populi de Fortescue, c o m suas implicações imanentistas, e a
relação d o reino fechado c o m a representação espiritual do h o m e m na igreja. Es-
tes fios soltos serão reunidos n o decurso dos próximos capítulos.
A diferenciação adequada dos conceitos, n o entanto, m o s t r o u ser mais q u e
u m m e r o tema de preocupação teórica. Observou-se que a distinção insuficiente
entre problemas elementares e existenciais é u m fato da realidade política. C o m o
ocorrência d a realidade, essa confusão faz emergir u m p r o b l e m a próprio. A v i n c u -
lação persistente d o símbolo "representação" a u m t i p o especial de articulação é
u m sintoma de provincianismo político e civilizacional. E, quando provincianismos
desse t i p o chegam a obscurecer a estrutura da realidade, p o d e m tornar-se perigosos.
H a u r i o u sugeriu claramente q u e a representação n o sentido elementar não consti-
tui garantia contra a desintegração e a rearticulação existenciais d a sociedade.
Q u a n d o u m representante nãó cumpre c o m a sua tarefa existencial, a legalidade
constitucional da sua posição não o salvará; q u a n d o u m a m i n o r i a criativa, n a l i n -
guagem de Toynbee, torna-se u m a m i n o r i a dominante, começa a correr o risco de
ser substituída p o r o u t r a m i n o r i a criativa. A pouca atenção que na prática tem sido
dada a esse p r o b l e m a e m nosso tempo t e m contribuído m u i t o para os sérios dis-
túrbios internos das sociedades políticas ocidentais, assim c o m o para suas tremen-
das repercussões internacionais. A nossa própria política exterior f o i u m fator de
agravamento da desordem internacional através d o seu propósito, sincero mas
ingênuo, de curar os males d o m u n d o pela disseminação das instituições represen-
tativas, n o sentido elementar, e m áreas e m que as condições existenciais necessárias
ao seu funcionamento não se faziam presentes. Esse provincianismo, persistente
mesmo face às suas conseqüências, é, e m si mesmo, u m problema interessante para
o cientista. As estranhas políticas das potências democráticas ocidentais, que leva-
REPRESENTAÇÃO E E X I S T Ê N C I A 47

i a m a guerras contínuas, não p o d e m ser explicadas pelas fraquezas dos estadistas


considerados individualmente — e m b o r a tais fraquezas sejam demasiado evidentes.
Elas são, antes, sintomáticas de u m a resistência geral a encarar a realidade, forte-
mente enraizada nos sentimentos e opiniões das grandes massas das nossas socieda-
des ocidentais contemporâneas. E apenas p o r q u e elas constituem sintomas de u m
fenômeno de massas que se justifica falar de u m a crise da civilização ocidental. As
causas deste fenômeno receberão atenção cuidadosa n o desenrolar desta o b r a ;
mas sua exploração crítica pressupõe u m entendimento mais completo da relação
entre a teoria e a realidade. Devemos, p o r t a n t o , retomar a descrição da situação
teórica deixada incompleta ao início d o presente capítulo.
II
REPRESENTAÇÃO E VERDADE

1
N U M A PRIMEIRA aproximação, a análise utilizou o método aristotélico de examinar
os símbolos da linguagem tal como o c o r r e m na realidade política, na esperança
de que o processo de esclarecimento levasse a conceitos criticamente sustentáveis. A
sociedade era u m cosmion, u m conjunto global de significados, i l u m i n a d o i n t e r i o r -
mente p o r sua própria auto-interpretação; e, c o m o esse pequeno m u n d o de signi-
ficados era precisamente o objeto a ser explorado pela ciência política, o método
de começar pelos símbolos da realidade pareceria ao menos assegurar a apreensão
do objeto.
N o entanto,, assegurar-se do objeto não é mais que o p r i m e i r o passo da inves-
tigação e, antes que se possa aventurar pelo c a m i n h o , é necessário determinar se
tal caminho realmente existe e para onde leva. F o r a m aceitas diversas premissas que
não p o d e m permanecer sem discussão. Tomou-se c o m o p o n t o pacífico que se pode
falar d a realidade social e d o pensador teórico que a explore; de esclarecimento
crítico e de contextos teóricos; de símbolos teóricos que não parecem ser símbolos
da realidade; e de conceitos que se referem à realidade enquanto, ao mesmo tempo,
seu significado é derivado d a realidade, através d o misterioso esclarecimento críti-
co. Evidentemente, impõe-se toda u m a série de questões. O teórico é u m a pessoa
fora da realidade social, o u , na verdade, parte dela? E se efetivamente ele o for, e m
que sentido p o d e essa realidade ser seu objeto? E q u e faz ele exatamente ao escla-
recer os símbolos qüe o c o r r e m na realidade? Se não faz mais que apresentar dis-
tinções, eliminar equívocos, extrair o verdadeiro cerne de proposições demasiado
abrangentes, t o r n a r logicamente consistentes os símbolos e as proposições, etc,
então qualquer pessoa que participe da auto-interpretação da sociedade não será
também u m teórico, pelo menos e m termos tentativos? E a teoria, em sentido
técnico, não seria apenas u m a auto-interpretação feita c o m mais reflexão? O u será
q u e o teórico possui padrões próprios de interpretação, pelos quais aferiria a a u t o -
interpretação da sociedade? E, nesse caso, o esclarecimento significa que vez p o r
o u t r a o teórico efetua u m a interpretação qualitativamente superior dos símbolos
da realidade? E, nessa hipótese, não surgirá daí u m c o n f l i t o entre as duas interpre-
tações?

Os símbolos pelos quais a sociedade interpreta o significado de sua existência


são formulados c o m o verdades; se o teórico faz u m a interpretação diferente, ele
chega a u m a verdade diferente c o m respeito ao significado da existência h u m a n a
e m sociedade. Nessa circunstância, haveria que perguntar: Q u a l é essa verdade re-
presentada pelo teórico, essa verdade q u e o dota de padrões pelos quais ele pode
aferir a verdade representada pela sociedade? Q u a l é a fonte dessa verdade q u e
50 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

aparentemente se desenvolve em oposição crítica à sociedade? E se a verdade re-


presentada pelo teórico for diferente da verdade representada pela sociedade, c o m o
pode u m a ser desenvolvida a p a r t i r da o u t r a por meio de algo que parece tão inó-
cuo quanto o esclarecimento crítico?

CERTAMENTE, não se p o d e responder a todas essas questões ao mesmo t e m p o ; mas


sua enumeração é indicativa das complexidades da situação teórica. A análise c o n -
centrar-se-á, convenientemente, sobre o p o n t o em que a enumeração parece a p r o -
ximar-se mais d o presente tópico, o u seja, nas questões referentes ao conflito de
verdades. U m a verdade representada pelo teórico contrapõe-se a o u t r a verdade r e -
presentada pela sociedade. Estaremos usando u m a linguagem vazia, o u poder-se-á
de fato encontrar algo como a representação de verdade nas sociedades políticas
através da história? Se. esse for o caso, o p r o b l e m a da representação não estaria
esgotado pela representação n o sentido existencial. Tomar-se-ia então necessário
distinguir entre a representação da sociedade p o r seus representantes articulados e
u m a segunda relação, na qual a própria sociedade se torna o representante de algo
que está além dela, de u m a realidade transcendente. Pode-se encontrar concreta-
mente essa relação nas sociedades através da história?
Na verdade, essa relação pode ser encontrada desde que teve início o registro
da história das principais sociedades políticas que ultrapassaram o nível tribal.
T o d o s os impérios antigos, tanto os d o Oriente Próximo q u a n t o os d o Extremo
Oriente, viam-se c o m o representantes de u m a o r d e m transcendente, a o r d e m do
cosmos; e alguns deles chegaram a perceber essa o r d e m c o m o u m a "verdade".
Q u a n d o se recorre às mais antigas fontes chinesas d o Skú King, o u às inscrições
egípcias, babilônias, assírias o u persas, verifica-se que a o r d e m d o império é inva-
rialvelmente interpretada c o m o a representação da o r d e m cósmica na sociedade
humana. O império é análogo ao cosmos, u m pequeno m u n d o que reflete a o r d e m
d o m u n d o m a i o r e envolvente. O ato de governar passa a ser a tarefa de assegurar a
h a r m o n i a entre a o r d e m da sociedade e a o r d e m cósmica; o território d o império
é u m a representação analógica d o m u n d o c o m todos os seus quadrantes; as g r a n -
des cerimônias d o império representam o r i t m o d o cosmos; os festivais e os sacri-
fícios são u m a liturgia cósmica, u m a participação simbólica d o cosmion n o cosmos;
e a pessoa d o governante representa a sociedade, p o r q u e ele representa n a terra o
poder üranscendente que mantém a o r d e m cósmica. A palavra cosmion, pequeno
m u n d o , usada neste sentido, reflete a d u p l a significação da situação, referindo-se
ao mesmo tempo à sociedade e seu território e à representação da o r d e m cósmica.
É inevitável que o empreendimento da o r d e m representativa esteja exposto à
resistência de inimigos internos e externos; e o governante é apenas u m ser h u m a -
n o , que pode falhar, seja pelas circunstâncias, seja p o r seu próprio descontrole,
d o que p o d e m resultar revoluções internas ou derrotas externas. A experiência
real da resistência, da derrota possível o u efetiva, é a ocasião em que o significado
da verdade se t o r n a mais claro. N a medida em que a o r d e m da sociedade não existe
automaticamente, mas precisa ser fundada, preservada e defendida, aqueles que es-
tão d o lado da o r d e m representam a verdade, enquanto seus i n i m i g o s representam
a desordem e a mentira.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 51

Este nível de auto-interpretação d o império f o i alcançado pelos aquemènidas.


Segundo a inscrição de Behiscun, q u e celebra os feitos de D a r i o I , o rei venceu p o r -
que era o legítimo instrumento de O r m u z d ; ele "não era perverso n e m m e n t i r o -
so" ; n e m ele n e m sua família eram servos de A h r i m a n , a M e n t i r a , senão que " g o -
vernavam de acordo c o m a justiça" . C o m relação aos inimigos, p o r o u t r o lado,
1

a inscrição afirma que "as mentiras os fizeram revoltar-se, de m o d o q u e eles i l u d i -


r a m o povo. Assim, O r m u z d os entregou e m minhas mãos" . A expansão d o i m -
2

pério e a submissão dos inimigos torna-se, nesta concepção, o estabelecimento d o


r e i n o terrestre d a paz, pelo r e i que atua c o m o representante d o d i v i n o Senhor da
Sabedoria. Além disso, a concepção tem ramificações q u e levam ao ethos da conduta
política. Os rebelados contra a Verdade, c o m efeito, são identificados c o m o tal
p o r sua resistência ao r e i , mas também são reconhecidos c o m o representantes da
M e n t i r a pelas mentiras de propaganda que disseminam c o m o objetivo de i l u d i r
o povo. A o rei, p o r o u t r o lado, cabe o dever de ser escrupulosamente correto e m
seus próprios pronunciamentos. A inscrição de Behistun contém esta tocante passa-
g e m : "Pela graça de O r m u z d há também muitas outras coisas q u e p o r m i m f o r a m
feitas e que não estão gravadas nesta inscrição; e não f o r a m inscritas para que aque-
le que leia esta inscrição n o futuro não possa sustentar que o que p o r m i m f o i p r a -
ticado é demasiado e p o r isso não acredite e m meus feitos, considerando-os m e n -
t i r a s " . Além de não poder m e n t i r e m hipótese alguma, o representante d a verda-
3

de ainda tem de esforçar-se para n e m ao menos parecer mentiroso.


Diante de u m a conduta tão ostensivamente virtuosa, é de perguntar-se o que o
o u t r o l a d o teria a dizer se tivesse a o p o r t u n i d a d e de fazê-lo. Seria interessante sa-
ber que tipo de amenidades seriam trocadas entre dois o u mais desses representan-
tes da verdade que entrassem e m competição para estabelecer a única o r d e m ver-
dadeira d a humanidade. Os choques dessa natureza são raros; há, n o entanto, u m
belo exemplo, p o r ocasião da expansão m o n g o l q u e ameaçou e x t i n g u i r o Impé-
rio d o Ocidente n o século X I I I . O Papa e o r e i d a França enviaram embaixadas à
corte m o n g o l c o m o objetivo de sondar as intenções dos perigosos conquistadores
e de estabelecer contatos c o m eles; as notas levadas pelos embaixadores, tal c o m o
suas exposições verbais, certamente apresentavam queixas a respeito dos massacres
mongóis na Europa o r i e n t a l , insinuações q u a n t o à imoralidade dessa conduta,
especialmente q u a n d o as vitimas eram cristãs, e até mesmo a solicitação de que os
mongóis recebessem o batismo e reconhecessem a autoridade d o Papa. Os destina-
tários, n o entanto, revelaram-se mestres d a teologia política. A história preservou
u m a carta de K u y u k K h a n a Inocèncio I V , na q u a l as afirmações dos embaixadores
são cuidadosamente respondidas. C i t o , a seguir, u m a passagem da mesma:

" V ó s dissestes q u e seria b o m q u e eu recebesse o b a t i s m o ;


Vós m e informastes disso e m e enviastes o p e d i d o .
Esse p e d i d o vosso, nós não o compreendemos.
O u t r o p o n t o : Vós m e enviastes estas palavras: 'Vós tomastes os reinos
dos magiares e dos cristãos e m sua totalidade; esse fato me surpreendeu.
Dizei-me que falta cometeram os cristãos?' Essas palavras vossas, nós
não as compreendemos. (Para evitar, n o entanto, q u a l q u e r aparência de

1 L.W. King e R.C. Thompson, The Sculptures and Inscripiions of Darias lhe Great on lhe Rock of Behistun
ILonàres, 1907), jf L X I I I , p. 72.
2 Ibid., § L I V , p. 65.
S Ibid., § L V I I I , p. 68.
52 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

que tenhamos evitado este p o n t o com o silêncio, falamos em resposta a


vós desta maneira:)
A O r d e m de Deus, tanto Genghis Khan q u a n t o Kha K h a n a enviaram para
torná-la conhecida,
Mas na O r d e m de Deus eles não acreditaram.
Aqueles de q u e m vós falais chegaram a reunir-se e m u m grande conselho,
Mostraram-se arrogantes e assassinaram os embaixadores que lhes envia-
mos.
O Deus eterno m a t o u e destruiu os homens daqueles reinos.
Salvo para c u m p r i r a O r d e m de Deus, c o m o poderia alguém, p o r sua
própria força, matar e conquistar?
E se vós dizeis: ' E u sou cristão; eu adoro Deus; eu desprezo os demais',
C o m o podereis saber a q u e m Deus perdoa e sobre quem Ele derrama sua
graça?
C o m o sabeis que pronunciais tais palavras?
Pela v i r t u d e de Deus,
Desde que o sol nasce até que se põe,
Todos os reinos nos foram concedidos.
Sem a O r d e m de Deus
C o m o p o d e r i a qualquer pessoa fazer o que quer que seja?
Agora, vós deveis dizer com a sinceridade no coração:
'Nós seremos vossos súditos;
Nós vos daremos nossa força*.
Vós, em pessoa, à frente dos reis, todos j u n t o s , sem exceções, vinde e
oferecei-nos serviço e homenagem;
Então nós reconheceremos vossa submissão.
E se vós não observais a O r d e m de Deus,
E desobedeceis nossas ordens,
Saberemos que vós sois nossos inimigos.
Isso é o que nós damos a conhecer.
Se desobedecerdes,
O j i e saberemos então?
Deus o saberá" . 4

Esse encontro de duas verdades t e m u m t o m familiar, que se tornará ainda


mais f a m i l i a r se tomarmos em consideração alguns corolários da teoria jurídica
m o n g o l . A O r d e m de Deus, em que se baseava a construção do império, foi pre-
servada nos editos de K u y u k K h a n e de M a n g u K h a n :
" P o r o r d e m d o Deus vivo
Genghis Khan, o doce e venerável Filho de Deus, diz:
Deus está n o alto, acima de t u d o , Ele, só Ele, o Deus i m o r t a l ,
E na terra, Genghis Khan é o único Senhor" . 5

4. O original persa e uma tradução francesa dessa carta encontram-se em Paul Pelliot, Les Mongols et la
papauté ("Revue de POrient Chrérien", 3» série, vol. I I I (1923). A passagem entre parênteses foi retirada
de uma versão latina da mesma carta, publicada em Crônica Fratris Salimbene, ed. O. Holder-Egger,
MGH, SS, X X X I I , 208. O s documentos mongóis ainda existentes foram coligidos e editados em Eric
Voegelin, The Mongol Orders qf Submission to Eurõpean Poxvers, 1245-1255 ("Byzamion", Vol. X I , 1941).
5. D o edito de Kuyuk Khan, em Vincent de Beauvais, Speculum historiale (s. 1., 1474), Livro X X X I , caps.
51,52; Voegelin, op. cit., p. 389.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 53

O império d o Senhor Genghis K h a n tem existência de jure ainda que não es-
teja concretizado de Jacto. Todas as sociedades humanas fazem parte do império
m o n g o l e m v i r t u d e d a O r d e m de Deus, mesmo que elas não tenham sido ainda
conquistadas. A expansão prática do império segue, p o r t a n t o , u m estrito proces-
so jurídico. As sociedades cuja hora de integrar-se de fato ao Império é chegada
devem ser notificadas p o r embaixadores da O r d e m de Deus e instadas a oferece-
r e m sua submissão. Se recusarem o u se, talvez, assassinarem o embaixador, serão
consideradas c o m o rebeldes e contra eles serão tomadas sanções militares. O
império m o n g o l , assim, de acordo c o m a sua própria o r d e m jurídica, nunca se
engajou e m guerras, mas apenas e m expedições punitivas contra súditos rebela-
dos d o Império . 6

Deve ser evidente, a esta altura, que a Inscrição de Behistun e as Ordens M o n -


góis não são meras curiosidades de u m passado remoto, mas exemplos de u m a
estrutura política que pode ocorrer e m qualquer época, especialmente na nossa.
O auto-entendimento de u m a sociedade c o m o representante d a o r d e m cósmica
tem início n o período dos impérios cosmológicos, no sentido técnico, mas não
está l i m i t a d o a esse período. A representação cosmológica sobrevive, não só nos
símbolos imperiais da Idade Média ocidental o u em sua presença contínua na
China até o século X X ; seu princípio também p o d e ser reconhecido e m contextos
Lm que verdade a ser representada é simbolizada de u m a maneira inteiramente
diferente. N a dialética marxista, p o r exemplo, a verdade da o r d e m cósmica é
substituída pela verdade da o r d e m imanente da história. E, n o entanto, o m o v i -
mento comunista é representante dessa verdade simbolizada de m o d o diferente

I
n o mesmo sentido e m que u m Khan m o n g o l era o representante d a verdade con-
tida na O r d e m de Deus; e a consciência dessa representação leva às mesmas cons-
truções políticas e jurídicas encontradas nos outros exemplos de representação
i m p e r i a l «da verdade. Sua o r d e m está e m h a r m o n i a c o m a verdade histórica; seu
objetivo é o estabelecimento do r e i n o da liberdade e d a paz; seus oponentes opõem-
se à verdade histórica e serão, p o r f i m , derrotados; ninguém pode empreender
u m a guerra legítima contra a União Soviétíca porque passa a ser u m representante
d a inverdade histórica, o u , usando a l i n g u a g e m contemporânea, u m agressor;
e as vítimas não são conquistadas, mas libertadas de seus opressores e, e m c o n -
seqüência, da inverdade de sua existência.

As SOCIEDADES políticas c o m o representantes d a verdade são, p o r t a n t o , u m fato


real da história. Mas, assim que esse fato é reconhecido, novas questões se impõem.
Serão todas as sociedades políticas entidades monadárias, que expressam a u n i -
versalidade da verdade através de suas reivindicações universais c o m o impérios?
Pode o m o n a d i s m o dessa representação resistir ao questionamento d a validade
da verdade em cada caso? Será o choque dos impérios o único teste da verdade,
c o m o resultado de que a potência vitoriosa é a que t e m a razão? Evidentemente,
o simples enunciado dessas questões já é, e m parte, a resposta. O ato mesmo de
enunciá-las quebra o encanto da representação monadária; c o m nosso questiona-

* . Voegelin, op. cit., pp. 404 e seguintes.


54 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

mento, estabelecemo-nos c o m o os representantes da verdade, e m cujo n o m e


enunciamos as questões — m u i t o e m b o r a não haja clareza a respeito da fonte
dessa verdade. A partir deste p o n t o , n o entanto, as dificuldades começam. O
desafio à verdade imperial e a afirmação da verdade teórica desafiante constituem
matéria bastante complexa, q u e requer u m exame mais detalhado.
A descoberta da verdade capaz de desafiar a verdade dos impérios cosmoló-
gicos é, e m si, u m evento histórico de grandes dimensões. É u m processo que ocupa
cerca de cinco séculos d a história d a humanidade, correspondendo a p r o x i m a d a -
mente ao período de 800 a 300 a.C.; esse processo ocorre simultaneamente nas
várias civilizações sem influências mútuas aparentes. N a China, corresponde à
idade de Confúcio e Lao-tsé e de outras escolas filosóficas; na índia, à idade
dos Upanishads e de B u d a ; na Pérsia, ao zoroastrismo; e m Israel, aos Profetas;
na Grécia, aos filósofos e à tragédia. Pode-se identificar c o m o fase específica e
característica desse l o n g o processo o período e m t o r n o d o a n o 500 a . C , q u a n d o
viveram Heráclito, Buda e Confúcio. Essa irrupção simultânea d a verdade de fi-
lósofos místicos e profetas t e m atraído a atenção dos historiadores e dos filóso-
fos, desde que ficou plenamente evidenciada c o m o alargamento d o horizonte
histórico, nos séculos X V I I I e X I X . Alguns inclinam-se a considerá-la c o m o a
época decisiva da história d a humanidade. K a r l Jaspers, e m u m estudo recente
— Ursprung und Ziel der Geschichte — d e n o m i n o u - a a fase crucial da história h u -
mana, a única grande época que é i m p o r t a n t e para toda a h u m a n i d a d e , n o que
se distingue da época de Cristo, supostamente i m p o r t a n t e apenas para os cris-
tãos . E, na o b r a - p r i m a clássica da filosofia contemporânea da sociedade, Les deux
7

sources de la morale et de Ia religion, H e n r i Bergson concebeu os conceitos de socie-


dades fechadas e abertas c o m o propósito de caracterizar os dois estados sociais
d o desenvolvimento da humanidade criados p o r aquela época . A orientação 8

geral do p r o b l e m a terá que ser vista apenas à luz destas breves indicações, pois
temos que nos dedicar à f o r m a especial que essa irrupção t o m o u n o Ocidente.
Apenas n o Ocidente, devido a circunstâncias históricas específicas que não se fize-
r a m presentes e m outras civilizações, esse m o v i m e n t o c u l m i n o u n o estabeleci-
mento da filosofia, n o sentido grego d o conceito, e da teoria política em p a r t i -
cular.

O LEITOR conhece a frase m u i t o citada de Platão, segundo a qual a polis é o h o m e m


e m escala a m p l i a d a . Pode-se dizer que essa fórmula sintetiza o credo da nova épo-
9

ca. Ê a p r i m e i r a palavra de Platão a respeito da matéria, e está longe de ser a úl-


tima. Mas, apesar da necessidade de qualificar esse princípio c o m a introdução
de outros e de fazer concessões à interpretação cosmológica e à verdade que
tal interpretação encerra, ele é o centro dinâmico da nova teoria. O princípio é
u m a cunha q u e deve ser permanentemente apontada contra a idéia de q u e a so-
ciedade representa apenas a verdade cósmica, tanto hoje quanto n o tempo de Pla-

7. Karl Jaspers, Ursprung und Ziel der Geschichte (Zurique, 1949), pp. 18 e seguintes.
8. Henri Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion (Paris, 1932), pãssim, esp. pp 287 e
9. Platão, Republic, 368 c-d.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 55

tão. A sociedade política real tem de ser u m cosmion ordenado, mas não a expensas
d o h o m e m ; ela deve ser não só u m microcosmo, mas também u m " m a c r o a n t h r o -
pos". As referências a esse princípio platônico serão feitas pelo n o m e de princí-
p i o antropológico.
Dois aspectos d o princípio devem ser distinguidos. Sob o p r i m e i r o deles, ora-
ta-se de u m princípio geral para a interpretação da sociedade; sob o segundo,
é u m instrumento de crítica social.
C o m o princípio geral significa que toda sociedade reflete e m sua o r d e m o
ripo h u m a n o de que se compõe. Ter-se-ia de dizer, p o r exemplo, que os impé-
rios cosmológicos consistem de u m t i p o de h o m e m que vivência a verdade da
sua existência como a h a r m o n i a c o m o cosmos. Evidentemente, trata-se de u m
princípio heurístico da m a i o r importância; q u a n d o u m teórico busca compreender
u m a sociedade política, u m a das suas primeiras tarefas, se não a p r i m e i r a , será
sempre a de determinar o t i p o h u m a n o que se expressa na o r d e m dessa sociedade
concreta. Platão usou seu princípio sob o p r i m e i r o aspecto ao descrever a so-
ciedade ateniense, na q u a l vivia, c o m o sofista e explicou as peculiaridades d a o r -
dem ateniense relacionando-as c o m o t i p o h u m a n o sofista, socialmente predo-
m i n a n t e ; u t i l i z o u - o ainda nesse sentido ao desenvolver a sua Cidade da Idéia
10

c o m o construção paradigmática d a o r d e m social na q u a l seu t i p o filosófico de


h o m e m deveria encontrar expressão ; finalmente, usou-o sob o p r i m e i r o aspec-
11

to na República, v i i i - i x , ao interpretar as sucessivas mudanças da o r d e m política


c o m o a expressão de mudanças correspondentes nos tipos humanos socialmente
predominantes . ,2

O uso d o princípio c o m o instrumento de crítica social é inseparável d o aspec-


to interpretadvo que acabamos de ver. As diferenças de o r d e m social p o d e m ser
vistas c o m o diferenças de tipos humanos devido à descoberta de u m a o r d e m ver-
dadeira da psique humana e ao desejo de expressar essa o r d e m verdadeira n o a m -
biente social d o descobridor. O r a , a verdade nunca é descoberta n u m espaço va-
zio; a descoberta é u m ato de diferenciação praticado em u m ambiente bastante
denso de opiniões; e, se a descoberta se refere à verdade da existência h u m a n a ,
chocará o ambiente e m u m a m p l o leque de suas mais arraigadas convicções. Assim
que o descobridor comece a comunicar, a solicitar concordância, a persuadir,
passará inevitavelmente a encontrar resistências q u e se poderão revelar fatais,
c o m o n o caso de Sócrates. Assim c o m o nos impérios cosmológicos o i n i m i g o
era apontado c o m o o representante da M e n t i r a , também a q u i , através da expe-
riência da resistência e do conflito, o oponente é apontado como o representante
da inverdade, d a falsidade, do pseudos , c o m relação à o r d e m da alma. Portanto,
13

os diversos tipos platônicos não compõem u m catálogo árido de variedades h u -


manas, mas constituem u m a diferenciação entre u m único t i p o verdadeiramente
h u m a n o e diversos tipos de desordem d a psique. O ripo verdadeiro é o filósofo,
enquanto que o sofista encarna o protótipo da desordem . 14

A identificação entre o tipo verdadeiro e o filósofo é u m p o n t o que deve ser


b e m compreendido, u m a vez que seu sentido tornou-se obscuro devido a alguns
preconceitos modernos. H o j e , n u m reorospecto da história da filosofia, o p e n -

10. Ibid. 492b.


11. Ibid.4$5e.
12. Ibid. 544d-e.
13. Ibid. 382a.
14. Distinção entre phiíophos çphilodoxos {ibid. 480).
56 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

samento de Platão aparece c o m o u m dentre muitos. Platão não tinha a intenção


de q u e a sua teoria gerasse uma filosofia d o h o m e m . Ele se havia dedicado con-
cretamente à exploração da a l m a h u m a n a e a o r d e m verdadeira d a a l m a mos-
trou-se, afinal, dependente da filosofia n o sentido estrito d o a m o r do d i v i n o so-
phon . É o mesmo sentido que ainda aparece vivo em Santo Agostinho q u a n d o
15

ele traduz para o latim o filósofo grego, chamando-o amator sapienüae . A ver- 16

dade d a alma seria alcançada através da sua orientação amorosa c o m relação ao


sophon. A verdadeira o r d e m humana é, pois, a constituição da alma, a ser definida
em termos de certas experiências que se t o r n a m predominantes a tal p o n t o que
f o r m a m o caráter. A verdadeira o r d e m d a alma, neste sentido, fornece o padrão
para a medida e a classificação da variedade empírica dos tipos humanos, assim
c o m o da o r d e m social na qual eles encontram sua expressão.

5
ESTE É o PONTO crucial d o q u a l depende o significado da teoria. U m a teoria não
é apenas a emissão de u m a opinião qualquer a respeito da existência h u m a n a
e m sociedade; é u m a tentativa de f o r m u l a r o sentido da existência, explicando
o conteúdo de u m gênero definido de experiências. Os argumentos usados não
são arbitrários, e sim derivam sua validade do c o n j u n t o de experiências ao q u a l
a teoria deve permanentemente referir-se para possibilitar o controle empírico.
Aristóteles f o i o p r i m e i r o pensador a reconhecer esta condição das teorizações a
respeito d o h o m e m . C r i o u u m termo para designar o h o m e m cujo caráter é for-
m a d o pelo agregado das experiências e m questão, chamando-o spoudaios, o
h o m e m m a d u r o . O spoudaios é o h o m e m que realizou ao grau máximo as p o -
1 7

tencialidades da natureza humana, que f o r m o u seu caráter na realização das v i r -


tudes intelectuais e éticas, o h o m e m q u e , n o auge d o seu desenvolvimento, a t i n -
ge o bios theoretikos. Assim, a ciência da ética, n o sentido aristotélico, é o estudo
do spoudaios . Além disso, Aristóteles tinha aguda consciência dos corolários prá-
18

ticos dessa teoria do h o m e m . E m p r i m e i r o lugar, a atividade teórica não pode


ser desenvolvida e m todas as condições p o r todas as pessoas. O teórico talvez não
precise ser a encarnação do próprio modelo da virtude, mas deve ao menos
ser capaz de reproduzir imaginativamente as experiências que sua teoria busca
explicar; e essa faculdade só p o d e ser desenvolvida sob certas condições, tais
c o m o a inclinação, u m a base econômica que p e r m i t a o investimento de anos de
trabalho nos estudos teóricos e u m ambiente social que não o p r i m a o h o m e m
que a eles se dedique. E m segundo lugar, a teoria c o m o explicação de certas
experiências só é inteligível para aqueles em q u e a explicação desperte experiên-
cias paralelas c o m o base empírica para testar a verdade da teoria. Se a exposição
teórica não chegar, pelo menos e m parte, a ativar experiências correspondentes,
dará sempre a impressão de ser conversa fiada o u poderá ser rejeitada c o m o ex-
pressão irrelevante de opiniões subjetivas. O debate teórico só pode ser c o n -

15. Platão, Phaedrus 278d-e; cf. com o complexo dos fragmentos de Heráclito B 35, B 40, B 50, B 108.
16. Santo Agostinho, Civilas Dei viii, 1.
17. Aristóteles, Nicomachean Ethics, 1113a, 29-35.
18. Ibid. 1176a, p. 17 e seguintes.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 57

duzido entre spoudaios, n o sentido aristotélico; a teoria não tem argumentos


contra o h o m e m que se sente, o u finge sentir-se, incapaz de reproduzir a expe-
riência. Conclui-se portanto que, historicamente, a descoberta da verdade teórica
pode não encontrar aceitação alguma na sociedade. Aristóteles não tinha ilusões
a esse respeito. É verdade que, c o m o Platão, ele t e n t o u consoruir, nos livros V I I -
V I I I de Política v i i - v i i i , u m paradigma da o r d e m social que expressaria a verdade
d o spoudaios; mas também a f i r m o u c o m m u i t a tristeza que e m n e n h u m a das cida-
des helênicas de seu tempo p o d i a m encontrar-se cem homens que fossem capa-
zes de f o r m a r o núcleo dirigente de tal sociedade; qualquer tentativa nesse sen-
tido seria totalmente inútil. 0 resultado prático parece ser u m impasse . 19

É impossível empreender u m estudo das experiências n o presente contexto.


Devido à vastidão d o assunto, mesmo u m longo esboço pareceria inapelavelmente
inadequado. Pode-se apenas fornecer u m a pequena relação t o m a n d o p o r base o
conhecimento histórico do leitor. A o a m o r de sophon, anteriormente mencionado,
devem acrescentar-se agora as variantes d o Eros platônico dirigidas a o kalon e ao
agathon, assim como à Dike platônica, a v i r t u d e da correta superordinação e subor-
dinação das forças da alma, que se opõe àpolypragmosyne sofista; sobretudo, deve-se
acrescentar a experiência de Tanatos, a m o r t e , c o m o experiência catártica da alma,
que purifica a conduta, colocando-a na mais longa de todas as perspectivas, a pers-
pectiva da m o r t e . Sob esse aspecto, a vida d o filósofo se torna, para Platão, u m a
preparação para a m o r t e ; as almas dos filósofos são almas mortas — n o sentido
d a d o n o Gorgias — e, q u a n d o o filósofo fala c o m o representante d a verdade, ele o
faz c o m a autoridade da morte sobre a m i o p i a da vida. Às três forças fundamentais
de Tanatos, Eros e Dike, devem-se acrescentar, ainda n o p l a n o platônico, as expe-
riências em q u e as dimensões interiores da alma são dadas em termos de altura e
profundidade. A dimensão da altura dá a medida da ascensão mística, ao longo da
via negativa, r u m o ao l i m i t e da transcendência — o tema d o Symposion. A dimensão
da p r o f u n d i d a d e refere-se à década anamnética ao inconsciente, de onde são ex-
Oraídos os "verdadeiros logoi" d o Timeu e do Critias.
A descoberta e a exploração dessas experiências começaram séculos antes de
Platão e prosseguiram depois dele. A descida platônica às profundezas da alma, p o r
exemplo, correspondia à diferenciação de experiências q u e havia sido explorada
p o r Heráclito e Esquilo. E o n o m e de Heráclito nos faz l e m b r a r q u e ele já havia
descoberto a tríade fé, a m o r e esperança que reapareceu c o m São Paulo. Para che-
gar à via negativa, Platão pôde recorrer aos mistérios, assim c o m o ao c a m i n h o r u -
m o à verdade que Parmênides havia mostrado em seu poema didático. E cabe a i n -
da mencionar, p o r ser próxima ao plano platônico, aphilia aristotélica, o núcleo ex-
perimental da verdadeira comunidade de homens m a d u r o s ; e também o a m o r aris-
totélico d o eu noético r e m o n t a ao culto de Heráclito ao Logos c o m u m d a h u m a n i -
dade.

P O R BREVES e incompletas que sejam estas indicações, devem ser suficientes para
evocar o t i p o de experiências que compõem a base da teoria n o sentido platônico-

19. Aristóteles, Politics, 1286b 8-21 e 1302a, 2.


58 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

aristotélico. Resta agora determinar p o r que tais experiências deveriam tornar-se


portadoras de u m a verdade d o antigo mito, e p o r q u e o teórico, c o m o represen-
tante dessa verdade, deveria ser capaz de o p o r sua autoridade à autoridade d a socie-
dade.
A resposta a essa questão deve ser buscada na natureza da experiência em dis-
cussão. A descoberta da nova verdade não constitui u m avanço d o conhecimento
psicológico n o sentido imanentista; ter-se-ia, n a verdade, q u e dizer q u e a psique
é vista c o m o u m novo centro d o h o m e m , através do q u a l ele se percebe aberto e m
relação à realidade transcendental. Além disso, a descoberta desse centro não pode
ser comparada à de u m objeto, q u e sempre estivera presente e simplesmente não
fora notado. A psique, c o m o a região n a qual a transcendência é experimentada,
teve de ser diferenciada de u m a estrutura mais compacta d a alma, a fim de ser de-
senvolvida e denominada. Mesmo levando em conta o p r o b l e m a das estruturas
compactas e diferenciadas, pode-se dizer que, antes da descoberta da psique, o h o -
m e m não tinha alma. Trata-se, p o r t a n t o , de u m a descoberta que produz seu mate-
r i a l experimental j u n t a m e n t e c o m sua explicação; a qualidade que a alma tem de
abrir-se é percebida através da abertura d a própria alma. Essa abertura, q u e t e m
tanto de ação q u a n t o de paixão, nós a devemos ao gênio dos filósofos místicos . 20

Estas experiências se t o r n a m a fonte de u m a nova autoridade. Através da aber-


tura da alma o filósofo se encontra em u m a nova relação c o m Deus; não apenas
descobre sua própria psique c o m o instrumento de percepção da transcendência
senão q u e também descobre, simultaneamente, a divindade e m sua transcendên-
cia radicalmente não-humana. Desta maneira, a diferenciação da psique é insepará-
vel de u m a nova verdade a respeito de Deus. A verdadeira o r d e m da alma p o d e
tornar-se o padrão para m e d i r tanto os tipos humanos q u a n t o os tipos de o r d e m
social, p o r q u e representa a verdade sobre a existência h u m a n a n o l i m i t e da trans-
cendência. O sentido d o princípio antropológico deve, p o r t a n t o , ser qualificado
pelo entendimento de que não se trata de u m a idéia arbitrária d o ' h o m e m como ser
imanente do m u n d o q u e se torna instrumento da crítica social, mas sim da idéia
d o h o m e m que encontrou sua verdadeira natureza através d o encontro de sua ver-
dadeira relação c o m Deus. A nova medida utilizada para a crítica social não é mais,
na verdade, o h o m e m e m si, mas o h o m e m que, através da diferenciação de sua
psique, se t o r n o u o representante da verdade divina.
A interpretação teórica da sociedade requer, assim, q u e o princípio antropoló-
gico seja suplementado p o r u m segundo princípio. Platão o expressou ao criar a
fórmula "Deus é a m e d i d a " , em oposição à definição de Protágoras " o h o m e m é
a m e d i d a " . A o f o r m u l a r t a l princípio, Platão a r r e m a t o u u m longo processo de
2 1

desenvolvimento. Sólon, u m de seus antecessores, já havia buscado a verdade q u e


pudesse ser imposta c o m autoridade sobre as facções de Atenas e a d m i t i r a c o m r e -
signação ser "muito difícil conhecer a medida invisível d o j u l g a m e n t o j u s t o ; e, n o
entanto, essa é a única maneira de conhecer os limites corretos de todas as c o i -
sas" . C o m o estadista, ele viveu e m tensão entre a medida invisível e a necessidade
22

de encarná-la na o r d e m social concreta; p o r o u t r o lado, " a mente dos imortais é

Sobre a evolução «Io significado (Ia psique, ver Werner Jaeger, The Theology ofthe Early Greek Philoso-
pàers (Oxford, 1947), especialmente o cap. V; e Bruno Snell, Die Entdeckung des Geistes: Studien zur Ents-
lehung des europãischen Denkens bei den Griechen (Hamburgo, 1948).
21. Platão, Laws, 716c.
22. Elegy andIambus ("Loeb Classical Library"), Vol I, Sólon 16.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 59

totalmente invisível para os h o m e n s " e, p o r o u t r o lado, " i n s t a d o pelos deuses fiz


23

o que fiz" . P o r sua vez, Heráclito, q u e sempre aparece c o m o u m a grande s o m -


24

bra p o r detrás das idéias de Platão, aprofundou-se mais nas experiências que' levam
à medida invisível. Reconheceu sua validade suprema: " A h a r m o n i a invisível é
melhor ( o u maior, o u mais poderosa) que a visível" . 25

Mas a h a r m o n i a invisível é difícil de encontrar, e não será encontrada a menos


que a alma seja animada p o r u m impulso prévio na direção correta: " S e m esperan-
ça, não se encontra o que não se t e m esperança de encontrar, u m a vez que a tarefa
é difícil e o caminho praticamente intransponível" ; e "através de falta de fé (apis-
26

tia) o d i v i n o evita ser c o n h e c i d o " . Finalmente, Platão absorveu a crítica feita p o r


27

Xenofane à simbolização imprópria dos deuses. Enquanto os homens criarem deu-


ses à sua própria imagem, argumentava Xenofane, a verdadeira natureza d o Deus
p i n i c o , " o m a i o r entre os deuses e homens, e diferente dos mortais e m corpo e p e n -
samento" terá de permanecer o c u l t a ; e somente quando Deus f o r o único c o m -
28

preendido em sua-.transcendência i n f o r m e c o m o o mesmo Deus de todos os h o -


mens, a natureza de todos os homens será compreendida como u m a coisa única,
p o r ser idêntica a relação de cada u m deles com a divindade transcendente. Dentre
todos os pensadores gregos p r i m i t i v o s , Xenofane talvez tenha sido o q u e c o m mais
clareza percebeu a idéia universal d o h o m e m p o r meio da experiência da trans-
cendência u n i v e r s a l .
29

A verdade d o h o m e m e a verdade de Deus são u m a só coisa, una e inseparável.


O h o m e m viverá a verdade de sua existência q u a n d o a b r i r sua psique à verda-
de de Deus; e a verdade de Deus tornar-se-á manifesta na história q u a n d o houver
wmoldado a psique d o h o m e m para se fazer receptiva à medida invisível. Esse é o
grande tema da República; n o amâgo d o diálogo, Platão colocou a parábola da ca-
verna, c o m sua descrição da periagoge, a conversão, o p o n t o de inflexão a partir d o
q u a l a inverdade d a existência humana, t a l c o m o prevalecia na sociedade sofista
ateniense, é superada pela verdade da Idéia . Platão compreendeu, ademais, que
30

a m e l h o r maneira de assegurar a verdade da existência era a educação adequada


desde a p r i m e i r a infância; p o r essa razão, n o segundo l i v r o da República, ele quis
e l i m i n a r da educação dos jovens as simbolizações impróprias dos deuses, tais c o m o
propagadas pelos poetas, e substituí-las p o r símbolos adequados . Nessa oca- 31

sião, desenvolveu o vocabulário técnico necessário ao t r a t o de tais problemas. Pa-


i a falar dos vários tipos de simbolização inventou o termo " t e o l o g i a " e chamou-os
dpos de teologia, typoiperi theologias . 32

Nessa mesma ocasião, Platão isolou o componente gnoseológico d o problema.


Se, durante a juventude, a alma for exposta ao t i p o errado de teologia, ficará de-
formada em seu centro decisivo, n o q u a l se f o r m a o conhecimento da natureza de
Deus; a a l m a se tornará presa da " a r q u i - m e n t i r a " , o alethos pseudos, que é a c o n -

23. Ibid., Sólon 17.


2*. Ibid., Sólon 34, vs. 6.
25. Diels-Kranz, Fragmente der Vorsokratiker (5* edição; Berlim, 1934-38), Heráclito B 54.
26. Ibid. Heráclito B 18.
27. Ibid. Heráclito B 86.
28. Ibid. Xenofane B 23.
29. Jaeger, op. cit., cap. I I I — " A doutrina divina de Xenofane".
50. Platão, RepubUc 518 d-e.
31. /èírf. 378-79.
32. Ibid. 379a.
60 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

cepção errônea dos deuses . Esta não é u m a mentira c o m u m e quotidiana, para a


33

q u a l pudesse haver circunstâncias atenuantes; é a suprema m e n t i r a da "ignorân-


cia, da agnoia, na a l m a " . Adotando-se agora a terminologia platônica, pode-se
3 4

dizer, p o r t a n t o , q u e n a interpretação teórica d a sociedade e princípio antropoló-


gico requer o princípio teológico como seu correlato. A validade dos padrões de-
senvolvidos p o r Platão e Aristóteles depende d a concepção de u m h o m e m q u e p o -
de ser a medida da sociedade porque Deus é a medida da sua alma.

O TEÓRICO é o representante da nova verdade q u e rivaliza com a verdade repre-


sentada pela sociedade. Até aí chegamos. Mas resta aparentemente a dificuldade
adicional do impasse causado pelo fato de q u e a nova verdade tem pouca chance de
se tornar socialmente efetiva, o u de f o r m a r uma sociedade à sua margem.
Esse impasse, na verdade, existiu. Surgiu como resultado do desapontamento
de Platão c o m Atenas. E m seu tempo, a cidade realmente não era mais capaz de so-
frer u m a grande reforma espiritual — mas ela não fora sempre tão estéril q u a n t o
parece ao se concentrar a atenção apenas e m sua resistência a Sócrates e Platão.
A elaboração platônico-aristotélica da nova verdade m a r c o u o fim de u m a longa
história; representou o trabalho de pensadores atenienses que dificilmente pode-
r i a m ter realizado suas generalizações teóricas sem a atividade prática dos políti-
cos atenienses q u e os precederam. As construções paradigmáticas de Platão e A r i s -
tóteles pareceriam fantasias estranhas a seus contemporâneos se a Atenas de M a r a -
tonas e a tragédia não fossem a lembrança viva de u m a representação efêmera d a
nova verdade. A l i , n u m m o m e n t o d o u r a d o da história, acontecera o milagre de
u m a sociedade políüca ardculada até o nível d o cidadão c o m o unidade representá-
vel, o milagre de u m a geração que experimentou individualmente a responsabili-
dade de representar a verdade da alma e expressou essa experiência através da t r a -
gédia c o m o u m culto público. Devemos examinar u m a dessas tragédias para c o m -
preender o novo t i p o de representação; e nada m e l h o r para este propósito q u e os
Suplicantes de Esquilo.
O enredo de os Suplicantes gira em t o r n o de u m p r o b l e m a jurídico e sua solu-
ção através da ação política. As filhas de Dânaos fogem c o m seu p a i d o Egito para
Argos porque os filhos de Aegyptus tentaram forçá-las a casar-se contra a vontade.
Em Argos, cidade de seu antepassado I o , esperam obter asilo. Pelasgo, o r e i de A r -
gos, aparece e os fugitivos lhe expõem sua situação. Imediatamente ele percebe
o d i l e m a : o u nega o asilo, deixando que os suplicantes sejam levados pelos egíp-
cios, que os seguem de perto, e provocando com isso a i r a de Zeus; o u se envolve
n u m a guerra contra os egípcios que, na m e l h o r das hipóteses, será u m a empreita-
da custosa para sua cidade. Ele enuncia as alternativas: " S e m dano, não sei c o m o
ajudá-los; e, n o entanto, não é aconselhável desprezar estas súplicas". Descreve-se

33. Ibid. 382a.


34. Ibid.3B2b.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E
61

f r a n c a m e n t e e m estado d e indecisão p e r p l e x a ; sua a l m a está t o m a d a p e l o m e d o de


" a g i r o u não a g i r e aceitar o q u e o d e s u n o t r a g a " . 3 5

A decisão não é fácil. Pela l e i , o namos de seu país, as donzelas não têm n e n h u m
I d i r e i t o c o n t r a os egípcios q u e q u e r e m desposá-las; mas os suplicantes r a p i d a m e n -
te l e m b r a m o r e i q u e existe u m a justiça m a i s elevada, Dike, q u e o casamento é u m a
ofensa p a r a eles e q u e Zeus é seu Deus. P o r u m l a d o , o r e i é i n s t a d o a t o m a r D i k e
c o m o sua aliada ao d e c i d i r o caso, p o r o u t r o l a d o , deve considerar os interesses d a
I c i d a d e d e A r g o s . Se ele engajar sua c i d a d e n a g u e r r a , será acusado d e h o n r a r os f o -
rasteiros às custas de seu p r ó p r i o p o v o ; se a b a n d o n a r os suplicantes, seus filhos e
sua casa terào de p a g a r p o n t o p o r p o n t o essa violação de D i k e . O r e i reflete grave-
m e n t e : " H á necessidade d e u m c o n s e l h o p r o f u n d o e salvador, c o m o o de u m m e r -
g u l h a d o r q u e b a i x a às profundezas, c o m o l h o s atentos e sem g r a n d e p e r t u r b a -
r ã o ' . S o m o s l e m b r a d o s d o " c o n h e c i m e n t o p r o f u n d o " de Heráclito, a c o n c e p -
1 3 6

ção s e g u n d o a q u a l o l i m i t e da a l m a não p o d e ser alcançado p o r q u e seu L o g o s é


d e m a s i a d o p r o f u n d o ? . As Unhas de E s q u i l o t r a d u z e m a concepção de p r o f u n d i -
3

dade de Heráclito na ação de m e r g u l h a r * . 3

Nesse p o n t o , n o e n t a n t o , a questão d o G o v e r n o c o n s t i t u c i o n a l aparece c o m o


u m f a t o r c o m p l i c a d o r . D o p o n t o de vista d o r e i , o m e r g u l h o traz o desejado j u l g a -
m e n t o e m favor dos s u p l i c a n t e s ; mas Pelasgo é u m r e i c o n s t i t u c i o n a l e não u m t i -
r a n o . O p o v o , o demos, q u e terá de a s s u m i r o ônus d a g u e r r a inevitável, deve ser
c o n s u l t a d o e chegar a u m consenso. O r e i d e i x a os suplicantes p a r a r e u n i r o p o -
v o e s u b m e t e r o caso à assembléia g e r a l , o Koinon, a f i m de p e r s u a d i r seus m e m b r o s
a c o n c o r d a r c o m a decisão a q u e chegara e m sua a l m a . O d i s c u r s o d o r e i t e m êxito;
os decretos a p r o p r i a d o s , psepkismata, são a p r o v a d o s p o r u n a n i m i d a d e . O p o v o
c a p t a o a r g u m e n t o d o d i s c u r s o s u t i l m e n t e e l a b o r a d o e segue o m e r g u l h o d o r e i n a
p r o f u n d i d a d e d a a l m a . O Peitho, a persuasão d o r e i , f o r m a as lamas de seus o u v i n -
tes, q u e estão dispostos a deixar-se f o r m a r , e faz q u e a D i k e de Zeus prevaleça so-
b r e a paixão, d e t a l m a n e i r a q u e a decisão m a d u r a representa a v e r d a d e d o deus.
O c o r o r e s u m e o significado desse fato c o m a l i n h a : " E Zeus q u e m faz o fim a c o n -
tecer
A tragédia e r a u m c u l t o público — e u m c u l t o c a r o . P r e s s u p u n h a q u e a platéia
fosse constituída p o r pessoas q u e pudessem seguir a peça c o m a g u d o senso de
identificação e projeção — tua res agitur. A platéia deveria c o m p r e e n d e r o sentido
d a t r a m a , d o d r a m a , c o m o u m a t o d e obediência à D i k e è c o n s i d e r a r a saída fá-
cil d o escapismo como u m a antítese d a ação. Ela deveria c o m p r e e n d e r a prostasia
ateniense c o m o a organização d o p o v o sob u m chefe — na q u a l o chefe t r a t a d e r e -
presentar a D i k e de Zeus e usa o seu p o d e r de persuasão p a r a c r i a r n o p o v o o mes-
m o estado de espírito da sua a l m a , p o r ocasião das decisões concretas, e n q u a n t o
o p o v o deseja seguir essa orientação persuasiva q u e leva à representação d a v e r d a -
de através d a ação m i l i t a r cor\tra u m m u n d o d e m o n i a c a m e n t e d e s o r d e n a d o , s i m -
b o l i z a d o nos Suplicantes pelos egípcios. A tragédia, e m seu p e r í o d o de glória, é u m a

35. Esquilo. Suppliants. v. 380.


36. Ibid. 407-8.
37. Diels-Kxanz, op. cit., Heráclito B 45.
38. Sobre a origem da concepção d a profundidade da a l m a ver Snell, op. cit., especialmente pp. 32 e
seguintes.
39. A análise de Os Suplicantes feita por E r i k Wolf, e m Griechisches Rechtsdenken, V o l . I : Vorsokratiker und
Frúhe Dichter (Frankfurt a. M., 1950), pp. 345-56, era demasiado recente para poder ser usada na presen-
te obra.
A N O V A C I Ê N C I A DA P O L Í T I C A

literatura que revive a grande decisão a favor da Dike. A i n d a que a platéia não se-
j a composta de heróis, os espectadores devem, pelo menos, estar dispostos a ver a
ação trágica c o m o paradigmática; a busca heróica da alma e a aceitação das conse-
qüências devem conter, aos olhos da platéia, u m a mensagem válida; o destino do
herói deve fazer tremer o espectador, c o m o se se tratasse d o seu próprio destino.
O sentido da tragédia c o m o culto d o estado consiste n o sofrimento representati-
vo 4 0

O MILAGRE da Atenas trágica d u r o u p o u c o ; sua glória desapareceu nos horrores da


Guerra d o Peloponeso. C o m o declínio de Atenas, os problemas da tragédia trans-
formaram-se. U m dos últimos trabalhos de Eurípides, Tróades, escrito p o r volta de
415 a . C , tem p o r tema .a vileza, os abusos, a vulgaridade e as atrocidades praticadas
pelos gregos p o r ocasião da queda de Tróia; a aventura heróica desliza para u m
pântano que termina p o r sugar os próprios gregos. Na p r i m e i r a cena já a catás-
trofe é antecipada pelo diálogo entre Atena e Posídon; Atena, q u e antes p r o t e -
gia os gregos, m u d a de lado, p o r q u e seu t e m p l o f o i insultado, e c o m b i n a c o m Po-
sídon a destruição dos vencedores em seu c a m i n h o de volta à casa. A tragédia acon-
tece n o ano seguinte ao da carnificina de Meios, q u e revela a corrupção d o ethos
ateniense, c o m o se sabe através d o inesquecível diálogo sobre Meios e m Tucídites;
e acontece n o mesmo a n o da expedição à Sicília, que terminaria e m desastre. Foi
o ano que selou o destino de Atenas; os deuses, c o m efeito, haviam m u d a d o de
lado . 41

A representação da verdade passou da Atenas de M a r a t o n a aos filósofos.


Q u a n d o Aristófanes se q u e i x o u de que a tragédia m o r r e r a c o m a filosofia recolheu
pelo menos e m parte o sentido d o que realmente acontecera, o u seja, a translado
da verdade do povo de Atenas p a r a Sócrates. A tragédia m o r r e r a p o r q u e os cida-
dão de Atenas já não eram representáveis pelos heróis sofredores. E o drama, a ação
n o sentido dado p o r Esquilo, encontrava agora seu herói n o n o v o representante da
verdade, o Sofrido Servo Sócrates — se nos é p e r m i t i d o usar o símbolo de Dêu-
tero-Isaías. À tragédia, como gênero literário, seguiu-se o diálogo socrático. A n o -
va verdade teórica tampouco era ineficaz n o sentido social. É verdade q u e Atenas
já não p o d i a ser sua representante; mas os próprios Platão e Aristóteles criaram o
novo t i p o de sociedades que poderia propagar sua verdade, o u seja, as escolas de
filosofia. As escolas sobreviveram à catástrofe política d a cidade e influenciaram
de f o r m a capital não só o pensamento das sociedades helenísticas e r o m a n a , c o m o
também, através dos tempos, das civilizações islâmica e ocidental. U m a vez mais,
a ilusão d o impasse é criada apenas pelo fascínio despertado pelo destino de Ate-
nas.

40. Sobre o sofrimento representativo por meio do mergulho na profundidade, ver especialmente Es-
quilo, Prometheus 1026 e seguintes.
41. Sobre as implicações políticas da obra Tróades, ver Altred Weber, Das Tragische und die Geschichte
(Hamburgo, 1943), pp. 385 e seguintes.
REPRESENTAÇÃO E V E R D A D E 63

O RESULTADO da investigação p o d e ser agora resumido. A o significado existencial


da representação, deve-se acrescentar o sentido de que sociedade é a representante
de uma verdade transcendente. A m b o s os significados se referem a diferentes aspec-
tos de u m mesmo problema:*em p r i m e i r o lugar, na medida e m q u e o representan-
t e existencial da sociedade é seu chefe ativo na representação da verdade; e, em se-
g u n d o lugar, na medida e m que o governo o b t i d o pelo consenso do corpo de c i -
dadãos pressupõe a articulação dos cidadãos individualmente considerados até
o p o n t o e m que eles se possam t o r n a r participantes ativos na representação da
verdade através d o peitho, a persuasão. A natureza precisa deste p r o b l e m a m u l t i -
facetado chegou à consciência reflexiva através da descoberta da psique c o m o o
centro de percepção da transcendência. O descobridor, o filósofo místico, t o r n o u -
se, em conseqüência, o representante de u m a nova verdade; e os símbolos através
dos quais ele explicou sua experiência f o r m a r a m o núcleo de u m a teoria da o r d e m
social. Finalmente, f o i possível penetrar n o mistério d o esclarecimento crítico. Ge-
neticamente ele consiste na descoberta da psique e de sua verdade antropológi-
ca e teórica, enquanto que criticamente consiste na mensuração dos símbolos da
realidade pelos padrões da nova verdade.
III

A LUTA PELA REPRESENTAÇÃO


NO IMPÉRIO ROMANO

O CAPÍTULO anterior m o s t r o u que os problemas da representação não se esgo-


tam c o m a articulação interna da sociedade e m sua existência histórica. A socie-
dade como u m todo representa também u m a verdade transcendente. Por conse-
guinte, o conceito de representação n o sentido existencial teve que ser suple-
mentado pelo conceito de representação transcendental. E, nesse novo nível d o
problema, surgiu o u t r a dificuldade, com o desenvolvimento da teoria c o m o u m a
verdade d o h o m e m , e m oposição à verdade representada pela sociedade. Esta d i -
ficuldade ainda não é a última. O campo dos tipos conflitantes de verdades a m -
pliou-se historicamente c o m o surgimento d o Cristianismo. Esses três tipos de
verdades conflitantes p a r t i c i p a r a m da grande luta pelo monopólio da representa-
ção existencial n o Império Romano. T a l luta constituirá o tema d o presente capí-
t u l o ; mas, antes de a b o r d a r o tema p r o p r i a m e n t e d i t o , devem-se esclarecer
alguns pontos sobre a t e r m i n o l o g i a e a teoria e m geral. Este procedimento p r e -
paratório à discussão dos temas gerais evitará digressões e explicações incômo-
das que, de o u t r o m o d o , i n t e r r o m p e r i a m o estudo especificamente político n o
m o m e n t o e m q u e as questões se tornassem agudas.
D o p o n t o de vista da terminologia, será necessário estabelecer a distinção
entre três tipos de verdades. O p r i m e i r o deles é o d a verdade representada pelos
antigos impérios, q u e será designado c o m o "verdade cosmológica". O segundo
tipo de verdade aparece na cultura política de Atenas, especificamente na tragé-
dia, e será denominado "verdade antropológica" — n o entendimento de que
o termo cobre integralmente o campo dos problemas ligados à psique considera-
da como o centro de percepção da transcendência. O terceiro t i p o de verdade surge
c o m o Cristianismo e será chamado "verdade soteriológica".
A diferenciação terminológica entre o segundo e o terceiro t i p o é necessária
para o desenvolvimento da teoria p o r q u e o complexo de experiências platônico-
aristotélicas f o i a m p l i a d o pelo Cristianismo e m u m p o n t o decisivo. Talvez esse
p o n t o possa ser m e l h o r determinado através de u m a rápida reflexão sobre a c o n -
cepção aristotélica da philia politike, a amizade política . Para Aristóteles, tal amí-
1

zade é a substância da sociedade política; consiste na homonoia, o acordo espiri-


tual entre os homens, e só pode concretizar-se se esses homens viverem em har-

I . Aristóteles, Nicomachean Ethics, 1167b 3-4.


66 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

m o n i a c o m o nous, o u seja, a parte mais divina q u e existe neles próprios. Todos


os homens participam do nous, embora em diferentes graus de intensidade; desse
m o d o , o a m o r dos homens pelo seu próprio eu noético transformará o nous n o
vínculo c o m u m entre eles . A amizade só é possível se os homens f o r e m iguais
2

através d o a m o r d o seu eu noético; o vínculo social entre desiguais será fraco. Por
essa razão, Aristóteles f o r m u l o u sua tese de que é impossível a amizade entre
Deus e o h o m e m , dada a desigualdade radical existente entre eles . 3

A impossibilidade da phiha entre Deus e o h o m e m pode ser considerada tí-


pica para todo o campo abrangido pela verdade antropológica. As experiências
cujo desenvolvimento resultou na teoria dos filósofos místicos a respeito do h o -
m e m tinham c o m o traço c o m u m a ênfase dada ao l a d o h u m a n o d a orientação
da alma para a divindade. A alma orienta a si própria para u m Deus que p e r m a -
nece imóvel em sua transcendência; e m sua busca, ela se abre para a realidade
divina, mas n u n c a encontra u m m o v i m e n t o de resposta p o r parte desta. A i n -
clinação de Deus e m sua graça na direção da alma, q u e caracteriza o Cristianismo,
não se enquadra n o campo dessas experiências — m u i t o embora seja verdade que,
ao ler Platão, tem-se a sensação de estar permanentemente prestes a penetrar nessa
nova dimensão. A experiência da mutualidade na relação c o m Deus, da amiátia
no sentido tomista, da graça que impõe u m a f o r m a sobrenatural à natureza d o
h o m e m , constitui a diferença específica da verdade cristã . A revelação histórica
4

dessa graça, através da encarnação d o Logos em Cristo, c o m p l e t o u de modo inte-


ligível o m o v i m e n t o espiritual adventício dos filósofos místicos. A autoridade
crítica sobre a antiga verdade da sociedade que a alma obtivera através da sua aber-
tura e da sua orientação r u m o à medida invisível f o i assim confirmada pela reve-
lação da própria medida. Neste sentido, pode-se dizer p o r t a n t o que o fato da
revelação é o seu conteúdo . 5

Q u a n d o se fala nestes termos sobre as experiências dos filósofos místicos e


de sua realização completa c o m o Cristianismo, está implícita u m a premissa rela-
tiva à história que cumpre examinar. Trata-se d a premissa segundo a q u a l a subs-
tância da história consiste nas experiências pelas quais o h o m e m alcança a c o m -
preensão de sua humanidade e, simultaneamente, de seus limites. A filosofia e o
Cristianismo d o t a r a m o h o m e m c o m u m a estatura q u e o capacita a desempe-
n h a r c o m eficácia histórica o papel de contemplador racional e senhor pragmá-
tico de u m a natureza que perdeu seus terrores demoníacos. C o m a mesma eficá-
cia histórica, n o entanto, colocaram-se os limites à grandeza h u m a n a ; o Cristia-
n i s m o concentrou o demonismo n o perigo permanente de u m a queda das a l t u -
ras d o espírito — que o h o m e m só possui pela graça de Deus — para a a u t o n o m i a
d o próprio eu, a queda do amor Dei para o amor sui. A percepção de que o h o m e m ,
em sua mera condição humana, sem a Jides caritate formata, é apenas u m nada de-
moníaco f o i levada pelo Cristianismo ao l i m i t e derradeiro da clareza, o q u a l é
p o r tradição chamado revelação.
Essa premissa a respeito da substância da história traz conseqüências para a
teoria da existência humana e m sociedade que mesmo os filósofos de m a i o r ní-

2. Ibid., 1166ale seguintes; 1167 a 22 e seguintes; 1177a 12-18; 1177b27-1178 a 8.


3. ibid., 1158b29— 1159a 13.
4. Tomás de Aquino, Contra GenüUs iii, 91.
5- Esta concepção da revelação, assim como de sua função na filosofia da história, foi elaborada em
T i o r detalhe por H . Richard Niebuhr, The Aíeaning of Revelation (Nova York, 1946), especialmente pp.
*5> 209 e seguintes.
A L U T A P E L A R E P R E S . NO IMP. R O M A N O 67

vel, sob a pressão da civilização secularizada, hesitam, c o m freqüência, e m aceitar


sem reservas. V i m o s , p o r exemplo, q u e K a r l Jaspers considerou a época dos filó-
sofos místicos c o m o o período crucial da humanidade, e não a época cristã, igno-
rando a clareza última dada pelo Cristianismo à conduto humana. H e n r i Bergson
também m o s t r o u hesitações c o m respeito a este tema — e m b o r a e m seus últimos
diálogos, publicados postumamente p o r Sertillanges, parecesse inclinado a acei-
tar a conseqüência de sua própria filosofia d a história . Essa conseqüência pode ser
6

descrita c o m o o princípio segundo o q u a l a teoria d a existência d o h o m e m e m


sociedade deve ter p o r base o campo das experiências que passaram p o r u m p r o -
cesso histórico de diferenciação. Há u m a correlação estrita entre a teoria da exis-
tência h u m a n a e a diferenciação histórica das experiências através das quais esta
existência chegou à autocompreensão. O teórico não se pode p e r m i t i r desconsi-
derar parte alguma dessa experiência, seja p o r que razão f o r ; tampouco pode t o -
m a r posição e m u m p o n t o arquimédico a n t e r i o r à substância da história. A teo-
ria é conduzida pela história n o sentido das experiências diferenciadoras. U m a
vez que a diferenciação máxima f o i alcançada c o m a filosofia grega e o Cristianis-
m o , tem-se concretamente c o m o conseqüência q u e a teoria deve circunscrever-
se ao horizonte histórico das experiências clássica e cristã. V o l t a r atrás depois da
diferenciação máxima seria u m retrocesso teórico, conduzindo a u m dos diver-
sos tipos de descarrilamento que Platão caracterizou c o m o doxa . N a história 1

intelectual moderna, sempre que ocorreu alguma revolta sistemática contra a d i -


ferenciação máxima, o resultado f o i a queda n o n i i l i s m o anticristão, na idéia
d o super-homem e m q u a l q u e r das suas variantes — seja o super-homemíprogres-
sista de Condorcet, o super-homem positivista de Comte, o super-homem mate-
rialista de M a r x o u o super-homem dionisíaco de Nietzsche. O p r o b l e m a dos
descarrilamentos antiteóricos será, c o n t u d o , tratado e m m a i o r detalhe n a segun-
da parte desta obra, p o r ocasião d o estudo dos movimentos políticos de massa
modernos. Para o atual propósito, já deve estar suficientemente esclarecido o
princípio d a correlação entre a teoria e a diferenciação experiencial máxima, q u e
orientará a análise seguinte.

2
N O V A M E N T E a análise será efetuada de acordo c o m o p r o c e d i m e n t o aristotélico.
Começará pela auto-interpretação da sociedade — n o entendimento, porém, de
que a auto-interpretação inclui agora as interpretações dos teóricos e dos santos.

6. A. D. Sertillanges, Avec Henri Bergson (Paris, 1941).


7. A dependência do progresso da atividade teórica com relação às experiências de diferenciação da
transcendência tornou-se um problema importante da história intelectual. Charles N. Cochrane, em
Christianity and Classical Culture: a Study of Thought and Actionfrom Augustus to Augustine (Nova York, 1944),
especialmente caps. X I e X I I , por exemplo, dá grande importância ao papel da superioridade teórica
como fator causai da vitória do Cristianismo sobre o paganismo no Império Romano. A superioridade
técnica da metafísica cristã sobre a grega, por outro lado, foi cuidadosamente considerada em Étienne
Gilson, VEsprit de la philosophie médiévale (2* ed.; Paris, 1948), especialmente caps. I I I , I V e V. Por sua
vez, a continuidade evolutiva entre as explicações teóricas das experiências de transcendência gregas e
cristãs foi esclarecida por Werner Jaeger em Theology of the Early Greek Philosophers (Oxford, 1947). Este
debate, contemporâneo traz novamente à luz o grande problema do praparatio evangélica, que Clemente
de Alexandria já compreendera ao referir-se às Escrituras hebréias e à filosofia grega como os dois V e -
lhos Testamentos do Cristianismo (Stromaíes vi). Sobre esta questão ver ainda Serge Boulakof, Le Pa-
raclet (Paris, 1946), pp. 10 e seguintes.
68 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

Os vários tipos de verdade, os typoi peri theologias de Platão, q u e e n t r a r a m


em competição entre si, tornaram-se objeto de u m a classificação f o r m a l . A mais
antiga das classificações que sobreviveram até os dias de hoje é anterior à era cris-
tã; f o i f o r m u l a d a p o r V a r r o e m Antiquiti.es, trabalho concluído p o r v o l t a de 47
a.C. Santo Agostinho levou a efeito u m a reclassificação n o Civitas Dei, próximo
ao fim do período r o m a n o . Os dois trabalhos se interrelacionam, u m a vez que
a classificação de V a r r o f o i preservada justamente pela descrição e crítica de
Santo A g o s t i n h o .
8

De acordo c o m essa versão, V a r r o identificou três tipos (genera) de teologia


— o mítico, o físico e o c i v i l .
9

A teologia mítica é a dos poetas; a física, dos filósofos; e a civil, dos p o v o s 10

o u , em outra versão, dos principes ávitatis . A t e r m i n o l o g i a grega, assim c o m o


11

a formulação detalhada, i n d i c a m q u e V a r r o não i n v e n t o u a classificação, mas


sim t o m o u - a de u m a fonte grega, provavelmente estóica.
Por sua vez, Santo Agostinho adotou os tipos de V a r r o c o m algumas m o d i f i -
cações. E m p r i m e i r o lugar, traduziu as teologias mítica e física d o grego para o
latim como teologia fabulosa e natural, divulgando assim o termo "teologia n a -
t u r a l " , em uso até os dias de h o j e . E m segundo lugar, tratou a teologia f a b u -
12

losa c o m o parte da teologia civil dado o caráter de c u l t o apresentado pela poesia


dramática referente aos deuses . E m conseqüência, os tipos de V a r r o estariam r e -
13

duzidos a dois: a teologia civil e a natural. E interessante observar que essa r e d u -


ção provavelmente se deve, através de vários intermediários, à influência de u m a
frase de Antístenes que dizia que "segundo nomos há m u i t o s deuses, mas, segundo
physis, há apenas u m " . Nomos, ao contrário de physis, engloba tanto a cultura poé-
tica quanto a política c o m o o b r a d o h o m e m — u m a ênfase n a origem humana
dos deuses pagãos que deve ter atraído Santo A g o s t i n h o . Finalmente, c o m o o
14

Cristianismo e sua verdade sobrenatural tinham de ser incluídos entre os tipos


de teologia, o resultado f o i u m a nova divisão tripartite e m c i v i l , natural e sobre-
natural.

I
As CLASSIFICAÇÕES surgiram incidentalmente à luta pela representação e estavam
carregadas das tensões provocadas pela autoconsciência e pelos choques. A
análise de tais tensões p o d e ser iniciada c o m p r o v e i t o pela reflexão a respeito
de u m a curiosidade d o Civitas Dei. D o p o n t o de vista de sua função política, a obra

8. Encontra-se uma reconstituirão parcial do trabalho de Varro, com base no relato de Santo Agos-
tinho, e m R. Agahd, De Varronis rerum dtvinarum tibris I..XIV, XV, XVI(Leípzig, 1896).
9. Santo Agostinho, Civitas Dei (ed. Dombart) vi. 5.
10. Itndb.
11. Ibidw. 27.
12. ibid iv. 5. Sobre o uso do termo "teologia natural" por Santo Agostinho, ver Werner Jaeger, The
Thtology of tke Early Greek Pkilosophers (Oxford, 1947), pp. 2 e seguintes.
1 3 . Op. cü. vi. 6.
I-t. Ver a este respeito Jaeger, op. cit., p. 3, nn. 8-10. A classificação de Antístenes, juntamente com
suas citações em Minúcio Felix, Lactàncio e Clemente de Alexandria encontram-se em Eduard Zeller,
Du PüIasopHeder Griechen, 11/1 (5* ed.; Leipzig, 1922), 329, n. I.
A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 69

era u m livre de árconstance. A conquista de R o m a p o r Alarico e m 410 d.C. havia


alvoroçado a população paga do Império; a queda de Roma f o i considerada co-
m o u m a punição dos deuses pela negligência aos cultos que lhes eram devidps.
Essa perigosa o n d a de ressentimento parecia requerer a crítica e a refutação a m -
plas da teologia paga em geral e dos argumentos contra o Cristianismo e m p a r -
ticular. A solução dada p o r Santo Agostinho a essa tarefa f o i curiosa, pois assumiu
a f o r m a de u m ataque crítico ao Antiquities de V a r r o , u m a obra escrita quase q u i -
nhentos anos antes c o m o propósito de reviver o entusiasmo cada vez mais débil
dos romanos p o r sua religião civil. Desde os tempos de V a r r o , tal entusiasmo não
dera sinais de aumento significativo; e dificilmente poder-se-ia suspeitar que a
população não-romana fosse mais devota que os próprios romanos. A o tempo
de Santo Agostinho, a vasta m a i o r i a dos pagãos d o Império era d e fato composta
de adeptos dos mistérios de Eleusis, Isis, Atis e M i t r a , ao invés de cultores das d i -
vindades da R o m a republicana; ele, n o entanto, m a l mencionou esses misté-
rios, ao mesmo tempo em que submetia a teologia civil à crítica detalhada dos
livros v i e v i i .
Não se deve buscar a solução desse enigma nas estatísticas sobre filiações
religiosas, e sim na questão da representação pública da verdade transcendente.
Os leais à religião civil de Roma constituíam realmente u m g r u p o relativamente
pequeno, mas o culto r o m a n o permanecera c o m o o culto oficial d o Império até
b e m depois da metade do século I V . N e m Constantino n e m seus sucessores cris-
tãos consideraram aconselhável abandonar suas funções de pontifex maximus de
Roma. Ê verdade que, sob os filhos de Constantino, impuseram-se sérias l i m i t a -
ções à liberdade do culto pagão, mas o golpe decisivo f o i desferido apenas p o r
Teodósio c o m a famosa lei d o a n o 380, q u e t o r n o u o Cristianismo o r t o d o x o a r e l i -
gião obrigatória para todos os súditos d o Império, r o t u l o u de tolos e insanos
todos os dissidentes e ameaçou-os c o m a eterna i r a de Deus além da punição do
i m p e r a d o r . Até então, a implementação d a legislação i m p e r i a l e m matéria r e l i -
15

giosa havia sido pouco sistemática, c o m o era de esperar n u m meio predominante-


mente pagão; e, a j u l g a r pelo número de leis repetitivas, não deve ter sido m u i t o
efetiva mesmo depois de 380. De qualquer maneira, na cidade de Roma, as leis
eram simplesmente postas de lado e o culto oficial permaneceu pagão. Nessa
época, n o entanto, o ataque concentrou-se nesse centro sensível. N o a n o de 382,
Craciano, o imperador d o Ocidente, a b a n d o n o u o título de pontifex maximus, r e -
j e i t a n d o , c o m isso, a responsabilidade d o Governo pelo sacrifício de R o m a ; além
disso, f o r a m extintas simultaneamente as dotações para o c u l t o , de m o d o que os
custosos sacrifícios e festivais já não p o d i a m realizar-se; e, n u m ato ainda mais
decisivo, a imagem e o Altar de Vitória f o r a m removidos da saia de reuniões do*
Senado. Os deuses de R o m a não mais eram representados n e m mesmo na capi-
tal d o Império . 16

E m 383 a situação m e l h o r o u d o p o n t o de vista pagão: Graciano f o i assassi-


nado, a cidade f o i ameaçada pelo a n t i i m p e r a d o r Máximo e u m a má colheita p r o -
vocou crise e fome. Era evidente que os deuses estavam mostrando sua i r a e o m o -
mento parecia propício a que se pedisse ao j o v e m Valentiniano I I a revogação das

15. Codex Theodosianus xvi, i. 2.


16. Sobre o caso do Altar de Vitória, ver Hendrik Berkhof, Kircke und Kaiser: Eine Untersuchung der Ents-
tehung der byzantinischen und der theokraüschen Staatsauffassung im viercem Jahrhundert, trad. Gottfried M.
Locher (Zollikon - Zurique, 1947) pp. 174 e seguintes; Gaston Boissier, La Fm du Paganisme vol 11 (2*
ed.; Paris, 1894).
70 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

medidas anteriores e, e m particular, a restauração do A l t a r de Vitória. A petição


d o p a r t i d o pagão n o Senado f o i apresentada ao i m p e r a d o r p o r Símaco, e m 384;
lamentavelmente, n o entanto, a colheita desse ano f o i excelente, fornecendo u m
fácil argumento a Santo Ambrósio, que defendeu o lado cristão . 17

O m e m o r a n d o de Símaco constituiu u m a nobre defesa d a tradição r o m a n a ,


baseado n o antigo princípio do-ut-des. A negligência d o culto leva ao desastre;
Vitória, sobretudo, beneficiou o Império e não deve ser desprezada ; então, n u m 18

toque de tolerância, o a u t o r pede que a cada u m seja p e r m i t i d o venerar a d i v i n -


dade à sua m a n e i r a . Santo Ambrósio, e m sua resposta, pôde valer-se facilmente
19

do mesmo princípio do-ut-des e não teve dificuldades em mostrar q u e a nobre


20

tolerância de Símaco não era tão impressionante caso se considerasse que, n a prá-
tica, implicava a participação compulsória dos senadores cristãos nos sacrifícios a
Vitória . O argumento decisivo, n o entanto, estava c o n t i d o n a sentença q u e f o r -
21

m u l o u o princípio da representação: " E n q u a n t o todos os homens que são súdi-


tos da lei r o m a n a servem (militore) a vós, imperadores e príncipes da terra, vós
próprios servís (militare) ao Deus onipotente e à sagrada f é " . Chega a parecer- 22

se c o m a O r d e m de Deus m o n g o l , discutida n o capítulo anterior, mas é, na ver-


dade, seu inverso. A formulação de Santo Ambrósio não justifica a m o n a r q u i a i m -
perial apontando ao governo monárquico de Deus — embora este p r o b l e m a
também se tenha t o r n a d o agudo n o Império Romano, c o m o veremos dentro e m
pouco. Ela não fala de governar, mas de servir. Os súditos servem ao príncipe
na terra c o m o seu representante existencial, e Santo Ambrósio não tinha ilusões
a respeito da fonte da posição i m p e r i a l ; são as legiões que fazem Vitória, obser-
vou c o m desprezo, e não Vitória q u e faz o Império . Começava a aflorar c o n -
23

cretamente na sociedade política o conceito da temporalidade como algo dis-


t i n t o da o r d e m espiritual. Acima dessa esfera temporal d o serviço p o r parte dos
súditos, surge o I m p e r a d o r , q u e serve apenas a Deus. O apelo de Santo Ambró-
sio não se dirige ao governante i m p e r i a l , mas ao cristão que, porventura, ocupa
esse lugar. O governante cristão é advertido n o sentido de não p e r m i t i r , pretex-
tando ignorância, que as coisas sigam seu próprio curso; se ele não der demons-
trações positivas de zelo pela fé, como seria correto, deve, pelo menos, negar en-
dosso à i d o l a t r i a e aos cultos pagãos . O imperador cristão sabe q u e deve vene-
24

rar apenas o altar de Cristo e que " a voz d o nosso imperador deve ser o eco de
C r i s t o " . Implicitamente, o bispo ameaça o imperador*com a excomunhão caso
25

ele aceda à petição d o Senado *. A verdade de Cristo não p o d e ser representada


2

pelo imperium mundi, mas somente pelo ato de servir a Deus.


Este é o começo de u m a concepção teocrática d o governo e m sentido estri-
t o , n o q u a l a teocracia nâo significa o governo d o clero, mas sim o reconhecimen-
t o pelo governante da verdade de D e u s . Essa concepção desdobrou-se p o r i n -
27

17. Santo Ambrósio, Epistolae xvii e xviii. O Relatio Symmachi urbis praefect está apenso ã carta X V I I de
Santo Ambrósio (Migne, Pl. XVI).
18. Relatio Symmachi 3-4.
19. Ibid. 6 e 10.
20. Santo Ambrósio, Epistolae xviii. 4 e seguintes.
21. Ibid. xvii. 9.
22. Ibid. 1.
23. Ibid. xviii. 30.
24. Ibid. xvii. 2.
25. Ibid. xviii. 10.
26. /Wd.xvh. 14.
27. Sobre a luta pela teocracia neste sentido, ver Berkhof, op. cit., cap. V I I I : " U m die Theokratie".
A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 71

eeiro na geração seguinte c o m a imagem d o imperator felix, n o Civitas Dei v. 24-26,


de Santo Agostinho. A felicidade d o i m p e r a d o r não pode ser m e d i d a pelos êxitos
exteriores do seu governo; Santo Agostinho dá ênfase aos êxitos de governantes
pagãos e aos infortúnios e fins trágicos de alguns governantes cristãos; a verda-
deira felicidade d o i m p e r a d o r só p o d e ser m e d i d a p o r seu c o m p o r t a m e n t o n o
t r o n o como u m cristão. Os capítulos sobre o imperator felix constituem o p r i m e i r o
"Espelho d o Príncipe"; marcam o começo d o gênero literário medieval e têm
exercido influência incomensurável sobre a teoria e a prática de governo n o O c i -
dente desde que Carlos M a g n o os a d o t o u c o m o l i v r o - g u i a .
Santo Ambrósio t r i u n f o u no caso d o A l t a r de Vitória e, nos anos seguintes,
a situação tornou-se ainda mais difícil para os pagãos. E m 3 9 1 , u m a lei de Teo-
dósio p r o i b i u todas as cerimônias pagas na cidade de R o m a ; u m a lei de seus2 8

filhos, e m 396, a b o l i u as últimas imunidades dos sacerdotes e dignitários r e l i -


giosos pagãos ; em 407, u m a lei válida para toda a Itália s u p r i m i u p o r comple-
29

t o as dotações para a epula sacra e para os j o g o s rituais, o r d e n o u a retirada das


estátuas dos templos, a destruição dos altares e a devolução dos locais de c u l t o
ed usum publicum . Q u a n d o Roma caiu ante os invasores godos, e m 410, o culto
30

r o m a n o era u m assunto candente para as vítimas d a nova legislação antipagã;


e a queda da cidade p o d i a perfeitamente ser apresentada c o m o a vingança dos
deuses pelos insultos praticados contra a religião civil de Roma.

4
U M A VEZ esclarecido esse p o n t o curioso, surge imediatamente o u t r o . O s p r o t a -
gonistas cristãos da luta não estavam interessados e m salvar as almas dos pagãos;
estavam envolvidos e m u m a luta política a respeito d o culto público do Império.
E verdade que o apelo de Santo Ambrósio dirigia-se ao cristão que estava n o t r o -
no, e não pode haver dúvidas sobre a sinceridade das suas intenções, bastando
para isso l e m b r a r o choque entre o santo e Teodósio, e m 390, p o r ocasião d o
massacre d a Tessalônica. N o entanto, q u a n d o o cristão é o i m p e r a d o r , sua con-
duta cristã colocará os pagãos na mesma posição e m que estavam os cristãos
sob os imperadores pagãos. Ê curioso q u e tanto Santo Ambrósio quanto Santo
Agostinho, q u e se engajaram ardorosamente na luta pela representação existen-
cial d o Cristianismo, se mostrassem quase totalmente cegos à natureza d o p r o -
blema. Parecia que a única coisa e m j o g o era a verdade d o Cristianismo contra
a inverdade d o paganismo. Isso não significa que eles não se tivessem apercebido
da questão existencial envolvida; ao contrário, o Civitas Dei é especialmente fas-
cinante p o r q u e Santo Agostinho, e m b o r a obviamente não entendesse o p r o -
blema existencial d o paganismo, tinha a sensação de que algo escapava à sua c o m -
preensão. Sua atitude diante d a teologia civil de V a r r o lembrava a de u m inte-
lectual esclarecido diante d o Cristianismo — ele simplesmente não p o d i a c o m -
preender c o m o u m a pessoa inteligente fosse capaz de sustentar seriamente aquela
posição. Santo Agostinho c o n t o r n o u a dificuldade adotando a premissa de que
V a r r o , o filósofo estóico, não poderia ter acreditado nas divindades romanas,
mas sim, sob a roupagem de u m relato respeitoso, desejava expô-las ao ridícu-

28. Codex Tkeodosianus xvi. x. 10.


29. Ibid. x. 14.
30. Ibid. 19.
72 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

l o . Será necessário recorrer ao próprio V a r r o , assim c o m o a seu amigo Cíce-


3 1

r o , a f i m de determinar q u a l o p o n t o q u e escapou à percepção de Santo Agostinho.


Santo Agostinho mencionou tal p o n t o c o m extremo cuidado, mostrando-se
desconcertado a seu respeito. V a r r o , nas Antiquities, tratara inicialmente das
"coisas h u m a n a s " e só depois ocupara-se das "coisas d i v i n a s " de R o m a . P r i -
32

m e i r o , a cidade t e m que existir, para depois passar a instituir seus cultos. " A s s i m ,
como o p i n t o r precede a p i n t u r a , e o arquiteto a construção, assim também as
cidades precedem as instituições c i t a d i n a s " . A concepção de V a r r o segundo
33

a q u a l os deuses f o r a m instituídos pela sociedade política provocou a i r r i t a d a


incompreensão de Santo Agostinho. A o contrário, insistia, " a verdadeira r e l i -
gião não é instituída p o r nenhuma cidade terrestre", mas o Deus verdadeiro, o
inspirador d a verdadeira religião, " i n s t i t u i u a cidade celestial" . A atitude de
34

V a r r o parecia particularmente censurável p o r q u e as coisas humanas a que dera


p r i o r i d a d e não eram sequer universalmente humanas, mas apenas r o m a n a s . San-
35

t o Agostinho suspeitou ainda que V a r r o houvesse cometido u m engano delibe-


rado ao a d m i t i r que teria colocado as coisas divinas e m p r i m e i r o lugar se fosse sua
intenção tratar exaustivamente a natureza dos deuses ; essa impressão fora re-
36

forçada pela afirmação de V a r r o de que, e m matéria de religião, há muitas verda-


des que o povo não deve saber e muitas mentiras de que o p o v o não deve suspei-
tar . 37

O que Santo Agostinho não compreendeu f o i o caráter compacto da expe-


riência r o m a n a , a comunidade inseparável de deuses e homens na civitas h i s t o r i -
camente concreta, a simultaneidade da instituição humana e divina de u m a o r d e m
social. Para ele, a o r d e m da existência humana já se havia d i v i d i d o entre a civitas
terrena, da história profana, e a civitas coelestis, de instituição divina. As f o r m u l a -
ções algo primitivas do enciclopedista V a r r o , p o r o u t r o lado, não facilitavam esse
entendimento. Cícero, mais flexível, expressou as mesmas convicções de seu a m i -
go com m a i o r refinamento conceituai através dos personagens da obra de De natura
deorum, sobretudo p o r meio d o princeps civis e d o pontifex Cotta. E m u m debate
sobre a existência dos deuses, contrapõem-se as opiniões do'filósofo e d o d i r i -
gente social r o m a n o . Cícero sutilmente insinua as diferentes fontes da autoridade
ao o p o r o princeps philosophiae, Sócrates , ao princeps civis, C o t t a ; a auctoritas phi-
38 3 9

losopht choca-se c o m a auctoritas majorum . O dignitário d o culto r o m a n o não


40

está inclinado a pôr e m dúvida nem a existência dos deuses imortais nem a ado-
ração de que são objeto, q u e m quer q u e lhe diga o contrário. E m matéria r e l i -
giosa, ele seguirá os pontífices que o precederam e não os filósofos gregos. Os
auspícios de Rômulo e os ritos de N u m a deram fundamento ao Estado, cuja gran-
deza jamais teria sido alcançada sem a proteção dos imortais, conseguida através
dos r i t u a i s . Ele aceita os deuses c o m base na autoridade dos ancestrais, mas
41

está disposto a escutar outras opiniões; e, c o m certa i r o n i a , convida Cornélio B a l -

31. Santo Agostinho, Civitas Dei vi: 2.


32. Ibid. 3.
33. Ibid. 4.
34. Ibid.
35. Ibid.
36. Itna. iv. 31; vi. 4.
37. íbid. iv. 31.
38. Cícero, De natura deorum ii. 167.
S3L Ibid. 168.
40. JMLÜi.5.
41. Ibid.
A L U T A P E L A R E P R E S . NO IMP. R O M A N O 73

b o a expor as razões, rationem, de suas crenças religiosas, pois que, c o m o filósofo,


ele deve tê-las, enquanto que o pontífice é compelido a acreditar nos ancestrais
sem apelo à razão . 42

As exposições de V a r r o e Cícero são documentos preciosos para o'teórico.


Os pensadores romanos viviam firmemente ancorados em seu mito político, mas,
paralelamente, o contato c o m a filosofia grega tornou-os conscientes desse f a t o ;
tal contato não afetou a solidez dos seus sentimentos, mas dotou-os dos meios
necessários para elucidar sua própria posição. Caso se dê à o b r a de Cícero u m
tratamento convencional, provavelmente não se perceberá que nela existe algo
m u i t o mais interessante que u m a variante do estoicismo — algo que nenhuma
fonte grega pode fornecer, o u seja, a experiência arcaica d a o r d e m social ante-
r i o r a sua dissolução através da experiência dos filósofos místicos. C o m relação
às fontes gregas, essa camada arcaica nunca pôde ser efetivamente alcançada p o r -
que os documentos literários mais antigos, os poemas de H o m e r o e Hesíodo,
constituem já magníficas reorganizações livres de material mítico — n o caso de
Hesíodo até mesmo c o m a oposição consciente entre a verdade encontrada p o r
ele como indivíduo e a m e n t i r a , o pseudos, do m i t o antigo. Talvez tenha sido a
agitação subseqüente à invasão dórica que r o m p e u o caráter compacto da exis-
tência social grega em época tão p r i m i t i v a , enquanto Roma nunca passou p o r
esse t i p o de choque. De qualquer m o d o , R o m a era u m sobrevivente arcaico na
civilização helenistica d o Mediterrâneo, o que se acentuava c o m sua progressiva
cristianização; pode-se comparar essa situação c o m o papel d o Japão em u m meio
civilizacional d o m i n a d o pelas idéias ocidentais.

Alguns romanos, c o m o Cícero, perceberam perfeitamente o p r o b l e m a . E m


De re publica, p o r exemplo, Cícero deliberadamente contrapôs os estilos grego e
r o m a n o de tratar os assuntos da o r d e m política. N o debate a respeito da m e l h o r
o r d e m política (status civitatis), é novamente u m princeps civis, Cipião, que se le-
vanta contra Sócrates. Cipião recusa-se a discutir sobre a m e l h o r o r d e m à m a -
neira d o platônico Sócrates; ele se nega a elaborar u m a o r d e m "fictícia" diante de
seu público, preferindo fazer u m relato das origens de R o m a . A ordem de Roma 43

é superior a qualquer outra — este dogma é fortemente acentuado como c o n d i -


ção prévia ao debate . A discussão pode estender-se livremente a todos os tó-
44

picos dos ensinamentos gregos, mas esses ensinamentos só têm sentido na medida
em que possam ser utilizados proveitosamente c o m relação aos problemas da
o r d e m romana. Evidentemente, o lugar de m a i o r destaque será dado ao h o m e m
que consegue somar os "ensinamentos de f o r a " aos costumes ancestrais; mas, se
for preciso escolher entre os dois modos de vida, a vita civilis d o estadista se é
preferível à vita quieta d o sábio . 45

U m pensador que se refere à filosofia c o m o u m "ensinamento de f o r a " —


qúe deve ser respeitado, mas ao mesmo tempo considerado como u m tempero
que torna perfeito o que já é superior — certamente não entendeu n e m a natu-
reza da revolução espiritual que encontrou sua expressão n a filosofia, n e m o fato
de que esse fenômeno é universal. A maneira curiosa c o m que Cícero mescla seu
respeito pela filosofia grega c o m u m certo desprezo galhofeiro indica que a ver-

42. Ibid. 6.
48. Cícero. De republica ii. 3.
44. Ibid. í. 70: ii. 2.
45. Ibid. iii 5-6.
74 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

dade da teoria, mesmo entrevista como uma ampliação do horizonte intelectual


e moral, não podia ter significado existencial para um romano. Roma era a Roma
dos seus deuses em todos os detalhes da vida quotidiana; participar experiencial-
mente da revolução espiritual da filosofia implicaria reconhecer que a Roma dos
ancestrais havia terminado e que estava em gestação uma nova ordem na qual
os romanos teriam de fundir-se — assim como os gregos tiveram de se fundir,
quisessem ou não, nas construções imperiais de Alexandre e seus sucessores, bem
como, finalmente, de Roma. A Roma da geração de Cícero e César simplesmente
não estava tão avançada nesse processo quanto a Atenas do século I V antes de
Cristo, que engendrou Platão e Aristóteles. A substância romana preservou sua
força durante boa parte do Império e só se diluiu realmente com os distúrbios do
século I I I d.C. Somente então chegara a hora em que Roma se devia fundir com
o Império que ela própria criara; e só então começou a fase crucial da luta entre
os vários tipos de verdade alternativa, entre filosofias, cultos orientais e o Cris-
tianismo, quando o representante existencial, o imperador, teve de decidir que
verdade transcendental representaria, agora que o mito de Roma perdera sua
força ordenadora. Para Cícero, tais problemas não existiam e, quando ele os en-
controu nos "ensinamentos de fora", tratou de emascular a ameaça inexorável:
transformou habilmente a idéia estóica de que cada homem tem dois países, a ci-
dade em que nasceu (polis) e a cidade do mundo (cosmopolis), na idéia de que todo
homem tem, na verdade, duas pátrias, o lugar do nascimento, Arpinum, para Cí-
cero, e Roma . A cosmopolis dos filósofos havia assumido existência histórica; era
46

o imperium Romanum* . 1

A F O R Ç A de sua compactação arcaica assegurou a sobrevivência de Roma na luta


pelo império, o êxito da sobrevivência, no entanto, suscita uma das grandes ques-
tões da história, qual seja, a de como as instituições da Roma Republicana — que
por si próprias eram tão adequadas à organização de um império quanto as insti-
tuições de Atenas ou de qualquer outra cidade grega — puderam ser adaptadas de
tal modo que delas emergisse um imperador investido da representação existencial
do orbis terrarum do mediterrâneo. O processo de. transformação é obscuro em
muitos detalhes e assim permanecerá para sempre devido à escassez das fontes.
No entanto, a análise e avaliação cuidadosas do pouco material existente por duas
gerações de estudiosos resultou na formação de um quadro coerente do processo,
tal como se pode ver no penetrante estudo sobre o principado realizado por Anton
von Premerstein . 48

O ônus maior da adaptação às regras imperiais não foi sustentado, em abso-


luto, pela constituição republicana. Na verdade, o número de senadores podia
ser aumentado com a designação de elementos das províncias, de modo a tornar o

46. Cícero,/)? legibus ii. 5.


47. A tendência no sentido dessa identificação já se fazia notar antes de Cícero, especialmente em Po-
líbio (ver Harry A. Wolfson, Philo (Cambridge, Mass., 1947); l i , 4 e seguintes).
48. Anton von Premerstein, Vom Werden und Wesen des Pnnzipats, ed. Hans Volkmann ("Abhahdlungen
der Bayenschen Akademieder Wissenschaften, Phil.-hist. Abt., Neue Folge," Heft 15; Munique. 1937).
A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 75

senado mais representativo do Império, tal c o m o fora feito p o r César; e a cidada-


• a podia ser oferecida aos habitantes de toda a Itália e, sucessivamente, de outras
províncias. Mas o desenvolvimento da representação através de eleições populares
mas províncias do Império era impossível e m razão da inflexibilidade constitucional
que Roma partilhava c o m as outras cidades. A adaptação teve de ser feita com ba-
se em instituições sociais, fora do âmbito da constituição propriamente d i t a ; e a
principal instituição, que se transformou n o t r o n o imperial, f o i a do princeps civis,
ou princeps civitatis, o líder social e político.
N a história anterior da República, o termo " p r i n c e p s " designava qualquer c i -
dadão que ocupasse posição de direção o u de destaque. A essência dessa instituição
era representada pelo patronato, relação estabelecida p o r intermédio de vários fa-
vores — auxílio político, empréstimos, presentes pessoais, etc. — entre u m h o m e m
socialmente influente e o u t r o , de condição social inferior, q u e tivesse necessidade
desses favores. O oferecimento e a aceitação de tais favores criava u m vínculo sa-
grado entre os dois homens, sob o testemunho dos deuses; o que aceitava os favo-
res, o cliente, tornava-se u m seguidor d o ofertante, p a t r o n o , criando-se u m a rela-
ção baseada na lealdade (/ides). Nessas condições, o p a t r o n o era necessariamente
u m h o m e m de posses e de elevada posição social. A formação de u m a numerosa
dientela era privilégio dos membros da nobreza patrício-plebéia, e os mais i m p o r -
tantes senadores de nível consular eram, ao mesmo, os patronos mais poderosos.
Esses patronos, q u e ocupavam o nível oficial mais alto, eram os príncipes civitatis;
dentre eles, u m poderia ascender à condição de líder inquestionável se pertencesse
a u m a das tradicionais famílias patrícias e tivesse o cargo de princeps senatus, o u
ainda, adicionalmente, o de pontifex maximus. A sociedade r o m a n a era, pois, u m a
complicada rede de relações pessoais — organizadas hierarquicamente, na medida
em que os clientes de u m patrono poderoso p o d i a m ser, eles próprios, patronos de
dientelas consideráveis, e organizadas competi ti vãmente, na medida e m que os
príncipes eram rivais na luta pelos postos mais altos e pelo poder político em ge-
i a l . A substância da política r o m a n a n o período final da república era a luta pe-
4 9

l o poder entre os abastados chefes de partidos pessoais, baseada na relação d o pa-


tronato. Esses chefes p o d i a m celebrar acordos, que tomavam o n o m e de amicitiae;
a quebra dos acordos levava a disputas formais, chamadas inimicitiae, precedidas
ée acusações mútuas, altercatio as quais, n o período das guerras civis, t o m a r a m a
forma de panfletos de propaganda ao público, q u e descreviam a conduta desonro-
sa d o oponente. Essas inimicitiae distinguiam-se de uma guerra f o r m a l , o beUum jus-
tam, do p o v o r o m a n o contra u m i n i m i g o público. A última guerra de Otávio contra
M a r c o Antônio e Cleópatra, p o r exemplo, f o i cuidadosamente conduzida n o p l a n o
jurídico como guerra f o r m a l contra Cleópatra e c o m o inimicitia contra M a r c o A n -
tônio e sua clientela r o m a n a .
50

i A transformação do p r i n c i p a d o o r i g i n a l em algumas poucas e gigantescas o r -


ganizações partidárias ocorreu em razão da expansão m i l i t a r de R o m a e das conse-
qüentes transformações sociais. As guerras d o terceiro século, levando à conquista
de territórios n a Grécia, na África e na Espanha, ocasionaram u m insolúvel p r o b l e -
ma logístico. Os territórios de ultramar não p o d i a m ser conquistados e mantidos
p o r exércitos renováveis anualmente pelo alistamento m i l i t a r regular, uma vez que
era impossível transportar os contingentes antigos todos os anos de volta a R o m a e
sDhstituí-los p o r novas tropas. Os exércitos provinciais, p o r força das circunstân-

m. Ibid. pp. 15-16.


3Ê. Ibid. p. 37.
76 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

cias, tinham de tornar-se profissionais, c o m dez o u vinte anos de serviço para os


seus integrantes. O s veteranos que voltavam constituíam u m a massa de homens sem
lar, aos quais cumpria dar terras, assistência para colonizar novas áreas o u per-
missão para residir na cidade de Roma, c o m os privilégios decorrentes. Para obter
tais vantagens, os veteranos dependiam dos comandantes militares que tivessem
o título de princeps, resultando daí que exércitos inteiros se tornassem parte da
clientela desses chefes. É particularmente significativo, com vistas à evolução d a
última etapa da república romana, que a disciplina de classe d a nobreza tenha re-
sistido p o r u m século inteiro até que os novos e poderosos chefes partidários se v o l -
tassem contra o Senado e transformassem a vida política de R o m a n u m a disputa
privada entre si. Além disso, devido ao enorme aumento numérico das clientelas,
às quais se j u n t a r a m forças armadas para guerras e lutas de r u a , tornou-se necessá-
r i o formalizar as relações até então informais através de juramentos especiais pelos
quais o cliente vinculava-se e m fides ao patrono. As fontes são particularmente es-
cassas a respeito deste p o n t o , mas é possível encontrar tais juramentos, e m núme-
r o e variedade crescentes, após o a n o 100 a.C. . Finalmente, a estrutura d o sistema
51

f o i determinada pelo caráter hereditário da clientela. Este f o i u m fator de con-


siderável importância n o transcurso das guerras civis d o p r i m e i r o século antes de
Cristo. Otávio, p o r exemplo, teve u m grande t r u n f o e m suas lutas iniciais contra
Marco Antônio quando as colônias de veteranos de César, na Campania, passaram
a ser parte de sua clientela como herdeiro d o e x - i m p e r a d o r . A localização das
52

clientelas militares herdadas cíjegou a determinar o teatro de guerras. A luta contra


os seguidores de Pompeu, p o r exemplo, teve de realizar-se na Espanha p o r q u e o
M a g n o havia fixado seus soldados na Península Ibérica . 53

Assim, o surgimento do p r i n c i p a d o p o d e ser descrito c o m o u m a evolução


do patronato — o qual, aliás, c o n t i n u o u a existir e m sua f o r m a modesta durante
boa parte do período i m p e r i a l . Q u a n d o o p a t r o n o era u m princeps civis, a clientela
se tornava u m instrumento de poder político e, c o m a inclusão dos exércitos vete-
ranos, u m instrumento de p o d e r m i l i t a r que rivalizava c o m as forças armadas cons-
titucionais. A influência política, a riqueza e a clientela m i l i t a r reforçavam-se m u -
tuamente, u m a vez que a posição política assegurava o comando m i l i t a r necessário
à conquista das províncias e sua exploração lucrativa, enquanto a exploração das
províncias era necessária para d a r a p o i o à clientela através de espólios e terrai. e
a clientela era necessária à consolidação da influência política. A r u t u r a d a lega-
lidade constitucional tornou-se iminente c o m a redução dos competidores ape-
nas aos principais chefes partidários, o que se t o r n o u especialmente nítido c o m a
divisão dos próprios senadores e magistrados c o m o clientes dos poucos protagonis-
tas. N a vida de cada u m dos grandes chefes partidários d o p r i m e i r o século ocorreu
u m m o m e n t o e m q u e ele teve de decidir se transporia o u não à l i n h a que separa a lega-
lidade da ilegalidade — sendo a mais famosa dessas decisões a de César ao cruzar
o Rubicão . Otávio, político f r i o e calculista, decidiu fazer a última guerra c o n t r a
54

Marco Antônio sob a f o r m a de inimicitia porque declará-lo i n i m i g o público era u m a


arma que poderia ser utilizada contra ele próprio, u m a vez que os Cônsules e parte
do Senado estavam do lado de seu rival. A declaração mútua de M a r c o Antônio e
Otávio c o m o i n i m i g o s públicos teria d i v i d i d o R o m a de fato e m dois estados hostis

51. Ibid., pp. 26 e seguintes.


52. Ibid., p.24.
53. Ibid., pp. 16 e seguintes.
54. Ibid., pp. 24 e seguintes.
A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 77

e o estremecimento dos próprios fundamentos constitucionais da República pode-


ria p r o d u z i r os mesmos efeitos desastrosos da situação similar verificada c o m a
luta de m o r t e entre César e Pompeu — o assassinato d o vitorioso n o ano seguinte
ao do t r i u n f o , pelas mãos de republicanos sentimentalistas. Portanto, o p r i n c i p a d o
evoluiu c o m a redução dos grandes príncipes patronos aos três do triunvirato, e m
seguida a Otávio e Marco Antônio e, finalmente, ao monopólio d o poder pelo v i -
torioso d e Actiurn? .
A o r d e m representativa de Roma, depois d e Actiurn, passou a ser u m a hábil
combinação entre a velha constituição republicana e a nova representação exis-
tencial d o p o v o d o império pelo princeps. A relação direta entre o princeps e o p o v o
foi estabelecida pela extensão do j u r a m e n t o de clientela a toda a população. N o
ano 32 a.C., antes de entrar em guerra contra Marco Antônio, Otávio obteve tal
j u r a m e n t o da Itália e das províncias ocidentais, na chamada Conjuração d o O c i -
dente; tratava-se de u m j u r a m e n t o de lealdade a Otávio pro partibus suis, o u seja, na
qualidade de chefe de u m p a r t i d o . Não há fontes q u e testemunhem a extensão
56

d o j u r a m e n t o às províncias orientais, que teria o c o r r i d o após A c t i u r n . N o entan-


57

to, o j u r a m e n t o ao princeps, na forma q u e t o m o u e m 32 a . C , tornou-se uma insti-


tuição permanente. Foi repetido pelos sucessores de Augusto p o r ocasião de sua
ascensão ao p o d e r e, a p a r t i r de Caio Caligula, passou a ser renovado anual-
58

m e n t e . A articulação dos grupos humanos, através d o patronato, c o m u m chefe


59

e seus seguidores expandira-se ao p o n t o de t o m a r a f o r m a da representação i m p e -


rial.

O PRINCIPADO p a t r o n a l transformado e m p r i n c i p a d o i m p e r i a l f o i a instituição q u e


t o r n o u os novos governantes representantes existenciais do vasto conglomerado de
povos e territórios conquistados. Obviamente, o instrumento era frágil. Sua eficá-
cia dependia de q u e a relação p a t r o n a l fosse aceita c o m o u m vínculo c o m força de
sacramento, n o sentido r o m a n o . O novo Augusto percebeu o problema, e a legis-
lação que d i t o u e m p r o l das reformas morais e religiosas deve ser vista, pelo menos
em parte, como u m esforço n o sentido de reforçar os sentimentos sacramentais,
debilitados mesmo entre os romanos à época d o Antiquities de V a r r o . C o m relação
à vasta população o r i e n t a l , a tarefa era irrealizável, especialmente p o r q u e seus i n -
tegrantes se d i r i g i a m a R o m a e m número cada vez m a i o r e. permaneciam apegados
a seus cultos não-romanos apesar de todas as proibições: a tarefa tornou-se ainda
mais inviável q u a n d o os próprios imperadores deixaram de ser romanos, q u a n d o
a dinastia j u l i a n a f o i sucedida pelos flavianos e p o r espanhóis, sírios e ilírios.
Gradualmente, através de u m tortuoso caminho de experiências e insucessos,
f o i f o r m u l a d a a solução para a deficiência sacramentai d a posição d o imperador.

55. Ibid., p. 37.


56. Ibid., pp. 42 e seguintes.
57. Ibid., p.52.
58. Ibid., pp. 56 e seguintes.
59. Ibid., pp. 60 e seguintes.
7 8
A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

Sua divinização, segundo o modelo helenístico, revelou-se insuficiente. Havia, ade-


mais, que determinar que poder divino ele representava em meio à massa de divin-
dades cultuadas em todo o Império. Sob a pressão desse problema, a cultura reli-
giosa do Mediterrâneo romano passou por um processo usualmente chamado
sincretismo, ou theokrasia, a mistura dos deuses. Essa evolução não é única pois re-
pete substancialmente o processo vivido pelos impérios do Oriente Próximo sécu-
los antes, ou seja, a reinterpretação das múltiplas divindades cultuadas em peque-
nas áreas do território politicamente unificado como aspectos de um deus único e
superior, que se tornava o deus do Império. Nas condições particulares da comple-
xa área civilizacional de Roma, as experiências para chegar a esse deus superior não
eram coisas fáceis. Por u m lado, o deus não poderia ser uma abstração conceituai,
mas, ao invés, deveria ter uma relação inteligível com um ou mais deuses já experi-
mentados concretamente e considerados superiores; por outro lado, se essa relação
se tornasse demasiado próxima, o valor do novo deus como superior a todos os de-
mais deuses especiais estaria comprometido. A tentativa de Heliogábalo (218-222)
de transformar o Baal de Êmeso no deus máximo de Roma não frutíficou. U m Cé-
sar circuncizado desposândo uma virgem Vestal para simbolizar a união entre Baal
e Tanit era demais para a tradição romana. Ele foi assassinado por sua guarda pre-
toriana. O ilírio Aureliano (270-75) alcançou certo êxito ao proclamar um deus su-
ficientemente vago, o Sol Invictas, como o deus máximo do Império e a si próprio
como seu descendente e representante. Com algumas variações introduzidas por
Diocleciano (284-305), o sistema perdurou até o ano 313 d.C.
O fato de que o culto do Império fosse objeto de experimentação não nos de-
ve iludir quanto à seriedade, do ponto de vista religioso, com essas experiências
eram conduzidas. A busca do deus máximo resultou numa aproximação espiritual
com o cristianismo e preparou o terreno de tal maneira que a conversão foi, na
verdade, uma transição suave. Existe um texto que relata a oração de Licínio antes
da batalha contra Maximino Daia, em 313. Um anjo aparecera à noite a Licínio e
lhe assegurara a vitória desde que ele e seu exército fizessem a seguinte prece:
"Deus Máximo, oramos a vós,
Deus Sagrado, oramos a vós.
Toda a justiça a vós confiamos,
Nossa prosperidade a vós confiamos,
Nosso reino a vós confiamos.
Graças a vós vivemos, graças a vós alcançamos vitórias e êxitos.
Deus Máximo e Sagrado, escutais nossas preces.
Levantamos nossos braços a vós.
Escutai-nos, oh Deus Sagrado e Máximo".
A história e a oração são relatadas por Lactâncio , que deixa claro ser a vitó-
60

ria devida à conversão, similar à de Constantino no ano anterior. Na melhor das


hipóteses, é duvidoso atribuir a Licínio uma conversão ao Cristianismo, sobretudo
em vista de sua política anticristã dos anos seguintes, mas a oração, que, aliás, po-
deria ter sido igualmente proferida por seu oponente pagão, Maximino, foi inter-
pretada por Lactâncio como uma proclamação cristã.
Ainda hoje se debate a respeito do significado preciso da mudança surpreen-
dente que, em 311-12, resultou na liberdade para o Cristianismo. No entanto, a

60. De mortibvspersecutorum, xlvi.


A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 79

recente interpretação d o teólogo holandês H e n d r i k B e r k h o f parece ter esclare-


cido o mistério até o p o n t o e m q u e as fontes o p e r m i t e m . A persistência e a
61

sobrevivência dos. cristãos apesar das violentas perseguições a que f o r a m subme-


tidos aparentemente convenceram os regentes Galério, Licínio e Constantino de
que o Deus cristão tinha poder suficiente para proteger seus seguidores na adver-
sidade, constituindo u m a realidade que devia ser tratada c o m cuidado. O E d i t o de
Galério, de 3 1 1 , explicava que, em conseqüência das perseguições, os cristãos n e m
p o d i a m c u m p r i r c o m as obrigações d o c u l t o aos deuses oficiais n e m p o d i a m ado-
rar adequadamente seu próprio D e u s . Aparentemente, essa observação m o t i v o u
62

a súbita mudança de orientação. Se o poderoso Deus dos cristãos não fosse p o r eles
adorado, poderia vingar-se e aumentar os problemas dos governantes q u e i m p e -
diam a adoração. Era novamente a aplicação d o velho princípio r o m a n o do-ut-
dfa . C o m o compensação pela liberdade a d q u i r i d a , o edito ordenava que os cris-
63

tãos rezassem p e l o imperador, pelo b e m c o m u m e pelo deles próprios . Isso não 64

representava p o r t a n t o u m a conversão ao Cristianismo, mas apenas inclusão d o


Deus dos cristãos n o sistema das divindades i m p e r i a i s . O E d i t o de Licínio,
65

de 313. afirmava q u e a antiga política anticristã havia sido revista " d e m a n e i r a q u e


tudo o que se relacione à divinitas na m o r a d a celeste seja propício a nós e a todos os
que vivem sob nosso g o v e r n o " . O curioso termo divinitas era conciliável c o m
66

o politeísmo oficial e c o m o reconhecimento d o Summus J)eus d a religião i m p e r i a l ,


a o mesmo tempo e m q u e tinha suficientes conotações monoteístas para deixar fe-
Hzes os cristãos. A indefinição d o sentido f o i , provavelmente, intencional — sente-
se nela a sutileza de Constantino, q u e , n u m a etapa posterior d o debate sobre o
Cristianismo, insistiu n o conceito sublimemente vazio d o homo-ousios..

N o ENTANTO, os problemas da teologia i m p e r i a l não p o d i a m ser resolvidos p o r


uma acomodação lingüística. Os cristãos eram perseguidos p o r u m a boa razão: ha-
via n o Cristianismo u m a substância revolucionária incompatível c o m o paga-
nismo. A nova aliança estava fadada a aumentar a eficácia social dessa substância
revolucionária. O que tornava o Cristianismo tão perigoso era a desdivinização
d o m u n d o , p o r ele empreendida de maneira radical e inflexível. A m e l h o r f o r m u l a -
rão desse p r o b l e m a talvez tenha sido a de Celso, n o Discurso da Verdade, de cerca de
1 8 0 d . O , a mais competente crítica paga d o Cristianismo. Os cristãos, ele se q u e i -
x o u , rejeitavam o politeísmo c o m o argumento de q u e não se p o d e servir a dois
senhores . Para Celso, isso era a " l i n g u a g e m da sedição {stasis)" *. E m b o r a a r e -
67 6

fil. Op. cit., pp. 47 e seguintes.


62. Lactâncio, op. cit., xxxiv: "cum... videremus neo diis eosdem cultura ac religionem debitam exhibere, nec
Qkruianorum Deum observare".
-i. Berkhof, op. cit., p. 48.
mk. Lactâncio, op. cit., xxxiv, infine.
S5L Interpretação similar encontra-se em Joseph Wogt, Constantin der Grosse und sein Jahrhundert (Muni-
one, 1949), pp. 154 e seguintes.
C S . ibid. xlviii. Sigo o texto "quidquid est divinitatis in sede coelesti," tal como Berkhof, op. cit., p. 51.
S 7 . Orígenes. Contra Cetsum, vii, 68.
M . Ibid. viii. 2.
80 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

gra fosse verdadeira q u a n t o aos homens, dizia ele, nada acontece e m prejuízo de
Deus quando servimos sua divindade nas múltiplas manifestações de seu reino.
A o contrário, mais honramos e satisfazemos o Altíssimo quando reverenciamos
muitos dos q u e pertencem a e l e , enquanto que a escolha de u m único Deus e a de-
69

voção exclusiva a ele introduz o facciosismo n o reino d i v i n o . Este papel só é 70

aceito p o r homens que se afastam da sociedade h u m a n a e transferem para Deus


suas próprias paixões isolacionistas . Portanto, os cristãos são facciosos n a r e l i -
71

gião e na metafísica, o que constitui u m a sedição contra a divindade que h a r m o -


niosamente anima o m u n d o todo e m todas suas subdivisões. E, c o m o os vários qua-
drantes d o m u n d o f o r a m desde o começo divididos entre diversos espíritos go-
vernantes e seus prepostos , a sedição religiosa constitui, ao mesmo tempo, u m a
72

revolta política^ Aquele que deseja destruir o culto nacional almeja a destruição
das culturas nacionais . U m a vez que todos esses cultos encontraram lugar n o I m -
73

pério, u m ataque contra eles p o r parte de monoteístas radicais é também u m


ataque contra a estrutura d o imperium Romanum. Bem que seria desejável, mesmo
na opinião de Celso, que os asiáticos, europeus, líbios, helenos e bárbaros se p u -
sessem de acordo a respeito de u m nomos, mas, acrescentava o a u t o r c o m i r o n i a ,
" q u e m achar que isso é possível não sabe n a d a " . Orígenes respondeu n o Contra
74

Celsum que isso não só era possível, mas certamente aconteceria . Pode-se dizer 75

que Celso percebeu as implicações d o Cristianismo c o m clareza ainda m a i o r que


a de Cícero ao examinar as implicações da filosofia grega. Ele compreendeu o
p r o b l e m a existencial do politeísmo; percebeu que a desdivinização d o m u n d o
pelo Cristianismo marcava o f i m de u m a época civilizacional e transformaria r a d i -
calmente as culturas étnicas então existentes. A crença de que o Cristianismo p u -
desse ser usado para fortalecer a teologia do Império, p o r si próprio o u em c o n j u -
gação c o m a concepção paga de u m Summus Deus, estava destinada a durar p o u c o .
Tal crença, n o entanto, tinha sua razão de ser p o r q u e se baseava j i a tendência cristã
de interpretar o Deus único d o Cristianismo n o sentido de u m monoteísmo meta-
físico . Era compreensível q u e as religiões orientais cedessem à tentação de tentar
76

essa experiência quando, ao longo de seu desenvolvimento, f o r a m envolvidas pelo


meio helenístico e passaram a expressar-se na linguagem da especulação grega.
C o m efeito, o progresso d o cristianismo nesse r u m o não f o i o r i g i n a l , mas seguiu o
exemplo de Fílon, o J u d e u ; e Fílon já tinha à sua disposição as especulações p e r i -
patéticas preparatórias d o p r i m e i r o século antes de Cristo. N a Metafísica, Aristóte-
les f o r m u l a r a o princípio: " O m u n d o não tem vontade de ser m a l governado; o
governo de m u i t o s não é b o m ; seja u m só o S e n h o r " . N a literatura peripatética
77

imediatamente anterior ao tempo de Fílon, da qual. o exemplo representativo r e -


manescente é o pseudo-aristotélico De mundo, o princípio f o i utilizado nas grandes

69. Ibid.
70. Ibid. U.
71. Ibid. 2.
72. Ibid. v. 25.
73. Ibid. 26.
74. Ibid., viii. 72.
75. Ibid.
76. Sobre o monoteísmo metafísico e sua função na teologia política do Império Romano, ver Erik
Peterson, Der Monotheismus ais politisckes: Ein Beitrag zur Geschickte der politiscken Theologie im Imperium Roma-
num (Leipzig, 1935). Nossa análise segue de perto a de Peterson.
77. Aristóteles, Melaphysics, 1076a.
A L U T A P E L A R E P R E S . N O IMP. R O M A N O 81

construções paralelas da m o n a r q u i a i m p e r i a l e da m o n a r q u i a divina u n i v e r s a l .


78

O monarca d i v i n o d o cosmos governa o m u n d o através de seus enviados de' m e n o r


hierarquia, da mesma f o r m a que o grande r e i persa governa seu Império através
dos Sátrapas nas províncias. Fílon adaptou a construção ao monoteísmo j u d a i c o ,
79

com o propósito de criar u m instrumento de propaganda política que tornasse o


judaísmo atraente como u m a alternativa monoteísta para o I m p é r i o . Seguindo, 80

aparentemente, u m a fonte peripatética, ele fez d o Deus J u d a i c o u m " r e i dos reis"


no sentido persa, relegando todos os demais deuses a nível s u b a l t e r n o . Preservou 81

cuidadosamente a posição dos judeus como povo escolhido, mas excluiu-os h a b i l -


mente d o impasse metafísico, transformando o culto a Jeová n o c u l t o ao Deus q u e
governa o cosmos n o sentido peripatético. Chegou a referir-se ao Timaeus de
82

Platão para fazer dele o Deus que estabelece a o r d e m , taxis, do m u n d o ao sentido


c o n s t i t u c i o n a l . A o servir a esse Deus, os judeus o fazem c o m o representantes de
83

toda a humanidade. E ao citar a passagem da Metafísica de Aristóteles, que contém


u m verso de H o m e r o , ele insistiu e m q u e o verso deveria ser considerado válido
tanto para o governo d o cosmos quanto para o governo político . 84

A especulação de Fílon f o i retomada p o r pensadores cristãos . A adaptação à 85

situação vivida pelos cristãos n o Império a t i n g i u seu desenvolvimento máximo c o m


Eusébio de Cesaréia, n o tempo de C o n s t a n t i n o . T a l como m u i t o s outros pensa-
86

dores cristãos q u e o antecederam e sucederam, Eusébio sentiu-se atraído pela c o i n -


cidência entre o surgimento de Cristo e a pacificação do Império c o m Augusto. Seu
amplo trabalho histórico f o i motivado, em parte, pelo interesse n a subjugãçào p r o -
videncial de antigas nações independentes pelos romanos. C o m o f i m d a existência
autônoma das entidades políticas do Mediterrâneo, pela mão de Augusto, os após-
tolos d o Cristianismo p u d e r a m mover-se livremente p o r t o d o o Império e divulgar
o Evangelho; o c u m p r i m e n t o de sua missão seria praticamente impossível se a ira
dos "supersticiosos das cidades" não estivesse neutralizada pelo m e d o ao poder de
R o m a . Ademais, o estabelecimento da pax romana, teve não só importância p r a g -
87

mática para a expansão d o Cristianismo, c o m o também pareceu a Eusébio estar


intimamente ligada aos mistérios do Reino de Deus. N o período pré-romano, o p i -
nava ele, os povos vizinhos não c o m p u n h a m u m a comunidade de fato, pois v i v i a m
constantemente e m guerra uns c o m os outros. Augusto dissolveu a p o l i a r q u i a p l u -

78. De mundo deve ser atribuído ao século I d.C. Não importa, para nossos-propósitos, se corresponde
ou não ao período de vida de Fílon, uma vez que só nos interessa aqui seu conteúdo típico.
79. De mundo. 6.
80. Sobre as intenções políticas de Fílon, ver Peterson, op. cit., p. 27; Erwin R. Goodenough, The Politics
tf Philojudaeus (New Haven, 1938); e, do mesmo autor, An Introduction to Philo Judaeus (New Haven,
1940), cap. iii.
81. Fílon, De specialibus legibus, i. 13. 18. 31; De decalogo, 61.
82. Peterson, op. at., pp. 23 e seguintes. E m De Abrahamo 98, os judeus são descritos como a "nação
mais querida de Deus , dotada com os dons do sacerdócio e da profecia " e m nome de toda a raça hu-
mana"; em De spec. leg., 167, as orações dos judeus se fazem em representação de toda humanidade; em
De spec. leg., 97, o sumo sacerdote judeu ora e agradece não apenas em nome da humanidade, mas no
de toda criação.
83. Fílon, De fuga et inventione 10. Sobre a mudança do significado de taxis, do conceito platônico ao da
ordem constitucional, ver Peterson, op. cit., pp. 28-29.
84- Fílon, De confusione linguarum, 170.
85. Sobre a absorção da especulação de Fílon a respeito da monarquia divina pela literatura apologética
cristã, ver Peterson, op. cit., pp. 34-42.
86. Sobre Eusébio, ver Peterson, op. aí., pp. 71-76, eBerkhot, op. at., pp. 100-101.
87. Eusébio, Demonstratio evangélica, iii 7. 30-35.
82 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

ralística; com sua monarquia, a paz desceu sobre a terra, dando cumprimento às
profecias de Miquéias, 4:4, e dos Salmos, 71:7. Em resumo, as profecias escatoló-
gicas relativas à paz do Senhor foram politizadas por Eusébio, ao relacioná-las com
a pax romana que coincidia historicamente com a manifestação do Logos . Por fim, 88

Eusébio considerou que o trabalho iniciado por Augusto fora completado por
Constantino. No Discurso Tricênio, Constantino foi louvado porque em sua monar-
quia imperial imitara a monarquia divina; o único basüeus da terra representa o
único Deus, o único Rei dos Céus, o único Nomos e Logos . Trata-se efetivamente de
89

uma volta à representação imperial da verdade cósmica.


Tal harmonia, evidentemente, não podia durar; tinha de romper-se tão logo
cristãos com maior sensibilidade confrontaram o problema. A questão chegou a
um ponto crítico com a luta a respeito da cristologia. Celso admoestara os cristãos
por não levarem a sério o seu próprio monoteísmo, uma vez que tinham u m se-
gundo Deus em Cristo . Na verdade, era esta a questão crucial a ser resolvida no
90

debate sobre a cristologia, estimulado pela heresia de Ário. Era necessário encon-
trar os símbolos que interpretassem o Deus único como três pessoas em uma; e,
com o amplo entendimento do trinitarismo, construções semelhantes à de Eusébio
perderiam a razão de ser. Por motivos compreensíveis, os imperadores e os teólo-
gos da corte pendiam mais para o lado de Àrio; o debate sobre a trindade estava
afetando seriamente a ideologia monoteísta na qual se baseava a concepção do im-
perador como o representante do Deus único. Quando a resistência de Atanásio,
apoiada pelos ocidentais, levou à vitória o simbolismo trinitário, tiveram de cessar
as especulações sobre monarquias paralelas no céu e na terra. A linguagem da
monarquia divina não desapareceu, mas adquiriu um novo sentido. Gregório de
Nazianzo, por exemplo, dizia que os cristãos acreditavam na monarquia divina, a
qual se tornaria uma fonte de discórdia; os cristãos acreditavam na triunidade — e
tal triunidade divina não tem analogias na criação. A individualidade do monarca
imperial não podia representar a divindade triuna . Um incidente durante o reino
91

de Constantino IV (668-85) ilustra como se tornara impossível trabalhar politica-


mente a idéia do Deus trinitário: o exército exigiu-lhe que colocasse seus dois
irmãos como co-imperadores para que houvesse na terra uma representação da
trindade divina . Isto se parece mais com uma brincadeira do que com uma su-
92

gestão séria; a história conta que, com <> desenrolar dos acontecimentos, a segunda
e a terceira pessoas da trindade imperial i iveram seus narizes cortados.
A outra idéia brilhante de Eusébio, a de reconhecer na pax romana o cumpri-
mento das profecias escatológicas (idéia que evoca fortemente a inclinação de Cíce-
ro a-considerar que Roma realizava a ordem perfeita apregoada pelos filósofos),
despedaçou-se soo as pressões de uma época conturbada. No entanto, o comentá-
rio de Santo Agostinho à profecia do Salmo 45:10 pode servir como uma afirmação
específica da contraposição ortodoxa. O texto é o seguinte: "Ele repi imiu as guer-

88. Ibid., vii. 2. 22; viii. S. 13-15; Peterson, op. cit., pp. 75.77.
89. Eusébio, Laus Constantini 1-10; Peterson, op. cit.;p. 78; Berkhof, op. ar., p. 102.
90. Orígenes, Contra Celsum, viii. 12-16.
91. Peterson, op. cit., pp. 96 e seguintes.
92. Karl Krumbacher, Geschichte der byzantinischen Litteratur (2* ed.; Munique, 1897), p. 954; E. W. Brooks,
The Successors of Heraclius to 717 (CMH, II, IS), p. 405; Berkhof, op. cit., p. 144. Tanto quanto eu saiba,
0 único outro exemplo de aplicação da trindade do governo imperial é o Ver sus Paschales, de Ausonius,
em 368 d.C. ou logo após. Neste poema de Páscoa, a trindade é representada na terra por Valentiniano
1 e seus co-imperadores Valente e Graciano (Ausonius, "Loeb Classical Library" — I, 34 e seguintes).
A LUTA PELA REPRES. NO IMP. ROMANO 83

ras e m toda a extensão d a t e r r a " . Santo Agostinho c o m e n t a : " V e m o s que isto ainda
não se c u m p r i u ; até hoje temos guerras. E n t r e as nações há as guerras de d o m i n a -
ção. E também há guerras entre seitas, entre j u d e u s , pagãos, cristãos e hereges, e
estas guerras vêm m e s m o a u m e n t a n d o ; u m dos lados luta pela verdade, o outro
pela falsidade. D e n e n h u m m o d o se c u m p r e a abolição das guerras e m toda a e x -
tensão d a terra; m a s temos esperança de que talvez a i n d a se c u m p r a " .9 3

Este é o fim d a teologia política n o Cristianismo ortodoxo. O destino espiri-


tual d o h o m e m , no sentido cristão, não p o d e ser representado n a terra pela o r g a -
nização de p o d e r de u m a sociedade política, e s i m apenas pela igreja. A esfera do
p o d e r é radicalmente desdivinizada e se torna temporal. A d u p l a representação d o
h o m e m n a sociedade, através d a igreja e d o império, foi mantida a o longo d a I d a -
d e Média. O s problemas especificamente m o d e r n o s d a representação estão ligados
à redivinização d a sociedade. O s três capítulos seguintes tratarão desses p r o -
blemas.

93. Santo Agostinho, Enarratio in Psaímos, xlv. 13.


IV
GNOSTICISMO - A NATUREZA DA MODERNIDADE

O C O N F R O N T O entre os vários tipos de verdade no Império Romano t e r m i n o u


c o m a vitória d o Cristianismo. A conseqüência fatal dessa vitória f o i a desdivi-
nização da esfera temporal d o poder, tendo-se sugerido que os problemas especi-
ficamente modernos da representação teriam algo a ver c o m a redivinizacão d o
h o m e m e da sociedade. Essas duas expressões precisam ser m e l h o r delinidas,
sobretudo p o r q u e o conceito de modernidade, e c o m ele a periodização da his-
tória, dependem d o significado da palavra redivinizacão. Assim, entender-se*á
p o r desdivinização o processo histórico pelo q u a l a cultura d o politeísmo m o r -
reu de atrofia experiência] e a existência humana na sociedade f o i reordenada
mediante a experiência d o destino d o h o m e m , pela graça de Deus que transcende
o m u n d o , r u m o à vida eterna n u m a visão beatífica. Por redivinizacão, contudo,
não se entenderá u m a revivescência da cultura politeísta n o sentido greco-roma-
n o . A caracterização dos movimentos políticos de nossos dias c o m o pagãos, a
qual goza de certa popularidade, é enganosa, pois sacrifica a natureza historica-
mente singular dos movimentos m o d e r n o s e m favor de u m a semelhança super-
ficial. A redivinizacão moderna, ao contrário, tem suas raízes n o próprio Cris-
tianismo, a partir de componentes que f o r a m suprimidos c o m o heréticos pela
igreja universal. Por conseguinte, a natureza dessa tensão d e n t r o d o Cristianis-
m o terá de ser determinada de f o r m a mais cuidadosa.
A tensão surgiu da origem histórica d o Cristianismo c o m o m o v i m e n t o mes-
siânico j u d a i c o . A vida das primeiras comunidades cristãs, d o p o n t o de vista ex-
periencial, não era fixa, e sim oscilava entre a expectativa escatológica da Parusia,
que traria o Reino de Deus, e a compreensão da igreja c o m o o apocalipse de Cris-
t o na história. Não tendo o c o r r i d o a Parusia, a igreja e m realidade evoluiu da es-
catologia d o r e i n o na história e m direção à escatologia da perfeição trans-his-
tórica e sobrenatural. Nessa evolução, a essência específica d o Cristianismo se-
parou-se de sua o r i g e m histórica . T a l separação iniciou-se c o m a própria vida
1

de Jesus , completando-se e m princípio c o m a descida pentecostal d o Espírito


2

Santo. Não obstante, a expectativa de u m a ocorrência iminente do r e i n o f o i

ÍJ^f ** *- "J?"^?
3
1
Cristianismo escatológico para o Cristianismo apocalíptico ver Alois D e m f
d o
D

Sacmm Imperium (Munique e Berlim, 1929), pp. 71 e seguintes P

L ^eT^^ ^ . ^ ( T ü b i n g e n , 1920), pp. 406 e seguintes; e Maurice


L , o g u e w « t « (2* edição; Paris, 1950), capitulo inundado " L a Crise galiléenne".
86 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

repetidamente atiçada pelo sofrimento resultante das perseguições; e a mais gran-


diosa expressão do sentimento escatológico, a Revelação de S. João, foi incluída
no cânone malgrado as dúvidas que inspirou quanto a sua compatibilidade
com a idéia da igreja. A inclusão teve conseqüências fatídicas, pois, com a Reve-
lação, foi aceito o anúncio revolucionário do milênio em que Cristo reinaria com
seus santos nesta terra . Mais ainda, a inclusão não apenas sancionou a perma-
3

nente efetividade, dentro do Cristianismo, da vasta literatura apocalíptica j u -


daica, mas também suscitou a questão imediata de como o milênio podia ser con-
ciliado com a idéia e a existência da igreja. Se o Cristianismo consistia em desejar
ardentemente uma libertação das coisas do mundo, se os cristãos viviam na ex-
pectativa do fim da história não-redimida, se o destino dos cristãos só podia ser
realizado pelo reino, no sentido do Capítulo 20 da Revelação, a igreja ficava re-
duzida a uma comunidade efêmera de homens à espera do grande acontecimen-
to, na esperança de que ocorresse no transcurso de suas vidas. A nível teórico, o
problema só podia .ser resolvido mediante o tour de force interpretativo empreen-
dido por Santo Agostinho no Civitas Dei. Nessa obra, Santo Agostinho rejeitou
incisivamente a crença literal no milênio como "fábulas ridículas", declarando
corajosamente que o reino dos m i l anos era o reinado de Cristo em sua igreja na
época presente, a qual duraria até o Juízo Final e o advento do reino eterno no
além .
4

O conceito agosúniano da igreja, sem alterações substanciais, permaneceu


historicamente válido até o fim da Idade Média. A esperança revolucionária nu-
ma Segunda Vinda, que transfiguraria a estrutura da história na terra, foi aban-
donada como "ridícula". O verbo se tornara matéria em Cristo; a graça da reden-
ção fora concedida ao homem; não haveria qualquer divinização da sociedade
além da presença espiritual de Cristo em sua igreja. O milenismo judaico foi ex-
cluído juntamente com o politeísmo, assim como o monoteísmo judaico fora
excluído lado a lado com o monoteísmo metafísico pagão. Isso deixava a igreja
como a organização espiritual universal dos santos e pecadores que professavam
a fé em Cristo, como representante da civitas Dei na história, como o clarão da
eternidade no tempo. Paralelamente, fazia da organização de poder da sociedade
uma representação temporal do homem, no sentido específico de uma representa-
ção daquela parte da natureza humana que desaparecerá com a transfiguração
do tempo em eternidade. A sociedade cristã unificada articulava-se nas ordens
temporal e espiritual. Em sua articulação temporal, aceitava a conditio humana
sem fantasias sobre o milênio, ao mesmo tempo em que valorizava a existência
natural mediante a representação do destino espiritual através da igreja.
O quadro completa-se quando lembramos que a idéia da ordem temporal
foi concretizada historicamente pelo Império Romano. Roma foi incorporada
à idéia da sociedade cristã por meio da identificação da profecia de Daniel acerca
da Quarta Monarquia ao imperium sine fine , como último reino antes do f i m
5 6

do mundo . A igreja, como representação historicamente concreta do destino


7

3. Acerca da tensão nos primeiros tempos do Cristianismo, da acolhida dada à Revelação e de seu papel
subseqüente na escatologia revolucionária do Ocidente, ver Jakob Taubes, Abendlandische Eschatologie
(Berna, 1947), particularmente as pp 69 e seguintes.
4. Santo Agostinho, Civitas Dei, XX. 7, 8 e 9.
5. Daniel, 2:44.
6. Virgílio. Aeneid, 278-79.
7. Acerca das numerosas fontes, ver Ernst Troeltsch, Die Soziaüehren der christlicken Marchem und Gruppen
Tübingen, 1912), p. 112.
GNOSTICISMO — A NATUREZA DA MODERNIDADE 87

espiritual, encontrava u m paralelo n o Império R o m a n o , c o m o representação his-


toricamente concreta d a temporalidade h u m a n a . P o r isso, a compreensão d o i m -
pério medieval c o m o u m a continuação de R o m a constitui algo mais d o q u e u m
vago vestígio histórico, pois e r a parte de u m a concepção d a história n a q u a l o
fim de R o m a significava o fim do m u n d o n o sentido escatológico. T a l concepção
sobreviveu no terreno das idéias durante séculos, enquanto se desmoronava sua
base de sentimentos e instituições. Somente a o final d o século X V I I a história
d o m u n d o foi elaborada pela última vez segundo a tradição agostiniana, n a o b r a
d e Bossuet Histoire universelle; e foi Voltaire o p r i m e i r o pensador m o d e r n o que
€msou escrever u m a história m u n d i a l e m oposição frontal a Bossuet.

2
A S S I M , a sociedade cristã ocidental foi articulada nas ordens espiritual e tempo-
ral, tendo o p a p a e o imperador c o m o representantes supremos tanto n o sentido
existencial quanto transcendental. A partir dessa sociedade, c o m seu sistema c o n s a -
grado de símbolos, surgem os problemas especificamente m o d e r n o s d a repre-
sentação, c o m a ressurgência da escatologia d o reino. O m o v i m e n t o tinha u m a
longa pré-história social e intelectual, m a s o desejo de redivinizar a sociedade
produziu u m simbolismo próprio, b e m definido, somente p o r volta d o fim do
século X I I . A presente análise iniciar-se-á c o m a p r i m e i r a expressão clara e a b r a n -
gente da idéia, n a pessoa e o b r a de J o a q u i m de F l o r a .
J o a q u i m r o m p e u c o m a concepção agostiniana d a sociedade cristã a o aplicar
o símbolo da T r i n d a d e a o curso d a história. E m sua especulação, a história d a
h u m a n i d a d e teve três períodos, correspondentes às três pessoas da T r i n d a d e . O
p r i m e i r o foi a e r a d o P a i ; c o m o surgimento d e C r i s t o teve início a e r a d o F i l h o .
Mas esta não será a última, devendo a ela seguir-se a e r a d o Espírito. A s três eras
foram caracterizadas c o m o incrementos inteligíveis de realização espiritual. N a
p r i m e i r a era desdobrou-se a vida d o leigo; a segunda suscitou a vida de c o n t e m -
plação ativa d o sacerdote; a terceira traria a v i d a espiritual perfeita d o monge.
Ademais, as eras possuíam estruturas internas comparáveis e duração passível de
ser calculada. D a comparação entre as estruturas, concluía-se que cada e r a tinha
início c o m u m a trindade de figuras proeminentes, isto é, dois precursores segui-
dos pelo líder d a própria e r a ; e, dos cálculos sobre a duração, inferia-se q u e a
era d o F i l h o terminaria no ano 1260. O líder d a p r i m e i r a e r a foi A b r a ã o ; o d a
segunda, C r i s t o ; e predizia J o a q u i m que, p o r volta de 1260, apareceria o Dux e
Babylone, o líder d a terceira e r a . 8

E m sua escatologia trinitária, J o a q u i m c r i o u o conjunto de símbolos que p r e -


side, até hoje, a auto-interpretação d a sociedade política m o d e r n a .
O p r i m e i r o desses símbolos é a concepção d a história c o m o u m a seqüência
d e três eras, das quais a última é claramente o T e r c e i r o R e i n o final. Ê possível

H , , "°
A r esp e de
J° q . ver Herbert Grundmann,
n
a u,m
Studien über Joachim von Floris (Leipzie, 1927)-
«ÜX^A ^>'
x S
P
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Buonaiuti, Giooxchno da Fiore (Roma, 1931); do mesmo au-
e
(
s e
í
u i n t e s E r n e s t o

ZL n I°l ^ ? .
a
U
f ^ V ^ f «toorevangelia, dejoaquim (Roma, 1930); e os capítulos sobreJoa-
r r M U

2^?949) Abendlândische Eschatologie, e de Karl Lõwith, Meaningin History (Chica-


J
88 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

reconhecer c o m o variações desse símbolo a divisão da história e m antiga, m e -


dieval e m o d e r n a ; a teoria de T u r g o t e de C o m t e acerca d a seqüência das fases
teológica, metafísica e científica; a dialética hegeliana dos três estágios de l i b e r -
dade e realização espiritual auto-refletiva; a dialética m a r x i s t a dos três estágios do
c o m u n i s m o primitivo, sociedade de classes e c o m u n i s m o final; e, p o r último, o
símbolo nacional-socialista d o ' T e r c e i r o R e i n o — e m b o r a este seja u m caso espe-
cial, a exigir m a i o r atenção.
O segundo símbolo é o referente ao líder . Este símbolo teve eficácia imediata
9

n o movimento dos religiosos franciscanos que v i r a m e m S. Francisco a concreti-


zação d a profecia de J o a q u i m , cuja eficácia foi ainda reforçada pela especulação
de Dante acerca d o Dux da nova e r a espiritual. Posteriormente, o símbolo p o d e
ser encontrado nas figuras paracléticas, os homines spirituales e os homines novi d o
fim d a Idade Média, d o Renascimento e d a R e f o r m a ; p o d e ser vislumbrado c o m o
componente d o prinápe de M a q u i a v e l ; e, n o período de secularização, surgiu nos
super-homens de C o n d o r c e t , C o m t e e M a r x , até q u e veio d o m i n a r o p a n o r a m a
contemporâneo através dos líderes paracléticos dos novos reinos.
O terceiro símbolo, às vezes c o m b i n a d o a o segundo, é o do profeta d a nova
era. A fim de emprestar- validade e convicção à idéia d o T e r c e i r o R e i n o final, é
necessário p r e s u m i r q u e o c u r s o da história, c o m o u m todo inteligível e significa-
tivo, seja acessível a o conhecimento h u m a n o , quer através de u m a revelação d i r e -
ta, quer através de u m a gnose especulativa. P o r conseguinte, o profeta gnóstico
o u , n o s estágios posteriores da secularização, o intelectual gnóstico torna-se u m
acessório d a civilização m o d e r n a . O próprio J o a q u i m é o p r i m e i r o e x e m p l a r
dessa espécie.
O quarto símbolo é o d a irmandade de pessoas autônomas. A terceira e r a de
J o a q u i m , devido à nova descida d o espírito, transformará os h o m e n s e m m e m -
b r o s d o novo reino s e m a mediação sacramentai d a graça. Nessa e r a , a igreja d e i -
xará de existir p o r q u e os dons carismáticos necessários à v i d a perfeita chegarão
aos homens sem a administração dos sacramentos. E m b o r a J o a q u i m concebesse
a nova e r a concretamente c o m o u m a o r d e m de monges, a idéia d a c o m u n i d a d e
dos espiritualmente perfeitos, q u e p o d e m viver e m conjunto s e m q u a l q u e r a u t o r i -
dade institucional, foi f o r m u l a d a c o m o u m a questão de princípio. A idéia presta-
va-se a variações infinitas. E l a pode ser encontrada, e m graus diferentes de p u r e -
za, nas seitas medievais e renascentistas, assim c o m o nas igrejas puritanas dos
santos; e m s u a f o r m a secularizada, tornou-se u m componente formidável n o
credo democrático contemporâneo; e constitui o núcleo dinâmico d o misticismo
m a r x i a n o acerca d o reino d a liberdade e do gradual desaparecimento d o estado.
O T e r c e i r o R e i n o nacional-socialista é u n i caso especial. É indiscutível que
a profecia milenar de H i t l e r deriva d a especulação de J o a q u i m , transmitida n a
A l e m a n h a através d a a l a anabatista d a R e f o r m a e através d o Cristianismo J o a n i n o
de Fichte, Hegel e Schelling. N ã o obstante, a aplicação concreta d o esquema tri-
nitário a o p r i m e i r o Reich alemão terminado e m 1806, a o Reich de Bismarck e n c e r -
r a d o e m 1918 e a o Dritte Reich d o movimento nacional-socialista soa falsa e p r o -
vinciana, q u a n d o c o m p a r a d a c o m as especulações histórico-universais dos i d e a -
listas alemães, de C o m t e o u de M a r x . Este toque nacionalista acidental deve-se

9. Acerca de outras transformações das idéias de Joaquim, ver Apêndice I, " M o d e m Transfigurations
ofjoachism", em Lõwith, op. cit.
GNOSTICISMO — A NATUREZA DA MODERNIDADE 89

a o fato de q u e o símbolo d o Dritte Reich não provém d o esforço especulativo de u m


filósofo de escol, m a s sim de duvidosas transferências literárias. O s propagandistas
nacionais-socialistas r e c o l h e r a m - n o n o panfleto de Moeller van d e n B r u c k q ue o
d n h a c o m o título . E Moeller, qu e não abrigava intenções nacionais-socialistas,
10

nele vira u m símbolo conveniente enquanto trabalhava n a edição alemã de D o s -


toievski. A idéia russa d a T e r c e i r a R o m a caracteriza-se pela mescla de u m a esca-
tologia do reino espiritual c o m sua efetivação p o r u m a sociedade política, n o s
moldes d a idéia nacional-socialista d o Dritte Reich. C a b e agora e x a m i n a r esse
outro r a m o da redivinizacão política.

A p e n a s n o O c i d e n t e a concepção agostiniana d a igreja foi historicamente


eficaz, a ponto de resultar n a dupla e nítida representação d a sociedade através
dos poderes espiritual e temporal. O fato de q ue o governante temporal estava s i -
tuado a u m a distância geográfica considerável de R o m a certamente facilitou tal
evolução. N o Oriente, desenvolveu-se a f o r m a bizantina do cesáreo-papismo,
dando continuidade direta à posição d o i m p e r a d o r n a R o m a pagã. C o n s t a n t i n o -
p l a e r a a Segunda R o m a , tal como consta da declaração de J u s t i n i a n o acerca d o
consuetudo Romae: " P o r R o m a , todavia, deve-se entender não apenas a antiga c i -
dade, m a s também nossa real c i d a d e " . Após a queda de C o n s t a n t i n o p l a diante
11

dos turcos, a idéia de M o s c o u c o m o sucessora d o império o r t o d o x o g a n h o u ter-


reno nos círculos eclesiásticos russos. V a l e citar os trechos famosos de u m a carta
de Filofei, de Pskov, a Ivã, o G r a n d e :

" A igreja d a p r i m e i r a R o m a tombou p o r causa d a heresia infiel de Apolinário.


O s portões da segunda R o m a e m Constantinopla foram derrubados pelos ismae-
litas. H o j e , a sagrada igreja apostólica d a terceira R o m a e m vosso Império reluz
n a glória d a fé cristã aos olhos de todo o m u n d o . Sabei vós, Ó p o d e r o s o C z a r ,
q u e todos os impérios dos cristãos ortodoxos convergiram p a r a o vosso. Vós sois
o único autocrata d o universo, o único czar de todos os cristãos... . Segundo os
livros proféticos, todos os impérios cristãos têm u m fim e convergirão p a r a u m
único império, o de nosso gossudar, isto é, o Império d a Rússia. Duas Romãs c a i -
r i a m , m a s a terceira permanecerá, e nunca,haverá,uma q u a r t a R o m a " . Passou-se
1 2

quase u m século antes qu e a idéia fosse institucionalizada. Ivã I V foi o p r i m e i r o


m e m b r o d a dinastia R u r i k q u e se fez coroar, e m 1547, c o m o C z a r d o s O r t o d o -

10. Moeller van den Bruck, Das Dritte Reich (Hamburgo, 1923). Ver também o capítulo referente a "Das
Dritte Reich und die Jungen Võlker" na obra de Moeller DiepoMscken Krãfte (Breslau, 1933). O símbolo
ganhou aceitação lentamente. A segunda edição de Dritte Reich só foi publicada em 1930, cinco anos
após a morte do autor por suicídio; ver a "Introduction" de Mary Agnes Hamilton à edição inglesa
intitulada Germany's ThirdEmpire (Londres, 1934).
11. Codex Jusdnianus i. XVII. 1. 10. Citamos a formalização legal da idéia. Acerca dos maüzes de signi-
ficado com relação à fundação e organização de Constantinopla em 330, ver Andrew Alfôldi, The Con-
version of Constanüne and Pagan Rome, tradução de Harold Mattingly (Oxford, 1948), Capítulo IX: "The
Old Rome and The New". A tensão entre as duas Romãs pode ser deduzida do cânone 3 do Concilio
de Constantinopla em 581: " O Bispo de Constantinopla segue-se na ordem de precedência ao Bispo
de Roma, pois Constantinopla é a nova Roma" (Henrv Bettenson, Documents of the Ckristian Church
(Nova York, 1947), p. 115).

12. Acerca da Terceira Roma, ver Hildegard Schaeder, Moskau - Das Dritte Rom: Studien Geschichte der
poMschen Theorien in der slaviscken Welt (Hamburgo, 1929); Joseph Olsr, Gfí ultimi Rurikidi e le base ideo-
Icgiche delta sovranità dello stato Russo ("Orientalia Christiana", Vol. XII; Roma, 1946); Hugo Rahner,
lom Ersten bis zum Dritten Rom (Innsbruck, 1950); Paul Miliukov, Outlines of Russian Culture, Parte I:
«efigion and the Church (Filadélfia, 1945), pp. 15 e seguintes.
90 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

x o s , e em 1589 o Patriarca de Constantinopla foi compelido a instituir o p r i -


13

meiro Patriarca autocéfalo de Moscou, j á agora com o reconhecimento oficial


de Moscou como a Terceira R o m a . 14

As datas do surgimento e da institucionalização da idéia são importantes. O


reino de Ivã, o Grande, coincide com a consolidação dos estados nacionais do O c i -
dente (Inglaterra, França e Espanha), enquanto os reinos de Ivã I V e Teodoro I
coincidem com a Reforma no Ocidente. Justamente quando a articulação imperial
do Ocidente terminava de se desintegrar, quando a sociedade ocidental rearticula-
va-se em nações e na pluralidade de igrejas, a Rússia iniciava süa carreira como
herdeira de Roma. Desde suas mais remotas origens, a Rússia não foi uma nação
no sentido ocidental, mas uma área civilizacional dominada etnicamente pelos
Grandes Russos e transformada em sociedade política pelo simbolismo da conti-
nuação romana.
O Ocidente gradualmente reconheceu que a sociedade russa era algo pecu-
liar. E m 1488, Maximiliano I ainda tentou integrar a Rússia no sistema político
ocidental a o oferecer uma coroa real a Ivã, o Grande. O Grão-Duque de Moscou
recusou a honraria, a pretexto de que sua autoridade fluía dos antecessores e era
abençoada por Deus, não carecendo, portanto, de confirmação pelo imperador
ocidental . U m século depois, e m 1576, durante as guerras ocidentais contra os
ls

turcos, Maximiliano I I foi mais além, oferecendo reconhecer Iva I V como impe-
rador do Oriente Grego em troca de seu a p o i o . Mais uma vez, o governante russo
16

não se interessou nem mesmo p o r u m a coroa imperial, porque, nessa época, Ivã
j á estava a braços com a construção do Império Russo através da liquidação d a
nobreza feudal e sua substituição pela opnchrúna, a nova nobreza baseada na pres-
tação de serviços . A o longo dessa sanguinolenta operação, Ivã, o Terrível, deixou
17

estampada na Rússia a indelével articulação social que determinou a história polí-


tica interna do país até os dias de hoje. Transcendentalmente, a Rússia se distinguia
de todas as nações ocidentais como representante imperial d a verdade cristã; e,
mediante sua rearticulação social, da qual o czar emergiu como representante exis-
tencial, a Rússia desvinculou-se radicalmente do desenvolvimento das instituições
representativas n o sentido dos estados nacionais d o Ocidente. Napoleão, finalmen-
te, reconheceu o problema russo quando, em 1802, disse que só havia duas nações
no mundo: a Rússia e o Ocidente . 18

A Rússia desenvolveu u m tipo sui generis de representação, n o aspecto tanto


transcendental quanto existencial. A ocidentalização iniciada por Pedro, o Grande,
não trouxe alterações fundamentais, pois praticamente não surgiu qualquer efeito
sobre a articulação social. N a verdade, pode-se falar de uma ocidentalização dos
membros da alta nobreza, após as Guerras Napoleônicas, n a geração de Chaadaev,
Gagarin e Pecherin; mas os servidores pessoais do czar não se transformaram n u m a
nobreza estratificada, n u m baronagium articulado. Talvez não se tenha nem ao menos
compreendido a necessidade de uma ação cooperativa de classe como condição
para a ocidentalização política da Rússia; e, certamente, se alguma vez existiu a
possibilidade de u m a evolução nesse sentido, ela desapareceu com a revolta dezem-

13. GeorgeVcrr^dúy, PoliticoU and DiplomaticHütoryof Rússia (Boston, 1936), p. 158.


14. Ibid.,p. 180.
15. Ibid., p. 149.
16. Rahner, op. cit., p. 15.
17. Vernadsky, op. cit., pp. 169 e seguintes.
18. Napoleão, Vues politiques (Rio de Janeiro, sem indicação de ano), p. 340.
GNOSTICISMO — A NATUREZA DA MODERNIDADE 91

brista de 1825. L o g o depois, c o m Khomyakov, teve início a filosofia eslavófila e


antiocidental da história, que realçou o apocalipse da Terceira Roma, c o m grande
efeito sobre a intelligentsia da nobreza média, transformando-o na missão messiâr
nica e escatológica da Rússia perante a humanidade. N a obra de Dostoievski, essa
superposição do messianismo cristalizou-se n a visão curiosamente ambivalente de
u m a Rússia autocrática e o r t o d o x a que, de a l g u m m o d o , conquistaria o m u n d o —
e, através dessa conquista, desabrocharia sob a f o r m a de u m a sociedade livre, c o n -
gregando todos os verdadeiros cristãos . Essa visão ambivalente, e m seu feitio se-
19

cularizado, inspira u m a ditadura d o proletariado que, ao conquistar o m u n d o ,


desabrochará n o r e i n o da liberdade marxiana. O ensaio de articulação ocidental
da sociedade russa empreendido pelos czares liberais tornou-se coisa d o passado
c o m a revolução de 1917. O p o v o mais u m a vez tornou-se u m servidor do czar, n o
antigo sentido moscovita, enquanto os quadros d o Partido Comunista fazem o pa-
p e l d a nobreza f u n c i o n a l ; a opnchrúna, q u e Ivã, o Terrível, estabelecera c o m base
n u m a economia agrícola, ressurgiu, ironicamente, à base de u m a economia i n -
dustrial . 20

A PARTIR da exposição dos símbolos de J o a q u i m , d o exame superficial das varian-


tes posteriores e de sua combinação c o m o apocalipse político da Terceira Roma,
terá ficado claro que a nova escatologia afeta decisivamente a estrutura da política
moderna. Ela p r o d u z i u u m simbolismo b e m definido, p o r m e i o d o q u a l as socie-
dades políticas ocidentais interpretam o significado de sua existência; os partidá-
rios de u m a o u o u t r a das variantes determinam a articulação da sociedade, interna-
mente o u e m escala m u n d i a l . Até a q u i , c o n t u d o , o simbolismo f o i aceito ao nível
da auto-interpretação e descrito c o m o u m fenômeno histórico. Cabe agora subme-
ter a u m a análise crítica seus principais aspectos, lançando os alicerces de t a l aná-
lise mediante a formulação da questão teoricamente relevante.
A escatologia de J o a q u i m , p o r seu próprio tema, constitui u m a especulação
acerca d o significado da história. A f i m de determinar sua diferença específica,
deve-se cotejá-la c o m a filosofia cristã da história prevalecente na época, o u seja,
a especulação agostiniana. À especulação tradicional juntara-se a idéia j u d a i c o -
cristã de u m fim para a história, n o sentido de u m estado inteligível de perfeição.
A história não mais se m o v i a e m ciclos, c o m o o concebiam Platão e Aristóteles,
tendo a d q u i r i d o direção e destino. I n d o além d o messianismo j u d a i c o e m senso
estrito, a concepção especificamente cristã da história havia, nessa época, avançado
r u m o à compreensão do f i m c o m o u m a realização transcendental. A o elaborar essa
percepção teórica, Santo Agostinho distinguira a esfera profana da história, e m q u e
os impérios crescem e decaem, da história sagrada, que c u l m i n a n o surgimento de
Cristo e n o estabelecimento d a igreja. Além disso, ele i n c o r p o r o u a história sagra-

19 Sobre essa apreciação de Dostoievski, ver Dmitri Merezhkovski, Die religiõse Revolution (Introdução
°
a 6
*°'
D o
?
e v s k l
Schriften; Munique, 1920), e, de Bernhard Schultze, Russiscke Denker (Vie-
P h t u c h e

na, 1950), pp. 125 e seguintes.


20. Alexander von Schelting, Russland und Europa(Berna, 1948), pp. 123 e seguintes e 261 e seguinte*
92 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

da. A u m a história transcendental da civitas Dei, a q u a l inclui tanto os aconteci-


mentos na esfera angelical q u a n t o o descanso transcendental eterno. Somente a
história transcendental, que abrange a peregrinação terrena da igreja, move-se r u -
m o à realização escatológica. A história profana, p o r o u t r o lado, não tem igual
direção, pois consiste n a espera d o f i m ; sua f o r m a presente é a de u m saeculum
senescens, de u m a época que envelhece . 21

Nos dias de J o a q u i m , a civilização ocidental estava em fase de rápido cresci-


m e n t o e começava a reconhecer sua força, não suportando facilmente o derrotismo
agostiniano c o m relação à esfera m u n d a n a da existência. A especulação de J o a q u i m
constituiu u m a tentativa de dotar o curso imanente d a história de u m significado
que não constava da concepção agostiniana. E, para tal f i m , J o a q u i m usou a q u i l o
que lhe era disponível, q u a l seja, o significado da história transcendental. Nessa
p r i m e i r a tentativa ocidental de imanentização do significado, não se perdeu a co-
nexão c o m o Cristianismo. A nova era de J o a q u i m traria maior realização dentro
da história, mas isso não seria devido a u m a erupção imanente, e sim viria através
de u m a nova irrupção d o espírito. A idéia de u m a realização radicalmente i m a -
nente cresceu de forma m u i t o vagarosa, n u m longo processo que, grosso m o d o ,
pode ser caracterizado c o m o u m a transição " d o humanismo ao i l u m i n i s m o " ;
somente n o século X V I I I , c o m a idéia d o progresso, o a u m e n t o d o significado na
história tornou-se u m fenômeno completamente i n t r a m u n d a n o , sem irrupções
transcendentais. Chamaremos de "secularização" essa segunda fase da i m a n e n t i -
zação.
A imanentização de J o a q u i m suscita u m p r o b l e m a teórico que não ocorre na
antigüidade clássica n e m n o cristianismo o r t o d o x o o p r o b l e m a de u m eidos da his-
tória . N a especulação helênica, sem dúvida, também se colocou o p r o b l e m a da
22

essência na política — tanto para Platão quanto para Aristóteles a polis tinha u m
eidos. Mas a realização dessa essência é presidida p e l o r i t m o de crescimento e de-
cadência; a corporificação e descorporificação rítmica da essência na realidade
política constitui o mistério da existência, e não u m eidos adicional. Assim, a ver-
dade soteriológica do Cristianismo r o m p e c o m o r i t m o d a existência: acolá dos
êxitos e insucessos temporais encontra-se o destino sobrenatural d o h o m e m , a per-
feição através da graça n o além. O h o m e m e a humanidade agora têm sua realiza-
ção, mas ela está além da natureza. Mais u m a vez, nesse caso, não há u m eidos da
história, p o r q u e a sobrenatureza escatológica não é u m a natureza n o sentido filo-
sófico e imanente. Portanto, o p r o b l e m a d o eidos na história só se põe q u a n d o a
realização transcendental cristã é imanentizada. C o n t u d o , tal hipótese imanentista
d o eschaton é u m a falácia teórica. As coisas não são coisas, n e m possuem essência,
em virtude de u m a declaração arbitrária. O curso d a história c o m o u m t o d o não é
objeto da experiência; a história não possui u m eidos, e isso p o r q u e seu curso se es-
tende ao futuro desconhecido. Assim, o significado da história é uma ilusão; eesse
eidos ilusório é criado ao se tratar u m símbolo de fé c o m o se fosse u m a proposição
relativa a u m objeto da experiência imanente.
O caráter falacioso d o eidos da história f o i exposto acima c o m o u m a questão
de princípio, mas a análise deve ser levada adiante, descendo a certos pormenores.
O simbolismo cristão d o destino sobrenatural tem, p o r si próprio, u m a estrutura

21. Para um relato da concepção agostiniana da história, ver Lõwith, op. cit.
22. Acerca do eidos da história, ver Hans Urs von Balthasar, Theologieder Geschichte (Einsiedeln 1950)
e Lõwith, op. cit., passim. ' '
G N O S T I C I S M O — A N A T U R E Z A DA M O D E R N I D A D E 93

teórica, a qual f o i preservada nas variantes da imanentização. O avanço d o peregri-


n o , a santificação da vida, constitui u m m o v i m e n t o r u m o a u m telos, u m a meta; e
essa meta, a visão beatífica, é u m estado de perfeição. Daí, n o simbolismo cristão,
podem-se distinguir o m o v i m e n t o , como seu componente teleológico, e u m estado
de valor máximo, c o m o seu componente axiológico . Os dois componentes res-
23

surgem nas variantes da imanentização, p o d e n d o , p o r conseguinte, ser classificados


como variantes que, e m seu simbolismo, acentuam seja o componente teleológico,
seja o componente axiológico, o u ainda c o m b i n a m ambos. N o p r i m e i r o caso,
quando a ênfase recai fortemente sobre o m o v i m e n t o , sem q u e haja clareza acerca
da perfeição final, o resultado será a interpretação progressivista da história. O
objetivo não precisa ser esclarecido p o r q u e os pensadores progressivistas, homens
c o m o D i d e r o t o u D'Alembert, presumem a seleção de fatores desejáveis c o m o p a -
drão e interpretam o progresso c o m o u m aumento qualitativo e q u a n t i t a t i v o d o
bem presente — o " m a i o r e m e l h o r " d o slogan simplificador. Essa é u m a atitude
conservadora, a q u a l se p o d e tornar reacionária a menos que o padrão o r i g i n a l se-
j a ajustado à situação histórica e m fluxo. N o segundo caso, quando a ênfase é pos-
ta incisivamente sobre o estado de perfeição, sem nitidez acerca dos meios necessá-
rios para sua realização, o resultado será o utopismo. Ele p o d e t o m a r a f o r m a de
u m m u n d o de sonho axiológico, tal como na u t o p i a de M o r e , quando o pensador
ainda se mantém consciente de q u e o sonho é irrealizável e das razões p o r q u e o é;
ou, como fruto de u m crescente analfabetismo teórico, p o d e assumir a f o r m a de
vários idealismos sociais, tais c o m o a abolição da guerra, d a distribuição desigual
da propriedade, d o medo e da necessidade. E, finalmente, a imanentização pode-se
estender à totalidade d o símbolo cristão. O resultado será então o misticismo ativo
de u m estado de perfeição, a ser atingido através da transfiguração revolucionária
da natureza d o h o m e m , tal como, p o r exemplo, n o m a r x i s m o .

A ANÁLISE pode ser retomada agora ao nível dos princípios. A tentativa de construir
u m eidos da história conduzirá à imanentização falaciosa d o eschaton cristão. N o e n -
tanto, a compreensão da tentativa c o m o falaciosa suscita questões desconcertantes
c o m respeito ao tipo de h o m e m que se deixa p o r ela enganar. A falácia parece bas-
tante óbvia. É possível presumir que os pensadores que empreenderam a tentativa
não eram suficientemente inteligentes para discerni-la? O u a discerniram, mas não
deixaram de propagá-la p o r alguma obscura e malévola razão? A simples f o r m u l a -
ção dessas perguntas indica que a resposta é negativa. Sem dúvida, não se p o d e
explicar sete séculos de história intelectual e m termos de ignorância o u desonesti-
dade. Por isso, cumpre presumir q u e alguma força agia n a alma desses homens,
impedindo-os de ver a falácia.

, A natureza dessa força não pode ser apreendida submetendo-se a estrutura d a


falácia a u m a análise mais profunda. Pelo contrário, a atenção deve concentrar-se

23. A respeito da distinção entre os dois componentes (que foi introduzida por Troeitsch) e do debate
teológico dai resultante, ver Hans Urs von Balthasar, Prometkeus (Heidelberg, 1947), pp. 12 e seguintes.
94 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

n o q u e tais pensadores conseguiram c o m sua construção falaciosa. Sobre isso não


cabem dúvidas. Eles obtiveram u m a certeza sobre o significado da história, e seu
próprio lugar na história, que de o u t r o m o d o jamais teriam. O r a , existe sempre
uma demanda pelas certezas, a fim de vencer as incertezas e seu séquito de ansie-
dades. A questão seguinte seria: que incerteza específica era tão perturbadora que
se fazia mister superá-la mediante o recurso duvidoso à imanentização falaciosa?
Nâo é preciso i r longe para encontrar a* resposta. A incerteza é a própria essência
d o Cristianismo. A sensação de segurança n u m " m u n d o repleto de deuses" desapa-
rece c o m os próprios deuses; quando o m u n d o é desdivinizado, as comunicações
c o m o Deus q u e transcende o m u n d o ficam reduzidas ao tênue vínculo d a fé, n o
sentido dado em Hebreus 11:1, como a substância d a q u i l o que se espera e a de-
monstração d o que não se vê. Ontologicamente, a substância das coisas desejadas
só p o d e ser encontrada n a própria fé; e, epistemologicamente, a única prova das
coisas invisíveis está também na própria fé . O vínculo é verdadeiramente tênue,
e pode ser r o m p i d o c o m facilidade. A vida da alma aberta a Deus, a espera, os pe-
ríodos de aridez e enfado, culpa e desespero, desamparo e esperança q u a n d o já
não há esperança, o frêmito silencioso d o a m o r e da graça, o tremor diante de uma
certeza que, se conquistada, é perda — a própria leveza desse tecido pode-se cons-
tituir n u m m a n t o p o r demais pesado para os homens que anseiam p o r u m a expe-
riência maciçamente possessiva. O risco de u m colapso da fé em grau socialmente
significativo aumenta na medida e m que o Cristianismo se converte e m êxito tem-
p o r a l , isto é, cresce q u a n d o o Cristianismo penetra inteiramente n u m a área civi-
Üzacional, c o m o a p o i o de pressões institucionais, e, ao mesmo tempo, sofre u m
processo interno de espiritualização, de realização mais plena de sua essência.
Q u a n t o mais pessoas são atraídas para a órbita cristã, de m o t o próprio o u sob
pressão, m a i o r será o número daqueles que não possuem a força espiritual exigida
para a heróica aventura da alma que é o Cristianismo. A probabilidade da perda de
fé aumenta também n a m e d i d a e m q u e o progresso civilizacional d a educação, da
alfabetização e do debate intelectual faz c o m que toda a seriedade d o Cristianismo
seja compreendida p o r u m número crescente de pessoas. Esses dois processos ca-
racterizaram o apogeu da Idade Média. O s pormenores históricos não vêm ao
caso; basta mencionar o crescimento das sociedades urbanas, c o m sua intensa c u l -
tura espiritual, c o m o centros primários a partir dos quais o perigo se i r r a d i o u a
toda a sociedade ocidental.
Se o p r o b l e m a da perda da fé n o sentido cristão ocorre c o m o u m fenômeno
de massa, as conseqüências dependerão d o conteúdo d o m e i o civilizacional e m q u e
estejam caindo os agnósticos. U m h o m e m não p o d e cair d e n t r o de si próprio, e m
sentido absoluto, pois, se o tentasse, m u i t o cedo descobriria haver t o m b a d o n o
abismo de seu desespero e de sua insignificância; assim, ele terá de recorrer a u m a
cultura menos diferenciada de experiência espiritual. As condições prevalecentes
na civilização do século X I I i m p e d i a m que recorresse ao politeísmo greco-romano,
o qual desaparecera como cultura viva da sociedade; seus vestígios atrofiados d i f i -
cilmente p o d e r i a m ser revividos, pois haviam p e r d i d o o encanto justamente para
os homens que provaram d o Cristianismo. A queda só p o d i a ser evitada p o r alter-
nativas experienciais, suficientemente próximas à experiência da fé para que ape-
nas u m o l h a r m u i t o penetrante pudesse distinguir a diferença, mas dela afastadas

24. Nossas reflexões acerca da incerteza da fé devem ser entendidas como uma psicologia da experiên-
cia. Com respeito à teologia da definição de fé em Heb. 11:1, que está subentendida em nossa análise,
ver S. Tomás de Aquino, Summa theologica, H-ü Q. 4, Art. 1.
G N O S T I C I S M O — A N A T U R E Z A DA M O D E R N I D A D E 95

o bastante para aliviar a incerteza d a fé e m senso estrito. Tais experiências alterna-


tivas estavam disponíveis na gnose que acompanha o Cristianismo desde suas mais
remotas origens . 25

Os limites desta exposição não p e r m i t e m q u e se descreva a gnose d a antigüi-


dade o u a história de sua transmissão à Idade Média ocidental: basta dizer que,
naquela época, a gnose constituía u m a cultura religiosa viva, à q u a l os homens
p o d i a m recorrer. A tentativa de imanentizar o significado d a existência é basica-
mente u m esforço para obter u m domínio sobre nosso conhecimento da transce-
dência m a i o r do que o propiciado pela cognitiojidei, a cognição da fé; e as experiên-
cias gnósticas oferecem esse m a i o r domínio na medida em que constituem u m a
expansão da alma' até o p o n t o e m que Deus é trazido para dentro da existência
d o h o m e m . T a l expansão envolverá as diferentes faculdades humanas, razão pela
q u a l é possível distinguir diversas variedades gnósticas de acordo c o m a faculdade
que p r e d o m i n a no esforço de obter esse m a i o r controle sobre Deus. A gnose pode
ser primacialmente intelectual e assumir a f o r m a de u m a penetração especulativa
nos mistérios d a criação e da existência, c o m o o f o r a m , p o r exemplo, as gnoses
contemplativas de Hegel o u Schelling. O u pode ser basicamente emocional, t o -
m a n d o a f o r m a de u m a presença da substância divina na alma humana, c o m o ,
p o r exemplo, nos líderes sectários paracléticos. Pode ser ainda principalmente
volitiva, tomando a f o r m a de u m a redenção ativista d o h o m e m e da sociedade,
tal c o m o representada p o r ativistas revolucionários c o m o Comte, M a r x o u H i t l e r .
Essas experiências gnósticas, e m toda sua variedade, constituem o núcleo da r e d i -
vinizacão da sociedade, pois os homens que recorrem a essas experiências d i v i n i -
zam-se ao substituir a fé, n o sentido cristão, p o r formas mais concretas de p a r t i c i -
pação na essência d i v i n a . 26

É essencial a nítida compreensão de que essas experiências constituem o nú-


cleo ativo da escatologia imanentista, pois de o u t r o m o d o se tolda a lógica interna
d o desenvolvimento, político ocidental a p a r t i r d o imanentismo medieval até
chegar ao marxismo, passando pelo h u m a n i s m o , i l u m i n i s m o , progressivismo,
liberalismo e positivismo. Os símbolos intelectuais elaborados pelos vários tipos de
imanentistas freqüentemente são conflitantes, assim como os vários tipos de gnós-
ticos se opõem uns aos outros. É fácil imaginar a indignação de u m liberal h u m a -
nista se l h e dissermos que seu particular de imanentismo é u m passo na estrada
que leva ao marxismo. Não é supérfluo, p o r t a n t o , recordar o princípio de que a
substância da história é encontrada a o nível das experiências, e não das idéias.
O secularismo poderia ser definido c o m o u m a radicalização das formas anteriores
de imanentização paraclética, pois a divinização experiencial d o h o m e m é mais
extremada n o caso secularista. Feuerbach e M a r x , p o r exemplo, interpretaram o
Deus transcendental c o m o u m a projeção do que há de melhor n o h o m e m n u m
além hipostático; para eles, p o r t a n t o , o m o m e n t o decisivo da história ocorreria
q u a n d o o h o m e m trouxesse sua projeção para d e n t r o de si próprio, q u a n d o se

25. A exploração da gnose está avançando com tanta rapidez que somente u m estudo das principais
obras da última geração proporciona a compreensão de suas dimensões. De especial importância são:
Eugène de Faye, Gnostiques et gnosticisme (2 edição, Paris, 1925); Hans Jonas, Gnosis und spãtanaker Geist
?

(Gõtingen, 1934); Simone Pétrement, Le Duatisme chez Platon, les Gnostiques et les Manichéens (Paris, 1947);
e Hans Sõderberg, La Religion des Cathares (Uppsala, 1949).
26. C o m respeito a uma sugestão de caráter geral acerca da variedade de fenômenos gnósticos n o m u n -
do moderno, ver Balthasar, Prometheus, p. 6.
96 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

tornasse consciente de q u e ele próprio é Deus, transfigurando-se, e m conseqüên-


cia, n u m s u p e r - h o m e m . E s s a transfiguração m a r x i a n a , n a realidade, conduz a
seu extremo u m a experiência medieval menos radical, que trazia ao h o m e m o
espírito de D e u s , enquanto deixava o próprio D e u s e m sua transcendência. O s u -
p e r - h o m e m m a r c a o fim de u m a estrada a o longo d a q u a l encontramos figuras
tais c o m o o " h o m e m c o m D e u s " dos místicos d a R e f o r m a i n g l e s a . Essas conside-
28

rações, ademais, e x p l i c a m e justificam a advertência a n t e r i o r n o sentido d e q u e


não se devem caracterizar os movimentos políticos m o d e r n o s c o m o neopagãos.
As experiências gnósticas determinam u m a estrutura da realidade política que
é sux generis. O gnosticismo medieval está ligado a o gnosticismo contemporâneo
por u m a l i n h a de transformação gradual. E , n a verdade, a transformação é tão g r a -
d u a l q u e seria difícil decidir se o s fenômenos contemporâneos devem ser classifi-
cados c o m o cristãos, já q u e derivam claramente das heresias cristãs d a Idade M é -
dia, o u se os fenômenos medievais devem ser classificados c o m anticristãos, p o r
serem claramente a origem d o anticristianismo m o d e r n o . O m e l h o r é deixar d e
lado tais questões e reconhecer a essência da modernidade c o m o o crescimento
do gnosticismo.

A gnose a c o m p a n h o u o C r i s t i a n i s m o desde suas origens, dela se e n c o n t r a n -


do vestígios em S. Paulo e S. J o ã o . A heresia gnóstica foi o grande oponente d o
29

Cristianismo nos primeiros séculos. Ir e ne u relacionou e criticou suas muitas v a -


riantes n a o b r a Aaversus Haereses (por volta de 180) — tratado q u e a i n d a p o d e ser
consultado c o m proveito pelo estudante que deseje conhecer as idéias e os m o v i -
mentos políticos modernos. Ademais, além d a gnose cristã, havia a i n d a u m a gnose
j u d a i c a , u m a gnose paga e u m a gnose muçulmana. M u i t o provavelmente, a origem
c o m u m de todos esses r a m o s de gnose deva ser buscada n o tipo experiencial bási-
c o q u e prevaleceu n a área pré-cristã d a civilização siríaca. N o entanto, somente
n o apogeu da Idade Média a gnose assumiu a forma de u m a especulação sobre o
significado d a história imanente. A gnose não conduz, p o r necessidade interna, à
construção falaciosa d a história q u e caracteriza a m o d e r n i d a d e desde J o a q u i m .
Por conseguinte, n a busca d a certeza deve haver u m componente adicional que
orienta a gnose especificamente r u m o à especulação histórica. Este componente
a d i c i o n a l é a expansividade civilizacional da sociedade ocidental n o apogeu d a I d a -
de Média. É o atingimento d a m a i o r i d a d e n a busca de seu significado, u m cresci-
mento consciente que não toleraria ser interpretado c o m o envelhecimento. E , de
fato, a auto-atribuição de u m significado p a r a a civilização ocidental seguiu de p e r -
to a expansão e a diferenciação ocorridas n a realidade. O crescimento espiritual
d o O c i d e n t e através das ordens, desde C l u n y , foi expresso n a especulação de J o a -
q u i m acerca de idéia de u m T e r c e i r o Reino dos m o n g e s ; as primeiras manifesta-
ções d o h u m a n i s m o filosófico e literário foram expressas n a idéia de Dante e P e -
trarca acerca de u m Império Apolíneo, u m T e r c e i r o R e i n o d a v i d a intelectual que

27. Acerca do super-homem de Feuerbach e Marx, ver Henri de Lubac, Le Drame de 1'humanisme Athée
(3* edição. Paris, 1945), pp. 15 e seguintes; Lõwith, op. cit., especialmente a citação na página 36 relativa
aos "novos homens"; e Eric Voegelin, "The Formation of the Marxian Revolutionary Idea", Review of
Politics, Vol. XII (1950).
28. O "homem com Deus" [godded num) é um termo de Henry Nicholas (ver Rufus M. Jones, Studies in
Mystical Religion; Londres, 1936; pp. 434).
29. Acerca da gnose nos primeiros tempos do Cristianismo," ver Rudolf Bultmann, Das urchristentum im
Rahmen der Antiken Religionen (Zurique, 1949).
G N O S T I C I S M O — A N A T U R E Z A DA M O D E R N I D A D E
97

se segue às ordens imperiais de c u n h o espiritual e t e m p o r a l ; e, na Idade da Razão,


30

Condorcet concebeu a idéia de u m a civilização unificada da humanidade e m q u e


cada indivíduo seria u m intelectual francês' . Os portadores sociais dos m o v i m e n -
1

tos, p o r sua vez, variaram e m função da diferenciação e articulação da sociedade


ocidental. N o s p r i m e i r o s estágios da modernidade, eram eles os habitantes das c i -
dades e os camponeses, e m contraposição à sociedade feudal; nos estágios posterio-
res, eram a burguesia progressista, os operários socialistas e a baixa classe média
fascista. E, finalmente, c o m o avanço p r o d i g i o s o da ciência a p a r t i r do século X V I I I ,
o novo instrumento de cogniçào iria transformar-se, dir-se-ia de f o r m a inevitável,
no veículo simbólico da verdade gnóstica. N a especulação gnóstica do cientificis-
m o , esta variante específica chegou ao ápice q u a n d o o pensador positivista subs-
t i t u i u a era de Cristo pela era de Comte. O cientificismo permanece até hoje c o m o
u m dos poderosos movimentos gnósticos na sociedade ocidental; e o o r g u l h o
imanentista na ciência é tão forte que até mesmo os ramos especiais da ciência d e i -
x a m sedimentos tangíveis nas variantes da salvação através da física, da economia,
da sociologia, da biologia e da psicologia.

5
ESSA ANÁLISE dos componentes da especulação gnóstica m o d e r n a não se pretende
exaustiva, mas f o i desenvolvida até o p o n t o e m q u e se atingiu o objetivo mais ime-
diato de elucidir as experiências que determinam a articulação política da sociedade
ocidental sob'o simbolismo d o Terceiro Reino. Dela emerge a imagem de u m a so-
ciedade, identificável e inteligível como u m a unidade p o r sua evolução c o m o repre-
sentante de u m tipo historicamente único de verdade gnóstica. Seguindo o método
aristotélico, a análise iniciou-se pela auto-interpretação da sociedade p o r meio dos
símbolos propostos p o r J o a q u i m n o século X I I . Agora que seu significado f o i es-
clarecido pela compreensão teórica, pode-se a t r i b u i r u m a data que marque o
começo desse curso civilizacional. U m a data apropriada para o início f o r m a l seria
a ativação d o antigo gnosticismo através de Escoto Eriúgena n o século I X , p o r q u e
sua obra, b e m como a de Dionísio Areopagita, p o r ele traduzida, exerceram i n -
fluência contínua sobre as seitas gnósticas clandestinas, antes que elas viessem à
superfície nos séculos X I I e X I I I .
Essa é uma trajetória de m i l anos, suficientemente longa para suscitar reflexões
acerca de seu declínio e extinção. Essas reflexões sobre a sociedade ocidental como
u m curso civilizacional, passível de ser visto c o m o u m t o d o p o r q u e se move i n t e l i -
givelmente r u m o a u m fim, d e r a m o r i g e m a u m a das mais espinhosas questões q u e
afligem o estudioso d a política ocidental. Por u m lado, como é sabido, n o século
X V I I I inicia-se u m f l u x o i n i n t e r r u p t o de obras literárias acerca d o declínio d a civi-
lização ocidental; e, quaisquer que sejam as dúvidas que possamos ter c o m respeito

30. Acerca do Império Apolíneo como um Terceiro Reino, ver Karl Burdach, Reformotion, Renaissance.
HumammusW edição Berlim e Leipzig, 1926), pp. 133 e seguintes; e, do mesmo autor, Rienzo und die
geutige Wandlung seiner ZeU (Berlim, 1913-28), Vol. I I / I : Vom Mittelalter zur Reformotion, p. 542.
31. Condorcet, Esquisse (1795), pp. 310-18.
98 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

a esse o u aquele argumento específico, é inegável que os teóricos d o declínio, no


todo, têm alguma razão. De o u t r o lado, o mesmo período é caracterizado — se o
é p o r alguma coisa — p o r u m a grande vitalidade expansiva n o campo das ciências,
da tecnologia, d o controle d o meio ambiente, do aumento populacional, dos p a -
drões de vida, de saúde e de conforto, da educação de massa, da consciência e res-
ponsabilidade sociais; e, mais u m a vez, quaisquer q u e sejam as reservas q u e pos-
samos abrigar c o m respeito a esse o u aquele i t e m d a lista, não se pode negar que
os progressistas também têm alguma razão. Esse conflito de interpretações deixa
em sua esteira a espinhosa questão de c o m o u m a civilização p o d e p r o g r e d i r e decli-
nar ao mesmo tempo. O exame dessa questão se impõe, pois parece possível que a
análise do gnosticismo m o d e r n o fornecerá u m a solução ao menos parcial para o
problema.
A especulação gnóstica venceu a incerteza da fé recuando da transcendência e
dotando o h o m e m e seu raio de ação i n t r a m u n d a n o c o m o significado d a realiza-
ção escatológica. N a medida e m que essa imanentização avançou experiencialmen-
te, a atividade civilizacional transformou-se n u m t r a b a l h o místico de auto-salvação.
A força espiritual da alma, que n o Cristianismo se devotava à santificação da vida,
p o d i a agora ser orientada r u m o à criação d o paraíso terrestre, criação essa que era
mais atraente, mais tangível e, acima de t u d o , mais fácil. A ação civilizacional t o r -
nou-se u m diverlissement, n o sentido de Pascal, mas u m divertissemet que diabolica-
mente absorvia e m si o destino eterno do h o m e m e tomava o lugar da vida do espí-
r i t o . Nietzsche expressou da f o r m a mais concisa a natureza dessa diversão demonía-
ca ao indagar p o r que alguém deveria viver na embaraçosa condição de u m ser ne-
cessitado d o a m o r e da graça de Deus. "Ame-se a si próprio através da graça" — f o i
sua resposta — "e então, não mais necessitando de seu Deus, você poderá ence-
n a r t o d o o d r a m a d a Q u e d a e d a Redenção até o f i m d e n t r o de você p r ó p r i o " .
32

E c o m o pode ser atingido esse milagre de auto-salvação, c o m o pode ser o b t i d a essa


redenção pela concessão da graça a você próprio? A grande resposta histórica f o i
dada pelos sucessivos tipos de ação gnóstica q u e fizeram da civilização m o d e r n a o
que ela é hoje. O milagre f o i realizado sucessivamente através da conquista literária
e artística, que assegurava a imortalidade da fama aos intelectuais humanistas; atra-
vés da disciplina e d o êxito econômico, q u e garantiam a salvação ao santo p u r i t a -
n o ; através das contribuições civilizacionais dos liberais e progressistas; e, f i n a l -
mente, através da ação revolucionária que estabelecerá o milênio comunista o u de
o u t r o tipo gnóstico. Assim, o gnosticismo l i b e r o u de f o r m a extremamente eficaz
as forças humanas para a construção da civilização p o r q u e sua aplicação fervorosa
às atividades intramundanas tinha c o m o prêmio a salvação. O resultado histórico
f o i estupendo. Os recursos d o h o m e m que vieram à luz sob tal pressão constituíram
u m a revelação, e sua aplicação a o t r a b a l h o civilizacional p r o d u z i u o espetáculo ver-
dadeiramente magnífico da sociedade ocidental progressista. Por mais tolos que
sejam os argumentos superficiais, a crença m u i t o difundida de que a civilização
m o d e r n a significa Civilização n u m sentido preeminente está justificada experien-
cialmente; e m realidade, dotada do significado da salvação, a ascensão d o Ocidente
tornou-se u m apocalipse da civilização.

N o entanto, paira u m a n u v e m sobre este espetáculo apocalíptico, pois a b r i -


lhante expansão fez-se acompanhar de u m perigo q u e cresce velozmente c o m o
progresso. A natureza desse perigo tornou-se aparente na f o r m a que a idéia da sal -

32. Nietzsche, Morgenrôtke, §79.


GNOSTICISMO� A NATUREZA DA MODERNIDADE 99

vação imanente assumiu no gnosticismo de Com te. O fundador do positivi-smo ins­


titucionalizou o prêmio atribuído às contribuições civilizacionais, na medida em
que garantiu a imortalidade através da preservação, na memória da humanidade,
do autor da contribuição e de seus feitos. Concediam-se títulos honoríficos relati­
vos a tal imortalidade, consistindo a honra máxima na inclusão do meritório autor
no calendário dos santos positivistas. Mas o que aconteceria, nessa ordem de coi­
sas, com homens que preferissem seguir a Deus, e não ao novo Augustus Comte?
Esses trânsfugas, que não se revelassem dispostos a fazer sua contribuição social de
conformidade com os padrões comtianos, seriam simplesmente enviados ao infer­
no do esquecimento social. A idéia merece atenção. Eis aqui um paracleto gnóstico
elevando-se à condição de Juízo Final da humanidade em um rµundo imanente,
decidindo sobre a imortalidade ou aniquilação de cada ser humano. Sem dúvida,
a civilização material do Ocidente continua a avançar; mas, nessa trajetória ascen­
dente de civilização, o simbolismo progressista das contribuições, comemorações
e esquecimentos traça os contornos desses "poços de olvido", onde os redentores
divinos dos impérios gnósticos atiram suas vítimas com uma bala no pescoço. Esse
fim do progresso não foi contemplado nos melhores dias de exuberância gnóstica.
Milton libertou Adão e Eva com "um paraíso dentro deles, bem mais feliz" do que
o Paraíso perdido; quando partiram, "tinham diante de si o mundo todo" e foram
aclamados "com meditação ao final feliz". Mas quando o homem avança historica­
mente levando dentro de si o Paraíso gnóstico, penetrando no mundo que se abre
diante .dele, há pouca razão para regozijo na meditação ao se chegar a um final que
não é assim tão feliz.
A morte do espírito é o preço do progresso. Nietzsche revelou este mistério do
apocalipse ocidental quando anunciou que Deus estava morto e que fora assassi­
nado 33. Esse assassinato gnóstico é cometido constantemente pelos homens que
sacrificam Deus em nome da civilização. Quanto mais fervorosamente todas as
energias humanas são empenhadas no grande empreendimento da salvação através
da ação imanente no mundo, mais distantes da vida do espírito se colocam os seres
humanos engajados na empresa. E, uma vez que a vida do espírito é a fonte da
ordem no homem e na sociedade, o próprio êxito da civilização gnóstica é a causa
de seu declínio.
De fato, uma civilização pode progredir e declinar ao mesmo tempo - mas
não para sempre. Há um limite rumo ao qual se move esse ambíguo processo, e o
limite é atingido quando uma seita ativista, que representa a verdade gnóstica, or­
ganiza a civilização em um império sob seu domínio. O totalitarismo, definido co­
mo a regra existencial dos atiVistas gnósticos, é a forma final da civilização pro­
gressista.

33. Acerca das p assagens de Nietzsche a respeito do "assassinato de Deus", da pré-história dessa idéia
e do debate literário por ela impirado, ver Lubac, op. cit., pp. 40 e seguintes. A mais abrangente exposi­
\ào da idéia na obra de Nietzsche é encontrada em Karl Jas pers, Nietuche: Einfiihrung in dITT Verstiindnis­
uine.s Plilosophierem (Berlim e Leipzig, 1936).
V
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA- O CASO PURÍTANO

A ANÁLISE das experiências gnósdcas resultou n u m conceito de modernidade q u e


parece conflitar c o m o significado convencional do termo. Habitualmente, a histó-
ria ocidental é d i v i d i d a e m períodos, c o m u m corte formal-por volta de 1500, cor-
respondendo o último período à fase m o d e r n a da sociedade ocidental. N o entanto,
se a- modernidade f o r definida c o m o o crescimento d o gnosticismo, cujo início é
bem anterior, talvez p o r volta d o século I X , ela surge como u m processo, na socie-
dade ocidental, cuja origem está profundamente implantada n o período medieval.
Por conseguinte, a concepção de u m a sucessão de fases teria de ser substituída pela
de u m a evolução constante, e m que o gnosticismo m o d e r n o conquista papel pre-
dominante n o q u a d r o de u m a tradição civilizacional q u e deriva das descobertas
mediterrâneas da verdade antropológica e soteriológica. Essa nova concepção, p o r
si só, reflete apenas o estado a m a i da historiografia empírica e, p o r isso, não exige
maiores justificações. Não obstante, resta saber se a periodização convencional t e m
alguma relevância p a r a a questão d o gnosticismo; na realidade, seria surpreendente
se u m símbolo que ganhou aceitação tão generalizada na auto-interpretação da
sociedade ocidental não estivesse de alguma f o r m a vinculado ao p r o b l e m a f u n d a -
mental da representação d a verdade.
De fato, existe tal vinculação. A concepção de u m a idade m o d e r n a que se se-
guiria à Idade Média é, p o r si própria, u m dos símbolos criados pelo m o v i m e n t o
gnóstico, pertencendo à classe dos símbolos do Terceiro Reino. Desde que, n o sé-
culo X V , B i o n d o tratou o milênio q u e decorreu entre a queda de R o m a e m 410 e
o a n o 1410 c o m o u m a era encerrada d o passado, o símbolo de u m a nova idade,
a idade m o d e r n a , tem sido usado p o r ondas sucessivas de intelectuais humanísti-
cos, protestantes e iluministas a fim de e x p r i m i r sua consciência de serem os repre-
sentantes de u m a nova verdade. Entretanto, justamente p o r q u e o m u n d o , sob a
orientação dos gnósticos, vem sendo renovado a intervalos freqüentes, é impossível
chegar a uma periodização justificável d o p o n t o de vista crítico t o m a n d o e m conta
as reivindicações desses grupos. Pela lógica imanente de seu próprio simbolismo
teológico, cada u m a das ondas gnósticas t e m u m a justificativa tão b o a q u a n t o
qualquer das outras p a r a se considerar a grande onda d o f u t u r o . Não há p o r q u e
u m período m o d e r n o se deva iniciar c o m o humanismo e não c o m a Reforma, o u
com o i l u m i n i s m o e não c o m o m a r x i s m o . Conseqüentemente, o p r o b l e m a não
poder ser resolvido ao nível d o simbolismo gnóstico. Ê necessário descer ao nível
da representação existencial a f i m de encontrar u m m o t i v o para a periodização,
102 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

pois de fato estaria caracterizada u m a época se, n a l u t a pela representação existen-


cial, ocorresse u m a vitória revolucionária decisiva d o gnosticismo sobre as forças
da tradição ocidental. Se a questão f o r colocada nesses termos, a periodização c o n -
vencional torna-se significativa. C o n q u a n t o n e n h u m dos m o v i m e n t o s mereça p r e -
ferência pelo teor de sua verdade, a Reforma marca u m a época nítida na história
ocidental, entendida c o m o a invasão vitoriosa das instituições ocidentais pelos
movimentos q u e até então haviam existido n u m a posição socialmente m a r g i n a l —
tolerados, suprimidos o u conduzidos e m segredo — i r r o m p e r a m na Reforma c o m
inesperada força e m a m p l a frente, levando à divisão d a igreja universal e à conquis-
ta gradual das instituições políticas nos estados nacionais.

* * *

A erupção revolucionária dos movimentos gnósticos afetou a representação


existencial e m toda a sociedade ocidental. Trata-se de u m evento de t a l magnitude
que, nos limites desta obra, não é possível n e m ao menos tentar relacionar suas
características gerais. A f i m de propiciar a compreensão de pelo menos alguns dos
traços m a i s importantes d a revolução gnóstica,- é mais útil concentrar a análise
n u m a área nacional específica e n u m a fase determinada d e n t r o dessa área. Certos
aspectos do impacto p u r i t a n o sobre a o r d e m pública inglesa representam o tema
mais a p r o p r i a d o para u m breve estudo. Além disso, t a l seleção recomenda-se pelo
fato de que o século X V I na Inglaterra teve a rara fortuna de contar c o m u m obser-
vador b r i l h a n t e d o movimento gnóstico, na pessoa d o , sensato H o o k e r " . N o Pre-
fácio de sua o b r a Ecclesiastical Polity, H o o k e r ofereceu u m estudo perspicaz d o t i p o
p u r i t a n o , b e m como d o mecanismo psicológico pelo qual operam os movimentos
de massa gnósticos. Essas páginas constituem subsídio valiosíssimo para o estudio-
so da revolução gnóstica, razão p o r q u e a presente análise se iniciará justamente
c o m u m resumo d o retrato d o p u r i t a n o tal c o m o traçado p o r H o o k e r .

PARA C O L O C A R e m marcha u m m o v i m e n t o , é mister, antes de t u d o , que alguém te-


nha u m a "causa". Pelo contexto de H o o k e r , parece que o termo "causa" era de
uso recente na política e q u e provavelmente os puritanos haviam inventado essa
formidável arma dos revolucionários gnósticos. A fim de p r o m o v e r sua "caus?",
o h o m e m que a possui deverá criticar severamente — " o n d e a multidão possa o u v i -
l o " — os males sociais e, e m especial, o comportamento das altas classes. A repe-
tição freqüente desse ato levará os ouvintes a crerem que os oradores devem ser
homens de grande integridade, fervor e santidade, pois somente homens particu-
larmente bons p o d e m ofender-se tão profundamente com o m a l . O passo seguinte
consiste e m concentrar o ressentimento p o p u l a r sobre o governo instituído. Essa
tarefa p o d e ser realizada psicologicamente atribuindo-se todos os defeitos e a cor-
rupção, t a l c o m o existem n o m u n d o devido à fraqueza humana, à s ações o u inações
do governo. I m p u t a n d o o m a l a u m a instituição específica, os oradores p r o v a m
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 103

sua sapiência à multidão que, por si só, jamais teria atinado com essa conexão; ao
mesmo tempo, mostram aquilo que deve ser atacada a fim de livrar o mundo do
mal. Após tal preparação, terá chegado o momento de recomendar uma nova for-
ma de governo como o "remédio soberano para todos os males". Isto porque as
pessoas que estão "possuídas de aversão e descontentamento para com as coisas
presentes' são suficientemente loucas para "imaginar que qualquer coisa (cuja vir-
tude lhes haja sido recomendada) os ajudaria; e mais crêem no que menos tenham
tentado".
Se u m movimento baseia-se na autoridade de uma fonte literária, como era o
caso do movimento puritano, é necessário ainda que os líderes moldem "as pró-
prias noções e conceitos mentais dos homens de tal forma" que os seguidores auto-
maticamente associem passagens e termos das escrituras com sua doutrina, por
mais errônea que seja a associação, e, com igual automatismo, ignorem o conteúdo
da Escritura que se revele incompatível com a doutrina. Vem depois o passo defini-
tivo na consolidação de uma postura gnóstica, qual seja, "persuadir os homens cré-
dulos e inclinados a tais erros gratificantes de que sobre eles recai a luz especial
do Espírito Santo, a qual lhes permite discernir nas palavras aquilo que os outros,
embora as leiam, não enxergam". Eles sentir-se-áo eleitos e essa experiência gera
" u m a grande separação entre tais homens e o resto do mundo", de tal modo que
a humanidade passa ser dividida entre os "irmãos" e os "mundanos",
Com a consolidação da experiência gnóstica, a matéria-prima social fica em
condições de receber a representação existencial de u m líder. Isto porque, ainda
segundo Hooker, tais pessoas preferirão a companhia de outras envolvidas no mo-
vimento à de ^indivíduos a ele estranhos; aceitarão voluntariamente os conselhos
e a orientação dada pelos doutrinadores; negligenciarão seus próprios interesses
para devotar todo seu tempo ao serviço da causa; e fornecerão farta ajuda material
aos líderes do movimento. As mulheres desempenham função especialmente im-
portante na formação de tais sociedades, porque têm juízo fraco; são emocional-
mente mais acessíveis; estão taticamente bem situadas para influenciar maridos,
filhos, criados e amigos; são mais inclinadas do que os homens a servir de certa
forma como espiãs, prestando informações sobre os vínculos afetivos dentro de
seus círculos; e, finalmente, são mais liberais no que tange à ajuda financeira.
Uma vez criado um meio social deste tipo, será difícil, senão impossível, rom-
pê-lo através da persuasão. " S e algum indivíduo de opinião contrária abre a boca
para persuadi-los, eles se comportam como surdos, não ponderam as razões que
lhes são oferecidas, a tudo respondem repetindo as palavras de João: 'Nós somos
de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve'. Quanto aos demais, vocês pertencem
ao mundo, e falam da pompa e da vaidade do mundo; e o mundo, feito de gente
como vocês, lhes dá ouvido". Eles são impermeáveis aos argumentos e têm respos-
tas bem treinadas. Caso se lhes sugira que são incapazes de julgar tais matérias,
responderão: "Deus escolheu os simples". Caso se lhes mostre convincentemente
que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: "Até mesmo os apóstolos de Cristo
foram considerados loucos". Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina,
estender-se-ão sobre a "crueldade dos homens sanguinários" e se apresentarão
como " a inocência perseguida por dizer a verdade". E m suma, não há argumento
que possa abalar a rigidez psicológica de sua atitude . 1

1. Richard Hooker, Works, ed. Keble (7* ed., Oxford, 1888). O resumo se refere a ibid., l\ 145-55.
104 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

A DESCRIÇÃO do p u r i t a n o feita p o r H o o k e r aplica-se tão perfeitamente aos tipos


posteriores de revolucionários gnósticos q u e não vale a pena elaborar maiormente
esse p o n t o . Entretanto, de sua análise emerge u m a questão que merece m a i o r aten-
ção. O retrato do p u r i t a n o resultou de u m conflito entre o gnosticismo, de u m l a -
do, e, de o u t r o , a tradição clássica e cristã representada p o r H o o k e r . O retrato f o i
traçado p o r u m pensador de consideráveis qualidades intelectuais e erudição. Por
conseguinte, o argumento inevitavelmente giraria e m t o r n o de u m a questão que,
nos tratamentos mais recentes d o p u r i t a n i s m o , f o i m u i t o negligenciada, isto é, os
defeitos intelectuais da posição gnóstica q u e são suscetíveis de destruir o universo
d o discurso racional, b e m c o m o a função social da persuasão. H o o k e r compreen-
deu que a posição puritana não se baseava nas Escrituras, e sim constituía u m a
"causa" de o r i g e m muitíssimo diversa. O p u r i t a n o usava as Escrituras q u a n d o cer-
tas passagens retiradas d o contexto c o r r o b o r a v a m a causa; de resto, ignorava gos-
tosamente tanto as Escrituras q u a n t o as tradições e regras de interpretação desen-
volvidas n o curso de quinze séculos de Cristianismo. Nos p r i m e i r o s estágios da
revolução gnóstica, essa camuflagem era necessária — pois u m m o v i m e n t o aberta-
mente anticristão não poderia t r i u n f a r socialmente n e m o gnosticismo se afastara
tanto d o Cristianismo a p o n t o de seus portadores se conscientizarem d o r u m o q u e
haviam t o m a d o . C o n t u d o , a distância j á era suficientemente grande p a r a q u e a ca-
muflagem se tornasse incômoda diante de u m a crítica competente. A fim de c o m -
bater esse incômodo, f o r a m criados dois recursos técnicos q u e até hoje constituem
os grandes instrumentos da revolução gnóstica.
Para tornar eficaz a camuflagem, as seleções das Escrituras, assim c o m o a i n -
terpretação que lhes era dada, t i n h a m de ser padronizadas. A verdadeira liberdade
de interpretação das Escrituras p o r cada u m de acordo c o m suas preferências e seu
nível de educação teria conduzido às condições caóticas q u e caracterizaram os p r i -
meiros anos da Reforma; ademais, caso se admitisse que as diferentes interpreta-
ções se eqüivaliam, não haveria como argumentar contra a tradição d a igreja, a
q u a l , e m última análise, também se baseava n u m a interpretação das Escrituras.
Desse dilema entre o caos e a tradição surgiu o p r i m e i r o recurso, isto é, a f o r m u l a -
ção sistemática da nova d o u t r i n a e m termos das Escrituras, c o m o o fez Calvino nos
Institutes. U m trabalho deste tipo servia o d u p l o propósito de oferecer orientação
para a leitura correta das Escrituras e de formulação autêntica da verdade, a qual
tornaria desnecessário o recurso a obras anteriores. Faz-se mister encontrar u m ter-
m o técnico para designar essa classe de literatura gnóstica; u m a vez q u e é muito
recente o estudo dos fenômenos gnósticos p a r a q u e tivesse sido criado este termo,
a palavra árabe alcorão servirá pelo m o m e n t o . Assim, a o b r a de Calvino p o d e ser
considerada o p r i m e i r o alcorão gnóstico criado de m o d o deliberado. U m h o m e m
capaz de escrever tal alcorão, capaz de r o m p e r c o m a tradição intelectual d a h u m a -
nidade p o r q u e está imbuído da fé de q u e c o m ele se inicia u m a nova verdade e u m
novo m u n d o , deve encontrar-se n u m estado peculiar de patologia espiritual.
H o o k e r , p o r ter u m a consciência m u i t o aguda da tradição, possuía grande sensi-
bilidade para c o m t a l distorção mental. Ele inicia sua caracterização deliberada-
mente moderada de Calvino c o m a afirmação desapaixonada: "Formou-se n o
estudo d o direito c i v i l " ; continua, c o m certa malícia: " A d q u i r i u o conhecimento
d i v i n o não tanto p o r o u v i r o u p o r ler, mas p o r ensinar aos o u t r o s " ; p a r a c o n c l u i r
com a frase devastadora: "Pois, e m b o r a milhares de pessoas lhe fossem devedoras,
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 105

por assim receber tal conhecimento, ele, porém, só devia a Deus, autor d a mais
sagrada fonte, o L i v r o d a V i d a , e d a admirável perícia d a inteligência" . 2

A o b r a de C a l v i n o foi a p r i m e i r a d o gênero, m a s não a última; além disso, esse


tipo de literatura tinha sua pré-história. N o s estágios iniciais d o sectarismo gnós-
tico ocidental, o papel d o alcorão foi ocupado pelos trabalhos d e Escoto Eriúgena
e Dionísio Areopagita; mais tarde, a obra de J o a q u i m d e F l o r a desempenhou tal
papel, sob o título de Evangelium aeternum. E m período posterior da história o c i d e n -
tal, n a fase d a secularização, novos alcorões foram produzidos a cada nova o n d a d o
movimento. N o século X V I I I , .Diderot e D ' A l e m b e r t reivindicaram tal função
p a r a a Enydopédie Jrançaise, apresentada c o m o a compilação abrangente d e todo
o conhecimento h u m a n o digno de ser preservado. Segundo eles, ninguém teria de
usar qualquer o b r a anterior à Encyclopédie, e todas as ciências futuras t o m a r i a m a
f o r m a d e suplementos àquela grande coleção d o saber . N o século X I X , Auguste
3

C o m t e instaurou sua própria o b r a como o alcorão p a r a o futuro positivista d a h u -


manidade, conquanto a tenha generosamente suplementado c o m sua lista dos c e m
grandes livros — idéia que se mantém atraente até hoje. Finalmente, n o m o v i m e n -
to comunista, o s trabalhos d e K a r l M a r x transformaram-se n o alcorão d o s fiéis,
suplementado pela literatura patrística d o leninismo-estalinismo.
O segundo recurso usado p a r a evitar a crítica embaraçosa é u m complemento
necessário d o primeiro. O alcorão gnóstico constitui a codificação d a verdade e,
como tal, o alimento espiritual e intelectual d o fiel. Através d a experiência c o n t e m -
porânea dos movimentos totalitários, é b e m sabido q u e esse recurso é bastante
eficaz, pois se beneficia d a censura voluntária p o r parte de seus seguidores; o p a r t i -
dário íiel de u m m o v i m e n t o recusa-se a ler q u a l q u e r o b r a q u e p o s s a representar
u m a crítica o u u m desrespeito a suas adoradas crenças. N ã o obstante, o número de
seguidores pode permanecer pequeno, prejudicando seriamente a expansão e o
êxito político d o movimento gnóstico, caso s u a verdade seja permanentemente
exposta a u m a crítica eficaz v i n d a d e várias direções. E s s a desvantagem p o d e ser
reduzida e praticamente e l i m i n a d a transformando-se e m tabu o s instrumentos d a
crítica: qualquer pessoa que empregue os instrumentos proibidos será socialmente
boicotada e, se possível, exposta à difamação política. C o m efeito, a interdição d o
u s o d o s instrumentos d a crítica foi empregada c o m tremenda eficácia pelos m o v i -
mentos gnósticos sempre que obtiveram êxito político. P o r exemplo, n a esteira d a
Reforma, a interdição tinha d e recair sobre a filosofia clássica e a teologia escolás-
tica; e, c o m o nesses dois c a m p o s estava incluída a m a i o r parte, e certamente a parte
mais decisiva, d a cultura intelectual d o Ocidente, esta cultura estaria a r r u i n a d a
na m e d i d a e m que o tabu se tornasse efetivo. N a realidade, o dano foi tão p r o f u n -
d o q u e a sociedade ocidental a i n d a não se recuperou inteiramente d o choque. U m
incidente n a vida de H o o k e r serve p a r a ilustrar a situação. A Chrisüan.LeUer de 1599,
carta anônima endereçada a H o o k e r , queixava-se amargamente: " E m todos os seus
livros encontramos muitas verdades e pontos delicados tratados c o m coragem; n o
entanto, n a m a i o r parte d e sua o b r a vê-se o d e d o de Aristóteles, patriarca dos f i -
lósofos (e de vários escritores leigos), e d e estudantes ingênuos: a razão é fortemen-
te contraposta à Sagrada Escritura, e a leitura à pregação" . T a i s reclamações a c e r -
4

2. Ibid.,pp. 127 e seguintes.


S. D'Alemberc, DiscourspréUminaire de 1'Encydopédu, ed. F. Picavet (Paris, 1894), pp. 139-40.
4. Hooker, op. cit., p. 3 7 3 .
106 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

ca de violações d o tabu não representavam expressões inócuas de opinião. E m


1585, n a disputa c o m Travers, H o o k e r fora vítima de acusações semelhantes, q u a n -
do se disse e m t o m denunciatório q u e tais " a b s u r d o s ... não e r a m ouvidos nesta
terra desde os dias d a R a i n h a M a r y " . E m sua resposta a o Arcebispo de Cantuária,
H o o k e r foi obrigado a exprimir, de forma m u i t o apologética, a esperança de que
não havia " c o m e t i d o n e n h u m c r i m e " ao se permitir fazer algumas distinções e i n -
cursões teóricas e m seus sermões . 5

U m a vez que o gnosticismo se sustenta p o r m e i o das falácias teóricas e x a m i n a -


das n a exposição anterior, o tabu referente à teoria no sentido clássico é a condição
inelutável p a r a sua expansão e sobrevivência social. Isso tem várias conseqüências
n o q u e tange à possibilidade de debate público nas sociedades e m q u e os m o v i m e n -
tos gnósticos atingiram u m nível de influência social capaz de lhes permitir o c o n -
trole dos meios de comunicação, instituições educacionais, etc. N a m e d i d a e m que
tal controle se revele eficiente, torna-se impossível o debate teórico público acerca
de questões q u e envolvam a verdade d a existência h u m a n a , pois está vedado o e m -
prego d a argumentação teórica. P o r mais q u e estejam protegidas as liberdades
constitucionais de expressão e imprensa, p o r mais florescente que seja o debate
teórico e m pequenos círculos, mediante publicações praticamente privadas de u m
p u n h a d o de estudiosos, o debate nas esferas públicas politicamente relevantes será,
e m essência, o j o g o c o m cartas marcadas que caracteriza as sociedades progressi-
vistas de nossos dias — sem falar d a qualidade d o debate nos impérios totalitários.
A discussão teórica p o d e ser protegida p o r garantias constitucionais, m a s e l a só
pode existir o n d e há a disposição de empregar e aceitar a argumentação teórica. N a
falta de tal disposição, u m a sociedade não pode depender, p a r a seu funcionamento,
d a argumentação e da persuasão e m matéria relativa à verdade d a existência h u m a -
na. O u t r o s meios têm de ser considerados.
E r a essa a posição de Hooker. O debate c o m seus oponentes puritanos e r a i m -
possível, p o r q u e eles não aceitavam n e n h u m argumento. A s idéias que lhe ocor-
r i a m diante desse p r o b l e m a podem ser entrevistas a partir das observações que fez,
pouco antes de m o r r e r , n u m a cópia d a Christian Letter antes mencionada. Dentre as
citações de várias autoridades, encontra-se a seguinte passagem de Averróis : 6

" O discurso (sermo) acerca do conhecimento que Deus, e m S u a glória, tem de


Si próprio e d o m u n d o está proibido. M a i s p r o i b i d o ainda é escrever sobre isso.
Isto p o r q u e a compreensão d o vulgo não atinge tais profundezas; e, q u a n d o se
torna assunto de suas discussões, a divindade será destruída juntamente com os
h o m e n s c o m u n s . Por isso lhes é vedada a discussão desse conhecimento, bastando-
lhes, p a r a sua felicidade, o que podem perceber através de sua inteligência. A lei
(isto é, o Alcorão), cujo propósito básico é o de ensinar aos h o m e n s d o povo, não
m a l o g r o u n a comunicação inteligível acerca desse assunto p o r ser ele inacessível a o
h o m e m ; m a s nós não possuímos o s instrumentos h u m a n o s capazes de assimilar
Deus p a r a u m a comunicação inteligível sobre E l e . C o m o se diz: ' S u a mão esquerda
c r i o u a terra, m a s S u a mão direita m e d i u o Céu.' P o r conseguinte, esta questão está
reservada aos sábios que Deus dedicou à verdade."
Nessa passagem, Averróís expressou a solução d a d a n a civilização muçulmana
ao p r o b l e m a d o debate teórico. O núcleo d a verdade é a experiência de transcen-
dência n o sentido antropológico e soteriológico; sua explicação teórica só é c o m u -

5. Ibid., i n , 585.
6. O texto latino consta de ibid., I, exix.
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 107
nicável entre os "sábios". O "vulgo" tem de aceitar, num fundamentalismo sim-
plista, a verdade tal como simbolizada nas Escrituras; os homens do povo devem
abster-se de teorizar, tarefa para a qual estão despreparados experiencial e intelec-
tualmente, pois se o fizessem simplesmente destruiriam Deus. Tendo em conta o
"assassinato de Deus" perpetrado na sociedade ocidental quando o "vulgo" pro»
gressivista imiscuiu-se no significado da existência humana na sociedade e na his-
tória, temos de convir que Averróis tinha alguma razão.
No entanto, a estrutura de uma civilização não está à disposição de seus mem-
bros individuais. A solução islâmica de confinar o debate filosófico a círculos eso-
téricos, virtualmente desconhecidos pelo público em geral, não podia ser transfe-
rida para a situação de Hooker. A história ocidental tomara rumo diferente e o
debate entre os componentes do "vulgo" já estava em curso. Em conseqüência,
Hooker foi levado a contemplar a segunda possibilidade, qual seja, a de que o
debate, impossível de encerrar-se por um acordo obtido através da persuasão, fosse
sustado pela autoridade governamental. Seus oponentes puritanos não eram par-
ticipantes de um debate teórico; eram revolucionários gnósticos, engajados numa
luta pela representação existencial que resultaria na subversão da ordem social in-
glesa, no controle das universidades pelos puritanos e na substituição da lei comum
pela lei das Escrituras. Daí justificar-se o fato de Hooker haver considerado a se-
gunda solução. Ele compreendia perfeitamente o que hoje é tão pouco compreen-
dido, ou seja, que a propaganda gnóstica representa uma ação política — e não
uma busca da verdade no sentido teórico. Com sua aguda sensibilidade, ele até
mesmo diagnosticou o componente niilista do gnosticismo na crença puritana de
que sua disciplina, sendo "o comando de Deus Todo Poderoso, deve ser cumprida,
ainda que o mundo, ao fazê-lo, vire de cabeça para baixo; aí reside o maior peri-
go" . Na cultura política de seu tempo, não se punha em dúvida que o governo, e
7

não os cidadãos, representa a ordem de uma sociedade. "Como se, uma vez esta-
belecido o consentimento público com respeito a alguma coisa, o julgamento de
cada homem comparado a esse consentimento não fosse privado, por mais que o
indivíduo tenha uma vocação pública. Por isso, a paz e a tranqüilidade só são pos-
síveis se a voz de toda a sociedade ou do corpo político falar mais alto do que a de
cada cidadão que participe de tal sociedade" . Isso significa, concretamente, que
8

um governo tem o dever de preservar a ordem, bem como a verdade que ele repre-
senta; quando surge um líder gnóstico proclamando que Deus ou o progresso, a
raça ou a dialética determinou que ele se tornasse o soberano existencial, o gover-
no não deve trair a confiança nele depositada. Não ficam excluídos desta regra os
governos que funcionam com base numa constituição democrática e no respeito
aos direitos individuais. Jackson, Juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos, ao
pronunciar a opinião contrária no caso Terminiello, afirmou que a Constituição
não é um pacto de suicídio. Um governo democrático nâo se deve transformar em
cúmplice de sua própria derrubada, permitindo que movimentos gnósticos cresçam
prodigiosamente à sombra de uma interpretação errônea dos direitos civis; e, se
por inadvertência um movimento desse gênero houver atingido o ponto de crítico
de captura da representação existencial através da famosa "legalidade" das eleições
populares, um governo democrático não se deve curvar à "vontade do povo", e
sim sufocar o perigo pela força e, se necessário, romper a letra da constituição a
fim de preservar seu espírito.

7. Ibid.,p. 182.
8. Ibid., p . 171,
1
08 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

A T É aqui tivemos a visão de Hooker; cabe agora ouvir a outra parte. O primeiro
ponto a ser considerado é a experiência peculiar dos revolucionários gnósticos.
Em contraposição ao tratamento habitual do puritanismo como um movimento
cristão, cumpre estabelecer o fato de que nenhum trecho do Novo Testamento
permite extrair conselhos em prol de uma ação política revolucionária. Até mesmo
a Revelação de S. João, embora animada da expectativa escatológica do reino que
livrará os santos da opressão neste mundo, não coloca o estabelecimento desse
reino nas mãos de um exército puritano. Não obstante, o revolucionário gnósti-
co interpreta a chegada do reino como um evento que exige sua cooperação arma-
da. No capítulo 20 da Revelação, um anjo desce dos céus e lança Satã num poço
sem tundo por mWanos: na Revolução Puritana, os gnósticos arrogam para si pró-
prios essa função angelical. Algumas passagens de um panfleto de 1 6 4 1 , intitula-
do " U m Vislumbre da Glória de Sion", servirão para indicar o estado de espírito
da revolução gnóstica.
O autor do panfleto é movido por expectativas escatológicas . Babilônia está 9

prestes a cair, a nova Jerusalém cedo chegará. " A queda da Babilônia é a ascen-
são de Sion. A destruição de Babilônia é a salvação de Jerusalém." Conquanto
Deus seja a causa última da feliz mudança que se aproxima, também os homens
deveriam praticar ações meritórias a fim de acelerar a vinda. "Bem-aventurado
aquele que lança os pirralhos de Babilônia contra as pedras. Abençoado aquele que
contribui para derrubar a Babilônia." E quem serão os homens que acelerarão a
vinda de Sion atirando as crianças de Babilônia contra as pedras? São os " h o -
mens do povo". "Deus tenciona empregar os homens do povo na grande tarefa
de proclamar o reino de Seu filho." Os homens comuns estão em posição privile-
giada para auxiliar o advento do Reino de Cristo, pois a voz de Cristo "vem pri-
meiramente da multidão, dos homens comuns. A voz se faz ouvir inicialmente por
meio deles, antes que outros a expressem. Deus usa a gente comum e a multidão
para proclamar que Deus Nosso Senhor Onipotente reina". Cristo não veio para
as classes superiores, mas para os pobres. Os nobres, os sábios, os ricos e sobre-
tudo os sacerdotes estão possuídos pelo espírito do Anticristo, daí porque a voz de
Cristo" deve começar a ser ouvida da boca da multidão, que é tão desprezível",
da "plebe vulgar". No passado, " o povo de Deus foi, e é, feito de gente despre-
zada". Os Santos são chamados de facciosos, cismáticos e puritanos, de sediciosos
e perturbadores do estado. No entanto, eles serão libertados desse estigma, e os
governantes se convencerão, no fundo do coração, de que "os habitantes de Jerusa-
lém, isto é, os Santos de Deus reunidos numa igreja, são os melhores cidadãos."
E essa convicção dos governantes será reforçada por mudanças drásticas nas rela-
ções sociais. O autor cita Isaías 4 9 : 2 3 : " O s reis serão teus provedores; prostrados
diante de ti, a face contra a terra, lamberão a poeira de teus pés." O s Santos, por
outro lado, serão glorificados no novo reino, "todos vestidos de branco, que signi-
fica a retidão dos Santos".
Além das mudanças de vestuário para os Santos e do lamber de poeira pelos
governantes, haverá alterações significativas na estrutura das instituições legais e

Loercy,
v ed.eST*
A.S.P. Woodhouse?(Londres,
íwlSí^ (1
, ' / 1938),
41)
, ± pp. 233-41. y '
ffÍb U a H a n S C r d Knol, s
r e d u z i d o na obra Puritanism and Li-
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 109

econômicas. No que tange às primeiras, a beleza e a glória do reino com toda a


probabilidade tornariam desnecessária a compulsão lega. "Nâo é certo que haja
a necessidade de leis, ao menos na forma em que existem hoje.... A presença de
Cristo proporcionará todos os tipos de lei." Com respeito às condições econômi-
cas, haverá abundância e prosperidade. Cristo comprará o mundo inteiro e o entre-
gará aos Santos, "Tudo é vosso", diz o Apóstolo, "o mundo todo". E, de forma
extremamente cknàiádL, o autor fornece o motivo de sua convicção: "vê-se que os
Santos têm pouco no mundo atual; hoje eles são os mais pobres e os mais humilha-
dos; mas o mundo será deles... Não apenas os céus serão seu reino, mas também
este mundo material."
Nada disso tem qualquer coisa a ver com o Cristianismo. A camuflagem das
Escrituras não chega a ocultar a incorporação de Deus no homem. O Santo é um
gnóstico que não pretende atribuir a transfiguração do mundo à graça de Deus
além da história, mas que fará o trabalho do próprio Deus, no aqui e agora da his-
tória. Sem dúvida, o autor do panfleto sabe que nenhum poder humano comum
estabelecerá o reino, mas os esforços humanos serão subsidiários à ação de Deus.
O Deus Onipotente virá em ajuda dos Santos e "fará essas coisas, por tal poder,
que Lhe permite tudo dominar. As montanhas se transformarão em planícies, e
Ele virá saltando sobre as montanhas e sobre as dificuldades. Nada O deterá."
Contudo, neste Deus que vem saltando sobre as montanhas, reconhecemos a dia-
lética da história que vem pulando sobre teses e antíteses, até que faz seus segui-
dores aterrissar na planície da síntese comunista.
O segundo ponto a ser considerado é o programa dos revolucionários para a
organização da sociedade após a renovação do velho mundo através de seus esfor-
ços. E m geral, os gnósticos não são muito explícitos a esse respeito. O mundo
novo, transfigurado, estará supostamente livre dos males do velho mundo; sua des-
crição, por conseguinte, normalmente consiste de negações às injustiças presentes.
O "vislumbre" da glória de Sion é uma categoria de descrição gnóstica, e não o
titulo acidental de um panfleto. O "vislumbre" geralmente revelará um estado
de prosperidade e abundância, um mínimo de trabalho e a abolição da compulsão
governamental; e, como distração de grande apelo popular, podem ser incluídas
algumas punições aos membros da antiga classe superior. A descrição raramente
vai além desses relances. Os melhores pensadores dentre os revolucionários gnós-
ticos — como, por exemplo, Marx e Engels — justificam sua reticência argumen-
tando que não se pode dizer muito acerca das instituições de uma sociedade trans-
figurada porque não temos qualquer experiência acerca das relações sociais sob as
condições da natureza transfigurada do homem. Felizmente, existe um documento
puritano acerca da organização do novo mundo, na forma de Perguntas dirigidas
a Lord Fairfax por um grupo de homens na Quinta Monarquia . 10

À época das Perguntas, em 1649, a revolução estava em pleno curso, tendo


atingido um estágio correspondente ao da Revolução Russa na fase em que Lenin
escreveu sobre as "novas tarefas". De modo semelhante, uma das perguntas está
assim formulada: "Qual é, pois, o interesse atual dos Santos e cias pessoas de
Deus?" A resposta aconselha aos Santos a se agruparem em sociedades e corporações
da igreja sob a forma congregacional; quando existir um número suficiente dessas
congregações, elas devem combinar-se em assembléias gerais ou parlamentos da
igreja, nos moldes presbiterianos; "e então Deus lhes dará a autoridade e o poder

10. Certain Queries Presented by Many Christian People (1649), p p . 2 4 1 - 4 7 .


110 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

sobre as nações e reinos do mundo". Por se tratar de um reino espiritual, ele não
pode ser criado "pelo poder e a autoridade humanas". O próprio Espírito Santo
convocará e reunirá o povo, "e o organizará em diversas famílias, igrejas e corpora-
ções"; apenas quando esses núcleos espirituais tiverem alcançado número sufi-
ciente, eles "governarão o mundo" através de assembléias "daqueles servidores
de Cristo e representantes das igrejas que venham a escolher como delegados".
A coisa toda parece relativamente inofensiva e harmoniosa; o pior que pode acon-
tecer será um certo desapontamento caso o Espítrito Santo demore a acionar o
novo mundo.
Na realidade, porém, o caso não é tão inofensivo. Os Santos apresentam suas
Perguntas ao Lorde Chefe do Exército e do Conselho Geral de Guerra. Nessas con-
dições, a fórmula de que Deus concederá aos Santos "poder e autoridade sobre
as nações e reinos do mundo" adquire uma conotação perturbadora. Cabe in-
dagar: quais as nações e reinos do mundo a serem governados pelos Santos? As
nações e os reinos do velho mundo? Nesse caso, contudo, ainda não se teria esta-
belecido o novo mundo. E, quando chegados a esse novo mundo, a quem pode-
riam os Santos governar, senão a eles próprios? Ou poderão restar algumas na-
ções pecaminosas do velho mundo, que os Santos maltratarão à vontade a fim de
dar algum sabor à recém-conquistada posição de mando? E m suma, o futuro
se parece muito com o que os gnósticos posteriores chamam de ditadura do pro-
letariado.
Essa suspeita é confirmada por outros pormenores. As Perguntas fazem a dis-
tinção entre os "servidores de Cristo" e os "magistrados cristãos". O governo do
espírito acabará com todos os governos mundanos, inclusive o governo da Ingla-
terra pelos magistrados cristãos. Tal distinção é a melhor prova de que nas revolu-
ções de índole puritana realmente dois tipos de verdade lutam pela representa-
ção existencial. As Perguntas empregam o termo cristianismo para ambos os tipos de
verdade, mas eles são tão radicalmente diferentes que representam, respectiva-
mente, o mundo das trevas e o mundo da luz. A vitória puritana pode preservar a
estrutura do mundo, inclusive as instituições parlamentares inglesas, mas o espíri-
to que as anima ter-se-á modificado radicalmente. E essa modificação radical ex-
pressar-se-á politicamente na alteração radical dos governantes. Os postulantes
perguntam de forma persuasiva: "Considere se não será uma honra muito maior
para os parlamentos, magistrados, etc, governar como servidores de Cristo e re-
presentantes das igrejas do que como funcionários de um reino mundano e repre-
sentantes de um povo meramente natural e mundano"? Não basta ser um repre-
sentante cristão do povo inglês no Parlamento, pois o povo, como tal, pertence
à ordem natural do velho mundo; o membro do Parlamento deve representar os
Santos e as comunidades do novo reino que são informados pelo próprio Espíri-
to Santo. Por conseguinte, o antigo grupo de governantes políticos deve ser elimi-
nado, pois "que direito têm os homens meramente naturais e mundanos de deter
o governo, que carece de uma justificativa santificada para as menores graças tan-
gíveis"? E, de forma ainda mais nítida: "Como pode o reino ser dos Santos, quan-
do são infiéis os eleitores e os eleitos para governar?" A atitude é inflexível. Se es-
peramos novos céus e uma nova terra, "como poderá ser legal remendar o velho
governo mundano?" O único curso correto de ação será aquele que resulte em
suprimir para sempre os inimigos da religiosidade".
E desnecessário empreender uma interpretação elaborada dessas palavras. Bas-
tam algumas modernizações de linguagem para revelar o significado de tais suges-
tões. A ordem histórica do povo é rompida pela irrupção de um movimento que não
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O C A S O P U R I T A N O 111

pertence a "esse m u n d o " . Os males sociais nâo p o d e m ser m i n o r a d o s através da


legislação; os defeitos d a m a q u i n a r i a governamental não p o d e m ser corrigidos
p o r mudança na constituição; as diferenças de opinião não p o d e m ser d i r i m i d a s
pela acomodação mútua. "Este m u n d o " é feito de trevas, as quais devem ceder l u -
gar a u m a nova luz. Conseqüentemente, são inviáveis os governos de coalização.
Õs personagens políticos d o velho regime não p o d e m ser reeleitos n o novo m u n -
d o e os homens que não pertencem ao m o v i m e n t o serão privados d o direito de vo-
t o na nova o r d e m . Todas essas alterações ocorrerão concretamente através d o
"Espírito S a n t o " ; o u , c o m o d i r i a m os gnósticos de hoje, através da dialética da
história. Mas, n o processo político, os camaradas santificados serão chamados a
agir e deverão estar b e m armados. Se os figurantes d a antiga o r d e m não desa-
parecerem c o m u m sorriso, os inimigos da religiosidade serão eliminados o u , na
linguagem amai, expurgados. Nas Perguntas, a realização d o novo m u n d o atingira
o estágio e m que, na Revolução Russa, L e n i n p u b l i c o u suas reflexões sob o tí-
tulo faceiro de " O s Bolcheviques Manterão o Poder d o Estado?" Certamente m a n -
terão, e ninguém o compartirá c o m eles •
O novo r e i n o será universal na substância como o será e m sua reivindicação
quanto ao p o d e r : ele se estenderá " a todas as pessoas e coisas universalmente".
A revolução dos gnósticos objetiva o monopólio da representação existencial.
Os Santos antevèem que o universalismo de sua reivindicação não será aceito
sem luta pelo m u n d o das trevas, e s i m produzirá u m a aliança igualmente univer-
sal do m u n d o contra eles. Por isso, os Santos terão de unir-se " c o n t r a os poderes
anticristãos do m u n d o " , enquanto tais poderes "concertar-se-ão universalmente
contra eles". Assim, os dois mundos, q u e supostamente deveriam seguir-se c r o n o -
logicamente, n a realidade histórica transformar-se~ão em dois campos armados
universais, empenhados e m luta m o r t a l . D o misticismo gnóstico c o m relação
aos dois m u n d o s emerge o padrão dos governos universais q u e veio d o m i n a r o
século X X . O universalismo do revolucionário gnósúco produz a aliança universal
contra ele. O verdadeiro perigo das guerras contemporâneas não reside n a ex-
tensão global d o teatro de guerra, determinada p o r fatores tecnológicos; a real
fatalidade deriva de seu caráter de guerra gnóstica, isto é, de u m a guerra entre
mundos dedicados à destruição mútua.
Pode parecer injusta a seleção de materiais usados para ilustrar a natureza e
direção da revolução gnóstica. Pode-se objetar que o p u r i t a n i s m o como u m todo
não deve ser identificado c o m sua ala esquerda. T a l crítica seria válida se tivéssemos
tencionado apresentar u m relato histórico d o p u r i t a n i s m o . N o entanto, a presente
análise n a t a da estrutura das experiências e idéias gnósticas; e essa estrutura é t a m -
bém encontrada onde as conseqüências são revestidas de respeitabilidade, c o m o
nos Institutes de Calvino o u nos pactos presbiterianos. A a m p l i t u d e da gama entre a
esquerda e a direita e m cada onda d o m o v i m e n t o , a luta entre as duas alas nos m o -
mentos de eclosão aguda e m diferentes áreas nacionais, b e m c o m o as estabilizações
temporárias de u m a o r d e m viável, constituem fenômenos d a revolução gnóstica
que serão objeto de m a i o r atenção n o último capítulo. Todavia, tais fenômenos —
a dinâmica da revolução — não afetam sua natureza, a q u a l , na verdade, pode ser
m e l h o r estudada a partir de suas expressões radicais, q u e nâo estão obscurecidas
pelas acomodações resultantes das exigências d o êxito político. Além d o mais, não
se trata apenas de u m a questão de conveniência, mas de u m a necessidade m e t o d o -
lógica. A revolução gnóstica visa uma alteração na natureza d o h o m e m e a criação
de u m a sociedade transfigurada. U m a vez q u e esse p r o g r a m a não pode ser efetiva-
do n a realidade histórica, as revoluções gnósticas são levadas inevitavelmente a ins-
112 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

titucionalizar seu êxito parcial ou total na luta existencial mediante a transigência


(compromise) com a realidade. E o que quer que resulte dessa transigência não será
o mundo transfigurado inscrito no simbolismo gnóstico. Por isso, se o teórico fosse
estudar a revolução gnóstica ao nivel de suas estabilizações temporárias, de suas
táticas políticas ou dos programas moderados, que já prevêem a transigência, j a -
mais seria possível pôr a nu a natureza do gnosticismo, a força impulsora da revolu-
ção ocidental. A transação seria tomada pela essência, e a unidade básica dos múl-
tiplos fenômenos gnósticos desapareceria.

A R E V O L U Ç Ã O I N G L E S A deixou patenteado que a luta dos revolucionários gnósticos


em prol da representação existencial podia destruir a ordem pública de uma gran-
de nação, se é que tal prova fosse necessária após as oito guerras civis na França e a
Guerra dos Trinta Anos na Alemanha. O problema da ordem pública há muito
carecia de reexame, encontrando em Thomas Hobbes um pensador à altura da ta-
refa. A nova teoria da representação desenvolvida por Hobbes no Leviatã sem dú-
vida deveu sua impressionante consistência a uma simplificação muito semelhante
aos desvios de tipo gnóstico; mas, quando um pensador impetuoso e incansável
simplifica, ele não obstante lança nova luz sobre a questão. A simplificação pode
ser remediada, e a nova clareza constitui u m ganho permanente.
A teoria hobbesiana da representação vai direto ao âmago da questão. De um
lado, há uma sociedade política que deseja manter uma ordem estabelecida na
existência histórica. De outro lado, há indivíduos na sociedade que desejam alterar
a ordem pública, se necessário pelo uso da força, em nome de uma nova verdade.
Hobbes resolveu o conflito decidindo que a única verdade pública era a lei da paz
e da concórdia na sociedade; qualquer opinião ou doutrina conducente à discór-
dia era conseqüentemente mentirosa . A f i m de fundamentar sua decisão, Hobbes
11

empregou a seguinte argumentação:


(1) Existe conscientemente no homem um ditame da razão que o predispõe à
paz e à obediência sob uma ordem civil. A razão, primeiramente, o faz compreen-
der que ele só pode viver sua vida natural em busca da felicidade mundana se viver
em paz com seus semelhantes; e, em segundo lugar, leva-o a compreender que só
pode viver em paz, sem desconfiar das intenções dos outros homens, se todas as
paixões de cada indivíduo forem contidas dentro dos limites da indulgência mútua
pela força incontrastável de um governo civil . 11

(2) Esse ditame da razão, porém, não seria mais do que u m teorema sem força
obrigatória a menos que fosse entendido como constituindo a palavra de Deus.
Seu comando promulgado na alma do homem; somente na medida em que o dita-
me da razão é visto como uma ordem divina será ele uma lei da natureza .
(3) Finalmente, essa lei da natureza não governa efetivamente a existência h u -

apíruto x T l l " t ^ 6 ^ ° a k e s h o t t
ed.; Oxford, sem indicação de ano),
12. Ibid., cap. X I V .
1S. Ibid., cap. X V , pp. 104 e seguintes; cap. X X X I , p. 2SS.
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 113

mana antes que os homens, nos quais ela vive como uma predisposição à paz, te-
nham seguido seu preceito organizando-se sob um representante público, o sobe-
rano. Somente quando eles houverem acordado submeter-se a um soberano co-
mum, a lei da natureza efetivamente transformar-se-á em lei da sociedade na exis-
tência histórica . " A lei da natureza e a lei civil, conseqüentemente, estão contidas
14

uma na outra e têm igual alcance" . 1S

Assim, a representação existencial e transcendental articulam-se na sociedade


gerando uma existência ordenada. Organizando-se numa sociedade política, sob
um único representante, os membros que participam desse contrato social realizam
a ordem divina do ser na esfera humana . 16

No receptáculo relativamente vazio da sociedade política, Hobbes verte, a se-


guir, o conteúdo da civilização cristã-ocidental através do gargalo da sanção outor-
gada pelo representante soberano. A sociedade pode muito bem ser uma comuni-
dade cristã, porque a Palavra de Deus revelada na Escritura não está em contra-
dição com a lei natural . No entanto, o cânone da Escritura a ser recebido , as
17 18

auto-interpretações doutrinárias e rimais a serem apostas a esse cânone , bem 19

como a forma de organização clerical , derivarão sua autoridade não de uma re-
20

velação, mas de sua promulgação pelo soberano como a lei do país. Não haverá
liberdade de debate acerca da verdade da existência humana na sociedade; a ex-
pressão pública de opiniões e doutrinas deve estar sob controle e supervisão per-
manente do governo. "Pois as ações dos homens derivam de suas opiniões; e no
governo eficiente das opiniões reside o governo eficiente das ações humanas, com
vistas à paz e à concórdia". Por isso, o soberano tem de decidir quem será autori-
zado a falar em público perante uma audiência, sobre que assunto e com que ten-
dência; além do mais, será necessária a censura aos livros . Quanto ao resto, have-
21

rá liberdade para as atividades pacíficas e culturais dos cidadãos, uma vez que esse é
o propósito pelo qual os homens se congregam numa sociedade civil . 22

Ao avaliar a teoria hobbesiana da representação, devem-se evitar as sempre


presentes armadilhas do jargão político amai. De nada vale pesar a teoria na ba-
lança da liberdade e da autoridade; e muito menos classificar Hobbes de absolu-
tista ou fascista. A interpretação crítica deve seguir as intenções teóricas indicadas
pelo próprio Hobbes em sua obra. Tais intenções podem ser depreendidas da se-
guinte passagem:
"Pois é evidente, mesmo para as inteligências menos brilhantes, que as ações
dos homens resultam das opiniões que têm acerca do bem e do mal, os quais neles
se refletem em conseqüência dessas ações; por conseguinte,.os homens que se dei-
xam dominar pela opinião de que sua obediência ao poder soberano lhes será
mais perniciosa do que a desobediência não cumprirão as leis e, desse modo,
subverterão a comunidade, causando a confusão e a guerra civil, situações que to-
dos os governos civis são obrigados a evitar. Por isso, em todas as comunidades de

14. Ibid., cap. XV, p. 94.


15. Ibid., cap. XXVI, p. 174.
16. Ibid., cap. XXXI, p.2SS.
17. Ibid., cap. XXXII, p. 242.
18. Ibid., cap. XXXIII, pp. 246 e seguintes.
19. Ibid., pp. 254 e seguintes.
20. Ibid., cap. XLII, pp. 355-56.
21. Ibid., cap. XVIII, pp. 116 e seguintes,
22. Ibid., cap. XXI, pp. 1S8 e seguintes.
114 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

bárbaros, os soberanos tiveram o título de pastores do povo, porque nenhum


súdito podia legalmente ensinar o povo senão mediante a permissão e a autorida-
de do soberano."
E, continua Hobbes, o propósito do Cristianismo não pode ser o de privar os
soberanos "do poder necessário para a conservação da paz entre seus súditos, bem
como para defendê-los contra os inimigos externos" . 23

Depreende-se, dessa passagem, a intenção de estabelecer o Cristianismo (en-


tendido como idêntico, na substância, à lei da natureza) como uma theologia civilis
inglesa, no sentido dado por Varro. A primeira vista, tal intenção pode parecer
contraditória. Como pode uma theologia supranaturalis cristã ser instituída como
theologia civilis? Ao empreender essa curiosa tentativa, Hobbes pôs a nu u m pro-
blema que fora deixado em suspenso em nossa análise anterior dos gênero, theologiae
e seu conflito no Império Romano. O leitor se recorda que Santo Ambrósio e San-
to Agostinho revelaram-se estranhamente insensíveis com relação ao fato de que
u m cristão no trono, segundo a orientação daqueles pensadores, trataria os pagãos
da mesma forma que os imperadores pagãos tratavam os cristãos. Eles entendiam o
Cristianismo como uma verdade da alma, superior ao politeísmo, mas não reco-
nheciam que os deuses romanos simbolizavam a verdade da sociedade romana;
que, como discernira Celso, o desaparecimento do culto significava a destruição
de uma cultura; que uma vitória existencial do Cristianismo não representava a
conversão de seres humanos tomados individualmente, mas a imposição compul-
sória de uma nova theologia civilis à sociedade.- No caso de Hobbes, a situação inver-
te-se. Quando trata o Cristianismo sob o ângulo de sua identidade substantiva com
o ditame da razão e deriva sua autoridade da sanção governamental, ele se mostra
estranhamente insensível ao significado do cristianismo como uma verdade da
alma, como o foram os Paires com respeito ao significado dos deuses romanos co-
mo verdade da sociedade. A fim de chegar à raiz dessas colocações estranhas, será
necessário reconsiderar o evento crucial da abertura da alma e acrescentar uma dis-
tinção teórica..
A abertura da alma foi um acontecimento crucial na história da humanidade
porque, com a diferenciação da alma como o sensorium da transcendência, torna-
ram-se visíveis os padrãos críticos e teóricos para a interpretação da existência
humana na sociedade, bem como a fonte de sua autoridade. Quando a alma se
abriu para a realidade transcendente, encontrou uma fonte de ordem superior à
da ordem estabelecida da sociedade, assim como uma verdade em oposição crítica
à verdade que a sociedade atingira através do simbolismo de sua própria auto-in-
terpretação. Além do mais, a idéia de um Deus universal como medida da alma
aberta teve, como corolário lógico, a idéia de. uma comunidade universal da h u -
manidade, além da sociedade civil, através da participação de todos os homens na
medida comum, entendida quer como o nous aristotélico, quer como o logos estóico
ou cristão. O impacto de tais descobertas pode muito bem toldar o fato de que a
nova clareza com respeito à estrutura da realidade não alterava essa estrutura. Na
verdade, a abertura da alma marcou uma época pelo progresso da compactação
à diferenciação da experiência, da penumbra à claridade da percepção; todavia,
a tensão entre a verdade da sociedade e a verdade da alma existira antes dessa épo-
ca, e a nova compreensão da transcendência podia agudizar a consciência da ten-
são, mas não removê-la da constituição do ser. A idéia de um Deus universal, por

23. Ibid., cap. XLII, p. 355.


A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 115

exemplo, atingiu sua pureza especifica através dos filósofos místicos, mas sua exis-
tência, incorporada a um mito cosmológico compacto é testemunhada em inscri-
ções egípcias do ano 3000 a.C.; e uma vez que, mesmo em data tão remota, a idéia
apareceu no curso de especulações críticas e polêmicas acerca da hierarquia e fun-
ção dos deuses, deve ter existido, já então, a tensão entre a verdade tal como enten-
dida pelo pensador especulativo e a verdade do mito recebido . Por outro lado, 14

a compreensão estóica da cosmopolis à qual os homens pertencem em virtude de


sua participação no Logos não aboliu a existência do homem nas sociedades histó-
ricas fínitas. Daí, cumpre distinguir entre a abertura da alma como uma época na
diferenciação experiencial e a estrutura da realidade que permanece inalterada.
Voltando à discussão que nos interessa no momento, segue-se, dessa .distinção,
que a tensão entre a verdade diferenciada da alma e a verdade da sociedade não
pode ser eliminada da realidade histórica descartando-se uma ou outra. A existên-
cia humana nas sociedades naturais permanece o que era antes de ser orientada r u -
mo a um desdno que está além da natureza. A fé é a expectativa de uma perfeição
sobrenatural do homem, e não a própria perfeição. O reino de Deus não pertence
a este mundo e o representante da civitas Dei na história, a igreja, não é um substi-
tuto para a sociedade civil. O resultado da diferenciação crucial não consiste na
substituição de uma sociedade fechada por uma sociedade aberta — se é que pode-
mos usar os termos bergsonianos —, mas uma complicação do simbolismo que
corresponde à diferenciação de experiências. Ambos os tipos de verdade passarão
a existir juntos para sempre; e a tensão entre ambos, em graus diferentes de cons-
ciência, será uma estrutura permanente da civilização. Platão já tivera essa per-
cepção, refletida em sua obra pela evolução observada entre a República e as Leis.
Na República, ele construiu uma polis que encarnaria a verdade da alma sob o gover-
no imediato dos filósofos místicos; foi uma tentativa de dissolver a tensão fazendo
da ordem da alma a ordem da sociedade. No livro Leis ele colocou a verdade da a l -
m a no plano distante da revelação expressa na República; a polis das Leis baseava-se
em instituições que refletiam a ordem do cosmos, enquanto a verdade da alma era
mediada por administradores que a recebiam como dogma. O próprio Platão, o
rei-filósofo em potencial da República, transformava-se no forasteiro Ateniense das
Leis, que contribuía para conceber instituições capazes de incorporar uma par-
cela tão grande do espírito quanto fosse compatível com a existência natural e con-
tínua da sociedade.
O s Paires cristãos não revelaram a perspicácia de Platão quando o mesmo pro-
blema lhes foi imposto pelas circunstâncias históricas. Aparentemente, não com-
preenderam que o Cristianismo podia substituir o politeísmo sem abolir a necessi-
dade de uma teologia civil. Quando houvesse prevalecido a verdade da alma, res-
tava o vácuo que Platão tentara preencher com a construção de sua. polis como uma
analogia do cosmos. O preenchimento desse vácuo tornou-se um problema impor-
tante sempre que o Cristianismo dissolveu a verdade pré-cristã da sociedade fe-
chada como uma força viva; sempre que, em conseqüência, a igreja obteve a re-
presentação existencial ao lado do governante civil, tendo então que prover a legi-
timação transcendental da ordem da sociedade, além de representar o destino su-
pranatural do homem. A grande solução foi o cesáreo-papismo bizantino, com sua

24. William F. Albright, From the Stone Age to Christianity: Monotheism and the Historical Process (Baltimore,
1946), pp. 132 e seguintes; Herman Junker, Pyrarmdenzeit: Das Wesen der aitãgyptischen Religion (Zuri-
que, 1949), pp. 18 e seguintes.
116 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

tendência de transformar a igreja n u m a instituição civil. C o n t r a tal tendência, n o


f i m d o século V , Gelásio escreveu suas cartas e tratados e m que f o r m u l o u a outra
grande solução, q u a l seja, a dos dois poderes e m equilíbrio. Esse equilíbrio funcio-
n o u n o Ocidente enquanto a tarefa de expansão e consolidação civilizacional ofere-
ceu interesses paralelos às organizações eclesiásticas e civis. M a s a tensão entre o s
d o i s tipos d e verdade t o r n o u - s e visível tão l o g o foi atingido u m certo grau de satu-
ração civilizacional. Q u a n d o a igreja, n a esteira d a reforma cluniacense, reafirmou
s u a substância espiritual e tentou afastar-se de seus envolvimentos civis, a conse-
qüência foi a luta p e l a investidura. P o r o u t r o lado, q u a n d o o s movimentos sectá-
r i o s gnósticos g a n h a r a m impulso n o século X I I , a igreja, através d a Inquisição,
cooperou c o m o poder civil n a perseguição dos hereges; a s s i m fazendo, i n c l i n o u -
se fortemente e m direção a s u a função c o m o agente d a theologia civilis e, p o r c o n -
seguinte, negou sua essência c o m o representante d a civitas Dei n a história. F i n a l -
mente, a tensão atingiu o ponto de rutura q u a n d o essas diversas igrejas cismáticas
e movimentos gnósticos e n t r a r a m e m competição violenta p e l a representação exis-
tencial. O vácuo tornou-se então manifesto nas guerras civis religiosas.
H o b b e s entendeu que a o r d e m pública e r a impossível sem u m a teologia civil
inquestionável. A grande e permanente contribuição do Leviatã é ter esclareci-
do esse ponto, mas o autor foi m e n o s feliz a o tentar preencher o vácuo estabe-
lecendo o C r i s t i a n i s m o c o m o a teologia civil inglesa. H o b b e s p o d i a contemplar
essa idéia p o r q u e p r e s u m i a q u e o C r i s t i a n i s m o , se adequadamente interpretado,
e r a idêntico à verdade d a sociedade q u e ele desenvolvera n a s d u a s primeiras
partes d o Leviatã. E l e negava a existência de u m a tensão entre a verdade d a a l m a
e a verdade d a sociedade; o conteúdo d a Escritura, e m sua opinião, coincidia e m
substância c o m a verdade d e H o b b e s . C o m base nessa premissa, ele p o d i a p e r m i -
tir-se a idéia d e resolver u m a crise de proporções histórico-mundiais mediante
a oferta de conselhos abalizados a qualquer soberano que se mostrasse disposto
a recebê-los. " T e n h o a l g u m a esperança" — disse ele — " d e que, e m a l g u m m o -
mento, esses meus escritos cairão nas mãos de u m soberano que os lera ele p r ó -
p r i o (pois são sucintos e, creio e u , claros), sem a a j u d a de qualquer intérprete i n -
teressado o u invejoso; e, pelo exercício de sua integral soberania, a o proteger o
ensino público de seu conteúdo, converterá esta verdade especulativa e m realidade
política" . H o b b e s viu-se n o papel de Platão, à b u s c a de u m rei q u e adotasse
25

a n o v a verdade e a inculcasse n o povo. A educação d o p o v o constituía parte essen-


c i a l de seu p r o g r a m a . H o b b e s não contava c o m a força d o governo p a r a s u p r i -
m i r os movimentos religiosos. Sabia que a o r d e m pública só e r a genuína se o povo
a aceitasse livremente e que a livre aceitação só e r a possível se o povo entendesse
a obediência a o representante público c o m o seu dever de conformidade c o m a
lei eterna. Se o povo desconhecesse essa lei, consideraria a punição pela rebelião
c o m o u m " a t o de hostilidade, o qual, q u a n d o ele se sentir suficientemente forte,
tentará evitar p o r m e i o de atos d e hostilidade". P o r conseguinte, H o b b e s d e c l a -
rava ser u m dever d o soberano r e m e d i a r a ignorância do povo através d a infor-
mação apropriada. Se isso fosse feito, haveria esperança de que seus princípios
" t o r n a s s e m ' a constituição, exceto p e l a violência externa, p e r e n e " . N o entanto,
26

por sua idéia de abolir as tensões d a história pela divulgação de u m a nova ver-
dade, H o b b e s revela suas próprias intenções gnósticas; a tentativa de congelar a

25. Hobbes, op. cit., cap. XXXI, p. 241.


26. Ibid., cap. XXX, pp. 220 e seguintes.
A REVOLUÇÃO GNÓSTICA — O CASO PURITANO 117

história numa constituição perene é um exemplo da classe geral de tentativas gnós-


ticas de congelar a história num reino eterno e final neste mundo.
A idéia de resolver as dificuldades da história pela concepção de uma consti-
tuição eterna só faria sentido se a fonte dessas dificuldades, isto é, a verdade da
alma, deixasse de agitar o homem. Hobbes, na verdade, simplificou a estrutura
da política ao descartar a verdade antropológica e soteriológica. Trata-se de um
desejo compreensível por parte de um homem que aspira à paz: sem dúvida, as
coisas seriam bem mais simples sem a filosofia e o Cristianismo. Mas, como se
pode descartá-los, sem anular as experiências de transcendência que pertencem
à natureza do homem? Hobbes também soube resolver esse problema: ele aper-
feiçoou o homem criado por Deus, criando um homem desprovido dessas expe-
riências. Nesse ponto, contudo, estamos penetrando nas altas camadas do mundo
de fantasias do gnosticismo. Esse empreendimento adicional de Hobbes precisa
ser colocado no contexto mais amplo da crise ocidental, que será objeto da últi-
ma destas exposições.
VI
O FIM DA MODERNIDADE

H O B B E S discernira na falta de uma theologia civilis a fonte das dificuldades sofridas


pelo estado inglês durante a crise puritana. Os vários grupos envolvidos na guerra
civil estavam tão fanaticamente empenhados em conseguir que a ordem pública
representasse o tipo correto de verdade transcendente que a ordem existencial da
sociedade corria o risco de desmoronar em meio à confusão. Este era certamente
o momento apropriado para redescobrir a visão platônica de que a sociedade deve
existir como um cosmion ordenado, como representante da ordem cósmica, antes
que se possa permitir o luxo de também representar a verdade da alma. A represen-
tação da verdade da alma no sentido cristão é função da igreja, e não da sociedade
civil. Caso diversas igrejas e seitas comecem a lutar pelo controle da ordem pública,
se nenhuma delas for suficientemente forte para obter uma vitória inequívoca, o
único resultado lógico é que, pela autoridade existencial do representante público,
todas serão relegadas à posição de associações privadas dentro da sociedade. Esse
problema da existência foi mencionado diversas vezes no curso das presentes expo-
sições, exigindo agora uma elucidação sumária antes que a idéia hobbesiana do
homem seja apresentada e avaliada. A análise começara a pardr dos pontos já
fixados.
O Cristianismo deixou em sua esteira o vácuo da esfera natural desdivinizada
da existência política. Na situação concreta do fim do Império Romano e do início
das fundações políticas ocidentais, esse vácuo não constituiu fonte importante de
dificuldades enquanto o mito do império não foi seriamente perturbado pela con-
solidação dos reinos nacionais e enquanto a igreja foi o fator civilizador predomi-
nante na evolução da sociedade ocidental, permitindo que o Cristianismo funcio-
nasse de fato como uma teologia civil. Todavia, tão logo se atingiu certo ponto de
saturação civilizacional, quando se formaram centros de cultura laica nas cortes e
nas cidades, quando aumentou o número de funcionários leigos competentes j u n -
to às administrações reais e aos governos das cidades, tornou-se inteiramente claro
que os problemas de existência histórica de uma sociedade não terminavam com a
espera do fim do mundo. A ascensão do gnosticismo nessa encruzilhada crítica apa-
rece agora, sob nova luz, como a formação incipiente de uma teologia civil ociden-
tal. A imanentização do eschaton cristão tornou possível dotar a sociedade, em sua
existência natural, de um significado que o Cristianismo lhe negara. E o totalita-
rismo de nosso tempo deve ser entendido como o fim da estrada percorrida pelos
gnósticos na busca de uma teologia civil.
No entanto, a experiência gnóstica no campo da teologia civil envolvia grandes
perigos, resultantes de seu caráter híbrido de derivativo cristão. O primeiro desses
120 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

perigos já foi discutido: trata-se da tendência do gnosticismo de suplantar, e nâo


suplementar, a verdade da alma. O movimentos gnósticos não se satisfaziam em
preencher o vácuo dateológicacivil, mas tendiam a abolir o Cristianismo. Nos es-
tágios iniciais do movimento, o ataque ainda era disfarçado como uma "espiritua-
lização" ou "reforma" cristas; nas fases posteriores, com a imanentização mais
radical do eschaton, o movimento tornou-se abertamente anticristão. Conseqüente-
mente, onde quer que os movimentos gnósticos tenham prosperado, destruíram a
verdade da alma aberta, arruinando toda uma área de realidade diferenciada que
fora conquistada pela filosofia e pelo Cristianismo. E, mais uma vez, cumpre recor-
dar que o avanço do gnosticismo não representa um retorno ao paganismo. Nas
civilizações pré-cristãs, a verdade que se diferenciou com a abertura da alma estava
presente sob a forma de experiências compactas; nas civilizações gnósticas, a verda-
de da alma não retorna a seu estado de compactação, e sim é totalmente reprimida.
Essa repressão da fonte autêntica da ordem na alma é a causa da deprimente atro-
cidade dos governos totalitários ao lidar com os seres humanos tomados indivi-
dualmente.
O resultado peculiarmente repressivo do crescimento do gnosticismo na socie-
dade ocidental sugere o conceito de um ciclo civilizacional de proporções histórico-
mundiais. O que emerge são os contornos de um imenso ciclo, que transcende os
ciclos de cada civilização. O ápice desse ciclo estaria representado pelo surgimento
de Cristo; as mais avançadas civilizações pré-cristãs formariam o ramo ascendente,
enquanto as civilizações gnósticas modernas constituiriam o ramo descendente. As
mais avançadas civilizações pré-cristãs progrediram da compactação da experiência
rumo à diferenciação da alma como centro de percepção da transcendência; e, na
área civilizacional mediterrânea, essa evolução culminou no máximo de diferencia-
ção, através da revelação do Logos na história. Na medida em que as civilizações
pré-cristãs avançaram rumo ao ponto máximo do advento, sua dinâmica pode ser
chamada de "adventícia". As civilizações gnósticas modernas revertem essa tendên-
cia rumo à diferenciação e, na medida em que se afastam do ponto máximo, sua
dinâmica pode ser chamada de "recessiva". Conquanto a civilização ocidental te-
nha seu próprio ciclo de crescimento, florescimento e declínio, ela deve ser consi-
derada — devido à ascensão do gnosticismo ao longo de sua evolução — como o
ramo declinante do ciclo maior de advento e recessão.
Essas reflexões abrem a perspectiva da dinâmica futura da civilização. O gnos-
ticismo moderno está longe de haver esgotado seu impulso. Pelo contrário, na va-
riante do marxismo, está expandindo prodigiosamente sua área de influência na
Ásia, enquanto outras variantes do gnosticismo, tais como o progressivismo, posi-
tivismo e o cientificismo, estão penetrando em outras áreas sob o nome de "oci-
dentalização" e desenvolvimento dos países atrasados. Pode-se dizer mesmo que,
na própria sociedade ocidental, o impulso não se esgotou, pois nossa "ocidenta-
lização" continua a crescer. Diante dessa expansão em escala mundial, é necessário
afirmar o óbvio: a natureza humana não muda. O fechamento da alma do gnosti-
cismo moderno pode reprimir a verdade da alma, bem como as experiências que
se manifestam na filosofia e no Cristianismo, mas não consegue remover a alma e
sua transcendência da estrutura da realidade. Por isso, impõe-se a pergunta: quan-
to tempo poderá durar a repressão? E que acontecerá quando a repressão prolon-
gada e severa levar a uma explosão? Ê válido fazer tais indagações com respeito à
dinâmica do futuro, porque elas derivam de uma aplicação metodologicamente
correta da teoria a um componente observado da civilização contemporânea. No
entanto, não seria válido entregar-se às especulações acerca da forma que tomará
O FIM DA MODERNIDADE 121

a explosão, além da presunção razoável de que a reação contra o gnosticismo terá


escala mundial, como o teve sua expansão. O número de complicadores é tão gran-
de que qualquer predição se torna inútil. Até mesmo com relação a nossa própria
civilização ocidental não se pode ir muito além de assinalar que o gnosticismo, a
despeito de sua ruidosa ascendência, está longe de haver dominado todo o campo;
que a tradição clássica e cristã da sociedade ocidental permanece bem viva; que a
formação da resistência espiritual e intelectual contra o gnosticismo em todas as
suas variantes é um fator notável em nossa sociedade; que a reconstrução da ciên-
cia do homem e da sociedade é u m dos acontecimentos marcantes da última meta-
de de século e, visto retrospectivamente a partir de um ponto no futuro, talvez
venha a surgir como o mais importante acontecimento de nosso tempo. Ainda me-
nos pode ser dito, por razões óbvias, acerca da provável reação da tradição cristã
contra o gnosticismo no império soviético. E nada sobre a maneira pela qual as
civilizações chinesa, hindu, islâmica e primitivas reagirão a uma prolongada expo-
sição à devastação e repressão gnósticas. Apenas com respeito a um ponto é possí-
vel fazer uma conjetura razoável, qual seja, a data da explosão. Naturalmente, a
data no tempo objetivo é bastante impredizível, mas o gnosticismo contém um fa-
tor autodestrutivo, o qual torna pelo menos provável que a data esteja menos dis-
tante do que se poderia imaginar à luz do poder gnóstico no momento. Esse fator
autodestrutivo constitui o segundo perigo do gnosticismo como teologia civil.

O PRIMEIRO perigo era a destruição da verdade da alma. O segundo perigo está


intimamente relacionado com o primeiro. Como o leitor se recorda, a verdade do
gnosticismo é viciada pela imanentização falaciosa do eschaton cristão. Essa falácia
não constitui simplesmente um erro teórico com relação ao significado do eschaton,
cometido por esse ou aquele pensador, quem sabe uma questão de escolas. C o m
base nessa falácia, pensadores gnósticos, líderes e seus seguidores interpretam uma
sociedade concreta e sua ordem como um eschaton', e, na medida em que aplicam
sua construção falaciosa a problemas sociais concretos, eles representam erronea-
mente a estrutura da realidade imanente. A interpretação escatológica da história
resulta numa falsa imagem da realidade, e os erros relativos à estrutura da reali-
dade têm efeitos práticos quando se faz da falsa concepção uma base para a ação
política. Especificamente, a falácia gnóstica destrói a mais antiga sabedoria da
humanidade com respeito ao ritmo do crescimento e do declínio que constitui o
destino de todas as coisas sob o sol. Como diz o Qohélet:
"Para tudo há u m tempo,
Para cada coisa há um momento debaixo dos céus:
Há tempo para nascer, e tempo para morrer".
E, refletindo sobre a condição finita do conhecimento humano, o Qohélet prosse-
gue dizendo que a mente do homem não pode compreender " a obra divina de u m
extremo ao outro" *. O que nasce, um dia terminará, e o mistério desse fluxo do ser

1. Eclesiastes, 3:1 — 2 e 3: 11.


A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

é impenetrável. Esses são os dois grandes princípios q u e regem a existência. A es-


peculação gnóstica sobre o eidos d a história, entretanto, não apenas ignora esses
princípios, m a s os perverte, transformando-os e m seus opostos. A idéia d o reino
final presume u m a sociedade que existirá sem ter fim, enquanto o mistério d o flu-
x o é resolvido através d o conhecimento especulativo d e seu objetivo. A s s i m , o
gnosticismo produziu o que se p o d e r i a c h a m a r de contraprincípios aos princípios
da existência; e, n a m e d i d a e m que esses princípios determinam u m a imagem d a
realidade p a r a as massas que neles crêem, geram u m m u n d o de fantasia que é, ele
próprio, u m a força social d a m a i o r importância d a motivação das atitudes e ações
das massas gnósticas e de seus representantes.
O fenômeno de u m m u n d o de fantasia, baseado e m princípios definidos, exige
u m a explicação. Dificilmente seria possível existir u m fenômeno histórico d e m a s -
sas a menos que estivesse enraizado n u m impulso experiental básico. O gnosticis-
m o , n a qualidade de m u n d o de fantasia contra-existencial, talvez possa ser tornado
inteligível c o m o a expressão extrema de u m a experiência universalmente h u m a n a :
o h o r r o r à existência e o desejo de escapar dela. Especificamente, o p r o b l e m a p o d e
ser colocado nos seguintes termos: u m a sociedade, a o existir, interpreta sua o r d e m
c o m o parte d e u m a o r d e m transcendente d o ser. T o d a v i a , essa auto-interpretação
d a sociedade como espelho d a o r d e m cósmica é parte d a própria realidade social.
A sociedade ordenada, juntamente c o m sua autocompreensão, permanece u m a
o n d a n a corrente d o ser; a polis de E s q u i l o , c o m seu ordenamento dado pela Dike,
é u m a ilha n u m m a r de d e s o r d e m demoníaca, mantendo-se precariamente e m exis-
tência. Somente a o r d e m de u m a sociedade existente é inteligível; sua própria exis-
tência é ininteligível. A articulação b e m sucedida de u m a sociedade é possível g r a -
ças a circunstâncias favoráveis; e p o d e ser a n u l a d a p o r circunstâncias desfavoráveis,
c o m o , p o r exemplo, o surgimento de u m p o d e r mais forte, voltado p a r a a c o n q u i s -
ta. A fortuna secunda et adversa é a deusa sorridente e terrível que governa esse reino
da existência. A casualidade d a existência, s e m direito o u razão, é u m h o r r o r d e m o -
níaco, difícil d e ser suportado até pelos fortes de espírito e dificilmente suportável
pelas almas delicadas que não p o d e m viver sem acreditar que m e r e c e m viver. P o r
isso, é razoável supor que e m toda sociedade está presente, e m graus variáveis de
intensidade, a inclinação p a r a estender o significado de s u a o r d e m a o fato m e s m o
de sua existência. Sobretudo q u a n d o u m a sociedade tem longa e gloriosa história,
sua existência será tomada c o m o algo indiscutível, c o m o parte d a o r d e m das coisas.
T o r n a - s e inimaginável q u e tal sociedade possa simplesmente deixar de existir. E ,
q u a n d o sofre u m grande golpe simbólico — c o m o o foi, p o r exemplo, a q u e d a
de R o m a e m 410 — , p o r toda a orbis terrarum ouve-se u m gemido, c o m o se houves-
se chegado o fim d o m u n d o .
Portanto, e m toda sociedade está presente u m a inclinação p a r a estender o sig-
nificado d a o r d e m a o fato d a existência, m a s nas sociedades predominantemente
gnósticas essa extensão é elevada à condição de u m princípio de auto-interpretação.
E s s a mudança — de u m estado de espírito, e m q u e se aceitava a existência c o m o u m
dado, p a r a u m princípio — determina u m novo padrão de comportamento. N o
p r i m e i r o caso, pode-se falar de u m a inclinação p a r a não levar e m conta a estrutura
da realidade, p a r a se deixar envolver pela doçura d a existência, de u m declínio d a
m o r a l i d a d e cívica, da cegueira perante perigos óbvios e d a relutância e m enfrentá-
los c o m toda a seriedade. T r a t a - s e d o estado de espírito das sociedades muito m a -
duras e m estágio de desintegração, que não mais se dispõem a lutar p o r sua exis-
tência. N o segundo caso, isto é, n o caso gnóstico, a situação psicológica é inteira-
mente diversa. N o gnosticismo, o não-reconhecimento d a realidade é u m a questão
O FIM DA MODERNIDADE 123

de princípio; nesse caso, dever-se-ia antes falar de uma inclinação para permane-
cer consciente da casualidade da existência, malgrado o fato de que tal casualidade
não é admitida como um problema no mundo de fantasia gnóstico; a fantasia
tampouco prejudica a responsabilidade cívica ou a disposição de lutar bravamente
em caso de emergência. A atitude para com a realidade permanece enérgica e ativa,
mas se torna impossível pôr em foco a realidade e a ação sobre o real: a imagem é
toldada pelo sonho gnóstico. O resultado é um estado penumapatológico da men-
te, muito complexo, que Hooker esboçou ao traçar o retrato do puritano.
No entanto, o estudo do fenômeno em suas variedades contemporâneas tor-
nou-se muito mais difícil do que ao tempo de Hooker. No século XVI, o mundo de
fantasia e o mundo real ainda eram mantidos terminologicamente separados atra-
vés do simbolismo cristão dos dois mundos. A enfermidade, em sua variedade es-
pecial, podia ser facilmente diagnosticada porque o próprio paciente tinha a supre-
ma consáéncia de que o novo mundo não era aquele no qual ele realmente vivia.
Com a imanentização radical, o mundo de sonho mesclou-se terminologicamente
com o mundo real; a obsessão de substituir o mundo da realidade pelo mundo
transfigurado de fantasia transformou-se na obsessão do mundo único, em que os
sonhadores adotam o vocabulário da realidade ao mesmo tempo em que alteram
sem significado, como se o sonho fosse realidade.
Uma ilustração mostrará a natureza da dificuldade. Nas éticas clássica e cristã,
a primeira das virtudes morais é a sophia ou prudentia, porque, sem uma compreen-
são adequada da estrutura da realidade, incluindo a conditio humana, torna-se pra-
ticamente impossível a ação moral com a coordenação racional dos meios e dos
fins. No mundo de sonho gnóstico, por outro lado, o não-reconhecimento da
realidade constitui o primeiro princípio. Em conseqüência, tipos de ação que se-
riam considerados moralmente insanos no mundo real, pelos efeitos reais que
deles resultam, serão consideradas morais no mundo de fantasia, porque visam
um efeito inteiramente diverso. O hiato entre o efeito desejado e o efeito real será
imputado não à imoralidade gnóstica de ignorar a estrutura da realidade, mas à
imoralidade de alguma outra pessoa ou sociedade que não se comporta como
deveria comportar-se de acordo com a concepção fantasiosa da relação de causa
e efeito. A interpretação da insanidade moral como moralidade, e das virtudes
da sophia e da prudentia como imoralidade, leva a uma confusão difícil de des-
fazer. A tarefa é dificultada pela presteza dos sonhadores em estigmatizar como
imoral a tentativa de obter um esclarecimento crítico. Na verdade, praticamen-
te todos os grandes pensadores políticos que reconheceram a estrutura da rea-
lidade — de Maquiavel aos nossos dias — foram caracterizados como imorais pelos
intelectuais gnósticos, para não falar da brincadeira de salão dos liberais que cri-
ticam Platão e Aristóteles como fascistas. Por conseguinte, a dificuldade teórica é
agravada por problemas pessoais. E nâo há dúvida de que o contínuo bombardeio
de vituperação gnóstica contra a ciência política no sentido crítico afetou seriamen-
te a qualidade do debate público acerca dos problemas políticos contemporâneos.
A identificação de sonho e realidade como uma questão de princípio produz
efeitos práticos que podem parecer estranhos, mas nunca surpreendentes. Proíbe-
se a exploração crítica da relação de causa e efeito na história; conseqüentemente,
torna-se impossível a coordenação racional dos meios e fins na política. As socieda-
des gnósticos e seus líderes reconhecem os perigos a sua existência quando eles
surgem mas tais perigos nâo são enfrentados por meio das ações apropriadas no
mundo da realidade. São, isto sim, enfrentados mediante operações mágicas no
mundo da fantasia, tais como desaprovação, condenação moral, declarações de
124 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

intenção, resoluções, apelos à opinião da humanidade, caracterização dos inimigos


c o m o agressores, abolição d a guerra, propaganda e m favor d a paz m u n d i a l e d o
governo m u n d i a l , etc. A corrupção m o r a l e intelectual que se expressa n o somató-
r i o dessas operações mágicas pode impregnar u m a sociedade d a atmosfera estranha
e fantasmagórica de u m manicômio, c o m o o experimentamos n a crise ocidental de
nossos dias.
U m estudo completo das manifestações de insanidade gnóstica na práüca da
política contemporânea extravasaria de m u i t o os limites das presentes exposições.
A análise deve concentrar-se n o sintoma que m e l h o r ilustra o caráter autodestruti-
vo da política gnóstica, isto é, o fato estranho de que exista u m estado de belige-
rância contínuo q u a n d o todas as sociedades políticas, através de seus representan-
tes, professam u m ardente desejo de paz. N u m a época e m que a guerra é paz, e a
paz guerra, parece útil.formular algumas definições para se ter certeza acerca d o
significado dos termos. Paz significará u m a o r d e m temporária de relações sociais
que expresse adequadamente o equilíbrio das forças existenciais. O equilíbrio pode
ser perturbado p o r diversas causas, tais c o m o crescimento populacional n u m a área
e decréscimo e m outra, avanços tecnológicos que favoreçam áreas bem dotadas das
matérias-primas necessárias, mudanças nas rotas de intercâmbio, etc. Guerra sig-
nificará o uso da violência c o m o objetivo de restaurar u m a o r d e m equilibrada,
quer mediante a repressão do aumento p e r t u r b a d o r da força existencial, quer pelo
reordenamento das relações sociais a f i m de expressar adequadamente a nova
relação entre as forças existenciais. Política significará a tentantiva de restaurar o
equilíbrio de forças o u reajustar a o r d e m , p o r vários meios diplomáticos o u pela
acumulação de forças dissuasórias, sem chegar à guerra. Essas definições não de-
vem ser tomadas como a última palavra em matérias tão importantes como guerra,
paz e política, mas simplesmente como u m a declaração das regras que presidirão
a formulação d o p r o b l e m a q u e estamos tratando.
A política gnóstica é autodestrutiva n o sentido de que as medidas q u e visam
estabelecer a paz aumentam as perturbações que conduzem à guerra. A mecânica
dessa autodestruição f o i indicada acima, q u a n d o se descreveram as operações má-
gicas n o m u n d o de fantasia. Se u m a perturbação incipiente d o equilíbrio não f o r
contrabalançada pela ação política adequada n o m u n d o da realidade, e se, pelo
contrário, f o r enfrentada p o r meio de feitíços, tal perturbações p o d e atingir tais
proporções que o recurso à guerra se t o r n a inevitável. O exemplo óbvio é a ascen-
são d o m o v i m e n t o nacional-socialista ao poder, primeiramente na Alemanha e
depois em escala continental, enquanto o coro gnóstico proclamava sua indignação
m o r a l diante de feitos tão bárbaros e reacionários n u m m u n d o progressista — sem,
contudo, levantar u m dedo para r e p r i m i r a força ascendente p o r meio de u m pe-
queno esforço político n o m o m e n t o o p o r t u n o . A pré-história da Segunda Guerra
M u n d i a l suscita a séria questão de saber se o sonho gnóstico não corroeu tão p r o -
fundamente a sociedade ocidental a p o n t o de tornar impossível a política racional,
deixando a guerra c o m o único instrumento para ajustar as perturbações n o equilí-
b r i o das forças existenciais.
A condução da guerra e o período que a ela se seguiu infelizmente tendem a
confirmar esse receio, ao invés de mitigá-lo. Se existe a l g u m propósito n a guerra,
deve ser o de restaurar o equilíbrio de forças, e não o de agravar a perturbação;
deve ser o de reduzir o excesso de força perturbador, e não a destruição da força
a p o n t o de criar u m novo vácuo de poder gerador de desequilíbrio. Não obstante,
os políticos gnósticos colocaram o exército soviético n o Elba, entregaram a C h i n a
aos comunistas e desmilitarizaram a Alemanha e o Japão, ao mesmo tempo e m que
O FIM DA M O D E R N I D A D E 125

desmobilizavam nosso próprio exército. Os fatos são b e m conhecidos, mas talvez'


não se tenha suficiente consciência de que j a m a i s na h i s t o r i a d a h u m a n i d a d e u m a
potência m u n d i a l usou a vitória com o propósito deliberado de criar u m vácuo de
poder que lhe era desvantajoso. E mais u m a vez, como em contextos anteriores, é
necessário advertir que u m fenômeno dessa magnitude não p o d e ser explicado pela
ignorância o u falta de inteligência. Essas políticas f o r a m executadas como u m a
questão de princípio, c o m base nas premissas gnósticas fantasiosas acerca da n a t u -
reza d o h o m e m , acerca de misteriosa evolução da humanidade r u m o à paz e à
o r d e m m u n d i a l , acerca d a possibilidade de estabelecer u m a o r d e m i n t e r n a c i o n a l
em abstrato, sem relação c o m a estrutura d o campo de forças existenciais, acerca
de serem os exércitos as causas da guerra, e não as forças e agrupamentos que os
f o r m a m e os põem e m ação, etc. A enumeração d a série de ações, b e m c o m o das
premissas fantasiosas e m q u e se baseiam, mostra que o contato c o m a realidade
está, quando nada, seriamente prejudicado, e que o deslocamento patológico pelo
m u n d o de sonho é bastante efetivo.
Além d o mais, deve-se n o t a r q u e o fenômeno único de u m a grande potência
criar u m vácuo de poder que lhe é desvantajoso f o i acompanhado pelo fenômeno
igualmente único da conclusão militar da guerra sem a celebração de tratados de
paz. Esse fenômeno adicional, bastante p e r t u r b a d o r , também não p o d e ser e x p l i -
cado pela imensa complexidade dos problemas q u e exigiam solução. Mais u m a vez
é a obsessão fantasiosa que torna impossível aos representantes das sociedades
gnósticas f o r m u l a r políticas que levem e m conta a estrutura da realidade. Não
pode haver paz, p o r q u e o sonho não p o d e ser transformado e m realidade e a reali-
dade ainda não r o m p e u o sonho. Obviamente, ninguém pode predizer que pesa-
delos de violência serão necessários para r o m p e r o sonho e m u i t o menos c o m o
será a sociedade ocidental au bout de la nuit.
Assim, a política gnóstica é autodestrutiva na medida em que sua negligência
para c o m a estrutura da realidade leva à guerra contínua. O sistema de guerras e m
cadeia só pode terminar de duas maneiras. O u resultará e m horríveis destruições
físicas e nas concomitantes modificações revolucionárias da o r d e m social que esca-
p a m a qualquer conjetura razoável; o u , c o m a mudança natural das gerações, c o n -
duzirá ao abandono dos sonhos gnósticos antes que aconteça o p i o r . Ê nesse senti-
d o q u e se deve entender a sugestão feita anteriormente n o sentido de q u e o f i m d o
sonho gnóstico talvez esteja mais próximo do que geralmente se imagina.

E S S A EXPOSIÇÃO dos perigos d o gnosticismo c o m o teologia civil d a sociedade o c i -


dental talvez haja suscitado algumas dúvidas. A análise aplica-se inteiramente ape-
nas às variedades progressivistas e idealistas prevalecentes nas democracias ociden-
tais; não se aplicaria tão b e m às variedades ativistas que prevalecem nos impérios
totalitários. Qualquer que seja a parcela de responsabilidade pela situação atual
que se possa a t r i b u i r aos progressivistas e idealistas, a f o n t e mais formidável de
perigo iminente parece residir nos ativistas. A íntima conexão entre os dois perigos,
p o r conseguinte, exige esclarecimento — tanto mais q u a n t o os representantes das
duas variedades de gnosticismo são antagonistas e m luta n o m u n d o inteiro. A aná-
126 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

Use dessa questão adicional pode perfeitamente usar como prefácio os p r o n u n c i a -


mentos de u m famoso intelectual liberal a respeito do p r o b l e m a do c o m u n i s m o :
" L e n i n estava certamente c o m razão quando buscou o objetivo de construir
seu céu na terra e inscrever os preceitos de sua fé n o tecido i n t e r n o de u m a h u m a n i -
dade universal. Ele também estava sem dúvida certo ao reconhecer que a guerra é
o prelúdio da paz, e que é inútil supor q u e se possa alterar a tradição de incontáveis
gerações, dir-se-ia, da noite para o d i a " . 2

" O poder de qualquer religião sobrenatural para construir essa tradição desa-
pareceu; a acumulação da pesquisa científica desde Descartes f o i fatal para sua
autoridade. Portanto, é difícil imaginar sobre que bases p o d e ser reconstruída a
tradição civilizada exceto sobre a idéia em que a Revolução Russa se fundamentou.
Ela corresponde, abstração feita d o elemento sobrenatural, ao mesmo clima n o
qual o Cristianismo se t o r n o u a religião oficial d o O c i d e n t e " . 3

" N a verdade, e m certo sentido é válido dizer que o princípio russo t e m maior
alcance d o que o cristão, u m a vez q u e busca a salvação das massas através da reali-
zação nesta vida, dando p o r isso novo ordenamento ao m u n d o real que conhe-
cemos .
Poucas passagens p o d e r i a m revelar mais claramente a situação d o intelectual
liberal de nosso tempo. A filosofia e o Cristianismo estão além de seu r a i o de expe-
riência. A ciência, além de constituir u m instrumento para d o m i n a r a natureza, é
algo que o faz suficientemente sofisticado a p o n t o de não acreditar e m Deus. O céu
será construído na terra. A auto-salvação, a tragédia d o gnosticismo que Nietzsche
sofreu c o m intensidade máxima até que sua alma se q u e b r o u , é uma realização d a
vida que chega a cada h o m e m c o m a sensação de que ele está c o n t r i b u i n d o para a
sociedade de acordo c o m sua capacidade, compensada pelo salário ao f i m do mês.
Não há qualquer p r o b l e m a relativo à existência na sociedade exceto a satisfação
imanente das massas. A análise política indica quem será o vencedor, de m o d o que
o intelectual possa, n o m o m e n t o o p o r t u n o , conseguir u m emprego c o m o teólogo
da corte n o império comunista. E as pessoas espertas poderão acompanhá-lo e m
suas hábeis manobras para conservar-se na crista da o n d a do f u t u r o . A situação é
hoje bastante conhecida e dispensa maiores comentários. Ê o caso dos paracletos
menores e m que o espírito se agita; que sentem o dever de desempenhar u m papel
público e de servir como professores para a humanidade; que de boa fé substituem
seu conhecimento crítico p o r suas convicções; e, c o m a consciência inteiramente
tranqüila, expressam opiniões acerca de problemas que estão fora de seu alcance.
Além disso, não se deve negar a consistência e honestidade imanentes dessa transi-
ção d o liberalismo para o c o m u n i s m o ; se o liberalismo for entendido c o m o a sal-
vação imanente d o h o m e m e da sociedade, o comunismo é certamente sua expres-
são mais radical. Trata-se de u m a evolução que j á fora prenunciada pela fé de J o h n
Stuart M i l l n o advento último d o comunismo para a humanidade.
E m linguagem mais técnica, o problema p o d e ser f o r m u l a d o da seguinte for-
ma. As três variedades possíveis de imanentização — teleológica, axiológica e a t i -
vista —y não constituem apenas três tipos coordenados, mas se relacionam umas às
outras dinamicamente. E m cada onda d o m o v i m e n t o gnóstico, as variedades p r o -

2. Harold J . Laski, Faith, Reasson and CivilizaHon: An Essay in Histórica! Analysis (Nova York: Viking Press
1944), p. 184.
3. Ibid., p. 51.
4. Ibid.,p. 143.
O FIM DA M O D E R N I D A D E 127

gressista e utópica tenderão a formar a ala direita, deixando boa parte da perfeição
final à evolução gradual e à acomodação d a tensão entre as conquistas reais e o
ideal; a variedade ativista tenderá a f o r m a r a ala esquerda, agindo violentamente na
busca d a realização completa d o reino perfeito. A distribuição dos crentes entre a
direita e a esquerda será e m parte determinada p o r equações pessoais, c o m o en-
tusiasmo, temperamento e consistência; todavia, para outras pessoas, talvez a
maioria, a distribuição será determinada p o r sua relação c o m o meio civilizacional
em q u e ocorre a revolução gnóstica. Pois não se deve esquecer jamais q u e a socie-
dade ocidental não é inteiramente m o d e r n a , e sim q u e a m o d e r n i d a d e é u m tumor
dentro dela, e m oposição à tradição clássica e cristã. Se só existisse o gnosticismo
na sociedade ocidental, o m o v i m e n t o e m direção à esquerda seria irresistível p o r
pertencer à lógica da imanentização, já tendo-se consumado há m u i t o tempo. N o
entanto, o fato é q u e as grandes revoluções ocidentais d o passado, após sua lógica
guinada para a esquerda, r e t o r n a r a m a u m a o r d e m pública que refletia o equilí-
b r i o das forças sociais n o m o m e n t o , j u n t a m e n t e c o m seus interesses econômicos e
tradições civilizacionais. O receio o u a esperança, dependendo d o caso, de que as
revoluções " p a r c i a i s " d o passado serão seguidas pela revolução " r a d i c a l " e pelo
estabelecimento d o r e i n o final baseia-se n a premissa de q u e as tradições d a socie-
dade ocidental estão agora suficientemente arruinadas e que as famosas massas
estão prontas para dar o bote fatal . 5

Por conseguinte, a dinâmica d o gnosticismo desenvolve-se ao longo de duas


linhas. N a dimensão da profundidade histórica, o gnosticismo move-se d a i m a -
nentização parcial dos meados da Idade Média para a imanentização radical da
atualidade. E, c o m cada onda e erupção revolucionária, ele se move d a direita
para a esquerda. Entretanto, a tese de que essas duas linhas da dinâmica devem
agora encontrar-se de acordo c o m sua lógica interna, de q u e a sociedade ocidental
está m a d u r a para cair n o c o m u n i s m o , de que o curso da história ocidental é deter-
m i n a d o pela lógica de sua modernidade e p o r nada mais — essa tese é u m a ins-
tância impertinente d a propaganda gnóstica n o q u e ela t e m de mais t o l o e c o r r u p -
to, nada tendo a ver certamente c o m o estudo crítico da política. Contra essa tese
cabe apontar diversos fatos hoje obscurecidos porque o debate está d o m i n a d o p o r
clichês liberais. E m p r i m e i r o lugar, o movimento comunista n a própria sociedade
ocidental, onde quer que teve de depender apenas de seu apelo de massas sem a
ajuda do governo soviético, nâo chegou a nada. O único m o v i m e n t o gnóstico a t i -
vista que alcançou u m grau notável de sucesso f o i o m o v i m e n t o nacional-socialista,
em base nacional l i m i t a d a ; e a natureza suicida desse êxito ativista é amplamente
testemunhada pela abominável corrupção interna d o regime enquanto d u r o u e
pelas ruínas das cidades alemãs. E m segundo lugar, a situação atual do Ocidente
diante d o perigo soviético, na medida em que decorre da criação d o vácuo de poder
anteriormente descrito, não se deve ao comunismo. O vácuo de poder f o i criado
livremente pelos governos democráticos ocidentais, do alto de u m a vitória m i l i t a r ,
sem sofrer a pressão de ninguém. E m terceiro lugar, o fato de q u e a União Soviéti-
ca seja u m a grande potência e m expansão n o Continente europeu nada tem a ver
com o comunismo. A extensão atual d o império soviético, englobando as nações
satélites, corresponde e m linhas gerais a o p r o g r a m a de u m império eslavo sob he-
gemonia russa, tal c o m o proposto, p o r exemplo, p o r Bakunin a N i c o l a u I . É perfei-

5. Os conceitos de revolução "parcial" e "radical" foram desenvolvidas por Karl Marx na obra Kritik
der Hegelscken Rechtsphilosopkie, Einleitung (1843), Vol. I: Gesomtausgabe, p. 617.
128 A N O V A C I Ê N C I A DA P O L Í T I C A

tamente concebível que u m império hegemônico russo não comunista tivesse hoje
as mesmas dimensões d o império soviético, constituindo perigo ainda m a i o r pela
possibilidade de estar mais solidamente consolidado. E m q u a r t o lugar, o império
soviético, conquanto seja u m a potência formidável, não poê em perigo a Europa
Ocidental ao nível da força material. Estatísticas elementares m o s t r a m q u e a forca
de trabalho, os recursos naturais e o potencial industrial da Europa Ocidental são
comparáveis a qualquer força que o império soviético possa r e u n i r — sem contar
c o m nosso próprio poder nos bastidores. O perigo nasce estritamente d o particu-
larismo nacional e da paralisante confusão m o r a l e intelectual.
Assim, o problema d o perigo comunista recai sobre o p r o b l e m a d a paralisia
ocidental e da política autodestrutiva gerada pelo sonho gnóstico..As passagens
citadas acima m o s c a m a fonte d a dificuldade. O risco de derrapar da direita para
a esquerda é inerente à natureza d o sonho; na medida e m que o c o m u n i s m o é u m
tipo mais radical e consistente de imanentização d o que o progressivismo o u o u t o -
pismo social, t e m a seu favor a logique du coeur. As sociedades ocidentais gnósticas
encontram-se n u m estado de paralisia intelectual e emocional p o r q u e não é possí-
vel empreender qualquer crítica fundamental d o gnosticismo esquerdista sem a r -
rancar o gnosticismo de d i r e i t a de seu curso. N o entanto, as grandes revoluções
experienciais e intelectuais são lentas e exigem a passagem pelo menos de u m a ge-
ração. Não se p o d e i r além da formulação das condições d o p r o b l e m a . Haverá u m
perigo comunista latente, nas mais favoráveis condições externas, enquanto f o r e m
estigmatizados como "reacionários" o reconhecimento da estrutura da realidade, o
cultivo das virtudes da sophia e da prudentia, a disciplina d o intelecto e o desenvol-
vimento da cultura teórica e da vida d o espírito; enquanto o desrespeito pela estru-
tura da realidade, a ignorância dos fatos, a construção falaciosa e a falsificação da
história, o opinar irresponsável c o m base em convicções sinceras, o analfabetismo
filosófico, o embotamento espiritual e a sofisticação agnóstica f o r e m consideradas
virtudes d o h o m e m , cuja posse abre as portas ao êxito público. E m suma, enquanto
civilização for reação, e insanidade m o r a l f o r progresso.

1
A FUNÇÃO d o gnosticismo c o m o teologia civil da sociedade ocidental, sua destrui-
ção da verdade da alma e sua negligência para c o m os problemas d a existência fo-
r a m apresentadas em suficiente p o r m e n o r p a r a q u e fique nítida a importância fatal
do problema. A análise pode retornar agora ao grande pensador que descobriu sua
natureza e buscou resolvê-lo p o r meio da teoria da representação. N o século X V I I ,
a existência da sociedade nacional inglesa corria o risco de ser destruída pelos r e -
volucionários gnósticos, c o m o hoje, e m escala m a i o r , existe o perigo de q u e a so-
ciedade ocictental 'seja inteiramente destruída. Hobbes buscou enfrentar o perigo
concebendo u m a teologia ciyiíque fazia da o r d e m da sociedade existente a verdade
que ela representava—ao lado da qual nenhuma outra verdade poderia ser susten-
tada. Tratava-se de uma idéia eminentemente sensata na medida e m que se concen-
trava nos dados da existência, que fora tão completamente negligenciada pelos
gnósticos. Entretanto, o valor prático da idéia baseava-se na premissa de q u e a ver-
dade transcendente que os homens buscavam representar em suas sociedades, após
O FIM DA M O D E R N I D A D E 129

-ter a humanidade vivido as experiências da filosofia e d o Cristianismo, podia, p o r


sua vez, ser desprezada. Contra os gnósticos, q u e não desejavam q u e a sociedade
existisse exceto se sua o r d e m representasse u m tipo específico de verdade, Hobbes
insistia q u e qualquer o r d e m servia, desde que assegurasse a existência da sociedade.
A fim de tornar válida essa premissa, ele tinha de criar sua nova idéia do h o m e m .
A natureza h u m a n a encontraria realização n a própria existência, devendo ser ne-
gado o propósito d o h o m e m além da existênàa. Hobbes o p u n h a à imanentização
gnóstica do eschaton, que ameaçava a existência, u m a imanência radical da existên-
cia, q u e negava o eschaton.
O resultado desse esforço f o i ambivalente. A fim de manter sua posição contra
as combativas igrejas e seitas, Hobbes tinha de negar que o zelo desses grupos fos-
se inspirado, ainda que erroneamente, na busca da verdade. A luta desses grupos
tinha de ser interpretada, e m termos de existência imanente, c o m o a expressão
incontida da ânsia pelo poder, revelando-se sua alegada preocupação religiosa
como u m a máscara para esconder a ânsia existencial. N o desdobramento da aná-
lise, Hobbes demonstrou ser u m dos maiores psicólogos de todos os tempos: suas
conquistas, ao desmascarar o tibido dominandi q u e se escondia sob o m a n t o d o zelo
religioso e d o idealismo reformista, são tão sólidas hoje c o m o o eram ao tempo e m
que f o r a m formuladas. Todavia, essa magnífica conquista psicológica teve u m alto
preço. Hobbes diagnosticou corretamente o elemento c o r r u p t o r d a paixão n a r e -
ligiosidade dos gnósticos puritanos. Entretanto, não interpretou a paixão c o m o
a fonte de corrupção na vida d o espírito, mas sim a vida d o espírito como o extre-
m o da paixão existencial. Por isso, não pôde interpretar a natureza do h o m e m a
p a r t i r da posição privilegiada d o máximo dc diferenciação através das experiências
da transcendência, de tal m o d o que a paixão — e sobretudo a paixão fundamental,
a superbia — pudesse ser compreendida c o m o o perigo sempre presente da queda
c o m relação à verdadeira natureza; pelo contrário, teve d e interpretar a vida de p a i -
xão c o m o a natureza d o h o m e m , de tal f o r m a que os fenômenos da vida espiritual
aparecessem como extremos da superbia.
De acordo c o m essa concepção, a natureza genérica d o h o m e m deve ser estuda-
da e m termos das paixões humanas; os objetos da paixão não constituem matéria
válida de estudo . Essa é a contraposição fundamental à filosofia m o r a l clássica e
6

cristã. A ética aristotélica inicia-se c o m os propósitos da ação e explora a o r d e m da


vida h u m a n a e m termos d o ordenamento de todas as ações c o m vistas a u m propó-
sito superior, o summum bonum; Hobbes, e m contraste, insiste e m que não existe
qualquer summum bonum, " t a l como se diz nos livros dos velhos filósofos m o r a i s " .
7

C o m a desaparição d o summum bonum, todavia, perde-se também a fonte d a o r d e m


na vida h u m a n a ; e não apenas na vida d o indivíduo, mas também na vida da socie-
dade, pois, como o leitor se recorda, a ordem da vida em comunidade depende da
homonoia, n o sentido aristotélico e cristão, isto é, da participação n o nous c o m u m .
Portanto, Hobbes confrontou-se c o m o p r o b l e m a de construir u m a o r d e m social
feita de indivíduos isolados, que não estão orientados e m direção a u m propósito
c o m u m , mas motivados apenas p o r suas paixões pessoais.
Os pormenores da construção são bem conhecidos, bastando r e l e m b r a r os
pontos principais. Para Hobbes, a felicidade humana é u m a progressão contínua
de u m objeto para o u t r o . O objeto d o desejo do h o m e m "não é ter prazer u m a

6. Thomas Hobbes, Leviathan (Blackwdl), Introdução, p. 6.


7. Ibid., Cap. X I , p. 63.
130 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

única vez e n u m único m o m e n t o , mas assegurar, para sempre, a realização dos de-
sejos f u t u r o s " . " P o r isso, e m p r i m e i r o lugar, coloco como inclinação geral de toda
8

a humanidade u m desejo perpétuo e incansável de obter o poder para alcançar


m a i o r poder, q u e só termina n a m o r t e " . U m a multidão de homens não é u m a co-
9

munidade, mas u m campo aberto de impulsos de poder e m competição uns c o m


os outros. Por conseguinte, o i m p u l s o o r i g i n a l de poder é agravado pela descon-
fiança d o competidor e pela ânsia de comprazer-se na superação de o u t r o h o m e m . 1 0

"Devemos supor que essa c o r r i d a não t e m o u t r o f i m , o u t r o prêmio, senão o de


chegar n a d i a n t e i r a " . E, nessa c o r r i d a , "ser continuamente ultrapassado é a infeli-
cidade. Superar continuamente o próximo é a felicidade. Abandonar a pista é m o r -
r e r " . A paixão agravada pela comparação é o o r g u l h o . E esse o r g u l h o p o d e
1 1 1 2

tomar várias formas, das quais a mais i m p o r t a n t e para a análise da política era,
segundo Hobbes, o orgulho de ter inspirações divinas o u , e m geral, de estar de
posse da verdade indubitável. T a l o r g u l h o e m excesso é l o u c u r a . "Se a l g u m h o -
13

m e m n u m manicômio mantiver com você u m a conversa sensata e, na saída, você


desejar saber quem ele é, a f i m de que e m o u t r a ocasião possa gozar de seu conví-
v i o ; e se ele lhe disser que é Deus, o Pai, creio que você nâo precisará confirmar sua
loucura p o r qualquer atitude extravagante" . Se essa loucura se torna violenta e
14

os possuidores d a inspiração tentam impô-la aos demais, o resultado para a socie-


dade será " o clamor sedicioso de u m a nação e m c r i s e " . 15

U m a vez que Hobbes não reconhece fontes de o r d e m na alma, a inspiração


só p o d e ser exorcizada p o r u m a paixão ainda mais forte que o o r g u l h o de u m
paracleto — o medo da morte. A m o r t e é o grande m a l ; e se a vida não puder ser
ordenada pela orientação d a a l m a e m direção ao summun bonum, a o r d e m terá de
ser motivada pelo medo d o summum malum . Do medo mútuo nasce a disposição
16

de submeter-se ao governo p o r meio de u m contrato. Q u a n d o as partes contratan-


tes concordam em ter u m governo, "conferem toda sua força e poder a u m h o m e m ,
o u assembléia de homens, capaz de reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade
das vozes, a u m a v o n t a d e " . 17

A perspicácia de Hobbes transparece perfeitamente e m sua compreensão de


que o simbolismo contratual p o r ele usado, de acordo c o m as convenções d o século
X V I I , não é a essência da matéria. A combinação de indivíduos n u m a comunidade
sob u m soberano pode-se expressar de f o r m a legal, mas essencialmente constitui
u m a transformação psicológica das pessoas que assim se c o m b i n a m . A concepção
hobbesiana d o processo pelo q u a l u m a sociedade política passa a existir está b e m
próxima d a idéia de Fortescue acerca da criação de u m novo corpus mysticum m e -
diante a erupção de u m povo. As partes contratantes não criam u m governo que os

8. Ibid.
9. Ibid., p. 64.
10. Ibid., Cap. X I I I , p. 81.
11. Thomas Hobbes, The Elements of Law, Natural and Politics, ed. Ferdinand Tõnnies (Cambridge, 1928),
Parte I, Cap. IX, Seção 21.
12. Thomas Hobbes, Leviathan, Cap. V I I I , p. 46.
13. Ibid., pp. 46-47.
14. Ibid., pp. 47-48.
15. Itnd., p. 47»
16. Thomas Hobbes, De homine, Cap. X I , Art. 6; De eive, Cap. I, Art. 7. Acerca do problema do medo da
morte como o summum malum, ver Leo Strauss, The PoliticalPhilosophy qf Hobbes (Oxford, 1934).
17. Thomas Hobbes, Leviathan, Cap. X V I I , p. 112.
O F I M DA M O D E R N I D A D E 131

represente como indivíduos em separado; n o ato da contratação» deixam de ser


pessoas autogovernadas e c o m b i n a m seus impulsos de p o d e r n u m a nova pessoa,
a comunidade; o p o r t a d o r dessa pessoa, seu representante, é o soberano.
Essa construção exigiu algumas distinções acerca d o significado d o t e r m o
"pessoa". " U m a pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer
c o m o dele próprio, quer c o m o representando as palavras e ações de o u t r o indiví-
d u o o u de qualquer o u t r a coisa." Q u a n d o se representa a si próprio, é u m a pessoa
n a t u r a l ; quando representa a o u t r e m , é chamado de pessoa artificial. O significado
de pessoa é referido ao persona d o latim e ao prosopon
d o grego, c o m o a face, a apa
rência externa o u máscara do ator em cena. " D e tal f o r m a que uma pessoa é o mes-
m o que u m ator, tanto no palco q u a n t o na conversação n o r m a l ; e impersonar é
representar, a si próprio o u a o u t r e m " . 1 8

Esse conceito de pessoa permite a Hobbes separar o m u n d o visível das pala-


vras e ações representativas d o m u n d o invisível dos processos da a l m a ; em con-
seqüência, as palavras e ações visíveis, que pertencerão sempre a u m ser h u m a n o
físico e definido, podem representar u m a unidade de processos psíquicos que de-
corre da interação das almas humanas tomadas individualmente. N a condição na-
tural, cada h o m e m tem sua própria pessoa, n o sentido- de que suas palavras e ações
representam o i m p u l s o de poder de suas paixões. N a condição civil, as unidades
humanas de paixão são rompidas e fundidas n u m a nova unidade chamada de co-
munidade. As ações dos seres humanos individuais cujas almas se c o m b i n a r a m não
p o d e m representar a nova pessoa; seu p o r t a d o r é o soberano. A criação dessa pes-
soa da comunidade, insiste Hobbes, é " m a i s d o que u m consentimento o u a c o r d o " ,
como o sugeriria a linguagem contratual. As pessoas humanas individuais deixam
de existir e se c o m b i n a m n u m a única pessoa representada pelo soberano. "Esse é
o processo de geração d o grande Leviatã, o u , p a r a falar de f o r m a mais respeitosa,
d o deus mortal ao q u a l devemos, sob o Deus imortal, nossa paz e defesa". Os homens
que participam d o contrato concordam " e m submeter suas vontades à vontade de-
le, e suas opiniões à opinião dele". A fusão das vontades constitui " a verdadeira
unidade de todos", pois o deus m o r t a l "dispõe de tanto poder e força que lhe
f o r a m conferidos que, pelo terror dessa capacidade, é capaz de f o r m a r a vontade de
todos c o m vistas à paz interna e à ajuda mútua contra os inimigos e x t e r n o s " . 19

O estilo da construção é grandioso. Se se presume que a natureza humana na-


da mais é d o que a existência apaixonada, desprovida dos recursos de ordenamento
da alma, o h o r r o r da aniquilação será, sem dúvida, a paixão m a i o r que força a
submissão à o r d e m . Se o o r g u l h o não pode curvar-se perante Dike o u ser r e d i m i d o
através da graça, deve ser subjugado pelo Leviatã, que " é o r e i de todos os filhos de
o r g u l h o " . Se as almas não p o d e m participar do Logos, então o soberano que ins-
2 0

p i r a terror nas almas será a "essência da c o m u n i d a d e " . O "Rei dos Orgulhosos"


21

deve esmagar o amor sui que não pode ser aliviado pelo amor Dei . 22

18. Ibid., Cap. X V I , pp. 105 e seguintes.


19. Ibid., Cap. X V I I , p. 112.
20. Ibid., Cap. X X V I I I , p. 209.
21. Ibid., Cap. X V I I , p. 112.
22. Ibid., Cap. X V I I I , p. 209.
132 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

JOAQUIM de Flora havia criado u m conjunto de símbolos que d o m i n o u a a u t o - i n -


terpretação dos movimentos políticos modernos em geral; Hobbes criou um con-
j u n t o comparável que expressou o componente de imanência radical na política
moderna.
O p r i m e i r o desses símbolos p o d e ser chamado a nova psicologia. Sua natureza
pode ser m e l h o r definida relacionando-a com a psicologia agostiniana da q u a l
deriva. Santo Agostinho fazia a distinção entre o amor sui e o amor Dei c o m o os cen-
tros volitivos organizacionais da alma. Hobbes descartou-se d o amor Dei e baseou-
se, para sua psicologia, exclusivamente n o amor sui, isto é na linguagem que empre-
g o u , a autopresunção o u o r g u l h o d o indivíduo. A o e l i m i n a r o amor Dei d a inter-
pretação da psique, consumou u m desenvolvimento que remonta pelo menos ao
século X I I . C o m o surgimento d o indivíduo dependente de si mesmo na cena
social, o novo tipo e sua busca d o êxito social além d o próprio status atraíram
bastante atenção. C o m efeito, J o h n de Salisbury o descreveu em seu Policraticus e m
termos b e m semelhantes ao.s de H o b b e s . N a esteira das grandes transformações
23

institucionais d o fim da Idade Média e da Reforma, o tipo tornou-se tão c o m u m


que passou a ser o tipo " n o r m a l " de h o m e m , tornando-se objeto de preocupação
geral. O t r a b a l h o psicológico de Hobbes e n c o n t r o u paralelo, e m seu próprio tem-
p o , na psicologia de Pascal, embora este último houvesse preservado a tradição
cristã e descrito o h o m e m guiado apenas p o r suas paixões c o m o aquele q u e se dei-
x o u v i t i m a r p o r u m o u o u t r o t i p o de libido. N a mesma época, c o m L a Rochefou-
cauld, iniciou-se o estudo psicológico d o h o m e m d o " m u n d o " , m o t i v a d o p o r seu
amour-propre (o amor sui agostiniano). As ramificações nacionais d a psicologia fran-
cesa dos moralistes e novelistas, a psicologia inglesa d o prazer-dor, associacionis-
mo e auto-interesse, os enriquecimentos alemães através da psicologia d o incons-
ciente dos românticos e da psicologia de Nietzsche — todos essas manifestações
atestam a a m p l i t u d e d o fenômeno. Desenvolveu-se u m a psicologia especificamente
" m o d e r n a " c o m o psicologia empírica d o h o m e m " m o d e r n o " , isto é, d o h o m e m
que está intelectual e espiritualmente desorientado e, p o r isso, motivado p r i n c i p a l -
mente p o r suas paixões. È útil introduzir as expressões psicologia da orientação e
psicologia da motivação para estabelecer a distinção entre a ciência d a psique sau-
dável,.no sentido platônico, e m que a o r d e m da alma é criada p o r u m a orientação

23. John of Salisbury, Policraticus: Sive De nugis curialium, et vestigüs philosophorum libri octò, editado por
Clement C. J . Webb (Oxford, 1909). As passagens seguintes foram extraídas da obra The Statesman's
Book of John of Salisbury, traduzida para o inglês, com uma Introdução de John Dickison (Nova York, 1927).
O homem, ignorante de seu próprio status e da obediência que deve a Deus, "aspira a um tipo fictício de
liberdade, imaginando em vão que pode viver sem medo e pode fazer impunemente o que lhe aprouver,
e não obstante, de alguma forma, chegar diretamente a Deus" (VIII, 17). " E m b o r a nem todos os ho-
mens detenham o poder do príncipe ou do rei, é raro.ou inexistente o homem inteiramente intocado
pela tirania. N a linguagem comum, tirano é aquele que oprime todo um povo pelo governo baseado
na força; e, no entanto, é não apenas para com todo um povo que um homem pode comportar-se como
um tirano, pois pode fazê-lo ainda que ocupe a mais modesta posição. Porque, ainda que não sobre
a totalidade do povo, cada homem exercerá seu domínio até onde chegar o poder que detém" (VII, 17).
Até mesmo a metáfora da corrida de Hobbes pode ser encontrada em John: " E assim todos participa-
rão da corrida e, quando atingida a linha de chegada, receberá o prêmio aquele dentre eles que se re-
velar mais rápido na corrida da ambição, ultrapassando Pedro ou qualquer dos discípulos de Cristo".
( V I I , 19).
O FIM DA MODERNIDADE 133

transcendental, e a ciência d a psique desorientada, que necessita ser ordenada


através de u m equilíbrio de motivações. Nesse sentido, a psicologia " m o d e r n a "
é incompleta n a m e d i d a e m que lida apenas c o m u m certo tipo pneumopatológico
de h o m e m .
O segundo símbolo refere-se à própria idéia d o h o m e m . U m a vez q u e o tipo
desorientado, p o r sua freqüência empírica, foi considerado o tipo " n o r m a l " , d e -
senvolveu-se u m a antropologia filosófica e m que a enfermidade foi interpretada
c o m o a " n a t u r e z a do h o m e m " . N ã o p o d e m o s a q u i nos aprofundar nesse p r o b l e -
m a , bastando sugerir a l i n h a q u e u n e o s existencialistas contemporâneos aos p r i -
meiros filósofos da existência n o século X V I I . A crítica que caberia fazer dessa f i -
losofia d a existência imanente j á foi feita, e m princípio, p o r Platão no Gorgias.
P o r fim, o terceiro símbolo é a criação especificamente hobbesiana d o Leviatã.
S u a significação é m a l compreendida hoje p o r q u e o símbolo foi sufocado pelo j a r -
gão d o absolutismo. O relato anterior deve ter tornado patente que o Leviatã é o
correlativo d a ordem à desordem dos ativistas gnósticos q u e se d e i x a m levar p o r
sua superbia a o extremo d a guerra civil. O Leviatã não p o d e ser identificado c o m
a forma histórica d a m o n a r q u i a absolutista, estando p o r isso amplamente justifi-
cada a desconfiança c o m que H o b b e s e r a encarado pelos monarquistas de seu
tempo. N e m p o d e o símbolo ser identificado c o m o totalitarismo e m seu próprio
nível simbólico de r e i n o final d a perfeição. Q u a n d o m u i t o , p r e n u n c i a u m c o m -
ponente do totalitarismo que o c u p a posição preeminente sempre que u m grupo de
ativistas gnósticos efetivamente conquista o monopólio d a representação existencial
n u m a sociedade histórica. O s gnósticos vitoriosos não p o d e m transfigurar a n a t u -
reza d o h o m e m n e m estabelecer u m paraíso terrestre; o q u e fazem, n a verdade, é
criar u m estado onipotente q u e e l i m i n a implacavelmente todas as fontes de resis-
tência e, antes de tudo, os próprios gnósticos incômodos. A j u l g a r pela experiên-
cia q u e temos dos impérios totalitários, seu traço característico é a eliminação d o
debate acerca d a verdade gnóstica que eles próprios declaram representar. O s n a -
cionais-socialistas s u p r i m i r a m o debate sobre a questão racial u m a vez chegados a o
p o d e r ; o governo soviético proíbe o debate e o desenvolvimento d o m a r x i s m o . O
principio hobbesiano de que a validade d a Escritura deriva d a sanção g o v e r n a m e n -
tal e d e q u e seu ensino público deve ser supervisionado pelo soberano é i m p l e m e n -
tado pelo governo soviético n a redução d o c o m u n i s m o à " l i n h a do P a r t i d o " . A
linha do partido pode m u d a r , mas a mudança de interpretação é determinada p e -
lo governo. O s intelectuais q u e a i n d a insistem e m ter opiniões próprias sobre o
significado dos textos alcorônicos são expurgados. A verdade gnóstica que foi
produzida livremente pelos pensadores gnósticos originais é agora canalizada sob
a forma d a verdade d a o r d e m pública n a existência imanente. P o r isso, o Leviatã é
o símbolo d o destino que realmente aguarda os ativistas gnósticos q u a n d o , e m seu
sonho, acreditam estar realizando o r e i n o d a liberdade.

O S Í M B O L O d o Leviatã foi concebido p o r u m pensador inglês e m resposta a o perigo


puritano. Entretanto, entre as principais sociedades políticas européias, a Inglater-
134 A N O V A CIÊNCIA DA POLÍTICA

ra m o s t r o u ser a mais resistente ao totalitarismo gnóstico. O mesmo deve ser d i t o


dos Estados Unidos, embora o país tenha sido fundado pelos próprios puritanos
que provocaram terror e m Hobbes. Impõe-se u m a palavra sobre tal questão à g u i -
sa de conclusão.
A explicação deve ser buscada n a dinâmica d o gnosticismo. O leitor se recor-
dará das repetidas advertências acerca d o fato de que a modernidade é u m t u m o r
na sociedade ocidental, em competição c o m a tradição mediterrânea; recordar-se-á
também q u e o próprio gnosticismo sofreu u m processo de radicalização, da i m a -
nentização medieval d o Espirito, que a b a n d o n o u Deus e m sua transcendência,
à posterior imanentização radical d o eschaton, tal c o m o encontrada e m Feuerbach
e M a r x . A corrosão da civilização ocidental através d o gnosticismo é u m processo
lento, que se estende p o r mais de m i l anos. As diversas sociedades políticas ociden-
tais têm u m a relação diferente c o m esse lento processo, dependendo da época e m
que ocorreu a revolução nacional de cada u m a delas. Q u a n d o a revolução ocorreu
cedo, seu p o r t a d o r f o i u m a onda menos radical de gnosticismo e a resistência das
forças da tradição f o i também mais efetiva. Nas revoluções ocorridas posterior-
mente, o p o r t a d o r f o i uma onda mais radical e o meio da tradição já estava p r o f u n -
damente corroído pelo avanço generalizado da modernidade. A Revolução Inglesa,
n o século X V I I , desenvolveu-se n u m m o m e n t o e m q u e o gnosticismo ainda não
sofrerá sua secularização radical. V i m o s c o m o os p u r i t a n o s da ala esquerda mostra-
vam-se ansiosos para se passar p o r cristãos, conquanto de u m a espécie particular-
mente p u r a . A o se alcançarem os ajustes de 1690, a Inglaterra preservara a cultura
institucional do parlamentarismo aristocrático e os costumes de u m a nação cristã,
então sancionados c o m o instituições nacionais. A Revolução Americana, embora
influenciada e m seus debates pela psicologia do i l u m i n i s m o , também teve a b o a
sorte de encerrar-se dentro do clima institucional e cristão do ancien regime. Já na
Revolução Francesa a onda radical era tão forte q u e cindiu permanentemente a
nação entre a metade laicista que se baseou na própria revolução e a metade c o n -
servadora que tentou, e ainda tenta, salvaguardar a tradição cristã. Por f i m , a Re-
volução Alemã, n u m m e i o desprovido de fortes tradições institucionais, pela p r i -
meira vez pôs inteiramente em j o g o o materialismo econômico, a biologia racista,
a psicologia c o r r u p t a , o cientificismo e a crueldade tecnológica — e m suma, a m o -
dernidade sem peias. Dessa f o r m a , a sociedade ocidental c o m o u m t o d o é u m a c i -
vilização profundamente estratificada, na q u a l as democracias inglesa e norte-ame-
ricana representam a camada mais antiga e mais firmemente consolidada da t r a d i -
ção civilizacional, enquanto a área alemã representa a camada mais m o d e r n a d o
p o n t o de vista progressivista.
Há u m a centelha de esperança nessa situação, pois as democracias norte-ame-
ricana e inglesa, em cujas instituições está mais solidamente representada a verdade
da alma, são, ao mesmo tempo, as potências mais fortes. Mas todos os nossos es-
forços serão necessários para transformar essa centelha n u m a chama, pela repres-
são da corrupção gnóstica e pela restauração das forças da civilização. Atualmente,
o desfecho é incerto.
ÍNDICE O N O M Á S T I C O

Agahd, R., 68 Bruck, Moeller van den; ver Moeller


Agostinho, Santo, 17, 42, 56, 68-70, van den Bruck
71-72, 82,86,91, 114, 132 Buda, 54
Alarico, 68 Bultmann, Rudolf, 96
Albright, W.F., 115 Buonaiuti, Ernesto, 87
Alembert, d', 93, 105 Burdach, Karl, 97
Alexander, Samuel, 31
Alexandre o Grande, 74 Caio Calígula, 77
Ambrósio, Santo, 70-71, 114 Calvino, John, 104,105,111
Antístenes, 68 Carlos Magno, 71
Apolinário, 89 Cassirer, Ernst, 22
Àristófanes, 62 Celso, 79, 82, 114
Aristóteles, 17, 19, 28, 33, 35, 37, 56- César, 74, 75, 76, 77
57, 60, 62, 65-66, 74, 80, 81, 91-92, Chaadaev, 90
105, 123, 126 Cícero, 72-74, 80-82
Ário, 82 Clemente de Alexandria, 67,68
Atanásio, 82 Cleópatra, 75
Augusto; ver Otávio Augusto Cochrane, C.N., 67
Aureliano, 78 Comte, 20, 22, 29-31, 67, 88, 95, 97,
Ausonius, 82 98,105
Averróis, 106, 107 Condorcet, 67, 88, 97
Confúcio, 54
Constantino IV, 82
Bakunin, M.A., 127 Constantino o Grande, 69, 78, 79, 81,
Balthasar, H.U. von, 92, 93 82
Behistun, inscrição de 51,
Bergson, Henri, 31, 54, 67, 115 Dante, 88,96
Berkhof, Hendrik, 69, 70, 79, 81, 82 Dariol, 51
Bettenson, Henry, 89 Dempf, Alois, 85, 87
Biondo, 101 Descartes, René, 126
Bochenski, I.M., 31 Dickinson,John, 132
Bodin,Jean, 18 Diderot, Denis, 93, 105
Boissier, Gaston, 69 Diocleciano, 78
Bossuet,J.B., 87 Dionísio Areopagita, 97, 105
Boulgakof, Serge, 67 Dostoievski, 89, 91
Brooks, E.W., 82 Dove, Alfred, 45
136 A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

Engels, Friedrich, 109 Jaspers, Karl, 54, 67, 99


Escoto Eriúgena, 97,105 Jesus, 85
Esquilo, 57,60-63
João, São, 86, 96, 103, 108
Eurípides, 62
Joaquim de Flora, 87-88, 91, 92, 96,
Eusébio, 81-82
105,132
John of Salisbury, 132
Fairfax, Lord, 109 Jonas, Hans, 95
Faye, Eugène de, 95 Jones, Rufus M., 96
Feuerbach, L. A., 96, 134 Junker, Hermann, 115
FichteJ.G., 88 Justiniano, 89
Filofei de Pskov, 89
Fílon, o Judeu, 80-81 Khomyakov, A.S., 91
Fortescue, Sir John, 41-44,46, 130 King, L.W., 51
Francisco, São, 88 Knollys, Hanserd, 108, 109

Gagarin, 90 Krumbacher, Karl, 82


Galério, 79 Kuyuk Khan, 51,52
Gelásio, 115
Genghis Khan, 52 Lactâncio, 68, 78, 79
Gierke, Otto von, 22 Lao-tsé, 54
Gilson, Êtienne, 67 La Rochefoucauld, François de, 132
Goguel, Maurice, 85 Laski, H.J., 126
Goodenough, E.R., 81 Lenin, Nikolai, 109,111
Graciano, 69 Licínio, 78, 79
Gregório de Nazianzo, 82 Lincoln, Abraham, 41
Grundmann, Herbert, 87 Lõwith, Karl, 87-88, 92, 96
Luís XI, 41
Hamilton, Mary Agnes, 89 Lubac, Henri de, 96, 99
Hartmann, Nicolai, 31
Hauriou, Maurice, 45-47 Magna Carta, 39, 40
Hegel, G.W.F., 88, 95 Mangu Khan, 52
HeJiogábalo, 78 Mannheim, Karl, 35
Henrique V I I I , 40 Maquiavel, Niccolò, 88, 123
Marco Antônio, 75-77
Heráclito, 33, 54, 56, 57, 59
Marco Aurélio, 31
Hesíodo, 73
Hitler, Adolf, 88,95 Marx, Karl, 30, 67, 88, 95, 96, 105,
109, 127,134
Hobbes, Thomas, 112-17,128-33
Maximiliano I, 90
Holder-Egger, O., 52
Maximiliano II, 90
Homero, 73,81
Maximino Daia, 78
Hooker, Richard, 102-07,123
Máximo, Imperador, 69
Husserl, Edmund, 22
Merezhkovski, Dmitri, 91
Miliukov, Paul, 89
Inocêncio IV, 51
Mill,JohnStuart, 126
Irineu, Santo, 96
Milton,John, 99
Isidoro, 44
Minúcio Félix, 68
Ivan o Grande, 89, 90
Moeller van den Bruck, Ernst, 89
Ivan o Terrível, 90-91
More, Sir Thomas, 93
Jackson, Robert H . (Juiz), 107 Napoleão, 90
Jaeger, Werner, 58, 59, 67, 68 Newton, Sir Isaac, 20
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Nicholas, Henry, 96 Schweitzer, Albert, 85


Nicolaul, 127 Sertillanges, A.D., 67
Niebuhr, H.R., 66 Símaco, 70
Nietzsche, F.W., 29, 67, 98, 99, 126, 132 Snell, Bruno, 58,61
Numa, 72 Sócrates, 55, 60, 62, 72, 73
Sõderberg, Hans, 95
Olsr,Joseph, 89 Sólon, 58
Ordem de Deus Mongol, 51-53, 70 Strauss, Leo, 130
Orígenes, 79,82
Otávio Augusto, 75-77, 81 Taubes, Jakob, 86, 87
Teodorol, 90
Parmênides, 57 Teodósio, 69, 71
Pascal, Blaise, 98, 132 Thompson, R.C., 51
Paulo, São, 57,96 Tomás, Santo, 28,43,94
Paulus Diaconus, 44^45 Toynbee, Arnold, 41, 46
Pecherin, 90 Travers, Walter, 106
Pedro o Grande, 90 Troeitsch, Ernst, 86, 93
Pelliot, Paul, 52 Tucídites, 62
Peterson, Erik, 80-82 Turgot, A.R.J., 88
Petrarca, 96
Pétrement, Simone, 95 Valente, 82
Platão, 17, 19, 22, 28, 34, 54-56, 57, Valentiniano I, 82
59-60, 62, 65, 67, 74, 81, 9.1, 92, 115, Valentiniano II, 69
116, 119, 123,133 Varro, 69, 72-73, 77, 114
Pompeu, 77 Vernadsky, George, 90
Premerstein, Anton von, 74 Vincent de Beauvais, 52
Protágoras, 58 Virgílio, 86
Vogt, Joseph, 79
Quételet, L.A.J., 21 Voltaire, 20,87

Rahner, Hugo, 89,90 Weber, Alfred, 62


Rômulo, 72 Weber, Max, 24-29
Russell, Bertrand, 31 Whitehead, A.N., 31
Wolf, Erik, 61
Sartre, Jean-Paul, 25 Wolfson, H.A., 74
Schaeder, Hildegard, 89
Schelling, F.WJ. von, 88, 95 Xenofane, 59
Schelting, A. von, 91
Schultze, Bernhard, 91 Zeller, Eduard, 68

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