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AS

GU
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RA
SE
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IA
PA
RT
IC
IP
OU
ATLAS
10 páginas
de mapas
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 70 · ABRIL DE 2022

GUERRAS
NA EUROPA
Os conflitos
itos sangrentos
qu
u ditaram a história do continente
que e
imos 700 anos
nos últimos
SUMÁRIO

A Europa em armas

A
guerra é a continuação da política por outros meios. Habituámo-nos
a encarar esta mil vezes repetida frase do estratego prussiano Carl
von Clausewitz como uma daquelas ideias feitas que frequentemente
ouvimos expressar de forma mecânica. A verdade é que, de certo modo,

GETTY IMAGES
faltava-nos, no tempo das nossas vidas, a dramática comprovação de
uma sentença tão certeira. Agora, a invasão da Ucrânia pela Rússia
veio não só atualizar o pensamento de Clausewitz como transportar-nos para uma
realidade de que a Europa andou nas últimas décadas – felizmente – arredada,
mas que agora nos surge restituída com todo o seu cortejo de horrores. Com
efeito, ao longo dos séculos o estado de guerra entre os estados do Velho Conti-
nente foi quase uma constante, com as alianças a fazerem-se, a desfazerem-se,
a alterarem-se e a recomporem-se num ritmo frenético, ao sabor dos interesse
dinásticos, dos caprichos dos soberanos, das chamadas razões de Estado, das
ideias dos ministros e eminências pardas, dos ditames das chancelarias… Claro
que a guerra não era, até meados do século XX, tão perigosa como nos dias de
hoje, visto que os arsenais não infundiam o terror que hoje é seu apanágio, e cujo
zénite é a apocalíptica arma nuclear. Por isso se recorria mais a ela; por isso ela
era, verdadeiramente, a continuação da política por outros meios. Dedicamos
este número às guerras na Europa desde a Guerra dos Cem Anos para cá, ou seja,
desde quando começou a haver armas de fogo (os ainda rudimentares canhões)
Sérvia, abril de 1999 Em Aleksinac, depois do
e as nações – mais ou menos como as conhecemos – se deixaram arrastar para a bombardeamento da NATO. Em baixo, capa das edições
macabra pista de dança onde o bailado é o da morte. Contamos, como sempre, da VISÃO História sobre as duas guerras mundiais
com a colaboração de especialistas e publicamos mapas esclarecedores. e os seus efeitos em Portugal

Mapas da Europa Guerra dos Guerra Russo-Turca Guerra Russo-


Invasões Napoleónicas 4 Sete Anos O recuo Otomano 38 -Finlandesa
O primeiro conflito Quando o invadido
Antes da I Guerra 6 Guerras Balcânicas
mundial 24 resiste 58
Entre Guerras 8 Jovens Estados contra
Guerras o velho Império 40 II Guerra Mundial
Ocupação alemã 10
Napoleónicas Descida aos infernos 60
I Guerra Mundial
Pós-II Guerra 12 A construção Nas trincheiras O fim do III Reich 66
Na atualidade 13 de um império 26
dos nacionalismos 44
Guerra Fria 70
Guerra dos Cem Anos Guerra da Crimeia Participação
O Jogo dos Tronos 14 Unidos contra a Rússia 30 portuguesa 50 Guerras Jugoslavas
Grande limpeza étnica 74
Guerra dos Trinta Guerra da Unificação Guerra Civil Russa
Anos A consagração da Itália Vermelhos Guerra Sérvia-Kosovo
da França 20 Nasce um novo Estado 32 contra Brancos 52 Sob as bombas
da NATO 80
Guerra da Sucessão Guerra Franco-Alemã Guerra Civil
de Espanha Portugal A antecâmara de Espanha Convenções de Genebra
na dança das alianças 22 de um confronto 34 A ascensão do fascismo 54 As leis da guerra 82

Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação


Fotos da capa: Tropas inglesas na devastada vila de Rees, Alemanha, março de 1945, AFP/Getty Images. Napoleão e Adolf Hitler, Getty Images.

VISÃO H I S T Ó R I A 3
EUROPA // ATLAS

Napoleão concentra um exército Derrota definitiva


para invadir a Inglaterra, mas a falta
1792-1815 de Marinha impede-o de o fazer
de Napoleão, 18/6/1815

O continente Napoleão é vencido pelos


prussianos (março de 1814) e tem
de partir para o exílio em Elba
DO
MAR
NORTE

em chamas R
E

Dublin
I
N
O
A Revolução Francesa inflamou a Europa, dando
U
origem a sucessivas alianças de Estados contra o novo N
I
poder instalado em Paris. Quando Napoleão Bonaparte D O

entra em cena, a França “desforra-se” dilatando as suas Londres


fronteiras muito para além dos seus limites de 1792 Boulogne-sur-Mer
Bruxelas

Waterloo
Império francês
Paris Laon
Estados-satélite da França A Inglaterra vê em Portugal Em 30/11/1808, Napoleão vem
o terreno propício para começar à Península para derrotar
Estados inimigos da França a derrotar Napoleão Montereau
pessoalmente os espanhóis num
Principais movimentações desfiladeiro a norte de Madrid IMPÉRIO
dos exércitos napoleónicos Desembarque inglês na Corunha
Algumas movimentações França vence FRANCÊS
do exército e da marinha britânicos Soult invade Portugal Áustria (14/6/1800)
Principais batalhas terrestres (março de 1809) Corunha Bordéus
Principais batalhas navais Massena invade Portugal
em julho de 1810 Baiona Toulouse
Vitória
A maior batalha destas Porto Rossilhão
guerras em Portugal (27/9/1810)
Buçaco Somosierra
A Marinha Britânica Os ingleses desembarcam Saragoça
domina os mares em Lavos (1/8/1808) Roliça Barcelona
Vimeiro Madrid
Lisboa
AL

Vitórias anglo-lusas sobre


A
TUG

OCEANO os franceses (agosto de 1808) NH


PA
ES
POR

ATLÂNTICO Junot invade Portugal Baleares


em novembro de 1807 (Espanha)
Bailén
Com José Bonaparte no trono,
R R Â N E O
a Espanha é aliada da França antes Trafalgar I T E
da reviravolta de maio de 1808 Gibraltar MAR M E D
(Reino ARGEL
Unido)
Madeira (Portugal)
MARROCOS
Os ingleses ocupam A grande vitória naval inglesa
a Madeira em 1801-02 de Trafalgar (21/10/1805) Termo da
e em 1807-08 deixa a França praticamente contraofensiva
sem marinha de guerra anglo-lusa, em 1814

Canárias A Espanha, aliada da França, Um exército espanhol Entre junho de 1808 Portugal, ao lado
(Espanha) invade Portugal em maio inflinge a primeira e fevereiro de 1809 da Espanha, participa
de 1801 (Guerra das Laranjas) derrota aos exércitos Saragoça resiste na invasão do
napoleónicos (19/7/1808) ao cerco francês Rossilhão em 1793-95
INFOGRAFIA Luís Almeida Martins / Álvaro Rosendo / VISÃO
I M P É R I O R U S S O

Os ingleses atacam Copenhaga (1807) Helsínquia


para que a esquadra dinamarquesa São Petersburgo
não caia nas mãos da França Em 7/9/1812, na maior e mais sangrenta batalha
das Guerras Napoleónicas, os franceses vencem
Oslo Estocolmo os russos. A totalidade dos mortos ronda os 100 mil
Talin
NORUEGA A cidade de Smolensk
rende-se ao exército Moscovo O exército francês atinge Moscovo

I C O
napoleónico (24/7/1812) mas encontra a cidade incendiada
Borodino
pelos próprios russos (1812)

L T
Riga
SUÉCIA Smolensk Na retirada, morrem 550 mil franceses
e apenas sobrevivem 10 mil, mostrando

Á
que Napoleão não é invencível

B
Vilnius
Copenhaga R Eylau Os russos atacam os franceses quando
DINAMARCA A Passagem estes atravessam o rio gelado, morrendo
M Minsk da Berezina congelados 36 000 invasores (26/11/1812)
Friedland
Lubeck PRÚSSIA RUSSO
I O Napoleão vence
ÉR
IMP os russos em 14/6/1807
IMPÉRIO GRÃO-DUCADO 1 · A França vence a Áustria e a Rússia,
Berlim
FRANCÊS em 2/5/1813
3 Leipzig DE Varsóvia 1 · A maior vitória napoleónica é obtida
2 · Napoleão vence a Rússia, a Áustria
VARSÓVIA e a Prússia, em agosto de 1813 em 2/12/1805, sobre a Áustria e a Rússia
1 Lutzen 2 · Em maio de 1809, o exército napoleónico
3 · Uma coligação Rússia-Áustria-
CO 2 Dresden A França derrota -Prússia-Suécia derrota a França, sofre a primeira grande derrota
NF
D O E D E Jena a Prússia (14/10/1806) em outubro de 1813 face à Áustria
RE RA Praga 3 · Napoleão vinga-se da derrota de Essling
NO ÇÃ 1 Austerlitz e vence os austríacos (6/7/1809)
O
3 Wagram
Munique
Viena
2 Essling I M P É R I O
Odessa
Ulm Bratislava A U S T R Í A C O
Buda Peste
REPÚBLICA Em outubro de 1805, Sebastopol
HELVÉTICA um exército austríaco
Lodi Rivoli rende-se aos franceses M A R N E G R O
Bucareste
IM ANC
FR

Arcole
PÉ ÊS
RI

Belgrado
O

Marengo I
REINO D
EI Bonaparte esmaga M

Nice os austríacos na P Sófia
IM RA

É A esquadra inglesa vence


LI
F
PÉ NC

Campanha de Itália
R
A

a França em agosto de 1798


R ÊS

de 1796-97
IO

Corsega I Istambul
Elba Ilha de Elba O
Ajaccio Roma Ingleses desembarcam
DE RE
Primeiro exílio e vencem os franceses
NÁ IN de Napoleão, (8/3/1801)
PO O

I M P
LE
em 1814-15 O
Nápoles S T
O Bonaparte é
REINO M
Ajaccio A derrotado pelos

É R I O
DA
Corfu Esmirna N O Otomanos (março
SARDENHA Terra natal
de Napoleão Atenas a maio de 1799)

REINO
DA SICÍLIA
O T O M

R Chipre
M A (Imp. Otomano)

MALTA O Acre
E
 N
TUNES R
A N O

E R
I T
Napoleão derrota os napolitanos A esquadra russa E D
e coloca o seu irmão José vence a francesa (1799) M
Abukir
no trono das Duas Sicílias (1806)
CIRE N Alexandria
AICA EGITO
Napoleão evade-se Os franceses derrotam Cairo
TR

de Elba e regressa os Mamelucos otomanos (1798)


Batalha das Pirâmides
IP

à França, em 1815 O
L Os franceses sobem o Nilo e sábios
IT
AN estudam e revelam ao mundo
A M A N O
O T O
Rio N

a civilização do Antigo Egito


I M P É R I O
ilo
EUROPA // ATLAS

Noruega
1914 Os ingleses receiam
uma invasão alemã,
Scapa Flow
é uma grande
(neutral)

vaticinada base naval

A I Guerra por jornalistas


e romancistas
britânica

Batalha

Mundial REINO UNIDO


MAR
DO NORTE
da Jutlândia
Dinamarca
(neutral)
Suécia
(neutral)

As rivalidades e tensões existentes na


Europa no verão de 1914 conduzirão 975 000
ao primeiro conflito mundial.
Nenhum dos países na altura envolvidos Holanda
(neutral)
previa que a guerra pudesse durar
mais de quatro anos e fazer BÉLGICA
20 milhões de mortos Royal Navy
117 000 IMPÉRIO
ALEMÃO
FRENTE 4 500 000
OCIDENTAL
3 880 000 CHECOS
Os franceses desejam
recuperar a Alsácia
e a Lorena anexadas
pela Alemanha em 1871
Os EUA Suíça ITALIANOS
(neutral)
juntar-se-ão aos Aliados ESLOVENOS
em abril de 1917 FRANÇA FRENTE
4 017 000 ITALIANA CROATAS

Portugal só entrará
na guerra em 1916,
ao lado dos Aliados PORTUGAL
Espanha
55 000 (neutral)

Royal Navy

OCEANO
ITÁLIA
ATLÂNTICO MAR MEDITERRÂNEO 1 251 000
Gibraltar é uma
poderosa base Royal Navy
naval britânica Marrocos
Espanhol

Aliada da Alemanha antes da guerra,


a Itália muda de campo no início
das hostilidades. Deseja conquistar
IMPÉRIO território à Áustria, expandir-se
para a Dalmácia e controlar o Adriático Malta é uma forte
FRANCÊS base naval britânica

Rio do Ouro
(Espanha)

Líbia
(conquistada aos IMPÉRIO
turcos em 1912)
25 436 000
Número de homens
IMPÉRIO RUSSO mobilizados durante o conflito
Os alemães sonham (não se incluem as tropas
expandir-se para leste 5 971 000 recrutadas nas colónias)
à custa da Rússia
MAR Locais onde, até 1918,
haverá batalhas importantes
BÁLTICO
Aliados
Impérios Centrais
FRE
NTE

As minorias no interior
do Império Austro-Húngaro
ORI

lutam pela independência


ENT

ou pela autonomia
AL

POLACOS A Rússia quer proteger


os eslavos do Sul contra
ESLOVACOS o domínio austríaco
IMPÉRIO
AUSTRO-HÚNGARO
3 000 000 UCRANIANOS
MAR
CÁSPIO
ROMENOS
ROMÉNIA
FRENTE SÉRVIOS
SÉRVIA 700 000
A Sérvia quer uma saída MAR
para o mar e liderar
os eslavos do Sul contra NEGRO
200 000 a pressão austríaca
SÉRVIA BULGÁRIA
MONTENEGRO

50 000 280 000

FRENTE DOS DARDANELOS

IMPÉRIO OTOMANO
GRÉCIA A Bulgária
210 000
ambiciona
230 000 a Macedónia

FRENTE
DA MESOPOTÂMIA
O Dodecaneso
pertence à Itália Chipre
(controlado
pelos ingleses)
M A R M E D I T E R R Â N E O
FRENTE Arábia
DA PALESTINA
Egito INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO

(controlado
ITALIANO pelos ingleses)
ISLÂNDIA
EUROPA
TEMA // ATLAS
// CABEÇA (independente
da Dinamarca desde 1918)

1925

As novas
fronteiras
NORUEGA

Após a I Guerra Mundial, os tratados MAR


de paz consagraram a dissolução DO NORTE
dos Impérios Centrais e o surgimento
REINO DINAMARCA
de novos estados IRLANDA
Dublin UNIDO
1 000 000 Devolvido
à Dinamarca
Militares mortos
NÚMERO durante o conflito
HOLANDA
Proclamada unilateralmente Londres Amesterdão
em 1916, seria reconhecida
pela Inglaterra em 1922,
como Estado Livre da Irlanda MANCHA Bruxelas
BÉLGICA
Paris 13 700
LUXEMBURGO
Alsácia e Lorena
foram restituídas pela
Alemanha em 1919

FRANÇA
OCEANO Berna
1 400 000 SUÍÇA
ATLÂNTICO
650 000

ITÁ
PORTUGAL

LIA
7 000
Madrid ANDORRA
MAR
Lisboa
TIRRENO
ESPANHA

Madeira
(Portugal)
Tânger é declarada MAR
zona internacional Tânger
Gibraltar (Reino Unido) MEDITERRÂNEO
em 1923
Marrocos Espanhol

MARROCOS ARGÉLIA TUNÍSIA


Canárias
(Espanha)

IMPÉRIOFRANCÊS

Rio do Ouro
(Espanha)
8 VISÃO H I S T Ó R I A
LÍBIA
Independente do Império Russo,
torna-se uma república em 1919
UNIÃODASREPÚBLICAS
SOCIALISTASSOVIÉTICAS
SUÉCIA FINLÂNDIA
URSS
Zona independente
reivindicada pela Criada em 1922 após a guerra
Oslo Helsínquia Leninegrado (novo nome civil que se seguiu à Revolução
Alemanha
de São Petersburgo/Petrogrado; de Outubro de 1917
Tálin hoje é novamente São Petersburgo)
CO

ESTÓNIA Os países bálticos, separados do Império Russo 1 700 000


LTI

depois da I Guerra Mundial serão integrados na URSS


em 1940 e só recuperarão a independência em 1992
Estocolmo LETÓNIA

Riga Moscovo (Passa de novo a ser a capital russa)

LITUÂNIA
R

Copenhaga A
M Vílnia
Prússia Oriental isolada Toda a zona oriental da Polónia foi
Dantzig A do resto da Alemanha conquistada na guerra sovieto-polaca
ANH de 1920-1921
EM
AL
1 800 000 Instituída sobre as ruinas
do Império Otomano, é obra
Corredor Varsóvia Fundada em 1919 durará
de Mustafá Kamal Ataturk.
Berlim polaco até 1938 e, depois do
As suas fronteiras são definidas
retalhamento nazi, até 1992
ALEMANHA POLÓNIA pelo Tratado de Lausanne, em 1923,
(Recupera a independência após uma guerra com a Grécia
da Rússia, em 1918) Confinada, em 1919,
Praga aos seus territórios
CHEC germânicos
OSLO
VÁQU
IA Reduzida, em 1918,
Viena aos seus territórios
magiares
BE

ÁUSTRIA
SS

Budapeste IA MAR
AR

Romena desde 1918,


1 200 000 HUNGRIA ÂN CÁSPIO
ÁB

S ILV passará para a URSS


IA

AN em 1947 e hoje é a
TR ROMÉNIA Moldávia independente
335 000
Bucareste Passa do controlo
Belgrado húngaro para o romeno, MAR
NEGRO
M

JUGOSLÁVIA em 1918
A
R

BULGÁRIA
45 000
A
D

87 500
R

Sófia

Roma
T

ALBÂNIA
IC
O

Istambul (deixa de ser capital)


380 000 PÉRSIA
Ancara
(nova capital) (Irão)

MAR
GRÉCIA
EGEU REPÚBLICATURCA
5 000
Atenas
MANDATO ME
FRANCÊS SO
PO
MALTA TÂ
SÍRIA MIA
(Reino Unido) (Ira
Dodecaneso será que
MANDATO BRITÂNICO )
italiano até 1947,
Criada em 1919 com o nome de Reino ano em que passará CHIPRE
(Reino Unido) LÍBANO
dos Sérvios e dos Croatas e reunindo para a Grécia
os povos eslavos do Sul, sobreviverá
unida até 1941 e de novo de 1945 a 1991 500 km
A

MAR
STIN

MEDITERRÂNEO INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO


PALE

IA

VISÃO H I S T Ó R I A
RD S-

9
IMPÉRIOITALIANO EGITO
ÂN

ARÁBIA
JO RAN
T
ISLÂNDIA

EUROPA // ATLAS
(Ocupada pelos Aliados)

1942
Batalha de Inglaterra (1940)

A II Guerra Depois da queda da França, a Alemanha


tenta fazer vergar a Inglaterra por meio
de ataques aéreos, mas a Real Força
Aérea britânica (RAF) leva a melhor

Mundial
sobre a Luwaffe (Força Aérea alemã)

Dia D (6/06/1944)
O desembarque dos
A Alemanha (III Reich) ocupou a maior parte Aliados na Normandia MAR
dá início à reconquista
do continente europeu. O Reino Unido bateu-se da Europa ocupada
DO NORTE

sozinho contra os alemães, até à entrada dos Dublin


REINO
Estados Unidos no conflito, que, em conjunto IRLANDA UNIDO
com a contra-ofensiva soviética a leste, ditará
HOLANDA
o fim dos sonhos de grandeza de Hitler Londres Amesterdão

MANCHA BÉLGICA
Os EUA juntam-se aos Aliados em 1941 Bruxelas
Batalha das Ardenas
No inverno de 1944-1945, regista-se
a última grande contra-ofensiva alemã Paris LUX.
FRANÇA
Açores (Ocupada pela Alemanha em 1940)
(Portugal) Estado francês (1940-1944)
Governado pelo marechal
Pétain, é um satélite da
Alemanha de Hitler. O governo Berna
está instalado em Vichy SUÍÇA
Essenciais para o controlo do Atlântico, os ESTADO
Açores são cobiçados por ambas as partes, FRANCÊS França
mas Salazar acabará por ceder ali bases (Vichy)
ocupada
aos ingleses e aos americanos, em 1943 pelo Exército
italiano
ESPANHA
L
UGA

Madrid ANDORRA MAR


RT

Lisboa
TIRRENO
PO

Batalha do Atlântico (1939-1945)


Os recontros navais entre submarinos alemães
e unidades de guerra aliadas escoltando comboios Operação Félix (1941)
de navios mercantes fazem 60 mil mortos Hitler pensa invadir
a Península Ibérica para
A RAF e a Luwaffe atacar Gibraltar por terra
travam combates aéreos
Madeira no sul de Portugal
(Portugal) Tânger MAR
Gibraltar (Reino Unido)
MEDITERRÂNEO
OCEANO Marrocos Espanhol
Operação Torch (1942)
ATLÂNTICO Os anglo-americanos
desembarcam no norte África CASABLANCA
ARGÉLIA
para atacarem Itália TUNÍSIA
Canárias Invasão da Itália (1943)
(Espanha) MARROCOS Após a Operação Torch,
os Aliados desembarcam
na Sicília e na península
Países Países do Eixo, seus satélites IMPÉRIO italiana
Aliados e territórios ocupados
FRANCÊS
Forças Forças Máxima expansão (Dependente Guerra do Deserto (1940-1943)
Aliadas do Eixo alemã da França de Vichy) Os ingleses começam por vencer
as forças italianas no norte de África,
Grandes Batalhas Conferências aliadas encontram depois dificuldades face
ao Afrikakorps de Rommel, mas
Principais campos de concentração e de extermínio nazis acabam por triunfar em El Alamein
e empurram os alemães para a Tunísia
Rio do Ouro
(Espanha)
Em abril de 1940
falham desembarques
Aliados na Noruega UNIÃODASREPÚBLICAS
SOCIALISTASSOVIÉTICAS
Mais de meio milhão URSS
de civis alemães morrem FINLÂNDIA
nos bombardeamentos Guerra Russo-Finlandesa (1939-40)
Aliados durante a guerra Após algumas dificuldades, Campanha da Rússia (1941-1945)
a URSS derrota a Finlândia Os alemães invadem em força
a URSS, obtêm êxitos iniciais
Os alemães nunca conseguem mas acabam por ceder face aos
NORUEGA SUÉCIA tomar Moscovo nem Leninegrado múltiplos recursos soviéticos
Leninegrado
Oslo Helsínquia Os bombardeiros alemães em voo Em 1939, a Polónia é partilhada
picado Stuka espalham o terror pela Alemanha e pela URSS, antes
Tálin entre as populações civis durante
L T IC O

de Hitler decidir atacar a própria


ESTÓNIA a campanha da Polónia aliada, em 1941, cavando assim
a sua própria sepultura
MAR BÁ

Anexadas
Estocolmo pela URSS
LETÓNIA Em 1943 a URSS obtém uma
em 1940 Moscovo
Riga grande vitória estratégica
DINAMARCA na Batalha de Kursk, o maior
LITUÂNIA Alguns portugueses
Copenhaga O ferro da Suécia combatem na frente choque de blindados de sempre
neutral segue Vílnia leste integrados
para a Alemanha na Divisão Azul
espanhola De julho de 1942 a março de 1943
Dantzig trava-se a Batalha de Estalinegrado,
vencida pelos russos, que marca
RAVENSBRÜCK uma reviravolta na guerra
Berlim KURSK
III REICH ALEMÃO Varsóvia
(3.º Império Alemão)
BUCHENWALD ESTALINEGRADO
POLÓNIA A Polónia detém
THERESIENSTADT
Praga em 1939 um território
AUSCHWITZ maior do que o atual
BOÉMIA/MORÁVIA
UCRÂNIA MAR
ESLOVÁQUIA Rostov
DACHAU CÁSPIO
Viena
MAUTHAUSEN HUNGRIA
Os alemães tentam alcançar
ÁUSTRIA Budapeste os poços de petróleo de Baku
Krasnodar

Zagreb
ROMÉNIA IALTA Tbilissi
As fronteiras
DA

CROÁCIA Bucareste MAR Baku


L

Belgrado dos estados


M
M

ÁC

da Europa Central NEGRO


A

I
R

e Oriental, satélites
I TÁ L I A SÉRVIA
Sófia
da Alemanha, são
redesenhadas
A

por Hitler
D

Roma
R

BULGÁRIA
T
IC

ALBÂNIA Istambul
O

MONTE Campanha do Iraque (1941)


CASSINO I TÁ L I A Após um golpe pró-alemão TEERÃO
Ancara
em Bagdade, os ingleses invadem
o país e retomam a sua influência PÉRSIA
Em 1940 MAR TURQUIA (Irão)
a Itália GRÉCIA EGEU
anexa
a Dalmácia
e a Albânia Atenas
MANDATO FRANCÊS
(Vichy)
SÍRIA IRAQUE
Malta (Reino Unido)
É bombardeada mais MANDATO BRITÂNICO
Dodecaneso (Itália)
de mil vezes pela Luwaffe
CHIPRE
(Reino Unido) LÍBANO
Os alemães tentam apoderar-se do Egito e do canal
de Suez e «fechar a tenaz», unindo, no Médio Oriente,
A

as suas tropas do Norte de África às da Rússia


STIN
PALE

Tobruk ARÁBIA
IA
RD S-

LÍBIA
ÂN
-JO RAN
Cana

500 km
T

Cairo
l de

EL ALAMEIN
O avanço alemão
S u ez

IMPÉRIO no norte de África


INFOGRAFIA
Luís Almeida Martins – Álvaro Rosendo / VISÃO
EGITO
ITALIANO é detido na decisiva (Influência britânica)
Batalha de El Alamein
Com o território repetidamente
ISLÂNDIA
partilhado entre alemães e russos,
A Alemanha reunifica-se em os polacos derrubam o regime comunista
2022 3 de Outubro de 1990 e Berlim em 1989 e aderem à UE em 2004
volta a ser a capital do país
SUÉCIA
Em 1990 e 1991 os estados bálticos
recuperam a independência
A Europa hoje
Com a pulverização da União Soviética, em perdida para a URSS em 1940
1991, redesenharam-se as fronteiras na parte FINLÂNDIA

leste do continente. A União Europeia NORUEGA Anexada pela Rússia


Helsínquia no séc. XVIII, a Bielorrússia
(antes Comunidade Económica Oslo S. Petersburgo torna-se independente em 1991,
Tálin quando a URSS deixa de existir
Europeia) estendeu-se para essa ESTÓNIA
zona, englobando diversos RÚSSIA
Irlanda Estocolmo LETÓNIA
países que tinham feito do Norte MAR DO Riga Moscovo
NORTE DINAMARCA
parte da URSS IRLANDA
REINO MAR
Dublin UNIDO Copenhaga BÁLTICO
LITUÂNIA Sacudida a tutela soviética em 1989,
ou que tinham sido Vílnius a Checoslováquia divide-se em dois
RÚSSIA
países independentes (República CAZAQUISTÃO
seus satélites Minsk Checa e Eslováquia) em 1993
OCEANO ATLÂNTICO HOLANDA BIELORRÚSSIA
Londres Amesterdão Berlim Anteriormente integrada
As guerras travadas nos Balcãs Varsóvia na URSS, a Ucrânia acedeu
MANCHA Bruxelas ALEMANHA
entre 1991 e 2003 levam ao POLÓNIA à independência aquando
desmembramento da Jugoslávia BÉLGICA da implosão da superpotência,
Kiev
e à criação dos novos estados LUXEMBURGO
em 1991, e em fevereiro de
Praga
Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Paris 2022 foi invadida pela Rússia
Croácia, Sérvia, Montenegro, REPÚBLICA UCRÂNIA
CHECA
Kosovo e Macedónia do Norte ESLOVÁQUIA
LIECHTENSTEIN Viena Bratislava Emancipados da URSS
FRANÇA
Berna MOLDÁVIA em 1991, o Azerbaijão MAR
ÁUSTRIA Budapeste
Chisinau e a Arménia disputam a CÁSPIO
SUÍÇA HUNGRIA posse do Nagorno-Karabakh
ESLOVÉNIA ROMÉNIA
CROÁCIA
GEÓRGIA
Bucareste Transnístria Crimeia Abcásia e Ossétia AZERBAIJÃO
PORTUGAL BÓSNIA- Belgrado
SAN -HERZEGOVINA (Ocupada (Anexada (Zonas disputadas
MÓNACO

M
MARINO SÉRVIA pela Rússia) pela Rússia ARMÉNIA

A
com a Rússia)

R
Madrid ANDORRA em 2014)
BULGÁRIA MAR
MAR A MONTENEGRO
Lisboa
D
KOSOVO Sófia NEGRO
R

TIRRENO

ESPANHA Roma Independente do Reino Unido


T

MACEDÓNIA
IC

DONORTE Istambul desde 1960, Chipre adere à UE


O

ITÁLIA ALBÂNIA Ancara em 2004. A parte norte está


ocupada pela Turquia desde 1974
IRÃO
Gibraltar GRÉCIA MAR TURQUIA
Tânger EGEU
(Reino Unido) MAR MEDITERRÂNEO

Atenas
ARGÉLIA
MARROCOS CHIPRE SÍRIA
TUNÍSIA MALTA
LÍBANO
IRAQUE
Independente
Países que fazem parte da União Europeia do Reino Unido
desde 1964, Malta MAR MEDITERRÂNEO 500 km
entra para ISRAEL INFOGRAFIA Álvaro Rosendo/VISÃO
a UE em 2004 JORDÂNIA

LÍBIA EGIPTO PALESTINA ARÁBIASAUDITA


Batalha de Crécy
A fulgurante vitória inglesa
ficou a dever-se a uma nova
forma de combater, em que
os arqueiros desempenhavam
importante papel

14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GUERRA DOS CEM ANOS

O JOGO
DOS TRONOS
Ficou conhecida como Guerra dos Cem Anos,
mas na verdade o grande conflito medieval
entre a França e a Inglaterra – essa primeira grande
guerra europeia, que normalmente associamos à figura
de Joana d’Arc – durou ainda mais do que isso
Por Luís Almeida Martins

O
s apreciado- trário, pois Eduardo de-
res da série via vassalagem ao rei de
de fantasia A França. Em 1331, acabou
Guerra dos por se resignar a vergar-se
Tronos – e perante o soberano fran-
dos roman- cês Filipe VI (ou Filipe de
ces Crónicas do Gelo e do Valois), mas só ao fim de
Fogo, de J.R.R. Martin, que a inspiraram laboriosas negociações e com a ameaça
– conhecem bem um certo ambiente de de guerra no horizonte.
Baixa Idade Média que, no mundo real, Esta submissão não durou muito tem-
serviu de cenário ao mais longo confronto po, já que daí a meia dúzia de anos rene-
armado de que há memória. gou a vassalagem e voltou a reivindicar
Várias causas concorreram para a direitos ao trono de França. A mudança
eclosão desta guerra feita de batalhas, de atitude parece dever-se, no imediato,
de cercos e de saques a que chamamos, às intrigas de Roberto de Artois, uma
por defeito, dos Cem Anos (pois, na personagem de que eventualmente es-
CRÓNICAS DE JEAN FROISSART/BIBLIOTECA NACIONAL DE FRANÇA/GETTY IMAGES

verdade, durou 116), sendo a primeira tarão recordados os leitores da série de


delas a pretensão do rei inglês Eduar- romances Os Reis Malditos, de Maurice
do III a sentar-se no trono de França. Druon, publicada em Portugal pela Gó-
Na lógica da sucessão monárquica, não tica. Para lá do imediatismo, estavam
era coisa inteiramente descabida, visto subjacentes interesses comerciais re-
correr-lhe nas veias sangue da dinastia lacionados com a chamada questão da
francesa dos Capetos. Acresce o facto Flandres. Vamos analisar estas duas or-
de Eduardo ser senhor de vastíssimas dens de motivos, na verdade interligadas.
possessões em solo francês, que ocu- Ora bem, Roberto de Artois era
pavam, grosso modo, o quarto sudoeste cunhado de Filipe VI. Acusado de aten-
do país e que, no seu conjunto, se de- tar contra a vida do rei, refugiou-se em
signavam pelo nome de Aquitânia, ou Inglaterra para escapar ao castigo e aí
Guiana (Guyenne). O que parecia ser incitou Eduardo III a fazer valer as suas
uma vantagem tinha, porém, efeito con- pretensões ao trono francês.

VISÃO H I S T Ó R I A 15
EUROPA // 1337-1453

Quanto à Flandres – ou seja, o norte de Fran- do todo este tempo a combater. Com efeito, Écluse, em 1340, retirou-lhe a iniciativa e im-
ça e a metade ocidental da atual Bélgica – , houve longos períodos de tréguas, sobretudo possibilitou a invasão da Inglaterra. Seguiu-se
tratava-se de um condado que fazia parte no início das hostilidades. Fazendo bem as a invasão da França pelos exércitos de Eduardo
do reino de França. Os burgueses flamengos contas, houve 55 anos de guerra e 61 de paz III, as pilhagens, a aproximação de Paris e a
tinham enriquecido graças ao fabrico e ao aparente ou real entre os dois beligerantes. fulgurante vitória inglesa na batalha de Crécy,
comércio de tecidos e desde há muito que Observado do ponto de vista francês, o em 1346. Contrastando com a tradicional prá-
haviam obtido junto do seu conde uma série conflito desenrolou-se nos reinados de Filipe tica de combate francesa, assente na cavalaria
de liberdades e de isenções que faziam das VI, João II, Carlos V, Carlos VI e Carlos VII; composta por nobres equipados de lanças pe-
suas cidades autênticas repúblicas. A verdade reinaram entretanto em Inglaterra Eduardo sadas e de armaduras completas, o rei inglês
é que as comunas flamengas (Gand, Bruges, III, Ricardo II, Henrique IV, Henrique V e tinha instituído o serviço militar obrigatório
Ypres, etc.) eram as mais bem organizadas Henrique VI. Entre 1337 e 1360, sempre com para todos os homens entre os 16 e os 60 anos
de toda a França e as mais ciosas das suas Eduardo III no trono inglês e Filipe VI e João e o elemento principal da sua tropa era a in-
liberdades, dificilmente aceitando qualquer II no francês, os ingleses conquistaram quase fantaria, armada de chuços (longos paus com
intervenção do conde, ou mesmo do rei. Em toda a metade oeste da França. Esta vasta baionetas na ponta) e de grandes arcos de ma-
1325, os burgueses flamengos tinham até região seria retomada por Carlos VI, ajudado deira de teixo, os famosos long bows, com dois
chegado a manter o conde preso durante pelo condestável Bertrand Du Guesclin. Mas, metros de comprimento, mas leves. As setas
algum tempo no mercado dos cereais. Mal quando no trono de Paris se sentavam Carlos disparadas tinham um alcance superior a 200
foi corado rei, em 1328, Filipe VI foi a correr VI e Carlos VII, os ingleses ocupariam toda a metros e os arqueiros ingleses eram famosos
vingar a ofensa feita ao conde e reprimiu os França a norte do rio Loire. A entrada em cena pela sua pontaria. Do lado francês, a infantaria,
amotinados, o que fez crescer na Flandres de uma camponesa chamada Joana d’Arc, composta maioritariamente por mercenários
uma furiosa irritação contra o soberano. em 1429, poria, contudo, fim às suas vitórias, genoveses, utilizava bestas, cujo tiro era menos
A fúria dos flamengos cresceu ainda mais e em 1453 foram definitivamente expulsos rápido e tinha menor alcance do que o do arco
quando Eduardo III de Inglaterra decidiu para o outro lado do canal, à exceção dos que inglês. Mas a principal superioridade da tropa
tentar criar uma indústria de tecidos nacional guarneciam a cidade portuária de Calais, que inglesa estava na disciplina, o que se refletia
e, para isso, proibiu a exportação da lã do seu permaneceria mais um século em seu poder. nomeadamente na forma ordenada como os
país, indispensável aos tecelões flamengos. Vejamos agora de forma um pouco mais cavaleiros de além-Mancha combatiam, em
Foi então que, face à perspetiva da ruína, pormenorizada cada uma dessas fases do completo contraste com as cargas maciças dos
um industrial flamengo chamado Jacques longo conflito. orgulhosos nobres franceses, que se recusavam
Artevelde se decidiu a atravessar
avessar a Mancha Inicialmente, a França sofre
sofreu sérios reveses. a receber vozes de comando.
e a pedir uma entrevista aoo rei inglês, a quem A aniquilação da sua esquadra
esqua no porto de Uma semana depois da vitória de Crécy,
disse que os flamengos estavam
tavam dispostos a Eduardo III pôs cerco a Calais, permitindo,
reconhecê-lo como soberano no de França se este no entanto, abertura de um corredor hu-
revertesse a proibição de exportação da lã. manitário (como agora se diria) para que as
mulheres e as crianças fossem retiradas. De
‘Colónias’ inglesas em França tal maneira estava decidido a fazer vergar
A estas causas imediatas importa
mporta acrescentar a cidade que as tropas sitiantes se instala-
outras mais recuadas e de caráter geral. Uma ram em casas de madeira expressamente
delas é a rivalidade histórica
rica entre as casas construídas, e não em tendas. Ao fim de seis
dos Capetos e dos Plantagenetas,
enetas, sendo esta meses, quando já só dispunham da carne
última família originária do Anjou francês dos seus próprios mortos para se alimenta-
mas que governou a Inglaterra
aterra entre mea- rem, os sitiados renderam-se. A população
dos do século XII e finais do XIV. Outra é a francesa abandonou a cidade, onde apenas
importância das possessõeses francesas para a permaneceram 22 burgueses, que se decla-
economia inglesa, tratando-se praticamente raram súbditos do rei de Inglaterra. Calais
de uma colónia; basta lembrar que era da Uma das causas não não foi apenas conquistada, mas povoada por
Aquitânia que seguia o vinho para a Ingla- colonos vindos do outro lado da Mancha, e
terra. Resumindo: a guerra era inevitável.
imediatas da guerra foi haveria de permanecer durante dois séculos
Esta, que designamos por Guerra dos Cem a rivalidade histórica – até 1558 – em poder dos ingleses.
Anos, começou em 1337 e terminaria apenas Dez anos depois de Crécy, em 1356, os in-
116 anos depois, em 1453, mas isso não signi-
entre a casa dos Capetos gleses alcançaram nova vitória campal, desta
fica que ingleses e franceses tenham passa- e a dos Plantagenetas vez perto de Poitiers. Se a anterior derrota dos

16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Tomada de Caen
Esta minuciosa
ilustração, como
a das páginas
anteriores
e a da página seguinte,
é uma iluminura
das Crónicas
de Froissart,
reconhecidas
como a principal
expressão da cultura
cavaleiresca do século
XIV em França
e na Inglaterra
CRÓNICAS DE JEAN FROISSART/BIBLIOTECA NACIONAL DE FRANÇA/GETTY IMAGES

franceses se ficara a dever sobretudo à indisci- que os soberanos tinham de dispor de tropas inglês Arthur Conan Doyle, criador de Sher-
plina da sua arrogante cavalaria, esta segunda durante mais tempo do que aquele que era lock Holmes, é autor do romance histórico
foi resultado da falta de inteligência tática do permitido pelas regras feudais, em cujos termos A Companhia Branca, que retrata este am-
rei João II, que se lançou cegamente ao assalto os nobres apenas eram obrigados a combater biente. Foi o condestável Bertrand Du Gues-
de uma posição inglesa e acabou por ver os seus durante um certo número de dias por ano. Os clin, figura incontornável desta época e dessa
homens crivados de flechas disparadas pelos mercenários eram bem pagos e tinham ainda série de conflitos, que livrou a França da praga
ingleses. O protagonista inglês do recontro – direito à sua quota-parte nos saques, pelo que das grandes companhias, expulsando umas
como já o fora de Crécy – foi o Príncipe Negro, acorriam a França combatentes de todos os para a Bretanha e outras para a Península
filho de Eduardo III, assim chamado pela cor cantos da Europa, desde a Alemanha à Itália Ibérica. Para combater os ingleses, que logo
da sua armadura, e foi a ele que João II se e à Península Ibérica. O mesmo se passava, depois de assinado o tratado recomeçaram
rendeu, só recuperando a liberdade ao preço aliás, do lado inglês, embora em menor escala, a guerra, Du Guesclin imaginou uma nova
do pagamento de um pesadíssimo resgate, e foram portanto soldados profissionais que tática. Evitando as grandes batalhas, guar-
nos termos do Tratado de Brétigny, assinado constituíram as grandes massas combatentes necia as cidades com tropa e cavava o vazio
em 1360 e que pôs termo à primeira parte da durante Guerra dos Cem Anos. em torno do inimigo, de forma que este não
Guerra dos Cem Anos. Durante o seu cativeiro, encontrava onde se abastecer nem sítio para
o rei francês foi, no entanto, tratado com a As Grandes Companhias descansar. Os franceses seguiam as hostes
maior cortesia pelo Príncipe Negro, que até Ora, quando foi assinado o Tratado de inglesas à distância, fustigavam-nas por meio
fazia questão de o servir à mesa. Brétigny, os mercenários, desempregados, de escaramuças, mordiam-lhes os calcanha-
Não praticando o serviço militar obrigató- passaram a atuar por conta própria, for- res. Três exércitos ingleses desembarcados em
rio, a França medieval, nas suas guerras mais mando enormes bandos de arruaceiros que Calais foram assim destruídos um após outro.
prolongadas, recorria abundantemente ao ser- pilhavam o país e a que se deu o nome de O último, composto por uns 30 mil homens,
viço de mercenários estrangeiros, única forma Grandes Companhias. O conhecido escritor foi desaparecendo literalmente ao atravessar

VISÃO H I S T Ó R I A 17
EUROPA // 1337-1453

A guerra passou por Aljubarrota que o levava a perseguir familiares em lutas


fratricidas mas que não o impediria de reinar
A batalha de Aljubarrota tem alguma coisa que ver com a Guerra dos Cem Anos? Tem, e bastante durante 32 anos, até 1422. Henrique V de
Inglaterra aproveitou o ambiente favorável
para retomar a ofensiva. Depois da grande
vitória obtida, em 1415, na batalha de Azin-
court e da assinatura do tratado de Troyes,
em 1420, Henrique permitiu-se pensar que
ia mesmo ser senhor de uma França reduzida
à condição de simples colónia da Inglaterra.

CRÓNICAS DE INGLATERRA DE JEAN DE WAVRIN/BRITISH LIBRARY


Não contou, porém, com um fator: o desper-
tar do patriotismo: burgueses, mesteirais,
camponeses e até mesmo nobres ganharam
consciência de fazerem parte de um todo
«nacional», que se opunha ao invasor, e pe-
garam nas armas que tinham à mão para
lutarem contra este. Um espírito semelhante
acordara em Portugal pouco antes, em 1385,
contra o domínio de Castela.
Uma história exemplar de resistência foi
o invernoso cerco de Ruão, em 1418, com a
cidade rodeada de 40 mil inimigos a resistir
durante meses antes de se render, alimen-
tando-se de gato e de rato traficados a preços
No verão de 1385, depois de os Estamos, pois, perante um recontro
portugueses, comandados pelo em que forças francesas e inglesas se exorbitantes e com as mulheres e as crianças
condestável Nuno Álvares Pereira, defrontaram em solo português, quando a morrerem de fome de frio fora das muralhas
terem obtido vitórias sobre os lavrava a Guerra dos Cem Anos. por os sitiantes não abrirem corredores para
castelhanos em Atoleiros e em A batalha, travada perto da localidade as deixar passar. Imaginemos os noticiários
Trancoso, o rei Juan I de Castela – que de Aljubarrota, resolveu-se em cerca televisivos e as redes sociais que esta guerra
se achava com direitos à coroa lusa por de uma hora e saldou-se pela derrota alimentaria se fosse nos dias de hoje...
ser casado com a infanta Beatriz, filha total dos castelhanos e dos franceses,
do falecido D. Fernando – entrou no que debandaram. Muitos invasores
nosso país à cabeça de um exército de tresmalhados foram chacinados pela Joana d’Arc, a ‘Donzela’
32 mil homens, segundo as crónicas da população da zona (incluindo a célebre Mas o expoente deste sentimento nacional
época. Toda a nobreza castelhana fazia Padeira de Aljubarrota). Portugal que tão inesperadamente despertou na reta-
parte dele e muitos cavaleiros franceses garantiu assim a independência, com lhada França feudal foi uma jovem campo-
(aliados de Castela) também. D. João I, o antigo mestre de Avis, no nesa que toda a gente conhece, mesmo que
Ao encontro dessa imponente máquina trono. Quanto aos auxiliares ingleses, não saiba muito a seu respeito: Joana d’Arc.
de guerra partiu uma pequena força que tinham vindo para nos ajudar mas
No momento em que esta figura emergiu, em
de 6 mil homens, comandada pelo sobretudo para bater nos franceses e
condestável. Essa tropa incluía uns 800 nos castelhanos, não se foram embora 1429, o descalabro militar francês era total e
besteiros e um destacamento de 200 sem antes terem feito uma série de os ingleses cercavam Orleães, a única cidade
arqueiros ingleses, vindos ao abrigo da desacatos, como bons hooligans que o novo rei Carlos VII ainda possuía a
aliança anglo-lusa assinada em 1373. que se prezam. norte do Loire. Joana nascera em 1412 na
aldeia de Domrémy, na Lorena, no seio de
uma família remediada, piedosa e caritativa.
a França, com os 5 ou 6 mil sobreviventes Esta tática prudente do condestável ia Aos 13 anos terá começado a ouvir vozes que
a morrerem de fome quando chegaram a ao encontro do caráter de Carlos V, muito a incitavam a ser boa e a frequentar a igreja.
Bordéus, a sede das possessões inglesas diferente dos arrebatados e cavalheirescos Depois foi a fase das visões – de São Miguel,
no continente. Entretanto, os franceses, Filipe VI e João II, respetivamente seu avô de Santa Margarida, de Santa Catarina…
com Du Guesclin à cabeça, iam cercando e seu pai. Só que este rei prudente teve por O arcanjo ter-lhe-á ordenado que partisse
e recuperando praças-fortes cedidas pelo sucessor – em 1380 – Carlos VI, um ser aluci- para Orleães, que libertasse a cidade e que
Tratado de Brétigny. nado que, decerto, sofria de uma perturbação expulsasse os ingleses de França.

18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VIGÍLIAS DE CARLOS VII DE MARTIAL D’AUVERGNE/BIBLIOTECA NACIONAL DE FRANÇA/GETTY IMAGES

Martírio de Joana d’Arc A «Donzela» nas mãos dos ingleses, segundo uma iluminura do século XV

Joana tinha 16 anos quando pediu à guar- invejosos da popularidade da ex-camponesa, rada como um símbolo do patriotismo e
nição da vizinha vila de Vaucouleurs uma es- conspiraram para a afastar do fulcro das tem estátuas por toda a parte, ainda que os
pada e uma escolta de meia dúzia de homens atenções e ela foi levada para a região do movimentos de extrema-direita desde há
de armas que a conduzisse a Château-Chinon, Loire, onde permaneceu uns meses inativa, muito se tenham apropriado da sua figura.
onde estava o rei. Carlos VII acedeu a rece- ainda que rodeada de atenções. Conseguiu, Quanto à Guerra dos Cem Anos, terminaria
bê-la, mas dissimulado entre uma multidão porém, voltar a pegar em armas e, na prima- em breve, não por um tratado de paz, mas por
de cortesãos. Joana dirigiu-se de imediato a vera de 1430, dirigir-se a Compiègne, que as forças invasoras da França terem recuado
ele como se o conhecesse (não esqueçamos estava cercada pelos borguinhões, aliados para a sua ilha e a Inglaterra ter perdido o
que naquele tempo não havia divulgação de dos ingleses. Aí, acabou por ser derrubada que podemos designar por vontade política de
imagens como hoje) e disse-lhe que tinha do cavalo, feita prisioneira e vendida aos dominar vastos territórios aquém-Mancha.
sido enviada por Deus para o levar a Reims, ingleses, que pediram um resgate. A corte, Apesar da expulsão de França, o período da
para ser sagrado rei na catedral. Um corpo porém não reagiu, e a «Donzela» foi enviada longa guerra foi, para a Inglaterra, um tempo
de teólogos submeteu a camponesa a um para Ruão debaixo de ferros e julgada num de prosperidade. Os negociantes da grande
cerrado interrogatório para se assegurar de processo em que a acusaram de bruxaria. ilha puderam fazer comércio livremente com
que esta não era feiticeira, nem tinha sido No dia 26 de maio de 1431, Joana d’Arc a Flandres, as expedições militares em França
enviada pelo diabo. O resultado foi – consta foi queimada viva numa pira e as suas cin- proporcionaram boas presas, as cidades in-
das crónicas – satisfatório. zas lançadas ao Sena. Em França, é vene- glesas desenvolveram-se e a burguesia local
Foi-lhe então confiado o comando de um enriqueceu. Quanto à França, os Valois dei-
pequeno exército que atacou as posições in- xaram o país mais forte do que no momento
glesas em torno de Orleães e as tomou uma em que tinham acedido ao trono na pessoa
a uma. Falava-se de milagre e toda a gente, Vener em
Venerada de Filipe VI, concluindo, em meados do sé-
em França, queria combater sob as ordens culo XV, a obra de unificação sob o cetro real
da «Donzela» (Pucelle), como chamavam
Franç
França como iniciada pelos soberanos Capetos.
a Joana. A camponesa, já vista como san- símbo
símbolo do Terá então a guerra sido uma coisa boa de
ta, derrotou ainda os invasores em Patay e ambos os lados da Mancha? É difícil aplicar
conduziu a seguir Carlos VII a Reims, onde
patrio
patriotismo, Joana tal adjetivo a um conflito armado, com o seu
ocorreu a sua sagração (tradicionalmente, d’Arc tem sido cortejo de misérias e horrores, mas existe a
os reis de França eram ungidos nessa ca- possibilidade de admitir que, tal como todas
tedral). A tropa de Joana lançou-se depois
aprov
aproveitada pela as guerras, na sua função reorganiza teve
ao assalto de Paris, mas muitos cortesãos, extre
extrema-direita alguns aspetos positivos.

VISÃO H I S T Ó R I A 19
EUROPA // 1618-1648

GUERRA DOS TRINTA ANOS se mobilizou, retomando, em 1621, a guerra


com a Espanha, que havia sido interrom-
pida pela chamada Trégua dos Doze Anos

O nascimento (1609-1621). A Holanda, em pleno processo


de expansão marítima e colonial, achava-se
então bastante interessada em apoderar-se

dos Estados-Nação
Aquela que foi uma das mais destrutivas guerras
de espaços pertencentes quer a Espanha quer
a Portugal na África, na Ásia e na Améri-
ca. Apenas como exemplo, conquistou aos
portugueses a fortaleza de S. Jorge da Mina
(fez 8 milhões de mortos) marcou o fim da (1637), Luanda (1641), Malaca (1641), Ceilão
(1658) e, entre 1633 e 1641, todo o Nordeste
preponderância dos Habsburgos de Viena e de Madrid
do Brasil, com exceção da Baía.
e consagrou a França como nova potência europeia A Dinamarca e a Suécia, reinos luteranos
Por Paulo Drumond Braga* que pretendiam afastar os Habsburgos de
Viena do norte da Europa, estendendo, ao

A
mesmo tempo, as respetivas áreas de influên-
Guerra dos Trin- enfraquecer e isolar os gover- cia, decidiram aproveitar a oportunidade e
ta Anos (1618- nantes Habsburgos de Viena entraram na guerra europeia. A Dinamarca,
-1648) é a desig- e de Madrid, ou seja, o Sacro onde reinava Cristiano IV (1577-1648, r. 1588-
nação genérica Império Romano Germânico -1648), apoderou-se, em 1625, sem grande
de vários confli- e a Espanha. Esta última, for- dificuldade, de um território atualmente si-
tos bélicos trava- malmente, ainda não existia tuado na Alemanha, a Saxónia, mas acabou
dos entre Estados europeus. com tal designação, tratando- por sofrer várias derrotas, retirando-se em
Eclodiu com pretextos religiosos na Boémia -se antes de uma monarquia composta pelas 1627. Dois anos depois, conformou-se, pelo
– atual República Checa – onde de há muito Coroas de Castela e de Aragão e, entre 1581 Tratado de Lubeque, com a perda de parte
se registavam tensões entre o soberano, que e 1640, também a de Portugal. Usá-la-emos, do que possuía no mundo germânico.
era igualmente sacro imperador romano contudo, por comodidade, como, aliás, já na Em 1630 foi a vez de o monarca da Suécia,
germânico, e professava o catolicismo, e os época se fazia. Gustavo II Adolfo (1592-1632, r. 1611-1632),
seus súbditos, maioritariamente calvinis- optar pela beligerância, avançando sobre a
tas. A situação agravou-se nos tempos de Holanda ‘morde’ Portugal Pomerânia e arrasando Magdeburgo. Nos
Rodolfo II (1552-1612, reinou 1575-1612) A ideia de que os Habsburgos restabeleces- anos seguintes, os exércitos ao serviço do
e de Matias (1557-1619, r. 1612-1619). Tudo sem o que haviam sido os vastos domínios de Sacro Império inverteram o curso da guerra
radicava, em última instância, na dolorosa Carlos V (1500-1558) – que foi sacro impe- e obtiveram por sua vez algumas vitórias
divisão religiosa da Europa que se tinha rador romano germânico de 1519 a 1556, rei sobre os suecos. Em novembro de 1632,
imposto em meados do século XVI. de Espanha de 1516 a 1556 e soberano dos o próprio Gustavo II Adolfo morreu em
Em 23 de maio de 1618, o palácio real de Países Baixos de 1506 a 1556 – desagradava combate, na batalha de Lutzen.
Praga, capital da Boémia, foi invadido por sobretudo à Holanda, à Inglaterra e à França. A França de Luís XIII (1601-1643, r. 1610-
calvinistas e dois ministros e um secretário Achando-se estes dois últimos reinos envol- -1643) e do seu valido, o cardeal de Richelieu
do imperador Matias foram atirados pela ja- vidos em problemas internos, só o primeiro (1585-1642), só em 1635 declarou guerra à
nela. Foi a chamada defenestração de Praga. Espanha. No ano seguinte, foi a vez de o Sacro
Assim começou a sublevação protestante, Império fazer o mesmo em relação à França.
mas também a guerra. Inicialmente, os re- Durante esta fase do conflito, os Habsburgos
Duran
voltosos conseguiram algumas vitórias e,
A França de Luís
ís XIII sofrer
sofreram pesadas derrotas impostas pelos
em 1619, acharam-se mesmo às portas de 635
declarou em 1635 fran
franceses e pelos suecos, por exemplo, em
Viena, mas vieram a ser derrotados no ano Wittstock (1636), Rheinfelden (1638),
imediato, na batalha da Montanha Branca.
ha,
guerra à Espanha, Rocroi (164) e Jankau (1645).
Como consequência, a Boémia foi totalmen- ar
fazendo alastrar Note-se, entretanto, que o en-
te catolicizada e germanizada. fraquecimento da Espanha faci-
A guerra, contudo, foi alastrando a boa
o conflito à litou as revoltas em Portugal e na
parte da Europa ocidental. O objetivo era Europa Ocidental
tal Catalunha, dois territórios periféricos

20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Ataque a uma coluna
de abastecimentos
Esta pintura de Pieter
Snayers, que reproduz
uma cena da Guerra
dos Trinta Anos, é
contemporânea do conflito
GETTY IMAGES

da monarquia de Filipe IV (1605-1665, r. reconhecido como Estado independente. A Guerra dos Trinta Anos marcou o fim
1621-1665). A Catalunha sublevou-se em De facto, os negociadores de Vestefália da preponderância dos Habsburgos de
junho de 1640, Portugal no primeiro dia continuaram a considerar Filipe IV como o Viena e de Madrid e consagrou a vitória
de dezembro do mesmo ano. O estado de legítimo rei de Portugal, não tendo D. João da França como nova potência europeia.
guerra na Europa levou a que os inimigos IV (1604-1656, r. 1640-1656) conseguido Foi uma das mais destrutivas guerras da
da Espanha tenham dado algum apoio aos fazer aceitar os seus representantes nas história, tendo-se saldado por cerca de oito
revoltosos. A Catalunha veio, contudo, a ser conferências de paz. milhões de mortos.
derrotada (1652), o mesmo não acontecendo Com a assinatura da Paz de Vestefália, a Convém recordar que a França e a Espanha
com Portugal, que, em 1668, viu finalmente Espanha, a grande derrotada, reconheceu a mantiveram-se em guerra até 1659. A primeira
reconhecida a opção tomada em 1640. independência da Holanda, mas manteve os continuou a apoiar as revoltas de Portugal e da
À medida que os anos iam avançando co- Países Baixos do Sul, que hoje correspondem Catalunha e a segunda imiscuiu-se nas guer-
meçava a notar-se o cansaço com a guerra. grosso modo à Bélgica e ao Luxemburgo. ras civis francesas genericamente conhecidas
A paz chegou em 1648, mas vinha sendo ne- A França ficou com o Rossilhão e a Lo- como Frondas. A paz chegou com o Tratado
gociada desde 1643 e tinha conhecido um rena, assim como com parte da Alsácia. dos Pirenéus, assinado em 7 de novembro de
assinável progresso a partir de 1645. Em 30 A Suécia garantiu a posse de várias zonas 1659 na ilha dos Faisões, o qual estipulou o ca-
de janeiro de 1648, em Münster, a Holanda e a do mundo germânico, a Pomerânia ociden- samento entre o jovem rei de França, Luís XIV
Espanha firmaram a paz e, em 24 de outubro, tal (atualmente integrante da Alemanha) , (1638-1715, r. 1643-1715), e uma filha de Filipe
do mesmo ano, em Osnabrück, foi a vez da uma parte da Pomerânia oriental (hoje um IV de Espanha, Maria Teresa (1638-1683).
França, da Suécia, do Sacro Império e dos território da Polónia) e as embocaduras dos
* Paulo Drumond Braga é doutor em História
principados germânicos. A este conjunto de rios Oder, Elba e Wesser. Para além disso, e investigador (IECCPMA / Centro de Estudos
acordos costuma chamar-se Paz de Vestefália. o rei da Suécia tornou-se eleitor imperial. Globais, Universidade Aberta)
O Sacro Império foi amputado de nume- Para saber mais:
Bély, Lucien, L’ Art de la Paix en Europe. Naissance
A Paz de Vestefália rosos territórios e o imperador viu-se pro- de la diplomatie moderne. XVIe-XVIIIe siècle, Paris,
De notar que, embora separado da Es- gressivamente reduzido a um mero chefe do Presses Universitaires de France, 2007. Bergin,
Joseph (dir.), The Seventeenth Century, Cambridge
panha desde 1640 e achando-se várias Estado austríaco. Em termos religiosos, o University Press, 2001. Costa, Leonor Freire, Cunha,
potências europeias bastante interessadas calvinismo passou a ter existência legal, tal Mafalda Soares da, D. João IV, Lisboa, Círculo
de Leitores, 2006. Martínez Millán, José, Rivero
no enfraquecimento da Espanha, Portugal como acontecia com o luteranismo desde a Rodríguez, Manuel, Historia Moderna. Siglos XV al XIX,
não foi, em 1648, como seria de esperar, paz de Augsburgo (1555). Madrid, Alianza Editorial, 2021.

VISÃO H I S T Ó R I A 21
EUROPA // 1701-1714

GUERRA DA SUCESSÃO DE ESPANHA

A Inglaterra,
grande potência
Num conflito em que tropas portuguesas ‘tomaram’
Madrid, a nossa «velha aliada» confirmou o predomínio
europeu e marítimo, à custa da França
Por Paulo Drumond Braga

C
arlos II, o último reino e domínios ultramari-
rei Habsburgo de nos, nomeadamente a nível
Espanha, morreu de fornecimento de escravos
no primeiro dia de negros às colónias america-
novembro de 1700. nas, provocou o desconten-
Não tivera filhos de tamento da Inglaterra e da
nenhum dos seus dois casa- Holanda.
mentos e havia já anos que as várias potên-
cias europeias olhavam com interesse para Portugal na ‘dança’ das alianças
os vastos domínios europeus e ultramarinos Assim se compreende que o Sacro Império
da monarquia hispânica. Chegou a haver, Romano Germânico, a Inglaterra e a Holanda Tui, Valencia de Alcántara e Vigo, além do
em 1668, 1698 e 1700, projetos secretos de tenham formado, em 7 de setembro de 1701, reconhecimento da posse lusa da colónia do
partilha desses territórios feitos entre a Fran- a Grande Aliança da Haia, a que mais tarde Sacramento, no atual Uruguai.
ça, o Sacro Império Romano Germânico e haveriam de aderir a Dinamarca, Saboia, A guerra eclodiu em 1701, limitando-se
a Holanda. Portugal e a maioria dos príncipes germâni- inicialmente a escaramuças entre franceses
Carlos II tudo fizera para evitar a divisão cos. Defendia esta coligação que o trono de e súbditos do Sacro Império na Península
dos seus reinos e domínios. Em 1698 legou, Espanha deveria ser ocupado pelo arquidu- Itálica. O conflito estava longe de haver sido
por testamento, a Coroa a um príncipe que Carlos, filho do imperador Leopoldo I e desejado por Luís XIV, que acabava de sair da
bávaro, José Fernando, bisneto de Filipe bisneto de Filipe III. Esta solução não deixava Guerra dos Nove Anos (1688-1697). Em 4 de
IV, que morreu pouco depois. Dias antes de causar desconforto à França, visto que maio de 1702 a Inglaterra declarou guerra à
do seu desaparecimento, optou por uma apontava para um reforço dos Habsburgos, França e à Espanha, sendo imitada pela Ho-
solução francesa: Filipe, duque de Anjou, relembrando o que havia sido o vasto império landa em 8 e pelo Sacro Império em 15. No
neto de Luís XIV, igualmente bisneto de de Carlos V (1500-1558). ano seguinte, o arquiduque foi proclamado,
Filipe IV. O Portugal de D. Pedro II começou por em Viena, rei de Espanha com o nome de
Inicialmente, toda a Europa aceitou o reconhecer Filipe V, assinando, em junho Carlos III. Inicialmente a sorte pareceu sorrir
testamento de Carlos II e o jovem príncipe de 1701, um acordo com a França, que lhe à coligação franco-espanhola mas, a partir
tornou-se rei de Espanha com o nome de garantia apoio em caso de agressão militar. de 1704, a tendência inverteu-se, sendo de
Filipe V. Rapidamente, contudo, vieram ao Mas, em maio de 1703, mudou de campo, ce- salientar as importantes vitórias militares de
de cima receios de que o bloco constituído dendo ao aliciamento da Inglaterra, da qual se um inglês, o duque de Marlborough, John
pela França e pela Espanha se tornasse achava cada vez mais próximo. Relembre-se Churchill, e de um súbdito do imperador, o
demasiado poderoso, até porque Luís XIV que, em dezembro desse ano, seria assinado, príncipe Eugénio de Saboia.
considerou que Filipe V não era obrigado a entre os dois reinos, o Tratado de Methuen.
renunciar à Coroa de França. O novo mo- Ao mesmo tempo, o arquiduque Carlos pro- Exército português em Madrid
narca espanhol, por seu turno, ao conceder meteu a entrega a Portugal de localidades Em 1704, a Espanha perdeu Gibraltar para
facilidades aos mercadores franceses no seu como Albuquerque, Badajoz, La Guardia, a Inglaterra e em 1705 a Grande Aliança da

22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Carlos II e Filipe V
À morte do primeiro
seguiu-se uma luta
sucessória, mas seria
o segundo a manter-se
por largos anos no trono

o candidato da Grande Aliança da Haia ao


trono de Espanha, sucedeu-lhe com o nome
de Carlos VI. Receosa de ver reconstituído o
vasto património quinhentista de Carlos V,
a Inglaterra deixou de o apoiar.
Em 1713 deram-se as negociações para a
paz em Utreque e ali se assinaram, em 11 de
abril, tratados entre os beligerantes, à exceção
do Sacro Império, que decidiu manter-se na
guerra, só tendo chegado à paz com a França e

LOUIS-MICHEL VAN LOO/MUSEU DO PRADO


a Espanha pelos tratados de Rastatt e Baden,
de 6 de março e 7 de setembro de 1714.
JOHN CLOSTERMAN/WIKIMEDIA

Graças a estes acordos, Filipe V foi reco-


nhecido como rei de Espanha e renunciou
aos direitos ao trono de França. O duque de
Saboia tornou-se rei da Sicília e o eleitor de
Brandeburgo ascendeu a monarca da Prús-
sia. A Inglaterra confirmou a sua posição de
grande potência europeia e marítima. Luís
Haia apoderou-se de Barcelona. Em junho citos da Grande Aliança da Haia, coman- XIV deixou de apoiar os descendentes de
de 1706, o arquiduque Carlos foi proclamado dados pelo duque de Marlborough. Mas os Jaime II, conformando-se com a realeza de
rei em Madrid, por um exército português co- mais de 40 mil mortos de ambos os lados Ana e com as normas de sucessão de 1701,
mandado pelo 2º marquês das Minas, António apressaram o desejo de pôr fim ao conflito. que afastavam os católicos do trono britânico.
Luís de Sousa Telo de Meneses, que se havia Luís XIV – que em 1707 tinha procurado A França foi a grande derrotada nesta guerra:
apoderado de Alcántara, Ciudad Rodrigo, já, sem êxito, que Carlos XII, rei da Suécia, perdeu a Lorena, vendo-se reduzida às fron-
Salamanca, Coria e Plasencia, acabando por vencedor de dinamarqueses, russos e polacos, teiras de 1697, e teve de ceder à Inglaterra
entrar triunfalmente na capital espanhola. Nos servisse de medianeiro entre as potências a maioria dos seus domínios ultramarinos,
começos de 1707, parecia evidente que Filipe beligerantes – deu os primeiros passos no nomeadamente boa parte do atual Canadá.
V tinha os dias contados, pois Castela e os sentido da paz. Vários outros fatores vie- A Espanha não se saiu melhor: embora te-
domínios americanos o reconheciam como rei. ram a facilitar o processo: em 1710 os tories, nha mantido o grosso do seu vasto império,
Este conflito militar foi particularmente inimigos da guerra, subiram ao poder em viu-se privada de Gibraltar e da Minorca, que
violento na Península Ibérica. Em Portugal, Inglaterra. No ano seguinte, em abril, mor- ficaram para a Inglaterra, que passou tam-
os súbditos de Luís XIV e de Filipe V agi- reu, inesperadamente, o imperador José I, bém a fornecer-lhe os escravos negros para
ram com considerável ferocidade, matando que não tinha filhos. O irmão, precisamente as suas colónias americanas. Também per-
e destruindo sem piedade. Entre 1704 e 1712 deu Nápoles, a Sardenha, Milão e os Países
houve campanhas todos os anos, as quais se Baixos do Sul, entregues ao Sacro Império,
saldaram, por exemplo, pela perda de Por- assim como a Sicília, atribuída ao duque de
talegre e de Castelo Branco, posteriormente Portugal começou Saboia. Portugal e Espanha restituíram um
recuperadas. Os portugueses também se ao outro o que tinham anexado durante a
aventuraram em solo espanhol, sobretudo
por apoiar Carlos V, guerra e a colónia do Sacramento manteve-se
na Extremadura e na Andaluzia, e chegaram mas depois deixou-se portuguesa. Com estes tratados procurou
a apoderar-se de algumas localidades. garantir-se o equilíbrio na Europa e evitar
Em setembro de 1709 travou-se a dura
aliciar pela Inglaterra um novo conflito bélico. Missão claramente
batalha de Malplaquet, vencida pelos exér- e mudou de campo impossível.

VISÃO H I S T Ó R I A 23
EUROPA // 1756-1763

GUERRA DOS SETE ANOS

Da Europa
para o mundo
O primeiro conflito bélico com caráter mundial
confirmou a hegemonia da Inglaterra e da Prússia
e o refluxo da França, da Espanha e da Áustria;
a Rússia estreou-se numa guerra na Europa Ocidental
e viu aceite o seu papel como potência a ter em conta
Por Paulo Drumond Braga

A ALAMY STOCK PHOTO/FOTOBANCO


paz estabelecida de Westminster, destinado a
na Europa pe- neutralizar a Áustria. Esta, por
los Tratados de sua vez, aliou-se à França, pelo
Utreque, Rastatt e Tratado de Versalhes, firmado
Baden (1713-1714) em 1 de maio do mesmo ano.
não durou muitos Em dezembro, a Rússia jun-
anos. De facto, depressa se re- tou-se-lhes. algo inesperada, em 1762 a Rússia retirou-se
gistaram vários conflitos, como Em agosto de 1756, a Prússia da guerra, assegurando a Frederico II tran-
a Guerra da Sucessão da Polónia (1733-1738), anexou a Saxónia, aliada da Áustria, tentan- quilidade na frente oriental. Os austríacos
a Guerra da Sucessão da Áustria (1740-1748) do, no ano seguinte, apoderar-se da Boémia, sofreram, entretanto, várias derrotas.
e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). neste caso sem êxito. Sofreu depois ataques De regresso a 1756, a Inglaterra capturou
Esta última foi seguramente a mais rele- quase simultâneos, em diferentes zonas de 300 navios franceses sem prévia declaração
vante. De um lado, acharam-se a Áustria, a fronteira, da Áustria, da França, da Rússia de guerra e aliou-se à Prússia para defender
Espanha, a França, a Rússia, a Suécia, Nápo- e da Suécia. Surpreendentemente, conse- Hanover de uma possível agressão dos súb-
les, Parma e a Saxónia. Do outro, Hanover, guiu resistir, tendo uma das batalhas então ditos de Luís XV (1710-1774, r. 1715-1774). No
a Inglaterra, a Prússia e Portugal. Ou seja, travadas, a de Leuthen (1757), ficado como mesmo ano, os franceses ocuparam a ilha de
redefiniram-se as alianças entre Estados símbolo das capacidades bélicas de Frederico Minorca, então nas mãos dos ingleses. Estes,
europeus, sendo o aspeto mais relevante a II que, com 39 mil homens, derrotou 66 mil como resposta, bloquearam as costas gaulesas
aproximação entre duas inimigas de séculos, austríacos. Mas, em 1759, sofreu por sua vez em Toulon e Brest e lançaram um ataque ao
a Áustria e a França. um desaire, recebendo a partir de então al- Canadá, onde somaram várias vitórias. Em
Uma das explicações para a eclosão da gum apoio da Inglaterra. O cansaço
nsaço prussiano 1760, com a queda de Montréal,
Mont todo aquele
Guerra dos Sete Anos prende-se com a era, contudo, evidente. Entretanto,
tanto, de forma território norte-americano ses achou na posse
emergência de uma nova potência europeia, dos súbditos de Jorge III (1738-
a Prússia – onde reinava Frederico II (1712- -1820, r. 1760-1820).
17
-1786, r. 1740-1786) – que rapidamente entrou No outr
outro lado do mundo,
em choque com a Áustria da imperatriz Maria
O conde de Lippe na Índia, os
o franceses sofre-
Teresa (1717-1780, r. 1740-1780). Por outro foi incumbido ram suce
sucessivas derrotas às
lado, há que ter em conta a rivalidade comer- mãos do
dos ingleses, a últi-
cial e colonial entre a Inglaterra e a França.
de restruturar ma das quais foi a que-
Nos inícios de 1756 começaram a delimitar- e modernizar da de Pondichéry, em
-se os campos que futuramente se iriam en- 1761. A companhia
1761
frentar em termos bélicos: em 16 de janeiro,
o antiquado inglesa das Índias
ing
a Inglaterra e a Prússia assinaram o convénio exército português Orientais
O passou

24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Tomada
de Quebeque
Em 1759, tropas
inglesas capturaram
aos franceses
o centro vital da sua
colónia canadiana

território germânico hoje dividido entre


a Alemanha e a Polónia. No mesmo ano,
em 22 de maio, o Tratado de Hamburgo
firmou a paz entre a Prússia e a Suécia, que
devolveram uma à outra tudo o que haviam
anexado durante a guerra. O tratado de
Paris, de 10 de fevereiro de 1763, assinado
por Portugal, Espanha, França, Áustria e
Inglaterra, consagrou a vitória desta última
como grande potência europeia e colonial,
tendo assegurado a posse da maior parte
do Canadá e da Luisiana, assim como a
Florida, a Minorca e numerosas ilhas das
Antilhas, sem esquecer algumas feitorias
no Senegal. Foi-lhe ainda reconhecida a
posse do grosso da Índia. A grande derro-
tada foi a França, que perdeu quase todo o
seu império colonial, exceto algumas das
ilhas caribenhas e cinco cidades na Índia. A
Espanha recuperou da Inglaterra Cuba e as
Filipinas e recebeu da França uma parte da
Luisiana, assim como os territórios a oeste
do rio Mississípi. Devolveu ainda a Portugal
tudo o que havia anexado durante a guerra,
então a conhecer um notável influxo, tendo invasão espanhola, cometeu-se a um ger- quer na Península Ibérica quer na América.
praticamente desaparecido a sua congénere mânico, o conde Wilhelm von Schamubur- Outro tratado de paz, o de Hubertsburg,
francesa. g-Lippe (1724-1777), a responsabilidade de assinado em 15 de fevereiro de 1763 entre a
No continente americano, concretamente modernizar o antiquado exército português. Áustria e a Prússia, consagrou o surgimento
nas Antilhas, diversas ilhas pertencentes à Em maio de 1762, os espanhóis entraram em desta última como grande potência europeia,
França mudaram de mãos, passando a inte- Trás-os-Montes e várias localidades, como vendo confirmada a posse da Silésia – ter-
grar os domínios da Coroa britânica: Gua- Bragança, foram ocupadas. Em julho foi a ritório hoje dividido entre a Alemanha, a
dalupe em 1759, Dominica em 1761 e, todas vez de a Beira ser atacada, tendo Almeida, República Checa e a Polónia – e converten-
no ano seguinte, Martinica, São Vicente, Castelo Rodrigo, Vila Velha de Ródão e outras do-se, para além disso, em modelo militar
Granada e Santa Lúcia. vilas caído em mãos espanholas. A uma feroz da Europa. A Áustria viu-se compelida a
Em 1761, a Espanha de Carlos III resistência portuguesa, juntaram-se o apoio aceitar esta nova realidade, vindo nos anos
(1716-1788, r. 1759-1788) – numa política inglês em homens e armas e a intervenção subsequentes a afirmar a sua posição em
frontalmente oposta à do antecessor, o seu de alguns mercenários suíços. Humilhados, espaços alternativos: a Europa Central e a
meio-irmão Fernando VI (1713-1759, r. 1746- os invasores retiraram de ambas as vezes. Península Itálica.
1759) – decidiu entrar na guerra ao lado da Mas, em outubro do mesmo ano, a colónia de A Guerra dos Sete Anos confirmou a hege-
França. Consequentemente, a Inglaterra as- Sacramento, no atual Uruguai, foi ocupada monia da Inglaterra e da Prússia, assim como
senhoreou-se de Cuba e das Filipinas. por espanhóis capitaneados pelo governador o refluxo evidente da França e da Espanha e
da província de Buenos Aires. Nos primeiros igualmente da Áustria, ainda que de forma
Portugal na ‘Guerra Fantástica’ dias de novembro, Portugal, Espanha e Fran- menos marcada. A Rússia, que pela primeira
A entrada da Espanha no conflito refletiu- ça assinaram um tratado de paz provisório, vez se envolvera numa guerra da Europa Oci-
-se em Portugal. Tendo o soberano luso, que pôs fim àquela que ficou na história lusa dental, viu aceite o seu papel como potência
D. José I (1714-1777, r. 1750-1777), sido con- como «Guerra Fantástica». a ter em linha de conta. A Guerra dos Sete
vidado a aderir ao chamado Pacto de Famí- Desde 1762 que parecia evidente que to- Anos foi o primeiro conflito bélico com cará-
lia – constituído pelos Bourbons de França, dos desejavam a paz. Um primeiro acordo, o ter mundial, uma vez que se travou em três
Espanha, Nápoles e Parma – uma vez que Tratado de São Petersburgo, assinado em 5 continentes. Segundo alguns historiadores,
sua mulher, Mariana Vitória (1718-1781), era de maio desse ano entre a Rússia e a Prússia, terá levado à morte de um milhão e quatro-
irmã de Carlos III, recusou. Prevendo uma garantiu a esta última a posse da Pomerânia, centas mil pessoas, entre militares e civis.

VISÃO H I S T Ó R I A 25
EUROPA // 1792-1815

GUERRAS DA REVOLUÇÃO E DO IMPÉRIO

A sombra de Napoleão
Durante 23 anos, quase ininterruptamente, pairou o cheiro da pólvora e fez-se ouvir
o troar dos canhões por toda a Europa, e Portugal não constituiu exceção
Por António Ventura*

C
onsequência da levá-los de vencida em Fros- Itália, triunfando em Montenotte. Após a
Revolução Fran- chwiller. Na Alsácia, os aus- sua entrada em Milão, o Piemonte assinou
cesa, a Europa tríacos foram derrotados em a paz. Vencendo de novo em Arcole, pros-
conheceu duas dé- Geisberg. A frente pirenaica seguiu o assédio a Mântua, que capitularia.
cadas de guerras mantinha-se estável, o mesmo Na Alemanha, a campanha paralisou, com
quase constantes. sucedendo no norte de Itália. recuos franceses. Perante as ameaças ingle-
A França revolucionária de- Em 1794, as vitórias france- sas na América Espanhola, Paris e Madrid
clarou guerra ao rei da Boémia e da Hungria sas prosseguiram em Courtenai, Tourcoing, celebraram o tratado de Santo Ildefonso.
em 1792, como forma de unir os cidadãos Tournai, Hooglede e Flueurus. Bruxelas e A Espanha mudou então de campo e declarou
contra um inimigo externo. Os exércitos fran- Antuérpia foram tomadas e Pichegru invadiu guerra à Grã-Bretanha.
ceses invadiram os Países Baixos Austríacos, a Holanda. Em Itália, os franceses ameaçavam
mas foram derrotados em Mons e Tournai. Génova, e na frente espanhola triunfaram em Vitórias de Bonaparte
A Prússia e o Piemonte juntaram-se então à La Boulou e ocuparam territórios na Catalu- Em 1797, Bonaparte acumulava vitórias em
Áustria, na primeira coligação antifrance- nha e no País Basco. Novos avanços franceses Itália – Rivoli e Mântua. Invadiu a Áustria e
sa, invadindo a França e tomando Longwy levaram ao domínio da Renânia. Em janeiro chegou perto de Viena, levando o imperador
e Verdun. A França sofreu reveses iniciais, de 1795, a França somava vitórias, dominando a pedir a paz. O tratado de Campoformio
tendo o governo revolucionário proclamado a Holanda, convertida em satélite (República consolidou a sua vitória. Só a Inglaterra se
«a Pátria em perigo». A vitória francesa em Batava). A primeira coligação abria brechas. mantinha em guerra, iniciando negociações
Valmy representou, porém, uma inversão Em Basileia, a Prússia e a Espanha assinaram sem resultados práticos.
no rumo da guerra e levou à convocação de tratados de paz, exemplo seguido por alguns A partida de Bonaparte para o Egito, em
uma Convenção Nacional, que proclamou a estados alemães. Restavam a Áustria e a In- maio de 1798, para atingir os interesses in-
República. Os invasores deixaram a Fran- glaterra, que fez desembarcar em Quiberon gleses, representa uma nova fase da guerra.
ça, e os exércitos republicanos passaram à uma força de auxílio aos rebeldes monár- A tomada de Malta, a ocupação das ilhas
ofensiva, conquistando a Renânia, a Saboia e quicos. Mas foi um desastre, tal como nova jónicas e o desembarque no Egito pareciam
parte dos Países Baixos Austríacos. Luís XVI, tentativa de desembarque na Vendeia. Em consolidar as posições francesas no Medi-
entretanto deposto, foi julgado, condenado à Itália, Massena vencia os austríacos em Loano terrânio Oriental, ameaçando os interesses
morte e executado, o que levou outros países Em março de 1796, o general Napoleão Bo- otomanos, o que alarmou os russos, perante a
a juntaram-se à coligação antifrancesa. naparte assumiu o comando do exército de eventualidade de os franceses virem a contro-
A Espanha, apoiada por Portugal, abriu lar os estreitos do Bósforo e dos Dardanelos.
uma nova frente nos Pirenéus, iniciando a O czar Paulo I acolheu positivamente o pe-
Guerra do Rossilhão. Paris teve de enfrentar dido de formação de uma nova coligação
revoltas monárquicas na Vendeia, Bretanha
O general Bonaparte antifrancesa. Outro parceiro desejado era
e Normandia. Os republicanos foram obri- – que mais tarde seria a Prússia, mais preocupada com a situação
gados a abandonar os territórios ocupados. na Polónia. A coligação ficou limitada a Grã-
A Convenção proclamou a mobilização ge-
o imperador Napoleão – -Bretanha, Rússia e Áustria, recomeçando as
ral e iniciou uma dura repressão contra os entrou em cena em 1796, hostilidades em março de 1799.
inimigos internos, verdadeiros ou supostos. A segunda coligação previa uma ofensiva
Na Alemanha, Hoche foi derrotado pelos
comandando na Holanda, na Alemanha e na Suíça, e em
prussianos em Kaiserslauten, mas conseguiu o exército de Itália Itália. Um exército napolitano ocupou Roma,

26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Napoleão Bonaparte
O imperador na sua
característica pose,
num retrato pintado
por Jacques-Louis
David

Na Alemanha, a guerra também não come-


çou bem para os franceses. Ostrasch foi uma
vitória austríaca, compensada pelo triunfo
francês em Stochk. Esta frente conheceu, até
ao final do ano, as ações de Mannheim (vitória
austríaca) e Philippsburg (triunfo francês).
Uma força inglesa desembarcou na Ho-
landa, apoderando-se de quase toda a frota
da República Batava. Reforçados com duas
divisões russas, os ingleses prosseguiram a
ofensiva, derrotando as forças franco-bata-
vas, mas foram obrigadas recuar em Bergen.
Retomaram depois a ofensiva, com resultados
positivos em Egmond-aan-Zee. A falta de
coordenação entre russos e ingleses, visível
em Bergen, voltou a ocorrer em Castricum,
com nova vitória franco-batava. Russos e
ingleses assinaram a Convenção de Alkmaar.
Massena chegou à Alemanha, proveniente
da Suíça, em apoio de Jourdan. Derrotou os
austríacos em Mainfeld e Chur e deslocou
parte das suas forças para o Tirol, reunin-
do-se com o exército de Itália. Enfrentou
um vigoroso ataque austríaco na primeira
batalha de Zurique. Embora vitoriosos, os
austríacos sofrerem muitas baixas. Até agosto,
registaram-se pequenos recontros, sempre
com Massena na defensiva, retomando a
iniciativa com um ataque mal sucedido a
Zurique. Enquanto decorriam as operações
anglo-russas, o arquiduque Carlos recebeu
instruções para marchar rumo à Holanda.
O general Suvarov saiu da Itália rumo à Suíça,
mas Massena venceu os russos na segunda
batalha de Zurique. Ao saberem desta derro-
ta, os russos conservaram-se junto aos Alpes.
O arquiduque Carlos, após as derrotas de
Zurique e da Holanda, decidiu permanecer
GETTY IMAGES

na Alemanha. No balanço de 1799, a França


perdera grande parte das suas conquistas
em Itália, mas os coligados não conseguiram
logo recuperada pelos franceses, que conquis- Lecco e Cassano. Suvarov entrou em Milão atingir os seus objectivos na Holanda e na
taram Nápoles e proclamaram a República e em Turim. Mas o exército francês do sul Suíça. Descontente com a ocupação de Malta
Napolitana. Em 26 de março, ocorreram três rumou a norte, o que poderia colocar Suvarov pelos ingleses, a Rússia acabou por se afastar.
combates: Pastrengo, com vitória francesa, entre dois corpos franceses, que no entanto fo- Bonaparte regressou a França, em 9 de
Verona, indeciso, e Legnano, com triunfo aus- ram derrotados em Trebbia e Cassina Grossa. outubro de 1799, vindo do Egito. A 9 e a 10
tríaco. A sorte das armas sorriu aos coligados, A chegada de reforços do general Champion- de novembro ocorreu o golpe de Estado de
com novas vitórias em Peroba e Magnano. net não alterou a situação, continuando os «18 do Brumário», que marcou a sua as-
A chegada do exército austro-russo intensifi- austro-russos a triunfar em Novi e Genola. No censão, tornando-se primeiro-cônsul. Em
cou a pressão. A guarnição de Brescia rendeu- final de 1799, todos os sucessos de Bonaparte maio de 1800 partiu para Itália, quando os
-se; os franceses sofreram novas derrotas em em Itália tinham sido anulados. austríacos se preparavam para expulsar os

VISÃO H I S T Ó R I A 27
EUROPA // 1792-1815

franceses e para enfrentar o general Moreau na, culminando com a sua coroação como Bloqueio Continental (21/11/1806), para
na Alemanha, Suíça e Alsácia. Bonaparte imperador, a 18 de maio de 1804, passando impedir o acesso de navios britânicos aos
privilegiou a Itália, procurando encurralar os a ser conhecido por Napoleão. portos continentais. Londres respondeu,
austríacos entre o seu exército e o de Masse- Para a Inglaterra, a paz trouxe escassos destruindo a esquadra dinamarquesa e bom-
na, que sofrera vários desaires desde o início benefícios. Desde 1803 que Londres procu- bardeando Copenhaga.
de abril de 1800, acabando por se fortificar rava uma nova coligação, ao mesmo tempo Em novembro de 1807, o imperador enviou
em Génova, onde foi cercado com parte das que Napoleão se preparava para invadir as para Portugal um exército comandado por
suas forças, enquanto outras, comandadas Ilhas Britânicas; mas, para tal, havia que afas- Junot, o que levou a família real portuguesa
por Suchet, eram perseguidas pelos austría- tar a esquadra inglesa do canal da Mancha. a ausentar-se para o Brasil, para evitar ser
cos no vale do Var. Bonaparte concentrou o O plano para atrair as forças navais britânicas capturada. Em fevereiro de 1808, Portugal
exército em Genebra e ordenou a Moreau às Índias Ocidentais malogrou-se com as passou a ser considerado parte do Grande
que lhe enviasse parte do seu. Tomou Mi- derrotas da esquadra franco-espanhola no Império. Em Espanha, com José Bonaparte
lão, esperando que Massena pudesse cortar cabo Finisterra e em Trafalgar. Os ingleses no trono, começaram as insurreições anti-
as linhas de comunicações austríacas. Mas reuniam apoios: Áustria, Rússia, Suécia e francesas, que alastraram a Portugal, dando
Génova capitulou e Massena retirou-se para Nápoles. Napoleão enfrentou os austríacos início à Guerra Peninsular, com intervenção
França. Bonaparte avançou para Alessandria, na Baviera, saindo vitorioso em Ulm e amea- inglesa. Enquanto a guerra prosseguiu em Es-
vencendo a batalha de Marengo. çando Viena. A 2 de dezembro travava-se a panha até 1814, em Portugal registam-se três
Na frente alemã, Moreau derrotou os aus- batalha de Austerlitz, contra uma poderosa invasões: a primeira, em 1807-1808, terminou
tríacos em Büsingen e Hoentwiel, Engen e força austro-russa; foi uma das maiores vitó- em setembro com as derrotas de Roliça e
Stockach, Mösskirch, Biberach, Iller, Höchs- rias de Napoleão, levando a Áustria a assinar Vimeiro; a segunda decorreu entre fevereiro e
tädt e Neuburg. Esta sequência foi interrom- o Tratado de Presburgo. maio de 1809; a terceira principiou em julho
pida em Ampfing com uma vitória austríaca, A Inglaterra procurou formar uma nova de 1810 e terminou em abril de 1811, após os
compensada com novo triunfo francês em coligação com a Rússia, a Suécia, a Saxónia franceses terem sido travadas pelas Linhas
Hoenlinden. Os franceses invadiram o Tirol. e a Prússia. Os prussianos foram derrotados de Torres, ocorrendo a batalha principal no
Os austríacos não se davam por vencidos, mas em Iena e Auerstaedt, abrindo o caminho Buçaco. Após uma série de derrotas iniciais
os combates de Rosenheim, Salzburgo, Neu- para Berlim, onde Napoleão entrou. A Saxó- espanholas, com a exceção de Bailén, a sorte
marrkt, Frankenmarkt, Schanenstadt, Vöck- nia mudou de campo e aliou-se à França. da guerra inverteu-se, levando Napoleão a
labruck, Lambach e Kremsmünster foram O imperador concentrou-se no exército russo. intervir diretamente, derrotando sucessivos
vitórias francesas, com exceção de Salzburgo. Tomou Königsberg, travou a inconclusiva ba- exércitos espanhóis. Repôs o irmão José no
A Áustria assinou o Tratado de Luneville talha de Eylau (7-8/2/1807) e tomou Dantzig, trono e obrigou os ingleses a embarcar na
(9/2/1801), retirando-se da coligação. seguindo-se a incerta batalha de Heilsberg, Corunha, mas teve de regressar a França.
que obrigou os russos a recuar. Friedland No Congresso de Erfurt, Napoleão e Ale-
A perda de Olivença foi uma vitória napoleónica sobre os russos, xandre decidiram que a Rússia obrigaria a
Abriu-se então outra frente. Na Península obrigando Alexandre I a assinar o Tratado Suécia a aderir ao Bloqueio Continental, o que
Ibérica irão defrontar-se a Espanha, aliada da de Tilsit. levou à Guerra Russo-Finlandesa de 1808-
França, e Portugal, aliado da Grã-Bretanha. -09 e à divisão do território sueco, ficando
A «Guerra das Laranjas», que terminou com Os franceses em Portugal o Grão-Ducado da Finlândia para a Rússia.
o Tratado de Badajoz e a perda portuguesa Só a Grã-Bretanha e a Suécia permaneciam Formara-se, entretanto, a quinta coliga-
de Olivença, teve como momentos relevantes na coligação. Napoleão decretou então o ção (1809), com o Reino Unido e a Áustria.
a rendição de Olivença e de Juromenha, os Ocorreu então a malograda expedição de
combates de Arronches e de Flor da Rosa e Walcheren, com forças navais e terrestres
o cerco de Campo Maior. inglesas, visando a captura de Antuérpia.
O isolamento e os custos da guerra le- Aproveitando o envolvimento francês em
varam Londres à assinatura do Tratado de Espanha, os austríacos avançaram sobre o
Amiens (25/3/1802), proporcionando um ducado de Varsóvia, travando a indecisa bata-
breve período de paz na Europa. A Fran- lha de Raszyn contra os polacos. Foram estes
ça saiu em vantagem, pela devolução de Soldados acontecimentos que levaram Napoleão a dei-
territórios ultramarinos ocupados pelos napoleónicos xar a Espanha, para dirigir a contraofensiva a
Equipados
ingleses, pelo domínio de grande parte da leste. Atravessando o Danúbio, enfrentou os
como os que
Europa e pela possibilidade de Bonaparte combateram austríacos em Aspern-Essling, avançou sobre
se dedicar às reformas e à pacificação inter- em Portugal Viena e obteve uma grande vitória em Wa-

28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Batalha do Buçaco
Vencida pelos
anglo-lusos
comandados por
Wellington, foi
o maior recontro das
Invasões Francesas

gram. Frederico II solicitou a paz. O Tratado conseguiu derrotar russos e prussianos em tropas enviadas contra ele acabaram por se
de Schönbrunn marcou o apogeu do poderio Lützen e Bautzen. Enquanto se combatia lhe juntar, acompanhando-o na marcha até
napoleónico. Ruía a quinta coligação, embora ainda em Espanha, Napoleão derrotou, em Paris. As monarquias europeias organizaram
a guerra prosseguisse na Península Ibérica. Dresden, um exército aliado com o dobro dos ainda uma nova coligação, com a Grã-Breta-
efetivos, mas sofreu um desaire em Kulm. nha, a Rússia, a Prússia, a Suécia, a Suíça, a
A retirada da Rússia A batalha decisiva ocorreu em Leipzig; a «Ba- Áustria, a Holanda e vários Estados alemães.
Napoleão julgou ter chegado o momento talha das Nações» saldou-por uma derrota Napoleão recorreu a antigos combatentes e a
de resolver o problema russo. A 12/6/1812 francesa. Napoleão retirou para França, per- novos recrutas, mas o tempo não corria a seu
invadiu a Rússia com a um poderoso exército. seguido pelos aliados. Enquanto isso, forças favor. Atacou os anglo-holandeses na Bélgica,
Sucederam-se os combates, com os russos em inglesas, portuguesas e espanholas, partidas procurando derrotá-los antes da chegada dos
retirada mas oferecendo dura resistência e da Península Ibérica, entravam em França. prussianos. Ney conseguiu deter o avanço de
praticando a terra queimada: vitória france- Durante a «Campanha dos Seis Dias» Wellington, que procurava reunir-se com os
sa em Smolensk e vitória russa em Polotsk. (fevereiro de 1814), Napoleão venceu as bata- prussianos de Blücher. Os britânicos, apoia-
Napoleão enfrentou escassez de víveres e lhas de Champaubert, Montmirail, Chatêau- dos por holandeses e alemães, não resistiram
constantes ataques dos cossacos. A batalha -Thyerry e Vauchamps, mas não pôde travar ao avanço francês na batalha de Quatre Bras,
de Borodino, indecisa, causou pesadas baixas os invasores. O Tratado de Fontainebleau com baixas equilibradas em ambos os lados.
a ambos as partes, mais sensíveis aos fran- consagrou a abdicação de Napoleão, enviado O combate decisivo ocorreu em Waterloo. Ao
ceses, impossibilitados de receber reforços. para o exílio na ilha de Elba. A monarquia mesmo tempo, Grouchy travava a batalha de
Napoleão entrou em Moscovo, mas a cida- regressava à França. Parecia que a paz vol- Wavre contra os prussianos. Em Waterloo,
de foi incendiada pelos próprios russos. Era tava à Europa... a chegada dos prussianos determinou a der-
inverno. Com as linhas de abastecimento Mas Napoleão, com um grupo de milita- rota de Napoleão, que se retirou para Paris,
interrompidas; a única opção era retirar, para res, regressou a França em 28/2/1815. As acabando por abdicar de novo (22/6/1815).
salvar o exército. Os franceses retrocederam, Grouchy recuou até Paris e Davout foi derro-
assolados pelo frio, pela fome e pelos cossa- tado em Issy. Cessou, por fim, toda a resistên-
cos. Napoleão perdeu quase meio milhão cia, capitulando os franceses. Terminavam 23
de soldados.
Na desastrosa invasão anos de guerras na Europa, com repercussões
Estava em formação a sexta coligação, com da Rússia, Napoleão noutras partes do mundo.
a Áustria, a Rússia, a Prússia, a Grã-Bretanha,
a Suécia e alguns estados alemães. Apesar
perdeu quase meio * António Ventura é professor catedrático
do Departamento de História da Faculdade
de muito desfalcado em efetivos, Napoleão milhão de soldados de Letras da Universidade de Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A 29
EUROPA // 1854-1856 Posições fixas
O mortífero conflito
resumiu-se a um
sangrento cerco
de Sebastopol,
na Crimeia

protetor dos cristãos ortodoxos residentes no


Império Otomano e, sobretudo, dos lugares
santos de Jerusalém e de Belém, geográfica
e politicamente integrados nesse império.
Face a tal pretensão, os turcos viram-se num
aperto, pois já antes haviam concedido a ju-
risdição desses lugares a religiosos católicos
protegidos pela França. A tensão entre uma
Rússia ameaçadora e uma Turquia acossada
era inevitável, tanto mais que o verdadeiro

ROBERTSON/GETTY IMAGES
plano do czar era o desmembramento do
Império Otomano em proveito da Rússia,
sempre embalada pelo sonho de expansão
para o sul e para os «mares quentes». Quando
Nicolau I expôs esse projeto aos ingleses,
aos quais prometia, na partilha dos despojos

GUERRA DA CRIMEIA
turcos, o domínio do Egito e de Creta, ficando
para si o protetorado de uma Sérvia, de uma
Bulgária e de uma Roménia arrancadas ao

As trincheiras jugo da «Sublime Porta», esbarrou, porém,


num muro, pois a manutenção da integrida-
de do Império Otomano – exatamente um

de Sebastopol
tampão contra a expansão russa – era um
dos princípios sólidos da política externa do
Reino Unido. Na metafórica linguagem do
czar, a Turquia otomana era «um homem
A Rússia sempre sonhou com a expansão doente» a respeito do qual havia de «tomar
para as «águas quentes» do sul. Em meados disposições antes que morresse».
do século XIX, essa ambição gerou um grande Falhada uma tentativa diplomática russa
embate contra uma coligação ocidental junto da Turquia para regular a questão dos
«lugares santos», foi a vez de a França do
Por Luís Almeida Martins
II Império, encabeçada por Napoleão III, en-
trar da história, com o envio de uma esquadra

A
para Salamina, na Grécia recém-libertada
Crimeia está na or- Sardenha e apoiada pelo Im- do Império Otomano. Mas ainda não era
dem do dia, pela pério Austro-Húngaro, durou a guerra propriamente dita, visto que em
sua disputa entre dois anos – de março de 1854 Viena prosseguiam negociações russo-tur-
a Rússia e a Ucrâ- a março de 1856 – e teve por cas mediadas pela Áustria. A destruição de
nia. Esteve-o tam- teatro de operações essencial a uma esquadra turca pelos russos em Sinope,
bém entre 1854 e Crimeia, na época pertencente em 30 de novembro de 1853, e a entrada
1856, quando foi o principal ao Império Russo. Em termos da frota anglo-francesa no mar Negro, em
teatro de operações de uma guerra entre as práticos, o embate resumiu-se a um gigan- janeiro de 1854, puseram termo às tentativas
grandes potências europeias. No seu romance tesco e sangrento cerco montado ao porto de diálogo. Em março desse ano, o Reino
Uma Família Inglesa, Júlio Dinis coloca os militar de Sebastopol. Unido e a França declararam guerra à Rússia,
portuenses de 1855 a discutirem sobre esse O sonho russo de controlar politicamente comprometendo-se a manter a integrida-
conflito. Quatro décadas depois da derrota a península balcânica, ou de nela exercer de do Império Otomano; em troca, o sultão
de Napoleão, uma guerra internacional – a grande influência, remontava já aos finais prometeu estabelecer a igualdade de todos
primeira a ser fotografada – voltava a abalar do século XVIII e radicava no visível enfra- os seus súbditos, sem distinção de religião.
a Europa. O confronto militar, movido contra quecimento do Império Otomano (turco). A Áustria, também com interesses nos Balcãs,
o Império Russo por uma coligação forma- As origens do conflito remontam a 1853, apoiou a coligação anglo-francesa, o mesmo
da pelo Reino Unido, a França e o reino da quando o czar russo Nicolau I se declarou sucedendo com o reino da Sardenha, que,

30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Para a posteridade Esta foi a primeira guerra a ser fotografada, graças à iniciativa do inglês Robert Fenton, que se deslocou
ao teatro de operações com o seu laboratório ambulante

empenhado na unificação da Itália, pretendia lado de terra. Um ataque rápido e decidido mesmo de repelir ataques vindos do exte-
ter uma voz no xadrez internacional. levaria à conquista da cidade. Só que, na falta rior nos recontros de Balaclava, Inkermann
Antes de a contenda se fixar na Crimeia, as de um comando único e de um líder decidido, e Traktir. Exasperado, Napoleão III pensou
forças russas tinham começado por atravessar os aliados hesitaram e perderam tempo. Os em deslocar-se pessoalmente ao teatro de
o rio Danúbio e cercado Silístria, no nordeste russos puderam, pois, organizar a defesa, operações, o que não chegaria a fazer. A cer-
da atual Bulgária, mas todos os seus assaltos improvisando um sistema de fortificações ta altura, os sitiantes mudaram de tática e
foram repelidos pelos turcos. As ameaças dos feitas com terra. Para armar essas barreiras, fizeram incidir os seus ataques na fortificação
austríacos, que pareciam dispostos a junta- foram buscar uns 300 canhões à esquadra que russa de Malakoff, que em 18 de junho de 1855
rem-se aos Aliados, e o desembarque no porto tinham afundado nas águas pouco profundas conseguiram tomar parcialmente, à custa de
búlgaro (também otomano) de Varna de uma da entrada baía de Sebastopol, para impedir enormes baixas (5 mil mortos e feridos). Mas
força anglo-francesa de uns 50 mil homens o seu acesso. Concluído este dispositivo, o depois foi o regresso às trincheiras, até ao
fizeram que o exército russo retirasse. cerco transformou-se numa mortífera guer- assalto decisivo lançado por 50 mil homens
Não era questão perseguir as tropas russas ra de trincheiras, prenunciando os cenários comandados, pelo general Mac-Mahon, no
no seu território. É certo que uma coluna fran- futuros da I Guerra Mundial, condições que dia 8 de setembro. Sebastopol acabaria por
cesa ainda avançou pela Dobrudja, na zona os Aliados não tinham previsto e em que as render-se ao fim de onze meses de cerco e
do delta do Danúbio, mas foi dizimada pela tropas sitiantes foram sendo dizimadas pela ao preço de 95 mil baixas francesas e 25 mil
cólera. Foi então que, por proposta dos ingle- doença, o esgotamento e o frio. inglesas, num horror em que o frio e o tifo ma-
ses, os aliados decidiram atacar na Crimeia. Constantemente reforçados, os efetivos taram ainda mais do que as balas. A lembrar
Os russos tinham instalado em Sebastopol aliados chegaram a alcançar a cifra de 140 esta guerra, Sebastopol, Alma ou Malakoff são
um poderoso arsenal marítimo, e se este fosse mil homens, mesmo assim insuficiente para nomes que pertencem à toponímia parisiense
destruído estaria salvaguardada a segurança controlar a situação, já que Sebastopol con- Nicolau I morrera, deprimido, no decurso
de Istambul (então ainda correntemente de- tinuava a ser reabastecida pelo lado norte. da guerra, e o seu sucessor, Alexandre II acei-
signada Constantinopla no Ocidente). Acresce que os sitiantes corriam sempre o tou as condições impostas pelos Aliados. Os
risco de serem, por sua vez, cercados por tro- termos do tratado de paz, assinado em Paris
Parados no terreno pas russas de socorro. E a verdade é que, entre em março de 1856, postulavam a neutraliza-
Os russos dispunham de apenas 40 mil ho- o outono de 1854 e o verão de 1855, tiveram ção do mar Negro, a autonomia dos princi-
mens na Crimeia. Colocados nos cabeços que pados cristãos balcânicos (Sérvia. Moldávia e
dominam o rio Alma, tentaram cortar aos Valáquia) sob a garantia coletiva da Europa,
aliados – desembarcados em Eupatória – a O sonho russo a liberdade de navegação no Danúbio sob o
estrada para o porto militar de Sebastopol. controlo de uma comissão internacional e
Uma audaciosa escalada dos zuavos (soldados
de controlar a independência e a integridade territorial
argelinos ao serviço da França) impediu-os, a península balcânica do Império Otomano. A guerra da Crimeia
porém, de concretizar esse intento. marcou, pois, a falência de um projeto rus-
Poderosamente defendida na frente ma-
remontava já aos finais so, mas a vitória dos aliados ocidentais era
rítima, Sebastopol tinha defesas fracas do do século XVIII demasiado grande para ser duradoura…

VISÃO H I S T Ó R I A 31
EUROPA // 1859

Giuseppe
Garibaldi
O caudilho
e os seus
«camisas
vermelhas»
foram grandes
protagonistas
do Rissorgimento

STEFANO BIANCHETTI/GETTY IMAGES


GUERRA DA UNIFICAÇÃO DA ITÁLIA da península estava englobada no Império
Austro-Húngaro.
Uma primeira, e gorada, tentativa de uni-

Gritos de agonia ficação nacional decorrera em 1848 e 1849.


Tinham passado entretanto alguns anos e,
como se leu no texto anterior desta revista,

em Solferino
O novo Estado italiano foi dolorosamente arrancado
o reino da Sardenha decidiu alinhar com os
aliados anglo-franceses na guerra da Crimeia.
A ideia do seu primeiro-ministro, o adepto da
unificação Cavour, era «colar-se» à França do
a ferros nos campos de batalha da Lombardia Segundo Império, reforçada como grande po-
tência europeia depois da vitória na Crimeia, e
Por Luís Almeida Martins estar presente nas conversações de paz – o que
veio a acontecer, pois rubricou o Tratado de

E
Paris. E, em 1858, o imperador Napoleão III
m meados do sécu- pela Casa de Saboia, composto decidiu, de facto, ajudar militarmente Cavour
lo XIX, a península pela grande ilha mediterrânica a libertar o norte da Itália do jugo austría-
italiana era ainda um daquele nome e pelo Piemon- co, pedindo em troca a cedência à França de
mosaico de peque- te, a região do norte em torno Nice e da Saboia, então parte do Piemonte.
nos estados que não de Turim. Os outros estados Entretanto, a partir do sul da «bota» italiana,
passavam de irónicas da península eram o reino das voluntários envergando camisas vermelhas
sombras do que haviam sido os Duas Sicílias (governado por aderiam à guerra de unificação sob a liderança
seus equivalentes da gloriosa um ramo da Casa de Bourbon de Giuseppe Garibaldi, herói de uma efémera
época do Renascimento. No entanto, lavrava e que incluía a Sicília e toda a metade sul da República Romana proclamada em 1848 e um
desde 1815 um movimento conhecido por Itália), a Lombardia, o Véneto, o ducado de dos principais caudilhos do Rissorgimento.
Rissorgimento, cujo objetivo era a unifica- Módena e Reggio, o grão-ducado da Toscana, No ambiente patriótico e antiaustríaco
ção de todos eles num estado-nação italiano. o ducado de Parma e os Estados Pontifícios, gerado, sublevaram-se as populações dos
A direção das operações unificadoras seria que então ocupavam uma porção considerá- ducados de Módena e de Parma, governados
assumida pelo reino da Sardenha, liderado vel da Itália. Além disso, uma parte do norte por titulares ligados a Viena. O mesmo suce-

32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
deu na Toscana e noutros pequenos estados, Guerra Austro-Prussiana
onde as populações pegaram em armas e se
Foi neste contexto Quando a Itália unida foi proclamada, man-
juntaram ao reino da Sardenha. que o suíço Henri tinham-se ainda fora das suas fronteiras o
Véneto e Roma, o primeiro em poder dos
Franco-sardos contra austríacos Dunant deu os primeiros austríacos e a segunda sob a soberania do
Em 1859, tropas do Império Austro-Húngaro passos na criação Papa. Fracassadas conversações da Itália com
invadiram o Piemonte. A guerra franco-aus- Viena e a Santa Sé, em 1866 a Prússia entrou
tríaca, cujas operações se desenrolavam na
da Cruz Vermelha em guerra com a Áustria e prometeu ao novo
planície do Pó, caracterizou-se, no plano mi- reino o Véneto, se este alinhasse consigo.
litar, por uma certa desarticulação. Na hora Em abril de 1860 estalou uma insurreição A batalha decisiva da guerra travou-se a 3
do balanço, a campanha saldou-se por uma camponesa na Sicília, cujo comando foi assu- de julho em Sadowa, na Boémia, com vitória
série de derrotas austríacas face aos franceses mido por Garibaldi, que, com a sua verve e a prussiana. No ano seguinte, o Véneto inte-
e sardo-piemonteses. A primeira das batalhas sua figura carismática de camisa vermelha, graria a Itália.
travadas foi a de Magenta, no dia 4 de junho, chapéu de abas largas e longa barba, arrebata- Já em 1862 Garibaldi tentara, sem sucesso,
com a vitória a ser arrancada in extremis pelo va as multidões. Partido de Génova, o caudi- conquistar Roma. Repetiu a tentativa em
corpo de exército comandado pelo general lho desembarcou em Marsala, na Sicília, com 1867, mas Napoleão III, pressionado pelos
Mac-Mahon, que já antes se distinguira na um exército popular de «camisas vermelhas» católicos franceses, enviou tropas para a Ci-
queda de Sebastopol, na Crimeia. No dia 7, que ficou conhecido como «os mil de Garibal- dade Eterna e voltou a entronizar o papa Pio
o rei sardo-piemontês Vítor Emanuel II e di», e em quinze dias obteve a capitulação de IX. Mas os partidários da unificação italiana
Napoleão III entravam em Milão. Palermo. Em setembro, Garibaldi entrou em não se resignavam a ver fora do novo reino a
Perdida a Lombardia, os austríacos tenta- Nápoles, logo seguido pelo exército de Vítor histórica cidade; os obstáculos eram o exér-
ram manter o Véneto. Uma nova, e mortífera, Emanuel II, que descia do norte. Garibaldi cito francês ocupante e o Papa, seguido pelas
batalha foi travada a 24 de junho em Solfe- assumiu o poder em Nápoles, com o apoio de massas italianas católicas.
rino, entre Brescia e Verona. Derrotados, os grande parte da população, com exceção dos O obstáculo representado pela França seria
austríacos puderam mesmo assim retirar camponeses, tradicionalmente muito servis removido com a Guerra Franco-Alemã de
em boa ordem, a coberto de um temporal. face aos interesses dos latifundiários. O céle- 1870-1871. Nessa altura, as tropas francesas
No dia seguinte, Napoleão III percorreu o bre filme O Leopardo, de Luchino Visconti, que ocupavam Roma foram enviadas para a
campo de batalha, viu os cadáveres descom- baseado no romance homónimo de Giuseppe frente de combate contra os germânicos e os
postos, ouviu os gritos lancinantes dos feridos di Lampedusa, reflete esta situação. partidários da unificação italiana puderam,
e deixou-se impressionar profundamente. Embora teoricamente opositor da Casa de em setembro de 1870, ocupar a cidade. Em
Foi na sequência desta batalha que o filan- Saboia, que instituiria no novo Estado italia- março de 1871, Vítor Emanuel indemnizou
tropo suíço Henri Dunant desenvolveu lveu os no um regime monárquico, o republicano o Papa e comprometeu-se a mantê-lo como
primeiros esforços no sentido da criaçãoação de Garibaldi acabou por aceitar a exigência de chefe do Estado de um minúsculo domínio
um organismo internacional que desse esse as- Cavour no sentido de reconhecer a autoridade coincidente com o bairro ro-
sistência aos soldados feridos em combate,
mbate, de Vítor Emanuel II e de lhe mano do Vaticano.
e que viria a ser a Cruz Vermelha. entregar o reino das Duas Si- Pio IX, muito apoiado
A comoção do imperador francês contri- cílias, que conquistara. Em pelos católicos de todo o
buiu para que ordenasse o fim das operações;
rações; 17 de março de 1861, Vítor mundo, recusou, porém,
outro fator por detrás dessa decisão o foi o Emanuel foi proclamado rei ambas as ofertas, proibiu os
receio do desfecho das revoluções populares
pulares da Itália, cuja capital passou, católicos italianos de votarem
desencadeadas pela guerra; um terceiro, ceiro, e em 1865, de Turim (sede do nas eleições do novo reino e de-
talvez decisivo, foi o facto de a Prússia,sia, te- Piemonte) para Florença. No clarou-se prisioneiro voluntário
merosa de uma vitória francesa demasiado
masiado mesmo ano, a comunidade inter- do Estado italiano, ou «prisioneiro
retumbante, estar a mobilizar tropass além- nacional, com exceção do Império do Vaticano». A chamada «Questão
-Reno. O certo é que os preliminares da paz Austro-Húngaro, reconheceu o Es- Romana» só terminaria em 1929,
foram assinados prontamente em Villafran- lafran- tado italiano. quando Mussolini assinou com Pio
ca de Verona e o acordo final concluído ído em XI uma concordata que, a troco de
Zurique, em novembro. Nos termos deste, a Bandeira italiana cedências como o ensino religioso obri-
Áustria abandonava a Lombardia à França, Foi escolhido o tricolor gatório nas escolas, concretizou propos-
que se mantém
que por sua vez a cedia ao reino da Sardenha;
denha; tas formuladas seis décadas antes por
mantinha, no entanto, a posse do Véneto. neto. Napoleão III.

VISÃO H I S T Ó R I A 33
EUROPA // 1870-1871
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GUERRA FRANCO-ALEMÃ

A primeira queda de Paris


Quatro décadas antes da I Guerra Mundial, uma França decadente vergou-se
a uma Alemanha vivificada por sangue novo. Era já a antecâmara
dos grandes confrontos do século XX
Por Luís Almeida Martins

A
França de Napoleão III saíra Em setembro de 1868, os Como Bismarck previra, a
vitoriosa da Guerra da Crimeia, espanhóis tinham expulsado reação em França foi emocio-
mas o fortalecimento do reino do trono a rainha Isabel II nal e gerou protestos oficiais.
da Prússia ameaçava o equilíbrio (uma ninfomaníaca acusada A concretizar-se a coroação de
europeu. A imperatriz consorte de conduta escandalosa) e um Hohenzollern em Espanha,
da França, a espanhola Eugenia andavam à procura de um daí resultaria uma situação se-
de Montijo, sonhava com uma guerra vito- rei. Um deputado espanhol, melhante à do tempo do antigo
riosa para fortalecer o trono em benefício do decerto pago por Bismarck, império quinhentista do Habs-
príncipe imperial, seu filho, e estava sempre a avançou então com a candidatura do príncipe burgo Carlos V, ficando a França comprimida
incitar o marido nesse sentido. Do lado pru- alemão católico Leopoldo de Hohenzollern entre duas monarquias germânicas. A impe-
ssiano, o chanceler Otto von Bismarck sabia -Sigmaringen, primo de Guilherme I da ratriz Eugénia e os que com ela alinhavam
que não conseguiria concretizar a unidade Prússia. A ideia foi acolhida, e o general gritavam «às armas!», e mesmo políticos da
alemã sem antes se impor à França, e por isso Prim, chefe do governo, dirigiu um convite oposição clamaram que os franceses deveriam
concebeu um plano astucioso – que passava ao príncipe, que, instado, acabou por dar travar uma guerra nacional. O imperador
pela nossa vizinha Espanha. o «sim». mostrava-se renitente, mas os belicistas aca-

34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Destruição em Paris
Os bombardeamentos alemães
e a repressão da Comuna deixaram
terríveis marcas na cidade.
À direita, uma barricada e canhões
apreendidos pelos prussianos
e uma ambulância (em baixo)

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baram por conseguir atraí-lo para o seu lado. O telegrama de Ems Tanto bastou para que a imprensa de ambos
É certo que Leopoldo de Hohenzollern-Sig- Foram estes acontecimentos aparentemente os lados do Reno fizessem rufar os tambores
maringen, instado por Guilherme I da Prússia, inócuos que forneceram a Bismarck a lenha de guerra e para que Napoleão III se deixasse
que era mais prudente do que o seu chanceler, que acenderia a fogueira da guerra. No dia convencer pela imperatriz e pelos belicistas.
acabou por desistir da candidatura, e o mesmo 13, o chanceler recebeu em Berlim um tele- Erradamente persuadido de que o exército
fez a Espanha. Contudo, isso não impediu o grama do rei contando o que se passara em francês era o mais forte da Europa, o governo
governo francês de solicitar ao rei da Prússia Ems. Logo resolveu tirar partido da situação, de Paris obteve o apoio parlamentar e, no
garantias contra uma eventual reapresentação enviando para os jornais um texto provoca- dia 19, fez chegar uma declaração de guerra
da candidatura de um Hohenzollern ao trono dor concebido nos seguintes termos: «O rei à Prússia.
de Espanha. O pedido dessa garantia foi trans- recusou-se a receber o embaixador e mandou Foi, pois, com uma certa ligeireza que a
mitido pelo embaixador da França na Prússia dizer-lhe pelo ajudante de campo de servi- França se deixou arrastar para um conflito
a Guilherme, que nessa ocasião estava a fazer ço que nada mais tinha a comunicar-lhe.» armado que lhe seria fatal e que ficaria mar-
uma cura de águas na vila termal de Ems. O Embora relatasse os factos, apresentava-os cado pela criação do II Reich alemão e pela
monarca prussiano recebeu aí, na manhã de numa perspetiva humilhante tanto para o rei ascensão germânica no concerto das gran-
13 de julho de 1870, o embaixador Benedetti prussiano como para o embaixador francês. des potências. Abrindo a via que conduzia à
e declarou-lhe que aprovava a retirada da guerra, Bismarck – ajudado pela inabilidade
gu
candidatura de Leopoldo e que se tratava do executivo francês – uniu todos os alemães
d
de assunto que tinha que ver com a família n
numa empresa comum.
Hohenzollern e não com a monarquia prus- Ora, a França não estava preparada mili-
siana, não podendo comprometer-se quanto tarmente, pois o seu exército deixava muito
ta
ao futuro. Da parte da tarde, quando um per- a desejar. A lentidão e a desordem com que
sistente Benedetti quis voltar a ser recebido decorreu a mobilização impediram que fos-
d
por Guilherme na tentativa de obter a todo sem reunidos mais do que 264 mil homens,
se
o custo garantias, este mandou responder enquanto os prussianos e os estados germâ-
en
por um ajudante de campo que aprovava a nicos seus aliados mobilizavam rapidamente
n
desistência de Leopoldo e que nada tinha a 450 mil, sem contar com os reservistas. Ha-
4
acrescentar ao que já dissera. bituadas sobretudo a combater em guerras
b

VISÃO H I S T Ó R I A 35
EUROPA // 1870-1871

coloniais, as tropas da França do Segundo Mac-Mahon, por seu lado, tentara mar- Quando a notícia chegou a Paris, o Corpo
Império estavam pouco ao corrente das tá- char sobre Metz, para libertar Bazaine, com o Legislativo solicitou plenos poderes à impe-
ticas modernas. É certo que a espingarda exército que reconstituíra à base de reforços ratriz, agora regente, na intenção de tornar
francesa (a Chassepot) era superior à sua con- reunidos em Châlons. Napoleão III acompa- o regime parlamentar. Mas na verdade não
génere alemã, mas a artilharia possuía ainda nhava-o pessoalmente nesta tentativa ataba- houve tempo para concretizar essa mudança,
canhões de carregar pela boca, enquanto os lhoada de fazer inverter o curso da guerra. Os pois o império estava moralmente condena-
equivalentes germânicos se carregavam pela alemães, porém, atravessaram-se-lhe no ca- do, e no dia 4 de setembro uma multidão de
culatra e tinham o dobro do alcance. No que minho, barraram-lhe a passagem e forçaram- operários e estudantes invadiu o parlamento
toca aos generais, os franceses eram medío- -no a dirigir-se para o norte e a encurralar-se e proclamou pouco depois a III República
cres, muito inferiores aos alemães, cujo ex- também, neste caso em Sedan, no fundo de diante dos paços do concelho.
poente era o estratego Helmuth von Moltke. um vale mesmo junto da fronteira belga. Agora já pouca gente lê a obra de Émi-
Napoleão III, que sofria na altura de dores A 1 de setembro tentou uma surtida, mas em le Zola, mas talvez alguém recorde ainda o
provocadas por um cálculo na vesícula, estava vão, pois o tiro incessante de 700 canhões romance A Derrocada (La Débâcle), onde
desprovido de vontade de combater, num germânicos impedia que fosse lançada uma são descritas ficcionalmente as operações
perfeito contraste com Moltke e Bismarck. carga de cavalaria. No dia seguinte, às 5 da desta campanha militar e o fim do Segundo
No dia 17 de julho, os estados do sul da tarde, os franceses ergueram uma bandeira Império. Mais leitores estarão lembrados de
Alemanha declararam-se ao lado da Prússia, branca e Moltke exigiu a capitulação sem que, no último capítulo de O Crime do Padre
no esforço de guerra. A França, por seu lado, condições. Napoleão III foi feito prisioneiro, Amaro, de Eça de Queiroz, as personagens
não encontrou aliados e viu-se sujeita a ter com 100 mil homens. lamentam a situação em que se encontrava
de combater sozinha. a França, farol que guiava então os rumos da
cultura e da emoção portuguesas.
Campanha fulgurante
Foram os germânicos a tomar a iniciativa A guerra da República
militar, invadindo a França. Dos dois exércitos Depois de conversações que não deram em
franceses, comandados por Mac-Mahon e por nada entre Bismarck e o novo ministro fran-
Bazaine, o primeiro foi derrotado a 4 de agosto cês (republicano) dos Negócios Estrangeiros,
na batalha de Wissemborg e, dois dias depois, Jules Favre, no dia 15 de setembro, as tropas
em Froeschwiller, não obstante uma vistosa germânicas puderam avançar sem qualquer
mas já algo obsoleta carga de couraceiros, ou dificuldade para Paris e pôr cerco à cidade.
seja, cavalaria munida de couraças. A França Na capital francesa, o governo provisório
perdia a Alsácia, onde só em Estrasburgo (até da República organizou a resistência, mas a
28 de setembro) e em Belfort (durante toda a cidade, bloqueada, mal protegida por fortifi-
guerra) a bandeira tricolor continuava a dra- cações já obsoletas que datavam do reinado
pejar, nesta última praça-forte sob o comando de Luís Filipe, quatro décadas antes, começou
de Denfert-Rochereau. Mac-Mahon retirou por sofrer primeiro de fome e depois os efeitos
para Nancy e Châlons-sur-Marne. dos bombardeamentos alemães. O ministro
No mesmo dia 6 de agosto, o general Fros- do Interior, Léon Gambétta, conseguiu eva-
sart, que comandava a vanguarda do segundo dir-se da cidade por via aérea, utilizando um
exército gaulês, era derrotado em Forbach, balão, e organizar a resistência na província.
porque Bazaine, com quem não se entendia, Assim, um exército formado a sul de Paris,
não lhe enviara socorros. Com a Lorena inva- na região do Loire, sob o comando, primeiro
n
dida, Bazaine, em vez de avançar, manobrava d
de Aurelle de Paladines e depois de Chan-
no sentido de recuar de Metz para Verdun. Os zy, obteve uma vitória sobre os alemães em
alemães, contudo, barraram-lhe o caminho em m Coulmiers, no dia 9 de agosto, mas mais não
Borny no dia 14, em Rezonville e Gravelottee conseguiu do que controlar a zona que vai
no dia 16 e em Saint-Privat a 18. Incapacitado de Orleães a Le Mans. Um outro exército
sequer de recuar, sem espírito de iniciativa, republicano, constituído no norte e coloca-
Bazaine deixou-se encurralar em Metz com as do às ordens de Faidherbe, após ter batido
suas tropas e viria a capitular a 17 de outubro. os alemães em Bapaume foi derrotado em
Soldados prussiano e francês
Depois da perda da Alsácia, a França ficava Em baixo, a espingarda Chassepot Saint-Quentin, entre os dias 18 e 19. Um
também sem a Lorena. com as respetivas munições terceiro exército, arregimentado no leste e

36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A unificação política da Alemanha foi a con-
sequência imediata desta guerra. Antes mesmo
da capitulação de Paris, Bismarck negociara
com os príncipes da Alemanha do Sul a entrada
destes numa nova entidade chamada Império
Alemão (Deutsches Reich), que na história fi-
guraria como o II Reich (sendo que o primeiro
tinha sido o antigo Sacro Império Germânico
e o terceiro haveria de ser o de Hitler). E, a
18 de janeiro de 1871, sempre ainda antes da
queda formal de Paris, numa luzida cerimónia
simbolicamente organizada, para humilhação
da França, na Galeria dos Espelhos do Palácio
de Versalhes, os príncipes germânicos oferece-
ram ao rei Guilherme I da Prússia a coroa de
«imperador alemão» (não «da Alemanha»). A
Constituição do novo estado era a mesma da
Confederação da Alemanha do Norte, agora
estendida aos estados do sul (sendo, curiosa-
mente, de realçar o paralelismo com a futura
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absorção da República Democrática Alemã pela


República Federal da Alemanha, em 1990).
Só a Baviera conservava uma situação espe-
Barricada da Comuna Pedras arrancadas da calçada e um canhão na esquina cial, mantendo um exército, uma diplomacia
da Place de l’ Hotel de Ville com a Rue Rivoli
e serviços ferroviários e de correios próprios.
O Tratado de Frankfurt, assinado entre
comandado por Bourbaki, foi derrotado sem representantes dos governos de Berlim e
apelo nem agravo em Héricourt e teve de Crescimento de Paris em 10 de maio de 1871, obrigava a
passar a fronteira para a Suíça. França a pagar à nova Alemanha uma pesada
Por seu turno, os defensores de Paris,
da Prússia indemnização e arrancava-lhe as províncias da
alimentados com carne de cão e de gato Na Guerra dos Ducados, em Alsácia e (parcialmente) da Lorena, de cultura
vendida em talhos autorizados a comer- 1864, a Prússia e a Áustria germânica e disputadas ao longo dos séculos.
aliaram-se contra a Dinamarca,
ciá-la, tentaram por várias vezes furar o Estes territórios anexados ao Reich não foram
venceram a batalha de Dybbol
cerco, mas viram falhar todas as tentati- e apoderam-se do Scheswig- integrados em nenhum principado germâni-
vas. Numa delas, que decorreu entre 30 -Holstein, território do istmo co, sendo considerados «terras do império».
de novembro e 2 de dezembro sob um frio da península da Jutlândia até A França viveria, no imediato, dias difíceis.
intenso, o general Ducrot logrou apode- então vinculado à coroa de Entre 18 de março e 20 de maio de 1871, o
rar-se de Champigny, a leste da cidade, Copenhaga. Desentendimentos movimento de massas conhecido por Co-
mas não conseguiu ir mais longe e teve de entre Berlim e Viena acerca da muna de Paris governou a capital, até ser
administração dessa conquista
bater em retirada depois de ter perdido sangrentamente reprimido pelo exército que
serviram, em 1866, de pretexto
10 mil homens. Uma outra tentativa ocorreu para uma guerra entre os capitulara face aos alemães, ao preço de pelo
a 19 de janeiro de 1871, a oeste de Paris, aliados da véspera, travada menos quase 6700 mortos confirmados e
tendo as tropas francesas sido travadas pelos em território da Boéma e que enterrados e de muita destruição de edifícios.
alemães em Buzenval. A seguir, favorecida a Prússia venceu, destruindo o A nova Alemanha unificada, essa pairava
pela miséria e pela fome, estalou uma forte exército austríaco na batalha nas nuvens, exercendo a hegemonia na Euro-
agitação de extrema-esquerda, sempre sob de Königgrätz e assegurando pa continental e desafiando e ultrapassando
os bombardeamentos alemães dos arredores. a hegemonia sobre a atual a poderosa Inglaterra vitoriana no concerto
Alemanha, comprometendo
Paris acabaria por capitular a 30 de janeiro. das nações. Mas nem tudo eram rosas, pois
os estados germânicos mais
Depois do descalabro do II Império em Se- pequenos a unirem-se a ela na o Reich voava para as duas guerras mundiais
dan, era agora a vez de a França republicana guerra travada contra a França que se seguiriam nas sete décadas seguintes
se considerar também vencida. em 1870-1871. e que se lhe revelariam fatais.

VISÃO H I S T Ó R I A 37
EUROPA // 1877-1878

GUERRA RUSSO-TURCA permanecerá latente e será uma das causas


da I Guerra Mundial.

O inexorável recuo
A Rússia do czar Alexandre II, empenhada
na «libertação» dos povos ortodoxos ainda
subjugados pelo «homem doente da Euro-

otomano
pa», envolveu-se nesta nova guerra com a
«Sublime Porta» em condições diplomáticas
muito favoráveis. À neutralidade manifestada
pela monarquia dual da Áustria-Hungria e
Foi o culminar de um conflito que desde o século XVII da Alemanha de Bismarck correspondia a
opunha os dois impérios e que reflete o declínio turco na posição reservada da França e da Itália.
Europa e a gradual expansão russa para o mar Negro, Apenas o Reino Unido se oporá ao re-
forço da influência russa nos Balcãs, com o
Balcãs e sul do Cáucaso então primeiro-ministro Benjamin Disraeli
Por Pedro Caldeira Rodrigues a considerar os interesses britânicos da
região em perigo, sobretudo o controlo do

E
A guerra russo-turca de estratégico estreito de Dardanelos, movido
m dezembro de 1877, 1877-1878, com assinalável pela necessidade de impedir a Rússia de
após sangrentas ba- envolvimento dos romenos, ter acesso aos «mares quentes».
talhas e um cerco de sentenciou o início do recuo Alheia a estas considerações geoestratégi-
cinco meses a Pleven, definitivo do Império Otoma- cas, a ofensiva das forças russas registará de
o general turco Os- no na região dos Balcãs, que início grandes progressos na zona oriental
man Pasha entrega a será confirmado algumas dé- balcânica. No início do verão de 1877 atra-
sua espada ao general Mihail cadas depois. Para o império vessam a Roménia, transpõem o Danúbio
Cerchez Cristodulo, comandante das tropas dos czares, tratava-se de recuperar as perdas e abrem caminho para o sul da Bulgária.
romenas, e aceita as condições de rendição. territoriais registadas durante a Guerra da Estes avanços provocaram crescente ten-
As forças aliadas russas e romenas garantiam Crimeia (ler texto nesta revista), restabele- são em Londres, com o chanceler alemão
uma vitória decisiva com a tomada desta cer-se no mar Negro e apoiar os movimentos Bismarck a apaziguar os ânimos e a propor
estratégica fortaleza situada no norte da políticos de libertação das emergentes nações uma partilha total dos domínios otomanos
Bulgária, e o início da libertação deste país balcânicas. pelas potências europeias.
balcânico do prolongado jugo otomano. A inesperada derrota inicial dos russos na
Após a decisiva vitória russo-romena, es- A ‘Questão do Oriente’ conquista da fortaleza de Pleven, com a perda
tava aberto o caminho para Sófia, com a en- Contudo, a «Questão do Oriente» – a abor- de milhares homens em sucessivas vagas de
trada das duas tropas aliadas na cidade em dagem diplomática das potências europeias assalto, implicou um prolongado cerco de
4 de janeiro de 1878, para Andrinopla (atual face à possibilidade de desmembramento do quase cinco meses (de 20 de julho a 10 de
Edirne), e para a cobiçada joia de Constan- Império Otomano e centrada nas disputas dezembro), com o envio de contínuos reforços
tinopla (Istambul) que a «Sublime Porta» em torno do controlo dos seus territórios, e a participação do exército do príncipe Carlos
(símbolo do poder otomano) tinha extraído com particular atenção dirigida à situa- da Roménia (futuro Carlos I), após o país ser
à cristandade oriental em 1453. ção das minorias religiosas e nacionais –, utilizado como rota de trânsito pelos russos.

38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Batalha de Pleven A vitória russa e a conquista
da cidade, após um cerco de cinco meses, foi
determinante para a libertação da Bulgária

PLEVEN PANORAMA

A anunciada capitulação turca, a rejeição recebe parte da Dobrudja (junto ao Danúbio), e o lago Ohrid e região circundante a oeste,
pelo czar Alexandre II de uma mediação bri- em troca do sul da Bessarábia (zona da atual na atual fronteira com a Albânia. Surgia a
tânica e a comparência dos derrotados pe- Moldávia), integrada na Rússia. grande Bulgária, e a Turquia europeia ficava
rante o comando russo e romeno, suscitaram O czar decide por sua vez prescindir de par- praticamente aniquilada.
a apreensão em Londres, capital do maior te da indemnização acordada, mas garantirá No entanto, novas deliberações serão ado-
império do mundo submetido à rainha Vitória. a posse, entre outras localidades, de Batumi e tadas no Congresso em Berlim – que decorreu
Disraeli proporá a ingerência dos austría- Kars, na região do Cáucaso do Sul, enquanto durante um mês, entre 13 de junho e 13 de
cos, que recusam em nome de um anterior a Bulgária é contemplada com o estatuto de julho de 1878 –, convocado sob pressão dos
tratado firmado com a Rússia, prometendo principado autónomo, um príncipe eleito e o britânicos, para os quais San Stefano tinha sido
apenas agir caso os russos violassem esse direito de manter um exército. particularmente favorável a uma Rússia que
acordo. Por fim, russos e turcos concluíram A mais importante provisão do tratado permanecia uma força inimiga em clima de ace-
um acordo de armistício em 31 de janeiro de relacionava-se com a extensão territorial so patriotismo inglês contra o império czarista.
1878, que previa uma ocupação pelas forças deste novo principado, que passava a incluir As negociações entre participantes (Rús-
russas de territórios turcos quase até aos li- a maior parte da Macedónia. À exceção de sia, Turquia, Reino Unido, Áustria-Hungria,
mites de Constantinopla, suscitando nova e Constantinopla, Andrinopla e Salónica, o Alemanha, França e Itália) culminam no
profunda irritação em Londres. novo principado autónomo ocupava virtual- tratado de julho de 1878, que decreta um
mente todo o território entre o Danúbio, a principado autónomo para a Bulgária, ainda
Intervenção britânica norte, o mar Negro, a leste, o mar Egeu, a sul, sob soberania otomana, confirma o reconhe-
Logo em 12 de fevereiro, Disraeli ordena à fro- cimento da independência do Montenegro
ta britânica que parta rumo a Constantinopla. e o aumento do seu território, as indepen-
Os navios ancoram no lado asiático do mar dências da Sérvia e da Roménia e ainda a
de Mármara, enquanto os soldados russos transferência dos diversos territórios do
se concentram em San Stefano, a menos de leste da Turquia para a Rússia.
20 quilómetros da grande cidade cobiçada, As fronteiras búlgaras e o início da persis-
com os navios de Sua Majestade a rondarem tente influência da Rússia na região balcânica
nas proximidades. são limitadas tanto quanto possível, enquanto
Este equilíbrio precário é interrompido o Reino Unido assume o controlo de Chi-
quando turcos e russos decidem assinar o pre – até então possessão otomana –, numa
Tratado de San Stefano (atual Yesilkoy), uma compensação pelos apoios político e militar
cidade a oeste de Constantinopla, junto ao fornecidos por Londres à «Sublime Porta».
mar de Mármara, em 3 de março de 1878. No entanto, a nova recomposição terri-
O tratado previa a aplicação de reformas
A «Sublime Porta» torial desta região do sudeste europeu, que
na Bósnia-Herzegovina, contemplada com continua a ser um anuncia o fim de quase cinco séculos de do-
um estatuto de autonomia no interior do mínio otomano e um significativo aumento
império turco, também forçado a pagar ele-
símbolo de quase cinco da influência russa, apenas permanecerá em
vada indemnização. A Sérvia e o Montenegro séculos de domínio vigor durante 34 anos, quando a região en-
obtêm a independência total e alargam, em tra de novo em profunda convulsão no que
continuidade, os seus territórios. À Roménia
otomano no sudeste ficou designado pelas Guerras Balcânicas
é também concedida a independência total e europeu de 1912-1913.

VISÃO H I S T Ó R I A 39
EUROPA // 1912-1913

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bitragem e a evitar o reinício e o alastramento
GUERRAS BALCÂNICAS do conflito. No final, foi divulgado o Relatório
da Comissão Internacional que Inquiriu sobre

Um ‘puzzle complicado’
De início, os aliados da Liga Balcânica opõem-se a um
as Causas e a Conduta das Guerras Balcânicas,
publicado em fevereiro de 1914 nos Estados
Unidos e em França, apenas cinco meses antes
do assassínio do arquiduque Francisco Fer-
nando em Sarajevo, que detonará a I Guerra
Império Otomano em recuo na Europa; de seguida, Mundial. Nele destacam-se três palavras: ex-
entram em choque as antigas forças coligadas – tudo termínio, emigração e assimilação.
em vésperas da I Guerra Mundial Entre o outono de 1912 e o início do verão
Por Pedro Caldeira Rodrigues de 1913, e apesar de apenas se ter prolongado
por dez meses, um conflito particularmente

‘O
sangrento vai opor de início os jovens Estados
s turcos fogem Na segunda metade de balcânicos ao Império Otomano. As Guer-
dos cristãos, 1913, no rescaldo das guerras ras Balcânicas culminam com um confronto
os búlgaros balcânicas, uma missão in- entre antigos aliados, mais curto mas com
fogem de gre- ternacional financiada pela profundas e quase imediatas consequências
gos e turcos, fundação norte-americana na região e em toda a Europa.
os gregos e Carnegie Endowment for O seu balanço será sangrento: 200 mil
turcos fogem dos búlgaros, International Peace (CEIP) e mortos e centenas de milhares de feridos
os albaneses fogem dos sérvios, e se, entre presidida pelo diplomata e senador francês nas fileiras dos vários exércitos, excluindo
sérvios e búlgaros, a emigração não tem este Paul d’Estournelles de Constant, prémio a população civil, para além de dezenas de
caráter geral, é porque as suas nações ainda Nobel da Paz em 1909, promove um trabalho milhares vitimados pela cólera, o tifo ou a
não se terão reencontrado com os seus pró- de investigação nos Balcãs. disenteria. O campo de batalha estendeu-se
prios territórios e porque aquele que convém Para além da tentativa de alargar a influên- por cerca de 170 mil quilómetros quadrados,
às duas, a Macedónia, é por elas considerada cia e a autoridade da instituição, o projeto da costa albanesa, no ocidente dos Balcãs, a
já povoada pelos seus congéneres.» destinava-se a avaliar as possibilidades de ar- uns escassos 35 quilómetros de Istambul, a

40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Primeira Guerra, 1912 Movimentação de tropas
da Segunda Liga Balcânica na fronteira entre
a Bulgária e a Sérvia (à esquerda)
e retaguarda do exército turco no norte
da Grécia (à direita)
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leste; e do norte da fronteira da Macedónia Já a Segunda Guerra Balcânica, originada


até à Tessália, na Grécia Central.

O primeiro embate
A Primeira Guerra Balcânica iniciou-se em
2
Número de guerras
200 mil
Militares mortos
pelo «ataque preventivo» das forças búlga-
ras contra os sérvios em finais de junho de
1913, estendeu-se por pouco mais de um mês.
Culminou num autêntico desastre para a Bul-
balcânicas, nos dois
8 de outubro de 1912, quando o pequeno gária, que tinha proclamado a sua indepen-
em 1912 e 1913 conflitos
reino do Montenegro declarou guerra a um dência em 1909, e também em importantes
Império Otomano em refluxo e assolado benefícios para a vizinha Roménia, quase
por problemas internos. Dez dias depois, os ausente nestas novas guerras de conquista.
aliados Sérvia, Grécia e Bulgária, membros
da Segunda Liga Balcânica, juntam-se ao
conflito. Desta vez, a Roménia ficará de fora.
170 mil
quilómetros quadrados
No primeiro conflito regional, a ação con-
certada dos quatro aliados – seguidos de perto
pelas grandes potências europeias, também
A reação da Sérvia à decisão da monarquia envolvidas numa complexa política de alian-
Tamanho do campo de batalha
Austro-Húngara de anexar a Bósnia-Herze- ças e num intenso jogo diplomático – forçou
govina em 1908 – com importantes popula- as forças otomanas a envolverem-se em qua-

436 mil
ções sérvias que mantinham o estatuto de tro guerras distintas: contra os búlgaros na
«protetorado» deste império central desde Trácia; contra búlgaros, sérvios e gregos na
o Congresso de Berlim – , também explica Macedónia; contra sérvios e montenegri-
o surgimento da Segunda Liga. E a Guerra Soldados turcos envolvidos nos no norte da Albânia e no Kosovo; contra
Ítalo-Turca de 1911, com a invasão italiana na 1ª guerra balcânica gregos no sul da Albânia. A Macedónia e
de Trípoli, na atual Líbia, será outro alento a Trácia foram as regiões mais devastadas
para a formação da nova aliança regional. pelas batalhas, massacres, limpezas étnicas e
A supremacia militar dos quatro Estados
balcânicos, todos monárquicos e de religião
ortodoxa (que mobilizam 715 mil homens),
face ao exército turco (436 mil soldados de
500 mil
Homens mobilizados
deslocamentos forçados de populações.

Laboratório das potências


Esta ação militar conjunta, destinada à «li-
início), foi decisiva no decurso das seis sema-
na Bulgária, em 1912 bertação das populações cristãs» do secular
nas de hostilidades. domínio da «Sublime Porta» e à concreti-

VISÃO H I S T Ó R I A 41
EUROPA // 1912-1913

zação de ambições territoriais, confirmará dar, enfrenta a maior concentração de tropas quia aceita um armistício com a Sérvia (que
a fragilidade das forças otomanas. Mas os turcas em Kumanovo, no norte da Macedónia. tinha avançado até ao oeste da Macedónia)
Balcãs também vão servir de laboratório para O segundo exército entra pela Bulgária em e com a Bulgária, com as suas tropas a 35
a medição de forças entre as grandes potên- direção ao leste da Macedónia, para flanquear quilómetros de Istambul. Mas a Grécia recusa
cias e com reflexos a nível local, onde decorre as forças turcas, que são derrotadas em Mo- juntar-se ao acordo de paz, porque pretendia
uma importante recomposição. nastir com dezenas de milhares de prisioneiros. prosseguir o cerco a Ioannina, no Epiro, e o
O momento é oportuno devido às preocu- O Kosovo foi o objetivo do terceiro exército bloqueio das costas otomanas.
pações militares da decadente «Sublime Por- sérvio, enquanto o último se dirigiu a Novi Este novo cenário conduz à conferência
ta» com a rebelião nas províncias albanesas Pazar para unir os territórios da Sérvia e do de Londres, iniciada em 16 de dezembro de
dos Balcãs, e no exterior (guerra com a Itália Montenegro através deste distrito (o Sandjak). 1912, onde as grandes potências (Alemanha,
em 1911 e capitulação na Líbia e em diversas Na Trácia, extremo sudeste da Europa, dois Áustria-Hungria, Reino Unido, França, Itália
ilhas no sul do Egeu), ou à turbulência interna exércitos búlgaros dirigem-se para a fortale- e Rússia) tentam manter a sua influência con-
após a crescente influência do movimento za de Lozengrad (atual Kirklareli, noroeste tra qualquer tentativa dos Estados balcânicos
nacionalista dos Jovens-Turcos organizados da Turquia) e Adrinopla (atual cidade turca de negociar uma paz separada.
do Comité União e Progresso (CUP) e envol- de Edirne), e assolam as fortificações que Em 1 de janeiro de 1913, a fragilizada «Su-
vidos na «revolução constitucional» de 1908. constituem a última linha de defesa antes blime Porta» apresenta as suas propostas
Em causa estavam os arranjos territoriais de Constantinopla (Istambul). de paz, em particular relacionadas com o
acordados no Tratado de Berlim de 1878 sob Uma descoordenação no comando oto- estatuto de Adrinopla, antiga capital im-
pressão do Império Britânico, agora questiona- mano, reorganizado a partir de 1895 pelo perial, que com Scutari e Ioannina ainda
dos pelas populações dos novos Estados balcâ- general alemão Colmar von der Goltz a pe- permaneciam sob cerco.
nicos, que exigiam mais conquistas territoriais. dido o sultão Abdulhamid, implicará a queda Apesar de admitirem a cedência de territó-
A Primeira Guerra balcânica foi uma ope- da «inexpugnável» Lozengrad em três dias. rios na Trácia ocidental, os delegados turcos
ração-relâmpago. A Bulgária mobilizou 25% Os gregos, que avançam sob o comando do insistiram que a vilayet de Adrinopla, com
da população masculina, perto de 500 mil príncipe herdeiro Constantino, desbaratam e algumas retificações de fronteiras, deveria
homens. Foi uma guerra de trincheiras e de perseguem os turcos ao longo da fronteira co- permanecer possessão otomana com estatuto
cercos impiedosos, de ataques de artilharia mum, libertam Salónica e desfilam na cidade autónomo. Uma pretensão rejeitada pelas
contra infantaria mal equipada. As atrocida- no dia do seu santo padroeiro, Demétrios. São potências, que numa nota exigiram a entrega
des são generalizadas e não pouparam idosos, recebidos com rosas por uma população grega da cidade aos búlgaros.
mulheres, crianças, casas, animais. em delírio na cidade onde nasceu Mustafa Os termos da capitulação têm consequên-
Após as forças montenegrinas terem for- Kemal «Ataturk», então um Jovem-Turco cias internas na Turquia, com um golpe de
çado as defesas turcas no norte da vilayet de 31 anos e futuro fundador da República Estado palaciano fomentado pelos Jovens-
(província) otomana da Albânia, em rebe- Turca em 1923. -Turcos contra o regime liberal de Kamil Paxá.
lião, os restantes países da aliança balcânica Em apenas alguns meses, os turcos per- De novo no poder, o CUP rejeita os termos
aguardaram uma semana antes de lançarem diam a quase totalidade das suas possessões das grandes potências, os Estados balcânicos
um ataque generalizado em diversas zonas europeias, à exceção de quatro cidades: denunciam o armistício, e a guerra recomeça,
do território otomano. Constantinopla (designada Istambul des- mas com um balanço mais pesado para a
Quatro exércitos sérvios avançaram então de 1926), Andrinopla (atual Edirne), Scu- «Sublime Porta».
para sul, ao longo do vale de Vardar. A principal tari (na Albânia) e Ioannina (na Grécia). Após prolongado cerco, Adrinopla é con-
força de ataque, dirigida pelo príncipe Aleksan- A 3 de dezembro de 1912,
1912 uma esgotada Tur- quistada pelas forças búlgaras, Ioannina cai
para os gregos e Scutari para os montene-
grinos. Com o reinício das negociações de
Parte dos tterritórios sob paz, os turcos apenas conseguem garantir
domínio otomano foi como possessões europeias Constantinopla,
com as linhas defensivas de Çatalca, e uma
percorrid
percorrida pelo futuro estrita faixa territorial ao longo do Estreito
revoluc
revolucionário russo dos Dardanelos e do Bósforo entre o mar
Negro e o mar de Mármara.
Lev Trotski, um
u dos muitos O armistício entre a Turquia e os aliados
jornalist
jornalistas no terreno balcânicos é concluído em abril, e no dia 30 de
maio de 1913 é finalmente assinado o Tratado
de Londres, que põe termo definitivo à Primei-

4
42 VISÃO H I S T Ó R I A
Batalha de Adrinopla
Perdida para os
búlgaros em outubro de
1912, a cidade viria a ser
recuperada pelos turcos
em setembro do ano
seguinte

À Bulgária era apenas concedida uma pe-


quena porção da Macedónia e um trecho
da costa da Trácia, como recompensa pelos
seus esforços na Primeira Guerra Balcânica.
Numa iniciativa paralela, Sófia assinava
a 29 de setembro, com os turcos, o Trata-
do de Constantinopla, pelo qual a Turquia
recuperava grande parte da Trácia oriental,
incluindo Adrinopla e Kırklareli, onde tinha
sofrido amarga derrota em outubro de 1912,
garantindo presença em território europeu.
O relatório da CEIP também notou que este

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conflito «não envolvia apenas os exércitos,
mas as próprias nações (...) e por isso estas
guerras foram tão sanguinárias, porque ori-
ginaram enormes perdas de vidas humanas,
ra Guerra balcânica. Para além das perdas já a posterior adesão do Montenegro. Na Bulgá- e terminaram na aniquilação da população e
confirmadas, o estatuto da Albânia e das ilhas ria, após os seus triunfos à custa dos turcos, na aniquilação de regiões inteiras». O seu ob-
turcas do mar Egeu será deixado à considera- aumentavam as reivindicações para a anexação jetivo, fomentado por um nacionalismo parti-
ção das potências europeias. Tudo prenunciava de todo o território da Macedónia, onde os gru- cularmente agressivo, consistia no «completo
o fim da presença turca na Europa. pos locais pró-búlgaros permaneciam muito extermínio da população estranha».
ativos. Sófia mantinha ressentimentos com a Parte destes territórios que permaneciam
Aliados em guerra captura grega de Salónica, enquanto ressurgia sob domínio otomano serão percorridos neste
De imediato, surgem dissensões entre os an- o sonho do ancestral grande império búlgaro. período pelo futuro célebre revolucionário
tigos aliados, relacionadas com a partilha dos Na sua obstinada atitude beligerante, a russo Lev Trotski (1879-1940), um dos mui-
despojos. Uma parte do território que caberia Bulgária rejeitará a mediação da Rússia tos jornalistas no terreno, e incluídos na sua
à Sérvia, no âmbito do tratado servo-búlgaro, czarista, ameaça ocupar todo o território da correspondência de guerra para o jornal de
estava agora reservado à nova Albânia, que Macedónia, e à meia-noite de 30 de junho esquerda ucraniano Kievskaia mysl (Pensa-
anunciara a sua «independência» em dezem- de 1913, sem declaração de guerra, lança um mento de Kiev). Na sua correspondência de
bro de 1912 sob pressão externa de Viena e ataque duplo na Macedónia, com o objetivo guerra (As Guerras Balcânicas 1912-13), o
de Berlim, que pretendiam impedir o acesso de separar as forças aliadas gregas e sérvias. revolucionário bolchevique defronta-se com
de Belgrado ao mar Adriático. A Segunda Guerra Balcânica, que durou problemas com a censura militar búlgara,
Assim, os sérvios reivindicavam como com- um mês (junho-julho de 1913) e foi descrita denuncia a supressão das reportagens sobre
pensação uma fatia mais vasta da Macedónia, como «a campanha mais curta e mais san- atrocidades cometidas contra soldados, civis
pretensão de imediato recusada pela Bul- guinária», isolou totalmente a Bulgária, con- turcos e outros povos balcânicos de religião
gária. Em paralelo, o tratado greco-búlgaro frontada com um imediato contra-ataque da muçulmana e protesta contra a tentativa de
omitia qualquer referência à Macedónia, e os Grécia, da Sérvia, do Montenegro e ainda da tornar os correspondentes de guerra estran-
dois Estados colidiam em torno do controlo Roménia e da Turquia. geiros porta-vozes da propaganda búlgara.
da região de Salónica. Por sua vez, e em re- Sem qualquer possibilidade de vencer o Trotski denunciará ainda a imprensa russa,
compensa pela sua neutralidade, a Roménia conflito, Sófia é forçada a aceitar um armistí- «reacionária ou liberal», pela «conspiração
exigia uma parte da Dobrudja, território junto cio em 31 de julho, concluído com um tratado do silêncio» sobre as atrocidades cometidas
ao Danúbio e controlado pela Bulgária após de paz entre as nações balcânicas, firmado em pelos eslavos dos Balcãs contra os turcos,
o Congresso de Berlim de 1878. Bucareste a 10 de agosto de 1913. ou pelos registos sensacionalistas sobre as
Uma situação que se torna ainda mais com- A Grécia integrava Salónica, Kavala e atrocidades cometidas pelos turcos contra
plexa devido à persistência dos atritos entre as grande parte da costa da Macedónia. À Sér- os cristãos.
potências, em particular entre a Áustria-Hun- via foi concedida a parte central e norte da O rescaldo das Guerras Balcânicas é pesado
gria (monarquia dual desde 1867) e a Rússia, Macedónia, incluindo a cidade de Monastir. para a Bulgária e para Turquia, que perde
que implicam uma rápida deterioração das A Roménia garantiu a Dobrudja, com uma grande parte do seu território europeu. No
relações entre os aliados balcânicos. estratégica fronteira do Danúbio ao mar ano seguinte, os dois países tentariam a sua
Sérvia e Grécia reforçam as relações, assi- Negro, enquanto o Montenegro alargava li- «vingança», quando eclode a Primeira Guerra
nam um tratado em junho de 1913 e garantem geiramente as suas fronteiras, até à Sérvia. Mundial.

VISÃO H I S T Ó R I A 43
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44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Na trincheira Militares aliados
deixam-se fotografar durante uma
pausa nos combates, em 1914

I GUERRA MUNDIAL

SIMPLESMENTE,
A GRANDE GUERRA
Começou com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando , herdeiro
do trono de Viena, mas a causa mais profunda foi a desintegração
do Império Austro-Húngaro devido aos nacionalismos
Por João Vieira Borges*

VISÃO H I S T Ó R I A 45
EUROPA // 1914-1918
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N 1 750 mil
a história da hu- semelhança de Joseph Nye,
manidade, nunca preferimos analisar as causas
Número
tinha havido uma em termos do sistema político de mortes
guerra tão des- internacional, do nível interno por país Alemanha
truidora, tão mor- das sociedades e, finalmente,
tífera (cerca de 15 dos líderes.

1 250 mil 112 mil


milhões de mortos), que en- Ao nível da política inter-
volvesse todas as formas de coação e tantos nacional, de hegemonia inglesa desde 1815
atores de todos os continentes, e daí a de- e com a Rússia e a França como grandes po-
signação de Grande Guerra, como se nunca tências, o mundo assistiu ao crescimento do Áustria-Hungria Est. Unidos da América
mais pudesse haver uma outra semelhante. poder alemão, em especial na sua dimensão

1 500 mil 900 mil


No entanto, os mecanismos de cooperação militar, mas também à crescente rigidez das
então criados não foram suficientes para pre- alianças. Com o desenvolvimento económico
venir e impedir algo de semelhante, e assim, acelerado do final do século XIX, a criação
em 1939, o mundo assistiu ao desencadear de Estados fortemente intervencionistas na
França Grã-Bretanha (Império)
de uma nova guerra (ou à continuação da economia, no campo social e na educação,

600 mil 100 mil


anterior), de enormes dimensões e grau de a par do crescimento de movimentos so-
destruição. Foi assim que a Grande Guerra ciais e políticos, foi-se criando na Europa
passou a denominar-se I Guerra Mundial, ou um ambiente de desconfiança e de que era
Guerra de 1914-1918. Este conflito, já então inevitável uma guerra, em especial por par-
Itália Bulgária
entendido como a continuação da política te da Alemanha. Essas rivalidades entre os

300 mil 1 750 mil


por outros meios, com destaque para o uso da estados europeus, provenientes dos choques
força militar e o empenhamento dos povos, de ambições imperialistas, verificavam-se
dos exércitos e dos governantes, pode ser lida sobretudo entre a Alemanha por um lado
através das causas, da conduta da guerra e e a Inglaterra e a França pelo outro. A Ale-
Roménia Rússia
das suas consequências. manha, que vinha transformando parte da
Quais foram, então, as causas da Grande sua força industrial em capacidade militar,

50 mil 30 mil
Guerra? incluía um programa de armamento naval
Sendo impossível isolar uma só, faremos poderoso, que incomodava particularmente
um resumo das principais, naturalmente a Inglaterra, entretanto aliada da França,
relacionadas entre si, e que no seu conjunto que por sua vez tinha a Rússia como aliada Sérvia Turquia
nos dão uma visão do mundo em 1914. E à (a conhecida «Triple Entente»).

46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Campo de batalha Soldados
britânicos, no bosque
de Polygone (Bélgica) e em
Somme (França), atacam
posições alemãs, com granadas
e gases

Ao nível interno das sociedades, é impor-


tante destacar as crises internas nos impérios
Austro-Húngaro e Otomano, ambos em fase
de declínio. Ameaçados pelo nacionalismo,
que se traduziu, por exemplo, na guerra dos
Balcãs de 1912, tinham na Sérvia a grande
ameaça. E, assim, a Áustria acabaria por
entrar em guerra contra a Sérvia, nem tan-
to devido ao assassinato do seu arquiduque
Francisco Fernando e da esposa, mas porque
pretendia enfraquecer a Sérvia, impedindo-a
de se tornar num polo de atração do nacio-
nalismo, apoiado pela Rússia. Como refere
Joseph Nye, «a desintegração de um império
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por causa do nacionalismo foi a causa mais


profunda da guerra; o assassinato de Fran-
cisco Fernando, um pretexto».
Relativamente aos líderes, é opinião gene-
ralizada que a mediocridade foi dominante, a
Armamento e nacionalismos o Império Otomano mas também o Aus- par de uma influência muito grande da parte
As quatro potências optaram então por tro-Húngaro, ambos possuidores de vastas dos militares «guerristas» sobre os políticos.
uma corrida armamentista, que levou a populações eslavas. Se na Alemanha crescia O imperador austro-húngaro, Francisco José,
Alemanha a fortalecer as suas relações o ódio nacionalista aos eslavos, o nacionalis- era um homem idoso e muito influencia-
com a Áustria-Hungria, criando assim dois mo nos dois impérios era mais forte do que do pelo general Franz Conrad, marechal de
polos pouco flexíveis, que levaram à per- o socialismo, que unia na altura as classes campo e chefe de Estado-Maior do Exército,
da dos então denominados equilíbrios de trabalhadoras, ou do que o capitalismo, e pelo conde Leopold Berchtold, ministro
poder, que sustentavam a paz nos últimos que unia os banqueiros e parte dos quadros dos Negócios Estrangeiros. Na Rússia, o czar
40 anos (a «complacência da paz» – e o superiores. Assim, os alemães passaram a Nicolau II «era um autocrata isolado que des-
pensamento dos líderes de que as guerras hostilizar os russos em torno da questão da pendia a maior parte do seu tempo a resistir
seriam curtas e decisivas). Na mesma altura Turquia e dos Balcãs, e os franceses acerca à mudança no país (…) servido por ministros
exponenciavam-se os nacionalismos, desig- do protetorado de Marrocos. Cercados pelas dos Negócios Estrangeiros e da Defesa incom-
nadamente na Europa de Leste e ligados aos grandes potências, os alemães assumiram petentes e (…) fortemente influenciado pela
movimentos pan-eslavistas, que ameaçavam o risco da guerra. esposa, doente e neurótica». Entretanto, o
Kaiser Guilherme II «era um fanfarrão, um
homem fraco e extremamente emocional»
Vista em corte de uma trincheira que conduziria a Alemanha para a guerra,
Nem sempre era possível construir esta trincheira ideal. sem qualquer habilidade ou consistência.
Com água a 60 cm de profundidade em vários pontos do terreno, Em geral, os regimes, pouco preocupados
muitas delas eram menos fundas, obrigando os combatentes com o povo e mais com as ambições políti-
a caminhar agachados. O estrado de madeira era escorregadio cas, davam ampla liberdade de decisão aos
e provocou inúmeros acidentes que incluíram fracturas dirigentes políticos e aos Estados-Maiores, o
RETAGUARDA FRENTE que levou ao crescimento dos exércitos como
SACOS DE AREIA garantia de segurança e, depois, a uma guerra
longa no tempo e no sofrimento.
Os eventos mais diretamente relacionados
REVESTIMENTO DE MT/AR/VISÃO

CHAPA ONDULADA, com a guerra são normalmente associados


2m

a 28 de junho de 1914, aquando do assas-


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MADEIRA OU
GRADEAMENTO DE FERRO MUNIÇÕES E GRANADAS sinato do arquiduque Francisco Fernando,
DEGRAU PARA DISPARO herdeiro do trono austríaco, e de sua esposa,
FOSSA PARA CONTER em Sarajevo, pelo estudante bósnio Princip,
Na linha da frente Combatentes
A ÁGUA E A LAMA ESTRADO DE MADEIRA
franceses em Itália membro da organização secreta Unidade ou

VISÃO H I S T Ó R I A 47
EUROPA // 1914-1918

Sopwith Camel
Soldado francês de 1914 O avião emblemático
da Força Expedicionária
A cor vermelha das calças em breve Britânica
seria considerada desadequada

Espingarda Lebel e baioneta


Usada pelos franceses, revelou-se longa
de mais para as trincheiras

Metralhadora ligeira Lewis


A arma de tiro cadenciado mais Metralhadora pesadaVickers
utilizada pelos soldados portugueses Guarneceu as trincheiras
anglo-lusas

Morte (a responsabilidade do governo sérvio (com prazo de 18 horas), exigiu à França que A Grande Guerra, que envolveu todos os
no atentado era só indireta). se tornasse neutral se ocorresse uma con- recursos, com destaque para a mobilização
Dias depois, a 6 de julho, a Alemanha frontação entre a Alemanha e a Rússia, a humana e para a inovação tecnológica, teve
assegurou o apoio incondicional à Áustria par da entrega à Alemanha das fortalezas de várias frentes (fundamentalmente a ocidental
(«carta branca»). Entre 20 e 23 de julho, o Verdun e Toul. E a 1 de agosto a Alemanha e a oriental), mas seria decidida pela entrada
presidente francês, Henri Poincaré, e o pri- mobilizou o seu exército e declarou guerra à dos EUA, após incidentes navais e o anúncio
meiro-ministro, René Viviani, renovaram os Rússia. Dois dias depois declarou guerra à de uma guerra submarina indiscriminada
pactos de aliança russa em São Petersburgo. França e a 3 e 4 de agosto as tropas alemãs por parte dos alemães. A rutura das relações
Nesse mesmo dia, a Áustria-Hungria lançou invadiram a Bélgica, que se havia oposto à diplomáticas deu-se a 3 de fevereiro de 1917,
um ultimato de 48 horas à Sérvia, exigindo a travessia do seu território pelo exército ale- e só a 6 de dezembro do mesmo ano os EUA
condenação das ações levadas a cabo contra o mão, solicitada por Berlim no dia 2. A 6 de declararam guerra à Alemanha (e à Áustria-
Império e a participação de polícias austríacos agosto, a Sérvia declarou guerra à Alemanha -Hungria no dia seguinte), ainda a tempo
e sérvios na investigação sobre o assassinato. e a Áustria-Hungria à Rússia. E a 11 e 12, a de determinar o sentido da vitória e da paz.
Dois dias depois, a resposta sérvia alegou a França e a Inglaterra declararam guerra à
violação da sua soberania nacional e decretou Áustria-Hungria. Em menos de dois meses, Uma guerra estática
a mobilização parcial. Entretanto, a Áus- com uma escalada incontrolável, a Europa e Em termos militares, a Grande Guerra foi
tria-Hungria cortou relações diplomáticas o mundo encontravam-se, pois, assumida e essencialmente uma guerra de trincheiras,
e acionou a mobilização parcial, enquanto a inevitavelmente em guerra. de arame farpado, de metralhadoras e de
Rússia decidiu apoiar a Sérvia. Seguiu-se uma guerra total como nunca artilharia, que arrasou toda uma geração de
Apesar da intenção de mediação por par- antes se vira, com intervenção de outros ato- jovens, maioritariamente europeus. Contra
te de ingleses e alemães (conferência de res, com destaque para o Japão, a Turquia, a as expectativas iniciais, foi uma guerra longa,
embaixadores, negociações diretas entre a Itália, a Roménia, a Grécia e os EUA. dominada pela proteção em detrimento do
Rússia e a Austro-Hungria), a 28 de julho a movimento. Após um curto período de mo-
Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia. vimento no teatro de operações europeu, o
Era o ponto de não retorno. Dois dias de- equilíbrio das forças em presença e o aumento
pois deu-se a mobilização geral do exército A Alemanha, vexada considerável de metralhadoras obrigaram os
russo e no dia seguinte a Áustria-Hungria exércitos de ambas as partes a enterrarem-se
decretou a mobilização geral. A Alemanha nos tratados, iria em posições defensivas (depois das Batalhas
proclamou então o perigo de «uma guerra vingar-se, dando de Alsácia e de Marne). O destaque foi então
iminente» e dirigiu um ultimato à Rússia para a fortificação, com largo emprego do
exigindo que fosse suspensa no prazo de 12 origem à II Guerra arame farpado, para os ataques em massa em
horas a mobilização geral. Noutro ultimato Mundial em 1939 vagas sucessivas, para a guerra de minas, para

48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Fokker triplano
O mítico aparelho
do Barão Vermelho
Soldado alemão de 1914
A farda seria simplificada
nos anos que se seguiram

Granadas
Utilizadas por alemães
e franceses,
respetivamente

Carro de assalto britânico MarkI


O primeiro blindado não resolveu
o problema da guerra de trincheiras

Canhão alemão Dicke Bertha


Concebido para bombardear
posições inimigas partir de longe

A Ucrânia na guerra
a utilização de gases tóxicos (em Ypres), para a 28 de junho de 1919 um tratado que impôs
o emprego generalizado da artilharia (Ver- condições muito duras à Alemanha. Foi tam-
dun e Somme) e, já no final, para os carros bém definido o estatuto da Sociedade das Durante a Grande Guerra, a Ucrânia
de combate (utilizados pela primeira vez no Nações, organização que seria «chumbada» fazia parte da Rússia. Entretanto,
Somme mas em reduzida quantidade) e para pelo Senado dos EUA, em clara oposição ao a revolução de 1917 alteraria a
as aeronaves (na sua fase inicial). seu presidente, tendo como fundamento a posição da Rússia no conflito.
A guerra tornara-se impopular
Neste período verificou-se um extraordi- relutância em ceder parte da soberania em
entre o povo, devido às imensas
nário desenvolvimento do armamento, em troca da segurança coletiva. perdas humanas e, assim, Leon
quantidade, alcance, precisão e capacidade Na realidade, a Grande Guerra marcou a Trotsky e o governo bolchevique
de destruição, tanto ao nível da artilharia, transição da hegemonia inglesa para a ameri- pressionaram a França e o Reino
como do armamento individual (espingar- cana. E a Alemanha, vexada nos tratados, iria Unido para que se iniciasse, em
das, pistolas-metralhadoras e granadas de vingar-se, dando origem à II Guerra Mundial conjunto, o processo de paz. Não
mão) e do coletivo (metralhadoras e mor- em 1939. Entretanto, sucederam-se as revo- tendo obtido respostas, avançou
separadamente. E assim, através do
teiros). Por outro lado, a guerra naval teve luções e as guerras civis, as «sociedades de
humilhante Tratado de Brest-
um papel importante, em especial no mar do massas», com uma democracia de base alar- -Litovsk, assinado no início de 1918,
Norte e no mar Báltico, com destaque para gada, as ditaduras de esquerda (bolchevista) a Rússia abriu mão de exercer a
a guerra submarina e de minas. Foi também ou de direita mais ou menos musculadas e o soberania sobre grande parte do
o período do nascimento das modernas teo- despertar do movimento anticolonial. Nesta território ucraniano, mas também
rias da guerra de guerrilhas e insurrecional, perspetiva, a Grande Guerra só terminaria da Finlândia, dos países bálticos,
protagonizada por Lawrence da Arábia no em 1945, «com um intervalo de vinte anos, da Polónia, da Bielorrússia, dos
distritos turcos de Ardaham e Kars
Médio Oriente e por Lettow-Vorbeck na marcados por mais de 80 revoluções, guerras
e do distrito georgiano de Batumi.
África Oriental. civis, guerras convencionais e irregulares». O tratado viria a ser anulado com
Em especial no teatro europeu, foi consa- a derrota dos Impérios Centrais,
* João Vieira Borges é major-general do Exército
grada a atuação defensiva sobre a ofensiva, o e presidente da Comissão Portuguesa de História no final da guerra, permitindo que
que não tinha precedentes na história militar. Militar a Finlândia, a Estónia, a Letónia, a
E daí os números elevadíssimos de baixas Lituânia e a Polónia se tornassem
Para saber mais: independentes, ao contrário da
de ambas as partes, com batalhas com mais AAVV, Portugal na 1ª Guerra Mundial: Uma História Bielorrússia e da Ucrânia, que se
de 1,3 milhões de mortos, como no Somme. Militar Concisa, CPHM, 2018. Aniceto Afonso e Carlos
Matos Gomes, Portugal e a Grande Guerra 1914-1918, envolveram na Guerra Civil Russa,
O armistício teria lugar a 11 de novembro de QuidNovi, 2010. António José Telo, O CEP: os militares acabando por serem novamente
1918, tendo por base os 14 pontos do presiden- sacrificados pela má política, Fronteira do Caos, anexadas ao território russo e
2016. Nuno Severiano Teixeira, Francisco Contente
te dos EUA, Woodrow Wilson. No final da Domingues, João Gouveia Monteiro, História Militar incorporarem a URSS, criada
conferência de paz, em Versalhes, foi assinado de Portugal, A Esfera dos Livros, 2017. em 1922.

VISÃO H I S T Ó R I A 49
EUROPA // 1914-1918

Mortos em combate
ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR

Os primeiros portugueses
foram sepultados em
cemitérios ingleses, mas
mais tarde foi construído
o cemitério de Richebourg
só para eles

A participação portuguesa
A que ficou a dever-se a entrada de Portugal na guerra? Existem várias ordens
de respostas, correspondentes a diferentes teses, que até podem ser complementares
Por João Vieira Borges

N
o início da Grande Guerra, a nova pós-guerra, nem que fosse para negociar a implantação da República, em 1910, que
República Portuguesa encontra- aquelas colónias à mesa dos tratados finais. o novo regime se debatia com a falta de go-
va-se numa situação de grande Esta questão constituiu um fator de mobili- vernabilidade e com a instabilidade política.
fragilidade interna, mas também zação muito importante, na prática o único E assim, um pequeno partido, radical, isolado
internacional, ameaçada pela Es- que reuniu grande consenso por parte da internamente, que tinha entrado em conflito
panha no continente e pela Ale- sociedade portuguesa. com a Igreja, com o Exército, com o mundo
manha nas colónias. A Inglaterra, enquanto A segunda tese tem relação com o prestigio rural, com a Inglaterra e como todos os mo-
grande potência marítima e antiga aliada de de Portugal e a conquista de um lugar no con- derados portugueses e que governava com
Portugal, representava a esperança da salva- certo das nações da época. Nesse sentido, era mão de ferro, tendo como principal apoio civis
guarda dos interesses nacionais. Então, qual importante afastar o «perigo espanhol» do armados que dominavam as ruas de Lisboa,
a razão da entrada de Portugal no conflito? quadro peninsular. No entanto, a Inglaterra, optou pela beligerância «para se perpetuar».
A historiografia nacional justifica-a em torno enquanto potência marítima, não podia ga-
de três teses. rantir a fronteira terrestre de Portugal, como As frentes africanas
A primeira resume-se ao facto de Portu- fizera na antinapoleónica Guerra Peninsular. Justificada a entrada na guerra através de
gal ter querido desta forma proteger as suas Por isso foi tão importante entrar na guerra ao um relatório oficial do governo, a conduta da
colónias em África (em especial Angola e lado da Inglaterra, em face da neutralidade da mesma teve lugar em dois teatros de opera-
Moçambique), que eram alvo de cobiça por Espanha, garantindo um lugar diferenciador ções (África e Europa) e em três frentes de
parte da Alemanha, mas também de alia- do país vizinho no pós-guerra. batalha (Angola, Moçambique e Europa),
dos como a França, a Inglaterra e a Bélgica. A terceira tese acrescenta aos dois fatores numa altura em que que o instrumento mili-
A própria resistência inicial da Inglaterra à de ordem externa um fator de ordem interna, tar português não estava preparado nem era
entrada de Portugal na guerra tinha relação ou seja, a necessidade de consolidação política adequado. As Forças Armadas da República,
direta com os seus interesses coloniais no e de legitimação nacional do regime. Desde sustentadas numa nova lei de recrutamento

50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Os portugueses teriam instrução prévia no
teatro de operações e receberiam novos siste-
mas de armas antes de serem enviados para a
frente. Na sequência de vários problemas com
as tropas portuguesas (rendições, armamento,
logística, disciplina, etc.), o comandante do
CEP, general Tamagnini de Abreu e Silva, só
assumiu o comando em novembro de 1917.
Entretanto, bombardeamentos e assaltos às
linhas portuguesas tiveram lugar entre feve-
reiro de 1917 e abril de 1918. E foi a 9 de abril
de 1918 que teve lugar a conhecida batalha de
La Lys, que começou com um enorme bom-
bardeamento sobre as tropas portuguesas.
Nesta derrota militar, que se transformaria
ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR

em vitória política no âmbito mais global da


Grande Guerra, as baixas do CEP (em que «os
militares foram sacrificados pela má política»)
foram da ordem dos 1341 mortos, 4226 feri-
dos, 1932 desaparecidos e 7740 prisioneiros.
Visita de Estado Bernardino Machado e Afonso Costa inteiram-se do estado dos feridos
Portugal participaria na conferência de
paz, em Versalhes, representado, em momen-
militar («nação em armas»), tinham sido quência do «milagre de Tancos», o Corpo tos diferentes, por conhecidos negociadores
alvo de reformas militares desde 1911, mas a Expedicionário Português (CEP), inicial- como Egas Moniz, Afonso Costa e Betten-
maioria delas sem sucesso, seja ao nível da or- mente com duas divisões num total de 55 court Rodrigues. A posição lusa foi então
ganização ou do equipamento e armamento. mil militares, seria transportado por navios centrada no sacrifício da vida humana, nos
Nos anos de neutralidade assumida, entre britânicos e portugueses e depois por com- custos do empenhamento na guerra e na
1914 e 1916, já Portugal combatia nas frentes boio para o sul da Flandres, concretamente manutenção da integridade do império. Tudo
de Angola e Moçambique, na sequência dos para o vale do rio Lys, entre Armentières, La isto foi importante para salvaguardar os inte-
primeiros incidentes militares, em agosto de Bassée, Merville e Béthune. resses do País no concerto das próprias nações
1914, em Maziúa, no norte da colónia do Índi- aliadas, em face dos interesses conflituantes
co. Seguiram-se os ataques alemães a Naulila dos EUA, Reino Unido, Bélgica, França e
e Cuangar, em Angola, e depois o combate de África do Sul.
Naulila, em dezembro. Foram mobilizados Os portugueses desfilariam na festa da
contingentes para as duas frentes, onde se vitória, sob o Arco do Triunfo, em Paris. No
destacaram comandantes como Alves Ro- entanto, é importante sublinhar que a partici-
çadas, Massano de Amorim e Pereira d’Eça. pação de Portugal na Grande Guerra dividiu
Várias batalhas tiveram lugar neste teatro de os portugueses e não pode ser circunscrita à
operações (para o qual os portugueses esta- dimensão militar. As consequências foram
vam mais preparados, apesar dos erros e das demasiado pesadas nos planos económico,
elevadas baixas por doença), assumidamente político, diplomático, militar e social, e cul-
secundário no âmbito da guerra total, mas minariam no dia 28 de maio de 1926, com a
estratégico para Portugal no que respeita à instauração de uma ditadura que só termi-
ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR

integridade do império. naria a 25 de abril de 1974.

Para saber mais:


Um debate nacional AAVV, Portugal na 1ª Guerra Mundial: Uma História
A participação de Portugal no teatro de ope- Militar Concisa, CPHM, 2018. Aniceto Afonso e Carlos
Matos Gomes, Portugal e a Grande Guerra 1914-1918,
rações europeu foi bem mais discutida inter- QuidNovi, 2010. António José Telo, O CEP: os Militares
namente, tendo sido liderada pelos «jovens Sacrificados pela Má Política, Fronteira do Caos, 2016.
Nuno Severiano Teixeira, Francisco Contente
turcos» próximos do Partido Democrático. Corpo Expedicionário Momento Domingues, João Gouveia Monteiro, História Militar de
A preparação das tropas foi difícil e, na se- de descontração numa trincheira Portugal, A Esfera dos Livros, 2017.

VISÃO H I S T Ó R I A 51
EUROPA // 1917-1923

GUERRA CIVIL RUSSA derrotadas pelo exército revolucionário.


A 9 de dezembro, dia de São Jorge, patro-

‘Vermelhos’
no da Rússia, os «vermelhos» tomaram –
efemeramente – a cidade de Rostov, no sul
do país, no decurso de uma batalha de seis

contra ‘brancos’
dias, naquele que foi considerado o primeiro
grande confronto da guerra civil. Na altu-
ra, as frentes não estavam bem delineadas
nem os exércitos se mostravam organizados.
Duas Rússias confrontaram-se sob o radar As deserções eram frequentes, principalmen-
das potências estrangeiras: a bolchevique, te na época das colheitas agrícolas.
A 23 de fevereiro de 1918, Rostov, entre-
dos camponeses, e a privilegiada, dos oficiais tanto perdida, foi tomada de assalto pela
Por Clara Teixeira segunda vez. Novocherkassk, antiga capital

A
dos cossacos, situada nas margens do Don,
guerra civil que de 1918, o núcleo central do caiu dois dias depois. O controlo bolchevi-
se seguiu à Re- Exército Vermelho era forma- que sobre o sul parecia garantido, e Lenine
volução de Ou- do por paramilitares da Guar- apressou-se a declarar o fim da guerra civil.
tubro de 1917 foi da Vermelha e por unidades Mas o conflito ainda mal começara.
particularmente pró-bolcheviques, mas no fi- A Marcha do Gelo, como ficou conhecida a
violenta. O ve- nal do conflito representava retirada de 4 mil oficiais e soldados do Exér-
lho mundo imperial desaba- já uma imensa força de mais cito Branco foi, para o historiador britânico
ra e o socialismo pretendia de 5 milhões de combatentes, Orlando Figes, o episódio «mais épico» da
transformar o país mais vasto do mundo, na sua maioria camponeses. A escassez de guerra civil russa. No livro A Tragédia de
mas, para que esse ideal se concretizasse, os oficiais fez com que Lenine e Trotski en- um Povo, A Revolução Russa 1891-1924 (ed.
bolcheviques (ou «maioritários»), liderados tregassem o comando militar a membros Dom Quixote, 2017), Figes descreve como o
por Lenine, ainda teriam de lutar contra os do antigo exército imperial incorporados à grupo dos «brancos» se tornou coeso para
opositores internos. A governação futura da força, apesar das críticas do próprio Partido sobreviver à travessia das estepes geladas.
Rússia, então muito desgastada pela I Guerra Bolchevique. Em certas unidades, as táticas Sem dinheiro nem provisões, espalharam o
Mundial, encontrava-se em aberto. de guerra eram decididas pelos soldados atra- terror nas aldeias que atravessaram mas, sob o
A seguir ao assalto ao Palácio de Inverno, vés do voto por braço no ar. Os «brancos», comando do general Kornilov e, depois da sua
em Petrogrado (cidade mais tarde redenomi- pelo contrário, tinham excesso de oficiais e morte, em abril de 1918, do general Denikin,
nada Leninegrado e, a seguir, São Petersbur- escassez de soldados. conseguiram reconstruir uma força na frente
go), sede do governo provisório liberal saído O primeiro combate travou-se em no- sul, com o apoio dos cossacos.
da Revolução de Fevereiro de 1917, a Rússia vembro de 1917 em Petrogrado, com as tro- Perante a pressão militar das tropas alemãs
dividiu-se entre revolucionários «vermelhos» pas «brancas» do general Krasnov a serem envolvidas na I Guerra Mundial, Lenine in-
e contrarrevolucionários «brancos». O Exér- cumbiu Trotski de negociar um acordo de paz
cito Vermelho constituía o braço armado dos com as Potências Centrais (impérios Alemão,
bolcheviques, enquanto o Exército Branco Austro-Húngaro e Otomano e a Bulgária).
se assumia como uma mola agregadora das O Tratado de Brest-Litovsk, que permitia
forças contrarrevolucionárias, que incluíam a saída da Rússia do conflito e o fim da sua
conservadores em geral, liberais defensores aliança com a Grã-Bretanha e a França, seria
dos ideais de Fevereiro, nacionalistas, monár- assinado a 3 de março de 1918. Os dois alia-
quicos sonhadores com o regresso do regime dos ocidentais ainda tentaram convencer os
dos czares e até militantes de correntes so- Um plano para bolcheviques a continuarem a guerra contra
cialistas rivais dos bolcheviques. O ódio que a Alemanha mas, quando perceberam que
nutriam pelos «vermelhos» encaminhou-os
assassinar Lenine foi isso não iria suceder, transferiram o seu apoio
para sul do rio Don, a fim de se reagruparem descoberto pela Tcheka, para os contrarrevolucionários. Com a coni-
para combaterem. vência de diplomatas em Moscovo, os serviços
Organizado por Lev Trotski, indigitado
a polícia política secretos britânicos chegaram a elaborar um
comissário (ministro) da Guerra no início do novo regime plano para assassinar Lenine, mas a trama

52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Baixas em combate Durante o conflito, terão morrido 10 milhões de russos. A Sibéria (na foto) foi um dos palcos mais sangrentos

viria a ser descoberta pela Tcheka, a polícia cos detinham vastos interesses económicos. O Exército Vermelho, assim como a temível
política do novo regime. Mesmo com o apoio do exterior, os contrar- Tcheka, a polícia política dos revolucionários,
A partir da segunda metade de 1918, a revolucionários estavam numa encruzilhada. contribuíram para a vitória, mas o fator deci-
guerra civil entrou numa nova fase. A re- De acordo com a historiadora Sheila Fitzpa- sivo terá sido a participação dos camponeses,
tirada dos alemães de território russo, após trick, em A Revolução Russa (ed. Tinta da que representavam cerca de 80% da popu-
a assinatura do acordo de paz, permitiu ao China, 2017), os exércitos «brancos» ope- lação. Na Rússia, nenhum regime poderia
Exército Vermelho concentrar-se em der- ravam independentemente uns dos outros, vingar sem resolver a questão da terra. O facto
rotar o inimigo interno. No verão de 1918, sem uma liderança clara, enfrentando sérias de os «brancos» reconhecerem as aspirações
Petrogrado fora atacada por uma formação dificuldades para manter os territórios con- dos antigos proprietários rurais das terras
«branca», liderada pelo general Yudenich, e a quistados. Além da perseguição dos «ver- ocupadas fez desequilibrar a balança para o
capital transferida para Moscovo. Os «bran- melhos», tinham também de enfrentar os lado dos bolcheviques.
cos» tinham feito avanços significativos no sul chamados exércitos «verdes» – bandos de No final da guerra civil, o caos social e o
(designadamente na Ucrânia e na Crimeia) camponeses e cossacos não leais a nenhum colapso da economia forçaram Lenine a um
e também na Sibéria, e acreditavam numa dos dois lados do conflito. «recuo estratégico», com a introdução da
vitória esmagadora sobre os bolcheviques, Nova Política Económica (NEP) por oposição
com o apoio da França e da Grã-Bretanha. Ucrânia aniquilada ao «comunismo de guerra». Os bolcheviques
Contudo, os países ocidentais estavam Em dezembro de 1919, restavam apenas pretendiam abolir a propriedade privada e
exaustos com o esforço militar despendido uns milhares de combatentes ao lado do introduzir monopólios estatais na produção
durante a I Guerra. Alguns políticos, como o movimento. A cidade de Kiev cairia a 17 de e na distribuição, mas as reformas foram
então deputado e ministro britânico Winston dezembro, forçando o recuo dos «brancos» adiadas a pretexto de reconstruir o aparelho
Churchill, defendiam uma cruzada contra o para Odessa e para a Crimeia. Pouco depois, produtivo e alimentar a população. Só em
comunismo, mas outros temiam que a vitória sucumbiriam a uma última ofensiva no Don. 1920 e 1921, as mortes causadas pela fome
dos «brancos» representasse o regresso das Faltava resolver a questão da Ucrânia, onde o e pelas doenças ultrapassaram as vítimas da
velhas ambições imperialistas russas. anarquista Nestor Makhno formara uma for- I Guerra e da guerra civil na Rússia. Mas a
Apesar das hesitações, nenhuma potên- ça «negra» para libertar a região dos russos. maioria dos membros do Partido Bolchevique
cia queria perder influência sobre o desti- Em finais de 1920, o chamado Exército Negro não aceitou o regresso do «capitalismo de
no da Rússia, qualquer que ele viesse a ser. seria finalmente aniquilado pelas tropas fiéis Estado» e continuou a defender uma agricul-
Países como os EUA e o Japão optaram por a Lenine, e no ano seguinte, a guerra conhe- tura coletivista. A construção do socialismo
uma intervenção mais robusta no conflito, ceria um desfecho a favor dos bolcheviques, na futura URSS foi um processo doloroso e
participando, no início de 1918, num corpo embora algumas batalhas isoladas ainda te- demorado, que não terminou com o fim da
expedicionário na Sibéria, onde os nipóni- nham prolongado o conflito até 1923. guerra civil.

VISÃO H I S T Ó R I A 53
EUROPA // 1936-1939

GUERRA CIVIL DE ESPANHA mico, como era o caso do norte de Marrocos,


uma zona habitada pelas aguerridas tribos
rifenhas, que não aceitaram de bom grado

O conflito das paixões


O grande confronto do país vizinho de Portugal
a imposição de um protetorado sobre o seu
território. Em 1909, as tribos começam a ata-
car os colonos e o exército espanhol responde
com uma série de ações punitivas, iniciando
opôs duas conceções do mundo e foi uma uma guerra larvar que culmina na batalha
de Annual, em 1921, quando um exército
antecâmara e um ensaio geral da II Guerra Mundial
espanhol foi chacinado às mãos das forças
Por Ricardo Silva lideradas por Abd El-Krim. Mais de 12 mil
espanhóis perderam a vida numa matança de

E
proporções épicas e de novo a Espanha era
ra o império onde 1898, com os Estados Unidos a alvo de chacota nas chancelarias europeias.
o sol não se pu- derrotarem a Espanha, que de A redenção que os nacionalistas espanhóis
nha, iluminando as uma assentada perdeu Cuba, as esperavam encontrar em África acabou por
montanhas do Peru Filipinas, Guam e Porto Rico. ter o efeito contrário e reavivou os naciona-
quando anoitecia Com o orgulho ferido pelas lismos catalão e basco, que representavam
em Madrid. Porém, humilhações sofridas nas Amé- um sério risco para a integridade do Estado.
como todos os impérios, o es- ricas, começou a ganhar força Se a política externa acumulava desaires,
panhol também entrou numa decadência que um nacionalismo irredentista que almejava, internamente a situação não era melhor.
culminaria em autêntico desastre no século tardiamente, recriar o império em África, A Espanha fragmentava-se politicamente e
XIX, quando a revolta nas colónias ameri- numa altura em que as grandes potências os golpes militares sucediam-se em catadupa.
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canas levou a guerras de independência que europeias já tinham retalhado aquele conti- Em 1923, o rei Afonso XIII apoiou a ditadura
acabaram com os domínios sobre a América nente entre si. Sobravam apenas as regiões do general Primo de Rivera, enquanto so-
Central e do Sul. O golpe final chegou em mais agrestes e de menor potencial econó- nhava com a reconstrução do império e com

54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
de África domina rapidamente o território.
No dia seguinte a ação alastra à metrópole,
com os militares a saírem dos quartéis com as
armas em punho e os milicianos falangistas
a iniciarem uma repressão sem precedentes.
A violência indiscriminada seria utilizada
para aterrorizar o povo espanhol e forçá-lo à
inação, com esquadrões da morte a executar

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autarcas e líderes sindicais da oposição, mas
também homens e mulheres comuns pelo
Guernica A cidadezinha basca foi arrasada «crime» de se terem envolvido na luta pelos
pelos aviões alemães da Legião Condor; direitos dos trabalhadores. Numa herdade
à esquerda, o célebre quadro de Picasso em Salamanca, um aristocrata chamado Gon-
zalo de Aguilera y Munro ordenou aos seus
cai a ditadura, no ano seguinte tomba a mo- capatazes que alinhassem os trabalhadores,
narquia, e em 1934 as Astúrias são palco de selecionou seis e executou-os pessoalmente,
uma revolução de esquerda, com os mineiros para servirem de exemplo aos restantes. Agui-
a enfrentarem o exército. lera y Munro era amigo do rei Afonso XIII,
Em fevereiro de 1936, a Frente Popular conde de Alba de Yeltes, capitão do Exército
ganha as eleições e o governo começa a apli- e serviu como oficial de imprensa de Mola e,
car um programa progressista que visava mais tarde, de Franco.
proteger os direitos dos trabalhadores, lai-
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cizar a sociedade e limitar o poder das elites Uma guerra incivil


conservadoras. A reação da direita não tar- Apesar da violência, os rebeldes não conse-
dou, e no seio do Exército começa a germinar guiram vencer em todo o lado. Em Madrid,
uma conspiração para acabar de vez com a os golpistas foram cercados no Quartel de
a tão desejada União Ibérica, acabando por democracia e impor uma ditadura militar. Montanha e massacrados; em Barcelona os
reforçar o extremar de posições que levou à Os generais Mola e Sanjurjo idealizam um militares foram derrotados nas ruas pelas for-
ascensão de forças políticas antagónicas, com golpe que deveria impor-se pela brutalidade, ças de segurança e pelas milícias anarquistas.
os anarquistas e os comunistas à esquerda, e com a eliminação física de todos os que se lhe Em muitos casos, os militares recusaram-se
os fascistas da Falange mais os monárquicos opusessem. Na tarde de 17 de julho de 1936, o a alinhar com Mola e mantiveram-se fiéis
absolutistas, os requetés, à direita. Em 1930 golpe é antecipado em Marrocos e o Exército ao governo, como ocorreu em Bilbau e em
Valência, gorando as esperanças de uma vi-
tória fácil.
Com o passar dos dias estabeleceram-se as
fronteiras entre as zonas governamentais e
as que tinham caído em poder dos rebeldes,
com o general Franco a assumir a liderança
da Junta Militar e a formarem-se colunas na
Andaluzia com o objetivo de marchar sobre
Madrid e derrubar o governo. Na sua marcha
foram aniquilando os focos de resistência e
executando milicianos e civis, até travarem
a sua primeira batalha mais dura, quando a
Hemingway guarnição de Badajoz tentou resistir à ocu-
e Orwell pação da cidade raiana.
O escritor
americano na O português Mário Neves esteve entre os
frente de Belchite primeiros jornalistas a entrar em Badajoz
e o testemunho após a batalha, e ao andar pelas ruas aper-
do futuro autor
cebeu-se dos salpicos de sangue nas paredes
de 1984
onde milicianos e civis tinham sido abatidos.
Mais tarde cruzou-se com o tenente-coronel

VISÃO H I S T Ó R I A 55
EUROPA // 1936-1939

Yagüe, comandante das forças rebeldes, que


ficaria para a história como o «Carniceiro
de Badajoz». O oficial estava jubilante com
a sua vitória e respondeu aos jornalistas com
gosto, elogiando a atuação dos seus homens,
até surgir uma questão inesperada: «’E fuzi-
lamentos…’, dissemos nós. ‘Há quem fale em
dois mil...’ O comandante Yagüe olha para
nós, surpreendido com a pergunta, e declara:

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‘Não devem ter sido tantos’.»
A verdade chegou mais tarde, após Má-
rio Neves se ter cruzado com um padre que
Voluntárias Milícia de mulheres em 1936
se ofereceu para conduzir o português até
ao cemitério da cidade. Ao aproximarem-se
As Brigadas Internacionais começam a sentir os primeiros sinais da ope-
ração em curso, quando «um cheiro horrível
Com o eclodir da guerra civil e a penetra-nos pelas narinas a tal ponto que
ascensão do fascismo a despertar um quase nos revolve o estômago». Era o cheiro
intenso espírito de resistência, a Espanha
a morte e a carne queimada, tão intenso que
acabou por se tornar destino para
milhares de voluntários, que chegavam se tornava omnipresente. Uma espessa coluna
com o intuito de defender o governo e de fumo negro elevava-se a partir do cemitério
combater os golpistas. Surgem assim e ao entrar no seu interior ficou exposta a ma-
meia dúzia de Brigadas Internacionais, tança que ocorrera: «Ao fundo, num degrau
organizadas e controladas pelo Partido cavado na terra, com o aproveitamento de
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Comunista, por onde passaram mais uma diferença de nível, encontram-se, sobre
de 50 mil voluntários provenientes de
traves de madeira transversais, semelhantes
dezenas de países.
A sua estreia dá-se na frente de Madrid, às que se usam nas linhas férreas, numa ex-
quando os homens da XI Brigada Comunistas Combatentes britânicos tensão talvez de quarenta metros, mais de
marcham pela Gran Via em direção com a sua bandeira 300 cadáveres, na sua maioria carbonizados.
à linha da frente, chocando com as Alguns corpos, arrumados com precipitação,
forças de Franco na noite de 8 para 9 de italianos, ou simplesmente trabalhadores estão totalmente negros, mas outros há em
novembro. Seria a primeira de muitas dinamarqueses e polacos, havendo que os braços ou as pernas, intactos, escapa-
batalhas, com as Brigadas Internacionais também voluntários de paragens
ram às labaredas provocadas pela gasolina.
a assumirem o estatuto de forças de distantes como a China, a Etiópia ou o
choque e a sua fama a ganhar contornos Chile. O sacerdote que nos conduz compreende que
mundiais. Após destacarem-se nas margens do o espetáculo nos incomoda e tenta explicar-
Nas suas fileiras combateram poetas Jarama, nas colinas de Brunete e em -nos: ‘Mereciam isto. Além disso, é uma me-
como o irlandês Charles Donnelly, tantas outras batalhas, as Brigadas dida de higiene indispensável’.»
que morreu na batalha do Jarama, Internacionais tiveram o seu canto do
cantores como o afro-americano Paul cisne na batalha do Ebro, onde de novo ‘No pasarán!’
Robeson e futuros líderes políticos se bateram com bravura, começando
As colunas prosseguiram o seu roteiro de
como o albanês Enver Hoxha. Muitos a ser desmobilizadas quando a guerra
eram dissidentes políticos alemães e entrou no seu trágico capítulo final. morte até Madrid, com as matanças a re-
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56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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‘Nacionalistas’ e ‘vermelhos’ Francisco Franco com outros generais e oficiais da Guarda Civil. À direita: Uma barricada republicana
em Toledo, em 1936

petirem-se pelo caminho, até que, no início Legião Condor e os soviéticos a fornecerem A Legião
de novembro, a capital ficou ao alcance dos copiosas quantidades de armamento ao go-
Desmoralizados e com escasso treino,
rebeldes e Franco sentiu a vitória cada vez verno republicano. Entre março e outubro os soldados do Exército espanhol
mais próxima – uma esperança que não de 1937, as forças franquistas dedicaram-se sofriam pesadas baixas em Marrocos,
tardaria a esfumar-se. Durante os últimos a aniquilar os exércitos republicanos encur- o que aumentava a instabilidade na
meses a cidade tinha-se preparado para a ralados entre as Astúrias e o País Basco. Os metrópole. Foi então que o coronel
batalha decisiva. Barricaram-se as ruas e for- republicanos também tentaram tomar a ini- Millán Astray propôs que se imitasse
tificaram-se os jardins, enquanto milhares ciativa, com ofensivas em Brunete e Teruel, a Legião Estrangeira francesa e se
criasse um corpo de mercenários
de madrilenos eram ensinados a manusear mas não conseguem resistir ao poder com-
semelhante.
armas e rapidamente enquadrados em novos binado das divisões nacionalistas apoiadas Fundada a 28 de janeiro de 1920, a
batalhões. As colunas lançaram-se ao assalto pela aviação nazi. Legião estava aberta a todos os que
da cidade e por momentos pareciam vis- Em abril de 1938, os rebeldes conseguem lhe jurassem obediência absoluta,
lumbrar o êxito, mas a chegada das colunas isolar a Catalunha, o que leva o governo a não interessando os crimes passados
anarquistas catalãs e das Brigadas Interna- tentar uma última e desesperada ofensiva ou os problemas presentes. Ao
cionais revigorou a defesa republicana e ao para virar a situação estratégica. A Batalha entrarem na Legião eram sujeitos
a uma sucessão de humilhações,
longo das semanas seguintes travaram-se do Ebro começa como um inesperado sucesso
castigos corporais e exercícios
violentos combates com pesadas baixas de do governo, para depois descambar numa militares constantes. Na guerra civil,
ambos os lados. Falhado o assalto frontal, longa campanha de atrito que selou o destino a Legião alinhou com os rebeldes, e
os rebeldes tentam um cerco através do rio dos republicanos. A grande ofensiva sobre os portugueses destacaram-se como
Jarama, que falha, tal como uma manobra a Catalunha é lançada a 23 de dezembro, e o grupo maioritário dos estrangeiros
similar em Guadalajara realizada pelo CTV Barcelona cai no mês seguinte. Com a moral que a compunham. Morais Almeida
– um corpo de voluntários italianos enviado a tombar a pique, o exército republicano en- foi um desses. Recordando a sua
transformação numa máquina de
por Mussolini. tra em desintegração acelerada e imparável.
guerra, afirmou: «A Legião faz-nos,
Gorado o golpe rápido e repelido o ataque A 1 de abril de 1939, Franco declara vitória sobretudo, um grande favor: despe os
a Madrid, segue-se uma longa e mortífera su- e começa um longo inverno autoritário em indivíduos desses farrapos brilhantes
cessão de batalhas e uma internacionalização Espanha. Já a paz na Europa vai ter vida curta que a civilização lhes emprestou e aos
crescente do conflito, com Hitler a enviar a e durará apenas cinco meses... quais chama educação.»

Cartazes
A propaganda
de ambos os lados
em confronto
caracterizou-se
pela sua qualidade
gráfica

VISÃO H I S T Ó R I A 57
EUROPA // 1939-1940

GUERRA RUSSO-FINLANDESA 1939, quando a assinatura do Pacto Germa-


no-Soviético, de não-agressão, revelou um
risco existencial para as pequenas nações

David contra Golias


A URSS invadiu a Finlândia, que opôs uma
europeias. Uma semana mais tarde, a Polónia
foi invadida por nazis, a que se seguiram os
comunistas, e a Europa viu-se arrastada para
um conflito que definiria o seu destino.
resistência inesperada, e apenas conseguiu anexar Para os soviéticos, era chegado o momento
pequenas parcelas do território de aproveitar a guerra entre o III Reich e
as democracias ocidentais para recuperar a
Por Ricardo Silva Finlândia e alargar o comunismo aos países
nórdicos. A 5 de outubro, o Kremlin anun-
ciou a necessidade de concessões territoriais

D
finlandesas para assegurar a segurança da
urante séculos, a Nicolau II iniciou uma campa- cidade de Leninegrado, atual São Peters-
Finlândia foi uma nha destinada a «russificar» a burgo, e no mês seguinte acusou a Finlândia
das regiões mais Finlândia, impondo a língua de ter causado um incidente militar junto à
pobres do Império russa, deportando opositores fronteira, algo de mal encenado que já ante-
Sueco, uma provín- e forçando milhares de jovens cipava o pior.
cia onde a existência a servir no exército russo. A re- A 30 de novembro, e sem qualquer decla-
era dura e a independência um sistência à assimilação foi con- ração de guerra, quatro exércitos soviéticos
sonho constantemente adiado; tínua e a ansiada oportunidade avançaram sobre a fronteira com mais de
condições adversas que não fizeram o seu povo para os nórdicos reclamarem a sua soberania 450 mil soldados e a sua aviação bombar-
perder a identidade, a língua e a cultura. Com chegou em 1917, quando a revolução bolche- deou Helsínquia. A morte indiscriminada
a chegada do século XIX, as guerras napoleó- vique criou um vazio de poder prontamente de civis levou à condenação internacional,
nicas e os valores do Iluminismo acabaram por aproveitado para declarar a independência da uma acusação que o ministro dos Negócios
se revelar decisivos para o futuro finlandês. Finlândia, a 6 de dezembro desse mesmo ano. Estrangeiros, Vyacheslav Molotov, contes-
Em 1809, o Império Sueco foi derrotado pelo tou, alegando que a aviação soviética não
exército do czar Alexandre I e os territórios A ameaça bolchevique tinha bombardeado alvos civis, mas sim
finlandeses passaram a fazer parte do Impé- A jovem nação era finalmente dona do seu largado ajuda humanitária. No dia seguin-
rio Russo, com a formação do Grão-Ducado destino e reforçava os laços com o Ocidente, te, os soviéticos anunciaram a formação de
da Finlândia e a promessa de autonomia. enquanto ao seu lado o caos da guerra civil um governo fantoche e prosseguiram o seu
O nacionalismo finlandês começou então a dar russa dava origem à União Soviética e ao ataque. O colosso soviético parecia impará-
passos decisivos, mas a mudança de soberano começo do seu expansionismo. Entre 1919 vel e os primeiros dias pareciam dar razão à
não implicou um futuro melhor. e 1920, a Polónia serviu de barreira para os confiança dos generais: afinal de contas, os
Entre 1866 e 1868, a fome levou à morte exércitos comunistas que procuravam avan- finlandeses não pareciam estar a opor grande
de 8,5% da população e milhares viram-se çar sobre a Europa, num conflito que causou resistência e retiravam para norte, pelo que a
forçados a emigrar para sobreviver. A autono- mais de 100 mil mortos e mostrou os limites «operação» deveria ser concluída em 12 dias
mia também teve vida curta. Em 1898, o czar do jovem Exército Vermelho. O clima de paz e a capitulação finlandesa seria o presente de
podre manteve-se até ao dia 23 de agosto de aniversário de Estaline.

1939 1940 Uma resistência inspiradora


A realidade começou a atingir os soviéticos a
6 de dezembro, quando as suas forças foram
5 outubro 30 novembro 14 dezembro 12 de março travadas ao longo da linha Mannerheim,
Kremlin anuncia 450 mil soldados URSS é expulsa URSS é obrigada
a necessidade soviéticos avançam da Sociedade das a aceitar a uma série de fortificações em profundidade
de concessões sobre a fronteira Nações independência que se revelaram mortíferas para os ataques
territoriais finlandesa. da Finlândia, face a peito descoberto da infantaria soviética.
finlandesas Helsínquia é aos três meses de
Como se não bastasse, as colunas de viaturas
para assegurar bombardeada resistência do povo
a segurança de finlandês que serpenteavam pelas florestas começa-
Leningrado ram a ser atacadas dia e noite por pequenos

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Soldados finlandeses Equipavam de branco, para se confundirem com a neve, e deslocavam-se de esquis

grupos de combatentes que emboscavam


com impunidade os inexperientes solda-
defensores. Foi então que começou o mas-
sacre, com os nórdicos a causarem perto de
A ajuda portuguesa
dos soviéticos, isto numa altura em que o 10 mil baixas ao inimigo eslavo em apenas Tal como noutros países europeus,
a resistência finlandesa à invasão
frio glacial e as fortes nevadas começavam uma semana de combates.
soviética despertou um movimento
a revelar-se tão mortíferos quanto os com- A inesperada resistência finlandesa acabou de auxílio em Portugal a que não era
bates. Os finlandeses estavam perfeitamente por inspirar a Europa. Numa altura em que os alheio o anticomunismo do regime
adaptados aos rigores do inverno no seu país, regimes totalitários nazi, fascista e comunista salazarista. Organizaram-se coletas de
conheciam cada palmo do terreno e eram pareciam imparáveis, o pequeno país nórdico alimentos e roupa para os civis, e vários
especialistas em sobreviver na floresta, en- conseguiu resistir durante três meses e meio jornalistas partiram para a Finlândia
quanto os soviéticos se mantinham nas suas ao gigante comunista, que se viu forçado a em reportagem,
caso de Amadeu de
viaturas e dependiam de uma logística que aceitar a independência finlandesa no acordo
Freitas, do jornal O
primava pela ausência. Era a receita perfeita de paz assinado a 12 de março de 1940. Século, que mais
para o desastre. As perdas humanas e materiais foram tre- tarde publicou um
A 14 de dezembro, a União Soviética é mendas, com inúmeras cidades, vilas e aldeias livro contando a
expulsa da Liga das Nações, numa altura em ruínas e a morte de cerca de 26 mil fin- corajosa resistência
em que começa a chegar material de guer- landeses, mas a vitória soviética acabou por do povo finlandês.
ra vindo do Ocidente e em que milhares se revelar pírrica face aos objetivos iniciais, Seria também
através da imprensa
de voluntários estrangeiros se juntam aos limitando-se à anexação de cerca de 10% do
da época que se
finlandeses para combater. Nas florestas território finlandês, isto ao preço de centenas de ficou a conhecer a
da Carélia surgem cenas dantescas, com aviões e de milhares de tanques destruídos, e de história de José Tuñon, um português
soldados soviéticos congelados no estertor mais de 300 mil baixas entre os seus homens. que combatera na Ilmavoimat – a
da morte e os seus tanques queimados com Porém, a consequência mais desastrosa Força Aérea Finlandesa, tendo narrado
cocktails Molotov. Mais a norte travou-se passou despercebida à época: Hitler e o seu as suas proezas aos comandos de
uma das batalhas mais intensas do conflito, corpo de oficiais calcularam que o Exército um bombardeiro Junkers K43 numa
entrevista à revista A Esfera. José era
quando duas divisões soviéticas avançaram Vermelho era um gigante com pés de barro e,
membro da Legião Portuguesa e foi
pela estrada de Raate em direção a Suomus- no ano seguinte, foi a vez de a União Soviética movido pela sua ideologia, alegando ter
salmi, que foi ocupada a 7 de dezembro após ser invadida pelas tropas da Alemanha nazi sido ferido em combate e condecorado
ter sido abandonada e incendiada pelos seus e de o seu povo ser massacrado. pelo governo finlandês.

VISÃO H I S T Ó R I A 59
II GUERRA MUNDIAL

A DESCIDA
AOS INFERNOS
Quando o furacão de fogo da Alemanha nazi varreu a Europa,
parecia que uma «nova ordem» iria ser instaurada pelo III Reich.
Mas esta era apenas a primeira parte do drama
Por Ricardo Silva

Nazismo
O Fůhrer alemão
Adolf Hitler. Na página
ao lado, tropas alemãs
matando judeus com
um tiro na nuca em
Vinnytsia, na Ucrânia,
durante a invasão
da URSS, em 1941

60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A 61
EUROPA // 1939-1942
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Invasão da Polónia Hitler, em cima do palco, assiste a uma parada de vitória, em Varsóvia

K
azimiera Mika tinha 12 anos e expandia o III Reich e anexava dois aviões alemães aparece-
uma vida simples, morava numa os territórios vizinhos, com as ram do nada e lançaram duas
Varsóvia que já não existe, vivia principais democracias (no- bombas numa pequena casa a
numa paz com os dias contados. meadamente o Reino Unido e a apenas 60 metros de distância.
Era um tempo em que um terço França) a contemporizarem na As mulheres deixaram-se tom-
dos habitantes da capital polaca esperança de que a ambição do bar no solo, esperando passar
eram judeus e em que nas ruas da cidade se ditador fosse aplacada. Hitler despercebidas. Depois de os
sentia a sua longa história, com sinagogas e acabou por se convencer de que bombardeios se irem embora,
igrejas católicas a partilharem os mesmos as democracias eram fracas e voltaria a não as mulheres voltaram ao seu trabalho. Ti-
quarteirões, e um centro cosmopolita onde reagir, um erro de cálculo que se revelou fatal. nham de ter comida. Mas os pilotos nazis
teatros e restaurantes fervilhavam de vida e No dia 3, Londres e Paris declararam guerra não estavam satisfeitos e em alguns minutos
de cultura. Foi um idílio que durou até 1 de a Berlim e começaram a mobilizar os seus estavam de volta e mergulharam a 60 metros
setembro de 1939, dia em que o mundo de exércitos. No mar foi imposto um bloqueio do chão, desta vez a varrer o campo com fogo
Mika mudou para sempre, quando o toque e subitamente concretizavam-se os piores re- de metralhadora e duas das sete mulheres
das sirenes anunciou o desastre que se apro- ceios, com a Europa de novo envolvida numa foram mortas.»
ximava. O ar encheu-se com o som de dezenas guerra generalizada. No meio da tragédia, Bryan ganhou cora-
de bombardeiros nazis e o solo começou a Na Polónia prosseguiam os combates e a gem para registar o momento e mostrar ao
tremer com as vagas de explosões das bombas situação era critica. A fome afligia a população mundo a face da guerra na Polónia. «Enquan-
que desciam do céu. Era o início da Blitzkrieg, que se via forçada a procurar comida nos to eu fotografava os corpos, uma menina de
a guerra-relâmpago da Wehrmacht em que campos. No dia 13 de setembro, o fotógrafo 12 anos veio a correr e ficou paralisada face
poderosas divisões de tanques, apoiadas pelos Julien Bryan vagueava pelos campos em redor a um dos cadáveres. Era o da sua irmã mais
aviões da Luftwaffe, aniquilavam os adver- de Varsóvia quando o acaso o transformou velha. A criança nunca tinha visto a morte e
sários com ataques audazes e devastadores. em testemunha de um crime de guerra. «Sete não conseguia entender porque a irmã não
A escalada da violência causou assombro mulheres estavam a cavar batatas num cam- falava com ela.» Aquela menina era Mika, e
na Europa, mas a invasão da Polónia esteve po. Não havia farinha no seu distrito e esta- aquele momento o mais trágico da sua vida.
longe de ser uma surpresa. Há anos que Hitler vam desesperados por comida. De repente, «A criança olhou para nós, perplexa. Eu en-

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
H. F. DAVIS/GETTY IMAGES

Sul de Londres Os bombardeamentos na capital inglesa, no verão de 1940, provocaram devastação em larga escala

volvi-a com o meu braço e segurei-a com for- estado-maior francês acreditava-se que seria as ofensivas a ocidente com a Operação We-
ça, tentando confortá-la. Ela chorou. Assim impossível lançar um ataque de grande escala serübung, a conquista da Dinamarca e da
como eu e os dois oficiais polacos que estavam através daquele emaranhado de bosques. Noruega para garantir o controlo do mar
comigo. Mas o que poderíamos dizer-lhe? A 9 de abril de 1940, os nazis lançaram Báltico e o acesso aos minérios de ferro escan-
O que poderia alguém dizer a essa criança?»
O EXPANSIONISMO ALEMÃO ATÉ MARÇO DE 1939 MAR
LITUÂNIA
O III Reich ao ataque BÁLTICO
DINAMARCA
Quatro dias após Mika perder a irmã, a União MAR DO NORTE Dantzig Vilnius
PRÚSSIA
Soviética invadiu a Polónia e esfumou-se ORIENTAL
qualquer esperança que ainda restasse ao (ALEMANHA)

povo polaco. Seguiram-se três semanas com


os bravos soldados a combaterem contra nazis HOLANDA Corredor
Berlim polaco
e comunistas, até sucumbir o último foco de Varsóvia

resistência. Enquanto isso, a ocidente nada ALEMANHA


Bruxelas
de novo. Os exércitos franceses e britânicos RENÂNIA POLÓNIA
BÉLGICA Remilitarizada
limitaram-se a guarnecer a fronteira francesa em março de1938
e ficaram a aguardar pela ofensiva da Wehr- LUXEMBURGO
macht. A estratégia aliada era uma relíquia Praga
PROTETORADO DA Anexado pela Polónia
da I Guerra Mundial e confiava no poderio FRANÇA SUDETAS BOÉMIA-MORÁVIA
da Linha Maginot, uma sucessão de defe- Anexado em ESTADO
outubro de 1938 ESLOVACO
sas com 108 fortes, centenas de casamatas
Munique Viena
e mais de cem quilómetros de galerias sub-
terrâneas, para deter qualquer ataque nazi. Berna ÁUSTRIA Budapeste
Era um plano com várias debilidades e um SUÍÇA Anexada em março HUNGRIA Anexado pela
de 1938 (Anschluss) Hungria em
calcanhar de Aquiles: as florestas das Ardenas outubro de 1938
ITÁLIA
estavam escassamente defendidas, porque no MT/AR/VISÃO

VISÃO H I S T Ó R I A 63
EUROPA // 1939-1942

dinavos. A 10 de maio foi a vez de atacarem convencido de que seria fácil ganhar supe-
a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, com rioridade aérea, e a 13 de agosto começou
o objetivo de atrair os aliados para norte en- a batalha com o Adlertag – o Dia da Águia.
quanto as suas divisões Panzer atravessavam Centenas de aviões germânicos atacaram
as Ardenas e irrompiam na retaguarda dos estações de radar e aeródromos e os céus de
seus adversários. Duas semanas mais tarde, Inglaterra tornaram-se palco de um bailado
o exército britânico começa a ser evacuado mortífero entre caças Spifire e Me-109, en-
pela Royal Navy e o porto de Dunquerque quanto os Hurricanes atacavam sem cessar
torna-se cenário de uma luta desesperada no os bombardeiros Do-17, He-111 e Ju-88, e os
mar e no ar. Tony Bartley pilotava um caça temidos Stukas – bombardeiros de mergulho
Spitfire e participou num desses intensos que semearam o terror na Europa. Apesar
combates aéreos sobre os areais e o porto: dos ataques ininterruptos, com o passar das
«Eles caíram sobre nós como um enxame de semanas a Luftwaffe começou a acumular
abelhas furiosas. Desviei-me de uma rajada perdas insustentáveis sem conseguir anular
e visei um Me-110 que tinha uma mandíbula a RAF. Foi então que Hitler ordenou o bom-
de tubarão pintada no nariz. Ele virou-se e bardeamento da população civil para vergar a
foi direto para baixo, até eu o ver atingir o resistência britânica, uma decisão equivocada
solo numa explosão de chamas. Foi o meu que levou à primeira derrota estratégica do
primeiro huno... e eu senti-me doente.» III Reich. A Hitler restava esperar que os
Desarticulados os exércitos aliados, as divi- seus submarinos conseguissem estrangular
sões Panzer marcham sobre Paris, quando já Em maio de 1940, os nazis o abastecimento ao Reino Unido, mas era
nada as pode deter. Mussolini, que observava uma missão que levaria o seu tempo e prati-
os acontecimentos com crescente entusiasmo e atacaram a Holanda, camente só envolvia a Kriegsmarine.
pressentindo uma vitória fácil, decide atacar. A a Bélgica, o Luxemburgo
10 de junho, o Regio Esercito italiano atravessa Duelo de titãs
os Alpes com 700 mil homens, mas acaba por e a França. Era a ofensiva Apesar da derrota sofrida nos céus de Ingla-
ser detido pelo reduzido número de defensores a oeste, oito meses depois terra, a Wehrmacht continuava a ser uma
da linha alpina, um primeiro sinal da reduzida formidável máquina de guerra e o III Reich
eficácia das forças fascistas. Ainda assim, o do início da guerra não iria abrandar a sua expansão. Os exér-
exército francês já se encontrava em desinte- citos nazis começaram a ser transferidos de
gração acelerada e o que restava do britânico e encenado gesto de desprezo. Saboreada a França para o leste da Europa e a preparar-se
era evacuado através do canal da Mancha. sua vingança, decidiu fazer turismo numa Pa- para a batalha decisiva da guerra, contra a
ris de luto e com as ruas praticamente vazias. União Soviética, mas a situação nos Balcãs
O fim da invencibilidade O Führer visita o túmulo de Napoleão e dei- acabou por levar a uma alteração de planos.
Com o governo de Reynaud a demitir-se a 16 xa-se fotografar junto à Torre Eiffel, atravessa A 28 de outubro de 1940, Mussolini ordenou
de junho, o almirante Pétain assume as rédeas o Arco do Triunfo e os grandes monumentos a invasão da Grécia na crença de que seria
do poder e inicia conversações de paz com o num carro descapotável, era o culminar dos um passeio militar, acabando por sofrer uma
Eixo. Era o momento que Hitler aguardava seus sonhos e ele aproveitou cada momento. série de derrotas e por ter de se sujeitar a uma
desde 1918, quando vivera a rendição alemã Consumada a derrota da França, parecia retirada humilhante. Seguiu-se um golpe
na I Guerra Mundial como uma desonra ser uma mera questão de tempo até o Reino de estado na Jugoslávia, a 27 de março de
que era preciso vingar a todo o custo. A 21 Unido seguir o mesmo caminho e o III Reich 1941, que afastou o país da influência do Eixo
de junho, chegou à floresta de Compiègne e alcançar a vitória total. O plano para vergar e deixou o seu flanco em aberto, situações
subiu à carruagem onde já se encontravam a Grã-Bretanha era simples: a Luftwaffe iria que levaram a Wehrmacht a reagir com mais
os representantes dos dois países. Tinha sido aniquilar a Royal Air Force no solo e no ar, uma campanha de Blitzkrieg que devastou
naquela floresta e naquela mesma carruagem e de seguida seria lançada a Operação Leão os Balcãs e levou à sua ocupação.
que a Alemanha assinara a rendição em 1918; Marinho – a invasão das ilhas britânicas. Por fim, a 22 de junho de 1941, quase 4
agora era Hitler que se sentava na cadeira que A Luftwaffe começou por atacar a navega- milhões de soldados do Eixo atravessaram
o marechal Foch tinha usado e era ele quem ção britânica no canal da Mancha enquanto a fronteira com a União Soviética, na maior
assistia à rendição dos seus inimigos. Após acumulava forças nos aeródromos no nor- invasão da história da humanidade. Era o
escutar o preâmbulo do armistício, Hitler le- te de França. Com mais de 2500 caças e início da campanha mais mortífera da guer-
vanta-se e abandona a carruagem num último bombardeiros, o marechal Goering estava ra, entre dois sistemas totalitários, uma luta

64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Paris ocupada Hitler percorreu
os pontos turísticos da cidade
na sua visita-relâmpago de 23 de junho
de 1940. Na página ao lado: Tropas
alemãs desfilando no bosque
de Vincennes, na capital francesa

baços e o olhar selvagem e meio louco fá-los


parecer imbecis. E esses canalhas, liderados
por judeus e criminosos, queriam imprimir
a sua marca na Europa, mesmo no mundo.
Graças a Deus que o nosso Führer, Adolf
Hitler, está a impedir que isso aconteça!»
Apesar da interminável sucessão de vi-
tórias, as previsões de um rápido colapso
da resistência soviética tinham falhado e o
aparecimento dos novos tanques russos foi
um terrível choque para a infantaria alemã,
como ficaria patente nas memórias de um
sobrevivente de um ataque soviético: «Eu
vi o Hansmann da Nona ficar debaixo das
lagartas de um T-34, e ele não tinha cavado
o seu buraco suficientemente fundo; estava
demasiado cansado para cavar. O tanque
apenas se desviou um pouco do seu percurso,
e isso fez deslizar o solo. Apanhou-o. No mi-
nuto seguinte lá estava ele, espalmado como
um pedaço de excremento de cão que alguém
tinha pisado acidentalmente.»
Não era apenas a tremenda resistência so-
viética que começava a paralisar a máquina
de guerra nazi: com a chegada do inverno, as
temperaturas caíram de forma abrupta e as
congelações começaram a causar milhares de
baixas, precisamente quando a vanguarda do
exército alemão chegava às portas de Moscovo
e a vitória parecia estar ao seu alcance. Refor-
çadas por divisões chegadas da Sibéria e do
Extremo Oriente, a 5 de dezembro as forças
soviéticas começam a grande contraofensiva
que irá deitar por terra todas as esperanças de
uma vitória alemã, obrigando a Wehrmacht a
passar à defensiva e a entrincheirar-se.
Dois dias depois chega a notícia de um
ataque no outro lado do mundo, em Pearl
Harbor, e a guerra europeia passa a ser global.
Tal como Napoleão 150 anos antes, Hitler
cometeu o erro fatal de subestimar a resis-
tência soviética e o clima russo. Agora teria
de enfrentar uma longa guerra de atrito de
existencial entre arianos e eslavos, o início do fé sem limites em Hitler. A 3 de agosto, desfecho imprevisível, uma guerra na qual
massacre da comunidade judaica na Europa. numa carta à mulher, Fuchs demonstrou o Karl Fuchs não iria participar. A última carta
Ao longo das primeiras semanas, a Wehr- efeito que a prolongada propaganda sobre que chega à sua mulher é escrita pelo tenente
macht avançou imparável pelas estepes da a superioridade racial tinha causado entre Reinhard: «Estimada Srª Fuchs, como líder
Ucrânia e da Rússia, e milhões de soldados a sociedade alemã: «Tudo o que é preciso da unidade à qual o seu marido, sargento Karl
soviéticos foram capturados e sujeitos a um fazer é olhar para os prisioneiros russos. Di- Fuchs, foi designado, tenho o triste dever de
tratamento brutal. O sargento Karl Fuchs ficilmente se vê o rosto de uma pessoa que informar que o seu marido foi morto no cam-
pertencia à 7ª Divisão Panzer e tinha uma pareça racional e inteligente. Todos parecem po de batalha a 21 de novembro de 1941.»

VISÃO H I S T Ó R I A 65
EUROPA // 1942-1945

O DESFECHO DA II GUERRA MUNDIAL

O fim do Reich
alemão
Quando mudou a maré da guerra,
os Aliados avançaram impetuosamente até à vitória
final, marcada pela rendição sem condições
da Alemanha nazi
Por Ricardo Silva

O
s sinos tocavam em Leninegrado tudo alvos prioritários para tornar a cidade
para anunciar a chegada de 1942, inabitável. Com o fim do outono chegaram a
mas a cidade continuava muda e neve e as temperaturas negativas, o raciona-
quieta. A antiga (e atual) São Pe- mento baixou para níveis que não permitiam
tersburgo, conhecida como a pérola a subsistência e o desespero da fome levou
do Báltico, era uma mera sombra a cenas inimagináveis. No início começou
da sua antiga glória e vivia os dias mais difíceis por ser aceite o consumo de couves e batatas
da sua história. Cercada desde 8 de setembro e podres e de leite azedo, e os cães e os gatos
bombardeada desde o início do verão, a cidade tornaram-se uma iguaria. Com a passagem
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que tinha sido o berço do bolchevismo era do tempo, os caules das plantas domésti-
sujeita a uma destruição lenta e devastadora, cas serviram de sucedâneos dos vegetais e a
sem que os alemães tentassem a sua conquista serradura passou a ser usada como se fosse
ou exigissem a sua rendição. Durante o mês de farinha. O couro dos cintos era cozido em
setembro, os soldados do 18º Exército alemão água para amolecer e facilitar a sua ingestão, o frio os seus corpos ficavam conservados
construíram trincheiras e posicionaram a sua o óleo dos motores era filtrado e usado como durante meses. A situação era grave, tão grave
poderosa artilharia de cerco. Depois chegou se fosse óleo alimentar; velas, cola para papel que o NKVD, antecessor do KGB, começou a
a ordem de Berlim que ditaria o seu destino: de parede, tudo servia para aplacar a fome, investigar o que se estava a passar e acabou
«O Führer decidiu varrer Leninegrado da face até o chão dos armazéns Badaev, porque se por descobrir um terrível segredo: para so-
da Terra (...) Serão recusados pedidos para a à superfície só restavam cinzas, a terra do breviver, algumas crianças esperavam ansio-
cidade ser entregue, decorrentes da situação subsolo estava saturada com o açúcar que samente pela morte dos seus colegas, porque
no seu interior.» Se dúvidas ainda restassem, o tinha derretido com o calor e passou a ser comer os seus corpos era a única forma de
alto-comando foi bem claro quanto ao destino vendida a cem rublos o quilo. continuarem vivos.
que aguardava os habitantes: «O problema da A fome também foi um rude desafio à coe-
sobrevivência da população e de fornecer-lhe são social e os mais frágeis foram os primeiros Holocausto pelas balas
comida não deve ser resolvido por nós. Nesta a sofrer. Os órfãos e os alunos em regime Por muito terrível que fosse o destino do povo
guerra pela existência, não temos qualquer in- de internato dependiam dos funcionários eslavo, o do povo judeu era ainda mais ater-
teresse em manter sequer parte da população das instituições, que por sua vez furtavam rador. Na retaguarda dos exércitos alemães
desta grande cidade.» as rações das crianças para se alimentarem seguiam os Einsatzgruppen, unidades das SS
Começou então um bombardeamento e às suas famílias. Abandonados à sua sorte, encarregadas de eliminar todos aqueles que
prolongado, com a Luftwaffe a incendiar os deambulavam pelas ruas a pedir e a roubar, o regime nazi considerasse inimigos políticos
armazéns Badaev, onde a cidade tinha ar- formando pequenos bandos de crianças es- ou raciais, o que incluía comissários políticos,
mazenada grande parte das suas reservas de queléticas com um comportamento anima- militantes comunistas, ciganos e, acima de
alimentos. Seguiram-se os depósitos de com- lesco. Outros desistiam de viver e ficavam a tudo, judeus. Inconscientes do perigo que se
bustível e as centrais elétricas, redes de água definhar nos dormitórios até chegar a morte, aproximava, muitos judeus optaram por ficar
e esgotos, sistemas de transporte e hospitais, e ali permaneciam esquecidos, porque com nas suas casas e lidar com a ocupação, até co-

66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cerco de Leninegrado
Mulheres abastecem-se
de carne na carcaça
de um cavalo

Seguiu-se a criação de guetos para contro-


lar a população judaica e facilitar o seu ani-
quilamento em massa, com a banalização da
morte de pessoas indefesas a transformar os
orgulhosos representantes da «raça superior»
em homicidas profissionais. Alfred Metzner,
um condutor e intérprete do Einsatzgruppe B,
recordou uma Aktion particularmente brutal
na cidade de Slonim, na Bielorrússia. «Os
homens, crianças e mães foram empurrados
para os poços. As crianças eram espancadas
até à morte e atiradas pelos pés para dentro
dos poços… havia uns quantos sádicos nojen-
tos no comando de extermínio. Por exemplo,
uma mulher grávida foi baleada na barriga
só por divertimento e a seguir atirada para
o poço. Antes da execução, os judeus tinham
de passar por uma revista corporal, durante a
qual eram procurados objetos de valor e joias
nos seus ânus e órgãos genitais.»

Apogeu e queda
Enquanto na retaguarda decorria o genocídio
meçarem a multiplicar-se as primeiras mortes uma pergunta simples: «Jude?» Abe Briller, do povo judeu, na linha da frente prosseguia
e a organizarem-se os primeiros pogroms, o que não suspeitava da gravidade da situação, a guerra. Os exércitos do III Reich tinham
massacre de judeus em grande escala. respondeu afirmativamente e em alemão, sobrevivido ao seu primeiro inverno russo e
Foi assim em Trembowla, uma cidade ucra- «Ja», sendo imediatamente abatido. Na sua com a chegada da primavera a Wehrmacht
niana a apenas 20 quilómetros a sul de Tar- ingenuidade, houve judeus que chegaram a lançou uma nova ofensiva estratégica. O 6º
nopol, quando o som de motores anunciou a pedir ajuda às forças germânicas recém-che- Exército serviu de ponta-de-lança quando o
chegada de uma coluna de veículos militares e gadas, como o avô do historiador ucrania- Grupo de Exércitos Sul avançou na direção do
causou uma agitação entre os seus habitantes. no Faina Vinokurova, cuja estalagem fora rio Volga e as vitórias pareciam estar de volta,
Foi nesse momento que Abe Briller decidiu confiscada pelo regime comunista e agora ainda que desta vez o preço a pagar fosse mais
abrir a porta e ver o que estaria a causar tanta pedia autorização às autoridades nazis para elevado por causa da resistência encarniçada
comoção. Abe era judeu, casado e pai de uma a reabrir. A resposta não se fez tardar: foi dos soviéticos. Ludwig Bauer era tripulante
filha de tenra idade, nascera numa família amarrado a um cavalo e arrastado pela cidade. num tanque Panzer III comandado por um
humilde em que de 15 crianças só ele e um tenente austríaco chamado Sirse. Quando
irmão tinham sobrevivido à malnutrição e a sua unidade foi alvo da artilharia russa, o
às doenças. Conseguira aprender a ler e a tanque foi atingido em cheio e Bauer olhou
escrever por si mesmo, dominava várias lín- Por muito terrível para cima para ver como estava o comandan-
guas e trabalhava como contabilista. Quando te, altura em que «ele caiu para a frente para
abriu a porta para a estrada viu diante de si
que fosse o destino cima de mim, pressionou o meu ombro e todo
um conjunto de alemães montados em mo- do povo eslavo, o seu cérebro se derramou para cima do meu
tos, acabados de entrar na cidade após duas casaco». A cena de horror foi testemunhada
semanas a avançar pela União Soviética. Um
o do povo judeu era pelo operador de rádio, que ficou surpreso
oficial reparou no homem à porta e fez-lhe ainda mais aterrador ao constatar que Bauer ainda estava vivo, e

VISÃO H I S T Ó R I A 67
EUROPA // 1942-1945
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Gueto de Varsóvia A revolta dos judeus foi sangrentamente reprimida

horrorizado ao ver os miolos do tenente Sirse cançar a vitória sobre os temíveis T-34. As O crepúsculo dos deuses
caírem no chão do blindado à medida que operações começam a 5 de julho e levam a um Dois dias após a queda da capital italiana,
Bauer abria o casaco. duelo entre poderosas formações blindadas milhares de paraquedistas norte-americanos
A 21 de agosto, soldados da 1ª Divisão de de que saem vencedores os soviéticos. são lançados sobre a Normandia e ao ama-
Montanha plantaram a bandeira nazi no Quatro dias mais tarde, os Aliados desem- nhecer é a vez de mais de 150 mil soldados
cume do monte Elbrus, no Cáucaso, o mais barcam na Sicília e em setembro alcançam a desembarcarem nas praias. Tinha chegado o
alto da Europa. Dois dias mais tarde, o 6º Itália continental. A pressão sobre Mussolini Dia D e o III Reich combatia agora em três
Exército chega aos subúrbios de Estaline- aumenta até se tornar insustentável, levando frentes, ao mesmo tempo que enfrentava uma
grado e começa o assalto à cidade. Era o mo- à sua deposição e à rendição da Itália a 8 de poderosa campanha de bombardeamentos
mento de maior expansão do III Reich, com a setembro, forçando os alemães a intervir para aéreos, com a 8ª Força Aérea norte-ameri-
suástica a marcar presença nos quatro cantos salvar Mussolini e a formar uma nova frente cana a flagelar a indústria de guerra durante
da Europa, mas também era um momento de batalha contra os Aliados. Os alemães o dia e a Royal Air Force a arrasar as cidades
que se revelaria efémero. A 19 de novembro resistem em Monte Cassino e em Anzio, mas alemãs pela noite.
de 1942, o Exército Vermelho inicia a Opera- não conseguem suster o avanço aliado, que Com a Wehrmacht a deslocar as suas me-
ção Urano, um poderoso contra-ataque que alcança Roma a 4 de julho. lhores unidades para o norte de França, o
em apenas quatro dias devasta os exércitos
Esqueletos vivos
romenos e italianos e cerca o 6º Exército e As tropas
parte do 4º Exército Panzer. A situação era aliadas ficaram
delicada, com 290 mil soldados cercados surpreendidas
em Estalinegrado, e a ponte aérea montada ao depararem
com o horror
pela Luftwaffe para abastecer os sitiados foi dos campos de
insuficiente para evitar o seu aniquilamento. extermínio nazis,
A 2 de fevereiro de 1943, o que restava do como o de Bergen-
-Belsen, na hora de
6º Exército rendeu-se aos soviéticos. Três
ser libertado, em
meses mais tarde é a vez de as forças alemãs 1945
e italianas sucumbirem no norte de África,
com cerca de 275 mil homens capturados.
Com o Eixo a desmoronar-se em todas as
frentes, Hitler tenta recuperar a iniciativa na
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Frente Leste com uma ofensiva sobre Kursk,


apostando na eficácia de centenas dos seus
modernos tanques Tigre e Panther para al-

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Dia D A 6 de junho de 1944, os Aliados desembarcaram nas praias da Normandia, abrindo a frente oeste contra a Alemanha nazi

Exército Vermelho aproveita a oportunida- No dia 30, as forças soviéticas encon- aceitar o inevitável, e o almirante Doenitz
de para lançar a Operação Bagration, que travam-se a apenas um quarteirão de assume a chefia do governo alemão para
aniquila o Grupo de Exércitos do Centro e distância e o tempo do Führer chega ao negociar com os Aliados. A rendição in-
causa cerca de 450 mil baixas. Em julho, os fim. Encerrado no seu bunker e consciente condicional da Alemanha é assinada a 7
alemães já não conseguem conter os Aliados da derrota, Hitler suicida-se com um tiro de maio de 1945.
na Normandia e começam a retirar na dire- na têmpora após Eva Braun, com quem Terminava assim um longo pesadelo, mas
ção do seu território de origem. Hitler ainda acabara de casar-se, ter tomado um com- para a Europa a guerra quente daria lugar a
tenta uma última cartada, reunindo 400 mil primido de cianeto. De seguida, os dois uma guerra fria que ia separar o continente
homens e as suas melhores unidades para corpos são trazidos para o exterior, regados em dois blocos dominados pelas superpotên-
lançar a ofensiva das Ardenas, acreditando com gasolina e cremados. Restava apenas cias vitoriosas.
ser possível derrotar os anglo-saxões e depois
concentrar esforços contra o Exército Verme-
lho. O ataque inicia-se a 16 de dezembro e
prolonga-se por mais de um mês, acabando
por desperdiçar as últimas reservas da Wehr-
macht numa batalha perdida.
A 16 de abril, 2,3 milhões de soldados sovié-
ticos iniciam a marcha sobre Berlim e começa
o capítulo final do III Reich. Quatro dias de-
pois, Hitler celebra o seu 56º aniversário ao
som da artilharia soviética que transforma em
ruínas quarteirões inteiros. Uma semana mais
tarde chega a notícia de que Mussolini tinha
sido abatido. O ditador fascista fora capturado
por guerrilheiros comunistas quando tentava
fugir para a Suíça com a sua amante, sendo
ambos executados e os seus corpos pendurados
pelos pés numa praça de Milão, tornando-se
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alvo dos insultos e das agressões de uma mul-


tidão enfurecida. Para Hitler era um exemplo
do que lhe poderia acontecer, e as 48 horas
seguintes foram passadas num clima fúnebre. Libertação de Paris Franceses vitoriam as tropas aliadas, em agosto de 1944

VISÃO H I S T Ó R I A 69
EUROPA // 1945-1991

A GUERRA FRIA

Uma paz precária,


mas duradoura
Durante as quatro décadas e meia que mediaram entre o
fim da II Guerra Mundial e a falência da URSS, a Europa
viveu sobre a corda bamba do «equilíbrio do terror»
Por Pedro Aires Oliveira*

A
divisão da Europa Embora com um lugar ca-
em dois campos tivo entre os «Três Grandes»
armados, duas (sendo os dois outros os EUA
esferas de influên- e a URSS), o Reino Unido era
cias se preferir- uma potência economicamen-
mos, foi um dos te exangue, largamente à mer-
principais legados do pós-II cê da assistência americana e
Guerra Mundial. Como obser- enfrentando o que John M.
vou Mark Mazower, tratou-se de uma paz Keynes designou como um «Dunquerque
«brutal», assente nos escombros do mais de- financeiro». A França apenas por corte-
vastador conflito da história da humanidade. sia poderia reclamar o estatuto de grande
Foi, em larga medida, o segundo ato de potência, sendo sobretudo amparada por
um «suicídio geopolítico» iniciado em 1914. razões de ordem política pelos dois parcei-
Desta feita, as perdas materiais e huma- ros ocidentais. Pela sua parte, a URSS, não
nas superaram tudo o que se registara no obstante a vantagem que lhe era conferida
primeiro conflito mundial. Aos cerca de 18 por um exército que se estendia por toda a
milhões de mortos em combate na Euro- Europa Central e Oriental (só na Alemanha
pa, somavam-se 15 a 20 milhões de mortos contava com mais de 6 milhões de efetivos),
civis. Os indivíduos sem abrigo seriam na não tinha um poder naval e aéreo equipará-
ordem dos 25 milhões e os «deslocados» vel, procurava suprir as suas necessidades
(refugiados, ex-trabalhadores forçados ou mais básicas com a apropriação de recursos
prisioneiros de guerra) cerca de 11 milhões. nas zonas «libertadas» e debatia-se com as
Os ajustes de contas com «colaboracionis- ineficiências típicas de uma economia de
tas», as retaliações contra grupos étnicos «comando central».
inteiros e o confisco de propriedades foram Tudo isto criava um enorme contraste rela-
a outra face da libertação, não poupando tivamente à posição dos EUA, que emergiam
Chegada de ajuda Açúcar das Caraíbas
sequer a população judaica que sobrevivera do conflito numa posição única, curando de para a Europa, sob o «guarda-chuva» dos EUA
à «Solução Final». A subnutrição grassava vez as sequelas da Grande Depressão. Os
em largas áreas do continente e a chegada seus índices de produção industrial e agrícola zer uma aplicação mais restrita do conceito de
do inverno de 1945-46 era vista com ansie- atingiam patamares inéditos, sendo a quota «superpotência» (estados com «grande poder
dade, atendendo à falta de combustível para de 46% de toda a energia elétrica produzida e grande mobilidade de poder»), cunhado em
aquecer as habitações. a nível mundial um dos indicadores mais im- 1941 pelo politólogo William T. R. Fox, então
Na preparação política da paz, os europeus pressionantes. Tendo tomado a dianteira na é possível que no fim do conflito apenas os
encontravam-se numa situação ainda mais corrida à bomba atómica, os EUA possuíam EUA se pudessem encaixar nessa categoria.
diminuída do que em 1918-19, em especial também as mais sofisticadas marinha e força Restava saber, porém, se politicamente os
face aos Estados Unidos. área do planeta. Em suma, se quiséssemos fa- norte-americanos queriam assumir as despe-

70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Churchill entregara-se, com Estaline, a um
exercício de divisão virtual da Europa oriental
e balcânica em esferas de influência – o fami-
gerado «Acordo de Percentagens».
Mas, dito isto, seria errado sentenciar Ialta
como uma manifestação de puro cinismo. As
concessões de FDR radicavam na constatação
de um facto – a presença das divisões soviéti-
cas em largas partes da Europa a leste do rio
Elba, sendo que a abertura de uma disputa
com Estaline naquele momento não era um
cenário visto como viável, ou sequer desejá-
vel (o Japão ainda não se rendera, e a URSS
poderia vir ainda a desempenhar um papel
decisivo no teatro do Pacífico).
O que o presidente americano procurava
testar era a figura das esferas de influência
«abertas». Ou seja, conceder aos seus inter-
locutores um ascendente em certas zonas,
mas arrancando-lhes contrapartidas que sal-
vaguardassem compromissos já assumidos
com princípios como o da autodeterminação
(inscrito na Carta do Atlântico de 1941). Foi
isso que esteve no cerne da «Declaração sobre
Plano Marshall Uma mulher
grega e os filhos comem a Europa Libertada», o documento subscrito
alimentos fornecidos pelos norte- pelos Três Grandes mencionando o direito
-americanos, cerca de 1950 dos povos europeus a «criarem as instituições
democráticas da sua escolha». A URSS era a
mais visada por esta declaração – e ela seria
sas dessa condição hegemónica, reeditando a que juntou FDR, Churchill e Estaline, foi, a efetivamente invocada nas décadas seguintes
tentativa de ordenamento internacional en- este respeito, elucidativa. A divisão da Ale- por todos quantos contestavam a legitimida-
saiada por Woodrow Wilson na Conferência manha em quatro setores e o reconhecimento de dos regimes sujeitos à tutela de Moscovo.
de Paz de Paris de 1919. do governo polaco provisório (de predomí- Mas a fórmula de FRD tinha um alcance
nio comunista), mostravam que os líderes mais amplo – ela dirigia-se também aos alia-
A estratégia de Roosevelt ocidentais estavam dispostos a acomodar dos ocidentais que guardavam ciosamente
Sobre isto, as elites americanas estavam di- as preocupações de segurança dos soviéti- os seus impérios ultramarinos. A persistên-
vididas e Franklin D. Roosevelt (FDR), fale- cos. De resto, uns meses antes,
ntes, em Moscovo, cia de espaços imperiais «fechados» era,
cido em abril de 1945, havia optado por uma desde há muito, um anátema
anáte para as elites
combinação de voluntarismo institucional de Washington que favoreciam
favore políticas de
e realismo, que contemplava um relança- «porta aberta»
abe e esquemas
mento da grande experiência multilateral O presidente Harryy promotores do comércio-li-
promotore
do entre-guerras (a Liga das Nações), agora vre. Aqu
Aqui, tanto FDR como
designada Nações Unidas, mas sem descurar Truman optou o seu sucessor, Harry
os princípios da «política de poder» (desde o,
pelo pragmatismo, S. Truman, optaram
logo, o direito de veto atribuído aos membros po
por um pragmatis-
do que viria a ser o Conselho de Segurança). a curto e mo de curto/médio
Embora de forma matizada, a muito vili- a médio prazos prazo:
prazo as soberanias
pendiada ideia das «esferas de influência» coloniais seriam respei-
colonia
figurava no repertório da diplomacia ame- tadas, mmas a Carta das
ricana quando o pós-guerra começou a ser Nações Unidas, aprovada
delineado nas cimeiras interaliadas. A con- em São Francisco
F em junho
ferência de Ialta (fevereiro de 1945), a última de 1945, continha
c provisões

VISÃO H I S T Ó R I A 71
EUROPA // 1945-1991

Fundação da ONU A cerimónia


ocorreu em São Francisco, no dia
24 de outubro de 1945

designado por ter sido anunciado pelo secre-


tário de Estado americano com esse nome),
um ambicioso esquema de assistência finan-
ceira às nações europeias, ou, pelo menos,
àquelas que estivessem dispostas a satisfazer
alguns dos requisitos americanos (entre elas,
a redução de barreiras ao comércio interes-
tadual, medidas de estabilização monetária
e estímulo à produtividade, modalidades
colaborativas para implementar o plano).
Embora a oferta americana não excluísse, à
partida, as «democracias populares» do Leste,
ela foi vista com total desconfiança por parte
de Moscovo. Zhdanov, ideólogo de Estaline,
formularia em setembro de 1947 a teoria dos
«dois campos» – um «imperialista» (liderado

GETTY IMAGES
pelos americanos) e outro «democrático» (sob
a égide da URSS). Seria o tiro de partida para
a estalinização da região no ano seguinte, com
a supressão dos últimos vestígios de pluralis-
que lançavam as sementes de uma contes- situação. Alguns temiam que países como a mo político e um mais rigoroso alinhamento
tação aos domínios coloniais «fechados». França ou a Itália (onde os partidos comu- com as orientações internacionais da URSS
Essas sementes não tardariam a dar frutos nistas locais contavam, respetivamente, com (a exceção seria a Jugoslávia de Tito).
na década seguinte, com a emergência de 900 mil e 1,7 milhões de membros) pudessem Não tardaria a que à divisão política e eco-
um novo «direito da descolonização» e uma ser os próximos alvos. nómica do continente correspondesse tam-
maioria na Assembleia Geral a pressionar por Estas perceções em breve criariam as suas bém uma divisão militar, em dois blocos de
um rápido desmantelamento dos impérios próprias realidades. Nos EUA, elementos alianças. Essa bipolarização seria antecedida
europeus. da Administração começaram a temer uma por uma crise em torno da reconstrução eco-
A passagem de testemunho na Casa Branca derrocada súbita das capacidades militares de nómica alemã, a que os soviéticos responde-
não correspondeu a uma mudança brusca alguns parceiros europeus, nomeadamente os riam com um bloqueio a Berlim, entre junho
nas perspetivas dos EUA para o pós-guerra. britânicos, que ainda aguentavam a influência de 1948 e maio de 1949. A crise de Berlim seria
Num primeiro momento, Truman deu si- ocidental em partes do Mediterrâneo Oriental o cadinho de onde emergiriam as negociações
nais de estar disposto a prosseguir na senda e Próximo Oriente. A resposta americana a para formação de uma aliança multilateral
da abordagem «cooperativa» de FDR. Dar este cenário veio sob a forma da «doutrina baseada na segurança coletiva – a NATO,
continuidade à colaboração com os aliados Truman», o compromisso americano com a Organização do Tratado do Atlântico Norte
europeus, esperar que os soviéticos pudessem ajuda financeira e militar a países «sob amea- – que juntaria EUA, Canadá e mais dez na-
evoluir para um socialismo menos prosélito, ça autoritária» (neste contexto, comunista). ções europeias (Bélgica, Dinamarca, França,
eram cenários tidos como credíveis em alguns Grécia e Turquia seriam os beneficiários. Mas Islândia, Holanda, Luxemburgo, Noruega,
setores da administração. Tudo isto mudaria na segunda metade de 1947 essa ajuda seria Portugal e Reino Unido). Em 1955, em res-
em poucos meses, como é bem sabido. ampliada por via do «Plano Marshall» (assim posta à integração da Alemanha Ocidental na

Manobras da NATO
A Guerra Fria instala-se em 1949 O marechal
Uma sucessão de «crises de nervos» na Tur- Montgomery
quia, Irão e Grécia ao longo de 1946, a par dá ordens ao seu
da infiltração comunista em vários gover- oficial de ligação
na ponte de
nos europeus de leste (Polónia, Roménia e comando do HMS
Bulgária), foram percebidos como sinais de Implacable
uma estratégia expansionista mais ou menos
dissimulada. Em março de 1946, no Missouri,
Churchill usava uma imagem poderosa – a
«Cortina de Ferro» – para se referir a esta

72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Bloqueio de Berlim
Os géneros escasseavam,
antes de ter sido estabelecida
uma ponte aérea em 1949

económica – na qual se destacariam duas das


potências derrotadas, a Alemanha e a Itália.
Historiadores como Kershaw e Mazower,
por seu lado, insistem em lembrar-nos dos pa-
radoxos em que assentou esta nova era de paz
europeia, em especial a sua metade ocidental.
A derrota alemã sem apelo nem agravo foi uma
delas, claro. Desta vez, ao contrário de 1919,
não houve uma direita nacionalista à espreita
da oportunidade para uma nova révanche. Os
julgamentos de Nuremberga e uma (ainda que
limitada) «desnazificação» trataram do assun-
to. A vida familiar e o consumo tornaram-se os
grandes focos de «realização pessoal» para os
alemães e para a generalidade dos europeus.
Dizer que isso suprimiu por completo ins-
tintos agressivos na Europa seria um exage-
ro. Até ao início dos anos 1960, os europeus
continuariam a travar as suas guerras – sim-
NATO, a URSS formaria o Pacto de Varsóvia, lista, conduzida pelos EUA. O historiador plesmente, estas desenrolavam-se nos seus
integrado pela Albânia, Bulgária, Checoslo- norueguês Geir Lundestad oferece-nos uma domínios coloniais, que várias metrópoles
váquia, RDA, Hungria, Polónia e Roménia. outra chave de leitura. Em muitos aspetos, a continuaram a encarar como indispensáveis
Até início dos anos 1970, o enfrentamento relação dos EUA com os europeus ocidentais à plena recuperação económica, e até como
destes dois blocos militares – ambos dotados revestia-se de contornos imperialistas – mas símbolos de um certo estatuto internacional.
de capacidade nuclear – «congelou» a divisão era um imperialismo «por convite», em larga Mas, sobretudo, é hoje claro que a estabi-
e a balança do poder na Europa. Nenhum medida requerido por governos europeus (de lidade de muitos Estados europeus assentou,
tratado de paz formal garantia as fronteiras centro-esquerda e centro-direita) e gozando em boa medida, num trabalho de «limpeza
criadas pelos «factos no terreno» em 1945. de elevados índices de apoio entre as opiniões étnica» em grande escala iniciado pelos nazis,
Seria necessário esperar pela détente (o de- públicas dos respetivos países. e depois completado de forma improvisada,
sanuviamento) e pelas iniciativas ligadas à Este relacionamento desigual, porém, não mas implacável, pelas populações e governos
Ostpolitik dos governos alemães ocidentais impediu os europeus de reconquistarem al- que emergiram com a derrota do Eixo. As
para que este estado de coisas se tornasse guma autonomia. Os hábitos de cooperação «minorias nacionais» deixaram de ser um
um pouco menos precário. Em 1975, a Ata que os americanos procuraram incutir-lhes foco para conflitos intraestatais e disputas
Final de Helsínquia, produto de três anos no contexto do Plano Marshall ajudaram à irredentistas, pelo menos com a intensidade
de negociações na Conferência de Segurança superação de desconfianças e velhas inimi- que distinguira o período de entre-guerras.
Europeia, validaria finalmente as fronteiras zades. Iniciativas como o Tratado de Roma Dito isto, a ideia de que a paz na Europa
saídas da II Guerra Mundial (incluindo a divi- (1957) inaugurariam novas modalidades de era uma conquista civilizacional «adquirida»
são da Alemanha). Em troca da «legitimação» partilha de soberania e colaboração inter- não tardaria a ser posta à prova logo após o
dos regimes de leste, os aliados ocidentais governamental, ao mesmo tempo que con- fim da Guerra Fria, em 1991, num ciclo de
procuravam vincular os países socialistas ao solidavam uma impressionante recuperação violência interétnica que devastaria, por uma
cumprimento de uma série de provisões rela- década, toda a região dos Balcãs ocidentais.
tivas aos Direitos Humanos – uma concessão
* Pedro Aires Oliveira é investigador do Instituto de
que daria alento renovado a muitos dissiden-
tes no outro lado da Cortina de Ferro, desde Os hábitos História Contemporânea da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa
Václav Havel a Andrei Sakharov. de cooperação Para saber mais:

Um império consentido? incutidos pelos David Reynolds, Summits: Six Meetings that Shaped
the Modern World (Penguin, 2007). Geir Lundestad,
Tanto o Plano Marshall como a NATO fo- americanos ajudaram «Empire by Invitation. The United States and Western
Europe, 1945-1952», Journal of Peace Research,
ram vistos (e não apenas pelos soviéticos) Vol 23, Nº 3, 1986: 263-277. Ian Kershaw, À Beira do
como expressões de uma política externa os europeus a superar Abismo. Europa 1914-1949 (Dom Quixote, 2016)
Mark Mazower, O Continente das Trevas. O século XX
confrontacional, se não mesmo imperia- desconfianças na Europa (Edições 70, 2014)

VISÃO H I S T Ó R I A 73
EUROPA // 1991-2001

GUERRAS JUGOSLAVAS

Limpeza étnica
O complicado e violento mosaico jugoslavo
alimentou a última guerra europeia antes do
conflito russo-ucraniano surgido em 2022
Por Pedro Caldeira Rodrigues

E
m 28 de junho de concentra o imaginário sérvio,
1989, junto ao mo- e de um discurso que foi inter-
numento Gazimes- pretado como um presságio
tan, em Kosovo Pol- sobre o colapso da Jugoslávia
je, perto de Pristina, socialista e federal, já o pro-
Slobodan Milosevic, cesso de desmembramento da
então ainda presidente da Re- Jugoslávia estava em marcha.
pública Socialista da Sérvia e No underground, nos «sub-
líder da Liga dos Comunistas da Sérvia, discur- terrâneos» do grande Estado balcânico fun-
sou perante mais de um milhão de apoiantes. dado por Josip Broz Tito no rescaldo da II
Nessa região do Kosovo, que os sérvios reco- Guerra Mundial após a vitória dos resistentes
nhecem como o berço da sua nacionalidade e partizans contra o ocupante alemão e seus
religião, os turcos otomanos tinham infligido aliados internos, há muito que as seduções
600 anos antes, em 1389, uma decisiva der- nacionalistas se tentavam recompor dos su-
rota ao reino medieval da Sérvia na batalha cessivos golpes de um poder assente na mística
do Kosovo, que anunciou o seu prolongado da «irmande» e «fraternidade» entre as seis
PASCAL GUYOT/GETTY IMAGES

domínio nos Balcãs. repúblicas federadas e nas doutrinas da auto-


«A Sérvia recuperou o seu Estado e a inte- gestão, não-alinhamento e descentralização.
gridade nacional e espiritual», afirmou o líder A República Socialista Federativa da Jugos-
de Belgrado perante a multidão eufórica. «Mas lávia, anunciada nas montanhas da Bósnia
600 anos depois [estamos envolvidos em] em 1943 pela guerrilha comunista liderada
batalhas e disputas. Não são batalhas armadas, por Tito, era uma federação descentraliza-
apesar de essas situações não poderem ser da onde as repúblicas constituintes e duas Após a morte do seu fundador, o naciona-
excluídas. (...) Agora, a nossa principal batalha «regiões autónomas» em território da Sérvia lismo irredentista regressa de forma impa-
respeita à concretização da prosperidade eco- (Kosovo e Voivodina) detinham ampla auto- rável, da Croácia à Sérvia (incluindo na sua
nómica, política, cultural e social em geral.» nomia linguística e administrativa, assente irrequieta província do Kosovo, de maioria
Envolvido num processo de «revolução anti- num triplo equilíbrio etno-político, territorial albanesa), da Bósnia-Herzegovina ao Mon-
burocrática» e de conversão ao nacionalismo, e económico, com «povos iguais em direitos» e tenegro, da Eslovénia à Macedónia (agora
Milosevic (1941-2006) alertava no discurso de uma redistribuição económica inter-regional. Macedónia do Norte, após o acordo de Prespa
Gazimestan para o perigo da desintegração da de 2018 que pôs termo a prolongado con-
Jugoslávia, com veladas críticas à herança de tencioso toponímico com a vizinha Grécia).
Tito, o comunista croata-esloveno que liderara
O modelo jugoslavo Alguns dos principais líderes que vão emer-
a «Segunda Jugoslávia» desde 1945 até à sua entrou em colapso gir no processo de secessão tinham sido perse-
morte, em 1980, acusado de enfraquecer a Sér- guidos pelo titismo, enquanto o nacionalismo
via à custa das restantes repúblicas federadas.
devido às disparidades também se reforçava entre os ambiciosos
socioeconómicas dirigentes dos partidos únicos de cada re-
‘Underground’ pública, ou entre os círculos de exilados na
Mas antes desta celebração, que assinalava
e à emergência Europa Ocidental ou nos Estados Unidos.
uma derrota histórica numa região onde se dos nacionalismos Franjo Tudjman (1922-1999), ex-general e

74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cerco a Srebrenica
Milhares de refugiados foram retirados
pela ONU da cidade sitiada pelos sérvios,
no fim de março de 1993. À chegada a Tuzla,
uma das mulheres começou a chorar

ex-comunista convertido ao nacionalismo e Leste, a Jugoslávia socialista era um caso de um rotativismo anual para Presidente da Presi-
primeiro presidente da Croácia após a decla- exceção. Desde a década de 1970 que nas seis dência Colegial, onde também estavam repre-
ração unilateral da independência em junho repúblicas constituintes se usufruía de uma sentadas as duas regiões autónomas da Sérvia
de 1991 (juntamente com a Eslovénia); Alija significativa, mas não absoluta, liberdade, com (Kosovo e Voivodina), mas que revelava as suas
Izetbegovic (1925-2003), líder dos muçul- a possibilidade de viajar para o estrangeiro, limitações, acirrava os egoísmos nacionais e
manos islamistas da Bósnia-Herzegovina e um elevado grau de liberdade artística e uma ameaçava tornar a Jugoslávia ingovernável.
autor da famosa «Declaração Islâmica»; Adem pujante imprensa, mesmo que ainda alvo de E foi neste contexto que se consolidaram
Demaçi (1936-2018), dirigente nacionalista velada censura. os nacionalismos,, na Croácia com Tudjman,
j
albanês do Kosovo; ou Vojislav Seselj (n. 1954), A partir de 1980, após a morte de Tito, a na Bósnia-Herzegovina
a-Herzegovina com Izetbegovic
Izetbegovi e na
que será vice-ministro da República Federal da solução encontrada a nível federal implicou Sérvia com
om Milosevic, que em 2006, aos a 64
Jugoslávia (Sérvia e Montenegro), nacionalista
radical sérvio natural de Sarajevo – foram al-
1991 1933 1992 Marec
Marechal
guns dos perseguidos ou condenados a longos
Tito
anos de prisão pelo regime de Tito.
Independência Independência Independência
ência
O falhanço do rotativismo das repúblicas da da Macedónia da Bósnia--
Em comparação com os outros países do Eslovénia e Croácia -Herzegovina
vina

75
EUROPA // 1991-2001

Divisões étnicas
Bósnia-Herzegovina

1991 2022
População: População:
4 milhões W3,5 milhões
Bosníacos Bosníacos 
(muçulmanos) (muçulmanos)
44% V48%
Sérvios 31% Sérvios V37,1%
Croatas 17% Croatas W14,3%
Jugoslavos 8% Outros 0,6%

Croácia
1991
População: População:
4,7 milhões 3,9 milhões (2020) Mostar A «Velha Ponte», bombardeada por tropas croatas, permaneceu como símbolo da
Croatas 78,1% Croatas V90,4% cidade dividida entre croatas e bósnios muçulmanos
(2011) anos, seria encontrado morto numa cela do em vias de extinção, enquanto as repúblicas
Sérvios 12,2%
Sérvios W4,36 % extinto Tribunal Penal Internacional para a do «Norte» (Eslovénia e Croácia), principais
Jugoslavos 2,2%
(2011) ex-Jugoslávia (TPIJ), uma instituição ad hoc contribuintes do orçamento federal, demons-
(recenseadas mais da ONU com sede em Haia, após ser conde- travam crescente indisponibilidade para que
22 nacionalidades Outros cerca
minoritárias) de 2% nado a prisão perpétua por crimes de guerra. o «bolo» fosse distribuído de forma equitativa
Nesse período transitório, o Memorandum pelas «indolentes» repúblicas ou províncias
Kosovo da Academia das Ciências Sérvias, redigido do «Sul».
Censo de 1981 2011* por intelectuais em outubro de 1986, está na
População: População: origem do «moderno» nacionalismo sérvio. A caminho das secessões
1,9 milhões W1,7 milhões Este documento, provavelmente discutido Este modelo jugoslavo entrou em colapso
Albaneses 77,42% Albaneses V 92,9% secretamente com nacionalistas eslovenos, no início da década de 1990 devido ao agra-
questionava a Liga dos Comunistas da Ju- vamento das disparidades socioeconómi-
Sérvios 13,2% Sérvios W1,5% goslávia, reclamava o restabelecimento do cas, à introdução do multipartidarismo e à
Montenegrinos Outras Estado de Direito, insurgia-se contra o mo- emergência de partidos nacionalistas, que
1,7% nacionalidades 5,4% delo federal imposto por Tito, reconhecia o fomentam a rivalidade entre grupos étnicos.
Jugoslavos 0,2% direito dos povos a decidir sobre o seu destino As populações jugoslavas ficavam reféns do
e advogava a necessidade de todos os sérvios, «interesse superior da nação», definido pelos
(Antes do conflito *Censo boicotado pelos
de 1998-1999, cerca municípios de maioria na própria Sérvia, na Croácia ou na Bósnia- respetivos líderes.
de 226 000 sérvios sérvia do norte do Kosovo -Herzegovina, ficarem sob a proteção de um Devido à essência centralizadora da Jugoslá-
habitavam no Kosovo; e parcialmente pelos
atualmente, cerca sérvios e Roma do sul mesmo Estado caso essas duas repúblicas via, uma das principais consequências da deri-
de 100 000) do Kosovo decidissem declarar a secessão. va nacionalista, num espaço onde conviviam 13
O último primeiro-ministro da Jugoslávia, «etnias» reconhecidas, foi colocar sob pressão
Macedónia do Norte o croata Ante Markovic (1924-2011), tentava as minorias étnicas, com o agravamento dos
2002 2021 por sua vez modernizar uma economia blo- problemas nacionais no espaço jugoslavo.
População: População:
queada, impor reformas políticas e democra- O caráter multiétnico da região estará as-
2 milhões W1,7 milhões
tizar a federação sem a destruir. Mas o vírus sim na origem dos diversos conflitos, que no
Macedónios 64% do nacionalismo estava à solta, enquanto se seu decurso implicarão a adoção da lógica
Albaneses 25% acentuavam as ingerências externas, em par- política da limpeza étnica e do deslocamen-
ticular da Alemanha, entusiasta defensora das to de minorias indesejáveis, como forma de
Restante
população: sérvios, independências croata e eslovena. conquista territorial. E todas as comunidades
turcos, valáquios, O fim do bloco soviético e a grave crise eco- minoritárias iriam ser atingidas de forma in-
e roma e egípcios nómica nessa década crucial também impede discriminada, num país onde não existia um
(ciganos) os ocidentais de exportarem uma prosperidade limite claramente definido entre os povos que

76 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTOINE GYORI - CORBIS/GETTY IMAGES
ROGER HUTCHINGS/GETTY IMAGES

Osijek, Croácia Num abrigo, um grupo de civis, alguns deles armados, protegem-se das bombas que caem sobre a cidade

habitavam as repúblicas da federação. relativamente reduzidas entre as milícias eslo- sérvias. Após meses de cerco pelo exército de
As independências das repúblicas da Eslo- venas e o Exército Federal Jugoslavo. Belgrado e milícias locais, as forças croatas
vénia e da Croácia, em junho de 1991, seguidas Pelo contrário, a guerra na Croácia será pe- capitulam em Vukovar no final desse ano, e
pelas da Macedónia, em setembro desse ano, nosa. Estimulados por Belgrado e tendo como a cidade junto ao Danúbio e «capital» da Es-
e da Bósnia-Herzegovina em abril de 1992, referência Milosevic, os sérvios da Croácia lavónia oriental torna-se um dos símbolos da
serão consideradas ilegais por Belgrado, ca- rebelam-se, autoproclamam a República Sér- «Guerra da Independência» da Croácia.
pital da federação jugoslava e da Sérvia, e o via da Krajina na região da Dalmácia junto às Zagreb, com constante solidariedade ale-
ponto de partida para os conflitos. No seu fronteiras bósnias, controlam a Eslavónia oci- mã, e depois dos Estados Unidos, conseguirá
ímpeto aglutinador, Milosevic tinha já reti- dental, junto ao rio Sava, e a Eslavónia oriental, iludir o embargo ao armamento e ao «cordão
rado à Voivodina, com importante minoria nas margens do Danúbio. A limpeza étnica sanitário» entretanto imposto a toda a região
húngara católica, e ao Kosovo, com maioria atinge o auge nestas regiões. pelo clube europeu, numa tentativa de conter
de albaneses muçulmanos, os estatutos de Aos ferozes combates que decorrem desde o «vírus» nacionalista. Pacientemente, Tudjam
autonomia impostos por Tito. meados de 1991 juntam-se unidades do Exérci- prepara a resposta, com a situação na linha
Apesar de envolvida nas negociações de to Nacional Jugoslavo, em apoio às populações da frente a manter-se num impasse até 1995.
Maastricht, a ainda Comunidade Económica Será apenas em meados desse ano que o
Europeia (CEE), hoje União Europeia, reco- bem equipado Exército Croata, apoiado por
nhecerá estas independências pouco após a conselheiros e material de guerra ocidental,
sua proclamação, seguindo o exemplo da Ale- conseguirá finalmente «reconquistar», primei-
PETER TURNLEY/GETTY IMAGES

manha e do Vaticano, que quase de imediato ro a Eslavónia ocidental (Operação Flash, entre
legitimaram a deriva de eslovenos e croatas. 1 e 3 de maio de 1995), e depois toda a região
da Krajina, face a uma desesperada liderança
‘Guerra da Independência’ da República Sérvia da Krajina que esperava
e minoria sérvia novos apoios vindos de Belgrado e da Rússia
Após a ampla vitória nas legislativas de 1990 da de Boris Ieltsin, os quais nunca chegarão.
ultranacionalista União Democrática Croata, No início de agosto de 1995, o Exército
e a posterior declaração unilateral da indepen-
Nos acordos de paz Croata desencadeia a Operação Oluja (Tem-
dência em junho de 1991, os sérvios da Croácia de Dayton, a que se pestade) e em dois dias alcança Knin, a «ca-
(13% da população e de religião ortodoxa) pital» da Krajina sérvia. Entre 200 e 300 mil
consideram a sua existência ameaçada. Já na
associaram diversos sérvios são expulsos das suas terras ancestrais,
Eslovénia, etnicamente homogénea, a decla- líderes mundiais, foram centenas de civis, muitos deles idosos, são
ração simultânea da independência, apesar mortos sumariamente, e a Croácia torna-se
de alterar as fronteiras externas da Jugoslávia,
reconhecidos três «povos um Estado etnicamente homogéneo. Um
reduz-se à «Guerra dos Dez Dias», com baixas constituintes» processo semelhante ocorria em simultâneo

VISÃO H I S T Ó R I A 77
EUROPA // 1991-2001

na vizinha Bósnia-Herzegovina, e o sucesso


da Oluja será decisivo para o seu desfecho.

Guerra total na Bósnia


Até finais de 1991, a Bósnia-Herzegovina,
um mosaico étnico com 44% de muçulma-
nos (bosníacos), 33% de sérvios ortodoxos e
17% de croatas católicos, evitou envolver-se
no conflito da vizinha Croácia.
GKOCA SULEJMANOVIC/ETTY IMAGES

A nível internacional, uma Comissão de Ar-

ODD ANDERSEN/GETTY IMAGES


bitragem estabelecida pela CEE e dirigida pelo
jurista francês Robert Badinter (a «Comissão
Badinter»), um dos órgãos da Conferência so-
bre a Jugoslávia para o processo de desintegra-
ção, tinha decretado que a independência da
Bósnia-Herzegovina apenas seria reconhecida
após a realização de um referendo.
A consulta sobre a autodeterminação, pro- As discussões decorreram em Lisboa em na primeira fase da guerra civil face ao Exército
movida pelos bosníacos e os croatas e boicota- janeiro e março de 1992, na presença dos três da República da Bósnia-Herzegovina (Armija,
da pelos sérvios locais, decorre em fevereiro de líderes «étnicos», Alija Izetbegovic, Radovan as forças bosníacas) e ao Conselho de Defesa
1992, com 64% de participação e um resultado Karadzic e o croata bósnio Mate Boban (1940- Croata, a formação militar da autoproclamada
de 99% a favor de uma Bósnia independente. -1997), que assinam o chamado Plano Cutileiro. República Croata da Bósnia-Herzegovina.
Em paralelo, a Republika Srpska, a entida- No regresso a Sarajevo, e por pressão de
de dos sérvios bósnios dirigida por Radovan Washington, o líder muçulmano decide retirar Internacionalização do conflito
Karadzic (76 anos e a cumprir prisão perpétua a assinatura do documento em 28 de março de O conflito internacionaliza-se, com apelos
após sentença do TPIJ), declara a indepen- 1992, justificando a sua decisão pela oposição dos dirigentes nacionalistas à intervenção de
dência, não reconhecida internacionalmente. à partilha étnica da Bósnia-Herzegovina. grupos paramilitares, enquanto milhares de
Após a confirmação pelo parlamento bósnio, O conflito tornou-se inevitável. A Sérvia e voluntários estrangeiros se envolvem na guer-
em março, a CEE reconhece a Bósnia como o Montenegro, as suas únicas repúblicas não- ra, com turcos e sauditas ao lado dos muçul-
país independente, seguida pelos Estados Uni- -secessionistas, anunciam a República Federal manos, ou russos e gregos a combaterem pelos
dos, e o país fraturado é admitido na ONU da Jugoslávia em 1992, mas que a Comissão sérvios. Numerosos neonazis europeus tam-
juntamente com a Eslovénia e Croácia. Badinter não reconhece como sucessora e nú- bém se juntam ao lado croata, após o governo
No caso particular da Bósnia-Herzegovi- cleo restante da antiga Jugoslávia, ao contrário de Zagreb ter decidido recuperar os símbolos
na, e após uma tremenda guerra civil de três do que tinha sucedido com a Federação da utilizados durante a II Guerra Mundial pelo
anos e meio, que penalizou em particular os Rússia após a implosão da URSS. Estado Independente Croata, aliado do III
bosníacos, a partilha étnica da república é Já em pleno conflito, o plano de David Reich. Na Armija destacaram-se os voluntá-
consumada com os acordos de Dayton (no- Owen, ex-chefe da diplomacia britânica, e rios dos El Mudzahid, muitos deles veteranos
vembro e dezembro de 1995), impulsionados do seu ex-homólogo norte-americano Cyrus combatentes jihadistas que tinham lutado
pelo principal ator da cena política mundial, Vance, o «Plano de Paz Vance-Owen», sugere contra a presença soviética no Afeganistão.
os Estados Unidos, que após muitas hesitações uma partilha do país em dez regiões semiau- No confronto entre os três exércitos, o da
decidem irromper em força nos Balcãs. No tónomas. O plano será aprovado por Karazdic Republika Srpska é a força mais bem equipa-
capítulo das monstruosidades, das imensas antes de ser rejeitado pelo parlamento da Re- da. No início, contou com apoio do Exército
operações de limpeza étnica, a desonra será publika Srpska em maio de 1993, o que motiva Federal Jugoslavo e mobiliza 120 mil soldados,
partilhada por todos. um progressivo afastamento de Milosevic face comandados pelo general Ratko Mladic (79
Previamente, numa tentativa de evitar um ao nacionalismo sérvio na Bósnia. anos, também a cumprir pena máxima após
conflito sangrento, os diplomatas português No terreno, o conflito ficou assinalado por deliberação do Tribunal de Haia).
José Cutileiro e britânico Lord Peter Carring- episódios muito violentos, com a prática de Entre 1992 e 1995, serão ainda apoiados
ton envolvem-se num projeto de cantonização crimes de guerra, massacres, violações e deslo- por forças militares da Krajina sérvia e da
da Bósnia-Herzeogvina, baseado no modelo camentos forçados de populações cometidos designada Província Autónoma da Bósnia
suíço, e onde a cada cantão seria atribuída por todas as partes, mas com o Exército da Re- Ocidental, na zona de Bihac, uma dissidência
uma etnicidade bosníaca, sérvia ou croata. publika Srpska a garantir supremacia militar bosníaca. Os muçulmanos, a maioria da popu-

78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Crimes de guerra Peritos forenses
do Tribunal de Haia removem corpos
de vítimas do massacre de Srebrenica,
ocorrido um ano antes, em 1995.
À esquerda, o ex-presidente dos EUA,
Bill Clinton, participa no enterro de restos
mortais num memorial dedicado
às vítimas, em setembro de 2003

da Jugoslávia (Sérvia e Montenegro, depois


União Estatal, entre 2003 e 2006, após o
que se separam em definitivo).
Com vantagem no terreno e apoio ocidental,
as forças croatas avançam na Bósnia e expul-
sam milhares de sérvios que viviam nas regiões
ocidentais, enquanto as forças de Mladic pros-
seguem as limpezas étnicas no leste. Com os
territórios em vias de «homogeneização étni-
ca», já se podia admitir um acordo negociado.
No total, as guerras na Croácia e na Bósnia-
-Herzegovina provocaram cerca de 125 mil
mortos civis e militares (incluindo cem mil na
guerra bósnia), e pelo menos três milhões de
refugiados e deslocados. Só a Sérvia acolheu
cerca de 500 mil refugiados da Croácia e da
Bósnia-Herzegovina, e quase 30 anos após
lação de uma república então com 4,5 milhões (OSCE, ex-CSCE), incapaz de estancar o con- o fim do conflito muitos permanecem sem
de habitantes, mobilizam 200 mil homens, e o flito e que registará 167 mortos e mais de 700 regressar às zonas de origem.
Conselho de Defesa da Croácia garante 70 mil feridos entre os seus «capacetes azuis». Na sequência dos acordos de paz de Dayton,
combatentes, com envolvimento do Exército Em paralelo, os aliados bosníacos e croatas assinados em novembro de 1995 por iniciativa
da Croácia independente. bósnios envolvem-se em violentos confrontos dos EUA e confirmados um mês depois em
Logo em 1992, os sérvios da Bósnia, que entre abril de 1992 e maio de 1993, simboli- Paris, foram reconhecidos três «povos cons-
fixaram a sua capital em Pale, perto de Sara- zados por uma violência extrema e pela des- tituintes» e a Bósnia-Herzegovina foi dividida
jevo, iniciam um longo cerco à cidade, com truição pelas forças croatas locais, apoiadas em duas entidades etnicamente uniformes:
os primeiros bombardeamentos a atingirem por Zagreb, da ponte otomana de Mostar, a Federação Croato-Bosníaca e a Republika
a capital bósnia em 6 de abril, um dia após a construída no século XV. Por influência da Srpska, divididas por uma linha de separação
declaração da independência. administração norte-americana do presi- e com um distrito autónomo (Brcko).
Sarajevo fica praticamente bloqueada, dente Bill Clinton, muçulmanos e croatas As duas entidades possuem as suas pró-
apesar de um túnel subterrâneo permitir bósnios assinam um acordo em inícios de prias instituições e infraestruturas, com um
o aprovisionamento da cidade, incluindo 1994 e passam a formar uma frente comum Estado central limitado, submetido a contí-
armamento, durante o assédio. Assente nas contra os sérvios da Bósnia, uma aliança que nuos bloqueios dos dirigentes nacionalistas,
antigas unidades do Exército Nacional Ju- contribuiu para alterar a relação de forças. uma presidência colegial tripartida e rotativa,
goslavo, o Exército Sérvio-Bósnio regista um A guerra da Bósnia-Herzegovina também e amplos poderes concedidos a um «Alto
avanço imparável no início da guerra civil e implicou uma intervenção da NATO no ex- Representante» internacional, para além da
conquista a maioria das cidades mais impor- terior das suas fronteiras, quando no verão presença de uma força militar da Eufor, uma
tantes, à exceção do centro de Sarajevo, Tuzla de 1995 bombardeou posições dos sérvios força operacional da UE após a retirada das
ou o bastião muçulmano de Zenica, reforça a bósnios na sequência de diversos ultima- missões da NATO (Ifor entre dezembro de
presença nas regiões habitadasmaioritaria- tos e ameaças recíprocas. Um precedente 1995 e dezembro de 1996, seguida da Sfor,
mente por sérvios e promove uma implacável que assumirá novos contornos quatro anos que permaneceu até 2004).
limpeza étnica contra a população bosníaca, depois, com o ataque à República Federal A Republika Srpska manteve-se centrali-
de início nas zonas junto ao rio Drina, que zada, e tem revelado intenções secessionistas,
separa a Bósnia da Sérvia. enquanto a Federação agrupa dez cantões au-
Na fase final do conflito, o massacre de Sre- tónomos que permitem aos representantes
brenica permanecerá o exemplo mais extremo As guerras na Croácia bosníacos e croatas coexistirem na mesma en-
desta prática, afinal comum às três forças. tidade, mas sem uma verdadeira cooperação.
A resposta europeia consistiu no envio de
e na Bósnia-Herzegovina Os conflitos na antiga Jugoslávia pareciam
uma força de manutenção da paz da ONU provocaram cerca estancados, ou congelados. Mas duas «ques-
(Forpronu), que também atua na Croácia, sob tões nacionais» permaneciam por resolver, no
a autoridade política da atual Organização
de 125 mil mortos civis Kosovo e na Macedónia. Em 1996, a província
para a Segurança e Cooperação na Europa e militares do sul da Sérvia voltava a entrar em ebulição.

VISÃO H I S T Ó R I A 79
Nos céus da Macedónia
EUROPA // 1998-2001 Um F-15 da Força Aérea
dos EUA é reabastecido
em voo durante os
ataques da NATO contra
alvos na República
Federal da Jugoslávia

nifestações de 1981 serão reprimidas de forma


implacável pelo governo federal.
Em 1989, a situação agrava-se após uma
deslocação do líder da Sérvia, Slobodan Milo-
sevic (1941-2006), ao Kosovo, onde assegura
«nunca permitir» que os sérvios locais sejam
perseguidos, insultados ou expulsos, práticas
que se acentuavam.
Nesse ano, após ser eleito presidente da Sér-
via, Milosevic cumpre a promessa de retirar o
estatuto de autonomia a esta província do sul,
e também à Voivodina, com a sua importante
GETTY IMAGES

minoria húngara. O albanês perde o estatuto


de língua oficial, até então a par do servo-croa-
ta, as escolas autónomas são encerradas e os
responsáveis administrativos substituídos por

GUERRA DO KOSOVO E DA MACEDÓNIA sérvios ou por locais fiéis a Belgrado.


A resposta da liderança nacionalista mode-
rada dos albaneses do Kosovo, então liderados

Bombas sobre por Ibrahim Rugova (1944-2006), arauto


da «resistência não violenta», consistiu em
erguer instituições paralelas, na prática o

Belgrado
O conflito culmina o processo de desintegração da
embrião de um Estado alternativo, situação
que se manteve até 1995, quando se iniciam
ações concertadas contra as forças sérvias pelo
Exército de Libertação do Kosovo (UÇK), um
grupo armado separatista com origens no final
Jugoslávia, que se prolongou por dez anos. Ao bombardear da década anterior.
a Sérvia, a NATO fez pela primeira vez fogos reais Em 1997, esta organização garante enormes
por Pedro Caldeira Rodrigues quantidades de armamento através do contra-
bando proveniente da Albânia, na sequência

A
de uma rebelião e de assaltos em massa a
24 de março de e na presidência federal. No quartéis e esquadras da polícia. E o conflito
1999, a NATO ini- entanto, a província do sul da agrava-se a partir de 1998, com um aumento
cia uma «interven- Sérvia não possuía o estatuto dos ataques do UÇK contra forças policiais
ção humanitária» atribuído às repúblicas da fe- e militares ou entidades estatais, e o reforço
contra a República deração, que desde a Consti- da presença de forças regulares e unidades
Federal da Jugoslá- tuição federal de 1974 admitia paramilitares sérvias.
via (Sérvia e Montenegro), lide- o direito de secessão de um Em simultâneo, os Estados Unidos do
rada pelos EUA e o Reino Unido e justificada Estado-nação federado sob determinadas presidente Bill Clinton e da chefe da diplo-
pela repressão de Belgrado à população alba- condições, em particular a realização de um macia Madeleine Albright (1937-2022) efe-
nesa do Kosovo e à sua rebelião separatista. referendo que deveria decorrer em todo o tuam uma viragem na abordagem ao conflito,
Berço da nacionalidade e da religião orto- país e não apenas no interior da república com o UÇK a deixar de estar incluído na lista
doxa sérvia, o Kosovo registou ao longo do que pretendesse deixar a Jugoslávia. de «organizações terroristas» de Washington
século XX uma importante alteração demo- Por isso, desde a morte de Tito que os na- para obter o estatuto de movimento de «li-
gráfica, em benefício da população albanesa cionalistas albaneses questionam com insis- bertação nacional».
local, de maioria muçulmana, que desde a tência por que motivo mais de um milhão de
fundação da Jugoslávia socialista em 1945 albaneses kosovares, já uma larga maioria da Acordos e ‘purificações étnicas’
beneficiava de um estatuto autónomo especial população, não tinham o mesmo direito de O «massacre de Racak», em janeiro de 1999,
que lhe permitia possuir instituições próprias, obter o estatuto de república como sucedia que resultou na morte de 45 albaneses e foi
e por fim garantir representação no governo aos 600 mil montenegrinos. As grandes ma- atribuído às forças de segurança jugoslavas,

80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
com Belgrado a referir-se a um incidente independência do Kosovo em fevereiro de Nações Unidas, centra-se na resolução 1244
«fabricado pelos terroristas albaneses», me- 2008, de imediato reconhecida por diversos do Conselho de Segurança da ONU, que esti-
diatiza o conflito à escala global. Por fim, o países ocidentais com os Estados Unidos na pulava a permanência da província na Sérvia,
falhanço do Acordo de Rambouillet, formal- liderança. com elevado grau de autonomia.
mente um acordo interino para a paz e um As investigações forenses detetaram pelo Rússia, China, Índia, Brasil ou Espanha
autogoverno no Kosovo, proposto pela NATO menos 3 mil vítimas civis de todas as etnias incluem-se entre as dezenas de países que não
nas conversações entre delegações jugoslavas (incluindo roma ou gorani, respetivamen- legitimaram a declaração de independência,
e albanesas que decorrem neste castelo perto te ciganos e eslavos islamizados, neste caso comprovando a ambiguidade da abordagem
de Paris, abre o caminho para a guerra. perseguidos pelos albaneses) e um total de internacional que oscila entre um apoio às
À revelia de uma decisão unânime do 13 mil mortos ou desaparecidos em dois anos novas estruturas estatais kosovares e a pre-
Conselho de Segurança da ONU, a NATO de conflito, na maioria kosovares. servação de uma ligação jurídica a Belgrado.
desencadeia uma campanha de bombardea- À semelhança de diversos responsáveis sér- Após a anunciada dissolução do UÇK, mui-
mentos contra a Sérvia e o Montenegro, que vios, Hashim Thaçi (primeiro-ministro entre tos dos seus membros vão combater entre
se prolonga entre 24 de março e 10 de junho 2008 e 2014 e presidente entre 2016 e 2020) 1999 e 2001 pelo Exército de Libertação de
de 1999, por muitos observadores definido será indiciado em junho de 2020, com outros Presevo, Medveda e Bujanovac (UÇPMB) no
como um «perigoso precedente» em termos ex-líderes do UÇK, por crimes de guerra por vale de Presevo (sudoeste da Sérvia, junto à
de direito internacional. um tribunal especial internacional. Albânia e com maioria de população alba-
A Sérvia foi atingida por intensos raides nesa), apoiados por Tirana e com o objetivo
diários da aviação aliada, com a morte de O sonho das ‘grandes nações’ de unirem, sem sucesso, estes municípios
centenas de civis, enquanto prosseguiam as A independência do Kosovo nunca foi aceite ao Kosovo.
operações de «limpeza étnica» na província por Belgrado ou pelas populações sérvias nos Outros juntam-se ao Exército de Libertação
e a fuga temporária de perto de 1,2 milhões locais onde são maioritárias, que continuam Nacional durante o conflito armado étnico
de civis albaneses kosovares para as vizinhas a utilizar a moeda da Sérvia e estão inscritos na Macedónia (atual Macedónia do Norte,
Albânia e Macedónia. nas suas listas eleitorais. com mais de 20% de população albanesa),
A «guerra humanitária» da NATO termina Por sua vez, a disputa internacional sobre iniciado em fevereiro de 2001 e que se pro-
com a assinatura do acordo de Kumanovo, a independência do Kosovo, reconhecida por longa por seis meses, com dezenas de mortos
em vigor a partir de 10 de junho de 1999, que cerca de metade dos países com assento nas entre as forças militares e a milícia separatista.
implicou a retirada das forças À semelhança dos sonhos na-
jugoslavas e sérvias do Koso- cionalistas da «Grande Sér-
vo e a futura concessão de um via» ou da «Grande Croácia»,
amplo estatuto autonómico a unificação dos territórios al-
para a região. baneses dos Balcãs também
No terreno, a presença de foi travada.
uma força da NATO (Kfor), Os acordos de Ohrid de 13
a instauração de um proteto- de agosto de 2001 vão, por
rado internacional pela ONU, fim, enquadrar o funciona-
o envio de uma missão da mento das instituições no
União Europeia e o regres- país. O texto contemplou o
ROGER LEMOYNE/GETTY IMAGES

so das populações albanesas reforço da autonomia local


coincidem com perseguições e uma melhor representação
e fuga das populações sérvias, política e cultural a nível local
atualmente cerca de 150 mil e nacional das minorias cuja
dos 1,8 milhões de habitan- população ultrapasse a faixa
tes e remetidas a enclaves. dos 20%.
Pela primeira vez desde a A sua aplicação dirige-se em
II Guerra Mundial, a Alemanha envolve-se particular aos albaneses e permitiu restaurar
diretamente num conflito, ao enviar forças
Perto de 1,2 milhões de a estabilidade do Estado e propor uma gestão
militares para o Kosovo. civis albaneses kosovares operacional entre as diferentes comunidades.
Após novo triunfo da limpeza étnica, os Já no Kosovo permanece o impasse, com esta-
nacionalistas albaneses locais e o seu líder
fugiram para as vizinhas tutos indefinidos para as minorias nacionais e
político Hashim Thaçi autoproclamam a Albânia e Macedónia um permanente estado de tensão.

VISÃO H I S T Ó R I A 81
EUROPA // NÚMEROS

As leis da guerra
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