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Descomposturas intelectuais

Jacques Derrida

especial para o "Le Monde" [Disponível também no francês original.]

Folha de São Paulo, 19 abril 1998

O "Le Monde" me pergunta qual comentário eu faria ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont
_"Imposturas Intelectuais"_, presumindo que nele eu sou menos atacado do que outros
pensadores. A minha resposta é: tudo isso é triste, não é mesmo? Primeiro, para o pobre Sokal. O
seu nome está associado a um conto do vigário ("the Sokal's hoax" _o embuste Sokal_, como se
diz nos Estados Unidos) e não a trabalhos científicos. Triste também porque a oportunidade de
uma reflexão séria parece desperdiçada, ao menos num espaço amplamente público, que merece
melhor destino.

Teria sido interessante estudar escrupulosamente as chamadas metáforas científicas, o seu papel,
o seu estatuto, os seus efeitos nos discursos incriminados. Não somente nos "franceses"! E não
somente nesses franceses. Isso exigiria que lêssemos seriamente, em sua estratégia e arranjo
teóricos, um sem-número de discursos difíceis. Isso não foi feito.

Quanto a meu modesto "caso", ele é ainda mais burlesco, para não dizer extravagante. No início
da impostura, nos Estados Unidos, depois do envio do embuste de Sokal para a revista "Social
Text", eu fui, a princípio, um dos alvos preferidos, em particular nos jornais (eu teria muito a dizer
sobre tal assunto). Pois era preciso, a todo custo, fazer o possível para desacreditar de imediato o
"crédito", julgado exorbitante e embaraçoso, de um professor estrangeiro. Ora, toda a operação
repousava, então, sobre algumas palavras de uma resposta improvisada num colóquio ocorrido há
mais de 30 anos, em 1966, no curso da qual eu retomava os termos de uma pergunta de Jean
Hyppolite. Nada mais, absolutamente nada! Além disso, a minha resposta não era facilmente
atacável.

Inúmeros cientistas chamaram a atenção para a farsa em publicações acessíveis nos Estados
Unidos, como Sokal e Bricmont parecem reconhecer hoje _e com que contorções!_ em seu livro
destinado ao público francês. Fosse aquela curta observação discutível _o que eu facilmente
aceitaria considerar_, ainda assim teria sido preciso demonstrá-la e discutir as suas consequências
em meu discurso. Isso não foi feito.

Eu sou sempre econômico e prudente no uso da referência científica, e mais de uma vez tratei
desse problema. Explicitamente. As várias passagens em que falo, de fato, e precisamente, sobre o
"indecidível" e mesmo sobre o teorema de Gõdel não foram localizadas nem visitadas pelos
censores. Tudo faz pensar que eles não leram o que era preciso ler para tomar pé das dificuldades.
Sem dúvida, eles não foram capazes. Em todo caso, não o fizeram.

Uma das falsificações que mais me surpreenderam foi dizer que, hoje, eles nunca tiveram nada
contra mim ("Libération", de 19/10/97: "Fleury e Limet nos reprovam um ataque injusto contra
Derrida. Ora, tal ataque inexiste"). Agora, eles me relacionam precipitadamente na lista dos
autores poupados ("Pensadores célebres como Althusser, Barthes, Derrida e Foucault encontram-
se essencialmente ausentes de nosso livro"). Ora, esse artigo do "Libération" traduz um artigo do
"Times Literary Supplement", no qual meu nome (e apenas ele) havia sido oportunamente
excluído da mesma lista. Aliás, é a única diferença entre as duas versões. Sokal e Bricmont
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acrescentaram o meu nome na França, no último momento, à lista dos filósofos honoráveis, a fim
de responder a objeções embaraçosas: tudo como manda o figurino do contexto e da tática! E do
oportunismo! Esses indivíduos não são sérios.

Quanto ao "relativismo" que, dizem, os inquietava _no rigoroso sentido filosófico da palavra_, não
há traço dele em minha obra. Nem de uma crítica da razão e das Luzes. Antes pelo contrário. O
que eu levo mais a sério, em contrapartida, é o contexto mais amplo _americano e político_, que
não posso abordar aqui, no interior desses limites; e, precisamente, os problemas teóricos foram
também pifiamente abordados.

Tais debates têm uma história complexa: bibliotecas de trabalhos epistemológicos! Antes de opor
os "eruditos" aos outros, eles dividem o próprio campo científico. E o do pensamento filosófico.
Embora por vezes me divirta, levo a sério os sintomas de uma campanha, ou mesmo de uma caça,
em que os cavaleiros mal treinados certas vezes têm dificuldades de identificar a presa. E, antes de
tudo, o próprio terreno.

Qual é o interesse daqueles que lançaram essa operação num certo mundo universitário e, muitas
vezes perto dele, em livros ou na imprensa? Um semanário publicou duas imagens minhas (foto e
caricatura) para ilustrar todo um "dossiê" em que meu nome não figurava uma única vez! Isto é
sério? É honesto? Quem tinha interesse em se precipitar sobre uma farsa, em vez de participar do
trabalho de que ela tristemente tomou o lugar? Iniciado há tempos, esse trabalho prosseguirá em
outro lugar e de outro modo _é o que espero_ com toda a dignidade: à altura do que se acha em
jogo.

Jacques Derrida é filósofo e diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Autor de
"Espectros de Marx" (Relume-Dumará) e "Gramatologia" (Perspectiva).

Tradução de José Marcos Macedo, corrigida por Alan Sokal.

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