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AGRONEGÓCIO: intersectando
catástrofes globais no Brasil
Jean Segata1
Caetano Sordi2
Juliara Borges Segata3
Bernardo Lewgoy4
“Eu trabalhei três dias com mais de 38 graus de febre. Era covid”, disse
Nelson, numa mensagem de WhatsApp. “Não tinha como parar. Se o encarre-
gado descobrisse alguém doente, ele mandaria para casa, porque tem os pro-
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desconta tudo. Então, a gente tinha que ir trabalhar mesmo sabendo do perigo.
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pandemia de covid-197.
Catástrofes ambientais e sanitárias são frequentemente analisadas de
forma isolada, na chave de problemas globais, impelindo a respostas glo-
bais, quase sempre desarticuladas entre si (ROSENBERG, 1992; SCOPEL;
DIAS-SCOPEL; NEVES; SEGATA, 2021). No entanto, para nós esta ten-
dência costuma obliterar as relações históricas de poder e desigualdades que
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mações sociais e ambientais produzidas como efeito do que Brand e Wissen
(2021) chamam de modo de vida imperial sobre porções do mundo como
o Brasil, onde o Antropoceno chega mais cedo e as pandemias costumam
permanecer mais tempo.
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guais entre a Europa e o “resto do mundo”, o que exige uma revisão crítica
do Antropoceno, situando a cor, a origem e o gênero dos seus agentes.
Em um breve artigo intitulado Unruly edges, a antropóloga Anna Tsing
DMXGDDUHGH¿QLURVWHUPRVGRGHEDWHVREUHRchamado excepcionalismo
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humano, que nos fornece importantes pistas para esta crítica. O seu trabalho
nos ajuda a sugerir que a separação entre humanidade e natureza é, antes
de mais nada, uma exceção do homem no sentido gendrado da palavra; de
uma natureza tomada como recurso para seus propósitos. Trata-se, assim, do
fetiche de dominação e controle propriamente masculino, de um prototípico
homem branco, europeu, “senhor da civilização e da cultura”, colonizador,
patriarca, mas também empreendedor e produtor de lucro e de capital. O que
o neoliberalismo resumiria como cliente prime do planeta: aquele que se vê
como exclusivo.
A crítica feminista e multiespécie de Anna Tsing (2012) apreende a histó-
rica tentativa de emancipação do homem sobre a natureza por meio de três pro-
cessos emblemáticos: a subordinação das plantas, dos animais e das mulheres.
O caso das plantas e dos animais é comumente narrado como sendo o início
do desenvolvimento da agricultura, este processo também simboliza uma
forma externalização do homem ao mundo circundante. É quando o homem
se compreende como senhor da natureza, convertida em um objeto de onde ele
pode extrair a subsistência, mas aos poucos também o acúmulo e o lucro por
meio da sua comoditização. Anna Tsing (2012) também coloca em relevo a
Passando a boiada
8 “Agro é tech” é o slogan de uma campanha publicitária em prol do agronegócio veiculada pelo maior grupo
de comunicação do país, proprietário da Rede Globo de Televisão, o Jornal O Globo, o portal G1 de internet,
entre outros
SOCIOLOGIA, ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA: temas emergentes 169
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sumidouro na história do tempo presente. Quando Nelson nos falou que tra-
balhou com febre e adoecido pela Covid-19 numa planta de processamento
de carne de um país que bateu recordes de exportação no mesmo ano em
que voltou a ingressar no mapa da fome, não tivemos dúvida: nós somos o
outro lugar.
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REFERÊNCIAS
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