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Coordenação Editorial:
Fecundações Cruzadas
Tradução:
Bru Pereira
Janaina Tatim
Lucas Maciel
Contato:
fecundacoes.cruzadas@gmail.com
2021
fecunda.org
Para citar: 2
McKittrick, Katherine. Futuros da Plantação. Trad. Bru Pereira, Lucas Maciel & Janaína
Tatim. América Latina: Fecundações Cruzadas, 2021.
Nota de tradução sobre o termo Plantation/Plantação
A palavra inglesa plantation, quando em textos em
português, ora é traduzida por plantação ora mantida
no original. Nesta tradução, optamos por utilizar
o termo plantação, que aparece no texto com uma
fonte distinta. Essa também foi a opção utilizada por
Jess Oliveira, tradutora de Memórias da Plantação de
Grada Kilomba e por Sebastião Nascimento, tradutor
de Brutalismo de Achille Mbembe. Ademais, o termo
plantação foi utilizado por Jota Mombaça no ensaio
A Plantação Cognitiva. Ao utilizá-lo, nosso intuito é
incidir na ampliação do campo semântico dessa palavra
no português, buscando associá-la também aos modos
de produção escravistas. 3
Em 1991, a Administração de Serviços Gerais dos
Estados Unidos começou a desenterrar o que hoje é
conhecido como o Cemitério Africano de Nova York, no
número 290 da rua Broadway, na baixa Manhattan. Entre
dez mil e vinte mil pessoas negras escravizadas foram
enterradas no cemitério, usado entre o final dos anos de
1600 e 1796, antes que o terreno fosse tapado e construído
em 1827, ao lado de outros projetos de expansão urbana.
Desde o desenterro em 1991, o manuseio e a lembrança
envolvendo os corpos encontrados se desdobraram em
uma série de contestações: conforme a comunidade negra
reivindicou os restos mortais e o terreno em que estavam
enterrados para ampliar a consciência política a respeito
da escravidão, uma pressão imensa foi exercida sobre a
comunidade científica para preservar os restos mortais e
recolher dados em um espaço de tempo limitado (cerca de
um ano). Inicialmente, pouques estudioses negres foram
convidades a contribuir para a escavação e análise; na
verdade, as condições em que os corpos foram desenterrados
e preservados foram consideradas desrespeitosas e
insensíveis, até que Michael Blakey, um antropólogo físico
afro-americano, levou o projeto para a Howard University
em 19941. Depois de analisados na
Howard, os restos mortais
foram devolvidos à baixa Manhattan, reenterrados em um
local oficial do memorial e comemorados com a celebração
do “African American Homecoming”. Claramente, as pessoas
escravizadas mortas incitam, no senso comum, uma mistura
de entusiasmo científico e luto comunitário. Aqui, a tensão
8
Em seus escritos sobre as
populações e a economia
Contexto da da diáspora negra, George
Beckford argumentou
Plantação persuasivamente que o
sistema da plantação,
durante e após a escravidão
transatlântica, permeou a
vida negra ao contribuir para o funcionamento entrelaçado
da expropriação e da resistência7. A pesquisa de Beckford,
em particular aquela publicada ao longo da década de 1970,
trouxe à tona os modos pelos quais as plantações estão
ligadas a uma economia global mais ampla, que prospera
através do “subdesenvolvimento persistente” e da “pobreza
persistente” da vida negra8. Ao elaborar sobre a lógica
socioeconômica das plantocracias, ele apresentou o que
ficou conhecida como a “tese da plantação” ou a “tese
da economia da plantação”, que, em parte, sugere que as
plantações da escravidão transatlântica sustentaram uma
economia global; que essa história da plantação não apenas
gerou a riqueza metropolitana do Atlântico Norte e exacerbou
a desapropriação entre pessoas não livres e servas, mas
também instituiu uma economia racializada incongruente,
que perdurou por muito tempo depois dos movimentos
de emancipação e independência nas Américas; e que a
18 Sylvia Wynter, “Novel and History, Plot and Plantation”, Savacou, no. 5
(June 1971): 97.
19 Scott, David. Refashioning Futures: Criticism After
Postcoloniality.Princeton, NJ: Princeton University Press, 1999, p. 96.
20 George Beckford, “Agriculture Organization and Planning in Cuba”, in
The George Beckford Papers, 46.
15
Encontros coloniais passados
criaram geografias materiais e
imaginativas que reificaram as
Inabitável segregações globais por meio
da “maldição” dos espaços há
muito ocupados por outres
humanes do Homem21. Aqui,
a maldição pode ser entendida
de duas maneiras interligadas: como um cercamento e como
uma condenação da diferença racial-sexual. O inabitável
― em particular, as massas de terra ocupadas por aquelas
pessoas que, nos séculos XV e XVI, eram inimagináveis,
tanto espacial quanto corporalmente ― é a (não)localização
geográfica de onde surgiu a plantação. Da ilha “inabitável”
de Caliban em A Tempestade de Shakespeare, às regiões
da África identificadas como quentes demais para serem
habitadas, as massas de terra consideradas inabitáveis
apresentaram uma situação geográfica problemática para
24 Sylvia Wynter, “1492: A New World View”, in Vera Lawrence Hyatt and
Rex Nettleford, eds., Race, Discourse, and the Origin of the Americas
(Washington DC: Smithsonian Institution Press, 1995), 34 (grifo meu).
18
da pessoa humana a diferentes lugares. Mais claramente, a
extensão do que alguns exploradores europeus presumiam
ser “inexistente” era um sistema geográfico que passou a
organizar a diferença no espaço e a considerar esse processo
diferencial como senso comum ou modo de vida normal. Esse
modo de vida normal está enraizado na condenação racial; é
espacialmente evidente em locais de toxicidade, decadência
ambiental, poluição e ação militarizada que são habitados
por comunidades empobrecidas ― geografias descritas como
campos de batalha ou como queimadas, horríveis, ocupadas,
sitiadas, insalubres, encarceradas, extintas, famintas,
destroçadas, em perigo25.
25 Clyde Woods, “Life after Death”, Professional Geographer 54, no.
1 (2002): 62–66; Laura Pulido, “Rethinking Environmental Racism: White
Privilege and Urban Development in Southern California”, Annals of the
Association of American Geographers 90, no. 1 (2000): 12–40; Mbembe,
Necropolítica; Davis, Planet of Slums.
19
perversamente fora da concepção burguesa ocidental do que
significa ser humano que suas geografias são consideradas
― ou passam a ser ― desumanas, mortas e moribundas.
Podemos pensar coletivamente em vários lugares que são
considerados sem vida ― sem história, sem geografia, ou
alheios a sistemas capitalistas adequados de suporte à vida:
países devastados pela guerra, reservas, guetos, o que é
conhecido como “o Sul global”. Mais explicitamente, a pressão
popular e, nem tão presente, para “salvar” a África em crise e
seus filhos a revela como uma geografia humana continental
que não é humana de forma alguma, mas um espaço
inabitável, habitado por pessoas condenadas racialmente,
por pessoas já mortas e moribundas. Isso sugere que os
espaços da alteridade se enrigeceram ao longo do tempo,
muitas vezes com corpos negros e “condenados” ocupando
ou residindo fora do círculo mais baixo da humanidade e,
portanto, habitando o que muitos consideram geografias
desumanas ou inabitáveis. Essa é a patente construção
mútua de identidade e lugar. Se alguns lugares são tornados
sem vida na imaginação geográfica mais ampla, o que dizer
daquelas pessoas que habitam o sem vida? E o que dizer
da visão de mundo das pessoas que ocupam a categoria de
condenadas ― essa visão de mundo também não tem vida
porque as geografias que cercam as pessoas marginalizadas
são tidas como mortas? De que modo a desumanização e a
marcação racial de algumas comunidades seguem a lógica
colonial de que o humano na geografia humana é uma
referência direta ao Homem, que não apenas representa uma
versão completa da humanidade (o nós, em nós e elus), mas
no âmbito global habita naturalmente os países vivíveis, ricos
e superdesenvolvidos? De que forma essa lógica colonial
20
implica que es outres humanes do Homem (o elus do nós e
elus) naturalmente ocupam regiões mortas e moribundas,
pois são considerades como as classes baixas desempregadas,
cujos membros são feitos para funcionar como “resíduos” em
nosso mundo global contemporâneo?26 Assim condenada, a
maior parte da população mundial, uma população que Sylvia
Wynter descreve como desclassificada/imperfeita/menos
que humana, não habita cidades cosmopolitas, mas favelas27.
Como, no presente, surgem as terras de ninguém e como
normalizam um modo de organizar o planeta de acordo com a
vida e a ausência de vida?
26 Sylvia Wynter, “On How We Mistook the Map for the Territory and Re-
imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being of Désêtre”,
in Lewis R. Gordon and Jane Anna Gordon, eds., Not Only the Master’s
Tools: African American Studies in Theory and Practice (London:
Paradigm, 2006), 123–24.
27 Wynter, “Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom”,
319.
21
Meu retorno à plantação foi
motivado pelo enunciado
descritivo que identifica
Lógica da as geografias negras como
Plantação espaços mortos de alteridade
absoluta ― precisamente
porque, em minha pesquisa, a
plantação é considerada quase
o último reduto de expropriação negra, violência antinegra,
encontro racial e resistência inovadora. Na verdade, é a
plantação que foi colocada no mapa das terras de ninguém
e se tornou o local onde os povos negros foram “plantados”
nas Américas ― não como membros da sociedade, mas como
mercadorias que fortaleceriam as economias agrícolas28.
Dentro desse sistema geográfico, em que a violência racial
está ligada à administração do crescimento econômico,
as “capacidades polimorfas” da humanidade negra são
vividas29. Como apontei em Demonic Grounds, a plantação
é frequentemente definida como uma “cidade”, com um
sistema econômico lucrativo e com regulamentos políticos e
legais locais30. A plantação normalmente contém uma casa
principal, um escritório, uma casa de carruagem, celeiros,
um bloco de leilão de escravos, uma área de jardim, senzala
e cozinha, estábulos, um cemitério e um ou mais edifícios
em que as colheitas são preparadas, como um moinho ou
uma refinaria; a plantação também inclui uma área de
cultivo e campos, bosques e um pasto. As cidades-plantação
35 Toni Morrison, Amada (São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1987]),
31.
26
Em seu ensaio de 1971,
Romance and History, Plot and
Plantation, Wynter explica
Roça-e-Plantação que não apenas o surgimento
da plantação corresponde ao
surgimento do romance ―
que aponta para dois novos
sistemas socioeconômicos de
construção do mundo ―, mas que a própria plantação foi
a ambientação contextual em torno da qual giraram muitos
livros de ficção. Ela prossegue dizendo que a economia de
mercado da plantação e as histórias que explicam o valor da
economia da plantação se desdobraram em uma “história
oficial e justificada da superestrutura” que escondeu ― mas
não apagou ― o que ela chama de “histórias furtivas”36.
Histórias furtivas podem ser encontradas nas tramas/roças37:
a trama ou a narrativa central do romance da plantação
que contextualiza sua superestrutura econômica enquanto
desenvolve um espaço criativo para desafiar esse sistema;
e os pedaços de terra que foram dados a algumas pessoas
escravizadas para que pudessem cultivar roças para se
alimentar e, assim, maximizar os lucros ― pedaços de terra
que também se tornaram o foco da resistência ao sistema
dominante da economia da plantação. Em ambos os casos, a
trama/roça ilustra uma ordem social que se desenvolve no
31
Então, que tipo de futuro
a plantação pode nos dar?
Se as geografias negras
Futuros da são conceituadas como
Plantação mutuamente constitutivas
de processos geográficos
mais amplos, como o
enquadramento de Wynter
nos permite apreender práticas historicamente presentes de
exclusão racial sem condenar as pessoas mais marginalizadas
a espaços de alteridade absoluta? Concluo recorrendo a
Inventário [Inventory], poema longo de Dionne Brand,
lendo-o como uma obra criativa que intervém na teleologia
do senso comum acerca da violência racial. Ao estender
a política decolonial e o pensamento decolonial ― o
esforço assossiativo para compreender a descolonização
e a modernidade como projetos inacabados ―, identifico
Inventário como um texto de poética decolonial: tal poética
se detém nas violências pós-escravistas a fim de fornecer o
contexto através do qual os futuros negros são imagináveis41.
O trabalho decolonial de Inventário não reside, portanto,
em arquivar e nomear a violência, mas nas possibilidades
analíticas que surgem da leitura dos dados sobre vítimas
como amalgamados ao criativo. Com minha discussão
anterior em mente, considero Inventário um trabalho criativo
que é produzido fora do reino da normalidade, que rejeita as
regras do sistema que lucra com a violência racial e que prevê
um futuro no qual uma perspectiva correlacional da espécie
ainda em junho,
no hiato, oito mortos por bomba suicida na
estação de ônibus, pelo menos onze mortos em Shula em
34
restaurantes, pelo menos quinze por carro-bomba.
(25)
Se Inventário pode ser lido como uma tabulação
sistêmica e uma enumeração da violência racial e da
morte, também pode ser lido como uma fala pela vida.
Mais especificamente, Inventário documenta e desfaz o
progresso linear em direção à morte sem fim, mencionado
acima. Talvez os inventários poéticos de Brand possam
revelar o que Kenneth Hewitt chama de mortalidade do
lugar. Em seu trabalho sobre o bombardeio de área, Hewitt
identifica a conexão da vida humana biológica e do lugar:
“Os lugares compartilham os problemas de sobrevivência e
mortalidade em nossa existência biológica. Assim como a
vida biológica pode ser chamada um conjunto de atividades
feitas para resistir à morte, também nosso lugar e o mundo
são, pelo menos parcialmente, meios de resistir à dissolução
psicossocial e cultural”43.
43 Kenneth Hewitt, “Place Annihilation: Area Bombing and the Fate of
Urban Places”, Annals of the Association of American Geographers
73, no. 2 (1983): 258.
35
de explicar as brutalidades de nosso mundo. A leitura do
texto ― “nossa dor vai secar lagos” (61) ― exige que quem
o lê registre os dados se perguntando por que a poeta
reconhece, torna claros e versifica esses dados. Voltar-
se para a poética decolonial produzida por comunidades
diaspóricas que sobreviveram ao deslocamento violento
e à supremacia branca nos permite identificar aspectos
invisíveis e não cartografados da vida na cidade. Ao fazê-lo,
retrata-se a morte na cidade não como um fim biológico e
um fato biológico, mas como um caminho para honrar a vida
humana e o que W.E.B. Du Bois chamou de nossas canções
de lamento ― “a[s] expressão[s] da experiência humana”
que foram negligenciadas, incompreendidas, desprezadas44.
O poema longo de Brand sugere que as perspectivas negras
sobre a cidade revelam que espaços de alteridade absoluta,
tantas vezes ocupados por pessoas racial e economicamente
condenadas, são geografias de sobrevivência, resistência,
criatividade e luta contra a morte. Em outras palavras,
podemos ler o poema não como um texto que segue uma
progressão linear em direção à morte, mas sim como a
consequência criativa da roça e da plantação ― uma
concepção da cidade imbuída de uma narrativa da história
negra que não é nem celebratória nem dissidente, mas
enraizada em uma articulação da vida na cidade que aceita
que as relações de violência e dominação tornaram possível
nossa existência e presença nas Américas, pois reformula esse
conhecimento para vislumbrar um futuro alternativo.
45 Leslie Sanders, “What the Poet Does for Us” (keynote lecture at “No
Language Is Neutral: A Conference on Dionne Brand”, Toronto, Ontario,
14 October 2006); Rinaldo Walcott, Black Like Who: Writing Black
Canada, 2ª ed. (Toronto: Insomniac, 2003), 43–55; McKittrick, Demonic
Grounds.
46 Wynter, “Rethinking ‘Aesthetics’”, 271 (grifo no original).
37
estética que Brand nos fornece em Inventário pode, portanto,
ser imaginada como um caminho para perceber como a
normalização da contagem de corpos e mortes na cidade
de fato revela as formas como nossos sistemas atuais de
planejamento urbano e seus modos de vida correspondentes
― as cidades normalmente boas e as cidades normalmente
más ― nos atam, efetivamente, a um processo de
superioridade e inferioridade geográficas de um modo moral,
onde a mortalidade de um lugar é considerada desvantajosa.
Em outras palavras, a poética de Brand revela o trabalho
normalizador que a morte humana e a morte da cidade podem
fazer quando são descritas como um índice de como a vida
humana é constituída. Segue-se, então, que o poema longo
de Brand pode ser lido como um inventário que questiona os
fundamentos pelos quais o urbicídio se torna tanto possível
quanto parte do senso comum. Lida dessa forma, o que a
poética decolonial de Inventário exige é que nós, que o lemos,
sejamos responsabilizades pelos códigos morais e mortais
que regulam, lucram e conceituam espaços de alteridade
absoluta, uma vez que são habitados por não sobreviventes. A
contagem de corpos que enquadra grande parte de Inventário
― 800 a cada mês no último ano, 120 em quatro dias ― é,
portanto, também sobre a sobrevivência e a vida humana,
ou um novo espaço matemático, onde o cálculo das ações
humanas e os esforços humanos cooperativos encontram
poesia para reinventar a culminação inequívoca e sem saída
que é tantas vezes associada às análises da violência (21-52).
Trabalhar com Inventário requer honrar e viver a vida na
cidade de maneira diferente. O difícil poema exige imaginar
cidades e lutas globais, passados e futuros da plantação,
como baseados no todo-da-vida-humana ― mesmo na morte
38
― e no trabalho da sobrevivência. Aqui, vislumbramos uma
vida no limite, uma geografia que exige que se permaneça
vivo, ainda que ameace sua fisiologia, uma política espacial
de viver apenas o suficiente, apenas o suficiente para a
cidade: esta é uma localização política que promove práticas
geográficas mais humanamente viáveis e alteráveis.
39
Agradecimentos
40
Fontes utilizadas
OldNewspaperTypes
Linux Libertine
41