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Ida Alves
Rodrigo Machado
Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Meta
Objetivos
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LIteratura Portuguesa II
Introdução:
o contexto sociocultural do século xx
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
que essa música está longe de ser uma afirmação do machismo, pelo con-
trário, é uma composição crítica sobre o quanto a atitude passiva, o com-
portamento que repete padrões herdados, a obediência calada a regras
impostas sem discussão não conduzem a uma mudança de realidade, de
vida. Transcrevemos algumas estrofes da canção que você poderá ouvir
com facilidade em algum CD do cantor ou na internet.
Mulheres de Atenas
Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos
Orgulho e raça de Atenas
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LIteratura Portuguesa II
(...)
Assim como essa letra de música que, por meio da figura de lingua-
gem chamada ironia, critica a postura não só das mulheres submissas
ao poder masculino, mas também de todos aqueles que aceitam ser sub-
jugados sem lutar por sua liberdade, de diferentes modos há também
na literatura portuguesa do século XX grandes autores que decidiram
desafiar a ordem reinante e mostrar aquilo que sentiam e desejavam, de
maneira mais aberta e clara.
Quanto à escrita feita por mulheres, sabe-se que poucas foram as que
tiveram seu nome estampado em capas de livros e publicações até o iní-
cio do século XX. A literatura parecia um espaço apenas de homens. À
mulher não era permitido pensar por si própria, muito menos expres-
sar seus desejos e opiniões publicamente. Ocorria com a maioria delas
casar-se, ter filhos e viver todo o tempo para eles, o marido, a família,
enfim. Aquelas que tinham algum comportamento diferente das demais
eram duramente criticadas, julgadas e humilhadas, ou, então, eram co-
locadas em conventos (na Idade Média e até o século XIX) para não
“pecarem” mais. Entretanto, no decorrer do século XX, com as modi-
ficações que as Grandes Guerras causaram no mundo ocidental, certas
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
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LIteratura Portuguesa II
Muitos desses escritores, que serão estudados agora, já são de seu co-
nhecimento, uma vez que nossa disciplina continua os estudos reali-
zados em Literatura Portuguesa I. Você, que vem trabalhando com os
eixos Amor, Subjetividade e Existência neste curso, verá agora formas
de amor silenciadas pela censura social, estatal e religiosa, mas que, a
partir dos anos 1960, virão à tona de maneira mais livre. A partir de en-
tão, a discussão mais ampla e mais contínua sobre o corpo, o erotismo e
a liberdade do desejo passará a ser uma realidade para muitos. Por isso,
o título desta aula é “o amor que não se podia dizer”, em que apresen-
taremos alguns exemplos literários importantes, em Portugal, no trata-
mento dessa temática.
Muito além de expressar os desejos sexuais, a literatura feminina e ho-
moerótica, produzida ao longo do século XX, traz para o centro das dis-
cussões possibilidades de vivência distintas das até então consideradas
“mais corretas”, fazendo com que todos vejam que há sim mulheres e
homens (hetero ou homossexuais) que buscam seu lugar, que lutam por
seus direitos, que fazem suas vozes ressoarem.
Desejamos, então, percorrer um conjunto pequeno, mas significativo,
de poemas e narrativas que expressam com arte os sentimentos e an-
seios daqueles que não se submetem a uma ordem castradora, que de-
sejam existir e amar livremente. Há uma canção de Caetano Veloso que
trata exatamente de um amor entre tantos outros possíveis, da liberdade
de amar. Vejamos alguns versos:
Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
[...]
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Atividade 1
A partir do que foi exposto até agora, explique o título motivador desta
aula “O amor que não se podia dizer”. Procure relacionar isso à realida-
de em que você vive.
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LIteratura Portuguesa II
Resposta Comentada
Releia atentamente a introdução de nossa aula e tente explicar, de ma-
neira clara, o que seria esse amor interdito, calado por muito tempo,
mas que, a partir de certo momento em que você pode identificar e a
partir de certas transformações sociais, ganhou mais espaço de expres-
são no mundo ocidental. Saia da aula para o mundo e repense o que
você já viu, leu, ouviu a respeito de perseguições, punições, humilhações
contra aqueles que são mais fracos socialmente. Na sua sociedade, pense
o lugar da mulher e das ideias homoeróticas. E no mundo, em geral,
compare Ocidente e Oriente: há liberdade mesmo de amar, sempre?
Palavra de mulher
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Conforme explica Ida Alves (2008), em artigo sobre uma poeta por-
tuguesa contemporânea, Ana Luísa Amaral, sobretudo a partir dos anos
1960, em Portugal, a produção poética feminina ganhou maior fôle-
go, com o aparecimento e consolidação de autoras como Fiama Hasse
Paes Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Ana Hatherly, por
exemplo. Nos anos 1980, Adília Lopes será outro nome de destaque,
assim como Ana Luísa Amaral nos anos 1990. Isso não significa que
anteriormente não havia outros grandes nomes femininos na lírica e
prosa portuguesas, como por exemplo Florbela Espanca, na década de
1930, Sophia de Mello Breyner Andresen, de quem já até falamos em
outra aula, as prosadoras Agustina Bessa Luís, Maria Velho da Costa, Lí-
dia Jorge, Maria Gabriela Llansol, entre outros nomes importantes, das
décadas de 1950 à atualidade. Mas foi especialmente a partir da referida
década que houve uma intensificação da produção feminina, fazendo
dessa época um fecundo momento de reivindicação da palavra, de ação
contra os tabus e cerceamentos morais, sociais e políticos.
Com tantos nomes femininos a considerar ao longo do século XX,
temos que fazer algum recorte para a extensão desta aula e tratamen-
to do nosso tema. Assim, escolhemos, por agora, apresentar somente
três nomes: Florbela Espanca, Maria Teresa Horta e Ana Luísa Amaral,
como três momentos da palavra de mulher nesse período.
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LIteratura Portuguesa II
Florbela Espanca:
“Eu quero amar, amar perdidamente!”
Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.
Observe como o sujeito lírico, que se assume mulher (“E eu, que era
neste mundo uma vencida,”), não tem vergonha de expressar a ânsia de
sua paixão e a força de sua entrega ao amante. Note como o ser amado é
figurado como “vitória”, “salvação”, “águia real” e como a poeta se utiliza
de uma determinada adjetivação para contrastar o antes e o depois do
amor vivido: “chama quente”, “versos de paixão”, “meu peito de descrente”,
“da noite negra o mágico farol”, “E eu, que era neste mundo uma vencida,”.
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Leia mais sobre Florbela e conheça mais poemas e seus contos em:
• http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
• http://www.escritas.org/pt/florbela-espanca
Conheça também a especialista brasileira na obra de Florbela Es-
panca, a professora Maria Lúcia Dal Farra, em artigo a respeito do
erotismo de Florbela. Acesse:
• http://www.scielo.br/pdf/cpa/n19/n19a05.pdf
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LIteratura Portuguesa II
Atividade 2
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Resposta Comentada
Explore ao máximo os termos escolhidos pela poeta para expressar sua
paixão. Descreva como o sujeito lírico se identifica e como se relaciona
com o ser amado. Mostre como o soneto se constrói para dizer uma
paixão sem limites, sem pudores (vergonha) de entregar-se ao amado.
Reflita um pouco sobre a ideia de que a poesia de Florbela Espanca ain-
da tem traços românticos, se compararmos com a poesia moderna de
Orpheu, que já estudamos.
Para além de seu trabalho literário, foi, por décadas, jornalista dedi-
cada também à questão do feminismo. Junto com Maria Isabel Barreno
e Maria Velho da Costa lançou, em 1972, o romance as Novas cartas
portuguesas, livro contestador, que provocou imenso impacto na época
de sua publicação, a ponto de serem levadas a julgamento acusadas de
fazerem uma obra que atentava contra a moral e os bons costumes.
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Joelho
Ponho um beijo
demorado
no topo do teu joelho
Desço-te a perna
arrastando
a saliva pelo meio
Onde a língua
segue o trilho
até onde vai o beijo
Não há nada
que disfarce
de ti aquilo que vejo
Em torno um mar
tão revolto
no cume o cimo do tempo
E os lençóis desalinhados
como se fosse
de vento
Deixando a boca
faminta
seguir o desejo nelas.
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LIteratura Portuguesa II
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Digo do corpo
o corpo
e do meu corpo
digo do corpo
o sítio e os lugares
de feltro os seios
de lâminas os dentes
de seda as coxas
o dorso em seus vagares
Lazeres do corpo
os ombros
as lisuras o colo alto
a boca retomada
Digo do corpo
o corpo
e do teu corpo
as ancas breves
ao gosto dos abraços
os olhos fundos
e as mãos ardentes
com que me prendes
em súbitos cansaços
Vícios de um corpo
o teu
com o seu veneno
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LIteratura Portuguesa II
Digo do corpo
o corpo
o nosso corpo
digo do corpo
o gozo
do que faço
Digo do corpo
o uso
dos meus dias
a alegria do corpo
sem disfarce
(HORTA, 2009, p. 400-401)
Atividade 3
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Resposta Comentada
Procure fazer um levantamento dos termos utilizados pela poeta. Após,
discuta a relação entre eles, defendendo um ponto de vista sobre liber-
dade, corpo e sexualidade. Pense qual relação esse poema pode ter com
toda a história literária de Maria Teresa Horta. Explique então essa es-
crita de afirmação da liberdade e da sexualidade femininas.
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LIteratura Portuguesa II
Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa. Despensa
Lugar de uma casa onde
As outras dividiam-se se guardam alimentos
para consumo ao longo
por sótãos, de um período; copa na
eu movo-me em despensa cozinha.
com presunto e arroz,
livros e detergentes.
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
A escrita (homo)erótica
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LIteratura Portuguesa II
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
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LIteratura Portuguesa II
Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia...
Atividade 4
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Resposta Comentada
Para responder a essa questão, você deve observar que a obra bottiana
não tinha intuito em si de criar uma discussão social ao redor da ho-
mossexualidade. Entretanto, ela faz com que algo visto como tabu, feito
às escondidas, seja revelado. Isso obriga a sociedade a reconhecer aquilo
que fingia não ver. Atente à relação de conquista que nele está presente,
de modo a envolver dois corpos desejantes numa atmosfera totalmente
propícia ao amor.
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LIteratura Portuguesa II
Você não achou curioso esse nome dividido assim? Trata-se do pseu-
dônimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, que nasceu em Coimbra,
em 1948. Foi escritor e artista plástico, tendo estudado pintura na École
Nationale Supérieure d’Architecture et des Arts Visuels (La Cambre), em
Bruxelas. Surgiu como poeta no momento em que as estruturas do regi-
me totalitário português estavam se desfazendo, numa atmosfera pautada
por novas experiências e demandas, que possibilitariam a Revolução dos
Cravos. Ele buscou em seus escritos transgredir aquilo que era interdito
até então, tanto social como historicamente. Para Emerson Inácio (2004),
em Al Berto o corpo é um sinal motivador da escrita. Corpo possuidor de
desejos, anseios e subjetividades. Um corpo dotado de memória, de his-
tória, que revela as experiências e vivências, estabelecendo um discurso
forte sobre o corpo homoerótico. Na poesia desse autor, o homoerotismo
é sua condição de vida, sendo um trajeto fundamental para a produção
literária. Vejamos a seguir o poema “Ofício de amar”:
Já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras
galáxias, e o remorso
Por que o sujeito lírico diz que “já não necessito de ti”? / “não, não
preciso mais de mim”. Leia e releia o poema para fazer a atividade a seguir.
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Atividade 5
Resposta Comentada
O próprio texto já assinala o corpo como elemento fundamental da
escrita de Al Berto. Separe os termos referentes ao corpo e os termos
referentes a experiências de espaços abertos, ilimitados. Pense como o
deserto é, no poema, uma imagem forte de liberdade, de possibilidades
outras desse corpo.
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Aula 20 • O amor que não se podia dizer
Conclusão
Atividade Final
Resposta Comentada
Guie-se pelo que dissemos sobre o poema. Aprofunde as ideias provo-
cadas. Centre sua atenção na linguagem de Nava, no modo como ele
trabalha a ideia de poesia e de amor, unidos pela imagem do mar. Des-
taque metáforas ligadas aos sentidos.
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LIteratura Portuguesa II
Resumo
Estudamos as formas de amor que não podiam ser ditas até o século
XX e apontamos vários fatores que contribuíram para que o amor fe-
minino, assim como o homossexual, fosse silenciado ao longo de vários
séculos. Dividimos a aula em dois blocos: o primeiro, no qual apresen-
tamos o dizer feminino, a liberdade de dizer, amar e desejar expressa na
obra de três autoras – Florbela Espanca, Maria Teresa Horta e Ana Luísa
Amaral; o segundo bloco diz respeito a três autores – António Botto, Al
Berto e Luís Miguel Nava – que cantaram em seus poemas o amor ho-
mossexual, os desejos, encontros e desencontros, a liberdade de corpos
e de vozes do amor.
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