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A pequena loja

A pequena loja chama-se assim por duas razões: primeiro, pelo seu tamanho pequeno,
depois, por causa do nome do proprietário, Huang Xiao, sendo que «xiao» significa «pequeno».
Ninguém se lembra do nome original da loja. Apesar de ficar próxima da estrada principal, a
pequena loja tinha as mesmas características de todas as lojas pequenas, ou seja, era mínima, tão
5 mínima, que passava despercebida. Havia nas proximidades árvores antigas com folhagem
escassa, tão serenas quanto a respiração quase imperceptível de um velho monge. À medida que
a economia da cidade começou a florescer e as suas artérias se encheram de mochileiros e de
excursões de turistas, muita da concorrência mudou de estratégia: uma gerência de tipo mais
comercial, fabrico simplificado, publicidade chamativa, processo de compra mais rápido e
10 diminuição da qualidade dos produtos. Huang Xiao permanecia fiel à maneira antiga e produzia
tudo de forma caseira: amassava, fazia o recheio, enchia a massa com o recheio e levava ao
forno. Insistia também em fazer somente produtos cozinhados e em gerir a sua loja como um
negócio independente. Como trabalhava sozinho, Huang Xiao brincava com isso e dizia muitas
vezes que travava uma batalha de um homem só. A pequena loja usava apenas os melhores
15 ingredientes e, para garantir a qualidade do produto, não vendia os seus artigos em mais lado
nenhum – Huang Xiao recusava-se a fornecer outras lojas (uma empresa onde só trabalha uma
pessoa tem, afinal de contas, as suas limitações).
Estes eram os seus princípios, que muito provavelmente jamais mudariam e que
constituíam também a principal razão pela qual a pequena loja estava condenada a afundar-se na
20 maré da modernidade. Seja como for, a pequena loja foi a única que conseguiu manter as portas
abertas ao longo de quatro gerações, apesar de já não se situar nas instalações originais.
Independentemente das contas que se façam, a história deste negócio tinha mais de cem anos –
foi fundado há muito tempo, durante o reinado de Guangxu, atraindo os seus primeiros clientes
por causa dos bolos feitos à maneira chinesa, premissa que lhe garantiu a fama. A investigação
25 não académica acredita que esta é a mais antiga pastelaria da cidade, podendo dizer-se que
testemunhou todos os altos e baixos por que foi passando Macau. As filas eram sempre longas no
Festival a meio do Outono, no Ano Novo e todas as vezes em que dizia no almanaque que aquele
era um dia auspicioso para casar uma filha. O processo de fabrico único fazia com que o aspecto
exterior fosse maravilhosamente cintilante, e o recheio era doce, embora não enjoativo; qualquer
30 pessoa que provasse ficaria inebriada com aquele perfume. Por si só, a banha poderia dar origem
a vários livros de sabedoria técnica. Hoje em dia, os porcos são alimentados com químicos, o que
faz com que a banha perca o aroma característico e com que, além disso, o nosso estômago se
encha de químicos não desejados. De modo a encontrar banha natural, Huang Xiao ia até ao
continente, para achar porcos que não tivessem sido adulterados, muitas vezes desentendendo-se
35 com os agricultores devido ao assunto da alimentação. Xiao era meticuloso, a sua comida era
deliciosa, mas independentemente de quão tradicional fosse o gosto da banha, a partir do
momento em que era usada na pastelaria representava um indício de má alimentação, pois a
gordura animal tornara-se indesejada. E, por isso, os dias da pequena loja estavam contados.
Huang Xiao sabia que já não era jovem e que já vivera a maior parte da sua vida, se não mesmo
40 mais do que isso. Tentava convencer o filho a tomar conta da loja. O filho recusava-se
terminantemente, e por isso pai e filho discutiam bastante. Não se tratava de o filho ser incapaz
de gerir a loja – pelo contrário, o seu desempenho seria perfeito! Tinha mãos habilidosas, que
poderiam ter sido feitas para esta profissão, e se a pastelaria fosse um tópico académico, ele seria
seguramente um investigador de topo, ou pelo menos muito bem cotado. Conhecia a loja desde
45 rapazinho – poder-se-ia até dizer que sabia quais os buracos onde havia ratos. Se o seu
argumento fosse o de que este modo de gerir a loja não tinha futuro ou o de que ele queria para si
uma vida mais confortável, aí o problema seria outro. Mas a sua desculpa era que a namorada
odiava bolos feitos à maneira chinesa – ficava nauseada com o cheiro e apenas se aproximava de
bolos feitos à ocidental. E, portanto, tinha sido esta miúda parva, de pele amarela mas com
50 coração branco, quem conquistara o seu filho. Huang Xiao ficou furibundo de raiva, com um
fogo inominável incendiando-lhe o rosto. Felizmente, ainda possuía algum autocontrolo, pois de
contrário tinha dado uma valente sova àquele imbecil. Contudo, se fora capaz de controlar o
ímpeto físico, não tinha meio de impedir as palavras de sarcasmo que lhe saíam boca fora:
- Foste criado com estes bolos tradicionais. Achas que alguma vez vais conseguir tirar
55 esse cheiro do teu corpo?
A resposta do filho também foi encrespada:
- Não há problema. Basta manter-me longe da loja no futuro.
E aí Huang Xiao pensou: «Acabou-se, esta loja acabou.» As palavras redemoinhavam-lhe
na cabeça como um robô preso num círculo. A partir de então, sempre que alguém elogiava o
60 filho por ser inteligente ou sensível, Huang Xiao sentia não apenas orgulho: achava também que
estavam a gozar com ele. Depois de várias outras discussões, o filho fartou-se e saiu de casa. De
igual modo, Huang Xiao desistiu do plano de deixar o negócio à responsabilidade do filho.
Ah, pensar que educamos uma criança e que depois descobrimos que criámos um lobo
cujo único pensamento é fugir para tão longe quanto possível. Provavelmente, já era demasiado
65 tarde para corrigir o erro em que o seu filho se tornara. Então e agora? Quem consegue
compreender a mentalidade desta juventude? «Que estranho... Ele passou a infância na loja, com
aquela cabra da mãe dele, ambos partilhando almoços de dim sum. Tal como eu passei a minha
infância na loja. Porque é que eu nunca fui invadido por estes pensamentos? Talvez porque na
minha época toda a gente era muito pobre, e portanto ficávamos felizes desde que houvesse o
70 suficiente para comer. Hoje em dia, aqueles que não fazem outra coisa senão comer são gozados
e apelidados de “baldes de arroz”.»
Neste instante, Huang Xiao recordou o sorriso do pai mesmo antes de morrer. Naquela
altura, pareceu-lhe haver algo estranho, mas agora compreendia – foi um sorriso de esperança e
de aceitação. O pai sabia que deixava um filho que lhe sucederia, e portanto estava cumprido o
75 seu dever para com a loja. Quando chegasse ao outro mundo, seria capaz de fazer um bom
relatório aos seus antepassados. Huang Xiao sentiu um arrepio diante deste pensamento. Tudo
acabaria na sua geração? Ruído nenhum, apenas a silenciosa certeza do fim.
A loja não andava com muito movimento, mas a luta para perseverar era profunda,
dolorosa. Com o seu instinto de poupança, Huang Xiao seria capaz de a manter aberta durante
80 algum tempo. Como se costuma dizer, a necessidade leva à mudança, e a mudança leva à
sobrevivência. Por falar nisso, talvez ainda houvesse uma hipótese de que tudo melhorasse, se
ele pensasse em todas as maneiras possíveis de desempenhar correctamente a tarefa mais
importante da sua vida. Houve qualquer coisa que se moveu no seu coração, qualquer coisa há
muito adormecida. Sim, o Velho Liu ajudá-lo-ia! O Velho Liu andava sempre muito ocupado e,
85 mesmo depois de se reformar, mantinha-se uma personalidade a ter em conta, o que talvez fosse
o destino natural de alguém que havia sido um produtor de televisão de topo. Com grande
dificuldade, Huang Xiao acabou por conseguir marcar uma reunião.
- Então, meu irmão, o que se passa?
Huang Xiao parecia sempre triste.
90 - Eu...
Huang Xiao pousou com relutância o seu tinteiro favorito diante do Velho Liu, que o
mirou antes de o aceitar com um gesto mecânico, sorrindo.
- Sim, fala, avança e pede-me seja o que for. Se nada disseres, vou-me embora.
- Gostaria de te perguntar se a pequena loja pode estar presente no programa do Macau
95 Gourmet – acabou por dizer, finalmente, Huang Xiao, diante daquele pedido.
Sem a mais pequena hesitação, o Velho Liu respondeu:
- Claro, sem problema nenhum. Até mesmo no meu casamento os doces vieram da tua
loja. E, apesar de mais tarde me ter divorciado, os doces estavam uma delícia. Pãezinhos com
recheio vermelho, pãezinhos com recheio branco, folhados de avelã, folhados de ovo centenário,
100 lembro-me de tudo. Era a personificação da alegria. Naquela altura, pensei que só podiam ser
feitos a partir de uma qualquer receita mágica! Claro que tenho todo o gosto em ajudar-te, mas tu
costumavas odiar a publicidade, não era? Porque mudaste de ideias?
- Quando remamos contra a maré, acabamos por seguir às arrecuas, em vez de seguir em
frente! Todos acabamos por ter de nos adaptar à realidade.
105 - Lá isso é verdade. Vê o Tim Mat Un e o Velho Chang Kee, estão a dominar o mercado.
Compram espaço publicitário, patrocinam séries de televisão, contratam estrelas para dançarem e
cantarem para eles, organizam sorteios da sorte. Tem tudo a ver com a aparência, porque os
doces deles são uma merda, são uns biscoitos de merda, servem apenas para enganar os turistas.
Qualquer pessoa com bom gosto saberia que os teus são os melhores.
110 Huang Xiao pensava que teria de implorar. Mas, apesar de lhe ter custado um pouco, a
conversa decorrera mais tranquilamente do que esperava. A publicidade televisiva transformou-
se, na cabeça de Huang Xiao, numa coisa positiva, e a sua paixão acabou por fluir neste sentido.
- Velho Liu, obrigado oferece o almoço.
Ficou tão agitado, que as duas frases de agradecimento que preparara se fundiram numa
115 só e a frase «Vou oferecer-te o almoço» saiu ao contrário. O Velho Liu não pareceu incomodado.
Provavelmente, isto não tinha importância nenhuma para ele – uma ou duas palavras no
momento certo e o assunto ficaria resolvido.
Aceitar um presente de alguém e depois ajudar essa pessoa a safar-se de uma desgraça
era um processo natural. Estava planeado que o programa iria para o ar dentro de um par de
120 meses; o apresentador seria o famoso gourmand Número Sete, aquele meloso cheio de lábia
capaz de fazer com que comida estragada parecesse fantástica. O que seria ele capaz de fazer
com comida verdadeiramente fantástica? Huang Xiao mal conseguia conter o entusiasmo perante
esta perspectiva, ainda que estivesse também entusiasmado com outras coisas, tal como a
incrível fama que ele próprio e a pequena loja haviam conquistado. A ideia de dar os primeiros
125 passos na direcção do merecido sucesso animava-o – apesar de ter sacrificado o seu tinteiro e de
o filho manter a frieza para com ele, a sua loja participaria agora da explosão turística que
engolia a cidade, conquistando cada vez mais clientes, uma multidão como deve ser, sim, e ele
enfatizaria que tudo era de fabrico caseiro, usando apenas ingredientes naturais, ajustaria alguns
dos seus métodos, e em breve toda a gente o conheceria e a pequena loja deixaria de estar abaixo
130 da linha de água, talvez fosse preciso contratar mais pessoas, abrir uma sucursal passados três ou
cinco anos, quem sabe até entrar na bolsa, se as coisas corressem bem. Nessa altura, se quisesse,
Huang Xiao poderia comprar dezenas de tinteiros. E então veremos se aquela rapariga danada se
atreve a dizer o que quer que seja acerca do sabor da pastelaria chinesa.
Huang Xiao limpou o interior da loja uma e outra vez, em silêncio, tarefa extenuante,
135 sobretudo por causa dos cantos e recantos. Mas mesmo assim os seus olhos esforçavam-se e ele
sorria, e percebia-se o quão profundamente Huang Xiao guardava certas coisas no seu coração.
Não se tratava apenas de limpar o pó, mas também de se deparar com objectos velhos que
atafulhavam a loja desde há anos, tal como um biombo dourado de madeira que tinha oitenta
anos, esculpido com uma «lua dragão-fénix de boa sorte» - enquanto lhe puxava o lustro, o
140 dragão e a fénix fulguravam, como se fossem realmente capazes de voar. Já para não falar das
caixas para presente à antiga, pintadas em vermelhão, com o nome da pequena loja escrito à mão
pelo seu pai. A memória de Huang Xiao foi neste momento assolada pela postura vertical do pai
empunhando o pincel, ainda que as suas mais fortes recordações fossem de si mesmo, travesso,
acrescentando uns toques em certos caracteres, e sendo castigado depois com uns açoites. Acima
145 de tudo, a pequena loja tinha acumulado ao longo dos anos muitas formas manchadas e
amolgadas, feitas à mão por grandes mestres, testemunhos das mudanças que o estabelecimento
sofrera ao longo de muitos e muitos anos. Huang Xiao faria um mostruário onde todas estas
coisas permaneceriam em exposição, e também penduraria nas paredes velhas fotografias. Os
clientes saberiam que a pequena loja crescera com eles. Tudo isto eram memórias da própria
150 Macau.
Quando a inspiração aparece, não é possível ignorá-la. O mostruário foi construído, as
fotografias, penduradas, mas ainda assim parecia faltar qualquer coisa. Huang Xiao aproveitou a
oportunidade para partilhar esta ideia com o filho.
- Filho, já percebi que há muita gente a passar aqui à porta nos últimos tempos, sobretudo
155 nas férias, quando aparecem os turistas, mas o problema é que as pessoas não reparam de todo na
loja. Devíamos colocar um letreiro enorme no segundo andar, e assim toda a gente que passasse
veria as palavras «Tradicionalmente feito à mão».
- Podemos fazer isso? – Perguntou abruptamente o filho.
Huang Xiao ficou espantado.
160 - Porque não?
O filho não disse palavra, limitando-se a abanar a cabeça. Mas isto significava
discordância ou aceitação tácita?
O pessoal da televisão apareceu, tal como o Número Sete. Huang Xiao não compreendia
porque é que havia tanto alarido em torno de bolos que sabiam a bolos. Claro que sabiam a
165 bolos, haviam de saber a ganso assado? Será que os padrões de exigência tinham descido tão
baixo, que bastava que os bolos soubessem a bolos? Estranho. Esta era de facto uma forma
esquisita de pensar, mas tais palavras batiam certo com a quantidade de fotografias que eram
tiradas à loja, já para não falar do poder da televisão (além do programa Macau Gourmet, a
própria Hong Kong TV transmitia uma série relacionada com pastelaria) -, ainda que Huang
170 Xiao continuasse a achar que eles deviam ter usado como slogan a sua ideia, «Tradicionalmente
feito à mão». Isso sim, seria mais eficaz. Mas as coisas estavam a correr bem, todos os dias mais
e mais pessoas apareciam na pequena loja. Podia mesmo dizer-se que havia um fluxo constante
de visitantes, e portanto este novo começo estava a ter um sucesso estrondoso. Era a primeira vez
que acontecia – mas será que era mesmo a primeira vez? Seja como for, no estabelecimento
175 havia agora um novo ambiente. Huang Xiao teria adorado definir este dia como o primeiro de
uma nova vida, já que a esperança que temera perder se instalara agora definitivamente.
Nos meses seguintes, tudo correu tranquilamente, à excepção de quatro coisas: em
primeiro lugar, a quantidade de autocarros de turistas estacionados selvaticamente naquela rua
pequena provocava um grande engarrafamento, e os vizinhos começaram a queixar-se cada vez
180 mais, para além de os preços da comida terem aumentado e de o lixo no chão ser um verdadeiro
problema. Mas o pior de tudo eram aquelas pessoas que vinham dizer que os seus bolos não
tinham qualidade. Um completo absurdo. Cada bolo carregava o seu sangue, o seu suor. Em
segundo lugar, a árvore velha diante da sua porta caíra finalmente, depois de ter sido incendiada,
provavelmente, de acordo com os bombeiros, por um turista ou um viajante que apagou o cigarro
185 num dos nós do tronco, o que fez com que a árvore pegasse fogo de dentro para fora. Mesmo não
havendo provas de que o culpado fosse um dos seus clientes, a quantidade de caixas de bolos
atafulhadas no chão, nas raízes daquela árvore centenária, parecia incriminatória. Em terceiro
lugar, Huang Xiao deixou de ter tempo para conversar com os clientes sobre isto ou aquilo. Por
fim, apesar de haver cada vez mais clientes, os jovens continuavam a não ter interesse no ramo, e
190 mesmo a malta mais velha preferia trabalhar nos casinos. A sua oferta de emprego estava afixada
há mais de dez dias, e nem sequer um interessado aparecera. Como se costuma dizer, duas mãos
nem sempre chegam, e havia centenas de clientes a estender a mão a Huang Xiao! E ele não
queria chegar ao meio-dia e ter de dizer às pessoas para voltarem no dia seguinte, mas mais cedo.
Nesse dia, depois de Huang Xiao aviar custosamente mais um bando de turistas, apareceu
195 um forasteiro.
- Posso ajudá-lo? Um bolo coração, um folhado de carne picada, um biscoito de galinha?
Huang Xiao estava no mesmo sítio de sempre, a fazer a conversa de sempre.
- O seu negócio corre bem, Sr. Huang.
- Oh, nem por isso. E você é...?
200 - Aqui tem o meu cartão.
O forasteiro estendeu-lhe um cartão.
- Ah, Sr. Lee, da Imobiliária Zhongyuan.
Huang Xiao pestanejou.
- Vou directo ao assunto. Uma certa cadeia de pastelaria pediu-me que viesse conversar
205 consigo. Gostariam de usar o seu estabelecimento para expandir a cadeia deles, e esperam que o
senhor seja suficientemente generoso para sair daqui e lho ceder. Evidentemente, esta empresa
oferece-lhe uma compensação acima do valor de mercado.
O sorriso no rosto do forasteiro era bastante forçado.
- Estão a pedir-me que saia daqui?
210 Huang Xiao fez os possíveis para se manter calmo, mas havia na sua voz um tremor que
não era capaz de controlar.
- Exactamente, caso seja do seu interesse. Outra hipótese é passar a fazer parte da cadeia
como franchisado, o que, acredito, abrirá as portas para expansão posterior.
A voz do forasteiro era tão segura, que metia medo.
215 - Saia! – gritou Huang Xiao.
O forasteiro não adiantou mais conversa. As suas breves palavras de despedida foram
gélidas como uma espessa camada de gelo.
- Muito bem. Caso mude de ideias, pode contactar-me em qualquer momento. O meu
número está no cartão. Mas o tempo é questão essencial! A minha empresa não se recusa a
220 encontrar outras vias para resolver o problema.
Questão essencial, pff... Isto é o que eles ouvem as pessoas dizerem. É assim que estes
tipos negoceiam, quase com uma declaração de guerra. As cadeias são como mosquitos
chupando sangue. Quando a loja estava vazia, depenada, nunca lá foram. Agora que o negócio
corria melhor, a nova clientela trazia-os às manadas. Mas Huang Xiao não seria parvo ao ponto
225 de deitar fora todos os progressos que fizera. Afinal de contas, ainda havia leis em Macau. De
que outras vias é que eles estavam a falar? O que poderiam fazer, se ele respondesse sempre que
não?
Alguns dias mais tarde, estava Huang Xiao de sobrolho franzido a ler uma folha de papel.
Não proferiu uma palavra ao longo de todo o dia. Tratava-se de uma carta do senhorio,
230 aumentando a renda para seis vezes mais. Ficou perplexo – nunca imaginara que a cadeia tivesse
influência suficiente para convencer os principais accionistas da América do Sul, do Canadá e
dos Estados Unidos (e provavelmente de outros países de que Xiao nunca ouvira falar) a
colocarem de lado as divergências, concordando em aumentar-lhe a renda. Compreendia agora
que ter um negócio é menos importante do que ter um cérebro, mas um cérebro é menos
235 importante do que um espaço comercial, e um espaço comercial é menos importante do que o
poder. «Será que vou ter mesmo de sair?» Perante a ideia de perder a sua loja, os seus bolos,
Huang Xiao era incapaz de evitar que o terror o invadisse. Quão assustado estava? Apenas o
próprio saberia.
Por vezes, a vida pode parecer-se com uma dessas doenças súbitas e inesperadas a que
240 rapidamente nos habituamos. Huang Xiao continuava a acreditar que a necessidade conduz à
mudança e que a mudança conduz à sobrevivência. A despesa do letreiro novo, as comissões que
tinha de dar sub-repticiamente aos guias turísticos para que levassem os grupos até lá, já para não
falar do aumento da renda, ainda não tinham levado a loja à falência. O que significava que o seu
destino não era afundar-se já e, estando as vendas a correr tão bem, de certeza que ele apenas
245 precisaria de produzir mais bolos para assegurar tudo. Por falar nisso, havia farinha suficiente no
armazém? Para não correr riscos, telefonaria a Wong Kee para fazer nova encomenda e
trabalharia até tarde nessa noite.
Nesse dia, depois de fechar a loja, Huang Xiao ficou no armazém, esticando-se de tal
maneira que lhe doíam os braços, porque os homens não foram feitos para estar nesta posição.
250 Mas não havia nada a fazer, estava sozinho, tendo por companhia a luz amarelada de um
candeeiro e várias baratas, nenhum dos quais sendo de qualquer utilidade. A farinha, o óleo e o
açúcar estavam empilhados todos juntos, parecendo um aterro. Agora, de volta ao banquinho...
Xiao colocou o pé no ar e falhou o passo. Houve um grande estrondo e depois um colapso, como
se um leão tivesse engolido tudo. As mãos de Huang Xiao foram ficando frias e leves como a
255 pena de um ganso. À medida que os seus pensamentos se emaranhavam, ele sussurrava: «Não
posso morrer, o que vai acontecer à loja se eu morrer?» Mas as portas fecharam-se, a luz
desapareceu e era só escuridão.
Por volta das dez da manhã do dia 1 de Abril, alguém se queixou do cheiro nauseabundo
proveniente da pequena loja. Os agentes da polícia isolaram o local com fita amarela, e depois
260 foram retirar o cadáver de Huang Xiao, enterrado debaixo de cerca de dez sacos de farinha.
Rapidamente descartaram a hipótese de acto criminoso. Huang Xiao permaneceu ali morto, sem
ninguém saber, pelo menos durante quinze dias, encontrando-se o corpo num avançado estado de
decomposição.
No exterior, as pessoas perguntavam-se se se trataria de uma piada do dia das mentiras.
265 Os académicos especialistas em cultura insistiam no simbolismo da imagem – um exemplo do
desaparecimento das nossas lojas antigas ou, pior ainda, do futuro do comércio tradicional.
Daí em diante, ao longo de muitos anos, os guias turísticos locais apresentariam aquele
sítio como uma pastelaria agora defunta, e depois contariam a sua história e a história de Huang
Xiao.
270 Independentemente do modo como fosse contada, esta lenda sempre teve um cunho
sentimental, mesmo soando como uma elegia. Mas uma elegia a quê?

In: Dois-Dará – Contos e outros escritos. Macau: Rota das Letras – Festival Literário de Macau; PraiaGrande
Edições, 2014. Vencedor da versão chinesa do Concurso de Contos do II Festival Literário de Macau – Rota das
Letras.
NB.: O texto não segue o novo Acordo Ortográfico (1990)

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